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COMO V Congresso Internacional de Literatura Infantil e Juvenil

Presidente Prudente de 02 a 04 de agosto de 2017


ISBN: 978-85-69697-03-9
V Congresso Internacional de Literatura Infantil e Juvenil
Presidente Prudente de 02 a 04 de agosto de 2017
ISBN: 978-85-69697-03-9
Anais

(Trans)formação
deleitores: travessias
e travessuras

V Congresso Internacional de
Literatura Infantil e Juvenil
CILJ/2017

Renata Junqueira de Souza


Berta Lúcia Tagliari Feba
Juliane Francischeti Martins Motoyama
Marisa Oliveira Vicente
(Organizadoras)

ISBN: 978-85-69697-03-9

Presidente Prudente
Ninfa Brisa – Assessoria em Educação LTDA - ME
2018
V Congresso Internacional de Literatura Infantil e Juvenil
Presidente Prudente de 02 a 04 de agosto de 2017
ISBN: 978-85-69697-03-9
COMISSÃO CIENTÍFICA
(formada por coordenadores dos eixos temáticos)

Eixo Temático 1: Experiências na educação básica com a


escrita do texto literário
 Cláudio José de Almeida Mello (Universidade Estadual do
Centro-Oeste - UNICENTRO)
 Dagoberto Buim Arena (Universidade Estadual Paulista Júlio
de Mesquita Filho - Marília)
 Elisa Maria Dalla-Bona (Universidade Federal do Paraná)

Eixo Temático 2: Literatura Infantil para crianças pequenas


 Mônica Correia Baptista (Universidade Federal de Minas
Gerais – UFMG)
 Renata Nakano (editora)
 Cyntia Graziella Guizelim Simões Girotto (Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - Câmpus de
Marília)
 Cinthia Magda Fernandes Ariosi (Universidade Estadual
Paulista)

Eixo Temático 3: Poesia e oralidade


 Flávia Brochetto Ramos (Universidade de Caxias do Sul)
 José Hélder Pinheiro Alves (Universidade Federal de Campina
Grande)

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 Daniela Padilha (Editora)

Eixo Temático 4: A literatura juvenil e jovens leitores


 Thiago Alves Valente (Universidade Estadual do Norte do
Paraná - UENP-Cornélio Procópio)
 Elianeth Dias Kanthack Hernandes (Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP - Campus de
Marília)
 Berta Lúcia Tagliari Feba (Faculdade de Presidente Prudente)

Eixo Temático 5: Literatura infantil e as relações com a imagem


 Marta Passos Pinheiro (Centro Federal de Educação
Tecnológica de Belo Horizonte - Cefet/MG)
 Hércules Tolêdo Corrêa (Universidade Federal de Ouro Preto
– UFOP)
 Rogério Barbosa da Silva (Centro Federal de Educação
Tecnológica de Minas Gerais)

Eixo Temático 6: Literatura infantil e juvenil e as múltiplas


linguagens
 Fabiane Verardi Burlamaque (Universidade de Passo Fundo)
 Diogenes Buenos Aires de Carvalho (Universidade Estadual
do Piauí)
 Zíla Letícia Goulart Pereira Rêgo (Universidade Federal do
Pampa – Unipampa)

Eixo Temático 7: Literatura infantil e juvenil e temas polêmicos

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 Rosa Maria Hessel Silveira (Universidade Federal do Rio
Grande do Sul)
 Sandra Franco (Universidade Estadual de Londrina/UEL)
 Eduardo Augusto Werneck Ribeiro (Instituto Federal
Catarinense - Campus São Francisco do Sul (SC))

Eixo Temático 8: Literatura infantil e ensino


 Daniela Segabinazi (Universidade Federal da Paraíba)
 Rosana Rodrigues da Silva (Universidade do Estado do Mato
Grosso)
 Elizabeth da Penha Cardoso (Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo – PUC/SP)

Eixo Temático 9: Os espaços de leitura literária


 Alcione Santos (Universidade Federal do Mato Grosso do Sul)
 Rovilson José da Silva (Universidade Estadual de Londrina)
 Antônio Cézar N. de Brito (Faculdade Projeção)

Eixo Temático 10: Formação de leitores e mediação de leitura


 Eliane Santana Dias Debus (Universidade Federal de Santa
Catarina)
 Silvana Augusta Barbosa Carrijo (Universidade Federal de
Goiás)
 Danglei de Castro Pereira (Universidade de Brasília)

Eixo Temático 11: Literatura e estratégias de leitura


 Ana Crelia Penha Dias (Universidade Federal do Rio de
Janeiro)

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 Sílvia de Fátima Pilegi Rodrigues (Universidade Federal de
Mato Grosso)
 Joice Ribeiro Machado da Silva (Universidade Federal de
Uberlândia/ESEBA).

Eixo Temático 12: Literatura infantil e juvenil e outras


áreas do conhecimento
 Maria Helena Hessel (Universidade Federal do Ceará)
 Paulo Cesar Raboni (Universidade Estadual Paulista)
 Alberto Albuquerque Gomes (Universidade Estadual Paulista)

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COMISSÃO ORGANIZADORA
Ana Laura Garro dos Santos
Anderson Flávio Piovesan
Anny Gonçalves
Berta Lúcia Tagliari Feba
Berta Lúcia Oliveira
Cinthia Magda Fernandes Ariosi
Clara Cassiolato Junqueira
Claudia Leite Brandão
Eduardo Peinado
Elianeth Kanhack Hernandes
Fernando Teixeira Luiz
Franciela Sanches da Silva
Gabriele Goes da Silva
Gislene Aparecida da Silva Barbosa
Helen Favareto
Izabele Dias dos Santos
Joyce Araújo Reinol
Juliane Francischeti Martins Motoyama
Kenia Adriana de Aquino Modesto Silva
Luana Neves
Lucimara Miqueloti
Mariana Revoredo
Márcia Regina Mendes Venâncio
Renata Junqueira de Souza
Robson Guimarães
Rogério Eduardo Garcia
Silvana Ferreira de Souza Balsan
Sílvia de Fátima Pilegi
Thiago Moessa Alves
Vania Kelen Belão Vagula
Victor Hugo Casagrande

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APRESENTAÇÃO

O CELLIJ (Centro de Estudos em Leitura e Literatura Infantil e Juvenil


―Maria Betty Coelho Silva"), de Presidente Prudente/São Paulo,
tradicionalmente promove o Congresso Internacional de Literatura Infantil e
Juvenil desde 1999. Trata-se de um evento que discute com professores,
livreiros, autores e pesquisadores brasileiros e de diferentes países o ensino da
leitura, a qualidade da produção dos livros infantis e juvenis e a importância da
literatura infantil e juvenil como material de leitura. A edição de 2017 do
Congresso tem como tema (Trans)formação de leitores: travessias e
travessuras, tal tema centra-se nas estratégias de leitura do texto literário.
TRAVESSIAS como caminhos, trilhas, percursos, trajetos, veredas e múltiplas
possibilidades de conduzir crianças e adolescentes ao encontro com o livro. As
TRAVESSURAS, por sua vez, remetem à natureza da literatura como arte.
O centro foi criado em 1995, com o objetivo principal de formar leitores a
partir do texto literário e de proporcionar um diálogo direto com professores,
jovens alunos, instâncias governamentais responsáveis pela implementação de
políticas públicas no campo da Educação, bem como com discentes do curso
de Pedagogia e seus docentes e, posteriormente, com o Programa de Pós-
Graduação em Educação. O Centro atende crianças e jovens da Educação
Infantil aos anos finais do Ensino Fundamental. Com vários projetos
financiados, nacional e internacionalmente, o CELLIJ atua com políticas
públicas de leitura, pesquisando e comparando índices de desempenho de
estudantes dos anos iniciais do Ensino Fundamental e da Educação Infantil e
com ações que possam diminuir os déficits de aprendizagem desses alunos.

Comissão Organizadora

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PROGRAMAÇÃO
02 de Agosto

MANHÃ TARDE NOITE

08:00-09:00 - Retirada do 13:30-15:00 – Mesa redonda 1 19:00 –


material Palavras Aladas: poesia e Lançamento de
narração oral na escola livros e coquetel
Gilka Girardello (UFSC)
José Hélder Pinheito (UFCG)
09:00-09:30 – Abertura Oficial 15:00-15:30 – Intervalo

09:30-11:30 – Palestra de 15:30–17:00 – Mesa redonda 2


abertura ―Puntos Cardinales Lectores:
Opening Dialogic Space in Creacion de vínculos espacios,
Literature Discussions: Talk, necesidades y atmósferas
Text, and Tools for Promoting lectoras‖ Constanza Mekis
Argument Literacy Universidad de Zaragoza,
Ian Wilkinson (Ohio State Presidenta IBBY Chile
University).
11:30-13:30 – Almoço

03 de Agosto

Apresentações de Apresentações de comunicações 19:00 –


comunicações orais e pôsteres orais e pôsteres Apresentação
cultural
04 de Agosto

09:00-12:00 – Mesa redonda 3 14:00-15:30 – Encerramento:


Livros infantis: do berço ao e- Práticas pedagógicas que
book incentivam a competência e o
Ana Paula Paiva (escritora) prazer pela leitura: um estudo
Anna Cláudia sobre escolas públicas
Ramos (escritora) alternativas nos Estados Unidos.
Edgar Roberto Lucila Rudge (University of
Kirchof (Universidade Luterana Montana)
do Brasil)
15:30 – Show cultural de
encerramento

OBSERVAÇÃO: Os textos apresentados neste material, afirmações e


conceitos expostos são de responsabilidade exclusiva dos autores.

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PALESTRANTES CONVIDADOS

Ian A. G. Wilkinson

Ian A. G. Wilkinson é professor na Escola de Ensino e


Aprendizagem da Ohio State University, onde ministra
cursos de leitura e letramento argumentativo. Dr.
Wilkinson foi membro do corpo docente da Universidade
de Auckland, Nova Zelândia. Seus interesses de
pesquisa são cognição, ensino e metodologia de
pesquisa relacionados ao estudo da leitura. Atualmente,
ele conduz pesquisas sobre contextos escolares e
alfabetização, com especial atenção ao trabalho em
grupo em sala de aula e às práticas de discussão
destinadas a promover a compreensão do texto por
parte dos alunos.

Constanza Mekis

Bibliotecária, graduada na Universidade do Chile,


trabalha há 30 anos na área da biblioteca escolar.
Trabalhou na Coordenação Nacional de Bibliotecas
Escolares / CRA Educação Básica do Ministério da
Educação do Chile por 20 anos e é ex-Diretora da
Associação Internacional da Escola de
Biblioteconomia (IASL). Especialista em leitura oral,
realiza regularmente sessões de contação de
histórias com crianças, jovens, professores e pais.
Em 2004, recebeu o Prêmio Anual Câmara Livro
chileno para o compromisso excepcional para a
promoção da leitura, trabalhou no Programa de
Mestrado em Promoção da Leitura, coordenado
pela Universidade Alcalá de Henares e Fundación
Germán Sánchez Ruipérez. Atuou como professora
no Programa de Pós-Graduação em bibliotecas
escolares, cultura escrita e da sociedade em rede,
da Universidade Autônoma de Barcelona e do Centro de Superiores (CUEA),
Estudos Universitários da Organização dos Estados Americanos (OEI), em
Barcelona no ano de 2012. Atualmente, é estudante e professora associada do
Mestrado em Leitura e Literatura infantil da Universidade de Zaragoza. É Co-
autora do documento coletivo por bibliotecas escolares na América Latina
(CERLALC), participante do Grupo Gestor do Projeto de Bibliotecas Escolares
do Mercosul e membro da equipe de consultoria da OEI / Espanha em "Leitura
e Bibliotecas Escolares".

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Lucila Rudge

Professora no Departamento de Ensino e


Aprendizagem da University of Montana, onde atua
na graduação e na pós graduação com as disciplinas:
Ensino e Aprendizagem, Psicologia Educacional e
Desenvolvimento Infantil. Estudiosa da educação
holística, um paradigma educacional que integra as
ideias idealistas da educação humanista com ideias
filosóficas espirituais. Lucila tem se dedicado à
pesquisas que exploram a aplicação pedagógica da
educação holística em sistemas escolares
alternativos, como as escolas: Waldorf, Montessori e
Reggio Emilia.

Ana Paula Paiva


Professora, escritora, formadora e consultora em
literatura infantil (MEC, 2010-2015). Doutora em
Educação pela UFMG (FAE, 2013). Mestrado em
Comunicação Social pela UFMG (FAFICH, 2002).
Graduação em Comunicação Social pela UFRJ
(ECO, 1998). Atuação principal: Formadora de
professores de Educação Infantil na PBH
(Prefeitura de Belo Horizonte/UMEIS, 2016) e
oficineira profissional em confecção de livros
infantis pedagógicos (PBH/MinC). Autora de A
aventura do livro experimental (Edusp e Autêntica,
2015) e Professor criador: fabricando livros para a
sala de aula (Autêntica Editora, 2016).

Anna Cláudia Ramos


Carioca, escritora, graduada em Letras pela
PUC-Rio e mestre em Ciência da Literatura pela
UFRJ. Viaja mundo afora ministrando palestras e
oficinas sobre sua experiência com leitura e
como escritora e especialista em literatura infantil
e juvenil.

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Edgar Kirchof
Possui graduação em Letras (Português/Alemão)
pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (1995),
graduação em Teologia pela Escola Superior de
Teologia (1998), mestrado em Ciências da
Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos
Sinos (1997) e doutorado em Linguística e Letras
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (2001), tendo realizado um Pós-Doutorado na
área da Biossemiótica na Universidade de Kassel,
Alemanha. Atualmente é coordenador do Programa
de Pós-Graduação em Educação (PPGEDU) e
professor adjunto da Universidade Luterana do
Brasil, atuando, como docente e pesquisador, no
PPGEDU e no Curso de Letras. Tem experiência na
área de Letras e Educação, atuando principalmente nos seguintes temas:
Teoria da Literatura, Estudos Culturais, Semiótica e Cibercultura.

Eliane Debus
É graduada em Letras (FUCRI, 1991), mestre em
Literatura (UFSC, 1996) e doutora em Teoria
Literária (UCRS, 2001). Professora da
Universidade Federal de Santa Catarina, na
graduação atua no Departamento de Metodologia
de Ensino junto aos Cursos de Pedagogia e
Letras; na Pós-graduação atua no programa de
Pós-Graduação em Educação, na linha Ensino e
Formação de educadores. É líder do Grupo de
pesquisa Literalise: pesquisas sobre literatura
infantil e juvenil e práticas de mediação literária e
tutora do PET/Pedagogia.

Gilka Girardello
Professora do Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal de Santa
Catarina, é doutora em Ciências da Comunicação
(USP), mestre em Ciências Humanas (New School
for Social Research, NYC/EUA). Coordena o
Núcleo de Pesquisas Infância, Comunicação e Arte
da UFSC. Realizou pós-doutorado em Educação na
City University of New York em 2010,
desenvolvendo a pesquisa ―Cultura nos Anos
Iniciais do Ensino Fundamental: autoria narrativa

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infantil e imaginário midiático‖ (Fulbright/Capes). Entre os livros que organizou
e escreveu se destacam Liga, Roda, Clica: estudos sobre infância, cultura e
mídias (em co-autoria com Monica Fantin, Papirus, 2008), Uma Clareira no
Bosque; contar histórias na escola (Papirus, 2014).

Hélder Pinheiro
José Hélder Pinheiro Alves é professor de
Literatura brasileira na Universidade Federal de
Campina Grande, Paraíba. Publicou, dentre
outras obras, Poesia na sala de aula (2007), e,
com Ana Cristina Marinho Lúcio Cordel no
cotidiano escolar. Atua no mestrado em
Linguagem e Ensino, da Unidade Acadêmica de
Letras da UFCG, onde orienta pesquisas
voltadas para a prática da leitura literária em
sala de aula. Já orientou vários trabalhos
voltados para Literatura de Cordel e seu ensino.
Tem artigos publicados em revistas e livros
voltados sobretudo para o trabalho com poema
no contexto escolar.

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Sumário
SESSÃO DE COMUNICAÇÃO ORAL........................................................................ 29
EIXO TEMÁTICO 1:Experiências na educação básica com a escrita do texto
literário ...................................................................................................................... 30
A ESCRITA LITERÁRIA A PARTIR DE EXPERIÊNCIAS NO ENSINO MÉDIO ... 32
ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DO CÍRCULO DE BAKHTIN PARA O ENSINO DE
ATOS DE ESCRITA ............................................................................................ 44
A RELAÇÃO CONSTITUTIVA ENTRE METODOLOGIA E TEORIA NA PRÁTICA
DOCENTE DE MIKHAIL BAKHTIN: A CONSTITUIÇÃO LEITORA E AUTORA NO
ENSINO FUNDAMENTAL ................................................................................... 61
CONCURSOS LITERÁRIOS OFICIAIS NO BRASIL E EM PORTUGAL E A
EDUCAÇÃO LITERÁRIA ..................................................................................... 72
CRÔNICAS DIGITAIS: A MULTIMODALIDADE NA ESCOLARIZAÇÃO DA
LITERATURA ...................................................................................................... 83
FORMAÇÃO AUTORA: A ESCRITA DE CONTOS MARAVILHOSOS................. 94
DIÁRIO DE LEITURA COMO PRÁTICA NAS AULAS DE LITERATURA INFANTIL
E JUVENIL ........................................................................................................ 114
SELF-REGULATED STRATEGIES DEVELOPMENT (SRSD) E A
AUTORREGULAÇÃO DA ESCRITA .................................................................. 128
RICARDO AZEVEDO E O DESPERTAR DOS PEQUENOS ESCRITORES: UMA
SEQUÊNCIA DIDÁTICA PARA O LER E O ESCREVER TEXTOS LITERÁRIOS
.......................................................................................................................... 143
FÁBULAS: POVOANDO O IMAGINÁRIO, INSTIGANDO A AUTORIA DAS
CRIANÇAS* ....................................................................................................... 152
EIXO TEMÁTICO 2:Literatura Infantil para crianças pequenas ........................... 172
A LITERATURA PARA OS PEQUENOS: DOS ESPAÇOS, DAS OBRAS E DAS
INTERAÇÕES ................................................................................................... 175
A NARRAÇÃO DE CONTOS PARA CRIANÇAS EM IDADE PRÉ-ESCOLAR: UM
RECURSO PEDAGÓGICO FUNDAMENTAL PARA PROMOVER O
DESENVOLVIMENTO INFANTIL ...................................................................... 191
A PERSPECTIVA VIGOTSKIANA DA LITERATURA INFANTIL: FORMAÇÃO DO
PROFESSOR E EDUCAÇÃO INFANTIL ........................................................... 201
BEBÊS E LIVROS: SUTILEZA, VÍNCULO E RECIPROCIDADE ....................... 215
CONHECENDO AUTORES DA LITERATURA INFANTIL ................................. 231
CONTAR E DIZER NA PRIMEIRÍSSIMA INFÂNCIA: DIFERENÇAS E
BENEFÍCIOS ..................................................................................................... 240
CONTOS E ENCANTOS DESDE AS PRIMEIRAS PALAVRAS- MOMENTOS DE
APRENDIZAGENS SIGNIFICATIVAS! .............................................................. 257

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LITERATURA INFANTIL E EDUCAÇÃO AMBIENTAL: UMA EXPERIÊNCIA DO
PROJETO LABINTER ....................................................................................... 272
LITERATURA INFANTIL E FORMAÇÃO LEITORA NA EDUCAÇÃO INFANTIL:
CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL................................. 288
O PROCESSO DE FORMAÇÃO DO LEITOR LITERÁRIO NA ESCOLA DA
PEQUENA INFÂNCIA........................................................................................ 303
LIVROS PARA UM CORPO EM EXPANSÃO: ESTUDOS SOBRE A LEITURA NA
PRIMEIRA INFâNCIA ........................................................................................ 316
MEDIAÇÃO DO LIVRO SEM PALAVRAS COM AS CRIANÇAS:PERSPECTIVAS
DOS CONTADORES DE HISTÓRIA EM LONDRINA ........................................ 330
O LIVRO NAS MÃOS DOS BEBÊS:TOCAR, CONTER, ABRIR, FOLHEAR, LER,
PRESERVAR, FECHAR, GUARDAR................................................................. 344
A UTILIZAÇÃO DA LITERATURA INFANTIL NA FORMAÇÃO DE LEITORES NA
EDUCAÇÃO INFANTIL ...................................................................................... 359
EIXO TEMÁTICO 3:Poesia e Oralidade .................................................................. 371
BRINCANDO DE POESIA: REFLEXÕES SOBRE A CRIANÇA, O BRINQUEDO E
A POESIA, A PARTIR DO POEMA ―O POETA APRENDIZ‖, DE VINICIUS DE
MORAES ........................................................................................................... 373
PÊ DE PAI: PALAVRAS, IMAGENS E POESIA ................................................ 386
COMO E POR QUE TRABALHAR O TEXTO POÉTICO EM SALA DE AULA? DO
LETRAMENTO LITERÁRIO À PRODUÇÃO ESCRITA ...................................... 396
LEITURA E APRECIAÇÃO DE TEXTOS POÉTICOS NAALFABETIZAÇÃO: UMA
EXPERIÊNCIA COM SARAU DE POESIA ........................................................ 414
POESIA E VOZES DAS CRIANÇAS: ÊNFASE NA PASSAGEM DA EDUCAÇÃO
INFANTIL PARA O ENSINO FUNDAMENTAL .................................................. 424
POMAR DE BRINQUEDOS E CANTORIAS DE JARDIM:CONSIDERAÇÕES
SOBRE A POÉTICA DE ELOÍ BOCHECO ........................................................ 432
EIXO TEMÁTICO 4:A Literatura Juvenil e os Jovens Leitores ............................. 448
UMA ANÁLISE DA CATEGORIA CONTEÚDO E FORMA EM ―EU, FERNANDO
PESSOA‖ - EM QUADRINHOS - PARA A FORMAÇÃO DE JOVENS LEITORES
.......................................................................................................................... 450
AS NARRATIVAS MÍTICAS RESSIGINIFICADAS EM BORGES E HAWTHORNE:
UMA ANÁLISE DE LEITURAS JUVENIS NA EDUCAÇÃO BÁSICA .................. 457
O MENINO, A LINGUAGEM E A POESIA: UMA POSSIBILIDADE DE LEITURA
DE O FANTÁSTICO MUNDO DE BOBBY (1990) .............................................. 469
O QUE É MESMO LITERATURA JUVENIL? ..................................................... 481
OS CONTOS DE FADAS CONTEMPORÂNEOS: UM OLHAR ATENTO PARA O
PROTAGONISMO DAS PRINCESAS AFRICANAS .......................................... 492

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O PROTAGONISMO DUVIDOSO NAS RELEITURAS DOS CLÁSSICOS
EUROPEUS: UMA ANALISE DO LIVRO ―PRETINHA DE NEVE E OS SETE
GIGANTES‖ (2013) ............................................................................................... 502
NARRATIVAS JUVENIS: FRACASSOS E ÊXITOS NA FORMAÇÃO DE
LEITORES ......................................................................................................... 508
A GUERRA DE PERMEIO NO TEXTO JUVENIL ............................................. 514
A NARRATIVA POLICIAL JUVENIL: LEITURA, CRIAÇÃO E PRAZER ............. 523
A REPRESENTAÇÃO DA PERSONAGEM AFRODESCENDENTE NA OBRA
MENINA BONITA DO LAÇO DE FITA, DE ANA MARIA MACHADO ................. 538
PROTAGONISTAS DE LYGIA BOJUNGA ―EM TRÂNSITO‖ ............................. 547
A UM BRUXO COM CARINHO: MACHADO DE ASSIS SE APROXIMA DO
JOVEM LEITOR ................................................................................................ 557
A VOZ DO LEITOR: UMA ANÁLISE DA OBRA PAISAGEM, DE LYGIA
BOJUNGA. ........................................................................................................ 571
FANCTION: LEITURA E ESCRITA INFANTOJUVENIL ..................................... 583
MENINOS NÃO CHORAM?: A RECEPÇÃO DO LEITOR INFANTOJUVENIL NO
CONTO ―NÓS CHORAMOS PELO CÃO TINHOSO‖, DE ONDJAKI.................. 599
NARRATIVA JUVENIL CONTEMPORÂNEA: A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE
JUVENIL EM OBRAS BRASILEIRAS E PORTUGUESAS ............................... 610
O DISCURSO DIALÓGICO NO ROMANCE ILUMINURAS, DE ROSANA RIOS626
NO DIVÃ E NA ESCRIVANINHA: BREVE ANÁLISE PSICANALÍTICA E
ESTILÍSTICA DO CONTO ―COMO SE FOSSE‖, DE MARINA COLASANTI...... 644
FACES DO NARRADOR E DO LEITOR DE O PEQUENO PRÍNCIPE: O
ADULTO E A CRIANÇA .................................................................................... 656
EIXO TEMÁTICO 5:Literatura Infantil e as relações com a imagem .................... 672
A IMAGINISTA: REIMAGINANDO VISUALMENTE A OBRA ―EMMA‖ DE JANE
AUSTEN E CRIANDO NOVOS PERCURSOS DE LEITURA............................. 674
LITERATURA FANTÁSTICA E ARTES VISUAIS: O ESTÍMULO DA
CRIATIVIDADE DE CRIANÇAS ATRAVÉS DO ELEMENTO FANTÁSTICO E DAS
ILUSTRAÇÕES ................................................................................................. 690
A ILUSTRAÇÃO DE SALMO DANSA PARA OS CONTOS DE ANDERSEN ..... 697
a REPRESENTAÇÃO DO HERÓI NEGRO NA LITERATURA INFANTIL:
ANÁLISE DO LIVRO mANDELA, O AFRICANO DE TODAS AS CORES (2013),
DE ALAIN SERRES ........................................................................................... 707
AS RELAÇÕES ENTRE IMAGENS E TEXTOS VERBAIS EM LIVROS
INFORMATIVOS. .............................................................................................. 719
A REPRESENTAÇÃO DA PERSONAGEM FEMININA NEGRA NA OBRA LA
MUÑECA NEGRA ............................................................................................. 733

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EMMA/ JUREMMA: REIMAGINANDO A OBRA ―EMMA‖ DE JANE AUSTEN
PARA O CONTEXTO BRASILEIRO EM UM LIVRO ILUSTRADO ..................... 744
ILUSTRAÇÕES COLORIDAS EM LIVROS PARA CRIANÇAS NO BRASIL:
FRANZ RICHTER E A BIBLIOTeCA INFANTIL MELHORAMENTOS ................ 759
IMAGENS DE BRUXAS: (DES)CONSTRUINDO REPRESENTAÇÕES NA
LITERATURA INFANTIL CONTEMPORÂNEA .................................................. 775
LENDO IMAGENS: UMA ANÁLISE DO LIVRO ―A BRUXA E O ESPANTALHO‖
.......................................................................................................................... 794
LITERATURA E IMAGEM: EXERCÍCIOS E SABERES EM DUAS OBRAS DE
MANOEL DE BARROS...................................................................................... 804
LIVRO ILUSTRADO: QUEBRANDO O BRINQUEDO PARA VER COMO
FUNCIONA* ...................................................................................................... 813
MENINAS E JOVENS: IMAGENS E REPRESENTAÇÕES EM ALGUNS LIVROS
DE LITERATURA INFANTOJUVENIL ............................................................... 835
NARRATIVAS POR IMAGENS: O QUE DIZEM AS CRIANÇAS DA EDUCAÇÃO
INFANTIL? ......................................................................................................... 855
NARRATIVAS TÁTEIS: CONTAÇÃO DE HISTÓRIA PARA A CRIANÇA COM
DEFICIÊNCIA VISUAL ...................................................................................... 870
O DIÁLOGO COLABORATIVO ENTRE TEXTO E IMAGEM EM O LAGARTO DE
JOSÉ SARAMAGO ............................................................................................ 876
O PAPEL DO ILUSTRADOR NA PRODUÇÃO EDITORIAL INFANTIL .............. 886
O VERBAL E O NÃO VERBAL EM FOI ASSIM... (2008), DE BARTOLOMEU
CAMPOS DE QUEIRÓS .................................................................................... 896
POEMAS DE BRINQUEDO, DE ÁLVARO ANDRADE GARCIA: O LIVRO
MULTIPLATAFORMA E A FORMAÇÃO DE LEITORES ................................... 910
UM ESTUDO DAS IMAGENS DO 1º LIVRO DE LEITURA DA SÉRIE DIDÁTICA
CAMINHO SUAVE ............................................................................................. 920
VISITA À BALEIA: ILUSTRAÇÃO E PROJETO GRÁFICO ................................ 933
O LIVRO INFANTIL PELO OLHAR DA CRIANÇA ............................................ 948
DIFERENTES VERSÕES DE UMA OBRA PRODUZEM DISTINTAS RELAÇÕES
ENTRE TEXTO VERBAL E TEXTO IMAGÉTICO? ANÁLISE DE UM POEMA E
SUA ILUSTRAÇÃO NAS VERSÕES DA OBRA ―PÉ DE PILÃO‖ DE MÁRIO
QUINTANA ........................................................................................................ 958
PERSONAGENS HUMANAS DA TURMA DA MÔNICA E A INCLUSÃO SOCIAL
.......................................................................................................................... 970
EIXO TEMÁTICO 6:Literatura Infantil e Juvenil e as Múltiplas Linguagens ........ 980
pOESIA ELETRÔNICA: UMA POSSIBILIDADE DE FORMAÇÃO DE LEITORES
.......................................................................................................................... 982
APP BOOKS E LITERATURA INFANTIL: ANÁLISE DOS APLICATIVOS BOUM! E
FLICTS .............................................................................................................. 995
V Congresso Internacional de Literatura Infantil e Juvenil
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AS ESTRATÉGIAS LITERÁRIAS E IMAGÉTICAS PRESENTES NA NARRATIVA
INFANTO-JUVENIL: TECELINA ...................................................................... 1004
CANTAR HISTÓRIAS, ENCANTAR E FORMAR LEITORES: REFLEXÕES
SOBRE MÚSICA E LITERATURA NA EDUCAÇÃO INFANTIL ....................... 1019
CHAPEUZINHO VERMELHO: UM CONTO ADAPTADO PARA O FOLHETO
POPULAR ....................................................................................................... 1027
DOM QUIXOTE: UM ESTUDO INTERARTES ................................................. 1043
JABUTI NA TELA: UMA PROPOSTA DE ESTUDO DO LIVRO INTERATIVO
DIGITAL PARA CRIANÇAS ............................................................................. 1059
LEITURA LITERÁRIA E ENSINO DE GEOGRAFIA: EXPERIÊNCIAS COM
MÚLTIPLAS LINGUAGENS............................................................................. 1070
LIVROS DIGITAIS INFANTIS: NOVAS FORMAS DE LEITURA PARA CRIANÇAS
........................................................................................................................ 1085
O PROTAGONISMO DA INFÂNCIA EM O MENINO MALUQUINHO, DE
ZIRALDO: INTERFACES ENTRE LITERATURA, ESTÉTICA E SOCIOLOGIA DA
INFÂNCIA. ....................................................................................................... 1097
LETRAMENTO LITERÁRIO E CINEMA: AS MÚLTIPLAS LINGUAGENS ENTRE
VER UM LIVRO E LER UM FILME. ................................................................. 1105
INTERTEXTUALIDADE ENTRE LITERATURA E CINEMA: POSSÍVEIS
DIÁLOGOS ENTRE A OBRA CRÔNICAS DE NATAL E HISTÓRIAS DA MINHA
AVÓ E O FILME POR CAUSA DO PAPAI NOEL. ........................................... 1122
O TRABALHO DOCENTE FEMININO: REPRESENTAÇÕES NA LITERATURA
INFANTIL......................................................................................................... 1135
PRODUÇÃO NARRATIVA ORAL DE CRIANÇAS E O TEXTO LITERÁRIO .... 1145
ZOOM NA POESIA:PRÁTICAS MULTILETRADAS NA FORMAÇÃO DE
LEITORES ....................................................................................................... 1160
EIXO TEMÁTICO 7:Literatura Infantil e Juvenil e Temas Polêmicos ................. 1177
A LITERATURA INFANTIL E O MEDO: REPRESENTAÇÕES EM O PEIXE
PIXOTE, DE SÔNIA JUNQUEIRA, E O GATO E O ESCURO, DE MIA COUTO
........................................................................................................................ 1179
REPRESENTAÇÃO DO FEMININO EM VITÓRIA VALENTINA, DE ELVIRA
VIGNA ............................................................................................................. 1186
A MORTE COMO NEGAÇÃO E CONFIRMAÇÃO DA VIDA: UMA ANÁLISE
COMPARATIVA ENTRE A OBRA mEU aMIGO PINTOR DE LYGIA BOJUNGA
NUNES E DOIS PASSOS PÁSSAROS. E O VOO ARCANJO DE NILMA
GONÇALVES LACERDA. ................................................................................ 1203
A MORTE NOS CONTOS DE FADA: UM ESTUDO SOBRE ―O ESTRANHO
PÁSSARO‖, DE ROSANA RIOS...................................................................... 1219
A PRINCeSA SABICHONA: PERFORMAÇÕES DE GÊNERO NA LITERATURA
INFANTIL......................................................................................................... 1232

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A REPRESENTAÇÃO DA DEFICIÊNCIA VISUAL NA OBRA ―TODA LUZ QUE
NÃO PODEMOS VER‖ DE ANTHONY DOERR .............................................. 1246
AS ESCOLHAS DE LEITURA DOS JOVENS: RECONHECENDO OUTRAS
PRÁTICAS DE LETRAMENTO........................................................................ 1256
DEZ SACIZINHOS: UMA DAS TRILHAS PARA REFLETIR A MORTE NA
LITERATURA .................................................................................................. 1268
ENTRELAÇANDO LITERATURA E BULLYING: A MEDIAÇÃO NESSE
PROCESSO .................................................................................................... 1276
NUM TRONCO DE IROKO VI A IÚNA CANTAR: HISTÓRIAS DE CAPOEIRA,
RELIGIÃO E IDENTIDADE .............................................................................. 1293
O CORPO NEGRO EM O MENINO CORAÇÃO DE TAMBOR ........................ 1304
O SILÊNCIO QUE DIZ MUITO ........................................................................ 1313
QUESTÕES POLÊMICAS NAS ADAPTAÇÕES INFANTIS:EL LAZARILLO DE
TORMES ......................................................................................................... 1324
DISCUSSÃO DE TEMAS POLÊMICOS EM SALA DE AULA A PARTIR DA OBRA
SAPATO DE SALTO DE SALTO DE LYGIA BOJUNGA .................................. 1330
AQUELE QUE ACREDITA EM RÓTULOS, NO MAIS DAS VEZES SE ENGANA:
O "POLITICAMENTE CORRETO" NA LITERATURA INFANTIL...................... 1341
RETRATOS DA GUERRA CIVIL ESPANHOLA NA LITERATURA JUVENIL
GALEGA .......................................................................................................... 1356
EIXO TEMÁTICO 8:Literatura Infantil e Ensino ................................................... 1367
A LEITURA LITERÁRIANA EDUCAÇÃO INFANTIL: REFLEXÕES PARA A
FORMAÇÃO DO ALUNO-LEITOR COMPETENTE ......................................... 1369
A LITERATURA INFANTIL NA ALFABETIZAÇÃO E O PROCESSO DE
(TRANS)FORMAÇÃO DE LEITORES E ESCRITORES .................................. 1382
A LITERATURA INFANTIL NO PACTO NACIONAL PELA ALFABERTIZAÇÃO NA
IDADE CERTA: PRÁTICAS LITERÁRIAS EM SALA DE AULA. ...................... 1396
A LITERATURA MATO-GROSSENSE E AS TIC´S: POR UMA FORMAÇÃO
LEITORA ......................................................................................................... 1412
AS VÁRIAS CHAPEUZINHOS VERMELHOS: ANÁLISE DE UM CONTO, UM
RECONTO E UM CONTO SIMPLIFICADO ..................................................... 1425
COLORINDO OS CHAPÉUS: UMA EXPERIÊNCIA DE FORMAÇÃO DE
LEITORES-CONTADORES MIRINS ............................................................... 1444
CONTORNOS DA CONTEMPORANEIDADE NO GÊNERO DRAMÁTICO
INFANTIL BRASILEIRO: UMA LEITURA DE A VIAGEM DE UM BARQUINHO, DE
SYLVIA ORTHOF ............................................................................................ 1457
Da ILUSTRAÇÃO À PALAVRA: O (RE) DESPERTAR POÉTICO EM SALA DE
AULA ............................................................................................................... 1472
DIALÉTICA EPISTEMOLÓGICA DA LITERATURA INFANTIL ........................ 1485

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DOCE DE FORMIGA: UM BANQUETE POÉTICO PARA O PÚBLICO INFANTIL
........................................................................................................................ 1496
EIXO PUER-ET-SENEX NA OBRA INFANTO-JUVENIL MATO-GROSSENSE
UMA MANEIRA SIMPLES DE VOAR, DE IVENS SCAFF CUIABANO ............ 1507
ENSINO DA LITERATURA INFANTIL EM INSTITUIÇÕES DE UMA CIDADE
MINEIRA.......................................................................................................... 1522
ENSINO DE LITERATURA E FORMAÇÃO DE VALORES HUMANOS. .......... 1535
IDENTIDADE E MEMÓRIA EM OS MENINOS MORENOS DE ZIRALDO: UM
DIÁLOGO COM O FLICTS EM BUSCA DA IDENTIDADE CULTURAL DO JOVEM
LEITOR ........................................................................................................... 1546
LER, REMEMORAR E ESCREVER: UM DIÁLOGO ENTRE ........................... 1561
O ENSINO DE LITERATURA E A PRODUÇÃO TEXTUAL ............................. 1561
LITERATURA DE CORDEL: UMA ABORDAGEMSOCIODISCURSIVA .......... 1576
LITERATURA INFANTIL E A PESQUISA CIENTÍFICA .................................. 1585
LITERATURA INFANTIL E IDENTIDADE ÉTNICO-RACIAL: EXPERIÊNCIAS
FORMATIVAS NO ESTÁGIO SUPERVISIONADO DO CURSO DE PEDAGOGIA
........................................................................................................................ 1593
OS APLCATIVOS DIGITAIS DE CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS ....................... 1604
PESQUISAS SOBRE LITERATURA INFANTIL E JUVENIL EM MATO GROSSO
DO SUL : O ESTADO DO CONHECIMENTO ENTRE 2005-2015 ................... 1619
PRESCILIANA DUARTE DE ALMEIDA E A LITERATURA INFANTIL ............. 1634
PROJETOS DE LITERATURA INFANTIL: RELATOS DO PIBID-
INTERDISCIPLINAR EM SINOP, MATO GROSSO ......................................... 1646
SACOLA LITERÁRIA: EXPERIÊNCIA DE LEITURA COM INTERAÇÃO DA
FAMÍLIA........................................................................................................... 1659
EIXO TEMÁTICO 9:Os Espaços de Leitura Literária.......................................... 1668
A BIBLIOTECA ESCOLAR: ESPAÇO DE INTERCÂMBIO DE EXPERIÊNCIAS E
DE NARRATIVAS ............................................................................................ 1670
A BIBLIOTECA ESCOLAR COMO ESPAÇO DE PROMOÇÃO DA LEITURA
LITERÁRIA ...................................................................................................... 1680
OS MÚLTIPLOS ESPAÇOS QUE A LEITURA LITERÁRIA OCUPA NA ESCOLA
........................................................................................................................ 1692
A LITERATURA INFANTIL EM ESPAÇOS EDUCATIVOS DE PRESIDENTE
EPITÁCIO ........................................................................................................ 1704
BIBLIOTECA ESCOLAR E PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO:
PLANEJAMENTO INTEGRADO? .................................................................... 1715
BIBLIOTECA ESCOLAR: ESPAÇO DE MEDIAÇÃO DA LITERATURA
INFANTOJUVENIL .......................................................................................... 1731

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BIBLIOTECAS ESCOLARES DE RIO VERDE – GO: ALÉM DOS MODELOS, EM
BUSCA DE PROJETOS DE TRANSFORMAÇÃO COLETIVA......................... 1748
FAROL DO SABER: O USO DA BIBLIOTECA PELA COMUNIDADE ESCOLAR
........................................................................................................................ 1753
FRUTO DO CONHECIMENTO: A PRAÇA, O PÚBLICO, O LIVRO ................ 1765
O PAPEL DA BIBLIOTECA NO CONTEXTO DA ESCOLA PÚBLICA: DESAFIOS
E POSSIBILIDADES ........................................................................................ 1776
OS ESPAÇOS DE LEITURA LITERÁRIA E A EMANCIPAÇÃO DO SUJEITO 1790
OS ESPAÇOS DE LEITURA LITERÁRIA NA SOCIEDADE ATUAL: EM FOCO A
EDUCAÇÃO ESCOLAR .................................................................................. 1801
SOBRE ARTE, LEITURA E EDUCAÇÃO: A MISSÃO (IMPOSSÍVEL) DA
LITERATURA .................................................................................................. 1812
TEMPOS E ESPAÇOS DE LEITURA LITERÁRIA NA EDUCAÇÃO INFANTIL 1826
TRAVESSIAS OU TRAVESSURAS: PARA QUEM E PARA QUE SERVE A
LITERATURA INFANTIL NA CONTEMPORANEIDADE? ................................ 1849
EIXO TEMÁTICO 10:Formação de Leitores e Mediação de Leitura ................... 1857
A CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS E A ESCOLA: UM DESPERTAR PARA O
MUNDO DA LEITURA ..................................................................................... 1859
MEDIAÇÃO LITERÁRIA EM BIBLIOTECAS INFANTIS ................................... 1870
NAS ENTRELINHAS DA LEITURA: O QUE LEMOS? COMO LEMOS? O QUE SE
ENSINA COM PROJETOS DE LEITURA? ...................................................... 1882
A CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS NA FORMAÇÃO DOCENTE: HISTÓRIAS QUE
BRINCAM E ENCANTAM. ............................................................................... 1893
A CONTRIBUIÇÃO DAS RODAS DE LEITURA PARA A FORMAÇÃO DE
LEITORES ....................................................................................................... 1904
CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS E AS RODAS DE LEITURA .................................. 1913
A FORMAÇÃO DO LEITOR E A MEDIAÇÃO DA LEITURA PELA VIA DAS
PRÁTICAS DE LEITURA EM TURMAS DE QUINTO ANO DO ENSINO
FUNDAMENTAL .............................................................................................. 1920
A FORMAÇÃO DO LEITOR NA BIBLIOTECA UNIVERSITÁRIA:
POSSIBILIDADES E LIMITES ......................................................................... 1938
A LEITURA COMPARTILHADA, UMA MODALIDADE DIDÁTICA A FAVOR DA
FORMAÇÃO DE PROFESSORES LEITORES ................................................ 1952
A LEITURA DO LIVRO LITERÁRIO EM SALA DE AULA NO CICLO DE
ALFABETIZAÇÃO: CONTRIBUIÇÕES PARA A FORMAÇÃO DO LEITOR
INFANTIL......................................................................................................... 1959
A LITERATURA SURDA NO PROCESSO DE INCLUSÃO EDUCACIONAL ... 1973
A MEDIAÇÃO DOS CONTOS DE FADAS: POR UMA PRÁTICA PEDAGÓGICA
NECESSÁRIA À FORMAÇÃO DO LEITOR ..................................................... 1987

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A RELAÇÃO TEXTO-VIDA E A CAPACIDADE DE COAUTORIA DO LEITOR DE
LITERATURA .................................................................................................. 2000
ANÁLISE DAS CONCEPÇÕES DE LEITURA, FORMAÇÃO DE LEITORES E
ALFABETIZAÇÃO PRESENTES EM PERIÓDICO DISTRIBUÍDO PELO
GOVERNO. ..................................................................................................... 2008
AS CRIANÇAS E A PRODUÇÃO DE SENTIDOS PARA O TEXTO LITERÁRIO
........................................................................................................................ 2023
BIBLIOTECA ESCOLAR E PRÁTICAS DE LEITURA: A FORMAÇÃO DO LEITOR
LITERÁRIO ...................................................................................................... 2036
BIBLIOTECAS PRISIONAIS: A LEITURA COMO FORMA DE REMIÇÃO DA
PENA, RESSOCIALIZAÇÃO E PREPARAÇÃO PARA O REGRESSO À
SOCIEDADE ................................................................................................... 2046
DA LEITURA AOS LEITORES: PRÁTICA DE OFICINA LITERÁRIA NAS
ESCOLAS........................................................................................................ 2060
EDUCAÇÃO LITERÁRIA: UM OLHAR PARA OS PROJETOS DE LEITURA
ESCOLARES ................................................................................................... 2074
EM DIÁLOGO COM PERSONAGENS DA LITERATURA INFANTIL: O DESEJO
DO DOCENTE DE CONSTITUIR-SE COMO SUJEITO LEITOR E AUTOR .... 2088
ENTRE MEDIAÇÃO E CONFLITOS SOCIOCOGNITIVOS: UMA DISCUSSAÕ
NECESSÁRIA.................................................................................................. 2097
―ERA PARA TER SIDO DE OUTRA FORMA!‖: UM NOVO OLHAR SOBRE A
DISCUSSÃO DE HISTÓRIAS EM SESSÕES COLABORATIVAS ................... 2113
ESTRATÉGIAS DE LEITURA E QUADRINHOS: UM PLANO INFALÍVEL PARA
FORMAR LEITORES!...................................................................................... 2122
FORMAÇÃO DE LEITORES E ENSINO DE LITERATURA NO HORIZONTE DA
UBIQUIDADE .................................................................................................. 2137
FORMAÇÃO DE LEITORES LITERÁRIOS NA ESCOLA – MEDIAÇÃO LEITORA
E ATIVIDADES LITERÁRIAS .......................................................................... 2153
HORA DO CONTO DE UMA ESCOLA PÚBLICA DE LONDRINA-PR*........... 2169
LEITURA E CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL:
ASPECTOS DE ESPECIFICIDADES DO TRABALHO DOCENTE .................. 2188
LEITURA E LITERATURA EM UM PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
EDUCAÇÃO .................................................................................................... 2202
LETRAMENTO LITERÁRIO: UMA PROPOSTA DE SEQUÊNCIA EXPANDIDA
DE LEITURA DA OBRA O FILHO ETERNO, DE CRISTOVÃO TEZZA ........... 2211
LITERATURA INFANTIL: O ATO DE LER NA ESCOLA DA INFÂNCIA........... 2222
LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS EM SANTA CATARINA:
PUBLICAÇÃO EM LIVRO ONLINE.................................................................. 2231
―LITERATURA PARA QUÊ? PARA QUEM? E DE QUE MODO?‖: REFLEXÕES
SOBRE A FORMAÇÃO DO LEITOR LITERÁRIO ............................................ 2240
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MANOEL DE BARROS VAI À ESCOLA: UMA PROPOSTA LITERÁRIA NO
ENSINO FUNDAMENTAL ............................................................................... 2256
MEDIAÇÃO DOCENTE: APONTAMENTOS E POSSIBILIDADES PARA A
LEITURA LITERÁRIA NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL .... 2272
MEDIAÇÃO PEDAGÓGICA DA LEITURA LITERÁRIA, DIMENSÃO ESTÉTICA E
LÚDICA DA LITERATURA INFANTO-JUVENIL E FORMAÇÃO DO LEITOR .. 2280
MEDIADORES DE LEITURA LITERÁRIA:...................................................... 2296
EXPERIÊNCIAS, ESTRATÉGIAS E ESPAÇOS .............................................. 2296
O CONTAR HISTÓRIAS NO HEMOCENTRO: O IMAGINÁRIO E A FANTASIA
NA EDUCAÇÃO EM SAÚDE. .......................................................................... 2311
O FILHO ETERNO, DE CRISTOVÃO TEZZA, E SUAS PERSPECTIVAS DE
ABORDAGEM EM SALA DE AULA ................................................................. 2322
O PAPEL DA BIBLIOTECA ESCOLAR NA FORMAÇÃO DOCENTE: UM ESPAÇO
DE ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO PEDAGÓGICO E ENFRENTAMENTO À
(IN) DISCIPLINA ............................................................................................. 2332
O TEXTO, O COMPUTADOR E O LEITOR: CAMINHOS MIDIÁTICOS PARA O
ENSINO DE LITERATURA NA ESCOLA ......................................................... 2346
O USO DAS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO (TICS) NA
FORMAÇÃO DE LEITORES............................................................................ 2361
OLHARES DAS CRIANÇAS DOS ANOS INICIAIS SOBRE A INFÂNCIA A
PARTIR DO DIÁLOGO COM A OBRA O PRATO AZUL-POMBINHO, DE CORA
CORALINA ...................................................................................................... 2374
OS VALORES DA SIGNIFICAÇÃO: A LEITURA NA PERSPECTIVA DO LEITOR
........................................................................................................................ 2386
PRÁTICA DE LEITURA LITERÁRIA NO ENSINO FUNDAMENTAL: o lEITOR EM
EVIDÊNCIA ..................................................................................................... 2399
PRÁTICAS HISTÓRICAS LITERÁRIAS:LEITURA LITERÁRIA E A PRODUÇÃO
DE CARTAS .................................................................................................... 2412
PROJETO CÍRCULO DE LEITURA E ESCRITA NA EJA: CONTRIBUIÇÕES
PARA FORMAÇÃO DE LEITORES UTILIZANDO DIFERENTES GÊNEROS
TEXTUAIS ....................................................................................................... 2426
REFLEXÕES SOBRE A FORMAÇÃO DOCENTE E A EXPERIÊNCIA DA
LITERATURA EM SALA DE AULA .................................................................. 2438
EIXO TEMÁTICO 11:Literatura e Estratégias de Leitura .................................... 2453
A CONEXÃO E O CONTO: ESTRATÉGIA DE LEITURA PARA COMPREENDER
O TEXTO LITERÁRIO ..................................................................................... 2455
POEMAS MUSICADOS: A METODOLOGIA DA ANDAIMAGEM NO ENSINO DE
LITERATURA .................................................................................................. 2467
A DINÂMICA DAS ESTRATÉGIAS DE LEITURA APLICADA À LEITURA DE
FÁBULAS ........................................................................................................ 2481
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A FORMAÇÃO CONTINUADA E A LITERATURA: ESTRATÉGIAS DE LEITURA
E SELEÇÃO DE OBRAS ................................................................................. 2494
A FORMAÇÃO DO LEITOR A PARTIR DA TERTÚLIA LITERÁRIA DIALÓGICA
........................................................................................................................ 2507
AVENTAL CONTADOR DE HISTÓRIAS – UMA EXPERIÊNCIA AUTORAL .. 2518
CORREDOR DE INFERÊNCIAS: NA MEDIAÇÃO DA LEITURA LITERÁRIA.. 2527
DIÁRIO DE LEITURA: O ALUNO COMO PROTAGONISTA NA CONSTRUÇÃO
DOS SENTIDOS DO TEXTO LITERÁRIO ....................................................... 2535
ESTRATÉGIAS DE LEITURA LITERÁRIA A PARTIR DO ITINERÁRIO AUTOR-
TEXTO-LEITOR............................................................................................... 2545
ESTRATÉGIAS DE LEITURA: UM OLHAR PARA OU ISTO OU AQUILO (1964),
DE CECÍLIA MEIRELES .................................................................................. 2553
ESTRATÉGIAS METACOGNITIVAS: LEITURA PARA ALÉM DO TEXTO ..... 2569
LEITURA COM... CRIANÇAS: 10 ANOS DE HISTÓRIAS ............................... 2586
LEITURA NA ESCOLA: A HISTÓRIA DO CLUBE DE LEITURA PASSARINHAR
DO IFAL – PALMEIRA DOS ÍNDIOS ............................................................... 2601
O JOGO POLAS COMO ESTRATÉGIA PARA O TRABALHO COM O MEU PÉ
DE LARANJA LIMA ......................................................................................... 2608
O ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUA ESPANHOLA COM HQS ............. 2624
TRAVESSIAS NA (TRANS)FORMAÇÃO DO LEITOR COM A OBRA O
CARTEIRO CHEGOU...................................................................................... 2634
―VOVÔ MORRERÁ HOJE‖ DE LUCINDA PERSONA –UM PROTOCOLO DE
LEITURA ......................................................................................................... 2643
EIXO TEMÁTICO 12:Literatura Infantil e Juvenil e outras áreas do conhecimento
............................................................................................................................... 2660
AS TÉCNICAS ARTÍSTICAS E COMPUTACIONAIS NA LITERATURA INFANTIL
E JUVENIL CONTEMPORÂNEA HIPERTEXTUAL E HIPERMIDIÁTICA ........ 2662
BARBA AZUL E O ENTENDIMENTO INFANTIL DA MORTE: DUAS
ADAPTAÇÕES DE PERRAULT NA LITERATURA E NO CINEMA ................. 2676
ELEMENTOS RELIGIOSOS NA LITERATURA INFANTIL BRASILEIRA:
CULTURAS E IDENTIDADES NA FORMAÇÃO LEITORA .............................. 2685
―FONCHITO E A LUA‖: ENTRE LITERATURA E CIÊNCIA, ALEGRIAS
POSSÍVEIS ..................................................................................................... 2699
LITERATURA INFANTOJUVENIL LUSO-BRASILEIRA SOBRE DINOSSAUROS:
O QUE MUDOU DO SÉCULO 20 AO 21 ......................................................... 2709
NOÇÕES DE INFÂNCIA E GÊNERO NAS TIRAS DA MAFALDA .................. 2719
PSICANÁLISE E QUADRINHOS: O NASCIMENTO DO OBJETO TRANSICIONAL
EM PEANUTS, DE CHARLES SCHULZ .......................................................... 2728
SESSÃO DE POSTER ........................................................................................... 2745
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A INTERPRETAÇÃO DAS IMAGENS NOS LIVROS ....................................... 2746
INFANTIS PARA CRIANÇAS PEQUENAS ...................................................... 2746
A LEITURA LITERÁRIA COMO FORMA DE AMPLIAÇÃO DO REPERTÓRIO
CULTURAL DA CRIANÇA ............................................................................... 2757
A LITERATURA E A EDUCAÇÃO INFANTIL: A CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS
ATRELADA À LUDICIDADE ............................................................................ 2767
A PRODUÇÃO LITERÁRIA PARA CRIANÇAS EM TRATAMENTO DE SAÚDE E
A EDUCAÇÃO SOCIAL ................................................................................... 2782
BOOKTUBER E O INCENTIVO À LEITURA DE ADOLESCENTES ................ 2797
BRINQUEDOTECA HOSPITALAR: A IMPORTÂNCIA DA LITERATURA E DO
BRINCAR PARA A CRIANÇA.......................................................................... 2803
CONTAR PARA ENCANTAR: NOTAS SOBRE A CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS E
A FORMAÇÃO DO LEITOR............................................................................. 2806
CORALINE: A REPRESENTAÇÃO DA CRIANÇA NA LITERATURA
FANTÁSTICA .................................................................................................. 2815
DE PROTEGIDO DE LÚCIA A CANIBAL: UMA ANÁLISE DA PERSONALIDADE
DE RABICÓ ..................................................................................................... 2833
DIÁLOGO ENTRE AS OBRAS SEIS PROPOSTAS PARA O PRÓXIMO MILÊNIO
(1988) E PÍPPI MEIALONGA (1945)................................................................ 2843
ENSINO-APRENDIZAGEM E LITERATURA INFANTIL EM CENA DE RUA ... 2854
ESCRITORES BRASILEIROS NO PROGRAMA DO ENSINO BÁSICO EM
PORTUGAL: À DESCOBERTA DA LITERATURA DO OUTRO LADO DO
ATLÂNTICO .................................................................................................... 2862
FORMAÇÃO LEITORA E ATUAÇÃO PROFISSIONAL DE FUTUROS
PROFESSORES: INVESTIGANDO SUAS EXPERIÊNCIAS E PERCEPÇÕES
........................................................................................................................ 2876
FORMANDO PROFESSORES FORMADORES DE LEITORES NA EDUCAÇÃO
INFANTIL: A HTPC COMO ESPAÇO DE FORMAÇÃO DE PEQUENOS
LEITORES. ...................................................................................................... 2884
FOTOGRAFIA COMO ESPAÇO DE CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS ................. 2890
NARRATIVAS SOBRE A INFÂNCIA BRASILEIRA: COMO AS HISTÓRIAS
CONSRTROEM NARRATIVAS SUBJETIVANTES .......................................... 2902
O ATO DE CONTAR HISTÓRIAS ENQUANTO AGENTE DE CONTRIBUIÇÃO
DAS COMPREENSÕES ESCRITORA E LEITORA ......................................... 2911
O FANTÁSTICO E O MARAVILHOSO EM CORALINE DE NEIL GAIMAN..... 2914
O IMAGINÁRIO LITERÁRIO EM DUAS NARRATIVAS DA LITERATURA
INFANTOJUVENIL AMAZONENSE................................................................. 2927
OBRA TEATRAL: DO LIVRO DIDÁTICO À AÇÃO .......................................... 2940

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ORA, DIREIS, (NÃO) OUVIR JUDEUS: MEMÓRIA E IDENTIDADE JUDAICAS
EM PÁGINAS DA LITERATURA INFANTIL E JUVENIL .................................. 2946
PEQUENAS SEREIAS, GRANDES DESCOBERTAS: UMA RELEITURA DE
ANDERSEN PARA O ENSINO MÉDIO ........................................................... 2964
PERSPECTIVAS SOCIAIS DA CRIANÇA EM ―A BOLSA AMARELA‖: O LEITOR
SOB A ÓTICA DA ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E DA TEORIA DO EFEITO .... 2976
QUANDO PERSONAGEM E CRIADOR SE COMPLETAM: UMA ANÁLISE DA
BONECA EMÍLIA NA OBRA DE MONTEIRO LOBATO ................................... 2992
QUEM CONTA UM CONTO AUMENTA UM PONTO: ..................................... 3006
CONSTRUÇÃO E RECONSTRUÇÃO DO EU POR MEIO DO CONTO .......... 3006
REPRESENTAÇÕES FEMININAS EM CONTOS DE MARINA COLASANTI .. 3012
UM ESTADO DA ARTE DA PESQUISA ACADÊMICA EM GEOGRAFIA E
LITERATURA: O TEMA DA IDENTIDADE NACIONAL E DA LITERATURA
INFANTIL EM QUESTÃO ................................................................................ 3033
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTADO DA ARTE DA PESQUISA EM
GEOGRAFIA E LITERATURA............................................................................. 3043
―A BELA E A FERA‖ EM TRÊS VERSÕES ...................................................... 3049
PRODUÇÃO ORAL E ESCRITA: O USO DA FÁBULA EM SEQUÊNCIA
DIDÁTICA ........................................................................................................ 3065
LITERATURA INFANTIL E PEDAGOGIA: AINDA UMA OPÇÃO ..................... 3070
BIBLIOTECA ESCOLAR: ESPAÇO URBANO DE FORMAÇÃO DO LEITOR .. 3085
A LITERATURA E A EDUCAÇÃO ................................................................... 3097

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SESSÃO DE
COMUNICAÇÃO ORAL

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EIXO TEMÁTICO 1

Experiências na educação básica


com a escrita do texto literário

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Experiências na educação básica com a escrita do
texto literário
Cláudio José de Almeida Mello (Universidade Estadual do Centro-Oeste -
UNICENTRO), Dagoberto Buim Arena (Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho - Marília), Elisa Maria Dalla-Bona (Universidade Federal do
Paraná).

O eixo busca ampliar e aprofundar as discussões que envolvem a escrita


literária no ambiente escolar e em qualquer dos níveis da educação básica
(educação infantil ao ensino médio). Os trabalhos apresentados terão o
propósito de expor problemas, perspectivas, propostas, pesquisas e práticas
consoantes ao desafio de formar alunos-autores do texto de natureza literária.
Os temas pertinentes ao eixo tratarão: a) da interdependência das habilidades
de ler e de escrever; b) da viabilidade da formação escolar da criança e do
jovem para a escrita literária; c) da formação da atitude de autor; d) do papel do
professor; e) da comunidade escolar (professores e alunos) entendida como
um público colocado à disposição do aluno-autor para que ele possa testar o
efeito produzido por sua escrita; f) das técnicas da escrita literária; g) das
estratégias adotadas em situação escolar para ajudar os alunos a superar os
desafios que a escrita literária impõe; h) do desenvolvimento no aluno-autor da
capacidade de escrever em busca de uma intenção artística e estética próprias
do texto literário; i) da reescrita, como parte integrante de um processo de
criação e de idas e vindas entre o texto e o aluno-autor para decidir sobre as
transformações que deseja realizar em seu texto; j) da avaliação da escrita
literária dos alunos.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

A ESCRITA LITERÁRIA A PARTIR DE EXPERIÊNCIAS NO


ENSINO MÉDIO

Sarah Vervloet Soares, USP, Eixo 1 - Experiências na educação básica com a


escrita do texto literário, Fapesp

Considerações Iniciais
Atuando como professora de Língua Portuguesa em turmas de primeiros,
segundos, terceiros e quartos anos do Ensino Médio Integrado aos Técnicos em
Pesca e em Aquicultura, realizei o projeto Nosso Clube do Livro, no Instituto Federal
do Espírito Santo (IFES – campus Piúma), no período de agosto de 2015 a maio de
2016. A ideia surgiu das próprias solicitações de alunos, que se queixavam do tempo
escasso em sala de aula para leituras, escritas, rodas de conversas sobre livros e
experiências de leitura. Embora houvesse propostas de leituras mediadas por mim,
com diversas discussões e desdobramentos, o tempo da sala de aula é sempre uma
espécie de contagem regressiva constante para, finalmente, o término das aulas
diárias. Assim, como o desejo de formar um grupo partiu dos próprios alunos, desde a
criação do nome até a determinação das atividades semanais – como se faltasse
apenas alguém que pudesse organizá-los e ―legitimá-los‖ enquanto unidade –, foram
eles que agiram, de maneira que tornaram principais as características do Nosso
Clube do Livro:
• Reunir-se semanalmente, respeitando a rotina escolar de seus membros e
permitindo a liberdade e flexibilidade no que diz respeito aos seus horários e suas
atividades;
• Não possuir espaço físico próprio: o que fez com que suas reuniões tenham sido
realizadas em vários locais da escola, como o pátio, a sala do Núcleo de Arte e
Cultura (NAC), a sala de aula, a biblioteca, a cantina etc.;
• As reuniões devem consistir, basicamente, no encontro do grupo para leituras de
trechos de livros que seus membros estão lendo ou que já leram alguma vez: o que
proporcionava discussões sobre os livros e suas experiências;

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• Concomitante a esse processo, surgiu uma nova característica proposta: vinda dos
próprios alunos, de escrever e ler textos autorais para os colegas nas reuniões.
Nesse sentido, torna-se relevante compreender como essa formação e a
construção de suas atividades foram pertinentes a processos de formação de leitores
e escritores. O texto aqui proposto é, então, um relato das experiências decorrentes
desses encontros. Convém salientar que, entendendo a escrita como um processo, o
percurso do grupo até a produção literária faz-se uma vez mais central para este
estudo, que se ampara em pesquisas de Calkins (1989), Barré-de Miniac (2002),
Possenti (1996), Tauveron (2014), Rouxel (2013), entre outros.

As relações e a formação da identidade do grupo

Parecia impossível reunir alunos de idades diferentes em horários alternativos


para apenas ler. No entanto, como foi constatado, eles eram os protagonistas daquela
vontade singular de trocar experiências de leituras ou mesmo de, finalmente, ler com
aqueles que tivessem seus mesmos interesses. Por isso, desde o princípio,
apresentei-me a eles como também membro do grupo, não como professora. A função
de sugerir leituras, conduzir discussões e mobilizar o grupo não só para reuniões
como também para outras tarefas que viriam, parecia ser um lugar necessário,
preenchido por mim, mas não de autoridade. As relações que ali se construíam eram
de pelo menos três naturezas: dos alunos com a professora, a qual deixava de ser
alguém que transmitia um conteúdo fixo e com fim avaliativo para ser alguém que se
inseria nas rodas de leitura para ler e trocar histórias e experiências de leitura (de
mundo, como diz Paulo Freire); dos alunos com outros que ainda não conheciam, uma
vez que surgiram estudantes dos primeiros, segundos e terceiros anos – e não só por
isso, mas também porque eles passaram a se conhecer através dos textos lidos e
escritos; dos membros com seus ―eu‘s‖, já que algumas experiências colaboraram
para a mudança de paradigmas, a reflexão de mundo, o desenvolvimento de ideias,
enfim, o pensamento de nós, sujeitos.
Não há dúvidas de que essas relações se entrelaçaram e podem até ter se
estendido a outras. Mas parece que a condução do começo do processo foi
fundamental para proporcionar, finalmente, as leituras em voz alta, as trocas de ideias
e de experiências, de tal modo que muitos do grupo resolveram propor também um
grupo de teatro à escola, por exemplo. Interessante perceber, ainda, que o clube
chamou atenção daqueles que não tinham o hábito de ler. Ao entrar no grupo, um
aluno começou a ler um livro por conta própria e, depois de avisar aos integrantes de
que era a primeira grande leitura que fazia na vida, todos ficaram surpresos, e mais
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ainda com tantas e diversas impressões de leitura que escutavam de alguém que não
tinha a mesma vivência que os demais.
Com o tempo, o Nosso Clube do Livro passou a ser percebido na escola. As
novas adesões faziam o grupo chegar a 15 membros, mas nem sempre foi possível
que todos se reunissem devido aos horários diversificados, à rotina da escola, às
avaliações etc. No entanto, foram em torno de oito membros estáveis que conseguiam
manter o compromisso das reuniões e das atividades. Percebia-se que eram alunos e
alunas que liam (ou passaram a ler) diariamente e gostavam de estar presentes nas
reuniões para conversar sobre isso. Uma dessas alunas levou trechos do livro "O
apanhador no campo de centeio", de J.D. Salinger, para a primeira reunião. Ela lia
com entusiasmo. E isso contagiava. Annie Rouxel (2013) – ao dialogar com Michèle
Petit, que afirma: ―A leitura é uma arte que se transmite mais do que se ensina‖ –
traduz esse gosto pelo compartilhamento da leitura:
Esse desejo de compartilhar uma emoção e de poder fazê-la
nascer, se é fundador e preside ao nascimento do leitor, está
também sempre pronto a reaparecer ao longo da vida. A
vontade de compartilhar o prazer ou o conhecimento do outro
estimula a curiosidade. Os adolescentes do 1º ano do ensino
médio insistem no gesto de mediação que permite que se
situem numa comunidade. Os livros aconselhados por alguém
próximo, mas sobretudo pelos colegas suscitam interesse; da
mesma forma, o fato de recomendar um livro é mais
conscientemente o prazer altruísta do compartilhamento, de
não deter sozinho o segredo, do que o ato de reconhecimento
de uma obra. (ROUXEL, 2013, p. 73, grifo da autora).

Mesmo que, no começo, muitos tivessem receio de ler e compartilhar leituras,


com o processo em andamento o tempo das reuniões tornou-se curto para tantos
trechos de livros e textos autorais. Dessa maneira, as redes sociais e os intervalos das
aulas funcionavam como extensão das reuniões e faziam com que, ainda mais, a
prática da leitura e da escrita fosse natural ao cotidiano. O exemplo abaixo ilustra o
caso de uma aluna que prefere os clássicos e compartilha com o grupo o que lê, mas
não o que escreve:
Eu ainda não me sinto preparada para escrever bons
textos, portanto, gostaria de compartilhar com vocês alguns
trechos do livro ―O Ateneu‖ de Raul Pompéia. Me encantei com
a forma de como ele escreveu sobre a arte da escrita e da fala.
(Luísa, 16 anos, 24 ago. 2015, grifo meu)1.
―[...] O coração é o pendulo universal dos ritmos [...]. Há
estados d‘alma que correspondem à cor azul, ou as notas
graves da música; há sons brilhantes como a luz vermelha que
se harmonizam no sentimento com a mais vivida animação. A
1
Os nomes dos alunos são fictícios por confidencialidade dos dados.
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representação dos sentimentos efetua-se de acordo com estas
repercussões.
[...] O sentimento da eloquência sugere aos lábios, que não se
registram, mas que vivem vida real nas palavras e fazem viver
a expressão, sensivelmente enérgica, emancipada do preceito
pedagógico, do improviso, quase inventada pelo momento.
Há ainda na linguagem o ritmo de cada expressão. Quando o
sentimento fala, a linguagem não se fragmenta por vocábulos,
como nos dicionários [...].
O que move o ouvinte é uma impressão de conjunto. O
sentimento de uma frase penetra-nos, mesmo enunciado em
desconhecido idioma [...]. Na sua qualidade de representação
primária do sentimento, depois do fato do amor, a eloquência é
a mais elevada das artes. Daí a supremacia das artes literárias
– eloquência escrita‖.

Em outra oportunidade, a mesma estudante continua buscando referências que


identificam o grupo e também, querendo fazer parte do circuito de mensagens – mas
ainda sem enviar textos autorais –, ela escreve: ―Esse texto é de autoria de Castro
Alves, me lembrei de vcs que gostam de escrever, e encorajo que sigam assim‖
(Luísa, 16 anos, 28 out. 2015). Tal aluna passou a exercer, naturalmente, uma função
de não só indicar livros, mas também caminhos para leituras ―tão complexas‖, como
afirma a maioria dos jovens ao referirem-se aos clássicos.
Importante também foi rememorar leituras, tal qual a construção de uma
autobiografia de leitor, em que os estudantes trocavam lembranças dos primeiros
livros, das primeiras histórias, daquelas que mais os marcaram e por quê. Assim,
podemos também compreender o valor da leitura para eles e como o processo da
escrita é capaz de fazer e refazer caminhos, como é o caso do exemplo abaixo:
[...] o livro que marcou minha infância foi uma fábula, na
verdade era a história da cigarra e da formiga porque foi com
ele que eu aprendi a ler e desde então eu lia ele todas as
noites que eu dormia sozinha (porque ele não tinha bruxas e
nem madrastas más), então eu recomendo pq tem uma história
linda e traz lições para a vida. (André, 15 anos, 18 abr. 2015).

Os gibis também foram mencionados como leituras de fácil consumo, mas a


uma aluna parecia ainda mais importante por ter acompanhado seu crescimento e
despertado o seu gosto também por desenhar. Ao evocar esse universo literário
particular, os membros do grupo foram desvendando seus próprios desejos com
relação à leitura e criando aquilo que Rouxel (2013) chama de noção de identidade
literária, que é ―uma espécie de equivalência entre si e os textos: textos de que eu
gosto, que me representam, que metaforicamente falam de mim, que me fizeram ser o
que sou (...)‖ (p. 70).

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Com o passar dos meses, os alunos já se viam como um grupo: para qualquer
evento promovido pela escola, eles se reuniam com a finalidade de sugerir alguma
ideia que pudesse virar uma espécie de proposta formal para compor determinado
evento. Assim foi, por exemplo, com a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia,
para a qual os membros montaram um estande cujo objetivo era incentivar a leitura
não só na comunidade escolar, mas também no município. Até este momento, os
textos autorais faziam parte de um exercício muito íntimo do Nosso Clube do Livro:
éramos quase um grupo secreto de escritores e nossos textos circulavam apenas
entre nós mesmos. No entanto, com a aproximação da data do evento e de sua
notoriedade perante a comunidade escolar, a vontade de montar um estande com
identidade literária impulsionou a escrita do grupo e também a coragem para publicar.
Nessa ocasião, constituíamos não só um clube de leitura, mas também um grupo de
escrita que passou a se organizar para produzir, selecionar e publicar.
Esse período de troca de textos autorais apenas no interior do grupo não deixa
de ser interessante para pensarmos na construção do autor, que passa a ser lido por
outros e a escrever também pensando nesses outros. Mas se esse ―outro‖ é alguém
com quem eu compartilho leituras e volições, é nele que posso me amparar para
compreender minha forma de escrita, além de aceitar que nesse caminho o certo e o
errado não entram, mas a experimentação da linguagem e o que se pode extrair de
todo esse jogo. É por isso que os estudantes são tão capazes de viver experiências da
escrita literária quanto da leitura, depreendendo, de ambas, saberes que demandam:
―por que e como envolver o leitor no jogo do texto, solicitar seu investimento afetivo e
cognitivo, suscitar sua convivência cultural e sua adesão ao mundo fictício criado?...‖
(TAUVERON, 2014, p. 86), o que os fazem, como acrescenta Tauveron (2014),
―produzir eles mesmos um texto que demanda ‗que alguém o ajude a funcionar‘‖ (p.
86). O escritor que se sente responsável pelo seu texto eleva-se à categoria de autor
e, com isso, assume uma função social perante seu texto (CALIL, 1995).
É verdade que o cunho científico e tecnológico do evento poderia inibir a ação
do grupo e, no entanto, aconteceu exatamente o movimento contrário, tendo em vista,
também, que muitos alunos não se identificavam com os eixos técnicos integrados ao
ensino. Além disso, a possibilidade de inserir a literatura nesse ―meio‖ parecia um feito
inédito e estimulante para diversos deles – afinal, a literatura pode ser, finalmente, um
lugar onde eu me encontro, crio e compartilho, tal como se faz na matemática, na
história, na biologia, entre outros. Assim, foi por meio da troca de livros, sorteios e
bate-papos que os alunos se revezaram no estande intitulado ―Quem lê literatura lê
melhor o seu mundo‖, que continha textos literários expostos, autorais e não autorais,
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e isso também colaborou para a união do grupo. Após uma semana dessa
experiência, os alunos escreveram depoimentos:

1. Eu gostei muito de participar do stand "Quem lê literatura lê


melhor seu mundo", não somente pelo fato de poder dizer
para meus colegas de turma "vai visitar meu stand de
Livros", mas também pelo prazer de conviver com alguns
dos integrantes do clube do livro, alunos que ainda não
tinha tido algum momento para conversar informalmente.
Além de ser rodeada por textos incríveis, que claramente
incluíam os meus. E o clube do livro está tornando-se cada
vez mais uma experiência inestimável, pois sempre tive
uma vontade incontrolável de falar sobre livros, contudo
quando eu abria a boca para falar poucos entendiam as
referências, quando ocorreu a primeira reunião do clube, eu
estava animada (ainda estou), e simplesmente por poder
falar pelos cotovelos sobre "Jane Austen"; "J.D Salinger";
"Emily Brontë"; "Katherine Patterson", e também praticar o
exercício de ouvir e apreciar outros estilos de leitura, pelos
quais não interessava-me, e agora estou imersa em leituras
como "Senhora" e "Dom Casmurro".

2. Ao olhar e imaginar a ideia de fazermos o stand de


Literatura, confesso que não imaginei nada perto de tudo o
que aconteceu, de certa forma me surpreendeu com a
tranquilidade de estar ali, o ambiente foi realmente de
leitura e atraiu um público apaixonado pelos livros.

3. O projeto do stand de literatura foi bem elaborado e


possibilitou a troca de ideia sobre livros e textos autorais,
ou não, tanto com as pessoas do próprio clube como as
que foram visitar o stand. Além de ter sido um momento
para compartilhar alguns de nossos textos autorais, foi
também um momento de compartilhar ideias e trocas de
informações.

4. Foi muito boa a experiência de expor pela primeira vez os


nossos textos e receber vários elogios e até mesmo
algumas críticas.

5.
Havia se formado, então, um grupo produtivo de leituras, escritas, que propõe
―projetos‖ à escola e consegue refletir sobre si mesmo. Ainda a propósito desse
evento, é possível dizer que muitos textos autorais expostos ainda eram bastante
embrionários no que diz respeito à organização e à criatividade. Em sua maioria, os
textos mostravam-se muito sentimentais e narcísicos, o que faz parte do tom
confessional, e até catártico, investido na escrita autobiográfica, gênero muito
escolhido por eles. Há dois exemplos que merecem destaque. O primeiro diz respeito
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àquela aluna que não se sentia à vontade para mostrar seus textos autorais e, por
isso, para o estande não levou um texto autoral, mas um arranjo de trechos de livros
os quais ela considerava preferidos:
Reminiscências... (Retalhos)
A minha história não pode ser resumida em duas ou três
frases; não pode ser colocada em um embrulho simples e
elegante... (Um Amor para Recordar). É a vida, o contexto do
corpo, que pode ser difícil de entender [...]. Todos nós temos
mistérios, principalmente vistos pelo lado de dentro (Todo Dia).
No princípio, tinha que ser simples. Simples e insexual. O amor
nasce das excelências interiores. O desejo depois [...]. A
surpresa, o inédito da vida é uma continuidade a continuar
(Amar, Verbo Intransitivo). Como uma medida tão pequena de
tempo pode conter algo tão grande? (Todo dia) impossível
descrevê-lo ou fotografá-lo. As palavras e as imagens não
seriam suficientes para tanto: ficaria faltando aquilo que escapa
aos olhos, que foge da imaginação e que enche a alma de
pureza e alegria. É uma loucura. [...] confessava-se que não
era bela, mas jurava-se que era encantadora; alguém queria
que ela tivesse olhos maiores, porém não havia quem
resistisse à viveza dos seus olhares (A Moreninha). Seus olhos
são o Norte, e a melodia (Sonho de uma Noite de Verão). De
néctar é seu riso (A Mulher que Falava Pássaros). [...]
Tem alguma coisa nela que irradia até mim (Todo Dia). Os
olhos dela estavam fixos nos meus quando finalmente disse as
palavras que entorpeceram a minha alma (Um Amor para
Recordar).
O sentimento do irremediável me fez gelar de novo. E eu
compreendi que não poderia suportar a ideia de nunca mais
escutar esse tudo. Ele era para mim como uma fonte no
deserto (O Pequeno Príncipe). E a estrada, lá longe, engoliu o
sobressalto de seus sentimentos (A Mulher que Falava
Pássaros). [...]
Experimentei quase tudo, inclusive a paixão e o seu desespero.
E agora só queria ter o que eu tivesse sido e não fui (A Hora da
Estrela). E fora preciso que soubesse ferir o coração e escrever
com a própria vida uma página de sangue para fazer a história
dos dois dias que vieram, os últimos dias... (O Ateneu). (Luísa,
16 anos, 14 out. 2015).

Percebe-se que, a cada etapa, a estudante ―avança‖ no processo de produção,


sendo esse último o procedimento da cópia (imitação), tão caro aos escritores. Suas
―reminiscências‖ e seus ―retalhos‖ tinham um traço autoral de costurar cada trecho,
investir-lhes sentido. Barré-De Miniac (2002) compreende que a ―cópia‖ é uma
apropriação da escrita e a ―lista‖ pode ser analisada como uma ―força ordenadora do
mundo‖. Aprender como são implementadas essas práticas e formas ―seria uma
preciosa ajuda para proporcionar sentido a uma escrita escolar que nem sempre faz

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sentido, ou nem sempre tem o sentido que os adultos atribuem a ele‖ (BARRÉ-DE
MINIAC, 2002).
Com o passar do tempo, a aluna compartilhou textos próprios, com suas
leituras ainda tímidas, mas orgulhosas. O segundo exemplo é de uma aluna que
compreendeu que seus textos deveriam ―flertar‖ com o tema do evento – uma semana
científica. Interessante constatar que esse trabalho de pensar no leitor e produzir
vislumbrando leituras, projetando a escrita no outro, é um elemento que já vinha de
outras escritas e parecia estar mais clara para eles a partir daqui. Convém ressaltar
que nas reuniões do grupo eram feitas apenas leituras de textos literários e suas
discussões surgiam desse contexto, o que não desobrigava mencionar alguns pontos
interessantes à criação literária, mas não havia preocupação teórica envolvida. Nesse
sentido, seguem-se os textos expostos por essa aluna:
Cada dia
Em expectativa da vida, vivemos aproximadamente 70 anos,
que se considerando os anos bissextos, que nos concede
25550 dias, dias que são entregues aos que possuem o dom
de se manterem vivos por tanto tempo sem despedaçar.
A cada vez que vejo ir embora um Dia pela janela do meu
quarto no segundo andar, sinto que só faltam mais alguns
milhares de dias, para que eu possa dizer finalmente adeus as
lembranças que se passaram, nos poucos ou muitos dias que
passei pensando nos dias que faltavam.
Relação entre a física e a minha vida
Olho para o céu para sentir-me especial e lembro-me que
Copérnico descobriu que não somos o centro do universo.
Subo na balança (dinamômetro) e Newton lembra-me que
estou gorda.
Ando de bicicleta me distraindo com o atrito (Fat) das rodas e
perco o equilíbrio e caio, então lembro-me da gravidade (g= 9,8
m/s2).
Vejo uma roda gigante e a frequência (F) e o Período (T)
entram em minha mente.
Empurro meu irmão e imagino que James Joule me diria que
realizei um Trabalho (T).
Puxo meu elástico de cabelo e Hooke me diz que a situação
apresenta Força elástica (Fel)
Digo isso ao meu professor e ele me diz que vou tirar 10, ou
que claramente estou louca. (Bruna, 16 anos, 14 out. 2015).

A participação no evento científico foi primordial para que esses alunos se


destacassem em meio aos demais, que faziam projetos de ciências, e reconhecessem
a literatura ou talvez a ―letra‖ como uma instância de aprofundamento. A partir daí, o
grupo tornou-se o porta-voz das frentes culturais da escola, encabeçando o projeto de
uma geladeira de livros e de um circuito em comemoração ao Dia Nacional do Livro. É
como se o evento tivesse despertado neles a possibilidade de assumir o lugar da
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literatura, sem detrimentos, em uma escola cujo discurso dominante é o científico-
matemático.

O que pode a escrita?


Embora esses alunos tenham feito textos ―autorais‖, fica claro que havia ali um
processo longo e intenso de lapidação do texto e do próprio sujeito. As atividades de
leitura e de escrita que aconteciam naturalmente colaboravam para isso, mas o
assujeitamento só poderia vir com o tempo. Talvez algum estilo (POSSENTI, 2002)
nascesse naquele momento em alguns deles:

Analogia à comida
A amizade é tida como um sentimento de grande afeição,
confortável, como uma sopa, quentinho quando se abraça.
Sentir-se rejeitado, é ser ignorado, menosprezado, é como ser
uma batata frita sem molho que caiu de um pacote do Mc
Lanche Feliz.
Quando não se tem intolerância à lactose, o sorvete é um bom
amigo, igual a como um livro, e quando leio Nicolas Sparks,
derreto-me em lágrimas como um sorvete, mesmo que não o
possa tomá-lo.
Amor não correspondido, é estilhaçar-se e não ser notado, é
estar em constante estado de sentimento não recíprocos e
achar que tudo aquilo não passa de um bolinho recheado de
desilusões de chocolate com cobertura de dor.
A música perfeita
[...] de repente a chuva torna-se sua música concebivelmente
perfeita. Aquela sensação de querer agarrar a pessoa adorada,
ou até mesmo pular de alegria entre a multidão de
desconhecidos que provavelmente acharam você insana. O
sentimento da música perfeita é irremediavelmente um
sentimento intangível, que irradia gritos de "perfeição" [...].
(Bruna, 16 anos, 14 out. 2015).

O que se pode dizer é que as oportunidades lançadas aos estudantes do grupo


foram essenciais para que houvesse movimentos que seguissem em direção à autoria:
o planejamento, o rascunho, o distanciamento, a releitura, o interrogatório, a reescrita.
Não há como quantificar os aspectos relacionados a esses movimentos, mas a
própria experiência pode dar sinais de mudanças substanciais no cotidiano desses
membros. Uma demonstração singular é o caso do aluno que jamais havia lido um
livro sequer. Sua leitura truncada e sua escrita esgarrada apresentavam-se como uma
derrota para si mesmo. Não é preciso dizer que, com o passar do tempo, a confiança
no grupo e sua persistência modificaram uma forma inteira de pensar, agir e produzir.
O aluno que estava, claramente, em situação de vulnerabilidade, dadas suas
dificuldades no âmbito escolar, familiar e social, ancorou-se nas atividades de leitura e
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escrita. E, em determinada ocasião, contou ao grupo que possuía diversos pássaros
em casa dos quais gostava muito de cuidar. No entanto, sentiu uma enorme angústia,
o que fez com que soltasse todos os seus bichos de estimação. A isso, seguiu-se um
texto que fez questão de escrever:
Gaiola vermelha
Me vi em um consumo descontrolado sem limites, percebi que
já não acumulava sentimentos mas sim valores e aí decidi abrir
mão de meu egoísmo e libertá-los, sim, libertar todos sem
exceção, mesmo que isso me custasse algumas lágrimas, ou
até mesmo alguns gritos, talvez eles poderiam ser de
libertação, felicidade ou de despedida. Mas sempre soube que
de alguma forma eles estariam presos de uma outra forma em
meu peito. Já passavam de 15 sentimentos todos eles presos
ali em gaiolas, umas maiores outras menores dependendo do
espaço que eu teria para armazená-los, lá tinha de tudo amor,
carinho, vergonha, humildade, felicidade, inveja, nervosismo,
ansiedade e principalmente a esperança, é assim tinha de
tudo, do melhor ao pior, mas todos eles eram meus e ficavam
em um lugar bem reservado, para que ninguém tentasse tirá-
los de mim, pois eu temia ficar sem eles e passar a vida inteira
sem ter eles ao meu lado, e ficar totalmente vazio de
sentimentos. Mas eu vi que ao longo do tempo eu não tinha
como sustentá-los e alimentar todos aqueles sentimentos, e
com isso tomei uma decisão, vou soltá-los para que eles
possam aproveitar, e serem felizes mesmo que sem mim, eles
só assim poderiam ser felizes. (Lucas, 15 anos, 10 nov. 2015).

O grupo, surpreso com a leitura, parecia outro, transformado. E talvez fosse.


Em crônica publicada no jornal A gazeta (Vitória-ES), eu também me apercebia:
Depois de tudo isso, um aluno noticiou a mim que havia
libertado da gaiola todos os seus tantos pássaros. Explicou-se
com fala e escrita que reconhece, hoje, a necessidade do voar
alto dos pássaros. Sua percepção de mundo abriu-se, sem
dúvida: era a ideia de liberdade ali brotando como nos fazem
os livros, e não por acaso o agora provoca a vontade súbita de
dar o céu a quem tem asas. É o crescer por dentro que se
transmite seja por literatura, por saberes, por experiências, mas
sempre com liberdade. (VERVLOET, 2015, p. 10).

Considerações Finais
O episódio desse aluno e outros demonstram que, mesmo em contextos
adversos, incluindo a própria escola que censura e hipertrofiza os processos de
criação com o passar dos anos, a escrita eventualmente aparece para criar
resistência, paradoxos e preencher lacunas. À maneira como Calkins (1989) sugere,
tanto as crianças quanto os jovens e adultos escrevem (e querem escrever) sobre
aquilo que sabem e conhecem. É por isso que qualquer pessoa se sente entediada

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diante de uma proposta de redação escolar cujo tema é ―minhas férias‖, pois o que se
quer, na verdade, é fazer literatura e não falar sobre ela. ―Escrever permite que
emolduremos momentos selecionados em nossas vidas, faz com que descubramos e
celebremos os padrões que organizam nossa existência‖ (CALKINS, 1989, p. 15).
Dessa forma, é possível dizer que o clube de leitura, por meio desses
movimentos de leituras em grupo, troca de textos e informações sobre livros, escritas
coletivas e individuais, proporcionou a descoberta do sentido mesmo da escrita, ou
pelo menos o começo dessa trajetória. É fundamental perceber como a relação com a
escrita vai se transformando ao longo dos encontros de tal forma que ela deixa de ser
somente um produto final – e finalizado com pressa e sem dedicação – para ser um
percurso experimental. É precisamente sobre essa relação que nos fala Barré-De
Miniac (2002), que sugere a ideia de uma orientação ou disposição da pessoa com
relação a um objeto, no caso um objeto social e historicamente construído no que se
refere à escrita, e com relação à implementação prática desse objeto na vida pessoal,
cultural, social e profissional.
Ao ganhar outra percepção, a prática da escrita literária adquire também outros
contornos. Se nessas experiências a produção foi possível fora da sala de aula e com
um grupo muito menor ao que o ensino público conhece verdadeiramente, faz-se uma
vez mais necessário refletir sobre a criação de espaços e possibilidades dentro da sala
de aula, onde o ensino acontece e necessita da escrita e de suas metamorfoses.
Encontrar os caminhos da escrita literária nos limites do tempo e do espaço é, assim,
mais um desafio da escola. Para seguir esse rumo, é compreensível que a escrita seja
vista como um objeto cultural e capaz de potencializar a aprendizagem. Nesse sentido,
defender o ensino da escrita literária é insistir que a linguagem não está somente na
ordem da comunicação estrita ou da mera reprodução, mas que ultrapassa seus
próprios limites para se reinventar, questionar e descobrir-se.

Referências
BARRÉ-DE MINIAC, Christine. Du rapport à l‘écriture de l‘élève à celui de l‘enseignant.
Éduquer [En ligne] 2, 3e trimestre 2002. Disponível em:
<http://rechercheseducations.revues.org/283>. Acesso em: 27 dez. 2016.
CALIL, Eduardo. Autoria: (e)feitos de relações inconclusas (um estudo de práticas de
textualização na escola). (Tese de doutorado) – Universidade Estadual de Campinas,
Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem, 1995.
CALKINS, Lucy McCormick. A arte de ensinar a escrever. Trad. Deise Batista. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1989.
POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas, Mercado
de Letras, 1996.
ROUXEL, Annie. In.: ROUXEL, Annie; LANGLADE, Gérard; REZENDE, Neide Luzia
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Paulo: Alameda, 2013, p.
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TAUVERON, Catherine. A escrita ―literária‖ da narrativa na escola: condições e
obstáculos. Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 52, p. 85-101, abr./jun. 2014.
Editora UFPR.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DO CÍRCULO DE BAKHTIN PARA


O ENSINO DE ATOS DE ESCRITA

Érika Christina Kohle, UNESP- Marília, Experiências na educação básica com a


escrita do texto literário, CAPES2.

Considerações Iniciais

Pretendeu-se neste texto tecer discussões sobre algumas contribuições,


advindas dos estudos do Círculo de Bakhtin, para o ensino de atos de escrita, tendo
em vista as possibilidades de auxílio à prática pedagógica na produção de textos
escritos. Sabe-se que, ao longo da história, houve uma evolução no modo como a
escrita era concebida, no entanto, nas escolas tanto públicas quanto particulares ainda
é forte a presença de práticas rudimentares de escrita que se efetivavam em
sociedades antigas, em momentos em que seus atos eram submetidos à oralidade.
Essa forma de ver os atos de escrita era aceitável numa sociedade com outros modos
de pensar, de agir e de viver, entretanto, hoje, ela não condiz com a realidade da vida
dos sujeitos dentro e fora da escola. Isso acontece porque se carregam princípios de
determinados momentos da história pedagógica que não evoluíram e que atravancam
o ensino comprometido com atos de escrita inseridos em situações reais de existência,
que priorizam as necessidades discursivas dos sujeitos. Algumas alternativas, para
esse problema, foram elencadas como possibilidades para a formação do sujeito cada
vez mais autônomo na autoria de seus textos. Longe de propor uma solução única
para esse problema, buscou-se priorizar atos de escrita presentes no dia a dia das
pessoas, porque por meio deles, tem-se acesso aos inúmeros gêneros discursivos,
que impulsionam os sujeitos a tentarem produzir algo endereçável ao outro, passível
de resposta, imerso numa situação de troca verbal.

2
Este texto tem algumas informações vinculadas à dissertação intitulada ―A aprendizagem da
escrita no ensino fundamental II com o auxílio de suportes digitais‖ sob a orientação da Dra.
Stela Miller

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Introdução
A escola não pode esquecer seu papel fundamental, de levar os sujeitos a se
apropriar dos conhecimentos já produzidos para que possam elaborar autonomamente
sua existência e ao mesmo tempo alcançar valores cada vez mais humanos. A escrita
não é apenas um instrumento que permite a participação dos sujeitos na cultura
letrada, mas também lhes possibilita o acesso ao arcabouço de conhecimentos
acumulados historicamente pela humanidade. Além disso, ter as capacidades
escritoras permite que as classes excluídas usem seu poder de participação para
transpor os filtros sociais de exclusão, que se encontram, segundo Bakhtin (2006),
numa sociedade caracterizada pela divisão de classes.
Além do que foi dito, sabe-se que a aprendizagem de atos de escrita conduz
a saltos qualitativos no desenvolvimento cognitivo de quem a aprende, pois por ser a
escrita um instrumento cultural complexo, sua aprendizagem desenvolve nos sujeitos
mecanismos cerebrais usados para pensar.
Para compreender como se desenvolve o ensino dos atos de escrita na
sociedade brasileira da atualidade e tentar propor algumas alternativas para essa
prática, pretendeu-se aqui fazer um breve resgate de seu percurso histórico, uma vez
que, ao longo do texto, serão evidenciadas que práticas pedagógicas de ensino da
linguagem escrita têm sua origem em modos antigos e arcaicos de agir, que se
repetem há séculos, e por isso permanecem impregnadas no cotidiano das escolas.
E ainda, durante esse artigo são explicitados os modos de ver a escrita ao
longo dos tempos e como houve modificações na forma de ser encarada, que a fez
passar de um instrumento cultural desvalorizado para uma linguagem altamente
valorizada e às vezes até supervalorizada. Também por esse motivo, tornou-se
necessário desenvolver propostas de ensino que propiciassem aprendizagens efetivas
de atos de escrita que contribuíssem para o desenvolvimento humano-social das
crianças.
Portanto, é impreterível que se corrija o equívoco causado pelas práticas
tradicionais de ensino, que entendem que o ensinar se restringe aos trabalhos
escolares destinados a preencher o tempo das crianças na escola, que elege como
bons alunos aqueles que executam passivamente o que é proposto pelos professores.

Breve percurso histórico das práticas de escrita atravancadoras de seu


ensino na atualidade

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Historicamente, os sujeitos sempre buscaram se adaptar ao meio em que


viviam, criando recursos que lhes permitiram agir de forma mais eficiente diante das
necessidades e adversidades da vida. Isso acontece não só no plano físico, mas
também no plano simbólico, ou seja, na constituição de sistemas de linguagens. Por
isso, a espécie humana tem a capacidade de representar simbolicamente a realidade
por meio de signos,‖ [...] ao longo da história, vários grupos sociais ampliaram suas
possibilidades de comunicação com a invenção de sistemas de signos gráficos [...]
permitiram alcançar objetivos bastante diversos [...] (COLOMER & CAMPS, 2002,
p.11).
Nesse sentido, a escrita é um instrumento cultural importante de interação
não natural dos sujeitos. Seu surgimento só foi possível porque as comunidades
humanas encontraram maneiras eficientes de ir além de seus limites naturais.
Entretanto é sabido que o processo da escrita até chegar ao que é hoje, nas suas
várias manifestações, foi longo, mas se observado em relação à história da espécie
humana pode ser considerado recente. Sobre isso, Bagno (1999) ressalta que a
espécie humana apesar de ter pelos menos um milhão de anos, as primeiras formas
de escrita surgiram há apenas nove mil anos. Portanto, a humanidade passou 990.000
anos comunicando-se apenas por meio da linguagem oral, gestual e icônica.
Desde sua criação, a linguagem escrita passou por diversas transformações,
entretanto, nas escolas da atualidade, parte dessa evolução ainda não se efetiva, já
que as práticas empregadas desde as sociedades antigas ainda encontram-se
presentes.
Diferentemente do que acontece no mundo contemporâneo, de acordo com
os estudos de Svenbro (2002), na Grécia Arcaica, por volta do século VIII a. C., havia
uma tradição estabelecida desde a Grécia Antiga, que valorizava a linguagem oral,
enquanto a escrita era relegada apenas a contribuir com a produção dos sons na
oralidade; essa escrita que paradoxalmente chamava-se ―escrita muda‖ tinha como
objetivo contribuir para assegurar a produção dos sons, porque só por meio da leitura
em voz alta, se realizaria de modo pleno; e embora não tivesse como finalidade
proteger, por meio do registro, os elementos culturais da tradição épica, acabava por
fazê-lo.
Dessa forma, com a fala tão venerada pelos gregos, a escrita só interessava
se fosse empregada por meio da leitura oralizada, para fazer a distribuição os
conteúdos por meio de sons para as grandes plateias. Isso se dava até mesmo e
principalmente com os documentos legais, que usavam o registro escrito apenas para
a distribuição oral de seus conteúdos.
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Consequentemente, a escrita era vista como algo incompleto, que


necessitava de sonorização, como algo meramente instrumental, tão desprezada, que
o ato de fazer sua distribuição era relegado a um escravo. Além disso, a ausência de
intervalos da escrita contínua tornava impreterível a vocalização, que se concretizava
com a experiência sonora do leitor.
Nessa época, não havia intervalo entre as palavras e nem precisava haver,
porque o valor estava no que era ouvido e ―[...] o texto não seria então um objeto
estático, mas o nome da relação dinâmica entre escrito e voz, entre escritor e leitor. O
texto se tornaria, assim, a realização sonora do escrito, o qual não poderia ser
distribuído ou dito sem a voz do leitor.‖ (SVENBRO, 2002, p.49).
Portanto, à escrita relegava-se apenas o papel de aprisionar o som, pois a
compreensão se dava somente pelos ouvidos. Na arte, a linguagem de prestígio era a
oral; na política, os debates sobre democracia ocorriam oralmente; por meio da fala o
homem poderia dominar o outro ou defender-se. Ou seja, um escritor para ser lido
necessitava de alguém ao seu serviço para sua obra ser vocalizada, algo que para
Svenbro (2002) não condizia com os ideais democráticos de homem da época, que
almejavam formar o cidadão livre de coerções.
Contudo, segundo Saenger (2002), no século IX, a escrita em palavras
separadas já tinha se tornado padrão em quase todo o território europeu e, como
consequência disso, a necessidade de leitura em voz alta para compreender os textos
começou a diminuir. Nesse momento, a possibilidade de relacionar o sistema da
escrita à atribuição de sentidos começa a se configurar, e a escrita passa a atender
aos olhos, possibilitando o surgimento da leitura silenciosa, ainda de maneira
sufocada, desprestigiada e, por isso, clandestina.
Ainda assim, tem-se a oportunidade de fazer uma leitura que condiz com o
ritmo do cérebro, que não é prejudicada pela divisão da atenção com a necessidade
de se pronunciar os sons. Isso coloca a atribuição de sentidos, em relação à
linguagem escrita, em primeiro plano e não mais de forma precária.
Após a separação das palavras, a linguagem escrita foi evoluindo e suas as
possibilidades visuais passaram a ser exploradas. Os textos escritos, paulatinamente,
começaram a ter seus intervalos e limites marcados pelos sinais de pontuação e os
espaços em branco, as letras maiúsculas e minúsculas passaram a ser usados. Esse
conjunto de orientações visuais mudou as práticas de leitura e de escrita de textos.
Além disso, separação de palavras, por exemplo, possibilitou que o texto
pudesse ser lido de forma silenciosa. Essa possibilidade trouxe mudanças na escrita,
que passou a ser voltada para a atividade cerebral, por permitir que a leitura fosse
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norteada pelo aspecto visual do texto, sem depender mais de sua oralização. A partir
dessa mudança foram sendo elaborados os diferentes tipos de textos escritos.
Portanto, a forma como os textos são escritos e lidos hoje é possível porque
historicamente houve mudanças significativas nas técnicas de suporte textual e nas
convenções que hoje norteiam a produção da escrita. Contudo, nas escolas não se
depara facilmente com um ensino influenciado por essa evolução. Ao contrário, o que
se observa é o ensino da escrita atrelado à pronúncia dos fonemas e das sílabas das
palavras, a partir da conduta dos professores que ordena que se oralize cada sílaba
da palavra ao escrevê-la, como se esse fosse o caminho para escrever as palavras.
Entretanto, apesar de a escrita ter evoluído e ter se relacionado ao seu
objetivo real – a atribuição de sentido, no final do século XIX e início do século XX, os
estudos sobre ensino da linguagem escrita ainda se restringem à memorização das
micropartículas das palavras ou às próprias palavras como centro de observação dos
fenômenos linguísticos. Isso se dá, porque

A gramática, em consequência de uma tradição de estudos


greco-latinos, seccionava a palavra e organizava suas partes
em paradigmas de flexão e declinação. A filologia, por sua vez,
descrevia a evolução histórico-fonética da palavra com a
observação de documentos. A linguística passava, naquele
momento, por duas fases de observação da palavra: numa
delas, organizava as línguas em suas famílias e respectivas
ramificações de acordo com suas origens, estudando as
palavras em documentos e, na outra, percebendo o
funcionamento sistemático da linguagem, descrevia as
relações estruturais em vários níveis a partir da palavra.
(STELLA, 2014, p. 177).

A partir do início da era moderna, a língua escrita tornou-se tão valorizada,


que foi encarada como a única forma de língua passível de ser estudada; no entanto,
sobre esse modo de ver a língua, ―[...] que se inaugura numa leitura de Saussure,
ofereceu-nos a possibilidade do estudo rigoroso de um objeto que se fechou em si [...]
inspirada numa vontade de verdade científica, a Linguística se associou às
metodologias próprias das ciências duras[...]‖. (GERALDI, 2010, p. 52). Nesse
momento, o estudo da língua encontrava-se submetido às regras e aos modelos, que
são aplicados até mesmo à fala, assim como a matemática às suas regras e fórmulas.
E assim, o eixo de valorização é invertido e a escrita, antes tão desvalorizada, passa a
ditar as regras até mesmo àquilo que era dito.
Por conseguinte, a partir das dicotomias saussureanas, à escrita se agrega
uma função que não era sua: submeter a oralidade à sua ordem, ditar o que deve ser

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falado e como se falar com caminhos bem trilhados. E os resultados disso, são
percebidos por Geraldi no momento em que relata que

Parece existir em nossa cultura uma regra fundante daquilo


que é requerido para a construção de novos enunciados,
porque à fala se aplica o princípio da disciplina gramatical:
qualquer enunciado tem sua própria forma submetida a outro
juízo: o do certo ou errado segundo uma regra gramatical
específica elaborada não segundo os falares, mas segundo a
escrita de autores tomados como modelo. (GERALDI, 2010, p.
55).

Concretamente, esse processo produz uma barreira impenetrável entre a


língua escrita, canonizada e porta-voz de tudo o que é oficial, e as línguas vernáculas
faladas nas ruas, presentes na boca do povo, ou seja, o estudo linguístico era restrito
à filologia das palavras ou as palavras eram estudadas em suas partes à luz de um
viés que atribuía elementos fonéticos à linguagem escrita.
Entretanto, essa metodologia de ensino, que tudo quer regular, por meio da
elaboração de regras, apresenta problemas, pois quando se ensina que sons de
fonemas relacionam-se sempre à escrita de determinados caracteres, leva-se os
sujeitos a escreverem por meio de uma fórmula, fadada ao fracasso, pois a cada nova
pronúncia que não segue seus padrões, tenta-se elaborar exceções às regras
previamente estabelecidas, dificultando e complicando ainda mais o processo
extramanete complexo que é a aprendizagem dos atos de escrita.
Não se pode esquecer de que linguagem é viva e, por isso evolui de acordo
com o modo de falar das pessoas que a utilizam e submetem-se a ele. Portanto outras
formas de ensino de atos de escrita deveriam ser contempladas pela escola, já que

[...] nem sempre há um fonema que represente uma letra.


Quando o professor ensina que determinados caracteres
seguem determinado som, como se fossem uma regra, o aluno
passa a aplicar isso em todos os momentos em que encontra
esses caracteres, mas em seguida se depara com armadilhas
e novas condições, porque esses caracteres não seguem o
mesmo padrão. (SILVA, 2016, p.85).

Essa metodologia, que se apega aos elementos fônicos, se aplica de uma


maneira, ao mesmo tempo, arbitrária e artificial, porque atrela a linguagem escrita, de
natureza gráfica, à linguagem oral, de natureza sonora e gestual, de uma maneira que
na vida real não existe e nem pode existir, ou seja, quase nunca há momentos na vida
em que, de modo natural, se é levado a fazer a transcodificação de um código escrito
a um código oral.
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Além disso, há um choque, no momento em que a escrita escolar, a partir de


um compartimentado ditado de fonemas e sílabas, é apresentada aos sujeitos por
seus professores, pois esses sujeitos ao se depararem essa escrita mecânica estéril,
confusa e compartimentada, e percebem-na diferente da escrita da vida real, com a
qual tiveram contato durante toda a sua vida. Quando se trata a escrita como uma
técnica de memorizar sinais gráficos e reproduzi-los, de acordo com Bakhtin e
Volochinov, as palavras são reduzidas a um sinal.

[...] o sinal é uma entidade de conteúdo imutável; ele não pode


substituir, nem refletir, nem refratar nada; constitui apenas um
instrumento técnico para designar este ou aquele objeto
(preciso e imutável) ou este ou aquele acontecimento
(igualmente preciso e imutável). O sinal não pertence ao
domínio da ideologia; ele faz parte do mundo dos objetos
técnicos,... nada têm a ver com as técnicas de produção.
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2010, p. 96-97)

O sinal só terá significado para seus receptores, quando for orientado por um
contexto e passar a ser constituído como um signo, compreendido no seu sentido.
Portanto, ao eleger o sinal como unidade de estudo linguístico, a escola se volta para
a formação de indivíduos técnicos, acríticos e moldados para desempenhar papéis
alienados nas relações de trabalho, sem a capacidade de discutir sobre os
fundamentos da sociedade em que vivem e muito menos tentar transformá-los. Nesse
bojo, encontra-se o ensino da língua que ressalta apenas seus elementos gramaticais,
com os quais, o máximo de relação que se pode estabelecer é a dos elementos
gramaticais entre si. No entanto, deve ser evidenciado que

Sob o manto aparentemente neutro da gramática esconde-se


um procedimento de unificação e exclusão. À necessária
estandartização que a interlocução obriga, e que resulta de
procedimentos de negociação de sentidos, acrescentando-se
outro viés: a correção! E junto com a correção linguística vem
todo o discurso hegemônico que, essencialmente, luta pela
fixação dos sentidos. (GERALDI, 2010, p. 73).

E assim, a palavra, apegada a essa visão alienante da linguagem, vem sendo


tradicionalmente tratada de forma abstrata, desvinculada de sua existência real nas
esferas sociais e posta como um centro de significados empiricamente observáveis.
Desse modo, a língua escrita e o seu poder, ressaltado anteriormente,
―reservado a uma minoria estrita... permitiu a façanha da seleção, da distribuição e do
controle do discurso escrito, produzindo um mundo separado, amuralhado,
impenetrável para o não convidado.‖ (GERALDI, 2010, p. 55), porque
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[...] nenhum tempo de liberdade é admissível em matéria de


língua: há sempre que encontrar normas, fixar o movimento
para garantir não se sabe bem o quê, mas garantir a correção
que somente tem existência pela construção de seu outro, o
erro. Aquilo que foi o ‗latim errado‘ rapidamente se faz regra a
ordenar o dizer e como dizer. (GERALDI, 2015, p. 20).

Portanto, se do ponto de vista saussureano, somente a língua


descontextualizada, abstraída e generalizada seria possível de ser ensinada, para
Bakhtin/Volochinov seria impossível conceber a linguagem sem a preocupação com
sua dimensão na vida prática.
Assim, em vez de se desenvolver uma via artificial e intermediária apegada
historicamente ao ensino da escrita, na escola, se utilizada, a escrita para cumprir a
função social para qual ela foi criada, os sujeitos têm chance de se apropriar
verdadeiramente desse instrumento cultural, pois protagonizam esse processo, uma
vez que a importância da escrita revela-se por meio dos seus usos e dos seus valores
sociais.

Outra perspectiva de estudo da linguagem

No século passado, no final da década de 20, a partir dos estudos do Círculo


de Bakhtin, a obra, Marxismo e Filosofia da Linguagem, trouxe a visão da linguagem
como material ideológico, enfatizando o seu caráter social da e sua particularidade de
ser constitutiva de si mesma, sistematizada em aberto, como um produto do passado
em que se projeta o futuro, em cujo movimento se arquiteta em enunciados singulares.
Na busca pela heteroglossia, ou seja, pela pluralidade de vozes, o Círculo de
Bakhtin ressalta a importância da resistência a qualquer processo centrípeto e
monologizador. Esse resistir ao institucionalizado se apresenta como uma alternativa
dialógica para o estudo da linguagem, porque olha para a concretude da vida e
valoriza

[...] as relações atentas com a alteridade, porque elas nos


permitem também, como a arte, escutar o estranhamento. As
ações do outro, os dizeres do outro, prenhes de sua cultura,
quando confrontamos com objetivos e fenômenos que nos
escondem as valorações que nós mesmos lhes atribuímos,
mostram-nos o que não mais conseguimos enxergar.
(GERALDI, 2010, p. 89).

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Trata-se da busca de outra palavra, fora do paradigma de oposição binária,


uma palavra diferente, mas não indiferente, que é singular, insubstituível, responsável
e responsiva por ser única na sua relação com o outro, que não permite que ocorra a
relação sujeito-objeto como consequência do abuso do sujeito que coisifica seu outro,
porque ―[...] procedendo conforme o método geralmente denominado ‗hipotético-
dedutivo‘, não nos aproximamos da palavra viva.‖ (PONZIO, 2010, p. 47). Já que,
nessa conduta o singular se torna desvio, as transformações são erros, as mudanças
não existem, a voz dita monologicamente o que deve ser observável e o subjetivo é
evitado, pois é almejado encontrar leis universais. Além disso,

O tartamudear torna-se defeito da linguagem em relação a um


grupo hegemônico, a uma comunidade linguística, a uma
agregação que detém o saber, consolidado, esclerosado,
através do exílio do fútil, da matéria, em relação a um grupo
competente, a um organismo que administra e que controla
cada corpo, apresentando-se como um corpo hegemônico,
corporação, corpo médico, corpo acadêmico. (PONZIO, 2010b,
p. 112).

Portanto, partindo de um viés que encara as trocas verbais como


acontecimentos subjetivos e eventos únicos, os estudos discursivos passam a ter voz
para materializar o que lhe é próprio, os conflitos, os debates, os embates e as
discussões humanas.
Apesar de sempre existirem forças que tentam manter estável o que se
encontra estandardizado ou tentam estabilizar as mudanças, as novas configurações
entre o oficial e o que está em liberdade são inscritas e as palavras liberadas da lógica
de hierarquia verbal. Essas ―[...] palavras colocam-se em relações numa vizinhança
completamente inusitada. Assim revelam-se a ambivalência e a multiplicidade das
significações internas como as possibilidades que contêm e que não se exteriorizam
nas condições habituais.‖ (BAKHTIN, 2008, p.372). Em consonância com essa visão,
na atualidade, os estudos linguísticos consideram os enunciados como eventos
únicos, e, além disso, encaram os enunciados como unidades linguísticas imbuídas de
caráter ideológico determinado por suas esferas discursivas.
Em relação ao que foi dito, de acordo com Geraldi (2015, p. 20), no começo
da modernidade, a reflexão sobre a língua começou a se potencializar em relação ao
ordenamento de regras, a partir da inovação dos falares considerados vulgares. Isso
acontece porque não se pode sobreviver sem transformações ao riso, à
carnavalização, à desordem, gerados pelo movimento subversivo das forças

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centrífugas e causadores do empoderamento de outros modos de falar, que na


linguística são chamados de variações. Já que há

[...] uma grandiosa cosmovisão universalmente popular dos


milênios passados,que liberta do medo, aproxima ao máximo o
mundo do homem e o homem do homem (tudo é traduzido
para a zona de contato familiar livre), com o seu contentamento
com as mudanças e sua alegre relatividade, opõe-se somente
à seriedade oficial unilateral e sombria, gerada pelo medo,
dogmática, hostil aos processos de formação à mudança,
tendente a absolutizar um dado estado da existência e do
sistema social. Era precisamente dessa seriedade que a
cosmovisão carnavalesca libertava. Mas nela não há qualquer
vestígio de niilismo, não há, evidentemente, nem sombra da
levianidade vazia nem do banal individualismo boêmio.
(BAKHTIN, 2005, p. 161).

Com efeito, essa cosmovisão é chamada pelo Círculo de Bakhtin (2015) de


carnavalização. Ela desconhece o ponto conclusivo, é hostil a qualquer desfecho
definitivo e encara todoaqui e todo o fim como apenas um novo começo. Diante do
pressuposto de que ―[...] no mundo ainda não ocorreu nada definitivo, a última palavra
do mundo e sobre o mundo ainda não foi pronunciada, o mundo é aberto e livre e
sempre estará por vir.‖ (BAKTHIN, 2015, p. 167).
Além disso, vale ressaltar ainda que no processo de trocas verbais, de acordo
com a lógica desse Círculo, o centro de organização se situa no meio social em que os
sujeitos estão envolvidos, que modo que não é mais o seu interior, mas o exterior, que
aceita que os sujeitos estão em contínua constituição à medida que interagem com os
outros, num processo contínuo de se completar pelo outro e completar o outro, num
processo de interlocução, em que ambos internalizam formas de compreender o
mundo.
Apesar dessa perspectiva libertadora no modo de ver a linguagem valorizar
os sentidos e o uso social dos enunciados, os elementos gramaticais também devem
ser estudados. Mas eles podem ser propostos de forma democrática, subvertendo sua
imposição hegemônica historicamente construída, durante os processos de trocas
verbais inserida na vida e levando em conta seu contínuo movimento, uma vez que

Não se trata, portanto, de ―aprender a língua padrão‖ para ter


acesso à cidadania. Trata-se de construir a linguagem da
cidadania não pelo esquecimento da ―cultura elaborada‖, mas
pela re-elaboração de uma cultura (inclusive linguística)
resultante do confronto dialógico entre diferentes posições.
(GERALDI, 2015, p. 37).
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Trata-se de ir contra as formas de alienação, uma vez que a proposta que se


considera humanizadora tem como objetivo criar condições para a formação do sujeito
transformador, que devem levá-lo a construir própria história, atuando em sua
existência real.

Proposta de elaboração de enunciados por meio dos gêneros do discurso


no ensino da linguagem
Segundo Vygotsky (2009) a forma de educação mais adequada às
necessidades dos sujeitos não seria introduzir-lhes conteúdos, ideais, sentimentos e
vontades de modo artificial, mas despertar neles aquilo que já têm, ou seja, ajudar
para que o potencial deles se desenvolva para contribuir da melhor maneira possível
para as suas vidas. De acordo com esse ponto de vista, para o ensino da linguagem,
é preciso atentar para que a troca verbal não seja

[...] vista primordialmente como sistema formal, mas como


atividade, com um conjunto de práticas socioculturais – que
tem formatos relativamente estáveis (concretizam-se em
diferentes gêneros do discurso) e estão atravessados por
diferentes posições avaliativas sociais (concretizam diferentes
vozes sociais). (FARACO, 2009, p. 120).

Uma vez que todo enunciado relaciona-se a um tipo de atividade humana,


para se estudar qualquer enunciado é preciso ocupar-se dos gêneros do discurso
pertencentes àquela esfera de interação verbal, pois é nela em que eles nascem,
transformam-se, evoluem e estabilizam-se. Devido a essas possibilidades suscitadas
pelos gêneros,

[...] Bakhtin articula uma compreensão dos gêneros que


combina estabilidade e mudança; reiteração (à medida que
aspectos da atividade recorrem) e abertura para o novo (à
medida que aspectos da atividade mudam). (FARACO, 2009,
p. 128).

Assim, os gêneros do discurso, por possuírem plasticidade histórica de


passado e de futuro, oferecem alternativas infinitas de criação de novos gêneros,
porque suas possibilidades são inesgotáveis de acordo com as inesgotáveis
possibilidades de atividade humanas nas inúmeras esferas discursivas existentes ou
que poderão existir.

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Desse modo, por ser escolha dos gêneros discursivos determinada pelas
especificidades de cada situação de interlocução, ela deve considerar a temática em
questão, a intenção discursiva, a subjetividade de seus participantes, a maneira
pessoal de expressar-se dos seus interlocutores, sem deixar de fora toda a sua
individualidade e subjetividade, que estão presentes em cada contexto de
interlocução. Essas especificidades são aplicadas e adaptadas ao gênero escolhido,
que se constitui e se desenvolve de uma determinada forma.
Os trabalhos de produção escrita adquirem sentido quando se elege um
determinado gênero do discurso, do que quando realizados de forma compartimentada
e isolada, como nos exercícios com frases soltas, artificiais e descontextualizadas. Ao
escrever a partir dos gêneros do discurso os sujeitos têm um interlocutor real, que
orienta suas escolhas.
Além disso, é necessário levar em conta que para conseguir se comunicar, os
sujeitos necessitam dos gêneros discursivos e a cada novo gênero conhecido eles
terão mais possibilidades de estabelecer trocas verbais; por isso, a escola deve
oferecer inúmeros gêneros discursivos aos sujeitos, para que sejam cada vez mais
capazes de lidar com textos inseridos em situações contextualizadas, para que se
tornem autores de seus atos de escrita e cada vez mais autônomos nas suas vidas.
Apenas através da elaboração de atos de escrita de gêneros do discurso
pelos sujeitos, é dada a possibilidade a eles de experienciarem situações autênticas
de intercâmbio verbal e, assim, entenderem a verdadeira função desse instrumento
cultural. E, ainda, por estarem inseridos num processo dialógico e ininterrupto poderão
criar novas necessidades e novos motivos para trocas verbais futuras.
Numa esfera de intersecção entre os estudos da teoria do Círculo de Bakhtin
e os pressupostos da Teoria Histórico-Cultural existe a concordância de que o trabalho
de apropriação da linguagem deve considerar que a relação interacional é
fundamental, pois é a partir da interação entre os sujeitos e seus interlocutores, por
meio da linguagem, que eles crescem intelectualmente e passam a desenvolver seus
conhecimentos, porque ―[...] o mundo interior é uma arena povoada de vozes sociais
em suas múltiplas relações de consonâncias e dissonâncias; em permanente
movimento, já que a interação socioideológica é um continuo devir‖. (FARACO, 2009,
p. 81).
Portanto, para manter essa interação em todas as esferas sociais, cabe à
escola levar as crianças a dominarem cada vez mais os gêneros do discurso para
produzirem textos cada vez mais elaborados, para que possam fazer suas escolhas de

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acordo com as necessidades das situações em que se encontrarem, pois como afirma
Bakhtin,

Quanto melhor dominamos os gêneros, tanto mais livremente


os empregamos, tanto mais plena e nitidamente descobrimos
neles a nossa individualidade (onde isso é possível e
necessário), refletimos de modo mais flexível e sutil a situação
singular da comunicação; em suma, realizamos de modo mais
acabado o nosso livre projeto de discurso. (BAKHTIN, 2006,
p.285)

Desse modo, os atos discursivos devem ser inseridos numa situação


extraverbal real ou o mais próximo possível dela, pois, na vida, os enunciados ocorrem
situados pelos sujeitos em espaços e tempos definidos em conformidade com suas
intenções, porque, os sujeitos aprendem o valor social dos atos da escrita. E, assim, a
apropriação da escrita flui com mais facilidade, mesmo para aqueles considerados em
processo de exclusão, por ainda não terem aprendido a escrever com fluência,
conseguem se apropriar de seus atos em processo de uso. Além disso, ao se projetar
um texto com a visão final do que se deseja elaborar, são buscadas maneiras de
concretizar essa produção por meio de etapas de elaboração discursiva. Nesse
processo o enunciado toma forma para quem quer escrever até que adquira o
acabamento linguístico necessário para que ele se torne passível de resposta.

Alternativa de metodologia de ensino para produções de atos de escrita

De acordo com Faraco (2009), para ser democrático e seguir a lógica da vida,
o estudo dos elementos gramaticais deve situar-se como ponto de chegada dos
estudos linguísticos, ao invés de serem situados como ponto de partida, seguindo na
seguinte direção: (1) o estudo das formas de interação verbal em conexão com as
suas condições concretas – estudo dos aspectos linguísticos, (2) o estudo dos tipos de
interação verbal relacionados às situações particulares dos enunciados – estudo dos
elementos epilinguísticos, (3) um reexame das formas da língua em sua apresentação
linguística usual – estudo dos elementos metalinguísticos.
Dito de outro modo, o que fica evidente sobre o ensino dos elementos
gramaticais, em que não há a sobreposição da forma sobre o conteúdo, é que ele
recupera as manifestações discursivas da vida, das quais ele faz parte, ou seja, os
elementos gramaticais passam a ser vistos como colaboradores de um todo maior: o
enunciado. A essa perspectiva, Geraldi acrescenta que

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A linguagem não funciona nem sobre a permanência dos


recursos expressivos, nem sobre a criação ininterrupta que não
produz história. Por isso a linguagem é uma atividade
constitutiva de si mesma, uma sistematização em aberto,
produto do passado e projeção do futuro. Talvez possamos
extrair desse modo de funcionamento uma primeira lição:
nenhuma sociedade é uma estrutura em cujo movimento temos
que nos inserir, mas uma arquitetura que demanda
enunciações singulares a cada momento histórico em que o
que se repete, muda de sentidos e o que se altera adquire
sentidos no que se repete, Indeterminação com história,
movimento com futuro. (GERALDI, 2007, p. 67).

O estudo da linguagem, com base nas considerações do Círculo de Bakhtin,


deve se orientar em uma linguagem em movimento que compreenda a vida do homem
que se desenvolve conforme a evolução da vida social em suas condições reais,
compreendendo o extraverbal presente em cada situação discursiva. Por isso, os
enunciados são entendidos num contexto cultural semântico-axiológico. Nesses
contextos vivos, eles conseguem ser compreensíveis: verdadeiros ou falsos, belos ou
feios, sinceros ou maliciosos, livres ou autoritários etc, uma vez que ―Não há
enunciados neutros, nem pode haver; mas a linguística vê neles somente o fenômeno
da língua, relaciona-os apenas com as unidades da língua, mas não com a unidade de
conceito, da vida prática de vida, da história, do caráter de um indivíduo.‖
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2010, p. 46).
Em consonância com o que foi dito, Marcuschi (2002), ao compreender o
enunciado como elemento indissociável do discurso, que o atualiza, no contexto de
uma esfera onde a linguagem se manifesta, esclarece que o discurso diz respeito à
própria materialização do texto, ou seja, o texto em seu funcionamento sócio-histórico.
Ele deve ser considerado muito mais o resultado de um ato discursivo do que uma
configuração morfológica de encadeamentos de elementos linguísticos; embora se
manifeste linguisticamente, relaciona-se muito mais ao sentido.
Portanto, na construção de sentidos, o projeto de dizer possibilita o jogo de
trocas verbais com o outro, que tem voz e que interage com o locutor, porque toda
compreensão é prenhe de resposta, que na alternância discursa, obriga o outro a
tornar-se locutor, já que o próprio locutor não espera uma compreensão passiva ao
elaborar seus enunciados.
Desse modo, por ser a interlocução um movimento dinâmico em que estão
em jogo posições que se enquadram num sistema de valores, os outros são ativos na
sua construção, por agirem como cocriadores dos enunciados e têm a
responsabilidade de responder já que não tem um álibi para sua existência, não
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podem escapar da sua responsabilidade existencial que os faz participar do diálogo da


vida, pois só se pode existir como humano em interlocução com o outro.
Uma situação concreta estabelece-se com o ato ético, a partir da necessidade
de ocupar um lugar no mundo, que liga esse ato diretamente à existência real. Uma
responsabilidade de todo e qualquer humano, por todo discurso ser responsável,
exatamente por ser dialógico e responder a outros enunciados do mundo. Esses
elementos se apoiam na perspectiva bakhtiniana da amorosidade, que implica não só
o ―dever de ocupar efetivamente o lugar único‖ (BAKHTIN, 2010, p. 123), mas também
numa metodologia de ensino em que as relações humanas não sejam alienadas dos
sujeitos.
Nesse sentido, no ensino de atos discursivos, emerge a necessidade de o
professor demonstrar a seus alunos, por meio de seus atos, como se configura o
árduo e seletivo processo de criação, para que eles compreendam que esse processo
se dá por meio de escolhas em busca da compreensão do interlocutor, e por isso deve
levar em conta a valorização do outro, porque ―somente o amor pode ser
esteticamente produzido, somente em correlação com que ama é possível a plenitude
da diversidade.‖ (BAKHTIN, 2010, p. 129).
É sabido que a amorização traz possibilidades empáticas de interlocução,
sem a frieza, a arrogância e a rivalidade, pois busca estabelecer sentidos num
distanciamento que possibilita uma melhor compreensão de si mesmo e da situação
extraverbal. Especificamente, o evento amoroso se caracteriza por diferenciar-se das
ações corriqueiras pela possibilidade de compreender o outro de forma empática,
exigindo uma resposta consciente a partir do lugar ocupado. Por isso, o ensino de atos
de escrita numa perspectiva dialógica concebe o sujeito como socialmente
participativo, que interage com o mundo e lhe é permitido concordar, valorar, discordar
e criticar aquilo com que se depara. E assim, na completude de seu fluxo, a linguagem
deve ser ensinada inserida na interlocução num processo dialógico, em que no
momento em que os sujeitos entram em contato com as palavras do outro, oferecem a
sua contrapalavra em uma interatividade complexa e dinâmica.

Considerações Finais

A partir da visão da linguagem ―como um rio que se renova, enquanto a


gramática normativa é como a água do igapó, que envelhece, não gera vida nova a
não ser que venham as inundações‖ (BAGNO, 1999, p. 9), tem-se como uma proposta
de ensino dos atos de escrita por meio da produção enunciados em gêneros do
discurso, pois é essa uma das condições para a interação discursiva nas diferentes
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instâncias sociais e, além disso, por conceber o domínio dos gêneros como um
instrumento ideológico das classes dominantes para a manutenção do status quo
social estabelecido, essa opção de ensino almeja disponibilizá-lo também para os
integrantes da classe trabalhadora como um auxílio para a participação social por
meio da inserção na cultura dos atos de escrita.
Portanto, no ensino dos atos de escrita faz-se necessária a proposição de
elaboração de enunciados com função social, ou seja, inseridos na vida real dos
sujeitos. Ao apresentar essas propostas cabe ao professor levar em conta elementos
como a empatia e a abnegação, para que o respeito à alteridade seja sempre
contemplado no ensino da linguagem. Assim, na escola, se a escrita fosse utilizada
para cumprir sua função social, os sujeitos teriam chance de se apropriar
verdadeiramente desse instrumento cultural.

Referências
BAGNO, M. Preconceito linguístico: o que é e como se faz. São Paulo: Loyola, 1999.
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de
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FARACO, C. A. Linguagem & diálogo: as ideias linguísticas do circulo de Bakhtin. São
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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

A RELAÇÃO CONSTITUTIVA ENTRE METODOLOGIA E TEORIA


NA PRÁTICA DOCENTE DE MIKHAIL BAKHTIN: A
CONSTITUIÇÃO LEITORA E AUTORA NO ENSINO
FUNDAMENTAL

Fernando Ringel, Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), E.T. 1:


Experiências na educação básica com a escrita do texto literário
Angela Machado de Paula, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita
Filho" (UNESP), E.T. 1: Experiências na educação básica com a escrita do
texto literário

Considerações iniciais

Este trabalho é parte de nossas pesquisas sobre a relação entre o contexto


histórico-cultural e a prática de pesquisa e docência de teóricos da Educação. Para
complementar os dados biográficos de Mikhail Bakhtin, eventualmente são utilizadas
obras de historiadores e estudiosos, entre os quais Moshe Lewin (2007) e Liudmilla
Gogotichvíli (2015), que vivenciaram o mesmo contexto do autor. O cruzamento de
dados históricos, a biografia de Bakhtin e por fim sua obra, é realizado de forma a
situar o leitor quanto às demandas as quais o autor viveu como professor e
pesquisador.
Para alcançar esse objetivo, buscou-se ir além do embasamento teórico do
autor (1997, 2003, 2006), investigando a relação constitutiva entre metodologia e
teoria no pensamento bakhtiniano e sua prática como professor na constituição leitora
e autora de seus alunos da 8ª e décima séries3. Para isso é proposta a utilização dos
postulados teóricos de Bakhtin e também sua prática como docente, explicitados na
obra Questões de estilística no ensino da língua (2015), onde o autor aborda a

3
Equivalente ao ensino médio e fundamental atualmente no Brasil.
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metodologia aplicada e os dados apurados no experimento. Primeiramente são


abordados temas relacionados as demandas de Bakhtin para o desenvolvimento da
atividade. Em um segundo momento é estabelecida a relação entre a atividade e os
postulados teóricos do próprio Bakhtin. Por fim, verifica-se a aplicação da atividade,
sua metodologia e seus resultados.
Como forma de tornar a análise mais acessível para os leitores que se iniciam
no pensamento bakhtiniano, bem como divulgar obras de apoio para aqueles que
desenvolvem pesquisas nessa perspectiva, citamos trechos de Palavras e
contrapalavras: Glossariando conceitos, categorias e noções de Bakhtin (2009), do
Grupo de estudos dos Gêneros do Discurso, e Nuevo diccionario de la teoría de Mijail
Bajtin (2006), organizado por Olga Pampa Arán.
Para melhor compreensão do leitor, informações adicionais sobre o texto, bem
como citações de outros autores que possam auxiliar na compreensão do conteúdo,
como Beth Brait (2015), ocasionalmente são adicionadas em notas de rodapé. Essa
medida foi adotada visando priorizar a clareza do texto para aqueles que estão
iniciando seus estudos nessa perspectiva teórica.
Diante da ênfase de Bakhtin no papel da fala como processo de interação,
privilegiou-se o uso de citações diretas por expressarem sua marca de autoria. As
citações diretas ganham relevância especialmente quando o autor relata seus
procedimentos metodológicos e didáticos.

O professor Mikhail Mihailovitch Bakhtin

Em contato com o outro, seus alunos, verifica-se no professor Bakhtin seu


processo de autoria, aplicando sua teoria e desenvolvendo sua própria metodologia
para avaliação dos resultados. Insatisfeito com os manuais e cartilhas fornecidos pelo
governo, tendo em vista que na União Soviética todas as instituições de ensino eram
públicas (LEWIN, 2007), Bakhtin acreditava que esse material didático não auxiliava o
professor no ensino da língua viva no aluno. Para o autor, ―embora bem profundas, as
análises que ele [o professor,] encontrava nessa obra não são capazes de dar
respostas às suas questões práticas. Repetimos: em lugar algum ele encontrará uma
abordagem sistemática para as questões estilísticas da gramática‖ (BAKHTIN, 2015,
p. 24).
Nessa perspectiva, gramática deve ser estudada considerando seu significado
estilístico. O aluno deve ter clara a aplicação das variantes gramaticais tendo como

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como referência situações concretas, de forma a que possa avaliar possíveis


alterações no sentido expresso no texto. Essa premissa parte do princípio de que a
gramática isolada dos aspectos semânticos e estilísticos priva o aluno dessa
compreensão, ―[...] faz com que somente aprendam, no melhor dos casos, a analisar
frases prontas em um texto alheio e a empregar sinais de pontuação nos ditados de
modo correto, mas a linguagem escrita e oral dos alunos quase não se enriquece‖
(BAKHTIN, 2015, p. 28).
Para Bakhtin, o estudante deve entender a relação entre o texto e sua
aplicação em situações concretas para se apropriar do conhecimento ministrado pelo
professor. De forma a propor uma alternativa, o estudo da gramática por meio da
estilística deve ser desenvolvido em etapas4.
Bakhtin inicia a unidade com exemplos da literatura, levando os alunos a
discutir mudanças de sentido e expressividade, de forma estabelecer a relação entre
essas variantes e o discurso cotidiano. ―Pelas minhas observações e pela minha
experiência, esse trabalho deve ser organizado do seguinte modo. Ele deve basear-se
em uma análise detalhada das três frases a seguir‖ (2015, p 30): Triste estou: o amigo
comigo não está (Púchkin), Ele começou a rir – todos gargalham (Púchkin) e Acordei:
cinco estações ficaram para trás (Gogól).
O professor deve começar a análise da frase reforçando suas expressividade,
por meio da entonação na leitura e pela mímica, ―[...] o elemento dramático5 contido na
frase: é muito importante fazer com que os alunos escutem e avaliem aqueles
momentos de expressividade (sobretudo emocional) que desaparecerão quando a
construção sem conjunção for transformada em um período composto com conjunção‖
(BAKHTIN, 2015, p. 30). A expressividade ao ler a frase tem papel central nessa etapa

4
A partir dos estudos de Bakhtin sobre a abordagem de exemplos textuais e a vida concreta, Beth
Brait enumera as etapas que o professor deve seguir na atividade em sala de aula: 1) As
formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições concretas em que se
realiza. 2) As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em ligação estreita
com a interação de que constituem os elementos, isto é, as categorias de atos de fala na vida e
na criação ideológica que se prestam a uma determinação pela interação verbal. 3) A partir daí,
exame das formas da língua na sua interpretação linguística habitual. (2015, p. 18)
5
Como a obra Questões de estilística no ensino da língua foi elaborado ainda no processo de
constituição de Bakhtin como teórico, alguns de seus conceitos ainda não tinham a
nomenclatura com os quais ficaram conhecidos, ―[...] caso das relações dialógicas, ainda
nomeadas como elemento dramático, segundo esclarecimento dos editores russos, e
especialmente a interação verbal, sem obrigar o professor a submeter-se a uma enxurrada de
teoria (BRAIT, p. 16). Ressalta-se que a citada obra foi elaborada como um trabalho
acadêmico, entretanto não há comprovação se Bakhtin chegou a apresenta-la. ―O motivo
formal para a elaboração desse trabalho não está de todo claro. Se o rascunho de Bakhtin
provavelmente serviu de base para uma apresentação oral pública (uma prova disso é a
palavra ‗apresentação‘ em sua parte final) [...]‖ (GOGOTICHVÍLLI, 2015, p. 48-49).
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da análise gramatical por meio da estilística. O aluno deve compreender a importância


da mímica e da entonação no sentido que o texto adquire ao ser lido.

A relação constitutiva entre método e teoria na prática docente de Bakhtin

Como uma resposta ao ensino engessado por manuais metodológicos, Bakhtin


enfatiza a atuação do professor como sujeito na língua viva. As aulas partem do que é
proposto aos alunos, mas seu desenvolvimento ocorre coletivamente por meio da
linguagem. Essa perspectiva parte da premissa de que ―na vida, agimos assim,
julgando-nos do ponto de vista dos outros, tentando compreender, levar em conta o
que é transcendente à nossa própria consciência: assim, levamos em conta o valor
conferido ao nosso aspecto em função da impressão que ele pode causar em outrem‖
(BAKHTIN, 1997, p. 36). No pensamento bakhtiniano,

dialogia é atividade do diálogo e atividade dinâmica entre o Eu e o


Outro em um território preciso socialmente organizado em interação
linguística. Seria uma dialética que explica o homem pela produção
do diálogo, pela atividade humana da linguagem. As ideias de Bakhtin
sobre o homem e a vida são caracterizadas pelo princípio dialógico.
(GEGE, 2009, p. 29)

Verifica-se nessa reflexão o papel da prática docente na constituição do


pesquisador, na construção de sua obra teórica. O autor percebe que os manuais
utilizados para orientar o professor não privilegiam o diálogo com o aluno. Nessa
observação se encontra a premissa bakhtiniana de que para que sejam estabelecidas
relações lógicas é necessária a relação entre duas consciências, o diálogo. ―Na
dialogia as vozes estão presentes, as entonações (pessoais – emocionais) são
fundamentais, valoram e ideologizam, as palavras e as réplicas são vivas, e as
consciências estão em interação. Ao apagar isso tudo, temos a dialética‖ (GEGE,
2009, p. 30)6.
Nesse sentido, a proposta de que o professor dialogue com os alunos sobre o
papel que as mudanças gramaticais, mesmo quando corretas, tem no sentido da

6
Caso o leitor que tenha interesse em se aprofundar nesse conceito, recomendamos a leitura do
Nuevo diccionario de la teoría de Mijail Bajtin: ―cabe assim mesmo destacar que a importância
do conceito de dialogismo constitui um fundamento epistemológico de tal magnitude que, até o
final de sua vida, Bakhtin propõe como metodologia de conhecimento das ciências humanas
ou os ensaios que melhor ilustram esta proposta são ―O problema do texto na linguística, a
filologia e outras ciências humanas‖[ 1959-1961] e ―Para uma metodologia das ciências
humanas‖[1974]‖ (ARÁN, 2006, p. 84 tradução nossa).
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oração, parte da linguagem como instrumento semiótico de interação no discurso


cotidiano. As aulas devem seguir o mesmo princípio da linguagem utilizada para fazer
compras, visitar amigos ou trabalhar. Em sociedade o ser humano está sempre em
contato com o outro por meio da palavra. Nas palavras de Bakhtin,

A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar do diálogo:


interrogar, ouvir, responder, concordar, etc. Nesse diálogo o homem
participa inteiro e com toda a vida: com os olhos, os lábios, as mãos,
a alma, o espírito, todo o corpo, os atos. Aplica-se totalmente na
palavra, e essa palavra entra no tecido dialógico da vida humana, no
simpósio universal (2003, p.348).

O diálogo ocorre quando duas consciências interagem, o que é possível por


meio da linguagem. Nessa perspectiva, ―[...] a interação é a própria concepção de
linguagem em Bakhtin. A linguagem é uma inter-ação‖. (GEGE, 2009, p. 63). Se faz
necessário o diálogo na análise dos textos apresentados pelos professor aos alunos
porque ―[...] toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de
que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui
justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte‖ (BAKHTIN, 1997, p. 113).
Entretanto o diálogo não é restrito a relação estabelecida apenas na presença
do interlocutor, face a face. Bakhtin compreende essa como uma das formas
primordiais de interação, porém ela abrange qualquer tipo de comunicação verbal. É
necessário enfatizar que, ―para Bakhtin, a palavra é ideológica por natureza e
comporta nossas avaliações, de forma que a interação é um evento dinâmico onde o
que está em jogo são posições axiológicas, confrontos de valores‖ (GEGE, 2009, p.
64-65).
Partindo do princípio que a palavra é ideológica,

a interação verbal constitui assim a realidade fundamental da


língua. O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é
claro senão uma das formas, é verdade que das mais
importantes, da interação verbal. Mas pode-se compreender a
palavra "diálogo" num sentido amplo, isto é, não apenas como
a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face,
mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja.
(BAKHTIN, 1997, p. 123)

Ressalta-se que na época em que essas ideias foram desenvolvidas, 1945,


não era comum a utilização do diálogo na construção de conhecimento com os alunos,
levando em consideração o conhecimento do estudante na discussão. Após o final da
Segunda Guerra Mundial, a população soviética vivia sob intenso patrulhamento

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ideológico do governo contra possíveis ameaças estrangeiras (LEWIN, 2007) 7. Esse


contexto torna ainda mais original a perspectiva proposta por Bakhtin ao proporcionar
que o aluno, por meio de suas próprias palavras, pudesse contribuir para a análise dos
exemplos consequentemente, influenciando na explicação do professor.

O projeto bakhtiniano de estudo da linguagem foi concebido como


translinguística, na medida em que seu enfoque poderia superar as
deficiências de uma linguística determinada em recortar seu objeto
dentro do sistema da língua, deixando fora do estudo tudo o que
Bakhtin chamaria de ―língua viva‖, ou seja, o reconhecimento da
carga de valorativa do enunciado de um sujeito situado culturalmente,
que apoia a refrata a palavra dos outros carregando-a com nova
significação (ARÁN, 2006, p. 84 tradução nossa) 8

De forma a buscar alternativas em relação ao que estava estabelecido, no que


diz respeito a seu descontentamento com os manuais metodológicos e didáticos
fornecidos pelo governo, verifica-se na prática docente de Bakhtin um exemplo de
como a vida em sociedade exige que o o indivíduo tome posições continuamente,
tendo que se enquadrar em um determinado sistema de valores, e na mesma medida
em que se constrói, também influencia a construção do contexto em que está inserido.

A aplicação da atividade, sua metodologia e a avaliação dos dados por


Bakhtin

Diante do exposto, será abordado o desenvolvimento da metodologia proposta


por Bakhtin especificamente na primeira frase apresentada aos alunos9. Trata-se do
trecho de um poema de Alexandre Púchkin, Triste estou: o amigo comigo não está.
Bakhtin alterou a frase para Triste estou, porque o amigo não está, transformando-a
em um período composto com a conjunção porque.

7
Bakhtin foi preso por atividades compreendidas pelas autoridades da época como subversivas.
Após cumprir pena na Sibéria, ganhou o direito de viver no Cazaquistão, então parte da União
Soviética. Lá permaneceu sob vigilância durante grande parte de sua vida, incluindo o período
em que escreveu Questões de estilística no ensino da língua (2015). Informações mais
aprofundadas sobre sua história podem ser encontradas na biografia escrita por Katerina
Clarck e Michael Holquist, Mikhail Bakhtin (2004), editada no Brasil pela editora Perspectiva.
8
ARÁN, O. P. Nuevo diccionario de la teoría de Mijail Bajtin. Córdoba, Argentina: Ferreyra Editor,
2006.
9
No presente artigo, é abordado o primeiro dos três exemplos propostos por Bakhtin. Esse recorte
abrange apenas os exemplos, que se repetem, entretanto, toda a parte metodológica e a
análise dos dados.
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Após a discussão com os alunos, chegamos à conclusão que não é


possível deixar a frase desse jeito; o uso da conjunção torna a
inversão de Púchkin inadequada e é necessário reconstruir a ordem
direta, ‗lógica‘ e comum das palavras: Estou triste, porque o amigo
não está comigo ou: Estou triste, uma vez que o amigo não está
comigo. Ambas as frases estão corretas tanto do ponto de vista
gramatical quanto do estilístico. Ao mesmo tempo, os alunos
aprenderam que a omissão ou a recolocação da conjunção não é um
procedimento simplesmente mecânico: ela determina a ordem das
palavras na oração e, por conseguinte, as ênfases dadas às palavras
(BAKHTIN, 2015, p. 30-31)

Por meio de perguntas, Bakhtin estimula os alunos a refletirem sobre a


diferença entre a oração com conjunção criada pela turma e a oração sem conjunção
no texto original de Púchkin. ―Sem grandes dificuldades obtemos a resposta de que na
nossa reformulação foi perdida a expressividade emocional da frase de Púchkin e que
na variante reformulada a oração ficou mais fria, seca e lógica‖ (BAKHTIN, 2015, p.
31).
Ressalta-se nessa etapa da aula o papel central do diálogo na concepção do
autor sobre a linguagem. Não era comum a utilização do diálogo na construção de
conhecimento com os alunos, levando em consideração o conhecimento do estudante
na discussão, o uso criativo da linguagem, a língua viva.
Como professor, ao propor a reflexão por meio da fala quanto a mudança
gramatical no exemplo apresentado, o autor chega à conclusão que, ―de modo geral,
os alunos concluem que, do ponto de vista da expressividade, perdemos muito ao
trocar a construção sem conjunção pela com conjunção‖ (BAKHTIN, 2015, p. 31). Mais
uma vez ressalta-se os desdobramentos teóricos do autor em sua metodologia em
sala de aula: ao analisar os resultados, Bakhtin conjuga o verbo perder na primeira
pessoa do singular: nós. O problema apresentado pelo professor trata-se de um
processo dialógico e sua solução depende da participação dos indivíduos envolvidos
na aula.
Para abordar a perda de expressividade na frase, após sua alteração Bakhtin
analisou das conjunções subordinativas porque e uma vez que. ―Chamamos a atenção
dos alunos para o volume excessivo e a sonoridade desagradável dessas conjunções‖
(BAKHTIN, 2015, p. 31). Nessa passagem, mais uma vez é possível verifica a ênfase
do autor no diálogo. A palavra é analisada não apenas em termos gramaticais, mas
quanto a sua sonoridade. ―Exemplificamos como o discurso é afetado quando há um
excesso dessas palavras volumosas, e como seu caráter torna-se livresco, seco e
sonoramente desagradável, quando ocorre um uso frequente dessas conjunções‖
(BAKHTIN, 2015, p. 31-32).

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Em seu papel como professor, o autor explica aos alunos que, o uso de
conjunções subordinativas como porque, embora possam estar corretas
gramaticalmente, torna o uso da língua impessoal. Para Bakhtin, essas palavras são
privadas de elementos imagéticos e por isso elas não podem ter um significado
metafórico no discurso. Embora sejam palavras que ligam ideias em uma oração, elas
não tem um significado por si só. Seu uso empobrece a expressão do sujeito. Essas
palavras ―[...] nunca terão um significado metafórico no nosso discurso, nem serão
usadas de maneira irônica, e tampouco a entonação emocional poderá basear-se
nelas (ou simplesmente não podem ser pronunciadas com emoção)‖ (BAKHTIN, 2015,
p. 32).
A partir desse raciocínio, dialogicamente ―fazemos os alunos tirarem suas
próprias conclusões a partir da nossa‖ (BAKHTIN, 2015, p. 33). Entre os
apontamentos estilísticos enumerados pelo autor, está a impossibilidade da
dramatização da palavra por meio da mímica e do gesto, a diminuição da capacidade
de produzir imagens do discurso, tendo o texto se tornado mais adaptado à leitura
silenciosa do que à leitura expressiva em voz alta. Por fim, ―a oração perdeu sua
concisão e se tornou menos agradável ao ouvido‖ (BAKHTIN, 2015, p. 34)
Ao terminar a análise dos exemplos propostos em sala de aula, todos retirados
da obra de escritores clássicos da literatura russa, o professor Mikhail Bakhtin
comparou as frases das obras e sua aplicação na linguagem cotidiana. Em sua
concepção, os alunos devem entender como aquilo que dizem pode ser expresso com
mais vivacidade de acordo com a forma como constroem suas frases, e que esse
conhecimento não deve ficar restrito ao texto escrito. Portanto, este conhecimento
deve ser empregado tanto na linguagem oral quanto escrita. Para analisar se havia
atingido esse objetivo,

realizei essa prática da seguinte maneira. [...] ao verificar os trabalhos


feitos em casa e em sala de aula, eu chamava a atenção para todos
os casos em que foi conveniente a substituição da subordinação com
conjunção pela sem conjunção e fazia uma modificação estilística
consequente nos cadernos dos alunos. Durante a análise dos
trabalhos na sala de aula, todos os períodos eram lidos em voz alta e
discutidos, sendo que às vezes os ―autores‖ não concordavam com a
minha correção e surgiam discussões animadas e interessantes. É
claro, havia casos em que alguns alunos entusiasmavam-se demais
com as formas sem conjunção e nem sempre as utilizavam de modo
adequado. No geral, os resultados de todo esse trabalho eram
bastante satisfatórios. (BAKHTIN, 2015, p. 39-40)

Como produto desse apontamento, o autor ressalta a receptividade dos alunos


em relação a análise estilística, mesmo quando profundas e elaboradas, ao participar
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ativamente dos exercícios. Esse dado leva a conclusão de que o estudo da gramática
não é necessariamente tedioso se for feito levando em conta a estilística, as emoções
contidas na linguagem. ―[...] Ao serem realizadas corretamente, essas análises
explicam a gramática para os alunos: ao serem iluminadas pelo seu significado
estilístico, as formas secas gramaticais adquirem novo sentido para os alunos, tornam-
se mais compreensíveis e interessantes para eles‖ (BAKHTIN, 2015, p.40).
Esse processo tem como intenção interromper a progressiva formalização da
linguagem nos alunos. Nas séries iniciais não se verifica grande diferença entre a
produção escrita e falada das crianças. Em seus textos, a escrita é utilizada de forma
bastante livre, ―por isso, a linguagem desses trabalhos, embora nem sempre correta, é
viva, metafórica e expressiva. [...] Nessa linguagem infantil, embora de modo
desajeito, expressa-se a individualidade do autor; a linguagem ainda não está
despersonalizada‖ (BAKHTIN, 2015, p. 41).
Conforme vão se apropriando da gramática da língua escrita, progressivamente
passam a reproduzir a linguagem uniformizada e impessoal dos manuais de literatura.
Embora o uso da linguagem se torne mais correta do ponto de vista formal, ―os alunos
passam a ter receio de qualquer expressão original, qualquer locução diferente dos
padrões livrescos por eles conhecidos. Eles escrevem para a leitura e não põem o
texto escrito a prova da voz, da entonação, do gesto‖ (BAKHTIN, 2015, p. 41).
Para Bakhtin, é exatamente nessa etapa que o professor deve atuar no ensino
da língua materna, aproximando a linguagem escrita da linguagem oral, da língua viva
que todo indivíduo utiliza para tarefas do cotidiano. Entretanto, essa perspectiva
significa resgatar a expressividade da linguagem, natural nas primeiras séries, com a
riqueza gramatical da linguagem formal. Porém essa aproximação deve ocorrer
levando em consideração o que há de mais elevado na cultura, no caso das disciplinas
ministradas por Bakhtin, os clássicos da literatura russa.
O estudo da linguagem, bem como a didática e metodologias envolvidas no
ensino, são necessários para uma educação que contemple os alunos para além do
meio acadêmico. ―A linguagem livresca, impessoal e abstrata, que ainda por cima se
gaba ingenuamente de sua erudição pura, é sinal de uma educação pela metade. Uma
pessoa completamente adulta no sentido cultural não utiliza essa linguagem‖
(BAKHTIN, 2015, p. 42).
Ressalta-se que a análise do autor ao final da atividade não tem como fim a
sala de aula, nem simplesmente o uso adequado da linguagem, mas o papel que a
linguagem tem no desenvolvimento do indivíduo como sujeito, em um determinado
contexto. Nas palavras de Bakhtin,
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a língua tem ainda influência poderosa sobre o pensamento daquele


que está falando. O pensamento criativo, original, investigativo, que
não se afasta da riqueza e da complexidade da vida, não é capaz de
se desenvolver nas formas da linguagem impessoal, uniformizada,
não metafórica, abstrata e livresca. O destino posterior das
capacidades criativas de um jovem depende em muito da linguagem
com a qual ele se forma no ensino médio. O professor tem essa
responsabilidade (2015, p. 42-43)

Resta ao professor guiar o aluno nesse processo de desenvolvimento da


linguagem, tendo em vista seus reflexos no desenvolvimento psíquico do aluno, de
forma flexível e cautelosa.

Considerações finais

Buscar a originalidade do trabalho de Bakhtin como pesquisador se constitui


em uma etapa importante para a nossa constituição como pesquisadores. Nesse
sentido, verifica-se a originalidade da obra Questões de estilística no ensino da língua
(2015) ao sintetizar a experiência de Bakhtin como professor em escolas, fato
duradouro em sua biografia em função de complicações políticas que levaram a sua
prisão e em limitadas possibilidades profissionais. Esta obra é singular por partir de
suas demandas como indivíduo inserido em uma determinada sociedade, da interação
verbal verificada em seu estudo na bibliografia disponibilizada na época e no confronto
de valores entre o que se esperava dele como professor e o que ele desejava aplicar
dialogicamente em suas aulas.
Como pesquisadores, consideramos o presente artigo como um importante
exercício teórico em nosso aprofundamento no pensamento bakhtiniano, tendo como
desafio enquadrar a prática docente de Bakhtin em seus conceitos teóricos, mesmo
que esses ainda estivessem em formulação em 1945. Essa motivação foi originada
por uma característica da obra: o contato com os alunos está cristalizado pelo relato
de Bakhtin em primeira pessoa, fato que destoa das outras obras do autor. Trata-se de
uma experiência pessoal do autor.
Foi especialmente motivador em nossa tarefa verificar que Bakhtin iniciou a
escrita do texto que serviria não apenas como planejamento para uma de suas aulas,
mas como um guia para outros professores. Nesse processo, o texto provavelmente
seria apresentado em evento acadêmico, características da prática docente
vivenciadas ainda hoje.

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Ao elaborar a metodologia de aplicação e análise dos dados, Bakhtin tinha


como intenção proporcionar condições para que seus alunos se expressassem com
autonomia, entretanto nessa passagem verifica-se o processo de constituição autora
do próprio Bakhtin como professor, pesquisador e consequentemente no
desenvolvimento de seus postulados teóricos.
Por essas características, acreditamos que o presente artigo possa ser
motivador para pesquisadores e docentes na perspectiva bakhtiniana, tendo em vista
que essa discussão deve ter desdobramentos em outros trabalhos, não apenas
nossos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARÁN, O. P. Nuevo diccionario de la teoría de Mijail Bajtin. Córdoba, Argentina:


Ferreyra Editor, 2006.

BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

_______. Reformulação do livro sobre Dostoiévski. In: BAKHTIN, M. Estética da


criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003b

_______. Questões de estilística no ensino da língua. São Paulo: Editora 34, 2015.

_______. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997.

_______. Questões de estilística no ensino da língua. São Paulo: Editora 34, 2015.

BRAIT, B. Lições de gramática do professor Mikhail M. Bakhtin In: BAKHTIN, M.


Questões de estilística no ensino da língua. São Paulo: Editora 34, 2015.

GOGOTICHVÍLI, L. Sobre o texto de Bakhtin In: BAKHTIN, M. Questões de estilística


no ensino da língua. São Paulo: Editora 34, 2015.

Grupo de estudos dos Gêneros do Discurso – GEGe. Palavras e contrapalavras:


Glossariando conceitos, categorias e noções de Bakhtin. São Carlos: Pedro &
João Editores, 2009.

LEWIN, M. O século soviético. Rio de Janeiro: Record, 2007.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

CONCURSOS LITERÁRIOS OFICIAIS NO BRASIL E EM


PORTUGAL E A EDUCAÇÃO LITERÁRIA10

Joana d‘Arc Batista Herkenhoff, Ufes, Fapes

Renata Junqueira de Souza, Unesp, Presidente Prudente (SP)

Fernando José Fraga de Azevedo, Universidade do Minho (Portugal)

Considerações Iniciais

Os concursos e prêmios literários constituem uma prática consagrada da


cultura escrita do ocidente desde, pelo menos, os concursos disputados pelos
tragediógrafos da Grécia antiga, no século VII a. C, estabelecendo-se como instâncias
de reconhecimento e legitimação da qualidade estética dos textos literários,
contribuindo para erigir cânones. Por serem processos de seleção, os concursos
promovem ao mesmo tempo inclusão e exclusão, pois ―Qualquer proposta de um
corpus textual implica selecionar e valorizar determinados textos e autores em
detrimento de outros.‖ (AZEVEDO, 2013, p. 21). No âmbito dos países de língua
portuguesa, hodiernamente, podemos citar, entre os mais notórios, o Prêmio Camões,
o Prêmio Oceanos (Portugal Telecom, até 2014) e o Prémio Jabuti.

Possivelmente pela crença no incentivo à produção por meio da premiação e


pela lógica classificatória característica dessas práticas, presentes também nas
estratégias avaliativas escolares, os concursos se aclimataram no contexto
educacional, sendo encampados por políticas institucionais como, no Brasil, a
―Olimpíada de Língua Portuguesa‖, concurso de produção de textos para alunos da

10
A escrita literária e a
Esse texto está vinculado à pesquisa de Doutorado com título provisório,
Olimpíada de Língua Portuguesa: memórias literárias de uma professora da Serra/ES, em
desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo
(UFES), sob a orientação da professora Drª Renata Junqueira de Souza e é resultado de visita técnica à
Universidade do Minho (Portugal), com acompanhamento do Professor Dr. Fernando José Fraga de
Azevedo.

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educação básica que privilegia textos da esfera literária e, em Portugal, os concursos


―Faça lá um poema e ―Concurso Inês de Castro‖ também voltados para esse público.
Em tese, a participação em concursos literários propiciaria ao aluno
condições para o desenvolvimento de um comportamento de autor (Tauveron, 2014)
(Dalla-Bona, 2013), pois o texto por ele produzido teria possibilidade de circulação e
difusão além do contexto escolar, levando os alunos a participarem dessa reconhecida
prática da cultura literária. Assim, tomamos para análise os regulamentos dos
concursos mencionados acima, atentando para seu modo de organização e critérios
de seleção para buscar identificar na sua construção discursiva as concepções
teóricas que os fundamentam e sua relação com os documentos oficiais para o ensino
de língua materna e de literatura nos respectivos países. O que propomos é refletir
acerca desses concursos literários oficiais, para verificar seu potencial de contribuir
para a educação literária dos alunos e sua inserção na cultura literária.
.

Concursos literários oficiais no Brasil e Portugal

No Brasil, desde 2008, como uma ação articulada ao Plano Nacional de


Educação (PNE), temos a Olimpíada de Língua Portuguesa (OLP), concurso de
produção de textos voltado para alunos do 5º ano do Ensino Fundamental ao 3º ano
do Ensino Médio, com publicação e premiação dos textos selecionados. As categorias
comtempladas pela OLP são textos predominantemente da esfera literária: Poema (5º
e 6º anos); Memórias literárias (7º e 8º anos); Crônica (9º ano e 1º ano do Ensino
Médio), excetuando-se o Artigo de opinião para o 2º e 3º anos do Ensino Médio, da
esfera jornalística
O programa, resultante da parceria entre a Fundação Itaú Social, o Centro de
Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec) e o
Ministério da Educação, tem como marco teórico a compreensão da leitura e da
escrita como práticas sociais presentes no dia-a-dia, nos ambientes da família, da
escola, do trabalho e da vida em comunidade. Partindo dessa perspectiva, promove,
nos anos pares, a formação para professores de Língua Portuguesa na modalidade
presencial e on line e, nos anos ímpares, a Olimpíada de Língua Portuguesa que, em
2016, completou sua 5ª edição.
O ―Concurso Inês de Castro‖, que já está em sua 9ª edição, também é
resultante de parcerias público-privadas, sendo uma iniciativa conjunta do Plano
Nacional de Leitura e da Fundação Inês de Castro, patrocinado pelo Hotel Quinta das

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Lágrimas, pela YDreams e pela Fundação Bissaya Barreto com a colaboração do


Diário de Coimbra. Inspirando-se nos ―Percursos de Pedro e Inês‖11, desde a sua
primeira edição, no ano letivo 2002/2003, o concurso tem por objetivo ―promover o
conhecimento dos contextos e lugares históricos, geográficos, sociais, políticos,
económicos, literários e afetivos que se relacionam direta ou indiretamente com o
romance de D. Pedro e de D. Inês‖, de acordo com informações disponíveis na página
virtual do Plano Nacional de Leitura (PNL). Os trabalhos do concurso, ―concebidos e
elaborados‖ pelos alunos do 2º e 3º Ciclos do Ensino Básico e do Ensino Secundário
(equivalentes no Brasil ao ensino fundamental e ao ensino médio, respectivamente),
foram produzidos, na edição 2016/2017, no âmbito das artes performativas (Filme,
Dança, Música, Ópera, Teatro, Teatro Musical etc.) e devem ter como produto final,
não um texto, como na OLP, mas um trabalho em vídeo.
Já o concurso ―Faça lá um poema‖ (FLP), tem objetivos mais assemelhados
aos da OLP, pois pretende ―incentivar o gosto pela leitura e pela escrita de poesia‖
ligando-se às comemorações do Dia Mundial da Poesia, o dia 21 de Março. Também é
parceria do Plano Nacional de Leitura (PNL) com a Fundação Centro Cultural de
Belém (CCB). Observa-se que o objetivo do concurso liga-se ao desenvolvimento da
habilidade de escrita literária, pois o gênero de escrita alvo é o poema.
Na página do concurso FLP na internet, encontramos uma desafiadora
definição de poema feita por Fernando Pessoa, que mostra que escrever um poema
não será tarefa fácil para os alunos: ―Um romance é uma história do que nunca foi e
um drama é um romance dado sem narrativa. Um poema é a expressão de ideias ou
de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois que ninguém fala em verso.
(Fernando Pessoa)‖. Os textos literários aqui são apresentados por aquilo que lhes
falta (no romance, a ausência de realidade; no drama, a ausência do narrador; no
poema, a sua inexistência nas situações cotidianas de comunicação) e assim, pela
quebra da expectativa do leitor, desafiando sua compreensão.
O concurso, cuja temática é livre, destina-se igualmente às escolas públicas e
privadas do país e é direcionado aos alunos dos níveis de ensino Básico e Secundário
de todas as escolas (agrupadas e não agrupadas), do continente e das ilhas. Os
textos selecionados nas escolas são enviados para o Plano Nacional de Leitura por
um professor responsável. Os critérios de avaliação dos poemas enviados obedecem,
―genericamente, aos itens seguintes: adequação morfológica e sintática, riqueza de

11
O romance de D. Pedro I e Inês de Castro constitui hoje um das mais relevantes e trágicas histórias de
amor. D. Pedro I (1320-1367) apaixona-se por D. Inês de Castro (1325-1355) e, mesmo depois da
morte desta (assassinada), coroa-a rainha de Portugal. Sobre esta lenda, cf.
http://www.centerofportugal.com/pt/a-lenda-de-pedro-e-ines/
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conteúdo, originalidade do tema e do estilo‖ (FLP). Os poemas são avaliados por um


júri constituído por cinco membros designados pelo CCB e pelo PNL.
No regulamento lê-se que aos autores dos que forem considerados os
melhores Poemas serão atribuídos prémios, a serem anunciados oportunamente na
página do PNL e no site do CCB. Os premiados são convidados a ler seus poemas na
cerimónia pública de entrega dos prémios, como parte das celebrações do Dia Mundial
da Poesia, no CCB.
O PNL apoia também o ―Conta-nos uma história‖, concurso do Ministério da
educação (ME) para as escolas da educação pré-escolar e do 1º ciclo, incentivando os
alunos a recontarem histórias existentes (contos, fábulas, parábolas, mitos ou lendas)
ou a produzirem outras, utilizando recursos digitais de áudio e vídeo, a fim de
incentivar a utilização das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC).
Esses concursos estão ambientados no sítio eletrônico do PNL, que também
divulga concursos promovidos por outras entidades, a exemplo do Prémio de
Literatura Juvenil Ferreira de Castro, já em sua 36ª edição, voltado para autores de 12
a 25 anos dos países de língua oficial portuguesa,
nos gêneros Contos e Relatos de Viagem.
O Plano Nacional de Leitura, instituído em 2007 pelo governo português
(Ministério da Educação, em articulação com o Ministério da Cultura e o Gabinete do
Ministro dos Assuntos Parlamentares) surge como resposta à necessidade de elevar
os níveis de literacia da população portuguesa, generalizando, segundo padrões
internacionais, as competências nos domínios da leitura e da escrita e o alargamento e
aprofundamento dos hábitos de leitura. De acordo com a informação oficial, constante
na respectiva webpage, o PNL é assumido como prioridade política e como desígnio
nacional.
Para este fim, o PNL tem vindo a desenvolver uma série de iniciativas que,
grosso modo, respondem ao desafio de criar um ambiente favorável à leitura, seja pela
publicação anual de listagens de obras selecionadas segundo critérios de qualidade
literária, seja pelo apoio a programas de promoção da leitura para diferentes setores
dos públicos-alvo: famílias, crianças em idade escolar, jovens, adultos, educadores e
professores e outros segmentos de público como hospitais, centros educativos de
reinserção, centros da 3ª idade, prisões; seja ainda pelo apoio à formação de
mediadores de leitura, formais e informais, facultando instrumentos, conteúdos e
metodologias.
O Programa e Metas Curriculares de Português do Ensino Básicopropõem
comtemplarquatro domínios de referência, a saber, Oralidade, Leitura e Escrita,
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Educação Literária e Gramática. Em relação à educação literária, enfatiza a leitura e a


interpretação de ―textos literários de diferentes géneros e graus de complexidade, com
vista à construção de um conhecimento sobre a literatura e a cultura portuguesas,
valorizando‐as enquanto património de uma comunidade‖ (p. 5). Entretanto, percebe-
se uma abertura para o trabalho com a escrita literária, aqui tomada como escrita de
intenção estética (TAUVERON, 2014), ao incluir em seus objetivos ―Produzir textos
com objetivos críticos, pessoais e criativos‖. (p. 5)
No Brasil, a OLP é uma estratégia do Programa Escrevendo o Futuro e seu
objetivo, conforme informações na pagina virtual do programa, é o aprimoramento da
prática de professores de Língua Portuguesa da rede pública do país para o ensino da
língua escrita. O Programa possui uma comunidade virtual que viabiliza formação à
distância para educadores, propiciando a interação entre os participantes, os
professores, e disponibilizando materiais, metodologias e notícias referentes ao
Programa. Os professores cujos municípios aderirem ao Concurso, ao se inscreverem
na OLP, têm acesso à Coleção da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o
Futuro, material didático de apoio e orientação para a realização de oficinas em sala
de aula com seus alunos. O material é disponibilizado em versão impressa para as
escolas inscritas e também está disponível para download no Portal. A proposta
pedagógica inclui a utilização de diversos textos literários para inspirar e servir de
referência para a escrita dos alunos. Estes textos estão presentes na coletânea de
textos para leitura dos alunos e uma grande parte pode ser também encontrada no
acervo das bibliotecas e salas de leitura das escolas, distribuídos pelo Programa
Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), ação sem continuidade, no contexto político
vivido no Brasil12.
O concurso mantém, desde seu surgimento, o tema ―O lugar onde vivo‖, a fim
de valorizar a diversidade cultural brasileira e promover o intercâmbio entre crianças e
jovens de diferentes regiões. Assim, além de objetivar o desenvolvimento linguístico, o
programa pretende também contribuir para fortalecer o vínculo dos estudantes com a
comunidade em que vivem, promovendo a cidadania.
O regulamento da OLP, documento com 21 páginas, está disponível no portal.
Nele constam 10 itens que abordam orientações para inscrição, para a composição
das comissões julgadoras além de links para acesso ao material pedagógico, fichas de
inscrição e critérios para julgamento dos textos. A participação é restrita aos

12
Para mais informações acesse: Governo Temer abandona programa de envio de livros literários
a escolas. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2017/09/1922899-governo-temer-
abandona-programa-de-envio-de-livros-literarios-a-escolas.shtml. Acesso 29/09/2017.
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professores das escolas públicas, que também participam do concurso na categoria


Relatos de Práticas.
Todos os procedimentos, desde a inscrição à submissão dos textos dos
alunos, são feitos em ambiente on-line, o que limita a participação dos professores que
não têm acesso à internet nas escolas, realidade ainda de muitas escolas no Brasil,
em que a inclusão digital ainda está em curso. Diferente, assim, da realidade
portuguesa em que, com o Programa Magalhães (também conhecido como Programa
e-escolinhas), instituído em 2008, foram distribuídos computadores portáteis, a baixo
custo, aos alunos que frequentavam as escolas do 1º Ciclo do Ensino Básico. Este
programa de letramento em informática, destinado a permitir que todos os alunos
pudessem ter acesso à Sociedade da Informação, foi também alargado a alunos e a
professores do Ensino Secundário com a distribuição de computadores portáteis, a
baixo custo (150 euros), com ligação à internet, através do Programa E-Escolas.
A metodologia proposta para o ensino de produção de textos na Olimpíada é
sequência didática, no modelo proposto pela Escola de Genebra, como modalidade
organizativa voltada para o ensino da escrita de determinado gênero textual, na
mesma perspectiva teórica dos Parâmetros Currículos Nacional (PCN), objetivando o
desenvolvimento de competências de leitura e escrita. Joaquim Dolz em apresentação
do Caderno do professor aconselha:
1) Fazer os alunos escreverem um primeiro texto e avaliar suas
capacidades iniciais.
2) Escolher e adaptar as atividades de acordo com a situação
escolar e com as necessidades dos alunos.
3) Trabalhar com outros textos do mesmo gênero, produzidos
por adultos ou por outros alunos.
4) Trabalhar sistematicamente as dimensões verbais e as
formas de expressão em língua portuguesa.
5) Estimular progressivamente a autonomia e a escrita criativa
dos alunos. (...) pouco a pouco, os alunos devem aprender a
reler, a revisar e a melhorar os próprios textos, introduzindo,
no que for possível, um toque pessoal de criatividade. (DOLZ,
2010, p. 14 - 15)

A olimpíada acontece em várias etapas: escolar; municipal, estadual, regional e


a etapa final, nacional, sendo que em todas deve ser constituída uma comissão
julgadora. Os textos selecionados pela Comissão Julgadora Escolar deverão ser
enviados à Comissão Julgadora Municipal, digitados pelos ―aluno(s)-autor(es)‖, com a
orientação do professor, ou pelo próprio professor, caso o aluno esteja impossibilitado
de digitar o texto e inseri-lo em campo específico no sítio eletrônico.
Em relação à premiação na OLP, na etapa Escolar e Municipal não há
premiação oficial para os professores e alunos que participarem, porém, segundo o
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regulamento, sugere-se às escolas participantes e os municípios que, por conta


própria, premiem ou confiram diplomas ou certificados aos professores e/ou alunos
participantes. Nas etapas Estadual, Regional e Nacional,professores inscritos,
respectivos alunos-autores dos textos e escolas são premiados com medalha e cupom
para retirada de livro(s) na livraria montada no local do encontro regional, além de
tablet, notebook e impressora, de acordo com a classificação.
No CIC, os prêmios são: Fim de semana no hotel Quinta das Lágrimas em
Coimbra, hotel classificado como 5 estrelas, situado em um palácio medieval histórico,
com jardins botânicos; Visita ao Portugal dos Pequenitos (que também promove um
concurso literário para escolas, cujo tema é ―Lendas e Histórias no Portugal dos
Pequenitos‖, também em Coimbra, trata-se de um espaço que representa em
miniatura as várias regiões de Portugal com seus lugares retratados, destinado aos
alunos do Pré-Escolar até ao 3º Ciclo do Ensino Básico); Materiais tecnológicos
/Cheques-disco, uma oferta em voucher que permite que o cliente adquira,
gratuitamente, CDs de música).

O aluno autor e os concursos literários

A análise dos critérios dos concursos permite-nos observar, a despeito de suas


diferenças, que eles se pautam em critérios semelhantes que podem ser resumidos à
preocupação com a qualidade e originalidade da linguagem. No caso da Olimpíada, os
critérios de seleção dos textos, válidos para todas as comissões, consideram aspectos
próprios da categoria textual e aspectos gerais de gramática e ortografia. São eles:
Adequação ao tema: ―O lugar onde vivo‖, Adequação ao gênero (Adequação
discursiva e linguística); Marcas de autoria e Convenções da escrita.
Os critérios do CIC 2016/2017 são ―rigor histórico, criatividade, coerência,
originalidade, estética e apresentação‖. Há uma preocupação com a formação do
estudante no sentido de aquisição de conhecimento sobre a literatura e a cultura,
mediante realização de pesquisa, cujas fontes devem ser de âmbito nacional e/ou
internacional, de acordo com os níveis de ensino: para o 2.º Ciclo do ensino básico,
pesquisa a nível nacional, para o 3.º Ciclo do ensino básico, pesquisa a nível nacional
e/ou internacional e para o Ensino Secundário, pesquisa a nível nacional e
internacional. O trabalho deve relacionar os episódios, acontecimentos e localidades
com o tema e a modalidade escolhida;
No CIC observamos também a preocupação com o conhecimento teórico
necessário para a produção do audiovisual que deverá ter ―rigor histórico‖, já que o
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concurso é motivado em um episódio histórico, a história de amor entre o infante D.


Pedro e Inês de Castro, entranhado no imaginário cultural português. A história tornou-
se mito, assumindo a condição de fonte para a produção de lendas e outras tantas
criações literárias, como o episódio de Os Lusíadas, de Camões, que apresenta Inês
de Castro, como aquela que ―depois de ser morta foi rainha‖ (Os Lusíadas, Canto III),
118), e produções mais recentes, inclusive da literatura infanto-juvenil, como Adivinhas
de Pedro e Inês de Augustina Bessa-Luís e Pedro e Inês de Nuno Higino.
Na Olimpíada há uma preocupação expressa com a questão de autoria, como
propriedade sobre o escrito, uma vez que a constatação de plágio é critério para
eliminação. Isso se apresenta como uma oportunidade para o professor abordar com
os alunos os conceitos ficcionalidade, literariedade e intertextualidade, pois.

A escrita literária é um lugar de integração de toda uma cultura dos


livros. Escolher ajudar os alunos a adotar uma postura de autor é
colocá-los em condições de perceber que a cópia ou o empréstimo
não são atos repreensíveis, mas, ao contrário, que o produto
narrativo de um autor é sempre uma forma de composição, o lugar de
acumulação, digestão, regurgitação, composição, decomposição de
obras anteriores, emprestadas, citadas, remodeladas, desviadas.
Toda ficção é tirada dos sedimentos (estereótipos, scripts, cenas,
motivos, personagens, trechos de frases...) deixados pelas histórias
ouvidas, lidas, anteriormente imaginadas. Trata-se de encorajar os
alunos a integrar suas experiências e sua memória de leitor.‖ (p.
DALLA-BONA, 114).

Catherine Tauveron no artigo ―A escrita ‗literária da narrativa na escola:


condições e obstáculos‖, alerta que a compreensão da ficcionalidade é uma das
condições para a instituição do ―aluno autor‖, aquele que produz uma escrita motivada
pela intenção artística. Com base em pesquisas realizadas com alunos e professores
da educação primária na França, propõe desenvolver as habilidades criativas dos
alunos para que eles possam desenvolver projetos de escrita autorais:
Nós chamamos, então, aqui ―autor‖ o aluno que produz um texto
narrativo com uma intenção artística e o distinguimos do ―escritor‖,
que é um autor cuja intenção e o valor ou ―mérito‖ estético foram
reconhecidos em um contexto social e histórico dado e que detém
status oficializado (por exemplo, consta em um catálogo de editor).
(TAUVERON, 2014, p. 89)

Tauveron apresenta uma proposta didática com o objetivo de orientar o aluno a


adotar a postura de autor no espaço da classe, apontando estratégias para que isso
ocorra: ―Encorajar o aluno que escreve a extrair de sua experiência de leitor de
literatura uma tática de escrita e construir mentalmente uma figura de seu ―leitor-
modelo‖ (p. 89); ―Assegurar-se que a intenção artística do aluno-autor vai responder a

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uma atenção estética da parte dos leitores reais (professores e pares)‖ (p. 90); ―Incitar
os alunos a verbalizar seu projeto de autor‖ (p. 91); ―Explorar as falhas da relação
artística‖ (p. 91); ―Ensinar a reproduzir comportamentos dos autores‖ (...); ―Modificar a
relação com a escrita e com o empréstimo‖ que significa modificar as representações
correntes que têm os alunos do processo de redação, da rasura, da ―inspiração‖, da
―originalidade‖, da ―verdade literária‖ (p. 92); ―Instituir uma caderneta de escritor e
incitar a autoprescrição de instruções‖; ―Ensinar as escolhas de escrita‖ (p. 92).
A participação do aluno em concurso literário, com uma mediação adequada do
professor pode significar grande oportunidade de aprendizado literário para os alunos
e para o desenvolvimento de uma atitude diferente com o seu texto, que terá outra
destinação além da correção do professor. Para Tauveron, o aluno só adotará uma
postura de autor
[...] se ele souber, em suma, que seu texto, fruto de uma liberdade
criativa, vai ser objeto de uma leitura semelhante àquela à qual se
deve aos autores, uma leitura literária atenta à fabricação do texto, ao
grão e ao jogo de palavras, aos espaços livres, à polissemia
potencial, à novidade da descoberta narrativa, à emoção suscitada
pela narração ou pelo comportamento de tal e tal personagem... e
não somente aos erros de ortografia ou de sintaxe.‖ (p. 90)

Os concursos literários apresentam essa possiblidade da escrita do aluno sair


do circuito da sala de aula e do monopólio da leitura do professor, por exporem esses
textos a ―uma leitura fundamentada sobre um novo pacto, que respeita seus direitos
de autor, não convoca somente critérios de avaliação formais construídos
coletivamente e impostos a todos, mas com critérios próprios à avaliação de um texto
literário singular,‖ (TAUVERON, 2014, p. 90).

Considerações Finais
Ao refletirmos sobre seus critérios, sua construção discursiva e as concepções
teóricas que fundamentam os concursos, constatamos, preliminarmente, que tanto no
Brasil, quanto em Portugal, os concursos analisados estão articulados aos
documentos oficiais nacionais e às políticas do livro, da literatura e da leitura,
constituindo-se estratégias para a promoção da leitura e da escrita, com potencial de
contribuir para a educação literária dos alunos da educação básica.
Acreditamos que a Olimpíada por fazer parte de um conjunto articulado de
ações para o desenvolvimento da escrita, integrada à leitura, dispondo de uma
estrutura que envolve acervos e metodologias, tem grande potencial de contribuir para
a educação literária dos alunos, entretanto consideramos que precisaria haver uma
articulação mais evidente do concurso com a cultura literária, em função até da
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predominância dos gêneros da esfera literária. Os concursos portugueses


apresentados voltam-se expressamente para o desenvolvimento da cultura literária
numa perspectiva intertextual e integradora, entretanto muito lhes acrescentaria uma
proposta pedagógica com materiais para subsidiar as práticas dos professores, como
observamos na Olimpíada.
Seria interessante ouvir professores e alunos das escolas para saber como
essas propostas têm sido recebidas, se tem imperado a lógica classificatória dos
concursos como prática que mais ainda afasta os alunos da literatura ou se se têm
contribuído para a educação literária, promovendo a participação efetiva dos alunos na
cultura literária por meio da leitura, mas, sobretudo por meio da escrita literária.

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Literária. Guimarães: OperaOmnia, 2013.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

CRÔNICAS DIGITAIS: A MULTIMODALIDADE NA


ESCOLARIZAÇÃO DA LITERATURA

Nilze Maria Malaguti, SEDUC/MT, Experiências na educação básica com a


escrita do texto literário.

Considerações Iniciais

A forma como a sociedade passou a se relacionar com a leitura e a escrita


diante das atuais transformações tecnológicas trouxe alterações profundas nas
práticas sociais de uso da linguagem, especialmente entre o público mais jovem. De
uma relação pautada na materialidade impressa, para o mundo virtual, as ferramentas
eletrônicas ampliaram as possibilidades de exploração da multimodalidade nos textos
e redimensionaram as formas usuais de ler e de escrever. O contexto passou a exigir
uma reorganização de nossos hábitos mentais de leitura e escrita e,
consequentemente, das práticas de escolarização, a fim de direcionar as ações
pedagógicas voltadas a essas novas configurações e, ao mesmo tempo, buscar
soluções para enfrentar os baixos níveis de proficiência em leitura, apresentados pelos
alunos da educação básica.
Ancorados em propostas indicadoras de caminhos alternativos para o
enfrentamento das questões, relatamos, neste trabalho, os resultados alcançados com
a leitura e produção de crônicas desenvolvidas por meio do esquema de Sequência
Didática-SD, proposta por Schneuwly, Dolz e Noverraz (2004) para o trabalho com os
gêneros textuais e pontuada a partir do conceito de Letramento Literário, apresentada
por Cosson (2006) para auxiliar na formação leitora. A experiência foi desenvolvida
com uma turma de 25 alunos do 1º ano do ensino médio, da Escola Estadual São
Francisco de Assis, do município de Aripuanã/MT e teve por objetivo sistematizar
mecanismos que favorecessem a leitura do texto literário e a produção de textos
multimodais.
Ler, de acordo com Cosson (2014) é uma forma de produção, uma vez que o
leitor constrói, junto com o autor, o texto literário, isso porque ele experiencia a

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literatura mediante mecanismos que o permitem interpretar e construir os sentidos,


assim, a linguagem literária de uma narrativa, por exemplo, passa a fazer parte das
suas palavras quando o leitor se apropria e passa a refletir, dialogar e produzir o seu
próprio texto. Para Rouxel (2013) se desejamos uma formação cultural literária efetiva,
importa que a leitura seja para o aluno um acontecimento para sua vida, não
simplesmente para as tarefas escolares.
A fim de alcançarmos os objetivos traçados, selecionamos um repertório de
crônicas publicadas em 1992 na obra Pagmejera, Pagmejera!, da autora Vera
Randazzo, escritora muitas vezes personagem, da literatura regional mato-grossense
que resgata, por meio das narrativas, um tempo passado, pleno de imagens ainda
vivas a nos comunicar momentos de um mundo infantil, ora idealizado, ora realista,
visto sob o prisma de um narrador adulto. O critério de seleção foi guiado pela
proposta de resgatar a produção literária regional de Mato Grosso, matizada pelas
nuances da cultura híbrida que a compõe e, ao mesmo tempo, contribuir para a
construção de uma identidade leitora. Crônicas de outros autores, disponíveis em
sites, foram utilizadas para as contextualizações, já os procedimentos envolveram
momentos de leitura, fruição, conversas, análises e estratégias mediadas por
ferramentas digitais para, ao final, unir a linguagem textual à linguagem fotográfica e
criar uma crônica digital.

Levantamento Teórico

Se uma das preocupações centrais do sistema educacional brasileiro até


praticamente as últimas décadas do século XX esteve voltada à inserção do indivíduo
na escola para garantir a alfabetização e consequentemente a redução das taxas de
analfabetismo no país, o que temos enquanto preocupação atual está relacionada à
qualidade de ensino que vêm sendo garantida por esse sistema. De acordo com
Soares (2009), à medida que o analfabetismo foi sendo superado, o conceito de ser
alfabetizado adquiriu novas conotações. A constante inserção de tecnologias em todos
os contextos da atividade humana e o desenvolvimento social, cultural, econômico e
político foram fatores determinantes para conceber uma nova realidade social, de que
―não basta apenas saber ler e escrever, é preciso também saber fazer uso do ler e do
escrever, saber responder às exigências da leitura e da escrita que a sociedade faz
continuamente‖ (SOARES, 2009, p20).
Dessa concepção surgiu o termo letramento e, posteriormente, os seus
desdobramentos, entre eles, os multiletramentos, resultante dos estudos do grupo de
pesquisadores dos letramentos, conhecido como Grupo de Nova Londres que em
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1996, diante da multiplicidade de gêneros, afirma, pela primeira vez, a necessidade de


uma pedagogia voltada à sociedade contemporânea e às Tecnologias da Informação e
da Comunicação (TCIS), bem como à grande diversidade de culturas existentes na
sociedade.

Diferentemente do conceito de letramentos (múltiplos), que não faz


senão apontar para a multiplicidade e variedade das práticas letradas,
valorizadas ou não nas sociedades em geral, o conceito de
multiletramentos - é bom enfatizar – aponta para dois tipos
específicos e importantes de multiplicidade presentes em nossas
sociedades, principalmente urbanas, na contemporaneidade: a
multiplicidade cultural das populações e a multiplicidade semiótica de
constituição dos textos por meio dos quais ela se informa e se
comunica (ROJO, 2012, p. 13)

Ao citar Canclini (2008), Rojo (2012) destaca que convivemos em uma


sociedade onde se fazem presentes textos híbridos, de diferentes letramentos,
caracterizados por processos de escolhas pessoais e políticas, o que passa a exigir da
escola um novo olhar sobre práticas pedagógicas cristalizadas, com vistas a
contemplar os novos gêneros de discurso, de outras e novas mídias, tecnologias e
linguagens, para podermos falar de redemocratização da leitura e da escrita. Para
Rouxel et.al (2013) os alunos, mergulhados em outras modalidades midiáticas
resistem à leitura das obras literárias, como contraponto, o desenvolvimento da
linguagem escrita é deficitário em todos os níveis de ensino, o que dificulta a interação
com o texto, uma vez que esta se ancora no conhecimento linguístico do leitor para
propiciar a compreensão e a fruição.
Cosson et al (2010), ao tratar da questão, caracteriza a escola como uma
agência de letramento das mais importantes, segundo o qual, a ela reserva-se o papel
de promover o ensino da leitura e da escrita e ao professor, mais do que alfabetizar,
compete a tarefa de promover a participação efetiva do aluno no mundo letrado.
Considera que aprendemos a literatura assim como outra atividade da vida, é preciso,
no entanto, auxiliar o aluno a explorar a linguagem constitutiva do texto, não apenas
para criar o hábito de ler, mas, sobretudo, para usufruir do texto, especialmente o
literário, pois ele ―nos fornece, como nenhum outro tipo de leitura faz, os instrumentos
necessários para conhecer e articular com proficiência o mundo feito linguagem‖
(COSSON, 2006, p. 30).
Da expansão do uso do termo é que Rildo Cosson em 1996passa a
delinear o Letramento Literário como ―o processo de apropriaçãoda literatura
enquanto construção literária de sentidos‖ (COSSON; PAULINO, 2009,p. 67).

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Diferencia-se dos demais por necessitar da escola para a concretização, também


pelas características do texto e pelo modocomo esse tipo de letramento insere o
indivíduo no mundo da escrita. O texto literário passa a ser o objeto de diferentes
interpretações ou modos de leitura com vistas a formar o leitor, há, no entanto que
ressaltar que não há nenhum ensino de literatura se não houver o encontro do
leitor com o texto e, portanto, o letramento literário depende dessa interação para
se efetivar.
Compreender o letramento literário e assumi-lo enquanto uma prática de
redemocratização e de escolarização da literatura corresponde assim à transformação
de uma prática social, e como tal, responsabilidade da escola, afinal, apesar das
facilidades de acesso à leitura no atual contexto social, esta ainda é a principal
responsável por oferecer os instrumentos necessários ao desenvolvimento da leitura
com proficiência. Se o acesso à literatura é um direito de todos, a escola, enquanto
instituição formadora, é responsável por oferecer, de forma democrática, os diversos
saberes e as fontes universais de conhecimento, afinal, é justamente pelas
potencialidades que o texto literário oferece para a formação do indivíduo que Candido
(2004) considera ser a literatura um direito universal, necessário a todo o indivíduo,
principalmente à grande massa popular brasileira, privada desse bem cultural.
As experiências conduzidas mostram que é possível formar um leitor
autônomo, apoiado nos textos literários, cabe ao professor abrir espaço e se engajar
nas leituras com seus alunos, assim a classe se torna lugar de objetivação da
experiência literária.

Os módulos da sequência

O movimento para o trabalho com uma SD, de acordo com Schneuwly, Dolz e
Noverraz (2004), vai do complexo para o simples, ou seja, da produção inicial aos
módulos, a fim de desenvolver uma ou outra capacidade necessária ao domínio de
determinado gênero, até chegar novamente à complexidade, ou seja, à produção final.
Neste percurso, as crônicas de Vera Randazzo direcionaram a produção inicial, esta,
por sua vez, desenhou os aspectos necessários de serem articulados nos demais
módulos da SD, não para o ensino do gênero, mas a partir do gênero, no intuito de
alcançar o propósito de formar leitores com repertório de leitura, capazes de se inserir
e de responder às situações diversas de comunicação.
Direcionamos, assim, para aquilo que Colomer (2007) aponta enquanto tarefa
do professor, de oferecer informações imprescindíveis para o aprendiz entender

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determinados aspectos obscuros e de chamar a atenção sobre outros que suscitem


interrogações ou estimulem interpretações mais complexas, por isso, foram utilizadas
estratégias de leitura pré-textuais, textuais e pós-textuais, com levantamento de
hipóteses, interrupções para questionamentos, desafios para intervenções no final das
narrativas, análise da linguagem empregada, bem como das situações descritas que
conduziram às análises, interpretações e produções subsequentes.
Todas as atividades foram permeadas por muita conversa e discussões, a fim
de explorar tanto os sentidos do texto, quanto as características linguísticas,
estruturais e as funções sociocomunicativas. Dinâmicas de produção auxiliaram o
aluno a reconhecer os elementos comuns que enquadram uma narrativa ao gênero e
os recursos utilizados pelos autores, principalmente as metáforas, para trazer à tona
sons, imagens, gostos e aromas, sentidos possíveis de serem construídos pela
linguagem literária.
Em um dos módulos, foram apreciadas imagens da obra intitulada Grande
Sertão Veredas, uma homenagem do artista de Lester Scalon, ao grande mestre
Guimarães Rosa, a fim de estabelecer a relação entre a sensibilidade do olhar,
atribuído pelo fotógrafo, com o do cronista, em ambas as formas de representar a
paisagem, a vida e os acontecimentos. Tanto nas imagens, quanto na escrita, fica
notavelmente expressa, a valorização dos fatos corriqueiros e dos elementos naturais,
rica e liricamente retratados.
Na produção final, o celular foi utilizado para fotografar, gravar e transformar
a produção escrita em outro formato de texto, o que resultou em uma crônica digital.
Procuramos, com isso, construir caminhos alternativos na tentativa de superar práticas
usualmente empregadas em sala de aula para o ensino da literatura e a formação do
leitor com a inclusão de ferramentas digitais, largamente acessíveis e encantadoras,
principalmente ao público dos jovens e adolescentes.

Estratégias e o desenvolvimento de capacidades

A leitura das crônicas de Vera Randazzo perpassou por todos os módulos,


associadas às atividades voltadas à caracterização e ao funcionamento do gênero. A
fim de exemplificar os procedimentos adotados, descrevemos abaixo as diferentes
etapas e estratégias selecionadas para alcançar nossos objetivos:

1. Apresentação da situação: Leitura da crônica Casas Gentes, de Vera


Randazzo, seguida de conversa e discussões para identificar os
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elementos constitutivos do gênero; Leitura de A Última Crônica e O


Homem Nu, de Fernando Sabino para contextualizações; Conversas
sobre fatos e elementos do cotidiano que servem de inspiração aos
cronistas.
2. Produção Inicial: Produção de uma crônica.
3. Primeiro Módulo: Leitura da crônica O Pão de Vera Randazzo; Oficina de
análise da linguagem empregada pela autora e descrição de gostos,
aromas, sensações, sentimentos; Produção de nova versão ao final da
crônica A Casa do Passado, da mesma autora;
4. Segundo Módulo: Leitura da crônica A Minha Goiabeira, de Vera
Randazzo e análise e dos recursos estilísticos empregados; Atividade
para identificar o tom, foco narrativo, situação do cotidiano retratada e
metáforas utilizadas para a marcação do tempo e do espaço da narrativa,
além de caracterização da linguagem poética.
5. Terceiro Módulo: Leitura da crônica Adeus Mangueira e apreciação de
imagens da obra intitulada Grande Sertão Veredas, de Lester Scalon;
Leitura da crônica Murmúrios do Rio Cuiabá, análise da linguagem literária
presente na narrativa; Criação de diálogos entre o Rio Cuiabá,
personagem da narrativa, com o rio Aripuanã; Roda de leitura;
6. Produção final: Retomada e aperfeiçoamento das primeiras produções;
Uso do celular para fotografar; Uso de aplicativo made with vídeo show
para seleção das imagens e gravação das crônicas.

O passo inicial de esquematização das ações foi a primeira produção do


aluno. A partir dela circunscrevemos as potencialidades a serem desenvolvidas e
definimos três categorias de atividades trabalhadas, conforme Schneuwly, Dolz e
Noverraz (2004) sugerem para auxiliar o aluno a alcançar, por diferentes vias, as
noções e os instrumentos necessários ao conhecimento do gênero.

a) Atividades simplificadas de produção: Nessa categoria foram


desenvolvidas, primeiramente, atividades de previsão do final da crônica A Casa do
Passado, o que requereu do leitor a interferência na narrativa e a modificação da
ficção com base nas projeções pessoais. Partimos dos princípios postulados por
Rouxel (2013, p. 35), segundo a qual, o leitor produz ―atividades de complemento do
texto ao imaginar um antes, um depois e um durante o desenvolvimento da intriga‖,
experiência que o transporta para um universo e oferece a oportunidade extraordinária
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para a abertura da alteridade e exploração de sua própria identidade, ou seja, ao


participar da narrativa o leitor transporta para a escrita as relações com aquilo que a
leitura lhe trouxe enquanto significado de outros textos já lidos, o presente ou ao
passado vivido, além da atividade fantasmática.
Foi lançado também aos alunos o desafio de descrever gostos, aromas e
sentimentos capazes de expressar sensações provocadas por uma bela manhã de
domingo, ou um final de tarde, o cheiro de um bolo assando, o gosto saboroso de uma
sobremesa, ou o aroma do amanhecer. A atividade foi proposta após a leitura da
crônica O Pão e teve por objetivo fazê-los compreender os sentidos possíveis de
serem construídos por meio da linguagem literária.

Imagem 1: Oficina para descrição dos sentidos

O aguçamento dos sentidos, despertado pela oficina facilitou a aproximação


dos alunos aos textos, uma vez que passaram a compreender o caráter artístico e
estético da linguagem literária nas leituras posteriores. Em outra atividade, essa
aproximação se deu na releitura da crônica Murmúrios do Rio Cuiabá ao tornarem-se
narradores para criar um diálogo entre o Rio Aripuanã, com o personagem da crônica
que lamenta a perda de um passado majestoso por ter sido esquecido pelos seus
filhos, apesar de todos os benefícios e fartura que sempre lhes ofereceu.
Tanto esta, como as demais estratégias permitiram aos alunos depararam-se
com problemas específicos, tanto do gênero, quanto da linguagem literária, além de
mobilizar mecanismos para melhor compreendê-los, perpassando assim pelos níveis
elencados por Schneuwly, Dolz e Noverraz (2004), para chegar à produção de
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determinada situação de comunicação, entre eles: O de construir uma imagem, a mais


exata possível, do destinatário do texto e da finalidade, o que foi possível a partir da
etapa de apresentação da situação; o de conhecer as técnicas para abordar o
conteúdo utilizado no texto; o de estruturá-lo de acordo com a finalidade e, por fim, o
de escolher o vocabulário apropriado à situação, servindo-se dos organizadores
textuais. Passar por esses níveis compreende, portanto, o alcance dos principais
objetivos do trabalho com os gêneros.
As tarefas de fotografar, editar imagens, associá-las à escrita e ao contexto
de produção para gerar a crônica digital não foram utilizadas apenas para atrair o
aluno à aula, ou contemplar os gêneros emergentes advindos com as novas TICs
(Tecnologias de Informação e Comunicação), mas foram, acima de tudo, utilizadas a
favor da criação de práticas capazes de transformar os alunos em criadores de textos
e de sentidos.

b) Atividades de observação e de análise de textos: As atividades voltadas ao


desenvolvimento dessa competência foram desde a contextualização da biografia da
autora, época em que o livro foi escrito, os aspectos materiais da obra, até às
primeiras impressões e expectativas em relação aos textos escritos em Mato Grosso,
depois, o mergulho nos textos para descobrir os aspectos sobre como foram
construídos. Os recursos expressivos utilizados na construção da linguagem literária
foram destacados durante as leituras, a fim de auxiliar os alunos a alcançar níveis
mais elaborados de compreensão e, consequentemente, a construção dos sentidos do
texto. Neste propósito, após as leituras eram feitos questionamentos para prender a
atenção do leitor e exigir a análise das expressões como, por exemplo, ―sementinha
minúscula‖, ―goiabeira menina‖ e ―goiabeira mulher‖, empregadas na crônica A Minha
Goiabeira. Somente a partir dos questionamentos foi que os alunos passaram a
relacionar, nesta narrativa, o ciclo de vida de uma goiabeira, com o da vida da autora,
o jogo de erotismo e sensualidade do sabiá sobre a árvore e o bailado para a sua
sedução. Na passagem ―Soltou o sabiá um gorjeio gentil e a tarde era tão linda e tinha
chovido de pouco e tudo estava tão calmo que logo vi que a goiabeirinha estava se
transformando numa goiabeira-moça‖ (RANDAZZO, 1992, p.31), os alunos
relacionaram ao aflorar da sexualidade da mulher e o desejo que começa a despertar
nos homens nessa fase da vida.
A compreensão dos sentidos envolveu-os de tal forma que a partir dessa
análise começaram a perceber a riqueza e as possibilidades da linguagem literária,
como eles próprios afirmaram, ―nada disso foi percebido na primeira leitura‖. Na
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imagem abaixo apresentamos uma das atividades realizadas para a identificação das
características do gênero em cada uma das crônicas trabalhadas, como o enredo, tom
e foco narrativo, comparação entre os termos utilizados para a marcação do tempo e
delimitação do espaço e a carga poética utilizada nas descrições, atividade
comparativa que permitiu a compreensão da singularidade entre os textos da autora e
a construção de seu estilo lírico por meio das narrativas curtas que exprimem a visão
de uma observadora perpicaz da natureza humana.

Imagem 2: Atividade - A linguagem das crônicas

c) A elaboração de uma linguagem comum: Cosson (2006) considera que o


trabalho com o letramento literário, enquanto construção literária dos sentidos
acontece quando indagamos o texto sobre questões que auxiliam no desvelamento de
suas informações, isso por que o leitor só vivencia o texto quando responde, assim, ao
responder passa a ser também um produtor. Tanto para o autor, como para
Schneuwly, Dolz e Noverraz (2004) esse trabalho é feito ao longo das sequências
didáticas e no momento da elaboração da produção de um texto. Assim, a tarefa de
falar sobre eles, comentá-los, criticá-los, melhorá-los, foi realizada em nosso trabalho
como forma de garantir que os alunos saíssem do primeiro nível de interpretação e
produção e alcançassem níveis mais elaborados.

Considerações Finais

Experiências como essas revelam as possibilidades de levar à sala de aula


práticas que cumpram com a função do ensino da língua voltada à perspectiva dos
multiletramentos, isso porque, parte-se do princípio que o trabalho com gêneros
favorece o desenvolvimento da competência comunicativa dos alunos e, ao utilizar
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como objetos de estudo para a articulação entre as práticas sociais e os objetivos


escolares. Ao mesmo tempo em que as novas demandas de ensino obrigam-nos a
responder aos interesses dos educandos, cada vez mais seduzidos pela linguagem
eletrônica, a formação do leitor literário não pode ser deixado às margens do percurso
tendo em vista seu caráter humanizador e o desenvolvimento de reflexões mais
elaboradas, vitais à plena participação em uma sociedade letrada.
Pontos positivos em relação ao trabalho com SD merecem aqui ser
elencados, entre eles, a possibilidade de esquematizar um plano com vistas a
aprimorar a expressão oral e escrita do aluno na perspectiva textual de ensino da
língua e trabalhar com o desenvolvimento de potencialidades das diversas situações
de comunicação.
A motivação foi algo recorrente e muito presente nessa proposta, assim os
educandos passaram a entender as singularidades requeridas para a composição do
texto literário e, posteriormente, introduzi-las em suas próprias produções, além disso,
oportunizamos o conhecimento de textos da literatura produzida no Estado onde
vivem, garantindo o direito que todos possuem de conhecer sua própria cultura e de
incluir ou não as obras em seu repertório. A linguagem eletrônica da fotografia e
edição de vídeos por meio de aplicativos do celular foi outro fator motivador que
garantiu o envolvimento de todos na atividade de produção.
Por fim, as produções comprovam a possibilidade de redimensionar práticas
sem ter que lançar mão da linguagem eletrônica, mais atraente aos jovens leitores, e,
ao mesmo tempo, valer-se do texto literário impresso. O valor dessa experiência
constitui parte de um trabalho voltado aos letramentos e serve de referência para uma
mudança de postura em relação ao ensino da língua, da literatura e a formação de
leitores no contexto mediado pelas tecnologias.

Referências

CANDIDO, Antônio. O Direito à Literatura. In: Vários Escritos. Rio de Janeiro/São


Paulo: Ouro sobre Azul/Duas Cidades, 2004.
COLOMER, Teresa. Andar entre livros:a leitura literária na escola. Tradução Laura
Sandroni. São Paulo: Global, 2007.
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006.
______________. Círculo de Leitura e Letramento Literário. São Paulo: Contexto,
2014.
______________.O espaço da literatura na sala de aula. In: Brasília: Ministério da
Educação, Secretaria de. Educação Básica, 2010. Coleção Explorando o Ensino ; v.
20.

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DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, M.; SCNNEUWLY, B. Seqüências didáticas para o oral


e a escrita: apresentação de um procedimento. In: SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. et al.
Gêneros orais e escritos na escola. Trad. e org. de Roxane Rojo e Glaís Sales
Cordeiro. Campinas: Mercado de Letras, 2004.
RANDAZZO, Vera. Pagmejera, Pagmejera!. Bauru: Editora Bandeirantes LTDA, 1992.
ROJO, Roxane. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo: Parábola,
2009.
____________; MOURA, Eduardo (orgs.). Multiletramentos na escola. São Paulo:
Parábola Editorial, 2012.
ROUXEL, Annie; LANGLADE, Gérard; REZENDE, Neide Luzia. (orgs). Leitura
subjetiva e ensino da literatura. São Paulo: Alameda, 2013.
SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. 3.ed. Belo Horizonte:
Autêntica, 2009.
ZILBERMAN, Regina. Que literatura para a escola? Que escola para a literatura?
Revista do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade de Passo
Fudo,v.5, n.1, p. 9-20, jan./jun.2009.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

FORMAÇÃO AUTORA: A ESCRITA DE CONTOS


MARAVILHOSOS

Angela Machado de Paula, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita


Filho" (UNESP), E.T. 1: Experiências na educação básica com a escrita do
texto literário
Fernando Ringel, Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), E.T. 1:
Experiências na educação básica com a escrita do texto literário

Considerações iniciais

Este estudo apresenta parte dos resultados de nossas investigações sobre a


constituição autora dos alunos por meio do ensino da leitura e da escrita no Ensino
Fundamental. A atividade de produzir textos na escola ainda é uma questão que
precisa ser discutida, visto que é a partir dessa atividade que é possível formar a
autoria, isto é, constituir o sujeito produtor de textos, que dialoga com outros textos,
com seus interlocutores e consigo mesmo.
O ensino da escrita, a partir da concepção de língua escrita como objeto vivo
no processo de enunciação, compreendido como objeto cultural historicamente
produzido pelo homem de geração em geração, requer do professor uma concepção
teórico-metodológica clara de linguagem e de seus fundamentos teórico-
metodológicos para planejar as atividades pedagógicas a serem desenvolvidas em
sala de aula.
Em vista disso, o objetivo principal que norteou este estudo consiste em
compreender como podemos constituir a autoria de alunos do 4º ano do Ensino
Fundamental por meio de atividades de leitura e escrita. Para isso, apresentamos a
análise das atividades com a escrita desenvolvidas, cotidianamente, na sala de aula,
com a finalidade de descrever a forma como a professora trabalha a escrita de textos,
como os alunos escrevem textos e qual o objetivo dessas produções.

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A investigação foi desenvolvida com 34 alunos do 4º ano de uma escola


pública municipal de Frutal-MG, no período de agosto a outubro de 2013 e, consistiu
na realização de 10 observações sobre as atividades de produção textual que a
professora da turma trabalhava em sala.
Iniciamos o trabalho apresentando as contribuições da teoria histórico-cultural,
particularmente da Escola de Lev Semenovich Vigotski (2001; 2009; 2010), que
aborda a organização consciente e intencional do ensino. No segundo tópico,
apresentamos os fundamentos linguístico-filosóficos postos por Mikhail Mikhailovich
Bakhtin (1997; 2006) que subsidiam a conceituação de enunciação, texto e gêneros
discursivos. No terceiro tópico, discutimos o ensino da língua materna que se
configura como um conjunto de atividades com os gêneros discursivos, vinculadas aos
contextos sociais e históricos, e como se dá a constituição autora. No quarto e último
tópico, apresentamos as análises das observações sobre as atividades com a escrita
desenvolvidas pela professora em sala de aula.
Acreditamos que o estudo contribui para apontar caminhos aos professores do
Ensino Fundamental, mostrando que um ensino artificial e mecânico, centrado na
gramática normativa, com atividades fragmentadas e descontextualizadas não
permitem ao aluno desenvolver a autoria na produção de textos.

A organização consciente e intencional do ensino

A teoria histórico-cultural, sobretudo a Escola de Vigotski, constitui um


referencial quando se pensa a educação como um processo que mobiliza a
personalidade integral do aluno, como sujeito social e histórico, e promove sua
humanização. Ao assumir a educação como atividade, com Aleksei Nikolaievitch
Leontiev, consideramos o conhecimento como produto da atividade humana, pois em
cada conceito está encarnado o processo sócio-histórico de sua produção. Entretanto,

As aquisições do desenvolvimento histórico das aptidões humanas


não são simplesmente dadas aos homens nos fenômenos objetivos
da cultura material e espiritual que os encarnam, mas são aí apenas
postas. Para se apropriar destes resultados, para fazer deles as suas
aptidões, ―os órgãos da sua individualidade‖, a criança, o ser humano,
deve entrar em relação com os fenômenos do mundo circundante
através doutros homens, isto é, num processo de comunicação com
eles. Assim, a criança aprende a atividade adequada. Pela sua
função, este processo é, portanto, um processo de educação.
(LEONTIEV, 2004, p. 290).

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Portanto, o processo de educação se constitui com a transformação dos


sujeitos no processo de apropriação de conhecimentos, sendo esse o objeto da
atividade pedagógica. É por meio dessa atividade pedagógica que se materializa a
necessidade de o aluno se apropriar dos bens culturais como forma de constituição
humana. A apropriação do conhecimento promove mudanças qualitativas no
psiquismo de quem aprende, por propiciar ao aprendiz criar novas relações com o
mundo objetivo. O fluxo de mudanças qualitativas das funções psicológicas superiores
aponta a transformação das condições próprias dos alunos. (LEONTIEV, 1988).
A transformação do psiquismo somente será capaz de superar o empirismo da
vida cotidiana por meio de ações educativas sistematizadas e conscientes, que levem
em conta as necessidades do desenvolvimento do gênero humano. Deste modo, as
ações presentes na atividade pedagógica não podem ser desarticuladas das
condições reais necessárias à constituição do sujeito. Quando a atividade não se
realiza nessas circunstâncias, fica caracterizado o afastamento entre a condição
necessária para a transformação do psiquismo e a ação mediadora. De acordo com
Alexander Romanovich Luria a educação escolar transcende em muito a educação
informal, pois:

[...] a criança aprende a ler, na escola, a escrever, a fazer contas,


quando aprende os fundamentos da ciência, assimila uma
experiência humano-social, da qual não poderia assimilar nem sequer
uma milionésima parte se seu desenvolvimento fosse apenas
determinado pela experiência que pode alcançar-se mediante uma
interação direta do ambiente. (LURIA, 2005, p. 110).

A atividade pedagógica organizada e executada conscientemente e com o


objetivo de promover a humanização do sujeito determina os seus meios, ações e
operações. Cabe ao educador a organização consciente e intencional do ensino, por
isso, a significação social da atividade educativa do professor é criar condições de
ensino que possibilitem ao aluno motivar-se, comprometer-se, assegurando-lhe a
apropriação do saber científico.
A partir dessa perspectiva teórica, compreendemos que a qualidade do
desenvolvimento psicológico não é inerente a qualquer ensino, mas depende de como
ele é organizado. Ou seja, segundo Vasili Davidov só um ensino intencional,
organizado para desenvolver as capacidades psicológicas do aluno, promove o
desenvolvimento integral de sua personalidade, tarefa essa que supõe uma prática
pedagógica voltada para:

[...] a tarefa de aperfeiçoar o conteúdo e os métodos de trabalho


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didático educativo com as crianças, de maneira que exerça uma


influência positiva no desenvolvimento de suas capacidades (por ex.,
do pensamento, da vontade, etc.) e que, ao mesmo tempo, permita
criar as condições indispensáveis para superar os atrasos,
frequentemente observados nos escolares, de umas ou outras
funções psíquicas. (DAVIDOV, 1988,p. 47).

A socialização é condição para o desenvolvimento da criança, ou seja, a forma


como ela se relaciona com o outro social, por meio da atividade, promove seu
desenvolvimento como ser social no processo de constituição humana, uma vez que o
homem se constitui humano ao se apropriar da cultura produzida pelos homens.

Cada geração começa, portanto, a sua vida num mundo de objetos e


fenômenos criados pelas gerações precedentes. Ela apropria-se das
riquezas desse mundo participando no trabalho, na produção e nas
diversas formas de atividade social e desenvolvendo assim as
aptidões especificamente humanas [...]. (LEONTIEV, 2004, p. 284).

O processo de apropriação da cultura humana é resultado da atividade humana


sobre os objetos e o mundo circundante mediado pela comunicação. Em outras
palavras, é na relação com os objetos do mundo, mediado por outros homens, que a
criança tem a possibilidade de se apropriar das obras humanas e humanizar-se. Para
Leontiev (2004), esse processo é a educação. Segundo o autor, a educação é o
principal motor de transmissão e apropriação da história cultural da humanidade. Em
outras palavras, a educação é o processo de transmissão e assimilação da cultura
produzida historicamente, sendo por meio dela que os indivíduos humanizam-se,
herdam a cultura da humanidade. Essa concepção de educação põe um grande
desafio à escola e aos educadores. A escola é considerada, na perspectiva teórica
que adotamos, uma instituição privilegiada no que se refere às oportunidades de
humanização dos sujeitos integrados a ela.
Como sujeito, o aluno só se modifica, só aprende, se participar ativamente do
processo educativo e, para isso, deve engajar-se, querer aprender e ainda, deve ser
compreendido como ser de vontade. Assim, o educador deve organizar situações
didáticas que favoreçam o desenvolvimento, por parte do aluno, de um querer
aprender, uma vez que esse não é um valor natural, mas construído historicamente.
Essa questão vem sendo menosprezada pelo professor, ao desconsiderar a
necessidade de se construir o motivo de aprender. O objetivo da atividade pedagógica
é favorecer e criar condições para que o aluno queira, sinta vontade e necessidade de
aprender. Dessa forma, o produto do trabalho pedagógico é a transformação da
personalidade viva do aluno, que permanece por toda a sua vida.

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O educador que planeja sua atividade pedagógica tendo em vista a


necessidade do aluno de se apropriar do conhecimento produzido pela humanidade,
por meio da seleção de conteúdos necessários à formação de seu aluno, não
desenvolve uma atividade alienada. Isso nos mostra que, quando os processos
pedagógicos são intencionais e deliberados e têm o objetivo de desenvolver ações
que visam à aprendizagem consciente dos alunos, o professor objetiva em sua
atividade o motivo que os impulsiona e os desenvolve. A atividade pedagógica deve
envolver todos os elementos da atividade consciente: desejo, necessidades, emoções,
tarefas, ações e os motivos, meios e os planos para as ações.
Leontiev (1988) esclarece que a consciência do lugar social ocupado pelo
professor e pelo aluno é constituída pela correlação entre a significação social das
ações realizadas e pelo sentido da atividade para os sujeitos pertencentes à
coletividade.
O significado do lugar social do professor na atividade de ensino é atribuído ao
conteúdo histórico de suas ações, ao que ele faz na efetivação da atividade
pedagógica na qual está inserido. A significação do lugar social do aluno na atividade
de ensino refere-se à contribuição e à atuação de estudo, no movimento de
apropriação dos saberes teórico-científicos produzidos historicamente, constituindo-se
herdeiro da cultura e intervindo nela, transformando-a e transformando a si mesmo. Se
o sentido pessoal da ação, tanto do educador quanto do estudante, não coincidir com
a significação da ação produzida historicamente, as atividades particulares
constituintes da atividade pedagógica são consideradas alienadas.

A interação verbal e os gêneros discursivos

Os estudos de Bakhtin podem contribuir para a compreensão da linguagem


verbal, seja ela oral ou escrita. Bakhtin (2006, p. 69) destaca que ―para observar o
fenômeno da linguagem, é preciso situar os sujeitos - emissor e receptor do som -,
bem como o próprio som, no meio social.‖.
Para Bakhtin a língua é viva e existe na relação com o outro, nas relações
sociais. O autor afirma que ―a palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os
outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre o meu
interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor.‖ (2006, p. 115).

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Segundo o autor, a linguagem é interação social, isto é, comunicação entre


falante e ouvinte. O autor afirma que:

[...] os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada; eles
penetram na corrente da comunicação verbal; ou melhor, somente
quando mergulham nessa corrente é que sua consciência desperta e
começa a operar. [...] não adquirem sua língua materna: é nela e por
meio dela que ocorre o primeiro despertar da consciência. (BAKHTIN,
2006, p. 109).

Para nos comunicar, recorremos aos gêneros discursivos, de acordo com a


esfera comunicativa na qual estamos inseridos. Segundo Bakhtin (1997, p. 279),
―qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera
de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo
isso que denominamos gêneros textuais.‖.
Bakhtin nos esclarece que a interação verbal no cotidiano traz os gêneros
discursivos ou os tipos textuais.

Esses gêneros do discurso nos sãos dados quase como nos é dada a
língua materna, que dominamos com facilidade antes mesmo que lhe
estudemos a gramática. A língua materna — a composição de seu
léxico e sua estrutura gramatical —, não a aprendemos nos
dicionários e nas gramáticas, nós a adquirimos mediante enunciados
concretos que ouvimos e reproduzimos durante a comunicação verbal
viva que se efetua com os indivíduos que nos rodeiam. Assimilamos
as formas da língua somente nas formas assumidas pelo enunciado e
juntamente com essas formas. As formas da língua e as formas
típicas de enunciados, isto é, os gêneros do discurso, introduzem-se
em nossa experiência e em nossa consciência conjuntamente e sem
que sua estreita correlação seja rompida. Aprender a falar é aprender
a estruturar enunciados (porque falamos por enunciados, e não por
orações isoladas e, menos ainda, é óbvio, por palavras isoladas). Os
gêneros do discurso organizam nossa fala da mesma maneira que a
organizam as formas gramaticais (sintáticas). (BAKHTIN, 1997, p.
301-302).

Cercados por uma infinidade de gêneros discursivos, produzi-los parece tarefa


fácil para alguns, mas extremamente complexa para outros. Neste sentido, organizar
um ensino intencional em que alunos sejam capazes de reconhecer, produzir e fazer
uso dos diferentes gêneros discursivos é uma tarefa que cabe à escola assumir
quando tem por finalidade que os alunos se apropriem das formas elaboradas de
escrita.
Para Bakhtin (1997, p. 285), ―a língua escrita corresponde ao conjunto
dinâmico e complexo constituído pelos estilos da língua, cujo peso respectivo e a
correlação, dentro do sistema da língua escrita, se encontram num estado de contínua
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mudança.‖. Os gêneros discursivos fazem parte de nossas práticas sociais; não se


pode separá-los das relações e práticas nas quais estão inseridos. Para tanto, é
preciso que a escola traga a diversidade de gêneros discursivos e suportes que
circulam na sociedade para suas atividades pedagógicas, a fim de que os alunos
tenham acesso e deles se apropriem. Acreditamos que o ensino intencionalmente
organizado com os diferentes gêneros discursivos em diferentes suportes cumpre com
esse objetivo. Entendemos como suporte de texto, de acordo com Luiz Antônio
Marcuschi (2003, p. 8), ―um locus físico ou virtual‖ que sustenta um texto, ou seja, ―que
serve de base ou ambiente de fixação do gênero materializado como texto.‖.
Com o avanço das tecnologias de comunicação e informação, os gêneros
discursivos, assim como as práticas sociais, multiplicam-se na sociedade
contemporânea. Falamos, lemos e escrevemos em diferentes tempos e espaços,
situações, motivos e propósitos. Dessa forma, entendemos que o ensino da linguagem
com foco nos gêneros discursivos, possibilita aos alunos o domínio da linguagem, em
sua expressão escrita, buscando relacioná-lo com as situações que vivemos no
cotidiano, fazendo assim o movimento entre as experiências vivenciadas e as
atividades em sala de aula, que devem contemplar as formas mais elaboradas de
escrita.

O ensino da língua materna e a constituição autora

O ensino da língua materna se configura como um conjunto de atividades com


os gêneros discursivos, vinculadas aos contextos sociais e históricos, representando
algo do mundo concreto. A concepção de Vigotski (2010) acerca do desenvolvimento
da linguagem escrita permanece atual e pode ser compreendida em sua relação com
os pressupostos centrais de sua teoria. Para o autor, a linguagem escrita, assim como
outras formas de linguagem, é construída socialmente, por meio da interação dos
sujeitos. Portanto, a escrita é um sistema de representação simbólica do mundo real, é
um produto cultural construído historicamente.
Os textos são produzidos em situações marcadas pela cultura e adotam formas
e estilos próprios, também historicamente marcados. No que se refere ao conceito de
texto, Bakhtin esclarece: ―O texto não é um objeto, sendo por esta razão impossível
eliminar ou neutralizar nele a segunda consciência, a consciência de quem toma
conhecimento dele.‖ (1997, p. 333). Dessa forma, podemos concluir que a interação

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verbal só é permitida pelo encontro de dois sujeitos por meio de algum gênero que se
materializa em enunciados os quais, por sua vez, adotam formas diversas para
atender a diferentes propósitos.
Tomamos como eixos fundamentais da língua materna a compreensão e a
produção de textos, para onde os elementos linguísticos, sociais e culturais
convergem de maneira indissociável. Nas atividades de compreensão e produção
textual, os interlocutores participam de um processo de interação que se realiza por
meio da língua desses interlocutores; ela é, portanto, o instrumento que possibilita a
comunicação. Mas, para esse domínio é preciso compartilhar situações de como os
discursos se organizam, considerando seu uso e os diversos contextos sociais e
culturais em que estão inseridos.
Em Bakhtin, vemos que o discurso individual se forma e se desenvolve a partir
de uma interação frequente com os enunciados individuais de outrem, ou seja, os
sujeitos do discurso reelaboram seus dizeres. Para Bakhtin (1997, p. 291), ―Cada
enunciado é um elo de cadeia muito complexa de outros enunciados.‖. Entendemos
que os enunciados proferidos são discursos que surgem nas relações sociais, por isso
as múltiplas vozes sociais são imprescindíveis na constituição autora.
Nesse sentido, a inserção de outras vozes constitui um meio de instauração da
autoria. Bakhtin nos explica que:

Aquele que apreende a enunciação de outrem não é um ser mudo,


privado da palavra, mas, ao contrário, um ser cheio de palavras
interiores. Toda a sua atividade mental, o que se pode chamar o
―fundo perceptivo‖, é mediatizado para ele pelo discurso interior e é
por aí que se opera a junção com o discurso apreendido do exterior.
A palavra vai à palavra. (2006, p. 111).

O discurso do sujeito que enuncia se organiza a partir de palavras alheias, com


as quais ele constrói ideias, argumenta, emite opiniões, critica, sugere, enfim,
apropria-se e reestrutura estabelecendo um dialogismo que colabora para efetivação
de um novo dizer, ou seja, como forma de manifestar sua autoria.
Em Bakhtin (1997), o conceito de autoria é baseado nas relações entre os
enunciados e nas relações dos enunciados com o mundo real e com a pessoa falante
(o autor).
Esse jogo dialógico, no qual se instaura a comunicação e a interação da
linguagem, é característica fundamental da autoria, já que entendemos que é por meio
da interação que o sujeito se constitui como um ser de linguagem e, portanto, como
um sujeito autor. Afinal, ―as palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios

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ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios.‖


(BAKHTIN, 2006, p. 28).
Ao considerarmos o conceito de autoria, também a partir das concepções de
Bakhtin (1997), sob a ótica do enunciado considerado como realidade concreta, que
não existe fora das relações dialógicas, inferimos que o enunciado participa de um
diálogo com outros discursos, e o sujeito, ao produzir discurso, emite enunciados na
apropriação e na reestruturação das vozes alheias.
Stella Miller (2003, p. 9), ao discutir o desenvolvimento da capacidade
comunicativa do aluno, mostra que no ensino da língua materna existe um vazio, isto
é, o processo de desenvolvimento da capacidade comunicativa do aluno não é
trabalhado:

Tradicionalmente, a aprendizagem da escrita de textos tem sido feita


ao lado e à margem da aprendizagem da gramática da língua
materna: nas séries iniciais do Ensino Fundamental, o aluno realiza
exercícios gramaticais que dão prioridade aos aspectos descritivos
dos fatos linguísticos e cuja abrangência não excede o limite da frase;
por sua vez, a atividade de produção de texto, além de, geralmente,
focalizar apenas o ―fazer‖ e não o ―como fazer‖, não incorpora os
conhecimentos linguísticos adquiridos pelos estudos de gramática.
Não tem sido feita, portanto, a necessária integração entre as duas
atividades, ou seja, a atividade de produção de textos (atividade
linguística) e a análise linguística voltada para a sistematização dos
conhecimentos (atividade metalinguística) são desarticuladas, não
guardando entre si nenhuma relação que possa garantir a mútua
compreensão dos conteúdos e procedimentos envolvidos.

Portanto, para a produção de textos escritos, é necessário que o professor


trabalhe de forma integrada as atividades linguísticas e metalinguísticas. A
constituição da autoria do aluno está diretamente relacionada ao desenvolvimento da
capacidade comunicativa por meio de textos escritos.
Para João Wanderley Geraldi o professor, na atividade pedagógica, precisa
criar situações de interação com seus alunos, pois nesses processos de interlocução o
aluno internaliza os recursos expressivos para sua comunicação, bem como se
apropria de categorias ou conceitos para compreender o mundo em que vive
(GERALDI, 1996). Sendo o texto a unidade de comunicação que circula na sociedade,
diferentes tipos de textos nela circulam, dependendo de sua complexidade. Nessa
perspectiva, aprender a ler e escrever é aprender as infinitas possibilidades de
interlocução como autor e como leitor.

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A partir dos fundamentos teóricos aqui explicitados, passamos no próximo


tópico à apresentação das análises sobre as atividades desenvolvidas pela professora
em sala de aula.

Análise das atividades com a escrita desenvolvidas pela professora

O objetivo das observações era verificar as atividades de produção textual


desenvolvidas em sala de aula e analisar a concepção de texto que emergia dessas
atividades. Entretanto, verificamos logo no início das observações que a professora
não trabalhava com a produção de textos escritos em sua funcionalidade social, ou
seja, que as crianças não produziam textos, mas faziam cópias, completavam palavras
em exercícios com lacunas, tendo sido observada uma única atividade em que a
professora solicitou aos alunos a escrita de um texto. Assim, as atividades
desenvolvidas pelos alunos para aquisição da linguagem escrita eram apresentadas
como apropriação de um sistema mecânico, ou seja, a aprendizagem da escrita era
vista como mero exercício com letras, sílabas e palavras destituídas de sua
significação.

Atividade 1: Cópia do texto sobre o Dia Mundial do Livro (20/08/2013)

Analisamos a atividade proposta pela professora regente na aula observada no


dia 20 de agosto de 2013. As crianças copiaram do livro didático Porta Aberta – 4º ano
- Editora FTD, o seguinte trecho:

O dia mundial do livro é comemorado em 23 de abril. Essa data foi


escolhida em homenagem a dois escritores famosos, o espanhol
Miguel de Cervantes e o inglês William Shakespeare, que morreram
no mesmo dia, 23 de abril de 1.616. Escreva 1616 por extenso.

Após a cópia do texto, os alunos teriam que escrever o número 1.616 por
extenso. Esta atividade com o que parece ser um fragmento de texto, sem o título e
sem a referência, serviu de pretexto para o ensino da escrita numérica. Nenhuma
atividade de compreensão do texto foi realizada e os alunos foram diretamente para a
escrita do número 1.616.

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Vigotski (2010) mostra que a apropriação da linguagem escrita não se trata da


apropriação de uma técnica de escrita, assim, escrever por extenso um número
registrado em algarismos arábicos não é uma simples transcrição. Trata-se de uma
atividade em que é preciso um nível de abstração. Diferentemente da fala, da qual os
alunos têm domínio e não precisam tomar consciência, a escrita requer a tomada de
consciência para sua aprendizagem. Não se pode, de acordo com o autor, aprender a
escrever com uma técnica, por exemplo, como se aprende a tocar piano, porque, ao
ensinarmos simplesmente uma técnica, não penetramos na natureza da escrita.

Atividade 2: Loteria dos encontros consonantais (21/08/2013)

A professora entregou um papel impresso com um jogo de loteria composto por


encontros consonantais em que os alunos escolhiam no quadro o encontro
consonantal que completava a palavra e escreviam na coluna à direita a palavra
inteira.
A atividade foi passada como tarefa para casa, com uma instrução de como
preencher as lacunas, e corrigida no dia seguinte, no primeiro momento da aula, com
foco na identificação do encontro consonantal, de forma fragmentada e mecânica,
como se as palavras não tivessem significado, sua característica fundamental, ou seja,
o significado ―[...] é a própria palavra vista no seu aspecto interior.‖ (VIGOTSKI, 2010,
p. 398).

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Figura 3: Loteria dos encontros consonantais.


Fonte: M. A., professora da turma pesquisada (2013).

Vigotski (2010) nos mostra que a escrita deve ter significado para as crianças e
que o professor deve oferecer atividades significativas, com a língua viva, para que ela
seja apropriada e objetivada. Nesse sentido, entendemos que não se ensina a escrita
ensinando letras e sons vazios, pois a unidade mínima de significado é a palavra, e o
significado da palavra está em sua relação com outras palavras no texto onde ela se
encontra. A aprendizagem da escrita centrada, repetidamente, na escrita de
consoantes e vogais distancia-se da língua viva que faz parte do cotidiano do aluno e
das suas reais necessidades comunicativas. Ao fundamentarmo-nos em Bakhtin
(2006), compreendemos que o ensino da língua materna deve ancorar-se em
atividades discursivas dotadas de intenção e comunicação entre os interlocutores.

Atividade 3: Um robô bem legal (23/08/2013)

A professora entregou aos alunos uma folha impressa que segue no quadro
abaixo.

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Figura 4: Produção de texto – Um robô bem legal.


Fonte: M. A., professora da turma pesquisada (2013).

Essa atividade foi proposta às crianças pela professora, na aula observada no


dia 23 de agosto de 2013. As crianças deveriam continuar escrevendo a história em
casa.
Questionada pela pesquisadora, a aluna Renata relatou que a professora só
passava produção de texto como tarefa de casa e que não gostava de fazer essa
tarefa, mas o bom era que recebia ajuda da mãe. A atividade de produção textual não
foi orientada pela professora em sala de aula, sendo que o texto a ser produzido pelos
alunos parece ter cumprido apenas a função de uma tarefa, para constar aquele
bimestre no portfólio de produção textual da turma. Não se tratava, portanto, de um
conteúdo a ser ensinado, apenas uma tarefa obrigatória a ser cumprida por exigência
da escola.
Entendemos que a produção textual nessa atividade partiu de um desenho e
três orações simples nas quais o robô é nomeado, são indicadas sua origem e sua
habilidade de fazer ―coisas sensacionais‖. A expressão que indica tempo ―certo dia‖
direciona a produção textual, coloca como condição que os alunos deem continuidade
ao texto, escrevendo qual foi a coisa sensacional que ele fez em certo dia.

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Para Vigotski (2009, p. 65):

[...] uma experiência maravilhosa de despertar a criação literária


infantil em crianças camponesas foi descrita por Tolstoi, com base em
sua experiência pessoal. Em seu artigo ―As crianças camponesas
devem aprender a escrever conosco ou devemos aprender com
elas?‖, esse grande escritor chegou a uma conclusão um tanto
paradoxal, à primeira vista, a saber, que cabe exatamente a nós,
adultos e até mesmo ao grande escritor – que ele próprio era –
aprender a escrever com as crianças camponesas, e não o contrário.
Essa experiência de despertar a criação literária nas crianças
camponesas demonstra claramente como transcorre o processo de
criação literária na criança, como ele nasce, flui, e que papel pode ter
o pedagogo que deseja ajudar no desenvolvimento correto desse
processo. A essência da descoberta de Tolstoi consiste em que ele
percebeu na criação infantil traços que são inerentes a essa idade e
compreendeu que a verdadeira tarefa da educação não é a de infligir
prematuramente a língua adulta, mas a de ajudar a criança a elaborar
e formar uma língua literária própria.

A atividade de continuar o texto sobre o robô mostra que a imaginação


criadora, considerada uma função psíquica superior a ser desenvolvida por meio de
atividades, não foi trabalhada nesta atividade, ou seja, os alunos não tiveram modelos
de textos cuja temática poderiam ser os robôs que desenvolvessem sua imaginação,
partindo do pressuposto de que a imaginação é algo inato. Por outro lado, Vigotski nos
mostra, ao relatar a experiência de Tolstoi, que precisamos aprender com as crianças
como elas escrevem, para não impor a elas um modelo de língua adulta, impedindo
que elas desenvolvam sua produção textual infantil. Nesse sentido, as produções, com
o título ―Um robô bem legal‖, foram avaliadas a partir da língua adulta e, assim,
parece-nos que aquelas produções com marcas da língua adulta foram avaliadas
como de melhor qualidade, enquanto as produções com marcas da língua infantil
foram avaliadas como de pior qualidade.

Atividade 4: Caça-palavras para identificação de adjetivos (23/08/13)

A professora entregou um papel impresso com um jogo de caça-palavras em


que os alunos deviam encontrar o adjetivo mais adequado e escrevê-lo na frente do
nome de cada personagem da novela Carrossel.
A atividade foi passada como tarefa para casa, com uma instrução de como
preencher as lacunas, e corrigida no dia seguinte, no primeiro momento da aula, com
foco na identificação da classe morfológica adjetivo.

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Figura 5: Caça-palavras - Adjetivo.


Fonte: M. A., professora da turma pesquisada (2013).

Bakhtin (2006) nos mostra que a linguagem é produção humana e histórica,


construída nas interações sociais, nos diálogos vivos. Nesse sentido, entendemos que
a aprendizagem da escrita centrada nas classes gramaticais distancia-se da
linguagem como forma de interação humana, ou seja, nessa situação os alunos não
se apropriam da linguagem escrita, mas memorizam questões gramaticais que não os
levam à escrita de textos.
Geraldi (1996, p. 133) mostra que as classes gramaticais são apresentadas
aos alunos ―[...] a partir de definições, sem que os critérios de classificação sejam
explicitados e sem que os objetivos da própria classificação sejam considerados.‖. Os
alunos aprendem apenas os nomes das classes gramaticais, mas não compreendem
quais são as razões dessa classificação.

Atividade 5: Fragmento de poesia - O operário em construção (27/08/13)

Na observação do dia 27 de agosto de 2013, foi apresentado aos alunos um


fragmento de uma poesia de Vinícius de Moraes. O fragmento do texto foi utilizado

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como pretexto para ensinar gramática. A professora passou o seguinte trecho da


poesia na lousa e pediu para os alunos copiarem.

À mesa, ao cortar o pão.


O operário foi tomado
De súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
Garrafa, prato, facão.
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário.
Um operário em construção.

Vinícius de Moraes

Após a cópia, a professora pediu que os alunos fizessem a leitura silenciosa e


refletissem sobre sua mensagem, sem nenhuma conversa com os alunos sobre o
fragmento do texto apresentado. Passado algum tempo, ela leu o texto em voz alta
para os alunos e fez alguns comentários, disse que o texto tinha sido retirado de uma
avaliação que ela havia aplicado no 7º ano, turma para qual lecionava em outra
escola. Em seguida, pediu que ilustrassem o fragmento do texto com um desenho e
passou as seguintes atividades na lousa para que as crianças respondessem:

a) Quem escreveu o texto?


b) Quais os objetos que aparecem no texto? São substantivos
próprios ou comuns?
c) Como era o operário? Como podemos classificar essa palavra?
d) Compreendemos pelo sentido do texto que:
( ) O trabalhador admirou-se da beleza dos objetos.
( ) O operário emocionou-se da beleza dos objetos.
( ) O trabalhador gostaria de fabricar objetos como aqueles.

Trabalhando o texto como pretexto para ensinar questões gramaticais, a


produção textual foi substituída pelo ensino de tais questões. Na atividade, foram
solicitados apenas a buscar informações explícitas no texto, como o nome do autor.
Ao perguntar quais eram os objetos que apareciam no texto e se eles eram
substantivos próprios ou comuns, entendemos que parece ter havido dois equívocos
conceituais: não são os objetos que estão no texto, mas as palavras que os nomeiam -
a função designativa da linguagem é, portanto, ignorada; segundo, a pergunta ―como
era o operário‖, respondida pelos alunos com a palavra ―humilde‖, não foi trabalhada
em sua significação no texto, apenas classificada como adjetivo, uma vez que a
professora estava ensinando classes gramaticais.

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Para Bakhtin (2006), na linguagem escrita, a interlocução entre autor e leitor se


dá através dos diversos tipos de textos, em diferentes registros, que circulam na
sociedade. No ensino da leitura e da escrita como atos culturais historicamente
construídos, seria necessário apresentar o poema de Vinícius de Moraes
integralmente, contextualizando suas condições de produção e os sentidos possíveis
de serem atribuídos na leitura do poema. Nesta atividade, os alunos não realizaram de
fato leituras em que eles pudessem atribuir sentidos; também, não se explorou o
gênero textual poesia.
Precisamos focar o ensino da língua materna em questões que exploram o
texto como uma unidade de ensino, abordando o que se escreve, para quem, com que
objetivo, por que, em que situação, com que recursos linguísticos, estilísticos,
semânticos, textuais se lê e se escreve um texto. Todos esses fatores irão indicar qual
gênero textual utilizar e os recursos linguísticos e estilísticos serão mais adequados no
ato da escrita.
A partir da análise das observações, concluímos que as tarefas dadas aos
alunos não se constituíam como atividades significativas, eram simplesmente ações
com foco no código alfabético, na gramática normativa, que os alunos internalizaram
como simples técnica de cópia e memorização, mecanicamente, sem assumir o papel
de sujeitos em atos de leitura e de escrita.
Ainda que essas ações desenvolvidas pelos alunos possam ter contribuído
para a aquisição da linguagem escrita, elas se limitaram à aprendizagem da escrita
ortográfica restrita ao código linguístico, deixando de lado o que realmente determina o
domínio da escrita: a imersão dos alunos em atos significativos de escrita por meio de
situações criadas para esse fim, que resultem na apropriação da escrita de textos,
atividade essa que pode promover o desenvolvimento das funções psíquicas
superiores dos alunos.
Para entender o processo de apropriação da escrita, em toda a sua
complexidade, segundo Vigotski (2001), é preciso tomar a linguagem escrita como
instrumento e como objeto histórico-cultural produzido nas práticas sociais ao longo do
desenvolvimento da humanidade. Cada criança, para aquisição da linguagem escrita,
precisa se apropriar desse conhecimento historicamente construído a fim de adquirir o
domínio da escrita e da leitura. Poderíamos então afirmar que as ações dos alunos
resumiam-se na execução de tarefas, portanto, não se tratavam de atividades na
perspectiva de Leontiev (1983). Assim, a aprendizagem, que deveria se antecipar ao
desenvolvimento, atuando na zona de desenvolvimento próximo, não se realiza.

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Vigotski (2001) já criticava o ensino da linguagem escrita, no começo do século


XX, ao constatar que ela era artificial. Para o autor, o ensino da língua escrita é
fundamentado em uma aprendizagem artificial que necessita de grande atenção e
empenho do professor e do aluno, pois se transforma em algo autônomo, algo que é
suficiente para si mesmo; a linguagem escrita viva chega a um plano superior. Dessa
forma, o ensino da escrita não se alicerça no desenvolvimento natural das
necessidades do aluno; ele vem de fora, das mãos do professor, e rememora a
aprendizagem de um hábito mecânico. O autor chama a atenção para o ensino da
escrita de um modo artificial, mecânico, descontextualizado.
Dagoberto Buim Arena (2010, p. 20), ao discutir a substituição da língua viva
pelo ensino do código linguístico, argumenta que:

Oferecer a palavra como código acarreta duas situações impensáveis


para a lógica bakhtiniana. A primeira, por afastar a palavra do outro,
como se esta pertencesse ao sistema abstrato da língua, sem a
presença humana. Neste caso, a apropriação não se refere à palavra
do outro, mas de uma palavra fora das relações. O segundo, porque
traz implícita a separação entre palavra e cultura, entre enunciado e
cultura, entre palavra e ideologia, como se o código fosse uma
produção espontânea, sem produtores e acima dos homens [...].

No ato de ler, ―[...] a criança, na relação com o texto literário, apropria-se da


cultura e da especificidade desse gênero, de sua identidade e, ainda, da diversidade
de gêneros literários sob a mesma categoria: a poesia, o conto, a novela, a crônica e
outros.‖ (ARENA, 2010, p. 25-26).

Considerações finais

A análise das observações revelou que a professora não trabalha com a


produção textual escrita, porque os alunos faziam cópias ou tarefas que se limitavam a
simples ações restritas ao código linguístico e à gramática normativa. Conforme nos
esclarece Vigotski (2001), não podemos substituir a língua viva pelo ensino do código
linguístico, de um modo artificial e descontextualizado. Verificamos que há um vazio
no ensino da língua materna, pois a capacidade comunicativa dos alunos não é
trabalhada pela professora, que foca as questões ortográficas e gramaticais, deixando
de lado a produção de texto, a qual não é tomada nem em seu fazer nem em como
fazer. Os atos de escrita de textos não fazem parte das atividades de ensino da língua
materna. O texto ausente da sala de aula aponta para a inexistência de interlocução
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dos alunos como autores e leitores, portanto, a negação dos atos de escrita como
objeto de ensino.
Enfim, ensinar a ler e a escrever não é ensinar o código linguístico, não é
ensinar a identificar adjetivos e substantivos, regras ortográficas, para depois a criança
ter acesso à palavra viva, aos enunciados e à cultura na qual eles são gerados e
compartilhados no processo dialógico que caracteriza os atos de ler e escrever.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARENA, D. B. A literatura infantil como produção cultural e como instrumento de


iniciação da criança no mundo da cultura escrita. In: SOUZA, R. J. de [et al.]. Ler e
compreender: estratégiasde leitura. Campinas: Mercado de Letras, 2010.

BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

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DAVIDOV, V. Problemas del desarrollo psíquico de los ninõs. In: La enseñanza


escolar y el desarrollo psíquico: investigación psicológica, teórica y experimental.
Moscou: Progreso, 1988.

GERALDI, J. W. Linguagem e ensino: exercícios de militância e divulgação.Campinas,


SP: Mercado de Letras - ALB, 1996.

LEONTIEV, A. N. Actividad, Conciencia, Personalidad. Ciudad de la Habana: Editorial


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________. Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique infantil. In:


VIGOTSKI, L. S.; A. R. LURIA & A. N. LEONTIEV.Linguagem, desenvolvimento e
aprendizagem. São Paulo: Ícone, 1988.

________. O desenvolvimento do psiquismo. 2ª ed. São Paulo: Centauro, 2004.


Disponível em:
<http://www.4shared.com/get/6XpolXOd/leontievodesenvolvimentodopsiq.html>.
Acesso em: 21 set 2014.

LURIA, A. R. O papel da linguagem na formação de conexões temporais e a regulação


do comportamento em crianças normais e oligofrênicas. In: LURIA, A. R.; LEONTIEV,
A. N. e VYGOTSKY, L. S. et al. Psicologia e Pedagogia:bases psicológicas da
aprendizagem e do desenvolvimento. São Paulo: Centauro, 2005.
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MARCUSCHI, L. A. A questão do suporte dos gêneros textuais. 2003. Disponível em:


<http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/dclv/article/view/7435>. Acesso em: 10 out
2014.

MILLER, S. Sem reflexão não há solução: o desenvolvimento do aluno como autor


autônomo de textos escritos. In: MORTATTI, M. do R. L. Atuação de professores:
propostas para a ação reflexiva no ensino fundamental. Araraquara: JM Editora, 2003.

VYGOTSKY, L. S. Obras EscogidasIII. Madrid: Visor, 2001.

________. Imaginação e criação na infância. São Paulo: Editora Ática, 2009.

________. A Construção do pensamento e da linguagem. 2 ed. São Paulo: Martins


Fontes, 2010.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

DIÁRIO DE LEITURA COMO PRÁTICA NAS AULAS DE


LITERATURA INFANTIL E JUVENIL

Autora Me. Izabel Cristina Marson SEED/PR, Universidade Estadual do Norte


do Paraná – UENP, Eixo Temático 1: Experiências na educação básica com a
escrita do texto literário

Coautora Drª. Luciana Brito, Universidade Estadual do Norte do Paraná –


UENP, Eixo Temático 1: Experiências na educação básica com a escrita do
texto literário

Considerações Iniciais

Este artigo deriva de dissertação de mestrado do Programa Federal


PROFLETRAS, intitulada ―Didática da Leitura Subjetiva: o Sujeito Leitor no Ensino de
Leitura na Escola‖, e tem por objetivo propor um plano de trabalho docente a partir da
leitura de quatro livros do Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE), a saber: O
que a terra está falando, de Ilan Brenman, 2011; Nenhum peixe aonde ir, de Marie-
Francine Hébert, 2013; A chegada, de Shaun Tan, 2006; e Guerra dentro da gente, de
Paulo Leminski, 2006. A escolha deste corpus justifica-se por possibilitar diálogo
intertextual acerca da temática conflitos sociais, tema pouco recorrente para o público
alvo da pesquisa.
Objetiva-se apresentar a proposta com base nos conceitos do sujeito leitor do
texto literário por meio de elementos que revelam a subjetividade do leitor, bem como
sua competência estética (ROUXEL, 2014, p.28). Tal proposta justifica-se pela
subjetividade da leitura estar inserida de forma constitutiva no ato de ler, como
questão contextual, sociocultural e identitária do leitor em formação (JOUVE, 2013,
p.65).
A partir de observações no universo escolar do Colégio Estadual Dulce de
Souza Carvalho, Distrito de Congonhas, Cornélio Procópio, Paraná, em turmas do

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Ensino Fundamental II, identificamos que temas sobre conflitos sociais são sempre
vistos sob a ótica da ideologia dominante presente em livros didáticos, e que avanços
no sentido de qualquer atualização do discurso sobre tais temas são rarefeitos tanto
na oralidade quanto nas produções escritas dos educandos. Ao questionar o modo
como a literatura infantil e juvenil é vivenciada pela escola, propomos a didática da
leitura subjetiva, com descrição de procedimentos e encaminhamentos para o
reconhecimento da subjetividade dos educandos no ato da leitura.
De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), "A diversidade
não deve contemplar apenas a seleção dos textos; deve contemplar, também, a
diversidade que acompanha a recepção a que os diversos textos são submetidos nas
práticas sociais de leitura" (1996, p.26). Segundo Rouxel (2013a), na França da
primeira década do século XXI e início desta segunda década, os Comitês de Leitura
cumprem o papel de ―abrir o livro‖ com este sujeito-leitor. Debates, impressões de
leitura, álbuns de leitura são recursos propostos para que se insira o gosto aliado às
necessidades de um currículo posto.

A experiência francesa de formação de jovens leitores no século XXI:


considerações sobre a didática da leitura subjetiva

A defasagem curricular nas escolas de educação básica do Brasil nos leva a


indagar sobre os resultados das aplicações das metodologias de ensino de leitura,
bem como nos coloca em busca de experiências melhor sucedidas. Para tanto,
apresentamos a didática da leitura subjetiva, proposta elaborada por Annie Rouxel
(2013) sobre o contexto francês com relação à formação de jovens leitores. Tem-se
como marco teórico o Colóquio de Rennes, realizado em 2004, sob o tema ―Sujeitos
leitores e ensino de literatura‖. É a partir daí que a França reorganiza o ensino de
leitura considerando mais fortemente a presença de emigrantes e refugiados inseridos
no cotidiano das salas de aula do país. E para compreender a didática da leitura
subjetiva, faz-se necessário entender o que ocorre na França, seja no que dista seja
no que se aproxima do caso brasileiro, quando se trata de ensino de leitura nas
escolas públicas.
Annie Rouxel (2013a) considera que a autobiografia do sujeito leitor oferece
respostas iniciais àquele que lê ora com a escola, ora à revelia desta. E aponta como
fator crucial no todo de sua obra que não se tem uma juventude que negue o ato de
ler. Ao contrário, os jovens têm lido muitos gêneros em variados suportes. Para
exemplificar, citando os cadernos de leitura de autores como André Gide, Rouxel
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delineia o que se entende como identidade literária possível de ser revelada por
escolhas que perpassem livros selecionados pessoalmente ou pela escola. Ao relatar
experiências de leitura em cadernos autobiográficos, os alunos e alunas da França
sinalizam a importância da subjetividade. Trata-se, para Rouxel, de eliminar do ensino
de leitura a valorização da interpretação do literário como reflexo perfeito da crítica
literária academicista:

A interpretação visa, em verdade, a um consenso sobre um


significado. Por sua vez, a utilização remete a uma experiência
pessoal, que pode ser igualmente compartilhada. No espaço
intersubjetivo da sala de aula, a experiência do outro me
interessa, pois eu me pareço com ele; ela me fornece, em sua
singularidade, um exemplo de experiência humana. A
experiência conjunta da interpretação do texto e de sua
utilização por um leitor põe em tensão duas formas de se
relacionar com o texto e com o outro e confere intensidade e
sentido à atividade leitora. (ROUXEL, 2013a, p.162).

O fragmento indica a leitura literária desvinculada da rigidez das fronteiras da


crítica acadêmica. Para a didática da leitura subjetiva, interessa saber dos jovens o
que leem, como leem e como utilizam a depreensão da leitura na interação com o
outro.
É sabido que o século XVIII iniciou a introdução do literário no contexto
escolar, inicialmente para as camadas burguesas e, no final do XX e início do XXI, às
camadas populares com o advento da universalização do ensino.
Cabe apontar que as dificuldades quanto à formação de leitores na atualidade
se devem em muito à estratificação de algumas metodologias e crenças que ainda
permeiam o ensino. Rouxel (2013a, p.71) tem como mais presentes a formação de um
leitor forçado, que é aquele que obedece penosamente às condições impostas pela
escola, apresentando relatos que relembram terríveis sofrimentos e traumas que em
nada resultam em leitores com experiências culturais e literárias enriquecedoras.
Citando novamente os escritos de Gide, a autora lembra que sempre se falou
sobre a importância do leitor, mas pouco ou nada lhe foi dada a palavra para registrar,
por exemplo, a ―transformação interior que se opera durante a leitura‖ (Rouxel, 2013a,
p.75). O que se observa são apenas resumos de leitura produzidos em série e
distantes de uma visão de mundo subjetiva e formadora para as humanidades.
Rouxel lembra Michel Picard, que considera que leitores possam formar
mesclas de modelos de leitura no decorrer de sua formação. Ocupando inclusive o
lugar de leitor escapista, ou seja, aquele que vê a literatura apenas como evasão do

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real. Em contrário ao ledor, o escapista não traça relações de comparação com o real,
e ao extingui-lo aniquila toda possível aprendizagem deste por meio do literário.
Outro modelo é o do leitor espectador. Muito comum entre os estudantes
universitários, tende a tecer sobre o texto apenas as emoções e não propriamente a
essência das palavras. Já o leitor dito como boêmio, para Picard é um leitor amador,
não se atém ao segundo nível de leitura. Para ele, a leitura é um devaneio. E, por fim,
o leitor crítico, que é o leitor experiente, sensível ao texto, tanto à forma como ao
conteúdo.
Na avaliação de Rouxel,

Várias pistas são abertas hoje com atividades que reivindicam


uma implicação do leitor e só por esse meio ganham sentido:
leitura cursiva, escrita de invenção, encontros estimulantes em
torno dos livros. Estas atividades que se sustentam numa
confrontação íntima do jovem leitor e do texto literário, dão
mais lugar à expressão da subjetividade e deveriam favorecer
a emergência de gostos e de uma identidade literária.
(ROUXEL, 2013a, p.83)

A discussão proposta por ela dista do pensamento que visa moldar o leitor,
mas trata a formação como contínua, permanente e para além da interpretação
defendida por Eco em Seis passeios pelos bosques da ficção (1994), a de um leitor
ideal. Lembrando que Rouxel fala de utilização do texto pelo leitor, enquanto Eco
defende que o leitor ideal interprete um texto ideal. Ao descrever e analisar a utilização
do texto literário, o termo ―utilizar‖ ganha aqui algo constitutivo do ato de ler, como
pertença de si e reencontro com a subjetividade. Na vertente de Eco, em Seis
passeios pelos bosques da ficção (1994), o leitor interpreta o mundo com os
elementos que traz consigo e de seu conhecimento de mundo, a literatura permanece
onde está: sacralizada. Para Langlade (2013a), a literatura ―é‖ do leitor, e a utilização
do texto literário não aceitará traços artificiais propostos pela crítica, mas sobre este
construirá pontes para conexão ou rotas de desvio para o próprio ―eu‖ pela via da
subjetividade. Por traços artificiais entendemos a tentativa de reprodução em sala de
aula do que afirma a historiografia ou a crítica sobre o texto literário. Tais desvios são,
na verdade, traços da singularidade do encontro leitor e obra, são o ouvir deste leitor.
O autor lembra o caráter inacabado do texto literário e o quanto o leitor dará sentido a
tal característica.
Nas palavras de Rouxel,

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O discurso do leitor inscreve em uma teoria ou uma moral as


reações subjetivas que experimentou no decorrer da leitura:
fascinação, rejeição, perturbação, sedução, hostilidade, desejo
etc. As reações dos alunos, como as de todo leitor, a respeito
de obras que os tocam são significativas dessa implicação,
basta ouvi-los. Nessa distância participativa feita de vislumbres
psicológicos, de julgamentos morais, de sedução ou de
repulsão etc., leem-se e ligam-se a obra e o sujeito leitor.
(ROUXEL, 2013a, p.59)

Quando o professor pergunta aos alunos: Como vocês imaginaram tal


personagem? Os alunos responderão de acordo com suas referências de mundo.
Uma cena de baile descrita nas páginas de um romance será diferente para cada um,
e a imaginação usará dos artifícios do conhecimento já adquirido para elaborar esta
cena. Os elementos da subjetividade fazem o trabalho da construção interpretativa
mais próxima para só então utilizar o enredo nas categorias morais, culturais, éticas,
dentre outros.
No ambiente escolar, ao se falar em texto como gênero, estas vertentes
estarão presentes para a ampliação dos horizontes do leitor. Para Jouve (2002), o
impacto da leitura consiste no retorno do literário para a experiência da existência do
leitor. Como exemplo lembra que os best-sellers atendem justamente a esta demanda
não de desestabilização, mas de manutenção e afirmação do pensamento do leitor. O
leitor ―existe‖ na figura das personagens que carregam os mesmos valores morais e
culturais. O texto literário está na contramão, confronta o leitor e o insere em
procedimentos de identificação pela ampliação da consciência e da desalienação.
Na proposta deste autor, Jouve, tem-se a leitura para além da historicidade, o
que endossa o pensamento de Jauss, que lembrava o perigo de a escola debruçar-se
sobre o ensino e identificação em obras dominantes de uma época sem considerar as
variantes sociais de outras épocas, contextos e culturas.
Rouxel (2013a) e Jouve (2002) comungam do pensamento de que o leitor
sempre dito e sempre lembrado por tantos teóricos, por tantos críticos, é outro, é
contemporâneo, precisa ser ouvido, tem o que dizer e o que autobiografar, afinal a
literatura está em perigo. O leitor exige novos títulos, novos suportes, novas
concepções de linguagem para sobreviver lendo e aportar na subjetividade que
humaniza e forma consciência.

Com o passar do tempo, percebi com alguma surpresa que o


papel eminente por mim atribuído à literatura não era
reconhecido por todos. Foi no ensino escolar que essa
disparidade inicialmente me tocou. Não lecionei para o ginásio
na França, e minha experiência na universidade foi exígua;
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mas, ao me tornar pai, não podia me manter insensível aos


pedidos de ajuda feitos por meus filhos em véspera de exames
ou de entrega de deveres. Ora, mesmo não tendo posto toda a
minha ambição no caso, comecei a me sentir um pouco
embaraçado ao ver que meus conselhos ou intervenções
proporcionavam notas sobretudo medíocres! (TODOROV,
2009, p.25).

Ao conhecido e clássico lamento de Todorov ao ver frustrados seus esforços


em fazer valer a forma e a estrutura do texto, segue-se a confissão por não ter
aprendido na escola a entender o que fala a obra, mas o que falam os críticos. E
afirma que na continuidade do ensino ácido da literatura pouco ou nada ela receberá
de volta em amor.
Reconhecer este contexto foi o que levou centenas de estudiosos do ensino
de leitura ao Colóquio de Rennes – França, em 2004, e mais do que isso à
identificação por eles, de que as salas de aula na sua completude não haviam lido os
mesmos textos clássicos franceses.
É importante lembrar que a década de 1990, a França recebia refugiados e
emigrantes do Oriente, África, América Latina, entre outros. Diante disso, ensinar o
literário requeria do professor saber que os educandos chegavam falando as línguas
do Oriente, tinham os costumes da Síria, ou contavam narrativas da América Latina. A
França carecia pensar o ensino de leitura do território com a presença, inclusive, de
muitos povos que habitavam até então os protetorados franceses em terras de África.
Portanto, o reconhecimento do sujeito leitor no ensino da leitura literária é recente.
Diante do contexto, ao avaliar a escola básica daquele país, Rouxel (2013a,
p.19-20), considera a ainda persistente presença de planejamentos de aula onde o
literário é pretexto para a aquisição da língua materna. O que ela chama de deixar o
leitor ―fora do jogo‖ do literário.
A teórica indaga sobre o leitor que se quer formar para além do aporte técnico
das documentações oficiais, sendo preciso incluir a subjetividade na didática do
ensino.

Em outras palavras, é necessário instituir alunos, sujeitos


leitores, o que significa renunciar, na sala de aula, ao conforto
de um sentido acadêmico, conveniente, ―objetivado‖, para
engajar os alunos na aventura interpretativa, com seus riscos,
suas instabilidades, suas contradições, suas surpresas, suas
descobertas, mas também seus sucessos. A leitura literária,
assim pensada, se apoia nas experiências de leituras
particulares dos alunos pelos quais o texto toma vida e
significação. (ROUXEL, 2014, p.21).
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Nesse sentido, os diários de leitura, ou diários autobiográficos são registros


das experiências do leitor, sendo marca de suas impressões de leitura. A adoção de
tais práticas credita ao leitor a real centralidade no processo de leitura. E Rouxel
continua,

Alberto Manguel que, quando adolescente, lia para Borges- ao


ficar cego-, conta a sua surpresa diante do interesse por
questões manisfestado pelo escritor argentino, que lhe
pareciam estrangeiras à problemática da obra (periféricas,
anexas). Ele mesmo, em seu Diário de um leitor- produção
construída sobre a releitura de doze obras que lhes eram
favoritas- uma por mês – mostra que são os ecos entre certos
aspectos (às vezes secundários, às vezes ínfimos) da obra que
ele está lendo e a realidade de sua vida cotidiana que dão valor
à sua leitura. Muitas vezes trata-se de um encontro casual, de
uma coincidência, mas isso é suficiente para dar sentido à
leitura e à vida. Essa relação sensível à obra mistura emoção e
cognição, como uma alquimia, cada vez mais única, que molda
a personalidade do leitor. (ROUXEL, 2014, p.22)

O caso de Manguel exemplifica bem a relação entre leitores distintos e uma


determinada obra, ou várias. Rouxel (2013a, p.25) ressalta que a didática da leitura
subjetiva está em construção, em fase de invenção, pois as reações dos leitores ao
texto, em diários como o de Manguel, interessam no sentido de balizarem as
competências na formação de jovens leitores.

Novas práticas se desenvolvem atualmente nas salas de aula,


da educação infantil à universidade, dentre as quais, o trabalho
com diários e cadernos de leitura. Eles permitem observar o
ato da leitura, captar as reações, as interrogações dos leitores
ao longo do texto, identificar as passagens sobre as quais eles
se detêm, que eles às vezes grifam para guardar o termo
destacado. Esses escritos possibilitam vislumbrar como a
personalidade do leitor se constrói no espelho do texto: os
julgamentos axiológicos sobre os discursos ou a ação das
personagens, as hesitações e as interrogações sobre a
maneira de apreciar o mundo ficcional ou a qualidade da
escrita testemunham essa construção identitária. (ROUXEL,
2014, p.26).

Nos escritos dos leitores sobre a obra lida é que podem aflorar ideias criativas
e de qualidade subjetiva e humanizadora como resultado da percepção e recepção do
literário fora do modelo proposto e aguardado pela crítica. Como observado por
Rouxel, as anotações de canto de página, muitas vezes no original do livro, são, na
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verdade, o início de um raciocínio a ser desenvolvido nos diários de leitura. A palavra


dada ao leitor, neste caso, perpassa a intenção para valorizar justamente a produção
do leitor que, na sala de aula, resultará em texto autobiográfico distinto do dos demais
educandos, que observarão outros traços identitários da obra lida.
Ler estas produções dos alunos em sala suscitará dúvidas, opiniões, análises,
com o aprofundamento do debate sobre a metalinguagem nas páginas dos diários.
Como resultado nem todos podem pensar tal qual a crítica literária recomenda, mas
terão ressaltado outras vertentes da obra lida até então, não identificadas por
gerações de leitores no passado.
A didática da leitura subjetiva trabalha com planos de aula que partem do
tema das obras contempladas para leitura. A escolha das obras pode vir do professor
ou dos alunos, mas, mais frequentemente, do professor. Partir do tema não exclui
conteúdos programáticos e nem significa a não inserção de obras contemporâneas ao
gosto do jovem leitor. Na verdade, ao tratar do tema, a pauta proposta será a dos
alunos, a inovação se dá pelo ponto de vista destes, ao que o professor deverá mediar
novas e sucessivas leituras para complementar as necessidades de ensino do tema.
Abordaremos essa questão, pormenorizadamente, no capítulo 3 deste trabalho, com
plano de trabalho docente e descrição sobre sua estruturação didática em sala de
aula.
Annie Rouxel descreve a didática da leitura subjetiva e aponta seus possíveis
resultados com o trabalho com tema:

Às vezes, o tema fonte (o texto da obra) se atenua até


desaparecer e tornar-se irreconhecível: a comunidade de
leitores – alunos e professor- engaja, então, um debate
interpretativo para apreciar a pertinência dessas produções
hipertextuais. É o recuo crítico, o distanciamento face ao objeto
literário e suas interpretações, que são, então, necessárias.
Importa que seja legível o diálogo entre o texto da obra e os
textos dos leitores e que os alunos sejam capazes de
argumentar a sua percepção. Assim, a formação dos leitores
exige também essa competência reflexiva. Evidentemente, a
leitura subjetiva em sala de aula não se limita às emoções, ela
se apoia na experiência estética para dar sentido ao texto e
engajar uma reflexão sobre a sua própria pertinência.
(ROUXEL, 2014, p.28)

A própria Rouxel pergunta dentro deste contexto da didática: qual literatura


ensinar? E, tanto para a França, quanto para o Brasil, cabem os questionamentos:
seguir o currículo? Priorizar o patrimônio clássico europeu?

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Para ela, a ―intensidade existencial‖ de determinadas obras como O diário de


Anne Frank, já trazem em si indicativos do trabalho em sala de aula. Os sentimentos
universais serão os mesmos, mas peculiares e particularizados em cada aluno, e
deste quebra-cabeças formarão o todo da compreensão do texto com experiências
estéticas indescritíveis, ―A heterogeneidade das salas de aula, a vontade de formar
leitores para a vida nos conduzem a reconsiderar o corpus da literatura ensinada, para
abri-los a outras literaturas: literatura popular, literatura infanto-juvenil, literatura pós-
colonial, literatura francófona e literatura estrangeira‖. (ROUXEL, 2014, p.29).
Como já citado neste texto, a Europa, especialmente a França, tem recebido
grande número de alunos estrangeiros em suas escolas, a expansão dos títulos
literários do cânone ou fora deste na grade curricular é uma das respostas à
ampliação de vozes e idiomas nas salas de aula francesas.
Em comparação com o cenário brasileiro é preciso destacar o quão distintas
são as variações linguísticas; as classes sociais; os lugares de nascimento; a
localização geográfica da moradia; a formação ética, moral, cultural e religiosa dos
alunos do país. Em uma mesma sala de aula teremos alunos advindos do nordeste e
do Rio Grande do Sul; alunos filhos de famílias proprietárias de terras e alunos sem
moradia própria, residentes em subúrbios. Este é o retrato da escola pública brasileira
nas últimas décadas, após a universalização do ensino.
Para mensurar o quão bem-vindas são estas vozes dos alunos, Rouxel
acrescenta que,

O literário não se mede pelos critérios do hermetismo: a


construção do sentido não exige que se recorra à abordagem
hermenêutica. Numerosas obras que foram, durante muito
tempo, vítimas de um ostracismo conservador são hoje
reconhecidas e apreciadas nas salas de aula. Assim, o
romance de Vasconcelos, Meu pé de laranja lima pertence hoje
às leituras recomendadas para os jovens alunos enquanto nos
anos de 1980, ele foi banido em razão de uma língua julgada
muito familiar. (ROUXEL, 2014, p.29).

Na prática de sala de aula, o livro dito fora do cânone para jovens pode estar
num mesmo plano de trabalho com outros valorados, é uma questão de acréscimo
desses títulos e de ouvir o jovem leitor, e não propriamente de não respeitar
parâmetros do aniquilamento dos currículos.
No Canadá, além da valorização da voz do leitor pelo viés do texto literário,
os pesquisadores aliam cinema, videogames, histórias em quadrinhos, twiteratura às
práticas de ensino de literatura. Estes gêneros atualizam o texto literário e os suportes
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da preferência dos alunos, quando se considera a conexão deles com a internet e as


questões de imagem e som.
Para a pesquisadora Rouxel, as duas práticas são válidas como formadoras
de leitores.

A primeira obriga o leitor a se descentrar, a sair de si mesmo, a


incorporar-se à obra literária para prová-la e finalmente a
integrar-se na cultura em comum; a segunda convida a
identificar o patrimônio vivo nas novas produções hipertextuais
e artísticas, a reconhecer as contribuições da cultura midiática,
os novos modos de leitura- leitura fracionada, não linear,
inventiva-ou de expressão - os blogs em particular. Os dois
caminhos envolvem o leitor no jogo literário. (ROUXEL, 2014,
p.31).

Seja qual for a escolha do professor, o importante é não perder de vista a


subjetividade, os sentimentos humanos presentes na obra, sendo que a formação da
consciência pela comparação de si e do que se lê é a prioridade na temática. E a
prática da escrita de diários de impressões de leitura orienta-se pela sobreposição ao
caráter classificatório de época ou à periodização para dar lugar ao significação do
que se leu e, sobretudo, à transposição da organização do pensamento do leitor para
o papel como leitor e escriba que acaba por tornar-se.

Plano de Trabalho Docente para 6º. ano do Ensino Fundamental II: a


criança em estado de refúgio, uma temática para a sala de aula

O plano de trabalho docente norteia as aulas do professor e pode ser dividido


em quantas aulas foram necessárias para a mediação e depreensão dos objetivos de
ensino. Sugerimos, orientados para didática da leitura subjetiva, que o professor
organize, com antecedência, cadernos que serão usados como Diários de Impressões
de Leitura, bem como livros literários de cada título em número adequado, podendo
ser um livro a cada três alunos. Sendo que as aulas podem acontecer,
preferencialmente, na biblioteca da escola.
Plano de trabalho docente, etapas: 1. Produção de texto sobre questões
sociais: crianças em estado de refúgio. 2. Leitura cursiva (em voz alta) em sala de aula
de Nenhum peixe aonde ir, (2006); visualização de texto e imagens. 3.Visualização do
filme Becas (2012). 4.Produção de impressões de leitura pelos alunos sobre livro e
filme no diário. 5.Leitura cursiva em sala de O que a terra está falando, (2011).
6.Visualização de fotos de lugares vítimas de guerra por disputas por água e terras:

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usando acesso online objetivando atender à curiosidade e necessidade de


conhecimento e compreensão do tema pelo educandos. 7. Produção de impressões
de leitura sobre a questão da terra e da água como elementos de afeto e permanência
humana. 8.Leitura de imagem de A chegada (2006). 9. Visualização de charges
sobre imigrantes. Escolha de acordo com o contexto em jornais publicados na semana
de realização da oficina. 10. Leitura de Guerra dentro da gente (2006). 11. Debate
sobre o desfecho em O que a terra está falando (2011) e Guerra dentro da gente
(2006) como perspectivas de resolução de conflitos. 12. Produção de impressões de
leitura sobre livros e imagens apresentados no Plano de Trabalho Docente. 13.
Debates em sala, dando voz ao aluno, sempre que necessários à organização do
pensamento, à resolução de dúvidas da turma e à inserção de novos saberes e
interpretações ao tema.
Retomamos aqui o pensamento de Rouxel (2013, p. 83) sobre a escrita a
cada leitura, ela afirma que a leitura do literário reafirma o lugar do jovem leitor e estas
atividades de escrita favorecem o gosto e a formação da identidade literária. Sai-se do
formalismo para considerar a subjetividade.
Observe-se que o Plano de Trabalho Docente segue a opção da multileitura
defendida pelos franceses, por convergirem com a reorganização da
hipertextualização da leitura. Ou seja, ao literário podemos incluir filmes, desenhos,
livros ilustrados, charges, entre outros para que se compreenda melhor o texto literário
que centraliza os planos de trabalho docente.
Guimarães (2014, p.63) afirma que o sentido do texto compartilhado nas
aulas pelos temas do literário ampliam as experiências vividas pelos estudantes.
A aula de literatura constitui-se nessa dinâmica entre o conhecido e o
desconhecido, entre percepção individual e os códigos coletivos de leitura literária,
entre intuição e pensamento, fruição e trabalho, entre ousadia interpretativa e o
cuidado para evitar o desvirtuamento das formas e perspectivas das obras.
(GUIMARÃES, 2014, p. 63).
Cada leitor projeta seu conhecimento ao ler e a coletividade, o debate sobre
ideias e descobertas no texto literário, amplia o conhecimento geral dos educandos
tornando a fruição para além de comentários espelhados na crítica ou mesmo na
opinião do professor. Na verdade, a saída do viés historiográfico permite maiores
descobertas acerca do literário. Como afirma Guimarães (2014), é possível
empreender novos significados ao texto sem esvaziar seu conteúdo significativo. Ao
contrário, assim, estaria a escola e o professor mediando indivíduos capazes de
repensar e fazer viver o literário.
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Considerações Finais

Ao recorrermos à didática da leitura subjetiva, constatamos que o estudo do


contexto francês e do contexto brasileiro despertam em princípio questionamentos
sobre a semelhança quanto ao desinteresse dos alunos pela leitura do literário.
Em seguida, nos perguntamos, considerando os dois casos, quais soluções
seriam possíveis. A didática da leitura subjetiva nos parece completar os anseios do
educador interessado em ensinar a leitura. Lembramos também a necessidade de se
ter um plano de trabalho elaborado previamente para só então iniciar o trabalho com
os educandos. O professor fora da vertente do improviso nas aulas de leitura saberá
qual perfil de aluno leitor quererá formar e ao optar pelo leitor autônimo, proposto por
Rouxel, escolherá quais obras serão lidas e com outras com as quais serão
apresentadas para posteriores debates, comparações e organização do pensamento
por parte da turma. Estas ações, todas, sempre aliadas ao contato permanente com o
acervo da biblioteca da escola.
Com a didática da leitura subjetiva temos a leitura cursiva (em voz alta), o uso
dos diários de impressões de leitura e uma maior constância dos livros literários em
sala de aula e no ambiente da biblioteca, sem o viés que objetivava apenas a
repetição do conhecimento historiográfico do literário.
Voltando ao caso francês, Rouxel relata a vinda de estrangeiros para o país
com jovens e crianças avessos à leitura, indicando desde o início da década de 1990,
certa rejeição ao livro e ao ato de ler, por parte do educando. No Brasil, a escola tem
no Programa Nacional Biblioteca na Escola um recurso quanto ao acervo da biblioteca
escolar. Porém, nas escolas a falta de tempo ou mesmo a insegurança do professor
ao desenvolver planos de trabalho a partir da leitura, tem se agravado e aparecem nos
resultados de desempenho cotidiano dos educandos. E, como afirmamos no capítulo
3, não existe no país qualquer formação de mediadores de leitura em rede nacional
especificamente para desenvolver a multiplicação das ações sobre a formação de
leitores jovens. O PNBE acaba por ficar nos armários e caixas na escola, sem que o
professor seja orientado sobre como trabalhar.
Diante disto, enfatizamos a didática da leitura subjetiva que, ao propor que o
professor leitor seja leitor com seus alunos, pode vir a ter nos diários de impressões de
leitura a retirada da invisibilidade dos textos dos alunos. Na escola, tradicionalmente,
trabalha-se com folhas soltas ou em cadernos comuns, juntamente com outros
conteúdos, para os quais o educador e o próprio aluno dão pouca ou nenhuma
importância, por considerá-las tarefas cumpridas num momento passado que já não
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importa mais ao contexto posterior. Nos diários, temos uma noção de continuidade do
trabalho de aprendizagem e uma possibilidade de avaliação fora da tradição
somatória, mas avaliação diagnóstica e permanente deste aluno.
Como os trabalhos com os educandos têm sua centralidade na biblioteca,
consideramos que dar a conhecer sobre este local da escola é recurso para
apropriação autônoma do livro e da literatura e proporciona que, de modo cada vez
mais recorrente, outros títulos da biblioteca sejam lidos. Insistimos que, desta forma, o
aluno atende às escolhas do professor para a leitura, mas também realiza suas
próprias escolhas, o que irá se refletir na qualidade da escrita e da explanação de
ideias, argumentos e significados do literário no diário de impressões.
A isto, soma-se a observação de que não é necessário voltar sucessivamente
ao plano do senso comum referente a um tema, mas, ao contrário, um aluno
autônomo usuário de uma biblioteca e orientado por um professor mediador de
leitura, o que ampliará constantemente o nível de leitura. O tempo dispensado a
retornos ao texto simples e cotidiano pode ser usado para, nesta perspectiva, avançar
em textos clássicos, contemporâneos, mais extensos e complexos. Em outras
palavras, é a defesa de Rouxel por leituras de qualidade na escola.

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Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

SELF-REGULATED STRATEGIES DEVELOPMENT (SRSD) E A


AUTORREGULAÇÃO DA ESCRITA

Simone Alves Pedersen, UNESP/Rio Claro


Experiências na educação básica com a escrita do texto literário

Considerações Iniciais

Para Boruchovitch (1999), os problemas educacionais brasileiros necessitam


de soluções que transcendem as metodologias pedagógicas, e o país necessita de
mudanças políticas, socioeconômicas e culturais, embora não se pode negar que
temos também uma incapacidade de ensinar. Todavia, é imprescindível que os
professores ampliem seus repertórios de estratégias de aprendizagem para ter
variadas ferramentas disponíveis às diversas necessidades que a docência apresenta,
com alunos singulares em suas específicas necessidades.
O conceito de aprendizagem autorregulada, na perspectiva sociocognitiva, é
definido como os pensamentos, sentimentos e ações que o próprio sujeito gera, e que
ele planeja e adapta de forma sistemática às necessidades, com o objetivo de
atuarem sobre a sua própria aprendizagem e motivação (SCHUNK,SWARTZ 1993;
ZIMMERMAN, 1988; ZIMMERMAN; KITSANTAS, 1999). Os alunos autorregulados
são motivados, independentes, além de serem participantes ativos de sua
aprendizagem (ZIMMERMAN, 1998, 2002; ZIMMERMAN; BANDURA,1986/2008;
ZIMMERMAN; MARTINEZ-PONS, 1988).
Bandura e Zimmerman (1994) consideram que a habilidade em formular
ideias e expressá-las bem na forma escrita contribuem enormemente para o sucesso
em todos os tipos de atividades acadêmicas. Os autores ressaltam, ainda, que o ato
de escrever é desafiador e requer autorregulação; por ser de sua natureza uma
atividade que normalmente é autoprogramada, executada a sós, necessita de esforço
criativo por longos períodos, e pode ter intervalos estéreis.

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Nesse contexto, surge o interesse em discutir a autorregulação da escrita


como caminho para melhorar a produção textual dos alunos. Considerando o atual
instável contexto político nacional, é imperativo que nos empenhemos em encontrar
soluções possíveis, como melhorar o desempenho do professor e do aluno, por meio
de pesquisas sérias e rigorosas, que ampliem o repertório de estratégias de
aprendizagem dos alunos, sem que sejam necessários grandes investimentos.
.
Autorregulação da aprendizagem

A autorregulação tem sido estudada há mais de 40 anos (SCHUNK, 2001;


CASH, 2016), sob variados marcos teóricos. As teorias diversas: operante,
fenomenológica, do processamento de informação, sociocognitiva, motivacional,
construtivista e vygotskiana consideram a autorregulação com diferentes visões no
que tange à motivação, autoconsciência, processos-chave, ambiente social e físico, e
capacidade de aquisição de novos conhecimentos, segundo Zimmerman (2001).
Segundo a Teoria Social Cognitiva desenvolvida por Bandura (2008a), o ser
humano aprende novos comportamentos por duas formas: experiência direta e
observacional. Somos fruto de uma tríade recíproca entre diversos fatores
comportamentais, pessoais e ambientais.
O aprendizado comportamental seria excessivamente trabalhoso, para não
mencionar perigoso, se as pessoas dependessem somente dos efeitos de suas
próprias ações para informá-las sobre o que fazer. A maior parte do comportamento
humano é aprendido pela observação por meio da modelação (BANDURA, 1989).
Bandura (1989, p.50) sustenta que ―pelo prisma da teoria social cognitiva, as
pessoas atuam como agentes ativos de suas próprias motivações‖. Não há
autorregulação se todos os fatores forem pré-estabelecidos externamente, pois
autorregulação trata-se da capacidade de controlar intencionalmente sentimentos,
comportamentos e pensamentos, de forma cíclica, para a obtenção de uma meta pré-
estabelecida.
Pelo modelo cíclico da reciprocidade triádica, Bandura afasta o dualismo de
outras teorias psicológicas, e explica o comportamento humano como resultado de
fatores comportamentais, pessoais e ambientais, que se interafetam. Demonstra-se
assim, que o comportamento humano é influenciado pelas nossas crenças, pelas
nossas experiências, pelas circunstâncias contextuais de cada situação, pela nossa
capacidade de processamento cognitivo das situações, entre outros, em um mosaico
de subprocessos psicológicos que afetam as nossas escolhas e comportamentos.
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Zimmerman define o aluno autorregulado como ―o que é participante ativo


metacognitivamente, motivacionalmente, e comportamentalmente no seu próprio
processo de aprendizagem‖, e a ―a aprendizagem autorregulada se refere ao processo
pelo qual estudantes pessoalmente ativam e mantêm suas crenças, comportamentos
e cognição que são sistematicamente determinados em função dos objetivos de
aprendizagem ‖, e complementa que a ―autorregulação da aprendizagem envolve as
dimensões cognitiva/metacognitiva, afetiva, motivacional e comportamental, com as
quais os discentes ajustam suas ações e seus objetivos, a fim de atingir as metas
traçadas‖ (ZIMMERMAN, 2001/2009, p.5 ).
Zimmerman e Schunk (2011) argumentam que ao aplicar a tríade recíproca
da Teoria Social Cognitiva ao processo de aprendizagem autorregulada, evidencia-se
que não são apenas os processos pessoais como cognição e afetos que determinam o
comportamento do aluno. Fatores ambientais e comportamentais similarmente afetam
o processo de autorregulação da aprendizagem, reciprocamente.
A aprendizagem autorregulada tem sido investigada sob diferentes marcos
teóricos, contudo, modelos de desenvolvimento da aprendizagem autorregulada são
tipicamente fundamentados na perspectiva da teoria sociocognitiva, pela qual o
desenvolvimento cognitivo e social está proximamente relacionado e não podem ser
apartados do contexto no qual ele ocorre (BANDURA, 1989).
Inicialmente desenvolvemos comportamentos autorreguladores pela
aprendizagem social e, gradativamente, os internalizamos. Entretanto, a
autorregulação da aprendizagem não é desenvolvida automaticamente com o passar
dos anos, assim como não se pode desenvolver a autorregulação passivamente, por
meio de interações socioambientais. Ressalta-se, contudo, que a criança desenvolve,
com o passar do tempo, várias habilidades, entre elas a habilidade de compreender
linguagem, aumenta a sua base de conhecimentos, aumenta a capacidade de fazer
comparações sociais, fatores que têm impacto no desenvolvimento da autorregulação
dela.
No processo de aprendizagem, estabelecer um objetivo é necessário para
que se autorregule o comportamento escolhido para atingi-lo. O objetivo deve ser
concreto, realista e avaliável. Dividir o objetivo final em objetivos menores facilita a
autorregulação da aprendizagem. Objetivos desafiadores são atraentes desde que não
sejam demasiadamente distantes do domínio atual (Zimmerman; Schunk, 2011).
Para Zimmerman (2013), o ciclo de aprendizagem autorregulada ocorre em
três fases cíclicas: antecipação, execução e autorreflexão.

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A fase da antecipação é quando ocorre a análise da tarefa e motivação. A


análise da tarefa deve ser realista e específica, o que implica em uma escolha de
estratégias mais eficientes e definidas, ou seja, um planejamento adequado e bem-
orientado. As motivações englobam as crenças de autoeficácia, a expectativa de
resultados e valor intrínseco.
A fase de execução é a realização da tarefa. O controle por parte do
estudante é muito importante nessa fase, para que aplique o que planejou na fase
anterior. Na segunda fase, determinar um objetivo e estabelecer um plano para atingi-
lo. Nesse planejamento, cabe a escolha de estratégias de aprendizagem. No caso da
leitura, o aluno pode escolher por estratégias de ―note e anote‖, por exemplo,
sublinhar, procurar ajuda quando não compreende, entre outras. É nessa fase que se
escolhe onde estudar, o que estudar e como estudar. O aluno monitora se as escolhas
efetuadas na fase anterior estão adequadas ao objetivo estabelecido e se o processo
de aprendizagem está sendo bem-sucedido. É quando deve ser mantido o que está
dando certo e mudar o que está sendo infrutífero e ao mesmo tempo avaliar se o que
está dando certo não pode ser melhorado.
A fase de autorreflexão: é a fase de avaliar o resultado final da tarefa. Por
meio de um autojulgamento o aluno poderá reagir de diferentes formas ao resultado
obtido. Considerar se foi satisfatório; como ele se comportou para chegar àquele
resultado; o que foi eficiente, o que impossibilitou atingir um resultado melhor; quais
outras estratégias poderiam ter sido escolhidas, quais estratégias utilizadas podem ser
empregadas em outras tarefas. É nessa fase que o aluno avalia se os resultados
foram adequados ao que ele planejou e esperava atingir.
A autorregulação acadêmica, segundo Zimmerman, Bonner e Kovach (2008),
envolve pensamentos, sentimentos e ações selecionadas para alcançar metas
acadêmicas específicas, e forma-se por quatro processos psicológicos:
 Autoavaliação e monitoramento,
 Estabelecimento de meta e planejamento de estratégias,
 Execução da tarefa com uso das estratégias planejadas e
monitoramento desse desempenho,
 Monitoramento e avaliação dos resultados e das estratégias
selecionadas.

Zimmerman e Martinez-Pons desenvolveram, em 1988, uma lista de 15


categorias de estratégias autorreguladoras:

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1. Autoavaliação
2. Organização e transformação
3. Estabelecimento de metas e planejamento
4. Busca de informações
5. Registro e monitoramento
6. Estruturação do ambiente
7. Autoconsequências
8. Memorização e ensaios
9-11. Procura de ajuda
12-14. Verificação de registros
15. Outros

Alunos com melhor desempenho acadêmico usam mais estratégias


autorregulatórias, como as acima, que alunos com desempenho acadêmico mais baixo
(BAHR; CARROLL; EFFENEY, 2013).
Rosário et al. (2001) salientam que alunos academicamente competentes
utilizam mais as estratégias de autorregulação descritas por Zimmerman e Martinez-
Pons. Contudo, ―ressaltam os teóricos que conhecer as estratégias não é suficiente
para melhorar o rendimento escolar dos estudantes. Faz-se necessário que os alunos
compreendam como e quando usá-las‖ (BORUCHOVICH, 1999, s/n.).
Alunos com dificuldades que aprendem estratégias autorreguladoras melhoram
seu rendimento, diminuindo a distância em desempenho acadêmico dos alunos
medianos ou acima da média deles esperada. Frison et al. (2015) demonstraram que
alunos mais autorregulados para a aprendizagem se tornaram mais ativos,
autônomos, capazes de controlar seu processo de aprendizagem, conhecendo suas
potencialidades e limitações e criando formas de lidar com elas.

Autorregulação da Escrita

A escrita inclui processos como: planejamento, consideração das


características do leitor e de suas perspectivas, produção de conteúdo organizado e
revisão de forma e ideias, e é uma importante parte do aprender (EISSA, 2010).
Apesar disso, escrever é uma tarefa desafiadora para muitos alunos (ZIMMERMAN;
BANDURA, 1994). Durante a produção textual, o escritor deve controlar processos de
complexidade de problema-solução (FRISON ET AL., 2015).

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Segundo Harris, Graham e Santangelo (2012), para que alunos com


dificuldades no processo de escrita e deficiência em aprendizagem alcancem um nível
adequado de escrita, é necessário que estes usem estratégias que os ajudem a
planejar, organizar, escrever e revisar o texto produzido de forma eficiente.
Todavia, as habilidades autorregulatórias que o sujeito possui nem sempre
são aplicadas persistentemente defronte dificuldades, estressores ou chamamentos
interessantes. Não importa o quanto sejam boas as habilidades dos alunos se eles
não forem capazes de utilizá-las de forma eficiente, persistente e criativa
(ZIMMERMAN; BANDURA, 1994).
Portanto, o nível de aprendizagem do aluno depende não tanto de suas
habilidades, quanto da presença ou ausência dos processos autorregulatórios do
mesmo. (ZIMMERMAN, 2002). Tornar-se um escritor competente envolve mais que
conhecimento de vocabulário e gramática, depende de alto nível de autorregulação,
porque a produção de texto é normalmente autoplanejada, autoiniciada e
autossustentada (ZIMMERMAN; RISEMBERG, 1997).
Segundo Rebelo et al., da Universidade de Coimbra, esses estudos podem
ser divididos em três categorias:

• A estrutura e forma do texto;


• Os processos psicológicos envolvidos;
• A intervenção didática: técnicas ou estratégias para ensinar a
escrever;

Essas abordagens seriam, na sequência, direcionadas ao produto, ao


processo e ao contexto, sendo a da ―compreensão do processo de escrever, ou seja,
das operações mentais implicadas na composição de textos e que, muitas vezes, se
não manifestam exteriormente‖ a de maior relevância atualmente (REBELO ET AL.,
2013, p. 33).
Boruchovitch e Costa (2015) realizaram pesquisa com alunos do sétimo ano
do Ensino Fundamental. A intervenção com ensino de estratégias de aprendizagem
orientadas à escrita mostrou resultados positivos com ―mudança significativa no relato
das estratégias de produção de textos como pensar, planejar, escrever, escrever mais,
revisar e reescrever‖ (BORUCHOVITCH; COSTA, 2015, p. 32).
Frison et al. (2015) alertam para a necessidade da sólida formação teórica
dos professores, sobretudo em nível da linguística (psicolinguística e sociolinguística)
e dos processos cognitivos e metacognitivos implicados na escrita.
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Para nosso entendimento, classificamos as estratégias de escrita


autorreguladas em genéricas e específicas: as genéricas focam na autorregulação da
aprendizagem do aluno, durante o processo de produção escrita, independente do
gênero e as específicas variam de acordo com o gênero textual e trazem
especificidades que não se adequam a todos os gêneros

Programas de Autorregulação da Escrita

Por meio de uma busca intencional, primeiramente estudamos três programas


mais referidos na literatura, sobre intervenção em escrita autorregulada: Cognitive
Strategies Instruction in Writing e Strategy Instruction Model e Self-regulated
Strategies Development.
O Programa Strategy Instruction Model (SIM) foi criado por Deshler e
Schumaker em 1988, e depois desenvolvido por pesquisadores da Universidade de
Kansas. O foco são alunos de Ensino Médio com dificuldades em aprendizagem.
Apresenta estratégias de aprendizagem em seis áreas: leitura, processamento e
memorização de informações, expressão de informações, demonstração de
competências, interação social e matemática (BREMER; CLAPPER; DESHLER, 2002;
REBELO ET AL., 2013).
Trata-se de um programa estruturado com estratégias específicas e validado
por pesquisas acadêmicas: a) Na estratégia SIM de identificar palavras, os alunos
aprendem a escolher as palavras mais adequadas à frase; b) Na estratégia SIM de
escrita e compreensão, os alunos aprendem a reconhecer e usar 15 padrões com 4
tipos de sentenças: simples, complexas, compostas e complexas-compostas; c) Na
estratégia SIM de parafrasear, os alunos aprendem a identificar a informação mais
importante da passagem textual e a formularem frases com suas próprias palavras; e
d) Na estratégia SIM de escrever parágrafos, alunos aprendem estratégias para
organizar ideias, planejar o ponto de vista, planejar a sequência do parágrafo
(BREMER; CLAPPER; DESHLER, 2002).
O Programa Cognitive Strategies Instruction in Writing (CSIW) é um programa
para ajudar alunos do Ensino Fundamental com dificuldades em aprendizagem a
produzirem textos informativos com melhor qualidade. Trata-se de um programa
estruturado com estratégias específicas e validado por pesquisas acadêmicas. É dado
ênfase ao diálogo entre professor e alunos sobre as estratégias de escrita
autorregulação e estrutura textual (REBELO ET AL., 2013).

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Escolhemos o Programa Self-regulated Strategies Development (SRSD) –


Programa de Autorregulação da Escrita -, para uma descrição um pouco mais
detalhada nesse artigo, por ter sido esse programa objeto de mais de cem pesquisas
acadêmicas, em diversos países, em várias décadas, além de poder ser usado com
alunos de qualquer idade. Consideramos o fato desse programa abranger todos os
gêneros narrativos. O CSIW tem foco em textos informativos e o SIM em alunos do
Ensino Médio. Os três programas foram criados para alunos com deficiência em
aprendizagem. Sem embargo, os três programas apresentaram melhoria na produção
textual de alunos com e sem dificuldades de aprendizagem.
O SRSD foi inicialmente desenvolvido nos anos 80 por Harris, como um
programa de escrita para crianças com dificuldades de aprendizagem. Este programa
se mostrou eficiente e ― pode ajudar todos: professores e alunos, com ou sem
dificuldades em aprendizagem‖ (HARRIS; GRAHAM, 2016, p. 1).
Durante aproximadamente 25 anos, Harris, Graham, Manson e Friedlander
aperfeiçoaram o programa de escrita baseado em evidência empírica, que foi
publicado oficialmente em 2008, no livro Powerfull Writing Strategies for all Students,
tendo em 2014 a sexta edição. Esse programa integra várias linhas e teorias de
investigação, como as do comportamento e do processamento da informação, as
construtivistas e socioculturais, e aplica resultados de investigações nas áreas de
motivação, autorregulação, práticas emergentes no ensino da escrita e características
dos alunos com dificuldades de aprendizagem (GRAHAM; HARRIS, 2008).
Harris e Graham (2016) informam que, atualmente, somam-se mais de 100
estudos com SRSD, do segundo ano da Educação Fundamental até o terceiro ano do
Ensino Médio, comprovando a eficácia do programa que já foi aplicado com sucesso
em áreas de leitura, escrita e matemática, embora seu maior destaque seja na escrita
(RABELO ET AL., 2013). Segundo Harris e Graham, ―a maioria dos alunos nos
Estados Unidos da América não são escritores capazes, demonstram dificuldades com
narrativas, textos informativos e artigos de opinião‖. Eles afirmam que o processo de
produção textual é muito complexo e desafiante tanto para alunos quanto para os
professores, e complementam que ―o SRSD para a escrita oferece benefícios na
instrução da escrita, comprovadamente por pesquisas acadêmicas‖. (HARRIS;
GRAHAM, 2016, p. 1)
A comprovação da eficiência da SRSD se deu em uma sólida base de
pesquisas com origens em diferentes teorias e linhas de pesquisa, não se limitando a
uma única perspectiva de pesquisa ou linha teórica. As teorias individuais de escrita,

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aprendizagem, e ensino simplesmente não dão conta da natureza complexa da


aprendizagem da escrita e da diversidade dos alunos (HARRIS, GRAHAM, 2016).
Os autores consideram que que ―múltiplos elementos do programa SRSD
ajudam professores deliberadamente e repetidamente a dar suporte ao
desenvolvimento dos alunos de autorregulação, motivação, atitudes positivas em
relação à escrita, e crenças de que eles são capazes de escrever‖ (HARRIS;
GRAHAM, 2016, p. 4). Além disso, Harris et al. (2008/2014) afirmam que ―apesar de
as crianças normalmente começarem a vida escolar com uma atitude positiva em
relação à escrita, essa atitude frequentemente torna-se mais e mais negativa durante
os anos da Ensino Fundamental‖ (HARRIS ET AL., 2014, p 3).
O Programa ―SRSD não foi criado apenas para tratar das dificuldades dos
alunos com o processo de escrita, mas também foi dirigido para suas atitudes e
crenças sobre escrita, motivação e autoeficácia‖ (HARRIS ET AL., 2014, p.4). Nesse
sentido, a preocupação dos autores foi abrangente e multifocada.
Esse programa combina estrutura e instruções explícitas com procedimentos
de autorregulação tais como: estabelecimento de metas, autoinstrução,
automonitoramento e autorreforçamento. Em sala de aula, o programa tem sido
aplicado com sucesso com classes inteiras, grupos pequenos, alunos individuais e em
contexto de tutoria, segundo os autores.
O professor trabalha três dimensões da escrita (HARRIS ET AL., 2014):
1. Estratégias para gêneros específicos de escrita, pois a escrita de uma
narrativa tem características diferentes da escrita de um texto
informativo, por exemplo.
2. Estratégias gerais, como, por exemplo, uma boa escolha de
vocabulário, o uso de aberturas de texto interessantes, etc.
3. Estratégias de autorregulação, como definição de objetivo,
automonitoramento, autorreforço e autoinstruções.
As estratégias autorregulatórias ―ajudam os alunos a controlar as estratégias
de escrita e tarefas e obter evidência concreta e visível do seu progresso. Os alunos
aprendem a usar essas estratégias de escrita e autorregulação dentro do processo de
escrita‖ (HARRIS ET AL., 2014, p. 5).
O SRSD envolve ativação, gerenciamento e manutenção da cognição,
comportamento e afetos, em um programa que auxilia alunos a atingirem suas metas
de escritas. Harris e Santangelo (2013) traz as principais características desse
programa são:

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1. Seus estudantes são providos de sistemática e explícita instrução,


com o objetivo de contribuir com os múltiplos domínios de
desenvolvimento da competência da escrita abrangendo estratégias
para tipos específicos de escrita; estratégias universais da escrita;
procedimentos de autorregulação que ajuda a administrar o processo
de escrita e o uso das estratégias; e conhecimentos procedimentais.
2. Busca atender ao domínio cognitivo, afetivo e comportamental. Os
professores que utilizam o SRSD ajudam os estudantes a desenvolver
habilidades de autorregulação, motivação, atitudes positivas
direcionadas para a escrita e crenças neles mesmos como escritores
capazes.
3. O atendimento é individualizado, levando em consideração as
necessidades e esforços de cada sujeito no intuito de otimizar o
desenvolvimento da escrita de cada um.
4. Os estudantes têm a oportunidade de revisitar as fases quando for
necessário. O SRSD finda quando os estudantes conseguem, de
forma independente, aplicar e administrar as estratégias e os
procedimentos de autorregulação almejados.
5. O uso de múltiplos procedimentos que promovem um longo período
de manutenção (o desejo e a habilidade de continuar usando as
estratégias quando a instrução acaba) e a generalização (capacidade
de usar as estratégias efetivamente em outras situações)
Os objetivos do SRSD são, de acordo com Harris, Santangelo e Graham
(2008), os seguintes:
a. Ensinar, de forma explícita e metódica, estratégias de escrita de textos
bem planificados, redigidos e revistos, de acordo com o seu gênero
textual;
b. Promover e desenvolver, explicitamente, a utilização de determinadas
estratégias de autorregulação (estabelecendo objetivos e ensinando a
automonitorização, a autoinstrução e o autorreforço);
c. Promover o desenvolvimento de atitudes e a adoção de convicções
positivas acerca da escrita e de quem escreve.

Os procedimentos para promover manutenção e generalização do


desempenho estratégico estão integrados durante as fases de instrução do programa
SRSD, e incluem (HARRIS ET AL., 2014):
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• Identificar oportunidades de usar as estratégias de escrita e/ou


autorregulação em outras disciplinas ou contextos
• Discutir tentativas de usar estratégias em outras situações
• Relembrar os alunos de usar as estratégias em momentos apropriados
• Analisar como esses procedimentos podem ser modificados em outras
tarefas e situações
• Avaliar o sucesso desses procedimentos durante e depois das
orientações

São seis as fases do SRSD (HARRIS ET AL., 2014) nas quais os professores
conduzem seus alunos com o objetivo de desenvolver as capacidades
autorregulatórias, bem como os conteúdos específicos almejados: ativação de
conhecimento prévio, discussão, modelação, memorização, suporte e desempenho
independente ‒ sendo que as fases dialogam entre si, podendo acontecer mais de
uma simultaneamente, aparecerem dispostas em ordens diferentes, ou ainda,
repetirem algumas fases quando for necessário.
Desenvolvimento e ativação de conhecimento prévio: é quando os alunos
adquirem conhecimentos necessários, vocabulário, e ativam os conhecimentos
preexistentes. Leituras de textos do gênero os auxiliam a planejar. Assim como
tarefas que lhes possibilitem identificar o próprio desempenho e a relação com
autorrelatos positivo e negativo são características dessa fase. Alguns alunos podem
precisar continuar nessa fase simultaneamente à segunda e terceira fases.
Na fase de Discussão, professores e alunos conversam sobre o que
escritores fazem para planejar, compor ou revisar. Nessa fase, alunos e professores
discutem a estratégia a ser utilizada, estabelecem os objetivos e exploram como e
quando a estratégia pode ser utilizada, ampliando o panorama das possíveis
utilizações das estratégias-generalização. Cabe pontuar que os estudantes são
ensinados a selecionar os objetivos de modo individual e específico para: a) aprender
a estratégia; b) usá-la e c) mantê-la em uso.
Na Modelação o professor é o modelo e, em voz alta, demonstra como e
quando usar as estratégias de autorregulação ao longo do processo de escrita. Ele
demonstra como definir metas específicas para a tarefa de escrita, monitorar o
desempenho e o autorreforço. Alguns estudantes podem, muitas vezes, precisar ter
uma estratégia-modelo; além disso, modelos colaborativos e uso de pares como
modelos podem ser usados quando apropriado.
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A Memorização, quando os professores precisam estar certos de que os


alunos memorizaram e compreenderam sua importância antes de passar para a
próxima fase. A memorização é uma fase que inicia junto à primeira fase.
No Apoio ou Suporte, professores oferecem o apoio de acordo com as
necessidades de cada aluno, fortalecendo o uso das estratégias autorregulatórias, até
que os alunos tenham domínio, independência e uso efetivo da estratégia. Nessa fase,
os alunos e professores continuam a planejar para iniciar a generalização e
manutenção das estratégias. É considerada a fase mais longa das seis, para os
alunos que têm significativa dificuldade de escrita.
No Desempenho autônomo, os alunos, após terem recebido o apoio
necessário, demonstram independência, podendo ser promovidas oportunidades para
desempenharem as atividades de forma independente. Sessões de reforço nas quais
as estratégias são revisadas, discutidas e apoiadas novamente podem ser usadas
quando necessário, para que a estratégia seja interiorizada. Estas seis fases podem
ser organizadas, adaptadas e/ou combinadas de acordo com as necessidades de
cada grupo (HARRIS; GRAHAM; 2016).
Uma ferramenta importante do Programa SRSD é o uso de mnemônicas. Por
tratar-se de um programa estruturado, o uso das mnemônicas apresentadas em
inglês, podem comprometer o entendimento dos alunos de outros idiomas, motivo pelo
qual fizemos algumas adaptações livres para a apresentação delas nesse texto.
Uma estratégia muito referida na literatura é a POW. Essa estratégia pode ser
combinada com outras estratégias específicas do gênero textual a ser produzido:

 PICK MY IDEA
 ORGANIZE MY NOTES
 WRITE AND SAY MORE

O artigo de opinião ou texto de persuasão, e para tal POW + TREE. Segundo


Harris e Graham (2007, p. 74), o uso dessas estratégias ―ajuda alunos ao lhes ensinar
desenvolver suas opiniões e pensamentos por meio de componentes controláveis,
antes e durante o processo de escrita‖.
Os três passos da escrita na estratégia POW são seguidos. Primeiro o aluno
decide de qual lado sua opinião está. No segundo passo, os alunos desenvolvem um
plano e depois organizam as anotações. No terceiro, eles procuram aprofundar o
texto. TREE é uma estratégia eficiente para artigos de opinião e para organizar as
anotações. As adaptações dos mnemônicos para a língua portuguesa são livres.
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Harris e Graham apresentam dois modelos da estratégia TREE, um com oito


partes e outro com 5 partes. Ambos foram validados por pesquisas acadêmicas por
melhorarem a qualidade, extensão e inclusão de elementos na produção desse gênero
textual. (GRAHAM; HARRIS, 2007, p. 74). Abaixo apresentamos o modelo de 8 partes:

 TOPIC SENTENCE: WHAT DO I BELIEVE – 1 parte


 REASON: WHY DO I BELIEVE? WRITE THREE OR MORE REASONS – 3
partes
 EXPLAIN YOUR REASONS: PROVIDE AN EXPLANATION FOR EACH
REASON – 3 partes
 ENDING: WRAP IT UP – 1 parte
Mantivemos em inglês para vinculação com a palavra proposta originalmente
―tree‖. O programa detalha como trabalhar cada parte do modelo, o que pode ser
consultado nos artigos e livros publicados pelos autores que desenvolveram o
programa.

Considerações Finais

Ler e escrever são atividades que se aprendem ao longo da vida, de forma


gradual, e apresentam diferentes fases de desenvolvimento. Certamente, são
essenciais na vida das pessoas e de suma importância na vida escolar. A capacidade
de formular, de forma clara e atraente, textos escritos que transmitam informações,
opiniões e emoções, é uma qualidade desejável para todos. A autorregulação da
aprendizagem e, especificamente, da escrita, surge como possível caminho para
atingir esse importante objetivo.
Nesse artigo, apresentamos uma breve descrição teórica da autorregulação
da aprendizagem e, especificamente, da autorregulação da escrita. Sobre a escrita
autorregulada, apontamos alguns programas que foram validados cientificamente em
outros países, e detalhamos uma pequena parcela do programa SRSD, o qual tem
repetidamente comprovado sua eficácia quando aplicado em turmas com e sem
dificuldades de aprendizagem.
A teoria sociocognitiva propõe uma teoria psicológica que explica o
comportamento humano, e oferece uma base teórica sólida para sustentar a
autorregulação da aprendizagem, ampliando a compreensão dos processos
envolvidos na escrita, e as múltiplas dimensões a serem consideradas para que o
sucesso no desempenho dessa tarefa possa ser alcançado.

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Infantil e Juvenil do CELLIJ

RICARDO AZEVEDO E O DESPERTAR DOS PEQUENOS


ESCRITORES: UMA SEQUÊNCIA DIDÁTICA PARA O LER E O
ESCREVER TEXTOS LITERÁRIOS

Fabiana Goes da Silva Agostinho, UNESP, eixo 1: Experiências na educação


básica com a escrita do texto literário.

Considerações Iniciais

Percebendo a preferência das crianças pela leitura dos livros de Ricardo


Azevedo, por utilizar uma linguagem que se aproxima deles, seu público leitor,
adotamos o livro ―Contos de enganar a morte‖ como base do trabalho com a produção
de texto.
A metodologia adotada foi a Sequência Didática (Dolz, Schneuwly, 2004), que
tem como foco os gêneros textuais, com a finalidade de atingir a função social da
linguagem, numa visão sociointeracionista. Teve como objetivos possibilitar o acesso à
leitura de textos literários; apresentar o gênero textual conto de assombração; criar
condições para que as crianças pudessem produzir seus próprios textos inspirados na
temática do livro trabalhado; utilizar o computador e as ferramentas de texto para a
escrita de seus textos; mostrar a importância de suas produções disponibilizando-as
para acesso de toda a escola, por meio de um mural.
Foi possível perceber que, ao reconhecer-se sujeito autor, o aluno produz
textos com maior autonomia e comprometimento.

Buscando novos caminhos

Um dos grandes desafios enfrentados no ensino de Língua Portuguesa está


relacionado à produção textual. Percebemos uma grande frustração tanto por parte
dos professores, que não estão satisfeitos com as produções escritas dos alunos,
como por parte dos alunos que não se sentem comprometidos com as propostas de

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produção apresentadas pelos professores. A revisão dessas práticas de produção de


textos no ambiente escolar, torna-se essencial.
Autores como Geraldi (2006), Antunes (2003), Koch (2006, 2009) indicam a
necessidade de apresentar propostas de produção de texto que tenham propósitos e
objetivos definidos, o que chamamos de condições de produção (o que, para quem,
para que, qual a situação de comunicação), para isso há a necessidade de um
trabalho que possibilite o uso de textos específicos à cada situação de comunicação,
ou seja, um trabalho sistematizado que utilize os gêneros textuais.
No entanto, esse trabalho com gêneros textuais tem tomado caminhos
diferentes dos previstos. Segundo o PCNLP- Parâmetros Curriculares Nacionais de
Língua Portuguesa (BRASIL, 2001, p.26), todo texto se organiza dentro de um
determinado gênero, que por sua vez, constitui enunciados caracterizados por três
elementos: conteúdo temático, estilo e construção composicional. O que temos visto
nas salas de aula, é uma preocupação excessiva com a estrutura dos gêneros
textuais, quando o objetivo principal deveria ser o de possibilitar condições de uso em
situações reais. Afinal, ―um escritor competente é alguém que planeja o discurso e
consequentemente o texto em função do seu objetivo e do leitor a que se destina, sem
desconsiderar as características específicas do gênero (BRASIL, 2001, p.65)
Segundo Bakhtin, (2015, p. 282)
A vontade discursiva do falante se realiza antes de tudo na escolha
de um certo gênero de discurso. Essa escolha é determinada pela
especificidade de um dado campo da comunicação discursiva, por
considerações semântico-objetais (temáticas), pela situação concreta
da comunicação discursiva, pela composição pessoal dos seus
participantes.

As propostas de produção textual têm prezado mais em reproduzir modelos


da estrutura dos gêneros desenvolvidos, do que em proporcionar possibilidades reais,
ou o mais próximo da realidade possível, ou ainda mais, para além dos muros da
escola.
Na visão sociointeracionista, os alunos devem ser capazes de interagir em
práticas sociais. Como afirma Bakhtin (2006, p.285)
Quanto melhor dominamos os gêneros tanto mais livremente os
empregamos, tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a
nossa individualidade (onde isso é possível e necessário), refletimos
de modo mais flexível e sutil a situação singular da comunicação; em
suma, realizamos de modo mais acabado o nosso livre projeto de
discurso.

O objetivo, ao se desenvolver uma proposta de trabalho com gêneros textuais,


é o de, segundo o PCNLP (BRASIL, 2001) possibilitar aos alunos práticas sociais de

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leitura e de escrita, com enfoque na função social de cada gênero para o


desenvolvimento da competência classificada por Koch e Elias (2010) como
metagenérica, que orienta a leitura e a compreensão de textos e a produção escrita,
possibilita a escolha adequada do gênero a ser produzido, assim como a identificação
das práticas sociais e do predomínio das sequencias (narrativa, descritiva, expositiva,
argumentativa).
Koch e Elias (2010, p.62), asseveram que:
O ensino dos gêneros seria, pois, uma forma de dar poder de atuação
aos educadores e, por decorrência, aos seus educandos. Isso porque
a maestria textual requer- muito mais que os outros tipos de maestria-
a intervenção ativa de formadores e o desenvolvimento de uma
didática específica

Sendo assim, recorremos à proposta de Dolz, Noverraz e Schnewly (2004),


que nos apresentam a Sequência didática. Um trabalho sistematizado, que tem como
foco um gênero textual a ser apropriado pelos alunos. Os autores nos apresentam um
esquema para esse trabalho, que denominam Sequência Didática:

Figura1- Esquema de uma Sequência Didática

Fonte: Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p.98)

A partir dessa figura, compreendamos melhor essa proposta.


A apresentação é a descrição da situação de interação que será efetivada por
meio de determinado gênero, pode ser apresentada como uma situação problema em
que os alunos determinarão como resolver e consequentemente definir o gênero a ser
utilizado, ou ainda o professor pode já definir esse gênero previamente.
A produção inicial dos alunos é a primeira versão do texto considerando a
proposta de interação, serve como um diagnóstico, para observar o que os alunos já
dominam sobre o gênero textual a ser trabalhado e o que ainda não compreendem. A
partir das dificuldades diagnosticadas elabora-se os módulos de atividades.
Os módulos devem atender a essas dificuldades diagnosticadas. É
necessário que haja a preocupação em defini-los de forma que contemplem atividades
destinadas a análise linguística, além das destinadas ao desenvolvimento da estrutura.

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É importante também que essas dificuldades atendam as especificidades do gênero


escolhido, para que não seja sempre um trabalho genérico. Por exemplo, ao se tratar
do gênero textual receita, possivelmente os alunos poderão indicar problemas no uso
do verbo no imperativo, ou na adequação da estrutura que se divide em três partes-
título, ingredientes e modo de preparo. Vejam que são dificuldades específicas desse
gênero. As atividades desenvolvidas nesses módulos devem possibilitar estratégias
para adequação das produções iniciais. Dessa forma, esse processo destina um
tempo para o trabalho com a correção e reescrita das produções.
No momento da produção final, que pode ser a reescrita da produção inicial,
ou pode ser um novo texto, observa-se se os alunos conseguiram atender aos critérios
do gênero estabelecido. Neste caso, admite-se que a proposta de produção textual
seja parcialmente fictícia.
A sequência didática que será introduzida foi realizada seguindo esse
modelo.
Dolz, Noverraz e Schnewly (2004) indicam uma nova ordem de agrupamento
dos gêneros, conforme os domínios sociais de comunicação e as capacidades de
linguagem dominantes. São as ordens do narrar, relatar, argumentar, expor e
descrever ações. Sendo assim, o gênero escolhido para a sequência didática que será
apresentada é da ordem do narrar, os contos de assombração.

Objetivos da sequência didática:

Os objetivos estabelecidos para a proposta desenvolvida visavam possibilitar


aos alunos o acesso à leitura de textos literários; apresentar o gênero textual conto de
assombração; criar condições para que as crianças pudessem produzir seus próprios
textos inspirados na temática do livro trabalhado; utilizar o computador e as
ferramentas de texto para a escrita de seus textos; mostrar a importância de suas
produções disponibilizando-as para acesso de toda a escola, por meio de um mural,
localizado no pátio da escola.

Os sujeitos

A Sequência didática foi desenvolvida em um quarto ano do ensino


fundamental de uma escola municipal de Presidente Prudente, no ano de 2015. O
grupo contava com 28 alunos, entre 9 e 10 anos de idade, do período da manhã. O
trabalho aconteceu em parceria com uma professora da escola, que estava com a
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outra turma de quarto ano, contando com mais 28 alunos. O mural final contou com as
produções das duas turmas.

O autor referência: Ricardo Azevedo

Dizem que as ações são mais eficazes que as palavras, quando nos referimos
aos exemplos que propagamos. Acredito que um trabalho que valorize a leitura de
bons livros e que apresente bons autores às crianças pode fazer muita diferença.
Temos percebido esse impacto nas contribuições orais das crianças durante as
leituras e atividades, assim como nos momentos de produções de textos, por meio das
relações que fazem. O repertório de textos proporcionado por meio das leituras diárias
é um meio de ampliar os conhecimentos dos alunos e de desenvolver sua
autoconfiança, já que se sentem mais seguros em deixar sua criatividade fluir.
Ricardo Azevedo é um dos autores preferidos por eles, pois utiliza uma
linguagem simples e acessível, no entanto instigante. A leitura de seus livros é sempre
muito bem recebida pelas crianças. A seguir uma pequena biografia do autor, retirada
de seu site oficial.
Ricardo Azevedo, escritor e ilustrador paulista nascido em 1949, é
autor de muitos livros para crianças e jovens [...]. Ganhou várias
vezes o prêmio Jabuti com os livros Alguma coisa (FTD), Maria
Gomes (Scipione), Dezenove poemas desengonçados (Ática), A
outra enciclopédia canina (Companhia das Letrinhas), Fragosas
brenhas do mataréu (Ática), entre outros prêmios como o APCA.
Tem livros publicados na Alemanha, Portugal, México, França e
Holanda e textos em coletâneas publicados na Costa Rica.
Bacharel em Comunicação Visual pela Faculdade de Artes Plásticas
da Fundação Armando Álvares Penteado e doutor em Letras pela
Universidade de São Paulo. Autor da tese Abençoado e danado do
samba – Um estudo sobre o discurso popular (publicada pela Edusp
e prêmio Jabuti Teoria e Crítica Literária em 2014 ). Pesquisador na
área de cultura popular. Professor convidado em cursos de
especialização em Arte-Educação e Literatura. Tem dado palestras e
escrito artigos, publicados em livros e revistas, abordando problemas
do uso da literatura de ficção na escola.
(disponível em http://www.ricardoazevedo.com.br)

Uma importante característica desse autor é a valorização da cultura popular,


assumindo uma linguagem menos formal, portanto mais próxima das crianças que
conseguem compreender com facilidade seus textos e ficam curiosos em conhecer as
expressões ou palavras que desconhecem. Essa característica proporciona uma
proximidade com os alunos e desperta neles uma certa ―segurança‖, começam a
acreditar que podem escrever, que não precisam de um repertório de palavras
rebuscadas para isso. Dessa forma, passam a fazer mais tentativas e têm menos
medo de deixar a imaginação aflorar.

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A Sequência Didática

A fase inicial pressupõe uma necessidade para a escrita. Neste caso,


conversamos sobre os contos que conheciam e que costumavam ouvir na escola e em
casa, os contos de fada. Foram feitos questionamentos para que pudessem dizer se já
tinham ouvido outros tipos de contos, se em todos eles havia príncipes e princesas, o
que apresentavam de diferente e em que eram semelhantes, se as leituras que
fazíamos em sala, como as do autor Ricardo Azevedo, eram contos também.
A leitura realizada diariamente contribuiu para que pudessem identificar esse
gênero textual. Partimos para o conto de assombração.
A proposta lançada foi a de escrevermos contos de assombração para
montarmos um mural na escola. Dessa forma, as crianças das outras turmas teriam
oportunidade de conhecer outros contos, além dos já conhecidos contos de fada.
Na produção inicial, em duplas, apresentaram algumas dificuldades na
construção do texto, pois tinham pouco contato com o gênero escolhido, apesar de já
terem ouvidos muitos contos.
Elegi algumas dessas dificuldades para elaborar os módulos. Mas antes,
precisavam de repertório. Iniciamos a leitura diária do livro ―Contos de enganar a
morte‖, de Ricardo Azevedo. Neste livro, apesar de serem contos de assombração, há
uma pitada de humor e ironia, o que torna o processo um tanto complexo, mas muito
bem aceito pelas crianças.
Também lemos o livro ―Sete histórias para sacudir o esqueleto 13‖, de Ângela
Lago e outros contos apresentados no material didático ―Ler e escrever14‖, do quarto
ano do ensino fundamental. Conforme fazíamos as leituras, identificávamos os pontos
em comum, como a estrutura do texto, o tempo verbal, a temática, a utilização da
descrição, muitas vezes minuciosa, dos personagens e lugares.
Após essa contextualização, passamos ao trabalho com os módulos,
organizados com a intenção de suprir as dificuldades encontradas em relação à
estrutura do gênero, à escolha do foco narrativo e aos conectores temporais. Foram
realizados conforme descrição a seguir:
 Módulo 1- Estrutura do gênero
Por meio da leitura de textos desse gênero, partimos para a observação de
sua construção. As crianças indicaram que os textos os faziam lembrar as novelas, por

13
LAGO, Ângela. Sete histórias para balançar o esqueleto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002
14
Material didático do Programa Ler e Escrever destinado aos professores e alunos. Neste caso, aos
alunos do quarto ano do ensino fundamental.
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causa da evolução da narrativa, especialmente ao se tratar do clímax, que


relacionaram ao momento em que se encerra o capítulo da novela, deixando os
telespectadores curiosos para descobrir o que acontecerá em seguida.
Utilizando textos mostravam em quais momentos percebiam as mudanças e o
―crescimento do texto‖. Destacamos a estrutura de um conto, identificando: situação
inicial, complicação, clímax, desfecho. Trabalhamos com contos indicando esses
momentos da estrutura, por meio de grifos, esquemas destacando as partes do texto,
resumos apontando os acontecimentos em cada item da estrutura apresentada.
 Módulo 2- Foco narrativo
Deste mesmo processo de leitura de contos, mudamos o foco da atividade
para a observação do tipo de narrador utilizado nos textos trabalhados. A intenção era
que percebessem que o mesmo narrador se mantinha por todo o texto.
Os alunos conheciam os tipos de narrador: observador e personagem.
Precisavam perceber que, ao escolher contar a história como narrador observador,
isso deve se manter por toda a construção do texto.
 Módulo 3- Conectores temporais
Neste módulo, utilizamos atividades que levavam as crianças a perceberem o
uso da coesão por meio dos conectores temporais, que possibilitam a evolução da
narrativa. Para isso, por meio de grifos, durante a leitura dos textos trabalhados,
indicamos possibilidades de conectores.
Retomamos também os textos produzidos por eles, inicialmente, para que
identificassem a utilização desses recursos por eles mesmos.
 Produção final
A comanda indicava o trabalho em duplas. A inspiração para a escrita foi o
livro lido no início da sequência didática: Contos de enganar a morte, de Ricardo
Azevedo.
Deveriam escrever seus próprios contos, nos quais apresentariam um
personagem que buscava encontrar uma saída para enganar a morte.
Após a primeira escrita, as duplas trocavam de produções, para que
pudessem ler o texto da outra dupla, dessa forma, faziam apontamentos indicando as
dificuldades encontradas durante a leitura do texto e o que acreditavam que poderia
facilitar a leitura. Para isso, destacavam alguns aspectos do texto e depois
conversavam entre as duplas, trocando sugestões de melhoria. Esses momentos
contavam com a supervisão docente.
Depois desse compartilhamento de aprendizado, realizavam a primeira
reescrita de suas produções, fazendo as modificações que achavam significativas e
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que trariam benefícios ao texto. Reliam suas produções, e partíamos para as


intervenções docentes, numa tentativa de indicar quais as possibilidades de melhorar
seus textos, retomando o que haviam aprendido nos módulos desenvolvidos. Após
esses novos apontamentos, uma nova reescrita.
O seguimento de reescrita perdurou por muitas aulas, com espaçamento de
tempo entre elas, para que não ficasse cansativo e para que esse distanciamento do
texto propiciasse um novo olhar ao retornarem ao trabalho e relerem suas produções.
Finalizado o procedimento de reescrita, os alunos redigiram suas produções
finais, utilizando a ferramenta de texto no computador, na sala de informática da
escola. Também fizeram ilustrações para seus textos, que foram digitalizadas e
incluídas no produto final.
Elaboramos um mural, no pátio da escola, de livre acesso às crianças, que
contava com imagens produzidas em E.V.A, baseadas nas ilustrações do livro
inspiração, como uma árvore grande com caveiras. Nele dispusemos as produções
ilustradas. O trabalho chamava a atenção das crianças que passavam diante do mural.
Paravam de correr, no intervalo, para ler os textos, o que deixou os pequenos
escritores muito felizes e envaidecidos.
Todo esse processo apresentado na sequência didática é longo, pois como
afirma Costa Val (2009, p. 139)
[...] o aluno precisa é de atividades sistematizadas e parceladas para
chegar à escrita de um texto mais elaborado, cujo processo lhe
permita aprender mais do que ele já sabia no momento em que
começou determinada tarefa. Isso gastaria algumas aulas, e não
apenas uma.

Uma aprendizagem significativa demanda tempo, trabalho árduo, mas o


resultado é compensador.

Considerações finais

Os alunos envolvidos puderam compreender que suas produções têm


importância, finalidade e podem atingir outros leitores, além do professor. O que
contribuiu para que desconstruíssem a noção de produção de texto como objeto de
avaliação do professor. Além disso, ao verem que suas produções textuais
despertavam o interesse de outros leitores, perceberam-se jovens escritores.
O trabalho possibilitou que estabelecessem conexões entre as leituras, criando
um repertório ao qual podiam recorrer nos momentos de produção de textos. Dessa
forma, estimulando maior interesse no momento da leitura diária.
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É possível afirmar que a visibilidade de seus textos fez com que passassem a
se dedicar mais ao processo de produção escrita, pois consideravam que haveria um
leitor real e uma finalidade comunicativa.
Percebemos que uma sequência didática é uma prática possível em sala de
aula e que gera resultados positivos tanto em relação ao contato com a leitura, quanto
ao processo de produção textual.
Para que o trabalho seja efetivo, faz-se necessária a escolha criteriosa de
bons livros e bons autores, que possam despertar nas crianças a crença em si
mesmas, a autoestima e que mostrem que a escrita de bons textos pode ser para
todos, desde que haja a dedicação necessária, como o proporcionado no
procedimento de reescrita.

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Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

FÁBULAS: POVOANDO O IMAGINÁRIO, INSTIGANDO A


AUTORIA DAS CRIANÇAS*

Maria Luciana Scucato Benato (Universidade Federal do Paraná)


Eixo 1:Experiências na educação básica com a escrita do texto literário
Elisa Maria Dalla-Bona (Universidade Federal do Paraná)
Eixo 1:Experiências na educação básica com a escrita do texto literário

Considerações Iniciais

Este texto relata parte de uma pesquisa de mestrado realizada no ano de 2015,
cujo recorte apresentado (12 horas de observação em campo) refere-se a uma
sequência didática com fábulas, desenvolvida numa turma do 3º ano do ensino
fundamental, composta de 21 alunos (8 e 9 anos de idade).
Objetivando acompanhar a escrita de fábulas pelos alunos-autores e as
estratégias da professora para a superação dos desafios impostos pela escrita
literária, a pesquisadora optou por um enfoque etnográfico. Para isso, aplicou as
técnicas da observação participante, de entrevistas aos participantes e de análise dos
textos escritos pelos alunos-autores.
A sequência didática observada e os textos produzidos foram analisados em
conformidade à teoria do letramento literário, tendo Rildo Cosson e Teresa Colomer
como principais teóricos; ao conceito de aluno-autor fundado por Catherine Tauveron
e ao estudo do gênero fábulas feito por Nelly Novaes Coelho.
O gênero fábulas por permitir uma convivência natural entre realidade e
imaginário, pela estrutura simples e por ser povoado de animais como personagens,
tem o potencial de provocar um trabalho de fruição estética e o início da formação do
aluno-autor.

Fábulas: o que esse gênero tem a dizer?

A narração, de acordo com Coelho (2011), está ligada à representação de uma


vivência épica, ou seja, centrada na relação do eu com o outro, com o mundo social,
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constituindo o gênero ficção. Para a autora, são três os gêneros literários: ficção,
teatro e poesia, sendo que a ficção se desdobra em formas básicas ou subgêneros: o
conto, a novela e o romance.
Essas formas básicas se diversificam em diferentes categorias, dependendo da
intencionalidade, do tema, da intriga etc. A autora deixa claro que essa é uma
classificação adotada por ela e que não há consenso entre os teóricos a respeito da
classificação dos gêneros literários. Coelho (2011) considera também uma
diversidade de formas narrativas que vêm desde a origem dos tempos, as formas
simples, que são: fábula, apólogo, parábola, alegoria, mito, lenda, saga, conto
maravilhoso, conto de fada, conto exemplar, conto jocoso etc.
Como representante de formas básicas de narrativa, as fábulas se
caracterizam como narrativas concisas em que o espaço geralmente não é
determinante. São compostas por personagens-tipo (geralmente animais) que se
envolvem em situações de sobrevivência, poder ou de casamento; o narrador assume
um papel de neutralidade. É construído um ambiente de convivência natural entre
realidade e imaginário, sendo a exemplaridade apresentada como objetivo evidente.
(COELHO, 2011).
Em princípio, a fábula trabalhada como gênero literário na escola é passível
de polêmica. Por ser marcada historicamente por um caráter moralizante forte e
explícito, a fábula pode entrar em choque com a essência da linguagem literária,
impregnada de pluralidade de sentidos e livre de didatismos. Por outro lado, sabe-se
que nenhuma obra é destituída de ideologias e as mensagens ideológicas podem ser
modificadas a depender da recepção literária por parte do leitor. (COLOMER, 2007).
Esse contraponto também foi pensado pela professora da turma pesquisada
antes de decidir-se por utilizar as fábulas. Em entrevista, ela explicou que antes não
gostava de trabalhar esse gênero textual por causa do tom moralizante. Mas
reconhecendo que gostava de ouvir fábulas na sua infância, foi percebendo que o
efeito estético causado no leitor pode sobressair ao objetivo de orientar
comportamentos.
Sua preocupação com o caráter estético do texto literário está em
consonância com a proposta do letramento literário que, como explica Cosson (2006),
não se limita a um saber sobre literatura ou sobre obras literárias, mas é uma
experiência de dar sentido ao mundo por meio de palavras que falam de palavras,
transcendendo os limites de tempo e espaço.

Atividades que antecederam a produção individual


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Foram muitas atividades feitas antes da produção individual: quebra-cabeças


com ilustrações de fábulas, leitura de fábulas pela professora, observação de cartazes
com animais para a determinação de características de personagens, jogo ―trunfo‖
com informações sobre vários animais, produção de bilhetes de um personagem a
outro, construção de roteiro e escrita coletiva de fábula.
Iniciando pela leitura e passando pelos comentários necessários para o
planejamento do texto e pela produção da fábula coletiva, houve oportunidade aos
alunos de se familiarizarem com a metalinguagem referente às narrativas. Prova disso
eram as participações dos alunos diferenciando voz do narrador, voz do personagem,
sugerindo diálogo. Ensinar a falar, a argumentar, a usar a metalinguagem é básico no
ensino de literatura para que o leitor tenha condições de aprender a emitir sua opinião,
formular sua própria análise literária com mais consistência e estabelecer conexões
entre as tarefas de ler e escrever. (COLOMER, 2007).
Antes do momento de produção individual, a professora lançou a proposta de
escrita com intenção literária, mas sob a forma de bilhete, seria um personagem
escrevendo a outro. O gênero bilhete já era de domínio dos alunos.
Analisando o processo de produção dos bilhetes e os textos produzidos pelos
alunos-autores, é possível afirmar que houve uma compreensão sobre a função e a
estrutura desse gênero textual. O aluno foi encorajado a assumir uma posição diante
de um dilema e a criar um argumento. Como exemplo, segue o bilhete escrito pela
aluna YU (em toda a pesquisa, as iniciais do nome foram utilizadas como forma de
preservar a identidade das crianças participantes).

FIGURA 1 – BILHETE

FONTE: Caderno de YU.


Nesse bilhete há a informação clara da coruja: ―não coma meus filhotes‖ e os
argumentos: ―eles são os mais bonitinhos‖; ―se comer, chamo meu marido‖.

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A construção das fábulas

Observando cartazes com gravuras de animais, os alunos comentavam


aspectos relevantes de cada animal, como: hábitos, características físicas, hábitat etc.,
depois a professora pediu que contemplassem aqueles animais não com o olhar
científico, mas com o olhar da imaginação e, inspirados nas figuras, pensassem em
características que pessoas podem ter também. Deu exemplos: astuto, rápido,
trabalhador, bondoso, criativo. A professora lançou o desafio à turma: ―Alguém de
vocês já consegue transformar um desses animais em personagem?‖. Uma aluna
citou o panda e atribui-lhe o adjetivo: comilão. Então a professora pediu que
escolhesse, dentre as figuras mostradas, um personagem que pudesse ser o contrário
de comilão. ―Zangão‖ foi o animal escolhido.
Interessante como se formava um silêncio de suspense quando o aluno
estava para escolher o animal que faria oposição ao primeiro, que já havia sido
estabelecido. Quando o aluno não conseguia verbalizar a característica oposta, os
colegas davam sugestões. Estava formado realmente um clima de participação numa
atividade oral que exigia raciocínio e ofertava prazer em criar e verbalizar para a turma
a conexão feita.
Em seguida, registraram no caderno os pares de animais escolhidos e suas
características. A professora solicitou ideias para a construção de um problema para a
fábula do panda (comilão) e do zangão (sem fome). Foram sugeridas questões que
não estavam relacionadas aos atributos dos dois animais. Após a intervenção da
professora, surgiu a contribuição: ―O panda está comendo todo o bambuzal‖, que foi
aceita pela turma e pela professora. Seguiu-se processo semelhante para ―hiena e
aranha‖, sendo o escolhido o conflito: ―A aranha quer dormir, mas a hiena fica rindo
com as suas amigas‖. Essas duas possibilidades foram registradas no caderno como
um roteiro para a construção da fábula coletiva:

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FIGURA 2 – ROTEIROS PARA PRODUÇÃO DAS FÁBULAS

Fonte: Caderno de YU

Na aula seguinte, os alunos escolheram partir da segunda ideia para a


produção coletiva de uma fábula. Então, já haviam feito um esquema, um
planejamento para o texto. Nesse momento, a função da professora como mediadora
de escolhas, instigadora de ideias mais envolventes e incentivadora à participação de
todos foi decisiva. A seguir, está transcrito o texto coletivo; as indicações numéricas
referem-se às principais interferências:

As hienas, a aranha e o cafuné


Em uma bela tarde (1), a aranha se preparava para dormir (2), mas a
hiena não parava de rir das caretas das amigas dela (3).
- Há, há, há – as hienas riam.(4)
- Fiquem quietas!!! (5) – disse a aranha irritada. (6)
- E se a gente não quiser? – a hiena continuou rindo mais alto
ainda.(7)
-Vocês vão dormir com o meu cafuné! – a aranha respondeu com
uma risadinha.(8)
- Há! Há! Há! Meu plano deu certo! Agora posso dormir em paz!
E a aranha dormiu tanto que até roncou.(9)
(texto elaborado pelo 3º ano A).

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A turma participou ativamente, com destaque para algumas das contribuições


incorporadas à redação final da fábula coletiva:

(1) A ideia inicial foi ―Em uma bela manhã‖, mas a palavra ―manhã‖ foi substituída por
―tarde‖ porque lembraram que o problema na história seria que a aranha queria dormir
e a hiena não deixava. Foi uma aluna que sugeriu a mudança.
(2) Ideia de uma aluna.
(3) A ideia da perturbação que a hiena causava para a aranha foi construída por meio
de três participações diferentes dos alunos: barulho, causa: risada da hiena, motivada
pela careta das amigas da hiena.
(4) O diálogo só foi feito depois que um aluno perguntou se era o narrador que estava
explicando tudo isso. Foi então que a professora disse que em toda fábula é
importante existir diálogo.
(5) Essa frase foi a ideia de um aluno, que parecia estar absorvido pelo fato de as
risadas atrapalharem o sono da aranha. A professora achou ótimo e perguntou se
podia colocar ponto de exclamação, já que a aranha estava irritadíssima. A professora
ainda sugeriu três pontos de exclamação.
(6) Para fazer a voz do narrador ao explicar a intervenção da aranha nesse trecho, a
professora leu alguns exemplos das fábulas já lidas. ―Disse‖ foi ideia de um aluno. A
professora completou que poderia ser ―gritou‖ ou ―disse irritada‖.
(7) Participação de dois alunos ―E se a gente não quiser‖; ―continuou rindo mais alto
ainda‖.
(8) Uma aluna disse que havia a necessidade de a aranha responder alguma coisa. A
professora disse que a resposta da aranha poderia ser amigável e perguntou se os
alunos concordavam. Eles responderam afirmativamente. Escolheram a melhor
resposta dentre várias que surgiram.
(9) Chegando o momento de finalização, a sugestão que surgiu prontamente foi ―E
viveram felizes para sempre‖. A professora interrogou a turma se aquele final seria
próprio de uma fábula. Não, foi a resposta. Outra ideia dada: ―E a aranha conseguiu o
que queria‖. A professora pediu outras contribuições, uma frase que remetesse ao
sono da aranha. Até que aflorou o final aceito pela professora e alunos.
Para a produção individual das fábulas, os alunos-autores partiram da
objetividade e concisão características deste gênero, iniciando direto com o motivo da
história e os acontecimentos se sucedendo num ritmo acelerado. (COELHO, 2011).
Criativamente para envolver o leitor nota-se um ensaio de prolongamento da história,
de acréscimo de mais ações e de suspense no texto de MC:
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FIGURA 3 – FÁBULA: A HIENA E O DINOSSAURO


TRANSCRIÇÃO:
A hiena e o dinossauro

Numanoite bem escura no deserto das


caveiras avia um dinosauro e uma hiena.
Eles estavão procurando água e sen
querer o dinossauro caio dentro de um
buraco bem grande e a hiena descobriu
que era a lendaria areia movedisa das
caveiras. E a hiena tentou socorer mas a
pata do dinossauro soutou da pata da
hiena. A hiena disse:
- Venha antes que o buraco se feche mas
a hiena demorou dois dias para cavar o
buraco e desenterou o dinossauro e pulou
em sima até tirar a areia de dentro do
dinossauro e ele sobreviveu.

O ensinamento de hoje é nunca ande no


deserto sem orientação.
FONTE: Caderno de MC.

A fábula cumpriria sua intenção narrativa sem a inclusão de detalhes como


―estavam procurando água‖; da caracterização do buraco como ―areia movediça das
caveiras‖; da frustração da primeira tentativa de a hiena ajudar o dinossauro e do
relato minucioso de como a hiena conseguiu salvar o dinossauro: cavar, desenterrar,
pular no dinossauro para retirar-lhe a areia. Estas descrições retardam a finalização da
narrativa e podem provocar suspense e o envolvimento por parte do leitor.
Provavelmente o leitor-modelo, conforme apregoado por Umberto Eco (1986) para
essa fábula tenha sido concebido como mais exigente, pois deseja se aventurar por
um ambiente cheio de perigos e suspense.
Nas fábulas, o tempo é indeterminado. Essas narrativas pertencem a um
tempo mítico, eterno, sem começo, meio ou fim, reconhecido nas expressões:
―Naquele tempo, ―era uma vez‖, ―Conta-se‖... Nas produções das crianças, a narrativa
não estava datada, passível, pois, de ter acontecido em qualquer época. Apesar disso,
o tempo ficou parcialmente determinado no sentido de ser dia ou noite: ―Numa noite
bem escura‖; indicar a estação do ano: ―No verão‖; o horário: ―Numa noite, meia-noite‖;
o dia da semana ou do mês: ―Numa noite de sexta-feira 13‖; o tempo meteorológico:
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―Numa tarde chuvosa‖. Essas pistas para caracterização do tempo foram pedidas
oralmente pela professora e também correspondiam a um item do roteiro feito pelos
alunos-autores. O efeito obtido por essa estratégia, de acordo com Dalla-Bona (2012),
é conseguir introduzir melhor o leitor na atmosfera da narrativa.
Notou-se que a inclusão das especificações sobre o espaço e o tempo nas
fábulas criadas pelos alunos-autores contribuíram para criar efeitos sobre o leitor,
como nos exemplos: ―Numa maravilhosa tarde de feriado [...] numa floresta‖; ―Numa
noite bem escura no deserto das caveiras‖; ―Às 10 e 10 da manhã na escola‖; ―Um dia
de sol no sábado [...] rolar morro abaixo‖.
A fábula que exemplifica com maior força a escolha funcional do local,
intimamente ligada ao enredo foi em O tucano e o dinossauro (Figura 4), pois a ação
toda acontece na escola e os personagens vivenciam o drama de serem aprovados ou
não.

FIGURA 4 – FÁBULA: O TUCANO E O DINOSSAURO


TRANSCRIÇÃO:
O tucano e o dinossauro

- As 10 10: da manhã na escola o tucano


errou todas as provas e disse
- Me agude – Falou o tucano – e o
dinossauro respondeu:
Eu vou te ajudar
Passara dias e tucano não reprovou mas o
dinossauro foi reprovado e o tucano falou
com a professora e como era muito boa ele
passou
Moral: agude quem quer que ajude você

FONTE: Caderno de JB.

Apesar de preencher todos os quesitos necessários para compor o gênero,


essa fábula apresentou fragilidades. A escolha dos personagens ―tucano‖ e
―dinossauro‖ foi aleatória e não demonstrou associação com o conflito vivenciado nem
com o desfecho. Houve lacunas deixadas pelo aluno-autor, pois a narrativa não
esclarece por que o dinossauro foi reprovado inicialmente para depois ser aprovado. A
intervenção do amigo em falar com a professora e o fato de ela aprovar o dinossauro
por ser muito boa conferem um tom moralista ao texto.
No gênero fábula, os personagens são animais que representam vícios ou
virtudes humanas, incorporando determinada função social, comportamento ético ou

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padrão espiritual: o intrigante, o mentiroso, o generoso, o astuto, o malvado, o mal-


agradecido, o ingênuo. (COELHO, 2011). Quanto à construção de personagens pelos
alunos-autores, algumas curiosidades foram notadas referentes à escolha dos
animais: em três fábulas apareceu o dinossauro como personagem; em outras três, o
zangão e o cachorro (cachorra, yorkshire). O dinossauro foi caracterizado como calmo
e pacífico, atributos que foram determinantes para a conclusão da fábula O zangão e o
dinossauro (Figura 5):

FIGURA 5– FÁBULA: O ZANGÃO E O DINOSSAURO


TRANSCRIÇÃO:
O zangão e o dinossauro
No verão. Numa mata ameaçada, o
zangão e o dinossauro estavam
reunidos para decidir o que iriam fazer
com alguns homens que queriam
derrubar algumas árvores então o
zangão falou
- Vamos picar todos os humanos e
eles vão sair correndo
- Calma! Disse o dinossauro não é
assim que vamos resolver o problema,
acho melhor conversarmos
calmamente!
- Eu preferia picar mas vamos fazer o
que você disse!
Moral da história
É com calma que se resolvem os
problemas.
FONTE: Caderno de JW.

Em duas fábulas, A hiena e o dinossauro (Figura 3) e O tucano e o


dinossauro (Figura 4), o dinossauro contou com ajuda de outro personagem. Essa
caracterização talvez corresponda à imagem do dinossauro em desenhos animados e
em livros em que é representado com docilidade, não como animal feroz.
O zangão, em dois dos três textos em que apareceu, recebeu atributos
pejorativos: agressivo em O zangão e o dinossauro (Figura 5); sério e ciumento em A
menina e os bichos de pelúcia (Figura 11). Talvez isso se deva à semelhança sonora
entre as palavras ―zangão‖ e ―zangado‖. Porém, no texto A floresta e os bichos (Figura
6), o zangão mostrou-se inteligente para resolver o problema surgido:

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FIGURA 6 – FÁBULA: A FLORESTA E OS BICHOS


TRANSCRIÇÃO:
a floresta e os bichos
numa noite de verão na floresta apareceu uma
vaca e o zangão que vivia lá estranhou e
disse:
- Como é o seu nome?
- o meu nome é vaca e o seu nome é zangão
vamos andar pela floresta
vamos lá, lá, lá, lá, agora vamos voltar para [?]
eu esqueci o caminho.
mu, mu, mu.
- tive uma ideia vaca vamos seguir suas
pegadas e logo nos emcontraremos.

Moral: devemos cuidar um do outro.

FONTE: Caderno de RD.

Outro animal que figurou em mais de um texto foi o cachorro. Os atributos


dele e suas ações em duas fábulas corresponderam ao que esses animais geralmente
representam para as crianças na vida real: a segurança de não abandonar o amigo em
A menina e os bichos de pelúcia (Figura 11), o encorajamento em O rato e a
cachorrinha (Figura 7):

FIGURA 7 – FÁBULA: O RATO E A CACHORRINHA

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TRANSCRIÇÃO:
O rato e a cachorrinha
Numa noite de cesta-feira 13 na ilha a
cadelinha estava passeando e viu um rato
triste e logo pensou em ajudálo chegando
bem perto dele perguntou
- Qual é seu problema ratinho?
- Eu estou com medo por que meus irmãos
disen que tem bruxa aqui na ilha
- É mentira isso é só uma história para te
imganar e eles comerem todo o queijo.

Moral da história: Não acredite em tudo o


que dizem.

FONTE: Caderno de AG

Na fábula O crocodilo e o cachorro (Figura 8), o personagem também foi


caracterizado como brincalhão:
FIGURA 8 – FÁBULA: O CROCODILO E O CACHORRO
TRANSCRIÇÃO:
O crocodilo e o cachorro
Numa noite, meia noite, avia um crocodilo
que dormia Um cachorro se aprocimose
perto e lambeu o crocodilo o acordol e foi
atrais dele cheror e cheror até que encontrol
e o cachorro disse:
- eu sou imnocente disse o cachorro
- esta bem mais se você fazer de novo
- Tá bom mais vamos ser amigos e ficar
amigos até velhos!

FONTE: Caderno de YU.

Chama atenção a escolha de alguns pares de animais que colaborou para a


coerência da narrativa devido ao grande contraponto exercido por suas características
básicas. Pode-se perceber isso analisando as fábulas A floresta e os bichos (Figura 6),
O tucano e a girafa (Figura 9) e O dia mais legal do panda (Figura 10).
Em A floresta e os bichos, a vaca se lamentou por estar perdida na floresta,
enquanto o zangão teve uma ideia para achar o caminho de volta (Figura 6).
Na fábula a seguir, o tucano representou um ser pequeno, mas autoconfiante
e a girafa, um ser de grande estatura e orgulhoso:

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FIGURA 9– FÁBULA: O TUCANO E A GIRAFA


TRANSCRIÇÃO:

O tucano e a girafa

Numa maravilhosa tarde de feriado o


tucano lixava o seu grande bico e a girafa
bisbilhoteira criticou:
- Quem ousa jogar pozinho em mim
- eu o mais lindo da mata o tucanista da
arabia.
- por isso eu sou a mais alta dos animais
então me respeite.
- a floresta é de todos!
moral todos temos os mesmos direitos

FONTE: Caderno de AL.

Na fábula a seguir, apesar de o panda ser muito maior do que o siri, o tímido
é o panda e o extrovertido, o siri. Essa escolha inusitada não apontou para uma
incoerência, afinal, tamanho não é garantia de habilidades comunicativas. Mas pode
surpreender o leitor, provocar a construção mental da cena e sugerir um tom sutil de
humor.

FIGURA 10 – FÁBULA: O DIA MAIS LEGAL DO PANDA


TRANSCRIÇÃO:
O dia mais legau do panda
Um dia de sol no sábado um panda estava
brincando de rolar a moro a baixo.
Dai o panda falou:
- Essa bricadeira é muito legau!
O siri chegou e beliscou o panda e o panda
falou:
- aiiii por que você nedeu beliscão!
O siri falou:
- E oi eu sou o siri quer brincar de rolar
moro abaixo!
O panda falou:
- É um privilégio claro que sim
E eles viveram felizes para sempre!
ninguém pode ficar triste porque sempre
tem amigos.
FONTE: Caderno de VL.

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Na fábula A floresta e os bichos (Figura 6), novamente a diferença de


tamanho não favorece o animal maior. Foi o zangão que propôs uma forma de
acharem o caminho de volta, se valendo de uma característica física da vaca: suas
pegadas. Em geral, o fato de que os personagens da fábula deveriam ser dos cartazes
dos 26 animais mostrados pela professora pode ter colaborado para uma certa
originalidade da narrativa, pois não utilizaram os personagens típicos, como a raposa,
a lebre, a formiga, a cigarra, o lobo etc.
O narrador das fábulas é contador de histórias descendente dos narradores
primordiais, que não inventavam, apenas contavam o que haviam escutado ou
conhecido (COELHO, 2011). A esse narrador não cabe digressões ou amplas
descrições. Essa atitude pode justificar o discurso direto e expressões elocutivas
utilizadas pelos alunos-autores: ―ele disse‖, ―ela respondeu‖, recursos muito antigos e
que pretendem prender o leitor ou o ouvinte. Os participantes da pesquisa estavam
sendo iniciados pela professora na escrita de narrativas e, em decorrência da leitura
feita anteriormente de diversas fabulas e da escrita coletiva, os alunos-autores
começaram a dominar algumas técnicas da narrativa.
Todas as fábulas analisadas foram produzidas com diálogo, uma ocasião de
o aluno-autor aprender a inserir diálogo no texto narrativo, refletindo sobre a
pontuação e a escolha dos verbos elocutivos. Muito mais do que adquirir uma técnica,
trata-se de pensar sobre os efeitos da presença de diálogo no texto e de como ele
está inserido. De acordo com Tsimbidy (apud DALLA-BONA, 2012), a sequência de
diálogos causa os seguintes efeitos: reduz a distância entre o leitor e os personagens,
assegura a legibilidade da história, contribui para dar um ritmo ao texto, para dar
referências espaço-temporais, para revelar características, para descrever as ações
dos personagens, para introduzir novos atores, para fazer evoluir a intriga ou, ao
contrário, para desacelerá-la e manter o suspense.
A única fábula em que o narrador se aproximou de ser onisciente foi A
menina e os bichos de pelúcia (Figura 11), pois revela o sentimento dos personagens
e a reação: ―A yorkshire não pudia fazer nada quando a yorkshire votou e ela estava
feliz mas ela persebeu que ele estava triste por que a menina não levou o zangão mas
a yorkshire não deixou o zangão para trás e depois eles viram amigos‖.
O motivo da efabulação resulta geralmente de uma destas três necessidades
básicas do ser humano: estômago (situações de trabalho que visam à sobrevivência),
poder (situações de exploração dos fracos pelos fortes e a astúcia dos explorados
para escaparem dos poderosos) e sexo (situações de casamento).

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De acordo com Azevedo (2004), por meio de uma história inventada e de


personagens que nunca existiram é possível levantar e discutir, de modo prazeroso e
lúdico assuntos humanos relevantes. A partir dessa afirmação, pergunta-se: o que é
relevante para uma criança de oito anos, aluna de uma escola pública de Curitiba, que
permanece o dia todo na escola, pertencente a uma comunidade de baixo poder
aquisitivo? Nas fábulas por elas produzidas apareceram questões relacionadas à hora
de dormir, à não-violência, ao medo, à possibilidade do fracasso escolar, aos direitos
da pessoa, ao cuidado em não perder o amigo. O tema amizade apareceu em sete
textos, compreendendo: o desejo por não ficar só, o fato de fazer amigos, ciúmes,
ajuda de um amigo a outro,
Em apenas duas narrativas houve uma menção a necessidades fisiológicas: a
hiena e o dinossauro estavam procurando água no deserto na fábula A hiena e o
dinossauro (Figura 3) e o fato de os ratos terem tentado enganar o irmão para comer o
queijo dele em O rato e a cachorrinha (Figura 7).
De acordo com Coelho (2011), nas fábulas também há uma convivência
natural entre realidade e imaginário, que resulta do pensamento mágico predominante
no mundo arcaico, como o pensamento da primeira fase da infância. Além disso, a
narrativa se faz pela representação simbólica ou metafórica.
Com bastante tranquilidade, as crianças entenderam que os personagens nas
fábulas são personificados, conservam alguma característica de sua espécie, mas
agem como seres humanos, com ciúmes, por impulso, causando medo, procurando
inclusão no grupo. Perceberam-se três elementos que podem estar carregados de
simbologia, que certamente não foram construídos conscientemente pelos alunos-
autores: o deserto em A hiena e o dinossauro (Figura 3), o baú de brinquedos na
fábula A menina e os bichos de pelúcia (Figura 11) e o tubarão em A iguana e o grilo
(Figura 12).

FIGURA 11 – FÁBULA: A MENINA E OS BICHOS DE PELÚCIA

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TRANSCRIÇÃO:
A menina e os bichos de pelucia
Num dia de sábado o zangão e yorkshire
estava brincando dentro do baú. E a
menina chegou no quarto e abriu o baú e
pegou a yorkshire e a menina deixou o
Zangão no baú e o Zangão disse:
- Não me deixe aqui sosinho.
A yorkshire não pudia fazer nada. quando a
yorkshire voltou e ela estava feliz mas ela
persebeu que ele estava triste por que a
menina não levou o Zangão Mas a
yorkshire não deixou o Zangão para trás e
depois eles viram amigos.

Moral: Não deixe um amigo para trás


nunca

FONTE: Caderno de JE.

FIGURA 12 – FÁBULA: A IGUANA E O GRILO

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TRANSCRIÇÃO
a iguana e o grilo

numa noite de verão a igana e o grilo estava


brincando de mãe ce esconde na floresta o
grilo viu um tubarão e gritou para a iguana e a
iguana foi socorer o grilo e eles ficarão amigo
para sempre.

noral
ce tem corajem use ele para ajudar os amigos.

FONTE: Caderno de LL.

Em nível simbólico, é possível interpretar o deserto das caveiras como um


lugar desconhecido e cheio de perigos, pelo qual é preciso orientação para se
deslocar. Pode-se pensar no baú de brinquedos como um local familiar, restrito,
conhecido, que oferece proteção física e emocional, em certo sentido às avessas do
deserto das caveiras. O tubarão é a personificação da fera, do perigo eminente,
mesmo sendo uma incoerência que ele surja de repente num ambiente terrestre, sem
qualquer menção ao mar. Esse fato talvez se deva à falta de conhecimento de mundo
para saber que tubarão não apareceria junto à iguana e ao grilo sem uma justificativa
plausível.
A exemplaridade é um dos objetivos mais evidentes da narrativa primordial
porque as histórias foram o grande instrumento de divulgação de ideias e modelos de
comportamento individual, social, político. Como o dilema que mais apareceu, entre os
alunos-autores do 3º ano, foi referente à amizade, também sobre a amizade e a
cooperação versam várias lições de moral das fábulas produzidas:
a) ―Ajude a quem quer ajudar você‖, em O tucano e o dinossauro (Figura 4);
b) ―Devemos cuidar um do outro‖, em A floresta e os bichos (Figura 6);
c) ―Ninguém pode ficar triste, pois sempre há um amigo‖, em O dia mais
legal do panda (Figura 10);
d) ―Não se deve deixar um amigo para trás‖, em A menina e os bichos de
Pelúcia (Figura 11);
e) ―Se tem coragem, use ela para ajudar os amigos‖ em A iguana e o grilo
(Figura 12).

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As outras mensagens das fábulas produzidas apresentaram temas variados,


como: ―Não vá dormir tarde‖ (a moral não foi produzida, mas está subentendida na
fábula O siri e a iguana (Figura 13):

FIGURA 13 – FÁBULA: O SIRI E A IGUANA


TRANSCRIÇÃO:
O siri e a iguana
As dez horas da noite o siri estava [jogando]
videoguémmi daí a iguana falou: todos
vamos dormir.
- Mas se a [gente] não quiser
- eu não cei
Na [mesma hora] o siri [foi convidado para]
um aniversário e não [acordou]

FONTE: Caderno de FO.


As outras lições morais, construídas pelos alunos autores foram: ―Nunca ande
no deserto sem orientação‖, em A hiena e o dinossauro (Figura 3); ―É com calma que
se resolvem os problemas‖, em O zangão e o dinossauro (Figura 5); ―Não acredite em
tudo o que dizem‖, em O rato e a cachorrinha (Figura 7) e ―Todos temos os mesmos
direitos‖, em O tucano e a girafa (Figura 9).
Um ponto importante a ser analisado é se houve, entre as lições de moral
registradas, algumas representantes de desvio de mensagens politicamente corretas,
uma vez, que a abordagem do gênero fábulas na escola deve ser feita de forma
crítica, pois o texto literário, de acordo com Cosson (2006) objetiva superar a
imposição de regras e a padronização dos discursos.
Isso aconteceu na fábula A hiena e o dinossauro (Figura 3), que narrava as
peripécias de dois animais no deserto das caveiras e as ações de um dele para salvar
o outro. Considerando o desenvolvimento dessa fábula e comparando a outras que
exaltavam o valor da amizade, era de se esperar que a lição de moral fosse: ―Não
desista de salvar um amigo‖ ou outra parecida. Porém, a moral apontou para a busca
de orientação antes de se aventurar por lugares estranhos: ―O ensinamento de hoje é
nunca ande no deserto sem orientação‖. Então não se trata de uma mensagem
politicamente correta nem repleta de sentimentalismo, mas um alerta para um
comportamento mais sagaz em um ambiente inóspito.
A desconstrução de um estereótipo é feita gradualmente conforme a
comunidade de leitores lê e comenta textos de diversos gêneros, temas e pontos de
vistas, descobre intertextualidade, por isso não se pode esperar que todos inicialmente
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produzam textos que quebrem a expectativa. Incentivar o aluno-autor a expor à turma


a moralidade construída e permitir comentários pode ser uma oportunidade de
reflexão, de aprender que o texto literário, sobretudo, é um texto de rompimento às
regras padronizadas. Do mesmo jeito que os personagens de Monteiro Lobato no livro
Fábulas:

- Para mim vovó – comentou Narizinho-, esta é a rainha das fábulas.


Nada mais verdadeiro. Para os pais os filhos são sempre uma beleza,
nem que sejam feios como os filhos da coruja [sobre a fábula A coruja
e a águia] (LOBATO, 1994, p. 9).

-Bravos! – gritou Pedrinho batendo palmas. Está aí uma fábula que


acho muito pitoresca. Gostei.
- Pois eu não gostei – berrou Emília – porque trata com desprezo um
animal tão inteligente e bom como o burro. Por que é que esse
fabulista fala em ―estúpida criatura?‖ e por que chama o pobre burro
de ―animalejo‖? Animalejo é a vó dele... [sobre a fábula O burro na
pele do leão, cuja moral é ―Quem vestir pele de leão, nem zurre nem
deixe as orelhas de fora‖]. (LOBATO, 1994, p. 25).

Sobressai a fábula O tucano e a girafa (Figura 9) em que a aluna-autora


utiliza de sutilezas para construir humor. Em primeiro lugar, a narrativa, ao iniciar por
―Numa maravilhosa tarde de feriado‖ já convida o leitor a se sentir à vontade, a evocar
ótimas sensações. Como a dar coerência a esse início, o tucano está lixando ―seu
grande bico‖. O narrador, que não é onisciente, não revela se o tucano fazia isso de
forma proposital para atingir a girafa. Cabe ao leitor decidir.
―Quem ousa jogar pozinho em mim‖ essa fala da girafa demonstra ares de
superioridade. A breve disputa entre os dois personagens nas falas: ―Eu sou o mais
lindo da mata o tucanista da arábia‖ e ―Por isso eu sou a mais alta dos animais então
me respeite‖ colabora para o tom de humor. Uma das leituras possíveis é que o
tucano, conhecendo a girafa, tenha provocado essa reação dela, para depois encerrar
o assunto: ―A floresta é de todos‖. Então de um lado teríamos um personagem
matreiro, sagaz; de outro, um personagem sério, prepotente.
Tanto os bilhetes quanto as fábulas foram lidos e corrigidos pela professora
com cada aluno. Mesmo que nesse momento de reescrita os alunos não tenham
exercido a oportunidade de testar o efeito de seus textos junto aos colegas
(TAUVERON, 2014), a correção quanto à norma padrão não se sobrepôs à
valorização da produção textual. Esse fato ficou claro aos alunos principalmente
durante as escritas coletivas, direcionadas por questionamentos da professora e de
comentários dos alunos.
A opção da professora em partir dos personagens e deixar com que os alunos
criassem a moral, possibilitou-lhes tratar de desafios que eles vivenciam, que não são
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distantes para eles. A seleção que fizeram dos animais revelou preferência e maior
facilidade em construir a fábula. Enquanto a proposta da construção da fábula
oportunizou externar necessidades, dúvidas e medos, a produção do bilhete exigiu
que o aluno-autor se colocasse no lugar de um personagem, instigando a empatia,
imaginando uma reação, assumindo uma posição. Uma ―moral‖ para toda essa
sequência didática poderia ser algo parecido com: É lendo e escrevendo que se
aprende a escrever. É compartilhando ideias que elas se expandem.

Considerações Finais

A escolha pelo gênero fábulas propiciou engajamento dos alunos, uma vez
que demonstraram interesse na construção de personagens representados por
animais e também facilitou a empatia para a criação do conflito vivenciado,
possibilitando a criação de mensagens que pudessem estar vinculadas à vida pessoal
do aluno-autor.
Aliada ao gênero, a postura instigante e não permissiva da professora
aumentou o repertório cultural dos alunos, valorizou a capacidade inventiva de cada
um, possibilitou um ambiente de compartilhamento de ideias, motivando o início de
uma formação metalinguística e a escrita de textos originais, dotados de elementos
sutis e surpreendentes.
Por meio dessa sequência didática, percebeu-se que a formação do aluno-
autor é um processo que está atrelado à capacidade docente de inovação de
propostas e procedimentos, à criação de um ambiente cooperativo, à interface entre
leitura e escrita.

Referências

AZEVEDO, Ricardo. Formação de leitores e razões para a Literatura. In: SOUZA,


Renata Junqueira de. (Org.). Caminhos para a formação do leitor. São Paulo: DCL,
2004, p. 37-48. Disponível em <http://www.ricardoazevedo.com.br>. Acesso em: 04
ago. 2015.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, análise, didática. 7. ed. São Paulo:
Moderna, 2011.

COLOMER, Teresa. Andar entre livros: a leitura literária na escola. Tradução de:
SANDRONI, Laura. São Paulo: Global, 2007.

COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006.

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DALLA-BONA, Elisa Maria. Letramento Literário: ler e escrever literatura nas séries
iniciais do ensino fundamental. 2012. 331 f. Tese (Doutorado em Educação) –
Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Paraná,
Curitiba, 2012.

ECO, Umberto. Lector in fabula: a cooperação interpretativa nos textos narrativos.


Tradução de: CANCIAN, Attílio. São Paulo: Perspectiva, 1986.

LOBATO, Monteiro. Fábulas. 50. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

TAUVERON, Catherine. A escrita ―literária‖ da narrativa na escola: condições e


obstáculos. Educar em Revista, n. 52, Curitiba, PR: Editora UFPR, p. 85-101, 2014.

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EIXO TEMÁTICO 2

Literatura Infantil para crianças


pequenas
Literatura Infantil para crianças menores de seis anos
Mônica Correia Baptista (Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG),
Renata Nakano (editora) e Cyntia Graziella Guizelim Simões Girotto
(Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - Marília) Cinthia
Magda Fernandes Ariosi (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Filho - Presidente Prudente).

Desde que nasce, vamos inscrevendo a criança no universo simbólico. Gestos


e balbucios, inicialmente desprovidos de significados, vão, pouco a pouco, se
constituindo em atividades simbólicas, a partir das interações que se
estabelecem entre bebês e sujeitos mais experientes. As cantigas de ninar,
parlendas, jogos de rimas são atividades que promovem construções de
sentidos compartilhados. Essa literatura de tradição oral representa uma das
primeiras linguagens literárias com a qual as crianças entram em contato. A
medida que ampliam suas experiências com a cultura escrita, bebês e demais
crianças pequenas vão podendo, cada vez mais, se apropriar da linguagem
dos livros e do próprio livro como produto cultural. Considerando os bebês e as
demais crianças menores de seis anos de idade, algumas questões, entre
outras, poderiam ser suscitadas: Como a literatura oral vem sendo trabalhada
nas instituições de educação infantil? Que livros são adequados para crianças
que ainda não leem nem escrevem convencionalmente? Que práticas de leitura
seriam adequadas a cada uma das faixas etárias que compõem a primeira
infância? Como a educação infantil se relaciona com a literatura? Como
deveria se relacionar? Como o mercado editorial tem se comportado em
relação à produção para essa faixa etária? Como se caracteriza a literatura
brasileira para bebês e demais crianças menores de seis anos? Que
tendências podemos perceber, no processo de sua constituição? As bibliotecas
e outros espaços culturais têm se dedicado aos pequenos leitores? Que
projetos ou atividades vêm sendo desenvolvidos nesses espaços com o intuito
de apoiar a formação do pequeno leitor? Vêm sendo implantadas políticas
públicas que favoreçam o acesso dessas crianças ao universo literário? Como
elas se caracterizam? Que ações, projetos ou programas de formação
profissional vêm sendo efetivados e como eles se estruturam? Tais questões
procuram nortear e sustentar as propostas de comunicação científica de
pesquisas que se debruçam sobre a problemática esboçada para, o aqui
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delineado, eixo ‗Literatura infantil para crianças menores de seis anos‘, cujas
ações advogam a favor de uma Educação Literária desde a Primeira Infância.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

A LITERATURA PARA OS PEQUENOS: dos espaços, das obras e


das interações

Maria Laura Pozzobon Spengler, IFC/Literalise, Literatura Infantil para crianças


pequenas*
Fernanda Gonçalves, UFSC/Literalise, Literatura Infantil para crianças
pequenas, CAPES**
Thamirys Frigo Furtado, UFSC/Literalise – PMF/SC, Literatura Infantil para
crianças pequenas***15

Considerações Iniciais

A literatura infantil, como já sabido, é encontro entre leitor, arte e mundo, por
meio da experiência literária. O presente texto apresenta discussões realizadas a partir
de três pesquisas que se entrelaçam quando focam a relação das crianças pequenas
e dos livros literários, e a formação do leitor desde os primeiros contatos com os livros.
Assim apresentaremos inicialmente um mapeamento dos espaços e tempos coletivos
de leitura literária nas instituições de Educação Infantil da Rede Municipal de Ensino
de Florianópolis (SC).
Conhecidos esses espaços, refletiremos sobre a presença do livro objeto
nesses contextos, primeiramente, tomaremos como objeto o livro de imagem adotando
como corpus de análise os livros de imagem que compõem os acervos do Programa
Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) para a Educação Infantil, dentre os anos 2008 e
2014, selecionando, para tanto, os títulos Ida e Volta(2001), Brinquedos (2009), Abaré
(2009), É um gato? (2002) e É um ratinho? (1998). Posteriormente, pensando o objeto
livro em suas múltiplas possibilidades nas relações dos bebês no contexto da
Educação Infantil, entendendo a materialidade do livro como possibilidade para o
encontro inicial com a leitura literária. Percebemos as instituições de Educação Infantil

* Tese concluída: Alçando voos entre livro de imagem: o acervo do PNBE para a Educação
infantil, orientadoraProf.ª Dr.ª Eliane Santana Dias Debus.
** Tese em andamento: A interação dos bebês com o livro no contexto da creche,
orientadoraProf.ª Dr.ª Eliane Santana Dias Debus.
*** Dissertação concluída:Espaços e tempos coletivos de leitura literária na Educação Infantil
da Rede Municipal de Florianópolis (SC), orientadoraProf.ª Dr.ª Eliane Santana Dias Debus.
176

como fundamentais para a formação do leitor literária, quando promove interações das
crianças com o objeto livro.

A leitura literária coletiva: Que tempos e espaços são estes?

Inserir a cultura letrada no cotidiano das crianças que frequentam a Educação


Infantil por meio de práticas sociais de leitura e escrita como a leitura de diferentes
tipos de textos (jornais, panfletos, revistas, livros infantis), assim como aproximar a
criança da literatura apresentando-a de forma lúdica propiciam a entrada da criança ao
mundo letrado, e consequentemente a descoberta da função social da leitura. É dessa
forma que se inicia a formação do pequeno leitor, contribuindo para o gosto pela
leitura e pela literatura em si.
Nessa perspectiva esta pesquisa dá visibilidade aos espaços coletivos de
literatura nas instituições de Educação infantil de Florianópolis (SC), verificando seus
espaços, tempos e dinâmicas de organização. Para desenvolver este estudo seguimos
um percurso quantitativo e qualitativo, o qual se efetiva no mapeamento realizado para
levantar quais são os espaços coletivos de leitura literária encontrados em instituições
de Educação infantil da Prefeitura Municipal de Florianópolis (PMF). Estas instituições
são consideradas referência na Educação Infantil de Santa Catarina, por este motivo
as selecionamos para a realização desta pesquisa. A pesquisa teve início com o
levantamento das unidades de Educação infantil atendidas pela PMF, a qual possui
um total de 104 unidades, sendo 54 são creches, 16 instituições conveniadas e 34
NEI‘s, sendo 10 NEI‘s vinculados. Portanto, reduzimos nosso campo de pesquisa para
78 unidades, retirando as 16 conveniadas e os 10 NEI‘s Vinculados, dessas 71
unidades aceitaram participar da pesquisa.
A segunda etapa da pesquisa se constituiu por meio do encaminhamento de
questionários para as instituições de Educação Infantil da PMF, com o intuito de
responder questões sobre os tempos e espaços coletivos de leitura literária. O
questionário proporcionou saber quais unidades possuem tempos e espaços coletivos
de leitura literária, bem como compreender muitas questões que rodeiam estes
tempos e espaços.
Inicialmente pretendíamos localizar quais e quantas unidades de Educação
Infantil da PMF possuem biblioteca. No decorrer da pesquisa encontramos algumas
unidades que possuíam outros espaços coletivos de leitura literária que não eram a
biblioteca, chamados por nós de espaços diferenciados. Para melhor compreensão
construímos um gráfico dividindo entre as instituições que possuem bibliotecas, as que

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possuem os espaços diferenciados, as que disponibilizam seu acervo apenas na sala


de referência, e as que não possuem nenhum espaço coletivo de leitura literária.

Gráfico I – Tempos e espaços coletivos de leitura literária PMF

74
64
54
44
34
24
32
14 25
8 6
4
Biblioteca Não possui Espaços Sala de
diferenciados referência

Fonte: Elaborado pela pesquisadora

Percebemos pelo gráfico acima que 8 unidades não dispõem de um espaço


coletivo de leitura literária e 6 possuem livros apenas na sala de referência; 25
instituições têm biblioteca, sendo que algumas instituições contam também com outros
espaços além da biblioteca, como brinquedoteca, cantinho de leitura, sala de vídeo,
cantinho de leitura no refeitório e sala alternativa. Por fim, 32 instituições que não
possuem biblioteca afirmam dispor de outros tempos espaços diferenciados como sala
alternativa, cantinho de leitura e outros nomeados como biblioteca itinerante,
brinquedoteca, Gibiteca, biblioteca ambulante, sala da imaginação, sala multiuso,
biblioteca no Hall de entrada, carro de livros e sala de literatura.
Durante a leitura dos questionários encontramos questões referentes aos
investimentos importantes para a realização de propostas que envolvam os usos
sociais de leitura e escrita. Primeiramente estão os tempos e espaços coletivos de
leitura literária pensados com e para as crianças, fundamentais na formação dos
pequenos leitores, sejam eles disponibilizados e arquitetados pelos responsáveis pela
construção da unidade ou pelos(as) professores(as) e demais funcionários da
instituição. De acordo com EdmirPerrotti (2014, p. 131),

Espaços de leitura (cantos, salas, bibliotecas) são dispositivos de


mediação cultural, no sentido a eles atribuído por Peraya (1999). Ao
permitirem acesso à cultura, ao conhecimento, à informação, eles não
só informam, mas formam. Possuem, portanto, uma dimensão
pedagógica inerente, resultante das características próprias dos
diferentes elementos que os constituem, das dinâmicas estabelecidas
entre eles e das práticas concretas realizadas.

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Por acreditarmos na importância da existência de tempos e de espaços de


leitura literária, reafirmamos a necessidade de investir na construção de bibliotecas ou
outros tempos e espaços diferenciados. A partir da leitura dos questionários,
constatamos que os profissionais sentem falta e se preocupam com a ausência
desses tempos e espaços para a sua prática pedagógica, assim como com a
organização destes tempos e espaços pensando na exposição dos livros, advertindo
sobre a necessidade de investimento e estrutura adequada para um trabalho de
qualidade com as crianças. Para este investimento inicialmente destacamos três
pontos importantes: o tempo e o espaço propostos às crianças, o acervo disponível e
o investimento em profissionais qualificados que atuem nesses tempos e espaços.
É muito importante que se tenha uma biblioteca ou outro espaço coletivo de
leitura literária nas unidades de Educação Infantil. No entanto, não podemos esquecer
que para melhor funcionamento do espaço e aproveitamento das crianças leitoras
necessitamos também de um responsável por este espaço, e principalmente de
acervo suficiente para o número de crianças existentes em cada unidade.
O encontro com o objeto livro torna-se de grande importância para o
crescimento e o desenvolvimento da criança, motivo pelo qual deve estar ao seu
alcance, possibilitando a escolha e a autonomia da criança. É importante ressaltar que
o acesso da criança ao acervo, vai além do alcance ao objeto livro. Ter acesso aos
livros, é além de tudo possibilitar este encontro de forma mediada pelo(a) professor(a),
propondo constantes momentos desta descoberta, em um tempo e espaço organizado
a partir da escuta da criança, no qual ela consegue se reconhecer e se sentir acolhida,
pronta para uma leitura literária, priorizando o encontro com o livro. Contudo, algumas
unidades da PMF ainda não disponibilizam o acervo para que as crianças tenham livre
acesso, ou seja, apenas o adulto tem contato com ele, impossibilitando a criança de
fazer sua leitura através dos cinco sentidos.
Em nosso entendimento, não é suficiente possuirmos biblioteca se nossas
crianças não tiverem livre acesso ao acervo. Uma das unidades destaca que há uma
biblioteca na instituição, mas seu acervo não é de livre acesso às crianças. Logo, é
importante repensar as práticas dentro das unidades de Educação Infantil, no sentido
de que as crianças não sejam impedidas de tocarem nos livros e usufruírem de algo
que é enviado para este fim. A discussão apresentada até aqui mostra unidades que
não possuem biblioteca e defendem um investimento da PMF no que diz respeito a ter
uma biblioteca, um acervo de qualidade e um profissional qualificado responsável por
este tempo/espaço. Quando enfatizamos a importância desse investimento, estamos
pensando na criança como a principal beneficiada; no entanto, quando possuímos
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esse tempo e espaço e privamos a criança de utilizá-lo, não estamos usufruindo desse
tempo e espaço considerando nossas crianças como sujeitos de direitos.
As propostas relacionadas à leitura literária não só possibilitam novas
experiências como também levam a criança a aprender mais sobre a realidade, a estar
inserida nas questões que envolvem a sociedade e o meio social em que vive,
auxiliam nas potencialidades de interpretação e compreensão. Por esse motivo
necessitam estar presentes nos planejamentos dos(as) professores(as), visando à
organização dos tempos e espaços dos livros a serem disponibilizados, como serão
disponibilizados, e como será realizada a mediação durante a ação pedagógica.
Para finalizar nossa análise, realizamos um mapeamento das unidades da
Prefeitura Municipal de Florianópolis diferenciando as que possuem biblioteca, as que
possuem outros espaços coletivos de leitura literária, as que possuem livros apenas
na sala de referência, as que não possuem espaço coletivo de leitura literária, e as
unidades que não participaram da pesquisa.

Imagem I – Espaços e tempos coletivos de leitura PMF

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Possui Biblioteca
Possui outros tempos/espaços diferenciados
Não possui espaço/tempo coletivo de leitura literária
Livros dispostos apenas nas salas de referência
Não participou da pesquisa

Fonte: Elaborada pela autora


Ao finalizar o mapeamento nos surpreendeu a quantidade de instituições que
possuem biblioteca, pois no início da pesquisa acreditávamos que encontraríamos
espaços coletivos de leitura literária dos mais diferenciados tipos, construídos
pelos(as) próprios(as) professores(as) como recurso para propostas que incluíssem as
crianças na cultura letrada, tentando suprir a falta de uma biblioteca. No entanto,
descobrimos que apesar de não ser um número suficiente, por acreditarmos que todas
as unidades deveriam ter uma biblioteca, 25 é um número considerável de bibliotecas
nas unidades de Educação Infantil da PMF, bem como 32 unidades com tempos e
espaços diferenciados torna-se um grande número de unidades engajadas e
preocupadas com a formação dos pequenos leitores, quando comparado com a
minoria que não disponibiliza de nenhum tempo/espaço voltado à leitura literária.

Dos acervos: o Livro de Imagem

O livro de imagem no Brasil surge na década de 1970 e nos últimos anos tem
se destacado como um importante gênero literário, por possibilitar uma reflexão acerca
da experiência estética e do contato dos leitores com a arte, pois os autores-
ilustradores, cada vez mais, tem se apropriado das diferentes técnicas artísticas para
criar narrativas bastante sofisticadas. A partir de 1982, este tipo de livro começa a
receber prêmio, concedido pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil
(FNLIJ)16, até então circunscrita ao Melhor Livro para crianças e melhor Livro para
jovens, primeiramente como Melhor Livro sem texto, atualmente nomeada de Melhor
livro de imagem.
O livro de imagem é aquele que traz a história narrada somente pelas
ilustrações, ―narrativa de imagens sem palavras‖ (NIKOLAJEVA; SCOTT, 2011, p. 27),
16
A FNLIJ foi criada em 1968, como a instituição brasileira de representação da Internacional
Boardon Books for Young People (IBBY), de caráter cultural e educacional, busca promover
a leitura e divulgar livros de qualidade para crianças e jovens, defendendo o direito à
literatura por meio do apoio a bibliotecas escolares, públicas e comunitárias, bem como de
concursos e projetos de incentivo à leitura.

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narrativas que possibilitam ao leitor apropriar-se de diferentes modos de ler, de acordo


com seu repertório cultural e linguístico. Para a pesquisadora Célia Belmiro, o livro de
imagem carrega em sua composição todos os elementos que lhe garantem a
literariedade, contemplando os elementos que lhe dão características próprias da
narrativa – espaço, personagem, tema, enredo. A autora afirma que

livro-imagem como um livro com imagens em sequência e que


conta uma história, geralmente selecionando uma situação, um
enredo e poucos personagens. Constitui-se como uma
narrativa visual, que aproxima duas condições básicas para
sua realização: a dimensão temporal (sequência linear das
imagens) e a dimensão espacial (a lógica de organização
espacial dos elementos que compõem as imagens). (2015, p.
1)
Como um gênero rico em possibilidade narrativa, cada livro de imagem
explora características que o torna singular - traços, técnicas e cores, conferem às
histórias movimentos únicos. Para a pesquisadora Fanny Abramovich (1997) as
narrativas dos livros de imagem possibilitam e instigam a fantasia e a inteligência, e
são ―sobretudo experiências de olhar... De um olhar múltiplo, pois se vê com os olhos
do autor e do olhador/leitor, ambos enxergando o mundo e as personagens de modo
diferente, conforme percebem esse mundo...‖ (ABRAMOVICH, 1997, p. 33).
A leitura do livro de imagem, do mesmo modo de outras leituras, é um
exercício cognitivo complexo que exige um leitor curioso e questionador, aberto para a
descobertas em cada uma das (re)leituras que a narrativa lhe instigará, papel que
tanto agrada as crianças pequenas. Para sua leitura e compreensão, pressupõe-se
uma alfabetização do olhar, ou ainda, o que se pode identificar como uma
alfabetização visual. A alfabetização visual é o conceito cunhado para abarcar a
necessidade de se pensar um sistema básico de aprendizagem da imagem, para sua
identificação, criação e compreensão (LIMA, 2011), e dentre inúmeras possibilidades
para que isso se torne possível, o livro de literatura infantil se destaca, já que sua
composição também imagética pode favorecer o encontro do leitor com a imagem.
No encontro entre a literatura e a imagem, por meio da leitura do livro de
imagem, a criança pequena encontra possibilidade de desenvolvimento de habilidades
de leitura a partir da observação da sequência das imagens, exploração de diferentes
pontos de vista, busca de pistas de leitura, inferências e questionamentos, previsão,
classificação, compreensão, oralidade, vocabulário, estrutura narrativa, fluência oral e
de vocabulário e ainda suscita múltiplas interpretações acerca do mundo. E todas
essas possibilidades ainda se ampliam, porque cada (re)leitura de um livro de

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literatura infantil instiga na criança, a ―busca de pistas para compreender emoções


próprias e alheias‖ (REYES, 2010, p. 86).

Programa Nacional Biblioteca da Escola: política pública de livros

O programa Nacional Biblioteca da Escola – PNBE iniciou-se no ano de 1997


e foi suspenso em 2015 por conta de cortes orçamentários do governo federal,
promoveu, durante dezessete anos, a difusão do conhecimento por meio do livro e da
leitura junto da comunidade escolar brasileira. Distribuiu títulos literários e obras de
referência para as bibliotecas de todas as escolas públicas do país (FERNANDES,
2007). Em parceria com a Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação,
recebeu recursos financeiros do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
(FNDE). O principal objetivo do programa é a democratização e acesso ao livro, bem
como o contato dos leitores no âmbito educacional – atendendo todos os níveis da
educação básica. Também ofereceu materiais de pesquisa e de referência aos
professores. Atuando em diferentes ações, compondo acervos das bibliotecas das
escolas públicas até a composição de acervos individuais dos estudantes, como o
projeto Literatura em Minha Casa.
As instituições de Educação infantil passaram a ser atendidas no ano de
2008, e receberam, durante os anos de duração do programa - 2008 a 2014, quatro
acervos que compuseram um total de 360 livros de literatura dos mais variados
gêneros. Pela primeira vez, a Educação Infantil participa da

iniciativa que tem, para além de seus significativos efeitos


pragmáticos – propiciar, às crianças de zero a seis anos,
acesso ao livro – um também significativo valor simbólico:
sinaliza a importância e mesmo necessidade, sem sempre
reconhecida, da presença do livro e da leitura no processo
educativo da criança antes que tenha início sua alfabetização
formal no ensino fundamental (SOARES, 2008, p. 22)

A partir de 2010, a elaboração dos editais para a composição dos acervos foi
pensada exclusivamente para se adequar aos leitores da Educação Infantil, de forma
que os títulos selecionados contemplaram para as crianças da categoria 1 – etapa
creche: Textos em verso – quadra, parlenda, cantiga, trava-língua, poema; Textos em
prosa – clássicos da literatura infantil, pequenas histórias, textos de tradição popular;
Livros com narrativa de palavras-chave – livros que vinculem imagens com palavras;
Livros de narrativas por imagens– com cores e técnicas diferenciadas como: desenho,
aquarela, pintura, entre outras (BRASIL, 2010, p. 2 e 3; 2012, p. 3; 2014, p. 1 e 2).

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Para a categoria 2 – pré escola, incluíram-se adivinhas nos textos em verso, excluem-
se os livros com narrativa de palavras – chave.
Assim sendo, dentro dos acervos de cada ano, foram selecionados livros de
imagem, que somaram 77 (59 quando retirados desse montando os livros, mesmo
selecionados como livros de imagem, são livros que contém pequenas narrativas com
palavras) nos quatro conjuntos de livros enviados. Esses dados numéricos confirmam
que os livros de imagem estão em quantidade, numericamente bem representados,
quando comparados às outras categorias de seleção propostas em edital (livros em
prosa e verso).
Com o intuito de apresentar a estrutura do livro de imagem, selecionou-se um
título de cada um dos acervos para uma breve análise, assim se destacou, nesse
texto, quatro livros que se diferenciam dos demais, por tema ou narrativa singulares.
O livro Ida e Volta, de Juarez Machado (2001), escolhido para essa análise por
ser o livro que fundou o gênero livro de imagem no Brasil, ao ser publicado em 1976, o
título faz parte do acervo do PNBE para a Educação infantil em dois momentos
distintos, nos anos 2008 e 2014, e foi premiado pela FNLIJ como melhor livro sem
texto em 1982.
A narrativa está constituída em 17 (dezessete) imagens, divididas em 34
(trinta e quatro) páginas duplas, além do conjunto de capa e contracapa – que também
faz parte da história e fornecem indícios para o fio narrativo. Não há margem que
delimite as imagens que se sucedem em cada virada de página. De formato quadrado,
22 centímetros de altura e largura. O livro está catalogado como Literatura infanto-
juvenil17 e os desenhos que compõem as imagens tem traços de aspecto animados.
A narrativa acontece por conta do mistério causado pela ausência física do
protagonista, que é reconhecido pelo leitor pela passagem de suas pegadas, desde o
início até o final do livro, percorrendo lugares inusitados e encontrando pessoas e
animais ainda mais singulares. Ao final do livro – na contracapa, quando o leitor
acredita poder encontrar o personagem misterioso, novamente as pegadas o
redirecionam para a capa do livro, retornando ao início da história.
Uma narrativa circular, como a apresentada pelo livro Ida e Volta, dá
possibilidade ao leitor de variada gama de interpretações, visto que, durante todas as
páginas que compõem a história são apresentados indícios que só serão descobertos
no decorrer das próximas páginas, bem como lhe permitem diferentes (re)leituras já
que pode iniciar uma nova leitura na última imagem da narrativa.

17
Manteve-se para este estudo, a escrita idêntica à apresentada nos dados bibliográficos do livro.
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Explorando o tema de crianças que vivem à margem da sociedade, em


situação de risco trabalhando em um lixão, a narrativa Brinquedos (2009) do autor
André Neves faz parte do acervo do PNBE para a Educação Infantil do ano de 2010. A
narrativa acontece no decorrer de 32 páginas, dentre as quais algumas imagens
ocupam páginas únicas e em outras páginas duplas de 22 X 20 centímetros. O livro é
catalogado como Brinquedo e literatura infantojuvenil.
O livro conta a história de quatro diferentes crianças e sua relação com um
palhaço e uma boneca, brinquedos, que quando jogados no lixo, e encaminhados a
um depósito, e quando são encontrados por outras crianças e transformados em
novos brinquedos, essas crianças que no trabalho com o lixo, mantém um meio de
sobrevivência. A leitura da narrativa em suas minúcias propicia ao leitor uma forma
poética que auxiliar o tratamento de temas difíceis com as crianças pequenas.
O livro Abaré (2009)da autora Graça Lima tem formato quadrado e mede 20,5
centímetros em cada um de seus lados. Catalogado como Livro infantil ilustrado, conta
a história do menino indígena nas 17 imagens que ocupam 34 páginas duplas, além
das 8 páginas que abrem e finalizam o livro. A narrativa explora a sequência de ações
de um menino indígena durante um dia inteiro, desde quando acorda até quando se
prepara para dormir, dando conta de mostrar ao leitor inúmeras situações pelas quais
o menino se aventura, contextualizando a comunidade indígena Matis, que são
conhecidos como o povo onça, por serem excelentes caçadores e pelas suas
interessantes pinturas corporais, informações trazidas pela autora em um dos
paratextos finais do livro.
A escolha desse livro para essa análise se deu porque é o único título de
livros de imagem dentre todos os acervos que apresentada uma narrativa que
contemple a temática indígena, mesmo que seu estudo, nas instituições de educação
básica, seja obrigatório pela lei nº 11.645/200818.
Os livros É um gato? (2002) e É um ratinho? (1998) do autor Guido Van
Genechten fazem parte da composição do acervo para o PNBE da Educação Infantil
no ano de 2014. Destacam-se dos demais por serem os únicos livros de imagem com
características de livro brinquedo dentre todos os acervos, de papel cartonado com
brilho. Não apresentam imagens que narram uma história a partir de uma sequência,

18
A Lei nº 11.645/2008 inclui como obrigatório o estudo da temática, história e cultura afro-
brasileira e indígena no currículo oficial da rede de ensino.

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mas, ao abrirem-se como uma espécie de um folder, vai mostrando imagens de


diferentes animais a partir de um ponto em comum, como a orelha de um gato em um
dos livros, que a cada nova abertura da ―página‖ que se dobra, vira outro animal: um
pato, um papagaio, um polvo e por fim, um tucano. Quando fechado tem 12 X 22
centímetros, ao final, quando todas as suas dobras estão abertas, fica com 70
centímetros.
As imagens, de traços simples, são bastante coloridas e ocupam todo o
espaço de cada uma das ―páginas - dobras‖, possibilitando à criança o fácil
reconhecimento de cada um dos animais apresentados. Por sua natureza lúdica,
destaca-se pela surpresa causada pela abertura de cada dobra e pela forma, por ser
leve se torna de fácil manuseio pelas crianças pequenas.

As interações dos bebês com os livros

Ouvir e contar histórias sempre estiveram presentes nas nossas vidas, desde
o momento do nosso nascimento aprendemos a partir das experiências que
vivenciamos e também, por meio das experiências das quais os outros nos contam.
Nós seres humanos sentimos desejo de contar fatos que vivenciamos, sentimos,
pensamos, sonhamos. E é desse desejo que surgiu a literatura, do anseio em escutar
e contar e, por meio desta prática, compartilhar experiências e saberes. Para
formarmos crianças que gostem de ler e tenham uma relação de bem querer com a
literatura é necessário que propiciemos experiências agradáveis, possibilidades de
interação com o objeto livro e com o ato de ouvir e contar histórias desde muito cedo
(KAERCHER, 2001).
Pesquisas e perspectivas recentes na área da Educação Infantil, como os
estudos de Fernanda Tristão (2004), Rosinete Valdeci Schmitt (2008, 2015), Daniela
Guimarães (2008) e Ângela Maria ScalabrinCoutinho (2010), vêm contribuindo para
lançarmos um novo olhar acerca da capacidade e potencialidade dos bebês.
Distintamente do que algumas perspectivas discutiam, as crianças bem pequenas
estabelecem relações sociais com seus pares e também com o mundo, participando
ativamente do seu entorno social, significando os espaços a partir das suas
experiências, comunicando com seu corpo, por meio dos gestos, sorrisos, sons,
olhares, enfim, seus muitos modos de se expressar.
Nesse sentido, compreendemos a criança como sujeito histórico e social,
cidadã de direitos, potente e, que, sobretudo, deve ter respeitada na sua
singularidade. As crianças se desenvolvem na medida em que se relacionam com o
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mundo, a partir das interações com a realidade social e cultural, são produtoras
legítimas de cultura. Nesse sentido, qual o papel que a creche 19 assume na relação
que estabelece com as crianças? A educação infantil deve organizar e propiciar os
melhores espaços e condições para que as crianças vivam sua infância e amplie seu
repertório cultural.
Todas as crianças tem o direito de sentir o livro, cheirá-lo, explorá-lo em sua
materialidade: a creche deve ser também, um espaço de ler e contar histórias, espaço
de brincar com os livros. Por esse motivo, é fundamental que as professoras de bebês
planejem distintas oportunidades para que os livros possam comportar as brincadeiras
dos pequenos no cotidiano da creche.
Segundo Eliane Debus (2006) o contato da criança com o objeto livro pela
feição material é considerado a primeira cerimônia de apropriação da leitura e leva-nos
a refletir sobre as manifestações sensoriais que surgem pela interação palpável entre
o leitor e o livro. Nessa perspectiva, poderíamos dizer que a leitura inicia-se pelos
sentidos: a visão, o som, o toque. Ao tocar e sentir o livro, a criança vai ensaiando seu
papel de leitor, experimentando a partir de uma leitura sensível que mexe com os
prazeres do corpo:

Assim, a criança faz sua primeira leitura pelo contato com os


elementos físicos constitutivos do livro: o tipo de papel, a textura, o
volume, a extensão do número de páginas, o colorido das ilustrações
etc. Esse esboço da leitura pode ocorrer já nos primeiros dias de vida
do bebê, quando o aproximamos do livro objeto, isto é, dos livros de
pano, de plástico e de outros materiais resistentes, como os de
papelão, de borracha etc. Nesse momento, os livros com essas
características ocupam um papel próximo ao do brinquedo: a criança
tem a oportunidade de manter uma relação palpável com um objeto
que se identifica com a estrutura física do livro (DEBUS, 2006, p. 36).
Pensar possibilidades de propostas pedagógicas que promovam a interação
dos bebês no contexto educativo da creche com o objeto livro é fundamental para que
as crianças experimentem os distintos gêneros literários, ensaiando seu papel de leitor
– e também se constituindo como tal. Para Luiz Percival Leme Britto (2012) o desafio
dos profissionais que atuam na Educação Infantil consiste em preocupar-se menos
com ensino das letras, numa pedagogia reducionista, mas voltar à atenção na
construção de bases para que as crianças possam participar criticamente da cultura
escrita, conviver com a organização do discurso escrito e, deste modo, experimentar
distintas formas os modos de pensar escrito. Segundo Suely Amaral Mello (2012):

19
Na Educação Infantil – primeira etapa da educação básica - denomina-se creche para o
atendimento de crianças na faixa etária entre 0 a 3 anos e pré-escola para o atendimento
das crianças de 4 a 6 anos de idade.
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[...] promover atividades por meio das quais as crianças possam


perceber a escrita em sua função social antecede o processo técnico
do ensino dos procedimentos da escrita, pois, assim, formamos nelas
a atitude de buscar a mensagem do texto escrito. Formar uma atitude
leitora vem antes do ensino da técnica, porque quem aprende é
sujeito ativo, que pensa enquanto aprende... pensa e atribui sentidos
ao que aprende, e os sentidos que atribui aos objetos culturais
constituem um filtro com o qual o sujeito se relaciona com o mundo
(p. 78).
É importante que as crianças percebam a leitura como uma ação contínua e,
sobretudo, a sua função social. Deste modo, o livro precisa ser incluído em seu
cotidiano, para que se sintam próximas e convidadas a manuseá-lo, explorá-lo e
descobri-lo em suas múltiplas dimensões. Ao se tratar da interação das crianças
ainda muito pequenas – os bebês -, o livro-brinquedo apresenta-se como uma
possibilidade profícua, uma vez que o livro-brinquedo convida às crianças a
exploração de ler brincando:

O livro-brinquedo pretende desde o início, em função objetiva-


comunicativa-expressiva, ser além do texto, ser suporte formado no
desenvolvimento de recursos multimeios selecionados e
aperfeiçoados à arte-criação. Possivelmente porque mexe com
inclinações infantis, impulsos/pulsões, afetos, sentimentos, prazer
sensorial, vontades primárias (ver, olhar, tocar, sentir), acolhe e
ressoa anseios em projeções de entusiasmo enlaçador. Belo e
surpreendente, torna-se desejado na dimensão do brinquedo, porque
a criança não precisa reconhecê-lo nem pela dimensão de
mercadoria nem pela da arte, muito menos por seu valor expresso
educativo. A criança aprende pelo brincar, porque se afeiçoa, se
diverte e deslumbra maravilhas lúdicas, orientando a experiência não
ao contemplativo mediado, mas ao aprender usando (PAIVA;
CARVALHO, 2011, p.32).
A partir de algumas experiências em oficinas de leitura e criação no contexto
da Educação Infantil, Ana Paula Paiva e Amanda Carla Minca Carvalho (2011)
explicitam que o livro-brinquedo convida as crianças a uma participação intensa na
interação com o objeto livro, sobretudo, a querer experenciá-lo pelos seus aspectos
instigantes: morder, cheirar, pegar, apertar, balançar, rodar, ouvir, dentre outros. Outro
elemento que pode propiciar a brincadeira são os próprios temas abordados nos livros
de literatura infantil (como mitos, lendas, jogos, contos de fada, fábulas, trava línguas,
etc), mas o livro-brinquedo é uma categoria de livro que proporciona interatividade e
experiências motoras (PAIVA, 2012): ―suas edições e acabamentos se esforçam para
ajudar a construir habilidades e competências no manuseio, e tentam motivar anseios
que fluem na hora da brincadeira, ou seja, na espontaneidade, na disponibilidade e até
no improviso daquele que aprende a ler, a manusear, a se aventurar na descoberta do
suporte livro‖ (p.78).

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Os bebês manifestam seus sentimentos e sensações ao outro a partir de


seus movimentos e gestos, a dimensão corporal é, portanto, central na ação com as
crianças pequenas. É por meio da corporeidade que eles inicialmente se comunicam e
descobrem o mundo, por este motivo as experiências sensíveis, lúdicas e estéticas
que o livro-brinquedo promove são relevantes na prática pedagógica no contexto da
creche. Uma vez que, com os bebês, o caminho principal de produção de sentidos de
leitura é a relação corporal.

Considerações Finais

Quando pensamos na formação dos pequenos leitores, é essencial


refletirmos sobre o espaço e tempo disponíveis/selecionados para as ações
pedagógicas que envolvem a leitura e a literatura, tendo em vista que estes também
são mediadores das ações de leitura. Com a organização dos diferenciados tempos e
espaços coletivos de leitura literária, percebemos como temos profissionais
preocupados em aproximar as crianças da cultura letrada, participando ativamente da
formação dos pequenos leitores, inventando e reinventando novas possibilidades a
cada dia.
Refletimos também sobre o acesso das crianças ao acervo nas unidades, e
defendemos a importância do contato da criança com o livro, sem a preocupação de
evitar sujá-los ou rasgá-los, tendo em vista que isso permite que a criança
compreenda a função social do livro e como conservá-lo, ou seja, privarmos a criança
do encontro com o livro é não oportunizar esse aprendizado. Portanto o acervo
necessita estar ao alcance da criança, para a sua autonomia quanto à escolha de
leitura, podendo escutar, tocar, sentir, cheirar, degustar, realizando a sua leitura
ficcional (DEBUS, 2006). Partimos da ideia de que a criança, mesmo não lendo o
código gráfico, já está em práticas sociais de leitura.
O pesquisador Duarte Júnior (1991), acredita que ―a experiência estética
solicita uma mudança na maneira pragmática de se perceber o mundo‖ (DUARTE
JR.,1991, p.33). Assim, pode-se afirmar que a experiência estética possibilitada por via
da literatura proporciona que a criança reconheça-se como leitora, e assim, perceba-
se como sujeito de cultura. Dentro desse universo, os livros de imagem, oferecem à
criança pequena a possibilidade da ampliação das habilidades de leitura, de
alargamento de repertórios e de experiência estética, ampliando sua experiência como
sujeito, abrindo frestas para um pensamento crítico frente a linearidade do cotidiano.
Pois os livros literários infantis, como objeto de arte, expressão e criatividade, colocam
a criança leitora a perceber e refletir, sobre si mesma e sobre o mundo.
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Quando falamos em um tempo e espaço coletivos de leitura literária nas


instituições de Educação Infantil, estamos nos preocupando com a formação dos
pequenos leitores desde os primeiros anos de vida e os benefícios que isso implicaria
se pudéssemos contar com investimentos no que se refere ao profissional
responsável, ao acervo disponível e a tudo o que engloba a organização desse tempo
e espaço. Contudo, precisamos ter claro que o(a) professor(a), o registro, o
planejamento e a organização desses momentos são tão importantes quanto qualquer
um dos investimentos iniciais, pois eles serão os mediadores dessa ação,
fundamentais para a formação leitora.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

A NARRAÇÃO DE CONTOS PARA CRIANÇAS EM IDADE PRÉ-


ESCOLAR: UM RECURSO PEDAGÓGICO FUNDAMENTAL PARA
PROMOVER O DESENVOLVIMENTO INFANTIL

Dulciene Anjos de Andrade e Silva, Universidade do Estado da Bahia - UNEB.


Eixo Temático 2: Literatura Infantil para crianças pequenas.

Considerações Iniciais

Em nossos dias, o discurso pró desenvolvimento das habilidades


acadêmicas, muitas vezes reforçado por leis, documentos oficiais e/ou programas para
a educação infantil, tem contribuído para a ocorrência de um fenômeno recorrente no
cenário das instituições pré-escolares: a tendência a se aproximar cada vez mais a
pré-escola do ensino fundamental, sob o pretexto de promover uma transição suave
entre ambos. Como explica Thomas Armstrong (2008), referindo-se a fenômeno
semelhante ocorrido nas instituições de educação infantil dos Estados Unidos,
subjacente a essa prática está o objetivo de organizar a educação infantil do modo
cada vez mais parecido com os propósitos do ensino fundamental: reduzindo os
espaços destinados ao livre brincar, ao exercício da fantasia imaginativa, à ampla
movimentação da criança, os professores têm iniciado cada vez mais e mais
precocemente as crianças da pré-escola nas habilidades acadêmicas, baseados na
crença equivocada de que quanto mais cedo elas se desenvolvam intelectualmente,
mais inteligentes se tornarão.
Entretanto, de acordo com teóricos que se debruçaram ao estudo do
desenvolvimento humano, a evolução neurológica da criança é um processo
sequencial marcado por etapas caracterizadas por fases diferenciadas que justificam
as especificidades das crianças em distintos estágios de desenvolvimento.
Desconsiderar as características e necessidades peculiares da criança em idade pré-
escolar em prol da estimulação precoce das habilidades acadêmicas denota o quão
desconhecida é, para os docentes e consultores da educação infantil, a compreensão
192

dos processos e fenômenos que, vinculados ao pensamento simbólico-metafórico da


criança, constituir-se-ão nos gérmens de todo o seu raciocínio abstrato posterior.
Apoiando-se nas contribuições de Jean Piaget e em pesquisas das
neurociências, este texto tem por objetivo discorrer sobre as evidências neurológicas
que se mostram significativas para a compreensão das diferenças estruturais e
funcionais entre o cérebro de uma criança pequena e o cérebro de uma criança com
maior idade, identificando porque a narração de contos para crianças em idade pré-
escolar é um recurso potencialmente fértil para favorecer o seu desenvolvimento e,
inclusive, o seu pensamento abstrato. Antes, porém, convida a uma breve reflexão
sobre os contos de fadas e sua relação com a consciência mítico-simbólica e
imaginativa, destacando as correspondências entre o desenvolvimento desse tipo de
consciência na humanidade e na criança e identificando os pontos de interseção entre
esse material narrativo e o modus operandi do pensamento infantil.

Os contos de fadas e a consciência mítico-simbólica


Os contos de fadas são narrativas maravilhosas cujas origens remontam
possivelmente à pré-história, quando anciãos das tribos partilhavam, ao redor da
fogueira, relatos do cotidiano mesclados com mitos e rituais de iniciação praticados em
sua comunidade. Segundo Vladimir Propp (1997), são reminiscentes dos rituais de
iniciação e dos mitos: quando estes perderam o seu significado sagrado e religioso,
tornando-se profanos e artísticos, nasceram os contos.
Para Jette Bonaventure (1992), em poucas imagens arquetípicas, o conto de
fadas sintetiza rapidamente o essencial da experiência humana ancestral, fornecendo
pistas para o homem entender a si mesmo e ao mundo que o rodeia.
Também Clarice Pinkola Éstes (2005), de forma bastante metafórica, nos fala
do poder desses contos com relação aos registros que evoca de nossa vida anímica,
de uma dimensão muito profunda da psique:

Os sentimentos grandes e profundos gravados nos contos de


fadas são como o rizoma de uma planta, cuja fonte de alimento
continua viva sob a superfície do solo mesmo durante o
inverno, quando a planta não parece ter vida discernível à
superfície. A essência perene resiste, não importa qual seja a
estação: tal é o poder do conto.

Observando-se o percurso de desenvolvimento da humanidade, podemos


identificar que essa trajetória é o resultado de um caminho evolutivo que se expressou,
inicialmente, através de uma consciência perceptiva de si e do mundo, passando em

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seguida para uma perspectiva mítico-simbólica para, só então, alcançar uma


consciência estruturada segundo a lógica e a razão. O psicanalista Bruno Bettelheim
(2002, p.65) demonstra também compreender esse percurso evolutivo:

A humanidade usou projeções mentais (deuses, etc) para


explicar o homem, sua sociedade e o universo, e essas
explicações míticas deram-lhes segurança. Mais segura, pôde
questionar a validade das imagens que usou no passado como
instrumento de interpretação, propondo explicações mais
racionais para os fenômenos.

De acordo com a lei biogenética de Ernest Haeckel (1834-1919), há um


paralelismo entre o desenvolvimento do embrião individual e o desenvolvimento da
espécie ao qual pertence. Nessa perspectiva, a ontogênese (desenvolvimento do
indivíduo) é uma repetição sintética da filogênese (evolução da estirpe à qual
pertence), de forma que a criança repete, em escala reduzida, o caminho de
aprendizagem e desenvolvimento da consciência que a humanidade percorreu
(PASSERINI, 1998).
Em linhas gerais, podemos dizer que, assim como a humanidade
desenvolveu, num primeiro momento, um tipo de inteligência que denominamos de
prática, também a criança no seu primeiro estágio de desenvolvimento, denominado
sensório-motor, apreende a si e ao mundo através de suas próprias ações. Se, em
seguida, a humanidade se deslocou dessa consciência perceptiva de si para uma
compreensão mítica-simbólica, de modo análogo, também a criança o faz, realizando
a transição entre a inteligência sensório-motora e a inteligência representativa,
possibilitada pelo advento da representação simbólica.
Como nos explica Piaget (1978), nesse estágio, denominado objetivo-
simbólico, ou pré-operacional, a criança não pensa no sentido estrito que atribuímos
ao termo, mas constrói imagens mentais daquilo que lhe é evocado, podendo
―transportar o mundo para a sua cabeça‖. Essa capacidade de representação será
responsável pelo desenvolvimento da função simbólica, permitido à criança
representar objetos e relações. O raciocínio da criança, nesse estágio, está ligado às
suas próprias percepções e às aparências das situações, sendo fruto do caráter pré-
lógico do seu pensamento.
Somente após ter passado pelos dois estágios anteriores é que a
humanidade alcançou uma consciência estruturada segundo a lógica e a razão: e isto
é o que também anuncia Piaget com relação ao desenvolvimento da inteligência da
criança. Conforme o mestre de Genebra, somente depois de conquistadas as
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inteligências prática e representativa é que a criança, enfim, desenvolve habilidades


mentais que evidenciam uma forma diferenciada de abordar o mundo, passando de
uma inteligência que se caracteriza pela expressão de uma lógica interna mais
consistente, que possibilita a resolução problemas concretos (correspondente ao que
denomina de período operatório, ou das operações concretas), até, enfim, inaugurar a
possibilidade de realizar as operações mentais dentro de princípios da lógica formal,
evidenciando o padrão intelectual característico da idade adulta, quando começa a
raciocinar de forma lógica e sistemática (alcançando o estágio operacional abstrato -
ou operacional formal).
Assim como o fez a consciência humana, a criança inicia seu processo de
desenvolvimento da consciência a partir da percepção sensorial do mundo, em
seguida, da criação de imagens ricas em conteúdos simbólicos para então alcançar a
capacidade intelectual no período da adolescência. Confrontando-se a evolução
humana e o desenvolvimento da criança, pois, observa-se, em ambos, a existência de
uma consciência mítico-imaginativa cuja linguagem se encontra nos contos de fadas e
nos mitos cosmogônicos. (PASSERINI, 1998).

Os contos de fadas e o modus operandi do pensamento infantil


Graças à profunda influência que a cosmovisão moderna e positivista, ainda
em nossos dias, tem exercido em nossa cultura e em nossa educação, muitos pais (e
também muitos educadores) têm questionado a validade de se narrar às crianças em
idade pré-escolar os nosso conhecidos contos de fadas, justificando que "essas
histórias expõem a criança à informações não verdadeiras", ou "que não ensinam
nada útil para as crianças", e, além disso, "não ajudam a desenvolver o seu
raciocínio". Essa prática milenar tem se esmaecido nos ambientes formativos - ou
então seu material tradicional substituído por narrativas modernas e mais adequadas
aos discursos das minorias, como expressão do politicamente correto.
Conforme nos explica Bettelheim (2002), as "histórias verdadeiras" sobre o
mundo real certamente fornecem informações interessantes e às vezes útil para as
crianças. Entretanto, o modo como se desenvolvem é tão alheio ao modo como
funciona a mente da criança como o é para o intelecto de um adulto um evento
sobrenatural. As explicações realistas contidas nessas histórias são incompreensíveis
para a criança pequena, uma vez que elas não possuem, ainda, o tipo de raciocínio e
visão de mundo objetiva e abstrata comum aos adultos.
Assim, a natureza irrealista do conto é, para Bettelheim (2000, p.33-34), "um
expediente importante, porque torna óbvio que a preocupação do conto não é uma
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informação útil sobre o mundo exterior, mas sobre os processos interiores que
ocorrem num indivíduo". E continua: "histórias estritamente realistas correm contra as
experiências internas das crianças, (...) informam sem enriquecer" (p.70).
Segundo o autor, os contos de fadas são o melhor veículo para ajudar as
crianças, principalmente as menores, a compreender a si e ao mundo, e a lidar com
suas demandas interiores. Nos contos de fadas, os processos internos relativos à
psique são exteriorizados, personificados pelas figuras e acontecimentos; eles falam
de todas as questões vivenciadas pela alma humana.
Bonaventure (1992, p.12) corrobora com o que anuncia o psicanalista norte-
americano. Nas palavras da autora,

(...) do ponto de vista da educação moral e humana, os contos


até parecem contar uma lição duvidosa e ambígua. (...) [Mas]
sem que percebamos, essas histórias falam da realidade do
ser humano, de sua busca, de seus traumas e dificuldades. (...)
Ao ler e reler os contos (...), cada vez mais sentia que na sua
linguagem simbólica, eles diziam de maneira muito mais rica o
que eu tinha estudado nos livros de psicologia. Em apenas
poucas páginas e de maneira bem concisa, mostram como é
que processamos os conflitos da infância, da adolescência, os
grandes problemas da existência (...)

Os contos, portanto, falam do máximo da experiência humana - e de uma


maneira muito simples, de um modo que, inconscientemente, as crianças conseguem
compreender:
O conto de fadas procede de uma maneira consoante ao
caminho pelo qual a criança pensa e experimenta o mundo; por
esta razão (...) são tão convincentes para ela. (...) Uma criança
confia no que o conto de fadas diz porque a visão de mundo aí
apresentada está de acordo com a sua. (...) Esses contos
começam onde a criança realmente se encontra no seu
psicológico e emocional. (BETTELHEIM, 2000, p.59).

O pensamento da criança pequena é, segundo Piaget (1970), animista - e


permanece assim até a puberdade. Ao estudar como a representação do mundo real é
construída pela criança, e buscar compreender as explicações por elas dadas para o
funcionamento do universo, o autor nos possibilita concluir que, tal qual um cientista
que busca explicar as leis do universo, a criança constrói explicações para esses
fenômenos. Entretanto, graças ao estágio de desenvolvimento de consciência em que
se encontra, suas explicações, longe de refletirem a lógica que caracteriza o
funcionamento mental do adulto, são permeadas de fantasia e imaginação, de modo a
refletirem um modo de perceber tão intuitivo como o que encontramos nos mitos. Se
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perguntássemos para uma criança o que é o sol, por exemplo, não seria uma surpresa
que ela nos respondesse que o sol "é uma bola de fogo que apaga de noite", ou que
"é uma bola bem grande que alguém acendeu com um fósforo"...
Ao destacar alguns elementos do pensamento de Piaget em direção à
compreensão dos mecanismos internos do desenvolvimento da criança, Vera Aguiar e
outras autoras (2011) explicam que, ao se dedicar a explorar o as explicações que a
criança dá para o funcionamento do universo o epistemólogo suíço identificou, por
exemplo, que, para ela, os fenômenos da natureza como o vento, a chuva ou o trovão
são realizações do homem (como no exemplo acima acerca do conceito que podem
sobre o sol).
A criança pequena, portanto, acredita fielmente que as coisas e os objetos
agem como ela. Como também assinala Bettelheim (2000), para ela não existe uma
linha divisória que, de acordo com sua concepção, separe seres animados e
inanimados, de modo que lhe parece algo perfeitamente natural que um homem possa
se transformar em sapo - ou o contrário, como acontece com A Bela e a Fera. Neste
sentido, os contos de fadas se apresentam como o correspondente funcional do
modus operandi da sua mente, constituindo-se como a linguagem por excelência
acessível à sua inteligência representativa.
Mas os contos de fadas também lhes chegam carregados de conteúdos
valiosos que, inconscientemente, vão se organizando em sua experiência anímica. Diz
Cooper (2004,p.16):

Uma das funções mais importantes dos contos de fadas é fazer


com que a criança se identifique e se veja submersa em
experiências e situações arquetípicas (...). Essa identificação
ajuda a superar os sentimentos de isolamento e solidão aos
quais o ser humano é tão inclinado e, ao fazê-lo, possibilita que
se sinta parte de um todo maior; o final feliz, por sua vez, lhe
dá a agradável sensação de ser a parte triunfal de todo o
conjunto.20

São, pois, muitas as perspectivas que alinhavam os laços que entrelaçam o


pensamento infantil e a linguagem dos contos de fadas - ou, ainda, a linguagem
emocional da criança e os conteúdos anímicos dos contos de fadas. Esse fenômeno
reveste esse gênero de importância fundamental com relação ao desenvolvimento
psicoemocional da criança, uma vez que contribuem para a percepção e compreensão
de si e de suas demandas internas, possibilitando-lhe, com grande segurança,

20
Tradução da autora.
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organizar suas emoções. Mas tais contos exercem também um grande papel no
desenvolvimento de sua imaginação e de seu raciocínio abstrato, como veremos a
seguir.
A construção de imagens ao ouvir histórias: base para o desenvolvimento
do raciocínio abstrato
Quando a criança ouve um conto de fadas, instaura-se um espaço de
liberdade que lhe concede a possibilidade de criar o seu cenário, a sua música, as sua
cores. Cada ouvinte, cada criança, ao escutar um conto, vai construindo mentalmente
a sua história a partir dos seus referenciais próprios, e do que eles possam significar
para cada um. Como bem o esclarece Cléo Busatto (2004),

Um conto nunca vai provocar o mesmo efeito nas diversas


pessoas que o ouvem. É a história de vida de cada um que
determinará com que cores e com que música ele vai soar.
Uma princesa citada num conto jamais será a mesma
personagem para as diferentes pessoas que estiverem ouvindo
este conto. A minha princesa anda e fala como eu imaginar,
pois esta determinante só compete a mim. A floresta onde
Chapeuzinho Vermelho encontra o lobo pode ter as mesmas
flores azuis e amarelas descritas pela narrativa, porém a luz
que o sol lança pelo as árvores vai provocar uma luminosidade
única para cada pessoa, e assim a história também será única
para cada um que ouvi-la. (p.18).

Neste sentido, são múltiplas as possibilidades imaginativas que o conto


oferece à criança: a partir dos elementos disponibilizados pela narrativa, cada ouvinte
irá delinear o seu próprio cenário, em conformidade não apenas com seus referenciais
socioculturais, como também de acordo com o seu estado de ânimo e/ou com as suas
demandas emocionais, conforme assinalamos no tópico anterior. Como ainda pontua
Busatto (2004, p.18), as mensagens contidas nos contos "irão ativar diferentes afetos,
quão diferente é a realidade interna de cada pessoa. Cada conto terá seus contornos
definidos e influenciados pelo acervo de imagens visuais inerentes a cada ouvinte."
Analisando esse fenômeno a partir da perspectiva neurofuncional, Joseph
Pearce (2002) contribui para ampliar a nossa compreensão acerca das relações entre
a narração de histórias e o desenvolvimento cognitivo da criança. De acordo com
Pearce, quando a criança ouve um conto de fadas, o seu cérebro é estimulado a criar
um fluxo correspondente de imagens - e esse acontecimento é um enorme desafio, já
que requer a atividade de muitos campos neurais. Cada nova narrativa a que a criança
é submetida gera uma sequência inteiramente nova de interações entre os campos
neurais, de modo que, à medida que se multiplicam essas experiências, há também
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um potencial desenvolvimento das estruturas que dão suporte ao funcionamento


cognitivo. Diz Pearce (2002, p.160): ―quanto mais forte e permanente se torna a
capacidade de interação verbo-visual, mais fortes se tornam a conceituação, a
imaginação e a atenção, enquanto o escopo e a flexibilidade das capacidades neurais
em geral aumentam‖.
Para o autor, assim como ocorre com o jogo simbólico (quando, por exemplo,
o galho de uma planta ou um lápis torna-se um avião), a criação de imagens internas
(vivenciada pela criança ao lhe narrarmos uma história, por exemplo) desenvolve o
pensamento da criança, iniciando-a numa lógica futuramente muito usual no ―mundo‖
adulto. Em outras palavras, o advento da criação de imagens mentais é um alicerce do
futuro pensamento simbólico e metafórico que o indivíduo desenvolverá tanto nos
estágios do pensamento concreto quanto do pensamento operacional formal. É, pois,
na atividade imaginativa e fantasiosa, no exercício da representação simbólica na
primeira infância que, conforme assevera Pearce, estão os germens do
desenvolvimento do raciocínio abstrato do adolescente/adulto:

Do mesmo modo que o físico usa ―h‖ para representar a


constante de Planck para que possamos ―ver‖ como o mundo
interior do átomo funciona, ou como um poeta usa a metáfora
(o lago é uma safira) para nos fazer ver algo sobre uma nova
luz, a criança nos mostra a caixa de fósforos caindo aos
pedaços e diz: ―veja como meu barco é bonito‖. Isso é ver com
criatividade, em vez de passividade, a capacidade que William
Blake e outros retiveram por toda a vida e cultivaram até
transformar numa arte refinada (PEARCE, 2002, p.163).

A narração de histórias, ao instituir um campo de possibilidades para a


representação imaginativa, portanto, estimula e exercita a capacidade de interação
verbo-visual e potencializa desenvolvimento neurológico da criança assim como o a
atividade que envolve a motricidade exercita seus músculos, funcionando como uma
"ginástica cerebral" que, gradualmente, vai iniciando a criança nos mecanismos
lógicos a serem requeridos futuramente nos estágios de pensamento posterior, em
sua futura capacidade de abstração e conceituação.

Considerações finais
Este artigo teve o propósito de refletir sobre a importância da narração de
contos de fadas para crianças em idade pré-escolar, buscando compreender as
características do pensamento dessas crianças nessa fase específica de seu
desenvolvimento, a partir das contribuições da teoria psicogenética de Piaget e das
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contribuições da neurociência. Identificou que as crianças do estágio pré-operacional


demonstram uma consciência mítico-imaginativa cuja linguagem se encontra nos
contos de fadas e nos mitos cosmogônicos, o que faz com essas narrativas ocupem
um lugar especial e acessível à sua inteligência representativa.
Com seu conteúdo metafórico rico em imagens que traduzem o essencial da
experiência da humanidade, os contos de fadas falam à mente consciente e
inconsciente da criança, contribuindo para organizar suas pressões internas e
aproximá-la da compreensão de si mesma, revestindo-se significado para o seu
desenvolvimento psicoemocional. Mas o fato de que, ao escutar essas narrativas, a
criança desfruta da possibilidade de, ela mesma, a partir de seu repertório e de seus
afetos, criar as suas próprias imagens mentais - processo que, ao ativar muitos
campos neurais, a inicia nos mecanismos do pensamento lógico -, faz dessa
experiência um importante aporte ao seu desenvolvimento cognitivo.
Como explica Pearce (2002), a criança que não desfruta da possibilidade de
criar imagens interiores possivelmente não desenvolverá suficientemente a sua
imaginação, pois a maior parte do seu cérebro ficará sem utilização - e isso é um
grave expediente, pois significa que, mais adiante em seu processo de escolarização,
terá dificuldade em ―ver‖ o significado do símbolo matemático, de aprender as fórmulas
químicas, nem sempre podendo identificar ou compreender as sutilezas que só
conseguimos enxergar se temos a capacidade (crítica) de ler ―nas entrelinhas‖,
acessando o conteúdo subjacente ao primeiro plano das ideias apresentadas.
Mais do que instituições pré-escolares orientadas pelo discurso das
habilidades acadêmicas, cuja prática, como já pontuado, busca uma aproximação
cada vez maior com o ensino fundamental e seu enfoque em habilidades relacionadas
aos conteúdos formais, desconsiderando as especificidades do desenvolvimento
humano, necessitamos, sim, de referências educacionais comprometidas com uma
educação infantil harmonizada com as características e necessidades do
desenvolvimento da criança da primeira infância, e que, por conseguinte, possa criar
um ambiente propício para que as crianças sejam estimuladas às ricas vivências
imaginativas proporcionadas pelas narrativas de contos de fadas... Assim, estaremos,
de fato, contribuindo para a formação do ser integral - e, inclusive, favorecendo o
desenvolvimento das tão desejadas habilidades acadêmicas.

Referências

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para formar leitores. 4a. ed. Belo Horizonte: Formato Editorial, 2001.

ARMSTRONG, Thomas. As melhores escolas: a prática educacional orientada pelo


desenvolvimento humano. Porto Alegre: Artmed, 2008.

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. 16. ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2002.

BONAVENTURE, Jette. O que conta o conto? São Paulo: Paulinas, 1992.

BUSATTO, Cléa. Contar e Encantar. Pequenos segredos da narrativa. Petrópolis -


RJ: Vozes, 2004.

COOPER, J. C. Cuentos de hadas. Alegorías de los mundos interiores. 3a.ed.


Buenos Ayres: Editorial Sírio, 2004.

ÉSTES, Clarice Pinkola. Contos dos irmãos Grimm. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

PASSERINI, Sueli Pecci. O Fio de Ariadne. Um Caminho para a Narração de


Histórias. São Paulo: Antroposófica, 1998.

PEARCE, J. O fim da Evolução: reivindicando a nossa inteligência em todo o seu


potencial. São Paulo: Cultrix, 2002

PIAGET, Jean. A representação do mundo real na criança. Rio de janeiro: Zahar,


1970.
______. A formação do símbolo na criança. Imitação, jogo e sonho, imagem e
representação. Rio de janeiro: Zahar, 1978.

PROPP, Vladimir. As Raízes Históricas do Conto Maravilhoso. São Paulo: Martins


Fontes, 1997.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

A PERSPECTIVA VIGOTSKIANA DA LITERATURA INFANTIL:


FORMAÇÃO DO PROFESSOR E EDUCAÇÃO INFANTIL

Cleonice Marçal 1, Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) –


Campus de Foz do Iguaçu
Tamara Cardoso André 2, Universidade Estadual do Oeste do Paraná
(Unioeste) – Campus de Foz do Iguaçu, eixo temático 2: Literatura Infantil para
crianças pequenas

Considerações Iniciais

A proposta de estudar a literatura infantil como arte em si na Educação formal,


pressupõe a discussão do trabalho pedagógico desenvolvido pelo professor e de como
a sua formação na graduação e pós-graduação, assim como da formação continuada
no trabalho, influi na sua prática docente, no ato de ensinar e na ação de aprender,
com relação à educação do aluno pequeno no contexto da escola infantil, creche ou
pré-escola.
A concepção vigotskiana sobre a literatura infantil e o processo de ensino e de
aprendizagem demonstra que a literatura precisa ser utilizada, na educação formal,
como apreciação estética. Isso pode ser realizado desde a Educação Infantil, com
crianças de 01 a 05 anos de idade. Como isso pode ser encaminhado na metodologia
do professor? Por este viés, indaga-se: no cotidiano da sala de aula da Educação
Infantil, como incentivar o interesse literário desde a mais tenra infância? O propósito,
ao buscar resposta para estas questões, é compreender a perspectiva vigotskiana da
literatura infantil e a sua relação com a educação estética na educação infantil. A
justificativa está na importância de refletir acerca das relações entre o pensamento de
Vigotski acerca da literatura infantil e o processo de ensino e aprendizagem na
Educação Infantil.
A literatura infantil no cotidiano da sala de aula é uma temática séria e
preocupante, pois está vinculada com a formação do gosto estético da vivência
202

artística, formação leitora do gosto literário e do desenvolvimento psíquico da criança


na formação humana, conforme a fundamentação ancorada na Teoria Histórico-
Cultural.

O pensamento vigotskiano da literatura infantil e a sua importância na


formação docente da Educação Infantil

A teoria histórico-cultural foi fundamentada no Materialismo Histórico-Dialético


de Karl Marx e Engels no que tange ao postulado da formação do homem a partir do
trabalho e, da construção e emprego de ferramentas. Nesta perspectiva, o homem, ao
transformar a natureza, transforma a si mesmo e ao meio, no intuito de suprir suas
necessidades e garantir a sua sobrevivência. Vigotski, Luria e Leontiev elaboraram a
Teoria Histórico-Cultural (VIGOTSKI, 2000, p. 34, Tradução Nossa), com o intuito de
estudar o desenvolvimento do homem, que resultou no método experimental para
entender as funções psíquicas superiores que distinguem os homens dos animais,
sendo elas: sensação, percepção, atenção, memória, pensamento, linguagem,
imaginação/criatividade e as emoções/sentimentos. ―[...] No processo de
desenvolvimento histórico, o homem social modifica os modos e procedimentos da sua
conduta, transforma suas inclinações naturais e funcionais, elabora e cria novas
formas de comportamento especificamente culturais 21 [...]‖. Historicamente a formação
da linguagem possibilitou o desenvolvimento do homem em sociedade, por meio das
interações sociais, na mediação e significado dos signos, segundo a realidade de
determinado momento histórico. Portanto, o desenvolvimento do homem se constitui
no processo social, cultural e histórico.

A natureza do próprio desenvolvimento transforma-se, do biológico no


sócio-histórico. O pensamento verbal não é uma forma natural de
comportamento, inata, mas é determinado pelo processo histórico-
cultural e tem propriedades e leis específicas que não podem ser
encontradas nas formas naturais do pensamento e do discurso.
Desde que, admitamos o caráter histórico do pensamento verbal,
teremos que o considerar sujeito a todas as premissas do
materialismo histórico, que são válidas para qualquer fenômeno
histórico na sociedade humana (VIGOTSKI, 2014, p. 19).

21
―[...] En el proceso del desarrollo histórico, el hombre social modifica los modos y
procedimientos de su conducta, transforma sus inclinaciones naturales y funciones, elabora
y crea nuevas formas de comportamiento específicamente culturales […]‖ (VIGOTSKI, 2000,
p. 34).
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O desenvolvimento humano a partir da linguagem evidencia a necessidade do


homem em relatar seus feitos, relações sociais, avanço da técnica, da ciência e da
arte. A, partir deste processo evolutivo do homem se configura a linguagem e a
literatura enquanto transmissão de conhecimento e, do registro de suas objetivações
na realidade22.
Em relação à literatura infantil a base ontogenética pode ser relacionada com o
modo como os contos intervieram na cultura humana. À respeito da história da
educação infantil Coelho (1991; 1993) traz contribuições ao referir-se aos gêneros
literários. Segundo a autora, o homem de diferentes contextos sempre utilizou a
oralidade para repassar aos outros o seu conhecimento constituído socialmente,
repassando acontecimentos, invenções, ensinamentos e experiências individuais e
coletivas, tendo o propósito de transmitir por meio da cultura oral o produto do seu
trabalho e do convívio em sociedade, refletido de geração em geração nos: mitos,
lendas, parábolas, fábulas, contos de fada, apólogos, parlendas, poesia e poemas. O
conto, se ampliou da oralidade para o suporte escrito livro (LAJOLO e ZILBERMAN,
2009, p. 15-18), ―[...] As primeiras obras publicadas visando ao público infantil
apareceram no mercado livreiro na primeira metade do século XVIII. Antes disto,
apenas durante o classicismo francês, no século XVII [...]‖, as autoras prosseguem ao
afirmar que ―[...] No século XVIII, aperfeiçoa-se a tipografia e expande-se a produção
de livros, facultando a proliferação dos gêneros literários [...]‖. Convém explanar que
entre os séculos XVIII e final do século XX, com as inovações tecnológicas
decorrentes, verga para o campo da informação, sendo também viabilizada no suporte
digital da tela de um computador, noteboock, celular, tablete ou smarthfone, que
marca o início da sociedade de conexões tanto oral quanto escrito entre os sujeitos
envolvidos da vinculação nas redes sociais.
Em sua vida pessoal e profissional Vigotski expressou o interesse pela
literatura, sendo um leitor ávido e brilhante estudioso, apresentando a crítica literária
na obra, A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca. No que tange à literatura para
criança, o autor discute sobre os contos de fada e o emprego da dramatização na
educação formal. Para ele, a literatura infantil deve ser manifestada, primeiro como
arte, vivência e fruição estética (VIGOTSKI, 2003; 2004); As histórias infantis devem

22
[...] Da mesma forma, tanto Vygotski (1995; 1997), Luria (2008) quando Leontiev (1978), (...)
afirmaram, portanto, que o desenvolvimento do psiquismo humano, isto é dos processos
psicofísicos responsáveis pela formação da imagem subjetiva consciente acerca da
realidade objetiva, não resulta de uma complexificação natural evolutiva, mas, da qualidade
da inserção social do sujeito e, especialmente, dos processos educativos (MARTINS, 2016,
p.57).
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ser contadas ou lidas pelo adulto sem o apelo da lição de moral, pois a moral em
Vigotski não está para a opressão, adestramento e inculcação do medo, mas à
emancipação e à promoção do desenvolvimento das funções psíquicas, contribuindo
para a superação de medos, frustações e repreensões.
Contribuindo para a formação do professor, Vigotski (2014) defende quatro
postulados que contribuem para o ensino. Primeiro a criança aprende quando
motivada e por necessidade/interesse. Em segundo lugar, o ensino antecede ao
desenvolvimento. Em terceiro, a instrução viabiliza o desenvolvimento da criança no
processo de aprendizagem. Por fim, o quarto pode também ser relacionado à
literatura, quanto ao processo de ensino e aprendizagem: a Zona de Desenvolvimento
Próximo (ZDP) ou também denominada de Zona de Desenvolvimento Iminente (ZDI),
segundo (PRESTES, 2012, p. 204), ―[...] defendemos que a tradução que mais se
aproxima do termo zona blijaichegorazvitia é zona de desenvolvimento iminente [...]‖.
Vigotski (2014, p. 20-22), explica com relação a apropriação de conteúdos escolares,
com respeito a atividade proposta (problema) de como a criança resolve sozinha ou
com ajuda do professor, sendo que, o que o aluno consegue resolver sozinho é
definido com aprendizagem real e o que ele precisa de apoio/mediação do professor é
tido como zona de desenvolvido próximo, ―[...] A experiência ensinou-nos que a
criança com a zona mais extensa de desenvolvimento próximo terá melhor
aproveitamento na escola [...]‖. O autor especifica a precisão para o ensino da
imitação, ―[...] A imitação é indispensável para se aprender a falar, assim como para se
aprender as matérias escolares. A criança fará amanhã sozinha aquilo que hoje é
capaz de fazer em cooperação [...]‖. E, observa, ―[...] a instrução deve estar voltada
para o futuro e não para o passado [...]‖. Em concordância com o posicionamento de
Montessori com respeito ao aluno que frequenta a escola desde pequeno, aborda que
no ensino de um determinado conteúdo escolar existe uma fase propicia para o
aprendizado da criança, o que caracterizou como ―período sensível‖, ―[...] O período de
escolaridade como um todo é o período ótimo para o ensino (...) impulsiona ao
máximo o desenvolvimento das funções psicológicas superiores (...) ao
desenvolvimento dos conceitos científicos [...]‖. Seguindo este raciocínio, pode refletir
que no cotidiano de sala de aula na Educação Infantil, o professor ao planejar a
proposta de trabalho pedagógico com a finalidade de tratar a literatura infantil como
arte e experiência estética, necessita aplicar estas orientações teóricas no ensino, que
tem como ponto de partida a mediação de atividades que reportem no ambiente
escolar atividades de dramatização, recitação, jogo do faz-de-conta e a leitura e

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releitura pelo aluno pequeno de histórias infantis na interpretação plástica por meio de
desenho, pintura, dobradura, recorte, modelagem, música e dança.
A atividade é importante no processo de aprendizagem da criança. De acordo
com Leontiev (2004), o homem desenvolve-se mediante a atividade/trabalho e, nas
interações, o que possibilita o desenvolvimento da linguagem, surgida na filogênese
para suprir as necessidades de sobrevivência.
Assim como a atividade é importante para a sobrevivência humana, é também
para a aprendizagem. O aluno pequeno precisa desempenhar atividades para a
apropriação do conhecimento proposto. Portanto, o professor tem a incumbência de
possibilitar a experiência artística, apresentar a literatura infantil como educação que
visa a arte em si no processo de ensino e aprendizagem, que implica o fazer do aluno
para haver desenvolvimento deste saber, que deriva e é derivado da reação estética,
que Vigotski (1999) chama de catarse. Catarse, é o processo no qual o sujeito, por
meio da arte, vivencia situações e experimenta emoções e sentimentos não presentes
em sua vida (VIGOTSKI, 1999). Na atividade de executar o trabalho proposto, seja de
ouvir, recontar, encenar, cantar e dançar, o aluno pequeno estará exercitando a
expressão artística, que atua na soma de todas as funções psíquicas, portanto recai
no uso da sensação, percepção, pensamento, linguagem, imaginação/criatividade e
emoções/sentimentos. A arte no espaço da educação formal promove a interação
social, motivação individual e a autoconduta.
Pensar, a Educação Infantil e o aspecto da literatura para criança em Vigotski
requer entender as etapas do desenvolvimento psíquico infantil segundo a teoria
histórico-cultural. A atividade escolar deve permitir o acesso e o uso dos gêneros
literários infantis, a partir do bebê de 01 a 03 anos de idade. Nesta fase, segundo
Mukhina (1995), a atividade dominante é o relacionamento emocional com o adulto,
que propicia afeto, alimentação e proteção. É, frequente observar os cuidados do
adulto com o bebê durante amamentação, banho, repouso e recreação, como sendo
gestos que podem ser abordados com cantigas, acalantos, parlendas ou gestos para
fazer a criança sorrir. No cuidado com a criança de 03 a 04 anos de idade, o adulto
deve buscar motivar as ações do pequeno propondo brinquedos e brincadeiras
envolvendo objetos, tais como, livros brinquedos, fantoches, flanelógrafos, quebra-
cabeças com cenários e personagens das histórias infantis, baú com brinquedos. A
criança de 04 a 05 anos volta o interesse para brincadeiras de jogo de papeis, com os
acontecimentos e personagens do enredo dos contos de fada. A atividade guia é a
imitação e, por isso, uma sugestão é o uso de baú com roupas variadas para brincar
de casinha ou de faz-de-conta.
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Para sintetizar o pensamento vigotskiano e a sua permeabilidade na formação


do professor na mediação do trabalho pedagógico envolvendo a literatura infantil na
educação formal dos pequenos, compreende-se que o autor rechaça a prática docente
de subtrair o valor da literatura infantil em si, extraindo dela o seu aspecto fundamental
de ser arte e expressão de vivências culturais e artísticas.
Mas, diante desta fundamentação teórica, como o professor pode proceder
segundo a proposta vigostkiana?

Intencionalidades e Mediações Pedagógicas de Formação Leitora na


Educação Infantil
Teoria Histórico-Cultural traz, contribuições para o embasamento de propostas
pedagógicas que promovam a formação leitora infantil. Vários estudiosos brasileiros
dedicam-se a compreender e a orientar; o currículo e a organização do trabalho
pedagógico na Teoria Histórico-Cultural. Em entrevista para a TV Oberekando, na
prática docente do processo de ensino e aprendizagem, da proposta da apreciação
estética literária na linha do curso de graduação e pós-graduação, com a definição
pelo Materialismo Histórico-Dialético que fundamenta a Teoria Histórico-Cultural e a
Pedagogia Histórico-Crítica, assim, como a discussão nos cursos de formação
continuada de professores. Em entrevista23 para a Televisão local de Telêmaco Borba,
a professora Doutora Marta Chaves, aponta que na Universidade Estadual de Maringá
o pressuposto teórico do curso de Pedagogia é a teoria de Vigotski, visando
justamente propiciar o máximo de desenvolvimento das potencialidades dos
educandos pelo acesso a conhecimentos que levem a conhecer realidades para além
do local de residência, da cultura local. Para estar no século XXI, segundo a
professora, a criança precisa acessar conhecimentos de fora de seu entorno imediato
e, para isso, uso de tecnologias não é suficiente.
Para ampliar o conhecimento das crianças, é preciso propor atividades
pedagógicas que viabilizem a apropriação artística literária, como postula Chaves
(2011, p. 98) ―[...] práticas pedagógicas humanizadoras poderiam ser caracterizadas
como aquelas em que os encaminhamentos teóricos-metodológico expressem a ideia
de capacidade plena das crianças no processo de ensino-aprendizagem [...]‖, e
enfatiza que ―[...] as ações das crianças seriam organizadas levando em consideração

23
Entrevista disponível em:
https://www.google.com.br/search?q=Marta+Chaves+entrevista&oq=Marta+Chaves+entrevi
sta+&aqs=chrome..69i57j69i59.25309j0j8&sourceid=chrome&ie=UTF-8 Acesso: 10/08/17.
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as máximas elaborações humanas, independente de sua idade, em se tratando de


centros de Educação Infantil [...]‖, sobre a necessidade da literatura infantil expõe que
―[...] no trabalho pedagógico. Isto significa afirmar que a literatura infantil é ao mesmo
tempo conteúdo, estratégia e recurso didático-pedagógico [...]‖, o que torna
imprescindível na formação do professor para a atuação na sala de aula.
Acerca da literatura infantil e a formação docente, Girotto e Silveira (2013, p.28)
afirmam que, ―[...] O mais importante é que este seja um momento rotineiro, que todos
os dias as crianças ouçam histórias e possam alimentar o mundo imaginário que se
constitui com elas [...]‖, e observam que ―[...] essa é uma atitude muito importante que
o educador precisa alimentar em sua prática [...]‖.
Portanto, já existem discussões acerca da formação de professores para
trabalhar com literatura infantil na educação infantil formal. Tanto Chaves (2011; 2014;
2015a; 2015b) quanto Girotto e Silveira (2013), denotam a importância da prática
docente na organização pedagógica, com relação ao conhecimento sobre a literatura
infantil no que tange a procedimentos pedagógicos e, escolha do repertório de
qualidade.Outro fator importante que precisa ser considerado na formação de
professores para o trabalho com literatura na educação infantil é a contação de
histórias. A Contação de história é a primeira prática que articula a formação leitora
inicial, conforme Costa e Valdez (2007, p. 163-172) para quem, ―[...] essa prática
enquanto direito da criança de ouvir histórias e viver fantasia e encantamento. Direito
de sentir emoção, de se divertir, de ampliar o mundo, de conhecer, de ter contato com
o livro, de aguçar a curiosidade, de imaginar e criar [...]‖, e observam que ―[...]
Incentivar a prática de contar histórias, inserindo-a na rotina das instituições que
atuam com crianças de zero a cinco anos, é uma atividade simples. Contudo deve ser
pensada, planejada e preparada [...]‖.
Jambersi (2014, p. 16), discute a retrospectiva do ato de contar histórias na
humanidade, a tradição oral, marginalizada frente aos novos recursos tecnológicos
como a televisão, substituindo a constituição do profissional contador de histórias. Na
abordagem da formação do professor o autor, dispõe que, ―[...] Logo, o contar histórias
é um processo estético de ensino e aprendizagem do ser humano, cuja experiência
estética da educação nasce do encontro e das possibilidades de aprendizagem (...) na
vivência de cada um [...]‖, Lazaretti (2016, p. 140-141) afirma que ―[...] Por, isso, as
atividades pedagógicas propostas para essa fase de desenvolvimento na infância
devem permitir que a criança possa entrar em contato com diferentes recursos:
narração de histórias [...]‖.

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Chaves (2015b) também considera a contação de histórias um fator importante


e, argumenta que ―[...] a contação de histórias é uma possibilidade de fazer valer a
função da Literatura Infantil [...]‖, e esclarece ―[...] Tratar da contação de histórias como
possibilidade de encontro e aprendizagem significa ter como ponto de partida a rotina
(a organização do tempo e do espaço) nas instituições escolares [...]‖.
O espaço escolar deve ser considerado não apenas na contação de histórias,
mas na educação infantil como um todo. Segundo Chaves, Tuleski, Lima e Girotto
(2014), na prática pedagógica é preciso um espaço, que contemple possibilidades
intencionais da docência e de aprendizagem, com disponibilidade de objetos culturais,
tais como fantasias, brinquedos, livros contemplando os gêneros literários infantis e
espaço para criações e recriações em arte plástica.
Interessante compartilhar as experiências educativas que valorizem a literatura
infantil como conteúdo e prática docente de formação humana mediante a vivência da
arte literária no contexto da escola.

Os gêneros literários infantis: a fruição estética no processo de ensino e


aprendizagem na Educação Infantil

É preciso que a formação de professores também contemple o ensino da


elaboração de projetos e propostas pedagógicas significativos.
Chaves, Tuleski, Lima e Girotto (2014, p. 135), relatam experiências bem
sucedidas com projetos educacionais, ―[...] Essa diretriz encaminha-nos a repensar os
momentos de leitura e de contação de histórias com recursos que expressem a
riqueza da literatura já impressa em livros, com suas tessituras, ilustrações e beleza
[...]‖.

Nessas ―caixas‖ que contam tanto, há escolhas teórico-metodológicas


direcionadas à inserção de crianças, e seus educadores, nas
aventuras e fantasias, na melodia e na poesia, por meio de histórias
―encantantes‖ e envolventes. Essa realização se dá a partir de
expressões pedagógicas do trabalho desses educadores mediante a
pietagem, o recorte, a colagem, a pintura, enfim, das artes em cores,
palavras e formas (CHAVES, TULESKI, LIMA e GIROTTO, 2014, p.
135).

Um bom embasamento teórico pode ajudar também na elaboração de oficinas


que de acordo com Chaves, Tuleski e Girotto (2014, p. 135), podem incluir atividades
diversas, tais como: contar de histórias na biblioteca escolar, dramatizar, modelar,
dobrar, recortar, brincar, pintar e construir maquete, organizar festas como a ―festas da
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biblioteca‖ e a ―festa da leitura‖, elaborar de jornais ou murais no espaço da sala de


aula ou nos corredores da escola, construir ―álbuns temáticos‖, ―livros da vida‖, troca
de correspondência na escola ou entre escolas, dentre outras tantas atividades que
levem ao letramento literário e ao conhecimento de gêneros literários infantis. As
autoras também observam a importância da leitura literária como expressão da arte e
de estética.
Para ilustrar as atividades de literatura infantil na educação infantil, que devem
ser o mote para a formação de professores, segue abaixo um relato pessoal de
experiência prática pedagógica, realizada em uma escola municipal de Foz do Iguaçu,
entre 2009 e 2010 envolvendo práticas de acesso, experimentação e criação literária,
por meio do livro infantil com a abrangência dos gêneros literários e valorização da
vivência estética, por meio de atividades planejadas teórica metodológica e
pedagógica, desenvolvidas ao longo do ano letivo, intencionando a resolução de
situações problemas do cotidiano do espaço escolar: da sala de aula e do entorno ―na‖
e ―da‖ sala, a partir da elaboração de etapas e participação de alunos, pais,
funcionários e a comunidade. Com estes objetivos foi realizado um projeto.
O primeiro projeto ―A literatura infantil no processo de ensino-aprendizagem na
educação infantil‖, foi uma proposta para alunos entre 4 e 5 anos, com objetivo de
organizar na sala um espaço para a biblioteca e contato com o livro. Várias atividades
lúdicas e de apreciação estética foram realizadas junto com alunos a partir da
contação de histórias, para, ao final, cada um escolher um livro e contar a sua história
para uma criança do berçário, em visita para outra turma do mesmo centro de
educação infantil.
O planejamento das etapas estabeleceu o princípio de propor à criança o
envolvimento de atividades artísticas, culturais e sociais, englobando a ludicidade, o
aspecto emocional e criativo: ―Roda de conversa‖ (literatura infantil, o que é?),
―Afetividade e respeito‖, ―Propiciar um ambiente que aflore a curiosidade pelo livro
infantil‖, ―Semana Monteiro Lobato‖ e ―Dia do Livro Infantil‖, ―Peça musical‖, ―Visitando
a Feira Internacional do Livro 2009‖, ―História Contada‖, ―História Recontada‖, ―Mini-
biblioteca Infantil‖ (com o acompanhamento do educador, o aluno constrói a sua
própria biblioteca com caixa de sapato para levar para casa e começar o acervo de
livros). A ―Hora do Conto‖ (o educador conta uma história para os alunos explorando o
título, o ilustrador, as ilustrações, em seguida, conversam sobre o enredo,
personagens e acontecimentos e elaboração de desenhos e pinturas), ―Confecção de
fantoches‖ com sucata a partir de um personagem protagonista da narrativa, poesia ou
poema para brincar.A ―Contação de Histórias‖ (alunos visitam os colegas desde o
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berçário, para contar uma história a partir do desenho elaborado em sala). ―Produção
dos Livros‖ pelos alunos, com temas sobre; eu, nome, família, natureza, brinquedos,
brincadeiras, amizade e a paz, para compor o livro intitulado ―Nosso Mundo no papel‖,
com o uso de desenhos e pintura, para efetuar a produção coletiva. Produção do livro
―Papel de Bala‖ com o exercício da imaginação e da criatividade, ao propor manusear
papel de bala na sua composição coletiva. A ―Carta de apoio cultural/escrita –
Alfabética‖, efetuada pelos alunos com a orientação do educador, na escrita curta de
um pedido de apoio cultural para produção do livro elaborado por eles na sala de aula.
―Bilhete/Escrita – alfabética‖ os alunos escreveram um bilhete pedindo para os pais um
livro infantil de presente.
A formação leitora fluiu na Educação Infantil, devido ao contato das crianças
com os livros de contos de fadas, entre outros gêneros literários, com a biblioteca em
sala de aula e do acesso constante com estes materiais, assim, como o
desenvolvimento de desenhos, da oralidade e a criticidade dos pequenos.
Entre outras práticas educativas foi feito o projeto: ―O Filme‖ com a introdução
de várias narrativas infantis, o ―Convite à leitura‖ dedicado a pais e comunidade
escolar, para visitar a exposição de livros das crianças. A ―Exposição dos Livros‖,
realizada com a orientação do educador, assim como a exposição pelos alunos de
seus livros produzidos coletivamente e também dos trabalhos com desenho e pinturas
das histórias contadas e recontadas, também dos fantoches e da biblioteca portátil de
sucata feita com caixa de sapato. Além da contação de histórias pelos alunos aos
outros alunos do CMEI, na ―Exposição das atividades‖. ―[...] O interesse pelo livro e
pela literatura infantil foi despertado. O gostar de ouvir e de contar histórias tornou-se
um hábito prazeroso‖. O que possibilitou a constatação de que, ―[...] As histórias
infantis povoam a imaginação e estimulam a curiosidade, tornando o ensino-
aprendizagem em sala de aula algo lúdico, prazeroso e significativo para os
pequenos‖. (MARÇAL, 2011, p.34-44). Para a contação de histórias, foram lidos em
voz alta livros clássicos infantil, como Chapeuzinho Vermelho e João e o pé de Feijão,
usando dramatização com gestos e vozes diferenciadas. Importante intercalar, no
trabalho com literatura infantil, a leitura em voz alta de histórias pelo professor com a
contação de histórias clássicas, a fim de que a criança vá aprendendo a distinguir
entre uma história contada de memória e uma história lida diretamente de um livro.
Com isso, irá construir as diferenças entre oralidade e escrita. Depois de ler a história
para os alunos foi pedido que eles recontassem a mesma de memória. Segue abaixo
a transcrição da contação das histórias realizadas pelos alunos, reproduzindo as
trocas na fala, embora sem uso aqui, de transcrição fonética:
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A transcrição da contação de história feita por dois alunos de educação infantil


de 4 anos Chapeuzinho Vermelho e de 5 anos João e o pé de Feijão, ambas com o
emprego de gestos e entonação de voz diferenciada:

Era uma veixi o Chapeuzinho/ a mamãe do chapeuzinho vermelho


falou assim: _ Leva doces para a vovó. I ela foi andando i andando
até quiemcontro u lobo/ u lobo falou axim: _Por que não leva doxe
não flores? Dela foi recorrendo até qui chego na casa da vovó/ o lobo
pulou bem rápido encima da vovó/ engoliu daí/ i di chegou lá
Chapeuzinho vermelho bateu na porta i u lobo falou axim: _ Quem é?
Chapeuzinho vermelho daí ela entrou/ ela entrou daí, daí
Chapeuzinho vermelho falou: _ Qui olhos grandi você tem? Pra ti ver
melhor. _ Qui nariz grandi você tem? Pra ti chera. _Qui orelha gandi?
Pra ti ouvir. _Qui boca grandi? Pra ti devora. Daí ela foi correndo,
correndo/ daí que o caçador viu uma coisa/daí, daí, daí até qui u
caçador atiro nele i o lobo mal tento fugi/ i a atiro Chapeuzinho foi
correndo i chorando i falo assim: _ U lobo mal comeu a vovó/ daí u
lobo falou di u calador falou assim corta a barriga/ barriga corto i
felizes para sempre (MARÇAL, 2011, p. 22).

A segunda contação de história:

Era uma vez a mão dele pediu pra ele vender a vaca e ele vendeu/
daí pegou i vendeu a vaca/ daí trouxe alguns feijão para a casa/ daí a
mãe dele jogou pela janela i caiu no meio da terra/ quando ele
dormiu/ dinoiti ele acordou i daí viu uma árvore giganti i ele subiu até
lá topo/ daí subiu até o topo e viu o castelo do giganti/ daí, daí ele viu
uma mulher enorme e falou assim: _ O que faz aqui menino? Daí lá
foi o giganti. Daí ele olhou dentro do armário/ daí o giganti ferejou/daí
o giganti dormiu/ depois a harpa tocou e o pato botou o ovo/ daí o
giganti despertou i o João pé de feijão fugiu, fugiu do armário/ daí ele
fugiu do armário/ daí o giganti correu atais/ daí ele subiu desceu até
lá no final que o João e o Pé de feijão chegou primeiro e o gigante
chegou por último/ daí, daí, daí o João Pé de feijão gritou: _mamãe,
mamãe pega u machado! Daí ele cortou a árvore, a harpa tocou/ a
harpa tocou com a galinha botando u ovo. I eles viveram felizes para
sempre (MARÇAL, 2011, p.22-23).

O projeto teve a literatura infantil como ferramenta de elaboração e


experimentação de vivências, imaginação, criação e de emoções e sentimentos. O
que tornou o seu desenvolvimento cognitivo e psíquico da criança, atrelado a
apropriação da cultura e da fruição da arte.
Para Vigotski (1994), o meio, ou ―entorno‖, da criança, não permanece o
mesmo durante o seu crescimento. A cada idade a criança relaciona e interage de
modos diferenciados, elaborando vários tipos de interpretações do meio
correspondente. Estas mudanças são operações de apropriação, pela criança,
manifestadas no ambiente que a cerca, mudanças essas promovida no ambiente
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motivado pela situação e o acontecimento, com o princípio da experimentação.


Experimentar é entendido, pelo autor, como o mesmo que vivenciar.
A literatura infantil é arte, faz parte do desenvolvimento humano, das funções
psíquicas superiores. O espaço, sala de aula possui um papel determinante na
formação da apreciação da arte pelo aluno, criança pequena na Educação Infantil,
pois é no cotidiano do trabalho pedagógico do professor que se processa o ensino e a
aprendizagem, mediante o planejamento e estratégias, para fomentar o experimentar
artístico literário.

Considerações Finais
Conclui-se que, no processo de ensino e aprendizagem na Educação
Infantil, a perspectiva vigotskiana contribui na formação do professor quanto à
prática metodológica e pedagógica. Para que professores não tenham uma
ação simplista da literatura infantil. Para, que promovam a catarse, é preciso
que conheçam a vivência da fruição estética, ou seja, que tenham a
experiência e a compreensão da necessidade da literatura infantil como arte
em si na sua formação profissional para atuar no cotidiano escolar.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

Bebês e livros: sutileza, vínculo e reciprocidade

Nazareth Salutto. Puc-Rio/Cnpq

Considerações Iniciais

O que revelam os bebês nas suas ações e interações com os livros?


Essa é uma das perguntas que embasa a tese, em andamento, que tem como
um de seus objetivos compreender sutilezas da especificidade da relação e
interações dos bebês com o livro infantil. O presente artigo é um recorte
que busca apresentar e discutir umas das categorias construídas na empiria. O
campo foi realizado entre os meses de fevereiro e agosto de 2016, em uma
creche filantrópico-conveniada, situada em uma comunidade de um grande
centro metropolitano. Têm como sujeitos de pesquisa vinte e um bebês de
quatro a doze meses, três educadoras, a pesquisadora e uma bolsista de
iniciação científica. As estratégias metodológicas envolveram observação,
registro – escrito e fotográfico – e cenários literários24. A pesquisa tem como
referencial teórico-metodológico a articulação entre os campos da Psicanálise,
a partir de Donald. D. Winnicott (1975, 1983, 2012, 2014) e da Antropologia
Filosófica com Martin Buber (1974, 1991, 1987, 2003, 2013, 2009),
compreendendo a relação como marca da condição humana no encontro entre
sujeitos. Trafegar e costurar conceitos dessas áreas do conhecimento se
coaduna com a proposta de reconhecer as pessoas na sua inteireza: corpo,
cognição, afeto. Essa interface aponta para a concepção de bebê como
pessoa, que manifesta seus desejos e amadurecimento de modo

24
Trata-se de estratégia metodológica que teve como objetivo compor um ambiente que envolveu
livros, tecido e outros elementos tanto da pesquisadora quanto da instituição, na tese definido como
cenário. A definição de cenário foi uma escolha por tratar de uma forma de organização propositiva
para as observações das ações diretas dos bebês com os livros no contexto da pesquisa.
216

singularmente criativo na imersão e interação com situações e objetos da


cultura. A relação dos bebês com os livros de literatura infantil, portanto, é
tomada a partir dessa perspectiva e, nas análises, tem apontado para a
dimensão da sutileza, do vínculo e da reciprocidade como modos subjetivos de
encontros, buscas, interações e partilhas dos bebês com o livro e as outras
pessoas – bebês e adultos.
É importante esclarecer que, em busca de ser coerente com o
referencial teórico, a pesquisa busca indagar mais do que responder. As
análises apontam pistas, hipóteses, caminhos que ajudam a olhar para essa
trajetória dos bebês com os livros, marcada por movimentos que são rápidos,
porém sutis; pelos gestos intensos, mas também delicados. Para este artigo, foi
contemplado um fragmento do campo que trata do modo de organizar o
contexto/cenário dos livros para os bebês. Como esse objeto entra em jogo e
transita nas relações? Como se busca produzir sentido entre o livro e as
manifestações dos bebês?

Martin Buber e Donald W. Winnicott – a relação como princípio.

Martin Buber e Donald W. Winnicott construíram seus discursos em


espaços-tempos distintos, embora tenham sido contemporâneos e partilhado
experiências radicais que influenciaram em suas teorias e paradigmas
(PRAGLIN, 2006), dentre elas, a Segunda Guerra Mundial, que levou Buber em
1938 a viver – não por escolha, mas pela força da situação emergente – na
Palestina (BARTOLHO JR, 2001) e, para Winnicott, impacta de modo seminal
sua teoria sobre o amadurecimento individual e seus desdobramentos. Em
especial, quando ocupa o cargo de diretor em uma das instituições de
acolhimento de crianças órfãs no durante o processo de evacuação de seus
lares de referência (PHILLIPS, 2006).
A revisão e leituras de seus trabalhos realizada por pesquisadores,
apontam semelhanças que os aproximam tanto conceitualmente quanto

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ideologicamente. Praglin25 (2006) destaca as distinções entre os autores, mas


as possibilidades de diálogos entre ambos, especialmente na aproximação dos
conceitos in-between – ―espaço-entre" –, zona de transição para Winnicott, e
das Zwischenmenschliche – ―entre‖, para Buber (p.1). Pondo-os em relação,
compreende-se que, em ambos, esse espaço se dá entre sujeitos e objetos; a
infância como o início do in-between ou da Zwischenmenschliche e marca a
autenticidade teórica dos dois autores. Autenticidade que, segundo Praglin
(2006), vem contribuindo ao longo de décadas na produção de conhecimento
em diferentes campos que tomam a pessoa como fenômeno complexo e
estrutural da existência humana, forjados na condição da responsabilidade que
só é possível de ser estabelecida entre pessoas, o que para os dois autores
implica assumir que a responsabilidade por outros incentive e restaure relações
genuínas entre pessoas [...] onde a capacidade de se relacionar de forma
significativa com o outro continue como uma sempre presente – e persistente –
realidade (PRAGLIN, 2006:8).

Um breve panorama sobre os dois autores.

Martin Buber (1878-1965), foi um estudioso do diálogo cuja filosofia


antropológica baseou-se primordialmente na relação como fenômeno. Judeu
alemão, pesquisador e compilador de histórias hassidicas, o autor que teve
como marca de seu pensamento a busca do encontro dialógico e, desta
investigação – nascida e norteada com sua própria vida –, estruturou uma
teoria marcada pela defesa da posição ativa de compromisso com o outro:
Cada homem, na medida em que realmente vive, desperta de
manhã com o sentimento de responsabilidade daquele dia e se
pergunta: quanto posso realizar hoje? Ele experimenta quanto.
Experimenta-o somente na medida em que age, realiza,
quando chega até o limite de sua realização e observa: ―não
posso realizar mais, aqui não me é dado mais e, portanto,
permaneço parado‖. Esta linha divisória deve ser traçada a
cada dia (BUBER, 1987:173).

25
Tradução livre do original em inglês.
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Adepto da ação, definiu a filosofia do diálogo – marca de seu


pensamento e de sua vida – como ação intelectual de um homem. Homem este
que fala de um lugar marcado pelas pessoas e situações de seu tempo, mas
que, contudo, precisa carregar como compromisso o esforço de reunir o que
conhece para pensar e atuar além de si mesmo e do que a situação atual
define. Agir e pensar com responsabilidade, portanto, definem a ação
intelectual do homem.
A marca da relação determinou sua vida, revelados na maioria de seus
textos. Em seus escritos autobiográficos (BUBER, 1991), encontramos Buber
narrando as experiências do menino e do jovem que foi, marcado em
profundidade pela figura do avô, Salomão Buber, da avó, Adele Buber, do pai,
Karl Buber. Com o avô, Buber impregnou-se da aura intelectual comprometida
com a tradição. Com a avó, pela natureza do seu caráter, Buber experimentou
um amor à palavra legítima que lhe parecia tão espontâneo e tão devotado
(p.10). Com seu pai, Buber aprendeu sobre engajamento na lida diária das
demandas e necessidades do outro, fatores que determinaram o que autor
definiria mais tarde como imensa alteridade pelo outro. Em oposição a essas
experiências marcadas por afeto e presença, na ausente figura da mãe, Buber
aprendeu sobre o desencontro. Separada de seu pai quando ainda era muito
pequeno, ao menino Buber pouco se dizia a seu respeito. Após nutrir, durante
anos, a certeza de que ela não regressaria, ele narra sobre seu retorno e a
ação definitiva – eu não conseguia olhar em seus olhos – causada sobre ele,
agora adulto.
Palavra empenhada, compromisso com a tradição, engajamento com o
outro. Ações que se tornaram conceitos na obra de Buber e fundantes de seu
pensamento filosófico que teve origem na escolha de um modo de viver as
questões de seu tempo e que, mais tarde, seus textos ratificaram para além do
seu viver: e essa transcendência só ganha seu impulso e sentido na medida
em que encontram o marco orientador na concretude da trama existencial das
experiências vividas como sua única condição de realização (VON ZUBEN,
2003:10).

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Donald Wood Winnicott (1896-1971) foi um pediatra, psiquiatra e


psicanalista que se dedicou incansavelmente a investigar e compreender –
dentre outros temas relativos à pessoa e seu amadurecimento – a natureza da
relação entre mãe-bebê nos estágios primitivos; o impacto e desdobramentos
dessa força relacional na constituição subjetiva do bebê e, posteriormente, no
atendimento a psicóticos no setting analítico. Contrapondo-se às correntes
vigentes tanto da pediatria, quanto da psicanálise de sua época, Winnicott fez
da atividade clínica sua aposta na escuta, no diálogo e na inesgotável busca
por compreender, e tornar público, os potentes processos de constituição da
subjetividade do bebê e sua inserção no mundo, mediado pelo encontro e
cuidado do outro, e o impacto do ambiente nos processos de maturação. A
maior parte do seu trabalho – reunida em periódicos, coletâneas e livros; seu
único livro, inacabado, é o Natureza Humana (DIAS, 2014) – resulta das
palestras e conferências que ministrou ao longo de toda uma vida dedicada ao
estudo, à clínica pediátrica e analítica. Para este autor, a natureza humana é
quase tudo o que possuímos. Relaciona-se com os processos de
amadurecimento que ocorrem durante toda a vida, constituem a base do ser e
tem suas origens nos estágios iniciais da vida: há pessoas que não
encontraram, no início, uma base para ser [...]elas não são capazes de viver
experiências: ao invés de estarem ali, no acontecimento presente, elas estão
fora de si (DIAS, 2014:121).
O desejo de auxiliar as pessoas a reconstituírem o elo consigo mesmas,
motivou Winnicott a mergulhar no estudo e observação das manifestações dos
bebês em suas manifestações primárias e estágios iniciais de amadurecimento.
De acordo com sua teoria, em cada bebê há uma centelha vital, e seu ímpeto
para a vida, para o crescimento e o desenvolvimento é uma parcela do próprio
bebê, algo que é inato na criança e que é impelido para a frente de um modo
que não podemos compreender (WINNICOTT, 2014:29).
Para Buber, a prerrogativa de que toda existência real é relação (VON
ZUBEN, 2003:13). Em Winnicott, vê-se a teoria do amadurecimento, do esforço
do bebê em tornar-se real para si próprio, integrado numa unidade em que se
reconheça e lhe dê condições de enfrentar a tarefa de mergulhar no mundo a
partir do seu próprio existir:
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Se para Buber, o Eu não passa de uma abstração. Ele só é na relação


(VON ZUBEN, 2003:17), para Winnicott isto se dá através da resolução de três
tarefas com as quais o bebê está envolvido: a integração no tempo e no
espaço, o alojamento gradual da psique no corpo e o início das relações
objetais, ou seja, do contato com a realidade (DIAS, 2014: 96). As ações de
cuidados e sustento do outro que garantem ao bebê tornar-se um ser de
relação; tornar-se pessoa pelas mãos e olhos de outra pessoa que enfrentou
processos semelhantes e, por semelhança, tem condição de acolhê-lo, isso
porque O processo de amadurecimento não acontece automaticamente, ele
precisa ser facilitado por outros seres humanos (LOPARIC, 1999:22).
O bebê como pessoa em constituição de si, como um ser de relações, é
a tônica que nos move a observá-lo e buscar compreender as sutis minúcias de
suas relações e interações com os livros.

Bebês no cotidiano da creche – breves apontamentos

A Constituição Federal Brasileira de 1988 (BRASIL, 2017), no Art. 208,


define a obrigatoriedade do atendimento de crianças de 0 a 6 anos em creches
e pré-escolas, o que redefiniu a política de atendimento para esse segmento
educacional no contexto das políticas públicas. O avanço em torno das
discussões que cercam a Educação Infantil ganhou expressão nas últimas
quatro décadas, resultando na representatividade legal e no reconhecimento
social das crianças. Nunes, Corsino e Didonet (2011) apontam que a
construção histórica da ideia de Educação Infantil como primeira etapa da
Educação Básica teve duas dimensões: uma político-administrativa, com a
criação de organizações sociais, órgãos governamentais, leis; e outra técnico-
científica, que se constitui pelas apostas advindas de diferentes campos de
estudos da criança, como Psicologia, Antropologia, Filosofia, Sociologia, entre
outros. Estas duas dimensões, a partir da Constituição Federal de 1988, se
juntam para formar, ao menos no propósito das leis e das diretrizes técnicas e
na definição da política de atenção integral à criança, um caminho cuja pista
central passa a ser a educação (idem, p.14).

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Avanços trazem garantias, mas também desafios. No que tange ao


acolhimento, inserção e organização das práticas para os bebês no contexto
coletivo de educação – em destaque a creche –, os desafios estão em
considerar a organização dos espaços, dos tempos, dos materiais, das práticas
que respeitem a especificidade das manifestações dos bebês como pessoas.
De acordo com Barbosa (2010):
Em grande parte das instituições, as singularidades das
crianças de 0 a 3 anos, especialmente os bebês, ficaram
subsumidas às compreensões sobre o desenvolvimento e a
educação das crianças mais velhas. Afinal, até hoje as
legislações, os documentos, as propostas pedagógicas e a
bibliografia educacional privilegiaram a educação das crianças
maiores. Assim, ainda que os bebês e as crianças bem
pequenas estejam presentes na educação infantil, as propostas
político-pedagógicas ainda mantêm invisíveis as suas
particularidades e não têm dado atenção às especificidades da
ação pedagógica para essa faixa etária (BARBOSA, 2010:1-2).

Em coro às proposições da autora, inclui problematizar que organizar,


pensar, propor práticas envolve considerar que cada bebê e criança carregam
consigo uma particularidade, universo singular que passa a pertencer a uma
realidade que os acolhe a partir de uma perspectiva coletiva. Como, portanto,
integrar singularidade e coletivo? Ousa-se afirmar que o ponto de partida do
cotidiano institucional envolve tensão que, nesse caso, pode romper com seu
aspecto negativo; ser assumida como aposta para a criação e manutenção de
propostas que levem em consideração as múltiplas singularidades expressas
pelos bebês.
Pondo em relação essas questões-tensões, à luz por Buber e Winnicott,
a (s) especificidade (s) do bebê tem na relação sua marca. Relação constituída
a partir de ações sutis que, nesse caso, o acompanham desde que chega ao
mundo e cumpre duplo papel: o da constituição da sua própria subjetividade e
do olhar que voltam para o próprio mundo. Da realidade subjetiva a objetiva, os
bebês constroem sentidos que trafegam numa circularidade complexa que o
faz avançar de um estágio de amadurecimento a outro e que, para cada
pessoa, se dá de uma forma.

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Para Buber (200326) cada criança é uma mirada de realidade para quem
o mundo é um campo para a ação de suas forças criadoras (p.13).
A realidade de muitas famílias tem sido buscar a creche como opção de
cuidado e educação de seus filhos a partir do término do período de licença
maternidade das mulheres, o que se dá a partir do quarto mês de vida do bebê,
para muitas dessas mulheres.
Práticas e proposições cotidianas, considerando as especificidades dos
os bebês, têm como horizonte acolher a sua realidade ou repetir a que está
posta e já conhecida a partir da mirada dos adultos e seus modelos prévios de
socialização? Como se dá a apresentação dos artefatos da cultura, no nosso
caso, o livro de literatura infantil?

Bebês e livros – sutileza, vínculo e reciprocidade

A partir dos conceitos de Martin Buber e de Winnicott, este artigo


assume o bebê como pessoa de relação. Condição essa, instaurada pela
intensa relação estabelecida por meio dos cuidados e apoio dado pelo outro,
desde o nascimento. Dos estágios iniciais de chegada e acolhimento do bebê
no mundo, aos ritos que inauguram sua entrada e imersão nas relações com
objetos e artefatos da cultura, são perpassados por ações que muitas vezes
escapam às observações; rápidas, porém sutis, complexas e intensas.
Talvez seja interessante assumir a complexidade em que essas ações
se dão, porque elas fundam subjetividades, marcam a passagem do bebê do
seu universo interior e particular, às relações objetais: complexidade não é o
mesmo que dificuldade[...]. De fato, essa primeira tarefa do bebê, de integrar-
se consigo mesmo [...] é considera por Winnicott uma das mais difíceis
(LOPARIC, 1999:22) e sãopermeadas por sutilezas. Dos gestos e expressões
que refletem impulsos e reflexos, aos poucos o bebê responde, provoca,
convida, propõe ações de interações que apontam a reciprocidade que
respondem – positiva ou negativamente – às inúmeras situações
experimentadas. Apontar, solicitar, sorrir, relaxar, chorar são ações que
26
Tradução livre do Espanhol.
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parecem (co) responder a essas ações em torno, sobre e com o bebê. A


sutileza, desse modo, parece encontrar-se na fronteira de uma linha tênue
entre olhar para o bebê como extensão de si próprio, como coisa sua, no
sentido da posse de outrem e enxergar o bebê como alguém que, na sua
dependência, é potência de realização no sentido apontado por Winnicott:
aquele em há uma centelha vital a despeito de nossa capacidade de o
compreender totalmente.
E como será produzir sentido em torno dessas inúmeras, complexas e
sutis ações? Como tomá-las como coisas sutis que, fundamentalmente,
sustentam o bebê e, lhe dá, dia a dia, uma imagem de si próprio e do que ele
pode no mundo?
No contexto das experiências coletivas – a creche, no caso da pesquisa
que embasa este artigo – como são compreendidas essas manifestações?
Como são marcados os ritos de encontro, aproximação, relação dos bebês
com os objetos, neste caso, o livro?
Pensemos a partir de um dos fragmento do campo da pesquisa.

“E, acabou...”

Após o café da manhã, Regina27 entra na sala. Carrega


consigo, pendurada em seu ombro, uma bolsa de pano. Alguns
bebês, que já choravam, se assustam com sua presença e o
choro se intensifica. Imediatamente, Neiva (uma das
educadoras) começa a posicionar os bebês em posição de
roda. Aqueles que não sentam, engatinham ou andam, são
colocados na roda sentados no bebê conforto. Neiva termina a
tarefa e senta-se também, bem perto, corpo quase colado em
duas bebês. Os outros, alternam o olhar entre ela e Regina.
Tulio tem dez meses. Está sentado um pouco atrás dos outros
e olha para Regina que, com um livro em mãos, conta a
narrativa e mostra as ilustrações. Ela percebe o olhar de Tulio
e fala, dirigindo-se à Neiva: ―Aquele que está prestando
atenção está atrás‖. Laura, que está fora da roda, escuta e
coloca-o sentado perto de Regina, em frente ao livro. Gisele,
Paulo, Teo e Sandro, aproximam-se ainda mais de Neiva; dois
deles vão para o seu colo. Regina observa a cena e diz,
sorrindo: ―Parece um polerinho cheio de pintinhos‖. Minutos
depois, guarda o livro lido na sacola e, de dentro desta, retira
outros quatro pequeninos, de capa dura. Tulio, num movimento

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Quinzenalmente, Regina vai à creche pesquisada e lê história para todas as turmas. Ela é voluntária
para nessa atividade.
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rápido, estica a mão e recebe um. Dora, Sandro e Paulo


também se interessam e recebem um dos livros em mãos. Os
quatro manuseiam os livros e suas ações são observadas
pelos outros bebês, pela pesquisadora, por Regina e Neiva.
Poucos minutos depois, Regina se aproxima de Sandro e,
enquanto retira um exemplar de plástico do ‗Gildo‘28 das mão
de Sandro, lhe diz: ―empresta pra ele, empresta?‖. Faz e fala
isso ao mesmo tempo e, em seguida, entrega o livro para outro
bebê. Sandro acompanha seu movimento com o olhar, as
mãos no ar. Gisele recebe o livro ‗Gildo‘ e põe-se a manuseá-
lo: abre, fecha, abre, fecha. Repete o movimento várias vezes.
Enquanto faz isso, também fica atenta à música que Neiva
cantarola: ―Borboletinha, está na cozinha...‖. Laura (outra
educadora), que permanecia fora da cena, retira o livro da mão
de Gisele e o coloca nas mãos de Marcela. ―E, acabou. Posso
guardar o livrinho?‖, Regina anuncia e pergunta, enquanto
recolhe os livros e os guarda na sacola. No relógio, não se
passaram dez minutos. Regina segue para outra turma, Neiva
sai para tomar seu café da manhã, Tulio e Sandro recomeçam
a chorar... (Caderno de campo, 22 de março de 2016).

O registro do campo revela cena familiar do ambiente institucional:


adultos, bebês, uma proposta em torno dos livros. Nele, evidenciam-se apostas
e tensões dos aspectos que norteiam essas práticas cotidianas. Os adultos
organizam uma cena em que a intenção de ler uma história é atravessada pelo
choro; por olhares e solicitação de colo que parecem buscar conforto e
segurança; a ação sobre o corpo do bebê, sem aviso, nem cerimônia; as ações
dos bebês incidindo, como sabem – será isso um saber? – sobre o livro e a
ordenação do que pode ou não ser feito diante e com esse artefato da cultura.
Na confluência dos inúmeros elementos desse cenário, cabe indagar:
Qual a intenção da proposta? Contar a narrativa e mostrar o livro ou instigar a
relação dos bebês com o objeto?
A pergunta polariza as questões com o objetivo de problematizar a
tensão. Se, por um lado, podemos admitir a positividade da intenção da
proposta – é interessante que os livros estejam entre os bebês e possam
comparecer em seu cotidiano, na rotina –, por outro, o modo como a proposta
acontece provoca inquietações.
Em dez minutos os bebês são postos numa roda com a qual não
construíram nenhum sentido, porque são bebês e, também, porque para
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RANDO, Silvana. Gildo e os amigos no jardim. Brinque-Book, 2014.
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alguns, é a primeira vez que partilham a experiência coletiva e estão em


processo de inserção. O choro, nesse período, era manifestação frequente
entre os bebês. Dia após dia, as educadoras responsáveis pelo acolhimento
dos bebês, buscavam identificar, reconhecer as sutilezas dessa expressão:
será fome? Será sono? Será cansaço? Regina, por sua vez, não participa
dessa rotina que, na relação diária, tece intimidades, vínculos de confiança. Ao
entrar na sala, o choro se intensifica, os olhos dos bebês buscam os olhos
daqueles em quem parecem confiar. Neiva, uma dessas pessoas, por sua vez,
trata de ‗organizar‘ os bebês do modo como parece ser convencional quando
se trata de propostas dirigidas: coloca-os em posição de roda. Sem pergunta,
nem aviso, os corpos são movidos, levantados, sentados e, nesse ritmo, alguns
obedecem, outros se levantam e são novamente colocados na posição inicial.
Os olhares e expressões denunciam o estranhamento frete à situação; para
alguns, a intensidade do choro parece responder à ação que recebem no
próprio corpo. Tarefa finalizada com sucesso – parcial – e a atividade começa.
Com voz baixa, mas gestos rápidos, Regina tira o livro da bolsa, passa as
páginas, mostra ilustrações, percebe o olhar interessado de Tulio, Laura o
coloca ainda mais perto do livro, Regina encerra a leitura, guarda o livro,
entrega outros quatro a alguns bebês, que manuseiam enquanto outros
observam, retira o livro da boca de Sandro, passa o livro a outro, dá uma
orientação e...acabou!
Qual o sentido dessa proposta? Ou, antes: constituiu algum sentido?
De acordo com Winnicott (2012, 2014), o bebê constrói relação com o
mundo em pequenas doses. Isto, porque essa tarefa exige esforço de
subjetivação para tornar o mundo real:
o bebê começa nada sabendo acerca do mundo, e na época
em que as mães29 terminaram sua tarefa, o bebê já se
converteu em alguém que conhece o mundo, que pode
descobrir um caminho para viver nele e até para tomar parte na
maneira como ele se conduz (WINNICOTT, 2014:76).

O registro parece que o livro cumpre um papel distinto da perspectiva


dos adultos e do grupo de bebês. O que motiva Regina, Neiva e Laura parece

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Não se trata apenas da mãe biológica, mas de qualquer adulto responsável pelo bebê nos primeiros
meses de sua vida.
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ser a organização didática e a dinâmica em torno do momento da história. Para


os bebês, o livro parece ser algo ainda a investigar. Tulio, assim que o tem em
mãos, põe-se manuseá-lo de um lado a outro; Gisele, assim como Tulio,
investiga o objeto: abre, fecha, abre, fecha... Repete o movimento várias vezes.
Enquanto faz isso, seus sentidos parecem ser convidados pela música
cantarolada por Neiva, levando-nos a perceber a multifacetada face de suas
ações.
Descobrir, desvendar, escutar, abrir, fechar parecem ser a gênese do
seu encontro com o objeto naquele contexto. Mas, o tempo que pode dedicar a
esse exercício sutil é interrompido. O bebê conhece um caminho para estar no
mundo, afirma Winnicott (2014). As ações que o fragmento revela, parecem
confirmar. É possível mais tempo para o abre, fecha, abre, fecha? Regina
precisa se retirar para outra turma, Neiva poderia permanecer com os livros e
os bebês?
A sutileza pode ser norte e horizonte para essas indagações.
Sutileza que reposiciona o adulto diante do bebê: como organizar?
Como oferecer? Como fazer conviver, e dialogar, o tempo do bebê com o
tempo do adulto, com o tempo institucional?
Sutileza que reposiciona as lentes desse cotidiano: no macro das
propostas e do relógio institucional, estão os bebês ingressando na tarefa de
conhecer o mundo, de tomá-lo como realidade complexa a partir de suas
particularidades, cada qual com sua centelha de vida (WINNICOTT, 2014) e
forças criadoras para o mundo (BUBER, 2003).
Tulio age reciprocamente: estende as mãos e se oferece ao livro. Gisele,
ao tê-lo em mãos, faz como quem inicia um jogo e precisa tomar conhecimento
de como faz: abre, fecha, abre, fecha. Cada qual, com uma parcela maior de
tempo, de olhar sutil e interessado em seus movimentos, o que mais fariam?
É possível construir um equilíbrio entre os gestos do bebê e o
papel/função do livro? É possível mediar sem restringir ou interditar
movimentos?
Conceber o livro no cotidiano com os bebês envolve considerar que ele
participa da cena com o bebê, de modo a favorecer o toque, o movimento, a
expressão, a intenção no manuseio. Um jogo no qual, entender sensorialmente
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o objeto, despe e revela a sua realidade. Esse jogo brincante põe em destaque
a potência autoral, a criatividade originária, o gesto espontâneo (WINNICOTT,
1975, 1986, 2014) do bebê na interface com o objeto que, por sua vez,
marcado por concepções estéticas, provoca e convida a ação de descoberta e
interação do bebê: dar forma é descobrir. Ao realizar eu descubro (BUBER,
1974:12).
A partir da psicanálise e da literatura, Parreiras (2008) analisa o
brinquedo na literatura infantil e aborda elementos que provocam nossa
discussão até aqui. A autora aponta que a função que o bebê dá ao livro, num
primeiro momento, é o da interação, do jogo, do brinquedo. No entanto, a
observação minuciosa do exercício dessas ações, que se dão no cotidiano,
revela que o lugar de brinquedo é marcado por breve temporalidade,
configurando rápida passagem do livro como brinquedo a ser explorado – vai
para a boca, é lambido, é amassado, vira chapéu, abre, fecha, abre, fecha –
para os gestos que compõem a postura de abrir o livro virado para si, tomá-lo
com as duas mãos, dedos que acompanham textos e imagens, convergindo a
ação exploratória com a força da cultura, das interações, ou, retomando a
acepção anterior de Buber (1974): ao descobrir o livro com corpo e sentidos, o
bebê dá a ele a realidade da cultura, o que se vive e se aprende nas
interações.
Concordando com Parreiras (2012), a experiência do bebê com o livro
se aproxima do brinquedo e da brincadeira: algo para ser manuseado, tocado,
chupado, cheirado. Jogado para lá e para cá. Pegar de novo. Ouvir do adulto
um comentário, uma palavra, uma história. Criar um laço com esse objeto
cultural, ter intimidade com o cheiro, com a forma do livro [...] (PARREIRAS,
2012:105).
A autora chama atenção para as ações do bebê sobre o objeto –
morder, lamber, tocar, cheirar –, provocadas pela materialidade do livro,
anterior à relação mediada pelo adulto, ou, uma criança mais experiente, o que
enfatiza uma postura mais autoral do bebê, seu gesto espontâneo na interação
com o objeto. Brinquedo e brincadeira que se constituem no jogo que perpassa
oralidade e escuta. Voz e escuta do outro anunciam, nomeiam e significam o
mundo para os bebês desde que nascem. Compreender e dar sentido ao
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mundo, então, para os bebês, passa por estar ao lado e com o outro e, juntos,
tecerem a realidade da qual participam.
Bebês, adultos e livros são realidades distintas e, em conjunto, dão
forma ao universo em que habitam. O vínculo, construído nesse entre constitui
as condições para o encontro entre essas realidades. O bebê carrega essa
centelha vital que se encontra com a experiência do adulto. No contexto
educativo, o reconhecimento da distinção dessas realidades pode configurar o
caminho das sutilezas, das minúcias, de propostas que façam se encontrar os
dois caminhos. Não se trata de colocar protagonismo em um ou outro, mas de
encontro, de relação tecida com sutileza. Trata-se de formação humana que
acolhe e confirma o outro.

Algumas palavras finais

Este artigo teve como objetivo tecer algumas reflexões em torno da


relação do bebê com o livro no contexto da creche.
A partir da teoria de Martin Buber e Donald W. Winnicott,
respectivamente, da filosofia antropológica e da psicanálise, compreende o
bebê como pessoa de relação e, a partir dessa concepção, busca compreender
sutilezas da especificidade dessa relação.
Sutileza que busca indagar que concepção de bebê e de interação são
consideradas pelos adultos ao organizarem as práticas e o cotidiano nas
creches. Ao mesmo tempo, sutileza que visa propor que se redimensione as
lentes do cotidiano para as sutis, porém breves, faces e interfaces das
interações dos bebês com os livros, um dos objetos que comparecem no
cotidiano e ganham centralidade, a partir do olhar do adulto, em propostas
cotidianas.
Se, num primeiro momento, as ações dos bebês parecem incidir sobre o
livro como brinquedo, provocando essa relação como um jogo que busca
compreender a gênese própria do objeto; por outro, percebe-se quão rápida é a
passagem do livro desse lugar para sua função de mobilizar sentidos de
cultura, por meio de gestos de leitura, entre outros elementos.

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Nesse convívio, considerar o bebê como uma pessoa em constituição,


para quem a subjetividade é um território interno, uma tarefa a conquistar, é
caminhar com sutileza e respeito às suas particularidades.
No contexto coletivo da creche, há o desafio de considerar práticas com
os livros a partir dessa perspectiva e considerar os movimentos dos bebês;
suas ações sobre o livro que dialogam com a gênese dos seus gestos: levam
os livros à boca, babam, mordem, reviram-no de um lado a outro; abre, fecha,
abre, fecha.
O livro entra no cotidiano, nas práticas, no momento de vida em que os
bebês experimentam balbucios, gestos, expressões que revelam ações de
comunicação entre si, com os adultos; a exploração dos espaços e diferentes
objetos aliados a um intenso movimento corporal. E, nesse sentido, cabe
terminar com mais algumas indagações: bebês em roda para verem a história?
O livro nas suas mãos por pouquíssimos minutos? Qual o olhar que orienta a
prática?
Nesse sentido, considerar o papel da relação como marco orientador
das experiências (BUBER) e a questão da presença, do estar ali como
condição para se viver as experiências (WINNICOTT). O bebê torna-se um ser
de relação vivendo-a como experiências nas situações de cuidados e ao ser
iniciado nas imersões culturais. Bebês e livros 30, assim, caminham na interface
entre sutileza, vínculo e reciprocidade. Conceitos construído, sobre e acima de
tudo, nas relações.

Referências

BARBOSA, Maria ESPECIFICIDADES DA AÇÃO


Carmem Silveira.
PEDAGÓGICA COM OS BEBÊS. ANAIS DO I SEMINÁRIO NACIONAL:
CURRÍCULO EM MOVIMENTO – Perspectivas Atuais Belo Horizonte,
novembro de 2010.
BARTHOLO JR, Roberto. Você e eu: Martin Buber, presença palavra. Rio de Janeiro:
Garamond, 2001.
BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Secretaria de
Educação Básica. Brasília: MEC, SEB, 2010.
BRASIL. Bebês como leitores e autores. Secretaria de Educação Básica. Brasília:
MEC, SEB, 2016, Caderno 4.

30
Este artigo é parte da tese, em andamento, intitulada: ‘Bebês e livros: sobre relação, sutileza, vínculo
e reciprocidade’. Orientadora Profª Drª Sonia Kramer. Programa de Pós-Graduação em Educação
Brasileira, Puc-Rio.
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BRASIL. Constituição Federal. Constituição da República Federativa do Brasil [recurso


eletrônico]. Brasília: Supremo Tribunal Federal, Secretaria de Documentação, 2017.
Atualizada até a EC n. 96/2017
BRASIL. LDB: Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: Câmara
dos Deputados, Coordenação: Edições Câmara, 2010.
BUBER, Martin. Eu e Tu. Tradução, introdução e notas de Newton Aquiles Von Zuben.
2ª edição. São Paulo: Moraes, 1974.
______. Sobre Comunidade. Campinas: Perspectiva, 1987.
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______. El caminho Del ser humano y otros escritos. DÍAZ, Carlos (tradução e
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______. Do diálogo e do dialógico. Campinas: Perspectiva, 2009.
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DIAS, Elsa Oliveira. A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott. 3ª ed. São
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(suplemento 1), pp: 21-23.
NUNES, Maria Fernanda Rezende, CORSINO, Patrícia, DIDONET, Vital.
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PARREIRAS, Ninfa. O brinquedo na literatura infantil: uma leitura psicanalítica. São
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Horizonte: RHJ, 2012.
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PRAGLIN, Laura. The Nature of the ―In-Between‖ in D.W. Winnicott‘s Concept of
Transitional Space and in Martin Buber‘s das Zwischenmenschliche. Universitas,
ISSUE 2, 2006 (ISSN: 1558-8769).
ZUBEN, Newton Aquiles von. Martin Buber: cumplicidade e diálogo. Bauru, SP:
EDUSC, 2003.
WINNICOTT, Donald Woods. O brincar e a realidade. Tradução Jefferson Luiz
Camargo; revisão técnica Helena Souza Patto. 4ª edição. Rio de Janeiro: Imago
Editora, 1975.
______. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: ARTMED, 1983.
______. Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
______. A criança e o seu mundo. Rio de Janeiro: LCT, 2014.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

CONHECENDO AUTORES DA LITERATURA INFANTIL

Ana Verucia Silva Dantas, Creche Escola Espaço Inteligente, Eixo Temático
02: Literatura Infantil para crianças pequenas,

Nassara Maia Cabral Cardoso Gomes, Creche Escola Espaço Inteligente, Eixo
Temático 02: Literatura Infantil para crianças pequenas

Considerações Iniciais

O presente trabalho é fruto de um projeto literário realizado em uma Creche


Escola na cidade de Fortaleza/Ce. O mesmo possibilitou que crianças de 1 a 7 anos
vivenciassem obras de autores conhecidos na literatura brasileira, abrangendo seus
conhecimentos, desenvolvendo, também, competências leitoras.
O objetivo do projeto foi possibilitar a inserção da criança neste mundo
maravilhoso da leitura, por meio de textos inteligentes, sensíveis, criativos e
divertidos.
Os autores apresentados no referido projeto foram: Mary França e Eliardo
França, Eva Furnari, Ana Maria Machado, Ruth Rocha representando os autores da
literatura infantil nacional, autores cearenses: Flávio Paiva, Tamara Bezerra, Fabiano
dos Santos, Tino Freitas, Almir Mota, Fabiana Guimarães, Rachel de Queiroz e
autores de cordel, tais como: Ariovaldo Viana, João Melchiades, Patativa do Assaré.
Neste trabalho, utilizaremos como aporte teórico pesquisas de Lajolo (2005),
Soares (2004), Zilberman (2009), o Referencial Nacional Curricular para a Educação
Infantil (BRASIL,1998), dentre outros autores que tratam sobre a alfabetização,
letramento e literatura infantil.
Adotou-se como metodologia a pesquisa de campo. Antes da realização do
Projeto, o mesmo foi projetado pela direção, coordenações e supervisão pedagógica
em conjunto com as professoras de todas as turmas da instituição. Cada turma utilizou
a obra de um dos autores apresentados anteriormente.
Como culminância, houve a apresentação em sala de cada turma abordando a
obra estudada, através da montagem de cenários, cartaz com a biografia do autor,
232

produção artística das crianças e a escrita de um livro de histórias criadas pelas


crianças.

Introdução

O presente artigo é resultado de um Projeto Literário realizado em uma escola


particular da cidade de Fortaleza/Ce. O intuito deste trabalho foi possibilitar que as
crianças estivessem inseridas no mundo da leitura, através de livros, textos, onde
vivenciassem a obra que foi designada para sua respectiva turma.
O Projeto Literário configura-se como um estudo aprofundado da vida e obra
de autores consagrados. O mesmo objetiva o aprofundamento da obra ligando a
situações que abordam as mais variadas inteligências, enfocando a necessidade de
realizar a coleta de conhecimentos prévios, a abordagem do conteúdo de maneira
criativa, significativa, bem como a sistematização.
A Literatura Infantil possibilita a entrada da criança no mundo da fantasia, das
representações e das significações. Nas páginas de um livro a imaginação ganha asas
para voar. A cada linha, um novo mundo é revelado, cheio de encanto, magia e
diversão. São histórias que a gente leva para sempre, na memória e no coração.
Quando a Escola e os Pais proporcionam à criança a chance de conhecer uma
obra literária, mostra-lhe novas realidades, fazendo-a aprender sobre o valor da vida,
da natureza e das pessoas.
Logo, a Literatura é a forma artística que opera com a palavra, com o texto e,
consequentemente, com várias linguagens e significados de mundo que decorrem da
arte de trabalhar com a palavra.
Através dessa interação entre a criança e as obras literárias a Inteligência
Linguística é estimulada a partir de estratégias pedagógicas adequadas, capazes de
proporcionar a compreensão de textos e de contextos, mediados pela linguagem oral e
escrita.
Desde cedo, é mais do que necessário saber operar e vivenciar a palavra
escrita. Há um mundo de possibilidades que o texto literário pode proporcionar. O livro
é capaz de transportar a criança e levá-la a diferentes pontos do Universo tão
distantes, vastos e ricos.
Segundo Soares (2004), surgiu a necessidade em reconhecer e intitular
práticas sociais no que se refere a leitura e a escrita, mas avançadas e difíceis que as
práticas de ler e escrever, oriundos da aprendizagem da escrita.

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Para Kretzmann e Rodrigues (2006), abordar a significação da leitura e da


escrita das crianças na Educação Infantil traz a reflexão acerca da atuação docente,
sendo este um dos mediadores entre o aluno e a leitura, influenciando diretamente na
formação do sujeito leitor. Com isso, o professor precisa transformar sua práxis
pedagógica, refletir e questionar sobre seu papel e valor na sociedade.
Segundo Lajolo (2005), existem diversas campanhas voltadas para o
incremento da leitura enfatizam aspectos agradáveis sobre a literatura. Ler é
prazeroso, mas só para quem sabe. É necessário aprender para se ter prazer na
leitura. Para a autora, o que o professor realiza em sala com as crianças tem relação
com o que foi feito com o docente quando aluno.
Esse artigo foi elaborado dentro da perspectiva de um projeto realizado em
uma Creche Escola da rede privada de ensino na cidade de Fortaleza. Com isso,
crianças, funcionários e pais participaram diretamente na construção do referido
projeto.
A participação das famílias foi de fundamental importância, através de
pesquisas junto as crianças, pais e filhos puderam adentrar o universo literário e
realizar trocas de experiências.
Os educadores também contribuíram significativamente, pois se envolveram no
projeto, estudaram e apresentaram todas as possibilidades que a literatura infantil
possibilita para o desenvolvimento das crianças.
Sendo assim, Lajolo (2005, p. 6) afirma: ―A história de leitura de cada um de nós é,ao
mesmo tempo, coletiva e individual. Como parte de uma história coletiva,nossa
experiência de professores-leitores se articula com várias outras histórias

Referencial Teórico

Nosso artigo basear-se-á em autores como Zilberman (2009), que em sua


pesquisa apresenta questões sobre o papel da literatura infantil no espaço escolar. A
autora afirma que em meados das décadas de 70 e 80 houve o surgimento de
discussões frequentes sobre a leitura na escola, bem como a função da literatura no
ensino.
Esse período foi marcado pela ditadura militar, com o final da vigência e o Ato
Institucional 5, houveram as primeiras iniciativas para a redemocratização do país.
Nisto, pesquisadores da Pedagogia e Letras mostravam preocupação quanto ao
ensino, as diretrizes da escola no Brasil, qualificação docente, e os resultados da
aprendizagem (ZILBERMAN, 2009).

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Em meados dos anos de 1980, surge o letramento no Brasil, França e em


Portugal, objetivando nomear fenômenos diferentes dos da alfabetização.
Concomitante a este período, a UNESCO difunde o conceito de ―literate para
functionally literate‖ (SOARES,2004). Assim: ―a sugestão de que as avaliações
internacionais sobre domínio de competências de leitura e de escrita fossem além do
medir apenas a capacidade de saber ler e escrever‖ (SOARES,2004, p.6).
O gosto pela literatura, segundo Lajolo (2005) tem como resultado a
aprendizagem do sujeito. Com isso, a vivência de leitura de cada indivíduo é coletiva e
individual, concomitantemente.
Um componente importante na literatura infantil são os livros didáticos. Estes,
por sua vez, são utilizados em aulas e cursos, podendo ser ―escrito, editado,
comprado e vendido‖. O livro didático é um mecanismo importante e específico
envolvendo o ensino e a aprendizagem escolar (LAJOLO,1996). Ainda segundo Lajolo
(1996, p,4-5):
Assim, para ser considerado didático, um livro precisa ser usado, de
forma sistemática, no ensino-aprendizagem de um determinado
objeto do conhecimento humano, geralmente já consolidado como
disciplina escolar. Além disso, o livro didático caracteriza-se ainda por
ser passível de uso na situação específica da escola, isto é, de
aprendizado coletivo e orientado por um professor.

A atuação do professor está relacionada ao conceito da leitura nas crianças de


Educação Infantil, onde o docente é o mediador entre o aluno e a leitura, conduzindo a
formação do sujeito como leitor (KRETZMANN e RODRIGUES,2006).
Os Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil apontam
para a história como textos construídos previamente, completos. Neste documento,
constam, também, orientações sobre práticas de leitura, tais como: participação dos
adultos na leitura de textos diversos (poemas, contos, parlendas, dentre outros);
Envolvimento em situações que as crianças possam ler de maneira convencional ou
não convencional; Reconhecimento do nome inseridos no conjunto de nomes
pertencentes ao grupo em situações fundamentais (BRASIL,1998).
Todos os elementos presentes no livro didático precisam estar associados a
aprendizagem que ele oferece. O livro precisa conter organização, imagens nítidas,
boa encadernação, bem como existir a ligação ―que suas ilustrações, diagramas e
tabelas devem refinar, matizar e requintar o significado dos conteúdos e atitudes que
essas linguagens ilustram, diagramam e tabelam‖. (LAJOLO,1996, p.5).

Metodologia

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A metodologia de pesquisa se deu através da pesquisa participante que,


segundo Severino (2007, p.120): ‖É aquela em que o pesquisador, para realizar a
operação dos fenômenos, compartilha a vivência dos sujeitos pesquisados,
participando, de forma sistemática e permanente, ao longo do tempo da pesquisa, das
suas atividades‖.
O Projeto Literário configura-se como um estudo aprofundado da vida e obra
de autores renomados. Objetivou o aprofundamento da obra, enfocando a
necessidade de realizar a coleta de conhecimentos prévios, a abordagem do conteúdo
de maneira criativa, significativa.
No decorrer desse estudo, foi construindo um livro e apresentado às famílias
na Culminância do Projeto. O livro consta de cinco partes: capa, dedicatória, prefácio,
texto e desenhos. A capa foi feita coletivamente e de acordo com a história criada.
Nesta capa, também constava o título e este foi criado juntamente com as crianças
a partir do livro escolhido pela professora. A escrita foi realizada pela professora.
No Ano 1 as histórias foram construídas individualmente, assim como o título.
Do Infantil 1 ao Ano 1, a capa foi elaborada coletivamente de acordo com a história
criada.
A dedicatória da turma do Berçário foi produzida pela educadora. No infantil 1 e
2, as crianças foram questionadas para quem daria o livro que estão produzindo e
assim a educadora organizou as ideias para a construção da dedicatória. No infantil 3
ao Ano 1, a dedicatória foi elaborada de forma coletiva e escrita na íntegra pela
professora.
O prefácio apresentou a expressão da educadora com relação à construção do
livro e seu sentimento enquanto colaboradora da obra. Ao final, foram escritos o nome
da professora e da auxiliar.
As crianças foram autoras da recriação das histórias. A professora escreveu o
nome completo da criança e cada uma deu sequência à história trabalhada em sala.
Nas turmas de infantil 5 e Ano 1 os autores foram organizados por ordem alfabética.
Quanto as histórias na turma do Berçário, pôde ser utilizado: livro de texturas
ou livro de atividades das crianças. A ideia foi elaborar um livro baseado nos
personagens da obra escolhida. No Infantil 1 e 2 a histórias foram elaboradas pelos
pais. A professora fez um cronograma e colou em frente à sua respectiva sala. Neste
cronograma, os pais assinaram no dia que levaram o livro e quando vão trazer. Foi
orientado aos pais sobre a necessidade da participação das crianças e que o desenho
deveria ser feito por elas.

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O livro confeccionado foi lido todos os dias em sala. A ideia foi que cada família
continuasse a história anterior. No Infantil 3 e 4 foi construído um texto coletivo com as
crianças em sala de aula. No Infantil 5 e Ano 1, cada criança escreveu um texto
individual e o seu desenho.
A culminância foi pensada de modo integrado ao projeto, afinal ela é o resultado do
trabalho realizado ao longo do mês. As educadoras, junto com as crianças,
escolheram uma cena do livro estudado e reproduziram em sala. Foi enfatizado para
as professoras que as produções que compõem esse cenário deveriam ser feitas
pelas crianças.
Em todas as salas tinham uma mesa e uma cadeira para autógrafo, em que as
crianças puderam autografar para seus pais. A sala foi organizada ao longo das
semanas, com a supervisão das coordenadoras.
Assim foi dividida a culminância: Recepcionar os pais com uma música clássica e
deixar que eles vejam as produções que estão expostas; Sentar na rodinha com os
pais e crianças (no chão); Explicar brevemente aos pais a proposta do projeto, quem é
o autor trabalhado e a obra escolhida pela turma. Explorar autor, editora, ilustrador.
Focar na biografia do autor. Para os menores as professoras irão questionando para
que as crianças respondam de acordo com o nível. Os maiores já poderão explicar
todos os detalhes aos pais.
A professora fica como mediadora para que todos falem; Cantar a música de início
da história ―E agora minha gente‖; A professora das crianças até o Inf. 5 irá contar a
história criada pelas crianças (história do livrinho) para os pais e crianças;Troca de
experiências: questionar aos pais e crianças o que acharam da construção do livro,
como se sentiram; Autógrafos: a professora entregará um livro para cada criança e
esta irá autografar na rodinha e entregar aos pais.Ao final, para os pais que não
visitaram as produções, este será o momento.
Assim ficou estabelecido a organização para a decoração da sala, com adaptações
para cada turma:
AUTORA: _____________________________
LIVRO: _______________________________
PROFESSORAS: _________________________

PROJETO DE DECORAÇÃO DA SALA


PRODUÇÕES LOCAL QUE ESTARÁ AÇÃO DAS CRIANÇAS
EXPOSTO

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BIOGRAFIA DO AUTOR

BIOGRAFIA DAS
CRIANÇAS

DESENHO DO AUTOR

AUTORRETRATO NA
TELA

MURAL COM FOTOS

PAINEL – CENA DO LIVRO

MESA PARA
AUTÓGRAFOS

PRODUÇÃO INDIVIDUAL –
PERSONAGEM

REPRESENTAÇÃO
GRÁFICA DA HISTÓRIA

CERQUINHA

PRODUÇÃO COLETIVA

RECONTO DA HISTÓRIA –
TEXTO COLETIVO

Fonte: elaboração das autoras

Resultados e Discussão

Como resultados, percebemos a organização do projeto desde sua elaboração


até a culminância. As crianças puderam vivenciar e participar de todas as etapas:
conhecer o autor e a obra adotados, reconstrução da história, com a mediação das
professoras e dos pais, que também foram protagonistas no andamento do projeto.

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Neste sentido, Zilberman (2009, p.18) afirma:


A leitura acontece quando a imaginação é convocada a trabalhar
junto com o intelecto, responsável pelas operações de decodificação
e entendimento de um texto ficcional. O resultado é a fruição da obra,
sentimento de prazer motivado não apenas pelo arranjo convincente
do mundo fictício proposto pelo escritor, mas também pelo estímulo
dado ao imaginário do leitor, que assim navega em outras águas,
diversas das familiares a que está habituado.
As crianças utilizaram a imaginação na reconstrução da história, apresentando
autonomia naquilo que queria expressar no livro construído por elas. As mesmas
encontram-se no processo de alfabetização e letramento, sobretudo as crianças do 1º
ano do Ensino Fundamental, tendo como nomenclatura adotada pela escola como Ano
1.
Neste aspecto, concordamos com Soares (2004), quanto ao equívoco em
dissociar alfabetização de letramento, pois a inserção da criança e do adulto
analfabeto na escrita acontecem tanto pela aquisição do sistema de escrita
convencional (alfabetização), bem como através do desenvolvimento de habilidades
na utilização do referido sistema nas atividades de leitura e da escrita através das
práticas sociais que circundam a língua escrita (letramento).
A escolha e a utilização do livro didático devem ser respaldadas na
competência do docente em colaboração com os alunos, fazendo do livro uma
ferramenta de aprendizagem (LAJOLO,1996).
A participação dos pais e familiares das crianças neste processo foi de
considerável importância no processo de aquisição de conhecimento, auxiliando as
crianças na construção de suas próprias histórias.
Na culminância, foi observado que os pais participaram ativamente,
observando as obras construídas por seus filhos e a apresentação dos mesmos do
que foi elaborado pela turma com o auxílio das professoras.

Considerações Finais

O Projeto Literário trouxe novas descobertas aos alunos, objetivando


instigar a imaginação, o conhecimento prévio e a competência leitora.
Constatamos que a escola pesquisada tem como meta apresentar a
leitura para as suas crianças de forma prazerosa e lúdica, ensejando formar
leitores que tenham afeição pelo universo literário.

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Através do conhecimento da vida e obra do autor, as crianças se


aproximam dos escritores. Esta aproximação propicia uma concretude na
construção do conhecimento da criança.
Para a realização das contações de estórias, os educadores se
utilizaram dos mais diversificados recursos pedagógicos, despertando a
curiosidade, a atenção e a concentração das crianças.
Compreendemos que a primeira infância é uma fase imprescindível para
a construção de um sujeito leitor. Quanto mais estórias as crianças escutam,
maior vocabulário elas internalizam. Através das narrativas, as crianças
passam a compreender o mundo ao seu redor.
O Projeto Literário compõe uma riqueza para o universo escolar, sendo
essa nossa conclusão ao acompanhar a realização do mesmo.

Referências

LAJOLO, M. Livro didático: um (quase) manual de usuário. Em Aberto, Brasília, ano


16, nº 69,
jan/mar, 1996.

LAJOLO, Marisa. Linguagem e letramento em foco: meus alunos não gostam de ler,
o que eu faço? Campinas: Cefiel/IEL/Unicamp, 2005.

KRETZMANN, C.; RODRIGUES, E. M. F. . A leitura na Educação Infantil. In: VI Educere -


Congresso Nacional de Educação, 2006. VI Educere, 2006.

SOARES, Magda. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Rev. Bras.


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<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
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ZILBERMAN, Regina. O PAPEL DA LITERATURA NA ESCOLA. Via Atlântica, São


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SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do Trabalho Cientifico. 23ª ed. São


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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

CONTAR E DIZER NA PRIMEIRÍSSIMA INFÂNCIA: DIFERENÇAS


E BENEFÍCIOS

Kenia Adriana de Aquino Modesto-Silva, UFG/Regional Jataí, Eixo temático 2 –


Literatura infantil para crianças pequenas
Renata Junqueira de Souza, UNESP/FCT/Presidente Prudente, Eixo temático 2
– Literatura infantil para crianças pequenas, CNPq

Considerações Iniciais

A literatura infantil, além de apresentar às crianças uma linguagem simbólica,


ao se contar uma história ou lê-la, é possível, pela qualidade do texto e a forma como
o adulto o utiliza em sala de aula, fazer do momento de contação 31 ou ―leitura em voz
alta‖32 da narrativa uma oportunidade de ampliação do repertório cultural do sujeito
que conta, lê ou ouve a história.
O foco deste artigo é, assim, tratar dos atos de contar e ―ler em voz alta‖ ou,
como Bajard (2014a, 2014b, 2014c) denomina, dizer na primeiríssima infância, uma
vez que concordamos com Fanny Abramovich (2004), quando enfatiza que o primeiro
contato da criança com a narrativa se efetiva pela oralidade.
Para tanto, o trabalho traz alguns resultados da pesquisa de doutorado
Estratégias de leitura na primeiríssima infância: era uma vez... uma bebeteca, uma
mediadora, crianças e livros33, possuindo como objetivo discutir as disparidades entre

31
A versão on-line do Grande Dicionário Houaiss, veiculada no link <houaiss.uol.com.br>, traz,
desde o ano 2000, o registro da palavra ―contação‖ como sendo um brasileirismo resultante
da junção entre contar + ação, significando ―ato de contar (no sentido de ‗relatar enredo‘);
narração‖. Muito empregada na locução ―contação de história‖, ou seja, atividade artístico-
educativa que utiliza o relato oral de histórias, geralmente ficcionais.
32
Ler em voz alta está entre aspas porque, de acordo com Bajard (2014), há diferenças entre
ler e dizer. Assim, no próximo item, discorreremos sobre ambas as nomenclaturas.
33
Pesquisa vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de
Ciências e Tecnologia (FCT) da Universidade Estadual Paulista (UNESP), de Presidente
Prudente, tendo como orientadora a Profa. Dra. Renata Junqueira de Souza.
241

os atos de contar histórias e ―ler em voz alta‖ para crianças da educação infantil,
sobretudo até os 3 anos, bem como as vantagens de ambas as práticas.
Os dados de ordem qualitativa foram coletados em uma bebeteca da cidade
de Presidente Prudente/SP durante o ano de 2016, sendo, portanto uma pesquisa de
campo com cunho etnográfico e vasta análise bibliográfica.
Para tentar responder à questão: Quais os benefícios de se contar e dizer na
primeiríssima infância a partir de suas diferenças?, foram empregados autores como
Abramovich (2004), Bajard (2014a; 2014b, 2014c), Fox (2008), Reyes (2010), Zumthor
(2014), entre outros estudiosos.
Na tentativa de elucidar a temática e colaborar com as práticas de
mediadores de leitura com crianças de até 3 anos de idade, o texto está dividido em:
confusão terminológica entre ―ler em voz alta‖ e dizer ou proferir; quando e como se
forma o leitor; quais as diferenças das práticas de contar histórias e dizer/―ler em voz
alta‖; e os benefícios de ambas as práticas.

Por que ―leitura em voz alta‖? Os olhos pronunciam?

Antes de destacarmos quando e como se forma o sujeito leitor, e as


diferenças entre as práticas de contar histórias e ―ler em voz alta‖, isto é, dizer ou
proferir o texto lido, apresentaremos o surgimento, com base na história da leitura,
desse impasse terminológico apresentado por Élie Bajard (2014a, 2014b, 2014c). Para
o autor, escrever – que não nos interessa neste texto –, ler e transmitir pela voz atuam
sobre a língua escrita, contudo, cada uma exige ações específicas.
Bajard (2014a) encara como importante o docente mediador de práticas com
a literatura atentar-se para o fato de que transmitir o texto, ―ler em voz alta‖, consistia,
na verdade, em transferir o escrito para o oral com a ajuda de um quadro de
correspondências entre as letras e os sons, processo denominado decifração, que
pode ser visualizado da seguinte maneira:

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Figura 1

Decifração

Identificação Reunião das


das letras letras em sílabas

Compreensão Pronunciação em
(resultado da voz alta
oralização) (oralizar)

Fonte: As autoras com base em Bajard (2014c)

Assim, de acordo com esse método tradicional de leitura, para ler bem, seria
necessário decifrar habilmente e a compreensão não fazia parte do ato da leitura
propriamente dito, porque só ocorreria após o lento trabalho da transposição dos
signos escritos em vocais, nesse caso, a ―voz alta‖ emitida pela decifração era
necessária à leitura e sua compreensão que, para ser atingida, precisaria passar pelas
fases de: decifração, voz alta e compreensão, respectivamente, conforme figura a
seguir.

Figura 2

Decifração Voz alta Compreensão

Fonte: As autoras com base em Bajard (2014c)

Averiguamos que, até o final do século XVIII, havia a vocalização ruminante e


o uso ―convivial‖ da voz alta. Na primeira situação, vocalizar ruminando, lia-se para
compreender o texto e memorizá-lo e, posteriormente, socializá-lo. No segundo uso,
lia-se para o outro, para alguém que não sabia ler ou não tinha mais condições de
fazê-lo por ter perdido a visão, por exemplo.
De maneira que a leitura se efetivava na escuta dos livros lidos e relidos em
voz alta, na memorização de textos ouvidos, ou mesmo na recitação daqueles que
foram decorados (BAJARD, 2014c), ou seja, essa comunicação realizada para os
outros, nas sessões de leitura pública, pressupunha a compreensão e só se proferia
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bem aquilo que se entendeu perfeitamente, isto é, nem todos conseguiriam ―ler em voz
alta‖ por não serem capazes de compreenderem adequedamente o lido.
Desse modo, percebe-se que tal forma de ler passa a ser repleta de
expressividade, pois as contínuas ruminações do texto permitiam ao leitor dominá-lo o
bastante para compartilhá-lo expressivamente com um auditório, quer dizer, a ―leitura
em voz alta‖ transforma-se em leitura expressiva: oralizava-se, havia a compreensão
pelo leitor/mediador e, por fim, ocorria a compreensão pelos ouvintes, sendo tal
processo assim representado:

Figura 3

Decifração /
Leitura em Compreensão Leitura Compreensão
Ruminação /
Oralização voz alta do leitor expressiva do ouvinte

Fonte: As autoras com base em Bajard (2014c)

Com o surgimento da impressa e da segmentação das palavras por espaços


em branco entre elas, nasce a leitura silenciosa que permitia que o olho percorresse o
texto com maior facilidade e sem necessidade da ruminação ou oralização. Assim
sendo, a leitura começa a se tornar um encontro individual com o texto e o caráter
coletivo de transmissão vocal deixa de ser hegemônico (BAJARD, 2014b), uma vez
que não era mais preciso dizer o escrito.
Nesse período, há grande circulação dos livros; aumento de bibliotecas;
alfabetização em maior escala, dispensando o mediador leitor (BAJARD, 2014b). No
entanto, para alguns estudiosos mais tradicionais, a leitura silenciosa não era bem
vista, pois por ser mais rápida poderia se tornar um obstáculo à compreensão (ID.).
Para aqueles que a atacavam, a leitura ―em voz alta‖ era melhor porque seria
protegida dos excessos da rapidez daquela leitura que se fazia individual e
silenciosamente, de sua superficialidade e de sua falta de compreensão, inclusive,
―por permitir o contato direto entre o leitor e o texto e favorecer a livre interpretação, foi
acusado de perigoso‖ (GALVÃO, 2014, s/p), sendo, portanto, ―a voz alta‖, o modelo de
leitura que deveria ser ensinado nas escolas, já que, na silenciosa, a construção dos
sentidos do texto fugia ao controle docente e não era possível a avaliação da oralidade
como sua entonação, fluência e pontuação.
Por conta disso, a escola tardou a introduzir a leitura silecionsa, no entanto,
no século XX, ela passa a ser indicada pelos docentes (GALVÃO, 2014) e a leitura
chamada de ―voz alta‖ passa a constituir o modelo pedagógico tradicional, pois
consistia em uma técnica difícil que nem todas as crianças atingiriam, passando a não
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ser mais essencial ao ato de ler, uma vez que o objetivo da escola converte-se para a
leitura silenciosa, que adquire reconhecida função e toma o lugar da ―leitura em voz
alta‖ (BAJARD, 2014c), já que colabora para a formação de leitores mais críticos e
autônomos (GALVÃO, 2014).
Por tudo isso, nasce a confusão terminológica em relação à palavra leitura,
que sustenta inúmeros sentidos distintos relacionados aos atos de: ler, oralizar,
decifrar, proferir, compreender. E, de acordo com Bajard (2014b), a partir do texto
escrito, faz-se necessário distinguir a atividade individual e silenciosa daquela situação
de comunicação e convívio social.
Para o estudioso, do ponto de vista lexical, o termo que se oporia a ―voz alta‖
não seria ―silenciosa‖, mas sim ―voz baixa‖. A partir dessa definição, a leitura seria
uma emissão com pouco volume sonoro ou inaudível, por isso silenciosa; ou suficiente
para ser escutado, em ―voz alta‖. No entanto, os sentidos e as práticas encaminham
para o nascimento de um novo conceito: se existem duas atividades na leitura em voz
alta (a leitura e a voz alta), devemos compreender a atividade em voz alta como
diferente da leitura propriamente dita (BAJARD, 2014b, 2014c).
É possível observar então, por meio dos escritos de Bajard (2014c), que ao
longo da história, o modelo da verdadeira leitura foi durante muito tempo a ―leitura em
voz alta‖ e que a noção de ―leitura silenciosa‖ nasceu progressiva e tardiamente. Esta
última, inicialmente recusada, adquiriu pouco a pouco a qualidade de leitura e se
tornou modelo. A ―leitura em voz‖, por sua vez, se viu gradualmente despojada de seu
prestígio e mesmo de sua legitimidade.
Por tudo isso, a nomenclatura ―leitura em voz alta‖ é questionada por Bajard
(2014a, 2014b, 2014c), pois a proferição do texto em alta voz corresponde a uma
atividade de emissão, isto é, de transmissão vocal do escrito como oposição à leitura
solitária, puramente visual e sem emissão sonora; enquanto a leitura propriamente
dita, realizada pelos olhos e silenciosamente, consiste em uma atividade de recepção
a partir de um tratamento visual (ZUMNTHOR, 2014).
A partir dessas disparidades entre ler e proferir o texto, Bajard (2014a, 2014b,
2014c) passa a nomear a atividade de ―leitura em voz alta‖ como dizer. E nós também
adotamos essa nomenclatura por considerarmos que o ato de receber pelos olhos
durante a o ato de ler é diferente da emissão da voz ao se proferir o que foi escrito por
outra pessoa – nem sempre aquela que pronuncia.
Em outras palavras, quando um professor ―lê em voz alta‖ para sua classe,
compreendemos que ele ―diz‖ o texto aos alunos ou o ―profere‖, pois o ato de ler está
presente apenas na recepção pelos olhos e o cérebro dos significantes gráficos na
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página do livro; e o ato de emitir está na vocalização do texto escrito, por isso, ele o
diz, emite ou profere.
Convém destacar que, antes de Bajard (2014a, 2014b, 2014c), outros autores
também verificaram incoerência na terminologia ―leitura em voz alta‖. Chartier (1998),
por exemplo, usou a expressão ―leitura para o outro‖; enquanto Manguel (1997)
preferiu falar em ―leitura ouvida‖. Richaudeau (1992) fala em ―leitura oralizada‖. Jean
(1999) prefere a forma mais comum: ―leitura em voz alta‖, ou ―leitura em viva voz‖.
Nós, porém, optamos pela denominação referente à ―leitura em voz alta‖ proposta por
Bajard (2014a, 2014b, 2014c), isto é, por ―dizer‖ ou ―proferir‖.
Em resumo, podemos organizar, com base na leitura de Bajard (2014a,
2014b, 2014c) e Zumthor (2014) a oposição entre ler e dizer/proferir o texto,
comumente chamados de ―leitura em voz alta‖, a partir da tabela a seguir e, desse
modo, compreender que tais ações são muito distintas, por isso, nomear a proferição
do texto escrito de ―leitura em voz alta‖ seria incongruente.

Tabela 1

Ler Dizer ou proferir (―ler em voz alta‖)


Atividade de recepção visual + emissão vocal
Atividade de recepção visual
+ recepção auditiva
Usa texto gráfico Produz texto/obra sonora
Usa os olhos e o cérebro Usa os olhos, a boca e as cordas vocais
Leitura individual Leitura compartilhada e expressiva
Realizado em baixa voz ou silenciosamente Realizado em alta voz
Sem mediador Com mediador
Transmissor do texto escrito por meio de
Leitor do texto escrito
performance (dicção, entonação etc.)
Exige compreensão e construção de sentido Exige decifração com ou sem compreensão
Modelo mais valorizado atualmente Modelo tido como tradicional e antiquado
Articulação entre língua e várias linguagens
Articulação entre língua e linguagem visual
como gesto, olhar, espaço, figurino
Prática que comporta alguma representação
Prática literária
e teatralidade
Proferição (oral) de um texto escrito a partir
de sua captação através do olhar, prática da
Leitura, propriamente dita: passagem dos
voz alta, transmissão vocal do texto (diferente
olhos (ou dedos) por um texto, interpretando
de emissão sonora – oralização – da
os sinais gráficos escritos (ou pontos de
decifração ou da ruminação)
relevo, no caso do Braille)
Recitação de um texto sabido de cor, jogral,
dramatização de um texto
Fonte: As autoras com base em Bajard (2014a, 2014b, 2014c) e Zumthor (2014)

Como é possível verificar, entre o ler e o dizer, existem diferenças de diversas


ordens como comunicativa, textual, material, de sua emissão, e estética. Assim,

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acreditamos que nas instituições educacionais são importantes as práticas da leitura


(ler solitária e silenciosamente) e da voz alta (dizer ou recitar o texto escrito e recontar
histórias), pois cada uma possui suas especificidades e contribuições para a
constituição do hábito de ler.
Feitas as distinções necessárias entre ler e proferir, passamos agora à
formação do leitor e, posteriormente, às diferenças das práticas da voz alta: (re)contar
e dizer.

Bebê leitor? Desde quando? Como?

Quando se fala em leitura na primeira infância, muitos são os


questionamentos e os impasses que surgem. No entanto, é sabido que qualquer
criança precisa ouvir muitas histórias em sua formação, pois ―escutá-las é o início da
aprendizagem para ser um leitor, e ser leitor é ter um caminho absolutamente infinito
de descoberta e de compreensão do mundo‖ (ABRAMOVICH, 2004, p. 16), assim a
autora defende a contação e a prática do dizer como uma atividade vital desde muito
cedo para se aprender sobre o mundo a sua volta, sobre si mesmo e sobre a
linguagem.
Complementando essa ideia e os ganhos que podem oportunizar a audição
de histórias, Davidov (1988) esclarece que para haver desenvolvimento psíquico na
criança, ele precisa ser intermediado pela educação, ou seja, sabendo disso, o adulto
mediador pode, desde os primeiros meses de vida do bebê, intervir com a oferta de
livros e prática de contação de contos, parlendas, fábulas etc. e também com a
proferição do texto escrito.
Estudiosos (REYES, 2010; MANTOVANI, 2014; PARREIRAS, 2012)
concordam que os anos iniciais de vida da criança, principalmente os três primeiros,
são cruciais para o estabelecimento de bases sólidas para diversos aprendizados e
seu desenvolvimento. Por isso, as instituições de educação infantil podem, por
exemplo, incluir momentos de acesso aos livros e a ambientes nos quais eles são o
centro, como em bibliotecas e bebetecas, mas também podem abranger, em suas
rotinas e momentos cotidianos, audições de histórias com repetição, acumulação e
rimas, além de poesias, parlendas, catingas diversas e, do mesmo modo, apreciação
de ilustrações em livros de diferentes materialidades. Tudo isso proporcionará ao bebê
e à criança pequena o conhecimento a respeito dos livros, do deleite da escuta literária
e as aproximará da leitura.
João Batista Araujo e Oliveira (2011) elucida que
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Crianças com hábito de ler desde cedo aprendem tudo sobre a


leitura, menos a ler. [...] Raramente uma criança aprende a ler apenas
pelo contato com os livros. [...] Nem é este o propósito da leitura
desde o berço. O propósito é introduzir a criança ao mundo dos livros
e da leitura, ao mundo das palavras, dos conceitos, das ideias, da
imaginação, dos sonhos. (p. 15).

Em outras palavras, o objetivo maior de se oferecer, aos bebês e às crianças


pequenas, livros para que possam eles mesmos ―lerem‖ a seu modo, e experiências
de narração oral de histórias não é a alfabetização precoce, mas o convívio com o ato
de ler e o objeto livro, bem cultural da sociedade e fonte de humanização.
Para se formar um leitor não existe algo específico que deve ser feito de
única vez, mas se necessita de um processo e, de acordo com Rafael Victorino Muñoz
(2010), o afeto pelos livros, e consequentemente pela leitura, necessita da vivência de
algumas fases como as de descoberta, exploração, conhecimento e confirmação, não
necessariamente nesta ordem, ou seja, para que contribuamos com a formação de
pequenos leitores desde o berço, é importante oportunizar aos bebês e às crianças o
acesso aos livros para que os descubram em sua materialidade, conteúdo e forma;
manuseiem, explorando-os com a boca, os olhos, as mãos; conheçam suas obras
preferidas e mais sobre si mesmo e as coisas da vida; além de solidificarem suas
experiências voltando ao livro predileto ou ouvindo a repetição de sua história favorita.
Dito de outro modo, as experiências com a literatura, desde a mais tenra
idade, tornam-se importantes para o mediador que compreende que os bebês e as
crianças pequenas são competentes para estabelecer relações e, como consequência,
aprender e se desenvolver física, social, psíquica e afetivamente (VYGOTSKI, 1995;
MUKHINA, 1996), sendo assim, para que isso ocorra, é significativo ofertar livros e
momentos de práticas de leitura, proferição ou contação de maneiras individual e
coletiva.
Mem Fox (2008, p. 17-18) acrescenta que as palavras são essenciais na
construção das conexões cerebrais durante a infância, de modo que:

[...] quanto mais linguagem a criança experimentar – através de livros


e conversações com os outros, e não passivamente em frente à
televisão – mais favorecida será social, educacionalmente e de todas
as maneiras pelo resto de sua vida. Por outro lado, quanto menos
palavras a criança experimentar, aprender e usar antes da idade
escolar, mais atrofiado será seu cérebro. (Tradução nossa, grifos no
original)

O que nos mostra que, além da formação de um comportamento leitor e a


convivência com a literatura na infância, é preciso viabilizar livros de boa qualidade e
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mediações com recontos e proferições de histórias durante a primeira infância, pois


isso contribuirá também para o desenvolvimento cerebral do bebê e da criança,
favorecendo não apenas o posterior aprendizado, em idade escolar, dos símbolos
gráficos, mas igualmente formando leitores capazes de compreender e construir
sentidos.
Nesse processo de constituir-se leitor, é determinante a escuta de narração
de histórias, seja por meio da contação ou do dizer, ampliando, de acordo com Suely
Amaral Mello (2016), de maneira significativa o universo de possibilidades de acesso
dos pequenos às memórias e também às fantasias de culturas distintas.
Concordamos com Cyntia Graziella Guizelim Simões Girotto e Beatriz Carmo
Lima de Aguiar (2013) quando enfatizam a exequibilidade de uma educação literária
desde a primeira infância, pois ―[...] a experiência com o objeto livro [...] a ser
apropriado pelas crianças, carrega a possibilidade da apreciação estética [...], ainda
que seja em sua etapa embrionária, permitindo o desenvolvimento de qualidades
humanas inerentes ao ato de ler [...]‖ (p. 3), isso quer dizer que ao explorar o objeto
livro e ouvir histórias contadas ou ditas por um adulto mediador, os pequenos, desde
bebês, podem apreciar esteticamente a materialidade do livro, e as narrativas e
informações que carrega, adquirindo, assim, qualidades humanas como a de ler,
mesmo que de uma maneira inicial.
Elkonin (1987), Mukhina (1996) e Vygotski (1995) explicam que, em cada
idade, as crianças aprendem a partir de atividades que tenham significado para elas,
ou seja, a partir do atendimento a sua necessidade principal naquele momento.
Nos bebês, até o primeiro ano de vida, rege a comunicação emocional como
atividade guia. Assim sendo, a criança age, aprende e se desenvolve por meio do
olhar e seu direcionamento, da audição e da atenção carinhosa que recebe, do toque
e do movimento de seu corpo. Por isso, Girotto e Aguiar (2013) explicam que:

[...] ao pegar, ouvir, morder, sentindo diferentes objetos, por exemplo,


os livros, forma-se na criança pequenininha a percepção, a atenção,
a comunicação, sendo que essas vivências acumuladas com as
atividades focadas no objeto-livro passam a criar memória. [...] Mais
adiante, a atividade exploratória com objetos é a atividade principal:
[...] ver, ouvir, pegar, amassar, abrir, fechar, empilhar, atirar,
comparar, classificar. Assim, a criança diante do livro observa, se
concentra, escolhe, experimenta, troca um livro por outro em
materialidade diferente [...] interage com outras crianças à sua volta,
com o educador, tenta resolver dúvidas que a atividade prática com o
livro como objeto gera; nesta experimentação, brincando com o livro
ela descobre muitas ―coisas‖ diferentes, ampliando sua percepção,
sua comunicação, seu movimento, sua memória, sua atenção.
Enquanto explora os livros disponíveis, passa a conhecê-los, do seu
jeito, interpreta e entende o que vai conhecendo.
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Em outras palavras, os bebês e as crianças pequenas precisam de materiais,


espaços e tempos que favoreçam sua educação literária e sua formação como
leitores. Para tanto, os docentes e mediadores podem oferecer-lhes livros para que os
sintam com as mãos, o nariz, os olhos, a boca e também possam manuseá-los e
explorá-los de diversas maneiras, seja batendo sobre ele, mordendo, abrindo e
fechando ou mesmo fazendo de conta que o lê, pois é assim que, de maneira ainda
embrionária, nascerão nos pequenos, além da assimilação da linguagem, do
desenvolvimento sensório-motor e da orientação espacial (MUKHINA, 1996), germes
de sua formação leitora.
Ainda em relação à atividade principal e à necessidade, Mello (2016) enfatiza
que ―a criança aprende socialmente, com o outro, o prazer de ler; cria para si a
necessidade da leitura com a vivência do próprio ato de ler do outro‖ (p. 46), ou seja, o
bebê ou a criança pequenininha só sentirão necessidade de folhear um livro ou
escutar uma história contada ou proferida caso seja criado neles a necessidade da
fruição de viver coletivamente uma narrativa, ou da experiência de ―leitura‖ individual
em sua função social em que, mesmo que seja a partir das imagens, já consegue
estabelecer relações e construir significados.
Além disso, fazem-se importantes momentos de narração, seja contando
histórias para eles ou lendo livros com eles, pois, como defende Natalia Porta (2013,
p. 21), ―a narração oral é o primeiro passo até a leitura‖, pois ―ajuda a descobrir o
mundo ao redor e mostra que existem outras pessoas, outros lugares e milhares de
histórias diferentes [...]‖ e também ―inicia-os na fantasia e potencializa sua imaginação‖
(Tradução nossa).
Então, para que os pequenos da primeira infância tornem-se leitores, mesmo
que de maneira inicial e embrionária, acreditando que são capazes de aprender e se
desenvolver desde o berço, é crucial que os docentes ofertem momentos com o contar
e o dizer histórias, pois apresentam muitos benefícios a sua formação como cidadãos
e leitores, como a descoberta de si próprio e dos demais, bem como do mundo a sua
volta, intensificando seu potencial imaginativo e criativo.
Nesse sentido, passamos à explanação das diferenças entre o (re)contar
histórias e o dizer o texto escrito. Em seguida, apresentamos os benefícios que ambas
as práticas oferecem à formação do pequeno leitor.

Práticas da voz alta e suas diferenças: o contar e o dizer

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Assim como a apreciação individual e a ―leitura‖ pelo bebê ou pela criança


pequena é importante para sua constituição leitora, a contação e a proferição de
histórias pelo adulto também viabilizam o desenvolvimento infantil. O que significa que
o (re)contar e o dizer as narrativas orais e escritas representam atividades primordiais
no planejamento da educação infantil. Além de essenciais ao desenvolvimento
humano, contar histórias e dizer as narrativas escritas nos livros consistem em
atividades que despertam o interesse por aprender e imaginar.
Contar, segundo Mellon (2006), é um processo antigo e grandioso. Além disso,
a autora defende que somos, naturalmente, contadores de histórias. Patrini (2005)
escreve que, além de ser uma prática antiga, contar é uma atividade que pode ser
encontrada em todas as partes do mundo; para esta estudiosa, ―o novo contador de
histórias pode dizer, ler em voz alta, interpretar, narrar, contar e recontar, em múltiplos
espaços antes ocupados principalmente pelos atores e pelos músicos‖ (PATRINI,
2005, p. 105). Sendo, portanto, uma forma longínqua de se transmitir experiências,
aprender e encantar, o contar também pode se fazer presente em qualquer ambiente e
momento, bem como envolver adultos, idosos, jovens, adolescentes, crianças e
bebês, incluindo as salas e instituições de educação infantil e os pequenos desde a
mais tenra idade.
O contador de histórias possui um modo particular de convocar as imagens em
sua memória associando tais lembranças ao contexto da narração, à maneira de o
grupo se comunicar, adaptando, desse modo, aos aspectos culturais e ideológicos da
comunidade ouvinte (PATRINI, 2005). Isso significa que aquele que conta tem um jeito
próprio e muito específico de narrar, bem como de lembrar das cenas do enredo, das
características de seus personagens, de seu movimento.
Busatto (2005, p. 9) vai além e poetiza ao alegar que:

O contador de histórias empresta seu corpo, sua voz e seus afetos ao


texto que ele narra, e o texto deixa de ser signo para se tornar
significado.
O contador de histórias nos faz sonhar porque ele consegue parar o
tempo nos apresentando um outro tempo.
O contador de histórias, como um mágico, faz aparecer o inexistente,
e nos convence que aquilo existe.

Observamos que, complementando as ideias de Patrini (2005) acerca do


contador de narrativas, Busatto (2005) amplia seu papel ao nos afirmar que, ele não
só tem um jeito próprio de narrar, mas também cede seu corpo, seus gestos, olhares,
sentimentos e voz ao texto contado; e, mesmo estando em um espaço de tempo
específico, é capaz de levar quem o ouve para outro período no qual acontece a

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história. Em geral, parece que o contador traz consigo algo maravilhoso que transporta
seu público para um lugar e um momento que não existe e ainda convence que tudo o
que fala é real e, de fato, aconteceu.
Esse transportar proposto pelo contador pode se efetivar de inúmeras formas e
com a utilização de diversos recursos. Pode contar com o livro nas mãos, mas sem lê-
lo; por meio da simples narrativa, na qual só sua voz e seu corpo narram; com a
presença de objetos e instrumentos; com a interferência dos ouvintes; com ilustrações
ampliadas; com gravuras das cenas principais em tamanho aumentado; com
desenhos; avental; tapete; flanelógrafo; dramatização; teatro de sombras; fantoches
ou dedoches; caixa de contação ou caixa-livro; mala de histórias; entre tantas outras
possibilidades.
Tudo isso seduz as crianças leitoras/ouvintes e as direciona posteriormente
para os livros. Sem contar que a relação de proximidade estabelecida entre quem
conta e quem vê e ouve é essencial, sobretudo na educação infantil, pois é nessa fase
que as crianças aprendem a ouvir e a prestar atenção, o que é fundamental para o
desenvolvimento do seu psiquismo, incluindo benefícios à linguagem oral, à memória,
à atenção, à concentração, à criatividade e à imaginação.
Dizer o texto, ou ―lê-lo em voz alta‖, para Jean (1999), similarmente ao contar
pode assumir múltiplas formas como pais que, à noite, leem para os filhos; professor
que lê para os alunos, autor que lê para si o próprio texto, entre outras. Jean (1999)
também considera que a proferição ―bem conduzida pode ser determinante para criar
novos desejos nos leitores e levá-los a penetrar em textos considerados difíceis‖ (p.
21). Isso significa que, às vezes, alguns escritos que podem ser considerados mais
densos ou com enredos mais complexos sejam compreendidos mais facilmente a
partir da proferição de um adulto mediador.
O pesquisador vai além e defende que:

A palavra leitora difere da palavra que conta [...]. A palavra que conta
é ‗mel da palavra‘. A palavra leitora não decorre da voz, mas a voz
comunica um texto escrito, e como que fixo (antes da leitura!).
Todavia, podemos questionar-nos se o verdadeiro e bom leitor em
voz alta não será aquele que, tendo previamente assegurado uma
verdadeira estratégia de leitura sensível e inteligente do seu texto,
ainda é capaz de encontrar no timbre personalizado da sua voz que
lê, os seus entonemas infantis! [...] (JEAN, 1999, p. 84-85)

Dito de outra forma, a palavra que transmite o texto escrito não é produzida da
mesma forma daquela que conta uma história, pois aquela é apenas o meio de
veiculação do texto que foi, inicialmente, registrado por escrito. No entanto, antes de

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sua proferição aquele que lê e diz o texto constrói sentidos para o texto e, desse
modo, fornece sua interpretação para ser compreendido e apreciado pelas crianças.
Bajard (2014c) salienta ainda que essa ―leitura em voz alta‖, o dizer, consiste
em uma atividade para os outros, ou seja, uma comunicação expressiva que necessita
de compreensão antes de ser realizada e explica que ―só se profere bem aquilo que se
entendeu bem‖ (p. 39). Isso significa que ao dizer um texto, mesmo que o repita tal
como está escrito, o mediador precisa compreendê-lo em vez de simplesmente evocar
em sua memória seus acontecimentos.
E engana-se quem pensa que dizer o texto seja mais simples, fácil e simplório
do que contar a história, por não necessitar evocar o enredo na memória do narrador,
pois o texto está registrado por escrito nas páginas do livro. Afinal, como lembra
Bajard (2014c, p. 54), ―a leitura expressiva em voz alta permance um exercício difícil,
na medida em que mobiliza ao mesmo tempo duas habilidades muito diferentes – a
leitura e a dicção [...]‖.
Para proferir bem e cativar seus ouvintes, principalmente os pequenos da
educação infantil, é aconselhável ao mediador que leia diversas vezes o texto a ser
compartilhado por sua voz que planeje e pratique essa proferição, além de que
identifique palavras que podem não fazer parte do vocabulário das crianças, por
exemplo, para que as antecipe, facilitando a compreensão dos menores.
O dizer, desse modo, é fundamental na formação do leitor, assim como o
contar, porque a partir dele, o professor consegue incentivar o gosto pelos livros ao
efetuar leituras para sua turma, uma vez que ―aquele que sabe ler deve partilhar os
frutos da leitura‖ (BAJARD, 2014c, p. 40).
Embora sejam próximas, as atividades de contar e dizer não podem ser
confudidas. Porque a voz que ―lê‖, isto é, diz o texto é apenas um ―intermediário entre
a criança e o livro; para ela é, justamente o livro que fala‖ (JEAN, 1999, p. 114-115).
Bajard (2014c) esclarece-nos que:

[...] Ao contrário da leitura, cunhada pela ausência do outro – o leitor


fica sozinho com o livro –, o dizer impõe ao texto a presença efetiva
do outro. [...] Sem ele, as práticas da escrita – ler e escrever –
permaneceriam individuais e a classe se transformaria em biblioteca
silenciosa. [...] A circulação da escrita entre alunos e entre eles e o
professor é instaurada pelo dizer. Junto à língua oral, ela forma o
cimento da comunidade escolar. (p. 97-98)

Isso nos mostra a importância do dizer nas instituições de ensino, incluindo-se


as infantis: unir os pequenos em fase plena de desenvolvimento à escrita e suas
possibilidades. Bajard (2014c) acrescenta que o dizer apresenta uma função estética

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além de sua função linguística, porque é através dele que os pequenos se aproximam
do patrimônio literário e cultural da humanidade.
Dizer (―ler em voz alta‖) histórias para as crianças é importante desde a mais
tenra idade, pois enquanto ouvem as narrativas, elas aprendem sobre a linguagem
pertinente à escrita, bem como sobre a estrutura do enredo, novos conceitos e novas
palavras, em geral mais sofisticadas do que aquelas utilizadas no cotidiano oral.
Além disso, quando o adulto profere o texto oportuniza que os bebês e as
crianças pequenas, que ainda não conseguem ler, tenham acesso ao escrito. Isso
também mostra que as manchas gráficas impressas nas páginas são significativas e
logo compreendem que aquela impressão representa a palavra falada. Também
aprendem muito cedo como segurar e manuser um livro.
Tendo discutido sucintamente as características do contar e do dizer,
passamos aos ganhos que ambas as práticas podem oferecer para as crianças de até
três anos.

Os benefícios das práticas de contar e dizer na primeiríssima infância

No trabalho diário com as crianças da primeiríssima infância, observamos que,


com base em suas diferenças, o contar e o proferir oferecem-nos inúmeras vantagens.
O contar histórias permite: adaptação do enredo e do vocabulário de acordo
com o público; redução o tamanho da história para atender o nível de concentração
dos ouvintes; utilização de recursos diversos para encantar e chamar a atenção para a
narrativa como fantoches, música, objetos e tantos outros adereços e técnicas;
melhoria da compreensão da narrativa devido à forma dinâmica de narração; auxílio
na construção de habilidades como visualizar, realizar conexões, inferir, prever
hipóteses e resumir o texto ouvido, mesmo essas sendo estratégias de leitura, elas
também são utilizadas em momentos de narração oral; além disso, permite a
compreensão da ligação entre presente, passado e futuro.
Enquanto o dizer o texto também pode promover a interação entre aquele que
lê e a criança que escuta, pois se pode solicitar que ela indique na página do livro as
ilustrações referentes ao que foi narrado, além de se permitir que perguntas sobre o
texto sejam feitas e respondidas com o auxílio das ilustrações.
Essas conversas durante a leitura compartilhada são muito importantes para o
aprendizado infantil, seja do vocabulário, da estrutura da narrativa, da compreensão
do enredo ou mesmo no estabelecimento de cumplicidade entre adultor proferidor e
criança ouvinte, talvez esse último aspecto seja o mais importante, porque a maneira
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como os adultos envolvem as crianças durante a proferição do texto afeta e incentiva


as crianças em sua relação com os livros e suas narrativas. Isso pode significar, então,
que a forma como as partilhas do texto escrito ocorrem influenciam mais do que sua
frequência.
O que presenciamos, no entanto, é que, de acordo com a idade e o número
de crianças a serem atendidas, é mais adequado uma prática em detrimento da outra.
Por exemplo, se a sessão de partilha de história for em grupo com várias crianças ou
bebês, é mais aconselhável que se conte do que se diga a narrativa, pois como o
contar possibilita o emprego de inúmeros recursos, isso atrai mais a atenção das
crianças que tendem a se dispersar com mais facilidade estando muitas juntas. Por
outro lado, se a partilha ocorrer com um bebê ou criança individualmente, o dizer é
mais promissor, visto que permite o ver a história por meio de suas ilustrações e pode-
se questionar sobre a história em sua versão visual.
Quando o adulto compartilha os textos com as crianças, independentemente
da forma como isso ocorre, ele distribui diversão, favorece as habilidades de escuta e
mostra que os livros também podem ser interessantes e desejáveis.

Considerações Finais

Diante de tudo o que trouxemos neste texto, verificamos que inúmeros são os
benefícios que as práticas de contar e dizer oferecem à primeiríssima infância:
diversão, interesse pelo livro e pela leitura, exemplo de como escutar, criação de
sensibilidade para ouvir e imaginar, além do desenvolvimento dos aspectos
linguísticos envolvidos com ambas as atividades.
Não se trata, pois, de permutar uma pela outra: dizer no lugar de contar ou
contar em vez de dizer. O ideal, pelo contrário, é que haja a presença das duas
modalidade de narração oral da história e que sejam utilizadas de acordo com a
história a ser narrada, o número de crianças atendidas ou mesmo o tempo e o espaço
em que a partilha ocorrerá.
Além disso, as atividades com práticas de contação e de leitura de histórias
devem estar presentes diariamente na vida do bebê e das crianças pequenas para
que eles desenvolvam o gosto pela leitura e, mais tarde, façam uso de textos verbais
com autonomia.

Referências

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

CONTOS E ENCANTOS DESDE AS PRIMEIRAS PALAVRAS-


MOMENTOS DE APRENDIZAGENS SIGNIFICATIVAS !

Vanessa Maria Redígolo Castilho, Prefeitura Municipal de Dracena. Eixo Temático 02:
Literatura Infantil para crianças pequenas

Uillians Eduardo Santos, FCT-UNESP/ Presidente Prudente. Eixo Temático 02:


Literatura Infantil para crianças pequenas

Gilza Maria Zauhy Garms, FCT-UNESP/ Presidente Prudente. Eixo Temático 02:
Literatura Infantil para crianças pequenas

Thiago Castilho Clemente, IFMS/ Nova Andradina. Eixo Temático 02: Literatura Infantil
para crianças pequenas

Introdução
Ao falarmos sobre a relevância da literatura na Educação Infantil no processo
de aprendizagem, estamos falando também sobre a importância da descoberta,
imaginação, criatividade, curiosidade e etc. A criança na primeira infância, assim como
nas outras fases, precisa receber muitos estímulos para que se desenvolva em
plenitude, dessa forma, as ações de práticas de leitura devem ser apresentadas às
crianças desde pequenas proporcionando aprendizagens significativas.
A aprendizagem e o conhecimento são construídos a partir das trocas
estabelecidas entre o sujeito e o meio. De acordo com Eulália Bassedas (1999), a
criança pequena recebe muitas influências de pessoas que a rodeiam, de forma que
uma relação positiva construtiva entre adultos é um dos elementos imprescindíveis
para a obtenção de novas aprendizagens que estimulem suas capacidades. Portanto,
cabe ao professor mediar práticas que favoreçam o desenvolvimento infantil.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (2009) atestam
que a criança é considerada como sujeito histórico e de direitos que ―nas interações,
relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade [..], brinca,
imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói
sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura‖. (p. 12). Especificam
ainda que as práticas pedagógicas que compõem a proposta curricular da Educação
Infantil devem ter como eixos norteadores as interações e a brincadeira e que
258

―promovam o relacionamento e a interação das crianças com diversificadas


manifestações de música, rtes plásticas e gráficas, cinema, fotografia, dança, teatro,
poesia e literatura‖. (BRASIL, 2009. p. 26). Dessa forma, a literatura está prevista nas
DCNEIs e deve ser trabalhada em sua totalidade. Partindo desse pressuposto, é na
primeira infância que deve ocorrer o contato e a exploração com o universo literário, a
ampliação dos conhecimentos e a familiarização com os livros, sons, narrativas e etc.
Procuramos evidenciar no presente artigo como a literatura infantil é
apresentada pelos professores às crianças pequenas, mais precisamente na faixa
etária correspondente de dois a três anos e quais benefícios a mesma apresenta na
formação da aprendizagem de futuros leitores. Buscamos o aporte teórico em diversos
autores como: Fanny Abramovich, (1997); Nelly Coelho (1991, 2000); Marisa Lajolo
(1996, 2008); Cyntia Girotto & Renata Souza (2009), Ninfa Parreiras (2009, 2012),
Lígia Cademartori (2010) e outros.
Para a recolha de dados realizamos uma entrevista estruturada e pequenos
relatos de dez professoras que atuam em uma Escola Municipal de Educação Infantil
que funciona em período integral no município de Dracena. Destacamos também o
que os professores pensam a respeito da importância da literatura e o que acreditam
ser necessário para melhorarem sua prática pedagógica nesse âmbito literário.

Literatura & Educação Infantil

Diante do atual cenário da Educação Infantil nos pautamos de inúmeras


evidencias que demonstram a importância do contato com a leitura desde a mais tenra
idade. Estudos de Coelho (1991, 2000), Abramovich (2003), Parreiras (2009, 2012),
Cademartori (2010) e outros, nos revelam que a literatura é extremamente benéfica na
vida da criança e que a mesma se faz presente desde muito cedo, de modo que esse
primeiro contato geralmente se faz presente na primeira infância através das pessoas
mais próximas à criança ou posteriormente através da entrada na escola.
Nesse sentido, Abramovich (2003) discorre que geralmente essa leitura inicial é
feita pela voz da mãe e do pai contando contos de fada, trechos da Bíblia, histórias
inventadas, narrativas de quando eles eram crianças e etc. A autora relata que o ato
de contar histórias é uma prática muito antiga utilizada ainda nos velhos tempos
quando o povo assentava ao redor do fogo para esquentar, alegrar, conversar, contar
casos, repetiam histórias para guardar suas tradições e sua língua.

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Na Educação Infantil, a literatura assume (ou deveria assumir) um importante


papel no desenvolvimento da criança, é nesse momento que a criança terá a
oportunidade de conhecer a literatura fora do ambiente doméstico, é na escola que
poderá manusear diferentes livros, ouvir contos, histórias, poemas, rimas e outros. Ou
seja, é um momento de descoberta e deleite que deve ser preparado e organizado
pelo professor. Não se trata de objetivar a alfabetização e sim de oferecer à criança
(ainda com pouca idade) o gosto e o prazer pela leitura, mesmo que seja de maneira
informal.
Destacamos dessa forma, que a literatura infantil não pode, nem deve ser vista
como algo em segundo plano e sim como uma atividade rotineira e de grande
importância dentro do currículo. Conforme Abramovich (2003) e Parreiras (2012), é na
infância que deve aprender a gostar de ler. Então trazemos à tona o seguinte
questionamento: Como a criança terá gosto pela leitura se não houver alguém para
apresentá-la?
Gládis Kaercher (2001) em seus apontamentos acerca da literatura infantil
assegura que somente será possível formar crianças que gostem de ler com
frequência e que tenham uma relação prazerosa com o livro se for proporcionado a ela
desde muito cedo, um ambiente agradável com o livro e com o ato de contar histórias.
O Referencial Curricular Nacional da Educação Infantil (1998) nos confirma que
ainda que a criança não saiba ler de maneira convencional, ouvir um texto já é uma
forma de leitura. Ao comunicar práticas de leitura, o professor coloca as crianças no
papel de ―leitoras‖ sendo possível relacionar a linguagem com os textos, os gêneros e
os portadores sobre os quais eles se apresentam: livros, bilhetes, revistas, cartas,
jornais e outros.
Dessa maneira, ainda segundo o documento:
Ter acesso à boa literatura é dispor de uma informação cultural
que alimenta a imaginação e desperta o prazer pela leitura. A
intenção de fazer com que as crianças, desde cedo, apreciem o
momento de sentar para ouvir histórias exige que o professor,
como leitor, preocupe-se em lê-la com interesse, criando um
ambiente agradável e convidativo à escuta atenta, mobilizando a
expectativa das crianças, permitindo que elas olhem o texto e as
ilustrações enquanto a história é lida. (BRASIL, 1998, p. 143).

Girotto & Souza (2012) entendem ―que o contar e o ler histórias, do ponto de
vista didático-pedagógico, podem contribuir para que a criança se aproprie e
aperfeiçoe o uso de capacidades psíquicas capazes de elevar o seu desenvolvimento
intelectual e pessoal. Destacam que o conteúdo destas atividades pode vir a motivar o

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agir infantil ao nível prático e mental, permitindo de forma mais prazerosa, a


compreensão sobre as características e os usos da língua escrita.
Nessa conjuntura, cabe destacar que a literatura é vista pela criança como uma
brincadeira, pois trata-se do momento no qual ela fantasia, dramatiza e socializa com
seus pares.
A sonoridade presente nas poesias, parlendas, músicas e outros, se constitui
em um outro fator que encanta as crianças e a fazem querer brincar, conhecer e
querer que o professor (re) conte o texto. Silva (2010) explica que mesmo que a
criança não saiba ler, ela é capaz de conhecer a sonoridade presente nos textos.
Dessa forma:
As características principais do texto poético, que são o olhar
novo sobre o trivial e a valorização do estrato sonoro da língua
são predominantes no modo de a criança expressar-se e de ver
o mundo. Antes de conhecer o significado das palavras, a
criança se deleita com os seus significantes - esse invólucro que
acondiciona o sentido em sons. (SILVA, 2010, p. 229).
.
Entendemos que é possível realizar práticas leitoras com qualidade e propor
aprendizagens significativas quando os profissionais da Educação acreditam na
potencialidade do seu ``papel´´ enquanto mediadores e quando os mesmos também
se constituem em leitores assíduos e propagadores da importância da leitura. Marisa
Lajolo (2008) pressupõe que o professor precisa gostar de ler, deve praticar a leitura
mantendo uma boa relação com esta, pois dificilmente alguém que não goste de ler,
incentivará a leitura ou conduzirá o aluno a ela.
Nesse mesmo sentido, Kaercher (2001) também discorre que os adultos
precisam gostar de ler, ―ler com alegria e diversão; ―brigando com o texto,
discordando, desejando mudar o final da história, enfim, costurando cada leitura, como
um retalho colorido, à grande colcha de retalhos-colorida significativa- que é a nossa
história de leitura‖. (KAERCHER, 2001, p. 83).

Afinal, o que é literatura infantil?

Para Nelly Coelho (2000, p. 27), ―a literatura infantil [...], é arte: fenômeno de
criatividade que representa o mundo, o homem, a vida, através das palavras. Funde
os sonhos e a vida prática, o imaginário e o real, os ideais e sua possível/impossível
realização‖. Ainda segundo a autora, a literatura infantil é definida ―como objeto que
provoca emoções, dá prazer ou diverte, e acima de tudo modifica a consciência de
mundo de seu leitor, [...] é arte. (p. 46).

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Nas palavras de RILDO COSSON (2011, p. 17):


A literatura nos diz o que somos e nos incentiva a desejar e a
expressar o mundo por nós mesmos. E isso se dá porque a
literatura é uma experiência a ser realizada. É mais que um
conhecimento a ser reelaborado, ela é a incorporação do outro
em mim sem renúncia da minha própria identidade.

Cosson (2001) ao falar sobre literatura também explicita que a mesma nos
incentiva a desejar e a expressar o mundo por nós mesmos. Através da literatura
―podemos ser outros, podemos viver como os outros, podemos romper os limites do
tempo e do espaço de nossa experiência e, ainda assim, sermos nós mesmos‖ (17).
Nas palavras de (LAJOLO, 1996, p. 108). ―A literatura foi (e ainda é) uma das
linguagens através das quais diferentes comunidades constroem, reforçam ou
reformatam sua identidade, desdobram e renovam poderes da linguagem verbal‖.
Nesse contexto, podemos evidenciar que a arte literária traz muitos benefícios
para vida da criança, a literatura vai muito além de narrar algo, a literatura é beleza, é
artística, pode ser encantamento, pode ser diversão, pode aflorar sentimentos e etc. O
mais importante é que, através da literatura, a criança é capaz de interagir,
desenvolver a oralidade, brincar, sonhar, fantasiar. Girotto & Souza (2012, p. 46)
afirmam que:
[...] a literatura infantil, assumindo a sua posição de forma de
linguagem artística que possibilita a interação entre autor e leitor,
mediada pela escrita e pela imagem – considerando que o livro é
constituído por um todo que reúne linguagem verbal e não verbal
com significados complementares –, desempenha uma função
particular para o desenvolvimento psíquico da criança.

Considerando a relevância da linguagem artística na literatura, cabe evidenciar


que não são todas as obras publicadas que podem ser consideradas literatura. ―Para
uma obra ser literária, é necessário que haja a predominância da função
metalinguística no texto e na imagem visual. É a poética que caracteriza o literário‖.
(PARREIRAS, 2009, p. 23). Outro aspecto que é preciso se atentar apontado por
Abramovich (1993) é que muitas obras que se propõem como infantis, não são
apropriadas, na verdade, apresentam adultos em miniatura exercendo funções
completamente dissociadas de suas realidades.
Ao trabalhar com a literatura, é inadmissível que se abandone a beleza, a
estética, o imaginário, ou caso contrário, não é literatura. Conforme Lajolo (2008), os
livros de literatura infantil frequentemente são utilizados como pretexto para ensinar
algo e avaliar a criança, são apresentados de maneira mecanizada. Para ela, a leitura

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deve ser livre, deve respeitar o momento de aprendizado de cada leitor, respeitando
também o prazer ou a aversão em relação a cada livro.
Evidenciamos também que é um ponto crucial adequar o livro e as histórias à
faixa etária na qual a criança está inserida. É preciso entender que as crianças
pequenas ainda não possuem um amplo vocabulário, porém, são capazes de entender
inúmeras coisas e precisam ter o contato com o livro. É importante que haja livros de
diferentes formatos e tamanhos, ou seja, de plásticos, papelão, sonoros, macios,
ásperos e outros.

Desenvolvimento

Para a realização da presente pesquisa utilizamos uma entrevista contendo


seis perguntas sobre à prática pedagógica relacionada ao trabalho com a literatura
Infantil. A escolha pela entrevista se deu na tentativa de aproximar os investigadores
dos investigados e obter o maior número de informações sobre o objeto em questão.
Os sujeitos da pesquisa foram 10 (dez) professoras da Rede Municipal de
Ensino, efetivas e contratadas de uma Escola Municipal de Educação Infantil/ Creche
que atuam na turma de maternal com crianças na faixa etária de 2 (dois) a 3 (três)
anos. Destacamos que todas as professoras são graduadas em Pedagogia, possuem
experiência há mais de dez anos e nove delas possuem especialização na área
educacional.
Para preservar a identidade das entrevistadas, em alguns momentos
colocaremos a sigla (P1) correspondente a professora (1), (P2) para a professora (2) e
assim sucessivamente para exemplificarmos alguns relatos considerados essenciais
para a análise da entrevista.
Primeiramente indagamos: Você realiza o momento da ―hora da história‖
com seus alunos frequentemente? Quantas vezes ao dia é realizada a ―contação
de história‖?
Todas as professoras responderam que realizam a ―hora da história‖
frequentemente. Seis professoras afirmaram que a leitura de livros é feita uma vez ao
dia e quatro disseram que a leitura é realizada em média quatro vezes por semana. As
professoras também destacaram que esse momento é planejado, contudo, muitas
vezes durante o dia, as mesmas estão sempre trabalhando com parlendas, rimas,
pequenas poesias, contos de fadas e contando histórias inventadas a partir de uma
determinada situação inesperada.
Aproximar a criança da literatura é extremamente benéfico para o
desenvolvimento da mesma, portanto, a arte de contar histórias, ler livros e outros
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deve ser preconizada diariamente de forma natural. Para Kaercher (2001), o livro deve
ser parte integrante do dia a dia da criança para que a mesma se torne leitora.
Conforme ABRAMOVICH (1997, p. 24) ―O livro da criança que ainda não lê é a história
contada‖, assim é por meio do adulto que as crianças terão essa aproximação.
Para Edvania Rodrigues (2005) o ato de contar histórias é considerado como
uma atividade própria de incentivo à imaginação e o trânsito entre o fictício e o real.
Dessa forma:
―Ao preparar uma história para ser contada, tomamos a
experiência do narrador e de cada personagem como nossa e
ampliamos nossa experiência vivencial por meio da narrativa do
autor. Os atos, as cenas e os contextos são do plano do
imaginário, mas os sentimentos e as emoções transcendem a
ficção e se materializam na vida real‖. (RODRIGUES, 2005, p.
4).

Considerando que nessa fase da primeira infância, é muito importante que as


atividades oferecidas sejam estimulantes e criativas, as histórias devem ser variadas
de forma que despertem o interesse e curiosidade da criança sendo bem contadas e
interpretadas.
É muito comum que as crianças pequenas se identifiquem com os contos de
fadas e com as experiências neles narradas. Parreiras (2009 p. 75) explica que ―os
contos de fadas são narrativas estruturadas como um sonho: há uma linguagem
condensada, carregada de simbolismo. Cada personagem e cada tema nos remetem
a outras questões. Representam valores universais e atemporais‖.
A autora salienta em seus textos que as histórias trazem uma gama de
sensações e traduzem sentimentos sendo possível com a leitura discutir valores como
inveja, egoísmo ciúmes e etc. Dentro desse contexto apresentado pelos autores,
consideramos que todo dia é propício para uma boa história entrelaçada com um
momento de ludicidade.
Em seguida perguntamos: As crianças demonstram gostar desse
momento?
Todas as professoras afirmaram que se trata de um momento na qual elas
gostam muito. Cinco professoras acrescentaram que é visível o quanto a criança
aprende diariamente com as histórias. As professoras de modo geral discorreram que
a hora da história é um momento de brincadeira no qual eles participam, querem ficar
com os livros, se divertem e pedem para que a história seja (re) contada.
Parreiras (2012) assevera que quando o livro permite que a criança brinque, se
coloque na história e fantasie, ele é como um brinquedo, pois o brinquedo é
considerado o primeiro objeto cultural na vida da criança. É por meio do brinquedo que
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ela se comunica e interage. ―E por meio do livro, pode se colocar, pode imaginar, pode
se divertir, pode compartilhar experiências com outras pessoas‖. (PARREIRAS, 2012,
p. 112).
É perceptível que as crianças sempre se sintam atraídas por histórias.
Provavelmente tal fato ocorre naturalmente devido ao encantamento, magia e
sonoridade. ―A leitura de histórias é uma rica fonte de aprendizagem de novos
vocabulários. Um bom texto deve admitir várias interpretações, superando-se, assim, o
mito de que ler é somente extrair informação da escrita‖ (BRASIL, 1998, p. 145).
Nessa perspectiva, VÂNIA DOHME (2005, p. 19) nos apresenta vários benefícios
oriundos do prazer de ouvir histórias. São eles:
- Caráter: as histórias com heróis, conteúdos que proporcionam
lições de vida, fábulas em que o bem prevalece sobre o mal. Por
meio das histórias, principalmente, os meninos se defrontam
com situações fictícias e com isso adquirem vivência e
referências para montar os seus próprios valores;
- Raciocínio: as histórias mais elaboradas, os enredos
intrigantes, agitam o raciocínio da criança.
- Imaginação: o exercício da imaginação traz grande proveito às
crianças, porque atende a uma necessidade muito grande que
elas têm de imaginar. As fantasias não são somente um
passatempo; elas ajudam na formação da personalidade na
medida em que possibilita fazer conjecturas, combinações,
visualizações como tal coisa seria ―desta‖ ou de ―outra‖ forma.
- Criatividade: uma vez que a criatividade é diretamente
proporcional à quantidade de referências que cada um possui,
quanto mais ―viagens‖ a imaginação fizer, tanto mais aumentará
o ―arquivo referencial‖ e, consequentemente, a criatividade.

Salientamos que frente a gama de benefícios que a literatura apresenta às


crianças, torna-se indispensável que esse momento seja realizado frequentemente
tendo à criança como sujeito do processo, ou seja, participando de maneia ativa e não
como mera ouvinte.
Seguimos: Na sua prática pedagógica, você já precisou mudar a história
ou a maneira de contá-la devido à falta de interesse dos seus alunos? Caso a
resposta seja afirmativa, responda o porquê que os mesmos não se
interessaram.
Nessa resposta, nove professoras afirmaram que já precisaram mudar a
história ou o livro em algum momento, uma delas respondeu que esse fato nunca
ocorreu, pois, as crianças sempre se encantam com esse momento.
As respostas sobre o possível desinteresse das crianças foram bem variadas
como: história que falava de morte, tema desinteressante, narrativa muito extensa,
falta de entonação de voz e espaço inadequado.
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Em um relato a professora na qual denominaremos de (P1) afirmou:


―Na época, acredito que minha falta de experiência nessa área
contribuiu para que as crianças não se interessassem muito. A
história era um pouco longa e não consegui chamar a atenção
deles. Eu poderia ter utilizado artifícios para chamar a atenção
durante a história, ter mudado a voz, o espaço também não era
considerado adequado. Hoje fico atenta a esses detalhes‖.

Quando as professoras destacam que a entonação de voz se traduz em um


importante momento para chamar a atenção das crianças, elas mesmo sem saber
estão em consonância com Souza & Girotto (2014, p. 11) quando afirmam que:
―Na contação, a escolha dos recursos e das técnicas é primordial
para enriquecer a atividade e cativar o ouvinte para que ele
busque, a seguir, o livro‖. Segundo as autoras, o professor deve
preparar esse momento com clareza, a leitura em voz alta
―requer um ensaio prévio, para que o docente treine a pronuncia
das palavras, a entonação das frases, a articulação de sinais de
surpresa ou indagação, dentre outros elementos que remetem
ao texto escrito‖ (p. 11).

Contar histórias é considerado uma arte, exige um momento de preparação, de


planejamento e conhecimento. Conforme Dohme (2005) é necessário pesquisar, ler
literatura especializada feita para as crianças, conhecer seus heróis, sejam
eles pertencentes aos desenhos animados ou histórias em quadrinhos, assistir a
filmes, conhecer suas brincadeiras e preferências. Em suma, é preciso estudar e ter
claro os objetivos que se quer atingir.
Nesse mesmo sentido (P2) relatou que:
―Pela faixa etária das crianças eu notei que minha história não
estava adequada, não chamava a atenção deles. Por influência
de um curso sobre― Contar histórias na Educação Infantil‖ na
Secretaria de Educação, fui despertada pela ―contadora‖ que há
maneiras diferentes de contar histórias, de fazer leituras. Hoje
com uma simples pena na cabeça eu me transformo em várias
personagens levando eles para o mundo da imaginação‖.

Pela análise das respostas, percebemos que as professoras conseguem refletir


sobre sua prática, analisando os aspectos satisfatórios ou ―não‖ de seu trabalho. Tal
fato se traduz no amadurecimento da docência e reflexão da práxis.
Diferentemente das demais respostas, (P3) evidenciou que: ―Acredito que as
crianças sempre estão atentas às histórias porque trabalhamos com muitos materiais
diferenciados como: aventais, fantoches, brinquedos e outros, a criança interage
conosco‖.
A utilização de diversos materiais e artefatos contribuem para chamar a
atenção das crianças e essa interação que ocorre entre adulto e criança se traduz em
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um rico momento de aprendizagem e socialização. Arce (2007) explica que todo


trabalho na Educação Infantil deve ser pensado, planejado e preparado, pois no
desenvolvimento infantil, sobretudo nesta fase, é primordial a interação da criança com
o adulto. Destaca ainda que o desenvolvimento é mediado pelas relações
estabelecidas com os adultos e com o meio circundante.
Perguntamos: O ambiente no qual você realiza a hora da leitura é
considerado adequado? Caso a resposta seja negativa. Como você gostaria que
fosse o ambiente?
A maioria das professoras, ou seja, oito delas, consideram que o ambiente não
é totalmente apropriado, pois os espaços são na maioria das vezes adaptados. Elas
também salientaram que as salas são pequenas não sendo possível as mesmas se
movimentarem como gostariam. Duas professoras consideram o espaço adequado,
entretanto, preferem ir à brinquedoteca e variar o lugar para contar histórias. As
professoras gostariam que houvesse uma sala só para leitura, ou seja, uma biblioteca.
Grande parte das instituições de Educação Infantil não possuem espaços
adequados para a eficácia das atividades, no entanto, é possível criar estratégias que
tornem o espaço aconchegante. Abramovich (1993) nos alerta sobre o cuidado que se
deve ter em escolher o livro, o espaço e que também é necessário proporcionar às
crianças a liberdade para que cada um encontre um jeito gostoso de ficar, seja
sentado, deitado, enrodilhado, ou seja, cada um a seu gosto. Diante do exposto, é
possível afirmar que além do ambiente e espaço favorável, a criança também precisa
estar confortável.
Ainda nos pautando nos estudos da autora, destacamos que o professor deve
organizar o ambiente de tal forma que haja um local especial para livros, gibis e
revistas, no qual as crianças possam manipulá-los e ―lê-los‖, seja em momentos
organizados ou espontaneamente.
Continuamos: O acervo de livros de sua escola é considerado bom e
suficiente? Tema algo que considere importante para uma boa realização da
prática de contar histórias que sua escola ainda não possui? As crianças
possuem acesso aos livros?
Todas as professoras consideram o acervo de livros bom, contudo, apesar de
haver muitos livros, nem sempre é suficiente. Elas evidenciaram que a EMEI possui
muitos livros de diferentes tamanhos, formatos, com histórias interessantes e que as
crianças possuem acesso podendo manuseá-los, pois os mesmos ficam em uma
altura na qual as crianças alcançam.

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Duas delas evidenciaram que ainda que a escola possua muitos livros e
bebetecas, seria bom sempre renovar as coleções e ter um baú com mais fantasias e
acessórios. (Elas utilizam fantasias e utensílios para auxiliarem na montagem dos
personagens).
Uma das professoras também relatou que acha importante haver mais livros
com recursos sonoros, pois as crianças gostam muito. Oferecer uma diversidade de
livros para as crianças se constitui em uma preocupação que as mesmas possam
desfrutar de um ambiente leitor diversificado. (BRASIL, 1998, p. 143). O fato da
criança poder manusear o livro é considerado algo muito positivo. Parreiras (2009)
explica que a ―a aproximação da criança com os livros deve acontecer como a
aproximação com os brinquedos: ver, tocar mãos e pés, levar a boca.‖ (p.28).
Segundo a autora primeiramente há uma relação de ludicidade, de gostar do
livro para depois estreitar a relação que o ser humano vai ter com o mesmo.
Corroborando com essa afirmação, Miguel Manguel, (1997) assegura que o leitor
tendo contato com o livro, estabelece uma relação íntima, física, onde todos os
sentidos se relacionam, os olhos colhem as palavras na página, os ouvidos ecoam os
sons que estão sendo lidos, o nariz inala o cheiro familiar de papel, o tato acaricia a
página áspera ou suave e ainda segundo o autor, às vezes até mesmo o paladar é
percebido. Abramovich (1993), também destaca a relevância de deixar que a criança
possa escolher o livro, pois para ela, não é possível que alguém aprenda a gostar de
ler, sem que possa escolher o que ler.
Cabe ao professor também ter um cuidado com o tipo de livros que possui em
sua biblioteca, sendo que os mesmos devem ser adequados à faixa etária da criança.
Francisca Maciel (2008) nos alerta que o ideal é haver obras significativas nacionais e
estrangeiras, exercer um controle de qualidade na aquisição desses livros, possibilitar
que se tenha um universo de opções de livros que possa ser lido, compreendido e
assimilado. O que se espera de um livro é que a criança, ―ao explorá-lo brincando,
adquira, de modo próprio e gradativo, de acordo com seu próprio ritmo, familiaridade
com a estrutura da língua, que ela viva experiências de linguagem. E que isso seja
feito ludicamente‖. (BRASIL, 2015, p. 16).
Ainda em relação aos livros, é necessário que o professor fique atento, pois
nem todos livros publicados trazem histórias literárias. Para ser considerada literatura,
é preciso que ―a obra deve ter um encantamento trazido pelas palavras e ilustrações: o
uso das figuras de linguagem, como as metáforas, de linguagem poética, de coisas
subentendidas, de ludicidade, de duplo sentido, de repetições‖. (PARREIRAS, 2012,
p. 108).
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Por fim, indagamos: Você gostaria de participar de cursos de formação na


área da literatura? Considera importante haver cursos específicos e formações
nessa área? Por quê?
Nesse questionamento todas as professoras evidenciaram a necessidade de
haver cursos e formações que envolvam essa temática. Afirmaram que gostariam de
aprender novas técnicas, gostariam de conhecer mais sobre o assunto e
principalmente e de melhorarem a própria prática, pois acreditam na importância de
sua mediação. As professoras também elucidaram que pouco aprenderam sobre
literatura no curso de Pedagogia. Duas professoras afirmaram não terem tido essa
disciplina e que o tema foi abordado esporadicamente.
Evidenciamos que o curso de Pedagogia apresenta muitas lacunas e a
disciplina referente a Literatura Infantil (na maioria dos cursos) possui uma carga
horária pequena em relação à outras disciplinas. Ademais, é possível constatar que
em algumas faculdades, a disciplina nem sempre fez parte da grade curricular.
A formação inicial e contínua é essencial para que os professores possam
obter novos aprendizados e enriquecer a prática cotidiana. O ministério da Educação
e Cultura através do documento ―Proposta de Diretrizes para a formação inicial de
professores da Educação Básica, em cursos de Nível superior‖ (2000) afirma que
―melhorar a formação docente implica instaurar e fortalecer processos de mudança no
interior das instituições formadoras, respondendo aos entraves e aos desafios
apontados‖ (p. 12). O documento aponta a necessidade de uma revisão profunda dos
diferentes aspectos que interferem na formação inicial de professores, como: a
organização institucional, a definição e estruturação dos conteúdos para que
respondam às necessidades da atuação do professor, os processos formativos que
envolvem aprendizagem e desenvolvimento das competências.

Considerações finais

A pesquisa nos revelou através da fundamentação teórica e da investigação


em questão que a literatura está presente na Educação Infantil correlacionada com a
aprendizagem significativa e desenvolvimento integral das crianças.
Em linhas gerais destacamos que é possível desenvolver um rico trabalho com
literatura com crianças que tenham pouca idade através de brincadeiras,
musicalização, parlendas, poesias, hora da história e outros. Esse trabalho, quando
bem elaborado, se resulta em um momento ―mágico‖ de descoberta, aprendizagem,
interação, criatividade, imaginação e outros.

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Elucidamos que a criança não se torna uma leitora e apreciadora da literatura


sozinha, é necessário que haja um processo e a mediação do professor,
consideramos que essa mediação se torna possível e eficaz quando o mesmo também
se identifica como um leitor e quando há um planejamento de sua prática educativa
objetivando o que se quer alcançar.
É importante que a criança tenha familiaridade com a literatura e com a leitura
de forma lúdica e prazerosa, nesse processo, a escolha dos livros, o repertório, os
gêneros e o ambiente se traduzem em elementos primordiais para que isso ocorra
naturalmente. Haja vista, o deleite da literatura não se constitui por imposição, nem de
forma isolada.
A presente pesquisa também nos denunciou que o curso de Pedagogia
apresenta falhas em relação a disciplina de Literatura, destacamos que a disciplina
deveria ocupar um lugar de destaque, com ementas significativas, visto que a mesma
apresenta elementos que corroboram com a aprendizagem.
Salientamos que a presente pesquisa não pretende esgotar as discussões
acerca do assunto e sim fomentar novos debates e apontamentos relevantes à
temática.

Referências:

ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione,


1993.

ARCE, Alessandra; MARTINS, Lígia Márcia (Org.) Quem tem medo de ensinar na
educação infantil? em defesa do ato de ensinar. Campinas, SP: Editora Alínea, 2007.

BASSEDAS, E.; HUGUET, T.; SOLÉ, I. Aprender e ensinar na Educação


Infantil. Tradução de Cristina Maria de Oliveira. Porto Alegre: Artmed, 1999.

Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Lei de Diretrizes e Bases da Educação


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Acesso em: 1 de junho. 2017.

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Disponível em: <http://www.mec.gov.br >. Acesso em: 15 de junho. 2017.

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MEC, 2015. Disponível em: <http://www.mec.gov.br >. Acesso em: 10 de junho. 2017.

CADEMARTORI, Ligia. O que é literatura infantil? São Paulo, Brasiliense, 2010. 2ª ed.
Col. Primeiros Passos.
______. O professor e a literatura: para pequenos, médios e grandes. Belo Horizonte,
Autêntica, 2010.

COELHO, Nelly Novaes. Panorama histórico da literatura infantil/juvenil: das origens


indo européias ao Brasil contemporâneo. 4 ed. Ática, 1991.

______. Literatura infantil: teoria, análise, didática. 7.ed. rev. atua. São Paulo:
Moderna, 2000.

COSSON, R. Letramento literário: teoria e prática. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2011.

DOHME, V. Técnicas de Contar Histórias. São Paulo: Informal Ed., 2005.

GIROTTO, C. G. G. S.; SOUZA, R. J. Literatura infantil e hora do conto: humanização


das crianças no complexo processo de educação sistematizada. In: AZEVEDO, F.;
SOUZA, R. J. (Coord.). Géneros textuais e práticas educativas. Lisboa: Lidel, 2012. p.
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KAERCHER, G E. E por falar em literatura...In: CRAIDY, C., KAERCHER, G. E.


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LAJOLO, Marisa. Oralidade, um passaporte para a cidadania literária brasileira. In:


GUIMARÃES, Eduardo; ORLANDI, Eni Puccinelli (orgs.). Língua e Cidadania: o
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MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1997
R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 93, n. 234, [número especial], p. 423-442, maio/ago.
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PARREIRAS, Ninfa. Confusão de línguas na literatura: O que o adulto escreve, a


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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

LITERATURA INFANTIL E EDUCAÇÃO AMBIENTAL: UMA


EXPERIÊNCIA DO PROJETO LABINTER

Suelen Regina Patriarcha-Graciolli, Universidade Católica Dom Bosco (UCDB)


e Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), eixo temático 2 -
Literatura Infantil para crianças pequenas
Ana Paula Gaspar Melim, Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), eixo
temático 2 - Literatura Infantil para crianças pequenas
Neli Porto Soares Betoni Escobar Naban, Universidade Católica Dom Bosco
(UCDB), eixo temático 2 - Literatura Infantil para crianças pequenas
Ângela Maria Zanon, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS),
eixo temático 2 - Literatura Infantil para crianças pequenas

Considerações Iniciais

O presente capítulo aborda questões formativas no espaço da universidade a


partir de discussões acerca da literatura infantil e da educação ambiental evidenciando
uma experiência realizada por meio do projeto do Laboratório Pedagógico
Interdisciplinar das Licenciaturas (Labinter) da Universidade Católica Dom Bosco
(UCDB).
Destacamos a relevância do estudo por compreender que o Labinter é um
espaço de desenvolvimento de atividades educacionais que visa propiciar aos
acadêmicos dos cursos de licenciatura (Ciências Biológicas, Pedagogia e Letras)
práticas pedagógicas em uma perspectiva socioeducativa, com articulação entre
ensino, pesquisa e extensão, bem como ampliar as condições dos processos
formativos.
Assim, buscamos desenvolver ações educativas tendo em vista o processo
de ensino e da aprendizagem na formação docente, o Labinter contribui na construção
de práticas formativas proporcionando aos acadêmicos dos cursos de licenciatura da
UCDB participação ativa na constituição docente. Para a realização dos estudos
tomamos como referência os autores: Abra movich (1997), Carvalho (2011), Reigota
(2014), Imbernón (2004) e Nóvoa (2009).
273

No ano de 2016, o projeto iniciou a proposta de trabalho com literaturas


infantis e Educação Ambiental (EA), tendo como um dos objetivos promover contações
de histórias. Nesse sentido, entendemos que a EA deve pautar-se por uma
abordagem sistêmica que implica compreender que no mundo interagem diferentes
níveis da realidade e se constroem diferentes olhares decorrentes das diferentes
culturas e trajetórias individuais e coletivas. Em relação a literatura evidenciamos a
sua importância na formação estética, na sensibilidade, na formação da consciência
crítica das crianças.
No estudo tomamos como referência a seleção de literaturas infantis para a
organização e proposição do trabalho sob a perspectiva da visão socioambiental, da
mesma maneira que a partir de uma construção coletiva os acadêmicos extensionistas
e professoras responsáveis pelo projeto analisaram e estudaram as histórias, bem
como avaliaram suas possibilidades de trabalho interdisciplinar para que
posteriormente fossem confeccionados recursos e vivenciadas situações de contação
das histórias.
Em um primeiro momento as oficinas foram internas para construção coletiva
do saber e em seguida, os acadêmicos foram a campo, realizando momentos de
contação de histórias para crianças da educação infantil (de um a cinco anos), onde
puderam vivenciar o lúdico, a arte da literatura e o universo infantil.
Desse modo, a seguir apontaremos duas experiências de contação de
histórias realizadas em duas escolas de educação infantil de Campo Grande/MS.

A Extensão Universitária e o contributo na formação dos acadêmicos

De acordo com a Política Nacional de Extensão Universitária (2012, p.15)


extensão universitária é um "processo interdisciplinar, educativo, cultural, científico e
político que promove a interação transformadora entre Universidade e outros setores
da sociedade".
A finalidade da extensão universitária é o de ser um processo interdisciplinar,
em um âmbito educativo, cultural, científico e político, o qual se promove um diálogo
que transforma não apenas a universidade, mas também os setores sociais com os
quais ela interage.
De acordo com Rabel (2012), a extensão integra em sua prática sujeitos de
realidades, experiências e conhecimentos diversos nas ações de ensinar e aprender.
Nesse cenário de ensinar e aprender atuam como participantes os professores, os
acadêmicos e a comunidade. Cada membro possui um ou mais papéis fundamentais

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na extensão. O professor atua principalmente como orientador do acadêmico que tem


como função o desenvolvimento de ações extensionistas de maneira a aplicar a
informação ou conhecimentos teóricos nas ações. A comunidade, por sua vez, deve
ser estimulada a ter participação ativa, podendo inclusive propor ações.
Almeida (2012) aponta como aprendizagens que contribuem para a formação
profissional adquirida pelos acadêmicos a partir de projetos de extensão: aprender
pela prática e enfrentar desafios; aprender novas habilidades contribuindo para o
desenvolvimento pessoal e profissional; formação profissional que agrega teoria e
prática concomitantemente.
Sousa e Siqueira (2012) complementam ainda destacando como princípios da
experiência na extensão universitária para os sujeitos envolvidos: a contribuição para
tomada de consciência cidadã; a compreensão dos direitos como princípios universais
e políticos; o reconhecimento do outro como sujeitos; o reconhecimento da
humanidade como expressão universal e singular; reconhecer-se como um ser social.
A extensão universitária é a universidade junto à comunidade, o que
possibilita o compartilhamento com o público externo o conhecimento construído por
meio do ensino e da pesquisa desenvolvidos na instituição. É a articulação do
conhecimento científico advindo do ensino e da pesquisa, com as necessidades da
comunidade onde a universidade se insere, interagindo e transformando-a. Ela
complementa a formação do acadêmico ampliando sua visão de mundo e atuação
profissional, proporcionando a ponte entre duas ou mais realidades.
Rodrigues et al. (2013) apontam que é na extensão universitária que os
acadêmicos apresentam contato direto com a população em geral, e é nesse contato
que estes podem transpor toda a teoria aprendida em sala de aula. Os autores
ressaltam que esse momento é essencial para os estudantes, pois possibilita que
estes possam trocar informações com a comunidade fazendo que essa relação direta
seja mais uma oportunidade de aprender, mais do que propriamente de ensinar o que
aprendeu.
De acordo com Jezine (2004) a extensão universitária está baseada em um
processo interdisciplinar educativo e é um dos pilares da universidade onde se
incorpora prestação de serviços na forma de cursos práticos, conferências e serviços
técnicos e assistenciais promovendo assim, a integração entre a universidade e a
sociedade construindo um espaço que traga a multidiversidade agregada em diversas
ações.
A superação da desigualdade e exclusão social realizada nas ações das
extensões deixam claro que há um diálogo recíproco que cria assim uma relação entre
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acadêmicos, universidade e sociedade. As práticas educativas inseridas no projeto de


extensão proporcionam formas em que a construção de conhecimento seja tanto do
acadêmico quanto da sociedade, oportunizando benefícios para ambas as partes.
Desta forma os programas e projetos de extensão são de extrema valia, onde
a partir desta troca e interrelações estabelecidas através da aproximação da
comunidade, dos professores e alunos, possibilitem o ensino e a aprendizagem em
ambos os casos, onde as teorias saem do papel e atingem proporções reais, onde o
saber científico e as pesquisas estão atrelados com as práticas cotidianas da
população (HENNINGTON, 2005).
Com o auxílio da extensão, a universidade cria possibilidades de divulgar o
ensino e os saberes produzidos por ela, a fim de democratizar e socializar o saber
científico, aproximando a ciência e os que estão em formação, da realidade social,
ultrapassando as barreiras físicas (SANTOS, 2012).
No que diz respeito a formação de futuros educadores, transformar sua
formação para algo além dos conhecimentos técnicos e científicos é um dos grandes
desafios. Nessa perspectiva, os projetos de extensão se apresentam com uma
estratégia que impulsionam os acadêmicos a aprender de uma forma desafiadora e
recriar estratégias capazes de responder a desafios (SILVA; VASCONCELO, 2006).

A extensão na Universidade Católica Dom Bosco e o projeto Labinter

A UCDB entende como princípio da educação a troca de saberes que constrói


constantemente, o aprendizado, e o respeito com o próximo. Promover ações
extensionistas é uma missão, e contribui na formação acadêmica integrada à
participação e ao compromisso social, fortalecendo a democratização do
conhecimento. A extensão universitária da UCDB visa não somente uma oportunidade
a mais para a formação acadêmica, mas também a integração e participação da
comunidade externa, desenvolvida por meio da parceria entre universidade e
sociedade (UCDB, 2017).
Dentro desta perspectiva, o projeto Labinter visa propiciar o conhecimento de
práticas pedagógicas a partir do desenvolvimento de atividades de ensino, pesquisa e
extensão em uma perspectiva interdisciplinar e socioeducativa, onde a leitura e a
contação de histórias são os pontos que norteiam as ações, promovendo uma
ampliação da formação do profissional para atuar de forma interdisciplinar. De acordo
com Rodrigues et al. (2013) a extensão permite o rompimento das barreiras da sala de
aula permitindo que o estudante saia do ambiente da universidade e troque
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informações com o ambiente onde atuará, e dessa forma, os conteúdos


complementares a sua formação passam a ser multi, inter e transdisciplinar.
Neste mesmo sentido o projeto Labinter atua como transdisciplinar
promovendo aos acadêmicos o contato com a comunidade, com atividades diversas
que propiciam ampliar sua visão de mundo e profissional, e como interdisciplinar ao
possibilitar a interação entre acadêmicos de diferentes áreas, permitindo assim, a
troca de saberes e o estabelecimento de relações profissionais que contribuem para o
processo formativo.
Dentre as atividades desenvolvidas pelo Labinter, destacamos a contação de
histórias que se apresenta como fundamental no desenvolvimento da ludicidade e
criatividade tanto para quem conta a história quanto para quem ouve. De acordo com
Silveira (2008, p. 26) ―contar ou ler histórias para as crianças possibilita suscitar o
imaginário infantil, responder perguntas, encontrar e criar novas ideias, estimular o
intelecto, descobrir o mundo imenso dos conflitos, das dificuldades, dos impasses, das
soluções‖.
O projeto Labinter estabelece forte ligação com os princípios da extensão da
UCDB, uma vez que se propõe a levar aos acadêmicos das licenciaturas o contato
com a comunidade estimulando-os social e humanamente. A contação de histórias,
uma das principais vertentes do projeto, é desempenhada com o auxílio de materiais
que, de forma lúdica, atraem o espectador ao embarque literário, e que são produzidos
no laboratório do projeto e se integram a atividade do contador.

Literatura Infantil e Educação Ambiental na perspectiva formativa

Entendemos que a educação, mas especialmente o processo formativo


necessita de um outro olhar, este pautado em um diálogo acerca do interesse dos
acadêmicos dos cursos de licenciatura pela prática docente buscando contribuir para
que se sintam respeitados em relação aos saberes e fazeres construídos nas relações
com as propostas de contação de história.
Imbernón (2004, p. 15) afirma que ―[...] a formação assume um papel que
transcende o ensino que pretende uma mera atualização científica, pedagógica e
didática e se transforma na possibilidade de criar espaços de participação, reflexão e
formação [...]‖.
Desse modo, a formação considera o desenvolvimento de processos
formativos, a partir das condições individuais de dimensão pessoal no envolvimento do

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acadêmico com o projeto Labinter permitindo constituir um conhecimento pedagógico


específico capaz de fornecer as bases para a construção de um conhecimento
relacionado à assunção de princípios básicos nos âmbitos científico, cultural e
contextual da profissão, ampliando as capacidades e habilidades, de organizar,
fundamentar e revisar os conhecimentos, habilidades e atitudes, de forma a suscitar a
aquisição de conhecimentos que o torne capaz de desenvolver-se para o exercício da
profissão, mais especificamente no que tange a EA, a literatura e a contação de
histórias.
No processo formativo, a universidade contribui para os desafios do mundo,
pois pode e deve colaborar com o estímulo a criticidade sobre, entre outros aspectos,
os problemas socioambientais. Neste sentido, a literatura tem papel importante na
formação do sujeito, contribui para sua construção reflexiva e transformadora. Desse
modo, a leitura alimenta a consciência de si próprio e do outro, pois produz uma
subjetividade construída na permanente relação dialética de que ninguém está só no
mundo (RANGEL, 2012). Para Abramovich (1997), é através de uma história que se
pode descobrir outros lugares, outros tempos, outros jeitos de agir e de ser, outra
ética, outras óticas. A autora destaca que, por meio da literatura, é possível saber
história, geografia, filosofia, política, sociologia, mesmo sem ter estrutura rígida de
uma aula e ainda é possível desenvolver um potencial crítico. Podemos pensar,
duvidar, discutir, questionar, perguntar, se sentir inquieto, querendo saber mais e
melhor, ou ainda percebe que se pode mudar de opinião. Dohme (2013) acrescenta
que as histórias estimulam o senso crítico, pois é por meio delas que tomamos
conhecimento de situações alheias à sua realidade, já que podemos nos aventurar em
diferentes contextos.
Desse modo, a educação tem maior sentido para o indivíduo, não ficando
restrita às questões de ordem prática, mas sim a possibilidade de escolhas. Ao se
tratar de uma educação crítica, libertadora e que prepara para o exercício da
cidadania, é conveniente tratar-se da EA. A propósito, a EA pode contribuir com o
processo de conscientização sobre os problemas socioambientais. Numa concepção
de EA transformadora, a educação universitária permite mudanças sociais, onde
ocorre uma transformação associada aos valores, aos padrões cognitivos, à ação
política democrática e às relações econômicas. Essas mudanças fortalecem a
identidade das pessoas através do exercício da cidadania, da percepção da totalidade
das relações sociais no mundo e da superação das formas de dominação.
A EA não é somente o estudo do meio natural, o objetivo dela é formar
cidadãos críticos, que consigam lutar por seus direitos e entender seus deveres, que
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compreendam a importância das relações interpessoais e preservação do meio


cultural e ambiental. Entender o que realmente significa EA é somente um passo para
a sensibilização e é preciso que os acadêmicos em formação compreendam que
também são a ponte desse conhecimento.
Reigota (2014) aponta que a EA deve ser considerada como uma grande
contribuição filosófica e metodológica à educação. Nela está inserida a busca da
consolidação da democracia, a busca por solução dos problemas ambientais e uma
melhor qualidade de vida para todos. O autor ainda aponta que o conhecimento
proporcionado pela ciência e pelas culturas, por vezes não escolarizados, precisam
ser socializados, e a EA enfatiza e provoca para um diálogo de saberes, inclusive o
artístico, com propósitos de intervenção cotidianas e busca por soluções e alternativas
socioambientais.
A proposta do projeto Labinter oportunizou condições para capacitar os
acadêmicos bolsistas e voluntários por meio de formação em oficinas, leituras de livros
específicos sobre EA, literatura infantil, para a prática de contação de histórias e
construção de materiais didáticos, mediante a elaboração de projetos educativos
envolvendo leitura e produção de materiais didáticos para a contação de histórias.
Segundo Gauthier (1999, p. 24), ―cada dispositivo do olhar e da observação
modifica o objeto de estudo [...] por isso, nunca estudamos um objeto neutro, mas
sempre um objeto implicado, caracterizado pela teoria e pelo dispositivo que permite
vê-lo, observá-lo e conhecê-lo‖.
Nessa direção, destacamos que no processo formativo produzido a partir
dessa experiência, emerge sob múltiplos olhares. De acordo com Carvalho (2011), a
relação dos sujeitos com o meio depende da integrada rede de relações natural, social
e cultural. É preciso trocar as lentes para um olhar o meio em um contexto de
integração de bases físicas e culturais de modo que esse deslocamento seja além das
mentalidades, mas também nas palavras, e nos conceitos, vivenciando mais
amplamente os princípios da EA.
Deste modo, acreditamos que a participação nas experiências do Labinter
considera a transformação, por meio da mobilização de saberes, de teorias, de
conhecimentos, em contínuo processo de interação, de desconstrução, de construção,
de reconstrução, reconhecendo o protagonismo acadêmico nos diferentes contextos,
espaços e tempos na estruturação do profissional, permeado pela reflexão sobre a
ação, constituída a partir da realidade educativa como uma espécie de desejo, de
necessidade de avançar na construção de ser e de estar na profissão. Confirma essas
ideias Nóvoa (2009), quando assim se expressa:
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Ao longo dos últimos anos, temos dito (e repetido) que o


professor é a pessoa e que a pessoa é o professor. Que é
impossível separar as dimensões pessoais e profissionais. Que
ensinamos aquilo que somos e que, naquilo que somos, se
encontra muito daquilo que ensinamos. Que importa, por isso,
que os professores se preparem para um trabalho sobre si
próprios, para um trabalho de autorreflexão e de autoanálise
(NÓVOA, 2009, p.38).

Portanto, o que se apresenta consiste em reconhecer que os processos


formativos se relacionam com os modos de ser e de estar em desenvolvimento
profissional exigindo uma formação constante, que contribua, decisivamente, para que
se realize, por inteiro, em um novo tempo, servindo-se de aspectos do processo de
formação, dialogando tendo algo a mais para aprender e para ensinar-lhe, e
possibilitar a partir de suas vivências que o processo formativo seja dinâmico e esteja
fortemente ligado tanto aos conhecimentos pedagógicos quanto às vivências dos
acadêmicos, sendo esses geradores de conhecimentos que estruturam e orientam sua
teoria e sua prática.

Contação de Histórias: duas experiências na educação infantil em


parceria com o Projeto Labinter

O ato de contar história vem desde o surgimento dos homens, pois era por
meio das histórias em roda que os homens passavam seus valores, costumes e
ensinamentos, e era assim que eles também aprendiam. Mais tarde, muitas dessas
histórias foram escritas com o objetivo de manter a cultura e os costumes de quem as
contava (JAMBERSI, 2014).
A contação de histórias permite o contato com o lúdico uma vez que a criança
tem a possibilidade de imaginar, criar, construir, questionar e ainda reconstruir seus
pensamentos. A interação da criança com a literatura possibilita compreender os
significados do seu cotidiano. Desse modo, Góes (1984) afirma:

É importante que os livros infantis transmitam às crianças um


sentimento de respeito e dignidade pela pessoa humana [...]
que despertem as crianças/jovens para os valores sociais:
justiça, paz, liberdade, igualdade e solidariedade (GÓES, 1984,
p. 24).

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Desse modo, pensamos ser fundamental a inserção dessa prática na escola e


nas contações de histórias, no entanto, partimos da premissa de que esse olhar deve
provir das condições individuais, e no nosso caso, auxiliadas pelas práticas e pelo
envolvimento com o projeto. Nessa direção, o projeto Labinter desenvolveu em 2016
momentos de contação de histórias em duas escolas de educação infantil em Campo
Grande/MS. A ação teve início no laboratório do projeto na UCDB com o planejamento
das contações que foram divididas em etapas: 1) seleção das obras infantis; 2) estudo
das obras selecionadas; 3) estudo de obras técnicas sobre EA, literatura infantil e
contação de histórias; 4) construção de recursos visuais auxiliares e ambientação dos
espaços para as contações; 5) oficinas internas de formação sobre contação de
histórias; e 6) concretização da ação nas escolas.
Para a etapa de seleção das obras infantis, foram realizadas reuniões com as
escolas envolvidas para que pudéssemos viabilizar um diálogo com os trabalhos que
já estavam sendo desenvolvidos no âmbito escolar. Desse modo, trabalhamos com as
literaturas: Coach! (FOLGUEIRA, 2013); Você quer ser meu amigo? (BATTUT, 2012);
Diversidade (BELINKY, 2015); e Não quero... ir à escola (OOM, 2014).
Na construção coletiva da perspectiva socioambiental, os acadêmicos
extensionistas e docentes analisaram e estudaram as histórias, bem como avaliaram
suas possibilidades de trabalho interdisciplinar. Nesse momento, para fundamentação
teórica do grupo sobre EA, literatura infantil e contação de histórias, trabalhamos com
leituras e discussões das obras de Reigota (2014), Carvalho (2011), Abramovich
(1997), Coelho (2015), Góes (2010) e Dohme (2013). A fundamentação teórica do
grupo se faz necessária sobretudo pela perspectiva da formação, uma vez que as
ações devem parta-se do diálogo entre a teoria e a prática.
Em seguida, nos concentramos na construção de recursos visuais auxiliares
para as contações de histórias resultantes das interpretações dos acadêmicos das
literaturas selecionadas. Respeitamos as particularidades de cada literatura e em
seguida, construímos recursos visuais que tivessem relação com a narrativa e que
favorecem o momento da contação de histórias. Vale ressaltar que a literatura
―Diversidade‖ aponta as especificidades de cada um dos personagens presentes na
narrativa, respeitando e valorizando as diferenças, e para esse caso, nós construímos
um(a) boneco(a) sem o estereótipo de gênero, denominado por nós de ―Labrinque‖,
que permite a troca de seus elementos, como cabelo, cor dos olhos, formato da boca,
roupas. Pautamos da perspectiva de que as crianças podem montar o personagem de
acordo com sua interpretação da história naquele momento. Desse modo, foram
construídos como recursos para as contações: Boneco(a) Labrinque (Figura 1), Painel
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interativo (Figura 2) e Personagens ―Coach!‖ (Figura 3), já com a literatura ―Não


quero... ir à escola‖ (Oom, 2014), preferimos não construir nenhum recurso visual
específico, realizamos a contação dessa história na forma de teatro.

Figura 1 – Boneco(a) Labrinque


referente a literatura ―Diversidade‖

Fonte: Acervo do Labinter

Figura 2 – Painel interativo ―Você quer ser meu amigo?‖

Fonte: Acervo do Labinter

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Figura 3 – Personagens ―Coach!‖


Fonte: Acervo do Labinter

Também foram confeccionados no laboratório recursos para a ambientação


dos espaços de contação de histórias (Figura 4). Consideramos o uso de objetos -
mobílias, cores, brinquedos, personagens - como acolhedor, aconchegante, e que
harmonizam o ambiente ao mesmo tempo que desperta o encantamento e o interesse
pela história. O Referencial Curricular Nacional da Educação Infantil (RCNEI) faz
alusão a ambientação apontando:

[...] em se tratando de crianças tão pequenas, a atmosfera


criada pelos adultos precisa ter um forte componente afetivo.
As crianças só se desenvolvam bem, caso o clima institucional
esteja em condições de proporcionar-lhes segurança,
tranquilidade e alegria. Adultos amigáveis, que escutam as
necessidades das crianças e, com afeto, atende as elas,
constituem-se em um primeiro passo para criar um bom clima
(BRASIL, 1998, p.67).

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Figura 4 – Recursos para ambientação dos espaços de contação de histórias

Fonte: Acervo do Labinter

No entanto, embora com os recursos visuais auxiliares para a contação de


histórias, nesse processo, o contador de histórias é fundamental no encantamento,
uma vez que desperta nos seus ouvintes a curiosidade e fascínio pela leitura
(BUSATTO, 2011). Desse modo, após o planejamento das ações, realizamos
momentos de contação de histórias com crianças da educação infantil em dois centros
educacionais (Figura 5). Iniciávamos as contações interagindo com as crianças para,
em seguida, iniciarmos as histórias. Algumas histórias foram enriquecidas com
músicas para que as crianças participassem e interagissem ainda mais, partilhando
daquele momento mágico.

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Figura 5 – Contações de histórias em dois centros de Educação Infantil


Fonte: Acervo do Labinter

Assim, compartilhamos das ideias de Coelho (2015), quando ela aponta que a
escola é um espaço privilegiado para estudos literários, visto que, de maneira mais
abrangente, lá se estimula o exercício da mente. A literatura privilegia a percepção do
real em suas variadas significações, a consciência do eu em relação ao outro e a
leitura de mundo em seus vários níveis. A leitura agrega valor substancial no
desenvolvimento da cidadania, inclusão social e afirmação de identidade, princípios
compartilhados também pela EA e tão necessários no mundo moderno.

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A concretização das ações de contação de histórias se fez mediante todas as


etapas anteriores, que foram primordiais para o processo formativo dos acadêmicos. A
EA esteve presente não somente no olhar para a seleção das obras literárias, mas
também nas etapas subsequentes, quando nos colocamos a pensar sobre as
questões socioambientais presentes nas relações culturais e humanas em prol do
meio.

Considerações Finais

Durante o desenvolvimento do projeto constatamos que a contação de


histórias, ou seja, a exposição das crianças e dos acadêmicos aos diversos tipos de
livros de histórias infantis proporcionou benefícios ao processo de ensino e
aprendizagem acerca da EA. Vimos também que, para isso ocorrer, é necessário
haver uma mudança de postura do acadêmico em seu processo formativo para o
desenvolvimento de uma visão socioambiental. É, entretanto, importante à formação
de práticas interdisciplinares, isso com o intuito de conhecer, dominar e identificar que
o uso dos diversos títulos de literatura infantil forma, transforma os processos
formativos a medida que promovem vivências envolvendo os acadêmicos.
A partir do relato de experiências das atividades desenvolvidas, atestamos
que é possível despertar nas crianças e nos acadêmicos, o gosto pela leitura de forma
prazerosa, levando-as à formação pessoal e cultural do cidadão crítico. Pudemos
constatar que a inserção no projeto Labinter propiciou momentos de encantamento e
de prazer em cada atividade realizada.
Nesse sentido, conclui-se que esse foi o primeiro passo para pensarmos na
possibilidade de proporcionar, mudança no processo formativo.

Referências

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ALMEIDA, L. P. de. A extensão universitária: processo de aprendizagem do aluno na


construção do fazer profissional. In: SÍVERES, L. (Org.). Processos de
Aprendizagem na extensão universitária. Goiânia: ed. da PUC Goiás, 2012. p. 53-
77.

BATTUT, Éric. Você quer ser meu amigo?. São Paulo: FTD, 2012.

BELINKY, Tatiana. Diversidade. 2. ed. São Paulo: FTD, 2015.

BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Referencial curricular nacional para


a educação infantil: introdução, v1. Brasília. 1998.

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BUSATTO, Cléo. Contar e Encantar: pequenos segredos da narrativa. 7. ed.


Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

CARVALHO, Isabel Cristina de Moura. Educação ambiental a formação do sujeito


ecológico. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2011.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: teoria análise didática. 17. ed. São Paulo:
Moderna, 2015.

DOHME, Vania. Técnicas de contar histórias 1: um guia para desenvolver as suas


habilidades e obter sucesso na apresentação de uma história. 3. ed. Petrópolis/RJ:
Vozes, 2013.

FOLGUEIRA, Rodrigo. Coach!. São Paulo: FTD, 2013.

GAUTHIER, Clermont et al. Tradução Francisco Pereira. Por uma teoria da


pedagogia: pesquisas contemporâneas sobre o saber docente - Coleção Fronteiras
da Educação. Ijui: Ed. UNIJUÍ, 1999.

GÓES, Lúcia Pimentel. Introdução à literatura infantil e juvenil. São Paulo. Pioneira.
1984.

GOÉS, Lúcia Pimentel. Introdução à Literatura para Crianças e Jovens. São Paulo:
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HENNINGTON, Élida Azevedo. Acolhimento como prática interdisciplinar num


programa de extensão universitária Shelter as an interdisciplinary practice in a
university extension program. Cad. Saúde Pública, v. 21, n. 1, p. 256-265, 2005.

IMBERNÓN, Francisco. Formação docente e profissional: forma-se para a mudança


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JAMBERSI, Belissa do Pinho. A arte de contar histórias na sala de aula. In: ARCE,
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JEZINE, Edineide. As Práticas Curriculares e a Extensão Universitária. In: Congresso


Brasileiro de Extensão Universitária Belo Horizonte, 2, 2004, Belo Horizonte. Anais...
Belo Horizonte: 2004. Disponível em:
https://www.ufmg.br/congrext/Gestao/Gestao12.pdf. Acesso em: 12 Set. 2017.

NOVOA, Antonio. Professores: imagens do futuro presente. Lisboa: EDUCA, 2009.

OOM, Ana. Não quero... ir à escola. São Paulo: FTD, 2014.

POLÍTICA NACIONAL DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA. Manaus, 2012. Disponível


em< http://www.renex.org.br/documentos/2012-07-13-Politica-Nacional-de-
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SÍVERES, Luiz (Org.). Processos de Aprendizagem na extensão universitária.
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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

LITERATURA INFANTIL E FORMAÇÃO LEITORA NA EDUCAÇÃO


INFANTIL: CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA HISTÓRICO-
CULTURAL

Cleonice Marçal 1, Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) –


Campus de Foz do Iguaçu
Tamara Cardoso André 2, Universidade Estadual do Oeste do Paraná
(Unioeste) – Campus de Foz do Iguaçu, eixo temático 2: Literatura Infantil para
crianças pequenas

Considerações Iniciais

Ao pensar sobre as práticas pedagógicas voltadas para a formação leitora


como parte integrante no desenvolvimento da criança, pergunta-se: ―quando‖ e ―como‖
na educação formal, introduzir o processo de formação leitora na infância começar por
onde? Para responder estas indagações problematiza-se: como a Teoria Histórico-
Cultural contribui no processo de ensino e de aprendizagem da literatura infantil e na
formação leitora. O trabalho se justifica pela importância do uso da literatura infantil no
ambiente escolar para a formação leitora desde a Educação Infantil e pelas
importantes contribuições que a Teoria Histórico-Cultural fornece para a compreensão
da literatura infantil.A Teoria Histórico-Cultural, segundo Tuleski (2002), Barroco
(2007), Toassa (2009; 2011); Prestes (2012) e Saccomani (2014), teve a elaboração
fundamentada no Materialismo Histórico-Dialético de Marx e Engels, no período que
transcorreu a Revolução Russa de 1917. O Materialismo Histórico-Dialético considera
a evolução humana a partir do método dialético, portanto da contradição, que gera o
movimento histórico. Nesta concepção, o homem interfere no meio natural viabilizado
pela construção e uso de instrumentos no trabalho. O processo de formação humana
ocorre a partir da condição histórica, social e cultural, como expressa Leontiev (2004,
p.92) para quem são estabelecidas na vida em sociedade por meio das relações de
trabalho, a linguagem como instrumento de comunicação e interação ―[...] No trabalho
289

os homens entram forçosamente em relação, em comunicação uns com os outros


[...]‖. Nesta concepção o homem, ao modificar o meio natural, modifica a si mesmo e
aos demais, com o propósito de garantir a sua própria sobrevivência na ação
necessária para satisfazer as necessidades para viver, o que, na contemporaneidade,
pode-se considerar alimentação, vestuário, recursos energéticos, moradia, transporte,
arte e cultura.
A Troika, como expõe Luria (2001), grupo de estudo formado por Vigotski,
Luria e Leontiev, com o intuito de entender o desenvolvimento do homem, elaborou o
método de investigação experimental, para explicar o funcionamento das funções
psíquicas superiores, o que segundo Vigotski (2000) apresentam as características de
comportamento que diferenciam os homens dos animais, sendo elas: sensação,
percepção, memória, atenção, linguagem, pensamento, imaginação/criatividade e as
emoções/sentimentos.
A literatura infantil é uma expressão artística efetuada na linguagem e que
engloba as demais funções psíquicas, que pressupõem a formação do leitor como
uma habilidade humana - ―cultural, histórico e social‖. O processo de formação leitora
envolve várias habilidades que, segundo Martins (2013, p.111), são ―[...] a fala, a
leitura, a escrita, o cálculo, o desenho, a pintura, a produção estética, ética, ciência e
tecnológica [...]‖. O objeto livro, neste caso para criança, tanto no suporte impresso
como digitalizado, favorece o desenvolvimento infantil e humano, pois envolve o
funcionamento de todas as funções psíquicas superiores.

Educação Infantil: Literatura Infantil e a formação leitora


Ao discutir a formação leitora na Educação Infantil é imprescindível o
esclarecimento da legislação vigente para a compreensão da educação no espaço
escolar. A Constituição Federativa do Brasil de 1988 dispõe no Artigo 6º a garantia da
educação como um direito social, portanto deve oportunizar o acesso a todos da
nação. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) com a vigência da Lei nº 8.069,
de 13 de Julho de 1990, determina que a organização social instituída garanta o direito
às condições de vida dignas e a promoção do desenvolvimento da pessoa, tanto
físico, intelectual e afetivo. Evidencia neste processo de construção do sujeito o direito
a educação e a cultura ―[...] Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade
em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos
direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à

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profissionalização, à cultura [...]‖ (Grifo Nosso). A Lei de Diretrizes e Bases da


Educação Nacional (LDB), nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, dispõe que:
Art. 1º A educação abrange os processos formativos que se
desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho,
nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e
organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais [...].

A citação demonstra a importância e a função da educação, do espaço de


ensino e das atividades e expressões culturais na formação do sujeito. O que se pode
também constatar no ―[...] Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes
princípios: II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o
pensamento, a arte e o saber [...]‖, (Grifo Nosso).
Sobre o direito da criança à educação a partir da etapa inicial da Educação
Básica do ensino fundamental na modalidade Educação Infantil, ―[...]Art. 4º. O dever
do Estado com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de: [...] IV
– atendimento gratuito em creches e pré-escolas às crianças de zero a seis anos de
idade [...]‖, e demonstra a necessidade da educação que promova a formação humana
vinculada à cultura, a arte e a atividade artística como prioridade educativa de ensino e
aprendizagem, ―[...] V – acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da
criação artística, segundo a capacidade de cada um [...]‖ (Grifo Nosso).
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC/2017, p. 45) no eixo ―campo de
experiências - Oralidade e escrita‖ enfatiza o desenvolvimento da criança no espaço
escolar mediante a vivência estética e a apropriação da fala e da escrita no ensino. As
atividades dominantes são respaldadas na literatura por meio dos gêneros literários
infantis, em atividades que envolvam brincadeiras, criatividade, imaginação,
sociabilidade, coletividade e interações entre alunos e professor no trabalho
pedagógico, que desta forma colaboram na formação leitora dos pequenos:

Sobretudo a presença da literatura infantil na Educação Infantil


introduz a criança na escrita: além do desenvolvimento do gosto pela
leitura, do estímulo à imaginação e da ampliação do conhecimento de
mundo, a leitura de histórias, contos, fábulas, poemas e cordéis, entre
outros, realizada pelo professor, o mediador entre os textos e as
crianças, propicia a familiaridade com livros, com diferentes gêneros
literários, a diferenciação entre ilustrações e escrita, a aprendizagem
da direção da escrita e as formas corretas de manipulação de livros
(BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR, p. 38).

As Diretrizes Curriculares Nacionais Educação Infantil (DCN) Resolução nº 5,


de 17 de Dezembro de 2009 no artigo 1º versa sobre a ―[...] organização de propostas
pedagógicas na Educação Infantil [...]‖. No artigo 3º discute a concepção curricular

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associado ―[...] as experiências e os saberes das crianças com os conhecimentos que


fazem parte do patrimônio cultural, artístico, ambiental, científico e tecnológico, de
modo a promover o desenvolvimento integral de crianças de 0 a 5 anos de idade [...]‖.
(Grifo Nosso). O artigo 4º destaca o planejamento curricular voltado para as
necessidades da criança como ―sujeito histórico e de direitos‖, para nortear as
―propostas pedagógicas‖ quanto ―[...] interações, relações e práticas cotidianas que
vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja,
aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza
e a sociedade, produzindo cultura (Grifo Nosso).
O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI) de 1998
estabelece que ―[...] o acesso das crianças aos bens socioculturais disponíveis,
ampliando o desenvolvimento das capacidades relativas à expressão, à comunicação,
à interação social, ao pensamento, à ética e à estética [...]‖ (p. 13).
Os Parâmetros Curriculares Nacionais para Educação Infantil (PCNS) de
2006 quanto à Creche (0-3 anos) indica acerca do desenvolvimento da linguagem: ―[...]
• interessar-se pela leitura de histórias; • familiarizar-se aos poucos com a escrita por
meio da participação em situações nas quais ela se faz necessária e do contato
cotidiano com livros, revistas, histórias em quadrinhos etc [...]‖.
Neste documento percebe-se a preocupação com a leitura e a escrita junto
com a possibilidade da prática para a formação inicial do leitor no ensino do aluno Pré-
escolar entre (04-06 anos):
• familiarizar-se com a escrita por meio do manuseio de livros,
revistas e outros portadores de texto e da vivência de diversas
situações nas quais seu uso se faça necessário; • escutar textos
lidos, apreciando a leitura feita pelo professor; • escolher os livros
para ler e apreciar (p. 131).

Entre outras propostas pedagógicas que envolvam:

• Relato de experiências vividas e narração de fatos em sequência


temporal e causal. • Reconto de histórias conhecidas com
aproximação às características da história original no que se refere à
descrição de personagens, cenários e objetos, com ou sem a ajuda
do professor. • Conhecimento e reprodução oral de jogos verbais,
como travalínguas, parlendas, adivinhas, quadrinhas, poemas e
canções (p.137).

Para o aluno de Creche (0-03 anos) a ênfase está na:


• Participação em situações de leitura de diferentes gêneros feita
pelos adultos, como contos, poemas, parlendas, trava-línguas etc. [...]
• Observação e manuseio de materiais impressos, como livros,
revistas, histórias em quadrinhos etc (p. 133).

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Nesta proposta de prática de ensino e aprendizagem, observa-se a


fomentação leitora como apreciação da arte no uso dos gêneros literários infantis, do
qual a literatura infantil transita nos eixos: do movimento; da música e das artes visuais
(p. 97/103).
A vivência estética na literatura infantil incorpora também o ―movimento‖ por
meio de jogos, brincadeiras, dança e desenho, que são expressões da arte literária e
dos gêneros literários para a criança, expressas em trava línguas, quadrinhas,
recitações, versos, dramas, e faz-de-conta. Nas ―artes visuais‖ pintura, modelagem,
confecção: dos cenários, vestuário, nas personagens e ações do enredo dos contos e
fábulas. Na ―música‖ canções de ninar, acalantos e cantigas de roda.
Entre as políticas públicas de promoção da formação leitora está o Programa
Nacional Biblioteca na Escola (PNBE), que desde a data de 2008 fornece aos
estabelecimentos de Educação Infantil cem títulos literários disponíveis a cada dois
anos, como uma maneira de viabilizar o acesso à cultura.
Após discutir a legislação que rege a Educação Infantil, e constatar o intuito
do desenvolvimento físico, afetivo e intelectual, que contempla na sua preposição a
arte literária como expressão artística, cabe discutir a literatura infantil na Teoria
Histórico-Cultural.
Com referência em Vigotski afirma-se que a literatura infantil contribui na
formação do gosto literário desde a tenra infância, o que comprova em seus estudos
sobre as etapas do desenvolvimento psíquico da criança, que na abordagem de
Mukhina (1995) e Facci (2006; 2004), mostra que a criança perpassa por três períodos
de crise no desenvolvimento psíquico: o primeiro (0-01 ano) caracteriza-se pela
relação emocional com o adulto que a cuida, a segunda (01-03 anos) o interesse pela
manipulação de objetos e a terceira (03-07 anos) a infância pré-escolar com o
interesse da criança pelo jogo. Para Elkonin (1998) e Arce (2011) o jogo protagonizado
ou simbólico como também denominado de jogos de papeis são as brincadeiras das
quais as crianças imitam o adulto. Os jogos desenvolvem a capacidade criativa, a
construção e o desempenho de regras que influenciam na organização da vontade e
conduta. Pasqualine (2016); Saccomani (2014); Prestes (2012); Arce e Duarte (2006)
afirmam que a brincadeira de ―faz-de-conta‖ representa a atividade dominante ou guia
da criança da etapa pré-escolar. O ―faz-de-conta‖ está presente na literatura infantil do
brincar de ser fada, mágico, bruxa, um objeto/planta/bicho encantado de uma terra
distante. Do jogo com palavras: trava língua, adivinhas e acalantos, o que está
presente no cotidiano de sala de aula com a dramatização da peça teatral, mímica, da
música, dança, do desenho, pintura, modelagem; roda de história lida ou contada.
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Desde o primeiro ano de idade pode-se empregar os conhecimentos sobre as


etapas do desenvolvimento psíquico da criança para viabilizar a formação leitora:
brincar com fantoches e livro de pano ou de plástico; assistir peça teatral, durante o
banho, passeio, roda de conversa, refeições, brinquedos cantados e hora do soninho:
ouvir trava línguas, parlendas, cantigas e histórias curtas. Às crianças de um a três
anos de idade: confecção e manipulação de fantoches e livros de diferentes formatos
e suportes, manipular os personagem na tela digital, roda de história com a utilização
de flanelógrafo, mímica, dobradura; brinquedos cantados; brincadeira com varinha de
condão, comer a maçã como se fosse a mesma da Branca de Neve e os Sete Anões,
confeccionar máscara ou chapéu com papel cartão ou cartolina na cabeça para brincar
de Bela e a Fera, de mago, mágico, bruxa ou fada. Construir cenários e personagens
com a massa de modelar, giz de cera, lápis de cor e tinta; montar peça de encaixar e
quebra-cabeça com temas literários para criança. Ou seja, explorar o campo de
interesse da criança para a literatura infantil na formação inicial leitora.
Chaves (2015) observa o cuidado com relação à organização da prática
pedagógica na mediação do ensino da literatura infantil como arte e formação do gosto
literário no processo de ensino e de aprendizagem. Em concomitância com Girotto e
Silveira (2013) destaca-se a importância da intencionalidade no fazer pedagógico, a
valorização da contação de história na apropriação leitora e a preocupação com a
seleção do acervo bibliográfico a ser utilizado pelo aluno desde a Educação Infantil.
Assim, organizar a rotina na instituição escolar, escolher as músicas,
poesias e histórias que devem integrar permanentemente o trabalho
escolar requer, antes da organização do trabalho pedagógico
propriamente dito, estudos e decisões coletivas que podem ser
fortalecidas em uma proposta de formação contínua. Em cursos
específicos, reuniões pedagógicas pode-se estudar e refletir como as
intervenções pedagógicas podem de fato contemplar o trabalho com
Arte e Literatura Infantil (CHAVES, 2015).

Segunda Girotto e Silveira (2013, p. 39):

No entanto, se preferencialmente, a escolha ainda é pelo ‗mais


simples, porque as crianças não leem‘, ‗mais coloridos‘, ‗com imagens
mais bonitas, porque estereotipadas a representar uma realidade‘, os
educadores estão longe de compreender a constituição do leitor
mirim e a materialidade dos livros. Difícil, também, será traduzir a
riqueza dos recursos linguísticos e estéticos da literatura infantil, pois,
mesmos para os pequenos, há um jogo estético entre a linguagem e
as ilustrações.

Com ênfase na Teoria Histórico-Cultural de autores modernos e


contemporâneos adeptos desta concepção, pode-se constatar que a formação leitora
não corresponde a uma ação espontânea e natural, mas implica a construção
intencional da prática movida pelo significado que fomenta o desenvolvimento humano
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pela ação emancipatória e da oportunidade de conhecer, instrumentalizar e apropriar


os bens culturais produzidos pela civilização.

As Contribuições da Teoria Histórico-Cultural na Formação Leitora: no


Processo de Ensino e Aprendizagem na Educação Infantil

Ao adentrar nos apontamentos sobre a relação existente entre a teoria


histórico-cultural e a formação leitora na Educação Infantil a partir dos gêneros
literários para crianças, faz-se necessário explanar que Vigotski (2000) aprofundou a
compressão sobre o pensamento e a linguagem, explicando a maneira como o homem
desenvolve a ação de comunicação.
Na infância, no convívio do meio social, a criança se apropria, segundo a
concepção vigotskiana, Mukhina (1995), no decorrer das etapas do desenvolvimento
psíquico da linguagem, do jogo protagonizado, o que favorece a construção do gosto
literário. Vigotski (2000) e Leontiev (2004) afirmam que o homem é um animal que,
diferentemente dos outros animais, planeja a ação e elabora ferramentas para
posteriormente efetuar a execução de atividades. Entre as contribuições do
pensamento vigotskiano para a formação da habilidade leitora e apreciação da arte
literária está a compreensão comunicativa. As palavras apresentam significado e
sentido para criança e são impulsionadas por motivos, de modo que se pode afirmar
que criança aprende mediante o interesse.
O adulto, ao contar ou ler uma história para a criança, está ensinando novas
palavras. A criança passa a efetuar generalizações, sendo o passo seguinte a
formação de conceitos científicos. A formação leitora não está desvinculada do
desenvolvimento das funções psíquicas superiores no desenvolvimento infantil, pois é
inter-funcional como explica Vigotski (2000) e Martins (2013).
Para ser considerado leitor o sujeito precisa instrumentalizar o entendimento
do desenho, da fala e da escrita que são a linguagem. E, ao mesmo tempo a formação
leitora deste leitor está articulada intrinsecamente com a imaginação/criatividade e
emoções/sentimentos, e as demais funções psíquicas da sensação, percepção,
memória e do pensamento – pela atividade da apropriação da fruição estética.
De acordo com Zilberman e Lajolo (1998) e Coelho (1984;1991;1993), a
literatura infantil se originou da oralidade, devido à tradição oral dos povos, ao longo
da história da evolução humana, marcada pela transmissão de conhecimentos de
geração para geração. Posteriormente, as descobertas científicas permitiram a
divulgação ampla, graças à tipografia, que possibilitou a publicação para crianças.
Muitas vezes no círculo familiar a criança inicia a percepção da arte literária na
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experiência do ouvir contos de fadas: dramatizados, lidos, ou interpretados em


brincadeiras de cantigas de roda, jogos cantados e cantigas de ninar.
A teoria vigotskiana preocupou-se com o desenvolvimento da criança, por
isto, a sua importância para o processo de ensino e de aprendizagem na formação
leitora a partir da criança pequena – aluno da Educação Infantil.
Para a Teoria Histórico-Cultural a literatura infantil no espaço escolar deve ser
tratada como apreciação estética, na obra Psicologia pedagógica, Vigotski (2004a,
p.324; p.328) crítica o propósito pedagógico de vincular a estética e a literatura infantil
como uma forma de transmitir lição de moral à criança, pois tanto a educação estética
quanto a literatura infantil devem possuir em si um objetivo próprio, ―[...] exemplos
morais ilustrativos e lições edificantes, a enfadonha moral da rotina e os sermões
falsamente edificantes se tornam uma espécie de estilo obrigatório de uma falsa
literatura infantil [...]‖, e reforça que ―[...] não só não se comunicam flexibilidade,
sutileza e diversidade de formas às vivências estéticas como, ao contrário, transforma-
se em regra pedagógica a transferência da atenção do aluno da própria obra para o
seu sentido moral [...], o que pode ocasionar a aversão da criança por narrativas, e
impossibilitar a sua formação leitora. Também, o autor pondera a importância da
qualidade cultural dos gêneros literários apresentados aos pequenos, e propõe o
banimento dos materiais culturais literários de essência pobre que não desafiam a
compressão da criança com relação as narrativas, poesias e poemas, do uso no
processo de ensino e aprendizagem da formação leitora de textos simples e sem
sentido, ―[...] A tudo o mais é proclamado como inacessível à compreensão da criança,
e além dos limites da moral a literatura infantil costuma limitar-se a uma poesia de
asneira e futilidades como se fosse a única acessível à compreensão infantil [...]‖
(p.324-325), portanto demonstra a importância de promover o acesso a riqueza
cultural.
Outro fator apontado por Vigotski (2004a, p.329) está na prática equivocada
de utilizar a obra literária para ensinar conteúdos escolares e para explicar fatos
históricos, científicos e geográficos, trata-se de um ensino rudimentar ―[...] segundo os
modelos literários é sempre assimilada em formas falsas e deturpadas: a obra de arte
nunca reflete a realidade em toda a sua plenitude e verdade real mas é produto
sumamente complexo da elaboração dos elementos da realidade [...]‖, a estética está
voltada para a função artística. O autor também desmitifica a ideia de que a estética
está vinculada ao prazer e a satisfação, e defende que a vivencia estética corresponde
a função superior complexa composta pela memoria, associação, raciocínio,
percepção, atenção e emoções, o que explica que a criança diante da obra de arte
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não é indiferente a ela, o que denomina reação estética ―[...] ao percebermos uma
obra de arte, nós sempre a recriamos de forma nova. É legitimo definir os processos
de percepção como processos de repetição e recriação do ato criador [...]‖. E, pondera
que a reação estética está inclinada para o intelecto, moral e emoção. A moral, neste
caso, age internamente no psiquismo do sujeito que modifica a sua conduta por
vontade própria levando-o superar a repressão e o constrangimento, ―[...] A arte
implica essa emoção dialética que reconstrói o comportamento [...]‖, (2004a, p. 345), o
que o autor define como catarse.
Uma prática criticada por Vigotski (2004a, p.354-357) está no fato de o adulto
contar ou ler uma narrativa para a criança e distorcer as palavras, substituindo por
termos no diminutivo e na simplificação com o intuito de favorecer o entendimento dos
vocábulos, ―[...] E se existe alguma coisa efetivamente repugnante e insuportável na
literatura e na arte infantil é exatamente o falso ajuste do adulto ao psiquismo da
criança [...]‖. Com isso, apenas consegue dificultar o desenvolvimento da função
psíquica e em consequência afeta a assimilação do discurso pela criança. Portanto, na
formação leitora pode-se constatar que o texto deve ser contado e lido de maneira
correta, como o autor da obra apresenta, com a preservação da educação estética,
evitando a abreviação e distorção da narrativa.
No texto Psicologia da arte, Vigotski (1999, p. 322) explica que a catarse atua
como a economia de forças do sujeito, pois catalisa os sentimentos úteis depurados
na reação estética, a vivência estética mediada pela obra de arte viabiliza a geração
de energia que serve de combustível para a função psíquica, ―[...] conservar a ação da
arte como arte, não permitir que o leitor disperse as forças suscitadas por ela e lhe
substitua os impulsos vigorosos por insípidos preceitos protestantes, racionais e
moralizantes [...]‖. Isso impulsiona o sujeito a modificar o comportamento, manifestar
desejos, planejar ações futuras e de fluir as emoções e sentimentos.
No estudo O desenvolvimento psicológico na infância, Vigotski (1998, p. 124)
discute a imaginação e a influência das emoções, ―[...] A atividade da imaginação está
estreitamente ligada com o movimento de nossos sentimentos. (...) imaginação
primária, partem da ideia de que seu motor principal é o afeto [...]‖, pode-se dizer que
na formação do leitor estão implicadas as funções psíquicas da
imaginação/criatividade e emoções/sentimentos por meio dos gêneros literários
infantis, mediante a contação e leitura de histórias pelo professor, no folhear do livro
pelo aluno. O contato com as imagens e enredo da narrativa provoca a
experimentação da criança da arte. A mesma constatação do autor é explanada na
obra Teoria das emoções na qual (Vigotski, 2004b), aponta que as
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emoções/sentimentos são funções psicológicas superiores que atuam no


desenvolvimento da vontade no sujeito, neste caso podendo favorecer o gosto
literário. As emoções/sentimentos são provenientes do pensamento, da ação
comunicativa pela construção da linguagem, atributo das interações entre os sujeitos.
A formação leitora precisa partir do processo interativo de fomentar a necessidade e a
―vontade‖ da apreciação literária da criança.
Na obra Imaginação, criação na idade infantil (VIGOTSKI, 2003, p. 23,
tradução nossa), expõe a vivência estética como ação imprescindível para a expansão
da criatividade, por isto pode-se afirmar que a literatura infantil influi no processo
educativo da formação leitora, ―[...] Entretanto a criança mais tenha visto, escutado e
vivido; quanto mais conheça, assimile e maior quantidade de elementos da realidade
tenha em sua experiência, mais importante e produtiva, será a atividade da sua
imaginação, em outras condições [...]‖, e acrescenta (VIGOTSKI, 1999, p.23) ―[...]
Tanto a ficção (contos de fadas), por exemplo quanto a história (os acontecimentos
vividos e narrados) implicam a atividade criadora da imaginação[...]‖, por isto, que, o
Era uma vez de uma terra distante... os Felizes para sempre... e as peripécias e
desventuras sofridas pelos personagens encantam as crianças, dão asas à
imaginação e despertam emoções dos pequenos. Isso favorece a necessidade da
criança pelos gêneros literários infantis, pois são textos que aguçam a imaginação e
criatividade, provocam curiosidade, desejo e sentimentos, de Pinóquio um boneco de
madeira que se transforma em um menino pela varinha de condão da fada madrinha,
em Cinderela de uma abóbora que em um passe de mágica se transforma numa
esplendorosa carruagem que se desfaz quando soam as doze badaladas da meia
noite, do Grilo falante, de Peter Pan um menino que não cresce nunca, de acreditar e
sonhar com o beijo de amor verdadeiro da Branca de Neve e da Bela e da Fera ou de
transformar um sapo em príncipe. As narrativas contadas e lidas para a criança dão
inicio a formação leitora dos pequenos.
A roda de história tão praticada nas instituições de ensino infantil valida a
ideia de Vigotski (1994), defendida na obra O problema do entorno, de que o meio em
que a criança está influi no processo de aprendizagem, no que diz respeito ao sentido
e o significado dos acontecimentos. A criança possui o sistema comunicativo
diferenciado do adulto, e quanto mais realiza generalizações que contribuem para a
formação de conceitos, mais amplia a imaginação e a compreensão das emoções.
Portanto, oportunizar o acesso à literatura infantil na disponibilização de gêneros
literários de qualidade no cotidiano da sala de aula incentiva a formação do leitor.

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Como constatamos, Vigotski dedicou-se a várias pesquisas que contribuem


para o desenvolvimento infantil, que respaldam a educação quanto à organização
pedagógica, e no processo de ensino e de aprendizagem, que orientam a prática
docente na formação leitora desde a Educação Infantil com os alunos pequenos.

Considerações Finais

A Teoria Histórico-Cultural fornece a fundamentação necessária ao trabalho


docente e da atividade do discente, a partir da educação não-formal no espaço familiar
desde o nascimento, ao espaço de educação formal na Educação Infantil,
perpassando pelos Anos Iniciais e Finais do Ensino Fundamental, Ensino Médio e ao
Nível Superior da graduação, caminhos que se iniciam na vida social em que o sujeito
está inserido e que atua sobre este espaço de convivência, a formação do leitor se faz
presente.
O leitor não se faz da noite para o dia, nem de uma primeira tentativa do fazer
gostar de ouvir, de olhar, folhear, teclar e de ler os gêneros literários em seus variados
suportes. O leitor se faz de forma fundamentada, planejada e específica, mas
sobretudo da experimentação pelo sujeito da fruição estética. A formação leitora é
continua e árdua, no sentido que dela dependa a participação ativa de ambos os
componentes, exigindo processo (respaldo e rigor teórico); ensino (Professor-pensar e
o fazer pedagógico) e aprendizagem (aluno- leitor em formação), pois o leitor não é
um estado fragmentado e passageiro de determinado momento, e sim uma ação
socializadora e de desenvolvimento psíquico.
O prazer da leitura é proporcionado pela ação artística, no caso, a literatura
infantil é um instrumento que viabiliza para além do ato compartilhado no ler oralmente
ou do ato individual no ler silenciosamente, do ler para o outro e do ler para si – do
suporte literário livro ou tela digital. A literatura infantil oriunda da tradição oral de
milênios alcança a contemporaneidade com uma infinidade de manifestações: teatro,
música, jogos cantados (folclore e tradições populares), cinema, mídias, pintura,
escultura, desenho, brincadeiras e dança, que são expressões artísticas quando
introduzidas no cotidiano do espaço escolar impulsiona a formação leitora.
Conclui-se que a Teoria Histórico-Cultural apresenta contribuições para a
fundamentação de propostas pedagógicas da formação leitora da criança, pois ocupa-

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se do desenvolvimento da aprendizagem desde a tenra infância. Segundo a


concepção vigotskiana, a atividade de ensino deve ser pautada por motivos e
interações significativas, o que abre precedente para a elaboração de várias atividades
em torno da literatura na Educação Infantil: roda de contação: leitura de história e
reconto da história narrada; brinquedos cantados, mímica; expressão plástica: do
desenho, pintura, modelagem, colagem; dramatização, dentre outros elementos que
potencializem a formação leitora, promovendo a interação, que medeia o ensino e a
aprendizagem da educação estética.

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de Psicologia da Universidade de São Paulo, 2009. 348 f. Disponível em:
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TULESKI, Silvana Calvo. Vygotski: a construção de uma psicologia marxista.


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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

O PROCESSO DE FORMAÇÃO DO LEITOR LITERÁRIO NA


ESCOLA DA PEQUENA INFÂNCIA

Greice Ferreira da Silva, Universidade Estadual de Londrina - UEL/


Departamento de Educação, Eixo temático 2: Literatura Infantil para crianças
pequenas.

1 Introdução

As práticas mais comuns do ensino da leitura nas creches e pré-escolas


brasileiras são alvo de estudos, pesquisas e discussões. Por um lado, há profissionais
que insistem em limitar a formação de leitores de textos ainda na Educação Infantil, ao
proporem exercícios enfadonhos e desvinculados da realidade, da vida e dos
interesses infantis. Esse fato causa um distanciamento para a criança perceber a
língua em seu funcionamento, de estabelecer relações com ela e por meio dela e de
ser capaz de usá-la nos mais diversos contextos da sua realização concreta, nas
diferentes formas de comunicação verbal que o sistema em uso permite realizar.
Diante disso, o ensino da escrita nem sempre tem calcado o seu objeto como
linguagem escrita, o que, consequentemente, faz com que o foco recaia nos aspectos
formais do sistema linguístico.
Essas considerações trazem outro problema. Sob o pretexto de evitar uma
possível desmotivadora experiência com textos cuja compreensão estaria,
supostamente, para além das possibilidades das crianças pequenas, evidenciando um
conceito de criança, de educação, de ensino e de aprendizagem empobrecidos,
continuam a ser apresentados a elas textos simplificados, artificiais, cartilhescos,
seguidos por exercícios que não possibilitam que a criança se insira e participe da
cultura escrita pela principal via: a do significado e do sentido (LEONTIEV, 1978).
A formação de leitores e de leitores literários na Educação Infantil, a literatura
como produção cultural e suas contribuições para o desenvolvimento da criança, bem
como alguns aspectos que envolvem esse processo – como a escola e a mediação
dos professores – é o que este trabalho se propõe refletir, tendo como fundamentação
304

teórica as contribuições de Vygotsky e dos estudiosos da Teoria Histórico-Cultural, de


Bakhtin e pesquisadores sobre a leitura e a literatura.
2 O processo de ensino e de aprendizagem da leitura desde a Educação Infantil:
algumas considerações

Muitas vezes, o processo de ensino e de aprendizagem da leitura reporta-se à


pronunciação, à decodificação, mas não se refere ao ensino da língua propriamente,
da sua utilização. Sobre isso, ao recorrer às contribuições de Vygotsky (1995) e
Bakhtin (1992), depreende-se que ―o fato de se acreditar que primeiro é preciso que as
crianças aprendam a sinalidade da linguagem, para somente após essa etapa
aprender a tratá-la como signo, é apenas incorrer contra a própria linguagem, mas
com a própria lógica dos leitores aprendizes‖ (CRUVINEL, 2010, p. 129).
Para Bakhtin (1992), a língua é viva, dinâmica e se transforma constantemente,
por causa de sua historicidade, do uso cotidiano e, portanto, não pode ser separada
do fluxo da comunicação verbal. A língua, em sua totalidade concreta, viva, em seu
uso real, tem a propriedade de ser dialógica. Desse modo, a linguagem é fruto da
interação verbal entre os sujeitos; em outras palavras, a relação entre os interlocutores
funda a linguagem, nas trocas e na atitude responsiva do outro.
A teoria da enunciação de Bakhtin ressalta a produção da linguagem na
perspectiva da enunciação e a natureza social da situação de produção de discursos.
O outro é parte constitutiva da situação social de enunciação e atua de forma que o
sujeito também seja parte constitutiva dessa organização. Nessa perspectiva, o
diálogo é condição fundamental para que se conceba a linguagem. Bakhtin defende o
dialogismo como o princípio constitutivo da linguagem e a condição do sentido do
discurso (BARROS, 2003, p. 2).
Independentemente de sua dimensão, todos os enunciados no processo de
comunicação são dialógicos. Existe neles uma dialogização interna da palavra, a qual
é perpassada sempre pela palavra do outro e é sempre e inevitavelmente também a
palavra do outro. Para constituir um discurso, o enunciador considera o discurso de
outrem que está presente no seu próprio. Por isso, todo discurso é ocupado,
atravessado pelo discurso alheio. O dialogismo é caracterizado pelas relações de
sentido estabelecidas entre dois enunciados (FIORIN, 2006, p. 19). A realidade é
sempre mediada pela linguagem, ou seja, o real se apresenta para nós sempre
semioticamente, linguisticamente.
Essas afirmações esclarecem que, na teoria bakhtiniana, não são as unidades
da língua que são dialógicas, mas os enunciados. ―As unidades da língua são os sons,
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as palavras e as orações, enquanto os enunciados são as unidades reais da


comunicação‖ (FIORIN, 2006, p. 20). As unidades da língua são repetíveis, são
fechadas e acabadas em si mesmas; os enunciados são irrepetíveis; são
acontecimentos únicos que, a cada vez, possuem um acento, uma apreciação, uma
entonação próprios.
O que diferencia um enunciado de uma unidade da língua é que o enunciado é
a réplica de um diálogo, porque, cada vez que se produz um enunciado, o que ocorre
é a participação de um diálogo com outros discursos e o que delimita a sua dimensão
é a alternância dos sujeitos. O enunciado não existe fora das relações dialógicas.
―Nele estão sempre presentes ecos e lembranças de outros enunciados, com que ele
conta, que refuta, confirma, completa, pressupõe e assim por diante. Um enunciado
ocupa sempre uma posição numa esfera de comunicação de um dado problema‖
(FIORIN, 2006, p. 21).
Ao compreender que o ensino da língua se dá por meio de enunciados, de
gêneros, de situações dialógicas, entende-se que o ensino da leitura e da escrita,
desde a Educação Infantil, pode ocorrer de forma a provocar as crianças a pensar
sobre a escrita, a estabelecer relações intensas com ela, a dialogar em situações reais
de comunicação, em outras palavras, em situações únicas de comunicação, nas quais
a existência do outro é uma condição.
Bakhtin não nega a existência da língua como sistema e não condena seu
estudo. Ao contrário, considera-o necessário para entender as unidades de formação
da língua. Contudo, mostra que a fonologia, a morfologia ou a sintaxe não explicam o
seu funcionamento real (FIORIN, 2006).
Compreender a língua como algo vivo, em movimento, que se dá nas relações
sociais, na interação com o outro, a língua como produto da história e da cultura
humana, a qual se renova e se reconstrói, requer pensar que o seu ensino deve
considerar essa historicidade, essa dinamicidade. A criança, desde pequena, pode
aprender a língua escrita em seu funcionamento, vivenciar situações de uso em que
seja criada a necessidade de iniciar esse processo de inserção e de participação na
cultura escrita. A criança, desde pequena, pode conviver com os textos reais, os quais
condizem com seus interesses, com sua curiosidade, criam cada vez mais a
necessidade de aprender, o que descarta a possibilidade do uso de textos
descontextualizados elaborados com a finalidade de ensinar a criança a ler e a
escrever, em que a repetição de letras, sílabas e palavras é privilegiada.

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Nessa perspectiva, este trabalho concebe a leitura como compreensão, como


produção de sentido e como prática social, histórica e cultural (ARENA, 1992;
JOLIBERT, 1994).
Arena (2010b) esclarece que ler

[...] é a ação de atribuir sentido por meio de sinais gráficos, em


situações elaboradas pela cultura humana. Essas atitudes
constituintes do entorno, são vitais para a formação do leitor e
são desenvolvidas nas relações com os gêneros enunciativos
porque são as relações culturais que orientam os modos de ler.
É importante entender que ensinar o sistema lingüístico não é
ensinar a ler; ensinar a ler é ensinar as próprias práticas sociais
e culturais que exigem o domínio desse sistema. (ARENA,
2010b, p. 242).

Nessa perspectiva, ler é uma forma de apropriar-se da cultura humana e seu


ensino ultrapassa a mera decodificação de sinais gráficos e a vocalização,
relacionando-se às formas de desenvolvimento do pensamento. Ao ensinar a ler, a
atitude seria de ensinar a própria língua não somente como um instrumento de
comunicação, mas como um instrumento do pensamento (ARENA, 2010b;
VYGOTSKY, 2000).
O que se enfatiza não é somente a natureza comunicativa da língua escrita,
mas ―o aspecto transformador das funções psíquicas superiores que permitem a
inserção do homem diretamente nas relações humanas permeadas pelo gráfico,
atualmente potencializado pelos processadores eletrônicos‖ (ARENA, 2010b, p. 243).
O professor ensina o ato de ler para que a criança possa criar leitura, porque a
leitura acontece no momento em que o leitor a realiza; ela se dá na relação entre o
leitor e o texto. A leitura não é um objeto, uma coisa. Ela existe no momento em que a
realiza, ―somente ganha existência quando o leitor a cria na relação entre o que ele é,
o que sabe, e o que o texto criado pelo outro está a oferecer‖ (ARENA, 2010b, p.243).
Nesse sentido, o professor ensina ―o modo como o leitor em formação deve agir sobre
o texto para criar a leitura‖ (ARENA, 2010b, p. 243) e, por essa razão, não se ensina a
leitura, mas se ensina o aluno a ler como ato cultural.
Bakhtin (1992) e Vygotsky (1995) concebem a palavra como signo. Quando a
escola não realiza um trabalho com a leitura e a escrita a partir das enunciações, deixa
de conceber a palavra como signo e passa a considerá-la como sinal. ―O sinal
constitui-se num aspecto técnico que sozinho nada diz, apenas quando é absorvido
pelo signo é que pode comunicar-se, tornar-se linguagem‖ (CRUVINEL, 2010, p. 65).
Diante dessas considerações, a língua materna a ser ensinada na escola desde a
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pequena infância não é a mediada pela relação grafema-fonema, mas a mediada pela
significação. A palavra escrita é signo, por isso, sempre significa e não pode ser lida
como sinal. É símbolo visual que só adquire sentido quando inserida num contexto,
quando corresponde ou pertence a uma enunciação (BAKHTIN, 1992).

3 A literatura na escola da pequena infância: espaço para a formação de leitores


literários

De acordo com Arena (2003), lemos porque temos necessidades criadas pelas
relações sociais entre os indivíduos; por tal razão, afirma que não lemos por hábito,
gosto ou prazer. Nessa perspectiva, a escola tem o papel de criar essas necessidades
de leitura nas crianças, permitindo que elas vivenciem situações reais em que possam
participar dessas situações ativamente, sendo sujeitos de suas aprendizagens e
percebendo a função social para a qual é destinada. Pode-se dizer que a educação
literária se encontra nessas bases. Em outras palavras, a literatura deve fazer parte da
vida da criança também na escola da pequena infância de maneira provocada,
intencional, em que as situações de contato com a literatura sejam criadoras de novas
necessidades de ler, de conhecer, de se expressar e de se comprazer por meio da
relação dialógica que se estabelece com ela.
Nessa relação dialógica de leitor e texto literário, há também, por parte do
leitor, a sua própria criação e a sua imaginação, as quais conferem e atribuem ao texto
o sentido. Para Vygotsky (2009, p. 14),

[...] a imaginação, base de toda atividade criadora, manifesta-


se, sem dúvida, em todos os campos da vida cultural, tornando
possível a criação artística, a científica e a técnica. Nesse
sentido, necessariamente, tudo o que nos cerca e foi feito pelas
mãos do homem, todo o mundo da cultura, diferentemente do
mundo da natureza, tudo isso é produto da imaginação e da
criação humana que nela se baseia.

Arena (2010a, p. 30), ao analisar as considerações de Vygotsky e a relação


com a literatura, aponta que

[a] imaginação transcende a própria criação literária porque


move o próprio desenvolvimento da cultura humana em todas
as áreas. Dessa forma, imaginar é inventar, criar, romper com o
já construído para encontrar o ainda desconhecido. Imaginar,
portanto, não faz apenas parte do mundo infantil, mas é uma
faculdade do homem, social e historicamente desenvolvida,
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necessária para a própria e permanente formação do ponto de


vista filogenético.

O pequeno leitor imagina situações, ações, falas, baseado em suas


experiências, no que já viu, ouviu, sentiu, percebeu, no que constitui a sua história, a
sua vivência. O pequeno leitor imagina baseado naquilo que já se apropriou e naquilo
se apropria da cultura humana. Desse modo, o leitor, quando lida com os enunciados
presentes na literatura, desenvolve sua imaginação e ―quanto mais intensa for essa
apropriação, mais imaginação desenvolverá‖ (ARENA, 2010a, p. 31).
As crianças são, desde pequenas, capazes de estabelecer relações com o
escrito de forma a questioná-lo, de fazer previsões, escolhas, de validar essas
antecipações ou não e assim elaborar outras questões e outras respostas. Pode-se
afirmar que a relação entre o leitor e o texto é dialética, ou seja, o leitor no ato da
leitura traz os seus conhecimentos para dialogar com o texto, para compreendê-lo, de
sorte que essa compreensão possibilita ao leitor criar, modificar e elaborar novos
conhecimentos.
Desse modo, pode-se inferir que a educação literária, o gosto pela leitura e
pela literatura nascem de uma necessidade que é criada pelo professor, pelo contato
com os leitores mais experientes e com as situações em que as crianças possam pôr
em jogo suas ideias, sua imaginação, fazer previsões e antecipações e validá-las ou
não. Lajolo (2005, p. 119), ao tratar do gosto literário, faz uma proposta de educação
do gosto, revelando que não cabe somente à escola essa função, mas que compete a
ela a tarefa de iniciar seus alunos nos protocolos, nos critérios e nos valores da leitura.
Em decorrência, cabe à escola cuidar para que as crianças tenham contato
com os diferentes gêneros discursivos – no caso em questão, com o gênero literário –
ao longo dos anos de escolaridade e ampliem sua capacidade de manejar o mais
possível a diversa heterogeneidade dos gêneros do discurso (orais e escritos), suas
variações estilísticas e suas possibilidades de intervir e de dialogar com eles. Assim,
as crianças poderão se apropriar dos gêneros discursivos que circulam socialmente e
se constituir gradativamente como leitores e como leitores literários, assimilando para
si próprias as especificidades da literatura.

4 O professor e o seu papel mediador na formação de leitores literários

Na Educação Infantil, os gêneros discursivos e o gênero literário chegam até às


crianças, na maioria das vezes, por meio da transmissão vocal (BAJARD, 2007) do

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texto pelo professor. Outro procedimento utilizado pelos professores em relação à


literatura infantil é o contato direto das crianças com os livros, seu manuseio e
observação. No entanto, essa prática se apresenta menos frequente e se apoia sobre
o pretexto de que as crianças manuseiam os livros de maneira inadequada,
―estragando-os‖ facilmente. Ainda sobre esse mesmo pretexto, muitas vezes, os
materiais de leitura para o manuseio direto das crianças, os quais são disponibilizados
para esse fim, apresentam narrativas simplificadas e ilustrações que nem sempre
estão em consonância com os propósitos estéticos e literários.
Se as sessões de transmissão vocal das histórias lidas e de outros gêneros
discursivos fossem realizadas como parte da rotina do trabalho com as crianças
pequenas, poderiam constituir-se como oportunidades significativas a um
desenvolvimento mais amplo da infância, além de gerar sentido à aprendizagem do
ato de ler e de escrever (LIMA, 2005), uma vez que, ―atraída pelo mundo da literatura
graças às imagens e à voz do mediador, que confere vida às histórias adormecidas
nos livros, talvez a criança chegue a desejar o poder de saber ler detido pelo adulto‖
(BAJARD, 2007, p. 87).
A leitura é uma via de acesso para participar da cultura escrita e, desse modo,
ler se constitui numa necessidade essencial para garantir o pertencimento e a atuação
ativa nessa sociedade. Nessa perspectiva, a literatura, o gênero literário, deve
aparecer no cenário escolar de modo a contribuir na formação de leitores e não de
―ledores‖ – seres passivos, imobilizados, que pouco ou nada acrescentam ao ato de
ler. (PERROTTI, 1999 apud SOUZA; GIROTTO, 2008, p. 66).
O enfoque dado ao aspecto físico do signo subsidia muitas práticas educativas,
no início da aprendizagem da leitura. Pode-se inferir que a preocupação excessiva
com a fonética e com a decodificação forma crianças ledoras, mas não leitoras. São
crianças que apenas repetem ou pronunciam as palavras e frases que compõem um
texto, todavia, não conseguem compreendê-las e não participam dialogicamente do
processo de significação da leitura pelas próprias condições educativas a que estão
submetidas.
A literatura, o gênero literário, representa diálogo, interação com o texto, com a
estética e, por isso, requer para si leitores e não ledores. A literatura exige do leitor
uma interlocução, envolvimento, esforço para atuar no texto e com o texto, ao lidar
intensamente com os enunciados que desvelam e revelam em si o conteúdo temático,
o estilo e a construção composicional (BAKHTIN, 2003, p. 261). Esse esforço os
ledores não dão conta de fazer.

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Ocorre ainda na escola a limitação do trabalho pedagógico na pequena infância


com os diferentes gêneros discursivos, não somente porque o professor desconsidera
a possibilidade da criança de interagir com eles, desde pequena, por meio de um
ensino intencionalmente planejado, porém, denota possivelmente também um
desconhecimento sobre o funcionamento dos gêneros e suas características.

Os gêneros do discurso podem ser uma importante ferramenta do professor


para introduzir a criança à cultura escrita, para orientar o trabalho pedagógico no
ensino do ato de ler e de escrever, pois ensinar a língua é ensinar a dominar a
diversidade dos gêneros discursivos, de forma que, ao reconhecerem seu conteúdo
temático, seu estilo e sua construção composicional, as crianças possam dar-lhes
sentidos – em outras palavras, possam ler e escrever. Quando o ensino do ato de ler e
de escrever é realizado através dos enunciados, não é a leitura e a escrita como sinal
que se enfatizam, não é a decodificação e a codificação que se priorizam, em
detrimento do sentido construído, mas a leitura e a escrita como prática cultural
oriunda de uma concepção de linguagem dialógica, de um conceito de língua como
construção social e ideológica, que, dotada de um sistema de signos, sempre
pressupõe uma atitude responsiva do outro com quem se fala, para quem se escreve.
Há uma relação dialógica entre os discursos e entre os interlocutores, possível por
meio da interação social entre os sujeitos.

5 A literatura infantil como produção cultural para o desenvolvimento da criança

Pensar sobre o papel da literatura infantil na formação das crianças e no seu


desenvolvimento torna-se cada vez mais fundamental, uma vez que a literatura infantil
é amplamente aceita e utilizada pelos professores, nas escolas. Não se trata somente
de oferecer grande quantidade de informações e de materiais de leitura, porque isso
não garante a apropriação da leitura e da leitura literária. O que se enfatiza são as
relações que as crianças vão estabelecer com essas informações e, ainda, a maneira
pela qual essas relações serão mediadas pelo professor ou por outros.
Nesse contexto, o processo de ensino e de aprendizagem é um diálogo que se
estabelece entre as crianças e a cultura. Elas não se apropriarão da leitura e da
literatura somente porque pais e professores desejam, nem porque os professores dão
repetidas tarefas de oralização, porém, quando tudo isso fizer sentido para elas,
quando conviverem com esse ato de maneira dialógica e dinâmica, quando o
resultado responde a uma necessidade criada.

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Nesses processos de ensino, aprendizagem e de desenvolvimento, entende-se


que o sujeito aprende historicamente, num dado contexto cultural, dentro das
condições de vida e de educação de que participa (LEONTIEV, 1988) e nas relações
que mantém com o outro, porque se constitui nessa relação. Essa afirmação, na
perspectiva da Teoria Histórico-Cultural, está em consonância com a concepção
bakhtiniana. Bakhtin (1992) esclarece que o sujeito se constitui socialmente por meio
de suas interações e de seus diálogos. O princípio básico da filosofia bakhtiniana se
encontra nessa proposição, ou seja, a de o sujeito se constituir na relação com o
outro.
Diante desses pressupostos, a literatura infantil pode ter implicações diretas no
desenvolvimento da criança:

Considerada como manifestação artística, a literatura infantil


constitui elemento humanizador. Por lidar com a linguagem de
forma sensível às emoções humanas, ela possui um caráter
educativo: educa à medida que amplia as referências – ou
leituras de mundo (FREIRE, 1997) – do leitor, possibilitando a
apropriação de saberes sobre a linguagem, sobre a
expressividade, sobre os valores, sobre a cultura humana.
Possui especificidades. Constitui um objeto cultural com
destinação social própria, como ademais todas as literaturas:
conclamar a beleza, as emoções, a expressividade, a palavra
como manifestação da humanidade que evoca a humanização
do leitor. Como possibilidade de atribuição de sentidos por
aquele que lê, oportuniza a produção de novas maneiras de
expressar sua individualidade, sua identidade. (BISSOLI, 2004,
p. 139-140).

A literatura infantil, como modalidade textual específica, não é pretexto para


ensinar. Por ter sua origem histórica vinculada à escola, quase sempre é confundida
como material caro à moralização e ao ensino (BISSOLI, 2004; PERROTTI, 1996;
ZILBERMAN, 1987). Em contrapartida, por ser literatura, pretende-se Arte e, por essa
razão, afasta-se da função utilitária que muitas vezes os professores a fazem assumir,
sem descuidar do instrumental (PERROTTI, 1992) – da ―possibilidade educativa,
implícita a toda manifestação da cultura historicamente produzida‖ (BISSOLI, 2004).

Nesse sentido, sendo objetivação humana, ao ser apropriada


como texto com caráter artístico e não como forma
metodológica de instrução, é capaz de educar, em sentido
amplo: possibilita a apropriação do discurso do outro – o autor
–, a dialogicidade e, nesse processo, tendo em vista que a
linguagem constitui o substrato da consciência (VYGOTSKY,

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1991), o enriquecimento das formas de ver e de se relacionar


com o mundo, de expressar-se.

A leitura somente se institui na relação interlocutiva que pressupõe o


dialogismo (BAKHTIN, 1992). Em outras palavras, institui-se somente quando o leitor
estabelece uma relação com o texto e com o autor, numa atitude responsiva que o
torna capaz de refutar, refletir e reavaliar o que leu. Do contrário, essa leitura não se
constitui como tal, fecha-se em si mesma, sem trazer uma contrapalavra (BAKHTIN,
1992). Ao considerar a concepção discursiva de Bakhtin, que pensa a língua em
movimento, a língua que existe na relação com o outro, conclui-se que somente
desenvolver a competência linguística não responde aos objetivos da Educação
Infantil e nem mesmo aos objetivos do ensino da literatura. A língua, nessa
perspectiva, tem que ser vista nas relações sociais, nas trocas, na atitude responsiva.
Compreender a literatura é experimentar, é ter, desde a pequena infância, uma
experiência positiva com a cultura escrita, é vivenciar experiências criativas, é
humanizar-se. ―É o uso social de cada objeto da cultura o que determina sua maior ou
menor influência no desenvolvimento infantil e não sua existência objetiva‖ (BISSOLI,
2004). Assim, para que a literatura se constitua como uma necessidade criada e para
que ela seja explorada em suas máximas possibilidades educativas, a leitura deve ser
concebida como uma interlocução entre leitor e autor, como produção de sentido.

Considerações Finais

No ensino da leitura, é essencial ensinar as crianças a estabelecerem uma


relação dialógica com as outras crianças, com o texto e com elas mesmas. A
mediação da professora e a criação de mediações por ela implicam esclarecer as
propostas de maneira precisa para as crianças, incentivando-as a falarem e a
aprenderem a escutar o outro, valorizando as diferentes opiniões. Numa relação
dialógica no ensino da leitura, a professora ensina as crianças a perceberem os
elementos constitutivos de cada gênero abordado e o seu funcionamento, no texto,
instigando as crianças a questionarem o texto, a debatê-lo, a construí-lo e desconstruí-
lo, a refratá-lo ou refutá-lo e, desse modo, a aprenderem a ler o texto numa atitude
responsiva, favorecendo uma interlocução e produzindo sentido.

Compreende-se o processo de apropriação da leitura pelas crianças como uma


prática cultural capaz de envolver a evolução de conceitos na relação dialógica que é
instaurada por meio da linguagem e que se modifica de acordo com o lugar, com os

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materiais de leitura, com o tempo histórico e com os interesses e necessidades do


leitor.
A formação do pequeno leitor e do leitor literário, sob uma perspectiva
humanizadora, reside num processo pedagógico dialógico, porque, se o dialógico está
na base de todas as relações do homem com o homem, com o mundo, com as coisas,
com o conhecimento, também deveria estar no ensino e na aprendizagem das
crianças e no processo de apropriação da leitura. Pode-se afirmar que esse processo
é resultado de relações, de linguagens, de vozes, de relações polifônicas. A literatura,
nesse cenário, se constitui como uma interlocutora da aprendizagem da leitura na
Educação Infantil.

Nessa perspectiva, a literatura infantil é uma produção cultural que traz em si


uma confluência de linguagens, de vozes, que possibilita não somente o
desenvolvimento intelectual, mas também o desenvolvimento emocional, criativo e
imaginário da criança. Segundo Vygostky (1995), o desenvolvimento linguístico,
intelectual e emocional da criança é influenciado diretamente pela linguagem.
Isso posto, a literatura infantil, como um gênero discursivo, como forma de
linguagem artística que promove a interlocução entre leitor e autor, mediada pela
escrita e pela imagem, desempenha uma função particular para o desenvolvimento
psíquico da criança. Constitui, pois, uma autêntica forma de produção cultural.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

LIVROS PARA UM CORPO EM EXPANSÃO: ESTUDOS SOBRE A


LEITURA NA PRIMEIRA INFÂNCIA

Camila Feltre, UNESP-SP, Literatura infantil para crianças pequenas.

Considerações Iniciais

Para iniciar as reflexões em torno do livro e da leitura que se apresenta


neste texto, trago as palavras de Lygia Bojunga, escritora brasileira, que relata sua
relação com o livro ―Para mim, livro é vida, desde que eu era muito pequena os livros
me deram casa e comida‖ (BOJUNGA, 1988, p. 07). A autora fala da sua vivência
com o livro, que começou na infância quando brincava de construtora: ―livro era tijolo;
em pé, fazia parede; deitado, fazia degrau de escada; inclinado, encostava num outro
e fazia telhado‖ (BOJUNGA, 1988, p. 07). Nessa relação, o livro sempre esteve
associado à casa como abrigo, ―morar em livro‖, que alimentava a sua imaginação. É
por este caminho que o livro e a leitura serão trabalhados no texto, considerando o
que pode significar para a vida das crianças e como elo de afeto com os familiares.
Como personagens principais destas reflexões, temos as crianças
pequenas, ou a primeira infância, que segundo a pesquisadora Yolanda Reyes,
corresponde desde a etapa intrauterina até os seis anos de idade (REYES, 2010 p.
18). Segundo Reyes, o que se desenvolve nesta fase, quanto a memórias afetivas e
aprendizagem, é de suma importância para o desenvolvimento infantil; ―o período
entre zero e três anos, especificamente, é considerado como a etapa de maiores
possibilidades quanto à maturação e à aprendizagem‖ (REYES, 2010, p.19). Bruno
Munari, artista italiano, que entre o seu vasto trabalho encontra-se a produção de
livros infantis, acredita que aquilo que se aprende nos primeiros anos de vida
permanece como regra fixa para sempre, assim, uma experiência prazerosa com o
livro pode ser fundamental para a formação de futuros leitores (MUNARI, 1998, p. 222-
223).
Para dar corpo a estas reflexões, trago para o texto experiências de
oficinas realizadas no SESC Campinas, durante o mês de novembro de 2016, onde
317

atuei como propositora e educadora. A proposta de oficina ―Livro-objeto: mar de


afetos‖ é voltada a crianças de 0 a 06 anos e acompanhantes, tendo ações como a
leitura de livros e a criação artística. As situações observadas durante as oficinas
foram registradas por meio de escritos e fotografias e serão relatadas e discutidas em
diálogo com autores e pesquisadores da área. Abordo, assim, considerações sobre
leitura defendidas por Yolanda Reyes e Evélio Cabrejo-Parra. E para dialogar com os
apontamentos sobre imaginação, criação e arte no desenvolvimento infantil, recorro a
Lev Vigotski e Anna Marie Holm.

A proposta de oficina: ―Livro-objeto: mar de afetos‖


O nome sugere: um mar de afetos inundará as pessoas com livros e
afetos. A oficina ―Livro-objeto: mar de afetos‖ pretende colocar em contato a criança
pequena e seus acompanhantes com este tipo de livro, por meio de aproximações,
leituras, explorações táteis e criações artísticas. A proposta tem duração de uma hora
e é voltada para até 15 crianças com os seus acompanhantes. Em cada dia é
trabalhado um livro e desenvolvida uma proposta artística, pensando na diversidade
de narrativas e utilização dos materiais. As ações são divididas basicamente em três:
leitura coletiva, exploração de livros e atividade artística.
A leitura coletiva acontece em roda, em que todos acompanham a
narrativa do livro e participam com suas leituras e interpretações. A exploração de
livros propõe leituras em que cada família, no seu ritmo e interesse, possa desfrutar o
livro, ler no seu tempo. Nesse momento há uma diversidade de referências,
possibilitando ao acompanhante e à criança o contato com diferentes livros. A
atividade artística é pensada como última ação, com a proposta de experimentar, ou
seja, depois ler um livro e conhecer outros, é chegada a hora de fazer. Essa
metodologia está inspirada na ―Abordagem Triangular do ensino da arte‖,
sistematizada pela arte educadora Ana Mae Barbosa. Nela, o ensino de arte se baseia
em três abordagens: leitura, contextualização e produção. Deste modo, a criança e o
acompanhante pode ter uma experiência ampla com o livro, ou seja, entram em
contato com diferentes linguagens durante o encontro: com a palavra, por meio da
oralidade e da forma escrita (quando esta se apresenta no livro); com as imagens e a
materialidade do livro e com a arte, a partir das propostas como o desenho, o recorte e
a colagem.

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A seleção de livros: literatura e arte


Há uma diversidade de livros voltados para a criança hoje em dia, como
algumas definições: livro-brinquedo, livro ilustrado, livro com ilustração, livro-imagem,
livro-objeto. Os livros que selecionei para a oficina tem em comum a presença da
materialidade na narrativa, ou seja, o seu projeto gráfico é fundamental para a leitura.
Pode ser o tamanho, formato, tipo de papel, furo ou dobra que faz parte da narrativa,
contribuindo para a leitura do livro como um todo. O termo livro ilustrado é
frequentemente utilizado por pesquisadores como Maria Nikolajeva, Carole Scott,
Sophie Van der Linden e Odilon Moraes, que se dedicaram ao estudo deste tipo de
livro nas suas produções34. Para Linden: ―Livro-ilustrado é um objeto que leva em
consideração um conjunto coerente de interações entre textos, imagens e suportes‖
(LINDEN, 2011, p. 09). Assim, a narrativa está no encontro destes três elementos, na
leitura e fruição da imagem, da palavra e da materialidade, não tendo alguma delas
maior importância ou destaque.
Já o termo livro-objeto, como me refiro na oficina, tem suas raízes no
campo das artes. Segundo o professor e pesquisador sobre livro de artista, Paulo
Silveira:
especificamente para a arte, o livro-objeto é uma solução
inteiramente plástica ou uma solução gráfica funcionalizada
plasticamente. Ou ainda, o travestir de um livro em uma unidade de
valores escultóricos. Nele, o apelo da forma, da textura e da cor é
eloquente e o principal determinante no processo criativo. (SILVEIRA,
2013, p.20)

O livro-objeto foi experimentado com mais intensidade na segunda metade


do século XX por artistas como Paulo Bruscky, Nuno Ramos, Artur Barrio, Lygia Pape,
entre outros.
O intuito do artigo não é tratar das definições ou categorias que os livros
selecionados se enquadram, mas relatar um pensamento e uma escolha. Assim, os
livros utilizados nas oficinas foram pensados para serem lidos como um todo, trazendo
o objeto livro, que é o foco da pesquisa, para a experiência. Também se considerou
livros que tivessem sido reproduzidos em escala industrial, sendo somente de difícil
acesso o ―Livro Ilegível‖, editado e publicado pela editora italiana Corraini 35. Os livros
utilizados nas oficinas foram: ―Onda‖ e ―Espelho‖, de Suzy Lee, ―Na noite Escura‖, de
Bruno Munari, ―Não é uma caixa‖, de Antoniette Portis, ―Meu leão‖, de Mandana Sadat,

34
―Livro-ilustrado: palavras e imagens‖, de Maria Nikolajeva e Carole Scott (2011), ―Para ler o
livro ilustrado‖, de Sophie Van der Linden (2011) e ―Traço e Prosa‖, organizado por Odilon
Moraes (2012).
35
Depois do fechamento da Cosac & Naify, alguns títulos ficaram mais inacessíveis.
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―Passarinha‖, de Regina Berlim, ―Formigas‖, de Mário Alex Rosa e Lílian Teixeira,


―Dentro do espelho‖, de Luise Weiss, ―Um dia na praia‖, de Bernardo Carvalho, ―O livro
com um buraco‖, de Hervé Tullet, ―Ter um patinho é útil‖, de Isol Misenta, ―Abra este
pequeno livro‖, de Jesse Klausmeier e Suzy Lee, ―Selou e Maya‖, de Lara Meana e
María Pascual de la Torre, ―O metrô vem correndo‖, de Dong-Jun Shin, ―O nascimento
do dragão‖, de Marie Sellier e Catherine Louis e ―Livro do foguete‖, de Peter Newell.
Quatro livros foram escolhidos para a leitura mediada: ―Na noite Escura‖,
―Onda‖, ―Não é uma caixa‖ e ―Livro Ilegível‖, pela minha familiaridade com os títulos e
pela possibilidade de propostas artísticas. As atividades proporcionam experiências
com diferentes suportes e materiais. A partir da leitura do livro ―Na noite escura‖, a
proposta é criar visores, convidando os participantes a cortarem um pedaço de papel
cartão, fazendo um pequeno furo (como no livro ―Na noite escura‖), e colar um papel
celofane que altera a visão e provoca uma percepção diferente do espaço. O livro
―Onda‖ possibilita atividades com tecido e criação de desenhos de seres que vivem no
mar. A ideia é desenvolver além do desenho com giz de cera no papel canson, o
recorte da imagem e em seguida a colagem com fita adesiva no tecido, que se
transforma em um mar e convida as crianças as brincadeiras e movimentos com o
corpo. A proposta do livro ―Não é uma caixa‖ é estimular a imaginação a partir da
invenção com caixas de papelão. Os materiais disponíveis, além das caixas, são:
barbante, fitas adesivas e giz de cera. A leitura do ―Livro Ilegível‖ propõe às famílias
brincadeiras com diferentes tipos de papel: canson, laminado, cartolina, vegetal,
crepom, kraft, com diferentes texturas, cores e tamanhos.
Os outros livros citados são apresentados às famílias durante o momento
que chamo de exploração de livros, em que a leitura acontece no encontro entre
criança e adulto. E é sobre ela que tratarei a seguir.

A leitura em voz alta


A voz, como a música, como o bater asas dos
pássaros, como a fuga entrevista dos animais ou como o
assobio de uma flecha, deixa em seu passar uma vibração,
uma marca sonora, ―um sulco apenas aberto no ar‖. Assim, se
a escritura é como um abrir sulcos na terra [...], a oralidade é
como um abrir sulcos no ar.
Jorge Larrosa36
Mas o que acontece numa experiência de leitura em voz alta?

36
LARROSA, Jorge. Linguagem e Educação depois de Babel. Belo Horizonte: Autêntica,
2004, p. 43.
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A leitura em voz alta envolve algo além do que está materializado no livro,
nas palavras ou nas imagens, envolve a pessoa que fala, a sua voz, o seu tom:
―símbolo dos padecimentos da alma‖ (LARROSA, 2004, p. 39). Jorge Larrosa, filósofo
e educador espanhol, fala da fluidez contextual, líquida ou gasosa da palavra oral e
que só o hálito da voz do leitor é capaz de reviver a ―materialidade cadavérica da letra‖
(LARROSA, 2004, p. 38). ―Como se houvesse uma vida das palavras que só está na
voz, no hálito da voz, na alma da voz‖ (LARROSA, 2004, p. 38).

Considerando que os livros lidos pelos participantes da oficina apresentam


imagens e recursos materiais, que não são necessariamente palavras inscritas nos
papéis, encaminho esta reflexão para a leitura em voz alta do livro como um todo,
realizada pelo adulto ou pela criança.

Existem elementos da voz, precisamente os que não se podem


articular, o gemido, o sussurro, o balbucio, o soluço, talvez o riso, que
não se podem escrever, que necessariamente se perdem na língua
escrita, assim como se perdem também os elementos estritamente
musicais, como o ritmo, o sotaque, a melodia, o tom (LARROSA,
2004, p. 39).

Larrosa acrescenta que o que está na voz é justamente o que se sente, o


que padece, e o que está na escritura é o articulado da voz.
Tendo como fundamento a leitura em voz alta, uma associação em
Granada se dedica a esta prática desde 2010. Intitulada ―Asociación Entrelibros‖37 e
idealizada pelo professor espanhol Juan Mata Anaya, é uma organização não
governamental que tem como característica a presença de voluntários com disposição
para ler para as pessoas, principalmente para aquelas que se apresentam em situação
de vulnerabilidade social ou privação. Para os participantes do projeto, os livros
compartilhados são como vias de diálogo e conhecimento mútuo. Eles entendem a
leitura em voz alta como um encontro, um oferecimento de amizade.
Para Anaya, a leitura em voz alta é importante como atividade que
promove a reflexão e fomenta o interesse das crianças por literatura e arte. Ela não é
caminho para a alfabetização e o aprendizado da língua:
―é uma pratica que tem sentido em si mesma, pode colocar em
contato desde cedo as crianças com uma linguagem poética e
artística e através de comentários e conversas que provocam as
leituras vão se configurando os juízos e os sentimentos infantis‖
(ANAYA, 2010, p. 66, Tradução nossa)

37
Site disponível em:<http://www.asociacionentrelibros.es/>. Acesso em: 14/09/2017.
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A leitura em voz alta aproxima as pessoas e cria uma relação daquele que
fala e do outro que escuta. Além disso, no momento da leitura em voz alta, os corpos
se ajeitam, algumas crianças sentam no colo do adulto e o livro se apresenta
grandioso na frente dos dois. Na maioria dos pares, percebi o adulto lendo e a criança
acompanhando as páginas com interesse, algumas vezes tocando as imagens e
apontando para dentro do livro. O encontro é vivido pelos dois, como um só corpo.

A leitura em voz alta na primeira infância


A leitura em voz alta reverbera sensações e sentimentos daquele que
ouve, e para a primeira infância, esta iniciativa se torna ainda mais importante, já que
as crianças pequenas, desde a barriga, reconhecem a voz da mãe, os ritmos e os
sons. É o primeiro contato com a linguagem. O que importa é o som, o ritmo e não a
letra. Yolanda Reyes, especialista colombiana em leitura, destaca a importância de ler
para a criança ainda no útero da mãe. Evélio Cabrejo-Parra, pesquisador colombiano,
afirma que segundo estudos ―o sistema auditivo se constrói entre terceiro e o quinto
mês de gestação‖ (PARRA, 2011). Deste modo, ―O processo de aquisição de
linguagem deixou de centrar-se exclusivamente na produção de palavras
reconhecíveis, como acontecia até algumas décadas‖ (REYES, 2010, p. 23) e quando
―uma criança pronuncia uma palavra pela primeira vez, remete a uma longa história,
cujos antecedentes mais rudimentares podem ser rastreados desde a vida
intrauterina‖ (REYES, 2010, p. 23).

Parra traz a ideia da criança como ―um músico em estado puro‖ e relata:
―temos que dar a ele algo musical e, precisamente, a voz humana é uma das primeiras
coisas que o bebê aprende a ler e a interpretar‖ (PARRA, 2011). Assim, o ritmo da
voz, da música, do som é muito marcante para o bebê. Ele é muito sensível à
modulação da voz, é como se ele, mesmo sem compreender o significado, sentisse as
nuances, o som e a musicalidade.

O autor complementa ―mas eu diria que o importante para a formação do


bebê é saber que ele necessita de tudo que é rítmico, pois isso é algo que vai facilitar
o seu crescimento psíquico, psicológico‖ (PARRA, 2011). A leitura de variados estilos,
contos, textos corridos, pausados, com diferentes vozes, ajuda nessa variedade de
musicalidades para o bebê que ouve.

Isso pôde ser observado durante as oficinas em alguns momentos


específicos. No SESC Campinas, uma família composta pela mãe, pai e um menino

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de 3 anos, que foram a todos os encontros durante o mês de novembro, relataram um


fato curioso; contaram que em casa, o filho começou a pegar livros de qualquer
assunto e falar com diferentes entonações a frase ―não é uma caixa‖. Na oficina
anterior do acontecimento, ele tinha participado da mediação de leitura do livro ―Não é
uma caixa‖, que contém esta frase diversas vezes durante a narrativa. No livro, o
personagem que é um coelho explora a caixa de papelão que para ele não era apenas
uma caixa, ela era um prédio, um balão, um navio pirata. Talvez a forma como a
leitura aconteceu, a entonação, a gravidade, a melodia ou as várias melodias, ficaram
marcadas para o menino, que repetiu em casa o que viu no encontro.
Em outra oficina, em outro local e contexto, depois da leitura ―Espelho‖, de
Suzy Lee, uma menina de uns 4 anos aproximadamente também pegou o livro e
começou a virar as páginas (mostrando para os outros) e balbuciando algumas
palavras. Não consegui decifrar o que dizia, mas percebia pelo movimento do virar das
páginas e pela expressão do rosto, com olhos abertos e atentos, que estava fazendo
uma leitura, e uma leitura para alguém.
Esta ação da imitação é muito comum nos primeiros anos de vida, é uma
das formas da criança se colocar no mundo. Nos jogos e brincadeiras, as crianças
reproduzem muito do que veem. Segundo o pensador Lev Vigotski:
Os jogos geralmente são apenas reflexos daquilo que a criança viu e
ouviu dos mais velhos, no entanto, esses elementos da experiência
alheia nunca se reproduzem na brincadeira do mesmo modo com o
na realidade se apresentaram (VIGOTSKI, 2014, p. 06).

Ainda nas palavras do autor: ―há uma reelaboração criativa dessas


experiências, combinando-as e construindo novas realidades segundo seus interesses
e necessidades‖ (VIGOTSKI, 2014, p. 06).
Além das reverberações positivas da leitura em voz alta para a criança, o
adulto presente, vivendo este encontro, também pode ser tocado pela experiência da
leitura. Muitas vezes pude perceber os familiares se emocionando com uma história,
ou esquecendo-se do tempo para ficar um pouco mais na oficina. Isso porque, no
processo de leitura, o adulto entre em contato com a literatura infantil, com os contos e
as narrativas daquela criança que foi.
Parra considera que despertar essa criança, ou esse bebê adormecido que
vive no adulto, é importante neste encontro, há uma troca nesse processo.
Todo adulto leva em si um bebê, a parte infantil do adulto que muitas
vezes dorme, e precisa despertar. Às vezes, pode estar morta e
então acaba criando uma descontinuidade interna entre a parte adulta
e a infantil. É fundamental despertar a parte infantil do adulto, vale a
pena colocá-la em movimento, e, às vezes, lendo para um bebê, na
verdade se está lendo para o bebê que uma vez se foi. Isso provoca
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um grande prazer porque há este encontro. E isso é de fato


importante. É como dizer que o bebê vai dar vida ao bebê do adulto,
em uma troca (PARRA, 2011).

Esse é um das capacidades da leitura, reverberar experiências para além


do que se pretende. Esse é o sentido da experiência de leitura, se deixar tocar, sujeito
aos riscos e imprevistos nesse caminho.

Oficina realizada dia 27/11/2016. Foto: Gabriela Feltre.

Criação e criatividade
Os pequenos nos convidam a experimentar.
Eles tem a arte dentro de si.
Eles criam arte.
Eles nos dizem algo.
Algo que perdemos.
Algo atraente e sedutor.
Algo que reconhecemos.
E que não podemos explicar.
Tudo é muito maior.
Para as crianças pequenas existe uma conexão direta entre vida e obra.
Essas são coisas inseparáveis.
Anna Marie Holm 38
Fala-se como frequência na importância da criatividade, imaginação e
fantasia na infância. Para Vigotski, a imaginação não é uma qualidade restrita às
crianças, é uma capacidade de todo ser humano.
A imaginação ou fantasia é essa atividade criadora do cérebro
humano baseada nas capacidades combinatórias, atribuindo a elas

38
HOLM, Anna Marie. Baby-arte: os primeiros passos com a arte. São Paulo: Editora MAM,
2007, p. 3.
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um sentido diferente daquele que lhe é atribuído cientificamente


(VIGOTSKI, 2014, p.4).

Para o autor a imaginação ou fantasia determina aquilo que não é real,


sem nenhum valor prático, no entanto, afirma que ―tudo o que nos rodeia e que foi
criado pela mão do homem, todo o universo cultural, ao contrário do universo natural,
é produto da imaginação e criação humanas‖ (VIGOTSKI, 2014, p.4).
Para estimular o processo criativo durante as oficinas as propostas
artísticas desempenham bem este papel. Elas possibilitam as crianças
experimentarem diferentes materiais, explorar suas características, combinados com
outros materiais para inventar algo novo, criar.
Na proposta ―Livro-objeto: mar de afetos‖, as famílias entram em contato
com materiais, algumas vezes muito comuns, como caixa de papelão, papel e
barbante, mas que colocados em situações inusitadas convidam a uma proposta
criativa. Como inventar algo a partir de caixa de papelão, barbante, fita e giz de cera?
Como criar algo novo a partir de pedaços de papel, que variam na gramatura, no
tamanho, na transparência ou na textura? Ou criar algo em um tecido para depois
movimentá-lo pelo espaço? São propostas que desafiam os adultos, e muitos, a partir
destas experiências, podem começar a ver possibilidades de criação em materiais
antes não pensados para esta função. Foi o que aconteceu depois da atividade com
as caixas de papelão em Campinas, uma mãe relata que teve ideia de fazer robôs
com o filho a partir deste material, que tinha disponível em casa e não sabia o que
fazer ele.
Percebo, deste modo, as oficinas para famílias como um espaço de
formação para ambos; crianças e adultos experimentam formas de leituras e de
criação, vivenciando situações e descobertas juntos.

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Oficina realizada dia 27/11/2016. Foto: Gabriela Feltre.


Ana Marie Holm, especialista em arte para a primeira infância, considera
importante criar as oportunidade para a criança e o adulto conviverem juntos
―devemos procurar essas oportunidades. Um processo de criação em uma oficina de
arte deve ser como um grande organismo vivo. Viver junto com as crianças‖ (HOLM,
2007, p. 90).
A autora diz que não importa o que fazemos neste encontro, mas sim, a
maneira que isso acontece. Nas suas palavras: ―acontece agora, no tempo presente.
Entre o barulho e silêncio‖ (HOLM, 2007, p. 90).

Oficina realizada dia 27/11/2016. Foto: Gabriela Feltre.


Para Holm, o que mais importa nesta convivência é o processo e não o
resultado final. Por isso, situações em que o adulto direciona demais o trabalho,

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inibindo as ações da criança, ou mostrando-lhes o que ele considera o certo ou o


―bonito‖ não é benéfico para o processo criativo da criança. Ou seja, a convivência
real, em que ambos constroem algo em conjunto ou vivenciam o processo
espontaneamente e de forma natural não acontece. O adulto precisa deixar de ser o
condutor em todos os momentos em que está com a criança, para experimentar estar
com ela de forma criativa e se permitindo a experiência. Holm elucida se referindo a
esta relação: ―ouvir e sentir, e deixar que tudo de maravilhoso que aparece durante o
processo se desenvolva simultaneamente. Para os pequenos é algo natural‖ (HOLM,
2007, p. 90).
Essa experimentação espontânea e natural da criança deve ser vivida,
mesmo quando se altera um pouco a proposta. Na última oficina de novembro, pensei
como atividade artística a criação de livros, com foco na experimentação de cores,
tamanhos e formatos, princípio do trabalho de Munari ao criar o ―Livro Ilegível‖,
disparador desta ação. No decorrer da atividade, percebo as famílias envolvidas com o
papel de outras formas. Uma menina de uns 3 anos enrola um laminado prateado, faz
um cone e fala no seu alto falante. Depois olha dentro, como um binóculo. Em volta,
outra criança da mesma idade aparece com figurino construído com papel laminado
amarelo. No outro canto da sala, uma família vibra com cada corte no papel jornal
azul: o menino de uns 2 anos usava pela primeira vez a tesoura e a ação de cortar o
papel e abrir espaços para olhar foi a descoberta do dia. Envolvidos cada um a sua
maneira, percebi que a proposta de criar livros estava muito direcionada. Explorar
diferentes criações com os papéis já era a atividade. Um pai e uma criança chegaram
a construir um livro, a mesma menina que criou o alto falante, mas a ação de fazer,
pelo o que pude perceber, ficou muito mais a cargo do pai, talvez pela colocação da
proposta, do que do envolvimento de ambos.

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Oficina realizada dia 27/11/2016. Foto: Gabriela Feltre.


Embarcando neste encantamento da primeira infância e das primeiras
experiências, também pude observar um bebê de 9 meses, que experimentou pela
primeira vez o desenho com o giz de cera, segundo relato da mãe, que contou com ar
de alegria e comoção. A proposta era da criação com caixas de papelão, e a menina,
que não tinha movimentos amplos como de algumas crianças, que criaram carrinhos e
trens, pôde vivenciar a proposta à sua maneira. Com rabiscos e linhas desenhou
sobre o papelão e a mãe acompanhou atenta a ação da criança.

Considerações finais
A partir da minha experiência como educadora, observo situações,
aproximações da criança com o livro, como as famílias se relacionam durante a leitura
e o desenrolar das experimentações artísticas.
Para as oficinas voltadas para a primeira infância, percebo o quanto a
presença e a disponibilidade são importantes para os simples e singelos gestos da
criança querendo se comunicar. Ela é um corpo em expansão, um corpo que aprende
com os adultos com as quais convivem e com o mundo ao seu redor. Apresentar
linguagens artísticas, tanto as narrativas, orais e escritas, quanto a arte, é proporcionar
encontros com as manifestações culturais, estimulando o desenvolvimento de seu
próprio ser. Nas palavras de Parra:
Os bebês têm necessidades psíquicas que devemos alimentar; da
mesma maneira que se necessita do alimento natural para crescer, é
necessário também um alimento para crescer psiquicamente. Essa é
a função da leitura na primeira infância (PARRA, 2011).

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Estar como educadora, propondo e vivenciando estes processos, é


aprender os tempos de escuta e me permitir um outro ritmo de estar com a criança.
Esta troca de conhecimento é a base da convivência tão importante para o trabalho
com a primeira infância.

Oficina realizada dia 27/11/2016. Foto: Gabriela Feltre.

Referências

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Actas do I Congresso Internacional Arte, Ilustración y Cultura Visual en
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[online], Junho de 2012. Disponível em:
<http://www.revistaemilia.com.br/mostra.php?id=220>. Acesso em: 15/01/2015.

HOLM, Anna Marie. Baby-arte: os primeiros passos com a arte. São Paulo: Editora
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REYES, Yolanda. A casa imaginária: leitura e literatura na primeira infância. São


Paulo: Global, 2010.

ROMEU, Gabriela. Evélio Cabrejo-Parra: Música literária na primeira infância. Revista


Emília [online], Setembro de 2011. Disponível em: <http://revistaemilia.com.br/evelio-
cabrejo-parra/>. Acesso em: 10/08/2017.

SILVEIRA, Paulo. A definição do livro-objeto. In: DERDYK, Edith. Entre ser um e ser
mil: o objeto livro e suas poéticas. São Paulo: Editora Senac, 2013.

VIGOSTKI, Lev Semenovitch. Imaginação e criatividade na infância. São Paulo:


Editora WMF Martins Fontes, 2014.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

MEDIAÇÃO DO LIVRO SEM PALAVRAS COM AS CRIANÇAS:


perspectivas dos contadores de história em Londrina
Eixo Temático 2: Literatura Infantil para crianças pequenas

Lúcia Helena Sanaiotti, UEL/Departamento de Ciência da Informação, CNPq


Sueli Bortolin, UEL/ Departamento de Ciência da Informação

Introdução

Diante da importância da leitura no meio social, e de suas diversidades


em compreendê-la nos diferentes aspectos de sua constituição, ela deve ser
analisada de uma maneira mais ampla. Sendo assim este trabalho tem como
objetivo analisar a mediação dos livros sem palavras com crianças.
Na maioria das crianças de hoje observa-se o interesse pela leitura e
também pelos livros sem palavras, isto é, quando pintam suas imagens, que
mesmo já coloridas, recriam de sua maneira, criando suas histórias
mentalmente, em um mundo mágico cheio de fantasias, ou as transferindo para
o papel.
Nesse contexto acredita-se ser interessante levar até elas olivro sem
palavras. Porém, sabe-se que é um desafio fazer a mediação destes livros,
pois ainda que as crianças acostumadas com esse tipo de atividade
provavelmente reagem de maneira natural no momento de sua recepção,
apresentam formas diversificadas em suas observações e relatos, cabendo ao
mediador ajudá-las.
A leitura na vida da criança é um tema que há muito tempo se discute
devido à importância no seu desenvolvimento intelectual. Desde pequena ela
precisa e deve estar em contato com o livro, manuseá-lo, observar suas
ilustrações mesmo que ainda não consiga ler o escrito. Ouvir as histórias lidas
pelos nossos pais faz sentir emoções que a levam a imaginação. Histórias
331

contadas, ou lidas pelos pais, são eternas em sua memória e podem ser
passadas de geração em geração.
Nesse sentido, acredita-se que é importante a presença dos livros sem
palavras na vida das crianças, pois estimulam a imaginação do leitor, que ao
ter contato com pensamentos e vivências múltiplas tem, cada vez mais, a
estimulação de seu cognitivo.
Além disso, o livro sem palavras é uma opção valiosa que além de
estimular a memória contribui com outros processos psicológicos, como a
aprendizagem, pensamento, inteligência e atenção. Pensando a respeito da
importância da leitura na vida das crianças, e também na capacidade que todo
ser humano tem de fazer a sua história ou criá-la, é necessário, portanto,
fomentar o pensamento cognitivo.
Espera-se que a leitura e criatividade estejam presentes na vida da
criança. Isso porque ainda existem crianças que não têm acesso constante à
leitura, talvez por falta de estímulo ou diversidade perante ela. O trabalho aqui
proposto objetivou analisar a mediação dos livros sem palavras com crianças
na perspectiva dos contadores de história de Londrina, no Paraná.

Livro Sem Palavras

Os livros sem palavras trazem imagens em uma sequência que


captada pelos nossos olhos são levadas ao cérebro, transmitindo à visão aquilo
que está a nossa frente. Os leitores com pensamentos diversificados criam
histórias de maneiras diferentes. As imagens ali contidas podem não ter o
mesmo significado para cada leitor.
O primeiro livro sem palavras no Brasil teve como autor o escritor e
ilustrador Juarez Machado em 1969, intitulado ―Ida e volta‖, sendo publicado
em 1975 primeiramente numa coedição Holandesa/Alemã, e em seguida na
França, Holanda, Itália e finalmente no Brasil, em 1976 (LUÍS CAMARGO,
1995).
O tópico dos livros sem palavras é um tema que algumas pessoas
ainda desconhecem ou não sabem de sua importância para o desenvolvimento
humano. Sabe-se através de estudos que na pré-história os homens se
comunicavam por meio das imagens feitas por eles, mas com o passar do
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tempo surgiu a escrita. Hoje a todo o momento estamos diante delas, vivemos
cercados de imagens desde nosso nascimento. Muitas imagens não
necessitam da escrita por terem significados lógicos em nossa mente.
Camargo (1995, p. 36) afirma que: ―A ilustração expressa emoções
através da postura, gestos e expressões faciais das personagens e dos
próprios elementos plásticos, como linha, cor, espaço, luz, etc...‖. Esses livros
narram visualmente suas histórias de várias formas, podendo ter cores ou não,
com personagens reais ou imaginários, mas todos mexem com a imaginação e
criatividade do leitor. Seus olhos percorrem cada detalhe, tornando-os
expressivos em suas narrativas.
Camargo (1995, p. 52), abordando a composição de uma obra, afirma
que: ―O uso de técnicas diferentes enriquece o universo visual da criança,
estimula sua percepção, sua apreciação estética e sua própria criação
plástica‖. Percebe-se então a responsabilidade do ilustrador diante dos livros
sem palavras, isso porque são destinados não só à criança, mas a toda faixa
etária e cada um tem sua própria visão, cognição e perspectivas diante das
imagens.
Maria Helena Martins (1982, p. 19) ―[...] enfatiza que tudo quanto de
fato impressionou a nossa mente jamais é esquecido, mesmo que permaneça
muito tempo na obscuridade do inconsciente.‖.
Essa análise tem muito a ver com a geração da pesquisadora diante da
alfabetização através da famosa Cartilha Caminho Suave, um método
tradicional idealizado e criado pela educadora Branca Alves de Lima em 1948,
com imagens inesquecíveis, tanto que a própria autora o denominou
―alfabetização pela imagem‖. Cada letra do alfabeto está inserida em uma
imagem, o que torna difícil esquecê-la. Isso mostra a importância das imagens
na formação das palavras, no estímulo que causam diante da leitura e da
criatividade. Acredita-se que as imagens nesse caso tiveram poder significativo
na alfabetização em relação à construção das palavras. Porém, em 1995
Caminho Suave foi retirado do catálogo do Ministério da Educação, em favor
da alfabetização baseada no construtivismo. Ainda assim ela continua a ser
vendida numa quantidade de 10 mil exemplares por ano (CAMINHO..., 2015).
Livros sem palavras são aqueles exclusivamente relacionados à
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linguagem visual, mas isso não significa que só devem ser utilizados por
crianças que ainda não sabem ler. Vários são os conceitos referentes aos livros
sem palavras, conceitos que divergem em alguns aspectos, mas todos num só
sentido relatam a importância e diferença que esse gênero de livro faz na vida
do leitor ao utilizá-lo como leitura visual. O livro sem palavras tende a fazer com
que o leitor se torne mais criativo e analítico frente às imagens, o que favorece
um melhor desenvolvimento pessoal, social e intelectual diante da sociedade.
No conceito de Camargo (1995, p. 79), ele, ―[...] não é um mero livrinho para
crianças que não sabem ler.‖
Em concordância com Camargo, o livro sem palavras é bastante amplo
e flexível no que diz respeito à narrativa criada pelo leitor. Isso porque cada
um, independente da idade, tem ou teve a sua história de vida, seu meio e
cultura, interferindo no entendimento das imagens contidas nele.
Concorda-se com Camargo (1995, p. 83) quando afirma que: ―Nem
sempre a personagem escolhida é o protagonista, o que oferece oportunidade
para percebermos a história sob outros pontos de vista; várias histórias dentro
de uma mesma história.‖.
Isso significa que, ao visualizar as imagens contidas nos livros sem
palavras, os pensamentos do leitor são imediatamente estimulados passando a
sequenciar as imagens, narrando a partir delas uma história que está sendo
projetada em sua mente. Segundo Ana Paula Paiva (2014, p. 43): ―[...] as
imagens criam espaço na transmissão das ideias, assim como abrem espaço
para que cada um - em seus acréscimos – construa a imagem que vê.‖.
A construção de significados das imagens é individual: ocorre de
acordo com a diversidade de pensamentos, com relação à idade, sua
sensibilidade e estilo de vida, tudo muito natural. Ao folhear um livro sem
palavras, muitas vezes a criança se coloca no lugar dos personagens ou passa
a fazer parte daquele cenário tão encantador. Já o adulto, possivelmente, se
concentra mais na beleza das imagens, que podem ter cores ou não; enquanto
a criança provavelmente faz suas histórias, o adulto procura interpretar as
imagens sequenciais.

Mediação da Leitura Literária

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A leitura literária representa uma atividade de importância na vida das


pessoas, além da comunicação com o mundo real, o leitor pode também
estabelecer relação com um mundo fictício, imaginando situações prazerosas,
sentindo emoções que podem levá-lo a esquecer dos problemas do mundo
real, trazendo a tranquilidade tão necessária nos dias de hoje. Sabemos que a
mediação literária inicia-se no lar e continua na vida escolar da criança. No
entanto, segundo Eliane Lourdes da Silva Moro e Lizandra Brasil Estabel
(2012, p. 57-58):
Se o professor for leitor e gostar de ler, ele expressa aos seus
alunos a paixão e o prazer pela leitura, tornando-se um
mediador que possibilita o acesso aos diversos gêneros
literários e suportes de leitura. O professor que não lê e aplica
a leitura na sala de aula como um processo mecânico, através
da decodificação de sinais escritos, do ato de reprodução
textual sem interação e sem o elo entre o texto, o contexto e o
leitor, obtém como resultado a pseudoleitura, em que o aluno
passa a ser um consumidor passivo de mensagens
nãosignificativas, sendo considerado um analfabeto funcional,
o qual lê, mas não compreende o que leu.

No caso do livros sem palavras o efeito é o mesmo. O professor


precisa ser um bom mediador, ser ativo, saber como provocar na criança o
desejo de criar suas histórias a partir da interpretação das imagens que estão à
sua frente, proporcionando leveza e criatividade diante delas.
No caso dos bibliotecários Estabel e Moro (2005, p. 8), afirmam que o
bibliotecário deve estar: ―[...] entre a leitura, a informação e o leitor. Este
profissional, além de orientar o usuário no uso dos suportes informacionais,
deve ser um promotor de leitura e, além de tudo, um bibliotecário educador.‖
Observa-se nesse discurso a importância do bibliotecário como mediador e
orientador na escolha de textos e suportes diversificados.
Sueli Bortolin (2001, p. 26) reforça essa ideia quando ―[...] afirma que a
leitura literária pode propiciar ao indivíduo uma maior habilidade argumentativa;
ou seja, não precisa depender da ‗fala de outrem‘.‖ Este tipo de leitura pode ser
ainda um
[...] instrumento para a sensibilização da consciência, para a
expansão da capacidade e interesse de analisar o mundo, lidar
com a ciência, a cultura e o processo de trabalho, uma vez que
trata de um discurso que fala da vida, encarando-a sempre de

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modo global e complexo em sua ambigüidade e pluralidade de


faces (ELIANA YUNES; GLÓRIA PONDÉ, 1988, p. 10).

A leitura literária exige ação do leitor na prática cultural, levando-o a


interações, sendo composta de vários gêneros de literatura, criando estratégias
através de determinados tipos de leitores. Desta forma, Graça Paulino (2004)
discorre que:

[...] há que se definir a identidade da leitura literária através do


emprego da língua numa arte específica, que se costuma,
desde o latim, denominar literatura. Tal termo pode ter outros
empregos, com outros sentidos, mas a arte literária, objeto da
leitura literária, tem seu espaço bem marcado em nossa
sociedade. Como a leitura na escola é ensinada e aprendida de
forma ligada a diversos discursos e gêneros textuais,
especificidades da leitura literária convivem com as de outros
tipos de leitura, como a científica, a filosófica, a informativa.
Essas leituras, embora diversas e requerendo estratégias
diferentes dos leitores, têm pontos em comum, que podem ser
trabalhados por professores e alunos. Leitura alguma sobrevive
bem como prática cultural, quando censurada ou tolhida por
autoridades do Estado, da família ou da escola.

Analisando estes discursos percebe-se a importância da leitura literária


em todos os sentidos, isto é, a literatura é necessária em todas as fases da
formação do indivíduo, desde que sua leitura seja feita com prazer e não como
obrigação. Deve-se deixar que o aluno escolha o tema, através de contos
infantis, e ir ampliando de acordo com a sua idade.
Bortolin (2010, p. 115) conceitua mediação literária como sendo ―a
interferência casual ou planejada visando a levar o leitor a ler literatura em
diferentes suportes e linguagens.‖.
Isso significa que essa mediação pode ocorrer de várias formas, não só
através de livros com palavras. O livro sem palavras é uma excelente opção,
pois estimula o potencial do leitor, dando-lhe liberdade de escolher a sua
história através de sua criatividade. Para Marisa Lajolo (1984, p. 43): ―É a
literatura porta de um mundo autônomo que, nascendo com ela, não se desfaz
na última página do livro, no último verso do poema, na última fala da
representação.‖.
A mediação da leitura literária deve ocorrer em qualquer idade, em

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diversos segmentos. O importante é que seja feita com emoção, refletindo cada
palavra, para que chegue até o outro de forma agradável. Esse tipo de
mediação pode fazer com que o ouvinte adquira o gosto pela leitura, auxiliando
no desenvolvimento intelectual, cultural diante da sociedade, quando poderá
exercer cada vez mais o papel de mediador.
Acredita-se assim como Aparecida de Almeida Silva (2009, p.121) que
a mediação se realiza quando há disposição do mediador em promover o
encontro do leitor com ―[...] um texto, um livro, um CD, um filme [...] de maneira
espontânea ou planejada como acontece em uma escola, uma biblioteca, uma
livraria ou outro espaço.‖ (SILVA, 2009, p.121).
Em se tratando de crianças, é importante que elas se sintam parte
integrante desse mundo de fantasia, ou seja, que compartilhem a emoção,
conhecimento e prazer com aqueles que estão ao seu redor. Elas serão
transportadas para o mundo dos personagens presentes na literatura
independente do suporte ou linguagem. Uma das formas de se mediar leitura
literária é por meio da contação de histórias ou hora do conto. Dessa forma,
Fanny Abramovich (2001, p. 16) afirma que para a formação do leitor começar
na tenra idade é fundamental: ―[...] ouvir muitas, muitas histórias... Escutá-las é
o início da aprendizagem para um leitor, e ser leitor é ter um caminho
absolutamente infinito de descoberta e de compreensão do mundo...‖.
É nesse momento que as crianças passam a se interessar pelos livros
infantis com histórias que tanto encantam, trazendo ao seu mundo sonhos que
se misturam com a realidade. No caso de livros sem palavras, o leitor de
qualquer faixa etária cumpre o papel de mediador e narrador para si mesmo,
podendo assim criar e transferir para o papel a sua história literária, que
dependendo do seu pensamento cognitivo pode ser de diversas formas:
poesia, história ou até mesmo uma canção.

Procedimentos Metodológicos

Nesta pesquisa foi utilizada inicialmente uma revisão bibliográfica, o


que de acordo com Marina de Andrade Marconi e Eva Maria Lakatos (2003, p.
158), ―[...] é um apanhado geral sobre os principais trabalhos já realizados,
revestidos de importância, por serem capazes de fornecer dados atuais e
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relevantes.‖. Teve-se como base a pesquisa exploratória de natureza


qualitativa.
Segundo Antônio Carlos Gil (2002, p. 41) a pesquisa exploratória
permite ―[...] maior familiaridade com o problema, com vistas a torná-lo mais
explícito ou a constituir hipóteses. Pode-se dizer que estas pesquisas têm
como objetivo principal o aprimoramento de idéias ou a descoberta de
intuições.‖
Pensando na imprescindibilidade da leitura na vida das crianças,
sentimos a necessidade de conhecer como ocorre a mediação de livros sem
palavras. Isto é, de conhecer a diversidade de metodologias adotadas pelos
referidos profissionais e se as mesmas podem levar a criança a ter maior
interesse diante da leitura.
No momento da escolha dos sujeitos para entrevista, utiliza-se a
técnica Bola de Neve ou Snowball, que ―[...] é uma técnica de amostragem que
utiliza cadeias de referência, uma espécie de rede.‖ (NELMA BALDIN; ELZIRA
M. MUNHOZ, 2011, p. 332). Os mesmos autores afirmam que a técnica propõe
―[...] que o passo subseqüente às indicações dos primeiros participantes no
estudo é solicitar, a esses indicados, informações acerca de outros membros
da população [...] para, só então sair a campo para também recrutá-los.‖
(BALDIN; MUNHOZ, 2011, p. 333). Essas pessoas são denominadas
―sementes‖. A primeira semente deste trabalho estava participando do Curso
de Especialização em Contação de Histórias e Literatura Infantil e Juvenil da
Faculdade de Ampére, que acontece em Londrina. Esta indicou outra
contadora de história e assim por diante, totalizando sete participantes.
É perceptível que cada contador de história entrevistado teve sua
preferência no momento da leitura. A pesquisadora levou as quatro obras
escaneadas e também impressas. Alguns optaram por manusear o livro, outros
fizeram a leitura digital. Alguns decidiram responder por escrito, outros
preferiram a gravação. A eles foi dada a liberdade visando preservar a
autenticidade.
Percebe-se também que as posturas e as técnicas dos entrevistados
variaram, possivelmente porque são oriundas de culturas, religiões e ideologias
diferentes; isto interfere na neutralidade e imparcialidade pessoal.
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Além disso, vale informar que o instrumento de coleta de dados foi a


questão gerativa de narrativa, em que segundo Uwe Flick (2004, p. 165) ―[...]
solicita-se ao informante que apresente, na forma de uma narrativa
improvisada, a história de uma área de interesse da qual o investigado tenha
participado [...].‖. Visto que na comunicação oral é muito fácil a perda de dados,
utilizou-se o gravador de um dispositivo móvel para registrar a resposta para a
seguinte questão:

A Coleção Bons Tempos39 tem um humor criativo e refinado. Por favor, relate
como você mediaria estas obras para o público leitor.

Antes de utilizar o instrumento definitivo aplicou-se o pré-teste,


com uma bibliotecária que atuou muitos anos em uma biblioteca infantil e
nesse espaço narrava histórias diariamente. Conforme as exigências da
pesquisa científica, todos os participantes, incluindo a bibliotecária do pré-teste,
receberam o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), o leram e
assinaram.

Análise dos Resultados

Participaram dessa investigação sete sujeitos, sendo eles


oriundos das área de: Biblioteconomia (1), Designer (1), Educação Artística (1),
Pedagogia (1), Letras (1), Psicologia (1) e Educação Física (1).
Após analisar o discurso dos participantes, observou-se
semelhanças e diferenças nas metodologias de mediação com os livros sem
palavras dos profissionais contadores de histórias da cidade de Londrina – PR.

39
O autor desta coleção é o paranaense Rogério Nunes Borges, que é designer, programador
visual, desenhista, publicitário e artista plástico. Escreveu mais de 50 livros para crianças e
ilustrou mais de 500. (ARTES..., 2017).
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Vale destacar que as suas falas foram preservadas na íntegra e aqui


apresentadas com destaque em itálico.
Assim, as aproximações percebidas foram: os sujeitos A e C
têm uma perspectiva mais pedagógica. Ambos de início se preocuparam com a
apresentação do livro e do autor. O sujeito A justifica: essas obras[...] por ser
de humor criativo e refinado o que me leva crer que apenas apresentá-las, sem
nenhum plano de exploração, será um desperdício. O que significa que
precisam ser planejadas e exploradas, para que aos poucos possam ser
ampliadas através dos comentários e discussões, sugerindo que se aplique
uma estratégia envolvendo o coletivo. Quanto ao sujeito C, trabalha com as
crianças em círculo e através de questionamentos com o coletivo, e relata: [...]
vou mostrando as páginas e vou questionando. Aqui a música e a interpretação
das histórias contadas também fazem parte da metodologia; isso visando o
enriquecimento e o estímulo, que é uma forma de explorar e ampliar a
criatividade da criança. O que os diferenciam é que enquanto o sujeito A
propõe uma estratégia que segue passo a passo para a mediação,
abrangendo: a) Apresentar as obras ―homeopaticamente‖. Ou seja, um por dia;
b) Usá-la como se fosse um ―curta‖. Um filme que passa antes do longa-
metragem.); c) Permitir a leitura coletiva mais livre. Sem nenhuma interferência
do professor; d) Encerrado este momento, cessado os comentários dos alunos,
o professor propõe a leitura de outra obra que contenha texto com palavras; e)
No quinto dia então, retomar as quatro obras. Discutir o que cada um entendeu,
identificar os elementos das ilustrações que demonstram ações, emoções e
sentimentos. E por fim conhecer o autor. O sujeito C já é mais flexível, e age
de acordo com as necessidades do momento. Mas tanto A como C possuem a
mesma finalidade, que é estimular o cognitivo.
Outra aproximação que se encontrou foi entre os sujeitos B e
F, pois ambos trabalham de forma ―lúdica‖. O sujeito B diz que: O conteúdo
dos livros trabalharia quadro a quadro, dessa forma a história seria contada
pelo próprio público presente, através da leitura e interpretação de cada um. O
que mostra uma maior liberdade de expressão para cada quadro interpretado.
Já o sujeito F, dizendo já ter trabalhado com estes livros, explica que:
Primeiramente apresentava a capa e a explorava: propondo que expusessem o
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que estavam vendo, se conheciam aqueles personagens, sobre o que


acreditavam que se tratava essa história. Nesse momento as crianças davam
seus palpites criando suas histórias, e em relação a isso a mediadora diz: [...]
algumas até se atreviam a antecipar o final da história. Percebemos que se
trata de uma metodologia mais descontraída e espontânea diante das
interpretações de cada um.

Em relação aos sujeitos E e G observou-se outra aproximação.


Os dois sujeitos trabalhariam o emocional da criança. Sendo que o sujeito E,
além de contadora de história é também psicóloga. Ela afirma que utilizaria os
livros sem palavras, especialmente a Coleções Bons Tempos, da seguinte
forma: Pensando no ambiente em que estou inserida, consultório psicológico,
os utilizaria como instrumento terapêutico, pois por meio da leitura consigo
trabalhar alguns conteúdos psicológicos que eu não esteja conseguindo
através de outros instrumentos. Acredita-se assim que diante destes livros as
crianças teriam uma maior descontração, levando-as a expor seus sentimentos
de formas espontâneas e diversificadas.
O sujeito G indica que antes de apresentar os livros proporia a
seguinte questão: [...] se já tiveram alguma experiência anterior com esse tipo
de literatura. Nesse caso seriam os livros sem palavras, ao que segundo ela:
Se a resposta fosse negativa diria que iríamos conhecer alguns livros
diferentes, que não possuem texto escrito, mas que também contam histórias.
Apresentando em seguida os livros e questionando as sequências de imagens
de cada livro, após fechá-lo passaria a estimular o emocional, perguntando
quais foram as impressões que tiveram dos livros. Sendo assim, as repostas
seriam diversas, tratando-se de sentimentos diversificados conforme a história.
Significando que a metodologia de ambos estaria mais relacionada com o bem
estar da criança, explorando imagens, conteúdos e sentimentos.
Quanto ao sujeito D estaria mais inserido aos princípios ético e
moral da criança. De início exploraria a relação da criança com o livro e diante
dele, e em seguida [...] perguntaria às crianças se elas costumavam pegar
livros, se visitavam a biblioteca, se sabem como é o empréstimo de livros,
saber a experiência que tiveram antes, para enriquecer e depois começar a
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perguntar se costumavam a pegar muitos livros (este tipo de coisa). Em


seguida apresentaria o livro para que contassem suas histórias. A cada livro
apresentado discutia-se a relação da criança com a história e as supostas
ações diante dos acontecimentos observados no livro, mostrando-lhes que
mesmo em situações do Livro Terror no Galinheiro que mostra que a galinha
não terá saída e será devorada pela raposa.
Como disse a mediadora, se pensarmos um pouquinho nas
reações das pessoas diante de algumas situações inesperadas, assim como no
caso da galinha que encontrou uma solução, elas podem encontrar uma saída
para os problemas ou dificuldades. Concorda-se assim com a mediadora, que
este tipo de livro pode ir muito além da leitura e da história. Com eles podemos
aprender a ter diferentes ideias e ações, que podem consolar, explicar e fazer
com que as crianças possam ter outros pontos de vista em relação ao mundo e
suas vivências, aprendendo a se relacionar melhor com as dificuldades, sem
medos e traumas. Assim, diz a mediadora: [...] são formas da gente ajudar a
criança a viver a vida, a ver com mais amplitude as coisas e trazer um pouco
mais de leveza também pra vida que já é bem dura.
Diante das mediações aqui relatadas, observou-se que quase
todos os entrevistados se preocuparam também com a apresentação do livro
em si, como nome do autor, ilustrador e capa. Ficou evidente que todos eles se
preocupam também com o relacionamento da criança diante dos livros,
provocando com suas mediações um trabalho exploratório e investigativo em
relação a sentimentos e cognição.

Considerações Finais

O trabalho aqui apresentado permitiu à pesquisadora identificar


as formas de mediação realizadas pelos contadores de história da cidade de
Londrina utilizando os livros sem palavras, em especial através da Coleção
Bons Tempos.
A utilização da técnica bola de neve ou snowball para as
entrevistas permitiu alcançar o objetivo proposto, que foi analisar a mediação
dos livros sem palavras com crianças. Foi eficaz, porém o limite de tempo para
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a investigação restringiu o número de participantes, que poderia ser maior, e


consequentemente, a identificação de outros modos de mediação.
No entanto, a formação diversificada foi um aspecto positivo,
visto que as mediações relatadas demonstraram que elas estão sendo
aplicadas de diferentes formas, mas sempre com o intuito de tornar a leitura
das crianças enriquecedora. É possível avaliar que todas propostas provocam
nas crianças um maior desenvolvimento em vários aspectos.
Constatou-se que existem na comunidade londrinense bons
mediadores de leitura e que eles desempenham sua função com muita
dedicação. Possibilitam assim à criança uma maior desenvoltura, pois lhe é
dada liberdade de expressão e condições para um maior desenvolvimento
intelectual e social, o que permite concluir a importância dos mediadores.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

O LIVRO NAS MÃOS DOS BEBÊS:

TOCAR, CONTER, ABRIR, FOLHEAR, LER, PRESERVAR,


FECHAR, GUARDAR...

Cristina Maria Rosa, Universidade Federal de Pelotas, Literatura Infantil para


crianças pequenas.

O LIVRO NAS MÃOS DOS BEBÊS:


TOCAR, CONTER, ABRIR, FOLHEAR, LER, PRESERVAR, FECHAR, GUARDAR...

Cristina Maria Rosa, Universidade Federal de Pelotas, Literatura Infantil para


crianças pequenas.

Considerações Iniciais

A premência da alfabetização literária – processo deliberado, frequente e


qualificado de apresentação da leitura, seus atributos e ritos à primeiríssima infância –
justifica-se pela certeza de que essa é uma habilidade referencial à vida dos humanos
em sociedade, qualifica o processo de aquisição da linguagem oral e insere as
crianças pequenas na cultura escrita.
Após contato com mães de recém-nascidos, construí um acervo com imagens
de rudimentos do comportamento leitor e, diante das evidências observadas, pude
repertoriar relações e revelar que os modos de ter, ler e se portar com impressos
diferem quando há omissão ou, o contrário, quando há planejamento das interações
entre o bebê e a literatura.
Como fonte teórica para o diálogo com as descobertas que realizo desde maio
de 2015, pensadores – Beatriz Cardoso (2014), Lígia Cademartori (2014), Ana Maria
Machado (2002), Graça Paulino (2014), Zilberman (2003) e Tzvetan Todorov (2010;
2012) – que atribuem à escola o poder e o dever de ―ensinar os alunos a amar a
literatura‖, essa ―parte tão essencial de nossa existência‖ (Todorov, 2010, p. 38).
345

Alfabetização Literária

Processo de apresentação da arte literária aos pequenos 40, a alfabetização


literária tem como pressuposto a atitude organizada, constante e qualificada e um
mediador – uma pessoa que "estende pontes entre os livros e os leitores" (Yolanda
Reyes, 2014), uma vez que gostar de ler ―não é um atributo genético‖ e o gosto
―precisa ser ensinado, produzido entre os seres humanos [...]‖ (Celso Antunes, 2013).
Na primeiríssima infância a criança ainda não lê sozinha e é no processo
deliberado de apresentação do livro e dos ritos do ler que ocorre a formação do leitor
literário. E o contato com a ―arte literária, objeto da leitura literária, tem seu espaço
bem marcado em nossa sociedade‖ (Paulino, 2014, p. 177). Para tal, é imperativa a
escolha criteriosa de livros e a integração dos bebês ao comportamento leitor, uma
vez que são inteligentes, competentes e possuem grande curiosidade e interesse em
conhecer. Nesse tempo – os primeiros meses da vida – a leitura deve ser um
investimento do adulto que ―vai dando sentido‖ às páginas com sua ―presença e sua
voz‖ (Reyes, 2014, p. 213).
Na cultura escrita, a literatura, ―por ser expressão máxima da arte de pensar e
escrever‖, é que oportuniza ―conhecer e refletir sobre o mundo e as pessoas, de forma
livre‖, favorecendo o ―desenvolvimento da crítica e da criação‖ (Elizabeth Serra, 2015).
De acordo com Machado (2002, p. 17), é uma ―pena e um desperdício‖ ignorar o
―imenso patrimônio‖ de ―obras valiosíssimas que vêm se acumulando pelos séculos‖.
Preponderante na primeira infância, a alfabetização literária é a atitude mais
impactante a ser fruída na escola e, para tal, a mediação literária – trabalho intencional
e qualificado do adulto – é insubstituível. De acordo com Cardoso (2014, p. 212), a
mediação literária ultrapassa a ―ação restrita de ler para que as crianças se relacionem
com livros‖. Ao escolher ―por que ler‖ e ―como ler‖, o mais experiente apresenta as
―várias dimensões‖ de um texto: sua ―materialidade gráfica‖, as ―escolhas textuais, os
personagens, o tipo de narrador, o vocabulário, os marcadores temporais‖, entre
outros tantos aspectos da escrita literária. Ao produzir ―consciência das propriedades
implícitas da linguagem‖, o mediar convida crianças ao ―universo letrado desde a
primeira infância‖ e oferta contato com a ―experiência humana‖, a ―realidade que a
literatura aspira compreender‖, nas palavras de Todorov (2012, p.77).
O consenso teórico – a arte literária é um legado humano que deve ser
partilhado com os pequenos – encontrado em Cademartori (2014), Cardoso (2014),

40
De acordo com Zilberman (2003, p. 26), a literatura infantil ―atinge o estatuto de arte literária‖ quando
apresenta aos leitores,―textos de valor artístico‖ e profunda ―qualidade estética‖ e ―não é porque estes
ainda não alcançaram o status de adultos que merecem uma produção literária menor‖.
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Machado (2002), Paulino (2014), Reyes (2014), Todorov (2010) e Zilberman (2005),
entre outros, se explicita, também, entre especialistas que redigiram a Base Nacional
Comum Curricular41. Para eles, ouvir a leitura de textos pelo professor ―é uma das
possibilidades mais ricas de desenvolvimento da oralidade‖. No excerto do documento,
o valor do livro e seus ritos:

Sobretudo a presença da literatura infantil na Educação Infantil


introduz a criança na escrita: além do desenvolvimento do
gosto pela leitura, do estímulo à imaginação e da ampliação do
conhecimento de mundo, a leitura de histórias, contos, fábulas,
poemas e cordéis, entre outros, realizada pelo professor, (...),
propicia a familiaridade com livros, com diferentes gêneros
literários, a diferenciação entre ilustrações e escrita, a
aprendizagem da direção da escrita e as formas corretas de
manipulação de livros. Nesse convívio com textos escritos, as
crianças vão construindo hipóteses sobre a escrita que se
revelam, inicialmente, em rabiscos e garatujas e, à medida que
vão conhecendo letras, em escritas espontâneas, não
convencionais, mas já indicativas da compreensão da escrita
como representação da oralidade (MEC: BNCC, 2017, p. 37-
38).

Nesse processo – o da audição de parte de nossa cultura – há incentivo ―à


escuta atenta‖, a possibilidade de explicitação de ―questionamentos‖, o ―convívio com
novas palavras e novas estruturas sintáticas‖. No documento, os autores ressaltam
que a leitura feita por um adulto a um pequeno é uma ―alternativa para introduzir a
criança no universo da escrita‖.

A primeiríssima infância

Composta por bebês recém-nascidos até que completem trinta e seis meses, o
que caracteriza a primeiríssima infância é a necessidade de cuidados – alimentação,
saúde e segurança – sem os quais os pequenos não sobrevivem. No decorrer desse
tempo, os bebês precisam aprender a pensar, falar e andar, as três maiores
habilidades da espécie.
Ao ouvir e perceber as ações e reações dos adultos aos seus primeiros sinais
de comunicação, a criança é apresentada ao processo mais bem-acabado de
adaptação: o pensamento e a linguagem. Capacidade ―cognitiva exclusiva da espécie
humana‖ que a utiliza para ―representar e expressar simbolicamente sua experiência

41 A BNCC, em sua 3ª versão, está na pauta do CNE. Estabelece conteúdos e competências essenciais
para a Educação Básica e, ao ser homologada, será referência obrigatória na elaboração dos currículos
de escolas no país. Fonte: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/
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de vida‖, a linguagem oportuniza, também, ―adquirir, processar, produzir e transmitir


conhecimento‖, de acordo com Bagno (2014, p. 192). Nesse transcurso, os
experientes da espécie funcionam como espelho. É o adulto – mãe, professora,
pediatra – que tem a chave de acesso ao conhecimento (o que é falar/o que é calar),
do tempo (quando falar/quando calar), do espaço (onde falar/calar) e causalidade (por
que e para que falar/calar).
No processo de alfabetizar literariamente na primeiríssima infância, o ponto
crucial é a oferta, ao bebê, do livro e seus atributos – linguagem, cor, formato, forma
de escrita, ilustrações, gênero – através da fruição de ritos que caracterizam a leitura
como observar, tocar, conter, abrir, folhear, ler, preservar, fechar, guardar. O processo
tem prosseguimento quando, aos primeiros mediadores, se somam os demais:
bibliotecários, livreiros e diversos adultos que acompanham a leitura das crianças, até
torná-las integradas aos processos de letramento.
O conceito de infância e de literatura, no entanto, é crucial neste momento.
Conceitos instáveis, que variam em diferentes épocas e culturas, criança e infância
nem sempre foram protagonistas da produção livreira e esta, raras vezes, foi
considerada ―arte literária‖. Em busca de um conceito42, Peter Hunt (2010) apresenta
um ―estado da arte‖ na obra Crítica, Teoria e Literatura Infantil, comprometendo-se a
pensar sobre a infância e os livros para ela:

Em suma, a infância não é hoje (se é que alguma vez foi) um


conceito estável. Por conseguinte, não se pode esperar que a
literatura definida por ela seja. Assim, devemos ser muito
cautelosos acerca do descompasso entre as interpretações de
um livro feitas quando este é publicado e as interpretações
realizadas em outros períodos, com contextos sociais
diferentes (HUNT, 2010, p. 94-95).

Se a literatura infantil ou o livro para crianças pode ser definido a partir do


―leitor implícito‖ – um ―leitor em formação e com vivências limitadas por força da idade‖
(CADERMATORI, 2014, p. 199) – como apresentar a arte literária aos pequenos?

Objetivos e procedimentos da investigação

42
Nas palavras de Hunt (2010, p. 96): ―A literatura infantil, por inquietante que seja, pode ser definida
como: livros lidos por; especialmente adequados para; ou especialmente satisfatórios para membros do
grupo hoje definido como crianças‖. Esse modo de pensar possibilita agregar a ideia de que livros infantis
seriam apenas os ―essencialmente contemporâneos‖ uma vez que os ―conceitos de infância mudam tão
depressa‖ que um livro ―envelheceria‖ junto com a geração para a qual foi criado.
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A curiosidade que deu origem à pesquisa foi saber se e como crianças


pequenas se relacionam com o livro quando não há interferência do adulto. Para tal,
engendrei modos de evidenciar o processo de aquisição do gostar de ler e, ao
observar comportamentos espontâneos de bebês com o livro, artefato mais importante
da cultura escrita no Século XX, percebi-os reveladores de diferenciadas noções –
adultas – de interação, livro, literatura e inteligência infantil. Neste momento, convenci-
me da premência de um grupo de argumentos e procedimentos para sustentar ações
destinadas a tornar os pequenos, herdeiros da arte de gostar de ler.
Os procedimentos metodológicos partiram do contato com uma futura mãe e,
logo que os primeiros resultados foram sendo publicizados, outras se interessaram,
dirigindo meu olhar para um grupo maior e mais plural de bebês e seus livros. O que
buscava observar e registrar? Os rudimentos do comportamento leitor, ou seja, as
primeiras ações e noções do bebê no trato com o livro. Ele observa? Toca, pega,
lambe, vira, põe na boca, amassa, descarta? E as primeiras percepções, como se
manifestam? Ele escuta, balbucia, folheia, aponta, escolhe, prefere, devolve, guarda?
É raro, em pesquisa de cunho qualitativo e, especialmente nesse caso, partir
do zero ou observar uma criança que nunca viu, tocou, manipulou um livro, pois
muitas das práticas de uso e fruição estão disseminadas. Sorte de principiante? Entre
os dezesseis bebês acompanhados, três foram iniciados na arte do ler quando do
primeiro contato com a investigação. Assim, nomeei o processo: alfabetização literária.
A partir das primeiras evidências imagéticas produzidas, pude elencar um rol
de atitudes espontâneas – apresentadas por bebês com pouca ou nenhuma intimidade
com o artefato cultural – e atitudes adquiridas, demonstradas através de repertório
literário, ritos que caracterizam a leitura e predileções, confirmadas pela presença de
acervos, modos e tempos de contato com a leitura, especialmente em casa.

Ritos da investigação

A elaboração de um termo de consentimento livre e esclarecido,assinado pelos


responsáveis, foi o primeiro procedimento na investigação. O segundo, a invenção de
um roteiro imagético para observar o bebê manipular espontaneamente o livro e como
a mãe o oferece a ele. Complementado com a imagem do bebê no colo da
pesquisadora que lhe apresenta o livro, a última permanência intenciona registrar um
modelo de mediação literária além de materializar minha presença na investigação,
compartilhando um importante aspecto da metodologia: contato direto entre

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pesquisador e pesquisado, consentimento e estabelecimento de relações de


confiança.
As imagens selecionadas a partir do roteiro imagético deram início ao diário de
campo, complementado com apontamentos sobre a biografia do bebê, fotos, filmes e
informações enviadas por familiares. Uma entrevista com as mães – mais um dos
procedimentos adotados – foi realizada em setembro de 2017 por meio digital. Nela, a
compilação do repertório oral, musical e literário do bebê, vínculo com a escola, acervo
atitudinal43 e conhecimento de mídias. Complementam o ciclo de produção de saberes
a relação e análise das informações, a produção escrita e a comunicação de
resultados em eventos.
Pesquisa em andamento – a primeira bebê inserida completará três anos em
maio de 2018 – os resultados são parciais e temporários. No entanto, a adoção de
práticas de acesso ao livro e fruição da arte literária entre os familiares dos bebês
após o primeiro contato foi observável. Diante da expertise demonstrada pela
pesquisadora na apresentação do livro aos bebês, as mães e avós,
preponderantemente, lançaram-se na busca por momentos de leitura com seus
pequenos, não raro investindo-os de poder ao ―ler para‖: os irmãos, a avó, uma visita.
O envio de imagens à pesquisadora data e confirma essas práticas.

As crianças da pesquisa

Desde maio de 2015 acompanho Júlia, a bebê que representa o marco inicial
da pesquisa44. Para ela, foi pensado um roteiro de apresentação do livro e da leitura,
com indicações do que, quando e como ler, além de freqüência e protagonismo adulto
na oferta do artefato cultural, interação posterior e planejamento de futuro. Antes dela,
Joana – conhecida em maio de 2015, aos dois anos e sete meses – indicou
enfaticamente que bebês podem e devem ser considerados quando o tema é a
literatura para crianças. Apresentando grande desenvoltura diante de Maneco Caneco
Chapéu de Funil, de Luis Camargo, Joana evidenciou saberes a respeito do livro e

43
Intenciona saber se e quando o bebê conteve o livro sozinho, conseguiu folhear as páginas,ajudou a
sustentar o livro com as mãos e tentou folhear enquanto alguém lia para ele. Busca averiguar se balbucia
ou finge ler em voz alta enquanto folheia, se aponta o dedo para alguma imagem, pede para ler
novamente ou reclama quando a página é viradaou o livro é fechado.Escolhas e preferências – se o bebê
indica gostar mais de determinado livro ou música – também foi investigado.
44
Citados com aquiescência de seus responsáveis, todos os nomes dos bebês são verdadeiros. Inseridos
com suas respectivas datas de nascimento os demais são: Antônio (18/09/2016), Antônio C. (12/08/2017),
Bia (17/02/ 2016), Caio (27/02/2017), Davi (12/12/2014), Joaquim (15/03/2016), Lucas (18/03/2016),
Marco (18/05/2016), Maria Cecília (23/06/2014), Maria Clara (12/06/2014), Maria Clara A. (25/01/2017),
Nina (14/11/16), Pietra (11/09/2014) e Rafael (13/06/2016).
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seus atributos em 19 minutos de diálogo. Nessa interação, pude definir o recorte etário
para a investigação: bebês entre zero e três anos.
Depois de iniciada a coleta com a Júlia, outros quatorze bebês foram
incorporados à pesquisa, compondo um grupo de quinze famílias interlocutoras. Com
renda mensal entre um e vinte e dois salários mínimos, os adultos responsáveis pelos
bebês possuem no mínimo quatro e no máximo vinte e um anos de escolaridade. As
diversidades econômicas (trabalho e renda) e culturais (formação e práticas de
letramento) observadas nessas famílias se fazem representar na quantidade,
qualidade e diversidade de livros disponibilizados às crianças, frequência, tempo e
forma das interações e vínculo ou não com a escola infantil. Entre os bebês, apenas
dois realizaram seu primeiro contato com o livro durante a pesquisa: Bia, aos cinco
meses e Rafael, aos três meses. E, por essa peculiaridade, elegi os dois casos e os
descrevo desde então até setembro de 2017, para ilustrar a pesquisa.

Bia e sua mãe: novas leitoras

Bia nasceu em 17 de fevereiro de 2016. Filha de pais bem jovens – na época,


a mãe tinha dezenove e o pai dezoito anos – encontrei-a, aos quatro meses, em um
salão de beleza no colo de uma das trabalhadoras. Ao lado dela, um revisteiro repleto.
Ofereci a elas uma revista e solicitei que a senhora a folheasse para a Bia. As reações
diante da revista – curiosidade intensa, vontade de pegar a ponto de cravar as
mãozinhas nos braços de quem a mantinha no colo e agitação das perninhas –
impulsionaram-me a consultar a mãe sobre a presença de impressos na vida da Bia:
―Nunca li para ela, ela nunca viu, nunca pegou um livro‖, disse a mãe. A seguir, com
sua aquiescência, capturei imagens da menininha, explicitei os objetivos da
investigação e combinei uma visita a sua casa. Informei, também, que levaria Maneco
Caneco Chapéu de funil, de Luis Camargo, para o acervo que ainda não existia.
Bia me esperava no colo da mãe. Depois, no sofá da sala, demonstrou não
mais depender de um adulto para manter-se sentada e manipular o livro que lhe
presenteei. Ao recebê-lo, movimentando-se com muita alegria, bateu nele com as
duas mãos, como em um tambor. Instada a interagir com o livro, a pensar sobre o que
era aquele objeto, tateou até conseguir segurá-lo e logo buscou uma face menor – um
cantinho – e levou-o à boca.
Em busca da segunda imagem para o banco de permanências da pesquisa,
posicionamos a Bia no colo da mãe, que intentou abrir o livro e folheá-lo a sua frente,

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Bia buscava tocá-lo, agarrá-lo e colocá-lo na boca. Amassou-o, nessa tentativa. A


partir disso, a mãe manteve a atitude de tentar ler e folhear, afastando-o dela a cada
vez que o ―risco‖ de amassar e por na boca, se reapresentava. Em meu colo e sendo
fotografada pela mãe da menina, logo depois, as primeiras interações da Bia com os
modos de portar, folhear, observar, ouvir, sorver, fruir o livro. Nas imagens ela não
mais tenta levar o livro à boca: observa a leitora, escuta sua voz, ajuda a sustentar o
livro com uma das mãos. E focaliza a capa e personagens, o movimento das páginas
sendo folheadas. Os bracinhos se alongam para pegar o livro, as mãozinhas o tocam
e um dedinho se destaca dos demais, apontando pela primeira vez. Nesse dia,
reflexões acerca do ocorrido indicaram a preponderância do papel do mediador.
Às vésperas de completar um ano, em mais um contato de pesquisa, Bia
indicou ter se apropriado de outros dois livros – Auau e Bailarinas e Fadas
Encantadas, sendo este o preferido, segundo a mãe. Encontrei-a caminhando e
lidando com muita desenvoltura com ritos da leitura. Nesse dia, levei para ela Lulu, de
Fabrício Carpinejar e, durante a coleta de imagens, apresentou-se como uma leitora:
observou, conteve, abriu, folheou o livro quando sozinha; ajudou a folhear, apontou
detalhes e ajudou a fechar, quando no colo da mãe; ouviu, observou-me lendo,
apontou, indicou imagens quando perguntada, observou detalhes, fechou e abriu
várias vezes o livro, quando no meu colo. Depois, Bia apresentou-me seus livros,
escolhendo um deles para ―ler‖ para sua mãe. Nesse dia, compreendi a relevância e a
abrangência do trabalho de formação do adulto que educa o bebê.
Em setembro de 2017 – quando Bia tinha um ano e sete meses – seu
repertório oral compreensível era composto por trinta e cinco palavras 45, duas delas –
auau e fô (flor) – advindas dos livros, de acordo com a mãe, que anunciou tentativas
de ―falar qualquer palavra que acha interessante‖, conseguindo, quase sempre, emitir
apenas ―a última ou a primeira sílaba‖. Apresentada ao celular com poucos meses, ela
gosta e pede para usar e, quando o encontra, ―começa a dançar‖ e entrega-o à mãe
para que esta selecione ―desenhos de música‖. Um pouco antes de setembro,
―começou a ver desenhos sem música‖ e só assiste TV ―quando toca alguma música‖.
A Bia é cuidada pela mãe que sempre gostou muito de ler e tem vários livros.
Com o nascimento da menina e a decisão de cuidá-la – a bebê não frequenta escola
infantil –, a mãe viu escassear o tempo que dedicava à leitura: ―Agora, com a Bia, fica

45
Na entrevista realizada em setembro de 2017, a mãe indicou trinta e cinco palavras integrantes do
repertório oral da filha: com um ano e seis meses Bia fala e é compreendida quando diz papai, meme
(mamãe), vovó, vovô, tatassi (tia tati), tia, sai, achou, aqui, mais, pabô (acabou), gol/ba (bola), auau
(cachorro), cocó (galinha), cocô, xixi, giz, nhá (desenhar),tetê (leite), bubu (bico), mão, fô (flor), fô (folha),
rua, nenê, três, seis,papá (comida), mê (comer), fão (tufão, o cachorro da bisa), lua, tê (estrela), me (meu)
e mamão.
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mais difícil ler um livro‖. Com ―tempo disponível para ler com ela‖, pois, atualmente,
não estuda nem trabalha, a mãe disse que ―sempre que ela pede‖, lê para a pequena
―os livros dela‖. Já o pai ―não gosta muito de leituras, mas, quando Bia pede, ele lê
para ela‖.
Na sala da casa há um móvel onde ficam disponíveis ―os livros na altura dela,
para que possa pegar e ler quando quiser‖. De acordo com a mãe, a menina ―pega o
livro sozinha, folheia as páginas e, se são muito finas, pega várias juntas‖. Outra
observação da mãe é que Bia ―aponta e fala nome dos elementos que conhece‖ no
livro. Além disso, ―pede para ler novamente e reclama quando acaba‖, abrindo e
―lendo‖ várias vezes o mesmo.
Na interação ocorrida em 14 de setembro, presenteei Bia com Assim Assado,
um livro de Eva Furnari para leitores iniciantes. A desenvoltura da bebê – com apenas
dezenove meses de vida – é impressionante: contém o livro, abre e fecha, folheia e
observa, aponta personagens, encontra detalhes, ouve com atenção a leitura, ri e se
diverte com os incríveis personagens.
A evidência mais marcante do traquejo de Bia com o artefato, porém, ocorreu
quando, em meu colo, foi convidada a mostrar à mãe, afastada uns três metros e nos
fotografando, uma das personagens do livro. Ela não teve dúvidas: sozinha, inverteu o
livro e apresentou o miolo à mãe. Depois, para confirmar que acertara, mantendo-o
aberto na direção da mãe, espiou sobre o meio do livro.
Nesse dia também, Bia usufruiu, em um intervalo de 25 minutos, de quatro
modos de ler seu novo livro: sozinha, tirou-o da embalagem, sorriu ao descobrir que
era um livro, explorou sua capa e consistência e logo folheou aleatoriamente suas
páginas. O segundo modo de ler foi lado a lado com a mãe, ambas sentadas no sofá
da casa. Ela abriu o livro e folheou-o fazendo algumas observações a respeito das
imagens e perguntando à Bia se estava observando e gostando. Em meu colo, para o
qual veio sem nenhuma resistência, Bia posicionou-se para ouvir. Recolheu os
bracinhos e se aninhou para escutar atentamente a leitura do texto, escrito em frases
curtas e rimadas. Comigo, pode observar e comparar a aparência dos personagens,
em situações engraçadas e descritos a cada duas páginas. Ao final, ela e a mãe,
juntas, procuraram e reencontraram personagens que Bia considerou mais
interessantes: o leão escabelado, o sapo verde e sua namorada e a velhota nariguda.

Rafael, a mãe e a irmãzinha: leitores

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Rafael nasceu em 13 de junho de 2016 e foi apresentado ao livro literário em


outubro, uns dias antes de completar quatro meses, quando do primeiro contato com a
pesquisadora. Na ocasião, ele surpreendeu a todos, pois prestou muita atenção ao
que lhe era mostrado nos livros escolhidos nas estantes da livraria em que ocorreu a
interação. Sentado no colo da mãe e depois, no colo da pesquisadora, pois ainda não
se mantinha sozinho, indicou interesse, capacidade de visualizar e tentou tocar e
segurar os livros durante os minutos em que foi exposto aos dois livros. Um deles, em
material resistente, cartonado, possuía uma cavidade atravessando as páginas o que
possibilitou que o bebê o segurasse com a mãozinha esquerda. Era sua primeira
experiência tocando e segurando a página de um livro. Em várias das imagens
produzidas esse dia, suas mãos estão sobre o livro e o pequeno saiu do encontro
―balbuciando‖, informou a mãe.
Nos primeiros dias de novembro, a mãe enviou fotos e um pequeno filme em
que Rafael está sendo apresentado a Assim Assado, de Eva Furnari. No colo da mãe,
parece querer dar ―um mergulho‖ nas imagens, e gesticula intensamente, com braços
e pernas em busca de um contato com as páginas. Uma ou duas vezes, tenta
aproximar o livro da boca, que está aberta, esperando. Tenta caçar as páginas, com
golpes de mãos e, nessas ocasiões, saliva e passa a língua pelos lábios. Contido pela
mãe que o aninha em seus braços, afasta um pouquinho o livro e permanece lendo,
ele mexe os bracinhos tentando alcançar, tatear o livro. Com um movimento certeiro,
insere uma das mãos entre páginas iniciais e consegue folhear um grupo delas,
fazendo a mãe sorrir da proeza. Gabriela, a maninha, interfere, devolvendo as páginas
viradas e fazendo a mãe retomar a leitura interrompida. Com os dois braços livres,
Rafael acompanha as indicações da mãe que aponta com o dedo algumas imagens, e,
mais sossegado, toca as páginas, mas não amassa nem coloca na boca. As imagens
produzidas nessa interação entre o bebê, a mãe e a irmã – uma criança pequena que
se apresenta leitora experiente, neste pequeno filme – sugere que a leitura pode ser
usufruída por leitores de diferenciados graus.
Rafael é fotografado contendo um livro sozinho – em frente a si e sobre uma
superfície – nos primeiros dias de fevereiro. Inicialmente nas mãos da irmã – que lia
CHUÁÁÁ, da coleção Meu mundo de descobertas – o bebê se interessa e invade, com
os braços, o espaço entre os olhos da menina e o livro. Depois de pequena disputa, o
captura para si e o abre, a sua frente, com uma mão em cada página, no ar,
mostrando autonomia e desenvoltura. Depois, para observar as páginas, precisa
passar as mãos sobre as imagens. Então, coloca-o sobre o sofá no qual está sentado
e as toca, com as palmas. Ele tem apenas oito meses.
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Os pais – a mãe tem 34 e o pai 49 anos, ensino superior e ambos trabalham –


informaram dispor de tempo para ler com o bebê, pois estão ―diariamente em contato
com os livros, estudando‖. Rafael ―já tem sua biblioteca‖, e ―procura seus livros‖, disse
a mãe, pois estes ―estão ao seu alcance‖, propondo a leitura destes aos pais. Segundo
filho da família, o menino é convidado, eventualmente, a ler com e para a irmã, que
também tem sua biblioteca e ama ouvir histórias, ler e reler seu acervo. Juntos, os dois
partilham momentos de trocas, brincadeiras e carinhos e, em alguns casos, a leitura
ou os livros, são motivo para disputas.
Com um ano e dois meses, Rafael começou a frequentar a escola infantil. A
escolha se deu pela indicação de outros pais e por ser próxima da escola da irmã. A
mãe acessa o roteiro do que ocorre lá e pode acompanhá-lo por câmeras. Além de
cuidar dos bebês, a professora, uma vez por semana, lê para as crianças. Os pais
pretendem que ele aprenda idiomas, mas, atualmente, a escola não oferta.
Em setembro, após a pesquisa respondida pela mãe, descobrimos que Rafael
já sustenta livros e consegue folhear suas páginas. Ele balbucia ou finge ler em voz
alta enquanto folheia e, ―inclusive, lê para a irmã‖, que tem quatro anos. Quando a
mãe lê para ele, ajuda a sustentar o livro com as mãos e ―faz questão de dar ritmo à
leitura, folheando as páginas‖. Além disso, a mãe relatou que o pequeno ―aponta o
dedo para as imagens‖, ―pede para ler novamente‖ e ―reclama quando queremos
demorar mais na página e ele quer avançar‖. Disse que o bebê gosta de todos os
livros que tem, mas ―escolhe alguns, que entendo serem seus preferidos‖.
O repertório oral do pequeno Rafael é composto pelas palavras babá, auau e
tete (leite). Ele ainda não canta, ―mas adora música e gesticula para ouvir pintinho
amarelinho‖. Segundo os pais, Rafael é ―muito musical‖ e eles lhe ofertam um
repertório variado, no qual há Palavra Cantada, Tiquequê, Grupo Triii e Galinha
Pintadinha. Quando esses grupos são projetados na TV da sala, ―todos ouvem,
dançam, cantam‖. O bebê não canta junto, mas ―dança e gosta‖, em especial, de
―Pintinho Amarelinho‖.
Quanto aos eletrônicos, a mãe disse que foi ―inevitável‖ o contato, uma vez que
―ele nos vê com telefone e assiste à TV‖. No entanto, não usam ―o celular ou
computador para entretê-lo‖. Disse ainda, que Rafael não expressa interesse pelos
aparelhos e os pais não o incentivam a usar. Na TV, que fica ligada na sala, a
programação é ―exclusivamente infantil‖, mas ela não é usada como ―sossega
criança‖. Ele ―assiste alguns instantes os desenhos que mais gosta e logo sai a
brincar‖. A irmãzinha do bebê tem um Tablet e, nele, assiste desenhos e filmes no
Youtube. Rafael ainda não.
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Resultados de pesquisa

Na captura de imagens dos dezesseis bebês que estão sendo acompanhados


na pesquisa desde 2015, encontrei evidências de comportamento espontâneo – que
intitulei marco zero da pesquisa, quando da não presença do livro como artefato
cultural na primeiríssima infância – e múltiplas e interessantes demonstrações de
comportamento adquirido, os modos de se relacionar com os impressos que indicam
interferência de adultos com seus filhos ou netos.
Em maior quantidade e repleta de imagens incríveis de diferenciados modos de
ter, ler e fruir a arte literária em família, o comportamento adquirido indicou que sim, as
mãe e avós, preponderantemente, investem nos seus disponibilizando o capital
cultural que possuem acerca da leitura e literatura e, se orientadas, mudam o curso,
imediatamente.
Em apenas dois casos, tive o privilégio de conhecer e inserir bebês no gostar
de livros que me foi ensinado em menina. Parte dessa descoberta se deve à idade
cronológica dos bebês – três e quatros meses – e, parte, pelas concepções dos
adultos que os cercam, que imaginaram ser muito cedo para apresentá-los aos livros.
Priorizei, nesse artigo, os dois casos – a Bia e o Rafael – convencida de que descrevê-
los, seria um desafio e considerá-los, uma instigante descoberta. E o que pude
perceber?
Primeiro, a indistinção do artefato cultural de qualquer outro objeto: ao bater no
livro, tatear, buscar uma forma de pegá-lo e pô-lo na boca, experimentando seu sabor,
os dois bebês indicam não saber qual sua função na cultura escrita. Sem motricidade
fina, crianças na primeiríssima infância ainda não sabem folhear e, nas tentativas,
várias páginas ao mesmo tempo são enviadas para frente ou para trás. Ao pegar de
qualquer jeito, sacudir, virar, ver de trás para frente, bebês costumam avariar o
impresso, amassando, sujando e mesmo rasgando-o. Não raro, os pequenos
descartam esse objeto inadequado e sem gosto, abandonando-o entre os demais
brinquedos.
O comportamento do bebê se transforma apenas com a interferência de um
adulto: em ambos os casos, após a manipulação do livro com os filhos no colo é que
teve início o processo de aquisição de um rudimentar comportamento leitor. As
primeiras imagens capturadas após essa intervenção – em que aparecem tocando,
tentando folhear, ouvindo, observando, apontando – deram início, para a Bia e o
Rafael, mas, também para suas mães, de novas possibilidades. Nesses dias de
tempos e espaços para o livro, nasceram dois novos leitores em cada uma das casas:

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a Bia e sua mãe, o Rafael e a sua. Na nova condição – mediadoras – elas foram
preponderantes.
A mãe da Bia providenciou livros, um local para que a menina os acessasse
facilmente e leitura para ela e em voz alta, após a primeira coleta de dados, ocorrida
aos cinco meses. Bia aprendeu e demonstrou o ―investimento‖ escolhendo um livro
entre outros, sentando-se com autonomia, folheando as páginas e balbuciando como
leitora em frente à pesquisadora, já aos onze meses. Rafael, por sua vez, em um
crescendo desde os três meses quando foi apresentado ao livro em uma livraria,
indicou interesse, alegria e traquejo com os livros, sendo esses tão importantes e
reconhecidos em família que ele, mais de uma vez, disputou com a irmã sua posse e,
depois, indicou saber conter, folhear e inventou-se leitor. Os dois bebês contaram com
a família – as mães, predominantemente – para conhecer o livro, seu ritos e a arte
literária. É a primeira mediação, ―decisiva na relação que a criança irá estabelecer com
a literatura infantil‖ (Cadermatori, 2014, p. 199), pois cabe a ele ―escolher o livro,
promover sua leitura e conversar a respeito‖.
Ao observar os percursos dos dois bebês, pode-se traçar, com segurança, um
modo de inserir bebês ainda bem pequenos no trato com o livro e a leitura e perceber
que, apesar das diferenças – nesses casos profundas – na renda e escolaridade dos
pais, a presença de um tempo dos adultos para com seus bebês, de alguns livros e do
saber que crianças na primeiríssima infância são capazes, produz similitudes no aceso
e fruição à arte literária.
Entre os tópicos para pensar a partir dos resultados, o conceito de infância que
nós, adultos, disponibilizamos. Durante a pesquisa e posteriormente, ao comunicar
seus resultados, percebi que alguns pais, editores, professores, tios, avós, livreiros,
têm certeza que criança não pensa. Por isso, escolhem para eles livros de apertar,
morder, babar, lamber e amassar. Ou seja, escolhem um brinquedo e não um livro.
Diante dessas evidências e do que as crianças fazem com os artefatos que lhes são
oferecidos, pude concluir que o ―engano‖ é conceitual, ou seja, as certezas que
praticamos acerca da infância, da inteligência, da aquisição de saberes – neste caso
envolvendo o livro e o adulto – são resistentes e originam comportamentos e
desencadeiam atitudes que subvertem possibilidades de formação do leitor na
primeiríssima infância.
Ao observar bebês, livros e mães, percebi que estas e os demais familiares
que interagem com o intuito de educar crianças pequenas, ainda resistem em admitir
que qualquer criança, desde o nascimento, é inteligente e educável. Isso significa
saber que seu cérebro é plástico, que a quantidade de conexões cerebrais é infinita e
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que os seres humanos podem surpreender desde muito cedo. Assim, intervir o mais
cedo possível, apresentando o livro e as atitudes necessárias para conhecê-lo com
intimidade, é significativamente mais eficaz do que postergar a ação. Ler não é
lamber, cheirar, comer, amassar, rasgar plástico ou papel colorido. Ler é integrar a
humanidade, como um exemplar da espécie que se emociona: por palavras e pelo que
elas evocam.
Ao categorizar um repertório de informações sobre o livro, a leitura e a
mediação literária durante a pesquisa com os dezesseis pequenos, percebi que na
disponibilização do contato com obras há omissão cultural, ou seja, parte considerável
dos adultos não apresenta, não indica, não lê, não mostra como ler às crianças.
Alguns por ignorância, outros por subestimá-los. Observei que adultos ―misturam‖
livros entre brinquedos, sem discriminação, imaginando que a curiosidade é
educadora do gosto. Observei, também, nas famílias que pude conhecer e venho
acompanhando, planejamento nas interações entre o bebê e a literatura. Nesses
casos, o livro não é um brinquedo e, por isso, há modos de acessá-lo, abri-lo, folheá-
lo, preservá-lo, uma vez que representa a cultura escrita revelando informações
preciosas, sons e tramas, personagens e mistérios, palavras e encantamentos.
Entre os resultados, também, a reinvenção da pesquisadora, uma curiosa e
deliberada mediadora na arte de ensinar a gostar de ler. Ver o crescimento intelectual
dos bebês está sendo um emocionante encontro com a primeira infância do meu filho,
hoje um voraz leitor que, em pequeno, no meu colo, aprendeu a amar os livros.

Considerações Finais

O desconhecimento dos modos de ler assim como os rudimentos do


comportamento leitor de meninas e meninos bem pequenos podem ser evidenciados
desde os primeiros meses de vida. Desenvoltos no trato com o livro, os pequenos que
foram iniciados pela literatura, imitam adultos e se inventam leitores: ficam em pé e
tentam ler em voz alta para os demais, exigem silêncio, cruzam perninhas, escoram a
cabeça com as mãos. Quando o interlocutor os questiona, indicam cenas ou
personagens, nomeiam quantidades, revelam desfechos. Ao retirar livros de uma
estante, o recolocam, ao fim da leitura, anunciando cuidado e guarda. Ritos e modos
aprendidos de ter, ler e fruir a leitura.
Entre as descobertas, uma bem importante: contrariando pesquisas que
relacionam renda familiar e cultura letrada, pude perceber que não é a posse de
capital financeiro que define o trato com o livro e, sim, o conceito de infância, de
literatura e de educação que os maduros possuem e colocam em circulação no
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ambiente familiar e público. Esses saberes indicam e definem como, quando e com
que frequência o bebê entrará em contato com a fruição literária e com as demais
práticas de leitura existentes. Se, em longo prazo, as diferenças entre ter – livros,
interações, tempo e espaços adequados – e saber o sabor se expressarão mais
contundentemente, a pesquisa ainda não oferece dados para tal.
Relacionamentos afetuosos e estáveis são essenciais para o desenvolvimento
saudável e, no caso do livro e da leitura literária, a base para uma longa e feliz
convivência inicia no colo dos adultos que cercam a criança: são estes que selecionam
os livros que ouvirá, tocará, amará pela primeira vez. Ao experimentar linguagens,
sonoridades, imagens, o bebê é convidado a partilhar da cultura. Educado o gosto,
desejará repetir o experimento até tornar-se experiência: uma imprescindível viagem
para o mais profundo humano que há em nós.

Referências

ANTUNES, C. Mediadores de Leitura. Entrevistas. São Paulo: TV Cultura, 05/08/2013.


BAGNO, Marcos. Linguagem. Ceale: termos de alfabetização, leitura e escrita para
educadores. Belo Horizonte: UFMG/Faculdade de Educação, 2014.
CARDOSO, B. Mediação literária na Educação Infantil. Glossário Ceale: termos de
alfabetização, leitura e escrita para educadores. Belo Horizonte: UFMG/Faculdade de
Educação, 2014.
HUNT, P. Crítica, Teoria e Literatura Infantil. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
MACHADO, A. M. Como e por que ler os clássicos universais desde cedo. São Paulo:
Objetiva, 2002.
PAULINO, G. Leitura Literária. Glossário Ceale: termos de alfabetização, leitura e
escrita para educadores. Belo Horizonte: UFMG/Faculdade de Educação, 2014.
REYES, Y. Mediadores de leitura. Glossário Ceale: termos de alfabetização, leitura e
escrita para educadores. Belo Horizonte: UFMG/Faculdade de Educação, 2014.
ROSA, C. M. Alfabetização literária de bebês: olhar, escutar, folhear, ler. ANAIS do 7º
Seminário de Literatura Infantil e Juvenil. Florianópolis, 2016. Disponível em:
http://www.slij.com.br/7-SLIJ-2016-Anais.pdf
ROSA, C. M. Alfabetização Literária. Disponível em:
http://crisalfabetoaparte.blogspot.com.br/2015/06/alfabetizacao-literaria-o-que-e.html
ROSA, C. M. Rudimentos de um comportamento leitor. Disponível em:
http://crisalfabetoaparte.blogspot.com.br/2015/07/rudimentos-de-um-comportamento-
leitor.html
SERRA, Elizabeth. Literatura nas escolas públicas: conquista da Educação que não
deve ser interrompida. Carta. FNLIJ, 2015. Disponível em:
http://biblioo.cartacapital.com.br/fnlij-sai-em-defesa-do-programa-nacional-biblioteca-
na-escola/
SOUZA. R. J. Atos embrionários de leitura: estratégias para educação literária com
bebês. Projeto de Pesquisa. São Paulo: UESP, 2016.
TODOROV, T. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: Difel, 2012.
TODOROV, T. Literatura não é teoria, é paixão. Entrevista. São Paulo: Abril, 2010.
(Revista Bravo, fevereiro de 2010, p. 38-39).
ZILBERMAN. R. A literatura infantil na escola.São Paulo: Global, 2003.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

A UTILIZAÇÃO DA LITERATURA INFANTIL NA FORMAÇÃO DE


LEITORES NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Gilvane Reinke, Universidade Federal de Mato Grosso, Membro do Grupo


Alfale, Literatura Infantil para crianças pequenas

Silvia Cristina Fernandes Paiva, Universidade Federal de Mato Grosso,


Literatura Infantil para crianças pequenas

Considerações Iniciais

O presente trabalho pretende refletir sobre algumas práticas pedagógicas com


uso da Literatura Infantil em escolas municipais de Educação Infantil da rede municipal
de Primavera do Leste, Estado de Mato Grosso, buscando assim, compreender a
importância da literatura infantil no processo da formação do leitor e o uso de
metodologias adequadas para trabalhar com textos literários, considerando que as
obras literárias se apresentam como importantes materiais que devem ser priorizados
para desenvolver o gosto estético desde a Educação Infantil.
Atuando como professoras formadoras na Equipe de Formação da Secretaria
Municipal de Educação e Esportes em Primavera do Leste, buscamos por meio das
observações, registros de acompanhamento e de análises de planejamentos de
professoras participantes do grupo de estudos ofertado pela Equipe de Formação da
Secretaria Municipal de Educação e Esportes, analisar se as professoras da Educação
Infantil do município utilizam a literatura infantil no cotidiano das escolas com as
crianças e se as práticas pedagógicas contemplam experiências e aprendizagens
significativas com o uso da literatura infantil norteadas pelas interações e brincadeiras,
de acordo com as orientações das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Infantil, com os Indicadores de Qualidade para a Educação Infantil e com os
Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil a respeito da literatura
infantil para as crianças pequenas.
Para isso, foram analisados planejamentos e registros de acompanhamentos
de trinta e cinco professoras participantes do grupo de estudos ofertado pela Equipe
de Formação da Secretaria Municipal de Educação e Esportes que atuam em
dezesseis escolas de Educação Infantil com o objetivo de responder as seguintes
360

indagações: O que se aprende com a literatura na Educação Infantil? Como tem sido a
leitura literária na educação infantil? Como os professores vêm organizando a
mediação dos espaços com a literatura infantil?
Na tentativa de responder a estas questões, teceremos algumas considerações
sobre literatura infantil e infância e buscaremos identificar o espaço que o texto literário
ocupa nas Escolas Municipais de Educação Infantil em Primavera do Leste-MT.
Nesse sentido, refletiremos sobre o desenvolvimento da proposta com a
literatura infantil nas Escolas Municipais de Educação Infantil e discutiremos sobre a
importância da escolha adequada das histórias que são lidas para as crianças e das
conversas a partir da interação com os textos lidos. Sendo assim, as experiências aqui
relatadas chamam a atenção à disposição das crianças para interagirem com a
professora e seus pares, tendo as histórias como recurso simbólico.
Nos apoiaremos em alguns autores como Ana Carolina Perrusi Brandão e
Ester Calland de Sousa Rosa (2010); Luís Percival Britto (2005); Lygia Bojunga Nunes
(1990); Mikhail Bakhtin (1997); Renata Junqueira de Souza (2011); Ninfa Parreiras
(2012) e outros documentos nacionais oficiais que orientam a utilização da literatura
infantil na Educação Infantil.

Educação Infantil Municipal de Primavera do Leste: breve histórico

A partir dos dados apresentados na Política de Educação Infantil para o


Município de Primavera do Leste, Mato Grosso, faremos um breve histórico das
escolas municipais de Educação Infantil.

A Educação Infantil Municipal de Primavera do Leste surgiu através da


Secretaria Municipal de Assistência Social no ano de 1989 com o intuito da realização
de um trabalho voluntário e social para atender as mães desta cidade que precisavam
trabalhar para ajudar no sustento da família e não tinham onde deixar seus filhos.
Após análise sobre a realidade das mães do município que precisavam ajudar no
sustento da família, a prefeitura municipal começou a firmar convênios com entidades
filantrópicas na locação de prédios e mobiliários para atender a demanda, no início
desse processo esses prédios eram cedidos pela Igreja Católica e, posteriormente,
passaram a ser alugados.
Nesse contexto, a Secretaria Municipal de Assistência Social, fazia um trabalho
de ação e orientação com os funcionários e famílias atendendo as crianças somente
de dois a cinco anos de idade, garantindo atendimento básico de alimentação, higiene
e cuidado, seguindo uma perspectiva assistencialista.
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Devido ao aumento de crianças no município e com as dificuldades que as


famílias estavam enfrentando para que seus filhos pudessem ser acolhidos outras
creches com atendimento integral foram organizadas.
Os espaços físicos onde algumas Escolas Municipais de Educação Infantil
estão instaladas, até hoje, pertencem a Igreja Católica e outras foram construídas com
verbas federais no modelo pró-infância.
A constituição de 1988 estabelece que toda criança tem direito a educação,
assim a Educação passa a ser reconhecida como dever do estado e direito também
das crianças de zero a cinco anos e onze meses, sendo esse um marco legal para o
Brasil. As creches e pré-escolas deixam de ser apenas um direito das mães
trabalhadoras e passam a representar um direito das crianças. Esse direito é
confirmado posteriormente pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) de 1990
e, em seguida na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9.394/96).
Depois de pertencerem a tantas e diferentes áreas (ora trabalhista, ora previdenciária,
ora assistencialista, ora das ações das primeiras-damas), as creches e pré-escolas,
passam definitivamente para a responsabilidade da área educacional, como a primeira
etapa da Educação Básica.
Em Primavera do Leste, até 2004 as Escolas Municipais de Educação Infantil
eram chamadas de ―Creches‖ e pertenciam a Secretaria Municipal de Assistência
Social. Em 2005 estas passaram a pertencer à Secretaria Municipal de Educação e
Esporte e a partir do ano de 2007, através de decretos expedidos pelo prefeito em
exercício, as então creches passaram a ser chamadas de Escola Municipal de
Educação Infantil.
A aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) em 1996 definiu
que os municípios seriam responsáveis pela oferta da Educação Infantil, e passou a
exigir a formação mínima de nível médio para os professores os quais até 2007,
deveriam possuir licenciatura de nível superior.
No início do atendimento da Educação Infantil em Primavera do Leste as
crianças eram atendidas por professores com formação em graduação em qualquer
área de ensino ou nível médio em magistério, ao longo da história o quadro foi se
modificando para dois auxiliares por turma, posteriormente dois professores formados
em Pedagogia por turma de crianças. Atualmente o atendimento nas turmas de zero a
um ano, são dois professores, dois auxiliares educacionais e um estagiário. Nas
turmas de dois e três anos, acontece com dois professores e um auxiliar. Nas turmas
de período integral de quatro e cinco anos, dois professores e um auxiliar e em

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período parcial o atendimento é feito por um professor, considerando a quantidade de


crianças por profissional, conforme Resolução do Conselho Municipal de Educação.
No ano de 2007 a Secretaria Municipal de Educação e Esporte implantou o
material didático apostilado do Sistema Maxi de Ensino, para os alunos das turmas de
quatro e cinco anos, vindo a ser retirada no ano de 2013, pois a mesma estava sendo
utilizada como meio de alfabetizar de forma mecânica as crianças deixando de lado as
brincadeiras e interações, de acordo com as legislações não é considerado objetivo
desta etapa educacional.
A Educação Infantil municipal viveu e ainda vive um intenso processo de
revisão de concepções sobre a educação de crianças em seus espaços coletivos, de
seleção e fortalecimento de práticas pedagógicas mediadoras de aprendizagem e do
desenvolvimento das crianças.
No ano de 2009 as Escolas Municipais de Educação Infantil foram
contempladas com o programa do Governo Federal o PDDE (Programa Dinheiro
Direto na Escola), melhorando assim seus trabalhos com mais recursos.
Com o crescimento da população do município, a demanda reprimida foi
ficando cada vez maior no decorrer dos anos, havendo necessidade de
ampliação/reestruturação do atendimento, assim foram surgindo outras escolas e em
2014, foi construída a primeira escola no modelo proinfância no Município e 2016 foi
construída a segunda escola neste modelo. Atualmente, o município ainda possui uma
demanda reprimida e para atendê-la a Secretaria Municipal de Educação e Esporte
vem se organizando com aluguel de prédios e construções de novas escolas. O
município tem buscado a ampliação de vagas com a abertura de mais unidades
escolares.
Percebe-se que ao longo dos anos o atendimento a Educação Infantil do
Município de Primavera do Leste tem evoluído. Nesse sentido, a Secretaria Municipal
de Educação e Esportes tem trabalhado para ampliar ainda mais o atendimento na
Educação Infantil, buscando recursos federais, estaduais e municipais, objetivando
atender todas as crianças na faixa etária de zero até cinco anos e onze meses, sendo
o acesso à educação direito constitucional da criança.
Atualmente, o município de Primavera do Leste, Mato Grosso, possui seis
prédios alugados que pertencem a Igreja Católica, duas foram construídas com verbas
federais no modelo proinfância e oito com verbas próprias, num total de dezesseis
unidades escolares ofertando a etapa da Educação Infantil para crianças de seis
meses completos a cinco anos e onze meses, em período parcial e integral,

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coordenada e mantida pela Prefeitura Municipal através da Secretaria Municipal de


Educação e Esportes.

Literatura Infantil para as crianças pequenas nas escolas municipais de


Educação Infantil: observando experiências significativas

Alguns documentos do Ministério da Educação (MEC) como as Diretrizes


Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI) e os Referenciais
Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (RCNEI) contemplam a importância do
trabalho pedagógico com a literatura infantil desde a Educação Infantil. O documento:
Indicadores da Qualidade na Educação Infantil, produzido pelo MEC em 2009,
denotam esta importância quando propõe alguns indicadores da dimensão:
―Multiplicidade de experiências e linguagens‖, que se relacionam com este assunto.
São eles:
As professoras contam histórias, diariamente, para as crianças? As
professoras incentivam as crianças a manusear livros, revistas e
outros textos? As professoras criam oportunidades prazerosas para o
contato das crianças com a palavra escrita? As professoras
incentivam crianças maiores, individualmente ou em grupos, a contar
e recontar histórias e narrar situações? (BRASIL, 2009, p.41)

Considerando os indicadores de qualidade podemos perceber que


especialistas e formuladores de políticas na área da Educação Infantil concordam que
a utilização de literatura como um componente importante para a qualidade da
Educação Infantil.
O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI) aborda
que:
É importante que o professor saiba, ao ler uma história para as
crianças, que está trabalhando não só a leitura, mas também, a fala,
a escuta, e a escrita; ou, quando organiza uma atividade de percurso,
que está trabalhando tanto a percepção do espaço, como o equilíbrio
e a coordenação da criança. Esses conhecimentos ajudam o
professor a dirigir sua ação de forma mais consciente, ampliando as
suas possibilidades de trabalho. (BRASIL, 1998, v. 1, p. 53)

As práticas pedagógicas que compõem a proposta curricular da Educação


Infantil, propostas nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil
(DCNEI), devem ter como ―eixos norteadores as interações e a brincadeira e garantir
experiências que promovam o relacionamento e a interação das crianças com
diversificadas manifestações de música, artes plásticas e gráficas, cinema, fotografia,
dança, teatro, poesia e literatura‖. (BRASIL, 2010, p.26)

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A literatura desempenha um papel importante no desenvolvimento intelectual


da criança, mesmo antes do conhecimento da escrita, ajudando na construção do
processo ensino aprendizagem. Desta forma, compreendemos que o prazer da
literatura é antecedido pelo prazer da escrita, portanto, a literatura ocupa um lugar de
destaque na infância e torna-se necessário que seja privilegiado esse espaço nas
escolas de Educação Infantil. Nunes, uma das mais premiadas escritoras brasileiras
de literatura infanto-juvenil, colabora com essa reflexão quando relata sua ligação com
o livro, desde que era pequena:

Pra mim, livro é vida, desde que eu era muito pequena os livros me
deram casa e comida. Foi assim: eu brincava de construtora, livro era
tijolo; em pé, fazia parede; deitado, fazia degrau de escada; inclinado,
encostava num outro e fazia telhado. E quando a casinha ficava
pronta eu me espremia lá dentro pra brincar de morar em livro. De
casa em casa eu fui descobrindo o mundo (de tanto olhar pras
paredes). Primeiro, olhando desenhos; depois, decifrando palavras.
Fui crescendo; e derrubei telhados com a cabeça. Mas fui pegando
intimidade com as palavras. E quanto mais íntimas a gente ficava,
menos eu ia me lembrando de consertar o telhado ou de construir
novas casas. Só por causa de uma razão: o livro agora alimentava a
minha imaginação. (NUNES, 1990, p.7)

A fala desta autora nos remete a alguns questionamentos: Que lugar a


literatura ocupa nas escolas de Educação Infantil? Como tem sido a relação com a
literatura e as crianças? Como os professores apresentam e valorizam a literatura
infantil para as crianças desde bebês? Tentaremos abordar esses questionamentos no
decorrer destes escritos.
Ao observarmos as práticas e analisarmos o planejamento de algumas
professoras das Escolas Municipais de Educação Infantil em Primavera do Leste, Mato
Grosso, vimos que a utilização da literatura infantil nas práticas pedagógicas é uma
constante na rotina diária da escola. São diversos os momentos utilizados pelas
professoras com a literatura infantil, entre estes a leitura deleite, a roda da literatura,
conto e reconto, momento livre com manuseio de livros no cantinho da leitura em
diversos espaços onde os livros estão acessíveis para as crianças em ambientes
aconchegantes, desde a sala de aula até embaixo das árvores no pátio da escola ou
na praça do bairro, onde são utilizados diversos materiais, como carriola, carrinho de
supermercado, mala, sacola, caixa, sexta, entre outros, favorecendo interações com o
livro e com as outras crianças.
Muitos projetos estão em andamento nas escolas de Educação Infantil em
Primavera do Leste: Hora do Conto, Maleta Viajante, Mala de Leitura, Sacola de
Leitura, Mala Mágica, Hora da Diversão, Lendo com a Família ente outros. Muitas

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vezes a criança escolhe uma literatura conhecida que tem na escola, leva para casa e
conta para a família ou algum adulto lê para a criança, num momento de interação
criança x família. No dia seguinte, ao retornar para a escola, a criança relata como foi
sua experiência com o livro, ampliando seu repertório de palavras.
No projeto desenvolvido, como por exemplo: A Hora do Conto, depois de
contar e recontar as histórias em sala de aula com as crianças, os professores
reúnem-se com todas as turmas para fazerem diversas apresentações, entre danças e
encenações a respeito das histórias que as crianças mais gostaram.
Vimos que os professores planejam com eficiência a utilização da literatura
infantil, onde organizam questionamentos e diálogos para as crianças antes, durante e
depois de cada literatura lida, sempre mantendo a ludicidade e a animação de ler,
ouvir e recontar histórias, tendo o professor como ledor, contador e escriba.
Podemos observar, por meio da análise de alguns quadros de rotina, planejado
pelas professoras para uma semana de trabalho, que diariamente é realizado
atividades permanentes como a leitura deleite, um espaço para incentivo a leitura,
onde o professor como leitor lê e dialoga com as crianças sobre o assunto lido em
cada momento numa interação coletiva. A leitura deleite é planejada em vários
momentos pelas professoras que utilizam diferentes estratégias de leitura, antes
durante e depois de cada leitura, despertando a imaginação e a fantasia das crianças.
Nos cantinhos de leitura os professores e crianças caminham entre histórias,
personagens, poemas, ritmos, brincadeiras, ilustrações, gêneros, autores e estilos
diferenciados. Junto aos livros estão expostos, na altura das crianças, fantoches,
pedaços de tecidos e bonecos, ou seja, elementos e objetos das histórias organizados
em caixas, aventais, tapetes, cenários e outros suportes que favoreçam a
intertextualidade e ampliem as leituras.
Na roda de conversa, chamada pelas professoras de rodas de histórias, o
professor utiliza diferentes maneiras de organização e diferentes materiais, com cores
e formas que chamam atenção da criança objetivando o gosto pela leitura e a
formação de futuros leitores, uma oportunidade que revela às crianças o que significa
ler, contribuindo para a formação de ouvintes-ativos, desde cedo engajados na tarefa
de construir sentido. É o professor quem empresta sua voz ao texto, seus gestos,
entonações e intervenções, num processo acolhedor quando dá atenção a todos.

Ao ler ou contar uma história e segurar o bebê ao colo, criamos um


vínculo amoroso, de acolhimento. A voz familiar traz tranquilidade e
segurança ao ouvinte. O bebê escutará a música de suas palavras, o
ritmo de sua voz, a sonoridade da história que você conta. Ainda não
se deterá em conteúdos, mas na melodia de sua fala. Na música que
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você cria e produz, na reprodução e criação de sons sem sentido.


(PARREIRAS, 2012, p. 86)

A criança também mostra que é capaz de contar histórias sem ainda saber ler.
Observamos na roda de leitura que crianças pequenas aprendem a distinguir a leitura
em voz alta da contação de uma história sem o suporte do livro.
A participação das crianças em rodas de histórias oportuniza a formação de
uma comunidade de ouvintes que compartilha histórias e passam a dispor de um
repertório de narrativas, manifestam seus gostos, seus personagens favoritos, autores
ou histórias. Quando a criança participa de experiências significativas mediadas pela
leitura ela amplia sua competência sócio comunicativa, pois sendo capaz de ouvir ela
também é capaz de dizer. É nestas práticas sociais que a criança ganha autonomia na
realização de outras atividades. De acordo com Bakhtin:

Nossa fala, isto é, nossos enunciados (que incluem as obras


literárias), estão repletos de palavras dos outros, caracterizadas, em
graus variáveis, pela alteridade ou pela assimilação, caracterizadas,
também em graus variáveis, por um emprego consciente e
decalcado. (BAKHTIN, 1997, p. 176)

A literatura infantil exerce um importante papel na formação do sujeito


introduzindo a criança no mundo da escrita de forma prazerosa com sentido. Toda
criança precisa ter oportunidade para brincar com o livro, oportunidade de descobrir o
mundo que estava dentro de suas páginas, de se deliciar ao ouvir histórias contadas
por um adulto, de apreciar as ilustrações, de penetrar nas palavras, de imaginar, de se
deleitar com a magia das cores, das formas e das palavras. Como afirma Souza:

[...] a literatura infantil assume uma função estética em busca


da formação do leitor. O livro, nesse contexto, só é literatura se
a função estética se sobressair à função pedagógica, pois
somente o prazer derivado do texto literário, além de
proporcionar ao leitor a capacidade de sonhar e imaginar, o
emancipa. (SOUZA, 2011, p. 80)

Quando nos deparamos com uma professora atuando em turmas de bebês na


Educação Infantil, utilizando diferentes materiais para chamar a atenção das crianças,
como chapéus de diferentes cores e formas, guarda-chuvas de diferentes tamanhos e
cores, onde esta professora com olhar atento e reflexivo vai ao alcance das crianças
dando atenção diferenciada àquelas que permanecem mais distantes dos livros,
percebemos como é importante a utilização de livros adequados para cada faixa etária
e materiais diversificados pata chamar a atenção das crianças.

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De acordo com Souza (2011, p. 80), ―a função estética permite a criança o


gozo e o prazer de ler‖ e é preciso proporcionar um espaço para leitura. Destaca a
importância da literatura infantil por alimentar e estimular a imaginação da criança,
onde o professor precisa planejar sistematicamente desde a escolha do livro até a
mediação final de cada história.
A presença do professor como mediador e leitor, que se aproxima da criança
de forma lúdica toda vez que for ler ou contar histórias, fazendo com que a mesma crie
gosto e interesse pela literatura é de fundamental importância na Educação Infantil.
Parreiras corrobora com tal afirmação quando relata que:

A cada vez que for contar uma história, poderá mudar a sua voz,
imprimir seu jeito particular de ler a história. Além disso, crie
situações, improvise de acordo com as circunstâncias (o chuá da
chuva, o barulho de buzina na rua, o latido de um cão por perto). Se o
bebê já engatinha ou dá os primeiros passos, enquanto ele se move,
você poderá continuar a ler ou contar a história. A voz de um adulto
afetuoso é como uma campanhia para a criança pequena. É um
aconchego. (PARREIRAS, 2012, p. 87)

Para as crianças pequenas é mais significativo ler com os ouvidos e escrever


com a boca, do que ler com os olhos e escrever com as próprias mãos, pois ao ler
com os ouvidos a criança vai compreendendo as modulações de voz que se anunciam
num texto escrito e se experimenta na interlocução com o discurso escrito organizado.
A criança só aprende a ter desejo pela literatura depois que a conhece.

As crianças mostram interesse pelo conteúdo do que é lido, a


atenção que desperta a sonoridade das palavras, a capacidade de
perceber o encadeamento temporal e causal de eventos presentes na
narrativa, a capacidade de compor um repertório de histórias
conhecidas, apreciadas e até aprendidas de cor. (BRANDÃO; ROSA,
2010, p.35)

De acordo com Brandão e Rosa (2010), algumas características marcam a


forma de interação com as histórias:O contato das crianças com as histórias é
mediado pela voz da professora, que lê, canta ou narra. Essa mediação implica numa
proximidade física entre quem conta e quem ouve, além da interação. A literatura é de
natureza sociocultural e resulta da participação das crianças nas práticas socialmente
circunscritas, em que ouvem histórias com a mediação da professora. (BRANDÃO;
ROSA, 2010, p.36-38)
Nos deparamos com momentos que marcaram nossas memórias em turmas de
berçário, quando um dos bebês, chorando e muito agitado, a professora senta ao
chão, pega a criança no colo, com o livro na mão e lê para a criança que logo se
acalma e ouve atentamente a leitura feita pela professora. Parreiras (2012), diz que
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―Ao segurar no colo o bebê e o livro, você vai criar um laço afetivo entre eles‖.
(PARREIRAS, 2012, p. 86)
Assim, as crianças aprendem a ouvir histórias, ao ler com os ouvidos não
apenas se experimenta da interlocução com o discurso escrito organizado, como vai
compreendendo as modulações de voz que se anunciam num texto escrito. Ela
aprende a voz escrita, aprende a sintaxe escrita, aprende as palavras escritas. (Brito,
2005, p. 18)
A leitura de histórias ou outros textos literários com a mediação da professora
que formula perguntas e discute com as crianças sobre o texto contribui para formar
leitores que buscam produzir significados e permite que a criança aprenda sobre a
direção da escrita, sobre a existência de outros sinais gráficos diferentes das letras,
localizam palavras e letras conhecidas, percebem rimas e estimula a imaginação e a
criatividade.

Considerações Finais

. Cabe à escola promover o acesso à cultura escrita, por ser ela agência de
letramento das mais importantes. Ao professor cabe enfrentar o desafio de inserir a
criança no mundo da leitura, ferramenta indispensável para a compreensão do mundo
em que vivemos e para a participação efetiva na sociedade.
O professor de Educação Infantil tem um papel importantíssimo nessa fase da vida
da criança, em relação aos seus primeiros contatos com a leitura e a formação de
hábitos leitores. Ele tem uma grande responsabilidade e precisa se preparar com
compromisso e profissionalismo.
As escolas municipais de Primavera do Leste – MT ocupam um lugar importante
na formação de leitores tanto pelo acesso a obras de qualidade, quanto pela qualidade
das mediações entre as crianças e os livros desde bebês. A mediação começa na
escolha do acervo e na organização do espaço para abrigar o acervo e promover a
leitura com as crianças.
Ler histórias para crianças amplia o repertório de palavras, inclusive aquelas
usadas para falar sobre livros: capa, autor, ilustrador, capítulo, índice. Ao ouvir
histórias a criança descobre que pode entrar em um mundo de ficção, preenchendo
uma necessidade vital, humana.
Na educação infantil, o texto literário tem uma função transformadora, pela
possibilidade de as crianças experimentarem sentimentos, caminharem em mundos
distintos no tempo e no espaço em que vivem, imaginarem, interagirem com uma

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linguagem que muitas vezes sai do lugar comum, que lhes permite conhecer novos
arranjos e ordenações.
Além de requisitar o imaginário das crianças, de penetrar no espaço lúdico e de
encantar, a literatura é porta de entrada para o mundo letrado. Porta que se abre à
face criativa do texto escrito, à arte e sua potência transformadora. De ouvintes ativos
as crianças passam a ser leitores ativos, resultado da apropriação de um jeito de ler
aprendido por meio da literatura.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

BRANDÃO, Ana Carolina Perrusi. ROSA, Ester Calland de Sousa (Orgs.). Ler e
Escrever na Educação Infantil: Discutindo Práticas Pedagógicas. São Paulo:
Autêntica, 2010.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial


Curricular Nacional para a Educação Infantil. Brasília, 1998.

BRASIL. Ministério da Educação. CNE/CEB. Diretrizes Curriculares Nacionais para


a Educação Infantil. Brasília, 2010.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Indicadores da


Qualidade na Educação Infantil. Brasília, 2009.

BRASIL. Ministério de Educação e Cultura. Lei de Diretrizes e Bases. Lei nº 9394/96,


de 20 de dezembro de 1996. Brasília: MEC, 1996.

BRASIL. Lei Federal n. 8069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do


Adolescente. MEC, 1990.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF:


Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

BRITTO, Luís Percival L. Letramento e alfabetização: implicações para a educação


infantil. In: FARIA, A. L. G. de; MELLO, S. A. (Orgs.). O mundo da escrita no
universo da pequena infância. São Paulo: Autores Associados, 2005.

NUNES, Lygia Bojunga. Um encontro com Lygia Bojunga Nunes. Rio de Janeiro:
Agir, 1990.

PARREIRAS, Ninfa. Do ventre ao colo, do som à literatura: livros para bebês e


crianças. Belo Horizonte: Rona Ltda, 2012.

PRIMAVERA DO LESTE. Secretaria de Educação e Esporte. Política de Educação


Infantil para o Município de Primavera do Leste. Consultoria Profa. Dra. Jaqueline
Pasuch - UNEMAT, 2016.

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SOUZA, Renata Junqueira de; FEBA, Berta Lúcia Tagliari. Leitura literária na escola.
São Paulo: Mercado de Letras, 2011.

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EIXO TEMÁTICO 3

Poesia e Oralidade
Poesia e oralidade
Flávia Brochetto Ramos (Universidade de Caxias do Sul) José Hélder Pinheiro
Alves (Universidade Federal de Campina Grande) Daniela Padilha (editora).

A poesia construída a partir da palavra tem a possibilidade de abrir espaços


para outros elementos que ajudam a cativar o leitor e estimulá-lo a expandir a
leitura e a sensibilidade do seu entorno, especialmente no contexto escolar.
Rimas, musicalidade, ilogismo, imagens e enigmas são alguns dos recursos
que levam o texto poético a mobilizar a atenção e os sentimentos de quem está
lendo ou ouvindo, ainda mais se esse público é criança. No ambiente de
escolarização, entretanto, nem sempre a arte poética encontra os espaços
necessários para ganhar a atenção que deveria. Assim, o objetivo desse eixo é
proporcionar a discussão a respeito da natureza da poesia e das
potencialidades de oralização desse texto, a fim de integrar-se as práticas
cotidianas de aprendizagem, em ambientes escolarizados ou não, sem perder
de vista os possíveis conhecimentos que o gênero pode proporcionar.
ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

BRINCANDO DE POESIA: REFLEXÕES SOBRE A CRIANÇA, O


BRINQUEDO E A POESIA, A PARTIR DO POEMA ―O POETA
APRENDIZ‖, DE VINICIUS DE MORAES

Ângela da Silva Gomes Poz, Instituto Federal Fluminense,


Eixo temático: Poesia e Oralidade.

Considerações Iniciais

Vinicius de Moraes figura entre os maiores representantes da literatura


brasileira. Tendo produzido uma vasta obra que abrange variados temas e gêneros,
dedicou privilegiada parcela ao público infantil. Tomando como eixo norteador seu
poema ―O poeta aprendiz‖, de 1958, publicado em 1962 no livro ―Para viver um grande
amor‖ e, anos depois, numa parceria com Toquinho, adaptado para música, regravada
e ilustrada por Adriana Calcanhoto em um livro (com CD), em 2013, este trabalho
objetiva analisar a importância da poesia e dos brinquedos para as crianças, e como
nesse ―brincar‖ a criança deleita-se em seu mundo de fantasias e aprende valores
essenciais a uma formação humana e solidária. Refletindo sobre a ludicidade, as
cores, a sensibilidade, a imaginação, a exploração do sentimento e do sensorial, o
ritmo, a estrutura, a linguagem poética e as imagens que dela advêm, destaca-se a
percepção da importância da atividade lúdica para o desenvolvimento cognitivo infantil,
e como o brincar, o fazer poético e a oralidade se inter-relacionam quer na poesia
falada ou cantada para crianças, quer na poesia lida por crianças.
A poesia, como fruto da sensibilidade, visa à sensibilidade do leitor (aqui
também considerada leitora a criança que ouve, recita ou canta o poema ou a
canção). Com aporte teórico em Bandeira (2012), Benjamin (2014), Carvalho (1982),
Cunha (1983), Freire (2006), Freud (2014), Hunt (2010), Meireles (2016), Moraes
(2009), Moricone (2002), Pozas (2013), Sorrenti (2009), Todorov (2016), Vygotsky
(1984) e Yunes (1988), analisaremos sobre o modo como a poesia pode remeter-se à
criança, despertando nela o interesse pela palavra escrita, pelos livros e pela arte, cujo
poder lhe oportunizará inúmeras aprendizagens até a fase adulta, quando poderá
374

constatar, através da memória, que a realidade começou a se construir em seus


sonhos infantis.
A criança, o brinquedo e a poesia

O termo ―criança‖ pode ser concebido sob várias perspectivas, considerando


a faixa etária, o comportamento e características culturais, entre outras considerações
que diversos estudos estabelecem. Há, no entanto, um traço comum que encontramos
nas diversas leituras que fizemos sobre esse tema: o brinquedo associado à fase
pueril. Segundo Lev Vygotsky (1984, p.117),

No brinquedo, a criança sempre se comporta além do


comportamento habitual de sua idade, além de seu
comportamento diário; no brinquedo, é como se ela fosse maior
do que é na realidade. Como foco de uma lente de aumento, o
brinquedo contém todas as tendências do desenvolvimento sob
forma condensada, sendo, ele mesmo, uma grande fonte de
desenvolvimento.

Como o processo de desenvolvimento social e cognitivo da criança é intenso,


a brincadeira torna-se inerente à sua natureza, que sempre se projeta às descobertas,
às novidades, ao encantamento e à aprendizagem. Sendo que essa se associa ao
prazer, ao faz-de-conta, às possibilidades imaginativas dentro e a partir da realidade
em que a criança está inserida. É brincando que a criança aprende, o lúdico é
essencial ao seu crescimento. Como define Denise Pozas (2013, p.39),

O brincar é uma atividade cotidiana da criança, na qual ela


expressa a forma como pensa, ordena e constrói a realidade.
Brincar é experimentar o novo. É criar com a experiência
adquirida na relação com o mundo e ampliar essa experiência,
interiorizando novas ordens e novas interrelações entre objetos
e entre sujeitos. Assim, não resta dúvida sobre sua influência
no desenvolvimento cognitivo da criança.

Dessa forma, é possível melhor observar a tendência da criança a perceber a


linguagem também ludicamente, de criar e inventar a partir dela e de compreendê-la
de uma maneira muito mais sensível que o adulto, que já possui os olhos embotados
para os detalhes, para as cores possíveis, para o além do real. O adulto já usa a
―máscara‖ que se chama ―experiência‖, como bem define Walter Benjamin (2014, p.21)
à criança, como sendo um ser novo, em fase de descoberta, se dá a fluência dos
textos de maneira mais natural e expressiva, como acontece nas brincadeiras. Peter
Hunt (2010, p.92) afirma que as crianças

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[...] Serão mais abertas ao pensamento radical e aos modos de


entender os textos, serão mais flexíveis em suas percepções
de texto. E como a brincadeira é um elemento natural de seu
perfil, verão a linguagem como outra área para exploração
lúdica. Elas são menos limitadas por esquemas fixos e, nesse
sentido, têm uma visão mais abrangente.

A criança, durante todo o tempo, lê o mundo à sua volta – ―a leitura do


mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa
prescindir da continuidade da leitura daquele‖, segundo Paulo Freire (2006, p.9). E
quando o mundo das palavras se abre para ela, ela leva o encantamento da
descoberta para o texto e esse passa a ser uma fonte de descobertas também.
A poesia então cabe como uma luva ao mundo infantil, pois ela em si já é
uma linguagem especial no mundo da linguagem, sua estrutura, seu ritmo, seus sons,
suas rimas e as imagens que constrói atraem os ouvidos curiosos e atentos das
crianças, que dela se apoderam como um brinquedo de possibilidades infinitas, feito
de palavras. Ademais, a abrangência da poesia se estende dentro de outros gêneros,
uma vez que a oralidade atinge crianças alfabetizadas ou não, pois ―em certo sentido,
as crianças pertencem a uma cultura ‗oral‘, o que significa que elas podem apresentar
diferentes modos de pensar e lidar com diferentes gêneros textuais‖ (HUNT, 2010,
p.92), e a poesia falada, cantada ou lida para qualquer criança, pela especificidade de
seu ritmo, já estabelece com a criança um ―elo‖ entre o ser e o mundo: de acordo com
Neusa Sorrenti (2009, p.19),

A poesia pode estabelecer uma ponte entre a criança e o


mundo. Ela também constitui uma maneira de ensinar a
dominar certos ritmos fundamentais do ser, como o de respirar.
Pela expressão da fala, a criança se apropria de suas
possibilidades, adquirindo o domínio de sua palavra.

Manuel Bandeira, em seu célebre ―Itinerário de Pasárgada‖, assegura-nos de


que ―a certa altura da vida‖ identificou sua ―emoção particular‖ com ―a de natureza
artística‖. Segundo ele, ―desde esse momento‖ pode dizer que descobriu seu ―itinerário
em poesia‖ (BANDEIRA, 2012, p.25). Esse, que como Vinicius de Moraes, é
considerado um de nossos maiores poetas, logo de início, na referida obra, salienta
que seu primeiro contato com a poesia se deu com os versos escutados e que as

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emoções advindas desses cantos o acompanharam por toda a vida, inclusive na


produção de sua obra. Ele registra, como exemplo, que ―se lembra nitidamente do
sobrosso que‖ lhe ―causava a cantiga da menina enterrada viva no conto ‗A madrasta‘‖
e, após transcrevê-los, acrescenta: ―Era assim que me recitavam os versos. E esse
‗Xô, passarinho‘ me cortava o coração, me dava vontade de chorar‖ (Idem, p.26). Aqui
referimo-nos à leitura de poemas recitados à criança, mas isso também se dá com a
criança já alfabetizada. Sobre esse envolvimento com as personagens, expressa
Benjamin (2014, p.105):

A criança mistura-se com as personagens de maneira muito


mais íntima do que o adulto. É atingida pelo acontecimento e
pelas palavras trocadas de maneira indizível, e quando a
criança se levanta está inteiramente envolta pela neve que
soprava da leitura.

É esse momento da vida em que se constroem as emoções e a humanidade


em nós que não pode ser desperdiçado. Tornar acessível à criança o contato com
textos poéticos, que vêm ao encontro de sua avidez por fantasia, ajuda singularmente
a aguçar sua sensibilidade, o que é imprescindível para a construção do caráter da
pessoa, que poderá, na vida adulta, exercer funções especificamente ligadas à escrita
ou não, mas que terá, em qualquer situação, um olhar muito mais humano diante da
vida. As personagens inesquecíveis conhecidas na infância, as emoções que nela
despertaram, acompanhá-la-ão na formação de suas ideologias, pois terá
desenvolvido a capacidade de alteridade, de sentir as dores do outro, de ser solidário
e, assim, ajudar a promover um mundo mais justo e igualitário.

As reminiscências da infância na formação do poeta

Em vários textos, Vinicius de Moraes (2009) rememora seus tempos de menino e o


comovente encontro que estabeleceu com a poesia nessa época: tanto no brincar
como uma criança saudável e feliz, como na descoberta da magia das palavras, nos
livros. Essas experiências da infância associam o deleite das brincadeiras ao da
poesia, ao mesmo tempo em que ambas levam a criança a aprender, ludicamente. No
menino que encontra as delícias da palavra nos livros dispostos na estante que ficava
no segundo andar da casa materna, associando-a às delícias dos doces e frutas
suculentas na geladeira do andar de baixo (MORAES, 2009, p.10), são interiorizadas
as sensações que essa relação confere ao poeta menino – que lê o mundo ao seu
redor e, posteriormente, ao leitor de sua poesia, de modo que a emoção nasce em
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quem compõe e se dimensiona em quem ouve ou lê a poesia, e vice-versa,


configurando uma via de mão dupla de emoções. Vinicius nos ilustra nesses textos
especialmente selecionados e organizados pelo também poeta Eucanaã Ferraz no
livro ―Vinicius menino‖, essa interrelação entre o ouvir, o ler e o produzir poesia, e que
as aprendizagens advindas dessa experiência na infância o acompanharam por toda a
vida, assim como com Bandeira e tantos outros, em sua formação de poeta. Tzvetan
Todorov (2016, pp.45-6) remete à teoria clássica da poesia para referir-se à relação da
mesma com o mundo exterior, lembrando que

[...] segundo Aristóteles, a poesia é uma imitação da natureza,


e, segundo Horácio, sua função é agradar e instruir. A relação
com o mundo encontra-se, assim, tanto do lado do autor, que
deve conhecer as realidades do mundo para poder ―imitá-las‖,
quanto do lado dos leitores e ouvintes, que podem, é claro,
encontrar prazer nessas realidades, mas que também delas
tiram lições aplicáveis ao restante da existência.

Percebemos, então, que a formação do poeta Vinicius se deu na infância,


período em que se constroem as bases da vida. Na apresentação da quarta edição de
―Problemas da literatura Infantil‖, de Cecília Meireles (2016, p.11), Laura Sandroni
remete a outro texto dessa singular autora, educadora e poeta, contemporânea de
Vinicius: ―Nós somos a saudade de nossa infância, e vivemos dela, alimentando-nos
do seu mistério e de sua distância. Creio que são eles, que nos sustentam a vida com
a essência da esperança‖. Essa é a sensação que nos transmite Vinicius na crônica
poética supramencionada ―A casa materna‖: a saudade de um tempo de
encantamento que os olhos embotados dos adultos não podem mais captar e, assim
sendo, o que sustenta a vida e a esperança são as reminiscências da infância.
A formação do poeta, mesmo ainda longe do tempo de escrever poesia e,
por vezes, até mesmo de ler a palavra escrita, esta já desperta na criança
pensamentos e ações que associam suas vivências com a produção, como denota
Meireles (Idem, p.10):

Quando eu ainda não sabia ler, brincava com os livros, e


imaginava-os cheios de vozes, contando o mundo. Sempre me
foi muito fácil compor cantigas para os brinquedos; e, desde a
escola primária, fazia versos – o que não quer dizer que
escrevesse poesia.

Nesse excerto, podemos ainda identificar os ambientes essenciais para a


criança aprender brincando e de ―brincar de poesia‖: sua casa, com a família, e a
escola. O ambiente do lar deveria oportunizar a todas as crianças o encontro com a
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leitura, com a literatura, com a poesia. No entanto, diante da realidade de exclusão


social que vivemos em nosso país, assim como em outros lugares do mundo, na
maioria das vezes, essa premissa não se cumpre. Passa, então, a caber à escola ser
o locus principal para ambientar essa formação. Para ressaltar a necessidade de
atenção a esse fato e no olhar deste Trabalho em que refletimos também sobre a
poesia na vida da criança, citamos o que nos chama à atenção outro grande mestre da
poesia brasileira, Carlos Drummond de Andrade (apud YUNES; PONDÉ, 1988, p.83),
nesse sentido: ―O que eu pediria à escola era considerar a poesia como primeira visão
das coisas e mesmo veículo de informação teórica e prática, preservando em cada um
o fundo mágico, lúdico, intuitivo e criativo que se identifica com a sensibilidade
poética.‖
Como os limites de espaço do presente texto não nos permite o alongamento
dessa matéria, aqui nos atemos a afirmar que como a infância é a base da formação
do poeta e da pessoa, e como o lar e a escola constituem os ambientes principais na
vida das crianças, são esses os espaços que devem (ou deveriam) oportunizar esses
primeiros e mais importantes passos da vida. Para a garantia de termos o privilégio de
construirmo-nos humanos conhecendo uma obra de dimensão universal como a de
Vinicius de Moraes, que teve oportunidade de receber excelente formação escolar e a
alegria de viver intensamente sua infância no lar, como ele mesmo nos garante em
seus textos. Destacamos o que ele escreve na crônica supracitada (MORAES, 2009,
pp.10-11):

Na estante, junto à escada, há um Tesouro da juventude com o


dorso puído de tato e de tempo. Foi ali que o olhar filial primeiro
viu a forma gráfica de algo que passaria a ser para ele a forma
suprema da beleza, o verso.
Na escada há o degrau que estava aos ouvidos maternos a
presença dos passos filiais. Pois a casa materna divide-se em
dois mundos: o térreo, onde se processa a vida presente, e o
de cima, onde vive a memória. [...]
A imagem paterna persiste no interior da casa materna. Seu
violão dorme encostado junto à vitrola. [...], onde já agora
vibram também as vozes infantis.

Podemos, então, compreender os limiares do talento do poeta e músico, do


diplomata, do enorme ―Poetinha‖ que nos legou uma obra de valor imensurável: o
calor do acolhimento e da ternura da casa materna, onde ele encontrou o que passou
a considerar ―a forma suprema da beleza‖ – o verso, e com o violão do pai: a proteção,
a canção, vertente na qual ele também foi genial por toda a vida – sendo um dos
criadores da bossa nova e do afro-samba, por exemplo. O grande poeta e músico
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Vinicius de Moraes formou-se a partir do Vinicius menino. É possível ouvir ―as vozes
infantis‖ que ―já agora vibram‖ no poema (que depois musicou) ―O poeta aprendiz‖.

Aprendizagens de poeta

No auge de sua produção poética, em fase madura de sua obra, em Vinicius de


Moraes compõe o poema ―O poeta aprendiz‖, em 1958, e o publica no livro ―Para viver
um grande amor‖, em 1962. Nesse poema autobiográfico, o eu lírico remete, em
terceira pessoa, a um menino que está em fase da aprendizagem da poesia. E seu
criador rememora as aventuras e sentimentos desse menino de uma forma tão lúdica
e tocante, que nos dá a impressão de que o poeta, adulto, em seu contínuo processo
de aprendizagem na vida, aprende e quer nos ensinar que o menino que sonhava em
ser poeta já o era, mesmo sem saber, quando brincava e amava profundamente, no
encantamento de seu mundo infantil. Aqui o poema será transcrito com versos em
sequência nas linhas, devidamente separados por barras, por fins específicos de
aproveitamento do espaço:
Para rememorar esse menino poeta, o poeta adulto compõe 81 versos,
basicamente redondilhas menores. A composição das redondilhas levam à facilidade
de memorização e aproximam o ritmo do poema naturalmente ao ritmo das crianças,
de sua respiração, de sua agilidade nas brincadeiras. O esquema de rimas
emparelhadas imprimem uma musicalidade atraente a ouvidos de crianças e de
adultos. Essa estrutura combinará perfeitamente com o sentido do texto, que traz
também uma riqueza vocabular muito significativa, que contribui para a aquisição de
vocabulário, enriquecimento do léxico e, como consequência, do pensamento de quem
lê.
Logo nos primeiros versos, o eu lírico rememora que ―Ele era um menino/
Valente e caprino/ Um pequeno infante/ Sadio e grimpante‖, ou seja, uma criança
valente, saltitante, que gostava de subir nas coisas, tudo isso como sinal de um
infância saudável. No quinto verso, ele assinala a idade desse menino: dez anos. Um
menino serelepe, descrito como tendo ―asinhas nos pés‖, no sexto verso. Após essa
identificação inicial, ele passa a listar uma série de brincadeiras, descrições e
aventuras que estão vivas em sua memória e permeavam sua vida de moleque: ―Com
chumbo e bodoque/ Era plic e ploc./ O olhar verde-gaio/ Parecia um raio/ Para

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tangerina/ Pião ou menina.‖ Esse último verso transcrito já nos sinaliza para o poeta
amante das mulheres e que tão bem cantou os seus encantos e desventuras, como na
magnífica crônica ―Receita de mulher‖ e nos poemas ―Soneto de devoção‖ e ―Balada
do mangue‖, entre centenas de outros exemplos, em prosa e verso. Essa sensibilidade
em observar a mulher com um olhar que ―parecia um raio‖ só aumenta com o passar
dos anos e das experiências da vida e da produção poética.
Continuando a descrever o menino fisicamente, a partir do 13º verso,
Vinicius menciona brinquedos antigos, de muito sucesso popular, como bilboquê,
bodoque, diabolô e bola de meia. Importante perceber aqui a valorização do folclore,
tão caro à produção de literatura infantil. Brinquedos que se fazem conhecer
oralmente, de geração em geração, sem o marketing publicitário e as propagandas de
rádio e TV, já em alta naquela época. Ao intitular de ―O poeta aprendiz‖ um poema em
que o brinquedo e as brincadeiras protagonizam muito mais que a metade dos versos,
Vinicius reforça a importância dessa vivência para a criança. Denise Pozas (2013,
p.36) ressalta essa relevância para a aprendizagem dos pequenos:

A criança se apodera do mundo ao seu redor para harmonizá-


lo com sua própria dinâmica. A brincadeira projeta a criança em
um universo alternativo excitante, no qual ela não só pode viver
as situações sem limitações, mas também com menos riscos. A
forma e a intensidade de apropriar-se da brincadeira estarão
diretamente associadas ao meio e às relações vivenciadas pela
criança. A comunicação que ocorre no ato de brincar torna-se
uma metacomunicação [...].

Especialmente neste poema, Vinicius mostra como brincava e como isso é


poético. Ou seja: em seu poema, ele mostra o que é brincar de poesia, o que é ser
poeta. Adiante, nos 73º e 74º versos, ele registra que o menino compunha versos –
brincando de ser poeta, sendo poeta. A metacomunicação do brincar referida por
Pozas (Idem) é expressa por Vinicius no conteúdo e na feitura de seu poema, que é
metapoético.
Além das brincadeiras, o poema destaca também a natureza observadora
das crianças, como nos versos ―E caía exato/ Como cai um gato.‖ A descoberta da
habilidade dos gatinhos de ―cair em pé‖ impressiona muito a criança, e esse é o tipo
de comparação que o poeta estabelece: com sensações e percepções típicas dos
pequenos. Em seu texto ―Menino de ilha‖, Moraes (2009, p.15) reforça essa
observação dos felinos e de sua leveza nos passos: ―Às vezes, no calor mais forte, eu
pulava de noite a janela com pés de gato e ia deitar-me junto do mar.‖ Também os 23º

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e 24º versos denotam aquele desejo de ser grande, do desenvolvimento através da


brincadeira, comparando-se ao adulto: ―Saltava de anjo/ Melhor que marmanjo‖.
Numa contínua relação de brincadeiras, habilidades, travessuras e
descrições de suas atitudes de menino, o poeta vai configurando o que é ―viver a
poesia‖. O que também é confirmado na vida adulta, quando Vinicius foi famoso por
conciliar na vida prática seus desejos e paixões, sem as amarras da dura realidade
fria, muitas vezes. Carlos Drummond de Andrade chegou a afirmar sobre ele: ―De
todos nós ele foi o único que viveu como poeta‖ (apud MORAES, 2013, p.47).
Intensifica-se o lirismo do texto quando como numa mudança de jogada, nos
versos que falam do futebol de bola de meia (53º ao 57º verso) o eu lírico diz que o
menino ia diz que ia além dos limites nos dribles, pontuando essa sequência: ―E em
bola de meia/ Jogando de meia-/ -Direita ou de ponta/ Passava da conta./ De tanto
driblar.‖ O enjambement nesse meio pode levar o leitor a sentir, ainda que não reflita
sobre esse recurso, que o poeta menino era metade brincadeiras e metade
sentimento, ou seja: todo poesia. Há uma virada nesse ponto que encerra esse verso.
O próximo, verso 58, é pontuado também: ―Amava era amar.‖ Não sendo o poema
separado por estrofes, essa pontuação comunica muito. A expressão ―amar amar‖,
separada pelo verbo que reforça a intensidade do sentimento, define a principal marca
do menino poeta: o amor que sentia. Amava os brinquedos, os bichos, os livros, as
mulheres, a vida.
Os versos seguintes explicitam o amor pelas mulheres em geral: ―Amava sua ama/
Nos jogos de cama/ Amava as criadas/ Varrendo as escadas/ Amava as gurias/ Da
rua, vadias/ Amava suas primas/ Levadas e opimas/ Amava suas tias/ De peles
macias/ Amava as artistas/ Das cine-revistas/ Amava a mulher/ A mais não poder.‖
Assim como no jogo, também no amor à mulher o menino poeta ―passava da conta‖, e
ele justifica que o fazer poético nasceu por causa desse amor – os versos que seguem
revelam: ―Por isso fazia seu grão de poesia/ E achava bonita/ A palavra escrita.‖ A
poesia representa, nesses versos, a expressão da sensibilidade e dos sentimentos
humanos que essa criança nutria e que desperta e alimenta o fazer poético, conforme
argumenta Barbara Vasconcelos de Carvalho (1982, p.222):

[...] a poesia é a primeira manifestação de expressão literária; é


pela poesia que se iniciam todas as Literaturas. E isto é prova
de que o homem somente se encontra pela expressão afetiva,
pela sensibilidade, que o revela e o conduz a seu semelhante,
aos seres, às coisas, à natureza, enfim, ao universo, em toda a
sua grandeza [...].

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Quando em qualquer fase da vida nos é solicitado ou nos dispomos a


escrever um texto literário, podemos criar personagens, fingir, viver em outra persona,
e isso nos permite vivenciar novas emoções. Mas se esse texto for poesia, será
inevitável a revelação de nossos mais profundos sentimentos, pois as imagens que
essencialmente a permeiam vão refletir nosso eu. Enquanto o poeta Vinicius de
Moraes se revela no menino do poema, o eu lírico vai se revelando no fazer poético,
encantando-se com a palavra escrita. Esta rima é de uma intensa e delicada beleza,
inclusive, nas ilustrações de Adriana Calcanhoto, no livro ―O poeta aprendiz‖
(MORAES, 2013, p.27), que lançou acompanhado de um CD com a canção homônima
e uma gravação do próprio poeta recitando o poema e um playback da canção, é dado
um destaque para ela, que denota a expressão simples e singela de uma criança: ―E
achava bonita/ A palavra escrita.‖. O verso seguinte reafirma essa relação dos
sentimentos com o fazer poético: ―Por isso sofria.‖
O poema se encerra com os versos que seguem ao supracitado: ―Da
melancolia/ De sonhar o poeta/ Que quem sabe um dia/ Poderia ser.‖ Enquanto nos
versos anteriores o sentimento leva à produção da poesia, nesses últimos o sonho de
―quem sabe um dia‖ ser um poeta leva o menino a um estado melancólico, de
alimentar o desejo de fazer aquilo que vivenciava em sua vida cotidiana, na sua
prática, sem ainda ter essa consciência. Sobre essa aproximação entre o mundo
infantil e o fazer poético, comenta Maria Antonieta Antunes Cunha (1983, p.93): ―[...] é
muito comum compararmos a criança ao poeta. Realmente, o mundo infantil é cheio
de imagens, como o campo da poesia. A fantasia e a sensibilidade caracterizam a
ambos. [...] O predomínio da linguagem afetiva existe na poesia e na criança‖.

Um poema para crianças e adultos de todos os tempos

Sabemos que poesia não tem idade e nem precisa ter. Mas a linguagem que alcança
a criança alcança pessoas de quaisquer faixas etárias. ―O poeta aprendiz‖ foi
publicado por Vinicius num livro não prioritariamente destinado ao público infantil,
como foi com ―A arca de Noé‖, por exemplo. Porém essas reminiscências da infância
do poeta, relevadas em versos na sua fase adulta, acabam por emocionar os adultos,
por remeterem aos verdes anos da infância e às crianças, que se identificam
imediatamente, por exemplo, com suas imagens que remetem a cores – ―O olhar
verde-gaio/ Parecia um raio‖, seguido da cor laranja da imagem da tangerina, do azul
da água onde o menino mergulhava, do escuro mesmo no qual pulava ―Não importa
que muro‖ e o mais que a imaginação do leitor ou ouvinte permite, e sendo criança,

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com maior potencialidade. ―Liberta de toda responsabilidade, a fantasia pura se deleita


nesses jogos de cores‖ (BENJAMIN, 2014, p.61).
Ampliando as possibilidades de seu alcance, Vinicius e Toquinho adaptaram
o poema para música, chegando a uma segunda versão, gravada no disco ―Toquinho
e Vinicius‖, de 1971. E como a força do poema o eterniza, Adriana Calcanhoto grava a
canção e anexa um CD ao livro que também ilustra, com riqueza de cores e
ludicidade, em 2013 (MORAES, 2013), além de gravá-lo no DVD ―Adriana Partimpim -
O Show‖, que, além de trazê-la interpretando a canção com sua banda, caracterizada
com motivos infantis e ainda sendo possível acompanhar a legenda, traz uma linda
animação da canção, que se encerra com uma foto do ―Poetinha‖ criança, num
emocionante jogo de imagens que se casam com a beleza e ludicidade do poema.
Este que, como canção, alcança ainda mais crianças de quaisquer idades,
alfabetizadas ou não, pois, ao ouvirem-na, elas imediatamente conseguem lidar com
seu conteúdo e, ―pelo menos‖ estabelecem ―vínculos entre os elementos de seu
mundo‖ (BENJAMIN, 2014, p.58). A criança que ainda não lê a palavra escrita, pode
ouvir, memorizar e cantar a canção, que tem, como a poesia, a oralidade como campo
a ser explorado. Desde a sua publicação, em 1962, ―O poeta aprendiz‖ vem
alcançando gerações, num processo contínuo ainda mais intensificado com os
recursos intermidiáticos que aumentam sua abrangência de público e de permanência.

Considerações finais

Longe de explorar todas as vertentes possíveis de análise desse que é um dos ricos
poemas de Vinicius de Moraes, essa composição serviu-nos de ponto de partida para
refletirmos sobre a relação entre criança, brinquedo e poesia. Embora no presente
texto tenhamos optado por abordá-lo depois de considerações teóricas, permeamos
nossa pesquisa nele como texto gerador, e o dispusemos na segunda metade do
trabalho para que o mesmo corroborasse as reflexões dos tópicos anteriores e ainda
suscitasse mais ponderações a partir das nossas.
No poema de Vinicius, é possível identificar o ato de brincar como fazer
poético, conforme registra Sigmund Freud (2014, p.80) em seu conhecido texto ―O
poeta e o fantasiar‖: ―[...] toda criança que brinca se porta como um poeta, uma vez
que ela cria para si o seu próprio mundo, ou, para dizer com mais precisão, transpõe
as coisas de seu mundo para uma nova ordem, que lhe agrada‖. Nessa concepção,
destacamos também, em nossa pesquisa, o caráter afetivo inerente à poesia e à
brincadeira, que desenvolve na criança a inspiração e a sensibilidade, imprescindíveis

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à sua formação humana e que a acompanharão por toda a vida. Ainda sobre essa
relação, Freud (Idem) destaca: ―[...] o poeta faz o mesmo que a criança que brinca:
cria um mundo de fantasia e o leva muito a sério; isto é, ele o provê de grande
investimento afetivo, ao mesmo tempo em que nitidamente o separa da realidade‖.
O apelo sensorial e emotivo do poema, as imagens por ele evocadas e a
possibilidade – muito bem aproveitada – da musicalidade e de criações lúdicas a partir
dele, constituem motivos para refletirmos sobre a importância da poesia na vida da
criança sobre vários aspectos. Cabe-nos ressaltar o que diz Italo Moricone (2002,
p.07), quando explica sobre a palavra ―poesia‖ e sobre a ―mania‖ dos leitores de
poesia e dos poetas de ―cultivar as letras‖: ―A quem deseja enveredar-se por esse
caminho, recomenda-se: leia os bons romances, descubra os filósofos sérios, aprenda
a amar poesia. [...] Sempre foi assim. É como nasce a tribo dos letrados‖ (Grifos
nossos).
Assim como Vinicius revela que desde poeta aprendiz ―achava bonita a
palavra escrita‖, que a palavra escrita do seu poema que a nós chega belamente
escrito, falado, cantado e ilustrado, alcance o maior número de pessoas, a fim de que
as mesmas, por meio desse encantamento, despertem e atentem à necessidade de
valorizar a criança e seu universo, no qual brinca de poesia, porque assim se formará
um adulto que aprendeu a amar a vida e a humanidade ―a mais não poder‖.

Referências

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apresentação e notas Carlos Newton Júnior. – (7ª ed.) – São Paulo: Global, 2012.

BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação.


Tradução, apresentação e notas de Marcus Vinicius Mazzari; posfácio de Francisco Di
Giorgi. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2014. 2ª Reimpressão.

CALCANHOTO, Adriana. Adriana Partimpim - O Show. Direção DVD: Susana


Moraes. São Paulo: SONY BMG, 2005.

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Ed. São Paulo: Edart, 1982.

CUNHA, Maria Antonieta Antunes. Literatura infantil: teoria e prática. São Paulo:
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FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São
Paulo: Cortez, 2006.

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HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. Tradução: Cid Knipel. Ed.
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MEIRELES, Cecília. Problemas da literatura infantil. Cecília Meireles;


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MORAES, Vinicius de. Para viver um grande amor. Rio de Janeiro:


MEDIAFashion, 2008. (Coleção Folha Grandes Escritores Brasileiros; v.9).

_____________. Vinicius menino. Idealização, seleção Eucanaã Ferraz;


Ilustração Marcelo Cipis. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

_____________. O poeta aprendiz. Vinicius de Moraes, Toquinho; cantada e


ilustrada por Adriana Calcanhoto – 4ª ed. – São Paulo: Companhia das
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MORICONE, Italo. Como e por que ler a poesia brasileira do século XX. Rio
de Janeiro: Objetiva, 2002.

POZAS, Denise. Criança que brinca mais aprende mais: a importância da


atividade lúdica para o desenvolvimento cognitivo infantil. – I ed. – Rio de
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SORRENTI, Neusa. A poesia vai à escola – reflexões, comentários e dicas de


atividades. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.

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Rio de Janeiro: DIFEL, 2016.

VYGOTSKY, Lev. A formação social da mente. Série Psicologia e Pedagogia.


Organizadores: Michael Cole, Vera John Steiner, Sylvia Scribner, Ellen
Souberman; Tradução: José Cipolla Neto, Luís Silveira Menna Barreto,
Solange Castro Afeche. São Paulo: Martins Fontes, 1984.

YUNES, Eliana; PONDÉ, Glória. Leitura e leituras da literatura infantil. São


Paulo: FTD, 1988.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

PÊ DE PAI: PALAVRAS, IMAGENS E POESIA

José Helder Pinheiro Alves, Universidade Federal de Campina Grande,


Literatura infantil e as relações com a imagem
Marcela de Araújo Lira, Universidade Federal de Campina Grande,
Literatura infantil e as relações com a imagem

Considerações Iniciais

Os livros destinados ao público infantil condensam, comumente, a articulação


entre dois elementos: o texto escrito e a imagem visual. Essa articulação, quando
equilibrada, promove o uso coerente das funções de cada uma dessas linguagens.
Guardadas as devidas funções, esses dois elementos podem dialogar e construir
outros significados, que sugerem o próprio jogo polissêmico da leitura. Nesse jogo, por
vezes, existe uma relação entre imagem e texto de repetição e/ou de
complementaridade, o que pode favorecer uma perspectiva pragmática e reducionista
para a ilustração.
Em Pê de Pai (2006) de Isabel Minhós Martins e Bernardo Carvalho essas
relações são estabelecidas a partir da construção imagética das palavras e das
leituras sugestivas das imagens. O livro apresenta uma série de imagens e palavras
simples que constroem um ritmo poético para a caracterização do pai em um jogo
inusitado e lírico. Nesse trabalho, propomos investigar estratégias de construção de
sentido que possam orientar a leitura desses dois planos, considerando uma relação
de ampliação de sentidos.
Nossa leitura da obra procura mostrar a riqueza deste entrelaçamento entre
texto e imagem, que favorece uma experiência estética peculiar ao leitor – tanto
adulto, quanto criança. Por certo, se lidos pelos dois, a própria leitura compartilha com
a vida, e sugere situações de interação entre pai e filho. Há poucos momentos na
literatura infantil de língua portuguesa em que a imagem do pai comparece de modo
lírico e participativo de modo tão acentuado.
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Palavras e imagens na literatura infantil

Existe, no âmbito da literatura infantil, uma forte e indiscutível articulação entre


palavras e imagens. Sendo assim, faz-se necessário entender como funciona o olhar
da criança, sobretudo por parte dos adultos que, grosso modo, produzem e
recomendam livros para o público infantil. De fato, segundo Duvoisin (1974):

Com sua visão desinibida, as crianças não veem o mundo


como nós. Enquanto vemos apenas o que nos interessa,
elas veem tudo. Elas ainda não fizeram nenhuma escolha [;]
a criança também tem propensão a apreciar esse seu modo
detalhado em termos de acontecimentos, de coisas sendo
feitas ou, em outras palavras, em termos de histórias.
(DUVOISIN, 1974, p. 314 apud HUNT, 2010, p. 241).

Como é possível observar, Duvoisin defende que a leitura realizada pelas


crianças se distingue da dos adultos na medida em que estes apresentam uma
espécie de ―filtro‖ que media sua interpretação. Esse mesmo comportamento costuma
ocorrer durante a leitura de livros ilustrados: o olhar adulto normalmente procura nas
imagens uma relação óbvia e direta com o texto escrito, deixando, assim, de perceber
diversas informações. Em outras palavras, leitores adultos podem ser levados a
negligenciar a narrativa paralela proposta no plano visual daqueles livros. Tendo em
vista que a literatura infantil se caracteriza por ser fortemente vinculada à articulação
entre o texto escrito e as ilustrações, concordamos com Camargo (1995), Hunt (2010),
Linden (2011), Nikolajeva e Scott (2011), teóricos estes que preconizam a análise das
ilustrações como imprescindível para uma leitura satisfatória de livros ilustrados.
Haja vista não haver um consenso entre os críticos de literatura infantil quanto
aos critérios de avaliação a serem usados na análise de ilustrações em livros lidos por
crianças, a seleção dessas obras não se constitui em uma tarefa fácil (HUNT, 2010).
Essa dificuldade se mostra mais evidente quando se concebe o livro ilustrado como
uma possível porta de entrada para o mundo das artes e da literatura, tal como propõe
Townsend (1983):

Muitas vezes os livros ilustrados são a primeira introdução


da criança à arte e à literatura [...]. Dar a ela livros-ilustrados
crus, estereotipados é abrir o caminho para tudo o mais que
é cru e estereotipado [...] mesmo que as crianças nem
sempre apreciem o melhor quando o veem, elas não terão

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nenhuma chance de apreciá-lo se não o virem


(TOWNSEND, 1983, p. 321 apud HUNT, 2010, p. 243).

Embora se fale bastante na importância das ilustrações no âmbito da literatura


infantil, ainda é restrito arcabouço teórico acerca desse assunto. Como apontam
Nikolajeva e Scott (2011), há muitas pesquisas que focam a diversidade temática e
estilística dessas obras, e o resultado disso é que, em grande parte desses estudos,
―cada ilustrador é representado por uma única imagem. O caráter sequencial
específico dos livros ilustrados é ignorado, já que as ilustrações são tiradas do
contexto e consideradas fora de sua relação com o texto narrativo‖ (NIKOLAJEVA;
SCOTT, 2011, p. 16 - 17). Ainda segundo as autoras, outro problema comum é que:

Às vezes, os livros ilustrados são tratados como parte


integrante da ficção infantil, sendo analisados pelos críticos
com uma abordagem literária, discutindo temas, questões,
ideologia ou estruturas de gênero. [...]. Os estudos literários
em geral negligenciam o aspecto visual ou tratam as
imagens como secundárias. (NIKOLAJEVA e SCOTT, 2011,
p.17).

Pode-se pensar que tal negligência com o aspecto visual pode estar
relacionada à enorme predominância dos estudos relacionados à análise do texto
literário verbal. Como consequência disso é comum que os adultos ―percam‖ a
capacidade de ler os livros ilustrados, tendo em vista que ignoram o conjunto e
passem a encarar as ilustrações como meros elementos decorativos (NIKOLAJEVA;
SCOTT, 2011, p. 14).

Poesia infantil e ilustração

O escritor e ilustrador Luís Camargo, em sua dissertação de mestrado


intitulada Poesia Infantil e Ilustração:estudo sobre ―Ou isto ou aquilo‖de Cecília
Meireles, publicada em 1998, traz um estudo acerca do surgimento e consolidação da
poesia infantil no Brasil, bem como a relação desta com a ilustração.
Segundo Camargo, o surgimento da poesia infantil no Brasil está diretamente
atrelado à escola, que visava, sobretudo, a aprendizagem da língua portuguesa. Ele
acrescenta que a poesia (assim como a literatura de modo geral) pensada para
crianças não surgiu dos escritores, mas dos próprios professores, que passaram a
organizar e escrever antologias de textos em prosa e em verso que serviriam como
livros de leitura escolar (CAMARGO, 1998, p. 17).

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Até os anos 1960, em função desse forte vínculo com a escola, ―a poesia
infantil parece seguir um paradigma moral e cívico, aconselhando aos pequenos
leitores o bom comportamento e o civismo‖ (CAMARGO, 1998, p. 19). De acordo com
o autor, quem quebra esse paradigma é Sidónio Muralha, com A televisão da
bicharada (1962), através do ludismo sonoro e do humor. No entanto, bem antes de
Sidónio, poeta português radicado no Brasil, Henriqueta Lisboa publicou em 1941, O
menino poeta, obra que, a nosso ver, já rompera em grande parte com o referido
paradigma.Surge então um novo padrão, consolidado por Cecilia Meireles, com Ou
isto ou aquilo (1964), e Vinicius de Moraes, com A arca de Noé (1970) (CARARGO,
1998, p. 20).
Ainda segundo Camargo, ―a parceria entre poesia infantil e ilustração vem
desde a segunda edição de um dos primeiros livros com poemas escritos
especificamente para crianças, Contos Infantis (1886), de Júlia Lopes de Almeida e
Adelina Lopes Vieira.Contudo, ele enfatiza que, nesse tipo de obra, a ilustração tem
―caráter secundário, ou seja, trata-se de um código sobreposto, subordinado a um
código anterior, no caso, a linguagem verbal dos poemas‖. (CARMARGO, 1998, p.
14). Conforme Aracy Amaral esclarece:

Em princípio, à ilustração cabe valorizar o texto - pois nasce


em função dele - e o artista que se põe à disposição de
determinado autor é, desde então, seu colaborador, para um
resultado, a partir daí, de equipe. Assim sendo, [...] a artista
busca, pela ilustração, chamar a atenção visual do leitor
para os poemas, por meio de suas gravuras, fotografias ou
desenhos. (AMARAL, 1983, p. 112 apud CAMARGO, 1998,
p. 12).

Essa perspectiva é corroborada por outros autores, como Nikolajeva e Scott,


que consideram esses livros ―poesias ilustradas‖, tendo em vista que por via de regra
as ilustrações, nessas obras, possuem uma função basicamente decorativa, já que,
diferentemente do livro ilustrado, o texto existe por si só e acontece independente das
ilustrações.
No entanto, valendo-nos das exceções, analisaremos aqui um livro ilustrado
que, embora se utilize de versos no seu texto escrito, é somente através da união
destes com as ilustrações que se desabrocha a poesia.

Pê de Pai

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Pê de Pai (2006) pode ser considerado um livro ilustrado de autoria dupla, isto
é, uma obra em que houve ―colaboração estreita entre autor e ilustrador, no qual o
autor deixa lacunas para o ilustrador preencher com imagens visuais‖ (NIKOLAJEVA e
SCOTT, 2011, p. 33). Nesse caso, o sentido emerge da junção das duas
linguagens.Escrito por Isabel Minhós Martins46 e ilustrado por Bernardo Carvalho47,
ambos portugueses, o livro foi publicado pela editora lusitana Planeta Tangerina em
2006 e, no Brasil, pela extinta Cosac Naify, em 2009.
O livro é composto por seis quadras (embora não haja divisão estrófica
tradicional) com esquema ABCB, isto é, apenas os versos pares rimam entre si. Cada
verso divide o espaço de uma página com uma ilustração. Aqui, texto e imagem se
misturam em mais de um aspecto: tanto no que se refere à fonte do texto, que é
manuscrita e parece ter sido posta ali pelas mãos do próprio ilustrador, de modo que
as frases se comportam como ―textos intraicônicos‖, isto é, palavras que aparecem
dentro das ilustrações (NIKOLAJEVA e SCOTT, 2011). Isso pode ser percebido desde
a capa do livro (Figura 1):

Figura 1 - Capa de Pê de Pai

Fonte: Minhós e Carvalho (2009)

Percebe-se, inclusive, que até os nomes dos autores seguem o mesmo estilo
de composição e se misturam ao todo. A imagem da capa está em consonância com o
título: há, embora sem muitos detalhes, uma figura paterna envolvendo a cabeça e
beijando o nariz do filho. O sorriso do último e os olhos cerrados de ambos conferem
ternura à cena.

46
Isabel Minhós Martins é uma premiada escritora portuguesa e fundadora da editora de livros
infantis Planeta Tangerina, reconhecida pelo vasto catálogo de obras que priorizam a relação
imagem-texto.
47
Nascido em Lisboa, Bernardo Carvalho é ilustrador de livros infantis e ganhador de prêmios
importantes, inclusive por Pê de Pai. É um dos cofundadores da editora Planeta Tangerina.
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Ainda na folha de rosto (Figura 2), há, além do título, uma pequena ilustração
muito significativa: o pai à frente e, atrás dele, sua sombra e seu filho sobreposto a ela,
dando a ideia tanto de que o filho é a própria sombra de seu pai, seguindo-o e
imitando-o quanto de que ele está à sombra do pai, sob sua proteção e amparo.
Figura 2 - Folha de rosto de Pê de Pai

Fonte: Minhós e Carvalho (2009)

Inicia-se então a história. Aliás, não há uma sequência narrativa, mas situações
independentes (mais uma característica da obra poética). As páginas poderiam estar
embaralhadas não fosse o fato de se tratar de um poema. Sendo assim, a ordem se
dá pela organização das rimas. Embora não haja narração, as cenas são muito
significativas e transmitem a ideia de ação. O livro em si não traz uma história
propriamente dita, mas váriascenas, contadas a cada verso, a cada imagem.
Pê de Pai é composto por metáforas verbais que só passam a fazer sentido a
partir das ilustrações. E isso não aconteceria isoladamente. Provavelmente, o fato de
texto e imagem se misturarem no espaço da página se dê justamente por essa
necessidade que um tem do outro.
Os personagens não são fixos. Ora a criança é um menino, ora uma menina, o
que é demonstrado apenas pelo comprimento ou tipo do cabelo. O pai, embora
apresente o mesmo formato, tendo em vista que os desenhos são compostos somente
por silhuetas, isto é, não há definição de traços ou de roupa, pode ser qualquer pai.
Essa ausência de detalhes permite variar os personagens sem necessariamente
atribuir-lhes características físicas específicas como tipo de cabelo, cor de pele, cor
dos olhos, espessura dos lábios etc. Mas nem por isso há monotonia. A variação dos
personagens acontece através das cores. As silhuetas e o fundo das páginas mudam
de cor a cada situação. Há, predominantemente, três cores por página: uma para o
fundo, uma para a criança e outra para o pai. A cor da fonte repete a de um dos
personagens, variando sempre.

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Não há cenários ou maiores detalhes, toda a ação acontece entre os


personagens. Um pai que se objetifica/presentifica - num bom sentido - diante de seu
filho a fim de suprir-lhe todas as necessidades. Dessa forma, os braços, pernas,
cabeça e ombros do pai assumem função de coisas.
Há situações de brincadeira, como em ―pai carrossel‖ (Figura 3 – canto
esquerdo), que gira a criança segurando-a pelos braços; ou o ―pai cavalinho‖ (Figura 3
– canto direito), que, sentado, empresta sua perna para que a filha se balance. Nessas
situações, o pai, munindo-se apenas do seu corpo, se transforma em brinquedo para a
criança.

Figura 3 - Página dupla de Pê de Pai (―pai carrossel‖ / ―pai cavalinho‖)

Fonte: Minhós e Carvalho (2009)

Surgem também situações em que o pai se coloca à frente do filho, sofrendo


em seu lugar, como é o caso do ―pai casaco‖ (Figura 4), que coloca sua cria debaixo
de suas roupas, protegendo-a, e se deixa molhar. Há também o ―pai guindaste‖
(Figura 5 – canto esquerdo), que suspende a criança pelo braço, provavelmente
livrando-a de algum perigo; e o ―pai trator‖ (Figura 5 – canto direito) que, como a
máquina, atravessa o terreno adverso, enquanto carrega o filho em seus ombros. Nas
duas imagens o pai está visivelmente desconfortável, enquanto a criança sorri, como
se tudo não passasse de uma brincadeira.

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Figura 4 - Página de Pê de Pai (―pai casaco)

Fonte: Minhós e Carvalho (2009)


Figura 5 - Página de Pê de Pai ("pai guindaste" / "pai trator")

Fonte: Minhós e Carvalho (2009)

Os momentos de pura ternura, apesar de haver ternura em tudo por aqui,


surgem em momentos como o ―pai sofá‖ (Figura 6), que empresta seu colo para o filho
ler um livrinho e do ―pai chocolate‖ (Figura 7 – canto esquerdo), que recebe uma
mordiscada amorosa na orelha.

Figura 6 - Página de Pê de Pai ("pai sofá‖)

Fonte: Minhós e Carvalho (2009)

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Essas situações se mesclam com momentos de reclamação, como no ―pai


seta‖ (Figura 7 – canto direito), que aponta o dedo severamente, como quem manda o
filho para o castigo ou para consertar alguma traquinagem; e de cumplicidade, como o
―pai cofre‖ (Figura 8 – canto esquerdo), que guarda todas as confidencias da filha, e o
―pai meta‖ (Figura 8 – canto direito), pronto para o abraço que vem depois uma
separação, longa ou curta (após uma viagem ou na volta da escola, por exemplo).
Figura 7 - Página dupla de Pê de Pai ("pai chocolate" / "pai seta")

Fonte: Minhós e Carvalho (2009)

Figura 8 - Página dupla de Pê de Pai ("pai cofre" / "pai meta")

Fonte: Minhós e Carvalho (2009)

As páginas duplas representadas nas Figuras 7 e 8 são sequenciais e, lidas


assim, fica clara a rima do texto (―Pai chocolate / Pai seta / Pai cofre / Pai meta‖).
Levando-se em consideração que a leitura imagem-texto exige que o leitor se demore
mais nas páginas do livro, é possível que essa sonoridade não seja percebida nas
primeiras leituras. Podemos pensar, portanto, em Pê de pai como um livro com
diferentes possibilidades de leitura. É uma obra que estabelece, a partir da
simplicidade, a complexidade. Texto curto e imagens minimalistas que, juntos, fazem
poesia.
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Considerações Finais

O percurso dialógico entre texto e imagem apresentado contribui para uma


recepção da obra, por parte da criança – e do adulto, por que não – envolvente,
participativa. A criança que ainda não lê a palavra, pode ler as imagens e atribuir
sentidos para as situações representadas. No entanto, é através da leitura casada que
vamos nos encantando com o poema, com a diversidade de situações poéticas que
nascem do cotidiano da convivência pai e filho. Trata-se de um pai que participa
efetivamente do cotidiano da criança e que não se apresenta como autoridade, como
quem dá ordem, impõe regras a serem seguidas. Neste sentido, o livro compõe o
paradigma estético que a literatura infantil assumiu ao longo do século XX. Trata-se de
um conjunto de situações que fazem do pai uma figura que acolhe, que brinca, que
que faz de seu próprio corpo um espaço de acolhimento. Um pai humanizado, que
foge ao modelo patriarcal que ainda predomina em muitas obras infantis, embora de
modo sutil.
O livro conjuga, com eficiência, a poesia da imagem – suas cores, seus
formatos, seus deslocamentos - e a poesia da palavra – postas nos ritmos, nas
sonoridades, nas imagens -, favorecendo uma leitura integrada e rica de significações
e encantamentos.

Referências

CAMARGO, Luís. Ilustração do livro infantil. 2. ed. Belo Horizonte: Lê, 1995.

_______________. Poesia Infantil e Ilustração:estudo sobre ―Ou isto ou aquilo‖ de


Cecília Meireles. Campinas, 1998. Dissertação (Mestrado em Teoria e História
Literária), Unicamp.

HUNT, Peter. Crítica, Teoria e Literatura infantil. Traduzido por Cid Knipel. São
Paulo: Cosac Naify, 2010.

LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado. Trad. Dorothée de
Bruchard. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

MARTINS, I. M.; CARVALHO; B. Pê de Pai. São Paulo: Cosc Naify, 2009.

NIKOLAJEVA, M.; SCOTT, C. Livro ilustrado: palavras e imagens. Tradução:


Cid Knipel. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

COMO E POR QUE TRABALHAR O TEXTO POÉTICO EM SALA


DE AULA? DO LETRAMENTO LITERÁRIO À PRODUÇÃO
ESCRITA

Thiago Henrique da Silva de Sales, Universidade Estadual do Paraná, Poesia e


oralidade.
Patrícia Josiane Tavares da Cunha Fuza, Universidade Estadual do Paraná,
Poesia e oralidade.

Considerações Iniciais

Nas palavras de Octavio Paz: ―a poesia é conhecimento, salvação, poder,


abandono. Operação capaz de transformar o mundo, a atividade poética é
revolucionária por natureza. A poesia revela este mundo; cria outro. Isola; une.
Experiência, sentimento, emoção‖48 e todo esse potencial estético e carga semântica
que constituem a poesia se potencializam quando apreciados pelas séries iniciais. A
escola é, ou deveria ser, o lugar onde essas emoções e anseios vários propiciados
pela arte poética, e tantas outras, despertam-se, desabrocham. No entanto, o trabalho
com o texto poético em específico e com a literatura em geral ainda não ocorre a
contento.
Vivemos num contexto escolar onde não se trabalha de maneira correta a
literatura, isso quando a mesma é trabalhada. Sabemos de sua importância em nossa
vida; contudo, a grande maioria dos professores insiste em enfocar outras questões,
deixando o trabalho com o texto literário como mero conteúdo previsto em
planejamento e nada mais do que isso, fazendo com que os alunos fiquem cada vez
mais desmotivados, sem entenderem o porquê de aprender tal atividade.
Embora a poesia possa perfeitamente ser lida por qualquer pessoa em
qualquer idade, é sabido que os alunos adolescentes e pré-adolescentes passam por
momentos de fortes transformações, em que os sentimentos desabrocham, muitas
vezes, de modo avassalador. Nessa fase da existência, são tomados por aflições,

48
PAZ (1956, p. 5)
397

questionamentos, momentos atípicos e muitos deles não recebem a devida atenção


em casa, acabando por se refugiar nas variadas tecnologias que o mundo oferece.
Assim, como a literatura pode interferir neste momento em que as emoções
desses jovens estão fervilhando, fazendo com que esses sentimentos aflorem em
histórias que poderão enriquecer seu crescimento humano? Será que nossos
professores estão preparados para lidar com esse misto de conteúdos, e trazer a
literatura para a sala de aula, trabalhando-a como merece ser trabalhada? Sem
dúvida, o estímulo à leitura do gênero textual poesia não pode ser realizado apenas
visando ao exercício de ler, mas sim a uma aventura estética e semântica por uma
gama de significados e enfrentamentos do mundo.
Ainda há muito que se fazer para que se derrubem preconceitos, quebrem-se
tabus, pois para muitos a poesia ainda é vista ‗como coisa de menina‘, já que mexe
com a sensibilidade das pessoas e dificilmente não emociona quem a lê. Tal iniciativa
deve partir do professor, pois é a partir também do ato da leitura em sala que o aluno
será estimulado a ler sempre e em qualquer outro lugar. Se o professor rejeita a leitura
do texto poético, não há que se esperar que o aluno a desenvolva a contento. O
professor, quando é apaixonado por aquilo que faz, deixa-se envolver pelo poema e
isso transparece no seu discurso, nas aulas e em sua forma de encarar a vida.

SOBRE A PROPOSTA

O que se propõe neste artigo é uma abordagem didática com a finalidade de


aproximar o aluno da arte poética, a partir do contato com a produção da brasileira
Cecília Meireles, bem como verificar e eventualmente responder à questão: Como e
por que trabalhar a poesia na escola? Tomar-se-á por base a proposta de um conjunto
de atividades a ser realizado com alunos de nono ano, partindo da concepção de
letramento literário até a conscientização do processo de escrita e produção literária,
visando o estímulo da leitura de poesia na sala de aula como um exercício crítico e
reflexivo, reiterando a importância do letramento literário e destacando o papel do
professor como mediador do processo de aquisição da leitura literária e, consequente,
da produção poética.

A escolha do corpus

A escolha de Cecília Meireles se deu por se tratar de uma escritora brasileira


que apresenta uma leitura leve e empolgante para trabalhar com os alunos dessa faixa
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etária do ensino fundamental, por meio da obra ―As palavras voam‖ (2005), que teve a
organização do poeta e escritor Bartolomeu Campos de Queirós. Essa obra reúne
poemas que expressam a beleza e a simplicidade de uma autora que se dedicou aos
pequenos, falando de temas os mais profundos e que envolvem a essência humana.
O mundo retratado em ―As palavras voam‖ (2005) traz consigo a singeleza do canto
dos pássaros, dos remos que batem nas águas para seguir em frente, do gemer da
pombinha da mata, do voo das borboletas e da canção que extraímos do universo ao
qual, por vezes, não damos a devida atenção.
Cecília Benevides de Carvalho Meireles nasceu em 7 de novembro de 1901, na
Tijuca, no estado do Rio de Janeiro. Órfã de pai na sua gestação e de mãe com pouco
menos de três anos, sendo criada por sua avó Dona Jacinta Garcia Benevides, aos 9
anos escreveu sua primeira poesia e, em 1919, estreou com o livro de poemas
―Espectros‖. Em seguida, publicaram várias outras obras. Suas poesias são de cunho
intimista e reflexivo, com certo teor filosófico, abordando temas como amor, tempo e
vida. Em seus escritos é possível encontrar a musicalidade e uma profunda
sensibilidade feminina, sempre questionando e buscando compreender o mundo em
que vive, muitas vezes por meio de suas próprias experiências de vida, partindo de
indagações, desencantos, tristezas, todos esses sentimentos marcados pelo lirismo.

DESENVOLVIMENTO DA PROPOSTA

Letramento literário

Partindo da ideia de que o letramento designa as práticas sociais da escrita


que envolve a capacidade e os conhecimentos, os processos de interação e as
relações de poder relativas ao uso da escrita em contextos e meios determinados 49,
torna-se mais fácil compreender a pluralidade do letramento, bem como a extensão do
significado da palavra para todo processo de construção de sentido, como o
letramento digital, por exemplo. Segundo Renata Junqueira de Souza (2007), ―o
letramento literário faz parte dessa gama de usos do termo letramento, porém, tem
uma relação diferenciada com a escrita e, por consequência, é um tipo de letramento
singular‖50.

49
STREET (2003)
50
SOUZA (2007, p. 102)
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Em primeiro lugar, o letramento literário é diferente dos outros tipos de


letramento porque a literatura ocupa um lugar único em relação à linguagem 51, ou
seja, cabe à literatura ―[...] tornar o mundo compreensível transformando a sua
materialidade em palavras de cores, odores, sabores e formas intensamente
humanas‖52. Além disso, o letramento feito com textos literários proporciona um modo
privilegiado de inserção no mundo da escrita, já que conduz ao domínio da palavra a
partir dela mesma. Finalmente, o letramento literário precisa da escola para se
concretizar, isto é, ele necessita de um processo educativo específico que a mera
prática de leitura de textos literários não consegue sozinha efetivar53.
Por isso mesmo, Graça Paulino e Rildo Cosson (2009) entendem o letramento
literário como ―[...] o processo de apropriação da literatura enquanto construção
literária de sentidos‖54. Diante disso, é importante entender que o letramento literário
não se trata apenas de uma habilidade pronta e acabada de ler textos literários, pois
requer uma atualização permanente do leitor em relação ao universo literário. Também
não é apenas um saber que se adquire sobre a literatura ou os textos literários, mas
sim uma experiência de dar sentido ao mundo por meio de palavras que falam de
palavras, transcendendo os limites de tempo e espaço 55.
Para Souza (2007, p. 103):

O letramento literário enquanto construção literária dos


sentidos se faz indagando ao texto quem e quando diz, o que
diz, como diz, para que diz e para quem diz. Respostas que só
podem ser obtidas quando se examinam os detalhes do texto,
configura-se um contexto e se insere a obra em um diálogo
com outros tantos textos. Tais procedimentos informam que o
objetivo desse modo de ler passa pelo conhecimento das
informações do texto e pela aprendizagem de estratégias de
leitura para chegar à formação do repertório do leitor.

Dessa maneira, o primeiro passo a que esse estudo se propôs foi selecionar o
livro a ser lido pela turma e, de antemão, foi escolhida uma antologia poética por
tratar-se de um tipo de texto de reconhecido valor estético. Vale lembrar que o estudo
desse e de qualquer outro tipo de texto literário pode não se dar a contento quando a
escola, por exemplo, o deturpa, transformando-o em texto de teor pedagógico.

51
SOUZA (2007, p. 102)
52
COSSON (2006, p. 17)
53
SOUZA (2007, p. 102)
54
PAULINO; COSSON (2009, p. 67)
55
SOUZA (2007, p. 103)
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Respeitar a totalidade da obra também é importante, pois não se pode retirar


ou saltar partes do texto que, por alguma razão, acham-se inadequadas para os
alunos. Afinal, o texto literário carrega em sua elaboração estética as várias
possibilidades de atribuição de sentidos. Desse modo, respeitar o texto faz parte de
sua adequada utilização.

A poesia na escola

A escola sem paredes


Não parece escola, não.
Tem razão, tem poesia,
Tem canto, tem melodia.

A escola sem paredes


Não parece escola, não.
Seu tijolo: a alegria.
Seu trabalho: a criação.
A escola sem paredes.

Moaci Alves Carneiro56

O poeta Moaci fala da escola, um lugar onde tem poesia, canto, melodia, cujo
tijolo é a alegria e o trabalho é a criação. Contudo, é sabido que a instituição escolar
está longe de utilizar a contento tais recursos, pois ainda está preocupada em fazer
com que seus alunos se tornem meros reprodutores de conteúdos programados para
vencer seu plano político pedagógico. Muitos gestores tentam fazer com que outros
trabalhos sejam desenvolvidos, mas, por conta de fatores vários, acabam por si só
dando valor a projetos que visam um retorno lucrativo.
Para que os projetos aconteçam nesse espaço escolar, a instituição precisa dar
seu respaldo. Em se tratando de literatura, sua colaboração é de suma importância,
como destaca Delia Lerner (2002, p.28)57: ―O desafio é formar pessoas desejosas de
embrenhar-se em outros mundos possíveis que a literatura nos oferece, dispostas a
identificar-se com o semelhante ou a solidarizar-se com o diferente‖. A escola tem o
dever de criar condições que possibilitem ao aluno tornar-se leitor, por meio do
trabalho com a aquisição do gosto pela leitura, visando à constituição de um leitor
ativo, crítico e participante da sociedade.
Nesse sentido, Ana Mariza Ribeiro Filipouski (2009, p.23)58 afirma que:

56
CARNEIRO (1997, p. 13)
57
LERNER (2002, p. 28)
58
FILIPOUSKI (2009, p. 23)

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Formar leitores implica destinar tempo e criar ambientes


favoráveis à leitura literária, em atividades que tenham
finalidade social, que se consolidem através de leitura
silenciosa individual, promovendo o contato com textos
variados nos quais os alunos possam encontrar respostas para
as suas inquietações, interesses e expectativas. Ler não se
restringe à prática exaustiva de análise, quer de excertos, quer
de obras completas, pois o prazer, a afirmação da identidade e
o alargamento das experiências passam pela subjetividade do
leitor e resultam de projeções múltiplas em diferentes universos
textuais. Nesse caso, o papel da escola é torná-lo mais apto a
fruir o texto.

Hodiernamente, o professor está inserido em um contexto onde os alunos não


são capazes de formar opiniões, expressar seus sentimentos, pois estão alienados a
uma massa que dita tudo o que eles precisam fazer, consumir e ser, e, nesse
momento social crítico, a escola tem um poder gigantesco nas mãos, pois é ela que
pode oferecer situações enriquecedoras, por meio de debates, seminários, palestras e
escrita, com a finalidade de desenvolver esse aluno para formar sua própria opinião e
discernir o certo do errado.
As autoras Borges e Goulart (2007, p.10)59 procuram transluzir a importância
da formação leitora do ser humano em todas as suas dimensões, afirmando que esse
ser humano que carrega a leveza da infância ou a inquietude da adolescência precisa
vivenciar, sentir, perceber a essência de cada uma das expressões que o tornam
ainda mais humano. Diferentes formas de expressão como [...] literatura (prosa e
poesia), por que estão presentes na unidade escolar? Porque são formas de
expressão da vida, da realidade variada em que vivemos. Muitas vezes, à medida que
a criança avança nos anos escolares ou séries do ensino fundamental, vê reduzidas
suas possibilidades de expressão, leitura e produção com diferentes linguagens.

A importância da poesia em sala de aula

Cada palavra uma folha


Cada palavra uma folha
No lugar certo.
Uma flor de vez em quando
No ramo aberto.
Um pássaro parecia
Pousado e perto.
Mas não: que ia e vinha o verso

59
BORGES e GOULART (2007, p. 10)
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Pelo universo.

Cecília Meireles60
De acordo com o poema de Cecília Meireles, as palavras voam e é isso o que
os alunos precisam entender sobre a poesia: que ela é jogo de palavras, explosões de
sentimentos, que detém o poder da brincadeira, basta fechar os olhos e deixar as
palavras voarem, entrar em um mundo mágico onde tudo é permitido, tudo é possível.
Nesse mundo encantado das letras, os pássaros cavalgam, as flores dançam, o amor
chora, a tristeza enche-se de alegria e os tamanquinhos das bailarinas ganham som. A
poesia é brincar, sonhar e assim como o convite do poeta José Paulo Paes, os alunos
têm que brincar de poesia:
Poesia
é brincar com palavras
como se brinca
com bola, papagaio, pião.
Só que
bola, papagaio, pião
de tanto brincar
se gastam.
As palavras não:
quanto mais se brinca
com elas
mais novas ficam.
Como a água do rio
que é água sempre nova.
Como cada dia
que é sempre um novo dia.
Vamos brincar de poesia?61

Assim como qualquer outra obra de arte, a poesia convida o leitor a voltar
várias vezes e apreciá-la, degustá-la; como diz Norma Goldstein (2006), a poesia e as
demais obras de arte ―convidam o leitor/espectador/ouvinte a retornar à obra mais de
uma vez, desvendando as pistas que ela apresenta para a interpretação de seus
sentidos‖62. Quanto mais se lê poesia, mais se quer ler, pois sonhamos acordados e
acordados vemos nossos sonhos se concretizarem. A poesia é capaz de, segundo
Fanny Abramovich (1997) ―provocar encantamento, suspiros, concordância, gostosura,
vontade de querer mais, de precisar ler de novo para melhor se inteirar‖63, permitindo
ao aluno, quando leitor, encontrar nas palavras novas maneiras de interpretar a si e ao

60
MEIRELES (1978, p. 46)
61
PAES (1985, p. 31)
62
GOLDSTEIN (2006)
63
ABRAMOVICH (1997, p. 95)

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mundo e, quando redator, colocar no papel seus sentimentos, seus anseios, suas
angústias e aflições. E para tal, o professor precisa apresentar à turma ―...emoção
verdadeira, ritmo, cadência pedidos...que faça pausas para que cada ouvinte possa
cobrir – por si próprio – cada passagem, cada estrofe, cada mudança...‖64. Brincando
com as palavras, é possível tornar sua vida, o seu momento mais fácil de lidar, pois
como bem coloca Voltaire (s.d.) ― a poesia é a música da alma, e, sobretudo, de almas
grandes e sentimentais‖65.
Assim, para que todo esse fascínio venha a aflorar no aluno, o docente é peça
fundamental do processo de letramento, já que, de acordo com Beatriz Verges Fleck
(2003):
Cabe ao professor a responsabilidade de despertar em seus
alunos uma atitude positiva em relação à poesia, e como não
se pode transmitir o que não se sente, o professor também
deve transmitir ao aluno seu sentimento verdadeiro pela
poesia, sua capacidade de sentir e compreender a intenção da
poesia como um sentimento verdadeiro.66

É grandioso o poder que os textos poéticos têm, e, atrelado a esse sentimento


verdadeiro que encontramos no trabalho docente em sala de aula, Nely Coelho (1993)
bem retrata que a poesia pode ganhar novas formas, afinal, não podemos abordar o
aspecto estrutural do poema, temos que dar significação, dar vida, externar esse
sentimento, seja ele através da música, do teatro, da escultura, da imagem e tantas
outras formas presentes no nosso dia a dia67. E, para tanto,

muito agradável ao aluno e verdadeiramente educativo é partir-


se do poema para novas formas de expressão. Sob a sugestão
do texto, os desenhos, as montagens, o coro falado, a tentativa
de criação de novos poemas, são meios de desenvolver a
criatividade das crianças. (ANTUNES, 1988, p.96 apud
QUADROS et.all. 2006 p.4)68.

A criatividade dos alunos vai além e é comum nos depararmos com


verdadeiras obras de arte, isso tudo porque o contato do discente com a poesia ―faz
com que a criança visualize suas próprias vontades ou sua ideia de felicidade se abra

64
ABRAMOVICH (1997, p. 95)
65
VOLTAIRE (s.d.)
66
FLECK (2003, p. 56)
67
COELHO (1993)
68
ANTUNES (1988, p. 96)
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a uma porta para o sensível, para o belo, porque poesia ensina a beleza da língua,
aguçando a imaginação e a criatividade‖69.
Devemos ter plena consciência sobre a importância de se trabalhar poesia em
sala de aula. Isso posto, destaque-se o trabalho com a oralidade, pois, nas palavras
de Abramovich (1997, p.148), ―Importante é explorar, discutir, clarear. Não cobrar.
Fazer vibrar‖70. E ainda mais sério se configura o trabalho com a escrita. Muitos
docentes acreditam que é impossível desenvolver alunos escritores. Nesse sentido,
Marlene Carvalho responde que ―a criança pode escrever poesias sim. Depois de ouvir
e ler os poetas, muitas crianças arriscam seus primeiros versos‖71. E sabemos o quão
fundamental é o letramento poético, ―ah, como é importante para a formação de
qualquer criança ouvir muitas, muitas histórias... escutá-las é o início da aprendizagem
para ser um bom leitor, e ser leitor é ter um caminho absolutamente infinito de
descoberta e de compreensão do mundo‖72
Apresentamos a importância do trabalho com o texto poético em sala de aula,
porém, como podemos de fato trabalhar didaticamente com ele e fazer com que nosso
aluno tome gosto, internalizando todas essas significações?

Vamos trabalhar poesia?

Lecionando em um colégio, deparei-me diversas vezes com alunos que sequer


liam algo e que não tinham opiniões formadas, concordavam com tudo o que lhes era
posto e, para eles, a poesia era bicho de sete cabeças. Fiquei angustiado com a
situação e pensava sempre em como fazer com que esses alunos libertassem seus
medos, suas convicções e seus sentimentos. Muitos professores devem passar por
essas inquietações, querem fazer algo para reverter esse quadro de alunos que não
demonstram nenhum interesse pelas obras literárias e não conseguem escrever nada.
Baseando-se nessas inquietações, foi elaborada uma proposta de sequência
didática para que os docentes possam trabalhar ao longo do ano letivo, fazendo uso
como exemplificação da antologia poética As palavras voam (2005), de Cecília
Meireles. Tem como intuito estimular esses alunos para que gradativamente se tornem
leitores do texto poético, traduzam em palavras seus sentimentos, expressem suas
emoções nas canções, declamem seus medos e anseios nos saraus, posicionem-se
frente à sociedade e se tornem grandes amantes das obras.

69
FLECK (2003, p. 57)
70
ABRAMOVICH (1997, p. 148)
71
CARVALHO (2005, p. 93)
72
ABRAMOVICH (1997, p. 17)
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Para que se inicie tal proposta de trabalho, antes se faz necessário destacar
alguns pontos hábeis para que seja compreendida da melhor maneira possível tal
sequência metodológica. Para que o presente trabalho seja profícuo, os alunos
precisam vir de um trabalho sério desde o 6º ano do ensino fundamental, pois é nas
séries iniciais que se deve começar a desenvolver o trabalho de leitura literária, por
meio, principalmente, da contação de histórias, a fim de que os alunos tomem
gradativamente gosto pela leitura e sejam, aos poucos, capazes de realizar trabalhos
mais densos. Isso não significa que não seja possível um trabalho com seriedade no
9º ano, porém, quanto mais esses alunos forem trabalhados anteriormente, mais
condições terão de realizar esta ou qualquer outra proposta de atividade a contento ao
chegarem ao 9º ano.
Um dos aspectos mais importantes a ser abordado é o planejamento anual no
início de aulas, já que é o momento ideal para que os professores de Língua
Portuguesa sentem e elaborem uma sequência de trabalho que possa contemplar
todos os anos, a fim de que o trabalho não se perca no trajeto. Em relação ao tempo
necessário para a realização satisfatória da proposta, nos organizaremos em um
bimestre, salientando que o professor dispõe de cinco aulas semanais para as turmas
de ensino fundamental do primeiro ciclo, contudo essas aulas são divididas entre
conteúdos de leitura, produção de texto, reflexão linguística e oralidade. Como
sugestão, o interessante é que se inicie o ano letivo com essa proposta, abordando a
poesia no viés ―Leitura‖, uma vez que os gêneros devem ser explorados nesse
contexto e, para tal, serão separadas duas aulas semanais.
Dar-se-á início ao trabalho criando um espaço de apreciação da linguagem
poética de Cecília Meireles, uma vez que é por meio da prática da leitura que os
alunos hão de se interessar pelo gênero. Nesse primeiro momento, visamos o
desenvolvimento da sensibilidade estética, além de aprimorar os conceitos do gênero.
Caberá ao professor organizar o ambiente com uma música de fundo, bem tranquila,
apresentar o livro ―As palavras voam‖ (2005), contextualizar a autora (é preciso que os
discentes saibam quem é Cecília Meireles) e, isso posto, deixar que leiam.
Isabel Solé (1998, p. 22)73 fala que ―a leitura é um processo de interação entre
o leitor e o texto‖. Para tanto, é de suma importância que o espaço crie condições para
que a leitura seja feita. Se a sala não for um local ideal, pode-se levar os alunos à
biblioteca ou a algum outro lugar afastado de outras salas, para que o silêncio ocorra.
Para esse momento, faz-se necessário reservar duas aulas. O livro é curto, então, em

73
SOLÉ (1998, p. 22)
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uma aula o aluno faz a primeira leitura e na segunda aula, o mesmo retoma para
perceber outros aspectos dos poemas. Norma Goldstein (2006) diz que: tanto a
poesia, quanto outras formas de arte ―convidam o leitor/espectador/ouvinte a retornar
à obra mais de uma vez, desvendando as pistas que ela apresenta para a
interpretação de seus sentidos‖74.
Para a terceira aula, o professor declamará a poesia Pequena canção da onda
e, na sequência, solicitará aos alunos que representem por meio de desenhos o que
entenderam do poema, fazendo assim uma releitura. Faz-se necessário que o
professor, nesse momento, deixe que os alunos esbocem tudo aquilo que sentem,
desejam e, então, que passem a colorir a gravura. No momento da criação, tocar a
canção instrumental Aquarela, de Toquinho. Segue a poesia:
Pequena canção da onda

Os peixes de prata ficaram perdidos,


com as velas e os remos, no meio do mar.
A areia chamava, de longe, de longe,
Ouvia-se a areia chamar e chorar!
A areia tem rosto de música
E o resto é tudo luar!
Por ventos contrários, em noites sem luzes,
Do meio do oceano deixei-me rolar!
Meu corpo sonhava com a areia, com a areia,
Desprendi-me do mundo do mar!
Mas o vento deu na areia.
A areia é de desmanchar.
Morro por seguir meu sonho,
Longe do reino do mar!75

Iniciando a quarta aula, solicitar aos alunos que sentem em duplas e que
compartilhem um com o outro seu desenho, expressem seus sentimentos e falem o
porquê de tal representação, o que os levou a fazer a ilustração. Houve algum motivo
em especial? É importante deixar os alunos por alguns minutos apreciarem e trocarem
informações sobre as gravuras. Após esse tempo, solicitar que troquem de duplas
para que possam vivenciar outras informações. Nesse momento, o papel do professor
será de mediador, instigando os alunos a falarem, porém, sem interferir na
comunicação deles com seus colegas.
Em seguida, dar-se-á início à interpretação da poesia e, nesse caso, algumas
perguntas serão necessárias para uma melhor compreensão. Mais uma vez, deixar
que os alunos se expressem. Qual o significado de ficar perdido com as velas e os

74
GOLDSTEIN (2006)
75
QUEIRÓS (2005, p. 29)
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remos, no meio do mar? Como se ouve a areia chamar e chorar? Por que a areia tem
rosto de música? Qual é essa música que a areia retrata? O corpo de quem sonhava
com a areia? Ele conseguiu realizar seu sonho? Outras questões poderão surgir no
desenrolar da compreensão. É fundamental que se traga o poema para a realidade do
aluno: será que esse aluno conhece o mar? Se sim, quais recordações ele tem para
compartilhar com a turma, se não, como imagina o mar? Ao término da atividade,
recolher as gravuras, pois as mesmas serão utilizadas em outra atividade a posteriori.
Na quinta aula, o trabalho será organizar um varal de poesias com poemas e
lindas gravuras. De posse das poesias do livro que se está trabalhando, o professor
solicitará que os alunos escolham duas poesias e transcrevam-nas em uma cartolina,
fazendo desenhos em seu entorno para chamar a atenção. Para que o trabalho fique
empolgante, pedir para os alunos sentarem em pequenos grupos e deixá-los livres
para criarem. Se possível, novamente colocar uma música de fundo e percorrer os
grupos auxiliando no que precisarem. As poesias podem ser escritas com letras
desenhadas.
É chegado o momento de se faz era primeira exposição. Nessa aula,
juntamente com os alunos, o professor vai expor os primeiros trabalhos da turma, que
são os desenhos referentes à poesia ‗Pequena canção da onda‘ e dos demais poemas
e gravuras escolhidos pelos alunos da antologia ‗As palavras voam‘ (2005). José
Helder Pinheiro (2002, p.26)76 aponta que:

improvisar um mural, onde os alunos, durante uma semana,


um mês, ou o ano todo coloquem os versos de que mais
gostam (...) de qualquer época ou autor, são procedimentos
que vão criando um ambiente (...) em que o prazer de lê-los
passa a tomar forma.

Caberá ao professor providenciar uma imagem de Cecília, bem como um


painel escrito ―Primeira Exposição da Turma do 9º ano‖. Os desenhos podem ser
plastificados e colados no chão fazendo um caminho, as cartolinas podem ser afixadas
em cavaletes de exposições, podem ser colocados pequenos enfeites para decorar o
ambiente escolhido para ser realizada a exposição. Terminada a organização do
espaço, chamar sala por sala para que o trabalho dos alunos seja apreciado.
Instruir os alunos a ficarem em duplas perto dos seus trabalhos, pois outros
alunos e professores poderão perguntar algo relacionado ao trabalho e ninguém
melhor que seu criador para responder. Esse momento de contato com outras

76
PINHEIRO (2002, p. 26)
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pessoas será importante para a realização da terceira etapa do trabalho. Cabe ao


professor, após o término dessa exposição, parabenizar seus alunos pelo ótimo
trabalho, pois é muito importante o reconhecimento pelo trabalho bem feito.
Terminada a prima etapa do trabalho, dar-se-á início à sétima aula, trabalhando
a musicalidade das poesias, pois para Pinheiro (2002, p. 53)77 ―a leitura deste gênero
(poesia) deve envolver e cativar o leitor, através da utilização de recursos sonoros‖.
Para tanto, deve-se recorrer às poesias musicadas de Cecília. Esse momento servirá
para o aluno reconhecer a presença das poesias no seu dia a dia, como, por exemplo,
através da música. O professor trará para a sala as poesias impressas, fará a leitura
com os alunos e a dinâmica de leitura caberá ao professor explorar, pois cada um tem
uma maneira particular de fazê-la. Após a leitura, o docente perguntará se é possível
cantar as poesias ou se elas somente são declamadas. Chegou a hora de colocar as
canções e depois de ouvi-las (o professor poderá cantar com seus alunos). As poesias
musicadas são: ‗A bailarina‘, ‗As meninas‘, ‗Canção de outono‘ e ‗Motivo‘.
Nesta sétima aula, caberá ao professor criar condições para que os alunos
reconheçam que assim como outros gêneros textuais, o poema possui sua estrutura
particular. Depois de ouvir as poesias musicadas e de posse da letra, os discentes,
com o auxílio do educador, perceberão como são feitas as rimas poéticas, se são
rimas externas ou internas, a qual classe gramatical pertencem, se são rimas pobres
ou ricas. Devem aprendem ainda como é chamada cada linha escrita do poema, a
qual leva-se o nome de verso e que um conjunto desses versos denomina-se estrofes.
Ao mestre cabe ressaltar que são discentes de 9º ano e que esse reconhecimento
estrutural não pode ser complexo para os educandos. Esse trabalho visa o lúdico, pois
o aluno precisa ser estimulado cada vez mais para o contato poético e não para o seu
distanciamento. Como diz Elias José (2003, p.101) 78, ―ser poeta é um dom que exige
talento especial. Brincar de poesia é uma possibilidade aberta a todos.‖
Dando continuidade ao trabalho, essa aula é de extrema importância, pois para
o poema extrapolar sua estrutura gramatical e tornar-se poesia é preciso explorar os
sentimentos e transmiti-los ao público. Nesse caso específico, a plateia são os alunos.
É fundamental surpreender os pequenos com uma aula inusitada. É chegado o
momento de ensinar o ritmo poético e nada melhor do que a declamação. Sugere-se,
nesse caso, ―A canção dos tamanquinhos‖:
Troc... troc... troc... troc...
Ligeirinhos, ligeirinhos,
Troc... troc... troc... troc...
77
PINHEIRO (2002, p. 53)
78
JOSÉ (2003, p. 101)
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Vão cantando os tamanquinhos...

Madrugada. Troc... troc...


Pelas portas dos vizinhos
Vão batendo, troc... troc...
Chove. Troc... troc... troc...
No silêncio dos caminhos
Alagados, troc... troc...
Vão cantando os tamanquinhos...

E até mesmo, troc... troc...


Os que têm sedas e arminhos,
Sonham – troc... troc... troc...
Com seu par de tamanquinhos...79

É fundamental retratar os sons dos tamanquinhos, fazendo com que os alunos


percebam os diferentes sons existentes no poema, dando ritmo, intensidades
diferentes, pois o poema apresenta momentos particulares, tais como o barulho dos
tamanquinhos ligeirinhos, de madrugada pelas portas dos vizinhos, na chuva no
silêncio dos caminhos alagados; criar mecanismos para distinguir esses sons e
lembrar-se que a intensidade da voz e dos sons instiga ainda mais a curiosidade dos
estudantes. Tudo o que é novo e diferente desperta a atenção deles. Depois disso,
comentar que cada poema vai depender de recursos diferentes, de tonalidades
sonoras, pois cada um retrata um sentimento. Portanto, é preciso sentir, tentar
compreender o que o autor quis transmitir e reproduzir colocando suas impressões. Se
for o caso, colocar o áudio de alguns poemas declamados ou até mesmo vídeos para
que os alunos percebam questões como postura, dramatização, intensidade e
tonalidade vocal.
A nona aula se propõe a desafiar ainda mais os pequenos, uma vez que é esse
o momento de colocar em prática o que eles aprenderam na aula anterior. O papel do
professor nesse momento será de anunciar para os alunos que na aula seguinte farão
a declamação de uma poesia com a qual mais se identificaram presente no corpus
aqui estudado. Deixar nessa aula que os estudantes releiam as poesias e escolham
qual será a protagonizada; caberá ao mestre sortear a ordem das apresentações e
passar as regras básicas da atividade. Sugerir caracterizações, improvisos, a fim de
que entendam que se pode criar algo ou reaproveitar aquilo que eles já tenham.
Feito toda a distribuição e organização das apresentações, as décima e décima
primeira aulas serão de avaliação do trabalho proposto: o importante é que eles não
percebam e não vejam a atividade como algo avaliativo, mas sim como parte de um

79
QUEIRÓS (2005, p. 84)
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processo. Sempre em cada desfecho de trabalho, o papel do professor é de


parabenizar seu aluno, afinal ele é merecedor de cada passo que está dando no
desenvolvimento do projeto. O estímulo é de extrema importância na eficácia de
qualquer trabalho.
A nova etapa deste trabalho se pautará na criação, a produção escrita da
poesia. Na décima segunda aula, o professor disporá no quadro algumas palavras
aleatórias que façam sentido dentro de um contexto pré-determinado, pedirá para os
alunos lerem essas palavras e, em dado momento, montará com essas palavras uma
poesia no quadro, fazendo perceberem a estrutura trabalhada anteriormente. Solicitará
aos seus alunos, em contrapartida, que façam o mesmo.
Nesse primeiro momento, é interessante que o professor crie algumas
situações para facilitar a escrita dos discentes, tais como pedir aos alunos que:
imaginem que vocês estão dentro de casa e não podem sair para brincar porque está
chovendo, quais sentimentos estão contidos em vocês, expressem esse misto através
de palavras, e que estas rimem entre si. É importante que nessa escrita os alunos
tenham posse de dicionários para procurarem sinônimos, palavras de rimas fáceis (ou
não). O professor deve auxiliá-los, a fim de que o processo seja o mais tranquilo
possível. Esse momento é de suma importância, pois ao educador caberá o papel de
orientar nas escolhas de palavras, reforçar esse sentimento nos alunos. Deixar que
façam em casa essa atividade também, ressaltando que os colegas podem se ajudar.
Na décima terceira aula, a produção de poesia será individual, uma vez que
cada um tem um jeito único de escrever, uns terão a tendência de falar mais de amor,
outros de tristeza, medo, angústia e isso é o mais interessante, pois através das
poesias é possível conhecer mais cada aluno; o histórico pessoal de vida de cada um
contará muito nessa produção, já que eles representarão na escrita aquilo que são, o
que viveram ou estão vivendo. Sem dúvida, é sabido que, em se tratando da
construção literária e seu teor ficcional, a mesma não tem nenhum compromisso com
a realidade, tampouco precisa ser reflexo literal da vida de seu autor. No entanto, tais
considerações acabam por ser reconhecidas geralmente por leitores mais experientes.
Voltando à proposta, depois que os alunos passam a gostar da escrita, tendem
a não mais parar, como ocorre também com a leitura. Salienta-se que esses trabalhos
precisam de revisão e isso caberá ao professor, desempenhando essa função da
maneira que julgar necessário. Podem ser declamadas essas poesias em sala para
que os colegas apreciem a particularidade de cada aluno, já que a troca de
experiência em sala de aula é muito válida.

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Após a escrita e a revisão dos textos, será organizado um evento para a


concretização do trabalho, o qual poderá se intitular ―Noite Poética – Tributo à Cecília‖
e, para convidar a comunidade escolar, os alunos podem criar uma caixa de poesias,
distribuindo-as como forma de convite para o encerramento do trabalho. Far-se-á
necessário desenvolver o roteiro da noite, quem será o apresentador, quais poesias de
Cecília serão declamadas, quais poemas dos alunos serão recitados, será
dramatizada alguma poesia, terá músicas, quem cantará, quem representará, qual o
tipo de figurino, tudo deve ser feito juntamente com os alunos. Definidas todas essas
questões, é preciso ensaiar, preparar-se para essa grande noite, sabendo que o
professor contribuiu para que mais alunos se tornem leitores/ apreciadores do texto
literário.

Considerações Finais

Ao longo desse processo, foi possível observar que o letramento literário não
se trata apenas de uma habilidade pronta e acabada de ler textos literários, pelo
contrário, requer do leitor uma atualização permanente em relação ao universo literário
e, por assim dizer, espera-se que esse leitor dê sentido ao mundo por meio das
palavras que falam de palavras, que têm o poder de transcender os limites do tempo e
espaço. Bartolomeu Campos de Queirós (2005) diz que o poeta sabe como ninguém
que o homem é verbo e sua vida é conjugável: é passado, é presente, é futuro. Por ser
assim, sua escritura não tem idade.
Espera-se com essa proposta contribuir para a formação de professores e
ajudar a disseminar a poesia nas escolas, a fim de que os alunos entendam sua
importância como meio de expressão das angústias, medos, anseios e quaisquer
outras emoções, transformando-as em palavras e que essas palavras sejam capazes
de atravessar os muros das escolas, acabando com os preconceitos existentes ainda
em relação à leitura poética. É preciso que haja instituições capazes de se atentar às
reais necessidades dos alunos, que seu trabalho não seja meramente burocrático, que
elas contribuam efetivamente na formação do seu aluno.
Cecília Meireles foi a grande inspiração para a realização desse trabalho. Que
ao longo de suas vidas, os alunos possam encontrar várias outras inspirações e que
sua leitura possa vir recheada de grandes autores, grandes poetas. Nas palavras de
Cademartori (2010, p. 9)80: a criança que costuma ler, que gosta de livros de história
ou de poesia, geralmente escreve melhor e dispõe de um repertório mais amplo de

80
CADEMARTORI (2010, p. 9)
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informações. Do mesmo modo, espera-se que esta proposta de atividade com o texto
poético contribua de algum modo para a disseminação da leitura literária como
instrumento fundamental de formação e humanização do sujeito.

Referências

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STREET, Brian. What‘s ―new‖ in New Literacy Studies? Critical approaches to
literacy in theory and practice. Current issues in Comparative Education, [New York],
v. 5, n. 2, p. 77-91, Columbia University, 2003. Disponível em:
<http://www.tc.columbia.edu/cice/Archives/5.2/52street.pdf>. Acesso em: 28 jun. 2007.
http://ceciliameirelescoletania.blogspot.com.br/2011/08/caracteristicas-das-obras-de-
cecilia.html
https://caldeiraodeideias.wordpress.com/2009/01/21/projeto-hoje-e-dia-de-poesia-9/
VOLTAIRE, Frases. Kd Frases. Disponível em: >http://kdfrases.com/frase/141911<
Acesso em: 05 de junho de 2014.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

LEITURA E APRECIAÇÃO DE TEXTOS POÉTICOS


NAALFABETIZAÇÃO: UMA EXPERIÊNCIA COM SARAU DE
POESIA

Keila Antônia Barbosa Souza, E.E. Querência, Mato Grosso, Eixo Temático 3:
Poesia e oralidade
Sílvia de Fátima Pilegi Rodrigues, Universidade Federal de Mato
Grosso/Câmpus Universitário de Rondonópolis – Programa de Pós-Graduação
em Educação, Eixo Temático 3: Poesia e oralidade

Considerações Iniciais

O trabalho com textos poéticos na escola possibilita situações de leitura


utilizando recursos da oralidade de forma lúdica e ainda contribui para a aprendizagem
ensino da língua materna no ciclo de alfabetização.
Através de uma pesquisa bibliográfica, tendo como foco para as análises a
observação, este estudo apresenta considerações importantes a partir de uma
experiência intitulada Sarau de Poesias, desenvolvida no ciclo de alfabetização. A
atividade consistiu na leitura, apreciação, declamação e dramatização de poesias,
através da seleção de alguns poemas escritos para crianças, visando estimular o
gosto pela leitura e o desenvolvimento da linguagem por meio dos recursos que o
texto poético possui, pois, conforme Renata Junqueira de Souza: ―cabe à escola de
igual forma, orientar o trabalho de leitura de vários tipos de material escrito, abrindo,
assim, os horizontes de expectativas do leitor mirim‖ (SOUZA, 2012). A referência à
apreciação estética baseia-se nas contribuições de Fanny Abramovich (1994), ao
reforçar que uma das funções do trabalho com poesia na escola é aguçar os sentidos,
as sensações, despertar nas crianças os diversos sentimentos como: amor, alegria,
medo raiva, esperança, amizade e outras questões do universo infantil de forma lúdica
e prazerosa. E ainda por acreditar que a poesia pode sim contribuir para a ampliação
do repertório de leitura da criança e para a formação do leitor infantil.
415

Leitura de textos poéticos para crianças: a importância da apreciação estética


O trabalho com textos poéticos no ciclo de alfabetização tem despertado em
nós a percepção de a poesia é um gênero importante para se trabalhar na escola, pois
ela pode agregar ao trabalho docente elementos importantes para desenvolver o
ensino voltado para a aprendizagem da língua e para apreciação estética. Além disso,
a poesia contém em sua estrutura jogos de palavras, onde as crianças encaram como
brincadeira a aprendizagem de novos recursos linguísticos.
A respeito do trabalho com a poesia no contexto escolar, Regina Zilberman
(2005)chama a atenção para o fato de que sempre existiu desde o século XX, porém
nem sempre teve esse caráter lúdico, infantil em função da própria história da literatura
no contexto escolar, que previa a educação das crianças através de textos
moralizadores e não despertavam nas crianças ―o gosto por ler‖ (ZILBERMAN, 2005,
p. 127).
Maria Antonieta Cunha, sobre o tema, afirma que ―de todos os gêneros, deve
ser o menos comprometido com os aspectos morais ou instrutivos‖. (CUNHA, 1986, p.
121). Segundo a autora, o caráter principal dos textos poéticos é a ludicidade. Desse
modo, trabalhar com poesia na escola, em especial no ciclo de alfabetização, é propor
que as crianças tenham experiências de leitura de forma lúdica tornando possível
apreciação, a atenção com relação aos efeitos que produzem os textos poéticos.
Contribuindo com o tema, Eliseu Ferreira da Silva e Wellington Gomes de
Jesus salientam que ―Escrever versos para crianças e esperar que essas apreciem a
leitura é estabelecer uma conexão entre brincar e escrever, por isso, o ângulo lúdico é
fundamental em todo o poema dirigido aos pequenos‖ (SILVA; JESUS 2011, p. 25).
Essa afirmação nos permite compreender a dimensão estética que o trabalho com a
poesia possui.
Essa ideia é reforçada Joseane Maia (2007), ao acrescentar que a poesia
exerce fortes influências sobre os sentidos e as emoções das crianças. Daí a
importância de provocar nas crianças o gosto por ler e conhecer poesias e não
alimentar um trabalho voltado para a memorização ou para realização de atividades
com fins específicos.
Em função disso, a autora defende que o trabalho com poesias direcionado
para crianças pode ter vários sentidos, porém o objetivo principal deve ser o de
―despertá-las para a percepção do estético, expresso através da palavra escrita‖
(MAIA, 2007, p. 109). Essa apreciação estética destacada pela autora exige que o
trabalho seja minucioso, tendo como ponto de partida a leitura para que as crianças se
sensibilizem e tenham interesse em buscar por outras poesias.
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De acordo com Abramovich (1994), o trabalho com a poesia torna-se rico e


lúdico em função da poesia possuir características marcantes como: aliterações,
rimas, repetição de fonemas para produzir efeito sonoro. Esse fato possibilita que as
crianças tenham contato com textos que causam diferentes sensações, nas palavras
da autora, a poesia para crianças tem que ser antes de tudo:
Muito boa de primeiríssima qualidade! Bela, movente cutucante,
nova, surpreendente, bem escrita... Mexendo com a emoção, com os
poros, mostrando algo de especial ou que passaria despercebido,
invertendo a forma usual de a gente se aproximar de alguém ou de
alguma coisa... Prazerosa, divertida inusitada se for a intenção do
autor......Prazerosa, triste, sofrente, se for a intenção do autor....
Prazerosa, gostosa, lúdica, brincante, se for a intenção do autor...
(ABRAMOVICH 1994, p. 67)

Considerando as características que compõem o texto poético, suas


influências na formação do leitor infantil e suas contribuições para aprendizagem da
língua materna, como forma de contextualização trazemos aqui considerações breves
a respeito delas. Uma das características destacada é o jogo de palavras, que é
caracterizado pela aliteração, um recurso riquíssimo que as crianças encaram com
brincadeira. De acordo com Abramovich (1994, p.67), ―as crianças lidam com toda
uma ludicidade verbal, sonora, às vezes musical, às vezes engraçada, no jeito que vão
juntando as palavras‖.
A rima,por sua vez, embora não seja obrigatória, é uma característica
marcante nos textos poéticos.Abramovich (1994)a considera como um recurso
atraente para a leitura e apreciação dos textos poéticos, e não possui um caráter
técnico, ou seja, há rimas diversas podendo ter efeito sonoro ou não, o mais
importante é a essência da palavra lida. É exatamente a rima que permite ao leitor a
percepção do ritmo, outra marca importante na poesia. Abramovich definiu ritmo como:

A característica que possibilita o acompanhamento musical do que é


lido ou ouvido, dado pelos olhos que vão seguindo linhas e linhas,
dado pela voz que fala, pelo corpo que se move junto, seguindo o
compasso dos versos, cadência do poema, o envolvimento
acontecendo por inteiro, pode ser lindamente bailável, leve,
rodopiante... (ABRAMOVICH, 1994, p. 76)

Isto posto, é pertinente destacar que, além do caráter lúdico, o trabalho com
poesia na escola também permite que as crianças se reconheçam através de
sensações diversas como medo, alegria, gostos, sabores, texturas, sensação de
vento, de chuva etc. que podem ser expressas nas poesias.
Do ponto de vista da apreciação estética, os poemas podem mexer com as
emoções que vão desde o desejo por um doce, retratar sonhos, sentimentos vividos,

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sentidos, provocados ou imaginários. Podem sobretudo abordar temáticas da vivência


infantil. Os poemas que seguem ilustram bem as marcas da infância presente nas
poesias para crianças.

A Bailarina Brinquedos

Esta menina Eu fiz um de papel dobrado


Tão pequenina Um barquinho e naveguei.
Quer ser bailarina.
Fiz um chapéu de soldado
Não conhece nem dó nem ré E soldadinho marchei.
Mas sabe ficar na ponta do pé.
Fiz um avião, fiz estrela,
Não conhece nem mi nem fá Embarquei dentro, voei
Mas inclina o corpo para cá e para lá. .
Agora fiz um brinquedo
Não conhece nem lá nem si, O melhor que já brinquei,
Mas fecha os olhos e sorri.
Guardei num papel dobrado
Roda, roda, roda cm os bracinhos no ar O primeiro namorado.
E não fica tonta nem sai do lugar. (O Seu nome eu inventei)
(Elza Beatriz)
Põe no cabelo uma estrela e um véu
E diz que caiu do céu.

Esta menina
Tão pequenina
Quer ser bailarina

Mas depois esquece todas as danças,


E também quer dormir como as outras
crianças.
(Cecília Meireles)

Os dois poemas exemplificam o fato da opção por textos que possuem as


características do universo infantil. Eles permitem que as crianças se sintam
representadas em meio às inúmeras questões que são colocadas para a criança na
infância.
Além disso, a poesia possui seus encantos, por tanto faz se necessário
discutir cada vez mais os diversos papéis que esse gênero textual possui. Por essa
razão precisa adentrar as escolas para que nossas crianças tenham o contato com a
linguagem de forma lúdica.

O trabalho com poesias na escola e o papel do professor enquanto mediador


Para desenvolver um trabalho com leitura na escola faz-se necessário pensar
na atuação do professor, pois é ele quem conduz a aula, logo este tem um papel

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determinante na disseminação e na promoção da leitura no espaço escolar, indiferente


do gênero textual a ser trabalhado com as crianças.
Neste sentido, as experiências de leitura do professor, o conhecimento que ele
possui sobre literatura é de fundamental importância para a formação da criança
leitora, sobretudo nos anos iniciais pelo fato de que ―o discurso do professor exerce
força total principalmente, nas primeiras experiências da criança na escola‖ (MAIA,
2007, p.173).
Autores com Ezequiel T. da Silva (2012) e Isabel Solé (1998), ao discutirem a
leitura com o foco na formação da criança leitora, reforçam a ideia de que o professor
precisa possuir concepções de leitura que visem à emancipação da criança na
sociedade. Solé (1998) considera que:

O problema do ensino da leitura na escola não se situa no nível do


método, mas na própria conceitualização do que é leitura, da forma
que é avaliada pelas equipes de professores, do papel que ocupa no
Projeto Curricular da Escola, dos meios que se arbitram para
favorecê-la e, naturalmente, das propostas metodológicas que se
adotam para ensiná-la. (SOLÉ, 1998, p. 33)

A respeito da leitura no espaço escolar, Silva (2012) que o trabalho do


professor necessita ir além das práticas escolarizadas que são comumente
caracterizadas no interior da escola. O autor problematiza: como aprender a ler tendo
relações apenas com o processo de alfabetização? De acordo com Silva (2012), os
educadores que têm experiências de leituras de forma abrangente:
[...] são pessoas que exalam amor e entusiasmo pela leitura;
conhecem as características do processo de leitura a fim de
encaminhar a prática pedagógica; selecionam textos potencialmente
significativos para os seus alunos, apontam outras fontes particulares
de que dispõem os assuntos estudados, incentivam o uso da
biblioteca; são abertos a outras interpretações de uma determinada
obra e aprendem com ela; preparam a estrutura cognitiva dos alunos
afim de que estes possam confrontar-se com diferentes textos
propostos para a leitura.... (SILVA, 2012, p. 82)

Segundo o autor supracitado, a leitura é fundamental para a promoção da


liberdade, ou seja, por meio dela é possível haver transformação, na visão deste
mesmo autor: ―Um dos efeitos da leitura é o aprimoramento da linguagem, da
expressão, nos níveis individuais e coletivos. Uma sociedade que sabe expressar,
sabe dizer o que quer, é menos manobrável‖. (SILVA, 2012, p.82).
Então, o trabalho com a leitura na escola precisa ser entendido como a
atividade primeira, pois é a partir dela que se dá o encaminhamento da aula. Pensar a
leitura como mote para o desencadeamento das atividades no contexto escolar
necessário a existência de leituras acessíveis, de forma simples onde as crianças
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tenham prazer em saber sobre leitura Geraldo Peçanha de Almeida (2009) reforça a
importância de se inserir na sala de aula leituras possíveis, onde o próprio professor
precisa ter uma visão de que leitura é uma atividade necessária para formação da
criança e que, portanto, não precisa adentrar o interior da escola de maneira
fantasiosa. Neste sentido, o autor reforça que:
Não é criando um espaço de ilusões ilimitadas que iremos motivar ou
tornar alunos e educadores apaixonados pela leitura. Criando
espaços de verdade de possibilidades, de relações, de dúvidas, de
certezas, de sensações reais, e se estas sensações nos levar a
horizontes mais ou menos longínquos, eis a verdade de tudo.
(ALMEIDA, 2009, p. 138)

Neste sentido, o trabalho com a leitura de poesias pode contribuir para aguçar
as sensações das crianças possibilitando o contato com textos que podem levá-las a
outras leituras. Para que isso se efetive, ao trabalhar com poesia o professor precisa
antes de tudo conhecer a estrutura dos textos poéticos e ainda selecionar os textos de
acordo com a sua intenção de trabalho. Sobre o tema, Maia(2007, p.113) julga ser
―pertinente lembrar que o trabalho com poesia exige do professor a leitura da obra,
antes da aula, quantas vezes for necessário, até encontrar o tom apropriado: suave,
cadenciado, ritmado, enfim, de acordo comas exigências do texto‖.
Seguindo nesta direção, as discussões de Lydiane Fonseca de Carvalho
(2010) também apontam para a relevância de haver uma preparação por parte do
professor ao trabalhar com poesia na escola. Segundo ela:
O uso da poesia em especial, mais que qualquer outro gênero, requer
preparo para uma prática pedagógica eficiente, pois que há diversos
fatores na leitura que devem ser levados em consideração para
consequentemente proporcionar o prazer pelo texto. (CARVALHO,
2010, p. 03)

Para Cunha (1986), esse trabalho precisa ainda atrair os sentidos primeiro do
próprio professor o que exige leitura, para que então consiga desenvolver um trabalho
que realmente cause interesse nos seus alunos, a autora argumenta que [...] ―se o
professor não se sensibilizar com o poema, dificilmente ele conseguirá emocionar
seus alunos‖. (CUNHA, 1986, p.95). Portanto, a atuação do professor enquanto leitor é
imprescindível para a formação de futuros leitores.

Caracterizando o Sarau
O sarau é definido, segundo um dicionário de referência, como: ―1. Festa
noturna, em casa particular, clube ou teatro. 2. Concerto musical noturno. 3. Festa
literária noturna, especialmente em casas particulares.[Sin. ger.: serão]‖(FERREIRA,
1999, p.1819 – grifo do original). No contexto escolar é considerado como uma
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estratégia que colabora para a promoção da leitura, da apreciação do belo e para o


desenvolvimento da linguagem, através da leitura, apreciação e declamação de textos
poéticos.
A atividade que apresentamos é desenvolvida anualmente na Escola
Estadual Querência, no município de Querência, em Mato Grosso. Surge em função
da necessidade da promoção de atividades de leitura que contemplassem algumas
habilidades formativas do ciclo de alfabetização na área de linguagem. O trabalho tem
como mote a apreciação, a leitura e dramatização de poesias de autores que
escrevem para crianças, como: Elias José, Cecília Meireles, Pedro Bandeira, Vinícius
de Moraes, José Paulo Paes e outros, com o objetivo de realizar no espaço escolar
situações de leitura interpretativa de forma lúdica.
Essa atividade tem se constituído como um instrumento importante para a
formação do leitor infantil, pois as crianças demonstram interesse em ler outras
poesias alargando assim seus contextos de letramento literário. A imagem que segue
é uma fotografia de um dos murais feitos para o evento.

Figura 1: Fotografia do mural para o Sarau de Poesias

Fonte: Souza (2015)

O Sarau de Poesias nesta escola tem dado certo em função de existir uma
equipe de professores que se identificam com a poesia da qual faço parte. Neste
sentido as atividades a serem desenvolvidas com as crianças são planejadas.

Atividades que desenvolvemos para o Sarau


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Entendemos que todo trabalho pedagógico precisa ser estruturado, assim a


experiência com o Sarau tem nos levado a compreender que a poesia precisa ser
muito bem apresentada, precisa de leitura com ritmo e entonação, então
consideramos importante o seguinte procedimento.
A escolha dos textos a serem apresentados para as crianças é o grande
diferencial. Nesse momento é feita ainda a autobiografia dos autores, o que tem
propiciado o entendimento por parte dos alunos sobre a autoria de textos. Dessa
forma, são priorizados texto de autores renomados, cujos poemas contenham
elementos do universo infantil, para que as crianças se reconheçam durante o
processo. Essa iniciativa, além de permitir que o professor faça uma leitura
antecipada, possibilita também que a recepção dos alunos seja positiva.
A caracterização do ambiente permite a criação de diferentes espaços na sala
de aula, nos murais da escola, todos eles destinados a fixação de textos poéticos
selecionados pelo professor e trazidos pelas crianças. O cantinho da poesia intitulado
por nós ―a poesia do dia‖, é um espaço onde as crianças se sentem livres para realizar
leituras de poesias diversas e posteriormente escolher uma para ler para o grupo ou
realizar a leitura em casa. A esse respeito, Helder Pinheiro afirma que:
Improvisar um mural, onde os alunos, durante uma semana, um mês,
ou o ano todo colocam os versos de que mais gostam [...] de
qualquer época ou autor são procedimentos que vão criando um
ambiente [...] em que o prazer de lê-la passa a tomar forma.(2002, p.
26)

A leitura de poemas primeiramente pelo professor também tem colaborado


para despertar o interesse das crianças e contribuído para formação leitora do próprio
professor. De acordo com Eliseu Ferreira da Silva e Wellington Gomes de Jesus
(2011), ―Deseja-se através da linguagem poética e do livro escrito instigar os alunos e
educadores a criar e cultivar bons hábitos de leitura e que assim possam se portar
frente aos inúmeros discursos/linguagens que o cercam na sociedade a qual estão
inseridos.‖
A presença de pessoas da comunidade como declamadores no Sarau
também tem sido uma experiência marcante, pois, ao ouvirem outras pessoas que não
façam parte do contexto escolar, as crianças absorvem muitas informações, gestos e
trejeitos e se encorajam no preparo para declamar os poemas memorizados por elas.
A ilustração dos poemas através de desenhos e pinturas tem se traduzido
como uma forte expressão acerca das emoções causadas pela poesia. Consideramos
como uma das estratégias que permitem que os alunos verbalizem através do

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desenho os seus sentimentos. É feita a exposição durante o Sarau, com direito a


conversa com os autores.
A memorização de pequenos poemas é uma atividade bastante apreciada por
alunos e professores, porém, não é nada impositiva. As crianças ficam livres para
memorizar poemas de suas preferências.
A declamação é feita individualmente, em grupos, em forma de dramatização,
e até de peça teatral, dependendo do poema escolhido. Nesse momento percebe-se
que, ao realizar o discurso oral, a criança transfere para sua fala não apenas o que ela
leu, mas também expressa as emoções advindas da poesia lida, relida e memorizada.
O Sarau é o momento em que a escola se organiza para que durante uma
semana inteira as crianças apresentem suas poesias de acordo com a dinâmica de
cada professor. É feita uma preparação especial de um ambiente, saguão da escola
com produções dos próprios alunos, as ilustrações dos poemas. E ainda, foi
construído um palco especialmente para as declamações, onde é caracterizado com
objetos que remetem aos sentimentos, como: vaso de flores, brinquedos, baús,
corações de pelúcia, etc. Tudo isso para levar as crianças a terem experiências que
levem à percepção estética, à apreciação dos diversos sentimentos produzidos pela
poesia.
Após o Sarau, sempre propomos às crianças que tentem produzir seus
próprios poemas, não apenas na escola, mas em outros espaços e aquelas que se
dispõem socializem com as demais.

Considerações finais
Consideramos que o trabalho com a poesia no contexto escolar faz-se
importante em função de ser um gênero textual que agrega, dentre outros, recursos da
oralidade promovendo a formação do leitor de maneira sensitiva, lúdica e prazerosa.
As atividades realizadas a partir do Sarau de Poesias têm se traduzido como
uma prática que traz para o interior da escola situações de leitura, criação de espaços
lúdicos, momentos de reflexão sobre as diferentes sensações do universo humano,
em especial do infantil.
A experiência tem se intensificado a cada ano, e, sobretudo, tem se revelado
como uma estratégia colaborativa para o desenvolvimento da linguagem, pois as
crianças têm se mostrado desinibidas, participativas em outros momentos em que são
solicitadas a falar, utilizando-se de vocabulário mais ampliado nas relações do
cotidiano. E ainda têm se mostrado mais solidárias, mais receptivas ao diálogo com
os colegas.
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Em suma, a inserção de textos poéticos no ciclo de alfabetização intensifica a


compreensão de que o processo de construção da linguagem por parte da criança
requer experiências com diferentes gêneros textuais nos quais a participação direta do
professor mediador é determinante para a instrumentalização das práticas.

Referências
ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: Gostosuras e Bobices. 4. Ed. São Paulo:
Scipione, 1994.

ALMEIDA, Geraldo Peçanha de.A produção de textos nas séries iniciais:


Desenvolvendo as competências da escrita 5. Ed. Rio de Janeiro: Wak, 2009.

CARVALHO, Lydiane Fonseca de. Poesia na sala de aula: as contribuições da


poesia à formação do leitor literário. Disponível em
http://www.cchla.ufrn.br/shXIX/anais/GT12/POESIA_ARTIGO_HUMANIDADES.pdf.
Acesso em: 8 de setembro 2017.

CUNHA, Maria Antonieta Antunes. Literatura infantil: Teoria e prática. 5.ed. São
Paulo: Ática, 1986.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Sarau. In:FERREIRA, Aurélio Buarque de


Holanda.Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3. ed, rev.
ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1999, p. 1819.

MAIA, Josiane. Literatura na formação de leitores e professores. São Paulo:


Paulinas, 2007.

PINHEIRO, Helder. Poesia na sala de aula. 2. ed. João Pessoa: Ideia, 2002.
SILVA, Eliseu Ferreira da; JESUS, Wellington Gomes de. Como e por que trabalhar
com a poesia na sala de aula. Revista Graduando. Nº2 jan./jun. 2011
http://www2.uefs.br/dla/graduando/n2/n2.21-34.pdf: Acesso em 17 de maio de 2017

SILVA, Ezequiel Theodoro da.Leitura e realidade brasileira.7.ed. Campinas-SP:


Autores Associados, 2012.

SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. Tradução Cláudia Schilling. 6. Ed. Porto Alegre:
Artmed, 1998.

SOUZA, Renata Junqueira de. Poesia infantil: concepções e modos de ensino. São
Paulo: Cultura Acadêmica, 2012

ZILBERMAN, Regina. Como e por que ler a literatura infantil brasileira. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2005.

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Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

POESIA E VOZES DAS CRIANÇAS: ÊNFASE NA PASSAGEM DA


EDUCAÇÃO INFANTIL PARA O ENSINO FUNDAMENTAL

Fabiana Fiorim Checconi, Universidade de Araraquara - UNIARA -,


Eixo Temático 3: Poesia e oralidade
Maria Betanea Platzer, Universidade de Araraquara - UNIARA -,
Eixo Temático 3: Poesia e oralidade

Considerações Iniciais

A partir da Pesquisa de Mestrado81 que se situa na interface da passagem da


Educação Infantil para o Ensino Fundamental, focamos no presente trabalho
considerações sobre a poesia e suas contribuições para o desenvolvimento da criança
na faixa etária de cinco anos, em especial, como possibilidade de expressar sua visão
em relação a esse período de mudança, bem como a construção de sua identidade e
conceitos de determinadas situações no novo contexto escolar que ingressará.
O período de transição dos segmentos em questão, em se tratando do
processo educativo, gera para a criança diversas expectativas.
Segundo Sônia Kramer (2006), constantemente crianças, em construção do
seu conhecimento e identidade, estarão ingressando nesses segmentos necessitadas
de conhecimento, afeto, acolhimento, atenção, cuidados e a presença do brincar.
Refletindo a respeito da transição da Educação Infantil para o Ensino
Fundamental, o objetivo do presente trabalho é investigar os sentimentos e os anseios
que as crianças de pré-escola revelam acerca do ingresso no Ensino Fundamental.
Para tanto, desenvolvemos uma pesquisa qualitativa, envolvendo 16 crianças
de pré-escola, com 05 anos de idade, de uma instituição municipal de Educação
Infantil, localizada no interior do Estado de São Paulo.

81
Título da Dissertação de Mestrado: A transição da Educação Infantil para o Ensino
Fundamental: a criança no foco das investigações
Orientadora: Profa. Dra. Maria Betanea Platzer
425

Para realização da coleta de dados utilizamos procedimentos metodológicos


embasados em atividades lúdicas, destacando a poesia, para dialogarmos com os
educandos sobre a transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental.

O período de transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental


no contexto atual

A Educação Infantil, primeira etapa da Educação Básica, considera as


especificidades e singularidades da criança, enfatizando práticas de educação,
englobando o cuidado, responsável pelo desenvolvimento físico, emocional, afetivo,
cognitivo, linguístico e sociocultural.
O Ensino Fundamental assegura a garantia de continuidade de aprendizagem
e desenvolvimento pleno da criança, ofertando a formação comum indispensável para
o exercício da cidadania.
De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica
(BRASIL, 2013, p.100):

Art. 11. Na transição para o Ensino Fundamental a proposta


pedagógica deve prever formas para garantir a continuidade no
processo de aprendizagem e desenvolvimento das crianças,
respeitando as especificidades etárias, sem antecipação de
conteúdos que serão trabalhados no Ensino Fundamental.

Nessa concepção, destacamos a visão de Kramer (2006) ao pontuar que a


Educação Infantil e o Ensino Fundamental possuem objetivos distintos; porém, o
objetivo da educação é único:

[...] Na educação infantil e no ensino fundamental, o objetivo é atuar


com liberdade para assegurar a apropriação e a construção do
conhecimento por todos. Na educação, o objetivo é garantir o acesso,
de todos que assim o desejarem, a vagas em creches e pré-escolas,
assegurando o direito de brincar, criar, aprender. Nos dois, temos
grandes desafios: o de pensar a creche, a pré-escola e a escola
como instâncias de formação cultural; o de ver as crianças como
sujeitos de cultura e história, sujeitos sociais. (KRAMER, 2006,
p.810).

Pensando na transição, esse momento é marcado por expectativas e anseios


por parte de todos envolvidos nesse processo (pais ou responsáveis, professores e
funcionários da instituição) e, em especial, a criança.
Nesse sentido, a instituição necessita planejar e efetivar o acolhimento das
crianças e de suas famílias no momento da transição de segmentos, considerando a
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necessidade de adaptação tanto da instituição quanto das crianças e seus


responsáveis nessa nova etapa que estão iniciando no contexto educacional.
Pensando no processo de transição a ser vivenciado pela criança, suas vozes,
expectativas e anseios foram registrados e considerados, relacionados ao momento
que estavam vivenciando na Educação Infantil. Para tanto, conforme exposto,
utilizamos atividades lúdicas, destacando, neste trabalho, a poesia para que, assim,
pudéssemos dialogar com a criança a respeito dos seus sentimentos e anseios
relacionados ao ingresso, no ano letivo seguinte, ou seja, no Ensino Fundamental.

A poesia e a expressão oral: algumas considerações

A criança ao ingressar na Educação Infantil, acolhida pela instituição, depara-


se com um ambiente novo integrado ao educar e cuidar, tendo como eixos garantidos
pela legislação, a interação e a brincadeira, oportunizando a construção do seu
conhecimento, utilizando diferentes formas de linguagem e expressão.
A instituição de ensino, ao acolher a criança na Educação Infantil, deverá
incentivá-la a partilhar seus sentimentos e anseios no contexto escolar em que está
sendo inserida, para que, entre outras razões, não haja ruptura de segmento
posteriormente ao ingressar no Ensino Fundamental.
Pontuamos a relevância da linguagem oral como forma de expressão,
destacando a Literatura Infantil, em especial a poesia, e suas contribuições para o
desenvolvimento da criança, como possibilidade de manifestação e diálogo a respeito
de seus anseios na etapa de transição escolar que vivenciará para o Ensino
Fundamental.
Além da linguagem oral, a criança em contato com diferentes possibilidades de
aprendizagens, encontram na Educação Infantil possibilidades cotidianas que as
possibilitem desenvolver outras atividades que expressem seus sentimentos,
construam hipóteses, solucionem problemas, reconheçam novas linguagens,
contribuindo na construção do conhecimento. De acordo com Zilma de Moraes Ramos
de Oliveira (2010, p.6):

O campo de aprendizagens que as crianças podem realizar na


Educação Infantil é muito grande. As situações cotidianas criadas nas
creches e pré-escolas podem ampliar as possibilidades das crianças
viverem a infância e aprender a conviver, brincar e desenvolver
projetos em grupo, expressar-se, comunicar-se, criar e reconhecer
novas linguagens, ouvir e recontar histórias lidas, ter iniciativa para
escolher uma atividade, buscar soluções para problemas e conflitos
[...], compreender suas emoções e sua forma de reagir às situações,
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construir as primeiras hipóteses, por exemplo, sobre o uso da


linguagem escrita, e formular um sentido de si mesmo.

A interação das crianças com a poesia, tipo de texto que utilizamos para
dialogarmos com as crianças sobre essa mudança escolar, permite compreender sua
visão em relação ao período de transição.
Refletindo a respeito da poesia infantil, Neusa Sorrenti (2009, p. 23) realiza
uma comparação a respeito da poesia tradicional e contemporânea:
[...] A tradicional pretendia levar a criança a aprender algo para ser
imitado depois. Já a contemporânea pretende levá-la a descobrir algo
à sua volta e a permitir-lhe experimentar novas vivências que,
ludicamente, se incorporarão em seu desenvolvimento
mental/existencial.

Na visão de Fanny Abramovich (1989), a poesia para criança tem que mover,
surpreender, ser bem escrita, mexer com as emoções, com as sensações, mostrando
algo de especial que poderia passar despercebido, ser prazerosa, lúdica, inusitada,
dependendo da intenção do autor que ali se expressa.
Em sua obra, Abramovich (1989, p.81-82) menciona que:

[...] poemas retratam os sonhos, desejos, as vontades, e fazem com


que surja - no leitor - a visualização de seus próprios anseios ou ideia
de felicidade...[...] a poesia fala sobretudo de emoções...de
sentimentos vividos, sentidos, provocados. [...].

Diante das considerações citadas, verificamos que são inúmeras as


contribuições da poesia para o desenvolvimento e aprendizagem da criança,
possibilitando diversas manifestações e experiências. Enfatizamos que a poesia
destaca-se em nosso estudo como atividade lúdica para que a criança possa
expressar seus sentimentos e anseios perante à transição que vivenciará da
Educação Infantil para o Ensino Fundamental.

A expressão dos sentimentos utilizando a Poesia

A criança, ao adentrar na Educação Infantil, interage e socializa com outras


pessoas, sejam elas adultos ou crianças, consequentemente, esse contato amplia os
laços afetivos, oportunizando o convívio com diferentes tipos de pessoas, valores,
hábitos, costumes, etnias e experiências socioculturais e econômicas que
proporcionarão diversas situações que contribuirão para a construção da sua
identidade.

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De acordo com o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil -


RCNEI - (BRASIL, 1998, v.2), a construção da identidade diz respeito ao
conhecimento, desenvolvimento e uso dos recursos pessoais para fazer frente às
diferentes situações da vida.
Diante desse fato, a socialização da criança integrada ao trabalho educativo
realizado na Educação Infantil proporciona condições para a criança se conhecer,
descobrir e expressar seus sentimentos, valores, ideias e costumes, tendo uma visão
ampla do contexto cultural e social em que está inserida.

O ingresso na instituição de educação infantil pode alargar o universo


inicial das crianças, em vista da possibilidade de conviverem com
outras crianças e com adultos de origens e hábitos culturais diversos,
de aprender novas brincadeiras, de adquirir conhecimentos sobre
realidades distantes. (BRASIL, RCNEI, 1998, v.2, p.13).

Nesse sentido, as crianças na faixa etária em questão, por estarem em


processo de construção de sua identidade e conceitos, manifestam e expressam seus
sentimentos.
Ao utilizarmos situações em que a voz da criança expressa seus sentimentos e
ideias, devemos ficar atentos as manifestações que realiza no momento de cada
atividade (movimentos, gestos e ações) para ajudá-la a expressar tudo que realmente
deseja naquele momento.
Pensando na passagem da Educação Infantil para o Ensino Fundamental,
sobretudo, em seus sentimentos e anseios em relação ao processo de transição,
enfatizamos neste trabalho, a Poesia e suas contribuições para o desenvolvimento da
criança. Com intuito de ouvirmos as crianças acerca do período de transição dos
segmentos de ensino supracitados, selecionamos a poesia de Cecília Meireles ―Isto ou
aquilo‖ (2012), considerando que representa, entre outros aspectos, o momento de
descobertas, escolhas, decisões, sentimentos e anseios que as crianças vivenciarão
ao final da etapa da Educação Infantil: a transição para o Ensino Fundamental.
A seguir, registramos a poesia:

Ou isto ou aquilo

Ou se tem chuva e não se tem sol,


ou se tem sol e não se tem chuva!

Ou se calça a luva e não se põe o anel,


ou se põe o anel e não se calça a luva!

Quem sobe nos ares não fica no chão,


quem fica no chão não sobe nos ares.

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É uma grande pena que não se possa


estar ao mesmo tempo nos dois lugares!

Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,


ou compro o doce e gasto o dinheiro.

Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo...


e vivo escolhendo o dia inteiro!

Não sei se brinco, não sei se estudo,


se saio correndo ou fico tranqüilo.

Mas não consegui entender ainda


qual é melhor: se é isto ou aquilo. (MEIRELES, 2012, p. 63).

Abramovich (1989, p. 88-89) retrata sua visão em relação à poesia de Cecília


Meireles:
[...] Cecília coloca com leveza o peso que significa cada escolha [...].
E viva a dúvida permanente, a escolha revista e refeita a cada nova
situação da vida, pra se perceber que o melhor - para cada um -
depende de seu momento, de suas vontades, de suas necessidades,
de seus impulso...Sempre pode ser isto ou pode ser aquilo...É saber
optar e correr o risco...

A poesia selecionada foi apresentada para as crianças por meio de uma roda
de conversa. Realizamos a leitura em voz alta e interpretação da obra a partir das
considerações manifestadas pelas próprias crianças. Refletimos sobre o conteúdo que
há na poesia e relacionamos a seguinte indagação: - ―Em 2016, vocês irão para o
Ensino Fundamental; vocês sentirão falta dessa escola? ‖
Após a conversa realizada com as crianças, refletindo e relacionando o que as
crianças vivenciam na Educação Infantil e o que sentirão falta dessa instituição, cada
uma expressou seu sentimento relacionado ao questionamento exposto.
Para visualizar e organizar as respostas das crianças, limitamos em fichas com
a indicação SIM (amarelo) ou NÃO (azul). Para cada resposta, a criança recebeu uma
ficha com cores referentes às duas indicações, em seguida, foi explicado o que cada
cor representava.
Após a realização da pergunta, a criança levantava a ficha correspondente a
intenção da sua resposta. Por meio do número de fichas obtidas em cada resposta,
realizamos a tabulação dos resultados obtidos.
Observamos que todas as crianças manifestaram seu sentimento positivo em
relação ao ―sentir saudades‖ da Educação Infantil.
Por meio do diálogo com as crianças, verificamos que expressam seus
sentimentos sobre essa nova etapa do ensino, Ensino Fundamental, apontando a
relação de amizade e acolhimento relacionados aos amigos e professores que irão
encontrar e, por outro lado, a insegurança e o medo de ingressarem em uma
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instituição de ensino desconhecida no momento para cada um deles. Afirmam também


que esperam encontrar o brincar no Ensino Fundamental.
Diante das afirmações, a interação das crianças com a poesia, tipo de texto
que utilizamos para dialogarmos com as crianças sobre essa mudança escolar,
permite compreender sua visão em relação ao período de transição. Destacamos,
conforme exposto, que o trabalhar com a poesia na escola possibilita diversas
contribuições para o desenvolvimento e aprendizagem da criança. No entanto, nesta
pesquisa, escolhemos a poesia com intuito de as crianças expressarem seus
sentimentos, tendo suas vozes reconhecidas e valorizadas em se tratando da
mudança de segmentos de ensino que estão inseridas.
A criança, finalizando a Educação Infantil, ingressa no Ensino Fundamental, e
dessa forma, é necessário diálogo institucional e pedagógico. Nesse sentido, a
utilização da poesia contribuiu em nosso trabalho para ouvir os sentimentos e anseios
das crianças para que não haja rupturas bruscas em sua trajetória escolar.

Considerações Finais

A base primordial deste trabalho encontra-se na transição da criança da


Educação Infantil para o Ensino Fundamental.
Pensando na expressão e manifestação da criança, desenvolvemos algumas
atividades lúdicas durante a realização da pesquisa e, entre elas, neste trabalho
abordamos especialmente a poesia.
Ao realizarmos o trabalho com a proposta de observação, reflexão e análise
sobre a transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental, bem como os
sentimentos e anseios, sentimos a necessidades de ouvirmos as crianças em se
tratando dessa temática.
Para tanto, utilizamos a poesia propiciando para as crianças um momento de
integração conosco para que pudessem manifestar e expressar seus sentimentos a
respeito da etapa de transição escolar.
Observamos que as crianças apontam a relação de acolhimento e amizade
integrados aos amigos e professores que irão encontrar no próximo segmento e, ao
mesmo tempo, a insegurança e o medo de ingressarem em uma instituição de ensino
desconhecida no momento para cada uma delas. Acreditam ainda que a ludicidade e o
brincar estarão presentes no Ensino Fundamental.
Diante das discussões realizadas a partir de nosso estudo, verificamos que a
interação das crianças com a poesia proporcionou um caminho para dialogarmos
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sobre essa mudança escolar, permitindo compreender os sentimentos que


expressaram e manifestaram naquele momento.
Destacamos, ainda, que o trabalhar com a poesia na escola apresentou
diversas possibilidades que contribuem para o desenvolvimento e aprendizagem da
criança. No entanto, neste trabalho, escolhemos esse tipo de texto com intuito de as
crianças expressarem seus sentimentos, tendo suas vozes reconhecidas e valorizadas
em se tratando da mudança de etapas de ensino que estão inseridas, sem ruptura e
descontinuidade de segmentos garantidos por documentos oficiais.

Referências

ABRAMOVICH. Fanny. Literatura infantil: gostosuras e bobices. Série Pensamento e


ação no magistério. São Paulo: Scipione. 1989.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Secretaria de


Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão. Conselho Nacional da
Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica /
Diretoria de Currículos e Educação Integral. – Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013.
Disponível em: http://portal.mec.gov.br/docman/julho-2013-pdf/13677-diretrizes-
educacao-basica-2013-pdf/fileAcesso em 11 de setembro de 2015.

BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação


Fundamental. Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. 2v.
Brasília: MEC/SEF, 1998.

KRAMER, Sônia. As crianças de 0 a 6 anos nas políticas educacionais no Brasil:


educação infantil e/é fundamental. Revista Educação & Sociedade. Campinas, v.27,
n.96, out. 2006p.797-818.

MEIRELES, Cecília. Ou isto ou aquilo. 7 ed. São Paulo: Global, 2012.

OLIVEIRA. Zilma de Moraes Ramos de. O currículo na educação infantil: o que


propõem as novas diretrizes nacionais? Ffclrp-Usp e Ise Vera Cruz. Anais do I
Seminário Nacional: currículo em movimento. Perspectivas atuais. Belo Horizonte.
nov. de 2010. p. 1-14.

SORRENTI, Neusa. A poesia vai à escola: reflexões, comentários e dicas de


atividades. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

POMAR DE BRINQUEDOS E CANTORIAS DE JARDIM:

CONSIDERAÇÕES SOBRE A POÉTICA DE ELOÍ BOCHECO

Fabiano Tadeu Grazioli, URI – Campus de Erechim/RS, poesia e oralidade


Alexandre Leidens, UTFPR – Campus Pato Branco/PR, poesia e oralidade
Rodrigo da Costa Araujo, FAFIMA – Macaé/RJ, poesia e oralidade

Considerações Iniciais

Eloí Bocheco, escritora catarinense, transita com habilidade pela narrativa para
criança, narrativa juvenil, poesia inspirada na tradição oral e poesia autoral. As linhas
que demarcam as formas citadas dentro dos gêneros em que procuramos enquadrá-
las nem sempre são nítidas e não podem ser tomadas como divisor absoluto dentro do
conjunto de sua obra. A hibridação ou mistura dos gêneros também ocorre em
algumas obras da autora, de modo que é possível encontrar passagens de puro
lirismo nas narrativas e alguns poemas com elementos narrativos nas coletâneas de
poesias. Há outro tipo de regra que a obra de Eloí parece quebrar: os jovens podem
se deliciar com as aventuras escritas para as crianças, as crianças podem lograr
algum entendimento das obras endereçadas aos maiores, do mesmo modo que o
leitor reconhecerá, na poesia autoral, aspectos da poesia de tradição oral. Na
comunicação aqui proposta, tomamos para estudo duas obras assinadas pela autora,
cujos elementos da tradição oral se fazem presentes: Pomar de brinquedos (2009) e
Cantorias de jardim (2012). Mas esses não são os únicos aspectos que nos
interessam investigar na análise de alguns poemas que compõem as referidas obras.
Cabe também verificar como as memórias e o afeto pelas frutas (tema de Pomar de
brinquedos) e pelas flores (tema de Cantorias de jardim) se fazem presentes nas
obras pela apreciação dos poemas e pela análise das declarações da escritora nos
paratextos da obra, em especial na apresentação da autora nas duas obras. Também
relacionamos alguns poemas dos livros em questão aos estudos de Emil Staiger
(1981), sobre o gênero lírico.
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Os títulos dos livros em análise também dialogam com o universo da poesia


folclórica, principalmente Cantorias de Jardim (2012). Nota-se a opção pela palavra
cantoria, quando poderia ser substituída por cantos, poemas, poesias... ―Cantoria‖ está
a nos lembrar a oralidade, marca fundadora da poesia folclórica. Na opção da autora,
está a possibilidade de que seus versos sejam facilmente declamados em diferentes
circunstâncias, nos festivais de poesia das escolas, dos bairros, nas quermesses, nas
rodas de brincadeiras, nas aulas etc. Nas próximas seções, quando o título dos
poemas fizer referência a uma fruta, é porque ele compõe Pomar de brinquedos
(2009), quando fizer referência a uma flor, é porque ele figura na coletânea Cantorias
de jardim (2012). Se o título do poema não revelar o livro do qual faz parte,
mencionaremos o livro na composição de nosso texto. Mas antes de passarmos à
comunicação propriamente dita, vamos apresentar a obra e as premiações de Eloí
Bocheco.

Eloí Bocheco: obras e premiações

Eloí Bocheco tem produzido e publicado regularmente para a criança e o jovem


desde 1998, quando da primeira edição do seu livro de estreia, Uni... Duni... Téia
(Papa-Livros). Na intenção de recuperar seus títulos na literatura infantil e juvenil,
citamos: Ô de casa (Grifos, 2000); O pacote que tava no pote (Paulinas, 2003); Contra
feitiço, feitiço e meio (Paulinas, 2006); A chave que o vaga-lume alumiou (Paulinas,
2006); Gaitinha tocou, bicharada dançou (Paulinas, 2008) – os últimos quatro formam
a série das aventuras da Bruxinha Elisa –; Beatriz em trânsito (Nova Prova, 2005);
Batata cozida, mingau de cará (MEC/SECAD, 2006); Histórias para boi não dormir
(Franco, 2008); Pomar de Brinquedo (Larousse, 2009), Roda Moinho (Companhia
Editora de Pernambuco, 2011); Olha a cocada! (Movimento, 2011); Casa de consertos
(Melhoramentos, 2012); Cantorias de Jardim (Paulinas, 2012); Tua mão na minha
(Habilis, 2012); Rua Âmbar (Formato, 2013); Tá pronto seu lobo (Formato 2014);
Cobra Norato e outras miragens (Habilis Press, 2016) e Rimas e números (Cuca
Fresca, 2017), salvo algum equívoco em nossa pesquisa.
A publicação dessas obras veio acompanhada de destaques, premiações e
seleções para programas de leitura. Seu primeiro livro, Uni... Duni... Téia
(1998),conquistou Prêmio Boi-de-Mamão de Melhor Livro Infantil, concedido pela
Câmara Catarinense do Livro, no ano seguinte à sua publicação. Opacote que tava no
pote (2003) foi selecionada para o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), do
Governo de São Paulo. Beatriz em trânsito (2005) conquistou o primeiro lugar na
terceira edição do Prêmio Casa de Cultura Mario Quintana, na categoria Literatura
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Juvenil, no ano de sua publicação. No ano seguinte, a obra foi selecionada para o
Catálogo White Ravens, da Biblioteca Internacional da Juventude de Munique, para o
Catálogo de Bolonha/Feira Del Libro Per Ragazzi/Itália, para o Acervo Básico FNLIJ e
para o Programa Mais Cultura do Ministério da Cultura e Biblioteca Nacional. Roda
Moinho (2011) foi finalista, em 2006, do Prêmio João de Barro, da Prefeitura de Belo
Horizonte. Batata cozida, mingau de cará (2006)foi selecionado para o
programaLiteratura Para Todos, do Ministério da Educação, na categoria Tradição
Oral, oportunidade na qual foi distribuído para todas as escolas públicas do País.
Pomar de Brinquedo (2009) foi selecionado para o Programa Minha Biblioteca, da
Prefeitura de São Paulo, e para o Programa Mais Cultura, do Ministério da Cultura e
Biblioteca Nacional. Tua mão na minha (2012) foi selecionado para kit de literatura da
Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte, em 2014.
E como o livro infantil contemporâneo nasce do encontro do texto, do projeto
gráfico e do projeto ilustrativo, é importante destacar que, ao lado de Eloí, ilustrando
suas obras, estão importantes artistas, como Tati Rivoire, Dane D‘ Angeli, Walther
Moreira Santos, Elma, Tatiane Schubach, Márcia Cardeal, entre outros.

Pomar de brinquedos (2009) e cantorias de jardim (2012):memórias, afetos e a


relação com a poesia folclórica

As obras em questão mantêm estreita relação com as memórias da infância de


Eloí Bocheco. Na apresentação da autora, que consta no final de Pomar de
brinquedos (2009), ela declara que sua terra natal, comunidade de Duas Pontes (hoje,
Zortéa, município catarinense), na qual viveu até os doze anos, era lugar de
―contadores de histórias, serões, matinês, piqueniques na mata, estradas de chão
batido, brincadeiras de roda, águas de riachos e fontes, pitangueiras, guamirins e
araçás‖. (BOCHECO, 2009, p. 48). Nota-se, nessas memórias de Eloí, a presença das
frutas, transfiguradas em poemas no livro em questão.
A apresentação da autora em Cantorias de jardim (2011) é mais enfática
quando se trata de trazer ao leitor as memórias em relação às flores:

Uma das primeiras visões que uma criança camponesa tinha em


Duas Pontes, cidade onde passei a infância, eram as flores nas
paredes, nos canteiros, nas cercas das varandas, nos
caramanchões. Os jardins surgiam das trocas de ―mudas‖ entre
os moradores. O ritual de receber a muda (uma semente, um
galinho, um bulbo, um ramo) preparar a terra, plantar, cuidar e
esperar a floração era um modo mágico de alimentar as
amizades, os afetos e o gosto de viver.

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Esse jeito de criar jardins eu achava fascinante (e ainda acho).


Assim, em Cantorias de jardins, meu quinto livro pela Paulinas,
homenageio em versos, as flores que me viram crescer e que
me acompanharam pela vida a fora. O procedimento poético e a
linguagem para compor o ramalhete fui buscar nas fontes da
tradição oral, cuja a singeleza e brilho fazem par com as flores
vivas da memória. (BOCHECO, 2012, quarta capa, grifos da
autora).

Em contato com a apresentação da autora, o leitor percebe a relação que ela


mantém com as flores. Notas-se, pela apresentação nos dois livros, que a memória
tem papel fundador na gênese de sua obra. A memória permite a cada ser humano
atuar como uma espécie de historiador de si mesmo. De acordo com Jöel Candau
(2012), ―recordar é configurar para o presente um acontecimento do passado e criar
uma estratégia para o futuro‖. (CANDAU, 2012, p. 31). Ao reelaborar suas memórias e
transfigurá-las em poemas, Eloí transforma a materialidade do livro em um lugar de
memória, que abriga no presente os vestígios e os registros do passado. Segundo
João Carlos Tedesco (2011), os lugares de memória não possuem significados
imanentes, sendo expressões de uma memória vivida e socializada. A casa, a praça, a
roça, a rua, entre outros, são utilizados como exemplo pelo autor. Lugares que contêm
símbolos que ultrapassam suas materialidades. No caso de Eloí, os elementos da
infância, representados nos livros acolhidos para análise pelos frutos e pelas flores,
possuem valor simbólico, ou seja, não valem pelo que são enquanto produção da
natureza, mas pelo que representam para a autora, para sua comunidade, para os
leitores que entrarem em contato com os poemas. A poética de Eloí Bocheco, calcada
nas suas memórias de infância, nos faz pensar que

A literatura tem cumprido, também, o papel de memória dos


indivíduos que a compõem e fazem-na continuar executando seu
papel na sociedade, e atendendo à necessidade do indivíduo
atual em deixar seus registros, seus vestígios, suas marcas,
para que a partir delas possam ser reconstruídos os fatos
passados e a memória que teima em não ser mais esquecida.
(KLUG; LIMA; LEBEDEFF, 2015, p. 188).

Marlise Buchweitz Klug, Rosimeire Simões de Lima e Tatiana Bolivar Lebedeff


(2015), que se dedicaram ao estudo do lugar da memória na literatura contemporânea,
ilustram com o fragmento acima a tentativa bem-sucedida da autora de deixar seus
registros, seus vestígios, na utilização de uma voz poética que não se cala, permitindo

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fazer ver sua trajetória individual a partir das lembranças que evoca nos paratextos
explorados e nos poemas que compõem as duas obras.
As memórias de Eloí, já dissemos quando assinamos a orelha de Cantorias de
jardim (2012),afloram nos poemas de modo a tornar o afeto um ingrediente
fundamental de sua criação. A maneira afetiva com que lida com suas memórias vale
ser destacada neste estudo. Afeto que atinge o leitor na recepção dos seus textos e
transforma cada poema numa espécie de carícia poética que a autora faz nos leitores.
Lidos assim, no jogo de afetividade que procuram estabelecer com o leitor, pois este
também se vê convidado a liberar os seus afetos, os poemas que compõem as obras
em análise fazem bem a quem deles se aproxima, tocam sua sensibilidade, melhoram-
no, humanizam-no.
Parte do afeto que Eloí distribuí nos poemas de Pomar de brinquedos (2009) e
Cantorias de jardim (2012), são, não temos dúvida, herança da poesia de inspiração
folclórica que perpassa sua obra. Não fosse a declaração da autora na sua
apresentação em uma das obras, tal influência seria facilmente reconhecível nos
poemas do livro. Antes de passarmos à análise de alguns poemas, é importante
revermos os conceitos de poesia folclórica e poesia autoral.
Segundo Glória Maria Fialho Pondé (1990), a poesia folclórica acompanha o
ser humano desde o seu nascimento.

Por intermédio das cantigas de ninar, o bebê trava contacto com


a poesia, a iniciação à linguagem poética principia com o folclore
infantil através de acalantos, parlendas, adivinhas e cantigas de
roda numa trajetória que obedece aos níveis de elaboração da
linguagem que a criança vai superando. A poesia folclórica tem,
pois, uma função iniciatória aos processos poéticos, cuja a
simplicidade característica desse tipo de manifestação popular
muito se adequa ao modo de apreensão do pequeno receptor.
(PONDÉ, 1991, p. 127).

De acordo com Simone Assumpção (2001, p. 63), ―a poesia folclórica, como o


adjetivo antecipa, tem sua origem popular, nasce e se perpetua em meio às
brincadeiras de roda, aos ditos populares, e na repetição das parlendas aprendidas
com os pais e avós‖. Pelo que se deduz da afirmação da autora, ela tem uma autoria
coletiva, por ser manifestação folclórica, pertence ao povo, que faz com que ela
chegue às novas gerações. Lembra a autora que a poesia folclórica ―tem na
espontaneidade sua mais significativa particularidade‖. (ASSUMPÇÃO, 2001, p. 63).
Já a poesia artística ou autoral, segundo a autora, pressupõe elaboração formal.

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A poesia artística, por sua vez, é fruto da elaboração de um


poeta artífice que a construiu, procurando fixá-la em sua mais
absoluta perfeição, aliando para tanto, sonoridades atraentes,
léxico adequado à ludicidade pretendida, além de sintaxe
inovadora e pouco usual. (ASSUMPÇÃO, 2001, p. 63).

Revistos os conceitos, cabe afirmar que a poética de Eloí Bocheco se firma na


interseção das duas categorias de poesia apresentadas. Eloí produz poesia autoral,
mas sua inspiração é a poesia folclórica, que tão bem conheceu na sua infância e
adolescência, conforme depoimentos da autora distribuídos por livros e sites. Assim,
ao visitar a quadra com frequência nos dois livros em análise, a autora está pondo em
diálogo as duas categorias que levantamos. Além da estrofação estruturada em quatro
versos, ―aliando sonoridade e ilogicidade aparente do mundo infantil‖ (ASSUMPÇÃO,
2001, p. 67), a construção, o manejo com a palavra característica de Eloí lembram a
poesia folclórica, como em Marimbondo na ameixa:

Ameixa na cesta
cesta na mesa
a mesa balança
marimbondo dança.

Ameixa na tigela
tigela na cadeira
cadeira quebrou
marimbondo se assustou.

Ameixa na lata
lata na cabeça
cabeça no vento
marimbondo atento.

[...]

P. S. A flor da ameixeira é branca


Flor mais branca não há.
A flor do cafezal é branca
Mas mais branca não será.
(BOCHECO, 2009, p. 42)

O poema, embora autoral – pois sua elaboração foi pensada e articulada pela
autora –, envolve-se com a poesia de origem folclórica, quando do aproveitamento de
uma mesma estrutura nas três estrofes transcritas. ―Ameixa‖ e o ―marimbondo‖ são
termos recorrentes, além de estarem colocados no mesmo lugar em cada estrofe. É

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como se o poema tivesse sido construído para se perpetuar nos encontros de


crianças, nos recreios, nas festas populares. É de modo singelo, encoberto de afeição,
que Eloí funde o folclórico e o autoral. A estrofe final transcrita é uma brincadeira que o
eu-lírico faz com o leitor, ao utilizar o ―P. S.‖, abreviatura de Pós Scrptium, a lembrar
as cartas manuscritas, que geralmente usavam a abreviação para inserir, no final das
cartas, um conteúdo que tinha ficado de fora. Este recurso Eloí não retira da tradição
popular, mas recupera de um tempo passado, no qual as cartas escritas a punho eram
instrumento de comunicação muito usado. Se a abreviação não representa um
elemento folclórico, a quadra que ela introduz sim. Nota-se a composição de uma
autêntica quadrinha que leva o leitor a se perguntar: é de autoria da autora ou teria ela
recolhido da tradição oral? Não fossem todos os poemas assinados pela autora,
restaria a dúvida sobre a autoria, pois exemplar é o manejo das características da
poesia de tradição oral.
A singeleza de Camomila remete-nos de imediato à poesia folclórica, na qual
os versos são despretensiosos, mas altamente comunicativos, principalmente para a
criança leitora que conhece a flor de camomila:

Camomila nasceu
no meio do prado.
O carneirinho que pastava
ficou encantado.

Passei pela camomila


camomila me acenou.
Respondi ao aceno
minha mão cintilou.

O fogo quando se apaga


na cinza deixa o calor.
Camomila quando balança
esmalta o chão de flor.
(BOCHECO, 2012, p. 7).

Em Na roda, de Pomar de brinquedos, a autora insere versos da poesia


folclórica na construção do poema:

O limão entrou na roda


não sabia dançar.
Chamou a tangerina
para ser seu par.
Ai bota aqui...
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Ai bota ali...
o teu pezinho.
O teu pezinho
bem juntinho
com o meu...

Assim, assim,
assim, assado.
Um passo
pra frente
e outro por lado.

Assim assim
assim assado.
Dança o limão
todo requebrado.
(BOCHECO, 2009, p. 7).

O primeiro verso do poema já nos lembra uma cantiga folclórica. A ideia de


colocar o limão na ―roda‖, ou seja, na dança, e fazê-lo par da tangerina está em
sintonia com o mundo lúdico da criança e com os aspectos ilógicos que citamos a
partir de Assumpção (2001). A música do folclore gaúcho inserida no poema coloca
poesia autoral e poesia folclórica em pronto diálogo. A ideia do limão dançar
requebrando é inusitada e traz humor ao poema.

Aspectos do gênero lírico segundo staiger (1997) em Pomar de brinquedos


(2009) e Cantorias de jardim (2012)

Quando se propõe a definir poesia lírica, Staiger (1997) cita os elementos que
a compõem, alguns dos quais, vamos demonstrar, estão presentes na poesia escrita
para crianças:

Se a ideia do lírico, sempre idêntica a si mesma, fundamenta


todos os fenômenos estilísticos até então descritos, essa mesma
ideia una e idêntica precisa ser revelada e ter nome. Unidade
entre a música das palavras e a sua significação; atuação
imediata do lírico sem necessidade de compreensão (1); perigo
de derramar-se, retido no refrão e repetições de outro tipo (2);
renúncia a coerência gramatical, lógica e formal (3); poesia da
solidão compartilhada apenas pelos poucos que se encontram
na mesma "disposição anímica" (4); tudo isso indica que na
poesia lírica não há distanciamento. (STAIGER, 1997, p. 51,
grifo do autor).

Trazendo alguns dos pontos levantados por Staiger para o universo da poesia
infantil, podemos tecer algumas considerações e pontuá-las em poemas das obras

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literárias escolhidas para este estudo. A unidade entre a música das palavras e a sua
significação (1) se dá no universo infantil, por conta da representação do universo da
criança, explorando, assim, os aspectos lúdicos da linguagem. Enquanto resultado da
união entre a música das palavras e sua significação, a poesia lírica relaciona-se à
infância por meio do universo lúdico presente na ―música da palavra‖, tão importante
na concepção de um poema para crianças. Esses aspectos podem ser encontrados no
poema Carambola:

A carambola,
quando cortada,
vira estrela,
estrela de
camabola.

Ora, (direis), comer estrelas...


e de carambola?
Como uma, duas, três...
Faço um céu de estrelas
de carambola.
Como o céu inteiro
E vou brincar lá fora.
[...]

(BOCHECO, 2009, p. 20)

A exploração do universo da criança fica evidente quando o eu-lírico percebe a


semelhança entre a estrela e a carambola cortada, tal qual criança que transforma os
objetos em brinquedos a seu gosto e interesse, ou seja, uma criança que brinca. Na
segunda estrofe, o jogo lúdico continua, e o eu poemático – que agora afirma brincar
como se percebe no último verso da estrofe – chega a afirmar que come um céu
inteiro de carambola. Na recuperação do verso de Bilac, a substituição do verbo ―ouvir‖
por ―comer‖ parece mais uma peraltagem do eu-lírico, a distribuir humor pelos versos
que seguem, chegando a afirmar que comeria um céu inteiro de carambolas. Essas
considerações sobre a significação do poema – o nível do conteúdo – encontram
correspondência no aspecto sonoro: não há uma elaboração muito rígida da
musicalidade, principalmente na primeira estrofe. A métrica irregular e a quase
ausência de rima constroem uma sonoridade que se assemelha às brincadeiras, ao
jogo lúdico proposto pelo eu-lírico. A ―música da palavra‖, no caso deste poema,
funciona como que ao contrário, na ―desconstrução‖ da musicalidade, para
corresponder aos aspectos semânticos do poema. Recurso inventivo da autora,
sempre em sintonia com os aspectos do imaginário infantil.
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Onde está a margarida também se associa à ideia de que a poesia infantil


tende à representação do universo da criança, fazendo valer, assim, os aspectos
lúdicos da linguagem:

Plantei a margarida
em meu bolso direito.
Veio a cigarra e disse:
– Esse bolso tem defeito.

Plantei a margarida
na aba do meu chapéu.
veio o vento e disse:
– Por que não plantou no céu?

Plantei a margarida
No ninho da formiga.
Veio a música e disse:
– Mas que cheiro de intriga!
[...]

(BOCHECO, 2012, p. 8, grifos da autora).

As ações do poema sugerem atitudes que refletem o ilogismo que predomina


na infância. A cigarra, o vento e a nuvem falam, outro aspecto que coloca em
evidência o universo infantil presente no poema. Além disso, a musicalidade que
lembra a poesia folclórica nas rimas e na métrica semelhante, a forma conhecida
como quadra, encontra correspondência nos aspectos lúdicos da infância dos quais
falávamos: a musicalidade aponta para um texto a ser facilmente declamado pela
criança, havendo similaridade entre o arranjo sonoro baseado na simplicidade da
quadra e a facilidade com que a criança mergulha no mundo ilógico, no qual se planta
margarida em bolso, na aba do chapéu...
A renúncia à coerência gramatical, lógica e formal (3) corresponde à não
utilização da norma padrão pelo poeta infantil, tal qual ocorre na poesia lírica em geral.
O poema infantil se aproxima da linguagem que caracteriza a infância, ilógica,
incoerente, e principalmente criativa, tal qual a criança que cria palavras para
denominar os elementos do mundo do qual ela faz parte: objetos, pessoas,
sentimentos. Esse recurso foi utilizado por Eloí Bocheco em Peramente:

Pera assada
perada.
Pera seca
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peresa.
Pera mole
peramo.
Pera moída
peralta.
Pera em calda
perapo.
Pera crua
perum.
Pera no prato
perato.
(BOCHECO, 2009, p. 31).

As palavras peresa, peramo, perapo, perum e perato não existem no léxico da


língua portuguesa, constituindo invenções de Eloí Bocheco. São criadas numa
utilização da língua despojada de sentido, desligando-se da lógica, da racionalidade.
Lembram, tais palavras, uma criança associando sílabas e criando novos vocábulos,
ao gosto de quem faz descobertas.
A poesia da solidão, compartilhada apenas pelos poucos que encontram a
mesma ―disposição anímica‖ (4) exige que retomemos o conceito de disposição
anímica trazido à luz por Staiger (1997):

Originalmente, porém, a disposição não é nada que exista


"dentro" de nós; e sim, na disposição que estamos
maravilhosamente "fora", não diante das coisas mas nelas e elas
em nós. A disposição apreende a realidade diretamente, melhor
que qualquer intuição ou qualquer esforço de compreensão.
Estamos dispostos afetivamente, quer dizer possuídos pelo
encanto da primavera ou perdidos no medo do escuro,
enebriados de amor ou angustiados, mas sempre ―tomados‖ por
algo que espacial e temporalmente – como essência corpórea –
acha-se em frente de nós. Todo ente em disposição é antes
estado que objeto. Este estado é o modo de ser do homem e da
natureza da poesia lírica. (STAIGER, 1997, p. 59, grifo do autor).

Como podemos deduzir, o leitor deve estar em determinada disposição


anímica, (uma certa disposição e abertura para o lírico), mas é de fora que ele é
tocado: pelo texto que existe numa dimensão espacial e temporal. Dessa maneira, é
nas coisas (nelas, ou melhor, no poema) que a disposição anímica do leitor se altera e
se potencializa, ficando ele possuído pelos encantos diversos que o poema
despertará. Podemos entender como se dá esse processo quando da apreensão das
imagens, pela criança, do poema Cuia de maracujá:

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A flor do maracujá
é o cálice das abelhas
e das borboletas.

O cálice vira cuia


dentro da cuia,
o maracujá cresce
no maior sossego.

Se a chuva bate na cuia,


que importa?
A cuia não tem janela
nem porta.

Cuia vazia
maracujá no copo.
Pendurei a cuia
na goiabeira
veio a aranha
e fez um abajur
de cuia, luar e teia.
(BOCHECO, 2009, p. 32).

As imagens construídas ao longo do poema colocam o leitor em estado de


disposição para o poético, pois são inusitadas e carregadas de beleza. Levar o leitor a
perceber, por vias de comparação, que a flor do maracujá pode servir de cálice às
abelhas e borboletas, pois a visitam atraídas pelo alimento e pelo perfume, é uma
provocação irresistível. Do mesmo modo que comparar o maracujá à cuia, na segunda
e terceira estrofes, quando já não há mais flor e sim o fruto do maracujá crescendo, é
um convite à fruição e uma retomada da ideia contida no título. Na última estrofe,
depois do maracujá colhido, obtem-se a cuia de fato, que é a casca do maracujá e o
abajur construído pela aranha é um forte apelo à sensibilidade do leitor – o maior
investimento na disposição anímica do leitor que percebemos no poema –
principalmente quando o eu-lírico informa que tal abajur é feito de cuia, luar e teia.
Nota-se a passagem do dia, o trabalho noturno da aranha e o luar a completar o
abajur feito de elementos terrenos. A imagem do abajur tecido pela aranha junto à cuia
de maracujá já é provocante, e a cena noturna, completada pelo luar, que também
compõe o abajur, trazem à estrofe um lirismo visto em poucos poemas de Pomar de
Brinquedos (2009).
Uma imagem que também está a provocar a disposição anímica do leitor é a
presente na abertura do poema Cofre de jardim, de Pomar de brinquedos: ―A romã é o
/ porta-joias do jardim‖. (BOCHECO, 2009, p. 44). Possibilitar ao leitor a aproximação

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entre a fruta e o porta-joias é ideia primorosa, haja vista a beleza das romãs
guardadas dentro da casca equivalerem à beleza das joias.
Na visão de Staiger (1997), alguns poucos estariam dispostos a se relacionar
desta forma com a poesia lírica. Contudo, no caso da poesia infantil, acreditamos que
o número de leitores dispostos a se envolver com o poema seja maior, pois é
característica da infância a abertura, a pré-disposição para a poesia, para o belo, para
o inusitado. Também é verdade que o poeta que escreve para crianças realiza um
poema endereçado ao seu público, com características específicas para atingir um
determinado leitor. Essas características, parece-nos, acrescentadas à disposição
aguçada que afirmávamos que o leitor infantil possui, fazem-nos pensar que a poesia
infantil por buscar mais jogo lúdico e menos subjetividade, revela-se mais interativa.
O endereçamento ao leitor criança é evidente nos poemas das duas obras
escolhidas para este estudo, principalmente pela presença constante da tradição oral
na lírica de Eloí Bocheco. Como manifestação dessa tradição, vamos encontrar em
muitos casos quadras que possuem a estrutura de um diálogo rimado, como em O que
tem a rosa:

– Rosa de maio,
quem te desfolhou?
– Foi o vento leste
que por aqui passou.

– Rosa encarnada,
quem te incendiou?
– Foi o sol nascente
que por aqui chegou.

– Rosa lilás,
quem te semeou?
– Foi um passarinho
Que para cá voou.

– Rosa branca,
quem te feriu?
– Foi a chuva de granizo
que ontem caiu.

– Rosa amarela,
quem te desfolhou?
– Foi o vento leste
que por aqui passou.
(BOCHECO, 2012 p. 12).

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A repetição da rima ―ou‖ por quase todo o poema também é um expediente que
visa a aproximar a criança leitora das estrofes, por favorecer, obviamente, a
musicalidade. Tal repetição, é preciso que se diga, não empobrece o poema, pelo
contrário: é inusitado verificar um encadeamento de diversas palavras com
terminações iguais num arranjo coerente de sentido e sonoridade. O recurso dos
diálogos rimados também aparece no início de Hortênsia: ―– Onde vai, jardineiro, /
com esse balaio? / –Vou colher a hortênsia / do mês de maio‖. (BOCHECO, 2012 p.
22).
Muitas vezes, nessa busca de interação, é realizado um chamado ao leitor
dentro dos próprios poemas de Eloí, como na última estrofe de Açucena: ―Já vi chorar
açucena / No meio do prado / Por tu passares por ela / E não teres olhado‖
(BOCHECO, 2012, p. 16), na qual o eu-lírico refere-se diretamente ao leitor, que, no
conjunto de ideias do poema, é responsável por fazer a açucena chorar por
demonstrar desinteresse por ela. Ou como na última estrofe de Delicadas, poema de
Cantorias de jardim, dedicado às begônias: ―Dar begônias de presente / significa
amizade. / Begônias para você, / com benquerer e saudade‖ (BOCHECO, 2012, p.
21), momento do poema no qual o leitor vê-se presenteado pelo eu-lírico. Ou ainda na
última estrofe de Petúnia: ―Colei a petúnia / em papel machê / não é enfeite, / não é
nada / É pra mandar pra você‖ (BOCHECO, 2012, p. 34), em que mais uma vez o eu-
lírico parece regalar o leitor.
No ponto 4, poesia lírica e poesia infantil afastam-se um pouco, pois a
experiência da poesia lírica tende a ser mais singular e subjetiva, por isso solitária. O
não distanciamento entre sujeito e objeto, que, segundo nosso aproveitamento do
fragmento de Staiger (1997), ficou sem numeração, é evidente nos poemas para
criança, pois, de acordo com o que já expusemos, na poesia infantil há uma
predisposição maior para a aproximação entre sujeito e objeto, entre o leitor e o
poema.

Considerações finais

No decorrer do texto, expusemos aspectos conclusivos quando da análise de


poemas e de comentários a partir dos teóricos. Cabe-nos, agora, fazer um
apontamento para fechar a comunicação, e que vai relacionar as seções três e quatro,
que, a um leitor mais atento, parecem desvinculadas. O mergulho que Eloí faz no
oceano da poesia folclórica é, em partes, responsável pela aproximação de seus
poemas com universo teórico de Emil Staiger (1981). Muitos dos expedientes que a
autora usa na construção dos poemas analisados na seção três provêm da poesia
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folclórica, e é através desses expedientes que a autora consegue pôr sua poética em
diálogo com os pressupostos do teórico. Foi nossa vontade demonstrar que a autora
catarinense consegue um diálogo duplo com a sua produção poética: flerta ela com o
que tem de mais despretensioso da poesia folclórica e, ao mesmo tempo, se coloca
em sintonia com um teórico de respeitada reputação no meio acadêmico.
Também cabe, neste final, pontuarmos o que representa a poética de Eloí
Bocheco no bojo da tradição da poesia de recepção infantil brasileira, já que se
apresenta, assumidamente, com marcas tão fortes da poesia de tradição oral. Afirma
Assumpção (2001):

É com a bagagem da tradição oral que a criança chega à escola.


Seu contato com a poesia folclórica revela um conhecimento de
mundo e o tratamento afetivo que lhe foi dispensando.
Desconhecer tal universo é ignorar o processo pelo qual passa a
criança, em que elaboração formal implica conhecimento. Para
integrar a criança nesse novo mundo, é preciso, pois, trazer para
a sala de aula o poema folclórico e, a partir dele, apresentar à
criança outros tipos de textos. (ASSUMPÇÃO, 2001, p. 68).

A poética de Eloí Bocheco permite ao pequeno leitor transitar, no mesmo


poema, pelo já conhecido – os elementos da poesia folclórica – e pelo que ele precisa
conhecer: um poema com elaboração formal. Assim, unindo o folclórico e o autoral,
Eloí não se impõe ao leitor que chega à escola com a bagagem da tradição oral, seus
poemas unem os dois aspectos mencionados pela pesquisadora e a criança sai à
frente na construção do seu repertório literário, que passará pela escola e seguirá vida
afora.

Referências

ASSUMPÇÃO, Simone. Poesia folclórica. In: SARAIVA, Juracy Assmann (Org.).


Literatura e alfabetização: do plano do choro ao plano da ação. Porto Alegre: Artmed,
2001. p. 63-68.

BOCHECO, Eloí. Cantorias de jardim. São Paulo: Paulinas, 2012.

______. Pomar de brinquedo. São Paulo: Larousse do Brasil, 2009.

CANDAU, Jöel. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2012.

KLUG, Marlise Buchweitz Klug Lima, Rosimeire Simões de; Tatiana Bolivar
LEBEDEFF. Literatura como lugar de memória: uma análise do romance Satolep, de
Vitor Ramil. Antares: letras e humanidades. Caxias do Sul, Vol. 7, N. 13, jan/jun 2015.
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ISBN: 978-85-69697-03-9
447

p. 182-198. Disponível em:


<http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/antares/article/view/2954>. Acesso em: 29
jun. 2017.

PONDÉ, Glória Maria Fialho. Poesia e folclore para criança. In.: ZILBERMAN, Regina.
(Org.) A produção cultural para a criança. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1990. p. 117-
146.

STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,


1997.

TEDESCO, João Carlos. Passado e presente em interfaces: introdução a uma análise


sócio-histórica da memória. Passo Fundo: EDUPF, 2011.

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EIXO TEMÁTICO 4

A Literatura Juvenil e os Jovens


Leitores
A literatura juvenil e jovens leitores
Thiago Alves Valente (Universidade Estadual do Norte do Paraná - UENP-
Cornélio Procópio), Elianeth Dias Kanthack Hernandes (Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP - Marília) e Berta Lúcia Tagliari Feba
(Faculdade de Presidente Prudente).

As pesquisas realizadas nos últimos anos tomando por objeto a literatura


juvenil atestam sua pertinência no meio acadêmico e educacional. Paralelo ao
vasto número de publicações do mercado editorial e aos prêmios auferidos a
escritores e ilustradores de destaque, a maturidade como subsistema literário
torna-se aspecto inegável de sua circulação. Desse modo, refletir sobre a
literatura juvenil é o objetivo deste eixo, que abarca estudos acerca de: sua
relevância para o campo de estudos literários no contexto brasileiro
contemporâneo; sua presença e tendências no sistema literário brasileiro; sua
composição estética e sua materialidade; seus diversos suportes e suas inter-
relações com o texto literário. As propostas de análises críticas sobre os mais
diversos textos literários identificados como pertencentes a este corpus
também constituem material a ser apresentado e discutido entre os
participantes. Finalmente, cabem também estudos comparativos, críticos e
históricos, de modo geral, que contribuam para as discussões sobre o gênero.
ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

UMA ANÁLISE DA CATEGORIA CONTEÚDO E FORMA EM ―EU,


FERNANDO PESSOA‖ - em quadrinhos - para a formação de
jovens leitores

Sandra Aparecida Pires Franco, UEL, Eixo temático 04: A leitura juvenil e
jovens leitores

Geuciane Felipe Guerim Fernandes, UEL,Eixo temático 04: A leitura juvenil e


jovens leitores

Nathalia Martins, UEL,Eixo temático 04: A leitura juvenil e jovens leitores

Letícia Vidigal, UEL,Eixo temático 04: A leitura juvenil e jovens leitores

Considerações Iniciais

O ensino de literatura compreende o saber sistematizado, como criação de


valores e conhecimentos da sociedade. Trata-se de um trabalho educativo que
contribui para a formação intelectual e humanística dos indivíduos. A literatura de um
determinado período pode e justifica-se por, em outros momentos, ser compreendida e
demonstrar a percepção de fatos, as vivências de outros tempos e lugares em uma
riqueza de detalhes.
Nesse sentido, este estudo analisou a obra Eu, Fernando Pessoa – em
quadrinhos de Susana Ventura e Guazzelli, editado em 2013. O objetivo da
pesquisa foi o de
perceberarelaçãodacategoriadialéticaconteúdoeformapresentenaobra, a fim de
favorecer a formação de leitores. Para o desenvolvimento do trabalho utilizou-
se a metodologia de pesquisa bibliográfica com abordagem crítico-dialética. A
análise permitiu afirmar que a relação conteúdo e forma são elementos
451

indissociáveis em uma obra literária e favorável para o desenvolvimento da


formação de jovensleitores.

A Catarse no Trabalho Educativo: presença de conteúdo e forma

A leitura e o ensino da literatura é um dos requisitos essenciais para a


formação do sujeito. A leitura está presente em todos os lugares, nas ruas, nos
cartazes, nas lojas, no entanto, a leitura e o ensino de literatura não estão postos na
sociedade e no espaço escolar de forma efetiva. O sujeito precisa ler para poder se
posicionar criticamente perante o mundo que o circunda.
A leitura deve ser uma prática constante em qualquer grau de ensino, mas se
observa que há carência de livros e até mesmo do uso de bibliotecas escolares. As
políticas públicas preocupam-se com a distribuição de livros, mas isso não resolve o
problema da formação do leitor. Junto às políticas públicas deve haver também a
necessidade do debate, da reflexão e da melhoria dos programas de incentivo à
leitura. A distribuição, apesar de possibilitar o acesso da criança e do jovem carente ao
livro, necessita pensar na qualificação dos professores, uma vez que é pela mediação
do professor que o aluno pode chegar a se tornar um leitor.
No que tange a literatura, podemos mencionar os escritos de Lukács que
apresenta que as relações entre a literatura e a concepção de mundo são complexas,
pois Lukács não se refere às concepções que separam arte da realidade e nem se
aproxima das concepções que estudam a arte pela arte. Lukács expressa em seus
escritos o efeito catártico que uma obra de arte pode proporcionar. (DUARTE, 2016).
Insta ressaltar que a categoria catarse tanto para Vigotski quanto para Lukács
foi compreendida para analisar os efeitos das obras de arte sobre os sujeitos. O que
difere de Saviani que se apoiou em Gramsci para delinear o método da Pedagogia
Histórico-Crítica.
A catarse produzida pela obra de arte não se reduz somente a apresentação
de fatos da vida ao receptor, mas sim em demonstrar que a nova visão altere a
percepção e a capacidade de o receptor ter novas percepções e novas relações de
todas as coisas presentes na realidade social. (LUKÁCS, 1966).
Para Vigostski (1998), a arte é um recuso que a sociedade cria para
transformar a subjetividade dos sujeitos. Elas possibilitam que esses sujeitos ao
vivenciarem as obras artísticas, condensam a vida humana, transcendendo os limites
do imediatismo.

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Vale destacar que a arte não se limita a contagiar as pessoas ou os


sentimentos. Não é somente disseminar para a sociedade o que o indivíduo sente em
seu cotidiano. É muito mais que isso, é a apropriação, pelo indivíduo de formas
socialmente desenvolvidas de sentir. (DUARTE, 2016).
A arte gera um processo de superação das formas cotidianas de reação
emocional. Segundo Vigostski, a arte usa de fatos da vida cotidiana, mas com
configurações diferentes, são sentimentos que o indivíduo não sente cotidianamente.
Na arte, os objetos e ou fenômenos apresentam-se de uma determinada forma, que se
funde a essência. Não se trata de uma reprodução fotográfica e plana do que as
pessoas veem em seu cotidiano, mas sim uma forma que evidencia aspectos da
realidade tornando o reflexo da vida em um reflexo estético.
Ao contrário da ciência que trabalha com as abstrações, a arte trabalha com as
imagens da realidade, que geralmente são mediados pela linguagem. Por meio da
arte, os homens revivem o presente e o passado da humanidade, perspectivas de um
futuro, mas como fatos exteriores que são algo essencial para sua própria vida. O
homem revive a existência da humanidade de forma condensada e intensa. Por meio
de um personagem literário, o indivíduo entra em contato coma síntese de inúmeras
personalidades.
Segundo Lukács (1966), a arte necessita estabelecer relações com o mundo
interno e as questões fundamentais de um determinado momento histórico. Para isso,
a arte apresenta forma e conteúdo, em que o artista volta-se para a forma que ele
busca dar a um determinado conteúdo. Para apresentar o conteúdo em toda sua
riqueza, o artista busca a perfeição da forma e nessa elaboração ele funde forma e
conteúdo (LUKÁCS, 1966). Diante dessa fusão, o receptor volta sua atenção ao
conteúdo e à forma que produza no receptor o distanciamento em relação à vida
cotidiana e uma aproximação aos aspectos essenciais da vida dos seres humanos.
Todo esse processo leva ao efeito catártico, em que há a superação dos limites da
cotidianidade e de desenvolvimento da relação consciente como gênero humano.
Nesse momento catártico, LuKács (1966) menciona que o indivíduo questiona a sua
concepção de vida e de si mesmo. Esse questionamento proporciona ao indivíduo a
aproximação à omnilateralidade do ser humano. Então, uma indagação surge: Qual a
importância do conhecimento que a escola deveria produzir?
Essa catarse muda qualitativamente a concepção de conhecimento de mundo.
Para Lukács, se o ser humano não se transforma, a realidade para ele não se altera.
Para se ter uma concepção de mundo, a categoria conteúdo e forma é imprescindível.
Trata-se de uma unidade contraditória e ao mesmo tempo complementar, pois para
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que um conteúdo se desenvolva é necessário que ele se apresente numa forma que
expressa o essencial desse conteúdo, que é a transformação desse conteúdo, que
passa a não caber mais na antiga forma. Assim, a concepção de mundo requer a
superação das formas cotidianas em que organiza o pensamento.
Essa afirmativa leva a pensar que o ponto de partida para a apropriação do
conhecimento na educação escolar se dá por meio dos clássicos e do trabalho com a
categoria conteúdo e forma. Os clássicos ultrapassam as singularidades das
circunstâncias de sua origem, por isso eleva o pensamento do homem e o aproxima
da omnilaterialidade, por poder se alterar.
O clássico sendo trabalhada sua relação entre conteúdo e forma possibilitará o
desenvolvimento dos sujeitos, quando trabalhado pelo professor que relaciona o
conteúdo à sua forma didática de ensinar levará em conta quem está ensinando, quem
está aprendendo, o que está sendo ensinado e em que circunstâncias a atividade
educativa se realiza.
Segundo Duarte (2016), as artes trazem à vida das pessoas a riqueza de
muitas gerações de seres humanos, em formas condensadas, possibilitando que o
homem vivencie por meio da manifestação artística, aquilo que não poderia vivenciar
em sua cotidianidade.
O escritor que compreende uma determinada época e seus problemas supera
o cotidiano e eleva seu nível de figuração. Os escritores vão além de sua mera
observação do cotidiano. O escritor capta os elementos essenciais, principalmente
quando cria personagens e situações que sejam impossíveis de existir, mas que
revelam as contradições e as tendências da vida real.
O leitor que está imerso em uma obra literária, percebe aspectos da vida
humana que muitas vezes passariam despercebidos ao psiquismo. A obra de arte,
com seu conteúdo e a sua forma, leva os sujeitos a sua autoconsciência.

Eu, Fernando Pessoa: uma possibilidade de forma e conteúdo

A obra em análise pertence ao gênero História em Quadrinhos. O livro traz


imagens de Fernando Pessoa nas ilustrações feitas por Guazzelli e poemas de
Fernando Pessoa e de seus heterônimos, focalizando o ano de sua morte, em 1935. A
obra apresenta também cartas a Adolfo Casais Monteiro sobre o nascimento e a vida
de seus principais heterônimos e um texto no Diário de Notícias, escrito por Luís de
Montalvor, sobre a morte do poeta. Trata-se de uma obra de arte que apresenta os
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poemas de Fernando Pessoa em forma de expressões e frases presentes em


quadrinhos, diferentemente da forma estruturada de versos.
Quanto aos elementos gráfico-editoriais, a obra apresenta um bom trabalho
artístico. A qualidade do papel é ótima para o manuseio. A capa é cartonada e as
folhas vêm em papel cartão. As imagens, muitas vezes, são mais expressivas que o
próprio texto verbal. A obra apresenta vários paratextos, entre eles uma avaliação
elogiosa por Maurício Soares Filho na contracapa; um texto de Letria acerca de
Fernando Pessoa na introdução da obra; posfácio de Ventura e Guazzelli, além das
informações nas orelhas sobre a biografia do autor e do ilustrador, assim como uma
apresentação da obra e do poeta Fernando Pessoa. As letras usadas no posfácio são
cursivas, semelhantes às letras usadas nos balões dos HQs. Nesse texto, é
apresentado um roteiro cinematográfico. A obra é composta por poemas e cartas a
Adolfo Casais Monteiro. A cada novo fato ou poema apresentado, o ilustrador trabalha
com cores diferenciadas, prevalecendo os tons azuis, verdes e pasteis. A cada início
de poema ou de carta, a obra apresenta retângulos com a indicação do título do
poema, do nome do poeta ou da carta, como: ―Novembro de 1935, Rua Coelho da
Rocha, 16 – 1º Direito, Campo de Ourique, Lisboa‖ (GUAZZELLI e VENTURA, 2013,
p.04) e ―Alguns meses antes‖ (GUAZZELLI e VENTURA, 2013, p.16), ajudando o leitor
na compreensão da narrativa. A obra apresenta também notas de rodapé com
explicações sobre algumas palavras desconhecidas, como: ―* que murcha‖ e ―**
Entidade mitológica que cortava o fio da vida humana‖. (GUAZZELLI e VENTURA,
2013, p.26). A obra também apresenta termos rebuscados ou menos comuns no
português brasileiro como: renque, decente, acedi, bacantes e outras presentes em
toda a obra pessoana.
O texto possui qualidade literária e traz um conteúdo estruturante do currículo
do Ensino Médio relativo à Literatura Brasileira: o Modernismo português. Os poemas
provocam o leitor e permitem, por meio de um suporte não-verbal, constituir novos
sentidos. Os sentidos e as concepções presentes nos poemas variam de acordo com
a personalidade dos heterônimos: ―[...] pus no Caeiro todo o meu poder de
despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental,
[...], pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida.
(GUAZZELLI e VENTURA, 2013, p. 46-47).
Apresenta, portanto, um trabalho com as palavras, criando vozes e emoções.
Os poemas apresentados demonstram o trabalho do poeta com as rimas, como em:
―Ó noite amiga/[...] De meus desgostos secretária antiga‖.( GUAZZELLI e VENTURA,
2013, p.07). A presença dos versos e da métrica é constante no poema de Ricardo
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Reis: ―Para quem tudo é novo/ E imarcescível sempre.‖ (GUAZZELLI e VENTURA,


2013, p.26). Nas cartas escritas a Adolfo Casais Monteiro, Pessoa apresenta, por meio
de uma linguagem também poética, como foi a elaboração de suas obras, como
surgiram os heterônimos, como eram os momentos de escrita dos poemas e suas
reflexões pessoais: ―Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre Ricardo
Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na
matéria.‖ (GUAZZELLI e VENTURA, 2013, p.45). O texto ―Diário de Notícias‖
apresenta a morte do poeta e, ao mesmo tempo, quem foi Pessoa, sua multiplicidade
de heterônimos, sua vida, sua língua, sua cultura, suas concepções e um comentário
para o leitor: ―Quem o quiser compreender, folheie a sua obra vasta‖ (GUAZZELLI e
VENTURA, 2013, p.65).
A HQ conta a trajetória de Pessoa desde novembro de 1935 até quando o
poeta chega ao Hospital de São Luís dos Franceses, em Lisboa, local do seu
falecimento. Apresenta a magia da palavra e da criação da poesia, nas temáticas das
inquietações humanas, sonhos e mistérios, possibilitando aos alunos um
reconhecerem-se a si mesmos. Quanto à linguagem, o uso das HQs para a
apresentação dos poemas de Fernando Pessoa é adequado, pois esse gênero é
capaz de motivar um grande público, em especial, alunos do Ensino Médio.
Trata-se de uma obra de arte que apresenta os poemas de Fernando Pessoa
com forma diferenciada, dando ao leitor a possibilidade de conhecer o conteúdo e
temas de seus poetas de uma forma prazerosa e diferente, levando o leitor, em
especial os alunos, a perceberem a relação entre e a forma e o conteúdo dos textos
literários.

Considerações Finais

A obra Eu, Fernando Pessoa em quadrinhos apresenta pontos fortes, pois o


texto possui qualidade literária e traz um conteúdo estruturante da Literatura Brasileira
presente do currículo do Ensino Médio: o Modernismo português. Os poemas
provocam o leitor e permitem, por meio de outro suporte, constituir novos sentidos.
Quanto a linguagem, o uso das HQs para a apresentação da temática é adequado,
pois se estende a um grande público, em especial, aos alunos do Ensino Médio.
Uma fragilidade presente é que a obra apresenta termos rebuscados não
comuns ao português brasileiro que poderiam ser explicados pelo autor.
Os pontos positivos superam essa fragilidade, uma vez que apresenta ao leitor
outro espaço e tempo nunca vivenciados antes e que, por sua vez, podem ampliar o
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arcabouço linguístico e o conhecimento de mundo do aluno que entra em contato com


a obra literária na forma de HQs.
Nesse sentido, a obra quando trabalhada em seus aspectos gráficos editoriais,
linguísticos, literários possibilita ao leitor uma análise mais profunda da expressão dos
eu-líricos ou narradores, pois a obra de arte leva os sujeitos a sua autoconsciência.
Essa autoconsciência é possibilitada pelo professor no seu trabalho educativo. A
escolha da obra de arte também é algo necessário para a prática educativa do
professor, pois não pode o professor se deixar levar pelos modismos que diminuirão
as percepções de seus alunos. É necessário ensinar os alunos a ler.

Referências

DUARTE, Newton. Os conteúdos escolares e a ressureição dos mortos:


contribuição à teoria histórico-crítica do currículo. Campinas, SP: Autores Associados,
2016.

GUAZZELLI, Eloar e VENTURA, Susana. Eu, Fernando Pessoa em quadrinhos.


São Paulo: Peirópolis, 2013.

LUKÁCS, G. Estética. La peculiaridade de la estético. v.1. Barcelona: Grijalbo, 1966.

VIGOTSKI, L. S. Psicologia da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

AS NARRATIVAS MÍTICAS RESSIGINIFICADAS EM BORGES E


HAWTHORNE: UMA ANÁLISE DE LEITURAS JUVENIS NA
EDUCAÇÃO BÁSICA

Graciane Cristina Mangueira Celestino, (UnB), eixo temático 7.


Robson Coelho Tinoco, ( UnB ), eixo temático 7.

Considerações Iniciais

Analisar as ressignificações e questões relacionadas à apropriação de um texto


e à apresentação ao leitor jovem do corpus literário e suas múltiplas linguagens, são o
tema norteador do presente artigo. O problema de pesquisa relaciona-se com a
identificação das estruturas literárias e como podem indicar a noção de identidade
leitora. Esta pesquisa justifica-se pela análise e compreensão da estrutura textual de O
Livro dos Seres Imaginários, bem como análise da HQ ( História em Quadrinhos)
Contos de Asgard, sua relevância social e científica são relacionadas às indicações de
como o ato de sugerir uma leitura, pode indicar diferenciadas concepções de
experiência leitora.
A reflexão acerca das leituras que adolescentes e jovens realizam do mito e
suas narrativas pretendem constituir um estudo demonstrativo de como o ser social
dotado de experiência subjetiva com a leitura pode desenvolver uma relação
significativa com as operações artísticas e diferenciá-las em seu contexto de
reestruturação. O quadro teórico utilizado está relacionado com a reflexão sobre Arte
em Canclini ( 2015), subjetividade leitora em Rouxel;Langlade;Rezende (2013) e
rigidez cultural em Rama ( 2001). Sendo que o método adotado foi o de análise
bibliográfica e pesquisa qualitativa com texto e imagem, tendo por finalidade analisar
as possíveis ressignificações das narrativas do imaginário na atualidade, de maneira a
constituir estudos relacionados às mitologias do imaginário e suas expressões na
leitura.

Características da experiência leitora e suas relações com as Mitologias do


Imaginário
458

A experiência leitora merece reflexão por inicialmente se fundamentar na


constituição do processo formativo do leitor. A importância de seus desejos e o que se
pode chamar de afetivo nesse processo é objeto de variadas formulações. Entretanto,
é importante analisar que os textos são uma maneira de se desejar uma experiência
com o literário que preceda a decodificação de signos, estabelecida também como
uma transmissão de um habitus cultural. ―O desejo de ler ou reler é um desejo de
conhecimento que nasce de uma vontade de compartilhar com os outros leitores, e a
palavra desempenha um papel essencial‖ (ROUXEL; LANGLADE; REZENDE, 2013, p.
73).
Essa configuração da leitura considera as singularidades e participa o
entendimento das tendências relacionadas à circulação de livros e leituras visuais
como sendo uma possibilidade de construção de diálogos que não se constituam em
unilaterais. Isso não é uma possibilidade única e sim uma delas, de pensar a
transgressão que se determina no ritual de leitura individual e solitária.
O real a ser discutido é como essas questões podem subverter o papel do leitor
e se instaurar como apropriadas à compreensão de uma ―cultura letrada‖? E esta
perpassa por noções variadas de práticas que compreendem as apropriações de
leituras empreendidas. Tais práticas envolvem também as relações entre leitura e
escrita que se instauram nas limitações do texto ao circular na sociedade, como sendo
produto de uma experiência humana, constituída por fatores diversos, em um contexto
social, histórico, econômico e político que reorganiza a maneira de pensar a
subjetivação na leitura. Por isso,

certas operações de leitura exigem realmente o investimento pessoal


do sujeito leitor para andar bem. É o caso, por exemplo do processo
de representação. As imagens mentais construídas pelo leitor a partir
do texto são, em razão da incompletude estrutural da obra (o
enunciador não pode descrever tudo, nem descrever
completamente), necessariamente subjetivas. O modo pelo qual um
leitor imagina cenário e personagens a partir de indicações, em geral
um tanto vagas do texto, remete a situações e acontecimentos que
vivenciou e cuja lembrança retorna espontaneamente durante a
leitura (ROUXEL; LANGLADE; REZENDE, 2013, p. 54).

Ao assinalar essas operações de leitura, que indicam o grau de incorporação


da voz do outro ao texto e de sua familiaridade com a experiência e com as
representações empíricas que constituem o mesmo, afinal o autor também é um leitor
de algo ou alguém, consagra-se aí a percepção de que o real e sua não habitação na
linguagem pode ser observado em uma medida entre o plano linguístico e o literário,
essa sua ― não habitação na linguagem‖, poderia ser descrito como constituinte de
mitologias do imaginário. Que se instauram no ato de análise das reproduções ou
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ressignificações de textos e escritos da tradição literária, e envolve o real-fictício, e sua


constituição pela linguagem, pois a mesma se articula na materialidade dos signos que
constituem a experiência leitora como ruptura em relação ao processo de escrita, bem
como sobre a vida. Sendo assim, pode-se considerar que a linguagem comporta algo
da subjetividade para o mundo real, e esta poderia ser vista como uma das
características da experiência leitora em relação direta com as mitologias do
imaginário que agregam às construções simbólicas do leitor ênfase no processo de
ressignificar suas fronteiras.
O processo de ressignificação de experiências subjetivas de leitura é amplo e
requer uma elaboração silenciosa entre a constatação de que toda escrita literária
parte do real, realiza uma espécie de travessia linguística e retorna ao lugar que se
instaurou anteriormente, tendo sofrido transmutações nesse percurso. Sendo assim,
podem-se aqui relacionar a localização da escrita literária que está intrinsecamente
ligada à sua constituição, a experiência com a travessia do signo linguístico e a
segmentação da imagem à materialidade desse signo pela experiência de leitura
individual e solitária que se constitui como recognição mediada pelo deslocamento.
A palavra, portanto, como elemento sonoro gráfico e que se constitui em
variações no decurso temporal que se instaura no signo é uma experiência que pode
ser pensada historicamente, pois a linguagem literária necessita do tempo sócio-
histórico para existir. Coexiste aí um jogo com a temporalidade da linguagem, porque
aquele que escreve quer, de alguma maneira, reforçar o espaço-tempo na escritura.
Entretanto, a literatura situa e vivencia uma incompletude de sentidos, incompletude
essa que é definida pelas materializações sociais, históricas e culturais que são
comportadas pela tensão entre o fictício e o real, ao não esgotar as possibilidades de
significação.
A leitura e suas múltiplas linguagens exige, então, um compromisso com a
navegação de sentidos. Ao mesmo tempo requer uma solidificação do poder de
explicitação dos mesmos, que se constitui na construção da linguagem literária, do
tecido, da trama e de sua relação com a materialidade textual, com as relações sociais
e culturais, com a organicidade histórica que é indicativa da escritura também como
um exílio, e a leitura como isolamento. E

assim, se hoje todos estão de acordo em dizer que o texto literário só


pode verdadeiramente existir quando é ―produzido‖ por um leitor, é
necessário distinguir claramente duas teorias da realização do texto
pela leitura. De um lado, aqueles que pretendem que todos os leitores
– talvez fosse conveniente dizer todos os verdadeiros leitores, isto é,
aqueles que têm os meios de respeitar adequadamente as regras – se
encontrarão, grosso modo, em um espaço interpretativo da obra
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objetivável graças à evidenciação das injunções do texto; de outro,


aqueles que, como Pierre Bayard, consideram a obra literária como,
por essência, ―móvel‖, estimando que cada leitor produz um texto
singular (ROUXEL; LANGLADE; REZENDE, 2013, p. 34).

Tendo no plano da construção de uma linguagem literária que relacione a


identidade leitora, Rouxel;Langlade;Rezende ( 2013) pensam este ato de leitura não
apenas como divagações teóricas, em alguns casos não aprofundados, assim como
mobilidade e adequação à singularidade de textos e discursos, suas relações com as
linguagens visuais. Logo as relações que podem ser configuradas aí são de
contribuição entre expressões culturais, a literatura permite que se pense na
realização de sentidos e explicitação dos processos de compreensão e saber que
conduzem à valorização do discurso literário de um autor em um determinado
momento histórico-social e sua contribuição no ato de pensar o poder comunicacional
da leitura literária.
Sendo assim, a compreensão das narrativas que foram escolhidas para análise
neste estudo se relacionam diretamente com sua contribuição aos ensinamentos
resultantes da experiência de grandes leitores/autores com o texto, que se configura
em uma das possibilidades que aqui se apresentam, como pensar a análise e
compreensão da fundamentação de um processo de leitura estética que produz no
leitor em formação diferenciadas significações acerca da sua identidade e constituição
leitoras. A cultura, em uma de suas possíveis conceituações, pode ser considerada
como uma tradição do fazer humano que é transmitido de geração a geração, e,
segundo Canclini (2015), como modalidades de hibridação relacionadas aos
diferenciados extratos da cultura latino-americana. No caso específico do objeto de
estudo e do público alvo que foi pesquisado, o autor utiliza os termos cultura urbana e
cultura popular para se referir aos rótulos relacionados ao culto e ao popular.
Essa tensão entre o culto e o popular já teria sido indicada por Canclini (2015),
sendo salientada aqui com o intuito de analisar até que ponto esses rótulos operam
nas leituras realizadas pelos jovens leitores um distanciamento do que é entendido
como culto, na escola por exemplo. Essas transformações podem ser compreendidas
como tendo desenvolvido no ser uma soma de realizações que confluem em
linguagem, que é, ao mesmo tempo, uma condição para sua existência. Canclini a
entende como ―o entrecruzamento de muitas forças da modernidade, a ―explicação‖ de
seus nós e suas crises‖ (CANCLINI, 2015, p. 285). Neste sentido, algumas
provocações seriam:

Como assumir um estatuto de não leitor e contar a seu professor


sobre a falta de interesse ou o tédio diante da ideia de abrir um livro?
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Como falar da falta de vontade de ler quando nos propõem uma


experiência literária? Para certas escolas, ler é ainda uma
performance que se mede pelo número de páginas e pelo tamanho
dos caracteres. Privada de seus desafios simbólicos, e por isso
tornada atividade mecânica, a leitura é um sofrimento; certos alunos
não hesitam em confessá-lo (ROUXEL; LANGLADE; REZENDE,
2013, p. 70).

Esse sofrimento atribuído à experiência literária pode ser sentido quando as


interações entre leitores desejados e estudantes não se concretizam. E aqui há uma
diferenciação realizada entre ambos: leitores desejados são aqueles que, a partir de
sua experiência real com a leitura de textos literários, orientam a construção da fala
como questão individual na língua, organizando assim seu próprio corpus de leituras,
independente daquele que é indicado pela escola; já estudantes são aqueles que,
para participar das práticas sociais escolares, exercitam leituras determinadas pelos
programas de ensino, planos de aula e interpretação da evolução literária, de acordo
com as demandas que se apresentam.
Essa dita performance, indicada pelos autores, revela-nos a ainda coexistência
de um confronto leitor/escola/ensino, pois para variados setores da sociedade, a
escola é vista como única responsável pela difusão das práticas de leitura, e quiçá de
cultura, sejam essas literárias ou não. Pontua-se a finalidade desse ensino na escola,
sendo este, portanto, o compromisso com a preservação de um estatuto literário, de
onde advém o primeiro questionamento empreendido por Rouxel; Langlade; Rezende
(2013): ―Como assumir um estatuto de não leitor e contar a seu professor sobre a falta
de interesse ou o tédio diante da ideia de abrir um livro?‖.
E neste sentido muitas tem sido as tentativas de utilizar linguagens múltiplas,
como os quadrinhos e jogos de vídeo games como estratégia de recepção do literário
por outras modalidades relacionadas à linguagem, contudo se faz necessário refletir
acerca desses processos e escolhas para que não haja um esvaziamento das
relações entre o leitor e o texto literário.

Análise dos textos utilizados para o estudo

A experiência com o literário parte de uma maturação da linguagem de caráter


hiper-reflexivo, sendo que esse movimento não é a-histórico, ele se constitui em um
brotar de sentidos variados a partir do tensionamento estético. O processo de escrita
demonstra como a linguagem literária pode ser pensada enquanto exílio, mas a falta
de interesse ou o tédio por uma determinada leitura orientada com a finalidade de

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ensinar pode indicar o nível de errância em que o indivíduo se encontra, como uma
forma de aludir às barreiras intransponíveis desta linguagem. Assim,

qualquer que seja o objetivo ou o nível considerado, os discursos


colocam em evidência, entre os jovens leitores, uma clivagem
identitária entre o leitor escolar e o outro leitor que existe nele.
Inúmeros testemunhos convergem para denunciar a obrigação da
leitura escolar. Os textos propostos em classe, culturalmente
distantes das leituras pessoais, o ritmo de leitura imposto para a
descoberta das obras, a lentidão de seu estudo são igualmente
queixas pelas quais alguns alunos justificam sua hostilidade
(ROUXEL; LANGLADE; REZENDE, 2013, p. 71).

O intuito aqui é analisar as conceituações e o papel das práticas de leitura


empreendidas por leitores jovens, na escola ou em meios privilegiados de acesso a
ela, como as bibliotecas, centros literários e os ainda existentes clubes de leitura,
assim como evidenciar que essa chamada clivagem identitária é uma realidade
vivenciada pelas instituições, em que os objetos reais e materiais estão ambos
dispostos com a finalidade de entender o exercício da fala, que é seu uso em
sociedade, com essa finalidade foram escolhidos dois textos de cada suporte, duas
lendas do Livro dos seres imaginários e dois contos da HQ ( História em Quadrinhos)
Contos de Asgard. Entretanto se fez necessário analisar a distância social e uma
obrigação que pode ser percebida como pouco saudável ao exercício literário, pois a
contemplação das leituras pessoais muitas vezes não é privilegiada.
Esta estruturação de ideias relacionadas aos estudos literários na escola
enquanto instituição tem raízes bem mais complexas que aquelas aqui apresentadas.
Destarte, as opções de investigação dispostas na presente pesquisa são relacionadas
a essa experiência leitora que perpassa sua identidade, suas escolhas, o movimento
de figuração do acolhimento possível, o desvelamento do que é íntimo e interno, os
quais são trazidos à tona pelo estranhamento, inquietudes e vivências reais
produzidas pelo leitor jovem, ao estabelecer uma relação de reconstituição de sua
experiência primeira com as múltiplas linguagens a partir da experiência literária.
A linguagem não se limita à literatura e nem vice-versa. Ambas estão em um
momento de corroborar provas de que há um funcionamento em que participa sua
compreensão geral no campo social de interação. Como cita Jouve,

Se a arte não existe mais para os teóricos, ela ainda existe para a
maioria dos indivíduos e, sobretudo, para uma série de instituições
(ensino,imprensa, mídia) que pesam fortemente sobre nossa
existência cotidiana. Assim, talvez não seja inútil interrogar sobre uma
―realidade‖ que, mesmo mal definida, ―informa‖ – através de uma
série de engrenagens – o mundo em que vivemos e nossa existência
no interior deste mundo (JOUVE, 2012, p. 11).

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A experiência leitora e a subjetividade na leitura literária são implicadores da


existência da arte para os indivíduos? Com efeito, a resposta seria sim, pois a arte
literária, bem como a linguagem em todas as dimensões dos saberes humanos se
perpetuam como fundamentais para a constituição de uma cultura letrada. Assim
também é condicionante que a relação entre os indivíduos, essa interação ainda que
subjetiva, defina suas identidades, e as transforma.
Identificar a literatura como algo que deva ser ensinado é se referir a um
amontoado de critérios e de classes que se definem por sua não obrigatoriedade para
o ensino das formas de educação literária, e sim, uma compreensão da necessidade
de contribuir para pensar o caráter expansivo e as mudanças que garantem à mesma
um conjunto de propriedades. Assinala-se que

levar em conta essa intenção permite assim definir a arte sem


renunciar à idéia de que o belo é subjetivo e relativo. No campo
literário, os traços ―artísticos‖ são essencialmente traços genéricos.
Todo romance, toda tragédia, toda elegia é estatutariamente uma
obra de arte. A questão da identidade artística,portanto, nada tem a
ver com a do mérito estético (JOUVE, 2012, p. 17).

Por ser a experiência com a subjetividade leitora uma extensão derelações


interpessoais, e uma proposição consciente e sistemática centrada no estado atual da
produção de conhecimento pela sociedade, como cita Jouve (2012), a mesma
apresenta-se como processo racional e articulado das atividades escolares no
contexto social. Isso porque tem função variada e ampla, como explicitar princípios,
empregar vínculos, assegurar e organizar conceitos literários, prever objetivos,
conteúdo e métodos, mas para além dessas, assegurar o respeito ao leitor, bem como
ao autor e à instituição literária, em sua subjetividade, pois dessa maneira pode-se
perceber em que medida as múltiplas linguagens do literário são concebidos na
sociedade em seu processo temporal e social de desenvolvimento e suas implicações
para a tradição cultural e sua herança.

O livro dos seres imaginários

Uma vez que a leitura é subjetiva, o isolamento, a individuação de sentidos


(uma das características das narrativas do imaginário) e as aproximações com o mito
e sua constituição nas sociedades em que surgiram são alvo de análise acerca da
enunciação na apreensão e compreensão das formas de educação literária. Levando-
se em conta que desde a década de 1980, ocorreu um crescimento muito específico
em relação à apreensão desses meios em HQs, filmes, jogos de RPG, videogames e
séries de televisão. Percebe-se o crescente interesse por essas formas literárias,
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contudo em suportes variados, atingindo número bem significativo de adolescentes e


jovens.
É necessário, portanto, explicitar essa apreensão, pois durante a adolescência
e juventude, as narrativas míticas, sejam elas clássicas, ou populares, são alvo de
leituras interessadas empreendidas pelos jovens. Destarte, o nível de aprofundamento
em relação ao processo de hibridação, escrita, formulação de conceitos não é
aprofundado em questões teóricas, dadas as intenções de leitura que esse público
contempla. Nesse sentido, ao escolher o objeto de estudo para este estudo, levou-se
em consideração questões como: hibridação das narrativas, apreensão destes textos
na atualidade, tanto pelo cinema quanto pelos suportes digitais, processo de
organização e seleção, intersubjetividade, transculturação de formas narrativas.
Salienta-se que O Livro dos Seres Imaginários, um dos objetos de análise
deste estudo, foi primeiramente publicado como Manual de Zoologia Fantástica em
1957, em colaboração com Marguerita Guerrero. Sua organização iniciou-se em 1953.
Aproximadamente, dez anos depois de sua publicação, em 1967 foi ampliado por
Borges, ganhando o título de O Livro dos Seres Imaginários. Sendo assim, sua escrita
é bem anterior às reflexões atuais relacionadas à constituição de uma subjetividade
que analise a formação dos processos de leitura interna, individual, como proposta de
isolamento queconstitua a subjetividade leitora. É também anterior à compreensão de
que

(...) o que a criança explora ou teme nos livros é em larga escala esse
ser estranho, inquietante, fascinante, que está dentro dela, do qual
ela ignora porções inteiras e que às vezes se revela, se constrói por
acaso quando encontra uma página; esse lugar distante no interior, o
mais íntimo, o mais escondido, que é, contudo,onde nós nos abrimos
aos outros. Aí encontram-se grande parte do segredo que procuram
os leitores, às vezes freneticamente – e que outros, ao contrário,
esforçam-se em evitar. (PETIT, 2009, p. 53).

Analisa-se aqui que um texto definido por seu caráter antológico, como o caso
do objeto de estudo, se configura em uma convocatória à descoberta dos seres que
povoam a imaginação humana, em formato de narrativas míticas de cada cultura e
país, mesmo aqueles que já não fazem parte de mapas geográficos atuais, como é o
caso, por exemplo, do Hindustão. Isso, para Petit (2009), seria a revelação, a
construção de uma interioridade, alteridade constituinte da busca empreendida pelos
leitores jovens de conhecer e reconhecer nelas a importância de seu despertar
sensível, da construção de significações e de linguagem verbal.
As ideias iniciais para organização da antologia de seres imaginários em 1953
podem indicar um esforço tanto de Borges quanto de Guerrero, de resistir a uma
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política cultural difundida pelo peronismo na Argentina, que na época tinha a intenção
de caracterizar a identidade nacional como único atributo da cultura de um todo social.
Isso, no entendimento tanto de Borges quanto dos demais intelectuais antiperonistas,
se configurava em tentativas fascistas de isolamento e rigidez cultural (AGUIAR;
VASCONCELOS, 2001). Entende-se por rigidez cultural a rejeição drástica das
contribuições culturais oriundas de outras nações, povos ou culturas, instalando uma
tensão nos produtos culturais já estabelecidos (AGUIAR; VASCONCELOS, 2001).
Esse livro é possivelmente uma contestação da unidade nacional peronista que
não aceitava influências de outras culturas. No Brasil foi publicado em 1981, pela
editora Globo; mais tarde, no ano de 2007, pela editora Companhia das Letras. A
edição analisada é de 1981, constituída de lendas das mais variadas culturas: são
116, entre animais, descrições e narrativas de seu surgimento, catalogados de
maneira a explicar sua origem.
Maria Kodama, em entrevista ao jornal brasileiro Correio Braziliense (MACIEL,
2017), quando de sua visita a Brasília para o Ciclo de Conferências 8 Grandes
Escritores Latino-americanos, cita que Borges costumava apontar que era mais
comentado do que lido. E parece não ter ocorrido nenhuma mudança significativa em
relação a essa questão. Assim como a antologia pode ser analisada como uma
escolha política (SERRANI, 2008), as possibilidades de análise e leitura do texto pelos
jovens que constituem o público alvo da pesquisa também o foram. Primeiro, porque a
Edda Poética, foi amplamente discutida e divulgada por Borges.
As demais possibilidades relacionam-se diretamente com a constituição da
narrativa mítica em cada sociedade e com a relevância da discussão acerca das
contribuições que a plasticidade cultural (AGUIAR; VASCONCELOS, 2001), aqui
compreendida como a integração de produtos em determinadas tradições e as
possibilidades de novidade que esses produtos suscitam para a não limitação das
fronteiras narrativas. Mas para além disso, há questões relacionadas à leitura
individual, em um processo de incorporação de elementos de interação entre o leitor e
o texto, rearticulando as compreensões da estrutura textual, cultural e social que

[...] às vezes parecem proceder de estratos aparentemente ainda


mais primitivos, mas que ostentam uma capacidade significativa que
os torna invulneráveis à corrosão das contribuições modernizadas.
Para um criador literário, trata-se exclusivamente de puras operações
artísticas, mas nelas está implícita uma prévia proposição cultural,
resultado do conflito que toda uma coletividade está vivendo
(AGUIAR; VASCONCELOS, 2001, p. 215).

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A reflexão de Rama conduz à análise de como são orientadas as contribuições,


ressignificações e procedimentos de constituição de narrativas na atualidade, visto que
as operações artísticas extrapolam leituras superficiais das proposições culturais
apresentadas (AGUIAR; VASCONCELOS, 2001). Elas versam sobre as contradições
de uma sociedade, especificamente no contexto de seleção, organização e publicação
do texto em questão, em uma coletividade que vivenciava um regime constituído por
uma política cultural rígida, mais tarde passando a uma convulsão social devido ao
golpe militar que tiraria Perón da presidência da Argentina em 1955. Em 1957, a
primeira versão do texto seria publicada, o que se compreende como um indicativo de
literatura de resistência.
Importante frisar que toda literatura a seu tempo comporta algum tipo de
resistência a algo ou alguém, pois ―todos os homens buscam alcançar o sentido da
própria existência e se interrogam sobre os porquês das desigualdades que saltam à
vista, e só não existem para aquele triste cego, o pior de todos, que não quer ver‖
(BOSI, 2002, p. 267). Embora cego fisicamente, Borges conseguia visualizar as
deformidades e fragilidades que polarizariam confrontos e violações em tempos
vindouros. O presente estudo é, portanto, uma reflexão acerca das significações que
as narrativas míticas podem suscitar no público jovem da atualidade e nas
possibilidades de análise e organização de conceitos.

Thor: Contos de Asgard

A HQ ( História em Quadrinhos) escolhida para ser utilizada como indicativa de


uma linguagem múltipla busca explicitar de que maneira de se dá a interação entre as
narrativas míticas em relação direta com produtos culturais oriundos de uma produção
mercadológica. Entretanto, a relação aqui desenvolvida foi de um processo de
hibridação de linguagens diferenciadas para constituir reflexões acerca dos variados
suportes visuais e sua recepção pelos jovens leitores.
Neste sentido, Thor: Contos de Asgard, um dos objetos de análise deste
estudo, foi criado por Stan Lee e Jack Kirby, publicado em 1962, auge da contracultura
norte-americana, no Journey into Mistery 83. Seu lançamento não obteve grande
sucesso, somente na edição do Journey into Mistery 97, iniciou-se um direcionamento
e identidade em relação à saga visual, importante citar que esta narrativa visual
explora a mitologia dos deuses nórdicos, os mundos e personagens que contemplam
a Edda poética. Sendo assim, sua escrita e desenho contemplam reflexões
relacionadas à indústria cultural, são 48 ( quarenta e oito) contos na revista, em que se
pode perceber alusões aos mitos nórdicos, contudo seu nível de aprofundamento
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dessas narrativas pode ser compreendido como uma proposta de isolamento da


subjetividade leitora, pois não se realiza uma reflexão contextual.
Essas narrativas estão em constante ressignificação, quer como jogos; a) o
game chamado Ragnarök tem grande influência entre as tribos urbanas de jovens;
quer como filmes, b) Thor Ragnarök será lançado em 2018, filme baseado na narrativa
mítica da destruição; assim como as Histórias em Quadrinhos; c) Thor, assim como
livros e dicionários para jovens, isso ocorre pela força de subjetividade que
comportam. Todos esses aportes, sendo eles escritos, virtuais, visuais ou
cinematográficos conduzem a alguns questionamentos, tais como: o jovem leitor ao ler
tal narrativa poderá refletir acerca da ressignificação do contexto leitor em que se
encontra? A presença do destas narrativas visuais podem assustar e conduzir a uma
fuga da realidade? O mito pode constituir uma realidade interior?

Considerações Finais

Para realização deste estudo, foram necessárias algumas reflexões e


observações, tanto literárias como históricas, pois se percebeu, logo no início, que
algumas fontes eram insuficientes em relação ao contexto social. As questões
relacionadas ao autor / intenção do autor / narrativa mítica / e a possibilidade de
intervenções e interpretações do leitor jovem foram cansativamente lidas e relidas. O
trabalho com as mitologias do imaginário durante a presente pesquisa possibilitou a
percepção de que pode ser realizado em diferentes faixas etárias, com adequações de
linguagens e suportes, assim como ajustar o grau de dificuldade ou exigência da
análise do texto literário ou visual.

Diante dessa possibilidade, surgiu a reflexão de que os mediadores da


educação literária são facilitadores importantes dessas leituras a adolescentes e
jovens em diferenciadas percepções do ato de ler, interpretar, solucionar questões,
vivenciar situações, refletir sobre o que leem, em especial quando se trata de
narrativas de cunho mítico. Essa construção de reflexões acerca da formação do
corpus teórico que foi trabalhado com os jovens da Educação Básica, só efetivou-se a
partir das evidências que foram apresentadas aos jovens, algumas das
representações escolhidas para análise, tais como: as guerras, violência, vaidade,
extremismo, super-exposição de imagem pessoal, sentimentos, afetividades e
fronteiras, além da dualidade bem-mal.

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Referências

AGUIAR, Flávio; VASCONCELOS, Sandra Guardini T. (Orgs.). Ángel Rama. Trad. de


Raquel la Corte dos Santos e Elza Gasparotto.São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 2001. (Ensaios latino-americanos, n. 6).

BORGES, Jorge Luis; GUERRERO, Margarita. O Livro dos Seres Imaginários. Trad.
de Carmen Vera Cirne Lima. Ilust. de Jussara Gruber. São Paulo: Globo, 1981.

BOSI, Alfredo (1936). Literatura e resistência. São Paulo: Companhia das Letras,
2002.

CANCLINI, Néstor García. A sociedade sem relato: antropologia e estética da


iminência. Trad. de Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 2016..

JOUVE, Vincent. Por que estudar literatura? Trad. de Vincent Jouve, Marcos Bagno e
Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola, 2012.

LEE, Stan, KIRBY, Jack. Thor: contos de Asgard. São Paulo - Ed. Salvat, 2015.

ROUXEL, Annie; LANGLADE, Gérard; REZENDE, Neide Luzia de (Orgs.). Leitura


Subjetiva e ensino de Literatura. . Trad. de Amaury C. Moraes et al. São Paulo:
Alameda, 2013.

SERRANI, Silvana. Antologia: escrita compilada, discurso e capital simbólico. ALEA, v.


10, n. 2, p. 270-287, jul.dez. 2008.

PETIT, Michèle. A arte de ler ou como resistir à adversidade/ Michèle Petit; tradução
de Arthur Bueno e Camila Boldrini – São Paulo: Ed. 34, 2009.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

O MENINO, A LINGUAGEM E A POESIA: UMA POSSIBILIDADE


DE LEITURA DE O FANTÁSTICO MUNDO DE BOBBY (1990)

Fernando Teixeira Luiz, UNOESTE, eixo temático 4: a literatura juvenil e jovens


leitores.

Introdução
A presente comunicação constitui um recorte de uma pesquisa maior,
intitulada Poéticas do cinema de animação, e que tem como meta mapear as
propostas estéticas veiculadas pelo desenho animado ao longo do século XX. Para
tanto, o trabalho se fixará nas décadas de 1980 e 1990, marcados pela ascensão de
estúdios como a Filmation, a Rankin e Bass e a Marvel. Em linhas gerais, a pesquisa
apontou para um quadro curioso, se comparado às décadas anteriores, marcado,
predominantemente, pelo hibridismo. Assim, lançavam mão de uma teia de signos
típicos de circuitos específicos, como o universo da mitologia, o substrato medieval, a
fantasia futurista, o faroeste norte-americano e as fontes lendárias dos samurais.
Ademais, ganhava força uma produção paralela, em que crianças e jovens assumiam
o palco de grandes protagonistas, em absoluta sintonia com os avanços da literatura
infanto-juvenil e o ideário da pós-modernidade.
Caudatários de Charlie Brown, figuras como Mafalda, Mônica e Bobby
Generic edificavam uma considerável filmografia pautada no cotidiano dos heróis
mirins, abordando elementos da realidade com base no ponto de vista da criança.
Nesse sentido, a comunicação contemplará a série O fantástico mundo de Bobby
(1990), que tematizava o cotidiano de uma criança criativa e envolvente, bem como
suas relações com a polissemia dos signos verbais e a significação conotativa e
denotativa exaltada no ato de comunicação. Com o propósito de estabelecer a análise,
a pesquisa recorrerá às contemporâneas teorias do texto e da linguagem que enfocam
a escritura visual não somente em sua imanência, mas, sobretudo, a partir das
relações firmadas no contexto histórico-social de produção do discurso.
470

1- O desenho animado no final do século XX: retratos de novas


personagens.
É nítido observar como as crianças eram representadas de maneira
diversificada, heterogênea, na extensa filmografia que se estende a partir de 1980.
Contrário ao que ocorria nas décadas anteriores, os novos desenhos conseguiam
desafiar a relação autoritária, atrelada ao discurso do adulto sobre a criança, como se
esta fosse entendida como uma tabula rasa ou um ser fragilizado e destituído de
qualquer experiência. Segundo Yazzle (2008), tematizar a busca da auto-afirmação da
criança, no universo da ficção, torna-se salutar quando se faz uma retrospectiva
histórica em torno de suas condições de vida. O infante, no passado, era exposto a
trabalhos forçados nos navios, submetido a abusos sexuais ou, como ocorre ainda
hoje, sucumbiam nas lavouras de canas-de-açúcar ou na venda de doces pelo trânsito
afora.
É, entretanto, fora do circuito das narrativas híbridas82 que a infância tornava-
se foco de absoluta atenção e vicejava, nos meandros da diegese, como temática
central. Na linha de Os Goonies (1985), constitui o momento em que os garotos,
finalmente, assumiam o papel de imbatíveis protagonistas. O menino Fred,
acompanhado de Dino, seu pequeno dinossauro de estimação, e dos demais amigos
que agitavam a Idade da Pedra, recebiam vez e vozem Os Flintstones nos anos
dourados (1988). O mesmo transcorria com o cãozinho Scooby e sua equipe de
detetives mirins, em O pequeno Scooby Doo (1988). Procedimento similar se
instaurava entre as travessuras de Perninha e Lilica em Tiny Toon (1990). Nas três
séries, conduzidas na perspectiva da criança, os conflitos e dilemas eram instaurados
e devidamente solucionados pelos protagonistas, ao passo que os adultos surgiam
somente em aparições eventuais. A saga d‘Os Simpsons (1991), não obstante,
discorria sobre as mazelas sociais, expondo retratos, ancorados à caricatura, cada vez
mais sórdidos e degradantes do cidadão estadunidense. Lisa, a menina sensata e
enérgica, destacava-se como esperança de um mundo melhor, sem aderir a nenhum
discurso panfletário, piegas, vazio ou desprovido de malícia.
No final da década de 1980, o público acompanhou um rol de títulos que
sublinhavam, cada vez mais, o discurso de auto-afirmação da criança. Em meio a
dezenas de produções orientadas por tal viés, estava o longa-metragem Em busca do
vale encantado (1988). No enredo, um grupo de filhotes de dinossauros, em situação
de absoluta vulnerabilidade e, muitas vezes, sem a proteção dos progenitores,

82
Entende-se por narrativas híbridas as séries que misturavam a fantasia medieval a universos
futuristas, como Mestres do Universo (1984), Caverna do Dragão (1983) e Thunercats (1985).
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percorria uma longa rota salpicada de obstáculos e perigos. Entre os desafios


enfrentados, estava a presença ameaçadora e assassina de um Tiranossauro Rex,
sedento em cravar os dentes nos pequenos heróis. A necessidade de enfrentar o
próprio medo acabava se impondo para os aventureiros como condição de
sobrevivência e única alternativa de conquistar a liberdade.
Fievel, pequeno camundongo e personagem principal dos filmes Um conto
americano (1986) e Fievel vai para o oeste (1991), recuperava questões também
pungentes. Enganado duas vezes com a promessa de que encontraria uma vida
melhor tanto em uma grande metrópole da unidade federativa de Nova York quanto
nos povoados do velho oeste, ele e os demais roedores necessitavam lidar com o
horror representado na imagem dos gatos, ávidos por devorá-los. Ainda que
dialogasse com Tom e Jerry, de 1940, o espetáculo épico proposto engrandecia a
narrativa, tendo em vista que deixava transparecer o confronto entre grupos sociais
antagônicos, abrindo, assim, espaço aos fracos, aos oprimidos, aos que viviam à
margem e sonhavam com um lugar ao sol.
Incursionando por uma vertente bem diferente está Mafalda, ilustre
personagem dos quadrinhos e que se tornou uma figura crítica, veemente e
contestadora na Argentina de 1970. Eco (2014) relaciona seu inconformismo
endereçado ao mundo a uma tradição já inaugurada com Charlie Brown, em 1950.
Mafalda, para o semioticista italiano, tratava de uma heroína que rejeitava seu meio,
tal qual ele se apresentava. A garota pertencia a um país denso, de nítidos contrastes
sociais, e posicionava-se diante das injustiças que testemunhara na perspectiva de
quem leu algum escrito de Che Guevara. Seu universo abrangia a América Latina, o
que tornava Mafalda, para Eco, muito mais próxima e compreensível que as
personagens norte-americanas. Ademais, a crítica ácida da menina não poupava
ninguém. Nem mesmo a figura materna, sacralizada na cultura ocidental. Em uma
cena do filme Mafalda (1982), a pequena filósofa deixava a mãe perturbada ao
lembrá-la da insensatez de ter abandonado os estudos para se casar e constituir
família. No dia seguinte, para consolá-la, Mafalda fazia uso de um argumento nada
animador: diferente da mãe, empenhar-se-ia na escola para não ter o mesmo destino
medíocre. O efeito de comicidade é construído não apenas a partir da frustração da
dona de casa, mas, principalmente, no fato de que a menina teria a oportunidade de
escrever uma história que não acentuaria o matrimônio como único caminho para a
felicidade, tal qual sustentavam os antigos desenhos da Disney.
Os anos de 1990 trouxeram algumas séries de considerável repercussão,
entre as quais nos compete citar As meninas superpoderosas(1998). Com um
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enredo similar a Astro Boy (1968), as astutas heroínas colocavam-se, em princípio,


como aparentemente frágeis e sem brio. Seus próprios nomes - Docinho, Lindinha e
Florzinha – todos flexionados no diminutivo, atestavam meiguice, além de certa
limitação que o diminutivo impingia às meninas. Em contrapartida, a força colossal das
garotas e a violência como enfrentavam monstros, mutantes e alienígenas gerava
estranhamento no leitor e, por conseguinte, humor. Por outro lado, ao contrário de
Astro Boy, cuja frieza reportava ao comportamento de um adulto, As meninas
superpoderosas lançavam mão de um tratamento especial conferido às heroínas.
Assim, ainda que fossem solicitadas para banir determinada ameaça à raça humana,
elas não deixavam de se comportar como crianças, com necessidades específicas que
não poderiam ser obliteradas.
O fantástico mundo de Bobby (1990) provavelmente esteja entre as séries
mais criativas da época. Destoando da estética das narrativas híbridas, a ficção era
desenvolvida com base no olhar de um menino, cuja interpretação do cotidiano
guardava um mundo particular, o mundo da linguagem, escancarado ao espectador
nos momentos de tensão e devaneio. Os conflitos por ele vivenciados encontravam-se
no plano semântico, e em especial na articulação entre a significação denotativa e a
significação conotativa. Tendo em vista que a família tivesse dificuldades em orientar o
caçula a superar seus dramas, era o garoto, sozinho, quem desvendava um universo
repleto de signos, metáforas, hipérboles, ironias e uma infinidade de figuras de
linguagem. Considerando esse quadro, elegemos tal obra para discussão e análise
apropriada. Sendo assim, passemos à leitura de um dos episódios da série
supracitada.

2- Bússolas, mapas e passaportes: uma viagem pelo Fantástico


Mundo de Bobby (1990)
No Brasil, as crônicas protagonizadas pelo menino Bobby Generic
estrearam em 1990, exibidas diariamente pelo Sistema Brasileiro de Televisão
(SBT). Os episódios obedeciam a uma estrutura simples. Nas primeiras cenas,
Bobby contracenava com seu criador, o humorista Howie Mandel. Apropriando-
se da mesma fórmula de Mary Poppins (1964) e Uma cilada para Roger
Rabbit (1988), mesclava-se realidade e animação, pois o próprio Mandel
interagia diretamente com sua personagem. Os dois debatiam rapidamente
acerca do tema do dia, até que se iniciasse o episódio.

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Bobby integrava uma família de classe média, composta, basicamente,


pelos pais – Howard e Martha – e pelos dois irmãos – Kelly e Derek. Todos da
casa desfrutavam da companhia do cãozinho Roger, parceiro incondicional de
Bobby em suas traquinagens, e da desengonçada aranha de pelúcia Webby.
Menino dinâmico e cheio de criatividade, não conseguia compreender o
universo adulto, e por isso se refugiava no intrincado e mirabolante mundo de
sua imaginação. Em seus pensamentos, as analogias, os exageros e os
conceitos abstratos tornavam-se objetos ou seres concretos, tangíveis,
configurando situações absolutamente tensas que, muitas vezes, o
importunavam. Na verdade, nota-se a necessidade de fantasia por parte da
criança, dado o esforço em tentar entender a rede de signos saturada de
significação que permeava a comunicação entre adultos.
A abertura do seriado já sugere o caráter aflorado da imaginação de
Bobby. A sequencia de cenas, insinuando o movimento da câmera em
movimento (REY, 1989), acompanhava as estripulias do menino em seu
triciclo pelas curvas sinuosas e labirínticas da casa. Recuperava-se, na esteira
da intertextualidade, o clássico O iluminado (1980), suspense adaptado do
romance de Stephen King, em que o menino Danny, também em um triciclo,
percorria os inúmeros cômodos da misteriosa estância de veraneio. Danny
mostrava-se perturbado por visões de assassinatos sangrentos, enquanto
Bobby mergulhava na própria inventividade para compreender o meio em que
estava inserido. Por isso, na abertura, seu mundo subjetivo e fantástico,
norteado pelo nonsense, era apresentado para o espectador, acompanhando-o
nas expedições pelo espaço sideral, pelas profundezas marítimas e pela
atmosfera dos dinossauros.
Considerando as várias temporadas da série – oito, no total – optamos
pela análise de um específico episódio, intitulado A namorada de Bobby (1995).
O protagonista, aqui, estava às voltas com a descoberta do amor. Por ter
apenas quatro anos, rejeitava as garotas, demonstrando certo asco pelas
meninas. No entanto, o interesse crescente pelo sexo oposto deixava-o
confuso, a ponto de a família se mobilizar para ajudá-lo a conquistar a colega
de sala.

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As contradições detectadas no comportamento de Bobby faziam parte


do que Candido (1991) determina como lógica da personagem. De acordo com
o sociólogo, a verossimilhança encarnada no protagonista não se devia apenas
ao modo como representava a realidade, mas à função desempenhada durante
o enredo, plena de irregularidades e imperfeições. Bobby, nesse sentido, era
um menino comum, tomado por receios e inquietações, obstinado em
compreender a si mesmo e ao ambiente que o cercava. Para tanto, edificara
um universo interno onde poderia testar suas hipóteses, descartar incertezas e
projetar os problemas que o assolavam, ainda que com certo toque de fantasia
para torná-los minimamente passíveis de resolução.
No episódio em questão, por contemplar a temática do dia dos
namorados, recorria-se, logo nas primeiras cenas, à participação de pássaros e
esquilos que trocavam olhares pretensiosos. A aproximação entre eles
inscreve-se como signos indiciais, que anunciam ao leitor o eixo afetivo que
norteará toda a efabulação. Na sequencia, o símbolo de um coração era
estampado em primeiro plano, substantivando as silhuetas de Bobby e de sua
amiga Jackie. A tradição europeia, desde Homero (LURKER, 2003), sempre
associou o coração ao sentimentalismo exacerbado. Concentrar as duas
crianças no centro do signo fomenta expectativas no leitor em torno da
natureza palpitante de duas almas que experimentavam o desabrochar do
amor. A expectativa logo é quebrada, pois a hostilidade é frequente entre o
anunciado casal e as demais crianças da escola. Meninos e meninas mediam
forças e demonstravam rancor recíproco.

Sequencia 1 – O Fantástico Mundo de Bobby (1990), de Howie Mandel.


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A professora, representada de modo bastante estereotipado – com cabelos


curtos, vestido longo, óculos enormes e tom autoritário – gritava exaustivamente para
que os estudantes se calassem e se dedicassem à atividade do dia: a confecção de
um cartão para o dia dos namorados. A ausência de qualquer resquício amoroso entre
os alunos e, paradoxalmente, a obrigação de montar um cartão apaixonado imprimia à
cena um aspecto curioso, uma vez que o dia comemorado não fazia nenhum sentido
para as crianças.
É nesse contexto que a pequena Jackie assumia, para a surpresa geral, sua
ternura endereçada a Bobby. A ocasião, que poderia receber tratamento elevado por
parte dos roteiristas, mais uma vez foge à regra, subverte a ordem e torna-se motivo
de deboche. Bobby não apenas fugia de seus beijos, como também era zombado
pelas demais crianças do colégio. Recolhendo-se em seu mundo maravilhoso,
projetava-se (e fechava-se) dentro de um imponente submarino, acompanhado de seu
ídolo, o Capitão Squash. A situação acabava, sutilmente, estabelecendo uma
referência à literatura de Julio Verne – sobretudo ao romance de ficção científica Vinte
Mil Milhas Submarinas (1869). O próprio garoto, inclusive, alegava ter visto o filme,
provavelmente a popular adaptação da Disney de 1954. Incorporando o papel de um
dos tripulantes do Capitão Nemo, Bobby imaginava, então, a pequena Jackie como um
gigantesco polvo – molusco também descrito na obra de Verne – que o envolvia em
seus pegajosos tentáculos.

Sequencia 2 – O Fantástico Mundo de Bobby (1990), de Howie Mandel.

O mundo de Bobby era pautado nas relações semânticas entre significante e


significado, fixando-se no nível denotativo e, por conseguinte, na literalidade da
palavra. Na verdade, por estar na pele de um infante, Bobby revelava dificuldades em

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estabelecer inferências acerca das condições de produção do discurso como


elementos que advogam a significação situacional dos vocábulos. Segundo Ilari (1985)
e Trevizan (1998), a significação aborda duas dimensões, definidas como sentido,
fundamentado na tradução de uma palavra por outras expressões sinônimas, e o
significado, de natureza ampla e que perfaz múltiplas relações com outros códigos da
realidade. Para o menino, a palavra era incorporada em seu repertório como forma
lexical fixa, desconsiderando, assim, as variações potenciais presentes ao longo da
comunicação.
A maior evidência do suposto argumento ocorria quando a mãe do garoto,
percebendo a relação de medo e curiosidade nutrida por Jackie, sugere que ele havia
sido tocado pela flecha do Cupido. Logo, Bobby visualiza-se com a armadura de um
centurião romano, defendendo-se, ao lado do Capitão Squach, em uma gigantesca
muralha. Jackie, utilizando as indumentárias de um bárbaro, lançava centenas de
flechas sobre a fortaleza. As flechas tinham vida própria, com lábios vermelhos ávidos
por um beijo. A expressão flecha do Cupido, que conota a ideia de apaixonar-se
abruptamente, é contemplada como objeto real e não como figura de linguagem.
Atrelado a isso, existe o exagero com que a expressão é tratada, esboçando uma
hipérbole não prevista no âmbito da enunciação, mas interposta pela inferência do
garoto. Declara Stierle (1979) que a linguagem com a qual a criança interage
diariamente mediante histórias, relatos e construções, possibilita o desenvolvimento de
um mundo ilusório, fictício, tal qual ocorre com Bobby, ainda que de forma caricata.
No percurso do pequeno herói como desbravador de uma realidade que
desconhecia, as surpresas em descobrir o que era uma menina conferiam ao episódio
um tom de inocência e brandura. Por outro lado, desencadeava, no interior da
personagem, uma contenda com seus próprios preconceitos. Aprendera, com as
demais crianças, a odiar o sexo oposto, e lutava contra o próprio sentimento que,
contraditoriamente, alimentava por Jackie. Ao descobrir que sua mãe, que igualmente
amava, era também uma menina, Bobby prostrava-se ainda mais confuso e
pensativo. A superação de suas convicções negativas sobre as mulheres, dando lugar
à ternura, revelava-se como um crescimento emocional pleno para a criança.
Ainda assim, a animação renunciava qualquer pieguismo. No videoclipe
intercalado nos devaneios do garoto, quando um hit sentimental ocupava a sequencia
de cenas, Jackie aproximava-se para beijar Bobby. A expectativa do leitor é que o
garoto devolvesse o afago e embalasse um sintagma revestido de romantismo. O
desenho, todavia, é orientado pela imprevisibilidade. Havia, também, uma lógica no
protagonista que não poderia ser desprezada. Logo, Bobby, ainda que estivesse em
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seu escapismo, fugia dos braços da garota desesperadamente. É quando a família,


mesmo sem muito sucesso, resolve intervir.
Zilberman (1982), atenta a diferentes núcleos familiares na história da
literatura infantil e juvenil, esclarece que, no modelo emancipatório, ficam suprimidas
as divisões estanques entre o adulto, até então abordado como respeitada e
circunspecta autoridade, e a criança, inexperiente, inculta e submissa. Com a
desmistificação do adulto, Martha, a mãe, colocava-se em relação horizontal perante o
filho, jamais impondo ensinamentos doutrinários ou lições de vida. Ted, o tio, era muito
mais próximo e divertido que os dois irmãos adolescentes de Bobby. A juventude
interiorizada pela personagem mais velha deixava transparecer o quanto ela poderia
ser imprecisa e imperfeita em suas decisões. Prova disso eram os conselhos
sentimentais do tio, bastante vagos, para que o sobrinho conquistasse a garota.
Nenhum teve saldo positivo e acabou agravando ainda mais a distância entre Bobby e
a colega de sala.
Jackie, engendrada como uma personagem determinada, caracterizava-se
por tranças longas que se arrastavam ao chão, sugerindo ao leitor sua baixa estatura.
Quando rompe com Bobby para brincar com outro menino, mal tinha consciência dos
ciúmes que despertaria em seu pretendente.
Dando ouvidos ao tio Ted (―Mulheres gostam de caras que têm dinheiro!‖),
Bobby passou a se dedicar a uma lista de deveres para conseguir uma mesada. De
posse das verdes notas, levou-as a Jackie para que ela lhe desse atenção. A amada,
contudo, ignorou o montante. O fato de ser criança a despia de qualquer apego ao
dinheiro. O resultado foi, então, uma tragédia. Bobby desatou a chorar e, furioso,
empurrou a amiga. Intrigado com o que acabara de fazer e tomado pelo sentimento de
culpa, ele projetou, mais uma vez em seu mundo interno, a própria punição. Ao lado
de King Kong e do Conde Drácula, seria julgado e castigado por ter agredido a
companheira de que tanto gostava. Importa observar que, em seus devaneios, sua
mãe era, outrossim, condenada pela travessura. Nesse ínterim, o menino a defendia e
assumia a desobediência. O fluxo da narrativa era, então, interrompido, evitando abrir
espaço para qualquer discussão pedagógica com relação à infração da personagem.
Mesmo porque a ideologia moralizante não estava entre as pretensões da série. A
rigor, o que estava em xeque era a descoberta do amor a partir da perspectiva infantil,
que destoava drasticamente das demais histórias tradicionais do gênero.
Entre as novidades presentes no episódio, destacava-se ainda a pureza
despretensiosa por parte dos amantes. Bobby, por exemplo, ao dirigir-se a uma loja de
brinquedos a fim de comprar um mimo para a menina que cortejava, acabou se
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deparando com uma infinidade de presentes. Em seu universo, os presentes


ganhavam vida e disputavam sua atenção. Ao descobrir que a quantia de dinheiro que
portava era ainda insuficiente, ele não pensou duas vezes e gastou tudo em um
pacote de figurinhas. Não para Jackie, mas para ele mesmo.
Na sequencia final, quando o pequeno protagonista aproximava-se, pela
última vez, de sua colega, rompe-se, mais uma vez, com as expectativas do leitor
acostumado a desenlaces dramáticos. Afirmam Bordini e Aguiar (1993) que produções
inovadoras desafiam a compreensão, por se afastarem do que é esperado e
admissível para o destinatário. Exige-se, dessa forma, um esforço de interação que,
muitas vezes, acaba entrando em conflito com seu sistema de referências. Com efeito,
quando Bobby, decepcionado, justifica que não tinha nada para a oferecer no dia dos
namorados, Jackie responde que não teria nenhum problema. Investe-lhe, então, um
beijo, e ele, melindroso, abandonará a menina que tanto amava e fugirá horrorizado.
Jackie, ansiosa, o persegue, edificando um desfecho fora dos padrões, passível de
comicidade e, mormente, coerente com as personagens que até aqui desfilaram.

Considerações finais
Alguns elementos incorporados no trânsito da literatura infantil e juvenil foram
assimilados pelo cinema gráfico, o que viabilizava e estreitava alguns laços entre as
duas linguagens. A partir da década de 1980, escritores como Ziraldo, Ruth Rocha,
Ana Maria Machado, Lygia Bojunga, Eva Furnari, Fernanda Lopes de Almeida e Maria
Heloísa Penteado edificaram uma vasta, sólida e original obra em que as
particularidades do universo infantil eram respeitadas e enaltecidas. Parte disso se
devia à revolução conceptual instaurada por Monteiro Lobato em 1931, sublinhando a
capacidade de compreensão da criança, a força emancipatória da mulher, a revisão
dos contos de fadas, o diálogo com a realidade folclórica local e a absorção da
mitologia pagã povoada por deuses, heróis e titãs.
O desenho animado, em sua historicidade, englobava tardiamente um olhar
libertador sobre mulheres, negros, homossexuais e, sobretudo, crianças. A maior parte
das produções, desenvolvidas entre 1930 e 1980, preconizava uma relação
assimétrica do adulto perante meninos, adolescentes e jovens, exaltando-lhes a
fragilidade e a necessidade da obediência e da submissão. Sabe-se que, nas últimas
décadas do século XX, ganhava força a tendência de representar heróis primordiais
em sua juventude. A mediação do adulto como indivíduo experiente e soberano – vale
lembrar o enigmático Mestre dos Magos, de Caverna do Dragão (1983) e o paternal
Jagua, de Thundercats (1985) – passou a ser esporádica. No geral, as personagens
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deviam lidar com seus dilemas e superá-los sem a intervenção de anciões, os quais,
ainda que oniscientes, em nenhum momento demonstravam obsessão superprotetora.
No que tange especificamente à infância, é fora do contexto das narrativas
híbridas que as crianças recebiam tratamento especial. O jovem Fred Flintstone, o
pequeno Scooby Doo, o engenhoso Perninha, a intrépida Mônica, o criativo Bobby
Generic e o rol de filhotes de dinossauros de Em busca do vale encantado (1988)
deixavam transparecer o discurso de hipervalorização do mundo infantil, concentrando
o enredo em uma linha alternativa à tendência maniqueísta até então em vigor. Não
havia, aqui, o embate entre forças antagônicas – benignas e malignas – mas o anseio
em encontrar mecanismos para solucionar seus impasses. Em um novo contexto –
marcado pelas contribuições teóricas de Jean Piaget, Sigmund Freud, Lev Vygotsky e
Henri Wallon – pais e professores, responsáveis pela educação e socialização do
sujeito, não eram apresentados como ícones coercitivos, exemplares e autoritários,
mas como figuras que poderiam oferecer liberdade para que filhos e alunos refletissem
sobre as próprias agruras e inquietações.

Referências
AGUIAR, V. T. & BORDINI, M. G. Literatura: a formação do leitor – alternativas
metodológicas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993.
CANDIDO, A. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1991.
ECO, U. O que Umberto Eco diz sobre Mafalda (2014).
<http://www.mafalda.net/index.php/PT/a-historia/umberto-eco> Acesso em: 24 de
agosto de 2015.
ILARI, R. A Linguística e o Ensino da Língua Portuguesa. São Paulo: Martins
Fontes, 1985.
LURKER, M. Dicionário de Simbologia. São Paulo:Martins Fontes, 2003.
REY, M. O roteirista profissional. São Paulo: Ática, 1989.
STIERLE, K. Que significa a recepção de textos ficcionais. In: LIMA, L. C. A Literatura
e o Leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
TREVIZAN, Z. As Malhas do Texto: Escola, Literatura e Cinema. São Paulo: Ed.
Clíper, 1998.

VERNE, J. Vinte Mil Milhas Submarinas. São Paulo: Zahar, 2011 [primeira edição
em 1869]

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YAZLLE, S. C. L. Vozes da Criança: o discurso de auto-afirmação na literatura infantil


de Ana Maria Machado. 2008. Tese (Doutorado em Literatura e Vida
Social).Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista.
ZILBERMAN, R. A Literatura Infantil na Escola. São Paulo: Global Editora, 1982.

Filmografia
As meninas superpoderosas(1998). Estados Unidos: Cartoon Network.
Astro Boy (1968). Japão: Osamo Tezuka.
Caverna do Dragão (1983). Estados Unidos: Marvel.
Em busca do vale encantado (1988). Estados Unidos: Universal Sudios.
Fievel vai para o oeste (1991). Estados Unidos: Phil Nibbelink e Simon Wells.
Mafalda (1982) Argentina: Quino/ Carlos Marquez.
Mary Poppins (1964). Estados Unidos: Walt Disney.
Mestres do Universo (1984). Estados Unidos: Filmation.
O fantástico mundo de Bobby (1990). Estados Unidos: Howie Mandel.
O iluminado (1980). Reino Unido: Estados Unidos: Stanley Kubrick.
O pequeno Scooby Doo (1988). Estados Unidos: Hanna-Barbera.
Os Flintstones nos anos dourados (1988). Estados Unidos: Hanna-Barbera.
Os Goonies (1985). Estados Unidos: Steven Spielberg.
Os Simpsons (1991). Estados Unidos: Matt Groening.
Thunercats (1985). Estados Unidos: Ranking and Bass.
Tiny Toon (1990). Estados Unidos: Columbia.
Tom e Jerry (1940). Estados Unidos: Hanna-Barbera.
Um conto americano (1986). Estados Unidos: Amblin Entertainment.
Uma cilada para Roger Rabbit (1988) Estados Unidos: Robert Zemeckis.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

O QUE É MESMO LITERATURA JUVENIL?

Eliana Guimarães Almeida, UFMG, Eixo 4 – Literatura e jovens leitores


Maria Zélia Versiani Machado, UFMG, Eixo 4 – Literatura e jovens leitores

Considerações Iniciais

O presente texto propõe uma discussão em torno da expressão ―literatura


juvenil‖, buscando compreender as especificidades da produção voltada para o público
jovem. A proposta é parte de uma pesquisa de doutorado em andamento 83 cujo
objetivo principal é conhecer as tendências da produção literária voltada para jovens e
compreender os modos de recepção da chamada literatura juvenil por leitores
adolescentes que residem em bairros considerados periféricos da região metropolitana
de Belo Horizonte ou que estudam em escolas públicas situadas nesses locais. Trata-
se de uma pesquisa qualitativa que prevê quatro etapas em sua proposta
metodológica: na primeira delas, que resultou em algumas reflexões presentes neste
texto, foi realizado um levantamento inicial e breve análise de obras premiadas na
categoria ―Jovem‖ pela FNLIJ, visando ao estabelecimento de algumas categorias de
análise das obras literárias destinadas ao público jovem que foram referendadas
enquanto literatura juvenil. A segunda etapa consistiu na aplicação de questionários,
com a intenção de coletar uma série de dados ligados às leituras realizadas pelos
adolescentes, bem como aspectos mais superficiais de suas trajetórias. Na terceira
etapa foram feitas entrevistas individuais, a partir de alguns dados coletados no
questionário, com o intuito de compreender as singularidades dos sujeitos. A última
etapa – ainda não concluída – consiste na realização de grupos de discussão em que
se propõe a interação entre os participantes da pesquisa, tendo a leitura literária como
eixo central.
Este texto parte de uma noção mais ampla acerca do que se compreende
como literatura, tendo como referência principal autores como Marisa Lajolo, Antoine

83
O título provisório da pesquisa é “Tendências da produção literária voltada para o público jovem e a
recepção por leitores adolescentes em meios populares em Belo Horizonte.”
482

Compagnon e Leyla Perrone-Moisés, e propõe um diálogo com estudiosos que têm se


debruçado mais especificamente sobre o campo da literatura voltada para jovens,
entre os quais se destacam Rildo Cosson, Teresa Colomer, Ana Díaz-Plaja, Louise de
Rosenblatt.
Literatura - sem destinatário específico

Antes de qualquer conceituação ligada especificamente ao leitor jovem, é


importante buscar uma compreensão acerca do que se considera ―literatura‖ em seu
sentido mais amplo. Conforme aponta Lajolo (1995) a tarefa de definir literatura requer
uma retomada e prolongamento de tudo o que já foi pensado sobre o assunto.
Ressalvadas as limitações que impossibilitam o esgotamento do tema em um único
texto, buscaremos resgatar algumas possibilidades de se pensar a temática a partir de
autores que têm problematizado o conceito de literatura, iniciando por alguns
questionamentos apontados pela autora:
Será que são literatura os poemas adormecidos em gavetas e
pastas pelo mundo afora, os romances que a falta de
oportunidade impediu que fossem publicados, as peças de
teatro que, como dizia Fernando Pessoa, jamais encontrarão
ouvidos de gente? Será que tudo isso é literatura? E, se não
é, por que não é? Para uma coisa ser considerada literatura
tem de ser escrita? Tem de ser editada? Tem de ser impressa
em livro e vendida ao público?
Será então que tudo o que foi publicado em livro é literatura?
Mesmo aquele romance de alta sacanagem, que todo mundo
lê escondido e gosta? E os livros que nenhum professor
manda ler, de que crítico nenhum fala, que jornais e revistas
solenemente ignoram?
A resposta é simples. Tudo isso é, não é e pode ser que seja
literatura. Depende do ponto de vista, do sentido que a
palavra tem para cada um, da situação na qual se discute o
que é literatura. (LAJOLO, 1995, p. 14-15)

O trecho acima expõe questionamentos importantes em torno da questão ―O


que é literatura?‖, trazendo à tona toda a complexidade que envolve a definição do
termo – ainda sem pensar em seu destinatário – já que existem diferentes correntes
de pensamentos em torno da temática. De acordo com Cosson (2014) tanto a noção
de literatura como um ―conjunto de obras exemplares ou significativas para uma
determinada comunidade‖ (p. 23) como a que trata a literatura como ―o uso da palavra
para criar mundos ou um sentimento do mundo, correspondendo a um uso específico
da palavra‖ (idem) tratam-na essencialmente como um produto, ―um livro ou um filme,
um arquivo ou uma fala, um jogo narrativo ou um modo de viver‖. Desse modo, o autor
propõe que a literatura seja vista como
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uma atividade que produz textos, mas também produtores que


usam esses textos para criar novos produtos e novas formas
de fazer literatura; um mercado para esses textos; instituições
que guardam, estabelecem o valor e divulgam esses textos;
consumidores que reconhecem os textos como tais; e um
repertório que alimenta a todos com palavras, imagens e
modos de viver e interpretar o mundo e o vivido. (COSSON,
2014, p. 24-25 – grifos do autor)

Perrone-Moisés (2016) também aponta para diferentes possibilidades de se


conceituar ―literatura‖, especialmente na contemporaneidade, pois, de acordo com a
ela, ―existem apenas acepções que variam de uma época a outra‖ (p. 8). A autora
destaca a impossibilidade de se definir a literatura de modo ―essencial e intemporal‖,
apontando que a noção de literatura corrente nos dias atuais advém do fim do século
XVIII, quando a palavra passou a designar ―um tipo de discurso, uma instituição e uma
disciplina escolar‖, sendo que até então a palavra indicava ―o conjunto de produções
escritas em qualquer gênero‖ (idem). Para Compagnon (2010) ―a busca de uma
definição de estilo, tanto quanto de literatura é inevitavelmente polêmica‖. O autor
aponta que ―literatura é literatura, aquilo que as autoridades (os professores, os
editores) incluem na literatura‖ (p. 45).
Diante do exposto, ainda que a proposta desse texto não seja tratar
especificamente a recepção da literatura, destaca-se a importância de se pensar o
leitor como parte do processo de construção da obra literária, uma vez que a literatura
se efetiva no encontro que se dá entre o leitor e o texto, dentro de um determinado
contexto tanto de produção, circulação e recepção (ISER, 1996; SCHOLES, 1991;
COLOMER, 2012; ROSENBLATT, 2002). Desse modo, entendemos que literatura se
inscreve em determinado contexto histórico e social e pode ser entendida como
atividade artística capaz de exprimir os sentimentos, aguçar a sensibilidade e a
alteridade, promover reflexões e ampliar experiências vividas (COMPAGNON, 2009;
LAJOLO, 1995; ROSENBLATT, 2002; COSSON, 2014; CÂNDIDO, 1995). Não
desconsiderando que tal processo de construção e reconstrução de sentidos pode
ocorrer também por meio de músicas, filmes, vídeos de curta-metragem ou pinturas
(DÍAZ-PLAJA, 2012), delimitaremos o livro como objeto simbólico a ser analisado na
busca por resposta para a questão que intitula o artigo.

Literatura juvenil

Pensar sobre a expressão ―literatura juvenil‖ na atualidade é um exercício que


demanda meticulosidade e certa despretensão no que diz respeito às inúmeras
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possibilidades que se abrem quando se busca conhecer os meandros que envolvem a


temática. De acordo com Zilberman (2003), historicamente a literatura juvenil, assim
como a infantil, esteve vinculada à consolidação da instituição escolar e, por
conseguinte, a uma demanda por formação moral do leitor jovem. Segundo a autora,
―foram as modificações acontecidas na Idade Moderna e solidificadas no século XVIII
que propiciaram a ascensão de modalidades culturais como a escola com sua
organização atual e o gênero literário dirigido ao jovem‖ (p. 16). Se a noção de
literatura – sem definição de um destinatário específico – é complexa, cambiante e
relativamente recente, a de literatura juvenil é ainda mais, uma vez que, além das
dificuldades envolvidas na definição de ―literatura‖ demanda uma compreensão do que
seja esse destinatário a que a expressão ―juvenil‖ se refere. A esse respeito,
Cademartori (2009) traz a seguinte proposição:
(...) O adolescente é definido como um indivíduo entre 10 e 20
anos, que passa por modificações corporais e por adaptações
a estruturas psicológicas e ambientais, que irão conduzi-lo à
vida adulta. A definição do que seja um adolescente é,
portanto, de natureza biopsicossocial. Já a definição de
juventude parte de um enquadramento social e engloba parte
da adolescência e o início da vida adulta. Corresponde a uma
faixa etária que vai dos 15 aos 25 anos.‖ (p. 61).

Colomer (2012) ao tratar da literatura para adolescentes convida inicialmente a


uma reflexão acerca do que é adolescência e de quais são as formas da cultura juvenil
apontadas em pesquisas atuais. A autora afirma que a adolescência é ―uma
representação moderna de uma etapa da vida formada a partir do acesso dos estudos
secundários a toda a população‖ (p. 7)84 e destaca algumas tendências que são
próprias do comportamento juvenil: maior capacidade de dispersão em detrimento da
capacidade de concentração; busca por uma gratificação imediata e valorização de
―discursos da experiência para a construção da realidade, com aspectos
correspondentes de identificação emocional e expressão narrativa do indivíduo (...)‖(p.
9). Ou seja, há características que têm sido apontadas como tipicamente juvenis,
contudo, há nuances dentro desse grupo que não pode ser tratado como se fosse
homogêneo.
Díaz-Plaja (2012), ao abordar as leituras adolescentes, considera que esse é
um campo ―imenso, poroso e versátil‖ (p. 121), chamando a atenção para a diferença
entre ―leituras adolescentes‖ e ―literatura juvenil‖. De acordo com a autora, embora as

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duas expressões sejam adotadas indistintamente, ambas referem-se a realidades


diferentes:
―literatura juvenil‖ costuma fazer referência ao que aqui
chamaremos homologada, enquanto outras literaturas
conhecidas pelos adolescentes (desde as leituras obrigatórias
da escola aos quadrinhos lidos em casa, passando pela
descoberta de leituras adultas) não possuem uma
denominação clara. Os estudos que analisaram esta faixa
leitora nos últimos anos optaram por diferentes denominações
globais, e interpretaram o fenômeno a partir de ângulos
diferentes, seja de forma mais estreita ou mais ampla: juvenil,
para ensino médio, para adolescentes, etc. (p. 121-122)

Assim, considerando o que propõe a Díaz-Plaja, entendemos que o conjunto


de livros premiados pela FNLIJ85 nos últimos cinco anos na categoria ―jovem‖ situa-se
no âmbito do que é formalmente destinado esse público, sendo o que a autora
compreende como ―literatura juvenil‖, enquanto as demais, escolhidas
espontaneamente pelos adolescentes que participam da nossa pesquisa, por exemplo,
poderiam se encaixar no que se denomina ―leituras adolescentes‖.
A autora aponta que houve um crescimento mais intensivo da literatura juvenil
a partir da Segunda Guerra Mundial, salientando que, embora atualmente já seja um
―gênero‖ bem aceito em termos de ensino de literatura por sua capacidade formativa
na construção do leitor, o mesmo não o é em certos âmbitos acadêmicos, onde se
nega sua validade e até mesmo sua existência. A autora chama atenção ainda para os
impactos dessa percepção para a educação literária dos adolescentes, uma vez que
os professores não recebem formação em literatura juvenil, endossando preconceitos
contra esse tipo de literatura, que consideram distante do padrão de qualidade da
literatura canônica.
Díaz-Plaja destaca, ainda, dentro do campo da leitura adolescente – e não
necessariamente a literatura produzida especificamente para jovens – a presença dos
clássicos das literaturas nacionais, que, juntamente com os clássicos universais são

85
“Em 1975, a FNLIJ iniciou a sua premiação anual, com o Prêmio FNLIJ - O Melhor para Criança,
distinção máxima concedida aos melhores livros infantis e juvenis, que hojeconta com
diversascategorias: Criança, Jovem, Imagem, Poesia, Informativo, Tradução Criança, Tradução
Jovem, Tradução Informativo, Tradução Reconto, Projeto Editorial, Revelação Escritor, Revelação
Ilustrador, Melhor Ilustração, Teatro, Livro Brinquedo, Teórico, Reconto e Literatura de Língua
Portuguesa” disponível em <http://www.fnlij.org.br/site/premio-fnlij.html>. Acessado em 12 de
julho de 2017. Conforme aponta Zancani (2006) em análise referente à premiação voltada para a
literatura infantil no Brasil, o prêmio concedido pela referida fundação é bastante representativo,
pois conta com “a participação de dezenas de votantes, autores e críticos especializados em textos
infantis” (p. 58) e tem servido como referência para “a constituição de bibliotecas e acervos básicos
de literatura infantil” (idem). Adotamos a categoria “jovem” como referência para a seleção da
amostra analisada.
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considerados ―alta cultura‖, as novelas juvenis clássicas e os romances de formação


que se situam em um grupo cuja característica é uma ―indeterminação canônica‖, a
―literatura juvenil homologada‖, cujas peculiaridades trataremos no parágrafo seguinte,
e a ―baixa cultura‖ que engloba a literatura de consumo, que se encontra em livrarias
de bairro, em supermercados, ou os best sellers. A autora traz considerações
importantes sobre as características que envolvem as obras consideradas juvenis:
O direcionamento para um público determinado se faz através
de vários mecanismos, tanto textuais como paratextuais. Os
mecanismos textuais poderiam ser: protagonistas de idades
parecidas com as dos leitores adolescentes, temas próximos a
sua problemática ou uso de uma linguagem que se aproxima
de sua fala. Os paratextuais estão projetados nas coleções,
textos complementares incluídos e também a chegada aos
leitores, que passa pela conivência das instituições educativas
nas estratégias de venda. (Díaz-Plaja, 2012, p. 134)86

Quando o assunto é a produção literária para um público especificado,


Andruetto (2012) faz a seguinte observação: ―A tendência a considerar a literatura
infantil e/ou juvenil basicamente pelo que tem de infantil ou de juvenil é um perigo,
uma vez que parte de ideias preconcebidas sobre o que é uma criança e um jovem‖
(p. 60). Para a autora, a faixa etária do destinatário deve ser um aspecto secundário,
pois, ―a dificuldade de um texto capaz de agradar a leitores crianças ou jovens não
provém tanto de sua adaptabilidade a um destinatário, mas, sobretudo, de sua
qualidade‖ (p. 61) e acrescenta que ao falarmos de ―escrita de qualquer tema ou
gênero o substantivo é sempre mais importante que o adjetivo‖ (idem). Assim, a autora
propõe que a boa literatura pode ser apreciada por diferentes públicos e, portanto, não
requer uma definição a priori do público pretendido, o que, para ela, é mais uma
demanda de mercado, uma questão de publicidade editorial.
Díaz-Plaja (2012), por sua vez, sistematiza características desse tipo de
produção literária, destacando a existência de três grandes grupos em que se divide a
literatura juvenil: i) Textos realistas, ii) textos com compromisso ideológico e iii)
histórias de iniciação. No primeiro grupo (i) ela aponta a presença de textos que
trazem linhas argumentativas mais voltadas para temáticas que buscam satisfazer as
necessidades de identificação típicas da evolução leitora dos adolescentes: iniciação
ao amor, transformações intelectuais e psicológicas, personalidade e fatos do
cotidiano, dificuldades da vida e inserção no mundo do crime e problemas do mundo
atual e vida cotidiana. No segundo grupo (ii), estão situados os textos que giram em

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torno do resgate da história preferencialmente recente, que servem para apresentar


não apenas os fatos conhecidos, mas trazem um posicionamento dos protagonistas
em relação a princípios éticos. Já no terceiro grupo (iii) estão situados textos de linha
fantástica que mostram as dificuldades do protagonista até um final onde triunfe a
verdade e a justiça, a exemplo de Harry Potter, série citada pela autora.
Com relação às chamadas ―novas ofertas no campo da literatura juvenil‖, Díaz-
Plaja destaca três novos campos: i) Os álbuns para adolescentes, ii) a metaliteratura,
iii) a não-ficção. No primeiro campo estão situados os livros de imagem que rompem
com uma tradição que os identifica apenas com o leitor infantil, trazendo uma
complexidade em sua construção que requer um leitor com maior experiência de
leitura literária. No segundo campo reúnem-se obras que têm como proposta a
releitura de contos tradicionais ou propostas originais que subvertem uma determinada
ordem esperada. Já no terceiro campo encontram-se obras que podem ser narrativas
ou não, que podem ter um tom mais humorístico ou mais sério, mesclando temas da
atualidade, auto-ajuda e biografias, fenômenos midiáticos, entre outros.
Díaz-Plaja também aborda outros gêneros e formas, entre os quais encontram-
se os quadrinhos, os mangás – e eventos decorrentes de sua apreciação – as revistas
juvenis com temas voltados para meninos ou meninas, a música pop, considerada
―literatura em forma de canções‖ (p. 147), os filmes e videoclips, mostrando, assim, o
quão diverso é o universo literário dos adolescentes. É importante considerar-se,
ainda, a presença das chick lits para adolescentes, que são, basicamente, obras e
coleções destinadas especificamente ao público feminino, as quais trazem como
característica comum um misto de ―sexismo e superficialidade no tratamento da
identidade feminina.‖87 (OLID, 2012, p. 171).
Diante das ponderações apontadas, é importante pensar sobre como
proceder no processo de seleção e avaliação de obras voltadas para o público jovem.
Andruetto (2012) chama a atenção para o desafio que se coloca para leitores,
docentes e especialistas no procedimento de selecionar ―bons livros no mar de
publicações que são editadas‖ (p. 24), apontando a importância de que haja critérios
―que sejam capazes de ir além das recomendações editoriais, da publicidade, dos
índices de venda e dos nomes consagrados‖ (idem). Um levantamento feito nas listas
de premiações dos últimos cinco anos pela Fundação Nacional do Livro Infantil e
Juvenil (FNLIJ) na categoria ―Jovem‖ resulta no seguinte quadro:
Título Autor/ Editora Ano de Breve descrição da obra

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ilustrador premiação
Iluminuras: uma Rosana Rios Lê 2016 Um romance cujos
incrível viagem ao Thaís protagonistas são dois
passado Linhares adolescentes que voltam no
tempo e vivem uma grande
aventura para tentar retornar ao
tempo presente.
Desequilibristas Manu Maltez Peirópolis 2015 Obra elaborada a partir de
imagens e versos assimétricos
que tematizam a rotina do
skatista na capital paulistana, a
qual propõe pensar além do que
se apresenta na superfície da
imagem e também do texto
verbal.
Aos 7 e aos 40 João Cosac Naify 2014 Livro que traz um projeto gráfico
Anzanello diferenciado e uma narrativa
Carrascoza que revela paralelamente traços
da infância e da maturidade de
um personagem com
simplicidade e sensibilidade.
Aquela água toda João Cosac Naify 2013 Livro de contos que retrata fatos
Anzanello do cotidiano com profundidade
Carrascoza e suavidade, levando a
Leya Mira reflexões importantes acerca da
Brander própria existência.
(ilustrações)
A morena da Ignácio de Moderna 2012 Livro de crônicas em tom
estação Loyola memorialístico que trazem como
Brandão elemento principal a presença
dos trens, proporcionando ao
leitor um misto de ficção e
realidade, histórico e
contemporâneo.

O quadro acima traz uma amostra que, embora seja pequena em termos
numéricos, é representativa de diferentes gêneros literários, havendo a presença de
romance (Iluminuras), contos (Aquela água toda), crônicas (Aos 7 e aos 40; A morena
da estação) e o que poderíamos chamar de poema ilustrado (Desequilibristas).
Embora o processo de seleção de livros altamente recomendáveis para jovens
não represente a totalidade do que se produz anualmente tendo em vista esse
público, vale analisar o que a crítica reconhece como literatura juvenil. O
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levantamento das indicações desse processo mostra uma série de


características temáticas, estruturais, de estilo etc. Tendo em vista a vastidão do
que se pode conceber como ―leituras adolescentes‖, de acordo com Díaz-Plaja – que
englobam também o que não é publicado intencionalmente para leitores adolescentes
– percebemos a ―homologação‖ da literatura juvenil por meio de uma premiação não
necessariamente como uma forma de indicar o que é para jovem, mas talvez uma
tentativa de indicar leituras que, entre as que estão disponíveis no mercado,
apresentam qualidade literária e que podem ser apreciadas pelo público jovem. Assim,
ao homologar essa literatura, pode-se favorecer a construção de filtros e incentivar a
produção de obras cuja preocupação ultrapasse as estratégias de venda, ou seja, que
proponham, acima de tudo, uma leitura e uma experiência estética que Andruetto
(2012) chama de exercício de liberdade.

Considerações Finais

Finalizamos esse artigo retomando a pergunta inicial que o intitula e tendo


plena consciência de que as reflexões propostas no decorrer do texto suscitaram mais
novas perguntas e não necessariamente respostas definitivas. Entretanto, nos
aventuramos a propor uma síntese do que se pode compreender hoje acerca da
expressão ―literatura juvenil‖.
Uma primeira consideração a se fazer é que tomando as duas expressões
separadamente não existe um conceito único e acabado do que seja ―literatura‖ assim
como também não há uma resposta única capaz de expressar ou de abarcar a
diversidade do que é ―juvenil‖. Outra consideração importante diz respeito à
inexistência da obra fora do encontro com o leitor, de modo que definir literatura juvenil
requer mais uma compreensão sobre a recepção do que sobre sua produção. Uma
terceira consideração importante está ligada ao que é legitimado como literatura e
como juvenil, dentro de toda a vasta gama de obras produzidas e consumidas por
jovens leitores na atualidade.
Com todas as complexidades envolvidas nas expressões ―literatura‖ e ―juvenil‖,
entendemos que juntas elas representam, um conjunto heterogêneo composto por
obras de diferentes gêneros cuja semelhança é apenas a intencionalidade voltada
para um público destinatário – que também não é homogêneo. Assim, a tentativa
desse texto foi trazer provocações que possam ampliar as reflexões de todos os
envolvidos e interessados nesse campo de discussões, não no intuito de definir
categoricamente ―o que é mesmo juvenil‖, mas de discutir e compreender as diversas

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razões que estão ligadas a essa literatura que muitas vezes é referendada para, mas
não necessariamente pelo público jovem.

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Referências:

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

OS CONTOS DE FADAS CONTEMPORÂNEOS: UM OLHAR


ATENTO PARA OPROTAGONISMO DAS PRINCESAS
AFRICANAS

Jhennefer Alves Macêdo, Universidade Federal da Paraíba, eixo temático 4: A


literatura juvenil e jovens leitores, comunicação oral, CAPES
Jaine de Sousa Barbosa, Universidade Federal da Paraíba, eixo temático 4: A
literatura juvenil e jovens leitores, comunicação oral, CAPES
Daniela Maria Segabinazi, Universidade Federal da Paraíba, eixo temático 4: A
literatura juvenil e jovens leitores, comunicação oral

Considerações Iniciais

A literatura infantil esteve inserida em diferentes processos de adaptações


desde os seus primórdios; seja ainda em sua forma oral, quando os camponeses
transferiam suas próprias vivências para as histórias narradas; ou em sua forma
escrita, por meio das mãos de Perrault, quando este adequou os contos da cultura
popular para as exigências da classe mais favorecida.
Desde então, os contos populares se perpetuaram, adaptando-se em
diferentes modelos, para diferentes contextos, constituindo-se como um acervo
cultural das várias literaturas nacionais. Passados mais de quatro séculos desde a
primeira recolha dos contos populares, inúmeras temáticas continuam a apropriar-se
dessa literatura para difundir seus valores e atingir em cada tempo incontáveis leitores.
Ancorados nesses pressupostos, direcionamos as nossas discussões para as
versões contemporâneas de uma literatura denominada como afro-brasileira, a qual se
propõe a adaptar os contos europeus, especificamente, as histórias das princesas,
adequando-as as especificidades da cultura negra.
Essas obras surgiram, inicialmente, para atender as exigências da Lei
10.639/03, a qual é resultante de movimentos da militância que reivindicaram o
espaço, na literatura infantil, para as meninas negras. Em resposta a essas
493

reivindicações, escritores brasileiros, em parceria com o mercado editorial, lançaram


diversos títulos que atenderam às solicitações dos seus leitores afro-contemporâneos.
Entre essas obras publicadas estão releituras dos clássicos europeus, dessa
vez as princesas são negras e quebram com a hegemonia europeia que estabeleceu a
branquitude como um dos quesitos de idealização da mulher ideal. Consideramos o
avanço que o aparecimento dessas narrativas representa, todavia, enquanto leitores
críticos, nos preocupamos em averiguar a qualidade dessas publicações.
Sendo assim, desenvolveremos uma análise referente ao aporte temático da
adaptação Pretinha de neve e os sete gigantes (2013). Reafirmaremos, através da
nossa análise, que para uma consolidação efetiva dessa literatura, torna-se
imprescindível a revisão criteriosa dessas obras que estão sendo publicadas e
inseridas na literatura afro-brasileira.
Por fim, não pretendemos, no decorrer desse estudo, retomar toda a história da
literatura infantil, pois consideramos que essa compilação de informações já foi,
inúmeras vezes, recolhida e apresentada por diversos autores, os quais tiveram seus
estudos reconhecidos, consultados e consagrados. Dessa forma, objetivamos
apresentar a literatura infantil de modo a delinear a sua importância enquanto um
gênero que não apenas adequou-se a diversos contextos, como atendeu aos
questionamentos, reivindicações e anseios das muitas sociedades pelas quais
transitou.
Teceremos as nossas considerações com base nos estudos desenvolvidos por
Darton (1986); Zilberman (1989, 2014); Traça (1998); Machado (2002); Coelho (2010);
Duarte (2008) e Tata (2013).

A literatura infantil e sua importância ao longo dos séculos

Patrimônio cultural de valor inestimável, fonte de saber inenarrável, veículo


transmissor de verdades. Essas são apenas algumas, entre as muitas, atribuições que
abarcam as constantes definições que são criadas para reafirmar a importância dos
contos populares. Embora ―muitas vezes, são consideradas apenas histórias infantis
e, por isso, vistas como pouco importantes.‖ (Machado, 2002, p.68), esse gênero
através de sua qualidade artística e de sua força cultural se consolidou como um dos
textos mais antigos da humanidade e que reverberou por entre os séculos:

Os contos de fadas continuam sendo um manancial


inesgotável e fundamental de clássicos literários para os jovens
leitores. Não saíram de moda, não. Continuam a ter muito o
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que dizer a cada geração, porque falam de verdades


profundas, inerentes ao ser humano. (MACHADO, 2002, p.82)

Mesmo que não tenham chegado a todos os lares e adentrado a


intimidade das famílias através do objeto materializado (livro), os contos
populares, estiveram presentes em muitos momentos: na história contada
antes de dormir, seja através da doce voz dos pais, ou pela afetividade das
amas de leite (ou babás, termo mais contemporâneo); nas noites sem
eletricidade em que as historias se tornavam tão reais por meio das
performances daqueles que narravam e se expandiam na imaginação de seus
ouvintes.
Muitos desses ouvintes tiveram suas infâncias povoadas pela
imaginação de ser a menina que comeu a maçã envenenada, mas que
encontrou o príncipe que a salvou da morte; a pobre órfã que realizava
trabalhos domésticos durante todo o dia e que contou ajuda da fada madrinha
para se tornar uma princesa e ir ao baile, mesmo que a magia só durasse até a
meia noite; do menino tão ousado que foi capaz de escalar a imensidão de um
pé de feijão, enfrentar um gigante e lhe roubar a galinha dos ovos de ouro; dos
dois irmãos que mesmo sendo abandonados e de ficarem perdidos na floresta
foram mais espertos que a bruxa e conseguiram voltar para casa. As histórias,
lidas ou ouvidas, também cumpriram com a função de fazer com que seus
ouvintes entendessem como era perigoso sair sozinhos pela floresta, pois
sempre poderia haver um lobo malvado pelo caminho. Essas são apenas
algumas das muitas e muitas narrativas que atravessaram o tempo, a
sociedade e os homens.
Ana Maria Machado, em Como e por que ler os clássicos universais
desde cedo (2002), elege os contos populares como um gênero eterno e
sempre novo, segundo a autora, essas historias lidas ou ouvidas, durante a
infância, contribuirão para a construção do imaginário infantil e marcarão para
sempre a memória de uma criança. Não importa quanto tempo se passe desde
o primeiro contato com aquele livro escrito ou ilustrado que se tornou
inesquecível, seus ensinamentos ecoarão sempre na memória daqueles que
um dia foram tocados verdadeiramente pela literatura infantil e pelo
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encantamento dos contos populares. Algumas dessas histórias, contadas


oralmente e reescritas nos livros, tornam-se referências permanentes que
levamos por toda a vida e que, em alguns momentos, acabamos por revisitá-
las.
Regina Zilberman (2014), em consonância com o pensamento de Ana
Maria Machado, defende que:

Um bom livro é aquele que agrada, não importando se foi


escrito para crianças ou adultos, homens ou mulheres,
brasileiros ou estrangeiros. E ao livro que agrada costuma
voltar, lendo-o de novo, no todo ou em parte, retornando de
preferência àqueles trechos que provocaram prazer particular.
Com a literatura para crianças não é diferente: livros lidos na
infância permanecem na memória do adolescente e do adulto,
responsáveis que foram por bons momentos aos quais as
pessoas não cansam de regressar. (ZILBERMAN, 2014, p.9)

Qual a fórmula mágica que foi usada para que os contos populares continuem
vivos mesmo após tantos séculos de sua criação? Talvez, a primeira e mais
importante explicação recaia sobre o fato de que eles são reflexos da realidade,
abordam temas que estão intrinsicamente ligados a existência humana e, por isso,
mesmo que os homens envelheçam, os contos jamais deixarão de ser novos:

O conto é um veículo transmissor de conhecimento, é uma


palavra cujo fio não deve ser cortado ao passar de geração
para geração, sob pena de pôr em perigo a coesão social e
sobrevivência do grupo. A transmissão de valores culturais se
dá também através dos contos. O ouvinte ou leitor encontram,
nas personagens imaginárias que povoam a narrativa,
personagens e situações bem reais com que se defrontam no
seu dia-dia. É todo o universo real, social e familiar que
aparece em cena, com os seus conflitos latentes ou não, e os
fantasmas que os engedram. (TRAÇA, 1998, p.28)

Falar em leitor, seja ele infantil ou adulto, é compreender que existe um


indivíduo para o qual o livro, enquanto objeto, e a literatura, enquanto texto
transmissor de conhecimentos, realidade e verdades, se destinam. De acordo com
Zilberman (1989), uma obra literária passa por constantes modificações desde o seu
momento primário de criação, essa metamorfose literária se faz necessária, porque o
tempo, a sociedade e os homens transitam por constantes transformações, de tal
forma, que a cada momento histórico observamos as alterações do ver, do crer e do
querer por partes do leitores. Logo, os nossos anseios literários são modificados e
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novos horizontes de expectativas precisam ser alcançados. Sendo assim, se uma obra
literária não envelhece e sempre tem algo a nos dizer, significa que ela reflete
aspectos das diferentes sociedades pelas quais transita ao longo dos tempos, logo,
passa por constantes processos de adaptação e é sobre esse aspecto que estará
fundamentada toda a nossa discussão vindoura.
Se propor a desenvolver uma pesquisa que investigue o contexto histórico,
social, cultural e, por vezes, até mesmo politico, que está por trás de uma produção
literária é desafiador. Sabemos dos riscos que corremos de acabar deixando algo
importante para trás. Optamos por começar por aquilo que constitui uma possível
porta através da qual adentraremos os contos populares, aquilo a que costumamos
chamar: início.
No que se refere à história da literatura infantil, seja ela europeia ou brasileira,
praticamente, nenhum tema que nos propusermos a falar, será completamente novo,
pois concernente aos estudos que já se propuseram a o período de surgimento do
texto direcionado aos infantes, um vasto repertório já está formado e consolidado.
Dentre os pesquisadores que tiveram suas investigações consagradas pela qualidade
de sua pesquisa podemos citar Robert Darnton, com O grande massacre dos gatos
(1986). O escritor utiliza fontes históricas documentais para apresentar as relações
existentes entre os contos populares que eram contados pelos camponeses na Europa
Feudal, com a realidade vivenciada pelos mesmos. Sob esse aspecto, Darnton (1986)
esclarece: ―como todos os contadores de histórias, os narradores camponeses
adaptavam o cenário de seus relatos ao seu próprio meio.‖ (DARNTON, 1986, pp.31).
Ao folhearmos as páginas dessa fonte de informações, o livro, somos
apresentados a um contexto histórico que parece está à milhas de distância da nossa
realidade contemporânea88. Pensar que crianças não só ouviam as histórias, como
estavam inseridas em um cotidiano de fome, morte, pobreza, violência, trabalho
escravo, abandono, relações incestuosas, abusos sexuais, estupros, sadomias,
canibalismos, guerras, epidemias etc, nos inquieta de tal maneira que quase nos
recusamos a acreditar em tamanha crueldade com os seres para os quais, hoje,
atribuímos tamanha fragilidade, eram tratados.

88
Quando falamos em realidade contemporânea, não estamos nos referindo ao grupo de pessoas,
especialmente, crianças, que estão inseridas nas classes menos favorecidas, pois sabemos que essas
têm contato, diariamente, com situações que, se não iguais, se aproximam muito da realidade francesa
do século XVII. Embora tenhamos avançado muito no tocante a aproximação entre crianças e livros,
sabemos que são as crianças das classes mais favorecidas que continuam sendo, em grande maioria, os
detentores do objeto livro.
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Os reflexos sociais que aparecem nos contos são reflexos da


realidade e podem variar de acordo com a realidade... [...]
longe de ser a invenção arbitrária as tramas nas quais eles
estavam inseridos, não eram seres de uma imaginação coletiva
expressa a base comum de uma determinada ordem social.
(DARNTON, 1986, p.39)

Dois irmãos abandonados por seus pais em uma floresta a mercê da própria
sorte (João e Maria); uma menina caminhando sozinha para a casa de sua vó e não
só presenciando, como sendo vitima, de um massacre canibal (Chapeuzinho
Vermelho); um pai que se apaixona por sua filha e, praticamente, a obriga a casar-se
com ele, dando origem a uma serie de perseguições fanáticas, obrigando a princesa a
fugir para tentar escapar do seu cruel destino (Pele de Asno), e uma pobre órfã, que
não bastante perder sua mãe, ainda passa a ser tratada como escrava por sua
madrasta e irmãs ( Cinderela), são contos que, se lidos em suas versões primárias,
causam no leitor inserido na época moderna, uma verdadeira aversão, todavia,
outrora, esses mesmos contos já foram tratados e recebidos pelos ouvintes com muita
naturalidade, pois nada mais eram do que a sua própria realidade:

O estado de subnutrição crônica em que vivia a grande maioria


da população era responsável pelo elevado número de mortes
provocado pelas epidemias de peste e pelas fomes. Os
casamento não duravam mais de quinze anos, terminando com
a morte de um dos cônjuges. Em cada dez crianças, duas ou
três morriam antes de terem atingido os deis anos de idade. ―O
Antigo regime governava uma sociedade de viúvas, órfãos e de
cinderelas.‖ (TRAÇA 1998, p.44)

Além disso, não são historias advindas apenas da imaginação dos


camponeses e repassadas para os demais em noites, após longos dias de trabalho,
junto à lareira89, os personagens que ali estavam, não eram seres distanciados; as
tramas vivenciadas por esses personagens, não eram desconhecidas, os contos
populares, em seus primórdios, eram reflexos, antes de qualquer coisa, da realidade
de seus transmissores. O momento de contação dessas histórias permitia um alivio
diante da vida tão pesada que carregavam em seu dia-a-dia. Segundo Machado, ―é

89
Reunião junto à lareira, à noitinha, quando os homens consertavam suas ferramentas e as mulheres
costuravam, escutando histórias que seriam registradas pelos folcloristas trezentos anos depois e que já
duravam séculos. Pretendessem elas divertir os adultos ou assustar as crianças, como no caso de contos de
advertência, como “Chapeuzinho Vermelho", as histórias pertenciam sempre a um fundo da cultura
popular, que os camponeses foram acumulando através dos séculos, com perdas notavelmente pequenas.
(DARNTON, 1986, pp.32)

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para isso que o homem conta histórias – para tentar entender a vida, sua passagem
pelo mundo, ver na existência alguma espécie e lógica. (MACHADO, 2002, p.75)
Os camponeses, através de seus relatos orais, não só nos deixaram
características que permitem conhecer o seu contexto histórico ligado aos temas mais
complexos, como também deixaram marcas que revelam muito de si próprios. O
desejo de escapar da sorte cruel que os acompanhava em toda a sua existência são
expressos nas linhas e entrelinhas das muitas narrativas que circulavam naquela
época:

Simbolicamente, refletem os anseios de ascensão social que


caracterizaram a época em que se difundiram – tanto de
mulheres condenas à rotina do trabalho doméstico, quanto das
classes menos favorecidas, em geral. Neles, tecelãs,
cozinheiras, sapateiros, alfaiates, moleiros, lenhadores,
soldados que acabam de dar baixa, pescadores, camponeses,
os mais diferentes artesãos, todos estão dispostos a enfrentar
um trabalho árduo porque sonham com dia melhores- e um
golpe de sorte que lhes dê um empurrãozinho para subir na
vida. (MACHADO, 2002, p.75)

Chamamos atenção para uma palavra mencionada pelo escritor Robert


Darnton que permeia todo o processo de surgimento, circulação e consolidação da
literatura infantil. Referimos-nos ao termo ―adaptação‖, sobre a qual estão
estabelecidas as bases da literatura infantil. No que concerne à literatura oral, como já
observamos, a adaptação aconteceu no momento em que os camponeses deram vida
as suas próprias histórias para recontá-las aos ouvintes.
No segundo momento da literatura infantil, em solo europeu, quando essa
transita das aldeias para os palácios reais, são as amas de leite, as responsáveis por
intermediar o conhecimento do povo a necessidade dos ouvintes da burguesia. Nesse
tempo, como bem sabemos, o contexto histórico da França já estava em
transformação e as crianças, outrora adultos em miniatura, já passaram a ser vistas
como um ser frágil e que precisava de cuidados:

Perrault, mestre do gênero, realmente recolheu seu material da


tradição oral do povo, sua principal fonte, provavelmente, era a
babá do seu filho. Mas ele retocou tudo, para atender ao gosto
dos sofisticados frequentadores dos salões precieseus e
cortesãos aos quais ele endereçou a primeira versão publicada
de Mamãe Gansos, seu Contes de ma mére l'oye, de 1697.
(DARNTON, 1986, p.24)

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―A literatura infantil mudou consideravelmente suas características, ao passar


da classe camponesa francesa para o quarto do filho de Perrault e daí partir para a
publicação, atravessando depois do Reino e voltando para uma tradição oral.‖
(DARNTON, 1986, pp.24).
A partir dessas colocações, podemos observar que os contos populares
sofreram diferentes transformações, imutáveis operações do ser interno do homem, as
quais sugerem que as próprias mentalidades mudaram. Homens como Charles
Perrault (1628-1703), na França, e Jacob (1785-1863) e Wilhelm (1786-1859) Grimm,
na Alemanha, os transcreveram e publicaram visando o público infantil.

Muitos deles foram recolhidos em antologias por estudiosos,


com maior ou menor fidelidade à versão original de seus
contadores e contadoras. Em vários casos, foram recontados e
reelaborados – ora ganhando qualidade literária nas novas
roupagens, ora se perdendo em adaptações cheias de
intenções de corrigir as matrizes populares. Ora mantendo seu
vigor original, ora se diluindo em pasteurizações. ( MACHADO,
2013, p. 10)

Sejam submetidos a processos de igienizações, ou repletos de aspectos


moralizantes, os contos populares, em seu processo de adaptação do oral para o
escrito, carregam em seu registro as marcas das reivindicações de uma sociedade
que já não aceitava que suas crianças fossem postas e tratadas de maneiras
igualitárias aos adultos. Além disso:

Os tempos de Perrault já vão distantes. E se a época dos


Irmãos Grimm não é menos violenta, conflituosa ou agressiva
do que o século de Perrault, já são outras as maneiras de o
homem ver e compreender o próprio homem, seu mundo e
seus objetivos de vida. O Romantismo trouxe para o mundo um
inegável sentido humanitário que vai ter suas consequências
na renovação da arte, da literatura e dos costumes. (COELHO,
2010, pp.150-151)

Por fim, fechando o ciclo dos principais ciclos de percursores da literatura


infantil, Hans Christian Andersen (1805-1875), com uma distância de vinte anos dos
Grimm, tinha em sua volta um cenário politico e cultural totalmente diferente dos seus
antecessores. Inserido em uma época em que a expansão industrial e ascensão
econômica se dava a partir da exploração das classes operarias, o escritor,
considerado pai da literatura infantil, optou por combater as injustiças sociais, em suas
obras, através do refugio na religião e na fé. Suas criações são repletas de valores
ideológicos românticos e suas personagens são passivas as dificuldades que a vida
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lhes impõe. Conseguindo, dessa forma, estabelecer um dialogo com o seu tempo e
seu leitor:
Não duvidamos que a emotividade que perpassa em seu
mundo de ficção e o seu poder de tocar a sensibilidade do
leitor tenham sido os aspectos que mais diretamente
contribuíram para que Andersen conquistasse a glória. Como
um verdadeiro romântico, falando a linguagem do coração, ele
foi compreendido e amado por crianças e adultos. Hoje,
embora as exigências dos tempos sejam outras, Andersen
continua tendo um largo público, pois escreveu com ternura,
sem pieguices e, realista que foi, não omitiu os traços de
violência que parecem inerentes à vida. (COELHO, 2010, pp.
159-160)

Entre tantas características desses contos que se difundiram e que, além de


refletir o contexto social, ainda estabeleceram padrões de comportamento que se
expandiram entre outras literaturas nacionais, a exemplo de Brasil, está a do modelo
feminino ideal.
De acordo com Zilberman (2014), na literatura destinada às crianças, as
meninas e mulheres assumem posturas que acabam dividindo dois momentos do
protagonismo feminino com características bastante distintas: primeiro, as mulheres
que dialogavam com a magia; segundo, jovens que vivem uma realidade cotidiana e
problemática similar a que o leitor experimenta, ―personagens femininas no papel de
figuras centrais não são novidade na literatura infantil, podendo-se até dizer que foi
nos livros para crianças que moças e mulheres alcançaram proeminência, fama e
popularidade.‖ (ZILBERMAN, 2014, p.81)
Sobre esse primeiro grupo de mulheres, apontadas por Zilberman, que
dialogavam com a magia, a imagem das mulheres transmitidas nos contos populares
dos séculos XVII ao XIX, de acordo com Traça eram:

A Bela Adormecida no Bosque, O Capuchinho Vermelho,


Barba Azul, As Fadas e Cinderela constituem o grupo de
contos que se dirigem mais diretamente à mulher. No primeiro,
se atentarmos nos dons das fadas, veremos a representação
da mulher aristocrática: beleza, graça, temperamento angelical,
habilidade para dançar na perfeição, uma voz de rouxinol e o
sentido da música. O comportamento da heróina, tanto ao
longo da primeira como da segunda parte, é de uma enorme
docilidade, resignação e paciência, sublinhadas pela
moralidade de Perrault. (TRAÇA, 1998, p.93)

O Capuchinho Vermelho adverte que as meninas devem ser gentis,


obedientes, bem educadas e não falar com estranhos. Em Barba Azul, aprendemos

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que salvação é atribuída ao reconhecimento dos erros e ao pedido de perdão através


de rezas e orações. Em As Fadas, a beleza, gentileza, doçura, aptidão para as tarefas
domésticas, são características dos bons, já a antipatia, arrogância e preguiça são
aspectos negativos que pertencem àqueles que não praticam a bondade. Como
consequência, os bons são recompensados e os maus são punidos. Cinderela
reafirma o ideal da mulher doce, gentil, e trabalhadora.
De acordo com Traça, alguns dos pesquisadores que se dispuseram a
pesquisar os contos dos irmãos Grimm, localizaram que dentre os 250 editados, cerca
de 80 dos papeis negativos nos contos são atribuídos aos papeis femininos. Além
disso, a maior parte dos contos dos Grimm carrega em suas entrelinhas valores
morais que devem ser seguidos pelas crianças.
Quando se trata da formação da imagem e dos anseios femininos, esses são
sempre associados ao desejo de conquistar riquezas, joias e um homem, que quase
sempre vem adornado como um príncipe para protegê-la. Mas para alcançar esses tão
almejados desejos, a mesma precisa sempre ser uma donzela de grandes qualidades,
por exemplo: a passividade, obediência, trabalho, o gosto pelo sacrifício. Essas
qualidades serão essenciais para que as mulheres encontrem sua felicidade e possam
habitar em seus lares e castelos, os quais permanecerão sendo regidos pelas leis
patriarcais:

Para uma criança que cresceu na sociedade capitalista dos


séculos XIX e XX, o processo de socialização, ilustrado e
veiculado pelos modelos e pelas normas dos contos de Grimm,
funcionou, e funciona ainda, como um meio para tornar esta
sociedade mais aceitável. Os movimentos das heroínas, nos
contos ―clássicos‖, são de tal modo restritos, que permanecem
quase sempre imobilizadas. Os heróis partem à descoberta do
vasto mundo, lutam com dragões, enfrentam terríveis gigantes;
as heroínas bem comportadas não saem nunca das rotas
batidas, e isto quando são fechadas em castelos, torres,
palácios, jardins, choupanas ou carroças claustrofóbicas.
Escondidas, prisioneiras ou adormecidas esperam. (ZIPER,
apud TRAÇA, 1998, p.97)

Com base nas exposições apresentadas, observarmos que a literatura infantil,


ao transitar por diferentes épocas, imprimiu em suas páginas os reflexos das
transformações nas quais estavam inseridas as sociedades vigentes. Muito embora
haja aqueles que insistem em enquadrá-la, somente como um instrumento de
diversão, para nós, o texto infantil tem uma importância que transcende a essa
definição.

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Ancorados nesses pressupostos, reconhecemos que, entre as muitas


possibilidades que a leitura dos contos populares nos oferece, como a exemplo do
leque de informações históricas e culturais que encontramos no esmiuçar de um texto,
está a de lermos criticamente as historias contadas. Isso, provavelmente, não
acontece nas primeiras leituras da infância, já que nesse momento estamos
mergulhados nas histórias mágicas. Apenas a partir do nosso amadurecimento
literário, conseguimos realizar releituras sob um novo olhar. Nesse momento,
enxergamos as narrativas com uma visão de leitor questionador, a qual nos leva a
observar elementos que até então passaram imperceptíveis.
Por exemplo, se recordássemos os momentos da nossa infância, saberíamos
dizer quais as princesas africanas que conhecemos? Quantas histórias sobre elas
ouvirmos os nossos pais lerem antes de adormecermos? Quantas delas sonhamos em
ser um dia? Possivelmente, a reposta, categórica, para essas perguntas será negativa.
Se recapitularmos, rapidamente, todos os acervos, materiais e visuais, literários que
tivemos acesso ao longo de toda nossa vida, constataremos que as princesas que nos
foram apresentadas sempre estiveram associadas ao modelo feminino europeu. Essa
dinastia de mulheres perfeitas, passivas e brancas, confirma que sempre imperou na
literatura infantil um padrão colonialista. Diante desse contexto e após muitas
reivindicações, a literatura infantil contemporânea vem rompendo, ainda que
timidamente, com esse (pré) conceito que vigorou por tantos séculos.
Resultante de uma Lei que versa sobre a elaboração de livros que recuperem
as histórias africanas esquecidas, novas princesas, negras e denominadas como
africanas, vem assumindo o protagonismo nas releituras dos clássicos europeus.
Todavia, ressaltamos que a consolidação de uma literatura não consiste apenas no
atender a reivindicações e incluir novos protagonistas. Se os contos populares se
propagaram por tantas décadas, soma-se a sua força cultural, a qualidade artística,
estética e literária dos seus textos.

O protagonismo duvidoso nas releituras dos clássicos europeus: uma


analise do livro ―Pretinha de neve e os sete gigantes” (2013)

O surgimento dessas releituras veiculadas aos contos populares europeus,


especialmente as imagens das princesas, se deu sob duas vertentes: a primeira
visava atender as exigências dispostas pela lei, a segunda, para preencher uma
lacuna a qual era reivindicada por membros de movimentos que questionavam o não
aparecimento de princesas negras nos clássicos contos populares.
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A partir disso, muitos autores brasileiros passaram a reeditar contos já


consolidados, na tentativa de construir uma nova imagem de princesa. Porém, a
construção dessa literatura afro-brasileira parece enfrentar algumas dificuldades na
formação de uma identidade específica.
Dessa forma, a busca de respostas para alguns questionamentos conduzirão a
nossa análise, pois se torna imprescindível refletirmos qual a temática da literatura
afro-brasileira? Quais as suas características? Quem a escreve? Como estão
estruturadas suas narrativas? Quais as principais problemáticas dessa literatura
recém-descoberta? Buscaremos responder esses questionamentos a partir de uma
análise atenta da obra Pretinha de neve e os sete gigantes (2013)
De acordo com Duarte (2008), cinco características são fundamentais para que
uma literatura seja denominada de afro-brasileira. Em primeiro lugar é necessário
haver uma adequação da temática, pois o negro deve ser o tema principal. Em
segundo lugar, a autoria, pois assim como afirma o autor:

Uma escrita proveniente de autor afro-brasileiro, e, neste caso,


há que se atentar para a abertura implícita ao sentido da
expressão, a fim de abarcar as individualidades muitas vezes
fraturadas oriundas do processo miscigenador.
Complementando esse segundo elemento, logo se impõe um
terceiro, qual seja, o ponto de vista. Com efeito, não basta ser
afrodescendente ou simplesmente utilizar-se do tema. É
necessária a assunção de uma perspectiva e, mesmo, de uma
visão de mundo identificada à história, à cultura, logo a toda
problemática inerente à vida desse importante segmento da
população. (DUARTE, 2008, p.1)

Se o ponto de vista é elemento importante na classificação dessa literatura, um


quarto componente situa-se no âmbito da linguagem, fundado na constituição de uma
discursividade específica, marcada pela expressão de ritmos e significados novos e,
mesmo, de um vocabulário pertencente às práticas linguísticas oriundas de África e
inseridas no processo transculturador em curso no Brasil. Por fim, um quinto
componente aponta para a formação de um público leitor afrodescendente como fator
de intencionalidade próprio a essa literatura e, portanto, ausente do projeto que
nortearia a literatura brasileira em geral.
De posse dessas informações que nortearam a nossa análise, verificaremos a
maneira as temáticas componentes da literatura afro-brasileira se fazem notáveis na
obra selecionada como o nosso corpus, a fim de verificar se essa obra pode ser
chamada de afro-brasileira.

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Aprofundando os sentidos do texto

De acordo com Duarte (2008), um dos fatores que ajuda a configurar o


pertencimento de um texto à Literatura Afro-brasileira situa-se na temática. Esta pode
contemplar o resgate da história do povo negro na diáspora brasileira, passando pela
denúncia da escravidão e de suas consequências ou ir até à glorificação de heróis
como Zumbi e Ganga Zumba. O autor ainda reforça que a temática negra abarca
também as tradições culturais ou religiosas transplantadas para o Brasil, destacando a
riqueza dos mitos, lendas e de todo um imaginário circunscrito muitas vezes à
oralidade.
O livro Pretinha de neve e os sete gigantes foi publicado no ano de 2013, pela
editora Paulinas, e tem como escritor e ilustrador Rubem filho. A narrativa
contemporânea tem como proposta apresentar uma releitura do clássico europeu
fazendo uma inversão nos papéis dos personagens em relação à versão primária de
Branca de Neve.
No contexto em que narrativa se passa, subtende-se que a protagonista,
Pretinha de neve, é assim chamada por ser negra e morar ao lado de sua mãe e seu
padrasto no Monte Kilimanjato, na África, um local que faz muito frio. Sentindo-se
constantemente solitária, afinal, a mãe passa todo o tempo preparando doces para o
padrasto e o mesmo não demonstra muita afetividade pela enteada, a menina tem
como único amigo um tacho de cobre, com o qual conversa e expõe toda a sua
fragilidade: ― - Tacho de cobre, tacho de cobre, existe alguma menina mais solitária do
que eu? Minha mãe esta sempre ocupada e nunca me da atenção. E o meu padrasto
e muito chato. ― (FILHO, 2013, p.9).
Não apenas limitando-se em concordar com a menina, o tacho demonstra
compressão pelo seu sentimento e aconselha-a a não deixar o castelo sem a
permissão de seus pais, no entanto, Pretinha de neve resolve se aventurar e trilhar os
caminhos além do castelo por contra própria. Nessa aventura, encontra uma casa
nada convencional, em que tudo excedia o seu pequeno tamanho e acabou por
encontrar sete amigos gigantes com nomes, inclusive, para nós leitores, bem
familiares: Mestre, Dunga, Soneca, Atchim, Feliz, Zangado e Dengoso.
Embora trata-se de uma releitura de Branca de neve localizamos elementos
que rememoram outras adaptações a exemplo de Chapeuzinho Vermelho, Cachinhos
dourados e Alice no país das maravilhas. O primeiro é visto através do capuz
vermelho que Pretinha usa e dos doces que carrega em sua mochila quando sai em

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caminhada pela savana. As relações com o segundo são postas quando a menina
sente fome e o terceiro através de uma conexão:

Depois de muito andar, Pretinha sentiu fome. Então, sentou-


se ao pé de uma árvore para comer os doces que tinha
pegado na cozinha. Ao abrir a mochila, reparou que, por
causa do calor, os doces haviam derretido, fazendo uma
lambança na sua mochila! E a fome resolveu apertar. Foi
quando ela sentiu um cheiro gostoso de coisa de comer. Ao
seguir o cheirinho, viu-se diante de uma cabana enorme! Era
tão grande que nem dava para alcançar a janela e ver o que
tinha dentro. A menina então empurrou a porta e percebeu que
a cabana estava vazia. Foi entrando devagarinho,
impressionada com o tamanho das coisas: as camas, a mesa,
as cadeiras, e tudo com sete lugares. Ela se sentiu com a
menina daquela outra história, que tomou um liquido
misterioso de uma garrafinha e encolheu. Andou pelo
casarão até chegar à cozinha, onde havia um panelão que
continha um mingau muito cheiroso de carne com
amendoim e batatas. (FILHO, 2013, p.12 – Grifos nossos.)

Ao perceber a ausência da enteada, o padrasto, não tão turrão, disfarça-se de


mendigo e resolve procurá-la: ―Então o rei se disfarçou de mendigo, vestindo roupas
em farrapos e colocando um grande chapéu.‖ (FILHO, 2013, p.17). Ao encontrarem-
se, a menina, através da voz de trovão do padrasto, logo o reconheceu e resolveu dar
outra chance para aquele que, por vezes, tinha lhe sido tão distante O conto acaba
com um final feliz:

Assim, para terminar a história, os gigantes construíram um


bonito castelo para a família real, maior e mais aconchegante.
Os novos ares ensolarados fizeram muito bem ao rei, que
deixou de ser convencido e mandão (mas continuou com a voz
de trovão). (FILHO, 2013, p.23)

Analisando a temática dessa releitura, percebemos que embora apresente não


só uma princesa, mas todos os personagens na cor negra, atentando-se para os
estudos de Duarte (2008), essa obra não se enquadraria na literatura afro-brasileira,
pois não apresenta as histórias de personagens importantes no processo de libertação
do povo escravizado como também não resgata elementos culturais ou religiosos
ligados às relações existentes entre Brasil e África. Nesse, as temáticas abordadas,
inicialmente, referem-se ao distanciamento entre pais e filhos, essa percepção se
comprova no seguinte momento de diálogo entre Pretinha e o tacho de cobre: ―– Não
fique triste, não, Pretinha. E assim mesmo, os adultos têm cada vez menos tempo
para criança.‖ (FILHO, 2013. p.9).
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Outro elemento que deixa essa relação problemática evidente pode ser
observado através da própria neve que rodeia o castelo. A frieza relaciona-se tanto ao
clima do monte, quanto as relações lá existentes. Com uma mãe que só vive ocupada
e um padrasto que não lhe dá atenção, Pretinha de neve só se sente aquecida quando
chega perto do tacho de cobre, com quem desabafa e por quem é ouvida, e quando
ela sai do castelo, momento em que descobre que tudo lá em baixo é ensolarado e
feliz.

Considerações finais

A partir da leitura e da análise da obra infantil Pretinha de neve e os sete


gigantes (2013), comprovamos que as temáticas tratadas nessa narrativa não se
enquadram nas que foram elencadas como sendo constituintes da literatura afro-
brasileira. No tocante a versão primária Branca de neve, observamos que a releitura
contemporânea se repete em quase totalidade. Embora ocorra a troca de alguns
elementos: maçã/doce; espelho/tacho; anões/gigantes; madrasta/padrasto, o
desenvolvimento da narrativa apresenta pequenas progressões. As principais
alterações só são visíveis a respeito da idade da princesa, pois em sua versão
primeira, enxergamos Branca de neve como uma jovem e na versão contemporânea a
princesa é uma criança; a ausência do príncipe também é outro elemento diferencial,
relacionando-se, principalmente, a pouca idade da protagonista; a omissão da morte,
já que nessa versão Pretinha de neve não é envenenada, e a apresentação dos
problemas inerentes a criança, como a solidão, a falta de afetividade e as relações
superficiais com os pais. Ainda assim, analisando a obra como um todo, notamos que
essa publicação não contribui para o resgate da memória e cultura africana, pelo
contrário, ela continua a reproduzir o modelo europeu, dos contos populares daquele
continente.
Diante disso, reiteramos que inserir princesas negras na literatura infantil e
juvenil, não se trata apenas de modificar a cor da pele, o maior objetivo de retratar as
princesas africanas deveria ser o de contribuir para a propagação da cultura desse
povo que por tanto tempo foi esquecido, a fim de cooperar para a consolidação da
identidade das princesas africanas nos contos populares contemporâneos. Para isso,
faz-se necessário um resgate de uma literatura genuinamente de matriz afro-brasileira
e não uma troca de cores e traços, que talvez possa confundir o leitor.
Diante do exposto, reforçamos que torna-se continuamente necessário a
revisão, a análise e as reflexões sobre as qualidades estéticas e literárias dessas
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obras que estão propondo resgatar a memória africana através das adaptações das
histórias das princesas negras, pois os leitores devem ser levados à compreensão de
uma trajetória cultural rica em características que apresentem muito além da cor da
pele.

Referências

DARNTON,Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história


cultural francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
DUARTE, Eduardo de Assis.Literatura Afro-brasileira: um conceito em construção.
Minas Gerais, 2008.
FILHO, Rubem. Pretinha de neve e os sete gigantes. São Paulo: Paulinas, 2013.
LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura Infantil Brasileira - Histórias e
Histórias. 6. Ed. São Paulo: Ática, 2010.
MACHADO, Ana Maria. Como e por que ler os clássicos universais desde cedo.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.
MORAES, Fabiano; GOMES, Lenice (Org.). A arte de encantar o contador de
histórias contemporâneo e seus olhares. São Paulo: Cortez, 2012.
TATAR, Maria. Contos de fadas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
TRAÇA, Maria Emília. O Fio da Memória – Do Conto Popular ao Conto para
Crianças. Porto: Porto Editora, 1998
ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil: autoritarismo e emancipação.11. Ed.
rev. atual e ampl. São Paulo: Ática, 1987.
______. Regina. Como e por que ler a literatura infantil brasileira. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2014.
______. Regina. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática,
1989.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

NARRATIVAS JUVENIS: FRACASSOS E ÊXITOS NA FORMAÇÃO


DE LEITORES

Marta Helena Cocco – Universidade do Estado de Mato Grosso – campus de


Tangará da Serra - Eixo temático 04 – A literatura juvenil e os jovens leitores

Considerações Iniciais
Formar leitores é uma das maiores responsabilidades da escola. Esse é um
ponto de consenso, como também parece ser consenso que as crianças dos
primeiros anos do ensino fundamental demonstram maior receptividade com as
atividades de leitura de livros impressos, diferentemente do que ocorre com o
ensino fundamental II. A transição da infância para a adolescência, a
metodologia de diferentes professores para cada disciplina, entre outros, tem
sido as razões apontadas pelos professores de língua portuguesa durante as
reuniões de planejamento do projeto na escola em que o trabalho foi
desenvolvido. A escola situa-se em um bairro pobre do município. Neste artigo,
entretanto, não nos ocuparemos das causas do baixo envolvimento dos alunos
do ensino fundamental II com a leitura de livros impressos de literatura, mas
com estratégias ou modos de abordar o texto literário com a finalidade de
aproximar ou reaproximar os leitores juvenis da leitura.
O projeto foi desenvolvido após reuniões com a direção e professores, com um
semestre de antecedência, a fim de que o mesmo pudesse constar no
planejamento da Escola para o ano seguinte. Durante as reuniões, procuramos
enfatizar a importância da leitura do texto literário na sala de aula,
especialmente em situações em que pouco se espera apoio familiar, e a
importância da mediação do professor. Comentamos alguns pressupostos
defendidos por Antonio Candido acerca do valor da literatura como um direito
imprescindível à condição cidadã, dada sua capacidade de humanização,
explicitada como:

o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o
exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o
afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso
de beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A
literatura desenvolve em nós a quota de humanidade, na medida em que nos torna
mais compreensíveis e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante.
(CÂNDIDO, 2011, P.182)

Contamos com o auxílio de nove bolsistas, acadêmicos do curso de Letras que


faziam parte do PIBID, do subprojeto Letras/português, coordenado por mim na
ocasião. Cada bolsista planejou as atividades de cada série com outros dois
509

colegas que leram a mesma obra correspondente à série. Três turmas de 7ºs
anos leram ―O Super Silva‖ (narra a história de um borracheiro que, por acaso,
veste fantasias de super herói encontradas no lixo, e, também por acaso,
começa a salvar pessoas e sua vida se transforma radicalmente); três turmas
de 8ºs anos leram ‖O preço da Liberdade‖ (narra a história de uma adolescente
de 11 anos que é vendida para pagar as dívidas do pai e acaba sendo vítima
do trabalho escravo na China); e três turmas de 9ºs anos leram ―A outra face‖
(narra a história de uma adolescente de 11 anos, no Afeganistão, que precisa
sustentar a família e, para isso, precisa disfarçar que é menino, pois as leis do
Talibã não permitem que as mulheres trabalhem fora de casa).

Estratégias de motivação e de concretização da leitura


Como estratégia inicial, em reunião com todos os professores da escola,
pensamos em criar um ambiente de valorização do livro. Assim, foram feitos
faixas e cartazes com dizeres que colocavam o livro como centro das atenções
e a leitura como ação imprescindível para o bom desenvolvimento das
habilidades cognitivas. Também foi solicitado que os professores, a fim de
motivar os alunos, fossem vistos com livros, comentassem alguma leitura, e,
entre todos, fizemos um sorteio em que cada dupla trocaria entre si um livro.
Pedimos que fosse o livro preferido, um livro marcante, etc. Dos professores da
Escola, cerca de 25% não quis participar da atividade. No final do semestre,
muitos professores não haviam lido o livro e a atividade planejada de troca de
experiências de leitura não se concretizou.
A segunda estratégia foi exibir o filme ―A menina que roubava livros‖. Foi
necessário deslocar os alunos para o IFMT que possui um auditório que
comportava todos os estudantes. A escola não possui esse espaço. No trajeto,
a pé, até o Instituto que fica a cerca de oito quadras da escola, alguns
estudantes foram jogando bolas de papel de caderno nos colegas. Com auxílio
das professoras e bolsistas, conseguimos acompanhá-los sem maiores
transtornos. Durante a exibição do filme, percebemos que as cenas de
violência e ação prendiam a atenção deles. Nas cenas de diálogo e
introspecção, era necessário intervir pedindo silêncio. Depois da exibição,
tentamos estabelecer um diálogo evidenciando como o livro pode ser uma boa
companhia em situações dramáticas e como algumas leituras podem nos
inspirar a ter esperança de superar momentos difíceis. Obtivemos relativo êxito
nessa ação, pois estavam todos muito inquietos e ansiosos para voltar para a
escola por causa da merenda. Esse foi um detalhe que corrigimos em outra
exibição, antecipando a merenda para o início da atividade.
A terceira estratégia foi a palestra de uma psicóloga, doutora em Educação,
professora da mesma universidade, a fim de dialogar sobre temas como: a
indisciplina como atitude que prejudica o próprio estudante; a falta de
autoestima; a importância do comprometimento com o outro; o porquê de
zombar dos colegas mais estudiosos e valorizar os mais indisciplinados, entre
outros. Em vários momentos da palestra, houve necessidade de intervenção,
mesmo sendo a palestrante bem comunicativa. Observamos que aqueles que
queriam fazer perguntas não o faziam por medo de serem ―zoados‖ pelos
colegas. Essa ação frustrou bastante nossas expectativas.
A quarta estratégia foi explorar as expectativas que os alunos tinham em
relação às obras. Segundo Hans Robert Jauss, uma obra nunca é totalmente
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novidade para um leitor, a partir do título, da capa, do conhecimento do gênero,


o leitor já faz suposições:

A obra que surge não se apresenta como novidade absoluta num espaço vazio, mas,
por intermédio de avisos, sinais visíveis e invisíveis, traços familiares ou indicações
implícitas, predispõe seu público para recebê-la de uma maneira bastante definida. Ela
desperta a lembrança do já lido, enseja logo de início expectativas quanto a ―meio e
fim‖, conduz o leitor a determinada postura emocional e, com tudo isso, antecipa um
horizonte geral da compreensão vinculado, ao qual se pode, então – e não antes disso
–, colocar a questão acerca da subjetividade da interpretação e do gosto dos diversos
leitores ou camadas de leitores. (JAUSS, 1994, p. 28)

Ao serem interrogados sobre o que esperar das narrativas a partir do que


títulos e capas evocavam, muitos alunos se negaram a responder qualquer
coisa ou davam respostas totalmente alheias ao propósito, interpretadas por
nós como atitudes para provocar os estudantes bolsistas que mediavam a
leitura. Alguns alunos, entretanto, respondiam. Destacamos sobre O Super
Silva: (―aventuras de um super herói‖; ―um super herói gordo? Nunca vi‖; ― pelo
sobrenome dá pra ver que é brasileiro‖). Sobre O preço da liberdade: (deve ser
alguém que está na prisão; deve ser do tempo da ditadura); Sobre A outra face:
(talvez alguém que possuía duas caras; o outro lado da moeda? Tipo, um outro
jeito de contar uma história?). Percebemos por essas respostas que o primeiro
título gerou as melhores inferências. O segundo e o terceiro continham
sentidos mais amplos e as ilustrações da capa não remetiam a contextos mais
específicos. A seguir, foi feita uma contextualização dos espaços em que se
desenvolveram as narrativas. Rio de Janeiro, China e Afeganistão. Os bolsistas
prepararam slides com fotos e vídeos sobre: localização no mapa mundial,
aspectos geopolíticos (clima, vegetação, atividades econômicas, regime de
governo, etc.) , aspectos socioculturais, como: gastronomia, religião, vestuário,
tradições, etc. Nesta ação houve êxito, os alunos demonstraram muito
envolvimento com assuntos como a falta de liberdade em algumas culturas,
especialmente das mulheres. Nessa estratégia, o papel da mediação foi
fundamental.
A quinta estratégia foi a da leitura propriamente dita, uma vez que tivemos de
usar o período de um mês para que todos adquirissem os livros, custando
aproximadamente 30,00 cada um. Cada turma possuía de 30 a 35 alunos. A
aquisição de livros variou entre 02 a 08 exemplares cada turma,
aproximadamente 6% a 25%. Não faltou, nessa ação, empenho da direção da
escola, dos professores e bolsistas. Além disso, em uma reunião de pais e
mães, estivemos presentes explicitando a importância do projeto e pedindo a
colaboração da família para realizá-lo. Na reunião não houve qualquer sinal de
oposição, mas, posteriormente, a adesão não aconteceu. Como solução, a
escola, que já havia incluído o projeto no seu plano anual, adquiriu 10
exemplares de cada volume. Assim, o livro era lido em duplas. Para podermos
motivá-los, começamos a leitura em sala. Nessa ação, descobrimos que alguns
não liam por falta de interesse e outros por não saberem ler no sentido de
decodificação dos signos. Um dos alunos, em uma das turmas, era indígena e
não sabia sequer falar o português. Uma das bolsistas deu atenção especial
para esse aluno, lendo a história para ele e tentando explicitá-la. Esta foi uma
das etapas mais frustrantes do projeto. Nela nos deparamos com os imensos
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problemas que a escola pública tem de carregar em seus ombros. Desde


questões familiares (famílias desestruturadas, violência doméstica, pobreza)
até a precariedade financeira da escola para comportar as características da
educação atual (inclusão de alunos com necessidades especiais, enturmação
pelo critério da idade, aprovação automática, etc.), incluindo a desvalorização
cultural do livro, no âmbito do município, do estado e do país. Nas turmas de
9ºs anos, por exemplo, pouquíssimos alunos adquiriram o livro, mas todos
adquiriram a camiseta da turma, ao preço de 35,00. A despeito dos problemas,
houve resultados muito importantes nesta estratégia. Com o auxílio da
mediação das bolsistas, muitos alunos se comoveram com a situação
socioeconômica das personagens e, especialmente, com a falta de liberdade e
desrespeito aos direitos humanos. Nesse momento percebemos que, embora
as obras escolhidas não tenham, inicialmente, coincidido com o ―gosto‖ de
alguns, as temáticas acabaram por criar uma empatia, despertando os
sentimentos de compaixão, revolta, indignação e solidariedade. Como bem
observa Jauss, ao comentar sobre as relações que uma obra literária pode
estabelecer com a vida, por meio dos conceitos de poiesis (o aluno leitor se
sentir co-autor), da aisthesis (o aluno leitor perceber uma nova realidade a
partir do contato com a obra) e katharsis (o aluno leitor se sentir motivado para
pensar e agir sobre o mundo), ressaltando que não apenas a katharsis medeia
a função comunicativa da experiência estética, ela também:

pode decorrer da aisthesis, quando o observador, no ato contemplativo renovante de


sua percepção, compreende o percebido como uma informação acerca do mundo do
outro ou quando, a partir do juízo estético, se apropria de uma norma de ação. A
própria atividade da aisthesis, contudo, também pode se converter em poiesis. O
observador pode considerar o objeto estético como incompleto, sair de sua atitude
contemplativa e converter-se em co-criador da obra, à medida que conclui a
concretização de sua forma e de seu significado. A experiência da aisthesis pode, por
fim, se incluir no processo de uma formação estética da identidade, quando o leitor faz
a sua atividade estética ser acompanhada pela reflexão sobre seu próprio devir.
(JAUSS, 1994, p.103)

A sexta estratégia foi a de motivar e preparar as turmas para a apresentação


de algum produto (performance cênica, exposição de cartazes, etc. ) que
refletisse a produção de leitura dos livros.
As atividades que envolvem ações manuais entusiasmam mais os alunos.
Houve relativo êxito nessa ação. Relativo porque, embora todos estivessem
interessados em participar, pouquíssimas ideias surgiram, pois para se ter
ideias era necessário estar por dentro das obras, as quais poucos leram. A
maioria apenas acompanhou os debates e comentários.
A última estratégia foi a da apresentação para a comunidade escolar. Nesta
ação, houve um contratempo e eu precisei de uma licença, transferindo a
coordenação do projeto para uma professora, colega do curso de Letras. De
acordo com o relatório apresentado, além de filmes e fotos, a maioria participou
com entusiasmo. Foram feitas exposições de quadrinhos, simulação de
telejornal, banca gastronômica, painéis de cartolina com figuras sobre aspectos
culturais dos países em que as narrativas estavam ambientadas e, no final,
uma apresentação musical de um grupo da Universidade do Estado de Mato

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Grosso, Poesia Corpo & Cordas. O grupo se constitui num projeto de extensão,
que prevê apresentações musicais nas escolas.

Considerações Finais
Os resultados do projeto, sob uma perspectiva foram frustrantes, sob outra,
satisfatórios. De 100 por cento dos alunos envolvidos (aproximadamente 270
alunos), cerca de 10% adquiriu os livros para participar do projeto. Para sanar
esse obstáculo, a Escola, que no ano anterior, ciente do projeto, já incluíra no
PPP a aquisição de alguns livros, comprou outros 20%. Alguns exemplares
foram adquiridos por meio de doações voluntárias. Assim, foi possível que em
cada turma, houvesse um exemplar para cada dois alunos, desde que
emprestados entre as turmas do mesmo ano, e a leitura foi realizada em sala.
Isso demandou algumas aulas de professores de outras disciplinas. Descobriu-
se que muitos alunos que alegavam não gostar de ler ou que boicotaram o
projeto, na realidade não sabiam ler no sentido estrito, de decodificação da
língua. Outros alegaram que não gostar das temáticas, disseram preferir livros
que falassem de temas épicos e mitológicos, a exemplo da saga Harry Potter.
Entretanto, admitiam não ter lido os livros da saga, apenas assistiram aos
filmes. Mesmo suspeitando da preferência dos adolescentes por esse tipo de
leitura, decidimos arriscar por caminhos em que as temáticas estivessem
coerentes com um dos objetivos do projeto que é o de formação de leitores
críticos, por meio de debates sobre nossas concepções acerca de liberdade,
trabalho, diferenças culturais e sociais. Não avaliamos, em nosso trabalho, o
que poderia estar relacionado à preferência por temas que propõem fuga da
realidade, ou soluções mágicas para os problemas. Entretanto, registramos
como exitosa, por exemplo, a reflexão sobre o trabalho escravo de crianças e
adolescentes na China, de onde provêm muitos dos produtos (brinquedos,
eletrônicos) que compramos por preços mais acessíveis em shoppings
populares. Essa reflexão desencadeou discussões sobre outros temas como o
consumismo, por exemplo. Em um depoimento gravado em vídeo, uma das
alunas relacionou os acontecimentos do livro com crianças e adolescentes que
ela vê na rua, em seu bairro, em vez de estar na escola. Embora não estejam
em situação de trabalho escravo, estão alheias à formação escolar.
Também como resultado positivo, destacamos que, da pequena porcentagem
que aderiu ao projeto, para alguns alunos aquele havia sido o primeiro livro
adquirido. Muitos alunos, mesmo os que não compraram o livro, começaram a
se interessar pela leitura nos primeiros capítulos, depois que foi feita uma
contextualização do espaço em que se desenrolaram as tramas. Alguns, em
depoimento gravado em vídeo, sentiram-se satisfeitos por verem alguns
colegas participarem, como esta aluna: ―este projeto ajudou muitos alunos que
não tinham vontade de ler e agora têm.‖ Outra aluna, em depoimento, disse
que descobriu outro livro com a continuação da história de ―Parvana‖,
protagonista de ―A outra face‖ e já começou a leitura. No final, durante a
apresentação dos trabalhos, sobre aspectos das diferentes culturas abordadas
nos livros, houve uma participação de quase 100% dos alunos, o que nos leva
a concluir que as atividades extra sala, que não demandam escrita e leitura,
são mais atraentes para eles. Nessa ocasião, aproveitamos a oportunidade
para conscientizar os alunos de que, sem a leitura prévia, não há como
planejar apresentações cênicas, exposições de cartazes, feira culinária, etc.
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Não conseguimos realizar os objetivos relativos ao uso de tecnologias, pois o


laboratório de informática ficou fechado por quase todo o tempo em virtude da
falta de um técnico, obstáculo cuja solução estava aquém da direção da escola.
Ressaltamos que a direção e a coordenação da escola nos proporcionaram
todo o apoio necessário durante a realização do projeto e suas atitudes foram
importantíssimas para compreendermos a riqueza do material humano que a
educação brasileira possui, a despeito da desvalorização profissional.
Enfim, este projeto buscou desenvolver, na escola, uma prática de leitura que
não ficasse apenas na obra lida, mas que contivesse atividades de motivação e
de reflexão sobre o contexto e sobre o tema. Infelizmente não alcançamos os
objetivos com todos os alunos das turmas em que trabalhamos. Entretanto,
dentre os que leram e participaram das atividades, houve um ganho
significativo. O fato de abordarmos temas que dizem respeito à construção da
cidadania ajudou bastante, muitos passaram a ter curiosidade sobre leis que
regem os direitos dos trabalhadores, das crianças e das mulheres. Apesar dos
problemas já mencionados, a experiência nos apontou outros horizontes sobre
os obstáculos com a leitura em escolas públicas de periferia, sobre métodos
que podemos usar para conquistar o desejo dos alunos pelo livro e reforçou a
certeza de que a escola, sozinha, não terá êxito na tarefa de formar leitores. É
preciso envolvimento do poder público com programas como feiras de livros,
concursos literários e outras ações culturais (teatros, saraus, etc.) no âmbito do
município, que demonstrem às crianças e jovens que não só a família, não só
a escola, não só o professor, mas a cidade, o município, o estado e o país
valorizam a leitura, valorizam a educação e valorizam o ser humano
garantindo-lhe os direitos essenciais.
Referências

CANDIDO, Antonio. ―O direito à literatura‖ em: Vários escritos. 5ª ed. Rio de


Janeiro: Ouro sobre o azul, 2011. (p.171 a 194)

JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária.


Trad.Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994. (Série Temas, v.36)

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

A GUERRA DE PERMEIO NO TEXTO JUVENIL

Thiago Alves Valente, UENP (CRELIT), eixo 4

Considerações Iniciais

O objetivo deste trabalho é apresentar uma análise da narrativa No rastro dos


barrigas-verdes (2009), de Eliana Martins, no contexto de um projeto temático sobre a
representação da guerra na literatura infantil e juvenil brasileira, que tem sido realizado
na Universidade Estadual do Norte do Paraná, Campus Cornélio Procópio
(Uenp/CCP). Neste texto, a análise tem como foco os personagens históricos e a
constituição daquilo que podemos denominar como ―humanização pela ficção‖ destes
em uma obra direcionada a jovens leitores. O enredo policial, com dois adolescentes
como protagonistas, leva o leitor a acompanhar as buscas de Luana e Kio, que
acabam encontrando na história brasileira explicações para um código usado por
traficantes em Florianópolis. A obra apresenta, então, o embate entre o caudilho José
Gervásio Artigas e o governo português, sobretudo na figura de Carlos Frederico
Lécor, o Conde de Laguna, situado na primeira metade do século XIX, oferecendo
uma explicação para o termo ―barrigas-verdes‖. Explicação que justifica a incursão da
autora por momentos das Guerras Cisplatinas, caracterizando o texto como um livro
paradidático que se deseja como espaço de vivência ficcional envolvendo
determinados acontecimentos históricos.

Inventar o passado

Recorrer aos relatos históricos como fonte para o trabalho ficcional é um


expediente literário que merece atenção da crítica, de modo geral. Tanto pela
pertinência semântica, quanto pelos recursos estilísticos ou composicionais
renovados, essa interpenetração entre narrativas históricas e literárias mostra-se como
um fazer cultural que opera na constituição da memória individual e coletiva:
515

Memória, restitución del pasado, metafición historiográfica... son,


seguramente, ejes centrales del panorama literário occidental. Y
es que, como afirmaba J. W. Müller (2002: 1) ―Memory matters‖,
es decir, la memória importa. E importa no solo porque toda
conciencia está mediatizada por ella, sino porque, tal y como en
su dia dijera W. Faulkner, la memória, al igual que el deseo, son
ingredientes centrales del acto de escritura. Si J. L. Borges
parodio en ―Funes el memorioso‖ los peligros de una memoria
excesiva, la literatura contemporánea ha hecho de la memoria,
del recuerdo del pasado, uno de suas ejes temáticos. J. C.
Mainer hablaba de la privatización de la literatura española,
privatización que traía consigo el incremento en las últimas
décadas de propuestas literarias con forma de diários, biografias,
autobiografias...pero tambén, es obvio, de universos narrativos
que han situado esos recuerdos en momentos pasados de
nuestra historia reciente.
Esta explosión de memoria, como lo denomina Müller (2002: 13)
ha traído consigo un cambio importante en el paradigma teórico
de las humanidades, y en especial, en el de la Historia.
Recreación del pasado como factor de identidad que ha tenido
consecuencias éticas, filosóficas, pero, ante todo, políticas, pues
es obvio que las comunidades nacionales que han visto
cuestionado su ser han encontrado en esa recuperación del
pasado histórico una salida para sua hasta entonces negada
especificidad. Memoria como antídoto a la nueva utopía de la
globalización, memoria como anclaje a la realidad y
contrapartida al espacio hiperreal, memoria, en definitiva, como
eje de nuevos mapas étnicos (Müller, 2002: 13-18). (RECHOU et
alli, 2008, p.22)

Embora com diferentes formas de legitimação, os discursos da história e da


literatura dialogam e contribuem para criação de referências culturais, nas quais
realidade e ficção iluminam-se mutuamente:

Narrar é um fazer distinto de informar. Candido (1995, p.241)


recorre ao ponto de vista do sociólogo francês Padre Louis-
Joseph Lebret, afirmando que os bens incompreensíveis, ou
seja, indispensáveis, são também aqueles que ―garantem a
integridade espiritual‖. A memória, pois, juntamente com o ato
de se reconhecer em um meio cultural e social, liga-se a esse
estado de coisas. Ao se mostrarem alheios à própria história,
os membros de uma sociedade não efetivam um processo de
conhecimento e autoconhecimento que permita a constituição
identitária do grupo e de si mesmo. (OLIVEIRA, VALENTE,
2010, p.146)

Na contramão de experiências culturais cuja superficialidade


não barra a mutilação da personalidade, à escola apresenta-se
a imensa tarefa de preservar e reinventar cotidianamente a
memória coletiva. Nesse âmbito, inscrevem-se tentativas de
transformar a potencial torrente de informações em fonte de
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memória e esta em elemento gerador de reconhecimento


identitário. Afinal, sem isso, dificilmente conseguimos nos
aproximar da ―realidade dos alunos‖, meta das mais cobradas
pelos pedagogos de nosso tempo quanto ao professor da
educação básica. (idem, p.147)

Ao texto de No rastro dos barrigas-verdes (2009) pode se aproximar a


categoria de narrativas em que episódios bélicos do passado são descobertos por
adolescentes:

Xeralmente, os protagonistas adolescentes son usados como


elos para recuperar a memoria, romper o silencio e non
esquecer feitos que anularon as liberdades e que castigaron
maneiras de pensar diferentes, unha forma didáctica no mellor
sentido de formar e informar ás novas xeracións para que non
se perda a memoria histórica. Trátase da reivindicación do
dereito a saber, a coñecer todas as versións e non só a que os
vencedores ou vencidos teñen divulgado. (PARDIÑAS,
RECHOU, 2004, p.31)

Para as autoras, outras categorias seriam aquelas narrativas marcadas por


consequências diretas e indiretas das guerras e pós-guerras sobre a infância e a
mocidade; e conflitos bélicos e pós-bélicos como pano de fundo. No caso da obra em
análise, o conflito é revisitado a partir de pesquisas motivadas pela relação familiar
com o meio policial – Domingos, pai de Luana, era investigador e caíra em uma
armadilha dos traficantes, o que levou a seu afastamento da corporação: ―— A minha
palavra, naquele momento, não podia me ajudar em nada, filha. Vi o constrangimento
do delegado titular, novo no cargo, sujeito íntegro e respeitador do meu trabalho,
quando teve de me afastar, tomar minha insígnia.‖ (p.22); e de um ímpeto juvenil que
permite aos dois adolescentes serem movidos por certa adrenalina típica de narrativas
juvenis cujo aspecto inverossímil (na obra em questão, dois adolescentes
desvendando um esquema que a polícia desconhecia) é suplantado pelo ritmo de
aventura e investigação:

Luana desanimou. Fechou o livro que folheava.


―Tenho certeza de que a história que meu avô contava sobre
os barrigas-verdes não era aquela que li na Internet. Só me
lembro de que falava de um caminho...‖
Foi juntando os livros para devolvê-los. Do último, porém, a
capa chamou sua atenção: História do Rio Grande do Sul.
―Nesse não devo encontrar nada‖, pensou. ―Só deve falar de
gaúchos.‖
Na dúvida, espiou o sumário e lá estava, no capítulo dois, algo
que podia ajudar.
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— Eu vou levar este — disse à bibliotecária. (p.37)

Chamando o leitor para uma viagem ao passado, o narrador introduz um


contexto histórico que terá algo em comum com a história vivida pelos adolescentes
atuais, um elo de ligação que justifique o próprio título do livro:

Combates extremamente sangrentos assinalavam o período da


história em que José Gervásio Artigas tomara Montevidéu. A
pesada atmosfera dificultava a paz entre os platinos.
A posição política do caudilho parecia cada vez mais forte,
quando seus aliados o proclamaram ―protector de los pueblos
libres‖.
Com tanto sucesso conquistado, Artigas jamais havia se
preocupado em estruturar um seguro quadro de manobras
militares, conseguir bons contatos políticos no exterior,
organizar uma frota de guerra, acumular fortuna. Sentia-se
invencível, nada nem ninguém conseguiria derrubá-lo.
Foi pensando assim que desembarcou com seus homens na
ilha do Desterro, no intuito de arrasar o exército de Lécor.
(p.46)

Essa viagem é construída em um texto que se configura como paradidático,


buscando trazer ao leitor de hoje um momento histórico de modo envolvente. Para
isso, duplica-se, pois, o discurso histórico em tom escolar – ―As horas no relógio da
parede da biblioteca do Palácio Cruz e Souza passaram mais depressa do que Luana
conseguira ler. Já eram quase 5 horas, nesse horário a biblioteca fecharia, só abrindo
quatro dias depois, por causa de um feriado.‖ (p.37). O conflito na Cisplatina, assim, é
apresentado ao leitor de hoje em decorrência da investigação dos adolescentes, o que
se anuncia na contracapa do livro: ―Os sinais enigmáticos e o nome Taquarembó vão
levar Luana e Kio ao passado, na aventura que envolveu a histórica luta pela posse
das províncias do Rio da Prata, conflito que deu origem ao termo barrigas-verdes para
designar os catarinenses.‖ (s/p). É na consulta sobre dados históricos que Luana
encontra uma chave para compreender os códigos que chamavam sua atenção, e a
de Kio, bem como se justifica todo o relato do embate entre Artigas e Lécor.

A história revisitada

A narrativa ficcional de Eliana Martins toma como referência histórica as


Guerras Cisplatinas. A seguir, uma síntese do período, conforme estudo de Aladrén:

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As aqui denominadas Guerras Cisplatinas consistem em um


conjunto de conflitos militares que envolveram luso-brasileiros
e hispano-americanos nas fronteiras entre o Brasil e o Rio da
Prata. O primeiro deles é a invasão luso-brasileira na Banda
Oriental, em 1811. Nesse ano, o general José Artigas, dando
continuidade ao movimento patriota deflagrado em maio do ano
anterior com a formação da junta revolucionária em Buenos
Aires, organiza suas tropas e sitia a cidade de Montevidéu,
onde se refugiara o vice-rei espanhol Francisco Javier Elío. A
coroa portuguesa, temendo uma invasão em seus domínios e
preocupada com as consequências que as perturbações
políticas platinas poderiam trazer à fronteira sul, organizou uma
ofensiva, com o pretexto de socorrer o vice-rei. O ―Exército
Pacificador‖, comandando pelo general Dom Diogo de Souza,
então governador da capitania do Rio Grande de São Pedro,
invadiu a Banda Oriental. Entretanto, Francisco Javier Elío,
com a intermediação do embaixador britânico Lord Strangford,
assinou, ainda em 1811, um armistício com a Junta
Revolucionária de Buenos Aires, prevendo a retirada das
tropas luso-brasileiras, que retornaram aos domínios
portugueses em 1812 (Moniz Bandeira, 1998: 42-44).
No início do ano de 1815, Artigas apoderou-se da cidade de
Montevidéu, após a expulsão dos espanhóis, e a deixou sob
comando do coronel Otorgués (Sala de Touron et al, 1987: 67-
72). Instalado o governo revolucionário, foi promulgado o
famoso Reglamento de Tierras, que previa o confisco das
terras dos emigrados e sua distribuição entre os negros livres,
índios e criollos pobres. Nesse momento estava sendo
planejada uma nova invasão luso-brasileira na Banda Oriental,
com um exército comandado pelo general Lecor, constituído de
tropas regulares e milícias rio-grandenses. A incursão foi
vitoriosa e Lecor tomou a cidade de Montevidéu no início de
1817. Os partidários de Artigas se refugiaram na campanha
oriental, até o caudilho ser derrotado em 1820, quando se
exilou no Paraguai (Cesar, 1970: 252-262).
Em 1821, a Banda Oriental foi anexada ao Império Português,
tendo como governador o general Lecor e sendo rebatizada de
Província da Cisplatina. O governo português enfrentou forte
oposição externa, pois tanto a Inglaterra quanto a Espanha não
apreciaram a iniciativa de Dom João (Moniz Bandeira, 1998:
45-47). Em 1822 foi proclamada a Independência do Brasil.
Esse evento, que ocasionou agitações políticas em diversas
cidades brasileiras, esteve inextrincavelmente ligado aos
acontecimentos em Montevidéu. A Província da Cisplatina foi
incorporada ao Império do Brasil, mas a guarnição militar luso-
brasileira dividiu-se, com o setor liderado por Lecor apoiando a
Independência e o liderado pelo ajudante-general D. Álvaro da
Costa, sustentado pela Divisão dos Voluntários d‘El Rei,
apoiando a causa portuguesa. Este conflito só foi solucionado
com a vitória de Lecor em 1824 e o regresso da divisão
lusitana a Portugal (Piccolo, 2005: 577-613). Em 1825, a
situação política na Cisplatina era bastante instável e o apoio
ao governo brasileiro, débil. Um grupo de exilados orientais,
liderados por Juan Antonio Lavalleja e contando com o apoio
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de Buenos Aires, desembarcou no litoral da Cisplatina e


instalou um governo provisório. Em outubro do mesmo ano, as
Províncias Unidas do Rio da Prata declararam guerra ao Brasil,
deflagrando a Guerra da Cisplatina (Carneiro, 1983: 35-78).
As forças armadas brasileiras perderam uma série de
combates e o general Rivera chegou a fazer uma incursão no
território dos Sete Povos das Missões. Em 1827 ocorreu o mais
importante combate da guerra, a batalha do Passo do Rosário
ou, para os argentinos, Ituzaingó. Nesse momento, ambos os
lados na guerra estavam extenuados. O número de desertores
aumentava, e a oposição aos governos crescia. Em 1828, com
a intermediação britânica, foi assinada a Convenção Preliminar
de Paz, que criava a República Oriental do Uruguai e
determinava limites provisórios entre os países beligerantes
(Moniz Bandeira, 1998: 54-55). (ALADRÉN, 2009, p.440-441)

Personagens como Lécor e Artigas servem como exemplo da relatividade das


perspectivas às quais podem ser submetidas as referências históricas. Heróis para
uns, vilões para outros, a complexidade do contexto e das ações empreendidas no
momento requerem abordagens que evitem o maniqueísmo. A literatura, assim, seria
uma forma de narrar em que a imaginação preencheria lacunas e legaria mais
―humanidade‖ – portanto, maior complexidade frente ao que pode ou poderia ter sido a
história – o que não significa, no contexto da literatura infantil e juvenil, a opção por
uma narrativa mais matizada a respeito desses personagens.
Em No rastro dos barrigas-verdes, a Lecor e Artigas, sobretudo, são atribuídos
papeis antagônicos, que, no conjunto da obra, desvaloriza o caudilho e enobrece o
general a serviço da coroa brasileira:

— Quero a ilha completamente cercada, antes do anoitecer,


entenderam? — ordenou o caudilho. — Ninguém entra nem sai
desta ilha enquanto não arrasarmos os homens de Lécor.
O comentário de Artigas preocupou o assessor.
— E os nativos da ilha do Desterro, senhor?
— O que é que têm eles?
— Como sabe, já estive aqui antes, a mando seu, para...
— Responda apenas ao que eu perguntei, homem! O resto não
me interessa — interrompeu o caudilho.
— Queria explicar que, por ter estado aqui, sei que a ilha do
Desterro não oferece víveres ou água potável, senhor. Sendo
assim, os nativos têm de buscar alimentos e água no
continente.
A explicação do assecla irritou profundamente Artigas.
— Com tanta coisa importante para me preocupar, vou pensar
na alimentação dos nativos da ilha? Faça-me o favor! — disse
ele, empurrando o outro. — Eles que morram de fome e de
sede. (p.47)

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O comportamento irascível de Artigas concretiza-se em sua brutalidade,


resultando, de acordo com o texto, em sua própria derrocada frente a seus homens:

— Quem entrar novamente em meus aposentos sem ser


chamado o fará pela última vez, pois ceifo-lhe a vida.
O assecla se apavorou.
— Tenho mulher e filhos, senhor. Só entrei porque...
— Sua vida de nada me importa — disse o caudilho, histérico.
— Eu gritei porque Lécor está passando dos limites. Pensa que
pode me vencer!
— Ele pode, senhor. O general Lécor tem muito mais homens
que nós. Nossos soldados estão apavorados. Tantos já caíram
por terra e não sei...
Aqueles comentários do seu homem de confiança tinham sido
a gota d‘água para Artigas.
— Quem não sabe sou eu como agüentei tanto tempo a sua
companhia — dito isso, desfechou um tiro, à queima-roupa, no
peito do homem, que caiu.
Com o barulho do estampido, outros soldados do caudilho
entraram na sua barraca e encontraram o companheiro morto.
Justo ele, que teria dado a vida pelo seu chefe.
— O que aconteceu aqui, senhor? — perguntou um dos
homens.
— Aconteceu o que também acontecerá a cada um de vocês
que ousar atravessar meu caminho — respondeu Artigas, com
olhar de fúria.
Aquele episódio deu início a uma revolta entre os homens do
caudilho. (p.49)

Há uma correlação implícita entre a brutalidade de Artigas e a criminalidade


dos traficantes, uma contaminação de sentido, ainda que sutil, que induz o leitor jovem
a uma compreensão estanque dos papeis históricos de personagens marcados por
ações impactantes, no mais das vezes, ambíguas pela natureza das relações entre
facções e países.
Ao enveredar por uma narrativa na qual se integram elementos da história
―real‖, opta-se por um texto que não se abstém de caracterizações mais simplistas –
Lécor e Artigas – que inibem outras possibilidades de compreensão da ação político-
militar no contexto histórico. Isso reforça o perfil paradidático da publicação,

Os livros paradidáticos atendem à Literatura e a todas as


outras disciplinas, procurando ajudar professores e enriquecer
a vida do aluno. Com visual e temas adequados, esses livros
procuram despertar o hábito da leitura e levantar
questionamentos que antes ficavam à margem da vida escolar,
objetivando complementar informações de maneira leve e ágil.
São características dos paradidáticos:
- preços populares;
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- longa vida editorial;


- direcionamento a crianças e jovens, além do espaço escolar;
- temas literários e transversais;
- linguagem mais acessível. (LAGUNA, 2001, p.48)

Transversalidade entendida como o diálogo entre os campos da História e da


Literatura e que compõem o lugar ocupado por No rastro dos barrigas-verdes (2009)
no sistema literário brasileiro. A intersecção temporal sustentada pela prática da
travessia por baixo d‘água empreendida, no passado, pelos nativos da ilha do
Desterro, para se safarem da fome e da sede causadas pela decisão de Artigas; no
presente, pelo esquema de travessia de drogas para desviar da fiscalização policial,
convida o leitor a se aventurar com os protagonistas, o que lega caráter literário ao
texto.
A contextualização histórica, porém, emerge sob a justificativa de se explicar a
estratégia dos barrigas-verdes com tintas carregadas de sentimentos e ações do
cotidiano militar que não vem ao encontro da reivindicação de saber ou conhecer
todas as versões e não somente a dos vencedores ou vencidos, como querem
Pardiñas e Rechou (op. cit.), antes reitera uma visão estanque entre ―eles‖ – os
hispanos – que queriam tomar as terras que ―nos‖ pertenciam (nós, os brasileiros).
Mesmo como paradidático a obra esbarra na limitação do horizonte interpretativo para
o leitor juvenil, o qual, uma vez vivenciada aventura, não encontra uma
problematização mínima dos fatos históricos tomados para elaboração da tessitura
ficcional.

Considerações Finais

Assim, ainda que tenha no título um indiciamento de referência a um conflito


bélico, bem como a ilustração da capa reforce essa ideia, o tema do conflito bélico, a
―guerra‖, não é um elemento central para a estrutura narrativa, servindo, antes, como
um apêndice informativo que instrumentaliza os protagonistas frente à aventura que
vivenciam.
Em termos teóricos, evidencia-se a pertinência de análise crítica sobre obras
produzidas para o público infantil e juvenil, seja como literário, em sentido restrito, seja
como paradidático. As escolhas sobre como e o que contar da história nacional para
crianças e jovens pode, assim, se servirem de discussões mais contundentes sobre
personalidades históricas que, quase sempre, mostram-se mais humanas justamente
por seus titubeios, conflitos e, evidentemente, contradições.

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Referências

ALADRÉN, Gabriel. Experiências de liberdade em tem pos de guerra: escravos e


libertos nas Guerras Cisplatinas (1811-1828). In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.
22, n. 44, p.439-458, jul.-dez. 2009.

LAGUNA, Alzira Guiomar Jerez. A contribuição do livro paradidático na formação


do aluno-leitor. In: Augusto Guzzo Revista Acadêmica, n. 2, p.43-52, 2001, ISSN:
1518-9597, e-ISSN 2316-3852. Disponível em:
<http://www.fics.edu.br/index.php/augusto_guzzo/article/view/81/95> Acesso em: 27
set. 2017.

MARTINS, Eliana. No rastro dos barrigas-verdes. Ilustr. Rubem Filho. São Paulo:
Editora Salesiana, 2009.

OLIVEIRA, Vanderléia da Silva; VALENTE, Thiago Alves. O direito à literatura como


identidade e memória na escola. In: Revista Virtual de Letras, v. 2, n. 1, 2010, p. 145-
159), ISSN: 2176-9125.

PARDIÑAS, María Jesús Agra; RECHOU, Blanca-Ana Roig. (coord) A memoria das
guerras na literatura infantil e xuvenil en lingua galega. Vigo: Edicións Xerais de
Galicia, 2004.

RECHOU, Blanca-Ana Roig; DOMÍNGUEZ, Pedro Lucas; LÓPEZ, Isabel Soto. (coord)
A guerra civil española na narrativa infantil e xuvenil. Vigo: Edicións Xerais de Galicia,
2008.

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A NARRATIVA POLICIAL JUVENIL: LEITURA, CRIAÇÃO E


PRAZER

Marcos Aparecido Pereira, IFMT/UNIC, Eixo temático: A literatura juvenil e


jovens leitores

Considerações Iniciais

O presente trabalho tem por escopo a importância do adequado incentivo à


leitura em sala de aula perpassando por discussões acerca da natureza da literatura e
do processo criativo da/na leitura. Com base em Aguiar e Bordini (1988) no que se
refere as indicações de leitura sugeridas para cada idade/ série, discutir-se-á a
utilização de obras do gênero policial de Marcos Rey e Lucia Machado de Almeida a
fim de incentivar e/ou desenvolver o hábito e, sobretudo, o prazer da leitura literária
em jovens de 12 a 14 anos.

A literatura infantil e juvenil não é mero entretenimento

Nelly Novaes Coelho (1997) explica que a expressão ―literatura infantil‖


sugere, erroneamente, livros destinados apenas à distração e/ou ao prazer, o que, por
sua vez, indica porque esse tipo de criação literária foi tratado como ―gênero menor‖
ou ―gênero secundário‖. Além disso, a literatura infantil também foi vista com olhares
utilitaristas, com finalidade educativa na transmissão e assimilação de conteúdos e
valores. Tal visão didática fez com que esse tipo de literatura não recebesse o devido
reconhecimento e status de arte.
Por diversos motivos, geralmente associados a conceitos elitistas, uma forma
de fazer literatura foi dada como superior a outra, criando divisões de valores como se
fosse possível medir as ideias, os sonhos ou o valor das criações artísticas. É devido a
esse entendimento distorcido que alguns autores, obras, estilos e/ou gêneros são
desvalorizados, vistos com desdém e, por sua vez, excluídos das discussões,
recomendações ou estudos literários. Isso acontece, em diferentes contextos, com a
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literatura infantil e juvenil, como o gênero policial e a ficção científica, dentre outros.
Coelho (1997, p. 14) destaca que: ―A Literatura, em especial a Infantil, tem
uma tarefa fundamental a cumprir [...]: a de servir como agente de formação, seja no
espontâneo convívio leitor/livro; seja no ―diálogo‖ leitor/texto, estimulado pela Escola‖.
Logo, percebemos que a literatura infantil e juvenil pode cumprir, simultaneamente, os
dois papéis: literário e pedagógico. Ela é, antes de mais nada, Arte e como tal, nasce
ligada ao fazer estético atuando sobre as ―mentes, onde se decidem as vontades ou
as ações; e sobre os espíritos onde se expandem as emoções, paixões, desejos,
sentimentos de toda ordem...‖ (IDEM, p. 25), proporcionando ao leitor essa relação
dialógica com o ―outro‖ e consigo ao mesmo tempo. Logo, ―a Literatura Infantil e
Juvenil não é, e nem pode ser, mero entretenimento‖ (IDEM, p. 55, grifo da autora),
pois ―é o meio ideal para auxiliá-las [as crianças] não só a desenvolver suas
potencialidades naturais, como também auxiliá-las nas várias etapas de
amadurecimento que medeiam entre a infância e a idade adulta‖ (IDEM, p. 38). Assim,
quando Mario Vargas Llosa (2016) e Tzvetan Todorov (2009) afirmam que a literatura
é mais que um simples entretenimento, uma distração ou uma enganação,
gostaríamos de acrescentar: independentemente da idade do leitor. Literatura para
crianças, jovens ou adultos, ela cumpre sua tarefa de humanizar e ajudar a viver
melhor, já que embeleza e dá sentido ao mundo (TODOROV, 2009).
Não é tão simples quanto parece, classificar essa ou aquela obra como sendo
pertencente a literatura infantil, ora pela sua origem, ora pela finalidade que o autor
―dá‖ ao construir a obra, ora pela receptividade das crianças frente a determinados
textos. Em sua natureza, a literatura infantil e juvenil ―pertence à área do maravilhoso,
da fábula, dos mitos ou das lendas, cuja linguagem metafórica se comunica facilmente
com o pensamentomágico‖ (COELHO, 1997, p. 38, grifo da autora). A natureza
mágica da matéria desse tipo de literatura atrai as crianças de forma espontânea, e,
por que não, os adultos que se dão o direito de fantasiar, já que este mesmo
pensamento mágico (ou mítico) foi o que deu origem às primeiras formas de
manifestação literária. Entretanto, ―à medida que o cientificismo se impõe como única
possiblidade de conhecimento (baseado em fatos e suas leis), o Realismo passa a
dominar, como forma privilegiada a Literatura (IDEM, p. 49).
Ao fazer literatura, para crianças, jovens ou adultos, o autor eterniza a
fantasia através das palavras, ―provoca emoções, dá prazer ou diverte e, acima de
tudo, ‗modifica‘ a consciência-de-mundo de seu leitor‖ (COELHO, 1997, p. 42). Quanto
mais jovem é o leitor, maior a responsabilidade do escritor frente àquele que dialogará
com seu texto, porque o universo desse jovem leitor é mais plástico e acolhedor às
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ideias que o texto carrega que um leitor adulto. Precisamos, então, assumir um firme
compromisso com uma literatura infantil e juvenil de qualidade, ―não escamoteando o
literário, nem o facilitando, mas enfrentando sua qualidade artística e oferecendo os
melhores produtos possíveis ao repertório infantil‖ (PALO; OLIVEIRA, 1992, p. 11).

A leitura literária na escola

Acredita-se que a escola seja um imprescindível espaço para o incentivo à


leitura literária. Contudo, o ensino de literatura na escola é, basicamente, centrado na
história das Escolas Literárias, dentro das quais os professores determinam a leitura
dos autores e/ou obras considerados importantes em determinada época. Desta
forma, as atividades de leitura têm, comumente, caráter de obrigatoriedade e são
apenas parte do cumprimento do programa. Geralmente, os alunos não são
incentivados a ler obras alheias a esse ―roteiro‖ didático, obras receptivas a
determinada idade/série, o que, por sua vez, não contribui para a formação de leitores
literários. Logo, neste panorama, é fácil imaginar que muitos alunos enxerguem a
leitura como um instrumento puramente funcional, como ―remédio‖, ou como um meio
de alcançar uma nota. Ao mesmo tempo é difícil imaginar que os alunos sejam
capazes de descobrir o prazer da leitura literária e que sejam cativados pelos livros e
suas histórias.

Por isso, vale lembrar, que no processo de formação de leitores literários é


importante o incentivo à leitura de gêneros receptivos a determinada série e/ou idade.
Em seu livro ―Que livro indicar? Interesses do leitor jovem‖, Vera Teixeira de Aguiar
apresenta um detalhado estudo realizado em oito escolas, com alunos de escolas
públicas estaduais de Porto Alegre na faixa etária de 10 a 15 anos. Neste trabalho,
contudo, nos fixaremos na quarta fase da relação idade e leitura (12 a 14 anos), a fase
em que os jovens tomam consciência de si como pessoas, estão muito conectados
com sensações e sentimentos, seus gostos, seus medos, desejos e vontades. Aguiar
e Bordini (1988) destacam que dos 12 aos 14 anos o leitor entra na ―idade da história
de aventuras ou fase de leitura apsicológica, orientada pelas sensações‖ (AGUIAR;
BORDINI, 1988, p. 19). E acrescenta que esse é o período em que ―o conhecimento
da própria personalidade e o desenvolvimento dos processos agressivos ativam a
vivência social e a formação de grupos. Os interesses de leitura preenchem as
necessidades do leitor através de enredos sensacionalistas [...] (IDEM, p. 20).

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Quando se gosta de algo, busca-se conscientemente mais do mesmo.


Quando se gosta de um estilo literário ou de um autor se busca mais deles também.
Assim, se uma leitura prazerosa é o principal incentivo para novas leituras e,
baseando-se na fase de leitores, mencionada anteriormente, acredita-se que o gênero
policial, seja uma relevante ferramenta para esta consolidação do gosto pela leitura
em sala de aula. Já que trata-se de uma narrativa que envolve e seduz o leitor numa
atmosfera de ―medo, mistério, investigação, curiosidade, assombro [e] inquietação‖
(PIRES, 2005, p. 03).
Entretanto, o Guia do Livro Didático (PNLD, 2015), por exemplo, nos afirma
que ―é bastante pequeno o espaço reservado à produção literária que não se identifica
com os cânones estabelecidos: [...] os gêneros de menor prestígios (como o conto ou
o romance policial)‖ (BRASIL, 2014). Soma-se a isso o que diz Aguiar (2011), a partir
de relatos de professores e tipos de leitores recolhidos por Ângela da Rocha Rolla
(1995), ao que destacamos:
O leitor escolar,professor que lê com um objetivo principal: indicar
obras literárias para os alunos. Há uma preocupação com o trabalho
didático, que absorve toda a sua disponibilidade para a leitura. Essa
se reveste de obrigatoriedade, com a finalidade única de desenvolver
seu trabalho docente, que consiste na análise e comentário das obras
solicitadas, cujo assunto não diz respeito aos seus interesses, nem
ao seu gosto literário, principalmente quando se trata de literatura
infantojuvenil. Por força da necessidade imediata e do pouco tempo
disponível, realiza leituras rápidas, sem fruição (AGUIAR, 2011, p.
111, grifo da autora).

O cenário não parece animador, nele vemos um professor sobrecarregado de


leituras obrigatórias, muitas vezes desinteressantes, e com uma finalidade
estritamente funcional. Isso além da afirmação do guia didático de que há pouco
espaço para obras que estão fora do chamado cânone de leituras obrigatórias e que,
muitas vezes, são (ou poderiam ser) muito bem recebidas pelos alunos em sala de
aula, podendo contribuir para o incentivo à leitura literária e a formação de leitores.
Obviamente, o trabalho do professor é o de sugerir e conduzir a novas
leituras; o que exige certa sensibilidade e percepção de seus alunos para que esta
seja uma intervenção bem-sucedida, já que, é relevante, partir de um caminho que o
aluno já conheça e lhe seja agradável, prazeroso. Assim, é preciso conhecer o que se
sugere ao aluno, distinguir os gostos típicos da idade de cada série e entender que a
leitura do professor é pré-requisito da leitura do aluno como nos lembra Aguiar e
Bordini (1988), por conseguinte, é preciso que o professor leia, de fato, os livros
indicados.

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O livro precisa ser encarado pelo aluno como uma janela para um mundo de
saberes, experiências e conhecimentos diversos capazes de expandir os horizontes,
como nos lembra Zilberman:
O conceito de leitor deve se basear em duas categorias: a de
horizonte de expectativa, misto dos códigos vigentes e da soma de
experiências sociais acumuladas; e da emancipação, entendida como
a finalidade e efeito alcançado pela arte, que libera seu destinatário
das percepções usuais e confere-lhe nova visão da realidade
(ZILBERMAN, 1991, p. 49).

Se estas experiências são importantes para os adultos, talvez seja impossível


mensurar o quanto elas são enriquecedoras para os adolescentes que estão em uma
fase tão delicada da constituição pessoal, humanística e social. Por isso, vale notar,
que a escola, como corresponsável por essa formação do indivíduo, não pode lhe
negar o diálogo com o texto escrito, afinal ―o confronto entre textos literários distintos
oferece ao aluno a ocasião de enfrentar a diversidade social e cultural, no momento
em que tem início as grandes questões filosóficas propostas ao longo do tempo‖
(COLOMER, 2007, p. 31).
Ao mesmo tempo, o jovem gosta de se divertir e tende a rejeitar aquilo que
não acha bom. Assim, o processo de sedução pelo livro, pelas narrativas e pela
fantasia precisa ser trabalhado em sala de aula, a fim de potencializar o prazer da
leitura ainda nos adolescentes para que os adultos originários deles sejam leitores
literário competentes.
Mas o que significa ser um leitor literário competente em nossa
sociedade? [...] o leitor competente se havia definido a partir de
diferentes perspectivas como aquele que sabe ―construir um sentido‖
nas obras lidas. E, para fazê-lo, deve desenvolver uma competência
específica e possuir alguns conhecimentos determinados que tornem
possível sua interpretação no seio de uma cultura (COLOMER, 2007,
p. 30).

Colomer (2007) ainda nos fala sobre transformar a escola em uma


―comunidade de leitores‖ visto que cabe à escola garantir o acesso ao universo da
leitura, já que muitas vezes não há esse acesso em casa. O trabalho com o texto
escrito de diferentes gêneros e suportes, o contato real e amplo com o material escrito
deve acontecer na escola. É no ambiente escolar que o letramento e a formação do
hábito da leitura têm suas maiores possibilidades, onde o aluno pode encontrar
respaldo para o desenvolvimento de uma leitura que passe da leitura rasa, literal, rumo
a interpretações mais complexas, a fim de que a fruição do texto aconteça
(COLOMER, 2007).

O leitor e o gênero policial


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O autor trabalha e brinca com as palavras, utilizando-se da realidade e


fugindo dela a fim de dar corpo e forma à obra. ―O artista, ao construir uma nova
realidade, vai desatando-a da realidade externa à obra. Pois, somente ao libertar-se
da realidade, a força criadora pode agir segundo suas próprias leis, em sua qualidade
produtiva‖ (SALLES, 1998, p. 134). Entretanto, esse processo criador só acontecerá
realmente durante o ato da leitura, pois ―a leitura constrói um espaço entre o
imaginário e o real‖ (PIGLIA, 2006, p. 29). A leitura é definida por Sartre (2004, p. 38)
como ―criação dirigida‖. Assim, o leitor, ao aceitar fazer parte desse processo dá vida à
obra por meio da imaginação, pois ―a leitura é um sonho livre‖ (SARTRE, 2004, p. 42)
no qual o leitor pode despertar quando quiser. E assim, sonhando acordado, o leitor
faz com que a obra ganhe vida através do diálogo tecido entre os dois (obra e leitor),
uma vez que ―o que podemos imaginar sempre existe, em outra escala, em outro
tempo, nítido e distante, como num sonho‖ (PIGLIA, 2006, p. 17).
leitura é um pacto de generosidade entre o autor e o leitor; cada um
confia no outro, conta com o outro, exige do outro tanto quanto exige
de si mesmo. Essa confiança já é, em si mesma, generosidade:
ninguém pode obrigar o autor a crer que o leitor fará uso da sua
liberdade; ninguém pode obrigar o leitor a crer que o autor fez uso da
sua (SARTRE, 2004, p. 46)

Bakhtin (2003, p. 279) diz que: ―a obra é um elo na cadeia da comunicação


discursiva‖. Logo, o une os dois nesse ―pacto de generosidade‖ é a obra, objeto que o
autor molda e oferece ao leitor para que este complete o ato da criação dando vida a
ela por meio da imaginação. Melo (2015) ressalta a ideia de um leitor que tem a
capacidade de avaliar o que lhe é oferecido, o leitor tem o livre-arbítrio de ler ou não,
de ser ou não ―seduzido‖ pelo texto. Barthes (1987) acrescenta ainda que o texto tem
que provar que deseja o leitor. A concretização dessa relação é o que vai definir a
existência do objeto literário, ―pois o objeto literário é um estranho pião, que só existe
em movimento. Para fazê-lo surgir é necessário um ato concreto que se chama leitura,
e ele só dura enquanto essa leitura durar‖ (SARTRE, 2004, p. 35).
Sartre (2004) diz que o leitor tem consciência que é responsável por,
simultaneamente, desvendar e criar durante o ato da leitura. Ainda segundo o f ilósofo
francês, o desvendamento não acontece automaticamente, pois é preciso que o leitor
―aceite‖ sua tarefa, entregue-se e mergulhe na obra. Assim, a ação do leitor é
consciente e ativa. Morley (2007, p. 02 – tradução minha) diz que: ―O leitor é ativo,
como ouvinte e como testemunha‖.
O sujeito-leitor é um sujeito inteiramente deportado sob o registro do
Imaginário; toda a sua economia de prazer consiste em cuidar da sua
relação dual com o livro [...], fechando-se a sós com ele, colado a ele,
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bem perto dele, como a criança fica colada à Mãe e o Apaixonado


fixado no rosto amado (BARTHES, 2004, p. 37-38).

No pensamento anterior de Barthes (2004) percebemos que a relação do


leitor com a obra é uma relação de sentimentos, de prazer. Seja este prazer aquele
que afaga, nutre, cuida, ensina e protege representado pela mãe e/ou o prazer da
carícia, da sedução e do fascínio da atração representado pelo apaixonado. Qualquer
que seja a representação desse encanto, o leitor precisa dele. Llosa (2016) diz que os
homens precisam das mentiras da ficção porque elas enriquecem, completam e
compensam nossa existência já que, segundo o mesmo autor, sempre desejamos e
sonhamos mais do que realmente podemos alcançar.
O leitor não sonha a partir do nada, pois ―a obra que surge não se apresenta
como novidade absoluta num vazio, mas por intermédio de avisos, sinais visíveis e
invisíveis, traços familiares ou indicações implícitas‖ (JAUSS, 1994, p. 28). Assim,
quando uma obra consegue tocar o leitor é porque eles compartilham algo e então o
diálogo, a interação acontece, pois ―texto e leitor interagem a partir de uma construção
do mundo e de algumas convenções compartilhadas‖ (COLOMER, 2003, p. 96) onde
um dá sentido ao outro numa relação de coexistência, pois se a obra só existe de fato
a partir do momento que é lida, o leitor só existe porque há o texto com o qual se
relacionará. Essa relação que é entendida por Barthes (2004, 38) como: ―uma relação
fetichista: [o leitor] tira prazer das palavras, de certas palavras, certos arranjos de
palavras‖.
E assim como as relações humanas, as relações com as diferentes obras
e/ou gêneros terá densidade e momentos distintos para o leitor. Calvino (1993) expõe
que há uma idade para cada tipo de leitura e que todas elas são importantes. ―As
pessoas são receptivas a partir de algo que já existe nelas de forma potencial e que
encontra nesse fato uma oportunidade de manifestar‖ (SALLES, 1998, p. 92). Assim,
se assumirmos que as pessoas estão em constante transformação, podemos dizer
também que seus gostos de leitor mudam com a vida.
Os sonhos não são todos os mesmos o tempo todo, assim, há espaço para
diversas formas de sonhar e múltiplos olhares em diferentes momentos da vida do
leitor e do tempo em que ele está inserido. Como afirma Jauss (1994) as expectativas
de uma obra são variáveis aos leitores no transcorrer do tempo. E aquelas obras que
conseguem seduzir, provocar e encantar leitores de várias épocas, são entendidas por
esse teórico como ―grandes obras‖ por possibilitarem novas leituras em momentos
históricos diferentes.
Talvez por isso Paulo Freire (1989, p. 09) tenha dito que: ―A leitura do mundo
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precede a leitura da palavra‖. Se o leitor não estiver conectado ou, pelos menos,
compreender o contexto da obra, ela não fará sentido, a comunicação não acontecerá
e o processo de humanização, descrito por Candido (2011) também não.
Sendo que a humanização é explicada por este autor como:
[...] processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos
essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa
disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a
capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a
percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do
humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na
medida em que nos torna mais compreensivos e abertos à natureza,
à sociedade e ao semelhante‖ (CANDIDO, 2011, p. 182).

Dessa forma, não importa se o leitor se identifica com uma obra considerada
―perfeita e/ou de alta qualidade‖ ou uma vista como de ―menor e/ou de qualidade
modesta‖, pois ambas formam ―no conjunto uma massa de significados que influi em
nosso conhecimento e nos nossos sentimentos‖ (CANDIDO, 2011, p. 184). Assim,
independentemente da classificação, no ato da leitura, o leitor é chamado a ―ir além da
coisa escrita. Sem dúvida, o autor o guia, más somente isso; as balizas que colocou
estão separadas por espaços vazios, é preciso interligá-las, é preciso além delas‖
(SARTRE, 2004, p. 38). E o leitor só seguirá adiante de bom ânimo, preenchendo os
espaços com imaginação através do desejo, pois ―toda leitura é penetrada de Desejo
(ou de Repulsa)‖ (BARTHES, 2004, p. 33).
David Morley (2007) apresenta-nos, um ―leitor-escritor‖ que faz parte da
criação literária construindo as imagens da obra por meio das palavras do autor
enquanto lê. O autor diz que leitura e escrita são atos colaborativos e que o os leitores
participam conscientes ou inconscientemente da criação literária. Assim, a primeira
parte da missão do leitor é aceitar, acreditar na narrativa, lembrando que isso
dependerá de um processo de identificação com a obra. O passo seguinte seria
deixar-se levar por ela e, enquanto é levado, ir, gradativamente, desvendando,
dialogando e construindo (por meio das pistas deixadas pelo autor e também nos
espaços vazios) a fantasia da obra, tornando-se, dessa maneira, co-criador, pois se o
autor cria, quem dá vida é o leitor. É necessário ainda acrescentar que esse processo
este dá prazer, liberta e humaniza o leitor.
Contos e romances policiais têm sido publicados e lidos há quase 200 anos e
têm sido parte de uma literatura que Antônio Cândido (2011) descreve como sendo
indispensável para a humanização, pois seria como o sonho que mantém o nosso
equilíbrio psíquico. O gênero policial ajuda-nos a pensar sobre o próprio ser humano,
suas interações e comportamentos sociais, pois, segundo Llosa (2016) as ficções
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estão carregadas da verdade do nosso tempo. Entretanto, o mesmo gênero ainda não
chegou definitivamente às salas de aula, justamente onde incentivo à leitura deveria
ter seu marco inicial.
Caracterizado, por vezes, como gênero comercial, de massa, de menor
prestígio ou tido como não-portador de qualidades ou de relevância literária, este tipo
de literatura pouco é mencionado nos livros didáticos e, da mesma maneira, encarada
com certa desconfiança por muitos professores.
Todo o texto, entretanto, independente do seu grau de realização
artística, seja ele consagrado ou não, pode ser objeto de aulas de
literatura, desde que seja visto na sua totalidade e que o professor
esteja atento para o conjunto de normas que nele se configuram,
sendo capaz de discriminá-las criticamente em contraste com os
padrões estéticos e ideológicos de seu tempo. (AGUIAR; BORDINI,
1988. p. 40)

O gênero policial nasce ligado ao estilo de vida urbano, traz personagens que
se aproximam de tipos comuns vistos em qualquer cidade ao redor do planeta,
trabalha com sentimentos e jogos de interesses sociais e, por fim, está intimamente
ligado com a surpresa, a curiosidade e a revelação de fatos e/ou pessoas. É, por sua
própria natureza, um gênero literário condicionado pela relação dialógica entre
literatura e leitor (JAUSS, 1994). ―Texto e leitor interagem a partir de uma construção
do mundo e de algumas convenções compartilhadas‖ (COLOMER, 2003, p. 96) onde
um dá sentido ao outro numa relação de coexistência.

Devido a esta proximidade com a vida real e cotidiana das pessoas é que se
acredita que o gênero policial pode proporcionar um ―empurrãozinho [...] para que o
leitor potencial deslanche, e guiado por sua curiosidade, se aventure pelos caminhos
infinitos que, em 3000 anos de criação literária, incontáveis autores foram abrindo para
seus pares‖ (MEIER, 2001, p. 100).

Jauss (1994) destaca que a qualidade de uma obra literária resulta dos critérios
da recepção, do efeito produzido pela obra e de sua fama junto a posteridade. O
gênero policial possui uma narrativa geralmente rápida, leve que faz o leitor ansiar
pela próxima pista. Sobretudo nos jovens, esse tipo de narrativa mexe com
sentimentos como o medo, instiga a curiosidade e estimula a imaginação.

Aguiar e Bordini (1988, p. 31) dizem que: ―a obra é tanto mais valiosa quanto
mais emancipatória, ou seja, quanto mais propõe ao leitor desafios que as
expectativas deste não previam‖. Logo, primeiro por estar indissociavelmente ligado ao
modo das pessoas se relacionarem, o gênero policial proporciona um terreno fértil
para a análise dessas relações, comparações com tipos comuns na sociedade e seus

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jogos de interesse. Além disso, ele surge atrelado à lógica e a investigação científica
presentes na figura do detetive, o herói que não pode falhar. A lógica está a serviço da
verdade, mas também a serviço do prazer do leitor que acompanha o raciocínio do
investigador. E por último, esse gênero é capaz de explorar o medo das pessoas e
remanejá-lo de maneira artística, como nos lembram Boileau e Narcejac (1991).

Os jovens querem saber/conhecer a verdade e, querem também ser heróis,


espelham-se neles (desde muito cedo), vivem as aventuras que eles vivem no mundo
mágico da fantasia. Por isso a figura do detetive encanta tanto, porque ela proporciona
ao leitor múltiplas experiências em novas vidas num universo de liberdade criativa
onde é possível testemunhar e participar da aventura.
Porque ser diferente do que se é, tem sido a aspiração humana por
excelência. Dessa aspiração resultou o melhor e o pior que a história
registra. Dela nasceram também as ficções.
Quando lemos romances não somos o que habitualmente somos,
mas também os seres mágicos em meio aos quais o romancista nos
insere. Essa inserção é uma metamorfose: o reduto asfixiante que é
nossa vida real se abre e saímos para ser outros, para viver
indiretamente experiências que a ficção torna nossa. Sonho lúcido,
fantasia encarnada, a ficção nos completa. Nós, seres mutilados a
quem foi imposta a atroz dicotomia de ter uma só vida; e os desejos e
as fantasias de que ela seja mais rica e diversa é do que se ocupam
as ficções (LLOSA, 2016, p. 7, tradução nossa).

Quem não quis ser tão inteligente quanto o detetive dos romances policiais da
ficção? Quem não quis seguir as pistas de um crime e revelar a verdade a todos? A
literatura possibilita essas e milhares de outras experiências nas quais podemos ser e
fazer o que nossa imaginação quiser. Portanto, ao ler um romance policial que se
goste, o leitor inevitavelmente se torna um detetive. Primeiro dentro da história e
depois fora dela, buscando mais daquele autor, daquele gênero, focando sua atenção
nas referências deixadas ao longo do caminho por personagens, entrevistas dos
autores, reportagens, etc.
Uma prazerosa leitura leva a outra e outra e mais outra, o que, por sua vez,
cria o hábito. A consolidação do hábito da leitura requer tempo e experimentação a fim
de que a busca frequente da literatura seja um ato consciente e não apenas um
comportamento de rotina, como nos explicam Aguiar e Bordini (1988). Desta forma,
acredita-se que o gênero policial sirva para fazer o jovem leitor brincar e se identificar
com os personagens, com a trama, fortalecer a atenção e soltar a imaginação, ou seja,
dar um passo importante na formação do leitor literário, impulsionando e
potencializando o prazer pela literatura, além de desenvolver a habilidade de
compreensão do mundo e dar asas à criatividade.

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A narrativa policial juvenil

Aguiar (2001, p. 63) lembra que: ―faz-se necessária uma adaptação de


assunto, estilo, forma e meio em cada obra produzida para o pequeno leitor‖. Logo, é
importante prestar atenção às fases de desenvolvimento dos leitores a fim de se
trabalhar e/ou indicar obras que sejam adequadas a determinado público. Os
adolescentes, por exemplo, são mais facilmente cativados pela leitura quando
elementos que despertam fascínio sobre eles, como o medo, mistério, aventura,
desafio e curiosidade estão envolvidos na narrativa. O gênero policial desperta ―no
leitor a paixão simples do medo, criada a partir da estranheza do crime, da identidade
secreta do criminoso e da expectativa na resolução do enigma‖ (MASSI; CORTINA,
2009, p. 522). Deste modo, os professores têm em suas mãos ótimas ferramentas
para introduzir e/ou estimular seus alunos, às vezes desacreditados da leitura, neste
fascinante mundo de sonhos, afinal, ―ler obras juvenis ou best-sellers é apenas o
começo de uma longa convivência com os livros [afinal] um livro puxa outro, não há
dúvida‖ (MEIER, 2011, p. 99 e 102).
Ao comentar sobre as narrativas policiais, Aguiar (2001, p. 99) diz que: ―[elas]
alcançam a adesão imediata do pequeno leitor, ao colocá-lo em busca da solução de
crimes e delitos, num jogo de informações e suspeitas, que acelera o ritmo da
narrativa e mantém o leitor interessado‖. Entretanto, a escola ainda resiste ao uso do
gênero policial em atividades escolares por considerá-lo literatura de massa e de
menor prestígio. Seu uso é bastante tímido e modesto neste local onde o incentivo à
leitura, o trabalho com as tipologias textuais literárias e o simples despertar para o
mundo da leitura geralmente tem seu ponto de partida.

Ao falar sobre a formação de leitores com a ajuda de romances policiais


Yamane (2008, p. 10768) nos lembra que ―tratar de coisas que fazem parte do mundo
e do interesse do jovem e da criança são essenciais para que a leitura seja adotada no
cotidiano de adolescentes e crianças. É preciso cativá-los sempre [...]‖. Depois de
cativados, apaixonados, eles conseguirão seus próprios caminhos e também
incentivarão aqueles que estão à sua volta. O gênero policial pode ser usado com
sabedoria pelo professor como estratégia de leitura para seus alunos. ―O romance
policial é um caminho para fortalecer a memória e atenção necessárias para futuras
leituras e consolidando o hábito de ler‖ (YAMANE, 2008, p. 10764). Ou seja, é uma
importante evolução em direção a novos tipos de leituras, afinal, a consolidação do
hábito da leitura não acontece no vazio, é preciso experimentar, investigar, dialogar
com livros e com outros leitores. ―O mistério é essencial para um enredo, e não pode
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ser apreciado sem inteligência. [...] Apreciar um mistério requer que uma parte da
mente seja posta de lado, ruminando os pensamentos, enquanto a outra segue
adiante‖ (FORSTER, 2005, p. 36). Portanto, a leitura do gênero policial poderá
também auxiliar no desenvolvimento do pensamento cognitivo, racional, na melhora da
atenção e da concentração de atividades cotidianas diversas.

No Brasil, nomes como: Rubem Fonseca, Luiz Alfredo Garcia-Roza e Jô


Soares figuram entre os autores contemporâneos mais destacados do gênero policial,
entretanto, antes destes, muitos outros deram à literatura policial pitadas de
brasilidade tornando os detetives menos perfeitos, mais engraçados, mais parecidos
com pessoas comuns, apresentando suas limitações, falhas e dificuldades cotidianas.
Contudo, nossa literatura policial ―para adultos‖ não é tão famosa quanto nossa
literatura policial juvenil. Autores como Marcos Rey e Lucia Machado de Almeida
contribuíram para a popularização do gênero e, obviamente, para o incentivo à leitura
de jovens de várias gerações através de publicações que chegavam a escola,
sobretudo, por meio da ―Série Vaga-Lume‖. Publicada desde 1973 pela editora Ática,
com as obras, geralmente, voltadas ao público juvenil, conta atualmente com mais de
noventa títulos de diversos gêneros.

Lançado em 1956, ―O escaravelho do diabo‖, da mineira Lucia Machado de


Almeida talvez seja o mais famoso do gênero da coleção, tanto que em 2016 ganhou
um filme homônimo pela Globo Filmes. Nele, Alberto, personagem principal, é
estudante de medicina, mora com os pais e com o irmão. Quando esse irmão, logo
depois de ter recebido um pacote com um escaravelho, morre com uma espada
cravada no peito, Alberto decide investigar o assassinato.

A tetralogia: ―O mistério do cinco estrelas‖ (1981), ―O rapto do garoto de ouro‖


(1982), ―Um cadáver ouve rádio‖ (1983) e ―Um rosto no computador‖ (1993) são
igualmente destaques do prolífico escritor paulista de literatura juvenil, Edmundo
Donato, mais conhecido pelo seu pseudônimo Marcos Rey. No primeiro, Léo, um
jovem que vai trabalhar como bellboy em um famoso hotel cinco estrelas de São Paulo
e em determinado dia vê o corpo de um homem sob a cama do quarto de um
importante hóspede. Léo chama a polícia para investigar o caso, mas como nada
acontece, ele mesmo decide fazer uma investigação contanto com a ajuda de seus
amigos Gino, Ângela, e Guima. No segundo livro, Leo e os amigos vão investigar o
rapto de Alfredo, que se tornou um astro da música, e desaparece no dia de seu
aniversário de 16 anos. Leo, Jaime, Ângela e Gino, sob comando desse último, farão
parte de uma comissão para interrogar as pessoas relacionadas numa agenda verde.
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No terceiro livro, Léo, Gino e Ângela são chamados pelo delegado, Dr. Arruda, para
ajudar a investigar a morte de Boa Vida, um sanfoneiro querido por todos que o
conheciam, mas que é encontrado morto num prédio abandonado ao lado de um rádio
ligado. No último, a protagonista, Camélia, foge de Salvador para São Paulo a fim de
tentar ser modelo utilizando-se de documentos falsos, já que era menor de idade.
Depois de ganhar o concurso, entretanto, ela é sequestrada e o trio Léo, Ângela e
Gino saem à procura de pistas. Todos estes livros possuem narrativas enxutas,
rápidas, com heróis jovens e mistérios que prendem o leitor em cenários do dia-a-dia,
nas conversas e, sobretudo, na ação dos personagens. Tudo isso facilita a
identificação do público leitor com a obra e proporciona fluidez na leitura tanto pela
linguagem empregada quanto pela verossimilhança com a vida real de um
adolescente leitor (e os perigos que eles também poderiam verdadeiramente
enfrentar). Como mostra Aguiar (2001) lembra que a escolha dos personagens e da
faixa etária são importantes para que essa identificação do pequeno leitor aconteça.

Coelho (1997, p. 145) diz que: ―aquilo que não divertir, emocionar ou interessar
ao pequeno leitor, não poderá também transmitir-lhe nenhuma experiência duradoura
ou fecunda‖. Assim, os títulos aqui sugeridos, através da receptividade dos jovens
provocada pelos personagens (igualmente jovens), o estilo da narrativa e os enredos
que buscam envolver o leitor na descoberta das pistas e na revelação dos mistérios
são capazes de cumprir as tarefas de pensar, divertir, emocionar e/ou interessar os
leitores. Tal processo, acredita-se, é uma experiência de leitura literária capaz de
impulsionar novas leituras, de outras obras, de novos autores do mesmo gênero e,
fatalmente, devido a curiosidade, a ampliação da visão de mundo e da perspectiva de
leitura como algo atraente, rumar a novas aventuras e mistérios presentes também em
outros gêneros.

Considerações Finais

Neste trabalho buscou-se apresentar a narrativa policial juvenil como


alternativa de leitura para jovens de 12 a 14 anos. Foram utilizados como exemplos
livros de Lucia Machado de Almeida e Marcos Rey por acreditar que estes sejam
exemplos capazes de estimular o prazer da leitura a fim de garantir a motivação da
leitura literária. Entretanto, aqui não se tem o pensamento utópico de que uma ação
única possa solucionar todos os problemas de leitura (e formação de leitores) da
educação. Contudo, é função do professor estar atento às problemáticas que

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interferem e dificultam o trabalho cotidiano na escola, bem como a que tipo de livro
sugerir para a leitura dos jovens. Além de jamais parar de buscar alternativas
metodológicas que tornem as atividades em sala de aula e o incentivo à leitura em
determinada série/ idade mais eficientes, contribuindo assim com a formação de
leitores capazes de reconhecer e desfrutar dos prazeres da leitura.

Referências

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para formar leitores. Belo Horizonte: Formato Editorial, 2001.
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COLOMER, Teresa. A formação do leitor literário: narrativa infantil e juvenil atual.
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FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São
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policiais mais vendidos no Brasil no século XXI: canônica ou inovadora? Estudos
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http://www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/download/90221/107095 Acesso em: 10
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ZILBERMAN, Regina. Como e por que ler a literatura infantil brasileira. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2004.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

A REPRESENTAÇÃO DA PERSONAGEM AFRODESCENDENTE


NA OBRA MENINA BONITA DO LAÇO DE FITA, DE ANA MARIA
MACHADO

Amanda da Silva Oliveira, Unesp-Assis/SP, Eixo Temático 4 – A Literatura


Juvenil e Jovens Leitores
Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira, Unesp-Assis/SP, Eixo Temático 4 –
A Literatura Juvenil e Jovens Leitores

Considerações Iniciais

Fundamentado nos pressupostos teóricos da estética da recepção, de


Iser (1996 e 1999); Jauss (1994), este texto tem como objetivo apresentar uma
reflexão suscitada a partir da recepção da obra Menina Bonita do Laço de Fita,
de Ana Maria Machado (1986), realizada com crianças do 2º ano do Ensino
Fundamental de uma escola pública, situada na região periférica do município
de Assis, no estado de São Paulo. Justifica-se nossa escolha, pois se trata de
um texto de linguagem simples, acessível às crianças, repleto de esteticidade,
e originalidade, além disso traz uma temática capaz de colaborar na formação
indentitária dos indivíduos envolvidos no processo, fazendo com que a
discussão da leitura em sala de aula possa gerar reflexões capazes de
contribuir no respeito às diferenças e na diminuição do preconceito entre esses
alunos. Nossa abordagem da obra levou em consideração a importância da
temática do ensino da história e cultura Afro-brasileira, que se encontra na Lei
10.639/03.
Visamos desenvolver a recepção da obra de maneira prazerosa e crítica,
tendo em vista que, segundo Antonio Candido (1995) a literatura tem função
formadora na personalidade do sujeito, de forma individual e também social,
539

portanto, devemos considerá-la como um instrumento enriquecedor a favor da


educação. Como cita o autor,

[...] a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução


e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada
um como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a
sociedade preconiza, ou os considera prejudiciais, sendo
presentes nas diversas manifestações [...]. Significa que ela
tem papel formador da personalidade [...] (CANDIDO, 1995, p.
243).

A obra literária tem o poder de interagir com o leitor e sensibilizá-lo,


modificando até mesmo o seu caráter, dessa forma, concordando com as
ideias de Candido, para Antunes (2009), a literatura testifica a ideia de
equilíbrio social, nos coloca em face ao ensino e nos instrui, segundo o autor:

A literatura nos dá o poder de emersão, nos


confere o poder de enxergar e perceber o que nos
circunda, a fim de, como cidadãos, assumirmos nossos
diferentes papéis na construção de uma sociedade que
respeite a lógica do bem coletivo e dos valores humanos
(ANTUNES, 2009, p. 193).

Assim, podemos dizer que a literatura possibilita a formação de cidadãos


conscientes e valoriza o homem enquanto sujeito, desencadeando avanços
nas relações humanas, mesmo diante do público mirim.
Em nossa recepção da obra Menina Bonita do Laço de Fita (1986),
buscamos observar se, durante a leitura, sua narrativa estabelecia
comunicabilidade com os alunos-leitores, bem como se sua história lhes
permitia rever seus conceitos prévios e, assim, ampliar seus horizontes de
expectativa.
Ao término da leitura, procuramos fomentar um diálogo que nos
mostrasse quais eram as percepções trazidas pelos alunos em relação às
questões de âmbito racial, como essas crianças lidam com as diferenças, pois
embora tão pequenas, carregam consigo uma bagagem cultural, e uma visão
de mundo.

MENINA BONITA DO LAÇO DE FITA, de Ana Maria Machado

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A obra de Ana Maria Machado (1986) chama a atenção por se diferenciar de


outras histórias, principalmente por se tratar de um texto da década de 1980,
em que a questão da diversidade não era problematizada em sala de aula.
Na trama, o coelho branco vizinho da menina negra se apaixona pela cor
de sua pele e tenta descobrir qual é o segredo dela ser pretinha. Logo no início
da história é possível perceber a ênfase que a autora dá à tamanha beleza da
Menina bonita do laço de fita, chamada carinhosamente dessa forma pelo
coelho branco:

Era uma vez uma menina linda, linda. Os olhos dela


pareciam duas azeitonas pretas, daquelas bem brilhantes.
Os cabelos eram enroladinhos e bem negros, feito fiapos
da noite. A pele era escura e lustrosa, que nem o pelo da
pantera negra. (MACHADO, 1986, p. 2)

E assim segue a narrativa, no decorrer da história lemos afáveis


descrições sobre a aparência da menina, revelando por meio de adjetivos
carinhosos e comparações, quão belo e digno de admiração é o indivíduo de
pele negra.
Mediante isso, acreditamos ser possível a partir dos elementos
constituintes dessa história, trabalhar de forma positiva com o resgate da
identidade afrodescendente, visando à aceitação das crianças da diversidade e
à elevação da autoestima das que se reconhecem como negras e se
identificam com a personagem principal, sobretudo, pelo tom de pele. Vale
destacar que, durante a leitura da história, a protagonista, pela idade, por ser
inteligente, divertida e muito perspicaz, promoveu identificação com todas as
crianças leitoras.
No decorrer de toda a história, o coelho vai questionando a menina
sobre a cor de sua pele, mostrando descontentamento por não conseguir ficar
negro como ela: ―Menina Bonita do Laço de Fita‖ qual é o seu segredo para ser
tão pretinha? ‖ (1986, p.7). A menina inventa diferentes histórias para explicar a
origem de sua cor, pois anseia divertir-se e desconhece o motivo de ser negra.
Mesmo assim, ela é confiante e feliz, revela pelo seu comportamento que não
sofre com problemas de identidade e certamente desfruta de uma autoestima
elevada, visto que todos ao seu redor enaltecem a sua beleza.
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A cada invenção criada pela menina, o coelho seguia fazendo o que ela
dizia, com a finalidade de ficar com a cor exatamente como a que ela possuía,
porém, em nada obtinha êxito. Chegando ao término do livro, o coelho nota que
somente se casando com uma coelha pretinha é que conseguiria realizar o seu
desejo de ao menos ter filhos com a mesma pelagem. Ele percebe que as
pessoas herdam as cores e as características de seus antepassados. Até que
então, ele encontra uma coelha exatamente do jeito que queria, e forma a sua
sonhada família com filhotes de pelagem preta e também branca.
Cremos invariavelmente que essa obra pode ser trabalhada com
crianças de diversas faixas etárias, mesmo com as que não são alfabetizadas,
dado que o livro detém múltiplas ilustrações que auxiliam no entendimento da
narrativa. Além disso, é um texto de fácil compreensão, com um linguajar
apropriado para os infantes. Ademais difunde a igualdade entre os
semelhantes ao que corresponde a identidade negra, levando os alunos a
refletirem e pautarem suas ações no respeito ao próximo, pois de acordo com
Antonio Candido a literatura é um:

[...] processo que confirma no homem aqueles traços que


reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a
aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o
afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos
problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da
complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor (1995,
p.249).

Sendo assim, o livro pode agregar valor histórico e cultural no


conhecimento dos alunos, já que trata do processo de resgate da herança
africana, que se faz muito presente e é fortemente marcada em nosso país.
A história do nosso país foi traçada por vergonhosa escravidão de
africanos que eram submetidos a condições subumanas e discriminatórias.
Infelizmente, como resquício desse processo histórico ainda existe o
preconceito racial nos dias atuais, embora muitas vezes mascarado. Diante
desse cenário, por meio da literatura, devemos buscar romper com os
conceitos prévios dos indivíduos (ISER, 1999 e 1996) e, gradualmente, ampliar
seus horizontes de expectativa (JAUSS, 1994).

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Segundo Andrade (2009), muitos são os desafios e as propostas que


podem contribuir para a educação e para uma escola que proponha um olhar
cauteloso em busca do desenvolvimento de um ensino que almeje promover a
diversidade cultural. Dessa forma, devemos levar em consideração as
diferentes abordagens nas atividades com os alunos, tal como um trabalho
diferenciado na relação dos estudantes, pautado no respeito e na escolha dos
conteúdos curriculares.
Concordando com Santos (2008), é preciso que os conhecimentos e a
educação contemporânea sejam construídos com um olhar que busque
atender as diferenças, a diversidade humana. A escola da contemporaneidade
necessita discutir questões que abranjam os aspectos sociais, como raça,
classe, gênero, etnia, entre outros, desse modo, o ensino poderá ser
enriquecido por esses assuntos que contribuem na valorização dos diferentes
grupos.
Sabemos que há um longo caminho a ser percorrido para que as
mudanças necessárias na educação e, consequentemente, na vida dos
estudantes aconteçam, pois entendemos que a cultura incutida em nós faz
parte de um processo histórico resistente e petrificado. Por isso, confiamos no
papel transformador da literatura, em que a escola deve ser a orientadora no
caminho para se chegar à plenitude de estímulo de uma educação que trabalhe
em prol dos direitos humanos e da igualdade social e racial.
Acreditamos que, se utilizarmos como suporte uma literatura que veicule
conteúdos libertários e seja emancipatória (ISER, 1999 e 1996), esta atingirá
sua função social (JAUSS, 1994), pois será geradora de mudanças no contexto
vivido pelos alunos. Justifica-se, então, nossa escolha do livro Menina Bonita
do Laço de Fita (1986) para a recepção com crianças.

A recepção da obra
Primeiramente apresentamos aos alunos a capa do livro, o nome da
autora e do ilustrador, perguntamos se algum deles já havia lido algum texto da
autora, falamos um pouco sobre a relevância dessa escritora para o nosso
país, alguns dados biográficos, bem como os prêmios mais importantes que ela

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já recebeu, deixando dessa maneira os alunos muito impressionados e


curiosos para saber o que aconteceria na história.
Durante a recepção da obra buscamos fazer uma pequena encenação
do enredo, optamos por alternar entre a leitura e algumas falas adaptadas,
além da caracterização das personagens, para dar mais naturalidade e fluidez
à narrativa. Como pode ser observado nas imagens abaixo:

(Figura 1) (Figura 2)

Apesar desse relato e da exposição de uma técnica de contação,


acreditamos que, independentemente, do modo como o texto literário seja
trabalhado, ele tem o poder de agregar conhecimento, cultura e criticidade na
vida dos estudantes. Considerando que o aluno é capaz de chegar
individualmente à conclusão de que o ato de ler é gratificante, pois pode
permitir que o sujeito se encontre com o texto, surgindo assim, a possibilidade
de imersão no desconhecido, descobrindo novas alternativas de ser e de viver,
tudo isso de maneira deleitosa (AGUIAR; BORDINI, 1988).
Após o término da história, realizamos uma dinâmica simbólica com os
alunos, levamos diversos tipos de frascos de perfumes com diferentes
fragrâncias, pedimos para que cada um deles observasse os frascos,
manuseasse e sentisse os aromas, a fim de que escolhesse qual deles mais o
agradava. Também pedimos aos alunos para que notassem as diferenças
entre os frascos e as fragrâncias, e então iniciamos um diálogo, partindo do
pressuposto de que, assim como os perfumes possuem formas e cheiros
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diferenciados, cada um de nós também tem suas diferenças, sejam elas,


físicas ou de personalidade. Por isso, devemos ter apreço pelas diferenças
encontradas em cada um – as individualidades –, pois elas nos constituem.
Desse modo, precisamos apreciar ao outro e a nós mesmos, pois todos
merecem respeito, independente da forma física, cor, gênero, raça, etnia e
religião.
Na sequência, prosseguimos com um diálogo sobre a história contada
no livro, comentamos os elementos da narrativa a partir da estrutura do texto e
suas ilustrações, realizamos perguntas para que cada um pudesse emitir sua
opinião, seu modo de pensar, e suas impressões sobre a história e o que mais
gostaram, ou seja, qual parte acharam mais interessante, com quem se
pareciam os personagens, se algum dos personagens lembrava alguém que
eles conheciam. Também, falamos sobre as qualidades da Menina Bonita,
destacamos seu papel de heroína da narrativa, perguntamos qual seria o
motivo do coelho querer ter uma cor igual à dela. Aproveitamos as respostas e
perguntamos com quem eles se pareciam, como eram os seus parentes e,
afinal, o que entenderam da história.
Na discussão também abordamos questões relacionadas à valorização
do ser humano como um todo, através de uma reflexão que compreendesse as
semelhanças e diferenças étnicas, sociais e culturais, buscando na cultura afro-
brasileira, bem como em toda a população do nosso país, os mais variados
tipos de beleza, com intuito de acabar com os padrões estereotipados, ditados
pela indústria midiática.
Apesar da pouca idade das crianças, elas não precisaram
necessariamente compreender expressões como ―consciência negra‖,
―diversidade afro-cultural brasileira‖ para conseguirem conversar sobre o foco
central da história. Pelo debate, foi possível estabelecer uma comunicação que
colaborasse para a desconstrução do preconceito e promoção de uma postura
antirracista.
A última atividade desenvolvida em nossa recepção foi a montagem
coletiva de um cartaz que mostrasse pessoas com características diversas.
Distribuímos várias revistas e pedimos para que cada um deles recortasse e
colasse na cartolina a pessoa escolhida, intitulamos o painel de ―Viva as
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diferenças‖. Com essa atividade percebemos a compreensão dos alunos em


relação à nossa proposta, pois obtivemos um cartaz multiétnico. Após o
término do cartaz ressaltamos mais uma vez a importância do respeito às
diferenças e à diversidade étnico-cultural que há em nosso país.
Acreditamos que o trabalho com a obra Menina Bonita do Laço de Fita
(1986), pôde contribuir para o desenvolvimento dos princípios de dignidade do
ser humano, da participação, da criticidade, da responsabilidade, da
solidariedade, da compreensão de saberes diversificados e ainda na difusão do
conhecimento para o debate acadêmico sobre a formação do pesquisador e
mediador de leitura.

Considerações Finais

Com a recepção da obra Menina Bonita do Laço de Fita, de Ana Maria


Machado (1986), pudemos detectar o papel da literatura como uma fonte
geradora de conhecimentos que elevam o homem, influenciando o seu olhar a
partir dos problemas sociais com os quais nos deparamos diariamente. O livro
pode ser uma boa sugestão para trabalharmos atividades a fim de ―[...] tornar o
homem mais compreensivo e aberto para a natureza, sociedade, e o
semelhante‖ (CANDIDO, 1995, p. 247).
Uma questão tão importante quanto a igualdade racial não pode ser
deixada de lado, mas infelizmente esta é uma realidade que nem sempre
esteve presente em nossa literatura, por isso acreditamos que o livro de Ana
Maria Machado (1986) pode enaltecer a identidade negra, trazendo resultados
positivos no que diz respeito às questões da igualdade racial. Além disso, trata-
se de um livro dotado de valor estético, pautado pelo humor e voltado para o
público infantil. Seu enredo permite à criança refletir sobre questões
indentitárias e, por meio da exposição à linguagem literária, desautomatizar
suas percepções sobre os usos da língua, bem como sobre histórias infantis,
vistas em geral como aborrecidas, pois moralizantes.Sendo assim, através da
realização desse trabalho, constatamos que a literatura infantil pode ser
considerada uma ferramenta indispensável no combate ao preconceito, bem
como na ampliação de horizontes de expectativa.

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Enfim, a partir da história Menina Bonita do Laço de Fita, de Ana Maria


Machado (1986), pudemos trabalhar com o tema respeito às diferenças e identidade,
atingindo assim o objetivo de ampliar o conhecimento dos estudantes, apresentando a
abundância da diversidade étnico-cultural brasileira e a apropriação de valores, como
aceitação de si mesmo e o respeito ao outro.

Referências

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ANDRADE, Marcelo. A diferença que desafia a escola: apontamentos iniciais sobre a


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Kretschmer. São Paulo: Ed. 34, 1996.

______. O ato da Leitura: uma teoria do efeito estético. Trad. Johannes Kretschmer.
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JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad.
Sérgio Tellarolli. São Paulo: Ática, 1994.

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SANTOS, Ivone Aparecida dos. Diversidade na Educação: uma prática a ser


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<http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/pde/arquivos/2346-6.pdf>. Acesso em:
jul. 2017.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

PROTAGONISTAS DE LYGIA BOJUNGA ―EM TRÂNSITO‖

Berta Lúcia Tagliari Feba, FAPEPE, A literatura juvenil e jovens leitores

Considerações Iniciais

As personagens de Lygia Bojunga vivenciam conflitos ao longo de sua


trajetória que lhes propiciam um amadurecimento psicológico e um aprendizado sobre
a vida. Para expressar a fase de mudanças pela qual as personagens passam, como a
entrada na adolescência e a busca de si, este trabalho apropria-se da expressão "em
trânsito" feita pelo narrador à personagem Petúnia do livro A Cama e tem como
objetivo refletir acerca dos contornos que a caminhada existencial das personagens
ganha na obra, por meio da análise da fase de transição que percorrem e da análise
dos motivos que desencadeiam a turbulência de seus sentimentos. Para tanto,
centralizamos nossos comentários nos protagonistas Petúnia, de A Cama (1999),
Raquel, de A bolsa amarela (1976), e Lucas, de Seis vezes Lucas (1995), por viverem
uma crise de identidade devido ao desrespeito por parte dos adultos à sua condição
de criança e, apesar disso, superarem suas dificuldades e resolverem seus conflitos
interiores com autonomia. Trata-se de um recorte da pesquisa de doutorado, vinculada
ao Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Estadual de Maringá, que
levou à leitura da obra completa de Lygia Bojunga, ao levantamento exaustivo de
dados acerca das personagens que povoam as histórias e à compreensão do modo
como tais seres são construídos.

A trajetória das personagens


Na obra de Bojunga, a vivência mais recorrente é a de equilíbrio positivo no
desfecho da trama, com frequência de 39,2%, e ajuda a compreender sua
configuração. Cruzando o desfecho das personagens com sua idade, é notável que
crianças e jovens (infância, adolescência, juventude) ocupam 30 dos 56 registros do
equilíbrio positivo, isto é, 53,57% do total, e que 8, ou seja, 14,28% seja bastante
expressivo para a quantidade daquelas que passam de uma fase para outra, que têm
548

múltiplas idades, o que revela que as personagens amadurecem em sua trajetória e


que têm final otimista.
Nessa perspectiva, a expressão "em trânsito", inserida no título deste trabalho,
provém de uma referência feita pelo narrador do livro A Cama para a personagem
Petúnia ao expressar a fase de mudanças pela qual a garota está passando, como a
saída da infância e a entrada na adolescência, a paixão por Tobias, a luta para
alcançar o objetivo de resgatar o móvel, a busca de si mesma. Assim como Petúnia,
outros protagonistas das narrativas de Bojunga passam por modificações ao longo de
seu percurso, tais como Raquel e Lucas. Tais transformações, rumo ao
amadurecimento, aproximam os textos do que se conhece como narrativas de
formação e da concepção de bildungsroman.
Segundo Moisés (2010, p. 63), o bildungsroman, em português romance de
formação, caracteriza-se por expor "experiências que sofrem as personagens durante
os anos de formação ou de educação rumo da maturidade."
Para Maas (2000, p. 14), a concepção de "ideal de aperfeiçoamento humano",
associada ao bildungsroman, tornou-se fundamental para a tradição crítica do
subgênero literário e influenciou abordagens que se seguiram. Assim, embora tenha
se originado em contextos histórico e geográfico específicos do final do século XVIII na
Alemanha, o tratamento temático dessa forma romanesca aproxima-se do que temos
percebido em publicações da literatura infantil e juvenil.
Ceccantini (1993) salienta essa afinidade ao analisar Vida e paixão de
Pandonar, o cruel, de João Ubaldo Ribeiro, a partir de três eixos: o assunto do livro,
cujo enredo apresenta um adolescente que sente emoções novas; o final aberto da
narrativa; e a natureza autobiográfica da obra do autor. Ceccantini inaugura essa
reflexão e ainda ratifica a necessidade de pesquisas que aproximem os dois campos
de estudo.
Outros trabalhos atualmente têm focalizado a convergência dessas
modalidades (CECCANTINI, 2000; CRUVINEL, 2004, 2009; MARTHA, 2010a, 2010b)
e têm revelado as mudanças vividas pelos heróis no desenrolar das narrativas. Na
leitura que temos empreendido, observamos que as personagens de Bojunga também
passam por dificuldades, mas superam-nas e amadurecem, seguindo os preceitos de
uma narrativa de formação. Não se trata neste momento de encaixar a obra da autora
em um molde, mas de refletir acerca das contribuições da estrutura interna da
narrativa e de um modo de ler literariamente, observando que se faz presente na obra
o fenômeno de apresentar personagens que vivenciam sentimentos ainda nunca

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experimentados e que se desenvolvem emocionalmente após passar por tempos


difíceis.
Aproximando o conceito do bildungsroman da produção para crianças e jovens,
estamos diante de narrativas de formação, ou seja, textos

que tratam do desabrochar sentimental, da aprendizagem


humana dos protagonistas, adolescentes que aprendem ao
conhecer a si mesmos e aos outros, penetrando, [...] com muita
dor e dificuldade, nos segredos da existência. (MARTHA,
2010a, p. 127-128).

Nesse contexto, as personagens vivenciam "situações-limite" (MARTHA,


2010a, p. 121), ou seja, momentos que assinalam, "no plano ficcional, etapas da
evolução vividas pelo ser humano e que possam traduzir modos de preservação da
identidade individual e sociocultural sem se abster da participação de universalização."
(p. 121-122). Nessa abordagem, encontra-se, portanto, a abrangência da função da
literatura: a leitura do mundo realizada por parte do leitor.
Para Hunt (2010), o livro é visto como dominador das massas ou libertador da
mente, tendo em vista o efeito que pode produzir sobre os leitores, de modo que a
diferença entre esses dois grupos emerge da ―forma inovadora‖ (p. 216) e não
somente da temática que, por sinal, pode ser também percebida em outras mídias.
Como estudiosos da área, desejamos nos atentar aos livros de influência libertadora
porque podem gerar mudança de comportamento, como o são A Cama, A bolsa
amarela e Seis vezes Lucas pela construção de seus protagonistas. Tais livros são
―ampliadores da mente [...] em termos do mundo que os cria e do mundo que os
circunda.‖ (HUNT, 2010, p. 217).
Petúnia (A Cama) está em busca de autoconhecimento. Uma das situações
que a incomodava era dividir o quarto com Rosa, sua irmã mais velha, pois gostava de
ler à noite e não queria cama encostada na janela. Ter de ir para o quarto da mãe sem
seu consentimento, entretanto, foi bem pior:

Depois que o pai da Rosa e da Petúnia morreu, um belo dia a


Petúnia voltou da escola e encontrou tudo que era dela (cama,
penteadeira, tudo) no quarto da Elvira: tinha ficado resolvido
que a Petúnia ia dormir lá. A Petúnia ficou danada: como tinha
ficado resolvido, se ela não tinha resolvido nada?!
— A Rosa é oito anos mais velha que você, Petúnia...
— Problema dela!
— ... tá na idade de ter um quarto só pra ela. Quando você
crescer, você também vai ter um quarto só pra você. (A Cama,
p. 108, grifo da autora)
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Petúnia "achou ruim ser criança" (A Cama, p. 108) porque não era respeitada
nessa condição, assim como, cada qual a seu modo, também não o são Raquel (A
bolsa amarela), Lucas (Seis vezes Lucas), Rebeca ("Tchau", Tchau), Sabrina (Sapato
de salto). A contra gosto, fica um período no quarto da mãe, mas rebela-se e muda-se
para o Caixote, apelido dado ao depósito do apartamento onde moravam. Todos os
entulhos são distribuídos para a irmã e a mãe, o que lhe permitiu preencher o novo
espaço com roupas, livros, rádio, máquina fotográfica, pôster na parede, deixando-o
do seu jeito. A situação desconfortante é superada pela protagonista com ironia e
humor, então o refúgio se converte na conquista de um momento para reflexão sobre
si mesma:

[...] se sentiu tantas Petúnias, que ficou sem saber em qual que
ela pensava.
Tinha a Petúnia-aliviada: eu fecho a porta lá da cozinha e nem
Jesus Cristo vai me fazer escutar a mamãe roncar.
Tinha a Petúnia-liberada: pronto, tenho um quarto só pra mim,
faço o que eu quero aqui dentro e, se eu não tô a fim de
ninguém, penduro um aviso na porta: FECHADO PARA
MEDITAÇÃO.
Tinha a Petúnia-humilhada: pô! onde é que eu vim parar?
Tinha a Petúnia-revoltada: tá vendo no que dá ser criança? a
Rosa lá no bem-bom e eu aqui encaixotada.
[...]
E tinha a Petúnia-cansada-e-com-sono depois de tanta
decisão, de tanta carregação de coisas pra cá e pra lá.
Resolveu que a melhor era ficar com esta última: apagou a luz
e tratou de dormir. (A Cama, p. 112-113)

O tempo passa e Petúnia sente "sofrer de claustrofobia", por isso um dia dorme
no quarto da mãe, outro dia na sala, até que

Acabou concluindo que vivia EM TRÂNSITO. Isso consolou ela


uns dias: achava bonito dizer que vivia em trânsito. Começou a
elaborar em torno daquele status. Acabou concluindo que: vivia
em trânsito RUMO A UM DESTINO IGNORADO. Achou ainda
mais bonito. [...] (A Cama, p. 114, grifos do original)

Petúnia estava em trânsito: saindo da fase da infância e experimentando as


sensações da primeira paixão ao conhecer Tobias, estava também encurralada pelos
mais velhos e precisava mudar. Assim, o dilema de desejar um espaço próprio na
casa é uma metáfora de um dilema interior vivido por ela.

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Ansiosamente, aguardava cartas e telefonemas do garoto, planejava roupa e


sapato para usar, bem como frases para falar no encontro que teriam. O "primeiro-
encontro-a-sós" (A Cama, p. 134), porém, não foi como o esperado porque toda a
tristeza de Tobias por não conseguir resgatar a cama para sua família foi apresentada
com muito choro, transformando a ocasião em um momento de consolo para o garoto,
bem como da percepção de Petúnia do quanto gostava dele. A chuva e o abraço
selaram o compromisso afetivo e a promessa da garota de conseguir o móvel para ele.
O móvel, motivo desencadeador da narrativa, é entregue a Tobias por Petúnia.
Fecha-se um ciclo, mas indica-se o surgimento de um novo: o da continuidade do
relacionamento entre eles. A chuva e o abraço, presentes neste encontro, simbolizam
a passagem de uma fase e o surgimento de novas aspirações:

Roncou uma trovoada. Tipo da trovoada a calhar pra Petúnia,


num susto, se abraçar com Tobias. O susto passou logo, mas o
abraço demorou.
— Te amo — ela disse baixinho no ouvido do Tobias. [...]
[...]
A cara do Tobias se abriu numa expectativa feliz. [...]

Tobias ficou um tempo parado saboreando a cena que tinha


acabado de acontecer [...] pensando com gosto no abraço da
Petúnia, pensando com gosto igual na hora de ouvir Zecão
chegando em casa. A cama tá com a gente de novo, pai! [...] e
quando eu casar com Petúnia ... Não, ele ainda não ia falar da
Petúnia. Um dia, ele contava pro Zecão. Mais tarde. Agora era
só falar da cama e pronto. (A Cama, p. 217-218)

Como notamos, o espaço doméstico, que poderia ser associado a aconchego e


proteção para possibilitar sensação de segurança à personagem, nem sempre tem
essa configuração. Petúnia demonstra seu desconforto pelo fato de ser
incompreendida, assim como ocorre com Angélica (Angélica), que acha que já nasceu
sobrando, drama semelhante àquele vivido por Raquel (A bolsa amarela).
Raquel, que se considera diferente de todos, tem um irmão dez anos mais
velho e duas irmãs. Os membros da família importunam a menina, são autoritários,
fazem-na passar vergonha, dirigem-se a ela subestimando sua inteligência e
desaprovam suas criações ficcionais.
Um fato preponderante que propicia mudanças em Raquel é a visita à Casa
dos Consertos porque ela percebe diferenças no convívio entre a menina Lorelai, o
pai, a mãe e o avô quando os compara ao convívio familiar de seu lar. Havia livros
pelas paredes, música boa de se ouvir do relógio, riso, afetividade e cooperação entre

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os seres que trocam de função, porque o Avô, após fazer diversos reparos em um
mesmo dia, começa a estudar no lugar da menina Lorelai, o Pai vai cozinhar e a Mãe
inicia a solda de uma panela em uma nítida supressão de divisão estanque entre
papéis de adultos e crianças ou de homens e mulheres. Essa configuração sugere
uma atmosfera bastante positiva para o local.
Esse ambiente gera identificação de Raquel e nos leva a inferir que a
personagem almeja mudanças. Além disso, a crítica à família que não compreende a
criança é constante, já que toda a narrativa é apresentada do ponto de vista da
protagonista que rejeita aquela postura inflexível da qual faz parte.
No mercado editorial há narrativas que retratam uma família que privilegia o
poder do adulto sobre a criança. Aquele, pois, regula a vida familiar e dita as regras a
serem seguidas. Esta, por sua vez, submete-se às determinações. Por vezes, a
criança busca romper com esse laço ao sair de casa para viver alguma aventura em
sinal de liberdade, no entanto, sempre retorna ao lar porque é incapaz de resolver
suas angústias, tamanha a dependência de seus genitores. Prevalece nesse modelo
de família a euforia (ZILBERMAN, 1998), portanto, a sensação de bem estar ao
confortar-se nos braços dos adultos.
Diferentemente deste padrão narrativo infantojuvenil, as narrativas
bojunguianas apresentam um modelo emancipatório (ZILBERMAN, 1998) de
representação da família. As relações bipartidas de sujeição da criança sob o poderio
adulto são suprimidas e a saída do ambiente doméstico promove um crescimento, no
que se refere ao conhecimento da realidade. Portanto, deflagra trajetórias vivenciadas
pelas crianças ou adolescentes e propicia mudança interior.
As três vontades de Raquel — de ser menino, de crescer e de ser escritora —
são o grande dilema da menina, por isso, geravam suas aflições. Em um dos
momentos, Raquel deixa clara sua indignação pelo fato de não ter os mesmos direitos
ditados para os meninos e em discussão com seu irmão, desabafa:

— [...] Olha: lá na escola, quando a gente tem que escolher um


chefe pras brincadeiras, ele sempre é um garoto. Que nem
chefe de família: é sempre o homem também. Se eu quero
jogar uma pelada, que é o tipo do jogo que eu gosto, todo
mundo faz pouco de mim e diz que é coisa pra homem; se eu
quero soltar pipa, dizem logo a mesma coisa. É só a gente
bobear que fica burra: todo mundo tá sempre dizendo que
vocês é que têm que meter as caras no estudo, que vocês é
que vão ser chefe de família, que vocês é que vão ter
responsabilidade, que — puxa vida! — vocês é que vão ter
tudo. Até pra resolver casamento — então eu não vejo? — a
gente fica esperando vocês decidirem. A gente tá sempre
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esperando vocês resolverem as coisas pra gente. Você quer


saber de uma coisa? Eu acho fogo ter nascido menina. (A
bolsa amarela, p. 16-17)

Raquel quer fazer o que lhe agrada e não aquilo que lhe é limitado ou negado
por ser menina. Desse modo, além de fazer críticas à situação solidificada
culturalmente, Raquel vai percebendo que não adianta tentar ser outra ou levar em
consideração o que dizem estar correto porque é divertido ser menina e a mudança
deve ser interior:

[...] falei pro Afonso:


— Sabe? Disseram que eu não podia soltar pipa.
— Por quê?
— Falaram que era coisa de garoto.
— Ué!
— Tá vendo? Falaram que tanta coisa era coisa só pra garoto,
que eu acabei até pensando que o jeito era nascer garoto. Mas
agora eu sei que o jeito é outro. Vamos lá na praia soltar pipa?
(A bolsa amarela, p. 126)

São colocadas em debate, então, divisões naturalizadas pela sociedade e,


devido ao ponto de vista da criança e do jovem tomado pelo narrador, é delineada
uma orientação no texto a ser seguida pelo leitor na leitura que, por seu turno, tende a
refletir sobre o que aflige tais personagens e o que ocorre na realidade.
Lucas (Seis vezes Lucas) enfrenta seus medos e segue uma trajetória de
conquista de confiança, bem como de compreensão de si mesmo e do seu lugar no
núcleo familiar.
A primeira barreira a romper é a do medo de ficar sozinho em casa à noite. Vê-
se refletido no espelho, conversa consigo mesmo e decide mudar:

Apertou a boca, ele não ia deixar sair soluço nenhum; apertou


o olho: lágrima também não saía, pronto! Ele ia ser um cara pro
Pai não botar defeito; ele ia ser um herói! O Pai não tinha dito,
herói é quem vence os medos que tem? Tinha ou não tinha?
Abriu o olho. Não, o pai tinha falado, herói é quem conquista os
medos que tem. Franziu a teste: vence ou conquista? Ficou
parado querendo se lembrar. E se lembrou que no meio de
uma discussão a Mãe tinha gritado pro Pai, você é um
conquistador! E ele tinha perguntado pro Pai, o que que é
conquistador, hem pai? [...] (Seis vezes Lucas, p. 13-14, grifos
do original)

Outro conflito interior de Lucas é sofrer com o autoritarismo de seu Pai e sentir
ciúmes da Mãe. A crise, nessas relações, faz-se pela desconfiança que a Mãe sente
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de estar sendo traída pelo esposo, o que leva Lucas a presenciar diversas discussões
e a ir construindo uma visão sobre esses adultos.
Em diversas circunstâncias a indiferença dos sentimentos dos pais pelo garoto
vai se comprovando. Uma delas refere-se ao abandono de seu cachorro Timorato no
meio de uma estrada, pela intransigência do pai e pela resignação da Mãe:

— O Timorato, pai! — o Lucas gritou.


[...]
— Esquece o Timorato, tá bem, Lucas! Esquece!!
O Lucas se virou. De joelho no assento, de mão limpando o
vidro embaciado, ele via o Timorato correndo, correndo, louco
pra alcançar o carro. [...]
[...] e se ele pedia, pára? E se gritava, pára! e abria a porta e
saía correndo e encontrava o Timorato e os dois iam embora?
embora pra sempre, pra nunca mais voltar! Olhou pra Mãe: por
que que ela não dizia nada? (Seis vezes Lucas, p. 50-51)

Essa situação se torna ainda mais dramática quando pensamos na relação


amigável entre o garoto e o animal. É possível notar pelo ponto de vista do cachorro o
modo de pensar a respeito dos adultos, comprovando o distanciamento das figuras
humanas que circundam o Lucas. A personificação de Timorato sugere que ele
corresponde às expectativas de companheirismo de que Lucas necessita diante
daquele contexto opressor em que vive.
Assim, à medida que reflete acerca das situações injustas que vivencia, Lucas
vai adquirindo consciência crítica. Não se conforma em ter de sair da escola de artes e
mudar-se de casa devido a uma separação momentânea dos pais, motivada por uma
suposta infidelidade. Revela, acima de tudo, muita decepção ao desconfiar de um
caso de amor entre seu Pai e a professora de artes Lenor, por quem Lucas estava
encantado.
Essa percepção desencadeia muitos desapontamentos de Lucas perante os
adultos, levando o garoto a questionar o que presencia. Uma desilusão refere-se à
ideia de que seu Pai não pode ser aquele homem admirável como imaginava, mas sim
um mentiroso, uma vez que estava mantendo um relacionamento com Lenor e
continuava enganando a Mãe. Esta, por sua vez, reconcilia o casamento e simula não
se afetar mais com a situação, uma vez que continua servindo aos caprichos do
esposo. Quanto à Lenor, verbaliza que mantém encontros com o Pai do garoto.
Nesses moldes, ao final de suas jornadas, fica claro que os adultos não sofreram
mudanças, causando revolta em Lucas que está interiormente muito mais fortalecido
para poder conviver nesse ambiente:

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— Mas, sabe, meu filho — e a Mãe se virou pro Lucas —, me


falaram de uma escolinha de arte muito melhor do que aquela
que você estava. [...]
[...]
— Não: eu não quero trocar de curso; eu quero voltar pr'aquela
mesma escola de arte e pra mesma professora que eu tinha
antes, a Lenor. — E ficou espantadíssimo de ter ouvido a voz
dele falar com tanta firmeza. (Seis vezes Lucas, p. 122-124)

Lucas estava mudado. Era capaz de expor o que pensava, insubordinando-se,


e conclui: "pensei que gente grande sacava melhor." (Seis vezes Lucas, p. 133). Em
seu estágio atual, alcança maturidade à medida que compreende seus sentimentos e
a situação que o rodeia, pois não pode esperar muito desses adultos com crises de
consciência, incapazes de resolver seus conflitos.

Considerações Finais

As personagens bojunguianas deparam com infortúnios que levam a um


processo de crescimento, tendo em vista que no final da narrativa estão modificadas,
pois compreendem os seus sentimentos, aprendem a lidar com a situação e têm
consciência da opinião dos adultos diante do mesmo fato. Portanto, ainda que não
possam modificar o fato que desencadeou todo o conflito emocional, as personagens
sabem que a transformação deve ser do seu modo de pensar e agir diante dele, sem
esperar que as circunstâncias voltem ao estágio confortável anterior. Por isso, as
personagens de Bojunga têm na vida um "enfrentar contínuo de mudanças,
sustentadas pela fé no futuro" (JUNQUEIRA, 1985, p. 180) porque viver configura-se
como um "eterno fluir de mudanças" (p. 180).
Petúnia, Raquel e Lucas, portanto, vivem em trânsito. Aprendem sobre si
mesmos e sobre aqueles que os rodeiam em um contínuo processo de superação de
dificuldades e amadurecimento. Aprendem em histórias que narram processos de
formação e que podem transferir ao leitor experiências vivenciadas pelas personagens
ao identificar-se com elas durante a leitura. As personagens, assim, têm uma
representação social e cultural múltipla, pois, ao longo de sua trajetória, vivenciam
conflitos que lhes propiciam um amadurecimento psicológico e, por conseguinte, que
lhes proporcionam um aprendizado sobre a vida.

Referências

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______. Angélica. 23. ed. Ilustrações Vilma Pasqualini. Rio de Janeiro: Casa Lygia
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1993.
CRUVINEL, Larissa Warzocha Fernandes. Narrativas juvenis brasileiras: em busca
da especificidade do gênero. 2009. 188p. Tese (Doutorado em Letras e Linguística) —
Faculdade de Letras. Universidade Federal de Goiás, Goiás, 2009.
CRUVINEL, Larissa Warzocha Fernandes. O Bildungsroman e o processo de
aprendizagem em obras de Lygia Bojunga Nunes. 2004. 104p. Dissertação
(Mestrado em Letras e Linguística) — Faculdade de Letras — Universidade Federal de
Goiás, Goiânia, 2004.
FEBA, Berta Lúcia Tagliari Feba. A representação da personagem em Lygia
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(Doutorado em Letras) — Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Universidade
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Cosac Naify, 2010.
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Paulo: Summus, 1985. (Novas buscas em educação; 24) p. 171 - 180
MAAS, Wilma Patrícia Marzari Dinardo. O cânone mínimo: o bildungsroman na
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MARTHA, Alice Áurea Penteado, No olho do furacão: situações-limite na narrativa
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Penteado (Org.). Heróis contra a parede:estudos de literatura infantil e juvenil. São
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MARTHA, Alice Áurea Penteado.Narrativas de língua portuguesa: temas de fronteira
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Portuguesa — Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas. Évora:
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http://www.simelp2009.uevora.pt/pdf/slt59/02.pdf Acesso em 19/05/2015
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 19. ed. São Paulo: Cultrix, 2010.
ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. 10. ed. São Paulo: Global,
1998.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

A UM BRUXO COM CARINHO: MACHADO DE ASSIS SE


APROXIMA DO JOVEM LEITOR

Camila Augusta Valcanover (UFPR)


Elisa Maria Dalla-Bona (UFPR)
Eixo Temático: A literatura juvenil e jovens leitores

Considerações Iniciais

Como aproximar o jovem leitor da Literatura? Como aproximar leitores que


não conhecem a experiência da linguagem machadiana de obras como Dom
Casmurro, publicado em 189990? A atual ficção histórica brasileira apropria-se do
cânone Machado de Assis, utilizando como matéria prima elementos biográficos e
artísticos. As obras Machado e Juca, de Luiz Antonio Aguiar, Ciumento de carteirinha,
de Moacyr Scliar, Dona Casmurra e seu tigrão, de Ivan Jaf e Dom Casmurro e os
discos voadores, de Lucio Manfredi, promovem a revisitação do cânone.
Este trabalho explora as quatro obras supracitadas, segundo a perspectiva de
Marilene Weinhardt no artigo: ―Ficção Histórica Contemporânea no Brasil: Uma
proposta de sistematização‖, em que a pesquisadora classifica a ficção histórica
brasileira contemporânea, em dez modalidades, dentre as quais ―Personagem da
História Literária e Diálogo com a História Literária‖.
São essas categorias propostas por Weinhardt que nos interessam. As obras
que analisaremos trafegam nessas duas modalidades, pois na medida em que
ficcionalizam Machado de Assis, no caso Machado e Juca, pertencem à categoria de
―Personagem da História Literária‖ e, enquanto ficcionalizam personagens literárias
retiradas de sua obra genitora, no caso, Ciumento de Carteirinha,Dona Casmurra e
seu tigrão e Dom Casmurro e os discos voadores e a própria obra de Aguiar,
pertencem à categoria de ―Diálogo com a História Literária‖, pois estabelecem
intertextualidades com o texto canônico. A metodologia usada para analisar as obras
literárias será a comparação de elementos textuais e paratextuais.

90
Em dezembro de 1899 o livro fica pronto em Paris. Em janeiro de 1900 chega ao Rio de
Janeiro.
558

Aproximações possíveis91

A influência que Machado de Assis recebera de Camões, Sterne, Almeida


Garrett e Xavier De Maistre é questão pacífica nos estudos literários.
Em ―Aquém-Além-Mar: Presenças Portuguesas em Machado de Assis‖, tese do
professor Marcelo Sandmann, docente da Universidade Federal do Paraná,
encontramos expostos aspectos das relações pessoais e literárias entre Machado de
Assis e os portugueses. Verdadeiro trabalho de garimpagem, na tese de Sandmann
são reveladas as influências recebidas por Machado de Assis, identificáveis em
recursos como a citação e alusão, de escritores como Camões, Almeida Garrett,
Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco e Eça de Queiroz.
Assis, por meio das orientações que o narrador Brás Cubas faz no prólogo da
quarta edição das suas memórias, lembra-nos das influências de nossas leituras: [...]
―Toda essa gente viajou: Xavier De Maistre à roda do quarto, Garrett na terra dele,
Sterne na terra dos outros. De Brás Cubas se pode talvez dizer que viajou à roda da
vida.‖ (ASSIS, 1999, p. 28).
Seguindo a orientação de que uma obra célebre influencia a literatura,
podemos dizer que toda essa gente viajou: Luiz Antonio Aguiar, Moacyr Scliar, Ivan
Jaf, Lucio Manfredi e tantos outros escritores viajaram à roda de Machado de Assis.
Joaquim Maria Machado de Assis há muito deixou de ser o ―Bruxo do Cosme
Velho‖. Atualmente, vaga por obras inusitadas, que lhe dão vida. Vida longa ao
cânone!
Machado e Juca, de Luiz Antonio Aguiar, publicado inicialmente em 1999 e
relançado em 2008, traz a personagem Juca, indo ao encontro do tempo vivido por
Machado de Assis. Na obra de Aguiar, a figura de Juca funciona como um duplo do
escritor.
Em ―Instinto de Nacionalidade‖, publicado em março de 1873, Assis afirmou
que uma cultura só pode desenvolver-se no diálogo que faz com os outros textos:

[...] Cada tempo tem o seu estilo. Mas estudar-lhes as formas mais
apuradas da linguagem, desentranhar deles mil riquezas, que, à força
de velhas se fazem novas, - não me parece que se deva desprezar.
Nem tudo tinham os antigos, nem tudo têm os modernos; com os
haveres de uns e outros é que se enriquece o pecúlio comum. [...]
(ASSIS, 1938, p. 809).

91
Algumas reflexões aqui apresentadas fazem parte da Dissertação de Mestrado em Estudos
Literários da autora, defendida em 2010 na Universidade Federal do Paraná.
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Trata-se de um jogo intertextual entre Machado de Assis e seus precursores,


entre Machado de Assis e seus seguidores. Inúmeras são as leituras da obra
machadiana. As retomadas dos clássicos podem agradar ou não. O que é inegável é a
necessidade de manter-se um diálogo com esse passado, representá-lo.
Desconstruções que uma obra permite que o leitor faça, transformando-a.
Na obra de Luiz Antonio Aguiar não encontramos apenas a ficcionalização de
Machado de Assis, mas de Carolina Xavier de Novais, do Conselheiro Aires, de
Quincas Borba, Simão Bacamarte. As personagens e a figura do escritor misturam-se,
tornando-se todas iguais na ficção. As personagens Machado de Assis e Carolina
convivem com o Conselheiro e Quincas Borba fora da mente imaginativa do escritor
Machado de Assis.
A primeira edição de Machado e Juca é de 1999, quando pertencia à Coleção
Jabuti. Aproveitando-se das comemorações do ano Machado de Assis, 2008, a obra
foi relançada e recebeu o prêmio Malba Tahan como melhor livro informativo de 2008,
pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. Tudo colabora para a leitura
juvenil: ricas ilustrações, espaçamento entre linhas, proposta de trabalho que auxilia
na compreensão do texto após a leitura. Até mesmo a apresentação do autor, Luiz
Antonio Aguiar, é uma tentativa de aproximar leitor, autor e obra.
Século XIX. O Rio de Janeiro é uma cidade praticamente sem infraestrutura.
Ruas sem calçamento, iluminação precária. É neste cenário que Luiz Antonio Aguiar
colocará o engraxate e carregador de compras Juca, Machado de Assis e Carolina
Xavier de Novais.
As histórias do núcleo social de Juca envolvem Machado de Assis e sua
esposa. Machado envolve-se numa história de suspense, onde Malu, patroa da mãe
de Juca, desaparece. Para desvendar o mistério, Machado e Juca aventuram-se
espionando Tiago Matacavalos, marido de Malu. Espionagem, invasão de residência,
até mesmo pular uma janela, Luiz Antonio Aguiar permite que Machado de Assis e o
garoto façam. Com a convivência, Juca vai conhecendo e afeiçoando-se ao escritor,
sempre se mantendo intrigado com a quantidade de livros que Machado de Assis tem
em sua casa e por sua figura sisuda. Em Machado e Juca, temos a história de Juca,
não a história de Machado de Assis.
Em Machado e Juca, a imaginação de Luiz Antonio Aguiar projeta-se sobre os
textos críticos que tratam da vida do autor e dos costumes e acontecimentos do Rio de
Janeiro machadiano.
Conferir um caráter subjetivo à narrativa de uma figura histórica (Machado de
Assis), aproximar o discurso ficcional do compromisso historiográfico, descrever
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ficcionalmente Machado de Assis e o Rio de Janeiro do século XIX evidenciam o


caráter híbrido que caracteriza o discurso histórico e o discurso ficcional.
Em Machado e Juca, há uma relação entre a sociedade do século XIX,
personagens históricas e ficcionais e acontecimentos, objetivando representar
ficcionalmente e com verossimilhança o momento do encontro entre Machado de
Assis e Juca. Temos o aproveitamento da biografia machadiana para construir e
reconstruir alguns episódios da vida do escritor. Há uma relação de similaridade entre
a personagem Machado de Assis e a personagem Juca.
Valentim Facioli (1982) ao elaborar a biografia intelectual de Machado de Assis,
―Várias histórias para um homem célebre‖, presente no volume organizado por Alfredo
Bosi, reafirma o esforço do jovem Joaquim Maria Machado de Assis para ascender
socialmente. A mesma obstinação que a personagem Juca apresenta ao longo da
narrativa, o mesmo esforço para a migração de classe social que o escritor fizera,
encontramos na ficção de Aguiar. Juca desempenha um papel provocativo dentro do
conjunto de obras que ficcionalizam Machado de Assis. Por meio da figura de Juca é
ficcionalizada a figura do jovem Machado de Assis.
O encontro entre Machado e Juca, Machado e o Conselheiro, Machado e
Quincas Borba, instiga o leitor. De acordo com Walter Mignolo, Machado de Assis é
uma

E[e]ntidade imigrante pois muda de um mundo onde o reconhecemos


como entidade existente (aceitávamos sua existência antes que fosse
escrito o romance) para um mundo ficcional (nós o aceitamos no
romance como personagem de ficção e pessoa histórica, ao mesmo
tempo. (MIGNOLO, 1993, p. 125-126).

Na classificação adotada por Mignolo, Juca é uma ―entidade nativa‖, pois não o
conhecemos antes do romance.
Até mesmo na relação entre entidades imigrantes e entidades nativas
percebemos o apoio, o entrelaçamento já existente nas relações entre literatura e
história. Nos termos de Mignolo, as entidades imigrantes conferem ―vida‖ às entidades
nativas. Machado de Assis e Carolina Xavier de Novais passam a ser aceitas em
Machado e Juca como personagens de ficção e pessoas históricas, simultaneamente.
Juca deixa de ser apenas ficcional, pois a proximidade com as pessoas históricas
(Machado de Assis e Carolina Xavier de Novais) permite que o garoto adquira
características de pessoa histórica.
É importante notarmos que na aproximação entre entidades nativas e
entidades imigrantes, ocorre o apagamento das feições do ―Bruxo do Cosme Velho‖.
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Em Machado e Juca, a personagem Carolina aparece quase como a Dona Benta de O


Pica-Pau amarelo, de Monteiro Lobato:

- ‗Ora, vejam, Seu Machado!‘, atreveu-se a espevitada. ‗Havia me dito


que o senhor era gago, e, entretanto, fala muito bem...‘ Então,
confesso que respondi gaguejando terrivelmente, mas respondi: ‗A
senhora repare como são as coisas. Também me haviam dito que a
senhora era uma estúpida, no entanto, assim de vista, não parece
tanto‘. (AGUIAR, 1999, p. 44).

Pouco a pouco, o leitor vai rejeitando a imagem sisuda de Carolina e a troca


pela imagem da esposa cômica do escritor irônico:

Já havia aberto mão de tanta coisa. Aos ciúmes de Machado,


concedera raramente sair de casa sozinha. E mesmo achava graça...
‗Eu, com 65 anos!‘, ria-se. ‗E cinco anos mais velha do que ele.‘ E
Machado não a havia proibido de visitar certa amiga, por
desconfianças em relação a um primo desta, um rapazote de vinte
anos, se tanto? Não lhe havia pedido também que não fosse mais às
missas aos domingos? (AGUIAR, 1999, p. 45).

Eis a intimidade criada pelo autor entre o leitor e a pessoa histórica. Luiz
Antonio Aguiar ao criar um romance que apresenta e discute alguns aspectos da vida
de Machado de Assis, permite que seja feito um diálogo entre literatura e história,
possibilitando a ativação das referências intertextuais do leitor.

As intertextualidades na tessitura do texto


Um aspecto essencial à compreensão do texto diz respeito à ativação do
conhecimento prévio, pois é o conhecimento que o leitor tem sobre determinado
assunto que lhe permitirá fazer as inferências necessárias para que possa relacionar
diferentes partes do texto em um todo coerente.
Para Ingedore Koch,

Todos nós já conhecemos o princípio segundo o qual todo texto


remete sempre a outro ou a outros, constituindo-se como uma
‗resposta‘ ao qual foi dito ou, em termos de potencialidades, ao que
ainda será dito, considerando que a intertextualidade encontra-se na
base da constituição de todo e qualquer dizer. Em sentido restrito,
todo texto faz remissão a outro(s) efetivamente já produzido(s) e que
faz (em) parte da memória social dos leitores. (KOCH, 2011, p. 101).

Ao entrar no universo literário, o leitor é inserido no contexto intertextual e


assume um pacto ficcional, conforme é descrito por Umberto Eco:

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O leitor tem que saber que o que está sendo narrado é uma história
imaginária, mas nem por isso deve pensar que o escritor está
contando mentiras. O autor simplesmente finge dizer a verdade.
Aceitamos o acordo ficcional e fingimos que o que é narrado de fato
aconteceu. (ECO, 1994, p.82).

Muito mais que facilitar a aceitação do pacto ficcional, o que a ficção histórica
contemporânea permite é que seja criada uma intimidade entre o leitor e a pessoa
histórica. Entre leitor e cânone, entre verdade e história, entre verdade e literatura.
Em Machado e Juca há inúmeras intertextualidades com a obra machadiana e
outras obras da literatura brasileira. O escritor de 1839 torna-se objeto de estudo para
o leitor contemporâneo, que busca no resgate do passado apresentado na obra,
compreender o mundo em que vive, o passado e o presente e intervir no futuro.
Antecipando os estudos da Estética da Recepção, Antonio Candido, em
Literatura e Sociedade, afirmou que a natureza da obra de arte é ser social, que a
tríade autor/ leitor/obra é indissolúvel:

Na medida em que a arte é [...] um sistema simbólico de


comunicação inter-humana, ela pressupõe o jogo permanente de
relações entre os três, (obra, autor e público) que formam uma tríade
indissolúvel. O público dá sentido e realidade à obra, e sem ele o
autor não se realiza, pois ele é de certo modo o espelho que reflete a
sua imagem enquanto criador. (CANDIDO, 2000, p. 38).

A intertextualidade é um recurso que ressignifica, fortalece a tríade descrita por


Candido. A ligação da obra Machado e Juca, de Aguiar, com o universo ficcional
machadiano é vasta. As referências ao romance Dom Casmurro estão diluídas na
narrativa de Luiz Antonio Aguiar. A primeira ocorrência de intertextualidade presente
no romance, está já no paratexto, na contracapa da obra, quando é revelado ao leitor
a existência das duas personagens: Juca e Machado de Assis:

[...] Juca engraxava calçados, carregava compras, fazia de tudo para


juntar seus tostões. [...] Machado de Assis era uma personalidade da
época. [...] Só um grande mistério para juntar esses dois. [...] E eles
esbarram pelas ruas com os personagens dos livros do escritor:
mortos querendo aparecer, profecias ciganas, filósofos estranhos,
cachorros convencidos de que são gente... [...] (AGUIAR, 1999,
contracapa).

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No capítulo 2, da obra de Aguiar, intitulado ―Rua do Cosme Velho, 1892‖, ao


apresentar a personagem Machado de Assis, o narrador a descreve de modo muito
familiar ao leitor machadiano, estabelecendo nova intertextualidade com a ficção:

Um senhor que somente se poderia chamar de sisudo. Dentro do


bonde, sentava-se muito ereto. Os óculos presos ao nariz, a roupa
impecável, o colarinho rijo, a barba e os bigodes espessos, grisalhos,
rigorosamente aparados, a testa alta, arrogante, tudo em sua
aparência conferia-lhe ainda maior gravidade. De forma que mesmo
os que o reconheciam não tinham coragem de tomar lugar ao seu
lado, muito menos de puxar conversa. (AGUIAR, 1999, p. 14).

Se substituirmos a palavra ―sisudo‖ por casmurro, teremos a explicação para o


motivo pelo qual chamavam Bento Santiago, personagem da obra de Machado de
Assis, de Dom Casmurro:

[..] No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou


alcunhando-me Dom Casmurro. Os vizinhos, que não gostam dos
meus hábitos reclusos e calados, deram curso à alcunha, que afinal
pegou. Nem por isso me zanguei. [...] Não consultes dicionários.
Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe
pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. [...]. (ASSIS, 2002, p.
9).

O capítulo 3, da obra de Aguiar, intitulado ―A cartomante‖, traz nova referência


à ficção machadiana. Primeiro, o título do capítulo é também título do célebre conto de
Machado de Assis. Segundo, ao narrar o episódio do encontro entre Juca e a
cartomante, temos transcrita uma conversa colhida pelo narrador da obra de Aguiar,
que remete ao final descrito no conto machadiano.
A intertextualidade presente no capítulo 6, ―Domingo, dia de pipa‖, ocorre com
a obra O Cortiço, de Aluísio Azevedo. A escolha pela intertextualidade com a obra de
Azevedo justifica-se, pois em 1899, ano em que a narrativa de Machado e Juca
acontece, O Cortiço já estava lançado, pois sua primeira edição data de 1890. Na obra
de Aluísio Azevedo, João Romão é o dono do cortiço. A eficiência da intertextualidade
dependerá da competência do leitor.

[...] João Romão era o português dono do cortiço que ele mesmo
havia levantado, naquele terreno herdado, à custa de expedientes
acobertados pela madrugada – do tipo furtar material de construção
de canteiros de obras, nas residências e logradouros públicos da
vizinhança – e de mourejar, quase de sol a sol, na venda que também
lhe pertencia. E Juca, entre todos os garotos do São Romão, e

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Segundo documentos oficiais esse foi o endereço oficial do casal Joaquim Maria Machado de Assis e
Carolina Xavier de Novais.
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mesmo dos arredores, virava rei quando o papagaio de papel com


suas cores – o negro e o encarnado – ganhava o céu, muito, muito
acima das cabeças e das casas de todos. (AGUIAR, 1999, p. 50).

Em sua narrativa, Aguiar promove uma revisitação tanto à ficção machadiana,


quanto à ficção da escola Realista. A cadeia de intertextualidade espalha-se por todo o
romance de Luiz Antonio Aguiar.
Como no romance machadiano, a personagem Quincas Borba surge de várias
formas: é filósofo exótico e cão. No capítulo 16, da obra de Aguiar, ―Os espiões‖,
temos uma clara referência à obra machadiana: ―- Ao vencedor, as abóboras!‖
(AGUIAR, 1999, p.82). Em Quincas Borba, romance machadiano, o aforismo ―ao
vencedor as batatas‖, aparece no capítulo VI, quando uma parábola de uma tribo
faminta será comprovada com a própria história da personagem Rubião. A que se
referir também, a intertextualidade com as Memórias Póstumas de Brás Cubas, que
também Quincas, cão e filósofo estão presentes.
No décimo sexto capítulo de Machado e Juca encontramos também Simão.
Simão Bacamarte, personagem do conto machadiano ―O alienista‖.

- Concorda, então?
- Sim, e isso prova que não sou louco, Dr. Simão.
-Prova como, emérito Quincas? (AGUIAR, 1999, p. 83).

Ao analisarmos as obras que se utilizam do universo ficcional e do próprio


escritor Machado de Assis, percebemos que a cadeia de intertextualidades contribui
para formar a narrativa.

A protocooperação entre textos

A última categoria proposta por Weinhardt, a ficcionalização de personagens


literárias retiradas de sua obra genitora, no caso, a utilização do universo ficcional de
Dom Casmurro, reaproveitado em Ciumento de Carteirinha de Moacyr Scliar, é o que
confere à obra pós-moderna a classificação de Ficção Histórica Contemporânea. A
obra de Scliar é a mediação de leitura da obra machadiana. O narrador da obra de
Scliar, também confeccionado em primeira pessoa, usa o ciúme e o amor juvenil para
compreender a si, enquanto adolescente, e assimilar a obra de Machado de Assis, por
intermédio das aulas de Literatura Brasileira ministradas na escola.
Na ficção de Scliar temos a defesa do uso do texto literário em toda sua
polissemia, universalidade e atemporalidade. Scliar, através das metodologias do

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professor Jaime, faz com que a sedução pela experiência estética da linguagem
machadiana aconteça. Jaime é o professor-leitor que não didatiza a literatura.

-Quero apresentar a vocês uma obra-prima. Um clássico da literatura


brasileira.
Muitos jovens ficam com um pé atrás quando se fala em clássico, e
na nossa turma isso era comum: clássico é literatura do passado,
diziam vários dos meus colegas, é coisa superada, fora de moda.
Para Jaime essa atitude não passava de preconceito; grandes
clássicos, sustentava ele, podem resultar em leitura prazerosa.
-Vou mostrar a vocês este livro sensacional, mas primeiro quero ver
quem sabe que obra é essa. O estilo do autor é inconfundível, é
marca registrada. Ouçam só o primeiro parágrafo.
Abriu o livro e leu, com aquela sua bela voz de barítono:
Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei
no trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista
e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da
Lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era
curta, e os versos pode ser que não fossem inteiramente maus.
Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado, fechei os olhos três
ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e
metesse os versos no bolso93. (SCLIAR, 2006, p. 12).

Scliar permite na forma de mediação do professor Jaime, que os alunos


adentrem ao universo ficcional machadiano. A mediação de leitura feita pelo professor
permite aos alunos conhecerem um pouco dos hábitos e costumes do Rio de Janeiro
do século XIX e perceberem que a literatura trata de temas que compreendem a
humanidade, independente do período histórico que tenham sido publicadas. Assim,
as personagens juvenis se identificam com as situações que Capitu e Bentinho,
personagens de Dom Casmurro, viveram. É a literatura e a mimese. A literatura
enquanto imitação da realidade. A verossimilhança presente no texto literário que
reafirma os laços do pacto ficcional.
Nesse momento, convém abordarmos as obras de Aguiar e Scliar na
perspectiva do capítulo ―Borges e a minha angústia da influência‖, de Umberto Eco.
Além desse artigo de Eco, serão necessárias as palavras de H. J. Milles em A ética da
leitura.
Ao perceber a influência da literatura de Jorge Luis Borges, Umberto Eco
trabalha as relações de influências entre escritores, representados por A e B, onde A é
o escritor que precede B. As relações entre os escritores sofrem as influências de um
terceiro elemento, X, que representa a cultura de um modo geral, as influências
precedentes, o universo da enciclopédia.

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Formatação em itálico usada por Moacyr Scliar ao longo da obra para todas as citações
diretas da obra machadiana.
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As relações entre os elementos A, B e X são permeadas pelo zeitgeist, a


cadeia de influências recíprocas, que pode ser milenar. Para o diagrama de Eco ser
reconhecido pelo leitor, dependerá de fatores como a temporalidade da memória, a
competência do leitor e a capacidade de persuasão dos escritores, a comunicabilidade
da narrativa e a exploração das intertextualidades.
Para ilustrar de forma clara a tríade e seu novo elemento, Eco recorre a Borges
e cita um princípio que norteia a sua literatura e guiou a de Borges: ―[...] A coisa mais
importante é que os livros falam entre si.‖ (ECO, 2003, p. 116). É Dom Casmurro que
dialoga com Machado e Juca que interage com Ciumento de carteirinha. Nas duas
obras percebemos que a intertextualidade é rentável, pois se encontra nos títulos das
obras, nos elementos gráficos usados na ilustração da capa e no aproveitamento das
personagens machadianas.
A filiação dos textos de Aguiar e Scliar ao texto machadiano, se concretiza se o
leitor for competente para reconhecer e apreciar os elementos intertextuais.
Pensemos nas obras de Aguiar e de Scliar nos termos de H. J. Milles no artigo
―O crítico como hospedeiro‖. No início de sua obra, Milles ao desenvolver a imagem do
parasita e do hospedeiro nos pergunta:

O hospedeiro alimenta o parasita e torna sua vida possível, mas ao


mesmo tempo é morto por ele, assim como costumam dizer que a
crítica mata a literatura. Ou será que hospedeiro e parasita podem
viver felizes juntos, residindo no mesmo texto, alimentando um ao
outro, ou compartilhando alimento? (MILLES, 1995, p.12).

Podemos considerar as obras em estudo parasitas da obra machadiana? Se


considerarmos a obra machadiana como obra hospedeira já a condicionamos a ter
obras parasitas. Milles, ao investigar a etimologia do termo ―hospedeiro‖, relaciona-o
com a origem medieval oste e a latina hóstia, que significa sacrifício, vítima. Dessa
forma, um texto hospedeiro é um texto que se sacrifica em prol de seu parasita.
Ao longo do artigo, Milles insere a imagem do parasita como um vírus, que
invade o hospedeiro e o transforma em veículo para suas réplicas. Nos termos desta
pesquisa, a obra machadiana (hospedeira), é invadida por parasitas/vírus (no caso, as
obras de Aguiar e Scliar) e a partir desse momento, o parasita não destrói o
hospedeiro, apropria-se dele como veículo para reprodução.
Se analisarmos as relações harmônicas entre os seres vivos - tema abordado
pela biologia -, veremos que a relação entre parasita e hospedeiro caracteriza-se pelo
comportamento do parasita, que ao instalar-se no hospedeiro causa-lhe doenças,
levando-o à morte. Tendo claro o mecanismo que envolve a relação entre parasita e

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hospedeiro, concluímos que nas relações entre as obras que aludem a Machado de
Assis, ficcionalizando-o, e a obra e biografia machadianas, não é esse tipo de relação
que se estabelece, pois as obras intertextuais ao universo machadiano não causam
danos ao cânone.
Aderindo a comparação de Milles, e procurando nas relações harmônicas entre
os seres vivos, uma relação que possa ser utilizada para ilustrar o caso em questão,
acreditamos ser a protocooperação a relação harmônica que melhor se adapta.
Biologicamente, na relação de protocooperação as espécies vivem juntas e se ajudam
mutuamente, porém é perfeitamente possível que vivam separadas. É o que ocorre
entre as obras que aludem a Machado de Assis e aquelas que se utilizam do universo
ficcional machadiano.
O artigo de Milles remonta o diagrama de Eco, pois sempre há a cadeia de
intertextualidades e influências recíprocas, sempre existe um terceiro elemento alheio
ao texto parasita e ao texto hospedeiro que se relaciona mutuamente com eles.
Trabalhando com poesia, Milles declara:

[...] Qualquer poema, no entanto, é também um parasita de poemas


anteriores, ou contém poemas anteriores dentro de si, como parasitas
internos, numa outra versão da perpétua inversão entre parasita e
hospedeiro. Se o poema é alimento e veneno para os críticos, ele
também deve, por sua vez, ter se alimentado. Deve ter sido um
consumidor canibal de poemas anteriores. (MILLES, 1995, p. 19).

Se aplicarmos o diagrama de Eco às relações entre parasita e hospedeiro


propostas por Milles, teremos: A, o autor hospedeiro, no caso Machado de Assis; B, os
autores parasitas, no caso, Aguiar e Scliar e X a cadeia de influência recíproca.
Sempre há um texto hospedeiro com seus parasitas e elementos comuns aos dois,
assim, reconstitui-se a cadeia de intertextualidades sugerida por Eco.

Afastamentos possíveis, o parasitismo entre textos e a relevância do paratexto


A fragilidade das estruturas narrativas das obras Dona Casmurra e seu tigrão,
de Ivan Jaf e Dom Casmurro e os discos voadores, de Lucio Manfredi não nos permite
estabelecer relações de protococoperação com o texto machadiano.
Retomando o artigo de Milles, a obra hospedeira, Dom Casmurro, alimenta as
obras parasitas (Dona Casmurrae seu tigrão e Dom Casmurro e os discos voadores),
o que faz com que o texto machadiano seja sufocado pela ficção contemporânea. Não
há experiência estética da linguagem. Na obra de Jaf, a relação entre Capitu e

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Bentinho é uma mera briga conjugal. Na obra de Manfredi, conforme aviso do autor,
há uma ruptura com o texto clássico:

Aviso
Esta é uma obra de ficção baseada na obra original escrita por
Machado de Assis e publicada em 1899.
Toda semelhança é proposital, e as diferenças também. Aqui você
encontra uma nova versão do clássico, com todos os elementos do
imaginário que povoam nossa literatura. (MANFREDI, 2010,
paratexto).

Ao abordar as obras de Jaf e Manfredi caberá ao professor como mediador da


leitura literária estabelecer uma metodologia que contemple as características da
ficção contemporânea, permitindo o exercício reflexivo de afastamento da obra
canônica.
Nas obras aqui analisadas fica evidente a importância do paratexto como
elemento sedutor de acesso ao texto. Paratextos, constituem segundo Genette (1987,
apud REUTER, 2014), os escritos que compõem o livro como objeto (capa, formato,
lombada, título, epígrafe, prefácio, etc.), os escritos que precedem e acompanham a
composição do livro (notas, manuscritos, etc.) e comentários que cercam o livro.
Reuter (2014) explica que os comentários com fins publicitários, geralmente impressos
na quarta capa, formam uma metatextualidade que tende a confundir-se com a
paratextualidade, demonstrando que as relações transtextuais se articulam umas com
as outras.
De acordo com Arena (2010, p. 34), os paratextos fornecem as primeiras pistas
da rede intertextual de uma obra, ―são os responsáveis por informações necessárias
ao leitor para que mobilize seus conhecimentos prévios, sua atitude responsiva e a
busca de respostas‖. Em Machado e Juca, a capa contendo a caricatura de Machado
de Assis em frente à casa do escritor (conforme fotos de época) induzem o leitor a
adivinhar que Juca é a alcunha de Joaquim Maria. Ciumento de carteirinha nãopermite
à filiação do texto de Scliar ao universo machadiano pela ilustração. Nessa obra, no
canto superior direito da capa encontramos: ―uma aventura com Dom Casmurro‖, o
que torna óbvia a relação entre os textos.
Na obra Dona Casmurra e seu tigrão à filiação ao texto machadiano se dá
também de modo óbvio, pois a obra pertence a série ―Descobrindo os clássicos‖,
informação presente no canto superior direito da capa e ―Uma leitura de Dom
Casmurro. Machado de Assis‖, no canto superior esquerdo. Ao abrir a obra, cuja capa
possui uma espécie de janela, encontramos uma ilustração correspondente a uma

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passagem de Dom Casmurro, com as personagens Capitu e Bentinho, com trajes


típicos do século XIX e uma ilustração do rosto de Machado de Assis.
Em Dom Casmurro e os discos voadores, a menção da dupla autoria:
―Machado de Assis e Lucio Manfredi‖, induz o jovem leitor a acreditar, inicialmente na
colaboração do autor canônico na confecção da narrativa pós-moderna.

Considerações Finais

Cazuza na música ―O tempo não para‖ cantava ―Eu vejo o futuro repetir o
passado, eu vejo um museu de grandes novidades...‖ O mercado editorial brasileiro
parece guiar-se pelos versos da canção. Recentemente, escritores e editores
redescobriram Machado de Assis.
Torna-se muito atrativo para o público que consome e busca a cultura de
massa, uma obra que se refira ao cânone. Aproximar-se da obra machadiana de forma
intertextual, usando esse ―caráter facilitador‖ da cultura de massa é mais atrativo ao
leitor inexperiente. Ler as narrativas Dona Casmurra e seu Tigrão, de Ivan Jaf, Dom
Casmurro e os discos voadores de Lucio Manfredi e ver nelas esmiuçadas, diluídas,
facilitadas a história da obra Dom Casmurro é mais prático ao leitor inexperiente, que
não precisará mergulhar no universo da ironia e da linguagem machadiana. O esforço
interpretativo, o inebriar-se pela linguagem machadiana é vetado, inicialmente, a este
leitor. Ao final da leitura, se nos perguntarmos, qual é o centro dessas narrativa,
poderemos apenas responder que as obras recontam, sem os mesmos recursos
narrativos e efeitos de linguagem, a obra Dom Casmurro. Atentemos: recontam, não
recriam.
Diferentemente do que ocorre com Machado e Juca, de Luiz Antonio Aguiar e
Ciumento de carteirinha, de Moacyr Scliar, que recriam o universo machadiano,
promovendo a experiência estética da linguagem.

Referências

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

A VOZ DO LEITOR: UMA ANÁLISE DA OBRA PAISAGEM, DE


LYGIA BOJUNGA.

Cecilia Barchi Domingues, UNESP (ASSIS/SP), eixo 4.


Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira, UNESP (Assis/SP), eixo 4.

Considerações Iniciais

Em pesquisa realizada pelo Instituto Pró Livro, Retratos da Leitura no Brasil


(2016), ficou demonstrado que 84% dos jovens, entre 11 e 13 anos, e 75% dos que
têm de 14 a 17 anos, se consideram leitores. Quando indagados sobre os livros lidos,
encontramos obras da indústria cultural, como: Muito mais que cinco minutos, de
Kéfera Buchmann; O diário de um banana, de Jeff Kinney; A culpa é das estrelas e
Cidades de Papel, de John Green; Crepúsculo, de Stephenie Meyer; entre outros.
É satisfatório encontrar números elevados quando falamos em leitor juvenil,
afinal o acesso ao livro há uma década atrás era restrito. Entretanto, uma vez que
alcançamos o hábito é preciso dar continuidade na formação do leitor. É necessário
romper com seus horizontes de expectativa para que ele saia das leituras facilitadoras
e inicie a leitura de obras estéticas e com potencialidade emancipadora.
Dessa forma, o presente trabalho, tem como objetivo apresentar uma análise
da obra Paisagem (1992), de Lygia Bojunga, utilizando os pressupostos teóricos da
Estética da Recepção (ISER, 1996 e 1999; JAUSS, 1994).
A obra é conhecida por fazer parte de uma ―trilogia do livro‖, ou seja, de um
trabalho autorreflexivo pautado pela metalinguagem: Livro – um encontro com Lygia
Bojunga (1988), Fazendo Ana Paz (1992) e Paisagem (1992), o qual retrata a alma
literária da autora. Em Paisagem, leitura e escrita se fundem e apresentam o processo
de criação do escritor e a recepção do leitor.
Além disso, justifica-se a escolha dessa obra literária, tendo em vista que faz
parte dos acervos do Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE), do ano de
2013, destinados ao Ensino Médio. O que implica na sua disponibilidade em Salas de
Leitura e/ou bibliotecas das escolas públicas de todo país.
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Partimos da hipótese de que a obra de Bojunga tem potencialidade para levar


o leitor à reflexão sobre a produção literária e seu processo de recepção, ampliando,
assim, seu horizonte de expectativa.

O papel social do PNBE


O Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE) foi desenvolvido em 1997
com o objetivo de promover o acesso à cultura e o incentivo à leitura, a partir da
distribuição de acervos de obras de literatura, de pesquisa e de referência. O
programa atende a todas escolas públicas do Brasil cadastradas no Censo Escolar,
desde a educação infantil até a educação de jovens e adultos (MEC, 2017).
Entretanto, para que as obras façam parte desse acervo é preciso respeitar
algumas etapas. Em um primeiro momento, o governo federal divulga um edital para
que as editoras submetam os títulos à avaliação; em seguida, profissionais de todo o
Brasil avaliam as obras submetidas e selecionam aquelas que apresentam conteúdo e
material gráfico satisfatório para se enquadrar no padrão dos acervos.
A partir desse momento, inicia-se a etapa de negociação com as editoras e a
aquisição dos títulos selecionados. Há um momento de produção do livro, pois todos
devem conter o logo do programa, e outro momento de teste de qualidade física para
constatar que as obras estão em condições para distribuição. Por fim, caminhões
cheios de livros saem pelo Brasil distribuindo os acervos nas escolas de cada cidade.
A distribuição também segue etapas, nos anos pares, são distribuídos livros
para as escolas de educação infantil (creche e pré-escola), anos iniciais do ensino
fundamental e educação de jovens e adultos. Já nos anos ímpares, a distribuição
ocorre para as escolas dos anos finais do ensino fundamental e ensino médio.
O último acervo disponibilizado pelo Ministério da Educação é de 2013,
distribuído para os anos finais do ensino fundamental e ensino médio, o acervo contou
com 360 títulos de literatura nacional até a estrangeira.
A obra Paisagem, de Bojunga, faz parte do conjunto de obras do PNBE e está
situada no acervo 1 do Ensino Médio. Neste artigo, tem-se consciência da importância
de políticas públicas voltadas para a leitura, como o PNBE, pois asseguram o acesso
a obras de qualidade, exercem papel social. Contudo, em 2014, o programa começou
a sofrer cortes e, atualmente, está suspenso (GLOBO, 2017).
Ao tratar da formação do leitor, Vera Teixeira de Aguiar (2011) defende quatro
fases da leitura, sendo elas: leitura compreensiva, interpretativa, iniciação à leitura
crítica e leitura crítica.

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A leitura compreensiva ocorre no período em que a criança começa a decifrar


o código escrito e faz uma leitura silábica e de palavras, é importante apresentar
nessa fase textos que estimulam a fantasia, a criatividade e o raciocínio. A leitura
interpretativa se dá a partir do momento em que o leitor evolui da simples
compreensão para a interpretação das ideias do texto, inicia-se, então, a interpretação
dos dados do texto e a tomada de posição diante deles, levando em consideração as
referências éticas e morais. Por fim, a leitura crítica se manifesta quando o aluno
elabora juízos de valor e desenvolve a percepção dos conteúdos estéticos da obra.
Quando o leitor torna-se sensível aos problemas sociais e interroga-se sobre suas
possibilidades de atuação na idade adulta (AGUIAR, 2011).
Entretanto, para que o jovem atinja a leitura crítica é importante que ele tenha
contato com o universo dos livros. É a literatura quem vai romper, questionar e ampliar
os horizontes de expectativa.
As obras da indústria cultural são facilitadoras e tem por objetivo confortar o
leitor, embora também façam parte da formação. Ninguém nasce gostando de ler, a
leitura é um gosto que se desenvolve a partir do hábito. Além disso, escolher obras
que atendam as expectativas do leitor é o primeiro passo para criar-se o hábito
propriamente dito.
Como vimos anteriormente na pesquisa Retratos da Leitura, os jovens estão
lendo, mas, de acordo com as leituras indicadas, ainda se encontram em fase de
leitura como entretenimento, pois os textos que elegem, muito filiados ao mercado
editorial, não exigem posicionamento crítico. Sendo assim, faz-se necessário que eles
sejam expostos a leituras de obras literárias, ricas em conteúdo estético, de
preferência mediadas por um professor, educador, bibliotecário, enfim, por um leitor
mais experiente.
Maria Teresa Andruetto afirma que há mais leitores de livros de
entretenimento que leitores literários, pois os bons livros não respondem a um gosto
global, não agradam a todos, enquanto os modismos atendem às tendências e
exigências do mercado (2012)
Segundo Antonio Candido, ―[A]s produções literárias, de todos os tipos e
todos os níveis, satisfazem necessidades básicas do ser humano, sobretudo através
dessa incorporação, que enriquece a nossa percepção e a nossa visão de mundo.
(1995, p. 248).
Dessa forma, podemos considerar que o PNBE, além de dar acesso à cultura,
abastecer as bibliotecas e/ou salas de leitura, também garante que os alunos das
escolas públicas tenham possibilidade de satisfazer as necessidades básicas e se
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humanizar, pois os títulos pertencentes ao seu acervo tem potencialidade para


assegurar a formação do leitor crítico, como veremos na análise da obra Paisagem, de
Bojunga.

Trama e recepção
Paisagem (1992) é um romance metaficcional, narrado em primeira pessoa,
pela própria Bojunga. A narrativa desdobra-se a partir da troca de correspondências
entre Lourenço e a autora. O menino é leitor e, principalmente, leitor de Bojunga,
afirma que reconheceria as marcas da autora mesmo se ela não se identificasse no
texto. Dessa forma, se intitula um especialista no assunto, ao ponto de ter sua mente
interligada com a da autora.
A configuração desse protagonista na trama instaura lacunas (ISER, 1999 e
1996) para o jovem leitor, as quais podem capturar sua atenção por problematizar
quem de fato é Lourenço, se ele diz a verdade ou dissimula suas intenções.
Lourenço sonhou com uma paisagem típica de Bojunga, e resolveu escrever
para a autora sobre o que havia sonhado. Entretanto, quando a carta chega a
Londres, Bojunga fica espantada com a coincidência, pois estava escrevendo um
conto cuja paisagem se assemelhava muito à descrita na carta. Pode-se notar,
novamente, que há vazios no texto, convocando o leitor a refletir sobre supostas
―coincidências‖.
Ocorre que apenas a autora havia tido contato com o que escrevera. Quando
as cartas de Lourenço chegavam sempre havia respostas evasivas acerca da
paisagem sonhada e a autora se mantinha cada vez mais envolvida a respeito do
mistério. O jovem parou de escrever, mas Bojunga não deixou que isso a impedisse
de entender tamanha coincidência, resolveu visitá-lo e, novamente, outra coincidência
aparece: Lourenço morava na mesma cidade que a autora crescera: Rio de Janeiro.
A volta ao Brasil foi nostálgica e cheia de lembranças para a escritora, mas
quando esta chega ao bairro de Santa Teresa encontra a casa de Lourenço vazia. A
vizinha do lado avisa que a residência está à disposição para ser alugada e a autora
decide que seria um ótimo lugar para ficar.
Lourenço não demora muito para aparecer, explica que se mudou para
Maringá, no Paraná, por conta do emprego de seu pai. A vizinha denuncia o jovem,
dizendo que a paisagem era fruto de um desenho seu, mas Lourenço ao vê-lo narrou
para a escritora como sendo dele. Percebe-se que nesse conflito instaura-se outro
vazio, pois o jovem leitor desconhece os fatos e precisa usar de sua capacidade
interpretativa para compreender o jogo ficcional que se instaura na trama.
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Tudo faz sentido para a escritora quando o menino explica-lhe que sempre
lera para a vizinha e que ela desenhava durante a leitura. Sendo assim, Bojunga
conclui que a paisagem na forma de desenho e de sonho faz parte da recepção da
obra. A partir desse momento, fundem-se leitor, paisagem, conto e autora, dando
início a um momento de questionamento sobre o processo de criação e recepção de
livros.
O primeiro livro da ―trilogia do livro‖ Livro – um encontro com Lygia Bojunga
(1988) aborda sobre leitura; o segundo, Fazendo Ana Paz (1992), sobre a escrita; e o
terceiro, Paisagem (1992), associa leitura e escrita, dando voz ao leitor. Sendo assim
temos três temáticas na trilogia: a visão do autor, da narrativa e do leitor.
A organização da narrativa auxilia na leitura, pois é composta por capítulos
breves, bem espaçados, letras grandes e folha amarela. A linguagem é facilitadora e
os diálogos são carregados de oralidade, promovendo a identificação entre leitor e
personagem.
Segundo Candido (1989), a literatura exerce sua função social quando leitor
se identifica com o universo vivencial representado na obra literária, pois alia a
experiência do personagem a sua e aplica o conhecimento adquirido no seu meio
social.
Não há muitos personagens na obra, os principais são: a vizinha, chamada de
monstrinho por Lourenço; a própria autora Lygia Bojunga; e Lourenço. A vizinha é
decidida, gosta de ouvir sobre os livros que o amigo lê, é curiosa e fala bastante, já
Lourenço é um leitor ideal, adora comentar sobre os livros de Bojunga e, inclusive, dá
algumas sugestões para os finais, mas é evasivo e foge da sua própria história.
A narrativa é linear e cronológica, o tempo é bem marcado e o enredo é
direto, o mistério da coincidência se resolve rápido e abre espaço para reflexões mais
profundas, como a situação econômica das personagens, o sistema patriarcal e,
principalmente, sobre a produção literária e seu processo de recepção.
Quanto ao espaço, a história se desenvolve na cidade do Rio de Janeiro, mas
toda a ação é na casa de Santa Teresa, onde Lourenço morava, é um lugar carregado
de memórias para os personagens, como se fosse uma cúpula onde refletem sobre si
mesmos, é onde têm voz e se libertam das exigências da sociedade.
Algumas temáticas merecem atenção, responsáveis por provocar no leitor um
questionamento sobre seu próprio meio. Lourenço pertence à classe média
depauperada, mora com sua família, mas seu pai passa por problemas financeiros,
por causa do arrocho salarial. O jovem questiona-se sobre o sistema governamental e
a ausência de garantias ao trabalhador:
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O João, [...] anunciou que o salário dele vinha sofrendo de anemia já


fazia tempo e que agora tava fraco demais para enfrentar aluguel de
casa, escola de filho, telefone, luz, supermercado, essa coisa todinha;
informou que a gente tava indo pro brejo econômico, junto com mais
um bolão de brasileiros que faziam parte de uma classe que tinha
sido média e depois média-baixa e depois média-tão-baixa que já não
tavam nem mais enxergando a cara dela; [...] (BOJUNGA, 1992, p.30)

Observamos que Lourenço possui uma relação distante com pai, pois o
chama de João. Além disso, notamos a presença de marcas de oralidade no texto
como: ―tava‖, ―todinha‖, ―a gente‖, ―pro‖, ―bolão‖, ―e depois‖, ―nem‖. O jeito como
Lourenço usa as palavras referencia o meio em que vive; as muitas vírgulas e as
quebras de frase, por sua vez, revelam sua fala jovial e descontraída que mesmo
tratando de um assunto penoso e sério, busca não entediar o receptor de sua
mensagem.
No mesmo trecho constatamos a preocupação da autora com a esteticidade
da obra, há presença de figuras de linguagem durante toda a narrativa, nesse caso, de
personificação, visando à obtenção de efeito de humor que leve à contenção do drama
familiar do protagonista: ―o salário dele vinha sofrendo de anemia‖ (1992, p.30).
O pai de João não se conforma com a situação financeira da família, muda-
se para Maringá, pois acredita que a vida no interior possui custo menor. Entretanto, o
governo continuou a decepcionar sua família, ele foi demitido:

Depois que o João acabou o discurso eu fui no dicionário mas só


encontrei desenxabida, que eu também achei que servia para nossa
família, e que assim, tendo virado uma família desenxergada, a gente
tinha mais é que meter o rabo entre as pernas e ir saindo rapidinho
para viver no interior onde a vida era mais barata, [...]
[...] mas o João só tava a fim de falar em desenxergado, será que
nunca mais governo nenhum ia enxergar tanto desenxergado? (1992,
p. 40).

O personagem utiliza metáforas cômicas para expressar seus sentimentos e


para controlar sua indignação: ―a gente tinha mais é que meter o rabo entre as pernas‖
(1992, p. 40).
O feminismo é outra temática que merece atenção, Lourenço repudia os
machistas e, indiretamente, propõe ao leitor que reflita sobre si mesmo, como segue:

[...] acabava espalhando por aí que eu sou um cara machista, já


pensou? Bom, isso ia me deixar mais louco que tudo, você sabe
muito bem que esse negócio de machismo com gente civilizada é
coisa que já desbotou, pior só cheirando a rapé, e se tem um troço
que me deixa em pânico é não ser um cara civilizado, e ela então
suspirou e falou, é isso mesmo, Lourenço, agora que eu pensei
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melhor no assunto eu tenho certeza absoluta (não é de enlouquecer?


Ela ter certeza absoluta do que que aconteceu entre nós dois?), eu
tenho certeza absoluta que você frequentou aquele cenário numa
outra vida, quem sabe eu morava lá no areão, não é, Renata, bem
juntinho do mar, quem sabe em vez de falar português eu falava tupi?
[...] (1992, p. 47).

É possível que o leitor leia Paisagem de forma autônoma, mas acreditamos


que a presença de um mediador é imprescindível. No trecho anterior, a remissão à
língua tupi pode ser explorada, por meio de um debate com o jovem leitor, bem como
a situação financeira da família trabalhadora nos grandes centros e nas cidades do
interior dos estados brasileiros.
Além disso, a obra toda apresenta material simbólico, que pode passar
despercebido por um leitor que não é crítico, podendo até impossibilitar a
compreensão do texto. Procuramos em sites de resenha a opinião dos jovens acerca
da obra, muitos afirmam que o início e o meio do livro são excelentes, mas se perdem
no final.
O final é mais complexo, pois nele ocorre a metalinguagem, os personagens
começam a ser transpostos para o conto da autora. Há, então, a transformação do
protagonista da trama em personagem do conto. Sucede a exploração de Bojunga
sobre o processo de produção de sua própria obra. Caso essa percepção não seja
atingida pelo jovem leitor durante a leitura da obra, ela pode ser trabalhada pela
mediação. Na ausência de ambos processos, a obra pode desmotivar o jovem leitor.
Afinal, estamos considerando também o leitor em fase de construção, aquele que não
é um leitor ideal.
Sabemos que Lourenço afirma não ser machista, mas seu discurso
demonstra o contrário e a autora não deixa passar despercebido:

- Temporã, mas é. Sabe o que que eu já disse pra Renata? No dia


que eu me casar com você a tua irmã não entra na minha casa.
- Que bom que esse negócio de machismo já desbotou com gente
civilizada, não é, Lourenço? (1992, p. 52)

Nota-se, então, uma narrativa que busca produzir reflexão no seu leitor
almejado, pois suscita sua interação, reflexão e espírito crítico. O leitor da obra de
Bojunga sente-se motivado a desconfiar das personagens, de seus relatos e até de
seu papel na trama. Sobretudo, esse leitor é levado a refletir criticamente sobre a
realidade social de muitas famílias brasileiras. Desse modo, a obra atinge sua função
social (JAUSS, 1994).
Como em todo livro de Bojunga, a autora não deixa de mencionar as
vontades de seus personagens. Entretanto, dessa vez trata-se da própria paisagem e
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ao mesmo tempo dialoga com o jogo de cores, da mesma forma que faz com sua obra
Meu amigo pintor (1987), por exemplo: ―Ela falou que queria ter nascido desenho e
não letra; disse que só preto no branco fazia ela triste: ela queria ter cor‖ (1992, p. 70).
A discussão das vontades, bem como o feminismo são temáticas libertárias,
que promovem no leitor a mudança psicossocial; encontradas, principalmente, em
narrativas de autoria feminina.
Lúcia Ozana Zolin (2005) afirma que a produção literária de mulheres parte
de suas experiências pessoais. Dessa forma, é natural que essas temáticas venham à
tona. No mesmo sentido, Elaine Showalter (1994) defende que os estilos, as histórias,
os temas, a própria estrutura dos escritos de mulheres e os gêneros merecem ser
estudados, pois somente por meio da crítica pode-se romper com o histórico
silenciamento da voz feminina.

A voz do leitor
Como vimos anteriormente, em Paisagem,há dois momentos que marcam a
própria produção literária: o primeiro diz respeito à relação entre autor e leitor, em que
Lourenço procura Bojunga para seus desabafos literários, faz sugestões de alteração
em seus livros e provoca na autora a reflexão sobre seus personagens. Além disso, é
marcado no discurso como se dá o processo recepcional: a leitura e recepção por um
jovem leitor.
Em um segundo momento, o diálogo e a personalidade dos leitores cativam
Bojunga e inicia-se o processo inverso, é a influência do leitor no texto da autora.
Lourenço e a vizinha ganham forma, durante o processo de produção do livro,
tornando-se personagens do conto.
O processo de recepção é marcado no texto a partir das reflexões propostas
pelas personagens. Inicialmente, a troca de cartas entre Lourenço e Bojunga
apresenta a necessidade do leitor de se expressar sobre o que foi lido, através da
crítica. Na falta de alguém qualificado para sustentar uma discussão, o menino procura
a própria autora para desabafar.
Além disso, tratando-se de um leitor ideal, ele já consegue identificar as
marcas da escrita da autora, com tanta facilidade que já não sabe mais se as reflexões
são fruto dele ou dela, é a última etapa da formação leitora. Esse apontamento
provoca no leitor de Paisagem um questionamento sobre suas próprias leituras e
sobre seu comportamento enquanto leitor:

[...] quando eu digo, eu sou Leitor do fulano, isso quer dizer que eu
conheço o fulano, então ninguém precisa me dizer esse livro é do
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fulano ou da beltrana porque é só começar a ler o livro que eu já sei


que é do fulano ou da beltrana (BOJUNGA, 1992, p. 50).

Lourenço também propõe uma discussão acerca da potencialidade da


literatura e sobre a importância da identificação entre personagem e leitor:

[...] eu sou um Leitor para escritor nenhum botar defeito, tá


entendendo? Eu acho até que ser Leitor é a coisa que eu sei ser
melhor na vida [...] quando eu falo de Leitor eu tô querendo falar é de
Li-te-ra-tu-ra, [...] essa coisa de escritor criar um personagem e fazer
a gente acreditar nele feito coisa que toda a vida a gente conheceu o
cara, Literatura é fazer esse personagem inventado virar um espelho
pra gente, [...]. Literatura é o jeito que um escritor descobre pra
passar isso pra gente dum jeito que é só dele, e quando um dia a
gente afina com o jeito dum escritor inventar, com o jeito que é o jeito
dele escrever, nesse dia a gente vira Leitor dele e quer ler tudinho
que o cara ou a cara escreveu, [...] a gente fica tão ligado nesse
escritor que é capaz até de intuir o que que ele vai escrever...
(BOJUNGA, 1992, p. 35).

O questionamento sobre o processo de recepção é tão direto e intenso que


chega a ser um despertar para o sujeito que ainda não é crítico e, ao mesmo tempo,
para o leitor crítico é um alívio encontrar uma obra que apresente suas necessidades.
Acreditamos que a leitura de Paisagem rompe as expectativas do leitor e o transforma
em um sujeito mais exigente e reflexivo sobre suas futuras leituras. É a fase em que
as vivências pessoais e os conhecimentos escolares associam-se e proporcionam a
facilidade de entendimento da narrativa (BORDINI; AGUIAR, 1993)
Bordini e Aguiar (1993, p.83) apresentam a potencialidade das obras
literárias, dizendo que essas obras ―[...] produzem alteração ou expansão do horizonte
de expectativas do leitor por oporem-se às convenções conhecidas e aceitas por
esse‖. Dessa forma, aquele que não lê passa a entender o papel da leitura, que é
muito mais que compreender a história, em síntese, amplia seu horizonte de
expectativas (ISER, 1999 e 1996).
Andruetto discute que o leitor procura a ficção para desenvolver a
sensibilidade, pois ela vem para dizer algo sobre nós mesmo de uma forma que a
ciência ou as estatísticas não conseguem: ―[...] as ficções que lemos são construções
de mundos, instalação de ―outro tempo‖ e de ―outro espaço‖ ―nesse tempo e nesse
espaço‖ em que vivemos‖ (2012, p. 54).
Lourenço concorda com a teoria e afirma ―[...] Leitor é uma ocupação maior,
e acho também que se um Leitor se liga numa escrita do jeito que eu me liguei nos
teus livros é porque existe uma coisa chamada afinidade, é ou não é?‖ (1992, p. 9).

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Outro aspecto importante da narrativa é a passagem de Lourenço se


identificando como mediador de leitura. A vizinha gostava tanto do menino que o
acompanhava em suas leituras, ler propriamente nunca leu, mas sempre ouviu e da
mesma forma se viu mergulhada nas histórias de Bojunga:

[...] eu sou um Leitor tão competente que o monstrinho virou tua


ouvinte, [...] foi só ai que eu saquei que não é resenha, não é
publicidade, não é nada disso que espalha o que um escritor escreve,
é a gente, Leitor, a gente espalha até sem querer (1992, p. 35).

O trecho mencionado também apresenta a etapa de ampliação do horizonte


de expectativas, onde os personagens passam a utilizar em sua vida o conhecimento
adquirido na obra, é o momento em que a obra se fez tão presente que nunca mais
saiu do imaginário do leitor e reflete em suas decisões rotineiras.
Bordini e Aguiar (1993) esclarecem que a ampliação do horizonte de
expectativas é a última etapa de recepção de uma obra, onde leitor toma consciência
das alterações e aquisições obtidas através de suas experiências com a literatura.
Lourenço explica como executou a mediação:

[...] um belo dia eu comecei a ler as tuas histórias pro Monstrinho, no


princípio ela ficava desenhando enquanto eu lia, mas depois ela ficava
só escutando [...] eu sou um Leitor tão competente que o monstrinho
virou tua ouvinte [...] (1992, p.52)

Como resultado das frequentes leituras de Lourenço, a vizinha produziu um


desenho, com cara de Bojunga, ―Foi só olhar para o desenho que eu achei aquela
paisagem com cara de ter sido escrito por você [...]‖ (1992, p. 50).
No momento em que Lygia percebe o processo de recepção, ela esclarece a
confusão toda:

– Quer dizer que você interpreta esse mistério como ―mera


coincidência‖. – Mera não. É uma coincidência-só-possível entre dois
seres profundamente afins, como sói (gostou desse sói?) acontecer
entre um leitor super ligado numa escritora (você).
– Mas não são dois seres, Lourenço, são três... – O terceiro é o
resultado da ligação dos dois primeiros, tivemos uma filha
monstrinho, o que você quer? – E começou a rir. (1992, p. 51)

Além disso, Bojunga reflete que a paisagem poderia ser fruto de algo muito
mais complexo: de todas as suas experiências vividas, de todas as obras lidas,
paisagens que um dia vira e que, coincidentemente, estavam em conformidade com
os referenciais de Lourenço. A paisagem era fruto de sua própria ampliação de
horizontes.

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Ao final, Lourenço e monstrinho tornam-se parte da obra de Bojunga, pois


são seus novos referenciais. A discussão com os personagens, a descoberta do quão
profundo pode ser a relação entre leitor e obra despertou na autora uma nova
vivência, que não poderia deixar de fazer parte da sua nova produção.

Considerações Finais

Diante dos apontamentos levantados, chegamos à conclusão de que a obra


Paisagem (1992), de Lygia Bojunga, promove a reflexão acerca do sistema patriarcal,
da economia do país e, principalmente, sobre a produção literária e seu processo de
recepção.
A linguagem é simples, mas isso não significa que seja facilitadora, muito pelo
contrário, por ser um texto dotado de valor estético, de reflexões metaficcionais, de
dialogia e recursos estilísticos, exige bastante do leitor.
Acreditamos que sua leitura levaria o leitor a um nível de formação mais
elevado, pois é uma obra de arte emancipatória, inclusive, podendo levar o leitor a ser
mais exigente no que se refere às próximas leituras.
Acreditamos que o livro pode ser trabalhado com jovens leitores a partir do
Ensino Fundamental II, pois permite o desenvolvimento de um trabalho que rompe
com os conceitos prévios desses leitores e amplia seus horizontes de expectativa
sobre obras ficcionais, levando-os a questionamentos inclusive sobre o papel de um
leitor.
Dessa forma, concluímos que os acervos do PNBE (Programa Nacional
Biblioteca na Escola) possuem livros fundamentais para o processo de formação do
jovem leitor e, por isso, eles devem ser estudados em sua dimensão social, pois
tratam de temas diversos que atingem não só a escola, mas toda a sociedade em seu
entorno.

Referências

AGUIAR, Vera Teixeira de. A formação do leitor. In: ZANCHETTA JR., J. (org.).
Caderno de formação: Formação de professores – Didática dos Conteúdos –
Conteúdos e Didática de Língua Portuguesa e Literatura. São Paulo: UNESP –
UNIVESP, Pró-Reitoria de Graduação, Cultura Acadêmica, 2011, p. 104-116.

ANDRUETTO, María Teresa. Por uma literatura sem adjetivos. São Paulo: Editora
Pulo do Gato, 2012.

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BOJUNGA, Lygia. Paisagem. Rio de Janeiro: CSA Lygia Bojunga, 1992.

BORDINI, Maria da Glória; AGUIAR, Vera Teixeira de. Literatura a Formação do


Leitor: alternativa etodológicas. 2. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto,1993.

CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 3. ed. São Paulo: Duas cidades, 1995

____. Direitos humanos e literatura. In.: FESTER, A. C. Ribeiro e outros. Direitos


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FAILLA, Zoara (org.). Retratos da leitura no Brasil 4. Rio de Janeiro: Sextante, 2016.

GLOBO. Disponível em: < https://g1.globo.com/educacao/noticia/governo-federal-


seguira-sem-entregar-novos-livros-de-literatura-para-bibliotecas-escolares-em-
2018.ghtml>. Acesso em 28 set. 2017.

ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Trad. Johannes
Kretschmer. São Paulo: Ed. 34, 1996. .

________. O ato da Leitura: uma teoria do efeito estético. Trad. Johannes


Kretschmer. São Paulo: Ed. 34, 1999.

JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad.
Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994.

LUCAS, Fábio. O caráter social da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
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SHOWALTER, Elaine. A crítica feminista no território selvagem. In: HOLLANDA,


Heloísa Buarque de. Têndencias e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio
de Janeiro: Rocco, 1994.

ZOLIN, Lúcia Osana. Crítica feminista. In: BONNICI, T.; ZOLIN, L.O. (org.) Teoria
Literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 2. ed. Maringá: Eduem,
2005, p. 181-203.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

FANCTION: LEITURA E ESCRITA INFANTOJUVENIL

Rosemari Pereira dos Santos Alves, UEL, Eixo Temático 4:


A literatura juvenil e jovens leitores
João Arlindo dos Santos Neto, UNESP, Eixo Temático 4: A
literatura juvenil e jovens leitores

Considerações Iniciais

As fanctions,hobby literário cuja finalidade é permitir que fãs recontem ou


expandam histórias de autoria alheia, compreendem novos modos de leitura e de
escrita na internet, visto que possibilitam aos seus utilizadores a produção e a leitura
do texto de maneira diversificada: a produção se realiza tomando considerações feitas
pelos leitores como parâmetros e a leitura ocorre com expectativa de interagir com o
autor. A presente pesquisa analisa e apresenta duas plataformas para publicação de
fanctions, Spirit: Fanfics e Histórias eWattpad. Sendo assim, o problema de pesquisa
foi compreender como se dão essas práticas. Justifica-se a realização deste trabalho,
no momento em que se reconhece a necessidade de se analisar os modos de leitura e
escrita que se configuram na internet. Os produtores e leitores de fanctions possuem
familiaridade com a internet e se apropriam dela naturalmente, portanto, buscar
conhecer a forma como eles têm utilizado as plataformas constitui-se como questão
fundamental para o campo de estudo da leitura e literatura infantojuvenil.
Essa comunicação se justifica por discutir a respeito de uma ferramenta com
potencial para estimular práticas de leitura e escrita, contribuindo para a formação de
novos leitores e escritores. Além disso, atentou-se também analisar o uso e
apropriação de tais ambientes disponíveis na web no que se refere aos fanctions. Os
tópicos norteadores do trabalho são apresentados na seguinte ordem: modos de
leitura na internet; estética da recepção; fenômeno fanfic; plataformas de
autopublicação de fanfics e suas características; e as considerações finais. Os
584

procedimentos metodológicos compreendem uma pesquisa exploratória, por meio de


revisão bibliográfica e da pesquisa documental realizada em duas plataformas online,
com abordagem qualitativa em relação ao problema. A seguir, discute-se a respeito
dos modos de leitura e escrita na internet.

Modos de leitura e escrita na internet


A popularização da internet causou um significativo impacto nos processos de
leitura. De acordo com Roger Chartier (2002), os avanços eletrônicos deram origem a
uma nova prática de leitura, agora realizada no ciberespaço, que é dotada de algumas
diferenças em relação à leitura dos textos impressos, especialmente devido ao
hipertexto. Enquanto os leitores de textos impressos dedicam bastante tempo à obra
que leem, os leitores digitais passam, rapidamente, por diversas publicações através
de links, procurando pelas informações que desejam. O leitor, não mais receptor
passivo, constrói e altera o texto, modifica o significado do ato de ler e, estas
intervenções, permitem uma multiplicidade de modos de leitura.
Pierre Lévy (1999) explica que hipertexto é um conjunto de nós ligados por
conexões. Pode-se considerar ―nó‖ a palavra, a imagem, o gráfico e o som, por
exemplo. As conexões são feitas por meio de links que promovem o acesso a outros
textos. Sendo assim nó e link são elementos que constituem a identidade do
hipertexto. Para Sérgio Luiz Prado Bellei (2002) é a conectividade que possibilita
distinção entre o texto e o hipertexto, pois é através dela que ocorrem interrupções,
saltos de um texto para o outro, além de modificar a circulação da informação e alterar
os conceitos clássicos de autor e leitor.
Segundo Bellei (2002) o texto impresso é estático, ao contrário do hipertexto
que é dinâmico. Esses recursos, em uma mesma leitura, tendem a aperfeiçoar e
expandir a compreensão das ideias contidas no texto, além de instigar o leitor a se
inserir num processo de busca por significados e ampliação de determinadas
informações. Ao realizar essas conexões, o leitor estará construindo novas
possibilidades de leituras, o que enriquecerá a sua compreensão do texto.
Corroborando com esta ideia, Lévy (1999) argumenta que a leitura
hipertextual não é linear, podendo conduzir tanto para o interior do texto em questão
quanto para outros textos, em um processo de interconexões. Assim, o papel do leitor
ganha uma nova significação, que entra em conflito com a noção clássica de leitor,
pois, ao traçar seu próprio caminho pelo ciberespaço, percorrendo diferentes links, ele
atribui um significado próprio à leitura, agindo como produtor de um novo texto.

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Conforme ressalta Bellei (2002), essa dinâmica resulta em um texto com


elementos adicionados (como referências audiovisuais que o leitor pode,
hipertextualmente, acessar para complementar sua leitura) e com elementos excluídos
(que são aqueles que o leitor deixa de ler para prosseguir em sua jornada pelo
ciberespaço). Assim, a leitura deixa de ser uma atividade passiva, para se tornar,
conforme Ingedore Grunfeld Villaça Koch e Vanda Maria Elias (2010) acreditam uma
ação interativa e altamente complexa, não apenas para recolher informações, mas
para produzir sentidos. O sentido produzido por tal atividade pode não ser aquele
pretendido pelo autor do texto, mas sim um sentido construído pela interação de todos
os autores no trajeto hipertextual da leitura, que será constituído, também, a partir de
conhecimentos prévios, do contexto, entre outros fatores.
Uma consequência dessa nova noção de leitura é a alteração da relação
entre autor e leitor, cuja distância diminui. Não é apenas o leitor que tem seu papel
alterado, pois o próprio autor encontra mudanças no ciberespaço, como a facilidade de
se publicar um texto, sem intervenção de controle editorial. De acordo com Samir
Mustapha Ghaziri (2008), o usuário do suporte virtual lê e usa o material lido em
redações de sua própria autoria. Pode-se afirmar, portanto, que o espaço do leitor e o
espaço do autor estão em uma zona de intersecção, pois ambos, usuários da rede,
leem, reescrevem e publicam. Sendo assim, os limites tradicionalmente evidenciados
entre autor e leitor são, gradativamente, ―eliminados‖.
Em suma, diante do exposto, com a popularização da internet, surgiu uma
leitura não linear, mas hipertextual, que conjuga diversos materiais para a construção
de um texto próprio, que decorre do trajeto realizado pelo leitor. Desse modo, a leitura
deixou de ser uma atividade passiva, passando a ser interativa, o que fragilizou a
distinção entre leitor e autor. Para enfraquecer ainda mais a diferença e sobrepor os
limites já mencionados, os leitores podem, facilmente, publicar suas releituras no
ciberespaço, sem se preocupar com controle editorial.
Entretanto, a importância do leitor na significação do texto não é novidade
introduzida pela leitura hipertextual. Ela foi apenas amplificada e explicitada. A
participação do leitor começa no próprio ato de ler, no fenômeno da recepção,
temática discutida na seção a seguir.

Estética da Recepção
A obra literária não é simplesmente um texto pronto, sem qualquer abertura
para possíveis interferências por parte daqueles que a leem. Ao contrário, a obra só
existe a partir das possibilidades e variedades de leituras que ela permite. Essa ideia
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foi defendida principalmente pela Estética da Recepção idealizada por Hans Robert
Jauss (1994) e pela Teoria do Efeito de Wolfgang Iser (1996).
A Estética da Recepção surgiu a partir das considerações teóricas de Jauss à
abordagem da teoria literária pelos métodos de ensino tradicionais. Conforme Jauss
(1994), a teoria literária, ao seguir um cânone ou descrever a vida e a obra de alguns
autores em sequência cronológica, desconsidera a estética e a historicidade da
criação literária. Para o referido autor, o valor estético poderia ser auferido na
comparação com outras leituras, enquanto o valor histórico poderia ser recompensado
pela recepção da obra pelo público ao longo do tempo (JAUSS, 1994).
Jauss (1994) acreditava que a literatura tinha o potencial de contribuir para a
sociedade na medida em que promovia a quebra de tabus da moral dominante e
oferecia soluções para problemas da vida do leitor.
Por sua vez, Iser (1996), analisou os efeitos que a obra literária provoca no
leitor e defendia que a sua leitura era uma atividade interpretativa que elevava a
consciência do leitor para investigar significados. Roman Ingarden (1979), por outro
lado, ratifica esse pensamento ao explicitar que a obra literária nunca é
completamente apreendida e que o leitor, no decorrer da leitura, é forçado a reformular
suas expectativas e reinterpretar o que já foi lido.
A Teoria do Efeito propõe uma relação dialética entre o autor, o texto e o
leitor. Nela, o leitor não é mero sujeito passivo, mas atuante, que age sobre o texto
através da atividade interativa da interpretação (ISER, 1996). O aproveitamento do
leitor passa a ser diretamente proporcional à sua liberdade de contemplar a
informação extraída do texto conforme seu conhecimento pessoal (ECO, 1976).
Segundo Jauss (1994) essa relação dialética é possível porque o leitor possui
um conhecimento prévio que o leva a criar expectativas. Durante a leitura, tal
conhecimento é confrontado com o texto e o leitor procura por convenções familiares
que poderiam conferir sentido à obra.
Portanto, Jauss (1994) defende que a leitura é uma modalidade de
comunicação que possui um polo artístico, que se manifesta no texto criado pelo autor,
e um polo estético, que se manifesta nas concretizações da interpretação do leitor.
Dessa maneira, o texto não é uma estrutura fechada, mas aberta para as intenções
das recepções.
Nesse contexto, a Estética da Recepção fundamenta os estudos quanto aos
modos de recepção e o conjunto de sensações e reações desencadeadas no leitor na
dialética da leitura, levando em consideração sua historicidade (SUELI BORTOLIN,
2010).
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Regina Zilberman (1989), ao estudar as ideias de Jauss, concluiu que ele


divide a Estética da Recepção em sete teses, quatro premissas e três linhas
metodológicas que servem como pressupostos. A primeira tese é a teoria da
atualização, segundo a qual a natureza histórica da literatura atualiza a obra literária
por meio da relação dialética entre leitor e texto. A segunda é o horizonte de
expectativas do leitor, que decorre de suas experiências acumuladas. A terceira é a
reconstituição do horizonte de expectativas. A quarta é o contexto no qual o texto
surgiu, ou a época de seu aparecimento. A quinta, a sexta e a sétima teses estão
relacionadas aos aspectos diacrônicos e sincrônicos da literatura, bem como seu
relacionamento com a vida prática (BORTOLIN, 2010).
A Estética da Recepção transforma o receptor no principal foco de
investigação, deixando a obra literária de ser um objeto que existia por si só. A partir
dos pressupostos da Estética da Recepção apresentados e do reconhecimento do
leitor no processo de leitura, há de se considerar o leitor como um sujeito inserido em
um determinado contexto social, econômico, cultural e ideológico, fatos que, sem
dúvida, influenciarão seu ponto de vista (BORTOLIN, 2010).
Deste modo, Iser (1999) explica que há uma ligação entre a recepção e o
efeito na construção de sentidos, na qual um completa os espaços que o outro deixa.
A recepção trabalha com métodos histórico-sociológicos, enquanto o efeito trabalha
com métodos teórico-textuais.
As informações contidas no texto deixam espaços vazios que devem ser
preenchidos pelo leitor através de seu conhecimento prévio e de suas expectativas
(ISER, 1999). O autor, ao deixar tais espaços, prevê a atividade interpretativa do
preenchimento, formulando um texto em estado potencial que necessita de um leitor
para concretizá-lo (ECO, 1986).
Os espaços vazios rompem as expectativas do leitor, uma vez que o ponto de
referência se torna o não dito. Ao fazer com que o leitor enxergue o que estava oculto,
os vazios compõem o repertório do texto, conduzindo o leitor à ação e ao uso de sua
capacidade criadora (ISER, 1999).
As teorias aqui explicitadas, ainda que brevemente, constituem-se como
bases fundamentais para a compreensão dos processos de leitura e recepção. No
entanto, o foco deste trabalho foi analisar os modos de leitura e escrita, a partir do
fenômeno fanfic.

Fenômeno Fanfic

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Aproveitando os espaços vazios de histórias populares surgiram as fanctions,


que são reconstruções ou releituras feitas pelos fãs de suas obras preferidas, sejam
elas de natureza musical, cinematográfica, seriada ou literária, entre muitas outras.
Conforme Lucio Luiz (2009), o termo vem do inglês ―fan fiction‖, que, na tradução
literal, significa ―ficção de fã‖. São textos que vão além do limite da narrativa original
expandindo o universo ficcional onde acontece a história; nas fanfics (abreviatura
muito usada), tem-se a reconstrução de uma história sob um ponto de vista diferente
do original, com finais alternativos, desenvolvimento de tramas secundárias,
modificação ou inserção de novas cenas, novos personagens, junções de universos
totalmente distintos e a adaptação dos personagens para outras situações alheias ao
universo da obra, entre outras releituras.
A produção de fanction depende muito da criatividade do autor. Não começou
com a internet como muitos pensam, mas era uma prática conhecida entre escritores,
amadores ou não, desde o século XIX, porém sem esse nome. Segundo Sérgio Luiz
Alves da Rocha (2009) naquela época, quando as leis sobre direitos autorais ainda
não eram evidentes, era comum que os escritores adaptassem histórias de outros
autores, utilizando seus personagens e recriando versões diferentes da mesma
história, mudando o seu final, por exemplo. Segundo o referido autor, as obras mais
adaptadas foram Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll e Sherlock Holmes,
de Sir Arthur Conan Doyle.
Theane Neves Sampaio (2011) defende que as fanctions podem ser
consideradas um retorno às práticas coletivas de leitura. A pesquisadora conta que
nos séculos XVII e XVIII a relação entre leitor e texto não era dada apenas de forma
privada. Era comum a existência de leituras coletivas, manipulações dos textos e
elaboração conjunta de narrativas. Isso também pode ser observado nas fanfics que
são assumidamente derivadas de uma obra e muitas vezes são escritas
coletivamente. Porém, ao se falar de fanfic é preciso, também, discutir sobre as
fanzines.
Nos Estados Unidos, as fanzines surgiram em 1930, sendo editadas por fãs,
principalmente de histórias em quadrinhos, que reuniam não apenas comentários
acerca de sua obra preferida, mas também textos baseados neles. Estas revistas
estão entre os primeiros exemplos da ―cultura de fãs‖ e, segundo Henrique Magalhães
(1993), era a única forma de informação específica antes da chegada da internet. Para
Lucio Luiz (2009), o principal aspecto da fanzine, contudo, era o fato de ser feita de fãs
para fãs, sem que ninguém ganhasse nada com isso. Por essa razão, era comum que

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ela fosse distribuída gratuitamente ou a preço de custo e que seus colaboradores não
recebessem nada por seus textos ou ilustrações.
A primeira fanzine brasileira foi Ficção, de 1965, criada por Edson Rontani.
Na época, a expressão fanzine não era popular no Brasil, sendo Ficção divulgada
como um ―boletim‖. Entre as décadas de 1960 e 1980, com o crescimento da
comunidade punk, que identificava suas publicações como fanzines, o termo ganhou
notoriedade (LUIZ, 2009).
Somente na década de 90 com a expansão do acesso à internet, é que este
gênero se tornou mais conhecido. Segundo Maria Lúcia Bandeira Vargas (2005), a
propagação da fanfic se deve à oportunidade que ela oferece aos fãs de continuar em
contato com suas histórias favoritas e de interagir com os textos de outros fãs. Essas
interações ocorrem em comunidades que são chamadas de fandom.
Segundo Fabíola Figueiredo Reis (2011) essa expressão tem origem nas
palavras fan e domain, que significam - fanático e domínio respectivamente. Desse
modo, o termo fandom pode ser interpretado como domínio dos fãs, ou seja, um
sistema de locais frequentados por eles. Tratam-se, portanto, das comunidades onde
os fãs se reúnem para publicar suas histórias e interagir com seus semelhantes.
Vargas (2005) comenta que com o aparecimento da internet, os fandoms cresceram
muito, rompendo barreiras linguísticas e espaciais, especialmente na década de 1990.
Os escritores de fanfic são, em sua maioria, bastante jovens. Por isto, temas
do universo pop são os mais comuns nas histórias. Basta uma pesquisa rápida pela
web pra saber que os maiores fandons são de personagens ou artistas que
representam este público, ex. Justin Bieber, Harry Potter.
É impossível quantificar os sites dedicados a publicação de fanfic, já que
muitos são, simplesmente, blogs pessoais ou sites exclusivos para o gênero. Para
este trabalho escolheu-se apresentar dois sites, ou - como eles se autodenominam -
plataformas de autopublicação, sendo um nacional Spirit: Fanfics e Histórias e outro
internacional Wattpad.

Plataformas de Autopublicação de Fanfics


A plataforma de autopublicação é uma maneira de o escritor lançar seu livro
sem precisar de uma editora. Esse sistema de publicação se tornou popular com o
crescimento do mercado de e-books e o pioneirismo de algumas empresas, como a
Amazon por exemplo. A diversidade destas plataformas ganhou a preferência dos
usuários nos últimos anos, permitindo, assim, que o autor também seja o editor de
suas obras. No Brasil, uma plataforma importante é a Spirit: Fanfics e Histórias, criada
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em 2003 com o nome AnimeSpirit para hospedar histórias sobre animes, mangás e
jogos em geral (SPIRIT FANFICS, 2017).

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Figura 1 - Página de Spirit na perspectiva de um usuário cadastrado

Fonte: Spirit Fanfics (2017).

Segundo dados da própria plataforma ela foi idealizada pelos irmãos Túlio
Henrique e Lana Beatriz Thomé e o foco da plataforma reside na divulgação de textos
originais, reunindo seus fãs e proporcionando momentos de lazer através da leitura,
bem como estimulando a criatividade de seus usuários (SPIRIT FANFICS, 2017).
Como pode ser observado na Figura 1, há diversos descritores, ou abas, que auxiliam
leitores e autores a navegar pelo site, sendo interessante destacar a aba de ―Aulas‖,
que remete o usuário a aulas de português, que são muito valorizadas por ficwriters
(escritores de fanfic).
A plataforma é atualizada regularmente e conta com a constante presença de
administradores ativos, que fiscalizam o cumprimento das regras de publicação.
Conforme dados estatísticos do Spirit a média de postagem diária é de 8.500
capítulos, em um acervo que, até o primeiro semestre de 2017, contava com mais de
507 mil publicações (obras) com, no total, mais de 8 milhões de capítulos (SPIRIT
FANFICS, 2017). Além do Brasil, são alcançados outros países com a língua
portuguesa, como Portugal e Angola.
Em escala internacional, há inúmeras plataformas de autopublicação
relevantes, entre elas optou-se em apresentar a Wattpad, contando com mais de 45
milhões de usuários (agosto, 2007), que, conforme o próprio site se autodenomina a
maior comunidade de leitores e escritores do mundo, funcionando como uma rede

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social, com serviço de cadastro de usuários e suporte para dispositivos móveis, por
meio de aplicativos.

Figura 2 - Resultado de busca na Wattpad

Fonte: Wattpad (2017).

Wattpad é uma plataforma canadense criada em 2006 por Ivan Yuen e Allen
Lau que, assim como Spirit, hospeda histórias publicadas por seus usuários. Além de
trabalhar com autores amadores, ela já recebeu publicações de autores famosos,
como Margaret Atwood e Paulo Coelho (SOPHIE ROCHESTER, 2012). Trata-se de
uma plataforma renomada no meio dos escritores e leitores de fanfic, recebendo
conteúdo de todos os fandoms imagináveis. A plataforma possibilita o uso em diversos
idiomas.
Seus recursos estão disponíveis em doze línguas e em dez nacionalidades.
Segundo o site (2017), Wattpad é um lugar para descobrir e compartilhar histórias:
uma plataforma social que conecta pessoas através das palavras. É uma comunidade
que supera fronteiras, interesses, linguagens. Nesta comunidade, qualquer pessoa
pode ler ou escrever em qualquer dispositivo – telefone, tablet ou computador – e as
histórias são livres. Elas podem estar online ou off, agregadas nos dispositivos móveis,
e podem ser acessadas em qualquer lugar que o usuário esteja. O usuário também

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pode participar de conversas sobre histórias que leu e gostou, enviar mensagens para
o autor e interagir com outras pessoas que gostaram da mesma história.
Para publicar no Wattpad, o usuário precisa realizar um cadastro e preencher
informações básicas. Ele também pode criar um perfil a partir das informações
importadas do Facebook ou Twitter. Para publicar histórias, basta clicar no link ―criar‖.
O site também permite a comunicação entre os usuários, que postam
comentários, adicionar uma história à biblioteca pessoal, votar nela e compartilhá-la
em outros sites de redes sociais. Os usuários também podem fazer parte de clubes
temáticos, participar de premiações (The Wattys e The Wattpad Prize), e na página
Wattpad Life testemunhar como sua vida mudou ou melhorou a partir do momento que
começou a usar o site. Esta plataforma foi desenvolvida com o propósito de construir
um ambiente no qual qualquer pessoa, gratuitamente, possa desenvolver suas
habilidades de produção textual e de leitura (WATTPAD, 2017).
No Wattpad os usuários podem seguir outros usuários, convidar amigos para
participar da rede. Um diferencial é a possibilidade de escrita colaborativa, onde um
grupo de usuários se junta em torno da escrita de uma obra. O site oferece recursos
de busca para que os usuários possam encontrar, separadas por categoria, as obras e
autores que estão em busca de colaboradores.
Uma característica comum nas duas plataformas observadas é a
possibilidade de seus leitores e escritores baixarem os aplicativos do Wattpad ou Spirit
em seus smartphones ou tablets. Tais aplicativos dispõem de ferramentas que
permitem ao sujeito escrever os mais variados tipos e gêneros textuais, podendo ou
não ser publicados ou compartilhados na web. A escrita do texto pode ser realizada
mesmo que o aplicativo não esteja conectado a uma rede de internet. O usuário tem a
opção de compartilhar seus escritos com outros permitindo que os leitores comentem
cada parágrafo.
A publicação de uma fanction, em ambos os sites, apesar de não sofrer com
controle editorial, segue um processo. Entre as formalidades exigidas, está uma nota
legal que declara a ausência de lucro e o reconhecimento de que todos os elementos
do texto pertencem ao autor da obra original. Outro procedimento é a classificação do
material a ser publicado, a fim não apenas de viabilizar sua recuperação, mas para
determinar o público alvo.
Após a classificação do material, começa a edição do texto. Os autores de
fanfic se preocupam em seguir regras que buscam uma escrita de acordo com as
normas ortográficas, para isto contam com ajuda de outros escritores que dão aulas
de gramática voluntariamente, como fica evidenciado na Figura 1. Uma das regras dos
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sites é não usar emoticons, representações gráficas de sentimentos,no corpo do texto,


as exceções são apenas se seu uso estiver nas notas do autor ou quando o texto for a
descrição de uma conversa dos personagens.Outra regra é o não aceite de textos de
baixa qualidade, que são aqueles com muitos erros ortográficos, erros gramaticais,
muitas incoerências, entre outros, o não cumprimento destas normas pode gerar a
exclusão de uma fanfic, mesmo que ela já tenha diversos capítulos publicados.
Além disto, o texto editado geralmente passa por uma revisão, que é
realizada por um usuário denominado beta-reader. Entretanto, a revisão não se
resume a gramática, ela também visa o conteúdo escrito, que deve estar de acordo
com as regras do fandom. Todas essas regras servem para a melhora da escrita e dos
textos dos usuários, já que o fórum é visitado por editoras e alguns usuários já tiveram
seus textos publicados na forma impressa e comercializados.
Depois da publicação de cada capítulo, autor e leitores podem se comunicar
em fóruns e grupos de discussão. Nesse momento, o autor pode receber um
feedback, que consiste nas impressões dos leitores, sejam para criticar, apresentar
sugestões ou simplesmente para deixar o autor ciente de que seu trabalho está sendo
apreciado, o que serve como valioso incentivo para que novos capítulos sejam
redigidos e publicados.
Esse feedback, em muitas plataformas, é denominado review. Como as
publicações são periódicas, com a fanfic dividida e publicada em capítulos, o review
acaba, servindo como estímulo, incentivando o autor a continuar sua história. Portanto,
nesse meio, a interação entre autor e leitor é condição de existência para o texto, algo
que é muito incomum na literatura tradicional, pois o formato de disseminação se
difere desse relatado.
Ao observar os modos de leitura dos usuários das plataformas, pode-se
constatar que eles seguem, parcialmente, as tendências apontadas no referencial
teórico. Recordando, as tendências apontadas foram: (1) leitura hipertextual, que
começa em um texto e, através de links, acaba em outro, caracterizando uma postura
ativa do leitor; e, (2), fragilização da distinção entre autor e leitor, marcada pela
possibilidade de o leitor aproveitar o conteúdo lido para escrever suas próprias
histórias. Enquanto foi constatada uma aproximação entre os conceitos de autor e
leitor, não foram detectados estímulos à leitura hipertextual.
Nos sites apresentados todos os usuários possuem uma biblioteca de
histórias, para gerenciar os textos que estão lendo, e um editor de histórias, no qual
podem redigir e publicar seus próprios escritos. Ademais, são incentivados a criticar os
capítulos publicados por outros usuários e debater com autores e leitores em fóruns de
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discussão, denominados grupos. Tais discussões podem ser especializadas,


abordando tanto decisões de narrativa quanto gramática. Desse modo, percebe-se
que essas plataformas são ambientes nos quais a distinção entre leitor e autor pode
ser irrelevante, visto que todos são autores e leitores.
Entretanto, as leituras não são necessariamente hipertextuais, visto que o
usuário é incentivado, pelo layout, a ler cada capítulo de uma só vez,
ininterruptamente. Leituras paralelas, anteriores ou posteriores, quando ocorrem, não
são realizadas por incentivo das plataformas, mas, provavelmente, por interesse do
leitor. As leituras paralelas seriam as realizadas ao mesmo tempo que a fanfic, as
anteriores que partiram de outros textos para chegar na fanfic e posteriores aquelas
que abandonam a fanfic para chegar em outros textos.
Complementando a questão das leituras anteriores, na hipertextualidade
antes definida, o leitor interromperia textos, traçando um caminho pela web com
fragmentos de textos descontinuados que formam um hipertexto. Nas plataformas de
autopublicação observadas, os textos são encontrados através de buscadores e
catálogos internos, que levam em conta o gosto do usuário (definidos quando ele se
cadastra e atualizados conforme ele usa a plataforma) e a popularidade das histórias.
Isso ocorre tanto no site Spirit como no Wattpad, o que faz os modos de leitura apenas
parcialmente concordantes com as tendências mencionadas no referencial teórico.
Fica evidente, portanto, que o gênero fanfic possui uma dinâmica muito
particular, com suas próprias regras e costumes, bem como histórias e lendas, todas
orbitando uma relação dialética entre autor e leitor, cujos papéis são exercidos por fãs.
Após apresentar as plataformas de autopublicação de fanfic e discorrer sobre os
modos de leitura e escrita na internet, apresentam-se as considerações finais deste
texto.

Considerações Finais
Diante do exposto, percebe-se que a leitura não é uma atividade passiva de
mera absorção de informações. Ela é uma atividade interpretativa que concretiza o
texto em uma relação dialética da qual o leitor é sujeito ativo. Ainda que individual, a
leitura configura-se como um ato dependente de diferentes elementos que interferirão
na compreensão do ato de ler.
Os resultados encontrados a partir da pesquisa documental, realizada nas
plataformas de autopublicação, levam a compreensão de que os modos de leitura e de
escrita são múltiplos e acompanham o contexto tecnológico disponível. Há mais de 20
anos a internet possibilitou que os leitores/fãs de determinadas obras, expressas em
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suas impressões e opiniões quanto ao texto lido. Além disso, mais recentemente, tais
plataformas como a Spirit e a Wattpad, permitem que os leitores tornem-se também
autores de suas próprias versões.
Considera-se que a intenção do autor de determinada obra nem sempre é a
mesma almejada pelo leitor, portanto, muitas vezes os leitores observam que uma
história poderia ter diferentes desdobramentos. Sendo assim, as fanfics são
produzidas a partir desses espaços vazios deixados no texto, uma vez que na criação
das fanfics os fãs retomam, refutam, confirmam, complementam ou sugerem outras
possibilidades aos escritos originais.
São poucos os ficwriters que renovam totalmente o texto de origem, utilizando
apenas os personagens ou os espaços da obra originária. Pelo contrário, a maioria
procura responder as questões deixadas no texto, mudar o fim da narrativa ou algum
acontecimento que, de acordo com o leitor da obra, não foi correspondente com a
linha de raciocínio do texto, entre outras hipóteses ou, ainda, recombinar alguns
elementos selecionados pelo autor da obra original, criando novas perspectivas para
determinado acontecimento.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

MENINOS NÃO CHORAM?: A RECEPÇÃO DO LEITOR


INFANTOJUVENIL NO CONTO ―NÓS CHORAMOS PELO CÃO
TINHOSO‖, DE ONDJAKI

Ângela da Silva Gomes Poz, Instituto Federal Fluminense,


Eixo Temático: A literatura juvenil e jovens leitores.

Considerações Iniciais

A obra do escritor angolano Ondjaki tem como uma das principais marcas a
narrativa sob a perspectiva infantojuvenil, o que lhe confere um singular lirismo e
originalidade. Em seu livro de contos ―Os da minha rua‖, publicado pela primeira vez
no Brasil no ano de 2007, seguindo essa marca, há um - ―Nós choramos pelo Cão
Tinhoso‖ - que se destaca por, além de trazer o narrador adolescente, também denotar
a recepção do leitor infantojuvenil à obra literária: nesse caso, um clássico da literatura
moçambicana, o conto ―Nós matamos o Cão-Tinhoso‖, de Luís Bernardo Honwana,
publicado em 1964.
Neste trabalho, fundamentado em estudos sobre a Estética da Recepção,
analisamos como o leitor adolescente recepciona uma obra literária clássica, como a
de Honwana, em uma conjuntura coletiva, em sala de aula, quando a professora de
Português da oitava série solicita que os alunos leiam o conto em voz alta. A
sensibilidade, a emoção, a construção da identidade, a formação da memória coletiva
e a busca pela autoafirmação, típicas dessa faixa etária, serão temas salientados na
análise dessa recepção.
Para a realização deste estudo, estabelecemos algumas comparações dos
dois textos que formam a relação de intertextualidade. Com aporte teórico em
Benjamin (2014), Crammer; Castle (2001), Foucambert (2008), Halbwachs (2004), Iser
(1996), Jauss (1994), Machado (2002), Ricoueur (2007) e Zilberman (1989),
pretendemos possibilitar ilações aos que se dedicam à formação de leitores
infantojuvenis, no intuito de despertar sua atenção ao relacionamento íntimo entre o
texto literário e a representação do leitor.
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Um texto que nasce da recepção de outro

―Nós choramos pelo Cão Tinhoso‖ é o penúltimo dos 22 contos que compõem
o livro ―Os da minha rua‖ (2007), do escritor angolano Ondjaki. O conto é dedicado à
personagem ―Isaura‖ e a o seu criador, o moçambicano Luís Bernardo Honwana, autor
da obra com quem Ondjaki estabelece intertextualidade – ―Nós matamos o Cão-
Tinhoso‖ (1964), também um livro de contos, que tem como foco o primeiro,
homônimo.
Ondjaki, que também usa a voz de uma narrador adolescente, retoma a
emoção causada pela história do Cão Tinhoso. Seu conto, como o de Honwana, traz
as marcas da violência e da guerra em Angola que, tal qual Moçambique, após
conquistar a independência em 1975, sofreu com uma longa e sangrenta guerra civil.
Levantando algumas comparações entre os dois contos, percebemos que:
―Nós matamos o Cão-Tinhoso‖ é uma obra de um autor moçambicano e se ambienta
em Moçambique. O ano de publicação é o de 1964, em plena guerra pela
independência daquele país. ―Nós choramos pelo Cão Tinhoso‖ é um conto de um
autor angolano e se ambienta em Angola. O ano da história contada pelo narrador é o
de 1990, quando esse país passa pela guerra civil, pós-independência. Ou seja,
passado e presente se encontram, em África, em países que passavam por difíceis
momentos de sua História.
Honwana dedica seu livro a José Craveirinha, considerado pai da poesia
moçambicana, militante da FRELIMO, e Ondjaki dedica seu livro a Honwana e sua
triste personagem Isaura, mas dentro de sua história, um dos meninos personagens é
alcunhado de Agostinho Neto, o grande poeta angolano que, assim como Craveirinha
e Honwana, que foram presos e sofreram as agruras de lutarem pela libertação de seu
país, também foi preso, sofreu e muito lutou pela libertação de Angola, inclusive com
sua obra, tendo sido, após a independência, o primeiro Presidente da República de
Angola.
O espaço principal da narrativa de Honwana é uma escola moçambicana do
período colonial, com uma professora portuguesa, ou seja, que representa o
colonizador. Essa professora se mostra cruel, repressora, preconceituosa e aplica
castigos físicos e psicológicos nos alunos. No conto de Ondjaki, o espaço também é
uma escola, angolana, do período pós-independência, e a professora é cubana,
chamada de ―camarada professora‖ pelo narrador. Diferentemente da professora do
primeiro conto, essa parece se preocupar com a formação daquelas crianças no

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sentido do pertencimento à sua terra e as trata com maior respeito e uma certa ternura
– quando, no conto, se aproxima do aluno que lê a história do Cão Tinhoso e se sente
emocionado, prestes a chorar – como a, em silêncio, apoiá-lo e dar-lhe força para
concluir a leitura. Ela, ao escolher aquela leitura, nos parece desejar fazer com que os
alunos se sensibilizem com a condição dos oprimidos.
Passado e presente se encontram no segundo conto e seus personagens
alunos são leitores do primeiro, assim como seu autor Ondjaki é leitor de Honwana.
Segundo Regina Zilberman (1989, p.33), ―[...] a relação dialógica entre o leitor e o
texto [...] é o fato primordial da literatura, e não o rol elaborado e depois de concluídos
os eventos artísticos de um período‖, assim percebemos que Ondjaki insere esse fato
primordial no seu conto, fazendo uma ilustração da estética da recepção, na qual nos
basearemos para refletir sobre os efeitos daquela leitura diante do horizonte de
expectativas deles, especialmente do menino narrador.

O papel da memória na recepção do texto

O espaço da narrativa de Ondjaki é uma sala de aula. O narrador já começa dizendo


―Foi no tempo da oitava classe, na aula de português.‖ (ONDJAKI, 2015, p.131)
Importante destacarmos a importância desse espaço para a formação do leitor,
também por ser extremamente relevante para o entendimento da memória social. A
sala de aula ―é um lugar privilegiado de deslocamentos de pontos de vista da
memória‖, segundo Paul Ricoeur (2007, p.131). É nesse espaço de construção de
memória coletiva que a memória individual do narrador já lhe desperta a expectativa
das sensações que adviriam do texto. A professora havia solicitado aos mais hábeis
leitores da turma que lessem, naquela aula, em voz alta, o conto de Honwana. O
narrador sinaliza que sua turma da 6ª classe já o havia lido há dois anos antes.
Provavelmente era a mesma turma que agora estava na 8ª classe. Assim sendo, o
conto nos faz entrever que as sensações temidas pelo narrador poderiam também
estar sendo temidas por outros colegas, naquele espaço coletivo. O narrador nos
explicita suas lembranças e reação (ONDJAKI, 2015, p.131):

Eu lembrava-me de tudo: do Ginho, da pressão de ar, da Isaura e das


feridas penduradas do Cão Tinhoso. Nunca me esqueci disso: um
cão com feridas penduradas. Os olhos do cão. Os olhos da Isaura. E
agora de repente me aparecia tudo ali de novo. Fiquei atrapalhado.

Podemos observar que o menino se desconcerta porque ele precisará ler,


em público, um texto repleto de dramas, que já conhecia. Provavelmente, outros da
turma também se desconcertaram. O narrador nos sinaliza isso no decorrer do texto,

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mas, sendo um menino ainda, ele se empenha a expor o que se passa em seu mundo
interior, embora esse sentimento individual tenha se construído a partir de um fato
coletivo: a leitura anterior do texto e as experiências de leituras de textos e de mundo
que esses adolescentes tiveram dentro dos dois anos passados e como se encontram
agora. Segundo Maurice Halbwachs (2004, pp. 75-6),

A lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a


ajuda de dados emprestados do presente, e, além disso, preparada
por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a
imagem de outrora manifestou-se já bem alterada.

É certo que o menino sentiu o ―peso‖ do texto instigado pela lembrança de


quando o leu, dois anos antes. Mas naquela época ele ainda não tinha experimentado
aquela sensação nem outras que se revelaram ao longo desse intervalo de tempo.
Também a turma tinha essa lembrança, porém nesse momento com a imagem
alterada, numa experiência coletiva de recordar: ―Eu já tinha lido esse texto há dois
anos antes mas daquela vez me parecia mais bem contada com detalhes [...]‖, e
ainda: ―Era um texto muito conhecido em Luanda: ‗Nós matamos o Cão Tinhoso‘‖
(ONDJAKI, 2015, p.131). Nesse ponto, notamos como muda o efeito de um mesmo
texto num mesmo leitor, a partir do que ficou registrado da primeira experiência em
sua memória. Acerca desse ponto, Halbwachs (2004, pp.57-9) observa:

A memória individual não está isolada. Frequentemente, toma como


referência pontos externos do sujeito. O suporte em que se apoia a
memória individual encontra-se relacionado às percepções
produzidas pela memória coletiva e pela memória histórica.

A memória do narrador está muito viva quanto ao texto até porque a leitura
do mesmo tinha sido efetuada por sua classe também no passado. Todas as
angústias diante daquele texto conhecidamente triste são despertadas por ter sido
uma experiência coletiva e, enquanto dura o grupo, permanece a memória individual.
A professora, ao que indica o texto, não fazia parte do grupo da 6ª classe, por isso não
compartilha das mesmas sensações da turma, especialmente do menino que terá de
ler em voz alta. Indiferente ao que se passa, ela pede que a leitura seja feita em voz
alta. E o narrador pondera (ONDJAKI, 2015, p.132):

Na sexta série eu também tinha gostado bué dele e eu sabia que


aquele texto era duro de ler. Mas nunca pensei que umas lágrimas
pudessem ficar tão pesadas dentro de uma pessoa. Se calhar, é
porque uma pessoa na oitava classe já cresceu um bocadinho mais
[...]

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Um clássico para o leitor infantojuvenil

Importante ressaltar que Honwana é considerado um clássico da literatura


moçambicana. A força da obra diante da sua importância histórica, a sensibilidade do
autor que utiliza-se de linguagem metafórica para traduzir uma realidade de prisão e
luta e uma reação ao sofrimento perpetrado pelo colonizador contra seu povo, a
atemporalidade do texto que será voz para quaisquer leitores em situação de
opressão, entre outros fatores, são de suma importância para a formação daqueles
jovens leitores, num país que lutava para manter sua independência e reconstruir-se a
partir dela. Dentro dessa reflexão, lembramos uma definição de clássicos, por Italo
Calvino: ―Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se
impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória,
mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual‖ (CALVINO, 1993, apud
MACHADO, 2002, p.23). Ainda sobre a singular importância do encontro do leitor
jovem com os clássicos, define-os Ana Maria Machado (Idem, p.24):

Em suma, são livros que conseguem ser eternos e sempre novos.


Mas que, ao serem lidos no começo da vida, são fruídos de uma
maneira muito especial, porque ―a juventude comunica ao ato de ler,
como a qualquer outra experiência, um sabor e uma importância
particulares‖.
Ou seja, não há razão para deixar de ler os clássicos desde cedo.
Estão à nossa disposição, com toda a opulência de seu acervo, a
generosidade de sua oferta. Dispensá-los por ignorância seria uma
grande perda.

A professora daquela turma não dispensou a importância de levar àqueles


adolescentes o clássico ―Nós matamos o Cão-Tinhoso‖. Ondjaki aproveita o espaço
abrangente de sua obra para mostrar a importância de um educador estar atento à
necessidade de formação de leitores fluentes e críticos, que, inclusive, por meio da
emoção, tomem consciência de si mesmos e da sociedade em que estão inseridos (no
caso, aqueles jovens angolanos, em plena época de autoafirmação e busca por sua
identidade, assim como o seu país). Ela solicita a leitura em voz alta e seleciona,
antes, quem lia melhor. Essa atitude da personagem docente, a ―camarada
professora‖, é bem acertada no sentido de enfatizar o potencial literário daquele texto,
viabilizando maior percepção por parte dos alunos. ―Norton (1992) estimula leituras em
voz alta a fim de dar aos estudantes do ensino fundamental e médio as oportunidades
de ‗apreciar os livros e clássicos premiados‘‖ (NORTON, 1992, apud RICHARDSON In
CRAMER; CASTLE, 2001, p.233). Acrescentamos ainda o que Jean Foucambert
(2008, p.142) registra a esse respeito:

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Assim, enquanto a aprendizagem da leitura falada e treino da leitura


silenciosa, favorecemos a comunicação oral de um texto escrito a
cada vez que, a partir de sete ou oito anos, a situação o justificar [...].
Não esqueceremos nunca que essa atividade é difícil, pois introduz
entre o olho e a voz um deslocamento que permite escolher as
entonações e os efeitos; essa escolha leva em conta a significação
do texto, a intenção do leitor e as reações possíveis ou efetivas dos
ouvintes. A leitura em voz alta é, com efeito, diferentemente da leitura
ordinária, uma partida que se joga a três, cabendo ao leitor
assegurar, então, a mediação entre um texto e seus destinatários
efetivos.

A leitura em voz alta costuma ser muito apreciada pelos leitores, inclusive o
era por aqueles garotos que foram escolhidos pela professora. No entanto, devido ao
horizonte de expectativas daqueles leitores, especialmente daquele menino – pois é
ele que se revela para nós – tornou-se incômoda, no melhor sentido da expressão,
visto que a obra não se trata de uma ―arte culinária‖ ou de mera diversão, mas uma
obra que o incomodou desde que leu pela primeira vez – cumprindo o papel da alta
literatura, e, agora, diante de seu crescimento, ainda mais. De acordo com Hans
Robert Jauss (1994), o horizonte de expectativas de um texto diz respeito às
expectativas que um leitor nutre em relação ao texto. O narrador do conto de Ondjaki
já sabia que seria dominado pela vontade de chorar quando lesse aquele texto e que
precisaria de forçar a contenção das lágrimas diante dos outros. ―[...] o último
normalmente era o que lia já mesmo muito bem. Mas naquele dia, com aquele texto,
ela não sabia que em vez de me estar a premiar, estava a me castigar nessa
responsabilidade de falar do Cão Tinhoso sem chorar‖ (ONDJAKI, 2015, p.135). Ou
seja, ele sofreu por antecipação. Mas foi um sofrimento que o fez crescer, mesmo
diante da tristeza provocada pelo texto – com o sofrimento das personagens Ginho,
Isaura e o Cão Tinhoso, de Honwana – e com o seu próprio sofrimento naquele
instante, perante os colegas e a professora. Esse encontro de personagens,
especialmente narrador e protagonista adolescentes do conto lido e dos seus leitores,
provoca uma identificação da obra com o leitor, cuja compreensão será mais
abrangente. Segundo Jauss (1994, p.28),

A obra que surge não se apresenta como novidade absoluta num


espaço vazio, mas, por intermédio de avisos, sinais visíveis e
invisíveis, traços familiares ou indicações implícitas, predispõe seu
público para recebê-la de uma maneira bastante definida. Ela
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desperta a lembrança do que já lido, enseja logo de início


expectativas quanto ao ―meio e fim‖, conduz o leitor a determinada
postura emocional e, com tudo isso, antecipa um horizonte geral de
compreensão vinculado, ao qual se pode, então – e não antes disso –
, colocar a questão acerca da subjetividade da interpretação e do
gosto dos diversos leitores ou camadas de leitores.

No contexto do conto de Ondjaki (2015), essa premissa quanto à recepção


se cumpre literalmente, uma vez que o leitor já havia lido o texto, e desde o anúncio da
professora quanto à atividade da leitura em voz alta, foi conduzido pela obra à postura
emocional do medo de não conter as emoções e chorar em público, o que serviria de
motivo para chacotas da turma. A obra clássica de Honwana, surgida num contexto de
sofrimento e revelando-o em seu enredo e personagens, já era muito conhecida e
aquele grupo que a leria já sentia os efeitos de sua recepção, que, nessa releitura,
toma novos contornos.

Meninos não choram?

Os meninos personagens de Luís Bernardo Honwana aproximam-se dos


meninos personagens de Ondjaki em diversos aspectos, alguns já supramencionados
neste trabalho. Todavia, o que mais desejamos frisar é a situação de opressão social
em que se encontram os meninos das duas obras.
O primeiro conto é carregado de emoção, quando um grupo de meninos é
encarregado de matar um cão, o chamado ―Cão Tinhoso‖, que aquela comunidade –
desde a ―Senhora Professora‖ portuguesa ao ―Senhor Administrador‖, seguidos pelas
crianças – consideravam ―um nojo‖ (HONWANA, 2008, p. 34), mas que era amado por
uma menina, Isaura, também vítima de exclusão por parte dos colegas, inclusive
estimulados pela professora, com suas falas discriminatórias em relação à aluna.
Ginho, o menino narrador, sente por Isaura e sente pelo Cão Tinhoso, mas não
consegue manter sua postura contrária diante do grupo que violentamente vai cumprir
a ordem de matar o cachorro, dada pelo ―Senhor Duarte da Veterinária‖, que faz
questão de abster-se de um propósito cruel que poderia ser por ele mesmo atenuado,
preferindo delegá-lo às crianças, de modo a banalizar a violência tão presente naquela
sociedade. Ginho é encarregado de puxar o cão pelo pescoço, amarrado por uma
corda, pela estrada do Matadouro, e ainda de desferir o primeiro tiro no indefeso
animal. Acrescenta-se a esse drama o fato de ele ter ouvido a história do Quim (que
conduz a barbárie a mando do ―Senhor Duarte da Veterinária‖), de que o cão era
daquele jeito estropiado por ter conseguido ―fugir da bomba atômica‖ e ter chegado até
ali. Na visão daquela criança, o cachorro representava um herói. Soma-se a isso o brio

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representado pelo cão ao não fugir diante do ataque de outros cães, saudáveis e
jovens, em grandes atos de valentia, mesmo com sua total fragilidade física e
vulnerabilidade diante dos demais.
Ao ter de matar o Cão Tinhoso, Ginho, junto aos outros meninos, matavam
não um cachorro doente, mas o símbolo da resistência. E eles, sem saber, cumpriam
o que queria o colonizador: pôr os oprimidos uns contra os outros, eliminando seu
sonho de libertação, sua confiança, seu brio. Os meninos eram também excluídos
socialmente, numa colônia de um Império português que insistia em se impor. Mesmo
sem toda essa consciência, a emoção conduz as personagens Ginho e Isaura, que
relutam contra o assassinato do cachorro, em vão, pois não resistem diante da
avassaladora gana de morte dos demais que os rodeavam.
Assim como no conto de Honwana as personagens infantojuvenis são
expostas a preconceito, machismo e muitos outros tipos de violência e Ginho é
pressionado a ceder – ―Porra, atiras ou não, preto de merda?‖ (Idem, p.44), também
as personagens de Ondjaki, mesmo diante de uma professora mais camarada
(aproveitando a extensão do sentido do termo usado no texto) e de uma leitura em voz
alta em vez de um iminente crime contra um ser vivo, sentem-se pressionados pelo
machismo ainda vigente o qual determina que ―meninos não choram‖ (ONDJAKI,
2015, p.135):

Na terceira parte, até a camarada professora começou a engolir


cuspe seco na garganta bonita que ela tinha, os rapazes mexeram os
pés com nervoso miudinho, algumas meninas começaram a ficar de
olhos molhados. O Olavo avisou: ―quem chorar é maricas então!‖ e os
rapazes todos ficaram com essa responsabilidade de fazer uma cara
como se nada daquilo estivesse a ser lido.

O jovem narrador de Ondjaki sente o efeito da opressão sofrida pelo


personagem do conto de Honwana e sofre no momento da leitura, por precisar conter
o choro diante dos outros, lutando contra si mesmo, contra a força da emoção. Uma
situação de desconforto que se estende aos leitores dos dois contos. Sendo ele uma
criança (tem cerca de 14 anos), envolve-se de maneira muito mais íntima com a
personagem do texto que lê. De acordo com Walter Benjamin (2014, p.105),

A criança mistura-se com as personagens de maneira muito mais


íntima do que o adulto. É atingida pelo acontecimento e pelas
palavras trocadas de maneira indizível, e quando a criança se levanta
está inteiramente envolta pela neve que soprava da leitura.

Dessa forma, podemos imaginar e até sentir, como leitores, a emoção


contida por essa criança ao precisar manter-se lendo em voz alta, à mira de todos,

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sem poder derramar suas lágrimas, mesmo diante da percepção de que outros
colegas se continham também: ―Levantei-me e toda a turma estava também com os
olhos pendurados em mim. Uns tinham virado para trás para ver bem a minha cara,
outros fungavam o nariz tipo constipação de cacimbo‖ (ONDJAKI, 2015, p.143).
Salientamos que o narrador que antes frisou nuca ter-se esquecido da expressão ―cão
com feridas penduradas‖, aqui diz que ―os olhos‖ da turma ―estavam pendurados‖ nele.
Ou seja, ser o centro das atenções, precisando se conter para não passar por situação
vexatória, numa fase da vida em que a busca pela aceitação mais se intensifica e
quando é tão difícil portar-se diferentemente diante de outras pessoas, ―abre feridas‖
também no narrador, que, nesse momento, precisa ser ―tinhoso‖ como o cão – ou seja,
é o momento que a literatura, numa mediação da professora, oportuniza à criança uma
experiência que ajuda em seu amadurecimento, mesmo que dolorosamente, mas –
pelo menos na concepção daquela professora – necessária no contexto social
daqueles meninos. São comoventes as palavras finais do narrador, que, em nosso
entender, chora alto através da narração e passa para nós, receptores do conto, a
tarefa de derramar – se a nós ―for permitido‖ – suas nuvens de lágrimas (Idem, p.136):

– Camarada professora – interrompi numa dificuldade de falar. – Não


tocou para a saída?
Ela mandou-me continuar. Voltei ao texto. Um peso me atrapalhava a
voz e eu nem podia só fazer uma pausa de olhar as nuvens porque
tinha que estar atento ao texto e às lágrimas. Só depois o sino tocou.
Os olhos do Ginho. Os olhos da Isaura. A mira de pressão de ar nos
olhos do Cão Tinhoso com as feridas dele penduradas. Os olhos do
Olavo. Os olhos da camarada professora nos meus olhos. Os meus
olhos nos olhos da Isaura nos olhos do Cão Tinhoso.
Houve um silêncio como se tivessem disparado bué de tiros dentro da
sala de aulas. Fechei o livro.
Olhei as nuvens.
Na oitava classe, era proibido chorar à frente de outros rapazes.

Embora o título do conto seja ―Nós choramos pelo Cão Tinhoso‖, o narrador
que fala por esse ―nós‖ é obrigado a conter seu choro, diante da pressão social. E
assim como o narrador de Honwana é reprimido pelo que se passa em seu entorno,
ele também é. Salientamos, porém , a magistral criação de Ondjaki de fazer perpetuar-
se a emoção na recepção da obra com a qual dialoga e, ainda, a partir dela, promover
outras emoções e reflexões com a sua, abrindo sucessivas possibilidades de análises
da recepção da arte literária.

Considerações finais

Neste estudo procuramos analisar como leitores infantojuvenis recepcionam


uma obra clássica com profundas marcas histórico-sociais que se aproximam das
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vivenciadas pelos leitores, dentro de determinado contexto, no caso, numa aula de


Português, em uma turma composta por adolescentes.
A leitura da obra clássica efetuada pelo narrador do conto de Ondjaki deixa
nítido o papel do leitor referidos por Wolfgang Iser (1996, p.75): ―O papel do leitor
representa, sobretudo, uma intenção que apenas se realiza através dos atos
estimulados no receptor. Assim entendidos, a estrutura do texto e o papel do leitor
estão intimamente ligados‖. Ele lê o texto na medida de como o recepciona.
Destacamos como a formação da memória coletiva resulta na memória
individual e como isso influenciou a recepção da obra, relida pelo narrador e seus
colegas. A professora, segundo ele, parece também conter a emoção incitada pela
leitura do conto, mas ela pode conter-se ao ponto de insistir na leitura até o fim, pois
não recebe a mesma carga emocional que os meninos recebem naquele momento,
primeiro por não ter a sua idade e por ter recebido o conto de outra forma, não
revelada pelo texto, mas seguramente não da mesma forma do narrador. Também
pesa o fato da condição daqueles meninos que Ondjaki (2015), numa intertextualidade
e retomada de estratégias, põe em evidência dentro do contexto trágico da opressão
sobre o continente africano.
Interessou-nos também observar o papel do professor como mediador de
leitura em sala e aula, com a observação da personagem professora de Português e o
que despertou essa atividade na formação leitora daqueles meninos. A emoção
contida pelo narrador e sua turma na releitura do conto de Luís Bernardo Honwana,
com o poder que só a literatura possui, encontrará em leitores de todas as idades e de
todas as partes do mundo a possibilidade de derramar-se e produzir sempre novos
efeitos, em cada nova recepção.

Referências

BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação.


Tradução, apresentação e notas de Marcus Vinicius Mazzari; posfácio de Francisco Di
Giorgi. São Paulo: Duas Cidades: Editora 34, 2014. 2ª Reimpressão.

CRAMMER, Eugene H.; CASTLE, Marrietta. Incentivando o amor pela leitura. Trad.
Maria Cristina Monteiro. – Porto Alegre: Artmed, 2001.

FOUCAMBERT, Jean. Modos de ser leitor. Tradução de Lúcia P. Cherem e Suzete


P. Bornatto. – Curitiba: Editora UFPR, 2008.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Editora Centauro, 2004.

HONWANA, Luís Bernardo. Nós matámos o Cão-Tinhoso. Lisboa: Cotovia, 2008.


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ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução: Johanns
Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1996, v.1.

JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária.


Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994. (Série Temas, v.36).

MACHADO, Ana Maria. Como e por que ler os clássicos universais desde cedo.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.

ONDJAKI. Os da minha rua. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2015.

RICOUER, Paul. A memória, a história e o esquecimento. Trad. Alain François et.


al. Campinas: Ed. da UNICAMP, 2007.

ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo:


Ática, 1989.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

NARRATIVA JUVENIL CONTEMPORÂNEA: A CONSTRUÇÃO


DA IDENTIDADE JUVENIL EM OBRAS BRASILEIRAS E
PORTUGUESAS

Andressa Fajardo, Universidade Estadual de Maringá, A literatura juvenil e


jovens leitores, Capes

Considerações Iniciais

A literatura destinada ao jovem leitor tem sido reconhecida não apenas como
uma literatura de caráter escapista, mas também como uma literatura repleta de
cultura atual. Daí a importância da identidade pós-moderna que ressalta o mundo por
meio da fusão entre linguagem e outros elementos que marcam sua especificidade
como objeto estético, entre eles, os temas abordados e o projeto gráfico. Esses
fatores, somados aos anteriormente citados, trazem a compreensão de que a literatura
juvenil colabora com a formação do jovem leitor, pois incorpora ao texto diversos
elementos que o aproximam da sua própria realidade.
A preocupação com o que escrever e produzir para os jovens leva a crer que o
enfrentamento desse gênero literário na literatura brasileira tem se dado de diferentes
formas. Ou seja, as narrativas juvenis procuram representar não apenas o cotidiano
dos jovens, mas também suas ansiedades, suas expectativas, suas dificuldades por
meio de personagens que vivenciam, constantemente, momentos de amadurecimento
e de descobertas. Todavia, isso acontece não porque os assuntos transmitidos aos
leitores sejam os mesmos, mas, ao contrário, ―porque o escritor dá às palavras a
possibilidade de múltiplas interpretações, o que permite sua leitura variada em
contextos espaciais e temporais diferentes‖ (AGUIAR, 2010, p. 24). E é por isso que o
dinamismo interno da literatura é o responsável por garantir uma continuidade literária.
Esse elemento permite, portanto, que temas, tais como: morte, sexualidade,
medo, violência, tragédia, descobertas, construção da identidade, inclusão e exclusão
social, preconceitos etc., passem a ser explorados pelos textos literários juvenis,
rompendo, dessa forma, com a tradição do universo infantil do famoso ―final feliz‖.
611

Sendo assim, cada vez mais, as obras literárias para essa categoria destacam um
leitor literário que consegue compreender os textos segundo a sua experiência de vida
e experiência literária.
Nessa perspectiva, a constatação da importância da narrativa juvenil pode ser
vista como o ponto de partida deste trabalho que objetiva analisar a produções de
narrativas brasileira e portuguesa juvenis contemporâneas buscando estabelecer um
diálogo inter-cultural entre ambas, a partir dos estudos comparados, os quais serão
alicerçados à teoria da recepção. Para tanto, alguns estudos, entre eles, os de Tania
Franco Carvalhal (1986) e Sandra Nitrini (2010) na teoria comparativa e Hans Robert
Jauss (1994) e Wolfgang Iser (1996), na teoria recepcional fazem parte de nossa
fundamentação teórica. Com isso, o método analítico se pauta em um levantamento
de caráter bibliográfico que oferece os subsídios para o desenvolvimento da análise
temática de cada uma das narrativas juvenis, previamente selecionadas.

Desdobramentos históricos e conceituais do comparativismo literário

Em termos históricos, a expressão "literatura comparada" passou a ser


utilizada de modo sistematizado a partir do século XIX, com base na corrente de
pensamento cosmopolita, o qual buscava comparar estruturas e fenômenos
semelhantes para extrair deles leis gerais. Entretanto, esse termo já havia sido
utilizado em obras de Francis Meres, em 1598, durante sua obra intitulada Discurso
comparado de nossos poetas gregos, latinos e italianos. Em 1602, outras obras
aparecem novamente fazendo menção ao termo, entre elas, Discurso comparado das
leis, de Willian Fulbeck e um tempo depois, aparece a obra Anatomia comparada dos
animais selvagens, de Jhony Gregory. Entretanto, é no decorrer do século XIX, que o
significado do termo ganha o seu verdadeiro sentido com a obras Lições de anatomia
comparada, de George Cuvier (1800), História comparada dos sistemas de filosofia,
de Degérand (1804) e Filosofia comparada, de Blainville (1833) (CARVALHAL, 1986).
Segundo Afrânio Coutinho (1983), umas das principais discussões que marcam
os Estudos Comparados, desde o seu surgimento até a contemporaneidade, diz
respeito à sua definição como disciplina, ao seu objeto de análise e aos seus métodos
e pressupostos de investigação. Com base nesses questionamentos, Henry H. H.
Remak (1961) afirma, que a literatura comparada pode ser compreendida, como o
estudo da literatura para além das fronteiras de um país específico, e o estudo das
relações entre literatura a partir de outras áreas do conhecimento, entre elas, as artes,
a filosofia, a sociologia etc. O comparatismo, portanto, se configura como um estudo
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das diversas literaturas nas suas relações entre si, a partir do momento em que essas
ligam-se às outras na inspiração, no conteúdo, na forma e no estilo. Entretanto, para
Paul Van Tieghem (1931), a literatura comparada, ao contrário da literatura nacional e
da ciência da literatura, não examina o valor estético de uma determinada obra, mas
sim, a sua historicidade, a influência e o empréstimo.
Essa tendência, por sua vez, foi se aperfeiçoando ao longo do tempo de modo
intelectual e, também, disciplinar dentro do contexto europeu. Para Nitrini (2010), ao
que tudo indica, a expressão "literatura comparada" surgiu de um processo
metodológico, o qual se aplicava às ciências, cuja comparação servia para contrastar
um determinado meio com a intenção de confirmar uma hipótese. Por outro lado, o
surgimento da Literatura Comparada está relacionado à corrente de pensamento
cosmopolita, desenvolvida durante o século XIX, época na qual comparar estruturas
ou fenômenos diferentes, com a intenção de retirar elementos gerais, foi considerada
dominante nas ciências naturais (CARVALHAL, 1986).
Entre o século XIX até meados do século XX, principalmente na França, o
vocábulo que melhor define essa disciplina, é a o termo "influência", conceito esse que
ocupará uma relevante posição na literatura comparada, como instrumento teórico e
como direção dos estudos comparatistas, principalmente, após o século XX.
Entretanto, a partir da década de 50 e 60, René Wellek propõe uma estrutura a Teoria
da Literatura como disciplina e com isso, rompe com o comparativismo tradicional. A
sua proposta ligava-se a leitura profunda de um texto sem levar em consideração
apenas os fatores que lhe são extrínsecos, ou seja, para o estudioso deve haver
também, uma valorização do contexto de produção dessas obras para que assim, o
cotejamento possa de fato ocorrer. Logo, a concepção da obra de arte passa a ser
vista como uma totalidade diversificada, como uma estrutura de signos que exige
novos significados e valores. Com isso, há um afastamento do trabalho com o conceito
da influência.
Como disciplina autônoma, a literatura comparada tem por objeto e métodos
próprios, os quais podem ser definidos, respectivamente, no estudo das diversas
literaturas e nas suas relações estabelecidas entre si, isto é, nas ligações criadas entre
elas, no que diz respeito à inspiração, ao conteúdo, a forma e ao estilo. Desse modo,
propõem-se estudar tudo o que passou de uma literatura para outra, praticando uma
ação, de natureza variada e por contatos binários entre obra e obra, obra e autor,
autor e autor etc., diferentemente, do que faz a Literatura Geral. Ademais, os
procedimentos de comparação, parte da concepção de que a literatura e sua história
revelam uma análise de esquemas de polaridades estruturais, tais como: o diálogo e o
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conflito, o extrínseco e o intrínseco, o particular e o universal. Essas relações são


feitas, com a necessidade de se compreender a influência ou a transmissão, no caso,
de gêneros, de estilos, de ideias e de sentimentos de uma produção para a outra.
Nesse sentido, a formação da literatura comparada encontra-se somente
durante a análise da essência dos fenômenos literários individuais por meio da
comparação de fenômenos análogos (CARVALHAL, 1986). Isto é, desvendar as leis
que são responsáveis pelas semelhanças bem como pelas diferenças. Com base
nessa concepção, ela, por sua vez, será responsável em estudar qualquer literatura de
uma perspectiva internacional, como uma consciência da unidade de criação e
experiência literária. Logo, não se limita a trabalhar com um único método, pois em
seu discurso, descrição, caracterização, interpretação, narração, explanação,
avaliação usa-se o comparativismo como base para a suas elaborações.
Com isso, notamos que a literatura não se constrói como objeto de estudo
estanque, imanente e cristalizado, mas sim, a partir do constante diálogo entre textos
e culturas, os quais também, faz uso de outros teorias, que se ligam dentro da
formação dos estudos comparados. Entre elas, podemos citar o dialogismo, e a
intertextualidade, de bases bakhtinianas, cujo o objetivo de ambas é estudar o diálogo
ao mesmo interno e externo à obra e, também, a Estética da Recepção, a qual ao
integrar o leitor, como elemento primordial no método receptivo, se torna a
responsável em não apenas produzir os sentidos para o texto, mas também, dá base
para que as demais concepções teóricas aconteçam. Segundo o estudioso e o
primeiro a abordar o conceito de intertextualidade, essa teoria, que mais tarde passou
a ser denominada como dialogismo pelo mesmo, pressupunha que todo o discurso
constitui-se perante o outro e não sobre si mesmo. Isto é, na voz de qualquer falante,
sempre encontramos a voz do outro, pois é "o outro" que no define, que nos completa.
Aliás, Bakhtin (1997, p. 147), ressalta que "a língua não é o reflexo das hesitações
subjetivo-psicológicas, mas das relações sociais dos falantes", e por isso, fica evidente
que a incorporação do discurso de outrem vai, ao mesmo tempo, formular o
posicionamento social do mesmo e apresentar outras possibilidades de
posicionamento por ocasião da enunciação. Dessa forma, torna-se fundamental que
haja o uso do discurso do outrem na construção da narrativa, pois é por meio dele,
que o narrador é capaz de traçar um panorama de diferentes perspectivas para os
eventos narrados.
Nesse sentido, é possível afirmarmos que o discurso nunca está completo,
uma vez que sempre haverá "brechas", as quais deverão ser preenchidas pelo outro,
sendo essas capazes de construir um discurso individual, permitindo o leitor ouvir as
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vozes ou que essas sejam desvendadas, pois permanecem "mascaradas" por um


discurso monologizado. Sendo assim, Bakhtin (1997) estabelece duas categorias de
textos, os quais podem ser polifônicos ou monofônicos. Compreende-se por texto
polifônico (dialógico) aquele, em que se deixam entrever as vozes presentes, ou seja,
em que o(s) discursos de outrem não apenas se fazem presente, mas são construídos
sem nenhuma hierarquização das vozes constitutivas do discurso. Já o texto
monológico, observamos a manipulação da enunciação pelo narrador, que insere sua
perspectiva em um lugar superior ao daquele ocupado pelo sujeitos das vozes
constitutivas do mesmo.
Com base nas concepções bakhtinianas, a semioticista Julia Kristeva (1969)
nomeia de "intertextualidade", aquilo que o estudioso denominou como sendo
dialogismo94. Dessa forma, toda relação dialógica passou a ser compreendida como
uma relação intertextual A partir de 1967, com a publicação da revista Critique, a
pesquisadora ressalta que o discurso literário é capaz de dialogar com várias
escrituras. Entretanto, para que ocorra o processo de intertextualidade, é necessário
que o leitor possa reconhecer a presença de outro texto ou de fragmentos produzidos
anteriormente, os quais estabelecem uma relação com o texto lido. Nesse caso, a
própria subjetividade somente é construída a partir do momento da leitura, vista
enquanto procedimento semiótico. Em outras palavras, é fundamental que ocorra a
presença do chamado "intertexto"95, o qual é responsável em promover um processo
de interação e intercâmbio semiótico de um texto primeiro com outro texto, ou outros
textos, particularmente com o texto cultural, o texto histórico e o texto social, sendo
esses interligados, sem no entanto, serem redutíveis um ao(s) outro(s).
Nessa perspectiva, a intertextualidade configura-se como uma espécie de
citação inconsciente ou automática realizada sem aspas e sem a explicitação do texto
de origem. Ao designar o termo Kristeva (1969), buscou o entrecruzamento de
palavras/textos que dão origem a outras palavras/textos, formando o fenômeno
denominado, como ambivalência (introdução do elemento sócio-histórico no texto), ou

94
Em seus estudos, Bakhtin (1997) separa o conceito de "texto" de "enunciado". Para o
estudioso, o enunciado procura mostrar a posição de uma voz dentro da sociedade, sendo
representado por um todo de sentidos, ou seja, uma orientação. Já texto é visto como a
manifestação do enunciado, a materialização deste, que advém do fato de ser um conjunto
de signos. Desse modo, o enunciado representa os sentidos construídos pelos
interlocutores numa troca comunicativa, da qual eles participam e o texto é a sua forma
materializada.
95
Segundo Kristeva (1969), a noção de intertexto, diz respeito a um texto específico (ou o
corpus de textos específicos) com que um determinado texto mantém o intercâmbio
semiótico que caracteriza a intertextualidade. No entanto, é importante ressaltar que para a
estudiosa, a definição de texto é muito vasta, uma vez que ele pode se referir a obras
literárias, linguagens orais ou sistemas simbólicos de natureza social ou inconsciente.
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seja, a produção de um sentido duplo. Essa, por sua vez, ocorre quando o autor serve-
se da palavra do outrem para criar um sentido novo, um (re)significação a partir do já-
dito. Dessa forma, um texto com caráter intertextual, designa essa transposição de um
(ou vários) sistema(s) de signos noutros, isto é, ela acontece quando há um ponto de
intersecção em que se entrecruzam fios dialógicos de vozes, que se polemizam entre
si, se completam, respondem umas às outras ou se confrontam (KRISTEVA, 1978). A
intertextualidade possibilita, portanto, a construção de sentidos mais abrangentes, no
qual o leitor que apresenta um repertório maior de leituras será capaz de apreender
mais profundamente os sentidos do texto. Com isso, ela não se restringe apenas
aquilo que o autor propôs colocar de referências a outros textos, mas sim necessita
muito mais do conhecimento dos seus leitores para que as remissões possam ser
feitas ao longo da leitura.
Outra formação teórica, que serve como parâmetro para os estudos
comparatistas, diz respeito a chamada Estética da Recepção (movimento nascido em
1967, na Alemanha). Para a Escola de Konstanza, a qual tem como expoentes os
nomes de Wolfgang Iser (1996) e Hans Robert Jauss (1994), notamos a reinstauração
do lugar privilegiado do leitor frente ao processo de significação literária. Ao integrá-lo
novamente, como elemento privilegiado na produção de significados, transforma o
conceito de intertextualidade, como fenômeno textual, o qual se dá a partir do
momento que há a recepção literária. Ao privilegiá-la, a obra literária passa a ser vista
não mais como um sistema fechado e definitivo e, sim, para um que se constrói por
meio da produção, recepção e comunicação, ou seja, por um relacionamento dinâmico
entre autor, obra e leitor. Sendo assim, segundo essa teoria, o objeto literário é
condicionado pela relação dialógica entre literatura e leitor, o que proporciona,
necessariamente, um processo de interação entre ambos, cujo grau de perenidade
depende dos referenciais estético-ideológicos que os configuram. Em face da natureza
dialógica dessa relação, o obra literária só permanece em evidência enquanto puder
interagir com o seu receptor, sendo que a sua aceitação só ocorrerá quando o
horizonte de expectativas96 do mesmo, for acionado durante o processo de leitura.
Ademais, cabe ressaltar que a Literatura Comparada busca, além do trabalho
com as concepções teóricas citadas e brevemente discutidas anteriormente, comparar
seus estudos pelas novas reflexões dos estudos humanísticos como a Teoria dos
Polissistemas, Descontrucionismo, Estudos Pós-Coloniais e Estudos Culturais. A partir

96
De acordo com Jauss (1994), o horizonte de expectativas do leitor é composto pelo sistema
de referências que resulta do conhecimento prévio que o mesmo tem, da forma, da temática
das obras já conhecidas/lidas e da oposição entre as linguagens poética e pragmática.
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desses breves pressupostos teóricos, deixamos claro que partimos das relações entre
a Literatura Comparada e a Estética da Recepção, para formular a base analítica
desse trabalho. Com isso, procuramos não apenas delimitar de forma mais ampla
essa teoria, mas também inseri-la no decorrer da análise comparatista entre a
narrativa juvenil contemporânea brasileira e portuguesa selecionada.

A formação da identidade juvenil na narrativa juvenil contemporânea brasileira e


portuguesa

As produções contemporâneas de literatura brasileira para crianças e jovens a


consolidação, nos últimos anos, de uma vertente bastante fértil que, segundo Martha
(2010), caracteriza-se pelo abandono da concepção idealizada da infância e da
juventude. Nelas, os personagens idealizados e perfeitos, criados em ambientes
impolutos, dão lugar a outros que se debatem em conflitos psicológicos e que vivem
em ambientes inóspitos e experimentam sentimentos e emoções violentas. Com isso,
muitas temáticas aclimatadas pela sociedade (sexo, assassinato, violência, abandono,
separação dos pais, homossexualidade, construção da identidade etc.) passam a
fazer, cada vez mais, parte do universo ficcional das obras destinadas ao público
juvenil especificamente. Trabalhar com elas significa, portanto, ―compreender
situações-limite que configuram, no plano ficcional, etapas da evolução vividas pelo
ser humano‖ (MARTHA, 2010, p. 3). Diante disso, observamos que é a capacidade do
texto de se revelar ao leitor a cada nova leitura, dando a possibilidade de mostrar algo
que antes não tinha sido percebido por ele, que torna a narrativa juvenil capaz de
resgatar a história e de caminhar por diferentes perspectivas temáticas e significativas.
A partir dessa perspectiva, buscamos por meio da seleção das obras de
literatura juvenil contemporânea brasileira O rapaz que não era de Liverpool (Edições
SM, 2006), de Caio Riter e portuguesa, Os olhos de Ana Marta (Caminho, 2005), de
Alice Vieira, analisar com base nos elementos de cada uma das tessituras textuais, o
desenvolvimento da temática de caráter psicológico. Outro fator verificado, diz respeito
aos possíveis pontos de contato e as coincidências estéticas que configuram a
presença de um específico juvenil em ambas as produções juvenis contemporâneas.
Além disso, buscamos evidenciar também, que a partir de um leitura crítica de um
texto literário (seja ele um subsistema ou não) não objetiva um sentido único, mas a
descoberta da sua multiplicidade de sentidos.
Caio Riter, autor da obra juvenil brasileira, O rapaz que não era de Liverpool
(2006), escolhida para fazer parte de nosso corpus, nasceu em 24 de dezembro, em
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Porto Alegre, Rio Grande do Sul. É Bacharel em Comunicação Social, licenciado em


Letras e, também, Mestre e Doutor em Literatura Brasileira, pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul. Em seu acervo literário, encontramos publicações de livros
infantis, juvenis, contos e antologias, sendo que uma grande parte dessas produções
foram premiadas no Brasil e no exterior. A narrativa selecionada, por exemplo, recebeu
diversos prêmios, entre eles o ―Prêmio Orígenes Lessa‖ (Fundação Nacional do Livro
Infantil e Juvenil – 2007), o selo de obra ―Altamente recomendável‖ (FNLIJ – 2007), o
―White Ravens‖ (Alemanha – 2007), o ―1º Prêmio Barco a Vapor‖ (Edições SM – 2005)
e foi finalista do ―Prêmio AGES – Livro do ano‖ (2007). Atualmente, Riter é professor
de Língua Portuguesa e de Redação, além de ministrar algumas oficinas literárias de
narrativa e de Literatura Infantil.
Alice Vieira, por sua vez, autora da narrativa juvenil portuguesa, Os olhos de
Ana Marta (2005), nasceu em Lisboa em 1943 e licenciou-se em Filologia Germânica
pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Por muito tempo, dedicou-se ao
jornalismo, tendo sido diretora no Diário de Notícias o suplemento Juvenil e Catraio,
entre os anos de 1984 a 1989. Além disso, colaborou em vários programas de
televisão para crianças e escreveu recensões críticas de livro infantojuvenis para
diversas publicações. Considerada uma das mais importantes autoras portuguesas
dessa categoria literária, a autora possui livros premiados várias vezes, pela qualidade
textual e estética. Em 1996, Vieira foi candidata pelo conjunto de sua obra ao Prêmio
Hans Christian Andersen da IBBY (International Board on Books for Young People). A
narrativa selecionada em questão, foi umas das obras que integraram a lista de honra.
Já em 1996, recebe pelo conjunto da sua obra, o Grande Prémio de Literatura para
Crianças da Fundação Calouste Gulbenkian. As suas obras encontram-se traduzidas
em diversas línguas e editadas em inúmeros países europeus, sendo uma das
escritoras portuguesas de literatura infantil e juvenil com maior sucesso.
A obra juvenil brasileira, de Caio Riter, dividida em seis capítulos, narra a
história do adolescente Marcelo, que descobre ter sido adotado pela sua família. A
partir disso, o jovem entra em um profundo conflito, por esse fato ter sido mantido por
tanto tempo em segredo. O protagonista, acredita ter vivido todos esses anos uma
vida de mentiras ao lado das pessoas, que ele mais amou e com isso, tudo começa a
mudar entre o jovem e seus familiares. O nome do livro, é dado pelo autor, pois
Marcelo e o pai, Pedro Paulo, são fãs d'Os Beatles e a famosa foto da banda, na qual
os quatro integrantes aparecem juntos caminhando em sequência, em uma faixa de
pedestres, é recriada pelo garoto no computador e transforma-se em uma foto de
família, com os rostos dos cinco membros (Pedro Paulo (pai), Inês (mãe), Marcelo,
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Maria e Ramiro (irmãos)). Dessa forma, a partir do momento, que há a descoberta da


sua adoção, Marcelo retira a sua imagem da foto e a família passa a ter apenas quatro
integrantes, da mesma forma que a banda inglesa: "Só hoje, a desconfiança se faz
certeza: os garotos de Liverpool são quatro. Apenas quatro. Eu não sou de Liverpool.
Eu, o estranho. Eu, o adotado. Aquele que faz parte de uma história que ele próprio
não conhece" (RITER, 2006, p. 34). Daí origina-se o nome do livro: O rapaz que não
era de Liverpool. Com base na afirmação trazida pelo título da narrativa, o leitor
juntamente com o protagonista, começa a se questionar a respeito da origem de
Marcelo: Quem seriam seus pais? De onde ele veio? Quais os motivos que levaram o
seu abandono? Todas essas dúvidas aparecem na cabeça do adolescente, que
resolve enfrentar esse momento de sua vida, à procura de respostas sobre a sua
verdadeira identidade.
Com o intuito de dar mais dramaticidade a história, o autor já a inicia a partir do
clímax, quando Marcelo começa a desconfiar de sua "não-origem". Esse fato, aparece
durante a aula de Biologia a respeito da Lei de Mendel, quando o garoto descobre que
os olhos azuis são recessivos e os castanhos dominantes. Esse aspecto chama a
atenção dele, já que seus pais possuíam olhos azuis e os dele eram da cor castanha.
Com isso, a dúvida sobre quem seriam seus verdadeiros pais começa a aparecer. A
frase: "- Não, Marcelo, você não nasceu de mim!" (RITER, 2006, p. 9), passou a ecoar
em sua memória, o que a faz ser repetida várias vezes, no decorrer da narrativa. Com
a descoberta, todos os familiares tentam convencê-lo de que ele era membro daquela
família e que isso, nunca mudaria, sendo ele filho adotivo ou não. Entretanto, o jovem
insiste em ficar sozinho e, por isso, resolve abandonar amigos, namorada e familiares
para passar um tempo na casa de sua madrinha:"Quem era ele afinal? "Eu não sou
eu. Não sou o Marcelo. Ou sou?" (RITER, 2006, p. 10); " - Sou um nada" (RITER,
2006, p. 11).
A narrativa vai se tornando intrigante aos olhos do jovem leitor, ao explorar em
um tom poético, as dúvidas a respeito da origem de Marcelo que são construídas
durante o enredo, de um forma confusa, já que ao se sentir enganado pelos pais, o
garoto os cobra, mesmo que indiretamente, de não ter dito a verdade antes: "Vocês
me impediram de viver minha história." (RITER, 2006, p. 92). Há nessa fala da
personagem, aquilo que Barthes (1996) procurou abordar em sua teoria, a qual para
ele, o leitor ao se identificar com o texto, mesmo sabendo que está diante de simples
palavras, emociona-se "como se essas palavras enunciassem uma realidade" (p. 63).
Notamos ainda, que o narrador se limita a sua própria perspectiva, pois se volta
totalmente a procura de sua verdadeira identidade, com isso não consegue
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reconhecer sentimentos e emoções de outras personagens que aparecem durante o


enredo. Isso torna a narrativa altamente reflexiva, aspecto esse que possibilita com
que o jovem leitor mergulhe no universo íntimo do protagonista: "Fugi para o meu
quarto. Único abrigo naquela casa que agora me parecia por demais estranha. Ela não
era minha mãe. Mas e se? Não, não era." [...] (RITER, 2006, p. 10).
Outro aspecto interessante, encontrado no decorrer da obra, é a inserção de
elementos intertextuais, advindos de outras famosas histórias da literatura, entre elas,
Dom Quixote, Robson Crusoé, Ana Terra, Salinger, A Ilha do Tesouro e Peter Pan, as
quais marcam o dialogismo defendido por Eagleton (1997), em seus estudos sobre o
pós-estruturalismo.Encontramos ainda, alguns trechos de músicas da banda inglesa,
espalhados por toda a tessitura narrativa, com o objetivo de intitularem os capítulos,
como também marcam o papel da linguagem em busca da identidade por parte do
protagonista: "Me arrasto pela cama, estendo a mão até a estante, pego um CD ao
acaso. Enfio no aparelho, que o engole, pressiono o botão. Música dois: ―With a little
help from my friends‖. Com uma ajuda dos meus amigos. Os rapazes de Liverpool
cantam pra mim. My friends, my family. Meus amigos, minha família" (RITER, 2006, p.
17-18). Logo, a pluralidade de concepções que existe dentro do conceito de juventude
exige que os jovens construam sua identidade também, a partir de determinadas
escolhas, gostos e estilos. Nesse sentido, o modo de se vestir, a admiração por certos
ídolos, os lugares frequentados e o gosto por estilos musicais diferentes são formas
que eles encontraram de confirmar sua individualidade. No caso, de Marcelo,
protagonista da obra em questão, a admiração pelos Beatles revela essa busca por
uma identidade particular.
O livro juvenil de Alice Vieira, por sua vez, é uma narrativa que chama a
atenção do jovem leitor desde a primeira frase. Dividida em vinte e sete capítulos, a
forma como é construída a história de frustrações e do posterior amadurecimento de
uma menina nos leva a um suspense que vai sendo desvendando minuciosamente ao
longo da trama, a partir da voz da protagonista. A história gira em torno da dúvida, que
a garota Marta de onze anos, tem em relação a sua verdadeira origem, uma vez que
ela imagina ter sido trocada na maternidade. Durante a narração da protagonista (feita
depois de Marta ter desvendado os enigmas de sua infância), há uma série de
questionamentos sobre se ela era realmente filha ou não de Martim e Flávia, já que ela
não conseguia compreender a frieza e a falta de importância dadas pelos pais. Em
meio ao abandono e ao enigma por detrás de sua família, Marta descobre que antes
dela os pais haviam tido uma outra filha, chamada Ana Marta, morta tragicamente num
acidente de carro, fato que abalou fortemente os seus pais. Com a morte da menina, a
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mãe acaba por desenvolver várias crises nervosas e inesperadamente engravida. A


chegada de uma nova filha, fazem com que os pais caem na ilusão de tentar fazer a
nova criança idêntica à menina morta, a começar pelo nome parecido. Desde então,
há uma paralisia feita de silêncios na casa e ninguém mais fala sobre a tragédia,
apesar de alimentarem camufladamente uma fixação pelo passado. Flávia passara a
ter algumas atitudes insanas, como fazer casacos de lã para a menina morta. Martim e
Leonor (velha ama, que acompanha a família desde a infância do pai de Marta)
fecharam-se. A madrasta de Flávia e sua filha a todo momento comentavam como
Marta era parecida... mas parecida com quem? Ao final da narrativa, a protagonista
descobre a verdade e diz: "Eu não sou Ana Marta". E para desabafar, escreve uma
carta à falecida irmã. É o início do processo da construção de sua identidade.
Ao analisar a construção da trama nota-se que, essa inicia-se pelo final (in
ultimas res), o que permite que o mistério por trás da origem da protagonista seja
descoberto pouco a pouco pelo jovem leitor. Ao se sentir menosprezada pelo pai,
Martin, que a tratava de maneira indiferente e pela mãe, Flávia, a qual parecia que a
não enxergava, a garota começa a pensar na possibilidade de ter sido trocada na
maternidade. Com isso, Marta passa a investigar, mesmo que inocentemente, a
verdadeira história de sua família, por exemplo, ao questionar Leonor, a respeito do
comportamento estranho da mãe: "Por que é que Flávia não gosta de mim? -
perguntei eu uma vez, debruçada sobre a grande mesa da cozinha a tentar despachar
os trabalhos de casa. [...]" (VIEIRA, 2005, p. 55); "Insisti. - Diz lá, Leonor, por que é
que a Flávia não gosta de mim? - Não diga isso, Vidrinho - respondeu Leonor com
aquele ar zangado que tu também lhe deves ter conhecido. - Não diga isso que é
pecado" (VIEIRA, 2005, p. 56). Com isso, o texto passa a estimular atos durante a
leitura na mente do leitor e que, consequentemente, são responsáveis em impulsionar
a criatividade da recepção. Todavia, Iser (1996b) ressalta, que o texto funciona apenas
como um partitura para que isso ocorra, já que são as capacidades dos leitores,
diferentes um dos outros, que instrumentam a obra. O leitor é que se move dentro da
obra, com a intenção de movimentar os pontos de vista.
Desde o início da narração, alguns vestígios vão sendo deixadas pela
narradora sobre o desfecho da obra. Ao tentar interagir com a irmã, como uma forma
de projeção de sua consciência: "alguma vez desejaste muito ter um boneco de
papelão? Desisto que não [...] Leonor garantiu-me que tu eras perfeita" (VIEIRA, 2005,
p. 11), a protagonista libera a repressão, que foi submetida durante a sua infância, e
demonstra estar disposta a construir a sua própria identidade diante da família e de si
mesma. Aliás, a linha psicológica criada pela autora, está ligada até mesmo a
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identidade do narrador, já que só sabemos que é Marta quem narra, apenas no


capítulo 11 do livro, uma vez que ao sermos influenciados pelo título do mesmo,
imaginamos ser Ana Marta a narradora e, também, a personagem principal. Esse
recurso ficcional, criado pela autora portuguesa, permite, que o que há de real e de
ficcional seja extraído do texto pelo leitor, uma vez que provoca nele um certo
desconforto e a criação de novos sentidos, a partir dessa instabilidade oferecida pela
linguagem literária. Desse modo, para Eagleton (1997), isso ocorre, pois ela passa a
"assemelhar-se muito mais a uma teia que se estende sem limites, onde há um
intercâmbio e circulação constante de elementos, onde nenhum dos elementos é
definível de maneira absoluta e onde tudo está relacionado com tudo" (p. 178).
Ademais, no decorrer do enredo, Marta pensa que "os pais de verdade a
amariam" e por defesa psicológica, não chama Flávia de "mãe". Na verdade, esse
aspecto surge, pois essa personagem apresenta um comportamento totalmente
anormal, pelo fato de sofrer por algum motivo, até então, desconhecido. Durante as
passagens dos capítulos, Flávia sofre com várias crises de dores de cabeça, que a
impossibilitam de sair de casa. Em alguns momentos, quando a dor era insuportável,
ela jurava que iria endoidecer, o que deixava todos a sua volta apreensivos: "- Vou
endoidecer, vou endoidecer... - murmurava ela às vezes, fixando os olhos no meu
rosto" (VIEIRA, 2005, p. 58). Entretanto, para Marta havia mais do que problemas de
saúde com a mãe; algo muito maior pairava não só sob a vida de Flávia, mas sob a de
todas as pessoas daquela casa. Depois do episódio denominado por eles de a
"Grande Fatalidade", parece que nunca mais a família foi a mesma. A própria casa
também, não fora a mesma, diversos cômodos, entre eles, alguns quartos, foram
trancados e os móveis cobertos por panos brancos, para que se mantivessem
intactos, como antes do ocorrido: "[...] está é uma casa cheia de quartos fechados.
Como na história do Barba Azul, lembras-te?" (VIEIRA, 2005, p. 17; "A tua casa
parece um comboio fantasma [...]" (VIEIRA, 2005, p. 101).
Além disso, no decorrer da trama, o mistério por detrás da presença de uma
"Outra-Pessoa" (chamada assim, por Leonor e, depois por Marta), acaba se tornando
o alvo de possíveis respostas, na compreensão, por exemplo, da forma como a mãe
costumava a tratar a protagonista. Depois de uma das crises da mãe, Leonor resolve
contar a protagonista, após muita insistência dela, qual é a verdadeira história sobre a
"Outra-Pessoa": um desastre de carro, sofrido pelos pais de Marta, há uns 13 anos
atrás, que ocasionou a morte de alguém. No entanto, a identidade da tal pessoa não é
revelada por Leonor, o que aumenta ainda mais o enigma sobre quem seria o/a
responsável pela tristeza e a mudança na vida da família. As pistas, porém, vão sendo
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deixadas pouco, a pouco pela ama, que primeiro deixa escapar o nome da "Outra-
Pessoa": "Quando olho para água vejo sempre, sempre, os olhos de Ana Marta"
(VIEIRA, 2005, p. 123), e depois, finalmente, se abre para a verdade: "Leonor quer
contar tudo agora. [...]"; Foi o seu pai que deu a ordem. Nunca mais podíamos falar de
Ana Marta. O médico disse que era muito perigoso, Flávia tinha ficado muito doente,
qualquer emoção podia ser fatal, ninguém lhe devia recordar o acidente, ninguém
devia tocar sequer no nome de Ana Marta" (VIEIRA, 2005, p. 136). Logo, temos aqui,
por sua vez, a reciprocidade entre texto e leitor no processo de criação literária, a qual
deve ser recuperada cada que vez que é lido, já que o texto pode trazer vários
significados ocultos a partir de um entrelaçamento contínuo (BARTHES, 1996).
A construção da identidade da protagonista ocorre também, na relação
construída entre a menina e Leonor, que espontaneamente maternaliza-a, por sentir
que a mesma era enjeitada pelo pais. A figura dessa personagem é descrita, como
alguém que toma a postura de "mãe" de Marta, depois que as crises de Flávia
começam a aparecer de modo mais frequente. Leonor se posiciona como "senhora da
casa", a qual fica responsável inclusive pela formação da menina. Na visão de Marta,
"Viver sem Leonor é que seria difícil" (VIEIRA, 2005, p. 49), uma vez que para ela,
viver sem uma mãe, ainda mais naquela fase da v ida, seria algo impossível para o
seu desenvolvimento. Este processo de construção é feito por meio de conhecimentos
populares da cultura portuguesa, como lendas (Príncipe Graciano e da Alminha-da-
Senhora), rezas, ladainhas e cantigas, repetidas por Leonor para a protagonista, que
fortalece os laços entre as duas e garante a formação psíquica e social da menina.
Para Marta, as palavras que vêm por meio das histórias e das ladainhas de Leonor lhe
ensinam o mistério da poesia, a beleza das sonoridades, a busca do sentido e, assim,
a formação de sua identidade, mediada pela força da imaginação (VIEIRA, 2005). A
partir de uma linguagem poética e carregada de aspectos simbólicos observamos,
portanto, que a narrativa juvenil portuguesa busca dialogar com diferentes elementos
culturais reafirmando assim, que a criação poética possibilita a transmissão de um
saber, o qual pode causar uma transformação da realidade do leitor, de um modo
original.

Considerações Finais

Logo, a partir do cotejamento observamos que durante a formação das


narrativas juvenis analisadas, há uma preocupação dos autores em inserir os
personagens adolescentes em um mundo particular, o qual possibilita que o jovem
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leitor adentre no universo de dúvidas e descobertas, típico dessa etapa de maturação.


Além disso, os dois protagonistas, Marcelo, de O rapaz que não era de Liverpool e
Marta, de Os olhos de Ana Marta, representam simbolicamente a busca pela
identidade. Entretanto, elas são realizadas de modo diferente, uma vez que a
protagonista da obra juvenil portuguesa, já inicia a narração deixando claro ao leitor,
que é filha legítima, apesar de não ter com os pais uma relação de proximidade e
amor. Aliás, verificamos nessa narrativa, a utilização de elementos responsáveis em
criar um ambiente de dúvidas e suspense para a trama, entre eles, a morte trágica da
irmã mais velha (Ana Marta), ainda quando criança, o sentimento de rejeição, a
loucura da mãe, a indiferença do pai e uma menina tentando entender esse mundo
complicado a sua volta; na tentativa de suportar toda a dor que restou com a perda da
irmã e assim, liberando o texto para uma pluralidade de sentidos. No caso de Marcelo,
a história já começa com a descoberta de sua adoção. Essas revelações, por sua vez,
funcionam de maneira similar em ambas as narrativas, pois motivam, mesmo que de
forma diferente, os personagens a investigarem o seu passado, em busca de algumas
explicações, que auxiliaram cada um deles na sua futura formação.
Ademais, ao tratarmos do subsistema juvenil, é interessa que os autores
trabalhem não apenas com temas pertinentes a essa faixa-etária, mas também que
explorem alguns recursos, que aproximem o jovem leitor das obras. Com isso,
verificamos que tanto na obra juvenil brasileira quanto a sua vertente portuguesa, há
uma preocupação com a apresentação do cotidiano de jovens que convivem com as
incertezas e dúvidas em relação ao convívios com os pais. Para tanto, a linguagem
utilizada acompanha o universo juvenil e a temática desenvolvida, uma vez que
trabalha de forma poética e simbólica a problemática instaurada no decorrer de cada
enredo. Esses aspectos possibilitam, portanto, que haja uma reciprocidade entre texto
e leitor no processo de criação literária, já que as construções de sentido realizada
pelo leitor acontecem ainda pela presença na estrutura textual de pontos de
indeterminação, que convidam o leitor no seu preenchimento.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

O DISCURSO DIALÓGICO NO ROMANCE ILUMINURAS, DE


ROSANA RIOS

Queila da Silva Gimenez, Unesp Assis, A literatura Juvenil e Jovens Leitores

Considerações Iniciais

Publicado pela Editora Lê em 2015, o livro Iluminuras, de Rosana Rios,


com ilustrações de Thais Linhares, recebeu o prêmio FNLIJ 2016, na categoria
Literatura Jovem97, assim como o Selo de Leitura ―Altamente Recomendável‖
da FNLIJ no mesmo ano. Foi ainda o 3º colocado entre os finalistas do 58º
Prêmio Jabuti, em 2016, na categoria Literatura Juvenil 98. Além disso, foi
selecionado para figurar no catálogo White Ravens99, da Biblioteca de
Munique100.
Quanto à autora, trata-se de conhecida e pródiga escritora de literatura
infanto-juvenil brasileira. Suas obras circulam entre professores e alunos da
educação básica por figurarem nos catálogos de importantes editoras que
divulgam e comercializam livros paradidáticos.
Sendo assim, a leitura dos livros de Rosana Rios está associada à
formação escolarizada de leitores, o que corrobora o exposto por Silva, para
quem ―a escolaridade, a escola e a leitura são fenômenos imbricados, sendo
praticamente impossível falar de um sem remeter a outro‖ (2012, p. 109).
Entende-se, portanto, que a análise literária de uma obra de Rosana Rios
ultrapasse os limites da crítica, expandindo-se no sentido de colaborar para o
enriquecimento do trabalho com a leitura em contexto escolar, o que se coloca,
de certa forma, como um dos objetivos do presente artigo.
97
Disponível em: http://www.fnlij.org.br/site/premio-fnlij/livros-premiados/item/772-pr%C3%AAmio-
fnlij-2016-produ%C3%A7%C3%A3o-2015.html.
98
Disponível em: http://premiojabuti.com.br/vencedores-2016/juvenil-5/.
99
Disponível em: http://www.ijb.de/en/about-us.html.
100
Disponível em: http://www.ijb.de/en/about-us.html.
627

Além disso, o que se pretende nesse espaço é proceder a uma


abordagem literária do romance de Rosana Rios, Iluminuras, fundamentada em
alguns dos pressupostos bakhitinianos de análise da prosa romanesca,
conforme descritos em Questões de Literatura e Estética (Mikhail Bakhtin,
1988).
Dentre as questões relativas ao gênero romance abordadas por
Bakhtin nessa obra fundamental, uma das que interessa à presente análise é a
da caracterização do romance ―como um fenômeno pluriestilístico, plurilíngue e
plurivocal‖ (Bakhtin, 1988, p. 73). Segundo a descrição bakhitiniana, a
diversidade de estilos, línguas e vozes que compõem o texto romanesco,
aponta para a dialogicidade interna de seu discurso, a qual exige a revelação
do contexto social concreto que determinará sua forma estilística (Bakhtin,
1988, p. 106). Nas linhas que seguem, propomos a análise do papel dessas
diferentes vozes na construção do sentido do romance Iluminuras.

A História dentro da história


Iluminuras é um romance juvenil desenvolvido em dois cronotopos
simultâneos. Tomamos aqui a concepção bakhitiniana de cronotopo como a
―interligação fundamental das relações temporais e espaciais artisticamente
assimiladas em literatura‖ (Bakhtin, 1988, p. 211).
Contar uma história em tempos simultâneos é comum em textos
literários. A autora segue essa tendência alinhando-se aos filmes e livros de
ficção científica, várias vezes citados em Iluminuras, como o filme norte-
americano, De volta para o futuro, de 1985, dirigido por Robert Zemeckis. Ou o
romance de ficção científica, de 1975, escrito por Richard Matheson, Bid Time
Return, e adaptado para o cinema em 1980, sob o título Em algum lugar do
passado. Também a série de ficção britânica Doctor Who, produzida e
transmitida pela BBC desde 1963.
Tais referências revelam-se como marcas da ―orientação dialógica do
discurso‖ (Bakhtin, 1988, p. 85) no romance Iluminuras. Por meio delas se
estabelece um diálogo com obras artísticas pós-modernas, sobretudo do
cinema e da tevê, que se tornaram grandes sucessos representativos da
cultura de massa direcionada ao público jovem.
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Os personagens centrais do romance são os adolescentes Clara e


Martim: alunos de um mesmo colégio, apreciadores dos mesmos seriados de
TV, têm em comum interesses afins e opiniões semelhantes sobre o mundo em
que vivem. Apesar de todas essas afinidades e da proximidade no tempo e no
espaço, eles não se conhecem no início da história.
O encontro entre os dois só será possível graças a uma viagem no
tempo, para o ano de 1795, engendrada por Clara. Eles alterarão a ordem dos
acontecimentos no passado para onde viajaram o que, consequentemente,
provocará alterações no futuro de onde vieram. Isso permitirá não só que se
(re)conheçam nesse futuro, como também que modifiquem a história e o
destino de vários personagens relacionados a eles nos dois tempos em que o
romance se desenrola.
Clara descobriu que poderia viajar ao passado por meio de uma cela
de monge de um antigo mosteiro, transformado em museu, onde trabalha seu
pai, o historiador Cirilo. Essa cela foi o único espaço mantido intacto durante os
séculos que se passaram entre 1795 e os primeiros meses de um ano qualquer
no início do século XXI.
A essa cela, Clara dá o nome de Ponto Imóvel, por tratar-se de ―uma
câmara, um recinto ou sala que possa ser fechada e que mantenha a
atmosfera e os cheiros intactos‖ (Rios, 2015, p. 46), como se lê nestas palavras
registradas em seu diário, encontrado por Cirilo. Nesse mesmo diário, a garota
também esclarece que, para concretizar a viagem, realizou um estudo sobre os
cinco sentidos e chegou ―à conclusão de que a questão do olfato é a mais
importante. Os aromas podem fazer a gente viajar na memória, por isso
tornam-se ideais para estimular uma viagem no tempo‖ (Rios, 2015, p. 46).
Assim como o diário, outros gêneros intercalados (a confissão, o relato
de viagens, a biografia, as cartas) são uma marca de Iluminuras. De acordo
com Bakhtin, esses gêneros são ―uma das formas mais importantes e
substanciais de introdução e organização do plurilinguismo no romance‖
(Bakhtin, 1988, p. 124). São ainda exemplos da bivocalidade e da
internalização dos discursos nos quais ―se encontra um diálogo potencial, não
desenvolvido, um diálogo concentrado de duas vozes, duas visões de mundo,
duas linguagens‖ (Bakhtin, 1988, p. 128 e 129).
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A ida ao passado não é a primeira viagem no tempo realizada por


Clara. Para testar suas hipóteses, na noite do dia 22 de fevereiro, num ano
indeterminado do início do século XXI, a jovem utiliza seu próprio quarto e um
pouco do perfume francês Fragrance d’hiver (com o qual o pai a presenteará
em 21 de abril, data de seu aniversário) para transportar-se à manhã de 22 de
abril desse mesmo ano, portanto, dois meses à frente.
Nessa data, ela relata em seu diário: ―conheci um garoto da minha
idade, alguém bem interessante: o nome dele é Martim. Estuda em outra sala
no Colégio Diem e desenha superbem (...) nunca me senti tão à vontade com
alguém como me senti ao lado dele‖ (Rios, 2015, p. 48 e 49). Nessa ida ao
futuro, além de conhecer e interessar-se por Martim, Clara descobre que o
rapaz também esteve no passado naquele mosteiro, como se observa mais
uma vez em seus relatos: ―Eu sei, agora, que ele fez a ilustração do breviário
que descobriram na cela do monge‖ (Rios, 2015, p. 49).
A ilustração mencionada por Clara é uma das iluminuras em exposição
no museu, descoberta por Cirilo e restaurada pela profissional Yejide. E a
menina prossegue:
Estou abismada com a descoberta de que ele foi para o
passado, esteve naquele Mosteiro (...). Se ele tiver de ir para o
século dezoito, vai acabar indo; não precisa ser junto comigo, a
passagem seria muito complicada.
Vou manter meu plano original.
Mas, antes de viajar, pretendo escrever um bilhete para meu
pai e mencionar o Martim. Esse fica sendo o plano B (Rios,
2015, p. 49).

A ausência da filha faz com que Cirilo encontre as anotações pessoais


deixadas por ela e cruze esses relatos com os registros do mosteiro, um
livrinho vermelho encontrado escondido ―numa espécie de nicho na parede‖ por
um pesquisador anterior a Cirilo (a narrativa, mais adiante, revelará que o tal
pesquisador é o pai de Martim, João Brasílio). Esse livrinho pertenceu ― a um
prior que viveu na cidade, de 1790 até 1808‖ (Rios, 2015, p. 28). Em seus
registros, sob a data de 18 de fevereiro de 1895, ―Dia hum do tempo da
Quaresma‖, o prior relata o encontro, na cela de Frei Brás, de uma ―rapariga
adormecida em sono de enfermidade‖, cujo nome era Clara (Rios, 2015, p. 29).

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Devido à ida de Clara ao passado, o personagem Martim ganha


contornos novos na história. De filho único, estudante, desenhista talentoso,
abandonado pelo pai, que vive num apartamento com a mãe e o gato Nil (Rios,
2015, p 12 e 13), Martim passará a ser aquele que deve viajar no tempo para
resgatar Clara, visto que, possivelmente, a menina encontra-se impedida de
retornar.
A importância do papel de Martim cresce, primeiramente, porque Cirilo
não poderia fazer uma viagem no tempo em busca da filha, uma vez que usava
um marcapasso e nada de outro tempo faria ―a passagem, só o viajante‖ (Rios,
2015, p. 76). E, fundamentalmente, porque era Martim o retratado na primeira
iluminura restaurada e em exposição no museu, como se descobre logo no
princípio do livro.
Ali, lemos que, Martim, na sala de exibição do museu, admira-se diante
da página antiga do livro em exposição: ―É o meu retrato numa iluminura do
século dezoito, olhando para uma iluminura do século dezoito‖ (Rios,
2015, p. 9, grifos da autora). Lê-se também no diário de Clara:
Ele foi retratado numa iluminura do século dezoito. (...). Eu
sei, agora, que ele fez a ilustração do breviário que
descobriram na cela do monge: é seu autorretrato, de costas,
com os cabelos presos e roupas pretas. E tem o gato, que é
dele: chama-se Nil e tem um olho verde e um azul (Rios, 2015,
p. 49, grifos da autora).

Diante desse e de uma série de sinais, Martim convence-se de que há


―algo mais‖ (Rios, 2015, p. 52, grifo da autora) conectando ele e Clara, como
acredita Cirilo, e aceita fazer a viagem no tempo. Têm início, assim, os eventos
que culminarão com o retorno dos dois jovens, configurando um final feliz. Os
caminhos traçados e as experiências vividas durante esse percurso, numa
espécie de provação do herói (Bakhtin, 1988, p. 182), que se revelará na
personagem de Clara, provocarão alterações no paradoxo do contínuo espaço-
tempo (Rios, 2015, p. 44) e trarão implicações para a vida dos demais
personagens com os quais Clara e Martim se encontrarão.
O cronotopo do romance, portanto, divide-se em dois. Porém essa
divisão culminará na união das pontas que unem passado, presente e futuro,
criando um círculo que os interliga.

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Línguas e Linguagens

Ao discorrer a respeito da pessoa que fala no romance, Mikhail


Bakhtin afirma que
As particularidades da palavra dos personagens sempre
pretendem uma certa significação e uma certa difusão social:
são linguagens virtuais. Por isso, o discurso de uma
personagem também pode tornar-se fator de estratificação da
linguagem, uma introdução ao plurilinguismo (Bakhtin, 1988, p.
135).

Sendo o romance Iluminuras ambientado em duas épocas históricas


distintas, mostrou-se como terreno fértil para a inserção e o desenvolvimento
de dialetos sociais particulares, criando um diálogo de linguagens (Bakhtin,
1988, p. 100 e 101), uma pequena amostra do plurilinguismo.
A ―viagem‖ de Clara e Martim ao mosteiro localizado, em 1795, na então
Vila de Piratininga, que, mais tarde, faria parte da grande São Paulo (Rios,
2015, p. 134), implica na convivência com uma língua portuguesa diferente da
língua que falamos hoje. Uma espécie de língua geral, marcada pela influência
dos idiomas indígenas e africanos (Ilari; Basso, 2011, p 62 a 76).
As marcas dessa língua portuguesa do século XVIII trazidas por
Iluminuras nos diálogos entre os personagens, no entanto, restringem-se ao
uso da 2ª pessoa do singular e do plural. Seguem alguns exemplos, nos quais
as destacamos:
(1) Clara dirigindo-se à escrava Benvinda (Oluremi): ―Não
tenhas medo...‖ (Rios, 2015, p. 176).
(2) O Prior ordenando a Martim: ―Levanta-te!‖ (Rios, 2015, p.
113).
(3) A menina Guida, uma das recolhidas do convento,
dirigindo-se a Clara: ―Podes ir, guardarei teu segredo – disse
ela – assim como guardarás o meu‖ (Rios, 2015, p. 191).

Nas vezes em que o discurso direto é usado para dar voz às


personagens escravas, notam-se variações linguísticas entre o uso que estas
fazem da língua em relação aos brancos. Assim, a avó cega de Oluremi,
mistura o português marcado pelo uso da 2ª pessoa (como nos exemplos
acima) com palavras de um idioma africano: omadê/menino, alufá/padres e
iku/morte (Rios, 2015, p. 81).

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A respeito da voz das escravas, observa-se ainda o uso de expressões


que facilmente associaríamos a variantes populares do português
contemporâneo. A avó explica a Akin: ―Minhas duas netas vieram com a
mudança para o sul, mas não quentaram lugar‖ (Rios, 2015, p. 81, grifo nosso).
A escrava Nhana dirige-se à Abadessa do mosteiro: ―Eu num sabia... que a
faixa tinha cabado‖ (Rios, 2015, p. 144, grifos nossos). Porém, a fala dos
escravos fugidos, todos homens, é representada pela mesma variante
linguística dos brancos, como se vê no diálogo entre Akin e Rahim

(Akin) – Trouxe o que fui buscar e não preciso te dar contas de


nada (...).
(Rahim) – Tu estás no comando (...). Mas poderias precisar de
ajuda (...). Sei que fugiste daquela família ainda nas Geraes.
Sei que vieste para as terras de Piratininga por que procuras a
menina Benvinda.
(Akin) – Oluremi é o nome de dela (...) (Rios, 2015, p. 98)

A estratificação da linguagem (Bakhtin, 1988, p. 76) demonstrada


nesses exemplos sugere uma emancipação diferenciada entre homens e
mulheres escravizados. A diferença entre a condição masculina e a feminina
também é demonstrada pelo cerne da trama, uma vez que Clara depende de
Martim para ser resgatada e, portanto, o espera (Rios, 2015, p. 35), assim
como a escrava Oluremi, que também depende de Akin para fugir do mosteiro
e viver no quilombo (Rios, 2105, p. 176).
Outro exemplo da estratificação da linguagem no discurso particular das
personagens é especialmente explorado na voz interna de Martim e numa troca
de mensagens com Clara. O rapaz refere-se várias vezes ao super-herói
Batman, repetindo a fala de seu parceiro de aventuras, Robin.
É assim, pois, que se expressa diante da admiração de ter feito a
viagem: ―Santo contínuo do espaço tempo, Batman – murmurou – eu consegui.
Consegui! ‖ (Rios, 2015, p. 95, grifos da autora). E é com essa expressão,
porém na sua versão reduzida (Batman por bat), que Clara deixa um recado
para Martim no confessionário: ―De madrugada, mesma bat hora, mesmo bat
lugar? ‖ (Rios, 2015, p. 190, grifos da autora).
A enunciação concreta do sujeito do discurso (Bakhtin, 1988, p. 82),
nesses exemplos, coloca Clara e Martim não só distantes no tempo e na

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variante da língua de seus contemporâneos do século XVIII no romance.


Coloca-os também como personagens do século XXI, uma vez que dominam
códigos linguísticos que representam marcas culturais de seu tempo. Esses
códigos servem como signos da representação de uma identidade jovem e
integrada ao momento de que são contemporâneos. É também através dessa
orientação dialógica da palavra que esses personagens se definem em relação
aos outros (Bakhtin, 2006, p. 117).
No que diz respeito à estratificação da linguagem na literatura,
entendemos que o romance Iluminuras, em alguma medida, apresenta-se
como um texto literário no qual é possível encontrar exemplos do plurilinguismo
real, da diferenciação da linguagem não apenas em aspectos linguísticos, mas
―em línguas sócio-ideológicas: sócio-grupais, ‗profissionais‘, ‗de gênero‘, ‗de
gerações‘, etc.‖ (Bakhtin, 1988, p. 82).

Clara, a heroína

Numa leitura superficial do romance Iluminuras, é provável que se


relacione o personagem Martim e, num segundo plano, o ex-escravo Akin à
figura de heróis, visto que cabe a eles enfrentar os obstáculos impostos pelo
tempo e pelas circunstâncias e resgatar as personagens femininas a que estão
ligados. Seria essa uma clássica representação dos filmes românticos ou
contos de fadas, em que o herói/príncipe salva a mocinha/princesa.
No entanto, Martim contraria essa representação e diz para Cirilo, logo
no início da trama, que não vai assumir o papel de ―salvador de donzelas‖
(Rios, 2015, p. 28). Clara, como Martim, também não quer identificar-se com as
princesas dos contos de fadas, que dependem de homens para salvá-las (Rios,
2015, p. 35). O desenrolar da trama provará, por sua vez, que ambos
assumirão, ao menos em parte, os papéis aos quais se negam, apesar de
nenhum dos dois, segundo o narrador, acreditar em amor à primeira vista ou
apreciar comédias românticas (Rios, 2015, p. 159).
Assim, Clara é consciente de que Martim precisava vir para salvá-la
(Rios, 2015, p. 35). E ele, diante das evidências todas, convence-se de que
―devia ir para o passado simplesmente porque já tinha ido para o passado‖
(Rios, 2015, p. 63, grifos da autora). O mesmo narrador que tenta conduzir o
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leitor para fora do clima dos romances adocicados do cinema e da literatura,


acaba por levá-lo para lá.
A trama pode ainda enredar e sugerir o encaminhamento para uma
construção clássica do herói no papel masculino. No entanto, como já
observado, as vozes que permeiam o discurso de Iluminuras apontam na
direção da valorização do feminino, procurando expor e comparar a condição
feminina nos dois tempos em que a história se desenvolve. Sobre esse dado,
há que se considerar que o leitor ideal que a obra tem em vista é um leitor
jovem, em idade escolar, para que se possa compreender plenamente a
escolha de uma jovem protagonista que representa não só o papel central da
trama, mas também o da heroína.
Numa comparação entre o herói da epopeia e o herói do romance,
Bakhtin explica que ―A epopeia tem uma perspectiva única e exclusiva. O
romance contém muitas perspectivas, e o herói geralmente age em sua
perspectiva particular‖ (Bakhtin, 1988, p. 136). Esclarece também que ―A ação
do herói no romance é sempre sublinhada pela sua ideologia: ele vive e age
em seu próprio mundo ideológico (não penas num mundo épico), ele tem sua
própria concepção do mundo, personificada em sua ação e em sua palavra‖
(Bakhtin, 1988, p. 137).
Para se compreender a perspectiva particular de Clara, expressa em
suas ações e em suas palavras, é preciso retomar algumas de suas atuações
já apontadas e apresentar outras que as reforçam. Comecemos pela imagem
construída da personagem, tanto por meio de sua voz quanto da voz do
narrador e de outros personagens ligados a ela.
Para o pai, Clara é uma menina interessada em ficção científica (Rios,
2015, p. 28) e em viagens no tempo (Rios, 2015, p. 19). Fez uma tatuagem no
pulso direito, sobre a qual ele comenta: ―Eu não queria deixar, mas Clara
sempre consegue me convencer de tudo‖ (Rios, 2015, p. 51). A filha é,
portanto, uma garota centrada, emancipada e persuasiva. Ela, por sua vez,
assume uma personalidade feminina forte e independente em relação ao pai.
Mais companheira que filha. Não há menções à mãe da garota.
Para Martim, antes de encontrar-se com Clara no passado e no futuro,
ela ―era uma das garotas mais atraentes de seu colégio‖, ―uma espécie de
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gênio, tirava as melhores notas e escrevia no jornalzinho do grêmio escolar. ‖


(Rios, 2015, p. 19). Ao final, é ainda a pessoa que pode dar sentido a tudo o
que viveram e poderiam viver juntos, pois ―Era a garota-gênio, a especialista
em ficção científica, curvas temporais, paradoxos‖ (Rios, 2015, p. 268).
Na perspectiva dos principais personagens masculinos do romance,
Clara é, portanto, a típica garota de classe média do início do século XXI:
bonita, inteligente e independente. Porém, liberdade e independência também
são colocadas para Clara dentro de limites permitidos ou possíveis, expressos,
por exemplo, pela dependência de um homem para resgatá-la.
Outras qualidades da personalidade de Clara evidenciam-se, sobretudo,
em relação às personagens opositoras a ela enquanto esteve no mosteiro em
1795: a Abadessa e a irmã Felipa. Além de totalmente opostas ao que Clara
representa enquanto mulher pós-moderna, serão elas as responsáveis por uma
espécie de provação e/ou de transformação e educação da personagem Clara
em Iluminuras.
Discorrendo a respeito da história do herói nos romances, Bakhtin
esclarece que
A ideia da provação do herói e da sua palavra é, talvez, a
principal ideia organizadora do romance, que cria sua distinção
radical do relato épico (...) A ideia da provação permite
organizar de modo profundo e substancial o variado material
romanesco em volta do herói. Mas o próprio conteúdo da ideia
da provação pode variar substancialmente conforme as
diferentes épocas e os diferentes grupos sociais‖ (Bakhtin,
1988, p. 182).

Bakhtin aplica esse conceito especialmente ao romance de cavalaria e


ao romance barroco, ―que postulam diretamente a nobreza inata, imóvel e
inerte dos seus personagens‖ (Bakhtin, 1988, p. 185). E o amplia, ao tratar do
novo romance. Acrescenta à provação a transformação e a educação do herói.
Assim, a vida que ―já não serve de pedra de toque e de meio de provação para
o personagem acabado (...), esclarecida pela ideia da transformação, revela-se
como uma experiência do herói, uma escola, um meio, que pela primeira vez
formam e modulam seu caráter e sua visão de mundo‖ (Rios, 2015, p. 186).
Em Iluminuras, Clara será submetida, não na sua vida de garota do
século XXI, mas na vida de recolhida num convento do século XVIII, a uma

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série de castigos físicos e psicológicos por parte das duas religiosas que tanto
trazem ao romance o conflito necessário ao clima da narrativa, quanto
funcionam como provações, que promoverão pequenas mudanças em seu
comportamento. Assim, ao final do romance, encontramos Clara na Feira
Cultural do colégio, na manhã do domingo 22 de abril, dizendo à amiga Sabina
Eu achava que sabia tudo, amiga. Que podia fazer o que
quisesse, o que me desse na telha! E tive de aprender do jeito
mais difícil que não sei quase nada (...) ... andei me achando
esperta demais. E não sou. Posso tirar boas notas, mas muita
coisa nesta vida não depende de nota (Rios, 2015, p. 266 e
267)

O leitor percebe também as mudanças operadas em Clara na


narrativização do pensamento de Cirilo ao observar a filha: ―... conferiu seus
cabelos picotados, algumas contusões nos braços, as mãos ásperas. E um
olhar estranho, paciente, que nunca tivera. Clara estava mudada‖ (Rios, 2015,
p. 252).
Tais mudanças são causadas, sobretudo, pela ação da Abadessa e de
irmã Felipa, personagens a quem Clara se refere várias vezes como
―megeras‖. Agindo segundo uma perspectiva ideológica que se opõe à de
Clara, o papel de vilãs na história delineia-se logo no segundo capítulo, quando
a garota pensa, ao perceber o olhar da superiora sobre si: ― ‗Ela daria uma
ótima vilã de desenho animado‘ ‖ (Rios, 2015, p. 36). As características de
vilania que definem as religiosas serão colocadas em oposição à solidariedade
e bondade que caracterizam Clara, especialmente no tocante à escravidão.
Como se esperaria de um personagem do século XXI, Clara indigna-se
com o tratamento dado às escravas. Desse modo, ajuda Oluremi nos trabalhos,
torna-se sua cúmplice quando descobre que há um escravo fugido
comunicando-se com ela por meio das pedras brancas deixadas no pátio do
Recolhimento das mulheres, cuida da escrava quando esta volta ferida após
ser recapturada e torturada na primeira vez que Akin tenta resgatá-la do
mosteiro. Em um dado momento, nota-se até uma certa pretensão por parte de
Clara quando se lê que ela ―Identificava-se com a garota, desejava ajudá-la a
ser feliz, se a felicidade fosse possível a uma escrava naquele século‖ (Rios,
2015, p. 177).

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Em oposição à postura solidária e até ingênua ou pretensiosa de Clara,


estão a Abadessa e a irmã Felipa, cujas características, para um leitor mais
experiente, apresentam-se em claro diálogo com a personagem Dona Inácia do
conto Negrinha, de Monteiro Lobato.
Dona Inácia de Lobato era uma senhora ―gorda, rica, dona do mundo,
amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo no céu‖.
Entaladas as banhas na cadeira de balanço da sala de jantar, bordava e
recebia os amigos e o vigário (Lobato, 1994, p. 21). Ainda, a ―Excelente dona
Inácia era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha da escravidão, fora
senhora de escravos‖, que ―nunca se afizera ao regime novo‖, por isso,
―Conservava Negrinha em casa como remédio para os frenesis. ‖ (Lobato,
1994, p. 23).
A Abadessa e a irmã Felipa de Rios tomaram o véu num convento da
Ordem da Imaculada Concepção, em Salvador, e depois foram para o mosteiro
cuidar de mulheres que quisessem renunciar ao mundo (Rios, 2015, p. 120).
Assim como a dona Inácia, as duas religiosas sentem prazer em aplicar
castigos: ―Pouco depois, enquanto a superiora seguia rumo à capela para
assistir ao primeiro ofício, satisfeita como sempre se sentia após bater em
alguém, a moça negra curtia as dores no anexo à cozinha‖ (Rios, 2015, p. 167).
O diálogo com Lobato aparece também no uso da adjetivação carregada
de ironia da qual se serve muitas vezes o narrador de Negrinha. Em Iluminuras,
lê-se a seguinte referência à irmã Felipa no que diz respeito à sua relação com
os escravos: ―A virtuosa mulher evitava ao máximo aproximar-se dos
‗destinados ao inferno‘‖ (Rios, 2015, p. 217, grifo nosso). Se dona Inácia
sentava-se numa cadeira de balanço, a Abadessa possuía uma ―poltrona de
estimação‖ (Rios, 2015, p. 217). Além disso, era também dona de um ―corpo
volumoso‖, que movia de forma ―lépida e ágil‖, caso necessário (Rios, 2015, p.
145).
Para Clara, o tempo passado no recolhimento tornou-se terrível e
perigoso devido a essas duas personagens. A Abadessa, além de julgá-la
como louca (Rios, 2015, p. 120) e de não gostar dela (Rios, 2015, p. 141),
apossou-se de seus cabelos, que continham o cheiro do perfume que deveria
servir de estímulo para que Clara retornasse ao século XXI. A garota descobre
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que essa era uma prática da superiora: apossar-se dos bens a que as
postulantes renunciavam quando chegavam ao recolhimento (Rios, 2015, p.
187).
Quanto à irmã Felipa, ―Deixara claro desde o primeiro dia que não
gostava de ‗donzelas fidalgas‘, e fora com alegria que cortara seus cabelos
longos e os entregara à Abadessa, resmungando que ‗cheiravam a pecado‘‖
(Rios, 21015, p. 73). Impunha jejuns e castigava Clara fisicamente, piorando as
penitências impostas pela Abadessa, ao fazer com que a garota ajoelhasse
―num canto em que o chão de terra era cheio de pedrisco‖ (Rios, 2015, p. 141),
desferindo golpes de palmatória (Rios, 2015, p. 202) e safanões (Rios, 2015, p.
228).
Se, por um lado, Clara é solidária com os escravos e com as
postulantes, por outro, não se exime da raiva que sente das duas religiosas,
chegando a desejar, mesmo que em pensamento, ―Que um raio caia do céu‖ e
as parta ao meio (Rios, 2015, p. 217). ―Desejo‖ esse que se realizará, pois as
duas religiosas morrerão num incêndio que destruirá parte do mosteiro. Sua
morte será causada e justificada em razão dos defeitos que acalentam: o
apego aos bens materiais, no caso da Abadessa; e o fanatismo religioso, no
caso de irmã Felipa.
Sobre o incêndio, Cirilo explica a Martim:
Consegui há algumas semanas falar com um amigo que
trabalha num museu de Arte Sacra na Bahia. Ele me obteve
cópias de cartas dos Abades e Priores daqui, para os
superiores da ordem. E numa delas, finalmente descobri por
que a clausura das irmãs está mais soterrada que o resto da
construção! É que tudo desabou no século dezoito (Rios, 2015,
p. 77 e 78).

Essas cartas informam ainda que somente a Abadessa e a irmã Felipa


haviam sobrevivido (Rios, 2015, p. 78). Portanto, Martim chega ao mosteiro de
posse de uma informação que mudará a conduta de alguns personagens que
dela também se apossam, como Clara e irmão Brás. Como sabe o que vai
acontecer, a garota planeja uma ação e diz para Martim: ―... vou avisar as
meninas para se refugiarem na capela. Não conseguiria ir embora sabendo que
elas vão morrer no desabamento‖ (Rios, 2015, p. 225).

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As mesmas cartas serão checadas por Cirilo e Clara na manhã de 22 de


abril, logo após seu retorno ao século XXI. Os dois descobrem que mudaram
tudo: as meninas se salvaram, quem se tornou prioresa foi a cozinheira, irmã
Pilar, e que a Abadessa e a irmã Felipa morreram (Rios, 2015, p. 255). Clara
sente-se, então, culpada pela morte das duas, visto que na outra linha do
tempo, elas se salvavam. O sentimento de culpa revela, portanto, a heroína
humana, cujos sentimentos e desejos são contraditórios.
Por outro lado, Clara consegue salvar todas as outras moças que
moravam no recolhimento. Para isso, faz uso de um discurso que, como ela
sabe, convenceria as irmãs. Um dia antes do incêndio, ela diz para a jovem
Guida: ―Eu tive um sonho, uma revelação. O que vi vai acontecer, podeis ter
certeza! Amanhã haverá mais chuvas e ventos e raios. Tudo isto aqui irá
desabar. Queimar. O único lugar seguro será a capela‖ (Rios, 2015, p. 236).
Assim, ao iniciar-se o incêndio, irmã Pilar leva ―as meninas para os fundos do
templo. A irmãzinha dissera que ali ficariam seguras, e ela acreditava em cada
uma de suas palavras‖ (Rios, 2015, p. 244).
Na carta do Prior (agora modificada pela ação de Clara sobre os
acontecimentos), lê-se que as irmãs, ―por ação milagrosa de Nossa Senhora
refugiaram-se na capela menor a tempo de escapar à sanha dos negros e ao
desabamento‖ (Rios, 2015, p. 254). O leitor sabe, no entanto, que a salvação
das mulheres se dá não por intervenção divina, mas pelo conhecimento do
futuro que Clara possuía. No caso de Iluminuras, a voz do autor refratada nos
inúmeros discursos, indica que tanto a fé quanto o tema das viagens no tempo
pressupõem questionamentos à ciência.
Outra interferência da ação de Clara na linha do tempo tem a ver com a
escrava Oluremi. Pouco antes do incêndio tomar conta de parte do mosteiro, os
escravos fugidos atacaram o local com tochas acesas, sendo recebidos com
tiros pelos soldados que lá ainda se encontravam. Ao mesmo tempo, um
terrível temporal castigava a região. A confusão que ia se instalando foi o sinal
para Oluremi afastar-se da Abadessa, que não percebe o sumiço da moça por
entre os bambus. Ao contrário de Clara, que
ali, atenta, teve tempo de acobertar sua fuga. Ajudou-a a abrir
a passagem, sabendo que a garota ainda andava com
dificuldade.
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– Toma cuidado! E não desiste, minha irmã. Não desiste –


disse.
A menina negra tomou sua mão.
– Um dia vou ter uma filha. E vai se chamar Clara. Ela e a filha
dela também.
Encabulada, a filha de Cirilo negou com a cabeça.
– Se tiveres uma filha, dá a ela o nome da tua avó (...).
Oluremi soltou-a e sorriu entre os bambus.
– Vou ter duas filhas. Uma vai ser Clara. A outra ganha o nome
de Iyá.
– E ela, como se chamava? – a garota não pôde evitar a
pergunta.
– Yejide – a outra respondeu antes de sumir do outro lado
(Rios, 2015, p. 240).

A atitude de Clara acima descrita, bem como o diálogo com


Oluremi, ganham novos contornos sobre os quais Clara pronuncia-se da
seguinte forma, dirigindo-se ao pai: ―... desconfio que a gente bagunçou o
futuro de um jeito muito mais complicado que eu pensava‖ (Rios, 2015, p. 261).
Essa conclusão deve-se ao que Clara descobre, naquela manhã de 22 de abril,
ao ser apresentada por Cirilo a Yejide.
Diante do nome incomum da companheira de trabalho do pai e do que
acabara de viver no século XVIII, a menina pergunta a Yejide se ela tem uma
irmã chamada Clara. A restauradora responde:
Minha irmã vive em Porto-Novo, nossa cidade natal no Benin.
Na verdade, essa é uma tradição familiar antiga. Nem sei como
surgiu, mas minha mãe a manteve. Há várias gerações,
sempre que uma das mulheres da família tem uma filha, a
criança se chama Clara; se tiver outra menina, o nome será
Yejide (Rios, 2015, p. 261).

Desse modo, a interferência de Clara no passado, com a ajuda de


Martim, teria permitido que Oluremi sobrevivesse e que uma de suas
descendentes fosse a restauradora das iluminuras no museu. Essas iluminuras
deram as pistas que os levaram ao passado e que depois os trouxeram de
volta, como num moto-perpétuo: ―o rapaz de preto com os cabelos presos na
nuca, em pé, diante do suporte de madeira, olhando a página que retratava a si
mesmo em pé, olhando a página que o retratava‖ (Rios, 2015, p. 30).
Além disso, Yejide é uma das descendentes da velha Iyá, que era avó
de Oluremi e Iraê. Iyá ―sabia tudo sobre plantas, ervas, curas... e venenos. Ao
perceber que seria torturada, dera um jeito de fugir para não entregar as netas

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e os quilombolas. Era a única fuga possível‖ (Rios, 2015, p. 197 e 198).


Suicidando-se com o veneno das plantas que conhecia, a avó poupa as netas
e possibilita a existência de uma vasta ascendência de mulheres. Entre elas
está Yejide que, ao contrário dos olhos cegos de Iyá, tem olhos capazes de
trazer à luz tesouros ocultos na obscuridade do passado (Rios, 2015, p. 215).
Outra ação de Clara, que também destaca seu papel de heroína na
história, é que ela possibilita o encontro entre Martim e o pai, João Brasílio, que
se tornou frei Brás. O rapaz, após uma conversa franca com o frei/pai, diz para
Clara: ―Passei anos me angustiando com o sumiço dele... Ao menos agora eu
sei a verdade‖ (Rios, 2015, p. 213). Quanto a frei Brás, o narrador nos informa
que, após o incêndio, ―Foi cuidar dos animais; cansado, abalado pelas cenas
de loucura e morte que vira. Mas sentia uma inédita serenidade, como se,
afinal, tivesse acertado as contas com o passado – ou com o futuro? – e
houvesse conquistado o direito de ser feliz‖ (Rios, 2015, p. 259).
Nesse encontro, portanto, ambos alcançam o entendimento necessário
para prosseguirem nos caminhos que escolheram: o de Martim, retornar ao
século XXI e lá viver sua vida; o de frei Brás, permanecer no século XVIII em
paz com seu futuro.
Os eventos até aqui descritos colocam, portanto, Clara no papel de
heroína da história. Sua juventude, inteligência, senso de justiça e capacidade
de ação destacam-se na trama, sempre em defesa das mulheres, dos mais
fracos e da liberdade. Essa sua posição ideológica no romance está
continuamente associada a seu discurso (Bakhtin, 1988, p. 136) e pode ser
compreendida como um desejo de que o leitor contemporâneo, também jovem
como Clara, identifique-se com suas posições.

Considerações Finais

Ao encerrar a presente análise é preciso ressaltar que o espaço de um


artigo não é capaz de abrigar toda a abrangência de um romance, ainda que
ele não seja tão extenso nem que sua estrutura seja tão densa ou complexa.
Há, portanto, muito em Iluminuras a ser observado e posto sob análise,
sobretudo por pontos de vista distintos daqueles aqui utilizados.

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Quanto à abordagem do texto de Rosana Rios realizada nessas


páginas, destaca-se a dialogicidade interna do discurso, conforme descrita por
Bakhtin. Percebe-se a linguagem do prosador às vezes em graus próximos ao
autor, outras vezes refratada nos discursos dos personagens e do narrador,
como também no uso dos gêneros intercalados (Bakhtin, 1988, p. 105), dando
o tom ao romance. Esse tom ganha os contornos do contexto sociocultural que
o abriga, permitindo que o leitor tenha uma visão multifacetada dessa
realidade, por meio das diferentes vozes textuais ali em diálogo, e que ele se
reconheça como sujeito desse grupo social (Aguiar; Bordini, 1993, p. 135).
Desse modo, ainda que o romance mantenha as características básicas
de tantos outros romances juvenis, apresentando um jovem casal de
protagonistas vivendo sua primeira história de amor, por outro lado, ele coloca
essa relação num segundo plano, dando espaço para outras questões
pertinentes ao contexto atual, como o destaque do papel feminino na
sociedade, refletido no enredo e na atuação dos personagens. Além disso, o
cronotopo dividido entre dois tempos simultâneos, porém distantes
cronologicamente, possibilita ao leitor o contato com uma realidade já
considerada passada, ou até superada, cujos reflexos ainda são sentidos em
nossos dias.
No entanto, a escolha dos temas, o perfil da heroína, as características
dos personagens opositores, o desenrolar e o desfecho das ações demonstram
um traçado que preferiu manter-se na segurança. Optando por escrever um
romance com marcas de uma previsibilidade inerente – a jovem independente
e solidária do século XXI que vive sua primeira história de amor sob um clima
de aventura e perigo – Rios não se arrisca. O traçado de Iluminuras desenha-
se sobre o mesmo fundo de outras histórias para jovens, sem ousar provoca-
los.

Referências

AGUIAR V.; BORDINI, M. Literatura: a formação do leitor. 2. ed. Porto Alegre:


Mercado Aberto, 1993.

BAKHTIN, M. Questões de Literatura e de Estética. São Paulo: Editora Hucitec, 1988.

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
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ILARI, R.; BASSO, R. O português da gente: a língua que estudamos a língua que
falamos. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2011.

LOBATO, M. Negrinha. 30. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

RIOS, R. Iluminuras. 1. ed. Belo Horizonte: Lê, 2015.

SILVA, E. T. A escola e a formação de leitores. In: FAILLA, Z. (Org.). Retratos da


leitura no Brasil 3. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Instituto Pró-
Livro, 2012.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

NO DIVÃ E NA ESCRIVANINHA: BREVE ANÁLISE


PSICANALÍTICA E ESTILÍSTICA DO CONTO ―COMO SE FOSSE‖,
DE MARINA COLASANTI

Alexandre Leidens, UTFPR – Pato Branco, A literatura juvenil e jovens leitores.


Fabiano Tadeu Grazioli, URI – Erechim, A literatura juvenil e jovens leitores.

Considerações Iniciais

Marina Colasanti é uma autora reconhecida na literatura brasileira, é dona de


uma obra extensa e diversa, na qual figuram publicações voltadas à poesia, ao
romance e à literatura infantil e juvenil. É nesse gênero que se encontra a obra ―23
histórias de um viajante‖, na qual está inserido o conto ―Como se fosse‖, que
apresenta um reino no momento da passagem da coroa de um pai morto em batalha
para um menino para assumir tamanha responsabilidade. Em uma entrevista
concedida para o terceiro número do ―Limeriques‖, Boletim de Literatura Infantil e
Juvenil publicado pela Habilis Press Editora, Marina Colasanti declarou sobre o
significado e a recepção de seus contos:

Quem são as pessoas que lerão esse conto? Impossível saber. Cada
pessoa é diferente da outra, e lê à sua própria maneira. Não penso
em quem lerá, quando escrevo contos de fadas. Nem escrevo para
demonstrar um princípio, ou para extrair claros significados morais.
Penso na história, entro na história e sigo seus passos, sou a história.
E as histórias, como a vida, são múltiplas, plurifacetadas. Por isso
meus contos de fadas costumam não ter um único significado, nem
permitir uma única interpretação. Gostaria que tivessem muitas portas
de entrada, para que o leitor escolhesse a sua. E quero, quero muito,
que se comova ao final, como eu me comovo. E que procure em si,
não no conto, o porquê dessa comoção. (COLASANTI, 2016, p. 3).

As portas que escolhemos para ―entrar‖ no conto de Marina Colasanti são a


psicanálise e a estilística. Para a primeira ―entrada‖ vamos nos valer de estudos de
Jacques Lacan (2003) e Bruno Bettelheim (2007). Para a segunda ―entrada‖ vamos
utilizar alguns fundamentos teóricos de Carlos Reis (1981). Para realizar as análises,
apresentamos nesta comunicação, como já deixamos implícito, estudo de abordagem
645

qualitativa, e nosso procedimento técnico envolve pesquisa bibliográfica e documental,


partindo de determinados conhecimentos já produzidos e explorando material que não
recebeu tratamento analítico específico, o conto ―Como se fosse‖, de Marina Colasanti.

―Como se fosse‖ e a psicanálise: breves apontamentos

Em um lugar onde a expectativa, a perspectiva de continuidade de um bom


reinado e a esperança na destreza do rei menino para o governo estão evidentes e
efervescentes, é a rainha quem sugere uma forma de manter tudo como antes. Tendo
em vista a brevidade do conto, o transcrevemos a seguir:

Como se fosse

De nada adiantou a couraça contra o fio da espada. O sangue


jorrou entre as frestas metálicas e o jovem rei morreu no campo de
batalha. Tão jovem, que não deixava descendente adulto para ocupar o
trono. Apenas, da sua linhagem, um filho menino.
Antes mesmo que a tumba fosse fechada, já os seus fiéis
capitães se reuniam. A escolha de um novo rei não pode esperar. E
determinaram que o menino haveria de reinar, a coroa lhe cabia de
direito. Que começassem os preparativos para colocá-la sobre sua
cabeça.
Aprontavam-se as festas da coroação, enquanto os capitães instruíam
o menino quanto ao seu futuro. Mas porque o rei seu pai havia sido
muito amado pelo povo e temido pelos inimigos, e porque o rosto do
menino era tão docemente infantil, uma decisão sem precedentes foi
tomada.
No dia da grande festa, antes que a coroa fosse pousada sobre
os cachos do novo rei, a rainha sua mãe avançou e, diante de toda a
corte, prendeu sobre seu rosto uma máscara com a efígie do pai.
Assim ele haveria de ser coroado, assim ele haveria de governar. E os
sinos tocaram em todo o reino.
Muitos anos se passaram, muitas batalhas. O menino rei não
era mais um menino. Era um homem. Acima da máscara seus cabelos
começavam a branquear. Seu reino também havia crescido. As
fronteiras extensas exigiam constante defesa.
E na batalha em que defendia a fronteira do Norte, acossado
pelos inimigos, o rei foi abatido no fundo de uma ravina, sem que de
nada lhe valesse a couraça.
Antes que fechasse os olhos, acercaram-se dele seus capitães.
Retiraram o elmo. O sangue escorria da cabeça. O rei ofegava, parecia
murmurar algo. Com um punhal cortaram as tiras de couro que
prendiam a máscara. Soltou-se pela primeira vez aquele rosto pintado
ao qual todos se haviam acostumado como se fosse carne e pele. Mas
o rosto que surgiu por baixo dele não era um rosto de homem. A boca
de criança movia-se ainda sobre mudas palavras, os olhos do rei
faziam-se baços num rosto de menino. (COLASANTI, 2005, p. 115-
116).

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A questão nodal no conto para a psicanálise é influência da figura da mãe na


vida de um filho, de modo mais particularizado, a demanda de uma mãe para com seu
filho e o esforço do filho em corresponder a ela. Demanda, segundo Lacan (2003), é
justamente o desejo do Outro, e não o nosso. Muitas vezes (ou na maioria das vezes),
o sujeito neurótico vive buscando realizar a demanda desses ―outros‖, sejam eles
quais forem, e tão pior se forem dos pais.
A mãe, por sua vez, também apresenta traços de neurose, ao transfigurar sua
demanda em desejo: ―Se há, vocês sabem, algo a que se pode dizer que, desde o
início, o neurótico foi pego, é nessa armadilha; e ele tentará fazer passar na demanda
o que é o objeto de seu desejo, de obter do Outro não a satisfação de sua
necessidade, pela qual a demanda é feita, mas a satisfação de seu desejo [...].‖
(LACAN, 2003, p. 199). Se a demanda é o que o Outro precisa e que o sujeito tem
condições de realizar, o desejo é, por sua vez, algo inatingível, irrealizável, que o
Outro deseja que se realize. Flagramos a neurose da mãe na tentativa de fazer o filho
realizar não só a sua demanda, mas também o seu desejo. O filho vive para realizar a
demanda da mãe, mas o que ela quer, de fato, é que ele realize o seu desejo, que é
reinar a partir dos princípios do pai, desejo, a nosso ver, inatingível. Afirmamos que o
desejo da mãe não se realiza, pois o filho, na tentativa de viver a partir dos princípios
da mãe, é abatido, morto numa emboscada.
Bruno Bettelheim, no conhecido ―A psicanálise nos contos de fadas‖, afirma
que

As histórias modernas escritas para crianças evitam sobretudo os


problemas existenciais, embora eles sejam questões cruciais para
todos nós. A criança necessita muito particularmente que lhe sejam
dadas sugestões em forma simbólica sobre como ela pode lidar com
essas questões e amadurecer com segurança. As histórias ―seguras‖
não mencionam nem a morte, nem o envelhecimento – os limites da
nossa existência [...]. O conto de fadas, em contraste, confronta a
criança honestamente com as dificuldades humanas básicas.
(BETTELHEIM, 2007, p. 15, grifo do autor).

O texto em questão, considerado pela própria autora um conto de fadas,


embora escrito na atualidade, assegura essa característica do gênero: o jovem leitor é
exposto ao tema da morte e das dificuldades humanas básicas: o rei que não assume
de fato a sua função, mesmo depois de ter crescido e não vive sua existência na
plenitude, como afirmávamos. Bettelheim (2007, p. 15) exemplifica a afirmação que
utilizamos acima: ―[...] muitas histórias de fadas começam com a morte da mãe ou do
pai nestes contos, a morte do genitor cria problemas mais angustiantes, tal como ela
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(ou o medo dela) o faz na vida real‖. O conto de Marina Colasanti vale-se de tal
expediente e explora a consequência da morte do genitor. O enredo do conto é
impulsionado por esse acontecimento, e o seu fechamento mostra a morte e a
anulação existencial do protagonista, personagem com o qual naturalmente o jovem
leitor é levado a se identificar.
Em sua ampla exploração das temáticas dos contos de fadas relacionadas à
psicanálise, Bettelheim (2007, p. 16) afirma:

É característico dos contos de fadas colocar um dilema existencial de


maneira breve e incisiva. Isso permite à criança apreender o
problema em sua forma mais essencial, enquanto que uma trama
mais complexa confundiria as coisas para ela. O conto de fadas
simplifica todas as situações, suas personagens são esboçadas
claramente; detalhes, exceto quando muito importantes, são
eliminados. Todas as personagens são típicas em lugar de únicas.

O conto de Marina Colasanti serve de exemplificação a mais uma


caracterização dos contos de fadas apresentada por Bettelheim (2007), pois se trata
de um conto breve, sem excessos. Só é narrado o que realmente importa, tendo em
vista os significados que podem emergir da história. As personagens, no conto, são
típicas, ou seja, identificadas por traços distintivos comum a todos os indivíduos de
uma categoria: o rei-pai, a rainha-mãe, os capitães, o rei-filho, que representa muito
bem a categoria do neurótico empenhado em realizar as demandas alheias sem
crescer de fato, como podemos perceber na revelação final de que, na sua essência,
ele não transcendeu à infância, já que ao ser retirada a máscara, o que vemos é um
rosto de menino no corpo do rei que já possuía cabelos brancos.
Ao menino rei não é dada a chance de escolher seu destino, ele não resolve,
como na grande maioria dos contos de fadas, ―[...] a incerteza sobre quem somos; e
onde começamos a entender quem queremos ser‖. (BETTELHEIM, 2007, p. 134). O
menino rei não parte de casa, não deixa o lar, não se perde, não abandona a
organização de sua vida... Assim, ele não tem oportunidade de construir as estruturas
interiores ―[...] que só desenvolvemos sob o impacto de experiências de vida que
temos que dominar mais ou menos por conta própria.‖ (BETTELHEIM, 2007, p. 135).
Sobre as experiências de vida significativas ao indivíduo, Bettelheim afirma:

Se perdemos o vigamento que dava estrutura à nossa vida passada e


agora devemos encontrar o nosso próprio caminho para nos
tornarmos nós mesmos, e se penetramos nesse ermo com uma
personalidade ainda não desenvolvida, no momento em que
conseguimos encontrar nossa saída emergiremos com uma
humanidade muito mais desenvolvida. (BETTELHEIM, 2007, p. 135).

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Tendo em vista a história do menino rei, foi-lhe negado esse processo.


Baseados, sobretudo no final da história, afirmamos que a personagem não evolui em
sua essência, haja vista a já referida figura de menino estampada em seu rosto,
quando da retirada da máscara.
O contexto em que o menino rei está inserido e o final de sua história estão na
contramão do que Bruno Bettelheim (2007, p. 141) diz ser o final recorrente para a
maioria dos contos em que há conflitos entre pais e filhos: ―[...] por mais ameaçadores
que os pais possam, às vezes, parecer, a longo prazo, quem vence é sempre a
criança e quem é derrotado é o pai‖. Com nosso personagem, ocorre o inverso. São
os desejos traçados pelos adultos – e em relação aos genitores, pela mãe – que
determinam os rumos da história e que, portanto, prevalecem. Quem vence é a mãe.
Mas os adultos não são de um todo vencedores. Nem a mãe. A morte do rei filho e a
revelação final podem lhes fazer perceber o óbvio.
Referindo-se à maioria dos contos de fadas, Bettelheim (2007, p. 182) afirma:
―Quando o conto termina, o herói venceu todas as provações e, apesar delas,
permaneceu fiel a si próprio, ou, ao passar por elas com sucesso, alcançou sua
verdadeira identidade‖. Nosso protagonista não venceu todas as provações: foi morto
ao final da história. Do modo que herdou o trono e conduziu seu reinado, não teve a
oportunidade de vencer as provações e permanecer fiel a si próprio, pois, como já
afirmamos, ele não passa de um sósia do pai. Ele está muito distante de alcançar sua
verdadeira identidade ―ao passar pelas provações com sucesso‖. Se obtém algum
sucesso durante o reinado, e obtém – pois ―Seu reino também havia crescido. As
fronteiras extensas exigiam constante defesa‖ (COLASANTI, 2003, p. 16) –, é por
repetir os feitos do pai e por corresponder às demandas da mãe e da sociedade. Suas
ações não lhe logram conhecer sua verdadeira identidade. Ao receber a máscara do
pai, o menino é privado de alcançá-la: sua identidade ficou perdida no tempo da
infância, como revela seu rosto, no final do conto.
Bettelheim apresenta questões que nos fazem pensar na recepção do conto de
fadas, e, por consequência, na recepção do conto em análise:

Nenhuma criança acredita que um dia virá a ser governante de outro


reino que não a sua própria vida. A história de fadas lhe assegura que
um dia esse reino poderá ser seu, mas não sem luta. O ‗como‘ a
criança imagina especificamente o reino depende de sua idade e
estado de desenvolvimento, mas ela nunca o toma literalmente. Para
a criança mais nova, pode significar simplesmente que então
ninguém mandará nela e que todos os seus desejos serão satisfeitos.

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Para a mais velha também incluirá a obrigação de governar, isto é,


viver e agir sabiamente. (BETTELHEIM, 2007, p. 182, grifo do autor).

Na leitura do conto de Marina Colasanti, o jovem leitor é levado a refletir sobre


as chances de viver a vida (governar) segundo seus princípios e desejos. O que salta
aos seus olhos e ao seu mundo interior é o fato de o rei filho aceitar sem se impor a
condição de viver uma vida que não é sua, e de, ao final desta vida, não ter atingido a
maturidade, tal como ele percebe na maioria dos contos de fadas.
Equalizando a temática e o desenrolar de vários contos de fadas, Bettelheim
(2007, p. 198) considera que ―[...] o genitor, mesmo sendo tão poderoso quanto o é
uma rainha, é imponente para assegurar o desenvolvimento do filho rumo à
maturidade. Para adquirir identidade a criança tem que enfrentar as provações da vida
por conta própria [...]‖. Mais uma vez localizamos nos estudos do autor o que falta ao
nosso protagonista. Mais uma vez o autor focaliza a importância de a personagem
enfrentar as provações da vida para adquirir identidade. Faltou, ao protagonista de
―Como se fosse‖, a construção da identidade e, obviamente, o percurso em direção à
maturidade.
Sobre o final dos contos de fadas e o seu significado para a psicanálise,
Bettelheim (2007, p. 181) afirma:

Ter se tornado rei ou rainha na conclusão da história simboliza um


estado de verdadeira independência, no qual o herói se sente tão
seguro, satisfeito e feliz quanto a criança se sentia em seu estado
mais dependente, quando era realmente bem cuidada no reino de
seu berço.

No conto em análise, o rei, ainda criança, herda o reino. É instruído sobre o


reinado e usa a máscara do pai. Colasanti subverte essa constante dos contos de
fadas, na medida em que, em momento algum, nem na vida adulta, o reinado desse
rei representa a verdadeira independência, pelo contrário, é a realização dos projetos
dos outros. O rei do conto se esconde, literalmente, sob a máscara do pai, repetindo
suas ações e morrendo da mesma forma que ele. Se nos ocorre a ideia de que nosso
protagonista é seguro, satisfeito e feliz, não passa de uma impressão, é o que revela
seu rosto menino conservado atrás da máscara.
Quando aborda a simbologia dos números, Bettelheim destaca:

Tanto no consciente quanto no inconsciente os números representam


pessoas: as situações familiares e relações. Temos perfeita
consciência de que ‗um‘ nos representa em nossa relação com o
mundo [...]. No inconsciente ou nos sonhos, ‗um‘ pode representar

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seja a própria pessoa, tal como faz em nossa mente consciente, seja
– particularmente no que diz respeito às crianças – o genitor
dominante. (BETTELHEIM, 2007, p. 151, grifos do autor).

O rei menino perdeu o pai, possui, então, somente um genitor vivo, que
representa aqui o genitor dominante, a mãe. Ela exerce força definitiva em sua vida,
pois, como já apontamos, ele vive de acordo com a sua demanda/desejo.
―Como se fosse‖ é exemplo de texto que serve para demonstrar uma vertente
da obra de Marina Colasanti na qual a autora expõe suas crenças sobre o ser
humano, o mundo, as relações familiares e sociais. O indivíduo que não consegue
autonomia em relação aos genitores e às figuras sociais vive uma vida que não é sua
e conserva, no seu íntimo, as características da infância, mostrando não ter adquirido
independência e autonomia suficientes para ―governar‖, seja sua vida ou o reino que
lhe cabe. O texto depõe a favor da emancipação do ser humano, tema, a nosso ver,
almejado por grande parte das obras de arte.

Análise estilística: alguns aspectos

Os trabalhos que focalizam os fundamentos estéticos da linguagem provém de


reflexões que abarcam, inclusive, a linguística idealista, possibilitando o
estabelecimento de uma direção qualitativa dentro da produção literária. Por
consequência, algumas análises literárias seguem essa perspectiva estética, de tal
maneira que o escritor pode se pautar não apenas no seu gosto pessoal no momento
de sua avaliação autocrítica, ainda durante o processo de escrita, mas também pela
corrente estética que lhe convir.

Inegavelmente situada na esteira das reflexões esteticistas de Croce


acerca das características essenciais da linguagem, a linguística
idealista de Vossler apoia-se fundamentalmente em dois postulados:
aquele que determina a qualidade estética que enforma a linguagem
verbal e o que enraíza a constituição do discurso literário em
motivações rigorosamente individuais; de acordo com esses princípios,
Vossler afirma: ―[…]. Recordemos que toda exprejón hablada debe ser
explicada como libre creación individual del indivíduo que habla. (REIS,
1981, p. 145-146).

Ora, então toda obra literária pode ser explicada como criação individual de
quem escreve. Esse postulado de Vossler (que enraíza a constituição do discurso
literário em motivações rigorosamente individuais) nos interessa de imediato quando

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temos em mãos um conto de fadas escrito nos dias atuais. Há uma crença da autora
desse conto sobre a necessidade de tal literatura ser produzida na atualidade, e de
não deixar cessar fonte tão importante de fruição estética. Há uma motivação
individual por parte dela de produzir o referido gênero, motivação que recobre tais
textos de um estilo muito particular de escrita.
Das três perspectivas que Carlos Reis alude para ―moldar‖ os parâmetros de
uma análise estilística, a perspectiva psicologista tem relação com o que falávamos
acima: ―O processo estilístico como o processo fonético é duplamente individual,
porque toda obra tem seu estilo e também todo artista possui um estilo‖ (REIS, 1981,
p. 149), do mesmo modo que se afirma também que ―estilo é precisamente o que
individualiza uma fala particular‖ (REIS, 1981, p. 149), ou, por outras palavras, ―[o
estilo é] a unicidade, a peculiaridade conceitual-imaginativo-afectiva de uma fala‖.
(REIS, 1981, p. 149). É isso que percebemos em Marina Colasanti: um estilo já
fundado, individualizado, uma ―fala particularizada‖.
Contudo, por mais que exista essa motivação individual, Reis aconselha não
esquecer que o escritor é um ―sujeito de um ato criador cuja consumação exige o
contributo de qualidades de execução especificamente técnico-literárias‖ (1981, p.
152), e ainda que ―esse contributo da técnica literária no ato de criação incide quase
sempre sobre as características estilísticas do texto literário.‖ (REIS, 1981, 152). A
motivação individual do artista só ganha forma (se consuma) com o uso, o manejo da
técnica literária, de modo que o estilo (por mais que tenha uma motivação individual e
subjetiva) só é percebido na utilização da técnica literária, no trabalho com a
linguagem literária. Se em ―Como se fosse‖ existisse uma motivação individual e
subjetiva (e obviamente existe), é no trabalho com a linguagem literária, mais
especificadamente, no uso da técnica literária que ela se manifesta. É isso que
tentaremos demonstrar com um ou outro aspecto da análise estilística.
A análise estilística opera ―sobre dois estratos bem definidos do texto literário: o
estrato fônico-linguístico e o estrato das unidades de significação.‖. (REIS, 1981, p.
153). O que significa que ―uma análise de caráter estilístico deverá debruçar-se em
primeira instância sobre os recursos técnico-literários que integrando-se nos dois
domínios citados constituem fatores primaciais de elaboração artística.‖. (REIS, 1981,
p. 153).
Dentre os âmbitos e instrumentos de análise estilística, pode-se observar o
significado:

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Uma análise estilística orientada para a valorização do signo e, neste


momento, para o realce eventualmente conferido ao significado,
fundamenta-se na noção de que toda a linguagem literária é
essencialmente plurissignificativa: o que implica a ideia de que o
discurso literário dificilmente se confina, do ponto de vista semântico,
aos limites estreitos de um sentido unívoco […]. (REIS, 1981, p. 155).

O caráter conotativo da linguagem literária é o que opera de modo mais


flagrante o significado. Em um contexto mais amplo, a própria concepção de literatura
que abordamos se pauta sobretudo nessa multiplicidade de perspectivas, sem que
haja uma resposta ou leitura única ou verdadeira para o conteúdo escrito. Fazer com
que o leitor pense e reflita sobre as unidades textuais e suas várias alternativas de
interpretação a partir dos jogos de linguagem explicitam um constructo derivado da
conotação na obra literária.

Representando, como nos ensina a linguística, uma atitude subectiva


do escritor perante a denotação, a conotação implica, como
consequência imediata de sua instauração no enunciado, o
estabelecimento de uma polivalência significativa deduzida da
imposição de valores suplementares sobrepostos a uma função
puramente informativa da linguagem. (REIS, 1981, p. 156).

Deste modo, podemos pensar que a escolha a expressão ―couraça‖ tem


motivação especial por parte da autora e que seu significado não se limita ao
informado no dicionário. Retomemos os dois momentos do texto em que a expressão
é utilizada. ―De nada adiantou a couraça contra o fio da espada. O sangue jorrou entre
as frestas metálicas e o jovem rei morreu no campo de batalha.‖ (COLASANTI, 2005,
p. 115), e ―E na batalha em que defendia a fronteira do Norte, acossado pelos
inimigos, o rei foi abatido no fundo de uma ravina, sem que de nada lhe valesse a
couraça.‖ (COLASANTI, 2005, p. 116). Mais do que uma armadura feita de metal ou
couro, usada por soldados sobre o peito e as costas para protegê-los de golpes
inimigos, também conhecido como ―peito de prova‖, a couraça insinua-se como uma
proteção abstrata contra o revés, o infortúnio. Para além do seu significado puramente
informativo, a couraça parece outorgar aos dois reis que a usaram, coragem e valentia
para proteger o reino dos inimigos. A palavra contribui para a atmosfera geral do
conto, que é de disputa, batalhas e lutas, por reinos e terras, alargamento de
fronteiras. Embora o uso da couraça não tenha livrado pai e filho da morte.
Outro recurso que salta aos nossos olhos é a escolha da palavra ―efígie‖, do
seguinte fragmento: ―No dia da grande festa, antes que a coroa fosse pousada sobre

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os cachos do novo rei, a rainha sua mãe avançou e, diante de toda a corte, prendeu
sobre seu rosto uma máscara com a efígie do pai. Assim ele haveria de ser coroado,
assim ele haveria de governar.‖ (COLASANTI, 2005, p. 115). Ora, a autora poderia ter-
se utilizado de um sinônimo como rosto (―uma máscara representando o rosto do pai‖).
Mas ao empregar a expressão ―efígie‖ a autora remete o leitor a um significado mais
elevado. Não era um simples rosto jacente na máscara, era o rosto de alguém
importante que, por meio desta máscara estava sendo homenageado e não poderia
ser esquecido, principalmente por quem a usaria. A efígie, na arte tumular serve para
que os aspectos corporais do morto não sejam esquecidos. Na seleção desta palavra
está subentendida a homenagem que lhe é feita, mas principalmente a intenção de
que o reinado do filho se guie pelos princípios do rei pai, malgrado sua morte.
A seleção das palavras destacadas e de outras que poderíamos listar, como
―ravina‖ e ―acossado‖ trazem ao conto a atmosfera que já comentávamos que ele
possui: a curta narrativa instaura uma atmosfera de luta pelo espaço, pelas terras, pela
fronteira, apontando para uma época em que era preciso enfrentar o inimigo no
embate da luta e sagrar-se vencedor ou então vencido. Esse tempo, que pode lembrar
momentos específicos da História, mas é preferível que seja tomado como um
passado distante sem uma localização definida na linha do tempo, passado próprio
dos contos de fadas, já que se trata de um conto desta categoria.
O que falávamos encontra respaldo nesta afirmação de Carlos Reis:

[…] o que, em primeira instância é sugerido pela conotação é um


certo discurso que, por força da utilização de certos vocábulos ou
expressões, ―ecoa‖ no enunciado literário; e esse discurso […]
arrasta consigo a situação em que normalmente é utilizado, assim
como o seu universo de valores morais, ideológicos, culturais, etc.,
deste modo subtilmente representados no texto. (1981, p. 157).

Tendo em vista a afirmação de Reis, a forma como é apresentado o discurso


na obra literária, por meio das palavras que são escolhidas cuidadosamente pelo autor
terão, por meio da conotação, de uma forma ou outra, a capacidade de tornar todo o
discurso dúbio, embora seja indissolúvel a apresentação do seu universo alheio à
conotação. O escritor faz inserções mínimas e pontuais no seu trabalho com a
linguagem para que o leitor compreenda a visão de mundo ou as opiniões que o autor
deseja passar sem explicitar isso de forma banal.
De fato, ―[…] uma análise estilística debruçada sobre a conotação deve
empenhar-se em enraizar a elaboração formal por ela responsável no estatuto
ideológico e afectivo do escritor responsável pelo estilo peculiar que enforma o texto

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literário.‖. (REIS, 1981, p. 157). ―Como se fosse‖ é exemplo de texto que marca o estilo
de Marina Colasanti e expõe suas crenças sobre o ser humano, o mundo, as relações
familiares e sociais. O ser humano que não consegue autonomia em relação aos
genitores e às figuras sociais (capitães) vive uma vida que não é sua.
O significado de um texto literário também pode emergir da análise dos
recursos retóricos. ―[…] não deverão deixar de nos interessar sobretudo figuras como
a metáfora, a metonímia, a sinédoque, a comparação, a hipérbole, a antítese, a ironia,
etc.‖ (REIS, 1981,p. 163). De acordo com Reis, (1981), uma análise estilística
empenhada em explorar os recursos retóricos do texto literário não pode limitar-se à
classificação passiva das figuras detectadas; mais do que isso, deve procurar explicar
de modo convincente o processo de elaboração retórica que preside a essas figuras,
tentando, através dele, enraizá-las numa visão particular do mundo ou numa revelação
de facetas ocultas e insuspeitas do real.

[…] a análise estilística deve procurar articular harmoniosamente duas


atitudes específicas: em primeiro lugar o conhecimento e a capacidade
de descrição do funcionamento retórico das figuras; em segundo lugar,
a tentativa de descortinar em certos textos a importância relativa de
determinada ou determinadas figuras. (REIS, 1981, p. 165).

Notamos uma comparação bastante enfática em ―Soltou-se pela primeira vez


aquele rosto pintado ao qual todos se haviam acostumado como se fosse carne e
pele.‖ (COLASANTI, 2005, p. 116). A máscara usada pelo filho durante todo o seu
reinado aponta para o fato de a continuação do reinado do pai ter sido assimilada e
assumida pelo filho. Era tão parecido com o pai na condução do reino que a máscara
poderia ser considerada carne e a pele do próprio rei filho. A comparação do rosto
pintado (a máscara com a efígie do pai) com a carne e pele vem contribuir com a ideia
de que o reinado do rei filho não foi fundado em seus princípios e sim nos princípios
do rei pai. Temos o recurso retórico usado na direção do significado que estamos
dando ao conto. Nota-se que o uso da comparação está enraizado ―numa visão
particular do mundo ou numa revelação de facetas ocultas e insuspeitas do real‖, já
que o uso da máscara implica a resposta do filho à demanda da mãe e da sociedade e
sua consequente anulação.

Considerações Finais

A literatura é um universo múltiplo e pressupõe que um texto literário pode


gerar inúmeras análises, sejam contraditórias, sejam convergentes, subsidiadas nas
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mais variadas vertentes teóricas, apresentadas por diferentes frentes de pesquisa.


Como a própria autora cita na entrevista elencada no início de nossa comunicação, de
fato, há a perspectiva de uma abordagem multifacetada e com a alternativa de
diversas leituras a partir de um mesmo texto e isso é pretendido por ela no momento
da escrita. Fica evidente, assim, não só a clara concepção da elevação das
propriedades textuais e literárias a partir das plurais contingências de leitura, mas
também a preocupação da autora com a qualidade de sua obra.

Não esgotando as alternativas do texto, mas sim evidenciando algumas dessas


características e possibilidades, nosso estudo teve o propósito de evidenciar
justamente essa plurivocidade, essa capacidade de apresentar leituras múltiplas e de
relacionar ou subsidiar uma significação muito mais profunda e não evidente em uma
leitura superficial por meio da psicanálise, com Lacan (2003) e Bettelheim (2007) e da
estilística, com Reis (1981). Um texto literário, um conto, sobretudo quando ligado à
literatura infantil e juvenil, não se esgota na leitura ou pelo menos não se acaba nem
se completa em uma primeira impressão, uma obra literária é mais ampla, mais
abrangente. O texto literário de qualidade é um querer dizer sem explicitar, é uma
busca, uma procura que depende não só da capacidade e destreza do autor, mas
também da astúcia do leitor, que atua ativamente na construção de significados.

Referências

BETTELHEIM. Bruno. A psicanálise nos contos de fadas. Tradução Arlene


Caetano. São Paulo: Paz e Terra, 2007.

COLASANTI, Marina. Como se fosse. In:______. 23 histórias de um viajante. São


Paulo: Global Editora, 2005.

___________; COENGA, Rosemar Eurico. Entrevista. Limeriques: Boletim de


Literatura Infantil e Juvenil. Erechim: Habilis Press Editora, 2016. (p. 2 e 3)

LACAN, Jacques. A identificação: seminário 1961-1962. Tradução Ivan Corrêa e


Marcos Bagno. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2003.

REIS, Carlos. Técnicas de análise textual: introdução à leitura crítica do texto


literário. Coimbra: Almedina, 1981.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

FACES DO NARRADOR E DO LEITOR DE O PEQUENO


PRÍNCIPE: O ADULTO E A CRIANÇA

Janeffer Desselman, UEPG, Eixo temático 4:A literatura juvenil e jovens


leitores101

Considerações Iniciais

Publicado originalmente em 1943, nos Estados Unidos, e em 1946 na França, O


pequeno príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, pode ser considerado um ―best-seller
duradouro‖, pelas inúmeras reedições que recebeu, em diversos países, desde sua
primeira publicação. Rouba Borgi (s.d.), apoiando-se em dados veiculados pelo
periódico francês L’Express, informa: ―En effet, cet oeuvre, traduite en 103 langues et
en train d’être traduite vers 8 autres, est considérée, après La Bible, comme étantle
livre le plus vendu dans le monde102‖ (BORGI, s.d., p. 5).
Segundo Ana Elisabeth Cavalcanti (2011, p.12), já foram vendidos mais de 200
milhões de exemplares de O pequeno príncipe no mundo todo, desde o seu
lançamento. Ainda de acordo com a articulista, a obra foi eleita como o melhor livro de
literatura do século XX em uma enquete realizada junto a leitores franceses.
Cavalcanti observa que ―na época do lançamento, revisores e críticos se sentiam
divididos, pois não conseguiam perceber a que público se destinava a obra: adulto ou
infantil‖ (2011, p.14) De acordo com Michel Quesnel, Exupéry inaugura, com O
pequeno príncipe, um tipo singular de escrita:
Le Petit Prince n‘est pas conçu par un adulte qui s‘adresse à la
jeunesse [...] mais il n‘est pas non plus une histoire d‘allure
enfantine destinée aux grandes personnes, visant à restituer
une certaine fraîcheur de regard. Il confond ces deux
entreprises et les dépasse en un récit qui s‘établit sur une autre

101
Este trabalho é fruto da conclusão de curso da graduação em Letras UEPG- 2013 orientado
pela Professora Doutora Andrea Correia Paraíso Muller.
102
―Na verdade, essa obra, traduzida em 103 línguas e sendo traduzida para outras 8, é
considerada, após a Bíblia, como o livro mais vendido no mundo‖( tradução nossa).
657

registre et fonde un type d‘écriture qui n‘a pas d‘étiquette dans


l‘histoire littéraire (QUESNEL apud BIAGIOLI, 2001, p. 27)103.

O pequeno príncipe ultrapassa, portanto, a simples divisão entre literatura infantil e


literatura para adultos. Quem seria o leitor visado por esse texto? A criança? O adulto?
O adulto com olhar de criança? São essas as questões que motivaram o presente
trabalho. Nosso objetivo não é estudar os muitos e muitos leitores de carne e osso que
O pequeno príncipe atingiu ao longo dos últimos 70 anos; a tarefa seria, no mínimo,
hercúlea, e não temos essa pretensão. Nosso intuito é analisar as imagens de leitor
que se depreendem do próprio texto, observar o leitor inscrito na própria narrativa ─
um leitor que engloba a criança e o adulto. Faz-se necessário estudar também o
narrador, considerando-o na complexidade que o divide entre adulto e criança.
Para tal, tomamos por embasamento teórico postulações de Vincent Jouve (2002)
a respeito do narratário e de Umberto Eco (2009) sobre os conceitos de leitor-modelo
e autor-modelo. Recorremos também às considerações sobre o narrador
desenvolvidas por Walter Benjamin (1987) e por Ronaldo da Costa Fernandes (1996).

A obra
O texto que tanto sucesso obteve e continua obtendo é uma narrativa conduzida
em primeira pessoa por um narrador-personagem, um aviador que sofre uma pane no
deserto e conhece o pequeno príncipe do título: um garoto de cabelos loiros vindo de
um asteroide em busca de conhecimento. O principezinho conta ao aviador sobre sua
passagem por diversos planetas e sobre as pessoas que neles conheceu. Conta
também sobre a rosa que deixou em seu planeta, flor que se tornara especial, única
para ele. O aviador, na tentativa de ajudar o menino a voltar a seu asteroide e
reencontrar sua rosa, estabelece com ele um laço de amizade do qual não quer jamais
esquecer. Eis porque decide narrar o que viveu.
Visto por muitos leitores como obra para crianças, O pequeno príncipe é alocado,
por muitas livrarias, nas estantes destinadas à literatura infanto-juvenil. Acreditamos,
no entanto, que o texto também se destina aos leitores adultos.
Para que possamos compreender um pouco mais sobre a relação do adulto e da
criança na obra observaremos a face do narrador e do leitor presentes na obra.

103
“O pequeno príncipenão é concebido por um adulto que se dirige à juventude, mas também
não é uma história infantil destinada às pessoas grandes visando restituir um certo frescor
do olhar. Ele confunde essas duas coisas e as ultrapassa em uma narrativa que se
estabelece sobre um outro registro e funda um tipo de escrita que não tem etiqueta na
história literária‖( tradução nossa).

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O narrador
Segundo Benjamin, a essência de uma narrativa é a sabedoria do narrador. Este
seria a ―mão do oleiro na argila do vaso‖ (BENJAMIN, 1987, p. 107).
Salienta Fernandes (1996 p.107) que ―o narrador em primeira pessoa é em
primeiro lugar testemunha de sua aventura psicológica para depois ser testemunha de
seu tempo‖. Ainda que o narrador em primeira pessoa fale de um mundo exterior, ele
estará sempre partindo do seu mundo interior.
O narrador de O pequeno príncipe é, portanto, testemunha de sua própria
―aventura psicológica‖. Inicia sua narrativa com um episódio de sua infância: o
desenho que fizera aos seis anos e que não fora compreendido pelos adultos. Explica
como o insucesso de seu desenho (uma jiboia engolindo um elefante, que fora
interpretada pelos adultos como um chapéu) influenciou-o na escolha da profissão:

As pessoas grandes aconselharam-me a deixar de lado os


desenhos de jiboias abertas ou fechadas e dedicar-me de
preferência à geografia, à história, à matemática, à gramática.
Foi assim que abandonei, aos seis anos, uma promissora
carreira de pintor. [...]
Tive então que aprender outra profissão e aprendi a pilotar
aviões (SAINT-EXUPÉRY, 2009, p. 8).

Nicole Biagioli situa o capítulo introdutório de O pequeno príncipe no subgênero


autobiográfico ―lembranças da infância‖. Retomando o que Philippe Lejeune disse a
respeito de Enfance, de Nathalie Sarraute, afirma: ―Le narrateur autobiographique du
souvenir d’enfance est forcément une grande personne qui se souvient d’avoir
étéenfant‖104 (BIAGIOLI, 2001, p. 30). O narrador de O pequeno príncipe é justamente
um adulto que carrega consigo as experiências de sua infância, revelando ao leitor
intimidades que, recontadas a partir da experiência e da maturidade de um adulto,
ganham proporções bastante significativas.
Segundo Biagioli, ao narrar o episódio de seu desenho incompreendido, o narrador
convida seu leitor a identificar-se com ele: ―Enfin, le souvenir d’enfance est une
invitation pour l’enfant à se raconter à son tour, et à se construire à travers lerécit
autobiographique‖105 (BIAGIOLI, 2001, p. 31). Acreditamos que o convite não se

104
“O narrador autobiográfico das lembranças de infância é necessariamente uma pessoa
grande que se lembra de ter sido criança‖ (tradução nossa).
105
“Enfim, a lembrança de infância é um convite à criança a narrar-se e a construir-se através
da narrativa autobiográfica‖ (tradução nossa).
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restrinja à criança, mas dirija-se também ao adulto, que busque despertar nele as
memórias de sua infância, procurando levá-lo a, assim como o narrador, lembrar-se de
que já foi criança.
Esse narrador é, portanto, um adulto que não esquece suas vivências de infância.
Ele se lembra ainda da visão que tinha acerca dos adultos de então, chamados por ele
de ―pessoas grandes‖:

Elas [as pessoas grandes] têm sempre necessidade de


explicações detalhadas. [...]
As pessoas grandes não compreendem nada sozinhas, e é
cansativo para a as crianças ficar toda hora explicando...
(SAINT-EXUPÉRY, 2009, p. 8).

Ao fazer considerações sobre as pessoas grandes, o narrador presentifica seu


olhar infantil. E revela que sua opinião sobre as pessoas grandes não mudou muito
com o passar dos anos, o que sinaliza que, apesar de ter crescido e se tornado adulto,
ele não modificou completamente seu olhar e não aderiu ao ponto de vista dos
adultos, ou seja, não esqueceu sua visão de criança:

Voei por quase todas as regiões do mundo. [...]


Desta forma, ao longo da vida, tive muitos contatos com muita
gente séria. Convivi com as pessoas grandes. Vi-as de perto.
Isso não melhorou muito a minha antiga opinião. (SAINT-
EXUPÉRY, 2009, p. 8).

Apesar de adulto, o narrador preserva seu olhar infantil. É uma pessoa grande,
mas não como as demais; mantém, pois, uma certa visão de criança. Justamente por
isso é que afirma ter vivido sempre só, sem ninguém para conversar até o momento
em que encontra o pequeno príncipe. Não gosta de conversar com as pessoas
grandes. O pequeno visitante é capaz de compreendê-lo; as pessoas grandes, não.
O narrador explica que os adultos só pensam em números. Ele não se identifica
com eles; identifica-se com os que são diferentes, que compreendem o ―significado da
vida‖. E, mais uma vez, convida o leitor a reconhecer-se com ele; irmana-se ao leitor,
colocando-se como criança, ou como alguém que se distingue dos interesses das
pessoas grandes e compreende o que realmente importa:

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Elas [as pessoas grandes] adoram os números. Elas são assim


mesmo. É preciso não lhes querer mal por isso. As crianças
têm que ter muita paciência com as pessoas grandes.
Mas, com certeza, para nós, que compreendemos o significado
da vida, os números não têm tanta importância (SAINT-
EXUPÉRY, 2009, p. 17-18).

No entanto, apesar da sensibilidade de criança, esse narrador não deixa de ser um


adulto: ―Mas, infelizmente, não sei ver carneiros através de caixas. Talvez eu seja um
pouco como as pessoas grandes. Devo ter envelhecido‖ (SAINT-EXUPÉRY, 2009, p.
19). O narrador coloca-se entre a criança e o adulto: um adulto que sabe olhar o
mundo como criança, mas que, nem por isso, deixa de ser adulto. Trata-se de um
adulto que se diferencia dos demais por conseguir manter, ao menos parcialmente,
uma capacidade de sentir o mundo como as crianças
Essa sensibilidade infantil no homem crescido desenvolve-se a partir do contato
com o pequeno príncipe. Como bem observa Borgi (s.d., p. 18), é por meio da relação
com o pequeno príncipe que o narrador dá-se conta de que é preciso tornar-se
novamente criança para escapar da agonia de um mundo comodista e materialista.
Quando o principezinho aparece, as lembranças de infância do narrador-aviador
estavam adormecidas, e ele fica um tanto mal-humorado diante do pedido do garoto
para que desenhe um carneiro:

Por mais absurdo que aquilo me parecesse a quilômetros e


quilômetros de todos os lugares habitados, tirei do bolso uma
folha de papel e uma caneta. Mas lembrei-me, então, de que
eu havia estudado principalmente geografia, história,
matemática e gramática, e disse ao pequeno visitante (com um
pouco de mau humor) que eu não sabia desenhar (SAINT-
EXUPÉRY, 2009, p. 10).

O jovem visitante de outro planeta desperta novamente o olhar de criança do


narrador. O contato com o pequeno príncipe reaviva nele suas lembranças de infância,
desperta nele não apenas a recordação de fatos, mas o olhar infantil, uma percepção
do mundo própria das crianças, uma visão que os adultos perderam, mergulhados nas
preocupações ―sérias‖ do cotidiano (como os adultos que o pequeno príncipe encontra
nos planetas que visita). O principezinho alerta-o sempre que ele se deixa mergulhar
demais nas preocupações do mundo adulto:

O principezinho perturbou de novo meus pensamentos:


─ E tu achas então que as flores...
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─ Ora! Eu não acho nada. Respondi qualquer coisa. Eu só me


ocupo com coisas sérias!
Ele me via de martelo em punho, dedos sujos de graxa,
curvado sobre um objeto que lhe parecia ser muito feio.
─ Tu falas como as pessoas grandes!
Senti um pouco de vergonha. (SAINT-EXUPÉRY, 2009, p. 26)

O narrador não quer perder esse olhar de criança, não quer esquecer o pequeno
príncipe. Justamente por isso, para perpetuar a lembrança, narra e desenha. Se vier a
esquecer o pequeno príncipe, corre o risco de ficar ―como as pessoas grandes‖:

Dá-me tanta tristeza narrar estas lembranças! Já faz seis anos


que meu amigo se foi com seu carneiro. Se tento descrevê-lo
aqui, é justamente porque não quero esquecê-lo. É triste
esquecer um amigo. Nem todo mundo tem um amigo. E eu
corro o risco de ficar como as pessoas grandes, que só se
interessam por números. Foi por isso que comprei um estojo de
aquarelas e alguns lápis. (SAINT-EXUPÉRY, 2009, p. 18).

Encontramos em O pequeno príncipe o que Yves Reuter (1996, p. 69) chama de


―função testemunhal‖, ou seja, quando o narrador exprime sua emoção em relação ao
que está sendo narrado. A saudade demonstrada pelo aviador e sua justificativa para
narrar demonstram seu profundo envolvimento com a história narrada.
O narrador não apenas deixa claro seu envolvimento com o que narra, como
também busca a cumplicidade de seu leitor, procura fazer com que ele se envolva
emocionalmente com a história e tenha o mesmo sentimento pelo principezinho:

Para vocês, que também amam o pequeno príncipe, como para


mim, todo o Universo fica diferente se, em algum lugar que não
sabemos onde, um carneiro que não conhecemos comeu ou
não uma rosa...
Olhem o céu. Perguntem a si mesmos: o carneiro terá ou não
comido a flor? E verão como tudo fica diferente...
E nenhuma pessoa grande jamais entenderá que isso possa
ter tanta importância! (SAINT-EXUPÉRY, 2009, p. 91).

O narrador ―pessoa grande‖ com olhar de criança, conta com a identificação e a


cumplicidade de seu leitor: eles, narrador e leitor, podem compreender o que as
pessoas grandes não podem. Esse narrador, embora adulto, não quer ser como os
outros adultos, quer diferenciar-se e identificar-se às crianças.
Mas quem seria esse leitor a quem ele se dirige e cuja cumplicidade solicita: uma
criança ou um adulto como ele, que cultiva uma sensibilidade infantil? Refletiremos, a
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seguir, sobre o leitor construído pela narrativa de O pequeno príncipe e sobre sua
relação com esse narrador adulto-criança.

1. O leitor

A partir do olhar de Umberto Eco (1994), entendemos o texto como uma ―máquina
preguiçosa‖ que pede ao leitor que faça sua parte, que cumpra seu papel. O leitor será
aquele que preencherá as lacunas deixadas pelo texto. Eco nos diz que ―Numa
história sempre há um leitor, e esse leitor é ingrediente fundamental não só do
processo de contar uma história, como também da própria história‖. (ECO, 1994, p.7.)
Partindo da concepção de que o leitor é a peça chave para o desenvolvimento de uma
leitura, é aquele que vai engrenar a ―máquina preguiçosa‖, podemos pensar no papel
do leitor de O pequeno príncipe e comoele se constrói na narrativa.

Para melhor refletirmos sobre o leitor, tomemos, de início, o conceito de narratário.


Gérard Genette (1972 apud JOUVE, 2002) define o narratário como um dos elementos
da narrativa, o destinatário das palavras do narrador, que não pode ser confundido
com o leitor, assim como o narrador não pode ser confundido com o autor. Genette
fala em ―narratário intradiegético‖ (personagem da história, leitor do que escreve o
narrador) e ―narratário extradiegético‖ (não é personagem, não é nomeado; trata-se de
uma instância abstrata, que se pode deduzir pela própria construção da narrativa).

Jouve (2002), aprofundando as distinções de Genette, define três tipos de


narratário:

1. O ―narratário-personagem‖, que corresponde ao que Genette chama de


―narratário intradiegético‖, ou seja, ―desempenha um papel na história‖
(JOUVE, 2002, p. 41). O narrador, geralmente, chama-o pelo nome. Esse tipo
de narratário é muito comum nos romances epistolares, embora apareça
também em outros tipos de narrativa.

2. O ―narratário interpelado‖: não é personagem da história, mas é interpelado


pelo narrador; este último dirige-se explicitamente a ele como seu leitor ou
ouvinte.

3. O ―narratário oculto‖: não é personagem da história e nem interpelado pelo


narrador; está ―implicitamente presente pelo saber e pelos valores que o
narrador supõe no destinatário de seu texto‖ (JOUVE, 2002, p. 42).
Corresponde ao que Genette chamou de ―narratário extradiegético‖: não é um
leitor fictício ou personagem leitora, mas um caminho de leitura a ser percorrido

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no texto, ―um papel que o texto propõe ao leitor‖ (JOUVE, 2002, p. 43).

Em O pequeno príncipe, é possível perceber um ―narratário interpelado‖ ao qual o


narrador se dirige o tempo todo. Esse narratário plural não é nomeado, mas
interpelado; o narrador dirige-se a ele (s) como a um auditório, solicita-lhe(s) a
cumplicidade, dialoga com ele(s), chama-lhe (s) a atenção:

Imaginem qual foi a minha surpresa, quando, ao amanhecer,


uma vozinha estranha me acordou (SAINT-EXUPÉRY, 2009, p.
9).

Olhava para aquela aparição com olhos arregalados de


espanto. Não esqueçam que eu me achava a quilômetros e
quilômetros de qualquer região habitada (SAINT-EXUPÉRY,
2009, p. 10).

Imaginem como eu ficara intrigado com aquela simples


menção a ―outros planetas‖. Esforcei-me, então, por saber um
pouco mais (SAINT-EXUPÉRY, 2009, p. 14).

Olhem o céu. Perguntem a si mesmos: o carneiro terá ou não


comido a flor? (SAINT-EXUPÉRY, 2009, p. 91). (Grifos nossos)

Como o narrador dirige-se aparentemente a um grupo, falaremos, pois, em


narratários, no plural. Há muito indícios de que esses narratários interpelados sejam
as crianças. O narrador refere-se às pessoas grandes como as que não conseguem
entender as coisas mais simples e mais importantes. E, ao explicar como elas se
comportam e como pensam, procura diferenciar-se delas e colocar-se em
cumplicidade com seus narratários, que não seriam, portanto, pessoas grandes:

Se lhes dou esses detalhes sobre o asteroide B612 e lhes confio


seu número, é por causa das pessoas grandes. Elas adoram os
números. Quando a agente lhes fala de um novo amigo, as
pessoas grandes jamais se interessam em saber como ele
realmente é. Não perguntam nunca: ―Qual é o som da sua voz?
Quais os brinquedos que prefere? Será que ele coleciona
borboletas? ‖ Mas perguntam: ―Qual é sua idade? Quantos
irmãos ele tem? Quanto pesa? Quanto seu pai ganha? ‖
Somente assim é que elas julgam conhecê-lo (SAINT-EXUPÉRY,
2009, p. 17).

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O narrador coloca-se, pois, como já afirmamos, entre os adultos e as crianças. É


um adulto e, como tal, conhece os adultos, sabe como eles pensam e pode, assim,
explicar às crianças. Por outro lado, não é um adulto como os outros, pois tem um
olhar infantil, sabe valorizar o que as crianças valorizam na vida. Assim, coloca-se ao
lado de seus narratários ao falar das pessoas grandes:

Assim, se a gente lhes disser: ―A prova de que o principezinho


existia é que ele era encantador, que ele ria, e que ele queria
um carneiro. Quando alguém quer um carneiro, é porque
existe‖, elas pouco se importarão, e nos chamarão de crianças!
Mas se dissermos: ―O planeta de onde ele vinha é o asteroide
B 612‖, ficarão inteiramente convencidas e não amolarão com
perguntas. Elas são assim mesmo. É preciso não lhes querer
mal por isso. As crianças têm que ter muita paciência com as
pessoas grandes (SAINT-EXUPÉRY, 2009, p. 18).

O narrador identifica-se com seus narratários como aqueles que compreendem o


―significado da vida‖: ―Mas, com certeza, para nós, que compreendemos o significado
da vida, os números não têm tanta importância! ‖ (SAINT-EXUPÉRY, 2009, p. 18).
Inúmeras vezes, ressalta que seus narratários são diferentes das pessoas grandes.
Assim convida-os a acreditarem nele, a compactuarem com ele:

As pessoas grandes não acreditarão, é claro. Elas julgam


ocupar muito espaço. Imaginam-se tão importantes quanto os
baobás. Peçam-lhes então que façam as contas. Elas adoram
os números; ficarão contentes com isso. Mas não percam seu
tempo nessa matemática. É desnecessário. Sei que acreditam
em mim (SAINT-EXUPÉRY, 2009, p. 57).

Apesar de esse narrador que se define entre o adulto e a criança solicitar a


cumplicidade de narratários tão diferentes das pessoas grandes, o livro é dedicado a
uma pessoa grande, Léon Werth. A dedicatória vem com um pedido de desculpas:

A Léon Werth

Peço perdão às crianças por dedicar este livro a uma pessoa


grande. Tenho um bom motivo: essa pessoa grande é o melhor
amigo que possuo. Tenho um outro motivo: essa pessoa
grande é capaz de compreender todas as coisas, até mesmo
os livros de criança. Tenho ainda um terceiro motivo: essa
pessoa grande mora na França e ela tem fome e frio. Ela
precisa de consolo. Se todos esses motivos não bastam, eu
dedico então este livro à criança que essa pessoa grande já foi.
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Todas as pessoas grandes já forma um dia crianças ─ mas


poucas se lembram disso. Corrijo, portanto, a dedicatória:

A Léon Werth quando ele era criança (SAINT-EXUPÉRY, 2009,


p. 5).

É possível questionar a autoria da dedicatória, defendendo que ela não pertence


ao narrador, e sim ao autor. De fato, a dedicatória é um elemento paratextual (assim
como prefácios, títulos, subtítulos, epígrafes, advertências etc.), e as instâncias
normalmente responsáveis pelos paratextos de uma obra são, de acordo com Genette
(1987), o autor e o editor. Genette distingue os paratextos em autorais (elaborados
pelo autor) e editoriais (determinados pelo editor). As dedicatórias estão entre os
paratextos autorais e contêm sempre, ainda segundo Genette (1987, p. 126), uma
ambiguidade, uma vez que se dirigem a um duplo destinatário: o próprio
homenageado e o leitor. Essa ambiguidade, no entanto, não reside apenas no
destinatário, mas também no emissor. Genette observa que, em certas obras, é
possível que o autor da dedicatória seja o narrador-personagem; o teórico salienta que
nada impediria o autor da obra de ―atribuir ao narrador a responsabilidade pela
dedicatória‖ (GENETTE, 1987, p. 121).
Em O pequenopríncipe, a dedicatória não é assinada, o que a mantém na
ambiguidade entre autor e narrador. De qualquer modo, ela parece reafirmar que as
crianças são os destinatários primeiros do texto, já que a homenagem a um adulto
vem justificada e acompanhada de desculpas. Se, como afirma Genette, a dedicatória
de uma obra dirige-se ao homenageado e ao leitor, a dedicatória de Opequeno
príncipe determina, de certa forma, seu leitor: em um primeiro momento, as crianças,
mas não só elas: também as pessoas grandes, já que ―Todas as pessoas grandes
foram um dia crianças‖.
É possível afirmar que a dedicatória de O pequeno príncipe, além de determinar
seus leitores, determina também como deve ser lido o texto todo, já antecipando os
principais temas nele abordados. Reuter, falando sobre os paratextos, afirma que
esses componentes
Determinam, em grande parte, a escolha da obra, a leitura e as
expectativas do leitor. [...] O próprio autor pode induzir sentido
desde o título, claro ou enigmático, até a epígrafe ou
advertência (REUTER, 1996, p. 156).

A dedicatória de O pequeno príncipe procura determinar, portanto, os caminhos de


leitura à medida que define seu leitor. Dedicar a obra à criança que Léon Werth foi
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funciona como uma espécie de convite a despojar-se do olhar adulto para lê-la. É
como se fosse dito que o destinatário primeiro é a criança, mas o adulto também pode
ler, desde que se torne semelhante a Werth, uma pessoa grande especial, ―capaz de
compreender todas as coisas, até mesmo os livros de criança‖. O adulto é convidado a
lembrar-se de que já foi criança.
Genette (1987, p. 127) lembra que não se pode dedicar uma obra a alguém sem
invocá-lo de alguma maneira, sem implicá-lo como um espécie de inspiração. O nome
de Léon Werth, escritor francês de origem judaica e amigo pessoal de Saint-Exupéry, é
bastante significativo. Em primeiro lugar remete à amizade: ―essa pessoa grande é o
melhor amigo que possuo‖, tema tão importante na obra. Além disso, não nos deixa
esquecer que O pequeno príncipe foi escrito durante a Segunda Guerra Mundial;
Saint-Exupéry estava exilado nos Estados Unidos, Werth estava na França e, como
tantos, tinha fome e frio e precisava de consolo. Essa menção parece querer despertar
o olhar de quem lê para a necessidade de tornar-se novamente criança a fim de
escapar da angústia de um mundo materialista e belicoso.
Mourier interpreta a dedicatória, juntamente com o primeiro capítulo, como uma
espécie de prólogo da obra, ou seja, como aquilo que ―precede o discurso e antecipa
seu assunto‖:

Ainsi la dédicace, le chapitre I et les deux dessins énigmatiques


du chapeau et de la caisse fonctionnent comme un prologue,
littéralement, ce qui précède le discours et en annonce le sujet.
La dédicace à Léon Werth ─ de 20 ans son aîné, l‘ami juif,
l‘essence de l‘être à défendre ─ livre les thèmes clés de
l‘oeuvre exupérienne : réveiller l‘enfance emprisonnée dans le
carcan adulte forgé par la civilisation, exhorter á l‘amitié, seule
responsabilité à engager (MOURIER, 2001, p. 44). 106

Considerando as informações presentes na dedicatória de O pequeno príncipe,


podemos concordar com o que Mourier destaca: é dado ao leitor um código de leitura
que parte do narrador, ―La stupéfaction du pilote engendre celle dulecteur, lui offrant

106
“Assim, a dedicatória, o capítulo 1 e os dois desenhos enigmáticos do chapéu e da caixa,
funcionam como um prólogo, literalmente, aquilo que precede o discurso e anuncia seu
assunto. A dedicatória a Léon Werth- 20 anos mais velho, o amigo judeu, a essência do ser
a ser defendido entrega os temas chave da obra éxuperiana : despertar a infância
aprisionada na carcaça adulta forjada pela civilização, exortar à amizade, única
responsabilidade para se envolver.‖ (tradução nossa)

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dès lors le code de lecture de l’oeuvre.‖107 ( MOURIER, 2001, p.45) O leitor é


convidado a decifrar os indícios que preparam a mensagem futura: (MOURIER, 2001,
P.45) ―Eis o meu segredo e é bem simples: só se vê bem com o coração. O essencial
é invisível aos olhos.‖ ( SAINT-EXUPÉRY, 2009, p.70)
Umberto Eco, em Seis Passeios pelos bosques da ficção, distingue dois tipos de
leitores: o ―leitor-modelo‖ do ―leitor empírico‖.
Lembra-nos Eco, (1994, p.14) que: ―O leitor empírico é você, eu, todos nós,
quando lemos um texto. Os leitores empíricos podem ler de várias formas, e não
existe lei que determine como deve ler‖. O leitor empírico é aquele que não precisa se
comprometer ou seguir todos os passos deixados pelo narrador, mas que tem a
liberdade de ler e compreender como quiser a leitura. Não é esse tipo de leitor que nos
interessa; trataremos do nomeado leitor-modelo de Eco, ―Esse tipo de espectador (ou
de leitor no caso de um livro) é o que eu chamo de leitor-modelo- uma espécie de tipo
ideal que o texto não só prevê como colaborador, mas ainda procura criar‖ (1994,
p.15)

O leitor-modelo será aquele que seguirá todas as pistas e entenderá as


entrelinhas de um texto. Como nos revela Eco, (1994, p.16) ―O leitor-modelo está
ansioso para jogar‖
Destaca Anne Isabelle Mourier (2001, p.44) que, parcialmente, o leitorado
americano ficou desapontado com a publicação de O pequeno príncipe. Podemos
então refletir sobre o exemplo de não leitores-modelo, mas leitores empíricos, que têm
a liberdade de leitura. Salienta ainda a pesquisadora que o leitor é convidado a ler as
entrelinhas do texto e encontrar mais do que uma aventura de dois heróis que se
encontram e se separam (MOURIER 2011, p.44)

Esse leitor-modelo é aquele capaz de seguir as pistas deixadas pelo ―autor-


modelo‖. O leitor-modelo é uma criação do autor-modelo, como define Eco (1994, p.
21)

Por fim, há uma terceira entidade, em geral difícil de identificar


e que eu chamo de autor-modelo, de modo a criar uma simetria
com o leitor-modelo. [...] O autor modelo é uma voz que nos
fala afetuosamente (ou imperiosamente, ou dissimuladamente),
que nos quer a seu lado. Essa voz se manifesta como uma
estratégia narrativa, um conjunto de instruções que nos são
dadas passo a passo e que devemos seguir quando decidimos
agir como o leitor-modelo.‖ ( ECO, 2009 p.20-21)

107
“A estupefação do piloto engendra a do leitor, oferecendo-lhe desde então o código de
leitura da obra.‖ (tradução nossa)

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O autor-modelo é aquele que cria o leitor-modelo e deixa pistas para que esse
conjunto de informações seja descoberto.

O leitor-modelo de O pequeno príncipe certamente terá de ser capaz de


aceitar o mundo imaginário e toda a riqueza por trás disso, lendo nas entrelinhas e
indo além de uma leitura superficial: ―Não gosto que leiam meu livro superficialmente‖ (
SAINT-EXUPÉRY, 2009, p.18). O leitor-modelo precisará ser um pouco como Léon
Werth, um adulto que compreende todas as coisas, inclusive os livros de criança. O
que o próprio narrador talvez deseje ser, uma pessoa grande com os olhos de uma
criança.

Muitas são as vezes em que o narrador se coloca no texto como um adulto,


como no trecho seguinte, que já citamos anteriormente: ―Julgava-me talvez
semelhante a ele. Mas, infelizmente, não sei ver carneiros através das caixas. Talvez
eu seja um pouco como as pessoas grandes. Devo ter envelhecido‖.(SAINT-
EXUPÉRY, 2009, p.19). Em outros momentos, o narrador se coloca na mesma
situação que os seus narratários, assemelhando-se a eles, como no trecho: ―É triste
esquecer um amigo. Nem todo mundo tem um amigo. E eu corro o risco de ficar como
as pessoas grandes, que só se interessam por números. Foi por isso que comprei um
estojo de aquarelas e alguns lápis.‖ (SAINT-EXUPÉRY, 2009, p.18)

Os narratários interpelados pelo narrador-personagem são as crianças, mas,


se o narrador nos dá tantos detalhes sobre as pessoas grandes é porque também as
prevê como leitores, como nos trechos:

Se lhes dou esses detalhes sobre o asteroide B 612 e lhes


confio o seu número, é por causa das pessoas grandes. Elas
adoram os números. Quando a gente lhes fala de um novo
amigo, as pessoas grandes jamais se interessam em saber
como realmente ela é. (SAINT-EXUPÉRY, 2009, p.17)

Assim se a gente lhes disser: ‗ A prova de que o principezinho


existia é que ele era encantador, que ele ria,e que ele queria
um carneiro. Quando alguém quer um carneiro é porque
existe‘, elas pouco se importarão e nos chamarão de crianças
[...] As crianças têm que ter muita paciência com as pessoas
grandes. (SAINT-EXUPÉRY, 2009, p.18)

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Verão como tudo fica diferente...E nenhuma pessoa grande


jamais entenderá que isso possa ter tanta importância. (SAINT-
EXUPÉRY,2009, p.91) (grifos nossos)

O leitor-modelo é o interpretante capaz de compreender as coisas com


profundidade, que transcende a separação entre criança e adulto. É a criança que,
como o pequeno príncipe, vê além do que é visível para os olhos. Ao mesmo tempo, é
o adulto que compreende o convite a resgatar o olhar infantil. Mourier nos ajuda a
compreender um pouco mais a obra e nos revela que ―Enfin, la nouvelle naissance du
petit prince se traduit par l’abandon de son corps à la terre pour rejoindre sa rose,avec
l’âme du sage,du responsable‖108( MOURIER, 2001, p. 49).

Considerando esse despojamento do seu corpo de criança que o pequeno príncipe


deixa na terra, podemos considerar que esse mesmo despojamento é pedido ao leitor-
modelo, que se despoje de si e passe a lembrar-se de sua infância, que se torne um
adulto capaz de compreender todas as coisas, até mesmo os livros de criança.

Considerações Finais

Ao término deste estudo, após refletir sobre narrador, narratário e leitor-modelo,


podemos considerar que a narrativa é desencadeada pelo conflito do narrador de ser
uma pessoa grande que procura manter vivas as suas lembranças de criança e o seu
olhar infantil, que foram despertados com a chegada do principezinho.

Faz-se necessário salientar o envolvimento do narrador com os narratários


interpelados. Solicita-lhes por tantas vezes a cumplicidade a ponto de propor, ao final,
uma inversão de papéis. Quer que seus narratários tornem-se narradores do encontro
que tiverem com o pequeno príncipe:

Se, de repente, um menino vem ao encontro de vocês, se ele


ri, se tem cabelos dourados, se não responde quando é
perguntado, adivinharão quem ele é. Façam-me então um
favor! Não me deixem tão tristes: escrevam-me depressa
dizendo que ele voltou... (SAINT-EXUPÉRY, 2009, p. 93).

Encontramos o perfil da criança delimitado no texto, traçado nesse narrador, que,


como já dito, por vezes se iguala aos seus narratários, crianças, e por vezes sente-se

108
“Enfim o novo nascimento do pequeno príncipe se traduz pelo abandono de seu corpo na
terra para encontrar a sua rosa, com a alma do sábio, do responsável.‖ (tradução nossa)

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como as pessoas grandes. Assim, pode-se dizer que o próprio narrador encarna, a
partir de suas próprias atitudes, o seu leitor ideal, o narratário que é interpelado pelo
narrador, demonstrando que o leitor-modelo também poderá ser uma criança, mesmo
sendo uma pessoa grande.

Esse perfil pode ser identificado no narratário que é interpelado pelo narrador, e
no leitor-modelo que também poderá ser uma criança.

O perfil do adulto proposto pela obra encontramos no narrador, aviador, e também


no leitor-modelo: adulto-criança, criança-adulto, adulto que se lembra de sua infância e
reveste-se de toda pureza, capaz de compreender as riquezas dos livros infantis, do
olhar infantil.

Por fim, podemos concordar com o que afirma Amélia Lacombe: ―O pequeno
príncipe devolve a cada um o mistério da infância‖, é um reencontro do narrador com o
seu ―homem- menino‖ e, de igual forma, esse encontro é oferecido ao seu leitor.
(LACOMBE, 2009)

Referências

AFP. Livro mais vendido do mundo, "O Pequeno Príncipe" completa 70 anos. Correio
do Povo. Porto Alegre, 12 abr. 2013. Disponível em
<http://portallw.correiodopovo.com.br/ArteAgenda/?Noticia=496370#.UWgUhlq-
fAk.facebook>. Acesso em 08 ago. 2013

BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política, ensaios sobre literatura e história


da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 3 ed. São Paulo: Editora Brasiliense,
1987.

BIAGIOLI, N. Le dialogue avec l‘enfance dans Le petit prince. Études littéraires, vol.
33, nº 2, 2001, p. 27 - 42. Disponível em:
<http://www.erudit.org/revue/etudlitt/2001/v33/n2/501291ar.pdf>. Acesso em 13 jul.
2013.

BORGI, R. Le Petit Prince. Étude et Commentaire. Disponível em:


<http://www.academia.edu/2103519/Le_Petit_Prince_Antoine_de_Saint_Exupery_Etud
e_et_Commentaire>. Acesso em 17 ago. 2013.

CAVALCANTI, A. E. Filosofia: Grandes temas do conhecimento. Ideias, N. 09, p. 12-


17. São Paulo, 2011.

ECO, U. Seis passeios pelo bosque da ficção. Tradução de Hildegard Feist. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009.
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FERNANDES, R. C. O narrador do romance: e outras considerações sobre o


romance. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996.

GENETTE, G.. Seuils. Paris: Seuils, 1987.

JOUVE, V. A leitura.Tradução Brigitte Hervot,- São Paulo, editora UNESP 2002

LACOMBE, A. in: O Pequeno Príncipe. 48.ed. Rio de Janeiro: Agir, 2009.

MOURIER, A.-I. Le petit Prince de Saint-Exupéry: du conte au mythe. Études


littéraires, vol. 33, nº 2, 2001 p. 43 - 54. Disponível
em:<http://www.erudit.org/revue/etudlitt/2001/v33/n2/501292ar.pdf>. Acesso em 13
jun. 2013.

PRÓ LIVRO, Retratos da Leitura no Brasil. 3.ed. Brasília.


DISPONÍVEL EM: http://www.prolivro.org.br/ipl/publier4.0/dados/anexos/2834_10.pdf
acesso em 12 jul. 2013

REUTER, Y. Introdução à análise do romance. Tradução de Angela Bergamini et al.


São Paulo: Martins Fontes, 1996.

SAINT-EXUPÉRY, A. de, O Pequeno Príncipe. Tradução de Dom Marcos Barbosa.


48. ed. Rio de Janeiro: Agir, 2009.

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EIXO TEMÁTICO 5

Literatura Infantil e as relações


com a imagem
Literatura infantil e as relações com a imagem
Marta Passos Pinheiro (Centro Federal de Educação Tecnológica de Belo
Horizonte - Cefet/MG), Hércules Tolêdo Corrêa (Universidade Federal de Ouro
Preto – UFOP) e Rogério Barbosa da Silva (Centro Federal de Educação
Tecnológica de Minas Gerais).

Desde sua origem, a literatura para crianças é atrelada às imagens. As


primeiras narrativas destinadas ao público infantil foram recolhidas da tradição
oral, adaptadas para o novo público e ilustradas. Apesar de apresentar uma
função decorativa, não sendo fundamental para a compreensão da história, a
ilustração era concebida como importante para chamar a atenção dos leitores
em formação. Entre essas primeiras histórias, encontram-se, no século XVII, as
fábulas de La Fontaine e os contos de Charles Perrault. De lá para cá, a
ilustração vem ocupando cada vez mais espaço nas páginas dos livros infantis,
sendo influenciada pelas demais artes visuais, como a pintura, a fotografia e o
cinema. Como destaca Graça Ramos, em A imagem nos livros infantis:
caminhos para ler o texto visual (2013, p. 51), ―são muitos os teóricos que, ao
analisarem a história dos livros infantis, destacam sua inventividade por tornar
tão próxima a relação entre as palavras e as imagens.‖ Hoje em dia, com os
avanços das tecnologias digitais, as obras infantis têm cada vez mais se
constituído em objetos multimodais, em que a palavra escrita e a imagem
relacionam-se a diversas semioses ou linguagens, como som, fala e imagem
em movimento. Este eixo tem por objetivo discutir a relação entre texto escrito
e texto visual na literatura infantil, impressa e/ou digital, considerando suas
características multissemióticas. Pretendemos discutir, ainda, a recepção
dessas obras pelo público infantil e possibilidades de usos pedagógicos em
espaços formais e não formais de educação.
ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

A IMAGINISTA: REIMAGINANDO VISUALMENTE A OBRA


―EMMA‖ DE JANE AUSTEN E CRIANDO NOVOS PERCURSOS
DE LEITURA

Giovanna Corrêa Lucci, Universidade de São Paulo (USP),


Eixo Temático 5: Literatura infantil e as relações com a imagem

Considerações Iniciais

Partindo do conceito de tradução intersemiótica discriminado e definido por


Jakobson, esta pesquisa se utilizou do conceito e dos estudos de Julio Plaza (1987)
sobre o assunto para produzir um picturebook que contasse a história do romance
―Emma‖, escrito por Jane Austen em 1815, utilizando apenas imagens para tal. Como
em estudos anteriores, o mesmo romance já havia sido utilizado para explorar como
as condições históricas, sociais e culturais poderiam modificar um texto e influenciar
na produção de uma narrativa com imagens, nesta pesquisa o interesse estava em
explorar os demais fatores que influenciam a percepção. Fatores estes, que
constituem as imagens e que estão diretamente ligados à forma como elas podem se
relacionar com as ideias contidas em um determinado texto.
Dessa forma, pode-se afirmar que o principal objetivo deste trabalho foi
produzir um livro-imagem que consiguisse desenvolver os pontos-chave do romance
de forma atemporal, utilizando para isso apenas recursos visuais. A ideia foi tentar
abstrair o conceito do texto original e transmiti-lo em imagens que refletissem os
acontecimentos narrados pela autora, mas que ao mesmo tempo não estivessem
diretamente ligados ao contexto histórico, social e cultural em que foi criado.
Esta pesquisa esteve particularmente interessada em explorar as inúmeras
formas de interação entre as imagens, propondo, com este objetivo, a ressignificação
da obra de Jane Austen. Diferentemente do que já havia sido feito, o foco desta
pesquisa não esteve em inserir o romance ―Emma‖ (AUSTEN, 1815) no contexto do
Brasil atual e também não pretendeu configurar um retrato fiel do texto original. Ao
contrário, esta pesquisa buscou a criação de algo novo, que não estivesse
675

necessariamente vinculado a uma cultura, época ou lugar, buscou a elaboração de


imagens que falassem por si só e que, aliadas a elementos gráficos, fossem capazes
de contar uma mesma história de outra forma.
Embora o objetivo final fosse a produção de uma narrativa com imagens, as
ilustrações em si não serão analisadas neste artigo. O foco do texto a seguir esteve
em relatar como se deu o processo de criação do livro-imagem e justificar as decisões
tomadas com o decorrer da pesquisa.

A ―Imaginista‖

Para inúmeros estudiosos da obra de Jane Austen (1775-1817), a


personagem principal do romance ―Emma‖ (AUSTEN, 1815) pode ser definida como
alguém que acredita ser o centro do mundo, e até certo ponto está certa, pois ela é, de
fato, o centro do seu próprio mundo. Extremamente segura de si, Emma tem tanta
certeza da sua superioridade que chega a acreditar que pode ditar o que é melhor
para cada um dos demais personagens. Como explica Álvaro Pina, em seu livro ―Jane
Austen‖ de 1994, ela possui uma disposição a querer tomar decisões no lugar
daqueles que a cercam e faz tudo o que está ao seu alcance para garantir que eles
desempenhem os papéis que ela lhes designou em sua mente (PINA, 1994: 145).
Este traço da sua personalidade é tão marcante que, ao longo dos anos,
diversos autores caracterizaram Emma como uma ‗imaginista‘, ou seja, alguém que
possui a habilidade de criar um mundo próprio, que contém tramas, histórias e
personagens que refletem a realidade na qual ela gostaria de viver. Dessa forma,
levando em conta o ponto de vista defendido por John Halperin em seu compêndio
intitulado ―Jane Austen: bicentenary essays‖ de 1975, pode-se dizer que a história de
―Emma‖ (AUSTEN, 1815), na verdade, se organiza em dois níveis distintos: um
fornecido pelo narrador e um outro que a própria Emma (na função de ‗imaginista‘)
inventa. Essa capacidade de ‗interpretação criativa‘ de Emma é demonstrada em
várias instâncias do romance e caracteriza o próprio desenrolar da história
(HALPERIN, 1975: 210).
Segundo Tony Tanner, em seu livro ―Jane Austen‖ publicado em 1986, a obra
fala da criação de histórias e do gosto por inventá-las, uma vez que Emma não
consegue ver o mundo como realmente ele é, apenas como ela gostaria que ele fosse,
enxergando somente a versão de mundo que ela cria em seus devaneios. No
decorrer do romance, este fato dá origem a muitos dos problemas e
desentendimentos, mas também é dele que nasce a própria narrativa e seus principais
conflitos, uma vez que a história de ―Emma‖ (AUSTEN, 1815) se desenvolve em torno
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da heroína, do seu aprendizado e do seu processo de autoconhecimento (TANNER,


1986: 198).
Em suma, Emma é mais atraída por ideias (geradas internamente) do que por
fatos (percebidos externamente). Ela gosta de tramar esquemas, de decifrar enigmas,
e mistérios e de ser surpeendida, mas interpreta erroneamente tudo e a todos. Por
isso, muita da significância do romance surge exatamente da justaposição entre ‗o que
é‘ e ‗o que parece ser‘, a partir dos incontáveis desentendimentos que caracterizam a
história.
Sabendo disso, pode-se dizer que a percepção que a protagonista tem do
mundo que a cerca é distorcida. De forma geral, a percepção é responsável por recriar
na mente de cada pessoa o mundo que a cerca. Em outras palavras, seres, objetos e
acontecimentos são sistemas abertos que permitem mais de uma interpretação nas
mesmas condições espaço-temporais e tais interpretações variam de acordo com as
individualidades e o repertório de cada um. O mistério e a magia da percepção
residem justamente no potencial humano de elaborar o mundo ao seu redor, pois o
mundo não é algo acabado e as experiências que ele proporciona não são comuns ou
absolutas, e sim algo que resulta de relações e conexões feitas pelas mentes dos
indivíduos no instante em que se dá a percepção.
Ao longo dos anos, a percepção, de forma geral, foi tema de inúmeras
pesquisas, mas isso não fez dela um assunto menos intrigante. Tais estudos advêm
das mais diferentes disciplinas, como a psicologia, a neurologia, o design e as artes,
sendo que cada qual, por sua vez, apresenta diferentes abordagens para explicá-la.
Mesmo assim, apesar do grande número de pesquisas e da alta qualidade das
mesmas, os estudos da percepção ainda apresentam incongruências, indefinições e
possuem aspectos, cujo potencial máximo permanece inexplorado, graças à sua
imensa complexidade.
No que diz respeito às interpretações que os seres humanos fazem do mundo
que os cerca, diversos autores corroboram da ideia de que elas não são fatos
objetivos, mas sim construções. Para estes mesmos autores a percepção não é algo
que os sentidos apenas experimentam, pois, além de ser ativa, ela pode ainda receber
a influência de uma série de fatores externos e subjetivos, como por exemplo: a
cultura, a época, experiências pessoais de vida, educação e as relações estabelecidas
com o meio. A percepção é regida não só pelo cérebro ou pela cultura, ao contrário, é
resultado das relações estabelecidas entre corpo, mente e mundo. Assim, de acordo
com Paula Csillag em seu livro ―Comunicação com cores‖ de 2015, a percepção é o
resultado da junção de princípios que podem ser considerados comuns à maior parte
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dos seres humanos e princípios que não são generalizáveis, princípios provenientes
da cultura na qual este indivíduo está inserido e que podem ser apreendidos ou
interpretados. Ou seja, pode-se dizer que cada um constrói o mundo à sua maneira e
que pessoas diferentes interpretam o mundo de formas diferentes (CSILLAG, 2015: p.
21).
As interferências, sejam elas contextuais (históricas, sociais, culturais, etc.),
psicológicas ou ainda fisiológicas, caracterizam um dos componentes mais complexos
do processo perceptivo. Tal complexidade se deve ao fato de que, quando estas
diferenças são consideradas, aquilo que é percebido não pode ser atribuído a todos os
seres humanos. O fato é que existem diferentes formas de ver e entender o mundo
com seus variados modelos sensoriais e nenhuma é melhor ou pior do que a outra,
são apenas diferentes.
Estas diferenças de interpretação se devem às forças externas e internas
existentes no processo da percepção. Como foi explicado anteriormente, a percepção
envolve elementos não cognitivos e inconscientes da mesma forma que envolve os
cognitivos e conscientes e há muito nesse processo que não é possível controlar, pois
dele participam questões da subjetividade, ambiguidade e imperfeições. No caso da
percepção visual, por exemplo, estímulos induzem pessoas a estruturar ou interpretar
um campo visual de certa maneira e não de outra. Há também algo na forma como
uma imagem foi produzida, no modo como se deu essa produção, como ela é
percebida, o seu contexto e nos aspectos de sua aparência em si, que influencia estas
diversas interpretações.
Qualquer acontecimento visual, portanto, é uma forma com conteúdo, mas
este conteúdo além de ser fruto das condições ambientais, culturais, sociais e
econômicas de cada um, também é extremamente influenciado pela importância das
partes constitutivas da imagem. Além das questões estruturais (como o ponto, a linha,
a forma, a direção, o ritmo, o tom, a cor, a textura, a escala, a proporção e suas
relações compositivas com o significado) tais fatores podem incluir: o tipo de
composição, as formas geométricas que mais se destacam, a linha guia de leitura
visual, o tipo de contorno, o tipo de perspectiva, a técnica, relação forma e fundo, o
gênero e origem de luz, o tipo de esquema tonal, de contraste de cor, de figuração, de
movimento, etc.

Tradução Intersemiótica e Reimaginação

Valendo-se do conceito de tradução intersemiótica discriminado e definido por


Jakobson, Julio Plaza se utilizou dos fundamentos semióticos propostos por Charles
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Sanders Peirce para tratar deste tipo de prática artística, onde, adotando uma postura
crítico-criativa, o tradutor se pauta no uso material dos suportes para a interpretação
de um signo verbal por meio de sistemas de signos não-verbais. Em seu livro
―Tradução Intersemiótica‖ de 1987, Julio Plaza trata este tipo de tradução como sendo
um processo interpretativo que parte de um sistema semiótico de uma natureza para
outra, como ocorre, por exemplo, quando da transformação de um texto escrito para a
música, para a dança, para o cinema, para o teatro ou para a pintura. Portanto, a
tradução intersemiótica é aquela que ocorre entre os diferentes sistemas de signos e,
como tal, estabelece relações entre os sentidos (visual, tátil e auditivo), os meios e os
códigos (PLAZA, 1987: 45).
Sob esta ótica, o processo tradutório nada mais é do que o trânsito criativo de
linguagens que permite ao tradutor recodificar a informação inicial ao reconfigurar seus
elementos em outro código. Ao contrário do que possa parecer, não se trata da
simples representação de conteúdos pré-existentes e diferentes realidades109 em
outra linguagem, mas sim de um fenômeno criativo, o qual Haroldo de Campos, ainda
em 1959 no seu livro ―Metalinguagem & Outras Metas‖, denominou transcriação.
Campos entendia a tradução uma possibilidade de reinvenção, marcada pela
intervenção radical de quem traduz, onde novas formas são concebidas em realidades
distintas e acabam culminando na produção de uma nova linguagem. (CAMPOS,
1959: 23).
Em sua pesquisa, Plaza (1987) traçou um paralelo entre os conceitos de
transcriação e tradução intersemiótica, no que diz respeito à tradução entre diferentes
mídias, ao classificar a transcriação como sendo um dos três tipos possíveis de
tradução intersemiótica (sendo eles: transposição, transcodificação e transcriação).
Isso porque, o processo intersemiótico e seu caráter transgressor, da mesma forma
que a transcriação, sofre a influência tanto dos suportes e meios empregados como
das linguagens escolhidas, o que faz com que a própria escolha da técnica a ser
utilizada já seja, em si, uma forma de tradução. Além disso, segundo Plaza (1987: 1) o
processo também sofre influências externas, uma vez que aquele que se propõe a
fazer uma tradução criativa não consegue evitar que o seu contato com seu objeto de
estudo e com a própria realidade seja mediado por circunstâncias, concepções e um
contexto histórico-social que são só seus. A sua leitura do mundo será

109Vilém Flusser, em seu livro “Língua e Realidade” de 1963, define o conjunto de sistemas de símbolos, que ele denomina língua, como sendo equivalente à
totalidade daquilo que é apreendido e compreendido, a qual ele nomeia realidade. Em outras palavras, para Flusser (1963: 69) a língua não só cria como é
a própria realidade, não podendo existir, assim, realidade além da língua. Nesse sentido levando em consideração as ideias de Haroldo de Campos no que
se refere à tradução criativa, cabe ressaltar aqui a pergunta com a qual Gustavo Bernardo inicia o prefácio da edição publicada 2007 do livro “Língua e
Realidade: (FLUSSER, 1963): “Se a língua cria a realidade e a poesia cria a língua, quem cria a poesia?”

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irremediavelmente determinada por todos os fatores que constituem sua história


pessoal, social e coletiva. Como consequência, a reimaginação será sempre fiel à
interpretação que seu tradutor faz desse mundo, estando sujeita à influências da
época e da cultura na qual se inscreve e à qual se destina.
A imaginação e a ficção são duas das principais formas de expressão
humana. Desde o princípio dos tempos, histórias são criadas, reproduzidas e
passadas adiante após sofrerem um processo de transformação. Tal processo, seja
ele sutil ou drástico, depende de uma série de fatores que vão desde o modo como a
narrativa é contada até o meio escolhido, apresentando interferências da época, do
local, da cultura, dos costumes e da língua em que se inserem os interlocutores. O
resultado disso são novas interpretações de histórias antigas que por sua vez dão
origem, mesmo que de forma indireta, a muitas outras.
Estas histórias são a prova da grande necessidade que o ser humano sente
de se reinventar. Tal necessidade pode ser observada não só nas narrativas
produzidas pela humanidade ao longo do tempo, mas também em tudo aquilo que é
produzido pelo homem, pois é por meio de um exercício constante de apropriação e
revisitação que o conhecimento é construído. Daí a importância de olhar
constantemente para o passado e tentar identificar nele aspectos que independem do
espaço-tempo e que podem ser aproveitados no tempo atual.
De forma geral, as reimaginações são responsáveis por renovar e reiterar a
mensagem de histórias que já existiam e, se não fosse pelo esforço de reapresentá-
las, elas poderiam acabar caindo no esquecimento. Exemplos disso são as
reimaginações da obra de Jane Austen, incluindo ―Emma‖ (AUSTEN, 1815). É pela
forma como faz suas observações e narra uma história, que Jane Austen é ainda hoje
muito popular. Diversos autores, especialmente os pesquisadores preocupados em
estudar o ato de contar histórias, defendem que as narrativas mais populares e que
causam uma maior identificação por parte do público são justamente aquelas que se
inspiram em acontecimentos corriqueiros da vida real e em conversas do cotidiano.
Saber disso, é compreender porque a obra de Austen continua sendo tão relevante,
uma vez que todos os seus romances e, pricipalmente, ―Emma‖ (AUSTEN, 1815) são
um um reflexo da vida em sociedade e apresentam reflexões pertinentes até hoje.
Mesmo já tendo passado passado séculos desde a sua primeira publicação
suas histórias ganharam e continuam ganhando novos significados. Assim, elas
permancem vivas no mundo contemporâneo e servem de matéria-prima para
diferentes versões, revisitações, intertextos, citações e outros procedimentos
artísticos. Por isso, não seria errado afirmar que as histórias elaboradas pela autora há
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pouco mais de duzentos anos, continuam a se fazer presentes em todos os lugares e


todas as mídias, tornando-se, de certa forma, parte constitutiva e significativa do
cotidiano.
Por isso, pode-se afirmar que, ao longo dos anos, ―Emma‖ (AUSTEN, 1815)
foi e continua sendo, assim como todas as obras da autora, amplamente explorada
para as mais diversas mídias por diferentes culturas. Estas derivações encontram-se
representadas no esquema a seguir (Figura 1):

Figura 1: Esquema das diferentes mídias para as quais o livro ―Emma‖ (AUSTEN, 1815) já foi transcriado
e as possibilidades de desdobramentos de cada uma destas traduções.

Neste paronama, o que era originalmente um livro deu origem a outros livros,
textos interativos e imagens criados por admiradores, foi adaptado para meios
audiovisuais como o cinema, a televisão e a internet, ganhou versões para o rádio e
para o teatro e forneceu material para a expressão musical. Por sua vez, alguns
destes desdobramentos, também foram transformados em livros, peças, musicais,
séries e filmes, e assim por diante, em um processo de recriação e de reimaginação.
Tal processo cíclico, desencadeado pela obra da autora, consiste na tradução
constante do original e seus desdobramentos, e utiliza de forma efetiva diversas
formas de manifestação da língua, como a entende Flusser (1963).
Apesar da grande variedade de interpretações que a obra produziu, dentre
todas as traduções de ―Emma‖ (AUSTEN, 1815) efetuadas até o presente momento,
inclusive as que envolvem a produção de imagens audiovisuais e estáticas, nenhuma
conseguiu se desvincular totalmente do texto em si a ponto de não utilizar códigos
verbais para expressar uma ideia contida no texto de origem. Por maiores que sejam
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as diferenças na forma de abordar a história, todas essas reimaginações do romance


apresentam, em maior ou menor grau, a linguagem verbal como uma espécie de fio
condutor que garante o vínculo com a obra de origem.
Durante o processo de elaboração do romance, a linguagem foi moldada de
forma intencional pela autora de forma a criar ambiguidades. Todavia, dizer que a
linguagem verbal é o grande tema do romance, seria limitá-lo. Muito já foi dito sobre a
importância dos jogos de palavras e da ironia, bem como, sobre o quanto os diálogos
e a voz do narrador se fazem presentes na narrativa, mas, partindo do princípio de que
―Emma‖ (AUSTEN, 1815) é um livro sobre o ato de comunicar algo direta ou
indiretamente, a linguagem verbal representa apenas uma parte destas relações de
comunicação. Isso porque um dos principais atrativos da obra está justamente nas
entrelinhas, naquilo que não foi dito, mas foi pensado ou sentido e foi buscando
explorar melhor estas nuances, que se propôs uma nova reimaginação deste
romance, que abdicasse das palavras e utilizasse apenas as imagens e os elementos
que as constituem para narrar, mais uma vez, esta história.

O livro-imagem

No mundo contemporâneo, as imagens são uma presença constante. Sejam


elas estáticas ou em movimento, elas podem ser encontradas de todas as formas e
em todas as mídias. Veiculados em jornais e revistas, pelas televisões, computadores,
videogames e nos cinemas, os modos visuais de comunicação estão se disseminando
e se tornando cada vez mais dominantes. Tais imagens suscitam e provocam uma
profusão de sensações, fazendo com que os pensamentos das pessoas se tornem
cada vez mais visuais e que as memórias, associações e experiências sejam
frequentemente vinculadas a imagens.
Assim, utilizar a imagem como instrumento de linguagem foi – e ainda é -
crucial para todos os grupos culturais. Ao longo dos séculos, a necessidade de
comunicação e expressão, características que constituem os seres humanos, geraram
a necessidade de produção de objetos culturais como esculturas, pinturas ou livros,
como forma de dar vazão à criatividade.
Existem diversos tipos de livros onde as imagens estão presentes em maior
ou menor grau. Embora o intuito dessa pesquisa não seja definir nomenclaturas, e sim
apresentar os resultados de uma prática, é importante ressaltar que as tipologias para
esses livros são as mais diversas e dependem do tipo de relação que as imagens
estabelecem com o texto e da importância que lhes é dada dentro da obra. Eles
podem ser: livros ilustrados, com ilustrações ou com imagens; álbuns, livros pop-up ou
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primeiras leituras; livros interativos, livros brinquedo ou imaginativos; histórias em


quadrinhos ou ainda, livros que não contém texto algum, apenas imagens,
denominados livros-imagem.
Como explica Sophie Van der Linden em seu livro ―Para ler o livro ilustrado‖,
publicado originalmente em 2006, mas traduzido para o português somente em 2008,
os livros-imagem são aqueles que não se utilizam da palavra para transmitir algo. E
constatar a ausência do texto, não significa dizer que o discurso também se encontra
ausente. Por isso, é importante ressaltar que os livros sem texto também são formas
de expressão e garantem, à sua maneira, que as imagens do pensamento e da
imaginação sejam colocadas em um espaço visível e de destaque, onde suas vozes
possam ser ouvidas.
Como já foi dito anteriormente, o principal objetivo desta pesquisa era a
criação de um livro-imagem do romance ―Emma‖ (AUSTEN, 1815). Assim, de forma
simplificada, pode-se dizer que a etapa prática da pesquisa, ou seja, o processo de
criação do livro-imagem proposto, dividiu-se em duas grandes partes: planejamento e
execução. Cada parte, por sua vez, apresentou uma série de desdobramentos e
incluiu diversas atividades e tarefas.
Durante o planejamento, foi realizada uma leitura atenta do romance que
permitiu a separação do roteiro em cenas e a organização das mesmas em pequenos
blocos, que juntos, auxiliaram na compreensão das relações de causa e efeito dentro
da história. A organização visual dos acontecimentos deste romance permitiu entender
de que forma os sentimentos, os pensamentos e as ações dos personagens
influenciam na forma como os eventos se desenrolam. Tomar conhecimento disso,
possibilitou identificar os elementos essenciais à narrativa e traçar, assim, o fio
condutor do romance.
É importante ressaltar que, embora a etapa prática deste projeto tenha como
produto final a produção do primeiro volume do livro, o romance original é dividido em
três volumes e todas as esquematizações foram feitas pensando na história como um
todo.
Em meio à este processo, surgiu a necessidade de definir quais personagens
eram fundamentais em cada uma das cenas. Da mesma forma que o enredo foi
esquematizado, os personagens também foram colocados lado a lado em uma
tentativa de aprender como eles se comportavam naquelas situações. Assim, alguns
personagens foram se destacando devido às suas interações e relações com os
demais, mas principalmente pela contribuição que ofereciam ao desenvolvimento da
história.
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Uma vez finalizadas as esquematizações da narrativa e das relações entre os


personagens, os principais acontecimentos de cada um dos volumes foram
selecionados para compor o planejamento de cenas que daria origem ao storyboard.
A principal contribuição do storyboard foi a de organizar visualmente as cenas
selecionadas anteriormente e guiar as próximas etapas do projeto. O exercício de
elaboração do mesmo permitiu estudar as possibilidades de representação,
principalmente, no que diz respeito ao movimento dos personagens em cena. Nele, os
personagens foram desenhados de maneira genérica e não se encontram finalizados.
Em outras palavras, a forma como os personagens e objetos se encontram retratados
no storyboard, influenciaram a forma final das ilustrações, de modo que alguns
elementos ali contidos acabaram entrarando para a versão final do livro-imagem, ao
mesmo tempo que outros, foram acrescentados ou extensivamente modificados.
De qualquer forma, assim que o storyboard foi concluído, deu-se início ao
estudo das caracaterísticas dos personagens. Nesta etapa, foi essencial retornar ao
texto e dele retirar a descrição dos atributos físicos e comportamentais de cada um
deles, a fim de refletir como isso poderia ser expresso por meio de imagens. Dito isso,
é importante relembrar que a escrita de Austen não era muito descritiva e, portanto,
não conta com extensos relatos sobre a forma física dos personagens. Desse modo,
salvo algumas exceções, os desenhos de suas formas e proporções, bem como de
seus cabelos e roupas acabaram retratando muito mais a personalidade de cada um,
do que configurando uma representação visual de como a autora os imaginava.
O romance ―Emma‖ (AUSTEN, 1815) não conta com um grande número de
personagens ativos, a personagem com maior participação na história é justamente a
protagonista e, além dela, o número de personagens falantes é limitado. Por isso, para
reimaginar esta história em imagens, a narrativa original teve de ser sintetizada ao
máximo.
De forma geral, livros-imagem trabalham com um número reduzido de
ilustrações para que a quantidade excessiva de informações visuais não atrapalhe o
entendimento da narrativa. Por isso, um dos cuidados a serem tomados durante o
processo de elaboração das imagens foi o de garantir que elas mantivessem uma
certa lógica interna, para que, ao final, o leitor fosse capaz de compreender a
mensagem de forma efetiva. Assim, retomando o esquema que organiza as relações
entre os personagens ativos, o próximo passo foi distribuí-los ao longo do
planejamento da narrativa de forma que a participação de alguns deles ficasse
reduzida a apenas um dos três volumes. Essa escolha foi feita para que o grande
número de personagens em cena não confundisse o leitor e o distraísse a ponto de
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comprometer sua leitura. Por isso, no primeiro volume são apresentados tanto os
personagens fixos da história, que aparecerão em todos os três volumes – Emma
Woodhouse, Harriet Smith, George Knightley e Sr. Elton -, assim como dois
personagens que são fundamentais no início da história, mas que não possuem uma
participação tão marcante ao longo do livro e, por isso, figuraram apenas nas primeiras
imagens do primeiro volume – Srta. Taylor/ Sra. Weston e Sr. Weston.
Com os desenhos dos personagens definidos, o próximo passo da pesquisa
consistiu na elaboração das ilustrações em si. No romance ―Emma‖ (AUSTEN, 1815),
a história se passa ao longo de um ano e é caracterizada pelo ritmo lento com que os
eventos acontecem. Da mesma forma que os diálogos e os assuntos se repetem, o
tempo passa devagar, e a falta de novidades aliada à mesmice cotidiana criam uma
espécie de círculo vicioso do qual os personagens se tornam reféns. Sabendo disso,
por conta da repetição e das idas e vindas dos personagens, manter a ordem dos
acontecimentos poderia acabar impedindo a fluidez da leitura. Dessa forma, optou-se
por retratar os acontecimentos como se eles acontecessem em uma sequência
ininterrupta.
Pelos mesmos motivos, as cores foram utilizadas de forma limitada.
Sustentáculos importantes na criação de ilustrações, as cores atraem a curiosidade e
prendem a atenção dos leitores, mas se utilizadas em excesso, podem ter o efeito
oposto. Além de facilitarem a compreensão da narrativa, no caso desta pesquisa, a
quantidade limitada e invariável das cores reflete também a constância da história e o
número restrito de acontecimentos. Em outras palavras, as cores em ―A Imaginista‖
não variam porque esta não é uma história marcada por grandes reviravoltas. A
escolha de tons de vermelho e de azul se deu pela necessidade de escolher uma cor
que fosse suave o suficiente para estar presente em todas as imagens de forma
preponderante (azul) e outra que pudesse fazer seu contraponto, destacando partes-
chave do desenho (vermelho). Dentro do contexto das imagens criadas, o vermelho foi
escolhido para fazer saltar na página detalhes importantes sobre a caracterizacão e a
personalidade de cada um dos personagens, inclusive a imaginação de Emma. Isso
explica, por exemplo, porque as primeiras cenas do livro-imagem são completamente
vermelhas, uma vez que o que está acontecendo ali, na verdade, está se passando
apenas dentro da realidade alternativa criada pela protagonista em sua mente.
Após definir o roteiro, a caracterização dos personagens e as cores a serem
utilizadas, deu-se início à uma série de testes que visaram encontrar a técnica mais
adequada para o projeto. Estes testes, incluíram gravações de imagens na madeira
(xilogravura), no linóleo (linogravura) e na chapa de cobre (gravura em metal). Depois
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destas tentativas, porém, uma outra opção pareceu mais interessante: o bordado livre,
uma técnica secular que raramente é utilizada para a elaboração de ilustrações. Muito
popular na época em que o romance foi escrito, o aprendizado do bordado era quase
um pré-requisito na vida de qualquer jovem, inclusive da própria autora, que segundo
relatos da época, os executava com maestria. No entanto, mais importante do que a
relação temporal que a técnica estabelece com o romance é a relação que a sua
materialidade mantém com a história criada por Jane Austen em 1815.
Foi pensando na forma como Emma tramava esquemas e manipulava a
sociedade ao seu redor que escolheu-se essa técnica. As tramas do tecido podem ser
vistas como a representação visual das teias que Emma tecia, as linhas que ali
figuram remetem ao desenrolar das situações e à forma como a protagonista os
costurava para atender aos seus interesses, e os pontos, um após o outro, são a
materialização da repetição tão presente nos diálogos da obra.
No que diz respeito à técnica, algumas etapas precisaram ser cumpridas
antes que os rascunhos fossem transformados no que viria a ser o resultado final.
Antes mesmo de escolher os materiais (linhas, agulha, pinça, bastidor e tecido), foi
realizada uma pesquisa bibliográfica sobre a técnica e sobre os tipos de pontos que
poderiam ser utilizados. Depois de selecionar alguns, foi criado uma espécie de
gabarito, um pedaço de tecido onde os pontos foram testados e praticados para
entender como eles poderiam interagir entre si, criar variações e serem utilizados nos
desenhos elaborados.
Após planejar como cada ponto integraria os desenhos, os rascunhos foram
cuidadosamente transferidos à lápis para o tecido, com o auxílio de uma mesa de luz,
de forma a evitar que qualquer imperfeição na transferência comprometesse a
continuidade das imagens. Aparentemente simples, o processo de ilustrar com agulha
e linha envolveu um período de adaptação para aprender como trabalhar texturas,
volumes, luzes e sombras no tecido, e, assim conseguir o efeito desejado. De forma
geral, a maior preocupação ao longo da criação das ilustrações era garantir uma certa
unidade visual entre os vários fragmentos, de forma que ao olhar para as imagens
como um todo, o leitor pudesse ter espaços vazios e respiros que compensassem a
sobrecarga de informação visual que algumas partes do desenho possuem.
Logo após a finalização da primeira cena, o avesso do tecido que era apenas
um coadjuvante, uma consequência inconveninete e inevitável, se mostrou tão
impactante visualmente quanto o bordado em si. Foi então que ficou evidente a
necessidade de incluí-lo, de alguma forma, no resultado final.

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Ao desenhar as cenas do livro-imagem, privilegiou-se a visão que a


protagonista tem do mundo ao seu redor. Por isso, os acontecimentos retratados e a
forma como eles ocorrem são um reflexo da forma como ela os enxerga e, do mesmo
modo, as situações que apresentaram pouco impacto para os seus planos ou que ela
preferiu fingir que não existiram, não estão representadas ali. Assim, a parte frontal do
bordado é a versão ―melhorada‖ do mundo interno de Emma, enquanto que o avesso,
com seus nós, arremates e trançar de linhas, mostram os bastidores desse mundo e
não deixam esquecer que a realidade é povoada por imperfeições.
Dito isso, com a finalização dos bordados foi preciso encontrar uma forma de
digitalizar e reproduzir tanto a frente quanto o verso do tecido. Por causa do processo,
que envolvia prender o tecido em um bastidor para garantir que ele estivesse
suficientemente esticado durante a execução dos pontos, ao final de alguns dias, o
tecido se encontrava amassado demais para ser fotografado sem nenhum tipo de
suporte. Além disso, a grande concentração de pontos em algumas áreas, acabaram
enrrugando o tecido, o que ficaria bem visível em uma digitalização e prejudicaria a
continuidade dos desenhos.
Foi pesquisando algumas opções que encontrou-se a solução. Esticar os
tecidos em chassis de madeira como se fossem telas de pintura, garantiria que a
imagem pudesse ser vista dos dois lados, ao mesmo tempo em que permaneceria
esticada. No entanto, para ter certeza que o registro das emendas entre as imagens
estivesse no lugar certo, antes de grampear o tecido na madeira, foi necessário fazer
uma marcação com alfinetes. A delimitação permitiu saber os limites da página do livro
e serviu para impedir que o tecido fosse esticado em excesso, encobrindo parte da
imagem, ou que, ao contrário, não fosse esticado o suficiente, e acabasse
comprometendo as emendas.
Os quadros foram fotografados em estúdio e as imagens foram tratadas no
computador para que as cores, quando impressas, se aproximassem ao máximo dos
tons de linhas utilizados. O processo de tratamento e diagramação das imagens foi
longo. A primeira decisão a ser tomada quanto à diagramação foi definir as dimensões
do livro-imagem. Observando as ilustrações e a reprodução, lado a lado, é visível que
o tecido bordado é 50% maior que a edição impressa. A razão para isso é que um livro
com dimensões menores tem maior relação com o estilo minimalista da autora. Jane
Austen trabalhava em com um escopo reduzido, chegando a relatar isso em algumas
cartas, onde afirmou que o seu estilo condensado consistia em pintar ―imagens da vida
doméstica em ambientes rurais sobre um pequeno pedaço de marfim utilizando um
pincél tão pequeno, que era necessário muito trabalho para produzir efeitos mínimos‖.
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Sabendo que ―Emma‖ (AUSTEN, 1815) é um microcosmos que apresenta, por meio
de detalhes sutis e nuances quase imperceptíveis, o comportamento social da época,
as dimensões reduzidas do livro são mais condinzentes com a história como um todo.
Seguindo o mesmo raciocínio, a capa foi desenhada para conter um número
mínimo de elementos. Sabendo que os livros-imagem são, por definição, formados
somente por imagens, as únicas palavras escritas do livro estão na sua capa e
contracapa. Na primeira, o título ―A Imaginista‖, cujo significado já foi explicado mais
de uma vez ao longo deste relato, se apresenta com as duas cores utilizadas no miolo
do livro (vermelho e azul) e espelhado horizontalmente de forma a referenciar, mais
uma vez, a dupla camada da narrativa. Já a contracapa, possui uma citação de um
dos capítulos finais do romance, que resume o enredo da história.
Com tudo pronto, a última etapa compreendeu a finalização da diagramação,
a impressão e a encadernação do volume. Porém, antes de decidir qual seria a melhor
finalização, foram realizados dois testes de formatos diferentes. O primeiro foi o livro
sanfona que possibilitou uma maior variedade de visualizações das imagens, uma vez
que tanto a frente quanto o verso se encontravam igualmente visíveis e que a
sequência poderia ser vista tanto aos pares, como de uma só vez, aberto como uma
imagem única em um mural. No entanto, ao mesmo tempo permitia uma maior
flexibilidade de leitura, o fato de conter imagens na frente e no verso, encadernadas de
forma contínua, significava que algumas emendas poderiam aparecer e,
consequentemente, interferir nas imagens, chamando a atenção do leitor para si.
Por essa e outras razões, fez-se a opção por um segundo tipo de
encadernação: o chamado ―livro surpresa‖. Aparentemente um livro normal, seu
segredo está em ser costurado ao contrário. Quando uma encadernação deste tipo é
feita, as páginas emparelhadas são impressas frente e verso e dobradas de forma que
a abertura fique voltada para a parte interna do livro e a dobra fique para fora. As
folhas, costuradas como páginas soltas ficam mais grossas de forma que o leitor
perceba que existe algo de incomum ali. Acompanhados por um instrumento cortante,
os leitores são, então, encorajados a rasgar as dobras para revelar as imagens que se
encontram no interior do livro. Dado o significado do avesso para este livro-imagem, a
sua apresentação na parte interna do livro, faz com que o lado oculto da história vá se
revelando aos poucos, o que o torna ainda mais interessante enquanto recurso
gráfico. Embora, nesta versão, as imagens devam, necessariamente ser visualizadas
aos pares, isso não compromete o entendimento da narrativa ou o engajamento do
leitor. Dessa forma, a impressão foi finalizada com este tipo de acabamento e a
pesquisa foi concluída.
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Considerações Finais
Quando tudo era apenas um projeto, o principal objetivo que norteava a
pesquisa era a criação de um livro-imagem que permitisse compreender, por meio da
experiência prática, como uma narrativa pode ser contada visualmente. Assim, foi
utilizando referências teóricas para fundamentar e guiar a prática artística que esta
pesquisa produziu uma reimaginação visual do primeiro volume da obra ―Emma‖ de
Jane Austen (1815).
Para que isso fosse possível, porém, primeiramente foi necessário estudar o
conceito de transcriação, amplamente utilizado por Campos em suas traduções de
poesias, para depois aplicá-lo no contexto desta pesquisa. No que diz respeito à
reimaginação, o grande desafio deste trabalho esteve justamente na apropriação e
expansão do conceito para que ele pudesse ser aplicado em um texto em prosa, já
que, apesar da linguagem ser de grande importância para o romance, o texto não é
poético.
Partindo da noção de reimaginação como uma forma de tradução criativa,
buscou-se nas referências que estudam a configuração formal dos livros ilustrados,
subsídios para alimentar a prática. Tal bibliografia contribuiu para a compreensão de
como os elementos estruturais da imagem (composição, formas, linhas, traços, cores,
entre outros) e da própria confecção do livro enquanto objeto (margens, dobras,
formato, capa, guardas, e assim por diante) poderiam ajudar a contar esta história.
Mais do que isso, também, a pesquisa pela prática, bem como os relatos de
artistas e ilustradores, contidos nesta bibliografia, auxiliaram a compreender como
funciona o processo criativo de produção de um livro-imagem. Dessa forma, a
experiência prática que caracterizou esta pesquisa permitiu adquirir os conhecimentos
previstos, mas também propiciou reflexões críticas em relação ao processo e contou
com imprevistos e situações de aprendizagem que muito contribuiram para os
resultados aqui relatados.

Referências
AUSTEN, J.; TANDON, B. (Org.). Emma: an annotated edition. 1ª ed. The Belknap
Press of Harvard University Press, 2008;
CAMPOS, H. A Arte no Horizonte do Provável. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2010 (1ª
ed. 1963);
CAMPOS, H. Metalinguagem & Outras Metas. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2010 (4ª
ed. 1992);
FLUSSER, V. Língua e Realidade. 3ª ed. São Paulo: ANNABLUME, 2007 (1ª ed.
1963);
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HALPERIN, J. Jane Austen: bicentenary essays. 1ª ed. Cambridge University Press,


1975;
JAKOBSON, R. Linguística e comunicação. 20ª ed. São Paulo: Cultrix, 1995;NS,
Elizabeth. Jane Austen: a biography. 1ª ed. Gollancz, 1986;
LEE, S. A trilogia da margem: o livro-imagem segundo Suzy Lee. São Paulo: Cosac
Naify, 2012;
LINDEN, S. Para ler o livro ilustrado. São Paulo: Cosac Naify, 2011;
PLAZA, J. Tradução intersemiótica. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2010 (1ª ed. 1987);
PINA, A. Jane Austen. 1ª ed. Colibri, 1994;
TÁPIA, M.; NÓBREGA, T. M. (orgs.). Haroldo de Campos – Transcriação. 1ª ed. São
Paulo: Editora Perspectiva, 2013;

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

LITERATURA FANTÁSTICA E ARTES VISUAIS: O ESTÍMULO DA


CRIATIVIDADE DE CRIANÇAS ATRAVÉS DO ELEMENTO
FANTÁSTICO E DAS ILUSTRAÇÕES

Thalis Lowchinovscy, UNICAMP, Eixo Temático 5: Literatura infantil e as


relações com a imagem, PIBID/CAPES
Lucilene Land, EMEF Pe. José Narciso - Campinas, Eixo Temático 5: Literatura
infantil e as relações com a imagem, PIBID/CAPES
Marcos Aparecido Lopes, UNICAMP, Eixo Temático 5: Literatura infantil e as
relações com a imagem, PIBID/CAPES

Considerações Iniciais

Este artigo apresenta os resultados preliminares de uma proposta pedagógica


desenvolvida pelo aluno Thalis Lowchinovscy, estudante de Artes Visuais, na Escola
Municipal Pe. José Narciso (Campinas – SP.), com a sala do 8° ano A, sob a
supervisão da Profa. Lucilene Land e do Prof. Marcos Lopes, do Instituto de Estudos
da Linguagem - Unicamp. As atividades desenvolvidas ocorreram no âmbito do
Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID/CAPES), subprojeto
de Licenciatura em Letras da UNICAMP, Edital 2014.
A proposta didática relacionou alguns procedimentos estéticos das Artes
Visuais aos conteúdos específicos das aulas de Língua Portuguesa, principalmente
nas atividades de escrita criativa em diálogo com o gênero ―Literatura Fantástica‖. A
partir da apresentação, leitura e interpretação de um repertório de contos fantásticos,
as crianças desenvolveram suas próprias narrativas e as ilustraram, tendo como base
as temáticas presentes nos textos literários.
As narrativas construídas pelos alunos resultarão em um trabalho de edição
de antologias impressas ao final do segundo semestre de 2017. Os livros impressos
serão um registro histórico e pedagógico para a unidade escolar. Em outras palavras,
eles constituirão a memória de um trabalho artístico e literário feito pelos alunos, com
691

base na experiência pessoal e subjetiva deles, e contendo questões próprias ao


universo social e cultural dos jovens leitores.

O contexto pedagógico: Iniciação à docência e escrita criativa


A construção da proposta didática, que será relatada neste trabalho, exigiu a
delimitação precisa de alguns objetivos e metas a fim de que a iniciação à docência
não fosse marcada pelo improviso ou descuido metodológico na condução das
atividades de ensino.
Tendo em vista o perfil acadêmico dos bolsistas de I.D, que atuam na escola
parceira do PIBID Letras, em sua grande maioria oriundos de algumas licenciaturas de
humanidades (Artes Visuais, Dança, História e Letras), procurou-se estabelecer um
objetivo precípuo que articulasse os saberes humanísticos às necessidades de
aprendizagem nas aulas de Língua Portuguesa ou mais especificamente nas aulas de
leitura literária.
No que concerne ao presente trabalho, procurou-se incorporar a linguagem
das artes visuais, principalmente os recursos da ilustração, às atividades de escrita
criativa, levando-se em consideração a experiência concreta de leitura dos contos
fantásticos selecionados pela Professora Lucilene Land, docente na Escola Pe. José
Narciso, e supervisora das atividades do PIBID Letras.
Segundo o relato da professora, que poderá ser logo mais acompanhado, a
intenção norteadora do projeto foi incentivar o pensamento crítico e criativo dos alunos
com base em um contato direto com o elemento do fantástico. Por que tal gênero ou
por que o contexto pedagógico solicitou o trabalho com esse gênero?
Em primeiro lugar, porque o conto fantástico permite ao aluno um
distanciamento crítico da sua realidade, ao suspender, temporariamente, as regras
que presidem as convenções do 'real', permitindo-lhe expressar sua subjetividade,
seus conflitos e as principais expectativas de seu mundo pessoal e mesmo social.
Pode-se dizer que a esse "distanciamento" segue-se uma reaproximação da realidade
com uma outra perspectiva cognitiva.
Em segundo lugar, porque a atividade de leitura e criação de contos
fantásticos possibilita ao jovem colocar-se no lugar do produtor do discurso literário,
papel que raramente lhe é facultado, uma vez que o ensino de literatura se confunde,
em alguns casos, com a avaliação de perguntas e respostas sobre o sentido objetivo
do que se leu.
Por fim, justifica-se o trabalho com o gênero específico e a escrita criativa, em
interface com as artes visuais, porque há uma tradição constituída em torno da
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narrativa fantástica e as ilustrações. Basta uma consulta aos principais títulos de


narrativas fantásticas disponíveis no mercado editorial para os jovens leitores, para se
constatar que os projetos gráficos dos livros contemplam, invariavelmente, sofisticadas
propostas de ilustrações com várias tendências estéticas.
Um dos textos abordados no projeto foi ―O Conto dos Três Irmãos‖, de J. K.
Rowling, apresentado aos alunos na animação produzida para o filme Harry Potter e
as Relíquias da Morte: Parte 1. Ao apresentar esta animação aos alunos e, em
seguida, o conto em formato de texto, o bolsista de I.D trabalha com um exemplo
relevante no qual a imagem e a palavra estabelecem um círculo virtuoso, rico em
interpretações e base para o estímulo da criatividade das crianças.
Tendo em vista os objetivos e as justificativas apresentadas, procurou-se
estabelecer como meta que os livros ilustrados pudessem servir de referência para
futuros projetos de leitura literária na Escola Pe. Narciso. A constituição de uma
memória literária no espaço escolar, espécie de história da leitura para a instituição de
ensino, é um registro da vivência escolar da criança e, sobretudo, um subsídio
inestimável para a compreensão dos principais impasses e desafios na formação de
jovens leitores.

Síntese do percurso didático: leitura e escrita dos contos fantásticos

Do ponto de vista da professora supervisora, a atuação dos bolsistas se deu de


modo a ser uma extensão do seu trabalho ou uma espécie de apoio didático aos
desafios docentes enfrentados em sala de aula. Tal extensão e apoio didático
trouxeram ganhos de repertórios conceituais e didáticas diversificadas que, atreladas
às práticas já previstas, auxiliaram no aprofundamento do estudo do gênero fantástico.
O percurso didático iniciou-se com a leitura do conto ―Janice e o umbigo‖ de
Verônica Stigger. Oralmente, os alunos levantaram hipóteses para possíveis
interpretações. Nessa atividade oral já conseguiram identificar marcas do gênero
estudado ao analisarem a coerência interna e externa do texto. Em seguida, fizeram
uma ilustração livre do conto.
Ao relacionarem o estranhamento que tiveram numa primeira leitura literal do
texto às características da literatura fantástica estudadas nas aulas de Português,
iniciou-se um processo espontâneo de questionamento da realidade. As dúvidas
surgiram aleatoriamente e sem muita identificação com o conto lido, mas tinham em
comum o estranho, o inexplicável, o sobrenatural. Curiosidades já explicadas pela

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ciência, mas que apareceram como elementos fantásticos pelas respostas serem de
desconhecimento deles. Algumas dessas questões foram da seguinte natureza: ―Do
que são feitas as estrelas?‖ – ―Os planetas estão boiando ou caindo?‖ – ―Quem criou o
dinheiro ficou rico?‖ – ―Quem é a família de Deus?‖ - ―Quem decidiu o que
estudaríamos na escola?‖ – ―Por que o Sol é quente?‖ - dentre outras. A primeira
atividade escrita surgiu dessa discussão, onde foi proposto que os alunos
escolhessem apenas uma das perguntas e inventassem uma resposta fantasiosa sem
preocuparem-se com a verossimilhança externa, mas com a criatividade e buscando o
fantástico.
Em um segundo momento, assistiram à animação do ―Harry Potter‖, de J. K.
Rowling, ―O conto dos três irmãos‖. Na sequência tiveram contato com a versão do
texto escrito e após sua leitura dividiram com a sala suas interpretações sobre a
história e fizeram uma breve conversa sobre a temática do conto: a morte. Dessa
conversa surgiram questões que serviram para nortear o roteiro da escrita do segundo
conto:
- Qual pedido você faria à morte?
- Se a morte viesse te buscar, como você a enganaria?
- Imagine o dia em que você encontrou a morte.
Como nessa atividade tiveram o contato com as imagens fílmicas e um texto
escrito da mesma história, os desenhos apresentados demonstraram, em alguns
casos, influência das imagens que apareceram no filme.
O terceiro conto trabalhado pelos bolsistas foi ―Inundação‖ de Mia Couto. Fez-
se uma interpretação dirigida pelos bolsistas parágrafo a parágrafo em que a
constatação do fantástico se deu por considerarem a presença da mãe, da casa e de
objetos que sumiam em um rio repentino como dados por verdade pelo narrador numa
verossimilhança interna sobrenatural. Mas numa segunda leitura, com intervenção de
questionamentos da professora e dos próprios alunos, considerou-se que o narrador
sabia que não eram acontecimentos sobrenaturais, que eram apenas as suas
memórias relatadas por meio de metáforas. Considerou-se então que o fantástico se
deu pela construção das imagens fantasiosas pelo narrador num plano mental.
Aproveitou-se a oportunidade de estarem trabalhando um texto do Mia Couto para a
professora retomar uma aula anterior em que trabalhara um outro texto do mesmo
autor, ―Chuva: a abensonhada‖, em que os alunos conseguiram resgatar
características da linguagem metafórica desse autor para traçarem essa segunda
possibilidade de interpretação. Para a conclusão das atividades com esse conto, os
alunos responderam a um questionário em que tiveram que identificar a estrutura
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narrativa do conto. Na aula seguinte, esse mesmo questionário foi utilizado como
roteiro para a criação de um conto fantástico de tema livre. O questionário apresentou
a seguinte estrutura:
1. Apresentação – Quais os personagens? Onde a história se passa? Quando?
2. Complicação – Qual o acontecimento central? Qual o conflito que a história terá?
3. Clímax – O que terá de fantástico ou sobrenatural?
4. Desfecho – Qual será a solução do conflito?
A sequência didática de criação dos contos encerrou-se com esse terceiro
conto. As atividades seguintes foram para revisão e reescrita dos textos.
A ilustração e o conto fantástico
Na proposta didática em questão, o bolsista elaborou algumas atividades
capazes de articularem o Ensino de Língua Portuguesa às Artes Visuais. Também
propôs desenvolver com os alunos do Ensino Fundamental um projeto final de livros
ilustrados.
Ao estimular a criatividade dos alunos a partir do contato com algumas
imagens fantásticas presentes na animação ―O conto dos três irmãos‖, de J. K.
Rowling, e "Kiriku e a feiticeira", de Michel Ocelot, o objetivo foi mostrar dois modos
diversos de representação visual (a cultura africana e a europeia). A preocupação em
trabalhar com expressões culturais diversas e no modo como as imagens visuais são
construídas e significadas nas narrativas, deveu-se à necessidade de ampliação do
universo cultural dos alunos.
Trabalhos diferenciados foram realizados após a abordagem dos dois contos.
Por exemplo, finalizada a atividade de recepção do conto africano "Kiriku e a
Feiticeira", realizou-se uma oficina de máscaras tomando como base as máscaras da
cultura africana, porém com contextos diferentes para a adequação do elemento
fantástico e de estímulo visual. Cada criança deveria creditar à sua máscara um poder,
uma habilidade sobrenatural que seria proporcionada pelo usuário do utensílio. Os
resultados foram diversos: máscaras que permitiriam a comunicação com animais
selvagens, mudanças climáticas, proteção contra inimigos e até mesmo a eternização
de amizades. Poucas crianças se mostraram relutantes na criação de tais objetos,
diante de uma atividade bem diferenciada para as aulas de Língua Portuguesa.
Já na atividade envolvendo ―O Conto dos Três Irmãos‖, foi proposto aos
alunos que colocassem, em forma de ilustração, suas ideias de como seria a
―aparência da morte‖. Os resultados também foram bem distintos, desde figuras
encapuzadas como as da animação presente no sétimo filme da saga de Harry Potter,
figuras de demônios e até mesmo de túmulos, que sob análise indicariam crianças
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com medo da morte, medo da figura do diabo ou simplesmente a crença de que a vida
terminaria sob uma lápide de cemitério. Uma ilustração que se destacou foi a de um
aluno que, além de representar a morte como a figura encapuzada da tradição
europeia, ilustrou uma mãe com um filho rodeados por árvores. Após uma conversa
com o aluno, ele revelou que o desenho representava sua crença de que encontramos
nossos entes queridos em locais de beleza natural após nossa morte.
As relações entre imagem e a palavra foram trabalhadas com os alunos em
três aspectos: primeiramente houve a apresentação das animações; em seguida, a
leitura de textos sobre esse gênero e, por fim, a elaboração de trabalhos que
relacionassem as animações e os textos, estimulando a criatividade dos alunos. Todo
este processo foi visto como um balão de ensaio para a criação final dos contos
escritos por cada aluno. Obviamente, nem todas as crianças conseguiram produzir
contos extensos, mesmo após diversos exemplos de ilustrações e narrativas
compartilhadas com elas. Isso se explica, em alguma medida, por conta das
condições de formação escolar, da situação de vulnerabilidade social e econômica a
que estão expostas algumas dessas crianças.
Ao construir com os alunos a perspectiva de produtores e autores de seus
textos ilustrados, procurou-se não reproduzir os padrões convencionais de algumas
aulas de Língua Portuguesa, nas quais a formação literária do aluno está restrita às
avaliações escritas e às produções de textos criativos para o cumprimento protocolar
do aprendizado do gênero proposto. Pelo contrário, fundamentado em algumas
reflexões de Nikolajeva e Scott (2011), o trabalho de produção de textos ilustrados
pelos alunos do ciclo fundamental II enfrentou o desafio de se dar o mesmo estatuto
ao signo verbal e visual, observando as tensões e o diálogo criativo entre palavra e
imagem.

Considerações Finais
Um dos problemas recorrentes no ensino de literatura na escola pública
relaciona-se aos construtos pedagógicos que estabelecem a mediação entre o jovem
leitor e o texto literário. Os relatos de alguns bolsistas de iniciação à docência
explicitam a necessidade de uma reflexão vigorosa a respeito dos recursos didáticos,
do repertório cultural e artístico adequados à faixa etária do ciclo fundamental II.
Porém, o desafio docente mais frequentemente relatado pelos estudantes diz respeito
às motivações, interesses e finalidades que presidem as atividades de leitura e escrita
no espaço escolar.

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Em linhas gerais, os bolsistas afirmam que aulas de leitura literária mais


exitosas, quanto aos seus propósitos críticos e à diversidade de repertório textual,
dependem diretamente da formação cultural e do preparo acadêmico do professor
responsável pela disciplina de Língua Portuguesa. Além disso, ou por causa disso,
contribui para a formação literária do leitor jovem o círculo virtuoso entre os hábitos de
leitura e a prática de escrita criativa a partir da experiência concreta dos vários
gêneros literários. Hábitos de leitura e práticas de escrita criativa, cultivados pelo
docente no espaço da sala de aula ou nos projetos da biblioteca escolar, feiras e
exposições culturais, podem ser decisivos para fomentar o interesse do aluno pela
literatura.
Na prática da escrita criativa, articulada às outras linguagens, como, por
exemplo, a visual, nota-se um estímulo e uma ampliação do horizonte de sentido do
aluno, que é motivado a transformar e transpor os códigos verbais e visuais em sua
própria produção textual. É um desafio significativo e uma necessidade do nosso
mundo contemporâneo que o jovem consiga decodificar a pletora de imagens que
rege a vida social. Nesse sentido, uma proposta de ensino de literatura, que dialogue
com as artes visuais, com os recursos artísticos das animações ou com os outros
saberes humanísticos, é um passo decisivo para a formação consistente de futuros
docentes.

Referências

ABRAMOVICH, Fanny. Literatura Infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione,


2002.

BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte. 5 ed., São Paulo: Perspectiva,
2004.

COUTO, Mia. Fio das missangas, São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

NIKOLAJEVA, Maria e SCOTT, Carole. Livro ilustrado: palavras e imagens. São


Paulo: Cosac Naify, 2011.

ROWLING, J. K. Os contos de Beedle, o bardo. Rio de Janeiro: Rocco, 2008.

STIGGER, Veronica. O trágico e outras comédias, São Paulo: 7Letras, 2007.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

A ILUSTRAÇÃO DE SALMO DANSA PARA OS CONTOS DE


ANDERSEN

Simone Rodrigues do Amaral


EAPE/SEDF
Eixo temático 5: Literatura infantil e as relações com a imagem

Considerações Iniciais

Este artigo tem por objetivo comentar a ilustração de Salmo Dansa para os
contos de Hans Christian Andersen publicados no livro Minimaginário de Andersen
(Editora Companhia das Letrinhas; adaptação de Katia Canton; 2014). O texto procura
investigar o modo de construção dessas ilustrações, a abordagem das narrativas
feita pelo ilustrador e, sobretudo, as consequências, para o ato de ler, do trabalho
realizado pelo artista.
O livro em questão apresenta os seguintes contos: Soldadinho de chumbo; A
pequena vendedora de fósforos; O rouxinol; A pequena sereia; Os sapatinhos
vermelhos; Patinho feio e Polegarzinha.
Os contos foram selecionados pelo artista plástico brasileiro Salmo Dansa. Ele
preparou as ilustrações para cada narrativa e a pesquisadora Katia Canton reescreveu
as histórias. Um movimento inverso ao que costuma acontecer: geralmente os textos
são elaborados em primeiro lugar e a ilustração vem em seguida (cada vez mais,
entretanto, vale registrar, essas duas linguagens, imagem e palavra, caminham
juntas). Entretanto, na verdade, não deixou de ser assim: foram mesmo os textos – os
contos criados por Andersen – que desencadearam a experiência criadora e criativa
do ilustrador.

O início da obra
698

Esse livro teve início em 2008. Dansa, tendo ganhado uma bolsa de pesquisa
da Internationale Jugendbibliothek, passou três meses em Munique, onde, inspirado
pelas narrativas do escritor dinamarquês, realizou uma pesquisa que deu origem ao
livro Minimaginário de Andersen.110
A escritora Katia Canton, em texto de apresentação da obra, relata que

Tudo começou com o ―Patinho feio‖. Salmo passeava em


Munique, na Alemanha, quando encontrou ovos e plumas de
cisne num ninho à beira do lago de um castelo. Ali surgiu a
ideia de utilizar esses materiais para ilustrar o conto. (Canton,
2014, p.16)

A abordagem de Salmo Dansa

É a partir dessa abordagem, qual seja, a utilização de materiais que possuem


uma certa relação com os contos – seja temática ou de características dos
personagens ou de aspectos significativos das narrativas – que o ilustrador seguirá
realizando o seu trabalho para os contos de Andersen selecionados por ele. E é
precisamente este o grande mérito e a grande novidade deste volume: os materiais
utilizados e a sua relação com os contos. Deste modo é que, como esclarece Canton,

Para ilustrar ―A pequena sereia‖ ele usou rótulos de latas de


sardinha, combinados a pedaços brilhantes de CD, para
compor as escamas do rabo e aludir ao famoso som
encantatório produzido pelo canto das sereias na mitologia
grega. Em ―Soldadinho de chumbo‖, criou baixos-relevos em
terracota para fazer pequenas esculturas que depois foram
fundidas em chumbo e então pintadas com tinta para metal,
imitando os bonecos antigos. Para ―A pequena vendedora de
fósforos‖ utilizou muitas caixinhas de fósforo e palitos; e, no
caso de ―Os sapatinhos vermelhos‖, solas e pedaços de couro.
Em ―Polegarzinha‖, usou pétalas desidratadas e asas de
borboletas; e, finalmente, em ―O rouxinol‖, são as antigas fitas
cassete que contam essa bela história. (Canton, 2014, p.16-7)

Ao escolher materiais que se aproximam de aspectos significativos dos contos


selecionados, Salmo Dansa realiza suas ilustrações acentuando aspectos relevantes
da obra do dinamarquês. Como quem retoma um tema, uma história e, criativamente,
realiza, numa outra linguagem, uma nova leitura, um aprofundamento das questões
abordadas.
E, nessa junção autor-ilustrador, o volume ganha qualidade e densidade. Não é
simplesmente um livro bonito e bem cuidado. É um livro que intensifica o ato de ler a
partir da proposta da ilustração (e de todo o projeto gráfico, como veremos). Assim,

110
Canton, Katia. Minimaginário de Andersen. Apresentação e adaptação de Katia Canton; ilustrações de
Salmo Dansa. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2014.
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torna-se possível discutir a proposta do livro – ou a recriação feita pelo artista plástico
– como uma forma de relação muito íntima e muito qualificada com a leitura.

Hans Christian Andersen

O autor dos contos ilustrados por Dansa nasceu em Odense, na Dinamarca,


em 1805. De origem pobre, Andersen perdeu o pai na infância e precisou buscar
trabalho muito cedo. Recorreu às suas habilidades de contador de histórias
(aprendidas com o próprio pai, que era sapateiro e, embora analfabeto, criava
teatrinhos de marionetes para o filho e lhe contava muitas histórias), recebeu apoio
para trabalhar como ator, mas, não obtendo sucesso nessa profissão, passou a contar
as histórias que criava, as quais faziam muito sucesso com o público. O improvisador
é o seu primeiro livro publicado.111
A infância pobre foi marcante para Andersen e teve reflexo nas narrativas e nos
personagens criados. Seja pelo abandono, pela exclusão, pela diversidade ou pela
miséria, o escritor dinamarquês, considerado o pai da literatura infantil, dá destaque a
seres que vivenciam essas adversidades. E lhes dá um tratamento de acolhida. Os
seus textos comovem pela ternura e compaixão; assim como pela apresentação de
uma realidade cruel, implacável com esses seres frágeis e desamparados. A
impressão que nos causa como leitores é a de que a acolhida desses personagens se
dá no próprio fato de terem para eles uma história – são abrigados pelos contos.

A ilustração e os personagens pobres, excluídos

Salmo Dansa, ao realizar ilustrações para os contos de Andersen dá ênfase


aos personagens excluídos, desprezados e também diminutos. A escolha dos contos
está relacionada a esse tipo de personagem, como registra Katia Canton:
Para compor esta antologia, o artista carioca Salmo Dansa
partiu de um repertório de histórias de Andersen em que o
denominador comum são pessoas e situações pequeninas e
carinhosas, seguindo na escolha de materiais também
pequenos, domésticos, de dimensão miniaturizada para criar
ilustrações que transformam objetos comuns em pequenas
joias. (Canton, 2014. p.16)

111
O autor publicou mais de 150 histórias. Recentemente, em 2012, foi descoberto, em Odense, por um
pesquisador, um manuscrito com um conto de Andersen, “A vela de sebo”, até então desconhecido.
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E essa escolha também se dá no gesto de buscar materiais que ao mesmo


tempo que se relacionam com aspectos do conto são eles mesmos materiais
excluídos, destituídos de valor, insignificantes. E é precisamente por estas
características que eles terão maior significado.
A rejeição vivida por cada personagem e ocorrida de diferentes formas é
tematizada na ilustração de Dansa pelo recolhimento de materiais destinados ao
abandono (como diria o poeta Manoel de Barros). (Deste modo, o artista ao mesmo
tempo acolhe e valoriza esses personagens.) Como já foi registrado aqui, ovos e
plumas de cisne para o Patinho feio; latas de sardinha e pedaços de CD para A
pequena sereia; terracota para as pequenas esculturas em O soldadinho de chumbo;
caixinhas de fósforo e palitos para A pequena vendedora de fósforos; solas e pedaços
de couro para Os sapatinhos vermelhos; pétalas desidratadas e asas de borboletas
para A Polegarzinha; e – considero o mais surpreendente – fitas cassete para O
rouxinol.
Um material que não está inserido no mundo produtivo, a não ser como seu
avesso, ou seja, como sobra, como resto, como desperdício. Um material que muito
provavelmente agradaria às crianças num ambiente de trabalho de adultos. Como
observa Walter Benjamin,
(...)crianças são especialmente inclinadas a buscarem todo
local de trabalho onde a atuação sobre as coisas se processa
de maneira visível. Sentem-se irresistivelmente atraídas pelos
detritos que se originam da construção, do trabalho no jardim
ou em casa, da atividade do alfaiate ou do marceneiro. Nesses
produtos residuais elas reconhecem o rosto que o mundo das
coisas volta exatamente para elas e somente para elas.
(Benjamin, 2002, p.104)

É justamente trabalhando como uma criança que brinca que Salmo Dansa
parece realizar as ilustrações do Minimaginário de Andersen. O próprio artista, em
artigo em que discorre sobre pontos de convergência entre o desenho da criança e o
trabalho do ilustrador de livros infantis, observa que, para realizar o seu trabalho, ―será
preciso deixar-se levar para um mundo interno, um mundo de infância, lembrar-se
criança.‖112
Tomemos A pequena vendedora de fósforos e O rouxinol como trabalhos
exemplares de ilustração neste livro. No primeiro, encontra-se a menina pobre,
descalça, que numa noite gélida de Ano Novo tenta vender seus fósforos nas ruas.
Não obtém sucesso, e, na vã tentativa de se aquecer e de enxergar por dentro as
casas preparadas para a ceia de fim de ano, vai acendendo os fósforos um a um, até

112
Alencar , 2014, p.9.
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que todos se apagam (sem atingir, evidentemente, o objetivo de aquecê-la) e a


menina morre de frio – a trágica ironia da relação entre a neve, o frio e os precários
palitos de fósforo. A ilustração, neste conto, parece construir, para a menininha,
pequenos cenários com a madeira dos palitos e das caixinhas de fósforo, como que
para abrigá-la. A própria personagem tem a sua figura construída pela junção de
alguns palitos – figura esta que é representada de forma distinta em várias imagens. A
menina é pequena; a caixinha de fósforo também – como se o fósforo da ilustração
pudesse aquecê-la (e, quem sabe, mudar o rumo da história!). O seu tamanho
diminuto é pela caixinha acolhido, reverenciado. Um detalhe delicado e significativo:
em uma das imagens, os pezinhos da menina, que afigura-se descalça na narrativa,
são construídos com a ponta dos palitos de fósforos. Assim, eles dão a impressão de
estarem calçados e ficam com uma coloração avermelhada (e isto pode remeter ao
conto Os sapatinhos vermelhos, acentuando uma relação entre as narrativas), o que
pode indicar que, ao menos na ilustração, precisamente por serem construídos com a
parte do palito em que o fogo acende, os pezinhos da menina estão aquecidos. Deste
modo, a ilustração estabelece um diálogo estreito com o texto verbal, acentuando seus
temas, seus aspectos principais e realçando o afeto que a personagem desperta num
leitor que ilustra.
Em O rouxinol, o imperador chinês descobre que no bosque do seu domínio há
um pássaro de canto raro e belo. Manda trazer o rouxinol para o palácio e o faz morar
ali, aprisionado, mas cantando para ele todos os dias. Até que este ganha de presente
um pássaro mecânico, de canto artificial, ao qual dá preferência. O pequeno rouxinol
acaba por retornar ao bosque, sem que ninguém perceba. Acontece que o pássaro
mecânico, com o passar do tempo, deixa de funcionar e, de tristeza, o imperador vai
adoecendo. Quando está prestes a morrer, ouve o canto do pequeno rouxinol do
bosque, que viera até sua janela para lhe trazer alguma alegria. O conto traz a força
expressiva e bela do canto dos pássaros e faz um contraponto entre o canto mais
natural e o canto mecânico, artificial. Na ilustração, o tema é desenvolvido através do
uso das fitas cassete, que são exploradas de diversas maneiras, obtendo resultados
muito ricos e criativos com as várias partes desse objeto que tinha o papel de ser o
portador físico, concreto, palpável da música e do som. O formato da fita e as suas
partes possibilitaram a criação de diversas imagens. Ora o invólucro da fita é utilizado
para representar o castelo, ora é a sua caixinha que figura como uma porta do palácio,
ora é a própria fita que compõe as imagens, especialmente as imagens de árvores que
sustentam a presença do rouxinol em seus galhos (tramados com essas mesmas
fitas). Deste modo é que surge uma ilustração feita com um material que é portador de
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matéria sonora, criado para registrar e transmitir o som e a música. Mais uma vez tem-
se o material utilizado em total sintonia (e aqui esse termo vem a calhar!) com a
história narrada. Uma outra observação é que as fitas cassete, quando da elaboração
do trabalho de Dansa, eram já um material obsoleto para a transmissão de músicas; e,
ainda, vale observar, são de muita concretude, diferentemente do modo digital de
divulgação da música hoje – aspecto este que faz aproximar a fita cassete do canto do
rouxinol vivo, verdadeiro, em oposição ao rouxinol mecânico, distante da vida. Com as
fitas, o ilustrador parece querer associar o material em que se registra o canto com o
canto mesmo. Matéria e som se tornam uma coisa só, mais uma vez acentuando os
temas mais caros à história de Andersen.

O trabalho de Salmo Dansa e o ato de ler

O ilustrador-recriador dos contos, no gesto de reelaborar as narrativas


plasticamente, revela as histórias que traz consigo, guardadas em seu ―baú de prata‖.
Agora, esse baú onde se guardam preciosidades é o próprio livro, enquanto objeto
mesmo, elaborado por Dansa e Katia Canton. Há notadamente uma harmonia entre o
tom da adaptação de Canton, sensível, delicada, expressiva e o trabalho de ilustração
do artista plástico. O projeto gráfico do livro amplia e acentua essa correspondência. O
livro tem um formato pequeno, capa dura e uma moldura na capa (toda em tom bordô)
que remete a um objeto antigo, que pode nos fazer pensar numa caixinha de joias. Há
um recorte na capa, em forma ovalada, que abre para a imagem do soldadinho de
chumbo em pé sobre pedaços de casca de ovo – uma aproximação, pela imagem,
entre os contos Patinho feio e Soldadinho de chumbo. Esta imagem – ou esta capa –
evoca uma caixinha de joias, mas também, simultaneamente, uma caixinha de
miniaturas e de bugigangas infantis. E ambas com o mesmo valor. Mas a joia aqui, a
preciosidade, e ao mesmo tempo o brinquedo são os contos e as ilustrações que se
dão a ler.

O ato de ler hoje

O procedimento utilizado por Salmo Dansa para a ilustração de Minimaginário


traz em seu bojo um modo muito particular de leitura.
No mundo contemporâneo, a leitura apressada e superficial é a mais frequente.
Há pouco tempo, pouco espaço e quase nenhuma valorização de uma entrega à
leitura. (Talvez apenas as crianças bem pequenas conheçam um modo de ler que se
realiza na inteireza deste ato: com disponibilidade, com intimidade, com atenção, com

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curiosidade, com envolvimento. E é, sem dúvida, nessa ocasião que elas têm uma
experiência viva do que significa ler – embora nessa fase, paradoxalmente, ainda não
tenham se apropriado do código linguístico).
A leitura mais aprofundada envolve simultaneamente percepção, reflexão, um
olhar para o texto, para si mesmo e para fora; um olhar simultâneo para a relação
entre esses espaços: o do livro, o espaço interno do leitor, o espaço da alteridade. A
leitura que se desenvolve nesses espaços de proximidade, de inter-relação é criadora
de novos mundos, de novas percepções, de novas relações e mesmo de novas
criações. Salmo Dansa lê os contos de Andersen e mobiliza o seu conhecimento, a
sua sensibilidade. E realiza, criativamente, um trabalho que coloca de novo a obra do
autor dinamarquês em movimento e em contato renovado com o mundo
contemporâneo.
Sentir o impacto do texto dentro de si. Amadurecer a experiência com o texto.
Perceber o que o texto lhe diz. E o que ele silencia. Quais as relações que o texto
estabelece com as leituras anteriores. Quais as relações que estabelece com a própria
experiência de vida do leitor. Reconstruir o texto a partir dessa experiência de leitura e
de vida. Carregar o texto dentro de si (nas dobras da memória, como diz Italo
Calvino113, ou como uma lembrança/presença muito viva e consciente). Recriar o
texto. Lançar o texto adiante. Presentear o texto com outro texto (verbal, plástico,
cênico, musical...). E presentear o mundo e novos leitores com esse texto recriado.
A recriação dos contos de Andersen por Salmo Dansa é um presente aos
leitores. E em duplo sentido. No sentido de que se oferta a obra do autor dinamarquês
numa linguagem outra para novos leitores. E no sentido de que se traz para o tempo
presente a obra produzida num tempo distante – não porque essa outra linguagem (a
imagética) é mais próxima do tempo presente, não; mas porque o artista foi buscar
naquela fonte uma qualidade essencial daqueles textos que talvez veja necessária no
tempo presente. E esta é a contemporaneidade de ambos. Como afirma Giorgio
Agamben,
A contemporaneidade(...) é uma singular relação com o próprio
tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma
distâncias (...). Aqueles que coincidem muito plenamente com a
época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente,
não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não
conseguem vê-la, não podem manter o olhar fixo sobre ela.
(Agamben, 2009, p.59)

113
Cf Calvino, 1993, p.10-11
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O filósofo, investigando o que corresponde ao conceito de contemporâneo,


conclui:
O contemporâneo não é apenas aquele que, percebendo o
escuro do presente, nele apreende a resoluta luz; é também
aquele que, dividindo e interpolando o tempo, está à altura de
transformá-lo e de colocá-lo em relação com os outros tempos,
de nele ler de modo inédito a história, de citá-la segundo uma
necessidade que não provém de maneira nenhuma do seu
arbítrio, mas de uma exigência à qual ele não pode responder.
É como se aquela invisível luz, que é o escuro do presente,
projetasse a sua sombra sobre o passado, e este, tocado por
esse facho de sombra, adquirisse a capacidade de responder
às trevas do agora. (Agamben, 2014, p.72)

Esta é também uma característica da leitura dos clássicos.


Um clássico, como observa Italo Calvino, ―é um livro que nunca terminou de
dizer aquilo que tinha para dizer.‖114
Ao buscar numa obra literária clássica inspiração para a realização de uma
recriação plástica, imagética, o ilustrador parece apontar para a ideia de que há algo
naquele texto, naquela obra (neste caso, os contos de Andersen) que interessam ao
leitor do tempo presente. Como afirma Ana Maria Machado,
(...)os contos de fadas continuam sendo um manancial
inesgotável e fundamental de clássicos literários para os jovens
leitores. Não saíram de moda, não. Continuam a ter muito o
que dizer a cada geração, porque falam de verdades
profundas, inerentes ao ser humano. (Machado, 2002, p.82)

Ao ofertar o livro com os contos de Andersen como uma caixinha de joias ou


uma caixinha de brinquedos, o artista realiza, com essa proposta de adaptação dos
contos simultaneamente numa linguagem verbal renovada e numa linguagem
imagética criativa – ―toda ilustração é uma interpretação‖115 –, o artista possibilita a
realização de dois movimentos fundamentais para a formação de um leitor: o de
colocarmo-nos novamente numa roda de histórias, ao alinhar o seu trabalho com
textos de uma época em que se ouviam histórias em grupo (Andersen contava as
histórias que inventava e, ainda, fazia recortes de papel, as chamadas silhuetas 116,
enquanto as contava, o que de certa forma o colocava como ilustrador de suas
próprias histórias); e, ao mesmo tempo, o de colocarmo-nos como leitores solitários,

114
CALVINO (1993),p.11
115
HUNT, 2010, p.236.
116
É sabido que Andersen criara mais de mil silhuetas; e que as crianças ficavam encantadas por essa
sua habilidade de contar e fazer recortes simultaneamente – as surpreendia particularmente o fato
de que suas mãos eram muito grandes e ele conseguia fazer recortes miniaturizados.
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isolados, ao nos oferecer um livro-objeto que cabe bem nas mãos e realiza um gesto
que concreta e simbolicamente traz intimidade com a leitura.
É o livro nas mãos que proporciona o encontro entre esses tempos.
(E isto é o contemporâneo.)
É o próprio Salmo Dansa quem observa:
(...) a palavra, elemento disparador de imagens para o
ilustrador de livros, dialoga mais com a memória e as imagens
mentais do leitor, e consequentemente do ilustrador, do que o
mundo presente que o rodeia. A ilustração de literatura infantil
não representa o mundo, mas constrói metáforas ou a
ressignificação das imagens a partir da memória. (Alencar,
2014, p.10)

Ao realizar um trabalho que busca na terra, nos ninhos de aves abandonados,


nas latas, nos palitos, nos materiais descartados elementos para a sua criação, o
artista opera como a criança que é atraída por esse mesmo tipo de material. Assim, já
no início desse processo de ilustração de um livro em princípio destinado ao público
infantil, o artista se aproxima da criança pelo seu modus operandi, o que acaba por
conferir mais verdade e vida ao livro.

Considerações Finais
A ilustração é, aqui, um gesto criativo de leitura. E pode ser entendida como
uma metáfora do ato de ler (além do fato de que em Minimaginário... as ilustrações
tem uma certa equivalência espacial em relação ao texto verbal: as ilustrações abrem
cada capítulo, como se fossem o título, pela localização – o título mesmo vem na
página anterior – e, na maior parte do livro, há uma página totalmente preenchida pela
ilustração, num espaço equivalente ao da mancha do texto, ao lado de uma página
totalmente preenchida pelas palavras; recursos estes que aproximam as duas
linguagens e dão equivalência às mesmas). A ilustração nesta obra aponta para um
aspecto fundamental da leitura: a oportunidade para um permanente recriar (da vida,
do mundo, de si mesmo). Num tempo em que se valoriza o digital, a pressa, a
superficialidade, a resposta imediata, as ilustrações de Dansa vêm na contramão. Vêm
falar-nos de um tempo estendido, alongado. Um tempo para a apreciação, para a
convivência, para o olhar, para a compaixão. Vêm dizer-nos que a leitura precisa ser
algo que cultivemos mais de perto, mais intimamente; e que por isso mesmo pode ser
capaz de nos fazer mais próximos do outro.

Referências

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Agamben, Giorgio. (2009). O que é o contemporâneo e outros ensaios. Trad. De


Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó, SC: Argos.
Alencar, José Salmo Dansa de. ―Do desenho de criança à ilustração infantil‖. p.3165-
3175. In: Anais do 11º Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em
Design [Blucher Design Proceedings, v.1, n.4]. São Paulo: Blucher, 2014. ISSN 2318-
6968, DOI 10.5151/designpro-ped-00143.
Benjamin, Walter. (2002). Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a ilustração. Trad.
de Marcus Vinicius Mazzari . São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34.
Calvino, Italo. (1993). Por que ler os clássicos. Trad. de Nilson Moulin. São Paulo:
Companhia das Letras.
Canton, Katia. (2014). Minimaginário de Andersen. Apresentação e adaptação de
Katia Canton; ilustrações de Salmo Dansa. São Paulo: Companhia das Letrinhas.
Hunt, Peter. (2010). Crítica, teoria e literatura infantil. Trad. de Cid Knipel. São Paulo:
Cosac Naify.
Machado, Ana Maria. (2002). Como e por que ler os clássicos universais desde cedo.
Rio de Janeiro: Objetiva.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

A REPRESENTAÇÃO DO HERÓI NEGRO NA LITERATURA


INFANTIL: ANÁLISE DO LIVRO MANDELA, O AFRICANO DE
TODAS AS CORES (2013), DE ALAIN SERRES

Vívian Stefanne Soares Silva, Centro Federal de Educação Tecnológica de


Minas Gerais, Literatura Infantil e as Relações com a Imagem

Considerações Iniciais

A proposta deste trabalho é analisar o livro Mandela, o africano de todas as


cores (2013), de Alain Serres, com tradução de André Telles e ilustração de Zaü. A
obra faz parte do selo Pequena Zahar, da Editora Zahar, o qual aborda os mais
variados temas e gêneros, apresentando-os ao universo infantil. Nosso propósito, com
esta análise, é entender de que forma a imagem do herói foi construída para o público
infantil; quais foram as estratégias utilizadas nessa construção; e quais são os
impactos advindos desse processo de representação. Para tanto, buscamos em Peter
Hunt (2010) os conceitos de literatura infantil, levando em consideração os
apontamentos do autor sobre infância e leitura de infância; no que diz respeito à
representação, nossas bases teóricas concentram-se em Stuart Hall (2016). A partir
da leitura e discussão de Hall, pretendemos contrapor as noções de cultura, identidade
e representação, propostas por ele, com a imagem do herói político e africano
trabalhado no livro.
Em busca de tal compreensão e cientes da necessidade de um aparato
teórico-metodológico, valemo-nos, ainda, dos apontamentos feitos por Maria
Nikolajeva e Carole Scott, na obra Livro ilustrado: palavras e imagens (2011), e por
Sophie Van der Linden, na obra Para ler o livro ilustrado (2011). Acreditamos que tais
obras nos fornecem o arcabouço teórico necessário para o embasamento de nossa
análise acerca da disposição imagética no livro, sua estruturação e as escolhas
artísticas e visuais que o compõem, entendendo que tais escolhas, certamente, são
cruciais para a formação da imagem.
708

Contextualizando a Literatura Infantil

Antes de qualquer coisa, faz-se necessário, por exigência do campo


científico, analisarmos as seguintes premissas: o que é literatura? Ou quais foram os
últimos pressupostos que a definiram? A partir dessas respostas podemos destrinchar,
então, o que seria a literatura infantil. Peter Hunt (2010, p. 83) considera literatura
como ―textos mais elevados, mais densos, à parte de outros textos, o melhor que uma
cultura pode oferecer‖. Pierre Bourdieu, em seu livro Os usos sociais da ciência: por
uma sociologia clínica do campo científico (2004), trata da formação do campo
científico. Para o autor, os campos científicos tratam-se de produções culturais (neste
caso, a literatura), e definir tais campos exige considerarmos os textos que os
compõem e o contexto em que tais textos são produzidos.
Desse modo, as definições, bem como os participantes de qualquer produção
cultural, são escolhidas de acordo com os textos que as englobam e os contextos em
que tais textos são produzidos. Podemos pressupor, indubitavelmente, a existência de
um cânone na literatura. É esse cânone que define quais serão os textos tidos como
literários e aqueles que estão à parte dessa definição. Podemos presumir que o
cânone, num nível contextual, consagrou autores de renome por suas características
eruditas de escrita e estilo peculiar, e tais autores também atuam no sentido contextual
ao reproduzirem a forma consagrada de escrita, garantindo, assim, sua permanência
no cânone, bem como estabelecendo critérios de seleção.
A existência, então, de um campo científico de produção cultural já pressupõe
uma série de jogos e de regras que determinam quem entra e quem sai desse campo;
nesse sentido, cerceada pela crítica, a literatura infantil não se relaciona com esse
universo literário. Isso porque, partindo da definição de Hunt (2010), citada
anteriormente, a literatura seria textos elevados, mais densos. Assim, como
enquadraríamos os textos feitos por e para as crianças nesse perfil?
Hunt (2010, p. 84) afirma que ―as definições de literatura podem ser
convenientemente separadas em características, normas culturais e segundo os usos
que os indivíduos dão ao texto (...) mas é o contexto cultural que determina sua
classificação‖. A partir de tal colocação, entendemos ser improvável que, em uma
cultura na qual as crianças não são valorizadas como potenciais leitores, a literatura
direcionada a elas tenha algum tipo de valor. Pois, embora características e normas
definam a literatura, é a tradição cultural que a legitima.
A literatura passa a ser, então, um conceito muito complexo. Torna-se
impossível abordar a literatura infantil com um enfoque na crítica literária, até porque,
em bem pouco tempo, tais livros não eram nem reconhecidos pela crítica, que dirá
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fazerem parte dela. Logo, caracterizar como literatura meia dúzia de textos
canonizados é uma atitude que exclui várias outras produções e áreas que têm muito
a oferecer à academia. O que define um texto como literatura ou não é sua aplicação e
seu contexto de produção. Uma carta, por exemplo, não é literatura quando está no
momento de sua produção e recepção, mas pode tornar-se se deslocado o seu
período histórico e/ou social.
Por isso, tratar a literatura infantojuvenil com enfoque em uma crítica literária
é impraticável; a literatura infantil é distinguida pelo público a qual se destina, de modo
que todas as definições que levam em consideração características ou valores
culturais não podem ser aplicadas a ela. A literatura infantil se define quanto à sua
função e seu público alvo; pensá-la fora desses termos é exclui-la das delimitações
sobre o que é literatura:

De certo modo, portanto, a literatura é o que escolhemos fazer


dela. A literatura infantil é um conceito inevitável, sem
parentesco com outros tipos de literatura, embora possa
sobrepor-se a eles. Talvez seja inevitável o fato de que tal
―sistema‖, como define Shavit, tenha um status inferior; mas
isso depende, em grande parte, do modo como a sociedade
encara as crianças e a infância (HUNT, 2010, p. 90).

A partir disso, notamos que faz-se necessário entender a literatura a partir de


sua produção, mas também de seu contexto de recepção. A literatura, bem como
qualquer produção cultural, destina-se a algo ou alguém, e ela, de fato, só se faz
efetiva quando atinge seu público alvo. A literatura infantil não é diferente. Tratam-se
de textos moldados para atingirem de algum modo um público extenso e em formação,
daí sua importância. Mas, em termos formais, podemos defini-la como ―livros lidos por;
especialmente adequados para; ou especialmente satisfatórios para membros do
grupo hoje definido como crianças‖ (HUNT, 2010, p. 96).
E convém ainda perguntar: o que estamos entendendo, neste texto, como
crianças? Tal definição não é homogênea nem tampouco limitada. O conceito de
infância/criança sempre esteve intrinsecamente relacionado ao contexto histórico, e,
no decorrer dos anos, tratou-se de uma definição muito mutável. Hunt (2010, p. 92) ao
definir crianças, afirma tratar-se de pessoas ―(...) mais abertas ao pensamento radical
e aos modos de entender os textos; (...) elas são menos limitadas por esquemas fixos
e, nesse sentido, têm uma visão mais abrangente‖.

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Por que estudar a literatura infantil?

Então por que estudar literatura infantil? É pertinente realizar tal indagação
afinal esse ramo da literatura é, no geral, de pouco reconhecimento acadêmico, pois o
peso da crítica literária tradicional e as definições formais de texto literário recaem de
forma a distingui-la do objeto tradicionalmente literário. Cabe-nos, no entanto, refletir
sobre as contribuições da literatura infantil para o literário e também para o além do
tradicionalmente literário. O campo, sem dúvidas, é extremamente diversificado. Trata-
se de textos que podem ser trabalhados em diversos gêneros literários, com o uso das
mais diversas tecnologias, possibilitando infinitas formas de se contar história. Engloba
tanto textos clássicos, como grandes best-sellers. São textos que em grande medida
usam e abusam da experimentação, trabalhando com as imagens de uma maneira
intrínseca e peculiar.
Para além de sua diversidade, são textos destinados às crianças. Em uma
cultura em que a educação tenha o mínimo de relevância, tal fato já coloca a literatura
infantil num patamar superior. A contribuição histórica e social desses textos é
inegável. Vital para a alfabetização, trata-se de uma ferramenta de difusão de cultura,
de educação e de valores. Desse modo, optar por estudar a literatura infantil é ao
mesmo tempo fugir do convencional e remodelar as esferas de produção do livro. É ir
em sentido contrário, modificando as estruturas de poder. É desbravar um universo
literário enorme e diversificado que diz muito a respeito de nossa sociedade, nossa
formação e nossa cultura.
Dentro dessa visão abrangente, definimos a obra Mandela, o africano de
todas as cores (2013) como um livro de literatura infantil, destinado para as crianças,
rico em sua produção e no trabalho com palavra e imagem, que, para além de todas
as contribuições culturais, apresenta um universo novo ao público infantil, propondo-
nos uma nova maneira de repensar o herói. A obra quebra os estereótipos de heróis
que giram em torno da imaginação e dos contos de fadas e fábulas, apresentando-nos
um herói real, mais que isso, um herói negro, o que quebra também com os
estereótipos raciais e culturais.

Representação, cultura e identidade

É dentro dessa visão abrangente do campo literário – entendendo as


discussões que perpassam o conceito de literatura, a construção de uma literatura
infantil e, até mesmo, as dificuldades que implicam a definição de criança, mas cientes
da gama de conhecimento que tais discussões podem nos oferecer –, que buscamos

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entender como os conceitos de representação, cultura e identidade são construídos no


livro de Alain Serres.
Nossa perspectiva é a de que, ao tomar um líder negro, mundialmente
reconhecido, como personagem principal de uma história infantil e oferecer para este
público relatos reais, tanto autor como ilustrador tiveram de fazer uso de mecanismos
diferenciados para compor essa obra, pois a implacabilidade de uma perspectiva
realista não casaria com a ideia do livro para o público infantil. Cientes de que toda
construção carrega em si ideologias, buscamos compreender como isso foi feito e
como se dá essa apropriação da imagem do herói negro, bem como quais são as
implicações desse jogo de escolhas para o universo infantil.
Na busca por tais respostas, nos detemos nas colocações apontadas por
Stuart Hall, em seu livro Cultura e Representação (2016). As discussões propostas por
Hall giram em torno do conceito de representação e de como tal mecanismo se dá por
meio da linguagem. Para o autor, a definição de cultura concentra-se na ideia de
significados compartilhados por um povo, que determinam seu modo de ser, agir e
avaliar as coisas. Tais noções só podem ser transmitidas por intermédio da linguagem
e acarretam na representação. Sendo o livro infantil um meio de produção da
linguagem, ele age como disseminador da cultura e, mais que isso, como propulsor na
formação das representações construídas pelas crianças.

Nós concedemos sentido às coisas pela maneira como as


representamos – as palavras que usamos para nos referir a
elas, as histórias que narramos a seu respeito, as imagens que
dela criamos, as emoções que associamos a elas, as maneiras
como as classificamos e conceituamos, enfim, os valores que
nelas embutimos (HALL, 2016, p. 21).

A representação conecta o sentido e a linguagem à cultura. Representar


significa utilizar a linguagem para, inteligivelmente, expressar algo sobre o mundo ou
significá-lo a outras pessoas. Trata-se da conexão entre conceito e linguagem. Nessa
lógica, o sentido é construído por meio do discurso, logo, o sujeito também constrói-se
no discurso.
Na abordagem discursiva de sentido, representação e poder, o discurso
produz ―sujeitos‖, figuras que personificam formas particulares de conhecimento que o
discurso produz. Esses sujeitos têm atributos definidos pelo discurso. No caso da obra
analisada, o sujeito construído pelo discurso é o Nelson Mandela herói político, mas
também poderia ser o Nelson Mandela pai, o Nelson Mandela amigo, etc. Além disso,
as figuras construídas por meio do discurso são específicas de regimes políticos e

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períodos históricos determinados. Deslocar a figura de Nelson Mandela para o


contexto da Segunda Guerra Mundial, por exemplo, rouba-lhe todo o sentido
construído pela sua representação. Essa ação equivale a dizer que o discurso produz
lugar para o sujeito e este só faz sentido dentro dessa perspectiva. Por isso, a obra
infantil analisada só é carregada de representação se a criança for anteriormente
introduzida a um contexto histórico em que Nelson Mandela possa, efetivamente,
constituir-se herói.

(...) coisas – objetos, pessoas, eventos, no mundo – não


possuem, neles mesmos, nenhum sentido fixo, final e
verdadeiro. Somos nós – na sociedade, dentro das culturas
humanas – que fazemos as coisas terem sentido, que lhes
damos significado (HALL, 2016, p. 108).

Desse modo, representamos o mundo por meio de um lugar cultural. Logo,


nenhuma representação é neutra, pois abarca em si sentidos socialmente construídos.
Tais sentidos resultam tanto da nossa própria identidade como da identidade que
construímos acerca das coisas e das pessoas que nos rodeiam. Entretanto, o conceito
de identidade também não é único, ele é multifacetado e se modifica de acordo com o
contexto em que está inserido.
A partir de nossas leituras, identificamos que a representação feita no livro
mostra a identidade de Nelson Mandela como herói político negro, que fala de um
lugar cultural bem demarcado (pois a cultura africana permeia toda a obra) e que
apresenta uma conduta única frente a um universo de posturas equivocadas.
Entretanto, acreditamos que nenhuma dessas construções são neutras, pois elas
carregam em si vários sentidos. Acreditamos, ainda, que tais construções, em um livro
infantil, não são tidas apenas por meio da linguagem, mas também por meio da junção
entre texto e imagem que compõem um livro ilustrado.
Nesse ponto, chegamos, novamente, a questões técnicas de contextualização.
Já definimos o livro Mandela, o africano de todas as cores (2013) como um livro infantil
a partir dos conceitos aqui apresentados. Mas o trabalho peculiar presente na obra,
que alia texto e imagem de maneira indissociável, também o caracteriza. E é a partir
de sua apresentação que podemos continuar discorrendo sobre as representações
que foram construídas e mediante quais discursos elas se estabeleceram.

Da análise técnica: a construção imagética e textual da obra

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Segundo Sophie Van der Linden, em sua obra Para ler o livro ilustrado
(2011), o livro ilustrado é um tipo de livro que usa texto e imagem, em uma relação
que transcende a questão da presença simultânea por uma necessária interação entre
textos e imagens, de modo que o sentido não é veiculado pela imagem ou pelo texto,
mas emerge a partir da interação de ambos. É nesse sentido que definimos o livro de
Alain Serres como um livro ilustrado destinado ao público infantojuvenil.
Resumidamente, a obra de Alain Serrestraz a história de Nelson Rolihlahla
Mandela (1918-2013), ex-presidente da África do Sul, reconhecido por seus
movimentos políticos contra o apartheid (regime de segregação racial que se instaurou
na África durante o período de 1948 a 1994 e que baseava-se na discriminação e no
cerceamento de negros africanos por uma minoria branca). Mandela foi o primeiro
presidente negro eleito em seu país e consagrou-se como tal após uma prisão de
quase 30 anos, resultante das lutas políticas que empenhou pela libertação de seu
povo.
O livro conta de forma resumida a história de Mandela, desde seu nascimento
até a presidência de seu país. O tipo textual predominante na obra é o narrativo. O tipo
narrativo foi por muito tempo considerado inferior pela crítica, e os livros infantis, nos
quais ele predomina, acabaram por também serem taxados como inferiores devido a
essa característica. Entretanto, Hunt (2010, p. 178) afirma que ―a narrativa tem raízes
psicológicas e fontes culturais tão antigas quanto profundas‖ e ―as crianças podem ser
mais suscetíveis a questões baseadas na memória popular, e não revestidas por
esquemas‖ (p. 92). Isso porque histórias ficcionais com forte foco em seu caráter
narrativo compartilham dos mesmos princípios da contação de histórias. Esse modo
de expor e de trabalhar os assuntos é melhor aceito e digerido pelo público infantil,
além de ser uma via de acesso mais fácil para que os educadores trabalhem temas
complexos como o preconceito racial ou a desconstrução de estereótipos.
Em termos técnicos, com base nos apontamentos feitos por Maria Nikolajeva
e Carole Scott, na obra Livro ilustrado: palavras e imagens (2011), a diagramação do
livro é dissociativa, o que significa dizer que, embora convergentes na mesma página,
texto e imagem ocupam lugares bem demarcados e distintos. Diferentemente, a
construção narrativa baseia-se na colaboração: articulados, texto e imagem constroem
um discurso único, como podemos perceber na imagem a seguir:

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Fonte: Mandela, o africano de todas as cores (2013)


Imagem 1 - Quanto à diagramação

Tempo e movimento são duas características que possuem lugar fundamental


na obra; podemos arriscar dizer que, até mesmo, são o cerne das ilustrações. Autor e
ilustrador trabalharam com afinco para representarem os anos de prisioneiro
vivenciados por Nelson Mandela. O tempo vivido em cela é contado de maneira
sucinta, mas em repetidas páginas. Mecanismos que enfatizam o passar dos anos e o
fardo de uma vida carcerária foram usados à exaustão. A obra, voltada para o
universo infanto-juvenil, transpareceu o peso de 27 anos de prisão por uma ótica não
cansativa, tendo em vista o público para o qual se direcionava, mas também de
maneira que uma característica tão crucial, como o tempo, não passasse
despercebido.
Como podemos ver na Imagem 2, texto e imagem construíram juntos um
trabalho peculiar na representação dos anos. A rotina e a repetição características da
vida de um prisioneiro foram transpostas nas palavras jogadas como lista,
enumeradas e repetidas. Tal mecanismo da linguagem acentuou a profundidade dos
anos vividos em cela. Já as imagens foram apresentadas de maneira sequencial,
compostas pelo mesmo fundo e pela mesma paleta de cores; a técnica permitiu que,
ao passar as páginas, o leitor sentisse estar realmente passando pelos anos, sendo
apresentado, a cada nova página, a um novo ano e a um novo acontecimento dentro
das grades da prisão.
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A narrativa parte da observação de um narrador. Percebemos esse olhar no


enfoque que a imagem dá a alguns detalhes quando o texto os enfatiza, como o foco
nas ilustrações presentes no cobertor de Mandela, conforme podemos observar na
imagem 02, quando o autor compara tais ilustrações com o próprio líder. O uso das
cores é primordial para demarcar, novamente, a questão do tempo. Enquanto cores
claras e iluminadas expõem os dias em que Mandela esteve em liberdade, cores
sóbrias ilustram os dias como prisioneiro, passando o sentimento de solidão e
abandono, característicos do ambiente prisional.
Para demarcar luz, usou-se apenas a cor branca. A cor vermelha também
tem um papel importante. Apresentando-se nas bordas de todas as páginas após a
prisão de Mandela, ela é plano de fundo do texto nessas passagens. Podemos inferir
que trata-se da história escrita sob o sangue, representando sacrifício por parte do
herói político. O uso do vermelho nas laterais de ambas as páginas também delimita o
lugar da ilustração, prendendo-a àquele espaço, sendo também um ícone
representativo. Os tons pastéis e o uso do preto e do branco que se iniciam após a
prisão de Mandela contrastam com a aquarela que ilustra seus dias em liberdade,
como podemos observar na Imagem 3.

Imagem 3 – Quanto à cor

Fonte: Mandela, o africano de todas as cores (2013)


O trabalho tipográfico é simples. Em negrito surgem os anos, enfatizando seu
peso. O alinhamento do texto é peculiar. Em dias livres, o texto aparece na página,
geralmente, ocupando a parte superior da folha, de maneira autônoma. Em dias de

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cárcere, o texto restringe-se a pequena borda vermelha, como se estivesse tão preso
quanto Mandela.

Dos aspectos subjetivos

Como foi anteriormente exposto, representar é conectar sentido (os quais


produzimos por meio da linguagem) à cultura. Desse modo, a representação da África
na obra é crucial para demarcar o lugar de fala do líder negro. O cenário rural remete à
tradição e acentua como o apartheid foi um regime de segregação cruel, quando não
só limitou o povo a determinado espaço, mas também rompeu com uma série de
tradições.
O povo africano é apresentado como um povo livre, enquanto os brancos são
aqueles que impõem leis e religiões. Mandela é representado como um menino
advindo da aldeia, de origem rural, extremamente conectado ao seu povo e às suas
heranças culturais. Todas as suas falas como líder negro corroboram essas origens.
A identidade cultural é um aspecto extremamente relevante na obra e fica clara
sua importância logo nas primeiras páginas: quando o menino Mandela, na escola,
tem seu nome oriundo de sua tribo, substituído pelo nome cristão, Nelson, o autor
demonstra a quebra da identidade que o regime queria induzir e reafirma a força de
Mandela ao firmar-se negro oriundo de uma tradição, ainda que com outro nome e
escolarizado.
A narrativa baseia-se na construção de um herói idealizado, de modo a
atenuar as ações políticas violentas por parte do Congresso Nacional Africano (CNA),
partido do qual Mandela era líder na luta por liberdade, enquanto enfatiza as ações
violentas por parte da dominação branca. O herói Mandela é constituído com base nas
seguintes premissas: o homem negro inocentemente condenado pelo governo
segregacionista; o homem negro fortemente ligado ao seu povo e às suas tradições; o
homem negro que não desiste e está pronto para morrer pela democracia; o homem
negro que, embora preso, traz insegurança ao governo sul-africano, pois inspira luta e
lealdade. O homem negro que não almeja vingança, mas igualdade e liberdade.
Arriscamos dizer que a obra traz a disseminação de mitos, tomando por mito
a definição de Roland Barthes (2001), uma vez que, na construção da narrativa, três
mitos são reafirmados: o mito da imagem do negro africano crescido em meio rural,
livre de imposições sociais, envolvido por cultura e tradição e amante da liberdade; o
mito da cultura africana; e o mito do próprio personagem Mandela, homem forte,

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desde cedo aspirante à liderança, herói que abomina a violência e resiste pela força
das palavras.

Considerações finais

A mensagem subjacente a representação desse herói é a representação de


um líder negro, o que promove a desconstrução dos estereótipos raciais. Ao longo dos
anos, os negros foram representados de inúmeras maneiras: na Idade Média, tratava-
se de um povo peculiar, mas repleto de sabedoria; logo após, um povo amaldiçoado
biblicamente; um povo escravo; um povo exótico e, por fim, nomes como os de Nelson
Mandela desconstruíram as representações que perduravam há séculos, propondo
uma imagem alternativa na relação entre negros e brancos, apresentando aspectos
relacionados a um ideal de igualdade.
Para além dessas representações, a obra gira em torno de significações que
permeiam conceitos como raça e alteridade. O livro deixa bem demarcado o lugar dos
negros antes e após Mandela. Para Hall (2016), a diferença é essencial ao significado;
portanto, contrapor brancos e negros é uma estratégia de significação à figura de
Nelson Mandela. A diferença, nesse caso, possibilitou a construção de significados por
meio de um diálogo com o Outro. Ainda para Hall (2016), a marcação da diferença é a
base da ordem simbólica que chamamos de cultura; logo, ao fazê-lo, o livro coloca
ainda mais em evidência a cultura africana em contraponto com a cultura branca.
A desconstrução dos estereótipos raciais é sem dúvida uma grande
contribuição deste livro. O poder da representação, em termos simbólicos e culturais, é
imenso, ao propor que a figura negra também ocupa o lugar de herói; narrando uma
luta baseada nas palavras, em discursos e propagações de igualdade e de liberdade,
o autor não só tem o poder de remodelar os critérios que fazem de alguém herói,
substituindo as armas pelas palavras, mas também de apresentar às crianças um
universo de possibilidades, em que é a figura negra quem salva o mundo.
Para além do rompimento com os preconceitos sociais em que já nascemos
inseridos, o livro liga a cultura africana à uma tradição lindamente apresentada.
Ademais, possibilita a construção de uma relação alternativa entre negros e brancos,
em que as bases são o princípio da liberdade e da igualdade. Um ideal tão caro ao
mundo hoje em dia e tão importante na educação.
Logo, acreditamos que Mandela, o africano de todas as cores (2013) é um
livro que inova quando resgata historicamente a figura de um herói negro e consegue,
a partir de um movimento político, o apartheid, trazer para as crianças as

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possibilidades de se constituir um herói por meio das palavras, da cultura e da crença.


Temos consciência da idealização presente na história, mas, partindo do contexto de
recepção de uma sociedade extremamente preconceituosa, essa idealização
representa um herói multifacetado, negro e igualitário, uma imagem essencial à
formação das crianças e ao resgate de conceitos como cultura e tradição.

Referências
BARTHES, Roland. Mitologias. 11. ed. Trad. Rita Buongermino e Pedro de Souza. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo
científico. Trad. Denice Barbara Catani. São Paulo: Editora Unesp, 2004.

HUNT, Peter. Crítica, Teoria e Literatura Infantil. Trad. Cid Knipel. São Paulo: Cosac
Naify, 2015.

VAN DER LINDEN, Sophie. Para ler o livro ilustrado. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

NIKOLAJEVA, Maria; SCOTT, Carole. Livro ilustrado: palavras e imagens. São Paulo:
Cosac Naify, 2011.

SERRES, Alain. Mandela, o africano de todas as cores. Ilustração Zaü. Tradução


André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

AS RELAÇÕES ENTRE IMAGENS E TEXTOS VERBAIS EM


LIVROS INFORMATIVOS.

Marcus Vinicius Rodrigues Martins, Doutorando em Educação, Faculdade de


Educação/ Universidade Federal de Minas Gerais, Eixo Temático 5: Literatura Infantil e
as relações com a imagem.

Maria Zélia Versiani Machado, Doutora em Educação, Professora da Faculdade de


Educação/ Universidade Federal de Minas Gerais, Eixo Temático 5: Literatura Infantil e
as relações com a imagem

Considerações iniciais
Este trabalho é parte de uma pesquisa de doutorado em andamento 117, que
tem por objetivo investigar livros informativos, sua configuração, conceituação e
função bem como sua apropriação por parte de crianças de 4 a 5 anos. Neste
trabalho, serão analisados três livros informativos para crianças com temática
histórica, isto é, livros que apresentam fatos da história cultural da humanidade, tais
como os modos de vida individual e coletivo, paisagens urbanas e arquitetônicas,
história das artes: pintura, literatura, artes plásticas e vidas de artistas, e também
tensões sociais de um povo.
As análises dos livros informativos não abarcarão as obras em toda a sua
extensão, mas passagens exemplares que focalizem a relação entre o texto verbal e o
imagético, que, nos casos dos livros selecionados, se dão de forma simétrica e
complementar.
A intenção deste trabalho é mostrar como a linguagem visual e verbal podem
ser um meio para informar um tema, tangenciando explorações criativas das

117
A pesquisa de Doutorado em Educação intitulada Livros informativos para crianças: conceituação,
função e apropriação sob orientação da Prof. Doutora Maria Zélia Versiani Machado.
720

linguagens postas em diálogo, na abordagem histórica que poderá ser apropriada pela
criança.
Para iniciar o trabalho, constrói-se uma breve conceituação dos livros
informativos, e depois, em um segundo momento, os motivos que levaram à escolha
do corpus, seguidos da análise das obras selecionadas.

Uma breve conceituação


A complexidade do conceito de livro informativo é constatada na literatura
científica, havendo também muitas divergências entre os estudiosos do gênero.
Algumas pesquisas o definem como um gênero textual responsável por fornecer
informações científicas sobre um tópico, sendo caracterizados exclusivamente como
livros de ―não ficção‖ com textos expositivos118 (Nell K. Duke, 1998, 2004; Linda
Golson Brandley; Carol A. Donovan, 2010; Christine C. Pappas, 1986; 1991; 1993).
Em outros estudos que nos apoiamos para a escrita do artigo, de origem
francesa e hispânica sobre livros informativos, as possibilidades de definição do
gênero são ampliadas. De acordo com Maia Fernandez Miret (2000), essa tipologia é
conhecida em países de língua espanhola como ―livros informativos‖, documentais ou
de conhecimento e como livros de ―não ficção‖ nos países anglo-saxões. Para esta
autora
Os livros informativos são textos denotativos, isto é esgotam
seu sentido em sua enunciação, não exigem interpretação e
são eferentes, ou seja, segundo Louise Rosenblatt estão
estruturados de modo que seja possível selecionar e abstrair
analiticamente a informação e as ideias ou as orientações para
ação que perdurará depois de concluída a leitura. Estes textos
transmitem conteúdos sem caráter estético ou literário, e sem
presença explícita de um autor, apresentam informação como
se fossem fatos objetivos com uma estrutura que pode ser
indutiva ou dedutiva, e cujo objetivo é aproximar seus leitores
aos diversos âmbitos do saber humano119 (MIRET, 2000, p.6)

A pesquisadora mexicana ressalta que a conceituação ainda está falha, porque


os textos de informação podem apresentar caráter estético e acentos pessoais, e
também podem possuir estruturas variadas e propor diversas estratégias de
construção do conhecimento. em vez de comunicar unicamente dados pontuais
(MIRET, 2000).

118
(Tradução nossa)
119
(Tradução nossa)
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Corroborando com essa ideia, Alma Carrasco Altamirano (2015) afirma que os
livros informativos são aqueles que oferecem às crianças mais perguntas do que
respostas, no intuito de alimentar a natural curiosidade sobre o funcionamento do
mundo, das coisas e das pessoas. Essa tipologia deve tratar de temas variados com
objetivo de mudar a percepção do mundo pelos pequenos leitores. Além disso, os
livros informativos devem apresentar às crianças, público não especializado,
determinados conhecimentos científicos, técnicos, artísticos e culturais, sem ―nenhum
risco de esterilização escolar‖ (TERESA COLOMER, 2017, p. 243)
Para Jacqueline Held (1985), os livros informativos se desenvolveram como
solução intermediária entre o livro de ―entretenimento puro‖ e o ―livro escolar‖. E como
tal, os livros informativos possuem como função responder curiosidades para além dos
conteúdos escolares. Essas curiosidades são frequentemente mal resolvidas pelos
livros escolares, ou, muitas vezes, possuem uma linguagem complicada e rígida, além
de serem poucos atraentes, e também obrigatórios. (SORIANO, 1975 apud HELD,
1985).
Conforme afirma Geneviéve Patte (2012), algumas obras informativas tendem
a ter conteúdos didáticos romanceados, ―sobrecarregados de detalhes fastidiosos, e
onde os personagens são simples pretexto para uma erudição indigesta que não
desperta interesse no leitor‖. (PATTE, 2012, p. 197). Para a autora, o afeto, a emoção
e a alegria de conhecer conjugam-se. O autor deve ser tocado pessoalmente por um
tema ou assunto, e ter um forte desejo de transmiti-lo, dominando verdadeiramente a
arte da narrativa (PATTE, 2012).
Os livros informativos podem ser mediados pelos adultos, porém devem
permitir também a leitura autônoma da criança pequena. ―Ele deve ser diretamente
acessível sem o mediador externo. É isso que permite caracterizá-lo com uma dupla
mediação‖120 (HELD, 1985, p. 150). Neste sentido, a leitura solitária da criança
proporciona o exercício da função majoritária do livro informativo que é a mediação-
divulgação, que, de acordo com Held (1985, p. 150), faz ―com que as crianças
conheçam alguns aspectos do real – real entendido com um sentido mais amplo e
conhecer o que está desconhecido, aproximar o que está longe, clarear o que está
obscuro, simplificar o que está complexo‖ 121.

Três casos para análise

120
(Tradução Nossa)
121
(Tradução Nossa)
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Os três livros informativos analisados são Anno’s Journey, de Mitsumasa Anno;


O muro: crescendo atrás da cortina de ferro, de Peter Sís e Medieval Feast, de Aliki.
As três obras retratam temáticas históricas, utilizando de narrativas ficcionais, mas
com intenção de informar sobre fatos ou passagens da História. Assim, como salienta
Martin Salisbury (2014) sobre livros dessa temática, eles se utilizam de fontes
documentais para construção do texto verbal e visual, ou seja, no caso dos três livros,
percebe-se que houve um levantamento criterioso de documentação para a
constituição da narrativa verbal e visual.
A escolha desses livros informativos para análise também está relacionada à
autoria das obras, pois todos os autores são escritores-ilustradores e possuem
reconhecida experiência na produção de livros informativos para crianças.

Mitusmasa Anno: Anno’s Journey


Antes de iniciar a análise de alguns elementos da obra Anno’s Journey, de
Mistumasa Anno, cabe lembrar que o designer japonês tem experiência na confecção
de livros informativos e as obras Anno’s Spain; Anno’s USA e Anno’s Britain
demonstram o seu desejo de informar sobre suas viagens. Os livros fazem referências
à cultura local, aos monumentos arquitetônicos, às paisagens naturais e às artes, em
especial à literatura e à pintura. Em Anno’s Journey não é diferente, o autor-ilustrador
narra visualmente uma viagem à Europa Setentrional.
A viagem do narrador à cidade ficcional acontece pelo mar, e, após sua
chegada ao continente, o personagem compra um cavalo, que será seu meio de
locomoção no desenrolar das cenas da narrativa visual.
Um aspecto relevante na estrutura da obra é o fato de o ilustrador utilizar
somente páginas duplas para ilustrar, um indicativo para que o leitor interrompa o fluxo
visual, observe e participe, assim como o narrador-personagem, da profusão de
eventos e personagens paralelos que são apresentados no iconotexto 122.
A perspectiva do narrador-personagem conjuga-se com o ponto de vista do
leitor e ambos tornam-se observadores e/ou espectadores das ações dos outros
personagens. Para Maria Nikolajeva e Carole Scott (2011), as imagens têm
possibilidades infinitas de apresentar o cenário, assim como retratar os eventos
paralelos ou muitos personagens. No caso dessa obra, pode-se dizer que essa
apresentação se faz pelo olhar do narrador-personagem.

122
A noção de “Iconotexto” foi cunhada por KristinHallberg em 1982, oriunda da Hermenêutica e
amplamente consolidada em pesquisas sobre livros ilustrados (NIKOLAJEVA; SCOTT, 2011)
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Figura 1 - Anno‘s Journey

Para Nikolajeva e Scott (2011), em Anno’s Journey, o autor-ilustrador utiliza


anacronias, isto é, desvios em relação à narrativa direta, cronológica do protagonista,
para desenvolver eventos e personagens. Pois enquanto o narrador-personagem se
desloca na narrativa visual, inúmeros personagens realizam ações simultâneas. A
presença desse recurso permite a constituição de split narratives ou ―histórias
consecutivas‖, elas ocorrem quando ―duas ou várias narrativas são retratadas na
mesma configuração do plano de imagem‖123 (JANE DOONAN, 1993, p. 88).
As narrativas visuais simultâneas incentivam o leitor a encontrar personagens
minúsculos em cada página dupla, incluindo o protagonista. Como pode ser
identificado na figura 1. As histórias concomitantes, interrelacionadas no texto visual
possibilita a intertextualidade e interpicturalidade na narrativa visual. De acordo com
Célia Abicalil Belmiro (2015)
O termo interpicturalidade ou intervisualidade vem sendo
apropriado pelos campos das artes em geral e da literatura que
discutem a variedade das produções contemporâneas.
Tomando como referência o termo intertextualidade, proposto
por Kristeva nos anos 1960, esse neologismo surge pela
necessidade de melhor compreender os trabalhos de artistas
contemporâneos que dialogam com o passado, no presente,
através das marcas de outros autores. Ou a organização de
uma simultaneidade temporal entrecortada e realinhada com
nova forma espacial (BELMIRO, 2015, p. 1)

123
(Tradução Nossa)
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As alusões a pinturas, cinema, literatura e até a brincadeiras infantis e outros


elementos culturais são retratados no decorrer da caminhada do protagonista pelo
espaço ficcional da Europa Setentrional. Em uma das passagens da narrativa visual
indicada na figura 2, observamos na página dupla, quatro referências a pinturas e
pintores. Ao lado direito da página observamos uma referência a duas pinturas do
francês Georges Seurat, Os banhistas de Asnières e Uma tarde de domingo na Ilha de
Grande Jatte. Há, assim, uma preocupação de representar os personagens e os seus
espaços pictóricos. Em ambas, o Rio Sena é o espaço pictórico, seja na ilha fluvial de
Grande Jatte, ou nas águas que banham os banhistas.
Percebemos, também, na figura 2, dois pintores que têm seus quadros e
cadernos observados por pessoas que compõem a cena. Um deles está ao lado
direito da página próximo às representações das pinturas de Seurat. Ele tem ao seu
lado dois homens, um está em pé e outro sentado, o pintor segura um caderno, que
utiliza para desenhar a mulher que atravessa a ponte. De acordo com Michel Defourny
(2013), trata-se da representação de Gustave Coubert, ao lado do mecenas e seu
empregado no quadro O encontro ou Bom dia Senhor Coubert. Na página esquerda,
vemos outro pintor, que pinta em seu cavalete, cercado de pessoas, direcionando o
seu olhar ao lago, numa referência a Claude Monet, outro pintor francês, que na obra
está pintando ―The Pond with Duck in Autumn‖.

Figura 2– Anno‘s Journey


Por possuir referências a pinturas e pintores impressionistas, o autor-ilustrador
criou uma atmosfera bucólica na aproximação da ambientação própria do estilo. Nota-
se, na paisagem, uma forte predominância da cor verde em suas várias nuances da

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natureza e da sua luminosidade. De acordo com Rui de Oliveira (2008), a cor somente
pode ser analisada quando ―se relaciona com a luz, com a sombra, com o momento
psicológico dos personagens ou com o atmosféricoda cena representada, ela
realmente alcança sua plenitude expressiva. Logo, a cor deve ser analisada a partir de
sua relação com as outras cores‖. (OLIVEIRA, 2008, p. 51)
No caso de Anno’s Journey, o autor-ilustrador utilizou-se desse recurso plástico
para criar uma atmosfera simbólica, que remetesse a duas características do
Impressionismo: a paisagem como objeto central do quadro e a realidade
transformada ou reinventada pelas impressões dos pintores.
O fascínio de Mitsumasa Anno pela Europa se traduz nas suas múltiplas
referências europeias presentes em Anno’s Journey. Além das referências a pintores e
pinturas, há outras como ao balão vermelho, do filme de Albert Lamorisse, a Dom
Quixote acompanhado de Sancho Pança em direção a um moinho de vento e ao
conhecido conto de Charles Perrault Chapeuzinho Vermelho, em que se mostra a
menina sendo observada por um lobo. No livro-imagem de Anno ―as inúmeras facetas
de uma cultura, a multiplicidade de referências abolem a distinção entre passado e
presente, entre real e imaginário‖124. (DEFOURNY, 2013, p. 47) O leitor é convidado,
assim, a voltar no tempo pela via das expressões culturais da época.

Peter Sís: O muro: crescendo atrás da cortina de ferro


A obra de Peter Sis, o muro: crescendo atrás da cortina de ferro se situa na
tensão entre o informativo e o relato autobiográfico. O livro narra a história do povo
tcheco durante os quarenta anos de Ditatura Soviética. O autor-ilustrador retrata o
medo, a desconfiança, a repressão e o terror nos anos de chumbo na República
Tcheca. O sentimento individual e as tensões coletivas são evocados no texto verbal e
visual, ―há uma preocupação do autor-ilustrador de restituir minuciosamente as cenas
da vida cotidiana familiar e coletiva‖125 (DEFOURNY, 2013, p. 87).
Nascido em 1949 em Praga, República da Tchecoslováquia, Peter Sis foi
educado por um regime que ditava os modos de pensar e de fazer, de forma que a
arte de desenhar foi, para ele, um modo de romper com as forças repressoras. A
vidado autor-ilustrador sob o duro regime da ditadura soviética impulsionou seu forte
desejo de desenhar. Ele expressou essa tensão pelo hibridismo de linguagem verbal e
visual que caracteriza a sua obra. Obra na qual é possível identificar variações, quer
pela linguagem verbal quer pela linguagem visual quanto à tipologia textual, que, em

124
(Tradução Nossa)
125
(Tradução Nossa)
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várias passagens, assume ora um tom poético ora expositivo na descrição dos
acontecimentos históricos. Por exemplo, em uma passagem, como mostrado na figura
3, encontramos o texto visual representando fatos do cotidiano escolar e seus
emblemas soviéticos como as bandeiras, as estrelas, os lenços vermelhos em
contraste com as hachuras em preto e branco, conjunto de elementos que o texto
verbal reduz a uma marca tipográfica da palavra Obrigatório, por meio da qual se
enfatiza o caráter repressivo das escolas do sistema de governo. Em contraste com as
informações verbais e visuais descritas acima, apresenta-se o único desenho colorido
da página na mão do menino, que expressa a sua relação mais livre no ambiente
familiar, onde podia desenhar o que quisesse, sem a imposição do ―obrigatório‖.

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Figura 3 – O muro: crescendo atrás da cortina de ferro

A adolescência de Peter Sís é outra fase marcante na narrativa, pois se


conjuga com acontecimentos históricos culturais da Tchecoslováquia, com o início do
mandato de Alexander Dubcek como líder do governo, época de abertura às artes, à
literatura e a músicas provenientes do Ocidente como as do Rolling Stones, dos
Beatles, tocadas na Rádio Luxemburgo em seus programas de entretenimento. A
narrativa verbal anuncia a mudança, pois ―tudo parecia possível...‖ na Primavera de
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Praga, e, na página seguinte, a narrativa visual ilustra as possibilidades de mudanças


nas artes, na literatura, na música, no vestuário, nos esportes, nos costumes. Tudo
isso é representado por uma espiral de simbolismos, indicando a amplitude da
abertura do país. A página dupla projeta cores e formas, que, conforme afirma
Defourny (2013), associam-se ao sonho, à criatividade e à liberdade. As cores fazem
raras aparições na narrativa visual, entretanto em uma página dupla, ela explode ao
estilo psicodélico, representando o universo cultural, em especial, com destaque para
a música pop.

Figura 3 – O muro: crescendo atrás da cortina de ferro

A ilustração apresenta vários elementos culturais e expressões artísticas da


época e o jovem aparece na cena segurando o desenho que simboliza a liberdade.
Há, entre outras, referências aos ídolos pops como Beatles e Rolling Stones, aos
Harlem Globetrotters, a Allen Ginsberg e outros ícones do mundo ocidental que o
garoto admira. A mala com mapa-mundi escrito Travel alude às possibilidades de
abertura, e ao desejo do adolescente de ir e vir pelo mundo.
A associação, em uma mesma página do texto verbal ficcional marcado pela
subjetividade com outro não ficcional perpassa toda a obra, seja sob a forma de relato
autobiográfico, seja na exposição de acontecimentos históricos culturais da
Tchecoslováquia. O mesmo acontece com o texto imagético, que ora amplia as
possibilidades de leitura do contexto histórico e ilustra poeticamente os sentimentos
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como sofrimento, medo e repressão do povo tcheco, ora informa sobre a conjuntura
política, cultural e social do país.

Aliki: Medieval Feast


A festa medieval126 é uma obra de autoria – texto verbal e visual - de Aliki. A
obra narra a história de um rei e sua corte que visitarão o feudo de Canmenton Manor,
e, diante disso, os senhores feudais resolvem preparar uma festa com abundância de
bebidas e comidas. Assim como nos outros livros informativos apresentados, Aliki
utilizará de recursos verbais e imagéticos da narrativa ficcional para apresentar um
tema histórico.
Em relação à narrativa visual, a autora-ilustradora utiliza da aquarela para criar
a ambientação medieval, e também, na criação de iluminuras. Assim como Anno’s
Journey, Aliki emprega elos intertextuais visuais (NIKOLAJEVA, SCOTT, 2011;
BELMIRO, 2015) para construção do iconotexto. Ela utiliza também referências
imagéticas de tapeçarias medievais para recriar o cenário da obra. Nikolajeva e Scott
(2011, p. 87) apontam que

para muitos contos com dimensão histórica, o correto e


cuidadoso delineamento da ambientação é tanto necessário
como educativo. Os detalhes podem oferecer informações
sobre lugares e épocas que estão muito além da experiência
do jovem leitor, e o fazem de modo muito sutil, inofensivo, que
propicia um entendimento das diferenças de conduta e da
moral e do ambiente cultural em que a ação acontece.

Outro elemento visual para composição do texto visual são as molduras que
cobrem apenas uma página. Todas as cenas são emolduradas com detalhes na
moldura como podem ser visualizadas nas figuras 4 e 5. Segundo Nikolajeva e Scott
(2011), esse elemento visual, que, em geral, cria a sensação de distanciamento entre
a imagem e o leitor.

126
Optamos por traduzir o título da obra
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Figura 4 – Medieval Feast

Figura 5 – Medieval Feast

A moldura é utilizada pela autora-ilustradora como meio para a constituição do


texto intraicônico. De acordo com Nikolajeva e Scott (2011) no texto intraicônico, "a
divisão aceita entre textos verbais e icônicos é violada, e um diálogo contínuo entre os
dois assume a primazia". (NIKOLAJEVA; SCOTT, 2011, p. 300). Em um exemplo do
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uso da técnica apresentado na figura 5, a narrativa verbal indica "Havia frutas e


vegetais crescendo no jardim, ervas e flores.."127, a cena é ilustrada com duas
mulheres colhendo vegetais e frutos em grandes cestos. Percebe-se que existe
simetria entre a palavra e a imagem. Em torno da moldura são representadas verbal e
imageticamente frutas, vegetais e flores. A moldura amplia o entendimento da cena,
de forma que a palavra invade a ilustração conjugando-se para informar ao leitor sobre
os possíveis alimentos consumidos na festa, desta forma, ampliando a compreensão
do tema.

Considerações finais
A partir das relações entre texto visual e texto verbal dos livros informativos
analisados, percebe-se o quanto é difícil distinguir entre o texto ficcional e não
ficcional, principalmente quando os livros informativos utilizam de inúmeros recursos
da ficção para apresentar um tema. Além disso, muitas imagens mesmo quando
abordam um tema histórico utilizam recursos que conferem um tom poético à narrativa
visual. Reconhecemos que a reincidência de elementos ficcionais nas obras dos
autores-ilustradores não desqualifica a intenção informativa do texto, ao contrário
ampliam o entendimento e a compreensão do tema abordado, sobretudo quando se
pensa na sua apropriação por crianças.
Neste sentido, a relação entre palavra e imagem no livro informativo possibilita
o alargamento da rede de saberes, experiências e informações, e assim, permitem
potencializar e canalizar a curiosidade da criança sobre o mundo e a história desse
mundo que a cerca. A constituição dessa teia de informações e a troca de saberes
possibilitará que a criança relacione os novos conhecimentos às suas experiências
mais subjetivas, sabendo como e onde elas se articulam, e ainda compreendendo
como esses conhecimentos conduzem, por sua vez, a novas interrogações.

Livros analisados

ALIKI. A medieval feast. New York: Harper Collins, 1983.


ANNO, Mitsumasa. Anno’s Journey. New York: Paper Star, 1977
SIS, Peter. O muro: crescendo atrás da Cortina de Ferro. São Paulo: companhia das
letrinhas, 2012.

Referencias

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(Tradução Nossa)
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para la primera infância. In: Baptista, Mônica Correa (orgs.)…et al. Literatura na
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BELMIRO, Célia Abicalil. Um Escritor, Três Ilustradores, Quatro Obras e muitas
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COLOMER, Teresa. Introdução à literatura infantil e juvenil atual. São Paulo: Global,
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MIRET, Maia F. Los sistemas del mundo: los libros de ciencia para niños. [S.L]: [s:n],
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NIKOLAJEVA, Maria; SCOTT, Carole. Livro Ilustrado: palavras e imagens. São Paulo:
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PAPPAS, Christine C. The Information book genre: its role in integrated science
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PATTE, Genevieve. Deixem que leiam. São Paulo: Rocco, 2012
SALISBURY, Martin. Ilustración de libros infantiles: cómo crear imagenes para su
publicación. 4. ed. Barcelona: Acanto, 2014
OLIVEIRA, Rui de. Pelos Jardins Boboli: reflexões sobre a arte de ilustrar para
crianças e jovens. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

A REPRESENTAÇÃO DA PERSONAGEM FEMININA NEGRA NA


OBRA LA MUÑECA NEGRA

FERREIRA, Sandra de Oliveira; UNILA


CORTEZ, Mariana; UNILA

Considerações Iniciais
Propomos neste artigo analisar a imagem da personagem feminina negra
apresentada na obra La Muñeca Negra (2016) de Mary Grueso Romero, ilustradora
Vanessa Castillo, editora Apidama, obra colombiana.O foco principal é discutir por
meio de elementos visuais como se constrói o discurso da narrativa e se esse discurso
desconstrói estereótipos e preconceitos raciais, ou reforçam mais ainda, aspectos
negativos em torno da identidade. Nesse, sentido, os estudos de Bakhtin (1992)
colaboram na análise da obra, já que, traz considerações sobre o lugar de enunciação
no tempo e espaço, destacando a centralidade da linguagem na vida do homem e
tendo a palavra, como comunicação essencial para compreender o surgimento de todo
discurso presentes nos textos e bem como suas ideologias.
Colômbia teve o fim da escravidão em 1851, após, esta data houve um espaço
de tempo longo sem discutir questões relacionadas ao negro, somente na década de
1960, surgem no país, às primeiras manifestações pela identidade dos mesmos.
Essas manifestações partiram de negros intelectuais, que deram origem ao Movimento
Afro-Colombiano, que se estruturou de fato por volta de 1970 a 1990 com apoio de
duas principais associações: Movimento Nacional Cimarrón e as Organizações de
Base (MENDES, 2013).
Gonzaléz (2012) afirma que os afro-colombianos a partir da abolição da
escravidão e surgimento de movimentos sociais, passam a ocupar espaço na
sociedade que antes eram vítimas de exploração. Mary Grueso Romero, autora da
obra em análise participou ativamente de vários movimentos afro-colombianos e de
acordo com Hortensia (2001), a escritora retrata em sua obra seu povo, sua gente, sua
734

nação. Nesse tocante interessamos, observar em sua obra como é que é construída
na obra tal representação da personagem feminina negra em seu espaço.
Para isso, a análise utilizará como metodologia o discurso da semiótica
proposta por Fiorin (1995) nos três níveis gerativos de sentido do texto: primeiro, a
estrutura fundamental; segundo, a estrutura narrativa; e o terceiro nível, o discursivo
que nesta perspectiva ―concebe o processo de produção do texto como um percurso
gerativo, que vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto, num
processo de enriquecimento semântico‖. (FIORIN, 1995, p.167).
A literatura infantil na Colômbiana tem suas raízes na oratura, termo que
segundo Mendizábal (2012), é uma forma de comunicação oral e ritual. A partir do
século XVII os contos da oratura, tornam-se narrativas significativas nas mãos de
Perralt (1628-1703) que os recolhe e, transforma em narrativas infantis. E por essa
iniciativa torna-se percussor dos primeiros textos direcionados ao público infantil.
É importante ressaltar que nessa época, a criança, não era vista diferente do
adulto e, portanto, os textos não eram pensados exclusivamente para esse público. A
palavra infantil vem de fante (servidor, criado). Nepote vem do gregonepion: o que não
fala. A voz da criança era silenciada a uma condição de obediência, e assim foi vista
durante muito tempo.
Somente no início do século XVIII é que a história da literatura infantil ―começa
a delinear-se a partir de uma perspectiva de que a criança deveria passar a ser
considerada diferente do adulto, com necessidades e características próprias, pelo
que deveria distanciar-se da vida dos mais velhos e receber uma educação especial,
que a preparasse para a vida adulta.‖ (Cunha, 1999, p 22).
A história, agora, pensada para o público infantil, passa a contribui na
construção de conhecimento de mundo, já que, desperta o descobrimento às
intenções de ideologias e culturas. Para Bakhtin (1992), ―as narrativas funcionam
como estratégias formadoras de consciência, uma vez que podem favorecer situações
geradoras de reflexões‖. Nesse tocante, o favorecimento dessas reflexões pode
possibilitar a compreensão de situações que envolvem o sujeito em questão, no caso
aqui, a criança.
Rafael Pombo, poeta, crítico e tradutor em 1854 inicia a literatura infantil na
Colômbia com a produção dos ―Cuentos pintados, Cuentos Morales para Niños, la
Hora de las Tinieblas y Fábulas y Verdades‖, os mesmos, traziam sempre uma função
educativa destinadas às crianças e por conta disso, se tornaram relíquia na literatura
infantil colombiana.

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Em 1905, o autor foi coroado pelo presidente Reyes, o melhor poeta no país
por sua maestria e, até pouco tempo na Colômbia, quando se falava em literatura
infantil, se memorava à Pombo por ser o único material conhecido para o público
infantil comprometido com os valores que a sociedade buscava para a criança.
Aos poucos a literatura infantil foi crescendo na Colômbia e, na década de
setenta, por exemplo, há no país ―um boom editorial‖, por conta do Prêmio Enka, e de
lá pra cá, o número de produções tem aumentado significamente.
A escritora colombiana Mary Grueso Romero está no rol de escritores atuais
que inovam em suas obras, até então, em Colômbia, não se tinha nenhuma obra de
literatura infantil com personagens protagonista negra de autores colombianos, o que
se conhecia, eram de outros países.
É importante ressaltar que a Colômbia é um país com grande produção de
obras infantis, contudo, tem em comum com outros países da América Latina, a
questão do negro invisibilizado na literatura por conta do processo histórico marcado
pela escravidão desde a época da colonização. De acordo com Lélia Gonzalez:

O racismo latino-americano é suficientemente sofisticado para manter


negros e índios na condição de segmentos subordinados no interior
das classes mais exploradas, graças a sua forma ideológica mais
eficaz: a ideologia do branqueamento. Veiculada pelos meios de
comunicação de massa e pelos aparelhos ideológicos tradicionais,
ela reproduz e perpetua a crença de que as classificações e os
valores do ocidente são os únicos verdadeiros e universais. Uma vez
estabelecido, o mito da superioridade branca demonstra sua eficácia
pelos efeitos do estilhaçamento, de fragmentação da identidade racial
que ele reproduz: o desejo de embranquecer (de limpar o sangue
como se diz no Brasil) é internalizado, com a simultânea negação da
própria raça, da própria cultura. (GONZALEZ, 1988, p. 73)

Dessa forma, consideramos fundamental a construção de investigações que


pautem o olhar para a questão do negro na literatura, assim como seus
desdobramentos políticos sociais, por meio das narrativas e personagens. A ilustração
da obra pode fazer com que a criança ao ler uma história, se identifique ou não, esse
reconhecimento dependerá de suas experiências vividas, já que a criança tem sua
percepção de mundo pautada em sua realidade cultural.
Desse modo, é importante propor imagens que agregam valores de forma
positiva não apenas na ilustração, mas, no diálogo entre a palavra e imagem, na obra
como o apoio do mediador. O papel do mediador é para auxiliar as crianças a
―explorar seu mundo à luz do que ocorre nos livros e a recorrer à sua experiência para
interpretar os acontecimentos narrados‖ (COLOMER, 2007, p. 105).

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Os livros de literatura infantil podem obter uma leitura expressiva, diante do


valor estético e cultural. Bruno Bettelhein (2007, p.12) aponta que a literatura infantil
objetiva ―desenvolver a mente e a personalidade da criança‖. Mas, para que a
literatura contribua de fato para o desenvolvimento da personalidade da criança e
possibilite reflexões, é importante que a obra ofereça elementos ricos capazes de
cooperar para isso.

A Representação de Personagens Negros em La Muñeca Negra

A Colômbia não é diferente de outros países da America Latina, no que tange


ao negro ocupar espaço na sociedade e manter vivas suas origens a obra, La Muñeca
Negra, surge dentro de uma nova perspectiva de valorização do negro no país e,
portanto, pode-se dizer que é um fator relevante na literatura infantil
Colômbiana,justamente pela narrativa trazer uma protagonista negra que busca
reafirmar sua identidade.
A obra La Muñeca Negra (2016) de Romero conta a história de uma menina
protagonista negra, que deseja ter uma boneca negra que tenha as características
dela. A narrativa é constituída pela linguagem verbal e visual que seja como ela.
Logo, em suas primeiras páginas, apresenta uma menina negra protagonista,
tão linda, que o sol saia para vê-la e a lua para saudá-la ―llegaron a tener una hija muy
linda, de piel negra, tan brillante, que el sol salía para verla y la luna para saludarla‖
(p.5).
Aqui, já se observa a valorização da personagem feminina negra por meio das
características apontadas no texto visual que confirma o texto verbal. A pele negra
lustrosa, envolta em um cenário iluminado, foge do imaginário que se tem do negro
sem valor nenhum.

Fonte: Livro La Muñeca Negra. Ilustrações Vanessa Castillo

Na página seguinte, o espaço em que a família vive é bem marcado ―Vivian en


una casa de palafito, en un pueblo del Pacífico frente al mar donde el papá que era
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pescador conseguía sacar su sustento diario‖ (p.6). A imagem da personagem é


valorizada colaborando para um novo modo de ver o negro na sociedade, ou seja,
uma ressignificação do negro enquanto sujeito na história.Romero apresenta na
narrativa, o Litoral Pacífico, que de acordo com Zambrano ( 2012) é uma região
destinada a moradia de campesinos, afro-colombianos ainda não reconhecidos como
negros.
Na página sete diz que a mãe dava palhas de milho, para a menina brincar no
lugar de bonecas, porque a mesma não tinha boneca como normalmente as crianças
têm nessa faixa etária para brincar. É importante ressaltar que essas palhas de milho,
simbolicamente eram transformadas em boneca negra. A mãe tinha um desejo de dar
a menina uma boneca negra, contudo, não tinha condições. (ROMERO, 2007)
Como a menina era pequena e não compreendia esse processo ainda,
aceitava tranquilamente. A transformação acontecia se dava da seguinte forma:
Colocava-se a palha do milho para madurar, e posteriormente as batizava em uma
vasilha com água. A palha era colocada em uma bacia com água até onde
simbolicamente considerava a cabeça e, batizada a partir das seguintes palavras
mágicas: ―María corcoma, yo te bautizo y yo te coma‖ (p.7) conforme a imagem
abaixo:

Fonte: Livro La Muñeca Negra. Ilustrações Vanessa Castillo

A transformação acontece por meio do batismo, fato que indica a possibilidade


de serem católicos e, desta forma percebemos a inserção do negro em uma religião
que não é dela. De acordo com o catolicismo quando a criança nasce, precisa ser
batizada, caso contrário, é considerada pagã.
Após ser batizada, a boneca ganha um nome ―Maria Corcoma‖ agora, já não é mais
uma palha de milho apenas e sim, uma boneca negra.
Há na ilustração uma luz que desce do céu como sinal de aprovação da
transformação. ―Entonces se secaba la ―cabeza‖ de la muñeca, se pelaba el plátano y
se ponía a asar en el fogón de leña, y después se repartía ―La muñeca‖, entre las
personas que estaban reunidas.‖

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É importante ressaltar que o nome de batismo que a boneca recebe, já


antecede a próxima ação da menina ―cor‖ memora colores e ―coma‖ o verbo comer.
De fato após, o batismo, tira a palha e leva ao forno para assar e posteriormente é
repartida com a comunidade. Na página dez, mostra amenina já está grandinha e
agora, já não se conforma com uma boneca simbólica, quer uma de verdade e com as
características dela.

Fonte: Livro La Muñeca Negra. Ilustrações Vanessa Castillo

―Mamá, quiero que me regalés una muñeca de verdad, pero que sea
negra‖ a mãe levou um choque e pergunta: ―¿De dónde sacás eso,
dónde viste una muñeca negra? Tú siempre me dices muñeca y
como soy negra, soy una muñeca negra, entonces yo creo que han
hecho muñecas negras, como yo‖. (Romero, 2011, p. 11)

A menina poderia querer uma boneca branca, mas queria um brinquedo em


que pudesse ver suas características. Na ilustração acima fica claro que a menina
insiste em querer uma boneca pelas suas ações, o modo como chacoalha a saia da
mãe, a boca aberta que suplica e os olhos direcionados á mãe comprovam esse
desejo. Aqui, a personagem protagonista quer se reafirmar mostrando que o belo
também pode ser apreciado no negro. O belo pode ser visto, por qualquer pessoa
dependendo de seu modo de interpretar e ver o outro.
[...] Nem sempre aquilo que julgamos como diferença social, histórica
e culturalmente construída recebe a mesma interpretação nas
diferentes sociedades. Além disso, o modo de ser e de interpretar o
mundo também é variado e diverso. (GOMES, 2008, p. 22)

É justamente por isso, que a autora Mary Grueso enfatiza com precisão a
beleza da personagem colocando-a como protagonista considerando o direito de ser
negro (a). A mãe se sentiu angustiada porque nunca havia visto uma boneca negra e
mesmo que existisse não tinha condições de dar um à filha. Então, sugeriu que a
menina pedisse duro a Deus, pois somente ele, poderia realizar esse desejo. Nesse

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momento a mãe acredita que Deus pode solucionar o problema já que ela, não tinha
condições de realizar o desejo da filha.
Levando em consideração o discurso da semiótica proposto por Fiorin no
primeiro nível chamado fundamental, ―compreende a(s) categoria(s) semântica(s) que
ordena(m), de maneira mais geral, os diferentes conteúdos do texto‖ (FIORIN, 1995,
p.167). Essas categorias semânticas simbolizam uma oposição que dar base ao texto,
em ―La Muñeca Negra‖ acontece uma oposição: ter e não ter a boneca negra.
A menina conta ao pai de sua suplica à mãe e sofre por não ser atendida. O pai
faz uma interferência, ―¿Cómo que se la pidás a Dios? Si muñeca negra del cielo no
manda Dios‖ (p. 12 ) e instrui a menina a construir sua própria boneca com trapos. A
menina fala de sua incapacidade de produzir a boneca por ser criança, ―Papá, yo no
se coser, yo no sé hacer muñeca‖ (p. 13 ). Compreende que esta atividade é tarefa
para um adulto com mais maturidade e juízo para realizá-la porque ela, é só uma
criança ―La niña, muy tristecita, se fue a llorar a un rincón, porque quería una muñeca,
que fuera de su color‖ (p. 13).
No segundo nível se ―uma narrativa mínima define-se como uma transformação
de estado‖ (FIORIN, 1995, p.168), tal transformação ocorre por meio das seguintes
fases: a primeira manipulação; a segunda competência; a terceira performance; e a
última fase a sanção. Nesse sentido, veremos a transformação das fases no decorrer
da narrativa e analisar como manifesta a sanção.
A manipulação ocorre quando ―um sujeito transmite a outro um querer e/ou um
dever. Essa fase pode ser concretizada como um pedido, uma súplica, uma ordem,
etc.‖ (FIORIN, 1995, p. 169).
A transformação de estado acontece quando a menina não tem a boneca
negra e no final passa a ter por meio da manipulação, a mesma, faz uma suplica a
mãe e o pai que lhe dê a boneca negra. Logo temos a competência quando o ―sujeito
atribui ao outro o poder de fazer‖ insiste que a mãe ou pai lhe dê a boneca de qualquer
jeito porque só eles podem dar esse presente.
Depois percebemos a performance que é quando a menina recebe a boneca e,
portanto, não tinha e passou a ter essa é a transformação principal da narrativa
momento que é concretizado o desejo da menina. Como isso acontece? A mãe abre o
baú e recolhe trapos e guardados e constrói uma boneca com características da
personagem feminina negra
―Al final encontró una falda café oscuro, que era lo más parecido al color
negro, y buscó hilo, aguja y tijera, y se puso a diseñar una muñeca de trapo para su
hija‖
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Fonte: Livro La Muñeca Negra. Ilustrações Vanessa Castillo

Desta forma, vemos a resolução do problema o desejo da menina é realizado:


a mãe confecciona uma boneca artesanal de trapos com as características havia
pedido. A última fase desse nível é a sanção que de acordo com Fiorin (1995) se
manifesta de duas formas, de maneira cognitiva quando há ―o reconhecimento por um
sujeito de que a performance de fato ocorreu‖ (p.169) e a pragmática que se manifesta
como prêmio ou castigo.
Neste caso, a menina quando recebe o objeto que tanto desejou, é
extremamente grata. Vemos o reconhecimento pelo que a performance como prêmio
e a sanção cognitiva acontece por meio da mãe que reflete a necessidade de construir
para a filha a boneca. A mãe consegue realizar o desejo da filha que, com imensa
alegria demonstra sua gratidão pelo feito:
―La niña, subiendo la muñeca a la altura de su cara, cantaba y
danzaba diciendo: Mi mamá, muy preocupada, de mí se apiadó y me
hizo una muñeca, oscurita como yo. Se acabó mi cuento, sea mentira
o sea verdad, que se lo lleve el viento a recorrer la mar.‖
(ROMERO,2011,p.16 )

A atitude da menina deixa claro, o orgulho de sua raça reconhece a beleza de


seus traços culturais. E não sintomas do negro como inferioridade tradicionalmente as
meninas com o perfil reconhecido são brancas e normalmente a criança branca e,
portanto, a menina branca tem um brinquedo que a represente já, a negra não. Nesse
sentido, é importante que as obras de literatura infantil com personagens negros sejam
construídas de modo a romper com estereótipos negativos. Silva dá sua contribuição
propondo que se produza:
[...] uma literatura com proposta de representação do negro, que
rompa com esses lugares de saber, possa trazer imagens
enriquecedoras, pois a beleza das imagens e o negro como
protagonista são exemplos favoráveis à construção de uma
identidade e uma autoestima. Isto pode desenvolver um orgulho, nos
negros, de serem quem são, de sua história, de sua cultura [...].
(SILVA, 2010, p. 35).

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Neste conto, a menina precisa reafirmar sua condição étnica por meio de uma
boneca. A narrativa toda insiste em descrever a beleza da menina e destaca com seus
traços são lindos, sua pele é resplandecente. O terceiro nível proposto por Fiorin é o
discursivo, que para ele, o discurso edifica a estrutura narrativa podendo ser
representado por meio de duas categorias: a temática e a figurativa: ―os temáticos
explicam o mundo; os figurativos criam simulacros do mundo.‖ (FIORIN, 1995,
p.171).
Em La Muñeca Negra, acreditamos que as imagens apontam para uma
perspectiva figurativa por criar um simulacro em torno de uma questão social, a
identidade da personagem protagonista. Pela descrição do texto verbal e visual,
observa-se que a em que a menina negra não se vê reconhecida, somente com a
intervenção da mãe consegue ser vista representada no brinquedo. Desta forma, pode
se dizer que esta obra, é um retrato da sociedade e uma expressão de
questionamentos da comunidade negra.

Considerações Finais

As discussões apresentadas neste artigo nos levaram a compreender, que a


imagem da personagem feminina na literatura infantil colombiana, foi silenciada
durante muito tempo por conta dos discursos que permeavam a cerca do negro sem
nenhum valor e, desta forma não havia espaço para protagonismos nos livros.
A produção da obra La Muñeca Negra aponta a possibilidade de novas formas
de pensar e fazer literatura infantil, a partir de um novo viés que é colocar o negro em
um espaço que possa ser significativo e ao mesmo tempo desconstruir estereótipos
negativos a cerca do negro acumulado ao longo do tempo.
Romero apostou em construir uma narrativa corroborada com as ilustrações de
Castillo que valorizam a cultura afro-colombiana por meio das características das
personagens negras, dos adjetivos e advérbios de intensidade ―muy linda, tan
brillante‖, as imagens sempre trazendo um foco de luz mostrando uma iluminação que
contrasta o claro e escuro e a representação do espaço que aos poucos vai revelando
a cultura da protagonista.
A educação das relações étnico-raciais tem por alvo a formação de
cidadãos, mulheres e homens empenhados em promover condições
de igualdade no exercício de direitos sociais, políticos, econômicos,
dos direitos de ser, viver, pensar, próprios aos diferentes
pertencimentos étnico-raciais e sociais. (SILVA, 2007, p. 490).

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A pesar da obra não apresentar outras possibilidades de leitura e abordar uma


temática que se trata da identidade, é importante considerá-la na literatura infantil, por
abrir caminhos para que reflexões possam ser feitas, já que, a leitura de imagens,
não se limita apenas na decodificação de signos mas, também permite abrir um
universo de outras leituras e discussões.

Referências
Alaix de Valencia, Hortensia. La palabra poética del afrocolombiano: antología.
Selección y prólogo de Hortensia Alaix, Litocencoa, LTDA., 2001.

BAKHTIN, Michail. Estética da Criação verbal. São Paulo, Martins Fontes [1979].
1992.

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2007.

COLOMER, T. Andar entre livros: a leitura literária na escola. Trad. Laura Sandroni.
São Paulo: Global, 2007.

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1999.

CUNHA, Maria Antonieta Antunes. Literatura Infantil: Teoria e Pratica. São Paulo:
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Fiorin, José Luiz. A noção de texto na semiótica. Revista Organon, v. 9, n.23, Porto
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Curso (Curso de Pedagogia) - Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora, Juiz de


Fora.

SIMÕES, Lucila Bonina Teixeira. Literatura Infantil: entre a infância, a pedagogia e


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Letras da UFF. Niterói – RJ: 2013.

ZAMBRANO, C. G. De Negros a Afro-Colombianos: Oportunidades Políticas e


Dinâmicas de Ação Coletiva dos Grupos Negros na Colômbia (São Paulo:
Universidade de São Paulo). 2012. Disponível em:
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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

EMMA/ JUREMMA: REIMAGINANDO A OBRA ―EMMA‖ DE


JANE AUSTEN PARA O CONTEXTO BRASILEIRO EM UM
LIVRO ILUSTRADO

Giovanna Corrêa Lucci, Universidade de São Paulo (USP),


Eixo Temático 5: Literatura infantil e as relações com a imagem, FAPESP 128

Considerações Iniciais

Pessoas de uma determinada cultura e época possuem vêem o mundo de


formas diferentes. Ao tratar do conceito de transcriação – como tradução criativa – ,
Haroldo de Campos em seu livro ―A Arte no Horizonte do Provável‖, publicado
originalmente em 1963 e reeditado em 2010, cita os comentários de T. S. Eliot sobre
as versões de Eurípedes feitas pelo Prof. Gilbert Murray:

Necessitamos de um olho capaz de ver o passado em seu lugar com


suas definidas diferenças em relação ao presente e, no entanto, tão
cheio de vida que deverá parecer tão presente para nós como o
próprio presente (CAMPOS, 2010, p.110).

Com isso em mente, pode-se afirmar que esta pesquisa foi uma tentativa de
aproximar duas culturas, duas épocas e duas formas de narrativas muito distintas.
Com o objetivo de produzir uma reimaginação do texto original ―Emma‖, escrito por
Jane Austen em 1815, esta pesquisa teve como ponto de partida o conceito de
transcriação, como o entendia Campos, e buscou ampliá-lo para que fosse aplicável
no contexto do texto em prosa. A relevância desse projeto se dá com a reimaginação
da obra ―Emma‖ (AUSTEN, 1815) levando em consideração características próprias
do Brasil e da época atual. Desta forma, este trabalho teve a pretensão de criar uma
reimaginação que mantivesse características do original, mas que, ao mesmo tempo,
retratasse outra realidade temporal e espacial - mais integrada a história brasileira -

128
Os resultados aqui apresentados são parte constituinte da pesquisa de Iniciação Científica intitulada
“Emma/Juremma” realizada com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo, concluída em 2014, sob a orientação da Profª Drª Silvia Regina Ferreira de Laurentiz.
745

refletindo, ao menos em parte, não só a linguagem como a cultura popular do país e


seu imaginário. Mais do que isso, este projeto buscou evidenciar as semelhanças
desta reimaginação com a obra original, ao explorar o diálogo entre a palavra escrita e
a imagem.
Assim, o foco da pesquisa esteve em estudar questões de/para linguagem,
produzindo um projeto experimental através da relação entre texto e imagem, do
transporte de um texto para outro contexto, e da traduções intralingual, interlingual e
intersemiótica. Além disso, a reimaginação desta mesma obra para a língua
portuguesa, levou em consideração a sonoridade, os costumes e particularidades da
cultura brasileira, retratando uma sociedade distinta em outra época e, gerando assim,
possíveis alterações no enredo. Para tal, foram executados processos de tradução
por: comparação, livre associação, utilização de linguagem figurada e metáforas, bem
como traduções de paletas de cor, estruturas formais, ritmos e compassos entre som e
imagem, cores e formas, sobreposições do paradigma ao sintagma (poética), e
mistura de ―línguas‖, buscando uma organicidade composicional. Mais do que isso, foi
feita uma organização espaço-temporal por camadas de significação, de forma a criar
laços entre unidades significantes do texto e entre imagens, explorando questões da
narrativa.

A reimaginação de ―Emma‖

Como foi dito anteriormente, o principal objetivo da pesquisa era propor


uma reimaginação ilustrada da obra ―Emma‖ para a língua portuguesa, que
levasse em consideração a sonoridade, os costumes e particularidades da
cultura brasileira, gerando assim, possíveis alterações no enredo. Sendo
assim, antes de dar início à tradução e recriação do texto e à elaboração de
imagens que se relacionassem ao imaginário nele retratado, foi realizada uma
extensa investigação sobre o livro original e seu contexto, que permitiu
compreender melhor não somente o estilo de escrita da autora e os recursos
de linguagem empregados por ela, mas também a história e as características
de cada um dos personagens e os papéis desempenhados por eles dentro da
estrutura da narrativa.
Apesar dessa necessidade de inserir seu trabalho em um contexto
histórico-social e definir como o objeto desta pesquisa, o texto ―Emma‖, se

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relaciona com seu próprio tempo, este artigo não tratará destas questões e se
limitará a relatar como se deu o processo de elaboração da reimaginação
textual e imagética proposta.
Uma vez estabelecida uma melhor compreensão do texto original, da
autora e do contexto em que se deu a criação da obra, bem como sua
repercussão até a atualidade, deu-se início à tradução interlingual da obra para
a língua portuguesa. Este material traduzido, por sua vez, foi submetido a um
segundo processo de tradução, desta vez intralingual, onde o texto foi
reimaginado levando em consideração a sonoridade, os costumes e
particularidades da cultura brasileira.
No entanto, antes de dar início a esta etapa da pesquisa, foi feita uma
análise do texto original de forma a traçar um perfil dos personagens principais
e dos lugares mencionados na obra, com o objetivo de explorar como os
nomes, ocupações e características destes personagens poderiam ser
reimaginados para esta proposta.
Como uma das grandes mudanças impostas por esta reimaginação
estava diretamente ligada ao estilo e ao tom narrativo escolhido, a linguagem,
por exemplo, acabou sendo modificada adquirir a contemporaneidade e o ritmo
brasileiro propostos desde o início e se aproximar daquela utilizada no dia-a-
dia. Para isso, foram inseridas expressões populares pesquisadas,
considerando a sua adequação ao enredo e ao conteúdo do livro.
Sabendo que diversos autores, como Tony Tanner, em seu livro ―Jane
Austen‖ de 1986, e Genilda Azerêdo, em seu livro ―Jane Austen on the screen,
a study of irony in Emma‖ publicado em 2009, caracterizam Emma como uma
‗imaginista‘, justamente por sua habilidade em criar um mundo próprio, com
diversas histórias e personagens que refletem uma realidade que ela gostaria
de viver (TANNER, 1986, p. 198), pode-se dizer que a história de ―Emma‖
(AUSTEN, 1815), na verdade, consiste em dois níveis de histórias: um
fornecido pelo narrador, e um outro que a própria Emma, sendo uma
‗imaginista‘, inventa (AZERÊDO, 2009, p. 41). Por isso, uma das características
mais importantes da personagem principal e que procurou-se manter na
reimaginação, é a sua qualidade de ‗filtro‘, isto é, de influenciar a visão do
narrador sobre determinadas situações que ocorriam a sua volta e sobre os
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demais personagens que a cercavam. Assim, para que essa qualidade ficasse
ainda mais evidente, o narrador em terceira pessoa foi mantido e adotou-se o
recurso do fluxo de consciência, que faz com que a linha que divide as vozes
do narrador e da personagem principal se torne tênue.
No que se refere à metodologia, tal reimaginação foi feita por
parágrafos seguindo, na maioria das vezes, a estrutura original para que o
leitor pudesse traçar um paralelo direto entre os dois livros, o original e o
reimaginado. Assim, como o objetivo era retratar uma sociedade distinta em
outra época, o enredo acabou sofrendo algumas alterações.

Experimentos cromáticos

Em paralelo à fundamentação teórica, e à reimaginação do texto, foi


realizada uma pesquisa cromática, onde, através de experimentos que
permitiram melhor compreender os fatores que influenciam a criação e a
percepção de uma determinada paleta de cores, procurou-se entender como a
cor se comporta quando sofre alterações nos mais diversos parâmetros. Em
outras palavras, tendo em mente que os princípios estéticos formalizados e
experimentados nessa época em países de clima continental temperado como
a Inglaterra, bem como a luz, os temas e as paisagens, são completamente
distintos dos que existem no Brasil de hoje, propôs-se realizar uma série de
experimentos em relação à cor, de forma a definir os parâmetros que seriam
alterados para que uma tradução da paleta fosse possível.
Com esse objetivo, optou-se por criar um arquivo contendo as 24
imagens originais que C. E. Brock confeccionou em aquarela para a primeira
edição ilustrada de Emma, em 1909. Durante o processo construiu-se uma
metodologia própria, utilizando o plugin ‗CameraRaw‘ do ‗Adobe Photoshop‘, de
forma a realizar uma série de alterações em parâmetros do arquivo original,
como: temperature, tint, exposure, recovery, fill light, black, brightness, contrast,
clarity, vibrance, saturation, sharpening (amount, radius, detail, masking), noise
reduction (luminance, luminance detail, luminance contrast, color, color detail),
hue (reds, oranges, yellows, greens, aquas, blues, purples, magentas),
saturation (reds, oranges, yellows, greens, aquas, blues, purples, magentas),
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luminance (reds, oranges, yellows, greens, aquas, blues, purples, magentas),


highlights (hue, saturation, balance), shadows (hue, saturation), grain (amount,
size, roughness).
Ao final, após uma análise combinatória de todas as possibilidades,
foram produzidas 19.895 imagens. Destas, apenas 198 apresentaram
diferenças significativas em relação à original, o que resultou em 198 tabelas
de cores diferentes.
Na etapa seguinte dos experimentos, os resultados gerados pela
pesquisa cromática foram analisados e dentre as 198 tabelas de cores, foi
escolhida a de número 19.863 que sofreu alterações no parâmetro shadows
(hue=30; saturation=100). Como as imagens utilizadas eram compostas por
tons claros e muito similares, uma mudança nas sombras destas imagens
significa uma mudança nos tons mais escuros e, portanto, que mais se
destacam na mesma, gerando uma leve alteração na coloração e uma
mudança drástica na saturação da imagem que atingiu seu máximo.
As tabelas de cores eram formadas, em sua maioria, por tons de
laranja e a tabela número 19.863 não é diferente. Assim, logicamente, foi um
desses tons o escolhido para determinar as demais cores da paleta final que foi
utilizada nas ilustrações. Abaixo se encontra a versão vetorial desta tabela de
cores e o tom de laranja selecionado (Figura 1):

Figura 1: Tabela número 19863 e o tom de laranja selecionado.

Paleta de cores

Como já foi dito anteriormente, no início do processo de reimaginação


do texto, foram traçados os perfis dos personagens e estes mesmos perfis e as
relações entre eles foram levadas em consideração, que podem ser
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representadas pela posição das cores no círculo cromático. Por ser a cor
principal, fruto da pesquisa cromática realizada, o tom de laranja retirado da
tabela número 19.863 foi escolhido para representar a personagem principal e
conduziu a escolha das demais cores. O círculo cromático abaixo (Figura 2)
com os tons correspondentes de cada personagem ajuda a visualizar as
relações:

Figura 2: Círculo Cromático montado com as cores correspondentes de cada um dos


personagens.

Como pode-se observar, Juremma, a personagem principal da


reimaginação, se situa no canto superior direito do círculo. A cor complementar
a ela, seu oposto cromático, foi designada para o personagem que é seu par
romântico na história: Jorge. Dos dois lados de Juremma se encontram

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Augusta e Joana, suas principais antagonistas. A mesma lógica se aplica aos


demais personagens.
Uma vez estabelecidas as cores tema de cada um, observou-se o
quanto era importante que o tom de laranja característico da personagem
principal não só estivesse presente em todos os capítulos, como o fizesse em
sua intensidade máxima, de forma a refletir a posição de destaque da mesma
dentro da história. Para isso, decidiu-se que a cor da personagem Juremma
passaria a ser empregada nas linhas dos desenhos, enquanto que o
personagem de maior relevância dentro de cada capítulo seria o responsável
por ditar a cor a ser empregada no preenchimento.

Estruturando a história

Com o texto pronto e a paleta de cores definida, deu-se início à


próxima etapa da pesquisa, onde os pontos chave da história foram colocados
em um fluxograma (Figura 3) de forma a mostrar o funcionamento interno de
cada capítulo e como eles se relacionam entre si. Além de facilitar a
visualização da estrutura da história, esse esquema permitiu estabelecer os
graus de importância de cada ação dentro do capítulo e de cada capítulo
dentro do conjunto. Dessa forma, os capítulos foram divididos em dez níveis
que variam do -4 ao 5 de acordo com a sua relevância dentro da história e os
acontecimentos dentro desse mesmo capítulo também, em níveis que vão de 1
a 4.

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Figura 3: Fluxograma que mostra a estrutura da história.

Os resultados desse fluxograma foram reorganizados em um diagrama,


um gráfico de barras, (Figura 4) que permite a melhor visualização dos dados
obtidos. A largura de cada uma das barras do diagrama é diretamente
proporcional ao número de páginas do capítulo que elas representam.

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Figura 4: Diagrama que demonstra a relação do fluxo narrativo com as cores e suas
intensidades.

É importante observar que tanto o fluxograma quanto o diagrama


(Figuras 3 e 4), como diz Plaza em seu livro ―Tradução Intersemiótica‖ de 1994,
possuem uma lógica interna compreensível que torna possível a sua
interpretação independentemente do repertório do leitor. O fato é que ambos,
com a sua aparência que denota a configuração estrutural do texto, são na
verdade os responsáveis por traduzir e evidenciar a tensão emocional do
mesmo e é isso que os torna tão importantes (PLAZA, 1994, p. 104) se
encontram anexados para permitir a melhor visualização dos mesmos.
Assim, como foi mencionado, a relevância tanto do fluxograma quanto
do diagrama apresentados está em determinar os níveis de importância de
cada capítulo dentro da história e de cada acontecimento dentro dos capítulos.
Isso porque, nesta etapa do projeto estes níveis foram aplicados para
determinar a intensidade das cores de preenchimento dentro de cada um dos
capítulos. Estas cores sofreram uma variação de 10% de saturação
dependendo do nível em que o capítulo se situa, variando de 10% a 100%. Em
outras palavras, as imagens de um capítulo nível -4 têm sua cor de

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preenchimento característica apresentada com 10% de saturação, enquanto


que as imagens de um capítulo de nível 5 têm sua cor de preenchimento
apresentada com 100% de saturação. Todas essas variações mencionadas
podem ser melhor observadas na tabela a seguir (Figura 5):

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Figura 5: Tabela que mostra a variação cromática da paleta de cores criada. Os tons sofrem
uma variação de saturação que vai de 10% a 100% e varia de acordo com o nível de
importância do capítulo ao qual eles serão aplicados.

Criando as imagens

Com a paleta e o esquema de cores definido, deu-se início ao processo


de criação das imagens. Ao final de uma série de experimentações, optou-se
por não retratar cenas ou personagens nas imagens finais, mas sim objetos
que representassem as situações relatadas ou as metáforas e expressões
utilizadas no texto. Durante o processo, procurou-se aproximar ao máximo as
imagens ao texto de forma a criar uma relação intrínseca entre os dois.
Justamente por isso, ao final do trabalho, tornou-se quase impossível
desvincular o processo criativo da produção do texto daquele que envolve a
produção da imagem. Mais do que isso, uma vez que texto e imagem foram
colocados juntos, lado a lado, ficou muito difícil desvinculá-los do conjunto
formado.
Isso porque tanto o texto como as imagens foram criados por analogia.
O primeiro possuiu uma relação direta com a obra original e são justamente
esses paralelos traçados entre uma cultura e a outra que permite que o leitor
perceba as conexões, as semelhanças e diferenças entre eles. Já as
ilustrações possuem esse mesmo tipo de relação só que com o texto
reimaginado. As imagens, além de retratar figuras que são mencionadas no
texto, também refletem a estrutura interna do mesmo. Prova disso é o
diagrama, o terceiro elemento presente nas páginas deste projeto, que fica
responsável por fazer com que essa ligação entre eles, muitas vezes
imperceptível ao leitor, fique evidente.
Outra aplicação do diagrama criado foi para determinar em que ponto
da história entrariam as ilustrações. Todas as imagens, sem exceção foram
criadas para seguir os picos daquele diagrama apresentado anteriormente. Os
capítulos criados ficaram com uma média de duas imagens cada um.

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As imagens, em si, foram criadas no software ―Adobe Illustrator CC‖ e,


portanto são vetoriais. Isso permite que elas sejam ampliadas infinitamente
sem perder a qualidade. Porém, a ideia era que o traço característico do vetor
não ficasse tão em evidência e, por isso, depois de experimentar as mais
diversas estéticas de desenho e efeitos, optou-se por trabalhar as linhas de
forma a criar padronagens que transmitem a sensação de textura, relevo e
transparência.

Montando o livro

Quando as imagens já estavam finalizadas, iniciou-se a fase final: a


montagem dos capítulos do livro. A principal preocupação nesta etapa foi
alcançar um equilíbrio entre imagem e texto. Para isso, foram alternadas
imagens que ocupam duas páginas e imagens que ocupam apenas uma. Estas
mesmas imagens sempre são intercortadas pelo texto. Aqui o texto também é
forma, pois ao invés de se apresentar em linha reta como faz o texto presente
nas páginas que não contêm imagens, as palavras formam figuras que se
relacionam tanto à imagens que ali figuram quanto ao conteúdo do texto em si.
Foram utilizados três tipos de fontes. A primeira é a fonte ―Garamond‖,
corpo 12, regular, na cor preta. A ―Garamond‖ é uma fonte serifada que, em um
tamanho considerável como o 12, proporciona maior conforto ao leitor em meio
à tantas informações visuais e que, por isso mesmo, foi empregada na maior
parte do texto. O segundo tipo de frase utiliza a mesma fonte, com o mesmo
corpo, só que em negrito no tom de laranja característico da personagem
principal, e foi utilizado para ressaltar as frases mais importantes naqueles
trechos determinados e suavizar a transição entre as páginas que contêm
imagem e texto e aquelas que só contêm o texto. Já o terceiro tipo é
caracterizado por uma que leva o nome da autora do original: ―Jane Austen‖,
em corpo 24, também na cor laranja característica da personagem principal.
Essas últimas frases, porém estão presentes em menor número e somente nas
páginas que contêm ilustrações para assinalar os picos de maior importância
do capítulo.
Para demonstrar no corpo do livro a importância do diagrama que
participou de todo o processo criativo, ficou decidido que todas as aberturas de
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capítulo teriam uma versão do mesmo com as colunas daquele determinado


capítulo assinalado com a cor que caracteriza o mesmo. Além disso, também
foi determinado que essas mesmas barras apareceriam na lateral direita
inferior dos capítulos, assinalando em qual dos níveis internos do capítulo se
situa cada uma das páginas.
A seguir estão algumas miniaturas das páginas do primeiro capítulo do
projeto final, que servirão para exemplificar tudo o que foi descrito aqui (Figuras
6, 7 e 8).

Figura 6: Exemplo de uma das aberturas de capítulo.

Figura 7: Exemplo onde a imagem e o texto ocupam duas das páginas do livro.

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Figura 8: Exemplo de página que marca a transição entre uma imagem e outra, onde só existe
texto, ainda que este se apresente uma tipografia com duas cores diferentes.

Considerações Finais

Esta investigação pretendia, dentre outras coisas, realizar uma


transposição histórico-cultural na qual um texto, originalmente publicado na
Inglaterra do século XIX, poderia ser transcriado para refletir, ao menos em
parte, a cultura e o imaginário brasileiro atual. A intenção aqui, porém, não era
contar uma história só utilizando palavras, mas sim uma mescla de texto e
imagens que possuíssem um vínculo entre si e que quando colocadas juntas
na mesma página, transmitissem ao leitor um panorama mais completo do que
vem a ser este imaginário retratado.
Assim, levando em conta os objetivos desta pesquisa e tudo o que foi
produzido no período de um ano, pode-se concluir que o trabalho cumpriu seu
propósito e obteve resultados satisfatórios que foram além das expectativas
iniciais: um ―livro ilustrado‖ composto por 18 capítulos de texto e 52 imagens
que possuem uma forte ligação entre si e que representam a cultura brasileira
sem romper completamente os laços com a história original.

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AUSTEN, J.; TANDON, B. (Org.). Emma: an annotated edition. 1ª ed. The Belknap
Press of Harvard University Press, 2008;

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AZERÊDO, G. Jane Austen on the screen, a study of irony in Emma. 1ª ed. João
Pessoa: Editora Universitária UFPB, 2009;

CAMPOS, H. A arte no horizonte do provável. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2010 (1ª
ed. 1963);

PLAZA, J. Tradução intersemiótica. São Paulo: Editora Perspectiva, 1994;

POLANYI, M. The tacit dimension.Estados Unidos: Peter Smith, 1966.

TANNER, T. Jane Austen. 1ª ed. Palgrave Macmillan, 2007;

VIEIRA, J. A.; RAY, S. Teoria do conhecimento e arte. Goiás: UFG, Revista Música
Hodie, vol. 9, nº 2. pp.11-24. 2009. Disponível em:
<http://www.revistas.ufg.br/index.php/musica/article/view/11088/7311>. Acesso em:
Setembro de 2017.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

ILUSTRAÇÕES COLORIDAS EM LIVROS PARA CRIANÇAS NO


BRASIL: FRANZ RICHTER E A BIBLIOTECA INFANTIL
MELHORAMENTOS

Maria das Dores Soares Maziero, FACP e ALLE/Unicamp, eixo temático 5:


Literatura infantil e as relações com a imagem

Considerações Iniciais129

As ilustrações são presença consolidada nos livros para crianças, assumindo


papel bastante significativo nas obras destinadas a este público, uma vez que
contribuem para a construção de sentidos que completam ou ultrapassam aqueles do
texto verbal, funcionando ainda como estratégia para despertar o interesse dos jovens
leitores.
Em 1915, a então Weiszflog Irmãos inova no campo dos livros infantis,
ao publicar O patinho feio, ilustrado por Franz Richter, pintor e desenhista
tcheco radicado no Brasil, no que seria o primeiro caso do uso de quatro cores
em ilustrações de obra impressa produzida no país.
O objetivo do presente trabalho é apresentar as ilustrações que Franz
Richter fez para os livros da primeira fase da Biblioteca Infantil Melhoramentos
(1915-1925), do ponto de vista da função dessas ilustrações no panorama
geral da coleção e do estudo de aspectos relativos ao estilo de seu autor, cuja
atuação no campo da literatura para crianças tem sido pouco estudada. Para
tanto, serão consultados 28 exemplares da coleção Biblioteca Infantil do
período delimitado, buscando inventariar as ilustrações presentes e a função
destas em relação ao texto, bem como discutir o papel do ilustrador nesse

129129
O conteúdo deste artigo está vinculado à pesquisa de doutorado intituladaArnaldo de
Oliveira Barreto e a Biblioteca Infantil Melhoramentos: histórias de ternura para mãos pequeninas
(MAZIERO, M.D.S.M.),defendida em 2015, pela FE/UNICAMP, sob orientação da Profa. Dra. Norma
Sandra de Almeida Ferreira.
760

período de nascimento da literatura infantil no Brasil, quando não havia ainda o


reconhecimento da importância do papel deste profissional.
O referencial teórico adotado contempla contribuições de Roger Chartier,
Marisa Lajolo, Regina Zilberman e Leonardo Arroyo, entre outros pesquisadores da
história do livro infantil no Brasil.
Ilustrações em livros infantis brasileiros publicados no final do século XIX
Conforme Leonardo Arroyo (1988) e Marisa Lajolo e Regina Zilberman (1987)
já apontaram em suas obras, a literatura infantil brasileira, em termos de impressão e
comercialização, tem início com a publicação de traduções e adaptações de livros
infantis já publicados na França, Alemanha e Inglaterra, vertidos para as crianças de
nosso país por autores contratados por estabelecimentos como as Livrarias Francisco
Alves e Quaresma, por exemplo.
Segundo Lajolo e Zilberman (1986, p. 15), essas primeiras produções no
campo da literatura para crianças no Brasil ―surgem a partir dos últimos anos do
século XIX, quando ocorre um esforço sistematizado de produção de obras infantis,
inclusive com a abertura de canais e estratégias regulares de circulação entre o
público‖.
Como exemplo dessas primeiras obras, podem ser citadas aquelas traduzidas
para o português pelo jornalista e professor Carlos Jansen, a primeira delas os Contos
seletos das mil e uma noites (1882), publicada pela Laemmert & Cia. Outro marco
para a literatura destinada à infância é a publicação, a partir de 1894, das obras da
―Biblioteca Infantil Quaresma‖, cujo primeiro volume foi Contos da Carochinha, uma
coletânea de contos populares adaptados por Figueiredo Pimentel, contendo histórias
de Charles Perrault, dos Irmãos Grimm, de Hans C. Andersen e outras do folclore
nacional, uma obra que, segundo Leonardo Arroyo (1988, p. 177), ―instaura na
literatura brasileira uma nova orientação: a popular. Isto é, o livro de autores clássicos
já não se apresentava apenas através de edições que visavam exclusivamente ao
público escolar‖.
Do ponto de vista das ilustrações presentes nas traduções de Carlos Jansen,
foram consultadas uma edição de Contos Seletos das mil e uma noites, de 1908, e
outra das Aventuras maravilhosas do celebérrimo Barão de Munchhausen, de 1902, o
que tornou possível constatar a presença de várias imagens, a maioria delas em preto
e branco e algumas em cores, estas últimas colocadas em página exclusiva, em papel
cartonado, ao contrário das demais. Não há menção ao nome do ilustrador em
nenhuma das obras, mas é possível pensar na possibilidade de que sejam
reproduções de gravuras utilizadas em versões destas obras para crianças europeias.
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Fonte: Contos selectos das mil e uma noites, Fonte: As Aventuras maravilhosas do
2ª ed., 1908, Laemmert & C. – acervo da celeberrimo Barão de Munchausen, n/c
pesquisadora. edição, 1903, Laemmert & C – acervo da
pesquisadora.

Quanto às obras da Biblioteca Infantil Quaresma, não foi possível a consulta a


nenhum exemplar anterior a 1925, mas fica clara a importância que a Livraria
Quaresma atribuía à questão das gravuras, vinhetas e capa colorida, conforme se
pode ver em anúncio publicado no Jornal do Brasil, em 1894:
Acaba de sahir130 do prelo e acha-se á venda em casa dos editores
Quaresma & C.
Contos
Da
Carochinha
Livro para crianças

Contendo 60 contos populares, moraes e proveitosos, de vários


paízes.
Segunda edição, enriquecida de grande numero de esplendidas
gravuras e vinhetas, acrescentada de mais vinte primorosíssimos
contos inteiramente novos e com deslumbrante capa lytographada
a côres, representando a avósinha, contando aos netinhos os
CONTOS DA CAROCHINHA.
Um elegante volume com perto de 400 páginas encadernado..............
3$000. (Jornal do Brasil, 24/11/1884, p. 4).

Nas duas edições de obras da Biblioteca Infantil Quaresma a que tivemos


acesso, uma de Contos da Carochinha, de 1925, e outra de Histórias da Avózinha, de

130
Mantida a ortografia da época.
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1952, pode-se apontar a presença de ilustrações em preto e branco, mas sem que
seja mencionado o nome do ilustrador responsável pela criação delas.
No entanto, Laura Sandroni afirma que
Quando finalmente os fundadores de uma literatura infantil brasileira
começaram a traduzir ou a escrever numa linguagem a que
chamamos português abrasileirado nos anos finais do século XIX e
início do século XX, os livros tiveram esse tipo de ilustrações feitas
por artistas como Calixto Cordeiro, Henrique Cavalleiro e Julião
Machado, o mais presente nos livros de Figueiredo Pimentel, um dos
fundadores. (SANDRONI, 2013, p. 13).

A ―deslumbrante capa litografada a cores‖ a que se refere o anúncio de 1984,


manteve-se inalterada até pelo menos a década de 50 do século XX, conforme se
pode ver na reprodução a seguir:

Fonte: Histórias da Avósinha, 1952, Biblioteca Infantil Quaresma. Acervo da pesquisadora

Segundo Arroyo (1988, p. 223), ―a rigor, no Brasil, seria difícil estabelecer o


marco cronológico da técnica ilustrativa para as estórias destinadas às crianças‖, não
sendo este o objetivo do presente artigo.
Ainda segundo este mesmo autor (1988), os livros publicados no Brasil traziam
apenas ilustrações em preto e branco, estando as ilustrações coloridas presentes
apenas naqueles livros publicados no exterior, especialmente na França e na
Inglaterra, e disponibilizados para venda por estabelecimentos comerciais daqui.
Seguindo essa proposição de Arroyo (1988), infere-se que as obras traduzidas
por Jansen e comercializadas pela Lammert & C. possam realmente ter sido editadas
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na Europa, ao contrário das obras publicadas pela Livraria Quaresma, impressas no


Brasil.
A Biblioteca Infantil Melhoramentos
No que se refere a sua trajetória editorial, a Biblioteca Infantil Melhoramentos
foi uma coleção de livros destinados à infância brasileira, de formato pequeno,
publicados pela Weiszflog Irmãos – estabelecimento gráfico que se tornaria,
posteriormente, a Editora Melhoramentos. A coleção foi idealizada pelo Prof. Arnaldo
de Oliveira Barreto, e o primeiro título publicado, em 1915, foi O patinho feio, deHans
C. Andersen. A coleção foi encerrada com a publicação do número 100, em 1958, e
pode ser dividida em duas fases (MAZIERO, 2015).
Durante a primeira fase, que vai de 1915 a 1925, esteve sob a
responsabilidade de seu idealizador e organizador, o Prof. Arnaldo de Oliveira Barreto,
representante da corrente de professores normalistas do chamado ―período áureo‖ da
educação paulista. Já durante a segunda, que engloba o período compreendido entre
1926 e 1958, a coleção passou a ser coordenada pelo Prof. Manoel B. Lourenço Filho,
representante da corrente que valorizava a psicologia como instrumento para se
reformar a educação, e que propôs uma série de mudanças no ensino paulista, no
interior do que ficou conhecido como movimento escolanovista.
Todos os 28 livrinhos publicados enquanto a coleção esteve sob a
coordenação do Prof. Arnaldo de Oliveira Barreto foram ilustrados por Franta Richter,
um pintor tcheco que se estabeleceu na cidade de São Paulo, tendo realizado
inúmeros trabalhos para a Weiszflog Irmãos, posteriormente Editora Melhoramentos. A
beleza e o colorido das ilustrações de Richter parecem ter marcado a infância de
muitas crianças, uma delas a reconhecida escritora de livros infantis e juvenis Ana
Maria Machado, que associa os livrinhos a suas primeiras experiências leitoras:
Como a maioria dos leitores, tive meu primeiro contato com contos de
fadas ainda antes de saber ler.
[...]
Em seguida, os primeiros livros infantis que conheci também faziam
parte desse universo. Havia uma coleção deles que me parecia um
tesouro, com pequenas e encantadoras ilustrações coloridas ou a
bico de pena, de Franta Richter, pintor tcheco radicado em São
Paulo. Eram bem pequeninos, num tamanho bom para serem
folheados por mãos miúdas. Muito mais tarde fui descobrir que eram
parte da Biblioteca Infantil, organizada em 1915 pelo professor
Arnaldo de Oliveira Barreto para a editora que depois se chamaria
Melhoramentos, mas na ocasião ainda era Weiszflog Irmãos. Eu tinha
paixão por essas histórias. Nunca vou esquecer da imagem da
clareira na floresta em que os anõezinhos montavam guarda ao
caixão de vidro de Branca de Neve. Ou da belíssima garça branca
que dominava o primeiro plano da paisagem com que se abria O
patinho feio. Aos poucos fui também dominando as dezenas de
relatos com pequenas figuras sombrias em preto e branco que
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compunham os volumes da editora Quaresma (Contos da


Carochinha, Histórias do arco da velha e outras). (MACHADO, 2010,
p. 8).

A seguir, uma breve análise da contribuição de F. Richter para o campo da


ilustração de livros para a infância no Brasil, a partir do trabalho que realizou como
ilustrador da coleção ―Biblioteca Infantil Melhoramentos‖.

Franz Richter, ilustrador dos livros da Biblioteca Infantil Melhoramentos


―Capa dura, com as ilustrações de uma avó clássica rodeada por crianças que
a ouvem contar histórias‖ (DONATO, 1990, p. 50). Assim era a capa de todos os
livrinhos da Biblioteca Infantil Melhoramentos, criada e executada por F. Richter e que
passou a funcionar como elemento identificador e unificador, à medida que se
manteve igual em todos os volumes da primeira fase da coleção, tendo sido
substituída apenas por volta de 1937, quando Lourenço Filho impôs mudanças no
projeto gráfico e no conteúdo dos livros da coleção.

Fonte: O patinho feio, 1915, edição fac-similar. Acervo da pesquisadora.

Ao se tratar de obras para crianças, como já se afirmou anteriormente, as


ilustrações assumem papel bem mais significativo, podendo funcionar também como
estratégia para fragmentar o texto, em um apelo direto à visualidade, evitando assim
que o leitor infantil se canse. No caso dos volumes da Biblioteca Infantil
Melhoramentos, as ilustrações são apontadas como o diferencial da coleção em

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praticamente todas as obras de referência pesquisadas, que destacam o seu ―rosto


colorido e a figura simpática da vovozinha cercada de netos‖ (ARROYO, 1988, p. 187).
Quanto ao traçado, as ilustrações são de tamanho regular (se considerarmos
o formato da página), medindo cerca de 7 cm por 6 cm, aparecendo sempre uma por
página, no início ou no final desta. Algumas vezes, aparecem intercaladas ao próprio
texto, o que dá leveza, fracionando o escrito e sugerindo um leitor infantil preparado
para lidar apenas com textos menos densos e que precisa das ilustrações como
complemento concreto para o conteúdo textual.
A posição de cada uma delas dentro da história é determinada pela cena que
ilustram: aparentemente, são cenas consideradas importantes pelo organizador da
coleção ou pelo próprio ilustrador, não há como saber ao certo. Para exemplificar essa
correspondência entre texto e ilustração, O patinho feio traz, já no alto da primeira
página, uma ilustração primorosa mostrando uma cegonha contemplando o que
parece ser um lago. O texto verbal, logo abaixo, diz: ―As cegonhas, do alto das suas
longas pernas vermelhas, olhavam para as águas azues do tanque... [...]‖ (O patinho
feio, s/d, p. 3). Pode-se perceber, assim, que o texto escrito foi o mote para que o
ilustrador criasse a gravura.

Fonte: O patinho feio, 7ª ed., s/d, Comp. Melhoramento de S. Paulo Weiszflog Irmãos
Incorporada – Acervo da pesquisadora.

Essas ilustrações coloridas foram todas feitas pelo pintor e desenhista tcheco
radicado no Brasil, Franta Richter. Também encontramos referência a ele como

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―Franz‖ e ―Francisco‖ Richter, mas não foi possível localizar informações biográficas
mais detalhadas a seu respeito, nem mesmo nas publicações da própria
Melhoramentos sobre os 100 anos de história da editora.
As escassas informações obtidas foram publicadas em reportagem da
Revista IstoÉ Senhor, de 19/9/90, que noticia a exposição ―Era uma vez... O Mundo
Mágico da Arte de F. Richter‖, realizada no MASP como parte das comemorações dos
100 anos da Editora Melhoramentos.
Segundo esta fonte131, ―Franta (Franz, em alemão) Richter nasceu em Praga,
em 1872. Chegou ao Brasil em Agosto de 1913, à procura de motivos tropicais [...].
Com a guerra, prolongou a sua estada se radicando em São Paulo, e por aqui ficou
até sua morte, em 1964.‖ 132
F. Richter foi o primeiro ilustrador da Irmãos Weiszflog, para quem fez cerca
de mil aquarelas para mais de 100 livros. Dono de uma técnica refinada, ―desenhista
com um domínio completo da técnica da aquarela e do nanquim; ilustrou dezenas de
livros da série Biblioteca Infantil da Companhia Melhoramentos de São Paulo, onde
trabalhou até a década de 40‖ (Revista IstoÉ Senhor, 19/9/90, p. 88).
Na época em que Richter fez as ilustrações para a Irmãos Weiszflog ―ainda
não havia a técnica do fotolito e tudo era feito de uma forma quase artesanal, através
da litografia em pedra, onde se inscrevia o desenho‖ (Revista IstoÉ Senhor, de
19/9/90, p. 88). A técnica utilizada em O patinho feio, por exemplo, é a ―trichromia‖133,
conforme anuncia o catálogo da Melhoramentos de 1924, destacando que ―os contos
são farta e primorosamente ilustrados‖ nessa técnica.
O destaque dado a esta técnica e a valorização da habilidade artística de
Richter parecem indicar um investimento significativo da editora e do organizador da
coleção na qualidade gráfica da Biblioteca Infantil Melhoramentos, o que indicia tratar-
se de uma inovação para a produção infantil da época. Aqui, verifica-se o uso de
aquarelas feitas especialmente para uma coleção, e não mais a prática do uso de

131
Reportagem assinada por Ivan Cláudio. Revista IstoÉ Senhor/1096, de 19/9/90, p. 88.
132
O Jornal O Estado de S. Paulo, de 7 de abril de 1964, p. 16, publicou a seguinte nota: “FRANCISCO
RICHTER – Faleceu ontem, nesta Capital, aos 81 anos, o sr. Francisco Richter, casado com d. Maria
Richter. Deixa a filha d. Inês Bukvar, casada com o sr. Antonio Bukvar. Foi também seu filho João
Richter, falecido. Deixa também netos e bisnetos. O feretro sairá hoje, às 14 horas, do Hospital Santa
Helena, na rua Vergueiro, 17, para o cemiterio de Campo Grande.”
133
“Tricromia processo fotomecânico que permite obter a reprodução de um documento em cores por
meio de três clichês destinados a imprimir cada um na mesma folha de papel uma das três cores
primárias, amarelo, magenta, azul: fototricomia. Estes três clichês são obtidos por seleção fotográfica
ou eletrônica. A sobreposição das três cores primárias restitui, em princípio, todas as cores do
original.” (FARIA, M.I.R., 2008, p. 714).
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chromos e gravuras ―padronizados‖ para ilustrar obras infantis, prática utilizada em


obras infantis da Livraria Quaresma e da própria Laemmert.
Apesar do cuidado da editora e do organizador da Biblioteca Infantil
Melhoramentos em relação às ilustrações, no entanto, duas informações encontradas
sobre este aspecto precisam ser melhor contextualizadas:
1) O patinho feio ―teria sido, no Brasil, o primeiro livro infantil com ilustrações
em cores‖ (grifo meu), conforme afirmação de Coelho134;
2) ―há 75 anos era editado no Brasil o primeiro livro para crianças com
ilustrações em cores.O patinho feio, um marco na editoração de livros infantis no País,
está sendo relançado em fac-símile na comemoração dos 100 anos da Companhia
Melhoramentos de São Paulo‖ (ISTOÉ Senhor, 19/9/90). (grifos meus).
Nos dois casos, não é citada a fonte de onde a informação foi retirada, mas
ambas as afirmações – a de uma pesquisadora acadêmica e a de um jornalista de
uma revista de renome – destacam o fato de O patinho feio ter sido o primeiro livro
infantil para crianças no Brasil com ilustrações em cores; o único dado diferente entre
ambos é o fato de a notícia de jornal trazer o termo ―editado‖.
Essa informação de que os livrinhos teriam inaugurado a ilustração em cores
na literatura infantil brasileira destaca-se, por se constituir em forte indício do caráter
inovador da coleção. No entanto, outras obras infantis publicadas antes de 1915 já
traziam ilustrações e ―chromos‖ em cores, como por exemplo, as edições da Laemmert
das obras de Carlos Jansen, que vários estudiosos (ARROYO, 1988; LAJOLO e
ZILBERMAN, 1987) apontam como pioneiro na publicação de obras para o público
não adulto.
O fato, ao que parece, é que já havia livros com ilustrações em cores
destinados ao público infantil brasileiro antes de 1915, inclusive os livros de leitura das
séries escolares. A diferença talvez fosse – não temos competência técnica para
avaliar – a qualidade, já mencionada, que os recursos gráficos das oficinas da Irmãos
Weiszflogpossam ter proporcionado para viabilizar a impressão das ilustrações de F.
Richter, a quem as fontes consultadas se referem como um pintor extremamente
talentoso, de estilo requintado e que dominava o uso das cores e o jogo de luz e
sombra com muita maestria.
Outra possibilidade, que também não foi possível confirmar, seria o fato de as
ilustrações e ―chromos‖ em cores da Laemmert serem apenas reproduções de

134
Texto ―O retorno de O patinho feio‖, apresentação da edição fac-similar do primeiro número
da B. Infantil Melhoramentos, publicado em 12 de setembro de 1990, em comemoração aos
75 anos de lançamento da obra.
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gravuras originalmente produzidas em outros países, mais precisamente naqueles em


que os títulos foram editados inicialmente. Nesse caso, O patinho feio seria mesmo
uma novidade no campo dos recursos gráficos: as gravuras que o ilustram são
aquarelas de um pintor radicado no Brasil e reconhecido pela qualidade de seus
quadros, para serem reproduzidas com os recursos técnicos de um estabelecimento
gráfico também estabelecido no país, especialmente para fazer parte de uma obra
traduzida/adaptada por um autor também brasileiro.

Também anúncio de Contos da Carochinha da Livraria Quaresma, de 1912, já


anunciava que o volume estava ―cheio de estampas coloridas – finíssimos chromos a
oito cores‖ (Jornal A Epoca, 25/10/1912, p. 5). Não foi possível consultar nenhum
exemplar deste título com data anterior a 1915, mas o anúncio demonstra claramente
o fato de que se trata de um livro infantil ilustrado em cores.
De tudo isso, talvez seja possível pensar que O patinho feio pode não ter
inaugurado propriamente a ilustração em cores nos livros brasileiros para crianças,
mas certamente representou um passo além no sentido de trazer para este campo um
maior apuro técnico, um novo ilustrador e uma esmerada qualidade artística, itens até
então não disponíveis no mercado das obras destinadas ao público infantil.
Na análise dos exemplares publicados no período em que Arnaldo Barreto
coordenou diretamente a coleção Biblioteca Infantil Melhoramentos, uma
particularidade sobre as ilustrações merece ser apontada: não está explicitado na
capa ou na página de rosto (como acontece nos livrinhos editados na fase sob a
direção de Lourenço Filho), o nome do ilustrador, F. Richter, embora a identificação
seja reconhecida pelos registros da editora e pela bibliografia consultada. Contudo,
observando detidamente as ilustrações de O patinho feio, nota-se um FR, as iniciais
do autor, colocadas no canto inferior direito de cada gravura, procedimento que não se
repete em O vellocino de ouro (terceiro volume da coleção), publicado no mesmo ano
de 1915.

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Fonte: O patinho feio (1915), edição fac-similar – Acervo da pesquisadora.

Já em O soldadinho de chumbo, edição de 1921 que traz outras duas


histórias, não se encontram as iniciais nas gravuras, mas na última página do livro, ao
final do triste conto de Andersen A pequenavendedora de phosphoros (terceira
narrativa trazida pelo volume), aparece uma espécie de ―selo de identificação‖
marcando a autoria das ilustrações: a figura de um anjo, cuja auréola é composta por
fósforos apagados (alusão ao enredo da história?), tendo abaixo a inscrição
F.RICHTER, em maiúsculas. A oscilação verificada entre a identificação do ilustrador
nas primeiras edições de 1915 (com iniciais ou sem nenhuma referência) e a de 1921
(com a abreviatura do nome em letras maiúsculas) parece apontar para uma
instabilidade da importância dada ao reconhecimento do direito à autoria nas
ilustrações por parte da editora, naquela época.

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Fonte: O soldadinho de chumbo, 3ª edição, 1921. – acervo da pesquisadora

Uma busca nos 28 títulos da primeira fase da coleção mostrou que apenas
11 trazem a ―assinatura‖ ou ―marca de autoria‖ de F. Richter, a saber: Livro I: O
patinho feio; Livro II: O soldadinho de chumbo; Livro VI: Viagens maravilhosas de
Sindbad, o marinheiro; Livro VIII: O califa Storck; Livro IX: As três cabeças de ouro;
Livro XII: O gato de botas; Livro XIV: O sargento verde; Livro XVI: O lago das pedras
preciosas; Livro XVII: A festa das lanternas; Livro XIX: Aladino e a lâmpada
maravilhosa; XXIII: Ali-Babá e os quarenta ladrões.
Quanto às ilustrações dos demais títulos, não há nenhuma menção ao
ilustrador, e as pinturas não trazem qualquer tipo de identificação, mesmo tendo sido
feitas pelo mesmo F. Richter.
A marca de identificação, quando presente, varia de um simples FR, as
iniciais do ilustrador, a um F.RICHTER, mas em alguns livrinhos encontra-se
novamente uma figura mais elaborada, que além da assinatura faz referência indireta
ao enredo – a exemplo do que já descrevemos em O soldadinho de chumbo –
aparecendo sempre na última página do livro, conforme mostrado a seguir:

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Fonte: O gato de botas, 2ª edição, 1921 – acervo da pesquisadora. Obs.: As figuras se referem
à segunda história trazida pelo volume: ―Branca de Neve‖. Trata-se de anões que seguram
maçãs (envenenadas?) – elemento importante para o enredo.

Fonte: O sargento verde, 4ª e 5ª edição, s/d – acervo da pesquisadora.


Obs.: A figura se refere ao final da segunda narrativa do volume: ―Linda Flôr‖; trata-se
dos cinco filhos desta princesa com o rei.

Ainda sobre as ilustrações, algumas são coloridas, mas a maioria delas é em


preto e branco, o que é compreensível, tendo em vista as dificuldades técnicas para se
reproduzir as cores precisas e primorosas das aquarelas de F. Richter, cujos originais
foram preservados, encontrando-se depositados nos arquivos da Editora
Melhoramentos, além das implicações econômicas. Do ponto de vista da tradição e da
inovação, o fato de os livrinhos terem majoritariamente figuras em preto e branco

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remetem para a prática encontrada em outras obras infantis do período, mas o fato
das ilustrações terem sido feitas a partir de aquarelas e não de cromos, pode ser visto
como inovação.
Para Roger Chartier (1990, p. 137 e 138),
O primeiro [modelo de compreensão para explicar os textos, os livros
e as suas leituras] põe em contraste disciplina e invenção,
considerando estas duas categorias não como antagónicas, mas
como sendo geridas a par. Todo o dispositivo que visa criar controlo e
condicionamento segrega sempre tácticas que o domesticam ou o
subvertem; contrariamente, não há produção cultural que não
empregue materiais impostos pela tradição, pela autoridade ou pelo
mercado e que não esteja submetida às vigilâncias e às censuras de
quem tem poder sobre as palavras ou os gestos. [...]
Disciplina e invenção, mas também distinção e divulgação. Este
segundo par permite propor uma compreensão da circulação dos
objetos ou dos modelos culturais que não se reduz a simples difusão,
pensada geralmente como um movimento descendente na escala
social. Os processos de imitação ou vulgarização são mais
complexos e mais dinâmicos e devem ser entendidos, antes de mais
nada, como lutas de concorrência onde toda a divulgação, concedida
ou conquistada, produz imediatamente a procura de uma nova
distinção. (grifos meus).

A análise da materialidade dos livros talvez revele esse caráter inovador da


Biblioteca Infantil Melhoramentos do ponto de vista editorial e visual, evidenciando a
necessidade de se levar em conta as mudanças que a passagem do tempo acarreta
no gosto dos leitores.

Considerações Finais

A análise das ilustrações trazidas pelos 28 primeiros volumes da Biblioteca


Infantil Melhoramentos, publicados no período entre 1915 e 1925, mostram o trabalho
de um artista, um pintor europeu que se radicou no Brasil, e que usou toda a sua
habilidade e arte para ilustrar livros infantis, num tempo histórico em que tais obras
não tinham o mesmo reconhecimento dedicado às obras impressas para o público
adulto.
Também evidencia o papel ―secundário‖ desempenhado pelo ilustrador na
ordem do impresso no final do século XIX e início do XX – pelo menos aqueles que
ilustravam obras infantis. Enquanto há na capa e na página de rosto de todos os
exemplares o nome do autor da história original (C. Perrault, I. Grimm, Andersen, etc.),
seguido do nome do adaptador do texto apresentado em cada volume (no caso da
Biblioteca Infantil Melhoramentos, o Prof. Arnaldo de Oliveira Barreto), não parecia ser

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costume indicar-se o nome do autor das ilustrações, mesmo em se tratando de um


artista reconhecido como F. Richter.
Se por um lado isso parece seguir um procedimento que já vinha sendo
adotado em outras obras infantis publicadas no período por outras editoras, no caso
dos livros da primeira fase da Biblioteca Infantil Melhoramentos, o ilustrador parece ter
consciência da importância e da singularidade do trabalho que desenvolve,
―assinando‖ algumas ilustrações de um modo bem peculiar, ou ainda apondo suas
iniciais no canto inferior de cada uma delas, numa prática semelhante à que se
observa em quadros produzidos por pintores de todos os tempos, consagrados ou
não.
Da análise das obras, portanto, emerge um artista com domínio total de sua
arte, que cria aquarelas especialmente para uma coleção de livros infantis, em um
tempo no qual a prática usual era a utilização de cromos e gravuras ―padronizados‖
para ilustrar tais obras, com qualidade de impressão precária, em alguns casos. Um
artista que põe sua alma na ponta do pincel para tocar o coração das crianças que
leram os volumes da coleção, as quais, através das ilustrações apuradas que ele fez,
puderam sentir mais fundo as dores, angústias e redenção vividas pelo Patinho Feio,
ou sonhar com a magia de heroínas como Cinderela, Branca de Neve ou Chapeuzinho
Vermelho, inaugurando no Brasil um novo padrão de qualidade no campo das
ilustrações dos livros para o público infantil.

Referências

ARROYO, L. Literatura Infantil Brasileira. São Paulo: Melhoramentos, 1988.


CHARTIER, R. ―Textos, impressos, leituras‖. In A História Cultural – entre práticas e
representações, RJ. Bertrand, 1990.
CLAUDIO, I. Era uma vez... Revista ISTOÉ SENHOR, Nº 1096, 19/9/1990, p. 88.
DONATO, H. 100 anos da Melhoramentos: 1890-1990. São Paulo: Melhoramentos,
1990.
FARIA, M. I. R. de. Dicionário do Livro: Da Escrita ao Livro Eletrônico. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2008.
JORNAL A Epoca, ed. de 25/10/1912, p. 5, disponível em
<http://hemerotecadigital.bn.br/>, acesso em jul./2017.
JORNAL DO BRASIL, ed. de 24/11/1884, p. 4, disponível em
<http://hemerotecadigital.bn.br/>, acesso em jul./2017.
LAJOLO, M. e ZILBERMAN, R. Literatura Infantil Brasileira – História & Histórias. São
Paulo: Ática, 1987.
______, ______ Um Brasil para crianças: para conhecer a literatura infantil brasileira:
história, autores e textos. São Paulo: Global, 1986.
MAZIERO, M.D.S. Arnaldo de Oliveira Barreto e a Biblioteca Infantil Melhoramentos: histórias
de ternura para mãos pequeninas (MAZIERO, M.D.S.M.). Tese de doutorado. FE/Unicamp,
2015.

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MACHADO, A. M. Contos de fadas de Perrault, Grimm, Andersen & outros. Rio de


Janeiro: Zahar, 2010.
SANDRONI, L. Um pouco de história sobre a ilustração de livros para crianças no
Brasil. In SERRA, E. (org.). A arte de ilustrar livros para crianças e jovens no Brasil.
Rio de Janeiro: FNLIJ, 2013.

Obras infantis consultadas para análise de ilustrações:

ANDERSEN, Hans. O patinho feio. O Anjo. São Paulo: Weiszflog, 1915 (Bibliotheca
Infantil, Livro I) – Edição fac-similar.
______ O patinho feio. O Anjo. São Paulo: Comp. Melhoramento de S. Paulo
Weiszflog Irmãos Incorporada, s/d. (Bibliotheca Infantil, 1)
______ O soldadinho de chumbo. O cofre que voa. A pequena vendedora de
phosphoros, 3. ed. São Paulo: Comp. Melhoramentos de S. Paulo, Weiszflog Irmãos
Incorporada . (Bibliotheca Infantil, 2).
BARRETO, A. de O. A galinha dos ovos de ouro. A rainha das abelhas. Os três ramos
verdes. São Paulo: Edições Melhoramentos. (Biblioteca Infantil, 21)
______ O sargento verde. Linda Flor.4. e 5. ed. São Paulo: Comp. Melhoramentos de
S. Paulo, Weiszflog Irmãos Incorporada. (Biblioteca Infantil, 14).
PERRAULT, C. O gato de botas. Branca de Neve, 1921. 2. ed. São Paulo: Comp.
Melhoramentos de S. Paulo, Weiszflog Irmãos Incorporada. (Biblioteca Infantil, 12)
JANSEN, C. As aventuras maravilhosas do celeberrimo Barão de Munchhausen. Rio
de Janeiro: Laemmert & C. Livreiros-Editores, 1902.
______ Contos seletos das mil e uma noites. Rio de Janeiro e São Paulo: 1908, 2. ed.
PIMENTEL, F. Contos da Carochinha. Rio de Janeiro: Quaresma, 1925, 18. ed.
(Biblioteca Infantil da Livraria Quaresma)
______ Histórias da avozinha. Rio de Janeiro: Livraria Quaresma, 1952. (Biblioteca
Infantil da Livraria Quaresma.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

IMAGENS DE BRUXAS: (DES)CONSTRUINDO


REPRESENTAÇÕES NA LITERATURA INFANTIL
CONTEMPORÂNEA135

Alexsandra Alves de Brito, Instituto Federal do Rio Grande Sul, Eixo temático 5
Daniela Ripoll, Universidade Luterana do Brasil, Eixo temático 5

Considerações Inicias

As personagens bruxas, tradicionalmente antagonistas nos contos de fadas,


têm desempenhado o papel de protagonistas em muitas histórias de publicação
recente. Essa transposição de lugar nas narrativas contemporâneas para crianças tem
resultado em diferentes representações para as bruxas. A linguagem visual articulada
à linguagem verbal tem relevante função na construção dessas representações. Este
estudo discorre principalmente sobre a relevância da linguagem visual e do papel por
ela desempenhado na literatura infantil recente, bem como sobre a construção
imagética das representações de bruxa que se articulam a outros ícones, verbais e
não verbais, nesta literatura.
A leitura de uma obra literária, em especial quando direcionada ao leitor
infantil, deve ser lida como um todo levando-se em consideração a relação
intercambiante entre as palavras, imagens e signos diversos na constituição dos
sentidos. Neste estudo, pretendo, primeiramente, contextualizar, de forma breve, as
principais transformações ocorridas nas últimas décadas sobre a linguagem visual dos
livros infantis, com base, principalmente, nos estudos de Helen Lemos (2009) e
Graça Ramos (2011). Em um segundo momento, tenho a intenção de verificar quais
tendências têm se destacado na construção das representações da personagem e
pontuar algumas questões que precisam ser consideradas, segundo os critérios
delimitados por Ramos (2011), para a avaliação de livros infantis no que concerne à

135
Texto derivado da Dissertação de Mestrado Representações de bruxas na literatura infantil
contemporânea, orientada pela Prof.ª Dr.ª Daniela Ripoll (ULBRA-Canoas, 2016)
776

comunicação visual. Para tal, são analisados cinco livros de literatura infantil
contemporâneos (2009-2015) que trazem as personagens bruxas como protagonistas
das histórias. São eles:
Livro 1 - Uxa, ora fada, ora bruxa (ORTHOF e ORTHOF, 2014);
Livro 2 - Samanta gorducha vai ao baile das bruxas (TWINN e MEYRICK, 2011)
Livro 3 - Mas como se espevita essa bruxa Benedita!(GOMES e NEGRO, 2009);
Livro 4 - A bruxinha e o dragão (ALPHEN, 2012);
Livro 5 - Trudi e Kiki (FURNARI, 2010).

Percorrendo caminhos: palavras, imagens livros

Desde os primeiros dias de vida, iniciamos o conhecimento e a decodificação


do mundo por meios das imagens e outros códigos. Somos imediatamente inundados
com formas, cores, texturas, com as quais compreendemos e construiremos
concepções sobre as coisas e os sujeitos nos primeiros anos de vida. Inicialmente, a
leitura visual costuma ocorrer de forma muito instintiva, aleatória. Lemos (2009), em
sua tese de doutoramento, afirma que não basta vermos as imagens ou interagirmos
com elas intuitivamente, mas precisamos desenvolver a capacidade de ―ver‖ como
forma de apreender e compreender o mundo. ―Este ‗ver‘ pressupõe perspicácia para
transpor a visualidade superficial da imagem e absorver o que se constitui em ‗pano de
fundo‘, nas ‗entrelinhas‘, ao realizarmos um exercício de analogia com o texto escrito‖
(LEMOS, 2009, p. 50). Segundo a autora, a leitura da linguagem visual constitui-se em
um processo complexo que exige muito mais do que ―as tendências naturais‖ para a
apreciação das imagens, mas exige outro nível de leitura para se chegar à
―alfabetização visual‖. Este patamar só pode ser alcançado, conforme Lemos (2009),
através de estudo e exercício de modo que se alcance a familiaridade com suas
diferentes formas de expressão, pois a linguagem visual tem sua própria ―sintaxe‖.
Ramos (2011) argumenta que vivemos em um contexto de produção massiva
de imagens veiculadas pelas mais diversas mídias. Estamos imersos em uma grande
diversidade de experiências visuais que, em sua maioria, não passam por critérios de
análise. Essas imagens, segundo a autora, estão sendo consumidas de forma
massificada, como produtos em supermercados. Ramos (2011) nos diz ainda que,
apesar de temos uma extensiva prática na interpretação da palavra escrita, ainda há
muito a ser feito para que se amplie a leitura e a interpretação de imagens. A autora
alega que a leitura de um livro com imagens destinado às crianças enfrenta um sério
problema, pois há uma lacuna nos processos atuais de alfabetização. Ao mesmo
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tempo em que o imaginário infantil é construído por imagens (internet, games, filmes,
televisão, etc.), os processos de alfabetização continuam a se pautar na tradição
escrita. Ramos (2011, p. 41) alega que livros que apresentem linguagem visual que
prime pela inteligência, ambição, rigor e conceitos significativos podem ajudar muito
nesse processo. Segundo ela, para lermos uma narrativa imagética, temos que
modificar nosso modo de aproximação aos livros, que ainda focam na alfabetização
pela palavra. Contudo, faz-se necessário, primeiramente, que os intermediários entre a
criança e o livro sejam capazes de compreendê-la.
A imagem, no livro para crianças, foi adentrando sutilmente as primeiras
criações, como aquele personagem adjuvante, que tem pouco espaço no enredo e vai
ganhando a cena, construindo um caminho até estar protagonizando a história. Assim,
dos escassos desenhos em preto e branco que permeavam as páginas dos primeiros
livros infantis à infinidade de cores e imagens que invadem os livros contemporâneos,
a linguagem visual percorreu um intrincado caminho na cultura até assumir o papel de
destaque na maioria das publicações dirigidas ao público infantil na atualidade 136.
Os livros infantis no pós-guerra, segundo Ramos (2011, p. 61), obtiveram
significativa melhora em questão de qualidade de imagens, ampliaram sua ocupação
nos espaços antes destinados às palavras, todavia, não apresentaram muitas
novidades. O cinema, especificamente as produções da Disney, contribuíram para a
criação de um imaginário romântico, com imagens que tendem à ―perfeição‖, através
das animações adaptadas das histórias infantis e isso se transferiu aos livros para
crianças. A aliança entre o cinema e a televisão iniciou um processo de transposição
de seus principais traços (imagem, som e movimento) aos livros infantis. A isso se
associam, a partir da década de 1960, questionamentos em torno das concepções de
infância e do caráter pedagogizante desta literatura, além da crescente sobreposição
da cultura visual, o que ocasiona a introdução de novidades na produção desses
livros. A interação entre palavra e imagem se intensifica e esta última ganha força, ao
mesmo tempo em que se introduzem novas temáticas às histórias e o mundo vive
significativas transformações no comportamento.
Segundo Ramos (2011, p. 62 e 63), a produção das histórias em quadrinhos
(HQs) se expande a partir da década de 1930 e a sua linguagem, que articula imagem
e palavra, regida pelas artes e pela literatura, irá definir o livro ilustrado
contemporâneo. Segundo a autora, os quadrinhos se constituíram em narrativas
aparentemente simples, porém muito exigentes em sua leitura e decodificação dos
signos. Sobre a linguagem das narrativas em quadrinhos e a arte sequencial, Will
136
RAMOS, Graça (2011).
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Eisner desenvolve um estudo no qual examina sua estética singular e suas dimensões
artísticas e literárias. De acordo com Eisner (2001, p. 13):

A história em quadrinhos lida com dois importantes dispositivos de


comunicação, palavras e imagens. Decerto trata-se de uma
separação arbitrária. Mas parece válida, já que no moderno mundo
da comunicação esses dispositivos são tratados separadamente. Na
verdade, eles derivam de uma mesma origem, e no emprego
habilidoso de palavras e imagens encontra-se o potencial expressivo
do veículo (EISNER, 2001, p. 1).

A chamada arte sequencial irá instigar a produção do livro infantil a partir do


início do século XX e exigir que o leitor desenvolva tanto habilidades interpretativas
verbais, quanto visuais.
No Brasil, no início da década de 1980, muitas inovações são introduzidas na
produção dos livros para crianças. Conforme Ramos (2011, p. 63), um grupo de
autoras definidas pela estudiosa como uma ―geração talentosa‖ delineia novos
caminhos para a literatura infantil brasileira. Dentre as autoras citadas, Ramos (2011)
destaca o nome de Sylvia Orthof: ―admiro a forma como os textos de Orthof
estabelecem uma comunicação direta, quase crua, no tratamento com o pequeno
leitor‖ (RAMOS, 2011, p. 63).
Esta autora (Op. Cit.) afirma que, desde as primeiras publicações de Orthof, a
linguagem dos quadrinhos, das caricaturas e do humor eram elementos presentes em
suas composições. As ilustrações de suas histórias são elaboradas por traçados
simples, principalmente quando ilustradas por Gê Orthof, que transforma rabiscos em
desenhos, onde raramente imagem e palavras se misturam nas páginas. Os desenhos
de Sylvia Orthof e Gê Orthof são descritos por Ramos (2011) como ―despojados‖,
aproximando-se da linguagem rabiscada pelas crianças. O próprio ilustrador e filho da
autora, Gê Orthof, define a escrita da mãe como ―selvagem‖, ―não domesticada‖.
―Parecem rabiscos, mas não são. Deixam a impressão de inacabado, mas isso era
pretendido‖ (RAMOS, 2011, p. 67).
O livro 01, Uxa, ora fada, ora bruxa, de Orthof (2014),que integra o corpus
desta investigação, apresenta algumas dessas características apontadas por Graça
Ramos no que concerne ao texto visual. As ilustrações de Gê Orthof apresentam
traçados simples, despojados e os recursos dos quadrinhos também são explorados
ao longo do texto, como o uso de balões137 para expressar a fala e o pensamento das

137
Segundo Eisner (2001, p. 26), os balões nos quadrinhos buscam captar o som e torná-lo
visível. A maneira como são dispostos e a posição que ocupam no texto contribuem para a
medição do tempo e podem sugerir diversos outros significados. Com a ampliação do seu
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personagens, os desenhos sequenciais, que iniciam em uma página e continuam na


outra, dão a ideia de movimento à história. As linhas em espiral também indicam
movimento de pulos e o uso das interjeições (ufa!) e onomatopeias (mé!) nos balões
para expressar os sons dos animais nas ilustrações. Isso pode ser visto nas figuras a
seguir:

Figura 1: ilustração do livro Uxa, ora fada, ora bruxa. Fonte: Livro 2, p. 6 e p. 14.

uso, ao desenho dos balões foi atribuída a função de acrescentar significados e de


comunicar a característica do som à narrativa (fala, pensamento, a origem ou um tipo de
som específico) dentre outros.
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O livro 02 (TWINN, 2011) é outra obra que, apesar das ilustrações nada
convencionais, explora alguns recursos das histórias em quadrinhos como os balões
para demonstrar o pensamento das personagens, conforme a ilustração que segue:

Figura 2: Samanta e o ato Tarcísio pensam em comida enquanto se exercitam no spa.


Fonte: Livro 2, p. 21.

Os balões de fala dos quadrinhos e o uso de ícones facilmente reconhecíveis


como corações138 para expressar os sentimentos das personagens também se
manifestam nas ilustrações do livro 04 (ALPHEN, 2012).

138
Eisner (2001) mostra como os quadrinhos comumente valem-se de imagens extraídas da
experiência comum e do uso corrente a serviço da expressividade na narrativa.
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Figura 3: ilustrações do livro 4 exemplificam o uso de elementos das histórias em


quadrinhos na composição do texto visual. Acima, à esquerda, os dragões pedindo para
serem escolhidos pela bruxinha, acima, à direita, o cavaleiro apaixonado e abaixo a
bruxinha demonstrando que adorou o seu dragãozinho novo. Fonte: Livro 4, p. 6, 17, 42.
Assim como os balões, as linhas que expressam a ação ou movimento das
personagens também são utilizadas como recurso nos textos visuais de alguns dos
livros que integram o acervo desta pesquisa.
Furnari, no livro 5 (Trudi e Kiki), é outra autora que utiliza a linguagem dos
quadrinhos ao ilustrar os diálogos em tiras, por meio do enquadramento das cenas e
do uso dos balões de fala. Segundo Eisner (2001), o ato de colocar a ação em
quadrinhos é um dos critérios por meio do qual se julga a ilusão do tempo e, para ele,
―a habilidade de expressar o tempo é decisiva para o sucesso de uma narrativa visual‖
(EISNER, 2001, p. 26). A autora do livro 5 consegue, com este recurso, demonstrar
que os diálogos, nos dois mundos, estão ocorrendo simultaneamente. Ademais, os
quadrinhos permitem também que a narrativa explore o idioma criado para cada
personagem e enfatize que elas não estão conseguindo se entender por falarem
línguas diferentes. Com os recursos dos balões, a autora também consegue delimitar
a fala de cada uma mais claramente ao leitor.

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Figura 9: trecho do diálogo entre a mãe de Kiki e Trudi, a bruxinha, quando as meninas
são trocadas. Fonte: Livro 5, p. 26.

Figura 4: trecho do diálogo entre a mãe de Kiki e Trudi, a bruxinha, quando as meninas
são trocadas. Fonte: Livro 5, p. 26.

Orthof em diferentes textos visuais

A relevância do texto visual na construção dos sentidos e modo como este


dialoga com o texto verbal fica óbvia quando o mesmo texto é ilustrado por diferentes
ilustradores. De acordo com Ramos (2011), os livros de Sylvia Orthof, quando
ilustrados por ela, eram destituídos de qualquer moral, sem elaboração excessiva e,
de imediato, captavam o leitor infantil, rompendo com a distância entre ele e o
autor/ilustrador. Ramos (2011) argumenta que algumas edições mais recentes de
Orthof adquiriram um tom mais sério e contido, principalmente as ilustradas por Tato
em comparação às obras cujas ilustrações eram compostas por Gê Orthof, nas quais
a linguagem visual mantinha o tom humorístico e irônico dos textos. Se olharmos o
texto do livro 01, de Orthof (2014), ilustrado por Gê Orthof em comparação à sua

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primeira edição, quando ilustrado por Tato (1985), é possível perceber que o texto
visual imprime diferenças significativas no modo de leitura da história. A começar pela
capa do livro da primeira edição, em que vemos a figura da bruxa dividida em duas
(como se fosse uma imagem espelhada, onde as imagens se opõem, com a
demarcação das cores e dos traços que as distinguem):

Figura 5: ilustração de Tato para a capa do livro de Orthof (1985) em sua primeira edição.
Fonte: ORTHOF (1985)

A primeira edição deixa transparecer uma representação dualista da


personagem, enquanto que, na última, a bruxa é representada de forma ambivalente.
Na capa da edição de 1985, a bruxa é mostrada em posição inversa, na cor
roxa, de ponta cabeça, cabelos desarrumados, unhas enormes, agarrada na vassoura
que a identifica. Em oposição, a fada é ilustrada na cor rosa, cabeça para cima,
cabelos mais alinhados, óculos de coração, segurando com delicadeza sua varinha de
condão. O ilustrador faz um jogo com parte do título que aparece em uma fonte
espelhada para acompanhar a imagem e para conversar com o texto que propõe ao
mesmo tempo uma dualidade e uma inversão.
Já a última edição, com ilustrações de Gê Orthof, traz na capa uma única figura
representando a bruxa, porém, com os ícones das duas identidades: Uxa segura a
vassoura (e uma aranha) em uma das mãos e a varinha de condão na outra, usa os
óculos de coração da fada, mas traja vestido preto, chapéu (adornado com um gato) e
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sapatos pontiagudos, típicos da bruxa. Nesta última edição, já se torna evidente


também no texto visual que, apesar da dualidade, a identidade predominante é a da
bruxa. Nesta capa, várias cores são utilizadas, diferentemente da primeira, em que há
o uso restrito de apenas duas tonalidades. Além disso, o ilustrador utiliza distintas
fontes em diferentes tamanhos para dispor o título de modo casual, onde a palavra
fada é escrita em uma letra mais elaborada, enquanto a palavra bruxa aparece em
uma fonte mais despojada.

Figura 6: ilustração de Gê Orthof para a capa do livro de Orthof (2014) em sua última
edição. Fonte: Livro 01.

Ao longo do texto, na primeira edição, a relação entre texto verbal e visual vai
se construindo nas ilustrações de Tato por meio do emprego de duas cores, o rosa,
com carga semântica positiva, que representa o universo da fada, e o roxo, que
representa o mundo bruxo (ambas as cores remetem aos dois polos estruturadores do
texto, a bondade e a maldade). No trecho a seguir, a bruxa é representada por uma
imagem caricatural, toda em rosa, cercada por estrelas e borboletas, que indicam o
cenário da fada, em uma posição angelical, flutuando sobre nuvens com sua varinha.

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Figura 7: ilustração do texto do livro Uxa, ora fada, ora bruxa na primeira edição. Fonte:
ORTHOF e TATO (1985), p. 6.

Figura 8: ilustração do mesmo texto de Orthof para a última edição. Fonte: Livro 03, p. 8
e 9.

Já as ilustrações acima, desta última edição, dispõem os ícones do universo


das fadas aleatoriamente nas duas páginas do texto, porém, entre esses objetos,
aparecem o gato e o sapato preto, ícones que identificam a bruxa e que conotam a
presença da bruxa no mundo da fada, ou a permanência, de uma identidade na outra.
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Os desenhos de Gê Orthof são compostos por traços simples, multicoloridos, que se


aproximam do código visual infantil e propõem brincadeiras com as ―fantasias‖ da
bruxa-fada, das quais até o gato participa. A disposição dos desenhos, espalhados
pelas páginas sem uma base de apoio, confere um tom de leveza e movimento ao
texto.

Figura 9: ilustração de Tato para a 1ª edição do texto de Uxa, ora fada, ora bruxa. Fonte:
ORTHOF e TATO (1985), p. 10.

Figura 10: ilustração de Gê Orthof para a última edição do texto de Uxa, ora fada, ora
bruxa. Fonte: Livro 1, p. 10.

É possível observar, na comparação das ilustrações acima, do mesmo trecho


do texto de Orthof, nas duas edições (1985 e 2014), que a primeira expressa um tom

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mais contido e estático ao texto, talvez por ainda estar aliada a uma estética mais
tradicional que recém iniciava um processo de inovação dos livros ilustrados no Brasil,
enquanto a segunda conota maior movimento e continuidade da narrativa, ao compor
imagens grandes, que se iniciam em uma página e seguem na outra, inclusive
ultrapassando o limite das páginas, com traços esquemáticos e cores fortes. Essas
peculiaridades buscam captar a atenção do leitor infantil contemporâneo que já tem
um repertório visual ampliado.
Ademais, nas últimas décadas, ocorreram mudanças nas nossas percepções
de tempo e o modo de narrar as histórias teve que se adaptar a essas transformações.
Nesta direção, Eva Furnari, autora e ilustradora de suas obras, comenta, em entrevista
à Revista Emília139 (Julho de 2012), que o ritmo das narrativas teve que se adaptar a
esse tempo que vive o leitor atual: ―existe mesmo uma aceleração dada pelo
desenvolvimento das mídias, é uma aceleração mental, imagino‖.

Modos de olhar os livros infantis

O texto visual, nas histórias para crianças, desempenha algumas funções em


relação ao texto verbal. Ramos (2011, p. 146) enumera as principais funções a serem
exercidas pelo texto visual nos livros infantis: a reiteração, a contradição, a ampliação
ou a sugestão. Um olhar geral sobre os livros que integram o acervo desta pesquisa
permite dizer que, na maior parte deles, as ilustrações possibilitam a expansão do
texto verbal ou sugerem uma nova visualidade para o que está sendo narrado em
palavras. No entanto, em uma parte desses livros, é possível observar o predomínio
da reiteração do texto verbal.
Em relação às observações dos projetos gráficos apontadas por Ramos (2011),
os livros deste acervo apresentam pouca inovação quanto à materialidade, como
formatos diferenciados ou cortes especiais. Alguns deles inovam quanto à composição
interna das páginas. O livro de Eva Furnari explora os paratextos, as notas iniciais e
finais, para construir textos verbais e visuais paralelos que completam a narrativa. Ao
longo de seus textos, Furnari (2010) utiliza-se de vários gêneros textuais e recursos
intermediais (quadros, cartazes, convites, receitas, quadrinhos) que dispõem o texto
em formatos e enunciações gráficas diferenciadas. Outros livros também exploram
esses recursos, como o livro 2, Samanta gorducha vai ao baile das bruxas, que
apresenta uma nota final na contracapa do livro.

139
Disponível em http://www.revistaemilia.com.br/mostra.php?id=222 Acesso em: 22/11/2016.
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Quanto à disposição dos textos verbal e visual, os livros não apresentam


muitas inovações, já que todos seguem a tendência tradicional e colocam os dois
textos em separado, ou seja, o texto verbal é colocado fora das ilustrações, abaixo,
acima ou ao lado do texto visual. Alguns deles intercalam imagens e palavras em
partes do texto, como Furnari (2010), Orthof (2014) e Alphen (2012).
No que concerne aos traços utilizados na construção dos textos visuais dos
livros desta pesquisa, há uma predominância de desenhos figurativos, com imagens
reconhecíveis que buscam se aproximar da realidade. Dentre os livros analisados,
somente o livro 3, Mas como se espevita essa bruxa Benedita, constrói o texto visual
com traços abstratos, além do uso de cores intensas e contrastantes que reiteram a
representação da personagem no texto verbal: espevitada, espontânea e rebelde.

Figura 11: ilustração à esquerda, mostra a bruxa Benedita no ritual de magia com as
outras bruxas, à direita, os sapos invocados pela bruxa no ritual. Fonte: Livro 3, p. 15 e
p. 16.

O ilustrador deste livro, Maurício Negro, fala, nos paratextos, do processo


criativo do texto visual e das técnicas utilizadas para expressar nas imagens a
agilidade e a anarquia da personagem e, assim, acompanhar o texto verbal na história.
O livro 03 explora muito a potencialidade das cores e o contraste entre elas, onde
predominam as cores quentes que sugerem os estados de ânimo das personagens
(que é tenso, nervoso ou eufórico na maior parte do enredo). O vermelho, o laranja e o

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amarelo intensos são utilizados como pano de fundo nos trechos de maior euforia e
agitação na história. Já o preto cobre o fundo da narrativa, quando as bruxas ficam
furiosas com a intromissão da protagonista e o fundo se torna azul quando o equilíbrio
se reestabelece no desfecho.
De acordo com Ramos (2011), as cores quentes tendem a expressar o
dinamismo, a agitação ou nervosismo, já as cores frias transmitem calma, placidez. O
livro 4 é outro que explora a intensidade e o contraste entre as cores no texto visual,
com imagens que se ampliam e ocupam o espaço nas duas páginas. As tonalidades
de cores laranja e amarelo são empregadas também ao fundo das ilustrações em um
momento de tensão entre as personagens e de irritação dos dragões no texto,
conforme mostram as figuras que seguem:

Figura 10: ilustração do trecho da história em que os dragões se enfurecem com a


bruxinha porque ela não queria escolher nenhum deles para ser seu o dragão de
estimação. Fonte: Livro 4, p. 7 e p. 8.

Convém ainda ressaltar as características da linguagem visual utilizada por


Furnari (2010) no livro 5. As ilustrações dessa authorstrator140 são peculiares, com um
estilo próprio que é reconhecível em todo o conjunto de sua obra, já premiada e
reconhecida no Brasil e no exterior. A autora fez sua estreia nas histórias para
crianças nos anos 80, quando criou a personagem Bruxinha para o suplemento infantil

140
Expressão criada por Salisbury apud Ramos (2011, p. 67) a partir da junção das palavras da
língua inglesa author e ilustrator para designar o autor que ilustra a própria obra.
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a Folhinha do jornal Folha de São Paulo. Eram tirinhas só com imagens que deram
origem a uma série de histórias com a mesma personagem, em livros sem texto
verbal. Posteriormente, dez anosapós a criação de sua primeira personagem, a
escritora passa a combinar texto e imagem em outras publicações em uma
interconexão única, o que resultou em seu primeiro livro com imagens e palavras, A
bruxa Zelda e os 80 docinhos (FURNARI, 2014), em sua primeira edição em 1994.
Neste livro, os textos visuais são recheados de sentidos que ampliam a história
contada ou mesmo contam várias outras histórias não mencionadas pelo texto verbal.
Seus desenhos exigem uma leitura atenta e minuciosa, um diálogo intertextual
constante, pois cada detalhe é significativo.

Figura 13: ilustração do texto de Furnari (2010) quando as Kiki (à esquerda) e Trudi (à
direita) chegam em casa após receberem os convites para a festa das bruxas e para a
festa dos morceguinhos carentes, respectivamente. Fonte: Livro 5, p. 12 e p. 13.

Seus traços são repletos de um tipo de humor irônico. Como a própria autora
declara, suas ilustrações são inspiradas nos desenhos dos próprios leitores, ou seja,
nos desenhos infantis, muitas vezes por uma técnica impulsiva. ―São incríveis esses
desenhos infantis. Têm um humor genuíno, que não é só um humor da situação, é um

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humor do traço, do uso do material, um humor estético‖. 141 Todavia, Furnari declara
que há outras criações que exigem processos muito complexos com vários rascunhos,
horas de meditação até chegar ao resultado esperado. Os seus desenhos são criados
em rascunhos à mão livre, com lápis, papel e são coloridos com pincel e tinta pela
própria autora.

Palavras finais

No que concerne aos textos visuais, considero que alguns dos livros que
integram o acervo desta pesquisa se aliam às particularidades destacadas por Ramos
(2011) dos livros destinados a crianças na atualidade: a quebra com a linearidade
narrativa, as variações internas no design, a intertextualidade, os jogos de imagens, a
imposição de papéis ativos ao leitor, a multiplicidade de significados criando diferentes
públicos e a quebra de fronteiras entre cultura popular e alta cultura.
Sobre as possíveis relações que se estabelecem entre as duas linguagens
(verbal e visual) presentes nos textos analisados, acredito que a maior parte possa ser
inserida em uma das categorias propostas por Nikolajeva e Scott (LEMOS, 2009), em
especial a que chamou de interações de complementaridade expansiva. Essas
interações ―podem ocorrer na imagem e no texto, seja individualmente, seja
conjuntamente, sugerindo significados que ampliam o entendimento do que está
sendo expresso na reunião das duas linguagens‖ (LEMOS, 2009, p. 296). Nesses
casos, ocorre uma colaboração simultânea entre imagens e palavras e ambos são
capazes de complementar ou ampliar os significados sugeridos em uma ou outra
linguagem.
A julgar pelo espaço ampliado destinado às imagens na maior parte dos livros
estudados nessas análises, é possível dizer que o texto visual adquire maior
relevância em relação ao verbal, uma vez que, na maioria deles há o predomínio das
imagens em relação às palavras nas narrativas.
É importante considerar que, nas primeiras experiências de leitura da criança, o
diálogo entre o texto verbal e visual é extremamente relevante, pois é nas imagens
que o leitor iniciante busca apoio para a construção dos significados a partir da história
e para sanar as dificuldades comuns aos processos de inserção no mundo escrito. A
partir disso, alguns autores defendem a necessidade do papel do mediador nessas
leituras para auxiliar a criança a decodificar a linguagem visual. Ramos (2011) propõe

141
Disponível em http://www.evafurnari.com.br/pt/a-escritora/ Acesso em: 20/11/2016.
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uma mudança no enfoque dos processos de alfabetização atuais pautados na leitura


verbal, para dar um espaço maior à leitura visual. Todavia, outros problematizam a
participação do adulto como mediador nos processos de aproximação da criança com
o texto literário. Lemos (2009) argumenta que uma intervenção mal realizada pode, ao
invés de ajudar, prejudicar a sua trajetória como leitora. Segundo a autora, a mediação
consciente é um processo que deve ocorrer, por parte do adulto, em direção a
possibilitar ao leitor iniciante a própria construção dos caminhos para a leitura, para
que a criança possa decifrar, interpretar e produzir os próprios significados conforme a
leitura individual da obra.
O diálogo entre a linguagem verbal e a visual estabelece uma relação potente
que é capaz de ampliar significativamente a leitura do mundo pela criança, desde que
consiga se esquivar de clichês, de imagens estereotipadas, de conceitos pré-
concebidos culturalmente. Para tal, esse intercâmbio textual entre palavras e imagens
deve primar pela inovação em suas linguagens e pela criatividade artística, que
conduzem à expansão de possibilidades de produção de sentidos, distanciando-se de
amarras moralistas, atitudes condutivas, discursos prontos, que tendem a controlar ou
a tolher os comportamentos do sujeito infantil.
É possível dizer ainda que os textos visuais nas obras analisadas são
extremamente relevantes para desconstruir representações estereotipadas das
personagens bruxas e, ao mesmo tempo, construir novas representações que
dificilmente seriam delineadas somente em palavras.

Referências

EISNER, Will. Quadrinhos e arte sequencial. Martins Fontes: 2010.


LEMOS, Helen Denise Daneres. A dinâmica das interações visuais e verbais no
livro produzido para crianças – um olhar sobre o PNBE 2005. Tese (Doutorado) –
Faculdade de Educação – UFMG, Belo Horizonte, 2009.
RAMOS, Graça. A imagem nos livros infantis: caminhos para ler o texto visual.
Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

Obras infantis analisadas

ALPHEN, Jean-Claude R. A bruxinha e o dragão. São Paulo: Companhia das


Letrinhas, 2012.
FURNARI, Eva. Trudi e Kiki. São Paulo: Moderna, 2010.
GOMES, Lenice e NEGRO, Maurício. Mas como se espevita essa bruxa Benedita!
São Paulo, DCL, 2009.
ORTHOF, Sylvia e ORTHOF, Gê. Uxa, ora fada, ora bruxa. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira: 2014.
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ORTHOF, Sylvia e TATO. Uxa, ora fada, ora bruxa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira:
1985.
TWINN, M. e MEYRICK, Kathryn. Samanta gorducha vai ao baile das bruxas. Trad.
Gilda Aquino. São Paulo: Brinque-Book, 2011.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

LENDO IMAGENS: UMA ANÁLISE DO LIVRO ―A BRUXA E O


ESPANTALHO‖

Gabriele Góes da Silva, Faculdade de Ciências e Tecnologia - UNESP, eixo


temático Literatura infantil e as relações com a imagem
Renata Junqueira de Souza, Faculdade de Ciências e Tecnologia - UNESP,
eixo temático Literatura infantil e as relações com a imagem

Considerações Iniciais

Durante muito tempo as ilustrações em livros eram utilizadas apenas para


atrair os leitores, ou seja, para embelezar o texto escrito. Hoje nos deparamos com
ilustrações que contam as histórias, como podemos ver nos livros de imagens, nos
quais a narrativa não é apresentada pelo texto escrito, mas sim pelas ilustrações.
Apesar da existência de livros que apresentam a história exclusivamente com
as ilustrações, ressaltamos aqui a pouca importância destinada às leituras das
imagens por parte dos professores, atualmente, nas escolas. Autores como Rui de
Oliveira dão grande destaque a iniciação das crianças desde a mais tenra idade, à
leitura de imagens, o que não acontece com frequência no ambiente escolar.
Pensando nesta carência e na relevância das imagens para a formação do leitor,
apresentaremos a análise de um dos livros de imagens escolhido pelo Programa
Nacional Biblioteca da Escola – PNBE, ―a bruxa e o espantalho‖ (2014), do autor e
ilustrador mexicano Gabriel Pacheco.
O objetivo dessa apresentação é mostrar as relações entre os paratextos e o
texto visual e como tal relação pode facilitar a compreensão da leitura. Além disso, ao
valorizar todos esses aspectos do livro de imagem, podemos colaborar com o trabalho
a ser realizado em sala de aula, pois, desta forma, a criança será capaz de ler não
795

apenas o verbal, mas também o visual, e, por conseguinte, mais condições de


compreender e se expressar pelas mais diversas linguagens.
Trata-se de uma pesquisa qualitativa feita a partir da análise documental do
livro, à luz de estudiosos como, Faria (2013), Linden (2011) e Scott e Nikolajeva
(2011).

A leitura e as imagens

Uma das competências mais valorizadas em nossa cultura é o ato de ler,


esse saber se tornou uma necessidade em nossa sociedade, para Rildo Cosson
(2014, p.33), ler ―é um poderoso fator de inclusão social‖. Compreendemos uma leitura
que vai muito além da decodificação das palavras, mas sim, ler para compreender,
para produzir sentidos, para interagir com o mundo e consigo mesmo (COSSON,
2014).
Sabemos que, além das leituras verbais, existem as leituras visuais, e é
possível constatar a crescente produção literária infantil cujas ilustrações possuem
extrema importância nas narrativas. Todavia, essa compreensão da linguagem visual,
exige do leitor uma capacidade leitora para também ler as imagens.

A presença de mais de uma linguagem no suporte livro exige que o


leitor interaja com esses códigos para a efetivação de sentido. Dessa
forma, surge a necessidade de se estudar peculiaridades desses
textos e seus processos de leitura, a fim de identificar habilidades
necessárias para a leitura e de criar estratégias que favoreçam seu
desenvolvimento (RAMOS, 2011, p. 247).

Os livros de imagens, aqueles cuja narrativa se dá apenas por imagens, sem


texto escrito, exigem do leitor um olhar que seja capaz de lidar com a linguagem
visual. Geralmente, por tratar de uma literatura apresentada apenas por ilustrações, é
comum ver os indivíduos considera-la uma leitura fácil de ser realizada. Porém, trata-
se de uma suposição equivoca, que para Ramos e Nunes (2016, p.2) ―[...] podem ser
superadas pelo desvendar da imagem, procurando percebê-la como texto com
constituição própria, o que enriquece a produção de sentido‖. Ou seja, se
considerarmos as ilustrações como uma simples decoração do texto escrito,
estaremos ignorando os significados e sentidos que uma imagem possui.
Percebemos que a leitura das imagens se trata de uma prática, que assim
como a leitura do texto verbal, exige algumas habilidades que precisam ser
desenvolvidas no âmbito escolar. De acordo com Rui de Oliveira (2011, p.29), as
crianças deveriam ser iniciadas na leitura das imagens desde seu início na
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escolarização, pois, assim ―[...]. Certamente teríamos no futuro melhores leitores e


apreciadores das artes plásticas, do cinema e da TV, além de cidadãos mais críticos e
participativos diante de todo o universo icônico que nos cerca. ‖
Diante do exposto, cabe à escola preparar seus alunos para desenvolverem
certas habilidades, então, percebemos ser fundamental o papel do professor nesta
formação, para isso, é fundamental que ele também seja um leitor de imagens.

Nesse processo, é imprescindível que o professor seja um leitor


competente e esteja capacitado a atuar como mediador do texto,
auxiliando o aluno a rever leituras equivocadas e a ampliar os
sentidos construídos por meio da percepção e significação de
aspectos da obra ainda não observados (RAMOS; PANOZZO;
ZANOLLA, 2011, p. 247).

Assim sendo, acreditamos que o trabalho realizado em sala de aula, com a


leitura de livros de imagens e os elementos de sua narrativa, a compreensão das
ilustrações e o conhecimento da construção do livro (paratextos), contribuirão na
formação de leitores proficientes, e além disso, na formação de cidadãos ativos, pois
serão capazes de viver de forma participativa e influente na sociedade letrada a qual
pertencemos.
A seguir apresentaremos uma análise do livro selecionado, ―a bruxa e o
espantalho‖ (2014), publicado pela editora Jujuba.

Paratextos: a construção do livro

Os livros nascem da organização dos seguintes elementos, também


chamados de paratextos: formato, título, capa, guardas, folha de rosto, quarta capa
etc., por isso, torna-se necessário que os leitores deem atenção a eles. Nos livros
ilustrados ou livros de imagens, por exemplo, a narrativa pode se iniciar da capa e
chegar até a quarta capa, ou até mesmo os títulos, que para um livro cuja narrativa se
dá apenas por imagens, ―pode às vezes constituir uma porcentagem considerável da
mensagem verbal do livro‖ (NIKOLAJEVA; SCOTT, 2011, p.307).
Desse modo, a análise dos paratextos, contribuirá para que o leitor tenha
maior compreensão da narrativa, daí a importância de ser trabalhado em sala de aula,
mostrando sua influência na construção dos sentidos de um texto. A seguir
apresentaremos os paratextos segundo as definições das autoras Maria Nikolajeva e
Carole Scott (2011) e também da francesa Sophie Van der Linden (2011).

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Formato
O formato do livro é sim, um aspecto estético, que faz parte do design do
suporte, mas que também afeta nossa apreciação. De acordo com Nikolajeva e Scott
(2011, p.307), o formato do livro não é acidental, ―mas participa da totalidade estética‖,
que depende do objetivo do artista.
A obra analisada apresenta um formato horizontal (largura 30 cm X altura 24
cm), que revela uma visão panorâmica que, de acordo com Lee (2012, p.107) cria a
―relação entre a personagem e o ambiente‖. Possui 48 páginas, encadernado em
brochura, impresso em papel couchê fosco.

Título e capa
Na maioria das vezes é onde tudo começa, é sobre a capa e sobre o título
que lançamos nossos primeiros olhares. Esses aspectos são indissociáveis. De
acordo com Nikolajeva e Scott (2011, p.312), ―títulos de livros ilustrados são uma parte
muito importante da interação texto-imagem e contribuem para todos os tipos de
interação que observamos dentro dos próprios livros‖.
Na capa da obra analisada, temos o título, ―a bruxa e o espantalho‖, escritas
na cor amarela, todas as letras minúsculas, assim como o nome do autor, ―gabriel
pacheco‖.
Na ilustração visualizamos uma atmosfera sombria, sem muitas cores,
transparecendo uma sensação um tanto melancólica. Há um espantalho, o que nos
faz pensar que a história irá apresentar este personagem, fazendo uma ligação com o
título. Ele aparece vestido com um macacão escuro, uma blusa e um cachecol listrado
de preto e branco, com uma gola de palhaço que contém desenhos geométricos. Um
nariz de graveto na cor azul, uma cabeça feita com o que parece ser um saco cheio de
palhas com um nó na parte de cima e bochechas de pano laranja. Ele está amarrado
em dois paus no formato de uma cruz, com os braços longos, palhas saindo pelos
pulsos da manga comprida. Seus olhos parecem ter expressão por causa da
sobrancelha em formato triangular, trata-se, pois, de uma antropomorfização, já que
ao personagem atribui-se aspectos humanos.
Já a bruxa não aparece, mas se abrirmos a capa e quarta capa, veremos no
canto superior esquerdo uma roda, que poderia ser de uma bicicleta, um monociclo,
ou algo do tipo. Segundo Linden (2011, p.57), ―a capa de um livro é constituída pela
primeira e pela quarta capa. Elas podem ser independentes, mas também podem se
relacionar formando uma única imagem‖. Foi o que constatamos nesta obra.
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Quarta capa
Geralmente vemos a quarta capa, de certa forma, sendo ignorada pelos
leitores, é o que nos afirma Nikolajeva e Scott (2011). Segundo as autoras, é de
costume que os leitores, ao finalizarem a leitura do livro, suponham que o tenham
finalizado e fecham o livro sem dar atenção a quarta capa. Mas ―autores
contemporâneos de livros ilustrados contestam deliberadamente essa convenção
deixando uma pista decisiva da história aparecer na quarta capa‖ (NIKOLAJEVA;
SCOTT, 2011, p.319).
No livro ―a bruxa e o espantalho‖, percebemos a quarta capa utilizada como
uma continuação da capa, é composta por texto e imagem, traz apenas duas frases
que causam indagações, questionamentos e dúvidas ao leitor: ―Lá de cima cai uma
bruxa e se espatifa no chão. Como alcançar novamente o céu? ‖. Estas frases
colaboram para a compreensão do texto visual, já que menciona o fato da bruxa estar
no céu, o que leva o leitor a pensar a possibilidade daquela roda presente na quarta
capa, ser a bruxa voando. Além de induzir também a inferências do que estará
presente na narrativa do livro.

Guardas
Linden (2011) destaca que a função das guardas é a de ligar o miolo com a
capa, ou seja, uma função material, por esta razão, geralmente, nos livros de romance
são neutras na cor branca. Já no livro ilustrado as guardas são na maioria das vezes
coloridas. A autora ainda acrescenta que a guarda em relação com o livro, indica ―um
momento muito importante, o da abertura em duas concepções: de um objeto de duas
dimensões passando para uma terceira, e abertura do assunto‖. (LINDEN, 2011, p.59)
Alguns autores utilizam-nas ―como paratextos adicionais que contribuem de
várias maneiras para a história‖ (NIKOLAJEVA; SCOTT, 2011, p.314). Na obra
analisada, as guardas de abertura repetem um padrão, com arabescos florais na cor
preta e com o fundo azul, e na guarda do final são os mesmos desenhos, mas com o
fundo marrom. Podemos realizar uma leitura relacionando as cores com o ambiente
dos personagens, o azul da guarda inicial com o céu no qual vive a bruxa, enquanto o
marrom com a terra na qual o espantalho está preso.

Folha de rosto

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Com o papel de atender a convenções editoriais, a folha de rosto traz


informações como título, nome do autor, editora, pode também conter uma imagem
que se repete no miolo. Alguns ilustradores, tentam integrá-la à narrativa apesar de
seu caráter textual. (LINDEN, 2011).
No livro analisado, a página anterior à folha de rosto é utilizada para
apresentar a ficha catalográfica da obra. Interessante observar que na ficha há
indicações explicativas sobre cada detalhe desta convenção, por exemplo, ao lado do
ISBN, há uma flecha direcionando a uma explicação ―ISBN é um sistema internacional
que identifica o livro de forma numérica, como nosso RG‖, podemos pressupor que a
intenção seja de orientar o leitor.
Na mesma página, no canto esquerdo, há uma imagem das madeiras em
formato de cruz, mas sem o espantalho, com o cachecol listrado de preto e branco
pendurado, e nas extremidades do tronco horizontal, as linhas penduradas. Apoiado
na madeira, está o monociclo. Esta informação responde a indagação do relacionada
a imagem da roda que aparece na quarta capa, ou seja, trata-se de um monociclo e
não de uma bicicleta.
Na folha de rosto, o título está escrito com a mesma letra da capa, com uma
nuvem azul acima, abaixo o nome do autor. Há uma dedicatória, ―para Santiago e para
todos os que olham o céu‖, e uma imagem de uma casa, com uns gravetos nos tons
azuis. Assim como Linden (2011), as autoras Nikolajeva e Scott (2011) destacam ser
bastante comum a folha de rosto apresentar uma ilustração de algum detalhe do
miolo. Como uma forma de antecipar o enredo, o que Linden (2011, p. 62) chama de
―pré-narrativa‖.

A narrativa: imagens que contam história

O livro ―a bruxa e o espantalho‖ (2014) apresenta uma história narrada


apenas por imagens, protagonizada por uma bruxa e um espantalho. Seria uma
história de compaixão? De amor? De doação? Eis algumas das possibilidades de
interpretação, o leitor é quem dará vida ao livro.
Segue a estrutura narrativa tradicional apresentada por Faria (2006) em três
momentos básicos, que segue as seguintes fases: situação inicial, na qual nos é
apresentado o estado de equilíbrio ou um problema; desenvolvimento que seria o
surgimento de um problema; e o desenlace, que pode ser o final feliz com a solução
do problema ou o final infeliz, pois o problema não é resolvido. Mas vale destacar que
não são todas as narrativas que seguem esta estrutura, existem histórias que adotam
uma narrativa particular (FARIA, 2006).
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A história apresenta uma bruxa que está voando em seu monociclo e ao se


distrair com um pássaro, se espatifa no chão. As outras bruxas a expulsam do grupo,
o que faz com que ela fique desolada na terra, sem ter como voltar a voar. A expulsão
pode se dar por algumas razões, ou por ela ter caído, ou por ser diferente das outras e
estar voando com o monociclo ao invés da vassoura ou uma junção de todas essas
possibilidades, uma bruxa diferente das outras, até mesmo em suas vestes.
O espantalho, preso no chão, assistia a tudo, e ao ver a tristeza da bruxa, em
um gesto de amor, compaixão e empatia, se desfaz com a ajuda de um pássaro. A
bruxa usa suas palhas, faz uma vassoura e volta voar. Será que assim ele também se
viu livre para voar?
Para que possamos ter uma maior compreensão da narrativa,
apresentaremos a seguir a história seguindo as fases: situação inicial,
desenvolvimento e o desenlace (FARIA, 2006)
Situação Inicial: Trata-se do momento no qual o leitor tem uma visão geral da
história, conhece os personagens e se atrai pelo que lê. A situação inicial se dá em
cinco cenas sequenciais. A primeira cena apresenta a cidade e no canto superior
direito um monociclo. Na segunda cena, a bruxa, um pouco distante e sendo
repreendida (podemos perceber pela expressão de uma das bruxas do bando), segue
seu voo com seu grupo de bruxas, ela em seu monociclo enquanto as outras em suas
vassouras e por perto um pássaro. Nesta cena já percebemos esta bruxa muito
diferente das outras, não apenas por estar voando em um monociclo ao invés de uma
vassoura, mas também por suas vestimentas. A terceira cena, apresenta o
personagem espantalho, solitário, preso, que parece observar toda a cena, as bruxas
não aparecem, mas percebemos que ele observa o que acontece com elas, pois a
imagem mostra o mesmo pássaro da cena das bruxas no céu. E então, a quarta e a
quinta cena, correspondem ao momento no qual a bruxa no céu se encanta e se
distrai com um pássaro, o que faz com que ela perca o equilíbrio e caia no chão. Nesta
cena, a bruxa está caída de pernas para o ar, com os braços esticados, seu chapéu
dependurado em um galho de árvore e seu monociclo em outro.
Desenvolvimento: O desenvolvimento ocorre em seis momentos. Na sexta
cena, a bruxa é repreendida pelo grupo. As imagens mostram as outras bruxas com
expressões de negação: olhos com as sobrancelhas franzidas, as bocas curvas para
baixo. Na sétima cena, constatamos que ela é expulsa do grupo, pois, ela permanece
na terra, sozinha na floresta, e no canto superior direito vemos ao longe uma bruxa na
vassoura. Na cena 8, vemos o espantalho, observando a situação e visualizando o
bando das bruxas voando (vemos três bruxas em suas vassouras, no canto superior
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esquerdo da página, seguindo viagem ao longe). Abandonando seu monociclo, na


cena 9, a bruxa caminha vagando pela floresta perto de uma casa, que parece
abandonada; em um galho, o pássaro a observa. O momento máximo da história,
determinado pela autora Cândido Vilares Gancho (2002) como o clímax, se dá na
cena 10, no qual notamos a mudança das cores, com o céu representado num azul
forte e assim a bruxa e o espantalho se encontram, ela sorrindo com a cabeça erguida
o olhando, os braços envoltos nas costas, o espantalho preso, amarrado nas
madeiras, com a cabeça virada na direção da bruxa; em um galho, o mesmo pássaro
a observar. Na cena seguinte (cena 11), um vento forte (indiciado pelas folhas e o
cachecol do espantalho voando), a bruxa já mais adiante, com outra feição, agora
triste, cabisbaixa, e o espantalho, que agora olha a bruxa caminhando, de costas para
ele, no canto o pássaro próximo ao espantalho.
Desenlace: Na cena 12, o espantalho está olhando para o pássaro que se
encontra sobre seu braço direito, parece que está consentindo para que o pássaro
desamarre os nós das cordas que o prendem na madeira. Na cena 13, conseguimos
observar apenas os pés do espantalho, e ao lado, caindo ao chão, as palhas. Com um
vento forte o espantalho se desfaz, as palhas saem voando, junto com seu cachecol
(cena14). A bruxa já distante, olhando para atrás, rodeada por palhas que estão por
todos os cantos surge na cena 15. Na cena 16, vemos a floresta escura, palhas no
chão, um cachecol e um grande galho no chão. No canto esquerdo, sentada de costas
para o leitor, a bruxa parece fazer algo; no canto superior direito, o pássaro em um
ninho, feito com o que parece ser as palhas do espantalho (cena 17). Na cena 18, a
bruxa, com sua vassoura, confeccionada com as palhas do espantalho, olha para cima
e vê o pássaro que voa em sua direção; com um sorriso no rosto, ela usa o cachecol
listrado do espantalho. Na última cena, a bruxa alcança novamente o céu.
Analisado o enredo, notamos que a narrativa apresenta dois personagens
protagonistas, os quais ambos podem ser caracterizados como redondos, por
aparentarem certa complexidade. Apesar de se tratar de uma literatura feita apenas
por imagens, é possível perceber algumas características psicológicas: uma bruxa
diferente das outras, apresenta carisma, se encanta por um pássaro, sorri para o
espantalho; um espantalho, que vive a observar o céu, o que demonstra desejo em ser
livre e ainda, sua ação de doação, de amor e de liberdade.
Ao final da história, antes da guarda, encontramos uma breve biografia do
autor intitulada ―Quem ilustrou esse livro? ‖. A fotografia do autor está pendurada como
um cartaz, na cruz, onde supostamente estaria o espantalho, com o cachecol enrolado
por entre os troncos, e o monociclo apoiado. O texto é uma breve biografia do autor
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Gabriel Pacheco, sobre onde nasceu, onde mora, a origem de seu gosto por desenhar
e sobre seu trabalho para finalizar o livro ―a bruxa e o espantalho‖.
Com relação as ilustrações devemos treinar o nosso olhar para compreender
o que está além do que vemos e não fazer do ato de olhar apenas uma capacidade
humana, mas uma capacidade que nos possibilita capazes de analisar, compreender e
sentir.
[...]. Esse debruçar-se sobre o que os olhos captam provocará
análises e, o mais produtivo, provavelmente ativará a capacidade de
inventar. Olhar, portanto, é uma soma que inclui o físico, o
psicológico, a percepção e a criação. (RAMOS, 2011, p.34)

Desta forma, analisando as imagens do livro em questão é possível perceber


que a história se passa em uma atmosfera um pouco sombria, já que os tons de cores
utilizadas são acinzentados, talvez as cores sejam para confundir o leitor ao se
deparar com uma história de uma bruxa que ao contrário de aterrorizante apresenta
um certo carisma. O único momento no qual a cor azul se sobressai representada no
céu, é durante o encontro da bruxa com o espantalho, na cena 10.
O livro em formato horizontal quando aberto proporciona uma imagem
panorâmica, todo ilustrado em páginas duplas, com imagens sangradas, termo
utilizado por Linden (2011, p.74) para designar imagens que não possuem moldura,
assim, elas dão a ―[...] impressão de poderem se estender para além da página dupla‖.
Esta análise nos faz refletir sobre a importância em desenvolvermos, na
escola, a leitura de outras linguagens além da verbal, pois, assim como nos livros nos
quais há o texto verbal, os livros de imagens também podem apresentar narrativas
literárias.

Considerações Finais

Nesta perspectiva, o papel do mediador é de extrema importância, pois além


de introduzir a literatura ele também deve ser um leitor literário, que se atente a leitura
da linguagem visual, para que não se perca a riqueza de tais narrativas. Para Ramos e
Nunes (2016, p.13), mediar ―é ser capaz de não apenas despertar a sensibilidade
leitora infantil, mas também não desperdiçar a sensibilidade natural do olho infantil e
que, por vezes, pode ser apagada. ‖
Percebemos que a leitura das imagens, implicam uma observação atenta, na
qual todo o suporte livro faz parte da narrativa. Desta forma é muito importante que as
crianças tenham a oportunidade dentro das escolas, de educarem seus olhares para

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além da linguagem verbal, para que assim sejam capazes de lerem o mundo ao seu
redor, sem se limitarem.

Referências

LEE, S. A trilogia da margem: o livro de imagem segundo Suzy Lee. São Paulo:
Cosac Naify, 2012.

NIKOLAJEVA, M.; SCOTT, C. Paratextos dos livros ilustrados. In: __________. Livro
ilustrado: palavras e imagens. São Paulo: Cosaic Naify, 2011.

COSSON, R. A leitura e seus elementos. In: Círculos de Leitura e Letramento


literário. São Paulo: Contexto, 2014.

RAMOS, F. B.; PANOZZO, N. S. P.; ZANOLLA, T. Imagem e palavra na leitura de


narrativa. Perspectiva, Florianópolis, v. 29, n. 01, p. 245-262, jan./jun. 2011.
Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/perspectiva/article/viewFile/2175-
795X.2011v29n1p245/19427>. Acesso em: 27 maio 2017.

RAMOS, F. B.; NUNES, M. F. Ler imagem também é ler literatura. Interletras, v. 5,


n. 23, p. 1-14, mar/set. 2016.
<http://www.interletras.com.br/ed_anteriores/n23/conteudo/artigos/13.pdf>. Acesso
em: 20 de maio de 2017.

OLIVEIRA, Rui de. Pelos Jardins Boboli: reflexões sobre a arte de ilustrar livros para
crianças e jovens. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

FARIA, Maria Alice. Como usar a literatura infantil na sala de aula. São Paulo:
Contexto, 2006.

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 2002.

RAMOS, Graça. A imagem nos livros infantis: caminhos para ler o texto visual. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2011.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

LITERATURA E IMAGEM: EXERCÍCIOS E SABERES EM DUAS


OBRAS DE MANOEL DE BARROS

Evelin Freitas Salazar, GRADUAÇÃO EM LETRAS - UEMS - JARDIM Eixo


Temático 5, Apoio: FUNDECT: edital 001 2016
Susylene Dias de Araujo, PROFLETRAS - UEMS – DOURADOS, Eixo
Temático 5, Apoio: FUNDECT: edital 001 2016

Considerações Iniciais

Este artigo tem o objetivo de aproximar a ilustração e o texto poético nos


livros Exercícios de ser criança (1999) e O fazedor de amanhecer (2001), de autoria
de Manoel de Barros, buscando pontos que confirmem esta relação. Manoel de
Barros, poeta brasileiro, que nasceu em Cuiabá em 1916, ficou conhecido como um
dos maiores nomes da poesia nos últimos tempos, o que pode ser confirmado pela
publicação de mais de 20 livros do gênero. Registros da crítica mencionam Manoel de
Barros como autor de uma obra original, aprimorada a cada novo lançamento,
inclusive com a publicação de livros dirigidos ao público infantil e, naturalmente,
ilustrados. A utilização de ilustrações em livros para crianças é um tipo de recurso que
possibilita que as imagens se sobressaiam em relação ao texto escrito, exatamente o
que acontece nas obras ―manoelinas‖ aqui mencionadas e escolhidas como objeto de
nossa pesquisa, quando passamos a considerá-las como ―Livros Ilustrados‖,
concepção que leva as obras para além do livro com ilustrações, conforme
esclareceremos. Justificamos a escolha temática de nossa pesquisa por acreditarmos
que atualmente, a sensível percepção de que o texto dialoga com a imagem de
maneira muito particular em obras dirigidas ao público infantil corrobora com a
construção de sentidos. Para apresentarmos a biografia de Manoel de Barros,
recorremos a textos do conjunto historiográfico da literatura de Mato Grosso do Sul a
fim de percebermos como a obra desse escritor rompe com os limites regionais e
passa a constituir-se como presença forte no conjunto da literatura contemporânea
nacional. No trato das ilustrações, partimos da diferenciação entre o livro ilustrado e o
livro com ilustrações, tomada das reflexões de Peter Hunt (2010) para empreendermos
805

nossa leitura analítica e interpretativa apresentada na ultima parte do texto, seguida de


nossas considerações finais.
Manoel de Barros: um poeta para crianças

O ano de 2015 foi marcado pela morte de Manoel de Barros aos 96 anos. De
sua longa vida e carreira artística, podemos destacar 1937 como sua data de estreia,
ano em que o poeta, jovem estudante mato-grossense ainda vivia no recinto de uma
pensão barata de algum bairro da capital nacional, na época, o Rio de Janeiro. O que
poderia ser apenas uma estreia, na verdade tornou-se o nascimento de um estilo que
seria reconhecido anos depois como obra poética de invenção, (re) invenção e
rompimentos. Manoel de Barros foi o responsável pela ruptura com todas as
manifestações literárias tradicionais registradas no conjunto da produção do grande
Mato Grosso e posteriormente à divisão, ao espaço que hoje reconhecemos política e
culturalmente como Mato Grosso do Sul.
Do conjunto da obra de Manoel de Barros, podemos encontrar temas muito
sugestivos e convidativos ao conhecimento de seu universo poético. A recente
Antologia de Textos da Literatura Sul-mato-grossense, obra de 2013, assinada por
Maria da Glória Sá Rosa, Albana Xavier Nogueira e Maria Adélia Menegazzo destaca
no conjunto da obra manoelina títulos como Face Imóvel, Compêndio para usos de
pássaros, Gramática expositiva do chão, Matéria de poesia, Arranjos para assobio,
Livro de pré-coisas, O guardador de águas, Concerto a céu aberto para solo de aves,
o livro das ignorãnças, Livro sobre nada, Retrato do Artista quando coisa, Ensaios
Fotográficos, Tratado geral das grandezas do ínfimo, Memórias inventadas, poemas
rupestres e Menino do mato, Portas de Pedro Viana, títulos escritos e publicados de
1937 a 2013. O que chama atenção na seleção apresentada pelas referidas autoras,
parte de interesse para esse estudo, está na sessão dedicada especialmente ao
público infantil, da qual destacamos: Exercício de ser criança, O fazedor de
amanhecer, Cantigas por um passarinho à toa e Poeminhas em Língua de brincar.
Manoel de Barros deve ainda ser lembrado pelos diversos prêmios que recebeu, como
o Prêmio Jabuti de Literatura por duas vezes, a primeira em 1989, na categoria Poesia
com O guardador de águas e em 2002, na categoria livro de ficção com o livro O
fazedor de Amanhecer.

Sobre a ilustração no texto literário para crianças

A afirmação de que o livro ilustrado colabora com a produção do livro para


crianças é quase um consenso indiscutível. Para darmos início às reflexões a respeito
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dessa categoria livros, iniciamos nossas observações destacando a diferença entre o


livro ilustrado e o livro com ilustração, característica marcada pelo reconhecimento de
que o livro ilustrado constitui-se como força que agrega elementos na construção dos
sentidos apresentados pelo texto verbal ao passo que o livro com ilustração é limitado
no contexto da interação. Assim, na complexidade de completude entre o texto verbal
e a imagem Os livros ilustrados podem explorar essa relação complexa; as palavras
podem aumentar, contradizer, expandir, ecoar ou interpretar as imagens – e vice-
versa. (HUNT, 2010, p.234) com força semântica e semiótica longe da limitação de
traduzir o texto verbal de maneira restrita e prosaica.
No que diz respeito à produção dos livros ilustrados para criança, não podemos
deixar de mencionar a atuação do adulto, que vai desde a origem criativa dos projetos
editoriais, em sua fase mais embrionária, chegando até os procedimentos de
mediação e impulso de circulação das obras. É com essa certeza de participação ativa
que os ilustradores, na concepção dos desenhos, tentam fazê-lo de modo que o último
registro esteja o mais próximo possível do sentimento da criança que se constituirá na
recepção do texto como leitora. Cabe ainda ao ilustrador, que deve se articular à
linearidade do texto escrito, sem necessariamente seguir essa regra, a tarefa de
elaboração de páginas que se constituem como leiautes ou projetos que se articulam
como unidades que se juntam em nome da versão final e se encaminham em
benefício do todo.
Ainda sobre a relação entre texto e imagem, destacamos a força do livro
ilustrado como obra em que a imagem se organiza em consonância ao texto, de
maneira articulada. Sobre o assunto, Nilce M. Pereira diz que:

O livro ilustrado é um tipo singular de publicação, que coloca lado a


lado não apenas dois meios distintos, um verbal e outro visual, mas
dois tipos de linguagem que diferem entre si enquanto realizações
estéticas. Não obstante a aparente obviedade dessa afirmação, o
encontro da palavra com a imagem no mesmo espaço físico o livro é
um fenômeno bastante complexo, envolvendo a sua consideração em
conjunto e o entendimento de suas relações necessariamente como
dialogais.‖ (PEREIRA, Nilce M. 2009, p..385)

Logo, a utilização de imagens em livros infantis, na constituição dos livros


ilustrados, é um recurso que faz com que as imagens se sobressaiam em relação ao
texto, exatamente o que acontece nas obras aqui mencionadas e escolhidas como
objeto de nossa pesquisa, o que pretendo confirmar através dos estudos realizados.

De exercícios e fazeres: a ilustração no texto de Manoel de Barros


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Os livros Exercícios de ser criança (1999) e O fazedor de amanhecer (2001)


fazem parte do conjunto da obra de Manoel de Barros dirigido ao público infantil de
autoria do poeta Manoel de Barros. Em relação ao primeiro título mencionado, a
edição tomada para esse estudo é de 1999 e foi publicada pela Editora Salamandra,
ricamente ilustrada por bordados de Antônia Zulma Diniz em parceria com Ângela,
Marilu, Sávia Dumont e Martha (formada em Biblioteconomia, filha de Manoel de
Barros). Trata-se de um livro com ilustrações em bordados sobre desenhos de
Demóstenes Vargas. O livro recebeu o Prêmio Odylo Costa filho (2000), na categoria
de poesia, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil e Prêmio da Academia
Brasileira de Letras nesse mesmo ano. O trabalho manual da arte do bordado feito
para essa edição foi assinada pela família Dumont, formando um rendilhado perfeito
entre texto e tecido. Assim, entre bordado e desenho, a riqueza das ilustrações, muito
coloridas, toma conta de todo o livro, destacando-se a capa e as duas primeiras
páginas, que abertas, na perspectiva do leiaute, enchem os olhos do leitor/espectador
com pipas e guarda-chuvas projetados do meio vertical da página, insinuando o
movimento de subida ao céu. Na apresentação do sumário da referida edição, os
Exercícios de Ser Criança dividem-se em duas narrativas poéticas intituladas ―O
menino que carregava água na peneira‖ e ―A menina Avoada‖ e em nossa análise,
faremos considerações apenas da primeira parte, para que possamos comentar ainda
sobre a segunda obra pela qual nos propusemos no início deste tópico. A trajetória do
menino que carregava água na peneira é composta por 14 leiautes que cobrem duas
páginas da publicação. No primeiro deles, o texto composto por 15 linhas de certa
extensão dão conta de preâmbular os demais leiautes apresentados com menos
palavras, pois a história desse menino é contada por intermédio da prosa que se
converge em poesia. A respeito do preâmbulo, passamos a conhecer o desfio de um
desconsertado pai, nas dependências de um aeroporto, abordado pelo filho, menino
preocupado com a possibilidade de um avião atropelar um passarinho. O diálgo entre
os dois, intermediado pela opinião da mãe, é uma das chaves de leitura da obra
manoelina, composta com liberdade, característica fundamental da poesia. Em relação
às imagens ali apresentadas, um avião no ar, cercado de meninos que voam pelas
páginas, colorem o espaço com coloridas acrobacias. Na sequência, o segundo leiaute
apresenta o título da narrativa e na página à esquerda traz a ilustração de um menino
que tem uma peneira nas mãos, de onde saem letras que ganham o espaço da página
como se fossem movimentadas pelo vento, marcando a síntese da poesia então
narrada. O terceiro leiaute, de onde realmente a narração começa, o eu poético fala de

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sua experiencia com livros sobre águas e meninos, deixando clara sua preferência por
certo livro que contava a história do menino que carregava água na peneira. Nesse
momento do texto, o leitor de Manoel de Barros reconhecerá o diálogo do poeta com
sua própria obra, pois o narrador, que parece ser o próprio poeta revela ter escrito um
livro sobre águas e meninos e confirma sua preferência pelo menino. Ocupando
grande parte das páginas, a predominância da cor laranja expõe o menino correndo,
por entre pipas que voam para dar passagem ao texto. Do quarto ao ultimo leiaute,
uma explosão de cores invade as páginas que são verdadeiros ornamentos realçados
pelo bordado de telas que em perfeita harmonia com o texto contam as travessuras do
menino que foi capaz de carregar água na peneira. É importante observar que o
menino protagoniza todas as imagens e aparece sozinho na maioria delas. Quando
contracena com outras crianças, parece se multiplicar na expressão de cada uma
dessas crianças representadas. Um detalhe não apresentado nos versos, muito
significativo nas imagens é o fato do menino interagir com elementos da natureza e
assim, pássaros, flores e árvores parecem emoldurar sua presença. Há um verso
registrado no sexto leiaute que marca a observação da mãe pela preferência do filho,
e o que chama atenção é pensarmos que só uma criança é capaz de gostar mais do
vazio do que das coisas propriamente ditas. Para o desenvolvimento dessa referência,
ilustradores e bordadeiras constroem um emaranhado de fios e cores na
representação do ―nada poético manuelino‖, sintetizado pela palavra infinito. Na última
página do último leiaute, a máxima da integração entre texto e imagem nessa
construção poética da obra de Manoel de Barros aparece na configuração do bordado
de duas palavras do texto e então, as linhas bordam ―Peraltagens‖ e ―Despropósitos‖,
palavras chave para a compreensão do texto.
Ao comentar a edição de Exercícios de ser criança, com o intuito de elevar o
papel da ilustrção nesse livro, Márcio Sampaio diz que ―Ilustrar é fazer a fruta (o
poema, a história) ficar gostosa de se olhar; é a mágica de fazer o caldo do texto se
transformar em doce, feito de linhas e cores.‖ (SAMPAIO, 1999). Rodrigues Brandão,
também nas páginas finais da edição, comenta:

Tem escritores, tem poetas, que escrevem para dizer como as coisas
são. Tem outros que escrevem para inventar como elas poderiam ser,
se fosse mais encantado e, por isso mesmo, mais verdadeiro. Com
esse amigo, Manoel de Barros, tenho aprendido a esperar flor florir, a
olhar o mato e ver a festa, a conversar com lagartixa, a fazer
peraltices com as palavras, a espirar voo de passarinho até ver a cor
do vento. Um dia quem sabe, eu aprendo... eu só não, nós todos, a
carregar água na peneira, a me apaixonar por moça que não
existe.‖(BRANDÃO,Carlos Rodrigues, 2001).

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Em ―O Fazedor de amanhecer‖ a obra de Manoel de Barros recebe a força


comunicativa das ilustrações de Ziraldo. Considerando que a primeira publicação do
livro é de 2001, seguida do prêmio Jabuti de 2002, na categoria livro de ficção,
podemos afirmar que a Barros e Ziraldo parceria deu muito certo. Publicado pela
Editora Salamandra, o projeto gráfico da obra faz questão de destar o trabalho do
ilustrador na capa, o que fica evidente se prestarmos bastante atenção nas feições de
um caricato Manoel que a ilustra. Como em ―Exercícios de ser criança‖, o poeta mais
uma vez opta pelo preâmbulo prefaciado para ocupar as primeiras páginas da
narrativa. Dessa vez, o assunto tratado é o amor e nada mais emblemático na
iluatração desse sentimento do que a imagem de um coração, intermediada por
pequenos conjuntos de versos que refletem sobre a origem do ser, concluida pela
imagem de uma criança que explode de dentro da última imagem do coração. Nessa
obra, a nostalgia do poeta em recordar os momentos da infância, em poetizar uma
narrativa que nasce das lembranças dos anos vividos com a ingenuidade infantil. Para
nossa investida de análise, a duas partes da narrativa aqui apresentada trazidas ao
leitor pelos subtítulos de ―O fazedor de amanhecer‖ e ―Eras‖.
As páginas que antecedem a narrativa de ―O fazedor de amanhecer‖ estão
repletas que imagens de objetos ligados à infância. Tais objeto, que saem da cabeça
do personagem, caricatura infantilizada por Ziraldo para ilustrar o rosto do próprio
Manoel de Barros, ocupa a totalidade da página à esquerda e dialoga em perfeita
harmonia com o texto à direita que conclama: ―Quem não tem ferramentas de pensar,
inventa‖. (Barros, 0000, p.00). A partir desse ponto, a narrativa se desenvolve no
próximo leiaute que ocupa as páginas da sequência com a apresentação quase
autobiográfica do poeta que se apresenta como ―O fazedor de Amanhecer‖:

Sou leso em tratagens com máquina.


Tenho desapetite para inventar coisas
prestáveis.
Em toda minha vida só engenhei
3 máquinas
Como sejam:
Uma pequena manivela para pegar no sono
Um fazedor de amanhecer
para usamentos de poetas
E um platinado de mandioca para o
fordeco de meu irmão.
Cheguei de ganhar um prêmio das indústrias
automobilísticas pelo Platinado de Mandioca.
Fui aclamado de idiota pela maioria
das autoridades na entrega do prêmio.
Pelo que fiquei um tanto soberbo.
E a glória entronizou-se para sempre
em minha existência. (BARROS, Manoel de. 2001).
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Conforme se lê, no poema a confissão do eu poético, que se apresenta


avesso à modernidade das máquinas e às diferentes engenhocas da vida, nos leva ao
―fazedor de amanhecer‖, aquele que se reconhece aclamado por ser um idiota, sem
nenhuma vergonha de ser poeta. Para ilustrar esse poema, mais uma vez, o traço de
Ziraldo mais uma vez infantiliza a aparência de Manoel de Barros. Dessa vez, deitado
em sua cama, trajando um pijama de listras azuis, o poeta manipula a manivela da
engenhoca de seus sonhos. Na junção entre texto e imagem, a ilustração do devaneio
aquele que ilustra um repouso do ser, fazendo com que o sonhador e seu devaneio
entrem de corpo e alma na substância da felicidade. (Bachelard, p.12 2006).
Outro momento de encontro entre texto e ilustração, no qual texto e imagem
trocam de perspectivas espaciais no leiaute da página e dessa vez a personagem
ilustrada assume a figura de um menino. Como a ilustração parte da autoria de
Ziraldo, a personagem empresta algumas características do mais famoso menino já
criado pela pena desse artista: o menino maluquinho. Nessa passagem, o menino
maluquinho da poesia de Manoel de Barros usa um tatu como chapéu e se senta em
um crocodilo que assume o lugar de uma pedra aconchegante. Para o diálogo com as
imagens, o poema escolhido recebe o título de ―Eras‖:

―Eras

Antes a gente falava: faz de conta que


este sapo é pedra.
E o sapo eras.
Faz de conta que o menino é um tatu.
E o menino eras um tatu.
A gente agora parou de fazer comunhão de
pessoas com bicho, de entes com coisas.
A gente hoje faz imagens.
Tipo assim: Encostado na porta da Tarde estava um
caramujo.
Estavas um caramujo-disse o menino
Porque a tarde é oca e não pode ter porta.
A porta eras.
Então é tudo faz de conta como antes?‖(BARROS, Manoel de. 2001)

Por esses versos, Manoel de Barros mais uma vez retoma os caminhos da
infância e brinca com as palavras para despertar suas mais profundas memórias da
infãncia. Nos versos, paradóxose metáforas dailogam com as ilustrações para levar a
poesia à máxima potência do universo lúdico. Na revista eletrônica do grupo de
pesquisa em cinema e literatura, Baleia na Rede, Ana Paula Bernardes, considerando

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a poética de Manoel de Barros afirma:


―[...]tanto a ilustração como a escrita apareceram na pré-história,
através das pinturas rupestres. As ilustrações documentais e os
primeiros pergaminhos ilustrados surgiram no Egito. Mais tarde, a
ilustração adquire função descritiva e objetiva, sendo utilizada pelas
civilizações grega e romana nas áreas científicas, principalmente, na
topografia, na medicina e na arquitetura. Atualmente, a ilustração
adquiriu também uma função estética, principalmente, junto à literatura
infantil, onde atribui-lhe um caráter lúdico, real, irreal, de sonhos e
fantasias, mostrando que o livro literário ilustrado permite à criança um
encontro com aquilo que só ela compreende.‖ (ABREU, Ana Paula.
2010, p.329).

Na concepção dos livros de Manoel de Barros, o projeto gráfico não se


apresenta apenas como um anexo de ilustrações. No texto em questão, reconhecido
como narrativa de ficção, a predominância da poesia é evidente, o que exige ainda
muito mais cuidado na escolha das imagens. No trabalho de elaboração dos livros
ilustrados Nilce M. Pereira destaca os princípios básicos que esse tipo de publicação
deve atender:

[...]começar pelo formato e tamanho do volume e a textura do papel utilizado,


todos os constituintes do livro ilustrado 9+são idealizados a promover a
confluência das duas linguagens. A capa, por exemplo pode não apenas
oferecer ―pistas‖ do conteúdo do livro, como do público a que é destinado, do
tipo de linguagem empregada, da existência de ilustrações em eu interior e, até
mesmo ― e de forma mais óbvia ― da qualidade da publicação. (PEREIRA,
Nilce M. 2009, p.386).

Assim sendo, o livro ilustrado, de sua elaboração até a publicação é um tipo


de produto que requer atenção especial. No caso das obras assinadas por Manoel de
Barros cada detalhe que vai impresso nas páginas recebe o olhar atento de seus
produtores, o que se percebe desde a capa até seu conteúdo final. Em A literatura sul-
mato-grossense na ótica de seus construtores, Maria da Glória Sá Rosa e Albana
Xavier Nogueira, reúnem a biografia de vários autores de Mato Grosso do Sul e dão
destaque a Manoel de Barros que assim se apresenta:

―No universo das palavras eu sou um songo.O songo vivia sozinhono


seu casebre na beira do rio.Era um galalau se pensa nem senso.
Cultivava flores no seu quintal. De manhã levantava, pegava o
regador e ia regar as suas flores.Depois ia regar o rio. Ficava regando
o rio porque achava que os peixes não sobrevivem sem água. Eu não
sobrevivo sem palavras. ‖ (SÁ ROSA, Maria da Glória e NOGUEIRA,
Albana Xavier. 2011, p.36)

Diante dessa apresentação e no encaminhamento das considerações finais


para esse estudo, com muita coerência podemos afirmar que assim como Manoel de
Barros não sobrevivia sem palavras, sua obra não sobreviverá ao longo do tempo sem
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as imagens.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As obras Exercícios de ser criança e O fazedor de amanhecer de Manoel de


Barros podem ser lidas como obras que se apresentam em perfeita harmonia no que
diz respeito ao diálogo entre o texto e a imagem: na primeira, a ilustração que segue
padrões de desenhos e bordados resulta em uma obra sensível, capaz de evocar
memórias sensoriais e afetivas em leitores/espectadores de todas as idades. No
segundo título, a relação de colaboração entre a narrativa poética de Manoel de
Barros e os desenhos assinados por Ziraldo, sintetiza um projeto no qual texto e
imagem funcionam em conjunto para conduzir a obra a um entendimento de coesão,
característica que contribua para a construção de um discurso comum.

9. REFERÊNCIAS

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981.
BARROS, Manoel de. Bordados de Antônia Zulma Diniz, Ângela, Marilu, Martha e
Sávia Dumont sobre desenhos de Demóstenes. Exercícios de ser criança. Rio de
Janeiro: Salamandra, 1999.
BARROS, Manoel de. Ilustrações de Ziraldo. O fazedor de amanhecer. Rio de Janeiro:
Salamandra, 2001.
BARROS, Manoel de . Poesia completa. São Paulo: Leya, 2013.
BENJAMIN, Walter. Ensaios Sobre Literatura e História da Cultura. Obras Escolhidas.
Vol. 1. São Paulo, Brasiliense, 1994.
HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. Tradução de Cid Knipel. São Paulo:
Cosac Naify, 2010.
PEREIRA, Nilce M. Literatura, ilustração e o livro ilustrado. In: BONNICI, Thomas;
ZOLIN, Lúcia Osana (org.). Teoria literária: abordagens históricas e tendências
contemporâneas. 3. ed. Maringá: Eduem, 2009, p. 379-393.
VAN DER LINDEN, Sophie. Para ler o livro ilustrado. Tradução de Dorothée de
Bruchard. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

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LIVRO ILUSTRADO:
QUEBRANDO O BRINQUEDO PARA VER COMO FUNCIONA*

Claudia Mendes, UFRJ, Eixo temático 5, CNPq

Considerações iniciais

No universo da literatura infantil, o livro ilustrado é um dos tipos que mais


oferece oportunidades para inovações narrativas, integrando três diferentes
linguagens – palavras, imagens e design. As duas últimas se destacam na sociedade
contemporânea, onde a visualidade vem sendo cada vez mais presente e influente.
Como entender melhor os elementos visuais e materiais que configuram as narrativas
nesses objetos tão fascinantes? Este artigo se propõe a ―quebrar o brinquedo para ver
como funciona‖, empregando uma metodologia de análise orientada pela semiótica,
conforme Roland Barthes, e aplicando-a em estudos de caso de obras de Roger Mello,
ganhador do prêmio Hans Christian Andersen de ilustração em 2014.
A escolha por este artista justifica-se de muitas maneiras, além da indiscutível
qualidade de seu trabalho. A primeira delas é que sua atuação congrega importantes
etapas da cadeia produtiva do livro: além realizar a convergência das linguagens
visual e verbal como autor de dupla vocação (ilustrador e escritor), atua também como
designer gráfico, agregando a seus projetos o importante componente da concepção
do livro enquanto objeto industrial, em significativa sinergia com as editoras. A esta
atuação múltipla como produtor cultural para a infância somam-se suas atividades
como mediador de leitura e de criação de imagens junto ao público infantil, o que lhe
permite ter um feedback em primeira mão dos receptores. Estes interesses
―multimidiáticos‖ refletem-se na qualidade de seu trabalho, patente na desenvoltura
com que transita por estilos pictóricos variados (do figurativismo acadêmico ao
expressionismo), e também na liberdade com que escolhe e desenvolve suas
temáticas, bem como nas linguagens visuais e verbais que emprega para representá-
las. Além disso, Mello pesquisa e tece considerações críticas bastante pertinentes
814

sobre seu ofício e questões a ele correlatas, enriquecendo a análise semiológica das
obras selecionadas.

A criança e o livro

Na formação do leitor infantil é fundamental o entusiasmo pela leitura,


facilitado pelo contato com um mediador de leitura entusiasmado ele próprio, e é
preciso que este entusiasmo contagie a criança, como bem observa Ana Maria
Machado (2008). As atividades de mediação de leitura têm papel fundamental, mas
não se pode esquecer que elas se desenvolvem preferencialmente em torno de um
objeto: o livro, que deve por si só apresentar motivos para despertar entusiasmo. Entre
adultos e jovens, um bom texto literário já seria suficiente, mas as crianças são um
público mais exigente e precisam de mais: elas precisam da materialidade do livro. O
livro deve atrair seus sentidos, encher os olhos, oferecer atrativos táteis, convidar à
exploração e à descoberta renovadas a cada leitura. Por isso no livro infantil a
ilustração e o projeto gráfico são tão importantes – a imagem narrativa permite leituras
sem fim, o que para a criança constitui uma fonte renovada de prazer: ―nos livros
ilustrados, mas não apenas neles, o papel do design é fundamental, ao fazer da união
entre o texto e a imagem uma fonte adicional de informação e expressão.‖ (ARAÚJO,
Emanuel, 2008, p. 277).
Enquanto a criança embarca na brincadeira e viaja nas palavras e imagens, o
adulto quer ―quebrar o brinquedo para ver como funciona‖, na feliz expressão
empregada por Martine Joly (2008, p. 47) ao apresentar a metodologia semiológica de
Roland Barthes para analisar as mensagens visuais e linguísticas de anúncios
publicitários. Esta é a metodologia empregada neste artigo para ―quebrar‖ o livro
ilustrado infantil ―para ver como funciona‖.

Impressão de livros

A definição do Dicionário Houaiss


(2009) para livro é: ―coleção de folhas de papel,
impressas ou não, cortadas, dobradas e
reunidas em cadernos cujo dorsos são unidos
por meio de cola, costura, etc., formando um
volume que se recobre com capa resistente‖.
Desta definição, extraem-se três elementos que
caracterizam o livro contemporâneo: a forma, o material e o processo de registro gráfico

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de informações. Ele é resultado de uma longa cadeia evolutiva, desde as pré-históricas


inscrições rupestres nas paredes das cavernas, passando pelos tabletes de argila, pelas
tábuas de madeira cobertas de cera, pelos rolos de papiro egípcios, pelos pergaminhos
manuscritos. Foi este material fino e flexível, obtido a partir de peles da carneiro polidas
e alisadas, que permitiu o surgimento da forma de códice que tem o livro
contemporâneo – as folhas são dobradas em cadernos, palavra derivada de ‗quaterni‘,
ou dobradura em quatro‖, que são empilhados e unidos ao longo da dobra (HASLAM,
Andrew, 2007).
O papel, desenvolvido pelos chineses por volta de 200 a.C., só chegou ao
Ocidente depois do ano 1000 d.C., trazido pelos mouros, e desde então tem sido o
principal material com que são confeccionados os livros, ainda que outros materiais
como pano ou plástico sejam eventualmente empregados, principalmente em livros
infantis.
Por fim, a impressão de tipos móveis desenvolvida por Johanes Gutenberg
em 1455142 permitiu que os livros, até então manuscritos artesanalmente, pudessem
ser produzidos em larga escala, originando uma revolução no Ocidente. 143
O processo mais empregado atualmente na impressão de livros é o sistema
offset, onde a tinta é depositada em rolos e transferida para folhas de papel que a
seguir são dobradas em cadernos, unidos por meio de costura ou cola, recebendo por
fim uma capa. As folhas de papel têm medidas padronizadas, e os tamanhos de livro
mais comuns (considerando que as editoras buscam otimizar os resultados com
máximo aproveitamento de
técnicas e de materiais) são
aqueles que ocupam ao
máximo a folha, com pouco
desperdício de aparas não
utilizadas.
As folhas dobradas
dão origem a cadernos com
números de páginas múltiplos
de 4, no mínimo, embora o
ideal sejam múltiplos de 8, e

142
Embora a impressão com tipos móveis já fosse realizada em diferentes lugares, utilizando diferentes
técnicas como os moldes de areia coreanos ou os blocos de madeira chineses, foi Gutenberg que
passou à história como o ―pai da impressão‖, numa concepção europeia bastante etnocêntrica.
143
Ver MACLUHAN, Marshall. A galáxia de Gutenberg. São Paulo: Editora Nacional, 1977.
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melhores ainda os múltiplos de 16 ou 32.

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As cores do original144 são reproduzidas por meio da impressão sucessiva de


quatro tintas transparentes nas cores cyan, magenta, amarelo e preto (a chamada
escala Europa), que quando combinadas produzem uma gama bastante completa de
cores opacas. Outras cores, como os tons metálicos e luminosos, são reproduzidas
utilizando-se tintas especiais, sendo a escala Pantone a mais empregada.

A tinta é escolhida levando-se em consideração as características do original


a ser reproduzido e o tipo de papel no qual será feita a impressão, pois cada um
absorve a tinta de modo diferente. Basicamente, os papéis podem ser porosos (do tipo
offset ou pólen) ou revestidos (do tipo couché) – embora haja muitos outros tipos de
papel, estes são os mais utilizados na impressão de livros. Os primeiros são mais
baratos e prestam-se bem à impressão de textos (absorvem bastante a tinta, mas
deixam as cores pouco vivas), enquanto os do segundo tipo são mais caros e
indicados para impressão de imagens coloridas (por absorverem menos a tinta,
preservam a nitidez das cores). Embora os papéis possam ser feitos com massa
colorida, o mais comum é que em livros sejam utilizados os brancos ou levemente
amarelados (como o pólen, desenvolvido para suavizar o contraste entre o texto preto
e o fundo da página, trazendo assim mais conforto à leitura).
Por fim, depois de impressos e dobrados, os cadernos podem ser unidos
entre si e à capa por meio de cola, costura ou grampo. O grampo é o tipo mais barato,
e bastante utilizado em livros infantis, que por terem poucas páginas são formados por
um único caderno unido à capa. Quando há vários cadernos formando o miolo, o
montagem da capa dá a forma final do livro. A brochura é o sistema mais barato e

144
Atualmente, pode-se entender por ―original‖ o arquivo digital que, submetido a um processo de
separação digital de cores, vai ser empregado para sensibilizar as chapas que revestirão os rolos de
impressão, num processo chamado ―computer-to-plate‖ (do computador para a chapa). Processos
físicos mais antigos de composição e separação de cores, como tipografia ou fotolito, são cada vez
menos utilizados.
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comum no Brasil, com uma capa impressa em papel cartão colada à lombada do livro.
A capa dura é mais trabalhosa, mais cara e por isso menos frequente no país.
Usualmente, a capa dura recebe ainda uma sobrecapa protetora, na forma de uma tira
de papel impresso e dobrado de modo a envolver toda a capa. O acabamento mais
utilizado em capas de livros infantis é a plastificação brilhante, que realça as cores e
confere mais resistência ao manuseio. Também vem sendo cada vez mais utilizada a
laminação fosca, com aplicação opcional de verniz localizado e outros recursos
atrativos, como detalhes em hot-stamping; relevo; verniz perolizado, com glitter, ou
com volume.
Para todas as etapas descritas, a decisão de quais recursos utilizar depende
de uma avaliação cuidadosa equilibrando os custos com a perspectiva de retorno
comercial. Embora frequentemente o critério de menor investimento seja soberano, há
editoras apostam em produtos mais caros, com boa aceitação no mercado apesar do
preço mais alto em relação à média. Esta tendência tem impulsionado positivamente a
qualidade gráfica dos livros brasileiros, especialmente os infanto-juvenis.

Elementos do projeto gráfico

Por projeto gráfico de um livro entende-se uma série de escolhas e


partidos que definirão um corpo (matéria) e uma alma (jeito de ser)
para este objeto.

Odilon Moraes

O livro é um artefato cultural que, desde que assumiu a forma de códice


(CHARTIER, Roger, 1999), vem mantendo historicamente suas características físicas,
estruturais – um sistema estável, na classificação dos elementos da semiologia
proposta por Roland Barthes (1971) –, admitindo uma multiplicidade de apresentações
de conteúdo – uso variável. Uma destas variantes é o livro infantil, que tem como
particularidades o fato de ser ilustrado, bem como outras características próprias
relacionadas ao projeto gráfico, como formato, tamanho, número de páginas,
diagramação, tipografia, cores, encadernação, acabamento.
Enquanto a ilustração é uma linguagem narrativa que exprime mensagens, o
projeto gráfico participa dando uma imagem às palavras, com a escolha da tipografia
(sua forma, sua cor, seu peso, sua diagramação), e definindo as características físicas
do livro (seu formato, seu papel, seu número de páginas, seu tipo de impressão e de
acabamento...), como descreve o escritor, ilustrador e pesquisador Ricardo Azevedo:

[...] necessariamente, um livro ilustrado, ao nível da linguagem* é


composto de pelo menos três sistemas narrativos que se entrelaçam:
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a) o texto propriamente dito (sua forma, seu estilo, seu tom, suas
imagens, seus motivos, temas etc); b) as ilustrações (seu suporte:
desenho? colagem? fotografia? pintura? e também, em cada caso,
sua forma, seu estilo, seu tom etc); c) o projeto gráfico (a capa, a
diagramação do texto, a disposição das ilustrações, a tipologia
escolhida, o formato etc.).

Examinando bem, há livros em que esses três sistemas têm


autoconsciência e procuram o diálogo e outros em que isso não
ocorre.

* Simplificando: um sistema de signos com função simbólica e


capacidade de formar discursos que transmitem vários tipos de
mensagem que, por sua vez, possibilitam a interação entre pessoas.
(AZEVEDO, 1997)

Se no contexto do livro infantil a ilustração ainda é pouco estudada


(comparativamente à quantidade de estudos sobre o texto verbal), o projeto gráfico o é
menos ainda. Embora exista importante bibliografia analítica a respeito do projeto
gráfico, ela trata de livros em geral, e sabemos que livros em geral significam livros
para adultos. Há também, embora com mais escassez dentro deste universo,
bibliografia sobre livros ilustrados. Mas o que dizer a respeito do projeto gráfico de
livros ilustrados infantis? Entre nós, destaca-se o esforço pioneiro de Guto Lins,
designer, ilustrador, escritor de livros infantis e professor, que publicou em 2004 o livro
Livro infantil? Projeto gráfico, metodologia, subjetividade, um breve apanhado de
importantes considerações. Odilon Moraes, outro ilustrador/pesquisador em plena
atividade, tem um artigo sobre o assunto no livro O que é qualidade em ilustração no
livro infantil e juvenil: com a palavra o ilustrador (2008).
Os elementos que compõe o projeto gráfico podem ser reunidos em seis
grupos: 1. formatos e tamanhos, 2. layout e diagramação, 3. tipografia e composição,
3. cor e impressão, 4. papel, 6. acabamento e encadernação. Para ilustrar cada um
deles, são apresentados exemplos extraídos de livros ilustrados de Roger Mello.

Formatos e tamanhos
A análise dos elementos componentes do projeto gráfico começa por aqueles
que chamam a atenção de imediato, logo ao primeiro contato: o formato e o tamanho.
Por formato, entende-se a proporção entre altura e largura de um livro: vertical (altura
maior que largura), horizontal (largura maior que altura) e quadrado (altura igual à
largura).145 Há uma convenção no mercado editorial que associa os formatos
horizontal e quadrado aos livros infantis, e o vertical aos juvenis, marcando sua

145
Nos livros infantis empregam-se também cortes irregulares, onde a forma acompanha o contorno das
ilustrações (animais, frutas, objetos...). Nestes casos, embora não se possa encaixá-los em medidas
ortogonais perfeitas, ainda assim a proporção entre altura e largura pode ser verificada.
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aproximação com os livros para o público adulto, onde este é o padrão predominante.
Aliás, o formato vertical é o preferido das livrarias por ser mais fácil de arrumar em
displays e prateleiras, projetados para acomodar livros de tamanho padronizado (como
14 x 21cm ou 16 x 23cm), onde a diversidade de formatos e tamanhos dos livros
infantis representa um desafio, para não dizer um transtorno. O livro infantil escapa da
padronização limitadora e desconcerta a lógica do mundo adulto com sua diversidade
e imprevisibilidade! Se na definição do formato estabelece-se uma relação com a faixa
etária dos leitores, na definição dos tamanhos é preciso observar as medidas do papel
onde o livro será impresso, de modo a evitar o desperdício de sobras que encarecerá
o preço final de capa. Os tamanhos de papel bruto mais utilizados no Brasil são 66 x
96cm e 89 x 117cm, dentro dos quais se planeja a distribuição dos cadernos.

Tipografia e composição
Escolher a tipografia mais adequada para cada texto é uma tarefa bastante
desafiadora e sutil. É preciso levar em conta as características do público leitor a que
se destina o livro, bem como entender as particularidades de cada obra, selecionando
a tipografia mais apropriada para apresentar o conteúdo ao público: ―Artistas do livro
[...] devem ter uma compreensão amadurecida da literatura e ser capazes de avaliar a
importância de um texto em comparação com outro.‖ (TSCHICHOLD, Jan, 2007, p. 33)
Se os tipos móveis do início da imprensa buscavam deliberadamente imitar a
caligrafia dos livros manuscritos à qual estavam acostumados os leitores de então,
progressivamente o desenho das letras foi se diversificando, até chegar à grande
variedade de famílias tipográficas que temos hoje. Pode-se dividi-las em três grupos
principais: as serifadas, as sem-serifa e as fantasia. As fontes serifadas trazem
pequenos traços marcando a extremidade de suas hastes, enquanto as segundas
terminam em cantos simples. As primeiras sugerem um tom mais sério e elegante e
são comumente empregadas na composição de textos extensos, uma vez que as
serifas produzem um efeito ótico de alinhamento que facilita o percurso do olhar ao
longo das linhas do texto. As segundas são mais indicadas para textos curtos ou
títulos, e a jovialidade de seu desenho coaduna-se bem com composições mais
informais. As fontes fantasia têm desenhos bastante livres, às vezes imitando a
irregularidade da caligrafia manuscrita, às vezes assumindo um caráter lúdico, às
vezes chegando a ser propositadamente ilegíveis.

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A tipografia não deve aparecer mais do que o texto, como ensina o mestre
Tschichold: ―Um designer de livro deve ser um servidor leal e fiel da palavra impressa.
É sua tarefa criar um modo de apresentação cuja forma não ofusque o conteúdo nem
seja indulgente com ele.‖ (op cit, p. 31) Com a facilidade de uso de uma infinidade de
famílias tipográficas oferecidas pela editoração eletrônica em computadores pessoais,
tem sido muito comum vermos trabalhos empregando uma miscelânea pouco
criteriosa de fontes, o que deve ser evitado em trabalhos profissionais.
Nos livros infantis, é preferível compor o texto em corpos (tamanho da letra)
grandes, facilitando a leitura para os leitores ainda pouco experientes. Tomando o
cuidado de preservar a legibilidade, o designer pode ter uma liberdade criativa muito
grande, brincando com cores, formatos, composições, diagramação atraentes para o
olhar curioso dos leitores mirins. O livro infantil admite uma ludicidade difícil de
encontrar em livros para adultos. Roger Mello costuma manuscrever ele próprio o título
de seus livros com uma caligrafia bastante característica. Também no miolo ele faz um
uso criativo da tipografia integrada à ilustração, criando interessantes composições.

Cavalhadas de Pirenópolis (1997) João por um fio (2006)

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Zubair e os labirintos (2007) Nau Catarineta (2004)

Layout e diagramação
Tendo-se escolhido formato, tamanho e tipografia, chega-se à etapa de
definição do layout da página: define-se a mancha gráfica (área a ser ocupada pelo
texto depois de descontadas as margens que permanecerão livres a partir das bordas
da página) e o grid, ou grade (sistema modular de guias imaginárias que organizarão a
distribuição dos elementos gráficos pela página). Deve-se também prever layouts
diferenciados para páginas especiais, com aberturas de capítulo, anexos ou outros.
Depois disto, pode-se fazer a diagramação, que consiste em distribuir o texto ao
longo das páginas, combinando-o da melhor maneira com as imagens
correspondentes a cada trecho. Ao fazer o planejamento da diagramação, deve-se ter
em mente que o número final de páginas deve ser preferencialmente múltiplo de 32 ou
16 páginas, admitindo-se múltiplos de 8 e excepcionalmente de 4 páginas.
O livro A cristaleira é um ótimo exemplo para analisar elementos do projeto
gráfico, principalmente layout e diagramação: publicado inicialmente pela
Ediouro em 1995, foi reeditado em 2003 pela Manati, mantendo o mesmo texto e as
mesmas ilustrações, mas com novos projeto gráfico e diagramação. O tamanho
diminuiu de 21 x 27,5cm para 20 x 26cm, resultando num livro mais agradável de
manusear. Para compensar a mudança das dimensões sem que fosse preciso diminuir
o corpo do texto, reduziram-se as margens, resultando em pouca alteração na mancha
gráfica. Ainda para maior aproveitamento da mancha, eliminaram-se as tarjas superior
e inferior, com ganho de linhas compostas por página. Para compensar o
empobrecimento visual trazido pela eliminação das tarjas, foram incluídas capitulares
em estilo clássico, bem de acordo com o tema do livro. A diagramação foi refeita, com
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a redistribuição do texto pelas páginas obedecendo nova dinâmica, onde as marcas


visuais correspondentes às mudanças narrativas ficam evidentes na relação com as
ilustrações. Há ainda outros detalhes do projeto gráfico, como a numeração e o
entrelinhamento, que contribuem para formar um conjunto harmônico e que passam
desapercebidos ao leitor – e assim deve ser, pois ―Um livro realmente bem projetado é
reconhecível como tal somente por uma seleta minoria. A imensa maioria dos leitores
terá apenas uma vaga noção dessas qualidades excepcionais.‖ (TSCHICHOLD, op cit,
p. 33). Ou seja, o conforto proporcionado por um bom projeto gráfico faz com que ele
não seja particularmente notado em condições
nor
mai
s de
leitu
ra, a
não
ser
por
um
obs
erva
dor
aten
to
aos detalhes, que fará uma leitura analítica diferenciada.

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Ediouro, 1995 Manati, 2003

Cor e impressão
No livro ilustrado, texto e imagem compõem uma narrativa verbo-visual, numa
convergência intersemiótica – termo proposto por Luís Camargo (2003) para
caracterizar o tipo de interação entre as duas linguagens. Os ilustradores
compartilham as ferramentas dos artistas plásticos, mas concebem originais pensados
para serem múltiplos (OLIVEIRA, Rui, 2008). A reprodução das cores do original por
meio da impressão é portanto um elemento muito importante na concepção do livro
infantil. Como visto anteriormente, as cores são reproduzidas pela sobreposição das
três cores primárias (cyan, magenta e amarelo) mais o preto, para reforçar a
profundidade dos tons e facilitar a impressão do texto, conforme a escala Europa; ou
empregando tintas de cores especiais, conforme a escala Pantone. A impressão em
apenas uma cor, usualmente o preto e suas gradações (tons de cinza), é chamada
monocromia; em duas cores (geralmente preto combinado com uma cor pantone, em
gradações), chama-se bicromia; e nas quatro cores da escala Europa, policromia.
Há não muito tempo atrás, por medida de contenção de custos, era comum
que as editoras optassem por imprimir o miolo dos livros em duas cores, ou ainda uma
combinação de impressão a quatro cores em um lado da página com impressão a uma
cor do outro.146 Um exemplo do primeiro caso é Uma história de boto vermelho, com
capa colorida e miolo impresso a 2/2 cores (preto e pantone salmão):

146
Na terminologia gráfica, diz-se impressão 2/2 (duas cores de um lado e duas cores do outro) e 4/1
(quatro cores de um lado e uma cor do outro).
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Com a modernização do parque gráfico brasileiro, este recurso foi caindo em


desuso: a primeira edição de Fita verde no cabelo (1992) ilustrada por Roger Mello foi
impressa em duas cores (preto e pantone verde), mas em reedições posteriores
(2004) estas cores passaram a ser reproduzidas em policromia (o verde foi
decomposto em cyan e
amarelo). Esta mudança
poderia ser entendida como
positiva, por representar o
fim de uma limitação de
cores, mas na verdade
provocou uma queda de
qualidade na cor reprodu-
zida, uma vez que o
original pensado para ser
reproduzido em duas cores
apresentou distorções ao ser reproduzido em quatro: a nova edição em policromia
mostra cores esmaecidas, que perderam a profundidade e a definição (esta diferença,
não muito perceptível nos exemplos mostrados, pode ser bem notada cotejando-se
exemplares das duas edições mencionadas).
Encontramos em A flor do lado de lá um exemplo do segundo tipo de
impressão (4/1 cores). Neste caso, uma nova edição manteve as cores de impressão,
com bom resultado.

Páginas 4-5: impressão a 1 cor (preto) Páginas 6-7: impressão a 4 cores (CMYK)

Por fim, para evidenciar a importância da correta


reprodução das cores originais, vamos examinar A pipa,
um livro de imagens. E que imagens! Como é um livro
sem texto, a força da narrativa
visual explode em cores vibrantes,

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contrastes de tamanho e forma, perspectivas surpreendentes. Infelizmente, a


impressão é sofrível e distorce com as cores originais da ilustração. À primeira vista
talvez não se perceba que o vermelho virou ferrugem, o amarelo virou ocre, o azul
virou roxo, o roxo virou rosa, o cinza virou lilás, o verde virou marrom, o marrom
virou... cor de burro quando foge, como já diziam nossas avós. Mas um exame atento,
cotejando os originais com o impresso,147 revela a excessiva discrepância de
tonalidades, que prejudica a percepção do trabalho do ilustrador. Mesmo considerando
que a alta saturação de cores contrastantes representa um desafio para a regulagem
da tinta na impressão, é um exemplo bastante significativo de como a reprodução de
cores precisa ser bem cuidada, para não prejudicar o produto final.

147
Há uma etapa na pré-impressão que consiste em comparar uma prova de impressão com o original,
fazendo os acertos necessários para se chegar ao máximo de fidelidade. Não é nenhum mistério, mas
demanda atenção, cuidado e paciência.
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Papel
Carvoeirinhos é um interessante exemplo de como o papel é importante para
o resultado do livro. A obra conta a história de um menino carvoeiro:

A casa do menino não é uma só. [...] É uma casa onde se põe lenha
pra lenha pegar fogo e depois virar carvão. A casa do menino não é
dele, não foi ele quem fez. É a casa do fogo.‖ De forma poética e
original, a história do menino carvoeiro é narrada por um inusitado
narrador: um marimbondo. Ao mesmo tempo que vai relatando a suas
próprias experiências, ele observa o cotidiano do menino: o árduo
trabalho de fazer os fornos, as conversas com outro menino, a
necessidade de escapar dos fiscais. As expressivas ilustrações do
autor captam com sensibilidade e força a vida dura e cinzenta desses
pequenos trabalhadores148.

148
Sinopse do livro constante do site da editora Cia das Letras. Disponível online em: <http://www.
companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=40568>. Acesso em: 16 out. 2010.
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Roger planejou o livro em duas gamas de cor: pretos e cinzas do carvão, das
cinzas e da fumaça; e vermelhos, laranjas e magentas do fogo e das brasas. Para os
tons pretos, tinta offset comum, da escala Europa. Para os tons vermelho, tintas
especiais: os caros pantones luminosos, em três diferentes tons. Em combinação com
a engenharia de papel, eles produzem um efeito lindo quando, lá pelo meio da
narrativa do marimbondo sobre a vida do menino carvoeiro, eis que surgem da
escuridão labaredas flamejantes: Roger planejou facas especiais em formato de
línguas de fogo, montadas na costura da lombada do livro, que se projetam para fora e
para cima quando se abrem as páginas, num efeito de pop-up.149
Para reforçar a qualidade da textura áspera do carvão (e possivelmente da
vida do menino), Roger planejou um papel sem cobertura, do tipo offset, bem fosco, na
contramão do padrão de impressão colorida sobre papel couché (mais liso, coberto
por uma camada de gesso que impede a excessiva absorção de tinta e evita o
embotamento das cores). Na hora da prova de impressão, um susto: o papel offset é
bom para a impressão do preto fosco, mas absorve a tinta especial e apaga a
luminosidade dos pantones. Depois de várias tentativas e erros, Roger e a equipe de
produção gráfica chegam a um consenso: papel couché fosco é a solução – melhor
manter o fogo brilhando ainda que a textura áspera do carvão saia prejudicada. Para
finalizar, um cuidado a mais na encadernação: uma edição em capa dura, mais cara e
rara, e outra em brochura, mais barata e comum. Melhor para os leitores, que têm em
mãos um produto de alta qualidade técnica e artística, acessível para bolsos mais ou
menos recheados.

Encadernação e acabamento

149
Pop-up é um efeito de engenharia do papel, que ―aproveita a energia cinética do movimento das fo-
lhas do livro para criar modelos tridimensionais que saltam das páginas.‖ HASLAM, op cit, p. 200.
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Carvoeirinhos é um exemplo de edição simultânea com dois tipos de


encadernação diferentes (capa dura e brochura), comum no exterior mas pouco usada
no Brasil, com reflexos no preço de capa. A mudança no tipo de encadernação
acontece também em edições diferentes de uma mesma obra, que deixa bastante
evidente a importância das escolhas realizadas na conformação do produto final. Um
exemplo onde uma nova edição, em outra editora, manteve toda a estrutura interna do
livro, mas promoveu uma melhoria significativa em sua materialidade ao fazer novas
escolhas de encadernação e acabamento é A flor do lado de lá, primeiro livro de
Roger Mello, publicado pela Salamandra em 1990 e que, passados 20 anos, continua
sendo reeditado. É um livro de imagens, sem texto, onde se observa uma estratégia
de barateamento dos custos de impressão muito empregada na época do lançamento
da primeira edição: o miolo impresso a 4/1 cores.
A nova editora (Global, 2000) manteve este sistema de cores no miolo (afinal,
para imprimir a 4/4 cores seria necessário encomendar novas artes coloridas ao
ilustrador para substituir as das páginas PB), mas fez alterações na encadernação que
favoreceram muito o livro: a encadernação passou de grampo canoa para lombada
quadrada (dá mais respeitabilidade ao livro, melhora sua estabilidade e torna as
páginas mais resistentes ao manuseio) e o acabamento passou de verniz brilhante
para laminação fosca (mais resistente a arranhões, aparência mais elegante, encorpa
o papel). Fica evidente, ao se manusear exemplares de cada uma das duas edições, o
efeito positivo destas escolhas editoriais: enquanto o exemplar da primeira edição
assemelha-se a um folheto (algo muito frequente nos livros infantis, levando-se em
conta que o pequeno número de páginas leva à encadernação com grampo canoa
como meio imediato de compensar o gasto mais elevado com papel e impressão
colorida), o da edição mais recente assume um caráter de qualidade gráfica
proporcional à excelência de seu conteúdo, comprovada pelas sucessivas reedições
ao longo dos 20 anos desde o lançamento do livro.
O livro infantil admite uma
diversidade de recursos gráficos
que, bem planejados, encantam
crianças e adultos. Ao lado da
encadernação e do acabamento, há
outros recursos especiais que
produzem resultados interessan-
tíssimos. Em João por um fio, onde
o personagem que dá título ao livro
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é filho de um pescador, Roger planejou um marcador de página em forma de


barbante, com uma das pontas unida à lombada e na ponta solta um pequeno peixe,
em papel colorido, colado ao barbante. O resultado remete ao momento culminante de
uma pescaria, quando o peixe morde a isca e fica preso ao anzol na ponta da linha:
um recurso lúdico e relativamente singelo, que exerce um efeito muito atrativo sobre
os leitores, conforme o próprio autor relata ter tido a oportunidade de constatar junto
ao público (MELLO, 2010).
Encontramos um exemplo de uso criativo da engenharia de papel no livro
Zoo, que traz poemas de João Guimarães Rosa selecionados e organizados pelo
experiente editor Luiz Raul Machado, craque no assunto. A proposta gráfica de Roger
para o livro é irresistível: é um livro em dobraduras, que vem fechado e acomodado
dentro de uma luva150 onde o silhueta vazada de um rinoceronte deixa ver as listras
impressas na primeira página. Ao puxar o livro de dentro da luva, o rinoceronte listrado
revela a verdadeira natureza de sua inusitada padronagem: são as grades de uma
jaula. O leitor se depara de imediato com um jogo de significados invertidos: num
zoológico, o bicho fica dentro da jaula, mas ali a jaula está dentro do bicho? O livro
oferece mais descobertas: a cada aba que se desdobra, um poema surpreende
leitores acostumados com rimas fáceis e sentidos evidentes. Surpreendente também é
a forma que vai assumindo o livro: com o desdobramento progressivo das abas,
conforme progride a leitura, torna-se no final uma folha aberta.

150
A luva é uma caixa protetora fechada, com um dos lados aberto (geralmente o correspondente à
lombada), por onde se introduz o livro.
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Neste ponto, pode-se constatar a importância da interação de todos os


elementos do projeto gráfico: a folha aberta deveria se converter em um objeto
tridimensional – uma maquete simulando as aleias do zoológico onde se enfileiram as
jaulas dos animais –, o que não acontece por causa da gramatura leve do papel. A
produção gráfica bem que se esmerou em acertar, imprimindo o livro no papel couché
apropriado para a melhor reprodução das cores exuberantes (uma característica
marcante nas ilustrações de Roger), investindo em engenharia de papel (luva, corte
com faca especial, dobras também especiais), caprichando na impressão da luva em
pantone especial luminoso, arriscando uma faca com curvas perigosas para o
rinoceronte vazado. Mas esbarrou na gramatura do papel que, por ser pouco
encorpado, não dá firmeza suficiente nem à luva – que tem a lombada amassada já na
saída da livraria – nem ao miolo – que deveria se converter em objeto autoportante.
Fica aqui uma ressalva: o rigor metodológico leva a formular esta conclusão
crítica a respeito do livro, mas é preciso confessar que isso em nada prejudica o
encanto por ele. Nesse caso, quebrar o brinquedo para ver como funciona não
atrapalhou em nada a brincadeira!

Considerações finais

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Assim como Monteiro Lobato (1972), que em determinado momento desistiu


dos adultos, já impregnados de valores conformistas, e decidiu dirigir-se às crianças,
também nos interessam os estágios iniciais da aquisição da cultura visual, antes que
as limitações da sociedade condicionem suas experiências como criadoras e
receptoras de arte. Se a leitura de textos verbais pressupõe o domínio de um código
simbólico complexo e arbitrário, regido por normas cultas que instauram uma ordem
de certo/errado, a leitura de imagens (MANGUEL, Alberto, 2001), beneficiando-se
também do domínio de alguns códigos simbólicos próprios, jamais se prestará a
avaliações em que haja uma instância exterior de legitimação: este permanece sendo
um campo de livres associações, onde o receptor pode indiscutivelmente expressar
sua contribuição por meio de experiências próprias. Além disso, a capacidade de
expressar-se criativamente por meio da produção de imagens é uma habilidade inata
dos seres humanos, absolutamente democrática porque não pressupõe o prévio
domínio de uma aprendizagem especializada para seu exercício (vide produção de
crianças, doentes mentais, culturas ditas ―primitivas‖), que lamentavelmente
desaparece com os anos. Permanece, no entanto, o fascínio pelos produtores de
imagens, aliado a afirmações auto-limitadoras do tipo ―mas eu não sei desenhar...‖
Como profissional da área das artes visuais, identifico em muitas pessoas
uma atitude paradoxal no que diz respeito à visualidade e materialidade do livro
ilustrado: ao lado de um encanto por este objeto, há uma forte inibição em tecer
considerações críticas que ultrapassem o nível do gosto pessoal. A intenção deste
trabalho foi empreender algumas análises esclarecedoras a respeito da materialidade
desse artefato e contribuir para desmistificar os bastidores de sua produção.
Ao contrário de estragar a brincadeira, matando o prazer estético na recepção
espontânea da obra, a análise pode oferecer a crianças e adultos ferramentas críticas
para ampliar sua apreciação dos livros ilustrados, como explica Perry Nodelman
(1989):

Quanto mais formos capazes de entender e encontrar palavras para


descrever nossas respostas a obras de arte, mais seremos capazes
de apreciá-las. Sobre livros ilustrados, crianças e adultos demais têm
palavras de menos a dizer – apenas generalizações relativamente
cruas que limitam sua apreciação do valor e do prazer oferecidos
pelas obras.

Explorando criativamente as características do suporte em formato de códice,


autores como Roger Mello colocam ao alcance dos leitores obras de arte em forma de
livros ilustrados, que demandam um olhar atento para que se possa apreciar
plenamente sua riqueza e complexidade narrativa.
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Referências

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feita no 11º Congresso de Leitura do Brasil – COLE. São Paulo: Unicamp, 1997.
Disponível online em: http://www.ricardoazevedo.com.br/Artigo05.htm. Acesso em: 15
jan. 2010.
BARTHES, Roland. Elementos de semiologia. São Paulo: Cultrix, 1971.
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criança e a produção cultural: do brinquedo à literatura. Porto Alegre: Mercado Aberto,
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NODELMAN, Perry. Words about pictures: the narrative art of children‘s picture
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OLIVEIRA, Rui. Jardins Boboli: Reflexões sobre a arte de ilustrar livros para crianças
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São Paulo: Ateliê Editorial, 2007.

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Janeiro: Manati, 2003.
MELLO, Roger. Carvoeirinhos. São Paulo: Cia das Letrinhas, 2009.
_____. Cavalhadas de Pirenópolis. Rio de Janeiro: Agir, 1997.
_____. A flor do lado de lá. Rio de Janeiro: Salamandra, 1990 e São Paulo: Global,
2000.
_____. Uma história de Boto-Vermelho. Rio de Janeiro: Salamandra, 1995.
_____. João por um fio. São Paulo: Cia das Letrinhas, 2006.
_____. Nau Catarineta. Rio de Janeiro: Manati, 2004.
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_____. A pipa. São Paulo: Paulinas, 1997.


_____. Zubair e os labirintos. São Paulo: Cia das Letrinhas, 2007.
ROSA, João Guimarães. Fita verde no cabelo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992
e 2004.
_____. Zoo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

* Este artigo é parte da monografia intitulada Materialidade do livro infantil: projeto gráfico,
ilustração e indústria cultural, orientada pela ProfªDrªNilma Lacerda e apresentada em 2010 ao
Programa de Pós-graduação Lato Sensu em Letras da Universidade Federal Fluminense,
como requisito parcial para obtenção do título de especialista em Literatura Infanto-Juvenil.
** Todas as imagens deste artigo são reproduções de acervo próprio, fotografadas pela autora.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

MENINAS E JOVENS: IMAGENS E REPRESENTAÇÕES EM


ALGUNS LIVROS DE LITERATURA INFANTOJUVENIL

Priscila Kaufmann Corrêa, Faculdade de Educação Universidade Estadual de


Campinas, Eixo Temático 05: Literatura infantil e as relações com a imagem

Considerações Iniciais

A reflexão sobre imagens e representações em livros de literatura infantojuvenil


auxilia em termos educacionais sobre das intenções de autores e seus editores para
seu público. A literatura infantojuvenil permite trazer muitas reflexões acerca do texto
escrito, bem como de suas ilustrações, que, no conjunto, buscam orientar o público
leitor. A construção idealizada pelo escritor e do ilustrador, juntamente com seu editor,
traz um material rico para ser analisado. Quais seriam as intenções nos livros de
capas coloridas e uma infinidade de ilustrações? Em que medida as ilustrações
complementam ou contrapõem as narrativas publicadas?
Esse trabalho inicia um percurso diferenciado com as imagens buscando
compreender como se relacionam com o texto pensado pelas escritoras. Elas viveram
em países e épocas diferentes, porém, tiveram em comum o desafio de sair do âmbito
doméstico intentado para elas e percorrer o espaço público. É com essas reflexões
que se inicia esse estudo.

Histórias de vidas conectadas

As mulheres aqui estudadas têm suas histórias de vida conectadas não apenas
devido à longevidade de suas obras, mas também pelos fatores familiares e de
circulação social. Há fatores que permitiram a elas entrar no mercado editorial, que se
expandia à época, e atender a uma reivindicação por livros infantojuvenis. Por se tratar
836

de um público em formação, não caberia a publicação de quaisquer narrativas, havia a


necessidade de apresentar alguns valores.
A Condessa de Ségur nasceu na Rússia e se casou na França, país no qual
passou a residir. Seu marido a apresentou ao editor Louis Hachette, que buscava
escritores de literatura infantojuvenil para sua coleção a ser vendida nas estações de
trem. Louisa May Alcott nasceu nos Estados Unidos da América, sempre próxima de
seus pais e trabalhando para auxiliá-los. Além de ser governanta, costureira e
professora, começou a escrever e ganhou fama com isso. Maria Clarice Marinho
Villac, por sua vez, nasceu em Itu (SP) e estudou no Colégio Progresso Campineiro,
lugar que marcou sua infância e sobre o qual escreveu tempos depois.
A Condessa de Ségur, Louisa May Alcott e Maria Clarice Marinho Villac foram
estimuladas a ler e aprenderam a compor textos, além disso gostavam de narrar
histórias para seus familiares. A Condessa de Ségur já na infância narrava histórias e
continuou a fazê-lo durante a maternidade. Louisa May Alcott compunha e
representava peças de teatro juntamente com suas irmãs, além de escrever poemas e
contos. Maria Clarice Marinho Villac compôs textos durante a trajetória escolar e
contava as travessuras da infância para seus filhos e sobrinhos.
Membros da elite, fosse aristocrática, no caso da Condessa de Ségur, fosse
aristocrática-burguesa, como Louisa May Alcott, ou aristocrática-patriarcal, como Maria
Clarice Marinho Villac, elas tiveram a possibilidade de entrar no mundo da escrita e da
leitura, sendo estimuladas pela família. Esse circulo de relações foi essencial para que
pudessem conhecer editores que se dispuseram a publicar seus livros. Com a
emergência do mercado editorial, encontraram seu lugar em meio aos livros infantis e
juvenis.
Aqui se analisa os livros da Condessa de Ségur (da França) composto por Les
petites Filles modéles (1858)151, Les malheurs de Sophie (1858)152e Les vacances
(1859)153. Os livros de Louisa May Alcott (EUA) são Little women (1868)154 e Good
wives ou Little women Part 2 (1869)155. Maria Clarice Marinho Villac (Brasil), por sua
vez, publicou Cinco travessos: amiguinhos de Jesus Hóstia (1937) Clarita da pá virada
(1939) e Clarita no Colégio (1945).

151
Os títulos estrangeiros serão utilizados para indicar as obras originais, enquanto os títulos em
português serão indicados para as adaptações. As meninas exemplares.
152
Os desastres de Sofia.
153
As férias.
154
Mulherzinhas.
155
Boas esposas.
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Os livros tiveram um grande alcance, principalmente os da Condessa de Ségur


e Louisa May Alcott, que tiveram versões adaptadas histórias em quadrinhos,
musicais, animes e e-books. Os livros de Maria Clarice Marinho Villac têm elementos
comuns aos livros das outras escritoras, como uma narrativa de cenários brasileiros e
uma linguagem coloquial envolvente e mais próxima do leitor infantil. Por esse motivo
os livros da escritora brasileira foram incluídos no estudo.
No interior de todas as narrativas encontram-se elementos acerca das
expectativas com relação à infância e, especialmente de meninas, de suas maneiras
de se portar e de obedecer. Tais representações, trazem imagens e símbolos do que é
esperado da infância na sua relação com a família, com a educação e a religiosidade
que a orienta em sua trajetória de vida. Esse é o percurso deste trabalho.

As representações nas obras

As escritoras fizeram uso de algumas de suas vivências para tecer os


romances destinados às crianças e aos jovens. Elas não reproduziram simplesmente
suas experiências em suas narrativas, mas não deixam de trazer à tona os quadros
das instituições imaginárias da sociedade. Essas instituições possuem significações
baseadas no imaginário, na sua relação com o simbólico e com o econômico-funcional
e que não existem concretamente no nível racional. Estão presentes no imaginário
social e auxiliam na prática e no fazer da sociedade, bem como na organização do
próprio comportamento humano (CASTORIADIS, 1982, p. 171).
A representação, por sua vez, está presente por meio das imagens e redes
simbólicas que permeiam os discursos das narrativas. Assim encontram-se nos
discursos dos livros a representação da infância, da família, da religiosidade e da
educação.

As representações do mundo social assim construídas, embora


aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são
sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí,
para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos
proferidos com a posição de quem as utiliza.
As percepções do social não são de forma alguma neutras:
produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que
tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por ela
menosprezados, a legitimar um projecto reformador ou a justificar,
para os próprios indivíduos, suas escolhas e condutas. (CHARTIER,
2002a, p. 17)

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A representação visa atuar sobre a subjetividade do indivíduo para que ele


aceite a organização social e seus projetos. Há um jogo de forças em torno das
representações, uma vez que são construídas por um grupo ou comunidade que
auxilia na constituição de sua própria identidade social e, ao mesmo tempo, as
apresenta e difunde entre os grupos ou comunidades, que podem se identificar, resistir
ou rejeitar tais representações. Nos livros, a representação está presente nos
discursos - que não defendem diretamente as instituições imaginárias da infância, da
família, da religiosidade e da educação - mas apresenta imagens e símbolos delas.
Por outro lado, é importante do ponto de vista histórico, que tais representações sejam
percebidas em sua singularidade, de forma contextualizada, evitando anacronismos.
Nesse sentido, o sujeito leitor não apreende simplesmente a s representações, mas
lida com elas no interior de seu grupo ou comunidade, dando novos significados a
elas.
No interior dos próprios textos existem camadas de representações que trazem
diferentes relações entre a infância, a família, a religiosidade e a educação, que serão
estudadas mais adiante. As próprias obras trazem representações que não se referem
a um só grupo ou comunidade naquele contexto, mas podem representar vários
conjuntos sociais ou serem incorporadas em seus discursos.
No que se refere às ilustrações, cada uma das obras, possui ilustradores
diferentes, com uma quantidade variada de imagens em cada livro. Les malheurs de
Sophie possui 48 imagens desenhadas por Horace Castelli156Les petites filles modèles
tinha 20 ilustrações de Bertall157 e Les vacances tinha 40 ilustrações, também de
Bertall. A Condessa de Ségur não gostou da escolha destes ilustradores para seus
livros, mas acabou aceitando o que o editor prescrevia.
Loiusa May Alcott teve sua primeira edição voltada para o público juvenil teve
título Little women or Meg, Jo, Beth and Amy, com quatro ilustrações de May Alcott,
irmã da escritora. O texto da segunda parte de Little women, que foi chamada de Good
wives, foi posteriormente reunida em um só volume pela editora Roberts Brothers 158.

156
Horace Castelli se inspirou em ilustradores como Achille Devéria e Gustave Doré, colaborando
com ilustrações para publicações como La semaine des familles (A semana das famílias), e da
editora Lahure, além da editora Hachette, na qual colaborou com ilustrações dos livros da
Condessa de Ségur. Texto disponível na Internet via: http://www.ricochet-
jeunes.org/auteurs/recherche/576-horace-castelli.
157
Bertall é o pseudônimo de Albert Amoux, que se formou em desenho trabalhando no atelier de
Drolling. Trabalhou para o editor Barba, ilustrando os livros de Paul de Kock e Cooper, além de
La Comédie humaine ("A comédia humana"), de Balzac. Realizou ilustrações para os livros da
editora Hachette também, entre eles os da Condessa de Ségur.
158
A editora Robert Brothers foi criada em 1857 por Austin J. Roberts e atuou até 1898, quando
foi adquirida pela editora Little, Brown & Co. A companhia foi criada em 1837 e durante do
século XX se uniu à Time Warner Book Group. Em 2006, a Time Warner Book Group foi
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Essa edição data de 1880 e possui 200 ilustrações de Frank Thayer Merrill 159, já com a
sequência de Good wives.
Maria Clarice Marinho Villac tornou-se uma escritora de sucesso em um
período próximo ao de Monteiro Lobato, por volta das décadas de 1930 a 1950. Ao
publicar suas obras em um momento em que se identificava uma demanda por livros
infantis, Maria Clarice parecia ter consciência de que suas histórias poderiam ser
divulgadas. Recebeu indicações das editoras para imprimir os originais e contratou um
ilustrador para que seus livros fossem mais chamativos.
A primeira edição de Clarita da pá virada, de 1939, por exemplo, possuía
ilustrações coloridas em papel laminado. Já a primeira edição de Cinco travessos:
amiguinhos de Jesus "hóstia", de 1937, possuía apenas uma ilustração na capa. A
partir dos anos 1960 os livros passaram a ter ilustrações em seu interior. A primeira
edição de Clarita no colégio, de 1945, possuía ilustrações ao longo do texto, sem
haver folhas diferenciadas.
As ilustrações foram encomendadas por Maria Clarice ao caricaturista Manolo.
São imagens que procuram ser fiéis às fotografias apresentados pela escritora. Clarita
da pá virada possui 43 ilustrações, com sete imagens coloridas e Clarita no colégio
tem 17 ilustrações, um número bem menor. Possivelmente a editora da segunda obra
tenha pedido uma quantidade reduzida de imagens, ou a escritora já não poderia
pagar por mais ilustrações. Os livros de Clarita têm ilustrações de Manolo, uma
caricaturista de Campinas que trabalhou em diferentes periódicos. Maria Clarice
solicitou que ele reproduzisse com maior fidelidade possível as personagens, os
familiares da escritora.
O formato do livro, as capas, as ilustrações e a formatação do texto eram
elementos importantes, que garantiriam a maior difusão dos textos, buscando chamar
a atenção dos leitores e dos pais e demais parentes. São eles que decidem se uma
publicação seria adequada à leitura das crianças e jovens.
Nesses discursos, a representação de família está diretamente ligada com a da
infância, ao orientar os movimentos e atividades das crianças. As imagens e símbolos
das famílias representadas nas publicações indicam os modelos tidos como

vendida à francesa Hachette livre, que mantém as publicações da Little, Brown & Co.
Curiosamente, a empresa francesa agora detém as publicações de Louisa May Alcott em
inglês e os livros da Condessa de Ségur.
A editora Roberts Brothers, que inicialmente publicou os livros de Louisa May, obteve grande
sucesso na venda dos livros infantojuvenis, que logo precisaram ser reimpressos. A escritora
manteve o direito autoral sobre esses livros, assegurando-lhe um rendimento financeiro ao
longo de sua vida.
159
Existem poucas informações sobre esse ilustrador, que se destacou na ilustração de Little
women.
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desejáveis e os que deveriam ser rechaçados. A constituição dessas famílias em cada


um dos livros apresenta configurações diferenciadas. As famílias nas publicações da
Condessa de Ségur são diversas. Em Les malheurs de Sophie, ela é constituída pelos
pais de Sophie, pela babá e pelo primo Paul. Em Les petites filles modèles, há a mãe
de Camille e Madeleine, as meninas exemplares, a quem se unem Marguerite, sua
mãe e a babá. Sophie reaparece neste livro com a madrasta, mas acaba ficando sob
os cuidados da mãe de Camille e Madeleine. Já em Les vacances, há a família das
quatro meninas e as duas mães, ambas viúvas, além dos pais de Léon e Jean e os
pais de Jacques, os primos de Camille e Madeleine. Trata-se de famílias aristocráticas
que podem assegurar uma vida cômoda para as crianças.
Little women apresenta uma família de característica mais próxima da
organização burguesa, composta por quatro irmãs, sua mãe e sua babá. O pai está
distante, como capelão da Guerra Civil, retornando ao final da primeira parte do livro.
Na segunda parte do livro, três irmãs acabam se casando e construindo sua própria
família a partir dos ensinamentos de seus pais, especialmente de sua mãe.
Maria Clarice Marinho Villac apresenta uma família mais próxima da
organização patriarcal em Clarita da pá virada, com seus avós maternos, seus pais,
tios e muitos empregados. Estes últimos constituem parte da família, pois estão
presentes nas atividades dos demais membros e interferem em seus afazeres. Em Os
cinco travessos: amiguinhos de Jesus Hóstia, a escritora mostra uma família composta
de uma mãe viúva e seus cinco filhos e suas vivências no interior de casa.
Nos livros das três escritoras há protagonistas femininas: Sophie, nos livros da
Condessa de Ségur; Josephine, nos de Louisa May Alcott e Clarita, nos de Maria
Clarice Marinho Villac. A questão do comportamento e a maneira de se governar estão
sempre sendo colocadas em xeque em todas as narrativas. É esperado que as
crianças saibam se portar e há as figuras adultas que oferecem conselhos e
orientações. Contudo, existem camadas de representação que, ao mesmo tempo que
trazem a maneira como certos grupos sociais lidam com a infância, mostram que há
outras maneiras de lidar com ela, como contraponto a uma representação tida como
ideal.
Nesse aspecto a questão da governamentalidade é importante para
compreender como se constrói a cultura da aprendizagem. Nos livros nota-se que a
governamentalidade caminha entre uma vertente disciplinar e liberal. A
governamentalidade disciplinar caracteriza-se pela obediência do indivíduo por meio
da disciplina, enquanto a versão liberal deixa o indivíduo livre para atuar, aprendendo
por meio de erros e acertos que são observados pelo adulto responsável pela criança.
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Há também uma outra possibilidade da governamentalidade liberal apresenta a


perspectiva alemã, vinculada ao termo Bildung, a formação do sujeito dá-se na relação
com o grupo e com suas produções culturais (NOGUERA-RAMÍREZ, 2011, p. 173).
As duas formas de governamentalidade coexistem e podem ser percebidas nas
representações no interior das publicações. Roger Chartier sinaliza que é preciso
"tratar os discursos em sua descontinuidade e sua discordância" (2002b, p. 77), uma
vez que as organizações discursivas têm uma lógica própria.
Nos livros da Condessa de Ségur, a governamentalidade disciplinar e liberal
caminham lado a lado. Se, por um lado, Sophie é inventiva e ingênua, por outro lado,
seus pais, e especialmente sua mãe, se preocupam em orientá-la:

"Mamãe, por que você não quer que eu vá ver os pedreiros sem a
sua presença? E quando você quer sair, por que você quer que eu
permaneça sempre perto de você?

A MAMÃE

Porque os pedreiros jogam pedras, tijolos que poderiam cair em você,


e, além disso, há areia e cal que poderia de fazer escorregar ou se
machucar. (SÉGUR, 1858, pp. 21-22)

A mãe de Sophie aponta os motivos para que filha não se aproxime da cal,
inclusive insinuando que os trabalhadores poderiam ferir a menina ao jogar pedras.
Apesar de supostamente compreender que poderia se machucar, ela se arrisca da
mesma maneira e coloca seus pés na cal. O disciplinamento não foi suficiente, ela
encontrou um momento de distração da mãe para experimentar caminhar sobre a cal.
Como uma mãe presente, ela se mostra atenta aos movimentos da filha, porém
não para lhe dar liberdade, mas esperando que sua conduta fosse diferente. Existe um
embate entre a disciplina indicada pelos pais e a liberdade que Sophie encontra para
realizar suas experiências. Ao longo de Les malheurs de Sophie, a criança reconhece
que errou e a cada capítulo ela descobre como deveria se portar, uma vez que suas
experiências não se mostram bem-sucedidas.
Ao analisar a ilustração dos pedreiros no livro Les malheurs de Sophie, nota-se
que manejam as pedras, a cal e carregam o cimento para construir um muro. É uma
das imagens que identificam os trabalhadores braçais que estão presentes em muitas
cenas dos livros da Condessa de Ségur. Mostram a simplicidade de suas vestimentas
e seu trabalho árduo, em contraponto com a vivência das famílias, que podem cuidar
dos filhos, brincar com eles e os instruir, como a mãe de Sophie o faz, ao indicar que

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os pedreiros poderiam jogar pedras sobra a criança, dando mostras de sua suposta
brutalidade.

Figura 11 – Les malheus de Sophie, 1858 p. 23, de Horace Castelli.

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Em Little women, a Mrs. March é a mãe das quatro irmãs e cabe a ela orientar
suas jovens filhas. Quando Margaret retorna de um final de semana com festas e luxo
e foi admirada por sua aparência, a mãe afirma:

"Isso é perfeitamente natural e bastante inofensivo, se o gosto não se


torna uma paixão e leva alguém a fazer coisas tolas ou pouco
modestas. Aprenda a conhecer e valorizar o elogio, sendo merecedor
dele, e provocar a admiração de excelentes pessoas sendo modesta,
tanto quanto bonita, Meg." (ALCOTT, 1880, p. 121)

A mãe das jovens permite que elas circulem no mundo e experimentem as


possibilidades que lá se oferecem, como os teatros, as festas luxuosas, bem como a
floresta. A governamentalidade nos livros de Louisa May Alcott aproxima-se de uma
perspectiva da Bildung, isto é, o mundo possui muitos elementos culturais que devem
ser vivenciados, porém, no caso do livro, as jovens precisam tomar cuidado. A
vivência cultural existe no livro, mas o que se defende é o aspecto espiritual, isto é, o
aspecto moral. O retorno ao lar, permite que a mãe oriente suas filhas e lhes explique
as questões do mundo, oferecendo um elemento de disciplinamento, de entendimento,
e orientação moral às filhas.

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Figura 12 – Little women, 1868, p. 136, de May Alcott.

Na ilustração, Meg se admira, com certo ar entristecido, na frente de um


espelho, com sua vestimenta rebuscada, com joias e cabelo penteado com flores.
Sobre o espelho a inscrição ―Vanity fair‖, que significa ―Feira de vaidades‖, o espaço
que a jovem circulou e se deixou seduzir. A jovem parece mais velha na imagem,
digna de admiração e quem sabe um pouco de pena por sua condição. Contudo, na
narrativa, quando retorna, acaba sentindo certa culpa por ter provado destas vaidades.
Ao longo da narrativa as irmãs são encorajadas a abrir mão de um mundo repleto de
vaidades e futilidades e procurar fortalecer sua espiritualidade.
No que se refere à religiosidade, cabe à família e, especialmente, à mãe,
orientar e estimular que os filhos para aperfeiçoem sua espiritualidade sua moralidade.
Eles devem estar atentos a suas ações e atitudes. Em Cinco travessos: amiguinhos
de Jesus Hóstia, de Maria Clarice Marinho Villac, a mãe instite que seus filhos
realizem pequenos sacrifícios para alcançar alguma graça que a família ou amigos
queiram. Esse livro, indicado para a leitura de mães e crianças, traz a representação
de religiosidade em todas as situações descritas no livro. A publicaçãopossui vários
excertos da relação da mãe com seus cinco filhos, formando-os dentro dos preceitos
da religião católica. Ao longo da obra fica evidente o papel materno na formação dos
filhos, especialmente no que se refere à moral.
A formação moral no interior do ambiente doméstico é assegurada em várias
atividades, inclusive na catequese realizada pela mãe, nos exames de consciência e
nos sacrifícios. O sacrifício, nesse caso, é aquele em que o fiel deveria realizar algo
que lhe custa para alcançar uma graça. Nessa publicação, as cinco crianças são
levadas a fazer sacrifícios para demonstrar sua fidelidade a Deus:

Êle [Luizinho] também já sabe fazer sacrifícios, e alguns bem difíceis.


Um dia, não havia meios dele querer comer alguma fruta, que a
Mamãe fazia empenho que êle comessem quando a Mamãe teve
uma idéia luminosa... [...] – Você não quer que a Babá venha logo? –
Telo! – Pois então faça um sacrifício, por amor do Menino Jesus, para

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ela vir logo! Coma a fruta para fazer um sacrifício! E êle, depressa,
comeu-a inteirinha [...] (MÃE BRASILEIRA, s.d., p. 19)

Figura 13 – Cinco travessos, s/d., p. 19, ilustrador não identificado.

Nessa imagem temos a mãe conversando com o filho, que está sentado num
cadeirão para que coma a fruta. A mãe orienta e insiste que a criança coma a fruta
como sacrifício pelo amor do Menino Jesus. A mãe está presente em todo percurso de
seus filhos, indicando o caminho tido adequado para seguir. Sua religiosidade extrema
é ensinada aos filhos, que desde cedo eram estimulados a ter uma vida voltada para
fé.
A religiosidade também está presente nas publicações da Condessa de Ségur,
que trazem o que se espera do comportamento de meninas e as maneiras como as
personagens e, especialmente a protagonista Sophie, precisam aprender a domar
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suas paixões e conter seus movimentos. Se a menina se acha esperta por querer
enganar sua mãe e dizer que foram ratos que comeram as frutas confitadas, em Les
malheurs de Sophie, ela percebe seu erro em um sonho durante a noite. Havia um
belo jardim repleto de flores e frutas, separado por uma grade, ao tentar entrar no
jardim, aparece um anjo que a alerta:

"Não entre, Sophie; não prove destas frutas que parecem boas, e que
são amargas e venenosas [...]. Este é o jardim do mal. Deixe-me
levá-la ao jardim do bem". - Mas, diz Sophie, o caminho a percorrer é
acidentado, cheio de pedras, enquanto o outro é coberto de uma
areia fina e macia para os pés. - Sim diz o anjo, mas o caminho
áspero te levará a um jardim de delícias. O outro te levará a um lugar
de sofrimento e tristeza; [...] (SÉGUR, 1858, p. 157)
Primeiramente Sophie não presta atenção às palavras do anjo, mas, ao
adentrar no belo jardim, ela logo percebe que nada era tão perfumado e apetitoso. Ela
se lembra do anjo e o encontra na fronteira do jardim. Ele a leva pelo caminho
pedregoso: "os primeiros passos lhe pareceram difíceis, mas, quanto mais avançava,
a estrada se tornou mais suave e o ar lhe pareceu fresco e agradável" (Ibidem, p.
159). Após o sonho, a menina decide dizer à mãe que comeu todas frutas confitadas:

Quando ela chega ao quarto da mãe, a encontra com um rosto um


pouco severo; mas o sonho a faz lembrar das frutas confitadas, e ela
começa a lhe contar tudo imediatamente.

A MAMÃE

Sabe o que isso pode significar, Sophie! Que Deus, que vê que você
não é sensata, avisa por meio deste sonho, que se você continua a
fazer tudo que é ruim e que te parece aprazível, você terá tristezas ao
invés de prazeres.
(SÉGUR, 1858, pp. 159-160)

A religiosidade, representada por um Deus onipresente, auxilia na orientação


da criança, que é ingênua e possui ideias que podem ser prejudiciais. A ideia de bem
e mal está presente mais uma vez. A religiosidade impõe suas regras, indicando os
caminhos considerados bons para que a criança seja obediente. O sonho representa a
crença na recompensa de chegar a um jardim repleto de frutas e flores após uma dura
caminhada.
Ser gulosa e querer enganar os adultos é apresentado na narrativa como algo
pouco desejável, uma vez que a gula e a mentira não seriam adequadas para
meninas. Por esse motivo, o anjo do sonho lembra que essa não seria uma solução. O
discurso de Les malheurs de Sophie sugere que é preferível dizer a verdade. A

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infância aprende, por meio da religiosidade o que é desejável, moralmente correto e


que não pode mentir ou esconder seus erros perante Deus e sua família.

Figura 14 – Les malheus de Sophie, 1858 p. 155, de Horace Castelli.

A ilustração mostra Sophie sando puxada pelo anjo, que procurar afastar a
criança do jardim em que as árvores e flores pereceriam ser belas e apetitosas, mas
que enganavam a visão. Sophie ainda olha para trás em dúvida se não seria melhor
percorrer o caminho mais fácil, enquanto o anjo mostra o outro lado. A imagem se

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mostra fiel à história contada no livro, indicando uma dúvida suscitada pela
protagonista ao se deparar com um lindo jardim.
Contudo, não é apenas pela religiosidade que as crianças aprendem nas
narrativas, a educação permeia os textos também. As reflexões acerca da
representação de educação apoiam-se nas noções de forma escolar e do saber-fazer,
termos cunhado por Guy Vincent, Bernard Lahire e Daniel Thin (2001, p. 11). Segundo
esses autores, a forma escolar caracteriza-se pela relação, entre um "mestre" (adulto)
e um "aluno" (infante), submetida a um conjunto de regras impessoais. Essa forma
emerge durante a modernidade e se aprofunda nas sociedades de cultura escrita, de
"[...] determinados saberes que conquistaram sua coerência na/pela escrita" (Ibidem,
p. 29). Esse também é o momento no qual a própria concepção da infância e sua
relação com a família estão se estabelecendo. A forma escolar, por esse motivo, está
no interior de um processo, acompanhado de um espaço e uma demarcação de um
tempo especifico para a aprendizagem (um tempo da vida, um calendário anual e
cronogramas diários) e se relaciona com outras formas sociais, especialmente a forma
política, uma vez que se liga ao exercício do poder.
A forma escolar é uma forma de socialização que, em meio a resistências e
dificuldades, acaba impondo-se a outras formas de socialização. Na relação com a
família, a forma escolar se diferencia, pois "[...] o mestre não é mais um artesão
"transmitindo" o saber-fazer a um jovem" (Ibidem, p. 13). O mestre ensina ao aluno,
em um espaço específico, permeado por regras tidas como impessoais, que definem
os tempos e as atividades a cada momento. Assim, ―[...] a escola em seu caráter
institucional, mas também por suas representações como constituinte das relações
sociais, chega a ser concebida como espaço e tempo de educar as futuras gerações‖
(CORRÊA; MARTINS, 2016, p. 298).
Em Little women não há informações sobre a formação de Josephine, a
protagonista, em um espaço escolar, mas na primeira parte do livro Amy, a irmã mais
nova, frequenta a escola. Porém, a jovem acaba sendo punida com bolos em suas
mãos por seu professor, que proibira a distribuição de doces em sala de aula.

"Sua mão, Mss. March!" era a única resposta recebida por seu apelo
mudo, e, orgulhosa demais para chorar ou suplicar, Amy apertou os
dentes, jogou a cabeça para trás desafiadoramente, e suportou, sem
vacilar, vários golpes de formigamento em sua pequena palma. Não
eram nem numerosos, nem tampouco pesados, mas isso não fazia
diferença para ela. Pela primeira vez em sua vida ela foi surrada; e a
desgraça, em seus olhos, era tão profunda quanto se ele a tivesse
derrubado. (ALCOTT, 1880, pp. 86-87)

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Figura 15 – Little women, 1880 p. 86, de Frank Thayer Merrill.

Na ilustração o professor segura a mão de Amy prestes usar a régua para


acertá-la. O olhar no professor parece grave, enquanto a menina olha com tristeza e
receio para cima. A imagem dá uma amostra do que é receber um castigo físico e o
quanto esta situação já não era mais desejada para a formação da infância.
Os castigos físicos ainda existiam naquele momento, como Michelle Perrot
(2009, p. 145) analisa no caso francês: "Perduram na escola e em certos liceus que
pretendem impor uma disciplina militar". No caso da narrativa, trata-se de uma escola
de meninas e o professor adota uma conduta extrema em um caso específico.
Porém, a família decide retirar a menina da escola, pois não aceita que tenha
sido punida dessa maneira. A mãe afirma:

"Eu não aprovo punição corporal, especialmente contra meninas. Eu


não gosto da maneira que Mr. Davis leciona e penso que as meninas
com as quais você se une, não te fazem nenhum bem, por isso vou
pedir conselhos ao seu pai antes de enviá-la a algum outro lugar [de
ensino]. (ALCOTT, 1880, p. 88)

Aqui a família protege indivíduos do grupo, buscando evitar agressões físicas.


Nota-se que a punição corporal não seria adequada especialmente para meninas, pois
seriam mais frágeis.
Situação diferente é encontrada nos livros de Maria Clarice Marinho Villac. A
escritora chega a dedicar uma publicação inteira ao espaço escolar: Clarita no colégio.
Esse não é um livro de memórias da escritora, mas as lembranças da vivência escolar
são tecidas em uma narrativa dedicada ao público infantojuvenil. Por outro lado, em
Clarita da pá virada, a menina aprende pelo saber-fazer, na observação dos adultos e
em alguns espaços escolares frequentados por ela. No colégio, o narrador descreve
algumas situações vivenciadas nesse espaço, intercalando com momentos de férias
nas fazendas do avô. Figura central no texto é Dona Emília, a diretora do colégio. É
ela que orienta e indica os percursos e a postura esperada pelas meninas.
Dona Emília procura chamar a atenção de Clarita fazendo-a refletir sobre seus
erros e obter dela seu arrependimento. Da primeira vez em que Clarita é chamada,
Dona Emília mostra que sua conduta com a irmã de colocar restos de alimentos em

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seu prato durante as refeições não é adequada. A diretora encerra a conversa da


seguinte maneira:

-- Pois é, agora você vai ser um anjo para sua irmãzinha, ouviu? Não
judie mais dela, sempre seja muito boazinha, muito amiguinha dela,
um verdadeiro anjo da guarda!
(VIOLETA MARIA, 1945, p. 18)

A criança se mostra encantada com a possibilidade de ser o anjo da guarda de


sua irmã e tem um sonho. Nota-se que a fala da diretora traz o aspecto educacional e
também do religioso, que caminham junto na formação de Clarita no internato. A
formação moral carece da religiosidade, assegurando que as meninas e jovens
tenham um bom comportamento, de consciência reta e obediente.

Figura 16 – Clarita no colégio, 1945, p. 18, por Manolo.

A ilustração traz Clarita dormindo e sonhando com o anjo da guarda, cercado


por cebolas e tomates das refeições. A criança ganha um novo poder, uma maneira de
cuidar da irmã que ela não tinha pensado anteriormente. Na imagem ela dorme com o

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rosto feliz, por ter encontrado um caminho. Dessa forma, a ilustração compõe o livro,
trazendo em imagens o que a narrativa conta.
As ilustrações apresentadas ao longo desse trabalho trazem uma amostra do
que existe nos livros. Elas trazem a representação do que é esperado para as
personagens para os leitores, por meio de desenhos engraçados e reflexivos, que
auxiliariam na leitura. Cada escritora encontrou diferentes ilustradores pela
intervenção de seus editores e obteve publicações que foram difundidas ao redor do
mundo, trazendo as representações da infância na sua relação com a família, a
educação e a religiosidade. Essas ilustrações procuram ser fieis aos livros, trazendo
em imagens o que o texto deixa mais esmiuçado.

Considerações Finais

Cada escritora teve vivências diferentes em contextos distintos umas das


outras. Contudo, na sociedade em que viveram e traçaram suas trajetórias, as
instituições que se voltam para a infância, tais como a família, a escola e as igrejas ou
catecismos, estavam presentes, bem como constituíam o imaginário social, tornando-
se elas mesmas categorias sociais nas quais a vida da criança estava sob vigilância,
cuidados e disciplina.
As representações em suas publicações são construídas por aproximação aos
temas, como camadas que vão se sobrepondo, reiterando aquilo que seria desejável
ou do que poderia ser deixado de lado. Tais representações apontam para o que seria
mais indicado para a infância, aquilo que era defendido por alguns grupos sociais,
como a aristocracia, a burguesia e a aristocracia-patriarcal brasileira. Trata-se de
narrativas de cunho comercial, que buscam educar por meio de representações que
indicam o que seria desejado para a formação da infância, em um universo da vivência
aristocrática ou burguesa, com seus empregados e serviçais em moradias bem
construídas, em que a fome não assola seus personagens. É um mundo em que
meninas e mulheres têm seu lugar no âmbito doméstico, preservando sua inocência,
sem se mancharem no espaço público.
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Como sabemos, tais discursos não foram construídos apenas pelas escritoras,
mas também na orientação dos editores e impressores que transformam o esboço
escrito em um livro impresso, contendo capas chamativas, textos fluidos e bem
distribuídos ao longo das páginas, com formatos adequados ao manuseio dos leitores
e, eventualmente, com ilustrações selecionadas para se apresentar às crianças e
jovens.
Nesse contexto as ilustrações foram encomendadas para compor as narrativas.
Elas caminham em sintonia com o texto, trazendo imagens com traços rápidos e
precisos, que trazem a vivência de meninas aristocráticas, burguesas e aristocrática-
patriarcais, com suas travessuras, ousadias e rebeldias e com muitos adultos em volta
para indicar um caminho indicado como desejável para elas. Trata-se de um estudo
inicial, que mostra grandes possibilidades de ser desenvolvido. Cada imagem merece
ser estudada mais a fundo para trazer à tona suas intenções.

Referências

ALCOTT, Louisa May. Little women: or Meg, Jo, Beth and Amy. Boston (EUA):
Roberts Brothers, 1880, Disponível na Internet via WWW. URL:
https://babel.hathitrust.org/cgi/pt?id=mdp.39015004168533;view=1up;seq=9,
acessado em 12 de dezembro de 2015;
__________________ . Little women/ Good wives. Londres: Wordworth Editions,
2006;
COMTESSE DE SÉGUR. Les malheurs de Sophie. Paris : Hachette, 1880,
Disponível na Internet via WWW. URL:
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6577498m/f7.image, acessado em 25 de
novembro de 2015;
__________________ . Les petites filles modèles. Hachette, 1858, Disponível na
Internet via WWW. URL: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6513581s,
acessado em 25 de novembro de 2015;
__________________ . Les vacances. Hachette, 1861, Disponível na Internet via

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WWW. URL: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6577519b/f7.image, acessado


em 25 de novembro de 2015;
VIOLETA MARIA. (Maria Clarice Marinho Villac). Clarita da pá virada, São Paulo:
"Revista dos Tribunais", 1939160;
VIOLETA MARIA. (Maria Clarice Marinho Villac). Clarita no Colégio, São Paulo:
Cristo-Rei, 1945.

Referências (Bibliografia consultada)

CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro


(RJ): Paz e Terra, 1982;
CHARTIER, Roger. ―Mundo como representação‖. In: Estudos Avançados. São
Paulo: Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, vol. 5,
no. 11, jan./ abr. 1991, pp. 173 – 191;
____________________. ―Capítulo IV: Textos, impressos, leituras‖. In: A História
cultural: entre práticas e representações. Lisboa (Portugal): DIFEL, 2002a;
____________________. À beira da falésia: entre incertezas e inquietude.
Porto Alegre (RS): Editora Universidade. 2002b;
NOGUERA-RAMÍREZ. Pedagogia e governamentalidade: ou da modernidade
como uma sociedade educativa. Belo Horizonte (MG): Autêntica, 2011;
PERROT, Michelle (org.). História da vida privada: Da Revolução Francesa à
Primeira Guerra, São Paulo (SP): Companhia das Letras, 2009.

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Obra encontrada na Biblioteca Municipal Hans Christian Andersen, em São Paulo (SP).
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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

NARRATIVAS POR IMAGENS: O QUE DIZEM AS CRIANÇAS DA


EDUCAÇÃO INFANTIL?

Sayonara Fernandes da Silva, UFRN, Eixo Temático 5, Literatura infantil e as


relações com a imagem, Capes.
Marly Amarilha, UFRN, Eixo Temático 5, Literatura infantil e as relações com a
imagem, Cnpq.

Considerações Iniciais

Sou livre para o silêncio das formas e das cores.


Manoel de Barros

O mundo contemporâneo é cercado de imagens. E nós, espectadores desse


mundo de imagens, bem como diz o poeta Manoel de Barros, ―somos livres para o
silêncio das formas e das cores‖. Somos livres para nos deslumbrar e viajar no mundo
das imagens que nos rodeiam.
Este artigo estuda a recepção das narrativas por imagens pelas crianças de
uma turma de nível IV da Educação Infantil na Cidade do Natal - RN. Acreditamos que
a leitura de imagens antecede a leitura de palavras, por isso, ainda que não
alfabetizados, os sujeitos desta pesquisa possuem bagagem cultural que ampara sua
competência leitora e a recepção estética das narrativas por imagens do livro Lá vem
o Homem do Saco da autora e ilustradora Regina Rennó (2013).
O objetivo geral deste artigo é refletir sobre a importância e o valor da leitura
na vida da criança e de que forma a mediação planejada pode contribuir para iniciar as
crianças no processo de alfabetização com o livro de imagens. A proposta
metodológica desta investigação é baseada na metodologia da andaimagem
defendida por Graves & Graves (2015) que consiste em duas etapas: planejamento e
intervenção. Faz parte do compêndio teórico deste trabalho Amarilha (2012), Santaella
(2012), Pilar (2014), Linden (2011), Graves & Graves (1995) e Freire (1996).
A análise dos dados foi feita a partir da teoria da análise do conteúdo
defendida por Bardin (2011). Nessa etapa, o pesquisador organiza e avalia a ação
856

realizada, os resultados obtidos, tendo como horizonte a conexão entre o agir no


campo da prática e o investigar e refletir teoricamente sobre a própria prática que se
fez intervir para melhorar a condição da leitura em idade pré-escolar e assim estimular
a formação do leitor infantil.

Ainda que nos faltem as palavras, podemos ler o mundo

O mundo não foi feito em alfabeto.


Manoel de Barros

É consenso nas sociedades contemporâneas que ler e escrever constituem


um patrimônio cultural que deve ser disponibilizado a todos. Considerando, portanto,
que a cultura letrada faz parte do nosso cotidiano, ainda que compreendida com
nuanças específicas por segmentos diferenciados da população, entendemos que a
leitura e a escrita interessam às crianças, incluindo-se menores de seis anos.
Freire (2003) afirma que ler é um processo que envolve uma compreensão
crítica e que não se esgota na decodificação pura da palavra escrita, mas que a
antecipa a partir do conhecimento de mundo. Portanto, a importância do ato de ler
pressupõe uma compreensão do texto em seu contexto, ou seja, uma leitura deve ser
refletida e contextualizada, pois a leitura de mundo precede a leitura da palavra. Assim
podemos afirmar, parafraseando o autor, que ler implica percepção crítica e
interpretação da realidade empírica e que para a criança de 4 e 5 anos da Educação
Infantil ler é também atribuir sentido às ilustrações contidas no livro. Assim, como diz o
poeta Manoel de Barros no verso da epígrafe que abre esta sessão, o mundo não foi
feito em alfabeto. A criança não precisa necessariamente ser alfabetizada para ser um
leitor porque ela lê o mundo em sua volta.
Da pré-história aos dias de hoje, a expressão e a comunicação formam um
percurso para se tentar compreender a história do homem e, consequentemente, da
criação de objetos culturais, tais como a pintura, a escultura e o livro, sendo o último
elemento, mais especificamente o livro de imagem para a infância, instrumento de
estudo deste artigo.
A motivação para pesquisarmos as contribuições das narrativas por imagens
do livro de Regina Rennó (2013) Lá vem o homem do saco, contido no acervo do
Programa Nacional Biblioteca da Escola – PNBE/2014, decorre do entendimento de
que ―nos primeiros estágios de leitura as imagens são tão importantes quanto às
palavras‖ (AMARILHA, 2012, p. 41). Ler é um direito do ser humano e o Programa
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Nacional Biblioteca da Escola é um possível caminho por meio do qual esse direito
pode se realizar.
A leitura é um direito de todos. Entretanto, esse direito não está assegurado a
todas as crianças brasileiras, visto que nem todas as crianças têm acesso ao livro.
Nas últimas décadas, o livro para infância tem apresentado, em paralelo à literatura
geral, produções de qualidade com os mais variados enfoques e temas. Entretanto,
para que essa produção chegue aos leitores, a instituição de uma política de formação
de leitores é condição básica, pois ao se promover a democratização da leitura e da
literatura entre crianças das escolas brasileiras, pode-se reverter a tendência histórica
do acesso aos livros e à leitura como bens culturais disponíveis apenas a uma parcela
da população.
A promoção da leitura por meio de política pública é, sem dúvida, a
oportunidade de superar as lacunas sobre a formação do leitor no Brasil. Entendemos
que tal política deva envolver ações sobre o financiamento, as responsabilidades nas
instituições de ensino, do gestor, do aprendiz, do educador, sua formação, os
familiares e a escola, e o compromisso de todos os segmentos sociais com a prática
de educar, para que se fomente uma visão crítica do mundo e permita ao sujeito
inserção social para a cidadania, para o exercício de seus direitos e deveres.
Nessa perspectiva, Antonio Candido aproxima direitos humanos e literatura,
dizendo que

a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve


ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo
fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos
organiza, nos liberta do caos e, portanto nos humaniza. Negar
a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade
(CANDIDO, 2012, p. 11).

A reflexão do autor assinala sobre a natureza fundamental da literatura na


constituição da identidade humana. Muitas pessoas passam toda uma vida sem nunca
ter contato com a literatura, sem viver a experiência da ficção, sem o encantamento e
o encontro com os personagens que povoam os enredos e que instigam o
pensamento criativo e a imaginação.
Desse modo, visto que a nossa proposta se volta para o estudo da imagem
dos livros de literatura para a infância do acervo do PNBE, para este trabalho se
entende leitura para além de uma simples decodificação, o que implica o uso de
experiências pessoais, a tônica do olhar que cada leitor coloca na sua leitura, o
enfoque e outros fatores.
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Ainda no que concerne à leitura, para corroborar com Oliveira (2005), para
quem ler não é apenas ―decifração ou vocalização do que está escrito, mas tônica do
olhar que cada leitor coloca na sua leitura‖, respaldamo-nos em Castanha (2008),
quando afirma que
para darmos unidade à sequência de imagens, observamos
atentamente, reparamos em pequenos detalhes, refletimos
sobre as diferenças que encontramos nas imagens ao
comparar páginas. Isso é ler imagens. E é a mesma coisa que
faz uma criança pequena ainda não alfabetizada. Ela se
demora em cada quadro ou página, buscando sentido para o
que vê (CASTANHA, 2008, p. 143).

É inegável que a leitura de imagens exige treinos e habilidades que podem


ser desenvolvidos com a prática e vivência de leitura. Pela experiência docente com
as crianças da Educação Infantil, podemos perceber que as crianças geralmente
iniciam o processo de aprendizado da leitura de modo autônomo, a partir do contato
com impressos, entre eles, os livros, principalmente os de narrativas por imagens para
a infância. As primeiras experiências de natureza lúdica e de descoberta têm a marca
essencial das qualidades sensoriais e plásticas. São precisamente os elementos
gráfico-plásticos aqueles que fixam inicialmente a atenção dos pequenos, aqueles
pelos quais o texto começa a ser percebido pelo leitor.
Segundo os estudos de Amarilha (1991), de acordo com a amostra
pesquisada, a imagem ocupa o primeiro lugar como critério pedagógico para a seleção
e indicação de livros de literatura. Os educadores, tanto os da sala de leitura como os
de linguagem, preferem os livros que contem muitas imagens aos que não possuem
esse recurso, justificando suas escolhas pelo pouco comando de leitura de seus
estudantes. Desse modo, urge a necessidade de se estudar a importância da imagem
como uma linguagem artística que conduz o espectador leitor mirim pelas formas,
cores e espaço ao olhar para aquilo que quer mostrar ou ocultar, atribuindo um
significado específico.
Para Castanha (2008), é necessário alfabetizar a criança a partir da leitura de
imagens. A autora afirma que a criança que contempla as imagens, com a mesma
facilidade também lê livros sem textos. ―Pela visualização das imagens as crianças
tornam-se capazes de, pouco a pouco, desenvolver falas associativas às cenas que
veem impressas nos livros‖ (PAIVA, 2014, p. 46). A escola deve ser um espaço para
se desenvolver habilidades de leitura e escrita, mas também pode ser um espaço para
desenvolver o interesse por outras linguagens, o que contribui para que os leitores
mirins se tornem mais ―críticos e observadores não só de textos e imagens, mas de

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um conjunto de formas expressivas e do próprio mundo em que vivem‖ (CASTANHA,


2008, p. 145).
Parreira (2012) nos alerta para a qualidade estética das ilustrações. As
ilustrações não devem repetir o que o texto escrito já diz. Elas devem sugerir para o
leitor um sentido subjetivo conjugado com o texto escrito, de modo que a criança
possa fazer inferências com o mundo que a cerca.
Lago (2011) defende que a ilustração requer participação do receptor e no
desenho das imagens que compõem a ilustração do livro de literatura deve haver o
uso de metáforas, isto é, a imagem deve causar estranhamento para que haja uma
revelação. Nesse sentido, a imagem para ser decodificada deve causar esforço visual
ao leitor.
Camargo (1995) nos chama à reflexão para a importância das imagens nos
livros pra as crianças que ainda não sabem ler quando diz que o livro de imagens
possibilita, segundo a experiência de vida de cada leitor, fazer perguntas que podem
se tornar um ponto de partida de muitas outras leituras e alargar o campo da
consciência de nós mesmos, de nosso meio e de nossa cultura.
Góes (2003) afirma que a imagem que ilustra o livro para infância tem uma
enorme importância para a criança como apoio à aprendizagem da leitura verbal,
como linguagem autônoma e em diálogo com outras linguagens. A presença deste
recurso no livro infantil tem, segundo a autora, um caráter fundamental para a
aquisição de grande parte da informação contida no livro, porque ―a imagem para
criança pequena ainda é um meio de comunicação fundamental e básico, muitas
vezes mais desenvolvido e mais aprimorado que a linguagem verbal‖ (GOÉS, 2003,
p.47).
Diante dessas reflexões, podemos afirmar que as narrativas por imagens no
suporte livro exige que o leitor interaja com esse código para a efetivação de sentido.
Dessa forma, surge a necessidade de se estudar peculiaridades desses textos e seus
processos de leitura, a fim de identificar habilidades necessárias à leitura e de criar
estratégias que favoreçam seu desenvolvimento.

A leitura por andaimes: um caminho possível

Todos os caminhos- nenhum caminho


Muitos caminhos – nenhum caminho
Nenhum caminho – a maldição dos poetas.
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Manoel de Barros

Toda metodologia é, sobretudo, uma escolha entre tantos caminhos possíveis


em busca do conhecimento. O conhecimento e o conhecer não se realizam no vazio.
Desse modo, não ter um caminho é maldição tanto para o poeta, como diz Manoel de
Barros, como para o pesquisador. Para se solucionar qualquer curiosidade é preciso
mergulhar em busca de respostas que envolvem esforços teóricos e práticos situados
no contexto cotidiano do homem com um olhar investigativo e desnudo de conceitos
pré-definidos como certo ou errado. Somente assim um pesquisador pode compor a
exploração, a descoberta e a compreensão de uma determinada realidade.
Nesta sessão trataremos dos procedimentos metodológicos utilizados para o
desenvolvimento deste trabalho. Podemos dizer que a proposta metodológica desta
investigação é mais do que um experimento, e sim uma experiência de ensino e
aprendizagem com possibilidades de se organizar em perspectivas de ensino
eficiente, colaborando com a formação do sujeito leitor na Educação infantil.
Assim sendo, a metodologia utilizada para fundamentar este trabalho é a do
tipo qualitativa com abordagem participativa. Essa metodologia exige do pesquisador a
utilização de um método com características adequadas para conhecer o objeto, que
haja uma postura aberta, dialógica, reflexiva, flexível e experiencial. Essa abordagem
é uma intervenção em pequena escala no mundo real e um exame muito de perto dos
efeitos dessa intervenção (MOREIRA; CALEFFE, 2008).
Baseando-se nos referidos conceitos sobre a pesquisa qualitativa de
abordagem participativa, faz-se necessário ressaltar que a intervenção pedagógica
realizada não teve característica de uma ação impositiva, tampouco de controle ao
meio investigado, mas sim de uma experiência de mediação de práticas de leitura que
favorecessem um repensar das ações pedagógicas no âmbito da Educação Infantil e
fomentassem a formação do leitor, valorizando o potencial estético da imagem.
O locusdeste trabalho é um Centro Municipal de Educação Infantil na Cidade
do Natal, onde são atendidas crianças da Educação Infantil nos níveis III e IV, entre as
idades de 4 e 6 anos, considerando essas idades no final do ano letivo em que se
realizará o processo da pesquisa. O Centro de Educação Infantil selecionado para a
investigação é público, foi contemplado com o acervo de livros do PNBE e apresenta
um trabalho sistemático de leitura de literatura, ainda que de forma intuitiva sem um
referencial teórico que o sustente.

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Em relação aos métodos de construção de dados, para este artigo


escolhemos um episódio de leitura de imagens que consistiu na capa no livro Lá vem
o homem do saco de Regina Rennó (2013). Nesse caso, os métodos de coleta de
dados assumem características próprias de acordo com as questões e objetivos que
se pretendem alcançar e que orientem as respostas reflexivas dos sujeitos.
Com isso, realizaremos uma intervenção que foi se (re)organizando conforme
os nossos objetivos e se (re)construindo com o próprio desenrolar da ação, conforme
a significação, a recepção e o envolvimento dos sujeitos. Assim sendo, a nossa
intervenção não se caracterizou como uma ação de controle e de imposição de
mudanças ao meio investigado, mas sim como uma experiência para pensar com
autoridade e criticidade sobre os efeitos da ilustração que acontece com a mediação
do outro leitor mais experiente.
Para a realização da intervenção pedagógica, os sujeitosestavam inseridos
em uma turma de crianças da Educação Infantil de 4 e/ou 6 anos ainda não
alfabetizadas, mas que já apresentavam alguma experiência de leitura de imagens,
além da formação leitora e do repertório literário, visto que a escola, locus da
pesquisa, tinha uma prática diária de contação de histórias para as crianças.

Nesse ponto, é relevante lembrar que a oralização tem a


finalidade de enriquecer a bagagem antecipatória do leitor,
buscando familiarizá-lo com estratégias da narrativa, por
conseguinte, com as convenções da escrita. Sendo lido ou
narrado, o repertório disponíveis nas escolas já está
devidamente preservado pela escrita (AMARILHA, 2012, p. 22).

Assim, foi justamente desse ponto que seguimos neste estudo: utilizamos a
bagagem prévia dos sujeitos para refletir criticamente sobre as imagens do livro
anteriormente citado, contido no acervo do PNBE / 2014, a fim de confirmar ou refutar
a hipótese de que elas são andaime para a aquisição da palavra pelos sujeitos não
alfabetizados.
Tomando como base o conhecimento construído com os sujeitos sobre as
práticas e os espaços de formação leitora, bem como sobre as relações e práticas
estabelecidas no uso das tecnologias disponíveis na escola, seguimos para
oplanejamento da intervenção, que se constitui na segunda etapa de nossa pesquisa.
Sabendo-se que os livros do PNBE são submetidos a um criterioso processo
de seleção dos títulos diferenciados por cada gênero, adquiridos por meio de edital
público, de acordo com Pereira (2006), nessa etapa da pesquisa selecionamos o livro
Lá vem o homem do saco, Rennó (2013). Os principais critérios que motivaram a
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seleção do texto se referem à inserção dele no PNBE, política pública que atende a
todas as escolas do país, e o outro critério de seleção foi o gênero: conto popular com
suspense.
Após a seleção do texto pelos sujeitos, planejamos as sessões de leitura,
conforme a metodologia da andaimagem (scaffolding), defendida por Graves e Graves
(1995). Essa preferência decorre da comprovação dessa estratégia como sendo eficaz
para a compreensão leitora do texto no universo das pesquisas e das práticas de
ensino de leitura e de literatura. Consideramos, ainda, que essa metodologia pode
auxiliar o processo de mediação de leitura, uma vez que ela envolve os leitores em
estratégias de discussão e argumentação em torno do texto de forma crítica e
reflexiva.
Outro fator que justificou a nossa escolha foi a possibilidade de, por
intermédio da metodologia da andaimagem, combinar estratégias para auxiliar na
compreensão, na apreciação do texto por imagens e na construção de uma
comunidade de leitores que compartilham o prazer de ler. Nessa proposta, há a
mediação de um leitor mais experiente – no caso, a professora-pesquisadora – em
torno da relação texto-leitor com o objetivo de desenvolver uma mediação competente,
pautada na concepção de leitura como experiência.
O planejamento constitui a primeira etapa da metodologia de leitura por
andaimagem, na qual são considerados as necessidades, os interesses e os
conhecimentos prévios dos alunos a serem identificados na ecologia da escola.
Posterior ao momento de planejamento, temos a implementação das sessões de
leitura, organizada, basicamente, em pré-leitura, com ações de motivação, exploração
dos conhecimentos prévios dos alunos, leitura, com a exploração do texto e sua
relação com a linguagem visual por meio das ilustrações, e pós-leitura, com
discussões do texto por meio de perguntas que avaliem a sensação, interação e
compreensão do texto por parte de alunos e ofereçam indícios ao mediador para que
ele também possa avaliar sua intervenção.
A intervenção pedagógica tratou, das observações e registros já feitos, da
exploração do potencial semântico revelado pelas crianças a partir da recepção
estética das imagens do livro.

Lá vem o homem do saco! O que dizem as crianças?

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O menino aprendeu a usar as palavras


Viu que podia fazer peraltagens com as palavras
E começou a fazer peraltagens
Manoel de Barros

Nessa sessão, trataremos de analisar as vozes das crianças a partir da capa


do livro trabalhado. A sessão foi gravada em vídeo, visto que essa mídia tem uma
função de registro de dados sempre ―que um conjunto de ações humanas é complexo
e difícil de ser descrito compreensivamente por um único observador, enquanto ele se
desenrola‖ (BAUER; GASKEL, 2012, p. 149).
Nessa etapa, organizamos e avaliamos a ação realizada, tendo como
horizonte a conexão entre o agir no campo da prática e o investigar e refletir
teoricamente sobre a própria prática que se fez, intervir para melhorar a condição da
leitura de imagens e para compreensão da arte pelas crianças e assim estimular a
formação do leitor infantil.
Ainda que muito pequenas, as crianças expressam ideias, pensamentos e
opiniões a respeito do mundo que as cerca utilizando-se de múltiplas linguagens.
Como nos lembra o poeta Manoel de Barros, as crianças depois que aprendem a falar,
fazem peraltagens com as palavras. Ouvir as crianças requer uma escuta atenta e
cautelosa para que se conheça os seus pontos de vistas, suas crenças e suas
competências de leitura a partir da linguagem oral, porque a criança, como
defendemos hoje, ―não é apenas uma reprodutora, mas também produtora de cultura‖
(CRUZ, 2008).
Para que possamos compreender a tempestade de ideias suscitada no
primeiro episódio de leitura, apresentamos a seguir a capa do livro utilizada na
mediação de leitura para construção dos dados de análise, bem como a transcrição
das vozes dos sujeitos no inicio da apresentação do livro.

Imagem 1: Capa do Livro

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Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora. 20/05/2017

1º Episódio de leitura: a capa.


... Saudações iniciais e os contratos pedagógicos de leitura

PP:Observem a capa do livro. Vocês acham que essa história fala de quê?
Ricardo:De um homem mau.
Pedro: De um homem que carrega menino para comer o fígado.
José:De um catador de lixo.
Elivelton: De um homem triste.
PP: Por que você acha que é de um homem mau, Ricardo?
Ricardo:Não sei, mas a roupa preta e a calça com vestido parecem coisa de gente
ruim.
PP:Vocês concordam com Ricardo, gente?
Elivelton:Eu não concordo, professora. Para mim, ele é um homem triste, porque ele
tá sozinho e o desenhista da capa do livro não quis mostrar a tristeza dele, aí cortou a
cabeça do homem.
PP: Entendi. Alguém tem uma opinião diferente de Elivelton?
Aline:Eu acho que ele pega só criança teimosa, tia.
PP:Por que você acha isso, Aline?
Aline:Por que criança teimosa teima e o homem leva embora.
Belinha: Eu quero falar. Eu acho que a cabeça tá cortada porque o homem é
misterioso. E o mistério ninguém descobre, aí corta a cabeça para ninguém saber, não
é?
PP: Será? Tem outra pessoa que gostaria de dar opinião?
Fagner:Eu acho que é porque é segredo.
PP:Como assim Fagner?
Fagner:Segredo, tia. Segredo eu não posso contar.
PP: (Risos) Alguém mais tem outra ideia?
Maria:Eu acho que o homem tá de preto pra se camuflar ou para se confundir com a
sombra.
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José:Eu penso que o homem é um catador de latinha, professora.


PP:Por que José?
José:Porque eu e meu pai apanha (sic) latinha quando tem festa na quadra e a gente
não é do mau.A gente cata latinha porque quer vender e comprar uns negócios para
minha mãe.
PP: Verdade, José.
PP:Pedro, se come fígado de criança? Você acha mesmo isso?
Pedro:Não sei, tia. Quem me contou foi...minha vó, meu vô, minha tia e minha mãe.
Ela (a mãe) diz que criança não pode sair de casa sozinho (sic) porque passa um
homem no carro preto e chama as crianças para dar confeito e quando a criança
chega perto do carro ele pega ela e leva ela para tirar o fígado e comer...
Fonte: Transcrição feita para fins deste trabalho. 20/05/2017
Legenda:PP = Professora pesquisadora

Retomando o objetivo deste trabalho que é refletir sobre a importância e o


valor da leitura na vida da criança e de que forma a mediação planejada pode
contribuir para iniciar as crianças no processo de alfabetização com o livro de
imagens, passaremos a analisar a leitura feita da capa do livro para podermos
compreender como as crianças interpretam as cores, texturas, volumes, formas e
linhas que constituem uma imagem. Nesse sentido, buscamos averiguar como a
criança atribui sentido ao contexto da temática trazida na obra a partir da estrutura dos
elementos que compõem o todo da imagem.
A imagem é reveladora de sentimentos e emoções permitindo uma leitura
polissêmica e carrega em si um simbolismo que vai muito além do que os olhos veem.
Para ilustrar o simbolismo da característica do personagem, atribuída por um leitor,
vejamos a fala de um de nossos sujeitos transcrita no primeiro episódio de leitura.

PP:Observem a capa do livro. Vocês acham que essa história


fala de quê?
Ricardo:De um homem mau.
PP: Por que você acha que é de um homem mau, Ricardo?
Ricardo:Não sei, mas a roupa preta e a calça com vestido
parecem coisa de gente ruim (Informação verbal, 20/05/2017,
grifos nossos).

A fala de Ricardo, quando afirma que a roupa preta indica coisa de gente
ruim, revela uma expressão preconceituosa de julgamento pela aparência. O aprendiz
reproduz um discurso, sem base na argumentação, ao revelar que não sabe o porquê,
mas afirma que a roupa preta e a camisa que parece um vestido é coisa de um
homem mau.
De acordo com os estudos de Santaella (2012), toda imagem no domínio das
representações visuais apresenta camadas múltiplas: subjetivas, sociais, estéticas,
antropológicas e que aprender a identifica-las e percebê-las é a finalidade que se
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almeja para o leitor de imagens. Nesse sentido, podemos afirmar que a leitura de
imagens para esse sujeito ainda está no plano do realismo simbólico em que ele
sustenta a leitura da imagem a partir da influência sofrida na convivência social com
seus pares.
Ainda tomando como base o mesmo episódio de leitura, analisaremos o
discurso de Pedro:

PP:Observem a capa do livro. Vocês acham que essa história


fala de quê?
Pedro: De um homem que carrega menino para comer o
fígado.
PP:Pedro, se come fígado de criança? Você acha mesmo
isso?
Pedro:Não sei, tia. Quem me contou foi...minha vó, meu vô,
minha tia e minha mãe. Ela (a mãe) diz que criança não pode
sair de casa sozinho (sic) porque passa um homem no carro
preto e chama as crianças para dar confeito e quando a criança
chega perto do carro ele pega ela e leva ela para tirar o fígado
e comer... (Informação verbal, 20/05/2017, grifos nossos).

Já a fala de Pedro está ancorada em um argumento de autoridade quando ele


diz que apesar de não ter certeza sobre a história, revela que a mesma foi contada
pela sua mãe e seus familiares e acrescenta informações relativas a alguns
acontecimentos reais do seu bairro, denotando a experiência estética do leitor com a
literatura e a relação texto-vida.
As informações utilizadas por Pedro para construir seu argumento perpassa
por uma história real acontecida no bairro em que está localizada a escola em que foi
realizada a sessão de leitura em questão, quando entre os anos de 1998 e 2011, cinco
crianças foram sequestradas de seus lares de forma misteriosa e nunca mais
apareceram.
O caso ganhou repercussão nacional e nunca foi resolvido, por esse motivo
muito se fala sobre um ―tal homem em um carro preto que leva as crianças‖. Já a
finalidade de ―comer o fígado‖ é resultante de uma lenda urbana muito conhecida
pelas crianças por ser contada nas escolas em período de folclore. Como os sujeitos
participantes deste trabalho são leitores iniciantes, é aceitável o trânsito entre a
realidade e a ficção, pois realidade e ficção são sistemas que interagem
constantemente, mantendo entre si uma diferença de grau em que os dois possuem
um sistema organizado. Contudo, não podemos deixar de dizer que o mundo factual
serve de modelo ao ficcional (AMARILHA, 2012, p. 60). Partindo desses pressupostos,
fica explicada a construção dos argumentos de Pedro.
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A imagem fixa é um símbolo visual complexo. Conforme Santaella (2012, p.


107), ―o princípio da representação por imagens é a semelhança entre a aparência da
imagem e aquilo que ela designa‖. A leitura da imagem pode ser feita pelo viés da
semântica ou pela sintaxe.
No que diz respeito à semântica, o leitor se ancora no jogo polissêmico de
sentidos com base na sua experiência com o mundo que o cerca; já pelo viés da
sintaxe, entendemos que a leitura se faz pela combinação de elementos que formam o
arranjo do todo da imagem, tais como cor, traço, ponto, textura, espaço, planos,
ângulos, entre outros. A fim de ilustrar uma leitura de imagem utilizando o campo da
sintaxe, apresentamos a seguir a voz de outro sujeito:

PP:Vocês concordam com Ricardo, gente?


Elivelton:Eu não concordo, professora. Para mim, ele é um
homem triste porque ele tá sozinho e o desenhista da capa
do livro não quis mostrar a tristeza dele, aí cortou a cabeça
do homem (Informação verbal, 20/05/2017, grifos nossos).

Elivelton ancora seu argumento na sintaxe visual da imagem para discordar


do colega quando revela que a cor preta também está convencionada à tristeza. O
aprendiz também percebe a estratégia da ilustradora em mostrar o personagem
principal, o homem do saco, por um ângulo de baixo para cima evidenciando o saco e
sem mostrar a cabeça do personagem como um efeito proporcionador de suspense.
Nessa fala, a criança revela uma consciência de que a ilustradora se utiliza de
estratégias de causa e efeito para construção de sentido da imagem estática.
Por fim, corroborando com Amarilha (2012), quando afirma que a linguagem
propõe relações tanto da vida para o texto quanto do texto para a vida, encontramos
no primeiro episódio de leitura um momento de catarse de um leitor mirim. Vejamos:

José:Eu penso que o homem é um catador de latinha


professora.
PP:Por que José?
José:Porque eu e meu pai apanha (sic) latinha quando tem
festa na quadra e a gente não é do mau.A gente cata
latinha porque quer vender e comprar uns negócios para
minha mãe (Informação verbal, 20/05/2017, grifos nossos).

José contesta as opiniões anteriores com um argumento de que ele também


cata latinha e nem por isso é mau. Nesse recorte aparece na voz da criança o

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processo de catarse pelo qual o aprendiz defende o personagem, haja vista que, como
ele e seu pai, o homem do saco não é do mal.

Considerações Finais

É consenso que a escola tem a obrigação de ensinar os signos linguísticos,


que para muitos leitores a escola é o único lugar de acesso aos livros para infância e
que ler imagens é uma oportunidade de autonomia na leitura que se permite à criança.
Há quem diga que ler imagens é mais fácil do que fazer a leitura verbal. Para nós a
leitura de imagens é um ato tão complexo quanto o ato de ler dos sujeitos em
processo de alfabetização.
Acreditamos que interpretar imagens faz parte da gênese da alfabetização,
por isso a escola precisa estar preparada para mediar e ensinar a leitura de imagens
aos seus aprendizes, porque se assim não o fizer a leitura de imagens vai se tornar
apenas um manusear de livros sem desenvolver as competências e habilidades do
olhar leitor.
Os resultados apontam que aliada à importância da leitura de imagens, como
um meio imprescindível ao processo de formação da criança leitora, o professor
precisa planejar a aula de leitura, ter domínio dos elementos básicos das ilustrações
que constituem a narrativa por imagem, fazer uma mediação atenta às vozes dos
aprendizes e intervir com perguntas propositivas quando necessário, de modo a
promover uma discussão crítica e reflexiva a respeito do texto.
Com os resultados deste trabalho, esperamos evidenciar as contribuições das
narrativas por imagens dos livros do PNBE para um trabalho de formação do leitor, e
em consequência, fornecer subsídios para o professor desenvolver novas estratégias
de democratização da leitura no espaço escolar amparado nas imagens dos livros
para a infância como um andaime para o desenvolvimento da linguagem oral e da
escrita da criança, registrar as principais práticas pedagógicas relacionadas à leitura
visual desenvolvidas no cotidiano das salas de Educação Infantil, apontando caminhos
para a prática de leitura voltada à formação do leitor.

Referências

AMARILHA, Marly. Estão mortas as fadas? literatura infantil e prática pedagógica.


Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Tradução de Antero Reto, Augusto
Pinheiro. São Paulo, SP: Edições 70, 2011.
BARROS, Manoel. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010.
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BAUER; GASKELL, George. Entrevistas individuais e grupais. In: Pesquisa


qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. 2.ed. Tradução Pedrinho
A. Guareschi. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.
CAMARGO, Luiz. As ilustrações do livro infantil. Belo Horizonte, MG. Ed. Lê, 1995.
Candido
CASTANHA, Marilda. A linguagem visual no livro sem texto. In: O que é qualidade em
ilustração no livro infantil e juvenil. OLIVEIRA, Ieda. São Paulo: DCL, 2008.
CRUZ, Silvia. A criança fala: a escuta de crianças em pesquisas. São Paulo: Cortez,
2008.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa.
São Paulo: Paz e Terra, 1996.
GOÉS, Lúcia Pimentel. Introdução à literatura infantil e juvenil. 2.ed. São Paulo:
Pioneira, 1991.
GRAVES, M. F.; GRAVES, B.B. The scaffolding reading experience: a flexible
framework for helping students get the most out of text. In: Reading. April.1995.
LAGO, Angela. Indo não sei aonde buscar não sei o quê. Ilustrações da
autora. Rio de Janeiro: RHJ, 2011.
MOREIRA, Herivelto; CALEFFE, Luiz Gonzaga. Metodologia da Pesquisa para o
professor pesquisador. 2. ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2008.
OLIVEIRA, Marta Kohl. Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento um processo sócio
histórico. 4 ed. São Paulo: Scipione, 2005.
PAIVA, Ana Paula. Livro de imagem: como aproveitar a atratividade e desenvolver o
potencial destas obras na sala de aula com atividades literárias. In: PNBE na escola:
Literatura fora da caixa guia 1. Brasil, Brasília Ministério da Educação 2014.
PARREIRAS, Ninfas. Confusão de línguas na literatura: o que o adulto escreve, a
criança lê. Belo Horizonte: RHJ, 2012.
PEREIRA, Andréa Kluge. Biblioteca na escola. Brasília: Ministério da Educação,
Secretaria da Educação Básica, 2006.
RENNÓ, Regina. Lá vem o homem do saco. São Paulo: FTD, 2013.
SANTAELLA, Lucia. Leitura de imagens. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2012.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

NARRATIVAS TÁTEIS: CONTAÇÃO DE HISTÓRIA PARA A


CRIANÇA COM DEFICIÊNCIA VISUAL

Mariana de Oliveira Martins Domingues, Universidade Federal Fluminense


(UFF), Literatura Infantil e as Relações com a Imagem

Considerações Iniciais

A literatura possui um caráter subjetivo e sua representação é uma


construção própria de cada leitor. Os indivíduos constroem sua visão de mundo
através dos sentidos, desta forma, a criança com deficiência visual constrói essa
representação através de seus sentidos remanescentes. Não lhe oferecendo algo já
pronto a partir da percepção do vidente (que tem o sentido da visão), mas dando a
elas as ferramentas para que sejam capazes de construir seu imaginário. Para tanto,
uma representação lúdica da narrativa por meio de recursos que conduzam a criança
com deficiência visual a um despertar de imagens mentais se faz importante no
contexto da narrativa.
A criança vidente durante a leitura tem sua imaginação despertada pelo texto
e pela estimulação visual das imagens, pois a ilustração é um elemento de
comunicação. Para crianças com deficiência visual é preciso despertar esse
imaginário através de outros estímulos. Não se pode pensar que a capacidade de
"ver" está apenas nos olhos, existem outros sentidos que trazem a possibilidade do
olhar.
A busca por estratégias que representem a ilustração do texto literário infantil
se dá para que a criança construa uma percepção individual e pessoal do texto, de
maneira que alcance significado para si e para o seu mundo. Considerar a fruição do
texto literário por meio de uma expressão sensorial é permitir ao deficiente visual a
expressão da sua individualidade considerável, única e relevante. A busca por esses
recursos é para que o texto literário tenha um significado real e próprio na experiência
de leitura.
871

A pesquisa ação, qualitativa, com análise explicativa, concebida em


colaboração de pesquisadores e participantes envolvidos de modo participativo,
aconteceu por meio de oficinas de contação de história para crianças com deficiência
visual, em fase de alfabetização, em uma instituição especializada no atendimento a
deficientes visuais. Tendo como referencial teórico Rui de Oliveira, Eliana Lucia
Madureira Yunes e Jackeline Lima Farbiarz.

Desenvolvimento

É através da experiência de leitura que o sujeito vai construindo sua trajetória


numa sociedade em que a leitura e a escrita são vitais para a sobrevivência digna.
Portanto, encontra-se na literatura um caminho a percorrer para incentivar à leitura,
pois o prazer é a melhor forma de alcançar sucesso no esforço de formar um leitor. ―O
prazer é também um longo aprendizado, embora esteja presente desde sempre, nos
ensina Freud, na pulsão de vida.‖ (YUNES, 1995, p.186)
Para crianças videntes a literatura infantil é fundamental para despertar o
gosto pela leitura. Ela é atrativa, principalmente, pela ilustração, pois a criança
encontra no desenho uma forma de complementar sua narrativa. Por vezes ela deixa o
texto em ―stand-by‖ e a imagem a faz assumir um texto próprio, passando, então, a
uma posição de autora do próprio texto.
[...] quando a imagem é mais relevante para a narrativa, ela se
torna a instância primária e o texto exerce a função de
instância secundária. Contudo, algumas vezes, a articulação
das duas linguagens não permite que se defina uma primazia;
consequentemente é a interação entre texto e imagem que
ocupa o lugar de destaque no objeto-livro. (LACERDA;
FARBIARZ, 2016, p.280)
No contexto de crianças com deficiência visual falta uma ―imagem‖ vinculada
ao texto que desperte o imaginário. É preciso buscar uma representação que se
articule ao texto e que atenda a individualidade do sujeito considerando sua
capacidade imaginativa a partir de outros sentidos para além da visão, explorando a
liberdade de pensamento do leitor numa relação de construção entre narrativa,
representação e resgate da memória.
A palavra, por si só, traz um significado carregado de emoções que promove
o encantamento pela leitura. Até porque ―são palavras que provocam sensações das
mais distintas dentro da alma, e que são diferentes em cada ser. De fato, despertam
imagens seguramente particulares (individuais) na mente de cada um [...].‖ (SQUIRRA,
2011, p.37).

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Ainda assim, não se pode ignorar que a ilustração é um elemento


fundamental na literatura infantil. Ela é um canal de comunicação, vincula a criança ao
texto, estimula a criatividade e verbalização. Segundo Oliveira et al. (2009, p.7) ―[...] a
leitura harmoniosa e participativa da palavra e da ilustração amplia o significado e o
alcance lúdico e simbólico de um livro.‖ A ilustração tem um papel importante na
composição do livro infantil. ―Assim, imagem e texto dialogam visualmente na página e
com o leitor. A imagem passa a fazer parte integral da história, potencializando a
comunicação e a mensagem.‖ (OLIVEIRA et al., 2009, p.45)
É necessário estratégias que estabeleçam uma ―relação de colaboração:
texto e imagem se articulam para a construção de um discurso único, que não está
presente unicamente em nenhuma das duas instâncias, mas que emerge da
colaboração entre elas.‖ (LINDEN, apud LACERDA; FARBIARZ, 2011, p.281).
Para atender a necessidade de um espaço ilustrativo na literatura infantil que
atendesse a criança com deficiência visual, foi promovida, através da contação de
histórias, experiências de narrativas táteis utilizando diferentes recursos para
despertar o imaginário da criança.
Foi realizada uma oficina de contação de história, com crianças na faixa etária
de 6 a 9 anos, em uma instituição especializada no atendimento ao deficiente visual.
Durante a narração de histórias foram apresentados materiais para a investigação tátil
e a construção mental de uma representação que simbolize a ilustração.
Com recursos sensoriais, a narrativa passou a ter uma representação sob a
perspectiva daquele que faz a leitura sensorial. Não houve a descrição das imagens
do livro ou uma representação de imagens visuais, mas foi dado a criança o direito de
criar uma imagem mental (própria do deficiente visual), a partir de suas percepções
sensoriais, entendendo ―(...) o direito que o pequeno leitor tem de exercer a sua
legítima alternativa pessoal do olhar‖ (OLIVEIRA et al., 2009, p.10) assim como a
criança vidente cria novos textos a partir da sua percepção visual.
Para conhecer o mundo utilizamos os sentido. Todo ser humano utiliza os
sentidos para perceber o meio externo, permitindo interpretar o meio ambiente. A
capacidade de ―ver‖ não está apenas nos olhos, pois através dos outros sentidos é
possível formar imagens. A subjetividade é construída através dos sentidos, de como
cada indivíduo percebe.
Trabalhar com uma representação lúdica que não dá uma imagem mental
acabada, mas que oferece ―pistas‖ incitando a imaginação, faz com que a criança
represente o texto sob suas percepções, estimulando a capacidade de fantasiar
cenários e personagens a partir do seu olhar e perspectiva de vida. Os recursos
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sensoriais passaram a representar as narrativas e completar as ―lacunas‖ da falta da


ilustração. Segundo Oliveira et al. (2009, p.17)
[...] o que desperta o interesse do olhar é aquilo que supomos
que estamos vendo. Em outras palavras: as sombras são muito
mais reveladoras que as luzes. O que está indefinido na
penumbra, o que não foi ilustrado, mas sugerido, esta imagem
que se origina em nossa mente, em nosso passado, em nossa
expectativa e ansiedade de ver, sem dúvida, esta é a imagem
que possui maior poder de pregnância no imaginário do
pequeno e mesmo do leitor adulto.
No momento de leitura as experiências táteis estimulam a imaginação e
geraram percepções e imagens mentais próprias que partiram do reportório e das
elaborações mentais individuais, fazendo as crianças se relacionarem com a leitura.
Não limitado a perspectiva do autor, mas recriando o texto a partir de sua
particularidade. ―A leitura não é mero exercício sobre a escrita dos outros, mas
formulação lenta da própria escrita em relatos e ações.‖ (YUNES, 1995, p.195)
As narrativas táteis alcançaram o compartilhamento de conteúdo textual e
ilustrativo numa relação colaborativa acrescentando novos sentidos, dando ao leitor ―o
poder de criar, na sua cabeça, a única história que realmente interessa: a história
dele.‖ (OLIVEIRA et al., 2009, p.46).
Para que as narrativas táteis alcançasse êxito no sentido de representar um
código figurativo, a utilização de diferentes materiais e recursos foi fundamental, pois
as crianças foram levadas a interagir e explorar o que lhes vinha a mão, investigando
e criando imagem da junção da narração e da investigação tátil.
Ao refletir sobre como construir essa linguagem lúdica no livro infantil a partir
do sensorial, percebe-se que não existem caminhos definidos, mas que a criatividade
é quem vai enriquecer a obra. ―Cada livro pede uma solução específica [...]. Não existe
técnica mais ou menos nobre, mas sim a mais adequada ao projeto [...].‖ (OLIVEIRA et
al., 2009, p.46)
A medida que as narrativas foram sendo realizadas o efeito retroativo foi
gerando um processo de reflexão sobre a ação, a fim de considerar o que foi
significativo ou não e buscar melhores formas de gerar uma representação
significativa.

Considerações Finais

A falta da visão não é um impeditivo para a construção de uma representação


ilustrativa do texto. Há distintos caminhos em que a criança com deficiência visual

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pode percorrer para construir esse imaginário, visto que a aquisição de informações
não depende exclusivamente da visão, mas de todos os sentidos.
Foi possível, ainda, uma autorreflexão sobre a questão dos recursos materiais
usados para a representação de conceitos. Considerando, principalmente, o que
determinado objeto configura ou simboliza para aquela criança.
Trabalhar literatura por meio das sensações não é substituir as ilustrações
atraentes dos livros infantis, mas enriquecer o texto de sensações. É proporcionar uma
fruição própria, subjetiva, centrada na forma de aprendizagem de cada grupo, a partir
do aporte das percepções individuais.
O importante na experiência de leitura é a absorção do significado e do
prazer. A narrativa tátil não se apresenta como uma proposta de ilustração
compensatória pela falta da visão, mas como uma forma de se relacionar com o texto
que promova aprendizagem e conhecimento de mundo.

Referências

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

O DIÁLOGO COLABORATIVO ENTRE TEXTO E IMAGEM EM O


LAGARTO DE JOSÉ SARAMAGO

Rogério Francisco dos Santos, UEMS, Eixo 5, PG Letras – FUNDECT MS


Susylene Dias de Araújo, UEMS, Eixo 5, PG Letras – FUNDECT MS

Considerações Iniciais

A motivação de análise nesse artigo consiste no desejo de refletirmos sobre as


relações existentes entre a completude de sentido entre o texto e a imagem no livro O
Lagarto (2016) de José Saramago. Para efeitos de análise, tentamos compreender o
diálogo entre a narrativa e os artefatos visuais que acompanham a mesma, para
avaliar como essas combinações contribuem para o todo da obra.
Nossas observações partem da tentativa de compreendermos as relações de
continuidade e complementação de sentindo que vão se amarrando no conjunto dos
episódios da narrativa como tentativa de percebermos como se dá o estreitamento
entre as relações estruturais do texto verbal e as imagens. A edição escolhida resulta
em um trabalho marcante no qual se observa o exagero no uso das cores,
característica recorrente da cultura do cordel e da xilogravura, detalhe que cobre até
mesmo o formato e o tamanho das letras que ocupam as páginas como aspectos
constitutivos e típicos desta literatura, aqui realizada pelo projeto estético de J. Borges,
artista que, a partir de xilografias, ilustra a obra em questão, publicada pela
Companhia das Letrinhas.
No percurso teórico destacamos as observações de Alloa (2015), Arroyo
(1967), Hunt (2010), Tavares (2005) e Monteiro e Pires (2013) e o artigo se divide em
cinco partes, iniciadas por um breve relato sobre a biografia do autor e do ilustrador.
Na sequência algumas observações sobre a obra e a respeito das relações entre as
imagens e a literatura de cordel, seguidas de nossa interpretação desse diálogo e
nossas considerações finais.
877

Sobre o autor e o ilustrador

A obra O Lagarto (2016) do escritor José Saramago, publicada recentemente,


conta com a colaboração do cordelista e xilogravurista José Francisco Borges, mais
conhecido como J.Borges. Uma breve busca pela biografia de José Saramago revela
registros de seu nascimento em 1922, em uma família de camponeses na província de
Ribatejo, em Portugal. Devido a dificuldades econômicas, foi obrigado a interromper os
estudos secundários, tendo a partir de então, exercido diversas atividades
profissionais: serralheiro mecânico, desenhista, funcionário público, editor, jornalista,
entre outras. Seu primeiro livro foi publicado em 1947. A partir de 1976 passou a viver
exclusivamente da literatura, primeiro como tradutor, depois como autor. Romancista,
teatrólogo e poeta, em 1998 tornou-se o primeiro autor em Língua Portuguesa a
receber o premio Nobel de Literatura. Saramago faleceu em Lanzarote, nas Ilhas
Canárias em 2010.
José Francisco Borges, mais conhecido como J. Borges é um mestre da
literatura de cordel, um dos artistas populares mais celebrados da América Latina e
um dos xilogravuristas mais reconhecido no mundo. O artista nasceu em 1935, em
Bezerros, Pernambuco. Filho de agricultores começou a trabalhar na roça com dez
anos, além de vender colheres de pau que ele mesmo fabricava. Era autodidata, e o
gosto pela poesia o fez encontrar nos folhetos de cordel um substituto para os livros
escolares. Foi em 1964 que J. Borges começou a escrever os folhetos de cordel, e
como não tinha condição de pagar um ilustrador, resolveu fazer ele próprio às
imagens. Desde então, passou a produzir matrizes por encomenda para ilustrar os
mais de duzentos cordéis que lançou ao longo da vida. Hoje, essas xilogravuras são
impressas em grande quantidade e vendidas para todo tipo de público, o que lhe
rendeu diversos prêmios, como consta nas informações obtidas na capa da edição
escolhida para esse estudo. 161

A obra O Lagarto (2016) de José Saramago

O Lagarto é uma mistura eloquente do que há de mais simplório e rico na


leitura de palavras e, sobretudo, de imagens para a literatura infanto-juvenil. O livro em
questão se apresenta como um conto português cujo mote seria a tradição dos contos

161
Informações retiradas da obra ―O lagarto‖, e com base no site
https://www.josesaramago.org/lagarto-jose-saramago-j-borges/, acessada em 01/09/17.

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de fada europeus. Porém, conforme o leitor vai adentrando por entre as linhas textuais
e conhecendo os fatos da narrativa, passa a se questionar se ali há ou não o relato de
conto de fadas tradicional.
A narrativa inicia-se com o surgimento de um imenso lagarto que aparece em
meio a uma região comercial e famosa da capital portuguesa chamada Chiado. O
animal posicionado no mio da rua começa a enfrentas as pessoas e a avançar em
direção aos carros, causando certo caos permanente naquele ambiente e
consequentemente, hostilidade entre os moradores. Entre a riqueza dos vocábulos
que compões a parte da escrita textual surgem imagens típicas que trazem à memoria
do leitor/espectador o traço simples da literatura do cordel brasileiro, reinventando
fatos simples, narrados com sabor e vontade de a imaginação daquele que se deixar
levar pela mágica do enredo. O caos é sempre é uma situação desconfortável a
qualquer pessoa e imaginar um lagarto parado aterrorizando a rotina de um povo
pálido e calado a observar uma frota de carros abandonados por seus donos
medrosos e em meio a tudo isso ouvir o eco estrondoso dos gritos de uma pobre velha
é o suficiente para toda uma cidade parar. A narrativa segue seu curso, sendo
enriquecida com o que a palavra não consegue revelar, uma vez que as imagens
representam e falam por si. Os traços avantajados, as cores, os formatos e a
intensidade das cenas levam a pobre velha ao hospital e diante de tamanho alvoroço,
chegamos ao ponto justo e esperado em que as fadas começam atuar na narrativa.

As imagens e a literatura de cordel

Conforme já reconhecemos, O lagarto é ilustrado pelo cordelista e


xilogravurista J. Borges e é bom observarmos que na arte da xilogravura concentram-
se as imagens típicas da literatura de cordel. Estas imagens como podemos observar
no livro são repletas de cores fortes em alguns momentos e em outros do tom preto e
branco como predominância, intercalando formatos e tamanhos diversos que se
entrelaçam para descreverem a cena que vai sendo narrada no livro.
A respeito da literatura de cordel é importante frisar que esta técnica foi
trazida da Europa e que em terras brasileiras recebeu novos arranjos, formatos e
caracteres próprios ao clima e a cultura de nosso país. Como afirma Tavares ―a
literatura de cada povo é um fim em si. É um limite que só aquele povo pode atingir.
São formas que só ele vai poder criar‖. (2005, p. 104). Tal afirmação nos leva a pensar
na literatura em seu sentido amplo de trazer ao centro das discussões a cultura de um
povo, com bem exemplificam as considerações de Arroyo:
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O processo de conhecimento de todas essas fontes da literatura


infantil foi muito complexo no mundo ocidental. Vieram elas também,
as fontes, através da expressão oral, espraiando-se pelos povos da
Europa, sofrendo em cada região uma acomodação bem acentuada.
As alterações e os acréscimos de cada povo a cada estória em sua
forma original foi um fenômeno de profunda repercussão. (1990, p.
29)

Ao se pensar nas manifestações do cordel, e aqui de modo especial na


xilogravura, podemos relacionar as histórias nas quais as expressões da oralidade,
carregadas de imagens descritivas e passadas de gerações a gerações passam a ser
transcritas fazendo parte de nossa produção literária. Para Monteiro e Pires (2013, p.
04).
A xilogravura surge no cordel como uma forma de atingir o público
não letrado. Suas matrizes de madeira (advinda do cajá, árvore
frutífera abundante na região) foram base para a gravação de
imagens de aspecto ingênuo (naïf), visto seus produtores não
possuírem formação e erudição acadêmicas, sendo impressas em
sua maioria em preto e branco ou em poucas cores. A baixa
escolaridade do leitor consumidor desse tipo literário forçou alguns
cordelistas a tornar suas histórias ilustradas. As imagens passaram a
cumprir função de iluminuras: são a representação imagética do que
no texto está escrito ou cantado pelo repentista.

Diante destas características temos a produção de uma obra literária de fácil


entendimento e compreensão, pois as imagens dos cordéis, carregadas de
significados propostos por seu papel de complementação de sentido ao discurso. No
caso em questão, percebemos que a xilogravura atua como parte fundamental na
narrativa fantástica de Saramago. Ainda para Monteiro e Pires (2013, p. 05):

A xilogravura, como parte da poética literária nordestina, torna-se


tautologia do texto escrito, transcendendo seu estatuto gráfico e
recontando a história ali gravada, cativando leitores de menor fluência
cultural. Além de subverter a condição estabelecida por uma
sociedade desigual, que priva o acesso aos meios de comunicação
escritos, essa xilogravura possui função originária instigadora da
visualidade e da oralidade. A imagem cordelística muitas vezes serviu
e serve como instrução.

Análise da obra e os pressupostos teóricos: texto e imagem

A obra O Lagarto (2016) de José Saramago com a colaboração de J. Borges


é uma versão nova e moderna de uma história capaz de causar encantamento por
meio de seus recursos linguísticos apresentados na composição discursiva verbal. O
mesmo já havia sido publicado pela primeira vez no diário A Capital (1969) e no
semanário Jornal do Fundão (1971-2). No ano seguinte (1973) a então crônica foi
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publicada no livro a Bagagem do Viajante do mesmo autor como texto verbal sem a
presença de imagens.
Antes mesmo de iniciarmos e partirmos para a análise propriamente dita, é
importante fazermos algumas observações teóricas sobre a literatura infantil e suas
características, juntamente com apontamentos referentes às relações entre imagens e
textos e de questões pertinentes ao livro ilustrado, que podem nos orientar em nossa
análise. Em Arroyo (1990, p. 20) percebemos que ―a literatura infantil, decorre de
condições sociais em seu conceito amplo‖. E ainda que ―a literatura infantil como
categoria literária, de acordo com a conceituação perfilhada hoje pelos europeus ou
americanos, e principalmente europeus, é muito recente, o que não exclui a floração
de uma série de problemas‖. (Arroyo, 1990, p.20). Como podemos perceber pelas
observações citadas, nosso objeto de estudo ainda é um campo novo e amplo,
passível de problemáticas uma vez que retrata aspectos culturais e recorrentes de
transformações que ao longo do tempo vão acontecendo e determinando as relações
sociais.
Em O lagarto, temos uma obra infanto-juvenil, com traços da literatura de
cordel e por meio das imagens que compõem as obra somos expostos a elementos
que aproximam o leitor/espectador da realidade da sociedade portuguesa, situando a
narrativa no contraponto dos contos de fadas tradicionais. A narrativa do conto é
acompanhada de imagens até simplórias e ao mesmo tempo muito ricas, pois as
ilustrações com todas as suas características contribuem para a compreensão do texto
escrito, principalmente para estabelecer relações entre o real e o fantástico,
relacionado ao imaginário.
Na capa do livro, um imenso lagarto em preto e branco entra em contraste
com céu estrelado, dividido com a lua e um pássaro vermelho que parece estar
voando. Ao observarmos os traços fortes das xilogravuras, somos convidados a
pensar nos aspectos físicos que compõe o personagem principal, causador de
tamanho alvoroço, caos e confusão aos moradores do Chiado português, como iremos
acompanhar mais adiante na obra. No entanto, estes ainda não são elementos
suficientes para desacreditarmos de sua ideia primeira, uma história de fadas,
ambientada pela descrição simbólica das estrelas, do pássaro e da noite enluarada:

De hoje não passa. Ando há muito tempo para contar uma história de
fadas, mas isto de fadas foi chão que deu uvas, já ninguém acredita,
e por mais que venha jurar e trejurar, o mais certo é rirem-se de mim.
Afinal de contas, será a minha simples palavra contra a troça de um
milhão de habitantes. Pois vá o barco à água, que o remo logo se
arranjará. (Saramago, 2016, p.1- 2 )

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Podemos perceber pelo discurso inicial que não existe uma relação lógica
entre as imagens usadas na capa com o início do diálogo verbal, mas sentimos que
algo forte e até assustador esta por acontecer tendo em vista as próprias
características dadas ao personagem mais adiante. A respeito das imagens,
percebemos que estas apresentam certa autonomia frente às interpretações de
sentido. Como podemos refletir com as palavras de Alloa na profusão de cores
espalhadas pelas páginas de O lagarto, percebemos que ―A múltipla proliferação de
imagens no mundo contemporâneo parece – e esse é seu paradoxo – inversamente
proporcional à nossa faculdade de dizer com exatidão ao que elas correspondem‖.
(2015, p. 07). Em suas reflexões, o teórico nos alerta a pensar que estamos a todos os
momentos expostos ao poder que as imagens têm de nos fazer pensar e de nossa
deficiência em trazer ao centro das relações interpretativas tudo que há por detrás das
relações imagéticas:
somos perpetuamente superexpostos às imagens, interagindo com
elas, mas se alguém nos pedisse para explicar o que é uma imagem,
teríamos dificuldades de fornecer uma resposta. Poder-se-ia retrucar
que existem duas razões para essa dificuldade e que a questão está
mal colocada. Por um lado, interrogar-se sobre o que é uma imagem
seria ainda ignorar que a imagem tende a se disseminar, declinar-se
dela mesma em formas plurais, se desmultiplicar em um devir-fluxo
que se sustentaria instantaneamente no Um‖. (Alloa, 2015, p. 07).

Com este pensar, a imagem na dimensão de algo plural, suscetível a tantas


interpretações, é importante avaliarmos sua relação com o texto verbal, uma vez que a
mesma pode trazer consigo uma infinidade de significados passíveis de interpretação.
Na primeira parte do conto em questão iremos perceber uma descrição clara das
características físicas do personagem principal, levando-nos a pensar no caos
instaurado e na sensação de medo por conta da relação entre os vocábulos usados
em consonância com a imagem descrita do animal. A princípio, temos nestas páginas
a imagem do lagarto em oposição ao grande casarão típico da arquitetura central
desta região portuguesa. A noite é reconhecida como marco temporal, pois ao longo
de toda parte à esquerda do leiaute da página, contraposta ao texto, percebemos a
ilustração de estrelas envoltas pela lua criando uma atmosfera propícia à construção
do medo e do pânico resultantes da presença do animal. Em relação ao texto verbal, a
narrativa revela que:
A história é de fadas. Não que elas apareçam (nem eu o afirmei), mas
que história há de ser a deste lagarto que surdiu no Chiado? Sim,
apareceu um lagarto no Chiado. Grande e verde, um sardão
imponente, com uns olhos que pareciam de cristal negro, o corpo
flexuoso coberto de escamas, o rabo longo e ágil, as patas rápidas.
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Ficou parado no meio da rua, com a boca entreaberta, disparando a


língua bífida, enquanto a pele branca e fina do pescoço latejava
compassadamente. (Saramago, 2016, p.12).

Na sequência da página, o texto escrito e a ilustração revelam o


comportamento do personagem lagarto, que se mostra como um animal agressivo e
feroz diante da cidade. Nessa sequência, podemos perceber que na troca da
disposição entre texto e imagem, a alternância entre a relevância texto e imagem
contribui na compreensão dos sentidos. Assim, o texto vai para a parte esquerda do
leiaute da página e a imagem vem para a parte do lado direito, dando ênfase à
situação caótica iniciada pela presença do animal. Em relação às cores utilizadas na
ilustração, as imagens são marcadas por cores mais escuras, o que comprova o
apavoramento suscitado. Em relação à representação do lagarto, o personagem se
apresenta posicionado em pé, como se estivesse avançando em direção à mulher,
investindo no desejo de agarrá-la. Seu corpo avermelhado demonstra a voracidade
com que o sangue lhe corre nas veias e isto explica a rapidez e a voracidade,
confirmados pela parte textual descrita no seguinte fragmento:

Era um animal soberbo. Um pouco soerguido, como se fosse lançar-


se numa súbita corrida, enfrentava as pessoas e os automóveis. O
susto foi geral. Gentes e carros, tudo parou. Os transeuntes ficaram a
olhar de longe, e alguns, mais nervosos, meteram pelas ruas
transversais, disfarçando, dizendo consigo próprios, para não
confessarem a covardia, que a fadiga, como diz o médico, causa
alucinações. (Saramago, 2016, p. 3 e 4).

Na junção texto e imagem, a narrativa instiga no leitor/espectador a dúvida


pela opção do tom vermelho predominante na cena como ilustração da fúria do lagarto
transformado na ―rosa rubra‖, cor de ―sangue‖ ao fim da narrativa. Para chegarmos a
resposta para esse questionamento, precisamos refletir sobre as relações entre o texto
escrito e as imagens, à medida em que percebemos que ambos, texto e imagem, são
partes de diálogos que se completam sem perder a capacidade de interpretação de
maneira isolada.
A partir desse recorte da obra de José Saramago, tomado para esse estudo,
passamos a considerar que há diferenças na estrutura organizacional entre o livro
ilustrado e o de ilustração, uma vez que o primeiro traz as imagens carregadas de
possíveis significados atribuídos pelo leitor, a descoberta pela visualização, leitura e
interpretação das imagens e cenas que iniciam, desenrolam e finalizam a história. Em
relação ao livro de ilustração, podemos atribuir ao texto escrito um papel de extrema

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importância no auxilio da compreensão dos fatos, marcando uma estreita relação de


dependência. Segundo Peter Hunt (2010, p. 233),

A literatura infantil toma emprestadas características de todos os


gêneros. Mas existe um gênero para o qual ela tem contribuído: o
livro ilustrado, que é distinto do livro com ilustração. Essa distinção é,
em grande parte, organizacional. Porém se lembrarmos que a
ilustração altera o modo como lemos o texto verbal, isso se aplica
ainda mais ao livro ilustrado‖.

Dessa forma, ressaltamos a importância da obra ilustrada, pois se a critica já


considera essencial o poder de complementação de sentido que as imagens têm
sobre a escrita nos livros, é salutar pensar o quão grandioso é o universo de
interpretação e sentido no livro ilustrado, justamente o que tentamos reconhecer na
obra literária aqui considerada. Em mais uma passagem da obra podemos observar
que o trabalho ilustrativo se complementa ao recurso verbal na soma e acréscimo de
sentido, embora sejamos conscientes de que o mesmo é carregado de individualidade
e de recursos independentes para a construção de sentido. Nas páginas 05, 06, 07 e
08, por exemplo, a economia das palavras dá lugar à imagem que ocupa o grande
espaço da folha de edição, procedimento que segue pelas demais páginas, que por
ora não serão alvo de nosso estudo, pois conforme já mencionamos, este estudo está
em fase inicial.
Em suma, as observações aqui reunidas apontam para a importância de
avaliarmos a obra O Lagarto no conjunto das discussões críticas que consideram a
imagem dos livros ilustrados em oposição aos livros com ilustração e a síntese que
marca a relevância dos livros entre si.O texto, em sua complexidade de fatores
estruturais tende a manter uma relação estreita com as imagens e todas as suas
formas, aspectos, cores e tamanhos, fazendo com que todos os elementos sejam
convertidos a todos os efeitos de sentido possíveis. Nesse diálogo colaborativo é
possível percebermos que:
Os livros ilustrados podem explorar essa relação complexa; as
palavras podem aumentar, contradizer, expandir, ecoar ou interpretar
as imagens e vice-versa. Os livros ilustrados podem cruzar o limite
entre os mundos verbal e pré-verbal; podem ser aliados da criança-
leitora. (HUNT, 2010, p. 234)

Texto e imagem formam o conjunto das obras ilustradas, os mesmos


completam-se e corresponsabilizam em proporcionar compreensão de uma narrativa
até então desconhecida, ao passo que a leitura de outros leitores alinhavam outras
interpretações que vão além da primeira realizada, o que por si só vai organizando um
mundo de sentido e significados. Nesta tarefa há liberdade para a imaginação, para a
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construção de conceitos, falar, tocar a obra de arte e tudo que há nela, sem juízos de
valor do que possa ser correto ou não, a liberdade se faz presente para a aquisição da
leitura narrativa.
O recurso imagético não está na narrativa apenas para decifrar códigos
escritos, mas tem função própria de trazer ressignificação ao enredo além daquele que
já existe pela escrita; é o jogo de redesenhar a escrita pela imagem fortalecendo lhe
sua carga de possíveis interpretações e significados que por sua vez são responsáveis
por aproximar crianças de adultos, uma vez que há modos diferentes de interpretar
uma mesma história.

Considerações Finais

A obra de José Saramago escrita para o público infantil ainda pode render-se
a inúmeras possibilidades de interpretação, bem como o conjunto de sua produção
para adultos. Com a edição de suas obras por novas editoras, incluindo editoras
brasileiras que se abrem a interessantes projetos editoriais, podemos concluir que a
literatura infanto-juvenil ainda é uma possibilidade de apresentação da obra do
universo de José Saramago às novas gerações.
Em O Lagarto, considerando a edição tomada como objeto desse estudo, a
participação de um artista cordelista do interior pernambucano, brasileiro, com as
marcas sociais de sua realidade, com seu jeito simples de ver o mundo, escolhido
para o projeto gráfico de ilustrações que certamente narram o texto à sua maneira,
revela o quanto as ilustrações podem se constituir com grandeza artística e particular
na construção dos sentidos.
As relações entre texto e imagens são fortes, embora possamos perceber as
imagens como um recurso independente para compreensão de sentido da obra. Nesta
primeira parte da análise, nossas considerações terminam por aqui, porém,
reconhecemos que há uma lógica de organização narrativa que irá prevalecer até o
fim de O lagarto e que ainda estamos por explorar com novas interpretações sobre
esse diálogo de colaboração, sempre embasado por opções teóricas condizentes.

Referências

ALLOA, Emmanuel (org). Pensar a imagem. 1. Ed. – Belo Horizonte: Autentica Editora,
2015.
ARROYO, Leonardo. Literatura Infantil Brasileira. 1. ed. – São Paulo: Melhoramentos,
1967.
HUNT, Peter. A critica e o livro ilustrado: In: HUNT, Peter. Critica, Teoria e Literatura
Infantil. São Paulo: Ed. Ver. 2010, pp 328.
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SARAMAGO, José. O Lagarto/; xilogravuras de J. Borges. 1. ed. – São Paulo:


Companhia das Letrinhas, 2016. Contos Portugueses.
Revista Nau Literária. Critica e teoria de Literaturas. Disponível em
http://www.seer.ufrgs.br/index.php/NauLiteraria/article/view/43354/27863 e acessado
em 07/09/17
https://www.josesaramago.org/lagarto-jose-saramago-j-borges/, acessado em
01/09/17.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

O PAPEL DO ILUSTRADOR NA PRODUÇÃO EDITORIAL


INFANTIL

Jéssica Mariana Andrade Tolentino, CEFET-MG, Eixo Temático 5


Samara Mirian Coutinho, CEFET-MG, Eixo Temático 5

Considerações Iniciais

Quando, em meados de 2016, fomos convidadas a visitar o ateliê dos


ilustradores Marilda Castanha e Nelson Cruz para entrevistá-los, não imaginávamos
os desdobramentos que teria essa conversa. A entrevista, hoje publicada no livro As
crianças e os livros (LIMA et al, 2017), havia sido planejada para abordar a produção
editorial para a primeira infância. O foco, até então, era falar sobre processo criativo,
influências, inspirações e leitores. No entanto, como em toda boa conversa, os
assuntos caminharam sozinhos e os rumos foram mudando.
Em seu depoimento, os ilustradores relataram as dificuldades que encontram
no mercado editorial brasileiro. Artistas de grande expressão no Brasil e no mundo,
Marilda Castanha e Nelson Cruz já ganharam importantes prêmios como o Jabuti, da
Câmara Brasileira do Livro, e foram indicados pela FNLIJ 162 ao prêmio Hans Christian
Andersen de Ilustração. No entanto, ambos afirmaram ainda lutar muito para ter
reconhecida a sua autoria nos livros que ilustram.
Diante dessa afirmação, coube a nós indagar sobre o papel e o lugar ocupado
pelos ilustradores na produção editorial infantil brasileira. Foi essa inquietude que nos
trouxe a esta pesquisa. Para nós, entender o espaço do ilustrador neste mercado
significa também, em alguma medida, compreender melhor o que a ilustração
representa para os produtores de livros infantis.
Dividimos o trabalho em dois momentos. Um, de caráter mais histórico, traz um
breve panorama da ilustração no mercado editorial brasileiro. Por meio de entrevistas
e depoimentos de ilustradores, procuramos enfatizar as dificuldades de
reconhecimento da autoria desses profissionais e os desdobramentos da luta que
continuam a empreender. No segundo momento, a partir dos estudos de Sophie Van
162
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der Linden (2011) e Graça Ramos (2011), propomos uma reflexão sobre o que é o
livro ilustrado e o que representa a ilustração nessas obras. Procuramos mostrar, a
partir dos diversos depoimentos e dos estudos teóricos, que a valorização da
ilustração nos livros infantis caminhou conjuntamente, e dialeticamente, à valorização
do próprio profissional ilustrador.

O ilustrador no mercado editorial


―Para que serve um livro sem figuras nem diálogos?‖163, pergunta-se Alice
entediada. Para ela, assim como para muitas crianças, um livro sem ilustração parece
não fazer sentido. No entanto, a história da literatura infantil nos mostra que nem
sempre foi assim. Como aponta Sophie Van der Linden (2011, p.12), as primeiras
publicações direcionadas às crianças eram compostas, quase exclusivamente, por
texto. As ilustrações, quando apareciam, tinham um caráter mais decorativo que
narrativo propriamente.
Marisa Lajolo e Regina Zilberman (1984, p.16) explicam que o surgimento de
um novo conceito de infância, no século XVIII, motivou a produção de objetos
industriais e culturais voltados para esse público específico, dentre eles o livro. No
entanto, é só no século seguinte, com a modernização técnica, que surge o livro
infantil tal qual o concebemos hoje. Rui de Oliveira (2008, p.14) aponta que o livro para
crianças em moldes semelhantes ao da atualidade tem suas origens no período
Vitoriano (século XIX), tanto nos aspectos gráficos quanto no conceitual. Essa época é
considerada por ele o início da atividade profissional de ilustradores de livros para
crianças na Europa.
No entanto, mesmo com os avanços técnicos proporcionados pela revolução
industrial, as dificuldades de reprodução das imagens permaneceram ainda por muitos
séculos. A precariedade nas tecnologias de impressão se mostrou um entrave,
inclusive, para a interação entre texto e imagem nos livros. Em virtude disso, até a
primeira metade do século XIX, há uma predominância dos livros constituídos de um
texto principal e poucas imagens isoladas em páginas distintas. Linden (2011, p.12)
explica:

Ao longo do século XVI, generaliza-se o uso do talho


doce, uma gravura realizada com cinzel ou ácido sobre
uma placa de cobre. A partir daí, é possível alcançar
maior fineza na execução. O texto, no entanto,
impresso por meio de caracteres em relevo, se opõe à

163
Carroll, Lewis. Alice no país das maravilhas. São Paulo: Moderna, 2010, p. 11.
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gravura de ilustração, que requer um procedimento a


entalhe. Textos e imagens têm de ser impressos em
separado, em dois ateliês distintos, envolvendo
inclusive, de acordo com a legislação da época, duas
corporações diferentes. (LINDEN, 2011, p.12)

Ainda segundo Linden (2008, p.12), foram as técnicas de xilografia de topo,


desenvolvida por Thomas Bewick, e de litografia, desenvolvida por Aloysius
Senefelder, que possibilitaram a interação, numa mesma página, de texto e imagem.
Essas técnicas, desenvolvidas no final do século XVIII, também viabilizaram o uso das
cores e permitiram a identificação do estilo do ilustrador. Entretanto, é somente com o
avanço da indústria gráfica no século XX que a ―assinatura‖ e a estética dos
ilustradores puderam ser livremente exploradas – um passo importante para a
legitimação do trabalho de autoria da imagem.
No Brasil, a impressão de livros começou a ser feita no país, oficialmente, a
partir da vinda da família real portuguesa e a instalação da imprensa régia.
Até a chegada de D. João VI, em 1808, o suporte
editorial (e até mesmo tipográfico) necessário para o
assentamento de um sistema literário era,mais do que
precário, inexistente. Decorre muito tempo, até que
tipografias, editoras, bibliotecas e livrarias tornem o
livro um objeto não tão raro, ao menos nos centros
urbanos mais importantes. (LAJOLO, ZILBEMARMAN:
1984,p.26)

A partir da consolidação do mercado livreiro no Brasil, século XIX, muitas obras


de literatura infantil foram produzidas e comercializadas no país - em sua maioria,
adaptações de livros portugueses e franceses. Mas foi, sobretudo, a partir do século
XX, com o olhar visionário de Monteiro Lobato, que o mercado brasileiro de livros
infantis ganhou força e identidade. Lobato revolucionou a produção de livros para
crianças ao inovar nos temas das suas narrativas e também nos aspectos editoriais
das obras.
O apuro editorial, marcado principalmente pela preocupação com a
diagramação e com as ilustrações, é uma das peculiaridades de sua produção. Como
editor, investiu na criação de capas mais atraentes, explorando o uso de cores e
desenhos. Além disso, ampliou a quantidade de ilustrações nos livros, valorizando
também os seus autores, como mostra a figura abaixo:

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Figura 1 - Folha de rosto do livro A menina do narizinho arrebitado (1ª edição - 1920)

Segundo Elliete Aleixo (2014, p.112), a presença do nome do ilustrador com


destaque semelhante ao do escritor revela uma posição de equilíbrio entre as duas
autorias. Além disso, a pesquisadora chama atenção para a denominação ―livro de
figuras‖, que mostra a valorização das imagens no livro e ressalta o caráter múltiplo da
obra em termos de linguagens.
Essa postura, no entanto, vai na contramão das tendências do mercado na
época e que, em alguma medida, continuam vigentes até hoje. Até o fim do século XX,
predominam os livros em que a menção ao ilustrador é feita exclusivamente na folha
de créditos. O nome desse profissional, pouco frequente na capa ou mesmo na folha
de rosto, aparece em letras bem pequenas, semqualquer destaque. A pouca
visibilidade dos ilustradores, na materialidade do livro, revela muito do imaginário
social acerca das ilustrações e de seus autores.
Em entrevista concedida a nós, os artistas Marilda Castanha e Nelson Cruz
afirmam que há ainda grande dificuldade de se estabelecer, com clareza, o lugar do
ilustrador na cadeia editorial. De quem é a autoria de obras que conjugam palavras e
imagens? Por uma questão histórica e cultural, a autoria dos livros infantis,
majoritariamente, é concedida ao autor do texto verbal. Essa questão, que se inicia
desde o momento em que o livro infantil começou a ter imagens e mantém-se,
mobilizou os ilustradores na busca por reconhecimento. Em um trecho da entrevista,
Nelson Cruz afirma:
Eu costumo dizer que, quando entrei no mercado de
ilustração, o ilustrador era considerado um prestador de
serviço, na medida em que não era identificado como
autor de imagem. De certa maneira, é assim até hoje,
embora os editores e as editoras exijam a assinatura
do ilustrador, que muitas vezes dá aquela identidade
que eles precisam capitalizar. Entretanto, a
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consideração do ilustrador enquanto autor de imagem


ainda é baixa. Há talvez uma questão cultural nisso,
porque na nossa sociedade é identificado como autor
aquele que escreve, não aquele que desenha. Mesmo
que se exija a assinatura, porque o ilustrador também
projeta o livro. Entretanto, na hora da consideração de
autoria, o escritor é mais considerado que o ilustrador.
(CRUZ, 2016)

Como na Europa, os ilustradores brasileiros esbarraram, inicialmente, na


dificuldade tecnológica para a criação de suas obras. As limitações técnicas, muito
fortes até o final do século XX, chegaram a impactar na estética das criações de
Marilda Castanha.
Marilda: Nos anos 1980 o parque o parque gráfico do
Brasil era muito ruim. Eu tive que mudar a minha
técnica por causa das péssimas impressões.

Nelson: Tinha um problema com a cor azul, lembra?


Tudo ficava meio acinzentado, meio azulado. (...)
Todos tinham que observar isso.

Marilda: Muita gente batalhou nisso. Ângela Lago foi


uma grande batalhadora, ela ia pra dentro da gráfica.
Ela conta que fazia travesseiro com sobras de papel e
dormia ali mesmo (risos). Mas porque precisava
acompanhar a coisa funcionar. Então, um dia eu virei
pra mim mesma e disse: ―vou mudar de técnica pra
impressão melhorar‖. (CRUZ, 2016)

Apesar da incomparável disponibilidade de recursos gráficos do século XXI,


principalmente com a tecnologia digital, a luta dos ilustradores por visibilidade ainda
permanece. A conquista do reconhecimento dos direitos autorais, por exemplo, é algo
bem recente. Na virada da década de 1980, vários ilustradores brasileiros se uniram
de maneira informal para garantir o seu direito à autoria. Segundo Graça Lima
(MORAES, 2012, p.172), um grupo composto por ilustradores – Roger Mello, Ivan
Zigg, Fernando Nunes, Guto Lins, Ricardo Azevedo, Alcy Linares, Eva Furnari, Ana
Raquel, Marilda Castanha e Nelson Cruz – discutia e questionava as práticas do
mercado editorial. Eles, inclusive, passaram a rejeitar os trabalhos em editoras que os
negavam a coautoria da obra. Dessa reflexão, foi criada uma tabela de referência e
modelos de contratos, que culminou em uma mudança na conduta dos editores nesse
período.
Podemos dizer que a articulação informal feita pelos ilustradores, a partir da
década de 1980, foi precursora das associações que surgiram anos mais tarde. Dentre
elas, destacam-se a AEILIJ – Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura
Infantil e Juvenil –, fundada em 1999, e a SIB – Sociedade dos Ilustradores do Brasil
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–, criada em 2001. Tais associações funcionam como porta-voz da categoria,


promovendo espaços de discussão sobre seus direitos e o intercâmbio de projetos,
ideias e oportunidades.
Essas organizações têm contribuído para a legitimação da autoria dos
produtores de narrativas imagéticas. Todavia, ainda é corriqueira a contratação de
ilustradores como prestadores de serviços, tal qual o revisor e o preparador de textos.
Marilda Castanha discorre sobre esse ponto:
Quando nós começamos a ilustrar não tinha essa
questão de que você poderia um dia receber direitos
autorais, mesmo ínfimo, 2 ou 3%. A gente não ganhava
uma porcentagem. Eles pagavam pela ilustração,
prestação de serviço. Porque isso é que a gente
batalhou durante muito tempo, e ainda batalha, para,
como ilustradores, termos os direitos autorais da
imagem. A gente se empenhou muito (quando eu falo a
gente, não somos só eu e Nelson) para conquistar essa
consideração. (CRUZ, 2016)

Até então, o modelo de trabalho vigente consistia no convite do ilustrador para


colaborar com a obra já previamente planejada. Segundo Graça Lima (MORAES,
2017, p.172) as casas editoriais mandavam os projetos gráficos fechados com os
espaços das imagens bem delimitados. Em virtude disso, boa parte dos ilustradores se
tornaram designers e diagramadores com o objetivo de fazer com que os projetos
conjugassem melhor as duas linguagens, não uma em detrimento da outra. Esse
movimento resultou numa grande evolução visual nos livros infantis, aumentando a
qualidade das produções. O que Nelson Cruz sintetiza como: ―Na verdade, nós, os
ilustradores brasileiros, principalmente a partir dos anos 1990, evoluímos o livro e a
narrativa por conta da imagem. E o mercado editorial também evoluiu, porque a
qualidade da imagem cresceu‖.
Dentro do universo da literatura infantil, a imagem foi ganhando mais potência
e sofisticação. Se, anteriormente, as ilustrações desempenhavam um papel apenas
decorativo, hoje o seu potencial narrativo tem sido muito mais explorado. O aumento
da visibilidade das ilustrações culminou no desenvolvimento de narrativas híbridas,
como o livro ilustrado, que conjuga o verbal e o imagético; e o livro-imagem, no qual as
narrativas são construídas exclusivamente por meio das ilustrações.
Acreditamos que o espaço da imagem dentro do livro infantil se modificou à
medida que os próprios ilustradores modificaram seu espaço na produção editorial
infantil, numa relação dialética. Suas batalhas enquanto profissionais refletem na
interação entre texto e imagem e, principalmente, na narrativa conjunta que elas
formam, possibilitando o surgimento de novos tipos de criações literárias.

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A narrativa no livro ilustrado

O livro infantil é considerado, por muitos críticos, o precursor da interação entre


as linguagens verbal e imagética na literatura. A associação entre essas duas
linguagens abriu novas possibilidades de criação artística, produzindo, nas palavras de
Gê Orthof (apud Ramos, 2011, p.9), ―uma categoria única e amalgamada‖. Contudo,
não podemos desconsiderar que escrita e ilustração podem estabelecer diferentes
relações. Sobre isso, o ilustrador Ricardo Azevedo diz:

(...) existem diferentes graus na relação entre texto e imagem.


Há textos que prescindem de imagens. Mas há livros em que a
sinergia entre texto e imagem é estrutural. (MORAES, 2012 p.
97)

Texto e ilustração podem se conectar de maneiras diferentes, impactando na


forma em que a narrativa é construída. Há livros nos quais a imagem parece estar
subordinada ao texto, que existe de forma independente. Em alguns casos, a imagem
aparece apenas como forma de ―traduzir‖ a linguagem escrita para a visual. Em
outros, texto e imagem estão de tal forma articulados que a compreensão da narrativa
depende da leitura de ambas as linguagens, simultaneamente. Linden (2011) discorre
acerca do assunto, estabelecendo uma tipologia bastante interessante para nosso
estudo:
Livros com ilustração: obras que apresentam um texto
acompanhado de ilustrações. O texto é espacialmente
predominante e autônomo do ponto de vista do sentido. O leitor
penetra na história por meio do texto, o qual sustenta a
narrativa.
Livros ilustrados: obras em que a imagem é especialmente
preponderante em relação ao texto, que aliás pode estar
ausente [é então chamado no Brasil de livro-imagem]. A
narrativa se faz de maneira articulada entre textos e imagens.
(LINDEN, 2011, p.24)

Afora as diferentes terminologias que encontramos nas obras de referência, há


um entendimento geral acerca da existência de um ―tipo‖ específico de livros em que
texto e imagem são apresentados de forma interdependente – aqui, o chamaremos
por ―livro ilustrado‖.
Uma consideração importante a fazer é que não entendemos o livro ilustrado
como um gênero textual, uma vez que pode abrigar diferentes gêneros. David Lewis
(apud LINDEN, 2011, p. 29) o define como ―um tipo de linguagem que incorpora ou

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assimila gêneros, tipos de linguagem e tipos de ilustração‖. Trata-se, portanto, de uma


forma única e específica de expressão.
Para Graça Ramos (2011), o que determina o status da imagem no livro é a
função narrativa que desempenha. Mais do que simplesmente traduzir em figuras as
palavras do texto, as ilustrações podem, numa perspectiva semântica, reiterar,
contradizer, ampliar e sugerir leituras. ―As imagens podem concordar, tensionar,
negar, expandir ou propor uma visualidade nova para o que está dito com as palavras‖
(RAMOS, 2011, p.124). As ilustrações contribuem, portanto, para a estruturação da
narrativa dos livros ilustrados, que prescinde da conjunção de ambas as linguagens.
Há muitas tentativas de classificar tais livros em relação aos seus aspectos
narrativos. Nikolajeva e Scott (2011), por exemplo, apresentam uma extensa
classificação dos livros ilustrados segundo a interdependência entre texto e imagem.
No entanto, considerando que cada livro desenvolve suas próprias relações, parece-
nos mais apropriado pensar que essa relação deve ser vista sob a ótica da
significação, como propõe Linden (2011). A autora parte da possibilidade de texto e
imagem se repetirem, complementarem ou contradizerem. Ou seja, as duas
linguagens podem relacionar-se de três maneiras: redundância, colaboração ou
disjunção.
Relação de redundância: a noção de redundância constitui uma
espécie de grau zero da relação entre texto e imagem, que não
produz nenhum sentido suplementar. Nesse tipo, as duas
narrativas são isotópicas. (...) Os conteúdos narrativos se
encontram – total ou parcialmente – sobrepostos. (...)
Relação de colaboração: (...) textos e imagens trabalham em
conjunto em vista de um sentido comum. (...) Articulados,
textos e imagens constroem um discurso único. Numa relação
de colaboração, o sentido não está nem na imagem, nem no
texto: ele emerge da relação entre os dois. (...)
Relação de disjunção: inversamente à sobreposição de
conteúdos, ocorre a disjunção. (...) A disjunção dos conteúdos
pode assumir a forma de histórias ou narrações paralelas.
Texto e imagem não entram em estrita contradição, mas não se
detecta nenhum ponto de convergência. Uma relação de estrita
contradição pode também ser observada (...) (LINDEN, 2011,
p. 120-121).

É a partir dessas possibilidades de relação entre texto e imagem que o leitor


atribuirá sentido à narrativa. Todavia, como nos lembra Michel de Certeau, ―o leitor é
um caçador que percorre terras alheias‖ (apud CHARTIER, 1998, p. 77). No caso do
livro ilustrado, o leitor percorrerá um caminho construído por duas instâncias – escritor
e ilustrador. Uma vez que, em tais livros, a narrativa prescinde igualmente de texto e
imagem, a leitura pressupõe a interpretação de ambas as linguagens. De maneira

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dialética, uma complexa rede de significações é construída no livro a partir do diálogo


entre as duas instâncias de autoria e o leitor.
É por essa pluralidade de linguagens e de possibilidades de compreensão e de
fruição que o livro ilustrado ganhou seu espaço no mercado editorial e na academia.
Nas palavras de Tereza Colomer (1996, p, 30), ―el género que parecía destinado a ser
el más sensillo y amable de la literatura infantil ha producido las maiores tenciones
sociales y estéticas, porque ha aprovechado los recursos de dos códigos
simultáneos‖164.

Considerações Finais

O breve retorno à história dos livros infantis no Brasil e no mundo nos permite
visualizar a evolução do papel e do status dos ilustradores e da ilustração na literatura.
Seja por razões técnicas ou por questões culturais, o início dessa história é marcado
pela desvalorização desses profissionais e de sua produção. Somente a partir de um
esforço coletivo, por parte dos ilustradores, há um rompimento de paradigmas: a
imagem, até então subordinada ao texto, passa a ser reconhecida em seu potencial
narrativo.
Essa mudança de paradigmas se materializa, sobretudo, nos livros ilustrados.
Nestes, a combinação entre texto e imagem produz narrativas sofisticadas, que
permitem múltiplas possibilidades de leitura (e de leitores). Os diálogos e as tensões
entre ambas as linguagens fazem do livro ilustrado um território para a
experimentação e a inovação.
Como apontam Marilda Castanha e Nelson Cruz, a mudança conceitual acerca
das narrativas ilustradas se fez, sobretudo, a partir de um novo posicionamento dos
ilustradores em relação ao mercado editorial. Tradicionalmente contratados com o
intuito de ―ornamentar‖ as histórias alheias, esses profissionais passaram a negar os
contratos de prestação de serviços, exigindo o reconhecimento da autoria de imagens
nas obras ilustradas.
No entanto, ainda que a postura de muitas editoras tenha mudado, os
ilustradores ainda enfrentam dificuldades em relação à questão. Uma rápida pesquisa
dentre os concursos literários brasileiros revela a dimensão dessas dificuldades. O
Jabuti, por exemplo, premia, na categoria ―Melhor Livro Infantil‖, apenas o autor do
texto, enquanto o ilustrador é contemplado somente na categoria ―Ilustração de Livro

164
―O gênero que parecia destinado a ser o mais sensível e amável da literatura infantil é o que produziu
as maiores tensões sociais e estéticas, porque aproveitou os recursos de dois códigos simultâneos‖.
(Tradução nossa).
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Infantil ou Juvenil‖. Já o Prêmio Literário Fundação Biblioteca Nacional sequer possui


uma categoria relacionada à ilustração.
Essas dificuldades mostram que, apesar do crescimento da imagem na
indústria do livro infantil, há ainda uma incompreensão do papel das ilustrações na
narrativa e, em última instância, do que é o livro ilustrado. Desconsidera-se, portanto,
que o ilustrador, ao criar as imagens de um livro, parte de sua leitura única e particular
para propor, ao leitor, incontáveis possibilidades de leitura.

Referências

ALEIXO, Eliette. Palavras e imagens que tecem histórias: ilustradores/escritores e a


criação literária para a infância. 2014. 306p tese (doutorado em Literatura Infantil)
Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte.

CHARTIER, Roger. A aventura do livro do leitor ao navegador: conversações com


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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

O VERBAL E O NÃO VERBAL EM FOI ASSIM... (2008), DE


BARTOLOMEU CAMPOS DE QUEIRÓS

Daniela Aparecida Francisco, UNESP/ASSIS, Eixo temático 5: literatura infantil


e as relações com a imagem

Introdução

As discussões em torno da literatura infantil mobilizam diversos teóricos


preocupados com o assunto. Em Literatura infantil brasileira: histórias e histórias
(1991), Regina Zilberman e Marisa Lajolo denunciaram o fato de que a literatura
infantil foi atrelada ao processo de industrialização e que devido a isto, [...] textos
foram escritos segundo o modelo da produção em série e o escritor foi reduzido à
situação de operário, fabricando, disciplinarmente, o objeto segundo as exigências do
mercado.‖ (p. 119). Afirmam, também, que

[...] o texto infantil contemporâneo busca romper com a


esclerose a que o percurso escolar e o compromisso com a
pedagogia conservadora parece ter confinado o gênero. A
ruptura acarreta ainda a produção de textos autoconscientes,
isto é, de textos que explicitam e assumem sua natureza de
produto verbal, cultural e ideológico. Reside aí o ponto de
radicalidade mais extrema a que chega o texto infantil nas duas
últimas décadas. (LAJOLO; ZILBERMAN, 1991, p. 161).

As estudiosas também demonstram aspectos referentes ao ―escrever para


crianças e fazer literatura.‖ Segundo as autoras, há uma ―desconfiança de setores
especializados da teoria e da crítica literária, quando confrontados à literatura infantil:
―[...] De um lado, porque tantas concessões interferem com frequência demasiada na
qualidade artística dos textos; de outro, porque denuncia que, sem concessões de
qualquer grau, a literatura subsiste como ofício.‖ (LAJOLO; ZILBERMAN, 1991, p. 19).
Muitos escritores sobrevivem da profissão no cenário nacional, sendo
grande parte deles consagrados. Algumas das obras desses escritores são
premiadas por instituições artísticas e/ou literárias e outras chegam às escolas
por meio de projetos do governo de fomento a leitura e a literatura, o que pode
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ser visto como ponto positivo. No entanto, a quantidade de obras não está
relacionada diretamente a qualidade destas.
Neste artigo, demos enfoque ao escritor Bartolomeu Campos de Queirós
(1944-2012) e ao seu livro Foi assim... (2008), publicado pela Editora Moderna
e que possui ilustrações de Sandra Bianchi. Em formato narrativo, Queirós
conta a história do menino Edu e do processo de aprendizagem deste, no que
tange a leitura e a escrita. Considerando a temática do livro, objetivamos
analisar se esta publicação deixa de lado o aspecto pedagogizante, moralista e
utilitário, para se prender apenas aos elementos estéticos da literatura. Para
isso, analisamos os aspectos verbais e imagéticos do livro Foi assim... (2008),
identificando aspectos estéticos ou utilitaristas presentes na publicação do
autor, além de refletir sobre sua importância no cenário literário nacional,
especificamente relacionado ao público infantil e juvenil.
Inicialmente, realizamos um trabalho de descrição do enredo de Foi
assim... (2008) e elencamos aspectos relativos à matéria literária e aos seus
dez fatores estruturantes: narrador, foco narrativo, história, efabulação, gênero
narrativo, personagens, espaço, tempo, linguagem ou discurso narrativo, leitor
ou ouvinte. (COELHO, 2000). Outro aspecto evidenciado neste artigo são as
ilustrações do livro. Como afirma Odilon Moraes: ―[...] o projeto gráfico do livro
pode não estar visível na narrativa, mas interfere sutilmente na leitura.‖
(MORAES, 2008, p. 55). Por isso, também a abordagem das ilustrações,
acreditando que as produções atuais de literatura infantil apresentam um duplo
trabalho estético: verbal e imagético.

Foi assim... (2008) e sua matéria literária

Foi assim... (2008) narra a história de Edu e seu movimento de


aprendizagem da leitura e da escrita. Edu nos é apresentado por um narrador
heterodiegético que se coloca na história ao nos informar que conheceu Edu,
personagem principal da narrativa. O narrador nos dá apenas uma ideia de
quem seja Edu e nos conta quem é este menino: ―[...] Seu nome é pequeno,
menor que soluço de mosca. Sua curiosidade, grande, mais longa que canto de

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carro de boi. Edu, menino miúdo, contava de cor de 1 a10: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7,


8,9 e 10.‖ (QUEIRÓS, 2008, p. 10).
Edu é um garoto que se interroga sobre as letras. Estava intrigado pela
ordem destas, pelos sons e por tudo que poderia escrever usando as vogais
que lhe foram ensinadas. Com ajuda dos pais, Edu é apresentado às letras que
tanto aguçam sua curiosidade e vai fazendo avanços em seu processo de
alfabetização. Inicia aprendendo-as por meio de sopa de letrinhas. Aprende a
separar as vogais, a juntá-las. Aprende as consoantes. Sempre permeado do
carinho e da paciência de seus pais, que o guiam neste caminho para a
alfabetização.
Edu gosta também de brincar com seus amigos e nestes momentos
divide suas descobertas com as outras crianças. Mas nem sempre é
compreendido, pois suas dúvidas de menino em processo de alfabetização
ainda não são as mesmas dúvidas de seus companheiros.
Durante este processo de alfabetização, questões matemáticas também
são apresentadas ao garoto: a infinitude dos números, a divisão e a
multiplicação. No entanto, a matemática é abordada por meio de metáforas,
como divisão de beijos, de abraços, multiplicação de carinhos etc. Mãe e pai
auxiliam no aprendizado do filho por meio de lições:

– Além das palavras, meu filho, também podemos somar


abraços, somar carinhos, somar alegrias. É bom somar para
poder dividir. Se eu lhe dou muitos beijos, quando seu pai
voltar do trabalho, você vai ter muitos beijos para dar a ele –
falou a mãe. (QUEIRÓS, 2008, p. 18).

Quando Edu reconhece os números e realiza algumas reflexões sobre a


matemática, conhece todas as letras do alfabeto e consegue formar palavras e
frases, é enviado à escola para iniciar seu processo formal de alfabetização. A
professora-mãe e o professor-pai já lhe deram toda a base para este processo.
Após a entrada formal à escola, ocorre a finalização do livro. O narrador,
que no início se identifica como um aluno que estudou com Edu, afirma que
não soube mais do menino, mas tem certeza que este foi acompanhado pelo
gosto da descoberta e do saber que carregava na infância.
A partir de agora, tentaremos identificar os dez itens relativos à matéria
literária, denominação que Nelly Novaes Coelho (2000) utiliza para se referir
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aos elementos que compõem a narrativa. Além de Coelho, nos apoiaremos


também em outros críticos literários que abordaram as teorias da narrativa em
suas obras. Começaremos pelo narrador, configurando seu estatuto neste livro
de Bartolomeu Campos de Queirós e qual o seu papel nesta obra.
De acordo com Coelho (2000), ―[...] o narrador é responsável pela
enunciação ou pela dinâmica que concretiza a narrativa, isto é, que produz o
discurso literário.‖ (COELHO, 2000, p. 67). Toda narração acontece em um
tempo. Em Foi assim... (2008), o tempo da narrativa é ulterior à história
narrada: ―[...] Não sei por onde Edu anda hoje. Depois de tantos anos [...]‖
(QUEIRÓS, 2008, p. 60).
Não só o tempo da narrativa pode ser distinto do tempo da história,
como o próprio narrador pode ser de diferentes categorias. No texto de
Queirós, pela maneira como flui a narrativa, temos um narrador demiurgo ou
onisciente, um recriador da história, domina todos os fatos e acontecimentos,
conhece o interior das personagens, sabe o que pensam, o que fazem, fizeram
ou irão fazer. O que transmite ao leitor é uma verdade inquestionável.
O narrador de Foi assim... (2008) coloca-se em um universo diegético e
inicia seu relato conhecendo a totalidade dos eventos que narra. Denominado
de demiurgo ou onisciente por Coelho (2000) é o narrador heterodiegético, de
acordo com Genette (s/d). Um narrador que não integra diretamente a história,
mas tem pleno domínio dos fatos sucedidos. O narrador inicia o relato
colocando-se na história, pois presenciou o que irá narrar. Por ter conhecido
Edu, este narrador tem total domínio dos acontecimentos e do tempo da
narrativa.
Identificado o narrador, examinaremos agora outro ponto da matéria
literária extremamente importante dentro do processo narrativo. Estamos nos
referindo ao foco narrativo ou focalização. Este ―[...] indica o olhar através do
qual são vistos todos os incidentes do que é narrado. Ele revela a posição em
que se encontra o narrador em relação ao que ele conta. Posição que por sua
vez determina o grau de conhecimento que ele tem dos fatos ou das situações
que ele vai desvendando.‖ (COELHO, 2000, p. 69).
Há diversas possibilidades para o posicionamento do foco narrativo. Em
Foi assim... (2008) identificamos o foco onisciente, justamente do narrador
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onisciente, demiurgo. Neste foco narrativo os acontecimentos são apreendidos


perfeitamente, inclusive o interior das personagens (COELHO, 2000).
O narrador, por meio de um foco narrativo onisciente, reafirma seu poder
de domínio entre as personagens e sobre os eventos narrativos, o que pode
ser observado no trecho acima transcrito. Na focalização onisciente, o narrador
é quem dá voz ou não às personagens. Logo, durante toda a narrativa de Foi
assim... (2008) os diálogos são por meio do discurso indireto ou quando há
diálogos, estes são sempre mediados pelo narrador, não sendo possível
encontrar nenhuma cena dentro da obra.
A postura do narrador, como tentamos explicitar, não é tão simples de
ser compreendida. Neste livro, apesar do foco narrativo onisciente, há dois
momentos na história que nos deixam confusos em relação ao narrador. No
início e no fim da narrativa, o narrador coloca-se como participante real e não
apenas como narrador da história de Edu. No entanto, como a maior parte do
texto há a sua onisciência, optamos por caracterizá-lo desta maneira.
Observado o foco narrativo, partimos agora para a análise da história, ou
seja, o que acontece na narrativa. (COELHO, 2000). A história surge a partir de
uma situação de desequilíbrio, até sua resolução e volta à normalidade. Em Foi
assim... (2008) o interesse de Edu pelas letras e sua ânsia de aprender criam
o clima para o desenvolvimento da história, que nos conta o processo de
apropriação do conhecimento pelo qual passa a personagem e avança até o
momento em que o garoto, já na escola, aprende a manipular a linguagem e a
produzir textos. Interligada à história temos a efabulação, local em que a trama
é encadeada, sequenciada e as estruturas narrativas criam a dependência das
ações. Nesta obra de Queirós temos uma efabulação linear, com eventos que
se sucedem com princípio, meio e fim. No entanto, é importante lembrar que o
narrador posiciona-se após o fim da história e deste posicionamento efabula
linearmente a narrativa.
Outro elemento da matéria narrativa ficcional é o gênero narrativo ao
qual a obra pertence: ―[...] sua escolha pelo autor nunca é gratuita ou casual.
Obedece à visão de mundo que ele pretende transmitir ao leitor e corresponde
a estruturas distintas.‖ (COELHO, 2000, p. 71). O gênero escolhido por Queirós
para o desenvolvimento de Foi assim... poderia ser o romance, pois a história
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desenvolve-se em torno de um único eixo dramático. Há muitos


acontecimentos, mas todos estão diretamente ligados e fazem parte de um
eixo central que é a história de Edu. Não existe nenhum evento narrado por si
só. Todos eles estão inter-relacionados. (COELHO, 2000).
Outro ponto importante para a matéria literária é a personagem, ou seja,
aquela que vive a ação. É o elemento decisivo, pois sem personagem a
efabulação perde sentido, é na personagem que o leitor foca seu interesse.
(COELHO, 2000). Em Foi assim... há apenas três personagens centrais: a mãe
Marina, o pai Mário e o filho Edu. São três personagens que não apresentam
comportamentos diferentes do que o leitor espera. A mãe sempre amorosa e
paciente, o pai que trabalha fora e o menino que sempre se comporta e que
tem como desejo o aprendizado. Podemos concluir que são três personagens
tipo, ou planas, pelas características apresentadas. As demais personagens,
amigos de Edu, são pouco citadas e não desempenham papel importante. Na
obra representam funções sociais: a mãe amorosa e cuidadora do lar, o pai
que provê o sustento da família e o filho obediente e grato.
Afirmamos que as personagens de Foi assim... são planas e tipos pelas
características estáticas que apresentam. Seus comportamentos são
esperados e em nenhum momento o leitor é surpreendido. Edu, em momento
algum desacata seus pais, irrita-se, enfada-se ou faz alguma má criação, assim
como seu pai ou sua mãe estão sempre alegres e solícitos para com o filho,
vestindo realmente os tipos que lhe são designados.
Mais um elemento da matéria narrativa é o espaço. Considerando a
importância do espaço em que se passam as ações da trama e analisando o
espaço em Foi assim... podemos localizar apenas quatro locais diferentes em
que a história ocorre: a casa da família, a rua onde Edu brinca com seus
amigos, o supermercado em que Edu acompanha a mãe às compras e por fim
a escola em que Edu formaliza seu aprendizado. Os espaços, dentro das
narrativas, são os locais onde as cenas se desenvolvem, locais em que as
circunstâncias darão realidade e verossimilhança ao enredo (COELHO, 2000).
Os espaços em que acontece a história de Foi assim... são sempre
espaços sociais, construídos pelo trabalho do homem: a casa, o quintal, o
supermercado, a rua, a escola. As escolhas destes locais específicos para
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cenário não é desconexa, tem uma função pragmática implícita: ajuda a


caracterizar as personagens. No caso, a caracterização desta família nuclear:
pai, mãe e filho. Os três estão frequentemente em casa, juntos e o pai apenas
sai do lar para o trabalho. Além disso, mesmo estando no quintal com os
amigos, Edu está sempre com a mãe por perto. No supermercado, também
acompanhado pela mãe, há diversos diálogos com fins instrucionais. O outro
espaço mencionado, a escola, ambiente que também possui adultos e que
restringe as ações da personagem Edu. O único local que denotaria maior
liberdade à personagem central seria a rua. Mas, quando Edu está nela com
seus amigos, não transgride normas ou faz peripécias, muito pelo contrário. Na
rua, Edu conta aos amigos o que está acontecendo em sua casa, ou seja, o
menino está imbuído da atmosfera do lar e não se desvencilha dele.
A importância do espaço nesta obra fica evidenciada justamente pelos
cenários escolhidos por Bartolomeu e corroboram a ideia de família unida e
preocupada com o filho, que sempre está sendo vigiado por adultos ou por sua
própria consciência. Ou seja, o espaço também delimita as atividades de Edu e
de seus pais. Edu, mesmo quando está fora do espaço fechado da casa, não
está sozinho com os amigos. A presença da mãe é constante até no espaço
externo, pois esta cuidava do quintal.
Todas as ações das personagens, dentro de um cenário, acontecem em
um tempo determinado - o tempo da narrativa, que difere do tempo em que a
história está sendo contada – o tempo da enunciação. Na narrativa de Foi
assim..., temos um tempo cronológico e linear, ou seja, um tempo exterior,
físico. As ações sucedem-se após dias e noites, de maneira natural. Apesar
disto, o tempo desta narrativa não é contemporâneo, pois o narrador nos
informa, no início do livro, que é uma história passada, já acontecida. Porém,
por meio da analepse, o narrador insere a história no curso da narrativa, ou
seja, nos traz a história de Edu como algo atual, que está acontecendo e não
como algo que já se sucedeu.
Podemos concluir, sobre o tempo, que no discurso utilizado pelo
narrador os episódios dos acontecimentos são lineares, formando um todo
significativo, lógico e inteligível. Não há a presença de anacronias ou prolepses
que dificultam a compreensão da narrativa pelo leitor infantil ou juvenil.
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Além dos itens já analisados acima – narrador, foco narrativo, história,


gênero narrativo, personagem, espaço e tempo –, temos dois outros pontos
importantes a analisar: a linguagem narrativa e o leitor/ouvinte a quem a obra
se destina (COELHO, 2000). Iniciamos então a análise da linguagem narrativa.
Ao observarmos atentamente a linguagem de Foi assim..., podemos
perceber o predomínio da linguagem culta, sem utilização de gírias ou
presença de expressões coloquiais. Na história, tanto Edu quanto seus pais,
comunicam-se por meio da norma padrão, inclusive o próprio narrador.
Chegamos então a uma questão primordial: a quem esta obra se
destina? Quem é seu leitor/ouvinte? Quem é o interlocutor deste narrador
onisciente? A resposta não é tão simples e tão direta. A quem o discurso do
narrador atinge? A história de Edu, história do processo de alfabetização de
uma criança está direcionada a uma outra criança em processo de
alfabetização? Talvez, mas temos que ter em mente que há um intermediário
para a leitura: o adulto. Com isso, há uma dificuldade em afirmar com absoluta
convicção que Foi assim... é destinada aos iniciantes de leitura ou a qualquer
outro leitor. Porém, podemos perceber que temos um modelo de criança e um
modelo de família que está sendo dividido com o interlocutor. A questão torna-
se outra agora: o leitor iniciante será influenciado por esta leitura? Que tipo de
leitura temos em Foi assim...?
Além disso, trata-se de uma estratégia liminar, em que a idealização da
personagem, igualmente a idealização de seus sonhos e comportamentos
(menino feliz, bem educado, no seio de uma família padronizada), atinge todo o
sistema escolar e seus objetivos: a criança, ao se alfabetizar, é inserida num
ambiente harmônico e onde a felicidade e a paz são elementos triviais.

Foi assim... e seu plano imagético

Foi assim... (2008) possui ilustrações de Sandra Bianchi, profissional


graduada em Desenho e Gravura pela Escola de Belas Artes e com pós-
graduação em Arte Educação, conforme informações localizadas na quarta
capa do livro. As ilustrações iniciam-se já na capa. De acordo com Nikolajeva e
Scott (2011), ―[...] as capas de livros ilustrados sinalizam o tema, o tom e o
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caráter da narrativa, além de sugerir um destinatário.‖ (NIKOLAJEVA; SCOTT,


2011, p. 70). A ilustração apresenta Edu observando uma tigela de sopa, com
um leve sorriso nos lábios. Usa camiseta listrada de azul, vermelho e branco e
é possível notar seus suspensórios na cor marrom. O menino possui pele
branca e cabelos loiros. Nikolajeva e Scott (2011) acreditam que a escolha dos
ilustradores por loiros e brancos acontece devido ao estereótipo associado ao
padrão nórdico de beleza.
O livro, além da capa ilustrada, possui outras dez páginas com imagens.
Estas são representativas da realidade, com traços que em muito se parecem
com fotografias. Nelas, encontramos sempre Edu – sozinho ou acompanhado
pelos amigos e ou pais –, descrevendo as cenas narradas na história.
Hunt (2011) citando Jane Doonan aponta o papel das ilustrações na
leitura da obra. As imagens podem ampliar a leitura ou apenas reforçar o que o
texto escrito já diz. Neste caso, o leitor perde a possibilidade da construção de
vários sentidos. Considerando o realismo e a representação estritamente
relacionados ao texto escrito de Foi assim... (2008), o seu projeto gráfico é
restritivo, pois não abre possibilidades de interpretações variadas.
Uma das ilustrações que representa fielmente o texto verbal está
localizada na página 53. Quando está sozinho em seu quarto, Edu torna-se
pensativo devido a um diálogo com a mãe na porta do supermercado. A
ilustração possui um fundo branco, representando a parede do quarto. Nela há
uma imagem oval, na cor prata, de um anjo envolvendo um ser menor,
aparentemente um menino. Abaixo, temos uma cama de solteiro, coberta com
uma colcha verde. Edu está sentado ao lado, no chão de tabuas marrom,
trajando um macacão azul escuro e sapatos marrons, mas em tons mais
escuros que o chão. O menino tem os braços semi cruzados, apoiados no
joelho e um olhar sem rumo certo, demonstrando estar em um momento
pensativo. A ilustração vaza para a página anterior (página 52), mas apenas o
chão, onde Edu está sentado. Nesta página, há um pião abandonado com sua
corda próxima, mas o brinquedo não chama a atenção do garoto,
demonstrando que este está tão absorto em seus pensamentos que perdeu
inclusive o interesse pelos brinquedos.

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Além da personagem Edu, sua mãe é representada nas páginas 33 e


37. Na página 33, Marina está ao fundo da imagem, com uma saia estampada
em vermelho e uma blusa marrom escura. Mexe nas folhagens e observa as
crianças que estão brincando com Edu, no primeiro plano da ilustração. Na
página 37, Marina abraça Edu com uma das mãos e com a outra auxilia o
menino a brincar com letras móveis. A mãe usa um vestido azul claro, com
algumas estampas e detalhes brancos na gola. Possui cabelos curtos e
castanhos. Edu está com um macacão escuro e camiseta branca.
A única personagem que não apareceu caracterizada foi o pai, Mário,
talvez justamente para demonstrar a ausência constante da figura paterna, que
como provedor do lar, necessita ocupar outros espaços para trabalhar.
Nas páginas finais – 60 e 61 – juntamente com o trecho final do
narrador, há algumas imagens interessantes. Na página 60, Edu está próximo
a uma mulher loira, de óculos o que nos sugere ser sua professora,
considerando que a mãe já foi caracterizada. Abaixo, na mesma página, Edu
está em pé, com outras roupas e da sua direção saem as vogais A, E, I, O, U
que rumam para a tigela de sopa ao lado. Por fim, na página 62, temos um
homem com cabelos castanhos grisalhos, sentado e lendo o livro O olho de
vidro de meu avô, também de Bartolomeu Campos de Queirós, ilustração que
nos remete ao menino sentado ao lado de Edu no início do livro, devido à cor
do cabelo.
Como podemos perceber pelas descrições das ilustrações, há uma
tentativa de representar exatamente a história narrada. Camargo (1998) aponta
que na existência da literalização de um texto verbal para um texto visual, ou
seja, quando o escrito é ilustrado ―ao ―pé da letra‖, corre-se o risco de
contradição, pois a literalização retira o sentido de uma metáfora, por exemplo.
Isto fica exemplificado se pensarmos que no texto verbal há relativa incerteza
sobre quem narra a história ser ou não o próprio Edu. Esta questão cai por
terra quando encontramos a representação de meninos diferentes para os
trechos ambíguos, ou seja, a ilustração encerra a possibilidade de a criança
divagar sobre este tema.
Além disto, as ilustrações não criam novas possibilidades ao texto
verbal, mas ocorre o contrário. Quando não o limita, como exemplificamos
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acima, acaba apenas sendo redundante, ilustrando exatamente as palavras do


narrador. Não encontramos imagens que não estejam representando
exatamente situações do enredo, fato que empobrece a obra.
Considerando ainda as imagens acima descritas, podemos relacioná-las
também a uma afirmação sobre ilustração de Marcelo Ribeiro (2008). Este
afirma que ―[...] o ilustrador deve, na verdade, seguir uma orientação interna do
texto como coerência da linguagem, ou seja, sua poesia, sua intensidade, e
não sua relação direta com a palavra ou a frase.‖ (RIBEIRO, 2008, p. 136).
Percebemos, pelas imagens do livro em questão, que as ilustrações não
complementam o texto, não dialogam com ele. São representações exatas de
suas palavras.

Algumas considerações sobre Foi assim... (2008)

Tendo em vista as características textuais e imagéticas desta obra,


indagamo-nos sobre qual a razão de um escritor, tão comprometido com as
questões relacionadas à leitura e à sua qualidade, publicar um livro menor,
comparado a tantos outros com altíssimo teor literário e projeto estético. Aqui
talvez seja interessante nos remetermos a um fato comum e recorrente no
meio literário: a questão mercadológica. Em alguns momentos, o privilegiar
livros que vendam e que por oferecer uma ―utilidade‖ para pais e professores,
alcançarão maiores lucros, acaba seduzindo editoras e consequentemente
seus escritores.
Ana Maria Machado, em Contracorrente: conversas sobre leitura e
política (1999), traz uma reflexão pertinente ao que discutimos aqui:

[...] quando começa a escrever tendo em mente o alvo de um


grande número de leitores abstratos, o autor está perdido. Ser
lido pelo maior número possível passa a ser mais importante
do que expressar aquilo que está pressionando, de dentro. E a
independência criativa vai para o espaço. (MACHADO, 1999, p.
40).

Não podemos afirmar que foi realmente isto que aconteceu com Queirós ao
publicar Foi assim... (2008). No entanto, o livro destoa dos demais livros pertencentes
ao conjunto de sua obra, sempre preocupada com a qualidade estética da literatura

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infantil e juvenil. Mas, como bem nos lembra a própria Ana Maria Machado (2001), a
verdadeira literatura infantil é ―[...] aquela que não fica querendo ensinar nada nem dar
aulinha, mas faz questão de ser uma exploração da linguagem, matéria-prima de toda
obra literária de qualidade.‖ (MACHADO, 2001, p. 199).
Em muitas entrevistas concedidas e artigos publicados, ao ser referido o tema
da ilustração, Bartolomeu sempre demonstrou interesse e preocupação com as
imagens estampadas em seus livros, como tentaremos demonstrar.
No artigo Não é tarefa simples escrever para crianças, Bartolomeu afirma:

Assim, no meu ato de escrever penso também no objeto livro.


Se faço um texto com o que há de melhor em mim gosto de vê-
lo apresentado de maneira sedutora. Para tanto, o ilustrador se
faz indispensável. Mesmo compreendendo que literatura é feita
de palavras e que ler é apropriar-se das palavras, e que as
coisas são nomeadas pelas palavras, cabe ao ilustrador ser o
meu primeiro leitor, capaz de expressar sua leitura por meio da
linguagem plástica realizada a partir da sua liberdade e
fantasia, para que o livro tenha outros entendimentos e outras
admirações. (QUEIRÓS, 2007, p. 33)

O autor entende e valoriza o papel do ilustrador. Sabe diferenciar o plano


verbal do plano não verbal e afirma que deve haver um diálogo entre estas duas
linguagens. O ilustrador, como primeiro leitor de sua obra, precisa utilizar-se do
elemento da fantasia – extremamente importante para Queirós – ao dar formas e
cores na expressão de seu texto.
Em outro momento, ao ser questionado sobre a sua relação com o ilustrador,
Bartolomeu declara:

Gosto do ilustrador que não repete o texto. Que faz outra


leitura do texto. Gosto bem disso. Pensar o seguinte: o texto
literário tem que ficar em pé sozinho. Se depender da
ilustração não é literário. Porque literatura é palavra, é letra.
Então, faço um texto e vejo se ele fica em pé sozinho. Quando
você dá para o ilustrador, quer tornar o livro mais sedutor para
o pequeno leitor. Quer que a criança pequena se interesse.
Porque toda criança gosta muito do livro. [...] Então, esse livro
com a ilustração para criança pequena é muito bom. Torna-o
sedutor. Aproxima muito a criança do livro. Mas acho que há
um determinado momento em que a ilustração tem que sair do
texto. Literatura é texto, não é ilustração. Ilustração é uma
coisa, literatura é outra. (QUEIRÓS, 2009).

Pelas suas declarações, a preocupação do escritor com as imagens que


acompanhariam seus textos fica evidente. Bartolomeu possuía muita distinção sobre o
que era o texto literário, o que era o texto não verbal e qual o papel de cada um deles
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dentro da obra. Gostava de imagens que acrescentavam outras visões ao texto e não
apenas o restringia, ilustrações que representavam justamente o que não estava no
plano verbal. Sem ser um especialista no assunto, o autor corrobora afirmações como
a da estudiosa Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira (2012):

A imagem, como apresenta o improvável, produz


distanciamento para o leitor e deixa a interpretação suspensa.
Desse modo, gera ambiguidades, sentidos simbólicos,
instaurando lacunas que serão preenchidas pelo texto, na
busca por uma realização comum de sentido. Neste caso, se
estabelece entre texto e imagem uma função de amplificação,
em que esta amplia os significados daquele e vice-versa, sem
que ambos se repitam ou contradigam. (FERREIRA, 2012, p.
165).

Considerando as declarações de Queirós, de Ferreira (2012) e traçando um


paralelo com as observações sobre as imagens dos livros aqui analisados podemos
tecer alguns comentários. As ilustrações de Foi assim...(2008) retratam aquilo que
está expresso no campo verbal. As imagens não complementam ou abrem
possibilidades para a interpretação do texto. São como fotografias do texto verbal,
fixam determinado momento da narrativa e o reproduz. No entanto, apesar da postura
contraria de Bartolomeu em relação a este tipo de ilustração, o livro foi publicado.
O ilustrador Rui de Oliveira nos diz que apesar da condicionalidade da imagem
à palavra escrita, a ilustração pode e deve assumir um caráter de transcendência do
texto, o que não quer dizer que deva transgredi-lo. Para ele, onde termina a palavra
começa a arte da ilustração. No entanto, as imagens não podem ser paráfrases do
texto, nem seu espelho. Ela é um prisma do texto. (OLIVEIRA, 2012).
Relacionando as ilustrações de Foi assim...(2008) com as informações sobre a
arte de ilustrar, tanto de Queirós quanto de Rui de Oliveira, podemos perceber a
diferença qualitativa das imagens deste texto em relação a tantos outros publicados.

Considerações finais

Bartolomeu acreditava que a literatura poderia transformar o mundo, deixando-


o mais justo e mais belo. E por acreditar nisto, passou sua vida a escrever literatura e
a defender o direito de todos de terem acesso a ela. Sua visão sobre a literatura,
sendo ela infantil ou não, demonstra o profundo respeito deste arte-educador, como
gostava de ser chamado, pelo leitor de qualquer idade.
Apesar da clareza de Queirós em relação à literatura e à ilustração, Foi assim...
distoa do conjunto das obras do escritor. Mesmo localizados alguns problemas, não
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possuímos pretensão de diminuir o valor literário das produções do autor, pois


qualquer bom escritor possui obras mais valorizadas ou menos valorizadas em
determinados momentos históricos. Além disso, a enorme contribuição que trouxe a
literatura de uma maneira geral e a literatura infantil e juvenil do nosso país não pode
ser nublada em razão de alguns problemas estéticos localizados em uma de suas
obras.
Muitos podem ser as motivações que levaram o escritor a publicar uma obra
pedagogizada como Foi assim..., como a questão mercadológica que regularmente
incide sobre as obras dos autores. A análise das obras de Bartolomeu Campos de
Queirós permite afirmar que o seu projeto está permeado de preocupação estética e
que grande parte de seus livros são reais trabalhos artísticos. Porém, assim como
outros escritores espalhados pelo Brasil, em alguns momentos os laços com a
pedagogia e com o mercado editorial acabam não sendo realmente cortados, havendo
uma estreita relação entre as ideias educacionais e a obra literária.

REFERÊNCIAS

CAMARGO, Luís H. Poesia infantil e ilustração: um estudo sobre Ou isto ou aquilo de


Cecília Meireles. São Paulo, 1998. 214p. Dissertação (Mestrado) – Unicamp.
COELHO, Nelly Novaes. A Literatura infantil. São Paulo: Moderna, 2000.
FERREIRA, Eliane Galvão Ribeiro. Por uma piscadela de olhos: poesia e imagem no
livro infantil in: AGUIAR, Vera Teixeira de; CECCANTINI, João Luís (orgs.). Poesia
infantil e juvenil brasileira: uma ciranda sem fim. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012.
HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. Trad. Cid Knipel. São Paulo: Cosac
Naify, 2010.
LAJOLO, Marisa, ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: história &
histórias. 3. ed., São Paulo : Ática, 1991.
MACHADO, Ana Maria. Contracorrente: conversas sobre leitura e política. São Paulo:
Ática, 1999.
MORAES, Odilon. O projeto gráfico do livro infantil e juvenil in OLIVEIRA, Ieda (org.).
O que é qualidade em ilustração no livro infantil e juvenil: com a palavra o ilustrador.
São Paulo: DCL, 2008.
NIKOLAJEVA, Maria; SCOTT, Carole. Livro ilustrado: palavras e imagens. São Paulo:
Cosac Naify, 2011.
OLIVEIRA, Rui de. Ilustração e pintura: os eternos conflitos da vizinhança e da
distância. Revista Palavra, Rio de Janeiro, v. 4, n. 3, p. 42-47, jul/ 2012.

QUEIRÓS, BARTOLOMEU CAMPOS DE. Não é tarefa simples escrever às crianças.


Revista Nós da Escola, Rio de Janeiro, v. 4, n. 46, p. 32-33, 2007.
____. Foi assim... . São Paulo: Editora Moderna, 2008.
RIBEIRO, Marcelo. A relação entre o texto e a imagem in OLIVEIRA, Ieda (org.). O
que é qualidade em ilustração no livro infantil e juvenil: com a palavra o ilustrador. São
Paulo: DCL, 2008.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

POEMAS DE BRINQUEDO, DE ÁLVARO ANDRADE GARCIA: O


LIVRO MULTIPLATAFORMA E A FORMAÇÃO DE LEITORES

Rogério Barbosa da Silva, CEFET-MG, Eixo V, FAPEMIG


Caio Roberto Saldanha, CEFET-MG, Eixo V, FAPEMIG

Considerações Iniciais

Poemas de brinquedo constitui um livro transmídia de Álvaro Andrade Garcia,


concebido como jogos poéticos e disponível no formato de aplicativo para
smartphones, tablets ou computadores, mas também no formato impresso - neste
caso, em pequenos cartões não costurados, inseridos numa pequena caixa em forma
de envelope. No formato digital, além das potencialidades semióticas do design, os
poemas são também entoados e performados pelo poeta Ricardo Aleixo, abrindo
possibilidades para a exploração sonora e lúdica dos textos. No formato impresso, os
cartões lembram o baralho, e essa estrutura nos permite alterar sempre a ordem dos
textos. Além disso, o design dos textos aliado aos desenhos na frente e verso de cada
carta funcionam, por si só, como estímulos para uma leitura criativa por quem os lê e
os manuseiam. Trata-se, portanto, de uma proposta bastante instigante, pois permite o
diálogo entre linguagens diversas e, acreditamos, esses procedimentos estimulam o
campo criativo para os jovens leitores, embora se possa afirmar que o livro foi
concebido para todas as idades.
Álvaro Andrade Garcia é poeta e diretor de audiovisual e multimídia. Tem 11
livros de poesia e três de prosa publicados, e desde a década de 1980 tem-se
dedicado também a produzir poesia em vídeo, com a mediação do computador.
Atualmente suas produções são realizadas em plataformas multimídias e digitais. Em
2001, seu poema ―O Buda da Palavra‖ participou da instalação Bunker Poético, de
Harald Szeemann, na 49ª Bienal de Veneza. Exibiu videopoemas em Belo Horizonte,
Rio de Janeiro e São Paulo na década de 1980 e, desde a década de 1990, dirigiu
inúmeros projetos multimídia, sites e portais na internet. Destaca-se ainda sua
instalação audiovisual sobre biomas brasileiros, produzida para o Espaço Israel
Pinheiro, em Brasília, e exibida durante quatro anos no Espaço do Conhecimento
911

UFMG, em Belo Horizonte. Trabalha no projeto do curta-metragem interativo O


Ocidental, na continuação da trilogia AOM, iniciada com o livro Grão e o software
Managana, e na finalização do seu primeiro romance O Coração de Outono.
Álvaro Andrade Garcia é um poeta com uma produção criativa multidirecional,
voltado para a experimentação com os meios e com as linguagens de um modo geral,
ainda que percebamos ser a palavra um valor significativo para os seus projetos de
criação. Poemas de brinquedo é um desses livros, que pode ser discutido a partir de
suas múltiplas versões. Constitui em sua elaboração um processo tradutório, no
sentido de um livro experimental, de uma arte inventiva. Nesta comunicação,
pretendemos tanto ressaltar esses aspectos da tradução como invenção de formas,
como discutir brevemente as possibilidades emergentes desse cruzamento de mídias
e linguagens, apontando os modos de interação entre texto e leitor e as possibilidades
semióticas dessas linguagens.

Um livro experimental, uma arte de invenção

Aspecto marcante na produção criativa (poesia, videopoesia, softwarepoesia)


de Álvaro Andrade Garcia é a transposição de seus textos poéticos para distintas
plataformas da multimídia e do impresso. O trabalho nos obriga a pensar a sua
produção a partir da perspectiva da tradução intersemiótica, tal como concebida por
Julio Plaza. Esse autor entende que o ato de traduzir implica ―repensar a configuração
de escolhas do original, transmutando-a numa outra configuração seletiva e sintética‖,
(PLAZA, p. 40), ou seja, um equivalente da invenção de formas, no pensamento
poundiano.
Por conseguinte, Poemas de brinquedo é um livro multiplataforma (ou
transmídia, conforme define o autor). Os textos são apresentados como jogos poéticos
no formato de aplicativo para smartphones, tablets ou computadores - se o
leitor/interator o acede por meio do software Managana, disponível na apple store ou
google play, ou ainda através do sítio www.ciclope.com.br. O livro está também
disponível no formato impresso - neste caso, em um masso de pequenos cartões não
costurados e inseridos numa pequena caixa-envelope. No formato digital, além das
possibilidades semióticas do design, os poemas são também entoados ou
performados pelo poeta Ricardo Aleixo. Para além do fato de que essa parceria entre
Garcia e Aleixo marca a confluência de trabalhos autorais fortes evidenciando também
mais um lance da tradução intersemiótica pelo viés do sonoro, isso é também
relevante por criar possibilidades para a exploração sonora e lúdica dos textos. No

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formato impresso, os cartões lembram o baralho, algo que abre os horizontes de


leitura e permite ainda a instauração de um jogo livre. Por sua vez o design dos textos
impressos aliado aos desenhos ou imagens gráficas na frente e verso de cada carta
funcionam, por si só, como estímulos para uma leitura criativa por quem os lê e os
manuseiam. Como veremos, as interferências do design, ao longo do processo, é uma
instância criativa instigante e intrínseca ao projeto.
Numa apresentação realizada nas conferências ELO 2017, no Porto, o autor
assim os descreve:

Os poemas de brinquedo trazem palavras inventadas, palavras medonhas,


trava línguas, poemas com sotaque e textos com ortografia errada para
consertar. Histórias engraçadas e ruidosas, sons para cantar e também
provocar. Palavras com bordas e desenhos loucos, ainda sem significado,
para batizar. A palavra brincante é um ritual; Acontece como nos poemas
budistas, koans ou como em Alice no País das Maravilhas: desfaz caminhos
conhecidos, reconfigura a mente. Brincar nos dá esse tempo infinito em que
tudo é e nunca termina ... Brincar não possui regras, não tem duração, é pura
especulação. É poesia muito próxima ao seu big bang. (GARCIA, 2017, n.p.)

Na descrição acima, podemos observar tanto o objetivo de elencar o


conteúdo do livro, o jeito de brincar com a composição que esse livro encerra, mas
sobretudo desenvolve-se uma lógica poética perpassada pelo lúdico. Leva adiante a
afirmação feita por Décio Pignatari de que, para ―o poeta, mergulhar na vida e
mergulhar na linguagem é (quase) a mesma coisa‖. (PIGNATARI, 2005, p. 11). Vale,
por assim dizer, acentuar que o poema é um ato de linguagem e que faz e se refaz no
gesto de jogarmos com ela. As referências ao Alice de Carroll e aos 165 reforçam esse
espírito de que a poesia é a descoberta pelo jogo, e portanto ela é infinita e ultrapassa
sempre as possíveis regras que a ela possam se interpor. É assim portanto como uma
brincadeira que especula (ou seja, que nos leva a aprendizagem).
Por isso, podemos dizer que há no livro um entendimento próximo ao das
considerações que J. Huizinga traçou em torno do jogo:

Mas reconhecer o jogo e, forçosamente, reconhecer o espírito, pois o jogo,


seja qual for sua essência, não é material. Ultrapassa, mesmo no mundo
animal, os limites da realidade física. Do ponto de vista da concepção
determinista de um mundo regido pela ação de forças cegas, o jogo seria
inteiramente supérfluo. Só se torna possível, pensável e compreensível
quando a presença do espírito destrói o determinismo absoluto do cosmos. A
própria existência do jogo é a confirmação permanente da natureza
supralógica da situação humana. Se os animais são capazes de brincar, é

165 Segundo o Grande Dicionário Houaiss, "no zen-budismo, sentença ou pergunta de caráter enigmático e
paradoxal, us. em práticas monacais de meditação com o objetivo de dissolver o raciocínio lógico e conceitual,
conduzindo o praticante a uma súbita iluminação intuitiva.” (Houais, dicionário eletrônico. In:
https://houaiss.uol.com.br/pub/apps/www/v3-2/html/index.php#1).
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porque são alguma coisa mais do que simples seres mecânicos. Se


brincamos e jogamos, e temos consciência disso, é porque somos mais que
simples seres racionais, pois o jogo é irracional. (HUIZINGA, 2000, p. 8)

Essa atmosfera lúdica está muito bem explícita nos cartões impressos, a
partir do design realizado nas duas faces do cartão, à maneira de um baralho,
havendo, entretanto, uma forte articulação sugestiva entre essas duas faces, com
apoio no verbal, no visual e nos estímulos ao sonoro. O trabalho evidencia a
imbricação das matrizes do verbal, visual e sonoro, como nos mostra Lúcia Santaella
(2001, p. 371), isto é, o icônico habita o sonoro e o verbal, e assim reciprocamente.
Assim, por exemplo, o cartão ―(ecos do passado)‖ traz na anteface (a ideia de máscara
é uma boa definição para essa primeira página dos cartões), visualmente em vermelho
e branco percebe-se uma espiral a qual nos faz lembrar um disco de vinil (a espiral
como o próprio tempo?). Na outra face, o poeta brinca com nome ―álvaro‖, constituindo
elementos sonoro-visuais de suas ―alvariações‖ (há outro cartão assim intitulado). O
jogo é acentuar as vogais finais, distendendo-as sonoramente. A superfície visual
incide sobre as sílabas e fonemas das palavras, com as quais o texto busca a
brincadeira infantil ―uni-duni-tê‖, na qual em ritmo cantado e a cada sílaba a criança
aponta para outra, até terminar no escolhido: ―uni duni tê/ salamê / minguê/ sorvete
colorê/ o escolhido foi você‖.

Figura 1: ecos do passado Figura 2: ecos do passado

Na interface digital, o poema recebe uma configuração visual distinta daquela


em papel, pois, à medida que a voz do performer acentua a sílaba final do nome
alvaro, transformada numa espécie de sufixo, os fonemas ―o‖ e ―e‖, animados na tela

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vão refluindo para trás na mesma intensidade da voz que se arrasta, e nos lembram
bolhinhas de sabão sopradas contra o vento .

F
Figura 3: ecos do passado - aplicativo

Como podemos observar, para cada versão dos poemas há alterações


substanciais no projeto gráfico-visual do poema, refletindo também uma busca de
efeitos estéticos distintos. Digamos que Poemas de brinquedo adquire uma
complexidade estética advindas tanto da produção editorial dos textos pela editora
Peirópolis, com o projeto visual de Márcio Koprowski, quanto da dimensão visual,
sonora, animada e interativa produzida dentro do Ateliê Ciclope, com a parceria de voz
do poeta Ricardo Aleixo. Constituem variantes diversas de um mesmo trabalho
poético, potencializada em seus efeitos estéticos distintos nos formatos que os textos
foram adquirindo. E é interessante que, ao contrário, de muitas produções do mercado
editorial, Poemas de brinquedo não constitui uma produção dirigida de forma
especializada e exclusiva ao público infantil. Pelas leituras da produção poética de
Álvaro Andrade Garcia, fica evidente que a feição lúdica deriva dos textos produzidos
ao longo dos anos para o público adulto mesmo. É uma feição de sua poesia, pois a
maioria dos poemas que compõem o livro Poemas de brinquedo derivam de seu livro
adulto Álvaro, publicado em 2003. Eis aqui a primeira versão publicada de ―ecos do
passado‖:

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Observamos que, embora o poema tenha sido elaborado inicialmente como


um poema visual, a sua configuração espacial já induzia uma exploração fônica, dada
pela quebra da estrutura morfológica das palavras, pela repetição a sugerir um
prolongamento do som dos fonemas. Mas essa disposição não sugeria ainda a ideia
de movimento que foi incorporada posteriormente na sua versão digital. Em conversa
informal com o autor em 2015 pude ver alguns dos poemas já alocados na plataforma
Managana, enquanto a editora Peirópolis elaborava a versão impressa em cartão.
Então, o interessante é observar que Poemas de brinquedo nasce reformulando
propostas estéticas anteriormente planejadas, potencializa aspectos lúdicos inseridos
nos poemas. São também como brincadeiras do poeta, que já há um longo tempo
experimenta uma articulação de sua criação com a filosofia taoista e explora
elementos imagéticos da cultura do ideograma, da técnica dos koans. Mas ao realizar
essa nova experiência, os poemas ganham o reforço das técnicas de animação e do
cinema. Aliás, as ―brincadeiras ―, as "histórias‖ e as ―musicas‖ inseridas no canto

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inferior direito da página inicial do aplicativo são também reconfigurações de vídeos


gravados no antigo espaço ocupado pelo Ateliê Ciclope, um sítio é que certamente
inspirou o trocadilho resultante do batismo do site ―Sítio da Imaginação‖. O espaço
físico habitado pela magia poética também capturado pelas interações lúdicas de um
pequeno gato e um cão com a fauna e a flora local. Dessa ―aventura‖ participa
também um bem te vi e cigarras, o canto de água corrente, tudo fonte, maná - aí tanto
no sentido de alimento quanto naquele figurativo de um ganho valioso, inesperado, e
que poderia expressar a poesia espontânea existente nas coisas. Mas aí também
reside a arte como produção, como forma de reinventar sempre, por isso um fazer
que exige também trabalho.
Trata-se de uma poesia cujo adensamento filosófico incorpora essa riqueza
material proveniente da natureza através desse fazer poesia incorporando um
pensamento a contrapelo da razão, vinculada à experiência zen do budismo. Faz-nos
lembrar as "tisanas" da poeta portuguesa Ana Hatherly, também experimental e
também amante da cultura oriental, e que compõe poesia e pequenas narrativas cuja
linguagem, na prática, constitui um análogo da infusões de chás realizados com
plantas, flores e folhas. Por isso, a linguagem desses poemas - animados ou verbo-
visuais impressos - preenchem-se de cores e sons: os jogos de linguagens com os
colibris e bem-te-vis, poemas para berrar na palavra com faz a arara, relâmpagos e
trovões, em ―depois do trovão, e poemas inúmeros que brinca com os falares típicos
do mineiro, do nordestino, entre outros. A linguagem se enrique com a experiência e
dela faz poesia. Volta àquela ideia de Décio Pignatari, que há pouco nos referimos, de
que o poeta mistura signo e coisas, como uma recusa das imposições conceptuais
que o uso faz da língua.
Enfim, cabe ressaltar um aspecto também importante da interface, pois o
aplicativo funciona nos smartphones - especialmente - adaptado ao uso que as novas
gerações de crianças faz dos dedos ao teclar em coisas nos aplicativos. Por isso a
configuração se alonga no formato paisagem e os ícones estão nas letras coloridas.
Prevê-se o toque aleatórios e as interações rápidas que esses adolescentes fazem ao
clicar nas telas de seus aparelhos. E funciona também por conseguinte na mesma
lógica dos aplicativos de jogos para celulares.
Para finalizar essa breve análise, voltamos ao comparativo entre entre a
configuração especial dos formatos impressos no livro para adultos e no poemas de
brinquedo para crianças ou adultos. Não é só a quebra da linearidade ou da
organização ordenada dos textos de um livro. A livre combinação serve também ao
propósito do jogo e o designer dos cartões trouxe uma intensificação das propostas
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estéticas visuais e dinâmica dos textos. Os cartões são visualmente atrativos enquanto
páginas coloridas e pelo uso da tipografia, que permitem sinapses rápidas e
experiências fortes no campo estético. Na versão original, a página era mais
comportada e tinha uma visualidade estrutural. Nos cartões essa estrutura explodiu
em busca de novas possibilidades lúdicas com a linguagem. No livro original de 2002,
os poemas são lidos numa sequência as experiências amorosas, sensoriais ou
linguísticas vão se intensificando enquanto o leitor experimenta o pensamento zen
budista do poeta enquanto artista e adepto da filosofia. No livro em cartões, ou mesmo
no livro-aplicativo, não há essa ênfase, a não ser em ―ronco digital‖ também bastante
alterado em relação à proposta inicial, embora permaneça a ideia de um mantra sendo
entoado em que se sugere o som de um cochilo, mas é ao fim uma brincadeira com a
linguagem digital zero um. É, na verdade, um encontro entre o tao e a poesia digital,
algo enfatizado em outro poema, ―extrangeiro de si na paisagem dijital‖, que finaliza no
verso ―DI JI TAO‖ (Cf. GARCIA, 2002, p. 43).
São essas breves considerações de como o processo tradutório
intersemiótico abre espaço para criações inventivas conjugando-se as linguagens de
suportes diversos, analógicos e digitais. Caberia aqui algumas considerações sobre o
potencial desse livro para a formação de jovens leitores.

Poemas de brinquedo e a formação de jovens leitores

Em parte esse potencial do livro para a formação deriva da ênfase no lúdico


como forma da poesia. Isso favorece aquilo que Décio Pignatari, em O que é
comunicação poética?, extrai da teoria de Chomsky sobre competência e
desempenho.

O nível de competência refere-se aonível de domínio técnico da linguagem (aos


três anos de idade, uma criançajá domina as estruturas básicas de seu idioma
materno). O nível dedesempenho é aquele em que o falante cria em cima do nível
decompetência. É claro que esses níveis não são separados: a criança
aprendecriando. Todos nós criamos, mas a (des)educação que recebemos nos
orientano sentido da descriação, no sentido depermanecermos apenas ao nível
decompetência. (PIGNATARI, 2005, p. 13)

Nesse sentido, poemas como o do cartão ―?‖ induzem ao aberto, pois ao virar o
cartão o leitor se depara com palavras estranhas, se vai pelo aplicativo a leitura lúdica
e performática do poeta Ricardo Aleixo, ensina-o a decompor e a descobrir outros
signos encobertos em palavras como ―estume?‖ que no último verso do cartão se
transforma em ―tuesme‖. Que jogo é esse senão aquele que ensina a cruzar os eixos
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do desempenho e da competência? Da mesma forma os poemas nordestinos, os


poemas mineiros, os poemas ―colibri com bem-te-vi‖ e ―poema visual com sons‖. Esse
jogo despojado com a linguagem ensina a criar e a perder o medo de exercitar a
―competência‖ aludida por Pignatari via Chomsky. Na mesma linha vão as ―palavras
medonhas‖, o ―palavrório para o jogo do dicionário‖.
Para finalizar chamo a atenção para o ―dislexia de amor para Berenice‖. Como
sabemos a dislexia provém das dificuldades de aprendizagem de leitura, uma vez que
o disléxico não consegue perceber a conexão entre o símbolo gráfico e o fonema. No
cartão, de fundo vermelho, além do título, vem três quadradinhos brancos, como que a
sugerir essa dificuldade de se reconhecer o símbolo gráfico. No verso, o poema é uma
declaração de um disléxico também afetado pela dificuldade de se declarar à amada.
A linguagem, entoada de forma riquíssima por Ricardo Aleixo no livro-aplicativo, e
visualmente sugestiva no cartão, é típica de um não letrado, ou seja, é uma variante
oral e sugestivamente regional do mineirês. Na evocação da amada, a troca entre ―p"e
―b‖, típica da dislexia. O que chama a atenção no poema, para além de sua carga
amorosa e sentimental, é o jogo que o poeta estabelece com uma linguagem vista
como negativa no ambiente letrado, e como experiência de poesia resulta sim num
belo poema.
Não iremos descrever aqui outros poemas, mas acreditamos que, na medida
em que os jovens leitores vivenciem ludicamente esses textos, seja no seu formato
digital seja no impresso, podem ter estimulados tanto a sua percepção do que faz a
poesia com os nossos sentidos, e talvez possam até mesmo criar, recombinar os
signos com que jogam.

Referências

GARCIA, Álvaro Andrade. Poemas de brinquedo. São Paulo: Peirópolis, 2016.

GARCIA, Álvaro Andrade. Poemas de brinquedo. Belo Horizonte: Ateliê Ciclope, 2016.
Disponível em: www.ciclope.com.br

GARCIA, Álvaro Andrade. Álvaro. Belo Horizonte: Ciclope.art; Rona Editora, 2003.

GARCIA, Álvaro Andrade. Poemas de brinquedos e software livre Managana: desafios


de uma publicação Transmídia. Porto: EL0, 2017 (MIMEO)

HUIZINGA, J. Homo ludens. São Paulo: Perspectiva, 2000.

INSTITUTO ANTONIO HOUAISS, Grande Dicionário Hoaiss. São Paulo: Objetiva,


2012. Disponível em: https://houaiss.uol.com.br/pub/apps/www/v3-2/html/index.php#3.
Acesso em 15 de ago 2017.

V Congresso Internacional de Literatura Infantil e Juvenil


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PIGNATARI, Décio. O que é comunicação poética. Cotia-SP: Ateliê Editorial, 2005.

PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva; Brasília: CNPq, 1987.

SANTAELLA, L. Matrizes da linguagem e pensamento - sonora, visual, verbal. São


Paulo: Iluminuras, 2001.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

UM ESTUDO DAS IMAGENS DO 1º LIVRO DE LEITURA DA


SÉRIE DIDÁTICA CAMINHO SUAVE
Silvia Aparecida Santos de Carvalho, Prefeitura de São Paulo
ALLE-AULA, UNICAMP

Juliano Guerra Rocha, Secretaria Municipal da Educação de Itumbiara, PPGED,


Universidade Federal de Uberlândia

Eixo temático 5: Literatura infantil e as relações com a imagem

O diálogo é o encontro entre os homens, mediatizados pelo mundo,


para designá-lo. Se ao dizer suas palavras, ao chamar ao mundo, os
homens o transformam, o diálogo impõe-se como o caminho pelo
qual os homens encontram seu significado enquanto homens; o
diálogo é, pois, uma necessidade existencial (FREIRE, 1979, p.42).

Considerações Iniciais

O diálogo nem sempre gera consenso, e talvez, este não seja sua
principal finalidade166. Compreendemos, portanto, que dialogar é uma prática inegável
para garantia da democracia e para o avanço da pesquisa. Embora o diálogo
provoque dissonâncias, o mesmo pressupõe a escuta sem arrogância e a
conversação com respeito, afinal, como Paulo Freire (2002, p.45) nos ensina, escutar
―significa a disponibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para a abertura
à fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro‖. Nessa linha Magda Soares
(2014) aponta que no âmbito da alfabetização no Brasil, para desatar alguns de seus
nós, é importante que os grupos de pesquisas não se fechem excessivamente em
suas certezas, mas que agreguem as certezas, pois ―a autossuficiência é incompatível
com o diálogo‖ (FREIRE, 1987, p.46). Abertos ao diálogo e acreditando em sua
potencialidade, apresentamos esta contribuição aos parceiros de pesquisa e os
convidamos a uma leitura sintonizada na mesma disposição. Nossa elaboração tem
por objetivo analisar as iconografias do 1º livro de leitura da série didática Caminho
Suave (edição de 1985).

166
Os autores referem-se aos diálogos promovidos no contexto do eixo temático 5: Literatura
infantil e as relações com a imagem, durante o V Congresso Internacional de Literatura Infantil
e Juvenil do CELLIJ, que incitaram essas reflexões iniciais.
921

Desde o começo do século XX, no engendramento do debate que se


constituiu em torno dos métodos de ensino de leitura e escrita, é possível observar
destacada importância para a presença da imagem em livros dedicados ao ensino de
leitura. Denominados como cartilhas, eles difundiam o método analítico consolidando,
deste modo, a imagem como recurso indispensável para o êxito da aprendizagem das
crianças que estavam aprendendo a ler.
Quando observamos a produção de Branca Alves de Lima identificamos
que na sequência da publicação da Cartilha Caminho Suave de sua autoria, vieram os
Livros de Leitura da Série Didática Caminho Suave composta por 4 livros (1º ao 4º
Livro) que na sua composição dá continuidade ao método de alfabetização pela
imagem167, mas já com a proposta de desenvolver a fluência da leitura ensinada
anteriormente pela Cartilha
Para compreendermos a importância do 1º Livro de Leitura da Série
Didática Caminho Suave é imprescindível considerar o lugar que a Cartilha Caminho
Suave ocupa na história da educação brasileira. Para além do debate, compreensão,
defesa ou crítica constituídos sobre o método proposto na Cartilha – sabemos da
intensidade que a discussão metodológica suscita quando se trata de métodos de
ensino de leitura e escrita – a Cartilha Caminho Suave tornou-se, no Brasil, um best-
seller entre as cartilhas de alfabetização, e ―é considerada o maior sucesso editorial do
país e o símbolo por excelência da alfabetização tradicional‖ (MACIEL, 2002, p.163). O
sucesso de vendas da cartilha fez com que Branca Alves de Lima abrisse a sua
própria editora, a Caminho Suave Ltda.
Em março de 2017, a Revista Nova Escola na edição especial de nº 300
trouxe o texto assinado por Pedro Annunciato, cujo título ―Está na hora de arquivar
este livro‖ estava acompanhado pela estampa da capa da Cartilha Caminho Suave. A
reportagem reitera algumas constatações: essa cartilha ainda está nas salas de
alfabetização brasileiras, a nosso ver, não como objeto físico manuseado pelo aluno,
pois com o discurso empreendido pelo construtivismo, a partir da década de 80, usar a
cartilha tornou-se tradicional. Mas, indubitavelmente, ela permanece velada como
suporte para o professor preparar as suas atividades. Numa pesquisa realizada em
2016, em uma escola pública do estado de Goiás, nos deparamos com a seguinte
atividade, utilizada pela professora do 1º ano do Ensino Fundamental para alfabetizar
seus alunos:

167
Segundo Branca Alves de Lima o processo de alfabetização pela imagem foi baseado ―no
método analítico-sintético‖, mas partindo das palavras. Foram escolhidos vocábulos
familiares e de fácil articulação‖ (LIMA, 1965, p.3). Esse mesmo método, aparece nomeado
pela autora, posteriormente, como método eclético (LIMA, 1982, p.6).
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Imagem 1

Fonte: Acervo dos pesquisadores168.

E comparando com a lição da letra D, proposta na Cartilha Caminho


Suave, percebemos muitas semelhanças, seja na grafia das sílabas em letra cursiva,
seja no método empregado que associa a imagem com o aprendizado das sílabas.

Imagem 2

168
Numa busca em sites da internet, constatamos que essa atividade faz parte de uma série de
fichas de leitura muito difundidas nos blogs/sites, que sugerem materiais para o
alfabetizador aplicar em sala de aula.
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Fonte: Lição da Cartilha Caminho Suave (LIMA, 1973, 75ª edição, p.8).

Indubitavelmente, a comparação das atividades nos leva a concordar com


Francisca Maciel (2012, p.165) quando a autora se põe a refletir sobre a Cartilha
Caminho Suave afirmando que: ―deve-se tentar apreender as razões de sua grande
aceitabilidade entre o professorado brasileiro‖ e com PERES, VAHL e THIE, (2016), ao
afirmarem que

... o fato de a cartilha continuar sendo editada até hoje (131ª ed.,
2011) demonstra a manutenção de uma tradição pedagógica que
ainda tem muita força na prática escolar do ensino da leitura e da
escrita. Esse dado, no mínimo, deve ser considerado em qualquer
debate sobre alfabetização e políticas do livro didático no Brasil
(PERES, VAHL e THIE, 2016, p.364).

É, então, a partir dessas considerações que nosso interesse de análise


recai sobre o 1º Livro de Leitura da Série Didática Caminho Suave. Acompanhando a
proposta metodológica de alfabetização pela imagem, o ensino de leitura proposto no
1º Livro de Leitura utilizou em sua composição o recurso da imagem para o
desenvolvimento da fluência da leitura que teve seu ensino iniciado nas lições
propostas na Cartilha.
De acordo com os estudos que se ocupam com a história dos impressos,
observamos vários Livros de Leitura que, assim denominados por seus autores,
porque esses, por sua vez, seguiam determinadas convicções metodológicas bem
como a orientação da legislação de época, assim se constituíram. Na história da
alfabetização identificamos livros intitulados como: Leitura do Principiante (Antonio F.
de Proença); Primeiras Leituras, Segundas Leituras e Terceiras Leituras (Renato S.
Fleury); Leitura Intermediária, Leitura I, II e III (Erasmo Braga), dentre outros. Esses
livros eram considerados Livros de Leitura porque tinham por objetivo ensinar a leitura,
a partir de exercícios de leitura propriamente ditos, para alunos que tinham cumprido o
estudo das lições propostas em Cartilhas.
Assim sendo, em meio a escassez de estudos sobre a Série Didática que
dá continuidade ao método proposto por Branca Alves de Lima, nos propomos a
analisar as imagens no 1º Livro de Leitura da Série Didática Caminho Suave, por duas
razões: 1) este livro era recomendado para ser usado na 1ª série para consolidar o
processo de alfabetização das crianças, e, 2) em relação aos outros livros que
compõem a série, o 1º livro teve uma maior circulação e divulgação, já que está na
sua 37ª edição, publicada em 2015, enquanto os demais estão com as últimas edições

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datadas da década de 90: Caminho Suave – 2ª Série (25ª edição, 1992); Caminho
Suave – 3ª série (23ª edição, 1990); Caminho Suave – 4ª série (22ª edição, 1996)169.
A história da Série Didática Caminho Suave: o primeiro livro em questão
Narrar a história de um livro e de suas edições é um ofício que requer
do pesquisador, um cuidado redobrado para não informar algo imprecisamente. Muitas
são as dificuldades, sobretudo, devido aos dados esparsos, exigindo a construção
meticulosa de um mosaico, que compõe uma certa coerência entre as informações e
permite reafirmar algumas certezas e confirmar hipóteses.
No que se refere à Cartilha Caminho Suave, ainda pairam algumas
dúvidas na data exata de publicação de sua 1ª edição. O ano proposto por Mortatti
(2000), 1948, é o que mais se aproxima das nossas conclusões, já que no Diário
Oficial do Estado de São Paulo, do dia 6 de fevereiro de 1949 (número 29, ano 59,
p.8), na sessão do Departamento de Educação, foi publicada a autorização para
inclusão da Cartilha Caminho Suave na relação dos livros a serem usados nas escolas
primárias do estado, a partir de 1949. Além disso, o primeiro folheto Auxiliar de
Alfabetização, escrito por Branca de Alves de Lima, destinado aos professores para
orientá-los na aplicação do método de alfabetização pela imagem, data de 1948.
Após a publicação da cartilha, seguindo a tradição dos impressos
pedagógicos indicados ao ensino de leitura, Branca também publica um livro que dá
continuidade à proposta de alfabetização da Cartilha Caminho Suave. Esse livro é
publicado, provavelmente, no início da década de 1960 intitulado de ―Leitura
Intermediária‖. Em 1962 muda-se seu título para Caminho Suave – 1º livro, a pedido
da autora, conforme publicação do Diário Oficial de São Paulo de 18 de janeiro de
1962 (número 13, ano 72, p.20):

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO
DESPACHO DO DIRETOR GERAL
Proc. 638-62-DE – Branca Alves de Lima – Solicita autorização para
substituir o nome do livro de sua autoria: Leitura Intermediária‖, por
―1º livro‖, ficando o título completo: ―Caminho Suave – 1º livro‖: Defiro
(SÃO PAULO, 18/01/1962, p.20).

No mês de fevereiro desse mesmo ano, o Diário Oficial de São Paulo


(número 35, ano 72, 13/02/1962, p.31) já indicava esse livro na listagem das obras de
leitura autorizadas pelo estado para serem adotadas nas classes de 1º ano.
Consideramos que a rápida recepção desse impresso no contexto escolar, deve-se ao

169
Essas informações foram retiradas do site da Editora EDIPRO <http://www.edipro.com.br/>,
que atualmente detém os direitos autorais dos materiais da Caminho Suave.
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sucesso da Cartilha Caminho Suave e de seu método não somente em São Paulo
como em outros estados.
No que se refere ao título do 1º livro, observamos em algumas edições que a
partir da década de 70,as capas traziam o título Caminho Suave – 1º livro de Leitura, e
na folha de rosto, Caminho Suave – 1º livro. Em edições a partir da década de 80
encontramos o título Caminho Suave – Comunicação e Expressão, 1ª série, 1º grau.
Acreditamos que tal mudança atendia uma demanda da legislação educacional da
época que, desde 1971, fixava a disciplina de Comunicação e Expressão (Língua
Portuguesa) como obrigatória no núcleo comum dos currículos das escolas
brasileiras170. Além disso, cogitamos que tal título vincula-se a uma estratégia
comercial diante da participação da Editora Caminho Suave 171 no Programa Nacional
do Livro Didático (PNLD), criado em 1985, de modo que padronizaram os títulos dos
livros da Caminho Suave (de 1ª a 4ª série), concedendo uma sequencialidade entre os
materiais.
A série didática Caminho Suave é composta por 4 livros. Além do 1º livro, há
os livros de Comunicação e Expressão da 2ª série, 3ª série (ambos publicados em
1977) e 4ª série (publicado em 1979)172. Ainda hoje esses livros são comercializados e
o primeiro livro é intitulado de Caminho Suave – Comunicação e Expressão, 1º livro, e
os demais ainda conservam o título da 1ª edição: Caminho Suave – Comunicação e
expressão, 2ª série, 1º grau; Caminho Suave – Comunicação e expressão, 3ª série, 1º
grau; Caminho Suave – Comunicação e expressão, 4ª série, 1º grau.

As imagens do 1º Livro de Leitura da Série Didática Caminho Suave

Para analisar as imagens do 1º Livro de Leitura da Série Didática Caminho


Suave – edição de 1985 – consideramos as seguintes perguntas: quais as principais
características das imagens presentes no 1º Livro de Leitura, edição de 1985? Elas

170
Cf. Resolução do Conselho Federal de Educação nº 8, de 1º de dezembro de 1971, fixa o
núcleo comum para os currículos do ensino de 1º e 1º graus, definindo-lhes os objetivos e a
amplitude.
171
No primeiro Guia do PNLD (BRASIL, 1985), o 1º livro aparece com o título Caminho Suave –
1º livro de leitura. Já no segundo guia (BRASIL, 1986) aparece apenas com o título Caminho
Suave. Vale frisar que em ambos os guias, o livro em questão está na listagem das obras de
Comunicação e Expressão indicadas para a 1ª série do 1º grau. Os livros da Editora Caminho
Suave permanecem recomendados pelo governo federal de 1985 a 1996, quando os mesmos
são reprovados pelo Ministério da Educação e deixam de fazer parte do PNLD.
172
Tais informações podem ser comprovadas por meio do Diário Oficial de 28 agosto de 1979
(ano nº 117, nº 165), em que apresenta o registro de direitos autorais e de publicações da
Biblioteca Nacional

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antecipam os textos ou revelam elementos que não estão caracterizados nas


histórias? Qual ideário social e cultural que circula e embasa a composição das
imagens desse livro? O que as disposições das imagens revelam sobre os gestos de
leitura esperados pela autora que, por sua vez, declara reservados os direitos autorais
que associam os desenhos aos textos, ambos apresentados no livro?
A capa da 1º Livro de Leitura traz uma imagem colorida de uma garota e
um garoto, que vestem uniformes e seguram numa pasta, a garota, e numa bolsa, o
garoto, os materiais escolares. Eles estão percorrendo o caminho de saída da escola,
uma alusão à capa da Cartilha Caminho Suave em que, inversamente, uma garota e
um garoto, também uniformizados e com materiais escolares, estão percorrendo o
caminho para a entrada na escola. Poderíamos supor que o fato de que os garotos
estão saindo da escola na imagem da capa do 1º Livro sugere que um caminho foi
percorrido, com êxito, porque agora se pode tomar as lições de leitura do 1º Livro.
Comparemos, então, as imagens da capa da Cartilha Caminho Suave, edição de
1973, ilustrada por Flávio Pretti e a capa do 1º Livro de Leitura, edição de 1985,
também ilustrada por Flávio Pretti.

Na edição de 1985, o 1º Livro de Leitura é composto por 46 historietas e todas


elas são iniciadas pela apresentação de imagens coloridas que geralmente antecipam
e ou acrescentam informações aos textos. A primeira história é acompanhada da
imagem de uma casa. O texto informa que a casa é de uma família que mora nela.
Podemos inferir que se trata de uma casa típica de uma família brasileira, pertencente
economicamente à classe média dos anos 70/80, com seus integrantes
tradicionalmente previstos: Pais, avós e filhos.
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As histórias posteriores seguem apresentando os membros da família que


moram na casa. Observamos que se trata de uma família de etnia branca e as
imagens sugerem o lugar que cada membro ocupa na família. O avô e o pai, sentados,
o primeiro no jardim e o segundo no sofá, mostram que a leitura é atividade destinada
aos adultos do sexo masculino. À avó e à mãe são destinadas tarefas domésticas
como fazer tricô e servir o café. Às crianças, vestidas com uniformes escolares, cabem
estudar, ir para a escola aprender. A família também é composta por um bebê, que
ainda disfruta da condição de poder brincar, conforme o que o texto revela. O
cachorro, animal de estimação da família pertence ao garoto Fábio.

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A partir da apresentação dos membros da família são apresentadas


histórias que envolvem esses personagens, como segue com a história intitulada Dia
Feriado. Imagem e texto seguem complementando-se. O que a imagem não revela
pode ser observado no texto e ou nas imagens nas quais observamos elementos que
não estão explicitados nos textos. Nesse caso, a imagem apresenta o garoto
interagindo com seu irmão, o bebê. Mas com o texto ficamos informados de que a
família tem um sítio para passear no dia de feriado, o que nos remete a um tipo de
estilo de vida, típico do grupo social médio, de etnia branca dos anos 70/80, no Brasil.
Numa outra história observamos as travessuras do bebê.

A cada história também são propostas atividades de reflexão sobre a


língua. É o que podemos observar com esses exercícios abaixo apresentados:

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Mas toda a elaboração didática de Branca Alves de Lima conferida no 1º


Livro de Leitura da Série Didática Caminho Suave estava baseada em concepções de
Leitura que podem ser acessadas quando examinamos as referências teórico-
metodológicas por ela consideradas. Na bibliografia indicada ao final do 1º Livro de
Leitura encontramos a citação de Magdala Lisboa Bacha (1969). Bacha, em sua obra,
apresenta as concepções fundamentais para compreendermos os parâmetros teórico-
metodológicos considerados por Branca Alves de Lima, especialmente no que diz
respeito a importância da imagem para o processo de aprendizagem da leitura.
Bacha (1969) afirma que ― A aprendizagem da leitura é complexa e leva
vários anos. Com o pré-livro, foi apenas começado e, mesmo assim, sem se completar
o estágio inicial. Uma segunda fase virá – a fase das leituras intermediárias.‖ (Bacha,
1969, p.236).
Já sabemos que Branca Alves de Lima intitulou inicialmente o 1º Livro de
Leitura da Série Didática Caminho Suave de Leitura Intermediária e não por acaso
podemos identificar a convergência de sua elaboração com o conceito de leitura
intermediária explicitado por Bacha (1969).

A fase de leituras intermediárias terá por objetivo consolidar o que foi


alcançado na fase do pré-livro, levando a criança a firmar as
habilidades básicas de compreensão de vocabulário, algumas
habilidades de leitura oral, bons hábitos de leitura e atitudes de
interesse e gosto pela leitura.
Nessa fase usar-se-á o livro de leituras intermediárias, que obedece
aos mesmos critérios técnicos e artísticos do pré-livro, porém com
maior flexibilidade quanto ao vocabulário, que tende a se expandir
rapidamente. (...) Os personangens principais das histórias continuam
a ser crianças praticando muitas ações e travessuras; surpresas e
acontecimentos inesperados predominam. (BACHA, 1969, p.236-237)

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Mas, às concepções de leitura intermediária consideradas na elaboração


do 1º Livro de Leitura somam-se o que Bacha (1969) indicou como essencial para o
alcance do desenvolvimento rápido em leitura. É fundamental que a criança possa
usar ―... independentemente várias técnicas para reconhecimento de palavras novas:
observação da ilustração; interpretação do sentido do texto; análise estrutural; análise
fonética e outras. (BACHA, 1969, p.244)
O lugar conferido à imagem para o êxito da aprendizagem da leitura vem
acompanhado da ideia de que imagem e texto se complementam. Para a ampliação
do repertório infantil a observação da imagem acompanhada da atenção ao sentido do
texto são aspectos importantes a serem considerados na organização de um livro de
leitura que se pretende instrumento consolidador da aprendizagem da leitura.

Considerações Finais

Com as considerações empreendidas sobre o 1º Livro de Leitura da Série


Didática Caminho Suave esperamos ter colaborado para enriquecer a reflexão sobre
como o ensino da leitura se processou num determinado tempo histórico e como as
características desse ensino foram traduzidas por um material de leitura que ainda
encontra lugar significativo nas práticas de leitura das classes de alfabetização no
Brasil.
Indubitavelmente, essas reflexões, que são iniciais, provocam e suscitam o
debate sobre a pertinência dessas práticas no ensino da leitura ainda hoje ministrado
nas classes de alfabetização, mas a fim de esclarecer especialmente os
pesquisadores que conosco debateram na ocasião da apresentação dessa elaboração
no V Congresso de Literatura Infantil e Juvenil, o objetivo da abordagem empreendida
nesse estudo não se propôs à referida tarefa. Ela fica reservada para outra
oportunidade porque se insere num campo que deverão ser convidados outros
interlocutores. Por ora, ficaremos satisfeitos se nossa elaboração gerar a
compreensão adequada para a qual conferimos atenção.

Referências
ANNUNCIATO, Pedro. Está na hora de arquivar este livro. Nova Escola, ano 32, nº.
300, p. 38-41, 2017.

BACHA, Magdala Lisboa. Leitura na 1ª série. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico S/A,
1969.

BRASIL. Resolução do Conselho Federal de Educação nº 8, de 1º dezembro de 1971.


Fixa o núcleo comum para os currículos do ensino de 1º e 2º graus, definindo-lhe os
objetivos e a amplitude. Rio de Janeiro, 1971.
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______. Diário Oficial – seção 1, parte 1, Brasília, n. 165, ano 117, 28 de agosto de
1979. 1979.

______. Fundação de Assistência ao Estudante, A nova Escolha do livro didático. Rio


de Janeiro: MEC/FAE, 1985.

______.Manual para indicação de livro didático – PNLD, 1986-1987. Rio de Janeiro:


MEC/FAE, 1986.

FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação – uma introdução ao


pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Cortez & Moraes, 1979.

______.Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1987.

______. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São


Paulo: Paz & Terra, 2002.

LIMA, Branca Alves de. Caminho Suave: 1º livro. 26ª edição. São Paulo: Caminho
Suave, 1985.

______. Cartilha Caminho Suave. 68ª edição. São Paulo: Editora Caminho Suave,
1965.

______. Cartilha Caminho Suave. 75ª edição (reestruturada). São Paulo: Editora
Caminho Suave, 1973.

______. Caminho Suave: 1º livro. 26ª edição. São Paulo: Caminho Suave, 1985.

______. Manual do professor para a Cartilha ―Caminho Suave‖. 5ª edição. São Paulo:
Editora Caminho Suave, 1982.

MACIEL, Francisca Izabel Pereira. As cartilhas e a história da alfabetização no Brasil:


alguns apontamentos. História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 11, p.
147-168, abril de 2002.

MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Os sentidos da Alfabetização: São Paulo, 1876 –


1994. São Paulo: Editora UNESP, 2000.

PERES, Eliane Teresinha; VAHL, Mônica Maciel; THIE, Vania Grim. Aspectos
editoriais da cartilha Caminho Suave e a participação da Editora Caminho Suave
Limitada em programas federais do livro didático. Revista brasileira de história da
educação, Maringá-PR, v.16, n. 1 (40), p. 335-372, janeiro a abril de 2016.

SÃO PAULO. Diário Oficial do Estado de São Paulo, São Paulo, n. 29, ano 59.4, 6 de
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______. Diário Oficial do Estado de São Paulo, São Paulo, n. 35, ano 72, 13 de janeiro
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______. Diário Oficial do Estado de São Paulo, São Paulo, n. 13, ano 72, 18 de janeiro
de 1962. 1962.

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SOARES, Magda. Alfabetização: o saber, o fazer, o querer. MORTATTI; Maria do


Rosário Longo; FRADE, Isabel Cristina Alves da Silva (Orgs.). Alfabetização e seus
sentidos: o que sabemos, fazemos e queremos?. Marília: Oficina Universitária; São
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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

VISITA À BALEIA: ILUSTRAÇÃO E PROJETO GRÁFICO

Marta Passos Pinheiro (CEFET-MG/ FAE-UFMG)


GT: Literatura infantil e sua relação com a imagem

Considerações Iniciais

Este trabalho faz parte de uma pesquisa de pós-doutorado, em


desenvolvimento na Faculdade de Educação da UFMG, sobre o papel do projeto
gráfico gráfico na construção de significação das narrativas ficcionais infantis
premiadas173. Para a investigação proposta, estão sendo analisadas três instâncias: as
obras, sua produção e sua recepção pelo público infantil. Foram selecionados para
análise livros que apresentam narrativas ficcionais para o público infantil premiados
nos últimos quatro anos (de 2013 a 2016) por duas importantes instituições
legitimadoras da produção para crianças e jovens: a Câmara Brasileira do Livro (CBL),
com o prêmio Jabuti, categoria ―Infantil‖, e a Fundação Nacional do Livro Infantil e
Juvenil (FNLIJ), com o prêmio ―O melhor para Criança‖, categoria ―Criança‖. Foram
encontrados quatro livros duplamente premiados, dos quais três podem ser
caracterizados, segundo o que defendemos, como livros ilustrados, o que nos levou a
optar por selecioná-los como corpus de nossa pesquisa. São eles: Visita à baleia,
escrito por Paulo Venturelli e ilustrado por Nelson Cruz (editora Positivo): Prêmio
Jabuti (2 lugar) e ―O melhor para Criança‖ em 2013; Inês174, escrito por Roger Melo e
ilustrado por Mariana Massarani (editora Companhia das Letrinhas): Prêmio Jabuti (1
lugar) e ―O melhor para Criança‖ em 2016 e Lá e aqui, escrito por Carolina Moreyra e
ilustrado por Odilon Moraes (editora Pequena Zahar): Prêmio Jabuti (2 lugar) e ―O
melhor para Criança‖ em 2016. Destaca-se que Visita à baleia, com ilustrações de

173 Pesquisa de pós-doutorado intitulada O projeto gráfico-editorial dos livros de literatura


infantil premiados: produção, materialidade e recepção das obras, desenvolvida na Faculdade
de Educação da UFMG, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Zélia Versiani Machado.
174 Este livro também foi premiado na categoria Melhor Projeto Editorial pela FNLIJ.
934

Nelson Cruz, ganhou também o prêmio Melhor Ilustração Hors-Concours da FNLIJ em


2013.
Neste trabalho, apresentamos a parte da análise referente ao livroVisita à
baleia, escrito por Paulo Venturelli, ilustrado por Nelson Cruz e editado pela Positivo,
destacando o papel do elemento imagem, seu diálogo com o texto escrito e a forma
como compõe o projeto gráfico. Portanto, consideramos em nossa análise não apenas
o diálogo entre texto verbal e não-verbal, mas também o papel do projeto gráfico
nessa construção textual. Esse aspecto, pouco estudado nos livros infantis, vem
despertando, nos últimos anos, o interesse de pesquisadores. Este trabalho pretende
contribuir para o desenvolvimento desse campo de investigação.
Para a investigação proposta,construímos categorias de análise, tendo como
fundamentação teórica os estudos sobre análise de imagem de Martine Joly
(2012),sobre ilustração de livros infantis, de Maria Nikolajeva e Carole Scott (2011),
Rui de Oliveira (2008), Odilon Moraes (2008), Sophie Van der Linden (2011) e Graça
Ramos (2013) - e estudos da área do design gráfico – Marshall Lee (2003), Andrew
Haslam (2007) e Richard Hendel (2003). Destacamos que essas categorias foram
construídas para serem utilizadas como referência, no processo de análise dos livros,
e não como fôrma engessada a ser seguida. Portanto, nem todos os aspectos
destacados nessas categorias são analisados em todos os livros.

Categorias de análise dos livros ilustrados

Estamos utilizando o conceito de livro ilustrado como sendo o que apresenta


uma grande interação entre duas linguagens: o texto escrito e a imagem, sendo esta
última fundamental para a compreensão da narrativa. Esse conceito é defendido por
alguns pesquisadores, como Graça Ramos, que difere o livro ilustrado do livro com
ilustração, ―em que a palavra pode prescindir da imagem.‖ (RAMOS, 2013, p. 52).
Nos livros ilustrados, a ilustração costuma ser analisada em sua interação com
o texto escrito. Vários estudiosos vêm problematizando essa relação, contudo, como
destacam Nikolajeva e Scott, ―o que ainda faz falta e necessitamos é uma terminologia
coerente e flexível, uma metalinguagem internacional abrangente e um sistema de
categorias que descrevam a diversidade de interações texto-imagem.‖ (NIKOLAJEVA
e SCOTT, 2011, p. 20). Apresentando uma preocupação diferente, Rui de Oliveira
acredita que ―a ilustração – sendo arte – não pode ser subordinada exclusivamente ao
texto literário, à relação texto-imagem.‖ (2008, p. 101). Em seu famoso livro Pelos
jardins Boboli: reflexões sobre a arte de ilustrar livros para crianças e jovens, o
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pesquisador e ilustrador, sem deixar de considerar a relação palavra-imagem, ―um dos


fundamentos da arte de ilustrar‖ (OLIVEIRA, 2008, p. 101), propõe uma leitura
estrutural das imagens, ―independentemente do texto a que se referem.‖ (OLIVEIRA,
2008, p. 101), apresentando uma lista com categorias de análise de algumas questões
estruturais da ilustração. Em seu trabalho, ele defende a busca de ―uma lógica na
imagem, mesmo que parcial, apesar de sabermos que os amplos significados
metafóricos da ilustração não podem estar circunscritos, ou encerrados, em nenhum
esquema, em nenhuma receita de leitura.‖ (OLIVEIRA, 2008, p. 101).
Acrescentamos ainda a necessidade de sistematizar algumas categorias que
descrevam não apenas a interação texto-imagem, mas a relação entre todos os
elementos que constituem a obra: texto escrito, texto visual e design. É importante
levar em consideração que, por se tratar de uma obra de arte, os livros ilustrados não
devem ser submetidos a análises objetivas, baseadas em definições rígidas, o que
pode comprometer a recepção estética da obra.
Para abranger os elementos que constituem a ilustração e o projeto gráfico dos
livros ilustrados, decidimos partir dos elementos plásticos das imagens, denominados
por Joly (2012, p. 65) de ―eixos plásticos‖: as formas, as cores, a composição e a
textura. A partir desses eixos, analisaremos aspectos abordados por Nikolajeva e
Scott - como ambientação e cenário, perspectiva narrativa, tempo e movimento na
imagem e por Linden – tipos de diagramação, montagem, tempo e movimento,
funções do texto e da imagem, ponto de vista. Em relação à composição da imagem,
utilizaremos as categorias propostas por Oliveira, dispostas em um esquema referente
―apenas à leitura de algumas questões estruturais da ilustração.‖ (OLIVEIRA, 2008, p.
102). Assim sendo, apresentamos as categorias que guiaram nossa análise:

A) FORMAS
- formato do livro
- tipo de contorno utilizado nas imagens (por meio de linhas, com vários traços, a
cores, linhas grossas, digital, sem contorno)
- linhas predominantes nas ilustrações e no texto escrito (inclinadas, verticais,
horizontais, radiantes, quebradas, sinuosas, circulares)
- mancha gráfica

B) CORES
- iluminação

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- gênero e origem de luz utilizados (frontal, de cima para baixo, de baixo para cima, da
esquerda para direita, da direita para esquerda, gênero noturnal, gênero diurno,
gênero luz artificial, diversas fontes)
- tipo de esquema tonal utilizado (quente predominante, frio predominante, cores
sombrias, cores chapadas uniformes, cores por meio de manchas, contrastes
acentuados, preto e branco etc).
- tipo de contraste de cor utilizado (quente-frio, claro-escuro, complementares, etc.)
- tipos de sombra (luz e sombras suaves, luz e sombras contrastadas, sombras
projetadas, ausência de sombras, sombras e contornos)

C) COMPOSIÇÃO (ilustração, texto escrito e página)


Texto escrito:
 tipografia (tipo e tamanho de letra)
 composição tipográfica: entrelinhas, largura da coluna e alinhamento do bloco
de texto

Ilustração:
 estática (simétrica), dinâmica (assimétrica)
 relação forma e fundo (contraste; integrado)
 moldura
 tipo de figuração (realista, clássico, não-realista, figurativo com influência do
cartum, com influência do quadrinhos, figurativo fantástico, figurativo
caricatural, figurativo cômico)
 linha guia de leitura visual (de baixo para cima, de cima para baixo, por meio
de linha sinuosa, por meio de linha espiralada)
 movimento artístico- semelhanças
 gênero de imagem (históricas, folclóricas, contos de fadas, fantásticas,
cotidiano)
 perspectiva, enquadramento (aérea, planimétrica, diversos pontos de fuga,
tipos de linha guia de leitura visual, fundo neutro sem cenário)
 sentimento que desperta (alegria, tristeza, medo, amor, ódio, solidão, etc.)

Texto escrito/imagem:

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 disposição na página (Tipos de diagramação175: mesma página, páginas


alternadas, etc.)
 relação texto escrito-imagem (funções: redundância, colaboração e disjunção)

D) Textura
 tipo de papel
 técnica utilizada: aquarela, acrílico, bico-de-pena, aguada (preto + água), óleo,
mista, lápis de cor ou cera, gravura (xilo, linóleo, metal), colagem, texturas
diversas, colorização digital.

Neste trabalho, selecionamos alguns aspectos para serem observados,


optando por uma análise sem subdivisões, ou seja, as categorias acima funcionam
como guia de nosso olhar, chamando nossa atenção para os elementos que merecem
ser observados.

Análise de Visita à baleia: projeto gráfico eo destaque da ilustração

O livro apresenta formato paisagem, retangular horizontal (26 x 18 cm176), que


costuma ser utilizado em muitos livros infantis. Em geral, quando nos deparamos com
um livro desse formato, o associamos à produção infantil ou a um tipo de livro
diferenciado, que dê relevância a imagens. Neste livro, o formato contribui para que as
belíssimas ilustrações de Nelson Cruz, em página dupla, ganhem destaque. Sendo
assim, acreditamos que o formato do livro foi pensado em função das ilustrações, para
potencializar o impacto destas nos leitores.
No texto escrito, foi utilizada uma letra Romano garaldo (provavelmente
minion), com corpo aproximadamente de 11,3 pontos (4 mm de altura), o que significa
que ela é menor que a times 12. No que se refere à mancha gráfica, destacamos que,
em geral, a largura do bloco de texto é grande, com a presença de muitos caracteres
por linha, tornando a leitura cansativa. Sendo assim, apesar de a letra utilizada, em si,

175 Linden (p. 68-69): associação, compartimentação e conjunção


176 Estamos utilizando como referência o que é proposto por Hendel: ―o primeiro
número é a largura e o segundo, a altura.‖ (2003, p. 35).
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apresentar boa legibilidade, seu tamanho aliado à disposição do texto escrito na


página comprometem a legibilidade do texto.
A diagramação texto/imagem caracteriza-se como associativa, pois, em geral,
reúne enunciados verbais e visuais na mesma página. A maioria das imagens ocupa a
totalidade da página, sangrando a margem do papel, e a sucessão de imagens
sangradas faz com que a página dupla assemelhe-se a uma tela.
A narrativa, contada em primeira pessoa pelo protagonista, César, apresenta
como história central a visita inusitada que o narrador faz, juntamente com seu pai e
irmão caçula, a uma baleia, exposta no pátio do salão paroquial, sob uma lona, no
centro da cidade sem mar em que eles viviam.
A história é ambientada em uma cidade pequena, do interior, em um tempo
passado, que pode ser identificado pelas roupas dos personagens, como mostraremos
mais adiante, e pelos carros que circulam na rua (p.18-19, 20-21). A cidade apresenta
ainda uma zona rural, não asfaltada, distante do centro, onde vivem o narrador e sua
família. Essas informações são veiculadas primeiramente, e principalmente, pelas
ilustrações e não pelo texto escrito. Apenas na página 22, o narrador personagem
informa o nome da cidade onde vive: Brusque, uma cidade que ―ficava longe do mar.‖
Esse nome pode ser associado ao da cidade de Brusque, no interior de Santa
Catarina, por um leitor que a conheça.
A narrativa visual inicia-se antes da escrita. Logo após a folha de rosto,
encontramos, na página da direita, a imagem de uma construção de lona, lembrando
um circo, com listras azuis e verde bem escuro. O fundo branco do papel faz com que
a ilustração ganhe destaque, que é acentuado pela cor verde musgo acinzentado
encontrada na página da esquerda, mesma cor e textura presentes na baleia pintada
na capa. A imagem traz uma informação importante para o leitor, mesmo que ainda
não seja compreendida por ele: esse é o espaço onde a baleia da narrativa é exposta
para a visitação. Sendo assim, essa imagem que inaugura a história, segundo nossa
interpretação, antecipa, de certa forma, parte da resposta do mistério que conduz a
narrativa: onde estaria a baleia, se não existe mar na cidade onde os personagens
vivem?
Ao virar a folha, nos deparamos com o texto escrito sob um fundo branco, na
página da direita, e uma ilustração sangrada, ocupando todo o espaço da página da
esquerda, chegando a invadir os limites da página ao lado.

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A ilustração apresenta os personagens principais da história, tendo como


espaço narrativo a cozinha de uma casa, com direito a fogão à lenha e panelas
penduradas na parede, o que nos remete a uma cidade do interior, ao meio rural ou a
um tempo mais antigo. Esse tempo está representado também pelas roupas do pai:
boina e colete.
Podemos observar ainda que a mão do pai, com o dedo indicador apontando
para a página ao lado, convida não apenas sua família para sair de casa e ver a
baleia, mas também o leitor, que, para isso, deve passar as páginas. Reproduzimos, a
seguir, parte do texto escrito na página da direita:

Eu acabava de botar o ponto final nos deveres da escola,


quando meu pai chegou com a notícia que eletrizou a família:
_ Pessoal, tem uma baleia lá no centro da cidade.
Eu, meu irmão e minha mãe arregalamos os olhos até não
mais poder. Cada qual engoliu em seco um caroço de abacate.
Cada um sentiu o raio caindo bem no meio da testa. E
mastigou o ar de tanta excitação:
_ Uma baleiaaaaa!!!
(…)
Impaciente, minha mãe balançou a cabeça, enquanto
esfregava as mãos no avental. Solicitada a se arrumar, ela não
teve muita conversa:
_Que baleia, o quê! Homem de Deus, tome tento! Será que
ficou maluco? Na nossa cidade nem tem mar, como é que vai
ter baleia por aí? (2012, p. 9).

As palavras da mãe na passagem acima expressam o grande mistério que


passa a conduzir a narrativa: como? Como uma baleia iria estar exposta em uma
cidade sem mar? O narrador, apesar de personagem da narrativa, mantém uma ―visão
de fora‖177 sobre essa questão, não antecipando nenhuma informação.

177 Trata-se do narrador homodiegético definido por Genette em Discurso da narrativa


(1979), abordado por Luis Alberto Brandão Santos e Silvana Pessoa de Oliveira (2001).
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Essa característica contribui para que o mistério seja mantido até o momento
em que o leitor acompanha os personagens na visita à baleia: eles entram em uma
construção coberta com uma lona, lembrando um circo (a imagem com a qual a
narrativa é iniciada), e, por meio de uma escada, feita de corda grossa, sobem em
cima do cadáver de uma baleia:

Então entendi: estávamos passando por cima da baleia e, nela,


nada se movia. Imensa corcova, como coxilha deslocada,
oferecia sua pele sem brilho, com certas manchas
esbranquiçadas aqui e ali. Acho que alguma gaivota fez cocô,
jogaram água na intenção de limpeza, e a coisa ficou escorrida.
Onde estava a cabeça, o rabo? Olhei para um lado e outro.
Tudo era igual (p. 37, grifos nossos).

A forma como os personagens visitaram a baleia, andando por cima de seu


cadáver, torna-se ainda mais esquisita pelo fato de eles não conseguirem distinguir
nem a cabeça nem o rabo do animal, como destacado na passagem acima.
No entanto, as ilustrações que se seguem contam uma história diferente, com
direito até a beijo na boca da baleia, em diálogo com o que é escrito pelo narrador
personagem em sua redação escolar. A linguagem dessa redação, repleta de frases
curtas e com muitas marcas de oralidade - compatível com o texto escrito por uma
criança-, evidencia ainda uma importante diferença discursiva dentro da narrativa: o
discurso do narrador personagem enquanto sujeito da enunciação e enquanto
personagem da história narrada.
Enquanto sujeito da enunciação, trata-se de um homem adulto contando
episódios de sua infância. Sendo assim, há uma distância considerável entre o tempo
da enunciação e o do enunciado, ―o produto, o resultado da enunciação‖, como
definem Luis Alberto Brandão Santos e Silvana Pessoa de Oliveira (2001, p. 1). O
narrador enquanto personagem da história narrada é uma criança, que escreve em
uma redação escolar a mesma visita à baleia contada pelo ―narrador adulto‖, porém
sob outro ponto de vista. Citamos como exemplo a passagem inicial da redação:

Ontem era de tarde. Meu Pai chegou e disse:


_ Vamos visitar a Baleia.
Minha Mãe falou:
_Ih, deixa de bobagem.
Eu fiquei feliz. Meu Irmão soltou um pum.
Aí ela pegou e botou na gente a roupa de domingo. (p. 51).

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Essa passagem é acompanhada por uma ilustração (p. 12) que, em parte, é
reproduzida na capa do livro, como mostraremos mais adiante.Destaca-se que não
apenas a ilustração, mas também o título do livro foram retirados dessa passagem da
narrativa. A palavra ―visita‖ é utilizada pelo narrador personagem ao reproduzir a
redação escolar que fez quando criança.
A oposição entre a primeira narrativa e a segunda, a redação escolar, contada
dentro da primeira, enfatiza o desejo do protagonista de ver de fato a baleia e não
apenas um amontoado de carne disforme. A cena do beijo, romântica e onírica,
representa a ―visita‖ desejada pelo protagonista.

O encontro entre protagonista e baleia foi contado também pela ilustração, em


página dupla, sem texto escrito, o que reforça seu importante papel na construção da
narrativa. A seguir, apresentamos as páginas do livro que contêm a parte inicial da
redação citada.

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Observa-se que, na página da direita (p. 51), o caminho por onde os


personagens passam, que se assemelha a uma colina, aparece como continuação do
chão da sala de aula onde se encontra o narrador personagem, na página à esquerda.
Sendo assim, o conjunto de páginas apresenta uma unidade.
A página da esquerda expressa o sentimento de opressão, caracterizado na
ilustração pela oposição entre as figuras do narrador personagem, o aluno, e da
professora. O primeiro, de cabeça baixa, curvado, na carteira escolar, em um plano
ligeiramente inferior. A professora, com varinha na mão e cabeça levantada, em um
plano ligeiramente superior, expressa sua autoridade, ao mandar que os alunos
escrevam uma composição sobre ―uma árvore frutífera‖ (p. 50). Como já adiantamos,
o narrador personagem não obedece à professora, preferindo reconstruir o passeio
que ele, seu pai e irmão fizeram no dia anterior, a ―visita à Baleia‖. De forma marota,
no final de sua composição, ele faz referência ao tema da redação exigido: ―Foi a tarde
mais feliz da minha vida. Em casa subi na goiabeira. A goiabeira é uma árvore
frutífera.‖ (p. 53, grifos nossos).
Na capa do livro, o caminho percorrido pelos personagens aparece em outra
perspectiva.

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Como podemos observar, a aparente colina dá lugar a uma imensa baleia, o


que pode ser observado por um de seus olhos e barbatana. Essa imagem antecipa a
forma como a baleia foi ―visitada‖: o narrador personagem anda por cima dela, que se
encontra, morta, exposta para visitação. Sendo assim, podemos afirmar que, na capa,
a relação entre o título da obra e a ilustração é de colaboração 178, na medida em que a
palavra baleia contribui para que o leitor preste mais atenção na ilustração e levante
suas hipóteses de leitura sobre a narrativa que será contada.
Destacamos ainda uma importante diferença entre a ilustração da capa e a do
miolo do livro no que se refere às cores utilizadas. A oposição entre o azul celeste do
céu e o verde escuro acinzentado da baleia, na capa do livro, sintetiza o contraste
entre luz e sombra presente na obra.
A obra apresenta páginas luminosas em contraste com páginas sombrias. As
páginas luminosas, com céu azul celeste, bicicleta vermelha, roupas alaranjadas,
carros coloridos, estão presentes, principalmente, na primeira parte da narrativa,
antes de os personagens entrarem na tenda armada para a visitação. A seguir,
apresentamos a ilustração, em página dupla, do pai, de bicicleta, indo com seus filhos,
entre eles o narrador personagem, para o centro da cidade ver a baleia.

178 Linden prefere o termo ―colaboração‖ a ―complementaridade‖, por este lhe parecer
expressar a ideia de que textos e imagens trabalham em conjunto em vista de um sentido
comum. (LINDEN, p. 121).
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O céu azul celeste, o verde claro da vegetação, o branco da estrada e de


algumas casas refletem a luminosidade da cena. Observa-se ainda o contraste,
presente também no decorrer da narrativa, entre as cores frias azul e verde e as
quentes vermelho e laranja que, nesse caso, estão na bicicleta, na boina do pai e na
roupa do narrador personagem. Enquanto a ilustração ocupa duas páginas, o texto
escrito ocupa a da esquerda. Destaca-se que sua legibilidade é comprometida pelo
baixo contraste entre o fundo azul celeste e as letras brancas.
As cores frias e sombrias, com predomínio do verde escuro acinzentado,
prevalecem nas cenas em que os personagens visitam a baleia e nas páginas em que
o narrador personagem relembra essa visita. Como exemplo, apresentamos a cena
em que os personagens entram na tenda, a primeira de uma sequência de imagens
escuras, caracterizadas pelo jogo luz X sombra.

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A luz está presente nos personagens e no caminho a ser seguido na visitação.


Destaca-se nessas páginas uma falta de integração entre texto escrito e ilustração. A
maior parte do que consta no bloco de texto refere-se a um acontecimento já narrado,
o que compromete o diálogo entre essas duas linguagens.
O jogo entre luz e sombra também está presente na última cena da narrativa,
em que é relatada a reação do pai diante da reclamação da professora, contada pela
mãe. Além de ficar do lado do filho, ele afaga seus cabelos.

Era o primeiro cafuné que eu ganhava depois de grande.


Peguei na mão do meu pai. Mão grande, grossa, áspera. A
mão do meu pai que, naquele dia, amei sobre todas as coisas.
Aquela mão, grande como baleia, mas baleia viva. Grande feito
árvore frutífera (p. 59).

A ilustração dialoga com o que é contado pelo menino, mostrando um pai em


grandes proporções, com longos braços, lembrando galhos de árvore. Sua mão
protetora segura e acolhe seus filhos.

Os detalhes da ilustração não são contados pelo texto escrito: o filho


adormecido na mão do pai, segurando seu dedo, como fazem os bebês.
Na orelha do livro, Nelson Cruz afirma que Visita à baleia lhe concedeu ―o dom
da invisibilidade‖. Envolvido pela ―maneira de narrar a história, como uma ‗conversa ao
pé do fogão‘‖, ele teria se tornado um observador invisível, sem segredos, querendo
apenas ―contar uma história‖: ―Numa inversão, os personagens tornaram-se vivos e
eu, invisível, acompanhei cena por cena até o desfecho e a lágrima final, que me
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trouxe de volta à realidade.‖ Certamente os personagens ganharam vida com as


ilustrações de Nelson, cuja invisibilidade pode ser questionada pelas diversas
premiações que o livro obteve.

Considerações Finais

Apesar de não termos, neste trabalho, esgotado as análises referentes ao


papel da imagem no livro Visita à baleia, podemos afirmar que o livro destaca-se por
suas ilustrações belíssimas, em páginas duplas, sangradas, cujo efeito da pintura as
aproxima de uma tela. Em seu diálogo com o texto escrito, elas enriquecem a
narrativa, acrescentando ricos detalhes à história e representando de forma criativa o
mundo interior do narrador protagonista, seus sentimentos e pensamentos, nem
sempre expressos pelo texto escrito.
Observa-se ainda que as ilustrações são fundamentais para a ambientação da
narrativa, para a associação desta com um tempo passado e definição do espaço em
que ela se passa: cidade pequena, com lugarejos um pouco distantes do centro,
ligados a ele por estrada de terra. As roupas dos personagens, como destacamos,
também contribuem para essa ambientação.
A hipótese inicial de nossa pesquisa, a de que os livros premiados destacam-
se por seu projeto gráfico, como um todo, não se confirmou. Contudo, podemos
afirmar que a ilustração, quando ocupa um espaço de destaque em um livro, pode
contribuir para a premiação da obra.

Referências

HASLAN, Andrew. O livro e o designer II - Como criar e produzir livros. Trad.


Juliana A. Saad e Sergio Rossi Filho. São Paulo: Edições Rosari, 2007.

HENDEL, Richard. O design do livro. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.

HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. Trad. Cid Knifel. São Pulo: Cosac
Naify, 2010.

JOLY, Martine. Introdução à análsie da imagem. Trad. Marina Appenzeller. 14.ed.


Campinas, SP: Papirus, 2012.

LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado. Trad. Dorothée de Bruchard.

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São Paulo: Cosac Naify, 2011.

OLIVEIRA, Ieda de. (Org.) O que é qualidade em ilustração no livro infantil e


juvenil: com a palavra o ilustrador. São Paulo: DCL, 2008.

NIKOLAJEVA, Maria e SCOTT, Carole. Livro ilustrado: palavras e imagens. Trad.


Cid Knipel. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

RAMOS, Graça. A imagem nos livros infantis: caminhos para ler o texto visual.
Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

VENTURELLI, Paulo. Visita à baleia. Ilustrações Nelson Cruz. Curitiba: Positivo,


2012.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

O LIVRO INFANTIL PELO OLHAR DA CRIANÇA

Maria Elisa de Araújo Grossi, Doutoranda, FAE/UFMG, Eixo Temático 05:


Literatura infantil e as relações com a imagem
Maria Zélia Versiani Machado, Profa. Orientadora, FAE/UFMG, Eixo Temático
05: Literatura infantil e as relações com a imagem

Considerações Iniciais

Este artigo faz parte de uma pesquisa de Doutorado realizada no Centro


Pedagógico da UFMG,179 em 2016 e 2017, que tem como título provisório ―A literatura
infantil pelo olhar da criança e do adulto‖. Nossa investigação teve como foco analisar
os elementos destacados por crianças do 1º Ciclo nos livros produzidos no ano de
2015 e considerados Altamente Recomendáveis (AR) para crianças pela Fundação
Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ).
Para o processo de coleta de dados, desenvolvemos com as crianças uma
conversação literária, a partir de pressupostos de dinâmicas conhecidas como Círculo
de Leitura. ―Um círculo de leitura é essencialmente o compartilhamento organizado de
uma obra dentro de uma comunidade de leitores que se constitui para tal fim‖ (RILDO
COSSON, 2014, p. 158). Como metodologia de pesquisa, utilizamos o enfoque ―Dime‖
(AIDAN CHAMBERS, 2007), que estimula o diálogo das crianças com os livros e
incentiva a troca de ideias e de impressões sobre o texto lido conjuntamente. Além dos
momentos de leitura compartilhada, realizamos entrevistas individuais com as
crianças, visando conhecer suas experiências sociais com a leitura.
Autores que discutem a literatura infantil (ANTONIETA CUNHA, 1986;
CECÍLIA BAJOUR, 2012; CECÍLIA MEIRELES, 1979; LÍGIA CADERMATORI, 2009;

179
Trata-se de uma escola de Ensino Fundamental (1º ao 9º ano) federal, criada como um Colégio de
Aplicação, que tem o sorteio público como forma de ingresso das crianças, característica que
determinou a escolha dessa instituição para a pesquisa, uma vez que a forma de ingresso garante um
perfil de aluno marcado pela diversidade.
949

MARISA LAJOLO & REGINA ZILBERMAN, 2007; PETER HUNT, 2010) bem como
teóricos da Sociologia da Infância (MIGUEL SARMENTO, 2005; SÔNIA KRAMER,
2000; WILLIAM A. CORSARO, 2011) foram escolhidos como suporte teórico para o
estudo.

O processo de avaliação da FNLIJ e o interesse pela pesquisa


A FNLIJ conduz o processo de avaliação e premiação da produção literária
destinada a crianças e jovens no Brasil, que resulta na elaboração de uma lista anual
de livros que recebem o selo ―Altamente Recomendável‖ (AR).
O Grupo de Pesquisa do Letramento Literário (GPELL/CEALE/UFMG), do
qual fazemos parte, participa formalmente do processo de votação da FNLIJ desde
1996, como votante institucional. O Grupo, em virtude dessa participação, realiza a
pesquisa ―A produção literária para crianças e jovens no Brasil: perfil e
desdobramentos textuais e paratextuais‖.180 Como parte da investigação, os
integrantes do GPELL realizam o preenchimento de uma ficha com indicações sobre o
projeto gráfico-editorial da obra, o autor/ilustrador, o público-alvo pretendido pela
publicação, sobre o gênero, dentre outras características do livro.
O processo de leitura e de discussão das obras realizado pelo grupo de
pesquisa permite-nos refletir sobre a complexidade da questão do endereçamento dos
livros e leva-nos a buscar uma maior compreensão dos elementos que constituem o
livro infantil. Entre esses elementos, destacam-se questões relativas a aspectos
destacados e critérios adotados pelas próprias crianças em contato com as obras
consideradas, pelos adultos, como Altamente Recomendáveis para esse público.
É importante destacar que nos anos de 2010 e 2011, chegamos a mapear a
quantidade de obras analisadas pelo GPELL e classificadas pela FNLIJ na categoria
Criança. Embora não participe do processo a totalidade da produção editorial de cada
ano, foi possível perceber o grande volume de livros que são produzidos anualmente
para esse público. Os dados desses dois anos mostraram que, em 2010, 52% dos
livros analisados eram da categoria Criança181 e, em 2011, a percentagem foi de 57%.
Isso levou-nos a querer buscar uma análise mais qualitativa das obras endereçadas
ao público infantil, visando, sobretudo, que esse público pudesse se manifestar sobre

180
Pesquisa coordenada pela professora Maria das Graças Rodrigues Paulino.
181
Outras categorias que fazem parte, atualmente, do processo de seleção da FNLIJ: Imagem,
Informativo, Jovem, Literatura em Língua Portuguesa, Livro Brinquedo, Melhor Ilustração, Poesia,
Projeto Editorial, Reconto, Teatro, Teórico, Tradução Adaptação Criança, Tradução Adaptação
Jovem, Tradução Adaptação Informativo, Tradução Adaptação Reconto, Escritor Revelação,
Ilustrador Revelação.
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950

os livros e os critérios que utilizam quando escolhem e leem uma obra literária, uma
vez que acreditamos que as crianças elaboram uma avaliação dos livros que
escolhem para ler.
Chambers (2007, p. 39) produz um capítulo interessante que tem como título
―Son críticos los niños? A respeito dessa pergunta, o autor argumenta 182

Formulamos a pergunta, em primeiro lugar, porque nosso trabalho


nos havia convencido de que as crianças possuem uma habilidade
crítica inata. Instintivamente questionam, informam, comparam e
julgam. Se alguém os deixa sozinhos, formulam claramente suas
opiniões e sentimentos e se interessam pelos sentimentos de seus
amigos (...) (CHAMBERS, 2007, p. 39. Tradução nossa).

Nossa pesquisa de Mestrado,183 realizada em 2007, demonstrou como as


crianças conversam sobre os livros literários que escolhem para ler, destacando
elementos do projeto gráfico e do texto. Participando de interações da turma
pesquisada à época da investigação, presenciamos, na biblioteca escolar, diálogos
interessantes sobre os livros, entretanto, como nosso foco era outro, não foi possível
aprofundar o tema. O desejo de realizar uma pesquisa sobre o que dizem as crianças
sobre os livros infantis foi se ampliando e o Doutorado tem possibilitado essa
oportunidade.

A vez das crianças


Durante muito tempo, a sociologia preocupou-se com a adolescência e a
juventude, ―tendo sido as crianças incorporadas aos estudos da sociologia da família e
da sociologia da educação‖ (FERNANDA MÜLLER & ANA MARIA CARVALHO, 2009,
p. 21), entretanto esses estudos não tinham a criança como foco da investigação. As
crianças eram consideradas imaturas e totalmente dependentes dos adultos, por isso
foram silenciadas durante muitos anos pela sociologia tradicional. Somente no século
XX, com o advento da Sociologia da Infância, o olhar de muitos pesquisadores voltou-

182
Formulamos la pergunta, en primer lugar, porque nuestro trabajo nos había persuadido de que los
niños poseen uma facultad crítica innata. Instintivamente cuestionam, reportan, comparan y juzgan.
Si uno los deja solos, formulan sus opiniones y sentimientos llanamente y se interesan por los
sentimientos de sus amigos (...). (CHAMBERS, 2007, p. 39).
183
GROSSI, M. E. de A. A mediação alfabetizadora na produção de leitura e de escrita de gêneros e
suportes textuais: o desafio de alfabetizar na perspectiva do letramento. (Dissertação de Mestrado).
Belo Horizonte: Faculdade de Educação. UFMG, 2008.
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951

se para a cultura infantil, buscando ―estudar as crianças a partir do ponto de vista


delas (FERNANDA MÜLLER & ANA MARIA CARVALHO, 2009, p. 25)184‖.
Corsaro (2011),185 estudioso da cultura infantil, afirma em seus estudos que,
embora seja possível observar avanços nos últimos sete anos, as crianças e a infância
ainda são pouco estudadas (CORSARO, 2011, p. 9). O pesquisador destaca que o
surgimento de um grupo temático sobre ―Sociologia da infância‖ na Associação
Internacional de Sociologia favoreceu o desenvolvimento de pesquisas sobre o tema.
Nossa pesquisa se insere num movimento de reconhecimento da criança como sujeito
de direitos, que possui a habilidade e a capacidade de expressão sobre diferentes
temas, particularmente os que lhe dizem respeito.
Se considerarmos o campo da literatura, por muito tempo a literatura infantil
foi considerada uma literatura menor. Segundo CADEMARTORI (2010, p. 7), a partir
da década de 80, ―o gênero literário endereçado às crianças conquistava,
gradualmente, espaço nas discussões universitárias, congregando estudiosos em
instituições dedicadas ao tema‖. A autora destaca que programas de governo
começaram a distribuir livros literários para escola e bibliotecas, fato que estimulou a
produção editorial para esse público.
A experiência como professora da Educação Básica revela como é singular e
estreita a relação da criança com o livro infantil. A leitura literária proporciona
experiências particulares de abordagem do livro com as crianças dos anos iniciais do
Ensino Fundamental. Segundo Coelho (2000, p. 28), fenômeno visceralmente
humano, a criação literária será sempre tão complexa, fascinante, misteriosa e
essencial quanto a própria condição humana.

A literatura infantil é, antes de tudo, literatura; ou melhor, é arte:


fenômeno de criatividade que representa o mundo, o homem, a vida,
através da palavra. [...] Literatura é uma linguagem específica que,
como toda linguagem, expressa uma determinada experiência
humana, e, dificilmente, poderá ser definida com exatidão (COELHO,
2000, p. 27).

Ler literatura com as crianças é uma experiência tão fascinante e misteriosa


quanto o próprio conceito de literatura infantil, por isso nosso interesse por conhecer,
de uma forma organizada e analítica, como a criança se relaciona com os livros a elas
indicados.

184
O estudo Sociology of childhood destaca-se como pioneiro nesse processo de discussão teórica e
metodológica sobre a infância.
185
Primeira edição: 1997.
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A voz das crianças na pesquisa


O processo de coleta de dados teve início no final do mês de setembro de
2016 e consistiu, como mencionado, em dois momentos principais: a realização dos
Círculos de Leitura com as obras AR, privilegiando-se, dentre elas, os livros escolhidos
pelas próprias criançase o desenvolvimento de entrevistas individuais. 186 Durante os
Círculos de Leitura, incentivamos as crianças a falarem, tendo como referência, como
já dito acima, o enfoque Dime:

O enfoque de ―Dime‖ (Diga-me) parte deste modo conversacional


básico, extendendo o número de participantes do um a um, criança e
adulto, a um adulto facilitador com uma comunidade de leitores cujo
interesse comum está concentrado em um texto que é
compartilhado187 (CHAMBERS, 2007, p. 29. Tradução nossa).

Nosso objetivo era promover a interação das crianças com os livros


considerados AR pela FNLIJ e observar o que elas destacavam e diziam sobre eles. A
concepção de interação que guia a pesquisa é aquela que a toma como um processo
de construção de sentidos, pautado pelo diálogo (BAKHTIN, 1992).

Os limites de cada enunciado concreto como unidade da


comunicação discursiva são definidos pela alternância dos sujeitos do
discurso, ou seja, pela alternância dos falantes. (...) O falante termina
o seu enunciado para passar a palavra ao outro ou dar lugar à sua
compreensão ativamente responsiva. (BAKHTIN, 1992, p. 275, grifo
do autor).

Assim, ao reunirmos grupos formados por 4/5 crianças, visamos à promoção


de um profícuo diálogo a partir da leitura de livros considerados AR. Esses livros
ficavam dispostos numa mesa, com as capas viradas para cima, de forma que a
criança pudesse manusear e escolher aquele que gostaria que fosse lido pela
pesquisadora durante a interação da pesquisa. Após a escolha das crianças,
sentávamos para ler e conversar sobre os livros escolhidos, fazendo valer aquilo que
afirma Cosson em seu livro sobre Círculos de Leitura: ―Ler é produzir sentidos por
meio de um diálogo, uma conversa‖ (COSSON, 2014, p. 35).
A seguir, recortamos dois episódios do primeiro Círculo de Leitura, realizado
no dia 26-09-2016, e desenvolvido com um grupo de 4 crianças de 6 e 7 anos 188. Esse

186
Os processos vivenciados foram gravados em áudio e vídeo.
187
El enfoque de “Dime” parte de este modo conversacional básico, extendiendo el número de
participantes del uno a uno, niño y adulto, a un adulto facilitador con una comunidad de lectores cuyo
mutuo interesse está concentrado en un texto compartido.
188
As denominações das crianças foram escolhidas por elas.
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número de crianças foi pensado considerando a possibilidade de ouvir, da melhor


maneira possível, tudo o que elas quisessem falar sobre os livros durante o processo
de conversação189. É importante destacar que os Círculos de Leitura foram
desenvolvidos, em sua grande maioria, no espaço da biblioteca infantil da escola
pesquisada.

Pesquisadora: Isso! E você, Naruto, qual que é o seu livro?


Naruto: O guardião da bola.
Pesquisadora: Ah!! Por que você escolheu esse livro, Naruto?
Naruto: Por que eu achei legal a capa.
Pesquisadora: Ah, você achou a capa legal? O que você gostou na
capa?
Naruto: Desse menino andando de bicicleta e o cachorro atrás.

Pesquisadora: E a Moranguinho? Que livro você escolheu,


Moranguinho?
Moranguinho: (Fala baixo tentando ler). Nino,... o menino de
Saturno.
Pesquisadora: Nino, o menino de Saturno. Por que você quis esse?
Desse tanto de livro aqui, por que você quis logo esse?
Moranguinho: Por que ele é legal.
Pesquisadora: O que você achou legal? Pra você escolher ele? O
que que chamou a sua atenção?
Moranguinho: A capa

Os episódios mostram como as capas dos livros têm uma importância


decisiva na escolha das crianças. Nas entrevistas individuais, elas também
destacaram a capa como elemento essencial para a escolha de um livro. A seguir,
trechos de duas entrevistas, realizadas nos dias 26/11/2016 e 08/02/2017,
respectivamente:

Pesquisadora: Agora, me conta uma coisa. Se você, por exemplo,


chegou na biblioteca. A gente tá na biblioteca... se você for ali na
estante, procurar um livro... pra você levar... como você escolhe esse
livro?
Luna: Ahah!...
Pesquisadora: Me dá um exemplo assim. O que você olha, na hora
que você vai escolher...
Luna: É... eu vou assim... eu vou assim (e foi andando pro lado das
estantes para mostrar como faz) aí eu vejo a capa, leio o título...
Pesquisadora:Ahah!...você vê a capa... (é interrompida pela criança
que continua)
Luna: Eu vejo assim... eu vejo pela capa.
Pesquisadora: Você escolhe muito pela capa?
Luna: É. (sorrindo).

189
Fizemos um roteiro de perguntas básicas para conduzir a atividade.
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Pesquisadora: Então... Quando você vai escolher um livro, o que


que você olha num livro? A primeira coisa que você olha, quando
você vai escolher...
Kakashi: A capa.
Pesquisadora: A capa? Você acha ela importante?
Kakashi: Muito.
Pesquisadora: É?
Kakashi: Se não tivesse uma capa, os livros... é... eles não teriam...
como saber um pouco.
Pesquisadora: Ah! Você acha que a capa ajuda a saber um pouco
do livro? Por quê? O que que a capa ajuda?
Kakashi: Ela ajuda a proteger o livro, a falar o nome do livro,,,
Pesquisadora: Hum... Isso tudo é na capa, né?
Kakashi: Hum... hum... (concordando)
(...)
Kakashi: Hum... hum... Eu também vou olhando a capa pra ver qual
é o nome da história se é legal...

A fala dessas crianças expressa a posição da grande maioria participante da


pesquisa, conforme mostram os registros em áudio e vídeo. Segundo Paixão
(2008)190, a capa representa o ―rosto‖ de um livro. O autor prossegue levantando uma
questão para o leitor: ―Quantas vezes não abrimos uma obra justamente porque a
capa nos seduz e nos convida para além dela‖?

Essa máxima se torna ainda mais verdadeira quando se trata de


alcançar a atenção e (a amizade) das crianças. Se para os adultos o
apelo comunicativo costuma ser desencadeado a partir de elementos
ou códigos já conhecidos, no caso da imaginação infantil isso foge
completamente à regra e ganha contornos de magia. Os olhos das
crianças mantêm canal direto com o coração, não nos esqueçamos.
(PAIXÃO, 2008. In: POWERS, 2008).

Os dados da pesquisa revelaram a importância que a criança atribui às capas


quando escolhe um livro para ler. Nesse processo, a materialidade da capa é
definidora, particularmente as cores utilizadas na impressão e as imagens disponíveis.
Quando a imagem dialoga com temas:191

Pesquisadora: Ô Green Ninja, então qual livro você pegou?


Green Ninja: (Lendo o título) Nino, o menino de Saturno.
Pesquisadora: Ô, Green Ninja, por que que você escolheu logo esse
livro... daquele tanto lá... por que você escolheu esse?
Green Ninja: Porque eu adoro arco-íris. E tem um que o anel de
Saturno é um arco-íris.
Pesquisadora: Ah... Você adora arco-íris e esse aí tem?
Green Ninja: Tem.
Pesquisadora: Então o que que você olhou pra escolher este livro?
Logo que você chegou...

190
Texto de apresentação do livro Era uma vez uma capa, São Paulo: Cosac Naify, 2008.
191
Interação realizada no dia 21/02/2017.
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Green Ninja: Esse arco-íris aqui.

As crianças da pesquisa, em geral, destacavam elementos presentes na capa


que despertaram a sua vontade de conhecer melhor a obra. No caso, o destaque
dessa criança é para o arco-íris, elemento atrativo citado por outros leitores no
processo de conversação. O livro mencionado na interação acima foi o mais escolhido
pelas crianças192 e todas justificavam a escolha pela beleza da capa. Segundo
POWERS (2008, p. 6), ―a capa é parte integrante da história de qualquer livro‖, por
isso sua importância cultural é estudada por alguns teóricos. O autor destaca que, no
caso de um livro ilustrado, a capa pode servir de ―amostra das delícias que virão‖
(POWERS, 2008, p. 6). Conforme observamos na pesquisa, a capa cumpre um papel
essencial na relação da criança com o livro, ―no processo de envolvimento físico com o
livro, pois, embora não se possa olhá-la enquanto se lê, ela o define como objeto a ser
apanhado, deixado de lado e talvez conservado ao longo do tempo‖ (POWERS, 2008,
p. 7).
Além da capa, outro elemento do livro que atrai a atenção da criança são as
imagens. Durante a pesquisa, para realizar as suas escolhas, as crianças folheavam e
analisavam as imagens. É possível afirmar que elas faziam, inicialmente, a leitura das
imagens para analisarem se escolheriam ou não determinado livro: folheavam,
analisavam, observavam tanto as imagens da capa quanto as do interior do livro.
Segundo Berger (1987, p. 11), ―a vista chega antes das palavras. A criança olha e vê
antes de falar‖. A prática de leitura de imagens faz parte da rotina dos pequenos
leitores desde o momento em que nascem.

Pela força com que toca a sensibilidade da criança, permite que se


fixem, de maneira significativa e durável, as sensações ou
impressões que a leitura deve transmitir. Se elaborada com arte ou
inteligência, a imagem aprofunda o poder mágico da palavra literária
e facilita à criança o convívio familiar com os universos que os livros
lhe desvendam. (COELHO, 2000, p. 197-198, grifos da autora).

Durante a pesquisa, foram inúmeras as interações em que as crianças


conversaram sobre as imagens dos livros, apontando elementos que chamavam a sua
atenção. A seguir alguns episódios da pesquisa que ilustram o que destacamos.

Pesquisadora: (...) Kakashi, por que você quis, com este tanto de
193
livro que estava na mesa, por que você pegou este ?

192
A pesquisa foi realizada com uma turma de 25 crianças. Das 25, 10 escolheram o livro Nino, o menino
de Saturno para ser lido pela pesquisadora, ou seja, 40% das crianças.
193
CASTANHA, Marilda. Contos Ortográficos. Belo Horizonte: Abacatte, 2015.
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Kakashi: Porque eu vi aqui, aí eu achei legal... Eu também achei esta


imagem legal.
Pesquisadora: Qual imagem você está vendo?
Kakashi: É esta.
Pesquisadora: Mas o que você está vendo aí?
Kakashi: É um tanto de... é... acho que cone. Tem um cara
empilhando acho que gelo, com guarda-chuva é... é uma... uma...
acho que uma coisa mágica. Isso aqui é o quê? (Ele pergunta e
mostra o livro)
Pesquisadora: O que você acha que é? O que você tá percebendo?
Kakashi: Um pássaro
Pesquisadora: Um pássaro... Você tá achando que é um pássaro?
Kakashi: É... Eu tô achando que tem uma casa lá em cimão... É... um
pássaro rei.
Luna: Rei? (Estranha a fala do colega)
Kakashi: E eu não sei...
Pesquisadora: Então você escolheu este livro por que?
Kakashi: Por causa da imagem.

A criança destaca as imagens da capa que chamaram a sua atenção e a


fizeram escolher o livro. É possível afirmar que as imagens seduzem (ou não) as
crianças para a leitura. Elas mobilizam a atenção das crianças e estimulam o processo
de levantamento de hipóteses do que pode ser encontrado no texto. Foi possível
perceber que as imagens geram expectativas a respeito do tema a ser tratado no livro.
A partir das imagens, as crianças criam suas próprias histórias, imaginam relações
entre as personagens representadas na ilustração e buscam construir sentidos para o
que está representado.

Considerações Finais

Os dados coletados vêm demonstrando como as crianças são capazes de


emitir opiniões sobre os livros e apontar os critérios utilizados por elas para escolher o
que desejam ler. As cores utilizadas no projeto gráfico, particularmente na capa, o
tamanho e disposição das ilustrações na página, a existência ou não de imagens são
elementos que apresentam um significado especial para a criança.
Outro aspecto observado e que precisaremos aprofundar em nosso trabalho é
o fato de que as observações das crianças durante a leitura e no processo de
conversação sobre um texto literário relacionam-se profundamente às suas
experiências de vida, aos seus repertórios culturais e ao conhecimento prévio que
possuem sobre o autor e o tema abordado. Foi possível perceber que alguns livros,
escolhidos recorrentemente por várias crianças pesquisadas, apresentavam imagens
familiares aos seus repertórios, fator que impulsiona certas preferências.
Vivenciar e conhecer de perto como as crianças analisam o livro infantil tem
nos ensinado muito sobre a condição complexa da literatura infantil e da leitura literária
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com crianças. A pesquisa tem nos instigado a buscar, cada vez mais, a compreensão
dos processos de recepção, que é o aspecto que nos interessa no campo da formação
de leitores literários. Acreditamos que é necessário dar visibilidade ao que pensam os
leitores nesse processo, afinal são eles a razão de ser de toda a produção editorial.

Referências

BAJOUR, C. Ouvir nas entrelinhas: o valor da escuta nas práticas de leitura. Trad.
Alexandre Morales. São Paulo: Editora Pulo do Gato, 2012.

BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes. 1992.

BERGER, J. Modos de ver. Lisboa: Edições 70, 1987.

CADEMARTORI, L. O professor e a literatura: para pequenos, médios e grandes. Belo


Horizonte: Autêntica, 2009.

CADEMARTORI, L. O que é literatura infantil. São Paulo: Brasiliense, 2010.

CHAMBERS, A. Dime. Los niños, la lectura y la conversación. Trad. Ana Tamarit


Amieva. México: FCE, 2007.

COELHO, N. N. Literatura Infantil: Teoria, análise, didática. São Paulo: Moderna, 2000.

CORSARO, W. Sociologia da Infância. Porto Alegre: Artmed, 2011.

COSSON, R. Círculos de leitura e letramento literário. São Paulo: Contexto, 2014.

CUNHA, M. A. A. Literatura infantil: a procura do leitor. 1986. 154 f. (Dissertação


Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, 1986.

HUNT, P. Crítica, teoria e literatura infantil. Trad. Cid Knipel. São Paulo: Cosac Naify,
2010.

KRAMER, S. Infância, cultura e educação. In: No fim do século: a diversidade o jogo


do livro infantil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 9-36.

LAJOLO, M; ZILBERMAN, R. Literatura infantil brasileira: história & histórias. São


Paulo: Ática, 2007.

MEIRELES, C. Problemas da literatura infantil. São Paulo: Summus, 1979.

MÜLLER, F; CARVALHO, A. M. A. Teoria e prática na pesquisa com crianças:


diálogos com William Corsaro. São Paulo: Cortez, 2009.

POWERS, A. Era uma vez uma capa. Trad. Otacílio Nunes. São Paulo: Cosac Naify,
2008.

SARMENTO, M. Gerações e alteridade: interrogações a partir da sociologia da


infância. Educação e Sociedade. v. 26, n. 91, Maio/Ago., Campinas: 2005.
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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

DIFERENTES VERSÕES DE UMA OBRA PRODUZEM


DISTINTAS RELAÇÕES ENTRE TEXTO VERBAL E TEXTO
IMAGÉTICO? análise de um poema e sua ilustração nas
versões da obra ―Pé de Pilão‖ de Mário Quintana 194

Raquel Cristina Baêta Barbosa, Universidade Federal de Minas Gerais


(UFMG), Eixo Temático 5: Literatura Infantil e as relações com a imagem.
Isabel Cristina Alves da Silva Frade, Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), Eixo Temático 5: Literatura Infantil e as relações com a imagem.

Considerações Iniciais

O presente trabalho apresenta análises iniciais de um breve recorte do projeto


de doutorado ―O processo de produção de cânones: um estudo contrastivo do
percurso editorial de obras da poesia infantil brasileira nas décadas de 1960 a 1980‖ e
tem como objetivo apresentar a análise da relação entre o texto verbal e o texto
imagético de uma das obras que serão fonte de pesquisa da tese.
Pela via da comparação de três versões publicadas por diferentes editoras da
obra Pé de Pilão de Mário Quintana, será focalizada, mais especificamente, em cada
versão editorial da obra, como se apresenta a relação entre texto escrito e texto
imagético, sendo este último produzido por distintos ilustradores.
As análises focaram-se nas materialidades das versões e como suporte teórico
metodológico buscou-se as contribuições da história cultural, especificamente, a
história do livro e, também as discussões a respeito da importância e presença das
ilustrações nas obras da literatura infantil e juvenil.
Parte-se da defesa de que um livro literário é muito mais que um texto
produzido por um autor. O texto faz parte de um projeto editorial maior que depende
de aspectos materiais, gráficos e imagéticos. O produto final que é a obra literária

194
*Este artigo faz parte das análises iniciais do projeto de doutorado “O PROCESSO DE PRODUÇÃO DE
CÂNONES: um estudo contrastivo do percurso editorial de obras de poesia infantil brasileira nas décadas
de 1960 a 1980.
959

depende do trabalho de distintos atores que colocam intenções diferenciadas com o


intuito de atingir um dado público leitor. A interação destas distintas produções, por
sua vez, caracterizará um tipo específico de relação entre o leitor e a leitura. A
construção do significado da leitura de uma obra, nesse sentido, depende da interação
e compreensão dessas distintas linguagens. Dessa forma, o livro da literatura infantil é
a interação entre texto escrito, imagens, projeto gráfico e materialidade.
Parte-se do pressuposto que distintas interações entre esses aspectos podem
produzir diferentes obras, mesmo que o texto literário seja o mesmo. E, assim, um
mesmo título, publicado por editoras variadas, com ilustrações propostas por mais de
um ilustrador, apresenta novas propostas. A obra de um autor transforma-se em
obras que podem circular por variadas gerações de leitores, possibilitando a circulação
longínqua e a sua permanência no mercado editorial e literário.
A permanência de produções literárias pode trazer indícios sobre sua
importância para o campo da literatura infantil. A pesquisa sobre suas atualizações
gráficas pode levantar possíveis características que fazem de uma obra, um cânone.

A obra ―Pé de Pilão‖ de Mario Quintana

A obra ―Pé de Pilão‖ foi publicada pela primeira vez em 1968. Insere-se nas
produções de poesia infantil, mais especificamente as que foram publicadas no século
passado e, que mesmo assim, circulam em diferentes versões ainda no presente.
O texto literário de Mário Quintana é organizado em versos, no entanto, traz
um poema único que conta a história de um pato que se envolve em diferentes
confusões. Apresenta uma linguagem próxima do contexto do público pretendido, ou
seja, as crianças, conforme nos indica Coelho (2006):
História do ―pato que ganhou sapato/ foi logo tirar retrato‖ e,
com essa ideia, provoca as maiores confusões, em episódios
que saem uns dos outros como caixas de surpresas. Utilizando
dístico em redondilha maior como estrutura poética básica e
explorando com graça e leveza o sistema binário de rima,
Quintana funde, nesse fluxo poético, reminiscências de velhas
histórias, ocorrências do dia-a-dia infantil, tropelias de animais,
feitiçarias e milagres de Nossa Senhora..., tudo isso conjugado
habilmente numa corrente sonora e rímica que tem tudo para
atrair e encantar as crianças, como um jogo divertido e
variado... E mais, a leva-las a brincar também com as palavras
e imagens que delas resultam... (COELHO, 2006, p.598)

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Nos levantamentos já realizados na pesquisa foram encontradas quatro


distintas versões da obra, publicadas por quatro diferentes editoras. Para este artigo
trabalhar-se-á com três versões.

Mário Quintana e os três ilustradores

De acordo com informações coletadas e pesquisadas no site da ―Casa de


Cultura Mário Quintana‖ Mário Alegrete Quintana (1906-1994) foi jornalista, tradutor e
poeta. Desde sua formação inicial, teve forte ligação com a produção escrita.
Participou da produção de jornais e, também escreveu seus primeiros versos. Sua
entrada oficial na produção literária foi através da tradução de obras. ―A Rua dos
Cataventos‖ publicada pela primeira vez em 1940 foi considerada a sua primeira
produção poética. Esta primeira obra foi inserida no contexto escolar como livro
didático. Em 1962 é publicado o livro ―Poesias‖ que reuniu os livros de Quintana
publicados até o período da publicação. Em 1966 é lançada a ―Antologia Poética‖,
organizada por Rubem Braga e Paulo Mendes Campos, com a presença de 60
poemas inéditos, em comemoração aos 60 anos do poeta. Mário Quintana escreveu
tanto para adultos quanto para jovens e crianças. Traduziu um número relevante de
obras e, também publicou muitas obras de sua autoria. Recebeu prêmios da Academia
Brasileira de Letras, Fundação Nacional do livro Infantil e Juvenil, dentre outros. As
produções do poeta foram reunidas em distintas antologias.
As três versões de ―Pé de Pilão‖ analisadas foram ilustradas por Edgar Koetz,
Cláudio Levitan e Gonzálo Cárcamo, três distintos ilustradores. Edgar Koetz (1914-
1969) foi desenhista, gravador e artista plástico e trabalhou com desenho, gravura e
artes gráficas. Foi professor de desenho na Universidade Federal do Rio Grande do
Sul e ilustrou a primeira versão da obra.
Cláudio Levitan (1951), arquiteto, escritor e desenhista é o ilustrador da
segunda versão da obra. Juntamente com a ilustração, ele produziu, a partir do texto
literário de Mário Quintana, um espetáculo infantil que foi intitulado como ―Opereta Pé
de Pilão‖, o mesmo título recebido pela segunda versão da obra. As ilustrações
produzidas por Cláudio Levitan são as que mais se diferenciam entre as três
analisadas.
Gonzálo Cárcamo (1954), que Ilustrou a terceira versão analisada da obra de
Mário Quintana, é chileno e passou a ter o Brasil como país em 1976. Artista plástico,
ilustrador, caricaturista e autor de livros infantis, ilustrou e ilustra jornais, revistas e
livros. Além de ilustrador também trabalha com a técnica de aquarela e já fez
exposições no Brasil, Espanha e Chile.
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As três versões: diferenças e semelhanças nos paratextos e na relação


entre texto verbal e imagético

De acordo com Marisa Lajollo (2010) as produções inseridas no campo da


literatura infantil e juvenil se complexificaram à medida que novas formas de
linguagem foram sendo acrescidas nas obras além do texto literário de um autor.
Assim, a produção de sentidos, bem como a interação entre leitor e leitura, passaram
a necessitar da leitura detalhada de todos os aspectos da obra: projeto gráfico,
materialidade, texto escrito, paratextos e texto imagético.
Uma obra literária é dessa forma compreendida como a interação de distintos
atores no processo de produção, sendo o autor do texto literário apenas um dos
sujeitos responsáveis pelo processo de produção. Diferentes versões de um mesmo
texto literário produzem diferentes livros literários.
Já se torna visível, aqui, a sutil dialética texto/imagem,
linguagem verbal/linguagem visual que encontra sua síntese
no objeto livro e que é fundamental para uma concepção de
literatura que materialize seu objeto, concebendo-o como
ultrapassando o texto e chegando ao livro. Para além do texto
– do qual é suporte – um livro, em suas diferentes edições,
sua capa, ilustrações, por exemplo, pede um olhar mais
complexo e refinado e talvez o que este olhar veja também
faça parte do que se considera literatura. (LAJOLLO, 2010,
p.102)

―Pé de Pilão‖, em suas três versões apresenta-se ao público leitor em


diferentes formatos:

CAPAS FORMATO ANO DE EDITORA NÚMERO DE PARATEXTOS


S PUBLICAÇÃ PÁGINAS
O

15,5cm X 1968 GARATUJA 39 - Apresentação


22,0cm

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962

21 cm X 28 1975 L & PM 48 -Apresentação


cm -Glossário
-Comentários
-Divulgação de
outras obras

17 cm X 2005 EDITORA As páginas não -Prefácio


23,5 cm ÁTICA são numeradas -Notas sobre o
ilustrador
-Fotografia do
autor

Tabela 1: Dados sobre as três versões da obra ―Pé de Pilão‖.


Observa-se nas três versões, não só diferentes formatos, mas também com
inserção e retiradas de paratextos, diminuição e aumento de número de páginas, bem
como a organização e a interação entre texto escrito e texto imagético.
A primeira versão apresenta apenas a Apresentação como paratexto que se
diferencia das outras versões e foi escrita por Érico Veríssimo. O nome do ilustrador
não é exibido na capa, o que pode trazer indícios de uma época em que a ilustração
ainda não ocupava o mesmo lugar que o texto escrito. As imagens ora são apenas em
preto e branco, ora apresentam apenas as cores amarela, rosa, azul e preta, não
estão presentes em todas as páginas e descrevem cenas da narrativa poética. Dessa
forma, as imagens apresentam partes da narrativa.

1ªVersão Ilustração em Ilustração


preto e branco colorida

Tabela 2: Exemplos de ilustração da 1ªversão.


A segunda versão é a que apresenta o formato maior e também é mais rica em
detalhes. A apresentação desta versão é feita pelo ilustrador. Nesse paratexto, ele dá
pistas de como construiu o texto imagético da obra:

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No momento em que desenhei esse mapa, os personagens


puderam andar livres no espaço da imaginação. E foram
surgindo um a um com seus jeitinhos carinhosos herdados do
velho poeta das crianças. Foi com tanto prazer que me
embrenhei nessa história, através dos desenhos, que fiquei
triste quando terminou. Mas acabei gostando mais ainda do
Mario Quintana, que além de poeta – e ser poeta já é um
grande elogio – é o filosofo do nosso cotidiano. (LEVITAN,
1986195, p.3)

Diferente do que acontece na primeira versão, o ilustrador já ocupa um espaço


de maior destaque. Seu nome aparece na capa e o paratexto introdutório da obra é
escrito por ele.
Além da apresentação feita pelo ilustrador há uma crítica sobre o texto literário
escrita por Carlos Drummond de Andrade. Esse paratexto é um indício de formas de
legitimação da obra e, também ampliação do público para outros leitores que não
apenas o infantil. Assim, o paratexto assume seu papel de convidar o leitor à leitura,
ou de recomendar ao mediador de leitura a escolha pelo livro.
Outro paratexto é um glossário com palavras, de acordo com a própria
informação na obra, pouco usuais. Pode ser um indicio de direcionamento da obra, ou
seja, para crianças que estão em processo de ampliação do repertório de vocabulário
ou para sua utilização escolar. A quarta capa contextualiza a inserção dessa versão
em uma coleção. A coleção é denominada ―Coleção Quadrinhos‖ o que pode justificar
a apresentação e organização das ilustrações e do texto poético.

CAPA DA QUARTA
2ªVERSÃO CAPA

Tabela 3: Capa e Quarta Capa da 2ªVersão


O texto escrito é diluído em pequenos trechos ao longo das páginas. O que
ganha maior destaque nesta versão são as imagens, todas elas em preto e branco e
organizadas como em histórias em quadrinhos. Os quadros dão maiores enfoques em

195
A segunda versão da obra foi publicada em 1975, pela primeira vez. No entanto, outras edições
foram lançadas, que é o caso desta que está sendo analisada.
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alguns trechos da narrativa. Há, também, um destaque para a fisionomia e expressão


dos personagens.

2ªVersão Ilustração em Ilustração em


preto e branco preto e branco

Tabela 4: Exemplos de ilustração da 2ªversão.

A terceira versão, a mais recente das três, traz na capa os nomes do autor e do
ilustrador. A apresentação é a mesma da primeira versão, escrita por Érico Verissimo.
Ao final do livro há uma foto de Mário Quintana e um comentário sobre o ilustrador da
obra.
Ao comparar as três versões, pode-se dizer que a primeira versão aproxima-se
da terceira em relação à proposta de interação entre texto imagético e texto escrito. A
segunda versão organiza o texto imagético e o texto escrito de forma diferenciada,
fazendo uso das características de histórias em quadrinhos. E por isso, muitos trechos
do texto poético são apresentados nas imagens. E esses trechos são detalhados com
enfoques nas personagens, nos olhares e nas expressões.
A terceira versão, apesar de fazer uso de uma técnica de ilustração
diferenciada da primeira versão, apresenta os mesmos trechos do texto poético,
selecionados para serem apresentados na linguagem imagética do que na primeira
versão. No entanto, há também diferenças sutis entre essas duas versões em relação
ao enfoque dado ao texto imagético.
Pode-se supor que a terceira versão é uma atualização da primeira. Isso
porque há um resgate de paratextos, como é o caso do prefácio de Érico Veríssimo,
presentes na primeira versão e, também uma preservação da distribuição do texto
escrito ao longo das páginas do livro.
A terceira versão, além de apresentar os mesmos trechos do texto poético nas
imagens que a primeira, ocupa-se em apresentar mais alguns outros trechos da
narrativa poética com uma riqueza maior de detalhes e cores.

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Assim, tanto a primeira versão, quanto a terceira não são organizadas como
histórias em quadrinhos, e não há uma preponderância do texto imagético, como
acontece na segunda versão. Há um maior equilíbrio entre texto imagético e texto
escrito.
A diferença entre a primeira e a terceira versão é que na terceira versão em
muitas páginas as imagens se destacam mais que o texto escrito, ou seja, ocupam
espaços significativos. E, dessa forma, as imagens são apresentadas com cores mais
vivas do que na primeira versão.
Abaixo apresentamos uma comparação de dois trechos da obra na primeira e
última versão.

1ª Versão 3ª Versão Trecho do texto verbal


contemplado na ilustração

―Quando no espelho se olhava,


O espelho logo rachava.‖

―O pato ganhou sapato, foi logo tirar


retrato. O macaco retratista. Era
mesmo um grande artista. Disse ao
pato: ―Não se mexa. Para depois
não ter queixa‖. E o pato duro e sem
graça. Como se fosse de massa!
―Olhe pra ca direitinho: Vai sair um
passarinho‖. O passarinho saiu,
Bicho assim nunca se viu. Com três
penas no topete. E no rabo apenas
sete.‖

Tabela 5: Comparação entre a 1ª e a 3ª versões.

Célia Abicalil Belmiro (2015) aponta, quando analisa duas ilustrações de um


mesmo texto literário que ―Essas interações são muitas vezes tão profundas que
passam a constituir obras inteiramente distintas e exigem leituras muito particulares.‖
(BELMIRO, 2015, p.2). Na análise das três obras, nota-se que os distintos ilustradores
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foram pessoas que imprimiram suas subjetividades e todo o arcabouço estético e


artístico singular, mas ficaram mais presos ao texto. Embora sejam ricas
esteticamente, as imagens presentes nas três versões não trazem uma ampliação da
narrativa, mas podem ser consideradas redundantes ao reforçarem partes do texto
poético de Mário Quintana.
Por outro lado, a inserção dessas duas linguagens em distintos projetos
gráficos também agrega novos sentidos. Assim, o texto literário inserido em um projeto
gráfico e relacionando-se com o texto imagético pode ser apresentado de diferentes
maneiras para o leitor. Pode, além disso, ainda ser inserido em uma proposta editorial
diferenciada, como por exemplo, coleções de obras com objetivos claros para
determinado consumo, como foi o caso da segunda versão da obra que a inseriu em
uma coleção denominada ―Coleção Quadrinhos‖.
Fica a compreensão de que a formação e toda a trajetória do ilustrador são
relevantes para compreender o diálogo estabelecido entre o texto escrito e o texto
imagético. Os ilustradores apresentam uma nova forma de interação com a obra, no
entanto, a ilustração apresentada pode enriquecer, mas também empobrecer a
relação entre leitor e leitura e isso ocorre quando as imagens podem apenas
descrever o texto escrito. E ―observa-se uma tendência a um certo controle de leitura
por parte dos ilustradores, com a finalidade de facilitar a interpretação do texto verbal,
principalmente se a obra aponta explicitamente a presença de um leitor mirim.‖
(BELMIRO, 2015, p.3) Pode-se dizer que nas três versões os ilustradores investiram
em ilustrações que auxiliassem os leitores a interpretar o texto verbal.
Dentro do espaço de discussão acerca da presença e o lugar ocupado pela
ilustração ou pela linguagem imagética nas produções voltadas para o público infantil
e juvenil, Maria Nikolajeva e Carole Scott (2011), constroem argumentos sólidos para
a diferenciação entre livro ilustrado e livro com ilustração. De uma forma simplificada,
os livros ilustrados são aqueles que para a construção de sentidos é necessária a total
integração e compreensão da linguagem verbal e da linguagem imagética, ou seja,
não há sobreposição entre elas, elas são dependentes e equilibradas. Assim, um livro
ilustrado para ser um livro necessita da integração das duas linguagens.
As três versões da obra analisada podem ser consideradas livros com
ilustrações e não livros ilustrados. Isso porque os poemas presentes nelas foram
produzidos para compor uma obra sem necessitar da presença de imagens para se
construir um sentido esperado. O que não quer dizer que as ilustrações não
acrescentem e não tragam novas possibilidades de interação e construção de
sentidos. O texto visual traz elementos positivos para a experiência leitora. Nesses
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casos, as imagens foram construídas e passaram ―a ser subordinadas às palavras‖.


(NICOLAJEVA, SCOTT, 2011, p.23) Isso acontece em função do período de produção
da primeira versão das obras, ou seja, no século passado ainda era recente a
interação entre texto imagético e texto escrito. E realizar uma análise sem levar em
consideração o contexto histórico de produção é apresentar uma análise anacrônica.
Em uma análise de uma obra feita pelas autoras elas perceberam que ―os
poemas podem existir por si próprios, sem ilustrações, ainda que elas certamente
acrescentem à nossa experiência de leitura.‖ (NICOLAJEVA, SCOTT, 2011, p.25). O
mesmo pode ser dito para a obra ―Pé de Pilão‖. Mário Quintana construiu o seu texto
literário independente da linguagem imagética. Esta veio a constituir a obra, impressa
em um projeto gráfico e em uma materialidade, posteriormente.
De acordo com Belmiro (2015) as imagens podem dialogar, acrescentar,
interpretar o texto escrito. Dependendo da escolha do ilustrador, as ilustrações
assumirão enquadramentos distintos. Dessa forma, cada ilustrador irá escolher qual
recorte do texto escrito será evidenciado em sua produção. A ilustração, nesse
sentido, pode ser considerada como uma releitura do texto literário, feita pelo
ilustrador, que deixa na obra suas marcas pessoais.
Assim:
(...) os pontos de partida por onde os ilustradores penetram nos
textos verbais e propõem sua leitura não coincidem e, mais que
isso, são escolhas baseadas no seu modo particular de olhar e
compreender o mundo. (BELMIRO, 2015, p.12)

Há propostas diferenciadas entre os três ilustradores e o modo de organização


nas páginas e as técnicas escolhidas produzem interações diferenciadas na obra. Não
só as ilustrações, mas também o projeto gráfico, a materialidade e formato de cada
versão fazem com que o texto literário seja apresentado com distintas possibilidades
de interação e construção de sentidos.

Considerações Finais

O texto literário de Mário Quintana produzido inicialmente em 1968, ou seja,


uma produção do século passado, circula até hoje, ao lado de produções atuais. Essa
circulação permite que a obra faça parte do percurso de leitura de diferentes gerações
de leitores. As adaptações feitas pelas distintas editoras inseriram o texto do autor em
diferentes contextos. Assim, a materialidade, o projeto gráfico editorial e as ilustrações
foram alterados adaptando o texto ao contexto do mercado editorial de cada época.

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Textos poéticos, como o de Mário Quintana, produzidos no século passado são


inseridos hoje nos novos projetos editoriais voltados para o público infantil e jovem.
A apresentação tanto do texto literário, quanto da disposição, seleção e
organização das imagens fizeram com que a obra se transformasse em obras
publicadas em distintos períodos, inseridas em diferentes editoras e coleções. Assim,
cada versão buscou atender a um objetivo específico da editora, atingindo públicos
pretendidos. Observa-se, inclusive essas adaptações nas ilustrações que se
diferenciam tanto pelas técnicas, quando pela seleção e interpretação do texto literário
pelo ilustrador. Mesmo que os três ilustradores tenham apresentado nas imagens uma
redundância do texto poético, ou seja, trazendo poucos novos elementos, eles
interpretaram o texto poético de forma diferenciada, e, dessa forma, possibilitaram e
possibilitam diferentes interações.
A presença das ilustrações não tornaram a obra um livro ilustrado, mas um
livro com ilustrações, como poderia se esperar, já que o texto literário de Mário
Quintana foi publicado no século XXI, ao lado de obras atuais. No entanto, a definição
de livro ilustrado está na relação estabelecida entre texto imagético e texto escrito. E a
relação foi construída na elaboração da obra. Assim, o texto poético foi construído de
forma independente e as ilustrações passaram a compor a obra, sujeitando-se ao
texto O texto literário, então, sobrevive sem a presença das ilustrações. Estas, nas três
distintas versões, complementam, enfatizam e destacam pontos relevantes da
narrativa poética.
Há de se fazer um estudo mais aprofundado das ilustrações presentes nas
versões. A relevância e a contribuição da linguagem imagética nas produções voltadas
para a infância e a juventude desenvolveram não só novas técnicas na construção dos
livros, mas também uma necessidade de formação integral do leitor levando em
consideração que a leitura não é apenas de um texto escrito, mas de todo um
emaranhado de linguagens.
As diferentes versões com projetos gráficos e ilustrações diferenciadas
permitem que novas gerações de leitores acessem ao texto poético de um poeta
brasileiro que se destacou no campo da literatura. A difusão da obra garante assim a
sua permanência no contexto literário e, dessa forma, a sua importância.

Referências

AGUIAR, Vera Teixeira de. CECCANTINI, João Luís. Poesia infantil e juvenil brasileira:
uma ciranda sem fim. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012.

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BELMIRO, Celia Abicalil. Um escritor, três ilustradores, quatro obras e muitas histórias
para contar. In: Jogo do livro, 11, 2015, Belo Horizonte: FaE UFMG, 2015 (no prelo)

BORDINI, Maria da Glória. Poesia Infantil. São Paulo: Editora Ática. 1986.

CHARTIER, Roger. A ordem dos livros. Lisboa: Passagens, 1997.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: Teoria, análise, didática. 7. ed. São Paulo:
Moderna, 2000.

________. Dicionário Crítico da Literatura Infantil e Juvenil Brasileira. 2.ed. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 2006.

GENETTE, Gérard. Paratextos Editoriais. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.

NICOLAJEVA, Maria. SCOTT, Maria. Livro Ilustrado: palavras e imagens. São Paulo:
Cosac Naify, 2011.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

PERSONAGENS HUMANAS DA TURMA DA MÔNICA E A


INCLUSÃO SOCIAL

Francisca Keila De Freitas Amoedo, Universidade do Estado do Amazonas-


UEA, Eixo Temático 05: Literatura infantil e as relações com a imagem.
Delma Pacheco Sicsú, Universidade do Estado do Amazonas-UEA, Eixo
Temático 05: Literatura infantil e as relações com a imagem.

Considerações Iniciais
Nas últimas décadas, e com mais força na primeira década do século XXI, o
perfil de alunos nas escolas tem mudado por conta de políticas públicas que têm
assegurado a alunos o direito à Educação na escola regular. Entre essas mudanças
encontra-se a inclusão que assegura a alunos com diferentes necessidades especiais
o direito ao estudo. A problemática porém, advém do contexto escolar,
especificamente da sala de aula em que, apesar das mudanças e do reconhecimento
de que os alunos com necessidades especiais também têm direito à Educação, ainda
há professores e alunos que não enxergam com bons olhos a inclusão social na
escola.
Partindo do contexto acima tomou-se a iniciativa de aliar Letras e Pedagogia
para um trabalho de intervenção em uma escola pública de Parintins com alunos do 3º
ano do Ensino Fundamental I. O trabalho não tomou a literatura como ferramenta para
moralizar ou dogmatizar as crianças, mas como arte que pode, além da leitura de
deleite suscitar a reflexão, a crítica e a consciência da importância da alteridade nas
relações interpessoais.
Optou-se trabalhar com HQs de Maurício de Souza por meio de personagens
humanas, uma vez que esse gênero prendem atenção das crianças por vários
motivos. Entende-se que, as histórias em quadrinho são tão importantes quanto outros
gêneros na formação do leitor. Por se tratar de um texto híbrido, composto pela
linguagem verbal e visual, essas histórias chamam muito atenção das crianças, pois
têm um ingrediente muito importante que é a imagem. As crianças, em geral, sentem-
se atraídas pelas HQs pela forma como as histórias são contadas nesse gênero, num
diálogo entre a palavra e a ilustração. Assim, diferente da concepção de muitos acerca
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das HQs, quando se pensa que elas estão apenas para o entretenimento, entendemos
que essas histórias vão além do deleite. A criança, ainda em processo de
alfabetização, embora não domine potencialmente o código escrito, atribui sentidos a
esse tipo de texto, por meio das imagens. Partindo dessa constatação, o presente
trabalho toma como objeto de estudo três personagens da Turma da Mônica para
discutir acerca da inclusão com crianças do Ensino Fundamental I de uma escola
pública Parintins. As personagens ora referidas figuram como crianças que têm uma
limitação física, mas que interagem normalmente com outras crianças da turma.
Toma-se, então como foco a personagem Clarinha que é cega, o Humberto que é
surdo e o Lucas que é cadeirante para a partir do enredo de algumas historinhas e da
condição dessas personagens, provocar nas crianças a reflexão acerca da importância
de se respeitar o outro pelo que ele é e pela sua condição.

A literatura na sala de aula: da leitura à interação lúdica, crítica e reflexiva


Como dito antes, a proposta da pesquisa em questão não foi utilizar a literatura
infantil numa perspectiva dogmatizante, mas a partir dela, por meio de atividades
lúdicas suscitar nos alunos, sujeitos desta pesquisa, a reflexão, a crítica e a relação de
alteridade com crianças portadoras de necessidades especiais. Para a efetivação
desta proposta, tomou-se como base a proposta de Maria Alice Faria que em seu livro
Como trabalhar a literatura infantil em sala de aula (2004) traz várias propostas de
leitura com a literatura infantil como experiência literária que por meio de diferentes
gêneros pode não apenas trabalhar a arquitetura do texto, mas também permitir a
participação do leitor na construção do sentido do texto. A autora preocupa-se não
apenas em trabalhar o texto verbal, mas foca também na grande importância que as
ilustrações no livro e de como as HQs podem conquistar o pequeno leitor para o
mundo da leitura literária.
Diferente do que muitos pensam, a literatura infantil, é tão importante e tão rica
como a literatura destinada ao público adulto; contempla todos os elementos de um
texto literário como a plurissignificação, a atemporalidade, e a universalidade.
Contudo, ao transformar o texto literário em mecanismo para incutir ideias, valores e
normas, a literatura infantil perde sua essência, pois o lado estético é deixado de lado
em detrimento do pedagógico. O ideal é que como afirma Nelly Novaes Coelho em
seu livro Literatura Infantil: teoria, análise e didática (2000) é que haja um ponto de
equilíbrio entre arte literária e o pedagógico. Até mesmo porque independente do
público a que se destina, a literatura também pode transcender para outros campos
como o pedagógico.
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O problema talvez esteja na formação leitora do professor como também na


concepção que a escola em seu currículo tem acerca do papel da literatura e das
relações desta com a condição humana e com o contexto social no qual ela produzida
e recepcionada, desconsiderando que a literatura é um reflexo da vida, Sobre essa
questão Regina Zilberman em seu livro A literatura infantil na escola afirma: ―As
relações da escola com a vida, são, portanto de contrariedade: ela nega o social para
imprimir o normativo‖ (2001, p. 22).
A literatura, se trabalhada numa abordagem aberta em que o leitor também
possa imprimir sentidos, impressões e opiniões sobre o texto, ela pode ser uma janela
aberta para uma escola inovadora e libertária que se constrói e se realiza com a
participação ativa e seus educandos. Para isso, é necessário lançar mão de
estratégias de leitura que sejam um convite tanto para o brincar como para o pensar; é
necessário conquistar o pequeno leitor para o universo mágico que é o texto literário
infantil. Por isso, leituras como histórias em quadrinhos ou livros ilustrados devem ser
utilizados como leituras que além do deleite também podem ensinar. O poder que a
literatura tem para promover a reflexão e a crítica é tão grande e pode contribuir
consideravelmente na forma de ver e compreender o outro, o que só se torna possível
quando a abertura para o imaginário, para a liberdade de expressar as interpretações
sobre o texto.

O discurso literário só avança na contramão é desse modo que


consegue tornar audíveis as mais diferentes vozes, estabelecer
diálogos diversos e inusitados, acolher o próximo e o distante, o
estranho e o familiar. Se o faz é porque oferece mitos e contramitos,
capazes de abalar o que acreditávamos ser inquestionável, o que
supúnhamos sentir e pensar. É por ser múltipla que a literatura
oferece um espaço de liberdade. Sem cruzamentos de falas, sem
tensão, sem aventura de sentidos, onde há literatura?
(CADEMARTORI. 2012, p. 50).

Pensando na aproximação e interação com os alunos do 5º ano para trabalhar


acerca da inclusão social é que se optou por trabalhar essa temática por meio de HQs
de Maurício com personagens humanas, portadoras de necessidades especiais. E
para a efetivação do trabalho nos apropriamos dos estudos de Paulo Ramos, um dos
maiores estúdios no Brasil acerca das histórias em quadrinho. Em seu livro A leitura
dos quadrinhos (2012), estudioso nos oferece explicações importantíssimas sobre as
HQs desde suas características como gênero textual como também a importância da
linguagem, das cores e das vozes presentes nessas histórias. ―Ler quadrinhos é ler
sua linguagem, tanto em seu aspecto verbal quanto visual (ou não verbal. A
expectativa é que a leitura –da obra e dos quadrinhos- ajude a observar essa rica

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linguagem de um ponto de vista mais crítico e fundamentado.‖ (RAMOS. 2012, p. 14)


É, pois nesta relação entre o texto verbal e o visual que
as HQs surgem como textos que além de agradarem o leitor infantil também podem
lhes permitir ver o mundo e o outro de uma maneira mais compreensiva, por meio de
uma leitura que, diferente da visão equivocada de muitos, não está apenas para
divertir, mas também para ensinar.

Exercendo a inclusão a partir das historias da turma da Monica: das histórias em


quadrinho para escola.
Uma nova visão sobre a inclusão nos é apresentada a partir das historias em
quadrinhos da turma da Mônica. Sempre atento às questões sociais, o autor Mauricio
de Souza , nos apresenta em suas historias a questão das crianças com
necessidades especiais, afastando os paradigmas de que elas não podem conviver
socialmente com as demais crianças.
Visão esta que começou a mudar a partir dos direitos humanos e do conceito
de cidadania fundamentados no reconhecimento das diferenças e na participação dos
sujeitos, independente de suas diferenças, com base em uma visão norteada pelo viés
da inclusão.
O trabalho desenvolvido com alunos do Ensino Fundamental I com uma turma
de 5ºano, em uma escola estadual na cidade de Parintins, tomou como objeto de
estudo as histórias em quadrinhos da turma da Mônica com personagem humanas
portadoras de necessidades educacionais especial. A leitura das referidas histórias em
quadrinho, fez que os alunos vivenciassem uma experiência rica e tomassem
posicionamentos positivos no que se refere à inclusão .
O trabalho desenvolvido com as crianças nos faz lembrar que um dos objetivos
da escola é despertar o interesse dos alunos ao ato de ler, no entanto, para que isso
aconteça é essencial que o professor busque meios diferenciados e atraentes que
provoquem nos aluno o gosto pela leitura.
Lucia Aparecida de Rezende (2009, p. 126) comenta que as Histórias em
Quadrinhos são ―[...] obras ricas em simbologia – podem ser vistas como objeto de
lazer, estudo e investigação‖. Assim, entendemos que a maneira como as palavras,
imagens e as formas são apresentadas nas histórias em quadrinhos, faz toda a
diferença no processo de leitura, tornando-se um convite à interação entre texto-
autor-leitor.
Nesse processo de interação entre texto-autor-leitor, figura Maurício de Sousa
que conquistou o Brasil e o mundo com seus personagens da Turma da Mônica e
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trouxe a questão da inclusão por meio de personagens humanas cujas histórias


vivenciadas por elas chegam até o leitor apresentando, metaforicamente, a realidade
de muitas pessoas portadoras de necessidades especiais. De maneira criativa e
surpreendente, os personagens apresentados crianças, possuem características
humanas; são nascidas e criadas em uma família, brincam, brigam, divertem-se,
festejam datas comemorativas, estudam, passeiam, fazem novos amigos e aceitam
em seu convívio aqueles que muitas vezes são considerados diferentes.
Durante a conversa com os alunos, todos eles disseram conhecer a Turma da
Monica e gostar das histórias em quadrinho. Quando lhes foram apresentados os
personagens com necessidades especiais, alguns já os conheciam, tornando a leitura
ainda mais prazerosa. A primeira personagem portadora de necessidades especiais
apresentada às crianças foi Dorinha, uma menina cega, muito esperta e atenta que
convive naturalmente com outras crianças e percebe as coisas ao seu redor muito
mais que outras personagens que não têm essa necessidade .

Fonte: turmadamonica.uol.com.br/inclusaosocial

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As histórias em quadrinhos que apresentam os personagens, surdo, cego,


cadeirante e autistas, vêm chamando a atenção para o fato de que as crianças
convivem naturalmente dentro da diversidade. A atual Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional-LDBEN, Lei nº 9394/96, estabelece no capítulo V, art. 58, que a
educação dos ―alunos com necessidades especiais‖ deve acontecer preferencialmente
na rede regular de ensino.
Esse mesmo artigo diz também que, nos casos em que as necessidades
específicas do aluno impeçam que ele se desenvolva satisfatoriamente nas classes
existentes, ele tem o direito de ser educado em classe ou serviço especializado.
A esse respeito, é importante refletir que ―escola inclusiva não é sinônimo de
escola regular.‖ (SÁ. 2005, p.188). Na opinião da autora, e nós comungamos desse
pensamento, a escola passa a ser inclusiva quando ela se constitui significativamente,
possibilitando que a aprendizagem aconteça de forma efetiva.
Durante a aplicação das oficinas de leituras, os alunos participaram de forma
significativa e antes da releitura das histórias, realizamos uma dinâmica, envolvendo
os alunos. A dinâmica consistia em fazer com que as crianças se colocassem no lugar
das personagens Dorinha (cega), Luca (cadeirante) e Humberto (surdo).
Dorinha foi a personagem que logo se destacou. Colocamos a venda em
alguns alunos que caminharam pela escola com ajuda do colega, a fim de que se
colocassem na condição de um cego. Os estudantes realizaram a atividade como
uma forma de brincadeira. Por isso, entende-se que [...] o brincar espontâneo é
importante para a aprendizagem das crianças para sua preparação para a pedagogia
mais estruturada do ensino fundamental‖. (CORSARO. 2011, p 21). Ao brincar
livremente, a criança tem a oportunidade de se desenvolver de forma natural.
O brincar possibilita a interação entre as crianças, ajudando-a assim a
estabelecer relações de amizade com o outro, socializando-se, conhecendo e ,
estabelecendo relações de amizade e respeito e isso se reflete na adaptação no
ambiente escolar, além de ser um grande significado para ampliar as potencialidades
dos alunos. Percebemos ainda durante as oficinas de leituras, que as crianças
construíam juntas conhecimentos. Durante a leitura de uma das histórias em
quadrinho, uma criança complementou a fala do colega, dando significado ao texto e
defendendo importância da inclusão no ambiente escolar.
Na troca de informações e de experiências, os alunos aprenderam
espontaneamente. Isso porque, o ato de ler possibilita o contato entre as crianças,
onde a partir disso elas passam a interagir, socializar, a trocar conhecimentos e
aprender brincando. ―O brincar é a condição da aprendizagem e, desde logo, da
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aprendizagem da sociabilidade.‖ (SARMENTO, apud SARMENTO. M. & CERISARA.


2000, p. 15)
Outra personagem com necessidades especiais da Turma da Mônica é o Luca.
Após a leitura da historinha, abriu-se espaço para que as crianças dissessem o que
mais lhes chamou atenção e como elas veem os cadeirantes. Uma das crianças disse
que eles não podem estudar porque não sabem andar. Neste momento, outra aluna
disse que tinha medo de se aproximar de um cadeirante porque temia machuca-lo. A
conversa foi acontecendo e deu para perceber que os alunos têm uma certa
resistência, não porque tem preconceito, mas porque têm medo de machuca-los.

Fonte: turmadamonica.uol.com.br/inclusaosocial
Ainda enquanto oficina, conhecemos o personagem Humberto que é surdo , e
conversa através da língua de sinais. Após a leitura da tirinha do Humberto os
estudantes fizeram o alfabeto e ilustraram através de desenhos alguns sinais.

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Fonte: turmadamonica.uol.com.br/inclusaosocial
Ao refletirmos sobre a socialização das crianças, conversamos com a
professora se porventura elas se socializavam com frequência durante as aulas e qual
a importância das histórias em quadrinhos do para que a socialização aconteça. A
professora respondeu que sim, mas que a atividade realizada com as histórias em
quadrinho além de tratar sobre a inclusão, fez com os alunos participassem mais.
As atividades realizadas com personagens da turma da Mônica apresentam
grande pluralidade educativa no processo de ensino e aprendizagem da leitura,
desenvolvimento de valores, conhecimentos culturais, representações do modo de
viver, entre outros. A LDBEN/96, no artigo 59, preconiza que os sistemas de ensino
devem assegurar aos alunos currículo, métodos, recursos e organização específicos
para atender às suas necessidades. Por isso é necessário repensar constantemente o
currículo bem como as práticas educativas que envolvem leitura, interpretação e
recepção da literatura no espaço escolar.

Considerações Finais
A realidade dos alunos com necessidades especiais nas escolas ainda é
desafiadora. Considera-se que, no processo de inclusão escolar é necessário
entender que os alunos têm o direito de serem pessoas diferentes e não tratados
como deficientes e incapazes, pois dependendo da maneira como lhes é ensinado,
eles podem ler, escrever, interpretar, cada um no seu ritmo.
As histórias em quadrinho pelo seu caráter lúdico e pela linguagem que
envolvem o verbal e o visual, podem contribuir consideravelmente na promoção da
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leitura literária por meio da experiência que pode ainda transcender para a reflexão,
ajudando o pequeno leitor a perceber a condição humana presentes nos textos e
assim compreender melhor o outro, em especial as crianças portadoras de
necessidade especiais.
Em suma, percebemos que a atividade realizada com os alunos na leitura e re
(construção ) das histórias em quadrinhos que envolvem a inclusão social dentro do
trabalho educativo de leitura, além de divertido, trata da própria representação da
escola, enquanto espaço inclusivo.

Referências

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EIXO TEMÁTICO 6

Literatura Infantil e Juvenil e as


Múltiplas Linguagens
Literatura infantil e juvenil e as múltiplas linguagens
Fabiane Verardi Burlamaque (Universidade de Passo Fundo), Diogenes
Buenos Aires de Carvalho (Universidade Estadual do Piauí), Zíla Letícia
Goulart Pereira Rêgo (Universidade Federal do Pampa – Unipampa).

Considerando o papel que a literatura teve ao longo dos tempos de representar


a experiência humana em sua diversidade, cabe refletir sobre as múltiplas
linguagens através das quais a LIJ contemporânea se apresenta, bem como o
papel que os novos suportes e artifícios adquirem na sedução e envolvimento
dos leitores. Dessa forma, o presente eixo pretende ser um espaço para o
compartilhamento de pesquisas e experiências que enfoquem a escolarização
desse acervo bem como a crítica que a ele se volta.
ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

POESIA ELETRÔNICA: UMA POSSIBILIDADE DE FORMAÇÃO


DE LEITORES

Margarete Maria Soares Bin, UPF, eixo temático 6-Literatura infantil e


juvenil e suas múltiplas linguagens
Orientador: Miguel Retenmaier da Silva

Considerações Iniciais

Este trabalho apresenta a poesia eletrônica como subsídio a ser utilizado em


sala de aula, tendo em vista a dificuldade de muitos estudantes não lerem, mas
estarem conectados durante grande parte do dia nos meios eletrônicos. Com isso, faz-
se pertinente que a escola não fique distante da vida do estudante e sim tente
aproximá-lo. Para isso, uma alternativa interessante e inovadora, é o uso das poesias
eletrônicas como estratégia para tentar atrair os estudantes que não leem e continuar
a aguçar a curiosidade daqueles que já são leitores.
A intenção, por meio deste artigo, é apresentar algo novo aos docentes e
discentes, denominada Eletronic Literature Collection, à qual é uma organização que a
proporciona recursos multimodais no mesmo ambiente, ou seja, elementos que fazem
parte do que o estudante faz fora da escola e por meio de um ambiente interativo o
estudante tem a possibilidade de se sentir motivado à leitura.
Dessa maneira, a intenção é a de colaborar com avanços em relação à leitura
a fim de que tanto a comunidade acadêmica quanto à sociedade possam usufruir
dessa ferramenta digital e proporcionar aulas atraentes, fazendo com que a leitura
atinja realmente seu objetivo: a fruição e por meio dela o estudante aprenda sem
perceber.


Tese de Doutorado em andamento na UPF de Passo Fundo-RS, Linha de Pesquisa
Leitura e Formação do Leitor.
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Assim, são pertinentes as contribuições de alguns teóricos, especialmente


Katherine Hayles, Lúcia Santaella, Róger Chartier e Massimo Canevacci, ressaltando
que esta pesquisa é qualitativa.
Para dar cabo dessas considerações no primeiro momento parte-se para
informações e conceitos de teóricos principais que tratam de leitura, especialmente no
que se refere a literatura eletrônica e logo após apresenta-se a análise de alguns
poemas que se encontram na Organização de poemas em estudo.

Literatura eletrônica mediando sentidos

A Literatura eletrônica é o eixo deste trabalho, para isso, torna-se necessário


defini-la. Katherine Hayles (2009, p. 21) a caracteriza como uma ―obra com um
aspecto literário importante que aproveita as capacidades e contextos fornecidos por
um computador independente ou em rede".
Para a referida autora (2009, p. 20) ―ela é nascida no meio digital, um objeto
digital de primeira geração criado pelo uso de um computador e (geralmente) lida em
uma tela de computador‖. Ou seja, a literatura eletrônica é uma obra literária feita para
mídias digitais, utilizando-se dos recursos disponíveis nesses meios. Assim, no lugar
do leitor acessar o livro impresso acessa o ambiente virtual.
A fim de avançar no entendimento torna-se pertinente as colocações de Róger
Chartier (1994, p. 100-101):

Se abrem possibilidades novas e imensas, a representação eletrônica


dos textos modifica totalmente a sua condição: ela substitui a
materialidade do livro pela imaterialidade de textos sem lugar
específico; às relações de contigüidade estabelecidas no objeto
impresso ela opõe a livre composição de fragmentos indefinidamente
manipuláveis; à captura imediata da totalidade da obra, tornada
visível pelo objeto que a contém, ela faz suceder a navegação de
longo curso entre arquipélagos textuais sem margens nem limites.
Essas mutações comandam, inevitavelmente, imperativamente,
novas maneiras de ler, novas relações com a escrita, novas técnicas
intelectuais.
Aos poucos vai se difundindo essa forma de leitura, embora ainda sofra
resistência daqueles que não a conheçam. O medo do manusear por parte da maioria
dos educadores, dificulta sua disseminação. Na maioria das vezes, o que se percebe é
que na escola circula o texto impresso ou digitalizado, estando às salas de aulas,
muito distantes da literatura eletrônica.
Várias discussões também se deram em razão disso, inclusive questionando
se o livro desapareceria. Segundo Jean-Claude Carrière (2010) essa ideia de cultura
ameaçada sempre existiu. Aí basta pensar nas outras artes que já foram ameaçadas.
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O teatro não desapareceu com o cinema, nem o quadro com a fotografia, o rádio com
a televisão.
Disso, pode-se observar que os dois modos se complementam, não se
substituem. Para Hayles (2009, p 185)
As tecnologias digitais colocam em jogo dinâmicas que interrogam e
reconfiguram as relações entre autores e leitores, seres humanos e
máquinas inteligentes, código e linguagem. Os livros não vão
desaparecer, mas também não vão escapar dos efeitos das
tecnologias digitais que os interpenetram. Mais do que um modo de
produção material (embora o seja), a digitalidade tornou-se a
condição textual da literatura do século XXI.

De acordo com a referida autora (2009, p. 38) ―a mudança de mídia impressa


para a mídia programável é mais complicada pelo fato de que as práticas de
composição continuam a evoluir com as mudanças tecnológicas em um ritmo
estonteante‖.
Soma-se a isso as colocações de Andéa Cecília Ramal (2002, p. 84):

Estamos chegando à forma de leitura e de escrita mais próxima do


nosso próprio esquema mental: assim como pensamos em hipertexto,
sem limites para a imaginação a cada novo sentido dado a uma
palavra, também navegamos nas múltiplas vias que o novo texto nos
abre, não mais em páginas, mas em dimensões superpostas que se
interpenetram e que podemos compor e recompor a cada leitura.
A esse respeito, Katherine Hayles (2009, p. 65) explicita que ―à luz desses
avanços, parece razoável supor que os cidadãos em sociedades desenvolvidas
tecnologicamente, e os jovens em especial, estejam literalmente sendo reformulados
por suas interações com dispositivos computacionais‖.
Tal pensamento vai ao encontro de Lúcia Santaella (2013) quando esta utiliza a
expressão ―pós-humano‖ no sentido de superar o conceito anterior de humano nos
limites físicos, ou seja, é uma mistura de homem e máquina. Convém salientar que
Massimo Canevacci (2005) os denomina de ―ciborgues‖. Ainda, Santaella, salienta que
a revolução digital não está apenas transformando as formas de comunicação, mas
também está acontecendo modificações mentais e corporais. Assim, o rápido
desenvolvimento das tecnologias digitais está alterando os modos de comunicação e
interação entre os homens e o mundo.
E se as tecnologias evoluem e proporcionam a evolução, a escola tem o dever
de tentar acompanhar as mudanças sociais, como instituição, mas que envolve outros
órgãos para que ela consiga implementar, tornando-se indispensável que seja
facilitado o acesso a todos os estudantes. Desta maneira, o objetivo de incentivar a
leitura, pelos meios digitais, poderá se concretizar.

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Henry Jenkins (2014) fala sobre a participação na cultura por meio da


tecnologia e cita que um cientista quando ouve uma boa ideia passa adiante para os
colegas e aos estudantes. Assim, se a ideia ―pegar‖ pode-se dizer que ela se difunde,
espalhando-se de uma pessoa a outra. Isso também pode acontecer com os poemas
digitais a medida que as pessoas forem conhecendo e propagando a ideia. É preciso
criar modelos de uso, é necessário dar oportunidades de utilização, quanto mais
escolas acessarem a organização e manusearem, estarão servindo de guia às demais
instituições escolares e assim haverá cada vez mais adeptos a essa literatura
diversificada.
Jenkins (2014) enfatiza que
A cultura contemporânea está cada vez mais participativa,
especialmente se comparada com a ecologias de mídias anteriores,
principalmente as dependentes da mídia tradicional de massa. No
entanto, nem todo mundo tem permissão para participar, nem todo
mundo é capaz de participar, nem todo mundo quer participar e nem
todo mundo que participa o faz em igualdade de condições.

Complementa-se, seguindo o referido autor (2014) que, pensando em construir


uma sociedade informada, torna-se imperioso envolvimento de várias instituições
engajadas em apoiar e não restringir esse ambiente, tornando-o cada vez mais
inclusivo.
Sabe-se que utilizar mídia faz parte do dia a dia das pessoas, a tecnologia foi
se inserindo e evoluindo. Dessa forma a relação dos jovens com a literatura também
sofre alterações, pois basta pensar, seguindo Hayles (2009) que evidências baseadas
em relatos informais, assim como estudos com imagens do cérebro, indicam que a
geração M (grupo entre oito e dezoito anos) está passando por uma mudança
cognitiva significativa, caracterizada por um desejo por estímulos que variam
constantemente, baixa tolerância ao tédio e habilidade de processar múltiplos fluxos
de informação simultaneamente. Esse modo cognitivo, a autora denominou
hiperatenção. Diante desse quadro atual de virtualidade, o professor não pode
ficar distante, continuar com suas aulas apenas em livros impressos, apostilas e
quadro. É preciso pensar em possibilidades e rápido. Para essa geração que nasceu
praticamente envolto por essas transformações (os nativos digitais) torna-se
praticamente impossível ficar um dia sem ter contato com a tecnologia e, ainda mais,
conectar-se à internet. Dadas essas circunstâncias torna-se necessário cada vez mais
que as aulas sejam atrativas para resgatar e manter estudantes a fim de que os
mesmos sintam encanto pelo conhecimento e em especial pela literatura. Jenkins
(2009, p.10) afirma que ―estamos numa época de grandes transformações, e todos

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nós temos três opções: temê-las, ignorá-las ou aceitá-las‖.


O próprio conceito de jovem de hoje, sofre
alterações. Para Canevacci (2005, p. 29)

Em razão das culturas fragmentadas, transculturais, comunicações


mass-midiáticas; virou-se do avesso as categorias que fixavam faixas
etárias definidas e claras, assiste-se a um conjunto de atitudes que
caracterizam de modo único nossa era: as dilatações juvenis,
identidades móveis. Para o autor, ainda, a comunicação juvenil
recusa-se a permanecer restrita no âmbito de rituais obsoletos,
retóricas inúteis, organogramas rígidos.

Dessa forma, terminam-se as faixas etárias, o corpo natural, multiplicando-se


as identidades móveis. Essa fragmentação torna-se, para o autor (2005, p. 47) uma
trama de libertações possíveis, por experimentações nas e entre as linguagens por
mutações dos paradigmas.
Percebe-se que o ao se trabalhar com os poemas utilizando-se da
tecnologia, os estudantes estarão usando várias habilidades, o que vai ao encontro do
que perfil jovem proclama, não mais por atividades repetitivas e alienadas, mas por
habilidades criativas e diferenciadas, que agora podem ser inéditas. Segundo
Santaella (2005, p. 139)

O próprio olhar, se comparado com o ouvido [...] tem características


de fixidez em relação ao visualizável que o ouvido não tem em
relação ao audível. O olho pode se fixar indefinidamente sobre os
objetos de sua atenção, enquanto o ouvido está sempre apenas
aberto, disponível àquilo que simplesmente passa.

Ou sejam, as imagens chamam a atenção do leitor, vão espertar o interesse


para clicar na tela e saber o que aquele poema apresenta, agregado ao som, mas que
traz representações visíveis e interativas, às quais não seriam possíveis apenas
ouvindo o poema numa folha impressa. Para a autora (2013) as experiências da leitura
em meio impresso ou em meio digital são distintas. Cada uma delas apresenta
vantagens e desvantagens.
Embora a obra possa ser a mesma, em forma impressa e em formato
eletrônico, sua função se modifica quando sua materialidade está interpenetrada por
padrões computacionais.
Além do mais, essa conexão pelos meios eletrônicos aproxima leitor e autor.
Seguindo Camila Canali Doval (2015, p. 75) ―temos cada vez mais zonas de contato
com quem escreve, e isso nos dá cada vez maior intimidade com os escritores e seus
processos de criação‖.

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Para tanto faz-se importante que o mediador tenha os conhecimentos


necessários para acompanhar os estudantes. Para Katherine Hayles (2009) é preciso
novas formas de ensino, interpretação e execução, ainda acrescenta a expressão ―
pensar digital‖ (2009, p. 43).
Por fim, cabe destacar que a tecnologia muda, conforme destacado pela autora
acima (2009, p. 126), ―também mudam os corpos e cérebros, e com isso novas
condições de mídia fomentam novos tipos de adaptações ontogênicas e com elas
novas possibilidades de envolvimentos literários‖.
Por isso, faz-se importante que o mediador tenha os conhecimentos
necessários para estimular os estudantes a essa prática literária diante de uma
sociedade tecnológica que se apresenta.
Na sequência descreve-se uma breve apresentação e análise de quatro
poemas.

Apresentação e análise de alguns poemas

Tendo em vista a intenção de demonstrar a utilização dos poemas eletrônicos


em estudo, acessou-se a Organização eletronicliterature collection, na qual se
encontram três coletâneas de poemas com autoria de diversos países. Para esta
análise preteriu-se os seguintes poetas e seus respectivos poemas: Chico Marinho,
brasileiro, poema ―Palavrador‖ (Volume 2); Rui Torres, português, poema ―Amor de
Clarice‖ (Volume 2); Antônio Abernú, português, poema ―@gua_um conto digital‖-O
homem que queria ser água‖ (Volume 3) e por último, Pedro Barbosa, português, com
o poema ―Cyberliterature‖ (Volume 3).
―Palavrador‖ , poema de Chico Marinho, remete para palavras. O leitor
navega contra um bando de palavras, escolhe poemas, opta entre dois avatares que
irá lhe representar. É possível fazer avatares vomitar poemas, implica ação. O cenário
é sombrio, há uma música de fundo, uma engrenagem se movendo representando a
roda da vida e áudio, supõe-se que seja o autor falando. Palavras caem, voam.
Juntamente com a voz do poeta eis que surge outra que se sobrepõe e diz diferentes
versos como por exemplo: ―a palavra passa o que a gente pensa‖. Palavras escorrem,
tudo isso acontecendo enquanto um dado vai girando (nele consta caricaturas) e
voando por entre as imagens. O dado sofre mutações no decorrer desta viagem. Além
disso, conforme o dado se aproxima do leitor aumenta o som, conforme se afasta o
som vai diminuindo. Nas duas imagens abaixo aparece o dado. A primeira imagem
retrata o dado como aparece na maior parte das vezes com asas, nas quais estão
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escritas palavras. Na segunda tela o dado aparece com a palavra poesia. Eis que
esses são apenas alguns dos exemplos do que aparece no poema. Soma-se a essas
informações o registro de que o poema permite reflexões acerca da vida, podendo ser
lido e pausado para discussões no grupo. O leitor deve tentar descobrir o sentido
neste cenário interativo em que se permite várias possibilidades, cujo espaço se dá
em forma de game.

Figura 1: Palavrador, de Chico Marinho

Figura 2: Palavrador, de Chico Marinho

O próximo poema a ser analisado, denomina-se ―Amor de Clarice‖ do autor Rui


Torres, o qual representa o conto ―Amor‖ de Clarice Lispector. Aqui o fator
preponderante é o inesperado. Ao clicar, o participante não sabe o que vai acontecer,
apresentando de forma surpreendente a precariedade da situação humana, o que não
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seria possível se a leitura fosse feita apenas no papel.


Não se poderia deixar de acrescentar, que esta é uma forma lúdica de
trabalhar com este poema tão importante na literatura. Ao se trabalhar com este
poema o professor pode primeiramente trabalhar com o conto e depois os estudantes
interagirem com o poema, pois estarão familiarizados com as informações
predominantes e discutidas durante a leitura do conto.
O poema inicia dançando pela tela para a direita e para a esquerda:

Figura 3: Amor de Clarice, de Rui Torres

É possível clicar em qualquer palavra e ela remeterá a uma imagem e/ou a


outras palavras que dançam, mesclam-se com música de fundo diferente para cada
palavra clicada e a voz do autor falando palavras relativas às palavras clicadas, por
vezes como uma espécie de eco. Permite que o estudante vá desvendando o poema e
interpretando-o melhor, as animações instigam a querer descobrir o que aparecerá ao
clicar em cada palavra, frase. Na imagem acima, escolheu-se para clicar as palavras
grita horror (que inclusive apresentam-se destacadas no texto, para representar a
urgência do grito), na sequência (imagens abaixo) apareceu uma luz que ora acende
ora apaga-se, provavelmente simbolizando a vida e a morte inclusive com o sentido de
viver, mas sem ter objetivos, sem sentido, uma vida quase morta.

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Figura 4: Amor de Clarice, de Rui Torres

Figura 5: Amor de Clarice, de Rui Torres

O próximo poema em destaque é ―@gua_um conto digital‖-O homem que


queria ser água-Antônio Abernú‖ (consta no Volume 3), realçando a importância da
água. O título pertinente para este poema, inicia pelo arroba, símbolo utilizado na
informática, mas que também pode se referir as condições em que os dados são
válidos ou para denotar átomos e moléculas em certas condições especiais.
Vale acrescentar que o poema mostra os estados da água
(sólido, líquido, gasoso) e o leitor escolhe a cena que corresponde aos estados da
água.

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Figura 6: ―@gua_um conto digital‖ de Antônio Abernú

Por exemplo, ao clicar no sólido, ouve-se pássaros e o autor falando, aparece


imagem de rocha, o autor conta uma história de um homem que estudou a água,
ouvem-se o borbulhar de água, apareceu imagens do céu escuro, noite, gaivotas. Há
música de fundo condizente com aquilo que o autor fala. Torna-se interessante
manusear e conhecer cada estado da água que se apresenta, pois novas histórias
interessantes e emoções diversas bem abarcadas.

Figura 7: ―@gua_um conto digital‖ de Antônio Abernú

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O último poema aqui analisado trata-se de ―Cyberliterature‖ de Pedro Barbosa


(Volume 3). Constam seis poemas escritos em português e inglês. Para acessá-los
basta utilizar a flechinha na parte superior da tela e clicar no poema desejado. Ele
aparecerá na tela como se o autor estivesse escrevendo no momento, as letras
correm da esquerda para a direita. O poema aqui escolhido foi ―Teoria do homem
sentado‖:

Figura 8:Cyberliterature, de Pedro Barbosa

Muitas atividades podem ser feitas diante desses poemas de Pedro Barbosa,
permite que o estudante os leia, escolha e analise. O autor faz uma crítica interessante
sobre a comodidade do homem atual, o qual dispõe de uma variedade de
equipamentos que o fazem ser sedentário, imerso em vários botões não é necessário
que se levante da cadeira para acessar o que deseja.
Assim, procurou-se demonstrar o que são esses poemas, a interatividade
presente, a facilidade de manuseio, a importância de serem integrados às aulas,
proporcionando aprendizagem usando desta tecnologia.
Outras observações poderiam ser feitas com esses quatro poemas analisados
neste capítulo, por isso coube aqui uma demonstração de que é possível e
interessante trabalhar com os referidos poemas em sala de aula e muitas discussões,
curiosidades, poderão ser provocadas em razão do contato com os mesmos.

Considerações Finais

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O que se verifica por meio da teoria e das análises aqui efetuadas é que a
atividade poética nos meios eletrônicos-digitais tem se mostrado como uma alternativa
para atrair leitores e uma possibilidade de se trabalhar literatura. Com isso a
linguagem verbal se expande, abrindo seus horizontes também para o texto sonoro,
visual, digital, inclusive em outro contexto. A interatividade faz-se presente, mesclando
tecnologia e humano, produzindo sentidos.
A liberdade de expressão, o poder de interpretação, o conhecimento com
novas formas de expressão cultural está à disposição de todos, assim a intenção aqui
é disseminar esta ideia de navegar pela organização eletronic literature collection junto
aos educadores, mediadores, estudantes e a sociedade.
Há que se enfatizar que os poemas aqui analisados, serviram como
demonstração de que tal prática pode ser ampliada, inclusive com a utilização de
outros poemas constantes nos volumes da Organização.

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Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

APP BOOKS E LITERATURA INFANTIL: ANÁLISE DOS


APLICATIVOS BOUM! E FLICTS

Aline Lupak, ULBRA, Eixo Temático 6: Literatura Infantil e Juvenil e as


múltiplas linguagens, CNPq
Luís Otávio de Vargas Moraes ULBRA, Eixo Temático 6: Literatura Infantil e
Juvenil e as múltiplas linguagens, FAPERGS
Edgar Roberto Kirchof, ULBRA, Eixo Temático 6: Literatura Infantil e Juvenil e
as múltiplas linguagens, CNPq

Considerações Iniciais

O presente trabalho é parte da pesquisa ―A Literatura Infanto-juvenil na Era


Digital: Mercado editorial, Valor literário e Letramento digital ‖, liderada pelo professor
Edgar Roberto Kirchof. O objetivo é investigar a produção recente de obras de
literatura digital (sobretudo aplicativos) direcionadas para crianças e jovens, com
ênfase em três eixos: (1) estudo sobre a relação desse tipo de literatura com o
mercado editorial; (2) reflexão sobre valor e qualidade estética de obras digitais com
base em bibliografia específica sobre literatura digital; (3) pesquisa sobre as
dimensões cognitivas e pedagógicas de obras digitais com base em estudos recentes
realizados na Europa e nos Estados Unidos com crianças e jovens em sala de aula,
bem como em estudos sobre letramento literário e digital. A pesquisa iniciou em 2016
e será finalizada em 2018.
Este artigo, por sua vez, foi produzido como parte das atividades dos bolsistas
de iniciação científica na pesquisa e tem, como objetivo, apresentar os resultados da
análise que os bolsistas realizaram dos seguintes app books (aplicativos literários):
Boum!, de, Mikaël Cixous, produzido por Les Inéditers; e Flicts, uma adaptação da
obra do renomado escritor brasileiro Ziraldo, desenvolvido pela Engenhoca. O primeiro
recebeu uma menção honrosa no Bologna Children's Book Fair, em 2015, ao passo
que o segundo é vencedor do 3º lugar na categoria Livro Digital Infantil do Prêmio
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Jabuti, também no ano de 2015. As análises visaram investigar como são construídos
recursos estético-literários, em ambas as narrativas digitais, a partir de elementos
típicos da linguagem em ambiente digital, tais como a possibilidade de inserir som,
movimento e recursos de hipermídia nas histórias. A fundamentação teórica baseia-se
em estudiosos da literatura digital infantil, tais como Frank Serafini, Junko Yokota,
Neus Real, Cristina Correro, entre outros. A metodologia adotada está baseada em
dois principais procedimentos: a pesquisa bibliográfica e a análise das obras.

Algumas questões teóricas preliminares


Atualmente, prosperam obras produzidas em suporte impresso que dialogam
com temáticas e linguagens ligadas à cibercultura e às novas mídias; de outro lado, a
difusão da Internet e o acesso cada vez mais facilitado a computadores pessoais
também têm possibilitado a criação de formas literárias digitais, produzidas a partir de
recursos eletrônicos, para serem lidas em ambiente virtual. Na década de 1990,
tornam-se populares os livros digitais, que, em seu início, eram versões em PDF de
livros impressos já lançados. Algumas dessas versões transformadas em arquivos
digitais eram mais estáticas do que os próprios livros impressos, pois, ao serem
digitalizadas, perdiam as interações que alguns livros de histórias possuíam nas
versões físicas, isto é, movimentos antes possíveis que deixavam de existir. Junko
Yokota (2015, p.75) ressalta que tais interações existiam, por exemplo, em livros
alemães confeccionados desde antes de 1890.
Por outro lado, a tecnologia digital continuou evoluindo rapidamente desde
então e, logo, surgiram novos tipos de livros digitais, os quais possuem narrações,
música, efeitos sonoros, além de ferramentas dentro do próprio livro digital, como
quebra-cabeças e desenhos (YOKOTA 2015, p. 76). A autora Betty Sargeant (2015,
p. 463), por sua vez, afirma que os componentes principais de um livro em formato de
aplicativo são o texto escrito, aspectos visuais, os sons e um ambiente interativo. Em
vista disso, faz-se necessária uma reflexão sobre o valor e a qualidade estética dessas
obras, amparada em bibliografia específica sobre literatura digital infantil.
O mercado editorial internacional e, mais recentemente, também o brasileiro,
tem investido de forma cada vez mais intensa na produção e na adaptação de obras
digitais para crianças, principalmente devido ao sucesso de vendas alcançado pelos
dispositivos móveis nos últimos anos, como celulares, livros digitais e tablets. Algumas
adaptações limitam-se a ―imitar‖ a estética do livro impresso, fazendo uso de
programas como PDF e o Epub. O resultado, em termos literários e estéticos, não
difere muito do resultado já alcançado nas versões impressas. Por outro lado, existe
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também uma produção expressiva de obras que fazem uso de recursos específicos de
computação para produzir efeitos de interatividade, hipertextualidade, multi e
hipermidialidade. Apesar de se tratar de um formato ainda pouco conhecido, já
existem muitas pesquisas que abordam questões literárias e estéticas, em sentido
restrito, até questões envolvendo o uso pedagógico desse tipo de literatura em sala de
aula. Nesse sentido, as pesquisadoras Neus Real e Cristina Correro afirmam que

as investigações em âmbito escolar demostram que, sem a mediação


adequada, esses produtos são recebidos principalmente como jogo e
como diversão em detrimento do aprendizado literário e da
interpretação; consequentemente, é imprescindível que os
profissionais recebam uma formação continuada sobre esses
materiais e suas possíveis modalidades didáticas dentro e fora da
sala de aula. (Real; Correro, 2014, p.11)

As reflexões realizadas por Junko Yokota ajudam a analisar a qualidade


dessas obras. Em seu artigo ―The Past, Present and Future of Digital Picturebooks for
Children‖, são propostas cinco perguntas para fundamentar a discussão sobre
qualidade literária de obras digitais, sendo elas: 1) A história foi apresentada
adequadamente em meio digital? 2) a história se apropria dos traços permitidos pelo
mundo digital, superando aquilo que é possível no formato impresso? 3) As
ferramentas interativas mantêm a integridade do enredo? 4) As características
suplementares se alinham com a história? 5) Essas caraterísticas fazem sentido em
relação como as crianças aprendem a ler e como aprendem em geral? Segundo
Yokota (2015, p. 80), em síntese, a adaptação de um livro ilustrado previamente
publicado em formato impresso para o meio digital de forma bem-sucedida pressupõe
que sejam maximizados os recursos que o dispositivo digital permite.

Boum!
Boum! é um aplicativo francês para os sistemas operacionais IOS e Android,
desenvolvido pela empresa Les Inéditeurs e idealizado por Mikaël Cixous. O aplicativo
concorreu ao BolognaRagazzi Digital Award e acabou com uma menção honrosa da
organização do evento. Descrito como uma sensação cinemática refrescante e com
um ponto de vista que desafia as restrições convencionais de quadro, a organização
ressaltou ainda a ausência de uma narrativa clara, destacando, enfim, a mensagem
implícita entre as interações do aplicativo.
A Bologna Children's Book Fair é considerada a mais importante feira de livros
infantis mundialmente. Realizada em Bologna na Itália, desde 2012, a organização do
evento premia, com o BolognaRagazzi Digital Award, as propostas digitais mais

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inovadoras, dentre aplicativos derivados de livros. Separados entre ficção e não-


ficção, a inclusão desses aplicativos na feira demonstra o crescimento exponencial do
interesse da indústria editorial em relação aos livros digitais e uma possível demanda
para essa nova forma de consumo de conteúdo.
O aplicativo Boum! aborda a questão do trabalho e da individualidade do sujeito
contemporâneo. Sem nome, o personagem principal desse aplicativo vive em um
mundo onírico, cuja construção estética é influenciada por movimentos de arte
vanguardista de artistas como Miró e Mayakovsky, entre outros. Além disso, a própria
narrativa visual é baseada no poema Le Temps Perdu, de Jacques Prévert, que está
reproduzido abaixo:

Devant la porte de l'usine Na frente da porta da usina


o trabalhador repentinamente para
le travailleur soudain s'arrête
o bom tempo o puxou pelo casaco
le beau temps l'a tiré par la veste
e como ele se virou
et comme il se retourne
e olhou o sol
et regarde le soleil totalmente vermelho totalmente redondo
tout rouge tout rond sorrindo num céu de chumbo
ele pisca
souriant dans son ciel de plomb
familiarmente
il cligne de l'œil Diz aí camarada sol
você não acha
familièrement
que é meio tonto
Dis donc camarade soleil dar um dia como esse
pra um patrão?
tu ne trouves pas
que c'est plutôt con
de donner une journée pareille
à un patron?

Nas primeiras páginas do aplicativo, o personagem, em sua rotina, se revela


como um simples operário. O caminho que realiza para o trabalho retrata visualmente
o mundo obscuro em que vive, conforme a imagem abaixo:

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Tons de vermelho em imagens replicadas e fora de ordem juntos de sons


caóticos revelam, ao leitor, um mundo peculiar. Na sequência, desencontros
acontecem com o personagem principal, levando-o a imaginar um caminho surreal e
distinto da sua própria realidade. Enquanto vivencia essa mudança, os aspectos
audiovisuais do aplicativo mudam completamente, apresentando, então, imagens
coloridas e sons mais alegres, como se pode observar nas imagens abaixo:

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Quando o personagem volta para a fábrica, contudo, nas últimas sequências


da história, leva a lembrança dessa nova experiência, que acaba se alastrando por
sua vida e pelo ambiente de trabalho. É o começo de uma mudança para o
personagem principal e o fim da história.
Apesar de a continuidade da história ser proporcionada pelo deslizar do dedo
na tela, não há, no aplicativo Boum!, a necessidade das ações do leitor para o
desenvolvimento do fio narrativo, pois a ordem cronológica do enredo não é alterada
pelas ações de quem lê. Pelo contrário, o deslizar de tela serve apenas como
mecanismo de continuidade e para que os sons (na maior parte do tempo, efeitos
sonoros que simulam passos, chuva e o ambiente) sejam reproduzidos. Embora se
trate de um aplicativo francês, a ausência de texto verbal permite que a obra seja
consumida por leitores de qualquer país. Obras com textos em um único idioma
diminuem o número de potenciais consumidores. Além disso, através de imagens bem

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construídas que demonstram, para o leitor, como utilizar o aplicativo, Boum! expande
ainda mais o seu público-alvo na direção de crianças ainda não alfabetizadas. As
imagens ensinam tudo o que o leitor precisa para fazer uso do aplicativo e conhecer a
história, sem que haja necessidade de ler qualquer texto verbal.
O aplicativo Boum! é uma obra que, embora pensado diretamente para o
meio digital, não apresenta recursos que impeçam uma adaptação bem sucedida para
um formato impresso. Apesar de sua inegável qualidade estética, as ferramentas
audiovisuais são poucas e funcionam mais como um adicional do que como parte
essencial para compreensão e sequencionalidade da trama, fazendo com que o
aplicativo não convença totalmente como um livro digital. A qualidade estética de
Boum!, por outro lado, é inegável, pois está repleto de metáforas visuais polissêmicas.
Há uma preocupação evidente dos desenvolvedores para que os sons e as ilustrações
apresentem a trama sem a necessidade de texto verbal. As referências audiovisuais
prendem a atenção do leitor, mesmo que não haja interação através de hipertexto ou
hipermídia.

Flicts
Flicts é um aplicativo criado pela empresa Engenhoca e Mafuá LCC,
disponível nos sistemas operacionais iOS e Android, baseado no livro lançado por
Ziraldo no ano 1969. Inicialmente, foi lançado pela editora Expressão e Cultura e,
após, pela editora Melhoramentos dentro da série Mundo Colorido, retratando a busca
de uma cor rara, chamada Flicts, por seu lugar no mundo. Em 2015, Filcts foi o
vencedor do 3º lugar na recém-criada categoria Livro Digital Infantil do prêmio Jabuti.
A narrativa começa com a afirmação de que Flicts não tinha a força do
Vermelho, nem a imensidão do Amarelo e nem a paz do Azul. Era apenas o frágil, feio
e aflito Flicts que sai pelo mundo procurando desesperadamente alguém que o aceite
e o acolha. Na versão digital, o leitor é convidado a passear pelo texto, que pode ser
narrado completamente ou em partes pelo áudio do aplicativo, conforme interação do
usuário, se valendo de toques na tela. O aplicativo também permite a escolha com ou
sem música.

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Em Flicts, tanto na versão impressa como na digital, a disposição das letras


e/ou palavras aparecem com liberdade no espaço em branco do papel/tela, ligando-se
às formas e cores. Isso possibilita grande interação do leitor com a história, como se
este fizesse parte do mundo de cores em que vive a personagem principal. A
distribuição do texto em relação às cores leva o leitor a refletir, já que cada cor está
associada a um tipo de sentido (o vermelho à força, o azul à paz, etc.). Em algumas
partes do aplicativo, tanto texto quanto cores não são móveis, apenas troca-se de
―página‖ (tela) tocando a seta ao lado direito da tela ao final de cada narração. Em
outras telas, o texto é completamente estático, porém as cores são móveis. Os
recursos de multimídia do aplicativo se resumem em recursos audiovisuais (narração e
animação em flash) que possibilitam a emissão de sons e a interação com as
imagens, com a possibilidade de narração completa e linear ou parcial da história. Em
certos momentos, ―as cores interpelam‖ o leitor, basta este clicar sobre elas na tela, e
o som da fala das mesmas irá se repetir.

Considerações Finais

Concluímos este breve artigo afirmando que os dois aplicativos analisados se


apropriam de maneiras distintas dos recursos de multimídia existentes no mundo
digital, permitindo experiências diferenciadas de fruição por parte do leitor.
No que se refere a Boum!, sua qualidade estética é inegável, pois o aplicativo
está repleto de metáforas visuais polissêmicas, além de estabelecer uma relação
intertextual com o poema de Prevert; há uma preocupação evidente dos
desenvolvedores para que os sons e as ilustrações apresentem a trama sem a
necessidade de texto verbal; as referências audiovisuais prendem a atenção do leitor e
lhe garantem muita liberdade de interpretação, mesmo que não haja interação através
de hipertexto ou hipermídia. Por outro lado, as ferramentas audiovisuais são poucas e
funcionam mais como um adicional do que como parte essencial para compreensão e
sequencionalidade da trama, fazendo com que o aplicativo não convença totalmente
como um livro digital.
Já no aplicativo Flicts, pode-se concluir que a versão adaptada aos meios
digitais é muito bem-sucedida porque os recursos de multimídia estão bem integrados
à estrutura da narrativa, apesar de não estarem diretamente ligados à progressão da
história. Além disso, os recursos de interação contribuem para intensificar a ideia de
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desarmonia e isolamento de Flicts frente às demais cores; os recursos de animação,


neste aplicativo, também proporcionam a noção de distância e a intensidade de forma
diferenciada do modelo impresso; a possibilidade de escolha de narração automática
através do áudio incentiva mesmo sujeitos ainda não alfabetizados a se beneficiarem
da história.

Referências

CIXOUS, Mikaël. Boum!app. Desenvolvido por Les inéditeurs, França. Disponível para
download em:<https://play. google.com/
store/apps/details?id=com.lesinediteurs.boum>.

KIRCHOF, E. R. Uma obra à procura de autor: poesia eletrônica para crianças. Tigre
Albino, v. 4, p. 1-10, 2010.

PENELAS, Celia Turión. Eletronic Literature for Children. Characterising Narrative


Apps (2010-2014). In: MANRESA, Mireia; REAL, Neus. Digital Literature for Children:
Texts, Readers and Educational Practices. Bruxelas: P.I.E. Peter Lang, 2015, p. 87-
102).

SARGEANT, Betty. What is an ebook? What is a Book App? And Why Should We
Care? An Analysis of Contemporary Digital Picture Books. Children's Literature in
Education, v. 46, p. 454-466, 2015.

YOKOTA, Junko. The Past, Present and Future of Digital Picturebooks for Children. In:
MANRESA, Mireia; REAL, Neus. Digital Literature for Children: Texts, Readers and
Educational Practices. Bruxelas: P.I.E. Peter Lang, 2015, p. 73-86.

ZIRALDO. Flicts app. Desenvolvido por Engenhoca - Recife e Mafuá LCC, - Miami,
Flórida. Disponível para download em:
https://play.google.com/store/apps/details?=com.mafuaflicts2>.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

AS ESTRATÉGIAS LITERÁRIAS E IMAGÉTICAS PRESENTES


NA NARRATIVA INFANTO-JUVENIL: TECELINA

Lucas Emanoel Vilarinho Miranda, UFPI, Eixo Temático 06: Literatura infantil e
juvenil e as múltiplas linguagens, PPGEL

Considerações Iniciais

Se entendemos a literatura como arte é possível inferir que essa arte está se
tornando cada vez mais vendável e adaptada à realidade de um público, a saber, o
público infantil. Frente a atual realidade do leitor juvenil que está conectado aos
suportes tecnológicos, a literatura, como sempre se ressignifica habituando-se à
realidade dos mesmos. Nessa habituação há uma necessidade da obra se adaptar a
um sistema múltiplo. Múltiplo imageticamente por coadunar diversidades semióticas
como o som, o não verbal e o verbal.
A imagem 1 mostra a capa da versão impressa da obra Tecelina, de Gláucia
de Souza. Obra analisada e que possui duas versões, a primeira data de 2002 em sua
versão impressa e a segunda de 2008, adaptada para ser uma jogo de narrativa do
Projeto Ler e Brincar da PUCRS.

IMAGEM 1 – TECELINA
1005

Fonte: Acervo do pesquisador, 2017.


A obra analisada, Tecelina é um exemplo de como em muitos casos tem
ocorrido estratégias literárias e imagéticas narrativa infanto-juvenil. Estratégias de
composição, linguagem, adaptação ao meio, ao público e suas expectativas e ainda
ao mercado. Desse modo a discussão aqui realizada busca entender por meio de uma
análise pontual, como tem ocorrido as essas estratégias, isso por meio da obra
Tecelina.

Tecelina

Gláucia de Sousa nasceu no Rio de Janeiro, é escritora, formada em Letras e


possui Mestrado em Educação. A autora vive em Porto Alegre desde 1994.
Atualmente dá aulas de Língua Portuguesa e Literatura no Colégio de Aplicação
(UFRGS). Além de Tecelina, (2002), ela escreveu: Saco de mafagafos, (1997); Astro
Lábio, (1998); Bestiário, (2006); Balaio de ideias, (2007) e Do alto do meu chapéu,
(2011).
A autora possui um estilo desprendido de formalidades, busca com uma
linguagem adaptada ao público ao qual se dirige, causar as devidas impressões,
devido escrever com foco e objetividade, mesmo sendo uma escrita encomendada, e
não por ―prazer‖ como ela costuma dizer. Possui assim uma inspiração lapidada a
muito trabalho. Em sua biografia a autora diz: ―Gosto de escrever principalmente
quando me sinto "presa": numa sala pequena, fazendo atividades desinteressantes,
por exemplo! Acho que "inspiração" é resultado de muito trabalho: trabalho com a
palavra.‖

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É uma escritora bastante ativa na produção, pois mesmo se direcionando a


uma escrita planejada, trabalhada, lapidada, também utiliza-se das impressões e
sentimentos dos momentos áureos de seus dias para produzir aquilo que sente, quer
dizer, quer se expressar, conforme o momento, não limitando assim sua produção.
Desse estilo espontâneo, surge Caderno de Bolso (2001), o livro de micro
poemas ao qual se refere acima. Gláucia de Souza escreve geralmente para crianças,
e nessa área tem alcançado êxito. Em sua obra Saco de mafagafos (1997), ―as
aquarelas de Laura Castilhos receberam Prêmio de Melhor Ilustração. O livro também
recebeu outros dois prêmios pela Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre em
1998, o de Melhor Livro Infantil e o de Autora Revelação. Também recebeu a
indicação de "Altamente Recomendável", pela FNLIJ.‖
A autora possui grande apreço pelas imagens em suas obras, e não por outro
motivo, essas imagens são sempre muito bem elaboradas e devidamente
reconhecidas. Gláucia possui uma parceria significativa com a ilustradora Cristina
Biazetto; das oito obras que possui, cinco são ilustradas pela referida artista. Das
obras de Gláucia de Souza, Astro Lábio (1998), também recebeu o selo de "Altamente
Recomendável" pela FNLIJ em 1998. A autora possui uma trajetória de sucesso e
confirmação da qualidade de suas obras.
Cristina Biazetto é Ilustradora, nasceu em Porto Alegre, RS, cidade onde
mora até então. A paixão pela arte levou a artista a se graduar em Ilustração na Itália.
Se especializou em Literatura infantil e juvenil pela PUCRS. Recebeu os prêmios
açorianos de melhor captista em 2001, e de melhor ilustrador em 2003. Em 2005,
2007 e 2009 foi indicada pela FNLij (representante da IBBY) para representar o Brasil
na bienal da Bratislaya. Faz a maioria de suas ilustrações com obra tinta acrílica, mas
também trabalha com óleo e aquarela, conforme dados de sua biografia .
Ela produziu e\ou ilustrou alguns livros, entre eles: Três contos de muito
ouro, (1999); Tecelina, (2002); Bestiário, (2006); Balaio de Ideias, (2007) (junto com
outros ilustradores); Aurora, (2009) e A Princesa Desejosa, (2012). No total são 15
obras ilustradas.
Tecelina na versão hipermidiática é uma obra de Gláucia de Souza, ilustrada
por Cristina Biazzeto. A narrativa infanto-juvenil é adaptada para o meio virtual e
ampliada no sentido de possibilidades narrativas, pois é um jogo de construções
narrativas baseadas na história original. Por se tratar de um jogo de construções
narrativas a obra oferece muitas possibilidades de narrar, entre elas está o hipertexto
que aparece como forma de conduzir o leitor para o foco da história que mais o

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interessa. Na imagem 2 observa-se que existem 3 links que caracterizam esses


hipertextos, os links são representados pelas palavras circuladas em vermelho.

IMAGEM 2 – POSSIBILIDADES NARRATIVAS

Fonte: Acervo da pesquisa, 2017.

As possibilidades de narrativa na versão digital da obra são diversas, desde a


escolha da cronologia de leitura por meio dos hipertextos até escrita e interação com
escolha de movimentação e áudios. A obra faz parte do Projeto Ler e Brincar da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, sob a orientação de
Vera Teixeira de Aguiar, Cristine Zancani, Maurício Piccini e Renata Eichenberg,
contando com dois auxiliares de pesquisa: Marisa Junqueira e Alexsander Cruz. A
obra possui trilha sonora de Marcelo Fomasier, com vozes de Carlo Rangel e Carla
Casapo.
Há muitos links nas palavras e a partir dos clicks nas mesmas vêm as
possibilidades de continuação da história conforme a palavra que se quer. Depois das
diversas brincadeiras que estão em cada palavra pode-se voltar à página origem da
palavra inicial onde há diversas outras palavras que se desdobram em diversas outras
brincadeiras. Em alguns segmentos de palavras, o leitor é encaminhado para outra
parte da história ou para brincadeiras. O leitor é participante do processo de escrita de
Tecelina, torna-se uma escrileitura digital, onde ele participa da composição
interagindo. A imagem 3 mostra uma das possibilidades de interagir com a obra.

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IMAGEM 3 – PROCESSO DE ESCRILEITURA

Fonte: Acervo da pesquisa, 2017.

Uma interação que dá ao leitor a possibilidade de contribuir com a


composição da sua versão da obra. As características multimidiáticas da obra estão
sempre presentes e produzem incontestavelmente uma nova recepção, uma nova
forma de proporcionar a leitura. Elas causam impactos no leitor, pois a forma de
construção é nova, os recursos midiáticos possibilitam um novo diferente do que
culturalmente já está estabelecido para o livro e é nesse ponto que o livro
hipermidiático se configura. O livro hipermidiático traz muitas possibilidades inerentes
ao meio digital. O meio digital abre espaço para o ―novo‖ na leitura, pois o leitor pode
ser participante ativo na composição da versão que lê, a imagem 4 dá um vislumbre
sessa participação ao mostrar a possibilidade do leitor interagir.

IMAGEM 4 – O ―NOVO‖

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Fonte: Acervo da pesquisa, 2017.

É necessário compreender ainda o meio em que essa obra se encontra, seja o


impresso ou o virtual. No presente trabalho o meio enfocado é o virtual, devido dele
surgirem as estratégias que são discutidas aqui. Tendo em vista o meio virtual é
necessário trazer ao trabalho noções do que seja a literatura eletrônica e suas
relações.

Literatura Eletrônica e Tecnologia

É imprescindível atentar para a contemporaneidade estrutural, estética e


tecnológica que tem influenciado a literatura infanto-juvenil brasileira contemporânea,
pois ela também tem sofrido o processo de digitalização, assim como a literatura e a
informação num contexto mundial. A digitalização da literatura tem sido em partes
estudada devido os impactos causados na literatura impressa; visto serem grandes as
indagações a respeito dessa relação de influências, consoante Miranda (2014).
Assim é necessário atentar para as diferenças angariadas pelos suportes,
formatos e técnicas. A esse respeito Ramos (2013) explica como pode ser tratada a
nova roupagem da literatura infantil e juvenil, a roupagem eletrônica, tendo em vista
que esta deve ser analisada de forma singular, pois difere sim em muito dos padrões
impressos, já tradicionais.

Tentar ver a literatura eletrônica apenas através da lente da


obra impressa é, de forma significativa, não vê-la. [...] a
literatura eletrônica possa ser entendida como parte integrante
da tradição literária, e a introduzir as transformações cruciais
que redefinam o que é a literatura. A literatura eletrônica,
geralmente considerada excludente da literatura impressa que
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tenha sido digitalizada, é, por contraste ―nascida no meio


digital‖ um objeto digital de primeira geração criado pelo uso de
um computador e (geralmente) lido em uma tela de computador
(RAMOS, 2013, p. 20).

É possível observar que as relações que podem ser feitas entre os formatos
semióticos de produção e veiculação das atuais obras de literatura são amplas. Mas
de fato fica clara a individualidade e particularidade da literatura eletrônica em relação
a sua produção. A imagem 5 traz a página inicial de formação do nome Tecelina na
versão digital. Nessa imagem pode-se observar como o nome vai sendo tecido aos
poucos, estratégia bastante comum no meio digital para dar a impressão de
movimento.

IMAGEM 5 – ESTRATÉGIAS DE COMPOSIÇÃO

Fonte: Acervo da pesquisa, 2017.

A versão impressa de Tecelina aglutina diversas características do meio


digital; o movimento, as possibilidades de interação com o leitor e a multiplicidade
semiótica, características muito inerentes ao ambiente da WEB 2.0.
Irineu (2013) explica que a Web 2.0 é um ponto de partida para se pensar
esse novo modo de criar a literatura contemporânea. Uma literatura que é coproduzida
com o leitor. Um tipo de criação literária que dá a possibilidade de produção discursiva
no mundo digital como na obra A Boneca que traz a possibilidade dessa interação. A
Web 2.0 é então a nuvem em que se insere o novo formato literário analisado aqui.
Para a efetivação de análise desse tipo de literatura é fundamental perceber suas
motivações de criação e de experimentação. Ramos (2013, p.21) destaca ainda que:

Ao mesmo tempo, e porque a literatura eletrônica é


normalmente criada e executada em um contexto de rede e
meios de comunicação digital programáveis, ela também é
movida por motores da cultura contemporânea, especialmente
jogos de computador, filmes, animações, artes digitais,
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desenho gráfico e cultura visual eletrônica. Nesse sentido a


literatura eletrônica é um ―monstro esperançoso‖ (como os
geneticistas chamam as mutações adaptativas) composto por
partes extraídas de diversas tradições e que nem sempre se
posicionam juntas de forma organizada (RAMOS, 2013, p. 21).

É pertinente tal afirmação visto que a obra Tecelina, que será analisada traz
aspectos comuns a essa nova vertente da literatura. Em especial as características
inerentes ao suporte eletrônico. A essencialidade da literatura eletrônica está nela em
si, desde a criação e reprodução, ambas possibilitadas totalmente pelo digital.
Sobre tal essencialidade Hayles (2009, p. 62) afirma: ―A computação não é
periférica nem incidental à literatura eletrônica, mas central para seu desempenho,
execução e interpretação.‖ Fica claramente observável o grau de relação que a
literatura eletrônica possui com o meio digital computadorizado. Ainda assim, Hayles,
(2009, p. 61) completa: ―Mais do que ser marcada pela digitalidade, a literatura
eletrônica é de modo ativo formada pela mesma‖. Exemplo desse modo ativo são os
muitos movimentos e links presentes na obra digital Tecelina, como mostra a imagem
6.

IMAGEM 6 – VERSÃO DIGITAL, AS CARACTERÍSTICAS DO DIGITAL

Fonte: Acervo da pesquisa, 2017.

Na imagem 6, cada círculo vermelho ao redor das palavras é um link.


Clicando nessas palavras chave elas levarão o leitor a uma nova página de leitura da
obra com diferentes possibilidades de interagir. A exemplo quando no primeiro link
clicar, ―ficou noiva‖ a página que irá aparecer será a da parte da história que conta
sobre o noivado de Tecelina. A possibilidade de mudar, ser redirecionado para outra
página é bastante peculiar ao hipertexto no meio digital e é uma das muitas
características da literatura eletrônica que é produzida (no, e para o) virtual.

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Assim, um dos focos característicos da Literatura Eletrônica é o hipertexto


considerado elemento base do caráter digital livresco. Ao tratar do hipertexto Laufer &
Scaveta(apud JOACHIM, 2011, p. 61) afirmam respectivamente:

A dissolução da centralidade do discurso vivida no hipertexto,


inserido na Pós-Modernidade, pode provocar uma leitura
dispersiva, até porque a falta de completude, de eixo
organizador e de fio-condutor do discurso tornam o hipertexto
um objeto virtual estranho diante daqueles pouco acostumados
com as parafernálias digitais. Um hipertexto é um conjunto de
dados textuais numerizados sobre um suporte eletrônico e que
pode se ler de várias maneiras. Os dados são distribuídos em
elementos ou nós de informação – equivalentes a parágrafos.
Mas, esses elementos, em vez de ser ligados uns aos outros
como os ―wagons‖ de um trem, são marcados por eles
semânticos que permitam passar de um ao outro quando os
usuários os ativa. Os elos são fisicamente ―ancorados‖, por
exemplo, a uma palavra ou a uma frase (LAUFER, SCAVETA,
apud JOACHIM, 2011, p. 61).

É possível observar uma das características base desse importante


componente da literatura eletrônica, que é o hipertexto. De acordo com Levy (2011,
p.22) ―a web constitui sem dúvida um hipertexto, mas trata-se de um hipertexto opaco,
fragmentado entre línguas, classificações, ontologias, e plataformas comerciais, um
hipertexto cujos ‘nós‘ não são em última análise endereços físicos‖. O hipertexto é
assim uma possibilidade em qualquer lugar, para qualquer pessoa.
Ainda sobre o hipertexto, a pesquisa de Xavier (2009) é bastante reveladora,
pois explica que uma das mais importantes consequências da leitura do hipertexto; a
possibilidade de múltiplas interpretações, o que pressupõe a necessidade de um novo
leitor, um leitor mais competente devido ter de controlar o fluxo e interpretá-lo
adequadamente sem se perder.
Essas características estimulam a ocorrência de várias interpretações e
versões interpretativas para um mesmo hipertexto, obrigando o leitor moderno a
manter uma atenção redobrada e a reavaliar, constantemente, seu projeto de leitura
frente à tela.
Faz-se importante destacar que apesar de sofrer muitas alterações de
produção e veiculação, a literatura eletrônica, possibilitada pelos suportes digitais,
continua sendo literatura, sendo uma adaptação a uma nova realidade da sociedade.
Em acordo em esse pensamento a postulação de SANTA (2011, p. 4) diz:

A literatura em meio digital pode até divergir da impressa em se


tratando de possibilidades disponíveis no trato com o texto
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(falamos aqui das ferramentas que possibilitam manipular o


texto ou lê-lo), ainda assim, os elementos comuns que
constroem uma ficção permanecem os mesmos.

Não há como fugir da protagonização da literatura eletrônica, nesse sentido é


necessário perceber o fato de que quase toda a literatura contemporânea já é digital. A
digitalidade é tão essencial para os processos contemporâneos de composição,
armazenamento e produção que o meio impresso deveria ser devidamente
considerado uma forma de produção de arquivos digitais, e não uma mídia separada
da instância digital.
São diversas as nomenclaturas que tem surgido a respeito da revolução da
escrita causada pela tecnologia, entre elas cibercultura, ciberespaço, virtual, Web 2.0,
ciberliteratura, hipertextos, entre outros, mas um último de fundamental importância é
o destacado por Cunha (2013, p. 156):

[...] hiperliteratura é basicamente um conjunto de obras


narrativas explorando as possibilidades da publicação
eletrônica. Tais obras, recorrendo à mediação de um elemento
novo (a hipermídia, a publicação eletrônica,) dispunham-se a
produzir um objeto semiótico original, diferente do objeto livro.
Se eventualmente fossem impressas e encadernadas, essas
obras perderiam sua identidade e potencialidade, assim como
acontece na filmagem de uma peça teatral, ou na fotografia de
uma escultura. Transformar em livro uma obra hiperliterária
implicaria ignorar, sua espacialidade, seus links múltiplos, a
não linearidade, a interatividade, a randomização, os recursos
multimidiáticos.

É basicamente nesse nicho que Tecelina se encontra, a obra faz justamente o


perfil destacado pela hiperliteratura, pois no meio virtual traz um novo formato que não
é uma adaptação da obra para uma tela, mas uma reescrita da mesma para outro
suporte, visando outro leitor e buscando outro tipo de interação.

E-books – Variedades do Livro em Contínuo Avanço Tecnológico.

Há uma variedade bastante evidente atualmente de formatos de e-book. Há


os digitalizados que seguem a ordem de formatação impressa comum e após
impressos são apenas como que fotocopiados, porém disponibilizados em ambientes
virtuais. Outro formato é o de e-books interativos, onde a participação com leitor é
necessária por meio de clicks e movimentos no livro digital, essas interações
possibilitam a história narrativa de prosseguir sem, porém ser alterada.

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Gabbai (2013) ao fazer um breve relato sobre o livro digital postula que no
mercado editorial de literatura digital atual, há ao menos três que se destacam entre
diversos formatos e suportes, a saber o e-book, o app, e o livro em arquivo pdf; que
podem ser veiculados em microcomputadores, Ipads, Tablets com base Android e
Kindle, entre outros. O formato interativo pode ser visto na narrativa virtual A Barata ,
da autora e artista Angela Lago, formato de literatura hipermidiática, termo elencado
por Yoo (2007) e Kirchof (2009); nesse tipo de formato a construção é realizada com
os diversos tipos de recursos semióticos que o ambiente virtual pode oferecer.
Contudo, há uma variedade de e-books muito mais complexos e atuais, são os e-
books hiperlinkados, nesses os leitores ditam o ritmo e cronologia da narrativa, a
exemplo a narrativa virtual Tecelina do projeto Ler e Brincar, de AGUIAR et all (2008);
obra que será analisada nessa pesquisa a fim de discutir sobre as dimensões
computacionais de e-books interativos hiperlinkados de origem brasileira, que
coadunam em si diálogos importantes para teoria da literatura atual, que está em
processo contínuo de ressignificação e readaptação ao meio. A imagem 7 mostra o
caráter de interatividade na obra digital Tecelina.

IMAGEM 7 – A INTERATIVIDADE

Fonte: Acervo da pesquisa, 2017.

É possível observar alguns objetos na parte esquerda da imagem e elas


podem ser movimentadas pelo leitor que clica em cima e arrasta pra dentro da sala de
Tecelina, organizando-a como quer. Também é possível escolher um tipo de música
consoante o a ideia de tempo que cada aparelho de reprodução de som emite, a
saber, os da parte inferior da imagem.
Corrêa (2014, p.41) discorre sobre as narrativas transmidiáticas que
consistem numa ampliação da interação do leitor com múltiplos recursos semióticos e

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suportes para a mesma leitura. A autora explica que esse tipo de texto: ―É voltado a
uma perspectiva comercial da indústria de entretenimento, porém a ideia de contar
uma história através de múltiplas mídias possui a especial vantagem de ampliar o
leque de público‖. Fator que é determinante na atual produção livresca.
Muitas são as nuances e minucias sobre esses novos tipos de texto no
formato digital e sobre eles é preciso discutir com detalhes para que a pesquisa seja
delimitada e não confusa. Nesse sentido Sousa (2014, p.93) afirma que ―a hipermídia
é uma forma de organização textual na qual o hipertexto é um agregador de múltiplas
semioses‖. A autora explica que demarcar e diferenciar cada um desses termos é
fundamental para que seja entendido como se organiza o ciberespaço.
O crescente número de pessoas com acesso às TIC (Tecnologias de
Informação e Comunicação) é uma realidade, e quanto a isso Ribeiro Jr (2014, p.132)
explica que esse crescimento ―proporciona novas possibilidades para a disseminação
da cultura digital‖.
Destarte, a literatura como sendo uma das vivências da sociedade, está se
adaptando a esse processo de virtualização e digitalização. Essa adaptação da
literatura para um formato em que seja interativa corrobora com os termos da nova
utilização da internet como a Web 2.0, que visa ―aproveitar os efeitos da rede,
tornando-se melhores à medida que vão sendo utilizados pelas pessoas‖
(GOULARTE, WILGES, NASSAR, 2014, p.175). A interação com as obras é uma
desses aproveitamentos que a Web 2.0 proporciona.
O avanço tecnológico como um todo pressupõe um avanço em todas as
áreas. A literatura tem, de forma gradativa, incorporado tais avanços tecnológicos em
sua produção. Silva (2014, p.115) diz:

De fato, nas últimas décadas proliferaram termos e expressões


a conceituarem novas experiências estéticas e que, porquanto
pareçam colocar o autor ao nível dos objetos e ações
cotidianas, associam-se de uma maneira um tanto quanto
especializada a uma profusão de ferramentas, dispositivos,
tecnologias diversas disponíveis no contexto contemporâneo e
cruzamentos interartísticos [...].

É fato que há emergência nos meios digitais e na tecnoarte. Tal discussão


deve ser constante em relação ao diálogo com a produção de textos da
contemporaneidade, em especial aqui, os de literatura infantil e juvenil.
Consoante Bellei (2002) o livro, a literatura e o computador têm inter-relações
contemporâneas que minam a força das teorias negativas de que seria prejudicial a

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tecnologia para a leitura, mas que de forma contrária, o computador tem melhorado as
possibilidades do livro e da leitura no computador.
O referido autor em constante discussão sobre o tema explica ainda sobre as
paranoias atuais sobre a tecnologia e sua influência sobre a literatura:

Qual o destino da literatura na era do hipertexto e das


máquinas digitais de processamento e informação? Passará
por transformações? Conseguirá sobreviver? Respostas a tais
perguntas podem ser esboçadas a partir de definições, tão
precisas quanto possíveis, da natureza do hipertexto e da
literatura, fundamentados nos estudos dos exemplos de obras
literárias que já foram hipertextualizadas em bibliotecas digitais
e disponibilizadas na internet (BELLEI, 2012, p.74).

O autor deixa posta a ideia de que as tecnologias só contribuem como a


literatura e que não são um perigo para a mesma. São apenas mais possibilidades
que surgem para criar literatura, ou mesmo suportes que ampliam as possibilidades,
mas não empecilhos para a literatura e leitura de forma geral. É nesse meio de
discussões sobre avanços tecnológicos e influencias da tecnologia bem como das
novas formas de fazer o livro que se encontra a obra analisada, Tecelina.

Considerações Finais

Digite aqui as considerações finais, conclusões de seu artigo. Esse trabalho


tem como ponto de partida muitos aspectos da monografia 196Tecelina, de Gláucia de
Souza: Da narrativa impressa à hipermidiática (2014), sob autoria de Lucas Emanoel
Vilarinho Miranda, a saber, mesmo autor do recorte que aqui é produzido enfocando
algumas estratégias que a obra tem adquirido no meio digital.
Não se pode concluir tal pesquisa, trabalho, labor intelectual sem destacar a
discussão sobre as dimensões artísticas e computacionais presentes na narrativa
hipertextual/hipermidiática para crianças e jovens, que marcaram a análise geral da
obra, bem como as caracterizações da mesma no formato impresso e virtual.
A transmissão eletrônica mutabilizou as formas de ler e produzir literatura,
dessa forma, o suporte eletrônico redimensiona a condição do leitor que passa agora a
ter papel essencial e atuante na construção do texto. Esses novos formatos de leitura

196
A referida monografia foi concluída em 2014 e tem gerado pesquisas mais profundas sobre a
temática que tem desembocado em artigos e apresentações em diferentes universidades do
país. Atualmente a pesquisa encontra-se em processo de finalização em uma dissertação pela
UFPI intitulada A recepção por leitores infantis da obra Tecelina, de Gláucia de Souza: entre o
impresso e o virtual.
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e escrita não estão limitados apenas ao uso de signos linguísticos, pois ela alimenta o
diálogo entre diferentes linguagens, a verbal e a não verbal. Seja por meio de
imagens, letras e sons, além de movimentos etc.
A mobilidade e multiplicidade dessas mídias e signos se veem possibilitadas
por meio dos ambientes digitais, que dão abertura para tantas coabitações semióticas,
que atualmente são muito aceitas. É nesse sentido de pesquisa que o presente
trabalho atua.
As tipologias, as estruturas, os processos, as divisões de etapas de formação,
tanto do leitor como da obra (produção contemporânea), são bastante vastas, e os
materiais estudados são muito ricos em informação. Ainda que o processo intenso de
pesquisa tenha se concluído, ele tem por característica base nessa temática: a
inconclusão.
Sobre as conclusões até aqui encontradas é possível destacar que a
tendência do livro digital tem crescido, assim como sua comercialização, mesmo sem
muitos avanços de divulgação e aprimoramento nos últimos anos. Em parte tal
observação pode ser explicada pelo alto custo e pelos poucos profissionais que
dominem todas as áreas que envolvem tal processo, ou mesmo pela dificuldade ainda
encontrada na reunião desses profissionais.
Almeja-se que as discussões aqui produzidas sirvam de suporte para os
professores em geral entenderem o que está acontecendo com a literatura, o leitor, e o
processo de leitura em geral frente à contemporaneidade dos suportes digitais do meio
virtual, que está cada vez mais presente no atual contexto educacional.

Referências

AGUIAR, V. T. (Coord.). Era uma vez... na escola: formando educadores para


formar leitores. Belo Horizonte: Formato Editorial, 2001.

ASSIS, Emanuel Cesar Pires de; MOURA, Claudio Augusto Carvalho; SANDOVAL,
Isabela Borges (Orgs). Humanidades digitais: leitura e tecnologia. Tubarão: Ed.
Copiart; Florianópolis: NuPILL/UFSC,2014.

BELLEI, Sérgio Luiz Prado. O livro, a literatura e o computador. São Paulo: EDUC;
Florianópolis, SC: UFSC, 2002.

BELLEI, Sérgio Luiz Prado. Hipertexto e Literatura. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012.

CHARTIER, Roger. As revoluções da leitura. In: ABREU, Márcia (org.). Leitura,


história e história da leitura. Campinas: Mercado de Letras, 2003.

HAYLES, Katherine. Literatura Eletrônica: novos horizontes para o literário. Trad.


Luciana Lhullier e Ricardo Moura Buchweitz. São Paulo: Global, 2009.

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KIRCHOF, Edgar Roberto. O desaparecimento do autor nas tramas de literatura


digital: uma reflexão Foucaltiana. Signo, Santa Cruz do Sul, 2009.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.

LÉVY, Pierre. O que é virtual? São Paulo: Ed. 34, 1996.

MIRANDA, Lucas Emanoel Vilarinho. Tecelina, de Gláucia de Souza: Da narrativa


impressa à hipermidiática. Monografia. Universidade Estadual do Piauí, Licenciatura
plena em Letras/ Português, 2014. 69.f M672t CDD: 469.

RAMOS, Thiago Corrêa. A literatura brasileira na internet: implicações do digital na


narrativa. Recife: O autor, 2013.

SANTAELLA, Lucia. Cultura das mídias. São Paulo: Experimento, 1996.

SANTAELLA, Lucia. Navegar no ciberespaço: o perfil do leitor imersivo. São


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VILAROUCA, Cláudia Grijó; TAVARES, Otávio G; MOURA, A.C. Criação Digital:


Prática e Reflexão. Florianópolis: Ed. Copiart, 2014.

XAVIER, Antonio Carlos ...[et al.]. Hipertexto e Cibercultura: Links com literatura,
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YOO, Hyun-Joo. Text, hypertext, hypermedia: asthetische moglichkeiten der digitalen


literature mittels intertextualitat, interativitat und intermedialitat. Wurzburg:
Koningshause & Neumann, 2007.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

CANTAR HISTÓRIAS, ENCANTAR E FORMAR LEITORES:


REFLEXÕES SOBRE MÚSICA E LITERATURA NA EDUCAÇÃO
INFANTIL

Rejane da Silva Souza, UFPI


Literatura infantil e juvenil e as múltiplas linguagens.

Considerações Iniciais

A literatura infantil, tão presente no contexto escolar das séries iniciais da


formação escolar, representa o primeiro contato do educando com a leitura.
Adentrando ao mundo mágico da imaginação, o leitor viaja pelo mundo da leitura com
direito à leitura de mundo, nesse sentido, quanto mais cedo a criança tiver contato
com os livros maior será a probabilidade de essa criança tornar-se um adulto leitor.
É importante ressaltar que, na Educação Infantil, o processo de iniciação leitora
deve pautar-se em atividades voltadas desenvolvimento da leitura com vista uma
construção constante do conhecimento, no intuito de formar leitores que atuem como
um ―processador ativo do texto, e que a leitura seja um processo constante de
emissão e verificação de hipóteses que levam à construção da compreensão do texto
e do controle desta compreensão.‖ (Solé,1998, p. 24)
Diante desse contexto, propõe-se o trabalho em foco, a partir de uma pesquisa
bibliográfica acerca leitura, música e literatura, elementos fundamentais ao processo
de ensino-aprendizagem, pautado na criatividade que permeia as histórias literárias
musicadas.
Estudar esta temática parte das inquietações do contexto escolar em saber
como a música contribui para a formação leitora das crianças da educação infantil e
quais elementos marcam nessa abordagem pedagógica, a partir do que consta na
literatura dos principais estudiosos dessas três áreas (música, literatura infantil e
formação de leitores). Nesse sentido, utilizou-se a pesquisa bibliográfica de
abordagem qualitativa, fundamentada em Abramovich (2006), Brito (2003), Solé
(1998), Rosa (1990), Brasil (1998) - Referencial Curricular Nacional para a Educação
Infantil.
1020

A literatura na Educação Infantil e a formação de leitores

A compreensão, sentidos, sons, os odores, o toque, o paladar, são os primeiros


passos para aprender a ler. Ler, no entanto é uma atividade que implica não somente
a decodificação de símbolos, ela envolve uma série de estratégias que permite ao
indivíduo compreender o que lê. Neste sentido, relata os PCN‘s (2001, p.54.): ―um
leitor competente é alguém que, por iniciativa própria, é capaz de selecionar, dentre os
trechos que circulam socialmente, aqueles que podem atender a uma necessidade
sua. Que consegue utilizar estratégias de leitura adequada para abordá-los de forma a
atender a essa necessidade.‖
Assim, pode-se observar que a capacidade para aprender está ligada ao
contexto pessoal do indivíduo. Desta forma, Lajolo (2002) afirma que cada leitor,
estabelece o significado pessoal de suas leituras de mundo, com os vários significados
que ele encontrou ao longo da história de um livro, por exemplo.
O ato de ler então, não representa apenas a decodificação, já que esta não está
imediatamente ligada a uma experiência, fantasia ou necessidade do indivíduo. De
acordo com os PCN‘s (2001) a decodificação é apenas uma, das várias etapas de
desenvolvimento da leitura. A compreensão das ideias percebidas, a interpretação e a
avaliação são as outras etapas que fundem-se no ato da leitura. Desta forma, os
educadores devem trabalhar com a diversidade textual, segundo os PCN‘s (2001),
fazendo com que o indivíduo desenvolva significativamente as etapas de leitura é
contribuir para a formação de leitores competentes.
Nesse viés, inclui-se a literatura infantil, elementos fundamental para a formação
escolar das crianças, pois além de possibilitar-lhes a aquisição de novos
conhecimentos, também desempenha um papel relevante na constituição da oralidade
e no aprimoramento das suas capacidades de leitura e escrita. Dessa forma, a ―...
literatura infantil, por seu caráter lúdico-mágico é o caminho natural, a chave mágica
que abre a porta de entrada principal que dá acesso ao mundo da leitura e a tudo o
que ela pode nos proporcionar.‖ (FRANTZ, 1997, p. 8).
Acerca da literatura infantil como ferramenta para a formação de leitores,
Abramovich (2003) destaca que é importante os contatos iniciais da criança com a
literatura infantil, seja lida de modo autônomo ou contada por mediador. Inúmeros são
os caminhos para a formação de leitores a partir da literatura, pois acredita-se que
recorrer à literatura infantil, é essencial para que de uma forma encantadora se
consiga mostrar aos alunos como pode ser bom e agradável o ato da leitura. A esse
respeito Gregorin discorre afirmando que ―[...] só se formam leitores por meio de
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atividades de leitura, e estas devem [...] oferecer meios e estímulos para que o leitor
vença outras etapas, consiga decifrar novos códigos e se torne cada vez mais plural.‖
(GREGORIN 2009, p. 89).

Música, sala de aula e leitura

Na educação infantil a música é trabalhada desde cedo, desenvolvendo de


maneira lúdica e prazerosa o processo ensino-aprendizagem. Assim, num trabalho
pedagógico, a música é vista como um método contínuo de construção que além de
proporcionar prazer e alegria, permite que a criança conheça melhor a si mesma,
desenvolvendo sua noção de esquema corporal, e também permitem a comunicação
com o outro.
De acordo com Gainza (1988), ―a música e o som estimulam o movimento
interno e externo no homem, impulsionando-o à ação e promove nele uma
multiplicidade de condutas de diferentes qualidade e grau.‖ Nessa perspectiva, a
música torna-se extremamente importante para a educação. Inserida no contexto arte-
educação, ela promove o desenvolvimento da sensibilidade, percepção, imaginação,
tanto no que se refere à realização de atividades artístico-musicais, quanto na
utilização da mesma como recurso auxiliar nas atividades em sala de aula.
Geralmente, as primeiras canções aprendidas em sala de aula são extraídas do
folclore popular. Essas cantigas e muitas outras que nos foram transmitidas oralmente,
são formas inteligentes que a sabedoria humana inventou para nos prepararmos para
a vida adulta. A esse respeito, Brito (2003) defende que o professor trabalhe os jogos
de improvisação na educação infantil, pois eles contemplam os conteúdos simbólicos,
sensórios motores. Ou seja, os jogos e a linguagem musical aliados a uma prática de
leitura comprometida com o processo ensino-aprendizado na educação infantil, fará
com que o ensino seja atraente para a criança e o aprendizado dos conteúdos
propostos a sua faixa etária se torne fácil.
Porém, é importante lembrar que em alguns espaços de aprendizagem infantil o
trabalho com a música tem-se restringido a momentos de recreação, festas
comemorativas, não havendo muitas vezes um objetivo maior relacionado ao
desenvolvimento da criança, ignorando sua riqueza cultural e social.
Segundo o Referencial Curricular para a Educação Infantil (Brasil, 1998, p, 60),
―o que importa é que todos os conteúdos sejam trabalhados em situações expressivas
e significativas para as crianças, tendo-se o cuidado fundamental de tomá-los como
fins em si mesmos‖. Nisso vê-se que, trabalhar a linguagem musical é importante

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desde que seja contemplado no plano diário de forma coerente seguido um objetivo
pré-estabelecido pelo educador.
Para tanto, é importante frisar que a utilização da música na sala de aula deve
ser multidisciplinar, assim como as técnicas pedagógicas, que o educador procura
adaptá-las a cada realidade, sem esquecer-se do lado humano e social da música.
Pois, é por meio dessas práticas que a criança aprende a superar os obstáculos de
aprendizagem, e no processo de cantar, imitar sons e improvisar ela estará
descobrindo suas capacidades e estabelecendo relações com o ambiente em que
vive.
Conforme Brito, (2003) a cultura popular infantil é rica em produtos musicais que
o educador pode e deve explorá-la diariamente de forma livre dando oportunidade
para que as crianças descubram o valor cultural que essa linguagem carrega. Dentro
desse contexto, as cantigas do folclore brasileiro possuem inúmeras representações
em livros de histórias infantis, sendo que, em alguns casos o texto do livro é a própria
letra da canção. Esses livros são facilitadores do trabalho de diferenciação entre a voz
falada e a voz cantada e são importantes nesse processo de formação de leitores,
tendo em vista a proximidade que geram entre o leitor e o texto.
Nesses exemplos de textos musicados, merece destaque também as fábulas,
com histórias de animais personificados com moral no final, que chamam a atenção
das crianças. Pode-se citar, no rol de livros com histórias musicadas, ou de músicas
que viraram histórias: Chapeuzinho Vermelho, Tem gato na tuba, A Barata diz que
tem, Borboletinha, O trem maluco, dentre outros. Nos livros mencionados, tanto a
literatura quanto a música são exploradas como ferramentas de compartilhamento de
experiências, servindo à expressão de sentimentos, impressões, estados de ânimo.
Esse processo interdisciplinar permite o desenvolvimento dos sentidos, especialmente
na sensibilização da percepção e fomento das inúmeras possibilidades interpretativas.

Música: suporte às estratégias de leitura na educação infantil

A metodologia de ensino empregada pelo educador é determinante para o


desenvolvimento dos alunos. Assim, a prática de leitura aliada à música dependerá da
relação que o educador e as crianças estabelecem com ela desde os primeiros anos
do ensino infantil. E, acerca da função do educador nesse contexto, Rosa (1990, p. 20)
acrescenta que:

O educador consciente apresenta aos alunos as mais variadas


situações de aprendizagem, entre as que envolvem a linguagem
musical. É importante lembrar que a atividade com a linguagem
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musical não é uma simples oportunidade para o professor fazer


recreação. Em muitas circunstâncias bem planejadas ela é uma
forma de representação de vida da criança.

De acordo, com o posicionamento da autora, observa-se que, para trabalhar a


linguagem musical na sala de aula, primeiro o educador precisa ter um objetivo a
atingir a partir daquela atividade, segundo, é um trabalho que dá possibilidades para
que a criança descubra a sua identidade. Por isso, é fundamental que a escola
trabalhe a música de forma significativa contemplando: interpretação e criação de
canções; brinquedos cantados e rítmicos.
Sobre a importância da música no processo ensino aprendizagem, Gainza,
(1988) esclarece que a música contribui para a transformação e o desenvolvimento da
criança, já que ao trabalhar a música estará atingindo a motricidade e a sensorialidade
por meio do ritmo e do som, e por meio da melodia, atinge a afetividade. Dessa forma,
entende-se que ela não substitui o restante da educação, ela tem como função atingir
o ser humano em sua totalidade, atuando, portanto nas situações em que o conteúdo
didático necessite de recursos que auxiliem a aquisição e assimilação do mesmo por
parte dos alunos.
Nesse sentido, surgem algumas questões acerca das diversas outras propostas
e ideias, a partir de um conjunto de livros infantis, sobre como trabalha-los em sala de
aula: De quantas maneiras deve ser contada a história? Quantas trilhas sonoras
teremos? Qual o papel da música junto a esse livro? Como cantar esta ou aquela
história?
Pode-se, ainda, pensar em sonorizar ditados populares e parlendas, como, por
exemplo: Água mole em pedra dura tanto bate até que fura ou O rato roeu a roupa do
rei de Roma. Nessa mesma perspectiva, também se apresenta uma série de ditados
populares e parlendas, explorando aspectos rítmicos e de coordenação, ao mesmo
tempo que trabalha com a improvisação e a criação de melodias e de sonoridades
para essas parlendas. Certamente são livros que convidam os leitores, de diferentes
faixas etárias, a entrar e participar desses jogos e a cantar essas trovas ou ditados
populares, desenvolvendo-se o senso leitor e aproximando o leitor da gama de
experiências que o livro infantil e a música podem propiciar.
O processo de ensino e aprendizagem em Língua Portuguesa, nessa
perspectiva – unindo histórias e músicas – possibilita ao aluno explorar sua autonomia,
desenvolvendo e exercitando sua memória, seu raciocínio, sua capacidade de
percepção e sua criatividade. Esse indivíduo criativo é um elemento importante para o

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funcionamento efetivo da sociedade, pois é ele quem faz descobertas, inventa e


promove mudanças.
Trabalhar com esse tipo de estratégia metodológica permite desenvolver a
capacidade comunicativa dos alunos. Dessa maneira, podemos ―trabalhar com
histórias prontas, com contos de fadas, recorrendo a livros só de imagens, inventando,
pedindo a colaboração das crianças, etc. [...] O educador ou educadora deve manter-
se atento aos interesses e temas de estudo e pesquisa do grupo, favorecendo a
criação de situações ricas e estimulantes para as crianças‖. (BRITO, 2003, p. 170).
No que se refere às estratégias de leitura é notório que a música contempla uma
diversidade destas estratégias, atuando de maneira lúdica no encantamento de
leitores competentes. Acerca das estratégias de leitura, Pressley apud Solé(1998)
elenca as principais estratégias de leitura: o conhecimento prévio , que é o momento
em que o leitor ativa conhecimentos que já possui em relação ao que está sendo lido;
a conexão, que permite à criança ativar seu conhecimento prévio fazendo conexões
com aquilo que está lendo; a inferência, compreendida como a conclusão ou
interpretação de uma informação que não está explícita no texto; a visualização, onde
podemos criar imagens pessoais, o que mantém nossa atenção e permite que a leitura
se torne significativa; as perguntas ao texto, que podem ser respondidas no decorrer
da leitura com base no texto ou com o conhecimento do próprio leitor; a sumarização,
que parte do pressuposto de que precisamos sintetizar aquilo que lemos e, por fim, a
estratégia de síntese , que ocorre quando articulamos o que lemos com nossas
impressões pessoais, reconstruindo o próprio texto, elencando as informações
essenciais e modelando-as com o nosso conhecimento.
No processo de realização da leitura utilizando-se a música, o professor atribui
uma multiplicidade de significados à história. A entonação da voz, o ambiente, as
melodia, os gestos e musicalidade envolvida na atividade torna a experiência da
criança com o livro bastante significativa, impulsionando a fazer conexões, inferências,
sumarizações, por exemplos, dentre outras possíveis estratégias de leitura.
Realizar a atividade de leitura com instrumentos musicais, panos e ambientes
diferentes para auxiliar a contação da história, torna esse momento muito mais
interessante. Isso permite a realização da história e da música inúmeras vezes sem
que se torne mecânico ou uma simples reprodução contada sempre da mesma forma.
A interação com variados objetos nessa faixa etária leva a criança a pensar
através de múltiplas interações, levando seu olhar e sua percepção ao
pluridimensional. Criar ambientes sonoros, cenários, ações ou diálogos tendo como
base as histórias da literatura infantil amplia o desenvolvimento cognitivo da criança.
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Para ela é muito importante sentir-se e perceber-se atuante nas atividades de sala de
aula.
Na comparação entre uma história em duas versões (uma musicada e uma
falada), permite à criança diversos olhares sobre um mesmo enredo, levando-a a
questionamentos, críticas e comparações favoráveis ao seu crescimento e ao
desenvolvimento de sua competência leitora.
Muitos outros livros podem ser trabalhados na aula de música. Não é preciso
que a temática musical esteja explícita no enredo ou nas ilustrações. O trabalho da
música com outras áreas do conhecimento favorece o desenvolvimento de novos
saberes, novas formas de aproximação e envolvimento com o conhecimento pela
interação da criança com elementos do cotidiano escolar. Quando um olhar encontra
em outra área possibilidades de trocas e interesses comuns, todos ganham, inovando
e ampliando a prática do trabalho em conjunto.
Para pensar a música na escola a partir de uma abordagem interdisciplinar, o
professor, mais do que preocupar-se em transmitir um repertório dissociado do
contexto escolar, pode encontrar espaço junto aos alunos e aos professores parceiros,
interesses sonoros comuns que estejam permeando o espaço e a diversidade da
cultura escolar.

Considerações Finais

A música desempenha papel importante como instrumento pedagógico. Assim,


atua como elemento essencial à organização, socialização e integração com outras
linguagens, em particular com a possibilidade de expressão corporal como base da
educação psicomotora, devendo ser, por conseguinte, fator constante da rotina
educacional das crianças da pré-escola, para que esse sujeito possa desenvolver a
linguagem corporal, o sócio-afetivo, o cognitivo e outros.
As atividades envolvendo a linguagem musical, conforme Rosa (1990),
contribuem de forma significativa na vida do indivíduo para que este aprenda a viver
em sociedade, e desenvolva vários aspectos comportamentais como disciplina,
respeito, gentileza e polidez, além de noções de higiene e aspectos didáticos, logo
eles servirão de base para o processo de aprendizagem da criança no ensino infantil.
No que se refere à formação de leitores, através da associação entre música,
leitura e literatura, são latentes benefícios proporcionados na formação perceptivo-
cognitiva de um indivíduo nas práticas pedagógicas defendidas no trabalho
apresentado. Baseando-se em experiências acadêmicas e profissionais, como

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também na visão de autores como Brito (2003), Rosa (1990), Referencial Curricular da
Educação Infantil (BRASIL, 1998), vê-se na música a essência formadora e
modeladora do caráter humano e ferramenta auxiliar no processo de aquisição de
conhecimentos e, consequentemente, na formação de leitores competentes.
Finalmente, diante dessas constatações, recomenda-se a continuidade deste
estudo investigativo a cerca da utilização da música e da leitura, visto que é possível
ampliar as discussões sobre o tema em analise, bem como aprofundar as reflexões e
leitura crítica a cerca da temática. Espera-se que o mesmo sirva como base para
essas reflexões de profissionais da educação, bem como gestores e professores que
tenham em sua formação ideais que enfatizam e prezam por uma escola
verdadeiramente transformada e integradora.

Referências

ABRAMOVICH, Fanny. Literatura Infantil: Gostosuras e bobices. 5 Ed. São Paulo:


Scipione, 1997.

BRASIL. Ministério da educação e do Desporto. Referencial Curricular para a


Educação Infantil: Conhecimento de Mundo. Brasília MEC/SEF, 1998.

BRITO, Teca Alencar de. Musica na educação infantil. São Paulo: Peirópoles, 2003.

FRANTZ, M.H . Z. O ensino da literatura nas séries iniciais. Ijuí: UNIJUÍ, 1997. p.
96.

GAINZA, V. Hemsy de. Estudos de Psicopedagogia Musical. São Paulo: Summus,


1988.

GREGORIN Filho, José Nicolau. Literatura infantil: múltipla linguagem na formação


de leitores. São Paulo: Melhoramento, 2009.

LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. 6 Ed. São Paulo:
Ática, 2002.

SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. Trad. Claudia Schilling, 6 Ed. Porto alegre:
Artemed, 1998.

PONSO, C. C. Música em diálogo: ações interdisciplinares na educação infantil. 2Ed.


Porto Alegre: Sulina, 2011.

ROSA, Nereide Schilaro Santa, Educação musical para a Pré-Escola. São Paulo:
Ática, 1990.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

CHAPEUZINHO VERMELHO: UM CONTO ADAPTADO PARA O


FOLHETO POPULAR197

Irany André Lima de Souza, Universidade Federal da Paraíba, eixo 6, CNPq


Daniela Maria Segabinazi, Universidade Federal da Paraíba, eixo 6

Considerações Iniciais

A Literatura teve, ao longo de sua história, obras validadas como clássicas


por diferentes agentes – críticos literários, editores, instituições acadêmicas,
premiações, etc., com base em ideologias e valores vigentes em cada época. Essas
obras são tidas como uma herança cultural, enquanto conjunto de obras de referência.
São obras que atravessam gerações, sem perder sua carga de significação que é
sempre renovada a cada leitura (MACHADO, 2002).
Dessa forma, o clássico constitui um acervo que não deve ser negado aos
leitores contemporâneos que, por diferentes motivos, podem não apresentar
condições para a leitura dos textos conforme foram registrados pela primeira vez,
sentido em que adotaremos o termo texto ―original‖. Por isso, é importante não só
oferecer essas obras, mas dar condições para que elas possam ser lidas, mediante
alguns mecanismos que as tornem legíveis pelo novo público, distante dos leitores
pensados na escrita daquele texto primeiro. Uma dessas formas, historicamente
praticada e já legitimada, é a adaptação, na maioria das vezes, atualmente, destinadas
ao público escolar, mas que, na verdade, pode funcionar como mediadora entre o
texto original – normalmente um clássico – e o leitor real (CARVALHO, 2006;
FORMIGA, 2009).
Essa adaptação de um texto pode acontecer em diferentes suportes e
gêneros textuais (HUTCHEON, 2013), entre os quais muitos já são amplamente

197
Esse artigo traz um recorte de nossa dissertação de mestrado em desenvolvimento,
provisoriamente intitulada O FOLHETO NO CENÁRIO DAS ADAPTAÇÕES LITERÁRIAS:
releituras do conto Chapeuzinho Vermelho, orientada pela professora Dra. Daniela Maria
Segabinazi.
1028

estudados, como a adaptação fílmica e em quadrinhos. No entanto, a modalidade de


adaptação de obras clássicas para o folheto literário, conforme pesquisamos, não
obteve atenção merecida. Essa falta nos fez escolher o folheto como alvo de nosso
estudo sobre adaptações literárias. Uma pesquisa quantitativa em sites de algumas
editoras nos possibilitou reconhecer que há um forte desenvolvimento do mercado
editorial no que diz respeito às adaptações de clássicos para os livros/folhetos,
acarretando maior interesse em pesquisar de que forma ocorrem algumas dessas
adaptações.
Com esse objetivo, como escolha para os limites desse texto, selecionamos o
conto popular Chapeuzinho Vermelho em transposições para folhetos publicados no
século XXI, como corpus principal de nossa análise.Nesse sentido, a fim de perceber o
que esses textos mantém ou alteram do conto Chapeuzinho Vermelho, versões de
Perrault e dos irmãos Grimm, adotadas, aqui, como hipotextos principais, lançaremos
mão de uma pesquisa de cunho qualitativo e interpretativodos folhetos Chapeuzinho
Vermelho – versão versejada, de Manoel Monteiro (2010) e O casamento da
Chapeuzinho Vermelho, de Cleusa Santo (2010). Embasaremos nossas análises em
Roger Chartier (2002), Márcia Abreu (2006) e Ana Maria de Oliveira Galvão (2001).

Folhetos e Literatura Infantil: adaptações em duas vias


Ao longo dos séculos, as diferentes civilizações construíram suas histórias,
difundidas naturalmente entre os povos, com funções diferentes, conforme a época e o
lugar. É dentro do contexto das práticas culturais conhecidas como populares que
dissertamos sobre a Literatura Infantil, com ênfase nos contos maravilhosos/de fadas,
e a Literatura de folhetos nordestinos.
Esses sistemas literários trazem características que perpassam uma linha
comum: a origem associada às tradições orais. Nesse contexto, ambos apresentavam
características comuns, entre as quais: a não restrição temática, a forma de
divulgação em espaços abertos ao grande público ativo na interação frente à
performance dos contadores, estruturas fixas necessárias à manutenção da tradição e
à memorização dos textos relevantes para as comunidades orais de leitores e, ainda,
o posterior registro escrito e impresso das histórias carregadas de marcas de oralidade
e suscetíveis a inúmeras versões, com fórmulas e episódios que se repetem e se
mesclam na construção de novos textos.
Embora haja a manutenção de muitas dessas características, essas histórias
foram se adaptando aos lugares, aos novos interlocutores e às ideologias de cada
época. Difundida para o grande público, a Literatura Oral Popular, a partir do século
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XVIII – quando, no interior de mudanças políticas e sociais, surge uma concepção de


infância como uma fase distinta da adulta (ARIÉS, 2014) –, sofreu adequações para a
infância, público que já conquistara – nesse contexto, surge a Literatura Infantil. O
folheto também se adequou aos novos espaços de divulgação e venda e ao novo leitor
– escolar, muitas vezes – sem abandonar o já consolidado. Facilmente encontramos a
literatura de folhetos/livros em sites de editoras e em seus catálogos comumente
direcionados à escola. Nesses espaços, as adaptações de clássicos para o
folheto/livro são mais recorrentes do que a publicação de textos que já surgiram como
folhetos.
Segundo Márcia Abreu (1999, p.129), ―é prática comum a adaptação de
narrativas oriundas de outras tradições para o interior da literatura de folhetos‖. Além
disso, a adaptação ocorre em via dupla, tanto da Literatura Infantil para o folheto –
conforme veremos na análise – quanto o contrário. Como exemplo de reescritura de
folheto para narrativa infantil, temos as adaptações de O romance do pavão
misterioso, de José Camelo Rezende, adaptado e ilustrado por Jô Oliveira, em 1996, e
por Ronaldo Correia de Brito e Assis Lima (2004).
Ainda que a adaptação literária seja uma prática antiga, tendo como
pioneiros, já no Brasil do século XIX, Carlos Jansen e Figueiredo Pimentel, tem se
intensificado no século XXI. Surge com diferentes funções: como uma forma de
interpretar um texto original para criação de algo novo (HUTCHEON, 2013); para
diminuir a assimetria entre o adulto e acriança (GÖTE KLINBERG, 1973 apud
ZILBERMAN, 2003); para adequar o conteúdo a um novo público (FORMIGA, 2014);
para inserir o repertório de clássicos nas leituras dos infantes e jovens de hoje
(CARVALHO, 2006), entre outras. Seja qual for a intenção, não há necessidade de
fidelidade ao texto original, gerando modificações tão diversas quantas forem as
possibilidades. Cabe ressaltar que, quanto à adequação ao público infantil/juvenil,
somente na contemporaneidade muitos folhetos apresentam essa característica. Os
primeiros cordelistas visavam a um público mais diverso. Ainda, mesmo sendo
possível que a adaptação funcione como mediadora entre o leitor e o texto original,
essa também pode ser uma opção recusada ou inatingível para o leitor. Entretanto,
ponto comum entre as diferentes concepções sobre adaptação literária é que ela se
constitui como resultado da leitura de outra obra, tornando-a legível para leitores que
não os pensados na escrita do texto primeiro. Conscientes disso, apresentaremos, a
seguir, a análise de duas adaptações do conto Chapeuzinho Vermelho.

Chapeuzinho Vermelho: implicações do conto adaptado para folhetos


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Considerando-se que estudar as adaptações literárias do século XXI é,


também, reconstituir uma forma de leitura, não abriremos mão de averiguar as marcas
deixadas pela materialidade dos folhetos analisados que podem sugerir o leitor
previsto pelos(as) cordelistas/ editores(as). Muitos vestígios indiciam, ainda, o
processo de adaptação conferido na reescritura do conto Chapeuzinho Vermelho,
escolhido para análise por ser um dos contos com mais adaptações em folhetos, até o
alcance de nossa pesquisa. Dessa maneira, seguimos uma necessidade conferida
pela perspectiva da história cultural de que, na análise textual, é importante estudar
também impressos que servem de suportes aos textos. Defensor dessa ideia, Roger
Chartier afirma: ―Os textos não existem fora dos suportes materiais (sejam eles quais
forem) de que são os veículos. [...].‖ (CHARTIER, 2002, p. 61).
O suporte no qual o texto é apresentado ao leitor, certamente, influenciará na
produção de sentidos pelos receptores, pois constituem protocolos de leitura. Isso é
relevante ainda mais ao nos referirmos ao folheto literário, pois esse impresso é
definido não só por seus padrões de composição poética, mas também por sua forma,
responsável por orientar a escrita do poema nos limites do folheto (ABREU, 2006).
Ana Maria de Oliveira Galvão (2001) compactua de ideia semelhante. A autora lança
mão da leitura atenta de muitos elementos que compõe a materialidade do folheto,
além de se deter ao texto, enquanto linguagem e conteúdo. É, também, com base em
seu método analítico que faremos a nossa análise dos folhetos: Chapeuzinho
Vermelho: versão versejada (2010), de Manoel Monteiro e O casamento da
Chapeuzinho Vermelho (2010), de Cleusa Santo – ambos ilustrados abaixo. Conforme
nossos objetivos, enfatizaremos o diálogo entre essas adaptações e os primeiros
registros escritos do conto Chapeuzinho Vermelho198.

Figura 17- Reprodução fotográfica da capa e contracapa do folheto Chapeuzinho Vermelho –


versão versejada (2010).

198
No Brasil, os escritores mais divulgados como primeiros compiladores de contos populares
foram o francês Charles Perrault e os alemães Wilhelm e Jacob Grimm. Portanto, suas versões
de Chapeuzinho Vermelho foram escolhidas, aqui, como texto para comparação com as
releituras. Utilizamos as versões da Cosac Naify: Contos maravilhosos infantis e domésticos
(2012), dor irmãos Grimm, e Contos da mamãe gansa ou histórias do tempo antigo (2015), de
Perrault. Ambas são traduções dos originais.
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Fonte: Monteiro (2010).

Figura 18 - Reprodução fotográfica da capa e contracapa do folheto O casamento da


Chapeuzinho Vermelho (2010).

Fonte: Santo (2010).

Chapeuzinho Vermelho – versão versejada (2010), de Manoel Monteiro


A capa (cf. figura 1) exibe o título Chapeuzinho Vermelho – versão versejada,
o qual indica que haverá modificações no registro da história, agora em versos. A
denominação ―versão versejada‖ orienta o leitor que ele encontrará no folheto um texto
tradicional – talvez, de seu conhecimento – recontado em versos. Além disso, aparece
o nome de quem escreve o folheto, Manoel Monteiro, e que ele pertence à Academia
Brasileira de Cordel e do IHGCP. Ainda podemos ver o desenho que ilustra a capa,
retratando as figuras de Chapeuzinho, de sua avó e de um caçador. Embora não haja
nenhuma referência ao texto que o poeta tomou como base para sua adaptação, a
figura do caçador é um índice de que leremos uma reescritura embasada na versão
dos irmãos Grimm, os primeiros a inserirem esse personagem no enredo. Sabemos,
de antemão, que se trata de um texto baseado noutro já traduzido e adaptado. O fato
de não haver referência a uma ―autoria‖ do conto Chapeuzinho Vermelho, deve-se,
provavelmente, a esse texto já ter caído em domínio público, o que não acarreta
problemas com direitos autorais para o adaptador. A imagem da capa não é assinada,
de forma que ainda não sabemos quem é o ilustrador. Vemos, ainda, na parte inferior

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do folheto, de 2010, que se trata da segunda edição feita em Campina Grande, o que
sugere que esse impresso teve boa aceitação e circulação.
Na contracapa (cf. figura 1), o poeta/editor segue seu padrão editorial, pois
exibe propagandas de copiadoras/gráficas com seus respectivos endereços. Entre as
duas propagandas, há, destacado em caixa alta, a frase ―O CORDEL FACILITA O
TRABALHO DO PROFESSOR NA SALA DE AULA‖ e o nome da ―CORDELARIA
POETA MANOEL MONTEIRO‖, seguido de seu endereço. A frase citada é um vestígio
do público abstrato pensado pelo poeta ao produzir seu folheto: pensa-o para ser lido
por professores e seus alunos no espaço da sala de aula, o que direciona a escrita do
poeta.
Na segunda capa, o poeta mostra sua concepção de escrita para o público
infantil, considerando-o pueril, por isso, acredita que não deve ser enganado pelo
adulto com histórias ―mentirosas‖. Traz um discurso ecológico: ―Se ensinássemos aos
nossos pequenos amarem aos animais, teríamos um mundo melhor.‖ (MONTEIRO,
2010). Isso refletirá na escrita de Manoel, pois, com base em suas concepções, ele diz
ter tomado ―a liberdade de dar um final diferente ao clássico conto CHAPEUZINHO
VERMELHO.‖ Sabemos que as modificações serão maiores do que o explicitado aqui,
pois o fato de transpor um texto da prosa para os versos já acarreta modificações
maiores. Monteiro continua, na terceira capa, o seu discurso contra falsear histórias
para as crianças. Assim, dirige-se aos pais, aos professores e aos poetas para não
mentirem para os infantes. Segundo Monteiro (2010), ―Não existe lobo mau. Todos os
animais são bons [...]‖, o que reitera sua visão já mencionada. Exposta as suas
concepções que acarretaram certas modificações à reescritura, o poeta assina seu
folheto.
Esse folheto tradicional, feito em papel barato e vendido a preço acessível, é
constituído por 29 estrofes compostas por sete versos setissilábicos cada. Como
padrão, esse conto versejado é composto por 12 páginas. As estrofes apresentam
rimas nos 2º, 4º e 7º versos e outra rima no 5º e no 6º versos, comum aos versos de
sete sílabas poéticas. A adaptação segue, pois, o padrão do gênero para o qual o
conto foi transposto.
Compreendemos que a materialidade do folheto contribui para antecipar
algumas informações para o leitor, como o título e a ilustração da capa, que
direcionaram para o tipo de leitura que seria feito, além dos paratextos que trouxeram
informações sobre as concepções do poeta sobre o público para o qual escreveu o
poema e sobre o que deve ser escrito para crianças. Tudo isso pode contribuir com os
significados atribuídos à leitura do texto, como veremos.
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A primeira estrofe apresenta que o eu lírico está ―contando um conto a vocês‖


(MONTEIRO, 2010, grifo nosso) e, para isso, manterá o tradicional início dos contos
de fadas, ―Era uma vez‖; tempo mítico que funciona como porta de entrada para a
ficção. A segunda estrofe constrói o ambiente em que se passa a história: ―Pense uma
casinha branca/ Bem ao lado da estrada/ Com o telhado vermelho,/ Porta e janela,
alpendrada,/ Chaminé. Céu azulado;/ EIS O CENÁRIO MONTADO/ Para a história ser
contada.‖ (MONTEIRO, 2010, s/p, grifo nosso). Pela segunda vez, o eu lírico se dirige
ao leitor, agora para que ele imagine o cenário que, aliás, pode remeter às casas
típicas de algumas regiões do interior nordestino, com casas alpendradas e pintadas
de branco. No entanto, a referência a um ―cenário‖ é mais comum no gênero
dramático, visto que o texto é escrito para ser encenado. Isso é enfatizado na estrofe
seguinte: ―Nessa casinha que está/ Logo ali a nossa frente/ Morava uma garotinha/
Bela, doce, inteligente,/ Dessas que alegram o espelho/ Era ―Chapeuzin‖ Vermelho,/
Querida por toda gente.‖ (MONTEIRO, 2010, s/p, grifo nosso). O uso do dêitico ―ali‖,
aponta um lugar para onde se deve olhar, sugere mais uma característica do texto
dramático. Além disso, nessa estrofe, a protagonista é apresentada a partir de seus
atributos – bela, doce, inteligente, que a faz ―querida por toda a gente‖. Há uso de uma
variante regional para se referir à menina, a fim de manter a metrificação desejada.
Tanto os bons atributos da menina, quanto a justificativa de que seu apelido se deve a
ela andar sempre com um capuz vermelho, conforme revelado na quarta estrofe,
condizem com a versão do conto escrita pelos irmãos Grimm. Ainda na quinta estrofe,
há a descrição física da protagonista: ―Os olhos de Chapeuzinho/ Eram azuis e o
rosto/ Da cor de romã, a pele/ Macia que dava gosto,/ A face, tela pueril,/ A voz.
Sonata infantil, Qual trino d‘ave composto.‖ (MONTEIRO, 2010, s/p). Percebe-se a
construção positiva da personagem.
Na sexta estrofe, surge a figura da mãe. Junto, há uma ilustração que mostra
a mãe com o dedo indicador levantado, numa postura de quem adverte, no caso, a
filha, que sai em direção à casa da avó com um cesto na mão. Enquanto no conto, a
menina leva em seu cesto bolinhos e uma garrafa de vinho; no folheto, leva: bolinhos
de milho, de centeio e de farinha, além de potes de geleia, biscoito e torta. Tal
mudança sugere adequação à criança. Pela primeira vez aparecem as iniciais do
ilustrador: M. R. A imagem é confirmada nos versos da nona estrofe: ―Sua mãe pediu-
lhe que/ Fosse imediatamente/ Levar o presente para/ Vovó que estava doente,/ Mas,
evitasse a floresta,/ Pois diziam morar nesta/ Um lobo muito insolente.‖ (MONTEIRO,
2010, s/p). Assim, vemos o motivo da advertência da mãe de Chapeuzinho, que
também existe na versão dos irmãos Grimm, porém com finalidade diferente, visto
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que, após dizer o que a menina levará para a avó, a mãe orienta: ―Seja boazinha e
mande lembranças a ela. Ande direitinho e não desvie do caminho, senão você vai
cair e quebrar a garrafa e sua avó ficará sem nada.‖ (GRIMM, 2012). A menina,
acalmando a mãe de que sabe dos perigos, segue pela floresta, colhendo flores para a
sua avó: ―De flor em flor distraiu-se/ E foi adentrando a mata/ Nem percebeu quando
um vulto/ De cauda, focinho, e, robusto,/ Falou: Bom dia. Que susto!/ Sentiu nessa
hora exata.‖ (MONTEIRO, 2010, s/p). Vemos a primeira aparição do lobo. Segue-se a
conversa em que o lobo conhece, pela menina, onde mora a avó e que se encontra
enferma, logo, mais vulnerável. O animal premedita devorar alguém e corre para a
casa da avó, como revelado na 14ª estrofe: ―O lobo disse, já vou,/ Nem esperou
despedida/ Entrou de floresta a dentro/ Numa pressa desmedida/ Pois sua ―mente
perversa‖/ Sentiu naquela conversa/ Cheiro e gosto de comida.‖ (idem). O poeta faz
usos das aspas para situar o leitor de que não acredita nessa perversidade atribuída
ao animal. É, pois, coerente com suas concepções apresentadas nos paratextos.
Inclusive, a vontade de devorar é justificada na estrofe seguinte: ―[...]/ É que sua
barriguinha/ Fica exigindo comer/ [...]‖. (idem). Portanto, busca atender a uma
necessidade: saciar a fome.
Nas estrofes 16 e 17, o lobo, disfarçando-se com a voz de Chapeuzinho,
busca entrar na casa da avó que, diferentemente da versão base dessa reescritura,
desconfia da voz rouca: ―E um tanto desconfiada/ Indagou: Estás doente?/ Porque tua
voz/ Soa-me tão diferente?/ O lobo disse, não sei,/ Deve ser por que tomei/ Um
pouquinho d‘água quente.‖ (MONTEIRO, 2010, s/p). Portanto, mesmo desconfiada, a
avó é enganada pelo lobo, que consegue adentrar a casa e devorar a senhora
rapidamente: ―A vovó ordenou, entre,/ A porta não está travada/ O lobo faminto entrou/
E pulou sobre a coitada,/ Duma abocanhada só/ Tragou a pobre vovó/Indefesa e
assustada.‖ (ibidem). No entanto, o lobo ainda ―achou pouco o almoço‖.
Quando Chapeuzinho chega a seu destino, entra na casa sem bater e
entrega o cesto a sua avó. Ao ouvi-la, a menina começa a estranhar a voz da avó:
―[...]/ Mas vovó que vozeirão,/ O que a senhora tem?/ É uma gripe, meu bem,/ Que
deu-me essa rouquidão.‖ (MONTEIRO, 2010, s/p). Dada a desculpa, que parece ter
convencido, o lobo, travestido de avó, chama a menina para se sentar ao lado dele na
cama199. É atendido, mas, mais próxima, a menina retoma sua desconfiança. Segue-
se o diálogo clássico desse conto, em que Chapeuzinho pergunta sobre os braços

199
Esse episódio acontece na versão de Perrault (2015). O poeta pode ter tomado as duas
versões como base para sua reescrita ou ter confundido as versões, situação muito comum
quando se trata de textos originalmente produzidos de forma oral e registrados em inúmeras
versões escritas.
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longos, os olhos grandes, as orelhas enormes da suposta avó. Até que chega a
pergunta final: ―[...]/ Então vovó, me responda,/ Pra que lhe servem esses dentes/ E
essa enorme bocarra?/ São pra fazerem uma farra/ Mastigando os inocentes.‖ (idem).
O leitor que conhece a versão alemã espera que o lobo devore a menina, porém, não
é isso que acontece no folheto de Manoel Monteiro. Antes que a menina seja
devorada, ela é salva pelo caçador, conforme vemos na 27ª estrofe: ―Quando o lobo
abriu a boca/ Para engolir Chapeuzinho/ Um caçador que passava/ Deu-lhe um ―tiro‖
no focinho,/ Ele, no susto expeliu/ A vovozinha que viu/ A morte bem de pertinho.‖
Aqui, há outra grande alteração do conto base, além de a menina não ter sido
devorada, o caçador liberta a vovó dando um tiro no lobo e não lhe abrindo a barriga
com um corte.
O poema narrativo é finalizado com o eu lírico revelando que o texto contado
é, na verdade, uma peça. Os índices que apareceram durante o poema já sugeriam
isso, sendo confirmados na 28ª estrofe: ―A vovó saiu ilesa/ Dizendo; Escapei legal!/
Essa sua fala é dita/ Olhando para o pessoal/ Da platéia porque essa/ Fala marca O
FIM DA PEÇA/ Encenada no local.‖ (MONTEIRO, 2010, s/p). De forma mais explícita,
essa estrofe é construída como uma rubrica teatral, na qual o escritor indica como as
personagens/atores devem se comportar para encenar o texto. A estrofe final traz:
―Isto por que Chapeuzinho/ Vermelho, vovó, lobão/ E o caçador são atores/ Para
mostrar-lhes que não/ Tem bicho mau, e, insiste/ Que LOBO MAU SÓ EXISTE/ EM
LIVROS DE FICÇÃO.‖ (ibidem). Dessa forma, o poeta foi coerente com sua postura
evidenciada nas terceira e quarta capas.
Assim, percebemos que o cordelista modificou todos os sentidos contados na
história que, na verdade, era uma encenação teatral. As estrofes finais revelam a
moral pregada pela adaptação de Manoel, numa referência a ideia de que é preciso
cuidar de nossos animais, cada vez mais perpetuado no século XXI, transmissão de
valores que são absorvidos e que a literatura reflete a partir da ficção. Percebe-se que
as ações do texto clássico são trazidas para um novo contexto – adaptado, algumas
vezes, ao ambiente e cultura nordestina –, inclusive com traços dos discursos
ecológico e do politicamente correto disseminados atualmente, o que demonstra
claramente a transformação executada pelo poeta que, como sujeito de seu tempo,
incorpora algumas concepções ideológicas de sua época.
Assim como na versão do século XIX, o poema segue uma narrativa linear e
destaca as personagens do bem em oposição ao lobo mau, a partir da adjetivação
valorativa, a fim de que não haja ambiguidade quanto ao caráter dessas personagens.
Segue a linha dos textos populares que tendem a marcar o maniqueísmo nas
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histórias. No entanto, como vimos, no fim da história, temos conhecimento de que tudo
não passou de uma encenação, forma de justificar a existência fictícia de um animal
ser ruim. As descrições têm a função de delimitar os espaços e as personagens, mas
a ênfase é dada às ações, que dão o ritmo mais ágil ao texto.
No geral, vemos que o poema mantém o enredo do conto clássico, com
algumas omissões: não diz que foi a avó quem presenteou a neta com um
chapeuzinho de veludo; Chapeuzinho não entra desconfiada na casa da avó; a
protagonista não é devorada pelo lobo, o que elimina as ações posteriores a essa no
texto base: Chapeuzinho não mata o lobo enchendo sua barriga com pedras nem há
uma segunda versão para a narrativa. Esse fim foi a modificação mais significativa
para o enredo. No mais, houve pequenas alterações no cenário e os ingredientes
levados à avó – numa tentativa, talvez, de aproximar o texto a elementos comuns aos
leitores. Ainda, a advertência da mãe tem finalidade modificada. É perceptível que a
advertência deixa de ser para que a menina não quebre a garrafa com vinho e passa a
ser para que ela não encontre o lobo, antagonista do enredo. Ainda como alteração, a
menina se distrai por conta própria, sem ser persuadida pelo animal. Em contrapartida,
há acréscimos no desfecho: o caçador atira no lobo para resgatar a avó engolida. A
principal modificação é colocar o enredo no contexto de uma encenação para justificar
que não existem animais ruins, pois o lobo só devora a avó ou tenta devorar a menina
numa ficção. Portanto, pelos processos de repetição e recriação via acréscimos e
supressões, Manoel Monteiro adapta o conto popular clássico para os versos de seu
folheto.

O casamento da Chapeuzinho Vermelho (2010), de Cleusa Santo


Esse folheto trata de um tema que não foi contemplado pelas primeiras versões
do conto Chapeuzinho Vermelho: o casamento. A capa traz a imagem em destaque de
uma jovem vestida de noiva e com um capuz em tom avermelhado, assim como toda a
capa (cf. figura 2). A moça está abraçada com um jovem, com cabelos entrançados ou
com uma espécie de dreads, marcando, possivelmente, traços de sua identidade
étnica. Além do desenho central, são estampados na capa o nome da autora e o nome
do folheto, em fonte maior. Abaixo da ilustração, apenas a logomarca da editora
Luzeiro e a nomeação do impresso: cordel (assim como o folheto passou a ser
reconhecido no Brasil, por influência dos estudiosos).
Na contracapa (cf. figura 2), temos a síntese/apresentação do conteúdo do
folheto, para que o leitor saiba que lerá uma reescrita do conto clássico a partir de uma
ausência: o matrimônio de Chapeuzinho, a fim de fugir da solidão. Conclui com um
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aviso: ―[...] confira nesta fábula atualizada em cordel.‖ Chama-se atenção para o fato
de o texto ser ―atualizado‖ em outro formato e gênero: o cordel. Isso garante que o
leitor encontrará uma reescritura e não o texto primeiro – a primeira versão registrada
do conto.
Segue-se uma folha de rosto com as mesmas informações da capa. O único
acréscimo foram os agradecimentos da autora. No verso, encontramos as informações
catalográficas do folheto, editorialmente bem organizado, e atribuição dos direitos
autorais, copyright, para Cleusa Santo. Nesse espaço, sabemos que o impresso faz
parte da Coleção Popular da Editora Luzeiro, conhecida pelas publicações de cordel,
que tem como membros do conselho editorial outros cordelistas de profícua produção
poética, a exemplo de João Gomes de Sá, Marco Haurélio e Varneci Nascimento –
esse é responsável pela seleção dos textos da coleção. Sabemos, ainda, que sob a
responsabilidade da capa estão: André Mantoano e arte de Raquel Cardoso.
O folheto é organizado em dezesseis páginas construídas por estrofes em
sextilhas setessilábicas, com rimas nos 2º, 4º e 6º versos. Só a última estrofe traz uma
variação quanto ao número de versos: sete, com rimas padronizadas para esse tipo de
estrofe, portanto, uma rima nos 2º, 4º e 7º versos e outra nos 5º e 6º versos. Tal
configuração do folheto estabelece os limites que a poetisa tem para fazer as
adaptações necessárias do conto para os versos, respeitando sua métrica e rima,
inclusive.
Vemos que o suporte desse texto não traz um direcionamento explícito a
nenhum tipo de leitor. Apenas o fato de ser uma ―atualização‖ do conto, hoje
considerado um clássico infantil, não marca o público pensado pela autora, visto que,
por ser um clássico universal, o texto pode agradar ao grande público.
Após aparecer novamente o nome da autora e o título do folheto, agora
destacado dentro de um quadro com algumas vinhetas, o poema começa
contextualizando o tema da história. O comentário inicial é generalizante: ―Toda
menina donzela/ Tem medo do caritó/ [...]‖. (SANTO, 2010, p.3). Essa é uma afirmativa
que condensa o arquétipo feminino tão perpetuado, a partir da ideologia ocidental
construída em nossa sociedade cristã, patriarcal: a mulher tem como destino casar e
cuidar da casa e dos filhos. Porém, o cordel foi publicado em 2010, período em que
essa ideia, se não foi substituída, pelo menos é contrariada muitas vezes. Apesar
disso, a autora parece ter seguido essa ideologia por ser mais relevante para o seu
projeto discursivo na construção de outra face da personagem que, diferente de outras
personagens femininas dos contos de fadas, não terá um casamento arranjado, mas
ela mesma terá liberdade para escolher o seu marido.
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A segunda estrofe apresenta a história, direcionando-se ao leitor: ―Menina


que vira moça/ É louca pra se casar./ Preste bastante atenção/ No que agora vou
contar:/ A história da menina/ Que sua vida quis mudar.‖ (SANTO, 2010, p.3, grifo
nosso). Assim como no folheto de Manoel Monteiro (2010), esse também busca se
aproximar do leitor, como quem conta em voz alta uma narrativa. Essa característica é
comum nos folhetos por manterem marcas de oralidade na escrita.
Quanto à contextualização, podemos ver, ainda: ―A Chapeuzinho Vermelho,/
Era este o nome seu,/ Um autor bem conhecido/ A sua história escreveu./ Só
esqueceu-se do príncipe/ No enredo que lhe deu.‖ (SANTO, 2010, p.3). Nesse
fragmento, é explicitado o nome da protagonista – já antecipada pelo título do folheto –
e que ―um autor bem conhecido‖ escreveu sua história, mas não casou a personagem,
fato ocorrido em grande parte dos contos maravilhosos. Não é dito o nome do autor
(aquele que deu nome ao primeiro registro escrito) da história, mas a referência feita
no poema fundamenta que uma falta na escrita desse autor justifica a adaptação que
será feita do conto. Dessa maneira, podemos usar como texto base para a reescritura
tanto a versão de Perrault quanto a dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm – as mais
conhecidas no Brasil.
A quarta estrofe sumariza alguns elementos fundamentais do conto clássico,
para que os leitores que o conhecem os retomem, sempre justificando a ausência do
matrimônio de Chapeuzinho, como vemos a seguir: ―Ela ficou todo tempo/ Só
cuidando da vovó./ Teve lobo e caçador/ E tristeza de dar dó./ O tempo foi se
passando/ E a pobre ficando só.‖ (SANTO, 2010, p.4). O fim da estrofe já revela o
momento posterior ao enredo tradicional. Revela-se, depois, que Chapeuzinho
sonhava em se casar, por isso queria ser livre, ―Mas estava presa ao livro‖ (ibidem) –
referência ao impresso em que o texto anterior se encontra. Até que, em discurso
direto, mais dinâmico, a protagonista ganha voz: ―Vou sair desta prisão,/ Encontrar o
meu amor./ Escreverei minha história,/ Sem precisar de autor./ Eu quero a felicidade,/
Vou buscá-la aonde for!‖ (ibidem). A protagonista quer, de toda forma, modificar o fim
da sua história, nem que ela mesma se coloque como autora. Até aqui, vemos que o
rumo adotado pela poetisa toma percurso bastante diferente do enredo tradicional,
pois é a sua continuação que é priorizada.
A seguir, retoma-se o discurso indireto livre, quando o poema narrativo expõe
pensamentos e sentimentos da jovem que queria se casar e ter seus filhos. Ela tenta
sair do livro, sem sucesso. Assim, questiona-se: ―[...] / ‗Haverá algum caminho/ Para
encontrar o meu amor?/ Se não conseguir sozinha,/ Falarei com o autor!‘‖. (SANTO,
2010, p.5). A partir disso, a própria Cleusa Santo entra no enredo e, mais uma vez,
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dirige-se ao leitor (uma forma de aproximação que pode gerar mais empatia com a
história. Tanto que foi uma técnica bastante utilizada por Lobato): ―Caro leitor, nessa
hora/ Eu estava a folhear/ O livro com a história/ E a ouvi suplicar: – Ei, você que é
cordelista,/ Por que não vem me ajudar?‖ (SANTO, 2010, p.6). Percebe-se que a
protagonista recorre diretamente à cordelista, agora também personagem, que
folheava o livro (antologia) com o conto supracitado. A autora procura saber como
ajudar a jovem e recebe como resposta: ―Calma, boa cordelista./ Quero pedir-lhe um
favor./ Preciso sair do livro/ Para encontrar meu amor./ Coisa que só poderei/ Com seu
talento de autor!‖ (SANTO, 2010, p.7). O pedido é atendido: ―Ajudei-a em sua fuga/
Daquela história encantada./ Sem Lobo Mau, sem floresta,/ Sem caçador, sem
estrada./ Sem vovozinha e, agora,/ Partia noutra empreitada!‖ (ibidem). O diálogo
prossegue com mais referências sutis às mais conhecidas versões da história: ― – E
você não terá medo,/ De sair assim sozinha?/ Ela disse: – Eu sei orar./ Aprendi com a
vovozinha./ [...]‖. (idem, p.8).
Liberta do livro, Chapeuzinho inicia sua busca por um namorado. Visita outras
personagens de contos de fadas: Cinderela, Branca de Neve, que parece não ter tido
o final ―feliz para sempre‖ com o príncipe encantado, como sugere a 27ª estrofe em
tom que chega a ser cômico: ―Encontrou Branca de Neve, Mas não a reconheceu./ Já
se casara dez vezes,/ Até conselhos lhe deu:/ – Fique solteira, querida,/ esse é o
destino seu!‖ (SANTO, 2010, p.9). A jovem ainda encontrou a Moura Torta, que estava
casando seu filho João numa festa com muito samba e forró. Ainda, Chapeuzinho
encontrou outros personagens de filmes, como Shrek e Fiona, A Dama e o Vagabundo
e, também, de obras clássicas: Tarzan e Jane e o herói inglês Robin Hood, agora
político. Encontrou até a famosa macaca Chita, que também ―Tinha filhote e amor.‖
(idem, p.11).
A inclusão de um percurso feito pela jovem em busca de um namorado, além
de garantir a clássica saída da protagonista em prol de um objetivo, permitiu que a
autora pudesse dialogar com outras histórias, as quais podem ser reconhecidas por
grande parte dos leitores, os quais podem tê-las lido no original ou por meio de outras
mídias: cinema, quadrinhos, peças, etc. Mais que um recurso intertextual, a narrativa
indicia possíveis continuações para essas outras histórias, como o exemplo de
Cinderela, o que sugere uma adaptação para além do hipotexto escolhido para
análise.
Não obtendo sucesso em sua busca, Chapeuzinho recorre à autora mais uma
vez, pois precisa da ajuda de um poeta: ―E foi assim que eu, Cleusa,/ Ouvi a linda
donzela./ Comecei com meu plano/ Pra dar-lhe véu e capela./ Fui dando forma a um
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príncipe/ Para se casar com ela.‖ (ibidem). Os versos retornam à explicação de como
autora e Chapeuzinho entraram num acordo, mas não interfere muito na linearidade
do conto.
A autora cria um companheiro para a jovem, conforme ela idealizou, como
vemos nas estrofes 37: ―– Qual será o nome dele?/ Respondeu-me: – Samuel!/ – Qual
será o rosto dele?/ – O rosto de São Miguel./ – Preferência literária?/ – Só gosta de ler
Cordel.‖ (SANTO, 2010, p.12). A descrição continua na estrofe seguinte: ―– Tem
preferência de pele?/ Um negro é minha paixão!/ – Sua nacionalidade?/ – Jamaica, a
sua nação!/ – Riquezas, propriedades?/ – É rico de educação.‖ (ibidem). As escolhas
para a criação de Samuel também incorporam valores éticos e religiosos. Assim,
Chapeuzinho conseguiu um noivo como desejava, negro e leitor de cordel – essa
metalinguagem do folheto fazendo referência ao próprio impresso aparece em outros
trechos. Além disso, há uma aproximação a outros elementos que podem fazer parte
do convívio de muitos leitores desse folheto, como podemos ver na festa de
casamento de Chapeuzinho e Samuel: ―Seu casamento foi feito/ Em um bonito jardim./
Cantoria e comilança,/ Bolo de rolo, aipim./ Vou contar para vocês/ A parte que coube
a mim.‖ (SANTO, 2010, p.13). Ainda, temos na 44ª estrofe: ―Doze de junho, bem me
lembro,/ No Dia dos Namorados,/ Foi uma festa tão linda,/ Muitos doces e salgados./
Crianças, vários poetas,/ Foram também convidados.‖ (idem, p.14). Entre os poetas
populares presentes, estão os já citados como editores desse impresso e, ainda,
Moreira (de Acopiara), Cacá (Lopes), entre outros. Também houve cantoria e
apresentação dos poetas, além da presença de crianças na festa.
O poema se encerra com uma estrofe de sete versos setissilábicos: ―Depois
da lua de mel,/ Foram no cordel morar./ Felizes com tanta rima,/ O amor a celebrar./ E
cá, fico eu, contente,/ Esperando brevemente/ Uma nova história contar.‖ (SANTO,
2010, p.15). Terminado com o sucesso alcançado pela protagonista com auxílio da
autora, a poetisa encerra como quem narra sua história em voz alta, nos moldes dos
primeiros vendedores dos folhetos nas feiras livres.
A última página do folheto traz uma foto da autora, seus contatos e alguns de
seus dados biográficos.
Vimos que o folheto, para atender aos critérios poéticos próprios desse
impresso, mesmo quando tentou, minimamente, a manutenção do enredo tradicional,
precisou sumarizá-lo e quebrar frases para manter os versos com sete sílabas
poéticas.
Finalmente, a atualização proposta pela autora não se limitou, como no
folheto de Monteiro (2010), ao enredo tradicional, mantendo apenas os elementos
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conhecidos do grande público, mas criou outra história, posterior à conhecida, ao


lançar mão de criar para Chapeuzinho uma trajetória de busca por um namorado e seu
tão esperado casamento, proporcionando um final condizente com o status de
felicidade buscado pela heroína. No fim, como na tradição desses contos, o
matrimônio é a salvação da felicidade da protagonista. Conforme apresentado, houve
a preocupação em adequar o casamento à cultura brasileira, com um modelo festivo
que pode ser mais próximo da tradição interiorana do Nordeste, sobretudo. Em termos
de linguagem, não foi preciso fazer grandes alterações para o português
contemporâneo, pois lembramos que, apesar de as primeiras versões escritas
datarem do século XVI, é mais provável que a poetisa tenha usado como referência
um texto traduzido e adaptado ou até ter ouvido uma das diversas versões do conto.

Considerações Finais
Conforme visto, há uma transitoriedade entre os folhetos e os livros destinados
ao público infantil, atestando a antiga e contínua relação entre essas literaturas,
responsáveis por perpetuar textos originariamente orais em materiais impressos
variados, mantendo vivas as histórias no meio das comunidades de leitores que
compartilham memórias e culturas.
Os contos de fadas continuam sendo fontes de diversas releituras, entre as
quais as adaptações para folhetos. O conto Chapeuzinho Vermelho, de domínio
público, é um dos mais adaptados nesse contexto, transformando-se em novos textos
que dialogam com o anterior e o recriam e ressignificam. As duas adaptações
analisadas trazem características semelhantes ao conto ―original‖, a exemplo da
manutenção do enredo principal ou de alguns de seus elementos, do maniqueísmo, da
função da personagem Chapeuzinho como protagonista e da ênfase nas ações e não
nas descrições. No entanto, como texto que pode ser autônomo, também divergem do
clássico, seja pelas concepções ideológicas seja pela recusa do final do texto primeiro,
indo além desse hipotexto. Em ambos, há incorporação de elementos regionais do
modo de vida e da cultura nordestina, além de marcarem bem alguns discursos
ideológicos. São opções disponíveis para o leitor do século XXI dialogar com a
tradição pelas vias da manutenção e da mudança.

Referências

ABREU, Márcia. ―Versos simples e rudes produzidos pela cultura popular‖ – a beleza e
o sentido estético em culturas outras. In: Cultura letrada: literatura e leitura/ Márcia
Abreu. São Paulo: Editora UNESP, 2006.

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ABREU, Márcia. Histórias de cordéis e folhetos. Campinas, SP: Mercado das


Letras: Associação de Leitura do Brasil, 1999.
ARIÈS, Phillipe. História social da infância e da família. Rio de Janeiro: LTC, 2014.
CARVALHO, Diógenes B. A. A adaptação literária para crianças e jovens:
Robinson Crusoé no Brasil. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em
Letras da PUCRS, 2006.
CHARTIER, Roger. Os desafios da escrita. Trad. Fúlvia M. L. Moretto. São Paulo:
Editora Unesp, 2002.
FORMIGA, Girlene Marques. Adaptação de clássicos literários: uma história de
leitura no Brasil. - Tese (Doutorado em Letras) – João Pessoa: UFPB, 2009.
GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. Cordel: leitores e ouvintes. Belo Horizonte:
Autêntica, 2001.
GRIMM, Jacob. GRIMM, Wilhelm. Contos maravilhosos infantis e domésticos. Ils.
J. Borges. Trad. Christine Röhrig. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Tradução André Cechinel. 2. ed. –
Florianópolis: Ed. Da UFSC, 2013.
MACHADO, Ana Maria. Como e por que ler os clássicos universais desde cedo.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.
MONTEIRO, Manoel. Chapeuzinho Vermelho – versão versejada. 2. ed. – Campina
Grande: Cordelaria Poeta Manoel Monteiro, 2010.
PERRAULT, Charles. Contos da mamãe gansa ou histórias do tempo antigo.
Título original: Les contes de ma mère l‘Oye – Histoires ou Contes Du temps passé.
Tradução de Leonardo Fróes. Ilustrações: Milimbo. São Paulo: Cosac Naify, 2015. 176
pp., 65 ils.
SANTO, Cleusa. O casamento da Chapeuzinho Vermelho. São Paulo: Editora
Luzeiro, 2010.
ZILBERMAN, Regina. A Literatura Infantil na Escola. – 11.ed. – São Paulo: Global,
2003.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

DOM QUIXOTE: UM ESTUDO INTERARTES

RIBEIRO, Alessandra Silva, UNESP Assis, eixo temático 6, Literatura Infantil e


as múltiplas linguagens

Considerações Iniciais

Este artigo apresenta algumas características da obra de Carlos


Drummond de Andrade e de Candido Portinari, dois grandes representantes do
Modernismo na poesia e na pintura. Candido Portinari é autor da série Dom
Quixote, que reúne vinte e um desenhos pintados a lápis no ano de 1956. Seu
trabalho faz uma leitura da obra de Miguel de Cervantes, autor de Dom Quixote
de la Mancha. Carlos Drummond de Andrade compõe uma glosa para cada
desenho da série Dom Quixote, de Candido Portinari, a convite de Gastão de
Holanda, da Fundação Castro Maya, que adquire os desenhos da série com a
família de Portinari, após sua morte. As vinte e uma ilustrações e glosas são
publicadas no álbum D. Quixote, Cervantes, Portinari, Drummond (1973), com
fragmentos da obra Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, selecionados pela
pesquisadora Lúcia Olinto, da fundação Castro Maya, conforme relata Katya
Maia Motta (2007, p. 11).
O estudo dos desenhos de Portinari aqui apresentado está vinculado à
minha Dissertação de Mestrado200, que consiste em uma análise comparativa
entre a obra Dom Quixote de la Mancha (1605 e 1615), de Miguel de Cervantes
e uma adaptação desta para o público infantojuvenil, O cavaleiro do sonho:
aventuras e desventuras de Dom Quixote de la Mancha (2005), da autora

200
O CAVALEIRO DO SONHO: Uma releitura de Dom Quixote na literatura brasileira infantojuvenil sob
orientação da Profa Dra Maira Angélia Pandolfi, Universidade Estadual Paulista (UNESP) Assis.
1044

brasileira Ana Maria Machado. O objetivo do trabalho é analisar a adaptação da


obra infantojuvenil à luz do mito de Dom Quixote num diálogo interartístico
entre o texto da escritora e as ilustrações de Portinari. É importante destacar
que o estudo de Ana Maria Machado não faz parte desse artigo.
Investigando o trabalho de Candido Portinari com o propósito de
entender melhor como se dá o processo de criação da autora Ana Maria
Machado, entendemos ser necessário agregar ao estudo a verificação da
história dos desenhos da série Dom Quixote. Nessa breve pesquisa
descobrimos o motivo de sua criação: ilustrar uma edição nacional de Dom
Quixote que foi inviabilizada devido aos gastos com impressão dos desenhos,
portanto, sua primeira utilização ocorreu em 1972, pelo poeta Carlos
Drummond de Andrade através de um processo de composição semelhante ao
percorrido por Ana Maria Machado. Como suporte teórico para esta análise,
recorremos a Antonio Houaiss, Alice Aurea Penteado Martha, Gilberto
Mendonça Teles e Celia Navarro Flores.
O estudo, após apresentar as principais características dos autores
envolvidos (Portinari e Drummond) apresentará características do Modernismo
e será finalizado com a análise de dois pares de glosas e ilustrações de seus
autores.

Carlos Drummond de Andrade

De acordo com José Guilherme Merquior (1975, p. 4), Carlos Drummond


de Andrade nasceu em Itabira do Mato Dentro, no ano de 1902, em Minas
Gerais, de uma família de fazendeiros. Mudou-se para a capital do estado, Belo
Horizonte, onde fez o liceu e continuou os estudos com jesuítas em Friburgo,
Rio de Janeiro. No ano de 1924 estava inscrito na Escola de Farmácia. Já
escrevia desde 1918. Passou a frequentar a jovem intelligentsia de Minas.
Conheceu Oswald de Andrade e Mario de Andrade com quem manteve contato
através de cartas. À frente da Revista tornou-se um dos principais modernistas
em Minas Gerais. Seu poema No meio do caminho foi publicado em 1928 na
Revista de Antropofagia de Oswald de Andrade. Deixou de ensinar no campo
da Farmácia e passou a trabalhar no ramo do jornalismo. Foi nomeado em
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1933, funcionário da Secretaria de Educação em Minas Gerais. Estabeleceu-se


no Rio de Janeiro como chefe do gabinete de Capanema, Ministro da
Educação Nacional, período em que publicou duas obras líricas. Em 1942
publicou pela Editora José Olympio a primeira edição do conjunto de seus
versos. Aproximou-se de grupos de esquerda, mas afastou-se logo por afã de
independência.
Conforme notas biográficas publicadas no livro As impurezas do branco
(1974), da editora José Olympio, o poeta atuou como jornalista no Correioda
Manhã entre os anos de 1954 a 1968 escrevendo crônicas com o título geral de
Imagens que abordavam a respeito das realidades de seu bairro, do mundo e
do homem. Uma centena desses textos foi publicada em livros, como
Versiprosa e Caminhos de João Brandão.
Carlos Drummond de Andrade contribuiu para a profissionalização do
escritor no Brasil e auxiliou a fundar várias associações da classe escritora.
Recebeu prêmios da Sociedade Felipe d‘Oliveira, do P.E.N. Club do Brasil e da
União Brasileira de Escritores.

Candido Portinari

A vida de Cândido Portinari é marcada pelas diversas influências


recebidas ao longo de sua carreira. Destacamos os fatos mais marcantes com
base em notas biográficas do caderno do Museu de Arte Moderna (1954). O
artista nasceu no dia 29 de dezembro de 1903 em Brodowski, estado de São
Paulo. Aos catorze anos inicia seus estudos na Escola Nacional de Belas
Artes. Foi bastante premiado, mesmo em início de carreira, ganhando prêmios,
expondo trabalhos e viajando à Europa em 1928, recebendo influências
antiacadêmicas ao estabelecer contato com novas culturas viajando pela Itália,
Inglaterra, Espanha e França.
Portinari volta de Paris em 1930 após vivenciar contato com arte
moderna francesa. Não produziu muito em período que recebia informações e
estava bastante preso às regras convencionais. Com sua arte mais
amadurecida, aproxima-se dos ideais modernistas:

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Em torno de 1934, verifica-se no seu trabalho o surgimento das


bases de seu estilo. Da primeira fase do Modernismo, Portinari
mantém sobretudo a intenção nacionalista, através da temática
brasileira. Mas na sua pintura a figura humana será dominante.
O trabalhador rural, as figuras populares e as cenas infantis
seriam os seus personagens principais. Sua obra se
concentrará principalmente em torno dos temas do trabalho e
da pobreza. Mas, à diferença da primeira fase do Modernismo,
a evocação popular em Portinari terá um deliberado sentido
político. As origens formais de seu estilo envolvem diversas
influências. Há, por exemplo, o Cubismo, que aparece na
constância da presença de Picasso e, além disso, a influência
de alguns artistas da Escola de Paris, do Muralismo mexicano,
do Quatrocento italiano e dos ensinamentos da Escola de
Belas-Artes (ZILIO, 1997, p. 91).

Ainda de acordo com Carlos Zilio (1997, p. 111) a formação de Candido


Portinari recebe dois estilos artísticos que são antagônicos entre si: a tradição e
o moderno. O trabalho de Portinari é marcado por uma ou outra tendência,
contudo, prevalecendo o estilo tradicional.
Conforme notas do caderno do Museu de Arte Moderna (1954) a seca
no Ceará inspirou o artista a retratar a realidade brasileira através das obras
Emigrantes, Enterro na Rede e Menino Morto compostas em 1945. Em 1952
inicia a confecção dos painéis Guerra e Paz para a ONU (Organização das
Nações Unidas) finalizando-os em 1956, ano que criou a Serie Dom Quixote.
Morre em seis de fevereiro de 1962, na Casa de Saúde São José, em
consequência do envenenamento pelas tintas com as quais pintou por toda sua
carreira.
Celia Navarro Flores (s.d.) justifica a técnica de pintura utilizada na série
Dom Quixote. Portinari, contaminado pelo chumbo das tintas encontrava-se
gravemente enfermo, e proibido pelos médicos de pintar com tintas, precisou
dar vida aos desenhos da série com lápis de cor. A autora destaca o aspecto
infantil da série D. Quixote, tema sempre abordado pelo pintor:

Nos gustaría resaltar, aquí, que la temática de la infancia, los


juegos infantiles y los animales son constantes en la obra del
pintor, que a nuestro ver, trae esos elementos para la serie de
Don Quijote com la intención de representar el carácter

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ingenuo y hasta infantil de los personajes de Cervantes 201


(FLORES, 2004, p. 314).

A obra de Portinari recebe influências diversas, desde a herança


europeia por sua descendência italiana, os motivos folclóricos e o encontro
com sua infância (Kelly, s.d., p. 15). Na extensão de sua obra o pintor sempre
retratou as crianças em suas brincadeiras, como podemos ver nas pinturas
Guerra e Paz. Em Dom Quixote a dupla manchega apresenta aspectos infantis,
como a oposição dos protagonistas:

Portinari da énfasis a esa supuesta oposición recreando a un


Don Quijote extremadamente flaco y a un Sancho Panza
extremadamente gordo. Em los cuadros, la figura del caballero
se destaca de las demás. El hidalgo se asemeja a um muñeco
articulado, a un títere o a um insecto202 (FLORES, 2004, p.
313).

A influência modernista

Carlos Drummond de Andrade, que encabeça a lista dos principais


modernistas de Minas gerais tem sua obra ―reunida de forma essencial em
doze livros surgidos entre 1930 e 1968, é frequentemente considerada o ponto
alto da poesia brasileira contemporânea‖ (MELQUIOR, 1975, p. 3). A poesia de
Drummond é, simultaneamente, reflexo do mundo sociocultural assim como
uma reflexão crítica a cerca desse mesmo mundo, sendo a reflexão não
apresentada de maneira abstrata e intelectualizada.
O Modernismo, movimento artístico que objetivava renovar o cenário
artístico brasileiro surgiu em 1922 com a Semana de Arte Moderna e se
estendeu em sua primeira fase até 1928. Apesar de sua divisão em três fases
que apresentam aspectos específicos, em todas elas se configuram a negação
dos valores literários do passado, em especial do parnasianismo. Entre suas
principais características temos a adoção do verso-livre e descoberta de outros

201
Gostaríamos de enfatizar aqui que o tema da infância, dos jogos infantis e dos animais, constantes no
trabalho do pintor, que, para nós, traz tais elementos para a série Dom Quixote com a intenção de
representar o ingênuo e mesmo infantil das personagens de Cervantes. (Tradução Nossa)
202
Portinari enfatiza essa suposta oposição, recriando um Don Quixote extremamente fino e um Sancho
Pança extremamente gordo. Nas pinturas, a figura do cavaleiro se destaca dos outros. O fidalgo se
assemelha a um boneco articulado, a uma marionete ou a um inseto. (Tradução Nossa)
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esquemas rítmicos, a rima é extinta ou utilizada em outros planos, em geral


com objetivos expressionistas. A pontuação e ordenação caótica sem lógica
também foram utilizadas para quebrar as regras tradicionais e elementos da
poesia parnasiana, como destaca Gilberto Mendonça Teles (1970, p. 5 e 7).
A preocupação com a adoção de uma nova linguagem, distanciada da
referência de Portugal e dos períodos literários anteriores configurou-se como
um dos principais padrões do Modernismo. O movimento, mais amadurecido
após sua fase inicial passa a ocupar-se de questões menos pitorescas e mais
sociais do homem:

É assim que, depois de 1928, o modernismo começa a navegar


por outras águas, menos superficiais e menos polêmicas, mais
construtivas e, sob diversos aspectos, mais autênticas, mais
conforme à realidade brasileira. À medida que vai ganhando
repercussão nos outros Estados, vai também perdendo o
sentimento grupal e se transformando numa renovação
silenciosa em que cada poeta se esforça por exprimir o máximo
de sua originalidade, sem atender ao imediatismo dos
programas e manifestos. Depuram-se as formas e se
consagram as técnicas esboçadas ou canhestramente
empregadas desde 1922. Desprezam-se outros procedimentos
poemáticos da primeira fase, como o do poema-piada, e
chega-se posteriormente à reabilitação do soneto e da balada,
é claro que em outras dimensões de organização e de
linguagem. O verso-livre, um pouco tímido e inestético no
princípio (como, por exemplo, na Pauliceia Desvairada, de
1922), obtém então maior estabilidade, tornando-se maleável e
orgânico e adquirindo um ritmo natural, de maior fôlego, como
os versículos bíblicos de Schmidt e Jorge de Lima, de
ressonâncias claudelianas. Na verdade, a geração que está
surgindo sente outros compromissos com o seu tempo e
abandona o nacionalismo pitoresco e neo-indianista para
dedicar-se às preocupações espirituais e sociais do homem
brasileiro (TELES, 1970, p. 8).

A adoção de uma linguagem mais simples, aproximada da fala, não é


apenas característica do Modernismo. Antes mesmo do período literário e
artístico fixar os primeiros passos, escritores como Monteiro Lobato, à frente de
seu tempo, olhou com atenção para o rigor da gramática de sua época, que
precisava modernizar-se. Assim, antecipa, como pontua Bianca Campello
Rodrigues Costa (2012, p. 169), os ideais do movimento que se configuram em
sua obra publicada em 1927, entre dois manifestos oswaldianos.

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Lobato também tinha grande preocupação com a cultura do Brasil e era


contra a importação de uma produção artística europeia. Sua famosa crítica a
Anita Malfatti revela essa questão:

Sejamos sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo, e tutti


quanti não passam de outros tantos ramos da arte caricatural.
É a extensão da caricatura a regiões onde não havia até agora
penetrado. Caricatura da cor, caricatura da forma – mas
caricatura que não visa, como a verdadeira, ressaltar uma
ideia, mas sim desnortear, aparvalhar, atordoar a ingenuidade
do espectador. (LOBATO apud NEPOMUCENO, 2005, p. 39).

O foco na linguagem tornou-se a grande preocupação dos modernistas e


também, no caso de Lobato, pré-modernistas. O uso da linguagem coloquial
ganhou importância:

Daí a busca da liberdade absoluta de expressão, abolindo


definitivamente no Brasil a velha distinção retórica entre coisas
―poéticas‖ e ―antipoéticas‖ ou ―apoéticas‖. E daí também outras
atitudes e exigências, como a revitalização do idioma com
elementos da cultura nacional, a aproximação da expressão
literária ao nível coloquial da fala brasileira, a fuga ao rigorismo
gramatical e, portanto, a retomada neo-romântica do problema
de uma ―língua brasileira‖ (TELES, 1970, p. 7).

A utilização de uma linguagem mais simples não implica no


desconhecimento, por parte de Drummond, dos traços formais da língua
portuguesa. Expressá-la, sobrepor-se a ela e realizar conexões é um ato
concretizável pelo poeta, porque detém conhecimento, intimidade, e maestria
da língua, como pontua Antônio Houaiss (1976, p. 19).
É interessante frisar, tanto em Drummond como em Portinari, seu
pertencimento ao Modernismo. Ambos os artistas, que nasceram no início do
século XX, viveram a mesma necessidade: uma cultura brasileira voltada para
questões nacionais, deixando de lado uma tradição europeia que nas fases
artísticas anteriores sobressaíam-se, como por exemplo, em período
parnasiano. Se o modernismo em Drummond, já demonstrado anteriormente
por Melquior, revela sua importância para o movimento, temos em Zilio, o
destaque que Portinari apresenta dentro desse período artístico:

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Portinari, entre 1935 e 1945, é o artista mais em evidência na


nossa arte moderna, a ponto de surgirem as expressões
‗portinarismo‘ e ‗antiportinarismo‘. Esta quase unanimidade que
consegue, faz do seu trabalho uma importante referência para
o estudo deste período, principalmente porque ao mesmo
tempo que obtém a admiração dos intelectuais, é o principal
divulgador da imagem moderna junto ao público (ZILIO, 1997,
p. 18).

Entendendo o papel que Portinari e Drummond representaram para o


movimento modernista e após uma apresentação de suas características
principais que possibilitam apoiar nossa análise, passamos ao estudo das
poesias Quixote e Sancho, de Portinari que catalisa o trabalho de Cervantes e
Portinari.

O Quixote de Portinari e Drummond

Nesse momento, faremos um recorte das glosas de Drummond para


realização dessa dupla análise, a união de um poeta e um pintor mediado pelo
trabalho de Miguel de Cervantes e sua obra magistral: Dom Quixote de la
mancha.
Motta (2007, p. 37) destaca, em análise de ilustração da série Dom
Quixote, o desenho Dom Quixote de cócoras com ideias delirantes, na qual um
Dom Quixote magro, de cócoras, com um olhar aparentemente fixado ao longe
transmite a sensação de desalinho e também desequilíbrio na harmonia do
conjunto pictórico. Olhando com atenção é possível notar que os membros de
Quixote estão em desarmonia. Os braços não apresentam o mesmo tamanho,
e seu corpo está mais pendido na ilustração para o lado direito, transmitindo a
sensação de desequilíbrio.

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Figura 1

Mota ainda relata a força das cores utilizadas nesta ilustração (2007, p.
39) em que predominam a cor amarela e vermelha, cores fortes. Destaca,
ainda, na fala de Kandisky do simbolismo do amarelo, cor que melhor
representa a loucura. O Cavaleiro Andante mantém um olhar vítreo para o
vazio, num aparente devaneio. Seu olhar fixo e suas mãos em apoio à visão,
posição de quem procura por algo, demonstram a procura de um Quixote em
desalinho, desejando, buscando desesperadamente por algo.
Na glosa de Drummond, o delírio de Dom Quixote aparece nos versos
de sua poesia, no Soneto da loucura. Se na ilustração de Portinari podemos
olhar para o cavaleiro em seu delírio e imaginar o que pensa, na poesia de
Drummond é o próprio Dom Quixote quem narra seus anseios.

I SONETO DA LOUCURA

A minha casa pobre é rica de quimera


e se vou sem destino a trovejar espantos,
meu nome há de romper as mais nevoentas eras
tal qual Pentapolim, o rei dos Garamantas.

Rola em minha cabeça o tropel de batalhas


jamais vistas no chão ou no mar ou no infermo.
Se da escura cozinha escapa o cheiro de alho,
o que nele recolho é o olor da glória eterna.

Donzelas a salvar, há milhares na Terra


e eu parto e meu rocim, corisco, espada, grito,
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o torto endireitando, herói de seda e ferro,

e não durmo, abrasado, e janto apenas nuvens,


na férvida obsessão de que enfim a bendita
Idade de Ouro e Sol baixe lá das alturas.

A poesia de Drummond, que ―ilustrou‖ o desenho acima, irá pontuar o


aspecto de desequilíbrio do cavaleiro andante, como destaca Alice Aurea
Penteado Martha:

Além do título do soneto, que aponta o estado de loucura de


Quixote, na primeira estrofe, a oposição entre a pobreza da
casa (realidade) e a riqueza de sonhos (fantasia) sintetiza a
situação de conflito em que se encontra o eu poético, bem
como seu desejo de glórias que possam elevá-lo à condição de
seus heróis, entre eles Pentapolim, o rei dos Garamantas, que
sempre entrava em combate com o braço desnudo, inimigo do
imperador Alifanfarrão, uma das muitas personagens criadas
por sua mente fantasiosa (MARTHA, 2003).

A visão delirante em sua ilustração (Portinari) é completada pela poesia


(Drummond) que marca o contraste entre o que enxerga na realidade e o que
vê em sua imaginação, alimentada pelos livros de cavalaria: ‖Assim, a
dicotomia Devaneio x Realidade é resultado da tentativa de Dom Quixote de
trazer as ideias do plano inteligível, do sonho, para o plano sensorial, ou à
realidade, configurando assim, seu devaneio‖ (MOTTA, 2007, p. 46).
O próximo par analisado neste artigo apresenta a ilustração Sancho
atende ao chamado de Dom Quixote.
O desenho de Portinari apresenta uma divisão espacial. Ocupando o
espaço superior temos Sancho Pança (à esquerda). Ao seu lado temos dois
bois. Ao lado de Dom Quixote aparecem bezerros:

quanto aos bois, animais simples, que além de representarem


uma força pacífica, também são reconhecidamente animais
que servem como auxiliares para o trabalho do homem,
objetivo buscado por Dom Quixote ao fazer o convite a Sancho
Pança, pois ele desejava um escudeiro que, entre outras
obrigações, o auxiliasse a carregar seus pertences. Já os
bezerros podem ser considerados como um símbolo dos bens
materiais, visto o bezerro, no discurso bíblico, remeter-se a
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imagem do bezerro de ouro, um ídolo da riqueza (MOTTA,


2007, p. 59).

Na postura de Sancho e Quixote podemos ver uma inversão de valores,


de posicionamento, pois Sancho aparece no plano superior do desenho, com
aspecto reflexivo enquanto o cavaleiro encontra-se de joelhos, em atitude
suplicante, aguardando a resposta positiva de Sancho. As riquezas imateriais
como fama, glória e reconhecimento são negadas por Sancho Pança por não
significarem nada. A oferta muda e finalmente, o escudeiro aceita tomar parte
no momento em que o cavaleiro lhe oferece riqueza material, uma ilha.
Observamos no desenho, ainda segundo Motta (2007), que uma forma
geométrica em tom azul emoldura a cabeça de Dom Quixote. Esta vem
representar a imaterialidade de seus desejos, pois ―o azul desmaterializa tudo
aquilo que dele se impregna. É o caminho do infinito, onde o real se transforma
em imaginário‖ (CHEVALIER; GHEERBRANT apud MOTTA, 2007, p. 60). Celia
Navarro Flores (2004, p. 313), também aborda sobre o simbolismo do azul,
relacionado com o céu, a imaterialidade e a elevação espiritual. O quadrado
azul na cabeça de Dom Quixote remete a sonhos e ideais nobres. Em algumas
ilustrações da série a cabeça de Sancho Pança também é habitada pela forma
geométrica azul, como se o escudeiro fosse contaminado pelo ideal de Dom
Quixote.

Figura 2

No poema de Drummond, Dom Quixote estabelece uma interlocução


argumentativa com Sancho Pança, na qual tenta convencê-lo a tomar parte

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com ele em suas aventuras. Por diversas vezes seu convite é recusado, pois
seus oferecimentos não condizem com os anseios de Pança que, devido à sua
condição de homem rústico, analfabeto, aparenta não dar qualquer valor a
bens culturais ou morais, o que acaba configurando sua personalidade como
opositiva a Dom Quixote. O cavaleiro, percebendo a negativa em cada
oferecimento, recorre por fim aos bens materiais, algo que convence o futuro
escudeiro.

IV CONVITE À GLÓRIA

– Juntos na poeira das encruzilhadas conquistaremos


a glória.
– E de que me serve?

– Nossos nomes ressoarão nos sinos de bronze da História.


– E de que me serve?

– Jamais alguém, nas cinco partidas do mundo,


será tão grande.
– E de que me serve?

– As mais inacessíveis princesas se curvarão


à nossa passagem.
– E de que me serve?

– Pelo teu valor e pelo teu fervor


terás uma ilha de ouro e esmeralda.
–Isto me serve.

É interessante destacar que mesmo que Dom Quixote tenha mudado


sua argumentação para um bem material, mantém-se firme a seus princípios:

Agora, é interessante observar que ambos são fiéis a seus


valores. Sancho apenas cede àquilo que pertence ao seu
mundo e que, por sua vez, Dom Quixote somente oferece o
que advém e representa a manutenção do seu ideal de
cavaleiro andante. Assim como a glória, a fama e a honra
encontradas implicitamente no oferecimento anterior e no amor
cortês, os bens materiais também pertencem aos trunfos
conquistados pelo guerreiro. Nos romances de cavalaria, assim
com as honrarias, os bens materiais são como recompensas
reais pelos feitos dos cavaleiros andantes (MONGELI apud
MOTTA, 2007, p. 66).

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No momento em que, apesar da divergência entre cavaleiro e escudeiro,


inicia-se o surgimento de elementos em comum que os unem num processo de
aprendizagem, de trocas, entendemos que:

O Convívio inicial de Sancho com dom Quixote não é nada


passivo. Para a lógica camponesa de Sancho, a lógica do
senso comum, o mundo de dom Quixote é absurdo. Dom
Quixote quer corrigir o mundo a partir de uma concepção ideal
de justiça, na qual os valores materiais são totalmente
secundários. Sancho, seguindo a lógica de sua ideologia
camponesa pequeno-burguesa, tem vontade de enriquecer,
nutre um anseio de riqueza, pensa muito em lucro, reivindica
salário junto a dom Quixote, mas, como este argumenta que
isso é incompatível com a condição de escudeiro, contenta-se
com a promessa de conseguir o governo de uma ilha. Unindo-
se a dom Quixote na esperança de ganhar essa ilha, mostra
que acredita no cavaleiro andante, pois o considera capaz de
consegui-la para ele como espólio de guerra. Vê-se, pois, que
a despeito de todo seu senso prático e da objetividade que
caracteriza seus discursos, Sancho acredita em muita coisa
que dom Quixote acredita. À medida que aumenta o convívio
com o discurso complexo, erudito, profundo e também abstrato
de dom Quixote, vai-se refinando a sensibilidade do escudeiro,
que recorre cada vez mais a sua filosofia de provérbios
(BEZERRA, 2005, p. 102).

Nas poesias de Drummond ou na obra de Portinari o caráter opositivo de


Sancho e Quixote são ressaltados nestes pares e nos demais em que
prevalece a oposição entre ambos. Um Quixote voltado para ideias nobres e
um Sancho pragmático, preocupado em adquirir bens materiais. Portinari, ao
beber da obra de Cervantes mantem-se fiel a aspectos da obra de Cervantes:

En esta serie de dibujos, Portinari reproduce un aspecto


fundamental de la obra de Cervantes: el intrincado juego de
oposiciones tanto enlaconcepción de los personajes como en la
relación entre realidad e irrealidad o sueño. Portinari utiliza
algunos recursos para reproducir esas oposiciones: el modo
como retrata los personajes físicamente, los colores y las
relaciones entre primer plano y plano de fondo. Sin embargo,
así como en la obra de Cervantes, las oposiciones no están
compartimentadas y las fronteras entre los opuestos muchas
veces se borran y se confunden203 (FLORES, 2004, p. 312).

203
Nesta serie de desenhos, Portinari reproduz um aspecto fundamental da obra de Cervantes: o intrincado
jogo de oposições tanto na concepção dos personagens como na relação entre realidade e irrealidade ou
sonho. Portinari usa alguns recursos para reproduzir estas oposições: o modo como retrata os personagens
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Se a arte de Portinari reflete o posicionamento de Cervantes, o mesmo se dá


com Drummond que ao estabelecer contato com a obra de Portinari também
demonstra conhecimento da obra de Cervantes, num jogo sobre camadas que
vão sendo acrescentadas. Se a linguagem artística não é a mesma é
importante lembrar aquilo que Agnaldo José Gonçalves (1997, p. 59) afirma
sobre as artes: quando um artista procura sua própria essência produtiva passa
cada vez mais a olhar para o sistema do vizinho.

Considerações Finais

Apresentamos neste breve estudo a união entre dois modernistas


bastante comprometidos com a cultura brasileira. Na série Dom Quixote e no
conjunto dos poemas Quixote e Sancho, de Portinari pudemos notar em seus
trabalhos a riqueza de Cervantes e suas principais marcas artísticas.
Drummond, como um poeta preocupado com a linguagem nacional, abarca em
sua poesia uma linguagem simples que foge aos padrões europeus, principal
característica do Modernismo. Nas glosas de Drummond, apresentadas neste
estudo, pudemos ver a presença do soneto e também a presença de um verso
mais livre, como em Convite à gloria, escrito como uma conversa informal entre
Dom Quixote e seu vizinho Sancho Pança. Outras glosas não contempladas
aqui também apresentam uma geografia diferenciada do verso, cuja
organização das palavras contribuiu para desenhar, evocar coisas e objetos
referentes à poesia, como as letras depositadas em forma de pá (moinho de
vento) no poema O derrotado invencível.
Ambos pintaram e escreveram sobre a contradição entre Quixote e
Sancho, que contribuiu tão marcadamente para identificar cada personagem,
fortalecendo suas características individuais e o estabelecimento de relações,

fisicamente, as cores e as relações entre o primeiro plano e o plano de fundo. Sem dúvida, assim com na
obra de Cervantes, as oposições não estão separadas e as fronteiras entre os opostos muitas vezes se
apagam e se confundem. (Tradução Nossa)

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pois, mesmo marcados por características tão antagônicas elementos em


comum aproximaram a dupla manchega, como a presença da sabedoria de
Sancho no governo da Ilha de Baratária na glosa Saudação do Senado da
Câmara, de Drummond. Nesse jogo de oposições e proximidades, um
personagem contamina o outro e reforça o processo de sanchificação de
Quixote e de quixotização de Sancho Pança.

Referências

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Olympio Editora, 1974.

BEZERRA, P.Sancho Pança: esse duplo de dom Quixote. In: TROUCHE, A.; REIS, L.
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http://www.pgletras.com.br/2012/dissertações/diss-Bianca-Campello-Rodrigues-
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In: Actas Del Coloquio Internacional. Oviedo. 2004: online. Disponível em:
https://cvc.cervantes.es/literatura/cervantistas/encuentros/e_2004/e_2004_26.pdf -
acesso em 20 jul 2016.

_______ Drummond, o cavaleiro de tristíssima figura e Dom Quixote, o gauche


maior. Congresso Brasileiro de Hispanistas. An. 2. Oct. 2002: online. Disponível em:
http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?pid=MSC0000000012002000200008&scri
pt=sci_arttext -acesso em 10 mai 2017.

GONÇALVES, A, J. Relações homológicas entre literatura e artes plásticas:


algumas considerações. In: Literatura e Sociedade. Revista de Teoria Literária
Comparada. N.o 2, FFLCH, USP, 1997.

HOUAISS, A. Drummond mais seis poetas e um problema. Rio de Janeiro: Imago


Editora, 1976.

KELLY, Celso. Portinari quarenta anos de convívio. Edições G. T. L. s.d.

MARTHA, A. A. P. Drummond e Portinari: leituras do Quixote. Espéculo. Revista de


estúdios literários. Universidade Complutense de Madrid 2003: online Disponível em:
https://pendientedemigracion.ucm.es/info/especulo/numero23/drummond.html - acesso
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MERQUIOR, J. G. Verso universo em Drummond. Rio de Janeiro: José Olympio


Editora, 1975.
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MOTTA, K. M. Devaneio x Realidade: uma leitura intersemiótica de Candido Portinari


e de Carlos Drummond de Andrade sobre Dom Quixote de La Mancha. 2007. 147 p.
Dissertação (Mestrado em Letras). Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo.

MUSEU DE ARTE DE SÃO PAULO ASSIS CHATEAUBRIAND. Portinari. São


Paulo,1954.

NEPOMUCENO, André Juliano. Monteiro Lobato e a crítica da cultura brasileira. –


dissertação de mestrado: online. Disponível em: http://www.ufsj.edu.br/portal-
repositorio/File/mestletras/DISSERTACOES/MONTEIRO_LOBATO.pdf - acesso em 20
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TELES, G. M. Drummond: a estilística da repetição. Rio de Janeiro: José Olympio


Editora, 1970.

ZILIO, C. A querela do Brasil: a questão da identidade da arte brasileira: a obra de


Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari/ 1922-1945. 2ª ed. – Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
1997.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

JABUTI NA TELA: UMA PROPOSTA DE ESTUDO DO LIVRO


INTERATIVO DIGITAL PARA CRIANÇAS

Jaqueline Conte, Universidade Tecnológica Federal do Paraná-Campus


Curitiba (UTFPR-Curitiba), Eixo 6
Alice Atsuko Matsuda, Universidade Tecnológica Federal do Paraná-Campus
Curitiba (UTFPR-Curitiba), Eixo 6, PPDE-CAPES – Universidade de Coimbra-
Portugal

Considerações Iniciais

O presente trabalho trata do livro digital interativo concebido para o público


infantil e tem como objetivo relatar conclusões preliminares do projeto de pesquisa que
vem sendo desenvolvido no âmbito do Mestrado no Programa de Pós-Graduação em
Estudos de Linguagens, da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Campus
Curitiba (UTFPR-Curitiba)204. O estudo tem como objetos os livros infantis interativos
vencedores do Prêmio Jabuti nos dois primeiros anos de vigência da categoria Infantil
Digital (2015 e 2016), app-livros que funcionam em dispositivos nos sistemas
operacionais móveis iOS e Android.
Feito para leitura em telas sensíveis ao toque com diversas possibilidades de
interação e de recursos multimídia, esse tipo de livro é um formato ainda recente para
a literatura infantojuvenil. Para termos uma ideia, o iPad, um dos principais suportes
físicos que permitem a fruição desse tipo de produção, passou a ser vendido há
apenas sete anos (2010). Os tablets touchscreen de sistema operacional Android
chegaram ainda mais tarde. A crítica, por sua vez, passou a se interessar pelo tema
sobretudo a partir de 2012, com a criação, pela Feira do Livro Infantil de Bolonha
(Itália) – o evento mais importante do segmento infantil e juvenil do mundo – do
BolognaRagazzi Digital Award, prêmio que avalia excelência e inovação em conteúdo
digital para o público jovem. Em 2017, participaram do prêmio 152 produções, de 32
204
Projeto da mestranda Jaqueline Conte, sob orientação da Professora Doutora Alice Atsuko
Matsuda, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens (PPGEL),
área de concentração ―Linguagem e Tecnologia‖, linha de pesquisa ―Estéticas
Contemporâneas, Modernidade e Tecnologia‖, da Universidade Tecnológica Federal do
Paraná, Campus Curitiba (UTFPR-Curitiba).
1060

diferentes países205. No Brasil, o tema ganhou destaque na crítica há apenas dois


anos (2015), quando a categoria Infantil Digital foi introduzida, de forma experimental,
na 57ª edição do Prêmio Jabuti, a mais tradicional premiação do mercado do livro
brasileiro, promovida pela Câmara Brasileira do Livro desde 1959.
Percebemos que, mesmo sendo realidade a oferta de produtos digitais
literários no Brasil, há pouca produção da academia no que concerne especificamente
à literatura digital produzida para crianças. Destacam-se nesse cenário trabalhos como
os de Marisa Lajolo e Regina Zilberman (2017), Edgar Kirchof (2016), Aline Frederico
(2016), Deglaucy Jorge Teixeira e Berenice Santos Gonçalves (2015; 2017), Aryane
Beatryz Cararo (2014), entre outros.
Como fenômeno da atualidade, da tecnologia e da linguagem, o tema nos
convida a um estudo mais aprofundado, visando entender qual o papel da tecnologia e
das novas ―materialidades‖ que se apresentam, assim como qual o posicionamento de
atores que operam nesse campo, com lastro em referências teóricas sobre literatura,
literatura infantil, ciberliteratura e leitor midiático, linguagem e tecnologia e
fenomenologia, trazidas de Antonio Candido (2000; 2011), Antoine Compagnon (2010)
Regina Zilberman e Marisa Lajolo (1985; 2017), Eliana Yunes e Glória Pondé (1989),
Peter Hunt (2010), Katherine Hayles (2009), Pièrre Levy (1993; 1999), Dominique
Wolton (2012), Manuel Castells (2003), Alckmar Luiz dos Santos (2012; In: GIMÉNEZ,
2017), Merleau-Ponty (2004), Gaston Bachelard (1974), entre outros nomes.
A proposta do trabalho é conhecer e considerar questões técnicas, estéticas,
conceituais, mercadológicas e de conteúdo, não nos atendo em teorizar ou analisar
questões de recepção. Optamos, assim, por fazer uma pesquisa exploratório-
bibliográfica e qualitativa, com viés fenomenológico, utilizando como instrumentos o
levantamento bibliográfico, a entrevista em profundidade semiestruturada,
questionários virtuais e análise interpretativa de caráter imanente.

Sobre o objeto
Para começarmos os estudos é necessário conhecermos nosso objeto de
pesquisa, os livros digitais interativos classificados nos três primeiros lugares, nos
anos de 2015 e 2016, quando a categoria Infantil Digital passou a compor o Prêmio
Jabuti. A partir de informações contidas nos próprios livros, nas lojas virtuais em que

205
Dados disponíveis em: http://www.bolognachildrensbookfair.com/en/the-fair/new-events-and-
programmes/bologna-digital-media/bolognaragazzi-digital-award-2017/2094.html. Acesso
em 08/09/2017.
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estão disponibilizados e em pesquisas realizadas pela internet, pudemos analisar


questões técnicas e reunir informações iniciais para o trabalho.
As produções infantis digitais interativas a que nos referimos neste estudo
são compostas por diferentes combinações de linguagens, articuladas com algumas
possibilidades de interação, condições sino qua non para estarem aptas a concorrer
ao Prêmio Jabuti. O regulamento do Prêmio determina que os livros digitais
concorrentes sejam compostos por textos literários destinados ao público infantil que
apresentem conteúdo textual integrado a elementos multimídia, interativos e
hipertextuais, tendo como critérios a ―adequação das linguagens/códigos/temas à faixa
etária do público-alvo‖, ―contribuição da interatividade leitor/linguagens/códigos para
enriquecimento da obra‖ e ―originalidade e qualidade técnica das imagens, áudios,
vídeos e animações‖ (CÂMARA BRASILEIRA DO LIVRO, 2015, 2016, 2017).
Os objetos em estudo constituem-se, pois, em conjuntos organizados de
linguagens verbais e não verbais, que se somam à palavra escrita – subentendida pela
expressão ―conteúdo textual‖ presente no regulamento (numa concepção restrita do
termo ―texto‖) – e possibilitam a interação do usuário.
Todos os livros estão disponíveis para baixar nas lojas digitais Google Play
(sistema Android) e/ou App Store (iOS), estando categorizados nesses ambientes
comerciais como produtos relativos a ―Educação‖, ―Livros‖ ou ―Livros e
Referências/Ensino‖.
No ano de estreia da categoria, 2015, na 57 a edição do Prêmio, ganharam o
Jabuti os seguintes livros digitais:
1o. Lugar: ―Meu Aplicativo de Folclore‖ (Ática, 2013), de Ricardo Azevedo.
2o. Lugar: ―Via Láctea de Olavo Bilac‖ (StoryMax), de Samira Almeida e
Fernando Tangi.
3o. Lugar: ―Flicts‖ (Melhoramentos e Engenhoca Filmes), de Ziraldo.
Em 2016, na 58a edição do Prêmio, venceram as obras:
1o. Lugar: ―Pequenos grandes contos de verdade‖ (Editora Caixote, 2015),
com animações de Oamul Lu e texto de Isabel Malzoni.
2o. Lugar: ―Mãos Mágicas‖ (SESI-SP, 2015), de Tereza Yamashita e Suppa
(ilustrador).
3o. Lugar: ―Chove Chuva - Aprendendo com a natureza: sabedoria popular‖
(Editora Alis), de Magali Queiroz.
Dessas seis obras, conforme dados apresentados nas lojas virtuais da Apple
(App Store) e da Google (Google Play), três estão disponíveis para os dois sistemas
operacionais iOS e Android (os três livros premiados em 2015). Duas estão
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disponíveis apenas no sistema iOS (1o e 2o lugares de 2016) e uma, apenas no


sistema Android (3o lugar de 2016). Quatro livros estão disponíveis para dispositivos
do sistema Android (1o, 2o,3o/2015 e 3o/2016). Dos cinco livros disponíveis no sistema
iOS, todos funcionam no dispositivo iPad (1o,2o,3o /2015 e 1o,2o/2016); três em iPad e
iPhone (2o,3o/2015 e 1o/2016) e dois em iPad, iPhone e iPod Touch (2 o,3o/2015).
Observa-se, entre outros fatos, que o iPod já não foi um dos dispositivos
escolhidos pelos editores dos livros premiados na edição mais recente. A razão
poderá ser verificada nas entrevistas a serem realizadas com os editores, assim como
o motivo pelo qual se escolheu cada dispositivo. Realizaremos entrevista
semiestruturada com os responsáveis pelas obras, a fim de levantar dados como:
quais foram os objetivos da iniciativa, a faixa etária visada e as preocupações
técnicas, estéticas e conceituais que se teve antes e durante o desenvolvimento do
projeto, dados sobre distribuição e expectativas para o futuro do formato digital.
Escolhemos os editores para as entrevistas por entendermos que, mais do
que qualquer outro profissional envolvido na cadeia do livro digital, são os editores que
têm uma visão mais completa do processo, acompanhando-o do início ao final, e,
tendo sido premiados com os livros que são objeto de nosso estudo, os vencedores do
Jabuti na categoria Infantil Digital (2015 e 2016), poderão nos esclarecer e fornecer
subsídios para que possamos compreender a lógica do processo e do mercado de
livros digitais interativos para crianças, do ponto de vista de quem está produzindo
conteúdo literário considerado de qualidade.
A partir dessas entrevistas poderemos, inclusive, fazer a triangulação do
levantamento técnico realizado inicialmente com os livros premiados, assim como
comparar as diferentes práticas e opiniões do mercado produtor desses objetos
literários, conforme sugere Minayo (2012), quando fala sobre assegurar-se os critérios
de fidedignidade e de validade de uma pesquisa qualitativa:

Existem ainda alguns cuidados possíveis de serem realizados


durante o processo de realização da investigação que lhe asseguram
maior grau de validade: (3) a triangulação interna à própria
abordagem, que consiste em olhar o próprio objeto sob seus diversos
ângulos, comparar os resultados de duas ou mais técnicas de coleta
de dados e de duas ou mais fontes de informação, por exemplo. (4) A
validação dos relatos, comparando as falas com as observações de
campo. (5) O alerta para os relatos e os fatos que contradigam as
propostas e as hipóteses do investigador, tratando de problematizá-
los e de apresentá-los em lugar de ocultá-los. E (5) a fidedignidade
aos vários pontos de vista, garantindo a diversidade de sentidos
expressos pelos interlocutores, fugindo à ideia de verdade única.
(MINAYO, 2012, p. 625)

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Os livros premiados nos dois anos da categoria Infantil Digital do Jabuti são
versões, integrais ou parciais, de livros impressos ou de textos que já tiveram sua
edição em papel. Já tinham versões físicas o segundo e o terceiro colocados de 2016
– ―Mãos Mágicas‖ e ―Chove Chuva - Aprendendo com a natureza: sabedoria
popular‖206 – e o terceiro colocado de 2016 – ―Flicts‖, versão de mesmo nome de um
dos livros clássicos da literatura infantojuvenil brasileira, publicado por Ziraldo pela
primeira vez, em 1969.
Todos os demais livros premiados, embora não utilizem os textos integrais da
versão em papel, foram feitos a partir de aproveitamento ou adaptações de textos e/ou
imagens que já haviam sido publicados no meio impresso. O primeiro colocado de
2016, ―Pequenos Grandes Contos de Verdade‖, conta com algumas histórias
baseadas no livro ―I Found a Star‖, do próprio artista coreano Oamul Lu, publicado
originalmente em mandarim. ―Meu Aplicativo de Folclore‖, primeiro colocado de 2015,
traz textos e ilustrações retirados de cinco diferentes obras de Ricardo Azevedo,
impressas entre 1996 e 2010. Por fim, ―Via Láctea de Olavo Bilac‖, de Samira Almeida
e Fernando Tangi, é uma versão digital interativa de um dos 35 sonetos do poema ―Via
Láctea‖, de Olavo Bilac.
Tomando as três produções digitais cujos textos são os mesmos das versões
originalmente impressas e comparando o preço de venda dos dois formatos, podemos
verificar que o valor do digital interativo é entre 63% e 76% menor do que a versão
impressa. Em setembro de 2017, a edição em brochura de ―Mãos Mágicas‖ 207 (São
Paulo: SESI-SP Editora, 2013) tinha preço sugerido de R$ 26,00, no site da editora,
enquanto o livro digital era vendido na loja de aplicativos por US$ 1,99, o equivalente a
R$ 6,17 (dólar comercial a R$ 3,10) ou a 23,7% do valor da edição impressa. O livro
―Chove Chuva - Aprendendo com a natureza: sabedoria popular‖ (Belo Horizonte: Alis,
2017), também em brochura, custava R$ 32,50 no site da editora, sendo o aplicativo
vendido a R$ 12,00, valor correspondente a 36,9% da versão impressa. Já, ―Flicts‖ 208
(São Paulo: Melhoramentos, 2012), de Ziraldo, podia ser encontrado por R$ 30,90 209
no formato impresso, e por R$ 9,99, na versão digital disponível para Android, e US$

206
O ISBN da versão impressa de Chove Chuva (978858654077-6) foi registrado em 2017,
mas entrevista datada de 23 de novembro de 2016, veiculada no site do jornal Uberaba
Popular, mostra que o texto já havia sido inclusive ilustrado, em 2015, para a versão
impressa. Afirma a ilustradora, na citada entrevista: ―‘O trabalho foi feito em duas etapas.
Primeiro lançamos o livro impresso pela editora Alis. Fui contratada para ilustrar. Depois,
quando a Magali e o Leopoldo resolveram fazer a versão digital, refizemos o trabalho que
value tanto a pena‘, conta a ilustradora Gabi Moraes‖. (SUDÁRIO, 2017).
207
ISBN: 978-85-8205-138-2 (Coleção: Quem lê sabe por quê, 32 páginas, formato 25 x 20 cm)
208
ISBN: 9788506005170
209
Menor valor encontrado entre as principais livrarias online brasileiras, em 07/09/2017.
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2,99 (R$ 9,27), na versão para iOS; média de R$ 9,63, ou seja, a versão digital
custava 31% do valor da impressa.
Durante a execução do projeto, outros detalhes técnicos e estéticos serão
mapeados, como os formatos em que foram desenvolvidos, os recursos utilizados
(como som, música, narração, movimento, interação com o leitor, traduções para
outras línguas, entre outros); assim como apontados os temas, autores e produtores
envolvidos.
Será aplicado, ainda, questionário com autores de literatura infantojuvenil,
filiados à Associação dos Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil
(AEILIJ), para verificar até que ponto o formato é conhecido por eles, se os atrai e se
eles têm intenção de trabalhar com o digital interativo em um futuro próximo.

O livro digital interativo como nova materialidade


Uma das hipóteses a serem desenvolvidas no trabalho é a de que o livro digital
interativo desenvolvido para dispositivos móveis pressupõe uma maneira distinta de
encarar o consumidor/leitor. O produto é pensado em função de sua materialidade e,
por isso, só pode ser acessado por um tipo de leitor, aquele que tem acesso ao
dispositivo escolhido pelo editor.
Uma das primeiras escolhas de um editor responsável por um livro digital
interativo, além da escolha do texto a ser trabalhado e qual o valor que pretende
investir, é o consumidor que o produto pretende atingir. Se o objetivo é que o produto
chegue a pessoas que têm acesso a dispositivos móveis de valor mais acessível, deve
pensar em interações que são possíveis de serem utilizadas, por exemplo, em um
celular do sistema Android. Se visa atingir um público de maior poder aquisitivo, que
conte com dispositivos do sistema operacional iOS, que têm custo de aquisição maior
em comparação aos tablets e celulares de sistema Android, as interações devem ser
pensadas para iPad ou iPhone, por exemplo. Se o que se visa é atingir públicos
diferentes, tem-se de pensar a execução desse projeto (e investir) em sistemas
diferentes e com diferentes propostas de interação, que funcionem a contento, cada
qual de acordo com o dispositivo utilizado pelo usuário/leitor.
No livro impresso, a materialidade é vivida de uma forma diferente, a nosso ver,
em função da maior facilidade de acesso. Uma vez que transformamos o
texto/imagem em livro de papel, ele pode ter uma versão em papel couchê e capa
dura e uma versão em formato de livro de bolso, por exemplo. As duas formas são
diferentes e têm custos distintos. O acesso, no entanto, nos parece um pouco menos

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restritivo, uma vez que poderíamos comprar uma ou outra versão, se tivéssemos
recursos, ou emprestar qualquer uma delas numa biblioteca que contasse com o título.
A lógica do livro digital interativo ainda está distante do público potencial, a
nosso ver, porque esse tipo de objeto literário virtual ainda não é largamente divulgado
e porque ainda não existem muitas bibliotecas com livros digitais interativos acessíveis
ao público em geral ou a escolares. Some-se a isso o visível o sucateamento dos
recursos de informática nas escolas públicas no Brasil e a dificuldade de acesso à
internet de boa qualidade, bem como a oferta ainda restrita de livros digitais gratuitos.
Se quisermos ler hoje os seis app-livros premiados no Jabuti, teremos que
necessariamente ter acesso a dispositivos móveis dos dois sistemas operacionais, iOS
e Android. Se tivermos acesso apenas a um dispositivo Android, não poderemos ler
―Pequenos Grandes Contos de Verdade‖, por exemplo, já que só foi feito para iOS.
Pelo motivo inverso, se tivermos apenas um dispositivo iOS, não poderemos ler
―Chove Chuva‖. E ainda que tenhamos um iPhone (que funciona com o sistema iOS),
não poderemos acessar o livro ―Mãos Mágicas‖, por exemplo, pois só funciona em
iPad. Ou seja, temos mais restrições em relação à materialidade no livro digital do que
ocorre com o livro impresso.
Some-se a isso o fato de que – embora passíveis de serem compartilhados em
alguns casos, como tablets em escolas – os dispositivos móveis são equipamentos
focados no uso individual. Dificilmente alguém compartilha um celular, por exemplo.
Assim, os app-livros desenvolvidos dentro dessa materialidade têm reduzido as
possibilidades de terem mais leitores por download ou unidade baixada do que ocorre
com os livros tradicionais.
Outra questão importante em relação aos produtos digitais tem relação ao que
Pièrre Lévy (1993, p. 116) diz a respeito do ―tempo pontual instaurado pelas redes de
informática‖, quando trata de redes de dados. O autor afirma que ―O conteúdo atual
dos bancos de dados provavelmente nunca será relido ou reinterpretado como o foram
os textos dos séculos passados‖ e que a maior parte dos bancos de dados aproxima-
se mais da ideia de espelhos do que de memórias; ―espelhos o mais fiéis possível do
estado atual de uma especialidade ou de um mercado‖. Ele afirma:

A noção de tempo real, inventada pelos informatas, resume bem a


característica principal, o espírito da informática: a condensação no
presente, na operação em andamento. O conhecimento de tipo
operacional fornecido pela informática está em tempo real. Ele estaria
oposto, quanto a isto, aos estilos hermenêuticos e teóricos. Por
analogia com o tempo circular da oralidade primária e o tempo linear
das sociedades históricas, poderíamos falar de uma espécie de

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implosão cronológica, de um tempo pontual instaurado pelas redes de


informática. (LÉVY, 1993, p. 116)

Da mesma forma, o livro interativo digital, por depender completamente do


sistema operacional e da materialidade do dispositivo necessário para que ele seja
lido/fruído (um iPad, um iPhone, um tablet ou celular Android, etc), está sempre à
mercê desse tempo pontual. Alterações no sistema ou nas funcionalidades do
dispositivo podem influir ou até inviabilizar sua fruição no decorrer do tempo, ao passo
que, de forma inversa, seu produtor pode fazer alterações no livro de acordo com o
que achar necessário ou interessante para aquele tempo pontual em que o leitor vive e
para o conhecimento técnico e estético de que dispõe naquele momento. Ou seja, o
livro é aquilo que é naquele momento e sua história não pode ser rastreada tão
facilmente como ocorre com o livro impresso, por exemplo. É, portanto, espelho e não
memória.

Análises
Com as entrevistas e as análises técnicas e mercadológicas feitas e já
exploradas as definições teóricas sobre literatura, literatura infantil, ciberliteratura e
leitor midiático, passaremos a analisar o livro digital interativo do ponto de vista
fenomenológico, partindo sobretudo das visões de Merleau-Ponty e Gaston Bachelard,
para, então, fazermos uma análise interpretativa de caráter imanente dos seis livros
que compõem o objeto da pesquisa.

A ciência é empírica, baseada na experiência humana, e a


experiência humana é sempre a de seres humanos específicos
envolvidos com o mundo enquanto nele vivem e não enquanto
teorizam sobre ele. Devemos voltar a essa experiência vivida, voltar
―às próprias coisas‖, se quisermos inclusive entender o papel que a
ciência desempenha em nossas vidas. A fenomenologia, desse ponto
de vista, consiste em voltar à pedra basal, à experiência humana
direta, pondo de lado quaisquer ideias preconcebidas derivadas de
nossas teorias científicas ou de filosofias que se apoiam nessas
teorias científicas e tentam dar-lhes um status metafísico.
(MATTEWS, 2011, p. 27)

Propomo-nos, então, a trabalhar com a ideia de redução fenomenológica, de


Merleau-Ponty, para tratar dos livros digitais interativos para crianças.

[...] Ao abandonarmos, pelo menos temporariamente, as estruturas


teóricas que construímos para administrar nossa vida prática, social,
e voltarmos à nossa experiência não mediada, pré-teórica, do mundo,
podemos entender melhor os significados dessas próprias estruturas
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teóricas. ‗A verdadeira filosofia‘, diz Merleau-Ponty (2002: xxiii),


‗consiste em reaprender a olhar o mundo‘. Em sua interpretação,
portanto, redução fenomenológica é uma questão de mudança da
nossa maneira de ver o mundo. Quando praticamos a redução, não
mais vemos o mundo como o lugar confortável que construímos com
os conceitos científicos e outros que inventamos precisamente para
tornar mais fácil lidar com ele intelectual e empiricamente. Em vez
disso, temos que nos exercitar em vê-lo como essa estranha e
ambígua existência com que nos deparamos ao deixar de interpor
esses conceitos entre nós e os objetos. (...) Merleau-Ponty compara a
redução fenomenológica à arte: assim como a arte, ela não
representa simplesmente uma verdade preexistente, mas, ao
contrário força-nos a ver o mundo de modo diferente e, nesse
sentido, cria uma nova verdade. (MATTEWS, 2011, p.28-29)
Entendendo esses livros como uma nova forma de literatura, permitiremo-nos
viver essa experiência e sua proposta de sentido. Já dizia Candido (2011 [1988]):

[...] o conteúdo só atua por causa da forma, e a forma traz em si,


virtualmente, uma capacidade de humanizar devido à coerência
mental que pressupõe e que sugere. [...] Toda obra literária
pressupõe esta superação do caos, determinada por um arranjo
especial das palavras e fazendo uma proposta de sentido.
(CANDIDO, 2011, p. 180)

O que propomos, portanto, é analisar a coerência dessas obras, seus


arranjos de sentido, enquanto objeto literário diverso que é.

Considerações finais
A literatura em meio digital é um tema que pode ser pesquisado por diferentes
abordagens e a partir de objetos distintos, que trazem diferentes recursos e propostas.
Temos sites que trazem produções literárias digitais, como as de Sérgio Capparrelli e
Ana Cláudia Gruszynki, de Leo Cunha, de Angela Lago, de Marcelo Spalding; temos
livros não propriamente digitais, mas digitalizados – em geral versões em PDF apenas
com transposições para o meio digital de livros originalmente impressos; temos e-
books interativos produzidos em formato e-Pub (abreviação de Electronic Publication);
temos app-livros, que permitem mais recursos e maior interatividade (como os objetos
da nossa pesquisa); temos livros em realidade aumentada, que possibilitam a
sobreposição de imagens criadas digitalmente em um cenário real (os personagens da
história podem ―aparecer‖ no local em que a criança está, por exemplo).
As pesquisas de mercado ainda não conseguem mapear claramente o universo
dessas produções literárias e, menos ainda, o panorama da literatura digital para a
infância. É extremamente recente a pesquisa de maior fôlego realizada no Brasil, o

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chamado ―Censo do Livro Digital‖210, que analisou dados de 794 editoras brasileiras. A
pesquisa mostrou que apenas 37% delas produziam e comercializavam conteúdo
digital (294). Mesmo assim, vemos apenas uma pista desse universo, uma vez que
esse levantamento focou-se apenas nos agentes tradicionais do mundo editorial,
sobretudo as grandes e médias editoras e não traz informações sobre livros de
autores autopublicados, dados da Amazon (que não divulga detalhes de suas
operações de venda), obras sem ISBN registrado ou as publicações gratuitas.
As possibilidades são muitas e aumentam conforme a evolução tecnológica. O
fato é que estamos trabalhando com um fenômeno atual – o livro digital interativo –
que aparece de forma destacada no campo da literatura infantil. Assim, olhá-lo como
objeto novo e único que é, sem a todo tempo compará-lo com a literatura impressa e,
menos ainda, qualificá-lo como ―melhor‖ ou ―pior‖; analisá-lo a partir do que lhe é
imanente, sem comparações de valor, é o que buscaremos fazer nesse trabalho, que
visa contribuir para as discussões e reflexões sobre o fazer literário no Brasil do século
XXI.

Referências

CÂMARA BRASILEIRA DO LIVRO. REGULAMENTO DA 57ª EDIÇÃO DO PRÊMIO


JABUTI: Prêmio Jabuti 2015. 2015. Disponível em: <http://colofao.com.br/Prêmio-
Jabuti-2015-Regulamento-Final.pdf>. Acesso em: 13 jun. 2017.

CÂMARA BRASILEIRA DO LIVRO. REGULAMENTO DA 58ª EDIÇÃO DO PRÊMIO


JABUTI: Prêmio Jabuti 2016. 2016. Disponível em: <http://premiojabuti.com.br/wp-
content/uploads/2016/05/premio-jabuti-2016-regulamento-rev02.pdf>. Acesso em: 13
jun. 2017.

CÂMARA BRASILEIRA DO LIVRO. REGULAMENTO DA 59ª EDIÇÃO DO PRÊMIO


JABUTI: Regulamento - Prêmio Jabuti 2017. 2017. Disponível em:
<http://premiojabuti.com.br/wp-content/uploads/2017/05/59-premio-jabuti-regulamento-
2017.pdf>. Acesso em: 13 jun. 2017.

CANDIDO, Antonio. O Direito à Literatura. In: CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 5.


ed. Rio de Janeiro: Ouro Sobre O Azul, 2011. p. 171-193. Edição corrigida pelo autor.
Disponível em:
<https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/296648/mod_resource/content/1/Candido O
Direito à Literatura.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2017.

LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da


informática. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993. 208 p. (Coleção Trans). Tradução de:
Carlos Irineu da Costa.

210
Disponível em: <http://www.snel.org.br/wp-content/uploads/2017/08/Apresentacao-Censo-
do-Livro-Digital.pdf>. Acesso em 09/09/2017.
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ISBN: 978-85-69697-03-9
1069

MATTEWS, Eric. Compreender Merleau-Ponty. Tradução de: Marcus Penchel. 2. ed.


Petrópolis: Vozes, 2011. (Compreender).

MINAYO, Maria Cecília de Souza. Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade.


Ciênc. saúde coletiva [online]. 2012, vol. 17, n. 3, pp. 621-626. Disponível em:
<http://www.scielosp.org/pdf/csc/v17n3/v17n3a07>. Acesso em: 09 set. 2017.

SUDÁRIO, Janaína. Magali Queiroz e Gabi Moraes trazem Jabuti para Uberaba.
Uberaba Popular. Uberaba, 23 nov. 2016. Disponível em:
<http://uberabapopular.com.br/2016/11/23/magali-queiroz-e-gabi-moraes-trazem-
jabuti-para-uberaba/>. Acesso em: 07/09/2017.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

LEITURA LITERÁRIA E ENSINO DE GEOGRAFIA:


EXPERIÊNCIAS COM MÚLTIPLAS LINGUAGENS

Andreia Cristina Teixeira Tocantins, Universidade Federal de Juiz de Fora


(UFJF), Literatura infantil e juvenil e as múltiplas linguagens
Rosângela Veiga Júlio Ferreira, Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF),
Literatura infantil e juvenil e as múltiplas linguagens

Considerações Iniciais

Este trabalho apresenta um recorte de uma pesquisa desenvolvida no Colégio


de Aplicação João XXIII/UFJF, que busca investigar o papel de um ambiente
alfabetizador, pautado no acesso às múltiplas linguagens, no ensino de Geografia nos
anos iniciais do ensino fundamental. Defendemos neste texto a presença da leitura
literária em constante diálogo com diferentes áreas de conhecimento, por entender
que ela pode contribuir para que crianças externem emoções e saberes. Isso porque a
literatura possibilita experienciarmos realidades diversas, além de nos despertar
sentimentos que engendram novas formas de pensar, de estar e de ser no mundo. Da
mesma maneira, a Geografia contribui para que estudantes, desde os anos iniciais,
também experenciem e analisem criticamente realidades, informações, relações
existentes entre o homem e o espaço que o rodeia.
Nessa perspectiva, pensamos a formação do leitor literário, mas também no
leitor que analisa, critica, compreende noções espaciais, temporais, científicas, entre
outras. Compreendemos que dar acesso a diferentes linguagens na escola, pode
oportunizar que os estudantes desenvolvam um olhar crítico e atento às informações
que os circundam. Diante disso, o ambiente alfabetizador se colocou como uma
possibilidade de pensar o ensino de Geografia a partir da educação do olhar.
Sustentamos as análises em produções das crianças do 5º ano diante das
atividades propostas e posteriormente quando refletiram sobre o conjunto de
proposições reflexivas que resultou no ambiente alfabetizador. Nesse segundo
momento, as crianças narraram oralmente sobre sentidos que atribuíram aos
conceitos trabalhados nas aulas de Geografia, registrando suas experiências com as
1071

múltiplas linguagens, entre elas a literária, também em um questionário. Ao propormos


as atividades sustentadas nesse viés metodológico, elencamos como hipótese que
experiências pautadas no acesso a múltiplas linguagens podem ser retomadas
constantemente quando sistematizadas em um ambiente alfabetizador, o que pode
possibilitar uma compreensão ampliada de conceitos, no caso em tela geográficos,
pelo acesso a diferentes pontos de vista e pela mobilização de diferentes estratégias
leitoras.
Para discorrer melhor sobre os aspectos elencados nesta introdução,
trazemos na primeira parte deste texto, o referencial teórico que discute a concepção
de ensino de Geografia e, logo após, a de múltiplas linguagens, mais especificamente,
a literária. Na sequência, explicamos a construção do ambiente alfabetizador. Por
último, como ponto central deste texto, discutimos se e como o ambiente alfabetizador
pode auxiliar no ensino e aprendizagem de conceitos geográficos, especialmente o de
lugar entre estudantes dos anos iniciais.

O ensino de Geografia nos anos iniciais do ensino fundamental

O objetivo neste tópico é o de pensar sobre o significado de educar para a


compreensão do espaço, refletindo sobre o ensino de Geografia nos anos iniciais do
ensino fundamental, tendo como procedimento metodológico o ambiente alfabetizador
impulsionado pelo acesso as múltiplas linguagens.
Defendemos que estudar Geografia é compreender um modo de pensar, de
olhar, de sentir e perceber a realidade (CAVALCANTI, 2010), pensando
geograficamente o mundo. Em concordância com Helena Copetti Callai (2005),
acreditamos que a Geografia escolar pode e deve tomar como referência a categoria
de análise que se baseia no conceito de lugar para instaurar os diálogos acerca de
pensamentos geográficos desde os anos iniciais. Nessa perspectiva, o ensino da
Geografia na escola permite ao estudante compreender os fenômenos geográficos a
partir de seu lugar de sujeito, o que pode promover uma maior identificação por parte
do estudante com os conteúdos trabalhados. Cabe destacar, todavia, que tal
interlocução ao se atentar para a problematização coloca o estudante também como
um sujeito construtor desse processo. A partir desse viés, não basta apenas partir do
lugar, é necessário que os fenômenos e conceitos geográficos abordados sejam
construídos coletivamente (CAVALCANTI, 2010).

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Para mais além, o que aqui estamos querendo defender passa pelo fato de
que através da Geografia é possível alfabetizar e letrar211, porém a partir de um viés
ampliado ao que se propõe no campo da Língua Portuguesa: o da leitura do mundo
geograficamente falando. Nesse caso, observa-se além de aspectos linguísticos,
informações geográficas contidas em textos de diferentes gêneros, refletindo sobre
como esses conhecimentos específicos contribuem para uma formação leitora
autônoma e crítica.
Callai (2005) chama a atenção de que antes mesmo de lermos uma palavra,
somos leitores do espaço. Isso nasce conosco, por isso a importância de
continuarmos exercitando esse pensamento de leitura espacial no decorrer da
educação básica. Aprender a ler o espaço passa pelo processo de educação do olhar
para a compreensão de relações espaçotemporal212. Acreditamos que instigar as
crianças a pensarem em interações dos sujeitos com o lugar pode levá-las a construir
uma noção de espaço e, assim, consequentemente, conseguir realizar leituras atentas
do espaço que a cerca pautadas na apropriação de conceitos que ajudam a explicar a
organização física, política e humana do mundo.
Nesse contexto, não podemos deixar de pensar a dimensão do letramento
por meio de múltiplas escalas. Se considerarmos o conceito de espaço vivido, de
Milton Santos (2000), é por meio da observação de lugares que as crianças
problematizam relações espaciais e temporais registradas nas múltiplas paisagens
que os compõem. Isso porque ―os lugares, são, pois, o mundo, que eles reproduzem
de modos específicos, individuais, diversos. Eles são singulares, mas também são
globais, manifestações da totalidade-mundo, da qual são formas particulares‖
(SANTOS, 2000, p. 112). Cabe destacar, que, em que pese o fato de partimos de um
lugar para entender as relações globais que ali se instituem, não há regras e/ou
técnicas predeterminadas que guiem o olhar para a realização de tais leituras. As
regras e técnicas de compreensão do lugar são subjetivas e dizem de diálogos
instituídos entre sujeitos e desses com o espaço – entendido aqui como vivo, em

211
Trabalhamos aqui com a concepção de letramento apresentada por Magda Soares no
Glossário do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (CEALE), da Universidade Federal de
Minas Gerais. Tal concepção se baseia em diferentes perspectivas, no caso deste estudo,
trabalhamos a partir da pedagógica, na ideia de que letramento consiste em um campo de
ensino da língua escrita e da literatura, alcançando também outras áreas do conhecimento,
como a Geografia. Isso porque o termo abrange a demanda por práticas sociais que
desenvolvam habilidades ligadas à leitura e à escrita.
212
Referimo-nos a relação de entrelaçamento entre espaço e tempo como evento, com base
nos estudos de Milton Santos (1999). O autor destaca a importância desse imbricamento para
a compreensão do que acontece no mundo, pensando nas relações sociais, econômicas,
ambientais, políticas, interpessoais e educacionais, por exemplo.
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constante movimento, podendo, portanto, ser criado e/ou recriado pelas experiências
(PINHO; FERREIRA, 2015; CALLAI, 2005).
Diante do exposto, defendemos a importância de que o currículo dos anos
iniciais contemple conceitos da área das Humanas, considerando especificidades da
Geografia para contribuições na formação leitora, entendendo, nesse caso, que as
práticas pedagógicas compõem esse currículo. Nesse sentido, expomos a seguir as
perspectivas metodológicas elencadas para o ensino dessa disciplina, entendendo
serem as múltiplas linguagens uma possibilidade de ampliar a visão acerca da
compreensão de conceitos desse componente curricular.

As múltiplas linguagens no ensino de Geografia: um diálogo com a


linguagem literária

Aliada às concepções apresentadas, o ensino de Geografia vem sendo


realizado entre estudantes dos anos iniciais do Colégio de Aplicação por meio do
acesso a múltiplas linguagens, dentre elas as materializadas em gêneros textuais que
permitem conceber a Geografia para além do acervo de conteúdos. Defendemos, em
consonância com Wenceslao Machado de Oliveira Jr. (2009), Rosângela Doin de
Almeida (2001) e Rosângela Veiga Júlio Ferreira e Camila Silva Pinho (2015), que
estruturar o ensino de Geografia a partir de múltiplas linguagens coloca-se como uma
possibilidade de reflexão de aspectos referentes ao espaço.
Pensar a Geografia por meio da literatura, de filmes, de músicas, de obras de
arte, de desenhos, de imagens, de mapas, oportuniza que o estudante encontre uma
maior significação entre aquilo que estuda e suas experiências. Isso porque permitem
diálogos entre as práticas de leitura do espaço. Nas palavras de Oliveira Jr. (2009), as
diferentes imagens projetadas quando ampliamos a capacidade imaginativa ―nos
dizem de nosso mundo, mas também nos educam a ler este mundo a partir delas.
Legitimam, acima de tudo, a si mesmas como obras que dizem do real‖ (p. 20).
O entrelaçamento entre diferente áreas e linguagens oportuniza um ensino
multidimensional e dialógico, podendo alçar reflexões críticas acerca das relações
existentes entre aquilo que se aprende e aquilo que se vive (FEITOSA; MORAES;
CASTRO, 2012). Nesse âmbito, a linguagem literária se constitui em uma das
possibilidades de se relacionar linguagens e áreas do conhecimento com o ensino de
Geografia, por exemplo. Isso porque a literatura se configura como uma linguagem
que permite o inter-relacionamento entre as diferentes representações geográficas da
existência humana e da experiência com o mundo. Significa dizer que a linguagem

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literária se constitui em uma ―linguagem simbólica, polifônica e plurissignificativa‖


(FEITOSA; MORAES; CASTRO, 2012, p. 185).
Esses mesmos autores dialogam com Yi-Fi Tuan para justificar o uso da
literatura como possibilidade para o ensino de diferentes áreas do conhecimento na
educação básica. Dentre esses argumentos, dão ênfase ao que Tuan esboça,
baseado nas correntes fenomenológicas e existencialistas da Geografia, acerca da
capacidade humana em simbolizar e significar as experiências a partir da
compreensão das relações interpessoais.
Nessa perspectiva, a literatura se constitui em uma linguagem possível para
provocar reflexões outras em relação a um determinado tema. Isso significa dizer que
a linguagem literária configura-se como um instrumento a ser considerado nas
relações de aprendizagem, uma vez que as possíveis relações de afetividade criadas
com o lugar apresentado na obra literária permitem interconexões com o saber
científico e as vivências pessoais de cada um que a lê.
O que aqui estamos querendo dizer é que ao trabalharmos com diferentes
linguagens na escola, dentre elas a literária, consideramos o sujeito como parte da
construção do conhecimento e não como aquele que deva memorizar e aceitar as
―verdades‖ ditas. Dessa maneira, a literatura ganha destaque ao possibilitar que
narrativas ganhem representatividade e o sujeito se identifique por meio das histórias,
dos sujeitos, dos objetos e dos lugares apresentados pelas obras literárias.
Nessa mesma linha de pensamento, para Cristiane de Souza Soares (2011) a
literatura oportuniza que diferentes pontos de vista sejam traçados a respeito de um
contexto geográfico apresentado, provocando reflexões críticas acerca de um dado
acontecimento, conteúdo e/ou temática.
Acreditamos ser fundamental observar que a literatura, antes de qualquer
coisa, tem por intuito aguçar o imaginário, desvelar mundos outros, tirar do estado de
anestesia cotidiano, podendo ampliar, enriquecer e/ou transformar as experiências de
quem lê ou ouve literatura (BETTELHEIM, 2000). Dislane Zerbinatti Moraes (2009),
por exemplo, defende o uso de obras literárias pela ótica das artes, bem como
entendendo essa linguagem como fonte de conhecimento.
Nesse contexto, trabalhar com a linguagem literária na sala de aula se coloca
como um fator a ser considerado no processo de promoção de momentos de fruição,
de desvelamento de expressões culturais. A nosso ver, promover situações nas quais
a linguagem literária seja protagonista, esteja ou não entrelaçada com outras
linguagens, pode contribuir não só para o encantamento pela arte, mas também no
processo de formação crítica dos estudantes. Pode ainda contribuir para que o
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estudante compreenda de maneira ampliada aquilo que buscamos problematizar


durante as aulas, estabelecendo nexos causais a serem considerados no processo de
ensino e aprendizagem.
No item a seguir, expomos a concepção que embasa o procedimento
metodológico deste estudo. Buscamos traçar caminhos que apontam para o papel do
ambiente alfabetizador como possibilidade de sistematizar e envolver estudantes
desde os anos iniciais em um espaço dotado de informações geográficas.

A criação do ambiente alfabetizador de Geografia

Diante do que expomos em relação às múltiplas linguagens no processo de


ensino e aprendizagem de Geografia, consideramos que essas podem se colocar
como fios condutores para outros procedimentos metodológicos, no caso em tela o
ambiente alfabetizador. Tal linguagem é construída coletivamente por meio da
interação entre professor, estudantes, conceitos geográficos e múltiplas linguagens.
Desse modo, o que buscamos é propor caminhos para sustentar e/ou refutar nossa
hipótese, identificando possibilidades e limites da contribuição de um ambiente
alfabetizador na formação leitora dos sujeitos da pesquisa.
Emília Ferreiro (1993) define como ambiente alfabetizador aquele no qual
percebe-se a presença de uma cultura letrada, envolta de múltiplas linguagens. Tal
expressão constitui-se em um aspecto metodológico reverberado através da
perspectiva construtivista e no qual o foco é o estudante e seu processo de
conceitualização, no caso deste trabalho, geográfica. As concepções dessas autoras
nos permitem inferir que o contato com o ambiente alfabetizador pode permitir
reflexões outras acerca do conhecimento ali explorado, estimulando os estudantes a
pensarem nas funções sociais daquilo que aprende. Na mesma linha de pensamento,
significa dizer que conhecimentos extralinguísticos - conhecimentos de mundo - e
conhecimentos metalinguísticos - quando o aluno reflete sobre o que aprende –
poderão ser explorados diante de textos que tratem de conceitos geográficos.
Se considerarmos que o meio no qual um sujeito vive e se constitui interfere
nas experiências que estabelecerá com a leitura e a escrita, no nosso caso, a leitura e
escrita do mundo que o circunda, podemos afirmar que ao envolver estudantes desde
os anos iniciais em um ambiente que tem por intuito alfabetizá-lo, estaremos
contribuindo de maneira significativa para seu processo de alfabetização de forma
ampla, seja ela geográfica ou não (FERRONATTO, 2005). Magda Soares (2003),
contudo, nos alerta sobre a importância de nos atentarmos ao método utilizado para
alfabetizar e letrar crianças geograficamente falando. Isso porque somente o contato
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com um ambiente alfabetizador não garante que o processo de alfabetização seja


constituído; é preciso sistematizar conteúdos. Atentas a esses fatores construímos o
ambiente alfabetizador de Geografia do 5º ano, o qual teve como temática a
alfabetização cartográfica.
Ao pensarmos nas perspectivas teóricas que baseiam nosso trabalho com a
Geografia, partimos da premissa de desenvolvermos o trabalho da alfabetização
cartográfica a partir do conceito de lugar, buscando articular, sempre que possível,
múltiplas escalas e linguagens. Para cada aula definimos a prioritemas centrais, dando
um nome a cada uma delas. Todavia, o título que seria dado àquela aula era
determinado pelas crianças ao fim do encontro, sempre que possível.
Montamos o esqueleto que sustentou o primeiro trimestre com o título de
―Colecionando lugares...‖ com o tema dos mapas, o qual foi representado pelo mapa
do Brasil, respeitando o máximo possível as convenções cartográficas. Nesse contexto
inicial, trouxemos a linguagem literária para começar a abordar a temática trimestral,
que, dados os limites deste texto, será a experiência elencada para sustentar as
análises213. Para tanto, fizemos uso do livro de literatura O menino que colecionava
lugares214, de Jader Janer Moreira Lopes (2013). Interessante aclarar que ao levarmos
para sala de aula a literatura, buscamos fazer uso das estratégias de leitura para
conduzir as crianças a refletirem e criarem hipóteses acerca da história, inserindo-as
no contexto imaginativo e lúdico que a leitura literária poderia trazer. Noutras palavras
ensinamos estratégias leitoras que auxiliam na compreensão, no caso, de um texto
literário.
Como resultado do trabalho com o livro, propusemos às crianças duas
atividades: a) contextualização a partir de uma síntese realizada em um relatório, na
qual deveriam destacar os sentidos e os significados atribuídos à história; b) seleção
de uma foto que, da mesma maneira que a história contada, representasse um lugar
que gostariam de colecionar e guardar na memória.

213
Desenvolvemos um trabalho com diferentes linguagens, como a cinematográfica, a
fotográfica, a cartográfica, a gráfica, entre outras, inclusive leituras literárias em momentos
deleite para a criação do ambiente alfabetizador.
214
Esse livro conta a história de um menino que tinha amor por viajar e conhecer novos
lugares, porém muito medo de esquecer-se dos lugares pelos quais andava. Para lembrar-se
dos lugares que visitava, guardava-os consigo em uma lata de manteiga que sua avó lhe deu.
Guardava nessa lata enormes monumentos, cheiros, sabores, pessoas. No entanto, após
muito guardar, parou para pensar no que acontecia com os lugares após terem pedaços
guardados em sua lata. Num dia resolveu ―libertar‖ todos os lugares e percebeu que não se
esqueceu de nenhum. A partir de então compreendeu que não precisava guardar em latas os
lugares, somente dentro de seu coração e memória.
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Interessante destacarmos aqui que, antes de fazermos as análises dos


questionários aplicados, consideramos o momento dos relatos sobre a escolha da
fotografia e do lugar como um dos mais significativos para as crianças, visto que, a
nosso ver, os relatos dos colegas propiciaram envolvimento afetivo daqueles que
ouviam, fazendo com que se identificassem uns com os outros, compartilhando
memórias, lugares e momentos parecidos, identificando semelhanças e diferenças nos
relatos produzidos.
A escuta dos sentidos atribuídos foi realizada na aula seguinte, em que
também começamos a conhecer os lugares que as crianças gostariam de guardar, por
meio da exibição da fotografia escolhida. Esse momento teve a duração de três aulas,
cada uma com 45 minutos, e foi envolto de momento claros de afeto, ao mesmo tempo
em que traziam diálogos geográficos, ora implícito, ora explícito. O envolvimento dos
estudantes nesses momentos de escuta do colega e de compartilhamento de
memórias e afetos, nos fez perceber a significância da atividade para aquelas
crianças. Após a finalização dos relatos, optamos por fotografar cada um dos
estudantes, colocando em uma pequena placa seus respectivos nomes, lugares e
memórias. O intuito era deixar marcado esse momento no ambiente alfabetizador.
No item a seguir, trazemos as análises dos questionários aplicados aos
estudantes, buscando compreender limites e possibilidades de um ambiente
alfabetizador e, na mesma medida, do uso de múltiplas linguagens.

O que nos dizem as crianças: traçando caminhos de análise

Ao fim do trabalho desenvolvido no trimestre, aplicamos um questionário


voltado a compreender sentidos que as crianças atribuíram ao ambiente alfabetizador,
observando possíveis aprendizagens que operaram nessa interação, observando se e
como a experiência literária contribuiu para a formação de um olhar crítico acerca das
relações que os sujeitos instituem com o lugar.
Entendemos ser o questionário um instrumento que permite aos estudantes
relatarem sobre suas experiências com o ambiente alfabetizador e as múltiplas
linguagens ali presentes e, da mesma maneira, serem seus relatos escritos
importantes para pensar e problematizar questões educacionais referentes ao ensino
de Geografia.
No que se refere aos relatos, ao compreendê-los como uma forma de pensar
sobre experiências, consideramos que o ―filtro‖ das informações foi dado através de
nosso ponto de vista como pesquisadoras baseadas em nossas vivências anteriores e
as que se deram durante a construção do ambiente. Dilma Maria de Mello, Ariane dos
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Santos Rodrigues e Nilma Nogueira Machado (2010), apresentam que a narrativa –


aqui apresentada como relatos - é constituída por diferentes pontos de vistas, os quais
requerem do pesquisador um olhar atento aos ditos e não ditos.
Nesses relatos consideramos as dimensões de sociabilidade e temporalidade
na produção dos nexos causais que nos permitiram compreender os sentidos
atribuídos pelas crianças. Entendemos, em confluência com Mello, Rodrigues e
Machado (2010), sociabilidade a partir de duas óticas. A primeira se refere às
condições pessoais, ou seja, as colocações dos estudantes que apontam para as
experiências pessoais constituídas ao longo da construção do ambiente alfabetizador.
A segunda se refere às condições sociais, as quais dizem respeito ao lugar no qual e
sob o qual o procedimento metodológico foi desenvolvido e os relatos escritos
construídos. Nessa perspectiva, a temporalidade diz respeito à busca por
compreender o movimento que instituíram nos momentos em que construíram cada
etapa, olhando, dessa forma, para o passado. Da mesma maneira, interpretar esse
momento a partir de perspectivas futuras dadas pelo movimento do presente, ou seja,
o momento em que produziram os relatos escritos.
Tais análises basearam-se na análise de conteúdo, que diz respeito a um
procedimento que busca, por meio de uma abordagem crítica e dinâmica da
linguagem, reconhecer o papel ativo do sujeito na produção do conhecimento
desenvolvido e elaborado em diferentes contextos históricos e sociais estabelecidos
na interação com outros sujeitos (FRANCO, 2007).
A aplicação do questionário foi dividida em duas etapas: na primeira delas,
nosso objetivo era o de compreender o que as crianças entenderam em relação aos
temas trabalhados em Geografia, sem, necessariamente, fazer uso do ambiente
alfabetizador para tecer tais entendimentos. Já na segunda parte, nosso foco recaiu
especificamente sobre o ambiente alfabetizador e buscamos mapear sentidos e
significados atribuídos pelas crianças aos diálogos instituídos ao longo do trimestre e
registrados no ambiente.
De maneira a deixar claro o percurso que instituímos, apresentamos
inicialmente a primeira parte do questionário, esboçando nossas análises e
considerações acerca dos relatos escritos das crianças. Foram aplicados e analisados
um total de 94 questionários. Nesse percurso de análise, classificamos em quatro
categorias os relatos.
Na primeira categoria podemos constatar uma parcela significativa das
crianças que atribuiu sentido àquilo que foi discutido em sala de aula, contribuindo, a
nosso ver, para o processo de aprendizagem. Há relatos que deixam claro que alguns
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estudantes fizeram uso do ambiente alfabetizador para auxiliar a rememorar o que


havíamos discutido ao longo do trimestre. Em relação às metodologias utilizadas para
desenvolver as temáticas do trimestre, constatamos menção às múltiplas linguagens.
No que diz respeito à segunda categoria, constatamos que um pequeno
percentual identificou aspectos relativos à História na disciplina de Geografia,
―mesclando‖ eixos centrais que desencadeiam o trimestre em questão 215. Nesse
mesmo sentido, aqueles que ―confundiram‖ as duas disciplinas – categoria 3 -
apontaram para a principal temática da disciplina de História como sendo as questões
trabalhadas especificamente em Geografia. Dentre esses, percebemos também os
que mencionaram o uso das múltiplas linguagens utilizadas nas aulas de História
como sendo pertencente à Geografia.
Na última categoria de análise constatamos que, em que pese de alguma
maneira terem se apropriado de algum conteúdo trabalhado, alguns estudantes não
conseguiram lembrar e/ou traduzir em linguagem escrita o que foi estudado. Nesse
sentido, podemos afirmar que as metodologias utilizadas nas aulas de Geografia não
foram suficientes para que essas crianças pudessem atribuir sentidos aos conceitos.
Podemos perceber que indiretamente essas crianças apontaram para as
múltiplas linguagens utilizadas nas aulas, sendo para alguns importantes para
encontrar a Geografia no cotidiano e para outros não havendo nenhuma relação com
os conteúdos trabalhados. Nesse contexto, podemos afirmar que relações geográficas
foram construídas e estabelecidas pelas crianças e a metodologia das múltiplas
linguagens foi fator presente em seus relatos orais, seja mencionando a importância
dessa metodologia para uma maior compreensão da Geografia, bem como no
sentindo oposto, não compreendendo a função dessas linguagens no entendimento de
conceitos geográficos.
A segunda parte do questionário, por sua vez, teve como finalidade perceber
nos relatos das crianças os sentidos atribuídos à presença do ambiente alfabetizador.
O quantitativo de questionários aplicados e analisados é o mesmo da primeira parte –
94. Oportuno destacar que a segunda parte do questionário foi estruturada a partir de
quatro questões, sendo apenas duas delas relevantes para análise deste texto, quais
sejam: qual parte do mural mais chamou sua atenção? Por quê?; Observando o mural,
descreva o que você aprendeu em Geografia.

215
Informamos ao leitor que a mesma professora ministrava as aulas de Geografia e História
no 5° ano, além disso a pesquisa que deu origem a esse texto se pautou na criação de um
ambiente de Geografia e História no mesmo local, o que levou alguns estudantes a se
referirem a conteúdos históricos quando falavam sobre a Geografia.
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A primeira das perguntas aqui analisada, tinha por intuito identificar quais
elementos mais chamaram atenção das crianças durante as aulas e o processo de
construção. A partir da análise, percebemos seis categorias, dentre as quais três
fazem referência à presença das fotografias no mural, apontando para o fato de que
ao se perceberem representando no mural, identificam-se, em maior ou menor grau,
com o uso desse instrumento e as possíveis refrações que podem vir a ter no
processo de ensino e aprendizagem.
Na primeira categoria, as crianças referiram-se à presença de fotografias
como aquilo que mais lhes chamou atenção, sem definir a qual se referiam. Pudemos
constatar a partir da análise dos relatos escritos que o fato de apresentarmos
fotografias no mural fez com que atribuíssem um sentido ampliado a atividade
realizada. Ainda nesse âmbito, a segunda e terceira categorias trouxeram a fotografia
como protagonista do processo. Todavia, nesses dois casos as crianças determinaram
a qual fotografia se referiam. A atividade de Geografia com o livro ―O menino que
colecionava lugares‖ – categoria 3 - também não passou despercebida e permitiu que
as crianças criassem vínculos identitários com a atividade e com a Geografia. Tal
identificação, em concordância com Lana de Souza Cavalcanti (2010), proporcionou
que aprendizagens relativas à Geografia fossem instituídas, uma vez que os
estudantes detalharam características geográficas sobre lugares de referência
subjetiva, citando a experiência literária em tela.
A quarta categoria de análise, na mesma linha das três já apresentadas, faz
referência aos laços afetivos que as atividades e suas respectivas representações no
mural propiciaram àquelas crianças. Porém, nesse caso se referiam a uma atividade
realizada na aula de História, na qual se produziu uma boneca de tecido a partir de
uma experiência literária e que, posteriormente, foi anexada ao mural. Os relatos desta
categoria também são entendidos a partir da dimensão de temporalidade apontada por
Mello, Rodrigues e Machado (2010), ou seja, as lembranças que as representações do
mural propiciam ao serem observadas, permitindo que ―voltem ao tempo‖ e
estabeleçam relações outras com aquele momento. No que diz respeito à quinta
categoria, percebemos que os relatos apontam para as temáticas centrais ora da
Geografia e ora da História abordadas naquele trimestre, bem como a algumas
informações específicas contidas no mural, mencionando, em alguns casos,
linguagens utilizadas no desenvolvimento da aula. A Geografia, nesse caso foi mais
mencionada por ter tido várias atividades que chamaram a atenção das crianças.
Nesse sentido, o que pudemos constatar com a análise de trechos dos relatos
escritos das crianças é que o fato de apresentarmos no mural linguagens específicas
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da Geografia – a linguagem cartográfica - permitiu que esses estudantes


estabelecessem relações entre representações cartográficas, vivências e pensamento
geográfico. Em outros termos, a exposição cotidiana a linguagens cartográficas
possibilitou que essas crianças ampliassem suas visões acerca do espaço em que
vivem, podendo, assim, observar, descrever, comparar e estabelecer relações outras
com o espaço ao seu entorno.
Em menor número, identificamos aqueles que não conseguiram expressar o
que mais lhes chamou atenção. Tais relatos se configuram, a nosso ver, como pistas
para buscarmos elaborar outras intervenções pedagógicas que proporcionem a
aprendizagem de estratégias leitoras que auxiliem na compreensão de leitores que
acionem conhecimentos geográficos.
A segunda e última pergunta a ser tratada neste texto diz respeito à
aprendizagem geográfica percebida através da observação do mural. Nessa questão
foram identificadas 4 categorias.
As análises a partir da observação do mural retratam que um dos fatores que
pode ter interferido no processo de aprendizagem desses estudos foi o uso das
múltiplas linguagens – categoria 1 -, uma vez que na maioria dos casos as crianças
fazem referências às aulas em que trabalhamos a partir, por exemplo, da literatura,
das fotografias e, em especial, da cartografia. Em sentido complementar, na categoria
2, alguns estudantes mesclaram temáticas da Geografia e da História, retratando que
ao observarem o mural tiveram dificuldade de separar o que pertencia a uma disciplina
e a outra.
Na terceira categoria percebemos que alguns ―confundiram‖ a parte de
Geografia com a de História, atribuindo à Geografia conteúdos desenvolvidos
especificamente nas aulas de História. Interessante observarmos que ao atribuir a
uma disciplina o que foi trabalhado especificamente em outra, identificando, assim, o
entrelaçamento entre elas, as crianças referiram-se contundentemente às múltiplas
linguagens que permearam o processo de desenvolvimento do trimestre.
Demonstrando, a nosso ver, que as múltiplas linguagens se configuram como o
recurso que contribuiu para compreender aspectos relativos à Geografia. Nesse
sentido, buscar caminhos para sistematizar o percurso empreendido no contato com
diferentes linguagens amplia a possibilidade de aprendizagem.
Por último, na quarta categoria, encontramos as crianças que não
conseguiram expressar o que aprenderam, referindo-se apenas ao fato de ter sido
legal ou nem mesmo respondendo à pergunta.

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Nesse sentido, as análises das narrativas das crianças permitem afirmar que
o ambiente alfabetizador possibilitou que as múltiplas linguagens se constituíssem em
uma metodologia que contribui para o ensino de conteúdos geográficos, assim como a
sua própria construção, uma vez que esse ambiente pode também ser entendido
como uma linguagem, ao auxiliar os estudantes a rememorem fatos, por exemplo.
Além disso, as narrativas mostram que o trabalho com a linguagem literária foi
significativo por envolver momentos de afeto e de memórias compartilhadas,
contribuindo também para um entendimento geográfico acerca do conceito de lugar
por meio da relação de afeto.

Considerações Finais

Diante dos relatos analisados, podemos afirmar que o ambiente alfabetizador


se constitui sim em um recurso importante para aprendizagem por ter aliado múltiplas
linguagens. Significa dizer que, a nosso ver, configurou-se como um procedimento
importante para as crianças, permitindo que compreendessem e ampliassem suas
visões, por terem congregado linguagens que proporcionem sua inserção em um
contexto geográfico. Isso porque na visão das crianças se colocou como um recurso
significativo por representar um meio para promover reflexões, uma forma de
sistematizar e de ampliar conhecimentos. Para mais além, podemos afirmar que
entenderam o ambiente como mais uma linguagem dentre todas as que citaram e as
que compuseram esse recurso, traduzindo-se em possibilidades de representação de
suas vivências. Nesse sentido, o ambiente alfabetizador inseriu essas crianças em um
contexto lógico de pensamento geográfico, em que perceberam relações que se dão
ao longo do espaço e do tempo criticamente, compreendendo que um lugar só se
torna um lugar através dos sujeitos e dos objetos que o forma.
Nesse sentido, podemos afirmar que as análises dos relatos nos mostram
que o caminho que buscamos trilhar no ensino de Geografia se coloca como uma
possibilidade a ser considerada. A despeito de no percurso alguns estudantes ainda
não compreenderem o sentido de se pensar a Geografia, demonstrando que ainda
precisamos vencer esses limites e encontrar outros meios que permitam que todos
percebam o motivo de se estudar esse componente curricular e a sua respectiva
importância para entender as relações espaçotemporais que se dão a seu redor no dia
a dia.
Barreiras essas que nos instigam a continuar pesquisando sobre melhores
maneiras de se pensar e trabalhar a Geografia desde os anos iniciais, ampliando o

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ensino de estratégias leitoras de múltiplas linguagens com o objetivo de promover


experiências significativas ao longo do processo de escolarização.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

LIVROS DIGITAIS INFANTIS: NOVAS FORMAS DE LEITURA


PARA CRIANÇAS

Roberta Gerling Moro, ULBRA, Eixo Temático 6: Literatura Infantil e Juvenil e


as múltiplas linguagens, CAPES

Considerações Iniciais

No presente trabalho, apresento um recorte de uma pesquisa que está sendo


desenvolvida como dissertação de mestrado216, a qual tem, entre seus objetivos,
compreender como crianças de 3 a 10 anos de idade leem os livros digitais. Assim,
coloco em discussão, ao longo deste texto, algumas das principais estratégias de
leitura de textos literários em suportes digitais com base nos estudos realizados pelo
grupo GRETEL.
O grupo GRETEL (Grupo de Investigación de literatura infantil y juvenil y
educación literaria de la Universitat Autónoma de Barcelona), que reúne
pesquisadores da Universidade Autónoma de Barcelona (UAB) e outros especialistas
da literatura infantil e educação literária, explora, em suas pesquisas, entre outros
aspectos, os efeitos da literatura digital sobre a aprendizagem literária, verificando as
mudanças ocorridas com a introdução da literatura digital na produção de literatura
endereçada a crianças e adolescentes, na recepção da leitura destes grupos e nos
hábitos de leitura que fazem parte do cotidiano familiar e escolar (MANRESA; REAL,
2015).
As pesquisas realizadas pelo Grupo, em especial, a seção ―Educational
Practices: families and schools‖ (Práticas educacionais: famílias e escolas) do livro
―Digital Literature for Children: Texts, Readers and Educactional Practices‖ (Literatura
Digital para Crianças: Textos, Leitores e Práticas Educativas), me forneceu apoio para

216216
A pesquisa de mestrado referida intitula-se ―Os livros digitais e o leitor infantil: a leitura de
livros digitais no ambiente familiar‖, sob orientação do prof. Dr. Edgar Roberto Kirchof.
1086

a minha própria pesquisa de campo realizada com crianças de 3 a 10 anos. Para a


produção dos dados de minha pesquisa, foram realizadas gravações das sessões de
leitura com as crianças, entrevistas com os pais dos participantes, além de anotações
das observações em um diário de campo. As análises focaram alguns aspectos
observados durante as atividades de leitura com as crianças, principalmente no que se
refere aos recursos multimodais e interativos dos aplicativos (1), o papel do dispositivo
como mediador da leitura (2) e os tipos de reações das crianças à leitura digital (3).

Grupo Gretel: dois estudos sobre práticas de leitura literária e digital no


ambiente familiar

O Grupo Gretel é conduzido pela renomada pesquisadora Teresa Colomer e foi


fundado em 2006, incluindo também professores e estudantes de doutorado do
departamento de Didática da linguagem e da literatura (Universidade Autónoma de
Barcelona), assim como professores de escolas e outros especialistas. Este grupo
lançou, em 2015, o livro ―Digital Literature for Children: Texts, Readers and
Educactional Practices‖ (Literatura Digital para Crianças: Textos, Leitores e Práticas
Educativas), onde os pesquisadores relatam os principais resultados de um trabalho
realizado sobre a leitura literária digital de crianças e adolescentes.
Duas pesquisas em especial foram utilizadas como inspiração para os meus
próprios encontros com as crianças: ―Ipads, Emergent Readers and Families‖ (Ipads,
Leitores Emergentes e Famílias); ―Digital Literature in Early Childhood: Reading
Experiences in Family and School Contexts‖ (Literatura Digital na Primeira Infância:
Experiências de leitura na família e em contextos escolares).
No primeiro artigo, as pesquisadoras analisam as principais transformações
ocorridas, principalmente, no que se refere à prática de leitura compartilhada no
ambiente familiar, a partir do advento dos tablets/ipads. Além disso, as pesquisadoras
dedicam-se também a observar que papeis os Ipads ocupam na leitura e na mediação
dessas práticas e como essas interações podem influenciar as experiências literárias
das crianças. Trata-se de um estudo realizado com base em um trabalho de campo,
cuja metodologia alinha-se aos estudos etnográficos. As pesquisadoras
documentaram as práticas de leitura de quatro famílias de classe média, durante o
período de dois anos, sendo três famílias da cidade de Barcelona e região, e uma da
cidade de Palma, Majorca, todas na Espanha.

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Outro destaque é em relação aos dispositivos eletrônicos disponibilizados. Na


pesquisa realizada na Espanha, cada família tinha, em sua posse, seus próprios Ipads
e bibliotecas digitais contendo as narrativas para as crianças. Foram selecionadas
quatro meninas com as seguintes idades: Itzel, um ano e onze meses; Helena, dois
anos e cinco meses; Lucía, quatro anos e dois meses; e Chloe, cinco anos e sete
meses. As quatro famílias possuíam, como característica comum, um perfil
socioeconômico de classe média, e os pais tinham uma formação em nível superior
relacionada às suas profissões. Nesse sentido, o trabalho de campo visava observar
as interações dos leitores infantis com os livros-aplicativos e com o próprio dispositivo.
Além das gravações realizadas das práticas de leitura, Cristina Aliagas e Ana M.
Margallo também utilizaram, como material empírico para as análises, as conversas
com os participantes.
Os seguintes eixos temáticos foram propostos para reflexão e análise do
material produzido e coletado ao longo da experiência: 1) O tempo/espaço da prática
de leitura no ambiente familiar; 2) A configuração e a utilização das e- libraries
(bibliotecas digitais) no Ipad; 3) O processo de aprendizagem do letramento digital
construído na interação entre a criança, o adulto e o dispositivo; 4) Os efeitos da
experiência de leitura de alguns recursos multimodais e interativos dos aplicativos
(ALIAGAS; MARGALLO, 2015).
Quanto ao primeiro eixo, as crianças utilizavam o espaço da sala de estar, em
especial o sofá ou a mesa principal, para a leitura das histórias. A sala de estar é
considerada como o espaço onde os adultos/pais podem ―controlar‖ a utilização do
dispositivo pelas crianças. O dispositivo se encontrava, de certa forma, alocado no
mesmo espaço dedicado à leitura dos livros impressos. Embora o dispositivo ofereça
novas opções de mobilidade às crianças, ―controlar‖ o local onde se realiza a leitura
reduz também a função de mobilidade do dispositivo. Na medida em que os pais
adquiriam confiança nas crianças como ―usuários‖ do dispositivo, elas começavam a
mover-se para outros espaços da sala, como o sofá e o chão, o que demonstra certa
independência em relação ao dispositivo e, consequentemente, também em relação à
mediação do adulto.
No caso de duas meninas, Lucía e Chloe, o desenvolvimento da autonomia em
relação ao Ipad revelou uma certa dissociação da leitura literária realizada no
dispositivo, sendo atribuída a outros programas, aplicativos e produtos de
entretenimento. Percebe-se que ainda há uma associação da leitura literária ao livro
impresso, em contrapartida, o Ipad é associado pelas crianças a um suporte de
entretenimento.
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A mudança de espaço e tempo, deslocada para o ambiente da sala de estar,


confere uma dimensão social à prática de leitura, enquanto a leitura do livro impresso
costuma ser considerada como uma experiência mais íntima, ocorrida com frequência
no quarto das crianças, à noite, antes de dormir.
No que se refere à utilização do Ipad pelas crianças, as pesquisadoras
perceberam uma alternância entre as histórias selecionadas e jogos, atividades de
desenho e pintura, aplicativos de música, fotos e vídeos. A facilidade com que
alternavam as histórias com os jogos demonstra que a coexistência de diversos
produtos de mídia em um único dispositivo expande também a mobilidade das
crianças em relação às narrativas. Chloe, por exemplo, acessou de forma
independente o Youtube, procurando episódios de seu programa predileto.
O acesso ao dispositivo também estabeleceu uma série de elementos
relacionados ao controle e ao letramento digital. Entre eles, foram citados os
momentos em que as crianças desejavam ter o controle do próprio dispositivo, sem a
interferência de um adulto.
Nas análises, as pesquisadoras classificaram dois tipos de reações às
experiências literárias digitais: a imersiva e a lúdica. Na primeira, foram observadas,
nas manifestações verbais e no comportamento, o envolvimento das crianças na
história. Sobre essas manifestações, as pesquisadoras relatam uma das experiências
vivenciadas por Lúcia, em que é solicitada, pelo narrador, a tomar uma decisão que
poderia ser irreversível; a leitora foge para longe da tela do ipad, com medo de sofrer
as consequências de sua decisão. Por outro lado, o aspecto lúdico destas
experiências está associado ao prazer e à satisfação expressos no comportamento e
na concentração durante a participação das crianças. Helena, por sua vez, teve uma
reação física semelhante, entretanto, neste caso, a reação foi causada pelo
sentimento do medo, associado ao aparecimento da madrasta na narrativa da Branca
de Neve. Como um mecanismo de defesa, as pesquisadoras narram que Helena
tapou seus ouvidos durante toda a leitura. Ao aproximar-se do momento em que a
madrasta se transforma em uma velha senhora, levando a maçã envenenada até a
casa de Branca de Neve, a criança solicitou, ao pai, que não passasse para a próxima
tela, distanciando-se, assim, do dispositivo.
Por fim, a partir da imersão nas famílias e observação das gravações, as
pesquisadoras evidenciaram, em suas análises, o prazer envolvido nas atividades de
leitura dos aplicativos. Alguns sorrisos discretos e olhares de encantamento levaram-
nas a concluir que as crianças assumiram com seriedade os momentos de interação

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com as narrativas digitais, e não as tomaram como um simples jogo de


entretenimento.
Já o segundo artigo, ―Digital Literature in Early Childhood: Reading Experiences
in Family and School Contexts‖, traz alguns resultados iniciais a partir da observação
de crianças de dois a seis anos de idade nos contextos da família e da escola. O
objetivo da pesquisa foi analisar a utilização da literatura digital como suporte para
leitura durante a primeira infância, bem como o endereçamento das obras,
contribuindo, assim, para a reflexão sobre o potencial proporcionado pelos meios
eletrônicos no desenvolvimento da prática de leitura e ensino das crianças. Para isso,
as pesquisadoras descreveram os momentos em que as crianças são confrontadas
pelos dispositivos e aplicativos literários. Nas análises, foram levantadas as seguintes
questões: Como as crianças aprendem a usar os dispositivos e o que implica esse
processo? Quais são suas preferências e por quê? Como leem nos dispositivos
digitais? Quais experiências são mais interessantes para elas? Como os tablets
influenciam seu processo de leitura? Quais são as implicações para a educação?
(REAL; CORRERO, 2015).
A pesquisa teve como base uma investigação exploratória, especificamente
dois estudos longitudinais: o primeiro, com observação direta, durante dois anos em
quatro famílias; e o segundo, na observação de dois anos em três turmas pré-
escolares. O estudo, entretanto, alinha-se a uma perspectiva didática, em que foram
realizadas análises a partir da comparação do material coletado em ambos os
contextos.
Para a pesquisa, foram enviados questionários para vinte famílias que tivessem
crianças até seis anos de idade e morassem nas proximidades das residências das
pesquisadoras. Dos vinte questionários, quatro famílias foram selecionadas. As
famílias não tinham em sua posse tablets, tampouco livros-aplicativos. As sessões de
leitura ocorreram uma vez ao mês, sendo os participantes: setes crianças de ambos
os sexos e com perfis semelhantes, assim definidos: quatro meninos e três meninas,
com idades entre dois e cinco anos, provenientes de famílias com níveis
socioeconômicos e culturais de classe média-alta, residentes em zonas urbanas.
Em suas análises iniciais, foi confirmada a expectativa e interesse das crianças
pelos dispositivos. De modo geral, tinham preferência por ler e descobrir os elementos
no Ipad de forma independente, sem a mediação de um adulto. Entretanto, no
decorrer dos encontros, as pesquisadoras verificaram que a presença do pai ou da
mãe eram importantes, na medida em que eles mediavam o tempo em que as
crianças permaneciam imersas no dispositivo.
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Uma segunda questão que as pesquisadoras ressaltam, na pesquisa, diz


respeito às preferências das crianças por determinadas obras. Da mesma forma como
suas preferências eram estabelecidas rapidamente, com o passar dos encontros e
com a descoberta do acesso à internet, as crianças passaram a perder o interesse por
algumas narrativas, utilizando o Ipad para assistirem seus programas de tv e séries
favoritas ou para reler/interagir com aqueles aplicativos de que mais gostavam. Os
aplicativos mais apreciados pelas crianças eram aqueles que permitiam que o leitor
interagisse com o protagonista da história, como também aqueles que possuíam
elementos mais lúdicos e cômicos. A principal motivação pelas preferências
desenvolvidas pelas crianças foi a possibilidade de se tornarem co-protagonistas ou
co-autores da história, confirmando, assim, que a interatividade promovida pelo
Ipad/tablet promove o envolvimento do leitor com a narrativa.
Havia, também, um segundo grupo de preferências: as adaptações das
histórias populares. Geralmente, os livros-aplicativos selecionados pelas crianças
continham elementos e narrativas que já eram conhecidas, como, por exemplo, o
aplicativo da Itbook The Three Little Pigs, adaptação da obra Os Três Porquinhos. O
terceiro grupo pode ser descrito como as novas versões de obras mais informativas,
como La coccinelle, Parker Penguin e The Forest Waits in Line...To Dine!, as quais
permitem uma expansão da experiência de leitura, através de elementos
multissensoriais e de compreensão. Por último, o quarto grupo é ocupado por aqueles
aplicativos onde o narrador é representado pela voz de uma criança (Emma Loves
Pink), já que tais histórias podem gerar uma maior empatia em termos de
identificação com o protagonista/personagem.
Através desses elementos, as pesquisadoras concluíram que as crianças
diferenciavam a leitura nos dispositivos da leitura do livro impresso. Se desejavam
―jogar‖ (play), por exemplo, solicitavam os aplicativos; por outro lado, se queriam ler
uma ―história‖ (a story), solicitavam a leitura de um livro impresso, mediada por um
adulto.
Ao final, as pesquisadoras levantam a tese segundo a qual a mediação do
adulto ou do professor é necessária para a exploração das obras digitais. Assim como
ocorre com as obras impressas, em relação à educação literária, a experiência de
leitura é adquirida através da qualidade estética e literária das obras infantis e,
portanto, nas obras digitais, também é preciso realizar uma leitura mediada, através
das estratégias de leitura do adulto/professor.
Algumas das principais conclusões destacadas por Neus Real e Cristina
Correro são as seguintes: as crianças com idades entre dois e seis anos demonstram
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interesse por dispositivos táteis, sendo os aplicativos o motivo que gera suas maiores
expectativas; as crianças desenvolvem com facilidade a habilidade de manusear os
tablets, assim como os elementos multimodais da literatura digital, a exemplo da
narração através de áudios, a qual substitui, nesses suportes, a presença de um
adulto; quando o dispositivo é utilizado de forma independente pelas crianças, os
aplicativos ficam em segundo plano, sendo as preferências deslocadas para atividades
como assistir programas de tv ou jogar, o que acaba colocando a leitura como uma
atividade ―menos importante‖; o interesse das crianças pelos aplicativos não
desaparece, se mediado pelo adulto/professor, enriquecendo a experiência de leitura
da criança, quando destacados os aspectos literários.

Leitura digital infantil: os aplicativos e as crianças

A pesquisa de campo que apresento aqui, a qual faz parte de um estudo mais
amplo desenvolvido como dissertação de mestrado, não está baseada na etnografia,
que foi utilizada como metodologia pelas autoras espanholas em suas pesquisas. A
coleta de dados foi realizada nas residências de três famílias em um condomínio
fechado na cidade de Osório/RS. Ao todo, cinco crianças de 3 a 10 anos de idade
foram selecionadas como participantes da pesquisa. As crianças são as seguintes:
Gabriel, 3 anos; Elena, 4 anos; Isabella, 7 anos; Ana Paula, 8 anos; Rafael, 10 anos. 217
Após as respectivas negociações preliminares com as famílias antes de
iniciar as práticas de leitura, e tendo sido aprovado o projeto enviado ao Comitê de
Ética da Universidade Luterana do Brasil, foram realizadas três entrevistas com os
pais das crianças a fim de verificar as práticas de leitura e uso de dispositivos digitais
no ambiente familiar. Posteriormente, foram planejados os encontros com as crianças.
Para a organização dos encontros, optou-se pelo agrupamento das crianças por
idades afins e proximidade familiar, a saber, 1) Gabriel, 3 anos; 2) Elena e Isabella, 4
anos e 7 anos (irmãs); 3) Ana Paula, 8 anos e Rafael, 10 anos (irmãos).
Em relação ao planejamento das atividades, em um primeiro momento, foi
realizado um encontro com as crianças para a leitura de obras impressas. Nos
encontros posteriores, foram apresentadas as obras digitais (aplicativos literários e e-
books). Nas atividades, foram utilizadas três fases como estratégias do processo de
leitura (SOLÉ, 2008; SIMÕES; SOUZA, 2014; SARAIVA; MELLO; VARELLA, 2001).
Na primeira fase, eram elaboradas conversas informais e lúdicas com o objetivo de
217
Os nomes foram substituídos de forma a preservar as identidades dos participantes.
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motivar a criança à leitura. Na segunda, era realizada a leitura compartilhada com a


pesquisadora e, no caso dos livros-aplicativos, havia momentos mais diretivos e outros
sem mediação, quando a criança tinha liberdade para manusear o dispositivo por
conta própria. Por fim, na terceira fase, optou-se por atividades de transferência que
pudessem ser realizadas através de expressões visuais e percepções dos
participantes. Em relação aos livros digitais (aplicativos e e-books), foi possibilitada a
realização da atividade de transferência no próprio dispositivo digital, através
expressões visuais produzidas em um software específico de desenho e pintura,
chamado ArtRage, o qual possui uma interface simples e acessível para o manuseio.
A partir do material empírico coletado, foi possível observar diversos aspectos
que dialogam, de certa forma, com os resultados alcançados pelas pesquisadoras
espanholas. As análises estão organizadas, aqui, a partir dos grupos de leitores
(Gabriel; Elena e Isabella; Ana Paula e Rafael), sendo que, em cada grupo, serão
explorados três eixos, a saber, recursos multimodais e interativos dos aplicativos (1), o
papel do dispositivo como mediador da leitura (2) e os tipos de reações das crianças à
leitura digital (3). Do material produzido, foi selecionado apenas um encontro com
cada grupo de crianças, em específico, aqueles dedicados à leitura dos aplicativos
literários. Nas análises, são destacados, também, alguns momentos em que as
crianças são confrontadas pelos aplicativos literários e como negociam com estas
experiências literárias.

Gabriel

Sua reação diante do dispositivo não expressava surpresa por parte do


menino. Logo no início, Gabriel observa e interage para, em seguida, procurar jogos
no dispositivo. A interação com a primeira narrativa digital, Mini Zoo, do autor
Christoph Niemann, ocorreu, inicialmente, a partir da mediação do adulto, pois o
menino se deslocava frequentemente para outros produtos de entretenimento
oferecidos no tablet. A partir de seus gestos e reações, foi possível observar uma
reação mais lúdica em relação à história. Em diversos momentos, dirigia-se ao pai
para demonstrar a interação de determinado personagem.
Devido à sua experiência prévia com o manuseio do dispositivo digital (tablet) e
sua familiaridade com jogos digitais, alguns recursos interativos não chamaram a
atenção do menino. Em certa cena da narrativa, onde um cachorro atira lama sobre a
tela do dispositivo, a interação de Gabriel com a narrativa ficou parecida com a
interação típica com ―jogos digitais‖, pois ele quis repetir diversas vezes a mesma
ação.
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O principal aspecto a ser considerado, durante as atividades de leitura com o


menino, é o papel do mediador. Enquanto na obra impressa o menino requisitava um
adulto para a mediação da história, na leitura dos aplicativos, desejou manusear e
interagir com as narrativas por conta própria, sendo o mediador, nesse caso,
substituído pelo próprio dispositivo. Isto é evidenciado, principalmente, em suas
reações durante a interação com as narrativas. Quando desejava, retornava a uma
cena específica ou pulava diretamente para o final da história, permanecendo sozinho,
tendo somente o dispositivo como mediador da leitura.

Figura 19 - Gabriel durante a leitura de Mini Zoo

Elena e Isabella

Durante o primeiro encontro com os livros digitais, as meninas estavam um


pouco inseguras quanto ao manuseio dos dispositivos, pois suas experiências prévias
se limitavam apenas a assistir televisão e manusear, em alguns momentos, os
celulares dos pais. Por essa razão, a mediação de um adulto foi relevante, a fim de
introduzir as crianças à narrativa e ao manuseio do dispositivo. O mesmo aplicativo,
Mini Zoo, foi apresentado para ambas as crianças. Por um lado, havia uma grande
expectativa em relação às interações que poderiam ser exploradas. Por outro lado, as
crianças não sabiam que ação tomar ou onde iniciar. Assim, foi necessário motivá-las
a tocar sobre os animais e a deslizar o dedo sobre a tela. Conforme se familiarizavam
com a linguagem digital, compreendiam que, para efetivação da leitura, seria
necessária a sua interação com o dispositivo.
Ainda que o dispositivo e a forma de leitura se apresentasse como algo novo,
as meninas se posicionavam na perspectiva do leitor analógico, preferindo a leitura no
formato impresso. Foi possível observar, ainda, que as crianças desenvolveram
rapidamente a habilidade de manusear o dispositivo, interagir e transitar pelas
páginas/telas das narrativas.
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A atividade de transferência produzida no próprio dispositivo pareceu ser o


interesse maior das crianças. Enquanto a leitura era realizada de forma mais rápida,
as expressões visuais eram produzidas mais lentamente, e elas procuravam aprimorar
suas pinturas e desenhos, na mistura de cores, traços e formas. Em relação às suas
produções visuais digitais, também é possível considerar como um processo de rápida
aprendizagem, já que muitas ferramentas disponíveis no software dependiam de um
conhecimento prévio adquirido através de práticas de letramento digital.

Figura 20 - Elena durante a atividade de


transferência no tablet

Ana Paula e Rafael

A obra Spot, de David Wiesner, foi selecionada para a sessão de leitura com as
crianças mais velhas. Spot é um livro digital de imagem que se diferencia em relação à
linearidade do livro impresso. Por este motivo, sua leitura se mostrou desafiadora às
crianças, na medida em que a narrativa não possuía início, meio ou fim. As transições
entre as páginas eram realizadas a partir da aproximação do dedo indicador e do dedo
polegar sobre a tela (aproximação/zoom).
O envolvimento das crianças com a narrativa se desenvolveu a partir da própria
proposta da história, a qual está baseada na exploração de cinco mundos, através de
objetos que, ao serem aproximados, transformam-se em novos universos com
diferentes criaturas. Assim, as reações demonstradas pelas crianças variavam de
acordo com suas atitudes e falas. Duas reações foram observadas, as quais dizem
respeito ao envolvimento das crianças às experiências literárias digitais. A primeira,
imersiva, pode ser destacada no momento em que as crianças fixavam seus olhares
diretamente na narrativa, não desviando sua atenção do dispositivo. A segunda

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reação, lúdica, dialoga com o fato de estarem imersas e, consequentemente,


adquirirem um prazer pela experiência de leitura.
As crianças diferenciavam, também, a leitura digital da leitura do livro impresso.
Rafael, por exemplo, comenta, após a leitura do aplicativo, que Spot tem elementos
semelhantes ao jogo de RPG, sendo mais interessante, segundo ele, do que uma obra
impressa. Nesse sentido, na percepção do menino, para ser considerado um ―livro‖ e
não um ―jogo‖, na história precisaria ter inseridos textos verbais para complementar a
experiência literária.

Figura 21 - Rafael durante a leitura de Spot

Considerações Finais

A partir dos aspectos considerados ao longo do texto, é possível inferir


que as crianças desenvolveram rapidamente as habilidades do mundo digital
quando confrontadas pelos dispositivos e livros digitais. Crianças de dois a seis
anos, por exemplo, demonstram grande interesse, no geral, em manusear
dispositivos táteis, sendo os aplicativos literários um meio de produzir
expectativas entre as crianças, além do desenvolvimento da autonomia na
prática de leitura (ALIAGAS; MARGALLO, 2015).
Ao mesmo tempo em que se desenvolve a autonomia, a leitura em
dispositivos eletrônicos por crianças, quando realizada sem a mediação de um
adulto, pode reduzir o interesse pelas obras digitais, colocando a leitura literária
em segundo plano, na medida em que a criança pode deslocar sua atenção da
narrativa para os jogos digitais ou outros produtos de entretenimento. Por outro
lado, a presença de um mediador adulto pode proporcionar uma experiência
literária de qualidade e atrativa para a criança. Assim, a leitura compartilhada
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dos aplicativos deve ser explorada, visto que fornece uma possibilidade de
explorar aspectos literários e artísticos da narrativa, o que pode complementar
e enriquecer a experiência de leitura.

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In: SARAIVA, Juracy Assmann (org). Literatura e alfabetização: do plano do choro ao
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SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. 6.ed. Porto Alegre: Artmed, 2008.

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NIEMANN, Christoph. Petting Zoo (Mini Zoo). Fox & Sheep, 2013. Disponível para
iOS e Android. Disponível para iOS e Android.
WIESNER, David. Spot. Houghton Mifflin Harcourt, 2015. Disponível para iOS.

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Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

O protagonismo da infância em O menino maluquinho, de


Ziraldo: interfaces entre literatura, estética e sociologia da
infância.

Eixo 06 – Literatura infantil e juvenil e as múltiplas linguagens

218
Simone de Cássia Soares da Silva – Universidade Federal do Mato Grosso –
Membro do grupo Alfale.
Gilvane Reinki – Universidade Federal do Mato Grosso – Membro do grupo
Alfale

Considerações Iniciais
A leitura de Ziraldo Alves Pinto219, em O menino maluquinho, escrita em 1980 é
até hoje grande sucesso entre jovens e crianças, por provocar um jogo de empatias,
resgate da inocência e estímulo à autonomia e criatividade. Com quase 40 anos de
sucesso, mesmo entre os leitores dessa nova geração, constituídos na era da
tecnologia, da informação e da cultura de redes sociais, o livro resgata sorrisos, inspira
a tenacidade, sugere uma poética um tanto estranha às tradicionais produções,
moralizantes, num respeito estético profundo pela criatividade e espontaneidade
inerente ao mundo infantil. É apreciado pelo público de jovens, crianças e até adultos,
evocando ecos de um resgate das meninices saudáveis da infância. Num olhar
semiótico, o personagem deixa indícios de que essa liberdade de ser criança, as
ações espontâneas e alegres, acrescidas do gosto por experiências estéticas,
constituiu-se forma de resistir ao sistema conteudista e fragmentário de educação, ao
qual se submete a infância, e manter-se coerente com as linguagens que naturalmente
caracterizam suas expressões.
Além do resgate da alegria, do deleite de uma leitura impactante, é possível
identificarmos interfaces entre contextos discursivos diversos: literatura, estética,
sociologia da infância, inerentes à produção do autor. Nestes aspectos, encontramos
um diálogo da obra de Ziraldo com as concepções de Gilles Deleuze ao refletir sobre a

218
Simonedecassia2@hotmail.com - gilreinke@gmail.com
219
Ziraldo Alves Pinto, autor do livro “O Menino Maluquinho”, nasceu em 1932 no Estado de Minas Gerais,
jornalista, teatrólogo, cartunista, publicitário, cartazista, criador multimídia, contista, foi fundador do Pasquim,
jornal que, por meio do humor contestava a censura imposta pela ditadura militar brasileira nos anos 60/70,
escreveu e ilustrou mais de cento e vinte obras.
1098

educação contemporânea e a arte, a necessidade de repensar os saberes, num


enraizamento entre pensamento e significado, fazendo através da brincadeira as
interconexões com o todo em sua significação individual. O Menino Maluquinho,
embora vivenciasse um modelo de escola tradicional, conseguia superar as
fragmentações do pensamento, criar vínculos significativos e estéticos e superar as
normatizações adultas, denunciadas por Willian A. Corsaro como ―governança
adultocêntrica‖ (CORSARO,2011), para brincar com os conteúdos de forma a
conectar-se com suas manifestações estéticas e criativas.

O Menino Maluquinho e as interfaces com a escola


Se a criança, na Idade Média, já fora considerada um adulto em miniatura, a
partir da segunda metade do século XVIII, frente ao mundo capitalista, ela passa a ser
objeto de políticas públicas que objetivavam preservá-la e prepará-la para a vida
adulta e para o trabalho. Esse modelo de escola foi inspirado nos ideais da Revolução
Industrial, com objetivos que atendiam às necessidades do mercado de trabalho.
Embora sua expansão maior tenha sido no século XIX, ainda se faz presente em
muitas práticas perpetuadas ao longo dos séculos. A escola tradicional pensada a
partir de um modelo cartesiano, onde os conteúdos possuem uma organização linear e
encadeada, faz a divisão em disciplinas que se apresentam como fragmentos isolados
da composição com o todo e são apresentados aos alunos com uma participação
vertical do professor como o centro da aprendizagem, relegando aos estudantes um
papel passivo de receptores de conhecimentos. Desse modo, ―As crianças foram
marginalizadas na sociologia devido a sua posição subordinada nas sociedades e às
concepções teóricas de infância e de socialização.‖ (CORSARO, 2011, p.18). Nos
modelos de escola tradicionais as crianças são vistas como agentes passivos e
mesmo a ciência sociológica clássica as marginalizou, por sua menor importância no
contexto social.
Em contrapartida a esse descompasso entre os interesses da escola e os dos
estudantes, surge, na literatura de Ziraldo, uma forma de resistência às concepções
tradicionais de infância, denunciadas pelo autor quando apresenta uma criança, e
depois adolescente, que em sua trajetória escolar enfrenta o abismo entre os
conteúdos da escola e os significados para a vida. Criativamente consegue
contextualizar em seu poder de fantasiar e imitar, criando uma rede de contextos entre
informação, estética, ludicidade e aprendizagem, o que fez dele um aluno bem-

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sucedido na escola.220―Para Aristóteles, a imitação é o lugar da semelhança e da


verossimilhança, o lugar do reconhecimento e da representação.‖ (SANTORO, 2007)
Desse modo, as características do personagem da obra de Ziraldo ganham a empatia
dos leitores, quando se identificam com as situações vividas ainda hoje por eles nas
escolas. Apresenta-se uma conotação de liberdade e protagonismo pela maneira
como o Menino Maluquinho encontrava soluções criativas para vivenciar as lições
escolares e articulava sua criatividade e expressões por linguagens estéticas, que num
sentido aristotélico produziam prazer comparado ao ato de brincar e seduziam os
pares na produção de cultura infantil, provocando seu sucesso social. Assim, faz-se a
infância protagonista de sua aprendizagem, apesar das fortes expressões de
governança adulta (CORSARO,2011) pelas quais passam, resistem e buscam
superar.
As teorias sociológicas da infância devem se libertar da doutrina
individualista que considera o desenvolvimento social infantil
unicamente como internalização isolada dos conhecimentos e
habilidades de adultos pela criança. Numa perspectiva sociológica, a
socialização não é só uma questão de adaptação e internalização,
mas também um processo de apropriação, reinvenção e
reprodução.(...) O termo reprodução inclui a ideia de que as crianças
não se limitam a internalizar a sociedade e a cultura, mas contribuem
ativamente para a produção e mudança culturais. (CORSARO,1992;
JAMES,JENKS E PROUT,1998, apud CORSARO,2011, p.31)

Ao considerarmos a sociologia da infância pensada por Corsaro e refletida na


literatura em análise, encontramos um personagem com sua maneira peculiar de
apropriar-se do conhecimento e tornar-se bem sucedido na escola, temos como indício
desse protagonismo, por exemplo, o trecho: ―Só tem um zerinho aí. Num tal de
comportamento!‖(ZIRALDO,1980, p.37). Também percebemos como as linguagens
em potencial dialogavam entre si na apropriação do conhecimento, na brincadeira com
o algarismo (―zerinho‖) e a semântica do termo ―comportamento‖. Isto nos leva a
refletir sobre a possibilidade oferecida pela escola de considerar as interações e
interligações entre as linguagens como potencial de aprendizagem da criança de
maneira a serem conjugadas na pluralidade da sua constituição integral e não mais
isoladamente dando ênfase a uma ou duas linguagens, marginalizando as demais.
Podemos também levantar a hipótese de ser o Menino Maluquinho vítima, como
tantas outras crianças, de um sistema escolar onde corpos não podem falar
legitimamente como parte do processo de aprendizagem, e a agitação incontrolada
das crianças que fogem do modelo disciplinar pode ser interpretada como ―mal
comportamento‖. Com isso, as diversas linguagens que a compõem são

220
· Fernando Santoro /Viso · Cadernos de estética a plicada n. 2 mai-a g o/2 0 0 7
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desautorizadas de manifestar-se em sala de aula. Neste sentido, indagamos: Como


desconsiderar a manifestação da linguagem corporal como processo natural de
manifestação infantil? O Menino Maluquinho não calava o gosto pelas manifestações
naturais de sua personalidade: ―com olho maior que a barriga, tinha fogo no rabo, tinha
vento nos pés, ele era um menino impossível!‖ ―(...) ele sabia de tudo, a única coisa
que não sabia era ficar quieto‖ (ZIRALDO,1980,p.8 a14). Esses trechos da obra nos
remetem a pensar em como era esperto o menino, saudável em suas brincadeiras e
preciosas suas manifestações, linguagens que se manifestavam de forma natural,
revelando a interligação das mesmas, na expansão de seus potenciais de
aprendizagem. Brincando, imitando, fantasiando e reproduzindo, ele apresentava seu
repertório de conteúdos assimilados na escola. Ele era feliz, mas taxado de
―maluquinho‖, por permitir-se expressar com toda a sua potencialidade: corporal,
verbal, estética, emocional, ética e social. O menino cresceu e tornou-se um indivíduo
íntegro, fruto também de suas vivências na escola e das relações que criou.
Nesse sentido, nos questionamos: quantos meninos maluquinhos são
diariamente interditados em suas manifestações espontâneas, rotulados como maus
alunos, desobedientes, ou simplesmente que não gostam de estudar, por não se
adequarem à passividade exigida por escolas tradicionais, onde o professor continua
sendo o centro da aprendizagem? Um grande desafio da escola na
contemporaneidade lançado a professores, pais e pensadores da educação é: Como
conferir protagonismo à infância em seu processo de aprendizagem escolar? Embora
Deleuze não tenha sido um educador, suas provocações literárias e filosóficas evocam
um repensar profundo da educação que precisamos conceber na contemporaneidade,
produzindo um elo entre a educação e a arte, de forma a permitir o prazer estético no
protagonismo da ação de educar-se e permitir um devir infinito do ser em formação.
(DELEUZE,1974) Precisamos buscar linhas de fuga que sinalizam para o inusitado,
imprevisto, não narrado. A instituição precisa mirar novos campos de existência, tal
como os concebeu o filósofo, para enfim se reinventar.
Compreender as questões superadas pelo Menino Maluquinho nas lições de
escola faz da obra hoje um terreno fértil para a discussão contemporânea de
educação, estratégias de ensino e análise de concepções de escola, de criança e de
ser humano em formação. Deleuze denuncia a inspiração dicotômica a qual se sujeita
a escola nesse modelo tradicional e inspira a reflexão de descontruir o pensamento de
aluno como agente passivo de um processo de aprendizagem, apenas receptor de
informações desconectadas da necessária ramificação de ligações entre pensamento
e saber na construção da noção do todo em sua própria vida. (DELEUZE, 1997).
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A infância encarna a dimensão do acontecimento deleuzeano, conceito que se


alinha, a nosso ver, com a produção de culturas infantis, conforme o fragmento abaixo:

As crianças criam e participam de suas próprias e exclusivas culturas


de pares quando selecionam ou se apropriam criativamente de
informações do mundo adulto para lidar com suas próprias e
exclusivas preocupações. (THORNE,1993,P.3-6; JAMES,JENK E
PROUT,1998 P.22-26 apud CORSARO,2011,p. 31)

Dessa forma, o Menino Maluquinho rompe com as regras, comandos adultocêntricos e


consegue produzir sua própria cultura, seus significados, encontrar meios internos de
resolver os próprios problemas e fazer de suas vivências escolares meios de confirmar
seu protagonismo em conquistas escolares e sociais.

As interfaces entre infância, estética e linguagem em O Menino Maluquinho:


A leitura de Ziraldo nos dias atuais provoca a inspiração, reflexão e resgata a
expressão do brincar e a liberdade de ser e sentir da criança. Quando analisamos a
complexidade inerente às ações: jogar bola, fazer versinhos, escrever cartas às
namoradas, correr, brincar, desenhar, cantar e inventar mapas de um tesouro perdido,
encontramos indícios característicos de uma infância saudável. Apesar do convívio
com os adultos, compreende-se que o personagem era protagonista de suas escolhas,
sujeito no processo de aquisição e manifestação de suas linguagens.
As questões literárias como enredo, argumento, diegese, inerentes à obra
analisada, mantêm nexos com conceitos estéticos tais como a mimesis aristotélica, ou
mesmo as linhas de força que atuam sobre o objeto artístico, na concepção
deleuzeana. Essa proposição de fantasia e interpretação vividas pelo personagem e
instigadas no leitor coincidem com as produções culturais da infância, nos termos da
sociologia contemporânea, em especial as formas de resistência ao governo adulto e
resgate do protagonismo da infância.
Essas características de manifestações das crianças hoje tendem a perder em
expressão para uma geração essencialmente tecnológica, porém percebem-se
contrastes com a maneira de ser e ver o mundo de muitos leitores. Apesar das
diferenças existentes entre o leitor de hoje e as meninices vivenciadas pelo
personagem de Ziraldo, nota-se que há um processo de identificação daqueles que,
como o Menino Maluquinho, desejam muito ser bem-sucedidos na escola e
socialmente entre os pares, e, principalmente ter na relação com os adultos a
―traquinagem‖ como processo natural de expressão e crescimento da criança sem a

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influência doutrinadora de ―modelo de bom comportamento social‖ como denuncia


Corsaro (2011).
Nesta reflexão cabe ressaltar a importância que a imaginação assume para a
constituição da identidade da criança e o papel desta como sujeito produtor de cultura.
Era um bom aluno, ―seu caderno era assim: um dever e um desenho, uma lição
e um versinho, um mapa e um passarinho‖ (ZIRALDO,p.24 a 27) o que nos revela que
o menino se apropriava dos saberes e brincava com ele em sua vida de criança ativa e
criativa. A poesia e o desenho, suas brincadeiras e expressões corporais eram forças
artísticas expressivas que redirecionavam sua maneira de ver o mundo, como produtor
de cultura entre os pares. O Maluquinho representa essa criança. É preciso
reconhecer sua agência, bem como a infância como categoria estrutural da sociedade
(CORSARO, 2011). Tal personagem se revela uma pessoa bem-sucedida
socialmente, e até em suas frustrações vem a identificação com as dos leitores,
deixando índices de que criou uma maneira de resolver seus problemas com uma
forma criativa de brincar com as situações. Era uma criança afetuosa, que gostava de
brincar, mas não dispensava um carinho e um afeto com que se relacionava com os
pais e adultos a sua volta.

A função mimética, em Aristóteles, nem é uma exclusividade das


artes poéticas, ela se apresenta também, por exemplo, na linguagem
humana em sua função Sobre a estética de Aristóteles de representar
as coisas. Tal função, a de adequar o nome ou signo em geral à coisa
significada, é a função mimética ou representativa da linguagem,
lugar em que pode acontecer o verdadeiro ou o falso. Esta
compreensão da mímesis mais afinada com as idéias de
representação, linguagem e educação resgata o valor tradicional da
poesia grega: educadora e formadora da cultura tradicional.‖
(SANTORO,2007 Rev. N°º 2)

Essa relação do Menino Maluquinho com as manifestações poéticas,


pictóricas, musicais, da comédia, imaginação, corporalidade, compõem a mimesis
como índice de uma infância repleta de expressividade, em um movimento vital de
buscar o sentido e prazer, plenitude de experiência que produz cultura infantil.
Para Deleuze, a arte perpassa o sentido da comunicação, juntando fragmentos
compostos por percepções e afetos, que exprimem sentidos que se libertam da
matéria e tornam-se expressivos. Essas criações são qualidades sensíveis puras que
produzem o devir, mas não no sentido de ordenança, a que Deleuze também critica
veementemente, mas afirma a horizontalidade do papel do professor e da escola, na
construção de um devir interminável do sujeito em ambos os lados do processo
ensino/aprendizagem.
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As linguagens para o Menino Maluquinho discursavam com toda a sua


potencialidade expressiva nas inúmeras demonstrações retratadas nas páginas da
obra, evidenciando que ele era um ser integral em formação e pleno de vigor infantil.
As linguagens não podiam ser caladas, nem marginalizadas, mas estavam ali
presentes em cada discurso produzido, compondo sua identidade, reafirmando sua
cultura e produzindo significado em toda a plenitude de ser e existir.

Considerações Finais
O protagonista da obra de Ziraldo, O Menino Maluquinho, é um garoto
travesso, brincalhão e esperto, recebe carinho da família que lhe permite dar asas à
imaginação e desfrutar das diversões da infância, em meio às brincadeiras criativas
que permanecem para sempre na memória. Passa por alguns apertos e prega alguns
sustos em seus familiares com suas artes, tudo faz parte da trajetória do
desenvolvimento de uma criança.
O menino encara a separação dos pais com tranquilidade compreendendo que
isso seria pra toda a vida. Mesmo cheio de namoradas e querido por todos, chorava
quando tinha tristezas, nas suas brincadeiras solitárias restituía a alegria que
contagiava todos em sua volta, chamado de ―maluquinho‖ era líder nas brincadeiras e
protagonista de sua história e de seu modo peculiar de reinterpretar sua
aprendizagem.
Na perspectiva de Aristóteles, consideramos que é um autêntico imitador e
recriador de situações cotidianas que formam o significado global do que se aprende,
resgatando as interconexões com as linguagens que lhe são inerentes, indo para além
da estética, produzindo sentido, prazer e vida a ele mesmo, para seu próprio deleite
nas criações e invencionices. Fazia de sua personalidade marcante e criativa a chave
da autonomia para o rompimento com os modelos adultizados de Infância tão
denunciados hoje por Corsaro em sua Sociologia.
Ziraldo criou, com este personagem, um menino, que é a mais pura tradução
da infância, que ensina ao leitor ter atitudes positivas e a agir com espontaneidade e
autonomia; nas entrelinhas do enredo, Ziraldo nos diz: Viva a plenitude da infância!
Foi impossível para o personagem fazer o tempo parar, pois o menino cresceu,
mas virou um ―cara legal‖ e foi aí que todos perceberam que ele não era maluquinho,
mas sim, era feliz, vivenciou experiências do mundo infantil e viveu verdadeiramente
sua infância.

Referências
ARISTÓTELES. Poética. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.
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CORSARO, William A. Sociologia da infância. Porto Alegre: Artmed, 2011.

DELEUZE, Gilles. D39L Lógica do Sentido; tradução de Luiz Roberto Sali- nas
Fortes. São Paulo, Perspectiva, Ed. da Universidade de São Paulo, 1974. (Estudos,
35)
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. 1997. 1730. Devir-intenso, devir-animal, devir-
imperceptível. (trad. Suely Rolnik) In: Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol.4.
São Paulo: Ed.34, pp.

DELEUZE, Gilles. Kafka, por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
PINTO, Ziraldo Alves. O menino maluquinho. São Paulo: Editora Melhoramentos,
1980.
Revista:
SANTORO, Fernando.Viso · Cadernos de estética aplicada Revista eletrônica de
estética ISSN 1981-4062 Nº 2, mai-ago/2007 http://www.revistaviso.com.br/
Site:
https://sociologiassociativa.wordpress.com/2012/02/14/lembrancas-a-um-espinosista-i-
deleuze-e-guattari-1997
http://www.ufjf.br/grupar/files/2014/09/deleuze_e_a_educacao_parte_um.pdf

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LETRAMENTO LITERÁRIO E CINEMA: AS MÚLTIPLAS


LINGUAGENS ENTRE VER UM LIVRO E LER UM FILME221.

Patrícia Rodrigues, UNEMAT/Sinop/MT, Eixo Literatura infantil e juvenil e as


múltiplas linguagens, CAPES

Considerações iniciais

O presente artigo é fruto da experiência na aplicação de uma sequência


expandida a partir dos pressupostos de Rildo Cosson e da pesquisa-ação de Michel
Thiollent. Realizou-se no primeiro semestre de 2017, na Escola Estadual Cândido
Portinari, município de Tapurah/ MT, e propôs-se a investigar que influência teria a
utilização de imagens cinematográficas no processo de letramento literário.
Para o desenvolvimento do trabalho foram escolhidos o livro O Escaravelho
do Diabo, de Lúcia Machado de Almeida, e o filme homônimo do diretor Carlo Milani.
Por serem dois sistemas semióticos diferentes, buscou-se as confluências e
particularidades entre o texto e as imagens. Então pretendeu-se incentivar os alunos a
tornarem-se leitores competentes utilizando também a linguagem imagética do
cinema.
A sequência expandida foi aplicada em uma turma com 25 alunos do 9º ano
―B‖ (14 meninas e 11 meninos) que estudam no período vespertino, a maioria é
residente na zona rural, vêm para a escola com o transporte escolar e têm entre 13 e
15 anos.
Construiu-se com os alunos uma análise profunda do livro e filme
selecionados, para que pudessem dispor de elementos para a análise crítica da
linguagem literária e cinematográfica e, principalmente, resgatar o prazer pela leitura.

221
Este trabalho está vinculado ao TCF (Trabalho de Conclusão Final) do Mestrado Profissional
em Letras (UNEMAT/Sinop/MT) e apresenta resultados parciais das análises dos portfólios e
book trailers produzidos pelos alunos sob o título provisório de LETRAMENTO LITERÁRIO E
CINEMA: VER UM LIVRO, LER UM FILME, sob orientação do Prof. Dr. Henrique Roriz
Aarestrup Alves.
1106

Texto de prazer: aquele que contenta, enche [...] que vem da cultura,
não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável de leitura.
Texto de fruição: aquele que põe em estado de perda, aquele que
desconforta [...] faz entrar em crise sua relação com a linguagem
(BARTHES, 2002, p. 21-22).

A leitura do texto literário

A fundamentação do projeto, inicialmente, trará a função da Literatura e


considerações dos documentos oficiais sobre ela. As Orientações Curriculares
Nacionais fazem constar as palavras de Antônio Cândido (1995, p. 249) sobre a
Literatura como fator indispensável de humanização:

Entendo aqui por humanização [...] o processo que confirma no


homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício
da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o
próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos
problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade
do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em
nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais
compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o
semelhante.

Antônio Cândido (ibid) expõe que a Literatura compreende três funções: 1. de


caráter estético, uma vez que a obra literária é organizada observando-se
cuidadosamente os elementos de linguagem que a constituem, diferenciando-a, pois,
de outros textos que não apresentam essa preocupação; 2. de caráter subjetivo, em
virtude de traduzir de forma particular uma subjetividade, evidenciando a
universalidade de certos sentimentos; e 3. de caráter informativo, que possibilita
pensar a respeito de certos assuntos que a obra veicula, de modo diverso que quando
exposto em textos que não literários. A Literatura deve, portanto, explorar esses
aspectos dos textos que a constituem. Deve haver ênfase aos textos literários no
sentido de que eles possam suscitar, provocar e promover a humanização de que o
autor fala.
Para cumprir com esses objetivos, entretanto, não se deve sobrecarregar o
aluno com informações sobre épocas, estilos, características de escolas literárias, etc.,
como até hoje tem ocorrido. Trata-se, prioritariamente, de formar o leitor literário, ou,
melhor ainda, de ―letrar‖ literariamente o aluno, fazendo-o apropriar-se daquilo que tem
direito. Há que se atentar para a importância de se desenvolver uma infinidade de
novas habilidades que encaminham para a adequada leitura na sociedade

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contemporânea, atendendo às necessidades dos múltiplos letramentos; a atenção


dedicada à leitura do texto literário também não deve ser negligenciada, sob o risco de
se perder, na escola, talvez a única oportunidade, para muitos estudantes, de travar
contato com este tipo de texto, como será tratado na sequência.
Ampliando as considerações sobre a importância da Literatura e ratificando a
universalidade de sentimentos apontados por Cândido, percebe-se que é por meio da
leitura do texto que o leitor é levado a entender o outro e a pensar sobre si; logo, este
tipo de leitura merece o lugar que lhe é devido na sala de aula. Cosson (2010, p.17)
afirma que ela

―nos diz o que somos e nos incentiva a desejar e a expressar o


mundo por nós mesmos. E isso se dá porque a Literatura é uma
experiência a ser realizada, é mais que um conhecimento a ser
reelaborado, ela é a incorporação dos outros em mim sem renúncia
da minha própria identidade‖,

Como exposto, tem-se claro, portanto, que a leitura do texto literário precisa
de espaço no contexto escolar, mas é um exercício para o qual nem todos os
professores estão preparados, relegando o trabalho com a Literatura para um segundo
ou terceiro plano. A leitura literária é uma prática importante que deve ser valorizada
na escola, como bem indica Cosson (2009) ao afirmar que o letramento literário é uma
prática social e, como tal, responsabilidade da escola. Acrescenta também que ―ler
implica troca de sentidos não só entre o escritor e o leitor, mas também com a
sociedade onde ambos estão localizados, pois os sentidos são resultado de
compartilhamentos de visões do mundo entre os homens no tempo e no espaço‖ (ibid,
p. 27).
O termo letramento literário pode ser considerado um processo de
apropriação da literatura enquanto linguagem. Partindo do pressuposto que considera
a leitura um fenômeno cognitivo, Cosson (2006) apresenta três grandes grupos
relacionados às teorias literárias: um centrado no texto, o segundo que centraliza o
leitor como peça-chave do processo de leitura e o último que considera, com igual
relevância, leitor e texto. Nesta perspectiva constrói a segunda parte da teoria
apresentando duas sugestões de como aplicá-la. A sequência didática básica é
constituída por motivação, introdução, leitura e interpretação, enquanto que a
expandida (que se usará neste trabalho), apresenta, além dos passos citados na
sequência básica, um maior aprofundamento da obra a ser estudada (motivação,
introdução, primeira leitura, primeira interpretação, contextualização (teórica, histórica,
estilística, poética, crítica, presentificadora, temática), segunda interpretação,
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expansão). Nesta etapa (a expansão), será utilizado um filme que dialogará com a
temática do livro trabalhado.
Acredita-se que a escola é um espaço que possibilita o acesso à leitura,
sobretudo a aquisição do Letramento, mas a leitura literária não é trabalhada de forma
prazerosa e nem é tratada de acordo com devido interesse, ainda que tenha sido,
durante séculos, predominante no ambiente escolar. Esta leitura nunca é
completamente livre devido à existência de determinações quanto ao tempo e espaço
onde deve ocorrer, mas, mesmo assim, ela é a oportunidade de ―praticar as
habilidades de leitura e de experimentar a comunicação literária‖ (COLOMER, 2007, p.
126). Sendo a escola um espaço que deve oportunizar o acesso a literatura, um fator
muito importante no qual podemos refletir é a formação do leitor e a decisão do que se
vai ler, pois, a escola precisa assegurar uma formação literária de qualidade para seus
alunos. O papel do professor mediador é fundamental nesta etapa de formação do
leitor, auxiliando o aluno em suas escolhas e caminhos de reflexão.

A Literatura e o cinema

A Literatura sempre manteve um diálogo constante com outras artes, dentre


elas o cinema, que há mais de um século, encanta, provoca e comove bilhões de
pessoas em todo o mundo. Dentre esses bilhões de pessoas que regularmente foram,
vão e irão assistir a filmes na sala escura do cinema, certamente, estão incluídos
milhões de professores e alunos. Mas a escola o descobriu tardiamente, o que não
significa que o cinema não tenha sido pensado, desde os seus primórdios, como
elemento educativo. Marcos Napolitano (2015, p.07) afirma que:

Apesar de ser uma arte centenária e muitas vezes ao longo da


história ter sido pensado como linguagem educativa, o cinema ainda
tem problemas para entrar na escola. Não apenas na chamada
―escola tradicional‖ (o que seria mais compreensível, dada a rigidez
metodológica que dificulta o uso de filmes como parte da didática das
aulas), mas também dentro da escola renovada, generalizada a partir
dos anos 1970, o cinema não tem sido utilizado com a frequência e o
enfoque desejáveis.

Dando ênfase igualmente à força da palavra e da imagem, assim se


expressam a respeito Walty, Fonseca, Cury (2001, p. 62): ―A Literatura lê imagens
e/ou as fabrica com palavras. [...] O leitor, ao ler um texto ou um quadro, cria novas
imagens.‖ Nesse sentido, ainda acrescentam que ―dominando o maior número

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possível de códigos, o cidadão pode interferir ativamente na rede de significação


cultural, tanto como receptor, quanto como produtor‖ (ibid, ibid, p. 90).
O trabalho com o cinema-educação hoje não significaria um retrocesso à
―idade do cinema‖, e sim pensar a partir de um projeto integrado, que se refere a fazer
educação usando todos os meios e tecnologias disponíveis: computador, internet,
fotografia, cinema, vídeo, livro, CD, celular, conforme o que se espera alcançar. É
preciso que o professor atue como mediador entre a obra e os alunos, ainda que ele
pouco interfira naquelas duas horas mágicas da projeção. Segundo Napolitano (2015,
p.15), o professor

―deve propor leituras mais ambiciosas além do puro lazer, fazendo a


ponte entre emoção e razão de forma mais direcionada, incentivando
o aluno a se tornar um espectador mais exigente e crítico, propondo
relações de conteúdo/linguagem do filme com o conteúdo escolar‖.

Diversos cineastas se ocuparam em refletir sobre o que envolve as relações


entre a palavra literária e a imagem cinematográfica. Andre Bazin (1991), preconizava
que não havia dano ou prejuízo algum para os textos literários se estes fossem
transpostos para o cinema. A literatura, em sendo discurso escrito, em sendo
narrativa, pelo menos na sua forma tradicional, suscita imagens e o receptor, no ato da
leitura, dialoga incessantemente com outras áreas do conhecimento e com outras
artes. Corroborando com a ideia, Linda Hutcheon (2013 p. 09) afirma que

a adaptação é uma forma de transcodificação de um sistema de


comunicação para outro.[...] Com as adaptações, as complicações
aumentam ainda mais, pois as mudanças geralmente ocorrem entre
mídias, gêneros e, muitas vezes, idiomas e, portanto, culturas.

Hutcheon (ibid) posiciona-se face à ubiquidade do fenômeno "adaptação", o


qual abarca duas instâncias distintas, não obstante conexas: uma adaptação é
igualmente um produto e uma produção. Como produto, trata-se de uma entidade
formal, cuja natureza é a de um palimpsesto, caracterizando-se por ser uma
transposição anunciada e extensiva de outra obra. Como produção, é um ato criativo
que opera um processo específico de leitura, interpretação e recriação a partir de uma
obra anterior.
Segundo Joel Cardoso (2011), há muito se sabe que as artes se
correspondem. Os textos inexistem de forma estanque. Um texto, qualquer que seja
ele, dialoga com outros muitos textos, com muitas outras linguagens, criando uma teia
que, interpenetrando-se, interfere na compreensão e apreensão textual. Palavra e

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imagem se cotejam intermitentemente. Se a palavra gera, consciente ou não, uma


imagem imediata, a imagem, por sua vez, para ser apreendida, instaura discursos, se
explicita através da palavra.
Uma diferença fundamental entre o discurso literário e o discurso fílmico é de
ordem quantitativa, quase sempre ao que é pequeno no filme (um único plano, por
exemplo) corresponde algo muito grande no texto literário (uma frase, ou trecho
longo), e vice-versa, ao que é grande no cinema, pode equivaler um elemento
diminuto – como uma palavra – na literatura. A emoção e a criação de significados,
capaz de deslocar o espectador/leitor, tirando-o de sua zona de conforto, pode levar
quem lê a querer ver o filme ou quem assiste a querer ler a obra literária.
Já que literatura e cinema se aproximam naturalmente no processo de
fruição, podem também aproximar-se no estudo, no ensino e na pesquisa. Portanto,
contrapor dialogicamente duas linguagens artísticas pode proporcionar o
aprimoramento da sensibilidade estética e ampliar consideravelmente as dimensões
da leitura.
Para Cardoso (2011, p. 04), ―a linguagem cinematográfica sempre se
apropriou do repertório da literatura. Hoje, literatura e cinema estabelecem um namoro
que não se restringe apenas aos temas, às histórias fornecidas pelos escritores, mas
as técnicas do cinema incorporaram o fazer literário‖. Percebe-se, então, que as
produções fílmicas, dentre uma infinita gama de funções artísticas, políticas,
econômicas e culturais, possuem uma dimensão filosófica e histórica, ao passo que
―(re)criam‖ realidades e produzem memórias. José Nicolau Gregorin Filho (2011, p.78)
afirma que:

a literatura na sala de aula tem o papel de promover um diálogo com


outras artes e com outras formas de produção de conhecimento, ou
seja, um diálogo que seja construído pelas relações com outros tipos
de texto. No passado, procurava-se afastar o jovem de um filme
adaptado de uma obra literária, por exemplo; hoje, busca-se
exatamente o contrário, que o jovem perceba as várias formas de
expressão artística, reconhecendo as particularidades de cada uma
delas.

Ao se pensar a efetivação do letramento literário em parceria com o uso de


recursos da multimodalidade, é necessário considerar a força figurativa da palavra
associada à imagem. Assim, o termo ―texto multimodal‖, segundo Dionísio e
Vasconcelos (2013), tem sido usado para nomear textos constituídos por combinação
de recursos de escrita (fonte, tipografia), som (palavras faladas, músicas), imagens
(desenhos, fotos reais), gestos, movimentos, expressões faciais, etc. Os modos

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semióticos são considerados veículos de informação nos quais a imagem não é mais
meramente uma ilustração da escrita; e, em razão disso, as práticas de letramento não
se restringem mais ao sistema linguístico, visto que o letramento é um processo social
que permeia nossas rotinas diárias numa sociedade extremamente semiotizada.
É preciso partir do pressuposto de que toda e qualquer arte que busque, de
algum modo, se expressar através de imagens, poderá ser, em algum momento,
objeto de exploração do mecanismo cinematográfico. Isso porque um dos alicerces da
estrutura cinematográfica são as imagens, ou seja, deve haver imagem para se ter
cinema. Sendo assim, a imagem se tornará um elemento fundamental, mas não
exclusivo a se estruturar o diálogo poético entre artes.

―Qualquer unidade de texto (visual, figurativa, gráfica, ou, sonora)


pode tornar-se elemento da linguagem cinematográfica, a partir do
momento em que ofereça uma alternativa (nem que seja o caráter
facultativo do seu emprego) e que, por conseguinte, apareça no texto
não automaticamente, mas associada a uma significação. Além
disso, é necessário que se distinga, no seu emprego ou na recusa de
empregar, uma ordem facilmente discernível (um ritmo). (LOTMAN,
1978, p.63)

Coscarelli e Ribeiro (2007), em meio a essas questões sobre novas


modalidades de leitura e escrita, questionam como elevar o nível de letramento digital
de um leitor, de modo que se constitua leitor efetivo nessa teia. A isso as autoras (ibid,
ibid, p. 135) assim respondem: ―A rigor é necessário torná-lo um manipulador de textos
e suportes, um explorador de possibilidades.

Sequência expandida: “O Escaravelho do Diabo” - literatura e cinema.

A execução das atividades da sequência expandida baseada na obra O


Escaravelho do Diabo de Lúcia Machado de Almeida e no filme homônimo do diretor
Carlo Milani foi concluída com 75 horas/aula.
A apresentação do projeto de intervenção aos alunos foi realizada na escola
em uma reunião com os pais e/ou responsáveis dos alunos e a equipe gestora da
escola. Foi apresentado o projeto e modelos de book trailers, que seriam o produto
final a ser produzido. O objetivo era motivá-los a fazerem parte das ações que seriam
desenvolvidas, instigando-os a perguntar, questionar e sugerir mudanças e assim se
envolverem com as ações planejadas. Também foi assinado o ―Termo de
consentimento livre e esclarecido‖. Infelizmente, muitos pais não comparecerem à

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reunião devido ao fato de residirem na zona rural, mas, no dia seguinte, os alunos
levaram os documentos que foram devidamente assinados.
A seguir, serão relatadas e analisadas todas as etapas da sequência
expandida:
Motivação

A atividade de motivação ocorreu com uma expedição investigativa dos


alunos até uma fazenda para observar e fotografar animais que convivem no nosso
ecossistema. A Secretaria Municipal de Educação disponibilizou o transporte, a escola
o lanche e foram ao Recanto Estrela d‘Alva, a 10 km da cidade. Divididos em equipes,
encontraram muitos animais, inclusive um escaravelho que dá nome ao livro que seria
estudado. Os alunos ainda não tinham conhecimento desse fato e fotografaram todos
os tipos de animais que encontraram. Essas imagens serviram como mote para a
atividade que posteriormente foi desenvolvida em sala de aula.
Na aula seguinte, divididos em grupos, os alunos receberam uma tabela com
informações sobre classificação dos animais (mamíferos, répteis, peixes, aves, insetos
e anfíbios) para que analisassem as fotografias que tiraram e socializassem os
resultados com o grupo. Enquanto discutiam em suas equipes, uma aluna da sala foi
chamada por uma funcionária da escola para receber uma encomenda, que continha
um escaravelho, e que só deveria abri-la quando fosse solicitada. Após a realização
da atividade, foram questionados se sabiam qual era o animal que estavam
procurando. Depois de muitos palpites, foi esclarecido que se tratava de um inseto e
que quem teria a resposta era a aluna que recebeu a encomenda. Ela abriu o pacote e
revelou a todos que o inseto que procuravam era um escaravelho.
Na sequência, foram mostradas imagens que remetiam à história do livro. Os
alunos foram instigados a imaginar o que elas queriam dizer. Após algumas
especulações, foram apresentadas as capas do livro que seria estudado: O
Escaravelho do Diabo, de Lúcia Machado de Almeida. Em seguida, produziram um
texto com suas expectativas sobre o livro que seria lido. Todos os alunos ganharam
um portfólio para registrarem as atividades que fossem realizadas.

Introdução

Nesta etapa foi apresentada aos alunos a obra selecionada, juntamente com
a biografia da autora. O livro foi mostrado para os alunos que entraram em contato
com as partes constituintes da obra literária: orelhas, texto, capa e contracapa. Para
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essa atividade, utilizou-se o recurso auxiliar do power point com imagens de capas de
diferentes edições do livro e da escritora. Também foram exibidos outros livros escritos
pela autora, bem como suas capas, esclarecendo que alguns deles pertenceram à
Coleção Vagalume, escritos para o público infanto-juvenil. Após a introdução, todos os
alunos receberam uma pasta onde guardariam os capítulos do livro que receberiam.
Primeira leitura

Seguindo a sequência expandida de Cosson, a primeira leitura foi realizada


extraclasse. O prazo deliberado para a leitura da obra O Escaravelho do Diabo foi de
duas semanas. O livro original foi lançado, primeiramente, em 1956, como um folhetim
da revista O Cruzeiro; sendo assim, a leitura também foi feita como se fosse um
folhetim. Os alunos levaram todos os dias 02 capítulos para que fizessem a leitura.
Com isso, provocou-se suspense, curiosidade e estímulo ao hábito diário de leitura.
Foram realizados três intervalos para verificação da leitura. Em cada intervalo, houve
uma atividade avaliativa sobre a obra que deveria ser registrada no portfólio.
O primeiro intervalo de leitura consistiu no estudo sobre escaravelhos, através
de textos informativos222, imagens e vídeos: A múmia223e Símbolos: O Escaravelho no
Egito Antigo224. Na sequência, analisaram a simbologia225 que envolve esse inseto, e
produziram textos com a seguinte temática: Insetos: úteis ou nocivos?
No segundo intervalo de leitura, os alunos formaram duplas para a realização
da atividade que seria proposta. Cada dupla recebeu uma folha com informações
sobre serial killers brasileiros226 e estrangeiros227 e apresentaram para o grupo suas
impressões sobre eles. As informações foram utilizadas para a discussão e sempre as
relacionando com o assunto abordado no livro O Escaravelho do Diabo. Após o
debate, assistiram ao vídeo ―Dupla identidade‖ 228, minissérie da Rede Globo, e
realizaram um júri simulado com a seguinte temática: Mr. Graz: doente mental ou
assassino cruel?

222
Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Escaravelho>. Acesso em: 20 jan. 2017.
Disponível em: <http://www.euquerobiologia.com.br/2015/10/o-que-faz-um-entomologoentomologista.
html>Acesso em: 20 jan. 2017.
223
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=jOObMvoWeDU>. Acesso em: 20 jan. 2017.
224
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=_6Ycwy-SxhM>. Acesso em: 20 jan. 2017.
225
Disponível em: <http://www.dicionariodesimbolos.com.br/escaravelho/>. Acesso em: 20 jan. 2017.
226
Disponível em: <http://super.abril.com.br/historia/7-serial-killers-brasileiros-e-suas-historias/>. Acesso
em: 20 jan. 2017.
227
Disponível em: <http://tudodeconcursosevestibulares.blogspot.com.br/2014/10/serial-killers-conheca-
15-assassinos.html>. Acesso em: 20 jan. 2017.
228
Disponível em: <http://youtube.com/watch?v=aq4D6aR1ntM&list=PLm5c1l_BsUmVIMVKLn-
ROfzQZ yhN5S0yp>Acesso em: 20 jan. 2017.
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Essa atividade do júri simulado foi muito importante para estimular o poder de
argumentação dos alunos. Todos foram caracterizados e representaram um
personagem: juiz, promotor, advogado de defesa, réu, júri, testemunhas de acusação
(mãe da vítima, pai da vítima, policial, irmão da vítima) e testemunhas de defesa
(médico, psiquiatra, psicólogo, professora). Ao final da atividade, os alunos/jurados
decidiram que o réu deveria ser condenado à pena máxima e à prisão comum. Este
tipo de atividade também fez com que os alunos percebessem a importância de
analisarem criteriosamente as informações repassadas para que fossem justos na sua
decisão.
No terceiro intervalo de leitura foi utilizado o capítulo três do livro para
trabalhá-lo estilisticamente em microanálise. Esse estudo serviu para perceber
dificuldades de leitura (vocabulário, mudanças ortográficas, interação com o texto,
ritmo de leitura). Instigou os alunos a refletirem que apesar de o livro contar uma
história de suspense também apareceram cenas de algum tipo de envolvimento
afetivo. Observaram como isso se deu no capítulo analisado e produziram um texto
com as expectativas futuras para o relacionamento entre Alberto e Verônica.

Primeira interpretação

A primeira interpretação conduziu o aluno a realizar uma apreensão global do


livro, suas impressões a respeito do título e construir o sentido do texto, por meio de
inferências. Logo após a explicação da professora sobre o gênero carta, sua estrutura,
estilo e função, cada aluno escreveu uma carta pessoal para um amigo, procurando
convencê-lo a ler o livro O Escaravelho do Diabo. Essa etapa foi importante para que o
aluno desenvolvesse uma argumentação consistente a respeito dos aspectos
observados no livro e que conseguisse expressá-los na escrita. Construídas as cartas,
os alunos leram-nas para a turma e, assim, por meio das opiniões expostas,
perceberam que o objetivo da tarefa foi alcançado. Eles escolheram previamente um
colega de outra sala e endereçaram as cartas a eles, com a ajuda da professora.
Após a escritura das cartas, todos foram até a agência dos Correios para
postarem-nas. A maioria dos alunos nunca tinha enviado cartas e a funcionária
explicou como seria todo o processo. Também repassou informações importantes
sobre os selos no Brasil e suas funções. Foi uma atividade bem produtiva.

Contextualização

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Para compreender o aprofundamento da leitura por meio dos contextos que a


obra traz consigo foram realizadas as contextualizações.
Na contextualização teórica procurou-se tornar explícitas as ideias que
sustentam ou estão encenadas na obra e foram enfatizadas as ideias que a obra traz
em si. Analisou-se a questão dos distúrbios emocionais que podem levar as pessoas a
tornarem-se serial killers, como o personagem do livro. Como os mistérios da mente
sempre foram e sempre serão um tema fascinante, seja por pura curiosidade ou, por
outro lado, pela permanente dúvida do que o homem é realmente capaz de fazer, foi
necessário proporcionar algumas informações aos alunos sobre esse assunto. Eles
assistiram a uma entrevista com a médica psiquiatra e escritora Dra. Ana Beatriz
Barbosa Silva sobre psicopatia, tema do livro de sua autoria Mentes Perigosas: o
psicopata mora ao lado, no programa: Alternativa Saúde – GNT229. Também viram a
reportagem do Conexão Repórter – SBT (01/05/16): Comportamento de serial
killers.230
A contextualização histórica se deu após a apresentação do vídeo Os
acontecimentos na década de 50231paraque os alunos tivessem uma noção de como
era a época em que o livro foi escrito. Depois, foram tratadas questões relativas à
imigração no Brasil na década de 50. Este tema foi escolhido porque vários
personagens importantes para a história do livro são imigrantes e moram em uma
pensão. Foram analisados gráficos232 que mostraram a imigração tanto na década de
50 quanto nos dias atuais, e os alunos produziram um texto dissertativo-argumentativo
com base na proposta de redação extraída do Enem 2012, sobre o tema ―O
movimento imigratório para o Brasil no século XXI‖.
A contextualização estilística teve o objetivo de analisar o diálogo entre a
obra e o período literário, além da forma como um necessita do outro para ocorrer. Foi
feita uma explanação sobre as escolas literárias até chegar na 3º geração do
Modernismo, período no qual O Escaravelho do Diabo foi escrito, com exemplificação
de trechos de textos literários de cada época para que os alunos percebessem
principalmente as mudanças na linguagem literária.

229
Disponível em:<https://www.youtube.com/watch?v=m_wUDsshdvk>. Acesso em: 20 jan. 2017.
230
Disponível em:<https://www.youtube.com/watch?v=Qw0gzhG2WO4>. Acesso em: 20 jan. 2017.
231
Disponível em:<https://www.youtube.com/watch?v=GsmO1hIXkn4>. Acesso em: 20 jan. 2017.
232
Disponível em:<http://super.abril.com.br/multimidia/republica-imigrante-brasil-
683294.shtml>. Acesso em: 20 jan. 2017.
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Na sequência, foi entregue uma folha contendo informações sobre o que fora
exigido da escritora233 Lúcia Machado de Almeida, a respeito do livro O Escaravelho
do Diabo, na década de 50, quando a obra foi escrita. Pediram a ela que adequasse a
linguagem de sua obra à dos jovens que iriam lê-lo. Os alunos, então, releram parte do
capítulo XIV e observaram se, mesmo com as recomendações sugeridas, a linguagem
estava adequada aos jovens leitores da época. Analisaram também se a maneira
como fora escrito está adequada para os jovens de hoje.
Com a contextualização poética, analisou-se como a obra está estruturada
de acordo com o gênero romance policial. Divididos em equipes, os alunos
verificaram: enredo, personagens, foco narrativo, ambientação, tempo e ritmo. Como
atividade escrita, os alunos leram contos do livro Seja o detetive – Você na cena do
crime, de M. Diane Vogt. Os contos que fazem parte dessa obra não apresentam o
final das histórias (que vem em anexo no final do livro). Todos relatam crimes fictícios
que ocorreram e ainda não foram solucionados. Como o título sugere, os alunos
seriam os detetives que desvendariam os crimes. Cada aluno recebeu um conto,
observou as diferenças e semelhanças em relação ao romance e escreveram um final
que apresentasse a solução dos crimes. Depois que todos socializaram suas histórias,
compararam-nas com os finais apresentados pela autora no final do livro.
A contextualização crítica tratou da recepção do texto literário. Nesse caso,
os alunos analisaram alguns aspectos da narrativa que soavam um tanto anacrônicos
ou incoerentes para o leitor de hoje, como não poderia deixar de ser para um texto
com mais de seis décadas de existência. Após as discussões, foram lidas críticas
literárias sobre o livro e, como atividade de registro, escreveram o prefácio da edição
do livro O Escaravelho do Diabo. É válido lembrar que, através da leitura dos
paratextos, os alunos já tiveram contato com o gênero prefácio.
A presentificação é um tipo de contextualização que busca uma
correspondência da obra com o momento da leitura, ou seja, uma atualização dos
aspectos abordados no texto e a correlação com a atualidade. Em O Escaravelho do
Diabo, vários pontos podem ser tomados como análise: o espaço urbano da cidade de
interior, a violência apesar do reduzido número de habitantes, dentre outros. Foi
escolhida para a contextualização presentificadora uma análise centrada no espaço
urbano, destacando a violência, que também afeta a cidade de Tapurah (onde o
projeto foi executado) e cidades vizinhas do interior do Mato Grosso. A leitura de

233
Disponível em:<http://educativafm.com.br/novo/o-escaravelho-do-diabo/>Acesso em: 20 jan. 2017.
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notícias policiais do site Primeira Mão MT234 apresentaram uma visão contemporânea
da violência, que também está presente nas cidades com menos habitantes. Após a
leitura dos textos, os alunos discutiram a necessidade de mais humanidade e
compaixão entre as pessoas.
Na contextualização temática, o objetivo foi analisar os temas possíveis
apresentados pela obra. Para isso, os alunos assistiram ao clipe 235 da música Brisa
Fria, música-tema do filme ―O Escaravelho do Diabo‖. Na sequência, analisaram a
letra236 e verificaram que o tema principal da música e do livro é a violência. Diante
disso, o tema foi subdividido em três subtemas: violência doméstica, escolar e sexual.
Os alunos foram divididos em três grupos, e cada um ficou responsável por um dos
subtemas. Os grupos fizeram uma pesquisa de imagens (em revistas, jornais e
internet) que se relacionavam diretamente com a questão da violência. Em seguida,
confeccionaram cartazes que, ao final do trabalho, foram expostos no pátio da escola.

Segunda interpretação

A segunda interpretação, ao contrário da primeira, exigiu uma leitura mais


aprofundada por parte dos alunos de um dos assuntos retratados na obra. A turma foi
dividida em grupos com 04 alunos, que analisaram tanto física como psicologicamente
o assassino Mr. Graz / Rudolf Bartels. Analisaram todas as cenas em que ele
apareceu na narrativa, pistas de que ele era o assassino, quem foram suas vítimas,
como as matou (as equipes receberam cópias com imagens dos escaravelhos usados
nos crimes237) e o que aconteceu com ele no final. Depois fizeram a socialização dos
trabalhos. Como trabalho final, escreveram uma crítica do livro lido.

Expansão

234
Disponível em:<http://www.primeiramaomt.com.br/2016/10/tapurah-homem-investigado-por-
suspeita-de-estupro-morre-no-momento-que-estava-sendo-preso/> Acesso em: 20 jan. 2017.
Disponível em:<http://www.primeiramaomt.com.br/2016/10/sorriso-homem-e-encontrado-morto-a-tiro s-
policia-investiga/> Acesso em: 20 jan. 2017.
Disponível em:<http://www.primeiramaomt.com.br/2016/10/itanhanga-jovem-e-preso-e-confessa-assas
sinato/> Acesso em: 20 jan. 2017.
Disponível em:<http://primeiramaomt.com.br/2016/09/itanhanga-corpo-de-rapaz-e-encontrado-com-per
furacoes-no-pescoco/>. Acesso em: 20 jan. 2017.
Disponível em:<http://www.primeiramaomt.com.br/2016/09/tapurah-sossega-leao-e-bebedeira-acabam-
em-homicidio-em-area-rural/>. Acesso em: 20 jan. 2017.
235
Disponível em:<https://www.youtube.com/watch?v=RW2knxl7dXo>. Acesso em: 20 jan. 2017.
236
Disponível em:<http://genius.com/Black-alien-brisa-fria-lyrics>. Acesso em: 20 jan. 2017.
237
Disponível em:<https://scontent.fpoa5-1.fna.fbcdn.net/v/t1.0-0/p480x480/541556_181123935371460
_6 56884980_n.jpg?oh=7483d2719f8fb0372ca852ce5157da34&oe=58A6240E>. Acesso em: 20 jan.
2017.
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Para destacar as possibilidades de diálogo que toda obra articula com os


textos que a precederam ou que lhes são contemporâneos ou posteriores será feito o
trabalho da expansão que é essencialmente comparativo. É possível constatar que a
Literatura mantém um diálogo constante com outras artes, dentre elas o cinema que,
há mais de um século, encanta, provoca e comove bilhões de pessoas em todo o
mundo.
Sendo assim, foi escolhido para essa fase do letramento literário fazer um
diálogo do livro O Escaravelho do Diabo com o filme homônimo, do diretor Carlo
Milani, que é uma adaptação da obra analisada. Para isso, os alunos foram orientados
a observarem com muita atenção como a história fora (re)contada, sempre se
lembrando da liberdade que roteiristas e diretores devem ter ao realizar uma
adaptação do livro para o cinema. A atividade de exibição do filme requereu uma
preparação especial com a ambientação da sala de aula para que os alunos tivessem
a sensação de estarem realmente em um cinema. Compraram ―ingressos‖ e foram
servidos pipocas e sucos para assistirem à exibição do filme.
Após assistirem, foi promovido um debate com os alunos, valendo-se de
alguns questionamentos: que elementos do roteiro cinematográfico são semelhantes à
história do livro e que elementos do roteiro cinematográfico são diferentes da história
do livro.
Após a discussão, os alunos foram divididos em grupos para analisar a
linguagem cinematográfica do filme, fundamentados na obra A Linguagem
Cinematográfica, de Marcel Martin. São eles: iluminação, figurinos, os cenários,
metáforas e símbolos, os fenômenos sonoros, o tempo, o espaço, personagens, foco
narrativo. Para isso, os alunos assistiram novamente ao filme (dessa vez, em casa),
agora muito mais atentos aos elementos que deveriam analisar e, ao término da
análise, fizeram a socialização dos resultados. As informações deste trabalho servirão
como fonte de informações para a produção escrita de um texto do gênero crítica de
cinema.

Oficina

Na sequência foi realizada uma oficina onde os alunos produziram book


trailers(trailers de livro) com o uso de uma ferramenta digital capaz de proporcionar a
combinação de elementos multimodais (texto, imagem, som). Pretendeu-se, também,
que o aluno percebesse a integração entre tecnologia e aprendizado de literatura.
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Cada grupo com 04 alunos selecionou um livro que tivesse lido e apreciado e
produziu um book trailer, agregando ao texto produzido recursos visuais e sonoros. Os
07 book trailers elaborados foram apresentados para todas as turmas da escola que,
após a exibição, escolheram aqueles de que mais gostaram. Houve uma cerimônia de
premiação na quadra da escola onde todos os alunos que participaram do projeto
foram premiados.
A equipe vencedora, com 219 votos, recebeu também uma premiação
especial. A classificação final ficou da seguinte forma: 1º lugar: A menina feita de
espinhos / 2º lugar: Five nights at Freddy‘s – The silver eyes / 3º lugar: Assassinatos
na Rua Morgue / 4º lugar: O Escaravelho do Diabo / 5º lugar: O Inferno de Gabriel / 6º
lugar: Diário de um banana - Casa dos horrores / 7º lugar: Rangers - Ordem dos
Arqueiros - Feiticeiro do Norte.
O trabalho dos alunos foi compartilhado digitalmente em um grupo de
discussão sobre leitura no WhatsApp, que será mantido por eles mesmos. Também
foram postados no Youtube e Facebook de forma que circulem socialmente e
cumpram seu propósito comunicativo. Este trabalho trouxe muitos benefícios, uma vez
que concretizou a capacidade de estabelecer transição entre palavra e imagem,
habilidades estas que foram estimuladas durante as atividades anteriores. Foi muito
divertido e instrutivo, pois estimulou a leitura e a inclusão da literatura nas conversas
dos alunos.

Considerações finais

Como tentativa de solução aos danos causados pelo crescente desábito


literário desses jovens é que se lançou esse estudo sobre a inserção do cinema na
sala de aula, relacionando-o às obras literárias escritas. E o papel do professor é
extremamente relevante, pois cabe a ele mostrar a esse aluno que

―[...] optar pela leitura e/ou cinema é sair da rotina, é [...] participar do
mundo criado pela imaginação de um determinado escritor e/ou
diretor. [...] é abrir-se para novos horizontes, é ter possibilidade de
experienciar outras alternativas de existência.‖ (SILVA, 1983, p. 46).

Como já destacado, a literatura tem esse poder, essa capacidade, e quando


os alunos a descobrem, o encanto acontece, e cabe ao professor, em especial, fazer
esse encanto durar.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

INTERTEXTUALIDADE ENTRE LITERATURA E CINEMA:


POSSÍVEIS DIÁLOGOS ENTRE A OBRA CRÔNICAS DE NATAL
E HISTÓRIAS DA MINHA AVÓ E O FILME POR CAUSA DO
PAPAI NOEL.

Carlete Maria Thomé, Universidade de Passo Fundo/RS (UPF), Eixo 6 - Literatura


infantil e juvenil e as múltiplas linguagens.

Considerações Iniciais

O texto narrativo da obra em destaque, é escrito na primeira pessoa do


singular, não há interferência do narrador e nem tão pouco diálogo com o leitor, a
autora da obra é a protagonista da história. Escrita de forma cronológica e linear.
Crônicas de Natal e histórias da minha avó, obra literária que coleciona crônicas de
Natal, experiências vivenciadas pela escritora em tempos de infância, destacado por
Margaret Klueger, irmã de Urda, no Prefácio da obra ―a referência à ―minha avó‖ é
porque foi com ela que tudo começou, o nosso belíssimo Natal com enfeites, luzes e
união da família‖.
Por causa do Papai Noel, nosso objeto de estudo descreve um fato da vida da
escritora. No ano de 1963 nos últimos dias de aula no mês de dezembro, sofrera um
acidente de bicicleta, no qual machucou o pé, pois se distraiu olhando um menino
vestido de Papai Noel. Como é possível observar no trecho a seguir,
Em 1963, eu tinha aprendido a andar de bicicleta [...], era começo de
dezembro, entretanto, e eu estava no colégio, ensaiando a cerimônia
de fim de ano, na qual receberia a medalha do primeiro lugar da sala.
Lembro como usava meu vestido branco de primeira comunhão, e
como a tarde estava linda, cheia de sol (KLUEGER, 2007, p. 38).

Urda contava com 12 anos e após o acidente envolvera-se com a literatura e


passou as férias inteiras lendo livros, apaixonada pelo universo literário passa a
interagir com os personagens que saem das páginas do livro para a realidade. A
crônica deu origem ao premiado filme Por Causa do Papai Noel, dirigido pela cineasta
1123

Mara Salla (2005). Em outubro de 2006 passou por onze festivais, foi contemplado
como melhor filme de Brasília e o de melhor atriz infantil para Karina Carvalho em
Minas Gerais. O livro já conta na sua 4ª edição – revista e ampliada. E na capa a foto
da menina representando a Urda, com seus 12 anos de idade, lendo um livro e nos
arredores os personagens do filme.
O filme Por causa do Papai Noel, inicia com a menina deitada na cama
rodeada por crianças e falando do ocorrido e naquele momento a menina faz um
flashback do dia do acidente. Em seguida, a mãe pediu para as crianças se retirarem,
Urda precisava descansar. Naquelas férias de verão, a mãe carregava Urda, todos os
dias, nos braços para o pátio onde ficava o tempo todo lendo. O livro e a sua
imaginação eram as suas grandes companhias.
Com este breve resumo da obra e filme nos possibilita levantar alguns
elementos importantes, queremos, no entanto, enfatizar a transposição do sentido,
destacando de que forma aconteceu a transposição da materialização do campo
verbal (linguagem literária) para campo sincrético (linguagem fílmica) e destacando
possíveis aproximações.

Transposição da literatura para o cinema


O texto verbal literário, para Cristiane Passafaro Guzzi (2013), tem uma
especificidade, a leitura do mesmo nos convoca para um ―jogo sinestésico em que as
correspondências visuais da própria encenação, auditivas, táteis, com manifestações
de outros sentidos – paladar/olfato – emergem dos signos verbais em movimento,
tecendo o fio em que se enredam essas sensações‖ (GUZZI, 2013, p. 255). E
acrescenta que, dessa forma, ―a significação, a partir dos sentidos, vai se impondo no
espaço entre obra e leitor, de tal forma que se esvaem os limites nessa interação‖
(GUZZI, 2013, p. 255). Portanto, defende que ―o ato de leitura de uma obra leva em
conta a experiência sensível da linguagem e a experiência cultural de mundo daquele
que faz reverberar seu ponto de vista no ato interpretativo‖ (GUZZI, 2013, p. 255).
A linguagem fílmica possui, entretanto, seus próprios códigos de interação com
o espectador, diferentemente da interação que a palavra escrita estabelece com o seu
leitor. Segundo Naira Sales Araujo (2011), tanto a literatura como o cinema possuem
dificuldades para estabelecer interações com os espectadores e/ou leitores, no
entanto cada um dispõe de recursos específicos (diálogos, narração, ruídos, efeitos
sonoros...), tanto nos campos verbais e visuais, impossibilitando a transposição fiel de
um mesmo conteúdo,
Enquanto um romancista tem a sua disposição a linguagem verbal,
com toda a sua riqueza metafórica e figurativa, um cineasta lida com
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pelo menos cinco materiais de expressão diferentes: imagens visuais,


a linguagem verbal oral (diálogos, narração e letras de música), sons
não verbais (ruídos e efeitos sonoros), música e a própria língua
escrita (créditos, títulos e outras escritas). Todos esses materiais
podem ser manipulados de diversas maneiras. A diferença entre
esses dois meios não se reduz, portanto, à diferença entre a
linguagem escrita e a imagem visual, como se costuma dizer. Assim
sendo, não nos parece apropriado debater sobre fidelidade numa
discussão acerca de adaptação, pois que a transcrição da linguagem
verbal para a visual impossibilita a permanência fiel de um mesmo
conteúdo (ARAUJO, 2011, p. 22-23).

Levando tal prática em consideração, podemos notar que o processo de


adaptação de uma obra, portanto, não se esgota na transposição do texto literário para
um outro veículo, por exemplo da literária para a fílmica. Para Hélio Guimarães (2003),
tal adaptação ―pode gerar uma cadeia quase infinita de referências a outros textos,
constituindo um fenômeno cultural que envolve processos dinâmicos de transferência,
tradução e interpretação de significados e valores histórico-culturais‖ (GUIMARÃES,
2003, p.91). Como podemos observar a seguir, a transposição da obra em estudo Por
causa do Papai Noel:

Figura 1 e 2 – Cena do filme Por causa do Papai Noel


A transposição feita da linguagem verbal para a fílmica foi bem precisa, como
podemos ver nas figuras: Figura 1 - ―Aí, uma menina da minha sala, chamada Eliane
Day, resolveu pegar sua bicicleta e ir em casa buscar um lanche. Ela morava ali perto,
e eu não titubeei: num instante arranjei uma bicicleta emprestada, e fui com ela‖
(KLUEGER, 2007, p. 38.). Porém, na figura seguinte não foi possível visualizar o
embrulho, se o mesmo era de papel ou de pano frisado na linguagem verbal. Figura 2
- ―Fui tudo bem na ida. Esperei na frente da casa de Eliane enquanto ela pegava o seu
sanduíche embrulhado em branco guardanapo de pano (papel, naqueles tempos, era
raro), e começamos a voltar‖ (KLUEGER, 2007, p. 38.).

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Figura 3 e 4 -Cena do filme Por causa do Papai Noel


O espaço caracterizado no filme carrega no seu contexto imagens cheias de
significados da cultura local alemã. No entanto, não é possível visualizar o nome da
rua, destacado na linguagem verbal como podemos ver a seguir. Figura 3 e 4 -
―Passamos por uma ruazinha chamada 12 de Outubro, em direção ao colégio, onde
havia pontilhão bem numa curva. Foi bem ali, bem alguns metros antes do pontilhão,
que havia um menino vestido de Papai Noel‖ (KLUEGER, 2007, p. 38). Portanto, na
imagem fílmica é possível entender que se trata de uma cidade germânica com
características e estilos da arquitetura alemã, reproduzidas na imagem Figura 4, que
na linguagem verbal não são possíveis caso não se conheça a cidade de
Blumenau/SC.
Fato um tanto curioso, no momento da queda apareceu uma imagem de árvore
de natal, segundo a escritora,
―Admiradora incondicional do Natal,
aquele pequeno Papai Noel me
fascinou de imediato. Fiquei olhando
para ele e pedalando a bicicleta, o
pescoço virado para traz e a bicicleta
indo para frete, até
que: TCHIBUM! Eu caí da ponte dentro
do ribeirão! [...]‖ (KLUEGER, 2007, p. 38).
Figura 5 -Cena do filme Por causa do Papai Noel
Sendo assim, entende-se que a Figura 5 é o momento do TCHIBUM!

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Figura 6 e 7 – Cena do filme Por causa do Papai Noel


Não foi possível visualizar o acidente, mas nas cenas do filme, conforme Figura
6 e 7, foi possível imaginar o acidente porque a cena apareceu de cabeça para baixo,
caracterizando visão da menina Urda deitada no chão.

Figura 8 e 9 – Cena do filme Por causa do Papai Noel


Na linguagem verbal se caracteriza uma queda, barranco abaixo e a imagem
fílmica a menina ficou quieta sentada no chão, somente vendo uma menina loira no
outro lado do ribeirão, conforme Figura 10. Nas imagens Figura 9, foi possível
visualizar um homem socorrendo ela. Já na obra, ―Não sentia dor nenhuma, e minha
preocupação era como explicar à minha mãe o meu vestido branco de primeira
comunhão coberto de lodo daquele ribeirão, que era o destino de todos os esgotos da
rua da Glória, em Blumenau/SC‖ (KLUEGER, 2007, p. 38). E na sequência, ―Fui
levada para o hospital pelo primeiro carro que passou (carros eram mais raros que
papel, então) [...]‖ (KLUEGER, 2007, p. 39).

Figura 10 – Cena do filme Por causa do Papai Noel

Figura 11 e 12 – Cena do filme Por causa do Papai Noel

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Como dezembro aqui em Santa Catarina faz muito calor, a mãe levava a
menina no colo para o pátio, figura 11, debaixo de uma bela sombra próximo de uma
árvore, e quando aparecia a menina lendo ela não possuía gesso, entendendo dessa
forma, era como a menina se via, sem dor e esquecia do ocorrido, como podemos
também observar na figura 12 e no trecho a seguir ―Nas tardes sufocantes daquele
verão, minha mãe me carregava para o gramado de casa, me deitava sobre uma
colcha, e me dava um livro, e eu esquecia que meu tornozelo doía, que encardira para
sempre o meu vestido branco da primeira comunhão [...] e saía a viajar através dos
livros‖ (KLUEGER, 2007, p. 39).

Figura 13 e 14 – Cena do filme Por causa do Papai Noel


Em contrapartida, para demonstrar o tempo recorrido pareceu uma figuração
da imagem de noite e dia, para indicar o passar dos dias, porém, sem nenhuma
narração somente presença da imagem e barulho de pássaros significando o
amanhecer. Como revelada nas imagens acima Figura 13 e 14.

Figura 15 e 16 – Cena do filme Por causa do Papai Noel


No filme há um momento em que o narrador passa a fazer parte da história e a
protagonista entra em ação, como se fosse um certo encantamento, passou a correr.
Ali perto tinha um lençol branco no varal, neste ela via todo enredo da história sendo
transportado para a realidade como se fosse uma vitrina, teve a vaga impressão de
que a sua imagem penetrou na vitrina como certos sonhos confusos que a gente
sonha.

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Figura 17 e 18 – Cena do filme Por causa do Papai Noel

Figura 19 e 20 – Cena do filme Por causa do Papai Noel

Figura 21 e 22 – Cena do filme Por causa do Papai Noel


Através da roteirização do filme percebemos os efeitos sonoros, o mais
perceptível e significativo é a do momento da aparição da menina imaginária, em cada
cena na qual a menina aparecia sempre estava presente o barulho do sininho.
A menina imaginária, lourinha é Astrid, personagem de um outro livro de Urda,
conforme Figuras de 17 a 22. Para se ter essa compreensão são necessários breves
conhecimentos das obras da escritora. Personagem do livro Verde Vale, livro mais lido
da escritora que já se encontra na sua 12ª edição em 2012. A menina imaginária não
fazia parte do cenário visual de todas as pessoas somente no campo visual da Urda, e
em nenhum momento apareceu na linguagem verbal, no entanto, podemos dizer que a
roteirista através dessa intertextualidade, faz ligação com outras obra da escritora bem
como assemelha-se com a obra Clarissa, de Érico Veríssimo (que apresenta um
panorama da vida de uma a jovem na década de 30 na cidade de Porto Alegre, narra

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a consciência fantasiosas de Clarissa e a mesma personagem se estenderá por seus


demais romances).
Até na sala de aula a menina imaginária apareceu, no final do filme Urda tomou
coragem e perguntou:
- De qual livro você saiu? - A menina respondeu em alemão:
- ―Von ein Buch, das du nicht geschriben hast‖, tradução ―Dê um livro que você ainda
não escreveu‖. Naquele momento no filme aparece a tradução legendada, visível na
Figura 22.

Figura 23 – Cena do filme Por causa do Papai Noel


No final do filme a escritora Urda aparece com parte integrante do filme,
exercendo o papel de professora, durante a aula lê um trecho do livro Verde Vale, na
qual a Astrid, a menina imaginária, faz parte!
O Filme Por causa do Papai Noel tem duração de 15 minutos, já a leitura pode
ser feita no tempo do leitor.
De conformidade com Manoel Francisco Guaranha (2007), esse trabalho de
adaptação da obra literária para a fílmica exige uma linguagem específica de
comunicação, no entanto, a obra literária, neste caso, é produto de leitura da
realidade, e o filme é uma leitura da obra literária, como podemos observar a seguir,
Adaptar significa ajustar ou acomodar uma coisa à outra. Todavia,
como cada linguagem corresponde a uma necessidade específica de
comunicação, a um sistema corresponde a uma necessidade
específica de comunicação, a um sistema de signos socializado e,
portanto, inserido em um contexto específico, não é possível, nem
necessário, tentar simplesmente transportar um livro para uma
película cinematográfica. [...] é recriar, fazer nascer, a partir do objeto
artístico escrito, um novo objeto artístico filmado. Haja vista que obra
literária já é produto de leitura da realidade, o filme é uma leitura da
obra literária (Manoel Francisco Guaranha, in Höffler, 2007, p. 26-27).

Possíveis aproximações entre linguagem literária e fílmica


Perante o contexto social desafiador na qual se encontra a atual conjuntura, é
necessário rever práticas discursivas decorrentes das tecnologias de informação e
acesso ao conhecimento no meio em que vive o aluno, por consequência da rápida
substituição de tecnologias ―agrava ainda mais a situação da leitura, exigindo um
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aprendizado continuado de novos códigos‖ (SANT‘ANNA, 2011, p. 19). Diante do


exposto, o professor deverá promover mudança na sua prática garantindo maior
motivação e bons resultados no desenvolvimento do ensino-aprendizagem, no intuito
de atrair os alunos, para uma nova realidade social, novas práticas de linguagem,
levando em conta o cotidiano dos alunos. Partindo desse pressuposto, podemos
destacar de que é ―pelas atividades de linguagem que o homem se constitui sujeito‖,
bem como, ―por intermédio delas é que tem condições de refletir sobre si mesmo‖.
Ressaltamos ainda, conforme orientações curriculares, que, ―por meio das atividades
de compreensão e produção de textos, o sujeito desenvolve uma relação íntima com a
leitura – escrita –, fala de si mesmo e do mundo que o rodeia, o que viabiliza nova
significação para seus processos subjetivos‖ (BRASIL, 2006, p.24).
Entretanto,aproximar cinema e educação é um grande desafio ao trabalho
docente, segundo Regina Lúcia da Silva Nascimento (2015), ―em virtude da expansão
do audiovisual na sociedade que tem ao seu dispor um tipo de linguagem com
potencialidade educativa, como a obra cinematográfica que é capaz de mobilizar
emoções, críticas, sentimentos e reflexões sobre a realidade‖ (NASCIMENTO, 2015,
p. 270). Nesse sentido, acrescenta Nascimento, que as instituições educacionais além
de adquirir os equipamentos necessários da arte cinematográfica, precisam neste
processo ensino aprendizagem, ―investir na formação de docentes, a fim de que
possam conhecer e considerar as características e os recursos expressivos dessa
produção cultural que pode contribuir também na formação do educando‖
(NASCIMENTO, 2015, p. 270). Igualmente para Cecília Meireles (2001), ―técnica
cinematográfica é desde muitos anos considerada auxiliar poderoso do professor, em
todos os campos de ensino‖ (MEIRELES, 2001, p. 317).
Partindo dessa assertiva, de envolver a literatura com o cinema, no quadro a
seguir, podemos destacar possíveis aproximações entre linguagem literária e fílmica
de Por causa do Papai Noel:
Linguagem literária Linguagem fílmica
Encadeamento de ideias Movimentação /sonorização
Referências visuais
Contexto verbal Contexto demonstrativo
Representação mental das imagens Reprodução de imagens como elemento
base
Espaço ―temporizado‖ (nome de rua) Espaço ―espacial‖ (local, vila e
propriedade rural)

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Narrador 1ª pessoal do singular Narrador câmera, presença de um


narrador em um momento no filme,
narrando uma passagem imaginária
Linearidade cronológica Dimensões de flashback como retomada
de ações
Tempo transcorrido Tempo presente

Uma diferença fundamental entre o discurso literário e o discurso fílmico é de


ordem quantitativa, para Linda Catarina Gualda (2010) ―quase sempre ao que é no
filme (um único plano, por exemplo) corresponde algo muito grande no texto literário
(uma frase, ou trecho longo), e vive-versa, ao que é grande no cinema, pode equivaler
um elemento diminuto – como uma palavra – na literatura‖ (GUALDA, 2010, p. 211-
212).
Diante do quadro exposto, podemos afirmar que a câmera tem um papel
fundamental na produção cinematográfica, sendo ela móvel parece um olho humano,
o olho do espectador, como destaca Catichilene Gomes de Sousa (2013) que além de,
observar as características dos seres e das coisas, a câmera ―fornece ao espectador
os dados necessários para a construção de sentido‖ (SOUSA, 2013, p. 288). Partindo
desse viés, o cinema ao simular a realidade através da visualização dos seres e das
coisas, mostra que, ―o fato desta representação ser revelada por imagens fílmicas, não
nega ao espectador, identificar os sentidos produzidos‖ (SOUSA, 2013, p. 288). No
entanto, para Tânia Pellegrini (2003), a ―câmera não é neutra. Há sempre alguém por
trás dela que seleciona, recorta e combina, extraindo uma nova síntese do material
desordenado que o mundo visível oferece‖ (PELLEGRINI, 2003, p. 27). E acrescenta
que a câmera é uma espécie de olho mecânico,
A câmera cinematográfica mostra que a noção do tempo que passa é
inseparável da experiência perceptiva visual, a qual não mais repousa
na perspectiva única do indivíduo que vê: a câmera é uma espécie de
olho mecânico finalmente livre debilidade do ponto de vista humano,
para o qual não mais convergem todos os pontos de fuga, como
quando se via uma pintura ou uma fotografia (PELLEGRINI, 2003, p.
19).

O cinema ao ―recriar o tempo e o espaço, transportando o espectador para


uma realidade virtual‖ (Sousa, 2013, 291). No entanto, Gualda (2010) destaca que a
obra literária ―diz respeito àquilo que aconteceu, já a tela nos monstra que o que está
acontecendo é de suma importância, pois não se trata de um evento isolado no tempo,
pelo contrário, refere-se a algo situado entre o passado e o futuro‖ (GUALDA, 2010,

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p.213). Nas obras em destaque, portanto, a literária diz respeito daquilo que já
aconteceu, já fílmica, nos mostra o que está acontecendo, tempo presente.
Na narrativa o narrador atribui seus julgamentos de valor aos acontecimentos
que narra, no cinema os julgamentos são, de certa forma autorizados pelo narrador,
mas sai da boca do personagem pela adoção do tom da voz, como podemos
observador no trecho a seguir,
Numa narrativa, a responsabilidade moral do narrador está
comprometida com os julgamentos de valor que ele atribui (ou recusa
atribuir) aos acontecimentos que narra. No cinema, onde o narrador
só se dirige excepcionalmente ao público, estes julgamentos se
exprimem, seja de maneira explícita, mais direta, pela boca de um
personagem autorizado, de maneira direta, mas implícita, pela
adoção de um tom de narração (GUALDA, 2010, p. 216-217).

Sob o mesmo ponto de vista, Marcos Júlio (2007), classifica a literatura e o


cinema como duas categorias distintas de ―forma do conhecimento humano: a
Arte‖(Marcos Júlio, in Höffler, 2007, p. 17), para ele,
A literatura, arte da palavra, e o cinema, arte da imagem em
movimento, inter-relacionam-se à medida que a palavra tem a
capacidade de evocar em nossa imaginação imagens semelhantes
àquelas que vemos projetadas em uma tela; a concepção nasce do
roteiro, as falas das personagens têm uma função primordial e a
música e os ruídos são elementos fundamentais na sua composição
(Marcos Júlio, in Höffler, 2007, p. 17).

Entretanto, para Manoel Francisco Guaranha (2007), o cineasta dispõe de uma


linguagem mista, pois
serve-se da comunicação visual, a imagem em movimento e a
montagem dessas imagens; a da comunicação sonora, que se
compõe não apenas da trilha musical, mas também dos ruídos
incidentais, que ajudam a ―comentar‖ as imagens; e da comunicação
verbal, composta por textos falados e escritos. Além disso, a imagem
enriquecida por uma série de recursos como figurino, maquiagem,
cenário, efeitos especiais e a interpretação dos atores, elementos que
compõem um tipo de leitura. [...] o público espera que ele mostre o
que o texto literário apenas sugere. [...] as vezes o cineasta procura,
ao adaptar um livro já canonizado pelo público, apenas um bom
argumento, sem se preocupar com o sentido mais amplo do texto.
Outras, o cineasta deseja divulgar, por meio de uma mídia que atinge
o público maior, uma grande obra literária e, nesse caso, costuma ser
fiel à estrutura original da narrativa. Há ainda adaptações em que o
cineasta dialoga com a obra original, transportando-a para o seu
tempo ou alterando propositadamente seu conteúdo para estabelecer
uma relação dialética com o original, questionando ou reatualizando
as propostas do escritor (Manoel Francisco Guaranha, in Höffler,
2007, p. 25).

Partindo desse viés, inquestionavelmente, para John Updike (2007), ―um livro é
inanimado, você lê sozinho; o escritor pode ser bem indiscreto e explícito. Um filme é
um evento social, com várias pessoas em uma sala [...] um livro dever ser cheio de
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sutilezas: um filme tem que ser mais direto, objetivo‖ (John Updike, in Brito, 2007, p.
99). Para Moacyr Scliar (2007), o cinema é a grande arte narrativa do nosso tempo, no
entanto, ―o que um livro precisa de 400, 500 páginas para contar, o cinema conta em
duas horas – isso é uma coisa que eu invejo profundamente‖ (Moacyr Scliar, in Brito,
2007, p. 123).
Por consequência, segundo Marcos Júlio, o cinema aborda a narrativa de uma
maneira mais clara e precisa do que a literatura. Enquanto a literatura cria o mundo
―por meio da palavra, o cinema o faz com luzes, sons e movimento‖ (Marcos Júlio, in
Höffler,2007 p. 17). Em suma, o que um escritor demoraria páginas para descrever, ―o
cinema necessita de uma tomada somente, pois o conjunto de dados sensíveis são
apresentados de forma simultânea‖ (Marcos Júlio, in Höffler, 2007 p. 17). Sem dúvida,
―que se perde em sutilezas, mas se ganha em velocidade. Perde-se a probabilidade
de o leitor recriar em sua mente o que é sugerido pelo narrador, e assim a cada vez
que a obra é lida, um mundo novo nasce‖ (Marcos Júlio, in Höffler, 2007 p. 17).
Destarte, literatura e cinema ―cada um se utiliza de estratégias diferentes, cada um
tem seus próprios recursos‖ (Marcos Júlio, in Höffler, 2007 p. 17).

Considerações finais
A história, na literatura e no cinema, fornece subsídios para a luta contra a
dominação, capaz de nos fornecer elementos que servem de inspiração e de
aglutinação para a sociedade. Para Claudio Penteado (2007), a história é construída
de fatos e momentos que podem ser utilizados para ―conduzir e guiar um ideal
libertador e humanizador da sociedade, buscar no passado os elementos e ideais para
sustentar a luta de resistência contra a lógica da dominação. As reminiscências são
elementos aglutinadores da humanidade num salto para um futuro de possíveis‖
(Claudio Penteado, in Höffler, 2007, p. 58).
Em virtude disso, concluímos que ―a literatura é resultado (a construção da
imagem mental, advinda da decotificação da linha discursiva), no cinema é um ponto
de partida (a imagem concreta) ‖ (BRITO, 2006, p. 146). O intuito da pesquisa foi
enfatizar a transposição do sentido, a forma de como se dá a transposição da
materialização do campo verbal (linguagem literária) para campo sincrético (linguagem
fílmica) e destacando possíveis aproximações, percebe-se, no entanto, que há muita
diferença entre os meios de expressão aqui focados, portanto, é possível vislumbrar a
rica contribuição que uma arte traz à outra.
Diante do exposto, a utilização da linguagem cinematográfica como uma
ferramenta técnica nos permitiu perceber o elemento essencial do filme, que é o

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encantamento e a magia presente nos livros de literatura infantil, elementos


necessários na formação do leitor.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

O TRABALHO DOCENTE FEMININO: REPRESENTAÇÕES NA


LITERATURA INFANTIL

Rosangela Aparecida Marquezi, UTFPR Câmpus Pato Branco,


Eixo Temático 06

Considerações Iniciais

A Literatura Infantil, enquanto busca de um gênero específico, tem enfrentado


ao longo do tempo muitas batalhas para que possa se estabelecer de fato e de direito.
Ao mesmo tempo em que é um dos segmentos que mais vende livros, por sua íntima
ligação com a educação, sendo auxiliar muito próxima da alfabetização, ela também –
e por causa dessa ligação – acaba por escorregar naquilo que vários autores
denominam como função utilitária da literatura, o que faz surgir, segundo Edmir
Perrotti (1986, p. 27):

Trabalhos flácidos, inconsistentes, sem coesão [...]. A ―feitura‖ do


texto não foi quase nunca preocupação maior dos autores de
literatura para crianças e jovens. E isto porque o texto sempre foi
pretexto, complementação do trabalho escolar, recurso didático.

Devido à grande demanda nessa área, as editoras acabam por ―comprar‖, e


os escritores por ―vender‖, uma literatura moralista, pedagógica – sem a preocupação
estética, que deveria ser o fim último da literatura: ―[...] sem imposições de nenhuma
espécie, sem verdades prontas, sem receitas, podendo ser útil no seu universo, mas
não utilitária na sua constituição.‖ (PERROTI, 1986, p.153). No que se refere ao mote
deste artigo – a representação docente – isso é bem visível na forma como a figura do
professor, especificamente neste estudo ―a professora‖, é retratado nas páginas dos
livros infantis. É claro que isso – e que bom que não é assim – não é regra,
principalmente nas últimas décadas, mas também não é exceção. Diversas obras,
mesmo nos tempos atuais, acabam por retratar um tipo de professora que acaba
fixando na mente das crianças um modelo estereotipado, que na maioria das vezes
não corresponde à realidade.
1136

Visando discutir essas representações, para que a literatura infantil não seja
apenas utilitária, mas também estética, é que se propõe a análise de algumas obras –
porque o recorte é necessário principalmente em um artigo – que ainda trazem no seu
escopo essas visões não tão reais da atuação da professora em sala de aula. Além
disso, procurou-se – até pela formação da pesquisadora – discutir apenas os livros em
que aparece como personagem a professora de Português, procurando mostrar
também alguns estereótipos em relação ao ensino dessa disciplina.

A importância da escola na formação do indivíduo

Sem dúvida nenhuma, a escola tem um papel importante e quase que


definitivo na formação do gosto da leitura e, mais, na formação de um ser humano
ético, que sabe valorizar e respeitar as mais diferentes concepções ideológicas. Nesse
sentido, e levando em conta o que se discute neste breve artigo, pode-se afirmar que
a escola é uma das principais responsáveis pelo direcionamento da compreensão de
mundo que a criança irá ter quando jovem e adulta. Durante os bancos escolares
iniciais, é que se formará nela esse entendimento de mundo que a levará ou não a ser
uma pessoa ética.
Para Marisa Lajolo e Regina Zilberman (1999, p. 17), assim ―[...] como a
família, a escola se qualifica como espaço de mediação entre a criança e a
sociedade‖. E essa mediação deve passar, necessariamente, pela escolha de bons
livros de literatura infantil que incentivem a criança a pensar e não a apenas receber.
Nessa mesma linha, Nelly Novaes Coelho (2000, p. 16, grifos do autor) também afirma
que cabe à escola, um ambiente em que a literatura é valorizada, estimular, por meio
desta:

[...] o exercício da mente; a percepção do real em suas múltiplas


significações; a consciência do eu em relação ao outro; a leitura do
mundo em seus vários níveis e, principalmente, dinamizam o estudo
e conhecimento da língua, da expressão verbal significativa e
consciente – condição sine qua non para a plena realidade do ser.

Um dos principais objetivos da escola deve ser sempre o de formar cidadãos


críticos e isso passa, com toda a certeza, pela formação de leitores críticos. Bem já
dizia o grande educador Paulo Freire (1989, p. 13): ―[...] a leitura do mundo precede
sempre a leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitura daquele.‖
E é nessa linha de pensamento que se pode afirmar que a literatura infantil é
um dos principais meios para que a criança amplie a sua visão de mundo, entendendo
o mundo e a sociedade que a cerca, pois a literatura – arte da palavra – tem esse

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poder: o de suscitar o mundo imaginário, ajudando a criança a responder dúvidas até


mesmo existenciais, para que este a ajude na construção do seu mundo real. O
imaginário que a criança formará vai estar diretamente vinculado ao que ela leu.
Nesse sentido, se a escola não propiciar a leitura de bons livros, esteticamente e
conteudísticamente falando, acabará por prejudicar a formação desse indivíduo.
Cabe, assim, à escola, romper com estereótipos em relação às personagens
que os livros trazem, não permitindo que eles se perpetuem no meio escolar e acabem
por solidificar imagens que não condizem com a realidade. À escola cabe esse papel
transformador – por meio da mediação entre o livro e o leitor. E em relação ao tema
desta discussão isso isso se faz também muito necessário, pois há que se romper
estereótipos e paradigmas que cercam a profissão docente, principalmente a feminina.

Um breve olhar sobre os livros analisados

São muitos os livros infantis que retratam a docência, sendo que, na maioria,
mesmo em autores consagrados, alguns estereótipos acabam sendo ressaltados sem
a devida crítica necessária. Selecionar quais discutir nem sempre também é uma
tarefa fácil, assim, dentro de um escopo bem maior, optou-se pelas obras abaixo
elencadas principalmente pelo fato de já terem sido discutidas pela pesquisadora, em
sala de aula, com seus alunos e também com a orientação de trabalho de conclusão
de curso, apenas com outros enfoques. Salienta-se que esse é realmente um recorte
pequeno, pois há muitos livros no mercado editorial que tratam dessa temática.
Fazendo Nada é ilustrado por Elisabeth Teixeira e foi publicado pela Editora
Scipione, em 1995, fazendo parte da Coleção Em Família. A autora, Mirna Pinski
(pseudônimo de Mirna Silva Gleich), é uma reconhecida escritora de literatura
infantojuvenil, tendo recebido diversos prêmios, entre eles dois Jabutis e um ABL de
Melhor Infantojuvenil. O livro conta história de Daniel, aluno de quarta série, que se
sente injustiçado pela família e também na escola. Isso porque ele é o único filho
homem, pois os outros são duas meninas. O ápice da história é quando a professora,
Dona Ordália, dá uma redação para os alunos fazerem. A partir daí, se desenvolve o
dilema da personagem.
Minhas férias, pula uma linha, parágrafo. é de1999 e foi ilustrado por Orlando
Pedroso. Publicado pela Editora Salamandra, narra a história de Guilherme e o drama
vivenciado por ele quando a professora solicita que faça uma redação de 30 linhas
sobre as férias. A história é divertidíssima e traz muitas reflexões sobre o ensino de
língua portuguesa. A autora, Christiane Gribel, recebeu um Jabuti quando de sua
estreia na literatura infantil, como autora revelação.
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Uma escola assim, eu quero pra mim, publicado originalmente em 1993 (a


edição analisada é a de 2007), foi escrita por Elias José e ilustrada, na edição
analisada, por Ricardo Dantas. Elias José, falecido em 2008, foi um dos mais
profícuos autores de literatura infantil do Brasil, possuindo mais de uma centena de
livros publicados. Também ganhou o Prêmio Jabuti, dentre outros. O livro conta a
história de Rodrigo, um menino que vem do campo e não fala igual aos meninos da
cidade. Inicialmente ridicularizado pela professora de Português, Dona Marisa, que
não admitia erros, passa a gostar de estudar quando esta é substituída pela Dona
Celinha, que traz novas formas de ensinar. Sente-se, por fim, aceito no meio escolar.

A representação da professora em sala de aula

Nem sempre é muito fácil quando se fala em representação ter a clara noção
de seu significado. Guacira Lopes Louro (2011, p. 106), em Gênero, sexualidade e
educação: uma perspectiva pós‐estruturalista, afirma que ―As representações não
apenas são múltiplas, mas elas podem, também, se transformar ou se contrapor. O
que é importante notar é que nelas sempre estão implicados jogos de poder, melhor
dizendo, elas estão sempre estreitamente ligadas ao poder‖.
Ainda segundo a autora,representações ―[...] são formas culturais de se
referir, mostrar ou nomear um grupo ou sujeito‖ (LOURO, 2011, p. 102). Essa
definição vem ao encontro do que é proposto por Hans George Gadamer, em A
atualidade do belo (1985). O autor, ao se referir à obra de arte – e a literatura é
considerada uma arte – assim se expressa: ―Na representação que uma obra de arte
é, ela não representa algo que não é, não sendo, portanto absolutamente uma
alegoria, ou seja: ela não diz algo para que se pense outra coisa, mas justamente nela
se encontra o que ela tem a dizer‖ (GADAMER, 1985, p. 59).
Quando se fala em literatura, não tem como não buscar em Antonio Candido
(1995, p. 249), talvez o mais importante crítico literário brasileiro, amparo para uma
das mais importantes características dela: a humanização, que é:

[...] o processo que confirma no homem aqueles traços que


reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do
saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das
emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso
da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o
cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de
humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e
abertos para a natureza, a sociedade e o semelhante.

Pensando nesse processo de humanização, é muito importante que a


literatura seja, de fato, próxima da realidade, não se tornando apenas um emaranhado
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de estereótipos negativos de determinada esfera da sociedade que está


representando. A partir disso, podem-se fazer algumas observações interessantes
acerca dos livros pesquisados no que diz respeito à descrição da personagem
professora.
Em Fazendo Nada, ela é apresentada inicialmente como um terror. Tanto é
que o protagonista, Daniel, até esquece o seu maior problema – que são as irmãs
chatas, para se concentrar naquilo que era pior ainda: as redações das aulas de
Português:

Dona Ordália, a professora de português, era o terror da quarta série.


Na hora em que descobriu que tinha caído na classe dela, pensou em
pegar uma doença bem complicada que o livrasse da escola por um
bom tempo. Não deu certo e, logo no primeiro dia, dona Ordália foi
sapecando uma redação absurda [...] (PINSKI, 1995, p. 9, grifos
nossos).

Percebe-se na fala do narrador essa apresentação nada lisonjeira da


professora. A palavra terror já suscita no leitor imagens de um medo muito grande,
que inclusive faz o narrador imaginar que ficar doente seria até melhor do que ter
aulas com ela. Qual a imagem que o leitor tem dessa professora? Uma imagem bem
estereotipada, de alguém que mete medo nos alunos, o que é reforçado ainda pela
palavra sapecando, no sentido figurado, dando a ideia de que ela chegou jogando,
atirando, de uma forma agressiva a redação.
Além disso, ao utilizar a palavra redação, e não produção textual – de uso
mais corrente a partir da década de 1980, o narrador também já traz concepções de
que o método utilizado pela professora é muito tradicional. É certo que, por mais que
grandes mudanças e transformações tenham ocorrido no meio social, ainda é
perceptível o fato de que alguns profissionais continuam adotando atitudes que foram
utilizadas em outro momento. Mas em um texto que deveria ser libertador, a
manutenção de palavras ligadas a um ensino mais tradicional, só perpetuam a
imagem que se constrói desse profissional.
E essa professora, além de ser um ―terror‖, ainda persegue os alunos – na
visão do protagonista:

Daniel achou que fosse vingança. Vingança contra ele e o Rodrigo.


No dia do aniversário dela, uma semana antes, a classe resolveu
presenteá-la, cada um levando uma lembrancinha. A mãe dele tinha
comprado um desodorante estrangeiro, e o Rodrigo tinha levado,
também por escolha da mãe, um lindo espelho. Dona Ordália tinha
agradecido muito, mas Daniel suspeitava que ela podia ter tomado os
dois presentes como insinuações e se sentido ofendida. E agora
vinha a forra! (PINSKI, 1995, p. 10, grifos nossos).

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Vê-se na construção dessa passagem novamente reforços de estereótipos


que devem ser combatidos. Daniel pressupõe que o ato de aplicar a redação é uma
vingança contra ele e Rodrigo. As próprias palavras vingança e forra já são também
muito fortes na sua carga semântica – levam a pensar em uma professora que ficou
uma semana pensando em como prejudicar um aluno pelo simples fato de não ter
gostado de um presente. No final da história, quando Daniel entrega o texto, Dona
Ordália até elogia a ideia, mas reclama do tamanho da redação, ou seja, se ela tem
um aspecto positivo (elogiar) esse logo é retratado pelo negativo (tamanho).
Outro aspecto interessante na análise da caracterização dessa professora é a
permanência do uso do jaleco, utilizado nas ilustrações em que ela aparece. Poder-se-
ia aqui discutir várias questões acerca do uso dele, mas basta lembrar que ele foi e é
utilizado ainda como um meio de diferenciação entre aluno e professor e também de
assexualidade. Esconder o corpo para não se discutir o corpo. E é necessário romper
esses paradigmas, tal qual como afirma Danilo Russo (2007, p. 82, grifos do autor):

[...] é preciso tirar o jaleco, ser pessoa, trocar (nada mais do que isso)
o próprio interesse, mas real, pelo interesse dos meninos e das
meninas que queremos estimular: a partir de então, provavelmente, a
relação entre as pessoas e as interações com as coisas se
confundem e, se ambas são boas, se alimentam, crescem. Há quem
fale do propósito disto em pedagogia da relação; para mim é,
simplesmente, uma prática de educação em outras possíveis.

É preciso entender o processo que levou a utilização de tal ―uniforme‖ por


parte dos professores para que se possa ter uma educação libertadora e
emancipatória também por parte da docência.
Em Minhas Férias pula uma linha, parágrafo., o narrador apresenta a
professora da seguinte maneira:

O que explica o fato de ninguém ter escutado a professoragritando


para a gente parar de gritar. [...] Mas quando ela bateu com os
livros em cima da mesa a nossa surdez passou e todo mundo olhou
para ela.
Ela estava em pé, na frente do quadro e ficou em silêncio, com uma
cara bem brava, olhando para a gente. (GRIBEL, 1999, p. 8, grifos
nosso).

Nessa história, a professora aparece como histérica e descontrolada. Uma


profissional que não consegue fazer com que a turma se acalme sem gritar e bater
com os livros em cima da mesa. Ainda: tem ―uma cara bem brava‖, que intimida os
alunos e que marca separações espaciais: eu sou a professora e vocês são os alunos.
Não se aproximem.

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Além disso, nessa história também se repete algumas das questões vistas em
Fazendo Nada: a professora também usa jaleco, e dá aos alunos como atividade a tão
temida ―redação‖, novamente como uma espécie de castigo. E, ao receber o texto de
volta, com a devida correção, o narrador (próprio protagonista) mostra que a
professora apenas corrigiu questões gramaticais, não falando nada sobre o teor do
texto: ―A professora não fez nenhum outro comentário sobre o que eu tinha escrito.
Para ela tanto fazia se o meu gol tinha sido um golaço ou um frango do goleiro. Eu
fiquei bem chateado. Ela tinha acabado com as minhas férias.‖ (GRIBEL, 1999, p. 26).
Note-se que a história traz novamente uma professora que é avessa às
inovações. Nem ela, nem a Dona Ordália, de Fazendo Nada, utilizam algum meio mais
inovador de ensino, permanecendo apenas no tradicional, como que a reforçar
realmente que docentes não buscam atualização profissional – indo contra todas as
oportunidades de formação continuada que se tem levado aos professores nas últimas
décadas.
Na terceira história analisada, Uma escola assim, eu quero pra mim, por sua
vez, há a representação de duas professoras, com características bem distintas: a
Dona Marisa, que está grávida, e a Dona Celinha, que será sua substituta. Em
questões de imagens, salienta-se que nessa história as professoras não são
retratadas com o uso de jaleco. Outro diferencial positivo é que o autor dedica o livro
―Para os professores que aprenderam a colocar alegria e criatividade no ato de
ensinar‖ (JOSÉ, 2007, s/p).
Inicialmente, em uma primeira leitura, percebe-se que a intenção do livro é
fazer o contraponto entre duas professoras, mostrando qual é o melhor método (e
consequentemente a melhor professora) de ensino. No entanto, novamente o autor
acaba caindo em estereótipos ao fazer oposições que não seriam por si só motivos de
a aula ser melhor ou pior. Isso pode ser facilmente observado ao se comparar as duas
docentes do texto:

De cara, levou um susto com a professora. Dona Marisa era


grandona, feia, sabichona como ninguém. Azeda, sem sal nem
açúcar. A barriga imensa, com uma criança dentro dela, tomava a
dianteira. Ninguém podia errar que ela virava galinha choca. (JOSÉ,
2007, p. 8).

[...] e vem substituí-la a dona Celinha, uma professora nova,


bonitinha e muito alegre. [...] Dona Celinha chegou, magra e
pequenina [...] (JOSÉ, 2007, p. 12-15).

O narrador deixa bem claro nas descrições que entre elas há muita diferença.
É claro que, no decorrer da história, vai ser evidenciada a didática/metodologia de uma

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e outra professora, mostrando que uma educação mais lúdica é bem mais favorável ao
aprendizado. No entanto, num primeiro momento, o que se sobressai é a descrição
física e de caráter.
Isso é bem notado nas oposições grandona/pequenina, feia/bonitinha,
azeda/alegre, barriga imensa (mesmo que por estar grávida)/magra. Poder-se-ia,
então, perguntar: por que a ―antiga‖ tinha que ser grande, feia, azeda e a mais ―nova‖
pequenina, bonitinha, alegre, magra? Qualquer estudo, até mesmo empírico, derruba
por terra a teoria que está aí implícita – de que o mais jovem e bonito e magro seja um
professor melhor. Não são características físicas, principalmente, que darão a garantia
de melhores aulas.
Ainda em relação aos excertos acima, há de se salientar o uso do substantivo
―sabichona‖ em relação à Dona Marisa, que, em um sentido pejorativo, significa
vangloriar-se de seus próprios conhecimentos, ser ―metida‖ a inteligente.
Descaracterizar o profissional é uma forma de não lhe valorizar.
Em diferentes momentos do texto, o narrador também conta que a professora
faz uso de gritos e berros para acalmar a turma: ―Nem acabou a frase e dona Marisa
berrou [...]‖ (p. 8); ―– E por que não conseguiu? – perguntou dona Marisa, furiosa.‖;
―Nem ligou para os gritos de dona Marisa [...]‖. (JOSÉ, 2007, p. 8 e 11). Ou seja,
novamente se reforçam estereótipos mostrando que professores normalmente são
descontrolados e não conseguem lidar com a turma sem o uso de gritos e berros.
Ainda em relação à Dona Marisa, é interessante notar que, ao final do livro,
quando ela retorna da licença-maternidade está transformada. Observe-se a seguir a
fala da diretora, no início, quando Rodrigo lhe conta o modo como a professora lhe
zoava (Excerto 1) e como o narrador fala dela no final do livro, na sua volta (Excerto
2):

– Dona Marisa anda nervosa porque tem sempre partos difíceis. [...]
Amanhã ela vai sair de licença [...] (JOSÉ, 2007, p. 12).

Dona Marisa entrou na sala de aula mais solta e com a cara feliz.
Falou do seu Marquinhos com carinho. Contou sobre as gracinhas
que ele já fazia. Sobre a alegria do pai e o amor ciumento dos irmãos.
[...]
E foi ficando menos grande, depois quase criança. Muito bonita e feliz
em ensinar. Na escola, contava coisas do Marquinhos. (JOSÉ, 2007,
p. 28-29).

Toda a culpa do mau humor, dos gritos e da forma tradicional e nada eficiente
de ensinar recai sobre a gravidez da professora, construindo-se mais um estereótipo:
antes, grávida e mal humorada; agora, já não mais grávida, bonita e feliz em ensinar.

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Outro aspecto interessante de se analisar é o papel de mãe que é atribuído


às professoras, como bem define Louro (2011, p. 108):

As mulheres professoras – ou para que as mulheres possam ser


professoras – precisam ser compreendidas como ‗mães‐espirituais‘.
O trabalho fora do lar, para elas, tem que ser construído de forma que
o aproxime das atividades femininas em casa e de modo a não
perturbar essas atividades. (LOURO, 2011, p. 108).

Isso é bem observado na professora substituta, a Dona Celinha, que de certa


forma assume um papel mais doce, mais relacionado ao que se espera de uma mãe
do que de uma professora. Papel esse que é reforçado na fala final do livro, quando do
retorno de Dona Marisa: ―Na escola, contava coisas do Marquinhos. Em casa, contava
coisas dos seus quase trinta filhos adotivos. Um amor já quase igual...‖ (JOSÉ, 2007,
p. 29), ou seja, ao tratar os alunos como filhos (mesmo que usando o termo adotivos)
e decretar que é um amor já praticamente igual ao que sente pelo filho, ela assume
esse papel de mãe, reforçando esse estereótipo ligado ao magistério feminino.

Considerações Finais

Por fim, diversas outras análises poderiam ser realizadas acerca da


representação docente nesses três livros e em tantos outros que a literatura infantil
apresenta. No entanto, para o espaço de um breve artigo, já se tem algumas questões
a se pensar, principalmente no que tange à quebra de estereótipos da imagem do
professor.
Por outro lado, também é importante dizer que os livros lidos para este
trabalho apresentam outros aspectos muito interessantes e que podem ser
trabalhados no aspecto positivo de uma literatura que se quer emancipadora e que a
ideia de se analisar os estereótipos presentes neles não tem a intenção de
desmoralizá-los. Afinal, seus autores são nomes de qualidade no mercado literário.
O que se pretendeu discutir, isso sim, é a questão de que se faz urgente
repensar a forma, o modo como o docente está sendo representado nos livros que
circulam nos meios escolares, com o intuito de não se perpetuarem imagens que não
condizem com a realidade. Existem, é claro, professores como os analisados, mas não
é a regra. Ou pelo menos, é o que se acredita e deseja.

Referências

CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 13. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1995.

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COELHO, Nelly N. Literatura infantil: teoria, análise, didática. 1. ed. São Paulo:
Moderna, 2000.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São
Paulo: Autores Associados: Cortez, 1989. (Coleção polêmicas do nosso tempo – 4).

GADAMER, Hans G. A atualidade do belo. Rio de Janeiro: Ed. Tempo Brasileiro,


1985.

GRIBEL, Christiane. Minhas férias, pula uma linha, parágrafo. 6. impr. Rio de
Janeiro: Salamandra, 1999.

JOSÉ, Elias. Uma escola assim, eu quero pra mim. Ed. renov. São Paulo: FTD,
2007. (Coleção segundas histórias).

LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: história e


histórias. 6. ed. São Paulo: Ática, 1999.

LOURO, Guacira L. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva


pós‐estruturalista. Petrópolis: Vozes, 2011.

PERROTTI, Edmir. O texto sedutor na literatura infantil. São Paulo: Ícone, 1986.

PINSKY, Mirna. Fazendo nada. São Paulo: Scipione, 1995. (Coleção em família).

RUSSO, Danilo. De como ser professor sem dar aulas na escola da infância. In:
FARIA, Ana L. G. (Org.) O coletivo infantil em creches e pré-escolas: falares e
saberes. São Paulo: Cortez, 2007.

SILVEIRA, Rosa M. H. Gritos, palavras difíceis e verborragia: como a professora fala


na literatura infantil. In: ______ (Org.). Professores que as histórias contam. Rio de
Janeiro: DP&A, 2002.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

PRODUÇÃO NARRATIVA ORAL DE CRIANÇAS E O TEXTO


LITERÁRIO

Karin Cozer de Campos, Universidade Estadual do Oeste do Paraná -


UNIOESTE, Literatura infantil e juvenil e as múltiplas linguagens

Considerações Iniciais

O trabalho trata sobre a relação produção narrativa oral de crianças e o texto


literário. O objetivo é discutir como o texto literário pode contribuir e potencializar a
produção narrativa oral das crianças no ambiente escolar. Toma-se como referência a
pesquisa238 de doutorado desenvolvida com um grupo de crianças com idade entre 09
e 10 anos, estudantes do 5º ano dos anos iniciais do Ensino Fundamental de uma
escola pública rural. A investigação se insere numa abordagem de pesquisa qualitativa
e pode ser caracterizada como uma pesquisa narrativa (CLANDININ; CONNELLY,
2015), que se orientou pelos princípios do fazer pesquisa com crianças (PEREIRA,
2012; ABRAMOWICZ, 2011, DELGADO; MULLER, 2005; KRAMER, 2002).
A principal estratégia metodológica foram oficinas de criação de histórias para
estimular a produção de narrativas orais a partir das experiências vividas pelas
crianças. As oficinas foram organizadas para estimular as crianças a narrarem suas
experiências e a partir disso algumas estratégias se criaram no desenvolver do
trabalho com elas, como foi o caso das oficinas que tiveram como recurso obras da
Literatura Infantil, de modo que o texto literário motivou as crianças a produzirem
histórias que envolveram lembranças importantes para elas.
A partir disso, apresento, inicialmente, as oficinas de criação de histórias que
tiveram como recurso obras da Literatura Infantil e algumas narrativas orais das
crianças que foram produzidas a partir do encontro delas com o texto literário. Por fim,

238
Pesquisa de doutorado intitulada ―Nossas vidas contam histórias: crianças narradoras‖,
(UFSC, 2016), sob orientação da professora Dra. Gilka Girardello.
1146

destaco alguns dos principais resultados e considerações da pesquisa relacionadas à


discussão proposta nesta escrita.

Oficinas de criação de histórias com obras da literatura infantil


Como uma estratégia metodológica da pesquisa, foram desenvolvidas
oficinas de criação de histórias com as crianças. Dentre elas, algumas tiveram obras
da Literatura Infantil como referência para a produção narrativa oral das crianças,
assim intituladas: a) Algo que vale ouro; algo que faz rir; algo que faz chorar, que teve
como referência a obra Guilherme Augusto Araújo Fernandes (FOX, 1995), e as
oficinas b) A história de uma colcha de retalhos, c) Nossas roupas contam histórias e
d) Colcha de retalhos que tiveram como referência a obra Colcha de retalhos (SILVA,
2010).
A seguir, eu relato como cada uma dessas oficinas foram desenvolvidas e
apresento algumas das narrativas orais produzidas pelas crianças:

a) Algo que vale ouro; algo que faz rir; algo que faz chorar
Em um dos encontros, sugeri às crianças que pensassem em algo, qualquer
coisa, que considerassem que as fizesse rir ou chorar ou, ainda, que para elas valesse
ouro239, e que a trouxessem para o encontro seguinte. Comentei que se tratava de um
exercício ―para irem para casa pensando‖ e que não era preciso, naquele momento,
me darem a resposta. Inclusive, sugeri que elas tentassem guardar segredo sobre
suas escolhas. Mas sabia que isso seria muito difícil para elas.
Reforcei às crianças que elas podiam trazer qualquer coisa, e que cada uma
contaria uma história sobre o que trouxesse (seus significados). Para despertar a
curiosidade das crianças, comentei que eu conhecia uma história sobre um menino
que guardava coisas que para ele valiam ouro, que lhe faziam rir e que lhe faziam
chorar, mas que essa história eu só contaria no próximo encontro.
Durante esse momento, algumas crianças me perguntaram: – tem que
dividir?; – e se a mãe não deixar trazer?; – pode ser as três coisas?; – pode ser algo
que faça rir e chorar ao mesmo tempo?. Minhas respostas foram de que elas poderiam
tomar a decisão que quisessem e que fosse a melhor e mais possível. Então, no

239
Este exercício foi inspirado no relato da experiência de trabalho de uma professora do
Colégio de Aplicação da UFSC, desenvolvido com crianças dos Anos Iniciais do Ensino
Fundamental a partir da história Guilherme Augusto Araújo Fernandes (FOX, 1995). Este relato
foi apresentado durante o Seminário Ler e compreender o texto literário: lições de estratégias
de leitura, ministrado pela professora Renata Junqueira de Souza (abril de 2015).
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encontro combinado, as crianças se sentaram na roda trazendo seus objetos, os quais


algumas tentavam esconder. Porém, eu observei que duas crianças não traziam nada.
Para orientar as crianças em suas narrações, indiquei que começassem suas
histórias apresentando o que haviam trazido, depois contando o que para elas
significava e a história relacionada e, principalmente, que tentassem pensar em vários
detalhes para nos contar. Algumas histórias narradas pelas crianças:

Algo que pra mim vale ouro...


Menina: – É, ele (apontando para seu urso) vale ouro para mim. Eu ganhei ele em fevereiro
desse ano, e meu tio, quando ele veio pra cá, ele me trouxe um urso e pra minha irmã uma
bonequinha. E daí ele me fez muito feliz. Quando eu fico alegre e chego em casa durmo com
ele, e pra mim vale ouro.
Pesquisadora: – Por que entre tantas coisas você escolheu o que vale ouro para você, o
ursinho?
Menina: – Porque ele sempre tá comigo.

Menina: – Pra mim ela (a boneca, segurando-a o tempo todo durante a narração como se
segura um bebê) vale ouro. Eu ganhei da minha madrinha de natal do ano passado e quando
eu vou brincar eu sempre brinco com ela junto. Não desgrudo dela.
Pesquisadora:– Por que você escolheu, entre tantas coisas, esta boneca?
Menina:– Porque ela é minha filhinha, é bonitinha. (risos dos colegas)

Menina:– Eu trouxe essa foto (mostrando para todos o porta-retrato na roda) que pra mim vale
ouro porque é a foto da minha família. Daí, era meu pai, meu irmão, minha mãe, eu tava aqui
nessa barriguinha aqui ó (apontando a barriga da mãe grávida na foto). E pra mim vale ouro
porque é a foto da minha família (olhos emocionados e brilhantes).
Pesquisadora:– Há outra coisa que você também havia pensado em trazer?
Menina:– Trazer a minha mãe aqui na escola. Mas ela não podia vir porque ela tem que fazer
um monte de serviço em casa.
Pesquisadora:– Mas de alguma forma você a trouxe, no retrato.

Menina:– É, aqui é minha família (apontando para uma foto), dá de todo mundo vê? É, eu
trouxe essa foto porque ela vale ouro pra mim porque é minha família. Essa é minha mãe, sou
eu quando eu tinha quatro anos, esse é meu pai e minha irmã, que agora tem dezesseis anos.
Eu trouxe essa foto porque ela vale ouro pra mim, e foi no dia do aniversário da minha mãe,
que faz cinco anos. É, eu dei essa foto pro meu pai porque mês passado era aniversário dele,
e ela vale ouro pra mim porque é minha família e é muito importante pra mim.

Menino:– É do campeonato, do torneio, que a minha irmã me deu (referindo-se à medalha que
segurava nas mãos). Daí, quando que ela chegou em casa, eles foram pra final mas não
ganharam. Só ganharam a medalha. E aí eu fiquei feliz porque ganhei.
Pesquisadora:– E o que a medalha significa pra você?
Menino:– Vale ouro.
Pesquisadora:– Por que ela vale ouro pra você?
Menino:– Porque a minha irmã me deu!
Pesquisadora:– Você comentou antes que havia pensado em outra coisa também, o que era?
Menino:– Uma foto do meu aniversário de um ano. Que tem umas mil lá em casa só do meu
aniversário.
Pesquisadora:– E o que esta foto significa pra você?
Menino:– É, ouro também.
Pesquisadora:– E por que você trouxe a medalha e não a foto?
Menino:– Porque a mãe tinha grudado naquele álbum lá, daí não deu de tirar.

Menino:– Eu trouxe essa ceifa (segurando o brinquedo nas mãos).

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Pesquisadora: – O que você pensou quando escolheu este objeto?


Menino:– Hum, eu não sei.
Pesquisadora:– Mas para você vale ouro, lhe faz rir ou chorar?
Menino:– Valia ouro.
Pesquisadora:– Por que você acha que vale ouro para você?
Menino:– Porque eu ganhei do meu vô de natal, do ano passado.

Menino:– Eu trouxe uma coisa que vale ouro, a minha amizade! É, na verdade eu ia trazer
uma coisa que eu pensei em trazer ontem. Uma chupetinha que eu tenho desde quando eu
nasci. Mas eu acabei me esquecendo, eu trouxe a minha amizade. Porque eu sempre tive ela e
sempre vou trazer ela comigo pra onde eu for e ir.
Pesquisadora:– Que bonito!

Depois, ele nos revelou que queria trazer uma mamadeirinha que para ele
valia ouro, mas esqueceu em casa porque acordou tarde. Em outro encontro ele a
trouxe e nos contou a história.

Menina:– Eu me esqueci de trazer o que ia pegar, deixei em cima da cama. Daí, eu pensei
rapidamente na minha amizade que eu tenho com a Jéssica. É, quando ela entrou nós ficamos
amigas e daí até hoje nós somos amigas.
Pesquisadora:– E o que isso significa para você?
Menina:– É, pra mim vale ouro!
Pesquisadora:– E o que você havia pensado de trazer, mas ficou em casa?
Menina:– Eu tinha pensado em trazer a minha boneca que eu ganhei do meu padrinho.
Pesquisadora:– Conta pra nós como ela é.
Menina:– Ela é da minha cor (negra). Daí ela usa um vestidinho rosa, branco assim, e ela tem
os olhos azuis.

Após, espontaneamente, ela revelou para todos o nome de duas colegas que
ela considerava suas melhores amigas. Uma delas tem olhos azuis.

Algo que me faz rir, chorar e que vale ouro...

Menina:– Eu trouxe a foto da minha mãe, achei que ela não vinha na escola! Eu choro com ela
(aponta a imagem da mãe na foto) quando ela me surra (risos). Ela me faz rir quando ela me
faz cosquinhas, e pra mim ela vale ouro.

Algo que me faz rir...

Menino:– Eu trouxe uma foto. Acho que vai ter que passar um por um, porque de longe não dá
pra ver. Eu trouxe essa foto que tem eu e o meu irmão. Ela foi tirada quando eu era pequeno, e
ela me faz rir, chorar não!
Outra criança pergunta:– Vale ouro?
Menino:– Não! Só faz rir. É, é só isso que eu posso dizer.
Pesquisadora:– Por que você escolheu esta foto como algo que lhe faz rir?
Menino:– Porque eu acho ela beemm engraçada!
Pesquisadora:– O que aconteceu neste dia da foto?
Menino:– Porque eu tava fazendo uma careta (referindo-se a ele na foto).
Pesquisadora:– Você sabe mais alguma coisa sobre este dia?
Menino:– Não.
Pesquisadora:– Desde o início você havia pensado nesta foto?
Menino:– Eu tinha pensado em outra coisa.
Pesquisadora:– O que era?
Menino:– Na verdade eu não ia trazer, porque eles já estão aqui, meus amigos, que vale ouro.
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Depois, a foto foi passando na roda para todos verem. Muitos risos e
gargalhadas. A criança que estava na foto fazendo careta era o próprio narrador
quando tinha três anos de idade.
Com relação à escolha dos objetos trazidos pelas crianças, algumas disseram
que pensaram no que trazer um dia antes do encontro, algumas disseram que foi
antes de sair de casa, e outras que foi desde o primeiro dia e que ao chegar em casa
já sabiam o que gostariam de trazer. Mas é possível observar semelhanças em alguns
objetos trazidos por elas, como, por exemplo, as fotografias. Penso que elas podem
ter combinado ou trocado ideias juntas sobre o que trazer.
Como combinado, todos, inclusive eu, deveríamos trazer algo que nos fizesse
rir, chorar, ou que para nós valesse ouro. Então, minha escolha foi algo que valia ouro.
Para isso eu levei uma ―mala literária‖ com um livro e alguns objetos relacionados à
história Guilherme Augusto Araújo Fernandes (FOX, 1995), que eu havia preparado
para contar, e que tinha relação com o exercício proposto às crianças. Esta proposta
foi baseada nas estratégias de leitura literária – durante a ―pré-leitura‖ –, que são
apresentadas e discutidas por Souza (2010). Nas suas propostas, a autora usa a
nomenclatura ―cesta literária‖, mas, neste caso, optei por ―mala literária‖ por se tratar
de uma.
Iniciei apresentando às crianças uma ―mala literária‖ que eu havia levado com
alguns objetos relacionados à história. Abri a mala, apresentei os objetos, inclusive o
livro da história, e perguntei-lhes o que imaginavam que para o menino da história
aqueles objetos significavam (ovo, medalha, marionete, concha e bola). Algumas
disseram que poderiam ser lembranças, coisa antiga, coisas para ele se lembrar de
quando ele era criança?. Para finalizar o encontro, narrei a história, isto é, realizei uma
leitura com o livro, enquanto apresentava também os objetos da mala.
Durante a narração desta história para as crianças, e considerando que foi a
primeira vez que eu narrei uma para elas, eu pude observá-las muito atentas à história
e à mala, que continha objetos que teriam seus significados revelados. Minha
percepção foi de que naquele momento – ouvir a leitura de uma história de livro –,
para as crianças estava muito prazeroso, e as suas expressões faciais e corporais
evidenciaram isso, pois manifestavam atenção, envolvimento e mergulho com a
narrativa. Mas, a manifestação delas de atenção e de escuta – porque havia um livro e
objetos – não foi diferente das outras situações em que ouviram histórias narradas por
elas e sobre elas.

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b) A história de uma colcha de retalhos


Apresentei às crianças o livro intitulado Colcha de retalhos (SILVA, 2010). A
história era sobre uma vovó que reuniu várias histórias em uma colcha de retalhos, e
cada pedaço de tecido contava uma história, uma lembrança vivida ou uma saudade.
Iniciei apresentando a capa do livro às crianças para instigá-las a pensar em sobre o
que poderia ser aquela história, e logo elas comentaram: igual nosso tapete, roupa,
retalho, tesoura, linha, uma colcha.
Depois, perguntei às crianças sobre que história o escritor poderia ter criado
sobre uma colcha de retalhos, e sobre isso elas disseram: é que eles estavam com frio
e por isso fizeram uma colcha; que ela (a vovó) achou ele (o menino) e deu uma
coberta pra ele. Em seguida narrei a história às crianças com o uso do livro.
Após ouvirem a história, as crianças narraram histórias que lembraram, e que
tiveram como temas centrais, de maneira especial, a saudade e os avós. Alguns
exemplos:

Menina: – A minha é que a minha prima faleceu há um mês e pouco, e eu sinto muita saudade
dela. Foi uma notícia muito chocante. A mãe do Andrei que trouxe lá em casa. Que ele e a mãe
dele tava lá. A mãe dele chegou chorando, a minha mãe desesperada porque não sabia de
nada.

Menino: – Ah, saudade do meu nono que morreu!

A saudade foi citada pelas crianças como mais uma palavra que elas
encontraram para comunicar como se sentiam a partir de suas experiências e dar-lhes
um sentido. Do mesmo modo, mais uma vez a narrativa literária potencializou as
crianças a narrarem experiências pessoais, como é o caso da próxima oficina que
apresento.

c) Nossas roupas contam histórias


A partir do encontro anterior (a história de uma Colcha de retalhos), pedi240 às
crianças que trouxessem alguma roupa ou algum tecido que tivesse um significado
muito importante para elas. Tal significado poderia não ser necessariamente
relacionado às crianças, mas a qualquer pessoa que conhecessem. Pedi também que,
ao trazerem a roupa ou o tecido, contassem uma história.
A maioria das crianças levou sua roupa de batizado. Há a possibilidade de
que durante o intervalo dos encontros elas tenham trocado ideias sobre o que
poderiam levar e uma pode ter influenciado a outra.

240
Para explicar o pedido e a finalidade da atividade, em conjunto com a equipe pedagógica da
escola, enviamos um bilhete aos pais.
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Destaco que em todos os encontros, antes de as crianças iniciarem suas


narrações, eu buscava orientá-las a lembrarem de todos os detalhes possíveis de
suas histórias, e indicava que utilizassem alguns elementos narrativos. Foi
interessante porque, num momento mais avançado da pesquisa, como no dia desta
oficina, eu não precisei mais dizer isso, as crianças mesmas indicaram ao grupo o que
deveria ser considerado no roteiro da narração: Quem estava lá é uma coisa que tem
que falar. Quando. Por que. Como se sentia...

A roupa do meu batizado


Menino: – No meu batizado, a minha mãe me contou que quando o padre jogou água benta na
minha cabeça eu dei risada e comecei a chorar e dei risada e comecei a chorar (muitos risos).

Menino: – Eu trouxe minha roupa de batizado. É porque eu gosto muito dela e tava no meu
batizado o meu padrinho, a minha madrinha, a minha mãe, meu pai, a minha prima e o padre.
Foi no dia vinte e cinco de junho, quatro horas, num sábado, na matriz.

O vestidinho
Menina: – Eu esqueci em casa, mas eu vou falar. É um vestidinho, bem pequenininho. Quando
eu era pequena a minha madrinha me deu. Eu tenho até hoje e minha mãe, quando não me
servia mais esse vestidinho, ela perguntava: – Vamos dar? Eu sempre falava ―não‖! Porque eu
sempre gostei daquele vestidinho, tenho agora e eu estou usando como camiseta.

O casaquinho de 52 anos
Professora da turma:– Eu vou contar deste casaquinho aqui primeiro. Ele era do meu marido,
é do meu marido, que o meu marido ainda está vivo e está com 52 anos e ele usou. O dia que
a minha sogra me deu para guardar eu disse: – Mas não serviu nele? Ela disse: – Usou um
monte de vezes isso, só quando a gente ia na igreja. Porque era muito bonito na época. E daí,
tinha uma touquinha, só que eu não achei a touquinha ontem. Fazia dias que eu queria
procurar e eu fui deixando e deixando, não achei, eu trouxe só o casaquinho. Enquanto eu
conseguir eu vou segurar para mim, de repente eu possa ter netos, não tenho ainda, de
repente tenho um neto e posso mostrar alguma coisa. Quem fez foi uma sobrinha da minha
sogra que é prima do meu marido, que fez na época e deu.

d) Colcha de retalhos

A mãe da Branca de Neve costura, e, do lado de fora, a neve cai.


Quanto maior o silêncio, tanto mais honrada a mais silenciosa das
atividades domésticas. Quanto mais cedo escurecia, tanto mais
frequentemente pedíamos as tesouras. Então, ficávamos, nós
também, horas seguindo com o olhar a agulha, da qual pendia
indolente um grosso fio de lã. Pois sem dizê-lo, cada um de nós
tomara de suas coisas que pudessem ser forradas – pratos de papel,
limpa-penas, capas – e nelas alinhavávamos flores segundo o
desenho. E à medida que o papel abria caminho à agulha com um
leve estalo, eu cedia à tentação de me apaixonar pelo reticulado do
avesso que ia ficando mais confuso a cada ponto dado, com o qual,
no direito me aproximava da meta. (BENJAMIN, 2011, p. 122).

Benjamin disse que nem tudo que o sujeito vive pode ser validado como
conteúdo de uma verdadeira e autêntica troca de experiências. Isso estaria, para

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Benjamin, associado às atividades de trabalho do sujeito, no campo ou na cidade, em


que nas mais antigas formas de trabalho, em diferentes ritmos e práticas, o tédio é
compreendido como ―o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência‖. Mas,
para Benjamin, isso não existe mais. E, por isso, ―desaparece o dom de ouvir, e
desaparece a comunidade dos ouvintes‖. Pois, ―contar histórias sempre foi a arte de
contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela
se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história‖ (BENJAMIN,
1994, p. 204-205). E, sobretudo, porque, segundo o autor, não há mais a troca de
experiências.
Foi a partir desses preceitos benjaminianos que a oficina Colcha de retalhos
foi pensada, especialmente com o propósito de que as crianças pudessem se envolver
com uma atividade artesanal e, coletivamente, pudessem ouvir e contar suas histórias,
espontaneamente.
Nos primeiros encontros eu já havia comentado com as crianças sobre a ideia
de fazermos uma colcha de retalhos, a qual poderia depois ser utilizada como um
tapete para contarem histórias. Então, retomei a proposta e perguntei a elas como
poderíamos realizá-la, e logo elas sugeriram: precisamos de retalhos; a gente pega
um retalho e cada um traz algum; com cola quente ou com costura? Quem tem retalho
pode trazer um pedacinho pra colocar na colcha. Dei a sugestão às crianças de
fazermos a colcha de retalhos com cola específica para tecido, para não corrermos o
risco de nos machucarmos com agulhas e porque também precisaríamos de várias
pistolas de cola quente. Elas aprovaram a ideia.
Além disso, havia o interesse de saber o que a colcha de retalhos
representaria e significaria para as crianças, incluindo o fato de elas a confeccionarem.
Para isso deixei que elas indicassem as sugestões metodológicas, ou seja, que elas
propusessem as formas de realizarmos o trabalho e assim poderem também definir
seu sentido. De fato, eu tinha uma proposta provisória, mas não queria que a proposta
principal do trabalho fosse por mim sugerida, mas que viesse das crianças. Eis que
delas vieram algumas sugestões muito significativas.

Pesquisadora:– Sobre o que faremos a nossa colcha de retalhos (nosso tapete)?


Menina:– Sobre a história.
Pesquisadora:– Mas que história?
Outras crianças:– Sobre essa que a gente ouviu (referindo-se à ―Colcha de retalhos‖).
Pesquisadora: Lembrei às crianças de que a colcha de retalhos da história do livro tinha vários
retalhos de tecido e de que cada um contava uma história.
Menina:– Profe, tipo, quem que tem retalho em casa pode pegar um e pensar por que que
trouxe aquele retalho, pensando, é, em alguma lembrança que já teve. Daí coloca no tapete e
se lembra que aquele retalho é daquela história.

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Os relatos das crianças reforçam a proposta pensada para a confecção da


colcha de retalhos. Por fim, decidimos que faríamos uma colcha de retalhos para ser
utilizada como um tapete e a partir disso combinamos os materiais necessários e o
que cada uma poderia trazer. Neste caso, ficou combinado de as crianças levarem
retalhos de tecidos e tesoura, e eu fiquei responsável por levar retalhos de tecido e o
restante dos materiais necessários (cola de tecido e um tecido maior para servir de
base à colagem dos retalhos).
Enfatizo que esta oficina teve várias intenções. Uma delas era de que a
composição da colcha de retalhos fosse a representação das histórias e experiências
das crianças, como uma expressão materializada por seleção de cores, formas,
tamanhos e tecidos. E de fato, uma das principais experiências que ficou materializada
nesta atividade foi a experiência do encontro com as crianças no trabalho de pesquisa.
Além disso, a proposta era de que a produção da colcha fosse, também, um momento
de descontração em que as crianças pudessem, durante a confecção da colcha de
retalhos, conversar entre si e contar alguma história, inclusive, relacionada a algum
retalho de tecido que haviam trazido para o trabalho ou, simplesmente, porque
estariam reunidas em uma atividade artesanal pudessem compartilhar alguma história
de que naquele momento poderiam lembrar. O que de fato ocorreu.
Por isso, procurei deixar esta proposta clara para as crianças, isto é, a de que
se sentissem à vontade para conversar durante a atividade. Pois a intenção era tornar
o momento uma possibilidade de criação de histórias para as crianças, com um
encaminhamento teórico-metodológico que tivesse, novamente, uma perspectiva
benjaminiana em que as crianças pudessem se envolver com um trabalho manual, de
criação e de encontro, que ao mesmo tempo lhes possibilitaria compartilhar de suas
experiências, ou seja, das suas histórias.
Esta oficina teve duração de mais de duas horas, um tempo que não vimos
passar, devido ao envolvimento e à concentração de todos para poder logo terminar e
ver como tudo ficaria no final. No entanto, foi previsto que a atividade demandaria mais
tempo que os encontros normais, por isso a direção, a equipe pedagógica da escola,
os professores e as crianças foram avisados com antecedência sobre este tempo
necessário, e a isso se demonstraram muito favoráveis.
Para compor a colcha de retalhosnos organizamos em roda sobre o tapete
em que costumávamos nos sentar e arrumamos todos os materiais que tínhamos à
disposição: um tecido grande que serviu de base estendido ao centro, os retalhos que
tanto eu quanto as crianças havíamos trazido. Depois, com todas as crianças ao redor
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do tecido base, eu as orientei sobre como poderiam fazer para juntar os retalhos e
colá-los, e que seria preciso fazer isso coletivamente, pois os retalhos iriam se
encontrar e formar um único tecido. Porém, deixei claro às crianças que a definição da
composição das cores, dos tecidos, o tamanho e o formato seria sempre uma decisão
delas.
A partir disso as crianças se organizaram em duplas para dividir alguns
materiais, como cola e tesoura, e também para trocar ideias na seleção dos retalhos,
depois definiram um espaço no tecido-base e iniciaram o trabalho. Ressalto que toda a
atividade foi desenvolvida com muita parceria e interação entre as crianças, uma
ajudava a outra. Algumas vezes observei que algumas crianças só colavam o retalho
após ter o aval final da outra, como uma confirmação de que aquela escolha estava
certa.
Eu estive junto com as crianças o tempo todo, auxiliando-as e orientando-as,
mas procurando intervir o mínimo possível no trabalho. Por outro lado, estive muito
atenta às conversas das crianças, especialmente quando percebia que dali surgiria
alguma história, para que, se necessário, eu pudesse fazer alguma pergunta e saber
mais sobre a experiência.
Em um momento uma criança perguntou se os tecidos que eu havia levado
continham alguma história. Esta pergunta me parece ser uma evidência de que a
proposta da atividade estava bem presente no horizonte do trabalho. Respondi a ela
que sim, pois eram os retalhos que haviam sobrado do tapete que eu havia feito para
poder me encontrar com elas e ouvir e contar histórias, isto é, do trabalho de pesquisa
que eu estava desenvolvendo.
Durante todo o tempo em que as crianças estiveram envolvidas com o feitio
da colcha de retalhos, suas conversas foram principalmente relacionadas à atividade,
isto é, sobre a decisão de que retalho colar, como o recortar, sobre a divisão do
espaço no tapete ou até mesmo para decidir que figura do retalho ficaria melhor na
colcha, se a corujinha ou a flor. No entanto, junto às conversas, algumas histórias se
fizeram, motivadas por algum retalho de tecido que lhes trouxe uma lembrança.

O retalho da coberta do pai


Menina:– Esse pedaço aqui é desde que o meu pai era pequeninho, da coberta do pai. Esse
paninho foi uma coberta de quando meu pai tinha uns dois aninhos.
Pesquisadora:– Quem contou isso para você?
Menina:– O pai! Na verdade foi minha vó, né, mas o pai contou de novo.

O retalho do Mickey
Menino: Ao selecionar um retalho de tecido que ele mesmo trouxe, comenta: – Era uma fronha
de quando eu era criança, eu usava. Quando eu era menorzinho.
Menina ao lado:– É, porque você ainda é criança!
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O retalho de pata de cachorro


Menina:– Olha esse retalho aqui! (com imagem de patas de cachorro).
Agora eu ganhei mais um cachorro. Ele é todo peludinho. Eu ganhei de aniversário do
namorado da minha prima e ele deu o nome dele de Neguinho, só porque ele é pretinho. E daí,
o tio do Vini trouxe o cachorro de volta com um nome mais engraçado do mundo: Ernesto,
nome do cachorro.

A produção narrativa oral das crianças e o texto literário


As crianças produziram histórias a partir das suas experiências, consideradas
por elas como as mais significativas, embora com estratégias diferentes. Neste caso, o
que potencializou a produção narrativa das crianças foi o texto literário, que se tornou
história potência para elas, e possibilitou a narrativa literária se transformar em
narrativas pessoais.
As narrativas apresentadas neste texto se referem à importante decisão que
foi para as crianças trazerem para os encontros algo que para elas significasse
alguma coisa, como as narrativas que para elas valiam ouro – um presente de natal
que havia ganhado de seu vô (uma ceifa), e que cabe dizer, é muito representativo da
cultura do campo onde as crianças participantes da pesquisa vivem.
Do mesmo modo, na oficina Nossas roupas contam histórias, a proposta de
trazer alguma roupa ou tecido que tivesse um significado especial e que contasse
sobre a lembrança de uma experiência vivida mobilizou outras pessoas da escola na
roda de histórias. A professora regente da turma se sensibilizou com a proposta e
também trouxe uma história (O casaquinho de 52 anos), além de demonstrar muita
alegria e prazer em estar junto às crianças na roda.
Esse momento em que a professora também narrou uma história pessoal
para as crianças já é uma evidência da capacidade que a narrativa tem de criar uma
comunidade de sentidos e de compartilhamentos.Na produção de suas histórias as
crianças e a professora rememoraram lembranças, e em algumas situações as
crianças rememoraram histórias que alguém lhes contou, para depois (re)contá-las na
roda como suas histórias.
As narrativas das crianças que tiveram como tema de vida lembranças são
representações de um discurso do passado, que se constituiu por um exercício de
retomada, de rememoração das histórias da própria vida delas, da sua existência.
Trata-se de um discurso constituído de fios de memória e, especialmente, de
apreciações muito pessoais das crianças, pois muitas histórias foram selecionadas por
elas, durante as oficinas de criação de histórias, para serem narradas e definidas
como lembranças de momentos significativos de suas vidas.

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Ao rememorar experiências do passado e selecionar uma lembrança e defini-


la como a mais importante, a criança narradora tornou aquela experiência completa –
singular (DEWEY, 2010). A experiência das crianças com a narração oral de histórias,
com a arte da comunicação, em especial com a Literatura Infantil, possibilitou-lhes
intensificarem o presente pelas suas histórias do passado, uma vez que ―a arte
celebra com intensidade peculiar os momentos em que o passado reforça o presente e
em que o futuro é uma intensificação do que existe agora‖ (DEWEY, 2010, p. 82).
Como bem disse Greene (1995, p. 20), a partir de princípios deweyanos, a
habilidade de relembrar coisas passadas permite uma reflexão de nossas histórias de
vida e a retomada de lugares onde já estivemos, e é essa lembrança que torna
possível ―captar e compreender aquilo que nos acontece hoje ao nosso redor‖. Além
disso, ―falar sobre o passado com histórias sobre nós, para nós mesmos e para outros
tem um importante papel em nossa vida, pois participa na construção de nosso
autoconceito‖ (MACEDO; SPERB, 2007, p. 236).
Mas, um dos aspectos mais importantes que destaco nestas produções
narrativas é o texto literário, que se tornou história potência para as crianças. Isto é, a
possibilidade de fazer da narrativa literária uma narrativa pessoal. As crianças
tomaram o texto literário como referência, reelaboraram-no e criaram as suas próprias
histórias, contidas de suas experiências. Isso indica o ―caráter dialógico‖ do discurso
narrativo das crianças, de modo que, ―ouvindo histórias (lidas e também contadas
livremente, inspiradas na literatura infantil ou na experiência vivida) e vendo ouvidas
as suas próprias histórias que elas aprendem desde muito cedo a tecer narrativamente
suas experiências‖, ao mesmo tempo em que se constituem como ―sujeitos culturais‖
(GIRARDELLO, 2007, p. 54-55).
A partir da experiência com as histórias Guilherme Augusto Araújo Fernandes
e a Colcha de retalhos, outras histórias as crianças produziram relacionadas às suas
vivências pessoais. O texto literário, pelos seus diferentes personagens e enredos,
potencializou às crianças rememorarem suas vivências e nos contarem isso como
histórias.
As histórias das crianças que tiveram o texto literário como potencializador
são representações, também, da estreita relação que há entre narrativa, experiência e
imaginação. Além disso, confirmam a possibilidade de que as crianças, enquanto
produziram suas narrativas orais, puderam incluir em suas experiências aquelas que
foram vividas na imaginação, como, por exemplo, as histórias da Literatura Infantil.
Sobre a imaginação infantil, Girardello (2011) aponta a arte e a narrativa
como fatores favoráveis para o desenvolvimento da imaginação na infância. Ao
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examinar aspectos da vida imaginativa infantil, a partir de diferentes autores 241,


Girardello enfatiza que a narrativa desempenha um papel importante na imaginação
da criança, e aponta que as crianças ―têm necessidade das imagens fornecidas pelas
histórias como estímulo para sua própria criação subjetiva, para sua exploração
estética e afetiva‖ (2011, p. 82). Para a autora, isso envolve tanto os contos literários
como os causos contados em rodas de conversas.
A partir disso, compreendo que a Literatura Infantil pode contribuir de maneira
muito significativa para o desenvolvimento da imaginação infantil pelas possibilidades
de experiências que potencializa à criança (apenas como exemplo: experiência
estética, de criação, imaginativa e de cultura).
Por outro lado, é importante reconhecer que, ―mesmo na linguagem cotidiana
dita comum, o sujeito narrativo que fala da sua história submete-se, sabendo ou não,
aos mesmos mecanismos que regem as sutis narrações literárias contemporâneas – e
dos quais tiram ao mesmo tempo sua vitalidade e sua fragilidade‖ (GAGNEBIN, 2011,
p. 84). Ao mesmo tempo, a literatura confirma a experiência humana e tem seus
principais conteúdos presentes na vida (CANDIDO, 2002, p. 81-82).
A relação desses elementos analisados com os apontamentos de Kearney
(2012), sobre a narrativa, permitiria ainda dizer do poder das histórias: ―as histórias
nos alteram, ao nos transportar para outros tempos e lugares, onde podemos
experimentar as coisas de outro modo‖. Igualmente, é possível relacionar ao que
Kearney chamou de ―o poder catártico das histórias‖, associado à ideia de ―liberação‖
(catharsis). Ou seja, pelas histórias, poder colocar-se no lugar do outro. Um jogo de
―diferença e identidade – experimentar a si próprio como outro e o outro como a si
próprio – que provoca uma reversão de nossa atitude natural diante das coisas e nos
abre novas maneiras de ver e ser‖ (KEARNEY, 2012, p. 417-419). Assim, contar
histórias nos torna sujeitos à narrativa como também sujeitos da narrativa (KEARNEY,
2012, p. 428).

Considerações Finais
Alguns resultados da pesquisa apontam que a narrativa não apenas expressa
experiências, mas também as cria, e ouvir e narrar histórias se tornou para as
crianças, também, um processo de criação. Neste contexto, um aspecto importante
das produções narrativas orais das crianças é o texto literário, que se tornou história

241
Alguns autores que discutem a relação entre imaginação infantil e narrativa que podem ser
citados: Jacqueline Held (1980) ―O imaginário no poder: as crianças e a literatura fantástica‖, e
Georges Jean (1990) ―Los senderos de la imaginación infantil: los cuentos, los poemas, la
realidade‖.
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potência para elas. Isto é, a possibilidade de fazer da narrativa literária uma narrativa
pessoal. As crianças tomaram o texto literário como referência, reelaboraram-no e
criaram as suas próprias histórias, contidas de suas experiências, inspirando suas
produções narrativas orais e seus processos criativos e imaginários.
Ficou evidente uma estreita relação entre narrativa e experiência e reforça o
entendimento de que o sujeito se constitui na e pela palavra. É na e pela palavra,
também, que o sujeito pode dar sentido às suas experiências de vida e expressá-las.
Eis o que as crianças fizeram, narrativamente.
Por fim, enfatizo, a pesquisa aponta elementos que ajudam defender a
importância de se proporcionar mais tempo na escola para experiências artísticas que
incluam a Literatura Infantil e a narração de histórias e que possibilitem às crianças
contarem e compartilharem suas histórias junto aos professores, não só pela
potencialidade de aprendizagens que isso possibilita, mas, também, por representar
práticas educativas associadas a uma pedagogia mais poética e estética.
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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

ZOOM NA POESIA:

PRÁTICAS MULTILETRADAS NA FORMAÇÃO DE LEITORES

Paulo Henrique Machado, Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Eixo


Temático 6: Literatura infantil e juvenil e as múltiplas linguagens
Maria de Lourdes Rossi Remenche, Universidade Tecnológica Federal do
Paraná, Eixo Temático 6: Literatura infantil e juvenil e as múltiplas linguagens

Considerações iniciais

As Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC) possibilitam a


exploração de novas formas de produzir conhecimento e de utilizar a linguagem, em
contrapartida, provocam alterações nas formas de ler e escrever, uma vez que se
empregam recursos para além do analógico.
Na contemporaneidade, os diferentes textos apresentam novos desafios aos
letramentos e às teorias, devido à multiplicidade de linguagens, semioses e mídias
envolvidas na produção de sentido nos textos multimodais, além da diversidade
cultural trazida pelos sujeitos leitores/produtores nas práticas de leitura. Tal concepção
remete-nos às novas formas de produção, configuração e circulação de textos que
estão ligadas aos multiletramentos.
Na cibercultura, as práticas de letramento literário se deslocaram e mobilizam
configurações eletrônicas que possibilitam novas experimentações literárias. Dentre os
gêneros discursivos em ambiente digital, a ciberpoesia utiliza em sua composição a
hibridização de recursos multissemióticos, que não só congregam a linguagem escrita,
a imagem, o som e o movimento, mas também propiciam interatividade e participação
ativa do leitor-navegador.
No entanto, Cope e Kalantzis (2008) explicitam uma preocupação em
transpor o que era desenvolvido no suporte de papel para o computador, pois nem
sempre essa alteração traz, em seu cerne, a compreensão dos processos e das
relações sociais que foram instauradas com o advento da tecnologia.
1161

Considerando o dinamismo da contemporaneidade na utilização das TDIC e


do ciberespaço como espaço-tempo de interação, tem-se como disparador desta
pesquisa a seguinte questão: as práticas de leitura na cibercultura são diferentes das
práticas analógicas? As práticas de leitura e escrita de poesia em meio digital
extrapolam o diálogo verbo-visual existente nos livros impressos?
Assim, o presente artigo tem como objetivo principal analisar a multiplicidade
de semioses que constitui esses objetos multimodais e as possibilidades de produção
de sentido envolvidas no uso da ciberpoesia como prática de letramento literário
disponibilizada pelo projeto ―Zoom na Poesia‖, de Ana Cláudia Gruszynski e Sérgio
Capparelli, presentes no site capparelli.com.br.
Trata-se de pesquisa qualitativa e exploratória (MINAYO, 2001; GIL, 2016),
cujo arcabouço teórico-metodológico se apoia nos estudos da ciberliteratura e da
literatura eletrônica (BARBOSA, 1996; HAYLES, 2009), dos tipos de leitores da
contemporaneidade (SANTAELLA, 2004, 2013; COSCARELLI, 2016), dos
multiletramentos (COPE; KALANTZIS, 2000, 2008; ROJO, 2012), do letramento
literário (COSSON, 2016), entre outros.
A realização desta pesquisa justifica-se pela necessidade de verificação de
como as transformações tecnológicas ocorridas na contemporaneidade estão afetando
os modos de produção textual em literatura para crianças e jovens e, por
consequência, as práticas de leitura e a formação dos sujeitos leitores.

Características da literatura eletrônica para crianças e jovens

As tecnologias vêm assumindo função significativa na organização da cultura


pós-moderna, determinando mudanças na dinâmica da vida social. Contudo, para
além da caracterização das tecnologias como um mero suporte, é preciso observar
que elas alteram sensivelmente a maneira dos sujeitos interagirem, pensarem,
relacionarem-se uns com os outros e modificam também a forma de construir o
conhecimento. Ou seja, ―criam uma nova cultura e um novo modelo de sociedade.‖
(KENSKI, 2010, p. 24).
A sociedade contemporânea também tem vivenciado inúmeras
transformações com o surgimento de novas formas de utilização da linguagem,
influenciadas pelas TDIC e pela convergência de diferentes mídias. Verifica-se, por
exemplo, que o livro impresso, que por séculos se manteve como principal suporte
textual, enfrenta, desde o final do século passado, a concorrência de novos formatos,
oriundos do aperfeiçoamento das redes de informação e da progressiva digitalização

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do texto impresso, originando novos padrões de negócio, novas formas de leitura-


produção textual e novos suportes. Lévy (1998) argumenta que, consideradas numa
nova configuração de mídias, inseridas num diferente sistema de comunicação, as
antigas tecnologias intelectuais mudam de significado. A informática, entendida como
nova tecnologia intelectual, ao expor suas ferramentas, fornece modelos teóricos para
as nossas tentativas de conceber a realidade de maneira racional. Em contrapartida, o
autor certifica que reconhecer essas transformações não significa prever a substituição
universal das antigas tecnologias pelas novas: ―a não ser no imaginário social, os
livros não serão suplantados pelos computadores e bancos de dados.‖ (LÉVY, 1998,
p. 32). A respeito dessa questão, Barbosa (1996, p. 20) expõe que a difusão das
produções em meio digital ―parece indicar uma verdadeira nova tendência literária: não
o fim do livro, mas seguramente uma outra maneira de ler, uma nova maneira de
escrever e de intervir sobre a palavra.‖
Constata-se que os diversos sistemas de escrita, em especial o alfabético,
quando superpostos a outras formas de enunciação – visual e sonora, por exemplo –,
em um mesmo suporte de leitura são capazes de gerar outros modos enunciativos, tal
como tem acontecido, recentemente, com o surgimento do modo de enunciação na
esfera digital (XAVIER, 2013). Na pós-modernidade, a linguagem digital, ubíqua,
líquida e hipermidiática, não se limita apenas à transformação em seu registro: ao
migrar para a tela de computadores e de dispositivos eletrônicos, o texto escrito se
libertou da linearidade sequencial e se aliou a textos imagéticos e sonoros, se
interconectando por meio de hiperlinks, promovendo assim, mudança não somente no
suporte das linguagens, mas nos modos de composição das linguagens.
A literatura, como fenômeno criativo de representação da realidade social,
assim como as demais expressões artísticas, não se afastou das transformações
tecnológicas e da cenografia pós-moderna. Ao contrário, a evolução tecnológica trouxe
muitos benefícios à literatura ao possibilitar o surgimento de um novo tipo de arte, a
literatura eletrônica, cuja principal diferença em relação à literatura impressa é
justamente o meio de propagação ou o modo que o leitor tem acesso a essa literatura:
a Internet e o ambiente virtual de aparelhos informatizados.
A literatura eletrônica ou digital ―é movida pelos motores da cultura
contemporânea, especialmente jogos de computador, filmes, animações, artes digitais,
desenho gráfico e cultura visual eletrônica.‖ (HAYLES, 2009, p. 21). Barbosa (1996)
adota o termo ciberliteratura para designar esse procedimento criativo surgido
concomitantemente com a tecnologia informática, em que o computador é
criativamente utilizado como manipulador de signos verbo-visuais e não apenas como
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simples armazenador e difusor de informação. Portanto, para entender a literatura


eletrônica é preciso ampliar a significação do termo, pois não se trata meramente de
um texto impresso que foi digitalizado, mas sim, uma obra que se apropria das
capacidades e potencialidades dos dispositivos computacionais.
No contexto da cibercultura, a produção literária caracteriza-se, portanto, pelo
hibridismo e pelo uso de recursos multimodais, pois expande as narrativas verbo-
visuais, características do livro impresso, ao incorporar sons, imagens em movimento
e interatividade.
Kleiman (2014) salienta que o texto (ou hipertexto) tem uma organização em
que a linguagem verbal, a imagem e o som têm um papel importante na significação,
exigindo uma leitura na qual o próprio leitor define quais elementos ler, em qual ordem,
seja ele proficiente ou iniciante nas práticas de leitura. Cosson (2014) corrobora ao
afirmar que nessa nova literatura, as marcas mais evidentes são a fragmentação,
possibilitada pelo hipertexto; a interação, que torna menos nítidas as posições de leitor
e autor; a construção textual em camadas multimodais, como resultado da exploração
dos diversos recursos disponibilizados pelo meio digital.
Nessa concepção, passam a coexistir duas potencialidades semióticas
específicas do meio eletrônico, a saber, a hipertextualidade e a hipermidialidade.
Segundo Kirchof (2016), a hipertextualidade configura-se pelos links à disposição do
leitor, que, ao seguir certos caminhos em detrimento de outros, cria um percurso de
leitura específico e acaba, simultaneamente, gerando um enredo próprio, que não
seria o mesmo caso tivesse navegado por outros links. Já a hipermidialidade faz-se
presente a partir da hibridização entre linguagens, suportes e meios diferenciados,
sendo, geralmente, associada à hipertextualidade.
A literatura direcionada para crianças e jovens, por sua vez, também
encontrou nas tecnologias da informação e da comunicação terreno fértil para a sua
constituição textual. Lembra Hunt (2010) que a literatura infantil do século XXI tem
como traço característico a ausência de pureza, isto é, se constitui de adaptações,
recontos e absorções de outras obras, sobretudo, de experiências multidimensionais.
―A voracidade da literatura infantil em agrupar e assumir outras formas [...] tem
resultado em algumas anomalias muito curiosas tanto em seu conteúdo enquanto
corpo de textos como em sua composição enquanto objeto de estudo.‖ (HUNT, 2010,
p. 288).
Zilberman, ao abordar a natureza da literatura infantil, constata que se esta
quer ser literatura, ―precisa integrar-se ao projeto desafiador próprio a todo o
fenômeno artístico. Assim, deverá ser interrogadora das normas em circulação,
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impulsionando seu leitor a uma postura crítica perante a realidade.‖ (ZILBERMAN,


2003, p. 176).
Ao se analisar a produção de obras literárias infantis e juvenis tradicionais,
verifica-se que, em sua grande maioria, são elaborados a partir de pelo menos duas
linguagens: verbal e visual. Com a incorporação das tecnologias digitais em novos
dispositivos de leitura, possibilitou-se considerável ampliação de linguagens a partir do
registro de textos multissemióticos e a inserção de recursos interativos, impactando
diretamente os processos de produção de sentido dos leitores. Têm-se como exemplo
dessas produções os livros digitais em formato de aplicativos (book apps) para
dispositivos móveis portáteis, como smartphones e tablets com tecnologia touch
screen, e os sites desenvolvidos por artistas/escritores da literatura infantil, nos quais
são disponibilizadas obras produzidas especialmente para a Internet, contendo efeitos
visuais e sonoros, além de narrativas interativas que envolvem o leitor-navegador.
Em consequência disso, conforme ressalta Kirchof (2016), a formação de
leitores capazes de se apropriarem dessas novas textualidades produzidas e
disponibilizadas no universo digital demanda certo investimento em práticas
multiletradas que envolvem tais ações.

Tipos de leitores, multiletramentos e letramento literário

As discussões que permeiam o modo como as TDIC propiciam novas formas,


tempos e espaços de leitura é de extrema relevância na atualidade, considerando o
uso cada vez mais precoce de dispositivos digitais por parte das crianças, aliada à
produção ainda embrionária de obras literárias em meio virtual. Sabe-se que a leitura é
essencial para a formação dos sujeitos, bem como para a construção de
conhecimento crítico para intervenção na realidade. Por consequência, o processo de
formação de leitores está interligado à literatura infantil, cuja importância no
desenvolvimento psicossocial da criança e no processo de aprendizagem tem incitado
estudos concernentes à sua função de despertar no leitor o gosto e a prática da leitura
em diferentes linguagens e suportes.
A literatura infantil e juvenil em meio digital pressupõe alteração no
comportamento dos receptores, visto que novas estratégias de leitura são produzidas
para a apreensão dos significados que resultam da influência mútua entre essas
diferentes linguagens. Santaella (2004) recorda que do mesmo modo que o contexto
semiótico do código escrito modificou-se ao longo da história, combinando-se com
outros processos de signos, o ato (e o conceito) de leitura também vem expandindo

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suas fronteiras, antes mesmo do advento do ciberespaço. Há uma multiplicidade de


tipos de leitores (da imagem, da pintura, do jornal, de gráficos, de mapas, da cidade,
etc.) que vem aumentando historicamente. Soma-se a essa pluralidade os leitores do
texto – verbal, visual e verbo-visual – que migrou do papel para as telas eletrônicas, e,
mais recentemente, o leitor das telas eletrônicas que navega nas arquiteturas líquidas
e alineares da hipermídia no ciberespaço.
Nesse sentido, partindo dos diversos comportamentos adotados pelo leitor
em diferentes momentos históricos e sociais, Santaella (2004, 2013) apresenta uma
tipologia de leitores que se amolda no percurso entre a cultura do livro impresso e a
cibercultura – atentando para o fato de que o surgimento de um tipo de leitor não leva
o anterior ao desaparecimento: o leitor contemplativo, meditativo (que tem diante de si
os signos duráveis, imóveis, localizáveis, manuseáveis: livros, pinturas, gravuras,
mapas, partituras, etc.), o leitor movente, fragmentado (que aprende a transitar entre
linguagens, passando dos objetos aos signos, da imagem ao verbo, do som para a
imagem com familiaridade imperceptível), o leitor imersivo, virtual (que se conecta
entre nós e nexos, num roteiro multilinear, multissequencial e labiríntico que ele
próprio ajudou a construir ao interagir com os nós entre palavras, imagens, música,
vídeo, etc.) e o leitor ubíquo (cujo perfil cognitivo nasce da mistura das características
do leitor movente com o leitor imersivo, possibilitando que se oriente entre nós e nexos
multimídia, sem perder o controle da sua presença e do seu entorno no espaço físico
em que está situado). Coscarelli (2016) evidencia ainda a questão do leitor-navegador,
que para cumprir a tarefa de ler para aprender usando a Internet, precisa entrelaçar
habilidades e estratégias de leitura e navegação para ler online eficientemente.
Diante desse cenário, faz-se imprescindível um trabalho pedagógico voltado
ao desenvolvimento de habilidades necessárias aos multiletramentos (COPE;
KALANTZIS, 2000, 2008), com o intuito de formar leitores competentes e autônomos
em ambiente digital, levando em conta também a diversidade cultural e social da era
da globalização. O conceito de multiletramentos foi cunhado em 1996 pelo New
London Group, um grupo de pesquisadores dos Estados Unidos, Austrália e Reino
Unido que se reuniu em 1994 em New London, Estados Unidos, para discutir novas
propostas pedagógicas para o ensino dos letramentos emergentes na sociedade
contemporânea, advindos, sobretudo, em virtude das tecnologias digitais. Para Cope e
Kalantzis (2000), o foco de uma pedagogia para os multiletramentos recai não
somente no modo linguístico, mas em outros meios de comunicação para
complementá-lo, tendo em vista a comunicação por meio de textos impressos e

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digitais pelos seus leiautes multissemióticos forjados pelas potencialidades das


tecnologias.
Para Rojo (2012, p. 13), os multiletramentos levam em conta ―a multiplicidade
cultural das populações e a multiplicidade semiótica de constituição dos textos por
meio dos quais ela se informa e se comunica.‖ Do mesmo modo, não se pode
esquecer que os textos multissemióticos configuram-se como dispositivos que
disseminam informações, conhecimentos, valores e crenças, que incidem diretamente
sobre a formação da consciência e da conduta dos sujeitos (ROJO, 2012). É
fundamental que se leve em conta os conhecimentos de outros meios semióticos,
tendo em vista os avanços tecnológicos: as cores, as imagens, os sons, o design, etc.,
que estão disponíveis em muitos materiais impressos e na tela dos dispositivos
computacionais, os quais têm transformado o letramento tradicional em um tipo de
letramento insuficiente para dar conta dos letramentos necessários para agir na vida
contemporânea (KLEIMAN, 2014).
Vem dessa compreensão a extensão do significado da palavra para todo
processo de construção de sentido, tal qual é encontrada em expressões como
letramento digital, letramento informacional, letramento visual, entre outras. O
letramento literário faz parte dessa expansão do uso do termo letramento, isto é,
integra o plural dos letramentos. Os letramentos produzidos por meio de textos
literários diferem de outros letramentos, pois demandam processos educativos
específicos que a mera prática de leitura de textos literários não consegue sozinha
efetivar. Logo, não se trata apenas de um saber que se adquire sobre a literatura, mas
uma experiência de dar sentido ao mundo por meio de textos que falam de textos,
transcendendo os limites de espaço e tempo (SOUZA; COSSON, 2009).
Deste modo, o letramento literário pode ser entendido como ―[...] o processo
de apropriação da literatura enquanto construção literária de sentidos.‖ (PAULINO;
COSSON, 2009, p. 67). Segundo Cosson (2016), a literatura consiste em lócus de
conhecimento e, para que funcione como tal, deve ser explorada de maneira
adequada. A leitura literária implica troca de sentidos não somente entre o leitor e o
escritor, como também com a sociedade em que ambos estão localizados, com as
diferentes culturas, uma vez que os sentidos resultam de compartilhamentos de visões
do mundo entre sujeitos no tempo e no espaço.

Ciberpoesia: um gênero discursivo emergente

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Frente à expansão no trato da literatura, ampliam-se também as


possibilidades de abordagem dos gêneros discursivos no ciberespaço. Conforme
Hayles (2009, p. 23), ―as variedades de literatura eletrônica são ricamente diversas,
abarcando todos os tipos associados com a literatura impressa e acrescentando
alguns gêneros únicos ao meio eletrônico em rede e programável.‖
No que tange a esta pesquisa, será focalizado o gênero discursivo
ciberpoesia – também chamado ―poesia hipertextual‖ (CAPPARELLI; GRUSZYNSKI;
KMOHAN, 2000, p. 69) –, considerado uma ―nova expressão poética do nosso tempo
e [que] integra o território da ‗ciberarte‘, termo que assim como a [...] web arte ou arte
das redes, se refere a toda a arte que tem sua base na cibercultura.‖ (SANTAELLA,
2007, p. 332).
Do seu uso lírico, em harmonia com a era das TDIC, a palavra, nesse formato
inovador de comunicação poética, ―deixa de ser linguagem verbal e amplia seus
horizontes, suas delimitações, para tornar-se texto verbal, sonoro, visual, audiovisual,
digital, em outro contexto.‖ (ANTONIO, [200-]).
Consequentemente, a composição da poesia em meio digital não deve ser
pensada na rigidez e estabilidade do texto impresso, mas arranjada no ―espaço
tridimensional da tela do computador que se transforma no novo campo de
significação do poema.‖ (LONGHI, 2001, p. 87).
A ciberpoesia, portanto, considerada uma expressão poética da
contemporaneidade, possui uma construção híbrida, tanto na linguagem quanto no
modo de acesso, em que são fundidos o texto escrito, o texto visual, o áudio e a
estrutura de jogos eletrônicos, configurando um composto hipertextual e
hipermidiático. Como as interações possibilitadas pelo ciberespaço reduzem as
distâncias entre o autor e o leitor-navegador, revelando uma relação de
cooperatividade mútua entre ambos no processo de significação, pode-se afirmar que
a interatividade e a colaboratividade constituem-se em propriedades basilares
inerentes à ciberpoesia.
A ciberpoesia

exige um leitor atento e possuidor de habilidades técnicas. Com a


interatividade o leitor torna-se coautor da obra. O preconceituoso
postulado da autoria é posto contra a parede. [...]. No ciberpoema a
autoria é coletiva. É possível pensar um ciberpoema em sistema
aberto no qual leitores anônimos colaborariam como autores
anônimos em uma obra coletiva que, por definição, seria uma obra
inacabada, indeterminada, em progresso. (CAPPARELLI;
GRUSZYNSKI; KMOHAN, 2000, p. 81).
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Tradicionalmente, conforme rememora Coelho (1981), a produção poética


brasileira destinada especificamente aos pequenos leitores apresenta uma série de
poetas conscientes da metamorfose da poesia ao longo dos tempos, tais como Cecília
Meirelles, Sidónio Muralha, Stella Carr, Mário Quintana, Vinicius de Moraes,
Henriqueta Lisboa, entre muitos outros, sendo que em cada um é possível encontrar
um jeito diferente de ver o mundo, assim como, diferentes modos de utilização do som
e do ritmo. Contudo, em todos se percebe a mesma intensão de explorar as
peculiaridades da literatura infantil em geral: ―a graça, o pitoresco, a ‗situação‘ breve e
objetiva, a interrogação que espicaça a curiosidade, a emoção que leva a uma
compreensão melhor do ‗outro‘ ou à solidariedade ativa [...].‖ (COELHO, 1981, p. 155).
Hodiernamente, mesmo que ainda não exista produção significativa de poesia digital
para os públicos infantil e juvenil no Brasil, merecem destaque duas importantes
contribuições: Álvaro Andrade Garcia e Sérgio Capparelli.
No livro ―Poemas de brinquedo‖242 (GARCIA, 2016), disponível em formato de
aplicativo e também em papel, o artista mineiro Álvaro Andrade Garcia apresenta a
potencialidade artística de obras poéticas que ultrapassam o impresso e transbordam
para outras mídias, por meio da união da palavra escrita à palavra entoada e da
junção de imagens poéticas às imagens cinematográficas, criando uma espécie de
poesia expandida.
Outro exemplo de uso dos recursos hipermidiáticos na produção de
ciberpoesias pode ser encontrado no site capparelli.com.br, do escritor de literatura
infantojuvenil, jornalista e professor universitário mineiro Sérgio Capparelli. Em
parceria com a designer e professora de comunicação Ana Cláudia Gruszynski,
juntamente com a produção da agência digital W3Haus, Capparelli desenvolveu os
projetos ―Ciber&Poemas‖ (―Ciberpoemas‖; ―Poesia visual‖; ―Brincando na Web‖) 243 e
―Zoom na Poesia‖244, cuja arquitetura é baseada na união de hipertextos e recursos
multissemióticos e multimidiáticos (palavras, sons, imagens e movimentos).
Nove poemas digitais disponibilizados em ―Ciberpoemas‖ (Navio, Primavera,
Cheio/vazio, Xadrez, Chá, Zigue-Zague, Flechas, Van Gogh e Babel) tem sua origem
no livro ―Poesia visual‖ (CAPPARELLI; GRUSZYNSKI, 2000), no entanto, não

242
A versão digital para acesso por meio de navegadores da Web está disponível
gratuitamente no endereço eletrônico
<http://www.managana.org/editor/?render=5&community=pb>.
243
Disponível em: <http://www.ciberpoesia.com.br/>.
244
Disponível em: <http://www.ciberpoesia.com.br/zoom/index.htm>.
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consistem em simples digitalização (versão digital) dos poemas presentes na versão


impressa, podendo ser concebidos, portanto, como novas obras, uma vez que
apresentam consideráveis modificações em relação ao original a partir da
incorporação de recursos computacionais e midiáticos concebidos exclusivamente
para cada ciberpoema.
Já as ciberpoesias presentes em ―Zoom na Poesia‖ foram desenvolvidas
especialmente para o meio digital. Nesse projeto, a relação entre os hipertextos e as
multimídias extrapola a convergência de linguagens, e agencia o leitor-navegador,
possibilitando que ele se torne cocriador dos textos poéticos. O referido projeto e as
experimentações proporcionadas pela interação com os ciberpoemas serão
apresentados na sequência.

Práticas multiletradas com ciberpoesia

O site do projeto ―Zoom na Poesia‖ é um ótimo exemplo de aproveitamento


dos suportes hipertextuais e hipermidiáticos na literatura para crianças.
Ao adentrar o site, o ciberleitor se depara com um design leve em cores e
com elementos dispostos com parcimônia, ao mesmo tempo em que é abordado por
uma figura animada (um garoto) que interage com o leitor-navegador, dando-lhe boas-
vindas e solicitando a escolha de uma das atividades, por meio de um balão de fala
característico das histórias em quadrinhos.
Quando o mouse é posicionado nos hiperlinks das seções, o garoto descreve
o que o visitante poderá realizar ao clicar naquelas opções: Declamar - ―expresse
diferentes emoções mudando a entonação de voz!‖; Criar e completar - ―mude a
ordem dos poemas!‖; Encadear - ―reorganize as palavras e crie novos significados!‖;
Recompor - ―desmanche e junte de novo os poemas!‖; Jogar com sons - ―brinque com
a sonoridade das palavras!‖; Ver, desenhar e compor - ―crie um desenho a partir de
um poema!‖.
A Figura 1 evidencia a página inicial do site Zoom na Poesia.

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Figura 1 - Página inicial do site Zoom na Poesia


Fonte: Gruszynski e Capparelli (2000).

As seções disponibilizam um número específico de ciberpoemas, cada uma


contendo atividades com propósitos específicos, os quais são explicados
detalhadamente tanto na introdução da seção quanto antes do acesso ao ciberpoema:
a) declamar: possui os ciberpoemas ―O que é mãe?‖, ―Os dentes do jacaré‖,
―Semana inteira‖, ―Relâmpago‖, ―Os inocentes da Lomba do Pinheiro‖ e ―A
flauta do Nicolau‖. É sugerido ao ciberleitor a realização de leitura em voz
alta e a declamação (utilizando mudança na tonalidade e na velocidade da
voz, como no teatro ou em uma novela). Para alguns ciberpoemas foram
disponibilizados dispositivos de áudio para ouvi-los declamados;
b) criar e completar: contém os ciberpoemas ―Gato letrado‖, ―De muito
longe‖, ―A bomba/A salvação‖, ―Um hipopótamo na banheira‖ e ―Que nem
um tiro‖. O ciberleitor é convidado a reorganizar as palavras para dar
novos significados aos poemas. Quem escolhe, por exemplo, ―De muito
longe‖ ou ―Que nem um tiro‖, para completar o poema original, pode criar
seus próprios versos e mesclá-los com o original, criando um novo poema
conjuntamente com os autores;

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c) encadear: contempla os ciberpoemas ―A morte bate à porta‖,


―Cibercócegas na professora‖ e ―Zoom‖. Nesta seção, o ciberleitor precisa
observar como os poemas parecem reproduzir movimentos, em
consonância com as imagens interativas disponibilizadas logo ao lado.
São poemas repletos de rimas e ritmos, que, quando declamados, dão a
sensação de movimento do zoom característico de máquinas fotográficas
(do grande ao pequeno, do próximo ao longe, de dentro para fora, e vice-
versa);
d) recompor: possui os ciberpoemas ―Poemas do Frank‖ e ―Era uma vez‖.
Esses poemas exigem um pouco mais de ação por parte do ciberleitor,
que vai trabalhar junto com os autores para criar novas imagens,
harmoniosas (ou em desarmonia) entre palavras e sentidos. Em ―Poema
do Frank‖ (Figura 2), por exemplo, o poema está dividido em vários blocos
e é necessário montá-lo. Para tanto, é preciso levar o mouse até os
fragmentos dos versos desfeitos e clicar um por um, até recombiná-los da
maneira desejada, utilizando-se de processos imaginativos. Observa-se
nesse poema a intertextualidade com a história do monstro Frankenstein,
em que a criança monta o poema à semelhança do processo de criação
desse personagem fictício criado por Mary Shelley;
e) jogar com sons: nesta seção, o ciberleitor encontra os ciberpoemas
―Cibermenino irritado‖, ―Dúvidas‖, ―Musiquinha chata‖ e ―Barata‖. A análise
evidencia que nem sempre a poesia é feita apenas de palavras, mas
também por sons e ritmos, aproximando-se da música. ―Cibermenino
irritado‖, por exemplo, explora onomatopeias e, quando declamado,
remete ao estilo musical ―rap‖;
f) ver, desenhar e compor: contém cinco itens (―O móbile‖, ―Os peixes‖,
―Imagens de Portinari‖, ―Ciberpoema do Zigue-Zague e Chá‖ e
―Ciberpoema Bomba‖. Trata-se de uma tentativa de estabelecer interação
entre a poesia e a linguagem de outras artes, em que o ciberleitor é
convocado a realizar atividades múltiplas: da leitura de poemas é
convidado a pintar ou desenhar o que depreendeu da leitura; da
leitura/apreciação de imagens, é instigado a transpor as emoções para a
escrita. Após a visualização de ―Zigue-Zague‖, por exemplo, o ciberleitor é
orientado pelos autores a desenvolver um poema em quadrinhos.

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Figura 2 - Poema do Frank


Fonte: Gruszynski e Capparelli (2000).

Com base em Capparelli, Gruszynski e Kmohan (2000), observa-se que os


ciberpoemas foram construídos contemplando sequências e narrativas interativas, em
que são apresentados: os títulos dos poemas e suas personagens; a construção dos
poemas segundo versos/design preestabelecidos; e os frames que possibilitam
interação com os poemas por meio de hiperlinks. A interatividade se dá pela relação
humano-computador de modo analógico-mecânico e eletrônico-digital,
simultaneamente, pois o ciberleitor, além de interagir com a máquina, interage com o
conteúdo hipertextual/hipermidiático. Conjuntamente, estabelecem-se três níveis
interativos entre ciberleitor e ciberpoema: quanto ao hardware (manipulação dos
dispositivos de entrada – como mouse e teclado –, e de saída – como monitor de
vídeo e caixas de som –, e os comandos por eles possibilitados), ao browser
(comandos do programa de visualização, no caso, o Macromedia Flash) e ao
hipertexto em si mesmo (a interface gráfica, ou o modelo interativo que envolve os
sistemas que operam sobre os indicativos de tela baseados em janelas, ícones,
menus e ponteiros).
Em ―Zoom na Poesia‖ verifica-se que, diferentemente dos textos impressos,
os textos digitais convidam o ciberleitor a tornarem-se inventores, coautores e

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cocriadores ativos, uma vez que a leitura hipertextual demanda interação com aquilo
que se está lendo/apreciando e, consequentemente, tomadas de decisões, as quais
influenciarão no resultado final da leitura-navegação. Essa multissequencialidade
presente nos ciberpoemas de Gruszynski e Capparelli permite aos ciberleitores a
realização de diferentes leituras e a criação de múltiplos sentidos a cada acesso.
A hipermidialidade e a multissemioticidade presentes nesse modo de
literatura torna a leitura dos ciberpoemas extremamente fruitiva, sobretudo, em função
do seu acentuado caráter lúdico, que sensibiliza o ciberleitor para o fazer poético ao
conjugar palavras, imagens e sons em relação com o jogo. A análise revela, no
entanto, que a estética textual presente nos ciberpoemas rompe com a relação de jogo
assim que o leitor-navegador completa a leitura do texto e produz sentidos.

Considerações finais

Em ―Zoom na Poesia‖, é possível interagir poeticamente entre diversos


hiperlinks que mesclam poesia com elementos sonoros, visuais e verbais. A
persuasão do público infantil e juvenil ocorre por meio da inter-relação entre
declamação, criação, composição e recursos que se assemelham aos utilizados pelos
jogos eletrônicos.
Em ambiente digital, as poesias acionam estratégias diferenciadas de leitura
e sobrelevam a necessidade de maior interatividade por parte do ciberleitor, fato que
expande a noção de letramentos para multiletramentos. Deste modo, tal ampliação dá
conta da diversidade de semioses que coocorrem nos textos presentes na mídia
hodierna: verbal, visual, sonoro, cinético (e suas hibridizações).
Nesse panorama, os leitores produzem sentido para esses textos a partir do
percurso de leitura que trilham. Essa experiência particular de leitura promovem por
meio de um processo estético, diferentes sentimentos e experiências no leitor.
Os resultados obtidos evidenciam que os processos interativos explorados
nas ciberpoesias ampliam as possibilidades de produção de sentido, uma vez que o
emprego de linguagem híbrida e hipermidiática se incorpora à gênese do texto e
potencializa os processos de produção de sentido pelo leitor-navegador que pode
atuar como cocriador do texto, interferindo em sua organização.
Na literatura infantil e juvenil contemporânea, marcada por multissemioses,
intertextualidades, revisitamentos, entrelinhas e espacejamentos, cabe ao leitor
mergulhar profundamente no texto, com a sua própria bagagem (experiência,
memória, subjetividades), e dele emergir com as suas verdades, a sua visão diante do

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explorado, seus pontos e contrapontos, enfim, com intersubjetividades (o resultado


dos atravessamentos e das múltiplas interações autor-texto-leitor). Assim, há nessa
interatividade a coautoria textual, onde o leitor, ao explorar os variados textos
multissemióticos que o rodeiam, além de procurar compreendê-los e interpretá-los,
ativa sua memória, inter-relaciona experiências e fatos, elabora inferências e,
assim,produz sentidos, isto é, produz seu próprio texto.
Como afirma Cagneti (2013), para a construção do leitor literário da
atualidade, uma das estratégias encontradas é a da leitura em contraponto. Se as
verdades de hoje não são mais absolutas, há que se saber revisitá-las. Receber o
texto literário na contemporaneidade, entendê-lo, agindo sobre ele, exige permanente
atualização, e para tal, é preciso pensar um novo leitor: que saiba olhar sob diferentes
pontos de vista e contextos.

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EIXO TEMÁTICO 7

Literatura Infantil e Juvenil e


Temas Polêmicos
Literatura infantil e juvenil e temas polêmicos
Rosa Maria Hessel Silveira (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Sandra Franco (Universidade Estadual de Londrina/UEL) Eduardo Augusto
Werneck Ribeiro (Instituto Federal Catarinense - Campus São Francisco do Sul
(SC))

―Temas polêmicos‖, ―temas delicados‖, ―temas tabu‖ são algumas das formas
de nomeação de temas como morte, medo, abandono, separação dos pais,
deficiência, doença, drogadição, aborto, sexualidade, racismo, preconceito,
guerras, quando presentes em livros literários direcionados à infância e
adolescência. Tal nomeação aponta para o desafio que tal abordagem
acarreta, em função do risco do didatismo nos livros ou – em termos mais
amplos – da dificuldade de aceitação de tais obras nos circuitos de leitura.
Nesse sentido, o eixo temático pretende se abrir a tais discussões, aceitando
tanto ensaios de cunho mais teórico sobre a articulação entre qualquer desses
temas e a literatura infantojuvenil, quanto análises de obras específicas
(contemporâneas ou de outros momentos históricos) que os explorem – de
maneira central ou secundária, através dos personagens, p.ex. - e, ainda,
trabalhos que incorporem a análise da leitura de obra(s) que contemple(m) tais
temáticas, por crianças e/ou adolescentes.
ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

A LITERATURA INFANTIL E O MEDO: REPRESENTAÇÕES EM O


PEIXE PIXOTE, DE SÔNIA JUNQUEIRA, E O GATO E O
ESCURO, DE MIA COUTO

Vera R. V. Dupont, UNIOESTE, Literatura infantil e juvenil e temas polêmicos

Considerações Iniciais
O presente trabalho faz uma análise da obra de Sonia Junqueira, O Peixe
Pixote, verificando sua relação ideológica ou proximidade metafórica com a obra do
escritor moçambicano Mia Couto, O Gato e o Escuro. As duas obras recorrem à
temática do medo do escuro e, conforme Bauman (2008, p. 8), ―A escuridão não
constitui a causa do perigo, mas é o habitat natural da incerteza – e, portanto, do
medo‖.
É possível verificar também, em ambas, ―O mito da caverna‖, de Platão, que é
considerado uma das metáforas mais significativas da filosofia em qualquer tempo,
narrada no livro VII do República, e descreve uma situação geral em que
supostamente todos os seres humanos se encontram, uma vez que para o filósofo
Platão, todos nós estamos condenados a apenas ver sombras à nossa frente e a
tomá-las como verdadeiras. Assim, como no mito, podemos dizer que estamos presos
a cavernas e apenas observamos as sombras que nos chegam de fora, projetadas em
suas paredes. Não ousamos, deste modo, sair da caverna para verificar o que
realmente representam tais figuras; apenas tomamos aquilo que vemos como certo e
verdadeiro, iludindo-nos ao acreditar que nada existe além delas.

[...]Uma alegoria nos mostrará agora a situação dos homens em face


da verdadeira luz. Suponhamo-los cativos, acorrentados num local
subterrâneo com o rosto voltado para a parede oposta à entrada e
impossibilitados de ver algo além desta parede. Iluminam-na os
reflexos de um fogo que arde fora, sobre uma elevação, em cuja
metade passa um caminho bordejado por um pequeno muro. Atrás
deste muro desfilam pessoas carregando sobre os ombros objetos
heteróclitos, estatuetas de homens, animais, etc. Destes objetos, os
cativos enxergam apenas a sombra projetada pelo fogo sobre o fundo
da caverna; do mesmo modo, ouvem apenas o eco das palavras que
os portadores trocam entre si. (PLATÃO, 1973, p.35).
1180

Podemos perceber os ecos do mito da Caverna na literatura infantil brasileira


através da história O Peixe Pixote, de Sonia Junqueira, bem como na obra de Mia
Couto. A obra O Peixe Pixote narra a história de um peixe que vivia infeliz porque o
lago em que morava era escuro e feio. Assim, o pobre peixe nadava com muito medo
daquela escuridão toda e deliciava-se ao contemplar, na beira do lago, os raros
momentos em que via a superfície terrestre. Para ele, aquele era o lugar perfeito,
cheio de cores e vida. Mas, precisava mergulhar novamente já que dependia disso
para sua sobrevivência, mesmo sentindo muito medo do escuro.

Representações do medo
O medo é um sentimento ancestral que acompanha a todos, ora ajudando na
preservação da espécie humana, ora paralisando e com isto impedindo o ser humano
contemporâneo de viver situações cotidianas. Observa-se que a sociedade atual está
cercada de situações que apavoram. Quer seja o emprego que precisa ser mantido ou
a violência que se deve conter, as pessoas convivem com uma infinidade de medos
que geram um sentimento de ansiedade constante.
Em sua obra Medo Líquido, Zygmunt Bauman faz alguns apontamentos acerca
do medo no que chama de ―era líquido-moderna‖. Para esse sociólogo, apesar de a
sociedade – sobretudo nos países desenvolvidos – ter desenvolvido a capacidade de
controlar situações de risco, nunca se viveu com tanta ansiedade.
Para Bauman (2008), o medo não é apenas um sentimento humano, mas de
todo ser vivo e o que diferencia os animais de seres humanos é o modo como reagem
diante de situações de risco: enquanto os primeiros apenas oscilam entre fugir ou
agredir, os segundos, além dessas duas reações, desenvolvem o medo de ―segundo
grau‖, cultural e socialmente adquirido, que consiste num temor baseado em
experiência passada, que segue norteando o comportamento humano mesmo que não
haja nenhuma ameaça visível. Afirma, a respeito disso, que

O ―medo derivado‖ é uma estrutura mental estável que pode ser mais
bem descrita como um sentimento de ser suscetível ao perigo; uma
sensação de insegurança (o mundo está cheio de perigos que podem
se abater sobre nós a qualquer momento com algum ou nenhum
aviso) e vulnerabilidade (no caso de o perigo se concretizar, haverá
pouca ou nenhuma chance de fugir ou de se defender com sucesso;
o pressuposto da vulnerabilidade aos perigos depende mais da falta
de confiança nas defesas disponíveis do que do volume ou da
natureza das ameaças reais). (BAUMAN, 2008, p.9).

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De acordo com Bauman (2008, p.10) podem ser de três formas os perigos dos
quais se tem medo: os que ameaçam o corpo e as propriedades, os que ameaçam a
durabilidade da ordem social (renda, emprego) e aqueles que ameaçam o lugar da
pessoa no mundo (identidade, hierarquia social, exclusão social). No entanto, há
estudos que comprovam que o ―medo derivado‖ é facilmente ―desacoplado‖ dos
perigos que o causam, na consciência de quem sofre e, ao sentir insegurança e
vulnerabilidade, o sofredor pode fazer uma interpretação dele com base em qualquer
uma dessas três formas. ―As reações defensivas ou agressivas resultantes, destinadas
a mitigar o medo, podem assim ser dirigidas para longe dos perigos realmente
responsáveis pela suspeita de insegurança‖. (BAUMAN, 2008, p.10).
O medo do escuro também está presente na obra O Gato e o Escuro, de Mia
Couto. Nela, Pintalgato vive na fronteira entre o dia e a noite e, ao mesmo tempo em
que sente medo do escuro, sente curiosidade em desvendá-lo. Ao contrário da
personagem Pixote, que vive na escuridão do lago e almeja a transposição para a
claridade da superfície, Pintalgato deseja adentrar a noite escura, para conhecê-la.
Nota-se, nesta narrativa, a presença da voz do adulto que, na figura da mãe gata,
alerta o filho: ―[...] Nunca atravesse a luz para o lado de lá.‖ (COUTO, 2001).
O gato, apesar do apelo materno, sente-se encorajado e faz a travessia: ―[...]
Foi ganhando mais confiança e, de cada vez, se adentrou um bocadinho. Até que a
metade completa dele já passara a fronteira, para além do limite.‖ (COUTO, 2001).
Conforme Delumeau (1989, p. 18), ―Medo e covardia não são sinônimos‖ e o gato
atravessa a linha que dividia o claro e o escuro, o limite ou fronteira, que também é
percebido na obra de Sônia Junqueira: ―E a vida de Pixote era assim. Da água para a
margem, da margem para a água. Sempre sozinho, cheio de medo, infeliz da vida.‖
(JUNQUEIRA, 1990, p.13).
A passagem ou travessia pode ser comparada a uma porta ou portal de acesso
de um a outro espaço, conforme Chevalier (1998):

Porta. Simboliza o local de passagem entre dois estados, entre dois


mundos, entre o conhecido e o desconhecido, a luz e as trevas, o
tesouro e a pobreza extrema. A porta se abre sobre um mistério. Mas
ela tem um valor dinâmico, psicológico; pois não somente indica uma
passagem, mas convida a atravessá-la. É o convite à viagem rumo a
um além. ( CHEVALIER, 1998)

A passagem, assim, é feita pelas personagens numa travessia do sentimento


de medo para o da coragem, de enfrentamento da situação que o causa; do temor do
desconhecido à compreensão e tomada de conhecimento daquilo que lhe estimula. O

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enfrentamento da situação causadora do medo pode ser considerado como a


superação do mesmo e isto se apresenta na Literatura Infantil, onde as personagens
buscam desvencilhar-se dos laços do medo que as prendem e revelam a capacidade
de modificar sua realidade. Verifica-se, portanto, um cunho ideológico da pedagógia
que quer orientar o público infantil a refletir sobre seus medos através dos medos
vivenciados nas narrativas que lê. Todavia, é muito importante que haja espaço para
essa reflexão na arte narrativa, já que esta pode ser vista como fonte de prazer e
descoberta, possibilitando à criança a realização de suas viagens pela imaginação,
reflexão e criação. Através de uma narrativa impregnada de fantasia, pode-se discutir
os comportamentos sociais ideologicamente dominantes, conforme destaca Fanny
Abramovich:

É através duma história que se podem descobrir outros lugares,


outros tempos, outros jeitos de agir e de ser, outra ética, outra ótica....
É ficar sabendo História, Geografia, Filosofia, Política, Sociologia,
sem precisar saber o nome disso tudo e muito menos achar que tem
cara de aula... Porque, se tiver, deixa de ser literatura, deixa de ser
prazer e passa a ser Didática. (ABRAMOVICH, 1994, p.17)

As experiências vivenciadas através de uma história podem marcar o leitor,


alargar o conhecimento de mundo que ele tem, trazendo para a realidade aquilo que
experimentou na ficção:

É a literatura porta de um mundo autônomo que, nascendo com ela,


não se desfaz na última página do livro, no último verso do poema, na
última fala da representação. Permanece ricocheteando o leitor
incorporado como vivência, erigindo-se em marco do percurso de
leitura de cada um. (LAJOLO, 1984, p.43).

A literatura permite, conforme Todorov (2009), um encontro com diferentes


indivíduos; cada personagem é uma pessoa nova que passa a ser conhecida pelo
leitor e, ―Quanto menos essas personagens se parecem conosco, mais elas ampliam
nosso horizonte, enriquecendo assim nosso universo‖ (TODOROV, 2009, p.81). Tanto
o peixe quanto o gato, nas narrativas analisadas, permitem ao leitor uma melhor
percepção do medo e enfrentamento do mesmo, já que o experimentam na trajetória
das personagens citadas.
Em O Peixe Pixote, a personagem é surpreendida ao perceber que não está
sozinho: há um mundo cheio de peixes e cores destacadas por uma claridade
deslumbrante. Por um momento, entretanto, pensa que aquele é um outro lugar,
mesmo deixando-se envolver por tantas cores e brilhos, pelos tons que a claridade
provocava no azul refletido na água.

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Um dia, Pixote estava nadando e olhando os outros peixes. Eles


brincavam, contentes nas águas claras do lago. De repente, Pixote
pensou: – Ué! Outros peixes? Águas claras? O que aconteceu?
Será que vim parar em outro lago sem saber? Perguntava Pixote. E
olhava para todo lado e via um monte de coisas novas. Via pedras
de todos os tamanhos, de todas as cores. E plantas aquáticas, sapos
e rãs. Até sapatos velhos e brinquedos de crianças tinha lá. E era
tudo tão lindo! A água meio azulada, cheia de claros e escuros, cheia
de brilhos. Uma beleza, mesmo! (JUNQUEIRA, 1990, p.15).

Desta forma, Pixote consegue sair da caverna que o aprisionava naquela


escuridão que era o mundo que conhecia, mas não conseguia explicar a
transformação ocorrida. Onde estaria o mundo escuro e assustador que o
amedrontara por tanto tempo? Foi então que sua percepção se tornou mais clara.
Conseguiu compreender que a escuridão só existia dentro de si, assim como a
personagem Pintalgato, que ressinifica o medo do escuro, enfrentando-o. Podemos
comparar, assim, a caverna com o fundo do lago, ou com a noite escura, conforme as
duas narrativas; mais propriamente, com as próprias personagens presas em seus
medos. O peixe vivia em seu próprio cárcere e quando conseguiu fazer o movimento
de se libertar, ou seja, abrir os olhos e sair da ―caverna‖, dá-se conta de que o lugar
idealizado sempre existira, mas sua perspectiva equivocada impedia-o de contemplá-
lo.

Pixote olhava e ria. Cadê a escuridão? Cadê o medo? Pixote estava


era contente, feliz da vida. De repente Pixote descobriu o que havia
acontecido. E começou a rir. – Eu sou mesmo um pateta, ficava
nadando pra lá e prá cá, morrendo de medo do escuro... Lógico! Eu
só nadava de olhos fechados. (JUNQUEIRA, 1990, p.22).

Para o gato, personagem de Mia Couto, a descoberta foi que o medo estava
dentro de si, já que o escuro vai ao seu encontro e mostra-se triste por não enxergar
nada, invertendo a relação existente entre os dois, já que o próprio medo, conforme a
fala de sua mãe, vive longe da luz e por isso tem uma vida triste por nada enxergar.
Neste momento, a mãe esclarece, como que se jogasse luz à percepção do gato, que
o escuro só existe dentro de si, ao sentir medo. Há, também, o momento em que o
gato abre os olhos e percebe que estava sonhando, voltando à realidade inicial da
narrativa. Nesse momento, há uma proximidade com a trajetória da personagem
Pixote, que faz o movimento de abrir os olhos para dar-se conta de uma nova
perspectiva.
A leitura da obra O Peixe Pixote pode ser considerada como uma metáfora, em
que o autor passa sua ideologia através da personagem, levando à compreensão de
que muitas vezes estamos errados, pois todos compartilhamos limitações que muitas

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vezes nos fazem ter interpretações erradas a respeito de situações e pessoas. Então,
podemos dizer que a história do peixinho serve de passagem para a percepção de
nossas próprias falhas e dificuldades, compreendendo a existência dos outros pontos
de vista, outros modos de viver e, portanto, outras ideologias. Assim como as figuras
que dançavam enigmaticamente nas paredes da caverna não passavam de sombras
de pessoas que viviam fora da caverna, o peixe descobriu que o mundo escuro e
enclausurado era fruto de sua suposta cegueira e tal ação nos leva a questionar as
próprias cegueiras e de certo modo a compreender as cegueiras alheias. Quando o
peixe percebe que há um mundo colorido do lado de fora do lago, passa a perceber a
escuridão do interior do lago, num alargamento de sua compreensão do mundo. Ele,
então, passa a desejar viver num lugar tão colorido quanto aquele. Mas, sabendo de
suas limitações fisiológicas, permite-se apenas contemplar o que para ele era o belo e
o novo, não saindo da caverna, mas permitindo-se a observar as sombras que lhe
sugerem o desconhecido. A criança percebe, através das metáforas utilizadas na
linguagem literária, um mundo particular, cotidiano e vive, junto com as personagens
suas histórias por elas vivenciadas, extraindo aquilo que lhe traz significado. Desse
modo, vivenciando novas experiências a partir de situações conhecidas, vai alargando
seu conhecimento sobre o mundo e se instrumentalizando para o enfrentamento e
compreensão de novas situações que surgirão no decorrer de sua vida.

[...] a maior carência é o conhecimento de si mesma e do ambiente


no qual vive, que é primordialmente da família, depois o espaço
circundante e, por fim, a História e a vida social. O que a ficção
sugere é uma visão de mundo que ocupa as lacunas resultantes de
sua restrita experiência existencial, através de sua linguagem
simbólica. (ZILBERMAN, p. 23, 1985).

Nota-se que muitas narrativas infantis contemporâneas também discutem o


tema ―medo‖, sendo que agora, todavia, não mais apenas sob a caricatura de criaturas
inexistentes; os medos também assumem uma característica mais contemporânea,
sendo o medo do escuro um dos mais recorrentes.

Considerações Finais
As obras O Peixe Pixote e O Gato e o Escuro apresentam uma versão atual da
antiga e conhecida metáfora de Platão, ―O mito da Caverna‖, que trata do
entendimento limitado que temos a respeito da verdade por estarmos condenados a
ver sombras a nossa frente e a tomá-las como verdadeiras. Assim, considerando a
literatura infantil como base para uma leitura de mundo mais ativa, buscamos
desvendar o uso da linguagem metafórica para a transmissão de ideologias que,
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desde cedo, vão construindo o ser humano na compreensão daquilo que a sociedade
julga como sendo o certo ou o errado. O peixe Pixote e o gato Pintalgato se libertam
de sua caverna interior e passam a contemplar um mundo diferente, reafirmando o
que dizia Platão: ―O puro esplendor das essências, este só é dado a contemplar e fixar
na alma a quem, rompendo os grilhões, se tenha elevado além das trevas da caverna
até o reino do Sol‖ (PLATÃO, 1973, p.36).
Através das personagens das narrativas brasileira e moçambicana, verifica-se
que a literatura possibilita o alargamento da compreensão daquilo que tomamos por
verdadeiro, em um questionar constante de novas sombras e cárceres que vão
surgindo em nossos lagos ou noites escuras, ora como consequência das
circunstâncias, ora por nossas próprias atitudes, levando-nos a aceitar o novo como
uma forma de libertação de antigas amarras viciosas.

Referências

ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione,


1994.
CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro:
José Olympio, 2001.
COUTO, Mia. O gato e o escuro. Lisboa: Editorial Caminho, 2001.
DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente: 1300-1800 – uma cidade sitiada.
São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
FERREIRA. Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio do Século XXI: o dicionário da
língua portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
JUNQUEIRA, Sonia Marta. O Peixe Pixote. São Paulo: Ática, 1990.
LAJOLO, Marisa. O que é literatura. 4 ed. São Paulo: Brasiliense, 1984
MAGALHÃES, Ligia e ZILBERMAN, Regina. Literatura Infantil: autoritarismo e
emancipação. São Paulo: Ática, 1984.
PLATÃO. A República. GUINSBURG, J. 2ª Ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro,
1973.
TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. 2. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.
ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na Escola . São Paulo: Global, 1985.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

REPRESENTAÇÃO DO FEMININO EM VITÓRIA VALENTINA, DE


ELVIRA VIGNA

Ana Paula Serafim Marques da Silva, GT 7 – UFPB, Literatura Infantil e Juvenil


e temas polêmicos
Cristina Rothier Duarte, IFPB/UFPB, GT 7 - Literatura Infantil e Juvenil e temas
polêmicos
Valnikson Viana de Oliveira, UFPB, GT 7 - Literatura Infantil e Juvenil e temas
polêmicos
Daniela Maria Segabinazi (Orientadora), UFPB, GT 7 - Literatura Infantil e
Juvenil e temas polêmicos

Considerações Iniciais

Na literatura infantil e juvenil, a imagem caracteriza-se como um recurso


bastante relevante para o desenvolvimento do jovem leitor. Podendo assumir a função
de complemento visual, aguçando a percepção e proporcionando o divertimento,
muitas vezes o recurso visual ultrapassa esse papel, ganhando uma magnitude na
obra literária tão importante quanto o dito por meio da escrita. Nessa perspectiva,
propomos apresentar uma leitura da representação feminina em Vitória Valentina
(2016), da escritora e artista plástica carioca Elvira Vigna (1947-2017), novela gráfica
que imbrica linguagem verbal e linguagem visual.
Para tratar de vários temas polêmicos, em diálogo com o público juvenil, a
autora optou por um gênero de semântica própria, isto é, com sinais ou convenções
específicas, como balões, onomatopeias etc. – peculiaridades do gênero adotado pela
autora, a arte sequencial, que, cada vez mais, se associa à literária, motivando novos
estudos sobre sua estrutura e potencialidade instrumental, assim como seus limites e
possibilidades criativas ante a narrativa ficcional. Sendo assim, diante de toda a
diversidade visual de nosso corpus, temos como principal objetivo identificar,
caracterizar e analisar alguns dos recursos empregados pela artista para representar a
protagonista feminina. Para fundamentar o nosso trabalho, valemo-nos especialmente
de pressupostos teóricos acerca da arte sequencial de Will Eisner (2010) e de Vigna
1187

(2011), e da análise de Leda Cláudia Silva (2010) sobre a representação do feminino


na Literatura Infantil e Juvenil. A metodologia utilizada é a pesquisa bibliográfica de
cunho qualitativo-interpretativo.

O feminino na Literatura Infantil e Juvenil

Se fizermos uma breve retrospectiva das narrativas infantis e juvenis que nos
foram contadas e lemos desde a mais tenra idade – ―desde‖, porque muitas delas
ainda contamos às nossas crianças –, notaremos que grande parte das obras, no que
diz respeito à representação feminina, delegam à mulher um espaço determinado pelo
esteriótipo: ora o de uma donzela que espera pelo seu amado, ora o de uma dona de
casa cuja vida se resume a cuidar do bem-estar da família e da ordem do lar. Em meio
a essa prescrição, em que homens e mulheres ocupam na sociedade papéis distintos
e, de certa forma, impermeáveis, centenas de milhas de meninos e meninas
cresceram – e ainda crescem – concebendo o mundo sob uma visão afastada da
razoabilidade que deve orientar a relação entre os gêneros245.
Não é para menos. Se por um lado a Literatura reproduz discursos de poder,
refletindo a ordem social em sua dinâmica de dominação, ela também vem para
reforçar essas relações e assegurar a permanência do discurso do estrato dominante.

La Literatura Infantil y Juvenil (LIJ) ha presentado casi siempre


modelos cerrados, acabados e intocables, pretendiendo cosolidar y
reforzar un modelo social que perpetúa la división social en clases y
en sexos. La función de los modelos presentados mediante la LIJ no
es otra la ocediencia al orden establecido como forma de perpetuar la
segregación sexual de sus miembros. (CARMONA, 2001, p. 195).246

No mesmo sentido, Silva (2010), em sua investigação fundada em estudos de


Fúlvia Rosemberg (1984) e de Regina Dalcastagnè (2005), assevera que a literatura
está longe de ser dotada de neutralidade, constituindo-se, enquanto prática social que
é, um instrumento de poder: ―A matéria social presente na arte, por seu status de

245
Não negamos a importância da leitura dos clássicos, mas defendemos um rol de leitura
diversificado que não condicione as crianças a padrões sociais obsoletos, como forma
ideológica de dominação, proporcionando-lhe, assim, desde cedo, uma visão ampla sobre o
lugar da mulher na sociedade como um espaço não demarcado pelo sexismo.
246
A Literatura Infantil e Juvenil (LIJ) tem apresentado quase sempre um modelo fechado,
acabado e intocável, pretendendo consolidar e reforçar um modelo social que perpetua a
divisão social em classes e em sexos. A função dos modelos apresentados mediante a LIJ não
é outra que a obediência à ordem estabelecida como forma de perpetuar a segregação sexual
de seus membros. (CARMONA, 2001, p. 195, tradução nossa).

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representação, pode estar a serviço da ideologia dominante e não se apresentar como


a expressão legítima das multiperspectivas sociais [...]‖ (SILVA, 2010, p. 78).
Comparando as colocações de Carlos Jurado Carmona e de Silva,
percebemos que, mesmo após praticamente uma década que distancia a segunda da
primeira pesquisa, a constatação e, o mais grave, a conjuntura ainda se revela
praticamente a mesma, de modo que este constitui o mote para o nosso estudo,
embora traga um viésda ―outra face‖ da Literatura Infantil e Juvenil – a que resiste às
formas sociais e ideológicas preordenadas, a que proporciona uma leitura crítica e
questionadora de valores sociais e morais que impingem à mulher a submissão muitas
vezes velada, a mais nociva de todas.
No contexto de reconhecimento dos direitos da mulher, alguns documentos
de alcance mundial revelaram-se importantes, como a ―Convenção sobre a eliminação
de todas as formas de discriminação contra a mulher – CEDAW‖ ou ―Declaração de
direitos das mulheres‖, realizada pela Assembleia Geral da ONU, em 1979, vinculando
165 países signatários247, e as ―Recomendações para um uso não sexista da
linguagem‖, elaboradas pela UNESCO, em 1975, entre outros, fazendo com que se
começassem a pôr em pauta discussões sobre conteúdos sexistas constantes em
livros didáticos e em obras da Literatura Infantil e Juvenil, tendo em vista o seu
importante papel na formação do indivíduo.
Na Literatura Infantil e Juvenil brasileira, o sinal de personagens femininas
que fogem à regra, ainda vigente, começou a se dar com a Emília, personagem de
Monteiro Lobato. Em obras como Geografia de Dona Benta (1937) e O Minotauro
(1939), a boneca ultrapassa os espaços internos – o lar, por exemplo –, conquistando
outros ambientes destinados predominantemente aos personagens masculinos.
Ocorre que, conforme bem observa Regina Zilberman (2005), Emília, entre outras
personagens que também transpõem a fronteira existente entre o espaço público,
destinado aos meninos da ficção, e o privado, quase que exclusivo das meninas
ficcionais, possuem atributos mágicos, de maneira que podemos considerar como a
primeira personagem ―real‖ feminina, que rompe os estereótipos de gênero na
Literatura Infantil brasileira, Bel da obra Bisa Bia Bisa Bel (1982), de Ana Maria
Machado, embora o enredo seja dotado de elementos sobrenaturais.

247
A Convenção vai além das garantias de igualdade e idêntica proteção, viabilizada por
instrumentos legais vigentes, estipulando medidas para o alcance da igualdade entre homens e
mulheres, independentemente de seu estado civil, em todos os aspectos da vida política,
econômica, social e cultural (CEDAW, 1979).
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Bisa Bia Bisa Bel é o que se poderia chamar um livro feminista, não
apenas porque traduz o processo de independência da mulher ao
longo da história, marchando do convencionalismo e obediência de
Bia à completa autonomia e autoconfiança de Beta. Mas também
porque elege um ângulo feminino para traduzir questões, revelando
como o processo de liberação nasce de dentro para fora, não por
ensinamento, mas enquanto resultado das experiências vividas.
(ZILBERMAN, 2005, p. 85).

Além de Bel, outras personagens ―incomuns‖ deram o ar da graça 248, no


entanto elas ainda constituem uma realidade no âmbito das exceções, e, infelizmente,
isso ocorre não apenas no Brasil. Ana Maria Pereira Vieira Barbosa verifica, em seus
estudos, que ―[n]a literatura para crianças de hoje, nem sempre é devidamente
valorizado o feminino e ainda muitos estereótipos são veiculados: pai que vai para o
trabalho, pasta debaixo do braço, enquanto a mãe fica na cozinha a preparar o
almoço.‖ (2009, p. 99). Portanto, podemos concluir que,em pleno século XXI, a
Literatura Infantil e Juvenil está impregnada pelos modelos sexistas. No mesmo
sentido, Silva (2010) em constato que, dentro de um universo de 53 obras
pertencentes ao acervo do PNBE/2005 analisadas,

[g]rande parte delas escritas entre os anos de 2000 e 2005, o que


sobressai é que a condição da mulher na arte literária permanece
problemática, pois não oferece maior variedade de situações e
experiências que possam por ela ser vivenciadas no campo estético.
A percepção, nas narrativas, é a de que a atuação da mulher
enquanto protagonista é inferior à dos homens, seu espaço social é
reduzido a ambientes privados e, consequentemente, suas relações
interpessoais são restritas a esses espaços. (SILVA, 2010, p. 84)

Diante disso, notamos que, na nossa Literatura para crianças e jovens, ainda
não predomina o perfil feminino não sexista. Existem obras em que se têm buscado
uma representação de resistência feminina, distanciada da definição patriarcal de
mulher, cujos comportamentos romantizados dotados de passividade e submissão são
exaltados, e cujas esferas de atuação estão severamente limitadas. Nesse panorama
se insere o corpus deste estudo, Vitória Valentina (2016), obra em que Vigna se
propõe à construção de uma literatura de resistência, opondo-se à divisão social em
sexos, mediante a criação de uma personagem protagonista ―fora dos padrões‖, Carla,
uma menina órfã, que não idealiza um príncipe encantado, e, quando adulta, é sóbria
e realista – nem mesmo sonha –, o que na obra não é representado como algo ruim
ou bom, simplesmente é.

248
Zilberman (2005) cita Glorinha, em A curiosidade Premiada (1978); Tânia, em Nó na
garganta (1980), de Mirna Pinsky; e Clarice, em Coisas de menino (1980), de Eliane Ganem.
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A representação do feminino em Vitória Valentina

Conforme os estudos de Elaine Showalter (1985), uma literatura considerada


feminista seria aquela que, além de questionar, polemiza o papel da mulher. É
justamente esse o intuíto de Vigna ao publicar Vitória Valentina (2016), a qual, nessa
linha de rupturas e ressignificações, cria Carla para protagonizar essa narrativa cujos
métodos e estilos apresentam-se sui generis, como veremos adiante.
A personagem destaca-se frente a muitas outras por redefinir formas já
consagradas de representação da imagem feminina como um todo, mostrando
obstinaçãopara enfrentar preconceitos econsagrando sua identidade mediante o
exercício de posicionamentos sociais fora do comum. A protagonista, nessa linha de
construção do feminino na literatura para jovens, ousa ao transgredir o estereótipo da
mulher que sonha em casar, em ter filhos, resistindo, portanto, à ideia de fragilidade
que se atribui àmulher e a de dependência afetiva e patrimonial de um homem para se
realizar e ser feliz.
O titulo da obra "Vitória Valentina" não deixa muito claro para o letior quais os
rumos que a autora trilhará para a construção da personagem. Se por um lado, o
nome traz um sentido de força, por outro, encaixa-se muito bem à proposta de uma
protagonista idealizada, uma heroína tradicional totalmente esteriotipada. Talvez por
isso, ao ganhar vida, prefira se chamar Carla, abandonado o Vitória Valentina, de
Carla Vitória Valentina, nome que sua mãe escolheu. ―Sou eu a Carla‖ (VIGNA, n.p.) é
como se apresenta, explicitando, a partir do próprio nome, sua objetividade, seu
modelo de mulher fora dos padrões da Literatura Infantil e Juvenil.
A novela começa com uma tragédia em uma favela: um casal de vizinhos que
mata o outro, para roubá-los, mas que também acabam mortos na fuga em uma moto,
envolvidos em um acidente de trânsito. Os órfãosdessas pessoas, Carla (Vitória
Valentina) e Nando, acabam crescendo juntos, enfrentando adversidades e
alimentando uma grande amizade. Ele, negro e gay, a fim de lutar contra o trauma de
motos (originado com a morte de seus pais), resolve ser motoboy, enquanto ela se
torna professora. Para complementar a renda, Nando também vende fotos de
interesse para portais da internet, e Carla trabalha como professora de reforço em
tempo integral – uma espécie de babá. Mas, quando o jovem fotógrafo flagra a
participação de um importante empresário em um negócio criminoso, os protagonistas
se veem em uma enrascada, envolvendo uma grande soma em dinheiro. Tal enredo é,
pelas palavras de Vigna, baseado em eventos reais narrados por um antigo aluno:
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[...] a origem dessa história é real. O roubo entre vizinhos de uma


favela, seguido da morte de todos os participantes, me foi contada
por um menino do Complexo do Alemão. Eu fazia uma oficina de
leitura para jovens da comunidade. Nunca esqueci. (VIGNA apud
PERA; MACIEL, 2014).

Carla, após a morte dos pais, vagou de orfanato em orfanato até conseguir se
formar como professora. Apesar da chance que teve de ter uma vida melhor ao lado
de Stan – um dos seus patrões, cuja união, a priori, poderia representara segurança
que nunca teve –, recusou, pois, afora a atração sexual, não se interessa em ter uma
relação estável. A personagem, assim, apresenta-se como uma mulher livre que não
se preocupa com pudores sociais – ela reconhece que suas idealizações de paixões
são fruto da ociosidade, como assume na narrativa, mas o que de fato ela deseja é a
conjunção carnal com Stan e nada mais. A narrativa apresenta um final aberto, quanto
ao futuro da protagonista, mas fica claro que ela não aceita o casamento em nome da
estabilidade e nega esse destino, escolhendo permanecer sozinha. Tais aspectos
compõem uma narrativa de resistência ao sexismo, especialmente pela ausência de
um final que, pela tradição, poderíamos chamar de feliz.
Uma concepção diferenciada sobre a valoração do instituto casamento civil
também é abordada pela autora. Em um dado momento da narrativa, faz-se
necessário que Carla e Nando celebrem omatrimônio para ajudá-lo na descoberta de
informações sobre o chefe da protagonista, para o qual trabalhava como professora de
reforço escolar de sua filha. No entanto, quando tudo se resolve, concluindo-se a
missão, Carla não se importa em continuar casada com o amigo, demostrando
indiferença quanto a esse aspecto, que para tantas pessoas é considerado como o
ápice na vida de uma mulher.O seguinte diálogo com Nando marca essa característica
da personagem:

– Você se importa de continuar assim? [Carla]


– Não, Nando. Não quero casar mesmo com mais ninguém. [Nando]
– É uma maneira de dizer eu te amo. [Carla]
– É verdade, querido. [Nando]. (VIGNA, 2016, n.p.).

Acreditamos que em uma obra idealizada pelo viés sexista, o enredo iria
caminhar para a anulação ou para o divórcio, libertando Carla para um casamento "de
verdade". Vale ressaltar também a abordagem que Vigna faz quanto ao homem como
objeto sexual ao retratar na narrativa que Carla tinha um desejo acentuado por Stan,
todavia, como dito, não sonhava em se casar com ele, como deixa claro nesta
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passagem: ―Stan, nem mesmo ficante, viu. Você será apenas o pai do Lu‖(VIGNA,
2016, n.p.).
Embora não seja nosso propósito falar do mercado editorial, é importante
observar quea obra é um exemplo de que a circulação de textos carregados de tabus
ainda é objeto de rejeição e de preconceito.Não é àtoa que Vigna encontrou
dificuldade para publicar Vitória Valentina. Na página de rosto do livro, há uma
dedicatória, em que a autora expressa esse obstáculo: ―Dedico este livro à Tereza e
ao Fernando, donos da Lamparina editora, e a todos os autores que têm seu livro
recusado sistematicamente por todas as editoras, como foi o caso deste aqui.‖
(VIGNA, 2016). Sobre a persistência da censura na literatura como um todo Cynthia
Campelo Rodrigues (2007) assinala:

Hoje, a censura persiste de outra maneira. É sutil, dissimulada. Não


temos mais a censuraoficial, institucionalizada, que atravessou a
história do país dos tempos coloniais à República,mas ainda
convivemos com seqüelas (sic) impostas pelos tempos ditatoriais; há,
nas entrelinhas dodia-a-dia (sic), uma censura disfarçada. Isso sem
falar no mercado editorial, que determina o quedeve ou não ser
publicado. (RODRIGUES, 2007, p. 43).

Destacamos, assim, a qualidade literária deVitória Valentina (2016), que,


entre tantos atributos estéticos, opõe-se às normas sociais rigidamente estabelecidas
com seus códigos e seus valores, buscando moldar a mulher com uma forma ideal,
mostrando, por meio de Carla, outro modelo de representação do feminino.Dessa
maneira, acreditamos que a obra analisada representa uma voz de resistência dentro
da esfera literária direcionada ao leitor juvenil, constituindo-se como uma literatura que
confronta nossos (pre)conceitos, anseios pré-fixados,que provoca uma leitura
inquietante e, talvez por isso,incite a rejeição de algumas editoras em publicá-la. A
obra, porém, não se diferencia apenas pela complexidade dos temas abraçados, mas
também pelo trabalho cuidadoso com o texto escrito, com o texto visual e com o
diálogo realizado entre ambos, como veremos no próximo tópico.

A contribuição dosrecursos visuais

A autora de Vitória Valentina (2016) começou a carreira nas letras dedicando-


se ao público infantil e juvenil ainda na década de 1970. Além da formação acadêmica
em Literatura Francesa, ela fez cursos de extensão em gravura e especialização em
história da arte, títulos que culminaram em sua segunda área profissional: a da

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imagem. Logo passou a ilustrar publicações de autores amigos, também realizando


diversas exposições individuais.
Vigna acreditava que a imagem no cenário contemporâneo teria uma
especificidade de função e de processo, efetuando-se de forma dialógica e
transformadora sobre cada sujeito, e se dando no espaço de uma intersubjetividade:

Chego aqui à principal característica do que considero uma ilustração


contemporânea. Ela não é perfeita. Ela mostra seu processo, suas
hesitações, e ela tem espaços que acolhem um diálogo com o
leitor/coautor. A imagem ―perfeita‖ que não dá entrada ao leitor é um
museu onde ninguém vai. (VIGNA, 2014, on-line).

Vitória Valentina (2016) surgiu entre o fim de 2010 e o início de 2011, como
uma segunda versão do projeto Quinze momentos de paixão, iniciado na década de
1990, cujo tratamento ―já era um quase-quadrinhos‖, visto que os tais quinze
momentos vinham ―enquadrados e separados da narrativa principal‖, entretanto,
diversos editores recusaram sua publicação, alguns sem motivo aparente, outros
apontando o texto como ―literatura de mulherzinha‖ (VIGNA apud PERA; MACIEL,
2014, on-line). Em 2013, foi lançado finalmente pela editora Lamparina, de amigos
pessoais da escritora.
Tomando gosto pelas técnicas experimentais, Vigna decidiu construir a obra,
utilizando o lápis grafite 6B para obter desenhos ―sujos‖249 formados por traços que
exploram diferentes tonalidades de escuro. As 124 páginas do livro se baseiam na
imbricação entre a imagem e o texto verbal, como indicado na quarta capa:

Fiz Vitória Valentina em cima de um entusiasmo com a linguagem


dupla: imagem + texto. O texto era antigo. Um juvenil, ainda da época
em que eu escrevia para essa faixa de leitores. Refiz. E refiz para que
coubesse nos espaços que os desenhos iam pedindo à medida que
ficavam prontos. Ou seja: os desenhos é que ofereceram lugar para o
texto, e não vice-versa. (VIGNA, 2016, grifo nosso).

Eisner (2010) cunhou o termo ―arte sequencial‖ para se referir à modalidade


artística que usa o encadeamento de imagens em sequência para contar uma história
ou transmitir uma informação graficamente. A narrativa em quadrinhos seria o melhor
exemplo de arte sequencial pela continuidade que estabelece entre os elementos
verbais e visuais, sendo uma ―forma artística e literária que lida com a disposição de
figuras ou imagens e palavras para narrar ou dramatizar uma idéia (sic)‖ (EISNER,
2010, p. 5). A estética desse gênero perpassa uma série de escolhas artísticas que

249
Termo empregado pela autora na quarta capa da obra.
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comunicam ou manipulam a percepção dos leitores. As preocupações do produtor


envolvem o tipo de desenho, o estilo gráfico, a espessura das linhas, o sombreado, a
anatomia, o cenário, o ritmo narrativo, o enquadramento e a angulação, afora o arranjo
das formas verbais.
Além disso, ainda segundo Eisner (2010), a arte sequencial lida com imagens
reconhecíveis. Vigna aponta que a novela gráficausa o texto como complemento
necessário à informação generalista oferecida pela imagem: ―A imagem dá o tipo, o
texto dá o indivíduo. A imagemdá o evento genérico, o texto o transforma em
específico.‖ (2011, p. 108-109).
As duas linguagens intercambiáveis podem ou não compartilhar um mesmo
espaço na novela. O espaço em comum pode ser o do grande retângulo da página, o
dos retângulosmenores dos quadrinhos sobre ela desenhados ou das diferentes
camadas sobrepostas do desenho. O espaço separado teria uma única
possibilidadede manipulação: o texto adquire maior credibilidade. Um texto que
―venhaem seu próprio espaço sem imagem por perto, significa que é um texto ‗de
autor‘ ou do narrador, alter ego do autor‖ (VIGNA, 2011, p. 112).
Exemplos típicos dessa oposição de valor seriam os prólogos de
apresentação da história ou do personagem principal. Os balões de diálogo,
entretanto, não caracterizariam uma separação de espaço entre o verbal e o visual,
mas uma maneira de integração, visto que, apesar de haver de fato uma linha divisória
entrepalavras e desenho, balão e personagem falante estarão sempre
compartilhandoum mesmo espaço. Qualquer compartilhamento de espaço fará com
que o texto verbal também tenha uma ―função-imagem‖ (VIGNA, 2011), havendo uma
informação visual a ser levada em conta além do seu conteúdo literal. Nesses casos,
como no das onomatopeias, o texto verbal não é mais um elemento tão autônomo,
diferenciado, mas indissolúvel ao desenho.
Desde o começo, Vigna tinha certeza de que existiam aspectos da história de
Carla e Nando que precisavam ser expressadas visualmente, mas não de forma
ilustrada, posto que, nesse caso, as imagens seriam―mera intrusão ou adendo‖ em um
texto verbal ―que não depende delas para sua compreensão‖ (VIGNA, 2011, p. 107).A
manipulação das duas linguagens daria à autora uma maior presença e poder de
engenho: ―Você ‗fala‘ com o leitor. Você está emocionalmente presente. Isso, claro,
em uma história em quadrinho autoral, como é a minha‖ (VIGNA apud PERA; MACIEL,
2014, on-line). Nesse sentido, em Vitória Valentina (2016), ela dá preferência ao traço
realista e ao estilo hachurado, alternando entre linhas mais grossas ou mais delicadas,

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contribuindo para o tom dramático da narrativa. Da mesma maneira, ela maneja os


ângulos e os planos de visão, a fim de obter significativos efeitos.
A novela é construída como um quebra-cabeça que aos poucos vai
adquirindo corpo e sentido. Paulatinamente, também vão sendo revelados detalhes da
personalidade da protagonista feminina, e a imagem, do mesmo modo, tem papel
importante em sua minúcia. A personagem se apresenta individualmente com sua
representação visual de corpo inteiro expressando altivez no final da primeira parte do
livro.

Figura 1 - Carla se apresenta.

Fonte: VIGNA (2016, n,p.).

A posição e a expressão de Carla já indicam a ideologia transgressora em


relação ao feminino que a autora se propôs a empregar na obra. Por exemplo,
observando os detalhes da Figura 1, podemos notar, atrás da personagem,um retrato
enquadrado que leva o leitor a inferir, pelo contexto, que se trata da sua mãe. O
discurso menciona a origem do nome Carla Vitória Valentina como um ―recado‖
passado pela genitora.

Carla Vitória Valentina. Coisa da minha mãe. Ela queria me passar


um recado. Não gosto. Não preciso. Só uso Carla. E sei que agora eu
devia estar com uma roupa tchã. Mas sabe do que eu não preciso?
Roupinha tchã. Então é isso. Sou eu a Carla. E foi assim o começo.
Foi isso o que veio antes. E que nunca passou. (VIGNA, 2016, n.p.)

É interessante perceber que a moldura da imagem da mãe é idêntica à dos


quadros desenhados por Vigna em toda a novela, inclusive,semelhante ao quadro do
qual a protagonista excede, dando a impressão de desprender-se das suas
delimitações. Em uma leitura simbólica, podemos apontar que a personagem, olhando
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para frente, tenta deixar para trás a tragédia ocorrida em sua infância, assim como
continua ultrapassando barreiras (como a que separa o quadro do resto da página) em
direção ao futuro, ainda que afirme que a dor daquele começo ―nunca passou‖
(VIGNA, 2016, n.p.). Por outro lado, o arranjo visual também pode indicar a tentativa
de superação de determinada condição feminina em direção à suplantação de
estereótipos.
A originalidade de Carla é evidenciada pelo visual despojado, assim como
pela exposição de sua nudez em várias passagens da obra. Vigna não tem pudor em
destacar as formas femininas da jovem, principalmente o busto, evidenciando certa
contravenção ao visual geralmente recatado esperado de uma mocinha ou heroína
tradicional. A passagem que retrata o falso casamento com Nando deixa clara essa
quebra de aparência usual feminina em favor de uma melhor construção da
personagem (Figura 2).

Figura 2 - O casamento de Nando e Carla.

Fonte: VIGNA (2016, n.p.)

Na imagem (Figura 2), podemos perceber a expressão de surpresa ou


espanto do outro casal de noivos – que provavelmente aguardavam a sua vez de se
casarem no cartório – ao verem Carla que, além de ostentar um decote mais aberto
em relação às vestes da outra mulher, levanta a saia do vestido e mostra estar de
calça jeans e tênis. Novamente, Vigna utiliza as possibilidades da imagem, para
destacar a personalidade forte e a postura resoluta da protagonista, oferecendo-a a
liberdade de expressão como instrumento de poder. Atravessando a descrição física, o
detalhamento e a construção da identidade de Carla também se dão por meio da
manipulação dos espaços entre verbal e visual no jogo que a autora faz mediante o

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uso do gênero textual ficha de cadastro (Figura 3), para dar vazão à imaginação da
protagonista.

Figura 3 - Ficha de cadastro de funcionário de Carla.

Fonte: VIGNA (2016, n.p.)

No ―documento‖ (Figura 3), Vigna apresenta a personagem com detalhes


narrativos referentes ao terceiro momento da história, em que ela vai trabalhar na
fazenda de Stan, seu futuro interesse ―amoroso‖. O currículo da jovem expõe o cargo
pretendido, o de babá, e conta com a informação de que ela havia sido recomendada
por ―uma tal de Madre Maria Invencionada da Silva‖ (VIGNA, 2016, n.p.), deixando
evidente a sua astúcia ante aqueles a que se dirigia para conseguir a vaga. Os novos
personagens, membros da família Tancredo, são apresentados em fichas parecidas,
com a autora se preocupando em evidenciar a perspectiva da protagonista.
Os detalhes na ficha cadastral de Stan dão ênfase a aspectos corporais que
colaboram com o seu ―charme rude‖ (VIGNA, 2016, n.p.) destacado no imaginário de
Carla: a calça jeans apertada, o braço peludo, a barriga de tanquinho (Figura 4). A
angulação da imagem imita o olhar da personagem e expõe o seu desejo mediante a
atenção que dá aos atributos físicos do homem por quem se descobria atraída.

Figura 4 - Detalhes de Stan.

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Fonte: VIGNA (2016, n.p.).

A sexualidade da protagonista volta a tomar espaço no livro mais adiante,


quando ela começa a inventar paixões (lembrando o título abandonado para o projeto
gráfico de Vigna). As cinco fantasias eróticas relacionadas a Stan são descritas pelo
texto verbal, mas não detalhadas pelo visual, que se atém a, no máximo, pequenos
desenhos em estilo cartunesco de casais em aparente ato sexual. Tais desenhos,
embora pequenos e simplificados, colaboram para a construção da personagem.
Representando criações da própria protagonista, situam-se em alguma das páginas
das passagens que narram os exemplos de paixões inventadas por Carla. Muitos
desses papéis estão em branco e são dispostos na lateral externa das páginas da
obra de forma que parecem soltas ao vento, contornando, com movimento semelhante
ao flutuar, o quadro principal. A presença das folhas em branco evidencia o que para a
personagem é relevante, o encontro sexual, apagando – o que se faz por meio das
páginas em branco – todo o entorno romântico como pode envolver uma relação
(Figura 5).

Figura 5 - Comparação entre fantasia erótica de Carla e a sua realização.

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Fonte: VIGNA (2016, n.p.).

O ato sexual entre os dois personagens acontece mais tarde, quase ao final do
livro, quando Carla decide resolver sua vida e convida o patrão para visitá-la. A jovem,
então, realiza o que sempre imaginou com o homem que desejava, preenchendo as
páginas em branco apresentadas anteriormente com detalhes de um encontro sexual,
continuando, assim, a dar ênfase ao que realmente a personagem quer daquela
relação – o saciamento desejo. Os quadros, assim, criam movimento como as folhas
de papel que percorriam sua fantasia, ganhando minúcia visual. Vigna novamente
brinca com os limites desses quadros, fazendo com as roupas dos personagens
sobressaiam das margens das molduras, ou as partes de seus corpos as atravessem.
Um detalhe interessante e bastante simbólico que aparece nessa passagem são os
cones de trânsito, que não pertencem ao cenário do apartamento onde a cena se
passa. Esses objetos de sinalização parecem apontar para o fato de a protagonista
estar atravessando uma nova fronteira anteriormente interditada. Vigna não se acanha
e trata com naturalidade a relação íntima da personagem, mantendo-se coerente com
a transgressão de uma realidade contida. O desenho em nada se mostra apelativo ou
desconectado do restante da narrativa, na verdade, revela-se importante para a
configuração da personagem, acentuando sua personalidade desembaraçada, dotada
de total controle sobre o seu corpo e as suas decisões.
Finalmente, a última imagem da novela gráfica (Figura 6) apresenta Carla
sentada diante da janela de seu apartamento, divagando, com seu olhar direcionado
para os prédios da cidade os quais a cerca. Sua postura é descontraída, pernas
encostadas em uma mesa, onde notas do dinheiro que moveu a narrativa são
deixadas de lado, não recebendo tanta importância pela protagonista. A imagem toma

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duas páginas completas, sem moldura, e mostra a personagem pensativa, a


contemplar as possibilidades do futuro:

Figura 6 - Carla em última imagem da novela gráfica.

Fonte: VIGNA (2016, n.p.)

Nessa cena, Carla acaba de refutar a manutenção de um relacionamentocom


Stan, decidindo viver sozinha, negando, portanto, o destino subserviente enquanto
mulher de um fazendeiro rico. A janela permite uma leitura que representanovos
horizontes. O vidro entreaberto pode simbolizar novos limites a serem ultrapassados.
Os pés femininos, buscando atravessar a abertura da fenestra, sugerem novas
tentativas de resistência e de superação de fronteiras. Nesse sentido, fica claro quea
autora explora determinados aspectos da imagem para atribuir novos sentidos à
narrativa, desafiando a percepção do leitor.

Considerações Finais

Embora, na Literatura Infantil e Juvenil, o espaço feminino, quando presente,


ainda esteja marcado por aspectos sexistas – como predominância de autoria e de
personagens masculinos, delimitações espaciais fundadas na divisão social em sexos,
entre outros –, Elvira Vigna, na novela gráfica Vitória Valentina (2013), resiste, por
meio do conteúdo verbal e da forma visual, a essa ordem.
A obra apresenta um viés transgressor em relação ao feminino, representado
por Carla, uma protagonista independente e uma mulher liberta que tem os seus
desejos despidos de normas sociais. Com ecos de atitude política, ela ultrapassa uma
representação caricata e pudica, não se submetendo a um papel subserviente ao

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homem.Nesse ponto, os traços da autora traduzem muito bem tal liberdade, tanto na
adoção da dupla linguagem, quanto pela forma como a executa, explorando, sem
pudores, os aspectos físicos, a personalidade, os desejos e as decisões da
personagem, o que certamente favorece a sua caracterização.

Referências

BARBOSA, Ana Maria Pereira Vieira. Análise das representações de género e seus
valores na literatura infanto-juvenil e na formação da criança. Dissertação
(Mestrado), Universidade do Minho, Instituto de Estudos da Criança, 2009, p. 197.
Disponível em: <https://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/10997>. Acesso em:
13 set. 2017.

CARMONA, Carlos Jurado. Las diferencias de género en la literatura infantil y juvenil.


La educación de las mujeres: nuevas perspectivas, 2001, pp. 195-199. Disponível
em:
<https://idus.us.es/xmlui/bitstream/handle/11441/59001/las%20diferencias%20de%20g
%C3%A9nero%20en%20la%20literatura%20infantil%20y%20juvenil.pdf?sequence=1>
. Acesso em: 13 set. 2017.

EISNER, Will. Quadrinhos e arte sequencial: princípios e práticas do lendário


cartunista. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

PERA, Guilherme; MACIEL, Nahima.Professora e motoboy protagonizam história


dramática e cheia de suspense. Correio Braziliense. 21 de agosto de 2014.
Disponível em: <http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/diversao-e-
arte/2014/01/21/interna_diversao_arte,408862/professora-e-motoboy-protagonizam-
historia-dramatica-e-cheia-de-suspense.shtml>. Acesso em: 27 jul. 2017.

RODRIGUES, Cynthia Campelo. Livros, literatura e censura: caminhos da liberdade.


In: Debate: Temas polêmicos na literatura. Disponível em:
<http://cdnbi.tvescola.org.br/resources/VMSResources/contents/document/publications
Series/1426102919389.pdf>. Acesso em: 13 set. 2017.

SHOWALTER, Elaine. The new feminist criticism.New York: Pantheon Books, 1985.

SILVA, Leda Cláudia. Representação feminina na narrativa infantojuvenil brasileira


contemporânea. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, 2010, pp. 77-96.
Disponível em: <http://www.redalyc.org/html/3231/323127101006/>. Acesso em: 13
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VIGNA, Elvira. Os sons das palavras: possibilidades e limites da novela gráfica. In:
Estudos de literatura brasileira contemporânea. n. 37. janeiro-junho. Brasília: 2011.
pp. 105-122.

___________. Uma viagem por diferentes países: A ilustração em diferentes


contextos culturais (parte II). Palestra apresentada na Feira do Livro de Porto Alegre
em 4 de novembro de 2014. Disponível em: <http://vigna.com.br/infacri/>. Acesso em:
13 set. 2017.

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ZILBERMAN, Regina. Garotas que mudam o mundo. In: Como e porque ler a
literatura infantil e juvenil. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005, pp. 81-89.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

A MORTE COMO NEGAÇÃO E CONFIRMAÇÃO DA VIDA: UMA


ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE A OBRA MEU AMIGO PINTOR
DE LYGIA BOJUNGA NUNES E DOIS PASSOS PÁSSAROS. E O
VOO ARCANJO DE NILMA GONÇALVES LACERDA.

Juliana Leopoldino de Souza Cruz, Unesp- Assis, Literatura Infantil e juvenil e


temas polêmicos

Considerações Iniciais

A morte em nossa sociedade é, muitas vezes, considerada um tabu,


principalmente a morte causada pelo suicídio, um assunto de adultos,
demasiadamente mórbido e pesado para as crianças e adolescentes. Porém, alguns
autores contemporâneos de literatura infanto-juvenil conseguem quebrar esta barreira
e tratam desse tema com maestria. Dentre eles, podemos destacar Lygia Bojunga
Nunes e Nilma Gonçalves Lacerda, com suas respectivas obras Meu Amigo Pintor e
Dois passos pássaros.E o voo arcanjo.
O objetivo do presente artigo é tecer uma análise comparativa de como a face
da morte é apresentada por ambas as obras. Para embasar tal foco, traremos
Elisabeth Kubler Ross, com sua obra Sobre a Morte e o Morrer, algumas
considerações de Philippe Àries em O homem diante da morte e as ideias difundidas
por Ernest Becker em A Negação da Morte – Uma abordagem psicológica sobre a
finitude humana. Ross enfatiza, entre outras coisas, a reação da sociedade diante do
fenômeno morte e seu possível impacto para criança. Àries, evidencia a questão da
consciência da morte e da recepção angustiante, dolorosa e repugnante da mesma,
para a sociedade ao longo da história e Becker tece a união da perspectiva
psicológica e mítico-religiosa, usando como ponto de partida a problemática do
heroísmo na sociedade contemporânea.
1204

As obras literárias em questão trazem consigo uma série de representações


simbólicas, que serão lidas sob a ótica do imaginário e do simbólico tratados por
Edgar Morin em A integração cultural. Cultura de massas no século XX. O espírito do
tempo.
Alguns trabalhos já apresentados sobre uma das autoras também serão
considerados neste estudo, como Álbum de todos os matizes, de João Luis
Ceccantini e A Morte : seu sentido e sua expressão em narrativas Infanto-juvenis, de
Lia Cupertino Duarte.

Literatura Infantil e Juvenil- novos olhares


A literatura infanto-juvenil brasileira tem sofrido significativos avanços nas
últimas décadas. São diversas as influências que modificaram seu caráter, entre elas,
as reformas sofridas no ambiente educacional e os novos espaços para refletir sobre
sua criação e teorização. Como sabemos, as primeiras influências observadas na
teoria literária voltada a esse universo infantil foram de cunho estruturalista. Porém,
com a Estética da Recepção, novas vertentes foram incorporadas ao pensamento
contemporâneo, com destaque para abordagens voltadas à análise dos
comprometimentos ideológicos das obras destinadas às crianças e aos
entrelaçamentos do texto com o leitor.
Segundo Duarte (1997), tais obras sob essa nova perspectiva, romperam a
esclerose a que foram confinadas no percurso escolar e no compromisso com a
pedagogia. Houve a indução para produção de textos autoconscientes, que
explicitavam e assumiam sua natureza de produção verbal e cultural, buscando
inverter valores ideológicos.
Nesse sentido, os textos produzidos no Brasil para o público infantil e juvenil
começavam segundo Aguiar (2004) a levar à estranheza, ampliar o horizonte de
expectativas do leitor, modificando-o, estimulando o contestamento, a liberdade
interpretativa, a crítica e a construção individual do sentido.
Como herança da década de 70, a literatura infanto-juvenil contemporânea
busca um texto emancipatório, que estimule a consciência reflexiva e crítica de seus
leitores, privilegiando a visão infantil, dando voz à personagem. Outras características
marcantes dessa literatura é a valorização da oralidade, o abandono do padrão culto
da linguagem, tão como o abandono da perspectiva exemplar quanto às personagens.
São enfatizadas as temáticas voltadas ao ambiente urbano, as denúncias sociais e a
crise nacional. Os elementos gráficos também são valorizados, muitas vezes, como

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objetos autônomos no próprio texto, por vezes, entrelaçando leituras não verbais a
verbais.

Morte e Literatura: uma possível união?


Segundo Ross (1998), a humanidade ao longo dos anos teve de conviver
com a questão da morte, principalmente a de crianças, o que era mais comum e
frequente em algumas épocas. Porém, com o avanço da medicina e ciências, novos
medicamentos, criação de vacinas e a educação para saúde, contribuíram para baixar
o índice de mortalidade infantil.
Tal fato, para Ross (1998), gerou o aumento na perspectiva de idade,
crescendo o número de idosos e, consequentemente, o de várias vítimas de doenças
crônicas, associadas à velhice. Entretanto o número de pessoas com doenças de
ordem emocional aumentou e tais mudanças ocasionaram sentimentos de solidão,
isolamento e o latente medo da morte.
Falar e pensar sobre a morte sempre foi muito intrigante para sociedade, alvo
de estudos ao longo dos séculos por filósofos, cientistas, artistas, sociólogos, entre
outros. Do ponto de vista literário, não foi diferente, autores dos mais variados estilos
e épocas já refletiram e sobre esse tema. Porém falar de morte na literatura destinada
às crianças e jovens talvez não seja uma tarefa muito confortável.
Para Duarte (1997), a maioria dos autores que optam por abordar esse tema,
acaba preocupando-se demais em torná-lo acessível aos seus leitores e organiza-se
para agir sobre o mesmo, obrigando-o a manter-se amarrado à visão proposta pelo
texto. Muitas vezes, os problemas relacionados à morte, apresentam-se de forma
diluída nas obras, banalizados ou tratados de maneira superficial e simplista.
Como o tratamento dado à morte em uma obra destinada às crianças
torna-se assunto delicado em função da imaturidade de seus
destinatários, surge a pergunta: como falar às crianças sobre um
tema complexo sem adotar uma postura didática, pedagogizante? Ou
melhor, como manter o padrão de esteticidade próprio de uma obra
de arte literária e ao mesmo tempo atender às condições específicas
de recepção do leitor infantil? (DUARTE, 1997, p.88)

Fato comum nas obras infantis que tratam da morte é a opção de alguns
autores em colocar o narrador na posição de quem ensina, ou seja, o professor, que
manipula o discurso de acordo com suas necessidades e ideologias, e o leitor mirim
na posição de quem aprende, o aluno, envolvendo ambos em um processo
educacional. Para Duarte (1997), nesta questão, reside o fato de alguns autores
optarem pela visão maniqueísta como solução na produção cultural, uma forma
simplista de conceber as coisas.
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Porém, alguns autores da literatura infanto-juvenil brasileira tratam desse


tema com maestria. Dentre eles, pode-se destacar Lygia Bojunga e Nilma Gonçalves
Lacerda, com suas respectivas obras Meu Amigo Pintor e Dois passos pássaros. E o
voo arcanjo.

Bojunga em Meu Amigo Pintor


Autora do reconhecido texto Meu Amigo Pintor (1987), Lygia Bojunga Nunes
já evidenciou seu fino lirismo e distinção na produção literária infanto-juvenil. Nascida
em Pelotas – Rio Grande do Sul, em 26 de agosto de 1932, já conquistou vários
prêmios, entre eles: o Prêmio Jabuti, o Prêmio Hans Christian Andersen e o Prêmio
Astrid Lindgran Memorial Award, alguns deles ainda inéditos a uma escritora infanto-
juvenil brasileira.
Publicou obras reconhecidas no Brasil e no mundo, entre elas, Os Colegas
(1972), Angélica (1975), A Bolsa Amarela (1978), O Sofá Estampado (1980), Tchau
(1984) entre muitas outras, que atingiram sucesso editorial e cativaram seu público.
Além de escritora, também é artista teatral, incentivadora da leitura com a Fundação
Cultural Lygia Bojunga (2006) e também editora, com a fundação da Editora Casa
Lygia Bojunga.
O enredo de nossa obra foco, Meu Amigo Pintor, baseia-se na amizade do
jovem Cláudio e o pintor, seu vizinho de apartamento. A história é narrada em primeira
pessoa do discurso, ou seja, o narrador é personagem e, consequentemente, filtra e
limita seu olhar dos fatos.
A narrativa é convertida em diário, porém a sequência é quebrada pela
menção de dias alternados. Inicia-se após três dias da morte de seu amigo pintor. O
garoto revela um descobrimento que o leva a uma intensa angústia, o suicídio
cometido por seu amigo.
Em meio às digressões narrativas, tece lembranças dos momentos com o
pintor, como as partidas de gamão, o soar do relógio, as conversas sobre arte e
também os intensos momentos de silêncio que, muitas vezes, diziam mais do que
palavras.
A agonia de Cláudio entrava em embate maniqueísta e simplista imposto pela
sociedade e que o menino relutava em aceitar, que era a possibilidade do pintor ter ido
para o inferno, ou um lugar ruim, estar sofrendo por ter tirado a própria vida e
consequentemente não ter encontrado a paz ou o fim da solidão que o prendia a
esfera terrestre.

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Dois momentos reveladores e reflexivos da narrativa encontram-se em dois


sonhos que o garoto teve, o primeiro se passa em um teatro, com a presença das
badaladas do relógio, um palco com cortinas cor-de-saudade e mais três cores: uma
branca e duas azuis. A branca era o pintor que fazia papel de fantasma e as azuis
iluminavam intensamente o palco, ressaltando a saudade nos sentimentos de Cláudio,
fato que o levou ao choro forte e intenso.
O pintor revela-se inseguro e despreparado diante de seu papel de fantasma
e pede ao menino para ajudá-lo. Mesmo sentindo-se incerto, Cláudio foi até ao palco,
cantou o hino nacional e narrou a história do pintor, ressaltando seus gostos e a
prematuridade de sua morte.
No segundo sonho, o menino depara-se novamente com três cores, que
representavam as três paixões do pintor, muito iguais, intensas e personificadas: uma
era a dona Clarice, seu grande amor; a outra a Pintura e a terceira a Política, ficavam
sempre juntas, conversavam e refletiam seus papéis na vida do amigo de Cláudio.
Neste mesmo sonho, elas decidem viver em harmonia e em paz juntamente com seu
dono, que nesta atmosfera onírica, ganhou das paixões votos de felicidades eternas.
Ao final da narrativa, a personagem narrador, entre uma série de reflexões
permeadas por cores, ou seja, cada objeto, sentimento ou ação ganhava um matiz,
herança dos encontros com o pintor, sente sua angústia atenuada e evidencia que a
vida é formada de questionamentos e que os mesmos nos levam a conhecer um
pouco da nossa própria natureza humana.

Lacerda em Dois Passos Pássaros. E o Voo Arcanjo.


Professora, pesquisadora, tradutora, escritora, especialista em literatura para
crianças e incentivadora da leitura, Nilma Gonçalves Lacerda nasceu no Rio de
Janeiro. Produtora de um texto lírico e poético, surpreende o leitor com seu estilo
muito próprio de escritura. Iniciou sua carreira como escritora literária na oficina
literária que realizou na Universidade Federal do Rio de Janeiro, com o escritor Cyro
dos Anjos.
Sua primeira obra data de 1985, titulada Manual de Tapeçaria. Depois dessa
produção, elaborou outras como: Dois passos pássaros. E o voo arcanjo (1987), Viver
é feito a mão. Viver é risco em vermelho (1989), As fatias de Mundo (1997), Cartas do
São Francisco, com Rilke à Beira do rio (2000), Fantasias (2000), Fingimentos (2000),
Finalmente? (2000), Pena de Ganso (2005) entre outras.
Seus textos literários ganharam inúmeros prêmios de importância no Brasil e
no mundo, entre eles: Prêmio Alfredo Machado Quintella da Fundação Nacional do
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Livro Infantil e Juvenil, Prêmio Jabuti em literatura juvenil, Prêmio Orígenes Lessa,
Prêmio Cecília Meireles, Prêmio Brasília de literatura e muitos selos de Altamente
Recomendável para Criança e Jovem.
Dois passos pássaros. Um voo arcanjo. (1987), objeto de análise deste presente
trabalho, trata do suicídio de Maria Luisa, mãe de dois filhos: Renata e Gabriel e
esposa de Renato. O ponto inicial da obra é o próprio suicídio da mulher, dois tiros
ouvidos em uma manhã tranquila.
Os pontos de vista narrativos são intercalados pelos filhos, marido e pela
própria suicida, que tratam de incomunicabilidade, solidão e interpretações diferentes
de fatos da vida. Todos de alguma forma, buscam entender o que levou Maria Luísa a
procurar na morte, um alívio ou fuga para seu sofrimento.
Pai e filha, vivem um intenso conflito de culpas. Renato acusa a filha de ser
egoísta, preocupar-se somente com seus amigos, festas, roupas. Já Renata, afirma
que o pai é quem deveria ter percebido a angústia que levou a mãe à morte, por ser o
marido, um adulto, o provedor, aquele com que a mãe compartilhasse seus segredos,
um amigo. Tais agressões verbais corroem a antiga amizade e cumplicidade entre os
dois e ainda, os separam ainda mais de Gabriel, que parece ser o único a
compreender a opção da mãe.
A narrativa é organizada em capítulos, titulados como horas. Porém, alguns
deles, subdividem-se em três partes, grafadas de modos distintos, e separadas por
traços. Percebe-se que cada parte é narrada pela mesma voz, porém em momentos
diferentes. A primeira parte traz relances do acontecimento principal, o suicídio da
protagonista, a segunda um acontecimento da vida da personagem que narra e a
terceira, muitas vezes a menor, um parágrafo reflexivo, permeado por metáforas. Em
outros capítulos, essa divisão é rompida, e abrem-se à parágrafos maiores, por vezes
mais alicerçados por discurso direto e outras por poesias concretas, entremeadas aos
parágrafos em prosa.
Ao final da história, depois de tantas culpas e sofrimentos, Renato e Renata,
decidem aceitar de Gabriel, ―um anjo‖, como o próprio pai nomeava, a grande chave
para libertação da angústia em que viviam. Gabriel, sempre incompreendido pelo pai e
pela irmã, pela primeira vez é considerado e ouvido. Juntos, os três descobrem que
somente por meio da união e compreensão mútua, reconstruirão suas vidas.

Afinidades e Distinções
Segundo Ceccantini (2008), Meu Amigo Pintor, de Lygia Bojunga Nunes é
uma obra inovadora, que encara um tema tabu no campo da literatura infanto-juvenil, a
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morte por meio do suicídio, com rara delicadeza. Para ele, a autora apresenta a
coerência de um escritor em relação ao seu ofício.
Com Nilma Gonçalves Lacerda, em Dois passos pássaros. E o voo arcanjo,
não é diferente, tão inovadora quanto à obra de Bojunga, Lacerda também trata em
seu texto de um tema ―proibido‖ ao universo infanto-juvenil, o suicídio de uma mulher,
elaborado em uma narrativa de forma mágica e fascinante, classificada por Laura
Constancia Sandroni como: ―Texto denso, metáforas originais e belas. Uma história
tecida de realidade e fantasia. Real é a matéria de que trata – o suicídio de uma
mulher e a luta dos demais para conviver com esse fato.‖ (SANDRONI, apud.
LACERDA, 1987)
Ambos textos, são compostos de intenso lirismo e constituem-se de um
narrador em primeira pessoa do discurso, ou seja, seus protagonistas atuam como
mediadores da história e o leitor, fato esse, segundo Duarte ―[...] reserva ao
protagonista um papel altamente ativo no desenvolvimento da narrativa. (DUARTE,
1997, p.93).
Porém, as obras apresentam esse narrador de modo distinto, em Meu Amigo
Pintor logo no início da narrativa, fica mais evidente o foco narrativo com a utilização
da primeira pessoa do discurso, como podemos notar em: ―Eu não sei se eu já nasci
desse jeito ou se eu fui ficando assim por causa do meu amigo pintor [...]‖ (BOJUNGA,
2004, p.08). Essa postura narrativa atribui a obra de Bojunga, um caráter mais
intimista, coloquial, impregnado de oralidade em um tom confessional, o que leva a
verossimilhança. Para Duarte (1997), a autora desse texto não faz um discurso sobre
e nem para a criança, mas sim um discurso da própria criança.
Já em Dois passos pássaros. E um voo arcanjo, a narrativa também é
elaborada em primeira pessoa do discurso, em que esse eu quem fala, alterna-se em
vários momentos da obra. Em um primeiro momento, o personagem narrador é a
Maria Eloísa: ―A história terminou... mas a imaginação corre solta. Diante do meu
corpo caído ...‖ ( LACERDA,1987, p.21) Em outros momentos, a voz em primeira
pessoa é a de Renata, a filha de Maria Eloísa: ―Eu me chamo Renata. Renata, de
Renato. A mãe cansou de dizer: que me deu o nome porque o pai queria tanto
continuar-se numa filha.‖ ( LACERDA, 1987, p.68)
O foco narrativo em primeira pessoa do filho Gabriel, que segundo as
atribuições dos outros personagens da obra, é considerado uma criança especial:
―Gabriel tem a espada e Gabriel tem mais olhos. Espada, mãe? Olhos. Olhos. Eu sei.
Os olhos são para ver. Eu vejo muitas coisas. As coisas que eu vejo e ninguém vê.‖
(LACERDA, 1987, p.49)
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E finalmente, a voz de Renato, o pai e, esposo de Maria Eloísa: ―A Renata me


culpa. Me culpa. E que culpa tenho eu? Devo ter alguma, é certo. Devia ter percebido.
Na certa houve algum sinal, algum...‖ (LACERDA, 1987, p.70)
Tais deslocamentos de pontos de vista podem oferecer leituras também
independentes, por meio de diferentes vozes. A narrativa toda é permeada de
intercalados tipos de discurso, tem-se o direto com as falas das personagens, sem
mediação de narrador: ―- Que foi isso? - Você ouviu? Parece tiro!‖ (LACERDA, 1987,
p.17) O indireto, narrado em primeira pessoa: ―A mãe era. O pai era. O pai mais a
mãe. A mãe mais o pai. Véu branco, vestido, festa.‖ (LACERDA, 1987, p. 49) E o
indireto livre, quando uma personagem interfere na narrativa sem prévios anúncios:
―Pégaso corre, corre. Navega, navega. O mar é brabo, mãe! Mas a terra também, meu
filho. Olha o galope é brabo. Mãe, segura bem, viu?‖ (LACERDA, 1987, p.60, 61)
A linguagem é contemporânea, poetizada e por vezes coloquial, adequando-se
ao perfil do narrador. Quando o menino especial Gabriel narra, nota-se as
características do seu ponto de vista e sua forma peculiar de pensamento, por vezes
fragmentado: ―A mãe está uma lagarta. A mãe no casulo não dorme. A mãe fica fraca.
Mas não fica feia, não.‖ (LACERDA, 1987, p.66) A mesma linguagem torna-se mais
jovem e coloquial em outros momentos:
- Barulhão, cara! Abaixa um pouco isso!
- Ih, você tá de choque, hein?
- Nada! Tá tão alto isso aí, a gente nem pode conversar.
- Quem quer conversar? Vamos mexer o esqueleto, gata?
- Abaixa, anda! Você tá controlando isso.
- Pô, que chata, hein! Cê tá um saco. (LACERDA, 1987, p.74)

E intensamente poetizada principalmente na fala de Maria Eloísa: ―A rosa sobre


a toalha branca era vermelha. Mas havia, junto a ela, todos os tons da aurora para
dourar aquela dor. Enquanto fiapos de um sonho azul repousavam no pires chinês.‖
(LACERDA, 1987, p.44)
Percebe-se assim, neste e em outros momentos da obra, uma relação muito
estreita com a poesia, que encontram-se presentes nas metáforas originais: ―As
feridas são hiroshimas abertas, onde lanças traçam palavras cruzadas;‖ (LACERDA,
1987, p.39); na densa musicalidade: ―Não tem asas, não tem ar, não tem pouso. Não
tem volta, não tem vôo. Não tem árvore nem caminho. O vôo-silêncio é só.‖
(LACERDA, 1987, p.54); e nas construções concretas que permeiam todo o texto,
como jogo de dominós composto de palavras e as imagens das pedras, como o círculo
dos ses, que envolve a família nos doloridos motivos da morte de Maria Eloísa, enfim,
as quebras e espaços delicadamente marcados na projeção textual.

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A Negação e Afirmação da Morte


Um ponto fascinante de comunhão entre os textos, é observar o tipo de
conflito que cada protagonista vive. Cláudio, o protagonista de Meu Amigo Pintor,
esforça-se para entender a morte do amigo, vive em uma constante angústia desde o
ocorrido. Em vários momentos do texto, externaliza a dificuldade em compreender a
escolha do Pintor em tirar a própria vida. Tal escolha, segundo Ceccantini (2008), ― [...]
desestabiliza-o emocionalmente e projeta em seu espírito um sentimento profundo de
angústia, incompreensão e dúvida frente ao ocorrido.‖ (CECCANTINI, 2008, p.115)
Frente a isso, Cláudio sente-se desamparado pelo mundo adulto, que
perceptivelmente camufla, esconde e não usa de franqueza com a criança. Fato este,
tratado na obra A Morte e o Morrer de Elisabet Kubler Ross. Para a psiquiatra, a
criança é privada, resguardada ou até mesmo enganada, neste momento de luto. Isso
pode ser observado neste fragmento da obra Meu Amigo Pintor, no momento em que
o protagonista diz: ―A Dona Clarice disse que o meu Amigo morreu feito todo mundo
um dia morre. Não foi de propósito, não!‖ (BOJUNGA, 2004, p.28). Para Ross (1998),
quando a criança descobre a morte ou seu verdadeiro motivo, sente um pesar
irreparável, um sentimento de traição e pode guardar esse acontecimento como algo
traumático.
Cláudio ainda luta com questões de ordem preconceituosa e maniqueísta,
imbuídas no pensamento da sociedade, a de que o suicídio seja uma atitude
imperdoável, pecadora, sem mérito e até covarde, passível até mesmo de terrível
punição, o que fica claro na fala de uma menina que mora no mesmo prédio que ele: ―-
A essas alturas ela já torrou no inferno igualzinho feito o frango que minha mãe
esqueceu no forno.‖ (BOJUNGA, 2004, p.20).
Essa postura social desestrutura o menino que não aceita esse destino ao
amigo, pois em toda a narrativa existem alusões positivas em relação ao Pintor, a
amizade mútua, a sensibilidade, a vocação. Ceccantini (2008) descreve esse
relacionamento e convivência como cheias de luzes, cores, tons, nuances e matizes
compartilhadas pelos dois e a morte vem obscurecer este painel luminoso sugerido
pelo narrador. Toda essa cumplicidade ocorre para Duarte (1997), devido ao que cada
personagem pode adquirir dessa experiência: para Cláudio, esse encontro pode
representar a revelação e a interpretação da vida, por meio da intuição e da
experiência do artista, já para o Pintor, a observação da ternura e entusiasmo do
jovem, o conforto de saber que o garoto entendia seu drama de solidão, o que os
tornam ―gauches‖, que se encontram num mundo hostil e de incompreensão. ―É pois,
por essa razão que o texto é aberto com uma dúvida que vai ser insistentemente
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durante toda a narrativa e termina mostrando que essa dúvida faz parte de uma
problemática inerente aos conflitos do homem.‖ (DUARTE, 1997, p.96)
A obra apresenta a morte como dúvida sistêmica para a personagem, como
uma postura, uma visão de mundo inquiridora, que o menino busca romper ao não
aceitar os pensamentos cristalizados e ao reagir criticamente ao mundo adulto. Ou
seja, Cláudio ao relativizar o senso comum, acaba vendo a morte como um rito de
passagem ou de iniciação vivido por qualquer um, segundo Duarte. Não muito distinto
da visão dos antropólogos, que segundo Ernest Becker (2007), defendem a ideia de
que os primitivos julgavam a morte como uma promoção suprema, como a última
etapa de elevação do homem para uma espécie de forma de vida superior, que
desfrute de condições eternas.
Gabriel, personagem de Dois passos pássaros. Um voo arcanjo, também
conjuga dessa premissa, interpreta a morte da mãe como um ritual de passagem, que
fica evidente em:
A mãe desatou o casulo. Foi isso, vocês não entendem? A mãe
estava no casulo. Tinha muito, muito tempo. Era a hora certa de ela
sair, virar borboleta. Ela não podia ficar ali , as asas fechadas, o
corpo de lagarta pesando, fechando ela a vida inteira lá dentro, tudo
muito apertado. (LACERDA, 1987, p.66)

Neste sentido, Gabriel, o filho especial, o desconsiderado socialmente, visto


como alguém sem conteúdo, neutro, para o pai e irmã, transfigura-se nessa visão do
povo primitivo em relação à morte. Compara a mãe a uma lagarta, que depois do
período de hibernação, precisa metamorfosear-se. Ele compreende que a mãe já
havia conquistado as asas de borboleta, e que o casulo era apertado demais,
precisava ganhar espaço infinito, libertar-se, ou seja, receber uma elevação espiritual:

Não há dúvida de que os primitivos celebram com frequência a morte


– como Hocart e outros demonstram – porque acreditam que a morte
é a promoção suprema, a última elevação ritual para uma forma de
vida superior, para o desfrute da eternidade de alguma forma.
(BECKER, 2007, p.11)

A morte vem como uma escolha para a protagonista, já que a mesma,


encontrava-se totalmente tomada por um sufocante desejo de fuga da realidade,
evidente em: ―Essa... isso... doerá tanto. Mas eu não suporto mais, não aguento! Não
posso, não posso! Esta dor, esta dor, o sufocar, não tenho saída, não tenho! Há
quanto e quanto me persegue esse labirinto! Nasci dentro dele? Sou seu próprio
centro voraz?‖ (LACERDA, 1987, p.21)

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Para Becker (2007), distintamente da concepção dos primitivos, a sociedade


ocidental moderna, não concebe a morte como elevação ou promoção suprema, pelo
contrário, o medo que a morte torna-se elemento de forte configuração psicológica.
Em Dois passos pássaros. E o voo arcanjo, a morte vem acompanhada do
inconformismo de seu ocorrido. O efeito psicológico devastador da existência do
suicídio na família, transforma a vida de Renato e Renata em uma roda viva de culpas
e porquês não explicados. Percebe-se isso na fala do pai: ―E Renata me culpa. Me
culpa. E que culpa tenho eu? Devo ter alguma, é certo. Devia ter percebido. Na certa
houve algum sinal, algum... Estive cego?‖ (LACERDA, 1987, p.70)
Renata, na busca descobrir o culpado pela morte da mãe, atribui ao pai a
responsabilidade e não perceber as intenções de Maria Luísa:
E culpo você, Renato! Culpo você, meu pai. Tenho o direito? Ah,
devo ter, devo ter! Alguém ter que ter culpa. E ele é adulto. Ele sabe
das coisas. Todas. Os grandes, a gente grande. São o poder, não
são? Mandam na gente, faz isso, faz aquilo, pode, não pode, vai à
festa, não, não vai a festa. (LACERDA, 1987, p.70)

Além desta tentativa, em buscar um culpado pela morte da mãe, há uma


tentativa em achar o culpado pelo fenômeno da morte em si e para isso, a narrativa
dispôs de uma voz infantil, preconizada socialmente, ironizando a posição do adulto
consciente, homem, detentor do poder, dono do conhecimento e que nada pode fazer
diante da morte. Para Ross (1998), a sociedade sempre sentiu temor da morte e talvez
sempre sentirá abominação ao medo de morrer.
Para autora supracitada, quando o ser humano cresce, começa a notar que
não é onipotente e que seus desejos não se transformam simplesmente em realidade,
só porque quer. Em consequência, muitas vezes, o sentimento de culpa desaparece
temporariamente, até que um dia seja despertado fortemente, quando se veem na
situação eminente da morte. Quanto um adulto se depara com a morte de um ente
querido, sente-se algumas vezes culpado e para tentar amenizar tal dor, buscam uma
espécie de autopunição.
A aflição, a vergonha, a culpa são sentimentos que não distam muito
da raiva e da fúria. O processo de aflição sempre encerra algum item
de raiva. Como ninguém gosta de admitir sentimentos de raiva por
uma pessoa falecida, estas emoções são, no mais das vezes,
disfarçadas ou reprimidas, delongando o período de pesar ou se
revelando por outras maneiras. (ROSS, 1998, p.08)

Tais sentimentos de autopunição, vergonha e aflição, ficam evidentes nas


reflexões de Renato, como podemos evidenciar em:
A Renata me culpa. Me culpa. E que culpa tenho eu? Devo ter
alguma, é certo. Devia ter percebido. Na certa houve algum sinal,
algum... Estive cego? Estive fora? Renata me acusa. Como ter sabido
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antes? Era preciso, porém. Ter parado a roda, enfeitado o carrossel


com flores, fitas e rendas, alegrado a dança, alegrado a vida. Mas eu
trabalhava. Trabalhava. A carreira num ponto difícil. A idade. Demorei
tanto para construir, . Como deixar perder tudo? (LACERDA, 1987, p.
70)

A dor vivida por Renato e Renata na narrativa, são leituras da dor da


humanidade, da dificuldade e pavor que o homem tem, em lidar com a morte. Para
Becker(2007), uma das grandes redescobertas que movem o pensamento humano, é
o terror da morte, tornando-se um dos instigantes problemas psicológicos da
humanidade. Para ele, os estudiosos também evidenciaram que o verdadeiro
heroísmo é antes de qualquer coisa, apenas um reflexo do temor da morte, pois o que
mais admiramos é a coragem de enfrentar a morte.

Elementos Simbólicos das Narrativas


Antes de tratar especificamente dos elementos simbólicos nas narrativas, é
de suma importância retomarmos o epílogo da obra Dois passos pássaros. E o voo
arcanjo: ―Pra ver se eu entendo. Pra ver se eu entendo por que tem gente que se
mata. 7 Cartas e 2 Sonhos (Lygia Bojunga Nunes) (Assim como Cláudio, o
personagem de Lygia, esse porquê ainda esta vivo dentro de mim. No entanto, me
apaziguei) (LACERDA, 1987)
Diante deste epílogo, podemos notar claramente que Dois passos pássaros.
E o voo arcanjo, faz uma conexão intertextual com Meu Amigo Pintor, é uma espécie
de caminho ou continuação da intensa e difícil questão em lidar com a morte, por
suicídio.
Ambas as obras, apresentam elementos importantes simbolicamente para
sua própria construção. Em Meu Amigo Pintor, a presença do elemento relógio, faz
uma analogia do tempo e da vida. Como vizinho do Pintor, Claudio e sua família
ouviam constantemente as badaladas do velho relógio da casa do amigo. Tal fato não
agradava muito os demais da casa, mas para o menino, tal badalar reforçava o
sentimento de presença do Pintor.
Depois da morte do amigo de Claudio, o relógio continuava por um tempo
trabalhando com a corda que tinha. Para Ceccantini (2008), tais badaladas iluminam o
espírito do menino, como se estivesse junto ao seu amigo, como se ele ainda vivesse.
Como afirma em: ―... o relógio é a pulsão da vida, a amizade dos dois
antropomorfizada no compasso metódico do cotidiano‖. (CECCANTINI, 2008, p.115)
Ou seja, enquanto o relógio tocava havia esperança de o Pintor estar ali, quando

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acabava a corda, vinha a certeza da morte e a dor e, para Claudio, esse silêncio seria
a dura constatação física da morte do pintor.
Esse elemento, ao ter essa representatividade simbólica para a história,
também remete à ideia de que a cultura necessita, para sua constituição, segundo
Edgar Morin (1977), de um corpo complexo de normas, símbolos, mitos e imagens que
penetrem o indivíduo em sua intimidade, estruturando o homem quanto aos seus
instintos e emoções.
Em Dois passos pássaros. Um voo arcanjo, o relógio, o tempo também é um
elemento simbólico constante. Apresenta-se logo no prólogo e sumário, em que os
capítulos são nomeados horas: HORA 1, HORA 2, A HORA ANTES, A HORA ATÉ,
HORA 4, HORA 5, HORA 3, ESTA HORA QUE FICA SEM NOME, ESTA HORA QUE
GANHA UM NOME, ESTA HORA FINAL. Aparentemente esses títulos não
apresentam lineariedade ou lógica, no entanto, no decorrer na narrativa, constroem e
desconstroem um quebra cabeças simbólico.
No momento em que Maria Eloísa comete suicídio, a menção do tempo se faz
presente em: ―Quieta, sou dona de mim. O ritmo do relógio já não me aflige. Posso
controlar o cérebro, as suas voltas. É de meus dedos que pende este estranho
maquinismo, os numerais romanos, a louca engrenagem por trás.‖ (LACERDA, 1987,
p.22) É como se a personagem ao cessar a vida, cessa o tempo, o domina.
Ao cessar o tempo medido pelo relógio, o tempo psicológico invade suas
lembranças, seu corpo morto, mas seu espírito, ainda vivo, tecem reminiscências do
passado: ―Medo mesmo, só de nada. Mamãe sempre disse que fui criança destemida.
Por que ela usava essa palavra não sei.‖ (LACERDA, 1987, p.30)
Sato (2015), diz que Paul Ricouer considera que uma narrativa atinge seu
pleno significado quando existe temporalmente, pois simultaneamente, o próprio
tempo só se torna humano quando é articulado de um modo narrativo, como evidencia
em:
Este pensamento cíclico significa que o tempo só é percebido
humanamente quando inserido em um contexto narrativo ou como
parte de uma narração, e simultaneamente, a percepção da
passagem do tempo é o que permite que uma narração e,
consequentemente, a própria consciência humana, seja
temporalmente localizada e exista. (SATO, 2015)

Diante disso, percebe-se que a morte, necessariamente não cessa o tempo,


que mesmo depois de morta, a personagem suicida, desapega das horas marcadas e
se apega as horas vividas.
Para Chevalier (2002), o tempo é simbolizado pela roda, pelo círculo, com
movimentos giratórios, pelos doze signos do Zodíaco, descrevendo o ciclo da vida. O
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centro de tal círculo é considerado como o aspecto imóvel do ser, uma espécie de eixo
que possibilita o movimento dos seres, embora oponha-se a este, como a eternidade
se opõe ao tempo. Para o autor:
O que explica a definição agostiniana do tempo: imagem móvel da
imóvel eternidade. Todo movimento toma forma circular, do momento
em que se inscreve em uma curva evolutiva entre um começo e um
fim e cai sob a possibilidade de uma medida, que não é outra senão a
do tempo. (CHEVALIER, 2002, p.876)

Gabriel, o filho de Maria Eloísa, consegue captar a sensibilidade deste


movimento eterno e vital, pode-se verificar no seguinte fragmento:

Tempo, tempo, tempo. Sei que é assim, a mãe contava. O relógio na


parede pega o tempo, faz ele em pedacinhos, todos apertadinhos,
bem pequeninhos, depois junta, junta, junta, faz de novo a corrente
grande de pendurar na parede. A gente fica olhando como que o
tempo passou. Um dia, a corrente cai da parede, desmonta, tudo fica
em pedacinho no chão,... (LACERDA, 1987, p.53)

Ao final da narrativa, Renato percebe a busca de sua esposa, que por meio da
morte, aparente cessar da vida, consegue conquistar a própria vida. A união e
compreensão mútua. Percebe-se na fala de Renato: ―Mas não percebi. Minha culpa é
essa. É só essa. E mais: culpa se resolve com ação, eu sei agora. Minha parte de
culpa sobre a morte de Maria Luísa me cobra: chegar à Renata, saber de Gabriel.
Sermos três de verdade. Nós que nunca fomos quatro.‖ (LACERDA, 1987, P.119)

Desse modo, conjugando a obra de Bojunga e Lacerda, percebemos que a


compreensão da morte, modifica-se a partir o momento que as personagens sofrem
um amadurecimento espiritual. Ariès (1982) diz que os autores espirituais são
unânimes em reconhecer que a morte não é essa personagem assim hedionda,
terrível e abominável que herdamos da Idade Média. Segundo ele, Calvino, por
exemplo, falava:
Nós consideramos com horror [a morte] porque a tememos, não tal
como ela é em si mesma, mas triste, esquálida e hedionda, tal como
apraz aos pintores [autores das danças macabras] representá-la nas
paredes. Fugimos diante dela, mas porque ocupados com tão vãs
imaginações, não nos concedemos vagar para contemplá-la.
Paremos [é o tempo de meditação], permaneçamos firmes, olhemo-la
bem de frente e a veremos completamente diferente do que no-la
pintam e com um rosto totalmente diverso da nossa miserável vida.
(ARIÈS, 1982, p.329)

Cláudio, personagem do Meu Amigo Pintor, Renato, Renata, Gabriel e a


própria Maria Eloísa, personagens de Dois passos pássaros. E o voo arcanjo,
desconstroem toda uma figuração da concepção de morte, aquela associada ao fim,
ao término, ao cessar, e reconstroem seus conceitos do mesmo fenômeno, como nova
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forma de pensar e viver. Para Ariès (1982), ―A arte de morrer é substituída pela arte de
viver.‖
Dois passos pássaros. E o voo arcanjo, título da obra de Lacerda, também é
carregado de sentidos, os dois tiros proferidos por Maria Eloísa, foram os dois passos
que ela precisa dar para alcançar o voo que tanto necessitava, o voo arcanjo, santo,
em direção a paz. Em forma de poema, as questões foram levantadas e as possíveis
respostas, pelos leitores, de formas múltiplas puderam se transformar em novas
perguntas:
Quem oferta tantos presentes?
Quem mostra tantos caminhos?]
Quem confere asas a pés antes pesados?
Quem traça no ar o roteiro para um
Voo arcanjo
E que liga passos pássaros? (LACERDA, 1987, p.122)

Os elementos simbólicos das narrativas analisadas nutrem também o


imaginário, que para Morin (1977) precisa dar vazão aos nossos desejos,
necessidades, medos, angústias, temores, libertando, assim, nossos sonhos e
monstros para duelarem em uma batalha dialética da projeção e identificação do
homem.

Considerações Finais

As obras analisadas, Meu Amigo Pintor de Lygia Bojunga Nunes e Dois


passos pássaros. E o voo arcanjo,de Nilma Gonçalves Lacerda trazem algumas
afinidades e distinções quanto a alguns pontos, porém a negação e afirmação da
morte se faz muito viva nas histórias de cada uma delas. Tais textos resgatam um
pouco daquela interessante estranheza que o literário pode causar, ampliando assim,
o horizonte de expectativa do leitor e transformando esse relacionamento tão íntimo,
entre texto e leitor, em momentos de construções e desconstruções.
Em suma, as obras exploradas neste trabalho, trazem a morte como negação
da vida, ou seja, o fim do corpo, da presença física, do toque, e ao mesmo tempo,
como afirmação da mesma, com a presença imortal do espírito, a busca pela paz
eterna, e a resoluções de questões pendentes do cotidiano ou até mesmo, de grande
cunho existencial. Ao encontrar o aparente fim, as personagens protagonistas,
acabam percebendo apenas um recomeço.

Referências
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AGUIAR, Vera Teixeira de. A Formação do Leitor. In.: CECCANTINI, João Luís
Cardoso Tápias; PEREIRA, Rony Farto; ZANCHETTA, Juvenil. (org.) Pedagogia
Cidadã: Cadernos de Formação – Língua Portuguesa. São Paulo: UNESP, Pró-
Reitoria de Graduação, 2004. V.2
ARIÈS, Philippe. O Homem diante da morte. Rio de Janeiro: F. Alves, 1982. V. II.
BECKER, Ernest. A negação da Morte. Uma abordagem psicológica sobre a finitude
humana. 3 ed. Rio de Janeiro:2007.
BOJUNGA, Lygia. O Meu Amigo Pintor. 22 ed. Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga,
2004.
CECCANTINI, João Luís. Álbum de todos os matizes: O Meu Amigo Pintor, de
Lygia Bojunga Nunes. CECCANTINI, João Luís. PEREIRA, Rony Farto. (org.)
Narrativas Juvenis: Outros Modos de Ler. São Paulo: Editora Unesp Assis, SP: ANEP,
2008.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 16 ed. Rio de
Janeiro: José Olympio, 2001.
DUARTE, Lia Cupertino. A Morte – Seu sentido e sua expressão em narrativas
infanto-juvenis. Universidade Estadual Paulista – Câmpus de São José do Rio Preto,
1997.
LACERDA, Nilma. Dois passos pássaros. E o voô arcanjo. Rio de Janeiro: Record,
1987.
MORIN, Edgar. A integração cultural. Cultura de massas no século XX: O espírito do
tempo – I: neurose. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1977.
ROSS, Elisabet Kubler. Sobre a Morte e o Morrer. Trad. Paulo Menezes. 8 ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1998.
SATO, Cleverson. Simbologia do Relógio. Disponível em:
https://cleversonzocchesato.wordpress.com/2015/06/12/simbologia-relogio/. Acesso
em: 17 de agosto de 2017.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

A MORTE NOS CONTOS DE FADA: UM ESTUDO SOBRE ―O


ESTRANHO PÁSSARO‖, DE ROSANA RIOS

Jaine de Sousa Barbosa, Universidade Federal da Paraíba, eixo 7: Literatura


Infantil e Juvenil e temas polêmicos, comunicação oral, CAPES
Jhennefer Alves Macêdo, Universidade Federal da Paraíba, eixo 7: Literatura
Infantil e Juvenil e temas polêmicos, comunicação oral, CAPES
Márcia Tavares Silva, Universidade Federal da Paraíba, eixo 7: Literatura
Infantil e Juvenil e temas polêmicos, comunicação oral

Considerações Iniciais

O conto de fadas é um gênero textual que se faz presente na vida de muitos


leitores e ouvintes desde a mais tenra idade até a fase adulta. Com temáticas variadas
e personagens que permeiam o universo do maravilhoso, os textos perduram por
séculos encantando e ensinando muitas crianças sobre os conflitos parte da nossa
trajetória.
Muitos de nós já ouvimos sobre princesas, príncipes, madrastas, bruxas e
inúmeras outras personagens dessas histórias que vivenciam as mais diversas
situações, e é nelas em que vemos diferentes abordagens sobre as fases da vida, o
que acaba por aproximar o leitor do mundo do texto. Nascimentos, casamentos,
conflitos familiares e a morte são bastante comuns nesse tipo de história. E esta última
foi escolhida como objeto de estudo para o texto em questão.
Embora o morrer esteja presente nos mitos, nas parábolas, fábulas e contos
de fada como um todo, não são muitas as narrativas destinadas ao leitor infantil e
juvenil que trazem cenas de morte descritas com detalhes, que podem variar entre o
olhar simbólico ou realista para o fato. Há textos em que o evento aparece de modo
superficial, outros cruéis, metafóricos ou ainda repletos de eufemismo, atuando assim
como centro do texto, como protagonista.
Foi pensando em compreender mais acerca de narrativas como essas que
este artigo surgiu. O presente texto tem por objetivo analisar o conto ―O estranho
1220

pássaro‖, do livro Contos de fadas sangrentos, de Rosana Rios (2013). Nele,


deteremos nossa atenção para os modos em que a morte é descrita no texto,
atentando para sua representação e os espaços em que ela acontece.
A referente pesquisa é de cunho interpretativo e bibliográfico e a metodologia
escolhida para a leitura interpretativa da narrativa foi dividida em etapas. A primeira
consistiu na leitura do texto selecionado para nossos estudos e, a partir dele, a
escolha do objeto que seria observado dentro das histórias. A segunda etapa se deu
na seleção das obras que poderiam atuar como aportes teóricos sobre a temática. Ao
observamos o corpus escolhido, traçamos um apanhado histórico acerca da morte e
de suas representações sociais. A terceira e última etapa consistiu na interpretação do
conto lido.
Como aporte teórico acerca da morte, utilizamos os textos de Ariès (2012),
Sengik e Ramos (2013), e com Lottermann (2009), Muniz (2006), e Aguiar (2010). No
que se refere aos contos de fadas, utilizamos Coelho (2012), Traça (1998) e Tatar
(2013), a fim de compreendermos como se deu o surgimento desse gênero e sua
importância para os leitores infantis e juvenis.

Observações sobre a morte na sociedade e na literatura

A morte está presente nos contos de fada tanto quanto está em outros gêneros
textuais, o que se espera, no entanto, é que, por se tratar de um texto dedicado ao
público infantil e juvenil, sua presença não seja tão voraz ou assustadora, uma vez
que os destinatários não estariam preparados para encarar leituras em que as
personagens são torturadas ou até mesmo cruelmente assassinadas, por exemplo,
embora o desfecho dos textos venham a conduzir o leitor ao final feliz próprio das
narrativas maravilhosas. No entanto, se observarmos alguns dos textos primários e
que não tenham passado por um processo de higienização, vemos que o tema é
tratado de forma natural, e isso se dava pelo simples fato de que não havia um
conceito formado de infância e, por isso, qualquer fato da vida adulta também lhes era
comum.
Antes de passarmos a ter essa definição estabelecida e convencionada
socialmente, a criança crescia nos mesmos ambientes e espaços em que estavam
inseridos os adultos. Por esse fato, os textos literários que conhecemos hoje como
próprios para os pequenos não cumpriam essa função no início do século XVII, uma
vez que se pais e filhos estavam inseridos nos mesmos ambientes, também eram
aptos para as mesmas narrativas.

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Devido a esse fator, os temas considerados tabu pela sociedade


contemporânea, como sexualidade, velhice e a própria morte, não eram assim vistos
anteriormente, nem no que se referia ao conteúdo dos textos, nem da vida como um
todo, já que as condições de sobrevivência não eram tão favoráveis, era inevitável não
se deparar com cenas de fome, exploração e de morte. No entanto, com a revolução
industrial e as mudanças na sociedade burguesa, o quadro começa a ser modificado e
essas alterações também atingem os lares. Passa a existir, assim, uma nova
concepção de família e, consequentemente, de infância. Dessa forma, de modo
natural, os filhos passam a ocupar um espaço, os pais outros e as mães
desempenham novos papeis sociais. É significativo mencionar, entretanto, que essa
mudança ocorre efetivamente na família burguesa, e que a segregação das classes
continua a existir fortemente, uma vez que, com as condições de vida, os pobres
continuavam pobres.
Devido a essas transformações sociais acerca do conceito de infância, a
escola agora passa a existir como forma de dividir o espaço da criança e do adulto, e a
literatura, que antes era ouvida por todos, graças a sua origem na cultura oral, também
passa a ter uma nova categoria e ser destinada também ao público infantil,
concedendo aos menores um novo status e uma reorganização escolar. Os textos
agora estavam associados à pedagogia, como veículo par regras de condutas, uma
vez que as narrativas eram produzidas com fins educativos. Graças a isso, os temas
―para adultos‖ agora eram ou retirados dos textos ou higienizados neles. Os que não
passaram por esse processo ou ficam nas estantes esquecidos, são lidos por leitores
adultos, ou acabam por se tornar objeto de estudo de trabalhos como o que está
sendo proposto, e o tema da morte sofreu e sofre até os presentes dias essa
higienização, uma vez que ainda é considerado tabu.
Quando o assunto é morte, o medo, a rejeição e a esquiva são sensações comuns
para a sociedade ocidental. Somos habituados a rejeitar o tema e a acreditar que,
embora ele exista para todos, deve ser escamoteado, uma vez que não se pensa em
falar do morrer tanto quanto se fala em muitos outros assuntos, embora saibamos que
este é inevitável, conforme afirmam Sengik e Ramos (2013, p.1):
[...] Falar da morte é uma tarefa difícil na nossa cultura. O
termo causa inquietações, medos e ansiedades. Entretanto, a
morte faz parte da vida, faz parte do desenvolvimento humano
desde a mais tenra idade. A consciência que se tem sobre a
finitude ao mesmo tempo em que é uma característica que
diferencia o ser humano dos outros seres, também propicia o
questionamento sobre a vida. O discurso popular assegura que
a única certeza que se tem na vida é de que algum dia se
morre, porém, às vezes, evita-se o assunto.
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A acepção dada a isto, no entanto, nem sempre foi a mesma que se tem hoje.
Antes de haver o sentimento de estranhamento para com a morte, era bastante
presente a consciência do fato como parte da vida do homem, como ―uma forma de
aceitação da ordem da natureza, ao mesmo tempo ingênua na vida quotidiana e sábia
nas especulações astrológicas‖ (ARIÈS, 2012, p.49). Não havia tabu ao trata do
morrer e a sociedade do século XVII ―se sujeitava a uma das grandes leis da espécie e
não cogitava em evitá-la. Simplesmente a aceitava, apenas com a solenidade
necessária para marcar a importância das grandes etapas que cada vida devia sempre
transpor‖ (ARIÈS, 2012, p.50). As crianças, que hoje são afastadas tanto do falar
sobre a morte quanto do presenciar cenas em que ela acontece, estavam inseridas no
mesmo mundo do adulto, que cultuava o corpo dos falecidos e fazia oferendas para
homenageá-los em diversas regiões.
Com o passar dos anos, porém, isto foi sendo transformado, e aqueles que
aceitavam e enxergavam a morte como um estágio da vida passaram a maquiá-la,
sublimá-la e escamoteá-la. Já não se falava ou tratava o cadáver com a normalidade
anterior, e o que era tão presente e doméstico no passado, se torna vergonhoso e
objeto de interdição, saindo da posição de aceitação da ordem natural da vida, para
causadora de fuga e rejeição constante. Segundo Ariès (2012)
[...] Durante o longo período que percorremos, desde a Alta
Idade Média até a metade do século XIX, a atitude diante da
morte mudou, porém de forma tão lenta que os
contemporâneos não se deram conta. Ora, há mais ou menos
um terço do século, assistimos a uma revolução brutal das
ideias e dos sentimentos; tão brutal, que não deixou de chocar
os observadores sociais. Na realidade, trata-se de um
fenômeno absolutamente inaudito. A morte, tão presente no
passado, de tão familiar, vai se apagar e desaparecer. Tornar-
se vergonhosa e objeto de interdição (ARIÈS, 2012, p,84).

O que se percebe é que primeiramente encontrávamos um sentimento muito


antigo, duradouro e intenso de familiaridade com a morte, sem medo ou desespero,
mas um meio-termo entre a resignação passiva e a confiança mística, como pontua
Ariès (2012). No entanto, com todas as mudanças sociais, isso foi completamente
transformado e atingiu não só as concepções do homem, mas os meios que ele
utilizava para falar do que o rodeava, e a literatura era um deles.
Há muitos caminhos para falar da morte, e quando sai do plano real para o
ficcional a literatura é o veículo mais comum para conduzir ideias sobre o tema.
Através da literatura pode-se representar as respostas de inúmeras interrogações que
lhes são suscitadas, e é por meio dessa representação que o indivíduo consegue
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transpor o que é próprio da vida real para as páginas dos livros ou para a oralidade. É
compreendendo como se dá esse processo que podemos perceber como a temática
aqui abordada é funcionalizada e apresentada nos textos. O modo com o qual isso
ocorre diz muito sobre o contexto em que a obra está inserida, o estilo de escrita do
autor e o público a ser destinada.
Embora apareça em inúmeros gêneros textuais destinados às crianças, ―[...]
quando citada, a morte é uma mera coadjuvante, nunca a protagonista. É negada ou
mascarada, justificada pelo estigma do progresso‖ (MUNIZ, 2006, p.5). Essas
negações nada mais são do que reflexos da higienização pela qual passam os textos
antes de serem destinados ao público infantil. O processo de adaptação perpassa
muitas histórias que acabam por adequar o texto ao destinatário esperado, por isso
há, por vezes, modos diferentes de retratar cenas de morte. A metáfora, o simbolismo,
as alegorias e outros mecanismos são sempre utilizados para atenuar as partes em
que ela aparece nas obras. No entanto, é por meio dela que muitas verdades sobre a
vida e os conflitos que a envolvem podem ser representados. Em se tratando da
morte, os textos acabam por serem utilizados de forma exemplar, conforme afirma
Aguiar (2010):
[...] Para a criança, o conto deixa a mensagem de que a morte
deve ser considerada um fato natural (as pessoas morrem e
isto é inevitável), mas não gratuito. Quando alguém morre, a
vida transforma-se, novos arranjos familiares e sociais
organizam-se, daí derivando problemas e necessidades de
soluções. A morte, por conseguinte, assegura a continuidade
da vida, quer por lhe dar nova conformação, quer porque os
que vão deixam lições que nos ajudam a seguir nossos
caminhos. Os contos, nesse sentido, são exemplares
(AGUIAR, 2010, p. 38).

Dessa forma, o que se constata é que nem toda narrativa ocupa-se em afastar
da criança, ou até mesmo proibir, a ideia do morrer. Existem muitas delas em que o
tema ocupa um grande espaço na trama e acaba por atingir a existência do próprio
texto, tratando do assunto de modo enfático e permitindo que o leitor reflita sobre os
acontecimentos tanto nos limites da narrativa quanto no que é externo a ele, bem
como vemos na afirmação de Lotterman (2009):
[...] Tais obras permitem que o leitor reflita sobre o evento e
sobre a superação da perda provocada não apenas pela morte
física, mas também por pequenas mortes – separações, perdas
emocionais – que marcam a trajetória de todos os seres
humanos. Nesses casos, a ela ultrapassa seu caráter de
efeméride e se alça a um nível mais elevado: de evento
isolado, passa a ser o cerne da vida das personagens e, em
algumas obras, da própria narrativa (LOTTERMAN, 2009, P.8).
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Um dos gêneros em que isso é bastante presente é o conto de fadas. Desde


muito é nele que o maravilhoso se destaca, a fantasia ocupa grande espaço na
narrativa e os heróis e vilões enfrentam inúmeras desventuras. São obras que os
séculos não conseguem destruir e que, a cada geração, são constantemente
redescobertas e encantam leitores ou ouvintes de todas as idades. Inicialmente seu
público era vasto e diferenciado. E isso acontecia porque os textos não eram
destinados e confinados somente ao público infantil. Atualmente são parte da literatura
mundial para crianças, um patrimônio comum de crianças de todos os países.
Segundo Tatar (2013, p.9), ―[...] Os contos de fadas são íntimos e pessoais, contando-
nos sobre a busca de romance e riquezas, de poder e privilégio e, o mais importante,
sobre um caminho para sair da floresta e voltar à proteção e segurança de casa‖.
Estes textos não têm uma origem exata, ela se perde na poeira dos séculos,
mas é certo que são provenientes das narrativas orais que eram contadas e foram
colhidas no decorrer dos anos. Muitas vezes, atuavam como moralizantes, ou seja,
eram usadas para ensinar boas condutas aos ouvintes e tentar alertá-los acerca dos
perigos da vida. Estavam presentes no cotidiano repleto de enfado e cansaço dos
camponeses e se tornaram o escape para espantar o tédio dos afazeres domésticos
dos mesmos. Não foram destinadas à criança, inicialmente, porque não havia uma
concepção formada de infância como temos hoje. No entanto, elas ouviam os textos e
eram atraídas por eles, não só pela fantasia do universo criado nas histórias, mas
porque eles sempre trouxeram verdades inerentes ao homem, conforme pontua Traça
(1998) ao afirmar que
[...] O conto levanta questões com as quais todo o indivíduo
que vive em sociedade se vê confrontado: rivalidade de
gerações, integração dos mais novos no mundo adulto, tabu do
incesto, antagonismo dos sexos. Lida com aspectos da vida
social e do comportamento humano, como etapas
fundamentais da vida, como o nascimento, o namoro, o
casamento, a velhice e a morte, e com episódios
característicos da vida da maior parte das pessoas (TATAR,
1998, p. 28).

Na França, a primeira coletânea de contos de fadas registrada foi escrita por


Charles Perrault, no século XVII, e tinha por título Contos da mamãe Gansa. Foi a
partir dos estudos de Perrault que, cem anos depois, na Alemanha do século XVII, as
narrativas de contos de fadas foram consideradas como literatura infantil e destinada a
esse público de fato, e se expandiram pela Europa e Américas, graças aos estudos
linguísticos realizados por Jacob e Wilhelm Grimm, outros dois nomes indispensáveis
ao gênero. Além deles, Hans Christian Andersen, no século XIX, foi autor de narrativas
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que também extrapolaram os limites do tempo. Os três autores formam uma tríade
importante quando o assunto é conto de fadas e eles mostram muito mais do que
personagens e aventuras, mas retratos de uma época, sociedade e modo de enxergar
a vida por meio das histórias de homens e mulheres que quebram os limites do tempo.

Compreendendo e analisando o texto

―O estranho pássaro‖ é um dos contos reunidos em Contos de fada sangrentos


(2013). Na obra, Rosana Rios, adapta cinco textos da autoria dos Irmãos Grimm que
trazem a morte como um tema recorrente e em uma abordagem nada eufêmica, mas
enfática e, por vezes, bastante cruel.
O conto a ser analisado no presente trabalho traz a história de um feiticeiro que
enganava meninas e as levava para seu castelo. Chegando lá, ele afirmava que
precisava viajar, mas deixava um aviso para a jovem que ficasse na casa: ela poderia
entrar em qualquer cômodo do lugar, contanto que não abrisse o quarto cuja chave
ficava sob sua responsabilidade. Junto com o objeto, o malvado também entregava
um ovo, que serviria de denúncia caso alguém abrisse o cômodo e o deixasse cair.
Certa vez em uma residência, ele raptou a mais velha de três irmãs, levou-a para casa
e informou-a sobre a proibição. No entanto, desobedecendo-o, ela entrou no quarto,
mas derrubou o ovo e a chave, porque a cena encontrada no local era assustadora:
mulheres mortas. Com as duas outras o destino foi o mesmo, a morte cruel, mas com
a terceira algo diferente aconteceu e isso salvou sua vida e de suas irmãs.
O primeiro indício de morte aparece justamente na fala do feiticeiro ao avisar
que ninguém poderia entrar no quarto, e é em sua fala que percebemos que esta
morte já era planejada, uma vez que ele sabia que a partir do momento em que
proibisse a entrada no lugar, despertaria a curiosidade de suas vítimas e isso seria
fatal para elas, conforme vemos nesta fala a seguir: ―Vou deixá-la sozinha. Cuide da
casa enquanto eu não voltar, eis aqui as chaves de todos os cômodos. Mas eu a
proíbo de entrar no quarto que é aberto por esta chavinha. Se for lá, morrerá. (RIOS,
2013, p. 21).
Era inevitável que as mulheres raptadas não se sentissem atraídas pelo que
ele havia dito. O que poderia haver de tão precioso naquele local que impedisse a
visitação? Movidas pela curiosidade e pelo incontrolável desejo de descoberta,
acabavam por ultrapassar os limites de aproximação estabelecidas pelo feiticeiro:

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[...]Tendo em seu poder as chaves e o ovo, a garota repetiu


as promessas. Mas, assim que o homem saiu, foi tomada por
enorme curiosidade. Saiu pela casa abrindo todas as portas e
inspecionando os cômodos, do sótão ao porão. E, quando
encontrou a fechadura em que servia a chavinha, não teve
dúvidas e abriu a porta. (RIOS, 2013, p. 21)

A partir do momento em que a vítima entra no quarto a descrição do espaço se


mostra essencial para que percebamos como a cena vista é descrita, e é nela que o
narrador expõe um retrato de mortes bastante acentuado. Um dado significativo sobre
como esses assassinatos são expostos no conto é que, conforme foi mencionado no
decorrer desse texto, não há uma higienização ao tratar da temática da morte, mas
sim uma acentuação dela. No trecho que veremos abaixo, a jovem se percebe
aterrorizada ao ver a cena à sua frente, e o narrador a enfatiza, conforme vemos
abaixo:

[...] Ficou aterrorizada ao entrar no quarto. Ele cheirava a


cadáveres, tinha ossos e caveiras nos cantos, restos de gente
morta apodrecendo e, no centro, um grande caldeirão cheio de
sangue. Ao lado, um cepo e um machado. Concluiu que ele
matava e esquartejava as meninas que raptava. Tremendo de
pavor, a garota deixou o ovo cair, e ele foi parar bem no meio
do sangue! (RIOS, 2013, p. 22).

O ovo que cai da mão da garota é um importante elemento de denúncia. Era


ele que, estando melado de sangue, poderia trazer grandes problemas a quem o
portasse, porque denunciaria que o quarto fora aberto. O próprio feiticeiro deixa isso
claro antes de partir:

[...] Tome conte disto – ordenou. – Leve-o sempre com você, e


cuidado! Se ele se perder, grandes desgraças acontecerão.
(...) No dia seguinte, o feiticeiro voltou. Assim que viu sua
prisioneira, ele exigiu as chaves e o ovo. Trêmula de terror, ela
os entregou. E ele percebeu que ela estivera no cômodo
proibido.(RIOS, 2013, p. 22)

Assim que isso acontece, uma nova cena de morte é descrita na trama. Como
havia desobedecido, a punição da prisioneira seria ter o mesmo fim das outras moças
que ela mesmo avistou morta no quarto. O feiticeiro, então, ―agarrou-a pelos cabelos e
a arrastou até o quarto, onde a deitou sobre o cepo e cortou sua cabeça e seus
membros com o machado, jogando-os no caldeirão. E pensou: ―Vou raptar a segunda
irmã‖ (RIOS, 2013, p. 22). A violência física antecedeu sua morte, que também
aconteceu de forma bastante cruel. A descrição das ações do homem nos faz pensar
nas imagens dessa cena. Em um primeiro momento ele a agarra pelos cabelos, o que
dá ideia de força, e em seguida, a arrasta até o local esperado para concretizar seu
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desejo de morte, e, assim feito, ele retorna à casa dela, decidido a raptar a irmã do
meio, que passa exatamente pela mesma situação da primeira. Na terceira tentativa,
agora com a irmã mais nova, a situação mudou, porque ―ela, porém, era prudente e
esperta. Desconfiava de que aquele homem tivesse sumido com suas irmãs, e fingiu
ter sido enganada para descobrir o que acontecera com elas‖ (RIOS, 2013, p. 23).
Diferentemente das duas primeiras, a terceira filha era bastante esperta, e foi essa
esperteza que a salvou.

[...] A menina prometeu obedecer. Assim que se viu sozinha na


casa, guardou o ovo que ele lhe dera num lugar seguro e foi
abrir o quarto secreto. Lá dentro, deu com a macabra cena: o
sangue no caldeirão e os cadáveres das garotas que o
assassino exterminara, inclusive os de suas irmãs. (RIOS,
2013, p. 23)

A cena descrita após o momento em que a terceira irmã adentra no quarto


apresenta uma sequência de acontecimentos que, levando em consideração os limites
da racionalidade, só poderiam se suceder por meio da intervenção do maravilhoso,
elemento sobrenatural característico dos contos de fadas. Diante de um cenário
macabro, a personagem consegue manter a instabilidade emocional para reunir as
partes dos corpos esquartejados de suas irmãs. Ao conseguir montar cabeças, troncos
e membros, o sobrenatural entra em ação: ―No quarto secreto devia haver alguma
magia em ação, pois aos poucos as duas moças reviveram!‖ (RIOS, 2012, p.26).
Sob o nosso olhar analítico, compreendemos que, por se tratar de um quarto
em que só um feiticeiro tinha acesso para realizar seus rituais de massacre, o
ambiente deveria realmente possuir uma forte carga de magia. Entretanto,
observamos que assim como descrito no conto, outras moças também já haviam
adentrado nesse espaço sem que nenhuma anormalidade tivesse acontecido, como a
exemplo da ressureição das que já estavam mortas, o que deixa evidente que o
maravilhoso está associado a coragem da terceira irmã, ou seja, sua ousadia quebrou
com a sequência de mortes em massa. Dessa forma, o retorno a vida de suas irmãs
está posto como uma recompensa por seu ato de coragem.
Através do reencontro entre as três irmãs floresce um sentimento de felicidade,
um dos únicos encontrados em toda a sequência narrativa, e novas estratégias são
pensadas para enganar o feiticeiro e , finalmente, escapar da prisão que aquela casa
representava. Como ponto de partida para essa empreitada, a irmã mais velha resolve
manter suas irmãs mais velhas escondidas em um outro quarto para que nada
parecesse alterado e levantasse quaisquer suspeitas. Ao retornar de viagem e
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adentrar na casa, assim como de costume, o feiticeiro solicita a devolução da chave e


do ovo; contudo, tem suas expectativas quebradas quando percebe que o ovo,
elemento que sempre denunciou a desobediência de suas prisioneiras, permanece
intacto. Sendo vítima de sua própria artimanha, o engano, o feiticeiro acreditou que
sua prisioneira é uma moça obediente e que não cedeu as tentações da curiosidade.
Como recompensa, ou principal castigo, a moça é poupada da morte e eleita como
esposa do feiticeiro, o qual a promete total dedicação e realização de todos os
desejos.
Alcançando êxito nessa primeira etapa, a moça dá sequência aos seus planos
de vingança contra o vilão prometendo ser sua esposa se esse comprimir o seu
desejo: ―Serei sua esposa, se você levar a meus pais um saco cheio de ouro, que eu
encherei, e que deve carregar sozinho. Se fizer isso, eu prepararei o casamento‖
(RIOS, 2012, p.26). Almejando-a em tê-la como esposa, o feiticeiro concorda sem se
opor a sua vontade.
Incumbido de levar ouro para os pais de sua futura esposa, mal sabia ele que
carrega em suas costas as suas vítimas anteriores, as duas irmãs mais velhas as
quais foram instruídas para mandar ajuda à irmã mais velha assim que chegasse em
casa. Além disso, o feiticeiro, mais uma vez, teve sua própria estratégia voltada contra
si: ―[...] Quero que leve o saco de ouro até a casa de meus pais, mas sem parar no
caminho para descansar. Eu estarei na janela mais alta, e saberei se parar.‖. Seu
cansaço seria o elemento de denúncia, assim como o ovo foi em outrora, e as irmãs
de sua prisioneira, durante toda a viagem, foram vigias atentas, alertando-o e o
fazendo acreditar que estava sendo observado da janela pela sua noiva que
constantemente repetia: ―– Estou olhando pela janela, e vejo que você está quebrando
sua promessa. Continue!‖ (RIOS, 2012, p.27).
Enquanto a trajetória para a entrega do saco de ouro era percorrida, no
casarão estava sendo preparada uma festa de casamento que aconteceria assim que
o feiticeiro retornasse de viagem. A moça, além de enviar convites para todos os
amigos e comparsas do seu futuro esposo: ―pegou um grande nabo, cortou nele
buraco que pareciam olhos e boca, enfeitou-os com uma cora de flores e um véu e
colocou na mais alta janela, como se fosse uma pessoa.‖ (RIOS, 2012, p.27). Em
seguida:

[...] Ela se cobriu de mel, rasgou um colchão e rolou nas pelas


de seu recheio, ficando parecida com um pássaro estranho,
que ninguém jamais imaginaria ser uma garota. Saiu de casa,

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que deixou pronta para a festa, e foi seguindo os passos do


homem. (RIOS, 2012, p.27)

Sempre que encontrava os convidados que estavam indo para a celebração, o


pássaro estranho avisava que a noiva estava esperando o seu amado na janela, ao
encontrar o feiticeiro no caminho de volta, repetiu a mesma coisa, fazendo com que
ele se apressa-se para chegar logo em casa e encontrá-la.
Enquanto isso, as duas irmãs mais velhas, já tinham chegado à casa e contado
tudo que acontecera para os seus pais, esses, por sua vez, reuniram um grande
número de pessoas para ir em busca do assassino. Chegando no casarão:
[...] Eles trancaram todas as saídas da casa, para que ninguém
fugisse, e a incendiaram. O feiticeiro e seus comparsas
queimaram até virar cinzas, e esse foi o fim da casa onde
tantas mortes tinham acontecido e tanto sangue havia sido
derramado‖ (RIOS, 2012, p.28).

Observamos que o feiticeiro provou do seu próprio feitiço. Assim como ele se
transformava em mendigo para enganar as suas vítimas, também foi enganado por um
pássaro estranho. A esperteza que, por vezes, foi o seu trunfo, acabou sendo o
principal elemento usado para executar a vingança. Ele, que sempre punia as moças
pela desobediência, foi punido da mesma maneira, pois ficou refém de sua noiva não
podendo parar durante a missão de levar ouro, e caso desobedecesse, perderia a
chance de tê-la como esposa. A curiosidade que levou tantas moças a serem
esquartejadas, também o levou para o local de sua ruina, pois ao ser avisado que sua
noiva o esperava apressou-se para chegar rápido ao casarão. Sua morte foi sua
recompensa por todos os massacres que já havia cometido e o casarão que tanto
aprisionou outras vítimas tornou-se sua prisão eterna. Por fim, os maus foram
punidos, e o pássaro estranho, com recompensa pela sua coragem, esperteza e
ousadia: libertou-se.
Diante do exposto, percebemos a morte representada, no término do texto,
como punição, vingança para as atrocidades cometidas. Assim como em grande parte
dos textos maravilhosos, há o contraste mal versus bem, e nesse conto isso é
bastante acentuado. Por esse fator, acabamos por não estranhar a morte do feiticeiro,
pelo senso de justiça e de equidade, uma vez que nessas histórias o vilão é punido
por suas ações e as vítimas se vingam por todo o mal sofrido. De modo geral, embora
haja a crueldade e a violência, a narrativa termina com final feliz e com a vitória do mal
sobre o bem, algo que também é comum no conto maravilhoso.

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Considerações Finais

Conforme foi apresentado no decorrer do presente trabalho, buscamos realizar a


análise de um conto de fadas um tanto distinto dos textos dessa vertente a que
estamos acostumados a ouvir. No decorrer da pesquisa, traçamos um breve percurso
histórico das acepções dadas a morte entre os séculos XVII e XIX até a
contemporaneidade, e percebemos como o modo de enxergar essa circunstância
mudou ao longo dos anos, uma vez que aquilo que era visto como ordem natural da
vida passou a ser enxergado como tabu, e isso não só atingiu o comportamento do
homem, mas tudo que o envolve, e a literatura é parte fundamental disso. Em se
tratando de textos para crianças, isso não é diferente. As obras destinadas ao público
infantil tendem metaforizar e atenuar as cenas de morte, quando não retiram, e em
todo esse processo percebemos como acontece a higienização de alguns textos. No
entanto, enquanto uns ―limpam‖ o morrer de suas tramas, outros enfatizam isso, como
foi o caso do conto aqui analisado.

―O estranho pássaro‖ é um texto em que a morte aparece em diversas facetas. De


acordo com o decorrer da análise, pudemos perceber que ela é retratada inicialmente
como um evento previamente planejado, uma vez que o assassino já sabia a forma de
enfeitiçar as jovens, levá-las para casa, aguçá-las a curiosidade e fazer com que elas
desobedecessem e acabassem morrendo. Um dado interessante é o objeto utilizado
como elemento de denúncia. Era o ovo que, manchado de sangue, indicava que
alguém havia entrado no quarto em que os corpos estavam. Em se tratando desse
cômodo, percebemos quão importante ele é na narrativa. Todas as mortes acontecem
em seu interior, de forma cruel, macabra e grotesca. A outra forma que ela assume é a
de vingança, quando, no desfecho, a situação muda completamente graças à
esperteza da última menina a ser raptada. Enganando o feiticeiro, ela traz suas irmãs
de volta e assim planeja uma forma de punir o homem. É aí que vemos a morte como
punição, cujo final acontece um incêndio no castelo dele, que aniquila todos os que lá
estavam.

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Referências

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AGUIAR, V.T; CECCANTINI, L.J; MARTHA, A.A.P. (Orgs.) Heróis contra a parede:
estudos de literatura infantil e juvenil. São Paulo: Cultura Acadêmica. ANEP, 2010.
ARIÉS, Philippe. Sobre a história da morte no Ocidente desde a Idade Média.
Tradução de Priscila Viana Siqueira. 2a ed. Lisboa: Teorema, 2012.

COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas. São Paulo : Editora Ática, 2012.

LOTTERMANN, Clarice. Representações da morte na literatura infantil e juvenil


brasileira.Anais do SILEL. Volume 1. Uberlândia: EDUFU, 2009.

MUNIZ, Paulo Henrique O estudo da morte e suas representações socioculturais,


simbólicas e espaciais. Revista Varia Scientia. v. 06, n. 12, p. 159-169, 2006.
Disponível em < file:///C:/Users/alan/Downloads/1520-5314-1-PB.pdf>. Acesso em 01
agosto 2017.

SENGIK. Aline Sberse. RAMOS, Flávia Brocchetto. Concepção de morte na


infância. Revista Psicol. Soc. vol. 25 n.2. Belo Horizonte, 2013. Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-71822013000200015>.
Acesso em 17 ago 2017.

RIOS, Rosana. Contos sangrentos. São Paulo : Farol Literário, 2013.

TATAR, Maria. Conto de fadas. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. 2.ed. Rio
de Janeiro : Zahar, 2013.

TRAÇA, Maria Emília. O Fio da Memória – do conto popular ao conto para crianças.
2ed. Porto: Porto Editora, 1998.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

A PRINCESA SABICHONA: PERFORMAÇÕES DE GÊNERO NA


LITERATURA INFANTIL

Henrique Magalhães dos Santos, UFBA, ET07, PROAE


Juan Messias Souza Santos, UFBA, ET07, PROAE
Mônica de Menezes Santos, UFBA, ET07, CNPq

Considerações Iniciais
Este artigo pretende discutir questões de gênero identificadas no livro infantil A
princesa sabichona, da escritora e ilustradora Babette Cole, flagrando o lugar ocupado
pelos corpos performatizados na obra, que – pela via da sátira – desconstrói e
denuncia estereótipos femininos e masculinos que se encontram nos contos clássicos,
bem como em suas diversas adaptações. Nesse mesmo movimento, busca-se
surpreender aqueles elementos estereotipantes que permanecem presentes no objeto
de análise (repetindo-se na diferença), bem como identificar questões de gênero,
sexualidade, identidade, cultura, poder, representação, performance, corpo, infância e
discurso observados na obra. Para tanto, será utilizado vasto aporte teórico,
recorrendo-se a noções presentes nos estudos literários e nos estudos culturais, bem
como nas discussões de gênero levantadas pelas teorias feministas, como as
proposições de Guacira Lopes Louro e as reflexões de Chimamanda Ngozi Adichie.
Além disso, serão ativadas discussões sobre: literatura infantil e crítica literária,
abordadas por Peter Hunt; a especificidade do livro ilustrado, a partir de Maria
Nikolajeva e Carole Scott; diferença e repetição na perspectiva de Gilles Deleuze;
cultura, identidade e representação, de acordo com Stuart Hall. No que concerne ao
conceito de representação, buscar-se-á discuti-lo em contraponto à noção de
performance e literatura proposta por Luciene de Azevedo. O propósito do trabalho é,
enfim, empreender uma leitura a contrapelo da obra A Princesa Sabichona, tal como
sugere Walter Benjamin.

Literatura infantil, livro ilustrado e performance


No âmbito da crítica literária, da teoria literária e dos espaços acadêmicos, quando se
trata de encarar as produções voltadas ao público infantil e juvenil, a tendência é que
se faça presente, em alguma dimensão, certos discursos que atrelam a tais obras um
1233

caráter não tão literário e, em muitos casos – como em obras introdutórias de teoria
literária –, é justamente na total ausência de abordagens acerca de tais produções que
residem esses discursos. Refletindo acerca dessa questão, Peter Hunt escreve:
(Afinal de contas, o mundo literário e crítico está organizado como
uma família nuclear, com o patriarca mais importante que a mulher, e
a mulher mais importante que os filhos.). [...] Qualquer um que
trabalhe de alguma maneira com livros para criança deve
constantemente se justificar para uma classe de pessoas diferentes,
e batalhar por vários tipos de status (HUNT, 2010, p. 30-31).

Quando, porém, se trata de mapear as considerações feitas acerca dos livros


ilustrados, isto é, obras que combinam ―dois níveis de comunicação, o visual e o
verbal‖ (NIKOLAJEVA e SCOTT, 2011, p. 13), o preconceito e os discursos de
desqualificação literária ascendem a níveis alarmantes. Discutindo acerca dessa
realidade, em um movimento que pretende evidenciar o caráter arbitrário e infundado
dos discursos que naturalizam certa hierarquização entre imagem e palavra, bem
como evidenciar a complexa interação entre iconografia e linguagem verbal, as
autoras Maria Nicolajeva e Carolle Scott escrevem:
O preconceito comum de que os livros ilustrados são literatura para
crianças muito novas aparentemente está baseado na noção
lacaniana de linguagem pré-verbal, imaginária, que é, se não
dominante, certamente evidente nos livros ilustrados quando
comparados aos romances. Ao que parece, os livros ilustrados,
combinando com sucesso o imaginário e o simbólico, o icônico e o
convencional, alcançaram algo que nenhuma outra forma literária
conseguiu dominar (NICOLAVEJA e SCOTT, 2011, p. 330).

As considerações que aqui serão feitas devem ser encaradas como um convite para a
tomada de uma postura reflexiva e questionadora perante obras artísticas destinadas
ao público infantil que performatizam a infância, sejam essas produções ilustradas ou
não. Quanto à escolha pelo termo ―performance‖ em detrimento de ―representação‖, tal
posicionamento deve-se, em grande parte, às considerações feitas por Luciene de
Azevedo em seu artigo ―Representação e performance na literatura contemporânea‖,
em que se discute as problemáticas da representação literária, e se expõe a
performance literária como uma noção que entende a produção artística não como
reapresentação de um real – noção que guarda ligação com certas concepções
essencialistas advindas de Platão e Aristóteles, remetendo-nos à ideia de que há um
real essencial ao qual a literatura copia, representa – mas como fabricação de uma
realidade, de um universo, de ―personas‖. Portanto, a reflexão feita aqui a partir da
obra ilustrada A Princesa Sabichona, a história da princesa que queria ser solteira, de

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Babette Cole, a toma como produção, fabricação de universos e subjetividades, não


como representação ou imitação.

Uma performance feminista


A análise de qualquer texto literário passa, primeiramente, pela
definição, ainda que não explícita, das estratégias teóricas que
servirão de base para a abordagem de suas estruturas de
significação. O enfoque crítico feminista, em sua especificidade,
busca desvelar o quanto da ideologia patriarcalista opressora está
impresso no literário, para, então, desconstruir essa mesma ideologia,
gerando, como resultado, uma visão crítica da sociedade e das leis
que a regem (RAMALHO, 2003, p. 47).

Em artigo intitulado ―Mulheres, princesas e fadas: a hora da desconstrução‖, Christina


Ramalho (2001) explicita a necessidade de uma atenção redobrada quando se trata
de analisar um texto que carrega consigo a marca de ―literatura infantil e juvenil‖, já
que não se pode deixar de levar em conta a carga ideologizante que acompanha essa
literatura desde o seu surgimento, quando a mesma era utilizada como mecanismo de
domesticação do corpo infantil, a exemplo das adaptações moralistas de Perrault. A
Princesa Sabichona, enquanto obra que retorna aos contos de fadas a fim de recontá-
los por um viés que insere a mulher em uma ordem discursiva que questiona e
problematiza sua subalternidade, não deixa de trazer a sua própria carga ideológica, e
o faz trabalhando com repetições e diferenças.
A cultura ocidental tende a dicotomizar uma série de fenômenos, de modo que,
ao comparar objetos de análises distintos a partir de conceitos sociais pré-
estabelecidos e universalizados, elege-se uma ideologia que funcione como um meio
para a padronização de comportamento dos indivíduos. Essa tendência se manifesta
também na hierarquização via gênero, por meio da qual elegemos o masculino como a
categoria por excelência, detentora de valores intrinsecamente superiores, cabendo ao
mulheril, através do discurso machista, o restolho, a constante adequação da
subjetividade e do corpo feminino em um objeto a ser conquistado e manuseado por
esse macho. Disto a infância não escapa.
A demarcação de uma postura de gênero para os sujeitos que estão em fase
de descoberta e em construção da identidade é ainda mais agressiva. Assim sendo,
obras infantis e juvenis, no decorrer do tempo, adentram em questionamentos que
estão sempre retornando, como: de que forma escrever para crianças? O que e como
deve ser representado? Temas tabus devem ser discutidos com crianças e
adolescentes? Como deve ser o feminino e o masculino que aparece em obras infantis

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e juvenis? Questionamentos que, assim como uma série de discursos, idealizam a


infância, o masculino, o feminino etc.
A narrativa ilustrada da Babette Cole, A Princesa Sabichona, elucida o quanto
demarcações e imposições de maneiras de agir são agressivas para os indivíduos
dentro do sistema social, no entanto se concentra principalmente no sujeito
feminino250, determinando o casamento, a procura de um príncipe encantado, estética,
heteronormatividade, entre outros. Além de retomar um estereótipo de masculino que
estabelece uma maneira de se portar e que deve ser resgatada. E mais do que isso,
percebe-se uma demanda que exotiza o Outro para desaguar e entornar numa
retomada recorrente do comportamento desse diferente. Acerca disso, Azevedo
escreve: ―Os riscos da idealização desse Outro e da suficiência da perspectiva
comprometida apenas politicamente apontam para a reafirmação da exclusão até
mesmo através da sua desnaturalização, uma espécie de ‗experiência do Outro sem
sua alteridade‘, nas palavras de Zizek‖ (AZEVEDO, 2007, p.81).
Na obra em análise, as repetições (o Mesmo) e as diferenças (o Outro) manifestam-se
tanto no nível verbal quanto no nível visual. Nas ilustrações, o leitor acompanha um
cenário que mistura elementos que remetem ao passado – como castelos e príncipes
– com elementos mais modernos – como automóveis, helicóptero e televisão. Essa
espécie de bricolage parece apontar para a permanência de estruturas antigas na
contemporaneidade, sendo o castelo, talvez, uma das mais simbólicas manifestações
da perenidade de algumas instituições. Para Deleuze, ―a maior diferença é sempre a
oposição‖ (DELEUZE, 1988, p. 66). Na obra analisada, a maior manifestação da
diferença se insere na performance da Princesa Sabichona, que diferente das
clássicas princesas, ―[...] não queria se casar, gostava de ser solteira‖ (Cole, 2004, p.
6). Mas a diferença manifesta pela princesa está além da dimensão dos desejos, seus
próprios hábitos gravam-lhe a marca do Outro. Diferente do que se costuma esperar
de uma princesa, a protagonista de Babette Colle não parece se importar nem um
pouco com o fato de ser ela mesma a resolver seus próprios problemas, cuidar de
seus próprios animais, limpar o próprio jardim, se aventurar em esportes radicais e
andar para cima e para baixo com um macacão surrado, nem um pouco dentro do que
se convencionou denominar como ―feminino‖. Em contraponto à inserção desses
elementos na narrativa, a história continua girando em torno de uma mulher branca e
loira, descrita como sendo muito bonita, o que também pode ser lido como uma crítica
à disposição social de valorizar determinados traços da diversidade humana, visto que

250
O sujeito feminino ao qual nos referimos não está preso a questões biológicas, mas a ideologias e
construções sociais.
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era justamente a ―beleza‖ e a riqueza da princesa que atraiam a atenção dos


príncipes.
Dentro da hierarquia dicotômica ocidental, tudo aquilo que advém do feminino
tende, em alguma dimensão, a ser remetido a algo ruim, menor ou frágil, pelo menos
na conjuntura patriarcal. Nesse quesito, as estruturações sociais e culturais ditam e,
muitas vezes, essencializam, a partir de uma normativização, os anseios e o grau de
representatividade desse Outro. Sendo assim, o feminismo passa a existir para
quebrar essa lógica da hegemonia masculina, a fim de trazer igualdade entre os
gêneros. Múltiplos discursos feministas percorrem obras infantis com o intuito de erigir
sujeitos femininos não subordinados e, desse modo, desconstruir as preleções de
possibilidades infinitas conferidas ao sujeito masculino desde a infância, a lógica de
que o estado feminino é uma condição de permissividade, de não autonomia, de fonte
de prazer etc. A Princesa Sabichona comporta no seu discurso uma nova perspectiva
e, de forma satírica, tenciona as ideais deterministas naturalizadas acerca do feminino.
Por essa lógica, Tânia Swain, em Pequena introdução aos feminismos, publicado em
site pessoal251, nos expõe um apanhado sobre as diversas explanações feministas e
distintos tipos de atos opressivos do monopólio masculino, que decalcam cicatrizes na
posição feminal e que se sustentam no discurso social adultocêntrico, heterocêntrico,
falocêntrico e patriarcal que, por sua vez, edificam-se como hegemônicos.
Em A Princesa Sabichona, percebemos a performance de um feminino que
transgride as imposições socioculturais, assim como um masculino que não consegue
administrar essa transgressão. Dessa maneira, como escreve Poulain De La Barre,
―Todo lo que los hombres escribieron sobre las mujeres debe ser sospechoso, pues
ellos son, hace un tiempo, juez y parte‖ (LA BARRE, 1993, p. 63) 252. Ou seja, com La
Barre apontamos para a necessidade de uma performance feminina de autonomia não
exotizada pela conjuntura social falocêntrica; de um feminino que não é um
prêmio/objeto a ser conquistado, mas que deve ser respeitado. E, partindo da
premissa feminista de que todo feminino tem valor, ―[...] Não ‗se‘. Não ‗enquanto‘. Eu
tenho igualmente valor. E ponto final.‖ (ADICHIE, 2017), determina-se, desse modo,
que todo sujeito possui igualmente valor na sua construção social como indivíduo,
independente do sexo ou gênero.

Repetição e diferença

251
Disponível em: http://www.tanianavarroswain.com.br/brasil/pequena%20introducao.htm
252
“Tudo o que os homens escreveram sobre as mulheres deve ser suspeitoso, pois eles são, há
um tempo, juiz e parte” (Tradução nossa).
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Pensando junto a Deleuze, como personagem que faz oposição direta à Princesa
Sabichona, podemos destacar a Rainha, sua mãe, modelo ideal de mulher com quem
um dia a princesa trava um embate de olhares raivosos e cenhos franzidos, dado que
a rainha não está nada satisfeita com o desinteresse da filha em um casamento.
Ocorre então um dos momentos mais emblemáticos da narrativa, quando a rainha
ordena à princesa que tome juízo e arrume um marido.
As várias dimensões das relações de poder entre ambas – adulto-criança, mãe-filha,
rainha-princesa – interferem diretamente no desenrolar da trama, já que, como
subalterna que é em relação à mãe, Princesa Sabichona se vê obrigada a acatar a
ordem real, uma demonstração explícita de abuso de poder, que não leva em conta os
desejos do Outro, forçando-o a adentrar em uma instituição que demanda uma série
de transformações a serem operadas diretamente no corpo da mulher envolvida, já
que devemos levar em conta que, junto com o casamento, seguem-se uma série de
exigências outras, como a maternidade, que por sua vez pressupõe relações sexuais.
Forçar alguém a casar-se mediante o poder que se exerce sobre esse alguém é forçá-
la a todas as outras demandas advindas do casamento. Tudo isso só se dá pelo fato
de que, historicamente, e dentro do contexto em que se passa a história, à mulher
coube sempre o servir ao homem.
O feminino não é o segundo sexo em relação ao masculino, nem sua sombra.
Logo, a ideia de que algo está errado em relação ao corpo feminil e que o mesmo é
um corpo apto e pronto para o uso, foi e continua sendo usada para subalternizar
certos corpos dentro da sociedade, sonegando voz e representatividade em meio à
história, onde qualquer indício de feminino não submisso foi perdido pelo tempo ou
oculto por uma ideologia patriarcal. Nesse quesito, a representatividade feminina na
literatura, em geral, é galgada por um modelo de servidão e de arquétipos repetidos.
Especificamente, na literatura infantil, com o constante resgate do estereótipo da
princesa, se mantém, em certa medida, um imaginário de que existe um
comportamento mais aceitável para garotas. Já para meninos, oferece-se o clássico
príncipe, o super-herói masculino e heteronormativo, que percorre o mundo realizando
grandes feitos à procura da princesa ideal ou de uma multiplicidade de contatos
afetivos. Enquanto isso, a princesa espera passiva em seu castelo.
No entanto, essa ideologia da ―princesa‖, perpetuada durante os séculos,
começa a ser repensada nas conjunturas sociais contemporâneas. Desencadeando,
dessa maneira, em discursos que trazem autonomia para a subjetividade feminina e,
principalmente, ao corpo feminino. Nesse caso, Cole resgata o tão diluído modelo de
comportamento do feminil, através da princesa e, por conseguinte, o desmonta e o
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remonta trazendo um indivíduo femíneo253 subversivo do que se espera para o signo


linguístico ―princesa‖. Porém, mesmo atrelando discursos que remontam autonomia a
subjetividade feminina, que subverte o significado do termo ―princesa‖, ainda assim, há
marcas que retomam o discurso patriarcal do que se espera de uma mulher, como a
correspondência a certo ideal de beleza, conforme já referido, e um determinado modo
de agir. Entretanto, de forma satírica, Cole traz um modelo de beleza que se insere
confortavelmente em um vestuário prototipicamente dado a um camponês ―masculino‖,
além de um cabelo desgrenhado.
Valendo-se da esperteza – elemento caro aos contos de fadas, mas quase sempre
performado por corpos masculinos que tentam escapar de perigos –, a princesa
estabelece critérios para quem desejar casar-se com ela: uma espécie de competição
onde o príncipe deverá passar por uma prova, se obtiver resultado positivo, levará
como recompensa a princesa. Mas diante da natureza extremamente árdua das
provas, um após outro, os príncipes vão sendo reprovados e partindo em debandada.
A esperteza aqui é o mecanismo utilizado pela heroína a fim de escapar dos perigos
de um casamento indesejado. E, diferentemente de grande parte dos contos de fada,
a princesa de Cole não se vale de qualquer ajuda externa a fim de se safar do
espectro de um casamento forçado. Por isso é importante ressaltar também que a luta
da Princesa Sabichona é contra toda uma estrutura que quer impeli-la a entrar em
uma instituição contra sua vontade, uma estrutura que está na ordem do dia e se
inscreve nos discursos da Rainha e nas atitudes dos inúmeros príncipes que tentam
competir por sua mão.
São a beleza e a riqueza da princesa que atraem uma enorme quantidade de
pretendentes. Por esse prisma, as ideologias da beleza e da riqueza são
disseminadas em discursos políticos e elitistas, nos quais não somente o feminino é
diminuído a um único parâmetro de objeto/recompensa, mas também é construído um
ideal de mulher que precisa refletir nas vestes, na forma de pensar, de se portar etc.
Ao masculino cabe o peso para selecionar o objeto de seus sonhos. O feminino é,
então, o deslocado em relação ao masculino. E, nesse aspecto, o corpo feminal – não
somente os arquétipos biológicos, mas comportamentais – é um corpo dado ao prazer,
um corpo sem dono, ou melhor, um corpo comandado por uma cultura falocêntrica e
machista. Contudo, trazer um modelo de ―Princesa‖ que está bem consigo, com
roupas confortáveis, que não almeja o matrimônio, acarreta numa performance de
corpo que demonstra e esfacela o discurso hegemônico do maculo da virilidade, na

253
Não está ligado ao estado biológico, mas a toda construção social que é tida como feminina.
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atuação de um indivíduo que transgride a estética de moda, de comportamento e de


querer. Desta forma, a autora expõe aos sujeitos infantis uma movimentação
performática de possibilidade além do que fora determinado pelo discurso
hegemônico, afinal, como sugere Simone De Beauvoir254, não se nasce mulher
(feminino) nem homem (masculino), mas se constrói socialmente.

Um breve debate acerca de gênero e identidade


Em muitas épocas ou séculos, homens detiveram o poder e os privilégios concedidos
por uma estrutura social patriarcal. A religião, a literatura e a família, enquanto
instituições, foram grandes responsáveis pela subalternização da mulher. Segundo
Simone De Beauvoir, em diversos parâmetros legislativos no mundo, os direitos que
assistem aos homens são claramente diferenciados aos das mulheres e,
consequentemente, potencializados quando o delito advém das mesmas. Contudo, os
discursos que oprimem e subalternizam esse gênero são mais violentos e mais
destruidores, no sentido de que passam a ser repetidos e essencializados pelo sujeito
oprimido, como ocorre em A Princesa Sabichona.
Sua mãe, a Rainha, quer que a Princesa ganhe juízo, que só será alcançado com o
casamento. No entanto, se pensarmos junto a Adichie (2017), jamais devemos falar do
casamento para uma criança como se fosse uma realização. O casamento, nesse
contexto, como realização máxima de uma mulher, não pode e não deve ser
disseminado como final feliz, ocultando suas diversas faces, como o casamento
enquanto potencial fonte de infelicidade, espaço das relações abusivas etc. Além
disso, o modelo hegemônico é cada vez mais violento quando sugere um único
modelo pretensamente universal de família, uma única forma de se construir o afeto.
Porém, através de obras como A Princesa Sabichona, percebemos performances de
sujeitos transgressores, ou seja, indivíduos que a todo o momento se escrevem por
meio dos desvios de ―normalidade‖ de uma sociedade, levando-nos a perceber que
essa noção de uni-versalidade, conforme Mignolo (2008), nada mais é do que uma
convenção sociocultural que não consegue enxergar as latências que a diversidade
pode nos conceder.
Em uma sociedade machista, o comportamento dita as oportunidades que
determinado indivíduo pode ter. Um indivíduo do sexo masculino deve se comportar
como um sujeito idealmente masculino e, desse modo, é ensinado a se comportar
como tal. A partir do momento em que esse sujeito foge às regras, será severamente

254
Discurso presente no livro “O segundo sexo” de Simone De Beauvoir. “Ninguém nasce mulher: torna-
se mulher”.
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punido. A padronização do comportamento e a demasiada necessidade de atrelar


comportamento x ao masculino e y ao feminino é extremamente importante na
construção da identidade de sujeitos infantis, a fim de educar para manutenção da
lógica de poder que exclui. Refletindo acerca desse fenômeno a, Guacira Lopes Louro
escreve:
É preciso notar que essa invisibilidade, produzida a partir de múltiplos
discursos que caracterizaram a esfera do privado, o mundo
doméstico, como o "verdadeiro" universo da mulher, já vinha sendo
gradativamente rompida, por algumas mulheres. Sem dúvida, desde
há muito tempo, as mulheres das classes trabalhadoras e
camponesas exerciam atividades fora do lar, nas fábricas, nas
oficinas e nas lavouras. Gradativamente, essas e outras mulheres
passaram a ocupar também escritórios, lojas, escolas e hospitais.
Suas atividades, no entanto, eram quase sempre (como são ainda
hoje, em boa parte) rigidamente controladas e dirigidas por homens e
geralmente representadas como secundárias, "de apoio", de
assessoria ou auxílio, muitas vezes ligadas à assistência, ao cuidado
ou à educação (LOURO, 2000, p.17).

E, justamente, no que concerne à obra da Cole, os mecanismos de invisibilidade estão


no discurso, mas transpassam essas noções, atrelando-se à construção social e
imposição de determinada identidade. Nesse caso, nota-se o discurso como
instrumento de poder e, sobretudo, a sociedade como ferramenta da manutenção
desse discurso. Por outro prisma, a solução, muitas vezes, da subalternização desses
sujeitos privados de autonomia se faz a partir da sustentação da lógica discursiva de
poder, como sugere Foucault255, para então se propor uma resolução. Nesse aspecto,
a repetição de ideais e modelos de identidade de gênero já estabelecidos e garantidos
pela lógica do discurso hegemônico, em A Princesa Sabichona, desmantela-se através
da arenga cômica e da troca dos estereótipos de identidade que se constituíram e
foram atrelados a determinados gêneros. ―Nenhum dos príncipes conseguiu cumprir a
tarefa que lhe coube. – Então, nada feito – disse Sabichona, pensando que estivesse
livre (Cole, 1998, p. 31).
Ainda assim,
A matriz cultural por meio da qual a identidade de gênero se torna
inteligível exige que certos tipos de identidade não possam existir –
isto é, aqueles em que o gênero não decorre do sexo e aqueles em
que as práticas do desejo não ―decorrem‖ nem do ―sexo‖ nem do
―gênero‖. Nesse contexto, ―decorrer‖ seria uma relação política de
direito instituído pelas leis culturais que estabelecem e regulam a
forma e o significado da sexualidade (BUTLER, 2016, p. 44).

255
Ideologia presente em “A Ordem do Discurso”.
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Nessa circunstância, Judith Butler chama atenção para o fato de como a identidade
está atrelada a um determinado grupo cultural e, portanto, uma identidade deveria,
segundo uma lógica de homogeneidade, conter e habitar as estruturações sociais
normativas do gênero, como é o caso da identidade ―Princesa‖, que deveria carregar
valores essencializados atrelados ao ―feminino‖. Quando se transgride e se molda
numa inconsistência quanto à sua existência no âmbito social, deve-se, então, ser
apagada até que a mesma corresponda aos parâmetros. E, como alude Gordon
Mathews,
Porque pensamos por meio da linguagem, não conseguimos
compreender facilmente como molda nosso pensamento; porque
vivemos em meio a práticas sociais aceitas sem questionamento [...],
não conseguimos compreender facilmente como nos levam a viver
nossas vidas de certas maneiras e não de outras maneiras.
(MATHEWS, 2002, p. 39).

Além disso, essa transgressão se estende e se constrói mais adiante, no nível


intelectual, para se estabelecer no corpo, que, segundo David Le Breton 256,
[...] não é apenas, em nossas sociedades contemporâneas, a
determinação de uma identidade intangível, a encarnação irredutível
do sujeito, o ser-no-mundo, mas uma construção, uma instância de
conexão, um terminal, um objeto transitório e manipulável suscetível
de muitos emparelhamentos[...] (LE BRETON, 2009, p. 31).

Por conseguinte, a lógica de uma identidade fixa, demarcada com comportamentos,


prototipicamente mais intuídos no gênero, ou que estejam mais atreladas ao sexo, é
uma noção que não mais dá conta do que seria o termo ―identidade‖, visto que os
sujeitos são estruturas fragmentadas e são constantemente atravessados pelo mundo
e pelo social. E é justamente por esse prisma que localizamos através da ilustração
da obra da Babette Cole, os personagens masculinos que, ao tentarem cumprir as
tarefas propostas pela Princesa Sabichona, se distanciam da estrutura máxima
disseminada pela cultura global de virilidade, enquanto a princesa performatiza as
latências de um corpo e implode a lógica da impossibilidade, destacando os rastros
que compõe a identidade. Temos uma princesa que é atravessada por
comportamentos que foram construídos e universalizados como masculinos, que
abarca uma possibilidade que foi apagada pela homogeneidade do comportamento e
construção dos estereótipos de gênero.

Sem o Príncipe encantado ela viveu feliz

256
Adeus ao corpo: antropologia e sociedade/David Le Breton, 2009.
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Quando nascemos recebemos um nome que delimita nosso gênero, sexo e


identidade. A identidade ―Princesa‖, como já foi mensurada anteriormente, se construiu
num cenário e molde em que garante, de certo modo, a perpetuação de uma
submissão feminina ou da universalização do que se espera acerca do gênero
feminino. Umas das características das princesas é que a felicidade delas está
atrelada a figura do príncipe. No entanto, onde estão as outras possibilidades de final
feliz para o feminino?
O machismo, o patriarcado e até mesmo a ideologia heteronormativa, excluem os que
divergem dos seus ideais, tornando-se uma força que tende a expelir as diferenças. A
discussão maior talvez não seja o poder centralizador do macho, mas como esse
imaginário do feminil violenta e assombra toda uma sociedade a tender e a querer se
distanciar desse ―outro sexo‖, ou esse ―outro sexo‖ deve se aproximar da figura que o
coloniza para, então, ser normalizado. Por isso, ―Antes da revolução feminista, a figura
masculina era toda a estrutura de que as mulheres poderiam dispor. O casamento
ainda era o destino certo para todas as ‗filhas de família‘, as mulheres precisavam de
um homem que as ‗protegesse‘‖ (GOMES, 2000, p.165). Justamente nesse aspecto se
perpetuou a imagem cultural do príncipe encantado como libertador da princesa. A
demanda discursiva contemporânea se pauta na representação e na procura de uma
performance que contemple suas demandas políticas no momento. Em meio a essa
discussão, Babette Cole acopla e descaracteriza o poder há muito centralizado do final
feliz das princesas sob a ordem do matrimônio.
Tratando-se de um sujeito como a Princesa Sabichona, a qual desde o início de sua
trama performatiza um interesse em fazer o seu próprio final feliz, consagra-se o que a
Fernanda Breder (2015)257 chama de princesas rebeldes.
Posto isso, é interessante pensarmos em como o final feliz é individual, ou melhor, até
mesmo as princesas podem terminar sozinhas. Essa alocução denota na possibilidade
de realização do feminino sem a presença e suporte do masculino (príncipe
encantado), uma vez que nenhuma ideologia de príncipe dentro da obra conseguiu
acompanhar essa transgressão do estereotipo por completo. Portanto, todas as
características que dariam abono e vantagem ao sujeito ―masculinizado‖ pelo sexo
biológico caem sobre o chão, sendo muito bem acolhida por um sujeito feminino
biologicamente, mas que nem por isso a descaracteriza como ―Princesa‖. Nesse
constructo, a ironia se faz potente, pois até mesmo quando existe a opressão do
machismo, há o ápice da realização e resgate de uma das mais disseminadas marcas

257
Autora do livro Feminismo & príncipes encantados – A representação feminina nos filmes de
princesas da Disney.
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das princesas: o beijo. Porém, esse elemento tem o poder de quebrar a lógica
opressora de subalternidade, garantindo a Princesa Sabichona o final feliz e o bem
estar, já que é esse beijo que, na narrativa, transforma o príncipe em um sapo.
Segundo Homi Bhabha, na Introjecção do estereótipo, temos a lógica do opressor
enraizada. Sobretudo, cabe a nós, nos policiar para descentralizar essa lógica.
Por esse ângulo, o final feliz há muito almejado e perpetuado pelas demandas
sociais normatizadas, se desmantela num bem estar e num discurso textual e
imagético que se apropria de uma lógica de poder e o destrincha para ilustrar uma
possibilidade de final feliz para sujeitos infantis, além do casamento e do modelo
heteronormativo. O ―feliz para sempre‖ da Princesa Sabichona é totalmente autônomo,
garante a extensão e o espaço para o leitor construir o seu próprio final feliz.

Considerações Finais
Por fim, a leitura a contrapelo proposta sobre A Princesa Sabichona nos
permitiu ativar uma série de noções latentes na narrativa ilustrada de Babette Cole,
explicitando seu caráter estrategicamente repetitivo e diferenciador, ao qual a autora
recorre a fim de promover um espaço literário que abarque outras possibilidades de
performances femininas em um gênero que durante muito tempo foi utilizado para
reafirmar discursos subalternizantes. A partir das considerações realizadas acima,
pretendeu-se explicitar o potencial desestabilizador de obras literárias infantis, bem
como guiar o olhar do leitor para aspectos da literatura infantil e juvenil que costumam
passar desapercebidos, sob o rótulo equivocado e desinformado do ―simplório‖,
perpetuando o preconceito acerca da legitimidade literária dessas produções.

Referências
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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

A REPRESENTAÇÃO DA DEFICIÊNCIA VISUAL NA OBRA


―TODA LUZ QUE NÃO PODEMOS VER‖ DE ANTHONY DOERR

Literatura infantil e juvenil e


Lívia Silva e Viana, Universidade Federal da Bahia (UFBA),
temas polêmicos
, CAPES.

Considerações Iniciais

Com o advento da globalização houve uma quebra de fronteiras entre o mercado


literário, os livros começaram a circular de modo bem mais rápido entre os países. As
versões traduzidas que antes eram tão difíceis de chegarem ao Brasil,
contemporaneamente invadem as prateleiras das livrarias, das escolas e das casas
dos leitores e dentre elas está a obra ―Toda luz que não podemos ver‖ (All the Light
We Cannot See), do autor norte-americano Anthony Doeer, que foi lançado no ano de
2014 nos Estados Unidos e publicado no ano de 2015 no Brasil pela Editora
Intrínseca, sendo que no mesmo ano o autor foi vencedor do Prêmio Pulitzer de
Ficcão.
A obra tornou-se objeto empírico do presente estudo devido esta conter uma
personagem com uma característica peculiar, Marie-Laure Le Blanc, que ainda com
seis anos perde sua visão em um rápido processo de deterioração e torna-se uma
deficiente visual.
A representação de personagens com deficiência visual não é algo inovador em
obras literárias. Tanto na Mitologia Grega, como por exemplo, Tirésias, o famoso
profeta cego de Tebas, quanto na Bíblia existem referências a esta deficiência
sensorial.
Mas atualmente parece existir uma maior recorrência de obras que trazem à
tona personagens com deficiência, provavelmente devido à popularização dos
discursos em volta da inclusão e respeito às diferenças, o avanço da luta dos grupos
mais marginalizados e das novas políticas públicas para essa classe.
1247

Esses movimentos sociais têm repercutido nos produtos culturais de


entretenimento, como é o caso dos livros literários e deste modo se faz necessário
compreender de que modo essas temáticas estão sendo tratadas nesse espaço, já
que os livros são objetos formadores de opiniões e disseminadores de valores e
socializadores de costumes e morais.
No livro teórico ―A diferença na literatura infantil: narrativas e leituras‖ (SILVEIRA;
KIRCHOF; KAERCHER; LIEBGOTT; ZEN; SILVEIRA; RIPOLL; FREITAS, 2012)existe
um capítulo especifico que tem por título ―Deficiência e infância: representações de
cegos e cadeirantes na literatura infantil contemporânea‖ que se diz que
A maioria dos livros produzidos em torno do tema da deficiência –
física ou visual –, contudo, não prevê muitas possibilidades
interpretativas, mas direciona o olhar do leitor para uma mensagem
que parece se repetir ad infinitum: a diferença/deficiência não é um
empecilho para a felicidade. (SILVEIRA...[et al.], 2012, p. 67)

Mesmo sendo um livro teórico que tem como enfoque a análise de obras
literárias para o público infantil, os questionamentos e reflexões propostos se
estendem a todos os outros gêneros literários que contém personagem com alguma
deficiência.
Outra escritora que aponta sobre a cegueira na literatura é Amiralian (1997) no
livro ―Compreendendo o cego: uma visão psicanalítica da cegueira por meio de
desenhos-estórias‖, a pesquisadora fala que
Em síntese, pode-se dizer que, na maioria das vezes, os
personagens cegos na literatura, no cinema ou no teatro são vistos
como pertencentes a uma classe específica por causa de sua
cegueira. Tem-se frequentemente esquecido que eles têm muito mais
em comum com outras pessoas de idade, sexo e condição social
semelhantes do que com outros cegos de condições diversas.
(AMIRALIAN, 1997, p.29)

Quando a autora afirma que os cegos são vistos como pertencentes a uma
classe especifica, ela fala embasada em um estudo realizado por Kent (1989) que
aponta que frequentemente a deficiência visual é representada como uma punição
devido algum pecado realizado, ou com elementos que envolvem a sexualidade do
personagem, e até mesmo a cura milagrosa da deficiência.
A partir do que já foi posto em outras pesquisas acima citadas o presente artigo
propõem-se a analisar os aspectos intrínsecos da narrativa relativos à personagem
com deficiência visual, para que se possa responder a seguinte questão de pesquisa:
Como ocorre a representação da deficiência visual na obra ―Toda luz que não
podemos ver‖ de Anthony Doerr?‖.

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Para alcançar a resposta da questão proposta tem-se como objetivo geral


compreender como um personagem com deficiência visual é representado no livro
―Toda luz que não podemos ver‖ de Anthony Doerr. E o seguinte objetivos específicos:
descrever como a representação da deficiência visual é abordada na narrativa do livro;
elaborar um perfil do personagem deficiente visual no livro; enunciar se existem
inverossimilhanças ao representar o personagem deficiente visual na obra.

A obra

O ponto de partida a ser considerado sobre o livro ―Toda luz que não podemos
ver‖ serão os aspectos extrínsecos, ou seja, elementos como capa, tamanho, formato,
peso, espessura, qualidade do papel, número de páginas, o tamanho e tipo de letras
usadas. Esses elementos de análise são embasados na proposta de Jardim (2011),
que elaborou critérios para análise e seleção de textos de literatura infantil, ela afirma
que as características do livro podem atrair ou repelir o leitor infantil. O mesmo
acontece com o leitor juvenil ou adulto, mesmo sendo menos suscetíveis que a
criança, alguns tem resistências a livros com fontes muito pequenas ou por capas
pouco atrativas.
O livro ―Toda luz que não podemos ver‖ tem um formato retangular na vertical,
como na maioria dos romances, com 23 cm de altura, 16 cm de largura, 2,5 cm de
espessura, pesando 0,70 kg e contendo 528 páginas. O título pode ser chamado de
narrativo, pois de certo modo apresenta a essência da história, mas de modo ainda
nebuloso, de acordo com Nicolajeva e Scott (2011, p. 308) os títulos ―são parte
importante do texto como entidade, e muitos estudos empíricos mostram que jovens
leitores frequentemente escolhem (ou rejeitam) livros por causa do título‖.
Já a capa é em brochura, em cartão supremo de alta alvura, e apresenta uma
imagem em tonalidade azul onde ocorre boa parte do cenário do enredo, que é a
cidade de Saint-Malo na França, a fotografia contempla a orla da cidade arrodeada de
suas muralhas. As letras do título do livro contém uma textura diferente do restante,
algo inquietante, já que a obra aborda tanto sobre o braille, porém, não existe
nenhuma relação com o alfabeto braille. No miolo da obra é utilizado o papel pólen
soft, que é um papel que reflete menos luz, a tipografia utilizada é a bembo e a fonte
na maioria da narrativa é de tamanho 12.
Outros elementos paratextuais importantes de serem ressaltados são: o
frontispício (página de rosto), que traz uma única informação a mais que a capa, que é
a tradutora da obra, qual é realizada por Maria de Carmelita Dias; e a quarta capa que
contém a mesma ilustração da capa, só que em um tom esverdeado; suas
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informações são trechos de resenhas de alguns jornais, blogs e revistas norte-


americanos, adjetivando o livro como arrebatador, capaz de inundar os sentidos e
dentre outras coisas. A primeira informação em destaque é que o livro se tornou best-
seller número 1 do The New York Times com mais de 1 milhão de exemplares
vendidos.
A obra é dividida em 13 partes, sem ordem cronológica de tempo, com exceção
das últimas quatro, sendo que inicia no ano de 1934 até 2014, abrangendo assim 80
anos, Doerr divide o livro em capítulos curtos, que no total contabilizam 178. A história
tem como plano de fundo a 2º Guerra Mundial e tem a maioria das narrativas
alternadas entre os dois personagens principais, e algumas cartas e outras poucas
narrativas do vilão. Os personagens principais se chamam Marie-Laure Le Blanc e
Werner Pfenning.
O livro pode ser resumido da seguinte forma: a garota francesa Marie-Laure
mora em Paris e perde sua visão em um rápido processo de deterioração aos seis
anos de idade, órfã por parte de mãe, ela conta apenas com seu pai, que é o chaveiro
do Museu de História Natural. Quando Marie-Laure fica cega o chaveiro decide
elaborar uma maquete da cidade para que ela pudesse ter uma noção espacial da
mesma e a incentiva a ler em Braille sempre a presenteando com livros em seus
aniversários. Quando Paris é ocupada pelos nazistas Marie-Laure já tem 12 anos e
então pai e filha refugiam-se em Saint-Malo na casa do tio-avô, só que eles levam um
dos mais valiosos tesouros do museu, um diamante chamado Mar de Chamas, que
tinha uma lenda de que quem o possuísse teria vida eterna. Por esse motivo eles
passam a ser seguidos pelo nazista Reinhold Von Rumpel que tem motivação dupla
para achar a pedra, a primeira é para constituir o maior museu do mundo para Hittler e
o segundo é porque ele está com câncer.
Já Werner Pfenning é um órfão que cresce com sua irmã Jutta em um orfanato
que tem como responsável a francesa Frau Elena em Zollverein na Alemanha,
próximo de um complexo de mineração onde seu próprio pai foi soterrado. Werner ao
encontrar um rádio quebrado pelas ruas da cidade tenta remontá-lo e consegue, então
a partir disso ele se destaca em sua comunidade por consertar esses objetos tão
importantes em período de guerra, por esse motivo ele consegue uma vaga em uma
escola nazista, e em seguida sai em missão tentando descobrir fontes de transmissão
dos Aliados, sendo enviado para Saint-Malo onde acaba conhecendo Marie-Laure e a
salva de ser assassinada por Reinhold von Rumpel. No desfecho da narrativa ele
acaba morrendo por pisar em um explosivo e ao passar vários anos Jutta procura por

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Marie-Laure para entregar uma casa de madeira achada nos pertences de Werner e
acaba contando sobre o fim do seu salvador.

A garota

No ano de 1934 Marie-Laure Le Blanc tem apenas seis anos, ela é caracterizada
pelo narrador como uma menina alta e sardenta e perdendo rapidamente sua visão
devido a sua catarata congênita bilateral incurável. A catarata congênita é a causa
principal de cegueira na infância, e ela acontece através de alterações da formação do
cristalino.
Marie-Laure reside em Paris em um apartamento de quatro cômodos, dividindo
apenas com o pai, já que sua mãe faleceu em seu parto. Nos primeiros meses
convivendo com a cegueira a pequena praça perto de sua residência se tornou um
labirinto cheio de perigos, o banheiro um abismo, são meses marcados por muitos
machucados, tendo como único santuário sua cama.
Seu pai a veste, a guia e a faz estudar um caderno em Braille durante uma hora
por dia. Ele sempre a leva para seu trabalho, o Museu Nacional de História, onde ela
passa tardes conhecendo conchas, caramujos, volutas da Tailândia no laboratório do
Dr. Geffard e assuntos vinculados a espécies do mar passam a ser o seu preferido.
O conflito com a deficiência abala sua saúde psicológica apenas no inicio da
obra, no momento de adaptação, mas no decorrer da narrativa esta não é sua maior
preocupação, apesar dos elementos que compõe o universo do deficiente
visual serem enfatizados durante toda a narrativa, o seu maior problema é a 2º
guerra mundial.
Marie-Laure é bastante inteligente, o pai em todos os aniversários sempre a
presenteava com quebra-cabeças de madeira, geralmente eram caixas em forma de
casas com algum presente escondido no interior, quais ela descobria rapidamente. Em
seu oitavo aniversário já era capaz de se localizar na rua e ir em direção a sua
residência sem ajuda de nenhum guia. E no nono ganhou uma versão em Braille do
livro ―A volta ao mundo em oitenta dias‖ de Julio Verne, o lendo rapidamente.
Durante sua estadia em Paris, Marie-Laure não tem amigos além dos colegas de
trabalho do seu pai, quando foi refugiada para Saint-Malo seus amigos são apenas
seu tio-avô e sua cozinheira Madame Manec. A maior alegria de Marie-Laure na
narrativa foi quando ganhou a obra ―20 mil léguas submarinas‖ de Julio Verne e sua
maior tristeza é quando seu pai viaja prometendo voltar e nunca mais aparece, devido
uma prisão, a deixando aos cuidados de seu tio-avô.
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Caracterizar Marie-Laure é permear por adjetivos como inteligente e esperta,


poderia se arriscar até mesmo o adjetivo corajosa, porém, ela mesmo não se
autodenomina assim.
— Quando perdi a visão, Werner — continuou ela — as
pessoas disseram que eu era corajosa. Quando meu pai foi
embora, as pessoas disseram que eu era corajosa. Mas não
era coragem; eu não tinha escolha. Acordo todos os dias e vivo
minha vida. Você não faz a mesma coisa? (DOERR, 2015, p.
468)

A representação da deficiência visual no livro

A primeira abordagem sobre a cegueira no livro já se faz presente em sua


orelha, no decorrer da narrativa esta deficiência sensorial é conceituada da seguinte
forma:
O que é cegueira? Onde deveria haver uma parede, as mãos nada
encontram. Onde não deveria haver nada, uma perna de mesa
arranha sua canela. Roncos de carros nas ruas; murmúrio de folhas
pelo céu; o sussurro do sangue em seus ouvidos. Na escada, na
cozinha, mesmo ao lado da sua cama, vozes de adultos falam sobre
desespero.
— Pobre criança.
— Pobre monsieur LeBlanc.
— Ele não teve uma vida fácil, sabe? O pai morreu na guerra, a
mulher morreu no parto. E agora isso?
— Como se estivessem amaldiçoados.
— Olhe pra ela. Olhe pra ele.
— É melhor mandar a menina embora. (DOERR, 2015, p. 35)

Como é possível notar na narrativa se traz uma referência à maldiçãodevido à


condição da menina e de seu contexto familiar, marcado por algumas tragédias, como
a morte de seu avô e sua mãe, e além disse ainda insinua-se que a menina deve ir
embora de lar devido sua deficiência.
Esse momento é um dos retratos sociais da deficiência ao longo da história da
humanidade, muitas crianças foram abandonadas por seus familiares ao nascerem
nesta condição e até mesmo quando adquirida ao longo da vida, e o misticismo
evidenciado na fala também compôs esse universo.
A deficiência de Marie-Laure é posta em destaque em toda a narrativa e em uma
entrevista dada pelo autor ao Jornal Globo ele se justifica.
— Uma das minhas primeiras histórias também tinha um personagem
cego. Sempre adorei os detalhes sensoriais na ficção: as descrições
de texturas, cheiros e, principalmente, sons. Amo ler narrativas que
nos transportam completamente. E foi divertido tentar escrever assim.
Eu procurei jogar com todos os tipos de coisas que não conseguimos
ver. Talvez Marie seja menos cega do que Werner, que se recusa a

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ver o que seu país está fazendo. Na trama, é ele quem enxerga
menos. Moralmente, ele é o personagem cego. (CAMPOS, 2015)

Dois elementos são mais ressaltados do universo da deficiência visual: a


bengala branca que aparece em toda narrativa uma média de 37 vezes. Esse objeto
tem como função ajudar o deficiente visual em diversas questões como a segurança
no caminhar, na integridade física, garante o direito de ir vir e oportuniza uma
autonomia na execução de tarefas; E o outro elemento mais ressaltado é o Braille que
é um modo de leitura e escrita tátil, ele é bastante eficaz, pois abrange diferentes
línguas e permite que a pessoa com deficiência visual tenha contato com diversos
conhecimentos acadêmicos, literários, do cotidiano, entre outros, além disso, permite
que a comunicação não seja somente por meio da oralidade.
Existem outras abordagens no livro que falam sobre a cegueira, como o que
levou a deficiência de Marie-Laure; o desenvolvimento da sua percepção tátil, olfativa
e auditiva, que passam por estágios de dificuldade, superação, habilidade e
compensação; sua orientação e mobilidade; a localização dos alimentos no prato e
dentre outros.
Existem momentos na narrativa que, ao se expor essas questões parece haver
uma descrição tão minuciosa que passa uma sensação de que o objetivo da narrativa
é ensinar o leitor como lidar como um deficiente visual, como se estivesse
prescrevendo uma receita, como, por exemplo, ―Ele serve o jantar em um prato
redondo e descreve a localização dos diferentes tipos de alimento fazendo uma
analogia com os ponteiros de um relógio. Batatas às seis horas, machérie. Os
cogumelos, às três horas.‖ (DOERR, 2015, p. 468).
Essa ação pode ser justificada pelo o que Lévi-Strauss diz em seu livro
―Introduction à l’oeuvre de Mauss‖ citado por Derrida (2009, p. 422) ―No seu esforço
para compreender o mundo, o homem dispõe portanto sempre de um excesso de
significação‖ e é isso que Doerr traz em sua obra, certos excesso de signos da vida de
um deficiente visual.
Dentre todas as inferências realizadas sobre a cegueira na obra, foi possível
identificar duas questões que apontam uma inverossimilhança ao se representar o
deficiente visual, que foram as questões ligadas à mobilidade e à descrição de um
personagem sob a perspectiva de Marie-Laure, já deficiente.
No que se refere à mobilidade na narrativa, existe certa insistência em atribuir
que a locomoção de Marie-Laure pautada na contagem de passos, ―Dezesseis passos
para o chafariz, dezesseis de volta. Quarenta e dois para escada, quarenta e dois de
volta.‖ (DOERR, 2015, p. 51).
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Esse é um grande mito em torno da locomoção do deficiente visual que compõe


o imaginário social, e isso é ratificado no livro ―Toda luz que não podemos ver‖
diversas vezes.
Na verdade a autonomia da locomoção do cego é através do suporte que a
bengala branca concede, pois ela permite que a pessoa com deficiência detecte as
informações do ambiente, o protege e orienta. A contagem de passos é algo irreal
visto que cada passo é singular em dimensões e, além disso, seria necessário que o
cego tivesse uma atenção e memória para contagem de todo ambiente que
frequentasse.
Já em um momento da narrativa quando ocorre a descrição do pai de Marie-
Laure sob a perspectiva dela, existe uma total desconsideração de toda sua memória
visual.
Ela não tem recordações da mãe, mas a imagina como um brilho
branco e mudo. O pai irradia mil cores, opala, vermelho-morango,
ferrugem forte, verde extravagante; o odor parecido com óleo e metal,
a sensação de uma chave abrindo a porta de casa, o som de seus
chaveiros tilintando à medida que ele caminha. Ele é verde-olivia
quando fala com um chefe de departamento, tons de laranja em
crescendo quando conversa com a mademoiselle Fleury das estufas,
vermelho vivo quando tenta cozinhar. Ele resplandece em safira
quando se senta na bancada de trabalho à noite, murmurando uma
canção de maneira quase inaudível enquanto trabalha, a ponta do
cigarro cintilando um azul prismático. (DOERR, 2015, p. 52)

Como a sua deficiência foi adquirida aos seis anos e no momento que ocorre a
descrição do pai no tempo narrativo ela ainda se encontra no mesmo ano, não tem
como se desconsiderar aspectos físicos mais concretos visto que ela não sofreu
nenhum tipo de dano em sua memória devido a sua deficiência.
De acordo com Platão no livro ―A república‖ existe um distanciamento entre
aquilo que é mimese e verdade. No trecho a baixo isso fica evidenciado:
- Portanto, a arte de imitar está bem longe da verdade, e se executa
tudo, ao que parece, é pelo fato de atingir apenas uma pequena
porção de cada coisa, que não passa de uma aparição. Por exemplo,
dizemos que o pintor nos pintará um sapateiro, um carpinteiro, e os
demais artífices, sem nada conhecer dos respectivos ofícios. Mas
nem por isso deixará de ludibriar as crianças e os homens ignorantes,
se for bom pintor, desenhando um carpinteiro e mostrando-o de longe
com a semelhança, que lhe imprimiu, de um autêntico carpinteiro.
(PLATÃO, 2000, p.297)

Então na perspectiva platonista, a representação é o ato que ludibria as


pessoas, que as engana e que as afasta da verdade. E o que seria a verdade para
Platão? Em sua teoria das Ideias ou Formas, diz que as ideias, que não são materiais
e sim abstratas, é que são o maior grau de realidade, ou seja, só o estudo delas é que

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levaria a verdade e que os objetos criados a partir da ideia são apenas cópias
imperfeitas.
Então sob essa perspectiva o que Anthony Doerr oferece - considerando os
aspectos da inverossimilhança - aos seus leitores é uma representação de uma
menina deficiente visual de modo imperfeito. É inegável que essa perspectiva tem
certa radicalidade em relação às representações, porém, não podemos negar que ela
também coloca em evidencia como uma representação pode nos enganar e isso
acontece ―Toda luz que não podemos ver‖ no tocante aos dois itens citados a cima.
Mas, de acordo com Paz (2013, p.113), ―se o poeta renega sua metade mágica,
renega a poesia e se transforma num funcionário ou num propagandista‖ então isso
faz por em questão se a inverossimilhança encontrada na descrição do pai de Marie-
Laure que desconsidera sua memória visual é algo tão ludibrioso assim para o leitor, e
se na verdade essa descrição compõem a mágica da narrativa e transporta o leitor a
ter uma leitura de mundo através de outra ótica.

Considerações finais

O best-seller trouxe através da personagem Marie-Laure a dificuldade de


sobreviver a 2º Guerra Mundial sendo uma pessoa com deficiência visual e o presente
artigo teve como objetivo geral compreender como uma personagem cega é
representada no livro ―Toda luz que não podemos ver‖ de Anthony Doerr.
Foi possível identificar que o autor trouxe elementos da vida real de modo
enfático e que cometeu alguns ―equívocos‖ de verossimilhança, este buscou sempre
representar os signos do universo do deficiente visual de modo minucioso, sendo que,
os dois elementos mais ressaltados foram o braille e a bengala branca.
Para concluir, este artigo se configura como um estudo inicial sobre livros que
contém personagens com deficiência visual no mercado editorial brasileiro e
reconhece que mais pesquisas devem ser realizadas no campo de intercessão entre
literatura e educação especial.

Referências:

AMIRALIAN, Maria Lúcia Toledo Moraes. Compreendendo o cego: uma visão


psicanalítica da cegueira por meio de desenhos-estórias. São Paulo, SP: Casa do
Psicólogo, FAPESP, 1997.

CAMPOS, Matheus. Vencedor do Pulitzer, Anthony Doerr conta como usou o rádio
para costurar romance situado na guerra, 2015. Disponível em:
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1255

<http://oglobo.globo.com/cultura/livros/vencedor-do-pulitzer-anthony-doerr-conta-
como-usou-radio-para-costurar-romance-situado-na-guerra-16476987> Acesso em: 01
de nov. 2016.

DERRIDA, Jacques. A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas.


In:__. A escritura e a Diferença. Tradução de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva.
Col. Debates. São Paulo: Perspectiva, 2009. p. 407-426.

JARDIM, Mara Ferreira. Critérios para análise e seleção de textos de literatura infantil.
In: SARAIVA, Juracy (Org.). Literatura e alfabetização:do plano do choro ao plano da
ação. Porto Alegre: Artmed, 2011. p. 75-79.

KENT, Deborah. Shackled imagination: literary illusions about blindness.Journalof


visual impairmentandblindness, 1989.

PAZ, Octavio. Revolução. Eros. Metaironis. In: ___. Os filhos do Barro. Trad. Ari
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PLATÃO. A república. São Paulo: Martin Claret, 2000.

SCOTT, Carole; NIKOLAJEVA, Maria. Livro ilustrado: palavras e imagens.São Paulo:


Cosac Naify, 2011.

SILVEIRA, Rosa Hessel; KIRCHOF, Edgar Roberto; KAERCHER, Gládis; LIEBGOTT,


Iara Tatiana Bonin; ZEN, Maria Isabel H. Dalla; SILVEIRA, Carolina Hessel; RIPOLL,
Daniela; FREITAS, Letícia Fonseca Richthofen. A diferença na literatura infantil:
narrativas e leituras. São Paulo: Moderna, 2012.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

AS ESCOLHAS DE LEITURA DOS JOVENS: RECONHECENDO


OUTRAS PRÁTICAS DE LETRAMENTO

Mariana Cristine Gonçalles, Universidade Estadual de Maringá, Literatura


infantojuvenil e temas polêmicos

O ―mito‖ da leitura

Ainda que se prove o contrário, o discurso de que o jovem não lê é fortemente


dissemidado. Primeiramente, a culpa está no desgosto pela Literatura com L
maíusculo, aquela que, unicamente, tem o poder de transformar os leitores em
pessoas melhores (ABREU, 2006). Em segundo lugar, como consequência desse
desinteresse pela Literatura, incita-se o gosto pela leitura de produções da indústria
cultural, aquelas consideradas como alienantes (ABREU, 2006) e que, porque não se
configuram como Literatura própriamente dita, são consideradas ―escolhas
anárquicas‖, já que não carregam prestígio ou valor cultural, e por isso, não são
adequadas (OCNEM, 2006).
Entretanto, essa leitura inadequada, ou até essa falta de leitura, parece estar
mais relacionada ao descontento de certas instâncias legitimadas pelo poder por não
alcançarem os jovens e crianças às quais se direcionam, do que a própria ineficiência
das produções de massa. O Programa Internacional de Avaliação de Estudantes
(PISA)258, é um índice de pesquisa desenvolvido e coordenado pela Organização para
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) que avalia os sistemas
educacionais de 67 países, visando observar as competências dos estudantes em
Leitura, Matemática e Ciências. Os indíces do Pisa 2015 colocam o Brasil como o 59º
lugar na competência de Leitura. É inquestionável que essa posição evidencia que o
país tem muito que trabalhar no desenvolvimento das competências básicas de seus

258
Esse programa aplica questionários a cada três anos a alunos, professores e escolas a fim
de coletar informações que irão contribuir na elaboração de indicadores contextuais,
possibilitando estabelecer a relação entre o desempenho desses alunos e as variáveis
demográficas, socioeconômicas e educacionais. Os estudantes elegíveis para o Pisa são
todos aqueles na faixa dos quinze anos de idade, idade que, na sua maioria, completaram o
Ensino Fundamental.
1257

alunos, no entanto, o que se reflete desse índice é apenas o seu posicionamento no


ranking. Jornais e revistas priorizam as manchetes ―Brasil cai em ranking mundial de
educação em ciências, leitura e matemática‖, como aparece no G1 Educação, na
reportagem de 06 de Dezembro de 2016, por Ana Carolina Moreno, ou ―Brasil mantém
últimas colocações no PISA‖, reportagem de Thaís Paiva, também no dia 06 de
Dezembro de 2016, publicada pela Carta Capital.
Não questionamos, aqui, a qualidade de um indicador internacional de certa
importância, mas, na realidade, o que se é repercutido desses resultados. Em primeiro
lugar, as notícias e reportagens não refletem as questões culturais, socioeconômicas e
sociais que são envolvidas na própria pesquisa do Pisa. Além disso, é preciso
entender qual é a concepção de leitura considerada por esse índice. De acordo com o
relatório nacional do Pisa 2012,
o letramento em leitura inclui um largo conjunto de competências, que
vão da decodificação básica ao conhecimento de palavras, estruturas
e características linguísticas e textuais ao conhecimento sobre o
mundo. Inclui também competências metacognitivas, como clareza e
habilidade para utilizar uma variedade de estratégias apropriadas
para a compreensão de textos. (PISA, 2012, p. 38)

Esse conceito sobre letramento em leitura defendido pelo Pisa, embora


implique no fato de que ―permita que as pessoas contribuam ativamente para a
sociedade como cidadãos, bem como atendam às suas próprias necessidades (p. 38),
parece-nos muito com o modelo de letramento autônomo, proposto por Brain Street
(2014). De forma breve, o letramento autônomo defendido por Brian Street identifica-
se como aquele que prioriza a aprendizagem de habilidades e competências
cognitivas específicas e neutras, e que, portanto, circula principalmente na instituição
escolar. A escola, sendo uma das instâncias legitimadas de poder da sociedade,
determina o que irá compor sua biblioteca interna e, consequentemente, o que seus
alunos devem ler. Segundo Abreu (2006), os livros que circulam na instituição escolar
são, em sua maioria, literatura tradicional e clássica brasileira, o cânone literário, ou
como vinhamos chamando – a Literatura com L maiúsculo.
Desse modo, se o índice de leitura do país está baixo talvez seja porque não
se reconhece o tipo de leitura realizada pelo jovem, já que exergamos certa
preferência de leitura pelas produções da indústria cultural em detrimento das obras
literárias, as quais esperávam-se que eles lessem. Rankings lançados por revistas,
anualmente ou mensalmente, comprovam que os livros mais lidos são os de best-
sellers. Ainda, o Instituto Pró-Livro lança, a cada três anos, a pesquisa Retratos da

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Leitura259, a qual, em sua terceira edição, em 2011, comprovou que a preferência de


leitura dos entrevistados é pelas obras da indústria cultural. Por exemplo, quando os
entrevistados foram questionados sobre o livro que estavam lendo atualmente, nos
oito primeiros lugares apareceram os livros da indústria cultural, dentre eles O
pequeno príncipe, A cabana e Crepúsculo. Somente na nona posição é que a literatura
clássica e mais recomendada pela escola, por assim dizer, apareceu com Dom
Casmurro. Porém, a décima posição, deu lugar aos livros da saga Harry Potter e
assim sucessivamente a uma lista de outros best-sellers.
Assim, oberva-se um interesse maior em relação à leitura escolar em
detrimento de práticas de leitura de textos de outras esferas. Em consonância ao que
afirma Street (2014),
[...] se quisermos entender a natureza e os significados de letramento
em nossas vidas, precisamos então de mais pesquisas focadas no
letramento na comunidade – neste sentido mais amplo – e nas
implicações ideológicas e não tanto educacionais das práticas
comunicativas em que ele se insere. (STREET, 2014, p. 144)

É, portanto, numa tentativa de propor uma discussão a respeito do


reconhecimento de outras práticas de letramento não legitimadas pela instituição
escolar, em especial, as produções narrativas da indústria cultural, que este artigo se
apresenta. Conforme Rojo (2012), há a necessidade de um processo de
reconhecimento de outras práticas de letramento e sua aceitação. Ou seja, é preciso
reconhecer a multiplicidade cultural das populações, em especial, dos alunos, jovens e
adolescentes, e reconhecer a multiplicidade semiótica das constituições dos textos nos
dias de hoje, em conjunto com o desafio de inserí-las nas práticas escolares de leitura
e escrita, as quais ―já eram restritas e insuficientes mesmo para a era do impresso‖
(ROJO, 2012, p. 22).
Evidentemente não temos a intenção de propor uma nova estrutura curricular
para a escola. Nosso foco é discutir e colocar em evidência as produções culturais em
comparação com a literatura chancelada de valor que circula nessa instituição. Para
tanto, considerando as diversas práticas sociais em que os jovens se inserem, foi
delimitado um corpus a partir de duas esferas sociais de leitura com as quais
acreditamos que esses leitores tenham maior contato: as narrativas infantojuvenis

259
A pesquisa é feita com diversos entrevistados de faixa etárias diferentes. No entanto, existem
vários enquadramentos diferentes de cada pergunta e em cada uma delas podemos
perceber a porcentagem de participação do jovem de 13 a 17 anos. Por exemplo, No
tocante à separação de leituras de livros inteiros nos últimos três meses por faixa etária, os
adolescentes entre onze e treze anos chegam a 51%, e os jovens de quatorze a dezessete
anos, a 48%. Ou seja, metade dos livros que foram lidos por eles foram inteiros. Já os
adultos apresentam uma porcentagem inferior à leitura de livros inteiros se comparados aos
jovens.
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brasileiras – aquelas que circulam, principalmente, nos ambientes escolares – e as


narrativas da indústria cultural – os best-sellers. Para a seleção das primeiras,
delimitou-se o corpus a partir das obras enviadas às escolas pelo Programa Nacional
Biblioteca da Escola (PNBE), dando preferência apenas às narrativas de parte do
Acervo 2013 destinadas aos anos finais do Ensino Fundamental, e, para as últimas,
foram selecionados os best-sellers mais lidos conforme o site Skoob, a partir do qual
se buscou os maiores índices de leitura de ambas.
A partir desse recorte, os títulos com maior frequência de leitura e que
passaram a constituir o corpus de pesquisa foram: O Gênio do Crime, de João Carlos
Marinho, publicado em 1969 pela editora Brasiliense; Isso ninguém me tira, de Ana
Maria Machado, publicado em 1994 pela Editora Ática; Sangue Fresco, de João Carlos
Marinho, lançado em 1982 pela editora Global; Pó de parede, de Carol Bensimon,
publicado em 2008 pela Não Editora; 1001 Fantasmas, de Heloisa Prieto, lançamento
em 2002 pela editora Companhia das Letras.
Por fim, os livros da indústria cultural selecionados foram: A menina que
roubava livros, de Markus Zusak, lançado em 2005 pela editora Picador/Pan Macmilan
na Austrália e em 2007 no Brasil pela Editora Intrínseca; Harry Potter e a pedra
filosofal, de Joanne Rowling, tendo a primeira edição lançada em 1997 no Reino Unido
e no Brasil em 2000 pela editora Rocco; Pequeno Príncipe, escrito por Antonie de
Saint-Exupéry, publicado na França em 1943 e no Brasil em 2000 pela Editora Agir;
Crepúsculo, por Stephenie Meyer, lançado nos Estados Unidos em 2005 e no Brasil
em 2006 pela Editora Intrínseca; Harry Potter e a câmara secreta, por Joanne Rowling,
lançado no Reino Unido em 1998 e no Brasil em 2000 pela editora Rocco.

As práticas de letramento múltiplas

Em primeiro lugar, é importante definir o que entendemos por letramento. De


acordo com Angela Kleiman (1995), o letramento é ―um conjunto de práticas sociais
que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos
específicos, para objetivos específicos‖ (p. 19). Partindo dessa definição, entendemos
ainda que a prática do letramento é todo evento que envolve a escrita ou a leitura em
um contexto social e cultura com atribuições de valores diferentes (SOARES, 2007).
Desse modo, entendemos as narrativas infantojuvenis e as narrativas da
indústria cultural como sendo duas esferas de leitura distintas, que circulam em
esferas sociais distintas – sendo a primeira mais frequente no âmbito escolar que a
segunda – e proporcionam experiências de leitura igualmente distintas.
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Essa distinção se dá, muitas das vezes, devido à valoração diferenciada que
ambas recebem. Isso pode acontecer por diversos motivos. Um deles, por exemplo,
pode ser a valoração dada ao suposto valor estético que cada obra alcança. Como
discutido anteriormente, as narrativas de indústria cultural são consideradas escolhas
―anárquicas‖ de leitura justamente pelo seu desprestígio cultural. Segundo Gonçalles
(2016), essas narrativas ―ainda figuram como textos sem valor estético e cultural para
os agentes que representam a cultura letrada e a alta cultura, o que se reflete em sua
pouca circulação dentro da escola‖ (p.34). A desvaloração das produções da indústria
de massa pode-se dar, muitas das vezes, em função de características específicas
dessa produção, como a escrita padronizada, os jargões, os clichês e os enredos
similares.
No entanto, o que muitos consideram como características que diminuem o
valor estético da obra, acreditamos, assim como Coelho (2010), que essas
características refletem a tão necessária ―consciência crítica, globalizante‖ (p. 288), ou
seja, a repetição pode se configurar como um elemento da globalização, em
correspondência ―a uma certa necessidade do tipo de leitor a que ela [a obra] se
destina, em consonância com a época em que ele está vivendo‖ (p. 289). Eco (1979)
igualmente vê a homogeneização das obras da indústria cultural como uma
possibilidade para a difusão de obras culturais que, servindo ao seu tempo, inauguram
e perpetuam, através da repetição, novos estilos, novas formas, novos esquemas
perceptivos. Os livros da saga Harry Potter e Crepúsculo são exemplos de
continuações padronizadas – tanto em seus cenários e personagens como quanto em
seus enredos – que refletem o valor globalizante da obra e que igualmente perpetuam
sua circulação (Crepúsculo é uma série de livros que já não está entre os mais lidos,
porém a saga Harry Potter tem repercussão até hoje com a escrita de novas obras,
peças de teatro e produções fílmicas que acompanham os primeiros livros).
Esse modelo de escrita, por não ter valor estético, não é selecionado para
circular na instância de legitimação que é a insituição escolar. De acordo com
Bourdieu (1982), o sistema de ensino funciona como uma instância de legitimação da
obra literária, uma vez que por ele é delimitada certa produção cultural como legítima e
considerada digna de circulação. Nesse caso, deparamo-nos, em especial, com a
literatura infantojuvenil.
O valor estético e o meio de circulação não são os únicos motivos que
contribuem para diferenciarmos essas duas esferas de leitura. Acreditamos,
principalmente, que uma das principais circunstâncias que pode gerar a escolha de

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leitura é a experiência que cada prática de letramento com as quais elas se envolvem
proporciona.
Para esclarecer, faremos uso dos conceitos de letramento autônomo e
letramento ideológico de Brian Street (2014). O conceito de letramento autônomo se
refere à um modelo unilinear de aquisição de leitura e escrita escolar que se baseia
em uma concepção dominante de letramento que reduz a aprendizagem a um
conjunto de capacidades cognitivas. Respaudados por muitos autores, não podemos
deixar de associar a prática da leitura e da escrita escolar à esse modelo de
letramento. Angela Kleiman (1995) afirma que a escola prioriza um letramento que
visa desenvolver ―competências individuais no uso e na prática da escrita‖ (p. 15). A
autora ainda complementa essa ideia quando diz que
[...] pode-se afirmar que a escola, a mais importante das agências de
letramento, preocupa-se, não com o letramento, prática social, mas
com apenas um tipo de prática de letramento, a alfabetização, o
processo de aquisição de códigos (alfabético, numérico), processo
geralmente concebido em termos de uma competência individual
necessária para o sucesso e promoção na escola. (KLEIMAN, 1995,
p. 20)

Esse modelo de prática de letramento elegido pela instituição escolar trata a


prática da leitura de forma homogênea e independente de seu contexto social. Tanto o
aluno quanto o texto agem de forma neutra e universal. Entretanto, ao atribuir foco
especial a um modelo de aquisição de escrita e leitura único e que ainda é sistemático
e tradicional, a escola exclui qualquer outra prática de letramento, inclusive e
especialmente aquela que seu aluno jovem possa ter ou se identificar mais facilmente.
É, portanto, o modelo ideológico de letramento que irá começar a afirmar que
existem outras práticas de letramento que fazem parte do cotidiano do jovem e que
podem influenciá-lo mais ou menos. Assim, conforme Angela Kleiman (1995), o
modelo ideológico um modelo que se afirma em práticas de letramentos plurais, social
e culturalmente determinadas. O modelo ideológico de letramento ―oferece uma
perspectiva cultural mais sensível das práticas de letramento, que variam segundo os
contextos sociais‖ (MARINHO, 2010, p. 78).
Segundo Street (2014), o modelo ideológico não exclui o modelo autônomo, na
realidade, o autônomo é uma das práticas de letramento que podem existir no modelo
ideológico, afinal, os sujeitos estão inseridos em tantas práticas sociais que refletem
diversas ideologias e relações de poder, que são produtos da cultura, da história e do
discurso de cada contexto em que eles estão inseridos.
Dessa forma, embora haja insistência em levar os indivíduos ou a sociedade a
acreditarem somente no letramento escolar – tomando essa prática, muitas vezes,

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como universal –, ―a escola não é o único local onde se aprende. Qualquer evento de
letramento envolve aprendizagem‖ (JUNG, 2003, p. 66), afirmação que faz relembrar a
presença da leitura de best-sellers e que, mesmo sendo produção de massa,
considerada ainda como uma produção inferior à literatura, não deixa de transmitir
conhecimento e ser aprendizagem.
Entendemos, então, que, mesmo priorizando o letramento autônomo, a escola,
que prefere utilizar da leitura de obras clássicas da literatura, não poderia deixar de
possibilitar o acesso de seus alunos aos letramentos mais variados, já que a
heterogeneidade de práticas de leitura é evidente.
Assim, acreditamos que a experiência de leitura escolar, a prática de
letramento autônomo, é um dos motivos pelos quais os jovens talvez não se
identifiquem com as obras de literatura infantojuvenil tanto quanto as obras da
indústria cultural. A fim de comprovar essas escolhas de leitura, pretendemos discutir
mais delongadamente a seguir a composição de forma e conteúdo das obras
selecionadas de cada esfera de leitura determinadas nesse artigo para entender que
as escolhas de leitura dos jovens não são aleatórias e desordenadas como se afirmam
ser, mas que, na realidade, elas são um reflexo da experiência de leitura que eles têm
com cada esfera de leitura social que delimitamos.

As esferas de leitura

Antes mesmo de darmos início à análise das narrativas aqui selecionadas,


julgamos ser importante explicitar que esse artigo faz parte de um recorte da
dissertação de mestrado da aluna Mariana Cristine Gonçalles, defendida em 2016 pela
Universidade Estadual de Maringá. Dessa forma, os dados que serão apresentados a
seguir não contemplam toda a pesquisa realizada. Além disso, é importante saber que
a coleta de dados foi dividida em categorias, a saber: temática, personagem, narrador,
foco narrativo, ação e linguagem. Contudo, nem todas essas características serão
discutidas no artigo de forma detalhada, pois trazemos apenas o que acreditamos ter
sido mais relevante na pesquisa.
Assim, uma das primeiras características analisadas – até mesmo porque
acreditávamos que essa seria um dos elementos das obras que pudessem causar
maior identificação com o leitor – foi a temática. De modo surpreendente – ou não –
deparamo-nos com temas bastante similares entre as duas esferas de leitura, por
exemplo, o amor proibido está em Isso ninguém me tira e em Crepúsculo; a aventura
aparece na maioria dos livros selecionados das narrativas infantojuvenis e também
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das narrativas da indústria cultural; e o misticismo está presente, principalmente, em


1001 fantasmas, Crepúsculo e nos dois livros da saga Harry Potter.
Além disso, também é interessante notar, quando falamos das temáticas em
comum, que elas se referem à situações tipicamente cotidianas dos jovens e que,
portanto, podem suscitar o processo de identificação do leitor com a obra da mesma
forma. Segundo Machado e Silva (2014), tratar de sentimento e paixões adolescentes,
com histórias que enfatizam os conflitos característicos da faixa etária dos
adolescentes e jovens, bem como questões da construção da identidade desses
leitores, pode ser um fator determinante na escolha de leitura.
Outro aspecto dos textos que nos chamou a atenção durante a análise foi a
respresentação das personagens, uma vez que, conforme Sônia Khéde (1986), a
literatura voltada para jovens, adolescentes e crianças não pode descartar o papel
ativo das personagens em representar valores da sociedade, contribuindo, assim, para
entendermos o processo de identificação desses leitores com as obras.
Primeiramente, quando observamos o gênero das personagens protagonistas,
deparamo-nos com outra semelhança entre as esferas de leitura no que se referia a
quantidade de mulheres representadas, mas que ainda assim se mantinha inferior à
quantidade de personagens homens protagonistas. A protagonista mulher apareceu,
portanto, em duas das obras infantojuvenis – Isso ninguém me tira e Pó de parede – e
duas das narrativas da indústria cultural – Crepúsculo e A menina que roubava livros.
Em segundo lugar, a idade desses protagonistas também nos chamou atenção, já que
em todas as narrativas, de ambas as esferas de leitura, os/as protagonistas eram
jovens, crianças ou adolescentes. Dessa forma, tanto na categoria de gênero quanto
na categoria de idade das personagens, os dois estilos narrativos têm a mesma
chance de obter qualquer processo de identifcação com o leitor.
Entretanto, não foram apenas as semelhanças entre as obras que nos
despertaram a atenção. Ainda quando falamos das características das personagens,
as representações de diversas raças/etnias demostraram certa diferença que talvez
contribuam para entendermos o processo de identificação do leitor com a obra. Por
exemplo, as narrativas de indústria cultural demonstraram representar maior número
de grupos minoritários diferentes quando comparadas às narrativas infantojuvenis, que
se mantiveram na representação apenas do negro e do índio. Ainda, mesmo essas
representações do negro e do índio nas narrativas infantojuvenis apareciam
brevemente, como em Isso ninguém me tira, em que a menção ao índio é feita apenas
uma vez em: ―[...] Ah, a pele morena é morena mesmo, bronzeada naturalmente. E
ainda fica mais dourada pelo sol, claro. Parece um índio. [...]‖ (p. 10).
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Já nas narrativas da indústria cultural essas representações de grupos


minoritários são mais frenquentes, além do negro e do índio outros grupos aparecem,
como nos dois livros da saga Harry Potter em que o protagonista tem amizade com os
chamados ―trouxas‖, os que não pertencem à ―raça de bruxos‖, e essa relação de
preconceito/aceitação aparece ao longo das narrativas; ou como em A menina que
roubava livros, em que a representação dos judeus é retratada como um dos focos
principais do enredo.
Essa diferença no número de representações de diferentes raças e etnias pode
se justificar, talvez, através da época em que os livros selecionados para o corpus
foram escritos, por exemplo, as obras de indústria cultural, com excessão de O
pequeno príncipe, são mais recentes que as infantojuvenis. Isso pode nos levar a crer
que antigamente a preocupação podia ser em representar a raça negra, devido,
justamente, ao preconceito que ainda era latente na sociedade.
No entanto, quando falamos das representações de crenças e religiões nas
obras, as diferenças permanecem, mas agora quem apresenta uma variedade maior
de representação é a literatura infantojuvenil. Apesar de a maioria representada seja
ainda o catolicismo, mesmo na literatura infantojuvenil, essa variedade de imagens
apresentadas pode ser um fator que contribua para o processo de identificação do
leitor com a obra.
Quando falamos de densidade psicológica das personagens protagonistas, é
importante ressaltar que as narrativas infantojuvenis brasileiras apresentam mais
protagonitas planas do que redondas, levando-nos a acreditar que a literatura
infantojuvenil brasileira pode ―prever um leitor pouco familiarizado com essas práticas
e, portanto, poupá-lo das exigências, da participação e da atividade diante da
narrativa‖ (GONÇALLES, 2016, p. 92), fator que pode influenciar na escolha do leitor
pelas narrativas de indústria cultural, já que suas personagens tendem a ser mais
complexas, assemelhando-se aos seus contextos sociais pessoais.
Quanto ao narrador e o foco narrativo a semelhança entre as esferas de leitura
aparece novamente e, mais uma vez, para demonstrar que a narrativa da indústria
cultural pode também ter certo valor estético reconhecível, como por exemplo, a
mudança de foco narrativo presente em Pó de parede e a narração com flasbacks
realizada pela Morte em A menina que roubava livros.
Por fim, outra categoria que nos chamou a atenção foi a linguagem,
principalmente, porque, como já discutimos anteriormente, a linguagem utilizada pelas
obras de indústria cultural é frequentemente dita como uma linguagem simples, direta,
com enredos previsíveis e pouco exigentes de seus leitores em termos de reflexão.
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Sendo assim, acredita-se que as produções escritas de massa, ao invés de


humanizar, supostamente alienam, levam ao conformismo, fazem os leitores
esquecerem dos problemas cotidianos, fugindo por meio do sonho e da fantasia
(ABREU, 2006).
Ao contrário do que se comunmente acredita, algumas narrativas da indústria
cultural se mostraram bastante divergentes. A menina que roubava livros é uma
narrativa composta quase que, completamente, por flashbacks, flashfowards e
comentários ou inserções informativas, cômicas e irônicas feitos pela Morte, a
narradora. Em O pequeno príncipe, a disposição da narrativa é mais linear, sem
interrupções no corpo do texto, mas que de simples, ingênuo e previsível não
encontramos nada. Conhecido ao redor do mundo todo por suas famosas frases de
valor aforístico podemos encontrar momentos de grande reflexão sobre as questões
da vida, transmitidos pela linguagem, como em ―É preciso que eu suporte duas ou três
larvas se quiser conhecer as borboletas‖ (p. 34), ou em ―As pessoas grandes são de
fato muito estranhas, pensou ele, continuando sua viagem‖ (p. 42).
Tais caracteríscas como uma narrativa mais complexa, composta por
flashbacks, inserções narrativas, conversas com o leitor, entre outros elementos,
podem ser encontradas em Pó de parade, por exemplo, ou até uma narrativa dinâmica
por meio de cartas, como em 1001 fantasmas. Todavia, o que é interessante destacar
é a presença desses elementos da linguagem nas narrativas de indústria cultural, pois
assim podemos passar a enxergá-la mais como uma prática de leitura diferente da
literatura infantojuvenil legitimada e que por ser diferente não necessariamente é
menor e deve ser desvalorizada.

E agora, José?

Delimitar as razões pelas quais os leitores jovens determinam suas escolhas


de leitura não é uma tarefa fácil. Sempre tivemos em mente que vários fatores, muitos
outros que vão além do que se foi analisado aqui, podem interferir nessas escolhas de
leitura. Entretanto, podemos acreditar que esse artigo conseguiu chegar a algumas
respostas, se não definitivas, mas respostas que levam à um caminho mais iluminado
quando tentamos entender essas práticas de letramento.
Em primeiro lugar, uma das respostas em que chegamos foi a de que algumas
obras da indústria cultural não merecem ser desprestigiadas em função da premissa
que se tem sobre todas as outras obras de produção em massa. O pequeno príncipe e
A menina que roubava livros, por exemplo, são narrativas bastante heterogêneas, que
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compreendem a complexidade do contexto social com que lidam no enredo e que se


aprofundam em questões críticas de construção da identidade, contribuindo para que
o leitor faça o mesmo e, portanto, influenciando em sua formação como leitor crítico e
questionador.
Além disso, foi possível perceber que, mesmo quando a narrativa da indústria
cultural não discute temas sociais formadores ou não apresenta um cuidado e um
preparo da linguagem de modo que levasse o leitor a prestar mais atenção nas
nuâncias e no enredo em si, ela não passa a ser irrelevante para a formação desse
jovem, pois, de qualquer forma, os livros analisados demonstraram se aproximar do
contexto social específico de seu público por meio de diversas categorias.
Ainda, outro fator que foi possível perceber ao distinguirmos tais esferas de
leitura como duas práticas de letramento distintas, foi um dos motivos pelos quais os
jovens e adolescentes não demonstrem tanta afinidade com as obras da literatura
infantojuvenil que circulam na escola. Conforme Machado e Silva (2014), essa recusa
se dá pelo desejo desses jovens de se reafirmarem suas vontades diante de uma
leitura autorizada e imposta pela escola, como uma forma de revindicarem identidades
às quais a cultura escolar se opõe. Sendo assim, essas práticas de letramentos mais
comuns entre os alunos são formas de reconhecimento pessoal dentre os demais,
bem como ―um modo tácito de protesto político contra a cultura letrada e hegemônica
na escola‖ (MACHADO e SILVA, 2014, p. 21) que se contrapõe a outras culturas e
identidades que, embora sejam pouco consideradas tendem, nos dias atuais, a
reivindicar espaço, voz e ouvidos.
Posto isto, entendemos que há espaço para a atuação de ambas as esferas de
leitura e que nem uma nem outra poderia ser substituída ou não mereceria
reconhecimento e valor. No entanto, cabe à escola dinamizar suas práticas de
letramento com a finalidade de atrair seu público à leitura, tanto inserindo outras
práticas em seu contexto quanto revendo o seu olhar sobre o trato da literatura
infantojuvenil por meio de uma pedagogização do letramento.

Referências

ABREU, Márcia. Cultura letrada: literatura e leitura. São Paulo: Unesp, 2006.

BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1982.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Orientações


curriculares Nacionais para o Ensino Médio: Linguagens, códigos e suas tecnologias.
Brasília: MEC/SEF, 2006.
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COELHO, N. N. Panorâma histórico da literatura infantil/juvenil. Das origens europeias


aos Brasil contemporâneo. Baueri, SP: Manoele, 5º Ed. Revisada e atualizada, 2010.

INSTITUTO PRO-LIVRO. Retratos da Leitura – 3ª Ed. Disponível em: <


http://www.prolivro.org.br/ipl/publier4.0/dados/anexos/2834_10.pdf>. Acesso em: 12 de
setembro de 2014.

GONÇALLES, M. C. Reconhecendo as escolhas de leitura dos jovens: best-seller não


é boa leitura?. Universidade Estadual de Maringá, 2016.

JUNG, N. M. Identidades sociais na escola: gênero, etnicidade, língua e as práticas de


letramento em uma comunidade rural multilíngue. Porto Alegre, 2003.

KHÉDE, S. S. Personagens da literatura infanto-juvenil. São Paulo: Editora Ática,


1986.

MACHADO E SILVA, R. C. Práticas e saberes de leitura entre jovens: signos éticos


colocados em questão. Apresentação no GT 78 do CAAS. Unioeste, 2014.

MARINHO, M. Letramento: a criação de um neologismo e a construção de um


conceito. In: MARINHO, M.; CARVALHO, G. T. (Orgs.) Cultura escrita e letramento.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 68-100.

PISA – Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, Relatório Nacional PISA


2012: resultados brasileiros. Disponível em:
<http://download.inep.gov.br/acoes_internacionais/pisa/resultados/2014/relator
io_nacional_pisa_2012_resultados_brasileiros.pdf>. Acesso em: 19 de setembro de
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Portal MEC, Acervo 2013 Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE). Disponível
em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alia
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Acesso em: 14 de maio de 2014.

SOARES, M. As muitas facetas da alfabetização. IN: _______. Alfabetização e


letramento. 5ª Ed. São Paulo: contexto, 2007.

STREET, B. Letramentos sociais: Abordagens críticas do letramento no


desenvolvimento, na etnografia e na educação. Trad. Marcos Bagno. São Paulo:
Parábola editorial, 2014.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

DEZ SACIZINHOS: UMA DAS TRILHAS PARA REFLETIR A


MORTE NA LITERATURA260

Gisele Maria Costa Souza, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro,


Literatura infantil e juvenil e temas polêmicos
Gabriella Santos Ramalho, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro,
Literatura infantil e juvenil e temas polêmicos, Bolsista PIBIC/CNPq/UFRRJ

Considerações Iniciais

A necessidade em discutir o tema da morte para o público infantil surgiu


diante da observação de que a criança parece ser afastada de assuntos sobre a morte
quando se trata da vida na realidade. Ao mesmo tempo, é apresentada de modo
corriqueiro na mídia, nos desenhos e filmes, nesse sentido, ainda que haja receio
sobre o tema, este é presente no nosso cotidiano e não nos permite reflexão
(JACIARA MELO, 2013; MARIA JÚLIA KOVÁCS, 2003).
Esse pensamento social é explicado por Jerome Bruner (1990) quando
argumenta que somos expressões de uma cultura e vemos o mundo a partir de
crenças. Os significados culturais guiam nossos atos individuais e, por isso, agimos
muitas vezes sem ser precedido por uma explicação. Diante desse fato, entendemos
como se dá a relação de nossa sociedade com a morte e o receio em falar sobre o
tema. Segundo Norbert Elias (2001), nossa sociedade teme a morte enquanto tenta
afastá-la o máximo possível.
Para Clarisse Lottermann (2009), surge a necessidade de abordar a morte
pelo prisma da literatura infantil, pois além de preparar o/a jovem leitor/a para a perda
e o trágico, permite cogitar sobre questões incertas. A literatura pode, então, cumprir
um papel ritualístico da sociedade, que é permitir a reflexão da morte em um meio
onde há supressão e diluição do tema. A partir disso, crianças e jovens são inseridos
nos mistérios da morte. ―Ao procederem desta forma, esses autores estão pisando em

260
Parte de Pesquisa de Iniciação Científica intitulada: Literatura Infantil e os acontecimentos
em torno da morte. Orientadora Profª Gisele Maria Costa Souza.
1269

terreno interdito uma vez que, cada vez mais, falar sobre a morte virou uma espécie
de tabu‖ (LOTTERMANN, 2009, p. 10).
Consequentemente, se faz necessário falar sobre este assunto com o público
infantil e buscar maneiras de abordagem sobre a morte, para aproximar a criança do
tema, elaborar lutos e perdas que ocorrem durante a vida. Para tal, é importante que a
família e a equipe da escola tenham um preparo e habilidade, com o objetivo de
conversar da melhor maneira com a criança. Para isso, ―é indispensável que se utilize
a linguagem da criança e recursos lúdicos do tipo livros infantis, brincadeiras,
desenhos, dentre outros recursos‖ (ADELISE SALVAGNI et al., 2013, p. 55).
Diante dessas considerações, analisamos o livro Dez sacizinhos de Tatiana
Belinky (2007), que revela várias possibilidades para explorar conteúdos como
números, alimentos, cores e morte por conta do desaparecimento constante dos sacis
figura da cultura popular brasileira. Este livro foi selecionado a partir do estudo e
classificação dos livros que dialogam com a morte pertencentes ao acervo da
biblioteca da Educação Infantil de uma escola pública no município de Seropédica, Rio
de Janeiro.

Para refletir a morte

Ao pensar na morte e sua história, sabe-se que, durante a Idade Média, a


morte era vista de perto, os mortos eram sepultados nas igrejas, o que indicava
proteção. Mais adiante no século XIX, havia um certo pensamento romântico sobre a
morte, como se essa fosse desejada e se aspirava a busca pelo além, porém, no
século XX, a sociedade expulsou a morte para proteger a vida. ―A morte não é mais
considerada um fenômeno natural, e sim fracasso, impotência ou imperícia, por isso
deve ser ocultada‖ (KOVÁCS, 1992, p. 39). A morte é transferida então para os
hospitais, o que a afasta mais ainda dos vivos. A morte acidental é vista como um
assombro e sempre traz o sentimento de irrupção no real, o que vem de encontro com
o pensamento de imortalidade (KOVÁCS, 1992).
Em meio a todo esse sentimento de medo, há um pensamento social de
afastar a criança a respeito desse tema. Os adultos pensam proteger a criança do mal
da morte quando não falam sobre o assunto, como se modificassem a realidade do
morrer. Contudo, a criança é uma observadora do meio e as questões de origem da
vida e de morte estão presentes. O ocultamento dessa questão pode perturbar a
criança e sua compreensão. Naturalmente, a criança percebe a morte de acordo com

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seu estágio de desenvolvimento e, com o tempo, vai construindo conceitos sobre o


tema como, por exemplo, pode acreditar numa morte reversível (KOVÁCS, 1992).
Nesse sentido, surge também a necessidade de falar de morte dentro da
literatura infantil, pois, de acordo com Lottermann (2009), a literatura pode cumprir
uma função de preparar o jovem leitor para a perda e o trágico, refletir sobre questões
que fogem a vida. A literatura pode, então, cumprir um papel ritualístico da sociedade,
que é permitir a reflexão da morte em um meio onde há supressão e diluição do tema.
A partir disso, crianças e jovens são inseridos nos mistérios da morte. ―Ao procederem
desta forma, esses autores estão pisando em terreno interdito uma vez que, cada vez
mais, falar sobre a morte virou uma espécie de tabu‖ (LOTTERMANN, 2009, p. 10).
Por essa razão, se faz necessário falar sobre este assunto com o público
infantil pois é importante buscar maneiras de abordagem sobre a morte para que a
criança se aproxime do tema e possa elaborar lutos e perdas durante a vida. Para tal,
é importante que a família e a escola tenham uma preparação, com o objetivo de
conversar da melhor maneira com a criança. Para isso, ―é indispensável que se utilize
a linguagem da criança e recursos lúdicos do tipo livros infantis, brincadeiras,
desenhos, dentre outros recursos (SALVAGNI et al., 2013, p. 55).

Dez Sacizinhos

O livro de Belinky (2007), com ilustrações de Roberto Weigand, engloba a


morte como algo natural, passível de acontecer a qualquer momento, por meio de
casualidades. A autora narra a história de dez sacizinhos, os quais vão morrendo
gradativamente até não restar nenhum: ―eram dez sacizinhos; um ficou imóvel e nunca
mais se moveu, e sobraram nove‖ (BELINKY, 2007, s/p), ou: ―Eram cinco sacizinhos;
um foi ao teatro, o teatro pegou fogo, e sobraram quatro‖ (BELINKY, 2007, s/p), e
finalmente ―Sobrou um só sacizinho; comeu urucum, urucum não é comida, e não
sobrou nenhum (BELINKY, 2007, s/p). Assim, os pequenos sacis desaparecem ou
morrem por causas naturais, acidentes, violência ou por ir contra as leis.
A primeira morte foi descrita como um saci que ficou imóvel, o morrer
representa um corpo imóvel, parado, o que confirma a pesquisa de Wilma Torres
(1979) sobre conceito de morte e aspectos biológicos, no qual algumas crianças,
conforme a idade, caracterizavam a morte como imobilidade, cessão da respiração,
dentre outras características. É válido ressaltar que a palavra morte não esteve
presente em nenhum momento da história, mas a sua experiência foi descrita a partir
de vários acontecimentos.
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Além de abordar a temática da morte, Belinky (2007) também traz o folclore


brasileiro para sua obra, com a Cuca e os sacis, estes com certa travessura e agitação
características do personagem folclórico. Nesse sentido, Míriam Blonski (2004)
descreve que o saci faz parte das raízes culturais brasileiras e a sua história atua
como preservação da identidade cultural. O saci, dentre outros personagens
folclóricos, se coloca como um mito importante da cultura popular e do folclore.
Entretanto, a história do saci, sofreu um processo de suavização, processo
visto no Sítio do Pica Pau Amarelo, de Monteiro Lobato. Assim, o saci perverso foi
modificado para um saci de travessuras, com uma mudança também no aspecto
físico, como a perda de chifres e em algumas publicações sem o cachimbo (BLONSKI,
2004). Essa ilustração diferenciada é também vista na obra de Belinky (2007), com os
sacis suavizados com óculos, bigodes e até barba branca.
Um fato muito importante pode ser observado na ilustração de Weigand nessa
obra, que é o fato da Cuca está presente em todos os momentos de morte dos
sacizinhos, ainda que sob plano de fundo nas figuras. Isto pode indicar que esta é
responsável pelas mortes dos personagens, com o papel da pessoa da morte. Porém,
a mesma que, aparentemente, provocava as mortes, trouxe todos os sacis de volta à
vida. Vemos assim que a ilustração, além de caminhar junto com a história escrita,
complementa esta de tal forma que passa a contar situações não descritas pelo texto
em si (RICARDO AZEVEDO, 1998). É interessante observar que existe uma figura
representativa da morte, que na história é apresentada na personagem da Cuca. Na
obra de Ricardo Azevedo (2005) sobre Contos para enganar a morte, esta é sempre
colocada como um personagem da história, e não só como um acontecimento.
Na figura 1, observamos uma morte intensa, quando o quinto saci sumiu por
causa do fogo...será que morreu queimado? Os sacis andam nus, característica dada
a estes, com baldes de água nas mãos, a fim de apagar o fogo. A fumaça e o fogo
vermelho preenchem essa imagem.
Na figura 2, a Cuca, realiza um feitiço e traz todos os sacis de volta à vida. É
possível vê-la tirando um saci da cartola, com uma varinha nas mãos, o que sugere a
ressurreição por meio da mágica. Assim, não importa qual tipo de morte sobreveio os
10 sacizinhos, todos foram trazidos de volta pela Cuca. Ao analisar as ilustrações, ao
mesmo tempo a vemos como responsável pelas mortes, ao sair nos fundos do teatro
em chamas, ou ao observar a estátua em plano de fundo. A leitura sugere que isso
não era algo entendido pelos sacizinhos, pois, em toda a história, a morte aparenta
algo natural, e de um por um, todos morreram.

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Figura 1: Morte pelo fogo.


Fonte: Os dez sacizinhos, s/n.

Figura 2: Morte reversível.


Fonte: Os dez sacizinhos, s/n.
Este trazer de volta à vida pode ser compreendido como pertencente a teoria
piagetiana, com o pensamento infantil na fase pré-operatório, da morte como
reversível e não o final do ciclo de vida (WILMA TORRES, 1979). Quando a autora se
utiliza deste pensamento, fantasia a respeito do conceito de estar vivo ou estar morto
e torna-se mais acessível ao público infantil, além de também apresentar o fator
folclórico. Este pensamento de morte reversível também continua atuante na história
quando se deixa subentendido se os sacizinhos viverão mais uma vez as mortes de
modo casual.

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De acordo com Melo (2013), há três estágios de compreensão da morte para a


criança. O primeiro é a universalidade, o pensamento de que todo ser vivo morre. O
segundo, não funcionalidade, relacionado com o fim dos comportamentos vitais do ser
vivo diante da morte. A irreversibilidade, terceiro estágio, significa pensar a morte
como fim, sem retorno. E, diante da morte, a criança pode reagir com muitos
sentimentos e comportamentos angustiantes.
Por essa razão, é fundamental que a criança tenha um ambiente no qual ela
possa conversar e expor seus sentimentos, bem como adultos capazes de auxiliá-la
na escola e na família a fim de que possa entender a morte como um processo natural
do ciclo de vida, sem necessidade de negá-la, temê-la e compreender essa realidade
da forma mais natural possível (MELO, 2013).
Além disso, a reversibilidade aponta para as tentativas de driblar a morte, de
vencê-la. A história retrata o pensamento social de escapar da morte e, como
argumenta Kovács (1992), há uma competição com a morte para alcançar a falsa
imortalidade criada pelo ser humano e, para isso, há uma busca intensa por remédios,
fórmulas, fontes da juventude, elixir vital. Na obra de Belinky (2007), o mesmo é visto
quando a Cuca usa de mágica para trazê-los de volta. Contudo, o fato é que a história
indica no seu término que os sacis não estavam verdadeiramente livres da morte.
Assim, ainda que haja procura por fórmulas, elixir e mágicas, não é possível para o ser
humano vencer a morte, ela não é reversível, embora este seja o anseio da sociedade.
Outro aspecto interessante na história é a fragilidade da vida. Os sacis
morreram por causas diversas, mas todas revelaram a fragilidade do ser humano. Um
dos sacis morreu por comer um biscoito velho, um outro por usar brinco enferrujado.
Todos, de certa forma, demonstraram o quanto a vida é delicada e pode ser breve.
É a partir dessas reflexões que podemos apontar a literatura infantil como um
instrumento para subsidiar o diálogo necessário entre professor/as, familiares e a
criança, a fim de que essa possa compreender melhor fatos naturais da vida e, assim,
estar melhor preparada quando experienciar uma situação de morte. Ao mesmo tempo
a literatura infantil pode contribuir para a elaboração de uma perda já vivenciada pela
criança (LOTTERMANN, 2009).

Considerações Finais

O final da história modifica todo o enredo com uma situação surpreendente


para o/as leitor/as, pois a Cuca traz novamente os dez sacizinhos, como se estes
voltassem a vida do resultado de um feitiço. O livro encerra ao descrever que, mais
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uma vez, eram dez sacizinhos, e nesse relato podemos entender que o ciclo das
mortes iniciaria mais vez. Quando a história traz a morte como algo natural, relaciona-
se com o pensamento de Melo (2013), sobre a necessidade de se conversar sobre a
morte com naturalidade, já que é um fato comum da vida.
Sobre a estrutura da obra, pode-se observar que existem quatro elementos
principais, introdução, enredo, ponto culminante e o desfecho (MALBA TAHAN,1966),
os quais compõem a história. Em Dez sacizinhos, sua introdução remete a explicação
de quantos sacis compunham a história; todo o seu enredo foi marcado pelas mortes
dos sacis, um por um por, até que, de uma forma ou outra, nenhum tenha sobrado.
Em seu enredo foram descritas situações casuais ou de violência, as quais resultavam
em menos um saci. O ponto culminante, seu clímax, está entrelaçado com o desfecho,
momento em que a Cuca traz de volta os sacizinhos e o texto infere que o ciclo
recomeçará. A partir dessa divisão, compreende-se que a morte está presente no seu
enredo, clímax e também em seu desfecho, sendo assim, a morte está presente em
toda a história.
A ausência do termo morte pode ser compreendida na fala de Fabianna
Carneiro e Alexander Silva (2012) quando descrevem a morte como um ocultar-se, o
fim de um contato, um desaparecer. Desse modo, embora a morte não tenha sido dita
do modo explícito, esteve presente em toda a história.

Referências

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

ENTRELAÇANDO LITERATURA E BULLYING: A MEDIAÇÃO


NESSE PROCESSO

Lívia Cristina Cortez Lula de Medeiros, IFPB, Eixo Temático 07: Literatura
infantil e juvenil e temas polêmicos.
Marly Amarilha, UFRN, Eixo Temático 07: Literatura infantil e juvenil e temas
polêmicos, CNPq.

Considerações Iniciais

A discussão que se apresenta é originária da investigação desenvolvida em


pesquisa de doutorado261 no grupo de pesquisa Ensino e Linguagem (CNPq/UFRN),
do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte (UFRN).
Neste estudo, apresentamos dois eixos: a literatura, que possibilita ao leitor – a
partir da experiência estética da leitura do texto literário – estabelecer relações com a
própria vida e, a partir dessa vivência, desenvolver um olhar mais sensível e crítico
sobre o mundo e bullying embasado nas pesquisas de Dan Olweus (2006), de onde
deriva o conceito deste fenômeno. Dessa forma, buscamos, a partir do entrelaçamento
entre essas duas temáticas, investigar como o trabalho mediado, realizado pelo
professor em sala de aula, pode propiciar a discussão com crianças sobre o bullying a
partir da leitura de textos literários.
Sua relevância consiste em favorecer o entendimento dos docentes a respeito
da possibilidade de se abordar o bullying na escola a partir da ficcionalidade da
literatura, (re)conhecendo o seu potencial problematizador e crítico.
A mediação, nesse processo, assume um papel fundamental, uma vez que
permite ao professor fazer conexões entre as possibilidades do texto e os

261
Título provisório da tese: Do mundo imaginário dos contos de fadas à formação crítica do leitor: a
contribuição da leitura de literatura para se discutir o bullying na sala de aula. Professora orientadora:
Marly Amarilha
1277

conhecimentos prévios dos alunos, no momento de pós-leitura, de modo a despertá-


los à reflexão crítica sobre o fenômeno bullying.
Em termos metodológicos, este trabalho se configura como uma pesquisa
bibliográfica, fundamentada em estudos sobre literatura, bullying e mediação, em que
se elegeram como referencial teórico os estudos de Olweus (2006), Bettelheim (2007),
Iser (1996), Zilberman (1989), Vygotsky (2007), Fontana (2000), Graves e Graves
(1995), dentre outros.

A prática de bullying: um mal a ser combatido

Um dos mais importantes autores que teorizam sobre o bullying é o professor e


pesquisador Olweus (2006) que realizou as primeiras pesquisas sobre essa prática na
década de 70 do século XX, pesquisas essas que servem de referência ainda hoje.
Foram esses estudos que primeiro contribuíram para o entendimento sobre o
que é o bullying, quais as suas características, as peculiaridades dos seus
participantes, além de ter sido o referido autor o primeiro a formular estratégias de
combate a esse mal, presente, principalmente, no ambiente escolar.
Para Olweus (2006), Bullying ou ―vitimização‖, caracteriza-se pela situação em
que uma pessoa é atacada ou ―vitimizada‖ e exposta, repetidamente, a ações
negativas oriundas de uma ou mais pessoas. E complementa:

[...] a expressão ―ação negativa‖ deve ser mais especificada. É ação


negativa quando alguém intencionalmente inflige ou tenta infligir, ferir
ou inquietar outro – basicamente o que é entendido como
comportamento agressivo. Ações negativas podem ser realizadas
por palavras (verbalmente), por exemplo, ameaças, zombaria,
implicância e chamando nomes. É uma ação negativa quando
alguém bate, empurra, chuta, belisca ou reprime outro – por contato
físico. Também é possível haver ações negativas sem uso de
palavras ou contato físico, tal como fazer caretas ou gestos sujos,
intencionalmente excluindo alguém do grupo ou recusando-se a
cumprir com os desejos de outras pessoas (OLWEUS, 2006, p. 9,
262
tradução nossa) .

Essa é a conceituação que adotamos na nossa pesquisa, por englobar as


principais características inerentes ao fenômeno bullying, que são: práticas de
agressão física, verbal e psicológica intencionais e repetitivas, sem motivação
aparente, em que há desequilíbrio de poder entre agressor e vítima e que podem

262
OLWEUS, Dan. Bullying at school: what we know and what we can do. Malden: Blackwell, 2006.
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causar problemas psicológicos, físicos e sociais, em decorrência do sofrimento


constante vivenciado pela vítima.
Assentado esse conceito, Olweus (2006) realizou pesquisas com o objetivo de
traçar o perfil tanto dos agressores quanto das vítimas e espectadores, buscando
respostas para qual o posicionamento dos pais e professores frente ao problema.
Conhecido esse panorama, Olweus procurou desenhar mecanismos para o combate
desse mal, presente, especialmente, nas escolas (seu locus de pesquisa).
Em sua principal obra, Bullying at school: What we know and what we can do
(2006), ainda no Prefácio, há a seguinte afirmação:

Bullying não é um problema novo e nem único da Escandinávia. Dito


isto, é relativamente pouco o que se sabe sobre a incidência do
bullying, se este está crescendo ou diminuindo; se é mais comum na
área urbana em oposição à área rural, se é maior em grandes
escolas do que em pequenas, entre meninos do que meninas, se as
vítimas e agressores em potencial podem ser identificados e – o
mais importante de tudo – se alguma coisa pode ser feita sobre isso
(OLWEUS, 2006, prefácio, tradução nossa).

São exatamente todas essas incertezas que Olweus, por intermédio de suas
pesquisas, busca responder. Diversos são os questionamentos feitos aos alunos
pesquisados, visando a definir em quais situações o bullying se configura, em qual dos
sexos há maior incidência, se há um aumento desse fenômeno dentro da escola, o
que os professores e pais fazem a fim de solucioná-lo, se as agressões são mais
frequentes dentro da escola ou a caminho dela, se é mais comum entre alunos do
primário ou do secundário, se é um problema presente apenas nas grandes cidades e
em suas escolas, se o problema se manifesta em consequência da competição na
escola, se são os ―desvios de aparência‖ os seus maiores causadores, enfim, o
referido pesquisador buscou desvendar os mistérios do bullying, até então nunca
discutidos ou refletidos com profundidade.
Com base nos estudos engendrados por Olweus, se pode afirmar que o termo
somente se aplica quando há um relacionamento assimétrico de poder. Nos primeiros
resultados se constatou que um em cada sete alunos estava envolvido em problema
de bullying e que a grande maioria era vítima. Tal estatística deixa evidente, portanto,
que essa prática afeta um grande número de estudantes e merece, por consequência,
ser analisada com acuidade.
Um segundo fato observado foi que os estudantes maiores, geralmente,
praticam o bullying com os menores, sendo, assim, mais fácil a intimidação e a

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construção de uma relação de medo e subserviência com as vítimas. Adicionalmente,


contatou-se que as agressões se tornam mais severas quanto maior o grau escolar.
Os resultados de Olweus (2006) revelaram que são os meninos os mais
atingidos pelo fenômeno, tanto na posição de vítimas quanto de agressores, sendo as
agressões mais fáceis de identificar por serem mais explícitas (físicas e verbais) que o
constatado entre as meninas, que realizam formas mais sutis de violência, como o
isolamento, manipulação de relacionamentos de amizade e difamação. Ademais, os
agressores das meninas, em grande parte, também são meninos.
Entretanto, em pesquisa mais recente realizada por Simmons (2004), verificou-
se que as meninas cada vez mais se envolvem nesse tipo de violência e, muitas das
vezes, na posição de agressoras. Simmons (2004) afirma que o problema na
identificação do bullying entre meninas está no fato de que os atos de agressão, em
sua grande maioria, são velados, visto que essas tentam esconder suas atitudes de
maldade. ―Para muitas meninas, se não a maioria, o dia-a-dia pode ser imprevisível.
Alianças mudam com cochichos sob disfarce de intimidade e brincadeiras de meninas‖
(SIMMONS, 2004, p. 85).
Também foi refutada, a partir da investigação de Olweus (2006), a ideia de que
o bullying é praticado mais frequentemente a caminho da escola, concepção que
culminava por eximir a escola da responsabilidade, em razão de professores e
funcionários não presenciarem as agressões. A escola é, sem dúvida, o lugar onde a
maioria dos ataques ocorre. Outro mito negado foi o de que, primariamente, o bullying
é um problema das grandes cidades. Segundo o referido estudo, o número de
ocorrências em grandes e pequenas cidades é praticamente idêntico. Por fim,
verificou-se que o tamanho da escola ou da classe não é indicativo para a frequência
dos casos de agressão.
Em relação às causas da prática do bullying, foram desmistificadas duas
concepções fruto do senso comum e, muitas vezes, tidas como verdadeiras quando se
discute o assunto. São elas: a questão de que o fenômeno está relacionado à
competitividade na escola e a ideia de que tornam-se vítimas de bullying crianças e
jovens que apresentam algum tipo de ―desvio de aparência‖, entendendo esse desvio,
descrito por Olweus, como: uso de óculos, obesidade, cabelo crespo, etc.

As vítimas de bullying não têm mais ―desvios de aparência‖ do que o


grupo de garotos que não são agredidos. O único ―desvio de
aparência‖ que diferencia o grupo dos agressores, do agredido é a
força física. Os agressores são, em particular, mais fortes que as
vítimas (OLWEUS, 2006, p. 30, tradução nossa).

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Por essa razão, muitas das crianças que têm ―desvio de aparência‖ não sofrem
bullying, mostrando que esse ―desvio‖ não é a causa principal das agressões. Os
agressores podem apenas utilizá-lo como fator ―adicional‖ para praticar e potencializar
a violência contra o outro. Isso não significa, contudo, que o ―desvio‖ não possa ter
alguma relevância mais incisiva em casos particulares.
Surge, então, a questão: enfim, o que leva um agressor a escolher a sua
vítima, se os ―desvios de aparência‖ não são fundamentais nessa escolha?
Segundo Olweus (2006), a típica vítima é mais ansiosa e insegura que os
demais alunos. Demonstra ser cautelosa, sensível e quieta; quando atacada, não
revida, reage geralmente chorando ou se retirando do local. Também sofre com baixa
autoestima e tem uma visão negativa de si mesma e de sua situação, sempre se
olhando como um fracasso e sem atrativos. É uma pessoa solitária na escola e, quase
como regra, não tem amigos na sala de aula. As perseguições dos agressores pioram
esse quadro, aumentando, gradativamente, a insegurança e o medo de denunciar as
agressões sofridas, sendo esse um outro motivo do porquê dessas pessoas serem
escolhidas para vitimação, dado que, sem coragem de delatar a violência, não há
qualquer tipo de punição aos agressores.
Um outro tipo de vítima relatado por Olweus é a vítima provocadora, uma
espécie de combinação entre ansiedade e agressividade e que apresenta problemas
de concentração, sendo caracterizadas como hiperativas. Elas podem ter
comportamento desafiador, o que resulta em reações negativas por grande parte da
classe.
Outra classificação quanto às vítimas é elaborada por Ana Beatriz B. Silva
(2010), que afirma que, além das vítimas típicas e provocadoras, existe, a denominada
agressora, a qual reverte a dor sofrida pelos ataques, tornando-se também uma
bully263. Nessa configuração perpetua-se o ciclo de angústia, uma vez que a vítima
agressora revida a dor sofrida em indivíduos geralmente mais frágeis.
Adentrando no mundo dos bullies, Olweus (2006) registra que os agressores
são indivíduos caracterizados pela impulsividade e uma forte necessidade de dominar
o outro. Têm pouca empatia pelas vítimas e apresentam uma visão relativamente
positiva sobre si mesmos. Os meninos são fisicamente mais fortes que a média dos
demais e particularmente se comparados às vítimas. Eles gostam de estar no controle
e precisam subjugar os outros ―[...] à vergonha de ser um ‗perdedor‘, ao orgulho de
parecer ser um ‗vencedor‘, associa-se a necessidade de humilhar o outro‖ (LA TAILLE,

263
Nomenclatura atribuída aos agressores.
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2009, p. 216). Além disso, considerando a má condição familiar em que a maioria está
inserida, esses indivíduos desenvolvem uma certa hostilidade, sentindo satisfação em
infringir leis e coagir suas vítimas.
Todas essas características podem ser percebidas em casos reais de agressão
ocorridos em todas as partes do mundo. É possível constatar situações graves de
bullying, especialmente a partir das notícias que são veiculadas pela mídia. A esse
respeito, nos últimos anos, podemos destacar os seguintes acontecimentos: em 2012,
no Canadá, Amanda (15 anos) tirou a própria vida em decorrência do bullying e
cyberbullying sofridos. A adolescente passou a ser vitimizada pelos colegas de escola
aos 12 anos, após ter fotos íntimas divulgadas na internet (MARQUES, 2012); um
caso datado de 2013 refere-se à Rebecca Ann Sedwick (12 anos), da Flórida, Estados
Unidos, que cometeu suicídio em virtude de mensagens agressivas de bullying
postadas na internet, tais como: ―Vá se matar‖ e ―Por que você ainda está viva?‖
(NÃO..., 2013); em 2014, Joshua Davis (18 anos), de South Wales, Inglaterra, ficou
paraplégico após sofrer uma queda de 15 metros enquanto tentava escapar de seus
agressores. De acordo com a família, o jovem vinha sendo alvo de bullying há cinco
anos, por um grupo de garotos (RELEMBRE..., 2014); outro caso registrado nos
Estados Unidos, em 2014, revela a história de Michael Morones (11 anos), que tentou
se matar após sofrer bullying na escola em razão de ser fã do desenho ―My Little
Pony: Friendship is Magic‖. O garoto vinha se queixando, há algum tempo, que estava
cansado de ser humilhado todos os dias na escola (APÓS..., 2014).
Quando se trata de práticas de bullying no Brasil, observamos que o nível de
gravidade dessas ações não foge à realidade de outros países. Essa constatação
pode ser percebida a partir dos seguintes relatos: no ano de 2012, Roliver (12 anos)
cometeu suicídio em Vitória, Espírito Santo, após ser alvo de bullying na escola.
Segundo relatos, o garoto era humilhado, empurrado e xingado de "gay", "bicha" e
"gordinho" pelos colegas. Ele deixou uma carta pedindo desculpas pelo ato e
afirmando não entender o porquê de ser alvo de tantas humilhações (ESTUDANTE...,
2012); em Piracicaba, São Paulo, no ano de 2013, uma menina (12 anos) foi agredida
fora da escola por um grupo de 5 colegas. Segundo a vítima, essas colegas a
chamavam de ―gorda‖ há algum tempo e faziam ameaças. Diante da concretização da
violência física, os pais da menina decidiram conduzi-la para registrar boletim de
ocorrência e fazer exame de corpo de delito e reclamaram da falta de ações mais
efetivas da escola com vistas a evitar casos dessa natureza(MENINA..., 2013); no
Piauí, em 2014, um garoto (10 anos) também foi agredido ao sair da escola. A
agressão sofrida foi tamanha que a criança passou a apresentar desmaios e a sofrer
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convulsões. Segundo a mãe da vítima, além de apanhar frequentemente, o filho


também era submetido a violências verbais e psicológicas, como apelidos e
humilhações (CUNHA, 2014). Em 2015, um caso grave ocorreu na Ceilândia, Distrito
Federal, onde um estudante (17 anos) foi assassinado nas dependências da escola. O
agressor (16 anos) relatou à polícia que era vítima de bullying e ameaçado pelo aluno
morto – versão essa confirmada pelos colegas (AUGUSTO, 2015). Outra prática de
bullying, também em 2015, ocorreu em Itanhaém, São Paulo. A vítima, uma garota (15
anos), sofria cyberbullying dos colegas de classe, sendo chamada de ―demônia‖. A
escola demorou a acreditar na versão da estudante e só permitiu sua mudança de
turma quando teve provas da existência dos xingamentos aos quais ela era submetida
(ROSSI, 2015).
Apesar do grande número de ocorrências, observamos – a partir de pesquisas
desenvolvidas por Olweus (2006) – que grande parte dos professores tem dificuldade
em desenvolver um trabalho de prevenção ou intervenção sobre práticas de bullying
em sala de aula. Nessas pesquisas, foi constatado que 65% dos pesquisados não
tentam intervir em situações de bullying e nem sequer buscam dialogar com os alunos
das séries iniciais sobre o assunto (OLWEUS, 2006).
Isso aponta para a necessidade de se buscar meios para trazer a discussão
sobre o bullying para a escola, de modo que o professor se sinta apto a trabalhar tal
temática em sala de aula. Nessa perspectiva, a literatura se estabelece como uma
alternativa viável por ser um instrumento capaz de provocar o pensamento do sujeito,
levando-o a estabelecer conexões entre a ficção e a vida real. Dessa forma, a
construção de momentos de debate em torno de temáticas conflituosas, como é o
caso do bullying, torna-se não apenas factível, mas também extremamente valorosa
para que se reflita sobre os malefícios dessa prática.

A leitura de literatura: um caminho viável

Partindo dessas constatações sobre o bullying, o trabalho com a literatura se


apresenta como um caminho para se estabelecer momentos de discussão em que
esse fenômeno possa ser pensado. Isso porque a literatura é arte e, por essa razão,
possibilita aos indivíduos participarem de um processo de introspecção e reflexão
sobre si e o mundo circundante, de modo que ―o texto deixa de ser mero reflexo do
repertório das disposições de seus leitores, [exigindo] deles atividades, assim
[possibilita] que se ―abra‖ a hierarquia cristalizada dos constituintes psíquicos‖
(WOLFGANG ISER, 1996, p. 91, grifos do autor).
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Corroborando essa ideia, Alice Martha (2010) destaca que algumas


características inerentes às histórias literárias possibilitam ao leitor um momento de
análise interior:

O modo de narrar – o embate de perspectivas diferentes e a


experiência de acontecimentos ambíguos vividos pelos protagonistas
como projeções de suas consciências – confirma a catarse, uma vez
que a vivência de fatos contraditórios libera os leitores da submissão
a modelos a que foram submetidos em seu meio social e familiar. [...]
Assim, tanto a instauração dos conflitos quanto os modos como se
dissipam as angústias que assaltam as personagens possibilitam aos
receptores que reflitam sobre suas experiências, reconheçam as
emoções que experimentam no cotidiano das relações humanas, e
promovam, ao mesmo tempo, a liberação de temores que os
assaltam e angustiam (MARTHA, 2010, p.140).

Para tanto, é delegado ao leitor o preenchimento dos espaços vazios


produtivos deixados pela história, levando em consideração os seus conhecimentos
prévios, bem como o repertório inerente à própria obra, tendo em vista que a fonte
para a construção da interpretação é decorrente de ambas as partes, ao interagirem
no momento da leitura (LÍVIA MEDEIROS, 2012). Isto porque, como ressalta Iser ao
explicar o efeito estético, ―[...] é só na leitura que os textos se tornam efetivos‖ (ISER,
1996 p. 48), sendo o receptor elemento básico na constituição do sentido da obra.

O texto literário alcança assim o grau de estranheza indispensável


para que as disposições de seus receptores sejam afetadas. [...]
[produzindo] um movimento que sentimos como libertação latente,
pois somos capazes de suspender a exigência do censor e a validez
do domínio estabelecido ao menos durante um certo tempo, o da
leitura. (ISER, 1996, p. 91).

Assim, o texto é um dispositivo onde o leitor constrói suas representações a


partir dos fatos da vida apresentados na literatura, que impelem sua consciência à
revisão de expectativas ao distanciá-lo da realidade, possibilitando a ele novas
experiências.
Ressaltamos, igualmente, que as reflexões do leitor, construídas na interação
com a história, não terminam no momento da leitura, como esclarece Marisa P. Lajolo
(2001, p. 44): ―os mundos que ela [literatura] cria não se desfazem na última página do
livro [...]. Permanecem no leitor incorporados como vivência, marco da história de
leitura de cada um‖ (LAJOLO, 2001, p. 44).
É dessa forma que o leitor – indivíduo ativo na interação com o texto – terá a
possibilidade de se identificar com o enredo e as personagens da história, podendo

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―percorrer uma escala inteira de atitudes como o espanto, a admiração, o choque, a


compaixão, a simpatia, o choro ou o riso simpatético, o distanciamento e a reflexão,
[...] [a partir] das sugestões emitidas pela obra‖ (REGINA ZILBERMAN, 1989, p.58),
conforme afirma Jauss, com base na estética da recepção.
É partindo desse amálgama de sensações, agregada ao distanciamento e à
reflexão proporcionados pela leitura de literatura, que Jauss apresenta uma nova
expectativa literária, elegendo o leitor como receptor e construtor de sentido, dando-
lhe a oportunidade de descobrir novas perspectivas no texto e experiências de vida
através da interpretação, como afirma Zilberman (1989, p. 49):

[...] o leitor se enquadra em duas categorias: a de horizonte de


expectativa – misto de códigos vigentes e da soma de experiências
sociais acumuladas –, e a de emancipação – entendida como a
finalidade e o efeito alcançados pela arte, que liberam o destinatário
das percepções usuais e lhe confere nova visão da realidade.

Nova visão essa concebida a partir do prazer estético da arte, que se


concretiza em três conceitos:poiesis – prazer pela experiência produtiva; aisthesis –
renovação ou ampliação da percepção do leitor; e a katharsis – capacidade efetiva de
transformação das concepções que o leitor tem do mundo e da vida diante da
liberdade, legitimidade e autonomia da obra de arte. Sendo assim, a katharsis é o
plano da experiência estética que tem finalidade comunicativa e, sobretudo,
mobilizadora, conforme observa Zilberman (1989):

[...] o espectador não apenas sente prazer, mas também é motivado à


ação. Esta característica acentua a função comunicativa da arte
verbal, que, por seu turno, depende do processo vivido pelo
recebedor: o de identificação. Esta é provocada pela experiência
estética e leva o sujeito a adoção de um modelo (1989, p. 57).

O que de fato garante a apreensão de tais reações e a adoção de certa


conduta, portanto, é o processo de identificação realizado pelo leitor com as
impressões sugeridas no texto. Esse processo evidencia a função comunicativa da
obra ao permitir a reflexão do sujeito estético (ZILBERMAN, 1989).
Reforçando essa compreensão, Bruno Bettelheim afirma que ―as escolhas das
crianças [acerca das personagens] são baseadas não tanto sobre o certo versus o
errado, mas sobre quem desperta sua simpatia e quem desperta sua antipatia [...] com
base em sua projeção entusiástica numa personagem‖ (BETTELHEIM, 2007, p.17).

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Bettelheim (2007), portanto, evidencia a dimensão afetiva na experiência


estética, o que reafirma a importância da discussão de histórias como atividade que
permite à criança externar emoções (recepção) provenientes do efeito estético.
Isso porque,

[...] quando o narrador lhes dá [às crianças] tempo bastante para


refletir sobre ela [história], para mergulhar na atmosfera que sua
audição cria, e quando são encorajadas a falar sobre ela, então a
conversa posterior revela que tanto emocional e intelectualmente a
história tem muito a oferecer (BETTELHEIM, 2007, p. 86).

O que mostra que as reações provocadas pelas histórias, nas crianças, são
extremamente importantes e se potencializam a partir das discussões desenvolvidas
na sala de aula.
Deve-se considerar, em consequência, a criança como um ser pensante,
capaz de discutir e refletir sobre os mais variados assuntos presentes nas obras
literárias (HELD, 1980).

Crianças nitidamente mais jovens [...], para quem as primeiras


páginas foram lidas em voz alta, puderam continuar a leitura
sozinhas, interessar-se pelos problemas sociais e políticos colocados
e compreendê-los, ao menos parcialmente. Tanto é verdade que não
existem temas ―tabus‖, e a criança se interessa por assuntos
importantes e sérios toda vez que são abordados de maneira capaz
de tocá-las (HELD, 1980 p. 161).

Como ser pensante, torna-se natural o surgimento de conflitos na interação do


indivíduo com o mundo circundante, o que não é diferente no encontro leitor–texto
literário, especialmente a partir de um trabalho mediado em sala de aula, em que
vários pontos de vista emergem no momento da discussão sobre a história.
Cada sujeito ao confrontar suas ideias previamente estabelecidas com o
enredo da história e com as ideias dos demais indivíduos envolvidos na atividade,
participa de um processo que vai do desequilíbrio à equilibração, o que perpassa a
assimilação e acomodação, de modo a reestruturar o pensamento sedimentado
anteriormente, em um processo de autorregulação (PIAGET, 1994).
Essa autorregulação, além de depender da reestrutura cognitiva individual,
perpassa o conflito gerado pela interação social, configurando-se em um conflito
sociocognitivo.
Segundo Mugny e Doise (apud Garcia, 1999),

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Um conflito sócio-cognitivo é uma oposição de respostas entre dois


agentes que ocupam posições sociais que determinada situação
pode enfatizar. Um conflito tem requisitos cognitivos e sociais. Nos
cognitivos, a criança deve dispor de esquemas elementares que
permitam a construção, a partir da diferenciação e coordenações
anteriores, de caráter cognitivo. Nos requisitos sociais, os sujeitos
devem ser capazes de comunicar-se e interpretar mensagens dos
outros. No conflito sócio-cognitivo a interação implica em uma
reciprocidade que supõe uma regulação cognitiva [...] (Garcia, 1999,
p. 62).

Ou seja, há um entrelaçamento do cognitivo e do social. Assim, para que o


sujeito sobrepuje o desequilíbrio e alcance constantemente a sua regulação cognitiva,
faz-se necessário o confronto de suas ideias com os pontos de vista dos outros, numa
cooperação ativa em busca da superação das diferenças e contradições.
É nesse processo de constante equilibração que podem ser construídas as
percepções dos alunos sobre a prática do bullying, a partir da troca de ideias
propiciada pelos momentos de exposição de opiniões divergentes e das ações
voltadas à resolução, que envolve a negociação. Dessa forma, ―[...] tais ações visam
as regulações na atividade assimiladora, indicativas de mudanças de ideias,
alterações na forma inicial de conceber determinada relação‖ (FREITAS, 2005, p.
175), o que pode resultar reflexões importantes à mudança de atitude perante o outro.
Diante do exposto, apresenta-se a leitura de textos literários como um meio
que permite ao sujeito sair, temporariamente, do seu cotidiano e divagar pelo mundo
da ficção, buscando compreender a dinâmica do texto, fazendo inferências, enfim,
construindo e reconstruindo, num movimento de constante aprendizagem. Desse
modo, o envolvimento proporcionado pela ficção possibilita à criança entender melhor
a si e ao seu entorno na medida em que estimula sua imaginação, ajuda a
desenvolver seu intelecto e a tornar claras suas emoções. Ademais, esse encontro
permite-a estar em harmonia com suas ansiedades e aspirações, reconhecer suas
dificuldades, formular soluções para os problemas que a perturbam e, o mais
importante, permite todo esse desenvolvimento sem que ela corra risco algum,
justamente por estar no mundo do imaginário.

A importância da mediação nesse processo

Como forma de potencializar o encontro da criança com o texto literário, a


mediação se torna um fator importante para a dinâmica do trabalho com a literatura
em sala de aula. Isso nos leva ao encontro dos estudos de Lev S. Vygotsky, que
considera que "o caminho do objeto até a criança e desta até o objeto passa por outra
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pessoa" (VYGOTSKY, 2007, p. 20). Assim, o efeito da ação mediada está na


construção de novas relações no pensamento das crianças, o que confere ao
professor um papel privilegiado na aprendizagem e no desenvolvimento de seus
alunos, a partir da Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP).

[...] um aspecto essencial do aprendizado é o fato de ele criar a zona


de desenvolvimento proximal, ou seja, o aprendizado desperta vários
processos internos de desenvolvimento que são capazes de operar
somente quando a criança interage com pessoas em seu ambiente e
quando em cooperação com seus companheiros. Uma vez
internalizados esses processos tornam-se parte das aquisições do
desenvolvimento independente da criança. (Vygotsky, 2007, p. 103).

É, portanto, pela interação e ajuda de outras pessoas que a criança avança em


seu desenvolvimento e torna-se capaz de ações autogeradas e autônomas,
demonstrando a sua posição ativa no processo educativo e apropriando-se do
conhecimento disponível no contexto sociocultural em que vive.
Essa internalização se dá a partir de relações interpessoais significativas e na
interação com o mundo social e cultural, permitindo que cada sujeito construa a sua
própria trajetória, tendo a possibilidade de ressignificar o que apreende e dar
contribuições singulares para o processo constante de recriação do pensamento ou
mesmo de atitudes. Sendo assim, à mediação é conferida uma posição central, uma
vez que é neste processo que as funções psicológicas superiores se desenvolvem.

[...] O uso de meios artificiais – a transição para a atividade mediada


– muda, fundamentalmente, todas as operações psicológicas, assim
como o uso de instrumentos amplia de forma ilimitada a gama de
atividades em cujo interior as novas funções psicológicas podem
operar. Nesse contexto, podemos usar o termo função psicológica
superior, ou comportamento superior com referência à combinação
entre o instrumento e o signo na atividade psicológica (Vygotsky,
2007, p. 56).

De se perceber, que a leitura de literatura se configura como um meio, imerso


em possibilidades imaginárias, para que o professor – mediador do processo –,
observando e investigando os conhecimentos trazidos à escola pelos alunos, possa
intervir para reorganizar suas compreensões, os elevando a outro patamar em busca
da formação de cidadãos conscientes, autônomos e respeitosos diante dos seus
semelhantes.
Isso porque, conforme afirma Roseli Fontana (2000),

Se por um lado a comunicação verbal com o adulto é decisiva para a


sistematização dos conceitos por transmitir os significados estáveis
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do grupo social à criança, a elaboração e a utilização desses


significados a ultrapassa, não só em função da especialidade do
pensamento infantil, mas porque esses processos (elaboração e
utilização) constituem formas ativas de compreensão, carregadas de
um sentido ideológico (FONTANA, 2000, p. 58-59).

Para que isso se desenvolva em toda a sua potencialidade, o planejamento é


essencial porque ―planejar fica sendo o mesmo que preparar bem cada ação, ou
organizar adequadamente um conjunto de ações interdependentes‖. (FERREIRA,
1981, p. 17). Assim, a ―atividade do planejamento [se constitui] em um dos subsídios
desencadeadores do processo de reflexão e autorreflexão simultâneo‖ (SAMPAIO,
2005, p. 18).
Compreendendo o planejamento como etapa fundamental para o bom
desenvolvimento do processo de mediação, faz-se necessário pensar em
metodologias que o favoreçam. Nesse sentido, Michael F. Graves e Bonnie B. Graves
(1995) defendem a metodologia da andaimagem (scaffolding), em que a mediação
deve partir das inferências desenvolvidas pelos aprendizes para então chegar a um
novo conhecimento. Desse modo, reforça-se a importância do planejamento das
ações do mediador, considerando tanto o público alvo quanto a escolha do texto, com
foco principal nas suas potencialidades.
De acordo com essa metodologia, a implementação da leitura deve ser feita a
partir de três componentes: pré-leitura, que tem o objetivo de motivar os sujeitos, criar
expectativas sobre o texto, ativar os conhecimentos prévios e fazer uma abordagem
anterior sobre o vocabulário existente; leitura, em que a exploração do texto pode ser
realizada de várias maneiras - como a leitura silenciosa, guiada, oral pelo docente ou
pelos estudantes -; e pós-leitura, que oportuniza aos sujeitos da aprendizagem
organizarem o que compreenderam do texto a partir da reflexão, do questionamento e
da discussão. Este último momento oferece indícios importantes para que o mediador
avalie a sua intervenção e desenvolva atividades criativas que provoquem o aprendiz
a pensar sobre o texto e fazer uma relação com sua realidade.
Podemos acentuar a essencialidade da mediação quando das discussões
geradas pelo momento de pós-leitura, uma vez que é nesse momento que o professor
poderá conduzir o debate entre os alunos, incitando cada um a expressar sua opinião
e defender, com argumentos, o seu ponto de vista, tendo em vista que ―o contato e o
confronto com uma outra concepção [possibilita] [...] a objetivação e a problematização
do próprio conceito [...] (FONTANA, 2000, p. 61).
A ideia, portanto, é

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assumir a mediação na dinâmica da interação, como forma de


viabilizar o espaço do outro, o dizer do outro e a possibilidade de,
nesse mesmo processo, entretecer os dizeres em circulação,
questioná-los, redimensioná-los e sistematizá-los (FONTANA, 2000,
P.71).

É por meio dessa dinâmica que o conhecimento se (re)constrói, permitindo


reformulação do próprio pensar. É justamente através dos questionamentos
formulados pelo professor na pós-leitura que este poderá relacionar a ficção com a
realidade, proporcionando às crianças ambiente fecundo à reflexão. Assim, uma
questão tão conflituosa como é o caso do bullying - temática que envolve sentimentos
e sensações que fragilizam as relações sociais – poderá passar a ter vez não apenas
na sua identificação como prática presente na escola, mas como prática a ser
questionada e levada às salas de aula para ser discutida sobre a mediação do
professor.

Considerações Finais

A partir deste estudo é possível constatar que o bullying, enraizado no dia-a-dia


das escolas, tem consequências que podem ser devastadoras na vida de crianças e
jovens. As notícias veiculadas pela mídia ratificam a gravidade dessa prática ao
apontar desfechos que resultaram em tentativas de suicídio ou em sua consumação.
Tomar a literatura como um meio para debater esse tipo de violência permite à
criança trabalhar os seus próprios conceitos e inquietações em segurança, dentro do
mundo ficcional, oferecendo-lhe oportunidade para vislumbrar outras maneiras de ver
e entender as ações que ocorrem ao seu redor. Isso a possibilita vivenciar uma
experiência pessoal e intransferível, ao entrar em contato com o mundo do imaginário.
Nessa perspectiva, mediar a leitura de textos literários, apoiando-se na
metodologia da andaimagem (GRAVES e GRAVES, 1995), se torna um caminho
viável para discutir o bullying, de forma que as crianças possam conhecer e refletir
sobre essa violência. Essa metodologia, portanto, subsidia o professor a
planejar/estruturar um trabalho sobre o bullying de modo intervir em situações de
violência.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

Num tronco de Iroko vi a Iúna cantar: histórias de capoeira, religião


e identidade

Jacqueline de Almeida
Universidade Luterana do Brasil

Menino, quem foi seu mestre?


Menino, quem foi seu mestre?
Meu mestre foi Salomão.
Sou discípulo que aprende,
sou mestre que dá lição.
O mestre que me ensinou
vive na Conceição.
A ele devo dinheiro,
saúde e obrigação.
Segredo de São Cosme
Só quem sabe é São Damião, camará.

Erika Balbino (2014)

Considerações Iniciais

Com a promulgação da Lei 10.639/2003 que tornou obrigatório o ensino de


História e cultura afro-brasileira e africana nas redes de educação básica do país,
o mercado editorial brasileiro passou a investir na veiculação de obras literárias
infanto-juvenis que tematizam as tradições culturais negras. Entre as mais diversas
publicações, os recontos africanos (conjunto de lendas, mitos e outras histórias da
África)tendem a compor a maior parte dos acervos das bibliotecas escolares, das
livrarias e das indicações dos Programas oficiais, como, por exemplo, o Programa
Nacional Biblioteca na Escola (PNBE). Numa outra perspectiva, há a produção de
obras que exploram práticas culturais negras num contexto brasileiro, isto é, as
denominadas narrativas afro-brasileiras. Essas produções literárias tendem a
1294

explorar elementos como a capoeira, o samba, o futebol, as religiões de matriz


africana, entre outros.
Dentro do contexto afro-brasileiro, o presente artigo realiza a análise de uma
obra infanto-juvenil contemporânea que aborda dois desses elementos, a capoeira
e o candomblé. Cabe lembrar que ambos, durante os longos séculos de
escravização da população negra, tiveram suas dinâmicas e saberes ancestrais
associados à criminalização e à marginalização, com seus agentes culturais
perseguidos e vítimas de violência. A obra selecionada para este estudo, intitulada
Num tronco de Iroko vi a Iúna cantar, da escritora Erika Balbino (2014),
promove, então, um diálogo entre essas duas práticas culturais e, além disso,
propõe algumas representações que se contrapõem às significações negativas e
estereotipadas que (ainda) permeiam o imaginário de grande parte da população
brasileira.
Partindo da perspectiva teórica do campo dos Estudos Culturais em
Educação e dos Estudos Étnico-Raciais, este artigo busca dar ênfase no modo
como essa obra constrói especialmente a representação da capoeira. Para isso,
incialmente, examina os processos de ressignificação dessa prática cultural na
sociedade brasileira, desde a associação a condutas criminosas e à vadiagem da
população negra, nos séculos passados, até o reconhecimento de que se trata de
um patrimônio cultural brasileiro. Posteriormente, realiza uma breve análise da
obra e no modo como essa arte-luta cultivada na memória dos antepassados é
ressignificada no presente e inserida no processo de formação da identidade
nacional.

Capoeira: de crime a patrimônio cultural brasileiro

De acordo com Oliveira e Leal (2009), em Capoeira, identidade e gênero:


ensaios sobre a história social da capoeira no Brasil, a capoeira é considerada,
na contemporaneidade, como um dos grandes ícones representativos da
identidade cultural brasileira. Entretanto, já houve tempos em que era uma prática
criminalizada e seus praticantes eram perseguidos e presos. Oriunda da
experiência sociocultural de africanos e seus descendentes, a capoeira, assim
como outros saberes culturais negros, passou pelos debates políticos e projetos
racialistas que permearam o Brasil, desde a segunda metade do século XIX.
Segundo os autores, grande parte dos intelectuais daquela época via como
negativa a presença e os valores negros na constituição da nação brasileira.
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Oliveira e Leal (2009) também ressaltam que as teorias raciais


deterministas, invocadas por esses intelectuais, fundamentaram algumas medidas
e ações políticas no país. Entre tais medidas, os autores destacam as inúmeras
campanhas em favor da migração europeia para o Brasil e a violenta repressão às
práticas culturais de matriz africana em favor dos modelos culturais europeus.
Dessa forma, o projeto de embranquecimento da população e, por extensão, da
cultura brasileira estariam previstos no menor tempo possível. Tomando como
base essas ideias, precisamente durante o período republicano da nossa história,
a capoeira foi inserida como crime no Código Penal Brasileiro 264.
Em contrapartida, também foram criados alguns movimentos em oposição a
tal criminalização. De 1890 até 1937, surgiram outras alternativas para a capoeira,
como, por exemplo, sua valorização simbólica no âmbito da ―reafricanização dos
costumes‖ (OLIVEIRA; LEAL, 2009, p. 49). A partir da década de 1940, na Bahia,
iniciou um processo de esportivização da prática. Mais tarde, na década de 70,
com a divulgação da capoeira especialmente no Rio de Janeiro e em São Paulo,
pelos principais mestres baianos (entre eles destacam-se Mestre Pastinha e
Mestre Bimba), a arte-luta foi, enfim, oficializada pela Portaria do Ministério da
Educação e Cultura (MEC) e, recentemente, reconhecida como patrimônio cultural
da nação brasileira.
No entanto, a relação da capoeira com a formação da identidade nacional
se dá no sentido polêmico e, por vezes, contraditório. Oliveira e Leal (2009)
afirmam que esse sentido está relacionado ao fato de que a capoeira carrega o
estigma de uma arte marginalizada pelos projetos nacionais – praticada por
indivíduos de ―alta periculosidade e tendenciosos à prática de crimes perversos‖ (p.
60) – e, ao mesmo tempo, é vista como um instrumento incomparável de
divulgação da história e da cultura brasileira pelo mundo. Também é reconhecida
como um meio de ação afirmativa da identidade brasileira, em especial aquela
produzida pela experiência negra. Portanto, conforme os autores, a capoeira é,
hoje, ―um fenômeno inusitado de representação da identidade nacional às
avessas‖ (OLIVEIRA; LEAL, 2009, p. 55).

264
A associação à criminalidade aparece relacionada ao fato de que os capoeiras – dotados de
extrema agilidade e destreza corporal – provocavam tumulto e desordem pelas ruas e
praças públicas, ameaçando pessoas e incutindo o temor, além da suposta vadiagem e
formação de bando (Fonte: História e cultura africana e afro-brasileira na educação infantil/
Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e
Inclusão. Brasília: MEC/SECADI 2014).
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Vale lembrar que a capoeira também teve seu espaço garantido,


principalmente entre o final do século XIX e o início do XX, no campo literário. Em
O Cortiço (1890), de Aluísio de Azevedo, por exemplo, o personagem Firmo foi
descrito como―um mulato pachola, delgado de corpo e ágil como um cabrito [...]
Era oficial de perito e vadio [...] militara dos doze aos vinte anos em diversas
maltas de capoeira‖ (AZEVEDO, 2004, p. 67). Esse personagem ―celebrizou
nacionalmente as características do capoeira carioca do final do século XIX‖:
(OLIVEIRA; LEAL, 2009, p. 98): o malandro vestindo paletó e chapéu de palha
―derreado sobre a orelha‖. A capoeira, na literatura nacional, também foi
representada em outros cenários, como, por exemplo, no pernambucano e no
paraense. No entanto, os mais numerosos personagens capoeiras foram
delineados dentro do universo cultural urbano de Salvador, na Bahia. Sendo
citados especialmente por Jorge Amado, na sua galeria de romances regionais.
É importante registrar que a capoeira, em cada etapa de sua trajetória no
contexto social, precisou reinventar-se:―Ela é, na verdade, uma ‗constante‘
reinvenção (algo que está em constante construção)‖. Isso quer dizer que, ―em
cada momento histórico, a prática da capoeira possui significados e características
próprias‖ (p. 52). Vale destacar que, mais precisamente a partir da segunda
metade do século XX, novos elementos foram acrescentados para caracterizar e
constituir o que é a capoeira nos dias atuais. Entre eles, a formação da bateria com
berimbaus e outros instrumentos, a uniformização, a roda e a interação com os
jogadores.

―Vamos tirar a venda dos olhos?‖

Fazendo alusão às brincadeiras infantis, em especial ao pique-esconde, no


prefácio da obra, o jovem leitor é convidado a ―tirar a venda dos olhos‖ e descobrir
coisas perdidas e/ou esquecidas. Nesse pequeno texto introdutório, o professor
Dennis de Oliveira (USP), autor do texto, relembra que os africanos e os
afrodescendentes deixaram marcas profundas da sua cultura na sociedade
brasileira. ―Porém, essas marcas estão escondidas [...] é preciso abrir os olhos e
ver‖ (BALBINO, 2014, p. 9). De forma lúdica, o autor explica que o preconceito e o
racismo ―tampam‖ os olhos das pessoas e não permitem que elas vejam o mundo
ao seu redor. Então, propõe driblar esses dois adversários desleais que não
respeitam ninguém e ainda querem ―derrubar o outro‖ (p. 11).
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Escrita pela paulistana Erika Balbino, formada em Cinema e pós-graduada


em Mídia, Informação e Cultura pelo Centro de Estudos Latino-Americanos
(CELACC), da Universidade de São Paulo, a obra ainda conta com ilustrações de
Alexandre Keto. O artista é um multiplicador da cultura Hip Hop e usa seu trabalho
como ferramenta de transformação social, principalmente em países africanos. O
livro também traz um CD com a narração da história e cantigas de capoeira
acompanhadas pelos respectivos instrumentos musicais. No final do livro, há um
glossário com inúmeras palavras que compõem o universo africano e afro-
brasileiro.
Ambientada ―numa roça não muito distante da cidade grande‖ (p. 13), a
narrativa apresenta como protagonistas os irmãos Cosme, Damião e Doum. Tudo
começou quando, impressionados com o canto de um pássaro que vinha da
floresta (a ave chamada Iúna), os irmãos decidiram adentrar a mata. Lá,
encontram dois seres representativos do folclore brasileiro: Pererê (menino negro,
com uma perna só e com um gorro vermelho) e Potyra (uma índia com rabo de
peixe). Esses seres lendários apresentam o universo da capoeira, desde os
primórdios até os dias atuais, para os meninos. No decorrer da narrativa, algumas
entidades da mitologia religiosa de matriz africana também vão surgindo. Entre
elas, Ifá (sábio e conhecedor dos búzios), Ogum Rompe-Mata (guerreiro e grande
capoeira), Aroni (o protetor da plantas) e Ariokô (ser irracional e representante do
mal).
Dividida em 11 pequenos capítulos, a obra ainda traz como personagem
principal o vovô Joaquim. Conforme a narrativa, ele teria aprendido, na sua
juventude, o jogo da capoeira com ―um guerreiro negro chamado Zumbi, que
preferiu morrer a ser escravo‖ (BALBINO, 2014, p. 15-16). Cabe a esse
personagem narrar os ―feitos heroicos‖ dos negros escravizados que, ao fugirem
do domínio dos brancos, encontravam no interior das matas um lugar seguro para
se refugiar e viver. Ali, praticavam aquela que seria ―a luta da liberdade, do corpo,
da alma do povo negro‖ (p. 17). Nesse contexto, a capoeira é representada como
símbolo da resistência negra.
Também é oportuno refletir, de forma breve, sobre a presença de Pererê e
Potyra. Ambos pertencentes ao folclore brasileiro, esses personagens, no texto de
Balbino (2014), atuam no sentido de construir um elo entre passado e presente.
Eles contam que, nos primórdios, capoeira era o nome dado a um terreiro de mata
rala, destinado ao cultivo da terra (trabalho realizado pelos índios e negros

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escravizados). Posteriormente, esse espaço foi utilizado para a prática da ―luta do


corpo‖. Por isso, essa prática recebeu o nome capoeira.
De acordo com Rosa Hessel Silveira et al (2012), as narrativas que
vinculam o índio e o negro com o folclore – nas quais se destacam mitos, lendas e
outras histórias – são recontadas na contemporaneidade com o intuito de ―integrá-
las a uma totalidade que constituiria a chamada tradição popular nacional‖ (p. 215).
Na obra de Balbino (2014), além de um resgate e/ou rememoração de histórias e
lendas que permeiam o imaginário, os elementos do folclore aparecem associados
a outros significados. Entre eles, a valorização e a contribuição dos saberes
africanos e indígenas no processo de formação da identidade brasileira.
Maria Angélica Zubaran e Petronilha B. Silva (2012) afirmam que, na
passagem do XIX para o XX, as culturas indígenas e negras foram vistas como
bárbaras, como selvagens e primitivas. Com isso, as contribuições desses grupos
étnicos foram omitidas e/ou negadas pelas narrativas dominantes e oficiais. Do
mesmo modo, as religiões de matriz africana também foram representadas como
inferiores e comumente confundidas com ―feitiçaria‖ ou ―pactos do mal‖. Nesse
sentido, a presença de entidades da floresta (caboclos) e seres da mitologia
religiosa africana (orixás) surgem com o propósito de resgatar e valorizar as
tradições herdadas dos antepassados:

Vovô Joaquim disse que precisaria da ajuda dos amigos da floresta.


Contou que na mata havia um guerreiro muito forte que se confundia
com a folhagem [...] Ele tem um cavalo preto, tem um escudo e uma
espada e um capacete luminoso na cabeça. Para chegar até ele
precisa da ajuda dos caboclos da floresta (BALBINO, 2014, p. 35).

Nesse percurso, os meninos Cosme, Damião e Doum encontram a cabocla


Potyra, da qual ―dizem que das tranças do seu cabelo corre água e nasce flor‖ (p.
35). A filha de Tupinambá envia dois guias gêmeos (Ira e Iraê), grandes
conhecedores da floresta, para conduzir os garotos até o guerreiro e capoeira
Ogum Rompe-Mata. Tudo isso ocorre porque a harmonia da Mãe Terra estava
sendo ameaçada. Ariokô, ―o ser irracional‖, deseja tornar-se um líder, ―o rei da
floresta e dos homens, e, para tanto, uma vitória sobre Ogum seria fundamental‖.
A batalha seria, então, através ―do tal jogo da capoeira‖ (p.51).
Nesse contexto, a aparente simplicidade e ludicidade no modo como a
capoeira é apresentada aos leitores, isto é, uma luta oriunda dos saberes negros e

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indígenas, também confere, de certo modo, um teor celebratório que atua no


sentido de ―afirmar a relevância de culturas tidas como primitivas e pouco
complexas‖ (SILVEIRA et al, 2012, p. 215). Nessa direção, há um esforço em
problematizar e/ou desnaturalizar a imagem genérica de índios e negros –
representados nas narrativas dominantes como indolentes, preguiçosos e
inferiores265 – e, agora, então, como ―os guardiões de uma tradição antiga‖
(BALBINO, 2014, p. 54). Diante disso, a capoeira é também representada como
símbolo da ancestralidade.
No decorrer da narrativa, Balbino (2014) redesenha a capoeira em outro
cenário: o espaço urbano. No ambiente da cidade, grande parte das informações
descritas no texto aparecem, explicitamente, para ensinar o leitor sobre certos
aspectos do cotidiano da população negra daquela época, da culinária, dos
costumes e, claro, da capoeira. Nesse contexto, cabe, novamente, ao vovô
Joaquim, recuperar algumas histórias do povo negro:

Ainda moleque, teve a mesma curiosidade de Cosme, Damião e


Doum. A tal capoeira. Lembrava-se direitinho. Tinha uns oito anos e
acompanhava seus pais, que iam ao arraial mais próximo para
vender o aipim que plantavam em sua pequena roça. Chegando ao
vilarejo, foram à feira popular que acontecia aos domingos. Lá
chegando, Joaquim, na época chamado de jojô, viu um homem
vendendo coco seco e coco verde, bem ao lado de uma banca de
cocada branca [...] Pra chamar a atenção da clientela, esse homem
tocava o tal berimbau e cantava: Dona Maria, que vende aí? É coco,
pipoca, que é do Brasil... (BALBINO, 2014, p. 29).

Nesse percurso, Balbino (2014), na sua narrativa, reforça a ideia de que


falar da história da capoeira é também falar da história do negro no Brasil. Mais do
que isso, a escritora propõe resgatar marcas da cultura africana e vivências dos
negros brasileiros no processo de formação da identidade nacional. Nessa direção,
Petronilha B. Gonçalves e Silva (2005), num estudo sobre africanidades
brasileiras, argumenta que, quando comemos feijoada, cantamos e dançamos
samba ou jogamos capoeira, independente da origem étnica de cada um, estamos
contribuindo para a manutenção das raízes da cultura brasileira que têm origem
africana. Assim, uma receita de feijoada, de vatapá, ou de qualquer outro prato,
contém mais do que ingredientes africanos, contém modos de ser, de viver e sentir

265
Reporto-me ao texto Interlocuções sobre estudos afro-brasileiros: pertencimento étnico-
racial, memórias negras e patrimônio cultural afro-brasileiro, da autoria de Maria Angélica
Zubaran e Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (2012).
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do brasileiro. Mas, então, o que significa ser brasileiro? Como é


construída/produzida uma identidade nacional?
Considerando as reflexões de Stuart Hall (2011), as identidades nacionais
não são coisas com as quais nós nascemos, mas ―formadas e transformadas no
interior da representação‖ (HALL, 2011, p. 49). Isso quer dizer que, neste contexto,
nós só sabemos o que significa ser brasileiro devido ao modo como a
―brasileiralidade‖ veio a ser representada na cultura nacional. Portanto, segundo o
teórico, não somos ―cidadãos legais de uma nação‖, mas participamos da ―ideia de
nação‖ tal como ela é representada em sua cultura nacional (p. 49). Para Hall
(2011), as culturas nacionais produzem continuamente sentidos sobre a nação,
sentidos com os quais podemos nos identificar e construir identidades. Esses
sentidos estão contidos nas histórias que são contadas sobre a nação e nas
memórias que conectam seu presente com seu passado.
Zubaran e Vargas (2016) esclarecem que, durante muito tempo, no Brasil,
as memórias e as histórias dos afro-brasileiros limitaram-se à reiteração do
estigma da escravidão, à representação do negro como escravo e vítima submissa
dos castigos e infortúnios sofridos na sociedade escravista, ―esquecendo-se e
neglicenciando-se suas lutas, conquistas e, sobretudo, sua história‖ (ZUBARAN;
VARGAS, 2016, p. 3). Dessa forma, conforme as autoras, perderam-se de vista as
reinvenções da cultura e da história afro-brasileira desde o pós-abolição até a
atualidade.
Com o intuito de reconstituir e dar visibilidade a uma parte dessas memórias
e histórias silenciadas, em Num tronco de Iroko vi a Iúna cantar, podemos
perceber que os sentidos e os valores atribuídos às histórias narradas por Balbino
(2014) propõem ressignificar não somente a arte da capoeira, mas todo um
conjunto de experiências negras e também indígenas como elementos singulares
da cultura brasileira. Desse modo, a capoeira é também representada na obra
como símbolo da identidade nacional.
Perto do desfecho dessa história, Ariokô acaba ferindo Ogum Rompe-Mata
durante o jogo de capoeira. Traiçoeiro, ―o infeliz enfiou a faca de tucum no peito de
Ogum Rompe-Mata‖ (BALBINO, 2014, p. 59). Ariokô já estava no centro da roda,
com os braços erguidos comemorando a vitória, quando

vovô Joaquim passou o berimbau para Pai Felipe, que continuou na


Iúna. Fez o sinal da cruz, pôs a camisa branca para dentro da calça e
tirou o chapéu. Os meninos ficaram atônitos. Seu avô estava velho
demais e, além disso, eles nunca o tinham visto na capoeira antes [...]

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vovô Joaquim entrou num jogo manhoso, mandingando. O corpo ia


riscando o traçado, as memórias iam aflorando. O corpo tinha vida
própria. Assim como a capoeira tem vida própria (BALBINO, 2014, p.
61-62).

No final, vovô Joaquim venceu pela sabedoria e humildade. Era ―o velho


ensinando e o menino aprendendo‖ (p. 65). Naquela noite, Ariokô aprendeu uma
lição: ―que o mestre de capoeira é acima de tudo um construtor de homens‖ (p.
69). Aqui, a autora mostra o quanto a figura do mestre é forte. Uma vez que,
através de histórias contadas/cantadas, ele orienta a vida dos mais jovens.Por fim,
Cosme,Damião e Doum ficaram espantados em perceber que ―a sabedoria estava
no quintal de casa o tempo todo‖. No entanto, para que tivessem acesso ao
conhecimento, foi necessário ―dar uma volta ao mundo‖ e, assim, ―conhecer as
diferenças, as dificuldades, as dores e as alegrias de seus semelhantes‖
(BALBINO, 2014, p. 69).

Concluindo...

Este estudo buscou fazer um breve percurso sobre a trajetória da capoeira,


desde os primórdios, como luta de resistência à escravidão, até a
contemporaneidade, como patrimônio cultural brasileiro. A partir da análise da obra
Num tronco de Iroko vi a Iúna cantar, de Erika Balbino (2014), foi constatado
que a capoeira precisou reinventar-se para manter-se viva na memória e na
história dos afro-brasileiros. O processo de marginalização e criminalização,
durante o período de escravização da população negra até as primeiras décadas
do século XX, produziu marcas negativas não apenas na história da capoeira, mas
principalmente na história do negro brasileiro.
Com o intuito de recuperar e valorizar as memórias e as histórias do povo
negro, Balbino (2014) trouxe inúmeros personagens e/ou entidades da mitologia
religiosa de matriz africana, indígena e, ainda, seres do folclore brasileiro. Assim,
nesse processo de reconstrução e rememoração da capoeira, três principais
modos de representação dessa prática foram pensados: símbolo da resistência
negra, símbolo da ancestralidade e símbolo da identidade nacional. O primeiro
apareceu associado ao período de escravização, no qual a capoeira era tratada
como uma luta de defesa; o segundo representou um momento de afirmação dos
valores e das tradições da comunidade negra, sobretudo no âmbito religioso e, por

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último, o reconhecimento da capoeira (e também das experiências negras) no


processo de formação da identidade nacional.
Por fim, ao reconstituir a trajetória da ―luta do corpo‖ e ―da alma negra‖,
ainda que no âmbito literário/ficcional, Balbino (2014) mostrou que as vivências, as
tradições e os valores negros, e também indígenas, contribuíram para a formação
da identidade brasileira. Também vimos que não nascemos com uma identidade
pronta ou acabada, mas que as identidades nacionais são continuamente
formadas e transformadas no interior das representações. E por falar em
representação, assim como a capoeira, o negro também aprendeu a ressignificar,
às avessas, a representação negativa e estereotipada que foi construída sobre si.
Se hoje a capoeira é reconhecida como patrimônio cultural brasileiro, é porque
uma árdua luta foi empenhada, assim como muitas outras ainda estão sendo
enfrentadas pela população negra.

Referências

AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo: Ática, 2004.

BALBINO, Erika. Num tronco de Iroko vi a Iúna cantar. São Paulo: Peirópolis, 2014.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu


da Silva; Guaracira Lopes Louro. 11 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2011.

OLIVEIRA, Josivaldo Pires de; LEAL, Luiz Augusto Pinheiro. Capoeira, identidade e
gênero: ensaios sobre a história social da capoeira no Brasil. Salvador: EDUFBA,
2009.

SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e. Aprendizagem e Ensino das Africanidades


Brasileiras. In: MUNANGA, Kabengele (org). Superando o Racismo na escola.
Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade, 2.ed. 2005.

SILVEIRA, Rosa Maria Hessel; KIRCHOF, Edgar Roberto; KAERCHER, Gládis;


BONINI, Iara; [et al.]. A diferença na literatura: narrativas e leituras. São Paulo:
Moderna, 2012.

ZUBARAN, Maria Angélica; SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e. Interlocuções


sobre estudos afro-brasileiros: pertencimento étnico-racial, memórias negras e
patrimônio cultural afro-brasileiro. Currículo sem fronteiras, v. 2, n.1, p. 130-140,
jan./abr. 2012.

ZUBARAN, Maria Angélica; VARGAS, Juliana Ribeiro de. Imprensa negra: memórias,
patrimônios documentais e educação antirracista. XI Reunião Científica Regional da
ANPED. Educação, movimentos sociais e políticas governamentais. 24 a 27 de
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julho de 2016/ UFPR. Curitiba/Paraná. Disponível


emwww.anpedsul2016.ufpr.br/.../eixo16_ Acesso em março de 2017.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

O CORPO NEGRO EM O MENINO CORAÇÃO DE TAMBOR

Renan Fagundes de Souza, Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG),


Literatura infantil e juvenil e temas polêmicos.

Considerações Iniciais

O texto literário de recepção infantil tem uma especificidade: o leitor (criança),


no entanto o leitor primeiro do texto não é aquele a que originalmente se destina. Isto
é, na maioria das vezes, antes da criança, um adulto – livreiro, pai, professor, tio,
avô/avó – fará a seleção, a compra e a leitura do livro (DEBUS, 2012, p.142). Com
base na citação da pesquisadora, podemos refletir em quais são os livros escolhidos
destinados a essas crianças e quais os modelos julgados ―corretos‖ para este público.
Partindo da escolha desses livros, será que há um exemplar que aborde a temática
étnico-racial negra, além do mais, que apareça um personagem protagonista negro e o
enredo com o auxílio das ilustrações contribuam para o rompimento de estereótipos?
Heloísa Pires Lima afirma que ―a literatura infanto-juvenil apresenta-se como
filão de uma linguagem a ser conhecida, pois nela reconhecemos um lugar favorável
ao desenvolvimento do conhecimento social e à construção de conceitos‖ (2000). A
pesquisadora salienta que ―as imagens ilustradas também constroem enredos e
cristalizam as percepções sobre aquele mundo imaginado‖ (2000). Em relação a essa
construção de identidades através da imagem Martins (2011) afirma como perspectiva
educativa, a cultura visual pode propiciar aos alunos e professores oportunidade para
discutir e se posicionar sobre os dilemas morais, sociais e éticos que afligem e
demandam a atenção das sociedades contemporâneas.
Se ao depararmos com a literatura infantil e juvenil e nos ―modelos‖ a serem
seguidos, na grande maioria das vezes, sob um olhar eurocêntrico, pensemos nas
crianças negras e também não negras em relação à temática étnico-racial negra.
Lembremo-nos da explanação de Suely Dulce de Castilho (2004) que a literatura
infanto-juvenil, em termos gerais, ajuda as crianças, além de outras coisas, a
1305

construírem sua identidade. Cunha (2008) corrobora que ―na maioria das vezes, as
imagens da cultura popular homogenizam modos de ser, definem o que as pessoas e
as coisas devem ser e, ao defini-las dentro de padrões, as diferenças não são
contempladas, ao contrário, são excluídas‖ (p.120).
Elisa Larkin Nascimento (2009) nos informa que ―precisamos de obras que
abordem esses temas de um novo ponto de vista. Carecemos de pesquisas e
reflexões construídas sobre novas bases epistemológicas‖ (p.21). Em outras palavras,
estamos acostumados com histórias no viés eurocêntrico e não é diferente na
literatura infantil. Devemos questionar as origens das histórias e até mesmo (re)
conhecer as nossas histórias.
Por tais posicionamentos, temos como pergunta central para este estudo de
como seria a construção da identidade étnico-racial negra e como nos é apresentando
e representando o corpo negro na obra literária ―O menino coração de tambor‖, da
pesquisadora e escritora Nilma Lino Gomes que é uma cidadã afro-brasileira e possui
vasto engajamento pela temática étnico-racial negra.
Este estudo se encontra divido em seções. Na primeira seção intitulada
Iniciando os caminhos argumentaremos sobre os referenciais teóricos deste estudo,
em relação aos conceitos de identidade, identidade negra, entre demais conceitos
norteadores. Em ―O menino coração de tambor‖, apresentamos um breve resumo
da obra, e no decorrer abordaremos a representação do corpo feminino, através da
personagem Conceição e a representação do corpo masculino, com o personagem
Evandro. Por fim, as considerações finais para este estudo e direcionamentos para
futuras pesquisas.

Iniciando os caminhos

De acordo com Stuart Hall (2006) o ―sujeito está se tornando fragmentado,


composto não só de uma única, mas de várias identidades, algumas, às vezes,
contraditórias, outras, não resolvidas‖. Não tem como não pensarmos na
fragmentação das identidades ao lermos uma obra literária, em específico neste
recorte para a literatura infantil, sendo a construção das identidades para as crianças
negras em busca de uma identificação e representação nas histórias infantis. Quem
nunca quis ser uma princesa ou príncipe dos contos infantis? Quais são as princesas
negras e príncipes negros que lemos frequentemente para os nossos filhos e filhas,
alunos e alunas e assim por diante?

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A pesquisadora Ione da Silva Jovino no seu texto intitulado ―Literatura infanto-


juvenil com personagens negros no Brasil‖, nos faz repensar sobre a literatura
destinada a esse público infantil:
Algo interessante para refletirmos é o fato de nos serem dados a conhecer a
literatura sempre a partir de um referencial europeu. Fomos acostumados às diversas
adaptações de contos de fadas como Cinderela, Chapeuzinho Vermelho, Joãozinho e
Maria, Branca de neve ou às diversas histórias do livro Mil e uma Noites (JOVINO,
2006, p.183).
Atualmente, essas histórias ainda tem uma grande visibilidade e também pela
indústria Disney, comércios em geral e etc., pois, são comerciáveis todos os tipos de
filmes, brinquedos e jogos com personagens x e y. Como discorre o pesquisador
Valdinei José Arboleya:

A criação iconográfica e a representação estética no contexto


da Educação Infantil sempre manifestaram vínculos com a
estilização de imagens cujo traço, plasticidade e coloração
denotam uma presença fantasiosa, animada e dotada de uma
carga simbólica de ingenuidade refletida nas formas como a
literatura infantil desenham nossas personagens (ARBOLEYA,
2008, p.1).
.
Para o estudioso Kabengele Munanga (2004) ―a identidade cultural se
construí com base na tomada de consciência das diferenças provindo das
particularidades históricas, culturais, religiosas, sociais, regionais, etc.‖ Acrescenta
também que ―se delineiam assim no Brasil diversos processos de identidade cultural,
revelando um certo pluralismo tanto entre negros, quanto entre brancos e entre
amarelos, todos tomados como sujeitos históricos e culturais e não como sujeitos
biológicos ou raciais‖. (MUNANGA, 2004, p.15).
Ao mencionarmos o conceito de identidade, embasamo-nos na definição do
antropólogo Kabengele Munanga. De acordo com os estudos do pesquisador:

A identidade é uma realidade sempre presente em todas as


sociedades humanas. Qualquer grupo humano, através do seu
sistema axiológico sempre selecionou alguns aspectos
pertinentes de sua cultura para definir-se em contraposição do
alheio. A definição de si (autodefinição) e a definição dos
outros (identidade atribuída) têm funções conhecidas: a defesa
da unidade do grupo, a proteção do território contra inimigos
externos, as manipulações ideológicas por interesses
econômicos, políticos, psicológicos, etc (MUNANGA, 1994;
177-178 apud: GOMES, 2005, p.40).

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Ao refletirmos sobre o conceito de identidade, elencada anteriormente, faz-se


necessário atribuirmos o conceito de identidade negra, como prescreve a
pesquisadora Nilma Lino Gomes:

A identidade negra é entendida, aqui, como uma construção


social, histórica, cultural e plural. Implica a construção do olhar
de um grupo étnico/racial ou de sujeitos que pertencem a um
mesmo grupo étnico/racial, sobre si mesmos, a partir da
relação com o outro (GOMES, 2005, p.43).

De acordo com Ione da Silva Jovino ao ter se fixado esse conceito do ser
negro, o qual foi sempre sombra de negatividade, subalternização e sustento para o
desejo de branqueamento e da mestiçagem, privou a imagem do negro de todos os
signos de beleza estética, moral e material (JOVINO, 2010). A Doutora salienta, ainda,
que a representação imagética dos negros nos reflete de maneira instantânea e
irreversível à escravidão, as imagens são interpretadas como construções narrativas,
através da construção de uma linguagem visual sobre as figuras dos negros, inclusive
daqueles que não são vistos, ou seja, sempre há uma imagem antecipada de todos os
negros (JOVINO, 2010).
A pesquisadora Jovino (2010) em se tratando de representação de negros e
negras com perpetuação de estereótipos na literatura infantil apresenta ―várias
pesquisas demonstram a presença de estereótipos negativos em relação aos negros
na literatura infanto-juvenil‖ (p.209). A pesquisadora se pauta em ―um estudo de Fúlvia
Rosemberg (1980) mostra os estereótipos sexuais e raciais presentes na literatura
infanto-juvenil produzida no Brasil entre 1950 e 1975, a partir da análise de texto e
ilustrações dessas produções‖ (p.209). Fazendo-nos questionar se em obras atuais há
semelhanças ou divergências com os estudos realizados por Rosemberg em 1980.
Sobre estereotipos, de acordo com Stuart Hall em El espectáculo del otro
afirma que notemos que ―estereotipar‖ quiere decir: reducir a unos pocos rasgos
esenciales y fijos en la Naturaleza. O autor complementa que estereotipar a los negros
en la representación popular era tan común que los caricaturistas, e ilustradores
podían reunir una galería completa de ―tipos negros‖ con unos cuantos golpes de
pluma (p.429). Para o estudioso la gente negra era reducida a los significadores de su
deficiencia física – labios gruesos, cabello rizado, cara y nariz ancha, y así
sucesivamente‖ (p.429).
Vale ressaltar que esta pesquisa caminha em concilio com a Lei 10.639/03,
promulgada em 09 de janeiro de 2003, modifica o artigo 26A da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, estabelecendo a obrigatoriedade do ensino de história e
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cultura afrobrasileira, bem como da ―História da África e dos Africanos, a luta dos
negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade
nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e
política pertinentes à História do Brasil‖ (BRASIL, 2003). Lembramos que, no ano de
2008 essa lei posteriormente reformulada pela Lei 11.645/08, estabelecendo também
a obrigatoriedade do ensino da história e cultura indígena brasileira.

―O menino coração de tambor‖

O livro ―O menino coração de tambor‖, de autoria da escritora e também


pesquisadora Nilma Lino Gomes, foi publicado no ano de 2013, pela Mazza Edições,
de Belo Horizonte. A obra conta com as ilustrações de Mauricio Negro, ilustrador,
escritor e designer.
A narrativa apresenta a personagem de Conceição que está grávida de seis
meses e que os familiares questionavam qual seria o sexo do bebê. O que chamava
atenção de Conceição durante a sua gestação era o ritmo do coração do bebê.
Conceição e toda a sua família nasceram em Diamantina, Minas Gerais, ―uma cidade
com uma tradição musical muito forte‖ (GOMES, 2013, p.6). Quando Conceição ia a
uma festa do Congado o bebê se divertia em sua barriga e mudava de acordo com o
ritmo, seja ele na festa, ou até mesmo em dia de samba raiz. José, o pai do bebê,
tocava saxofone para seu filho, e da mesma maneira o bebê se mexia no ventre de
Conceição. Passaram-se os nove meses e eis que nasceu um menino, chamava-se
Evandro Passos, ―uma criança linda, viva, que gostava de estudar, cantar, dançar e
tocar instrumentos musicais variados‖ (GOMES, 2013, p.18). Com o passar dos anos,
Evandro se tornou um bailarino, pois ―quando a música toca e ele pisa no palco, seu
corpo acompanha com energia e desenvoltura a vibração dos atabaques‖ (GOMES,
2013, p.22).
Em nota, pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-
Brasileira, o livro de Nilma Lino Gomes é uma homenagem ao bailarino Evandro
Passos (2013). Na contracapa de ―O menino coração de tambor‖, temos um pé, de um
corpo negro, adentrando a ilustração. Notamos ao fundo alguns símbolos e desenhos
que se assemelham com os adinkras. A simbologia adinkra está explicada no estudo
de Castro e Menezes (2009) a respeito do ―Design étnico‖. As autoras mostram que a
civilização Akan (de Gana, do Togo e da Costa do Marfim) trabalha os ideogramas, ou
seja, seus signos, como simbologia de vida, fazendo com que seu povo viva a
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comunicação visual a todo instante. Adinkra é ―palavra que significa adeus, visto seu
primeiro uso ter sido nas estamparias em ocasiões fúnebres ou festivais de
homenagem. Eram destinadas aos trajes de reis e líderes espirituais, em ritos e
cerimônias‖ (MENEZES, 2000 citado por CASTRO e MENEZES, 2009, p. 40). Esses
símbolos já se tornaram uma arte nacional ganense, somando-se em muitos números.
A comunicação por meio das vestimentas é de valor essencial para a cultura Akan,
pois a potencialidade da imagem, por meio dos signos denominados adinkra,
incorpora, preserva e transmite aspectos da história, filosofia e normas socioculturais
de seu povo (CASTRO e MENEZES, 2009).
Esse corpo negro entra na página tomando conta desse espaço, pois essa
obra vem tratar sobre ele, o nosso herói negro. Por conseguinte, as ilustrações
apresentam a mãe do protagonista, Conceição, em seu momento de atenção e
carinho a sua barriga durante o período de gestação. Temos a presença da mulher
negra, mãe, com os olhos voltados para o seu ventre. Chamamos a atenção aos
detalhes das notas musicais, como elencado anteriormente retomam os adinkras. A
valorização do corpo feminino negro está em evidência pelos detalhes do rosto de
Conceição, pois temos a personagem com brincos, torso e com cabelos crespos a
mostra. Como apresentado por Stuart Hall la gente negra era reducida a los
significadores de su deficiencia física – labios gruesos, cabello rizado, cara y nariz
ancha, y así sucesivamente‖ (p.429). Podemos considerar que nessa ilustração há a
busca da identificação e representação desse corpo e não um ataque ao como são os
negros e suas características físicas, como eram apresentados ao longo dos anos.
Nilma Lino Gomes em ―Educação, identidade negra e formação de
professores/as: um olhar sobre o corpo negro e o cabelo crespo‖, a autora apresenta
que o corpo localiza-se em um terreno social conflitivo, uma vez que é tocado pela
esfera da subjetividade (p.174). Para Gomes (2003) ao longo da história, o corpo se
tornou um emblema étnico e sua manipulação tornou-se uma característica cultural
marcante para diferentes povos. Ele é um símbolo explorado nas relações de poder e
de dominação para classificar e hierarquizar grupos diferentes. A autora enfatiza que o
corpo é uma linguagem e a cultura escolheu algumas de suas partes como principais
veículos de comunicação. O cabelo é uma delas (p.174).
Podemos pensar que com ilustrações nesse sentido a qual o enredo apresenta,
mostra o lado positivista em relação à temática étnicorracial negra. Fazendo com que
os leitores se identifiquem e até mesmo mudem seu olhar em relação às culturas
africanas. Ressaltamos que o positivista da história negra seria uma tentativa de
romper com os estereótipos.
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O corpo de Conceição apresenta às mudanças devidas a gestação, porém se


faz necessário voltar os olhos para o texto da autora quando é apresentado ao leitor
que a personagem já dera à luz a cinco filhos. A ilustração apresenta o protagonista
que receberá o nome de Evandro Passos. Notamos a aliança de ouro na mão
esquerda da mulher. Notamos que a menção no texto a filhos e esse objeto da aliança
reforça a questão familiar, ou seja, a presença de um contexto familiar não tem nesse
caso o personagem deslocado ao decorrer do enredo. Podemos mencionar que aqui o
personagem tem o seu direito a normatividade.
No decorrer do enredo, a família é retomada na narrativa, pois o narrador
relembra que toda a família de Conceição nasceram em Diamantina, Minas Gerais.
―Faz parte da vida dos que moram nessa cidade a música, os bailes, as festas, o
samba e o Congado‖ (GOMES, 2013, p.14). A música mais uma vez é destacada no
enredo. Como prescreve Silva (2013) sobre a música africana:

A música africana encontra-se radicalmente imersa no universo


da cultura. Trata-se de um sinal distintivo, pois geralmente as
sonoridades musicais informam que algo de diferente ocorre na
vida ordinária. O código musical simboliza a realização de uma
atividade importante. O nascimento, morte, coroação de um rei,
atividades de trabalho, ritos religiosos, entre outros. A música
é, portanto, um elemento de cultura, não podendo ser
analisada de forma separada, enquanto simples estrutura
sonora (SILVA, 2013, p.6).

Em outras palavras, observamos uma família como nas demais histórias


infantis. Vemos na ilustração que o negro não está isolado no mundo ou fora de um
contexto como infelizmente tem-se na mídia em geral. Para exemplificar tal afirmação,
nas novelas de teledramaturgia brasileira apresenta o negro (a) como empregado e
único, com a finalidade apenas de servir aos donos da casa.
Vivemos em um tempo em que nos conectamos mais com as representações
sobre o mundo do que com os acontecimentos concretos com os quais nos
deparamos em qualquer esquina de nossa cidade. Um tempo em que nossas relações
com o mundo dos fatos, da ―realidade‖ vivida, está sendo substituída pelas diferentes
produções culturais, como os jornais escritos e televisivos, a literatura, o cinema, as
propagandas, as novelas, as revistas, as sonoridades, a moda, as produções
artísticas, entre outras (CUNHA, 2008, p.113).

Considerações finais

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Maria Anória de Jesus Oliveira defende que a literatura enquanto importante


bem cultural estruturada em adversos processos históricos pode não só reproduzir
como, também, denunciar, desvelar, além de ressignificar valores vistos como belos
e/ou feios socialmente. Nesse sentido, mas referindo-se à literatura negra brasileira,
Silva (2005, p. 196) salienta que, a partir dos anos 80, tal produção visou a
apropriação dos ―traços físicos culturais, antes rejeitados e recalcados‖, na medida em
que não eram vistos como belos. Então, passam a ser ressignificados, invertendo-se
os sentidos que até então lhes foram atribuídos. Assim sendo, ―ganham outro sentido
e passam a ser assumidos como marcas identitárias‖ (op. cit).
Pensamos também do princípio de uma educação antiracista, com princípios
de letramentos múltiplos e críticos, uso de gêneros textuais diferenciados orais e
escritos e mídias diversas. Devemos enfatizar que ao falarmos de educação
antirracista, trazemos a perspectiva de Ferreira (2012) para quem é preciso enfatizar o
conceito porque ―pesquisas nessa área mostraram que a Educação Antirracista
explicitamente nomeia assuntos de raça e de justiça social, de igualdade racial/étnica,
assuntos relacionados a poder, a exclusão, e não somente atentos aos aspectos
culturais‖ (FERREIRA, 2012 p.278).

Referências

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interpretação da construção adjetiva e da representação imagética de
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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

O SILÊNCIO QUE DIZ MUITO

Cláudia Sabbag Ozawa Galindo, UFGD, Literatura infantil e juvenil e temas


polêmicos

Considerações Iniciais

Segundo Eni Puccinelli Orlandi (2007), o imaginário social ―destinou um lugar


subalterno para o silêncio‖, porém, contra essa preponderância incisiva da palavra, ele
persiste ―mediando as relações entre linguagem, mundo e pensamento, resiste à
pressão de controle exercida pela urgência da linguagem e significa de outras e muitas
maneiras‖ (2007, p. 37).
A linguagem empurra o que ela não é para o ―nada‖. Mas o silêncio significa
esse ―nada‖ se multiplicando em sentidos: quanto mais falta, mais silêncio se instala,
mais possibilidades de sentidos se apresentam. Desta forma, o silêncio se apresenta
como uma possibilidade para o sujeito ―trabalhar sua contradição constitutiva‖, como
bem elucida Orlandi (2007, p. 24).
Neste sentido, além do natural espaço do silêncio na linguagem, enquanto o
não-dito que existe nas palavras, há também a política do silêncio, que pode se dar de
modo que, para dizer algo, é preciso não-dizer. (2007, p.24).
E o objetivo desse trabalho é demonstrar como ―não dizendo‖ as crianças
―dizem muito‖ o que sentem e o que pensam, especialmente nas histórias menina
amarrotada, de Aline Abreu, e Pai Francisco, de Marina Miyazaki Araújo.

O lugar do silêncio

Em ―As formas do silêncio. No movimento dos sentidos‖ (2007), Orlandi afirma


que o imaginário social tem destinado um lugar subalterno para o silêncio, em que
reina uma ―ideologia da comunicação‖, uma espécie de ―apagamento do silêncio‖,
muito pronunciado nas sociedades contemporâneas. ―A linguagem empurra o que ela
não é para o ‗nada‖‖ (2007, p. 47), explica.
1314

Entretanto, ressalta a autora, o silêncio resiste significando de muitas maneiras.

Sentidos silenciados e silêncio implícito

Diz a autora ―há um modo de estar em silêncio que corresponde a um modo de


estar no sentido e, de certa maneira, as próprias palavras ‗transpiram silêncio‘‖ (p.11-
2), ou seja, há um sentido construído a partir do silêncio, também. E este sentido não
deve ser compreendido restritamente como a reafirmação de um implícito instaurado a
partir da linguagem. Um estudo do silenciamento ―nos mostra que há um processo de
produção de sentidos silenciados que nos faz entender uma dimensão do não-dito
absolutamente distinta da que se tem estudado sob a rubrica do ‗implícito‘‖ (2007, p.
12).

Desta forma, o silêncio não se daria como uma significação implícita no


sentido, sobreposta a uma outra significação, justaposta como um complemento ou
―resto, excrescência‖ da linguagem, mas guarda em si mesmo, por sua constituição
específica, um sentido, um ―fator essencial como condição do significar‖, como explica
Orlandi (2007, p.12).

O silêncio que diz muito

Por outro lado, a riqueza e também a complexidade do silêncio advêm da


própria natureza da linguagem, seu caráter de incompletude que, fatalmente, leva a
uma errância dos sentidos, uma relação fundamental com o não-dizer, segundo
Orlandi.

Assim, de certa forma, ―aquilo que é mais importante nunca se diz‖, o que
resulta na ideia de que o silêncio é ―fundante‖, ou seja, as palavras são atravessadas
de silêncio, elas produzem silêncio, mas também o silêncio ―fala‖ por elas, quando elas
mesmas silenciam.

Tendo em vista que a dispersão dos sentidos e do sujeito, conforme afirma


Orlandi (1988), é condição de existência do discurso, que, por sua vez, funciona sob a
aparência da unidade, sob efeito ideológico, é possível considerar que nem a ideologia
funciona como um mecanismo fechado nem a língua se apresenta como um sistema
homogêneo. Desta forma, ―a relação entre língua e discurso se faz por

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reconhecimento, e suas fronteiras são colocadas em causa constantemente‖ (2007, p.


19).

É precisamente nesse espaço de interrelação, de contato e de influências que


se dá o encontro da materialidade da língua com a materialidade da história, explica
Orlandi, e o discurso é esse lugar de encontro.

As formações discursivas são diferentes regiões que recortam o interdiscurso


(o dizível, a memória do dizer) e que refletem as diferenças ideológicas, o modo como
as posições dos sujeitos, seus lugares sociais aí representados, constituem sentidos
diferentes. O dizível (o interdiscurso) se parte em diferentes regiões (as diferentes
formações discursivas) desigualmente acessíveis aos diferentes locutores. (ORLANDI,
2007, p. 20-1)

Desta forma, ―uma mesma coisa pode ter diferentes sentidos para os sujeitos‖,
alerta Orlandi (2007, p. 21), justamente na relação contraditória da materialidade da
língua e da história, e daí, complementa a autora, ―a presença do equívoco, do sem-
sentido, do sentido ‗outro‘ e, consequentemente, do investimento em ‗um‘ sentido‖.
Aqui se opera o trabalho do silêncio.

É o silêncio, portanto, que garante o movimento dos sentidos, haja vista que se
diz a partir do silêncio, firmando-se como ―a possibilidade, para o sujeito, de trabalhar
sua contradição constitutiva, a que o situa na relação do ‗um‘ com o ‗múltiplo‘, a que
aceita a reduplicação e o deslocamento que nos deixam ver que todo discurso sempre
se remete a outro discurso que lhe dá realidade significativa‖ (2007, p. 24).

Silêncio fundador, política do silêncio e silêncio local

Assim, é possível afirmar que há o silêncio fundador, que existe nas palavras e
significa o não-dito e a política do silêncio, que se dá enquanto silêncio constitutivo,
que indica que para dizer é preciso não-dizer (uma palavra apaga necessariamente as
outras) e ainda o silêncio local, relacionado à censura propriamente dita, ou seja,
àquilo que é proibido dizer em uma certa conjuntura. O que resulta na ideia de que
―estar no sentido com palavras e estar no sentido em silêncio são modos
absolutamente diferentes entre si‖ e se refere à forma específica de se significar, de se
relacionar com o mundo, com as coisas e com as pessoas (2007, p. 24).

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Pensado sob a ótica de duas obras distintas, o livro menina amarrota, de Aline
Abreu, e Pai Francisco, de Marina Miyasaki Araújo, o silêncio, pleno de sentidos,
estabelece entre elas um possível diálogo discursivo, a partir da constituição simbólica
e imperativa do silêncio infantil.

Pai Francisco e o silêncio de enfrentamento

Em Pai Francisco, o narrador, em primeira pessoa, é uma criança, o que se


pode perceber por trechos que se referem aos lugares em que ele transita (escola), ao
espaço que ocupa (entre outras crianças, na família) e, especialmente às falas, que
dão a ideia de quem ainda é ―conduzido‖ por adultos (ser obrigado a ir à escola, comer
salada, comportar-se segundo a expectativa dos adultos: não chorar por bobagens,
não perguntar demais...).

O garoto, também inferido tendo em vista a vontade de jogar futebol e as


imagens do livro, dá início à historia questionando a ausência do pai, ou melhor, o
lugar para onde o levaram, a cadeia, a prisão, a penitenciária. Daí o título do livro ―Pai
Francisco‖, mote da canção popular, cujos versos abrem a obra ―Pai Francisco entrou
na roda tocando/ seu violão dororón dondón/ Vem de lá Seo Delegado/ e Pai
Francisco foi pra prisão‖.

Imerso no silêncio da mãe, ―-Mãe, cadeia não e pra bandido? Meu pai não é
bandido, né? Meu pai não está preso não, né? Hein, mãe? ... Por que ele tá preso,
heim, mãe? Mãe...‖, o garoto se fecha em seu espaço de silenciamento também, ―Na
escola todo mundo já sabe. Mas eu não ligo, porque nunca liguei pra ninguém de lá
mesmo, e todo mundo de lá é chato, e eu não queria ter amigo mesmo, e eu nem
quero mais ir pra escola.‖, instaurando o que poderíamos chamar de política do
silêncio, que, segundo Orlandi, significa que, para dizer, é preciso não dizer, ou seja,
para dizer que ele não está confortável com essa situação, que ele está triste, que
está se sentindo sozinho, envergonhado, ele não fala com ninguém, se isola, fecha-se,
hostilizando os colegas, como sinal claro de defesa social.

Tornando-se arredio, avesso à comunicação, à expressão verbal, o garoto


―fala‖ através do seu silêncio ―Eu nem vou mais contar que o meu pai é mais alto que a
professora, que ele me conta histórias... Ele sabe de tudo, de todas as coisas que
existem no mundo, ele sabe umas mil coisas... Não, acho que ele sabe mais de dez

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mil coisas, ele sabe infinito!‖ Ao decidir afastar-se ou calar, o garoto não está
trabalhando com o implícito, o silêncio corroborador das palavras, do discurso em
circulação. Para ele, apesar de todo o mundo na escola saber que o pai está preso e
de que, segundo esse discurso, a cadeia é o lugar de bandidos, ao silenciar o garoto
consolida um discurso diverso, o seu discurso interior de enfrentamento e instauração
de outra ―verdade‖, ou outro ―sentido‖ à situação apresentada.

Pai Francisco e a contradição constitutiva

De fato, o garoto vai trabalhando sua contradição constitutiva, isto é, a relação


do discurso único, produzido e posto em circulação social, (cadeia=bandido) e seu
discurso interior (meu pai não é bandido), a sua verdade, aquilo que o garoto
reconhece como verdadeiro discurso. Trata-se da reduplicação e do deslocamento do
discurso único, que nos deixam ver que todo discurso sempre se remete a outro
discurso que lhe dá realidade significativa. ―Quando ele me busca na escola, é o
melhor dia. Mas ele quase não vai, não dá tempo... Antes, eu achava que ele era
médico, porque ele nunca está em casa à noite, igual ao médico que me costurou
outro dia quando eu caí...‖ O fato de o pai não aparecer na escola para buscá-lo,
fatalmente, se deve ao fato de estar preso, mas o garoto constrói outro discurso para
justificar essa ausência.

Pai Francisco e o silêncio local

Além do silêncio implícito, a que o garoto não comunga, e a política do silêncio,


em que se movimenta discursivamente, há também, agindo sobre ele, o silêncio local,
a presença incisiva do que não se pode ou não se deve dizer ―...outro dia quando eu
caí e eu quase nem chorei, eu não sou nenezinho. Só chorei mais que um pouquinho-
quase um poucão. Então eu aproveitei e chorei agora também, e falei pra minha mãe
que não era por causa do meu pai, mas ela não acreditou...‖. Imperando sobre a
família e a sociedade está a incisiva marca de evitar falar sobre situações
constrangedoras, como a prisão de um parente, ou ainda expressar a tristeza que ela
causa. A consciência do indesejável da situação e de ―falar‖ sobre ela se manifestam
no silêncio do garoto ―E agora chega de falar de chatice!‖, bem como em todo
sofrimento que ele se vê obrigado a ocultar, forjando uma maturidade prematura
―aproveitei e chorei agora também, e falei pra minha mãe que não era por causa do
meu pai‖.
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E é também no seu silêncio que se vão amadurecendo as contradições das


exigências a que ele está sujeito, mas que nunca são ditas claramente, como o
sentido de ―ter que ser forte‖: ―O meu pai falou que, enquanto ele não estivesse, eu
teria que ser forte, mas a minha mãe não deixou, tive que carregar aquela sacolinha
de criancinha‖ e não poder chorar, enquanto os adultos o fazem sem pudor ―Meu pai
tá virando um nenê chorão, toda vez que me vê, ele chora. Só eu que não posso
chorar?‖.

O mais importante nunca se diz

O que nos remete à riqueza e à complexidade do silêncio, que advêm da


própria natureza da linguagem, seu caráter de incompletude, de forma que ―aquilo que
é mais importante nunca se diz‖. Como a recusa do garoto em comer salada ―Meu pai
tem que vir logo, porque todo mundo fica me falando pra comer salada pra crescer.
Mas eu não posso crescer agora, preciso esperar meu pai.‖ Ou seja, o mais
importante, para a criança, não é o fato de o pai estar preso e isto ser condenável
socialmente, o que realmente importa para o filho é o fato de que a ausência do pai
implica uma perda irreparável de vivências, um tempo que ele gostaria de estagnar,
―eu não posso crescer agora, preciso esperar meu pai‖, e que ele manifesta pela
resistência silênciosa em comer salada para não crescer.

Menina amarrota e o ―buraco‖ da falta

Outra criança a que o silêncio da ausência impôs o silencio da palavra se


presentifica em menina amarrotada, de Aline Abreu. A falta do pai foi, aos poucos,
escurecendo tudo que antes ―era bom‖ do ―lado de lá‖, onde ela vivia, macarrão com
tomate, leite com chocolate, biscoito de maisena, balanço pendurado em árvore. E ela
teve medo de que ele nunca mais voltasse. ―A menina teve vontade de mais um
abraço e correu, mas o pai já tinha sumido.‖ Então ela ―amarrotou‖, fechou-se,
amedrontada, atormentada pela ameaça infinita da saudade e da ausência. Triste,
incapaz de expressar ou entender o que sentia ―Andava por lá toda cinza. Sentia uma
coisa, não sei o quê. A menina também não sabia. Tristeza não era. Nem braveza.
Não era raiva nem nada. Era uma falta. Um buraco sei lá onde, bem dentro‖, a menina
se calou.
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Entretanto, do ―buraco‖ que se instalou desta falta, ela vislumbrou uma ―cisma‖,
uma esperança, um caminho de encontrar o pai e mandar embora o medo e a tristeza,
esse buraco podia ser um túnel, uma passagem para dentro de si mesma, para o lado
de cá ―Do buraco nasceu a cisma de ver. O que tinha do outro lado? Será que
encontrava o pai e mandava embora o vento?‖. ―Mesmo com tanto Nunca na cabeça
ela seguia curiosa até a beirada do fim do lado de lá. Se esticava toda. Pensava em
sanfona que enche de ar e... ia e vinha, ia e vinha, ia e...‖

Mas logo a insegurança de se aventurar voltava incisiva ―Mas logo vinha um


Nunca soprado pela nuvem pesada. –Nunca... nunca...- a menina escutava o vento
soprar. E amarrotava ainda mais.‖, feito uma ―roupinha dentro de mala cheia‖.

Menina amarrotada: do silêncio às vozes interiores

A menina se ―amarrotava‖, calada. No entanto, de repente, esse silêncio,


implícito da tristeza da saudade, passou a ser política de silêncio, ela silenciava para
ouvir novos chamados subjetivos, ―Um outro dia, a nuvem carregada de Nunca veio
vindo e a menina teve a ideia. Engoliu o vento antes de ele virar pensamento.‖ E o
discurso recorrente foi ―engolido‖ por uma outra ―voz‖. ―A menina amarrotada voou
feito balão contando com a sorte de vir pro lado de cá. Voar era gostoso demais, e a
menina se distraiu.‖ Esse espaço de silêncio, social, era espaço de expansão interior,
de vivências, de lembranças, de projeções, de sonhos, de se permitir esperanças
livres de medos.

A agulhada do silêncio local

Mas o silêncio local, a presença incisiva do que não se pode ou não se deve
dizer e, portanto, pensar, sentir ou revelar, nutrir ou alimentar, irrompe, quando ela se
―distrai‖ ―Nem viu a agulhada que a mandou zunindo ao espaço e de volta ao chão
num instante, amarrotada como nunca antes. Já era noite, e lá ela chorou e chorou.
Foi tanto choro que só fez ficar ainda mais amarrotada. E cinza.‖ A ―agulhada‖ é este
imperativo único em confronto com os sentidos vários possíveis em cada pessoa, em
cada criança. Como em ―Pai Francisco‖, a menina vai trabalhando sua contradição
constitutiva, isto é, a relação do discurso único, produzido e posto em circulação
social, decerto de que o pai não voltaria nunca, e seu discurso interior, a sua
esperança resistente de que ele voltaria. Trata-se da reduplicação e do deslocamento
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do discurso único, que nos deixam ver que todo discurso sempre se remete a outro
discurso que lhe dá realidade significativa.

O importante nunca se diz (com palavras)

Por outro lado, o fato de as formações discursivas serem diferentes regiões


que recortam o interdiscurso (o dizível, a memória do dizer) e refletem as diferenças
ideológicas, o modo como as posições dos sujeitos, seus lugares sociais aí
representados, constituem sentidos diferentes, o dizível (o interdiscurso) se parte em
diferentes regiões (as diferentes formações discursivas) desigualmente acessíveis aos
diferentes locutores e, assim, ―uma mesma coisa pode ter diferentes sentidos para os
sujeitos‖. Foi quando ela esperava uma corroboração do já dito, mas o que encontrou
foi um novo sentido acrescido ao discurso corrente ―Esperava a chegada de nuvens.
Dessa vez iria é chover uma tempestade de Nuncas sobre ela. Mas não. Veio um
sopro que não era de Nunca. Nem cinza. A menina não sabia se era colorido o sopro
que chegava. Mas era bom.‖

A presença da mãe trazia-lhe a segurança, o aconchego e a coragem para se


aventurar bem ―do lado de cá‖, bem ―dentro‖ ―Ouviu uma voz chamando. Abriu um olho
e viu que a voz era amiga. Sentiu um calor que não era de sol. Era quentinho de pão
fresco com manteiga. Bem dentro. Olhou em volta, se esticou todinha. Sem medo de
voltar a amarrotar.‖ A mãe ―leu‖ o silêncio da menina, ainda que, aparentemente, a
menina não tenha ―dito‖ nada. Afinal, trata-se da incompletude da linguagem e do fato
de que o realmente importante nunca se diz. Com palavras.

A resistência pelo silêncio

Ambas as crianças, silenciosas diante do momentaneamente inexplicável


desaparecimento dos pais, ou da ausência deles, e também sujeitas ao julgamento
que delas possam fazer, confusas, amedrontadas, inseguras de oralizar o desconforto
e a tristeza do que sentem, ―dizem‖ muito através do processo de um ―não-dizer‖.
Dizem desta falta, desta ―braveza‖ com o mundo, que é também a sua luta interior,
deste ―buraco‖, deste ―vento‖, que bagunça tudo que antes era ―balanço, macarronada,
leite quentinho e bolacha de maisena, futebol e correria‖.

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As crianças generosamente nos conduzem a sua linguagem interior, muda de


expressão oral, mas plena de sentidos velados, mal cobertos pela hostilidade na
escola, pela braveza, pelo fechamento, pela recusa em crescer, mas também em se
infantilizar. E fertilizam de sentidos não-implícitos todo um silêncio que não é sujeição,
entrega, derrota. Mas é o espaço fundante para a resistência, a porta que se quer
manter aberta ―do lado de cá‖.

Se visivelmente o garoto, filho de ―Pai Francisco‖, se isola e se cala porque


naturalmente compreende a separação do pai e aceita, envergonhado e triste, a
verdade de que o pai está preso porque é um bandido, genuinamente não é isto que
diz o seu silêncio, o seu silêncio é uma postura de enfrentamento, de discordância e
de lealdade ao pai, de manutenção, de enraizamento da imagem luminosa, especial e
secreta (porque ele não vai compartilhar com ninguém isso) do pai ―Eu nem vou mais
contar lá na escola que o meu pai é mais alto que a professora, que ele me conta
histórias... Ele sabe de tudo, de todas as coisas que existem no mundo, ele sabe de
umas mil coisas...Não, acho que ele sabe mais de dez mil coisas, ele sabe infinito!‖

Por outro lado, a menina amarrotada, que também encontra na ausência do pai
o apagamento de tudo que aquece o coração ―do lado de lá‖ (no lugar onde morava),
passa a cismar de querer ver o que está acontecendo e o que pode esconder ―o lado
de cá‖ (esta casa interior, que parece estar com um ―buraco‖). Em contraposição ao
seu ―acinzentamento‖ e ―amarrotamento‖, ao seu silêncio, trabalha tímida, mas
corajosamento o processo de auto-conhecimento, amadurecimento e busca pela
superação.

O silêncio (das crianças) que diz muito

Nada há entre o filho de ―Francisco‖ e a menina amarrotada que corrobore no


silêncio um discurso em circulação, nada há de implícito em seus silêncios, há, sim,
uma política de silêncio, que comunica sem dizer, o que de, fato, é realmente
importante, mas, muitas vezes, se depara com a imposição do que não deve ou não
pode ser dito.

São destas lacunas de língua inteligível superficialmente, que se afirmam


silêncios fundadores de novos sentidos. Não uma resposta silenciosa que se conforme

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à lógica do que se diz, como o sentido implícito, mas uma reação invisível,
absolutamente frontal à significação palpável do sentido.

O garoto constrói, em seu silêncio, novos sentidos para a ausência do pai,


novos contornos para sua imagem, um espaço outro, intocado, imaculado, para sua
vivência com ele. ―Um pai real, um pai imaginário/ um pai do mal, um pai do bem/
Todos habitam o mesmo pai/ Uma criança pode imaginar ou/ fazer do homem
reprovado pela sociedade/ o melhor pai do mundo/ Isso faz de uma criança/ um filho‖,
diz a contracapa do livro. O que o filho de ―Pai Francisco‖ faz é operar o seu silêncio,
mediando as relações entre linguagem, mundo e pensamento: ―quanto mais falta, mais
silêncio se instala, mais possibilidades de sentidos se apresentam‖. (ORLANDI, 2007,
p. 47)

Em sentido semelhante, mas com implicações diferentes, movimenta-se a


menina amarrotada. Buscando resgatar também um espaço de ―luz, cor, alegria,
aconchego‖, ela não preserva simplesmente a imagem do pai ou as suas vivências
com ele, mas percorre o desconhecido, muitas vezes amedrontador, mas necessário
caminho da descoberta do ―lado de cá‖, o lado de dentro, da interioridade, da
subjetividade, da fonte ou morada do ―buraco, do vazio‖, que se instalou com a
ausência do pai. Ainda que insegura, a menina ―cisma‖ de ―escutar o seu silêncio‖,
voltando-se, curiosa, para o que existe dentro dessa falta, nesse silêncio que se
construiu dentro dela mesma e daí em relação ao mundo.

Considerações Finais

Apesar de o imaginário social ter delegado um lugar subalterno ao silêncio, sob


a presença imperiosa da palavra, a partir do que se pode chamar de ―ideologia da
comunicação‖, o silêncio resiste, significando de várias maneiras.

Sua riqueza e complexidade advêm da própria incompletude da linguagem,


onde ―o que é realmente importante nunca se diz‖, ou nunca se diz pela linguagem.
Neste sentido, o silêncio é fundante, pois as palavras produzem silêncio, mas também
o silêncio fala através delas, quando elas silenciam.

É do que se apropriam os personagens das obras analisadas, do poder de


significação do silêncio. Contra o implícito, resistindo por meio da política do silêncio,

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conscientes da imposição do silêncio local, as crianças ―amarrotadas‖ e ―presas‖


dizem do que sentem e como trabalham sua contradição constitutiva.

Transformar algo ruim em algo bom poderia bem ser uma saída ―...e a menina
teve a ideia. Engoliu o vento antes de ele virar pensamento‖, ―apagando‖ a ―voz‖ da
tristeza, no silêncio livre de se permitir sonhar, sondar, ―voar feito balão‖ e ―voar era
gostoso demais‖, a ponto de a menina se ―distrair‖ da tristeza. E então ela voou para
dentro dela mesma, nas memórias e esperanças da volta do pai, conforme se pode
notar na última imagem do livro, em que a menina, tranquila, ―observa‖ a lembrança ou
o desejo de se ver balançando com o pai. ―Olhou em volta, se esticou todinha. Sem
medo de voltar a amarrotar.‖

A política do silêncio, portanto, é a desejável, libertadora, e lúcida manifestação


de dizer algo, apagando necessariamente outros sentidos indesejáveis numa situação
dada, a instalação do que Orlandi (2007) chama de anti-implícito, ―o conjunto do que é
preciso não dizer para poder dizer‖ (p. 74). O silêncio que diz muito.

Referências

ABREU, Aline. menina amarrotada. São Paulo: Jujuba, 2013.


ARAÚJO, Marina Miyazaki. Pai Francisco. São Paulo: Pólen, 2015.
ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio. No movimento dos sentidos.
Campinas: Ed. Unicamp, 2007.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

QUESTÕES POLÊMICAS NAS ADAPTAÇÕES INFANTIS:

EL LAZARILLO DE TORMES

Maira Angélica Pandolfi, Faculdade de Ciências e Letras da UNESP/Assis,


Literatura infantil e juvenil e temas polêmicos (eixo 7)

Considerações Iniciais

Adaptar é uma forma de tradução, portanto, um novo texto, um


palimpsesto. Segundo Mário Feijó (2010), os direitos autorais de uma obra podem
garantir uma relativa estabilidade quanto à forma e conteúdo de uma história.
Contudo, se uma obra é de domínio público ou não esteve protegida por alguma
legislação – no caso de nosso objeto de análise, Lazarillo de Tormes, trata-se de obra
anônima, de 1554 – nada impede que essa mesma narrativa sofra muitas
transformações ao longo do tempo e que uma literatura antes voltada para adultos,
como é o caso, venha a ser uma narrativa infantojuvenil. Não podemos esquecer,
ainda, dos mediadores institucionais que, de acordo com Gemma Lluch (2003),
elaboram leis que prescrevem características que deve ter um livro para crianças. Na
Espanha, os mediadores institucionais estiveram mais presentes nessa tarefa
normativa durante as décadas de 40 até a década de 70; período correspondente à
ditadura de Franco. Somente com a aprovação da Constituição Espanhola, em 1978,
os textos destinados às crianças não se submeteram mais à acirrada censura
dominante até então. Mesmo assim, devemos estar cientes de que as instituições
educacionais, as editoras e grupos econômicos continuam direcionando a transmissão
de determinadas ideologias nos livros infantis. Atualmente, o que se propõe como
ideologia de um livro infantil diz respeito a ser pacífico, respeitar a diversidade, ser
politicamente correto, contra o abuso de álcool, etc. A história de Lazarillo, para
aqueles que a conhecem bem, não se encaixa muito bem nesse ideário. Sobre os
temas trabalhados na obra, destacam-se como principais a hipocrisia, a honra, a
religião, a fome, a corrupção e a violência. Uma das, senão ―a‖ parte mais polêmica da
obra, encontra-se no Prólogo, onde sutilmente se confirma o caráter criminoso ou
1325

supostamente infrator do pícaro em relação às leis, à moral e à religião. Tudo isso se


considerarmos, de acordo com Gemma Lluch (2003), que a ideologia depende do
momento histórico de sua criação.
O trabalho de Sally Witdouch (2014), ―Las adaptaciones infantiles de Lazarillo
de Tormes‖, tece considerações críticas acerca de várias adaptações (a de Concha
López Narváez, de 2006, a de Núria Ochoa, de 2007 e a de Rosa Navarro Durán, de
2008). No entanto, não menciona em seu trabalho a adaptação de Teresa Rodríguez,
de 2008; fato que justifica a importância desse estudo.
A adaptação de Lazarillo de Tormes (2008), feita por Teresa Rodríguez, para
o público infantil de língua espanhola foi objeto de investigação para a análise que
aqui se apresenta. Por essa razão, foram utilizadas obras e ensaios de Maria Victoria
Sotomayor Sáez (2005) e Gemma Lluch (2003); além da investigação de Sally
Witdouch (2014) sobre as adaptações de Lazarillo na Espanha. Contamos, também,
com as considerações sobre definição e funções das adaptações a partir de Linda
Hutcheon (2013) e Mário Feijó (2010). Em conclusão, foi possível ponderar sobre
aspectos importantes como a condensação do conteúdo e o expurgo da ideologia
original.

Definição e função das adaptações:

Para Linda Hutcheon (2013, p.29) ―a adaptação é uma transposição


anunciada e extensiva de uma ou mais obras em particular‖. O que a estudiosa chama
de transposição pode envolver não apenas mudança de mídia como, por exemplo, de
um poema para um filme, como também mudança de foco e de contexto, criando uma
interpretação distinta. No tocante ao seu processo de recepção, Feijó (2010, p.42)
considera que as adaptações de clássicos da literatura para o público escolar ―são
textos novos construídos sobre enredos antigos; são apropriações. Embora
concebidas, divulgadas e comercializadas como produtos editoriais, dependem do
amplo apelo que a tradição literária exerce sobre pais, alunos e professores‖. São,
portanto, produtos do cânone e, assim, constituem uma estratégia de apresentar a
leitores de diferentes épocas e idades um discurso literário legitimado pela instituição
escolar, preservando, assim, sua memória. É a perpetuação da tradição por meio da
renovação, visto que esse trabalho pressupõe sempre uma seleção e síntese do
conteúdo e também adequação da linguagem.
A literatura adaptada ao infantojuvenil não está isenta de temas polêmicos,
pois, ao contrário, os textos canônicos comportam, de forma geral, todo tipo de
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enredo. A grande dificuldade do adaptador, nesse sentido, reside no enfrentamento ou


na resignação ao viés quase sempre conservador imposto pela instituição escolar. A
propósito desse tema, Feijó (2010, p.127) afirma:

Cortar pode ser a maneira mais inteligente de adaptar um clássico


para adequá-lo à moral vigente. Cortar o que não deve continuar,
porque não pode ser justificado ou atualizado, é um jeito de
selecionar o que deve permanecer. Na lógica de uma adaptação
escolar, a mutação é uma necessidade para que a obra possa
permanecer e ser adotada em sala de aula. Porque herói é herói, seu
comportamento tem de ser digno. E a escola é um espaço de
legitimação.

No que se refere ao objeto dessa análise, o clássico espanhol Lazarillo de


Tormes, convém ressaltar um fato comumente observado pelos acadêmicos que
investigam essa obra: cortes significativos no caráter ―picaresco‖ do protagonista que
resultam em uma inversão do sentido original. Ao pensar na função das adaptações
de clássicos no meio escolar com objetivo de divulgação, Maria Victoria Sotomayor
Sáez (2005), apoiando-se nas reflexões de Marc Soriano, defende como fundamental
o respeito a certas condições como: a não alteração do sentido profundo da obra
original, visto que a intenção desse tipo de adaptação é justamente a de divulgar o
clássico na mais tenra idade; prezar por uma elaboração literária que permita adquirir
maior competência leitora, evitando simplificações exageradas somente porque seu
destinatário é uma criança; nunca pretender ser a obra original, mas deixar claro sua
condição de obra adaptada. Desse modo, o adaptador deve conhecer muito bem a
obra original, a fim de evitar alterar seu sentido. Infelizmente, é mais do que frequente
ocorrer nessas produções modificações profundas na linguagem, acréscimo ou
transformações de personagens e episódios, resultando em uma obra muito distinta
daquela que deveria exprimir os valores essenciais do conteúdo que se pretendia
transmitir, divulgar ou familiarizar o pequeno leitor para que, no futuro, alcançasse a
competência leitora suficiente para se chegar ao original, perdendo-se, assim, sua
função de obra mediadora. Essas alterações que conferem supressões mais drásticas
costumam ocorrer, sobretudo, por uma questão comercial ou moral. Deve-se, em
conclusão, pensar em formas de adaptação que, ao mesmo tempo, facilitem a leitura
sem perder de vista o original. Uma das sugestões para o êxito dessas adaptações
seria, segundo Sotomayor Sáez (2005, p.236), optar por inserir na adaptação
itinerários de leitura que possam abrir para a possibilidade de ler fragmentos
essenciais selecionados ou até mesmo a leitura da obra completa.

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O método de análise de narrativas destinadas ao público infantil e juvenil,


proposto por Gemma Lluch (2003):

O método proposto por Gemma Lluch pontua que toda obra destinada ao
infantil possui um duplo receptor. O primeiro receptor do livro infantil é o pai ou
professor, que não são os leitores diretos desses livros, mas os intermediários
encarregados da compra ou da indicação do livro aos pequenos leitores. O segundo
receptor é a criança ou adolescente. Outro aspecto fundamental a ser levado em conta
na análise das adaptações é o seu componente ideológico que, segundo a autora,
corresponde a um conjunto de conceitos, crenças e ideais que sustentam uma
maneira de ver o mundo. A ideologia pode ser observada em um conjunto de aspectos
como: a paródia de determinadas atitudes; a perspectiva que adota o narrador; a
figura do protagonista e suas condutas; a valorização de determinadas opiniões dentro
do relato; as partes do mundo que são exibidas e as que são ocultadas; o tipo de
leitura proposta e as relações intertextuais que são valorizadas.
Na atualidade, o que se propõe como ideologia ―politicamente correta‖ em um
livro infantil é um conjunto de pensamentos e ações voltados para o respeito à
diversidade. No entanto, a ideologia de uma obra tão distante no tempo como é o
Lazarillo de Tormes (1554) parece não coincidir com a valorização moral dos dias
atuais, resultando em uma problemática para o adaptador que, na maioria das vezes,
opta pela mutilação desse componente essencial do protagonista: a picardia
relacionada à construção de sua ―honra‖ por meio da ―desonra‖. A narrativa
autobiográfica do pícaro Lazarillo de Tormes nada mais é do que uma carta destinada
a uma autoridade do alto clero, a quem o pícaro denomina ―Vuestra Merced‖. Essa
autoridade teria solicitado ao pícaro que se esclarecesse, por escrito, o ―caso‖. O
―caso‖ se refere a um suposto triângulo amoroso que envolve um eclesiástico, sua
amante e o pícaro – este último utilizado de forma consensual para encobrir o crime
cometido pelo eclesiástico ao infringir o celibato. O prólogo da obra coloca em jogo,
portanto, a honra do pícaro e do eclesiástico que o mantém casado com sua amante
para lhe servir de ―cortina de fumaça‖. Algumas adaptações eliminam totalmente o
Prólogo e as que não o eliminam tendem a mutilá-lo ou a reescrevê-lo com outro
enfoque completamente distinto do sentido original.

Considerações Finais

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No que se refere à adaptação em questão, observou-se que embora conste o


―Prólogo‖, é suprimida a referência ao ―caso‖, enfocando-se apenas o relato
autobiográfico do pícaro como sendo esta a solicitação de ―Vuestra Merced‖ e não
especificamente o motivo principal que é o da desonra, tal como se infere na obra
original. Essa supressão inverte completamente o sentido do texto de partida, uma vez
que oculta a picardia, principal característica do protagonista, a que constitui a sua
essência ou o único mecanismo possível que ele encontra para integrar-se à
sociedade de castas do século XVI espanhol. Ao contrário disso, a adaptação inverte o
sentido picaresco para enfatizar como verdadeira a história aparente do pícaro,
eliminando por completo o caráter ambíguo de seu discurso. Assim, em vez da
duplicidade opta-se por uma simplificação que mutila o sentido ambíguo do discurso
picaresco, preservando apenas o que é ―politicamente correto‖, ou seja, a história
heróica de como uma criança pobre que enfrenta a violência e a fome em uma
sociedade corrupta e de aparências. No relato original, o discurso vitimizador proferido
pelo pícaro entra em choque com sua conduta ao longo e ao final da obra,
denunciando a incoerência entre o que ele diz e o que ele faz. Na obra adaptada essa
ambigüidade desaparece, restando apenas o ponto de vista do pícaro, ou seja, o leitor
não consegue ver além do espelho do pícaro que, na verdade, torna-se cada vez mais
cego para si e para o leitor, enquanto deveria ocorrer o fenômeno inverso. Em
conclusão, prevalece na adaptação infantil a versão que corresponde à ―cegueira‖ do
pícaro; daquele que não se reconhece como um integrante também corrupto na
sociedade corrupta que ele denuncia. O pícaro adaptado é aquele que não enxerga a
si próprio e nem permite que seu leitor o conheça em sua essência, reduzindo-o a uma
mera e equivocada aparência que em vez de servir de mediação ao relato primeiro
acaba realizando percurso contrário.

Referências

FEIJÒ, M. O prazer da leitura – como a adaptação dos clássicos ajuda a formar


leitores. São Paulo: Ática, 2010.

HUTCHEON, L. Uma teoria da adaptação. Tradução de André Cechinel. 2 ed.


Florianópolis: Ed. Da UFSC, 2013.

Lazarillo de Tormes (anônimo). Tradução de Heloisa Costa Milton e Antonio Roberto


Esteves. São Paulo: Ed.34, 2005.

LLUCH, G. Análisis de narrativas infantiles y juveniles. Cuena: Ediciones de la


Universidad de Castilla La Mancha, 2003.

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RODRÍGUEZ, T. El Lazarillo de Tormes (texto adaptado). Guipúzcoa: Ediciones


Saldaña, 2008.

SOTOMAYOR SÁEZ, M. V. Literatura, Sociedad, Educación: las adaptaciones


literarias. Revista de Educación, num. Extraordinário 2005, pp217-238. Universidad
Autónoma de Madrid.

WITDOUCK, S. Las adaptaciones infantiles de Lazarillo de Tormes (Monografia).


Bélgica: Faculteit Letteren en Wijsbegeerte, 2014. Disponível em:
https://lib.ugent.be/fulltxt/RUG01/002/162/634/RUG01-002162634_2014_0001_AC.pdf.
Acesso em: 15/04/2017.

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DISCUSSÃO DE TEMAS POLÊMICOS EM SALA DE AULA A


PARTIR DA OBRA SAPATO DE SALTO DE SALTO DE LYGIA
BOJUNGA

Delma Pacheco Sicsú, Universidade do Estado do Amazonas-UEA, Eixo


Temático 7: Literatura infantil e juvenil e temas polêmicos
Considerações Iniciais
A literatura infanto-juvenil diferente do que pensam muitos críticos ou
estudiosos da literatura feita para o público adulto, é um campo fértil que abre espaço
para pesquisa em diferentes abordagens. E assim como há obras literárias para o
público adulto que recebem críticas negativas, o mesmo ocorre com a literatura
infanto-juvenil.
O presente trabalho, contudo, trata de uma pesquisa em torno de uma obra
polêmica, de autoria de uma das maiores escritoras de literatura infanto-juvenil no
Brasil que desponta no cenário nacional e internacional como produtoras de obras
significativas as quais contemplam todos os elementos da literariedade, as funções da
literatura e a condição humana presentes nas histórias contadas em seus livros.
Assim, a pesquisa em questão tomou como objeto de estudo a obra Sapato de Salto
da escritora Lygia Bojunga para a partir do contato, do conhecimento e das atividades
e leitura, discutir temas polêmicos com alunos do Ensino Fundamental II. Tem-se,
portanto como sujeitos da pesquisa, alunos do 9º ano do Ensino Fundamental II de
uma escola pública estadual de Parintins.
Discutir, em sala de aula, questões como homossexualidade, prostituição
infantil, entre tantos outros temas polêmicos, não é tarefa fácil. O professor como
mediador de conhecimento e formador de opinião, precisa lançar mão de estratégia
que possam ajudá-lo a promover o debate e a reflexão sobre questões nem sempre
discutidas em sala de aula. A literatura, nesse caso, pode contribuir significativamente
na provocação de discussões de temas polêmicos inerentes à nossa condição
humana. A obra Sapato de salto de Lygia Bojunga é um exemplo de como a literatura,
nas entrelinhas do texto, traz à tona questões como a violência, o homossexualismo, a
prostituição infantil e outras problemáticas da nossa condição humana. O objetivo do
presente trabalho é mostrar como a literatura pode servir como instrumento de crítica e
1331

reflexão em sala de aula. A obra de Lygia Bojunga ora referenciada foi apresentada
aos alunos durante uma oficina de leitura desenvolvida de acordo com a proposta de
Isabel Solé a saber: o antes, o durante e o depois da leitura.
A pesquisa em questão parte do pressuposto de que a literatura infanto-
juvenil não pode ser entendida como instrumento dogmatizador, pedagógico, mas
como arte que a partir da ficcionalidade pode permitir que o leitor a tome não apenas
como leitura de deleite, mas também como leitura crítica e reflexiva acerca da sua
condição humana.
Em se tratando de jovens leitores, acredita-se que o professor de Língua
Portuguesa como leitor e formador de leitores, deve mediar a leitura literária num
trabalho dialógico que permita o olhar e o pensar do aluno acerca da história contada.
Por isso faz-se necessário, utilizar de procedimentos metodológicos que possibilitem a
abordagem do texto literário numa via de mão dupla, numa troca de saberes entre
seus interlocutores. Entende-se que é preciso pensar a literatura infanto-juvenil como
uma literatura que está no mesmo pé de igualdade que outras literaturas. Para isso é
necessário superar barreiras e preconceitos que ainda pairam sobre esta literatura tão
importante como a literatura voltada para o público adulto. Nesse sentido, é
fundamental investir na formação leitora do professor, a fim de que este saiba abordar
a literatura infanto-juvenil numa perspectiva crítica e reflexiva junto aos alunos.

A literatura infanto-juvenil: entre a teoria e a prática


O trabalho com a literatura infanto-juvenil vai além da indicação de obras
literárias, da leitura como deleite. É necessário superarmos a ideia de que esta
literatura está apenas para divertir ou mesmo para ―passar o tempo‖ em sala de aula.
Antes de iniciar qualquer trabalho com a literatura infanto-juvenil, em especial no
Ensino Fundamental II, acredita-se que o professor mediador e formador de leitura
literária deve sim dar uma base teórica entre o que é texto literário e não literário;
quais as funções da literatura; a natureza da literatura e os aspectos da literariedade.
Faz-se essa colocação, pois o que se percebe que os conceitos acima
mencionados acerca do texto literário, em geral, só passa a ser focalizado no Ensino
Médio, ocasionando muitas uma reação negativa quanto à literatura.
Em se tratando de literatura infanto-juvenil, o problema muitas vezes esbarre
tanto por esta concepção que o professor têm acerca dela e pela falta de
conhecimento de estudos teóricos desta literatura, oriundo também da forma como a
literatura voltada para o público infanto-juvenil é tratada na academia e em outros
espaços,
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Peter Hunt (2010) em seu livro Crítica, teoria e literatura infantil diz que o
problema não está apenas na formação do professor ou na escolarização da leitura,
mas encontra-se principalmente na falta de um crítica coerente sobre esta literatura
que segundo ele faz parte de todo capital cultural da humanidade da mesma forma
que a literatura destinada ao adulto. Ao falar sobre a literatura infantil Peter Hunt
enfatiza:
... a crítica tem boa dose tem uma dose de responsabilidade por
restringir o prazer oriundo dos textos. À medida que se desenvolveu
na primeira metade do século XX, ela estabeleceu duas questões : a
―crítica prática‖ e a ideia de ―cânone‖. Ambas em grande parte
incompreensivas para a maioria das pessoas. [...] A ‖crítica prática‖
trata o texto sem contexto (todos os textos sempre têm contextos); e
a ideia de ―cânone‖ caba criando uma hierarquia literária. (2010, p.
20)

Ao se hierarquizar os textos literários e não abordá-los dentro de um contexto


histórico social que considera seu o momento de produção e de recepção, corre-se o
risco de desqualificar e diminuir a infanto-juvenil, como obra que não se enquadra
dentro do que o cânone considera como literatura, disseminando preconceitos sobre
ela e muitas vezes utilizando-a como pretexto para doutrinar os receptores desta.
Em seu livro A literatura infantil na escola, Regina Zilberman (2002), a partir de
um percurso histórico em torno da produção de livros para crianças, nos mostra como
a literatura infantil desde as primeiras produções sempre esteve atrelada a uma função
educativa, para ensinar normas e valores. De acordo com

E, até hoje a literatura infantil permanece como colônia da pedagogia,


o que lhe causa grandes prejuízos: não é aceita como arte, por ter um
finalidade pragmática; e a presença do objetivo didático faz com ela
participe de uma atividade comprometida com a dominação da
criança. (ZILBERMAN. 2002, p. 16)

Repensar, portanto o uso da literatura infanto-juvenil na escola exige também


repensar também o lugar da literatura na escola, que vai além da formação do
professor, pois demanda também o reconhecimento desta como leitura fundamental
na formação estética, crítica e reflexiva do aluno, incluído no currículo escolar não
como complemento ou pretexto para trabalhar conteúdos gramaticais, mas também
como leitura que permitirá ao aluno do Ensino Fundamental a experiência literária
numa relação triádica entre autor-texto-leitor.
Sobre o lugar da literatura na escola, assim comenta uma das grandes
estudiosas em torno da leitura de literatura na escola:

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Partimos do princípio de que a literatura, de modo como a pensamos


(próxima, efetivamente lida e discutida, visceral, aberta, sujeita à
crítica, a invenção, ao diálogo, ao pastiche, á leitura irônica, e
humorada, à paródia, à contextualização individual e histórica, com
manejo dos recursos- verbais, visuais, materiais e imateriais -,
inserida no mundo da vida e em conjunto com as práticas culturais e
comunitárias, sem medo dos julgamentos), nunca esteve no centro da
educação escolar (DALVI apud. DALVI. RESENDE & FALEIROS.
2013, P. 77)

E foi partindo desta perspectiva de abordagem do texto literário como um


campo aberto à ser lido, interpretado a partir de diferentes recepções que o presente
trabalho foi pensado, levando em consideração o público alvo e suas subjetividades,
possibilitando que os alunos contextualizassem com suas histórias de vida e expulsem
suas opiniões sobre questões presentes no mundo contemporâneo.
E em se tratando de escola o problema da ausência da literatura na sala de
aula também se dá pela falta de oferta desta. O que mostra que a crise de leitura não
pode ser associada exclusivamente ao não gostar de ler, mas aos fatores que direta
ou indiretamente contribuem para isso.

Pensar a questão da formação do leitor não significa, portanto


constatar tão somente uma crise de leitura; o tema envolve, antes de
mais nada, uma tomada de posição relativamente ao ato de ler, já
que associa a ele um elenco de contradições, originário, de um lado
da organização específica da sociedade brasileira, de outro, do
conjunto da sociedade burguesa e capitalista. (ZILBERMAN. 2012, p.
21)

A tomada de posição a que se refere Regina Zilberman, também diz respeito à


maneira que o professor aborda o texto literário na sala de aula e suas concepções
acerca da literatura. Por isso, lançar mão de estratégias de leituras, de propostas
metodológicas que possibilitem uma leitura significativa do texto literário pode
contribuir consideravelmente para que o aluno tome o gosto pela literatura sem sentir-
se na obrigatoriedade de ler ou de usar o texto literário fragmentado no livro didático
apenas para responder exercícios. A metodologia utilizada no trabalho com a literatura
infanto-juvenil com alunos sujeitos desta pesquisa, faz-se na perspectiva da estética
da recepção, por meio de estratégias de leitura, que os permitiram inferir, participar,
criar e expor seus pontos de vista sobre a obra Sapato de salto. Há de se ressaltar
que o trabalho com a literatura infanto-juvenil com os sujeitos da pesquisa sempre são
pensados numa perspectiva de via de mão dupla. Neste trabalho, tratamos apenas de
uma das tantas atividades desenvolvidas com a leitura da literatura infanto-juvenil por
meio a obra Sapato de Salto de Lygia Bojunga.

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Procedimentos metodológicos; resultados de discussões


Afim de promover uma leitura uma leitura mais prazerosa e participativa com a
obra Sapato de salto, lançamos mão dos estudos de Isabel Solé acerca da leitura e de
Rildo Cosson que trata sobre o letramento literário. A obra em questão traz no bojo do
texto questões presentes na vida de qualquer pessoa, fala da nossa condição humana
por meio de sujeitos ficcionais que são, na verdade, alegorias da humanidade.
A autora ao tratar de temas polêmicos como o abuso sexual na infância, a
prostituição infantil, o suicídio, a homofobia, a violência, a loucura, a condição da
mulher, o tráfico, abre uma janela para que de posse desta leitura o professor permita
o debate, a crítica e a reflexão de todos esses problemas presentes no mundo. Assim
para chegar ao objetivo da leitura da obra em questão utilizou-se os seguintes
procedimentos metodológicos:

Aulas expositivas sobre o que é literatura; texto literário e não literário; funções
da literatura: antes de trabalhar qualquer texto literário com os alunos sujeitos desta
pesquisa, primeiramente tratou-se acerca do texto literário por meio de aulas
expositivas. Nestas aulas, os alunos aprenderam sobre a natureza e o que é literatura,
a diferenciar um texto literário de um texto não e as funções da literatura.

Apresentação, leitura, contação e abordagem da obra Sapato de salto na sala


de aula: nesta etapa do trabalho lançou-se mão da de algumas partes da proposta de
Rildo Cosson trazidas no seu livro intitulado Letramento Literário (2003) a fim de que
os alunos pudessem ter uma experiência literária coma obra e percebessem que a
leitura da literatura pode nos permitir a conhecer outros mundos, outros contextos
linguísticos, pode fazer o que diz Rildo Cosson:

Na leitura e na escritura do texto literário encontramos o senso de nós


mesmos e da comunidade a que pertencemos. A literatura nos diz o
que somos e nos incentiva a desejar e a expressar o mundo por nós
mesmos. E isso se dá porque a literatura é uma experiência a ser
realizada. É mais que um conhecimento a ser reelaborado, ela é a
incorporação do outro em mim sem renúncia da minha própria
identidade. No exercício da literatura, podemos ser outros, viver como
os outros, podemos romper os limites do tempo e do espaço de
nossa experiência, e ainda assim ser nós mesmos. (2014. p. 17)

Optou-se de início pela sequência básica e assim no primeiro momento


trabalhou-se a motivação através de uma roda de conversa sobre assuntos que os
alunos gostam de falar ou tem curiosidades; depois fez-se a introdução do trabalho

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falando sobre Lygia Bojunga por meio de uma minibiografia e da leitura de nomes das
obras publicadas pela escritora.
No terceiro momento lançou-se mão de uma parte do livro Estratégias de
Leitura (1998) de Isabel Solé a fim de fazer com que os alunos participassem
ativamente e começassem a perceber que ―... a aquisição da leitura é imprescindível
para agir com autonomia nas sociedades letras, e ela provoca uma desvantagem
profunda na vida das pessoas que não conseguiram realizar essa atividade.‖ (SOLÉ.
1998, p. 32). Isabel Solé propõe três momentos para o trabalho com a leitura a saber:
o antes, o durante e o depois da leitura.
No momento antes da leitura, trabalhou-se os elementos para-textuais do livro,
principalmente a capa. Neste momento fez-se com os alunos uma breve análise
semiótica da capa do livro e depois fez-se algumas perguntas para que os alunos
pudessem inferir sobre a história a partir da capa do livro. O momento denominado
durante a leitura foi trabalhado da seguinte maneira: como os alunos sujeitos da
pesquisa, são oriundos de famílias carentes e nem todos teriam condições para
adquirir o livro, optou-se por ler e contar a história. Assim, durante duas semanas, lia-
se as duas primeiras páginas de cada capítulo e depois contava-se o restante. Optou-
se também pela contação, pois só a leitura poderia deixar a turma dispersa e
desmotivada. A metodologia utilizada no durante a leitura foi tão boa que percebeu-se
que alunos que faltavam frequentemente as aulas deixaram de faltar, pois não
queriam deixar de acompanhar toda a história.
O depois da leitura aconteceu em dois momentos. O primeiro momento
acontecia sempre que se fechava a leitura e a contação dos capítulos e se abria
espaço para que os alunos identificassem personagens, temas, principalmente os
polêmicos e depois colocassem suas impressões sobre as personagens e opiniões
sobre o tema polêmico identificado por meio de debates. O segundo momento foi a
aplicação de um questionário com perguntas abertas e voltadas especificamente para
a metodologia utilizada no trabalho com a obra e a recepção do livro como podemos
ver abaixo em algumas tabelas:

Tabela 1: Você gostou da história?

Alunos: Respostas:

9º2 Sim. Porque a obra fala do dia a dia da gente.

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9º 3 Sim. Porque fala sobre a realidade da vida, de coisas que


acontecem em várias famílias

9º 4 Um pouco porque eu acho que a Sabrina deveria viver a


vida dela porque ela era uma criança e não podia ficar se
prostituindo

Fonte: Sicsú, 2017.

Pelas respostas dos alunos, pode se perceber que houve uma recepção
positiva e isso se dá pelo fato de que há um reconhecimento do leitor na narrativa.
Outro ponto é grande parte desses alunos vem de bairros periféricos, são vítimas das
mazelas sociais e muitos passam pelos mesmos problemas enfrentados pelas
personagens. Porém, nessa tabela quando o aluno responde que a personagem
Sabrina deveria viver a vida dela e não se prostituir esses dado mostra que o aluno
não concorda com a prostituição infantil.

Tabela 2:Você gostou da forma como a obra foi apresentada e


trabalhada? Justifique.
Alunos: Respostas:

9º2 Mais ou menos, porque a história foi contada por partes e o


tempo era curto.

9º 3 Sim. Foi legal a forma que foi apresentada e contada


porque assim na nossa cabeça podemos imaginar o que
acontece na história.

9º 4 Sim porque a professora fez com que nós entendêssemos o


texto e refletíssemos como é o mundo.
Fonte: Sicsú, 2017

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As respostas desta tabela mostram que os alunos gostaram da forma como a


foi apresentada. Contudo, a resposta do aluno do 9º ano 1 aponta para um problema
recorrente na escola que é o tempo que muitas vezes impede que atividades como
essa tenham um melhor rendimento.

Tabela 3: Que tema (s) polêmico (s) tratado (s) no texto mais te chamou
atenção? Por que?

Alunos: Respostas:

9º 2 Suicídio, porque é algo que fala da vida, fala de um


problema psicológico, de uma doença que é muito difícil de
se lidar que se chama depressão.

9º 4 Prostituição infantil e abandono.

9º 3 Preconceito. Porque é um tema muito presente na obra e


que envolve personagens e também acontece na realidade

Fonte: Sicsú, 2017

Mais uma vez, os temas aqui elencados pelos alunos mostram que os mesmos
convivem direta ou indiretamente com eles. Até mesmo porque a escola em que esses
alunos estudam está localizada numa área em que no entorno dela há um bordel,
bares, sem falar também nos casos de venda de droga. O suicídio por sinal vez por
outra surge em suas falas, pois já houve um caso com um aluno da escola que se
matou e isso abalou muito a comunidade escolar.

Tabela 4: Com que personagem (ns) você mais se identificou? Por que?

Alunos: Respostas:

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9º 2 Sabrina, Inez, Andrea Dória e Dona Gracinha porque são as


que mais aparecem na história.

9º 3 Com a Sabrina, porque ela se prostituiu mas não foi porque


ela queria, mas porque ela precisava se sustentar e
sustentar a avó.

9º 4 Paloma e Sabrina. A Paloma porque ela ajudou muito a


Sabrina e a Sabrina porque mesmo na situação difícil que
ela vivia ajudou muito a avó.

Fonte: Sicsú, 2017


Este dado mostra que o leitor tende a ter afinidade ou simpatia com
determinados personagens por diversos motivos como aparecer mais na história, por
compreender om porquê dos atos de determinada personagem, solidarizando-se com
ela, como é o caso da resposta do aluno do 9º amo 3 e do 9º ano 4.

Tabela 5: Que sugestão você dá para que a literatura circule na escola?

Alunos: Respostas:

9º 2 Frequentar mais a biblioteca da escola.

9º 3 Que os professores trabalhem mais a literatura porque


assim nós poderemos compreender nossa realidade e a
interpretar as coisas.

9º 4 Fazer um projeto na escola para que nós possamos ler


mais textos diferentes,

Fonte: Sicsú, 2017

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Nas respostas dos alunos na tabela 5, fica evidente que o problema recorrente
de que o aluno não gosta de ler literatura não se está nele, mas na maneira como a
literatura circula na escola, na falta de leituras na biblioteca e ausência de projetos que
incentivem a leitura na escola. As respostas dos alunos mostram ainda que os
professores também contribuem para a leitura literária seja ou não trabalhada com
frequência na escola.
É importante ressaltar que esta pesquisa foi desenvolvida com 105 alunos do
9º ano do Ensino Fundamental II, distribuídos em três turmas: 2, 3 e 4. O questionário
foi aplicado aos 105 alunos, mas escolheu-se aleatoriamente apenas um aluno de
cada turma para preencher as tabelas por aproximação das respostas e pelo fato de
que não teria como colocarmos aqui todas as respostas.

Considerações Finais
A maneira como a literatura é trabalhada na escola pode provocar a aceitação
ou rejeição do aluno. Os resultados desta pesquisa mostram que o professor têm uma
participação considerável na promoção da leitura literária na escola e isso perpassa
pela sua formação leitora.
Diferente do que se geralmente ouve, a pesquisa mostra que os alunos gostam
de ler, mas a escola precisam oferecer ambiente propício à leitura, como é o caso da
biblioteca. O professor, por sua vez, de acordo com as respostas dos alunos precisam
trabalhar mais a literatura na escola permitindo-lhes a interação e o diálogo com o
texto literário. Contudo, além dos problemas apontados, outro fator que interfere muito
no trabalho com a literatura na escola é o fator tempo, pois como a maioria não vem
de um ambiente bom de letramento, o único contato que eles têm com o livro,
principalmente o literário, é na escola.
Contudo, apesar dos alunos não terem condições de adquirir o livro, as
estratégias de leitura trabalhadas com eles foi fundamental para que o resultado e
aceitação da atividade tenha sido positiva. Essa aceitação se deu também pelo fato de
sempre abrir espaço para que eles falassem sobre o livro e principalmente sobre os
temas polêmicos tão presentes na vida deles. Os alunos gostam e participam
ativamente da leitura da obra literária, expondo suas opiniões, concordâncias ou
discordâncias, desde que lhe seja permitido participar. Assim, por meio da literatura,
pode-se discutir temas polêmicos com os alunos numa perspectiva dialógica dialógica
entre autor-texto-leitor, permitindo-lhes ter uma visão mais crítica e reflexiva do
mundo, da vida, das pessoas, quando conseguem perceber que o texto literário,
embora ficcional, diz muito da nossa condição humana.
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A leitura do livro abriu espaço para que os alunos no momento do debate,


falassem sobre assuntos que na família e na escola não se discute abertamente. A
homossexualidade na figura da persona Andrea Dória e a prostituição infantil na figura
da personagem Sabrina foram os temas mais debatidos o que nos aponta para
questões urgentes em torno da sexualidade e do gênero, e principalmente a
conscientização de que o respeito e as relações de alteridade precisam ser mais
evidenciadas e trabalhadas no ambiente escolar

Referências
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. 3.ed. 3ª reimpressão. São
Paulo: Contexto, 2014
BOJUNGA, Lygia. Sapato de salto. Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga, 2006.
DALVI, Maria Amélia. Literatura na escola: proposta didático-metodológicas. In.
DALVI, Maria Amélia. RESENDE, Neide Luzia de. FALEIROS, Rita Jover, orgs,
Leitura de literatura na escola. São Paulo, SP: Parábola, 2013.
HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. trad. Cid Knipel. São Paulo: Cosac
Naify, 2010.
SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura.Trad. Cláudia Schilling. 6.ed. Porto Alegre:
Artmed, 1998.
ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. 10. ed. rev., atualiz. e ampli.
São Paulo: Global, 2003.
__________________ A leitura e o ensino da literatura. São Paulo: Intersaberes,
2012

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

AQUELE QUE ACREDITA EM RÓTULOS, NO MAIS DAS VEZES


SE ENGANA:O "POLITICAMENTE CORRETO" NA LITERATURA
INFANTIL

Vita Ichilevici, Universidade de São Paulo, CNPQ


Eixo temático 7: Literatura infantil e juvenil e temas polêmicos

Considerações Iniciais

O presente artigo é um relato parcial de pesquisa de mestrado 266 que


investiga o fenômeno do "politicamente correto" (conhecido pela sigla "pc") na
literatura infantil no Brasil a partir dos anos 1970 propondo a reflexão a respeito da
adequação e eficiência da modificação de linguagem – e enredos – para a diminuição
de preconceitos sociais.
De forma clara ou velada, conceitos éticos e morais estão, desde sempre,
presentes em livros para crianças (escritos por adultos); no entanto, do ponto de vista
da formação moral, sabe-se que tanto a teoria psicogenética quanto a sociocultural
consideram-na significativa apenas quando se dá através de um processo de
construção e internalização, e não a partir de regras e interdições. O texto literário, em
especial o destinado à criança, não deve ser utilizado como instrumento de
doutrinação ou mecanismo, ainda que não intencional, de controle.
As perguntas que norteiam a pesquisa referem-se à adequação e eficiência
do uso da literatura para a construção de valores; à contribuição (ou não) do controle
da linguagem para a formação moral; e à interferência do "politicamente correto" com
a fruição da literatura. A aproximação267 é efetuada a partir dos conceitos de (i)
literatura infantil; (ii) concepção social de infância, especialmente as características e o

266
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo; área: Linguagem e Educação; orientação: Prof.
Dra. Neide Luzia de Rezende; conclusão até Janeiro/2019
267
As principais referências teóricas, não referidas diretamente nesse texto – e incluídos na bibliografia
– são, respectivamente: (i) Hunt, Nodelman, Meireles, Faria; (ii) Postman, Meyrowitz, Buckingham; (iii)
Piaget, Kohlberg, LaTaille. Os principais autores do corpus teórico dos itens (iv) e (v), estão
referenciados no corpo do texto e na bibliografia.
1342

suposto fim da infância na contemporaneidade; (iii) formação moral da criança; (iv)


politicamente correto; e (v) educação para valores. O, bastante disputado, conceito de
"politicamente correto", implica a discussão da concepção de censura, uso ideológico
da linguagem e disputas do campo literário.

Pedagogia, Literatura e Educação para Valores


Ao longo da história, a educação esteve sempre vinculada ao conceito de
formação; já a literatura na escola cumpre tradicionalmente duas funções: a
necessidade humana de ficção e a transmissão de valores, fazendo com que
surgissem obras destinadas especificamente a essa última. Recorde-se, ainda, que
toda obra literária expressa uma visão particular de mundo, resultante de uma cultura
– logo de ideologias, mais ou menos conscientes (pelo autor) e explícitas (na obra).
Em décadas recentes, tanto o conceito de formação quanto os meios para
sua realização vêm sendo questionados e modificados. Como indica, por exemplo,
Saviani (2005), a partir dos anos 1980, com o fortalecimento da concepção
pedagógica histórico-crítica, a educação passa a ser entendida como mediação, tendo
a prática social "como o ponto de partida e o ponto de chegada da prática educativa"
(p.26). Já na década seguinte, ganha corpo a ideia da "da educação como o
instrumento mais poderoso de crescimento econômico e, por consequência, de
regeneração pessoal e de justiça social" (p.26).
As transformações trazidas pela luta por direitos e lugares dignos na
sociedade impactaram fortemente o no modelo educacional, levando à exigência
simultânea de formação de cidadãos críticos e, por vezes, a um certo retrocesso
moralizante. Nesse contexto, um dos efeitos da indispensável revisão de
características e propósitos de obras literárias para crianças, as mais utilizadas para a
formação moral, é a reivindicação, por parte de diferentes grupos sociais e com
diferentes demandas, de obras ―politicamente corretas‖ em termos de linguagem,
enredo e interpretações da realidade, como veremos em alguns exemplos a seguir.
Partindo da estreita relação, na cultura ocidental, entre educação e formação,
Adorno (2003) expressa em seu conhecido texto ―A educação após Auschwitz‖ a
certeza de que a primeira das exigências da educação é não permitir que o horror, a
barbárie se repitam, o que somente é possível a partir de uma autorreflexão crítica.
Esta, diz Adorno, deve concentrar-se na primeira infância e no esclarecimento geral
dos motivos que levaram a Auschwitz. Estamos, portanto, no campo da formação
moral, no qual é imprescindível a diferenciação entre ―heteronomia, um tornar-se
dependente de mandamentos, de normas que não são assumidas pela razão própria
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do indivíduo (p.124) [e] autonomia (...): o poder para a reflexão, a autodeterminação‖


(ADORNO, 2003, p.125), as mesmas etapas de que fala Piaget ao tratar da formação
do juízo moral na criança.
Moral e ética, embora tenham, ambos, origem em ―costume‖ (ethos, em
grego, e mos, em latim) não podem ser tratadas como sinônimos. Como resume La
Taille (2006), "a primeira refere-se à dimensão dos deveres, e a segunda, (...) da 'vida
com sentido'" (p.9) Ou ainda, pode-se dizer que, segundo a definição mais comum, a
moral é concebida como um fenômeno social, enquanto a ética estaria no campo da
reflexão filosófica.
A educação, "primeiramente pensada como formação ética, como proposta
aprimoradora do sujeito humano‖ (SEVERINO, 2006, p. 623), baseia-se em valores
que implicam a subordinação a princípios que (devem) orienta(r) o comportamento
ético, baseados tanto na apropriação de normas sociais quanto na aquisição de uma
consciência moral própria, ―cuja realização só é possível a partir da liberdade de cada
um‖ (GOERGEN, 2005, p.992)
A simbiose entre ética e pedagogia pode ser explicada pela interinfluência
entre moral e educação – o ser humano, segundo Piaget, deve ser educado para a
moralidade, que não lhe é natural, superando o comportamento egocêntrico. Somente
a exigência do reconhecimento das necessidades dos outros seres humanos evita
uma guerra constante, vencida por aqueles que detêm mais recursos. (GOERGEN,
2005)
Quanto a seu possível uso para a formação moral, nos diz Antonio Candido
(1999) que a literatura está
longe de ser um apêndice da instrução moral e cívica (...), ela age
com o impacto indiscriminado da própria vida e educa como ela, —
com altos e baixos, luzes e sombras. Daí as atitudes ambivalentes
que suscita nos moralistas e nos educadores, ao mesmo tempo
fascinados pela sua força humanizadora e temerosos da sua
indiscriminada riqueza. E daí as duas atitudes tradicionais que eles
desenvolveram: expulsá-la como fonte de perversão e subversão, ou
tentar acomodá-la na bitola ideológica dos catecismos (p.84).
Leyla Perrone-Moisés (2006), ao argumentar em favor da importância da
literatura na escola, aponta, entre outras razões, seu poder formativo: a literatura
contribui com o processo de conhecimento e autoconhecimento; possibilita a
descoberta de realidades diferentes de nossa própria; propicia fruição e percepção
notadamente distintas daquelas proporcionadas por outros textos.
Literatura e educação moral transformam-se, ao longo da história, de acordo
com diferentes contextos socioculturais, procurando transmitir ao aluno-leitor uma
―educação social através de uma proposta de valores, de modelos de relação social e
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de interpretação ordenada do mundo‖. (COLOMER, 2002, p.173). Valores esses, que


se no passado estavam prioritariamente ligados à religião e virtudes a serem
obedecidas sem questionamento, por volta do final do século XVIII, passam a incluir
temas como liberdade, democracia, igualdade, solidariedade.
É o que pode, hoje, ser chamado de "educação para a cidadania", em que,
muitas vezes, deparamo-nos com "textos destinados a difundir modos de entender a
realidade e seus conflitos a partir de uma observação ‗progressista‘, [que] (...)
poderíamos chamar de ‗politicamente corretos‘‖ (CARRANZA, 2012). Uma parte
(significativa) da literatura infantil volta-se à educação para valores como a paz, a
diversidade, a sustentabilidade, a igualdade racial e de gênero – e tantos outros – ,
impondo uma maneira "correta" de ler, ignorando a polissemia do texto e a liberdade
de recepção do leitor. A utilização da "literatura para transmissão de uma mensagem
(não importa de que caráter ideológico estamos falando), não seria outra coisa que se
valer de um instrumento sofisticado para convencer o leitor acerca de alguma verdade
dada" (CARRANZA, 2012), reduzindo-a à função de panfleto ou sermão.
A atividade em que a rede britânica BBC convida uma escritora para ―ajudar
crianças a recontar a história da Cinderela para uma nova geração‖ 268 é um eloquente
exemplo da imposição de uma ―leitura correta‖. Em visita a uma escola de Educação
Infantil, após contar a versão tradicional do conto de fadas, a escritora denuncia o
caráter sexista da história e pede às crianças, de cerca de seis anos, que criem uma
nova versão, para ―deixá-la mais igual entre homem e mulher‖ – conduzindo-as,
através de perguntas que têm apenas uma resposta possível, na direção ―correta‖.
Na versão imaginada pelas crianças o enredo não se altera, a única mudança
é que Cinderela – que agora se chama Cindy – não se casa com o príncipe. Ela
continua responsável por todas as tarefas domésticas, mas agora recebe algum
dinheiro (já que a escritora indicou ser um problema o fato de que "naquela época
mulheres não tinham seu próprio dinheiro"). O baile no palácio permanece, mas, para
comparecer, Cindy compra um terninho ―descolado‖ e tênis, e é ela que convida o
príncipe para dançar. A história segue com a perda do tênis e a busca do príncipe pela
moça em quem este sirva. Quando finalmente a encontra, Cindy e o príncipe tornam-
se amigos e, juntos, partem para explorar o mundo.
De que outra forma pode-se interpretar essa bem-intencionada iniciativa de
repensar o estereótipo feminino nos contos de fadas tradicionais, além da imposição

268
Segundo site do projeto – vídeo disponível em http://www.bbc.com/news/av/magazine-
38014161/100-women-jeanette-winterson-helps-children-rewrite-cinderella, acesso em 5 de julho de
2017
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de uma versão (politicamente) ―correta‖ para os tempos modernos? Entre tantas


abordagens possíveis, poder-se-ia mostrar que o baile é organizado para que o
príncipe escolha uma esposa, mas ele não é consultado sobre o desejo de se casar;
que existem mulheres boas (a fada madrinha) e más (a madrasta), e no conto
nenhuma delas depende de um homem; que Cinderela assume uma atitude corajosa e
transgressora ao desobedecer a proibição de ir ao baile; que quem, de fato, ―salva‖
Cinderela é a fada madrinha, uma figura feminina.
Não chega a causar surpresa o fato de que as crianças respondam na
direção que lhes foi apontada – controla-se o texto para chegar à mensagem que se
deseja transmitir, possibilitando uma única interpretação possível, a forma de pensar
da criança. Não é difícil, portanto, concluir, que
o controle moral sobre a literatura supõe uma forma de censura.
Desde a censura brutal, como a queima de livros durante os regimes
ditatoriais, a censura doméstica na seleção de textos baseados em
critérios morais, ou na coerção leitora para a busca de mensagens de
plantão. (CARRANZA, 2012)

Ideologia e Linguagem, Narrativa e Resistência


Impossível pensar sobre literatura, sem considerar a linguagem, que nos dá
"o poder de nomear, [que] significava para os antigos hebreus dar às coisas a sua
verdadeira natureza, (...) [poder hoje desempenhado pela] ideologia dominante que dá
nome e sentido às coisas" (BOSI, 1977, p.140).
A arte, segundo Leonardo da Vinci, perde-se no momento em que artistas
passam a levar em conta outras autoridades que não a própria arte – a ideologia,
qualquer ideologia, traz consigo uma pseudototalidade de pensamento que tem como
resultado o autocontrole. A autoconsciência, porém, não pode provocar a paralisia –
―a resistência tem muitas faces‖ (BOSI, 1977, p.143) e nasce da força de vontade. A
resistência ―é um conceito originariamente ético, e não estético‖ (idem, 1996, p.11), já
a arte vem de outro lugar – é ―intuição, imaginação, percepção memória‖ (p.11).
Arte e resistência não deve(ria)m, em princípio, se misturar, mas a distância
entre ética e estética apaga-se quando o narrador ―se põe a explorar uma força
catalisadora da vida em sociedade: os seus valores‖ (BOSI, 1977, p.13), que orientam
tanto a ele quanto à sua arte. É preciso cuidado redobrado para que as escolhas que
guiam a obra do artista não embacem sua clareza de pensamento ou suspendam a
crítica.
Ao contrário da literatura de propaganda (...), a arte pode escolher
tudo quanto a ideologia dominante esquece, evita ou repele(...). Não

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são os valores em si que distinguem um narrador resistente e um


militante da mesma ideologia. São os modos próprios de realizar
esses valores. (BOSI, 1996, p.16)
Na delicada relação entre ficção e ideologia, o primeiro risco que o artista
corre é a exigência do engajamento da obra – não importa o lado da propaganda de
movimentos sociais ou campanhas políticas. Outro, não menos grave, é a condenação
da obra por certos leitores "ultra-ideologizantes", conforme denominação de Bosi, que
nela enxergam supostos valores contrários aos seus. Ao mascarar a realidade com
clichês e slogans apropriados de outras esferas, um discurso panfletário travestido de
literatura toma o lugar da resistência, aprofundando "as divisões da sociedade,
fazendo-as passar por naturais; depois, encobrir, pela escola e pela propaganda, o
caráter opressivo das barreiras; por último, justificá-las sob nomes vinculantes‖ (BOSI,
1977, p.144). Temos aqui, então, uma vez mais juntos, educação e transmissão de
valores.
Um dos mais célebres exemplos de (tentativa de) controle do pensamento
pela língua talvez seja ―1984‖, de George Orwell. Menos conhecido é seu ensaio
―Política e a língua inglesa‖, publicado na mesma época – ficção em 1949, ensaio em
1946 – que revela inquietações análogas. Orwell defende o uso da linguagem como
instrumento de expressão, não como disfarce ou obstáculo ao pensamento. A língua,
diz, torna-se imprecisa por obra de ideias tolas e, ao mesmo tempo, possibilita seu
surgimento – causa e efeito se misturam, usadas como um instrumento ao qual se dá
esta ou aquela forma para atender a certo propósito, como a língua falada em ―1984‖:
O objetivo da Novafala não era somente fornecer um meio de
expressão compatível com a visão de mundo e os hábitos mentais
dos adeptos do Socing, mas também inviabilizar todas as outras
formas de pensamento. (ORWELL, 2009, p.294)
O uso de palavras de acordo com outra coisa que não seu significado faz com
que a linguagem seja dominada por frases feitas, distanciando termo e sentido. A
linguagem política ―e com variações isso é verdadeiro para todos os partidos políticos,
de Conservadores a Anarquistas – é desenhada para fazer mentiras soarem como
verdades (...) e para dar aparência de solidez ao que é puro vento‖ (ORWELL, 1946,
p.13, tradução minha). Alerta mais do que significativo, uma vez que palavras de
cunho político são as que mais deixam "de ter significado, a não ser para nomear ‗algo
não desejável‘‖ (p.6).
Acima de tudo, a discussão que Orwell propõe em ―1984‖ é a existência de
algo que se possa denominar "verdade". Para chegar a ela, Brecht (1982, p.1) indica
diversos obstáculos a serem superados pelo escritor: é preciso ter ―coragem de dizer a
verdade; (...) a inteligência de a reconhecer; (...) a arte [de usá-la como arma]; o

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discernimento [para torná-la eficaz]; a habilidade para difundi-[la]‖ – barreiras que


despontam não apenas de regimes totalitários, mas também do que Brecht chama de
―regime de liberdades burguesas‖. E mais, não basta apenas dizer a verdade, mas sim
mostrá-la em sua luta com a mentira, para que as causas da situação denunciada
possam ser combatidas, tornando impossível, como diz Lampedusa,269 que tudo
mude para que tudo permaneça igual.
A partir das considerações até aqui apresentadas, a pergunta que se coloca é
qual seria o efeito de substituições linguísticas adotadas com as melhores intenções,
como é o caso do ―politicamente correto‖?

O fenômeno ―politicamente correto‖


A publicação da cartilha ―Politicamente Correto & Direitos Humanos‖ pela
Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH), em 2004, motivou o artigo em que
a professora do Departamento de Antropologia da USP, Lilia Schwarcz (2005), afirma
que "a atitude politicamente correta consiste em alterar nomes e termos para que não
seja preciso mudar a própria estrutura social".
De acordo com o texto de apresentação, o objetivo da cartilha era ―colaborar
para a construção de uma cultura de direitos humanos (...) como forma de chamar a
atenção de toda a sociedade para (...) 'os preconceitos nossos de cada dia'‖
(QUEIROZ, 2004, p.3). Esclarece, ainda, que o uso no título da cartilha da expressão
―Politicamente Correto", assumidamente provocador, foi escolhido "com o objetivo de
chamar a atenção dos formadores de opinião para o problema do desrespeito à
imagem e à dignidade das pessoas consideradas diferentes‖ (p.3). Impossível
discordar da importância e necessidade de tal objetivo; no entanto, como alerta
Schwarz, não basta apenas adotar "medidas profiláticas como essas [que] trazem um
lustro civilizacional, sem enfrentar a questão em si: a exclusão numa sociedade cada
vez mais desigual".
Já para Antonio Candido (1988), embora o sonho de superar ―problemas
dramáticos da vida em sociedade‖ não tenha se concretizado, a barbárie hoje
sobrevive nas sombras – apesar de continuarmos a praticar coisas inomináveis, não
mais nos vangloriamos delas. Candido trata de direitos humanos, linguagem e utopias,
propondo a reflexão sobre mudanças no comportamento e linguagem cotidianos, que,
aos poucos, deixam de naturalizar expressões de preconceito. O texto de 1988, pouco

269
LAMPEDUSA, G.T., O Leopardo, Nova Cultural, São Paulo, 2002.
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após a redemocratização do Brasil, refere-se sobretudo a raça e classe


socioeconômica. Hoje, além de termos que manifestam esses preconceitos, longe de
superados, as principais (mas não únicas) reivindicações de alterações linguísticas
dizem respeito a gênero e orientação sexual.
Apesar de uma aparente discordância entre Candido e Schwarcz, uma vez
que aquele aprova a limitação no uso da linguagem enquanto esta questiona
restrições impostas, não há oposição – ambos denunciam a cruel existência de
preconceitos como fruto de desigualdades e a necessidade urgente de superá-los. A
diferença, está, na falta de definição melhor, no caráter ativo ou passivo de tais
mudanças linguísticas – enquanto Candido entende a moderação de linguagem como
consequência de uma ―nova atitude, que vai do sentimento de culpa até o medo‖, para
Schwarcz (2005) "o problema é que talvez estejamos trocando seis por meia dúzia e
supondo que a representação é maior do que a realidade. (...) [sendo] tomados por um
medo discursivo: entre dizer e dizer mal, parece melhor omitir".
Doris Lessing (2004), que assim com Brecht e Orwell entende que a censura
é mais fácil de ser combatida quando é parte do controle do Estado, não hesita em
expor sua crença de que
a mais poderosa tirania mental, no que chamamos de mundo livre, é
o ―politicamente correto – imediatamente claro, visto em toda parte e,
ao mesmo tempo, o que aparece como uma intolerância geral, tão
invisível quanto um gás venenoso, cuja influência pode ser
encontrada, muitas vezes, longe da origem. (...) O que começou
como uma tentativa – sensível, honesta e louvável – de remover
vieses raciais e sexuais codificados na linguagem, foi dominado pela
histeria política, que a transformou em um novo dogma. (tradução
minha)
Opinião também de Sírio Possenti (2008), para quem o ―pc", apesar de estar
em toda parte, não é "uma teoria organicamente formulada nem uma ação política
coordenada", cujas teses e práticas "não derivam de uma teoria da linguagem
explícita" (p.48). Embora não haja uma teoria clara que oriente a luta contra
preconceitos, a posição genérica que perpassa o movimento é a de que a linguagem
pode expressá-los, e deve, portanto, ser controlada.
Após seu (suposto) início nos campi das universidades americanas nos anos
1970, o fenômeno do ―politicamente correto‖ alastrou-se, com relativa rapidez, para
outros espaços sociais e países. Apesar da maior parte dos trabalhos sobre o
―politicamente correto‖ ser em língua inglesa, a falta de consenso sobre o tema
estende-se a publicações de diferentes países – enquanto alguns desaprovam o
―politicamente correto‖, para outros a batalha contra o ―politicamente correto‖ ajuda a
perpetuar preconceitos.

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O livro do professor sul-africano Geoffrey Hughes (2010) – ―Politicamente


Correto, uma História de Semântica e Cultura‖ – cujo objetivo é estudar as origens,
desenvolvimento, conteúdo e estilos do "politicamente correto", oferece uma visão
abrangente e, na medida do possível, equilibrada, sobre o tema. Hughes demonstra
que a neutralidade não passa de utopia quando se trata de um assunto que, desde o
início dos anos 1990, ―tornou-se um código linguístico sem um vencedor evidente‖ 270
(p.ix), e que diz respeito a um ―assunto sério, fundado em sofrimento, preconceito e
diferença [que] fez com que todos considerassem a condição de outros, dando uma
nova ênfase ao respeito. Mas trouxe, igualmente, muita sátira, ironia e humor‖. (p.x)
Trazendo evidências muito anteriores ao século XX de práticas culturais,
linguísticas e, principalmente, de mentalidade e opiniões, que atendem a determinados
critérios, Hughes questiona a liberdade do mundo de hoje,
no sentido de que pessoas razoáveis, sem uma clara agenda política,
possam expressar opiniões a respeito de assuntos de domínio
público? Ou teria a noção do que é ―ofensivo‖ ou ―inaceitável‖ ou
―inapropriado‖ ou ―racista‖ chegado a dimensões de tal abrangência e
intromissão que um debate aberto a respeito de temas controversos
tenha se tornado uma impossibilidade? (p.x)
Um capítulo especialmente inquietante do livro de Hughes é o que trata de
―Velhas e Novas Agendas‖. Após abordar as esferas tradicionais de influência e
disputa do ―politicamente correto‖ – raça, etnia, xenofobia, colonialismo, gênero,
orientação sexual e deficiências de diferentes naturezas – o autor indica novos temas
que vêm ganhando espaço nas disputas do ―pc‖, entre outros: transtornos alimentares,
aparência, sustentabilidade e direitos animais. Um exemplo eloquente é a tentativa de
adotar nas festas de final de ano nos Estados Unidos o cumprimento ―Feliz
Kwanhanamas‖, um esforço de junção multicultural de Kwanza (palavra swahili que
significa ―primeiras frutas‖), Hanukka (festa de tradição judaica) e Christmas (Natal).
Lembra, de certa forma, a caricatura que ilustra o artigo de Schwarcz (2005),
em que a Bruxa, ao oferecer a maça à Branca de Neve, é apresentada, de forma
absolutamente irônica, como ―maga da terceira idade representante comercial do
agronegócio transgênico‖, que podemos tomar como ponto de aproximação com a
temática do ―politicamente correto‖ na literatura infantil.

O ―politicamente correto‖ na literatura infantil

270
Todas as citações do livro de Hughes, não disponível em português, são de tradução da autora.
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Desde quando e como o ―politicamente correto‖ manifesta-se no campo da


literatura infantil? Onde situá-lo? Diz respeito apenas à linguagem, ou abrange
também temáticas? Será um ―código linguístico sem um vencedor evidente‖?
(HUGHES, 2010) ou ―um recurso de maquiagem social, que alivia tensões imediatas
sem investir nos problemas reais‖? (SCHWARCZ, 2005)
Recordando que o "politicamente correto" pode ser entendido como a
adequação a determinadas normas sociais, temos que, historicamente
a literatura para crianças foi sempre uma literatura muito vigiada,
rigorosamente vigiada desde que se começou a reparar nela. Sempre
existiram adultos que se ocuparam de marcar como devia, ou não,
ser uma história para crianças. À literatura custou muito resguardar
271
seus direitos de literatura – de arte – neste território. (MONTES
apud SOTOMAYOR; CERRILLO, 2016, p.27, tradução minha)
A disputa a respeito da adequação de determinados temas, e da forma de
apresentá-los na literatura dirigida a crianças, esteve, desde sempre, e continua
presente. É consenso, entre autores e críticos, de que não há necessidade de livros
para crianças serem idílicos; leituras assustadoras e desestabilizadoras são também
―necessárias e benéficas, na medida em que nos fazem pensar e confrontam-nos sem
rodeios com aspectos que fazem parte da complexa experiência de crescer e viver‖.
(DÍAZ, 2009, p.1, tradução minha) O poder da imaginação como a melhor defesa de
uma criança em perigo é o fio condutor de muitos livros infantis, entre eles os de
Maurice Sendak (autor de ―Onde vivem os monstros‖), que exploram temores e
fragilidades comuns às crianças.
A seleção de temas não é um efeito direto do fenômeno do ―politicamente
correto‖, mas agrega elementos para a reflexão a respeito de adaptações de enredos,
como a, já citada, nova versão de Cinderela, promovida pela rede britânica BBC. Um
interessante exemplo brasileiro recente é a decisão do MEC, em junho de 2017, de
recolher o livro infantil ―Enquanto o sono não vem‖ (José Mauro Brant, Editora Rocco,
2003), distribuído às escolas públicas pelo Pnaic272, por considerar
a obra não adequada para as crianças de sete a oito anos do ensino
fundamental, pela abordagem do tema incesto. O conto "A triste
história de Eredegalda" trata do desejo de um rei em casar com a
mais bonita de suas três filhas. Diante da negativa, a menina é
castigada e termina morrendo de sede. Selecionada no processo
PNLD/Pnaic em 2014, (...) o livro foi avaliado e aprovado pelo Centro
de Alfabetização, Leitura e Escrita (CEALE) da Faculdade de
Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, instituição de

271
MONTES, G. La literatura para chicos y adolescentes: obras censuradas temas prohibidos” in
MACHADO, A.M.; MONTES, G. Literatura infantil: creación, censura y resistência. Buenos Aires,
Sudamericana, 2003, p.107-112.
272
Programa Nacional de Alfabetização na Idade Certa.
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notório saber e referência nas áreas de alfabetização e literatura no


país.
Versões semelhantes da história, baseada em conto de tradição oral,
recolhida pelo autor em Barbacena, Minas Gerais, aparece em diversos lugares do
Brasil; além disso guarda relação temática com o conhecido conto de Charles Perrault,
―Pele de Asno‖273, presente, sem maiores protestos, de coletâneas de contos de fadas
adotadas pelas escolas brasileiras.
Apesar do CEALE/UFMG ter divulgado análise crítica 274 favorável à obra,
discordando da decisão do MEC, mais de 90.000 livros foram retirados das escolas
com base em parecer técnico que indica que ―as crianças no ciclo de alfabetização,
por serem leitores em formação e com vivências limitadas, ainda não adquiriram
autonomia, maturidade e senso crítico para problematizar determinados temas com
alta densidade, como é o caso da história em questão‖.
Exemplo bastante conhecido da influência do "pc" na literatura infantil é a
largamente noticiada polêmica, em 2010, a respeito do livro ―Caçadas de Pedrinho‖ de
Monteiro Lobato, parte da coleção selecionada par ao Programa Nacional Biblioteca
da Escola PNBE/2003. O solicitante da denúncia, a partir de suposto conteúdo racista
em relação à
personagem feminina e negra Tia Anastácia [bem como] referências
aos personagens animais tais como urubu, macaco e feras africanas
[que] fazem menção revestida de estereotipia ao negro e ao universo
africano, que se repete em vários trechos do livro analisado [requer a
suspensão de uso de] livros, material didático ou qualquer outra
forma de expressão que contenha expressões de prática de racismo
cultural, institucional ou individual (BRASIL, 2011)

O parecer inicial do MEC gerou acalorado debate, levando a um reexame no


ano seguinte. Reconhecendo a importância dos argumentos apresentados pelo
solicitante, da legislação antirracista brasileira em vigor, bem como das diretrizes que
tratam especificamente das políticas públicas para a educação antirracista, o parecer
final destaca a relevância da perspectiva histórica na análise de uma obra de arte e as
lutas inerentes a diferentes práticas culturais.
E mais, a imperiosa necessidade de uma adequada mediação, que passa,
necessariamente pela implementação de políticas públicas de formação de
professores visando ampliação e aprofundamentos de temas relacionados a
educação, literatura e diversidade étnico-racial. O parecer final destaca, ainda, que,

273
Também a história do rei que deseja casar-se com a filha.
274
Disponível em http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/files/uploads/Random/Nota%20t%C3%A9cnica
%20livro%20Enquanto%20o%20 sono%20n%C3%A3o%20vem.pdf, acesso em 05 de julho de 2017
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naturalmente, como toda leitura escolar, o livro será lido sob a


supervisão de um professor que, com o leitor maduro, saberá mostrar
que trechos isolados não com põem uma obra e que na literatura
não é a soma das partes que fazem o todo. (BRASIL, 2011)

Para além de exemplos nacionais, em 2013 jornais alemães noticiaram a


repercussão negativa da chegada às livrarias de uma reedição modificada
de clássicos da literatura infantil daquele país, que suprimia termos e passagens
considerados inadequados e racistas. O editor responsável pela modificação do livro
Die Kleine Hexe275, do consagrado autor alemão Otfried Preussler, entende que não
se trata de censura, mas de uma necessária "modernização linguística" de uma obra
originalmente publicada em 1957. Ainda na Alemanha, uma edição de 2009 do
clássico livro infantil de 1945, Pippi Meialonga, da autora sueca Astrid Lindgren,
passou a se referir ao pai da personagem como ―Rei dos Mares do Sul‖, em vez de
―Rei Negro‖, como no original.
Marina Colasanti (2004) propõe um questionamento bastante pertinente – por
que "aquilo que se consideraria inconcebível na área adulta da literatura é tão
facilmente aceito quando se trata de crianças leitoras?‖ (p.93). No caso de livros para
crianças, quando elas passam a poder decidir o que lhes agrada, "sua capacidade de
escolha já terá sido moldada pela ideologia de seus mentores‖ (HUNT, 2010, p.208).
De fato, a autonomia da arte, essencial na criação, parece não se aplicar à literatura
infantil, uma vez que não há notícias de tais alterações em obras para adultos.
"Pensemos, apenas por um momento, em qual seria a reação de um Calvino, de um
Gore Vidal, se lhes sugerissem uma ―transversalização‖ moralizante em seus textos".
(COLASANTI, 2004, p.93)
Outro exemplo recente envolve, mais uma vez, Cinderela. A proposta de
―Histórias de Ninar para Garotas Rebeldes‖ (2017, Editora V&R) – contar histórias
inspiradoras de mulheres reais – merece apenas elogios, sobretudo considerando os
estereótipos femininos da maioria das histórias infantis. Vale, no entanto, lembrar que
há muitas protagonistas representadas de outra maneira, seja em livros infantis
contemporâneos ou os que já se tornaram clássicos – entre tantas outras, temos Alice
(Lewis Carroll, 1865) e Pippi Meialonga (Astrid Lindgren, 1945), além de Narizinho e
Emília (Monteiro Lobato,1920).
No caso de ―Histórias de Ninar para Garotas Rebeldes o ―politicamente
correto‖ faz-se presente na divulgação276 de um vídeo promocional de cerca de três
minutos, com a seguinte apresentação: ―Se Cinderela fosse homem. Isso resume

275
Publicado no Brasil com o título “A Pequena Bruxa”, Editora Martins Fontes, 1ª edição 1997.
276
No site da publicação e nas redes sociais.
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perfeitamente o que há de errado com os contos de fadas‖. Após recontar a história


trocando o gênero de todos os personagens, as autoras questionam: ‖jamais leríamos
isso para nossos filhos. Por que, então, ler para nossas filhas?‖. Relatam, a seguir,
que a intenção do livro é transmitir a meninas a (inquestionável) ideia de que podem
ser o que quiserem.
Considerando a manifesta condenação dos contos de fadas, pode-se propor
duas questões: versões "politicamente corretas" devem substituir uma herança cultural
tão antiga e significativa? Por que privar pequenos leitores da oportunidade, a partir de
uma adequada mediação, da leitura crítica de novas e velhas histórias?
Como diz Bruno Bettelheim (2002, p.5), uma criança precisa de inúmeras
experiências que a auxiliem a encontrar o significado da vida e, quando pequena,
nada melhor do que a literatura para proporcionar o acesso a tantas, e diferentes,
informações.
No conjunto da "literatura infantil" - com raras exceções - nada é tão
enriquecedor e satisfatório para a criança, como para o adulto, do que
o conto de fadas folclórico. (...) Em um nível manifesto, os contos de
fadas ensinam pouco sobre as condições específicas da vida na
moderna sociedade de massa; (...) Mas através deles pode-se
aprender mais sobre os problemas interiores dos seres humanos, e
sobre as soluções corretas para seus predicamentos em qualquer
sociedade, do que com qualquer outro tipo de estória dentro de uma
compreensão infantil.

E, por fim
Histórias que atendem a valores sociais de diferentes épocas, bem como
novas versões de contos tradicionais, não são novidade, e deram, ao longo dos anos,
origem a livros de diferentes formatos que hoje chamamos de ―politicamente corretos‖.
Os casos brevemente relatados ao longo desse texto são alguns dos diferentes
exemplos de tentativas de superação de preconceitos a partir da restrição de
linguagem através de normas "politicamente corretas".
Ao se decidir pelo uso da literatura como veículo para a transmissão de
valores, é preciso (re)lembrar que
as crianças recortam dos acontecimentos do mundo adulto seus
próprios espaços (...) sem perceber que através desses livros passa a
ideologia (...), lhes é suficiente identificar-se com os espaços
escolhidos pela fantasia, pátrias imaginárias para sua necessidade de
obstáculos e vitórias (RODARI, 2004, p.1, tradução minha)

Referências
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Acesso em: 1 jul. 2017.

V Congresso Internacional de Literatura Infantil e Juvenil


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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

RETRATOS DA GUERRA CIVIL ESPANHOLA NA LITERATURA


JUVENIL GALEGA

Karina de Oliveira, Centro Universitário de Votuporanga (UNIFEV)/


Universidade de Santiago de Compostela (USC),eixo temático: Literatura
infantil e juvenil e temas polêmicos

Considerações Iniciais

As investigações de Blanca-Ana Roig Rechou (2015) apontam três importantes


momentos na formação do subsistema literário juvenil galego 277. O marco inicial dessa
literatura ocorreu entre as décadas de 60 e 70, com a publicação da obra Memorias
dun neno labrego (1961), de Xosé Neira Vilas – seguida mais adiante por dois outros
títulos: Cartas a Lelo (1971) e Aqueles anos de Moncho (1977) –, autor que mesmo
exilado em Buenos Aires, trabalhou constantemente, por meio de suas produções
literárias, para uma Galícia livre.
Já nos anos 80 e 90 surgiram duas gerações de escritores, a Xeración do 68 e
a Xeración dos 90, valendo-se de temas bem próximos da realidade dos jovens, com o
fim de atender o público em questão. Por último, da metade da década de 90 até a
atualidade, nota-se grande inovação na produção literária juvenil, tanto no que diz
respeito à parte editorial quanto na gráfica.
Diante disso, este artigo tem o intuito de apresentar uma obra que bem
representa a fase contemporânea das produções juvenis galegas: Noite de voraces
sombras (2002), de Agustín Fernández Paz. Parte-se de um recorte da tese de

277
Na Espanha, ademais do castelhano, outros três idiomas são oficiais, sendo eles: o catalão,
o galego e o basco (ou euskera) e, no entanto, durante muito tempo, apenas a primeira língua
ocupou um lugar de prestígio social. Por esse e outros motivos – que ultrapassam os objetivos
deste texto –, houve uma demora no processo de construção e de consolidação da cultura e da
literatura na Galícia, sendo necessário um longo período, dos séculos XV ao XIX, de lutas e
manifestações em defesa da liberdade da língua galega.
1357

Doutorado278, cujo título de Fernández Paz integra o corpus dessa investigação: foram
selecionadas doze obras brasileiras e doze galegas, de seis escritores de cada
âmbito, muito consideradas quanto ao gênero narrativo juvenil do século XXI, e todos
os autores ou são aclamados pela crítica e premiados com importantes galardões, tais
como Prêmio Barco a Vapor da SM Brasil e Premio Fundación Caixa Galicia de
Literatura Xuvenil, ou são inovadores quanto às temáticas tratadas. Além disso, todos
os escritores selecionados são reconhecidos pelo público jovem e mesmo pelo adulto,
pois quase todas as obras, especialmente as galegas, são também consideradas
obras de fronteira.
Nesse cenário, a presença de temáticas difíceis ou tabus (ROIG RECHOU;
OITTINEN, 2016, p. 07) vem sendo notada como uma característica recorrente nas
produções juvenis contemporâneas, tais como a morte, o naufrágio, os desastres, as
guerras, dentre outras.
É justamente acerca do último tema que a narrativa de Fernández Paz trata,
mais especificamente sobre a representação da Guerra Civil Espanhola e suas
consequências para o povo galego.

Agustín Fernández Paz e seu legado


Agustín Fernández Paz (Vilalba - Lugo, 1947 - 2016)279 foi (e é) um dos
escritores mais reconhecidos na literatura infantil e juvenil da Galícia, assim como nas
demais localidades da Espanha. O autor tem mais de cinquenta títulos publicados,
sendo a maioria para crianças e jovens. Seus livros, escritos em galego, foram
traduzidos para outras línguas oficiais desse país, o castelhano, o catalão e o euskera,
além de outros idiomas, como, por exemplo, o coreano, o português, o búlgaro, o
chinês, o inglês, o francês, o árabe e o italiano.
Fernández Paz trabalhou ainda, de forma intensa, pela educação na Galícia,
atuando tanto como professor primário quanto secundário. Como explica Roig Rechou
(2008a, p. 161, Tradução Nossa), após a morte de Franco, em 1975, ―enquanto se
dedicava ao ensino, trabalhou incansavelmente como produtor de materiais didáticos,
panoramas literários, reflexões sobre a língua e a literatura, educação, fomento à

278
Título da tese: Produções literárias contemporâneas para jovens leitores e as suas
temáticas: as realidades brasileira e galega, orientada pela Profa. Dra. Blanca-Ana Roig
Rechou (USC) e coorientada pela Profa. Dra. Alice Áurea Penteado Martha (UEM).
279
Alguns dados foram retirados do site do escritor: http://agustinfernandezpaz.gal/es/.
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leitura, etc.‖280 e muitos desses materiais foram publicados em livros, artigos e


revistas.
Os livros de Agustín Fernández Paz receberam inúmeras premiações, como
as de âmbito galego e espanhol (Lazarillo, Edebé Juvenil, Barco de Vapor, Merlín,
Edebé Infantil, Rañolas, Martiño Sarmiento, Xosé Neira Vilas, dentre outros). Foi ainda
reconhecido duas vezes como o melhor autor do ano (em 2004, pela Federación de
Libreros de Galicia; em 2007, pela Asociación Galega de Editores). Além disso, foi
agraciado em três ocasiões com o prêmio de melhor livro infantil do ano, concedido
pela Asociación de Escritores en Lingua Galega. Seu livro O único que queda é o
amor (Lo único que queda es el amor) obteve, em 2008, o Premio Nacional de
Literatura Infantil y Juvenil.
Por último – ainda que a lista de galardões e indicações do autor não se
encerre nos próximos comentários –, destacam-se algumas significativas premiações
de âmbito internacional: Astrid Lindgren Memorial Award (ALMA) (em 2008, 2009,
2010 e 2013); O único que queda é o amor (Lo único que queda es el amor) foi
incluído na Lista de Honra do IBBY, em 2010, como ocorreu também com o título
Contos por palabras (Cuentos por palabras) em 1992 e com Aire negro em 2002. Essa
última novela foi incluída no Catálogo White Ravens, da International Youth Library de
Munich, em 2001, um reconhecimento que também mereceu O meu nome é
Skywalker (Mi nombre es Skywalker), em 2004.

A Guerra Civil Espanhola na narrativa juvenil Noite de voraces sombras

Noite de voraces sombras (2002), Tres pasos polo misterio (2004) e


Corredores de sombra (2006), juntas, receberam a denominação de ―ciclo das
sombras‖ ou ―trilogia da memória‖, já que a temática central dessas obras ―gira em
torno das consequências da guerra civil espanhola e de sua descoberta por uma
adolescente‖281 (MOCIÑO GONZÁLEZ, 2015, p. 323, Tradução Nossa).

No que tange a esse conflito, Roig Rechou (2008c, p. 71, Tradução Nossa)
afirma que durante a ditadura franquista, havia um rígido controle

280
―mentres se dedicou ao ensino, traballou incansablemente como realizador de materiais
didácticos, panoramas literarios, reflexións sobre a lingua e a literatura, educación, fomento da
lectura, etc‖ (ROIG RECHOU, 2008a, p. 161).
281
―xira ao redor das consecuencias da guerra civil española e da súa descoberta por parte
dunha adolescente‖ (MOCIÑO GONZÁLEZ, 2015, p. 323).
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[...] da temática que se tratava nas obras literárias dirigidas aos


mais novos e mesmo a existência de muitos temas tabus, a
Guerra Civil não foi abordada com total normalidade por parte
dos escritores e escritoras galegos que escreviam para a
juventude, e tampouco por aqueles que se manifestavam em
qualquer das línguas que constituem o denominado marco
ibérico282.

Outro relevante apontamento da pesquisadora é que, na Galícia, o tratamento


dessa temática não apareceu na literatura infantil e juvenil até a década de 90. Sendo
assim, parte expressiva das obras investigadas – mediante um levantamento de trinta
e cinco títulos feito pela estudiosa – que tratam do tema em questão, estão localizadas
nas décadas em que a democracia vai ganhando força. (ROIG RECHOU, 2008c, p.
73).
Assim, Noite de voraces sombras tem como protagonista Sara, uma garota de
dezesseis anos que vai passar o verão com seus pais em Viveiro (Lugo/Galícia), na
antiga casa de sua avó. Como Cristina, a mãe da menina, era escritora, Viveiro era o
lugar ideal para que ela conseguisse terminar seu próximo trabalho.
Durante esse curto período, muitas situações novas aconteceram na vida da
protagonista, dentre elas, o relacionamento com Daniel, ―uma relação direta e sincera,
talvez porque os dois soubessem desde o início que o mês de agosto seria brilhante e
efêmero, como as estrelas fugazes, e que deveríamos aproveitar o tempo [...]‖ 283
(FERNÁNDEZ PAZ, 2002, p. 11, Tradução Nossa).
Além disso, Sara ficou hospedada no quarto de seu tio Ramón, um cômodo da
casa de sua avó que permanecia fechado desde a morte dele. Quando Sara começou
a arrumar seus pertences nos móveis do local, foi atraída por um fenômeno
sobrenatural que a guiou até uma parte falsa do guarda-roupa, espaço em que
estavam guardados antigos documentos de seu tio.
Por meio desses registros, Sara descobre que Ramón era um professor e
sofrera as consequências da Guerra Civil Espanhola, que segundo estudos de Roig
Rechou (2008c, p. 70, Tradução Nossa), trata-se de um dos episódios mais
significativos do século XX, ―com profundas repercussões em diferentes âmbitos‖ 284. A

282
―[...] da temática que se trataba nas obras literarias dirixidas aos máis novos e mesmo a
existencia de moitos temas tabú, a Guerra Civil non foi abordada con total normalidade por
parte dos escritores e escritoras galegos que escribían para a mocidade, pero tampouco,
cómpre dicilo, polos que se manifestaban en calquera das linguas que constitúen o
denominado marco ibérico‖. (ROIG RECHOU, 2008c, p. 71)
283
―unha relación directa e sincera, quizais porque os dous sabiamos de antemán que o mes
de agosto sería brillante e efémero coma as estrelas fugaces, e que debiamos aproveitar o
tempo [...]‖ (FERNÁNDEZ PAZ, 2002, p. 11).
284
―con fondas repercusións en distintos eidos‖ (ROIG RECHOU, 2008c, p. 70).
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tragédia compreendeu os anos de 1936 a 1939, período em que se iniciou a ditadura


de Francisco FrancoBahamonde, perdurando até 1975, com a morte dele. A partir
disso, a Espanha caminhou em direção a um processo de recuperação, com vistas a
um estado democrático, proporcionando, enfim, uma série de transformações na
história do país.

Retornando à narrativa, o tio de Sara foi preso em Pontevedra (Galícia) e


exilado na Ilha de San Simón285. Além disso, a jovem também conhece a história de
amor entre seu tio e Sara Salgueiro, ademais do retorno dele a Viveiro, onde trabalhou
como carpinteiro até a sua morte, sendo atropelado por um carro, em razão de sua
surdez.

Sara decide contar à mãe todas as suas descobertas e essa auxilia a filha na
reconstrução dessas memórias individuais e coletivas, levando-a até a Ilha de San
Simón para recuperar um objeto guardado por Ramón há muito tempo: ―um fino anel
de ouro, que agora voltava a refletir a luz do sol, depois de tantos anos‖ (FERNÁNDEZ
PAZ, 2002, p. 161, Tradução Nossa) e que ―no interior tinha uma inscrição gravada:
‗Sara‘, as quatro letras do meu nome‖286 (FERNÁNDEZ PAZ, 2002, p. 162, Tradução
Nossa).

A narrativa em foco conta com onze capítulos, todos eles enumerados, mas
sem títulos. A obra é abundante em paratextos, tais como, cartas trocadas entre
Ramón e Sara Salgueiro; o diário do tio de Sara durante os anos em que permanecera
preso na Ilha de San Simón, dentre outros documentos que rememoram um período
brutal da história da Espanha.

Quanto à organização interna de Noite de voraces sombras, constata-se que


não há uma ordenação cronológica dos fatos, mas sim um movimento de zigue-zague,
tendo em vista que presente e passado fundem-se em um processo de descoberta e
de reconstrução de identidades individuais e coletivas, especialmente, porque Sara e
sua mãe permanecem unidas nessa jornada.

285
Localizada na ría de Vigo (Galícia/Espanha) tem uma vasta história desde a Idade Média,
mas sua representatividade na obra está relacionada às décadas de 30 e 40, período que
compreendeu, sobretudo, a Guerra Civil Espanhola. O local funcionava como uma espécie de
―campo de concentração‖ destinado aos presos políticos contrários às ideias de Franco.
286
―un delgado anel de ouro, que agora volvia reflectir a luz do sol, despois de tantos anos‖
(FERNÁNDEZ PAZ, 2002, p. 161) e que ―no interior tiña unha inscrición gravada: «Sara», as
286
catro letras do meu nome‖ (FERNÁNDEZ PAZ, 2002, p. 162).
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Nota-se uma narração em primeira pessoa, ou seja, a partir da voz da


protagonista Sara: ―[...] Quando a tirei para fora, vi que era uma pasta de cartolina azul
cheia de papéis, velha e gasta pelo uso. [...] Havia mais coisas que fui tirando e
deixando também sobre a mesa [...]287 (FERNÁNDEZ PAZ, 2002, p. 64-5, Tradução
Nossa). Contudo, outras vozes também são destacadas, graças às cartas de Ramón e
Sara Salgueiro ―Que longos são os dias sem você! Conto-os um por um![...]‖288
(FERNÁNDEZ PAZ, 2002, p. 69, Tradução Nossa) e o diário do tio da adolescente: ―
‗Vou ter um julgamento e isso me faz estar, momentaneamente, a salvo dos passeios
noturnos. Por outro lado, de quê podem me acusar? De amor ao meu país?‘ ‖289
(FERNÁNDEZ PAZ, 2002, p. 87, Tradução Nossa).

Diante disso, percebe-se que a diversidade de vozes auxilia o leitor a


compreender melhor as etapas da vida de Ramón e de sua namorada, assim como
perceber as modificações que as descobertas daquele verão provocaram na jovem
Sara.

Em decorrência desse modo de narrar, confirma-se que a focalização da obra


ocorre por meio de um narrador-protagonista, isto é, os fatos são narrados a partir da
visão de Sara, como comentado acima. Acredita-se que esse seja um recurso muito
significativo nesse livro, sobretudo, porque a jovem reflete sobre o seu próprio
amadurecimento, tal qual já demonstrou Soto López (2008, p. 258, Tradução Nossa)
em seus estudos:

A narradora encarrega-se logo de advertir o leitor das


dimensões da experiência que vai contar, atribuindo um caráter
iniciático que demonstra a sua mudança interior, o seu novo
jeito de olhar a realidade após vivenciar algumas situações
concretas que lhe afetam profundamente, porque são reais e
autênticas, algo que nem ela mesma acreditava até o
momento. Desconstrói também desde o primeiro momento as
falsas expectativas que poderia suscitar a existência de uma
relação amorosa que, ainda que exista, nasce consciente do

287
―[...] Cando o saquei afora, vin que era unha carpeta de cartón azul ateigada de papeis, vella
e gastada polo uso. [...] Había máis cousas, que fun quitando e deixando tamén sobre a cama
[...]‖ (FERNÁNDEZ PAZ, 2002, p. 64-5).
288
Que longos se fan os días sen ti! Cóntoos un por un [...]‖ (FERNÁNDEZ PAZ, 2002, p. 69).
289
―«Vou ter un xuízo e iso faime estar, momentaneamente, a salvo dos paseos nocturnos. Por
outra banda, de que me poden acusar? De amor ao meu país?»‖ (FERNÁNDEZ PAZ, 2002, p.
87).
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seu caráter efêmero, revestida pela magia e intensidade do


verão290.

Já a temática principal da narrativa gira em torno da Guerra Civil Espanhola e


de suas consequências aos que eram contrários às ideias difundidas pelo Franquismo,
um tema delicado – e visto também como tabu (ROIG RECHOU, 2008c, 2010a) – e é
representado na obras de Fernández Paz por meio de documentos escondidos e
encontrados pela protagonista Sara. A partir de escritos de seu tio, é possível
dimensionar as brutalidades desse período, como, por exemplo, a prática dos paseos
nocturnos:

[...] Ali estivera quase três meses, em terríveis condições, com


a angústia de saber que cada noite recebiam a visita dos
assassinos, um ritual terrível que o tio contava com uma frieza
objetiva: despertávamos (se é que não o fazia já o ruído do
caminhão em que chegavam), liam a lista de nomes que
traziam preparada e levavam com eles os escolhidos daquele
dia. Os seus cadáveres apareciam na manhã seguinte nas
beiras de qualquer das estradas próximas à cidade. Meu tio se
livrou, mas os seus amigos não. («Esta noite levaram Carlos e
Diego. Chorei até que amanheceu. Nunca voltarei a vê-los.
Talvez o que me salvou foi o feito de eu ser de Viveiro, nenhum
dos verdugos daqui me conhecia antes») (FERNÁNDEZ PAZ,
2002, p. 81-2, Tradução Nossa)291.

Dessa forma, cabe recuperar as considerações de Soto López (2008) ao


esclarecer que uma das intenções de Fernández Paz foi a de mostrar às novas
gerações esse amargo passado, assim como a ideia de ―desenterrar‖ um de muitos
mortos esquecidos e lhe devolver a dignidade. Portanto:

290
―A narradora encárgase axiña de advertir o lector das dimensións da experiencia que vai
contar, atribuíndolle un carácter iniciático que recalca a súa mudanza interior, o seu novo xeito
de ollar a realidade tras vivir uns feitos concretos que lle afectan profundamente porque son
reais e auténticos, algo no que mesmo non acreditaba até daquela. Desbota tamén desde o
primeiro momento as falsas expectativas que podería suscitar a existencia dunha relación
amorosa que aínda que existe, nace consciente do seu carácter efémero, cinguido á maxia e á
intensidade do verán‖ (SOTO LÓPEZ, 2008, p. 258).
291
“[...] Ali estivera case tres meses, unhas condicións espantosas, coa angustia de saber que
cada noite recibían a visita dos asasinos, un ritual terrible que o tío contaba com obxectiva
frialdade: espertábanos (se é que non o facía xa o ruído do camión en que chegaban), lían a
listaxe de nomes que traían preparada e levaban canda eles os elixidos daquel día. Os seus
cadáveres aparecían á maña seguinte nas beiras de calquera das estradas próximas á cidade.
Meu tío librouse, pero non os seus amigos. («Esta noite levaron a Carlos e a Diego. Chorei ata
que amenceu. Nunca os volverei a ver. Quizais me salvou o feito de ser de Viveiro, ningún dos
verdugos de aquí me coñecía de antes»)‖ (FERNÁNDEZ PAZ, 2002, p. 81-2).
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[...] a história de Ramón Peña Díaz e de Sara Salgueiro


representa a de milhares de pessoas anônimas cujas
existências se veem destruídas em razão de um conflito. É
assim desde um contexto particular que se configura uma
história de alcance universal (SOTO LÓPEZ, 2008, p. 269,
Tradução Nossa)292.

A leitura, a escrita e a literatura também têm um papel fundamental nessa


narrativa galega. Essa característica já foi levantada por Roig Rechou (2010, p. 165),
na construção de outras personagens do autor em evidência neste artigo e salienta
que:
[...] muitas das personagens das obras de Fernández Paz
caracterizam-se por ter bibliotecas, por ter leitores vorazes de
obras de autores clássicos da literatura galega, sobretudo da
institucionalizada, mas também de outras literaturas, neste
caso muitos clássicos da literatura infantojuvenil, e por recorrer,
em muitas passagens das suas obras, a espaços dessas obras
clássicas ou a reflexões, sentimentos e episódios nelas
vazados que falam de enciclopédias repletas de intertextos
interiorizados em cada personagem, uma marca do leitor
modelo ao qual Fernández Paz aspira.

Assim, todos esses elementos podem ser visualizados ao longo dos onze
capítulos da obra Noite de voraces sombras, pois Sara, seus pais e seu tio Ramón são
leitores, mas a representação máxima de importantes nomes da literatura ocorre por
meio da biblioteca do tio da jovem, tal e qual demonstram os trechos da sequência:

Talvez os que mais tinham eram os de aventuras, com autores


que se repetiam uma e outra vez: Alexandre Dumas, Emilio
Salgari, Jules Verne, Robert L. Stevenson, Walter Scott, Edgar
Rice Burroughs, Herbert G. Wells... Muitos títulos eram
familiares, e havia alguns que eu já lera, mas outros era a
primeira vez que os via (FERNÁNDEZ PAZ, 2002, p. 34-5,
Tradução Nossa)293.

[...] A minha maior admiração foi quando vi que uma parte dos
títulos estava em francês: As flores do mal, de Baudelaire;
Elegias, de Verlaine; Álcoois, de Apollinaire; As iluminações, de
Rimbaud...Como era possível? Mas a minha investigação ainda

292
―[...] a historia de Ramón Peña Díaz e de Sara Salgueiro representa a de milleiros de
persoas anónimas cuxas existencias se ven fanadas por mor dun conflito. É así como desde un
contexto particular se configura unha historia de alcance universal (SOTO LÓPEZ, 2008, p.
269)‖.
293
“Quizais os que máis abundaban eran os de aventuras, com autores que se repetían unha e
outra vez: Alexandre Dumas, Emilio Salgari, Jules Verne, Robert L. Stevenson, Walter Scott,
Edgar Rice Burroughs, Herbert G. Wells... Soábanme moitos títulos, e había alguns que xa
lera, pero outros era a primeira vez que os vía‖. (FERNÁNDEZ PAZ, 2002, p. 34-5)
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me reservava uma surpresa maior. Quando examinei a última


parte da estante, descobri que ela estava toda ocupada por
livros em galego: Cabanillas, Otero Pedrayo, Castelao,
Cunqueiro, Manuel Antonio, Risco, Rosalía...[...] (FERNÁNDEZ
PAZ, 2002, p. 35-6, Tradução Nossa)294.

Há ainda uma variedade de outras referências literárias e musicais que Sara


recupera de seu repertório, tais como, a música ―Clandestino‖, de Manu Chao (que
integra o primeiro álbum solo do cantor, de 1998, com o mesmo título), e faz menção
direta às situações vivenciadas por Ramón; ou também nomes importantes para a
geração dos pais da jovem, como os Kinks, os Beatles e os Rolling Stones.
Assim, essa obra de Fernández Paz, caso não rememore muitas dessas
referências da bagagem cultural do próprio leitor, certamente inspira e incentiva esse
receptor a mergulhar nesses novos universos.
Sobre o final da narrativa, observa-se o fechamento de um ciclo, quando Sara
e Cristina, sua mãe, vão até a Ilha de San Simón e a jovem encontra o anel que
simbolizava o amor de seu tio por Sara Salgueiro:

[...] Aquele anel que meu tio escondera era o seu bem mais
precioso; para ele teve que ser muito mais que uma joia, o
talismã que talvez lhe dera forças para resistir aos amargos
anos de prisão. O mesmo anel que estivera naquela gruta
tantos anos, aguardando a minha chegada. Estremeci ao
pensar que poderia ficar ali para sempre, soterrado como em
uma tumba até o fim dos tempos. Quem estava movendo os
fios do destino? [...] Bem sabia que eu não era a Sara que
figurava na joia, mas também, acreditava que só a mim
correspondia herdar aquele anel [...] (FERNÁNDEZ PAZ, 2002,
p. 162-3, Tradução Nossa)295.

Nota-se, por último, que o final da obra sugere o amadurecimento de Sara,


sobretudo por rememorar e ressignificar um passado familiar que havia sido silenciado

294
O meu abraio foi máximo cando vin que unha parte dos títulos estaban en francés: Les
fleurs du mal, de Baudelaire; Elégies, de Verlaine; Alcools, de Apollinaire; Les illuminations, de
Rimbaud...Como era posible? Pero a miña pescuda aínda me reservaba unha sorpresa maior.
Cando me puxeron a examinar o último corpo da libraría, descubrín que todo el estaba
ocupado por libros en galego: Cabanillas, Otero Pedrayo, Castelao, Cunqueiro, Manuel
Antonio, Risco, Rosalía...[...]‖. (FERNÁNDEZ PAZ, 2002, p. 35-6)
295
“*...+ Aquel anel que meu tío agochara era o seu ben máis prezado; para el tivo que ser
moito máis ca unha xoia, o talismán que quizais lle dera forzas para resistir os amargos anos
de cadea. O mesmo anel que estivera naquela furna tantos anos, agardando pola miña
chegada. Estremecinme ao pensar que puido quedar alí para sempre, soterrado como nunha
tumba ata a fin dos tempos. Quen estaba a mover os fíos do destino? [...] Ben sabía que eu
non era a Sara que figuraba na xoia, pero tamén adiviñaba que só a min me correspondía
herdar aquel anel [...]‖ (FERNÁNDEZ PAZ, 2002, p. 162-3).
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durante tantos anos: ―[...] O anel segue comigo, lembrando-me o passado de onde
venho e enchendo-me de confiança a cada novo dia. Suponho que não será fácil viver,
296
mas não tenho medo. Porque em mim está o futuro‖ (FERNÁNDEZ PAZ, 2002, p.
165, Tradução Nossa).

Considerações Finais

Segundo Roig Rechou (2010, p. 165), Agustín Fernández Paz tem um manejo
esmerado quanto à forma de narrar e ao emprego de registros adaptados para seus
destinatários, ―artesanato que faz com que o conjunto de sua obra possa ser do gosto
de qualquer tipo de leitor, uma vez que as leituras são múltiplas‖.
Como foi possível constatar, Noite de voraces sombras consegue equilibrar
uma linguagem despojada, que atrai o público leitor jovem, com uma linguagem séria
– por vezes, direta, por vezes poética – ao retratar as memórias do tio de Sara e todos
os eventos pelos quais ele passou.
Embora a obra não tenha recebido premiações, não deixa de ser significativa
no âmbito da literatura juvenil galega, tendo em vista que foi considerada pioneira no
subsistema juvenil da Galícia por tratar com profundidade de um tema pouco
abordado, sabendo-se da necessidade de ―resgatar o esquecimento‖ e os
acontecimentos anteriores à Guerra Civil Espanhola, bem como as consequências
desse conflito (SOTO LÓPEZ, 2008, p. 251-2).
Finalmente, mas sem encerrar as discussões acerca do assunto ou da obra em
questão, a narrativa de Fernández Paz, presente neste trabalho, traz à tona esse
período histórico como uma forma de os jovens descobrirem as barbáries ocorridas
naqueles anos. Ademais, a protagonista conhece a história de familiares envolvidos na
guerra e tem experiências sobrenaturais que a remete às memórias de pessoas que
foram repreendidas durante esse tempo sombrio.

Referências

EDICIÓNS Xerais de Galicia S. A. Agustín Fernández Paz. Disponível em:


<http://agustinfernandezpaz.gal/>. Acesso em 10 set. 2017.

FERNÁNDEZ PAZ, A. Noite de voraces sombras. Vigo: Edicións Xerais de Galicia,


2002.

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―[...] O anel segue comigo, lembrándome o pasado de onde veño e enchéndome de
confianza cada novo día. Supoño que non ha ser fácil vivir, pero non teño ningún medo. Porque
en min está o futuro‖. (FERNÁNDEZ PAZ, 2002, p. 165)
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ISBN: 978-85-69697-03-9
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EIXO TEMÁTICO 8

Literatura Infantil e Ensino


Literatura infantil e ensino
Daniela Segabinazi (Universidade Federal da Paraíba), Rosana Rodrigues da
Silva (Universidade do Estado do Mato Grosso) e Elizabeth da Penha Cardoso
(Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP)

Tendo seu surgimento condicionado às transformações sócio históricas que


deram origem à concepção de infância, a literatura infantil se desenvolveu e se
consolidou como arte comprometida aos interesses da família e da escola.
Desse modo, atende às exigências do contexto em que está inserida, o que
fica claro no projeto de nacionalização que marca a literatura infantil na virada
do século XIX. Os caminhos que essa literatura percorre que vão do idealismo
exaltado e didatismo ao lúdico e à interação com o leitor, deságuam na
contemporaneidade em espaço multicultural e transdisciplinar em que a voz de
narradores e personagens discutem diferentes conflitos identitários da criança.
A literatura infantil contemporânea se reconfigura no diálogo com a tradição
oral e popular, com as vanguardas artísticas, os posicionamentos políticos, as
tecnologias e abre novas possibilidades de leitura e interação com o leitor e o
mediador da leitura no livro pensando como objeto artístico e no espaço da
web. Atendendo à formação do leitor, nesse novo contexto, as propostas ou
estratégias no ensino da leitura literária visam o envolvimento da criança no
processo de construção de sentidos. Nesse percurso, os gêneros que
compõem a literatura infantil são considerados em suas especificidades e
diferentes formas de adaptação e no diálogo com a tradição. Os contos de
fadas, as narrativas dramatizadas, os poemas que convidam ao lúdico, são
algumas das formas apresentadas que, nutridas do imaginário infantil,
convidam o leitor à participação de um novo mundo que se apresenta, que
nasce no processo da leitura. Para este eixo, serão aceitos trabalhos que
abarquem História, Crítica e Interpretação da produção literária infantil nacional
e internacional. Tradução, adaptação, mídias digitais, e-books e apps e
processos artísticos. Estudos de obras da literatura infantil e relatos de práticas
de trabalhos que vão desde a leitura interpretativa da ilustração, às propostas
com diferentes gêneros (poesia, teatro, conto e romance, HQs, literatura em
quadrinhos, mitos e lendas, etc.).
ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

A LEITURA LITERÁRIA
NA EDUCAÇÃO INFANTIL: REFLEXÕES PARA A FORMAÇÃO
DO ALUNO-LEITOR COMPETENTE

Francisca dos Santos Teixeira, SEMEC-PI


Literatura infantil e ensino

Considerações iniciais

O contato com a leitura literária, desde os primeiros anos da vida escolar,


torna-se um estímulo para que a criança possa construir um processo interativo com o
texto, de forma autêntica e prazerosa. Assim, desde a educação infantil, a pessoa
desenvolve hábitos de leitura, tendo a oportunidade de crescer e consolidar-se como
leitor-competente, passando a compreender a si mesma e ao mundo, de maneira
crítico-participativa.
Dessa forma, as experiências de vida cotidiana se fortalecem com a riqueza
da leitura literária, que se evidencia, através da imaginação e da fantasia, estamentos
que aguçam as potencialidades interpretativas da criança, que, assim, pode dialogar
com o que lê, entendendo as especificidades textuais, de forma clara e segura.
Ademais, a sociedade tem vivenciado transformações que exigem de seus
sujeitos o domínio de conhecimentos cada vez mais complexos e dinâmicos que
envolvem competências e habilidades necessárias às interrelações e construções
identitárias cotidianas.
A leitura literária, temática desse estudo, constitui-se, pois, atividade relevante
nesse processo, contribuindo para a formação de leitores competentes e reflexivos da
estética do texto, nas suas dimensões de estilo, linguagem e representação social.
Com esse entendimento, objetiva-se refletir sobre a leitura literária na
educação infantil, considerando o aluno sujeito-autônomo na construção desse
processo. Assim, problematizam-se aspectos específicos da interação leitor-texto bem
como as estratégias criadas pela escola para a efetivação das práticas leitoras em
seus espaços educacionais.
Este estudo embasa-se, metodologicamente, na pesquisa bibliográfica, num
diálogo permanente com D‘Onófrio (1995), Miguez (2000), Lajolo (2008), Jauss (1979),
1370

Cosson (2007), entre outros autores que enfocam o tema. Para este incurso
epistemológico, contribuíram também as experiências que temos vivenciado como
docente de Língua Portuguesa e Literatura, de escolas das redes pública e privada de
ensino, espaços em que problematizamos, numa dimensão crítico-construtiva, práticas
passivas de leitura de textos ficcionais como mera exploração de conteúdos
gramaticais alheios às especificidades interpretativas da criança.

A leitura literária na formação do aluno-leitor competente

A leitura literária deve acontecer como encontro prazeroso entre o leitor e a


obra, tornando-se um ato significativo de individuação que reflete as aspirações e
perspectivas pessoais. A esse respeito, Santos & Souza (2004) consideram que a
escola deve construir estratégias adequadas à efetivação da leitura do texto literário
infantil, o que exige atenção com os métodos e conteúdos trabalhados, evitando-se,
assim, a concepção pragmatista e conteudista de decifração de normas e arranjos
gramaticais que afastam o leitor de uma autêntica relação de dialogicidade entre seus
anseios e as especificidades da obra.
Ademais, nem sempre o que se revela ou se manifesta na construção da
literatura infantil é fruto das aspirações da criança, haja vista que muitas narrativas e
poemas ditos da literatura infantil estão permeados de ideologias de adultos que os
escrevem, dentro de uma visão restrita e moralizadora embasada em preconceitos e
doutrinas preestabelecidas.
Cabe, pois, à escola valorizar o gosto que a criança tem pela descoberta,
sabendo que a criatividade, a fantasia e a emoção diante do novo são aspectos
inerentes à vida na infância, o que corrobora com Carvalho (1989, p. 21) ao afirmar
que ―a criança é criativa e precisa de matéria-prima sadia, e com beleza, para
organizar seu mundo mágico, seu universo possível, onde ela é dona absoluta:
constrói e destrói.‖
Por isso, diante dessa clara sensibilidade infantil, deve haver uma
preocupação da escola em efetivar, nos seus espaços de ensino, estratégias de
leituras significativas para fortalecer o encanto da criança pela beleza e arte literária, o
que se traduz como um incentivo a que haja um autêntico diálogo entre a obra e o
leitor, despertando-o para ampliar suas visões de interpretação textual num processo
de reflexão de suas dúvidas e desejos de superação dos conflitos e indagações
interferentes no crescimento leitor.

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Desse modo, deve-se trabalhar com alternativas didáticas que permitam à


criança desenvolver-se como leitor competente, vivenciando com liberdade os
constituintes dos textos literários, nos quais se descobre, descobrindo os múltiplos
mistérios que impregnam a história com seus espaços e personagens encantadores.
Todo esse processo de descobertas ficcionais adquire uma importância vital
para o enriquecimento da consciência leitora da criança, que reflete as expressões
linguístico-semânticas dentro de seu próprio entendimento de interpretação textual,
deixando de lado as intromissões de adultos que procuram impedi-la de uma cultura
autônoma e libertária de apreciação literária.

A leitura literária e a imaginação da criança

A literatura infantil como veículo expressivo da imaginação humana possibilita


ao leitor compreender os múltiplos sentidos ficcionais, relacionando as dimensões da
subjetividade reflexiva com as experiências construídas nos espaços vivenciais.
Assim, sendo o texto literário fruto da imaginação criadora com reflexos nas
realidades sociais, transcende o universo ficcional e se manifesta na cultura cotidiana,
refletindo os sonhos e as inquietações que alimentam a alma humana. Faz-se
necessário, então, que a leitura literária ocorra como uma atividade de apreciação da
estética textual, centrada na beleza e na construção libertária da linguagem metafórica
em seus múltiplos sentidos e referencialidades interpretativas.
Ler constitui-se, pois, uma atividade essencial à vida e ao processo de
construção das cidadanias. Por conseguinte, torna-se prática fundamental nesse
processo, o que ratifica Lajolo (2008, p. 106), ao dizer que:

É à literatura, como linguagem e como instituição, que se confiam os


diferentes imaginários, as diferentes sensibilidades, valores e
comportamentos, através dos quais uma sociedade expressa e
discute, simbolicamente, seus impasses, seus desejos, suas utopias.

Essas considerações se justificam, visto que a literatura, como arte da


palavra, alcança a intimidade da criança, nas dimensões intersubjetivas de
compreensão da realidade, constituindo-se, pois, um estamento inegável de
problematização das indagações e fantasias humanas.
Nesse sentido, Lajolo (2008) adverte que o texto literário infantil não deve ser
tomado como mero pretexto para o estudo de aspectos do currículo escolar voltados à
análise de estruturas linguísticas, temas transversais ou outros propósitos adversos à
essência do objeto da literatura. Isso porque a centralidade da literatura infantil: seu

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valor estético e capacidade de transfiguração do mundo e reflexão da realidade não


podem ser vistos em segundo plano, pois, conforme Cândido (1995, p. 245), não se
pode deixar de observar que ― toda obra literária é, antes de mais nada, uma espécie
de objeto, de objeto construído; e é grande o poder humanizador desta construção‖.
Por conseguinte, atividades literárias abrangentes de outras alternativas
pedagógicas como música, pintura, danças ou encenações teatrais facilitam a
interpretação prazerosa e criativa da obra literária, proporcionando ao leitor não
apenas o usufruto da estética textual, mas a compreensão e a vivência de bens
culturais construídos dentro de um processo de valorização das capacidades
autônomas de ver e entender o mundo.
Miguez (2000), por exemplo, reconhece a literatura como estamento
importante não para a simples exploração de elementos gramaticais, mas para a
formação de um leitor participativo e crítico frente às múltiplas possibilidades de
interpretação que o texto oferece.
Para isso, faz-se necessário que o professor tenha, no mínimo, uma
familiaridade com o texto literário, sabendo explorar seus tempos e espaços numa
relação com o maravilhoso e o surpreendente, o que se consolida como uma autêntica
arte que desperta o pequeno leitor para viver o mundo mágico e atraente da
linguagem literária, levando-o ao amadurecimento e segurança emocional para
experienciar e superar os obstáculos da vida.
Percebe-se, então, que, na educação infantil, pouca atenção é dada ao
imagismo da criança, tendo–se priorizado mais a percepção de professores que
cultivam uma moralidade desmotivadora e alienante que inibe manifestações leitoras
mais autênticas. A escola, assim, torna-se um espaço transmissor de conhecimentos
alheios à vontade e necessidades da criança, a qual não se sente valorizada em suas
formas e tempos de aprendizagem.
Nas próprias atividades pedagógicas com fábulas e contos de fadas, por
exemplo, a escola costuma priorizar os ensinamentos e a moral expressos, em
separado, após o texto, como formalidades de interpretação impositiva; quando o mais
coerente e produtivo seria o aluno refletir, na sua individuação leitora, os valores e
princípios embasantes dos textos literários, podendo questionar seus fundamentos,
identificando-se ou não com os mesmos.
Como expressa Rousseau (2004), o espírito do leitor-aprendente não deve
permanecer passivo diante da beleza e profundidade do texto literário. Antes, precisa
libertar-se das amarras e alienação educacionais e construir experiências de leitura

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que se eternizam na vida, alimentando os sonhos e a imaginação que estimulam a


fantasia e a curiosidade na realização das práticas cotidianas.
Com essas considerações corrobora Oliveira (2005, p. 125) ao dizer que: ―A
criança tem a capacidade de colocar seus próprios significados nos textos que lê,
quando o adulto permite e não impõe os seus próprios significados‖. Isso ratifica que a
criança tem suas formas de ver e interpretar o que se manifesta na tessitura textual,
mediatizada por suas dimensões de interioridade reflexiva de análise das experiências
vivenciais.
Apresenta-se, então, o texto literário como uma construção estética de
múltiplos sentidos, cujo objeto se singulariza em si mesmo, centrado nas dinâmicas da
fruição e do encontro pessoal com o encanto e a criatividade, permitindo a
extrapolação dos horizontes rasos e imediatos das práticas limitadoras de análise
textual.
Entende-se, por conseguinte, que o prazer em ler surge de leituras profícuas,
as quais permitem desconstruir preconceitos e incompreensões, relacionando
peculiaridades das tramas ficcionais com a própria vida, num campo imaginário de
emoções e sonhos relevantes das subjetividades humanas e experiências de cada
um, em seus espaços de atuação, o que foge às leituras restritas e predirecionadas
de textos que objetivam dar informações ou mudar comportamentos dentro de uma
cultura de valores contrários aos perfis identitários e anseios da criança.
Da mesma forma, é preciso pensar como Cosson (2007, p. 7) que ―ler implica
troca de sentidos não só entre o escritor e o leitor, mas também com a sociedade onde
ambos estão localizados‖, o que revela a leitura como um espaço complexo de
diversas visões, em que se cruzam uma multiplicidade de formas de ser e conviver,
repensando as dinâmicas de atuação nos espaços coletivos.
Esse processo de leitura literária torna-se um ato politizante que expressa as
potencialidades e atitudes da criança de singularizar-se na sua autoridade leitora,
entre tantos pontos de vista de apreciação dos sentidos textuais possibilitados pelo
uso da imaginação reflexiva. É conveniente lembrar que a leitura de obras literárias
não anula a percepção de outros saberes, antes os redimensiona como descoberta
prazerosa, resultante do interesse que estimula a curiosidade e a aprendizagem, de
maneira humanizada, no âmbito de compreensão dos conhecimentos da vida,
abrangendo as competências e habilidades linguística, cognitiva e emocional,
aspectos tão significativos à formação leitora integral da criança.
A escola deveria se constituir para o leitor-aprendente em um espaço de
discussão de ideias e conflitos, tomando o texto literário como um recurso importante
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nesse processo. Pinheiro (2002, p. 66), por exemplo, ressalta o valor de se ―privilegiar
o debate, sobretudo, por ser um instrumento democrático, por ser um momento de
todos revelarem, se quiserem, seus pontos de vista‖. A leitura literária, então, se
evidencia como veículo para a formação de leitores competentes, conscientes dos
diversos aspectos constituintes do texto, o que deve ser buscado e priorizado pelo
professor ao pensar suas estratégias de trabalho com a leitura de obras literárias.
Nesse sentido, a não-linearidade do texto literário aproxima-se das
faculdades emocionais da criança, em suas especificidades de brincar, interagir e
(re)criar a realidade, no mundo do ―faz-de-conta‖, de intensa fruição literária, em que
dialoga com o texto, num processo de conhecimento de si e da realidade à sua volta.
Há de se considerar que, para se construir um processo de leitura literária
proficiente, pode-se iniciar com a mobilização de conhecimentos prévios, os quais, na
visão de Kleiman (2004), podem ser ativados antes de se iniciar propriamente a
descrição dos signos linguísticos. As próprias ilustrações de capa, imagens de
personagens e ambientes ficcionais ou formato da obra criam uma atmosfera de
receptividade do texto pela criança, a qual dialoga com esses aspectos, na sua
intimidade interpretativa, atribuindo-lhes sentidos, no espaço vivencial da sensibilidade
humana.
Isso mostra que o nível de desenvolvimento leitor do aluno nãoacontece de
maneira isolada de outros fatores sociais importantes como, por exemplo, a família,
preponderante na determinação das primeiras experiências de vida da criança. É,
nesse espaço, que se confirma que ―a leitura do mundo, precede a leitura da palavra‖,
conforme Freire (1989, p. 9), ou seja, a influência do meio cultural, da família e dos
grupos de interação social constituem-se fortes estamentos no desenvolvimento leitor
do aluno.
Pode-se dizer, nesse sentido, que a literatura, enquanto arte, deve ser vista
como instrumento de apreciação estética e corresponder aos anseios da intimidade da
criança, em busca da satisfação das especifidades da psique infantil. Sob essa ótica, a
literatura suplanta as dimensões de mero diletantismo e passa a nutrir os espaços
interiores do aluno, saciando seus interesses de compreensão leitora. A esse respeito,
Frantz (2001, p. 16) coloca que

a literatura infantil é também ludismo, é fantasia, é questionamento e,


dessa forma, conseguir ajudar a encontrar respostas para as
inúmeras indagações do mundo infantil, enriquecendo no leitor a
capacidade de percepção das coisas.

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Esses aspectos literários se contrapõem às dimensões reducionistas das


atividades pedagógicas com histórias infantis efetivadas nos espaços escolares, haja
vista que muitas dessas práticas se revestem do caráter moralizante dos livros infantis,
escritos por adultos com intenção de transmitir concepções morais e juízos de valor
alheios aos interesses e peculiaridades da criança.
Ademais, muitos escritores apresentam uma visão extremamente simplista e
de uma baixa qualidade literária infantil, subestimando, assim, as capacidades
intelectuais de a criança compreender os sentidos recorrentes nos constructos
textuais. Jauss (1979) alerta sobre esses aspectos, prezando pela valorização da
estética textual e de seus princípios de construção poética, o que se contrapõe às
práticas superficiais de análise literária evidenciadas na escola tradicional.
Há de se entender que uma autêntica leitura literária aguça o imaginário da
criança transfigurando mitos, aparições, monstros e bruxas, num espaço subjetivo de
metaforização da realidade, dentro de um plano pessoal em que se misturam a
emoção, a fantasia e o sonho, na descoberta dos mistérios do texto.
Assim, é que se justifica o grande fascínio que as crianças têm pelos contos
de fadas, dada a forte sensibilidade estética das mesmas, num processo de clara
identificação com as personagens, os tempos e os espaços corporificantes dos
enredos ficcionais. Nesse sentido, Meireles (1984, p. 128) afirma que:
a natureza e intensidade dessas emoções podem repercutir na vida
do pequeno leitor, de maneira definitiva. Não apenas ele se lembrará,
até a morte, desse primeiro encantamento. Muitas vezes, a
repercussão tem resultados práticos: vocações que surgem, rumos
de vida, determinações futuras.

Em outras palavras, a relação leitor-texto privilegia os usos sociais da língua


como constituição de saberes expressivos das disposições humanas de questionar e
compreender a realidade, o que se afasta das imposições pedagógicas coercitivas
centradas em métodos intransigentes estabelecidos por indivíduos austeros e
inflexíveis transmissores de uma cultura leitora arcaica e indiferente às aspirações da
criança.
A literatura vem, então, fomentar o espaço da leitura na escola, contribuindo
na formação do aluno-leitor competente. Desse modo, o prazer de ler relaciona-se ao
prazer de criar, dando asas à imaginação e ao sonho, num processo contínuo de
construção e desconstrução de histórias diversas.
Sobre isso Abramovich (1997) expõe que, através da literatura, aumenta o
potencial literário da criança; e que, por meio de um material literário adequado, o
aluno torna-se capaz de (re)avaliar seus próprios pensamentos. Por conseguinte, é
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urgente pensar-se literariamente em textos que estimulem o imaginário, possibilitando


ao leitor (re)organizar os espaços em que vive.
É preciso considerar, então, a postura e o comprometimento do professor
com a formação de leitores. Essas análises devem focar ainda os métodos e
propostas pedagógicas usados com o ensino da literatura, buscando se romper com
as inócuas atividades centradas na exploração de conteúdos curriculares alheios aos
desejos do aluno, pois não importa apenas ler como obrigação didática, mas ler como
fruição e prazer, compreendendo que a leitura prazerosa e autônoma cumpre
relevante na formação do aluno-leitor competente. Cosson (2007, p. 27) fala que leitor
competente é

―aquele que agencia com os textos os sentidos do mundo,


compreendendo que a leitura é um concerto de muitas vozes e nunca
um monólogo. Por isso, o ato físico de ler pode até ser solitário, mas
nunca deixa de ser solidário‖.

É, nessa dimensão, que se ressalta o aluno como sujeito ativo, na construção


dos processos de leitura literária, individualizando-se na interação com o texto, na
elaboração dos múltiplos sentidos recorrentes nele.
Percebe-se, assim, que nem sempre as instituições escolares estão prontas
para contribuir com a formação de leitores competentes, não proporcionando o contato
da criança com os universos literários; contrariamente, limitam os potenciais de
interação leitor-texto, impedindo-lhe s prática libertária de interpretação textual, pois,
conforme Gouvea (2007, p.125):
A imaginação permite-nos desenvolver o pensamento criativo,
fundamental para nossa inserção no mundo. Contudo, a escola pouco
valoriza e trabalha a imaginação, como se ela fosse apenas resultado
de uma racionalidade pouco desenvolvida na criança, como se, ao
longo do processo de desenvolvimento, a imaginação fosse
substituída pela razão, característica do pensamento adulto.

As considerações da autora reforçam o papel da imaginação para a leitura


literária, bem como distinguem a escola como espaço de realização desse processo, o
qual nem sempre se efetiva de maneira satisfatória, mas, de modo a ressaltar
habilidades de leitura como mera instrução ou aquisição de valores morais.
Lajolo (2008) reforça que as atividades pedagógicas com obras literárias que
envolvem os usos de elementos gramaticais devem estar a serviço do objeto literário e
não o contrário. A própria expressão ―Era uma vez...‖, típica das iniciações de contos e
fábulas apresenta um verbo no pretérito imperfeito do indicativo, ratificando indefinição
e continuidade das ações ficcionais no universo psicológico de idas e voltas, em

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contraposição à linearidade das cronologias narrativas, o que precisa ser notado pela
subjetividade da criança.
No âmbito dessa liberdade de apropriação do objeto literário, a escola pode
organizar momentos lúdicos com jogos e brincadeiras que proporcionem leituras
dinâmicas, autônomas e divertidas do texto literário, considerando, conforme Vygotsky
(1996), que o brincar não se constitui mera fantasia para a criança, mas espaço
concreto e simbólico de realização de sonhos, fundamento importante ao
desenvolvimento cognitivo e afetivo, nos seus processos de compreensão de mundo.
Por conseguinte, o contato pessoal e autônomo da criança com a obra
literária, permite-lhe manusear o livro, realizar retomadas ao texto e fruir com alegria
todo o encanto da linguagem e dramaticidade dos enredos apresentados. Isso
possibilita a interação pessoal com as dimensões implícitas do texto, contribuindo para
a maturidade e a segurança necessárias à construção identitária do leitor competente.

O encontro e o encanto da criança com a literatura infantil

As metáforas e demais recursos figurativos são importantes para a


construção dos processos simbólicos de identificação da criança com o mundo da
leitura, o que, conforme Klein apud Aberastury (1982, p. 48) constitui-se ―uma ponte
entre a fantasia e a realidade‖, contribuindo para o processo de individuação crítica de
fortalecimento das capacidades subjetivas de interpretação textual.
Sob esse enfoque, o autêntico processo de leitura literária evidencia o aluno
como sujeito ativo que se encontra e se encanta com o fluxo narrativo da obra aberta à
fruição estética de realização das aspirações humanas.
Assim, é preciso considerar o fato de que, muitas vezes, o adulto com suas
intepretações textuais moralizantes busca impor ao aluno uma visão única e
estereotipada dos enredos ficcionais, o que contribui para impedir a criança de
descobrir, por si mesma os valores inerentes aos fatos narrados na interface de
identificação com seus próprios conflitos vivenciais. A esse respeito, têm-se as
seguintes considerações de Bettelheim (1980, p. 27).

Nós crescemos, encontramos sentido na vida e segurança em nós


mesmos por termos aprendido a resolver problemas pessoais por
nossa própria conta, e não por eles terem sido explicados por outros.

Isso mostra que, quando a criança se apropria da essência literária, refletindo


sobre a linguagem e os aspectos gráfico-imagísticos da obra, estabelece um processo

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de leitura autônoma dos fantásticos e múltiplos enredos, num diálogo permanente com
as dimensões pessoais de leitura do mundo.
A realização desse processo torna-se possível no encontro da criança com a
literatura infantil, espaço em que as fadas, bruxas e princesas simbolizam a dualidade
do homem como ser imperfeito que busca o equilíbrio e a segurança nos muitos
espaços e tempos da vida. Tais especificidades devem ser, então, valorizadas pela
escola, nas atividades de leitura literária, possibilitando à criança refletir sobre os
conceitos do ―bem‖ e do ―mal‖, sem as moralizantes formas de compreensão textual.
A leitura literária, então, permite à criança sentir-se sujeito dos enredos
imaginários, podendo identificar-se ou não com os mesmos, o que confirma Bettelheim
(2002, p. 17), ao dizer que ―a forma simbólica sob a qual são apresentadas as
situações permite ao ouvinte, ou ao leitor, sentir-se implicado, não deixando por isso
de manter as suas distâncias‖.
Essa concepção literária considera a criança leitora partícipe na construção
dos conflitos e episódios apresentados, a qual pode questionar os feitos heroicos, as
causas e consequências das ações das personagens, bem como os constantes finais
felizes, recorrentes nas fantásticas tramas.
Segundo D`Onófrio (1995), a escola se apresenta como um espaço de
aprendizagem institucionalizada e, como tal, deve buscar a popularização das obras
literárias e o acesso das crianças às mesmas, contribuindo para que conheçam obras
de estilos diversos, desde os contos populares clássicos, até obras contemporâneas
da literatura infantil, relevantes à aprendizagem leitora.
A esse respeito, o autor destaca Chapeuzinho Vermelho, clássico da literatura
infantil, ressaltando que a mesma oferece múltiplas possibilidades de leitura as quais
focalizam aspectos determinantes da vida, dentro de um processo simbólico-
expressivo de questões como submissão e rupturas, verdade e mentira, segurança e
perigo, ingenuidade e maturidade, entre outras dimensões do comportamento
humano.
Essa obra possibilita visões interpretativas diversas, o que pode ser
incentivado por meio de outras propostas de intertextualidades ou releituras das
próprias versões originais. Nesse sentido, a forte carga emocional do medo, das
limitações e da transgressão evidenciada nas versões da obra apresentada por
Perrault, assim como a ingenuidade tipificada no clássico dos Irmãos Grimm passam a
ser superadas em versões mais modernas e atualizadas da obra.
Em ―Chapeuzinho Amarelo‖ de Chico Buarque de Holanda, por exemplo, a
personagem principal vence seus medos e temores assimilados com a escuta de
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Chapeuzinho Vermelho. O Lobo tão assustador agora não mais devora nem
amedronta, antes se desvela em um bolo em forma de lobo, o que atenua o teor
sombrio e as repressões moralizantes expressas nas primeiras versões.
Todo esse processo de intertextualidade resulta na interação dialógica que
envolve texto e contexto, autor e leitor, fomentando a criação de novos textos, dentro
de outras óticas de compreensão das intersubjetividades literárias, o que precisa ser
tomado como estratégia de leitura nos espaços formativos; pois, conforme Gullén
apud Nitrini (1997, p. 65), ―[...] passam no texto, redistribuídos nele, pedaços de
códigos, fórmulas, modelos, fragmentos de linguagem‖, aspectos que podem ser
redimensionados por um leitor dinâmico competente.
Considerações finais

As análises realizadas nesse estudo ratificam a aprendizagem leitora como


um processo contínuo que se desenvolve por toda a vida, nos múltiplos espaços e
tempos da existência humana.
A literatura infantil, por sua própria concepção simbólica e linguagem
metafórica, constitui-se recurso imagístico para a percepção autêntica da criação
literária, estimulando as dimensões cognitivas e sociorrelacional da criança, as quais
devem ser tomadas como instrumentos polissêmicos de compreensão textual, nas
suas diversas formas de construção e manifestação social.
Nesse sentido, a criança com seus anseios e curiosidades diante do mundo
precisa ser considerada, no âmbito das atividades pedagógicas com o texto literário,
cabendo à escola o papel de implementar um ensino literário efetivo, focando as
dimensões de subjetividade e as perspectivas pessoais, em suas diversas formas de
interpretação textual.
O desenvolvimento desta pesquisa singulariza a leitura literária como objeto
específico de recepção e apreciação leitora, centrado em experiências e métodos
próprios, que se afastam das infrutíferas atividades pedagógicas exploratórias de
conteúdos gramaticais, alheios às necessidades e desejos da criança. Ratifica-se a
escola como instituição importante para as aprendizagens literárias; e, como tal, deve
estabelecer-se como espaço de motivação para a formação do aluno-leitor
competente.
Sob esse enfoque, ressalta-se a leitura literária como prática de individuação
crítica que transpõe os limites coercitivos das estratégias de leitura mecanicista
impostos pela escola. Valorizam-se, então, os eventos literários como movimentos

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simbólicos importantes para a maturidade interpretativa do aluno-leitor, frente aos


fatos ficcionais, num confronto experiencial com as estruturas do texto.
Isso mostra que não se pode tomar o texto literário infantil para fins alheios às
suas especificidades. Faz-se necessária a sua valorização pedagógica, como meio de
contribuir para a formação leitora do aluno, como ser que interpreta o mundo num
processo de interação com as estruturas textuais.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

A LITERATURA INFANTIL NA ALFABETIZAÇÃO E O PROCESSO


DE (TRANS)FORMAÇÃO DE LEITORES E ESCRITORES

Regiane Pradela da Silva Bastos, SEDUC - MT, literatura infantil e ensino


Cancionila Janzkovski Cardoso, UFMT- CUR, literatura infantil e ensino
Claudia Leite Brandão, SEDUC-MT, UNESP - PP, literatura infantil e ensino

Considerações Iniciais

A literatura infantil deve fazer parte da (trans)formação de leitores e


escritores, pois as histórias literárias são, comprovadamente, proveitosas para o
processo de formação e constituição humana, nos aspectos cognitivo, afetivo e social.
Nesta perspectiva, este artigo tem como objetivo apresentar/discutir dados de
pesquisa que evidenciam processos de ensino e aprendizagem de leitura e de escrita,
a partir de uma prática leitora com a obra ―Menina bonita do laço de fita‖, de Ana Maria
Machado, com ilustração de Claudius. As atividades foram realizadas com alunos/as
do primeiro ano do Ensino Fundamental, no final do segundo semestre do ano letivo
de 2016, em uma escola estadual da cidade de Rondonópolis – Mato Grosso (MT), em
que uma das autoras era a professora da turma.
Valemos-nos da abordagem qualitativa, na perspectiva de estudo de caso,
para responder a seguinte questão de pesquisa: Como a literatura infantil,
desenvolvida nas práticas escolares, pode fazer parte da constituição de sujeitos/as
leitores/as e escritores/as? Para tanto, tomamos como referencial teórico os/as
seguintes autores/as: Cândido (1995), Gregorin Filho (2016), Girotto e Souza (2010),
Faria (2013), Solé (1998), Abramovich (1993), entre outros/as.
A pesquisa fundamenta-se no direito à literatura (Cândido, 1995),
materializado nos atos de ler, ouvir, contar ou escrever, pois se entende que as
vivências e experiências promovidas pelo contato com as histórias infantis, no caso
das crianças, ampliam suas referências culturais, facilitando o desenvolvimento do
processo de aprendizagem da leitura e escrita.
1383

O direito à literatura no processo de alfabetização e letramento

[...] a literatura infantil torna o mundo e a vida compreensíveis, porque


revela outros mundos e outras vidas; a fantasia, o imaginário na
literatura infantil têm papel e função valiosos no processo de
amadurecimento emocional da criança; a leitura literária possibilita o
acesso da criança ao rico acervo de contos de fadas, de fábulas, de
poemas que fazem parte da cultura de nossas sociedades orientais.
(SOARES, 2010, p. 16).

No processo de alfabetização é importante considerar as três facetas


apresentadas por Magda Soares (2016): linguística, interativa e sociocultural, a
primeira designada alfabetização e as outras duas de letramento. Apesar de serem
processos distintos, os dois devem ocorrer concomitantemente, e para isso a literatura
infantil exerce uma função importante, pois as crianças ao interagirem com os livros
estão tendo contato com materiais reais de leitura e escrita.
Ana Luiza Smolka (2012) também ressalta a importância da literatura infantil
como elemento mediador no processo de aquisição da escrita, por ser uma forma
essencialmente lúdica de linguagem escrita.
Dessa maneira, é fundamental que professores/as, escola e políticas públicas
encarem a literatura na perspectiva de um entre outros direitos humanos,
reconhecendo, como sugere Antônio Cândido (1995, p. 178) ―que aquilo que
consideramos indispensável para nós é também indispensável para o próximo‖. Neste
sentido, é fundamental proporcionar o contato dos/as alunos/as com livros infantis,
visto que, em nossa sociedade, dadas as condições socioeconômicas das famílias das
camadas populares, o primeiro contato de muitas crianças com livros literários só irá
acontecer na escola.
Concordamos com Cândido (1995, p. 173), quando explicita o problema dos
direitos humanos, a partir da distinção entre ―bens compreensíveis‖ e ―bens
incompreensíveis‖, sendo esses últimos ―os que não podem ser negados a ninguém‖.
O autor afirma que

[...] na luta pelos direitos humanos, são bens incompreensíveis não


apenas os que asseguram a sobrevivência física em níveis decentes,
mas os que garantem a integridade espiritual. São incompreensíveis
certamente a alimentação, o vestuário, a instrução, a saúde, a
liberdade individual, o amparo da justiça pública, a resistência à
opressão etc.; e também o direito à crença, à opinião, ao lazer e, por
que não, à arte e à literatura. (CÂNDIDO, 1995, p. 173-174)

A literatura enquanto direito deve ser assegurada pelas instituições


educacionais, visto que está previsto na LDB nº 9394/96, postulada em seu Art. 32,

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que a educação tem como objetivo a formação básica do cidadão, promovendo o


desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo pleno domínio da leitura
(BRASIL/LDB, 2015).
Nessa perspectiva, lembramos que o letramento literário é uma das funções da
escola e, segundo Rildo Cosson (2014, p. 185), esse é um ―processo de apropriação
da literatura enquanto linguagem‖ e que para promovê-lo é necessário ir além de uma
simples leitura de um texto literário. Quanto à prática pedagógica, o autor ainda afirma
que esse processo pode ser efetivado com a interação do leitor com as obras
literárias, o compartilhamento de leituras, ampliação do repertório literário, e,
―atividades sistematizadas e contínuas direcionadas para o desenvolvimento da
competência literária, cumprindo-se, assim, o papel da escola de formar o leitor
literário‖ (COSSON, 2014, p. 185).
Importante, destacar, ainda, que o acesso à literatura é relevante para a
apropriação do vocabulário e estrutura da escrita nos seus diferentes gêneros, além
de possibilitar o desenvolvimento estético, da capacidade crítica, da criatividade e
ampliação dos horizontes. Cândido (1995) também ressalta que a literatura tem a
função humanizadora, que é uma forma de expressão, que manifesta emoções e a
visão do mundo e dos indivíduos e grupos.
Sendo assim, é importante a utilização de diversas estratégias de leitura para
que as crianças se tornem leitores e escritores.

A relação entre literatura e ensino: O uso de estratégias de leitura

O encontro da criança com os livros abre o mundo da


língua escrita, ou seja, de uma outra linguagem. À
riqueza da língua oral se acrescenta a da língua
escrita que, por sua vez, vai participar da educação da
pessoa em todas as suas dimensões, imaginária,
científica, cívica, mas também linguageira e cognitiva.
(BAJARD, 2014, p. 43)

É sabido que as práticas de leitura estão presentes nas salas de aula e que
muitas vezes a literatura é utilizada apenas na perspectiva do deleite e/ou no
desenvolvimento de trabalhos cujo objetivo principal são os aspectos didáticos e
pedagógicos, fato que ocasiona o esquecimento da literariedade do livro. José Nicolau
Gregorin Filho (2016, p. 63) acentua que ―[...] muitas vezes, o aluno, no seu contato
com o fazer literário, não vê o mundo, seu universo cultural representados

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esteticamente no/pelo livro de literatura, usando aquilo que seria palavra-arte apenas
como aplicação de teorias e modelos de leitura.‖
Nesta direção, indagamos: Qual a relação da literatura com o processo de
ensino e aprendizagem? Como utilizar as obras literárias em sala de aula? O uso da
literatura não deve seguir procedimentos didáticos ou pedagógicos?
Algumas dessas questões são facilmente respondidas por diversos
pesquisadores como Fanny Abramovich (1993), Cyntia Graziella Guizelim Simões
Girotto e Renata Junqueira de Souza (2010) e Maria Alice Faria (2013) quando
ressaltam a importância de práticas de leitura literária entre aluno/as e professores/as.
Deste modo, a literatura não deve ser utilizada em um direcionamento simplesmente
utilitário, fazendo com que a presença da história seja reduzida a uma abordagem
pedagógica para a compreensão específica de alguns conhecimentos pré-
determinados (gramática, lição de moral, entre outros). João Luís Ceccantini e Thiago
Alves Valente (2014), explicam que não é que não se pode ou não se deve propor
atividades a partir da leitura de uma obra literária, e sim que

[...] estas podem e devem ser realizadas, mas com delicadeza, para
não relegar o texto em si a segundo plano, adotando-se, sobretudo,
uma perspectiva tanto afinada com a busca contínua da construção
de sentidos para a obra lida quando empenhada em valorizar as
dimensões afetivas e lúdicas próprias da leitura literária, que
geralmente envolvem a ação de compartilhar com outros sujeitos a
leitura realizada. (CECCANTINI; VALENTE, 2014, p. 28)

Na concepção de Gregorin Filho,

A escola precisa, urgentemente, promover mudanças radicais na sua


maneira de pensar a formação de leitores e, mais ainda, pensar em
formar leitores para a leitura da vida e da sociedade reorganizadas no
e pelo texto literário. E isso desde os primeiros anos da vida escolar.
(GREGORIN FILHO, 2016, p. 63)

Nesse sentido, queremos chamar a atenção para a inserção da literatura como


um objeto estético nas práticas de leitura por meio do uso das estratégias de leitura
propostas por Isabel Solé (1998) e Girotto e Souza (2010). Por isso, concordamos que
os/as professores/as precisam oferecer situações de leitura literária com
direcionamentos para possibilidades de que leitores/as e ouvintes/as possam
estabelecer ―[...] o conhecimento prévio, estimulando a fazer conexões entre suas
experiências, seu conhecimento sobre o mundo e sobre o texto‖ (GIROTTO; SOUZA,
2014, p. 55).

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O leitor, ao ler, busca significados, procurando compreender o mundo em que


vive, uma vez que as realizações humanas são registradas pela escrita e, assim, por
meio da leitura o homem interage com a realidade sociocultural.
Dessa forma, reconhecemos que para o uso da literatura em sala de aula,
existe uma tríplice relação entre o papel do/a professor/a, acesso aos livros e a prática
planejada. Segundo Abramovich (1993), docentes precisam conhecer as histórias
infantis, para quando forem planejar a sua utilização façam da maneira mais
adequada, pois a presença da leitura literária em sala de aula não pode se constituir
apenas do gesto de disponibilizar livros para o ato de ler, ouvir ou contar.
Assim sendo, concordamos com Gregorin Filho (2016, p. 71) quando diz que
―[...] é necessário que o professor seja um leitor de literatura, que ele seja um leitor de
estéticas do mundo, das cenas e dos atores desse/deste mundo e, mais ainda, que ele
sempre esteja aberto para a experiência da cultura de maneira mais ampla.‖
Tal percepção é importante para ressaltarmos que dificilmente trabalhamos
com aquilo que desconhecemos, e principalmente que como mediadores/as temos
que reconhecer a relevância da prática de leitura literária nas salas de aula, pois

Não é possível estimular a leitura e cativar novos leitores se não


estamos convencidos das vantagens de ler. Não seremos
capazes de converter analfabetos ou iletrados em leitores se não
estamos convencidos da importância da leitura. Nós que
estamos como intermediários entre os livros e as crianças –
pais, mestres, bibliotecários, editores, livreiros e produtores
culturais –, se não vivemos a leitura como um ato de permanente
enamoramento com o conhecimento e a informação, se não
praticamos o prazer da convivência com a leitura, não
lograremos promovê-la, nem ampliaremos o número de leitores.
Ou seja, se não estamos capacitados, como capacitaremos
outros? Ou melhor, se não estamos animados, como animar os
demais? (YUNES, 1995, p. 20)

Posto isso, partimos para a explanação de uma prática de leitura realizada


com o uso da obra ―Menina bonita do laço de fita‖, no final do segundo semestre do
ano letivo de 2016, com uma turma de vinte e seis (26) alunos do 1º ano do Ensino
Fundamental, de uma escola da rede estadual do município de Rondonópolis – MT.

Uma ação de leitura por meio da obra ―Menina bonita do laço de fita‖

Todo o trabalho com o livro de literatura, se feito de


maneira adequada quando as crianças iniciam a sua
trajetória escolar, pode despertar o gosto pela leitura
e o interesse por livros, e pode ainda contribuir
consideravelmente para a etapa posterior, quando o
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aluno aprenderá a ler e a escrever, pelo fato deste já


ter participado de situações de leitura. (SOARES;
PAIVA, 2014, p. 13)

A razão da escolha da obra ―Menina bonita do laço de fita‖, se deu ao fato do


livro trabalhar de maneira lúdica questões étnicas, ressaltando as qualidades dos/as
negros/as. Além do mais, a leitura dessa história se torna muito agradável para as
crianças, ela é divertida, tem repetições de perguntas que faz com que os/as alunos/as
interajam com a narrativa.
Eliane Debus (2010, p.195) ao escrever ―Meninos e meninas negras na
literatura infantil brasileira: (des)velando preconceitos‖ comentou que ―o livro Menina
bonita do laço de fita, de Ana Maria Machado, talvez seja um dos títulos de literatura
mais conhecido entre os professores, e o mais utilizado em trabalho com as crianças
para discutir sobre identidade, autoestima, pertencimento [...].‖

Figura 1: Capa e caracterização do livro ―Menina bonita do laço de fita‖


MENINA BONITA DO LAÇO DE FITA
Texto: Ana Maria Machado
Ilustrações: Claudius
Editora Ática

Uma linda menina negra desperta a


admiração de um coelho branco, que
deseja ter uma filha tão pretinha quanto
ela. Cada vez que ele lhe pergunta qual o
segredo de sua cor, ela inventa uma
história. O coelho segue todos os
´conselhos´ da menina, mas continua
branco.

Fonte: Machado e Claudius (2011)

A prática leitora foi organizada a partir dos princípios de Solé (1998), com o
antes, durante e depois da leitura sempre com o intuito de mobilizar o conhecimento
prévio e as conexões possíveis de serem realizadas pelas crianças. Nesse sentido, a
professora iniciou com a apresentação da capa para que os/as alunos/as
observassem a ilustração e antecipassem as ideias que tinham sobre o que trataria a
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história, ademais foram apresentados a autora e o ilustrador do livro. Para Faria (2013)
é importante promover o conhecimento da autoria do texto sendo incentivado a
reflexão da construção do livro por autor/a e ilustrador/a.
Após este primeiro momento, seguiu-se para a proferição da história, pois é
importante que o professor leia para os/as alunos/as em voz alta, segundo Ana Maria
de Oliveira Galvão,
[...] a leitura em voz alta pode ser um importante instrumento para
aproximar as crianças pequenas e os adultos em processo de
alfabetização das lógicas do escrito, fazendo-os apreender a sua
estrutura e algumas de suas características, como a estabilidade,
antes mesmo de se alfabetizarem. (GALVÃO, 2014, p. 171, grifos da
autora)

No início da alfabetização a leitura em voz alta realizada pela professora é um


aspecto que deve ser muito trabalhado, pois, ―ao escutar a história, as crianças
desenvolvem conhecimentos sobre a escrita e estratégias de leitura que servirão nas
situações de leitura autônoma‖ (BASTOS, 2016, p. 101). Complementarmente,
Abramovich aponta que:

É ouvindo histórias que se pode sentir (também) emoções


importantes, como a tristeza, a raiva, a irritação, o bem-estar, o medo,
a alegria, o pavor, a insegurança, a tranquilidade, e tantas outras
mais, e viver profundamente tudo o que as narrativas provocam em
quem as ouve - com toda a amplitude, significância e verdade que
cada uma delas fez (ou não) brotar...Pois é ouvir, sentir e enxergar
com os olhos do imaginário! (ABRAMOVICH, 1993, p. 17)

No desenvolvimento da leitura, os/as alunos/as participavam da narratividade,


pois o texto traz repetições no decorrer da história. Assim, sempre que aparecia o
trecho ―Então ele voltou lá na casa da menina e perguntou outra vez‖ a professora
acentuava a entonação para que as crianças em coro indagassem ―Menina bonita do
laço de fita, qual é teu segredo pra ser tão pretinha?‖ No decorrer da história também
era utilizada a pausa protocolada, que conforme Regiane Pradela da Silva Bastos:

[...] é uma forma de envolver as crianças com o que está sendo lido,
estimulando a realização de antecipações de sentidos e inferências
durante a leitura da história, fazendo projeções a respeito do que
pode vir a acontecer. Conforme a história vai se desenvolvendo, eles
podem confrontar se as previsões feitas realmente se confirmaram.
(BASTOS, 2016, p. 79)

Essa estratégia também permitiu que os alunos antecipassem sentidos sobre o


texto narrado, relacionando-o a conhecimentos prévios e realizando a intertextualidade
com outros textos, o que faz com que tenham uma maior compreensão da história.
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Após a leitura, realizou-se a roda de conversa, momento em que as crianças


recontaram oralmente a história ouvida e puderam discutir sobre as questões étnicas,
em que eles se reconheceram em algumas das características da personagem devido
a herança genética. Para Debus (2010, p. 196), ―o enredo da narrativa se desenvolve
em torno do conflito de identidade: um coelho branco que almeja ser ―preto‖ como sua
vizinha, uma menina bonita do laço de fita.‖
Durante as discussões foram realizadas várias reflexões sobre as
características da menina como protagonista da história, ressaltando a importância da
valorização da identidade de cada pessoa. Cabe ressaltar, que o uso da obra estava
inserido dentro do planejamento de uma sequência didática, assim durante o período
planejado também foram lidos outros livros de literatura infantil que trouxeram a
herança cultural dos africanos, como comidas e instrumentos musicais. Corroborando
com Ceris Ribas Silva quando assinala que

[...] a elaboração pelo professor de uma proposta de alfabetização precisa privilegiar a criação
de contextos significativos de ensino e aprendizagem que são decorrentes, por exemplo, do
trabalho com temas de interesse do universo infantil e com modelos de atividades que
privilegiam a ludicidade e que desafiam as crianças a lidar com diversidade de textos que elas
conhecem e de outros que precisam conhecer, como, por exemplo, os textos literários, sem
que se perca de vista os conteúdos que se pretende atingir. (SILVA, 2008, p. 12)

O trabalho com a literatura pode estimular e incentivar as crianças para o


desenvolvimento do processo de aprendizagem da leitura e escrita. Segundo
Abramovich (1997, p. 23), ―o ouvir histórias pode estimular o desenhar, o musicar, o
sair, o fiar, o pensar, o teatrar, o imaginar, o brincar, o ver o livro, o escrever, o querer
ouvir de novo (a mesma história ou outra). Afinal, tudo pode nascer dum texto!‖
Nesta perspectiva, realizou-se o reconto da história proferida por meio da
produção de textos e desenhos, já que esta atividade é uma forma de interpretação do
que entenderam do texto, muitas vezes reproduzindo partes do texto tal qual da
história lida ou ouvida. Ademais, Ana Luiza Bustamante Smolka (2012, p. 150) afirma
que as crianças ―[...] aprendem a escrever escrevendo e, para isso, lançam mão de
vários esquemas: perguntam, procuram, imitam, copiam, inventam, combinam... As
crianças aprendem um modo de serem leitoras e escritoras porque experimentam a
escrita [...].‖
As produções foram bem diversificadas, observando-se que algumas crianças
fizeram apenas o desenho, outras escreveram palavras e frases ou escreveram
pequenos textos, pois os/as alunos/as estavam em fases de escrita diferentes. A
seguir apresentaremos duas produções escritas dos alunos:

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Figura 2 – Reconto da história (1º ano)

menino bonita do laço de de fita

a menina do laço de fita


emcomtrou o coelho o coelho acho
a menina bonita o coelho acho
uma coelha marro
e tivero muto filo um menina achou
bonita
e o coelho falou obrigado e a
memina disse a mesmacoisa
fim

Fonte: Aluno M. de 7 anos

É possível perceber que a criança, mesmo sem o total domínio da escrita,


consegue transmitir o que entendeu da história recontando partes da mesma. Pelo fato
de as crianças estarem no processo de aquisição do Sistema de Escrita Alfabética, foi
possível perceber em suas produções lacunas e erros na escrita, muitas vezes,
escrevendo como falavam ou escutavam. Nas palavras de Cancionila Janzkovski
Cardoso (2008, p. 31), ―a criança inicia seu processo de aprendizagem da escrita
apoiada firmemente na sua oralidade e, portanto, essa oralidade vai deixar marcas na
sua escrita que, nesse momento, está ainda longe de ser convencional,
ortograficamente correta‖.

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O aluno M. recontou a parte da história que mais lhe chamou a atenção, pois
―os enunciados são criados a partir das experiências de cada enunciador e o sentido
que ele dá para as palavras da língua, ao utilizá-la, colocando a sua voz, a sua
interpretação.‖ (BASTOS, CARDOSO, 2016, p. 60).

Figura 3 – Reconto da história (1º ano)

Menina bonita do laço de fita

Era uma vez uma menina linda seus olhos pareresiam duas azetonas petraz sua pele
pareciam uma pantera negra o visinha era o coelho um dia o coelho dise para a
menina bonita do laco de fita qual é o seu segredo para ser tão pretinha mas inventou
há deve ser porque eu cai na tinta preta o coelho tomou um baita banho de tinta e
ficou dodo preto mas veio uma tempestade e o coelho voutou na minni e dise menina
bonita do laço de fita qual e o seu segredo para ser tão pretinha a menina não sabia
mas iventou há deve ser porque eu bebi muito café o coelho bebeu muito cafe mas
não ficou nada preto so consegiu fazer xixi a noite toda e vouto na casa da menina e
dise menina bonita do laço de fita qual é o segredo para ser tão pretinha a menina não
sabia mas inventou e ia falar sobre a feijoada mas a mãe disse se voce quer ter uma
filha petra vai teque procurar o coelho achou que ela estava falando a verdade ele foi

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procurar e encrotou e tinha um monte de coelhinhos e uma bem pretinha


fim
Fonte: Aluna G. de 7 anos

A aluna reconta com mais detalhes partes do texto. Nota-se que as crianças,
ao recontarem as histórias, quando estão iniciando o processo de produção de texto,
escrevem o que mais lhes chamaram a atenção sobre a narrativa que ouviram e/ou
outras histórias. Para Smolka (2012, p. 147), no processo da escrita podemos
perceber o intenso movimento intertextual: ―É o próprio jogo da intersubjetividade
marcada no trabalho da escritura‖.
Em um processo metalinguístico, as crianças refletem sobre a linguagem,
sobre o que e como irão escrever. Nesse processo, mobilizam saberes que já
possuíam sobre a linguagem, pois ―todo texto faz parte de uma cadeia de textos de
uma dada esfera‖ (CARDOSO, 2008, p. 26). Ao escrever os/as alunos/as apresentam
a compreensão que tiveram do texto ouvido, dando sentido a ele, de acordo com seu
discurso interior, como afirmam Bastos e Cardoso,

A compreensão de um texto é um processo ativo e criativo, onde o


interlocutor o interpreta de acordo com o contexto de suas
significações anteriores; onde a palavra alheia se faz presente, pois a
obra está sempre inacabada, ela se complementa e se recria através
de seus contempladores. (BASTOS; CARDOSO, 2016, p. 60)

Durante a produção, as crianças dialogavam muito entre si, trocando ideias, e


por meio dessas interações, complementares ao texto ouvido constituíam seus
enunciados, em que ―as palavras alheias ganham significação no seu discurso interior‖
(Ibidem). Elas também interagiam com a professora perguntando como escrevia
algumas palavras, que letras deveriam utilizar e, com essa prática interativa,
avançaram na construção da escrita. Conforme Smolka (2012, p. 140) ―a escrita
começa a constituir um modo de interação consigo mesmo e com os outros, um modo
de dizer as coisas.‖
A narrativa contada pode auxiliar no entendimento de sequências de ideias
em uma produção, visto que a literatura ―amplia o espaço interdiscursivo, na medida
em que inclui outros interlocutores [...] criando novas condições e novas possibilidades
de trocas de saberes, convocando os ouvintes/leitores a participarem como
protagonistas no diálogo que estabelece‖ (SMOLKA, 2012, p. 111). Nessa mesma
perspectiva, Marisa Lajolo (2001) afirma que,

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A literatura é porta para variados mundos que nascem das várias


leituras que dela se fazem. Os mundos que ela cria não se desfazem
na última página do livro, na última frase da canção, na última fala da
representação nem na última tela do hipertexto. Permanecem no
leitor, incorporados como vivência, marcos da história de leitura de
cada um.
Tudo que lemos nos marca. (LAJOLO, 2001, p. 44-45)

Considerações Finais

Saber ler, apropriar-se da escrita, não torna uma pessoa


mais inteligente ou mais humana, não lhe concede
virtudes ou qualidades, mas lhe dá acesso a uma
ferramenta poderosa para construir, negociar e interpretar
a vida e o mundo em que vive. (COSSON, 2014, p. 33)

Tínhamos como ponto de partida a questão de pesquisa:Como a literatura


infantil, desenvolvida nas práticas escolares, pode fazer parte da constituição de
sujeitos/as leitores/as e escritores/as? Os dados empíricos colhidos durante as
atividades com literatura, planejadas e desenvolvidas em sala de aula, aqui recortadas
em uma única intervenção, nos permitem apontar algumas respostas, ainda que não
conclusivas.
Ao desenvolver um trabalho de maneira contextualizada com a literatura, as
crianças se sentem mais motivadas a ler e escrever, e a aprendizagem se torna mais
significativa. Ademais, a literatura pode mobilizar a construção do conhecimento das
vivências humanas individuais e sociais.
Nesta direção, percebemos que por meio da prática de leitura realizada com a
obra ―Menina bonita do laço de fita‖, as crianças valorizaram e respeitaram mais as
diferenças étnicas entre si, ampliando o conhecimento sobre a sua identidade. Elas
tiveram um grande interesse em manusear e ler o livro lido pela professora,
demonstrando maior interesse pela leitura.
Ao recontarem a história, as crianças produziram textos coerentes, mesmo
sem o total domínio da escrita alfabética. Tais textos testemunham aspectos de
(trans)formação desses alfabetizandos em pequenos leitores e escritores, pois ao
mesmo tempo em que estão se apropriando da escrita, interagem com a literatura,
lendo e escrevendo com compreensão, o que pressupõe, no mínimo, uma
interatividade leitor/texto e leitor/autor.

Referências

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

A LITERATURA INFANTIL NO PACTO NACIONAL PELA


ALFABERTIZAÇÃO NA IDADE CERTA: PRÁTICAS LITERÁRIAS
EM SALA DE AULA.

Alessandra Ferreira Braga Carrilho, UEMS, Literatura infantil e ensino, Fundect.


Lucilene Soares da Costa, UEMS, Literatura infantil e ensino, Fundect.

Considerações Iniciais

A literatura infantil no Programa Nacional de Alfabetização na Idade Certa


Pnaic: práticas literárias em sala de aula, parte da premissa de que a literatura infantil
de qualidade tem muito a contribuir com o fazer pedagógico do professor em sala de
aula, promovendo uma aprendizagem significativa aos alunos de maneira
contextualizada.
Como procedimentos metodológicos foram realizadas uma revisão bibliográfica
acerca da presença da Literatura Infantil na escola, bem como das contribuições dos
elementos paratextuais e textuais como índice de qualidade do livro, a fim de conhecer
de que forma a análise do campo histórico da Literatura Infantil possibilita
contextualizar o sujeito na sociedade, atribuindo sentido ao que está sendo lido e,
ainda, como deve ser sistematizada a tarefa dos professores ao dar relevância à
prática pedagógica com obras literárias infantis, revelando como são consideradas as
práticas literárias nessa etapa contribuindo para o seu letramento literário.
Com o propósito de responder a essas indagações foram participantes da
pesquisa sete professoras de classes de 1º, 2º e 3º anos do Ensino Fundamental de
três escolas da rede municipal de Campo Grande/MS, possibilitando então a
realização de observações nas classes investigadas, a fim de constatar como
acontece o trabalho literário com tais turmas.

Considerações Finais
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Como seria uma leitura contextualizada que realmente promovesse a formação


leitora na escola? Apoiamo-nos em Fanny Abramovich (1997, p. 21) e concordamos
com a ideia de que o ambiente bem preparado favorece o interesse dos pequenos
leitores: ―é bom que quem esteja contando crie todo um clima de envolvimento, de
encantamento‖. Este envolvimento pode acontecer mesmo que não haja recursos
materiais suficientes, como, por exemplo, bibliotecas bem equipadas. O próprio
contador da história pode usar de recursos lúdicos para criar uma atmosfera que
transporte o leitor/ouvinte a outro universo, o da história lida.
Selecionar criteriosamente o título escolhido, conhecendo o que será lido para
a turma, é fundamental para que quem esteja contando não seja pego no contrapé. A
falta de conhecimento do enredo é percebida conforme a leitura vai se desenrolando,
quando são desperdiçados, por exemplo, o clímax da história, situações nas quais
poderiam ser utilizados recursos sonoros para ressaltar situações cruciais nos textos
lidos e que acabam não sendo evidenciados por falta de preparação prévia do
contador.
Quanto à leitura propriamente dita, a atmosfera é dada, segundo a autora, por
palavraschave, aquelas que quando pronunciadas remetem à contação de uma
história, por exemplo, ―era uma vez‖, sentença que anuncia que é hora da história.
Isso precisa ser ensinado ao leitor iniciante e, mesmo que algumas vezes ela não
esteja no contexto do enredo, cada educador pode criar outras palavras que remetam
a esse momento.
Não observamos obras do acervo de Obras Complementares ou acervo
Literatura na Hora Certa do Pnaic sendo ofertadas aos leitores das classes de
alfabetização. Contudo, constatamos que todas as professoras se preocuparam em
realizar as sequências didáticas após a leitura, sendo que em algumas observações
as atividades se sobressaíram à hora da história.
Analisamos, ao constatar essa prática, que o Pnaic tem como finalidade
instituir a sequência didática como eixo promotor da alfabetização das crianças do 1°
ao 3° anos. Considerando a proposta do programa, todas as educadoras cumpriram
com o que foram orientadas: ler histórias, realizar atividades relacionadas ao que foi
lido e, por vezes, propor a interdisciplinaridade.
Mas, será que realmente essa organização didática está alcançando seus
objetivos? Os resultados da Avaliação Nacional de Alfabetização – ANA poderá ou
não responder essa indagação.
O que não podemos deixar de considerar nesse momento é o fato que, ao
ouvir ou ler obras literárias, a produção das crianças é favorecida, ampliando seu
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imaginário e repertório cultural. Os desenhos também são outra forma de expressão


fomentada pelas histórias, como confirma Abramovich (1997, p. 23): ―ouvir histórias
pode estimular o desenho‖, além de ser uma forma de a criança exteriorizar seus
sentimentos e – porque não? -seus conhecimentos.

Resumo

Este trabalho deriva da dissertação de mestrado homônima apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
(Profeduc, UEMS – Campo Grande, 2017) que buscou resgatar a relação histórica
entre literatura infantil e escola, evidenciando o modo como se processa a leitura de
textos literários em ambientes escolares, e de que maneira o Pacto Nacional pela
Alfabetização na Idade Certa – Pnaic, por meio de seus acervos complementares, tem
contribuído para a formação leitora dos alunos das classes de alfabetização do 1º ao
3º ano do ensino fundamental. A pesquisa tem como espaço de investigação três
escolas municipais de Campo Grande – MS, visitadas nos anos de 2015 e 2016.

Introdução

Pensar a prática docente com textos literários infantis na escola brasileira


contemporânea nos leva a refletir sobre a relação histórico-social entre infância, escola
e literatura infantil a fim de compreender a condição de dependência que a literatura
para crianças assume perante os ambientes escolares.
Entendemos que a concepção atual de infância é significativamente
diferente daquela que vigorava no passado. Na Idade Média, por exemplo, a criança
era considerava apenas um adulto em miniatura. Philippe Arie (1981), ao discorrer
sobre a infância, menciona que a concepção de família e educação se transformou à
medida que a sociedade, seus valores e interesses foram sofrendo modificações.
A infância representava então um período da vida humana vulnerável e
transitório, relegada a um segundo plano, não havendo, portanto, interesse em pensá-
la em suas especificidades ou representá-la artisticamente. Consequentemente, a
transição para a vida adulta se dava de maneira abrupta, assim que os infantes
possuíssem condições mínimas de sobrevivência, eram desvinculados dos seus pais e
direcionados para a aprendizagem do que fosse útil com um adulto mais experiente
(Arie: 1981) A preocupação da família consistia antes na manutenção e partilha de

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seus bens materiais, negligenciando o cuidado, educação e afeto que ligava os pais
ao filho.
Nesse contexto, ganha visibilidade, no século XVIII, os primeiros textos
literários infantis, gestados em contexto europeu que passava então por grandes
mudanças. Considerando de uma perspectiva histórica, não podemos deixar de
apontar no processo as relações de poder, pois revelam o interesse pragmático da
burguesia que utilizaria o texto literário como instrumento de perpetuação da
submissão de crianças e dos menos afortunados, segundo Regina Zilberman, 2003.
Somente no século XIX a ideia de infância toma outras proporções com as
sucessivas revoluções sociais e econômicas. Na família burguesa a criança começa a
receber tratamento especial, cabendo a figura feminina cumprir a incumbência de
supervisionar seus cuidados. Paradoxalmente, com a nova forma de organização dos
modos de produção após a Revolução Industrial e necessidade de uso de mão de
obra feminina, o Estado concede à escola o papel de instituição responsável em
educar as crianças a fim de preservar a moral religiosa e a obediência.
Forma-se então a tríade para que o acesso à aprendizagem e aos bens
culturais atinjam o público alvo: a criança (sujeito), literatura infantil (instrumento) e a
escola (lócus), constituindo um nó ideológico que ao longo dos séculos seria difícil
desatar. Sabemos que a forma como as práticas literárias são desenvolvidas não
superaram a construção histórica desses elementos que servem para a reprodução
secular de doutrinação e submissão. A criança não era considerada no processo de
produção da literatura infantil, uma vez que os enredos eram escritos a partir da
perspectiva do adulto, que selecionava e determinava, conforme seus entendimento, o
que era literatura para crianças e quais textos deveria ser lidos.
Os textos destinados aos pequenos viriam ao encontro dos anseios simbólicos,
psicológicos e intelectuais reais deste segmento, porém, como a produção do livro é
vinculada ao fator econômico, à autoria de um adulto, ao controle e seleção dos pais e
professores na aquisição das obras, a criança é deixada de lado no processo de
criação.
Como interesses genuinamente infantis não são considerados para a produção
das obras, uma das finalidades é a transmissão de valores morais que encontra
terreno fértil na escola, onde o consumo desses exemplares acontece em maior
volume, e o caráter pedagógico dos textos destinados aos pequenos apresenta-se
como instrumento para alcançar objetivos didáticos (ZILBERMAN, 2003).
Outra finalidade atribuída à literatura infantil é a inserção no mundo da leitura,
ler é uma prática social inerente ao sujeito, habilidade construída historicamente sob a
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tutela de códigos por meio do alfabeto, apresentando-se como uma concepção que se
estabeleceu em maior proporção no século XVIII e representou os valores de uma
sociedade economicamente em expansão. (ZILBERMAN, 1988).
A eficácia da escola estava e está atrelada à habilidade leitora do alunado,
uma vez que o ato de ler é visto como ação portadora do saber. Ao mesmo passo,
Zilberman et al (1988, p. 13.) aponta como instrumento da época a leitura índole: ―[...]
aquela que se destina às obras úteis, de caráter informativo ou à aprendizagem,
impedindo o escapismo e a fantasia‖. Essa opção era oportuna para os pedagogos
simpatizantes que representavam a sociedade burguesa, ao referir-se ao instrumento
leitor como meio da formação escolar, por exemplo.
A relação diacrônica entre leitura e escola, representada pelo aspecto
pedagógico, no qual a primeira foi subjugada pela segunda, tornou a alfabetização o
pretexto para a presença da leitura na instituição de ensino, negando seu aspecto
artístico e ideológico. O sujeito alfabetizado apresenta condição para a estratificação
social, superando todas as etapas de ensino imposta pela sociedade que, em
contraponto, oferece instrução que propicia o conhecimento mínimo.
Se a inserção da leitura literária na escola atendeu às necessidades do
professor, ao considerarmos a perspectiva dos alunos a finalidade fica aquém do que
hoje consideramos com um processo efetivo de leitura de textos literários na escola.
Por ora, cumpre ressaltar que no século XIX a leitura literária aparece tímida,
com produções estanques, rasas e memorizantes. Teresa Colomer (2007, p. 17.)
denuncia a superficialidade do que era ensinado na escola: ―[...] aprender a ler e a
escrever no seu sentido mais básico de decodificar, [...] ou a leitura em voz alta de
textos religiosos e patrióticos.‖
Sabemos que a relação entre literatura e escola é uma relação dialética, a
literatura humaniza ao passo que sua influência promove a construção social do
homem. Contudo, a própria sociedade descaracteriza essa função da literatura quando
a condiciona a mero instrumento pedagógico por meio do sistema educacional.
Atualmente, a relação entre leitura e literatura continua indireta, uma vez que,
se considerarmos o modelo estanque da escola contemporânea, tal aproximação é
limitada, fragmentada, condição idêntica ao processo de alfabetização. Zilberman et al
(1988, p.17.) considera a interlocução escola - leitura – literatura insatisfatória, pois
―[...] a criança afasta-se de qualquer leitura, mas sobretudo dos livros, [...] por rever na
literatura experiências didáticas que deseja esquecer.‖

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Diante deste cenário inquietante abordamos e discutimos um programa do


Governo Federal que a princípiopoderia favorecer práticas literárias com classes de
alfabetização do 1º ao 3º anos do ensino fundamental, o Pnaic.

Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa – Pnaic

O Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic) foi implantado em


2014, para suprir a necessidade de ações propostas pelo Decreto nº 6.094, de 24 de
abril de 2007, que preconiza:

II -alfabetizar as crianças até, no máximo, os oito anos de idade,


aferindo os resultados por exame periódico específico, e IV -
combater a repetência, dadas as especificidades de cada rede, pela
adoção de práticas como aulas de reforço no contraturno, estudos de
recuperação e progressão parcial; e, de acordo com o guia
Planejando a próxima década – Conhecendo as 20 metas do Plano
Nacional da Educação do Ministério da Educação, que em sua Meta
5 apregoa ―Alfabetizar todas as crianças, no máximo, até o final do 3º
(terceiro) ano do ensino fundamental.‖ (BRASIL, 2007, p, 15).

Dessa forma, o Governo Federal, em parceria com municípios, estados e o


Distrito Federal implementou o Pnaic, com o propósito de sistematizar ações para
valorização de educadores, viabilizando iniciativas pedagógicas por meio de materiais
didáticos com o intuito de favorecer a educação de crianças do ciclo de alfabetização e
colaborar para avaliações efetivas por meio do monitoramento.
O programa apóia-se em quatro eixos: a) avaliação, b) gestão, c) materiais
didáticos, e d) formação, destinada a professores que exerçam a docência nas classes
de alfabetização na perspectiva do letramento. A avaliação é realizada em larga
escala ao final do último ano do ciclo de alfabetização e é o termômetro do programa.
O Pnaic conta com uma organização gerencial formada por todas as instâncias do
governo, com funções definidas, e o material didático destina-se tanto ao professor
como ao aluno.
A mediação dos estudos acontece sob a tutela das Universidades Federais que
têm a responsabilidade pela formação continuada, bem como pela distribuição dos
materiais via Programa Nacional do Livro Didático - PNLD. A parceria entre Pnaic e
PNLD é financiada pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação - FNDE,
que garante a distribuição das obras de literatura infantil, segundo o guia Pnaic–
Literatura na Hora Certa do Ministério da Educação.

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Para a formação do acervo, a estimativa inicial do Governo Federal, de acordo


com o Ministério da Educação, era de formar seis coleções distintas, cada qual com 35
títulos, compondo um catálogo com 210 livros de literatura quando o aluno concluísse
o 3º ano do ensino fundamental. Contudo, a primeira etapa da distribuição, que iniciou
em 2013, foi composta por apenas por 3 acervos com 25 obras cada um.
Esta etapa do Pnaic possui três Guias de Literatura na Idade Certa, uma
para cada classe de alfabetização: Guia de Literatura na Idade Certa 1, 1º ano do
ensino fundamental; Guia de Literatura na Idade Certa 2, 2º ano do ensino
fundamental; e Guia de Literatura na Idade Certa 3, 3º ano do ensino fundamental.
Esse material didático orienta a prática literária dos professores, e possui um
informativo comum às três classes e temas específicos a cada turma. Ao analisarmos
o sumário das três edições dos guias, constatamos que a Apresentação e Introdução
do Guia têm o mesmo texto, contemplando os gêneros literários poesia, prosa e
quadrinhos, que se repetem em todos os materiais.
O documento, em sua introdução, instrui o professor acerca das obras literárias
que está recebendo e lança questionamentos que devem levar o docente a refletir
sobre a utilização do material em sala de aula, citamos alguns:
Por que obras literárias no processo de alfabetização? A resposta a esta
indagação elucida o conceito de alfabetização e letramento do Pnaic, e alerta para a
aproximação sutil das crianças com obras literárias como experiência enriquecedora
para esse processo.
Por que livros de literatura na sala de aula? Temos nesse item a justificativa
para o envio do acervo à sala de aula, ainda que as bibliotecas escolares recebam
obras oriundas do FNDE. Segue apresentando os tipos/gêneros em que são
distribuídos.
Que livros estão chegando para a sala de aula? Segundo o guia, cada classe
de alfabetização deveria receber 2 acervos com 35 livros, totalizando ao final do
terceiro ano 210 exemplares. A Tabela 1 representa a distribuição por gênero literário
das obras, conforme o documento.
Tabela1.Tipos e gêneros das obras do Pnaic

Nº de obras
Tipos/Gênero 1º ANO 2º ANO 3º ANO
Versos 15 19 17
Prosa 32 42 37
Imagem 21 9 12
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Quadrinhos 2 - 4
Total 70 70 70
Fonte: Guia de Literatura na Idade Certa 1 - 1º ano do ensino fundamental
(BRASIL, 2015b)

Conforme a distribuição das obras, verifica-se a necessidade de mobilidade de


tipos e gêneros das obras destinadas a cada turma das classes de alfabetização. O
próprio documento aponta a alternativa para solucionar a quantidade distribuída:

Uma alternativa para suprir essa distribuição pouco equilibrada dos


tipos e gêneros de livros nos acervos pode, porém, ser explorada na
escola: como é tênue a distinção entre livros para 1°, 2° e 3° ano,
uma vez que, nas salas de aula de diferentes anos, ao de um mesmo
ano, estão crianças diferentes entre si, em diferentes níveis de
apropriação de leitura, os livros dos acervos podem transitar de uma
sala a outra por troca, entre professores(as). O importante e
fundamental é que em cada sala de aula haja livros de literatura
sempre disponível para atividades de alfabetização e de letramento
literário. (BRASIL, 2015b, p.15).

Os dados apontam a irregularidade na seleção de tipos e gêneros e propõem o


acervo transitório entre as turmas participantes do programa.
O próximo questionamento: Com que critério foi escolhido os livros para
compor o acervo? A resposta é que foram consideradas três dimensões:qualidade
textual, qualidade temática e qualidade gráfica.
Na sequência o documento orientador, indaga o leitor sobre a diferença entre a
literatura na sala de aula e na biblioteca. O documento anuncia que a biblioteca da
escola pode ser vista ―como casa dos livros‖, revelando a relação social estabelecida
neste lócus, ao passo que na sala de aula são organizados os ―cantinhos‖. (BRASIL,
2015b, p. 12). É proposta então a quebra do paradigma ao tornar a sala de aula um
lugar convidativo para a leitura de livros de literatura.
Por fim, o texto se encerra com a menção às pretensões do Pacto Nacional
pela Alfabetização na Idade Certa e a inserção de livros por meio da mediação do
professor.
Após a análise documental, o primeiro achado da pesquisa foi a revelação,
concernente aos Guias 1°, 2° e 3° volume Literatura na Hora Certa, do Pacto Nacional
pela Alfabetização na Idade Certa, quando fomos às escolas participantes para
consultar e analisar o referido acervo, que eles não estavam presentes, tendo em vista

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que o que chegou às escolas foram as caixas Pnaic 1° ao 3° anos acervos I, II e III e
não as caixas Literatura na Hora Certa, que deveriam conter um total de 210 obras.
Ao indagarmos à auxiliar de biblioteca de uma das escolas sobre as obras
fomos informados que não constava no portal do Programa Nacional do Livro Didático
a indicação de que outras obras referentes ao Pnaic chegariam às escolas, e que
alguns professores vieram questioná-la sobre o acervo, contudo a resposta foi que não
estavam na unidade escolar.
Assim, decidimos analisar as caixas com o acervo realmente utilizado, uma vez
que buscamos compreender como é o trabalho dos (as) professores (as) com tais
obras, a qualidade do material e como as próprias crianças se veem diante deste
processo de imersão no universo literário.
O Ministério da Educação, por meio do FNDE, realizou no ano de 2013 a
distribuição das caixas de livros de literatura para as turmas participantes do Pnaic. As
obras foram distribuídas em três acervos (I, II e III) com 25 títulos selecionados em
diferentes gêneros /tipos literários: poesia, prosa, quadrinhos e imagem.
Cada obra vem identificada em sua capa com selos que anunciam à qual
programa os livros foram destinados e as turmas e o espaços no qual o acervo deve
ser guardado e utilizado, na contracapa temos a Mensagem ao Leitor que reitera as
orientações presentes na capa, reforçando a origem, programa a que pertence,
finalidade e lugar onde o acervo deve ficar disponível e, por fim, a necessidade de
conservar todos os livros recebidos.
Seguem exemplos de obras com enredos instigantes, que aguçam a
curiosidade e imaginação do público infantil, no qual o cuidado com os elementos
gráficos dialogam com as histórias, abordando assuntos polêmicos ou conflitantes
para os pequenos leitores, bem como temáticas étnico-raciais. Podemos destacar:
Palavra, Palavrinha Palavrão, de Ana Maria Machado (2010), que discuti como a
criança muitas vezes fala palavras e expressões que segundo sua própria visão não é
de baixo calão, simplesmente a verbaliza, temos Vizinho e Vizinha (2002) que como
outros tratam das relações humanas, ou questões que por vezes são excluídas das
salas de aula como adoção e comunidades negras e indígenas, presentes em A
melhor família do mundo (2012) e Tanto, Tanto (2016).
Constatamos que na grande maioria das obras os conteúdos escolares
sobressaem às questões estéticas. São títulos essencialmente utilizados como suporte
do trabalho didático do professor em conteúdos curriculares específicos, como
conceitos matemáticos de agrupamento, sequências numéricas e contagem.

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Não podemos desconsiderar, porém, que existe o anúncio específico da


literatura infantil para o Pnaic – Literatura na Hora Certa, que em seu Guia indica o
objetivo de possibilitar acesso a obras literárias às crianças em idade alfabetizadora.
No entanto, o acervo não está presente nas escolas, o que fez com que tivéssemos
expectativas que o material literário existente desse conta de aproximar os dois
elementos anunciados pelo Pacto em torno das caixas: auxiliar o professor na tarefa
de alfabetizar - sendo este um papel coadjuvante - e garantir, sobretudo, que crianças
pequenas em classes alfabetizadoras tenham acesso a obras literárias, a fim de que o
processo de aprender a ler e escrever aconteça juntamente com o letramento literário,
em que a literatura infantil assumiria o protagonismo.

(Re) Conhecendo os Sujeitos: Questionários e Observações

Nesta etapa da pesquisa apresentamos os sujeitos envolvidos a partir da


compreensão de que a interlocução entre as respostas dadas ao questionário sobre a
vida acadêmica e funcional, as vivências literárias e conhecimentos sobre literatura,
associados às observações das práticas literárias, representassem como a relação
literatura infantil e Pnaic se constitui.

a) Questionário

O instrumento que permitiu a coleta de dados para traçar o perfil das


professoras foi o questionário com questões abertas e fechadas. O questionário foi
entregue no mês de agosto de 2016 e recolhido, após o preenchimento, em setembro
do ano de 2016. Este instrumento de pesquisa foi organizado em duas partes,
identificação e interesses, sendo a última dividida em 3 blocos: 1) Vivência Literária; 2)
Conhecimento sobre Literatura; e 3) Práticas Literárias com acervo do Programa de
Alfabetização na Idade Certa – Literatura na Hora Certa.
As respostas obtidas com questionários deixaram algumas inquietações,
percebemos que todas as professoras apóiam e enfatizam sua prática literária
relacionando-as às sequências didáticas e que a maioria das professores não tiveram
a literatura infantil como disciplina curricular em suas graduações.
Confirmamos nossa hipótese, já que nas três escolas participantes da
pesquisam não chegaram os acervos do Programa Literatura na Hora Certa, sendo
que os títulos disponibilizados são os acervos I, II e III das obras complementares.
Obtivemos resposta positiva a outra hipótese, de que algumas obras dessas caixas
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são utilizadas como disparadoras para assuntos específicos do currículo das turmas
de 1º ao 3º anos do ensino fundamental, já que seu enredo serve a esse propósito,
conforme análise.

b) Observação

Com o intuito de considerar como são as práticas de leituras em cada classe


de alfabetização as observações aconteceram entre os meses de novembro e
dezembro do ano de 2016, com as turmas de 1°, 2° e 3° anos respectivamente, uma
vez que dessa forma podemos visualizar como o trabalho com textos literários ou não
literários acontece em cada série e se há distinção entre tais práticas, já que todas as
educadoras envolvidas participaram dos estudos do Pnaic no mesmo pólo.
Averiguamos que a leitura realizada em algumas salas aconteceu com as
crianças sentadas nas cadeiras enfileiradas. Essa organização pode representar que
as docentes consideram a hora da história como algo subjugado aos componentes
curriculares. Abramovich (1997, p. 17) esclarece que as histórias existentes nas obras
literárias podem trazer conhecimentos das disciplinas escolares ―é através duma
história que se pode descobrir outros lugares [...] é ficar sabendo história, geografia,
filosofia, política, sociologia, sem precisar saber o nome disso‖. Se a história não é o
cerne daquele momento ―deixa de ser literatura, deixa de ser prazer e passa a ser
didática‖.
Como seria uma leitura contextualizada que realmente promovesse a formação
leitora na escola? Apoiamo-nos em Abramovich (1997, p. 21) e concordamos com a
ideia de que o ambiente bem preparado favorece o interesse dos pequenos leitores: ―é
bom que quem esteja contando crie todo um clima de envolvimento, de
encantamento‖. Este envolvimento pode acontecer mesmo que não haja recursos
materiais suficientes, como, por exemplo, bibliotecas bem equipadas. O próprio
contador da história pode usar de recursos lúdicos para criar uma atmosfera que
transporte o leitor/ouvinte a outro universo, o da história lida.
Selecionar criteriosamente o título escolhido, conhecendo o que será lido para
a turma, é fundamental para que quem esteja contando não seja pego no contrapé. A
falta de conhecimento do enredo é percebida conforme a leitura vai se desenrolando,
quando são desperdiçados, por exemplo, o clímax da história, situações nas quais
poderiam ser utilizados recursos sonoros para ressaltar situações cruciais nos textos
lidos e que acabam não sendo evidenciados por falta de preparação prévia do
contador.
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Não observamos obras do acervo de Obras Complementares ou acervo


Literatura na Hora Certa do Pnaic sendo ofertadas aos leitores das classes de
alfabetização. Ainda que, conforme constatamos, todas as professoras se
preocupassem em realizar as sequências didáticas após a leitura, sendo que em
algumas observações as atividades se sobressaíram à hora da história.
Constatamos que o Pnaic tem como finalidade - apresentada pelas próprias
educadoras nos questionários avaliados – instituir a sequência didática como eixo
promotor da alfabetização das crianças do 1° ao 3° anos. Considerando a proposta do
programa, todas as educadoras cumpriram com o que foram orientadas: ler histórias,
realizar atividades relacionadas ao que foi lido e, por vezes, propor a
interdisciplinaridade.
Não podemos desconsiderar os dados obtidos com os questionários e
observações, os quais nos levaram a compreender que a formação acadêmica inicial
tem se mostrado negligente senão omissa acerca da literatura infantil e que a
formação continuada tem considerado os acervos distribuídos pelo Governo Federal
como parte de diferentes componentes curriculares e pretexto para sequências
didáticas, reiterando o caráter meramente institucional de obras literárias na escola.
Como os textos literários são percebidos hoje na escola? Conforme afirma
Colomer (2007), a leitura de textos literários tem assumido uma função meramente
pedagógica e doutrinadora, atendendo as necessidades dos professores. Zilberman
(1988) defende a ideia de que diante desta configuração a criança se afasta da
literatura por considerá-la didatizante.
Ao observarmos as práticas com obras literárias de professoras de 1º, 2º e 3º
anos do ensino fundamental de 3 escolas públicas municipais, podemos afirmar que a
escolarização do texto tem sido priorizada, o que consiste em um impasse a ser
superado.
Qual seria então a relação entre texto literário e escola? Corroboramos com
Lajolo (1993) quando afirma que é na escola que o livro encontra seu porto seguro,
pois, mesmo havendo mudanças nos conteúdos e no público que recebe e usufrui dos
textos, não houve mudança na relação de dependência entre literatura infantil e
escola.

Marisa Lajolo (1993) descreve as práticas literárias mais comuns vivenciadas


nas escolas com o propósito de ganhar adeptos para literatura infantil:

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Entre as atividades hoje mais frequentemente sugeridas para


despertar e desenvolver o gosto (quase sempre chamado de hábito)
pela leitura, encontram-se a transformação do texto narrativo em
roteiro teatral e subsequente encenação; a reprodução, em cartazes
ou desenhos, do tema, da história ou de personagens do livro
(LAJOLO, 1993, p.70).

E por que os professores não superam essas práticas descontextualizadas e


didatizantes que escolarizam o texto literário? Consciente de todas as tarefas e
atividades extraclasse que afetam os professores, o mercado editorial lança atrativos
livros infantis que ao final trazem propostas de atividades que facilitam os fazeres dos
educadores.
O professor, como um navegante solitário, sem rumo, algumas vezes sem
acesso ao conhecimento, ou participando de programas que atendem a algumas
necessidades em detrimento de outras, tem sido colocado à prova por tendências ou
abordagens que parecem dar conta daquilo que sozinho, às vezes, não consegue
realizar, o que faz com que assuma práticas e conhecimentos sem questioná-los ou
participar das discussões. Lajolo (1993) vai ao fundo da questão:

O problema é que atividades sugeridas indiferentemente para muitos


milhares de alunos, distribuídos em pacotes endereçados a anônimos
e despreparados professores, passam a representar a varinha
mágica que transformará crianças mal alfabetizadas e sem livros
disponíveis em bons leitores. Favorecem ainda a crença de que sua
realização operará o milagre de transformar os professores em
orientadores de leitura, fazendo vista grossa à sua pouca
familiaridade com os livros, não questionando sua leitura quantitativa
e qualitativamente muito podre, deixando intocada sua estranheza
face a práticas mais significativas da linguagem. Na rotina de tais
atividades camuflam-se riscos sérios de alienação da leitura.
(LAJOLO, 1993, p. 72).

A descrição realizada pela autora em 1993 é ainda atual, considerando-se, por


exemplo, as pretensões do PNAIC, que convoca professores alfabetizadores de todo o
país, atraídos por bolsas de estudos para participar de encontros aos sábados para as
formações com orientadores de estudos formados pelas universidades federais
distribuídas pelo Brasil.
Essas formações vislumbram a organização da rotina das classes de
alfabetizadoras por meio de sequências didáticas realizadas com obras dos acervos
de livros de literatura do PNAIC. As professoras têm a preocupação em dar conta de
alguma maneira da articulação entre o enredo dos livros sugeridos e os conteúdos que

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deveriam associar, deixando a literatura infantil amarrada às disciplinas. E a literatura


como despertar para o mundo? Não é evidenciada, as educadoras não tem subsídios
teóricos para travar essas discussões consigo e com o grupo de estudo do programa.
Percebemos no grupo de educadores que pesquisamos, todavia, que as
mesmas assimilaram, pelos menos no que tange aos objetivos nos quais elas
receberam formação, a organização das sequências didáticas. Preocupavam-se em
dar continuidade à utilização do livro após a leitura, com atividades que relacionavam
o texto aos conteúdos do dia. Desmistificamos, então, a crença de que seriam
somente as professoras que não trabalhavam a literatura infantil na escola a contento.
Não podemos ser simplistas ao considerar só a realidade atual das pedagogas
envolvidas, é necessário considerar: toda a história da literatura infantil, a qual foi
escolarizada e doutrinadora pelos detentores do poder desde o século XIX. A própria
finalidade do Pnaic, em linhas gerais, sanar a distorção idade e alfabetização, um dos
grandes entraves na educação, por meio de sequências de atividades. Essa iniciativa
pode pelo menos dar um norte aos professores da sala de aula, mas, será eficaz só
saberemos, talvez, com os resultados da Avaliação Nacional de Alfabetização – ANA. .
Todos estes fatores influenciam a prática do professor que ainda não promove
a formação leitora das crianças, pois a preocupação se torna ―alfabetizar‖, e, neste
contexto, podemos questionar: o programa este errado? A princípio, é cedo para
saber. Acreditamos que, de modo geral, não, já que são claras suas intenções de
garantir que a criança ao final do ciclo de alfabetização esteja apta a seguir a diante
nos estudos.
A crítica é ao fato de novamente escolarizar a literatura infantil. Se dantes era
realizada por meio das próprias vivências dos educadores, comovimos nos
questionários, mais adiante nas suas formações equivocadas quantoao tema nas
universidades enquanto acadêmicas, depois por meio dos escritores que sistematizam
atividades ao final dos livros como suporte aos docentes, agora temos um programa
nacional que avaliza essa prática em detrimento de outras. Parece-nos que
novamente a literatura infantil não tem valor neste universo.
Qual seria um caminho possível? Lajolo (1993) sinaliza para a retomada da
responsabilidade do professor quanto as práticas leitoras e planejamento das
atividades:

É nesse dialogo que as atividades de leitura adquirem sentido e


podem, agora sim, tornar-se práticas significantes. Libertado da
imposição delas, o professor poder, voluntariamente retornar a elas
para – senhor de sua disciplina e de seu curso – selecionar aquelas
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que acredita, descartar outras nas quais não aposta, reformular


todas, balizando-as pelo que conhece de seus alunos e da leitura
deles, pelo que conhece de língua, linguagem e de literatura[...]
(LAJOLO, 1993, p. 73, grifo do autor).

Para que o professor tenha condições de se libertar de todas asimposições


derramadas sobre ele, é preciso em primeiro lugar, que o mesmo compreenda a
condição na qual se encontra. De posse desta descoberta, é necessário refletir quais
são as implicações para seus afazeres, suas escolhas e questionamentos em sala de
aula.
A discussão de libertação das imposições que Lajolo (1993) nos traz não é
exclusividade dos profissionais da educação que atuam com literatura infantil em
classes de alfabetização, uma vez que atinge professores de todas as áreas que estão
condicionados a esperar que programas, escritores, redes de ensino ou diretores
ditem o que devem e como devem atuar em sala de aula.

Proposta de intervenção: A interlocução da formação reflexiva

A proposta de intervenção é requisito do Profeduc e busca sugerir ações


concretas que acreditamos favorecer o trabalho pedagógico nas classes de 1° ao 3°
anos com obras literárias do acervo do Pnaic. Sistematizamos três momentos que
podem representar um caminho para que os educadores superarem os desafios da
formação de leitores que tenham prazer e encontre sentido na leitura literária em sala
de aula.
O primeiro ancora-se na formação dos professores na própria escola,
buscando articulação entre as pedagogas das classes de alfabetização e as
professoras de língua portuguesa. Esses encontros formativos constituiriam a criação
de um grupo de estudos no lócus escolar, o Grupo de Estudos de Literatura Infantil na
Escola - GELIE.
O segundo caminho é a oferta de oficinas, esta uma ação prática, nas quais
seriam selecionados livros de literatura infantil de maneira mais criteriosa, vinculadas a
contações de histórias entre as próprias educadoras, leitura e atividades que
contribuíram para a formação leitora.
O terceiro, a culminância do GELEI, será a festa literária ao final de cada ano,
aproximando as escolas participantes. Com a proposta de envolver os alunos por meio
de exposições de obras literárias de valor, apresentariam diferentes formas de
contação de histórias e de representações teatrais, tarde de autógrafos e conversas

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com escritores locais, permitindo desta maneira experiências significativas e


marcantes para a formação leitora das classes das professoras que fazem parte do
projeto.
Acreditamos que dessa maneira a formação leitora, que não se extingue ao
final do ciclo de alfabetização, permaneça em foco nas aulas de língua portuguesa,
por exemplo, sem estar vinculada exclusivamente a programas.
Espera-se que, diante de uma postura reflexiva, os profesores de maneira
autônoma sejam promotores de práticas que despertem o interesse de seus alunos
para a literatura, que os alunos naturalmente se vejam como leitores e que está
prática, despretensiosamente (pelo menos para o aluno), favoreça a alfabetização.

Referências

ABRAMOVICH, Fanny. Literatura Infantil gostosuras e bobices. 5. ed. Scipione.


São Paulo, 1997.
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Tradução de Dora
Flaksman. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.
BRASIL. Decreto nº 6.094, de 24 de abril de 2007. Dispõe sobre a implementação do
Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação. Diário Oficial da União,
Brasília, 2007.
______. Edital de Convocação para inscrição e seleção de obras de literatura para o
Programa Nacional do Livro Didático - Alfabetização na Idade Certa 2014. Diário
Oficial da União, Brasília, 2013b.
COLOMER, Teresa. Andar entre livros: a leitura literária na escola. Tradução de
Laura Sandroni. São Paulo: Global, 2007.
COOKE, Trish. Tanto, Tanto. São Paulo: Ática, 2006.
LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática,
1993.
LÓPEZ, Susana. A melhor família do mundo. Curitiba: Base Editora, 2010.
MACHADO, Ana Maria. Palavra, Palavrinha e Palavrão. São Paulo: FTD, 2010.
MELLO, Roger. Vizinho, Vizinha. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2002.
ZILBERMAN, Regina et al. Leitura: perspectivas interdisciplinares. São Paulo: Ática,
1988.
ZILBERMAN, Regina. A Literatura Infantil na Escola. São Paulo: Global, 2003.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

A LITERATURA MATO-GROSSENSE E AS TIC´S: POR UMA


FORMAÇÃO LEITORA

Eliana Aparecida dos Santos, SEDUC - MT


Rosana Rodrigues da Silva, UNEMAT – Sinop/MT

Considerações Iniciais

O presente trabalho297 apresenta o resultado de uma pesquisa-ação


desenvolvida com alunos do oitavo ano da escola Estadual André Antônio Maggi,
localizada no município de Feliz Natal – MT, objetivando desenvolver o letramento
literário nos anos finais do ensino fundamental. Muitas vezes, os textos literários são
apresentados aos alunos no início da sua formação, na educação infantil, em seguida
recuperam-se alguns fragmentos, no ensino médio, essa tem sido a forma como a
literatura aparece nos ambientes escolares, em outros momentos as produções
literárias servem apenas como pretexto para o ensino das regras que regem a nossa
língua. As discussões demonstram que não há espaço para o estudo da literatura nas
aulas de língua portuguesa, logo, é evidente que a literatura regional nem faz parte
dos planos de ensino das escolas. Intentando reverter essa situação, propomos a
aplicação de uma sequência expandida, que trabalhou a literatura infantil e juvenil
mato-grossense aliada às tecnologias. Para fundamentar o trabalho, buscamos
respaldo em Amarilha (2012), Cademartori (2012), Candido (1995), Colomer (2007),
Coscarelli & Ribeiro (2011), Cosson (2014) e Ramos & Panozzo (2016). Os dados
coletados serviram de base para tecermos as discussões acerca da importância da
mediação pedagógica para se trabalhar textos literários em sala de aula, além de
refletirmos sobre a necessidade da divulgação da literatura produzida em nosso
estado, porém pouco divulgada nos ambientes escolares, além da percepção de que

297
O texto é uma síntese do trabalho de conclusão do Programa de Mestrado Profissional em Letras –
Profletras, da UNEMAT, campus de Sinop – MT, com a orientação da Professora Doutora Rosana
Rodrigues da Silva, intitulado “A literatura infantil e juvenil de Mato Grosso: o caminho das pedras”,
defendido em novembro de 2016.
1413

os recursos tecnológicos podem auxiliar no desenvolvimento do letramento literário.


Entretanto, não podemos resumir as aulas ao uso das tecnologias e acreditar que a
utilização dessas ferramentas seja a solução para a formação de leitores. É preciso
estimular o prazer da leitura, além da percepção criteriosa para aliar os recursos
tecnológicos em prol de uma formação leitora proficiente.

A mediação pedagógica no processo de leitura

Alegarmos que os adolescentes não gostam de ler já se tornou afirmação


comum, entretanto, a leitura que os jovens leitores em formação realizam não são as
leituras que a escola concebe como literatura. O que a escola quer que o aluno leia
não se faz presente no rol de interesse do mesmo, pois só o fato da obrigatoriedade já
transforma a leitura escolar em algo chato e desinteressante. Colomer (2007, p.104)
afirma que ―graças à extensão da escolaridade, lê-se mais que nunca, mas o que se lê
e para que se lê está longe de corresponder à literatura e a seus possíveis benefícios‖,
ou seja, os nossos educandos estão lendo muitas coisas, porém, a escola cobra
leituras que não condizem com o interesse dos leitores, mas que estão de acordo com
o cânone literário, o que também não desperta o interesse dos jovens em formação.
Selecionar textos que são considerados literários e que chamam a atenção do
leitor é o maior desafio do professor em sala de aula. Logo, esse foi o nosso desafio,
escolher produções literárias que pudessem ir ao encontro do interesse de um grupo
de trinta e quatro alunos, que estão em formação, viciados em jogos eletrônicos e que
acreditam que a leitura é a ―parte chata‖ das aulas de língua portuguesa.

[...] não se trata de adequar uma produção literária a escola pelo


reflexo – sem reflexão – do que já é do mundo do jovem em sua
relação com os meios de massa. Trata-se, sim, de introduzir, no
ambiente escolar, obras variadas, com alto potencial simbólico, de
modo a corresponder ao anseio por outras respostas possíveis, ainda
que efêmeras, a questões diversas sobre si e sobre o mundo, que
convocam o entendimento e o sentimento de um sujeito em
formação. (CADEMARTORI, 2012, p. 65)

O que Cademartori afirma é que devemos estar atentos e dispostos a realizar


algumas adequações para que a leitura oferecida corresponda a alguns anseios dos
jovens leitores em formação, entretanto, critérios deverão ser estabelecidos para que a
escolha não seja aleatória.
O processo de mediação de leitura que tanto se discute nos meios acadêmicos
ainda não está presente com tanta frequência nos ambientes escolares, um dos
principais problemas apontados para justificar essa ausência é a ―mudança das
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funções sociais da literatura durante a segunda metade do século XX e o da redução


de seu espaço escolar em função da leitura ―funcional‖, do ensino da língua e das
demais matérias do currículo.‖(COLOMER, 2007, p. 104). Desta forma, a literatura
passa a ser vista como algo sem utilidade, a sua presença nos espaços escolares
torna-se cada dia mais evasiva, em virtude de exigir tempo para o professor preparar-
se para ser mediador, e tempo para levá-la até o leitor em formação.
Ao escolhermos trabalhar com a obra Isso é coisa de Pirata! de Wander
Antunes, confirmamos o que muitos estudiosos vem afirmando recentemente, ou seja,
há produção literária em Mato Grosso, porém ela ainda não ocupa os espaços
escolares.
Na obra escolhida temos o personagem Gonçalinho que recebe a visita da fada
Sininho que está preocupada com a vinda do capitão Gancho para Cuiabá em busca
de ouro. Peter Pan cresceu, e não se importa mais com os problemas que acontecem
na Terra do Nunca. O personagem mato-grossense assume o lugar de herói, e,
juntamente com a sua turma tenta atrapalhar os planos do malvado capitão. A obra faz
um diálogo direto com o clássico Peter Pan de James Barrie (1911). Com algumas
adaptações regionais, o autor constrói uma narrativa que traz referências de um
clássico infantil, ambientada em um espaço próximo da realidade dos alunos, ou seja,
a capital do estado. Wander Antunes ainda explora o aspecto histórico das
construções das igrejas, a exploração do ouro, além das paisagens naturais,
cachoeiras, rios e vales, ―[...] sem esquecer as influências canônicas, o escritor
trabalha o espaço e as belezas naturais de um estado rico em miscigenação e suas
especificidades, tal como suas variantes dialetais.‖ (TEIXEIRA & SILVA, 2014, p. 50)
Os alunos não conseguiram citar nada a respeito da produção da região.
Desconhecer o autor não é algo tão assustador, mas levando-se em consideração o
fato de que a maioria dos educandos são nascidos no estado, espera-se que o mínimo
de conhecimentos culturais sejam expressos pelos discentes, entretanto percebemos
que até mesmo a escola está falhando nesse aspecto, pois não foi surpresa ser
questionada por colegas de trabalho que gostariam de saber onde havia encontrado
os textos literários que pretendia trabalhar com os alunos.

A leitura literária contempla todas as disciplinas, mas é fato que as


leituras de obras infantis produzidas em Mato Grosso são, muitas
vezes, relegadas a segundo plano, por falta de conhecimento crítico
dessas obras por parte dos profissionais responsáveis pelo trabalho
com a leitura. (SILVA & COCCO, 2014, p.4.159)

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Profissionais que são responsáveis em formar o gosto literário desconhecem a


produção regional, eles ainda continuam divulgando fragmentos dos cânones
literários, pautam suas aulas nas análises linguísticas, o que não está totalmente
errado, porém não deve ser o foco das aulas de língua portuguesa. Portanto, não há
como esperar que o aluno conheça alguma manifestação literária do estado, se o
responsável por mediar esse conhecimento também não conhece.
Apesar de a obra ser publicada há vinte anos, ela permanece sendo uma
novidade nos ambientes escolares, tanto que não há exemplares nas bibliotecas, e os
alunos a receberam como se fosse uma produção recém-lançada no mercado literário,
dessa forma, o meio para que o texto literário chegasse às mãos dos educandos foi
através dos recursos tecnológicos, digitalizando e encaminhando por e-mail, fazendo
leituras no laboratório de informática.
Propor um momento de leitura no laboratório de informática não é uma
atividade considerada comum no ambiente escolar. Infelizmente, alguns profissionais
continuam perpetuando a ideia de que fazer pesquisa se resume a encontrar
informações e depois fazer cópias para ser entregue ao professor. Essa atitude ficou
evidenciada quando informamos que os alunos teriam na área de trabalho dos
computadores o texto para fazer a leitura e que poderiam realizar anotações de
palavras que não compreendiam, com o auxílio do dicionário. Um dos maiores
problemas enfrentados ao propor atividades de leituras é a quebra de alguns
paradigmas que a escola vem perpetuando, tais como: ler é uma atividade chata e
dolorosa; não há prazer em realizar atividades de leitura; utilizar o laboratório de
informática subentende-se fazer cópias de textos pesquisados em alguns sites.

[...] o professor precisa vencer preconceitos contra os meios e os


recursos digitais, contra o apego dos alunos a esse mundo e aos
aparelhos que lhes permitem estar mergulhados nesse mundo.
Precisa estar de mente aberta para adotar novas posturas
pedagógicas baseadas nas novas demandas deste tempo.
(COSCARELLI & CARVALHO, 2015, p. 21)

Além da leitura, os alunos foram convidados a fazer uma pesquisa sobre


algumas informações que o texto apresentava, tais como a referência aos piratas do
livro A Ilha do Tesouro de Robert Louis Stevenson (1883), relembrada por Gonçalinho
ao cantar a música ―Oh! Oh! Oh! Uma garrafa de rum. /Oh! Oh! Oh! E não sobrou
nenhum‖, além da figura do Freddy Krueger, personagem fictício da série de filmes de
terror ―A Hora do Pesadelo‖, comparação que Urbaninho faz do capitão Gancho com o
personagem do filme, os dois são horripilantes. Amarilha (2012, p. 176) salienta que ―a

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intertextualidade se manifesta pela relação dialógica entre textos, que pode ocorrer por
alusão, imitação, citação, inversão e tantos outros procedimentos.‖
O que Wander Antunes faz na construção do enredo de Isso é coisa de Pirata!
é construir esse processo de intertextualidade com obras literárias e seriados de
televisão, ou seja, o diálogo com outras produções. Não podemos classificar esse
processo como adaptação, pois a ―adaptação mantém a história original, reescrita
segundo as necessidades de leitores específicos, enquanto o reconto dá-lhe
roupagem diferente, mantendo, contudo, referências evidentes à fonte.‖(AGUIAR,
2012, p. 48)
O fato dos alunos irem para a leitura do texto, mas com uma prévia
interpretação do que a capa e a dedicatória apresentavam, possibilitou um processo
de leitura mais significativo, pois os mesmos sentiram-se motivados a lançar-se à
leitura da obra com mais curiosidade, resultado de um processo de mediação pautado
em debates e discussões pré-leituras.
Os alunos tinham como atividade de produção dar continuidade ao enredo de
Wander Antunes, tendo como ponto de partida o conflito apresentado no final do
capítulo 5, ou seja, o momento em que o personagem Gonçalinho é obrigado a andar
na prancha sob as ordens do temível capitão Gancho. A produção textual deveria ser
realizada utilizando o Power Point, ferramenta que já estamos há muito tempo
familiarizado, entretanto, muitos alunos desconheciam a infinidade de recursos que o
programa oferecia, pois a maioria estava acostumada a buscar informações na
internet, copiar e colar no slide para apresentação, quando a turma passou a explorar
todos os recursos oferecidos, desde transição, animação, layout e design, foi como se
estivessem diante do programa pela primeira vez.
A continuidade do enredo não ofereceu muitas dificuldades aos alunos, uma
vez que os mesmos já estão acostumados a produzir narrativas de pouca ou nenhuma
complexidade, com apresentação de personagens planos, além de ações girando em
torno de um só conflito, ou seja, uma narrativa linear. Além dessa facilidade,
percebemos a influência das histórias em quadrinhos no momento da escrita de
alguns alunos, eles fizeram uso de onomatopeias, pontuações, interjeições, tudo para
reforçar alguma expressão do personagem, além da forte presença do discurso direto.

Leitura literária: conhecendo a cultura mato-grossense

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Na proposta de sequência expandida, Cosson (2014) propõe que a expansão


deva acontecer quando utilizamos outros textos para dialogar com o texto principal. O
nosso objetivo era dar continuidade às discussões das produções literárias no estado
de Mato Grosso, sendo assim, a obra de Wander Antunes trabalhava com a fantasia,
dialogava com clássicos literários universais, no caso, a história do Peter Pan, além de
trazer para o enredo uma ambientação regional que não é desconhecida pelos alunos.
Entretanto, a narrativa de Wander Antunes não abordava as lendas do estado,
uma manifestação cultural rica, porém desconhecida pela maioria dos leitores em
formação. Por sermos uma região de colonização jovem, o que predomina na nossa
cultura são as narrativas divulgadas oralmente pelos mais antigos, sendo assim, são
poucos os registros que encontramos das nossas manifestações lendárias. Mas, o
pouco que está registrado não é de conhecimento dos nossos alunos, em algumas
situações, os professores, que são as pessoas envolvidas em promover o letramento
dos educandos, também desconhecem as lendas que fazem parte da cultura do
estado.
Diante de toda essa situação de desconhecimento, iniciamos a segunda parte
da nossa proposta com a realização de uma pesquisa para os alunos conhecerem a
lenda do Tibanaré, a escolha deu-se em função dessa ser uma das mais divulgadas
nos meios digitais, logo, os alunos não teriam muitas dificuldades em encontrar
informações que pudessem subsidiar a sua produção textual, além desse personagem
fazer parte da segunda obra que seria discutida.
Basicamente a história de Tibanaré é apresentada como ―um indígena velho,
de rosto enrugado, maltrapilho, andando silenciosamente ao entardecer. Quando as
crianças assobiam, o Tibanaré se aproxima manso, pedindo fumo. Se não lhe
satisfazem a súplica, carrega o menino‖ (CASCUDO, s/d, p.864), alguns sites
oferecem a informação de que o Tibanaré também se transforma em um pássaro.
A obra ―Conferência no cerrado‖, de Durval de França e Cristina Campos difere
da produção de Wander Antunes em alguns aspectos que chamam a atenção dos
alunos logo no início, as ilustrações coloridas e bem chamativas, ―em determinados
momentos, a imagem antecipa sentidos revelados pela palavra, em outros, mostra
sentidos paralelamente, tratando de aspectos não explicitados pelo sistema escrito;
por vezes, apenas confirma as palavras, por outras, orienta a leitura.‖ (RAMOS &
PANOZZO, 2004, p. 12). O que Ramos & Panozzo afirmam é que a ilustração não é
coadjuvante numa obra literária. Os textos ilustrados requerem um esforço maior para
a compreensão leitora, pois além do texto verbal, as imagens estão carregadas de
informações que o leitor precisa compreender.
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Na obra Conferência no Cerrado, temos a união dos personagens lendários


mato-grossenses, Currupira, Mãe do Morro, Negrinho d‘Água, Boitatá, Pé de Garrafa e
Tibanaré, que resolvem fazer uma conferência para juntos encontrarem soluções para
os problemas ambientais que atingem seus respectivos espaços. O enredo apresenta
através da mistura da realidade com a fantasia um alerta quanto à gravidade do
descaso do homem com a natureza e quais as ações que são executadas por esses
seres encantados para impedir a devastação do meio ambiente.
A capa já é um atrativo aos olhos dos alunos, apresenta de imediato os
personagens que farão parte do enredo, entretanto poucos são conhecidos pelo
público leitor. Como já havíamos estudado a lenda do Tibanaré, esse foi um dos
personagens identificados, além do velho índio, o único personagem que o grupo
conseguiu identificar foi o Negrinho d‘Água que inicialmente foi confundido com o
personagem Saci. O fato de a capa ser bem colorida chama a atenção do leitor, há
possibilidades de reconhecer quem serão os protagonistas do enredo, pois a imagem
apresenta o Currupira no primeiro plano, porém a disposição dos outros personagens,
Mãe do Morro, Tibanaré, Negrinho d‘Água, Pé de Garrafa e Boitatá não demonstra
que serão personagens secundários.
A leitura compreende muito mais que a decodificação do código escrito. A
disposição gráfica e as ilustrações contribuem na construção de sentidos, ou seja, a
ilustração não está presente somente para representar o que foi dito através da
escrita, mas para passar uma mensagem que precisa ser lida.
Na obra em questão percebemos que a ilustração assumirá, de acordo com
Ramos & Panozzo (2004), a função narrativa e expressiva. Na função narrativa, a
ilustração tem por objetivo situar o que está representado e as suas transformações. A
função expressiva evidencia sentimentos e emoções através de posturas e gestos.
A primeira página do livro apresenta uma ilustração bem colorida do Currupira
no meio do cerrado. Os alunos fizeram algumas inferências afirmando que o
personagem estava bravo, o formato das pedras e da árvore que são características
da região foi outro aspecto observado pelo grupo.
Como proposta de produção sugerimos aos alunos a caracterização deles em
alguns personagens das lendas do estado, situação que possibilitou um processo de
discussão à distância pois as fotografias foram enviadas via WhatsApp, os alunos
reuniam-se em grupos nas suas casas para caracterizaro personagem, fotografavam e
enviavam em tempo real para que pudéssemos avaliar e sugerir algumas
modificações. Dessa forma, tínhamos a possibilidade de orientar o grupo para que a
imagem construída não expusesse o aluno a uma situação constrangedora, e ao
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mesmo tempo aproveitávamos uma das atitudes constantes nos ambientes escolares,
o uso da selfie.

O uso das tecnologias aliadas ao letramento literário

O uso das histórias em quadrinhos em sala de aula é um dos recursos que o


professor, que tem o objetivo de desenvolver a competência leitora de seus alunos,
não pode deixar de utilizar no planejamento e execução de suas aulas. Além da
decodificação do código verbal, as histórias em quadrinhos são compostas de muitos
símbolos que requer do aluno o desenvolvimento da capacidade de percepção e
leitura de imagens, símbolos, expressões faciais, uso de cores, balões, disposição
gráfica, enfim, há uma série de elementos que contribuem para a elaboração e
compreensão de uma história em quadrinhos.

A última virada de século marcou o coroamento de uma nova fase


para as histórias em quadrinhos no Brasil, que já se encontravam em
processo de reavaliação. Por um lado, gradativamente elas
passavam a ser entendidas pela sociedade não mais como leitura
exclusiva de crianças, mas, sim, como uma forma de entretenimento
e transmissão de saber que podia atingir diversos públicos e faixas
etárias. Por outro, paulatinamente deixavam de ser vistas de forma
pejorativa ou preconceituosa, inclusive nas áreas pedagógicas e
acadêmica. (VERGUEIRO & RAMOS, 2015, p. 09)

Através do uso do HagáQuê, um software educativo, criado pelaUnicamp, com


o objetivo de auxiliar no processo de alfabetização e domínio da linguagem escrita,
propomos aos alunos a construção de uma história em quadrinhos para ser
apresentada para a comunidade escolar. Eles deveriam utilizar as fotografias
produzidas por eles e dialogar com os problemas ambientais que os seres lendários
estavam enfrentando na obra ―Conferência no Cerrado‖, além disso, os educandos
precisavam retomar alguns personagens da literatura infantil para fazer parte da
história, ou seja, o estudo da obra ―Isso é coisa de Pirata‖ serviu como base para a
construção da história em quadrinho. O programa HagaQuê é um editor de histórias
que possui um banco de imagens com os diversos componentes para construção e
edição dessas imagens. A atividade parecia ser simples, se não fosse o uso do
software, disponibilizado no mercado já há um bom tempo, mas pouco divulgado nos
ambientes escolares.
Viver em um mundo globalizado não significa que todos tenham acesso aos
recursos que promovam essa globalização, muitos alunos possuem umaparelho
celular somente para jogos, ou raramente para comunicar-se com os familiares.

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Portanto, é necessário que a escola promova atividades e situações em que os alunos


possam utilizar os recursos que disponibilizam de uma forma mais eficaz e
pedagógica, porém, a escola precisa perceber a utilidade destes recursos e deixar de
negá-los enquanto auxílio no processo de ensino.

São consideradas TIC computadores, correios eletrônicos (e-mail),


webcams, pen drives, web-sites, celulares, TV a cabo, CD, DVD,
fotos e vídeos digitais, entre outros. Associadas à interatividade, as
TIC, que proporcionaram uma inegável revolução aos mais diversos
setores da sociedade, estão cada vez mais presentes em nossas
vidas e sua utilização cresce em ritmo acelerado. (RIBEIRO, 2015, p.
172)

Durante o percurso das produções utilizando os recursos


tecnológicos,percebemos que os alunos poderiam avançar mais. A maioria da turma
desenvolvia as atividades sem a preocupação se teriam uma avaliação ou não, o que
importava para eles era o resultado do seu trabalho.
A proposta do Profletras pressupõe a aplicação de uma sequência de
atividades, seja ela didática, básica ou expandida, além da construção de um produto
final com as atividades desenvolvidas pelos alunos, sendo assim, aproveitamos a
empolgação em utilizar alguns recursos tecnológicos para propor a construção de um
book trailer para a divulgação dos trabalhos produzidos.
A função do book trailer é divulgar alguma obra literária através de um
curtíssimo vídeo, pode ser realizado em Power Point, Movie Maker ou Viva Vídeo, um
aplicativo disponível para celulares androides. A realização da atividade proposta
permitiu o uso efetivo dos celulares dos alunos, pois os aparelhos disponibilizavam
editores de vídeos bem melhores e eficientes do que os programas que os
computadores do laboratório ofereciam.
Muitas escolas estão com laboratórios implantados, porém não oferecem os
recursos necessários para o desenvolvimento de atividades pedagógicas, são
máquinas ultrapassadas, com inúmeros problemas de funcionamento, a
disponibilidade de internet também é outro problema enfrentado pelas escolas, além
das dificuldades citadas, há também o desconhecimento por parte de alguns
profissionais que não conseguem articular os conteúdos trabalhados com o uso das
novas tecnologias, desta forma, as atividades escolares continuam pautadas em
padrões tradicionais e arcaicos que não condizem com a realidade que envolve o
educando.
Ao propor a construção de um book trailer para divulgar as histórias criadas
pelos próprios alunos, tínhamos a intenção de provocar a turma para buscar e explorar

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a capacidade de manusear um editor de vídeo, muitos alunos inicialmente alegaram


ser impossível realizar a proposta, porém, quando eles visualizaram um modelo e
perceberam que já realizavam a atividade de editar vídeos, os alunos puderam
perceber que só estávamos utilizando as habilidades que eles já dominavam para
fazer algo que fosse voltado ao processo de ensino aprendizagem.
A construção dos vídeos possibilitou aos alunos desenvolver a persuasão, pois
eles deveriam convencer o telespectador a conhecer a sua história, sendo assim, as
expressões que utilizavam o imperativo predominou na escrita dos educandos.
O poder de síntese para apresentar as ideias principais da história,
aorganização dos quadros que iriam compor o vídeo, bem como a escolha do fundo
musical que pudesse chamar a atenção ou emocionar o público, foram atividades que
demonstraram a organização e coletividade entre os grupos.
A diferença entre o book trailer e o booktuber, é que o primeiro é caracterizado
pela construção de um vídeo com imagens e alguns trechos de um livro, já o
booktuber caracteriza-se pelo depoimento de um youtuber sobre as impressões que
ele abstraiu da leitura da obra em destaque.
Sendo assim, a nossa proposta foi a construção de um booktuber sobre as
duas obras estudadas durante as aulas, Isso é coisa de Pirata! de Wander Antunes e
Conferência no Cerrado de Durval de França e Cristina Campos. A espontaneidade é
uma das características do público adolescente, eles falam o tempo todo, são curiosos
e muito ativos, porém, quando precisam expor-se diante de um vídeo, a situação muda
e a timidez prevalece.
O resultado evidenciou o quanto a tecnologia pode contribuir para o processo
do letramento literário, é possível ultrapassarmos as meras resoluções de
questionários ou construção de resumos de obras literárias, atividades que geralmente
compõem o trabalho com o texto literário em sala de aula, e promovermos atividades
em que a leitura literária possa construir sentido para o aluno e ele possa transmitir o
seu conhecimento para os colegas. O uso das tecnologias em sala de aula associada
a um trabalho de mediação, que tenha como princípio o desenvolvimento das
habilidades dos educandos, possibilita-nos o retorno da literatura nas aulas de língua
portuguesa, do ensino fundamental, de uma forma mais coerente com a sua
existência, ou seja, libertar-nos do caos e humanizar os jovens leitores em formação,
conforme Candido (1995).
Após um longo percurso de leituras e atividades com o intuito de desenvolver o
letramento literário, e utilizando os recursos tecnológicos em prol do processo de
ensino, chegamos ao momento de divulgação dos trabalhos realizados pelos alunos.
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Utilizar o blog ou o facebook da escola como veículo de divulgação foi o


primeiro caminho a ser escolhido, entretanto, o processo de interação com os
educandos, permitiu-nos perceber que esses veículos já estavam entrando em
desuso, poucos alunos utilizam o facebook, e a grande maioria desconhece a utilidade
de um blog. Portanto, precisaríamos de algo diferente, que pudesse surpreender e que
ao mesmo tempo incentivasse os alunos a buscarem novas formas de divulgação e
comunicação, sendo assim, propomos a criação de um aplicativo para mobile.
Para a criação do aplicativo, foi necessário acessarmos o site
fabricadeaplicativos.com.br, e criarmos uma conta. Um dos critérios para a escolha do
aplicativo, foi o fato de que o recurso é criado e alimentado via computador, porém a
visualização é somente via celular, e esse é uma das ferramentas que todos os alunos
possuem, logo, o processo de divulgação seria mais eficaz.
O aplicativo apresenta três etapas que precisam ser preenchidas, além da
criação da conta: design, conteúdo e perfil. No design escolhemos uma imagem de
abertura, plano de fundo, além da disposição dos ícones que foram inseridos na etapa
do conteúdo.
Após a conta criada, iniciamos a alimentação do aplicativo com a escolha das
imagens e seleção das informações que todo o grupo considerava necessário. As
imagens de abertura, cabeçalho e imagem de fundo foram eleitas pela turma.
A organização do que deveria conter no aplicativo permitiu aos alunos
perceberem alguns problemas que os trabalhos apresentavam, ou seja, a partir desse
momento os alunos compreenderam a importância de pensar no seu interlocutor.

O leitor se adapta ao novo suporte, ao novo objeto de ler, e o novo


objeto vai sendo refinado e projetado de acordo com as demandas do
leitor, fundamentadas no uso. Trata-se, então, de um ciclo inteligente
e versátil, ao qual qualque(COSCARELLI & RIBEIRO, 2011, p. 130)

O trabalho pedagógico deve prever momentos em que os conteúdosdiscutidos


possam ser colocados em prática para que o ensino torne-se mais efetivo e
fundamentado para que desperte o interesse do aluno, além de motivar a reflexão que
permita ao educando fazer sua auto avaliação e compreender os avanços e os
equívocos que cometeu durante o percurso de aprendizagem.
Após a inserção de todas as informações e conteúdos desenvolvidos com os
alunos do oitavo ano ―A‖, salvamos o aplicativo ao criar um perfil, o que culminou na
criação de um endereço, http://app.vc/maggi, o qual qualquer pessoa pode acessar via
mobile.

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Divulgamos o endereço primeiramente para os alunos, para que eles


pudessem conhecer como ficou a formatação de suas atividades no aplicativo, e
depois de alguns ajustes, sugeridos pelos educandos, divulgamos para a comunidade
escolar via Facebook. Algumas atividades como os books trailers também foram
divulgados nas redes sociais da escola com o objetivo de incentivar a comunidade a
acessar o endereço divulgado e conhecer o trabalho dos alunos.
Considerações Finais
O desenvolvimento das propostas de atividades de leitura e a reflexão acerca
dos dados obtidos possibilitou-nos a desmistificação da grande afirmação que permeia
boa parte dos discursos dos professores em reuniões pedagógicas e formações: a
ideia de que os nossos alunos, do ensino fundamental, não leem e não sabem
escrever. Pelo contrário, nunca se leu tanto quanto agora, entretanto, os alunos leem o
que gostam e o que lhes chama a atenção.
Outro fator importante que a nossa análise evidenciou refere-se à ausência de
planejamento para as atividades de leitura, essa aparece durante o fazer pedagógico
simplesmente para preencher algum tempo ocioso, não há a preocupação em
desenvolver o letramento literário dos leitores em formação. Logo, a presença da
literatura ainda não chegou ao ambiente escolar, da forma como deveria acontecer, ou
seja, o texto literário ainda não faz parte do foco das aulas que pressupõem a
formação de um leitor capaz de perceber o discurso polifônico que a literatura nos
apresenta.
Muitas vezes, percebemos que até os profissionais, responsáveis pelo ensino
de língua materna, desconhecem a produção do Estado, o que demonstra que não
podemos oferecer algo que não conhecemos. Logo, antes de pensarmos em
propostas de leitura para oferecermos aos nossos alunos com o intuito de desenvolver
o letramento literário, é necessário que o professor seja um leitor assíduo.
Em síntese, é através da mudança de postura que podemos superar as
barreiras impostas para que o texto literário se faça presente nas salas de aulas. O
caminho da literatura no ambiente escolar precisa ser sólido, para isso é fundamental
que cada pequena pedra, considerada obstáculo no fazer pedagógico, seja lapidada e
encaixada de forma a se construir uma base forte. Desse modo, os empecilhos serão
transformados em degraus para que a literatura se faça cada vez mais presente no
ambiente escolar. A escola não pode permanecer desenvolvendo atividades arcaicas,
negando as mudanças que o século XXI nos apresenta.

Referências
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reconto: das fontes à invenção. – São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012.
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CADEMARTORI, Ligia. O professor e a literatura; para pequenos, médios e grandes. –
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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

AS VÁRIAS CHAPEUZINHOS VERMELHOS: ANÁLISE DE UM


CONTO, UM RECONTO E UM CONTO SIMPLIFICADO

Ana Laura Garro dos Santos, UNESP, Literatura infantil e ensino, CAPES.

Considerações Iniciais

Neste artigo pretendo discutir a Literatura Infantil, mais especificamente, o


conto de fadas e o reconto, através da análise de três contos da Chapeuzinho
Vermelho. Tais análises ocorreram em uma versão de Perrult, que denominamos de
Clássica; em um reconto e em uma versão resumida que nomeamos de simplificada.
Vale lembrar que as discussões a seguir são resultados obtidos em um pesquisa de
mestrado, que ocorreu em um 4º ano, de uma escola municipal, na cidade de
Presidente Prudente/SP e, portanto, o título analisado foi apontado por esses alunos,
participantes da pesquisa. Já o tema, é decorrente da inquietação e preocupação da
pesquisadora (que aqui vos escreve) quanto à maneira como os alunos compreendem
suas leituras. Para a investigação, delimitamos como corpus de análise, os seguintes
eixos temáticos: paratextos, texto não verbal, texto verbal e estratégias de leitura. Para
tanto, recorremos a autores como: Aguiar (2001), Bremond (1972), Girotto e Souza (
2010), Linden (2011), Machado (2002), Nikolajeva (2011), Solé ( 1998), entre outros.

Os títulos analisados
Antes das análises, creio ser necessário informar ao leitor sobre o enredo de
cada conto. Destaco que, no que diz respeito a Chapeuzinho Vermelho, encontrei tal
narrativa apenas em um livro de coletâneas. Dessa forma, analiso o conto retirado do
livro Volta ao mundo em 52 histórias, coletânea organizada por Neil Philip, ilustrações
de Nilesh Mistry e publicação de 1998, pela editora Companhia das Letrinhas.Vale
destacar, ainda, que a coletânea faz parte do Projeto Trilhas298, do ano de 2012, e traz

298
É um conjunto de materiais elaborados para instrumentalizar e apoiar o trabalho docente no campo da leitura,
escrita e oralidade, com o objetivo de inserir as crianças do primeiro ano do Ensino Fundamental, em um univers o
1426

um selo de Altamente Recomendado pela Fundação Nacional do Livro Infantil e


Juvenil.

Figura 1: Chapeuzinho Vermelho– clássico


Fonte: Escola

A narrativa tem como título Chapeuzinho Vermelho e conta a história de uma


menina que morava em uma aldeia, na floresta, com sua mãe. A menina era muito
querida e amada. Um dia, sua avó lhe dá de presente uma capa vermelha e, pelo
excesso de uso, a garota passa a ser chamada de Chapeuzinho Vermelho. Nessa
versão, a mãe faz um pão de frutas e pede para a menina levar para a avó, que está
doente. Além do bolo, coloca em uma cesta um pote de manteiga. A menina toma o
caminho em direção à casa da avó, mas logo encontra o lobo que pergunta para onde
ela está indo. Inocentemente, a garota diz onde fica a casa da avó e expõe detalhes.
Fingindo-se preocupado com a velha, o lobo comenta que também quer visitá-la e
pega um caminho mais curto para chegar até a casa. Logo ele está no local e se
passa por Chapeuzinho, entra na casa da velhinha e devora-a. Quando o lobo está
quase dormindo, a menina chega e bate na porta. Mesmo estranhando a voz grossa
que vem de dentro da casa e lhe pergunta quem era, Chapeuzinho responde e entra.
Ao se aproximar da cama, admira a feição da avó e questiona os braços peludos, as
pernas compridas, as orelhas enormes, os olhos grandes e, quando pergunta sobre os
dentes, o lobo ruge e a devora. Assim se finda a história.
A segunda narrativa é um reconto: Chapeuzinho Vermelho - uma aventura
borbulhante, escrito por Lynn Roberts, ilustrado por David Roberts e editado pela

letrado. São cadernos de orientação do professor, jogos educativos, cartelas para atividades, além de títulos
literários.
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Zastras, em 2009. A obra foi distribuída pelo Ministério da Educação, por meio do
FNDE, e é recomendada para uso nas salas de aula do 1º ao 3º ano. Também foi
selecionada pelo PNBE, no ano de 2012. O livro não tem suas páginas numeradas,
mas é composto por trinta e seis páginas. De acordo com a sinopse, disponível em
sites de livrarias, algumas de suas peculiaridades são que a autora o adaptou para o
século XVIII, período em que se usavam perucas e vestidos cetinosos. Os móveis e as
vestes são europeus e norte-americanos; por sua vez, a vovó é rica e elegante. Na
casa da velha, há quadros de pintores renomados e louças de porcelana. Além disso,
o lobo é tratado de forma politicamente correta, porque, mesmo depois de comer a
vovó, o garoto não faz nenhum mal a ele, apenas o convence a tomar o refrigerante
borbulhante para salvar a velha e acaba por tornar o malvado dependente da bebida.

Figura 2: Chapeuzinho Vermelho– uma aventura borbulhante


Fonte: Escola

Nessa obra, Chapeuzinho Vermelho é Tomás, um menino que mora com seus
pais, donos de uma pensão que fabricava um borbulhante e famoso refrigerante. Um
dia, Chapeuzinho se preparou para levar guloseimas e o refrigerante favorito de sua
avó, assim como fazia semanalmente, mas foi alertado pela sua mãe a não sair do
caminho, por causa do lobo que andava pela floresta. O menino avistou maçãs
maduras e, ao deslocar-se para apanhá-las e levá-las para a vovó, para não rasgar
seu casaco vermelho, colocou-o sobre uma pedra que estava próxima aos arbustos. O
lobo, que já o vigiava, roubou o casaco e, como já havia escutado Chapeuzinho falar
onde iria, fugiu correndo para lá, com a intenção de chegar antes do garoto. Na casa,
o lobo vestiu-se com o casaco vermelho e aproveitou que a velha não enxergava bem,
passou-se por Chapeuzinho Vermelho e entrou na casa. Imediatamente, pulou sobre a

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senhorinha e a devorou. Seguindo com seu plano, colocou os vestidos e uma das
perucas da vovó e sentou-se à espera do menino.
Chapeuzinho chegou, anunciando o roubo do seu casaco, mas, como ninguém
lhe respondia, foi adentrando à casa. Já na mesa, estranhou os olhos e as orelhas da
vovó, contudo, quando questionou o tamanho dos dentes, o lobo rugiu e avançou
sobre ele. Rapidamente, Chapeuzinho lembrou-se de sua cesta e teve a ideia de
oferecer refrigerante ao lobo, o qual tomou todo o garrafão, suficiente para ser tomado
durante toda a semana, num só gole, o que lhe rendeu um arroto capaz de fazer a
vovó voar de sua boca. Enquanto o malvado cambaleava e resmungava por causa do
arroto, o menino atirou o garrafão em sua cabeça, o que o fez desmaiar. Chapeuzinho
o amarrou com as meias grossas de sua avó. Quando ele acordou, admitiu que o
refrigerante era mais gostoso que a vovó. Aproveitando a fala do lobo, Chapeuzinho
teve a ideia de lhe oferecer o refrigerante que ele quisesse, mas, em troca, teria de
prometer não devorar mais ninguém. O lobo concordou imediatamente e, a partir
daquele dia, ele tinha refrigerante toda semana, pois, sempre que ia à casa da vovó,
Chapeuzinho deixava para ele um garrafão do refrigerante borbulhante.
Chapeuzinho Vermelho, conto simplificado, é da editora Avenida, fundada em
2004, dentro de uma gráfica no sul do Brasil. Atende ao mercado de lojas populares e,
além de livros infantis, tem, entre seus produtos, dicionários, atlas, livros da literatura
brasileira e livros gigantes para ler e pintar. O exemplar faz parte da Coleção Histórias
Clássicas, a qual tem, ainda, os títulos: A Bela e a Fera, Bambi, Branca de Neve, João
e o pé de Feijão, Os três Porquinhos, Patinho Feio, Peter Pan, Pinóquio e Rapunzel.
No livro, não há indicação do autor da história, apenas da empresa que o ilustrou, a
MW Editora e Ilustrações.

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Figura 3: Chapeuzinho Vermelho– simplificado


Fonte: Escola

A narrativa inicia-se com a apresentação de Chapeuzinho Vermelho e a


explicação da origem de seu nome. A razão de a garota ser conhecida como
Chapeuzinho Vermelho deve-se ao fato de que sua mãe fez para ela um capuz
vermelho. Na sequência, sua mãe pede para a menina levar doces para sua avó. No
entanto, quando a menina atravessava o bosque, deparou com um lobo que queria
devorá-la, mas não podia, pois naquele momento havia muitos caçadores por perto. O
lobo resolveu, então, perguntar para onde a menina estava indo; Chapeuzinho, além
de responder, explicou onde se localizava a casa da avó. Logo, o lobo pegou um
caminho mais curto e chegou primeiro. Lá, imitou a voz de Chapeuzinho para a
velhinha abrir a porta. Assim que a vovó abriu, ele entrou e a devorou. Vestiu as
roupas da velha e ficou à espera da menina. Quando Chapeuzinho chegou, estranhou
a voz rouca que a mandava entrar e, quando já estava lá dentro, admirou os olhos e o
nariz grandes da avó. Ao questionar o tamanho da boca, o lobo pulou sobre ela, mas a
menina conseguiu fugir. Os gritos de Chapeuzinho foram ouvidos por um caçador que
apareceu e tirou a vovó da barriga do lobo. A narrativa termina anunciando que todos
ficaram felizes para sempre.

Os paratextos
Aqui, discuto a relevância de os leitores explorarem os paratextos de um livro,
antes de iniciar a leitura da história. Quanto à qualidade material, temos no conto
clássico e no reconto livros resistentes. No caso do conto simplificado, o material

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adotado interfere na durabilidade, já que amassa e rasga com facilidade, conforme é


manuseado. A junção por dois grampos também favorece a soltura das páginas.
No clássico de Perrault, a capa contém, além do título, o autor, o ilustrador, a
editora, o programa de distribuição, o aviso de venda proibida (por ser destinado à
escola) e ilustrações que remetem às histórias constituintes da coletânea. Assim, parte
do título Volta ao mundo em faz um movimento circular e imita o globo terrestre, ou
seja, faz referência à palavra mundo, e as imagens também aparecem em forma de
círculo. Na capa do segundo livro, aparecem o título, o autor, o ilustrador, a editora, o
programa de distribuição, o anúncio de venda proibida e a ilustração. Na ilustração,
surge em primeiro plano um personagem que, apesar de usar calça e casaco, não é
possível ter clareza de que se trata de um menino ou de uma menina – isso se dá pela
relação que os leitores tendem a fazer entre título e imagem e, levando-se em conta
que, nos clássicos, Chapeuzinho Vermelho é sempre uma menina, quando nos
deparamos com uma ilustração que não traz características claras sobre o gênero,
isso nos causa essa incerteza. Ao fundo, um lobo, de espreita atrás da árvore e de
nariz pontudo, vigiando o personagem. Na parte superior, à esquerda, uma coruja,
com olhar assustado, avistando o lobo e, portanto, percebendo o perigo que ali se
instaura. Como plano de fundo, têm-se árvores em tons escuros, os quais já revelam o
mistério e/ou a aventura que está por vir, assim como o subtítulo – ―uma aventura‖.
Ainda, a cesta que o personagem segura e onde se visualizam maçãs e uma garrafa e
que, igualmente, não permite ainda saber quais as funções de tais gostosuras na
narrativa.
Já no terceiro livro, a capa apresenta o título, a coleção, a editora e uma
ilustração, esta última que se repete no interior do livro. A respeito disso, Nikolajeva e
Scott (2011, p. 312) asseveram:
Uma imagem de capa, que se repete dentro do livro, mesmo com
uma leve variação, antecipa o enredo e, junto com o título explícito
[...] fornece algumas informações sobre a história, o gênero e o
destinatário do livro.

Todavia, no conto/versão ora analisado, é notório que se trata de uma


ilustração estereotipada, visto que o lobo aparece com expressão de esperteza e
Chapeuzinho com semblante inocente e feliz. Concordamos com Massoni, que
parafraseia Jardim (2000), ao ressaltar que
[...] as ilustrações têm servido de veículo para o reforço de
estereótipos e preconceitos. Personagens más são invariavelmente
feias, enquanto fadas, príncipes, princesas e heróis apresentam
sempre um ótimo aspecto. A avó é geralmente representada por uma
velhinha de cabelos brancos e coque, tricotando em uma cadeira de
balanço, e o avô, por um velho gordo, de óculos na ponta do nariz,
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chinelos e com uma aparência bonachona. Mesmo em livros que


contam histórias atuais, a mãe aparece de avental e espanador na
mão; o pai, segurando uma pasta ou um jornal. A empregada, o
marginal e o operário são quase sempre negros. (2000, p. 76, apud
MASSONI, 2014).

Quanto ao título, no primeiro e no terceiro livros, é Chapeuzinho Vermelho –


em outras palavras, título nominal. No segundo, o reconto, cujo título é Chapeuzinho
Vermelho - uma aventura borbulhante, nome e subtítulo resumem a narração e abrem
para várias possibilidade de inferências. A palavra borbulhante também leva o leitor a
fazer diversas inferências. Nesse caso, pela forma como é disposto o nome do autor –
―Recontada por Lynn Roberts‖ – é possível saber que se trata de um reconto.
As guardas do conto clássico, do lado esquerdo, repetem a ilustração do conto
A Bela & a Fera. Do lado direito, há uma reprodução do título, narrador, ilustrador,
editora, e acrescentam-se o tradutor, a edição, a reimpressão e uma pequena
ilustração do conto Baba Yaga, sem legenda nem descrição, isto é, é preciso já ter lido
o livro para reconhecer entender o que significa tal ilustração. Ao virar a página, têm-
se, do lado esquerdo, a dedicatória, informações sobre o autor e ilustrador e a ficha
catalográfica. Do outro lado, dá-se início ao sumário, separado por seções . Nele
aparecem imagens dos contos que estão no interior do livro, distribuídas por toda a
página, cada uma acompanhada por passagens às quais a imagem remete. O sumário
tem a extensão de duas páginas.
Logo após, inicia-se a Apresentação do livro. Aqui são expostas as principais
características dos contos de fadas e o modo como foi planejada a coletânea. Da
página 10 até a página 13, o organizador da coletânea volta a discutir os contos de
fadas. As páginas 14 e 15 explanam sobre Charles Perrault, Irmãos Grimm e Hans
Christian Andersen. Só nas páginas 16 e 17 é que introduzem as narrativas de
Encantamento. Gostaria de destacar que todos esses paratextos acima
mencionados são sempre acompanhados de ilustrações espalhadas pelas páginas e
que contribuem significativamente para a escolha do livro, visto que seduzem o leitor
e, consequentemente, o fazem ter vontade de ler. Assim, os paratextos
[...] também são as manifestações icônicas como as ilustrações, ou
as manifestações materiais como o número de páginas, a tipografia
elegida ou ainda factos que sendo conhecidos pelo público acarretem
comentários e influenciam a recepção. (LLUCH, 2006, p. 218).

No interior do livro recontado por Lynn Roberts a guarda do lado esquerdo é


neutra e, do lado direito, composta por uma ilustração que ocupa a página toda, sem
texto verbal. Trata-se de uma imagem que representa uma floresta com troncos,
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galhos, maçãs, pássaros, todos em tons avermelhados. Nessa história, o fato de a


floresta estar presente na guarda, em destaque, significa que partes importantes da
narrativa se passarão nesse espaço, o que permite ao leitor fazer várias previsões e
inferências ou, ainda, fazer conexões de texto-texto, ao lembrar que maçãs também
estão presentes em outro conto de fadas – Branca de Neve. Todos esses indícios
podem direcionar a leitura da obra.
No último livro, o de versão simplificada, não há guardas. O livro já se inicia
com a história na primeira página, o que não quer dizer que a ausência desse
paratexto faça com que o livro seja de baixa qualidade, todavia, não propicia as
vantagens que os paratextos oferecem, no momento da escolha do livro, o que pode
colaborar para o desinteresse na leitura do material.
Com relação ao frontispício, esse mesmo livro também não possui. No conto
clássico da Companhia das Letrinhas, há uma síntese sobre o autor e o ilustrador e
variadas informações na ficha catalográfica. Solé (1998) estabelece que os
educadores, ao utilizarem as estratégias de leitura, devem ter objetivos e conhecer
autor, ilustrador e informações adicionais sobre o livro, tendo como propósito ativar a
curiosidade e motivar os alunos para a leitura. Vale lembrar que esse contato deve
ocorrer antes da leitura.
No reconto, há a imagem de uma caneca, dedicatória e ficha catalográfica. A
presença da caneca no frontispício ―[...] pode sugerir e ampliar uma certa
interpretação‖ (NIKOLAJEVA; SCOTT, 2011, p. 218), visto que, se relacionarmos os
elementos presentes na capa, como a palavra borbulhante, do título; a presença de
um garrafão na cesta do personagem e a caneca do frontispício, tudo leva a fazer
inferências, por exemplo, de que o que borbulha pode estar no garrafão e ser tomado
na caneca. Tem-se ainda a dedicatória ―Para nosso Paul‖, paratexto visto como
incomum.
A quarta capa do primeiro livro apresenta uma ilustração referente ao conto
Rumpeltstilskin e, em seguida, justifica a escolha de cinquenta e duas histórias,
recolhidas de trinta e três países. Levando-se em consideração que o público leitor
predominante são crianças que gostam desses modelos de narrativas, pode-se afirmar
que foi um artifício adequadamente elaborado. No entanto, o livro Retratos da leitura
no Brasil, pesquisa produzida pelo Instituto Pró-Livro, em parceria com outras três
instituições (Abrelivros, Câmara Brasileira do Livro (CBL) e Sindicato Nacional dos
Editores de Livros (SNEL), aponta que a leitura desse paratexto aparece em sexto
lugar, porque apenas 7% do leitores – em um total de 5012 entrevistados– indicam

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que a síntese da quarta capa é um critério que determina a escolha da obra para a
leitura. (INSTITUTO PRÓ-LIVRO, 2012, p. 240).
O segundo livro anuncia, de imediato, que se trata de uma adaptação, com a
seguinte frase: ―Um maravilhosa adaptação de um conto familiar!‖ Ao fazerem essa
escolha, têm a intenção de mostrar que o gênero conto de fadas é – ou deveria ser –
um conto familiar. Em seguida, expõem o resumo da narrativa. Reparamos que a
quarta capa já adianta alguns detalhes da história: primeiro, que o protagonista é
mesmo um menino; assim, se a capa deixa dúvidas quanto a isso, aqui é possível
esclarecê-la; segundo, que, além do menino e do lobo que aparecem na capa,
apresenta-se a vovó e, por último, confirma-se o que há dentro do garrafão que
aparece na capa, dentro da cesta do personagem: o refrigerante delicioso. Destaca-
se, ainda, o anúncio de que se trata de uma recriação do conto clássico e que nela
ocorre uma aventura, despertando a curiosidade das crianças e motivando a leitura.
Traz a ilustração do personagem Tomás – Chapeuzinho Vermelho – segurando a
cesta com maçãs e o garrafão de refrigerante, que, a essa altura, já é possível saber
ser um menino, devido ao texto que a antecede na quarta capa.
No caso da versão simplificada, os editores repetem a informação sobre a
coleção à qual o livro está vinculado, o título do livro, os outros títulos que pertencem à
mesma coleção e o logotipo da editora, ou seja , não fornece a síntese da história.
Chamo atenção para esse livro, quanto aos paratextos. Ficou-nos evidente que o
conto simplificado possui desvantagens, a começar pelo material da capa e quarta
capa, o qual é constituído por papelão, tipo de papel que, mesmo sendo manuseado
com cautela, pode rasgar e amassar facilmente. Com relação aos recursos da capa,
como já discutimos, os editores repetem uma imagem estereotipada, que está
presente dentro do livro. Enfatizam Nikolajeva e Scott (2011, p. 307):
Se a capa de um romance infantil serve como decoração e no
máximo pode contribuir para o primeiro impacto geral, a de um livro
ilustrado muitas vezes é parte integrante da narrativa, principalmente
quando sua ilustração não repete nenhuma das imagens internas do
livro.

Estão ausentes, nesse livro, guardas e frontispício. A inexistência desse


recurso pode ser prejudicial no momento da escolha do livro para a leitura, pois ―[...] as
guardas do livro podem comunicar informações essenciais e as imagens nos
frontispícios podem tanto complementar quanto contradizer a narrativa‖
(NIKOLAJEVA; SCOTT, 2011, p. 3017). Em acréscimo, no que se refere à quarta
capa, Lluch (2006, p. 219) afirma: ―A contracapa está reservada para o resumo do
argumento e nos livros para os mais pequenos é incluída uma informação dirigida aos

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adultos sobre as características do livro.‖ Nikolajeva e Scott (2011, p. 320)


acrescentam que as quartas capas
[...] são frequentemente usadas para paratextos como um breve
resumo do enredo, uma apresentação do autor e ilustrador (ás vezes
com uma foto), uma recomendação sobre a idade do leitor, trechos
de resenhas, informações sobre outros livros dos mesmos autores e
coisas parecidas.

No caso em apreço, não se trata de expor outros livros do mesmo autor, visto
que não há a presença de um responsável pelo material, mas marcar o interesse de
vender os outros títulos que compõem a mesma coleção.

O texto não verbal


As ilustrações não estão postas apenas para servir como ornamento nas
histórias: elas têm diferentes funções e existem para colaborar na compreensão da
narrativa. Dessa forma, é necessário que os professores, antes de lerem ou indicarem
leituras para seus alunos, saibam analisar tais funções e ensinem seus aprendizes a
perceber o papel das imagens, em cada livro, bem como a articulação entre texto
verbal e não verbal.
Para Luís Camargo (2014, p.1), escritor, ilustrador e estudioso do tema, ―[...]
ilustração é uma imagem que acompanha um texto.‖ Ele acrescenta:
Como toda imagem, a ilustração pode representar, descrever, narrar,
simbolizar, expressar, chamar atenção para sua configuração visual
ou seu suporte, para a linguagem visual, incentivar o jogo, procurar
interferir no comportamento, nos valores e nas atitudes do
observador, além de pontuar o texto que acompanha, isto é, destacar
seu início e seu fim, ou chamar atenção para elementos do texto.
(CAMARGO, 2014, p. 1).

No que concerne ao conto clássico, as ilustrações aparecem de forma mais


econômica: há somente duas. Isso se deve ao fato de estar inserido em uma
coletânea com mais de cinquenta textos e, nesse sentido, tem-se a economia de
espaço. Mesmo assim, as ilustrações são ricas, pois ilustram as partes de maior
tensão da história: o encontro da Chapeuzinho e do lobo na floresta e o momento que
antecede a morte da menina, abocanhada pelo lobo, na cama da avó.
Faria (2010, p. 105) classifica esse tipo de livro como aquele em que o texto
verbal é maior do que a ilustração. A autora assinala: ―Quando o texto escrito é maior
que a ilustração, esta em geral fixa-se momentos-chave da narrativa‖ – como é o caso
do livro em questão.

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Analisando agora as ilustrações do reconto, percebemos que estas


complementam o texto verbal e, por isso mesmo, favorecem a inferência .

Figura 4: Ilustração que complementa o texto verbal


Fonte: Escola

Em outras palavras, o texto não deixa claro o motivo pelo qual todos o chamam
de Chapeuzinho Vermelho, por isso, é necessário que o leitor, primeiro, infira que os
objetos presentes nas ilustrações são do menino e, depois, que ele gosta da cor
vermelha e, por esse motivo, tem esse apelido. Ademais, na página da direita, não há
texto verbal, apenas uma ilustração que abrange toda a extensão da página e que
retrata o quarto do menino, mesclando tons de vermelho e branco, contudo, com
predominância do vermelho, como na parede, porta, colcha, tapete, cama e em alguns
brinquedos. Aqui, a maçã se destaca em razão de ser o que está nas mãos do
personagem principal para ser colocada em uma prateleira, momento em que ele olha
para o leitor.
Outra característica marcante no livro é que, algumas vezes, a ilustração
antecede o texto verbal, novamente exigindo que o leitor atribua um significado antes
daquele colocado no texto escrito.

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Figura 5: Ilustração que antecede o texto verbal


Fonte: Escola

Asseguro que, no livro do reconto, as ilustrações desempenham papéis


diversificados, visto que, além dos exemplos que citamos acima, ora elas aparecem
tomando toda a extensão na página esquerda, ora na página direita, ora nas duas
páginas, em uma única imagem ou, ainda, com pequenas imagens posteriores ao
texto verbal. Há, ainda, um caso em que aparece à página da esquerda, em formato
de uma coluna e introduz elementos novos que não fazem parte do texto escrito ou
que tornam mais claros elementos de inferência que apenas a leitura pela criança não
poderia completar.‖ (FARIA, 2010, p. 96).
Ademais, apesar de ser um reconto, publicado recentemente (em 2009) e, por
isso, ter um vocabulário mais contemporâneo, traz ilustrações que remetem a épocas
passadas, com vestes e objetos antigos.

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Figura 6: Ilustração de vestes e objetos antigos


Fonte: Escola

Na versão simplificada, as ilustrações aparecem dentro de quadros


sobrepostos e emoldurados, dois a cada página, limitando a leitura. Essa
característica pode restringir o poder de criação e imaginação do leitor e, no caso em
estudo, as molduras cumprem a função de adereço, exclusivamente. Quanto aos
quadros, ousamos sustentar que existem apenas como forma de economizar páginas.
Trata-se, por fim, de ilustração que apenas representa o texto verbal e não
deixa margem para o leitor. Esse é um tipo de ilustração válido, o qual tem como
objetivo fazer com que a criança relacione o texto à imagem, todavia, nessa versão, a
maneira como está posta não permite tal relação. Há ainda o fato de existirem setas,
em todo o livro, que saem do texto verbal em direção à ilustração à qual ele se refere.
Dessa forma, não favorece que os leitores façam a relação entre texto/imagem. Além
disso, tudo – texto e ilustração – está pronto, não havendo a possibilidade de criar,
imaginar e fazer relações entre esses textos.

O texto verbal
A presença de elementos maravilhosos encontra-se nos três livros – conto,
reconto e conto simplificado –, dado que em todos o lobo é personificado e fala.
Percebe-se, com isso, a fantasia nas narrativas em análise:
A personificação corresponde aos procedimentos de atribuição de
características humanas a seres de outros reinos, bem como a idéias
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abstratas [...] e extremamente comum na produção visual dirigida à


criança, como o desenho animado, histórias em quadrinhos,
ilustração etc., tanto assim que a personificação pode ser
considerada um traço característico do gênero. (CAMARGO, 1998, p.
68, grifo do autor).

Quanto à estrutura do texto verbal, há que se iniciar as análises verificando as


introduções, o começo das narrativas. Assim, a situação inicial fica clara nos dois
primeiros casos (conto clássico e reconto). Já no conto simplificado, não há essa
apresentação inicial, pois as primeiras palavras são ―Chapeuzinho Vermelho‖299(e se
aponta uma seta para a ilustração do personagem). Abaixo: ―Este era seu nome
porque sua mãe fez para ela um capuz vermelho‖. Entende-se que a primeira frase é a
repetição do título, desnecessária e sem nenhuma introdução prévia, além de não
mencionar o espaço onde se passa a narrativa.
Os personagens geralmente são apresentados no começo da narrativa. O que
queremos destacar é a simplicidade de sua descrição. Chapeuzinho, no conto
clássico, por exemplo, é descrita como linda, amável e obediente. Isso se dá, porque
esse tipo de texto tem como público-alvo as crianças. Assim, a descrição deve ser
simples, para facilitar o reconhecimento dos personagens. Os outros personagens –
mãe, avó e lobo – apenas são citados, sem que o texto traga características físicas ou
adjetivos para eles. No reconto, Chapeuzinho Vermelho – Tomás é conhecido por
gostar da cor vermelha e de seu adorável casaco vermelho. Quanto aos outros
personagens, apenas o lobo ganha os adjetivos de ―feroz‖ e ―faminto‖. Os restantes,
pais e avó, somente são mencionados. No conto simplificado, a história não traz
características das personagens, nem mesmo da principal, apenas justifica o nome
―Chapeuzinho Vermelho‖ pelo fato de sua mãe ter feito para ela um capuz vermelho.
O desenvolvimento, no conto clássico, encontra-se no segundo e no terceiro
parágrafos, onde já é possível constatar a tensão que começa a se instaurar, ou seja,
o encontro da menina com o lobo. No reconto, esse desenvolvimento é marcado com
uma ação de Tomás, ao começar a preparar a cesta para visitar a avó, depois, quando
se distrai no caminho com as maçãs, enfim, toda a sequência até a chegada do
menino na casa da velha senhora. No conto simplificado, percebe-se o
desenvolvimento no momento em que a mãe pede para Chapeuzinho levar doces para
a avó, depois, quandoencontra o lobo e pela chegada deste na casa da vovó. Sobre o
clímax, Gancho (2002, p. 11) afirma que

299
Nas reproduções das passagens do conto simplificado, infelizmente, não poderemos f azer a citação de acordo com
as normas, pois o livro não traz as informações necessárias: autor, ano de publicação e numeração de páginas.
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[...] é o momento culminante da história, isto quer dizer que é o


momento de maior tensão, no qual o conflito chega a seu ponto
máximo. O clímax é o ponto de referência para as outras partes do
enredo, que existem em função dele

Assim, no conto número um, o clímax gira em torno de dois conflitos: a morte
da avó e da neta, devoradas pelo lobo.
No reconto e no conto número três, o clímax acontece diante da suposta morte
da avó, a qual chega a ser engolida, mas é salva posteriormente: no reconto, pelo
arroto causado pelo refrigerante que Tomás deu ao lobo e, no simplificado, pelo
caçador que ouviu os gritos e salvou a vovó.
O desfecho, no primeiro conto, está visível no último parágrafo, o qual mostra
como o conflito foi resolvido, neste caso, com a morte da avó e de Chapeuzinho,
exemplo de conto de fadas cujo final não é feliz para o protagonista. No segundo e no
terceiro, tem-se um final feliz. No simplificado, Chapeuzinho Vermelho consegue fugir
e um caçador tira a vovó viva da barriga do animal.
As três narrativas acontecem em espaços distintos. No conto clássico, esse
espaço é a floresta, lugar bastante comum entre os contos de fadas. No reconto, o
espaço também aparece em evidência – em um país, na floresta, na pensão da mãe e
na casa da avó. No conto simplificado, os espaços são o bosque e a casa da avó,
contudo, sem descrição desses espaços.
Quando aludimos a tempo, nas narrativas maravilhosas, estamos nos referindo
à época em que acontecem. Nos contos de fadas, isso significa ser possível identificar
que todos eles estão escritos no pretérito, porém, não é possível discernir uma data.
No primeiro conto, isso fica claro com a expressão ―Um dia‖. Quanto a essa
expressão, Ribeiro (2012, grifo da autora) declara:
Os contos populares, de uma maneira geral, são apresentados em
enunciados relativamente estáveis, caracterizados por começarem,
tanto nos relatos orais, com nos escritos por Era uma vez - expressão
mágica que nos põe à escuta dessas milenares histórias
maravilhosas, ocorridas em reinos distantes, florestas escuras, com
muitos obstáculos a vencer, caminhos novos a trilhar, identidades a
descobrir no encalço do sentido da própria vida [...].

No reconto, o tempo é enfatizado com os dizeres ―Há não muito tempo‖


(ROBERTS, 2009) e, na versão simplificada, não há menção sobre o tempo em que a
narrativa acontece.
Importante salientar a escolha das palavras que compõem o texto do conto da
versão simplificada. Alertamos para o fato de, nessa versão, o texto não conter
elementos de ligação, conectivos: são frases soltas, fragmentadas. Assim, as ações

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da narrativa não fazem tanto sentido como na versão original e no reconto, porque
essa condição não possibilita que haja clímax ou o faz ser mal construído.
Deve ser frisado, ainda, que em todo o conto simplificado há apenas dois
momentos de fala das personagens: o primeiro, quando o lobo pergunta: ―Aonde a
menina está indo?‖ e o segundo, quando Chapeuzinho exclama: ―Que olhos grandes!‖,
―Que nariz grande‖, ―Que boca grande‖, seguidamente, sem a presença da resposta
do lobo.
A finalização da história, nessa versão simplificada, é: ―O lobo respondeu: é pra
te devorar! (sem travessão) e saltou para cima de Chapeuzinho Vermelho, que
conseguiu fugir‖. ―Ouvindo os gritos, apareceu um caçador, agarrou e tirou a vovó da
barriga do lobo e ficaram felizes para sempre!‖ Questionamos: agarrou quem?
Chapeuzinho, que estava fugindo? O lobo? Nesse ponto, nem mesmo a ilustração
consegue tirar tal dúvida, pois ilustra apenas avó, Chapeuzinho e caçador abraçados,
por outras palavras, demonstrando o ―Felizes para sempre!‖.
Ademais, há um equívoco no que diz respeito ao tempo verbal. Em todo o livro,
o relato se passa no pretérito, portanto, os verbos também se encontram no passado,
Todavia, no momento em que a menina chega à casa da vovó, o texto aparece da
seguinte forma: ―Chapeuzinho Vermelho chega, batendo à porta.
Os contos sempre têm uma moral, mesmo que implícita. Nos enredos dos
livros analisados, encontramos, com frequência, uma recompensa para os
personagens do bem, por todo o sofrimento causado pelo mal; um castigo para quem
efetuou o mal e as normas transmitidas pela narrativa, ou seja, as mensagens. No
primeiro conto, a moral aparece explicitamente em uma das vinhetas que compõem a
história:
Moral da história: Ao registrar este conto pela primeira vez, em 1697,
Charles Perrault pretendia alertar as crianças para o perigo de falar
com pessoas estranhas. ―Assim aprendeu que as crianças,
principalmente as meninas bonitas, gentis e bem-criadas, não devem
dar ouvidos a homem nenhum‖, conclui.

Na segunda narrativa, temos algo inovador, porque há recompensa tanto para


Chapeuzinho e sua avó, que permanecem vivos depois da ideia de Tomás em fazer
um acordo com o lobo, quanto para o lobo, o qual garantiu refrigerante sempre que
quisesse e não precisou ser morto para deixar de ser ameaça para os moradores
daquela região. Nesse sentido, se todos foram recompensados, não houve,
igualmente, castigo para nenhum deles.
No terceiro conto, o lobo sofre o castigo: além de não conseguir devorar
Chapeuzinho Vermelho, porque ela foge, também tem a vovó retirada de sua barriga
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viva. Se ele sobreviveu ou morreu, nem texto, nem ilustração respondem a essa
questão. Com relação à norma transmitida, é a mesma do primeiro conto: o perigo de
falar com pessoas estranhas.
Como último apontamento sobre como o texto verbal é evidenciado,
gostaríamos de ressaltar a linguagem presente nos três livros. No conto clássico, há
uma linguagem mais formal. No reconto, o vocabulário é mais moderno, como o
refrigerante borbulhante e os efeitos colaterais causados pelo gás da bebida (arrotos)
e, apesar da linguagem mais simples, além de aproximar o leitor, proporciona,
inclusive, a prática das estratégias de leitura, porque permite a ele fazer conexões
texto-leitor, por exemplo; afinal, o refrigerante é muito atraente entre os jovens,
bastante contemporâneo e coerente com o que vivem, na realidade. O conto
simplificado, no entanto, contém uma linguagem direta, aligeirada, com ausência de
metáforas, o que acaba por interferir negativamente na compreensão e na leitura,
conforme já relatado anteriormente.
Se os paratextos, as análises das ilustrações e o texto verbal ajudam a
estabelecer relações capazes de motivar a leitura, formando um leitor mais crítico,
conciliar todas essas análises com as estratégias de leitura – mencionadas durante
todo o artigo - facilita o papel mediador do professor, para que seu aluno
compreenda o texto.

Considerações finais
Se o professor tiver acesso aos livros distribuídos para as escolas, através dos
programas governamentais, pode desenvolver projetos riquíssimos, oficinas, debates,
discussões, apresentações teatrais, entre outros; afinal, esses livros, antes de
chegarem às escolas, passam por um minucioso processo de análise, por meio de
pareceristas especialistas na área da leitura e literatura que os avaliam, tendo em vista
as diversas dimensões dos livros: suas qualidades gráfico editorial, estético literário,
paratextuais, textuais e não verbais.
Quero enfatizar a relevância de os professores conhecerem a literatura, serem
leitores, proporcionarem aos seus alunos o acesso aos clássicos da literatura infantil,
para que, além de contribuir emocional e psicologicamente na vida dos pequenos
leitores, possam garantir-lhes repertório de leitura e a ampliação de conhecimentos
prévios, pois, do contrário, corre-se o risco de, posteriormente, algumas leituras não
fazerem sentido para eles.
Tenho consciência da realidade dos cursos que formam docentes, portanto,
temos conhecimento da má-formação (em alguns casos, nenhuma formação) que os
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universitários recebem, quanto aos estudos sobre literatura infantil. Sabemos,


ademais, que os Programas que distribuem os livros não oferecem formação nem para
o professor, nem para os responsáveis pelas bibliotecas e salas de leitura.
O que espero ressaltar é que é preciso um olhar mais atento para a riqueza
das obras de literatura infantil e, se queremos e cobramos, a todo o momento, que os
alunos leiam e compreendam suas leituras, é necessário que os formadores tenham
conhecimento do livro infantil, consigam analisá-lo, indicando boas leituras aos seus
alunos e escolhendo livros para o trabalho em sala de aula, de modo a possibilitar uma
abertura para a construção do conhecimento e para formação de leitores. 300

Referências

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Teixeira de (Coord.). et al. Era um vez...na escola. Belo Horizonte: Formato Editorial,
2001. p. 77-84.

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al.Análise Estrutural da Narrativa: pesquisas semiológicas. 2 ed. Introdução à
edição brasileira e revisão de Milton José Pinto.Tradução de Maria Zélia Barbosa
Pinto. Petrópolis (RJ): Vozes, 1972. Col. Novas Perspectivas de Comunicação. p. 110-
135.

CAMARGO, Luís Hellmeister de. Poesia infantil e ilustração: estudo sobre Ou isto
ou aquilo de Cecília Meireles. 1998. Dissertação (Mestrado em Letras na área da
Teoria Literária) – Instituto de Estudos da Linguagem, Campinas, 1998.

CAMARGO, Luís Hellmeister de. Ilustração em livros de literatura infantis. Glossário


Ceale, Minas Gerais. Disponível em:
http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/ilustracao-em-livros-de-
literatura-infantil. Acesso em: 05 abr. 2016.

FARIA, Maria Alice. Como usar literatura infantil na sala de aula. 5.ed. São Paulo:
Contexto, 2010.

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 2002.

GIROTTO, C; SOUZA, R. J. de. Estratégias de leitura: para ensinar alunos a


compreender o que leem. In. SOUZA, Renata Junqueira de. et. al. (Org.). Ler e
compreender: estratégias de leitura. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2010.
LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
LLUCH, Gemma. Para uma seleção adequada do livro. In: AZEVEDO, Fernando
(Coord.). et al. Língua materna e Literatura Infantil: Elementos nucleares para
professores do ensino básico. Lisboa: Lidel, 2006. p. 215-231.

3
Esse texto é um recorte de uma pesquisa de mestrado, intitulada: ―As várias Chapeuzinhos Vermelhos: contos e
recontos a partir das preferências de um 4º ano do ensino fundamental‖, orientada pela professora Renata
Junqueira de Souza.
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MACHADO, Ana Maria. Como e por que ler os clássicos universais desde cedo.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.

MASSONI, Luiz Fernando Herbert. Ilustrações em livros infantis: Alguns


apontamentos. Revista do Centro de Artes da UDESC, Florianópolis. Disponível em:
<http://www.ceart.udesc.br/dapesquisa/files/9/02VISUAIS_Luis_Fernando_Herbert_Ma
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ROBERTS, Lynn. Chapeuzinho Vermelho: uma aventura borbulhante. Ilustração de


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SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura.Trad. Cláudia Schilling. Porto Alegre: Artmed,
1998.
VERMELHO, Chapeuzinho. Editora Avenida (Histórias Clássicas).

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

COLORINDO OS CHAPÉUS: UMA EXPERIÊNCIA DE


FORMAÇÃO DE LEITORES-CONTADORES MIRINS

Adriana Demite Stephani (UFT) - Eixo Temático 8

Sônia Maria de Sousa Fabrício Neiva (UFT) - Eixo Temático 8

Robson Coelho Tinoco (UnB) - Eixo Temático 8

Considerações Iniciais

Desde o ano de 2010, ações de pesquisa e extensão estão sendo


desenvolvidas vinculadas ao curso de Pedagogia da Universidade Federal do
Tocantins (UFT), Câmpus de Arraias. Algumas delas investigam a realidade e o perfil
dos leitores e escritores da Educação Básica da região e da universidade, bem como
propõem alternativas de trabalho para o desenvolvimento de competências e
habilidades de leitura e escrita.
No que tange à pesquisa, podemos citar o projeto de pesquisa ―A Leitura e a
produção textual na graduação: o real e o ideal‖, que analisa o perfil de leitura e escrita
dos universitários, para, em seguida, serem propostas ações para dirimir as lacunas
nas práticas existentes dos alunos nessas áreas.
O projeto discute a importância da formação dos futuros professores (e dos já
em exercício na Educação Básica) enquanto leitores e escritores, e a discussão
embasa outras pesquisas e ações de extensão, a exemplo as duas apresentadas
neste texto: ―Rodas de leitura: um caminho para formar leitores‖ e ―Contar histórias:
um trabalho de sala de aula‖301. O objetivo é discutir e proporcionar a aquisição da
teoria da leitura literária, inclusive nos aspectos da recepção dos textos, bem como o

301
Os dois projetos são apoiados pelo PRODOCÊNCIA, um modelo de programa que visa
ampliar a qualidade das ações voltadas à formação de professores, com prioridade para a
formação inicial desenvolvida nos cursos de licenciaturas das instituições federais e estaduais
de educação superior, dando suporte financeiro para a reestruturação dos laboratórios e a
implementação de ações de práticas de ensino.
1445

aumento do repertório literário desses (futuros) profissionais para que o processo de


mediação de leitura em sala de aula realmente se efetive.
O projeto de extensão ―Rodas de leitura: um caminho para formar leitores‖
iniciou-se em 2015 e se estrutura em três etapas, assim descritas, mas não
necessariamente em sequência: estudos teóricos sobre leitura e formação do leitor
(CANDIDO, 1979; ZILBERMAN, 1988; COSSON, 2006); conceitos sobre rodas de
leitura e mediação (SANTOS; ROSING, 2009; SILVA, 2009; GERALDI, 2013;
COSSON, 2014); e, desenvolvimento de rodas de leitura com os participantes
(VARGAS, 1997; DANIELS, 2002). O Projeto visa não somente preparar profissionais
para a organização de rodas de leitura, mas também desenvolvê-las em diferentes
espaços, inclusive na Universidade.
O projeto ―Contar histórias: um trabalho de sala de aula‖ objetiva ofertar
cursos de capacitação para os alunos do curso de Pedagogia da UFT – Câmpus de
Arraias e os professores das redes municipais e estaduais de ensino na arte de contar
histórias e como melhor desenvolvê-la nas escolas e creches da região. Além da ação
de formação docente, há momentos de contação de histórias nas escolas e em
diferentes ambientes. Para embasarmos nosso trabalho, utilizamos os fundamentos
teóricos metodológicos e literários dos autores: Abramovich (1988), Aguiar e Bordini
(1988); Bettelheim (1980); Busatto (2003); Machado (2002); Machado (2004); Mellon
(2009); Coelho (1997), dentre outros.
Diversas escolas participaram indiretamente dos projetos em epígrafe, via
desenvolvimento das ações por parte dos participantes dos cursos. No entanto, em
duas delas pudemos desenvolver ações mais pontuais: o Centro Municipal de
Educação Básica (CMEB) Professora Lívia Lorene Bueno Maia e a Cooperativa
Educacional de Pais de Arraias (CEPAR). Em parceria com 2 (duas) professoras
regentes, sendo uma de cada escola, desenvolvemos ações de contação de histórias
e de rodas de leitura.
Assim, no presente relato, apresentamos algumas ações e reflexões
realizadas nesses momentos, envolvendo a obra de literatura infantil ―Chapeuzinhos
Coloridos‖, de José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta, uma releitura do
clássico ―Chapeuzinho Vermelho‖, ação que, além de ilustrar aos professores métodos
de contação e mediação de histórias, resultou na formação de leitores/contadores
mirins. E para dar início a essa discussão, apresentamos um pouco da vertente teórica
que orienta nosso trabalho e reflexões.

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Formando leitores de literatura em espaços escolares

―A leitura de mundo precede a leitura da palavra‖ lembra Freire (1992, p. 11),


em suas discussões sobre a formação de leitores de mundo e para o mundo. E
quando esse processo de formação de um leitor se inicia? Inúmeros autores e
pesquisas apontam que ler é um ato que se inicia tão logo o indivíduo tenha
compreensão do que está à sua volta e desenvolve-se paulatinamente nas relações
sociais e com o mundo.
Assim, tudo o que se ouve e se vê amplia a capacidade leitora de um ser e
isso ocorre muito antes de se aprender a decodificar a leitura a partir do texto escrito.
Deste modo, ―o ato de ler se refere tanto a algo escrito quanto a outros tipos de
expressão do fazer humano, caracterizando-se também como acontecimento histórico
e estabelecendo uma relação igualmente histórica entre o leitor e o que é lido‖
(MARTINS, 1985, p. 30).
Diversos autores defendem e discutem a importância de trabalhar a literatura
com crianças desde a mais tenra idade e apresentam todos os benefícios que esse
trabalho pode proporcionar. Dentre eles, destacam-se: Abramovich (1988), Aguiar e
Bordini (1988), Bettelheim (1980), Busatto (2003), Donatto (2005), Machado (2002),
Machado (2004), Mellon (2009) e Coelho (1997). Para esses autores, o ato de contar
histórias – trabalhado com a literatura de uma aconchegante e atraente – possibilita a
quem ouve, principalmente às crianças, um processo de formação pessoal e social.
Levando isso em consideração, podemos dizer que o lido/ouvido na infância
alicerça a formação do leitor e do cidadão, pois as relações estabelecidas nesse
contato propiciam internalizações e reflexões: a existência do bem e do mal, de bruxas
e fadas, das dificuldades da vida e dos finais felizes possíveis.
Segundo Coelho (1997), é nesse processo de amadurecimento interior que a
literatura infantil e, principalmente, os contos de fadas podem ser decisivos para a
formação da criança em relação a si mesma e ao mundo a sua volta. De acordo com a
autora, ―a força da história é tamanha que narrador e ouvintes caminham juntos na
trilha do enredo e ocorre uma vibração recíproca de sensibilidades, a ponto de diluir-se
o ambiente real ante a magia da palavra que comove e enleva‖ (COELHO, 1997, p.
11).
Além desses aspectos, uma criança que tem contato com diversas histórias e
tem uma relação de proximidade com a literatura possui maiores chances de ser um
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bom leitor, o que propicia sua formação enquanto escritor. A falta desse contato
constante com o texto literário desde a infância deixa lacunas que nem sempre serão
corrigidas nos anos escolares seguintes, o que implica na atual realidade da leitura no
país. Isso porque,

[a] literatura desempenha entre outras funções, como a de


evasão e a de diversão, a função de transmitir conhecimento, e
a principal função de contribuir de forma única na humanização
do homem. A literatura é arte, e como tal faz parte da cultura. E
é mais, porque dentre todos os tipos de arte é nela que
encontramos o maior repertório de conhecimento que a
humanidade já produziu (DONATTO, 2005, p. 16).

Em vista disso, contar e compartilhar histórias faz-se oportuno e necessário


nos espaços escolares e não escolares, trazendo aos pequenos o desvelar do mundo.
No entanto, a maioria das crianças tem contato com histórias contadas e/ou
compartilhadas apenas na escola. Então, o que muitos alunos têm a esse respeito é
dado pelos professores. Porém, muitos professores não têm a devida instrução nem a
oportunidade de desenvolver as competências e habilidades para esse trabalho e é
isso que os projetos de extensão desenvolvidos junto a Universidade Federal do
Tocantins visam.

―Chapeuzinho‖: Leituras e releituras que encantam crianças de todas as


gerações

―Chapeuzinho Vermelho‖ é uma narrativa clássica da literatura infantil


mundial, traduzida para centenas de línguas, lida e contada/transmitida por milhões de
adultos e crianças. Sua origem não pode ser datada, pois se configura como conto
popular emanado da oralidade.
O antropólogo Tehrani (2013), em uma análise filogenética da historinha de
―Chapeuzinho Vermelho‖, relacionando-a com outras histórias, aponta, por exemplo,
que variações das personagens de Chapeuzinho, do Lobo e da Vovó aparecem em
contos europeus, asiáticos e africanos, possuindo registros e elementos próprios, de
acordo com cada cultura.
A história de título homônimo ao personagem principal foi escrita (compilada
da oralidade) primeiramente pelo escritor francês Charles Perrault, no século XVII

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(1697),302 e foi largamente propalada no século XIX, pelos alemães Irmãos Grimm
(DARNTON, 1996).
Dificilmente se encontra alguém que não conheça pelo menos uma versão
dessa narrativa. A mais popular (uma adaptação da primeira narrativa a ser registrada)
e comumente encontrada e contada por muitas crianças é a de uma menina de capuz
vermelho, que é devorada por um lobo ao levar doces para sua avó materna, que,
assim como ela, é salva por um caçador, que consegue que sejam ―desengolidas‖,
seja por meio do corte da barriga do lobo ou por outras peripécias criadas pelos seus
diferentes ―recontadores‖.
De base oral, a narrativa ganhou inúmeras versões, nas quais há uma variedade de
elementos que são inseridos/transformados, chegando até à própria mudança da cor
do capuz da menina.
No Brasil, encontram-se diversos autores nacionais que se debruçaram nesse
trabalho, entre os quais destacam-se: Rosa (1992), com o conto ―Fita-verde no cabelo:
nova velha história‖, publicado pela primeira vez em 1964; Prata (1970), com
―Chapeuzinho Vermelho de raiva‖; Buarque (2012), com ―Chapeuzinho Amarelo‖
(primeira edição em 1979); e, recentemente, os autores Torero e Pimenta (2010), com
seus ―Chapeuzinhos Coloridos‖.
Dentre essas obras, aprofundamo-nos na última, objeto do presente trabalho
em rodas de leitura e em momentos de contação de histórias. Assim como os demais
autores, Torero e Pimenta (2010) partem de uma estrutura central da narrativa
clássica e reconduzem o desenrolar dos fatos, seguindo uma linha temática.

Para começar, os chapeuzinhos não são vermelhos. São azul,


verde, branco, lilás, cor de abóbora e preto. E as histórias
também são diferentes. Tem uma em que a Chapeuzinho é
malvada, outra em que ela quer ser famosa, uma em que a
Chapeuzinho é gordinha, outra em que ela quer ganhar
dinheiro, uma sobre amizade e outra sobre o tempo.
(TORERO; PIMENTA 2010, p. 5).

Diversos temas são abordados nas narrativas de ―Chapeuzinhos Coloridos‖, e


muitos dos quais associam a cor da personagem principal a sentimentos e valores:
animais em extinção (azul), alimentação/gula (abóbora), dinheiro/ganância (verde),
solidão (branco), fama (lilás), tempo/morte (preto).
A capa da obra traz as seis personagens das seis releituras, com seus
capuzes coloridos (azul, verde, branco, lilás, cor de abóbora e preto). Na apresentação

302
A narrativa faz parte de uma coletânea (Contos de Mamãe Gansa) de contos do folclore popular de
seu país, organizada por Charles Perrault, transformados em histórias para criança.
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da coletânea de histórias, os autores já apontam o caminho que optaram para seguir


nos recontos. Eles também sugerem aos leitores que igualmente criem novas
―Chapeuzinhos‖ e até sugerem outras histórias que poderiam ser escritas.
Nas imagens a seguir, podemos observar detalhes gráficos da obra:

Figura 1: Capa e partes da obra Chapeuzinhos Coloridos

O enredo de cada narrativa gira em torno de uma menina de capuz que leva
uma encomenda de sua mãe para a casa de sua vó e, no caminho, encontra com um
lobo, que a questiona sobre seu trajeto, sugerindo outro. Quanto aos desfechos, são
todos inusitados: o lobo é assado pela vovozinha, é adotado, é morto pelo caçador,
explode, representa o tempo/morte, e se vai.
Além da tentativa de relação entre cores e sentimentos e valores, a descrição
da personagem principal, a ―Chapeuzinho‖, e diversos elementos apresentados no
enredo ilustram a cor selecionada para a menina: a Azul possuía olhos azuis, levava
uma torta de amoras na cesta e foi pelo caminho de flores azuis; a Cor de abóbora
levava na cesta uma torta de abóbora e foi pelo caminho sugerido pelo lobo, onde
encontraria diversas árvores frutíferas; a Verde, uma torta de limão e era interessada
em dinheiro; a Branco era detentora de olhos e cabelos claros e levava suspiros; a
Lilás levava revistas de fofoca e colheu lilases pelo caminho; e a Preta possuía olhos e
cabelos pretos e levava jabuticabas.

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A máxima ―Era uma vez...‖ inicia todas as narrativas e cada versão possui
uma música cantarolada por Chapeuzinho quando está a caminho da casa de sua
avó, paródia da tão marcante ―Pela estrada a fora eu vou bem sozinha...‖, produzida
por Braguinha303, como podemos observar no trecho de uma das histórias contidas na
obra: ―Pela estrada afora/ Eu vou tão sozinha/ Tão desprotegida/ Ai de mim, tadinha‖.

Figura 2: Início da narrativa ―Chapeuzinho Azul‖

Algo que também chama a atenção nos contos é a ilustração das narrativas
produzida por Marília Pirillo, como pode ser observado na Figura 2. A floresta por onde
Chapeuzinho passa é constituída de árvores cujas copas apresentam-se no tom da
cor do capuz da personagem, assemelhando a retalhos de tecidos de estamparias
diversas, mas seguindo a mesma palheta de cores.
Todos esses detalhes elencados chamam a atenção do leitor, despertam a
curiosidade e provocam uma série de questionamentos e hipóteses. Depois de ler a
primeira narrativa, há uma quebra de expectativa do leitor e este passa a tentar
imaginar o que mais pode acontecer com essa menina.

―Chapéus Coloridos‖ em escolas de Arraias - TO

Para desenvolver ações dos projetos de extensão ―Rodas de leitura: um


caminho para formar leitores‖ e ―Contar histórias: um trabalho de sala de aula‖,
entramos em contato com duas escolas do município de Arraias: Centro Municipal de

303
Música Pela estrada, produzida nas décadas de 1950/60 por Braguinha (Coleção Disquinho).
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Educação Básica professora Lívia Lorene Bueno Maia e Cooperativa Educacional de


Pais de Arraias (CEPAR). As instituições prontamente aceitaram nossa presença
semanalmente e cederam horários em diversas turmas para realizarmos atividades de
contação de histórias e rodas de leitura. O intuito era ilustrar aos professores como
poderiam desenvolver essas ações dentro de seu planejamento.
De acordo com a organização feita com as instituições, em uma visita semanal,
desenvolveríamos ações de contação de histórias e, em alguns momentos, as rodas
de leitura com os alunos. Para a contação de histórias, havia um preparo prévio para a
apresentação da obra escolhida, fazendo-se uso de diversos recursos (fantoches,
vestimentas, leituras dramáticas etc.). Nas ações das rodas de leituras, levávamos um
quantitativo de obras previamente selecionadas para que fossem escolhidas pelos
alunos para lerem em casa durante o intervalo de tempo até o encontro seguinte (uma
semana), quando compartilhariam com os demais.

Figura 3: Rodas de leitura realizadas nas escolas

Nessas ações semanais, uma atividade em especial chamou atenção e


despertou o interesse de ampliação do anteriormente planejado. Ao trabalhar na
CEPAR com a leitura dramática do primeiro conto da obra ―Chapeuzinhos Coloridos‖,
de José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta, intitulado ―Chapeuzinho Azul‖,
houve um processo de encantamento, tanto por parte dos alunos quanto da professora
regente do quarto ano.
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A recepção do texto ultrapassou as expectativas e houve uma interação muito


intensa entre extensionista, professores e alunos. Um diálogo muito profícuo se
estabeleceu e discussões se alongaram diante da quebra de expectativa do final da
narrativa: ―Como assim, o lobo foi assado?‖, questionava um; ―Cada um dá o final que
quer para sua história‖, tentou justificar outro; ―eu faria diferente‖, pontuou um terceiro;
―pensei que a Chapeuzinho e Vovozinha eram boas‖, reclamou outra aluna; ―que
massa essa história!‖, disse, empolgado, outro.
Nesse momento, apresentamos aos alunos alguns dados da obra
―Chapeuzinho Vermelho‖, desde seu primeiro registro da oralidade, feito por Perrault,
apontando as diferenças existentes entre essa reescrita da obra e a coletada da
oralidade pelos dos Irmãos Grimm, e comentamos sobre as inúmeras versões que já
foram feitas, bem como sobre a liberdade literária que um autor possui ao (re)escrever
um texto.
Como atividade do projeto, a professora regente de sala ficou responsável por
trabalhar/compartilhar com os alunos os demais contos da obra, um por dia, até o
novo encontro com os alunos, na semana seguinte. No entanto, a professora nos
telefonou três dias depois, mencionando que o que havia planejado foi, de certa forma,
alterado pelos alunos: eles não conseguiram aguardar o compartilhamento feito pela
professora, começaram a fazer pesquisas na internet para ler as demais histórias e
eles mesmos compartilharam entre si. Ainda, começou outra troca de informações
dentro da própria escola sobre a obra, de aluno para aluno, de professor para
professor.
Nessa inquietude curiosa, os próprios alunos da turma, juntamente com a
professora, tiveram a ideia de repassar as histórias para as demais turmas e
começaram se preparar para isso. Cada dupla de alunos ficou responsável por um
conto; criaram cenários com orientação da professora da turma, improvisaram sua
caracterização juntamente com seus pais e, depois de um tempo de preparação,
juntaram os alunos das demais turmas no pátio da escola para contar as ―suas
histórias‖.

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Figura 4: Alunos da CEPAR se preparando para contar histórias

A atividade deu tão certo que foi levada para outra escola parceira. Dessa
forma, os pequenos leitores da CEPAR passaram a ser contadores de histórias em
sua própria instituição e também no CMEB Prof. Lívia Bueno Maia. Nas imagens a
seguir, podemos observar alguns desses momentos.

Figura 5: Chapeuzinhos e outros personagens contando suas histórias

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A experiência foi enriquecedora e ultrapassou as expectativas, pois além de


exemplificar aos professores das referidas escolas algumas entre as tantas formas
possíveis de trabalho com o texto literário, houve uma participação ativa e formação
de alunos ―leitores-contadores mirins‖.

Considerações Finais

O curso de Pedagogia visa à formação de profissionais para as primeiras


fases da Educação Básica (Educação Infantil e Ensino Fundamental I), que devem
estar atentos às mudanças do mundo contemporâneo e possuir um conhecimento
acerca dos processos de ensino e aprendizagem, principalmente no que concerne ao
domínio dos conteúdos e dos processos e metodologias de ensino.
O professor das séries/anos iniciais da Educação Básica é, muitas vezes, o
único responsável pela formação dos leitores do amanhã e esses leitores mirins têm o
mundo da leitura desvelado pelo professor, através da contação de histórias e da
oportunização da leitura e de seu compartilhamento em sala.
Preparar os professores e/ou futuros professores para essas ações de
contação e de rodas é crucial para seu bom desempenho em sala de aula. Assim,
poder ofertar curso na área com o apoio e incentivo do PRODOCÊNCIA faz com que
cumpramos o novo papel de cursos de formação para a educação. Dessa forma, o
PRODOCÊNCIA é uma das ferramentas em defesa do ensino público de qualidade.
Infelizmente, se não houver uma valorização da carreira docente, ela
continuará não estando nos objetivos de muitos jovens e a realidade do seu perfil de
leitura pode permanecer semelhante ao encontrado atualmente. Diante dessa
realidade não muito animadora, a universidade ainda pode tentar agir na alteração
desse perfil, criando estratégias para a ampliação do repertório literário daqueles
poucos que querem ser professores e mudar a situação da leitura no país.
Nesse sentido, as rodas ou círculos (os nomes e as descrições são menos
importantes que seu objetivo central) e a ação de contação de histórias se tornam um
espaço de formação para a leitura, tanto como leitor quanto como mediador.
E como fazer isso? Foi o que tentamos mostrar aqui. O que sugerimos é que
a Universidade, via suas pesquisas, atividades extensionistas, bem como as
atividades integrantes e complementares dos cursos, e em parcerias com as

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disciplinas da matriz curricular, estruture pesquisas diagnósticas e cursos de formação


para o letramento literário dos universitários.
O que não se deve é ficar colocando a culpa dos outros pontos desse círculo
sem assumir seu papel e propor alternativas para o rompimento desse processo ou
para a inversão da ―não‖ para a formação de leitores.

Referências

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

CONTORNOS DA CONTEMPORANEIDADE NO GÊNERO


DRAMÁTICO INFANTIL BRASILEIRO:UMA LEITURA DE A
VIAGEM DE UM BARQUINHO, DE SYLVIA ORTHOF304

Luciana Petroni Antiqueira Chirzóstomo, UFMS,Eixo temático 8: Literatura


infantil e ensino
Wagner Corsino Enedino, UFMS, Eixo temático 8: Literatura infantil e ensino

Considerações Iniciais

Na contemporaneidade, percebemos que o teatro para crianças apresenta


temática voltada para a ecologia, para os problemas da vivência infantil, para o
desenvolvimento psicológico da criança, como o medo, a morte, a velhice, o sexo, os
preconceitos, o que revela um amadurecimento do teatro infantil brasileiro. Nesse
sentido, percebemos a pertinência de uma pesquisa que suscite uma reflexão acerca
do teatro infantil como promotor de conhecimento e diversão tanto para as crianças
quanto para os adultos.
Sábato Magaldi (2004, p. 12) argumenta que ―ninguém, infelizmente, nos
ensinou a amar o teatro brasileiro. Enquanto, nas escolas, nos transmitem o gosto
pela poesia e pelo romance, nenhum estudo é feito da literatura dramática.‖ Esta é
uma triste realidade que vivenciamos em nosso país: a marginalização do teatro,
especialmente o teatro infantil. Dessa forma, entendemos ser de extrema importância
uma pesquisa que desperte novos olhares para o teatro infantil, pois ―o texto dramático
acaba ocupando lugar periférico também em outros níveis de ensino e não faz parte
dos hábitos de leitura de grande parte dos alunos e professores‖ (PASCOLATI, 2009,
p. 109).

304
Texto vinculado junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul, Campus de Três Lagoas, nível de Mestrado, área de
concentração em Estudos Literários, com o título provisório ―Entre (in)definições de
contemporaneidade e aspectos formais do texto dramático infantil: uma análise de A viagem de
um barquinho, de Sylvia Orthof", sob orientação do Prof. Dr. Wagner Corsino Enedino.
1458

Neste artigo vamos discorrer a respeito das (in)definições do conceito de


contemporaneidade tomando como referência as considerações de Giorgio Agamben
(2009) e Karl Eric Schollhammer (2009). Depois, procuraremos definir o conceito de
contemporaneidade na literatura infantil e estabelecer relações entre as características
estilísticas/estruturais da literatura infantil/juvenil contemporânea observadas por Nelly
Novaes Coelho (2000) e a obra A viagem de um barquinho (1975), de Sylvia Orthof.
Encontramos nesta autora, personalidade de destaque no movimento literário e
teatral ligado às crianças, uma considerável fonte de pesquisa. Além de dramaturga,
Orthof foi diretora, pesquisadora e professora de teatro. Suas obras são permeadas de
comicidade que encantam crianças e adultos.
Em A viagem de um barquinho (1975), a escritora aborda valores humanos
importantes, mas que estão esquecidos. No espaço diegético, os protagonistas
―Menino‖ e ―Lavadeira‖ saem em busca do barquinho de papel perdido, vivendo
diversas aventuras e conhecendo personagens até encontrar o que tanto anseiam; já
o barquinho de papel (metáfora da existência humana) viaja em busca de sua própria
identidade.

(In)Definições de contemporaneidade
Estabelecer limites para o contemporâneo é tarefa difícil ou quase impossível,
pois a definição do termo está justamente em não possuir uma delimitação. O escritor
―contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber
não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para quem deles experimenta
contemporaneidade, obscuros‖ (AGAMBEN, 2009, p. 62-63). Ou seja, ser
contemporâneo é estar conectado ao seu tempo, percebendo seu lado mais sombrio e
procurando ―escrever mergulhando a pena nas trevas do presente‖ (AGAMBEN, 2009,
p. 63).
A literatura contemporânea mantém o olhar firme na atualidade, dialogando
com o passado e o futuro. Ser contemporâneo é estar ―antenado‖ naquilo que de mais
iminente existe em seu tempo, o escritor precisar estar atento para trazer a lume
aquilo que está escondido, mal explicado, esquecido.
Para Agamben (2009, p. 65),

ser contemporâneo é, antes de tudo, uma questão de coragem:


porque significa ser capaz não apenas de manter fixo o olhar no
escuro da época, mas também de perceber nesse escuro uma luz
que dirigida para nós, distancia-se infinitamente de nós.

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Isto é, apesar de percebermos, nesse lado tenebroso e obscuro uma claridade


que se aproxima de nós, que nos diz algo, ela também se afasta de nós, é uma
realidade que está distante da nossa.
Schollammer corrobora as ideias ponderando que ser contemporâneo ―é ser
capaz de se orientar no escuro e, a partir daí ter coragem de reconhecer e de se
comprometer com um presente com o qual não é possível coincidir‖
(SCHOLLHAMMER, 2009, p. 10).
Lançando o olhar para a escuridão de seu tempo, o escritor contemporâneo é
encorajado a tratar sobre fatos que não se afinam consigo mesmo, mas que precisam
ser trazidos à tona. Com efeito, para Agamben (2009, p. 72), o contemporâneo é,
também,

aquele que, dividindo e interpolando o tempo, está à altura de


transformá-lo e de colocá-lo em relação com os outros tempos, de
nele ler de modo inédito a história, de ―citá-la‖ segundo uma
necessidade que não provém de maneira nenhuma do seu arbítrio,
mas de uma exigência à qual ele não pode responder.

O contemporâneo está em sintonia com o seu tempo, dialogando com ele,


transformando-o, buscando aquilo que nunca foi visto e sendo guiado por algo que
extrapola sua vontade.
Schollammer (2009, p. 9) argumenta que o contemporâneo busca o que há de
mais obscuro para trazer à luz, pois ―graças a uma diferença, uma defasagem ou um
anacronismo, é capaz de captar seu tempo e enxergá-lo‖. Enxergar o tempo como ele
é: com todos os seus problemas, diferenças e dificuldades, seja por identificação a
outros períodos ou por distanciamento deles. Com efeito, ―O contemporâneo é o
intempestivo‖ (BARTHES apud SCHOLLHAMMER, 2009, p. 9). O improvável, o
inesperado, o incomum é disso que trata a contemporaneidade. Schollammer
complementa afirmando que ―perceberam na literatura um caminho para se relacionar
e interagir com o mundo nessa temporalidade de difícil captura‖ (SCHOLLHAMMER,
2009, p. 11).
A literatura surge, então, como uma forma de apreender nosso tempo,
possibilitando o contato com situações e fatos imprevisíveis que, ao mesmo tempo em
que dialogam conosco, estão distantes de nossa realidade objetiva. O escritor
contemporâneo busca trabalhar com dois caminhos, quais sejam: realismo marginal –
problemas sociais; universos íntimos e sensíveis – dimensão pessoal, tentando
absorver seu tempo, sua atualidade. Entretanto, percebemos ―uma grande urgência
em se relacionar com a realidade histórica, estando consciente, entretanto, da

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impossibilidade de captá-la na sua especificidade atual, em seu presente‖


(SCHOLLHAMMER, 2009, p. 10). É um paradoxo, pois ao mesmo tempo em que ele
quer capturar o presente em sua particularidade, o escritor contemporâneo tem
consciência de que isso é praticamente impossível.
Schollhammer e Agamben se completam nos argumentos e (in)definições do
conceito de contemporaneidade, conceito este bastante difícil de definir pois ainda
estamos vivendo na contemporaneidade, ajudando a escrever essa história.
Schollhammer (2009, p. 12) assevera que ―o presente contemporâneo é a quebra da
coluna vertebral da história e já não pode oferecer nem repouso, nem conciliação‖.
Na atualidade precisamos encontrar repostas para o anticronismo da
contemporaneidade que busca o equilíbrio entre passado e futuro, pois ―o poeta,
enquanto contemporâneo, é essa fratura, é aquilo que impede o tempo de compor-se
e, ao mesmo tempo, o sangue que deve suturar a quebra‖ (AGAMBEN, 2009, p. 6).
Os literatos, portanto, são aqueles que colocam o ―dedo‖ na ferida do tempo,
mostrando, por vezes, aquilo que está sombrio, obscuro, mas também é responsável
por costurar e cicatrizar as feridas que foram expostas durante o processo de
iluminação.

O contemporâneo na literatura infantil


A literatura infantil contemporânea possui uma tendência para a retomada de
temas ou recursos antigos para associá-los aos novos processos. O objetivo das
obras infantis é ―dar prazer ao leitor, diverti-lo, emocioná-lo ou envolvê-lo em
experiências estimulantes ou desafiantes‖ (COELHO, 2000, p.150).
O valor literário de uma obra – que pode ser entendido como uma visão de
mundo indagadora, aberta ao que está em transformação, com uma linguagem em
sintonia com o contemporâneo – se dá por meio da coerência entre a visão de mundo
presente nele e as soluções estilísticas/estruturais escolhidas pelo autor.
A literatura infantil nos Anos 70/90 buscavam um experimentalismo com a
linguagem, com a estrutura narrativa e com o visualismo do texto; a substituição da
literatura confiante/segura por uma literatura inquietante/questionadora (a criança em
relação ao mundo em que vive); e procurava questionar os valores sobre os quais
nossa sociedade está assentada (COELHO, 1995, p. 63).
Percebemos que a visão tradicional da literatura infantil, a qual apresentava a
―moral da história‖ no final do livro, perde espaço e a criança começa a ser enxergada
e tratada de forma mais real, buscando uma literatura que atenda seus anseios e a
auxilie a se indagar e a se posicionar no mundo ao qual faz parte.
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Coelho (1995, p. 65-66) destaca, ainda, cinco fenômenos que auxiliaram a


criação literária entre os anos 70 e 90: a consciência do poder da palavra como
nomeadora, construtora ou ordenadora do real (Como narrar?; O quê narrar?); o
confronto entre o pensamento racional, humanista e conceitual e o pensamento
mágico, primordial com que o pensamento infantil tanto se identifica; a consciência do
desmoronamento das instituições, conceitos e valores herdados da tradição imediata,
e simultaneamente a busca das origens ou das ideias primordiais; a consciência da
natureza livresca da nossa civilização que está na base da atual revalorização do livro
e da vida como mundos à parte, mas essencialmente interdependentes; a consciência
da revolução que se está processando no âmbito da percepção do conhecimento
humano (consciência de nossa consciência; Sujeito-objeto: onde a fronteira?).
Entretanto, apesar de trazer ideias tão profundas em relação ao indivíduo e à
sociedade, o que predomina na literatura infanto-juvenil é uma atmosfera de humor,
alegria e prazer em detrimento da exemplaridade dos textos tradicionais (COELHO,
1995, p. 65-66).
Os escritores de literatura infantil começaram a trabalhar temas polêmicos e
outros considerados tabus, mas que representavam melhor a contemporaneidade,
sem esquecer de seu público alvo. Ou seja, abordaram questões complexas de forma
divertida e cômica, que eram bem recebidas pelas crianças. Torna-se relevante
destacar que, para Coelho (2000, p. 151),

o que define a contemporaneidade de uma literatura é sua intenção


de estimular a consciência crítica do leitor; levá-lo a desenvolver sua
própria expressividade verbal ou sua criatividade latente; dinamizar
sua capacidade de observação e reflexão em face do mundo que o
rodeia; e torná-lo consciente da complexa realidade em
transformação que é a sociedade, em que ele deve atuar quando
chegar a sua vez de participar ativamente do processo em curso.

É nesse contexto que situamos Sylvia Orthof, uma autora que se destacou no
cenário da literatura infanto-juvenil brasileira.
Sylvia Orthof nasceu no Rio de Janeiro/RJ, em 1932 e faleceu em
Petrópolis/RJ, em 1997. Vem de uma família de artistas: o pai era pintor; o tio materno,
compositor; a avó paterna era casada com um letrista de operetas vienenses; e a avó
materna era pintora e ceramista. Fez parte da Escola de Arte Dramática do Teatro do
Estudante e começou a atuar com 15 anos. Estudou mímica na França com Marcel
Marceau e fez outros cursos também, tais como: desenho, pintura, arte dramática e
um curso de teatro que enfatizava uma nova forma de atuar.

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De volta ao Brasil, atuou como atriz na Companhia de Teatro de Paschoal


Carlos Magno, no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e na TV Record, em São Paulo,
que apresentava telepeças ao vivo. Mudou-se para Nova Viçosa/BA, uma aldeia de
pescadores, onde desenvolveu um teatro de bonecos com as crianças. Orthof relata
que ela e a professora da aldeia inventaram ―um teatrinho feito de sabugos de milho‖
(ORTHOF, 1996, p 28). Essa experiência promoveu a descoberta do teatro infantil por
Sylvia Orthof.
Em Brasília foi professora de teatro na Universidade de Brasília (UnB), montou
um grupo de teatro universitário e escreveu peças para serem representadas. Foi,
também, coordenadora de Teatro do Sesi de Brasília e programadora do Teatro do
Candanguinho pela TV Brasília. A dramaturga fundou duas companhias de teatro: A
Casa de Ensaio de Sylvia Orthof, em 1975, no Rio de Janeiro, na qual dirigia e
encenava as peças escritas por ela para o público infantil; e a Companhia de Teatro
Livro Aberto, em 1987, em Petrópolis/RJ (que existe até hoje), na qual esteve à frente
do grupo até seu falecimento.
Cumpre mencionar que Sylvia Orthof foi atriz, diretora, pesquisadora,
professora de teatro e escritora, com um trabalho sempre voltado para as crianças.
Escreveu mais de 120 livros entre contos, peças teatrais e poesias para o público
infanto-juvenil. Sylvia Orthof tem obras premiadas, como A viagem de um barquinho
(1975) que ganhou o primeiro lugar no concurso de dramaturgia do Teatro Guaíra, em
Curitiba/PR.
No cenário artístico nacional, ―Sem dúvida, a grande experiência teatral foi
decisiva para a conquista de seu título literário, cuja nota marcante é o dinamismo dos
aconteceres, o humor solto e sadio, o riso contagiante‖ (COELHO, 1995, p. 1063).
Todos esses ingredientes fizeram a obra de Sylvia Orthof tão prestigiada pelo público
infanto-juvenil.
Sylvia Orthof tem uma obra repleta de humor em que reinam o universo da
fantasia, da imaginação chegando à beira do absurdo. A autora mistura fatos e
personagens reais com coisas inventadas, em situações imprevisíveis e excitantes.
Todos esses itens que a autora mescla com perfeição permitem a fruição tanto por
crianças quanto por adultos, dependendo do espírito de cada um.
Seguindo este pensamento, Jacó Guinsburg, João Roberto Faria e Mariangela
Alves de Lima (2006, p. 160) corroboram:

Se o trunfo desse teatro é ter a criança como público privilegiado,


essa exclusividade – justamente por se traduzir em termos de
insuficiência artística – vem sendo cada vez mais considerada pelos

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realizadores como não desejável, e a comunicação com todas as


faixas etárias tende a ser sua maior aspiração.

A viagem de um barquinho (1975) é um texto dramático que não apresenta


delimitações de atos, cenas ou quadros, o que indica tratar-se de uma peça de ato
único. O texto teatral ganhou os seguintes prêmios: Prêmio Molière de Dramaturgia
Infantil pela Air France; primeiro lugar no Concurso Nacional Guaíra, no Paraná e
Prêmio Mambembinho de Teatro pelo Serviço Nacional de Teatro/MEC.
A obra conta com as seguintes personagens: Lavadeira, Menino, Sol, Cavaleiro
Verde, Cavaleiro Azul, Sapo, Pirilampo, Personagem Sonho, Barco de Papel e Fada-
princesa. A efabulação tem início a partir do momento em que o Menino perde seu
barquinho de papel e encontra, na Lavadeira, uma companheira de viagem nada
convencional, o auxílio para viajar em busca do objeto perdido.
A viagem de um barquinho (1975) é um texto dramático que faz a gente refletir
a respeito da brevidade da vida, ressaltando valores esquecidos, tais como: a perda, a
separação, a busca pelas coisas que nos são caras. Leva o leitor/espectador a ter
consciência da importância da liberdade, ―de ir... e vir... e de ir... e de vir...‖
(FUNDAÇÃO TEATRO GUAÍRA, 1975, p. 20).
A discussão extrapola o universo infantil e vai para indagações ainda mais
profundas: ―Como é que alguém pode ser dono da liberdade do outro?‖ (FUNDAÇÃO
TEATRO GUAÍRA, 1975, p. 32). Se você diz que ama, não deve prender ou amarrar o
ente querido. Essa frase leva a questionamentos muito mais profundos e serve para
fazer o adulto, que levou a criança até a sala de espetáculo, refletir nessas questões
mais elaboradas, pois ―muitas vezes os autores lançam mão de um referencial cultural
adulto, isto é, de informações que dificilmente podem ser decodificadas pelas
crianças‖ (PUPO, 1991, p. 36). Ou seja, o teatro infantil de qualidade não privilegia
somente a criança enquanto espectador, mas o público em geral. Serve como
entretenimento, divertimento, distração, mas também traz indagações que levam as
pessoas à reflexão.

Como uma pessoa sintonizada com o seu tempo, Sylvia falou de


liberdade em vários textos dramáticos: A viagem de um barquinho
(1975), Eu chovo, tu choves, ele chove... ( 1976), Zé Vagão da Roda
Fina e Sua Mãe Leopoldina (1979), e A Gema do Ovo da Ema
(1979), e Sylvia deixa clara a sua ideologia transgressora; assim, a
liberdade é a protagonista de sua dramaturgia (DUARTE, 2007, p.
59-60).

O texto dramático ganhou uma versão em forma de conto em verso, em 1986,


para o qual os protagonistas receberam nomes: Elisete, para a lavadeira; Chico
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Eduardo, para o menino. O texto é todo rimado e as ilustrações complementam o


sentido da história.

Aproximações entre as características da literatura infanto-juvenil


contemporânea apontadas por Nelly Novaes Coelho (2000) e a obra A
viagem de um barquinho (1975), de Sylvia Orthof
A pesquisadora Nelly Novaes Coelho (2000, p.151-155) aponta treze
características estilísticas/estruturais da literatura infantil/juvenil contemporânea que
percebemos ser relevantes para compreendermos a literatura da atualidade. A partir
de agora vamos elencar estas características tentando um diálogo e/ou uma
aproximação com a obra dramática de Sylvia Orthof já mencionda.
No primeiro item, Coelho (2000, p.151) pondera que ―a efabulação tende a se
iniciar de imediato com o motivo principal ou com circunstâncias que levam
diretamente à situação problemática‖. A preocupação do autor é como a história vai
ser mostrada para o leitor. Na obra dramática A viagem de um barquinho (1975), de
Sylvia Orthof, a efabução inicia-se com a entrada daLavadeira, vestindo uma roupa
branca e trazendo uma trouxa de roupas na cabeça. Ela retira da trouxa um longo
pedaço de tecido azul que é espalhado pelo espaço como se fosse um rio, depois
começa a lavar as roupas. Nesse momento surge o menino, conforme nos indica as
didascálias: ―(APARECE UM MENINO, MUITO AFLITO, CHORANDO MUITO)‖
(FUNDAÇÃO TEATRO GUAÍRA, 1975, p. 15). Com efeito, segundo Patrice Pavis
(1999, p. 96) as didascálias são ―Instruções dadas pelo autor a seus atores (...), para
interpretar o texto dramático. Por extensão, no emprego moderno: indicações cênicas
ou rubricas‖. Percebemos que a primeira cena da peça já ocorre em torno do ―motivo
principal‖, qual seja, o fato do menino ter perdido seu barquinho de papel e estar
desesperado à sua procura.
A segunda característica se refere à sequência narrativa, que é quebrada e não
tem uma única direção, compõe-se de ―experiências do passado com as do presente
narrativo (inclusive com o uso do retrospecto ou flashback)‖ (COELHO, 2000, p.152).
A preocupação está em propor problemas e não soluções prontas. Entretanto, esta
característica não se aplica à obra estudada, por se tratar de um texto dramático, para
o qual não temos a presença de um narrador, pois quem fala é a própria personagem.
Como terceiro elemento, Coelho (2000, p. 152) delimita as características das
personagens. ―As personagens-tipo reaparecem (reis, rainhas, princesas, fadas,
bruxas, profissionais de várias áreas, funcionários...), mas geralmente através de uma
perspectiva satírica e crítica‖. Nesse quesito, o texto traz a presença de uma Fada-
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princesa, uma personagem que mistura os atributos de beleza relativos às princesas,


com os poderes mágicos da fada. A perspectiva satírica pode ser percebida neste
diálogo abaixo:

FADA-PRINCESA
Príncipe? Já era! Ele vai acabar casando com uma Branca de Neve
ou Cinderela, ou qualquer enjoadinha assim.
LAVADEIRA
E vai até cometer a infelicidade de ―ser feliz para sempre‖.
(FUNDAÇÃO TEATRO GUAÍRA, 1975, p. 39).

Outra tendência da literatura infantil contemporânea é o ―espírito comunitário‖,


a ―personagem-coletiva‖, pois o intuito ―é valorizar a patota, o bando‖ (COELHO, 2000,
p.152), que disputa lugar com o personagem herói (individualista), das clássicas
histórias infantis. O Grupo-personagem ou personagem coletiva pode ser
representado, na obra de Sylvia Orthof, pelas personagens: Menino, Lavadeira,
Patinete Matilde e Cavalo Verde.
No início da efabulação, os protagonistas saem em viagem em busca do objeto
perdido e levam consigo a Patinete Matilde que pertence à Lavadeira. A Patinete tem
vida, sua voz vem de um minicassete, e ela dialoga com as personagens. No meio do
caminho, quando eles encontram os Cavaleiros Verde e Azul, Matilde se apaixona
pelo cavalo verde, que resolve seguir viagem com o grupo, integrando a ―patota‖. O
cavalo não tem fala, mas segue viagem com o bando. Aparecem também
personagens-animais, que na obra dramática são representados pelo Sapo e pelo
Pirilampo.
O quarto e o quinto itens não podem ser aplicados à obra A viagem de um
barquinho (1975), pois referem-se a elementos da narrativa, quais sejam eles: o conto,
como forma narrativa dominante e a voz narradora, que se torna ―cada vez mais
familiar e consciente da presença do leitor‖ (COELHO, 2000, p.153). No gênero
dramático não há narrador, conforme já abordado anteriormente.
Na sexta característica temos a valorização do ato de narrar – criar por meio da
palavra – que aparece bem marcante no corpo do texto e a utilização da
metalinguagem, ―com histórias que falam de si mesmas e do seu fazer-se‖ (COELHO,
2000, p.153). Dessa forma, percebemos que a criação literária passa pela construção
verbal escolhida pelo escritor.
Neste item, destacamos a presença do metateatro. A pesquisadora Sônia
Pascolati (2008, p. 1) assevera que:

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certos recursos metateatrais (ruptura da ilusão dramática,


personagens com consciência dramática, inserção do discurso crítico
no discurso ficcional) podem ser compreendidos como forma de
construção da teatralidade no entretecer do texto dramático.

O cenário da obra dramática, objeto desse estudo, é composto no


desenvolvimento da peça. A paisagem vai sendo desenhada enquanto se desenrola a
ação das personagens, conforme veremos mais adiante.

O metateatro, em suas múltiplas manifestações, atende a essa nova


necessidade do teatro. A peça dentro da peça, a inserção do
discurso crítico no discurso ficcional, a criação de personagens com
consciência dramática, o questionamento acerca das fronteiras entre
o real e a representação do real, a ruptura da ilusão teatral por meio
da desconstrução da quarta parede são alguns dos procedimentos
presentes nas obras da maior parte dos dramaturgos do século XX
representantes das mais variadas tendências (Luigi Pirandello,
Bertolt Brecht, Jean Anouilh, Samuel Beckett, Jean Genet)
(PASCOLATI, 2008, p.3).

O texto escrito sob a forma de metateatro possui o compromisso de transmitir


que aquilo que está sendo representado é ficção, é faz-de-conta. Os dramaturgos
utilizam a quebra da fantasia, questionam a semelhança da obra com a realidade e
auxiliam no poder de crítica que as obras podem gerar. A primeira rubrica da obra
dramática A viagem de um barquinho, de Sylvia Orthof direciona o leitor/espectador
para indicações acerca da configuração do cenário:

CENÁRIO
UM LUGAR TODO BRANCO. APARECE UMA LAVADEIRA TODA
DE BRANCO. ELA VEM COM UMA TROUXA À CABEÇA. COMEÇA
A PREPARAR A ROUPA PARA LAVAR. TODA A ROUPA,
TAMBÉM, É BRANCA.
(FUNDAÇÃO TEATRO GUAÍRA, 1975, p.14).

Entretanto, este cenário branco serve de ponto de partida para que os


protagonistas desenhem o caminho percorrido durante a viagem.

(NO FUNDO, A LAVADEIRA E O MENINO COMEÇAM A


DESENHAR E PAISAGEM, ENQUANTO VIAJAM)
LAVADEIRA
Veja que linda árvore!
MENINO
Puxa! O caminho do rio é cheio de flores! (desenha flores) Como é
linda a viagem! (grifo nosso)
(FUNDAÇÃO TEATRO GUAÍRA, 1975, p. 23).

Neste outro trecho também é possível identificar, no diálogo das personagens e


nas indicações cênicas, o metateatro:
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LAVADEIRA
Nessa estória, apareceu um sol...
MENINO
(DESENHA PELAS PAREDES COM GIZ) Um sol...
LAVADEIRA
E coisas de rio e de mar...
MENINO
(DESENHANDO UM BARCO) Coisas de barco... (grifo nosso)
(FUNDAÇÃO TEATRO GUAÍRA, 1975, p. 38).

O sétimo elemento apontado por Coelho (2000, p 153) é o tempo, que pode ser
variável: histórico, indeterminado ou mítico. O tempo, da obra dramática escolhida,
pode ser classificado como linear, supomos que tem a duração de um dia. A
encenação começa com o encontro da Lavadeira e do Menino; depois eles viajam em
busca do barquinho, encontram vários personagens (Sol, Cavaleiro Verde, Cavaleiro
Azul, Sapo, Pirilampo) até anoitecer. Eles dormem, o menino sonha com o barquinho
(Personagem Sonho) e, ao acordar, encontram o barco crescido (Barco de Papel).
O item de número oito aborda questões relativas ao espaço, que também pode
ser variável: ―aparece como simples cenário ou como participante do dinamismo da
ação‖ (COELHO, 2000, p.153). A literatura inovadora pretende entender as relações
existentes entre o espaço e os seres e as coisas que nele existem. Na obra de Sylvia
Orthof escolhida, o espaço vai sendo construído: o rio de brinquedo/pano é
esparramado pelo cenário; as árvores, as flores, o sol e o barco vai sendo desenhado
durante a viagem, o que ressalta o ―dinamismo da ação‖.
A nona característica, que não foi identificada na obra analisada, aponta para a
―consciência nativista: é a busca das raízes ou das origens, no sentido de se percorrer
de novo o caminho feito até aqui, a fim de que a brasilidade se revele em toda a sua
verdade e força‖ (COELHO, 2000, p.154). Quando percorremos o caminho em busca
de nossas origens voltamos às matrizes indígena, africana e europeia que compõem o
nosso povo e deram ―início a uma nova maneira-de-ser-no-mundo: a brasileira‖
(COELHO, 2000, p.154).
No décimo quesito, ―começa a prevalecer a complexidade das forças interiores
(positiva e negativa) sobre a dualidade maniqueísta‖ e a exemplaridade – lição de vida
– ―desaparece como intenção pedagógica da literatura‖ (COELHO, 2000, p.154). A
literatura infantil contemporânea tem a intenção de propor problemas a serem
resolvidos; estimular a capacidade de compreensão dos fenômenos; provocar uma
atitude receptiva em relação às inovações; capacitar para agir com inteligência.

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A complexidade das forças interiores pode ser identificada na obra pelos


protagonistas: Menino e Lavadeira, pois são personagens humanas (não
maniqueístas) com um problema a ser resolvido: encontrar o barquinho.
O elemento número onze trata do humor e da intenção satírica, estes dois são
muito presentes nas obras de Sylvia Orthof. Destacamos algumas passagens que
ilustram o humor presente na obra A viagem de um barquinho (1975). No primeiro
excerto temos uma situação cômica em que a Lavadeira, muito atrapalhada, vai e
volta, numa ação que se repete e se torna engraçada:

LAVADEIRA
Vamos em busca do barquinho! Juízo, ouviu? (SAI, CARREGANDO
A ROUPA)
MENINO
Está certo. Enquanto você vai entregar a roupa, eu fico esperando.
Mas, não demora, ouviu?
LAVADEIRA
(VOLTANDO)
O que foi que você disse?
MENINO
Eu disse pra você não demorar, está certo?
LAVADEIRA
Se você não tivesse me chamado, eu já tinha ido. Volto já. Até logo!
MENINO
Até logo!
LAVADEIRA
(VOLTANDO)
Cuidado para não cair no rio, ouviu?
(FUNDAÇÃO TEATRO GUAÍRA, 1975, p. 16).

No segundo exemplo, temos um trecho em que o humor aparece no


entusiasmo da Lavadeira ao preparar a ―mala‖ da viagem. Ela fica tão empolgada que
até perde o fôlego.

MENINO
Será que a gente vai encontrar o meu barquinho? Será que o mar é
muito cheio de perigos? (SUSPIRA E ESPERA, AFLITO, A VOLTA
DA LAVADEIRA).
(OUVE-SE BARULHO DE BUZINA. APARECE A LAVADEIRA
EMPURRANDO UM CARRINHO FANTÁSTICO, CHEIO DE
LOUCURAS. NO ALTO DO CARRINHO, UM ENORME BOLO DE
ANIVERSÁRIO, BOLAS COLORIDAS, QUINQUILHARIAS. DO
LADO, UMA BUZINA ANTIGA.)
MENINO
Mas o que é isso?
LAVADEIRA
É a minha mala.
MENINO
Você vai viajar com tudo isso?
LAVADEIRA
Com tudo isso, por enquanto. Eu levo só as coisas supérfluas!
MENINO
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O que são coisas supérfluas?


LAVADEIRA
Levo só coisas que as pessoas não precisam. Eu acho lindo tudo
que chamam de supérfluo! Você já viu o que as pessoas levam nas
malas? Elas levam só o necessário.
MENINO
Minha tia, quando viajou, levou uma mala, com vestidos, meias,
sapatos... Aquilo que ela iria precisar...
LAVADEIRA
Horrível! O que a gente não precisa, mas ama, isso é que é lindo!
Você já viu como é triste uma mala de viagem, como é feia uma
mala, aberta, com a roupa dobrada, apertada? Uma viagem deve ser
uma festa!
MENINO
E aquele bolo de aniversário, serve para que?
LAVADEIRA
Ah, este bolo, não é supérfluo! Ele é muito necessário! Você já
imaginou como deve ser horrível a gente encontrar alguém, no
caminho, que esteja fazendo aniversário e não ter nem um bolo?
Seria muito triste!
MENINO
Lavadeira, você é maravilhosa!
LAVADEIRA
Menino, você é maravilhoso! (ABRAÇAM-SE) Em frente! Em busca
do Barco de Papel que fugiu para o mar cheio de ondas e ventos e
peixes e espumas e verdes e azuis e... (COMEÇA A FICAR SEM
AR). (grifo nosso)
(FUNDAÇÃO TEATRO GUAÍRA, 1975, p. 18-19).

Outra situação de humor pode ser observada ao longo do texto dramático em


que a dramaturga propõe uma série de músicas, algumas com sugestão de melodia,
outras não. Um exemplo pode ser observado na paródia usando a melodia da música
―Onde está a margarida‖.

(COMEÇAM A CANTAR A MÚSICA DE ―ONDE ESTÁ A


MARGARIDA‖)
MENINO
Onde está o meu barquinho, olé, olé, olá? Onde está o meu
barquinho, olé, seus cavaleiros?
LAVADEIRA
Ele foi por seu caminho, olé, olé, olá. Ele foi por seu caminho, pra
chegar ao mar.
(FUNDAÇÃO TEATRO GUAÍRA, 1975, p. 24)

O item doze aborda a alternância entre realismo e verdade com fantasia,


imaginário ou maravilhoso. Na esfera do maravilhoso, a tarefa é estimular ―a agir, a
desenvolverem suas próprias forças ou, em síntese, ajudá-los a transformarem em ato
o que neles existe em essência‖ (COELHO, 2000, p.155). Em A viagem de um
barquinho (1975) temos personagens reais em busca de objeto real versus
personagens fantasiosos e fantásticos que auxiliam os personagens humanos a
encontrar o objeto do desejo.
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Como última característica, temos o ―apelo à visualidade [...]: a literatura torna-


se espaço de convergência das multilinguagens‖ (COELHO, 2000, p. 155). Este
quesito não se aplica à obra dramática, mas está contemplada e amplamente utilizada
na versão literária de 1986.

Considerações Finais

O conceito de contemporaneidade é algo de difícil delimitação, pois ser


contemporâneo é estar focado em seu tempo e nas coisas que precisam ser
desveladas, iluminadas, aclaradas. O escritor contemporâneo é o único capaz de
pinçar, de um determinado tempo, aquilo que precisa ser dito e que se relaciona
conosco por uma via de mão dupla: ao mesmo tempo se aproxima e se distancia de
nós.
A literatura infantil contemporânea apresenta uma preocupação com a criança
e não tem a função moralizante que anteriormente era sua marca. As histórias
pretendem estimular as crianças com experiências desafiantes e questionadoras,
levando as crianças a refletir sobre si e o mundo que está à sua volta, com obras
permeadas de humor e situações cômicas.
As obras de Sylvia Orthof, em especial, A viagem de um barquinho (1975),
dialogam perfeitamente com as características da literatura infantil contemporânea
descritas por Coelho (2000) e se enquadram neste universo de (in)definições de
contemporaneidade apontadas por Agambem (2009) e Schollhammer (2009), uma vez
que a autora lança seus holofotes para o que estava obscuro na década de 1970,
época da escrita do texto dramático e de cerceamento da liberdade de expressão, e
evidencia essa temática com talento ficcional.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Tradução de Vinicius


Nicastro Honesco. Chapecó, SC: Argos, 2009.

COELHO, Nelly Novaes. Dicionário crítico da literatura infantil e juvenil brasileira:


Séculos XIX e XX. 4. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1995.

_______. Literatura Infantil: teoria, análise, didática. 1. ed. São Paulo: Moderna, 2000.

DUARTE, Flor de Maria Silva. O teatro infantil de Sylvia Orthof: Zé Vagão da Roda
Fina e sua mãe Leopoldina (1975), A gema do ovo da ema (1979). Dissertação de
Mestrado. Universidade Estadual de Maringá, 2007.

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FUNDAÇÃO TEATRO GUAÍRA. Cinco textos para teatro infantil; coletânea das peças
premiadas no Concurso Nacional de Textos para Teatro Infantil. Curitiba, GRAFIPAR,
1975.

GUINSBURG, J.; FARIA, João Roberto; LIMA, Mariangela Alves de. (Orgs.). Dicionário
do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos. São Paulo: Perspectiva: Sesc São
Paulo, 2006.

MAGALDI, Sábato. Panorama do teatro brasileiro. 6. ed. São Paulo: Global, 2004.

ORTHOF, Sylvia. Livro aberto: confissões de uma inventadeira de palco e escrita. São
Paulo: Atual,1996. – (Passando a limpo).

PASCOLATI, Sônia Aparecida Vido. Metateatro: inserção do discurso crítico no texto


dramático. In: Anais doXI Congresso Internacional da ABRALIC: Tessituras,
Interações, Convergências. São Paulo: EdUSP 2008. Disponível em:
http://www.abralic.org.br/eventos/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/023/SONIA_PA
SCOLATTI.pdf. Acesso em 14/09/17.

_______. Operadores de leitura do texto dramático. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN,


Lucia Osana (Orgs.). Teoria Literária: abordagens históricas e tendências
contemporâneas. 3. ed. Maringá: Eduem, 2009, p. 93-112.

PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Tradução para a língua portuguesa sob a direção
de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 1999.

PUPO, Maria Lúcia de Souza B. No reino da desigualdade: teatro infantil em São


Paulo nos anos setenta. São Paulo, FAPESP, 1991.

SCHOLLHAMMER, Karl Eric. Ficção Brasileira Contemporânea. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 2009.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

DA ILUSTRAÇÃO À PALAVRA: O (RE) DESPERTAR POÉTICO


EM SALA DE AULA

Eliana Aparecida dos Santos, SEDUC - MT


Rosicléia Brito Freitas, SEDUC - MT

Considerações Iniciais

O presente trabalho apresenta reflexões quanto ao uso dos livros de imagens


em sala de aula, e analisa os resultados de atividades desenvolvidas com alunos do
ensino fundamental I, o objetivo principal era motivar e desenvolver o letramento
literário. Na maioria das vezes, o pequeno leitor em formação é estimulado em casa
através das leituras imagéticas, eles fantasiam, criam narrativas, elaboram aventuras.
Entretanto, poucos são os momentos em que a poesia se faz presente nas primeiras
leituras do leitor em formação. Além de não fazer parte do planejamento escolar, o
texto literário ainda luta por espaços nos currículos e aulas de Língua Portuguesa.
Partindo desse pressuposto, procuramos discutir a importância do trabalho com o
texto literário em sala de aula, tendo como foco o estudo de obras compostas somente
por imagens. Os dados apresentados são o resultado de uma pesquisa-ação,
realizada com alunos do 5º ano do ensino fundamental, pautada numa obra literária
composta por haicais expressos por ilustrações desprovidas do texto verbal. O estudo
demonstra que a literatura em sala de aula precisa estar mais presente, e que os
jovens leitores em formação não conhecem o verdadeiro valor literário em virtude de
uma mediação pedagógica ainda equivocada. Há que se investir em formações e
condições para que os profissionais da educação tenham a oportunidade de
desenvolver uma prática pedagógica mais eficiente, uma vez que o trabalho com o
texto literário não pode ocupar uma pequena parte das aulas de língua portuguesa, ele
precisa ser o centro do processo de ensino. Para fundamentar as nossas discussões,
buscamos respaldo em Cademartori (2012), Ceia (2002), Cosson (2014), Faria
(2007), Ramos (2006), Ramos&Panozzo (2016), Solé (1998) e Sorrenti (2009). O
trabalho com a poesia motiva os alunos a explorarem o seu vocabulário, possibilita a
1473

descoberta da sensibilidade através das palavras e da imagem. Os resultados


evidenciaram que o texto literário com ou sem imagem ou palavra encanta o leitor em
formação, o que falta no ambiente escolar é a mediação pedagógica de forma efetiva
e sensível quanto à presença da literatura em sala de aula.

O trabalho com o texto literário no ambiente escolar

Estamos acostumados a ouvir diariamente que a população brasileira não tem


o hábito de ler, entretanto, o mercado editorial vem apresentando um crescimento
considerado satisfatório, o que evidencia que há algo errado nesses dados.
Na verdade, podemos afirmar que nunca lemos tanto quanto nos últimos anos,
o que deixamos de ler ou conhecer são os clássicos considerados literários, e
procuramos leituras mais envolventes que nos traga alguma sensação de
tranquilidade ou nos transporte para um mundo de fantasia e ilusões. Para
evidenciarmos essa situação tomemos como exemplo o grande sucesso da saga
Harry Potter, Crepúsculo, os vários tons de cinzas e assim por diante. Vemos que
essas obras não são livros que possuem poucas páginas, ou que são recheadas de
ilustrações, pelo contrário, são obras compostas de muitas páginas, repletas do código
escrito, mas, desperta a atenção dos leitores, entretanto, quando trabalhamos com a
formação dos leitores no ambiente escolar encontramos uma séria resistência quanto
ao ato de ler, seja por alegar que as obras possuem uma linguagem difícil ou até
mesmo não identificar-se com o enredo.

Ao selecionar um texto, o professor não deve desprezar o cânone,


pois é nele que encontrará a herança cultural de sua comunidade.
Também não pode se apoiar apenas na contemporaneidade dos
textos, mas sim em sua atualidade. Do mesmo modo, precisa aplicar
o principio da diversidade entendido, para além da simples diferença
entre os textos, como a busca da discrepância entre o conhecido e o
desconhecido, o simples e o complexo, em um processo de leitura
que se faz por meio da verticalização de textos e procedimentos.
(COSSON, 2014, p.35)

A literatura sempre fez e fará parte da vida humana. Os contos clássicos


pautados na oralidade que serviam de distração para aproximar as pessoas e
espantar a solidão das noites frias evidencia o quanto a literatura independe do
domínio da decodificação do código escrito. A imaginação, a sensibilidade, a
criatividade e a necessidade de encontrarmos refúgio ou soluções para os nossos
problemas faz com que a literatura seja essa nossa válvula de escape.

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É comum percebermos alguns leitores que se identificam com os seus


personagens preferidos, mesmo sabendo que tudo é fruto da imaginação.
A criança é um dos maiores representantes desses momentos de refúgio
através da literatura, constantemente elas buscam identificar-se com as princesas e
reis lutando contra o mal, herói com poderes sobrenaturais, além de lugares onde tudo
é possível.
Na maioria dos lares, as crianças têm contato com os textos literários através
da oralidade, os pais procuram contar histórias, seja para entreter ou apresentar algum
tipo de moral. Com o decorrer do tempo, os livros de imagens são apresentados a
esses pequenos leitores em formação, a escolha por esse tipo de leitura se dá em
face da maioria ainda não dominarem a decodificação do código escrito, mas
apresenta uma enorme facilidade em construir narrativas lineares, o que lhes permite
contar histórias que apresentam sequências bem estruturadas com início, conflito,
clímax e desfecho, sempre com final feliz.

O aprendizado da leitura não dispensa, desde o início da


alfabetização, os livros para crianças. O trabalho de automatização
da decodificação deve ser concomitante com o da leitura de textos
variados. Daí, na iniciação literária desde a pré-escola, a importância
dos livros de imagem, com ou sem texto escrito, no trabalho com as
narrativas. Eles podem ser uma grande alavanca na aquisição da
leitura, para além da simples decodificação. (FARIA, 2007, p.22)

A narrativa torna-se um dos primeiros textos literários a fazer parte da vida do


pequeno leitor, em seguida lhes são apresentadas algumas cantigas que apresentam
uma estrutura poética com rimas e metrificações, o que também chama a atenção é
que essa forma literária também é inserida por meio da oralidade.
A partir do momento em que a criança chega ao ambiente escolar o estímulo
literário deixa de ser o centro do trabalho pedagógico, há preocupações em
desenvolver todas as habilidades da criança, mas a imaginação e sensibilidade que é
a mola propulsora de todo o processo de ensino é deixado de lado, situação que
acaba fazendo com que o aluno deixe de gostar da literatura, e consequentemente,
não consiga dominar o processo da leitura de forma satisfatória, pois grande parte dos
leitores em formação realiza somente o processo de decodificação do código escrito.

Capacitar os estudantes à leitura, desenvolvendo suas competências


linguística e textual é uma coisa. Transformar alunos em leitores de
literatura é outra. A capacitação dos alunos à leitura é um dos
objetivos principais do ensino fundamental, habilidade que deve ser
aprimorada no ensino médio. Iniciativas, incentivos e programas de
leitura que propiciam tal capacitação são de importância vital na
educação. Esforços nesse sentido são crescentes no país,
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impulsionados por razões culturais, sociais e políticas.


(CADEMARTORI, 2012, p. 90)

O trabalho com a literatura em sala de aula ainda continua sendo um dos


principais focos das discussões acadêmicas e programas de formação de professores.
Transformar o texto literário como o objeto principal das aulas de língua, tirando-o da
função de pretexto para o ensino de regras é uma das principais dificuldades
enfrentadas pelos responsáveis no processo pedagógico, mesmo porque, não há
possibilidade de realizar esse tipo de trabalho, uma vez que, o processo de criação
literária permite-nos moldar a língua de acordo com as necessidades artísticas, ou
seja, o texto literário não serve para ensinar regras, pois ele é um dos ―infratores da
norma padrão‖, oque presenciamos diariamente nos ambientes escolares são
professores que utilizam textos literários ―fora da norma‖ para que os alunos façam o
processo de reescrita corrigindo os desvios apresentados.

A leitura literária tem a função de nos ajudar a ler melhor, não apenas
porque possibilita a criação do hábito de leitura ou porque seja
prazerosa, mas sim, e sobretudo, porque nos fornece, como nenhum
outro tipo de leitura faz, os instrumentos necessários para conhecer e
articular com proficiência o mundo feito linguagem. (COSSON, 2014,
p.30)

São muitas as possibilidades de trabalho com os textos literários, entretanto,


percebemos que muitas vezes os profissionais estão impregnados com a falsa ideia
de que o valor literário de uma obra está na sua complexidade de compreensão, ou
seja, o vocabulário erudito é o que deve predominar. Todavia, não percebem que com
a evolução tecnológica os nossos educandos passam por um momento em que
conseguem ficar, no máximo, alguns minutos concentrados em algo, isto é, temos uma
geração ativa e inquieta, os chamados ―nativos digitais‖. Portanto, as produções
literárias também precisam apresentar-se de forma rápida, porém, sem perder a
sensibilidade, a beleza e o seu caráter polifônico, características inerentes a esse tipo
de produção.
Se o trabalho com texto literário ainda encontra obstáculos no ambiente
escolar, o que poderíamos esperar de produções literárias pautadas em imagens? A
maioria dos profissionais não percebe o valor literário desse tipo de produção, em
alguns casos, presenciamos uma rejeição quanto a essas produções, alegando-se que
é muito fácil de discutir, outras vezes, nem há o que se falar de uma obra totalmente
imagética. No entanto, há que se perceber que as ilustrações exercem muito mais que
o papel de simples complemento do texto verbal.

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... a imagem antecipa sentidos revelados pela palavra, em outros,


mostra sentidos paralelamente, tratando de aspectos não explicitados
pelo sistema escrito; por vezes, apenas confirma as palavras, por
outras, orienta a leitura.(RAMOS&PANOZZO, 2004, p. 12)

Geralmente, encontramos livros de imagens pautados em narrativas que


permitem ao educando construir uma história, são raros os momentos em que nos
deparamos com poesias visuais. Primeiro porque a poesia é algo muito subjetivo, ela
lida com as várias nuances que a língua pode apresentar, ou seja, há um trabalho
mais esmerado, muitas vezes, requer um nível maior de percepção.

É sabido que os poemas, assim como as histórias direcionadas às


crianças podem versar sobre os mais variados conflitos, estados de
espírito e sentimentos. Além de poder frequentar os temas mais
variados, a poesia infantil não quer apenas se adequar ao leitor,
como se isso fosse um critério rígido preestabelecido. Longe disso, a
poesia para crianças define-se como a que a criança também lê e
aprecia, não sendo uma poesia menor. O mergulho no texto poético
costuma ser mais intenso que o mergulho no texto em prosa, em que
a criança faz um pacto de faz de conta com o narrador. O poema,
extremamente sintético, apresenta condensadas as emoções e as
ideias, projetadas em imagens associativas. (SORRENTI, 2009, p.14)

As emoções e ideias condensadas que Sorrenti afirma ser presença marcante


na poesia tornam-se ainda mais sintética quando falamos dos haicais, produção
poética pautada em três versos que busca apresentar na maioria das vezes elementos
naturais e o passar do tempo. Ou seja, temas do cotidiano, com uma estrutura
simples, mas com uma produção enorme de significados que podem ser explorados
pelos pequenos leitores em formação.
O autor Nelson Cruz lança esse desafio para os profissionais da educação ao
produzir um livro de haicais, porém somente com imagens, o que permite ao leitor
inúmeras possibilidades de leitura, além da percepção da riqueza em condensar em
poucas imagens uma grande viagem pelo mundo da imaginação.

Brilhante é o escritor que consegue captar o imaginário infantil e falar


para a alma da criança e do jovem. Conseguir escrever de fato um
livro que as crianças possam ler e se identificar é tarefa difícil e
requer habilidades. (RAMOS, 2006, p.84)

O processo de leitura de poemas imagéticos ainda não é uma atividade comum


em sala de aula, muitos profissionais ignoram a presença dessas obras, ou
simplesmente realizam um trabalho de folhear as páginas para conhecer as imagens,
não há propostas de mediações pedagógicas que possam fazer com que todos os
tipos de manifestações literárias sejam apresentados durante o ano letivo para os

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educandos. Percebemos que a preocupação em cumprir uma carga horária com


conteúdos programáticos que pressupõem o domínio da língua através do estudo de
regras e normas ainda é o foco das aulas de língua portuguesa nas escolas. O texto
literário seja verbal ou imagético possui um longo caminho a ser percorrido até que
possa ser consolidado no ambiente escolar como foco das aulas de língua portuguesa.

Conhecendo o ambiente da pesquisa

O trabalho foi desenvolvido no município de Feliz Natal, cidade que fica ao


norte do estado de Mato Grosso, há 580 quilômetros da capital Cuiabá. O corpus da
pesquisa são as produções realizadas pelos alunos do quinto ano da escola particular
que utiliza o material didático de uma empresa privada.
No ano letivo de 2017, a empresa apresenta como proposta de incentivo à
leitura um projeto intitulado Voe Alto, no qual cada turma recebe a sugestão de uma
obra literária para ser lida durante o bimestre, totalizando quatro obras durante o ano,
e juntamente com a indicação dos livros, a equipe apresenta algumas orientações e
propostas para nortear o trabalho dos professores em sala de aula, todas pautadas
nas discussões e estratégias de leituras apresentada por Isabel Solé e Rildo Cosson.
Os dois autores discutem e apresentam alguns passos que precisam ser seguidos
para que o processo de leitura e discussão de textos, literários ou não, produza
sentido para o leitor. Sendo assim, Isabel Solé discute o que deve ser explorado antes,
durante e após a leitura, e Rildo Cosson apresenta de forma pedagógica propostas de
trabalho pautadas em sequências básicas e expandidas que tem como pressuposto o
trabalho com o texto literário.
Para alguns livros, a equipe organizadora apresenta sugestões de como
explorar antes, durante e após a leitura, além de sugerir em alguns momentos a
expansão da mesma. Cosson (2014, p.95) afirma que o processo de expansão é
―essencialmente comparativo. Trata-se de colocar as duas obras em contraste e
confronto a partir de seus pontos de ligação‖, ou seja, a equipe sugere atividades que
possam ser desenvolvidas no percurso da leitura, e ao final orienta o conhecimento de
outras obras que possam dialogar com a primeira.
Percebemos que essa preocupação em oferecer caminhos para o trabalho com
as obras sugeridas se dá em função da maioria dos profissionais que atendem a
educação infantil e os anos iniciais do ensino fundamental ter a formação em
pedagogia, o que, em virtude de uma carga horária excessiva na sua formação, não

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lhes permite uma discussão maior com relação ao trabalho com o texto literário e as
possibilidades de exploração dos mesmos.
Dentre as obras sugeridas, os alunos do quinto ano deveriam trabalhar com a
obra Haicais Visuais, de Nelson Cruz. O que mais nos chamou a atenção fora o fato
de que a maioria das obras sugeridas para leitura apresentava uma espécie de roteiro
para que pudesse nortear o trabalho do professor, entretanto os livros de imagem não
traziam sequer qualquer tipo de comentário, o que evidencia que esse tipo de obra
literária ainda sofre preconceitos, não só por parte dos profissionais responsáveis pelo
processo pedagógico, como pelas equipes técnicas pedagógicas que devem
selecionar os materiais que serão ofertados nas escolas.
O livro de Nelson Cruz apresenta dez haicais compostos por três imagens
dispostas uma em cada página, o que permite ao leitor deduzir e criar possibilidades
de compreensão, essa obra não apresentava nenhum roteiro de leitura, logo, alguns
professores optaram em deixá-la para um ―segundo plano‖, situação que provocou a
nossa inquietação e a elaboração das atividades analisadas a seguir. Com base na
obra, os alunos conheceram o que era um haicai, a sua estrutura, as temáticas
abordadas e realizaram a leitura de alguns poemas produzidos por autores brasileiros.
Após essa breve contextualização, os educandos foram convidados a produzir versos
que pudessem transmitir em palavras o que as imagens da obra de Nelson Cruz
sugeriam. São essas produções que constituem o corpus de análise.

Analisando os dados

No primeiro bimestre, todos os livros faziam parte da coleção HISTÓRIA À


VISTA! , entretanto, como não havia sugestões de como direcionar o trabalho, a
maioria dos professores preferiram entregar o material para os alunos sem a
preocupação de uma mediação pedagógica, alegando o fato de que um livro de
imagens não oferecia muitos recursos para serem explorados, e que a leitura se
tornaria fácil e simples para os educandos.
Essa situação evidencia a postura equivocada que assumimos ao considerar o
que verdadeiramente venha a ser a literatura, ou seja, que o valor literário ainda está
agregado à dificuldade e complexidade na compreensão do texto literário, o cânone
ainda é visto como modelo a ser seguido.

Quando o texto dos livros para crianças é formado apenas por


algumas frases, a ilustração adquire um papel relevante na
estruturação da narrativa. Deve, portanto ser cuidadosamente
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analisada em suas sequências e cenas, na representação das


personagens e suas expressões (pessoais, de ação, etc), nos
detalhes do espaço e do tempo a fim de que as crianças
acompanhem e a dominem plenamente a história e as formas em que
estão narradas. (FARIA, 2007, p.83)

As obras quando foram entregues aos alunos causou-lhes enorme satisfação,


os educandos ficaram encantados com os desenhos e mais ainda pela ausência do
código escrito, entretanto, o que mais surpreendeu foi a espontaneidade dos alunos ao
realizarem as leituras que as imagens permitiam-lhes. Inicialmente o aspecto narrativo
prevaleceu nas discussões, porém, ao alertamos que o livro trazia como título haicais,
os alunos perceberam a relação do poema com as construções das imagens
apresentadas.
Como já havíamos preparado a turma com a discussão de alguns haicais, tais
como o que era e como se constituiu, os alunos perceberam a associação dos três
desenhos com os três versos do poema estudado, e puderam brincar de construir
versos que evidenciasse o que possivelmente inspirou o autor ao produzir as
ilustrações.

Imagens do haicai boa noite, Alice!

Fonte: CRUZ, 2015.

O haicai apresenta um rigoroso processo de metrificação, entretanto, como o


objetivo do trabalho era desenvolver o gosto literário dos leitores em formação,
preferimos não nos ater a esse detalhe, sendo assim, o que apresentamos para os
alunos foi algumas características de como o poema era constituído, três versos, nos
quais o primeiro e o terceiro verso apresentavam uma metrificação diferente do
segundo, os temas abordados eram situações simples da natureza e do passar do
tempo.
Convidamos os alunos a escreverem os seus haicais partindo das ilustrações
de Nelson Cruz. O primeiro momento da produção foi marcado pela narração, os
alunos ainda estavam presos à narrativa, e não tinham a sensibilidade despertada
para a produção poética. Esse fato não deve causar estranheza no ambiente escolar,

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uma vez que, quando o texto literário faz parte do processo pedagógico opta-se pela
narrativa, muitos alegam ter maior facilidade no momento da discussão desses textos
em detrimento dos textos poéticos que requer mais sensibilidade e uma percepção
acurada.
Entretanto, os títulos de alguns dos haicais de Nelson Cruz apresentavam uma
espécie de intertextualidade com elementos literários, que por sua vez, já faz parte do
conhecimento dos alunos.
No haicai Boa noite, Alice!, os alunos não encontraram dificuldades em
dialogar com a obra Alice no país das maravilhas, a recuperação da imagem do
sorriso com o personagem do gato de Cheshire foi imediata, a relação entre o gato e a
lua que aparecem e desaparecem foi um dos aspectos discutidos pelo grupo.
O trabalho com o poema exemplificado possibilitou aos alunos uma descoberta
de que nem tudo que está na poesia é estranho ao seu conhecimento. Ou seja, houve
a percepção de que situações comuns podem ser transformadas em poesia. Ao serem
convidados a expressar através do código escrito o que a leitura das imagens
representava, tivemos a grata satisfação de percebermos que as crianças que estão
passando pelo processo de formação do gosto pela leitura tem a sensibilidade em
expressar com palavras alguns sentimentos, a produção escrita demonstrou que há
um trabalho de lapidação das palavras para que possam expressar justamente aquilo
que os alunos sentem ao visualizar as imagens apresentadas.

Uma lua brilhante


Em uma noite cativante
Com o sorriso exuberante
Fonte: Texto elaborado por alunos do 5ºA.

O uso dos termos ―cativante‖ e ―exuberante‖ demonstra o cuidado que os


alunos têm ao escolher as palavras adequadas para que se possam resumir alguns
dos sentimentos, numa roda de conversa os alunos poderiam dizer que a noite estava
bonita e apresentou um sorriso alegre, no entanto, a palavra cativante remete à ideia
de conquistar, ou seja, o ar fresco da noite convida o leitor a apreciar a imagem
noturna e encantar-se com a felicidade transmitida através do sorriso.

Imagens do haicai três gatos

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Fonte: CRUZ, 2015.

O poema os três gatos foi o que despertou o nosso interesse em aprofundar as


discussões quanto ao gosto poético em sala de aula. Ao fazermos a leitura das
imagens, e discutirmos alguns aspectos da produção dos haicais através das
ilustrações, uma aluna fez a seguinte leitura:

Um gato de dia
Um gato de noite e
Uma sombra triunfante
Fonte: Texto elaborado por alunos do 5ºA.

O uso da palavra triunfante causou-nos estranheza, não pelo fato de ser


utilizado pela aluna, mas pela sua explicação dada para resumir o que ela sentia ao
ver a imagem da sequência apresentada, ou seja, o gato preto na noite escura podia
andar poderosamente, não encontraria nenhum perigo durante a noite, pois se
confundia com a escuridão noturna, o que de certa forma dava-lhe o poder de triunfar
sobre os perigos que rondam a vida de um gato no telhado, tais como a percepção
dos cachorros nos quintais que poderiam fazer barulhos e de certa forma incomodar
os moradores, o uso da conjunção ―e‖ como marcador de um elemento surpresa que
aparecerá no terceiro verso, a troca do vocábulo gato, repetido no primeiro e
segundoversos, e substituído no terceiro pela palavra ―sombra‖. O trabalho de escolha
das palavras demonstra o processo de sensibilização que os alunos possuem ao
produzir os poemas.
Ainda em relação ao mesmo poema, temos a produção de outro grupo que
também nos chamou a atenção quanto à escolha das palavras.

Um gato branco no telhado de dia


Um gato cinza no telhado em uma noite enamorada
Sombra e lua solitária
Fonte: Texto elaborado por alunos do 5ºA.

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Enquanto um grupo percebe uma sombra triunfante, outros alunos perceberam


uma sombra solitária assim como a lua, além de uma noite convidativa para momentos
de namoro. Entretanto, a sombra e a lua são elementos solitários, um faz companhia
ao outro.
A produção de haicais possibilitou aos alunos explorarem alguns elementos
surpresas, o exemplo a seguir demonstra claramente a escolha da palavra ―enterro‖
para provocar o leitor.

Imagens do haicai hora da partida

Fonte: CRUZ, 2015.

Relógio inteiro
Ele já está na metade quase no fim
O ponteiro não ficou para o enterro
Fonte: Texto elaborado por alunos do 5ºA.

Além do uso da palavra enterro, a percepção do ponteiro do relógio como um


pássaro que vai embora (último quadro), criando assim uma relação entre o título do
poema e a sequência apresentada, ou seja, o ponteiro parte no momento que o relógio
já está deixando de existir.
Os alunos demonstraram enorme interesse e facilidade ao trabalhar com os
poemas. O poder de síntese e a escolha das palavras como elementos que provocam
o leitor evidencia que a presença do texto literário em sala de aula não deve ser visto
como algo difícil de ser explorado.

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Para o profissional que será o responsável em desenvolver o papel de


mediador entre o texto literário e o aluno, torna-se imprescindível que o professor seja
leitor de textos literários.

O indivíduo capaz de julgar as crenças mais íntimas e particulares é o


que está em melhores condições para ser professor de literatura. Ele
será capaz de não julgar apenas o gosto pelo texto literário que os
seus estudantes devem expressar, mas também será capaz de dizer
abertamente que a sensibilidade do leitor (quem quer que ele seja)
perante o texto é o mais relativo dos julgamentos. (CEIA, 2002, p. 11)

As atividades propostas aos alunos foram recebidas com entusiasmo, não


houve as reclamações comuns que encontramos diariamente no fazer pedagógico,
isto é, os educandos em nenhum momento alegaram que ler era chato, que o livro não
permitia a construção de significados. É importante salientar que trabalhar com os
textos literários em sala de aula requer tempo, muitas vezes temos que acrescentar
estratégias para que determinado tema possa ser expandido, buscar informações
extras, pesquisas, enfim, o texto literário requer disponibilidade por parte do educando
em lançar-se em novos desafios que, às vezes, nem o próprio professor conhece.

Considerações Finais

A presença dos livros de imagens voltados para alunos do ensino fundamental


ainda é visto com algumas restrições pelos professores, em especial, as obras
voltadas para o ensino fundamental II. O valor literário ainda está pautado na
presença do código escrito e o número de páginas que compõem a obra, situação que
precisa ser revertida através de um fazer pedagógico comprometido em desenvolver
as habilidades dos educandos e promover o letramento literário.
O desenvolvimento das atividades propostas aos alunos do quinto ano, do
ensino fundamental, permitiu-nos comprovar que a sensibilidade poética ainda está
presente nos leitores em formação, uma vez que os textos apresentados motivaram os
alunos a explorarem o seu vocabulário, além de despertar a sensibilidade para o texto
poético através da produção dos haicais.
A mediação pedagógica precisa estar voltada para o desenvolvimento pleno da
leitura e escrita, de forma a privilegiar o protagonismo dos alunos. Há que se trabalhar
no contexto educacional a articulação entre o cânone literário e as produções
consideradas modernas, objetivando ampliar o repertório cultural do leitor em
formação.

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A experiência comprovou que o texto literário com ou sem imagem ou palavra


produz o mesmo efeito de encantamento no leitor, e que para se despertar o interesse
é necessário que o professor seja também contagiado pela obra discutida, ou seja, é
primordial que o professor envolva-se com a leitura de forma a explorar todas as
possibilidades possíveis e adequadas à faixa etária do educando. O que não podemos
aceitar mais no ambiente escolar é uma organização curricular que deixa em segundo
plano o trabalho com o texto literário, situação que nega ao aluno a possibilidade de
conhecer e ampliar o seu repertório de conhecimentos, uma vez que, muitos
educandos só possuem contato e possibilidade de discussão dos fatores que
compõem uma obra literária no ambiente escolar.

Referências

CADEMARTORI, Ligia. O professor e a literatura: para pequenos, médios e grandes.


– 2 ed. – Belo Horizonte: Autentica Editora, 2012.
CEIA, Carlos. O que é ser professor de literatura. Lisboa: Colibri, 2002.
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. – 2. Ed. – São Paulo: Contexto,
2014.
CRUZ, Nelson. Haicais visuais. - Curitiba: Positivo, 2015. (Coleção História à vista!)
FARIA, Maria Alice. Como usar a literatura infantil na sala de aula. – 4. Ed. São Paulo:
Contexto, 2007.
RAMOS, Anna Claudia. Nos bastidores do imaginário: criação e literatura infantil e
juvenil. – São Paulo: DCL, 2006.
RAMOS, Flávia Brocchetto; PANOZZO, Neiva Senaide Petry. Entre a ilustração e a
palavra: buscando pontos de ancoragem. Disponível em:
https://pendientedemigracion.ucm.es/info/especulo/numero26/ima_infa.html. Acesso
em: 14 jan. 2016.
SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. Trad. Cláudia Schilling – 6. Ed. – Porto Alegre:
Artmed, 1998.
SORRENTI, Neusa. A poesia vai à escola: reflexões, comentários e dicas de
atividades. – 2. Ed. – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

DIALÉTICA EPISTEMOLÓGICA DA LITERATURA INFANTIL305

Roberto Belo, UFPE, Literatura infantil e ensino, CAPES

Nessa ordem de ideias, compreende-se porque a literatura destinada


às crianças e jovens surgiu e se desenvolveu sob a tutela da escola.
Por um lado, essa literatura sempre fora entendida como agente
mediador de valores, normas ou padrões de comportamento
exemplares, isto é, consagrados pela sociedade para perpetuar,
através das novas gerações, o sistema em que ela se organizara. Por
outro lado, a sociedade tradicional, consolidada no Romantismo,
valorizava a cultura, o saber, a leitura... como índices da erudição que
deveria identificar o ―homem culto‖. Nesse sentido, nada mais natural
que, em seus primórdios, dentro da sociedade liberal-cristã-burguesa,
a literatura infantil tenha sido identificada com a prática escolar,
tornando-se o importante agente de formação ética e ideológica dos
futuros cidadãos. Portanto, no Brasil de entresséculos, literatura e
pedagogia desenvolveram-se essencialmente unidas e foram,
inclusive, instrumentos eficazes para a formação de uma consciência
nacional que, como não podia deixar de ser naquele momento de
precário amadurecimento, tinha ainda, como modelo a ser alcançado,
os valores mais prestigiados pela mentalidade europeia da época.
(Nelly Novaes Coelho, 2006, p. 17)

Considerações Iniciais

A literatura liberta. E, por libertar, transforma. É nisso também que se difere o


literário dos demais textos. Trata-se da arte em sua ―essência‖ – se é que existe
essência em alguma coisa. Não importa a condição na qual o sujeito se encontre:
criança, jovem ou adulto, pobre ou rico; nada disso importa diante da arte. O mais
importante é a vida. E onde houver fôlego também haverá literatura. Por isso é um
tanto arbitrário classificar a obra literária em literatura infantil, por exemplo, quando se
está falando de algo superior, muito maior. Sabendo o que pregara Aristóteles (1994)

305
Este texto baseia-se no meu Trabalho de Conclusão de Curso em Letras na UFPE,
Diferenças religiosas na Literatura Infantil Brasileira: culturas e identidades na formação
leitora, sob orientação da Profa. Dra. Ermelinda Maria Araújo Ferreira, defendido no primeiro
semestre de 2015. Essa pesquisa teve continuidade no meu Mestrado em Educação sob
financiamento da CAPES, com o título Diversidade Religiosa na Literatura Infantojuvenil
Brasileira, sob orientação do Prof. Dr. Gustavo Gilson Oliveira (PPGE/UFPE).
1486

em sua Poética, e tantos outros mestres, acreditamos e defendemos que a literatura


infantil/juvenil é Literatura, é Arte.
O que nos preocupa não é a denominação em si, mas o discurso depreciativo
que ainda se sustenta em torno do termo literatura infantil. Assim, recorremos ao que
defende a professora Nelly Novaes Coelho (2000, p. 27): ―A literatura infantil é, antes
de tudo, literatura; ou melhor, é arte: fenômeno de criatividade que representa o
mundo, o homem, a vida, através da palavra. Funde os sonhos e a vida prática‖.
Há muita polêmica e discussão sobre esse assunto, conforme aponta Peter
Hunt (1994, 1999, 2010), um dos mais respeitados e importantes críticos de literatura
infantil do mundo. Teoricamente adotamos e sugerimos as seguintes obras que foram
mais utilizadas por nós, Literatura Infantil Brasileira, de Leonardo Arroyo (1968),
Literatura Infantil: Teoria, Análise, Didática, de Nelly Novaes Coelho (2000) e A
Literatura Infantil na Escola, de Regina Zilberman (2003). Acreditamos que, na área de
literatura infantil brasileira, esses trabalhos são os mais completos até então, por isso
nosso respeito aos autores pelas pesquisas desenvolvidas.

Fundamento das narrativas infantis: o difícil desabrochar do gênero


Até recentemente na Europa, por volta dos anos 1980, ainda houve muitas
opiniões diferentes e divergentes acerca da literatura infantil/juvenil (doravante LIJ)
versus a literatura destinada aos adultos, como se esta fosse a ―verdadeira literatura‖,
conforme nos mostra Teresa Colomer (2003). Sabemos todos que até a década de
oitenta, aproximadamente, quase ninguém estudava sobre livros para crianças e
jovens, o tema era silenciado nos centros acadêmicos, não existia uma crítica literária
especializada, dedicada à análise da produção dos livros de LIJ. E isso em todo o
mundo. Embora tivéssemos alguns trabalhos sendo desenvolvidos com bastante
seriedade desde a década de 1950. Aqui no Brasil306, por exemplo, temos, ainda que
timidamente, o Compêndio de literatura infantil (1959), de Bárbara Vasconcelos de
Carvalho, que é considerado como o primeiro trabalho do gênero, seguido de algumas
outras obras, como Literatura infanto-juvenil (1958),de Antônio d´Ávila, e Literatura
infantil (1959), de Nazira Salém. Nessa época a então professora Cecília Meireles,
futura escritora consagrada, produz o Problemas da Literatura Infantil (1951), que até
os dias atuais é reeditado com louvor.

306
Ana Margarida Ramos & Eliane Debus (2015) têm um trabalho bastante interessante sobre
os estudos em literatura infantil e juvenil no Brasil e em Portugal no período de 1960/1970,
1980/1990 e 2000/2010. Quanto à produção literária propriamente dita, há um artigo de minha
autoria no qual apresento boa parte da produção literária em fins do século XIX e início do XX,
consultar Roberto Belo (2014a).
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Batalhas ideológicas acirradas foram travadas com ideias de autores como


Benedetto Croce (1866-1952), que defendia que ―a arte pura [...] requer, para ser
saboreada, maturidade da mente, exercício de atenção e experiência psicológica‖
(1974, p. 67 apud COLOMER, 2003, p. 43); para Croce, a legítima obra de arte jamais
se revelaria a um público tão imaturo, do contrário, diz ele ―se as crianças podem
desfrutar de uma obra de arte pura, esta não terá sido criada para elas, mas para todo
o mundo, e por isso não pertencerá à literatura ‗para criança‘‖ (idem). Não só esse,
mas outros pensadores, senhores do seu tempo, abominaram veementemente a
criação de uma literatura para/da criança e jovem, como se apenas os adultos
pudessem ter sentimentos e compreender a vida. Nesse sentido, poderíamos levantar
vários questionamentos sobre o que venha a ser de fato um texto literário – se é que
se pode definir e/ou classificar uma obra de arte, entre outras questões
paradigmáticas, mas, por enquanto apontamos que a cultura, assim como a política e
a economia, por exemplo, pode estar a serviço de grupos seletos que se apropriam
dessas ferramentas para manter-se no poder, para manter seus mais diversos
interesses no centro das atenções (MICHEL FOUCAULT, 1996, 1979). Não permitindo
a abertura de outros olhares sobre o mesmo objeto. É justamente sobre isso que Hunt
(2010, p.43-71) direciona boa parte dos seus questionamentos.

A teoria e a crítica possuem outros pontos de contato com os livros


para criança. Elas têm se preocupado, por exemplo, com a política e
o poder, a reação do leitor, a desconstrução, as estruturas e os mitos.
[...] A consequência é que não podemos falar de um ―melhor‖
abstrato, apenas de diferenças. Em outras palavras, o status de um
texto, o que lhe confere ―qualidade‖, não é mais visto como algo
intrínseco, mas simplesmente – ou complexamente – como uma
questão de poder de grupo: um texto é um texto e o modo como o
percebemos é uma questão de contexto. Ao lidar com literatura
infantil, a questão do poder de grupo é inevitável. (HUNT, 2010, p. 33,
35)

A LIJ, assim como aquela destinada aos adultos, preocupa-se sobretudo com o
segredo da vida e do universo, sendo esse um dos seus objetos de estudo que nos
mobiliza a pensarmos criticamente sobre nossa existência na sociedade e no mundo.
Infelizmente, hoje, alguns ainda generalizam que toda obra literária destinada às
crianças é puramente didática, e nisso há um grave erro. Por falta de uma melhor
conceituação, ficamos com as colocações de Marc Soariano (1975 apud COELHO,
2000, p. 30), professor de filosofia e especialista premiado na área, que define a
literatura infantil da seguinte forma:

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a literatura infantil é uma comunicação histórica (localizada no tempo


e no espaço) entre um locutor ou um escritor-adulto (emissor) e um
destinatário-criança (receptor) que, por definição, ao longo do período
considerado, não dispõe senão de modo parcial da experiência do
real e das estruturas linguísticas, intelectuais, afetivas e outras que
caracterizam a idade adulta [...]
Ela pode não querer ensinar, mas se dirige, apesar de tudo, a uma
idade que é a da aprendizagem e mais especialmente da
aprendizagem linguística. O livro em questão, por mais simplificado e
gratuito que seja, aparece sempre ao jovem leitor como uma
mensagem codificada que ele deve decodificar se quiser atingir o
prazer (afetivo, estético ou outro) que se deixa entrever e assimilar ao
mesmo tempo as informações concernentes ao real que estão
contidas na obra. [...] Se a infância é um período de aprendizagem,
[...] toda mensagem que se destina a ela, ao longo desse período,
tem necessariamente uma vocação pedagógica. (COELHO, 2000, p.
30)

Desde seu aparecimento no século XVIII, decorrente de mudanças marcantes


na sociedade, a literatura infantil, fruto da ―ascensão da família burguesa, do novo
status concedido à infância na sociedade e da reorganização da escola‖ (ZILBERMAN,
2003, p. 33), vem resistindo a críticas conservadoras e se firmando enquanto arte.
Meireles (2016, p. 14) é categórica quando diz que não existe uma literatura geral e
outra infantil, ―tudo é uma Literatura só. A dificuldade está em delimitar o que se
considera como especialmente do âmbito infantil. São as crianças, na verdade, que o
delimitam, com a sua preferência‖. Como se vê, a autora propõe que a criança decida
por ela mesma o que lê e o que não lê, e, nesse caso, não ―não haveria, pois, uma
Literatura Infantil a priori, mas a posteriori‖. Acrescenta Maria Antonieta Cunha que

O que parece importante é definir pontos de contato e de afastamento


entre a literatura para crianças e para adultos. Se o afastamento se
der na essência do fenômeno literário, então não haverá literatura
infantil. Nesse caso, a própria expressão ―literatura infantil‖ torna-se
absurda, pois não podemos imaginar literatura sem arte.
No entanto, é comum a ideia de que literatura infantil é subliteratura,
um gênero menor. Esse mesmo preconceito parece-nos implícito na
fala dos autores que dizem não escrever para crianças. Tais
escritores, muitos deles excelentes, dão a impressão de se sentirem
menos importantes do que os que fazem literatura para adultos
(CUNHA, 1985, p. 22)

Esquecem-se alguns que os clássicos considerados hoje infantis, como as


obras de La Fontaine (1621 – 1695), Charles Perrault (1628 – 1703), Irmãos Grimm
[Jacob (1785 – 1863) e Wilhelm (1786 – 1859)], Hans Christian Andersen (1805 –
1875), Lewis Carroll (1832 – 1898), etc., foram primeiramente direcionados aos
adultos, sobrecarregados de sexo, violência, fome, guerra, etc., inclusive através da
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literatura popular, sendo histórias que se originaram da oralidade e que se constituíam


mitos ou lendas que eram transmitidos ao povo para conhecimento de algum fato, ou
mesmo divertimento. Devido às suas características peculiares: histórias
essencialmente emotivas, intuitivas, mágicas, etc., conquistaram o público infantil
definitivamente. Nisso, tem-se que

a natureza da literatura infantil, o seu peso específico, é sempre o


mesmo e invariável. Mudam as formas, o revestimento, o veículo de
comunicação que é a linguagem. A fábula de Esopo é imutável desde
seu nascimento e desde que consagrada pelo único critério válido em
literatura infantil – o gosto do leitor infantil – permanecerá
despertando interesse até o fim do mundo. Esta realidade específica
não pode ser confundida com exercícios intelectuais ou pedagógicos
estritos, fórmulas de moral ou de pureza gramatical, variáveis em
suas vinculações históricas. Deixa-se bem claro o valor fundamental
do gosto infantil como único critério de aferição da literatura infantil
(ARROYO, 1968: p. 25).

Quando se vai escrever um texto, ninguém diz ―vou escrever um texto adulto‖,
até porque isso teria outra conotação, pelo menos em português brasileiro; por que,
então, se diz ―vou escrever um texto infantil‖? Evidentemente que ao se produzir algo
para um determinado público devem-se levar em consideração aspectos cognitivos e
particularidades do destinatário/interlocutor, mas, o caso aqui é outro; primeiro, pela
trajetória histórica da infância na sociedade; segundo, pelo lugar ocupado pela criança
no seio familiar.
Ana Maria Machado (1996, p. 65), autora consagrada pelos leitores e pela
crítica, diz na sua autobiografia, Esta força estranha: Trajetória de uma autora, o
seguinte:

Quando escrevo, salvo uma ou outra exceção, não me preocupo com


a faixa etária do leitor. Já me aconteceu muitas vezes de pensar que
estou escrevendo para adultos, e no fim o editor concluir que é para
crianças. Ou de achar que fiz uma história infantil e acabar
constatando que é um capítulo de um romance [...] o impulso para
escrever é o mesmo, não depende de idade, não tenho preferências.
Às vezes parece que, ao longo da vida, escrevi mais para crianças,
porque são muito mais títulos nessa vertente. Mas sei que não é
verdade. Os chamados livros infantis para mim são apenas livros
também para crianças que, ao serem lidos por adultos, têm outros
sentidos que o pequeno leitor não pode ainda perceber. (MACHADO,
1996, p. 65)

Incomoda-nos saber que a literatura denominada infantojuvenil tem servido


muitas vezes de meio para a inculcação de vontades alheias; ideologias dominantes
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que não refletem a realidade das nossas crianças e dos nossos jovens; histórias
medíocres do ponto de vista estético, sem conteúdo inteligente, sem desafios, sem
provocações, sem significados; histórias que em nada acrescentam à vida do leitor –
se é que lemos para apreender alguma coisa útil.
Bernard Charlot, pesquisador francês radicado no Brasil, é contundente quando
diz que ―se a imagem da criança é contraditória, é precisamente porque o adulto e a
sociedade nela projetam, ao mesmo tempo, suas aspirações e repulsas. A imagem da
criança é, assim, o reflexo do que o adulto e a sociedade pensam de si mesmos‖
(1979, p. 108). Ou seja, Charlot entende que o público infantil é conduzido a
identificar-se com a imagem projetada pelo adulto a ser seguido, e acrescenta ―A
criança é, assim, o reflexo do que o adulto e a sociedade querem que ela seja e
temem que ela se torne, isto é, do que o adulto e a sociedade querem, eles próprios,
ser e temem tornar-se‖ (ibid., p.109).
Nesse sentido, concordamos novamente com Hunt (2010), na sua Crítica,
Teoria e Literatura Infantil, que vai de encontro a essa literatura inferior, simplista e
que tem se sustentado disfarçadamente num discurso politicamente correto.
Acreditamos que a literatura deve aguçar as expectativas do leitor crítico, aquele que,
além de questionar o mundo a sua volta, se autoquestiona, procurando emancipar-se
enquanto pessoa. As crianças, assim como todo e qualquer leitor, devem estar e se
sentir livres para pensar por si mesmas.

O leitor infantil e o contexto da obra literária


De uma coisa estamos certos: a infância existe e é um tanto complexa. Por
incrível que pareça, em pleno século XXI, há pessoas que desconhecem as
potencialidades das crianças e dos jovens, acreditando que são criaturas carentes e
indefesas cognitivamente, incapazes de compreender as situações vividas, como se
pensava antigamente307.
A criança há muito deixou de ser objeto; ela é sujeito que pensa, decide e age
conforme suas limitações, como qualquer ser humano. Querem, entretanto,
subestimar a inteligência do público infantojuvenil, oferecendo péssimos livros a que
chamam de literários; livros sem nenhum ou quase nenhum valor estético – sobretudo

307
Para um estudo detalhado sobre o percurso pelo qual passou a criança na sociedade,
consultar por exemplo a obra História social da criança e da família, de Philippe Ariès
(2012), que traz dados históricos de maneira cronológica através de um rico levantamento
historiográfico das mudanças de comportamento e de modos de pensar, dentro e entre as
famílias; além dessa obra, é interessante analisar outros autores, como Esteban Levin
(1997), Lloyd De Mause (1991), Mariano Narodowski (1993), entre outros.
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do ponto de vista linguístico: referimo-nos ao trabalho artístico do autor com a


língua(gem), como estes disponíveis no mercado denominados de paradidáticos, que
são produzidos em grande escala apenas para alimentar o mercado livresco das
escolas de educação básica. Materiais esses que não podem ser confundidos com a
―verdadeira‖ produção literária, quer dizer, com o trabalho honesto dos autores com a
obra de arte, porque são livros puramente instrutivos.
O texto literário infantil, para Sonia Salomão Khéde (1986, p. 9), tem
características próprias devido à complexidade histórica responsável pelas inúmeras
nuanças ideológicas que entrecortam as obras, necessitando de mais reflexão por
parte dos estudiosos justamente pelas lacunas a serem preenchidas. A pesquisadora
critica que, por ter surgido sob os cuidados da sociedade burguesa, se vê na criança
uma das formas de consolidação da norma familiar; ―em consequência, seu discurso
[do adulto burguês na LIJ] se reveste de um autoritarismo presente sob a forma
pedagógica, lúdica e moralista. Mesmo nas produções contemporâneas a relação de
autoridade se faz presente‖, acrescenta.
Segundo Zilberman (2003, p. 15), não havia nenhum respeito ou consideração
especial para com a infância antes da constituição do modelo burguês de família ser
constituído. A diferença de faixa etária não era percebida nem o mundo da criança era
reservado; ―pequenos e grandes compartilhavam dos mesmos eventos, porém
nenhum laço amoroso especial os aproximava‖.
Atualmente, a infância é assunto prioritário das diversas instituições,
constituindo-se tema de muitas discussões na sociedade

Hoje, observa-se que a infância é concentrada dentro de uma


promoção da valorização de crianças e adolescentes, que passaram
de objetos a sujeitos de direito, com o direito a terem as suas
necessidades físicas, cognitivas, psicológicas, emocionais e sociais
em um atendimento integral e integrado, com absoluta prioridade,
visto que se encontram em fase de desenvolvimento biopsicossocial.
(ELISA SCHULTZ & SOLANGE BARROS, 2011, p. 138)

Faz-se então necessário entender que a problemática disso tudo, quando se


fala em LIJ, está no fato de a literatura para crianças e jovens ser historicamente
ligada à pedagogia e ao mesmo tempo se constituir enquanto obra de arte. Sobre essa
relação, Zilberman (2003, p. 26) põe um ponto final, esclarecendo perfeitamente o
seguinte:

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a literatura infantil atinge o estatuto de arte literária e se distancia de


sua origem comprometida com a pedagogia, quando apresenta textos
de valor artístico a seus pequenos leitores; e não é porque estes
ainda não alcançaram o status de adultos que merecem uma
produção literária menor.
Assim, os critérios que permitem o discernimento entre o bom e o
mau texto para crianças não destoam daqueles que distinguem a
qualidade de qualquer outra modalidade de criação literária. Seu
aspecto inovador merece destaque, na medida em que é o ponto de
partida para a revelação de uma visão original da realidade, atraindo
seu beneficiário para o mundo com o qual convivia diariamente, mas
que desconhecia. (ZILBERMAN, 2003, p. 26)

Para os desavisados, essa celeuma não se restringe à literatura infantil, desde


a Antiguidade Clássica, diz Coelho (2000, p. 46), já se tinha discussões em torno da
natureza da própria Literatura, havendo controvérsia se esta era didática ou lúdica, por
isso não é de se estranhar que ―na mesma linha, se põe em questão a finalidade da
literatura destinada aos pequenos. Instruir ou divertir? Eis o problema que está longe
de ser resolvido‖.
Boa literatura é aquela que diverte e ao mesmo tempo ensina, porque nada
está alí (no texto) por acaso; ―as teorias políticas não devem ser censuradas por
serem políticas, mas sim por serem, em seu conjunto, disfarçada ou
inconscientemente políticas‖ (TERRY EAGLETON, 1997, p. 268); literatura é mistério,
jogo que tem a linguagem como ferramenta, arma, sendo delegado ao leitor a
responsabilidade de desvendar os segredos. Por outro lado, seria ingenuidade da
nossa parte pensar que a obra de arte é despida de ideologia, filosofia, etc.; agora,
como o leitor recepcionará essa obra é outro ponto a ser discutido, e, no caso da
literatura, temos alguns estudos nesse sentido, como a Estética da Recepção
defendida pelos professores Hans Robert Jauss (1921-1997) e Wolfgang Iser (1926-
2007), que veem o leitor como parte da criação, alguém que intervém diretamente; ou
seja, a relação autor-obra-leitor se complementam mutuamente. E isso é um ponto
nodal para se entender qualquer obra de arte, sobretudo nesta contemporaneidade
efervescente e conflituosa que estamos vivendo.
Aqui, defendemos a criança como um ser em formação, por isso educável, com
características próprias; um ser autônomo e inteligente; um sujeito político, ativo e
lúdico. A literatura, como um fenômeno de linguagem resultante de uma experiência
existencial/social/cultural e a leitura como um diálogo entre leitor e texto, conforme
defende também Coelho (2000, p. 17).

A leitura literária constitui uma busca real além daquela apresentada


no texto e no ambiente da leitura. Por isso, é nesse tipo de leitura que
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se procura o significado interno, o reconhecimento do simbólico nos


acontecimentos cotidianos. E, além de compreender a realidade
através desses textos, é possível recriar uma outra que talvez não
exista concretamente, mas que está latente através da imaginação. É
olhar com outros olhos como diria algum poeta. (BELO, 2014b)

O fato é que, apesar do descompromisso literário por parte de alguns autores


em relação à produção de suas obras, de uns tempos para cá, a produção editorial de
livros infantil e juvenil brasileira, especificamente, tem melhorado bastante; obras de
valor inestimável vêm sendo publicadas a cada ano por autores e ilustradores
comprometidos com o livro, a leitura e a literatura; comprometidos com a criticidade do
leitor, porque entendem que antes de sermos leitores de palavras, somos todos
leitores do mundo, visto que desde o nascimento interagimos com os elos culturais
que nos ligam a um dado tecido social, conforme atesta os estudos psicanalíticos:

de acordo com a Psicanálise, a subjetividade passa a existir com a


identificação do bebê com a mãe e com as possíveis identificações
que ele vai fazer com outros adultos, quando ele começa a se
perceber uno, sem a mãe. A psique nasce, no ser humano, num
momento de fragilidade e de desamparo do bebê, quando ele vai se
percebendo só, separado da mãe. A partir daí, surge a necessidade
de se estabelecer uma comunicação com o mundo e consigo mesmo,
que começa a ser feita por meio de alguma coisa, que pode ser um
objeto, um brinquedo, seja ele um trapo, um pedaço de pano, um
travesseiro, um urso de pelúcia, uma boneca, um livro... (NINFA
PARREIRAS, 2006, p. 19)

Considerações finais

Conhecer o público a que se destina a literatura infantil é de fundamental


importância para se entender o texto enquanto obra de arte. Estudos importantes têm
contribuído para o aperfeiçoamento da LIJ: sobre as fases de desenvolvimento e
experiências do leitor criança, por exemplo, tem se encarregado a Psicologia
Experimental e a Psicanálise; autores como o francês Paul Faucher (1898-1967),
defensor da Escola Nova, dedicaram-se a criar livros que impulsionavam esse público
a pensar de forma lúdica, sendo os Albums du Père Castor (editados desde a década
de 1930) exemplo desse tipo de trabalho.
Outro ponto que não se pode ignorar, entretanto, trata-se da apropriação da
literatura infantil pelas demais áreas da ciência, as quais exploram outros aspectos do
texto, valorizando a existência de outros elementos diferentes do entretenimento, do
artístico; o perigo está justamente na ênfase nesses outros elementos e não no
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literário, deixando essas análises, que não são literárias, serem tomadas como
análises literárias, uma vez a ausência de estudos aprofundados em Letras
(Linguística e Literatura) para o gênero, como alerta Arroyo e Coelho:

Devemos insistir em que a literatura infantil no Brasil não encontrou


seus críticos e seus historiadores, mercê, sem dúvida, de um
preconceito que não se proclama, mas se cultiva: o de que ela é um
gênero menor, e assim considerada não mereceu, nem merece,
melhor atenção. Devemos reconhecer a existência de alguns
esforços isolados no sentido de delinear os quadros históricos da
literatura infantil brasileira, mas dois ou três desses esforços,
infelizmente, são lamentáveis pela ausência de pesquisas de
profundidade e somente tiveram em mira usufruir a procura de texto
para certas áreas do nosso ensino. (ARROYO, 1968, p. 210)
Nesse sentido, ao ser ligada, de maneira radical, a problemas sociais,
étnicos, econômicos e políticos de tal gravidade, a literatura infantil e
juvenil perde suas características de literariedade para ser tratada
como simples meio de transmitir valores. Ou é lida exclusivamente
em função de seus estereótipos sociais. Daí a urgência que vemos na
conscientização e organização de uma crítica literária para a literatura
infantil brasileira. (COELHO, 2000, p.58)

Assim, encerramos essa nossa pequena conversa com as sábias palavras de


Regina Zilberman quando seriamente problematiza o seguinte

Se a literatura infantil revive os mesmos problemas de produção que


envolvem toda criação poética, encará-la como uma área menor da
teoria e da prática artística significa ignorar seus reais problemas em
favor de um propósito elitista, que tem como meta garantir a primazia
da condição adulta. E significa ignorar também os reais problemas da
própria teoria literária, na medida em que a literatura infantil oferece
um campo de trabalho igualmente válido, ao reproduzir, nas obras
transmitidas às crianças, as particularidades da criação artística, que
visa à interpretação da existência que conduza o ser humano a uma
compreensão mais ampla e eficaz de seu universo, qualquer que seja
sua idade ou situação intelectual, emotiva e social. Assim, é somente
quando a meta se torna o exercício com a palavra, que o texto para a
infância atinge seu sentido autêntico [...]. (ZILBERMAN, 2003, p. 69)

Referências

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ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Sousa. 4ª ed. Lisboa: Imprensa Nacional,
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Revista Digital, UFPE, Ano III, n. 06, jul./dez. de 2014a.

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COLOMER, Teresa. A formação do leitor literário. São Paulo: Global, 2003.
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FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996.
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KHÉDE, Sonia Salomão. As polêmicas sobre o gênero. In: KHÉDE, S. S. (Org.).
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em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, do Departamento de
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SCHULTZ, Elisa Stroberg; BARROS, Solange de Moraes. A concepção de infância ao
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RAMOS, Ana M. & DEBUS, Eliane. Os estudos sobre literatura infantil e juvenil no
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SOARIANO, Marc. Guide de litterature pour La jeunesse. Paris: Flamarion, 1975.
ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. São Paulo: Global, 2003.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

DOCE DE FORMIGA: UM BANQUETE POÉTICO PARA O


PÚBLICO INFANTIL

Sinara Dal Magro, UNEMAT – Universidade do Estado de Mato Grosso, Eixo 8


– Literatura infantil e ensino
Rosana Rodrigues da Silva, UNEMAT – Universidade do Estado de Mato
Grosso, Eixo 8 – Literatura infantil e ensino

Considerações Iniciais

O presente trabalho visa analisar o imaginário simbólico nos poemas infantis da


obra Doce de Formiga, da escritora mato-grossense Marta Cocco. Partindo de um
percurso histórico em que a literatura infantil e juvenil foi, por muito tempo, vista como
ferramenta pedagógica, é de fundamental importância que mais estudos se voltem a
essa literatura com a proposta de desmistificar e contrapor a ideia de sua
―simplicidade‖, a fim de combater diversos equívocos, como os apontados pelo teórico
Peter Hunt (2010). O autor questiona as críticas que veiculam que a linguagem textual
voltada ao público infantil deve ser ―simples‖, composta por ―textos triviais‖ e voltados
a uma ―cultura menor‖.
As análises críticas da literatura infantil mato-grossense não se distanciam do
contexto nacional, trazendo à tona um trajeto que teve como início o excesso à
exaltação de paisagens locais e ausência de estética textual, como nos mostra Renata
Beatriz Brandespin Rolon, em sua tese de doutorado (2014). A autora faz um
apanhado das obras destinadas a este público em um período de aproximadamente
trinta anos, iniciando com a primeira obra voltada ao público infantil 308 até obras
contemporâneas de autores e poetas reconhecidos nacionalmente como Lucinda
Persona, Aclyse de Matos e Ivens Scaff.

308
Uma aventura em Mato Grosso (1984) da autora Maria Benedita Deschamps Rodrigues.
1497

Estudos como o citado acima, incentivam-nos a mostrar os grandes nomes e


trabalhos literários que fomentam a cultura do estado, seja por meio de narrativas ou
de poesias, como o faz Cocco. Para tanto, aproximamo-nos dos teóricos que
defendem a literatura infantil e acreditam, assim como Glória Maria Fialho Pondé, que
a poesia é um dos meios mais eficazes para a valorização do mundo da criança, uma
vez que pode ser vista pelo pequeno leitor como uma forma de libertar-se dos
processos de leitura (alfabetização convencional) e da razão, impostos pelo mundo
adulto. Uma vez que, a palavra deixa de ser signo e passar a ser símbolo, a evocar o
objeto em um processo de presentificação que é bastante comum para elas, pois, ―[...]
seu tempo é um presente contínuo e indefinido – por isso, o ato de reviver da poesia
lhes é muito familiar.‖. (PONDÉ, 1986. p. 128).
Para análise do imaginário simbólico presente nos poemas da obra,
abordamos a estrutura do universo simbólico dos homens, a partir de seu
posicionamento diante da angústia sobre o tempo e a morte, conforme metodologia
proposta por Gilbert Durand (2002), acreditando que a poetisa traz aos poemas uma
representação do inconsciente individual e coletivo.

Marta Cocco: versatilidade entre a técnica e a inspiração


Marta Helena Cocco nasceu no Rio Grande do Sul e reside em Mato Grosso
desde 1991, quando se mudou da cidade de Pinhal para Cuiabá. Graduada em Letras
e em Zootecnia (1983-1992), ambas cursadas em Santa Maria, Rio Grande do Sul,
mestre pelo Programa de Mestrado em Estudos de Linguagens da Universidade
Federal de Mato Grosso (2006) e doutora em Letras e Linguística pela Universidade
Federal de Goiás/UF (2013). Já atuou como professora de Língua Portuguesa e
Literatura em escolas particulares e universidades de Cuiabá e em 2003 passou a
compor o quadro de docentes efetivos da Universidade do Estado de Mato
Grosso/UNEMAT. A poetisa assumiu, em 2014, a 18ª cadeira da Academia Mato-
Grossense de Letras.
A autora tem significativa publicação. Suas obras perpassam por criações
poéticas, narrativas e crítica literária. Em ordem cronológica podemos citar: Divisas
(1991), Partido (1997), Meios (2001), O arquétipo do velho sábio e a simbologia da
concha,emA Cidade sem Sol, de Lucinda Persona (2001),O Ensino da Literatura
Produzida em Mato Grosso: Regionalismo e Identidades (2006),Sete Dias (2007),
Sábado ou cantos para um dia só (2011), Antologia Poética Comentada (2011),
Tópicos de Literatura & Contexto (2011), Nossas Vozes, Nosso Chão (2014),
Mitocrítica e Poesia: Regimes, Imagens e Mitos na Poética de Lucinda Persona
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(2016) e, Não presta pra nada (2016). No campo da literatura infantil, a autora
publicou até o momento três livros: Lé e o elefante de lata(2013), narrativa que conta
a aventura de um sapo na cidade grande, Doce de Formiga (2014), que é o corpus de
análise deste trabalho e, Sabichões (2016), obra composta por 14 haicais sobre as
habilidades de diferentes animais.
Em seu blog309, que mantém desde abril de 2010, Cocco publica poemas de
sua autoria, sempre buscando interagir via comentários com seus leitores. Ao se
apresentar no espaço virtual, assume-se como: ―Professora de literatura, às vezes
escrevo e publico poesia, gosto de música e de olhar para o céu à noite (se estiver
chovendo, curto o som e o cheiro da chuva, mas morro de medo de raio). Os assuntos
humanos e a palavra me inquietam‖. (COCCO, 2010).
Na voz de terceiros, a poeta é exaltada por compor uma nova estética, como
no discurso de recepção da academia mato-grossense de Letras, proferido por
Eduardo Mahon, que cita as obras infantis e afirma que:

(...) quem escreve para crianças leva vantagem: toca o coração, cria
sonhos, entrega capa e espada a pequenos heróis, arquiteta paixões
improváveis entre nobres e plebeus, diálogos impossíveis entre
formigas gulosas, batalhas etéreas entre sapos e elefantes de lata.
Enfim, no fértil imaginário de autores infantis, ‗reinações‘ são
inventadas e se tornam mais reais do que a realidade. Quem fica na
memória do jovem, esse sim, vira imortal. Tudo passa – o viço da
pele, a agudeza mental, a potência da carne – mas não a emoção: o
humanismo sempre sobreviverá na humanidade. (MAHON, 2014).

Entre os trabalhos voltados às publicações da autora temos um estudo que


identifica um diálogo da poetisa com o poeta modernista brasileiro, Carlos Drummond
de Andrade. As pesquisadoras, Lindalva Ferreira de Aguiar e Rosana Rodrigues da
Silva, defendem que ―O fazer poético de Marta Helena Cocco é um misto de técnica e
inspiração. A palavra, enquanto essência é tema recorrente de várias de suas
poesias‖. (AGUIAR; SILVA, 2012, p. 83).
Conhecer um pouco da nossa poeta mato-grossense impulsiona-nos, ainda
mais, a buscar a compreensão de seu fazer poético e incentivar novas pesquisas.

O banquete poético e seus símbolos

Partindo do conceito de inconsciente coletivo de Carl Gustav Jung, Durand


define o imaginário como ―o conjunto das imagens e relações de imagens que constitui
o capital pensado do homo sapiens‖ (DURAND, 2002, p. 31), quanto ao símbolo,

309
http://martahelenacocco.blogspot.com.br/
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―pode-se dizer que o símbolo não é do domínio da semiologia, mas daquele de uma
semântica especial, o que quer dizer que possui algo mais que um sentido
artificialmente dado e detém um essencial e espontâneo poder de repercussão.‖ (Ibid,.
p. 32). Identificadas as imagens poéticas e associando-as aos gestos, esquemas e
símbolos, temos sua expressão por meio do regimes Diurno e Noturno, apresentados
por Durand. Ao primeiro deles relaciona-se o enfrentamento das angústias humanas
(morte e passagem do tempo), enquanto que o Noturno caracteriza-se pela
eufemização em imagens de proteção como os símbolos da morada, da taça e do
ventre.
Quanto ao imaginário, encontramos em Jean-Jacques Wunemburger, filósofo e
seguidor de Durand, uma divisão em três grandes funções/orientações:
objetivo estético-lúdico, objetivo cognitivo e objetivo instituinte prático. Com o primeiro
deles, a criança descobre a relação consigo mesma e com o mundo por intermédio de
jogos: ―[...] O imaginário lúdico assume assim um papel transicional, assegura uma
espécie de válvula de segurança, de amortecedor entre mundo interior e mundo
exterior‖. (2007, p. 54-55).
No objetivo cognitivo ―o imaginário torna disponível técnicas de pensamento
simbólico e analógico (mito, símbolo, metáfora, desenho) que interferem em graus
diversos nos processos cognitivos‖. (2007, p. 61).
Desta forma, percebemos nas imagens poéticas um dos suportes linguísticos para o
imaginário, como uma fonte de riqueza a ser trabalhada na formação de leitores.
A obra, Doce de Formiga, publicada em Cuiabá pela editora Carlini & Caniato,
em 2014, apresenta ilustrações do cuiabano Marcelo Velasco 310. O livro, segundo a
autora, ganhou esse título por ser homônimo ao primeiro poema infantil escrito por ela.
A ilustração da capa remete ao título, com a personagem formiga segurando um
brigadeiro, predominam as cores marrom e verde, ambos simbolizando o mundo
animal e vegetal que é tão presente no imaginário dos contos de fadas infantis e já
levando os pequenos leitores a se preparem para adentrar em um mundo onde a
fantasia e a imaginação se sobrepõem à racionalidade do mundo adulto, tão arbitrário
e doutrinador da criatividade infantil. Ainda na capa, observa-se um sentimento de
empatia entre a criança e a personagem formiga, que é pequena, agitada, e na
ilustração está atraída por um brigadeiro, doce tipicamente infantil.
O livro tem ao todo 15 poemas, a maioria disposto em uma página e a
ilustração que o complementa disposta em página diferente, e, por vezes, em torno

310
Marcelo Velasco é ilustrador de livros infantis, formado em Educação Artística, mestre em Estudos de Linguagem e
artista visual e professor de Arte do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Mato Grosso.
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das palavras escritas. Sobre a relevância da ilustração, Luís Camargo defende a


sedução que essa exerce no leitor, seja ele adulto ou infantil. O autor/ilustrador explica
ainda as possibilidades do que podem exercer em um texto:

Muito mais do que apenas ornar ou elucidar o texto, a ilustração


pode, assim, representar, descrever, narrar, simbolizar, expressar,
brincar, persuadir, normatizar, pontuar, além de enfatizar sua própria
configuração, chamar atenção para o seu suporte ou para a
linguagem visual. (CAMARGO, 1995, p.1).

Pensando nas funções da imagem e coerência intersemiótica que ocorre entre


imagem e texto, em termos explicados por Camargo, observamos em Doce de
formiga o domínio das funções representativa, simbólica, estética e lúdica, que juntas
reforçam um diálogo com o leitor, exigindo uma interação capaz de atribuir valor e
significado às diferentes linguagens que dialogam. Observemos o poema Vaidosas:

Repare
que
algumas
árvores
no pantanal
exageram nos
penduricalhos.
Chegam de usar
até vinte e cinco
brincos-ninhos de
Japuíra nos
galhos. (COCCO, 2014).

Percebemos no poema a coerência intersemiótica estabelecida na relação


entre texto e imagem, ao compreendermos que a disposição dos versos forma a
imagem de um brinco que, assim como os ninhos do pássaro japuíra, estão dispostos
na imagem de uma árvore grandiosa, que ocupa mais de uma página. Revelando
assim o que Camargo define como convergência, pois não há desvio ou contradição
de sentidos com o visual e o verbal das linguagens.
A presença da árvore e do pássaro no poema Vaidosas aproximam do leitor as
figuras de mãe e filho. Já que árvore articula-se com a figura feminina, tanto pelo
adjetivo flexionado no gênero, ―vaidosas‖, quanto pela fertilidade ligada aos ninhos e
ao nascimento de pássaros. Dessa forma, o universo da criança, que projeta na mãe a
imagem de protetora (arquétipo da grande mãe) se funde com o universo poético,
gerando reconhecimento e empatia. Quanto ao pássaro, japuíra, figura lendária da
Amazônia, remete ao leitor a ideia de liberdade, pois simboliza a ascensão.
O eu lírico presente no poema mostra encantamento com a natureza, exalta a

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árvore e sua harmonia com o pássaro, que a deixa ainda mais bela. Aqui encontramos
uma relação com o Regime Noturno de Durand (2002), em que o tempo representado
(árvore da vida, maternidade, ciclicidade) é um tempo eufemizado, com vistas a
atenuar as ideias do fim da morte certa, protegendo a criança na imagem brincalhona,
maternal e feminina da árvore, acolhida como os ninhos de japuíra na segurança da
mãe-natureza. A mesma imagem acolhedora encontramos no poema que dá nome à
obra, Doce de Formiga:

Meu dedinho indicador


levou uma picadinha!
Ah! Já sei sua danadinha
Tá escondida sob a flor!

Atenção dona formiga:


meu dedinho não é mel,
brigadeiro, nem pastel,
pra encher sua barriga.

Te perdoo desta vez


vou fingir que não foi nada
mas, se quiser goiabada,
vá na feira do freguês!

Pra terminar, minha amiga,


faça cara de contente,
pois foi só um acidente
que acabou numa cantiga. (COCCO, 2014).

Nos versos acima temos uma aproximação com o eu lírico, marcado em


primeira pessoa. A criança pode se ver representada na formiga, pequenina e
submissa ao mundo dos adultos, que são os que ―mandam‖ em sua vida. Há também
a relação da picada com a alimentação (sucção) pelo leite materno e o desmame,
relacionado à descoberta de outros alimentos, retratados no poema por: pastel,
brigadeiro e goiabada, em geral apreciados pelos pequenos. Já o mel, é a própria
representação do leite materno, como afirma Durand: ―Esta associação mel e leite não
deve de modo algum surpreender, uma vez que nas civilizações de coletores o mel é o
equivalente natural do alimento mais natural que é o leite materno.‖ (DURAND, 2002,
p. 260).
Depois de levar a ―picadinha‖, o eu lírico declara: ―Ah! Já sei sua danadinha/tá
escondida sob a flor!‖. A formiga tem como seu esconderijo, refúgio, a flor, que,
segundo dicionário de símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant é: ―o símbolo do
amor e da harmonia que caracterizam a natureza primordial; a flor identifica-se ao
simbolismo da infância e, de certo modo, ao do estado edênico‖ (CHEVALIER;

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GHEERBRANT, 2016, p. 437). Assim, novamente percebe-se o eufemismo, a angústia


(do desmame?) suavizada na imagem de jardim do éden, na harmonia protetora da
mãe-natureza.
Ao falarmos do poema Doce de Formiga, faz-se necessário que, além de
evocar as imagens nele predominantes, prestemos atenção aos seus aspectos
sintáticos e gráfico-visuais. Disposto em quatro estrofes de quatro versos (quarteto),
organizados em rimas externas opostas, em que o primeiro verso rima com o quarto e
o segundo rima com o terceiro: ―indicador/ picadinha/ danadinha/ flor, formiga/ mel/
pastel/ barriga, vez/ nada/ goiabada/ freguês, amiga/ contente/ acidente/ cantiga e
ainda, em formato que acompanha o contorno de uma pétala de flor. Com isso,
comprovamos o que foi dito acima, que a autora Marta Cocco, sem prescindir da
técnica, dispõe ao pequeno leitor um universo de imagens associadas que lhe garante
imaginar e brincar com os diferentes elementos poéticos.
Aspectos semelhantes podem ser encontrados no poema Ponto de vista.
Apresentado em formato de meia-lua, traz diferentes visões sobre o satélite. Há o
ponto de vista do eu lírico, que possui uma visão científica: Pelo telescópio/descobri
que a lua/já foi escudo/ de guerra da terra/em outros tempos/outras vias/outras
eras/Crateras, e há o olhar do rato, que é apresentado pelo enunciador lírico e
distancia-se do cientificismo, aproximando-se do mundo poético e chamando a
atenção da criança para o mundo da criatividade, da subjetividade e das diferentes
opiniões: Mas outra coisa/diria o rato/que enxerga um prato/cheio de queijo/com
recheio e/buracos no/meio. O rato representa no poema o olhar infantil,
predominantemente primitivo, movido por desejos e vontades, como comer o queijo.
Conforme afirma Durand: ―De todas as imagens, com efeito, são as imagens animais
as mais frequentes e comuns. Podemos dizer que nada nos é mais familiar, desde a
infância, que as representações animais‖ (DURAND, 2002, p. 69).
Assim como em Ponto de vista, que liga-se à dominante cíclica, representadas
na Lua em seu simbolismo de primeira medida do tempo, temos no poema, Sem medo
do escuro, uma busca pela eufemização do medo superada pela imaginação da
criança: Lá eu brinco de fantasma/zumbi e bicho papão/e deixo bem corajosa/a minha
imaginação. Ao escuro podemos associar o espaço do inconsciente, sem teto, sem
chão, sem parede, um lugar da imaginação.

Quando eu era pequeno


morria de medo do escuro.
Agora que tenho seis anos
tenho mais não.

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O escuro não tem teto


nem chão nem parede
nele só cabe uma cama
ou então uma rede.

Lá eu brinco de fantasma
zumbi e bicho papão
e deixo bem corajosa
a minha imaginação. (COCCO, 2014).

Com um eu lírico notadamente infantil, remetendo a visão do arquétipo criança,


associado ao ―símbolo da inocência: é o estado anterior ao pecado e, portanto, o
estado edênico [...] sem intenção ou pensamentos dissimulados.‖ (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2016, p. 302).
A passagem do tempo no poema é expressa na relação passado/presente
Morria de medo do escuro/tenho mais não, diferença marcada quando o eu lírico
passa para a idade de seis anos. Buscando a simbologia do número seis, entendemos
que há a consciência do bem e do mal, início de uma independência, conforme
encontramos no dicionário de símbolos: ―pode inclinar-se para o bem, mas também
para o mal; em direção à união com Deus, mas também em direção à revolta. É o
número dos dons recíprocos e dos antagonismos, o número do destino místico.‖ (Ibid.,
2016, p. 809).
Como um ―encerramento‖ da obra, o último dos quinze poemas, intitulado Por
Último, estabelece um diálogo entre enunciador e leitor, fazendo um retorno ao
primeiro poema Doce de formiga, trazendo à criança a ideia de finalização de um ciclo
de leituras (viagens ao mundo da imaginação), porém, assim como na imaginação,
não há um ponto final, e sim o início de algo novo, marcado como ―mistério‖:

Por último

Sabe aquela formiga


que picou meu dedinho
no começo do livro?
Pois é, ficou minha amiga,
gostou da cantiga
e aprendeu a cantar.

Parou de falar mal da cigarra


e as duas, juntas,
ora trabalham, ora caem na farra.
Porque a vida
não é só uma coisa
nem outra.
São todas
E tem, ainda,
o mistério... (COCCO, 2014).

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A criança, que desde o primeiro poema já se via na formiga, em sua pequenez,


travessura e impulso, agora se encontra consigo mesma, começou uma amizade,
aprendeu a cantar e diverte-se entre tarefas e lazer diante da descoberta de uma vida
cheia de possibilidades de ―todas as coisas‖, inclusive, o ―mistério‖, representando a
ida ao desconhecido, que pode ser o mundo das artes, da poesia e da imaginação.
É como se durante toda a obra o leitor fosse amadurecendo, ao ser convidado
a adentrar em um caminho que o possibilitará vivenciar e refletir sobre diferentes
realidades e situações. Iniciando com o sentir-se pequenino de Doce de formiga,
passando por reconhecimento de outros mundos e visões como Ponto de vista e
Opiniões, enfrentando os medos em Medo do escuro e finalizando em Por último.

Considerações Finais

A leitura e análise da obra Doce de formiga mostra-nos a riqueza da


particularidade da escrita de Marta Cocco, trazendo à tona símbolos que cercam o
universo infantil, ao mesmo tempo em que prioriza a ludicidade, aguça a curiosidade e
trabalha com a imaginação, tão necessárias ao desenvolvimento dos pequenos
leitores.
A autora, Marta Cocco, mostra-se ciente do mundo infantil e suas angústias,
conciliando ambos nos poemas. A criança leitora é levada a experimentar o prazer do
jogo das palavras, a identificar-se com os pequenos seres e a reconhecer-se em
situações de ludicidade. A autora alcança nos poemas um efeito poético que abrange
a formação de imagens e atinge o valor simbólico da palavra, defendido por teóricos
que tratam da literatura infantil, como algo de suprema importância ao mostrar que
diferente do ensinamento linguístico, da palavra como signo arbitrário, a imagem é rica
em sentidos e altamente simbólica, podendo transportar o leitor do mundo circundante
ao mundo do imaginário. Esse universo que se abre ao leitor não deve ser pensado
como um universo irreal, mas sim como um universo muito mais prazeroso e
enriquecedor das experiências do sujeito. O banquete poético que somos convidados
a experimentar na leitura de Doce de formiga nos é apresentado como a
possibilidade de se encantar com a natureza, de sentir a harmonia das árvores e
pássaros, de sentir a proteção e o cuidado da maternidade da mãe-natureza, bem
como de sentir a satisfação do leite materno e dos alimentos doces relacionados.
O simbolismo do imaginário referente à maternidade, à alimentação, ao ritmo
cíclico do embalo e da acolhida reforça o semantismo da segurança e do recolhimento
que experimenta o leitor infantil na leitura dos poemas. Do primeiro ao último poema,
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Doce de formiga, envolve o leitor na doçura e na travessura do mundo infantil,


simbolizado pela formiga, com sua pequenez e graça, e pelo alimento doce,
convidativo e prazeroso.

Referências

AGUIAR, Lindalva Ferreira de; SILVA, Rosana Rodrigues da. Carlos Drummond de
Andrade em mosaico poético por Marta Helena Cocco. Revista de Letras
Norte@mentos Estudos Literários, Sinop, Vol. 05, Nº. 09, 1º sem. 2012, p. 82-92.
Disponível em:
http://sinop.unemat.br/projetos/revista/index.php/norteamentos/article/view/867.
Acesso em 22 dez. 2016.

BORDINI, Maria da Glória. Poesia é brinquedo de criança. In: ____: Poesia infantil.
São Paulo: Ática, 1986.

CAMARGO, L. A relação entre imagem e texto na ilustração de poesia infantil.


Disponível em: http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/poesiainfantilport.htm.
Acesso em 23 dez. 2016.

CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. 3ª ed. São Paulo: Humanitas


Publicações FFLCH/USP, 1996.

COCCO, Marta Helena. Doce de formiga. Cuiabá: Carlini & Caniato Editorial, 2014.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos,


costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 29ª ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2016.

DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à


arquetipologia geral. Tradução: Hélder Godinho. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes,
2002.

HUNT, Peter. Situação da literatura infantil. In: ___ Crítica, Teoria e Literatura
Infantil. São Paulo: Cosac Naif, 2010.

MAHON, Eduardo. Discurso de recepção da academia mato-grossense de letras à


Marta Cocco: Disponível em:
http://www.olhardireto.com.br/conceito/noticias/exibir.asp?noticia=Discurso_de_recepc
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2016.

PONDÉ, Glória Maria Fialho. Poesia para crianças: a mágica da eterna infância. In:
KHÉDE, Sonia Salomão (Org.). Literatura infanto-juvenil: um gênero polêmico. Porto
Alegre: Mercado Aberto, 1986.

ROLON, Renata Beatriz Brandespin. No fundo do mato virgem nasceu uma


literatura: história e análise de obras direcionadas para crianças e jovens em Mato
Grosso. Tese (Doutorado em Estudos Comparados de Literaturas de Língua
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Portuguesa), Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, Universidade de São


Paulo, São Paulo, 2014. Disponível em:
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8156/tde-11112014-192127/. Acesso em
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WUNENBURGER. Jean-Jacques. O imaginário. São Paulo: Edições Loyola, 2007.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

EIXO PUER-ET-SENEX NA OBRA INFANTO-JUVENIL MATO-


GROSSENSE UMA MANEIRA SIMPLES DE VOAR, DE IVENS
SCAFF CUIABANO

Julia Raisa Ximenes Figueirêdo, Universidade do Estado de Mato Grosso, Eixo


temático 8 - Literatura infantil e ensino
Rosana Rodrigues da Silva, Universidade do Estado de Mato Grosso, Eixo temático 8
- Literatura infantil e ensino

Considerações Iniciais

Esta pesquisa tem como objetivo fazer um traçado histórico acerca da


literatura infanto-juvenil no estado de Mato Grosso considerando as primeiras obras
publicadas e os seus devidos autores, dentro dessa perspectiva destacar Ivens
Cuiabano Scaff e sua obra específica, o real objeto de estudo.
Assim, analisar-se-ão algumas características dentro das narrativas
referentes a esse gênero textual, como essas narrativas mostram as crianças como
protagonistas e independentes, bem como o espaço que se materializa a história com
intertextualidades e a cultura regional mato-grossense e a linguagem utilizada.
Posteriormente, serão ponderados como os arquétipos da puer e senex se
concretizam e quais os principais símbolos recorrentes são o suporte para aqueles.
Para que esse estudo seja consolidado, terá como base teórica nomes
relevantes à temática, ao tratar de imaginário, arquétipos e inconsciente coletivo o
trabalho contará com pressupostos de Meletinski, Northrop Frye, Gaston Bachelard,
Chevalier e Gheerbrant e Carl Gustav Jung.
As narrativas infantis e juvenis escritas por Scaff tentam retomar as tradições
orais e ritos mato-grossenses, incluindo o componente mágico aproximando o mundo
real do fantástico, isso é afirmado por Rosana Rodrigues da Silva (2015, p. 2277) ao
dizer que ―essa união do elemento regional ao elemento mágico compondo a narrativa
para crianças é presenciada na obra de Ivens Cuiabano Scaff‖. Para Rolon (2014, p.
213), o autor dialoga com Charles Perrault, Andersen e com o próprio Monteio Lobato,
1508

ao escrever histórias e colocando as crianças como protagonistas na narrativa, elas


têm liberdade para se aventurarem e conversarem com os adultos trocando opiniões.
Contextualização: Mato Grosso, Ivens Cuiabano Scaff, obra e ilustração
Segundo Magalhães (2002, p.24), ―a literatura mato-grossense começa a
existir de fato a partir do século XX, sobretudo com os textos de Dom Aquino e José
de Mesquita‖, ambos de extrema importância para a literatura do estado. Durante o
século XX Cuiabá ainda se encontrava distante das demais províncias do país, por
causa dessa problemática a comunicação entre um estado e outro era debilitado e o
contato era feito por telégrafo. Se fosse por cartas atrasaria muito e para chegar até a
capital do país demorava pelo menos três meses de viagem. Esta cena só mudou
anos mais tarde, no governo de Getúlio Vargas (1930-1940), com melhorias nos
correios e transportes, bem como inauguração de linhas aéreas.
Outro fator que influenciou o progresso no Estado foi a descoberta de
minérios na região leste. Nessa época, ―no que diz respeito a literatura propriamente
dita, é exatamente a partir de 1930 que essa atividade começa a florescer no Estado,
dando surgimento a textos de grandiosidade estilística e estrutural‖ (MAGALHÃES,
2001, p.122). Anos mais tarde, já em 1970, o estado foi então dividido. As atividades
que funcionavam na região eram voltadas para a área da agricultura, apoiadas pelo
governo e abrindo caminho para migração de sulistas e gaúchos para Mato Grosso.
Da cultura mato-grossense podemos destacar mais uma vez o teatro, além da
literatura infanto-juvenil e poesia com o cunho de preocupação universal. A partir
disso, sabe-se que as primeiras produções infanto-juvenis eram de cunho teatral, mas
na maioria das vezes realizadas em escolas com caráter didático e moralizante e
muitas das peças eram produzidas por entidades religiosas, essas peças se perderam
no passar do tempo e não há registros de nenhuma delas.
A literatura infantil e juvenil mato-grossense só se concretizou em 1980, logo
é considerada relativamente recente se comparada à brasileira como um todo e ainda
pouco visível se comparada às demais, justamente por ser recente, ter pouca (ou
quase nada) divulgação no Estado. Outro fator relevante para a baixa visibilidade é a
pouca valorização para essa literatura. Como tratam Lajolo e Zilberman (2003, p. 11),
é como se a menoridade de seu público a empurrasse para um patamar inferior, ao
pronunciar o adjetivo infantil acaba levando essa produção a um público de menor
tamanho, e para alguns, de menor importância.
A primeira publicação da literatura infantil e juvenil mato-grossense, As
meninas e o sabiá (Maria das Graças Campos), ocorreu em 1987) e foi o marco
concreto da literatura infanto-juvenil do estado, teor de apelo ecológico, além de
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poético e ―voz de denúncia‖, depois veio O dia em que o caçador virou caça (Fernando
Antonio, 1989) também com teor ecológico e educativo, em defesa do Pantanal e sua
fauna. Depois vieram Natal tropical (Aclyse de Mattos, 1990), Antônio de Pádua e
Silva lança, em 1991, o primeiro de uma série de quatro livros publicados pela Atual
Editora, de São Paulo e obteve sucesso com O gato que amava Girl (1998), entre
tantos outros. A partir do ano 2000, as publicações começam a se intensificar e vão
surgindo novos nomes no rol de autores, as temáticas envolvem a diversidade e
alguns livros são divulgados.
Conforme cresce e estabelece o campo artístico e intelectual, o mesmo
ganha força e autonomia, mas segue unido com o mercado, e este só é possível se
vinculado a um público consumidor. Em Mato Grosso há artistas que conquistaram
sua autonomia dentro dos limites do Estado somente, e há outros - poucos – que
alcançaram reconhecimento nacional e até mesmo internacional, como no caso do
quadrinista Wander Antunes e o ilustrador Ricardo Leite (SOUZA, 2009, p.56).
Nesse contexto ainda jovem da literatura infanto-juvenil mato-grossense,
ressaltamos Ivens Cuiabano Scaff. O autor da obra escolhida para a análise, é nascido
em Cuiabá, Mato Grosso, formado em medicina pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro, atualmente atua como médico infectologista na capital mato-grossense além
de ser professor universitário, poeta, contista e autor teatral. Ocupa a cadeira número
07 da Academia Mato-Grossense de Letras desde 25 de março de 2014.
Scaff escreve tanto para o público adulto quanto para infanto-juvenil, suas
principais obras infanto-juvenis são A fábula do quase frito (1995), Mamãe, sonhei que
era um menino de rua (1996), O papagaio besteirento e a velha cabulosa (1999), Uma
maneira simples de voar (2006), O menino órfão e o menino rei (2008), A mamãe das
cavernas e a mamãe loba (2012), no contexto poesia o autor publicou Nova poesia de
Mato Grosso (1986), Mil mangueiras (1988), e Kyvaverá (2011).
O autor foi homenageado pelas ‟Bordadeiras da Chapadaˮ e através das
mãos dessas mulheres algumas das obras dele criaram asas e o mesmo foi
presenteado com o trabalho durante sua posse na Academia.
Suas obras infanto-juvenis ressaltam e valorizam a questão regionalista e
observa-se um processo de busca de identidade cultural, em suas obras Scaff agrega
valores estéticos, além de realizar um processo mágico nas palavras e transcrever as
aventuras e invenções de crianças. De acordo com Rolon (2014, p.213), o autor
dialoga com Charles Perrault, Andersen e com o próprio Monteio Lobato, ao escrever
histórias e colocando as crianças como protagonistas na narrativa, elas têm liberdade
para se aventurarem e conversarem com os adultos trocando opiniões.
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Ivens trabalha com uma linguagem simples e objetiva para o público-alvo e


mistura o real com o imaginário infantil, para costurar os dois universos, como já citado
anteriormente, o autor usa como cenário o espaço regional mostrando a cultura mato-
grossense, articulando essa realidade com o imaginário narrativo.
O livro Uma maneira simples de voar, de 2006, foi ilustrado por Marcelo
Velasco com os desenhos coloridos e originais. Já de início observamos, através do
desenho, a paisagem mato-grossense na capa do livro, as duas crianças estão
descalças com os pés sujos, sugerindo o tema central da história: amizade. As
crianças estão voando em direção a Chapada dos Guimarães, próximo a Cuiabá,
como é visto na figura abaixo.

Figura 01: Capa do livro Uma maneira simples de voar, 2006

Pode-se observar que através dessa ilustração de Velasco já associamos a


obra ao determinado público leitor. Toda a obra, desde o sumário, apresenta
ilustrações com intuito de chamar a atenção da criança para a leitura, essas
ilustrações dentro das narrativas infantis não são mero acaso, pelo contrário, auxiliam
a criança na interpretação, até mesmo porque o primeiro contato da criança é com a
imagem para depois com a palavra em si. De acordo com Camargo,

A ilustração pode, assim, representar, descrever, narrar, simbolizar,


expressar, brincar, persuadir, normatizar, pontuar, além de enfatizar
sua própria configuração, chamar atenção para o seu suporte ou para
a linguagem visual. (CAMARGO, s/data, online).

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Assim sendo, a gravura instiga a criança a entender a obra, pois a criança


inicia sua compreensão de leitura através da compreensão das imagens e depois
compreende as grafias das palavras.
A história é contada por um narrador observador em discurso direto e
períodos curtos, dividida em títulos separando os acontecimentos em pequenos
capítulos. O tempo transcorre linearmente, mas em planos distintos, no sítio de Amis é
uma velocidade diferente do tempo que passa na cidade, para entender que no sítio
ele é melhor aproveitado, já fora dele o tempo não passa e é tedioso.
Nessa história há quatro personagens: a menina Ade, o menino Andriel, o
velho Amis e a siá Frô. Ade é a personagem principal, suas características são a
curiosidade e o fato de ser muito perguntadeira, por causa disso ninguém gostava e
nem tinha paciência de ficar respondendo todas as suas perguntas até que Ade
conheceu o velho Amis, que respondia até as que ela nem tinha perguntado.
Ade mora na cidade e encontrou o sítio de Amis, local onde ela tem todas as
respostas que precisa, esse velho é quem mostra para a menina a riqueza do cerrado
e do rio. Além de falar sobre a natureza, Amis também cita lendas mato-grossenses e
brasileiras, como o Minhocão, Três Marias, a Mãe d᾿água, o Negrinho d᾿água, além de
citar Saci-Pererê.
Essas visitações no folclore e lendas é interessante dentro da obra, levando
em consideração que mais uma vez Scaff trabalha exatamente com o que é regional e
com o brasileiro no livro, levando conhecimento sobre o assunto para seus leitores, ―a
literatura infantil e juvenil, ao recriar temas da cultura popular e da tradição folclórica,
reinterpretando símbolos universais do imaginário humano, põe em evidência a
relação entre cultura e símbolo‖ (SILVA, 2015, p. 2271). Sobre esse assunto, pode-se
dizer que ―o fascínio pela redescoberta dos tempos inaugurais/míticos, nos quais a
aventura humana teria começado, é fruto da inquietação existencial que desola o
homem, nas sociedades modernas‖ (CARDOSO, 2012, p. 141).
O Negrinho d‘água vive em diversos rios, manifestando-se com suas
gargalhadas, preto, careca e mãos e pés de pato, derruba a canoa dos pescadores, se
eles se negarem de dar um peixe. Ele seria a fusão de homem negro alto e forte, com
um anfíbio, apresenta nadadeiras como de um anfíbio, corpo coberto de escamas
mistas com pele. Há pescadores que, para não serem incomodados pelo Negrinho,
derramam bebida em volta do barco como uma proteção.

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Figura 02: ilustração do livro – Neginho d`água, p.27.

A Mãe d‘água (Uiara) é a sereia das águas amazônicas e habitante as águas


doces, pela cultura indígena ela era uma índia guerreira chamada Dinahí, que teve
que fugir da aldeia por ser melhor que muitos dos guerreiros da tribo, inclusive seus
irmãos. Ao fugir foi capturada pelo pai e outros índios, jogaram-na no encontro dos rios
Negro e Solimões, mas por sorte foi salva por peixes. Tornou-se uma bela princesa,
com cauda de peixe e de cabelos tão escuros quanto às águas do rio Negro. Pescar
em horas mortas pode incomodá-la e a pessoa é castigada com uma febre alta.

Figura 03: ilustração do livro – Mãe d‘água, p.29.


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Três Marias são três grandes pedras no topo da Serra do Tombador,


próximas à fenda do córrego Piraputangas. Diz a lenda que elas eram princesas
indígenas e que por encanto se transformaram em três grandes pedras. Para quebrar
esse encanto é necessário que três Marias virgens vão no local e com o sangue
próprio cada uma escrever seu nome em cada pedra.
O Minhocão, uma versão é na Catedral São Luis – Cáceres, MT, onde essa
enorme cobra apareceu no rio e tremeu a capela que estava sendo inaugurada, pois a
mesma se irritou com as pessoas e o barulho. Os fiéis pediram proteção contra o
minhocão e Nossa Senhora prendeu-o com três fios do seu próprio cabelo, a cobra
ainda está lá embaixo, mas não há perigo.
A outra versão é que o Minhocão se encontra no Rio Paraguai, os pescadores
ficaram amedrontados e também pediram proteção, mais uma vez Nossa Senhora,
para proteger os pescadores, prendou o Minhocão, a cabeça ficou presa embaixo da
igreja, o corpo passa pela cidade e a calda sob o rio. Nessa versão há um perigo: dois
fios já se arrebentaram, ou seja, há de tomar cuidado com o minhocão.

Figura 03: ilustração do livro – Minhocão, p.43

Andriel é a outra criança da história, o amigo de Ade, um menino calado,


observador e inteligente que consegue encontrar sozinho o sítio do Amis, além de crer
no sobrenatural, isso se torna nítido quando pede ajuda aos peixes, aos animais, às

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aves e ao saci para encontrar Ade, que naufragou com Amis no rio depois de uma
tempestade. Nesse momento a quarta personagem entra na narrativa, velha Frô, que
ajuda Andriel encontrar os desaparecidos. ―Siá Frô‖ representa a benzedeira da
região, par achar os perdidos ela prepara a vela na cuia, pois acredita que isso é
capaz de trazer de volta os afogados que o rio não quer devolver. Quando os encontra
estão desmaiados, para acordá-los mais uma vez ela recorre a crenças e rituais com
ervas para banho, ervas como canela de ema, boldo, picão, carqueja, flor de piúva-
amarela, flor de piúva-roxa, flor de tarumã, louro branco, louro preto, casca de
cambará, seiva de figueira e marcela, além de raminhos de saran, suco de mangava,
coroa de frade, marmelo e ninho de japuíra para colocar todas as ervas. Quem busca
tudo é Andriel com a ajuda do saci e de seu redemoinho.
No intervalo no qual Ade e Amis estão se afogando eles começam a chamar
um pelo outro no meio da tempestade e vento forte, o vento leva os nomes e forma
então a palavra mágica e tema da história: ―Amizade‖. Assim o minhocão é despertado
e os engole para depois cuspi-los na margem do rio abaixo com uma camada de baba,
local onde foram encontrados por Andriel e Siá Frô.
Após esse episódio, os velhos percebem que as águas do Pantanal estão
aumentando e levam as crianças para fora do lugar em uma carroça, até que Amis
chama um touro azul para levá-los embora, as crianças ganham asas e voltam para
casa.
A linguagem utilizada é carregada de expressões próprias como: ―S‘minina,
se eu responder todas as suas perguntas não vou ter tempo pra mais nada‖ (SCAFF,
2006, p.24), ou ainda ―Com essa friagem, vai pegar defluxo‖ (SCAFF, 2006, p.45).
Sobre isso Rolon afirma que com essa marca de oralidade ―o narrador se aproxima
cada vez mais, torna-se íntimo e vai mostrando os detalhes do lugar e os modos de
vida‖ (2014, p.220-221). Somando-se a isso, Scaff retrata bem as brincadeiras infantis
na obra, como queimada, passa-meu-bom-barqueiro, roda, boneca, polícia e ladrão,
bolita e finca-finca.
Durante todo o percurso da narrativa podemos observar intensamente a
região mato-grossense que é descrita uma grande quantidade de aves, peixes e
animais que fazem parte da vida do ribeirinho. Das espécies de peixes citadas tem-se:
piraputangas, pacupevas, bagres, jaús, cacharas, pintados, piquiras, lambaris,
riscadinhos, vacas-brancas, duro-duros, chum-chuns, rapa-canoas, bigodudos, pacus,
piavas, botoados e dourados.
Quanto as aves, observa-se jaçanãs, gaviões nos galhos das piúvas, garças,
tuiuiús, jaós, ninhos de japuíra, joão-pinto.
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O que também é ressaltado são as árvores típicas, como cajueiros, figueiras,


pés de pequi e mangueiras.
Por fim, observa-se que a obra também traz questões ambientais, como o
descontrole das queimadas na região.

Análise da obra
Durante a leitura pode-se averiguar algumas intertextualidades na obra,
desde mitologia grega até narrativas brasileiras. A narrativa fala que para o caminho
para o sítio de Amis, Ade precisa transitar em certo labirinto e para obter êxito na
jornada a menina conta com um fio condutor bem mato-grossense: cheiro de banana
frita na hora do almoço, como traz esse fragmento do livro:

O segredo desse lugar é que ele só tem uma entrada e uma saída
(...) Acontece que o velho que mora no sítio gosta muito de banana
frita. Aí é só chegar no cerrado na hora do almoço e ir seguindo o
cheirinho que, logo, logo, você está lá. (SCAFF, 2006, p.11)

Nesse episódio há relação com o mito grego de Ariadne, que para ajudar seu
amado Teseu a sair do labirinto do Minotauro, lança mão de um novelo como fio
condutor para que o mesmo mostrasse o caminho da saída para o herói após matar a
fera. Ângela Souza afirma sobre essa relação intertextual:

E o labirinto nos remete à deusa da mitologia grega Ariadne, do qual


poderíamos supor ter originado o nome da personagem principal Ade,
a primeira a descobrir que o cheiro da banana sendo frita era capaz,
como um novelo, de conduzir o aventureiro dos caminhos do cerrado
até um lugar seguro. (SOUZA, 2009, p.87)

Outra intertextualidade observada também é referente à obra Fita verde no


cabelo, de João Guimarães Rosa. Ambas as personagens da história perdem a fita do
cabelo em algum momento da narrativa, a diferença é a cor das fitas. De um lado
temos a fita verde, representando que ainda não é madura o suficiente e, ao perder o
enfeite, deixa entender que nesse momento a personagem amadureceu e no final ela
demonstra esse fator.

Mas agora Fita-Verde se espantava, além de entristecer-se de ver


que perdera em caminho sua grande fita verde no cabelo atada; e
estava suada, com enorme fome de almoço (...) Fita-Verde mais se
assustou, como se fosse ter juízo pela primeira vez. Gritou: –
Vovozinha, eu tenho medo do Lobo! (ROSA apud Meus primeiros
contos, 2001)

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Opondo-se a isso está a Ade, com sua fita amarela, cor que representa
sabedoria, ou seja, a menina não é mais tão imatura e o perder pode representar que
no sítio é onde ela encontra todas as respostas e, naquele momento, a menina já está
em um nível acima, não é mais necessário que esteja no sítio, quem acha a fita é
Andriel ―e presa, numa ferpa da canoa, a fita de cabelo de sua amiguinha Ade‖
(SCAFF, 2006, p.45).
Diante da análise foi observado que os personagens criança e velho são: Ade
e Andriel, Amis e Siá Frô. Os arquétipos trabalhados em Uma maneira simples de voar
são: o velho e o novo, ou seja, puer e senex, costurando-os com alguns dos muitos
símbolos presentes na obra, levando em consideração que os símbolos servem para
atribuir ainda mais relevância aos arquétipos.
Sobre esse assunto, os arquétipos são definidos como elementos iniciais
utilizados em colocações diferentes no decorrer dos tempos, ―uma análise atenta
revela que muitos deles não passam de transformações originais de alguns elementos
iniciais‖ (MELETINSKI, 1998, p.19), ou também:

Em primeiro lugar, são antes imagens, personagens, papéis a serem


desempenhados e, apenas em medida muito menor, temas. Em
segundo lugar [...] destacar-se gradativo da consciência individual a
partir do inconsciente coletivo [...] os arquétipos traduzem os
acontecimentos anímicos inconscientes em imagens do mundo
exterior. (MELETINSKI, 1998, p.22)

Pode-se dizer que são como moldes já conhecidos por uma maioria e trazidos
para o exterior com uma outra estrutura como o mesmo fundamento. De uma maneira
geral, os arquétipos estão inseridos em nossas vidas sem necessariamente
precisarmos ler algo para nos lembrar de outras histórias, apenas algumas imagens
corriqueiras podem nos remeter ao mesmo, Frye (1957, p.105) afirma que ―alguns
arquétipos acham-se tão profundamente enraizados em associação convencional, que
dificilmente podem deixar de sugerir tal associação: assim uma figura geométrica da
cruz inevitavelmente sugere a morte de Cristo‖.
Jung utiliza este conceito para designar os padrões de comportamentos ou
imagens primordiais impressas na psique coletiva, por isso intitula como ―inconsciente
coletivo‖.

O comportamento humano segue padrões que podem ser


compreendidos de forma mais ou menos nítida pelos chamados
arquétipos. Todo os seres humanos, independentemente de raça ou
origem cultural, possuem os mesmos arquétipos, estruturas básicas

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da mente humana, os conteúdos do inconsciente coletivo como o


chamou Jung. (BOECHAT, 2008, p.56 apud PORTELA, 2011, p.03)

Dessa maneira, os arquétipos assumem as formas de vivências do homem


que o marcaram ao decorrer dos tempos, manifestados em sonhos e símbolos,
podendo ser encontrado também na literatura. Para esta pesquisa, serão utilizados
dois arquétipos junguianos: puer e senex. Dois arquétipos opostos e complementares
entre si, formando o eixo Puer-et-Senex.
Puer representa o novo, a criança, pureza, caracterizado pela
espontaneidade, curiosidade, liberdade, mudança, pressa, fantasia tanto quanto
irresponsabilidade, desligamento da realidade, onipotência. Já o senex é a parte da
senilidade, do mais velho, caracterizado pela compreensão, lentidão, paz, sabedoria
tanto quanto rigidez, impotência, negatividade (MONTEIRO, 2008, p.57 apud
PORTELA, 2011, p.03).
A amizade da heroína criança da narrativa, Ade, e o seu amigo velho, Amis,
comprova o eixo puer-et-senex no qual o espírito do novo vem para renovar os valores
ultrapassados da vida.

Figura 04: ilustração do livro – Ade e Amis, p.14

Ade e Andriel, claramente, assumem o papel do puer, e Amis e Frô o do


senex. Sobre esse tema na obra Rolon afirma que ―a união do novo e do velho
assumem o papel de mantenedores de referências culturais da sociedade em que
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estão inseridos‖ (2014, p.232), ou seja, Amis pela experiência de vida passa todo o
conhecimento da natureza e cultural para a menina Ade, que por sua vez quer
explorar ao máximo tudo o que puder dentro da narrativa. Por outro lado, a siá Frô
ensina a questão religiosa que aprendeu com o tempo para o menino Andriel, que se
mostra curioso e ativo.
A questão do ciclo (velho e novo) pode ser observada através dos símbolos
contidos na obra, dos quais destacam-se a água, considerando o que Ângela Souza
afirma que este livro, segundo o próprio autor, é fluvial por abordar a cultura da água
(2009, p.85), ela também vem representando a purificação e transformação da
criança, de acordo com Bachelard:

Afastando-nos de tudo o que diz respeito à pureza ritual, sem nos


estendermos sobre os ritos formais da pureza, queremos mais
especialmente mostrar que a imaginação material encontra na água a
matéria pura por excelência, a matéria naturalmente pura. A água se
oferece pois como um símbolo natural para a pureza; ela dá sentidos
precisos a uma psicologia prolixa da purificação. (BACHELARD,
1997, p. 140)

Também são encontrados os símbolos vento e árvores.


As árvores dentro da obra traduzem todo o ciclo existente ali, considerando
que ―uma árvore ou uma planta antigas representam, simbolicamente, o crescimento e
o desenvolvimento da vida psíquica‖ (JUNG, 1964, p.153). Inicialmente depara-se com
um cajueiro florido, uma árvore que está em fase de produção e desenvolvimento até
dar seus frutos; nesse sentido, atribui-se a característica da pessoa mais nova, pois
ainda não está madura o suficiente para realizar a produção necessária. Ainda está
em fase de amadurecimento. Ade e Andriel podem ser incluídos nessa fase nos
primeiros momentos do livro, mesmo sendo já espertos para muitas coisas, no sítio
encontram respostas para seu crescimento.
Em seguida aparece a sombra de figueira, uma árvore frondosa, pode-se
atribuir a árvore ao conhecimento de Amis e siá Frô, e a sombra da figueira seria a
experiência de vida dos mais velhos sendo passados para as crianças, ajudando-as
no ciclo da vida das mesmas. No capítulo ―Estórias de Amis‖ aparece bem essa
questão: amis sentado próximo ao tronco da árvore e Ade sentada na sombra, ouvindo
tudo o que Amis pode ensinar naquele momento.

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Figura 05: ilustração do livro – p.24


Nesse momento pode-se ressaltar também a questão do poder simbólico da
água e do vento dentro da narrativa. O vento é um dos símbolos do poder espiritual, é
um símbolo de criação e fecundidade, ―e foi assim que a força dos ventos formou a
palavra poderosa. E a palavra despertou o poder do rio. E o poder do rio era o
minhocão‖ (SCAFF, 2006, p.41), com essa definição não podemos deixar que esse
significado tenha sentido somente para a questão do aparecimento do Minhocão para
ajudá-los a sair do rio, mas também na definição do amadurecimento espiritual da
criança com a ajuda do velho, passando para uma nova fase de sua vida. Criação de
novas ciências, novas visões acerca do mundo e que vive, pode levar ao seu
amadurecimento como pessoa.
A água é um grande símbolo presente no livro, ―submetidas ao fluxo lunar,
por outro porque sendo germinadoras ligam-se ao grande símbolo agrário que é a lua‖
(DURAN, 2002, p.102). Também associada ao nascimento ou renascimento: Mitra
nasceu às margens de um rio, enquanto que Cristo ―renasceu‖ no Rio Jordão; um dos
símbolos do inconsciente. A água é uma representante do passar do tempo,
desenrolar da vida, há um ciclo dentro dela e quem estava ali na chuva e no rio era o
novo e o velho: o início e o fim do ciclo da vida.
Essa questão do nascer e renascer está intimamente ligado aos
personagens, a criança após ter uma base da sabedoria do mais velho nasce para
uma nova vida, o que ela foi antes não pode voltar a ser, como se um mundo novo de
experiências e oportunidades se abrisse para ela, e essa estivesse em busca de
amadurecimento a partir dos conselhos sábios. E o renascer para o velho, pois através
dessa troca de informações com o novo, passando a bagagem para a criança é como
se ele renascesse, tendo em mente que a jornada da vida daria continuidade através
daquele jovem.

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Na narrativa tem um pé de pequi já antigo e retorcido, se outrora o cajueiro


representava a criança, esse pequi representa a senilidade, como se fosse um corpo
que já deu frutos, já alimentou a muitos com a sabedoria e hoje o tempo o consome e
já está enrugado.
No final da obra, quando Ade e Andriel já estão de partida, aparece o fim do
ciclo representado por um tronco seco na estrada. Indubitavelmente é a representação
do fim, uma árvore que passou por todas as fases da sua existência e agora se
encontra seca, sem vida. Nesse ponto é levantada a hipótese de que o fim do ciclo de
Ade e Andriel no sítio acabou, pois eles já amadureceram e extraíram dos mais velhos
toda a sabedoria necessária para continuar suas próprias experiências.
Sobre o eixo, ressalta-se que ―o puer inspira o brotar das coisas; o senex
governa a
colheita. Mas florescer e colher dão-se intermitentemente durante toda vida‖
(HILLMAN apud PORTELA, 2011, p. 04). Ligados e necessários para a existência um
do outro.

Considerações finais
O processo de abordar a temática literatura infantil e juvenil no estado de
Mato Grosso, através da obra Uma maneira simples de voar (2006), de Ivens
Cuiabano Scaff, foi muito instigante, pois através deste foi percebida a importância de
se trabalhar com essa temática, pois descobriu-se que o estudo em cima disso,
mesmo rico, ainda se encontra no anonimato.
Destaca-se também que, a partir dessa obra, pode-se aprofundar na
abordagem da psicanálise na literatura infantil e juvenil com a análise arquetípica e
simbólica do eixo puer-et-senex, que foi de suma importância para agregar
conhecimentos, bem como estudar os símbolos presentes na narrativa, enriquecendo
a pesquisa aqui descrita.

Referências

BACHELARD, G. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. São


Paulo : Martins Fontes, 1997.

CARDOSO, A. L. Do mito à memória na literatura infantojuvenil de Alina Paim.


Revista Fórum Identidades. Itabaiana: Gepiadde, Ano 6, Volume 12. Jul-dez de 2012.
Disponível em: < https://ri.ufs.br/bitstream/123456789/950/1/MitoMemoriaPaim.pdf>.
Acesso em: 25 jul. 2017

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DURAN, G. As estruturas antropológicas do imaginário. 3 ed. São Paulo: Martins


Fontes, 2002.

FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. São Paulo: Ed. Cultrix, 1957.

JUNG, C. G. O homem e seus símbolos. 6 ed. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira,
1964.

__________. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis, RJ : Vozes, 2000.

LAJOLO, M. ZILBERMAN, R. Literatura infantil brasileira: História & Histórias. 6ª ed.


São Paulo: Ática, 2003.

MAGALHÃES, Hilda Gomes Dutra. História da Literatura de Mato Grosso - Século


XX.Cuiabá: UNICEN Publicações, 2001.

__________. Literatura e Poder em Mato Grosso. Brasília: Ministério da Integração


Nacional: Universidade Federal de Mato Grosso, 2002.

MELETINSKI, E. M. Os arquétipos literários. São Paulo: Ateliê Editorial, 1998.

MENDONÇA, R. História da Literatura Mato-Grossense. 2º ed. Especial. Cáceres:


Editora UNEMAT, 2005.

PORTELA, B. O. S. O mito do herói e os arquétipos puer-senex no filme: Up -


altas aventuras. Juiz de Fora, MG. 2011.

ROLON, R. B. B. No fundo do mato virgem nasceu uma literatura: história e análise


de obras direcionadas para crianças e jovens de Mato Grosso. 2014. 288 f. Tese
(Doutorado em Literatura Comparada) – USP. Universidade de São Paulo, São Paulo.

SCAFF, I. Uma maneira simples de voar. Cuiabá: Entrelinhas, 2006.

SILVA, R. R. Cultura e imaginário na literatura infantil produzida em Mato Grosso. In:


CELLIJ: CONGRESSO INTERNACIONAL DE LITERATURA INFANTIL E JUVENIL,
IV, 2015, São Paulo. Anais eletrônicos... São Paulo, UNESP, 2015. Disponível em: <
http://www2.fct.unesp.br/congresso/cellij/ebook.pdf>. Acesso em 25 jul. 2017.

SOUZA, A. T. F. O outro lado de uma mesma história: a produção literária


destinada ao público infanto-juvenil no estado de mato grosso (1980 – 2009). 2009.
224 f. Dissertação (mestrado). Universidade Federal de Mato Grosso. Instituto de
linguagens. Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

ENSINO DA LITERATURA INFANTIL EM INSTITUIÇÕES DE UMA


CIDADE MINEIRA311

Eixo temático 8: Literatura Infantil e ensino.

Amanda Valiengo (autora), Universidade Federal de São João Del Rei, UFSJ,
MG.
Elieuza Aparecida de Lima (coautora), Faculdade de Filosofia e Ciências,
Unesp, Marília, SP.
Mariana Natal Prieto (coautora), Unesp, Campus de Marília, SP.

Considerações Iniciais

Este texto foi escrito a partir de dados gerados em uma pesquisa de Iniciação
Científica cujo o principal objetivo foi desvelar as práticas educativas em escolas de
Educação Infantil de uma cidade mineira. Dentre os aspectos observados,
destacamos, neste momento, as práticas educativas voltadas à literatura infantil.
Algumas questões são norteadoras para a discussão: há práticas educativas
para as vivências das crianças com a literatura infantil na primeira etapa da Educação
Básica? Quais são elas? Como são organizados tempos, espaços e materiais para o
trabalho com a literatura infantil? Que tipo de literatura é oferecida à criança?
A partir dessas questões, o objetivo deste artigo é analisar práticas de ensino
com a literatura infantil em escolas de Educação Infantil de um município de Minas
Gerais, a partir da geração de dados de observação no estágio de uma turma de
Pedagogia. Partimos do pressuposto de que o trabalho com a literatura é fundamental
para o desenvolvimento do ser humano. ―O contato com a literatura não é um dever, é
um direito!‖ Assim, ―A sociedade brasileira deve permitir e garantir que seu povo tenha
a chance de conhecer essa herança cultural humana‖ (Ilan BRENMAN, 2005, p.87).
A escola, é um dos principais lugares onde a literatura pode estar presente e
acessível à criança (Regina ZILBERMAN, 2003; BRENMAN, 2005), no entanto, há

311
Este texto foi realizado a partir dos dados gerados na Iniciação Científica intitulada: O
currículo na Educação Infantil de Diamantina: desvelamento das práticas educativas
(SANTOS, 2017).
1523

tensões sinalizadas tanto pelo trabalho ainda incipiente com a formação de


professores (Amanda VALIENGO; Aline Escobar Magalhães RIBEIRO, 2014), bem
como com as práticas educativas (Ítala Cristina SANTOS, 2014) e com o caráter
moralizante do uso da literatura na Educação Infantil (ZILBERMAN, 2003). A partir
dessas questões, temos nos dedicado a pesquisar a literatura na Educação Infantil
(Elieuza Aparecida de LIMA; VALIENGO, 2011; VALIENGO; Silvana Paulina de
SOUZA, 2016), bem como realizado algumas orientações de graduação e pós-
graduação (SANTOS, 2014; Mariana SAMPAIO, 2016) sobre a temática. Normalmente
articulando os pressupostos da Teoria Histórico-Cultural (Lev Semenovitch
VYGOTSKI, 1995), com alguns avanços na área da literatura infantil (BRENMAN,
2005; Tzvetan TODOROV, 2007) e a proposta de mediação e contação de histórias
(Elie BAJARD, 2012).
Especificamente na pesquisa aqui apresentada, a metodologia utilizada foi a
qualitativa, a partir da geração e sistematização dos dados produzidos por vinte e
cinco alunos de graduação em Pedagogia no momento de Estágio obrigatório.
Especificamente essas questões metodológicas são apresentadas, neste texto, em um
primeiro momento; em seguida, discutimos alguns desafios e possibilidades do
trabalho com a literatura na Educação Infantil.

Geração e Sistematização dos dados da pesquisa: a literatura em foco

Para a geração e sistematização dos dados da pesquisa houve em 2015 uma


articulação com a disciplina de Orientação ao Estágio em Educação Infantil e a
proposta de um trabalho de uma Pesquisa de Iniciação Científica. Partimos do
pressuposto de que realizaríamos uma pesquisa qualitativa, uma vez que o ambiente
natural foi fonte direta dos dados, que são predominantemente descritivos, tendo uma
preocupação maior com o processo do que com o produto e a análise dos dados
segue um processo indutivo (Menga LUDKE; Marli Elisa ANDRÉ, 1986).
Durante as aulas de Orientação ao Estágio em Educação Infantil, a
professora, junto com os alunos, a partir do artigo nono das Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Infantil, construiu um quadro de orientação para a
observação realizada durante o estágio.
O artigo nono das Diretrizes Curriculares Nacionais pra a Educação Infantil -
DCNEIs (BRASIL, 2009) prevê quais experiências deverão ser garantidas nas práticas
pedagógicas, conforme citamos abaixo:

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Art. 9º As práticas pedagógicas que compõem a proposta


curricular da Educação Infantil devem ter como eixos
norteadores as interações e a brincadeira, garantindo
experiências que:

I - promovam o conhecimento de si e do mundo por meio da


ampliação de experiências sensoriais, expressivas, corporais
que possibilitem movimentação ampla, expressão da
individualidade e respeito pelos ritmos e desejos da criança;
II - favoreçam a imersão das crianças nas diferentes
linguagens e o progressivo domínio por elas de vários gêneros
e formas de expressão: gestual, verbal, plástica, dramática e
musical;
III - possibilitem às crianças experiências de narrativas, de
apreciação e interação com a linguagem oral e escrita, e
convívio com diferentes suportes e gêneros textuais orais e
escritos;
IV - recriem, em contextos significativos para as crianças,
relações quantitativas, medidas, formas e orientações
espaçotemporais;
V - ampliem a confiança e a participação das crianças nas
atividades individuais e coletivas;
VI - possibilitem situações de aprendizagem mediadas para a
elaboração da autonomia das crianças nas ações de cuidado
pessoal, auto-organização, saúde e bem-estar;
VII - possibilitem vivências éticas e estéticas com outras
crianças e grupos culturais, que alarguem seus padrões de
referência e de identidades no diálogo e reconhecimento da
diversidade;
VIII - incentivem a curiosidade, a exploração, o encantamento,
o questionamento, a indagação e o conhecimento das crianças
em relação ao mundo físico e social, ao tempo e à natureza;
IX - promovam o relacionamento e a interação das crianças
com diversificadas manifestações de música, artes plásticas e
gráficas, cinema, fotografia, dança, teatro, poesia e literatura;
X - promovam a interação, o cuidado, a preservação e o
conhecimento da biodiversidade e da sustentabilidade da vida
na Terra, assim como o não desperdício dos recursos naturais;
XI - propiciem a interação e o conhecimento pelas crianças das
manifestações e tradições culturais brasileiras;
XII - possibilitem a utilização de gravadores, projetores,
computadores, máquinas fotográficas, e outros recursos
tecnológicos e midiáticos.
Parágrafo único - As creches e pré-escolas, na elaboração da
proposta curricular, de acordo com suas características,
identidade institucional, escolhas coletivas e particularidades
pedagógicas, estabelecerão modos de integração dessas
experiências.

Como as DCNEIs são uma resolução, com ordenamento legal, logo deveria
ser efetivada nas práticas educativas da Educação Infantil. Com este pressuposto, o
objetivo das ações do Estágio foi de desvelar as práticas educativas de escolas de
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uma cidade mineira. A partir de um quadro (segue exemplo abaixo) buscamos revelar
a leitura de um grupo de alunos da graduação sobre o artigo nono. Assim, o quadro
tinha especificado qual era o item a ser observado, a data, duração da atividade, idade
e quantidade de crianças envolvidas, qual foi a intervenção do professor de Educação
Infantil, em que espaços e materiais foram utilizados na situação observada.
Dentre os itens a serem observados elencamos: a brincadeira, as linguagens:
gestual, plástica, musical, teatral, escrita, oral dramática, fotográfica, cinematográfica,
corporal, literária (que é foco neste texto). Além disso, foi objeto de observação o
trabalho com gêneros textuais orais e escritos, interações com as linguagens escrita e
oral, desenhos, medidas, espaço, forma, orientação no espaço e no tempo, cuidado
pessoal, auto-organização, saúde, bem estar, vivências com outros grupos,
manifestações e tradições culturais, trabalho com a biodiversidade, sustentabilidade
da vida na Terra e recursos naturais.
Item a ser Data D Idade Quantidade Intervençã Espaço Mate Ativi
observado u de crianças o do riais dade
r envolvidas professor
a
ç
ã
o
Brincadeira
Linguagem
gestual
Linguagem
literária
Quadro 1. Exemplo do quadro de observação.

Os 25 graduandos realizaram 70 horas de observação cada um em uma das


20 escolas de um município mineiro, sendo que deveriam organizar os dados em
situações e agrupá-las no quadro. Uma pesquisa de Iniciação Científica tabulou esses
dados gerados. Desses dados, especificamente, nesta exposição, analisamos as
situações que julgamos estarem relacionadas com o trabalho com a literatura infantil.
Vale ressaltar que o município em questão possui 20 escolas e centros
municipais de Educação Infantil. Desse total, a metade recebe estagiários, tanto na
área central e periférica como na área rural. Dessa forma, consideramos ter uma
amostra significativa das práticas educativas realizadas no município.
Ao todo foram 1750 horas de observação em escolas de Educação Infantil
(creche e pré-escola). Os graduandos podiam escolher o local e se iam realizar o

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estágio em creche ou pré-escola. A organização deles e o número de situações


observadas estão no quadro abaixo:
Educação Infantil Quantidade de Estagiário Número de situações
observadas
Creche (0-3 anos) 10 estagiários 29 situações
Pré-escola (4- 6 anos) 15 estagiários 47 situações
Quadro 2: Situações observadas sobre o trabalho com a literatura infantil.

A partir do quadro, podemos verificar que 10 estagiários realizaram a geração


dos dados em creches e, ao todo, registraram o conteúdo de 29 situações envolvendo
a literatura na escola. Assim, totalizaram 700 horas de observação em diferentes
creches do município. A duração das situações variava entre 10 minutos e 1 hora. A
média de quantidade de tempo por situação foi de 20 minutos. Das 700 horas
observadas, aproximadamente 10 horas foram destinadas para algum trabalho
relacionado à literatura, isso significa que nem 2% do tempo em que os estagiários
estiveram na escola foi destinado para alguma atividade com a literatura.
Dos 15 estagiários que realizaram estágio na creche, com crianças entre 4 e
6 anos (embora hoje por Lei as crianças com 6 anos devam estar no Ensino
Fundamental, havia criança com esta idade em turmas observadas), foram registradas
47 situações, com duração média de 40 minutos. Das 1050 horas observadas,
aproximadamente 32 horas foram destinadas ao trabalho com a literatura, cerca de
3% do tempo.
Proporcionalmente, tanto as crianças menores como as maiores tiveram
quase o mesmo número de situações observadas, no entanto, com as maiores as
intervenções eram mais objetivas e duravam mais tempo. O espaço mais utilizado
para o trabalho com a literatura infantil é a sala de cada turma, cerca de 90% das
situações foram realizadas nesse espaço. Os 10% restantes das situações foram
realizadas no refeitório da escola, no pátio e embaixo de uma árvore.
Especificamente sobre os materiais utilizados, temos o livro (mas na maioria
das situações, um livro utilizado pela professora), painel, cartazes, fantoches, cenário,
folha e lápis e fantasia. De todos os materiais, o livro é o mais utilizado e, em seguida,
os fantoches.
Mostramos as histórias utilizadas no quadro abaixo, vale ressaltar que alguns
graduandos não colocaram o nome da literatura utilizada nas situações observadas:
Título da Literatura Quantidade
de vezes

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Chapeuzinho Vermelho 6
João e o pé de feijão 5
A bela adormecida 3
Pipoca; Ali Babá e os 40 ladrões; O corvo e a raposa; 2
Os três porquinhos; Galinha cocoricó; O ratinho teimoso; Pinóquio; 1
O patinho feio; João e o pé de Feijão; João e Maria; A Bela e a
Fera; Bom dia todas as cores; A gotinha Plim Plim; Barbie e os
segredos da fada; A Pulga e a Daninha;
Barbie; O ponto; Brinquedos; Rapunzel; A tartaruga e a Boneca; A
raposa e a cegonha.
Quadro 3. Títulos de histórias utilizadas nas situações obervadas.

A partir dos títulos elencados podemos destacar a recorrência de contos de


fada e a falta de outros tipos de literatura. Especialmente sobre a intervenção das
professoras observadas, a metodologia mais utilizada foi a mediação de histórias
realizada pela professora, mostrando as ilustrações e fazendo questionamentos às
crianças; em seguida, localizamos situações que envolveram a contação de histórias
pela professora, leitura realizada individualmente pela criança na escola e/ou em casa
e depois mediada ou contada para todos da turma; o reconto oral feito pelas crianças
de uma história mediada pela professora.
Um aspecto que aparece também na intervenção das professoras é uma
prática que eles chamam ―O Zé do livro‖. Foi um projeto proposto pela Secretaria
Municipal da Educação. O Zé é um boneco que cada dia vai para cada de uma criança
com um livro, a criança deve cuidar do Zé e ler o livro para ele. Essa é uma prática
recorrente nas turmas das crianças maiores. Ainda no mesmo projeto, houve uma
proposição para todas as escolas de Educação Infantil fazerem uma atividade de
contação ou mediação em uma praça pública mais próxima da escola. Tal atividade foi
realizada uma vez no ano por cada escola.
A partir dos dados disponibilizados nesta seção, apresentamos, a seguir, a
análise e algumas concepções e proposições para o trabalho com a literatura infantil.
No conjunto das reflexões, tecemos breve fundamentação teórica, para, na sequência,
abordarmos aspectos da formação docente para trabalhar com a literatura infantil na
escola de Educação Infantil, como uma das possíveis justificativas para tão pouco
tempo destinado a práticas literárias; discutimos, também, sobre a oferta e escolha do
acervo literário e a socialização de possibilidades metodológicas.

Literatura na Educação Infantil: desafios e possibilidades

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Os dados gerados na pesquisa ora apresentada e discutida servem-nos de


base para refletirmos quais ainda são os desafios e as possibilidades do trabalho com
a literatura infantil na Educação Infantil. Para tanto, partimos de premissas da Teoria
Histórico-Cultural articulando-as com alguns estudos sobre a literatura infantil.
Compactuamos com Adreanna Peruzzo (2011) que a escola é um dos locais
mais propícios se não o mais propício para a formação de leitores, mesmo
enfrentando esse baixo prestígio pela leitura. Dessa maneira, como propor condições
para que de fato a literatura seja vivenciada na escola e contribua efetivamente para a
humanização das pessoas?
A plenitude da formação de cada pessoal depende do seu entorno
sociocultural. Assim na sua vivência, na relação e na interação com os outros e com
os objetos da cultura cada indivíduo aprende e se desenvolve. As condições de vida,
de educação, incluindo todas as experiências sociais, são responsáveis pela formação
das qualidades e capacidades especificamente humanas (VYGOTSKI, 1995).
A criança se desenvolve em seu processo de humanização por meio das
condições promotoras de aprendizagem que o professor cria nas ações do ensino
intencional. As experiências emocionais e as vivências pessoais são fatores que
interferem no desenvolvimento psicológico da criança, na sua personalidade e na sua
relação com o mundo.
Para Vygostski (1995), quando nascemos somos inseridos no mundo humano
e, nas relações sociais das quais somos sujeitos, vamos desenvolvendo as funções
psicológicas superiores. Tais formas são compostas por dois canais de
desenvolvimento: os processos de desenvolvimento das funções psíquicas superiores:
atenção voluntária, pensamento verbal, memória lógica, a formação de conceitos cujos
fundamentos são as funções elementares de base biológica. E os processos de
domínio dos meios externos do desenvolvimento cultural e do pensamento, dentre
eles a linguagem, a escrita, o desenho, o cálculo.
A aquisição da linguagem, como forma cultural de conduta, provoca um
grande salto qualitativo no desenvolvimento das funções psíquicas no ser humano,
pois exerce a função de instrumento de mediação psicológica. Nesse processo, o
ensino e a aprendizagem exercem um papel central na formação da humanidade do
homem.
Ao elaborar ações intencionais de ensino por meio da leitura da literatura, o
professor oferecerá oportunidades de vivência, busca de significados e atribuição de
sentido às novas experiências. Pensamos que, ao vivenciar experiências de leitura de

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literatura para e com a criança pequena, estamos atuando positivamente para


aprendizagens motivadoras de seu pleno desenvolvimento.
Especialmente a leitura literária nos humaniza ―na medida em que nos torna
mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante‖ (Antônio
CANDIDO, 1995, p. 249). Ela é necessária para toda sociedade. Segundo Brenman
(2005, p.85), ―A literatura é a expressão máxima da criação ficcional de um povo –
suas crenças, contradições, seus costumes, acontecimentos, leis, transgressões etc. -,
que dá aos homens a oportunidade do ―sonho acordado‖‖.
Em consonância com essas assertivas, de acordo com Todorov (2007, p. 76):

A literatura pode muito. Ela pode nos estender a mão quando


estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais
próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos fazer
compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver. Não que
ela seja, antes de tudo, uma técnica de cuidados para com a
alma; porém, revelação do mundo, ela pode também, em seu
percurso, nos transformar a cada um de nós por dentro.

Ainda que seja considerada uma linguagem essencial na formação humana,


nas práticas educativas há, ainda, diferentes lacunas, dentre as quais a questão da
falta de formação docente para trabalhar com a literatura infantil na escola de
Educação Infantil; a oferta e escolha do acervo literário e algumas possibilidades
metodológicas.
A partir dos dados da pesquisa, constatamos pouco tempo, do período em
que a criança fica na escola, destinado para alguma atividade relativa à literatura (2%
e 3% do tempo). Para esse percentual reduzido, aventamos algumas possíveis
justificativas: falta de formação, de material (mesmo com o PNBE) e espaço
adequado, por exemplo.
Especialmente sobre a carência de sólida e rigorosa formação inicial e
continuada de professores, realizamos uma pesquisa sobre a formação do Pedagogo
em relação ao trabalho com a literatura (VALIENGO, RIBEIRO, 2014), no mesmo
município, que apresentamos neste texto. Tal pesquisa demonstra que não há, na
Universidade Federal observada, uma unidade curricular (disciplina) específica sobre
literatura infantil, nem tampouco ela aparece nas ementas propostas no Projeto
Pedagógico do Curso.
Conforme destacam Valiengo e Ribeiro (2014, p. 330) sobre as respostas das
alunas graduadas naquela universidade: ―Apesar de todos afirmarem que o trabalho
com a literatura infantil foi realizado em alguma unidade curricular, muitos afirmam que

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―ela [a literatura] é apenas comentada e pincelada‖ ou ―a professora trabalha mais não


aprofunda muito‖.
Logo, propomos novos aprofundamentos também para os professores
universitários e políticas públicas a fim de que os professores da Educação Infantil
compreendam a função formadora da literatura, pois, como argumentam Juracy
Assmann Saraiva e Ernani Mügge (2006, p. 27):
Grande parte dos professores demonstra desconhecer a
especificidade do texto literário e a função formadora da
literatura, atribuindo a razão da escolha dos textos literários a
aspectos que lhes são exteriores, como a ampliação do
vocabulário, a assimilação de regras de escrita ou, até mesmo, a
preparação para exames de mudança de nível de ensino.

Especialmente na Educação Infantil, percebemos a utilização da literatura


infantil como meio para ensinar costumes, crenças e valores. No projeto mencionado
na seção anterior sobre o ―Zé do livro‖, por exemplo, muitas escolas adotaram a
prática de enviar, junto com o boneco e o livro, um kit de higiene para incentivar as
crianças a tomarem banho e escovarem os dentes. Esse fato parece denotativo de
que esse incentivo é mais importante do que o livro em si.
Sobre a oferta e escolha do acervo literário, outra pesquisa realizada em uma
das escolas de Educação Infantil da mesma cidade (SANTOS, 2014) demonstra que o
acervo que está na escola é oferecido pela Secretaria Municipal de Educação (que,
por vezes, repassa o acervo recebido pelo PNBE), pelas famílias das crianças e pelas
professoras.
A pesquisa de Santos (2014) revela que, segundo entrevista realizada com
professoras de crianças entre 4 e 5 anos, há em cada sala entre vinte e cinquenta
livros que ficam guardados em um armário, sem que a criança tenha livre acesso. A
maioria das escolas de Educação Infantil do município não possui biblioteca ou um
espaço planejado e organizado para facilitar o manuseio do livro. Às crianças
menores, o livro quase nunca é disponibilizado porque elas podem rasgá-los e
estragá-los.
Os livros existentes na escola são armazenados em armários na sala da
turma de cada professora. Nessa perspectiva, se torna relevante refletir se os livros
disponibilizados pela secretaria de educação são trocados de uma sala para outra, se
são devidamente guardados e o estado de conservação desses objetos.
Pela pouca diversidade de títulos, parece que ainda que o PNBE exista e
tenha uma gama de possibilidades literárias, essa ainda não chega na mediação ou
leitura dos professores. Conforme assevera Brenman (2005, p. 144), ―Quanto mais

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amplo for esse leque, mais opções oferecemos de contato com diferentes culturas,
diferentes estilos literários, diferentes situações do cotidiano‖. Além dos clássicos, o
autor sugeri que deveria ter poesia, contos populares, contos de fada, álbuns
ilustrados.
Brenman (2005, p.146) defende cada um desses estilos: ―a poesia carrega
em si o lúdico, o jogo, a sonoridade [...] Os contos populares [...] procuram mostrar
como, em diferentes locais, épocas e culturas os homens pensam, sentem e se
relacionam com a natureza e a sociedade‖. Sobre os álbuns ilustrados esse mesmo
autor sinaliza que [...] são livros produzidos pelas editoras [...] Seus textos concisos,
repetições e ilustrações coloridas têm sido um dos principais instrumentos de contato
primeiro de crianças [...] com livros de literatura‖ (BRENMAN, 2005, p. 147).
Nessa perspectiva, cada gênero literário traz consigo muitas possibilidades
para vivências estéticas, artísticas, de fruição que vão para muito além de ensinar
números e letras, por exemplo, mas que por si só ensinam a todo tempo.
Dentre as maneiras de intervenção do professor destacamos as duas mais
realizadas pelas professoras observadas na pesquisa em discussão: a mediação e a
contação de histórias. Por serem as práticas mais efetivadas pelas professoras
observadas, vale destacar alguns conceitos e aprendizados possíveis quando a
criança ouve a literatura mediada ou contada pelo professor.
Segundo Bajard (2012), a contação é uma narrativa veiculada pela língua do
contador, não está ligada diretamente a um texto fixo. Ela deve fazer parte da rotina
diária da Educação Infantil (fato não observado nesta pesquisa).
A mediação ou proferição, como conceitua Bajard (2012), é uma maneira de
iniciar o ouvinte na língua escrita. É a manifestação sonora de um texto fixo. Alguns
benefícios acarretados com a mediação são: a extensão do vocabulário, o
conhecimento da complexidade da gramática e da riqueza da estrutura do texto
(BAJARD, 2012).
Para além desses benefícios, ao ouvir o professor mediar, a criança aprende
o comportamento de leitor, e, aos poucos, vai se tornando leitora também. Ainda que
não saibam ler convencionalmente, as crianças, na relação com a cultura letrada, por
meio da escuta, têm a possibilidade de imitar, um dos principais modos de aprender
na infância.
O preparo e o desenvolvimento da contação e da mediação devem ser
tarefas pedagógicas intencionais e cuidadosas. Como já mencionado, a literatura
infantil, como objeto cultural, oferece oportunidades de humanização em diferentes
momentos da vida. Nessa ótica, no espaço escolar, o professor oferece condições
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para que se torne fonte de aprendizagem de conhecimentos motivadores do


desenvolvimento da inteligência e da personalidade infantil. Tais práticas educativas
devem estar além de finalidades moralizantes ou didáticas, voltadas para o ensino de
elementos gramaticais, por exemplo.
Com essa perspectiva, a escolha da história a ser contada depende
principalmente das necessidades infantis e da sua riqueza para ampliação das
referenciais linguísticas, artísticas, culturais das crianças. A escolha do texto literário e
as maneiras de contar são possibilidades de situações motivadoras do envolvimento
das crianças nos momentos de contação e de proferição de histórias. Nessa medida, o
primeiro passo do processo envolve a escolha do texto, assim como conhecê-lo, para,
depois, se pensar em maneiras de veiculá-lo, o que envolve refletir sobre a utilização
da voz, gestos e/ou objetos que farão parte da contação, por exemplo.
Alguns materiais diversificados colaboram em situações que envolvem a
literatura e a oralidade, tais como fantoches, dedoches, materiais reciclados,
desenhos, tecidos, bichos de pelúcia, dentre tantos outros. Tais objetos podem
provocar o envolvimento infantil, ativando, no processo, o aperfeiçoamento da
concentração, atenção, imaginação e criatividade.
Antes de contar a história, e ao término também, professor e criança realizam
importantes rituais para essa atividade: sentam-se roda, podem cantar uma música,
colocar um tapete, utilizar algum objeto, fazer uma brincadeira. Depois da contação, as
crianças podem recontá-las, de maneira a desenvolver a memória, linguagem oral,
organização da sequência e atenção. Quando existir um livro fonte, esse é
apresentado para a criança e, dependendo do caso, o professor realiza a mediação
entre a obra e a criança, permitindo que ela perceba a diferença entre a contação e a
publicação.
Na tentativa de refletir sobre alternativas sobre ―O descompasso entre o
discurso e a prática pedagógica [que] se torna cada vez mais visível quando a seleção
de obras, a metodologia aplicada à leitura e a finalidade atribuída à inserção da
literatura nas atividades docentes são analisadas‖ (SARAIVA; MÜGGE, p. 27). Com
essa compreensão, defendemos um investimento da formação dos professores que
contemple fundamentos para a organização intencional de espaços, tempos e
materiais para que a escola de fato passe a ser o lugar, por excelência, onde se forma
leitores de literatura.

Considerações Finais

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Ao longo deste texto, tivemos como objetivo analisar práticas de ensino com a
literatura infantil em escolas de Educação Infantil de um município de Minas Gerais, a
partir de uma pesquisa qualitativa, utilizando dados gerados por um grupo de
estagiários do Curso de Pedagogia de uma universidade federal mineira. Dados esses
catalogados em uma pesquisa de Iniciação Científica (SANTOS, 2017).
Consideramos, a partir da análise dos dados que, das 1750 horas observadas
em diferentes escolas de Educação Infantil de um município mineiro, somente 2% do
tempo nas creches e 3% do tempo na pré-escola são destinados para o trabalho com
a literatura infantil.
Durante esses 2% e 3% do tempo, as situações propostas são realizadas
sobretudo na sala da turma e, nesses momentos, o material mais utilizado são o livro e
o fantoche; as histórias contadas com maior frequência são os contos de fada em
versões simplificadas, com textos extraídos do original e com ilustrações pobres e
padronizadas.
Há professoras observadas na pesquisa que optam pela contação e outras
pela mediação do texto, ainda assim, refletimos sobre a necessidade de organização
de tempos e espaços propícios para que a criança se relacione com o livro, assim
como de outras metodologias voltadas para a ampliação das vivências da criança com
o mundo da literatura.
Para tanto, defendemos que os professores da Educação Infantil tenham rica
e sólida formação inicial e continuada que o instrumentalize para as melhores
escolhas do acervo literário, da organização de tempos, espaços, materiais e
situações possibilitadores da garantia da inserção das crianças no mundo literário.

Referências

BAJARD, E.A Descoberta da língua escrita. São Paulo, Editora Cortez, 2012.

BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Resolução CEB n.


05, 17 dez. 2009. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Infantil.DiárioOficial da União.Brasília, DF, 18 de dezembro de 2009.

BRENMAN, I. Através da vidraça da escola: formando novos leitores. São Paulo:


Casa do Psicólogo, 2005.

CANDIDO, A. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995.

LIMA, E. A. de; VALIENGO, A. Literatura infantil e caixas que contam histórias:


encantamentos e envolvimentos. In: CHAVES, M. (Org.). Práticas pedagógicas e
literatura infantil. Maringá: Eduem, 2011. p. 55-67.

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LÜDKE, M. ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas.


São Paulo: EPU, 1986.

PERUZZO, A.. A Importância da literatura Infantil na formação de leitores.


Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 1. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011.

SAMPAIO, M. Leitura e Contação de Histórias na Educação Infantil: um estudo sob


a perspectiva da Teoria Histórico-Cultural (2016). Dissertação de Mestrado. Unesp –
Campus Marília.

SANTOS, I. C. B. A.. A literatura infantil na escola: relações e práticas na


construção do gosto pela leitura. Trabalho de Conclusão de Curso. UFVJM. 2014.

SANTOS, J. A. O currículo na Educação Infantil de Diamantina: desvelamento das


práticas educativas. Iniciação Científica. UFVJM. 2017.

SARAIVA, A.; MÜGGE, E. Literatura na escola: propostas para o ensino


fundamental. Porto Alegre: Artmed, 2006.

TODOROV, T.. A literatura em perigo. Trad. Caio Meira. 3ª. Ed. Rio de Janeiro:
editora DIFEL, 2007.

VALIENGO, A.; RIBEIRO, A. E. M.. Formação na graduação de Pedagogia (UFVJM)


do professor das séries iniciais do ensino fundamental para o trabalho com a leitura
literária. In: COLE, 2014.

VALIENGO, A.; SOUZA, S. P.. O mundo do faz-de-conta e os livros: a criança de 3 a 6


anos. In: GIROTTO; SOUZA, Literatura e educação infantil: livros, imagens e prática
de leitura. Campinas: Mercado das Letras, 2016.

VYGOTSKI, L.S. Obras Escogidas, Vol. III. Madrid: Visor. 1995.

ZILBERMAN, R.. A literatura Infantil na escola. 11º ed. São Paulo: editora
Global,2003.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

ENSINO DE LITERATURA E FORMAÇÃO DE VALORES


HUMANOS.

Luzia Ferreira Pereira Enéas312


Universidade do Minho – Portugal e Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte – UERN.
Eixo temático 8 – Literatura infantil e ensino.

Considerações Iniciais

O mundo da modernidade técnico-científica elevou a humanidade a uma


realidade jamais sonhada, mas, por outro lado, estagnou a humanidade do próprio
homem. O conhecimento que a humanidade construiu sobre tecnologias, sobre teorias
e fórmulas não serve para a própria humanidade se conhecer. A literatura ou os textos
literários surge como uma das formas mais complexas de percepção do humano. É
sabido que em todo processo educativo encontra-se um modelo ou uma imagem de
sociedade, de comportamento, de aprendizagem e de ser humano a ser formado, a
ser construído, resinificado.
O sociólogo Emile Durkheim dizia que o objetivo da educação não é
transmitir mais e mais conhecimentos aos alunos, e sim criar neles um estado interior
e profundo, uma espécie de polaridade de espírito que o oriente em um sentido
definido durante toda a vida (Durkheim apud Morin, 2000). A tarefa da educação se
torna ainda mais difícil quando precisa introduzir na dinâmica escolar a compreensão
pelo outro e o respeito às diversidades.

312
Professora da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte –
UERN; mestre em Ciências Sociais pela UFRN; Aluna do Programa de Pós-Graduação –
Doutorado – Em Estudos da Criança da Universidade do Minho/Portugal e membro do Grupo
de Pesquisa do Pensamento Complexo (GECOM/UERN).
Este artigo estar vinculado à tese que tem como título provisório: A importância dos
picturebooks no desenvolvimento de valores humanos: um estudo de caso na educação de
infância no Rio Grande do Norte.Tendo como orientador o professor Doutor Fernando Azevedo
da Universidade do Minho/Portugal.
1536

Edgar Morin, no seu livro A cabeça bem-feita (2006), aponta para uma
discussão sobre a influência da ciência sobre a educação e o ensino. A ciência
esfacelou o conhecimento, compartimentalizando em partes. Esse conhecimento
fragmentado contribui para a divisão da organização social do trabalho, assim como
também para a divisão do ensino em conteúdos e disciplinas isoladas.
Por sua vez, Boaventura Santos (2004), ao defender uma perspectiva
emergente na construção do conhecimento no mundo contemporâneo, advoga que ―o
caráter autobiográfico e auto referencial de ciência é plenamente assumido‖ Postula-
se tal dimensão nesse estudo a ser realizado sobre a humanização do currículo, por
apostar numa forma de construção do conhecimento que poderá adentrar nos
aspectos subjetivos e compreensivos mais íntimos das crianças, não permitindo a
separação de sua história de vida do processo de aprendizagem escolar. De acordo
com Jacques Delors (2012, p. 73).

Não basta de fato que cada um acumule, no começo da vida,


determinada quantidade de conhecimentos de que se possa
abastecer indefinidamente. Antes disso, é necessário estar à altura
para aproveitar e explorar, do começo ao fim da vida, todas as
ocasiões de atualizar, aprofundar e enriquecer esses primeiros
conhecimentos, e de se adaptar a um mundo em mudança.

Valores como solidariedade, cooperação, respeito mútuo, tolerância,


compreensão dentre outros, estão presentes tanto na escola como em qualquer outro
espaço da sociedade. Esses são valores presentes na educação desse novo século
alicerçada pelos quatro pilares da educação: aprender a conhecer; aprender a fazer;
aprender a viver-juntos e aprender a ser (Delors, 2012, p. 73). O foco desse trabalho
são os dois últimos pilares porque contemplam atitudes, afetos, respeito à diferença;
uma vez que, contribuem para a educação integral do sujeito. O aprender a conhecer
e o aprender a fazer, já são contemplados pela educação que se apresenta. (Delors,
2012, p.81) Embora a educação esteja mais voltada para o aprender a conhecer.
Entendemos que, as quatro aprendizagens devem ser consideradas de forma igual por
parte da educação ―como uma experiência global a ser concretizada ao longo de toda
a vida, tanto no plano cognitivo, quanto no prático, para o indivíduo como pessoa e
membro da sociedade.‖ (Delors, 2012, p. 74) Viver-juntos perpassa por aprender a
conviver com a diferença, com aquilo que lhe é contrário. Se por um lado a educação
permite-nos acesso aos diversos conhecimentos por outro deve ―... levar as pessoas a

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tomar consciência das semelhanças e da interdependência que existe entre todos os


seres humanos do planeta.‖ (Delors, 2012, p. 79)

Valores humanos e literatura

A educação sempre investiu em metodologias embasadas na razão


instrumental, numa educação que possibilitasse a entrada dos sujeitos no mercado de
trabalho, numa profissionalização exagerada que afasta o ser humano do que é
humano e o transforma em ser robotizado. Um ser que tem como visão e concepção
de mundo o mercado, o salário, preocupado em ter e acumular cada vez mais bens
materiais, esquecendo a vida, os desejos, os sonhos e, sobretudo, o outro, que passa
a ser alguém que vai atrapalhar e interferir nos seus objetivos materiais. (Ailton
Fonseca; Luzia Enéas, 2011).
É preciso ultrapassar a concepção de educação restrita para fins meramente
instrumental como meio de aquisição de habilidades para desenvolvimento de
atividades diversas no meio social; para um ensino voltado para o sujeito, no
fortalecimento de seu potencial criativo ―revelar o tesouro escondido em cada um de
nós.‖ (Delors, 2012, p. 74) Essa forma de pensar o ensino proporciona plenitude e
realização do sujeito em toda sua complexidade – o aprende a Ser.
Desafios não faltam à educação do século XXI. Aprender a viver-juntos, o
terceiro pilar da educação é um deles, uma vez que, estamos numa sociedade que
estimula a concorrência e a competição negando o outro como sujeito que possui
sentimentos. Os meios de comunicação tem um papel fundamental na disseminação
dos acontecimentos na sociedade deixando a opinião pública ―... refém dos que criam
ou mantém os conflitos.‖ (Delors, 2012, p. 79)
Aprender a viver-juntos é uma aprendizagem de maior desafio nos dias atuais.
Desde que temos conhecimento de sociedade há conflitos devido a diferenças de
ideias. No entanto, esses conflitos tornaram-se instrumento de perigo ainda maior de
destruição e autodestruição pela humanidade no século XX com o acesso fácil a
tecnologia e aos meios de comunicação.
Ensinar a não violência, ou seja, ensinar para o desenvolvimento de atitudes
geradoras de afetos, compreensão, resolvendo os conflitos e as diferenças de forma
pacífica. Essa é certamente uma tarefa difícil, visto que os seres ―humanos tem uma
tendência de supervalorizar as suas qualidades e as do grupo a que pertencem, e a
alimentar preconceitos em relação aos outros.‖ (Delors, 2012, p. 79)

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Viver-juntos perpassa por aprender a conviver com a diferença, com aquilo que
lhe é contrário. Se por um lado a educação permite-nos acesso aos diversos
conhecimentos por outro deve ―... levar as pessoas a tomar consciência das
semelhanças e da interdependência que existe entre todos os seres humanos do
planeta.‖ (Delors, 2012, p. 79) Isso deve ser feito desde e principalmente nos primeiros
anos da criança na escola, ou seja, na educação infantil. O outro é aquilo que se quer
que seja daí a importância do conhecimento de si mesmo. A compreensão do outro
começa pela compreensão que se tem de si mesmo, da sociedade e dos valores que
se adquire ao longo da vida, seja pela escola ou pelos pais. O confronto de ideias
através do diálogo deve ser estimulado pela educação como um dos instrumentos de
superação do ódio, da incompreensão presentes nas relações humanas.
O que desumaniza a educação não são os conteúdos disciplinares, mas as
relações estabelecidas dentro e na escola. O viver-juntos, o conviver com o outro
implica em conviver também com as diferenças, de raça, de cor, de religião. Isso
provoca conflitos, mas também possibilita o crescimento humano num contexto social
cada vez mais diverso.
Aprender a viver-juntos, aprender a viver com o outro possibilita o
crescimento e o fortalecimento do aprender a ser o quarto pilar da educação para o
século XXI. ―A educação deve contribuir para o desenvolvimento total da pessoa –
espírito, corpo, inteligência, sensibilidade, sentido estético, responsabilidade pessoal e
espiritualidade.‖ (Delors, 2012 p. 81) Com a desumanização do mundo em virtude da
evolução técnica é necessário oferecer as crianças meios que lhes permitam crescer,
com liberdade de pensamento, mas, sobretudo ―... responsáveis e justos.‖ (Delors,
2012 p. 81).
É fundamental que o ensino hoje ofereça a todos os seres humanos o
desenvolvimento de suas capacidades dando-lhes a liberdade de pensamento, a
compreensão do mundo que os rodeia, os sentimentos, emoções, imaginação. Esses
atributos darão aos sujeitos autonomia no que se refere aos talentos individuais e
coletivos.
Os motores fundamentais num mundo em constante mudança são a
criatividade e inovação. Nesse sentido a educação deve ―... oferecer às crianças e aos
jovens todas as ocasiões possíveis para a descoberta e a experimentação – estética,
artística, desportiva, científica, cultural e social-...‖ (Delors, 2012 p. 81). Que possibilite
compreender o que aconteceu às gerações que os precederam e as gerações com as
quais convivem. A história e a preservação da cultura são fundamentais para a
formação das novas gerações. De acordo com Delors (2012, p.82) o ser humano se
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desenvolve e se realiza do nascimento a morte, ―é um processo dialético que começa


pelo conhecimento de si mesmo para se abrir, em seguida, à relação com o outro.‖
(Delors, 2012, p.82).
Significa dizer que a educação é um processo contínuo e permanente que dura
à vida toda. ―O saber, o saber-fazer, o saber viver-juntos e o saber ser, constituem
quatro aspectos intimamente ligados de uma mesma realidade.‖ (Delors, 2012, p. 88)
Ou seja, a educação é marcada por experiências do dia-a-dia, exigindo por um lado
reforço de práticas e repetição de atitudes; por outro é um momento particular, único
de cada sujeito. A educação reúne ao mesmo tempo dois lados opostos e
complementares: a educação formal e informal. Essa é a educação que possibilita a
formação integral do sujeito, que rejunta saberes, valores e normas adquiridos na
família como um ―elo de ligação entre o emocional e o cognitivo...‖ (Delors, 2012, p.
91)

Os caminhos da educação

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) foi uma tentativa de dar conta


desses aspectos educacionais, tendo em vista, que a educação ocorre dentro de um
contexto histórico/social/cultural. A sociedade está em constante processo de
mudança, a inserção da tecnologia, o acesso fácil à informação, à mudança nas
relações familiares, nos valores, princípios a serem concebidos pela criança, já não
contemplava os objetivos do modelo de educação utilizado.
Os conteúdos disciplinares e as didáticas dos professores não eram suficientes
para questões que surgiam no cotidiano escolar como: relações de convivência entre
as crianças, a violência, a agressividade. Nesse contexto, de tramas diversas, de
conflitos quanto às questões existenciais e subjetivas das crianças, os temas
transversais surgem como uma possibilidade de reforçar o trabalho educacional. Vale
salientar, que não se trata de mais disciplinas e sim de trabalhar esses temas de forma
interdisciplinar e transdisciplinar.
Dentre os temas transversais apontados para serem contemplados no currículo
a ética se destaca por permear todas as áreas do conhecimento, e por perpassar os
outros temas, como pluralidade cultural. Ética, aqui entendida como valores e
princípios para a formação de uma educação mais humanizada, onde está presente o
respeito mútuo, o diálogo, a solidariedade, condições básicas para a convivência com
o outro e para a construção da identidade do sujeito.
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A ética está intrinsicamente relacionada com a conduta humana, a atitude de


uns para com os outros. A ética deve ser concebida pelos valores de equidade social,
cultural, econômico e político.O tema Pluralidade Cultural vem corroborar com o tema
da Ética por considerar as diferenças, diversidades, os valores e costumes de cada
Ser. Entendendo que somos seres individuais e ao mesmo tempo coletivos. A
Pluralidade Cultural possibilita a toda sociedade brasileira a compreensão da imensa
diversidade étnica e cultural, convivendo e mantendo relações na construção da
identidade de si mesmo e da identidade nacional.
Apesar da grande complexidade de etnias no Brasil e mesmo com todos os
conflitos existentes, há o que podemos chamar de ―brasilidade‖, onde cada um
reconhece a si mesmo, com sua identidade e costumes, reconhecendo também a
diferença no outro.
O ensino da literatura se apresenta como uma forma possível e eficaz de dar
outra formação e outra metodologia no tratamento dessas questões subjetivas,
existenciais e cotidianas dos sujeitos envolvidos com ela. Portanto, o ensino da
literatura só pode ocorrer de forma transdisciplinar e não pode ser reduzido a escolas
literárias, a categorias de interpretações como aquelas que a critica literária faz.
Trabalhar com a literatura em sala de aula é uma forma de investir no aprender a
conhecer e no aprender a ser dos quais fala os PCNs:

O ser humano que não conhece a literatura tem uma


experiência de aprendizagem limitada, escapa-lhe a dimensão
do sonho, da força comunicativa dos objetos à sua volta, da
sonoridade instigante da poesia, das criações musicais, das
cores e formas, dos gestos e luzes que buscam o sentido da
vida (PCNs, 2001, p. 21).

Os textos literários podem contribuir para o desenvolvimento integral do sujeito


em todos os seus aspectos: ―físico, afetivo, intelectual, linguístico e social,
complementando a da família e da comunidade.‖ (Lei n° 9.394/96, art. 29). Uma vez
que, desperta o lado criador na valorização dos princípios estéticos de sensibilidade,
criatividade, ludicidade.
A formação integral insere-se na educação tanto no ato de cuidar como no
educar. O cuidar aqui no sentido ético, pautada na orientação e dimensão pedagógica
―... numa rede de valores humanos...‖ (Gaston Bachelard, 2009, p. 99) A criança
precisa se relacionar com as mais variadas situações do cotidiano, compreendendo-se
como sujeito ativo dessas práticas, mas que necessita conviver com o diferente a si
mesmo.
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O contexto social global é um exemplo disso: desenvolveu-se um grande


cenário de ciência tecnológica, um grande mercado de bens, serviços e comunicação,
mas os sujeitos estão cada vez mais confusos, descrentes, angustiados, inseguros,
comunicando-se apenas funcionalmente uns com os outros. Em outras palavras, o
mundo da modernidade técnico-científica elevou a humanidade a uma realidade
jamais sonhada, mas, por outro lado, estagnou a humanidade do próprio homem. Foi
por perceber isso que o pensador e educador Edgar Morin disse: ―o conhecimento da
humanidade não corresponde a um conhecimento de humanidade‖ (2002).
Observamos as transformações da humanidade, mas os processos de
formação parecem ter parado no tempo. Como disse Albert Einstein em ―Como vejo o
mundo‖ (1981), ―o mundo mudou, mas nossa visão de mundo continua a mesma‖.
Segundo Bachelard (2009) as histórias contadas aos netos, os contos
fabulosos incute nas crianças que cresceram ouvindo histórias o ato de contar
histórias, mesmo que criem suas próprias fábulas, ―a criança é um sujeito histórico...
constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende,
observa, experimenta , narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a
sociedade, produzindo cultura.‖ (MEC, 2009, art. 4°)

Considerações finais

As dificuldades de leitura, a falta de hábitos de leitura, proporcionada por um


mundo cada vez mais informatizado, televisivo e cheio de jogos atrativos, levou o
governo brasileiro a criar programas destinados ao desenvolvimento da leitura desde
os primeiros anos de idade. O PNLL (Plano Nacional do Livro e Leitura) é um
programa desenvolvido no Brasil que visa à distribuição de livros de literatura para a
educação infantil, como meio de contribuir com a construção dos hábitos de leitura
dentro e fora da escola.
O PNLL foi criado em 2005, mas implantado somente em 2009. Tendo como
intuito transformar o Brasil num país de leitores. Um dos princípios que inspiraram o
PNLL foi Paulo Freire com o seu método ―revolucionário‖ de educação, que tem como
princípio a leitura de mundo, ou seja, transformação social através da leitura.
Nos anos 80 já se falava em analfabeto funcional e letramento. Começava-se a
compreender a leitura para além do aprender a ler, ou seja, a partir de uma
perspectiva crítica fazendo parte do cotidiano dos sujeitos, da qual pregonizava Paulo
Freire. Bem como do estabelecer uma ação conjunta entre estado e sociedade e a
indissociabilidade entre a cultura e a educação para a formação de leitores. (PNLL,
2014, p. 14)
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Nos quatro primeiros anos o PNLL passou de uma mera política de compra de
livros para políticas públicas de livros, literatura e bibliotecas. A leitura da literatura é
condição fundamental para o desenvolvimento de um sujeito mais humanizado. No
entanto, essa leitura não pode limitar-se a obrigatoriedade das escolas. O ler por
prazer, no cotidiano precisa ser estimulado desde a tenra idade. Para o MinC
(Ministério da Cultura) ―as palavras livro, leitura e literatura referen-se,
respectivamente, às três dimensões de nossas políticas culturais – a econômica, a do
direito da cidadania e a do valor simbólico.‖ (PNLL, 2014, p. 24)
O PNLL é uma ação conjunta com a sociedade e precisa do envolvimento do
estado, da escola e da família. Sem essa articulação as três dimensões acima citadas
não acontecem.
O PNLL apresenta quatro eixos norteadores:
1. Democratização do acesso;
2. Fomento à leitura e à formação de mediadores;
3. Valorização institucional da leitura e incremento de seu valor simbólico;
4. Desenvolvimento da economia do livro como estímulo à produção intelectual
e ao desenvolvimento da economia nacional. (PNLL, 2014, p. 3)
Os quatro eixos norteadores do PNLL demonstram a preocupação em
desenvolver uma política de acesso ao livro de literatura desde a infância. Uma vez
que, três quatos da população brasileira não conseguem ler e interpretar o mundo a
sua volta. (Dados do Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional – INAF).
A ausência de um hábito de leitura que deve ser adquirido na infância prejudica
o desempenho em todas as áreas do conhecimento. A literatura possibilita uma visão
de mundo para além do que se apresentam perceptíveis aos olhos. Não vamos nos
deter em números, pois é sabido que as condições das crianças para a leitura é
rudimentar. Desprezam o livro, a história, porque lhes falta estímulo. Não se trata
apenas de colocar o livro na escola, construir bibliotecas. E sim, do professor leitor
incentivar às crianças para adquirirem o gosto e o hábito da leitura por prazer.
Para além, do fortalecimento de políticas públicas do livro, é preciso que haja
uma valorização da cultura em todos os seus aspectos. A cultura sofre influência da
escola, da família, da mídia, da religião, que também são influenciados pela cultura,
pelo contexto social. A escola pode ou não reforçar a cultura existente.
Todos esses setores de contextos culturais podem contribuir para a construção
de sujeitos leitores. Para isso, o PNLL traz em seus princípios aspectos qualitativos e
qauntitativos. Os quantitativos envolvem o livro como destaque do imaginário nacional
e a construção de famílias leitoras, que contam histórias para influenciar as novas
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gerações; o qualitativo está destinado à escola, com a função de formar mediadores


de leitura. Ora, se os dois primeiros princípios ocorrerem o terceiro será uma
consequência, uma vez que, o professor, ou melhor, dizendo o educador já chega à
escola com hábitos de leitura literária.
A ênfase do PNLL dada à literatura é por entender que esta contribui para a
formação integral do sujeito. A literatura abre caminhos para a fantasia, formação de
valores, conhecimento e aprendizado do mundo. O século XXI é um século de
informação, do audiovisual, da internet e de seu acesso em todos os lugares. Esses
meios estão polarizados em todos os setores, áreas de conhecimento independente
de cor, raça, condição econômica. Chega a todos. Essa tecnologia é formadora de
opinião, gerando grandes movimentos sociais sem muitas vezes ter noção do que
realmente há por trás da informação.
A formação do sujeito integral não descarta a tecnologia, vivemos em
sociedade e convivemos com as mudanças. No entanto, é preciso formar um sujeito
crítico que seja capaz de interagir socialmente, mas que não perca sua humanidade,
sua preocupação com o outro, o desejo e o prazer de conviver com o outro. Leitura da
literatura é um hábito que se adquire ao longo da vida, como bem diz Morin (2006)
estamos em constante processo de aprendizado e segundo Lévi-Strauss as crianças
estão mais aptas a aprender, porque estão livres dos vícios e das angústias dos
adultos.
Nesse sentido é necessário que se desenvolva o hábito de leitura na pré-
escola, onde as crianças estão mais abertas ao saber, onde a fantasia reina num
mundo imaginário ao ouvir uma história ou ao pegar em um livro.

Para redescobrir a linguagem das fábulas, é necessário participar do


existencialismo do fabuloso, tornar-se corpo e alma de um ser
admirativo, substituir diante do mundo a percepção pela admiração.
Admirar para receber os valores daquilo que se percebe. (Bachelard,
2009, p. 113).

A seleção dos livros para as crianças da educação infantil ocorrem nos anos
pares, portanto os livros a serem distribuídos em 2014 foram selecionados em 2012. A
seleção ocorre por meio de edital público através do Ministério de Educação Básica e
do Fundo de Desenvolvimento da Educação FNDE. Após a seleção os livros
contemplados são distribuídos na rede pública de todo país. Para o MEC ―o livro
destinado às crianças precisa envolver sentimentos, valores, expressão, fantasia,
movimento e ludicidade, permitindo inúmeras interações.‖ (Brasil, 2012, p. 19).

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Um livro de literatura infantil deve ser capaz de chamar a atenção pelas


imagens, pela composição gráfica, pela história, mas também deve despertar a
curiosidade e a criatividade. Não se trata de um objeto exposto na estante da sala.
Trata-se da oportunidade oferecida à criança de viverem outras experiências, de ter
conhecimento de outros lugares, de outros modos de Ser. Não pode ser qualquer
obra, tem que ser uma obra literária que permita a abertura para a compreensão de
que na sociedade existem contextos socioeconômicos e culturais diversos.

O PNLL; os PCNs e as Diretrizes Curriculares para a Educação Infantil são


fortemente contemplados do ponto vista teórico pelos critérios de escolha dos livros
por um lado; por outro fica a cargo da escola e essencialmente do educador
possibilitar todos os meios possíveis para adaptação da leitura no contexto vivido.
Como bem diz Morin (2006) é trabalhar o global no local e o local no global.

A literatura pode ser definida com significado sedutor, operando através do


desejo e da imaginação as múltiplices variações do contexto de que fazemos parte.
―Esta multiplicación pluridimensional de gradaciones es el arte, que actúa sobre el
entorno ofreciendo productos – pintura, poesía, danza, música... – que nos lanzan al
abismo de la complejidad de relaciones existentes en nuestra realidad perceptíble.‖
(Teresa Duran, 2002, p. 56) A literatura é um saber que envolve não só saberes
científicos ou racionais, mas e, sobretudo envolve os sentidos, os sentimentos, as
emoções e a sensibilidade, tão perdida no ser humano da sociedade moderna.

Referências

Brasil. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes Curriculares


Nacionais Gerais da Educação Básica. Brasília, 2013.

Brasil. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Plano Nacional do


Livro e Leitura. Edição atualizada Brasília, 2014.

Brasil. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica.Parâmetros


curriculares nacionais: tema transversal ética.Brasília: MEC/SEF, 2001.

Brasil. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica.Parâmetros


curriculares nacionais: tema transversal pluralidade cultural.Brasília: MEC/SEF, 1997.

Brasil. Lei de Diretrizes e Bases da Educação: Lei n° 9394/96.

Brasil. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Fundo Nacional de


Desenvolvimento da Educação: FNDE. Edital de convocação 04/2012. Brasília, 2012.

Bachelard, Gaston. A poética do devaneio. Tradução Antônio de Pádua Danesi. - 3ª.


ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.
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Duran, T. Leer antes de leer. Editora Anaya: Madrid, 2002.

Delors, Jacques. Educação: um tesouro a descobrir. Tradução José Carlos Eufrázio. –


7. ed. Revisada – São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2012.

Einstein, Albert. Como vejo o mundo.Tradução de H. P. de Andrade. Rio de Janeiro:


Nova Fronteira, 1981.

Fonseca, A. S. S.; Enéas, Luzia Ferreira Pereira. Por um reencantamento da


educação. In: Francisco Ari de Andrade; Jean Mac Cole Tavares dos Santos (org).
Formação de professores e pesquisas em educação: teorias, metodologias, práticas e
experiências docentes. 1 ed. Fortaleza: Edições UFC, v., p. 15-31. 2011.

Freire, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Saberes necessários à prática educativa. São


Paulo, Brasil: Paz e Terra, 1997.

Indicadores de qualidade na educação/Ação Educativa. UNICEF/PNUD/MEC


(coordenadores). São Paulo: Ação Educativa, 2004.

MORIN, Edgar. Diálogo sobre o conhecimento.São Paulo: Cortez, 2004.

______. a cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. tradução de


Eloá Jacobina. 12 edição. Rio de Janeiro: Betrand Brasil, 2006.

______. Os sete saberes necessários à educação do futuro.Tradução de Catarina


Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya; revisão técnica de Edgard de Assis de
Carvalho. 2. ed. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2000.

______. O método V: a humanidade da humanidade/A identidade humana. Porto


Alegre: Sulina, 2002.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências.2. Ed. São Paulo:


Cortez, 2004.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

IDENTIDADE E MEMÓRIA EM OS MENINOS MORENOS DE


ZIRALDO: UM DIÁLOGO COM O FLICTS EM BUSCA DA
IDENTIDADE CULTURAL DO JOVEM LEITOR

Marciele Marchesan, Universidade do Estado de Mato Grosso –


UNEMAT/campus Sinop, Programa de Pós-Graduação em Letras – PPG
Letras, Literatura Infantil e Ensino, Capes/CNPq

Considerações Iniciais

Com caráter de pesquisa histórico-literária, o presente artigo tem como objetivo


analisar a obra Os Meninos Morenos (2005) realizando um diálogo com o Flicts
(2005), ambas escritas por Ziraldo, voltadas para o público infantil juvenil. Em Os
Meninos Morenos, o autor rememora suas experiências de infância, abordando a
complexidade da formação do povo latino americano. Em Flicts, Ziraldo narra à
história de uma cor que não encontrava seu lugar no mundo, entretanto, há
controvérsias, já que a cor Flicts pode ser vista como a busca do indivíduo pela sua
própria identidade.
Apesar de serem escritas em épocas distintas, às duas narrativas dialogam
entre si, pois suas temáticas relacionam-se e completam-se. Nesse artigo, além da
análise e discussão sobre a identidade, buscamos discutir a respeito da questão da
narrativa memorialística. Por fim, discutimos a respeito da formação do leitor e a
importância da literatura infantil juvenil para a formação da identidade cultural, para
que essa criança ou jovem leitor possa se reconhecer nela e saber interpretar a sua
própria cultura.
A metodologia utilizada na escritura desse artigo foi a da pesquisa bibliográfica,
de cunho qualitativo. Para sustentação da análise recorremos a alguns teóricos como
Candido (1989, 1972) tratando sobre a questão humanizadora que a literatura exerce
sobre o ser humano; Cosson (2012) com relação ao letramento literário e a formação
1547

do leitor; Halbwachs (2004) fazendo uma abordagem sobre a perspectiva da memória


individual e coletiva e Hall (2002) com relação à identidade.
Pode-se concluir que a obra de Ziraldo fornece uma infinidade de informações
históricas e culturais de uma forma leve e descontraída, além de fornecer ao leitor que
está em formação um pouco sobre a nossa história, cultura e origem, a fim de revelar
quem nós somos e poder sensibilizar e tornar as crianças e jovens mais críticos e
receptivos a diversas temáticas, além de fazer com esses jovens entendam, apreciem
e tenham orgulho das origens da qual fazem parte.

Ziraldo: um menino moreno que se mostra – Do interior do Brasil para o Mundo

Ziraldo Alves Pinto nasceu na cidade de Caratinga, em Minas Gerais. Desde a


infância, Ziraldo já demonstrava paixão pelo desenho e pela literatura. A carreira de
Ziraldo começou com o trabalho em jornais e revistas, posteriormente, ilustrou
diversos cartazes para filmes do cinema brasileiro. Por conta da diversidade de sua
obra, não é possível limitá-lo apenas às artes gráficas. Ele é um artista que tem, ao
longo dos anos, desenvolvido várias facetas de seu talento. Ziraldo é pintor, jornalista,
teatrólogo, chargista, caricaturista e escritor.
Na literatura infantil juvenil, o autor estreou com Flicts, publicado em 1969.
Com o máximo de cores, nessa obra Ziraldo conta a história de uma cor que não
encontrava seu lugar no mundo, entretanto há controvérsias, pois o Flicts pode ser
visto também como a busca do indivíduo pela identidade, no caso a própria cor
marrom destacada na obra Os Meninos Morenos. Já a obra Os Meninos Morenos foi
publicada em 2003; é um livro que faz um diálogo entre a prosa poética de Ziraldo e a
poesia de Humberto Ak‘abal.
O poeta citado na obra, Humberto Ak‘abal nasceu em Momostenango,
Guatemala. Atualmente é um dos poetas guatemaltecos mais conhecidos na Europa e
na América do Sul. Suas obras foram traduzidas para diversos idiomas. Ziraldo
conheceu Ak‘abal em 2003, durante uma viagem a Guatemala. Segundo Ziraldo, a
obra Os Meninos Morenos, é uma tentativa de revelar para o mundo quem nós somos,
a partir das lembranças de infância de dois meninos cor de terra, um da Guatemala
através dos poemas de Ak‘abal e o outro no Brasil, através da narrativa de Ziraldo.
Nas poesias, Ziraldo encontrou muitos pontos de identidade entre o modo de sentir as
coisas dos seus meninos e dos meninos de Ak‘abal.

Uma viagem pelas memórias de um Menino Moreno

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A obra Os Meninos Morenos é uma tentativa de revelar para o mundo quem


somos. Na narrativa as lembranças de infância de dois meninos cor de terra, um na
Guatemala e o outro no Brasil são reveladas. O menino moreno do Brasil, Ziraldo tece
a narrativa com passagens de sua avó pescando lagostas e de seu avô que, um dia,
explicou-lhe a música que a chuva toca. Os dizeres do avô ao neto marcaram
fortemente o personagem. Recordações do nascimento de um dos seus seis irmãos
pelas mãos do avô parteiro; da primeira vez que o pai foi ao cinema como ele e tantas
outras lembranças poéticas que preenchem o coração do narrador.
Desta maneira, Os Meninos Morenos é uma homenagem a várias figuras
importantes da vida de Ziraldo, seus pais, seus avós, familiares e amigos, todos fiéis
habitantes da terra dos meninos morenos de sua infância. Ao mesmo tempo, o menino
moreno da Guatemala, Ak‘abal empresta alguns de seus belos versos, também
relatando trechos de sua infância, para, ao longo do livro, compor a ternura e o brilho
do universo ―morenocêntrico‖ apresentado por Ziraldo.
A obra Os Meninos Morenos é uma literatura de primeira pessoa, de caráter
autobiográfico, algo à primeira vista eminentemente particularizador, mas que se torna
coletivo no decorrer da narrativa. Antes de ser a história particular de Ziraldo, a obra é
a história geral de diferentes grupos, situado no seu respectivo espaço social e que
são tomados como ponto de referência para ver o mundo. Na narrativa podemos
perceber um saudosismo em relação às experiências vividas, Ziraldo recria as
recordações da sua infância, em um espaço e tempo distintos do mundo que o cerca
no momento da narração.
Ao ler o livro podermos ter várias leituras do mesmo, não conseguimos
identificar prontamente que se trata de uma narrativa autobiográfica e memorialística,
só podemos ter certeza deste fato, a partir do momento em que Ziraldo anexa fotos de
sua família dentro da obra, relata o nascimento de um irmão e então cita o nome de
seus familiares etc. Antonio Candido já relatava essa possibilidade de termos uma
dupla leitura presente em uma narrativa autobiográfica e memorialística, segundo o
autor:

Há a possibilidade de ler reversivelmente como recordação ou como


invenção, como documento da memória ou como obra criativa, numa
espécie de dupla leitura, ou leitura de dupla entrada, cuja força,
todavia, provém de ser ela simultânea e não alternativa. (CANDIDO,
1989, p. 53).

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Para compreender a natureza autobiográfica e por se tratar de uma obra


memorialística, como já foi dito acima, Candido (1989, p. 55) relata que o narrador
poético realiza um duplo afastamento do seu presente:

Primeiro como adulto que focaliza o passado da sua vida, da sua


família, da sua cultura, vendo-os como se fossem objetos de certo
modo remotos, fora dele; segundo, como adulto que vê esse passado
e essa vida, não como expressão de si, mas daquilo que formava a
constelação do mundo, de que ele era parte.

Desta forma, Ziraldo demonstra certa necessidade de lembrar-se do seu


passado, existe uma vontade de esclarecer histórias que ainda são nebulosas para
ele, por isso faz um mergulho em sua memória e retoma suas lembranças mais
profundas para narrar em sua obra. Além disso, o narrador não rememora apenas os
fatos de sua família e da sua vida em si, ele relata situações de toda a sociedade,
hábitos dos povos da sua comunidade, tais como o Lajão.

Quero voltar ao Lajão. Lajão era o nome da vila à beira do rio Doce
quando, comandada por meu avô, minha família se mudou para lá.
Quero voltar porque preciso esclarecer tantas histórias. Ali vivi dos
três aos seis anos. Todas as lembranças são neblinosas. (ZIRALDO,
2005, p. 11).

Desta maneira, de um lado está o narrador nos contando suas memórias


através do texto literário de forma particular, levando em consideração suas memórias
de infância e situações vivenciadas nesse período. E de outro está o narrador que
inconscientemente acaba envolvendo as histórias de um grupo ou de uma
comunidade, ou seja, utilizando desta maneira a memória coletiva.
Portanto, a obra Os Meninos Morenos, não foi criada somente pelas memórias
individuais do autor, mas sim a partir das memórias coletivas de todo um povo, ao qual
Ziraldo fez e faz parte. De acordo com Alfredo Bosi (1992), o passado comum é
remexido livremente em cada geração até que se formalize em mensagens novas. A
memória extrai de uma história espiritual mais ou menos remota um sem número de
motivos e imagens, mas ao fazê-lo, são os conflitos do aqui e agora que levam a dar
uma boa forma ao legado aberto e polivalente do culto a cultura.
Segundo o sociólogo Maurice Halbwachs (1990), em sua obra A Memória
Coletiva, a memória individual surge a partir da memória coletiva, sendo assim, as
lembranças individuais do ser humano são formadas no interior dos grupos, cuja

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memória está ligada a um plano maior, que é a memória coletiva de cada sociedade.
Deste modo, o ato de lembrar significa reconstruir nossas memórias com o olhar do
presente, levando em consideração todas as experiências vividas no nosso passado.
Essa reconstrução contínua das lembranças durante nossa existência configura a
construção da nossa identidade.
Ziraldo assume a posição e coloca como um dos meninos morenos, como um
representante da maioria da população da América Latina. Em que a cor da pele, os
aspectos físicos e culturais trazem os traços de inúmeras etnias e culturas de povos
de origem local e povos oriundos das mais diversas regiões do mundo que aqui se
encontraram e misturaram-se.

Quando o homem branco chegou na minha terra, encontrou meninos


com a carinha igual a de todos os meninos que viviam nas florestas
úmidas da América ou nas altas montanhas dos Andes. Depois, eles
trouxeram os negros da África, que não queriam vir. E vieram
também os árabes, e outras gentes da Ásia. E todos se misturaram,
sem registro e sem cartório. E, aqui, ficamos todos da cor da nossa
terra e viramos, todos, os brasileiros (ZIRALDO, 2005, p. 6).

Como Ziraldo relata em sua obra, a sociedade brasileira resulta da mistura de


vários povos, oriundos de diversas regiões, com costumes, valores e modos de vida
distintos. Dessa mistura de povos e culturas, é que surgem os indivíduos que não são
brancos e nem são índios, e tampouco negros, mas que são simplesmente os
brasileiros. Afinal, somos todos marrons, somos da cor da nossa terra.
Com todas essas mudanças e misturas, não podemos negar que, cada vez
mais, as identidades se tornam plurais, já que as nações desde o princípio já foram
constituídas pelas diferenças, e é claro que essas diferenças afetariam a identidade do
ser humano, que atualmente na pós-modernidade tem sido algo um tanto quanto difícil
de ser definido ou encontrado pelo ser humano. Ziraldo demonstra essa dificuldade
em se descobrir e se achar em determinado espaço, em suas obras, tanto em Os
Meninos Morenos, como no Flicts. Vejamos abaixo dois trechos presentes na obra Os
Meninos Morenos que demonstram essa busca pela identidade.

[...] naquela remota manhã tive a primeira das respostas de uma das
três grandes questões filosóficas: fiquei sabendo onde estava. Só
ficou faltando saber quem era eu e o que fazia ali... (ZIRALDO, 2005,
p. 73).

Um dia, o funcionário do recenseamento foi entrevistar meu pai.


―Nome, idade, sexo.‖ Papai foi respondendo. ―Cor?‖ E o papai:
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―Moreno, uai!‖. Aí o funcionário embatucou: ―Moreno não tem aqui no


formulário, Sêo Geraldo‖. Papai: ―Uai, como é que não têm?‖. E o
funcionário: ―Tem preto, branco e pardo‖. ―Pardo!?‖, exclamou meu
pai com indignada estranheza. E completou: ―Meu filho, eu sou
pardo???‖. O funcionário respondeu rápido, como se defendesse o
papai de uma ofensa: ―Não de jeito nenhum, Sêo Geraldo!‖. E o
papai: ―Eu sou preto?‖ (isso ele perguntou menos indignado). O
funcionário foi rápido: ―Claro que não, Sêo Geraldo. Imagina! O
senhor não é preto!‖. ―Então...‖, disse meu pai, ―você vê aí.‖
(ZIRALDO, 2003, p. 37).

No primeiro trecho, o narrador descreve o momento em que vê um globo


terrestre e descobre a Terra. O menino Ziraldo fica fascinado com o que vê e faz
inúmeras indagações para a professora a respeito do nosso planeta. Apesar de
descobrir onde estava e de conseguir se situar espacialmente, o garoto questiona a
sua existência no planeta Terra, a qual a sua missão. Percebemos que o garoto
apesar de se considerar um menino moreno como os outros, ainda está na busca pelo
seu próprio espaço e da sua própria identidade.
Já no segundo trecho, fica claro que o pai já se encontrou e se definiu como
um homem, pai de família, trabalhador e que tem orgulho de suas origens. Defende
sua cor marrom, afinal é um dos filhos da mistura que somos todos nós brasileiros.
Entretanto, existe o conflito de como a sociedade não aceita certas definições próprias
e necessita criar rótulos ou sistematizar tudo em caixinhas. Como na situação que
acontece no trecho citado, perguntas como gênero são questionadas, sabemos que
existe o gênero feminino e masculino, mas na atualidade essa pergunta é um tanto
complexa, já que a questão do gênero já está muito além da distinção entre mulher-
homem.
Sabemos que embora a definição, se assim podemos chamar, do que é ser
homem e do que é ser mulher, tenha surgido a partir de uma divisão biológica. Porém
a experiência humana nos mostra que um indivíduo pode assumir outras identidades
que acabam refletindo em representações de gênero distintas e que, para a sociedade
de modo geral, não se encaixam em categorias padrões.
A identidade é uma característica fundamental da experiência humana, pois
possibilita que o indivíduo que se constitua como um sujeito no mundo social. O
gênero refere-se à identidade com a qual a pessoa se identifica ou se autodeclara;
essa questão está muito mais ligada ao papel que o indivíduo tem na sociedade e
como ele se reconhece, do que apenas ligadas ao sexo. Desta forma, essa identidade
seria um fenômeno social e não biológico.

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Com relação à questão da cor, essa é outa pergunta um tanto quanto


complexa, já que cada pessoa se vê de uma cor diferente. Como podemos nos
declarar pardos, se não nos identificamos assim. Ou como poderíamos dizer que
somos negros, se não somos, se somos misturas de etnias e não temos nossa cor
definida, ou se temos e nos aceitamos de uma determinada forma, temos que acabar
nos enquadrando em simples categorias que não nos definem ou não nos
representam.
Ziraldo trata dessa questão, a princípio na obra Flicts, que trata da busca do
personagem, uma cor rara chamada Flicts, que está em busca de seu lugar e da sua
identidade no mundo. O livro começa apresentando essa cor que, apesar de rara era
muito triste, não tinha a força da cor vermelha, não tinha a imensa luz do amarelo e
nem a paz do azul, era apenas visto como um ser frágil, feio e aflito.
Assim como a cor, foi Ziraldo, buscando seu espaço e assim somos nós em
busca de alguém que nos aceite, de algum grupo que nos acolha e do qual nos
identificamos. Flicts não tinha espaço na caixa de lápis de cor, no parque e muito
menos no arco-íris. O personagem buscava ser inserido nesses determinados
espaços, mas não era aceito pelas demais cores e assim continuava sozinho. O
personagem cor buscou no trabalho um lugar para si, mas não adiantou, percorreu
vários países e lugares distantes, mas não havia lugar para a cor nas bandeiras ou
faixas. Não se achou nem mesmo no mar, não tinha amigos e nenhum companheiro.
Após tanta busca, Flicts se cansou. Então decidiu não procurar mais um espaço e nem
ser aceito, a cor simplesmente sumiu e finalmente encontrou seu lugar na lua, afinal
somente os astronautas sabem a cor da lua de pertinho e segundo Neil Armstrong, o
primeiro homem a pisar na lua, confirmou que a lua é Flicts.
Através da leitura do Flicts, notamos que Ziraldo realmente não estava tratando
apenas de uma cor, mas sim dos seres humanos. A cor que não se encontrava é
apenas uma alegoria que representa o homem, que busca incansavelmente pelo seu
lugar no mundo e na sociedade e que, por ser diferente, não é aceito e acaba não se
enquadrando. Entretanto, todas as pessoas por mais diferentes que sejam, possuem
seu lugar no mundo e uma identidade, assim como aconteceu com o personagem
Flicts, pode acontecer com o homem, uma hora quando menos se espera ele se
encontra.
Desta maneira, a obra Os Meninos Morenos pode ser vista como a busca da
identidade e o Flicts seria a própria identidade, a qual Ziraldo acaba também
encontrando. Com relação à identidade, Stuart Hall (2002) nos fala sobre um tipo
diferente de mudança estrutural que está transformando as sociedades modernas a
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partir do final do século XX. Esse fato está fragmentando as paisagens culturais de
classe, gênero, sexualidade, etnia e nacionalidade, que no passado, nos tinham
fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais.
Estas transformações e mudanças estão mudando também a nossa identidade
pessoal, abalando a ideia que temos de nós mesmos como sujeitos integrados. Esta
perda de um sentido de si estável é conhecida como deslocamento ou descentração
do sujeito. Esse duplo afastamento faz com que o deslocamento dos indivíduos tanto
do seu lugar no mundo social e cultural quanto a si mesmos, constitua o que poder ser
chamado de crise de identidade.
Hall distinguiu três concepções de identidade. A primeira sobre o sujeito do
Iluminismo, que estava baseado numa concepção da pessoa humana como um
indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades da razão, de
consciência e de ação, cujo centro consistia num núcleo interior, que emergia pela
primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia ainda que pertencendo
essencialmente o mesmo, contínuo e idêntico a ele, ao longo da existência do
indivíduo. O centro essencial do eu é a identidade de uma pessoa.
O segundo sujeito seria o sociológico, aquele que refletia a crescente
complexidade do mundo moderno e a consciência de que este núcleo interior do
sujeito não era autônomo e autossuficiente, mas era formado na relação com as
outras pessoas importantes para ele, que mediavam para o sujeito os valores,
sentidos e símbolos, enfim, a cultura dos mundos que ele habitava. De acordo com
essa visão, a identidade é formada na interação entre o eu e a sociedade. O sujeito
ainda tem um núcleo ou essência interior que é o seu eu real, mas este é formado e
modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais exteriores e as identidades
que esses mundos oferecem.
Entretanto sabemos que essas concepções estão em constante mudança, já
que o sujeito previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está
se tornando cada vez mais fragmentado; composto não de uma única, mas de várias
identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. Esse processo de
transformação e instabilidade produz o sujeito dito como pós-moderno, sendo aquele
que não tem uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se
móvel, fragmentada. Formada e transformada continuadamente em relação às formas
pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos
rodeiam. É definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume
identidades diferentes em diferentes momentos. Desta forma, podemos dizer que a

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identidade está em constante movimento, e que, assim como o Flicts e o próprio


narrador, estamos em busca da nossa identidade pessoal e também cultural.
Outra característica muito interessante em Os Meninos Morenos é a
proximidade de Ziraldo com seu avô. A figura do avô é muito forte na obra, pois ele é
visto e tratado como o chefe que comanda toda a família. Todos seguem suas regras,
seus costumes e tradições e estão dispostos a ouvir o patriarca. Antigamente, tinha-se
muito esse costume, o patriarca da família, ou o mais velho era o líder da casa e todos
deveriam seguir seus passos. Atualmente não se tem mais essa estrutura, ou não é
vista com frequência, pois a sociedade moderna constituiu uma nova identidade e
configurou novos valores.

Era Janeiro de um ano qualquer, e é aqui que, realmente, começava


a história que, a meu modo, vou contar a vocês. Chovia muito na
noite escura, mas os relâmpagos que clareavam o céu deixavam ver
o homem sobre o cavalo, comandando a caravana. Meu avô, jovem
ainda, estava começando a vida que o transformaria no patriarca de
uma vasta família. Eu era o seu primeiro neto e, junto com toda a sua
família, estávamos mudando da cidade onde nasci para um povoado,
onde uma nova vida iria começar. [...] Meu avô havia conseguido um
emprego para o meu pai, seu genro, e estava levando a família inteira
para a vila à margem do grande rio. Até morrer ele ia comandar todos
nós (ZIRALDO, 2005, p. 13).

O narrador vê o avô como um herói, as histórias contadas do avô para o neto


acabam sendo filtradas na memória de Ziraldo e contadas através da narrativa. O
papel do avô é fundamental nessa narrativa de memória, pois ele puxa e entrega ao
neto o fio das recordações, envolvendo a memória de seus antepassados, da família e
da sociedade a qual fazia parte. Desta maneira é evidente que o passado de Ziraldo
influenciou na sua própria identidade.

Acomodado sobre a cabeça do arreio, na altura dos meus três anos,


eu ia encolhidinho sob a capa que cobria o avô e o cavalo. Ia ouvindo
o tamborilar da chuva caindo sobre a grossa gabardine de que a capa
era feita. Paciente, o avô explicava ao menino curioso: ―É a chuva,
meu filho, tocando sua música‖. Sua voz parecia vir do céu, lá fora.
[...] Convivi com esse homem por quase cinquenta anos. Toda vez
que ouço a chuva tamborilando no telhado, sinto uma enorme
sensação de aconchego e segurança. Sei que meu avô está velando
por mim (ZIRALDO, 2005, p. 13).

Levando em consideração as cores e os elementos gráficos, característica de


Ziraldo, já que além de escritor, é desenhista, podemos verificar que assim como no

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Flicts, Ziraldo brinca muito com as cores em Os Meninos Morenos. Isso fica bastante
evidente na capa do livro, com o desenho de diferentes pessoas, com roupas
diversificadas e coloridas, correspondendo à ideia de mistura de elementos da
diversidade, tanto biológica, quanto cultural, que está de acordo com a simbologia da
cor marrom.
Analisando a simbologia da cor marrom, segundo Leonice Rodrigues Pereira
(2009), percebe-se que a mesma pode estar associada à própria terra, ao
enraizamento de pessoas em um continente, oriundas de diferentes lugares do
planeta, e à perspectiva de futuro apresentada, num primeiro momento, pelo
colonizador e, num segundo momento pelos imigrantes. O colorido diversificado
expressa, então, a vida e em especial toda a dinâmica de mistura de povos, que
apesar de seus contrastes, dão origem a um novo povo. Ziraldo também utiliza a
gráfica do livro predominando na cor marrom, representando a cor da terra e também
fazendo referência aos meninos marrons, habitantes deste chão.
Ao final da narrativa, a atmosfera noturna entra em cena não só através das
memórias e das palavras, mas também através de uma imagem. A lua marrom como
descrita em Flicts, e o planeta terra, ambos habitando e fazendo parte do mesmo
espaço. Assim como os meninos marrons que habitam essa terra cheia de diversidade
e diferenças.
A narrativa é concluída no período noturno e em um espaço festivo,
possivelmente uma festa natalina. A noite indica o fim de um ciclo e o começo de
outro, de uma nova fase de existência, e também o fechamento da narrativa. A noite
de Natal representa o término de um período de tempo e nos enche de vigor para a
renovação e início de um novo ano. Como Ziraldo (2005, p. 94) escreve no fim de sua
obra: ―é dezembro de um ano qualquer e é aqui que termina esta história. O que se
conta nunca é tão bem escrito como o canto dos pássaros e é só um pedaço de uma
vida inteira. Que sempre terá continuação‖. Esse encerramento acontece também na
narrativa, pois é o fim da escrita de Ziraldo e o início da caminhada do leitor ao
descobrir suas memórias em Os Meninos Morenos.

A importância da Literatura Infantil Juvenil no processo de formação da


identidade cultural do leitor

Durante toda nossa vida estamos expostos as mais variadas formas de


linguagem. Desde os primórdios já tínhamos as primeiras manifestações literárias e
artísticas, sendo elas primeiramente transmitidas através da oralidade, do imaginário e
de também das imagens, chegando até o advento da escrita. De acordo com Rildo
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Cosson (2012, p.16), ―praticamente todas as transações humanas de nossa sociedade


letrada, passam, de uma maneira ou outra, pela escrita, mesmo aquelas que
aparentemente são orais ou imagéticas‖.
Desta maneira, nos vemos inseridos em uma sociedade em que a escrita e a
linguagem se fazem presentes em diversos lugares a todo o tempo, seja ela nos
jornais, veículos televisivos, computadores, livros e afins. Segundo Cosson (2012, p.
16), ―a escrita é, um dos mais poderosos instrumentos de libertação das limitações
físicas do ser humano‖, pois com ela podemos expressar nossas ideias e nos
libertarmos daquilo que insistem em nos fazer crer, tornando-nos assim, seres
humanos mais reflexivos aos fatos que ocorrem no nosso meio social.
Ainda, conforme Cosson (2012), a linguagem, a palavra e a escrita,
encontraram na literatura o mais perfeito exercício, pois a literatura faz uso da palavra
como sua constituição material e faz da escrita a sua mola propulsora. O ato de
praticar a leitura literária promove a exploração das potencialidades linguísticas e
humanas nos seus leitores, fornecendo a eles o que é considerado uma das atividades
mais completas já oferecidas para o crescimento intelectual e pessoal do ser humano.
Desta forma, a literatura torna-se essencial para a formação do sujeito e também do
leitor literário, já que é dotada de saberes sobre o próprio homem e também sobre o
mundo. Assim, transforma aqueles que a apreciam, tornando-os sujeitos mais
autônomos, podendo vivenciar diversas realidades e experiências, sem deixar de
serem eles mesmos.
Porém para que possamos formar crianças e jovens leitores, o primeiro passo
seria o incentivo e o oferecimento de boas obras literárias. O acesso a essas leituras
deveria partir primeiramente do ambiente familiar, permanecendo e sendo solidificado
na escola, que é onde o aluno passar maior parte do seu tempo e, é a instituição que
tem uma das maiores parcelas de responsabilidade em formar mais que futuros
profissionais, mas sim, seres humanos.
Desta forma, para despertar o gosto dos jovens leitores é preciso realmente
proporcionar a eles a experiência da literatura, não apenas usar a leitura como algo
forçado ou obrigatório, transformando-a em um mero mecanismo utilizado para
resolver exercícios relacionados à gramática ou apenas levando o aluno a conhecer as
escolas literárias, principais períodos e autores.
Essas atitudes um tanto, quanto engessadas, são muitas vezes vivenciadas no
ambiente escolar. Por exemplo, nas séries iniciais, os alunos vivenciam o prazer da
leitura sem obrigações, tudo é fruição e fantasia, isso faz com eles tenham paixão pela
literatura. No entanto, com o decorrer dos anos escolares, ocorre uma inversão, onde
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a criança que apreciava ler, se torna um adolescente que não gosta mais dessa
atividade e não encontra mais prazer na mesma.
Isso ocorre, pois o sistema acaba impondo a eles metas e resultados, em que a
leitura é vista apenas como um instrumento necessário para solucionar questões e
realizar redações, para que assim, possam obter bons resultados em provas e
concursos. Desta maneira, podemos notar que o prazer vai se acabando na medida
em que a escola e a família colocam a leitura como algo necessário para obter metas
e bons resultados, matando assim, todo o a construção pelo prazer estético e literário
que a criança leitora possuía nas fases inicias da vida e do ensino.
Nesse sentido, para que possamos formar um verdadeiro leitor, é necessário
proporcionar a literatura se possível, desde o ventre materno, e com o
desenvolvimento ir oferecendo a criança boas obras para que ela as deguste,
entendendo que ele está em contato com a arte e que isso é essencial para a vida. Na
adolescência, essa paixão pela leitura, não pode morrer, obras adequadas para essa
faixa etária devem ser oferecidas a esse público, serem discutidas na sala de aula e
também em casa, a fim de que no futuro esse jovem possa se tornar um adulto com o
senso estético aguçado, reconhecendo e apreciado a boa literatura. Conforme Marisa
Lajolo (2008, p. 106), ―o cidadão, para exercer, plenamente sua cidadania, precisa
apossar-se da linguagem literária, alfabetizar-se nela, tornar-se seu usuário
competente, mesmo que nunca vá escrever um livro: mas porque precisa ler muitos‖.
O ato de ler nos possibilita criar e vivenciar situações novas, permitindo que
saiamos da zona de conforto. A literatura está no mundo, para realmente nos libertar
de preconceitos, para descobrirmos fatos sobre nós mesmos e sobre a nossa
sociedade; funções observadas nos livros analisados nesse artigo, que possibilitam
essa experiência ao leitor. Com o acesso a boas obras literárias, as crianças e jovens
que estão em formação são capazes de serem mais críticos e capazes de formular
novos pensamentos e argumentos.
Deste modo, pensar no que oferecer ao leitor é extremamente importante, nem
sempre o que está no topo de vendas será o melhor, ou não somente os livros que
estão no cânone são os únicos que devem ser lidos. Existe uma infinidade de obras
ricas, de escritores muitas vezes não tão conhecidos ou famosos, que devem também
ser levadas em consideração. O que deve ser levado em conta é a qualidade artística
do livro, como ele irá fornecer ao leitor a possibilidade do questionamento, de ver o
mundo com outros olhos, de se tornar uma pessoa mais crítica e mais receptiva as
mais diversas temáticas.

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Na medida em que ocorre o crescimento da criança e do adolescente, as


leituras devem também ganhar maior peso e tornarem-se mais complexas e
desafiadoras, pois o que vai fazer do leitor, um leitor literário é a visão e experiência de
mundo que ele compartilha a partir de suas leituras. O ato de apenas ler, não formará
um leitor. A formação se da a partir do momento em que há a troca, o
compartilhamento de ideias com o outro, o questionamento sobre questões que os
inquietam.
A troca de informações, as rodas de conversas são extremamente eficazes
nesse sentido, pois a formação não se da apenas entre o leitor e o livro, ela se da
através do compartilhamento de ideias. Segundo Cosson (2012, p. 27): ―ler implica
troca de sentidos não só entre o escritor e o leitor, mas também com a sociedade onde
ambos estão localizados, pois os sentidos são resultados de compartilhamentos de
visões do mundo entre os homens no tempo e no espaço‖.
Portanto, fica cada vez mais evidente que a literatura é algo necessário e
alimento para a vida do ser humano. Segundo Candido (1972, p. 81), ―ninguém pode
passar um dia sem consumi-la, ainda que sob forma de palpite na loteria, devaneio,
construção social ou anedota. E assim, se justifica o interesse pela função das formas
de sistematizar a fantasia, de que a literatura é uma das modalidades mais ricas‖.
Por isso, que a literatura infantil e juvenil se faz importante na vida das crianças
e jovens, pois os torna mais sensíveis, críticos e receptivos aos mais diversos temas,
inclusive aqueles que são considerados tabus, como a morte ou o preconceito, por
exemplo. A boa literatura destina a esse público, não tem o intuito apenas de passar
conhecimentos ou ensinar alguma lição moral, mas tem a finalidade de instigar a
curiosidade, o lado reflexivo do leitor, fazendo questionar e romper barreiras,
fortalecendo assim seu lado cognitivo.
Através da apreciação de textos literários o leitor é instigado a buscar, mais
precisamente, por fatos e informações ocorridos durante a época da produção textual
em voga, o que possibilita reflexões e percepções entre o mundo real e o imaginário,
despertando assim, a criança ou jovem leitor ao senso crítico e a uma ampliação de
sua visão no que tange a leitura do mundo que o cerca.
Assim, a literatura como forma de arte, educa o olhar do leitor para reconhecer
a beleza da cultura e da diversidade social, permitindo que aqueles que a consumem,
conheçam suas origens e histórias, que muitas vezes são censuradas no meio
familiar, escolar e social, assim, auxiliando a formação da identidade pessoal e cultural
dos jovens leitores.

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A literatura voltada para o público infantil e juvenil é certamente o maior agente


da formação da consciência de mundo do leitor. A criança ou jovem, ao ler uma obra
literária, buscar encontrar um mundo de significados e sentidos a cada linha lida. Por
ser curiosa, questionadora, e a leitura pungente, o leitor procura revelar os mistérios e
símbolos que compõem a escrita do texto literário.

Considerações Finais

Os Meninos Morenos é uma narrativa de cunho biográfico e memorialístico, já


que Ziraldo recorre as suas lembranças e experiências passadas para compor a obra.
Já a obra Flicts, aborda a busca do personagem Flicts, uma cor rara que está em
busca de seu lugar e da sua identidade no mundo. Desta maneira, Os Meninos
Morenos pode ser vista como a busca da própria identidade, enquanto o Flicts seria a
identidade, a qual Ziraldo acaba encontrando.
Ao unir suas memórias e lembranças de experiências que já foram vivenciadas,
e colocando-se como parte integrante da sociedade, Ziraldo processa uma espécie de
colagem de fragmentos e preenchimento de vazios que eram existentes através do
imaginário, de todas as recordações do seu passado. Nesse sentido é uma forma de
juntar as partes de uma espécie de quebra cabeça no mundo pós-moderno,
fortemente marcado pela fragmentação em que estamos inseridos. Na narrativa o
rememorar e voltar ao passado tem a finalidade de tornar algo particular e individual
em uma parte integrada de um todo, ou seja, acaba se tornando algo social e coletivo.
Desta forma, através dessa pesquisa de cunho bibliográfico, podemos observar
como a literatura pode nos proporcionar uma infinidade de informações históricas e
culturais, de uma forma leve e bem humorada. Ainda mais se tratando de literatura
infantil juvenil, que inúmeras vezes é vista como algo de pouco valor por ser destinada
para crianças e jovens. Porém essa literatura não tem nada de ingênua, pois aborda
temas diversificados, com uma linguagem leve e subjetiva, para tratar de temas que
muitas vezes a criança e o jovem leitor não têm conhecimento.
Por fim, a boa literatura infantil juvenil não tem o intuito de apenas ensinar algo
ou passar valores como se imaginava no passado, ela tem a função de levar até o
leitor que está em formação, um pouco sobre a nossa história, cultura, origem, enfim
de revelar quem nós somos além de poder sensibilizar e tornar as crianças e jovens
mais críticos e receptivos a diversas temáticas.

Referências

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CANDIDO, Antônio. Ficção e poética na autobiografia. In: Educação pela noite e


outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989.

______. A literatura e a formação do homem. São Paulo: Ciência e Cultura, 1972.

COSSON, Rildo. Letramento Literário: teoria e prática. 2. ed., São Paulo: Contexto,
2012.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Lais Teles Benoir. São


Paulo: Centauro, 2004.

HALL, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de: Tomaz Tadeu


da Silva, Guaracira Lopes Louro. 7. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. 6. ed. São


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PEREIRA, Leonice, R. Memória e Identidade em os Meninos Morenos de Ziraldo, e


Nas Ruas do Brás, de Drauzio Varella. Revista Ecos. Edição nº 008 – Dezembro de
2009.

ZIRALDO, Alves Pinto. Flicts. 65. ed. São Paulo: Melhoramentos, 2005.

______. Os Meninos Morenos. São Paulo: Melhoramentos, 2005.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

LER, REMEMORAR E ESCREVER: UM DIÁLOGO ENTRE

O ENSINO DE LITERATURA E A PRODUÇÃO TEXTUAL

Gildene Lima de Souza Fernandes,


Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Danielle Medeiros de Souza,
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Alessandra Cardozo de Freitas,
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Eixo temático 8: Literatura e ensino

Considerações Iniciais

Concluir uma etapa da escolaridade envolve uma série de expectativas:


mudança de escola, novos professores, novas disciplinas a serem cursadas. E,
quando se trata de deixar a única escola em que se estudou desde os dois anos de
idade, esse momento se torna ainda mais imbuído de emoções. É nesse contexto,
vivenciado pela primeira turma de 5º ano do Núcleo de Educação da Infância, Colégio
de aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (NEI-CAP/UFRN), em
2017, que se dá a produção das memórias escolares, vivência pedagógica, aqui
relatada.
Tal produção foi proposta por nós, professoras da turma e autoras deste artigo,
exatamente com a finalidade de proporcionar às crianças a oportunidade de
rememorar e, de forma saudosa, reviver a diversidade de experiências vivenciadas na
escola. Entendemos que os autores de tais memórias estariam, dessa forma, também
revivendo a infância e, indiretamente, se preparando para se despedir dessa fase da
vida.
Essa experiência, motivada pelo desafio constante de construir intervenções
pedagógicas inovadoras que possam encaminhar a formação de escritores autônomos
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e criativos, é aqui relatada e analisada, à luz de referencial teórico, que privilegia a


formação literária, especialmente Amarilha (2013) e Smith (2003); a produção textual,
como Calkins (1989) e Smolka (2008); e a mediação pedagógica, como Vigotski
(2008). Nosso objetivo é discorrer sobre a contribuição da literatura para a produção
textual de crianças escolares, com enfoque na natureza autoral e memorialística da
escrita.
Para tanto, promovemos contatos sistemáticos das crianças com obras
memorialísticas de autores de literatura, num percurso que foi se delineando entre
leituras, escritas e reescritas, de forma entrelaçada e significativa.
Iniciamos esse texto com a exposição sobre como foi realizado o trabalho de
produção das memórias escolares e de que maneira ele se justifica no percurso de
crianças escolares. Em seguida, abordamos as contribuições da literatura para a
escrita de memórias das crianças, socializando as obras apreciadas e as produções
suscitadas. Ao final, fazemos uma breve consideração sobre a relevância do trabalho
realizado, mediante depoimentos das próprias crianças sobre essa experiência.

Por que e como a vida escolar foi rememorada pelas crianças

Iniciamos nossa exposição sobre por que propomos que crianças do 5º ano
escrevessem memórias, elucidando nossas convicções sobre o papel que a escola
precisa exercer na promoção do acesso à cultura letrada, e mais especificamente, na
promoção da capacidade de se fazer uso da escrita para se dizer sobre si e sobre o
mundo. Concordamos com Ana Luiza Bustamante Smolka (2008) quando ela defende
as várias possibilidades das crianças se expressarem pela escritura e os ―(...) distintos
papéis que elas vão assumindo, como leitoras, escritoras, narradoras, protagonistas,
autoras...‖. Nosso intuito era de que elas falassem de suas experiências com a
autonomia e a autoridade de um narrador que viveu a história que está narrando.
Entendemos que o narrador também participa da constituição de um texto, pois
ao narrar, assume uma postura analítica, que resulta em aprendizado. Ao dar a sua
versão dos fatos, ele também mergulha no imaginário e acrescenta a sua criação à
realidade vivida, de modo que não traz apenas o fato em si, mas sim, a sua versão
sobre ele, repleta de sentimentos.
Recorremos às palavras de Maria de Fátima Araújo (2005) para evidenciar a
importância da narrativa dos fatos vividos, para que estes não se percam na história
de cada um:
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Sendo a experiência vivida e refletida uma forma de reordenar


conhecimentos, essa experiência tem na narrativa a sua condição
operativa e multiplicadora, pois de nada vale a experiência que se
insulariza no sujeito isolado. Tudo que não é narrado morre com o
sujeito. Ao contrário, tudo que é narrado e partilhado pode se
constituir um elemento potencializador de novas sínteses criativas e
em elos que ligam os sujeitos entre si. Desta perspectiva, experiência
e narrativa são pares indissociáveis do conhecimento e da cultura.
(ARAÚJO, 2005, p. 33).

Permitir que as crianças vivenciassem o último ano como aluna do NEI, sem
proporcionar a elas essa partilha de experiências, seria desperdiçar a possibilidade de
construção desses novos elos e elaboração das sínteses, tão importantes para
consolidação do que foi vivido e aprendido.
Povos de diversas culturas reconhecem o valor das histórias contadas/lidas
para perpetuar as tradições e disseminar o conhecimento. Quantas tribos indígenas,
por exemplo, não preservam a tradição de valorizar e respeitar o conhecimento que é
transmitido pelas narrativas dos mais velhos? São as narrativas que carregam,
certamente, que fazem os mais velhos serem considerados os mais sábios.
Em nossa sociedade, entendemos que a escola deve ser um dos espaços
onde as narrativas ocupem lugar de destaque para que, de fato, se efetive um
investimento na formação plena dos jovens. Concordamos com Marly Amarilha (2013),
quando esta defende a necessidade da presença das narrativas na escola:
Quando colocamos a narrativa na escola através do contador-leitor
de histórias, mudamos a história da escola. Mudamos a relação da
criança com a cultura escolar porque a fazemos experimentar textos
significativos do ponto de vista psicológico, social, linguístico, afetivo,
pressupondo que todo professor seleciona, adequadamente, os
textos que lê para os seus alunos. Assim, o desenvolvimento da
criança não fica exposto ou depende da maturação interna para
acontecer, pelo contrário, a história da escolarização da criança em
convívio com a literatura promove, antecipa e consolidaseu
crescimento. (AMARILHA, 2013, p. 37).

Se o que almejamos é o desenvolvimento da criança, independente do que se


espera dela em função de sua possível ―maturação interna‖, é essencial promovermos
o contato com as narrativas feitas por outras pessoas. Por outro lado, se
reconhecemos a criança como sujeito histórico, devemos ―dar voz‖ a ela, considerando
que, mesmo não tendo a reconhecida sabedoria dos mais velhos, tem o que dizer a
partir das experiências que já viveu (sendo capaz de fazer uma leitura de mundo, à
sua maneira).
É essencial que explicitemos o que estamos entendendo por memória, quando
pedimos que as crianças acessem suas ―memórias escolares‖. Frank Smith (1989)

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desenvolve a ideia de memória definindo-a em três aspectos: armazenamento


sensorial – persistência de uma informação visual após ter sido recebida e transmitida
pelo olho, no início de cada fixação, enquanto o cérebro está trabalhando nela;
memória a curto prazo – onde se guarda os traços daquilo que acabou de ler, por
exemplo, enquanto prossegue a leitura das próximas palavras de um texto; e memória
a longo prazo – bem mais do que estamos pensando no momento, qualquer coisa que
persista em nossa mente...Nosso conhecimento sobre o mundo.
É a memória a longo prazo, a qual não tem limites de armazenamento e
persistência, que tentamos estimular o acesso por parte das crianças. Porém, para
Smith, o fato de não haverem tais limitações, não significa que as memórias a longo
prazo estejam facilmente disponíveis. Para ele:
O sucesso da recuperação de algo da memória a longo prazo
depende dos indícios que podemos encontrar para ter acesso a ela, e
no modo como está organizado na memória a longo prazo, em
primeiro lugar. Basicamente, tudo depende do sentido que damos ao
material quando originalmente o colocamos na memória. (SMITH,
2003, p. 118).

Nesse sentido, sabíamos que era necessário possibilitar o surgimento de tais


indícios para o acesso da memória do que foi vivido. Começamos por propor às
crianças a composição de um baú de memórias da turma, para o qual elas foram
incentivadas a trazer de casa materiais que representassem uma memória da vida
escolar. No dia seguinte à proposta, surgiram fotografias, CDs produzidos a partir de
temas estudados, cadernos antigos, além de livros produzidos pelas crianças. Esse
momento se constituiu em uma verdadeira ―viagem no tempo‖, de modo que ficaram
evidentes as atividades que mais marcaram a trajetória escolar das crianças. Para as
professoras, ficou claro também o quanto é importante que as vivências se
materializem em produções, que sirvam de apoio à memória, de modo que não se
percam no tempo.
Também nos fundamentamos em Alessandra Cardozo de Freitas (2002) para a
proposição desse trabalho de leitura e produção textual envolvendo memórias. A
autora assim recupera as palavras de Lev Semenovich Vigotski: ―A verdadeira
essência da memória humana está no fato dos seres humanos serem capazes de
lembrar ativamente com a ajuda de signos‖ (VIGOTSKI, 1994, apud FREITAS, 2002 p.
68). Por usar como matéria-prima os signos verbais, a literatura se constitui uma forma
privilegiada de trabalhar com a memória. Outro aspecto importante a considerar é a
transição vivida pela criança na forma de lidar com a memória, passando do uso

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natural, que faz por influência de estímulos externos, para a memória mediada, a qual
recupera as informações por meio de instrumentos e signos.
Pelo fato das crianças do 5º ano já demonstrarem ser capazes de acessar o
que estamos chamando de memória mediada, o baú se constituiu um disparador para
se falar de memórias. Possibilitou também a preparação de um contexto favorável
para a socialização da ideia de produção de um livro de memórias, a qual foi
rapidamente acatada pelas crianças. A cada proposta de produção textual, foi
necessário promover novos ―mobilizadores de memórias‖, sejam eles uma leitura, ou
conversas entre as crianças e familiares, de modo que fosse possível resgatar aquilo
que parecia não estar mais armazenado, ou que estava armazenado em áreas pouco
acessadas, no baú das memórias de longo prazo.
Acreditamos que a plena aceitação da ideia de produção de memórias pelas
crianças, seu deu pelo fato de terem relacionado essa ideia com os diários pessoais
que já escreveram ou livros semelhantes que já leram, tais como: O diário de Anne
Frank, as diversas edições do Diário de um banana e ainda os diários que atualmente
estão sendo publicados por jovens que postam vídeos em seus canais da internet - os
youtubers.
Nesse contexto, foi importante promover uma discussão para diferenciar
memórias, diário e biografia. A definição de Emília, personagem de Monteiro Lobato,
no livro Memórias de Emília, serviu como ponto de partida para impulsionar tal
discussão:
Memórias são a história da vida da gente, com tudo o que acontece
desde o dia do nascimento até o dia da morte (...). O escrevedor de
memórias vai escrevendo, até sentir que o dia da morte vem vindo.
Então para; deixa o finalzinho sem acabar. Morre sossegado.
(LOBATO, 2009, p. 12).

Será que a definição de Emília estava correta? Você concorda? Segue o


posicionamento de uma das alunas: ―Mais ou menos. Concordo na parte que conta a
vida da gente, mas não concordo na parte que vai até a morte.‖ (Depoimento da aluna
Roberta. Fonte: Acervo das professoras,2017).
A partir daí, foram consultados alguns exemplos de memórias, biografias e
diários, de modo a estabelecer as diferenças entre eles. As crianças puderam
sistematizar algumas ideias sobre essa variedade de gêneros que tratam dos relatos
pessoais de vida. Entre elas, destacamos: os diários servem para escrever aquilo que
geralmente não queremos que as pessoas leiam; as biografias são histórias da vida de
alguém, contada por outra pessoa; existem biografias autorizadas e não-autorizadas;
as autobiografias são quando a própria pessoa conta a sua vida; as memórias podem
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se referir a apenas uma etapa/acontecimento da vida e, portanto, não precisam ser


narrações da vida inteira; diferentemente dos diários, as memórias podem ser lidas por
outras pessoas.
O passo seguinte foi reservar um caderno pequeno, de capa dura amarela,
para ser o suporte das escritas das memórias escolares. A reserva de um caderno
exclusivo indicava a importância que tais escritas iriam ocupar entre as atividades
escolares: elas não poderiam acontecer em qualquer folha ou se perder. Levar tais
cadernos para casa ou manuseá-lo na escola, era um sinal de que se estava
revisitando as memórias. As imagens abaixo retratam alguns dos momentos de escrita
no caderno:

Crianças em situações de produção e revisão dos textos. Fonte: Acervo das professoras, 2017.

Pensamos que a escrita das memórias deveria acontecer em diversos


momentos/etapas. Portanto, a cada 15 dias ou a cada intervalo de uma semana, as
crianças recebiam uma nova orientação por escrito, que sugeria o próximo tema a ser
abordado. As produções envolviam certos procedimentos como: consulta aos pais e
outros familiares ou aos colegas de sala, consulta às fotografias e outros materiais,
escrita individual do texto em casa ou na escola, leitura dos textos para a turma e
revisão/aprimoramento dos textos, sob mediação das professoras.
Concordamos com Eduardo Calil de Oliveira (2004), em relação à crítica que
ele tece sobre a posição geralmente assumida pela escola, quando o assunto é
produção de histórias: é exigido que o texto esteja organizado em início, meio e fim;
que a criança atenda a uma espécie de previsão do que irá acontecer, que siga uma
espécie de roteiro; que não contenha os chamados erros ortográficos e que ainda por
cima, seja criativo - mesmo sem se ter claro o que isso significa. Outra prática
comum, também criticada, é a solicitação para que a criança ―passe a limpo‖ o seu
texto, eliminando qualquer tipo de rasura (desconsiderando inclusive o que a rasura
pode estar dizendo das intenções do jovem autor).

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Apesar da sugestão do tema de cada texto memorialístico, tentamos deixar as


crianças livres para produzirem seus textos da forma como considerassem melhor:
poderiam fazer um relato de determinado tipo de experiência desde a Educação
Infantil até o atual ano do Ensino Fundamental, ou simplesmente poderiam escolher e
detalhar um fato que considerasse mais marcante. Queríamos fomentar nas crianças a
sensação de que poderiam ser autoras de memórias e de que suas histórias eram
importantes para serem partilhadas. Assim, as histórias fortaleciam o sentimento de
pertencimento ao grupo e passavam a ser parte de toda a comunidade (ALBERTO
MANGUEL, 1997).
As ideias de Lucy McCormick Calkins (1989) subsidiaram a nossa proposta de
produção de textos pelas crianças. Ao pensar no que se constitui essencial para
ensinar a escrever, a autora afirma:
Para mim, é essencial que as crianças estejam profundamente
envolvidas com a escrita, que compartilhem seus textos com os
outros e que percebam a si mesmas como autores. Creio que estas
coisas estão interconectadas. Uma sensação de autoria nasce de
uma luta para imprimir no papel algo grande e vital, e da observação
de que as próprias palavras, impressas, atingem os corações e as
mentes dos leitores. (CALKINS, 1989, p. 22).

Tentamos eliminar o máximo possível as ―amarras‖ que muitas vezes


restringem a produção escrita e atentamos para que as intervenções, com vistas ao
aprimoramento dos textos, respeitassem as intenções e o estilo de escrita de cada
criança.
Entendemos que escrever compreende um processo complexo, que se dá em
etapas diversas não-lineares. Para Calkins, ―os escritores tornam-se leitores, depois
escritores, depois escritores, novamente. Eliminam uma seção, inserem uma linha,
alteram um detalhe e transformam uma narrativa em um ensaio‖ (CALKINS, 1989, p.
32). Portanto, deve-se revisitar o texto escrito, vendo-o com os olhos de um leitor. Em
seguida, é importante que se volte ao papel de escritor, alterando o que percebe ser
importante – esse processo exige diversos encontros com o texto e com o mediador,
que é o leitor e escritor mais experiente.
Com o intuito de respeitar e preservar a originalidade das produções escritas
das crianças mediamos as situações de revisão dos textos, levando-as a pensar em
como desenvolver melhor as ideias que haviam sinalizado na primeira versão
produzida. Também não podíamos deixar de alertá-las para o atendimento às
questões exigidas pela norma culta, por se tratar de um grupo de 5º ano, com plenas
condições para perceber, por exemplo, os efeitos dos sinais de pontuação, a falta que
um acento faz para a pronúncia da palavra e, até mesmo, a necessidade de
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organização do texto em diferentes parágrafos para favorecer a estruturação e


comunicação das ideias.
Acreditarmos que a mediação do outro é essencial para impulsionar as
aprendizagens. Nesse sentido, nossa atuação foi embasada pela teoria da zona de
desenvolvimento proximal de Vigotski (2008), a qual defende o papel da mediação do
outro (seja o adulto ou par mais experiente) para a evolução da criança do seu
desenvolvimento real – o que já consegue fazer sozinha – para o desenvolvimento
potencial – aquilo que consegue alcançar por meio da mediação. Para Vigotski, ―o que
a criança é capaz de fazer hoje, em cooperação, será capaz de fazer sozinha amanhã‖
(VIGOTSKY, 2008, p. 129). Esse autor também ressalta a importância da imitação
para o desenvolvimento da criança, o que reforça a nossa busca por autores de
referência para mediar a produção de textos.
Abaixo, segue uma sequência de imagens, que representam a produção inicial
da criança, as orientações fornecidas pelas professoras e uma segunda versão do
texto, após a revisão feita pela própria autora:

Versão inicial do texto. Fonte: Acervo das professoras, 2017.

Orientação da professora, intermediando a reescrita do texto. Fonte: Acervo das


professoras, 2017.

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Versão final do texto produzido pela aluna. Fonte: Acervo das professoras, 2017.
Verificamos que, quando instigada a detalhar as brincadeiras vivenciadas e
provocada a pensar em como se sentiu quando o próprio pai foi à escola ensinar a
brincadeira da biloca, a criança conseguiu ser mais específica e empregar mais
emoção ao seu texto. Isso certamente não teria ocorrido sem a mediação do outro,
que nesse exemplo foi o professor, mas que em diversos momentos do trabalho,
foram os próprios colegas.
Enriquecemos esse relato na próxima sessão, detalhando como a Literatura foi
convidada a contribuir com a produção de memórias.

Relações entre Literatura e memória

Emília, de testa franzida, não sabia como começar. Isso de começar


não é fácil (...). Emília pensou, pensou, e por fim disse: Bote um
ponto de interrogação; ou antes, bote vários pontos de interrogação.
Bote seis... O Visconde abriu a boca. Vamos Visconde. Bote aí seis
pontos de interrogação – insistiu a boneca. – Não vê que estou
indecisa, interrogando-me a mim mesma? (LOBATO, 2009, p. 14).

Foi dessa forma que a boneca Emília, uma das personagens inspiradoras para
a produção das memórias das crianças, tentou começar a escrever suas memórias,
auxiliada pelo Visconde de Sabugosa. Ao ler esse trecho do livro, várias crianças se
identificaram com a personagem, reconhecendo também suas dificuldades para iniciar
a escrita. Outras se mostraram sem dificuldades para iniciar a produção de seus
textos. Os registros abaixo foram produzidos pelas crianças, quando questionadas
pelas professoras sobre as possíveis dificuldades para iniciar um texto, assim como
Emília:

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Resposta das crianças ao questionamento: Assim como Emília, você já teve dificuldades para
iniciar um texto? Fonte: Acervo das professoras, 2017.

Tal processo de identificação do leitor com o personagem é entendido, por nós


professoras, como algo muito benéfico. Ao se comparar com Emília, as crianças
puderam perceber que iniciar a escrita pode não se tratar de algo difícil apenas para
ela (pois até uma personagem tão eloquente e esperta como Emília, também se
mostra insegura para iniciar o seu texto). Para Amarilha (2013) a identificação do leitor
com a personagem é uma condição básica para que este venha a se interessar pelo
texto.
Também concordamos com Amarilha (2013) quando ela defende a completude
da literatura e critica a presença do texto literário em sala de aula atrelado à propósitos
restritos ou meramente pragmáticos, como resolução de exercícios de gramática ou
produção de textos. É também completamente dispensável o uso de outras
linguagens para trazer a Literatura, visto que, ela cumpre o seu papel comunicativo por
si só. A leitura de Literatura é ―uma atividade produtora, receptiva e comunicativa em
si‖.(HANS ROBERT JAUSS, 1979, p. 43 apud AMARILHA, 2013, p. 79):
Produtora porque na dinâmica literária o leitor atua elaborando
sentido ao que lê (...). Receptiva porque o texto traz marcar da
orientação do significado, mas acolhe também significações que o
leitor atribui. Comunicativa porque prevendo a multiplicidade do
mundo de cada leitor, o texto interage oferecendo e recebendo
diferentes informações e significados. (AMARILHA, 2013, p. 79).

Durante os meses em que durou esse ―mergulho nas memórias escolares‖,


alguns textos literários foram convocados por nós, professoras, em função de termos

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clareza das contribuições que a Literatura poderia oferecer, como referência de uma
escrita de qualidade e inspiração criadora..
Reconhecemos o potencial da Literatura para alimentar o repertório das
crianças, trazer à luz aquilo que é desconhecido, por meio da palavra, e ainda evocar
emoções e sentimentos pela escrita. Eliana Yunes (2010) destaca o poder da
Literatura para a constituição do nosso repertório e para aprimorar nossa capacidade
de se expressar:
Sem as histórias, sem os romances teríamos uma memória estreita,
ideologizada de cultura e de civilização: a pessoa que nunca lê, lê
pouco ou lê apenas o descartável, pode ficar afásico ou mesmo falar
muito pouco, porque dispõe de um repertório mínimo para se
expressar. (YUNES, 2010, p. 61).

Daí a importância de trazer as obras literárias, também para que nossas


crianças soubessem o que dizer delas e do que viveram na escola... Para que assim
pudessem ―alargar a memória‖.

Além do potencial para referenciar o uso criativo e cuidadoso das palavras ao


escrever, reconhecemos o potencial memorialístico da Literatura, de modo a favorecer
a preservação e o resgate da memória. Marisa Lajolo (2012) referencia essa ideia, ao
resgatar uma narrativa que vem da Grécia de Platão, a qual ressalta o surgimento da
escrita. Nessa narrativa, a escrita teria sido inventada pelo Deus Thoth, assim como os
números e o cálculo, a Geometria e a Astronomia, o jogo de damas e os dados:

Naquele tempo governava todo o Egito, Tamuz, que residia ao sul do


país, na grande cidade que os egípcios chamam de Tebas do Egito.
Thoth foi ter com ele e mostrou-lhe suas artes, dizendo que elas
deviam ser ensinadas aos egípcios. Mas o outro quis saber a
utilidade de cada uma, e enquanto o inventor explicava, ele
censurava ou elogiava, conforme as artes lhe pareciam boas ou más.
(...) Chegando à escrita, disse Thoth:
- Esta arte, caro rei, tornará os egípcios mais sábios e lhes fortalecerá
a memória; portanto, com a escrita inventei um grande auxiliar para a
memória e para a sabedoria. (LAJOLO, 2012, p. 121-122).

Esse fragmento do texto revela o quanto é antiga a atribuição de poder à


Literatura para auxiliar a memória. Encontramos, nos textos literários, os registros de
como aconteceram fatos da história, da forma como a humanidade pensa e se
comporta em diferentes épocas. Tal potencial é, muitas vezes, desperdiçado pela
escola que se propõe a disseminar o conhecimento acumulado pela humanidade, mas
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parece ignorar que precisa recorrer ao que os próprios homens escreveram – é nos
textos literários que é retratada a humanidade, por meio de uma linguagem que não
tem a intenção de ser didática.
Diante do exposto, convidamos algumas obras literárias para fazer parte dos
nossos momentos diários de leitura, permitindo que as crianças tivessem acesso a
diferentes formas de falar do que se viveu ou do que se inventou ter vivido.
Entendemos que esse contato, também possibilitou que as crianças se apropriassem
do gênero memórias, a partir de boas referências. A imagem a seguir, apresenta o
acervo usado nessa intervenção, escolhido de forma criteriosa, observando a
qualidade das obras e o apelo memorialístico:

Imagens das capas dos livros lidos durante o trabalho de produção de memórias escolares313

Enquanto Sylvia Orthof trazia memórias zoológicas, Marina Colasanti falava


dos animais, em uma história de amor. Enquanto Ziraldo contava o jeito de ser de uma
Professora Maluquinha, Naumim contava as viagens de Simbad, o Marujo. Enquanto
Lygia Bojunga falava de suas paixões proporcionadas pela leitura, Lobato recordava
as peripécias da boneca Emília e da turma do Sítio do Pica-pau Amarelo. Dessa
forma, os momentos de leitura se tornaram ―um mergulho em jeitos diferentes de se

313
Os bichos que tive , Sylvia Orthof; Breve história de um pequeno amor, Marina Colasanti; Uma
professora muito maluquinha, Ziraldo; As sete viagens de Simbad o marujo, NaumimAizen (trad. e
adap.); Livro – um encontro, Lygia Bojunga; Memórias da Emília, Monteiro Lobato.

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falar do passado‖, enfatizando principalmente o que há de belo e de prazeroso nas


lembranças da vida.
Reconhecemos a estreita relação entre ficção e imaginário. Se a ficção é uma
forma de materialização do imaginário, a leitura de textos ficcionais, por sua vez,
impulsiona a imaginação do leitor/ouvinte. Outro aspecto importante do contato com os
textos literários: ao ver tantos autores escreverem sobre memórias, as crianças
puderam perceber o quanto essa é uma temática envolvente.
Para realização das sessões de leitura, foi adotada a metodologia da
andaimagem (MICHAEL F. GRAVES e BONIE GRAVES, 1995), na qual são propostos
os chamados ―andaimes‖ para favorecer a compreensão do que se lê (as imagens, o
título do texto, os questionamentos lançados pelo professor, ou qualquer outro tipo de
apoio à leitura). Dessa forma, os momentos eram organizados em pré-leitura
(exploração da imagem da capa, previsões do que se espera a partir do título, etc);
leitura oral por meio de um único livro ou com exemplares do texto para todos os
leitores; e pós-leitura (discussões sobre o texto mediadas pelas professoras).
Acreditamos que, por meio dessa metodologia, as crianças conseguiram compreender
e extrair do texto, muito mais do que conseguiriam se estivessem lendo sozinhas, sem
nenhum tipo de mediação intencional.
A diversidade dos temas abordados nas obras lidas inspirou professoras e
crianças, na proposição dos diversos temas que foram produzidos no tal ―caderno de
capa dura amarela‖. Foram eles: Apresentação do autor, Brincadeiras escolares, Os
bichos que tive na escola, Os medos que senti na escola, Os amigos, Memórias dos
professores que tive, As visitas de estudos, Os eventos escolares, Meus temas de
pesquisa, Memórias de leituras e ainda Memórias com tema de livre escolha das
crianças. A leitura das obras foi promovida com vistas à formação de repertório e à
construção de uma experiência de prazer, sem que essa atividade estivesse
associada diretamente à proposta posterior de produção textual.
Acreditamos que este processo de produção textual ainda não está finalizado,
visto que é desejo das professoras e crianças que os textos sejam publicados em um
Livro de Memórias Escolares da Turma. Chegar ao formato final de livro vai demandar
sessões de planejamento e organização das professoras e crianças para: definição do
layout do livro, seleção dos textos, produção de possíveis ilustrações e ainda um
trabalho de revisão e edição com o apoio de um profissional. Como resultado,
esperamos ter possibilitado uma vivência significativa e formativa para as crianças, o
que certamente ficará na memória de todas elas.

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Considerações Finais

Ao serem convocadas para se posicionarem sobre a experiência de


escrever suas memórias escolares, as crianças expressaram uma avaliação positiva,
conforme mostram os depoimentos a seguir:
Eu gostei bastante da experiência de escrever as minhas memórias
escolares. No início dá um pouco de trabalho, porém, vale muito a
pena, porque quando eu estiver com saudades do NEI eu vou ler.
(Maria Fernanda).
Eu achei muito legal porque esse é o nosso último ano no NEI e me
ajudou a lembrar de várias memórias. (Lucas Gabriel)
Eu gostei muito de ter a oportunidade de estudar o gênero memorial e
na minha opinião foi bom compartilhar o que vivemos e lembrar o que
tínhamos esquecido. Foi realmente maravilhoso. (Carine)
(Registros em atividade escrita, 2017).

Reconhecemos a importância da produção das narrativas com as


experiências escolares trazidas pelas crianças, especialmente por estarem
consolidando uma etapa importante da sua formação. Esta foi uma oportunidade
significativa para aprimorarem a capacidade de expressão por meio da escrita e de
avançarem no desenvolvimento da competência leitora. Também se constituiu em
oportunidade para compartilhar, relembrar, reviver e avaliar tudo que foi vivenciado e
aprendido na escola. É como se, somente agora, as crianças estivessem preparadas
para partir, levando a ―bagagem de vida‖, na memória.

Referências

AMARILHA, Marly. Alice que não foi ao país das maravilhas: educar para ler
ficção na escola. 1. ed. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2013.

ARAÚJO, Maria de Fátima. A fogueira do conhecimento: religação de saberes e


formação. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Natal, 2005.

CALKINS, Lucy McCormick. A arte de ensinar a escrever – o desenvolvimento do


discurso escrito. Trad. Daise Batista. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.

FREITAS, Alessandra Cardozo. A contribuição da literatura na estruturação da


linguagem em crianças da educação infantil. Dissertação (Mestrado em Educação)
– Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, 2002.

GRAVES, M. F.; GRAVES, B. B. The scaffolding reading experience: a flexible


framework for helping students get the most out of text. In: Reading. April.1995.

LAJOLO, Marisa. Leitura e literatura: direito, dever ou prazer? In: LIMA, Aldo de. et
al (org.). O direito à literatura. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012.

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LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília. 2ed. São Paulo: Globo, 2009.

MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. Tradução Pedro Maia Soares. São
Paulo: Companhia das Letras, 1997.

OLIVEIRA, Eduardo Calil. Autoria: a criança e a escrita de histórias inventadas.


Londrina: Eduel, 2004.

SMITH, Frank. Compreendendo a leitura: uma análise psicolinguística da leitura e


do aprender a ler. 4ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.

SMOLKA, Ana L. Bustamante. A criança na fase inicial da escrita: a alfabetização


como processo discursivo. 12ª ed., São Paulo: Cortez, 2008.

VIGOTSKI, L. S. Pensamento e linguagem. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 4 ed. São


Paulo: Martins Fontes, 2008.

YUNES, Eliana. A provocação que a leitura faz ao leitor. In: AMARILHA, Marly
(org.). Redes de sentidos. Brasília: Liber Livro, 2010.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

LITERATURA DE CORDEL: UMA ABORDAGEM


SOCIODISCURSIVA

Clotildes de Souza Farias


Universidade Federal de Mato Grosso /PPGEDU/ICHS/CUR,
Literatura infantil e ensino

Áureo José Barbosa


Universidade Federal de Mato Grosso /PPGEDU/ICHS/CUR,
Literatura infantil e ensino

Keila Antônia Barbosa


Universidade Federal de Mato Grosso /PPGEDU/ICHS/CUR,
Literatura infantil e ensino

Cristiana de Jesus Xavier


Universidade Federal de Mato Grosso /PPGEDU/ICHS/CUR,
Literatura infantil e ensino

Considerações Iniciais

É notória a importância de apresentar aos alunos os diferentes gêneros


textuais que circulam socialmente, rompendo com a ideia do ensino de linguagem
voltado apenas para a metalinguagem. É na escola que a maioria das crianças tem os
primeiros contatos com o mundo literário. Dessa forma, este ambiente de
aprendizagem é de fundamental importância para a formação do sujeito como leitor.
Nesse cenário, o professor se vê frente ao desafio de decidir quais gêneros
discursivos devem ser trabalhados, tendo por objetivo atender o desenvolvimento das
habilidades que envolvem a escrita e a oralidade. Ante o exposto, este trabalho, de
caráter bibliográfico, tem por objetivo propor uma reflexão sobre a relevância do
trabalho pedagógico em sala de aula com o gênero do discurso literatura de cordel
para o estudo da linguagem nos anos iniciais do Ensino Fundamental, ancorado nos
pressupostos bakhtinianos para o estudo de gêneros e atendendo à proposta de
Sequência Didática (SD) o que está em consonância com os propósitos traçados pelos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o trabalho pedagógico com gêneros.
1577

Gêneros discursivos: breves considerações

Os estudos referentes aos gêneros do discurso não são recentes, porém, nas
últimas décadas, vêm ganhando um impulso maior devido aos estudos advindos dos
escritos bakhtinianos, que romperam os limites clássicos da tradição da poética e da
retórica de Platão e Aristóteles, estendendo-se à linguística de forma geral
(MARCUSCHI, 2008). De acordo com o autor, hoje o estudo sobre gêneros textuais
está em alta, mas de forma bem diferente da perspectiva aristotélica, e a expressão
―gênero‖ está sendo empregada com frequência em diferentes áreas de investigação.
O estudo de gêneros discursivos tem tomado uma conotação interdisciplinar e
a análise de gêneros demanda ―uma análise do texto e do discurso e uma descrição
da língua e visão de sociedade, e ainda tenta responder a questões de natureza
sociocultural no uso da língua de maneira geral‖ (MARCUSCHI, 2008, p. 149).
Salienta ainda, o autor, que há, no Brasil, várias correntes que se dedicam ao
estudo dos gêneros textuais: a) perspectiva sócio-histórica e dialógica; b) perspectiva
comunicativa; c) perspectiva sistêmico-funcional; d) perspectiva sociorretórica de
caráter etnográfico, voltada para o ensino de segunda língua; e) perspectiva
interacionista e sociodiscursiva de caráter psicolinguístico e atenção voltada para a
língua materna; f) perspectiva da análise crítica; g) perspectiva sociorretórica/sócio-
histórica e cultural. No trabalho ora apresentado, nos respaldaremos teoricamente na
perspectiva sócio-histórica e dialógica que se fundamenta nos estudos do teórico
russo Mikhail Bakhtin, que concebe os gêneros discursivos como entidades dinâmicas
e não apenas como modelos estanques e rígidos (BAKHTIN, 2011; MARCUSCHI,
2008).
Em termos de definição, Marcuschi (2010) enfatiza que empregamos a
expressão gênero textual a partir de uma noção propositalmente longínqua para nos
referirmos aos textos que se encontram materializados em nosso dia a dia e que
possuem características sociocomunicativas bem determinadas por conteúdos,
distinções funcionais, estilo e composição própria. (MARCUSCHI, 2010, p. 22, grifos
do autor).
Quanto ao uso da língua, Bakhtin (2011) afirma que todos os campos da
atividade humana encontram-se ligados, de maneira indissociável, ao uso da
linguagem. Nessa proposição, o autor destaca que o emprego da língua ocorre em
forma de enunciados, sejam eles orais ou escritos, que refletem as especificidades e
finalidades de um dado campo da comunicação humana pelo seu conteúdo temático,

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estilo e por sua construção composicional. Esses três elementos estão


intrinsecamente ligados no todo de um enunciado e estão condicionados pelas
especificidades inerentes a determinado campo da comunicação humana e ―cada
enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora
seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do
discurso‖ (BAKHTIN, 2011, p. 262, grifos do autor).
Marcuschi (2008) levanta uma questão a respeito de quais gêneros devem ser
trabalhados em sala de aula, visto a grande variedade de gêneros do discurso
existentes na sociedade. O autor destaca que, quanto a essa questão, não há
consenso nas respostas e enfatiza que os próprios PCN apresentam dificuldade a
esse respeito e, já que parecem existir gêneros que são mais adequados para o
trabalho com leitura e outros, com a produção textual. Para ele, há, no ensino, uma
certa hierarquização dos gêneros textuais, sendo alguns abordados com mais afinco e
outros tratados de forma superficial, como meros ―enfeites‖ para distração dos alunos
e, além disso, avalia que, de forma gradual e lenta, os gêneros orais têm ganhado
espaço na sala de aula.
Em relação aos gêneros textuais orais, em aspectos de definição, estes são
envoltos de complexidade e, ao contrário do que parece, não correspondem ao óbvio
de serem apenas os gêneros típicos da língua oral, como sinaliza Travaglia (2013):

[...] gênero oral é aquele que tem como suporte a voz humana (vista
como a característica particular que tem o som produzido pelo
aparelho fonador) e que foi produzido para ser realizado oralmente,
utilizando-se a voz humana, independentemente de ter ou não uma
versão escrita. (TRAVAGLIA, 2013, p. 4).

Partindo desse pressuposto, o gênero Literário Cordel se constitui em gênero


textual oral, tendo em vista que atende essencialmente à oralidade, mesmo que tenha
uma versão escrita. É o que ocorre com os gêneros orais entrevista e palestra, que,
por mais que possuam um texto escrito, foram pensados para a oralidade.
O gênero do discurso Cordel, objeto da nossa discussão, é tomado como fruto
da atividade humana que possuem padrões sociocomunicativos específicos. Este
gênero é uma produção da cultura nordestina, que foi amplamente difundido em outras
regiões e pode configurar em um excelente recurso para o professor em sala de aula,
pois reflete os aspectos linguísticos e sociais de um determinado campo da
comunicação.

Literatura de Cordel: um breve histórico


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A Literatura de Cordel surgiu na Europa, no século XVII, e, conforme Marinho e


Pinheiro (2012), seu nome teve origem em Portugal remetendo à forma como os
livretos eram expostos, afixados em um cordão de barbante como roupas estendidas
em um varal. Esses livros eram produzidos com material de baixo custo e vendidos em
feiras livres e lugares públicos, como praças. Para tornar o Cordel mais atrativo, os
cordelistas declamavam ou cantavam suas obras, que se apresentavam em verso ou
prosa, com os mais variados temas. O Cordel se espalhou por diversos países,
articulando-se de diferentes formas.
A Literatura de Cordel chegou ao Brasil junto com os colonizadores
portugueses, sendo amplamente empregada, inicialmente, na região Nordeste. Com o
processo migratório do povo nordestino, o Cordel foi difundido também em outras
regiões brasileiras. Sobre os primórdios do Cordel no Brasil, Silva (2016) afirma que:

Inicialmente introduzida como literatura colonial, trazia um retrato da


metrópole portuguesa com temas europeus, que narravam epopeias
de bravuras e conquistas. Posteriormente passou a ter influência das
etnias existentes no Brasil, indígena e africana, com grande tradição
na oralidade. Posteriormente, foi identificada com o cancioneiro
nordestino que também fazia uso da tradição oral e expressava a sua
poética nas emboladas, hoje conhecido como repente. (SILVA, 2016,
p. 3).

O Cordel representa parte da identidade cultural do Brasil, possuindo


características próprias que o transformaram em uma literatura produzida pelo povo e
para o povo, fazendo parte da literatura popular brasileira.
Segundo Luciano (1974 apud HAURÉLIO, 1974) o Cordel, como o
conhecemos hoje, surgiu no Brasil no final do século XIX, a partir da ida para Recife
de quatro poetas nascidos na Paraíba: Silvino Pirauá de Lima, Leandro Gomes de
Barros, Francisco das Chagas Batista e João Martins de Athayde, que formaram a
Geração Princesa do Cordel, dando, a partir desse momento, início a composição e
comercialização dos folhetos nas, até então, modernas máquinas de impressão que
existiam na capital pernambucana. Leandro Gomes de Barros foi o primeiro poeta-
editor e é reconhecido como o pai do Cordel no Brasil. Ainda segundo o autor,
Leandro, além de escrever e imprimir suas próprias obras, também as comercializava
e viveu, de forma exclusiva, dessa prática.
Silva (2016) destaca que o Cordel pode apresentar diferentes temas, como os
listados abaixo:

 Cordéis cômicos ou satíricos – abordam questões da vida humana


na forma de denúncia social, religiosa ou fatos do cotidiano;
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 Cordéis do ciclo social – trazem como tema central a organização


da sociedade patriarcal, o cangaço, as injustiças que favorecem o
banditismo social, as secas periódicas em algumas regiões do
Nordeste; o foco temático é o drama humano e social;
 Cordéis que tratam de temas políticos, comentando ações do
governo em geral;
 Cordéis que falam de amor e fidelidade, com destaque para os
amores proibidos ou maridos bem-sucedidos e enganados; nota-se
que são cordéis marcados pelo heroísmo masculino e pela traição;
 Cordéis que recontam histórias da literatura universal ou
apresentam lendas folclóricas, assim como bichos com características
humanas;
 Cordéis que apontam para a questão religiosa, discutindo a ideias
do castigo divino, do corretivo do desvio de conduta, da violência e da
descrença em Deus; há forte presença dos elementos religiosos na
Literatura de Cordel. (SILVA, 2016, p. 3-4).

Como vimos acima, o Cordel possui uma versatilidade quanto a sua temática,
apresentando marcas riquíssimas da cultura popular brasileira. Silva (2016) enfatiza
que, assim como ocorre com outras produções literárias, o Cordel vive momentos de
auge e de escassez em suas produções. Para a autora, a Literatura de Cordel é
importante para a preservação das identidades locais e regionais, contribuindo para
que o folclore brasileiro permaneça vivo.
Em linhas gerais, Haurélio (1974) conclui que é com méritos que a Literatura de
Cordel galga novos públicos, não deixando de lado seus leitores tradicionais e, mesmo
com os momentos de escassez e de pouca visibilidade, o Cordel e seus autores
resistiram, evoluindo e se organizando. Assim, sem desprezar a contemporaneidade,
―o Cordel chega vivo e com força ao século XXI‖ (HAURÉLIO, 1974, p. 106).

O Cordel na sala de aula

O Cordel é um gênero textual e, como tal, é fruto de uma prática


sociodiscursiva concreta que reflete e refrata os aspectos sócio-históricos e culturais.
O Cordel se constitui, portanto, em uma ótima ferramenta para o ensino, por
proporcionar ao aluno o contato com um artefato cultural brasileiro, além de incentivar
a leitura e a oralidade e a valorização e fortalecimento da cultura popular.
De acordo orientações dos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua
Portuguesa (1998), a escola deve viabilizar o acesso dos alunos aos mais variados
textos que circulam socialmente, ensinando-os a produzi-los e a interpretá-los.
Ao trabalhar com os alunos a Literatura de Cordel, o professor se depara com
múltiplas possibilidades, considerando a riqueza cultural que esse gênero oferece. Por
ser um gênero textual pensado para a oralidade, o Cordel pode carregar as marcas
características da fala de determinado grupo social e, desse modo, exige do professor
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cuidado e respeito na abordagem dessas variantes da língua portuguesa,


reconhecendo-as como legítimas.
A Sequência Didática (SD), esboçada por Dolz, Noverraz & Schneuwly (2004),
é uma possibilidade de trabalho do gênero textual Literatura de Cordel. O trabalho com
sequências didáticas pode ser realizado tomando como objeto os mais variados
gêneros discursivos, em especial os gêneros orais, como nos aponta Marcuschi
(2008).

Segundo Dolz; Noverraz e Schneuwly (2004) a ―sequência didática‖ é definido


como um conjunto de atividades escolares, sistematicamente organizadas, em torno
de um gênero textual oral ou escrito, podendo o professor planejar as etapas do
trabalho juntamente com os alunos e acompanhá-los em suas evoluções, fazendo as
devidas mediações, sempre que necessário, para, assim, chegar à produção escrita
final. Quanto ao trabalho com sequência didática, os autores destacam ser o eixo
central da escola: ―Uma sequência didática tem, precisamente, a finalidade de ajudar o
aluno a dominar um gênero de texto, permitindo-lhe, assim, escrever ou falar de uma
maneira mais adequada numa dada situação de comunicação‖ (DOLZ; NOVERRAZ;
SCHNEUWLY, 2004, p. 83, grifo dos autores).

Logo, as sequências didáticas têm por objetivo propiciar o acesso dos alunos a
novas práticas de linguagem ou as dificilmente domináveis. Partindo desta premissa,
os autores sugerem que o trabalho escolar parta dos gêneros textuais que os alunos
não dominem completamente; daqueles com difícil acesso no cotidiano dos alunos; e
dos gêneros considerados públicos.
A estrutura de base de uma sequência didática, proposta pelos autores, parte
de uma apresentação da situação em que a atividade de expressão oral ou escrita, a
ser realizada pelos alunos, é minuciosamente descrita. O objetivo principal nesta
primeira etapa é expor para a turma uma sugestão de comunicação que será
concretizada na produção final e, ao mesmo tempo, preparar também para a produção
inicial, que é a primeira tentativa de realização do gênero. Para os autores, trata-se de
um momento difícil e crucial em que se podem distinguir as duas principais dimensões:
a apresentação do problema de comunicação deve estar bem delineada, assim como
a preparação dos conteúdos dos textos a serem produzidos. O esquema a seguir
(Figura 1) representa as etapas de uma sequência didática:

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Figura 1 – Esquema da sequência didática

Fonte: Dolz; Noverraz; Schneuwly (2004, p. 98).

Na primeira dimensão, apresentação de um problema de comunicação bem


definido, os autores orientam que o ―projeto de produção de um gênero oral ou escrito‖
deve ser exposto à turma de forma clara, para que possa compreender melhor a
situação de comunicação a ser exigida, seja um texto oral ou escrito. Questões
expostas pelo professor deverão propiciar indícios que orientarão as etapas da
produção, como: Qual o gênero que será trabalhado? A quem se destina a produção?
Qual a forma assumida pela produção? Quem serão os sujeitos participantes da
produção?
Quanto à segunda dimensão, a dos conteúdos, os autores enfatizam a
necessidade de os alunos perceberem a importância deles e que saibam com quais
irão trabalhar, sendo esta etapa inicial de apresentação da situação, portanto, um
momento que permitirá aos alunos o contato com todas as informações que
necessitam para conhecerem o projeto de comunicação a ser alcançado e a qual
aprendizagem de linguagem está relacionado.
Em seguida, os alunos desenvolvem a primeira produção, um texto oral ou
escrito, que corresponde ao gênero textual trabalhado e que permitirá uma avaliação
das capacidades adquiridas e a adequação dos próximos exercícios e atividades às
reais possibilidades e dificuldades dos alunos. Além de possibilitar esta primeira
avaliação por parte do professor, essa etapa define o significado de uma sequência,
para o aluno, ou seja, as habilidades que terá que desenvolver para dominar,
efetivamente, o gênero textual trabalhado.
Por fim, a produção final, em que o aluno terá a oportunidade de empregar os
conhecimentos adquiridos na trajetória da SD e, em companhia do professor, observar
as evoluções alcançadas.

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Considerações Finais

A Literatura de Cordel é um excelente gênero textual para o trabalho com a


oralidade em sala de aula e, tendo como base a proposta de sequência didática (SD),
tal como pensada por Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004), proporciona uma melhor
compreensão do gênero em questão, por envolver tanto a oralidade quanto a escrita.
Ao abordar o gênero Cordel a partir da proposta da SD, todo o processo de
produção torna-se passível de ser retrabalhado, corroborando para o aperfeiçoamento
das práticas de escrita e oralidade. Dessa forma, o professor acompanha o
desenvolvimento das atividades, fazendo as devidas intervenções e permitindo ao
aluno a conscientização de todo o processo de produção, o que, assegura Marcuschi
(2008), torna o trabalho muito mais claro e autorregulado.
Em suma, podemos perceber que, ao tomar-se o gênero Literatura de Cordel
como um evento comunicativo, prenhe de marcas sociais historicamente situadas, o
professor propicia aos seus alunos, acima de tudo, o contato com a literatura popular
e, consequentemente, ajuda na valorização de uma cultura historicamente
marginalizada.

Referências

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Mercado de Letras, 2004. p. 81-108.

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ISBN: 978-85-69697-03-9
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Linguagens e Identidades da/na Amazônia Sul-Ocidental 1 (2016). Disponível em:


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Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

Literatura infantil e a pesquisa científica

Simone Strelciunas Goh, Faculdades Metropolitanas Unidas, Eixo 8 –


Literatura infantil e ensino

Considerações Iniciais

A educação superior abarca três finalidades: profissionalizar; iniciar a prática


científica e formar a consciência político-social do estudante, tais conhecimentos
devem ser desenvolvidos por meio de experiências ativas. No entanto, sabemos que a
universidade nem sempre cumpre seus fins devido a uma série de fatores de ordem
social e pedagógica e que ainda existe nesse nível de ensino práticas tradicionais e
reacionárias.
O projeto aqui apresentado objetiva cotejar a profissionalização, pesquisa e
conscientização dos alunos do curso de Pedagogia por meio do processo de iniciação
científica, tendo como corpus a literatura infantil. Isso em um cenário pós-moderno em
que ainda há embates sobre a noção do cientificismo, dessa feita, distanciamo-nos
dos enquadramentos iluministas para construirmos um cenário teórico-prático que
fundamente nossa proposição de um ensino universitário global (da pesquisa para a
práxis em sala de aula), especificamente no curso de formação de professores.
Partimos das concepções de Antonio Joaquim Severino (2001 e 2008),
Fernando Hernandez (1998) e Edgar Morin (2002 e 2005) para construirmos o
referencial teórico sobre a importância da pesquisa na universidade, o
desenvolvimento do pensamento crítico global, bem como as novas vertentes do
conhecimento. Nelly Novaes Coelho (2000), Ligia Cadermatori (1991), Simone S. Goh
(2017) e Maria José Palo e Maria Rosa Oliveira (2000) proporcionam um olhar sobre a
importância da literatura infantil, a partir da concepção que a infância não
necessariamente deve ser entendida como fase do desenvolvimento do ser humano,
mas sim como um estado em que a voz infantil perpassa a questão etária.
Conhecimento e pensamento crítico
1586

O processo de ensino-aprendizagem no curso superior tem seu diferencial na


forma de lidar com o conhecimento, entendendo-o como implementação de uma
equação (educar=conhecer+ construir o objeto (pesquisar)). Dessa forma, o aprender
deve se dar pela experiência ativa do estudante e não mais ser assimilado
passivamente de acordo com a perspectiva de Hernandez (1998).
O conhecimento, a partir dessa premissa, deve ir além do pensamento
simplificador, que na visão de Morin (2005) implica em transpor a idealização, a
racionalização e a normalização, uma vez que nem sempre o real é inteligível, não há
como sistematizar todas as esferas do universo e partir do princípio que tudo deve ser
coerente e redutível, respectivamente. O conhecimento, pelo princípio do método
discutido pelo teórico, implica em entender as nuances do ―não‖, reconhecer aquilo
que não é ideal, o não-racional. Ao quebrar paradigmas construídos ao longo de toda
a existência humana, cujo propósito foi sistematizar para conhecer, Morin (IDEM) abre
novas perspectivas para a pesquisa, especialmente a relacionada à área de humanas:

O método aqui se opõe à conceituação dita ‗metodológica‘ em que


ela é reduzida a receitas técnicas. Como o método cartesiano, ele
deve inspirar-se de um princípio fundamental ou paradigma. Não se
trata mais de obedecer a um princípio de ordem (eliminando a
desordem), de claridade (eliminando o obscuro), de distinção
(eliminando as aderências, as participações e as comunicações) [...]
trata-se ao contrário, de ligar o que estava separado através de um
princípio de complexidade. (p.36)

O teórico é precursor ao relacionar conhecimento à complexidade, partimos,


em sua visão, do complexo para o simples, mas como tal conduta pode ser
verdadeira, uma vez que nos foi condicionada a ideia da simplificação, resgatada das
ciências exatas e transplantada para a pesquisa nas outras áreas. Considera-se que a
complexidade seja o olhar para o todo, que se impõe à simplificação e a concepção de
que esta é algo momentâneo e arbitrário e que não encontra mais lugar nem na
microfísica, nem na pedagogia. Diante disso, o conhecimento deve se constituir como
um pensamento complexo, que se faz e refaz na busca de novos saberes, que por sua
vez não deve ser reduzido: ―na base da physis, não há um conceito primeiro,
soberano, mas um processo conceitual produtor em circuito.‖ (MORIN, 2005, p.457).
Ainda como uma concepção embrionária, Severino (2003) entende que o
conceito seja uma representação mental, ponto de chegada de um complexo processo
de construção de sentido. Observamos que o pesquisador ainda se apega ao conceito
de simplificar desconstruído por Morin. Contudo, vale salientar que Severino (2008)
relaciona conhecimento ao processo:

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[...] a atividade de ensinar e aprender está intimamente vinculada a


esse processo de construção de conhecimento, pois ele é a
implementação de uma equação de acordo com a qual educar
(ensinar e aprender) significa conhecer; e conhecer, por sua vez,
significa construir o objeto, mas construir o objeto significa pesquisar.
(p.25)

O conhecimento pode ser entendido como a busca pelo complexo a partir de


um processo contínuo, em que paradoxos podem coexistir e o pensar sobre a nulidade
das coisas permite ampliar a capacidade de novas descobertas teóricas e práticas.

Da pesquisa
O maior acesso às informações neste momento histórico torna legítimo o
pensar na adaptação das mentalidades e de seus respectivos saberes em uma
direção oposta à fragmentação e à especialização. Uma das ferramentas que pode
tornar essa realidade possível é a pesquisa científica na universidade. A atividade de
pesquisa torna-se elemento fundamental e imprescindível no processo de
desenvolvimento do aluno universitário, diante disso, as atividades de iniciação ao
procedimento científico envolvem os estudantes em práticas de construção de
conhecimento e deveriam ser norteadas pela premissa da complexidade, para que
dessa forma, cumprissem o real percurso da investigação, que envolve três
dimensões: epistemológica (perspectiva de conhecimento), pedagógica (mediação
necessária entre orientador x orientando), social (o estabelecimento do aluno como ser
histórico-social, que possibilita mudar sua própria existência). (SEVERINO,2008)
Para Severino (2008, p.26): ―Ensino e aprendizagem só serão motivadores se
seu processo se der como processo de pesquisa.‖ Complementando ainda que a
educação superior deve transcender ao ensino mecanicista e tradicional de
transmissão de informações o que implica na mediação entre aluno-objeto de
pesquisa-professor. Esse processo começou a ser repensado no final do século XX, a
partir de reformas propostas às Universidades, cuja base seria a reforma do
pensamento, com vistas a atingir o emprego da inteligência total, de acordo com Morin
(2002). Contudo, o fomento ao conhecimento e respectivamente à pesquisa implica
em reproblematizar os princípios de conhecimento e na reforma do pensamento (os
quais tratamos no tópico anterior), além de construir a transdisciplinaridade.
O prefixo ‗trans‘ significa aquilo que está entre e além das disciplinas,
processo imbricado com o todo do conhecimento. O pensamento clássico prima pelo
campo de estudo delimitado e por sua vez inesgotável em si mesmo, o que se
distancia da noção de transdisciplinaridade, diante da qual há espaços entre as várias
realidades que devem ser preenchidos por saberes e conhecimentos que implicam em
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uma visão planetária, global. A partir dessa concepção, as pesquisas disciplinares e


transdisciplinares se complementam, sendo que esta última abarca três pilares: níveis
de realidade, lógica e complexidade, que vão determinar sua condição de ir além.

A transdisciplinaridade se caracteriza geralmente por esquemas


cognitivos que atravessam as disciplinas, às vezes com uma tal
virulência que as coloca em transe. Em resumo, são as redes
complexas de inter, poli e transdisciplinaridade que operaram e
desempenharam um papel fecundo na história das ciências. (MORIN,
2002, p.49)

A noção de transdisciplinaridade representa o ato de pesquisar que vai


além da construção simplificada de conhecimentos, que relaciona o objeto não apenas
a uma área de conhecimento, mas em uma ação em que as temáticas se projetam
para composição de problemas de vários âmbitos. O que já ocorre com a Geografia,
cujos caminhos envolvem desde a geologia até fenômenos sociais e políticos, ou a
história, por sua multidimensionalidade. A conceoção clássica de pesquisa sempre se
distanciou da área de humanas, diante desse quadro Morin também é inovador ao
ressaltar a importância da literatura e da poesia serem inseridas na concepção
transdisciplinar e consequentemente um campo de pesquisa que não deve ser
desprestigiado: ―Quando lemos os romances de Balzac, Dickens, Dostoievski, Tolstói,
aprendemos, compreendemos e percebemos o que as ciências não chegam a dizer
porque ignoram os sujeitos humanos.‖ (MORIN, 2002, p.34)

Da literatura Infantil

A literatura foi a principal forma pela qual recebemos a herança da tradição que
nos cabe transformar mediante a óptica de conhecimento da complexidade, escolas
da complexidade humana. A palavra escrita ou contada pode ser considerada impulso
para o desenvolvimento do pensamento complexo, na visão de Coelho (2000),
condição reafirmada por Morin (2002, p.35): ―A literatura, o teatro e o cinema são
escolas da vida e do mundo e da nova forma transdisciplinar de pensá-lo.‖
A literatura infantil é um gênero jovem e até os anos 70 sua história se mostrou
difusa, destacando-se nesse percurso apenas o escritor Monteiro Lobato. Por força da
Lei de Diretrizes e Bases – LDB 5692/71,a literatura foi incluída nos currículos e até
hoje permanece por meio de programas do governo, sendo assim importante na
formação da educação das crianças. Já na década de 80, ocorre o boom da literatura
infantil, cujas causas foram oriundas dos altos índices de analfabetismo e da
massificação do ensino superior. Por outro lado, o livro como objeto de consumo
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aumentou suas vendas em decorrência do crescimento da classe média e o aumento


do nível de escolaridade, embora a evasão continuasse a ser problema. No entanto, o
problema do subdesenvolvimento cultural permaneceu, uma vez que a criança foi
apenas alfabetizada e não letrada, não construindo um percurso leitor, dessa feita, os
alunos ingressantes nas universidades continuam hoje a apresentar grande dificuldade
de investigação e debate. A literatura, já proclamada por vários teóricos, cumpre esse
fim de transformar o leitor leigo em um leitor ideal, o que reassegura Cadermatori
(1991):

A literatura, por sua vez, propicia uma reorganização das percepções


do mundo e, desse modo, possibilita uma nova ordenação das
experiências existenciais da criança. A convivência com textos
literários provoca a formação de novos padrões e o desenvolvimento
do senso crítico.‖ (p.18-19).

Segundo Goh (2017), a Literatura Infantil apresenta-se à criança desde o seu


nascimento por meio das contações dos pais e educadores. Tais textos abrem portas
para o mundo infinito da textualidade e para as diversas viagens que a criança poderá
percorrer. Questionando e estimulando o leitor a refletir, a literatura infantil constitui um
objeto fundamental para o próprio conhecimento universal do homem, uma vez que a
palavra escrita é o principal instrumento de formação da consciência de mundo da
criança.

Do projeto e análise dos resultados

Defrontando-nos com uma realidade em que alunos, futuros professores do


curso de Pedagogia, fazem uma leitura rasa de apostilas e livros específicos das
disciplinas que cursam, objetivando apenas a avaliação tradicional e somativa, o
projeto aqui demonstrado tem como objetivo desenvolver nesse estudante o hábito da
leitura crítica e reflexiva, uma vez que na iniciação científica ele tem o livre arbítrio de
escolher seu tema, selecionar a bibliografia e o professor-orientador é o responsável
pela intermediação teórica e condução do processo.
Iniciamos o projeto de iniciação científica no ano de 2015, com a pré-seleção
de alunos, que antes de tudo se interessassem pela pesquisa. A seguir descrevemos
as ações desenvolvidas:
1º.Realização de reuniões de interesse com as turmas do 3º. Semestre do
curso de Pedagogia.
2º. Realização de encontros para discussões de temário, sugestões de
bibliografias, troca de e-mails.
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3º. A partir da análise das notas da avaliação regimental + percurso do aluno


+interesse e participação nos encontros, estabelecimento de um grupo de pré-
iniciandos para o ano seguinte.
4º. Durante as férias, os iniciandos fizeram leituras e fichamentos.
5º. Elaboração de formulário de inscrição + projeto.
6º. Aprovação de alunos conforme edital FMU-2016.
7º. Encontros semanais com alunos para discussão e elaboração de artigo
científico.

Cabe enfatizar o 7º. Tópico – dos encontros semanais, nesses momentos em


que ocorriam efetivamente as discussões, buscas, reconstruções do pensamento
científico e do objeto de estudo, no sentido cotejado pela teoria apresentada, em que o
pensamento complexo e as possibilidades do ‗não‘ fossem contempladas. Cabe
mensurar que tal metodologia atende às três dimensões apontadas por Severino
(2008): a epistemológica, o aluno se sente motivado a ir ao encontro de teorias que
possam suprir seu problema científico e na condição de leitor crítico e reflexivo, torna-
se autor de seu trabalho, que neste projeto teve um viés de inovação de recorte
temático; a pedagógica, na medida em que todo processo foi mediado por um
professor-orientador, o aluno se sente respaldado em relação a sua produção e a
social, cabe ressaltar aqui que a maioria dos temas partiu de questionamentos de
vivências e situações percebidas pelos alunos, que já atuavam como professor, dessa
maneira, estabelece-se uma ponte entre pesquisa e prática, configurando-se a
construção de uma visão histórica-social.
Observamos também que a iniciação científica é um exemplo de excelência
para o desenvolvimento da transdisciplinaridade, a saber, os temas discutidos
ressaltam o todo do conhecimento, construindo uma rede complexa de saberes.
Diante disso, elencamos os nove artigos científicos produzidos:
Aluno Tema
Amábile Cristina Buzelli Literatura infantil na 1ª. Infância como
facilitadora no desenvolvimento da
leitura
Allyne Pinho Alice no país das maravilhas e em sala
de aula
Ana Paula Piola Datas Comemorativas e Literatura
infantil – pretexto para desenvolvimento
de uma consciência leitora e cidadã
Érica Freitas A semiótica e sua aplicação nos livros de
literatura infantil
Letícia Ferreira da Silva O feminino na literatura infantil:
perspectivas de empoderamento
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Marco Aurélio Monte Verde Representações socioculturais na obra


Peter Pan de Monteiro Lobato
Priscila Ferreira O papel do professor fora do ambiente
escolar – o abrigo e a contação de
histórias
Rafaela Maiara Santos Silva Literatura infantil a favor de um ensino
não sexista
Tamiris de Moura Fonseca Uma visão diacrônica da mulher na
literatura infantil

Pode-se verificar pelas temáticas que a literatura foi o eixo que promoveu
discussões plurais, de teor literário, cultural e social, o que corrobora com o ideal
preconizado por Morin (2005), o distanciamento do pensamento simplificado, não há
uma ordem nas composições das pesquisas, mas o sentido de ligar o que estava
separado diante do pensamento complexo.
Todos os trabalhos partiram do pressuposto de que a literatura infantil é norte
para o desenvolvimento do pensamento crítico, da sensibilidade e que tal conteúdo
ainda é visto com desprestígio pela escola, a priori, os livros escolhidos ainda atendem
uma demanda comercial, o que indica uma concepção distante da cultural. Propor um
estudo científico da literatura infantil, sem descartar a função do deleite e prazer em
um primeiro plano, outorga a ela outra dimensão, um status hoje mais que necessário.
Destacamos o primeiro tema: Literatura infantil na 1ª. Infância como
facilitadora no desenvolvimento da leitura, a aluna pesquisadora, a partir de seu aporte
teórico sentiu a necessidade de uma pesquisa que validasse sua hipótese: a família
nem sempre contribui para o desenvolvimento da leitura na primeira infância. A
pesquisa foi realizada com 30 crianças e um breve questionário foi respondido pelos
pais, cujas respostas confirmaram a hipótese. Para a elaboração de um questionário
claro e objetivo que desse suporte a pesquisa, houve a necessidade de várias
releituras das teorias discutidas, pensar sobre as condições socioculturais
representadas pelas comunidades em que as crianças vivem permitiu um grande
desenvolvimento crítico e reflexivo, bem como o entendimento do homem como ser
plural e diverso.
O 5º. tema: O feminino na literatura infantil: perspectivas de empoderamento
foi fruto de uma inquietação pessoal da aluna, que teve uma infância permeada por
uma visão machista. No momento da pesquisa, ocorriam as Olimpíadas e foi
observado pela aluna que as mídias só ressaltavam o papel das mães dos atletas, de
formas positiva ou não. Diante disso, o artigo discutiu teorias sobre a questão do
feminino e seu empoderamento, apresentou um conto de Marina Colasanti – A moça
tecelã para fazer uma representação da força do feminino perante as adversidades.
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A escolha por detalharmos tais temas se deu pois, tais trabalhos foram
apresentados no Conic- Congresso Nacional de Iniciação Científica de 2016 e
receberam premiações, o 1º. tema ficou em 8º.lugar e o 5º. tema foi o vencedor na
área de Humanas.

Considerações Finais
Discutir condições e objetivos da pesquisa científica é imprescindível para a
construção de um novo pensamento no espaço da universidade. Necessários são os
saberes que transcendem a ideia de simplificação e fragmentação e que primem pelo
conhecimento a partir de um todo, pois o homem hoje é um ser planetário e todas as
áreas estão relacionadas à condição do viver pleno.
Há um paradigma a ser quebrado, que as ciências exatas e biológicas são a
base para o desenvolvimento da sociedade, assim o que aqui foi cotejado é também a
relevância da literatura para a sociedade, especificamente a infantil, cujo adjetivo não
deve ser especificador, mas condicional de uma visão de infância que sobrepuja a
questão etária e se relaciona à sensibilidade instintiva que os bons livros infantis
resgatam em todos os seres.
Para além da pesquisa, o que procuramos representar foi o ideal da
transdisciplinaridade, metodologia necessária para a reconstrução dos modelos
pedagógicos vigentes desde a educação básica até a universidade.
Assim, o trabalho procurou apresentar um exemplo de percurso em que o
aluno se faz agente de seu próprio conhecimento, visando contemplar as premissas
do pensamento complexo e da percepção de um mundo plural.
Referências

CADEMARTORI, Lígia. O que é literatura infantil. 6.ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
COELHO, Nelly Novaes. Literatura : arte, conhecimento e vida. São Paulo: Editora
Fundação Peirópolis, 2000.
GOH, Simone S. Textualidade do livro Infantil. Revista Literatura Conhecimento
Prático, n. 70, São Paulo: Editora Escala, abril, 2017.
HERNANDEZ, Fernando. Transgressão e mudança na educação: os projetos de
trabalho. Porto Alegre: Artmed, 1998.
MORIN, Edgar. O método 1 – a natureza da natureza. Porto Alegre: Sulina, 2005.
______.Os sete saberes e outros ensaios. São Paulo: Editora Cortez, 2002.
PALO,Maria José, OLIVEIRA, Maria Rosa. Literatura infantil voz de criança. São
Paulo: Ática, 2000.
SEVERINO, Antonio J. Metodologia do trabalho científico. 23ª. Edição. São Paulo:
Cortez, 2008.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

LITERATURA INFANTIL E IDENTIDADE ÉTNICO-RACIAL:


EXPERIÊNCIAS FORMATIVAS NO ESTÁGIO SUPERVISIONADO
DO CURSO DE PEDAGOGIA

Francisco Gonçalves Filho, Universidade Federal do Tocantins, Eixo 8


Literatura Infantil e Ensino
Ana Corina Spada, Universidade Federal do Tocantins, Eixo 8 Literatura Infantil
e Ensino

1. Considerações Iniciais

Este texto é composto por experiências e reflexões realizadas no âmbito do


estágio supervisionado em Educação Infantil (creche e pré-escola), do curso de
Pedagogia do Câmpus de Miracema da Universidade Federal do Tocantins.
O tema que orientou as atividades de pesquisa e também as propostas de
formação discente centrou-se na identidade étnico-racial. A delimitação da temática
que direcionaria os trabalhos de orientação dos discentes baseou-se no fato de que o
estado do Tocantins apresenta em seu território uma população indígena composta
por sete etnias – karajá, xambioá, javaé, xerente, krahô canela, apinajé e pankararú 314
– e também vinte e nove comunidades quilombolas certificadas pela Fundação
Cultural Palmares, com processos formalizados para a regularização fundiária de seus
territórios junto ao INCRA. Vale destacar que além das comunidades quilombolas
detectadas e certificadas, existem mais doze comunidades que foram identificadas,
mas, que ainda não possuem certificação e nem regularização de seu território (APA-
TO, 2012).
O conhecimento dos elementos supracitados nos sinalizou a relevância da
inserção da temática étnico-racial nos processos de formação docente, considerando,
sobretudo, a possibilidade de fortalecimento da identidade racial, em um contexto
social permeado por essas características.

314
De acordo com dados do senso demográfico do IBGE do ano de 2010, a população
indígena do estado do Tocantins é composta por 13.131 indivíduos.
1594

2. Questões Étnico-raciais e sua Abordagem no Âmbito Educacional

As características do contexto histórico e social no qual o curso de


Pedagogia, do Câmpus de Miracema, da Universidade Federal do Tocantins se insere
colocou em destaque elementos importantes para o planejamento das atividades
formativas dos discentes. Dados do censo do IBGE (BRASIL, 2010) apontam que o
estado do Tocantins possui uma população predominantemente negra, uma vez que
72,5% dela são compostos por pretos e pardos. Ademais, o movimento histórico da
constituição da sociedade brasileira sinaliza a necessidade de que considerações e
reflexões sejam feitas coletivamente, com vistas à compreensão de conceitos ligados
à visão crítica do processo de escravização de africanos e sua utilização como mão de
obra cativa, além de questões ligadas ao preconceito racial.
Em nosso percurso de planejamento e realização de uma proposta formativa
para o curso de Pedagogia, escolhemos iniciar a jornada pelo conceito de cultura,
explicitando que nosso entendimento da questão pauta-se em uma visão processual,
que a compreende como uma construção social historicamente datada e
geograficamente localizada, que se constitui a partir da intersecção entre as disputas –
de ordem econômica, política e religiosa – das grandes potências européias dos
séculos XVI e XIX.
Compartilhamos da definição dada por Santos (1994) de que a cultura
constitui um fenômeno complexo, abarcando elementos como conhecimento, arte,
crenças, leis, costumes, ideias, comportamentos, práticas sociais, hábitos e outros
elementos socialmente compartilhados entre gerações. Nesse sentido, a cultura
compreende uma das múltiplas dimensões do processo social e nos auxilia na
compreensão das sociedades contemporâneas, mas, para isso, não podemos
negligenciar o fato de que sua constituição é diretamente influenciada pelas relações
de poder estabelecidas dentro de uma sociedade.
A delimitação da questão étnico-racial como fio condutor da experiência
formativa no curso de Pedagogia, sinalizou a necessidade de sua abordagem
relacionada à formação identitária brasileira, demandando um exame crítico da
história. Assim sendo, o primeiro aspecto inserido nas análises refere-se ao fato de
que o Brasil teve, por cerca de trezentos anos, seu modo de produção baseado na
utilização do trabalho escravo, com práticas de aprisionamento, tortura e submissão
de diferentes etnias africanas e indígenas.
Durante o período conhecido como história colonial brasileira (1500 a 1822),
bem como após a independência do Brasil em relação a Portugal (1822 a 1888),

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houve a permanência das práticas de extermínio indígena e de escravização,


especialmente de africanos, sob o comando da monarquia brasileira.
A referência aos fatos históricos é feita com o intuito de propiciar o olhar
crítico e a capacidade de análise histórica entre os discentes: tanto a escravização de
povos africanos e indígenas, quanto a adoção de práticas de extermínio e tortura
ocorreram, de forma institucionalizada, pelo Estado brasileiro durante,
aproximadamente, trezentos anos. Entretanto, a abolição da escravidão, que ocorrera
no ano de 1888 – um ano antes da proclamação da república –, nem de longe deu à
questão condições mínimas para o enfrentamento do horror instaurado, pois, se por
um lado revogava-se a utilização da mão de obra prisioneira, por outro, não se
reconhecia, concretamente, a cidadania dos negros e dos indígenas.
Além disso, desde os primeiros momentos da República foram estabelecidas
políticas (com duração de mais de trinta anos) que inviabilizavam a vida da população
negra fora do âmbito da marginalização e exclusão social, pois, a migração do sistema
de produção pautado no trabalho escravo para um sistema de produção capitalista
fora feita com base na substituição de força de trabalho escrava, de origem africana,
pela branca, européia, havendo, nesse processo, a intencionalidade de promoção do
embranquecimento da população.
Quanto aos ideais relativos à fundação da República, assentada nos
princípios e valores democráticos, a história nos aponta práticas de desmandos
―republicanos‖, culminando com a interrupção dos poucos momentos de democracia
brasileira, por grandes períodos de ditaduras, militar ou civil, materializadas por meio
de golpes nos processos da jovem e difícil democracia brasileira (a exemplo dos
períodos de 1930 – 1945 com a Ditadura de Getúlio Vargas, e de 1964 – 1985 com a
Ditadura Militar) sob influência da burguesia internacional.
A abordagem histórica e o olhar crítico dos elementos constitutivos de nosso
país nos permitem a abordagem contextualizada e processual das questões étnico-
raciais, o que implica em compreender que nossa formação sociocultural está
profundamente relacionada a processos de dominação interna e externa do Brasil,
manifestas em virtude de disputas entre as formações capitalistas dominantes e
dominadas, tendo como epicentro da altercação, o controle econômico, político,
religioso e cultural.
A história nos mostra ainda que todo esse processo é permeado pela relação
dialética que se dá entre submissão, resistências, avanços e retrocessos, que se

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concretizam desde o período colonial – com eventos como a quilombagem315 –, ou


mesmo em episódios representativos, como a guerra de Canudos 316, ocorrida durante
a República.
Sptizier (2001) ressalta a necessidade de se considerar as diferentes
estratégias construídas pelos negros para o enfrentamento de entraves de ordem
social e também racial, com caráter segregacionista, que se manifestaram no período
posterior à abolição da escravatura. Esses movimentos de resistência sempre
estiveram presentes nos diferentes momentos históricos e contribuíram para o
recrudescimento das fronteiras do racismo, que restringiam o acesso à cidadania e
favoreciam uma construção simbólica pejorativa.
Os movimentos de resistência e luta do negro brasileiro, buscando a
reconstrução simbólica do negro como sujeito político buscam, por meio da discussão
teórica, de cunho acadêmico-científico, bem como através da militância, reestruturar e
reescrever sua constituição simbólica na estrutura social sob uma perspectiva diversa
da eurocêntrica, pautada na lógica do homem branco.
A ruptura com os paradigmas eurocêntricos demanda que seja, revisitados
registros históricos a fim de que, com base em um olhar crítico sejam desvelados
alguns elementos históricos relevantes à reconstrução simbólica do negro brasileiro,
tal como nos aponta Moura (1992, p. 07):

Trazido como imigrante forçado e, mais do que isto, como escravo, o


negro africano e os seus descendentes contribuíram com todos
aqueles ingredientes que dinamizaram o trabalho durante quase
quatro séculos de escravidão. Em todas as áreas do Brasil eles
construíram a nossa economia em desenvolvimento, mas, por outro
lado, foram sumariamente excluídos da divisão dessa riqueza

A reinvenção da subjetividade do negro, bem como a sua reconstrução


simbólica – feita em novas bases, que não aquelas de cunho eurocêntrico – são
impulsionadas pela organização de movimentos sociais, que estruturam uma nova
práxis, com vistas à transformação social.

315
A quilombagem representa uma unidade básica do processo de resistência do negro à
escravidão, ou seja, um movimento de insurreição permanente, protagonizado pelos próprios
escravos, que representou um meio promotor do desgaste do sistema escravista. Um
aprofundamento da questão pode ser alcançado por meio da leitura de Clóvis Moura, no livro
História do negro brasileiro.
316
Conflito civil ocorrido no sertão da Bahia entre 1896 e 1897, que teve como elemento
propulsor graves problemas sociais como fome, miséria, seca e abandono político. Para melhor
compreensão das questões históricas e ideológicas que deram corpo ao movimento de
Canudos há produções literárias indicadas, tais como Os sertões, de Euclides da Cunha, ou
ainda, Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, que evidencia as tensões sociais e
culturais vigentes na primeira metade do século 20.
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Vale destacar que as brutalidades cometidas conta a população negra não se


restringe ao plano material, personificada pela escravização e castigos de ordem
física. Há nesse processo uma dimensão mais ampla, que perdura e se amplifica
mesmo após a abolição da escravatura, que abarca elementos de ordem ideológica e
simbólica.
É nesse ponto que retomamos a ideia de cultura que orienta o planejamento
das atividades formativas e que também serve como subsídio à elaboração desta
pesquisa. Reafirmamos a importância da discussão do conceito de cultura e trazemos
ao centro dos olhares os elementos que compõem a cultura do negro brasileiro, em
suas diferentes manifestações, especialmente aquelas relacionadas à resistência ao
encobrimento impetrado pela cultura branca, assentada em princípios europeus,
judaico-cristãos.
No processo de ressignificação da subjetividade do negro brasileiro, elemento
cultural toma a dimensão de cultura de resistência, expressa por meio da
quilombagem, das insurreições urbanas da Bahia (1807-1816), da revolta dos malês
(ocorrida em 1835), do bandoleirismo, demonstrando que, apesar das diversas
tentativas de silenciamento empreendidas pela ―história oficial‖, a resistência e as lutas
fizeram parte da construção social da identidade negra no Brasil.
Moura (1992) pontua que os sistemas simbólicos e culturais da população
africana trazida para o Brasil, manifestados por meio dos rituais e crenças religiosos,
da indumentária, da culinária, das línguas, das técnicas de trabalho, da utilização de
plantas medicinais, estão repletos de elementos que denotam processos de
resistência, oposição e contradição. É por meio dessa relação dialética estabelecida
que verificamos a incorporação de elementos da cultura africana à cultura ―brasileira‖,
muito embora os processos de silenciamento não nos permitam perceber isso
prontamente.
A organização social do momento negro tem alcançado, historicamente,
avanços importantes na garantia de direitos sociais e políticos. A disputa política e
epistemológica, no campo da ciência, corporificada pelo combate ao preconceito, à
discriminação e ao racismo no Brasil, protagonizado pelo movimento negro levou à
constituição, durante a primeira década do século XXI , de um ordenamento jurídico
voltadoà obrigatoriedade dos aparelhos de Estado (tais como as escolas,
universidades, centros de saúde e de esporte, entre outros), criarem ações afirmativas
concretas de promoção da igualdade racial.

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No âmbito da Educação Básica, a sleis 10.639/2003 e 11.645/2008 tornaram


obrigatórios nos currículos escolares, a inserção de conteúdos e métodos de
abordagem didática que contemplem a cultura e a história da África, dos
afrobrasileiros e dos indígenas na sala de aula. Essa conquista do movimento negro
brasileiro não garante que a inserção da temática no âmbito escolar ocorra
efetivamente, mas, aponta para a necessidade de que esta demanda seja
contemplada, bem como fortalece projetos de trabalho, propostas curriculares e
orientações pedagógicas capazes de promover o estudo da história do negro no
Brasil, como se deu sua escravização, como ocorrera, mesmo após a abolição da
escravatura, o processo de construção de uma ideologia de segregação racial e de
marginalização em torno da figura do negro brasileiro.
Diante de todas as considerações apresentadas, um questionamento orientou
o planejamento das atividades formativas junto ao curso de Pedagogia: em que
medida as questões étnico-raciais poderiam influenciar a construção da identidade
racial de discentes e como essas questões podem reverberar no processo de
formação inicial de docentes no curso de Pedagogia?
Orientados por esse questionamento e considerando os elementos históricos
apresentados anteriormente, algumas ações realizadas pelos docentes do curso, com
vistas ao enfrentamento do silenciamento da cultura afro-brasileira foram adotados tais
como: inserção da disciplina Educação e cultura afro-brasileira na grade curricular do
curso de Pedagogia; inserção da questão étnico-racial no processo formativo do
estágio supervisionado; realização de uma semana acadêmica voltada à questão
étnico-racial (realizada em novembro, durante a comemoração da Consciência Negra);
implementação de um grupo de Capoeira de Angola, como atividade de extensão,
envolvendo docentes, discentes e comunidade.
Embora o enfrentamento de questões ligadas ao racismo e ao preconceito
racial demande certa processualidade histórica, buscamos encontrar oportunidades de
trabalhar situações em que ocorra a valorização da cultura afro-brasileira, a reflexão
sobre fatos históricos e contribuir, dessa forma, com a construção identitária de
discentes, e também com sua formação profissional para a docência.

3. A Articulação entre Formação Docente e Questões Étnico-raciais: a


experiência com o estágio curricular no curso de Pedagogia

O estágio curricular supervisionado do curso de Pedagogia do Câmpus de


Miracema da Universidade Federal do Tocantins está organizado em três etapas, a
saber:
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a) projeto de estágio – disciplina com sessenta horas aula, cujo objetivo principal
está em planejar a atividade de estágio sob uma perspectiva investigativa, na
qual o estudante, inicialmente, produz uma narrativa de sua trajetória escolar,
buscando problematizar o papel da escola e da educação. Na etapa seguinte,
o referencial teórico e as reflexões realizadas em sala de aula buscam levar os
estudantes a estabelecerem articulações entre suas vivências pessoais,
permeadas de vivências e histórias, com a formação docente. Em seguida os
mesmos fazem uma inserção no contexto escolar, realizando observações da
rotina, dialogando com os profissionais e manuseando os documentos
institucionais como projeto político pedagógico, planos de aula, atas de
reuniões etc. Essas vivências, acompanhadas e orientadas pelo docente titular
da disciplina levam a construção de um projeto de pesquisa, que orientará a
atividade de estágio curricular;
b) estágio em educação infantil (creche e pré-escola): trata-se de uma
disciplina com carga horária de 120 horas na qual o discente realiza a inserção
em instituições de educação infantil (creches e pré-escolas), com o intuito de
efetuar observações da rotina diária de atividades (orientada por critérios
previamente estabelecidos em parceria com o docente orientador), reflexão
sobre as práticas observadas no âmbito da educação infantil, contato com
documentos institucionais que fazem parte do ambiente escolar, construção e
aplicação de projeto de intervenção.
c) estágio em ensino fundamental (séries iniciais): disciplina com carga
horária de cento e vinte horas, voltada ao desenvolvimento de estágio
curricular supervisionado nas séries iniciais do ensino fundamental, objetivando
promover entre os discentes vivências com o trabalho pedagógico realizado na
sala de aula e em outros espaços escolares, como coordenação pedagógica e
direção.

A materialização dos estágios conta com o envolvimento e a participação de


docentes do curso de Pedagogia, especialmente aqueles que trabalham com as
disciplinas de fundamentos e metodologias de ensino, implicadas nesse processo e
com a qual os estágios buscam uma constante interlocução.
A coordenação das atividades de estágio – sendo o primeiro voltado à
educação infantil e, o segundo, às séries iniciais do ensino fundamental –, cabe a um
docente do colegiado de Pedagogia, a quem compete organizar o cronograma de
atividades de estágio; convocar e conduzir reuniões com docentes colaboradores;
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1600

orientar em sala de aula as inserções dos discentes em campo de estágio; organizar


discussões e reflexões de textos nos encontros realizados com os acadêmicos em
sala de aula; acompanhar os discentes à central de estágio para preenchimento de
documentação necessária à realização do estágio; organizar a produção do seminário
de estágio, ao final do semestre letivo.
Os discentes de uma turma são divididos em grupos de cinco ou seis
componentes, que serão orientados e supervisionados pelos docentes colaboradores,
a fim de que realizem a investigação planejada na disciplina. Sendo assim, a atividade
de estágio é organizada para que seja também um campo de produção de
conhecimento para os discentes e também para os docentes envolvidos nesse
processo.
Esse texto é fruto de um processo de orientação realizado no primeiro
semestre deste ano de 2017, junto a um grupo de estudantes que realizaram estágio
curricular em educação infantil (creche e pré-escola). Tendo em vista o fato de que o
curso de Pedagogia ao qual estamos vinculados conta com a disciplina ―Educação e
Cultura Afro-Brasileira‖, bem como possui em sua agenda com eventos e atividades
de extensão voltados à discussão de questões étnico-raciais, consideramos oportuno
que um grupo trabalhasse com essa temática na viabilização de suas atividades de
estágio.
As primeiras reuniões referentes às atividades de estágio foram realizadas com
todo o grupo, a fim de que as instruções iniciais fossem passadas e, a partir de então,
cada pequeno grupo passou a trabalhar sob a orientação de um docente orientador
específico, realizando suas inserções nas escolas com foco de estudo em uma
temática específica. Vale ressaltar que, embora a investigação siga uma temática de
estudo, todos os grupos de estágio seguem certa generalidade no que tange as
orientações de observação geral: organização do espaço, rotinas de atividade, tempos
de espera, materiais pedagógicos, atividades pedagógicas.
Quanto ao grupo voltado à investigação e proposição de atividades
relacionadas à temática étnico-racial, sob nossa orientação, explicitamos que, ao
longo do processo de realização do estágio, foram realizados oito encontros
presenciais, além das orientações dadas via email e também em sala de aula, nos
momentos de reunião com toda a turma. A primeira atividade centrou-se no
levantamento das concepções dos discentes acerca de conceitos como raça, racismo,
preconceito racial e discriminação. Verificamos ainda o grau de conhecimento dos
acadêmicos acerca da Lei N°. 11.645/2008, e seus conhecimentos sobre a história da
escravidão no Brasil e as marcas deixadas por esse processo.
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Identificamos que os estudantes precisavam refletir sobre alguns


conhecimentos elaborados sobre a questão, procurando o aprofundamento necessário
para o tratamento da problemática relativa à identidade étnico-racial. Realizamos, pois,
atividades, com esse grupo, em local de fácil acesso a todos – salas de aula do
Câmpus de Miracema –, fora do período de aula, nas quais discutíamos textos e
conceitos necessários à organização da atividade de estágio: pesquisa, construção de
proposta de intervenção e elaboração de relatório final de estágio.
Para mediar as atividades junto às crianças da educação infantil – creche e
pré-escola – e abordar a temática étnico-racial em uma perspectiva mais acessível à
sua compreensão, selecionamos o livro infantil Os cabelos de Lelê, da autora Valéria
Belém, que narra a história de uma menina que passa a questionar os cachinhos de
seus cabelos esvoaçantes e que, ao buscar descobrir o porquê de seus cabelos terem
aquela forma, encontra a história da África e também o fato de que seus ancestrais
foram trazidos ao Brasil e escravizados por um longo período de tempo.
Tendo como fio condutor da narrativa os cabelos da personagem Lelê, o livro
trabalha com questões como diversidades raciais, auto-aceitação, convivência e
respeito às origens, representando uma boa proposta de intervenção não somente
para as crianças da educação infantil, mas, especialmente, para os acadêmicos em
formação, considerando as dimensões de suas histórias pessoais, suas trajetórias
coletivas e a atuação como profissional docente.
A experiência demandou conhecimentos de história, geografia, língua
portuguesa, artes e mobilizou os discentes na construção e organização de materiais
que tornassem a interação com as crianças de fato acessíveis e prazerosas. Assim, a
proposta de intervenção contou com mapas, nos quais as crianças visualizaram o
continente africano; imagens de pessoas que apresentavam características físicas de
ascendência africana; um livro com tamanho ampliado, para que as crianças
pudessem visualizar e manipular melhor, observando as imagens; materiais diversos
para produção de auto-imagem como espelhos, lápis de cor, giz de cera etc.
Após a supervisão das atividades de estágio com os discentes, realizamos uma
reunião para conversarmos a respeito da materialização das atividades e verificamos
um grande avanço entre os acadêmicos em relação à compreensão da temática,
gerando, como frutos desse processo, o interesse de duas discentes em produzir seus
trabalhos de conclusão de curso de graduação tendo como objeto de estudo as
questões étnico-raciais.
Mas, a despeito dos avanços observados e expressados nesse texto,
identificamos também o quão necessária é a presença da temática nas escolas de
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educação infantil, uma vez que as crianças em quantidades significativas rejeitaram a


figura de Lelê, definindo seus cabelos como feios e não reconhecendo a proximidade
entre as características da personagem e as suas próprias, como cor de pele e
cabelos.
Tanto entre as crianças quanto entre os acadêmicos observamos com
frequência expressões como ―cabelo ruim‖, ―cabelo de molinhas‖, ―cabelos afuazados‖
– denotando, por meio maneirismo, que os cabelos estariam despenteados ou, em
uma análise mais pontual, fora dos modelos socialmente estabelecidos, muito
fundamentados no padrão eurocêntrico.
Observamos também o fato de que algumas acadêmicas, mesmo com traços
negros, dedicam-se a alisar seus cabelos e a tingi-los em tons alourados,
principalmente por meio de mechas. Essas constatações reforçaram a ponderação de
que a temática étnico-racial carece maiores discussões, precisa estar presente no
âmbito das instituições educacionais e, principalmente, nos cursos de formação de
professores.

Considerações Finais

A atividade formativa, descrita e analisada, que se concretizou por meio da


orientação de um conjunto de ações articuladas entre ensino, pesquisa e extensão
demonstrou que o estágio curricular supervisionado, referenciado nos grupos de
estudos e pesquisas, tem conseguido sinalizar processos mais efetivos de
aprendizagens no que se refere às questões étnico-raciais; elaboração de planos e
projetos de atividades condizentes com sua finalidade do estágio; entre outros
apontamentos da experiência.
A relação entre o estágio e o ensino das disciplinas de fundamentos e
metodologias nas orientações dos grupos e abordagens do conhecimento tem
proporcionado ações interdisciplinares que demonstram uma ampliação da criatividade
elaborativa dos estudantes na relação direta com a educação infantil e a produção do
conhecimento no âmbito acadêmico.
No plano acadêmico, a atualização do projeto pedagógico do curso de
pedagogia tem levado em consideração essas novas experiências formativas e
apontado a necessidade da comunidade acadêmica rediscutir seu projeto de estágio,
bem como o fortalecimento do foco nas questões étnico-raciais.

Referências

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_______. Lei N°. 11.645, de 10/03/2008. Altera a Lei Número 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, modificada pela Lei Número 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que
estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial
da rede de ensino a obrigatoriedade da temática ―História e Cultura Afro-Brasileira e
Indígena.
______. Lei n. 10.639, de 09/01/2003. Altera a Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de
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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

OS APLCATIVOS DIGITAIS DE CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS

Ellen Maira de Alcântara Laudares, Universidade Federal de Lavras, Eixo 8 –


Literatura Infantil e Ensino
Ilsa do Carmo Vieira Goulart , Universidade Federal de Lavras, Eixo 8 –
Literatura Infantil e Ensino

Considerações Iniciais

Exprimir acerca da contação de histórias e tudo que a circunda extrapola as


contingências de perscrutação das mais distintas perspectivas. É notório que o ato de
propalar histórias configura-se em uma arte que despontou com o próprio homem, na
tentativa de transmitir o conhecimento de uma geração para a outra, registrando
assim, as suas reminiscências.
No século XXI, ocorreram também vicissitudes no ato de contar histórias, pois
houve uma sucessão dos suportes utilizados para a difusão das mensagens que
anteriormente eram repassadas via oralidade. Nesta perspectiva, a vida das pessoas
pode estar circundada por artefatos tecnológicos que, por sua vez, possibilitam o
surgimento de gerações ainda mais envolvidas com as tecnologias. É concebível
observar que cada vez mais as crianças e os adolescentes estão, rotineiramente,
expostos às ferramentas digitais. Esses instrumentos possibilitam a comunicação de
forma síncrona ou não, ou seja, pode ocorrer uma comunicação em tempo real, de
forma simultânea, ou com um determinado tempo de espera. Dentre as práticas
mediadas por tecnologias, está a contação de histórias, que consiste na arte de
transmitir as narrativas por meio dos artefatos digitais.
A tradicional habilidade de narrar histórias originou-se nos povos
antepassados, que contavam suas histórias como forma de despargir seus
conhecimentos, suas vivências, lendas, mitos e fábulas. A transmissão oral, que era
passada de uma geração à outra, possibilitou às gerações mais novas, a transmissão
dos saberes do povo ancestral, bem como suas crenças e virtudes. Os contadores de
histórias eram os ―guardiões de memórias‖, conforme descreve Benjamim (1994), os
que coletavam saberes e os reproduziam em formas de histórias.
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Ao levar em consideração os avanços tecnológicos, faz-se necessário


questionar: Quais são os aspectos visuais e gráficos que caracterizam as narrativas
nos aplicativos de contação de histórias?
Como se configuram as narrativas digitais nos aplicativos? Como se dá o ato
de leitura nos artefatos digitais? É ao intento da literatura que a importância do sentido
do texto se manifesta em sua plenitude, como afirma Lajolo (1986), ou o meio de
propagação do texto pode interferir em sua compreensão? Ao passo que Cosson
(2006) assevera que, de modo virtual, todos os textos são profícuos é possível
identificar o que os torna plurais. Por conseguinte, tentar encontrar respostas para tais
indagações ou mesmo estruturar novas argumentações, fez com que surgissem
inquietações tamanhas que mereciam atenção.
Parte-se da hipótese de nulidade, seguindo uma pesquisa dedutiva,
contemporânea, Popperiana (a partir de Popper). Assim, se tem como hipótese que os
aplicativos de contação de histórias são replicações dos livros tradicionais impressos,
compostos por características homogêneas entre si, demonstrando pequena
diversidade. Diante de tais questionamentos, foi proposta a análise de quais são as
potencialidades dos aplicativos em contar histórias, assim como a investigação de
como se configuram tais narrativas nos aplicativos, com a finalidade de elucidar como
se desenvolvem as narrativas em tais suportes. Para tanto, categorizou-se os
aplicativos de contação de histórias, segundo as características de movimento, forma,
imagem e som, tanto quanto foram descritas as suas peculiaridades e analisadas
algumas possibilidades do ato de ler nestes aplicativos.
Esta pesquisa tem sido organizada em 4(quatro) capítulos. O primeiro
apresentará um panorama sobre os contadores de histórias, desde as sociedades
orais aos contadores de histórias contemporâneos, subdividido em duas frentes de
reflexão: a primeira exprime acerca do contador de histórias e das narrativas; a
segunda anuncia como são as narrativas digitais: a palpitante forma de contação de
histórias. Já no segundo capítulo será abordada a temática sobre o texto, o leitor e o
ato de leitura em diferentes suportes: do livro impresso aos aplicativos que, por sua
vez, também foi subdividido em três faces: uma a respeito das múltiplas concepções
de leitura; a outra sobre o ato de ler em diferentes suportes: do impresso às telas; e,
por fim, serão abordados os aspectos dos aplicativos de contação de histórias. No
terceiro capítulo será apresentada a Metodologia utilizada na pesquisa, ao passo que
no quarto capítulo serão demonstrados os resultados obtidos ao longo da
investigação.

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OS CONTADORES DE HISTÓRIAS DAS SOCIEDADES ORAIS AOS


CONTADORES DE HISTÓRIAS CONTEMPORÂNEOS
Desde a antiguidade, a arte de contar histórias é um meio utilizado para
propagar o conhecimento de uma geração para a outra, é uma forma de transmissão
cultural, de tradições.
Em conformidade com Benjamin (1994), os navegantes, os camponeses e os
comerciantes eram conscienciosos preservadores de história e da arte. Por seu
caráter inamovível, os camponeses conheciam a fundo as histórias do local em que
residiam, ao passo que os comerciantes e os navegantes expandiam os
conhecimentos de além-mar, promovendo a compreensão entre o que era local e o
que era distante.
Os encontros entre narradores e os ouvintes fomentaram a formação de um
espaço denominado de comunidade de ouvintes (BENJAMIN, 1994). Tais espaços se
configuravam em unir, coletivamente, as pessoas no entorno da fogueira, para ouvir os
casos e reciprocar conhecimento, através de performances. As histórias eram
apinhadas de ensinamentos e suscitavam nos ouvintes a curiosidade e a identificação,
uma vez que os contadores gesticulavam e reproduziam, nas histórias, hábitos e
costumes de seu povo.
A arte de contar histórias, que antes ocorria nos arrabaldes da luz do fogo,
passou a acontecer à luz de velas, usadas para clarear também as leituras, a partir
das páginas de um livro, depois seguia em companhia das luminárias, em ambientes
de descanso para auxiliar os leitores, que agora, passa também a acontecer por meio
da luminosidade dos artefatos digitais, por intermédio de aplicativos em aparelhos
eletrônicos.
A luminosidade dilui-se em feixes condutores do olhar atento do leitor, em que
narrativa oral e o ato de ler se transformam, no decorrer do tempo, naquilo que
modifica as formas do leitor de se relacionar com os textos e com seus suportes
(CHARTIER, 1999).
As histórias, desde a antiguidade, são contadas para que se perpetue a
memória, para que os ensinamentos sejam repassados de uma geração à outra, bem
como para que as leis, das mais diversas ordens, da divina à social, sejam reforçadas
ou impugnadas, conforme enfatiza Carrière (2008). Segundo o autor, as narrativas se
fazem presentes em todos os espaços, são reforços da curiosidade e do inesperado,
bem como da inquietação humana.
Contar história, além de uma partida rumo a outro lugar, é uma
maneira específica de, num mesmo movimento, deixar-se levar pelo
tempo e de negá-lo no mesmo golpe. Um tempo de narração se
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instalou quase sem esforço no leito do mestre irresistível. Ele parece


perder qualquer influência e toda a ação sobre nós mesmos.
(CARRIÉRE, 2008, p. 13)

Para Ong (1998), a execução da língua oral traspassou toda a história da


leitura. Até mesmo na leitura feita em silêncio ela se faz corrente, em tal grau para
decodificar como na conversão da letra em som dentro da mente. Conforme o autor, a
oralidade é capaz de subsistir sem a escrita, contudo a escrita não persiste sem a
oralidade, a primeira, diferentemente da escrita, não gera vestígios fósseis para serem
avaliados, portanto, durante anos, a sua investigação tornou-se desvalorizada. O
conhecimento, no período da cultura oral, precisava ser assimilado e repetido, para
que não se perdesse.

As pessoas das sociedades orais aprendem pela prática, [...]


aprendem ouvindo, repetindo o que ouvem, dominando
profundamente provérbios e modos de combiná-los e recombiná-los,
assimilando outros materiais formulares, participando de um tipo de
retrospecção coletiva, não pelo estudo no senso restrito. (ONG, 1998,
p. 17)

Desde então a língua passou a ser compreendida como viva e dinâmica, em


que as sociedades orais atribuíram às palavras potencialidades de transformação,
tendo na memória o principal recurso de sobrevivência, assegurando o conhecimento
via os mais velhos e transmitindo-os aos mais jovens.
Pode-se afirmar que, conforme Busatto (2013), o contador de histórias
apresenta duas categorizações: tradicional e contemporânea. O primeiro é fruto
advindo da tradição, aportado pela oralidade, mantenedor da memória de seus
antepassados, em que realizava suas contações nos diminutos grupos de convívio
diário, que tem em seu âmago o ser, o porta voz de sua tradição e cultura enquanto o
segundo é aquele que se faz ouvido nos mais diferentes públicos e suportes. Assim,
como elenca Benjamin (1994), as três características marcantesdo contador de
histórias são: a experiência, a artesania e o senso útil:
O narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar
conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para
muitos casos, como o sábio. Pois pode recorrer a um acervo de toda
uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas
em grande parte a experiência alheia. O narrador assimila à sua
substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom é
poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. [...] O narrador
é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo. (BENJAMIN,
1994,p. 221)

Da mesma forma que Benjamin (1994), García (2012) afirma que o contador

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faz uso de uma narrativa que apresenta características marcantes: por meio dos
trovadores, dos contadores de histórias populares e dos profissionais, todos se
influenciaram e expediram diversos contos, romances, exercendo a transmissão de
valores, ao passo que o contador contemporâneo é resultado da complexidade social,
tecnológica, urbana e globalizada, fundeado na cultura tecnológica e escrita. O ato
contemporâneo de contar histórias obteve diferentes delineamentos, agregando à
contação distintos instrumentos, deslocando-se por correntes espaços e atribuições,
possibilitando também numerosos territórios de atuação, a exemplo as escolas, os
hospitais, as clínicas, teatros, praças, dentre outros. Em conformidade com Moraes
(2012, p. 16),
o contador de histórias é o agente que (re)produz o texto na forma
oral. Ele, segundo Bronckart (1999), é ao mesmo tempo emissor,
correspondendo ao indivíduo enquanto organismo que produz o texto;
e enunciador, no caso o papel social que este assume no momento
da narração: professor, pai, artista, avó, palestrante.

No intuito de perenizarem a contação de histórias, os narradores fazem uso do


cinema, da televisão, das redes sociais. Aquele que narra uma história deve estar
preparado para gerar uma cumplicidade entre o ouvinte e a história, promovendo um
espaço para o audiente se envolver com a narrativa. Os principais mecanismos do
narrador são o seu corpo e a sua voz, e ambos irão transmitir as emoções ao enredo..
Por sua função elocutória, a voz, durante uma contação de histórias, precisa ser
entoada em consonância com o que é narrado, a performance, exercida pelo narrador,
deve ser consequência da sua leitura e do estudo da sua ação, permitindo que a
narrativa seja significativa ao ouvinte ou ao leitor.
As narrativas empregadas pelos contadores se constituem por distintos pontos
de vista, existindo distintas versões de uma mesma narrativa, que se formam de modo
a significar a própria existência, promovendo a compreensão da realidade. Contar
histórias tem sua base nos povos ancestrais que narravam e representavam histórias
para difundirem seus rituais, conhecimentos, mitos e experiências vividas, transmitindo
a sabedoria de uma geração para a outra e perpetuando as lembranças e a cultura de
um povo. Trata-se de uma arte essencialmente, fundada pela coletividade e para a
biocenose.
Para Ong (1998), o contador apreende suas técnicas no ato da narração e no
perpassar da vida cotidiana, como uma característica do pensamento da cultura oral,
que associa as histórias aos eventos da atividade humana. A posição deste autor
coaduna com a de Benjamin (1983, p. 58), pois as narrativas são trocas de
experiências e a,

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a experiência que anda de boca em boca é a fonte onde


beberam todos os narradores. [...] quando alguém faz uma
viagem, então tem alguma coisa para contar, diz a voz do
povo, e imagina o narrador como alguém que vem de longe.
Mas não é com menos prazer que se ouve aquele que, vivendo
honestamente, ficou em casa e conhece as histórias e as
tradições de sua terra.

O contador de histórias compreende-se em comunhão com o narrado e extrai


dele os significados e significantes presentes, configurando a leitura de mundo a datar
da interpretação do mundo cultural em que está inserido, para posteriormente partilhá-
lo com o ouvinte, sociabilizando o saber e configurando o ato de narrar histórias em
um átimo de concepção de sua convicção.
Na sociedade predominantemente oral, as histórias submetiam-se às
particularidades da memória, dos sentidos sensoriais, auditivos e visuais, enquanto na
sociedade digital as histórias são dinâmicas e por vezes, não lineares. Para Lévy
(1999), as narrativas são universais e altivamente da modalidade escolhida, oral ou
escrita, o ato de narrar veio a influenciar a narrativa digital. O autor atesta que as
narrativas digitais dispõem de três formas, sendo imagem, texto e música, e ―ilustram
um princípio de imanência da mensagem ao seu receptor que pode ser aplicado a
todas as modalidades do digital: a obra não está mais distante, e sim ao alcance da
mão. Participamos dela, as transformamos e somos em parte, seus autores‖ (LÉVY,
1999, p. 151).
A utilização das narrativas digitais é, para Almeida e Valente (2012), advindas
da atual circunstância de as narrativas, orais ou escritas, por tradição, passarem a ser
produzidas por meio de uma aglutinação das mídias o que possibilita mais sofisticação
da perspectiva da representação das histórias. As Tecnologias Digitais de Informação
e Comunicação (TDIC), a exemplo os smartphones, celulares, tablets, laptops e tantos
outros, centralizam em um único aparato, inúmeros recursos, como o gravador de
som, a câmera de vídeo e fotografia, dentre outros. Esses recursos permitem
correntes formas de criação de narrativas, para além do texto falado ou escrito, o que
tem sido alcunhado de narrativas digitais.
Para Bruner (1990), o ato de narrar tem utilidade educacional intrínseco, dado
que sistematizar a experiência em forma de narrativa auxilia na interpretação daquilo
que se passou, corroborando na promoção de uma nova forma de contar. Bruner
(1990) assevera que as narrativas se constituem por meio de um contíguo de pontos
de vistas individuais e, por conseguinte, é possível que existam inúmeras versões de
uma mesma narrativa. A sua estrutura é caracterizada por uma trama, sendo

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necessário abarcar um início para conquistar a atenção do outro, o desenvolvimento


das personagens e a consciência, por sua vez, passível de ser abordada por meio de
outros olhares.
Segundo Valente (2002, 2014), as narrativas digitais podem ser utilizadas para
investigar o conhecimento que as pessoas manifestam, bem como para assessorar os
processos de construção do próprio conhecimento. Com a difusão das TDICs, as
narrativas, que usualmente eram orais ou escritas, têm sido elaboradas digitalmente.
Os artefatos digitais podem ser usados para vivificar histórias, torná-las imagéticas,
sonoras e dinâmicas.
Em relação a isso, Carvalho (2008), pontua que a construção e a produção das
narrativas digitais se estabelecem num processo de produção textual que se apropria
do caráter contemporâneo dos recursos audiovisuais e tecnológicos capazes de inovar
o ―contar histórias‖, convertendo-se em um instrumento eficaz e motivador ao leitor, ao
passo que também incorpora as narrativas o viés da inserção da realidade.
As narrativas, dos mais diferentes gêneros textuais, orais ou escritos, passam a
ser elaboradas digitalmente, evidenciando diferentes condições de produção do saber
e, consequentemente, distintas práticas culturais de escrita e leitura. O texto, o som, a
imagem podem ser reproduzidos em um único dispositivo, com facilidades de
manipulação, podendo-se utilizar de recursos imagéticos, sonoros e de animação
bastante dinâmicos.
As inúmeras possibilidades de recursos digitais proporcionam a criação dos
relatos digitais, histórias digitais, narrativas multimídias, narrativas interativas,
narrativas multimidiáticas ou narrativas digitais, que podem ser categorizadas de
acordo com as diversas funções que efetuam, agregando em um dispositivo,
diferentes recursos. Santaella (2004) salienta que os usuários de hipermídia fazem
uso de habilidades diferentes daquele que lê um livro impresso.
Os leitores se deparam com novos objetos de leitura, de escrita e de contação
de histórias, que lhes propiciam novas maneiras de agir e ao mesmo tempo,
pressupõe o domínio de uma forma imprevista de ação, resultando práticas de escrita
ou leitura insólitas (CHARTIER, 1999). Além destas práticas, emergem diferentes
gêneros textuais, a exemplo as narrativas digitais que, conforme Bakhtin (1997),
consistem em instrumentos de apropriação da língua, à proporção que Lévy (1999)
anuncia que os jovens estão desejosos a experimentar, coletivamente, formas de
comunicação díspares daquelas que as mídias clássicas propõem.

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O TEXTO, O LEITOR E O ATO DE LER EM DIFERENTES SUPORTES: DO LIVRO


IMPRESSO AOS APLICATIVOS

Diante dos novos objetos de leitura a que os leitores se deparam, a concepção


de linguagem como ação e interação, pode sobrelevar o papel da linguagem na
construção do conhecimento, que segundo Vygotsky (1996), é considerada como
principal ferramenta de interação, percebida como algo animado, da qual o
entendimento advém do contexto em que é utilizado, do conhecimento prévio dos
sujeitos de comunicação e das finalidades com que este sujeito se relaciona com o
texto.
Neste sentido, em conformidade com Bittencourt (2015), o mesmo texto
propicia distintas compreensões, uma vez que os indivíduos são diferentes, viveram
experiências individuais, percursos diversos até alcançar àquele contexto. A
sistematização das competências necessárias para se concatenar o desenvolvimento
da comunicação verbal, em razão do fato de que a linguagem envolve processos,
fundamentos e habilidades, que ultrapassa o domínio do código escrito (TAPIA, 1997).
Ao compreender o ato de leitura como uma atividade, como uma prática de
construção de sentidos, conforme define Goulemot (2001), as possibilidades de
interação leitor-texto por meio do ato de leitura podem contribuir para este processo de
significação e compreensão textual. Diante disso, opta-se por dividir esta reflexão em
dois eixos: um contempla a definição de leitura, de ato de leitura e dos processos de
relação leitor e texto. Outro se ancora na reflexão nos diferentes suportes físicos do
texto, percorrendo dos impressos aos aplicativos.

AS MÚLTIPLAS CONCEPÇÕES DE LEITURA

Segundo Chartier (2001), as leituras são libertas da obrigatoriedade da


decifração oral e estimulam outras leituras, que se intensificam para além da invenção
da escrita. As leituras orais desenrolam em meios progressivamente mais vastos,
emergindo uma distinta forma de ler, que permuta entre a leitura do livro folheado e o
trilhado com a pessoalidade de uma relação individual.
Para tanto, a leitura individual está entremeada na continuação de práticas
estruturadas umas às outras, não se configurando em uma ação autonômica, que
finda em si própria. Os modos de ler não se restringem, desta forma, aos parâmetros
estabelecidos socialmente, ―[...] sua coleta deve ser empreendida cruzando-se, de um
lado, os protocolos de leitura adequados aos diferentes grupos de leitores, e de outro,

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os traços e representações de suas práticas‖ (CHARTIER, 2001, p. 89). Ler, segundo


o autor, passa a ser compreendido como o ato de significar um conjunto, uma
articulação e uma globalização de sentidos efetivados pelas sequências, é estabelecer
sentido, sendo uma demonstração de uma polissemia do texto literário. As relações
com o livro, as vicissitudes de conceber sentido, acontecem por meio das ações do
leitor.
Nesta perspectiva, Chartier (2001) atesta que ler é, portanto, emergir a
biblioteca versada ao longo da vida, é suscitar as memórias das leituras realizadas e
dos próprios dados culturais. Com efeito, a escrita torna-se a forma findada da leitura e
aquele que escreve, está posicionado, e o domínio da escrita, distante de se
configurar em transvio, submete-se a uma acurada distribuição das competências e
seu poder está na própria escrita, enquanto a leitura é resultado das circunstâncias
nas quais tenham sido elaboradas enquanto leitor, tornando a leitura obediente às
mesmas deliberações que as outras práticas culturais, com a dissemelhança que ela é
mais ensinada pelas escolas.
Chartier (2001, p. 237), ainda afirma que a leitura não é sempre a mesma,
―existem leituras diversas, portanto competências diferentes, instrumentos diferentes
para apropriar-se desse objeto, instrumentos desigualmente distribuídos, segundo o
texto, a idade, e essencialmente à relação com o sistema escolar (...)‖. A leitura, então,
é uma prática socialmente construída, que se mostra em atividades e ações que
acontecem de forma espontânea quando se tem tempo livre, ou quando alguém fica
sozinho, provocada por uma finalidade do leitor, por um interesse particular ou por um
desejo de fruição.
Segundo Goulart e Lobo (2016), a compreensão de leitura relaciona-se com as
diversas perspectivas nas quais se incluem os elementos culturais, sociais e
históricos, que devido às especificidades espaciais e temporais, suscitam apreensões
entre o que é compreendido como, sendo ou não, livro. Dentre os diversos modelos de
leitura, os principais eram de base behaviorista, no qual a concepção de língua se dá
como processo mecânico, não sendo considerada a significação da palavra e seu uso
social, bem como a sua relevância, mas sim, a forma de identificá-la. Nessas
propostas, as crianças memoram os padrões de correspondência entre grafema e
fonema e a leitura com significações pode não acontecer, uma vez que há a
decodificação mecânica da língua escrita. Braggio (1992) assegura que a leitura é um
procedimento múltiplo, no qual o leitor reedifica a medida do possível, a mensagem
codificada pelo autor, na sua linguagem gráfica. Ao longo da aquisição da leitura e da
escrita, a forma linguística sobrevém ao significado do conteúdo, decorrendo então,
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não apenas a dificuldade de leitura, como a de realizar inferências e interpretação. O


corolário desse estilo de modelo repercute em aquisição de técnicas com fim em si
mesmas.

O ATO DE LEITURA EM DIFERENTES SUPORTES: DO IMPRESSO ÀS TELAS

A motivação para ler, ouvir e compreender uma história são pilares que se
sustentam mutuamente, impulsionam e são fomentados por outros aspectos do
contexto. Nessa perspectiva, dentre todas as competências culturais e sociais, ler é,
talvez, a mais enaltecida, pois tudo o que nos cerca exige e ou é permeado pela
leitura.
A antiga leitura, que tinha o suporte em forma de um rolo, uma extensa faixa de
papiro ou pergaminho, que o leitor segurava com ambas as mãos para desenrolá-lo,
em que os escritos eram apresentados em formas de colunas. Copiosos são, no
século XVIII, as atividades simbólicas e as maneiras de transmissão de uma narrativa,
conforme aponta Chartier (2003). É possível distinguir as épocas e idades por meio
das distintas formas de escrita ou das diferentes maneiras de se transmitir um texto.
Ampliando essa discussão, Chartier (2003), defende que cada idade se caracteriza por
uma língua e forma de registro próprio, interligados entre si e de mesma origem.
Segundo o autor, havia a linguagem mental dos Deuses, a linguagem muda dos
hieróglifos e a linguagem que se dá por meio das palavras articuladas, uma espécie de
signos, as letras, gêneros que se apresentam em todas as falas. A pluralidade dos
caracteres e das linguagens, sejam contínuo ou contemporâneo, possui diversas
interpretações.
A compreensão da renovação eletrônica perpassa pela história do livro, e hoje
alcança os textos digitais, sua sincronia na emissão e recepção de mensagens por
meio dos computadores. No universo dos textos digitais, ou no mundo da
representação digital dos textos, há uma dualidade: a que limita intervenções do leitor
no texto impresso, uma vez que o objeto impresso lhe estabelece sua forma e
estrutura, sendo possível apenas a participação em sua capa ou contracapa, enquanto
o texto digital, segundo Chartier (2003), permite ao leitor a participação, podendo se
sujeitar às inúmeras operações e ser até um coautor. Existe o discernimento entre a
escrita e a leitura, no livro impresso, entre autor e leitor: ―o leitor torna-se um dos
atores de uma escritura a muitas mãos ou, ao menos, encontra-se na posição de

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constituir um texto novo a partir de fragmentos livremente recortados e reunidos‖


(CHARTIER, 2003, p. 42).
A interlocução dos textos a distância, inevitavelmente extingue o discernimento
entre o local do texto e o local do leitor, torna atingível o ideário de deslocar
materialidade de localizações e alcançar todos os leitores, sua disponibilidade é
universal. ―Com a revolução eletrônica, as possibilidades de participação do leitor
tornam-se tais que embaça a ideia de texto, e também a ideia de autor. Como se o
futuro fizesse ressurgir a incerteza que caracterizava a posição do autor durante a
Antiguidade‖ (CHARTIER, 1998, p. 24).
Em concordância com o autor, no século XVIII, o direito natural e a estética da
originalidade amparam a propriedade literária, os autores passaram a ser concebidos
como detentores da propriedade de suas obras. Atualmente, com as diferentes
possibilidades ofertadas pelo texto eletrônico, em sua grande parte editável e
maleável, sujeito à reescritas múltiplas, essa propriedade é colocada em questão, há
editores, há autores e há leitores, ―a obra não é jamais a mesma quando inscrita em
formas distintas, ela carrega, a cada vez, outro significado‖ (CHARTIER, 1998, p. 7).
No tocante à questão, Chartier (1998) destaca que os autores da era da
multimídia são dirigidos não pela tirania das formas do objeto-livro tradicional, contudo,
pela pluralidade das formas possíveis de exposição do texto no suporte eletrônico.
Gradativamente a concepção do texto se modifica e carrega consigo o indício dos
usos e interpretações consentidos pelas suas distintas formas.
A leitura pode ser considerada uma apreensão de significados. A história da
leitura permite pressupor a liberdade do leitor em se deslocar aquilo que o livro
tenciona determinar. Conquanto, a liberdade do ato de leitura pode não ser plena, pelo
contrário, pode ser passível de apresentar limitações advindas das capacidades,
hábitos, e convenções sociais que configuram, em suas diferenças, as práticas de
leitura. Algumas ações são criadas e outras são extintas, ―do rolo ao códex medieval,
do livro impresso ao texto eletrônico, várias rupturas maiores dividem ao longo história,
as maneiras de ler‖ (CHARTIER, 1998, p. 77). Conforme o autor, as maneiras de ler
modificam relação entre o livro e o corpo e as possíveis utilizações da escrita, bem
como alteram as categorias intelectuais que endossam a compreensão do texto.
Tendo em vista o gênero narrativo, é possível considerar que a leitura, pode
remeter o leitor a sua própria experiência e vivência, que são decorrentes de sua
―capacidade de narrar e de transmitir as histórias que ouvimos. É graças a essa
capacidade de narrar e de intercambiar experiências que aplacamos nossas angústias
diante da efemeridade daexistência‖ (GOULART, LOBO, 2016, p. 14).
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METODOLOGIA

A presente pesquisa tem abordagem qualitativa e quantitativa, com foco


descritivo, visto que o material de análise se constitui de registros escritos pela
pesquisadora a respeito dos objetos em estudo em que o interesse da atividade
investigativa é compreender e explicitar as potencialidades que podem ser
desenvolvidas por meio dos aplicativos de contação de histórias (BOGDAN; BIKLEN,
1994).
Para o desenvolvimento dos processos quantitativos, fez-se necessário
estabelecer medidas e análise estatística multivariada de PCA, Análise de
Componentes Principais, com uso do PcOrcd 5, na categorização dos aplicativos em
grupos correlativos. O software supracitado permite a realização de análise
multivariada dos dados inseridos em planilhas de Excel, com ênfase na representação
gráfica, por meio de testes de randomização e intervalos de inicialização para análise
de dados. Além disso, permite o gerenciamento de arquivos, oportuniza ordenações
técnicas e classificações por métodos de sobreposição de ordenações, codificação por
símbolos, oferece também vários métodos de rotação, 3-d, gráficos de ordenação,
medidas de distância, curvas de áreas, escalação multidimensional, permitindo a
análise de um conjunto de dados mais corpulento.
O processo de elaboração dos procedimentos metodológicos para realização
desta pesquisa teve início no ato de verificação da existência de pesquisas com a
mesma temática no Brasil e em outros países. Após intensa revisão bibliográfica
averiguou-se que existem investigações sobre Contação de Histórias Digitais (Digital
Storytelling) em algumas perspectivas e línguas, contudo, a abordagem adotada nesta
dissertação é inédita.

DOCUMENTAÇÃO DA PESQUISA E ANÁLISE DOS DADOS

A documentação da pesquisa foi gerada pela organização dos aplicativos


classificando-os a partir das variáveis presentes em suas informações técnicas,
características e funçõese por meio de instrumentos qualitativos produzidos nas
seguintes ações:
 Documentos digitais contendo as informações técnicas dos aplicativos, de
onde foram extraídas as informações relevantes para a compreensão de seus
propósitos;

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 Exploração dos aplicativos e descrição de suas funcionalidades;


 Análise das imagens dos aplicativos;
 Verificação dos movimentos necessários ao utilizador para o desenvolver do
enredo;
 Interpretação dos sons utilizados;
 Apuração da presença ou ausência do narrador e suas implicações na
narrativa.

A análise inicial considerou a abordagem descritiva, alicerçada nos dados


logrados através da descrição das características dos aplicativos, discutindo suas
funcionalidades e usos e, concomitantemente, quantitativa, por abranger a
mensuração de variáveis numéricas e análise estatística multivariada de PCA, Análise
dos Componentes Principais, realizada pelo software estatístico – PcOrd 5, com a
finalidade de classificar os aplicativos em grupos análogos. Em seguida foi realizada a
análise que destacou quais as variáveis apontadas que obtiveram índice superior de
dissimilaridade. A análise discriminante ou combinações lineares separam as variáveis
que melhor discriminam as categorias da variável dependente (grupos), no intento de
elucidar as questões inerentes à hipótese erguida no presente texto da dissertação
(MALHOTRA, 2006).
Neste estudo, as diferentes perspectivas metodológicas adotadas foram vistas
como complementares.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por se tratar de um estudo ainda em desenvolvimento, inúmeras questões


estão sendo realizadas. Qual a literatura mais consumida pelo atual público infantil
brasileiro? Como se configuram as narrativas digitais nos aplicativos? Quais são suas
características? Qual a literatura da tradição oral permanece ―viva‖ em tempos
digitais?

REFERÊNCIAS

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

PESQUISAS SOBRE LITERATURA INFANTIL E JUVENIL EM


MATO GROSSO DO SUL : O ESTADO DO CONHECIMENTO
ENTRE 2005-2015

Gisele A. R. Sanches UEMS/Unidade de Paranaíba. Bibliotecária-


Documentalista da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul –
UFMS/Câmpus de Paranaíba.
Eixo temático 8
Introdução

A Literatura Infantil e juvenil pode ser caracterizada como uma área de estudo
que está presente em áreas do conhecimento científico como Letras, Educação,
Psicologia, Biblioteconomia, dentre outras, cada qual privilegiando uma abordagem a
respeito do tema.
O estudo desenvolvido se respaldou nas contribuições de Ceccantini (2004),
que aborda as perspectivas de pesquisa em literatura infanto-juvenil, e também nos
aportes metodológicos apresentados por Coutinho 317 (2014), que aborda a produção
do estado do conhecimento em relação à medicação de TDAH. O objetivo deste
estudo é apresentar os temas de pesquisa a respeito de Literatura Infantil e juvenil no
estado de Mato Grosso do Sul de 2005-2015, por meio dos estudos vinculados a
programas de pós-graduação em Letras e Educação do Estado. Foram selecionadas
essas duas áreas do conhecimento pela constatação de que no estado de Mato
Grosso do Sul não há um programa de pós-graduação em Biblioteconomia e o
programa de pós-graduação em Psicologia não trata do tema Literatura Infantil.
As instituições selecionadas foram: Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul (UFMS), Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Universidade
Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) e Universidade Católica Dom Bosco (UCBD).
Foram realizadas pesquisas nas bases de dados das dissertações e teses das
Universidades Federal de Mato Grosso do Sul, Universidade Estadual de Mato Grosso
do Sul, Universidade Federal da Grande Dourados, Universidade Católica Dom Bosco

317
Mesmo não sendo uma pesquisa voltada para o tema literatura infantil e juvenil colabora
com nosso estudo ao apresentar uma proposta de pesquisa em estado do conhecimento
focando o estado de Mato Grosso do Sul.
1620

e UNIDERP. Essa última instituição fez parte do processo de busca de dissertação e


tese, objeto desse estudo, porém ressaltamos que não foi contemplada nesse estudo
por não possuir programa de pós-graduação em Letras e Educação configurando um
espaço na qual, em âmbito de pós-graduação, a Literatura Infantil e juvenil está
presente nos quadros de pesquisa da instituição.
Dessa maneira, por se tratar de um estudo bibliográfico, foi feito um
levantamento do estado do conhecimento na Biblioteca Digital de Teses e
Dissertações - BDTD mantida pelo Instituto Brasileiro de informação Ciência e
Tecnologia - IBICT por ser de uma base de dados de reconhecimento e confiabilidade
por reunir a produção científica nacional.
A BDTD tem por objetivo integrar os sistemas de informação das instituições de
pesquisa brasileiras ao estimular o registro e a publicação de teses e dissertações em
meio eletrônico a fim de proporcionar maior visibilidade à produção científica nacional.
A busca na referida base de dados foi feita a partir da eleição de descritores
que melhor poderiam representar e recuperar estudos a respeito do tema, a saber,
Literatura Infantil, Literatura Juvenil e Literatura Infantil e juvenil. Também foram feitas
pesquisas nas bases de dados das Instituições escolhidas a fim de cobrir amaior
possibilidade de recuperação de registros. Após a leitura dos títulos, resumos,
palavras-chave e referências selecionamos as teses de dissertações encontradas a
respeito de Literatura Infantil e juvenil e fizemos breves considerações do que foi
encontrado.
Não há a intenção de exaustividade no processo de levantamento e sim
apontar a produção científica estadual entre 2005-2015 dos estudos que têm como
temática a Literatura Infantil ou juvenil.

2 Temas em Literatura Infantil e Literatura Juvenil

A proposta de pesquisar temas de estudo em Literatura Infantil e Literatura


Juvenil trouxe uma primeira questão, que é a definição mais adequada que represente
essa área de estudo de forma a abarcar toda sua complexidade. Buscando nos
aportes teóricos a respeito da temática, encontramos algumas formas de
apresentação do conceito.
Acreditamos que a definição que melhor se enquadra para nossa proposta está
presente no texto de Cadermatori (1986, p.8) quando a autora aponta que:

A principal questão relativa à Literatura Infantil diz respeito ao adjetivo


que determina o público a que se destina. A literatura enquanto só
substantivo, não predetermina seu público. Supõe-se que este seja

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formado por quem quer que esteja interessado. A literatura com


adjetivo, ao contrário, pressupõe que sua linguagem, seus temas e
pontos de vista objetivam um tipo de destinatário em particular, o que
significa que já se sabe a priori, o que interessa a esse púbico
específico.

Essa citação traz em seu interior questões que estão presentes nas pesquisas
sobre Literatura Infantil e Juvenil. Isso fica claro quando a autora apresenta como um
substantivo adjetivado trazendo a questão da busca por um estatuto teórico para sua
definição enquanto corpus de pesquisa o que nada mais é do que a busca de um
status de ciência.
Quando a autora trata de adjetivo, no caso infantil, ela traz para o debate a
questão dos temas relacionados a este tipo de literatura, que, por se tratar de um
público em formação, os materiais de leitura oferecidos podem conter temas de
conteúdo moralizantes.
A questão da formação conduz a uma outra reflexão, que é a aproximação de
livros de Literatura Infantil e livros escolares, ou seja, materiais que serviriam para
alfabetização e o ensino de língua, e não para o desenvolvimento da formação do
leitor pela gosto da leitura. Essa questão pode se tornar problemática na medida em
que o texto literário pode sofrer alterações em sua estrutura gráfica e estética, bem
como modificações em seu conteúdo ao adequando-o a realidade escolar.
Ainda na linha de Literatura Infantil como formação, estão presentes como
temas de pesquisas em Literatura Infantil e Juvenil a questão do nacionalismo na
Literatura Infantil para a formação de um espírito cívico, substituindo a produção
nacional de adaptações de obras européias. Essa produção nacional exerce a
construção e consolidação de um mercado editorial brasileiro, o que também se
configura com um bom tema de pesquisa.
Outra temática importante de pesquisa trata da intensificação das pesquisas a
respeito do tema e institucionalização da disciplina Literatura Infantil nos quadros
educacionais a partir de 1970, integrando os currículos em cursos de licenciatura
como o de Letras e Pedagogia. Podemos observar que ainda hoje, de acordo com as
pesquisas encontradas nesse estudo, que as áreas de conhecimento que produzem
pesquisas a respeito de Literatura Infantil e Literatura Juvenil são as áreas de Letras e
Educação.
Outra possibilidade de pesquisas são as centradas nos materiais bibliográficos;
sua história ao longo de um período, sua organização gráfica; suas ilustrações; seu
modo de circulação, acesso e uso; as práticas de leitura relacionadas e fomentadas
pelos materiais impressos; as políticas públicas relacionadas a incentivo ao livro e à

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leitura; a formação de um acervo ou uma biblioteca. Enfim, por ser uma área de
debates interdisciplinares, as possibilidades de pesquisas são diversas, ocorrendo em
um leque de possibilidades muito amplo.

3 O estado do conhecimento em Literatura Infantil e juvenil


Com um aumento considerável da produção de teses, dissertações e artigos
científicos, decorrente do crescimento da pesquisa científica nacional, um estudo do
tipo estado do conhecimento é uma forma de acompanhar as produções em
determinada área do conhecimento. Esse tipo de estudo deixa à mostra quais os
temas mais pesquisados em um determinada área do conhecimento e de que
maneira estão sendo pesquisados, configurando-se um tipo de abordagem que pode
ser norteadora de novas pesquisas.
De acordo com Romanowski e Ens (2006, p.41) os estudo de estado do
conhecimento possibilitam "[...] uma visão geral do que vem sendo produzido na área
e uma ordenação que permite aos interessados perceberem a evolução das pesquisas
na área, bem como suas características e foco, além de identificar as lacunas ainda
existentes.
Com a perspectiva de identificar o que se tem produzido em Literatura Infantil e
Literatura Juvenil, categorizamos as pesquisas encontradas para os estudos da
seguinte maneira: levantamento de dissertações e teses de programas de pós-
graduação do estado de Mato Grosso do Sul, separados por instituição de ensino.

3.1 Os Programas de Pós-graduação em Mato Grosso do Sul

Ao buscar no sistema da Capes programas de pós-graduação que tivessem


como área de estudo Literatura Infantil em seu nome ou descrição não encontramos
nenhuma ocorrência com os termos selecionados. Essa informação indica que a área
de estudo Literatura Infantil e Literatura Juvenil está subordinada a outras áreas de
conhecimento como Biblioteconomia, Educação, Lingüística, Letras e Artes.
Como forma de desenvolver o objetivo deste estudo, refinamos a busca em
programas de pós-graduação do estado de Mato Grosso do Sul. Sendo assim, fizemos
uma busca dos programas de pós-graduação do estado de Mato Grosso do Sul para
verificar se, em suas linhas de pesquisas, consta alguma menção a Literatura Infantil
ou Literatura Juvenil, bem como verificar as produções científicas a respeito do tema.

3.2 UEMS - Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul


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A Fundação Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS foi


implantada em 1993 com o objetivo de construir um panorama educacional no estado,
contribuindo para qualificação do corpo docente do ensino fundamental e médio.
Atualmente a Universidade possui 66 cursos de graduação distribuídos em 16
cidades e sua sede se localiza na cidade de Dourados. Possui também 13 programas
de pós-graduação. Nesse estudo, nos atemos aos programas de mestrado em Letras
e mestrado em Educação como está descrito na próxima seção.

3.2.1 Mestrado em Letras


O objetivo a ser desenvolvido no Programa de Pós-Graduação Stricto sensu
em Letras da cidade de Campo Grande, área de concentração em Linguagem: língua
e literatura, é atender a uma demanda de pesquisas científicas concernentes ás
condições históricas e culturais do estado de Mato Grosso do Sul, principalmente
quando se tem características geográficas, por ser uma região de fronteira com outros
países, que possibilitam a interação com a diversidade cultural, incluindo nessa
diversidade o multilinguísmo.
As pesquisas vinculadas a este programa se enquadram em três linhas de
pesquisa: Historiografia literária; Produção do texto escrito e oral; Ensino de
Linguagens.
De acordo com o resultado da busca por pesquisas que tenham como tema
Literatura Infantil e Juvenil, encontramos somente uma dissertação, que
apresentaremos a seguir.
A dissertação tem como autora Adriana Cercarioli. Defendida em 2014, é
intitulada "Entre infâncias e versos: a leitura da poesia de Manoel de Barros pelo olhar
da criança". Está inserida na linha de pesquisa Linguagem: Língua e Literatura, sob a
orientação do Prof Dr. Daniel Abrão. As palavras-chave que descrevem este estudo
são: Literatura Infantil. Poesia. Leitura. Manoel de Barros.
A pesquisa teve como proposta promover o contato entre a poesia de Manoel
de Barros e o leitor criança. Este contato foi feito a partir de oficinas de leitura com
estudantes do 5º ano do Ensino Fundamental de uma escola da rede municipal de
ensino de Campo Grande-MS. Verificou-se a proximidade dos poemas do autor com o
universo infantil, mesmo que sua obra não seja classificada para o público infantil.
Uma das principais conclusões que a promoveu foi a constatação de que o texto
literário de qualidade pode ser utilizado na escola.

3.2.2 Mestrado em Educação


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O programa de pós-graduação em Educação em nível de mestrado está na


Unidade de Paranaíba e tem por objetivo: formar docentes para o exercício na
Educação Básica e Supeiror; responder aos desafios sociais, teóricos e metodológicos
por meio da melhoria da qualidade da educação; desenvolver, fortalecer as linhas de
pesquisa, bem como promover uma articulação entre os estudos desenvolvidos pela
pós-graduação com a graduação; e, por fim, divulgar os resultados de pesquisa. O
programa possui três linhas de pesquisa, a saber: Currículo, formação docente e
diversidade; História, Sociedade e Educação; Linguagem, Educação e Cultura.
Em nosso estudo selecionamos pesquisas que possuíam os descritores
Literatura Infantil e Literatura Juvenil. No caso do mestrado em Educação, não houve
ocorrência de resultados com esses descritores. Porém foi encontrada uma
dissertação que tratava do tema ensino de literatura em sua temática. Selecionamos
este estudo devido ao tema Literatura Infantil e Literatura Juvenil não estarem
ausentes no ensino de literatura do 2º grau, do qual a dissertação trata .
Com o título "No labirinto das raízes: história do ensino de literatura em Mato
Grosso do Sul (1977-2008)" a dissertação tem como autora Eislher Alves Ferreira
Neves defendida em 2013 sob orientação da Profª Drª Estela Natalina Mantovani
Bertoletti. Possui como palavras-chave: História da Educação. Ensino de Literatura.
Propostas Curriculares. Ensino Médio. Mato Grosso do Sul.
A dissertação objetivou compreender como os documentos oficiais tratam o
ensino de Literatura no ensino médio em Mato Grosso do Sul. Isso foi feito por meio
das analises das propostas curriculares que oficializaram seu ensino no estado com o
propósito de compreender qual o espaço da disciplina Literatura no universo escolar
hoje e suas modificações ao longo da história. Por se tratar de uma pesquisa histórica
em Educação, por uma da perspectiva da história das disciplinas escolares procedeu-
se à recuperação, reunião, seleção e análise das seguintes propostas curriculares:
Diretrizes Gerais para o Ensino de 2º Grau do Estado de Mato Grosso do Sul, de
1989; Diretrizes Curriculares, de 1992; Referencial Curricular para o Ensino Médio de
Mato Grosso do Sul, de 2004; e Referencial Curricular da Educação Básica da Rede
Estadual de Ensino/MS – Ensino Médio, de 2008. Analisadas pelo método de análise
da configuração textual, a pesquisa traçou o percurso do ensino de literatura desde a
sua institucionalização, apontando que, ao se associar a um sistema de ensino, a
literatura passou a cumprir certos desígnios pedagógicos e ideológicos desse sistema.
Por isso a crítica da escolarização se configura em um empenho de reflexão sobre as
relações de poder que permeiam o ensino de Literatura. A pesquisa contribui para o
campo da historiografia do ensino de Literatura em escolas sul-mato-grossenses, bem
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como para a compreensão das realidades vivenciadas dentro dos quadros


educacionais atuais, no qual o ensino de literatura está inserido .

3.3 UFMS - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul


A Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) teve sua origem em
1962 com a criação da Faculdade de Farmácia e Odontologia de Campo Grande, na
cidade de Campo Grande, o que seria o embrião do ensino superior público no sul do
então estado de Mato Grosso.
Em 1970 foram criados os Centros Pedagógicos de Aquidauana e Dourados e
incorporados à UEMT-Universidade Estadual de Mato Grosso.
Em 1977 ocorre a divisão do estado de Mato Grosso, concretizando a
federalização da instituição, passando a chamar-se Fundação Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul, de acordo com a Lei Federal nº 6.674, de 05.07.1979.
De acordo com as informações contidas no site da Instituição além da sede
em Campo Grande – na qual funcionam as unidades setoriais: Centro de Ciências
Biológicas e da Saúde (CCBS); Centro de Ciências Humanas e Sociais (CCHS);
Faculdade de Computação (Facom); Faculdade de Direito (Fadir); Faculdade de
Medicina (Famed); Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (Famez);
Faculdade de Odontologia (Faodo); Faculdade de Engenharias, Arquitetura e
Urbanismo e Geografia (Faeng); Instituto de Matemática (INMA); Instituto de Química
(INQUI) e Instituto de Física (INFI) - a UFMS mantém Câmpus em Aquidauana, Bonito,
Chapadão do Sul, Corumbá, Coxim, Naviraí, Nova Andradina, Paranaíba, Ponta Porã
e Três Lagoas.

3.3.1 Mestrado em Letras - Campus de Três Lagoas


A principal fonte de informação para o desenvolvimento deste estudo foram as
informações contidas nos sites dos programas de pós-graduação. No caso do
programa do Campus de Três Lagoas, não estavam disponíveis no site informações a
respeito do objetivo do programa, seu projeto pedagógico, bem como sua história.
O programa possui as seguintes linhas de pesquisa: Estudos Linguísticos;
Análise, descrição e documentação de línguas; Discurso, subjetividade e ensino de
línguas; Estudos Literários; Historiografia Literária: Recepção e Crítica; Literatura,
História e Sociedade.
Os três estudos que foram encontrados pertencem à linha de pesquisa Estudos
Literários. Abaixo seguem as principais informações a respeito das pesquisas.

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Intitulada "Adaptação, uma leitura possível: um estudo de Dom Quixote das


crianças, de Monteiro Lobato" com autoria Amaya Obata Mouriño de Almeida Prado, a
pesquisa foi orientada pelo Prof Dr José Batista de Sales. Possui como palavras-
chave: Literatura Infantojuvenil. Leitura. Escritores. Narração. A data de defesa foi no
ano de 2007.
A autora parte de pressupostos teóricos a respeito do conceito de adaptação e
seu papel na Literatura Infantil brasileira ancorados nos estudos de Lauro Maia
Amorim, Regina Zilberman, Marisa Lajolo e Nelly Novaes Coelho. A dissertação
analisa a obra Dom Quixote das Crianças de Monteiro Lobato operando
comparativamente o projeto de adaptação do autor e sua leitura do clássico Dom
Quixote (1605;1615), de Miguel de Cervantes Saavedra.
A pesquisadora conclui que Monteiro Lobato é fiel ao texto original, mas não
deixa de inscrever seu estilo próprio. A adaptação de clássicos da literatura mundial
abre a possibilidade de contato com produções culturais de grande peso. Conclui
também que a adaptação contribui na formação de leitores.
Outra pesquisa encontrada vinculada ao programa de mestrado em Letras foi a
de Daniela Aparecida Francisco com o título "O projeto estético na obra de Bartolomeu
Campos de Queirós". Defendida em 2013, sob a orientação do Prof Dr José Batista de
Sales. A dissertação tem como palavras-chave Literatura Brasileira (Crítica e
Interpretação). Literatura Infanto-Juvenil (História e Crítica). Narrativa. Escritores.
A dissertação teve como objetivo analisar por meio de um estudo histórico-
crítico o conjunto da obra do autor mineiro Bartolomeu Campos de Queirós, com o
objetivo de apontar elementos norteadores de sua produção e a recepção nos meios
acadêmicos e escolares. Para tanto, a pesquisadora realizou análise dos elementos
textuais e imagéticos de duas obras do autor Foi assim de (2008) e ABC... até Z do
ano de 2009.
A respeito desse estudo não foram encontradas mais informações dos
resultados da pesquisa, pois não estava disponível o arquivo completo contendo a
dissertação. No repositório institucional da UFMS, somente o resumo foi
disponibilizado, fato esse que comprometeu a análise da pesquisa.
Por fim, a última referência encontrada tem o título de " Reconto: a tradição que
se renova", de autoria de Joelma Cristina Pereira e orientação do Prof Dr José
Batista de Sales defendida no ano de 2013. As palavras-chave que descrevem a
pesquisa são: Literatura Brasileira. Literatura Infanto-juvenil.
A dissertação analisou a obra Lampião & Lancelote (2006), de Fernando Vilela,
a partir da compreensão de que a atividade de recontar uma história após ouvi-la vem
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sendo rotina na Educação Infantil e no Ensino Fundamental. Desta forma, o subgênero


reconto foi utilizado na pesquisa. Foram feitas contextualizações a respeito das
personagens principais, Lampião e Lancelot. Como procedimento metodológico foi
realizado pela análise estrutural, abordando os conceitos de narrador, de conto e de
reconto, e de um estudo da linguagem visual, por se tratam de um livro no qual a
ilustração é parte muito importante para o entendimento e apreciação integral do texto.

3.4 UFGD - Universidade Federal da Grande Dourados

A Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD foi criada a partir do


desmembramento do Centro Universitário de Dourados, antigo CEUD, campi da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS em 2005.
A implantação de uma nova Universidade foi possível devido a incentivos do
Programa de Expansão das Instituições Federais de Ensino Superior no Brasil do
Governo Federal.
Após 9 anos de existência, a UFGD contabiliza 33 cursos de graduação, 14
cursos de especialização, 18 programas de pós-graduação em nível de mestrado, 8
programas de pós-graduação em nível de doutorado e 3 residências médicas. De
acordo com a nossa proposta de buscar pesquisas em Literatura Infantil e Literatura
Juvenil, atemo-nos aos cursos de Mestrado e Doutorado em Educação e Mestrado em
Letras, uma vez que entendemos estarem essas temáticas atreladas a estas áreas de
estudo.
Em um primeiro momento foram realizadas buscas na Biblioteca Digital de
Teses e Dissertações - IBICT com os filtros nome na instituição (Universidade Federal
da Grande Dourados), assunto (Literatura Infantil/Literatura Juvenil) e data de defesa
(a partir de 2005), e não foi recuperado nenhum registro.
Informações retiradas do site da Instituição nos deu o conhecimento da
existência de programas de mestrado e doutorado em educação e mestrado em
Letras, fato esse que nos levou a adotar o procedimento de realizar a busca pela
Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da própria instituição.
Nesta nova busca foram recuperados 12 registros dos quais 2 tratam
efetivamente de Literatura Infantil e juvenil. Os outros 10 estudos traziam a palavra
literatura em seus resumos referindo-se a ela como revisão de literatura, não
caracterizando assim como nosso objeto de estudo.Vale ressaltar que, como forma de
certificar que esse ou aquele estudo trata de Literatura Infantil e juvenil, a pesquisa foi

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feita por meio de análise dos títulos, resumos, palavras-chave e referências dos
documentos.
Abaixo uma breve descrição dos programas de pós-graduação seguida dos
registros encontrados que tratam de Literatura Infantil ou Literatura Juvenil nos
Mestrado em Letras e no Mestrado em Educação.

3.4.1 Mestrado em Letras


O Programa de pós-graduação em Letras em nível de Mestrado possui duas
áreas de concentração, a saber: Literatura e práticas culturais. Estas, por sua vez,
subdividem-se em duas linhas: Literatura e estudos regionais, Culturais e interculturais
e outra linha Literatura, cultura e fronteiras do saber. Outra área de concentração é
Linguística e transculturalidade, que se subdivide em duas áreas: Linguística aplicada
e estudos de fronteira e Estudos de língua(gens) e discurso.
O Programa em Letras tem por objetivos: formar profissionais para as atividades
de docência e de pesquisa acadêmica no campo das Letras, com a intenção de suprir
uma demanda de Mato Grosso do Sul; firmar-se como centro de pesquisa científica e
produção de lexão interdisciplinar.
De acordconhecimentos avançados acerca das temáticas envolvidas; criar um
espaço efetivo de refo com a busca feita na base de dados da instituição, foi
recuperado o registro abaixo que possui a temática Literatura Infantil.
Com o título "Representações de leitura na literatura infantojuvenil: um estudo do
PNBE-2009" a autora Andréia de Oliveira Alencar Iguma, sob a orientação de Célia
Regina Delácio Fernandes. A dissertação, defendida em 2012, apresenta um estudo
sobre as abordagens da leitura na Literatura Infantil nas narrativas que integram o
PNBE 2009. Foram analisadas as obras que compunham o Programa Nacional
Biblioteca da Escola – PNBE versão 2009, a saber: Amigos Secretos (2009) de Ana
Maria Machado; Assassinato na Biblioteca (2009) de Helena Gomes; Beto, o
analfabeto (2008) de Drummond Amorin; Letras finais (2008) de Luís Dill; O Mágico de
Verdade (2008) de Gustavo Bernardo; O Mário que não é de Andrade (2008) de
Luciana Sandroni; O mundo é pra ser voado (2006) de Vivina de Assis e Pode me
beijar se quiser (2009) de Ivan Ângelo.
A pesquisadora conclui que o programa contribuiu para a formação do leitor
literário em idade escolar, e que o estudo desenvolvido contribuiu para a melhoria das
políticas públicas da leitura no Brasil, bem como compreender as relações entre a
literatura infantojuvenil e escola.

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3.4.2 Mestrado em Educação

Vinculado à Faculdade de Educação, o Programa de Pós-Graduação em


Educação da UFGD objetiva propiciar a formação inicial de pesquisadores na área da
educação, bem como consolidar e favorecer as pesquisas, em âmbito regional e
nacional, voltadas para Ciências Humanas e Educação. Para alcançar os objetivos
proposto pelo programa, os estudos podem ser desenvolvidos de acordo com as três
linhas de pesquisas, a saber: História da educação, memória e sociedade; Políticas e
gestão da educação; Educação e diversidade.
De acordo com a busca feita na base de dados da instituição foi recuperado o
registro abaixo que possui a temática Literatura Infantil.
A autora Luciana de Araujo Figueiredo apresentou a dissertação "A criança
negra na literatura brasileira : uma leitura educativa" no Mestrado em Educação sob a
orientação de Maria do Carmo Brazil, defendida em 2010. A dissertação abordou a
temática acerca das representações de crianças e infâncias negras, considerando as
tramas sociais contidas, sobretudo nas obras literárias, de modo a sugerir fontes para
a construção de uma educação com respeito à diversidade por meio da abordagem da
Nova História Cultural. Foram analisadas as obras: ―Memórias Póstumas de Brás
Cubas‖ (1881); por José Lins do Rego, ―Menino do Engenho‖ (1932); por Gilberto
Freyre, ―Casa Grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime da
economia patriarcal‖ (1933); ―Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado rural
no Brasil‖ (1936) e por Graciliano Ramos, ―Infância‖ (1945).
A Literatura Infantil está presente na pesquisa da autora quando apresenta
algumas possibilidades de utilização da Literatura Infantil no processo de formação da
identidade da criança negra, baseadas em obras de referencial étnico racial, com
destaque para obras infantis como ―A Bonequinha Preta‖ (1938), de Alaíde Lisboa de
Oliveira; ―Menina Bonita do Laço de Fita‖ (1986), de Ana Maria Machado; ―O Menino
Marrom‖ (1986), de Ziraldo Alves Pinto; ―A cor da vida‖ (1997), de Semíramis Paterno
e ―O cabelo de Lelê‖ (2007), de Valéria Belém.
As conclusões do estudo revelaram que as lutas sociais influenciaram nas
produções contemporâneas em Literatura Infantil, propondo novas formas de
representação da criança negra nos materiais literários ao inserir e colocar em debate
traços e símbolos da cultura negra como forma de resistência e combate ao racismo e
ao preconceito.

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As palavras-chave que descrevem a dissertação são: Historiografia brasileira-


criança negra- literatura infantojuvenil. Brazilian Historiography. Black child. Juvenile-
children literature.

3.5 UCDB - Universidade Católica Dom Bosco

Entre as áreas de concentração elencadas para nosso estudo, a Universidade


Católica Dom Bosco possui, além de outras áreas de conhecimento, o mestrado em
Educação. O mestrado está em funcionamento desde o ano de 1994 e completa em
2015 vinte e um anos de atuação no estado de Mato Grosso do Sul. Com isso,
podemos dizer que é um curso consolidado dentro do estado por possuir uma ampla
produção acadêmica construída ao longo desses anos.
De acordo com informações retiradas da página do programa, as pesquisas
podem ser enquadradas em três linhas de pesquisa. Essas linhas são: Políticas
Educacionais, Gestão da Escola e Formação Docente; Práticas Pedagógicas e suas
Relações com a Formação Docente; Diversidade Cultural e Educação Indígena. Ao
analisarmos as ementas das linhas de pesquisa, nenhuma contempla estudos de
Literatura Infantil e Literatura Juvenil diretamente. Como a instituição possui o curso de
Doutorado em Educação, implantado desde 2010 na instituição, foi feita uma
apreciação das ementas das linhas de pesquisa deste nível de pós-gradução, que são
as mesmas do mestrado, constatou-se que a temática Literatura Infantil e juvenil não
está presente neste programa de pós-graduação.
Podemos confirmar esta informação ao percorrer os títulos, resumos e
palavras-chave de todas as dissertações do período de 2005-2015, nas quais as
principais temáticas das dissertações são formação docente, educação indígena,
tecnologia e educação, educação inclusiva, dentre outras. O mesmo acontece quando
analisamos as teses defendidas entre os anos de 2013-2015 e as temáticas de
pesquisa se assemelham as temáticas desenvolvidas no mestrado.
Portanto, concluímos que nosso objeto de estudo não está presente nas
pesquisas desenvolvidas nesta universidade.

4 Conclusões

Após apresentação dos programas de pós-graduação que possuem pesquisas


desenvolvidas no campo de Literatura Infantil e Literatura Juvenil e os respectivos
estudos, podemos traçar possíveis conclusões tanto em relação ao processo de
levantamento do Estado do Conhecimento quanto às pesquisas encontradas.
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Em relação ao processo de pesquisa na BDTD encontramos dificuldades em


localizar a produção acadêmica relacionada ao estado de Mato Grosso do Sul.
Somente no caso da UFMS conseguimos, por meio desta base, localizar os registros.
Essa recuperação das pesquisas relacionadas à UFMS só foi possível na mudança do
descritor de Literatura Infantil e Literatura Juvenil para Literatura Infantojuvenil. Outra
questão referente às pesquisas da UFMS foi a impossibilidade de visualização dos
arquivos completos, pois não estavam disponíveis no repositório da instituição, no qual
o sistema de informação da BDTD faz a captação dos registros. Um dado que nos
chamou a atenção foi a não recuperação de pesquisas relacionadas ao programa de
pós-graduação em Educação, dado este que não significa que elas não existam, mas
há a possibilidade de não terem sido vinculadas ao sistema de informação da BDTD.
No que trata a respeito das temáticas das pesquisas vinculadas ao programa
de pós-graduação em Letras, percebemos que as temáticas são voltadas para os
estudos literários. As três pesquisas recuperadas tratam de uma ou mais obras
especificas de um determinado autor, dando prioridade à análise do livro e seu
alcance, seja na escola ou na formação de leitores.
Nas dissertações encontradas vinculadas a UFGD, as temáticas abordadas
contribuem para o campo de pesquisa em Literatura Infantil e Juvenil por abordarem a
representação de um grupo racial como forma de valorização e fortalecimento contra o
preconceito e o racismo, bem como a relações estabelecidas entre Literatura Infantil e
juvenil e escola por meio de uma política pública como o Programa Nacional
Biblioteca na Escola.
No caso do levantamento feito na UFGD, a instituição mantém uma base de
dados on-line que possibilita uma recuperação, identificação e acesso do arquivo
completo em pdf dos estudos produzidos pelos programa de pós-graduação.
O processo de busca das pesquisas acadêmicas desenvolvidas pela UEMS foi
o que enfrentou maior dificuldade. Isso porque a instituição não mantém um sistema
de busca de arquivos que possa ser feito por meio de uma base de dados on-line que
possa otimizar a busca e recuperação de seus documentos. Os arquivos completos
em pdf estão disponíveis nas páginas dos programas. Porém foi preciso entrar arquivo
por arquivo para poder identificar quais produções tratavam de Literatura Infantil e
Literatura Juvenil, processo esse que demandou muito tempo. Dessa busca, duas
pesquisas recuperadas, uma do mestrado em Letras e outro do mestrado em
Educação. A pesquisa vinculada ao mestrado em Letras teve por objetivo colocar
estudantes do Ensino Fundamental I em contato com a poesia estadual na figura de
Manoel de Barros, bem como mostrar a preocupação com a formação de leitores. Já a
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pesquisa vinculada ao mestrado em Educação não aborda especificamente a


Literatura Infantil e Juvenil e sim o ensino de literatura. Esta pesquisa foi incluída pelo
entendimento de que, ao se discutir ensino de literatura, discute-se também em algum
momento questões relacionada ao tema desse nosso estudo, pois a Literatura Infantil
e juvenil é usada amplamente no processo de ensino-aprendizagem dentro do
ambiente escolar.
Contudo, ao realizar este estudo notamos uma carência em pesquisas em
Literatura Infantil e Juvenil. Isso porque é um campo de pesquisa rico e interdisciplinar
com um leque de possibilidades de pesquisa muito amplo.

Referências
CADERMATORI, Ligia. O que é Literatura Infantil. São Paulo: Brasiliense, 1986.
CECCANTINI, João Luís Cardoso Tapias. Perspectivas de pesquisa em literatura
infanto-juvenil. In.:________ (Org.) Leitura e Literatura Infantil: memória de
Gramado. São Paulo: Cultura Acadêmica; Assis: ANEP, 2004. p. 19-37.

CERCARIOLI, A. Entre infâncias e versos: a leitura da poesia de Manoel de Barros


pelo olhar da criança. 2014. 214 f. Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade
Estadual de Mato Grosso do Sul, Campo Grande/MS, 2014.

COUTINHO, Mayara K. A. R. Medicalização e TDAH: discussões nos programas de


pós-graduação em Educação e em Psicologia do Mato Grosso do Sul. 2014. 64f.
Monografia (Especialização em Educação) - Universidade Estadual de Mato Grosso
do Sul, Paranaíba/MS, 2014.

FIGUEIREDO, Luciana Araujo. A criança negra na literatura brasileira: uma leitura


educativa. 2010. 130f. Dissertação (Mestrado em Eduação) - Universidade Federal da
Grande Dourados. Dourados/MS, 2010.

FRANCISCO, Daniela Aparecida. O projeto estético na obra de Bartolomeu


Campos de Queirós. 2013. Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Federal
de Mato do Sul. Três Lagoas/MS. 2013.

IGUMA, Andréia de Oliveira Alencar. Representações de leitura na literatura


infantojuvenil: um estudo do PNBE-2009. 2012. Dissertação (Mestrado em Letras) -
Universidade Federal da Grande Dourados. Dourados/MS, 2012.

NEVES, Eislher Alves Ferreira. No labirinto das raízes: história do ensino de


literatura em Mato Grosso do Sul (1977-2008). 2013. Dissertação (Mestrado em
Educação) - Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Paranaíba/MS, 2013.

PEREIRA , Joelma Cristina. Reconto: a tradição que se renova. 2013. Dissertação


(Mestrado em Letras) - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Três
Lagoas/MS, 2013.

PRADO, Amaya Obata Mouriño de Almeida. Adaptação, uma leitura possível: um


estudo de Dom Quixote das crianças, de Monteiro Lobato. 2007. Dissertação

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(Mestrado em Letras) - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Três


Lagoas/MS, 2007.

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MATO GROSSO DO SUL. Perfil. Disponível em <


http://www.portal.uems.br/perfil>. Acesso em 01 de jul. de 2015.

UNIVERSIDADE FEDERAL DA GRANDE DOURADOS. Históricoda Universidade


Federal De Mato Grosso Do Sul. Disponível em<
http://portal.ufgd.edu.br/aufgd/historico>. Acesso em 05 de jul. de 2015.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL. Histórico. Disponível em:


< http://ufms.br/institution/view/id/15>. Acesso em 06 de jul. de 2015.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

PRESCILIANA DUARTE DE ALMEIDA E A LITERATURA


INFANTIL

Raissa Nunes Pinto, Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul –


UEMS, Literatura Infantil e Ensino, CNPq.

Considerações Iniciais

Após realizar uma busca online, durante o ano de 2016,juntamente com


minha professora orientadora, pensando já no tema do Trabalho de Conclusão de
Curso (TCC) de Pedagogia,destacou-se o nome de Presciliana Duarte de Almeida
(1867 – 1944), como importante escritora de Literatura Infantil do início do século XIX,
no Brasil.
Ainda no ano de 2016, após escolher Presciliana Duarte de Almeida como
tema de pesquisa, participei do 7º SLIJ318, evento realizado em Florianópolis/SC,
durante os dias 26, 27 e 28 de setembro. Nestes dias assisti à palestra proferida por
Marisa Lajolo e Regina Zilberman, que citaram um trecho de um poema de Presciliana
Duarte de Almeida; ―Para mim, livro bonito é aquele que tem figuras, pra você não é,
Carlito?‖ (ALMEIDA, 1934), poema em que se encontra no livro Páginas Infantis,
escrito pela própria autora.
No mesmo ano, submeti e tive aprovada sobre o tema, pesquisa de Iniciação
Científica319 que está em andamento, desenvolvida por meio de pesquisa bibliográfica
e documental. Neste texto, tenho por objetivo apresentar os resultados obtidos na
pesquisa até o presente momento; utilizando-me dos seguintes teóricos: Lajolo e
Zilberman (2007), Arroyo (1988), Oliveira (2016), Coelho (1984), Coelho (1991),
Santos (2000).
Muitas têm sido as dificuldades encontradas; ao iniciar a pesquisa
documental, por exemplo, encontrei vários problemas de pesquisas: a autora quase
não foi estudada, desta forma não consegui obter muitas informações precisas, um

318
7º Seminário de Literatura Infantil e Juvenil, II Seminário Internacional de Literatura Infantil e
Juvenil e Práticas de Mediação Literária, Linguagens poéticas pelas frestas do
contemporâneo.
319
*Projeto de iniciação cientifica intitulado de Presciliana Duarte de Almeida (1867 – 1944) e a
Literatura Infantil, com orientação da Prof. Dra. Estela Natalina Mantovani Bertoletti.
1635

exemplo claro é o seu primeiro nome, por vezes encontrei Prisciliana, em outros
momentos Presciliana.
Quem foi Presciliana Duarte de Almeida?
Segundo Nelly Novaes Coelho (1984), Presciliana Duarte de Almeida nasceu
em Pouso Alegre – MG (03/06/1867). Segundo a Revista da Academia de Letras de
1944, a escritora faleceu em Campinas (13/06/1944), no hospital da Sociedade
Portuguêsa de Auxilio Mútuos, as 21h, Délio Freire dos Santos (2000) afirma que a
autora foi fundadora da primeira revista com teor feminista do Brasil, A Mensageira,
que foi colaboradora de alguns periódicos educacionais do início do século XX,
―Redigiu os periódicos Educação, A Alvorada e O Lutador‖; que foi bibliotecária,
fundadora da Academia Paulista de Letras ocupando a cadeira número 8; e que foi a
primeira mulher a ocupar uma cadeira na Academia. Ela está enterrada no cemitério
do Araçá, quadra 33, terreno 31.
Ainda, segundo Santos (2000), Presciliana Duarte de Almeida foi casada com
seu primo Silvio de Almeida (1863 – 1924), filólogo, educador e poeta, dono de um
colégio renomado na época e que estava instalado em São Paulo/SP, local em que ela
também trabalhava. Era bisneta de Barbara Heliodora (1759 – 1819), poeta e ativista
mineira que participou acirradamente da Inconfidência Mineira.
Pude encontrar alguns sites que fazem menção à autora, como o da própria
Academia Paulista de Letras; sendo possível encontrar um pouco de menções à
autora por parte de alguns autores renomados da área de pesquisa em Literatura
Infantil.
Presciliana Duarte de Almeida é considerada por Leonardo Arroyo (1988) um
dos grandes nomes da poesia brasileira e uma entre os percursores da Literatura
Infantil em nosso país:
[...] Presciliana Duarte de Almeida, [...], entre os precursores de nossa
literatura infantil, encontramos as mais válidas vozes da poesia para
criança no Brasil. São [...] autores que nos deixaram uma obra
clássica, classicamente poética, para a infância mostrando assim os
verdadeiros critérios de composição de uma lírica capaz de ser
longamente amada pelas crianças. (ARROYO, 1988, p. 217)

Na primeira edição da revista A mensageira, essa escritora demonstra qual


sua motivação para a criação da revista.

Estabelecer entre as brazileiras uma sympathia espiritual, pela


comunhão das mesmas ideias, levando-lhes de quinze em quinze
dias ao remansoso lar, algum pensamento novo – sonho de poeta ou

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fructo de observação acurada, eis o fim, que modestamente, nos


320
propomos. (ALMEIDA,1897, n. p.)

Segundo Coelho (1984), Presciliana Duarte de Almeida foi:

Figura feminina de destaque no movimento cultural literário e


educacional paulista, no entre séculos. Presciliana Duarte de Almeida
nasceu em Pouso Alegre (MG), em 3 de junho de 1867. Casando-se
com o primo Silvio de Almeida, muda-se para S. Paulo, onde o casal
participa ativamente da renovação educativa em processo, no início
do século, e também do movimento literário. Em S. Paulo, vem a
falecer aos 77 anos, a 13 de junho de 1944, sendo enterrada no
Cemitério do Araçá. (COELHO, 1984, p. 790)

Ainda, segundo Coelho (1991), mas agora em outra obra, Presciliana Duarte
de Almeida era:
Figura feminina de destaque no movimento cultural, literário e
educacional paulista, no entre séculos, a mineira Presciliana Duarte
de Almeida (1867/1944) teve ação importante na divulgação das
novas idéias feministas e educacionais. Incentiva a criação da revista
estudantil A Aurora (no Ginásio Silvio de Almeida – SP), escreve
peças de teatro que leva a encenação pelos escolares e, em 1908,
publica Páginas Infantis, coletânea de estorietas referendadas por
uma carta – prefácio de João Kopke. Em 1914, escreve o livro de
leitura O Livro das Aves (crestomatia em prosa e verso), adotado em
várias escolas paulistas. (COELHO, 1991, p. 219)

Marisa Philbert Lajolo e Regina Zilberman (2007, p. 28) afirmam que: ―Datam
desse mesmo período as antologias folclóricas e temáticas estas últimas com o
objetivo de constituírem material adequado para celebração escolares: [...] Livro das
aves (1914), de Presciliana D. de Almeida.‖
Em buscas online pelos sites digitando pelo nome de Presciliana Duarte de
Almeida pude encontrar referência a ela no site da enciclopédia Itaú. Segundo a
enciclopédia Itaú;

Presciliana Duarte de Almeida nasceu em Pouso Alegre – MG no ano


de 1867, e faleceu em 1944, na cidade de São Paulo – SP, publicou
seu primeiro livro em 1890, intitulado de Rumorejos, trabalhou como
colaboradora dos periódicos Almanaque Brasileiro Garnier, A
estação, Rua do Ouvidor e A Semana. Tornou-se colaboradora da
revista Educação no ano de 1902, e da revista Alvorada, que era do
Grêmio Literário dos alunos do Ginásio Silvio de Almeida, em 1909.
Também em 1909 é membro – fundador da Academia Paulista de
Letras. (ITAÚ, n. p.)

320
Ortografia original da época, citação direta da revista publicada no ano de 1897.
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Apesar de encontrar referências da autora no site da Fundação Itaú, leitura,


não pude encontrar nenhuma referência ou livro da autora no próprio museu da
fundação, que se encontra localizado na Avenida Paulista em São Paulo/SP. 321
Além da Fundação Itaú, foi possível encontrar também o site da Universidade
de Campinas (UNICAMP), este site tem uma parte que é de dedicação à história da
Literatura Infantil, nele foi possível encontrar a seguinte informação sobre a autora:

Presciliana Duarte de Almeida nasceu em Pouso Alegre (MG) em 3


de junho de 1967. Prima de Júlia Lopes de Almeida e Adelina Lopes
Vieira. Após casar-se muda-se para São Paulo onde funda, em 1889,
a revista feminista A Mensageira. Participa da fundação da Academia
Paulista de Letras em 05 de outubro de 1909 onde ocupa a cadeira nº
8, escolhendo a poetisa Bárbara Heliodora, sua trisavó, como
patrona. Morreu aos 77 anos, em São Paulo, em 13 de junho de
1944.1908 - Página Infantis1914 - O Livro das Aves (UNICAMP, n. p.)

A escritora é muito lembrada em discursos de posse da própria Academia


Paulista de Letras, como é o caso do discurso de posse de Juca de Oliveira322 (1935)
que realiza de certa forma, uma volta ao tempo relembrando a história da autora; ela
foi a primeira a sentar-se na cadeira de número 8 da Academia, agora pertencente a
ele.

[...] Prisciliana Duarte de Almeida, a fundadora da cadeira, poetisa,


nasceu em junho de 1867. Em 1890 publicou seu primeiro livro de
poesias, Rumorejos; e a partir daí desenvolveu intensa atividade
literária e cultural. Entre 1897 e 1900, fez circular em São Paulo a
publicação A Mensageira, de tendência feminista, que exerceu
grande influência na emancipação da mulher brasileira. Inicialmente
destinada à produção literária, seus artigos passaram a exigir mais
direitos para as mulheres, ampliação do mercado de trabalho
feminino e uma educação de melhor qualidade.[...]O teatro abre
picadas, cria modelos novos de cultura, e socializa comportamentos.
Para citar um exemplo, a nossa querida Prisciliana Duarte de
Almeida, com absoluta certeza, engendrou sua revista "A
Mensageira", inspirada pela Nora, de "A Casa de Bonecas" de Ibsen,
o primeiro manifesto feminista, levado ao palco em 1978. Sem essa
personagem criada por Ibsen, as mulheres não teriam atingido a
posição que têm hoje na sociedade! Mas nem todos aplaudem essa
nossa vocação crítica e transformadora. (OLIVEIRA, 2016, n. p.)

O site da academia também conta com uma parte de dedicatórias aos seus
fundadores, Presciliana Duarte de Almeida foi relembrada, segundo o site:

321
A visita se deu durante o mês de julho do ano de 2017.
322
Ator, Diretor e dramaturgo brasileiro, acadêmico da Academia Paulista de Letras.
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Então é bom dizer bem alto que dessa Academia fazem parte os
literatos e poetas — D. Prisciliana de Almeida, Dr. Freitas Guimarães,
o velho Carlos Ferreira, Benedito Otávio, Alberto Faria, Basílio de
Magalhães, Dr. Raul Soares de Moura, Dr. Valdomiro Silveira, Dr.
Venceslau de Queirós, Amadeu Amaral, que é redator chefe do O
Comércio de São Paulo, e outros. E qual destes 12 literatos e poetas
precisa do beneplácito do Dr. Roberto Moreira? (LETRAS, 1911, n.
p.)

Em julho de 2017, realizei uma visita a São Paulo, momento em que fui à
Academia Paulista de Letras. Na ocasião, pude entrar em contato com alguns
manuscritos da autora, e seus livros. Em conversa com a bibliotecária da Academia,
foram-me doados três obras, uma é a obra Recordando... Academia Paulista de Letras
e seus fundadores de Délio Freire dos Santos, a outra é a Revista da Academia
Paulista de Letras, número 8 de 12 de dezembro de 1939, e a última edição da
Revista da Academia Paulista de Letras, de novembro de 2016. Nestas obras é
possível encontrar duas citações sobre a autora.
Na obra Recordando... A Academia Paulista de Letras e seus fundadores,
Santos (2000) faz uma volta ao tempo, relembrando todos os autores que fundaram a
Academia e suas obras, dentre eles, está Presciliana Duarte de Almeida. Segundo
Santos (2000, p. 33), Presciliana Duarte de Almeida nasceu em Pouso Alegre/MG em
13 de junho de 1867 e veio a falecer em São Paulo em 13 de junho de 1944; era
bibliotecária, casada com o primo-irmão Silvio de Almeida, começou a se dedicar os
poemas ainda na adolescência e foi a primeira mulher a entrar para a Academia
Paulista de Letras, redigiu alguns periódicos como Educação, A Alvorada e O Lutador.
Em outra obra que me foi doada pela bibliotecária da Academia Paulista de
Letras, A Revista da Academia Paulista de Letras, do ano II de 12 de dezembro de
1939, é possível encontrar uma bio – bibliografia da autora;

D. Prisciliana Duarte de Almeida – Nasceu em Pouso Alegre (Minas


Gerais), onde fez a sua estréia, fundando um quinzenário manuscrito
– ―O Colibri‖ – com a colaboração de sua amiga intima – D. Maria
Clara da Cunha Santos. Eram seus pais o coronel Joaquim Roberto
Duarte e d. Rita de Almeida Duarte. [...] Colaborou na ―Tribuna
Liberal‖ do Rio, na ―Família‖ de d. Josefina Alvares de Azevedo, e em
outros jornaes. (LETRAS, 1939, p. 144)

Além dessas informações, uma outra informação muito interessante pude


encontrar nesta bio - bibliografia; ―[...] Sabe-se no entanto, que ao ser promulgada a lei
aurea, de 13 de maio de 1888, d. Prisciliana já era moça (bonita e inteligente) de

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bastante influencia para promover festas comemorativas pela liberdade ampla dos
infelizes escravos.‖ (LETRAS, 1939, p. 144). Sendo assim presumo que Presciliana
Duarte de Almeida era a favor da libertação dos escravos, ou seja, havia uma
consciência política na autora desde sua juventude.
Após encontrar essas várias informações, é importante ressaltar que ainda
assim são poucos estudos dedicados à autora.
E a Literatura Infantil?
Presciliana escreveu várias obras como citado por Santos (2000, p. 32);
―Sombras, [...], Vetiver, [...], Antologia poética, [...], Rumorejos, [...], A mensageira, [...],
Páginas Infantis, [...], O livro das aves [...].‖
Dentre essas várias obras encontramos duas dedicadas às crianças da
época, O Livro das aves: Crestomathia em prosa e verso, e Páginas Infantis; estas
obras eram dedicadas às crianças em fase escolar.
Presciliana Duarte de Almeida exprime nas primeiras páginas do livro, O Livro
das Aves: Crestomathia em prosa e verso, a sua felicidade ao receber a notícia das
festas pela Directoria Geral da Instrucção Pública de São Paulo;

Não saberei jamais explicar o sentimento de felicidade e de encanto


que experimentei ao receber tal communicação! A festa das arvores,
tão suggestiva e poética, havia sido já várias vezes feita em nosso
paiz; a das aves porem, era, pelo menos para mim, uma alta e
reveladora novidade! Que enthusiasmo que se apoderou então de
meu espirito! As creancinhas formosas iam aprender a melhor
admirar e amar os cantores sublimes que povoam as solidões e
derramam a alegria e a suavidade pela terra! As aves são o
movimento, a vida, o colorido, a harmonia; e, liberando-se na vastidão
immensa da atmosphera, são como que a imagem de nossa alma,
quando se eleva nas azas da oração! (ALMEIDA, 1914, p. 1 – 2)

O livro conta com textos e poemas de vários autores brasileiros, portugueses


e franceses, escritores como sua prima Julia Lopes de Almeida (1862 – 1934); seu
marido, Silvio de Almeida; entre outros autores e poetas famosos da época: Guilherme
de Azevedo, Alberto de Oliveira, P. Manoel Bernardes, Castro Alves, Dr. A. Felicio dos
Santos, Raymundo Correa, Visconde de Taunay, Olavo Bilac, Guerra Junqueiro,
General Couto de Magalhães, Gonçalves Dias, Balthazar Telles, Julia Cortines,
Nicolaú Badariotti, Vicente de Carvalho, Brasilio Machado, Wenceslau de Queiroz,
Coelho Netto, Augusto Lima, Affonso Arinos, Zalina Rolim, Miguel Alvez Freitosa, Luiz
Murat, Valdomiro Silveira, Alberto Braga, Julio Ribeiro, Teophilo Dias, Chateaubriand,
Adelina A. Lopes Vieira, Valentim Magalhaes, Filinto de Almeida, Garcia Redondo,

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Fagundes Varella, George Sand, Bactista Cepellos, Aurea Pires da Gama, Theodoro
de Banvile, Gustavo Teixeira, Jonas Lie, Antonio Corrêa d‘Oliveira, Fr. Luiz de
Granada, Maria Amalia V. de Carvalho, Maria Clara C. Santos, Alvaro Guerra, Canto e
Mello, Candido de Figueiredo, Freitas Guimarães, José de Alencar, Adelaide Brandão
Filha, Dr. Julio de Mattos, S. Francisco de Sales, Auta de Souza, João da Camara,
Joaquim Queiroz Filho, François Coopèe, Fr. Santa Rita Durão, D. Antonio da Costa,
Oliveira Góes, Dr. Josaphat Bello, Alphonsus de Guimaraens, Arthur Telles, Julio
Salusse, Julio Diniz, Casimiro de Abreu, Michelet, Lindolpho Gómez, Bernardim
Ribeiro, Annibal Theophilo, Mello Moraes Filho, Carlos Góes, Belmiro Braga, Laerte
Setubal, Antonio Mollarinho, Candida Fortes Brandõo, Guimarães Passos, Antonio
Feijó, Theodoro Ribeiro Junior, Eugenio de Castro, Perpetua do Valle, Ulysses
Sarmento, Arnaldo Barreto, Bellarmino Carneiro, João Julio dos Santos, Luiz
Guimarães Jor, Lucio de Mendonça, Lopes Filho, Dr. Saturnino de Magalhães, Carlos
Ferreira, Emilio Augusto Goeldi, Thomaz Galhardo, E. Zaluar, B. Lopes, Henri Coupin,
Jose Carlos Dias, G. Birdwood, Almeida Garret, Conde de Affonso Celso, Brasiliophilo,
Goulart de Andrade, Luiz Leitão, Ibrantina Cardona, Eugenio George, Carlos Porto
Carreiro, Ezequiel Freire, Francisca Julia da Silva, José Carlos Dias, Guéneau de
Montbélliard, Narcisa Amalia, Cornelio Pires, Leonidio Ribeiro, Dr. Feliciano Pinheiro
Bittencourt, Benedicto Octavio, Paulo Tavares, Vital Brazil, Luiz de Camões, José
Bonifacio, Bernardo Guimarães, Machado de Assis, Mendes de Oliveira, Francisco
Amédée Peret, Antonio Correia de Oliveira, Heraclito Viotti, G. Vert., Malte-Brune e
Carlos de Laet, M. Cheneviéres, Walter von del Vogelweide, J. Pinto e Silva, Gomes
Leal, Buffon, Alberto Silva, Luiz Delfino, H. Lavedan, Luiz Guimarães, Bocage, Viriato
Corrêa e João do Rio, Sylvio Romero, João Kopke, Barão de Paranapiacaba, J. V.
Pimentel Maldonado, Filinto Elysio, Paulino de Oliveira, Dulce Carneiro, Francisca
Julia e Julio da Silva, Francisco Serra, Abilio Cezar Borges, Wenceslau de Queiroz e
Felix Ferreira, Anna de Castro Osorio, Antonio Peixoto, Maria Pacheco.
A obra O livro das aves: Crestomathia em Prosa e Verso conta com um total
de 468 páginas, ilustrações de pássaros e da natureza e seus poemas tratam
exclusivamente de pássaros. Presciliana Duarte de Almeida afirma no texto de
introdução da obra, intitulado de Duas Linhas que após receber a notícia se dedicou a
juntar poemas de vários autores, tanto brasileiros, como portugueses e franceses para
auxiliar aos professores das escolas de São Paulo na época. Segundo ela:

O ilustre Sr. Dr. Oscar Thompson, Director Geral da Instrucção,


tinha tido uma bella iniciativa: era preciso corresponder ao seu
apelo. Foi assim que principiei a colecionar trabalhos literários afim
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de auxiliar os professores publicos na organização da festa das


aves, sentindo-me feliz de poder contribuir, ainda que
modestissimamente, para uma propaganda que me parece de tão
elevado alcance educativo. (ALMEIDA, 1914, p. 2)

A escritora defende neste livro uma preservação das aves, dando ideia a uma
lei de proteção que na época ainda não existia no Brasil; esta lei veio a existir apenas
em 1967323, porém Presciliana Duarte de Almeida se refere e mostra que em outros
países no ano de 1914 essa lei já estava em vigência, era o caso da França e da
Alemanha. No texto Dois dedos de prosa, que também compõe o livro, Julia Lopes de
Almeida conta sobre uma viagem ao interior e como apreciava o canto das aves, livres
ainda nestes locais, escrevendo também sobre a importância da criação de uma lei
para a preservação e proteção das aves.

Infelizmente, no Brasil, essas leis não podem desde já ser


executadas com inflexibilidade. O território é imenso, o povo não lê, a
justiça é accommodada e não acharia nunca que valesse a pena
prender um pobre diabo por ter matado meia duzia de garças para o
fabrico leques, ou multar um caçador de circumstancia por ter atirado
a um sabiá só para ver cahir das alturas. Mas tempo chegará em que
essas coisas se façam naturalmente, pela imposição da necessidade.
(ALMEIDA, 1914, p. 15 – 16)

Sendo assim podemos perceber em O Livro das Aves: Crestomathia em


prosa e verso, que Presciliana Duarte de Almeida tinha como prioridade ensinar às
crianças em idade escolar daquela época (ano de 1914) a consciência sobre a
preservação da natureza e das aves; percebemos mais uma vez a consciência política
da autora, uma vez que por ser uma mulher e pela época em que viveu, não era
comum encontrarmos mulheres que se preocupavam com assuntos destes teor, pois o
comum era as mulheres serem única e exclusivamente donas de casa.
Página Infantis,324 conta com um total de 160 páginas, por se tratar da 5ª
edição, ela tem nas suas primeiras páginas indicações de vários autores da época,
além do prefácio de João Kopke. Hipólito Pujol escreve que ―[...] d. Prisciliana D. de
Almeida, que tão carinhosamente presentêa as crianças com as <<Páginas Infantis,
livrinho em que aquelas criaturinhas encontram <<sua própria alma>>, na feliz
expressão que se encontra no Prólogo>>.‖ (PUJOL, 1934, p. III)

323
Lei 5. 197/67 As aves silvestres como integrantes da fauna e seus ninhos, abrigos,
criadouros naturais local de migração são bens públicos de uso comum do povo.
324
O livro não se encontra disponível para compra, não foi possível localizar nenhum exemplar
disponível, desta forma, a bibliotecária escaneou e me mandou o livro por e-mail, mandando
partes da obra por semana, até conseguir mandar a obra completa.
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Segundo Curvelo de Mendonça;


O novo livrinho didático oferece condições admiraveis para vencer a
mencionada dificuldade. Nele continuam a falar as vozes familiares
às crianças. Não muda o cenário nem se deturpam os costumes
brasileiros. Ao contrário, quando na escola, a criança terá uma
verdadeira impressão dos nossos campos, ao recitar por exemplo, a
Ladainha [...]. (MENDONÇA, 1934, p. VI)

Maria Clara da Cunha Santos (1934, p. XV) escreve que ―O livro já está
oficialmente adotado pelo Conselho de Instrucção de São Paulo e de Minas Gerais.
Espero em breve vê-lo aceito pelo Brasil inteiro onde é sensibilíssima a falta de obras
didáticas nesse gênero.‖
Presciliana Duarte de Almeida dedica esta obra a seu pai Joaquim Roberto
Duarte. A autora escreve um pouco sobre a sua obra, afirmando que;

Para torna-las mais variadas, intercalei as poesias com trechos de


prosas e enigmas. Parecem-me êstes de vantagem para aguçar a
inteligência infantil, notando-se ainda que as crianças em geral
gostam de adivinhações e sentem grande contentamento quando
encontram a chave do problema com que por instantes se
preocuparam. E procurei, tanto quanto a possível, ter em
consideração, ao compor esta modestíssima obra, as palavras de
Friedrich Friedrich: << Evitar na literatura destinada à infância tudo
que pareça conselho e prédicas de moral, mas procurar exercer uma
influência benéfica na alma da criança, sem que ela própria o saiba. A
vida, essa admirável educadora, não estabelece normas, obra
unicamente pelas impressões que vai deixando. O coração infantil é
mais sensível do que comummente se pensa, êle assemelha-se ao
gesso, em que ficam todas as impressões, boas ou más. Podemos
imprimir-lhe um sulco bem assinalado, nunca porém, fazer para sôbre
êle um papelinho contendo um sábio ensinamento. (ALMEIDA, 1934,
p. 21)

Partindo desta própria afirmação de Presciliana Duarte de Almeida,


percebemos a sua preocupação em ensinar as crianças a partir do seu cotidiano,
compreendendo já naquela época o que vem sendo discutido atualmente, que
devemos ensinar nossas crianças a partir do seu social, no livro Páginas Infantis
contamos com um dos poemas infantis mais famosos da escritora, A boneca.
O livro como ela mesma afirma vem com poemas e adivinhas, tornando-o
curiosamente atraente para as crianças; como exemplo o "Enigma n. 4‖;
Enigma n. 4
De seda preta ou de alpaca
Também pode ser de côr.
Qual pequenina barraca,
Evita a chuva e o calor.

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Serve muito ao peregrino:


Fechado é quase bengala!
Fazer sombra é seu destino,
Ninguém abre na sala.
(ALMEIDA, p. 47)

Após o ―Enigma n. 4‖ encontramos o seguinte poema:


Quituteira
Minha formosa irmãzinha
Deseja ser cozinheira;
Já tem fogão, panelinha,
Colher de pau e peneira.
Só lhe falta o principal:
Saber a conta do sal...
(ALMEIDA, 1934, p.47)

E assim se dá o livro Páginas Infantis, trabalhando assuntos rotineiros das


vidas das crianças em formato de poemas, além das adivinhas, que como a própria
Presciliana Duarte de Almeida escreveu e afirmou: ―aguça a curiosidade das crianças‖.
(ALMEIDA, 1934)

Considerações Finais
A história da Literatura Infantil encontra-se atualmente com uma enorme
lacuna, muitos são os estudos sobre o autor Monteiro Lobato, deixando de lado
aqueles que o antecederam, parecendo que não existia Literatura Infantil antes do
considerado ―pai da Literatura Infantil‖.
É importante ressaltar para o leitor e além disso mostrar que antes de Lobato
já existiam escritores que se preocupavam com a literatura para crianças, e que
existiam mulheres que se preocupavam com essa literatura. Não era comum encontrar
mulheres empenhadas na área da educação, preocupadas com questões políticas e
sociais.
Presciliana Duarte de Almeida esteve sempre empenhada em todos estes
locais, na fundação da revista A mensageira, em que ela se preocupava diretamente
em levar um pouco de literatura e distração às donas de casa da época. Na fundação
da Academia Paulista de Letras, destacando-se que antes da fundação da Academia
as reuniões aconteciam em sua casa. Há quem diga que a autora conseguiu a cadeira
apenas devido ao seu esposo, eu não concordo com essa afirmação, pois a autora já
se mostrava uma mulher de ―pulso firme‖ desde sua adolescência.
A preocupação com a alfabetização das crianças, como ela se daria e que a
forma em que ela se daria deveria ser prazerosa, também está presente em suas duas
obras de Literatura Infantil analisadas, O livro das Aves: Crestomathia em prosa e
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verso, conta com poemas de vários autores, além de escritos que se preocupam com
a vida futura dos pássaros e da natureza, e Páginas Infantis que traz momentos do
cotidiano das crianças, além de momentos que elas mais gostam, como brincar com
brinquedos, adivinhas, animais de estimação. Nelas, nota-se a preocupando-se em
agradar ao máximo o leitor, a criança. O livro teve várias edições e como citado
durante este texto, foi adquirido pelo governo de São Paulo e de Minas Gerais para
uso nas escolas.
Apesar das citações e de ser recordada por vários autores renomados, como
o caso de Arroyo (1968), ainda é necessário aprofundamento sobre a autora,
priorizando uma biografia e análises de suas obras; como também um
aprofundamento sobre seu pseudônimo, Perpetua do Valle, que futuramente será
pesquisado com maior aprofundamento.

Referências

ALMEIDA, Julia Lopes de. Dois dedos de prosa. In: Presciliana Duarte de Almeida. O
livro das Aves. São Paulo – SP. 1914. p. 11 – 16.

ALMEIDA, Presciliana Duarte de. Revista A mensageira. Anno 1, n.1. São Paulo.
1987.Disponível em:
http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/per352438_contente/per352438_ite
m1/ P2.html. Acesso em maio 2017

ALMEIDA, Presciliana Duarte de. O Livro das Aves: Crestomathia em Prosa e Verso.
São Paulo. Escolas Prof. Salesianas. 1914. 468 p.

ALMEIDA, Prisciliana Duarte de. Páginas Infantis. São Paulo. Escolas Profissionais do
Liceu Coração de Jesus. 1934. 160 p.

ARROYO, Leonardo. Literatura Infantil Brasileira. São Paulo: Melhoramentos. 1988.


248 p.

COELHO, Nelly Novaes. Dicionário crítico da Literatura Infantil/Juvenil Brasileira 1882-


1982. 2. ed. São Paulo: Quíron, 1984.

COELHO, Nelly Novaes. Panorama Histórico da literatura Infantil Juvenil. 4. ed. São
Paulo: Ática S. A., 1991. 288 p.

CULTURAL, Itaú. Quem somos. Disponível em: http://www.itaucultural.org.br/quem-


somos. Acesso em: 13/09/2017.

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ENCICLOPÉDIA, Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. PRESCILIANA Duarte de


Almeida. São Paulo: Itaú Cultural, 2017. Disponível em:
<http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa6192/presciliana-duarte-de- almeida>.
Acesso em: 26 de maio. 2017.

GAZETA, A. Falecimento da Academica Sra. Prisciliana Duarte de Almeida. In: Rene


Thiollier. (Dir.). Revista da Academia Paulista De Letras. 1944. São Paulo. p. 181 –
182.

LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Marisa. Literatura Infantil Brasileira: História &


Histórias. São Paulo: Ática, 2007. 186 p.

LETRAS, Academia Paulista de. Priscilliana Duarte de Almeida. In: Academia Paulista
de Letras. São Paulo: Academia Paulista de Letras, 2016. Disponível em:
< http://www.academiapaulistadeletras.org.br/osacademicos.asp?materia=76>. Acesso
em: 26 de maio 2017.

MENDONÇA, Curvelo de. In: Presciliana Duarte de Almeida. Páginas Infantis. 1934.
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OLIVEIRA, Juca. Discurso de Posse. In: Academia Paulista de Letras. São Paulo:
Academia Paulista de Letras, 2016. Disponível em:
<http://www.academiapaulistadeletras.org.br/discursos.asp?materia=93>. Acesso em:
26 de maio 2017.

PUJOL, Hipólito. Juízo da Imprensa. In: Presciliana Duarte de Almeida. Páginas


Infantis. 1934. São Paulo – SP. p. IV.

REVISTA DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS. 1939. São Paulo. Ano 2. nº 8. 164


p.

SANTOS, Délio Freire dos. Recordando... Academia Paulista de Letras e seus


fundadores. São Paulo: KMK Gráfica e Editora LTDA. 2000. 166 p.

UNICAMP. Presciliana Duarte de Almeida. In: Unicamp. Campinas: SP. Disponível em:
<http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/LiteraturaInfantil/presci.>. Acesso em: 26
de maio 2017.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

PROJETOS DE LITERATURA INFANTIL: RELATOS DO PIBID-


INTERDISCIPLINAR EM SINOP, MATO GROSSO

Adriana Lins Precioso (UNEMAT - Campus de Sinop)


Eixo Temático 8: Literatura infantil e ensino

Considerações Iniciais

Este trabalho apresenta resultados parciais de dois subprojetos vinculados ao


PIBID/Interdisciplinar desenvolvido em parceria com a UNEMAT-Universidade do
Estado de Mato Grosso, Campus de Sinop, ambos intitulados a ―Hora do conto‖ e
desenvolvidos em escolas parceiras para alunos do ensino fundamental I, durante os
anos de 2015/2016.
Os subjprojetos foram desenvolvidos pelos bolsistas do programa com a
supervisão dos professores das escolas que também participam do PIBID. Dessa
forma, buscou-se investigar o modo como a literatura infantil tem sido apresentada e
trabalhada nesses projetos. Vale lembrar que é fato que a literatura infantil tem
desaparecido das escolas de ensino fundamental ou quando aparece, está
subordinada apenas às questões pedagógicas e moralizantes, reduzindo seu estatuto
de arte e as possibilidades de sentido desse tipo de texto.
Tomando como base teórico o texto ―O direito à literatura‖ de Antonio Candido
escrito em 1988 e que tem sido relido por conta do momento histórico que
vivenciamos, partimos da convicção de que é direito de todos o acesso aos bens
culturais e a literatura de qualidade. Outros textos que abordam a questão da leitura,
gêneros textuais e infância como Solé (1998), Coelho (2011), Koch e Elias (2013)
entre outros, também seguem no arcabouço teórico dessa proposta.
Apesar de um quadro ainda desanimador a respeito da inserção e trabalho da
literatura infantil em sala de aula, observa-se que, projetos como o do PIBID, cuja
proposta interventiva e colaborativa surge de parcerias que criam laços entre a
universidade e a escola, são caminhos possíveis tanto para um integração e
1647

desenvolvimento de ambos, como para atuação em um movimento coletivo para a


melhora da educação básica e pública de qualidade.

O PIBID na UNEMAT – Campus de Sinop


A Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT – é parceira do governo
federal junto ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência em vários
campi que possuem graduação em licenciatura. No campus de Sinop, conta com cinco
programas: PIBID de Matemática; PIBID de Pedagogia; PIBID de Língua Portuguesa;
PIBID de Língua Inglesa e PIBID Interdisciplinar, o qual se organiza em formação
conjunta entre os cursos de Letras e Pedagogia.
O PIBID é uma iniciativa advinda das políticas públicas do governo federal para
o aperfeiçoamento e a valorização da formação de professores para a educação
básica.
O programa concede bolsas a alunos de licenciatura participantes de
projetos de iniciação à docência desenvolvidos por Instituições de
Educação Superior (IES) em parceria com escolas de educação
básica da rede pública de ensino. Os projetos devem promover a
inserção dos estudantes no contexto das escolas públicas desde o
início da sua formação acadêmica para que desenvolvam atividades
didático-pedagógicas sob orientação de um docente da licenciatura e
de um professor da escola. (Site da Capes325)

São inúmeras as demandas das licenciaturas no contexto nacional, contudo,


duas grandes questões se colocam nesse cenário: o declínio constante nas últimas
décadas na procura aos cursos de licenciaturas e os resultados muito abaixo da média
de avaliações externas e internas sobre o empenho nas atividades básicas de leitura,
escrita e intepretação dos alunos de ensino fundamental e médio ao longo do país.
Desse modo, o PIBID, de forma geral, se constitui a partir dessas duras realidades,
visando a superação dessas graves questões.
Em Mato Grosso, na UNEMAT – Universidade do Estado de Mato Grosso,
Câmpus de Sinop, o PIBID INTERDISCIPLINAR, se consolida como sub-projeto da
universidade que tem como objetivo geral: a formação para a diversidade – educação
linguística, educação para a diversidade cultural e educação ambiental nas
licenciaturas (Letras – Pedagogia) no contexto da Amazônia Mato-Grossense e
entorno do Parque Xingu.

A relevância da proposta está relacionada ao lócus onde a mesma


será desenvolvida, pois é um rico contexto cercado pela
biodiversidade amazônica, diversidade cultural (culturas nativas e

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migrantes), línguas nativas xinguanas e de etnias no norte mato-


grossense e línguas trazidas pelo processo de migração. É neste
entorno que o grupo de coordenadores constituiu uma proposta de
formação interdisciplinar e colaborativa, entre as licenciaturas, sendo
a formação para a diversidade o fio condutor. (LUZ, 2017, p. 23)

Os maiores empenhos do PIBID/Interdisciplinar são:


Procurar instrumentalizar os supervisores na formação professor-
pesquisador, reflexivo e comunicativo para a atuação dentro dos
desafios da contemporaneidade, levando em consideração o contexto
do estado de Mato Grosso, a cidade de Sinop e os desafios de
cultura, meio ambiente, leitura e escritura da atualidade.
O maior desafio da formação continuada neste formato é possibilitar
ao professor de ensino fundamental a habilidade para teorizar sua
prática dando-lhe autonomia e reforçando a necessidade de
apresentação de suas práticas em eventos para a comunidade ou no
meio acadêmico.

Esses apontamentos são diagnósticos de parte do projeto em andamento que


teve início há quatro anos e já pode se lançar a processos avaliativos que auxiliem
na reorganização das atividades do projeto para que se cumpram com êxito os
resultados por ele pretendidos. Sendo assim, o trabalho se constitui das seguintes
etapas:
Momento diagnóstico;
Estudos iniciais;
Estudos interdisciplinares I;
Formação continuada I;
Estudos interdisciplinares II;
Formação continuada II;
Formação continuada III; e assim, sucessivamente. (BAMPI,
SANTOS, KORBES, 2013)

Essa formatação coaduna com os resultados pretendidos pelo projeto: ―Construir


uma visão socioambiental da riqueza cultural, linguística, de biodiversidade e da
complexidade da Amazônia norte mato-grossense e de como é percebida tal realidade
nos cursos de licenciatura e nas escolas.‖ (BAMPI, SANTOS, KORBES, 2013, p. 3)
Para além disso, o projeto desenvolve outras propostas, como, por exemplo:
Socialização de experiências docentes: Propor a partir do
corpo docente da escola, momentos para exposição das metas,
ações, atividades aos bolsistas para que percebam como são
planejadas, construídas e desenvolvidas ações interdisciplinares
que envolvema educação linguística, a educação ambiental e a
educação para a diversidade cultural, fortalecendo o vínculo entre
escola e universidade no processo formativo docente.
Produção escrita: Organizar produção escrita (artigos acadêmicos,
materiais didáticos, artigos literários) que contribua tanto para a
escola (aos professores em exercício) quanto para a
Universidade (com a formação docente) através da articulação
entre teoria e prática indispensáveis à formação docente
contextualizada e crítica. (BAMPI, SANTOS, KORBES, 2013, p. 4)

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A partir dessas proposições e do momento diagnóstico realizado, bolsistas e


supervisores iniciam as atividades baseadas em projetos específicos. Basicamente, a
divisão de tarefas ocorre da seguinte forma: Os supervisores são professores efetivos
da escola que recebem cinco bolsistas para desenvolvimento dos projetos que
atenderão as necessidades específicas de cada escola. Já o coordenador da área,
professor efetivo da universidade, dá suporte científico aos supervisores e bolsistas
para que todos possam basear suas práticas pedagógicas em alicerces teóricos pelo
viés de uma seleção de textos que fundamentam essas práticas. O
PIBID/Interdisciplinar atende a quatro escolas municipais distribuídas na cidade de
Sinop-MT: EMEB Basiliano do Carmo de Jesus, EMEB Profª Ana Cristina de Sena,
EMEB Armando Dias, EMEB Sadao Watanabe (anos de 2015/6), conta com sessenta
e um bolsistas, doze professores supervisores e quatro coordenadores de área.
Uma das atividades previstas pela programação do projeto é a apresentação em
dezembro do que foi desenvolvido pelas escolas durante o ano. Em dezembro de
2015, após observar a exposição dessas atividades, um incômodo e uma questão se
impuseram de forma latente: A literatura infantil aparece nesses projetos apenas como
ilustração ou apenas subordinada às datas comemorativas? E eis que a problemática
se coloca: Como a literatura infantil vem sendo trabalhada no PIBID/Interdisciplinar?
Para investigar e responder essa questão foram observados dois projetos
intitulados ―Hora do conto‖ em diferentes escolas: EMEB Sadao Watanabe e EMEB
Profª Ana Cristina de Sena, sendo a primeira mais centralizada e destinada às
crianças do ensino fundamental I e a segunda, mais periférica, também de
fundamental I.

A hora do conto – Escola Sadao Watanabe

O projeto ―A hora do conto‖ desenvolvido pela Escola Sadao Watanabe buscou


embasamento teórico em leituras específicas e levantou alguns princípios científicos
que sustentaram as escolhas realizadas pela equipe. A primeira delas parte da
premissa de que a literatura é uma forma de conhecimento da realidade que se
apropria da ficção e da expressão artística, tal como propõe D‘Onofrio (2004). Nessa
perspectiva, configura-se também a literatura infantil, uma vez que:
Literatura infantil é, antes de tudo, literatura; ou melhor, a arte:
fenômeno de criatividade que representa o mundo, o homem, a vida,
através da palavra. Funde os sonhos e a vida prática, o imaginário e o
real, os ideais e sua possível/impossível realização... (COELHO, 1991,
p. 27)

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A escola tem sido um espaço significativo para o encontro entre as crianças e a


literatura e, também, em idades mais avançadas, para o seu desencontro. A formação
de leitores de literatura tem se revelado uma grande empreitada para os professores
na atualidade. A velocidade extrema, a indiferença, o egoísmo, a precariedade das
bibliotecas, professores não leitores de literatura, as falhas na alfabetização são
alguns dos fatores que se podem somar as dificuldades de se desenvolver um
trabalho efeito com a leitura literária. Vale lembrar que:

O desafio é formar pessoas desejosas de embrenhar-se em outros


mundos possíveis que a literatura nos oferece, dispostas a identificar-
se com o semelhante ou a solidarizar-se com o diferente e capazes de
apreciar a qualidade literária. (LERNER, 2002, p. 28)

Outro desafio a ser vencido está arraigado ao senso comum e de uma elite de que
a literatura é um bem incompreensível, como atenta Candido, no já clássico texto ―O
direito à literatura‖ (1988). Ele também salienta, entre outras coisas que, não há
civilização sem produção de literatura no sentido amplo, a criação poética e o universo
da ficção estão presentes na história da humanidade, sendo assim, constitui-se como
um direito o acesso a todo esse acervo milenar.
Firmados nesses propósitos, a equipe desenvolveu as atividades em três etapas:
1) Encenação da obra Até as princesas soltam pum (2008) de Ilan Brenman e Ionit
Zilberman; 2) O segundo passo do projeto foi a leitura do clássico ―Rapunzel‖ de
Perrault e 3) Para finalizar os diversos gêneros estudados assistiu-se o filme
―Enrolados‖ de Nathan Greno e Byron Howard.
A leitura e a encenação da obra foi realizada pelos bolsistas do PIBID, como pode-
se observar nos registros abaixo:

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(Foto 1: Acervo do projeto)

(Foto 2: Acervo do projeto)

Até as princesas soltam pum (2008) de Ilan Brenman e Ionit Zilberman é uma obra
bem humorada que apresenta as princesas dos grandes clássicos dos contos de fadas
com problemas ―gastrointestinais e flatulências‖, fato que as torna mais humanas e
frágeis como qualquer outro ser humano. Laura é a protagonista, uma garotinha que
após uma briga na escola, questiona o pai a respeito da afirmação do colega Marcelo
de que a ―Cinderela era uma peidona‖ (2008, p. 9). O pai da menina a surpreende ao

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buscar na biblioteca ―O livro secreto das princesas‖ o qual registra os maiores


segredos das ―princesas mais lindas do mundo‖ (2008, p. 25). Trata-se de uma
releitura muito divertida dos clássicos, obra que aproxima as crianças de forma mais
humanizada dos seus ídolos de infância.
Segundo relatos e registros fotográficos, a encenação foi um sucesso, após o
teatro todos queriam ler a obra. A escolha dos textos a serem lidos ou encenados
podem seguir alguns princípios facilitadores nesse processo de formação do leitor
literário na infância.
Para que uma história realmente prenda a atenção da criança, deve
entretê-la e despertar a sua curiosidade. Contudo, para enriquecer a
sua vida, deve estimular-lhe a imaginação: ajudá-la a desenvolver seu
intelecto e a tornar claras suas emoções; estar em harmonia com suas
ansiedades e aspirações; reconhecer plenamente suas dificuldades e,
ao mesmo tempo, sugerir soluções para os problemas que a
perturbam. (BETTELHEIM, 2012, p.11)

O lúcido pode servir de porta de entrada para discussões mais profundas que se
estendem as relações pessoais e sociais, como foi realizado nesse projeto. No caso
dessa obra, a questão do ―pum‖ é algo que causa, em um primeiro momento, o riso e
depois, sugere a ampliação do diálogo para aspectos individuais e sociais para o bem
comum de uma convivência plena.
As relações intertextuais entre textos da atualidade e os clássicos surgem como
uma das possibilidades de atividade que parte da literatura e pode se ampliar em outra
arte, como por exemplo, o cinema. A leitura do clássico Rapunzel de Charles Perrault
(1697), segunda etapa do projeto, causou espanto na versão apresentada, uma vez
que, em Perrault, o personagem do príncipe ao final da narrativa fica cego e a
Rapunzel é deixada no deserto para vagar; uma leitura mais dura do que eles estavam
acostumados a ter acesso. Faz-se necessário esclarecer, contudo, que as primeiras
fontes da literatura infantil encontram-se em vestígios de escritos de origens persas e
orientais; na Europa, o processo de recolhimento das fontes orais para a escrita se dá
primeiro na Itália, com narrativas burlescas e violentas e, depois, por Charles Perrault,
na França, narrativas que ainda não apresentam as morais da Idade Média nem da
contemporaneidade, são textos que apresentam a violência e a morte como
consequências naturais das ações dos personagens.
Após a leitura desse clássico, foi apresentado aos alunos, uma versão do texto em
formato multimodal e atualizado pelo cinema: o filme ―Enrolados‖ (2010) da Walt
Disney Pictures sob a direção de Nathan Greno e Byron Howard. A narrativa conta a
história do encontro entre o personagem Flyn Rider, um ladrão e sedutor procurado
em todo o reino, que ao tentar fugir de outros bandidos, escala uma torre e nela

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encontra Rapunzel, residente da torre e possuidora de uma cabeleira loira de 21


metros de comprimento. A moça, nem tão indefesa quanto aparenta lhe propõe um
acordo para devolver a tiara que ele roubou: ela a devolve depois que ele a levar para
ver as luzes que aparecem todos os anos no seu aniversário. Feito o acordo, o maior
empecilho será a mãe da jovem, Gothel, que os tentará impedir de realizar a aventura,
contudo, ambos a superam e partem para uma história de superação e identidade que
transformará a vida de ambos.
A partir da exibição do filme, os alunos puderam fazer as relações entre os textos e
realizaram desenhos ou textos escritos partindo da experiência de leitura e
intertextualidade que foi realizada. A importância de se trabalhar com textos
multimodais se dá na seguinte esfera:
o fenômeno da multimodalidade tanto em termos de sua natureza
constitutiva dos gêneros textuais, quanto das implicações de seu uso
em contextos de aprendizagem. Trata-se de um estudo que, pautado
na teoria cognitiva da aprendizagem e na neuropsicologia, se debruça
sobre noções como as de gênero, texto, materialidade multissitêmica
dos textos, dentre outras, ao mesmo tempo em que discute o
potencial da multimodalidade como recurso metodológico,
principalmente na atividade de leitura. (BUNZEN, MENDONÇA, 2013,
p. 8)

Sendo assim, além dos resultados específicos de cada atividade desenvolvida nas
etapas do projeto, atestou-se o sucesso do projeto com a atividade que o encerrou: a
revitalização da biblioteca escolar, como se pode ver no registro abaixo:

Foto 3: Acervo do projeto

A revitalização da biblioteca contou com a participação de toda a comunidade


escolar por meio da arrecadação de livros pelos alunos, professores e bolsistas. Além
disso, o espaço de leitura voltou a ser reutilizado com o auxílio e a participação dos

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alunos, agora, com novos volumes que poderão ser retirados por eles e levados para
a leitura em casa, junto da família.

Hora do conto – Escola Ana Cristina de Sena

Passa-se ao relato sobre o projeto ―Literatura Infantil: contar histórias um diálogo


entre gêneros textuais‖, também conhecidos como a ―Hora Conto‖, o qual foi
desenvolvido na EMEB Profª Ana Cristina de Sena, também proposto para alunos do
fundamental I. Tal como o primeiro aqui apresentado, esse também se pauta no uso
da literatura infantil para o trabalho com outros gêneros textuais, com a finalidade de
auxiliar no desenvolvimentosociocultural,interacionalecognitivo do educandos por meio
de atividades lúcidas e de integração.

Essa perspectiva articulava ações como:


a)estímuloeacriatividadedoaluno; b) aperfeiçoarovocabulário, a
escritae oconhecimentodemundo.Destaca-se que a ―Hora do Conto‖,
articulado com a dimensão lúdica,não consistiu somente numa
atividade pedagógica, representa potencializar um
leitorcríticocapazde problematizar, desenvolver, criar, refletir sobre o
universo da leitura e da escrita. (LUZ, 2017, p. 10)

Princípios gerados a partir das práticas de leitura nortearam esse subprojeto, um


deles, baseado nas práticas desenvolvidas por Izabel Solé (1998), a qual afirma que
poder ler e interpretar diferentes tipos de textos contribui para a autonomia do
indivíduo em uma sociedade letrada. O enfoque deste segundo projeto não se alia
apenas a formação do leitor literário e, sim, a questão da formação do leitor de forma
generalizada, tomando como ponto de partida, a concepção de texto na
contemporaneidade:

o texto é lugar de interação de sujeitos sociais, os quais,


dialogicamente, nele se constituem e são constituídos; e que, por
meio de ações linguísticas e sociocognitivas, constroem objetos de
discurso e propostas de sentido, ao operarem escolhas significativas
entre as múltiplas formas de organização textual e as diversas
possibilidades de seleção lexical que a língua lhes põe à disposição.
A essa concepção subjaz, necessariamente, a ideia de que há, em
todo e qualquer texto, uma gama de implícitos, dos mais variados
tipos, somente detectáveis pela mobilização do contexto
sociocognitivo do interior do qual se movem os atores sociais. (KOCH
e ELIAS, 2013, p. 7)

Desse modo, ao se ampliar a concepção de texto, amplia-se em conjunto a


noção de leitura também explorada pelas pesquisadoras:

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Em decorrência, postula-se que a leitura de um texto exige muito


mais que o simples conhecimento linguístico compartilhado pelos
interlocutores: o leitor é, necessariamente, levado a mobilizar uma
série de estratégias tanto de ordem linguística como de ordem
cognitivo-discursiva, com o fim de levantar hipóteses, validar ou não
as hipóteses formuladas, preencher as lacunas que o texto
apresenta, enfim, participar, de forma ativa, da construção do sentido.
Nesse processo, autor e leitor devem ser vistos como ‗estrategistas‘
na interação pela linguagem. (2013, p. 7)

De acordo com essas proposições, foi possível pensar em um projeto cuja a


estratégia de leitura passasse pela construção do deleite da leitura pelos alunos. A
estratégia escolhida para este projeto foi trazer histórias da literatura infantil
selecionadas pelos bolsistas de forma diferenciada a cada semana: teatralizada, lida,
com fantoches ou musical. O espaço escolhido para essa atividade foi o da biblioteca.
As bolsistas também confeccionaram as roupas e material para cada contação, tal
como no primeiro projeto. Segue o registro da narrativa ―O Palhacinho Atrapalhado‖,
que foi apresentada em comemoração do Dia das crianças:

Fonte: Acervo do Projeto ―Hora do Conto‖

Para a segunda atividade, a contação da história ―O príncipe e as amoras de


ouro‖ contou com a participação efetiva dos alunos, juntando ao mesmo tempo,
representação teatral e leitura:

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Fonte: Acervo do Projeto ―Hora do Conto‖

Já a canção ―Aquarela‖ de Toquinho ganhou recursos visuais e gestuais no


desenvolvimento de cada estrofe:

Fonte: Acervo do Projeto ―Hora do Conto‖

O relato final desse projeto encontra-se na monografia intitulada ―Projeto a ―Hora


do conto‖: experiências de bolsistas do PIBID/Interdisciplinar em uma escola parceira‖
escrita por Priscila Oliveira da Luz e orientada pela Profa. Dra. Leandra Inês
Seganfredo Santos e defendida em 2017. A atividade de contação de histórias foi
desenvolvida com novas narrativas no decorrer dos meses de setembro e outubro de

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2015. Após cada apresentação, os alunos eram questionados sobre o que haviam
entendido a respeito da narrativa, do teatro ou da canção.
A aposta na contação de histórias como recurso metodológico para incentivo da
leitura evidenciou para o grupo envolvido que ela é uma ferramenta de grande valia
para despertar o interesse e o deleite da leitura, por meio de vários textos, que
trabalham além do lúdico, outras questões que podem ser aproveitadas pela escola.

Considerações Finais

Os subprojetos observados cumprem com os objetivos propostos pelo PIBID-


Interdisciplinar e promovem a integração das atividades entre bolsistas, supervisores e
alunos. A percepção da ausência do texto literário infantil em sala de aula, a busca por
novas metodologias e os resultados das atividades desenvolvidas apresentadas em
congressos e transformados em trabalhos de monografia revelam a produtividade
gerada por essas ações.
As novas formas de apresentar o texto literário para os alunos, como música e
teatro, revelam a necessidade do lúdico e ele assume o ponto de partida para um
trabalho que precisa ser mais pontual e organizado. A observação anuncia que não
há, pelas escolas, um trabalho contínuo, que faça parte do PPGE – Plano Pedagógico
Escolar, para o desenvolvimento de um projeto de leitura ou, de forma específica, de
leitura literária; o que denuncia que, ao final do projeto do PIBID ou com a saída de
bolsistas, o trabalho com a literatura infantil pode não mais acontecer, sendo sempre,
esporádico e sazonal. Por isso, se faz necessária uma política pública contínua como
projetos tal qual o PIBID, assim, as ações realizadas com sucesso não sofrem com as
interrupções exteriores ao processo.
Desse modo, observa-se que o PIBID contribui para a inserção de um trabalho
especializado com a literatura infantil, na tentativa de minimizar o distanciamento dos
leitores mirins de um texto de qualidade artística, proporcionando uma aberta para os
futuros leitores de literatura.

Referências

BAMPI, Aumeri, Santos, Leandra Inês Seganfredo, KORBES, Lenita. Projeto PIBID -
Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência – desenvolvido pelo
projeto ―Interdisciplinar – formação para a diversidade: Educação Linguística,

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Educação para a Diversidade Cultural e Educação Ambiental nas Licenciaturas


(Letras e Pedagogia) no contexto da Amazônia Mato-Grossense e entorno do
Parque Xingu, UNEMAT – Universidade do Estado de Mato Grosso, Campus de
Sinop, 2013.
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. 16. ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2012.
BUNZEN, Clecio, MENDONÇA, Márcia (Org.). Múltiplas linguagens para o ensino
médio. São Paulo: Parábola Editorial, 2013.
CANDIDO, A. O direito à literatura. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades,
2011.
COELHO, Nelly Novaes. Panorama histórico da literatura infantil/juvenil: das
origens indo européias ao Brasil contemporâneo. São Paulo: Ática, 1991.
______. O conto de fadas: símbolos – mitos – arquétipos. São Paulo: Paulinas,
2008.
D‘ONOFRIO, Salvatore. Literatura ocidental: autores e obras fundamentais. São
Paulo: Editora Ática, 2004.
LERNER, Delia. Ler e escrever na escola: o real, o possível e o necessário. Porto
Alegre: Artmed, 2002.
LUZ, Priscila, Oliveira. Projeto a ―Hora do conto‖: Experiências de bolsistas do
PIBID-Interdisciplinar em uma escola parceira. Universidade do Estado de Mato
Grosso – Campus de Sinop. TCC, p. 47, 2017.
KOCH, I.V. ELIAS, V. M. Ler e compreender os sentidos do texto. São Paulo:
Contexto, 2013.
SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. 6. ed. Porto Alegre: Artmed, 1998.
ZILBERMAN, Ionit, BRENMAN, Ilan. Até as princesas soltam pum. São Paulo:
Brinque Book, 2008.

Webgrafia
http://www.capes.gov.br/educacao-basica/capespibid/pibid - Acesso dia 15/06/2017.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

SACOLA LITERÁRIA: EXPERIÊNCIA DE LEITURA COM


INTERAÇÃO DA FAMÍLIA

Andreia Alexandre da Silva Duarte -UNESP, Campus Bauru, eixo temático 8:


O ensino da leitura literária
Eliana Marques Zanata-UNESP, Campus Bauru, eixo temático 8: O ensino da
leitura literária

Considerações Iniciais

A leitura é muito mais que a simples decodificação das palavras. É um


instrumento que leva o aluno a exercer a cidadania de forma participativa na
sociedade, e sua aquisição é fundamental para a concretização de um aluno plural,
propiciando-lhe autonomia. Além disso, promove a construção de seu conhecimento
por meio de reflexão crítica e, é ao mesmo tempo, uma ferramenta de aprendizagem e
objeto de conhecimento.
Com base nesses pressupostos e frente a minha atuação no Programa Sala de
Leitura da SEE-SP, esta pesquisa surgiu para verificar o retorno educacional e
formativo da criança frente à prática proposta. Os objetivos foram pensar em práticas
de leitura que atendam a todos; envolver a escola e a família nas práticas de leitura
para formação de leitores críticos e participativos desde a infância; verificar as
mudanças em relação à essas práticas.
Trouxemos, neste texto, uma prática de leitura desenvolvida com duas turmas
do 2º. e 3º ano do Ensino Fundamental, que participaram juntamente com seus
responsáveis das atividades da Sala de Leitura, propostas pela professora
pesquisadora, em uma escola estadual do interior paulista durante o ano letivo de
2016. A metodologia aplicada foi pesquisa ação-participante, de abordagem
qualitativa longitudinal. Teve como aporte teórico as instruções dos Parâmetros
Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998, 2000), os estudos de Silva (2005) e Freire
(1992) entre outros. Como instrumentos de coleta de dados foram utilizados os
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registros das práticas, o Kit contendo o material do professor, os cadernos com as


devolutivas dos responsáveis e as produções dos alunos.
Escola e Família
O papel da escola é garantir o acesso à leitura e à escrita, para que os alunos
possam atuar na sociedade de maneira crítica e participativa desde os anos iniciais.
No entanto, sabe-se que não é somente no ambiente escolar que a aprendizagem
acorre, sobretudo no que tange à leitura e no gosto por ela, visto que a família também
tem um papel importante, pois as trocas de experiências, as interações entre os mais
adultos são fundamentais para a formação leitora, pois é no seio familiar que se tem o
primeiro contato com o mundo. Em consonância com esta ideia Silva (1988, p.56),
pontua que

Se num primeiro momento de sua existência a criança aprende e se


situa no mundo através da atribuição de significados a pessoas,
objetos e situações presentes no seu ambiente familiar, então
podemos inferir que esse mesmo ambiente deve ser potencialmente
significativo em termos de livros, leitores e leitura.

Além disso, a LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional Lei nº


9.394 (1996), preconiza que a educação também é dever da família, para que os
alunos tenham uma inserção de forma ativa na sociedade. Portanto, essa interação
entre escola e família, torna-se determinante na qualidade educativa.
É importante destacarmos que ― o hábito de leitura se forma antes mesmo do
saber ler - é ouvindo histórias que se treina a relação com o mundo; daí que contar,
recontar, inventar sem que se proíba de falar, leva inclusive ao gosto de encenar‖.
(YUNES e PONDÉ, 1988).
Corroborando com esta ideia, Freire (1992) afirma que ―a leitura do mundo
precede a leitura da palavra‖, ou seja, a leitura de mundo é realizada por meio de
trocas, de experiências e interações com os diferentes meios antes mesmo de
aprender a ler.
Conforme explicitam os PCNs (BRASIL, 2000),

―na interação, nos diferentes meios sociais, como grupos de amigos,


escola, família, o sujeito aprende e compreende o funcionamento e a
manifestação da linguagem, bem como constrói seus conhecimentos
relativos aos usos em diferentes situações. Desta forma, a família
deve assumir o papel de primeira mediadora de leitura.

Nesse sentido, é de extrema importância a participação da família nas práticas


de leitura para a promoção do letramento, tendo em vista a necessidade de despertar

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desde cedo nas crianças o interesse e o gosto não só por textos literários, mas por
diferentes gêneros textuais que circulam nas diversas esferas sociais, permitindo que
elas tomem atitudes responsivas frente ao lido. Silva (1995), destaca que ―zelar por
esses potenciais leitores é tarefa não apenas dos educadores profissionais, mas
também das famílias‖.
Para Alves (2008, p.103),

Até mesmo os pré-leitores devem ser motivados a escolher um livro


para, então, em casa, solicitar a leitura do livro aos responsáveis.
Neste momento, a família é fundamental. A criança muitas vezes
pede que se leia a mesma história várias vezes, ou seja, o pai, a
mãe, o irmão, podem, neste momento, fazer o papel de mediador
entre o livro e a criança.

Assim, fica evidente que professor e a família são mediadores essenciais e


atuam conjuntamente como fomentadores da leitura e, consequentemente, em uma
relação dialógica e processual, transformam progressivamente os alunos em leitores
autônomos e proficientes, proporcionando-lhes uma ―real oportunidade de inserção
produtiva e solidária no mundo‖. (SEE/SP, 2011).
Com base nesses pressupostos e frente a minha atuação no Programa Sala de
Leitura da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, esta pesquisa surgiu para
verificar o retorno educacional e formativo da criança frente à prática proposta. Os
objetivos foram pensar em práticas de leitura que atendam a todos; envolver a escola
e a família nas práticas de leitura para formação de leitores críticos e participativos
desde a infância; verificar as mudanças em relação à essas práticas e analisar a
competência leitora dos alunos no processo de leitura.

Planejamento da Prática Pedagógica e Análises


O programa Sala de Leitura da SEE/SP é uma parceria entre o Instituto Ayrton
Senna e a Secretaria Estadual de Educação de São Paulo SEE/SP que ―busca
contribuir para a transformação da Sala de Leitura das escolas em espaço educativo
de fortalecimento da aprendizagem e desenvolvimento de estudantes como
protagonistas, leitores e produtores textuais‖. (SEE/SP 2011). Esta parceria propõe
práticas pedagógicas que promovem uma formação de leitores e sua formação de
forma integral. É um ambiente que incentiva a leitura, além de oferecer informação,
momentos de leitura para fruição, entretenimento e formação de leitor crítico e criativo.
Assim, no espaço da Sala de Leitura que até 2008 era chamada de biblioteca,
hoje, é uma área da escola que agrupa o acervo de diversos livros e materiais para
formação. É um local frequentado por alunos do Ensino Fundamental, do Ensino
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Médio e pela comunidade. Neste ambiente, toda a comunidade escolar e seu entorno,
incluindo o PAEE, é estimulada à participação ativa como leitores e produtores de
textos e ―tem oportunidade de desenvolver competências como abertura ao novo,
engajamento com o outro, resiliência, colaboração e o protagonismo juvenil,
articulando a autonomia à aprendizagem‖. (SEE/SP, 2011)
Frente a minha participação como professora da Sala de Leitura e
pesquisadora, foi desenvolvida uma prática que teve como objetivo central envolver o
aluno e a família nas práticas de leitura e atender ao Público-Alvo da Educação
Especial, numa perspectiva inclusiva, ou seja, escola para todos.
Para Glat e Nogueira (2002, p. 25), é necessário ―garantir educação para
todos, independentemente de suas especificidades‖. Além disso, os autores
asseveram que a ‗inclusão dos indivíduos com necessidades especiais na rede regular
de ensino não consiste apenas na sua permanência juntos aos demais alunos‖, ou
seja, todos têm o direito de aprender.
Diante desse contexto, optou-se por apresentar, neste artigo, uma atividade
desenvolvida a partir de um Projeto intitulado ―Sacola Literária‖, que tinha como
intenção central a interação e a comunicação do adulto-leitor com seu responsável-
locutário de maneira dialógica, sem nenhuma cobrança formal, ou perguntas
avaliativas.
A primeira etapa foi apresentar aos professores e aos alunos o projeto, os
objetivos e a programação da prática. Os alunos foram instigados a fazer a leitura de
maneira lúdica com seus familiares. Silva (2005, p. 66) salienta que as práticas de
leitura

não nascem do acaso nem do autoritarismo ao nível da tarefa, mas


sim de uma outra programação envolvendo e devidamente planejada,
que incorpore, no seu projeto de execução, as necessidades, as
inquietações e os desejos de alunos-leitores. Simplesmente 'mandar
o aluno ler' é bem diferente do que envolvê-lo significativa e
democraticamente nas situações de leitura, a partir de temas
culminantes.

Conforme explicita o autor, faz-se necessário, então, que as atividades sejam


significativas para o aluno, transformando o ato de ler e ouvir numa atividade interativa
e dinâmica.
Partindo desse pressuposto, todas às sextas-feiras, um aluno era sorteado
para levar a sacola literária para casa. A sacola, continha um livro, um caderno para
registro, lápis de cor, borracha, caneta e as instruções para a realização da atividade.
A proposta era que o aluno e um adulto fizessem a leitura juntos, interagissem e
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responsável fizesse as anotações tais como: onde foi lido, o que foi lido, se gostou da
história. Em seguida, a criança poderia registrar em forma de desenho ou trechos, o
que mais gostou.
A segunda etapa acontecia às segundas-feiras, numa atividade dirigida pela
pesquisadora. O aluno devolvia o material, fazia uma apresentação e explicitava suas
observações, contando para turma se gostou do livro, se indicaria a leitura, o que mais
chamou a sua atenção e como foi a interação com a família. Segundo Kleimam (2006),
essa atividade de interação verbal entre os pares ―ajuda a criança a estabelecer
conexões entre a linguagem oral e estruturas do texto escrito‖. Assim, tal prática, foi de
grande relevância pois os alunos além de ficarem instigados a ler o livro do colega,
começaram a frequentar mais o ambiente da Sala de Leitura da escola, espaço antes
pouco visitado por eles, tornando-se um instrumento de incentivo à leitura.
Neste artigo, foram analisadas 3 produções dos alunos, sendo 2 PAEE do 2º e
3º ano e 1 aluno do 2ºano sem deficiência. A estratégia utilizada para acolher os
alunos com deficiência foi a mesma utilizada para os demais, como pode-se observar
nas figuras.

Figura 1: Participação dos responsáveis

Responsável 1 Responsável 2 Responsável 3

―Olá, professora, ―Andréia gostamos Não houve participação.


parabéns pelo projeto. muito do livro O velho
(3º ANO)
É uma ótima que trazia a noite
oportunidade de nós porque fala de um velho
pais estarmos que toda vez que era
participando da vida tarde ele saia e junto
escola de nossos filhos. trazia a noite e que ao
Espero que os outros ele aparecer o sol se
pais que receberam a escondia e a lua
sacola literária possam aparecia.
ganhar esse tempo com A Evellyn gostou muito
seus filhos. Lemos o e ela teve várias ideias
livro no sábado de para o desenho.
manhã, dia 27/02 no Adoramos a experiência
meu quarto. O de lermos o livro do

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livro se chama ― Que autor Sérgio Caparelli


mistério‖, os autores que continha várias
são Mary França e rimas.
Eliardo França‖. (MÃE Obrigada por fazer
DO ALUNO 2º ANO) termos essa leitura
juntas‖. (PAI DO
ALUNO 2º ANO)

Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora

Dos três responsáveis, percebe-se que os dois primeiros, que são os


responsáveis pelos alunos do 2º ano, cumpriram as atividades propostas e
parabenizaram o projeto. Também foi possível observar, maior engajamento durante o
desenvolvimento da leitura e interação com a criança. Percebeu-se, também, no
momento da devolutiva dos alunos para turma, a alegria por parte das crianças de
relatar como foi realizada a atividade e a experiência de leitura com a família.
Com o terceiro responsável, não houve participação. A justificativa dada pelo
aluno da não participação, foi a falta de tempo que envolvia os responsáveis. Ficou
explícito pela fala do aluno a tristeza por não ter conseguido a efetiva participação do
adulto.
Ficou evidenciado, na análise da participação dos responsáveis, que
independentemente da criança ser PAEE, eles têm dificuldade de participar da
construção da aprendizagem de sua criança.
A figura 2 apresenta dados relacionados à participação dos alunos que
participaram do projeto.

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Figura 2: Participação dos alunos

Aluno 1 Aluno 2 Aluno 3

―Eu gostei dessa história


porque o homem era da cor do
leite, minha família também é
colorida‖.
―Professora eu gostei
muito do livro e eu
passei a semana
inteira brincando com
a minha irmã de
professora‖.

Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora


Observa-se no quadro a participação ativa dos três alunos pesquisados. O
aluno 1, pertence ao 2º ano é PAEE, porém participou da prática com eficácia, fez a
ilustração da história lida e também fez devolutiva com os amigos da turma, de
maneira participativa.
O aluno 2, também do 2º ano não fazia parte do PAEE, tinha muita dificuldade
frente à leitura e à escrita, mas cumpriu as atividades de maneira participativa e
interagiu com a família e os alunos, contanto como foi sua experiência no ambiente
familiar.
O aluno 3, pertence ao 3º ano e faz parte do PAEE, entretanto não houve
engajamento da família no desenvolvimento das atividades propostas. No entanto,
mesmo assim, ele fez a leitura solicitada, ilustrou e fez o comentário por escrito que
havia gostado, além de interagir e fazer indicação e propaganda da leitura para seus
amigos da sala.

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Na análise das participações dos alunos, os três se mostraram sujeitos ativos


ao longo da pesquisa, lendo, relendo e apresentando suas observações frente ao lido.
Também é possível concluir que se motivados por práticas interativas de forma que a
fruição aconteça, há possibilidades de envolvê-los de maneira significativa, tornando-
os leitores desde as primeiras experiências de leitura. O envolvimento dos alunos na
prática proposta foi determinante para que pudessem melhorar suas competências
leitoras.
É possível concluir que a família e a escola precisam atuar de maneira conjunta
no processo de ensino- aprendizagem, deixando de ser somente a escola ou o
professor o condutor desse processo.

Considerações Finais

A principal contribuição deste artigo foi evidenciar que a família e escola são
mediadoras no processo de leitura e, consequentemente, atuam juntas na
aprendizagem da criança, promovendo não somente a alfabetização, mas também o
letramento para que possam adquirir competências necessárias para à vida. Tudo que
se tem acesso, fora ou dentro da escola, os diferentes espaços frequentados, as
pessoas que convivemos, são também agentes e agências de letramento. (GOULART,
2006)
Diante das análises realizadas durante a pesquisa junto às professoras
titulares das salas, percebeu-se que os resultados foram satisfatórios para todos os
alunos, uma vez que a participação da família fez com que os alunos sentissem mais
motivados, desenvolvendo progressivamente a melhoria de sua competência leitora.
No entanto, ficou evidente as dificuldades de envolvimento dos responsáveis
por alguns alunos independentemente de serem PAEE, entretanto todos participaram
da apresentação para compartilhar com seus amigos o livro que tinham levado para
casa e as ilustrações feitas.
Como aponta Marques (1993, p.43), ―a família é uma fonte de ajuda para a
criança. Além disso, é nessa interação que se gera a alegria e o prazer que o aprendiz
sente ao seu redor e é indispensável ao seu bom desenvolvimento na escola e,
posteriormente, na sua vida social‖.
Nesse sentido, entende-se que a prática de leitura proposta foi relevante e
contribuiu para o desenvolvimento das habilidades de ler, entender e refletir. Acredita-
se que este tipo de prática deva ser permanente no cotidiano familiar e escolar; ser
estimulada, de forma constante, tanto pelos professores quanto pela família.
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Assim, conclui-se que para trabalhar de forma inclusiva, é necessário entender


que a inclusão perpassa por pensar em práticas pedagógicas para todos, olhando
para as especificidades de cada um, incluindo o Público-alvo da Educação Especial
que está na sala de aula comum e tem o direito de aprender como todos.

Referências

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros


Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental: Língua
Portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998.

FREIRE, P. A Importância do Ato de Ler: em três artigos que se completam. São


Paulo: Cortez, 1985.

GLAT, ROSANA E NOGUEIRA, MARIO LÚCIO DE LIMA. ―Políticas Educacionais e


a formação dos professores para a educação inclusiva no Brasil‖. In: Revista
Integração. Brasília: Ministério da Educação/Secretaria de Educação Especial, ano 14,
nº 24, 2002.

KLEIMAN, Ângela. Oficina de leitura. Teoria e prática. 8 ed. Campinas. SP: Pontes,
2006.

MARQUES, R. A escola e os pais como colaborar? São Paulo: Texto Editora. 4. ed.
1993.

SECRETARIA DO ESTADO DA EDUCAÇÃO (SEE). Proposta Curricular do Estado


de São Paulo: Códigos e Linguagens. São Paulo: SEE, 2008a.

SILVA, E. T. A produção da Leitura na Escola: pesquisas x propostas. São Paulo:


Ática, 2005.

São Paulo (Estado) Secretaria da Educação. Currículo do Estado de São Paulo:


Linguagens, códigos e suas tecnologias / Secretaria da Educação; coordenação
geral, Maria Inês Fini; coordenação de área, Alice Vieira. – 2. ed. São Paulo: SE,
2011.

YUNES, Eliana; PONDÉ, Glória. Leitura e leituras da literatura infantil. São Paulo:
FTD, 1988.

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EIXO TEMÁTICO 9

Os Espaços de Leitura Literária

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Os espaços de leitura literária


Alcione Santos (Universidade Federal do Mato Grosso do Sul), Rovilson José
da Silva (Universidade Estadual de Londrina), Antônio Cézar Nascimento de
Brito. (Faculdade Projeção, Brasília).

Este eixo caracteriza-se por refletir sobre os mecanismos e as práticas que se


realizam, em espaços formais ou não formais, de modo a oportunizar aos
leitores, especialmente aqueles que se encontram no início de sua formação
literária, o acesso à literatura infantojuvenil, entendida como um bem cultural
que deve ser apropriado pelas pessoas durante sua formação escolar ou
social. Vincula-se a investigações acerca do espaço pedagógico que a
literatura tem, em especial, nas práticas cotidianas escolares de incentivo à
formação de leitores, bem como às atividades e ou estratégias que são
utilizadas com esse objetivo, tais como: a contação de histórias; a
disseminação da literatura em sala de aula; o uso da biblioteca; a literatura
infantojuvenil e suas manifestações ao longo dos tempos; as relações entre
literatura e o suporte digital, entre outros aspectos. Com isso, evidencia-se o
fazer pedagógico, de modo que se discutam as relações e os saberes em prol
da formação de leitores de literatura.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

A BIBLIOTECA ESCOLAR: ESPAÇO DE INTERCÂMBIO DE


EXPERIÊNCIAS E DE NARRATIVAS

Ana Maria Moraes Scheffer, Universidade Federal de Juiz de Fora


Eixo 9: Os espaços de leitura literária
Márcia Mariana Santos de Oliveira, Universidade Federal de Juiz de Fora
Eixo 9: Os espaços de leitura literária

Considerações Iniciais

Quando proporcionamos às crianças o contato com o livro, estamos


oferecendo a elas a linguagem, a oportunidade de alargar seu repertório de narrativas
e de viver experiências de leitura que poderão, num outro momento, serem recobradas
pela memória. Desse modo, a literatura, através de seus diferentes gêneros, se
apresenta como um caminho que poderá nos levar ao conhecimento mais profundo do
homem, permitindo-nos, portanto, ver a face humana por meio da arte. Reconhecemos
que, em nossos dias, estamos vivendo numa sociedade em que os textos informativos
tendem a dominar por conta da velocidade que os dados se multiplicam e se alteram
diariamente. Diferentemente da leitura de textos informativos, a leitura literária não
combina com a pressa, pois é avessa a pragmatismos. Sendo assim, no âmbito da
instituição educacional, a biblioteca escolar deve se configurar como um espaço que
propicia aos alunos momentos de compartilhamento de experiências e de promoção
da leitura literária.
Concebida como uma prática cultural, a leitura literária revela a força
humanizadora da literatura e o seu potencial transformador. Por sua natureza
formativa, exerce o importante papel na formação humana e na participação dos
indivíduos na sociedade. O texto literário provoca emoções, angústia, sofrimento,
satisfação, esperança, deleite e, assim, vai estimulando a capacidade do ser humano
de fantasiar, de fabular e refinar a sua sensibilidade, de aprender, de mobilizar a sua
dimensão cognitiva, de estabelecer relações interpessoais e interpelar, continuamente,
a sua própria condição humana. Através da leitura literária podemos sair do lugar
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comum, nos deslocar do nosso cotidiano e, assim, compreender nós mesmos e o


outro. O ―Era uma vez‖ que acompanha os textos literários provoca uma reflexão sobre
o entrecruzamento entre o passado, o presente e o futuro e apresenta uma forma
outra do sujeito se relacionar com o mundo. Trazem respostas para muitas questões
que afligem o humano, e, ao mesmo tempo, deixam perguntas.
Nesse sentido, este trabalho objetiva refletir sobre a biblioteca escolar como
espaço de experiência de partilha de narrativas pelo viés da literatura e destacar o seu
papel imprescindível na formação de leitores a partir da realização de rodas de leitura
desenvolvidas nesse contexto com turmas do ensino fundamental de uma escola
pública. Na tentativa de discutir sobre essas questões é que pontuaremos, ainda que
de forma breve, alguns aspectos relevantes da obra de Walter Benjamim que nos
auxiliam a compreender o seu pensamento acerca da experiência e da relação entre a
experiência e a arte de narrar, pensando a biblioteca e as mediações de leitura literária
que nela ocorrem como possibilidades de recuperar a faculdade de narrar, de afetar e
ser afetado e intercambiar experiências por meio da linguagem.

Walter Benjamim: o empobrecimento da experiência e da arte de narrar

O pensamento benjaminiano apresenta aspectos importantes acerca da


experiência e da relação da experiência com a arte de narrar. No ensaio ―O narrador‖,
Walter Benjamin (1994) articula o seu pensamento em torno de uma crítica à
modernidade, discutindo sobre a experiência no mundo moderno e as implicações
disso para a arte de narrar. Como filósofo preocupado com o apagamento da
memória, defendia a necessidade de o homem compreender o seu ponto de partida
por meio da tradição, divergindo, assim, do que estava sendo preconizado, naquele
momento, no âmago da sociedade em que viveu: o abandono da herança do passado.
Para Benjamin, a modernidade representa um tempo marcado pela perda dos valores
ligados à tradição, pois se acreditava que o progresso seria a grande promessa de
evolução para o homem. De acordo com Sônia Kramer, ainda que Benjamin não tenha
sido contrário aos avanços da modernidade, pois reconhecia que ―os conhecimentos e
as atitudes humanas progrediram, esse filósofo recusou o mito do progresso da
humanidade por ter sido resultado de descobertas técnicas, do desenvolvimento das
forças produtivas ou da dominação crescente sobre a natureza‖ (KRAMER, 1994,
p.49).
Em função das constantes transformações por que passava a sociedade do
século XX por conta da difusão da informação, foi imposto ao homem um modo
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esquizofrênico de viver a vida, o qual estava promovendo o desaparecimento da


experiência e isso lhe tirava a possibilidade de narrar fatos surpreendentes do seu
cotidiano e do imaginário, de dar conselhos, de exercer o papel de narrador. Benjamim
(1994) denuncia que, na sua época, a experiência cotidiana da arte de narrar estava
sendo apagada da vida das pessoas, estava em vias de extinção, já que eram raras as
pessoas que sabiam narrar de forma devida. Com o declínio da arte de narrar ficou
ainda mais difícil o homem intercambiar experiências. A esse respeito afirma que

(...) se dar conselhos parece hoje algo de antiquado, é porque as


experiências estão deixando de ser comunicáveis. Em consequência,
não podemos dar conselhos nem a nós mesmos nem aos outros.
Aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma
sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo
narrada. Para obter essa sugestão, é necessário primeiro saber
narrar a história (sem contar que um homem só é receptivo a um
conselho na medida em que verbalize a sua situação). O conselho
tecido na substância viva da existência tem um nome: sabedoria. A
arte de narrar está definhando porque a sabedoria - o lado épico da
verdade - está em extinção. (BENJAMIM, 1994, p. 200)

Dentro desse cenário, o homem burguês e moderno estava assistindo ao


empobrecimento da experiência e, por conseguinte, ao declínio da linguagem. Estando
sempre na expectativa, na ilusão de que o novo iria conduzi-lo ao progresso, passa a
viver em função de um tempo regido pela sequência de um movimento numerado e a
atender aos objetivos mais urgentes e imediatos. Todo esse clima repercute na esfera
da arte e da literatura porque as obras de arte acabaram se tornando meras
mercadorias para serem consumidas. Essa seria, portanto, a nova barbárie (KRAMER,
1994). Antes, as narrativas que representavam uma forma artesanal de comunicação
e traziam as marcas da oralidade dão lugar ao romance, gênero literário que
encontrou na ascensão da burguesia o espaço para florescer e, estando dentro dessa
atmosfera de evolução, contribuiu para a decadência da narrativa. Conforme assinala
Benjamin, o romance retrata na sua origem ―o indivíduo isolado, que não pode mais
falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe
conselhos nem sabe dá-los‖ (BENJAMIN, 1994, p. 201). O romance, portanto,
representa a primazia do indivíduo, não havendo nele o espaço para uma linguagem
tecida como um bordado é tecido nas mãos do artesão, logo, sem a riqueza de
detalhes.
Com a consolidação da burguesia vem o surgimento da imprensa que é
acompanhado por uma nova forma de comunicação: a informação. A informação

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surge como uma ameaça à narrativa e ao próprio romance. Os fatos a que se tem
acesso já estão carregados de explicação, já que estão a serviço da informação,
impedindo que o leitor seja livre ―para interpretar a história como quiser, e com isso o
episódio narrado atinja uma amplitude que não existe na informação‖ (BEJAMIN,
1994, p. 203).
A experiência aparece, portanto, na obra desse filósofo, como um fio que
tece e constitui as gerações, apontando para novas possibilidades de futuro a partir do
entrecruzamento entre memória pessoal e história coletiva na inserção ativa dos
sujeitos na cultura. A experiência está intimamente relacionada à narrativa, mas uma
narrativa artesanal que por ter passado pela oralidade perdura e deixa marcas. Sendo
assim, o narrador, em Benjamin, exerce sua capacidade de intercambiar as
experiências por intermédio da narrativa quando recolhe, incorpora e reelabora as
histórias vividas e contadas. Esse cuidado e esforço no tecer as histórias, contando e
recontando, e dessa forma, construindo novas histórias, é o que permite que as
narrativas possam durar como os contos de fada. A experiência narrada e
compartilhada tem na sua essência a dimensão comunitária da vida, contrapondo,
portanto, ao que a modernidade apresenta no romance e na informação por estarem
pautados no que é industrial, efêmero, por isso se esgota e promove o isolamento. A
experiência sendo empobrecida, não há como existir o narrador para deixar sua marca
no outro.
É no contexto dessas reflexões que analisamos a biblioteca como espaço de
experiência de partilha de narrativas. Convém assinalar que dentre os vários espaços
escolares, a sua presença no interior das escolas se configura como instância
importante para a irradiação da cultura, a construção de conhecimento, a formação de
leitores e o compartilhamento de experiências.

Refletindo a biblioteca como espaço de partilha de narrativas

Diante do que já foi exposto, vale indagar: se na época de Benjamim, a arte


de narrar estava em declínio, como isto vem acontecendo em nossos dias? É possível
considerar a biblioteca escolar como instância de compartilhamento de saberes, de
cultura escrita, de histórias, enfim, de narrativas? Existe ainda espaço e tempo para a
literatura?
Num tempo em que as ações humanas estão sempre voltadas para o
cumprimento de atividades que visam a resultados imediatos ou pragmáticos, o ato de
ler na escola e fora dela se realiza, de modo geral, com o propósito de obter notas ou
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buscar informações, sempre com fins utilitários, o que contribui para anular a
importância da literatura. Ler, só se for para atender a uma necessidade cotidiana.
Frequentar a biblioteca e utilizar o seu acervo, geralmente, acontecem com o objetivo
de fazer alguma pesquisa escolar. O mesmo ocorre com a leitura de uma obra
literária, que, muitas vezes, é realizada apenas para cumprir uma tarefa escolar.
Esse ritmo frenético e inconsciente de viver colocado a cada um de nós se
torna mais evidente com a destacada presença da tecnologia, em que a internet - a
qual pode ser utilizada também na formação de leitores de literatura -, o cinema - que
também tem sua presença na construção de leitura estética - e os diferentes suportes
que vão surgindo a cada momento, ocupam grande espaço no cotidiano das pessoas
com possibilidade, às vezes, de acesso maior que a bibliotecas e livros. A despeito de
todos os avanços e conquistas advindas das novas tecnologias, é fundamental que
seja reconhecida cada vez mais a importância da linguagem literária como uma
tentativa de reverter esse ritmo imposto como algo incontestável e inexorável aos
sujeitos inseridos em nossa sociedade. Segundo Leandro Konder, Benjamin nos
ensina que ―a obra de arte literária não pode ser abordada como se fosse um mero
documento‖. Isso representaria ―um grave desrespeito à própria natureza da
expressão estética.‖ (KONDER, 1999, p.49).
Sem a pretensão de eleger o texto literário como sendo o texto por excelência
ou uma forma privilegiada de linguagem, mesmo porque há de se considerar
ainterface existente entre a leitura literária e as outras formas de linguagem, cabe
ressaltar que em se tratando de literatura, o acesso ao livro se constitui uma
oportunidade de interação com um produto cultural e artístico. A literatura está no
campo da arte e, assim sendo, além de mobilizar a dimensão cognitiva, mobiliza
afetos, emoções, relações interpessoais. Está no campo da expressão, dos sentidos,
da sensibilidade, por isso nos coloca em estado de estesia, a qual nos desperta e nos
coloca em sinal de alerta para mantermos viva a nossa capacidade de afetar o outro e
ser afetado, de surpreendermos a nós e aos outros.
A experiência literária nos traz a possibilidade de experimentarmos realidades
diferentes e vivermos em mundos e culturas diversas, além de nos despertar
sentimentos que engendram novas formas de pensar, de estar e de ser no mundo.
Proporcionar diferentes experiências literárias que consolidem essa prática para além
das salas de aula é papel da escola. Afinal, é preciso gostar de ler textos literários,
seja por fruição, para conhecer e brincar com as histórias, para interagir, para
alimentar a imaginação, para desenvolver a criatividade e o posicionamento crítico

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frente aos acontecimentos da vida. É preciso encantar os alunos, buscando construir


uma relação reflexiva e afetiva entre as crianças e os livros.
Remontando à história da literatura infantil, Marisa Lojolo e Regina Zilberman
(2007), destacam que as histórias transmitidas às crianças eram de natureza popular,
de circulação oral e não se destinavam ao público infantil, portanto, dependiam da
mediação da voz do adulto para que fosse oralizado o texto e a criança pudesse ter
acesso à narrativa. Ainda hoje a leitura em voz alta, a contação de história e a
conversa a partir dos textos lidos ou ouvidos no contexto da biblioteca escolar ou em
outros espaços da escola podem contribuir para promover o intercâmbio de narrativas.
A linguagem literária materializada num objeto artístico nos apresenta um
diálogo de várias linguagens por ter sido construído a partir de outros discursos, de
outras vozes que ajudaram a construir a voz do narrador. Seguindo nessa direção,
podemos dizer que propiciar à criança a oportunidade de narrar as suas experiências
de leitura e as histórias conhecidas e imaginadas, durante a realização das rodas de
leitura, representa um processo de rememoração que permite aos leitores atribuir
sentidos ao que foi lido, contado e imaginado. Durante a realização das rodas de
leitura, as crianças têm a oportunidade de apresentar o livro que levou emprestado da
biblioteca para ler em casa, a professora lê ou conta histórias que considera
significativas para os leitores após observar os interesses dos alunos. Nessas
atividades, a trama das narrativas que vão sendo tecidas a partir das histórias de cada
livro, das histórias de cada criança e do educador nada ficará perdido. Ao escavarem
na memória o lido e o vivido, todos trazem à tona o que os afetou e deixou marcas
nesse processo de se constituírem narradores.
Desse modo, crianças, jovens e adultos gostam de narrar as experiências que
lhes foram mais profundas e, por estarem depositadas na memória, continuam a vivê-
las de maneira vigorosa, o que permite que tais experiências sejam reinterpretadas,
atualizadas e expressas. Não existindo, pois, para a criança a possibilidade de narrar
suas experiências leitoras, de serem estimuladas a falarem de suas histórias vividas e
imaginadas, de serem autoras em suas escritas, a sua voz ficará silenciada, o que
provocará impactos na sua formação como narradora. Patrícia Corsino (2010) afirma
que é na infância que acontecem as primeiras narrativas e através delas nos
constituímos como sujeitos. Na pequena infância essa experiência se mostra muito
viva, pois as crianças gostam de ouvir e contar histórias, às vezes, as mesmas
histórias reiteradamente. Isso se dá, talvez, porque para a criança o tempo seja mais
intensidade do que sucessão cronológica de fatos e por considerar que esta

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comunicação artesanal de comunicação que é a literatura, como nos coloca Benjamin,


seja para elas uma forma de demonstração de afeto pelas histórias.

As mediações de leitura literária no contexto da biblioteca escolar

Conforme aponta Teresa Colomer (2007) a leitura no âmbito da escola está


associada ao termo mediação. Nesse sentido, ao pensarmos no desenvolvimento de
práticas significativas de leitura literária e nas mediações com os textos literários
realizadas na escola, podemos considerar como principais mediadores, nesse
processo de formação de leitores literários, os professores e os profissionais que
atuam nas bibliotecas escolares. Assim sendo, a tarefa de formar leitores deixa de
ficar centrada apenas nos professores que atuam nas salas de aula, mas passa a ser
uma ação compartilhada com outros profissionais que exercem suas atividades nas
bibliotecas escolares para que os alunos possam ampliar seus vínculos com a
literatura.
A mediação se faz necessária porque não basta apenas o espaço e a
constituição de acervos. Dessa forma, o profissional que atua na biblioteca escolar
será o mediador que vai sugerir as leituras, selecionar e expor os livros que atendam
aos interesses e aos gostos das crianças. Nas mediações realizadas é importante que
o mediador se movimente, que leia ou conte histórias com fluência, entusiasmo e
entonação. Reconhecendo o ambiente da biblioteca como um elemento mediador no
processo de formação de leitores, organizará esse espaço de tal modo que se torne
ele próprio uma narrativa que conta sobre a história dos livros, dos autores, dos
leitores, das experiências nele vividas pelos leitores que a frequentam, permitindo,
desse modo, recordar e resgatar o passado, promovendo o conhecimento e a
valorização do patrimônio cultural construído ao longo da história.
A literatura, para se tornar verdadeiramente um objeto cultural, precisa ser lida
e considerada pelo leitor em sua completude como movimento de expressão e
comunicação, de busca pelo outro. Entretanto, para que existam leitores e a
provocação pelo desejo de ler, é necessário que tenhamos contextos socioculturais
favoráveis, livros, mediações e mediadores de leitura. Os mediadores de leitura são
aqueles que realizam o convite à leitura, ato que implica criação, recriação,
negociação dinâmica de sentidos e significados entre narrativas, textos e leitores.
Convém destacar que os verbos escutar e dialogar devem conduziras
mediações de leitura literária. Escutar, no sentido de estar atento ao que a criança diz,
para que possa ser percebido em suas palavras aspectos do mundo que os adultos
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não dão conta de apreender e, a partir disso, tomá-las como fonte importante para
refletir e ressignificar as práticas docentes, sobretudo aquelas relacionadas à leitura de
textos literários. Como propõe Clarice Nunes (2008), é preciso que nos escutemos
para nos reeducarmos, para que assim possamos calar os discursos que nos
estreitam e nos controlam e assim desenvolvermos a nossa capacidade expressiva e
contribuir para que o outro também desenvolva a sua. Dialogarpara que a linguagem
não se funda apenas a uma consciência, mas para que os sujeitos que fazem e
participam da prática de leitura literária possam estabelecer diálogos uns com os
outros, com e sobre os textos, com os autores e as diferentes vozes neles presentes.
Tudo isso só será possível de acontecer se houver a atuação de mediadores
de leitura que, assegurando o direito à literatura, promovem a leitura, organizando
tempos, espaços, suportes e materiais de leitura, como também envolvendo os alunos
nessa atividade, mostrando-se sensível à escuta sobre seus diferentes modos de ver,
compreender e produzir sentidos em relação ao texto literário. Essas ações precisam
considerar os tempos e os espaços destinados à leitura, assim como os materiais e os
suportes nos quais a leitura será realizada. Nas palavras de Alberto Manguel (1997),

quer escolhamos primeiro o livro e depois o cantinho apropriado, quer


encontramos o canto e depois decidamos qual o livro adequado ao
clima do lugar, não há dúvida de que o ato de ler no tempo requer um
correspondente ato de ler no espaço, e a relação entre os dois e
inextrincável (MANGUEL, 1997, p. 178).

Ao considerarmos a biblioteca escolar como uma ponte entre as demandas


escolares e as manifestações culturais do mundo, entendemos que as mediações de
leitura no ambiente da biblioteca escolar possibilitam ao leitor uma relação
diferenciada com a literatura, o que contribui para a produção de sentidos importantes
para a narrativa e a própria vida. Para Edmir Perrotti (2012) a biblioteca escolar
precisa ser um local de acolhida, e, ao mesmo tempo de risco, que motiva a aventura
e possibilita o deslocamento para outros tempos e espaços, o contato com histórias
que mesclam fantasia e realidade, a produção de narrativas de si e do outro. O
envolvimento das crianças perante as narrativas aponta que mediação se constitui
como importante atividade, a qual possibilita a aproximação das crianças com o texto
literário. O trabalho com a literatura permite a criação de um espaço de negociação de
significados e sentidos de crianças e professores no interior do grupo. As proposições
das crianças nos revelam os modos como elas vivenciam o texto literário, produzindo,
a partir da imaginação criativa, novos sentidos e significados para a narrativa e
sentimentos que são despertados e compartilhados por todos.
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Considerações Finais

Buscamos apresentar nesse texto nossas reflexões acerca da biblioteca


escolar como espaço de compartilhamento de experiências e narrativas, destacando a
importância singular que essa instância assume no processo de formação de leitores
literários nos espaços escolares. Para tanto, apresentamos algumas idéias de Walter
Benjamim que, como crítico da cultura da modernidade, nos ajuda a compreender a
literatura como um caminho que religa o homem a sua humanidade, pois ela é fonte
de expressão humana. Desse modo, as relações estabelecidas pelos leitores com a
biblioteca e todos os elementos mediadores nela presentes e atuantes marcam
culturalmente nossas práticas leitoras.
Reconhecemos que leitores se formam, continuamente, em diversos espaços
sociais e em diferentes momentos da vida. Contudo, sabemos que, em nossa
sociedade, o acesso à leitura e à escrita se dá de forma mais efetiva no espaço
escolar.Dessa forma, se a criança não tem em seu ambiente familiar ou em outros
espaços sociais que frequenta, a oportunidade de participar de situações criativas com
a linguagem, é mais do necessário que a escola se sinta responsável pela sua
formação literária. O compromisso central da escola é o de formar leitores. Leitores
que, ao puxarem os fios das histórias contidas nos livros e das suas experiências,
possam expressar a vida, porque afinal, antes de promover o livro e a leitura é preciso
promover os sujeitos que participam da ação pedagógica. A literatura lida, contada e
compartilhada na biblioteca representa um caminho para que isso seja efetivado.
Defendemos que a leitura compartilhada no espaço da biblioteca escolar,
durante a realização de rodas de leitura, potencializa a força humanizadora da
literatura, confirmando o homem na sua humanidade. Por fim, demonstramos que o
papel do mediador de leitura é fundamental, pois caberá a ele realizar o convite à
leitura, promovendo situações de envolvimento efetivo das crianças em espaços,
tempos e momentos de leitura compartilhada, o que será possível a partir do momento
em que se considerar a leitura como atividade formativa, que requer tempo para ser
realizada e apreciada.

Referências

BENJAMIN, Walter. Walter Benjamin. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e


política. São Paulo: Brasiliense, 1994.
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COLOMER, Teresa. Andar entre livros: a leitura literária na escola. São Paulo: Global,
2007.

CORSINO, Patrícia. Literatura na Educação Infantil: possibilidades e ampliações. In:


PAIVA, A., MACIEL, F. COSSON, R. (Orgs.). Literatura:Ensino Fundamental. Brasília:
Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2010, p. 183-204.

KONDER, Leandro. Walter Benjamin: o marxismo da melancolia. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 1999.

KRAMER, Sônia. Por entre as pedras: arma e sonho na escola. São Paulo: Ática,
1994.

LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. (2007). Literatura Infantil Brasileira: história e


histórias. São Paulo: Ática, 2007. 6ª Edição. Série Fundamentos.

MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. Tradução Pedro Maia Soares. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997.

NUNES, Clarice. Walter Benjamin: os limites da razão. In: Luciano Mendes de Faria
Filho (org.). Pensadores sociais e história da Educação. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2008. 344p.

PERROTTI, Edmir. Biblioteca não é depósito de livros. Entrevista concedida à Nova


Escola em 17 de junho de 2012. Disponível em: <https://novaescola.org.br/conteudo
/941/edmir-perrotti-biblioteca-nao-e-deposito-de-livros>

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

A Biblioteca Escolar como espaço de promoção da leitura literária

Profa. Maria das Graças Monteiro Castro, FIC/UFG, Eixo Temático 9: Os espaço de
leitura literária
Profa. Laura Vilela Rodrigues Resende, FIC/UFG, Eixo Temático 9: Os espaço de
leitura literária

Considerações Iniciais

O cenário brasileiro atual da biblioteca escolar apresenta, de um lado, a


exigência urgente de se atender à Lei n o. 12.244, de 24 de maio de 2010, que prevê a
obrigatoriedade e a universalização de bibliotecas escolares no prazo máximo de dez
anos e, de outro, o despreparo das escolas públicas e privadas no tocante à
implementação da referida lei.
Este trabalho apresenta o Laboratório do Livro, Leitura, Literatura e Biblioteca
(Libris), do curso de Biblioteconomia da Universidade Federal de Goiás (UFG). O
Libris surge em função da necessidade de se criar uma estrutura que articula a
atuação docente, que sustenta a prática pedagógica curricular, e as possibilidades de
atuação profissional dos estudantes do curso de Biblioteconomia.
O laboratório desenvolve projetos que visam à definição das estruturas
necessárias para a criação de uma biblioteca escolar, observando as especificidades
do nível de ensino em questão e sua adequação às exigências de uma biblioteca no
tocante à estrutura física, técnica e organizacional, ao acervo, à promoção e mediação
da biblioteca no contexto escolar e de formação de professores e bibliotecários. Tal
posição se deve inicialmente aos marcos regulatórios nacionais que priorizam a
biblioteca escolar tanto como centro dinamizador da leitura quanto como lócus difusor
do conhecimento produzido pela humanidade. É o caso do Plano Nacional de
Educação (Lei nº 13.005, de 25 de março de 2014), do Plano Nacional de Cultura (Lei
nº 12.343, de 2 de dezembro de 2010) e da Lei nº 12.244, de 24 de maio de 2010.
1681

INTRODUÇÃO

Não há como pensar na biblioteca, sem antes compreender o processo de


formação do leitor e os principais instrumentos para sua prática. Independente dos
avanços tecnológicos, o ato de ler é fundamental para o acesso aos bens culturais,
estejam eles em qualquer suporte informacional. Desse modo, a biblioteca se constitui
em um equipamento social que possibilita o acesso aos bens culturais registrados e a
medição do conhecimento ali depositado nos mais diferentes formatos e linguagens.
Quando se retoma a história da leitura, prática que só se torna possível aos
alfabetizados – para além da tradição oral tão bem qualificada em ―O narrador‖, de
Benjamin –, é possível perceber que esta é construída particularmente pela história
cultural nas diversas abordagens existentes: linguística, teoria literária, antropologia,
entre outras. Assim, a sociedade vai configurando, em diferentes momentos históricos,
as variações das formas de leitura desenvolvidas. Para os gregos, a leitura era a
comunicação falada, a oratória e a retórica. Para Steven Roger Fischer (2005), os
gregos traduziam a leitura como reconhecimento, sendo feita em voz alta. O autor
afirma ainda que a capacidade de ler e escrever propagou-se no século VI a.C.,
quando a escrita passou a ser mais usada na vida pública e semipública. A maioria
dos atenienses, conforme Luciano Canfora (1989), mesmo com os rudimentos da
leitura, só a utilizava nos negócios, na administração e na política.
Na Idade Média, a leitura e a escrita estavam restritas ao clero, que lia livros
das civilizações greco-romanas e copiava documentos escritos. No entanto, havia uma
diferenciação importante nos processos realizados nas abadias: o reconhecimento de
sinais alfabéticos e a leitura propriamente dos livros ou opúsculos (folhetos). Umberto
Eco descreve assim a biblioteca de um mosteiro:

A biblioteca nasceu segundo um desenho que permaneceu obscuro a todos durante


séculos e que a nenhum dos monges é dado conhecer. Somente o bibliotecário
recebe o segredo do bibliotecário que o precede, e o comunica ainda em vida, ao
ajudante-bibliotecário, de modo que a morte não os surpreenda, privando a
comunidade desse saber. E os lábios de ambos estão selados pelo segredo, somente
o bibliotecário tem o direito de mover-se no labirinto dos livros, somente ele sabe onde
encontrá-los e onde guardá-los, somente ele é responsável pela sua conservação. Os
demais monges trabalham no scriptorium e podem conhecer o elenco de volumes que
a biblioteca encerra. E um elenco de títulos sempre diz muito pouco, somente o
bibliotecário sabe da colocação do volume, do grau de sua inacessibilidade, que tipos
de segredos, de verdades ou de mentiras que o volume encerra. Somente ele decide
como se deve fornecê-lo ao monge que os está requerendo, após ter-se consultado
comigo, diz o Abade. (Eco,1983, p. 54)

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A existência e a criação de bibliotecas não garantiam leitores habilitados. Em


Roma, ainda de acordo com Canfora (1989), as bibliotecas se constituíram em um
modismo no início do Império; eram particulares e também não significavam que os
leitores eram formados a partir delas. Um dos exemplos citados pela autora é a
biblioteca de Lúculo, que continha praticamente obras gregas clássicas e era acessível
apenas aos eruditos bilíngues. Naquela época, já se lamentava a falta do interesse
pela leitura individual ou pública.
Com o surgimento do cristianismo, ocorreu uma maior democratização da
leitura no Império Romano a partir de um processo de alfabetização aleatório, ligado
exclusivamente ao surgimento e difusão do Novo Testamento, no período entre a
Antiguidade e a Idade Média. Daí, conclui-se que a religião cristã foi responsável pela
alfabetização e pelo desenvolvimento da leitura no mundo ocidental, bem como pela
produção e comércio dos livros.
Segundo Roger Chartier, a grande revolução da leitura ocorreu nas
universidades europeias a partir do século XII. Só depois os leigos tiveram a chance
de acesso à leitura graças à leitura silenciosa:

A leitura silenciosa de fato estabelece um relacionamento mais livre e secreto e


totalmente privado com a palavra escrita. Permite uma leitura mais rápida [...].
Também permite usos diferenciados do mesmo livro; dado o contexto ritual ou social,
ele pode ser lido alto para ou com outras pessoas, ou pode ser lido silenciosamente
para si mesmo no abrigo do estúdio, da biblioteca ou do oratório. (Chartier ,1988, p.
323)

Para Chartier (1988), a ―revolução na leitura precedeu a revolução no livro‖,


fato este que pode ser descrito pela substituição do rolo de leitura pelo códex e pela
invenção da imprensa, no início da Idade Moderna. O livro manuscrito foi então
sucedido pelo impresso. Na história da civilização ocidental, o método de ensino da
leitura que tem perdurado até os dias atuais é o alfabético, em que o indivíduo
aprende o nome das letras em ordem alfabética, ou seja, o abecedário. No entanto,
Robert Darnton argumenta:

[...] a leitura, ao contrário da carpintaria ou bordado, não é meramente uma habilidade;


é uma ativa elaboração de significados dentro de um sistema de comunicação.
Entender como os franceses liam livros, no século XVIII, é entender como pensavam –
ou seja, como pensavam aqueles, entre eles, que podiam participar da transmissão do
pensamento por meio de símbolos impressos. (Darnton,1986, p. 278)

No século XIX, a escola, a igreja e a biblioteca constituíram-se nos três


principais ―corpos profissionais‖, responsáveis por discursos sobre a leitura, com

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conteúdos diferentes: ―a escola republicana e a Igreja Romana não tinham a mesma


concepção sobre o que era bom para ler‖ (Chartier, 1998, p. 113). A partir desses
discursos de autoridade, usavam, no entanto, ―os mesmos instrumentos para impor o
corpus das obras e das práticas consideradas legítimas‖. Diante da complexidade do
processo, da imprevisibilidade e dos inúmeros caminhos que a leitura percorreu, suas
práticas conseguiram então emancipar-se.
Considerando as especificidades da educação formal, em que conteúdos e
métodos necessitam se ajustar ao desenvolvimento do indivíduo, a biblioteca deveria
se inserir no contexto pedagógico como um elemento indispensável ao processo de
aquisição da leitura e da escrita, ao domínio das diferentes estruturas textuais, ao
processo de acesso, seleção e aquisição do conhecimento e ao desenvolvimento dos
métodos de estudo e de investigação autônomos.
O papel da biblioteca, no entanto, encontra-se subliminarmente apontado para
o contexto escolar e pedagógico. Apesar de não se qualificarem, suas funções se
confundem com os métodos de aprendizagem: fornecem informação confiável de
forma rápida e acessível, bem como sua utilização; atuam como o espaço permanente
para a integração dos conteúdos curriculares de forma continuada; oferecem
experiências estéticas das mais variadas linguagens, com formatos e processos
culturais permanentes; estruturam-se para garantir um sistema de informação
diversificado, com recursos multimídia de acesso livre, destinados à consulta e à
produção de informação em suportes variados.
Campello et al.(2011, p.106) afirmam que, no Brasil, os órgãos públicos
responsáveis pela educação básica reconhecem a importância da biblioteca escolar, o
que está enfatizado nos documentos de políticas públicas do setor educacional,
especialmente naqueles focados na aprendizagem da leitura.
Para que se possa proporcionar o desenvolvimento de capacidades intelectuais
que vão além do acesso e do manuseio informacional, a biblioteca tem de sustentar o
processo de produção do conhecimento, a fim de garantir as premissas apresentadas
anteriormente. Neste contexto, o presente trabalho apresenta a Biblioteca Escolar
Modelo como uma iniciativa da UFG que pretende inspirar bibliotecas escolares dos
sistemas público e privado de ensino brasileiro, baseando-se em padrões
internacionais e considerando os marcos regulatórios brasileiros. Esses marcos
pautam a importância da biblioteca escolar como equipamento educacional relevante
no processo de ensino e aprendizagem.

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A biblioteca escolar de referência do Laboratório libris

O Brasil se encontra em um momento crítico em face da ampliação de


demandas informacionais e da reduzida presença de agentes educadores capacitados
para atuar nos novos ambientes educacionais e culturais. Faz-se necessário,
portanto, o desenvolvimento de estudos/pesquisas que gerem reflexões e orientem
ações para definir as novas configurações culturais, informacionais e institucionais de
tais ambientes.
Em 2016, considerando essas configurações, o curso de Biblioteconomia da
UFG realizou sua reforma curricular com base na formação profissional que
privilegiasse os campos de atuação social, educacional e cultural. A função social do
bibliotecário deve compreender o profissional como agente da inclusão social, bem
como da democratização da informação, recreação e mediação da informação e do
conhecimento. A função educacional define esse profissional, ao lado do professor,
como promotor da leitura, formador do estudante pesquisador e orientador da
pesquisa escolar. Já o cumprimento da função cultural em bibliotecas deve estar
ancorado na diversidade da produção e nas manifestações culturais refletidas em seus
serviços, ações, coleções e espaços.
Diante desse cenário, o Libris, vinculado ao curso de Biblioteconomia, da
Faculdade de Informação e Comunicação (FIC) da UFG, desenvolve projetos de
ensino, pesquisa e extensão relacionados com modelagens estruturais de bibliotecas
a partir das seguintes problematizações: quais são as configurações estruturais,
técnicas, tecnológicas, organizacionais e de acervo pertinentes para a criação e
implementação de uma biblioteca escolar? Como modelo para o sistema público e
privado do ensino básico, quais ações de promoção e mediação a biblioteca escolar
deve fomentar? Quais deverão ser os equipamentos no contexto escolar? Quais
parâmetros curriculares do ensino básico, por meio da formação de agentes
educadores (bibliotecários, professores, coordenadores pedagógicos, dentre outros),
deverão ser imprescindíveis no atual panorama brasileiro?
A partir dessas indagações iniciais e considerando as duas diretrizes-base para
se configurar uma biblioteca escolar – configurações estruturais, técnicas,
tecnológicas, organizacionais e de acervo, bem como a formação de agentes
educadores citados anteriormente –, surgem questionamentos mais específicos.
Considerando as configurações estruturais, técnicas, tecnológicas,
organizacionais e de acervo, a reflexão proposta nesta ação laboratorial se relaciona
com o desenvolvimento de modelos que contemplem as especificidades de uma

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biblioteca. Daí se efetiva uma proposta de inserção no contexto pedagógico, com base
na articulação das necessidades informacionais e nas demandas pedagógicas
específicas de cada área do conhecimento escolar.
Além de se buscar adequar a biblioteca de maneira física e organizacional,
observando as particularidades do ambiente escolar e as exigências curriculares do
ensino básico no Brasil, cabe também atuar na formação de agentes educadores nas
escolas. Estes devem exercer o papel de mediadores e promotores da atuação da
biblioteca como centro dinamizador da leitura, pesquisa e difusão do conhecimento. A
formação dos mediadores de leitura, professores e bibliotecários constitui um aspecto
fundamental para a modelagem de bibliotecas escolares. É imprescindível identificar
as diretrizes de atuação e formação continuada dos agentes educacionais nas áreas
técnicas e pedagógicas para torná-los mediadores e promotores da biblioteca.
Ao avaliar as políticas públicas desenvolvidas para as bibliotecas escolares no
Brasil, percebe-se que as iniciativas sempre foram tímidas. Afinal, a maioria dos
programas se preocupou unicamente em formar acervos. Como prova disso, na última
década, uma quantidade significativa de livros chegou às escolas, por meio das mais
variadas ações. É o caso do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), 326
iniciativa do governo federal, do Cantinho da Leitura327 e do Programa de Bibliotecas
das Escolas Estaduais, do governo do Estado de Goiás. 328 Apesar de terem garantido
a distribuição de livros de qualidade, esses programas não privilegiaram todos os
aspectos necessários à constituição de uma biblioteca escolar, tais como: espaço
físico, mobiliário, processo organizacional adequado ao público da escola e acervo
selecionado que atendesse à estrutura curricular do ensino básico.
Diante da escassez de estudos específicos na área de Biblioteconomia que
sustentem a inserção da biblioteca no contexto pedagógico, o Laboratório Libris
pretende – a partir do ensino, da pesquisa e da extensão desenvolvidos em sua
Biblioteca Escolar de Referência – gerar pressupostos teóricos que norteiem a
implantação da biblioteca escolar, observar as exigências pedagógicas definidas pelos
parâmetros curriculares do ensino básico articuladas às discussões postas
pela Biblioteconomia na interface com as Tecnologias da Informação e Comunicação
(TIC).
De acordo com o Manifesto IFLA/UNESCO (2005), a biblioteca escolar é
definida como o espaço que deve promover a formação de usuários efetivos da

326
Ver: <http://portal.mec.gov.br/programa-nacional-biblioteca-da-escola>.
327
Consultar: <http://see.go.gov.br/especiais/cantinho/apresentacao.htm>.
328
Ver: <http://portal.seduc.go.gov.br/SitePages/Pagina.aspx?idPagina=83>.
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informação em todos os moldes e meios. Para cumprir seu objetivo, deve se estruturar
por meio de políticas e serviços que possibilitem orientar: (1) a estruturação física; (2)
os processos técnicos, tecnológicos e organizacionais; (3) a seleção do acervo; (4) a
formação técnica e pedagógica do bibliotecário, dos professores, dos coordenadores e
dos gestores escolares.
O Libris, por meio da biblioteca escolar de referência, pretende ser um
importante instrumento para o alcance da meta de inclusão social. Além de formar
acervos e de criar um novo conceito de biblioteca no espaço pedagógico, visa atender
à educação básica. Para alcançar seus objetivos, oferece uma biblioteca já
implantada, com um espaço físico329 planejado e adequado aos estudantes do ensino
básico com uma estrutura técnica e organizacional e com um acervo de qualidade,
capaz de transformar esse espaço em um centro dinamizador da leitura, da pesquisa
e da difusão do conhecimento.
No tocante à sua constituição, o Libris dispõe de duas bibliotecas: uma
localizada na FIC e a outra na Faculdade de Educação (FE) da UFG. Ambas atendem
aos estudantes dos cursos de Biblioteconomia e Pedagogia, contando com um acervo
de aproximadamente seis mil títulos de literatura infantil e juvenil, informativos e livros
teóricos nas áreas em questão. Esse acervo provém da participação do laboratório no
prêmio para a produção editorial brasileira para crianças e jovens, promovido pela
Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). 330a sendo, com o acervo
existente, é possível organizar uma biblioteca que se torne referência para o sistema
educacional público e privado da região.
Com uma das ações já em andamento, o laboratório desenvolveu, juntamente
com uma equipe formada por estudantes do curso de Biblioteconomia, uma plataforma
tecnológica para a Biblioteca Escolar de Referência, dotada de um software de gestão
de bibliotecas já instalado e configurado e com o acervo já inserido no sistema.
Ademais, conta com uma base de dados referencial 331 elaborada com a utilização da
plataforma Tainacan,332 desenvolvida pela UFG. Essa plataforma contém a indicação
de obras nacionais adequadamente descritas; algumas delas dispõem até mesmo de
resenhas críticas para atender à comunicade em geral, especialmente aos estudantes.

329
Atualmente o corpo docente do curso está reestruturando os espaços existentes no laboratório, a
partir da criação e implantação de uma biblioteca escolar de referência para atender às demandas
informacionais da estrutura curricular do ensino básico.
330
Ver: <http://www.fnlij.org.br/>.
331
Disponível em: <https://www.gi.fic.ufg.br/biblioteconomia/collection/bibliotecamodelo/>.
332
Tainacan é uma plataforma digital que permeia o Projeto de Política Nacional de Acervos Digitais,
que vem sendo desenvolvida em parceria entre a Universidade Federal de Goiás e o Ministério da
Cultura. Disponível em:<https://ngpti.fic.ufg.br/n/83061-conhecendo-o-tainacan>.
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Esse ferramental tecnológico poderá proporcionar uma interação com o público e ir de


encontro com o atual cenário de socialização da Web 2.0. Esta pode ser definida como
o conjunto de novas tecnologias e padrões para desenvolver páginas interativas na
internet que disponibilizem recursos para que os usuários possam publicar conteúdos,
interagir, compartilhar e comentar os objetos dessas páginas (Rezende, Martins, Silva,
2016, p. 487). Outra forma de interação dessa ferramenta tecnológica será por meio
de conteúdos e cursos autoinstrucionais voltados à formação continuada de agentes
educadores para atuarem nas áreas técnicas e pedagógicas das bibliotecas escolares.
Assim sendo, conceber e implantar uma biblioteca escolar contempla modelos
referenciais de formação, processos técnicos e organizacionais, servindo de modelo
para o sistema de ensino público e privado no intuito de implementar a Lei n. 12.244,
de 24 de maio de 2010. Essa lei prevê a obrigatoriedade e a universalização de
bibliotecas escolares no prazo máximo de dez anos. Para tal, por meio do Laboratório
Libris, o curso de Biblioteconomia da UFG busca:
 criar uma biblioteca de referência para as escolas do ensino básico;
 estabelecer e documentar modelos referenciais dos processos técnicos
e organizacionais que possam ser reproduzidos pelas escolas;
 implementar uma rotina de atualização da plataforma digital,
especificamente a base de referência em literatura infantil e juvenil;
 desenvolver um catálogo de aplicativos web voltados para auxiliar o
processo de ensino e aprendizagem nas escolas;
 criar e documentar processos de seleção de títulos, de processamento
técnico e formação continuada na área de leitura, literatura e biblioteca;
 promover ações de dinamização da leitura e da pesquisa no ambiente
da biblioteca, tendo como referência as demandas curriculares;
 promover a formação do leitor de livro literário e de outras estruturas
textuais;
 promover a formação dos profissionais envolvidos com a biblioteca
escolar (bibliotecários, professores e coordenadores pedagógicos);
 garantir a continuidade das ações de apoio às bibliotecas escolares de
ensino básico da cidade de Goiânia, com base na biblioteca escolar de
referência;
 oportunizar o acesso à produção editorial brasileira destinada a crianças
e jovens a partir do acervo recebido pela biblioteca escolar de
referência para a comunidade local;

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 fomentar ações de alcance nacional para divulgação da biblioteca


escolar de referência por meio da criação de uma identidade visual que
fortaleça o conceito da biblioteca em seus eixos fundantes (espaço
físico, estrutura técnica e organizacional, articulação com o contexto
pedagógico e formação técnica e pedagógica).

Metodologia

O Laboratório Libris proporcionará a realização de pesquisas acadêmicas com


enfoque qualitativo que, segundo Sanpieri, Collado e Lucio (2013, p. 376), visam à
compreensão e ao aprofundamento dos fenômenos explorados a partir da perspectiva
dos participantes em um ambiente natural e relativos ao contexto. As ações com
enfoque quantitativo também poderão ser necessárias para realizar levantamentos e
medições acerca de estruturas e características das bibliotecas existentes no sistema
público e privado de ensino brasileiro.
Tocante ao objetivo principal de aprimoramento de estudos sobre a
concepção, estruturação e implantação de uma biblioteca no contexto escolar, a
metodologia adotada para a realização da presente ação é o estudo de caso. 333
Convém considerar o contexto da demanda da Lei n o. 12.244, de 24 de maio de 2010,
que dispõe sobre a obrigatoriedade e universalização de bibliotecas no prazo máximo
de dez anos em face do despreparo das escolas para sua implementação. Com base
na análise da Biblioteca Escolar de Referência, do Laboratório Libris da UFG, seria
possível buscar compreender como esse processo deveria ser realizado.
Assim sendo, ao propor uma estrutura modelo a ser replicada pelas escolas,
serão analisadas as condições concretas da Biblioteca Escolar de Referência da UFG,
para que sejam dimensionadas as reais necessidades no tocante à utilização da
estrutura existente, como modelo, para as escolas do ensino fundamental.

Resultados alcançados

333
A utilização da metodologia de estudo de casos proporciona uma maior familiaridade com o
problema de pesquisa, suscita indagações a partir de uma perspectiva inovadora, permitindo a
construção de categorias conceituais para a definição de soluções práticas quanto à concepção física,
tecnológica e de mediação na biblioteca escolar.
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Atualmente, o Libris já apresenta alguns resultados já alcançados, ao longo de


sua trajetória desde 2014. Dentre eles, destacam-se:
 Cerca de 95% do acervo da biblioteca escolar referencial já foi tratado e
inserido na base de dados do software de gestão de bibliotecas.
 O acervo foi adaptado ao sistema de classificação CDD, 334 para atender
às especificidades da literatura infantil e juvenil.
 Com a criação da biblioteca digital referencial, há indicação de obras
infantis, juvenis, informativas e teóricas na área educacional.
 Um canal de divulgação das ações laboratoriais foi criado por meio do
blog ―Biblioteca Modelo‖.335
Cabe também ressaltar que os seguintes manuais de serviços foram
instituídos: classificação do acervo; catalogação do acervo na base do software de
gestão de bibliotecas; tratamento mensal do acervo, com o propósito de possibilitar a
participação do laboratório no Prêmio da FNLJ.

Resultados esperados e considerações finais

Considerando a carência de bibliotecas no contexto nacional, que afeta o


aprendizado ao longo da vida, os seguintes resultados podem ser esperados: 336a
transformação da biblioteca escolar de referência do Libris em um modelo para as
escolas do ensino básico ao nível nacional; a construção de modelos de processo
técnicos, tecnológicos e organizacionais de bibliotecas escolares para servir de
referência nacional; a popularização do o uso da plataforma tecnológica desenvolvida
pela UFG, que engloba o sistema de gestão de bibliotecas e a biblioteca digital de
referência; ações de dinamização da leitura e pesquisa no ambiente da biblioteca
escolar uma prática nas escolas assistidas; contribuição efetiva para a formação do
leitor; formação dos profissionais envolvidos com a biblioteca escolar; manutenção de
ações de apoio às bibliotecas escolares de ensino básico da cidade de Goiânia;
continuidade do acesso à produção editorial brasileira para crianças e jovens a partir
do acervo recebido pela biblioteca modelo para a comunidade local; criação de uma
identidade visual que fortaleça o conceito da biblioteca em seus eixos fundantes

334
Ver Classificação Decimal de Dewey (CDD): <http://www.oclc.org/en/dewey.html>
335
Consultar: <https://librisbm.wordpress.com/>
336
Muitos dos resultados esperados já foram mencionados anteriormente quando os objetivos do
Laboratório Libris foram expostos.
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(espaço físico, estrutura técnica e organizacional, articulação com o contexto


pedagógico e formação técnica e pedagógica).

Ao finalizar este texto, que in totum ressalta a importância da biblioteca escolar,


cabe salientar suas fragilidades e deficiências. A situação das bibliotecas escolares
brasileiras é precária. O que se vê são amontoados de livros didáticos, muitos deles
provenientes de doações que não representam a necessidade informacional e
pedagógica dos alunos. Não dispõem de espaço físico apropriado e estimulador; são
desprovidas de qualquer pressuposto organizacional que oriente o uso do acervo. Não
possuem pessoal qualificado para a promoção da leitura e da pesquisa. Diante desse
panorama, o Laboratório Libris busca, por meio das ações acadêmicas aqui
apresentadas, reorientar o processo existente. Toma-se como premissa de que toda
proposta educacional, cujo eixo do trabalho pedagógico é a qualidade da formação a
ser oferecida aos estudantes, deve tanto proporcionar o acesso aos bens culturais
produzidos socialmente quanto garantir condições concretas para construir estruturas
que formem os alunos por meio do processo de educação permanente.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

OS MÚLTIPLOS ESPAÇOS QUE A LEITURA LITERÁRIA OCUPA


NA ESCOLA

Gerluce Lourenço da Silva, Secretaria Municipal de Educação de Fortaleza,


Eixo Temático 9.
Kátia Gonçalves Freire, Secretaria Municipal de Educação de Fortaleza,
Eixo Temático 9.
Bárbara Pimenta de Oliveira, Secretaria Municipal de Educação de Fortaleza,
Eixo Temático 9.

Considerações Iniciais

O presente artigo tem o objetivo de analisar os múltiplos espaços que a leitura


literária ocupa na escola bem como a representatividade dessas contribuições na
formação de leitores autônomos, criativos e críticos. Concebendo, dessa forma, a
importância que a leitura de mundo atrelada à leitura científica representa para a
formação do aluno leitor.
O município de Fortaleza, locus deste estudo, nos últimos nove anos, investiu
numa educação que priorizasse a alfabetização com foco no desenvolvimento de
habilidades de leitura e escrita, despertando a autonomia dos alunos para a
construção de suas aprendizagens.Para isso, desenvolveu o PAIC337 (Programa de
Alfabetização na Idade Certa).
De posse das concepções que envolvem a qualidade da alfabetização e a
formação de leitores, foram implementados, nas salas de aula, os cantinhos de leitura,
bem como a revitalização de bibliotecas escolares, melhorias no acervo literário e
aquisição de materiais literários pela Secretaria de Educação do Estado do Ceará por
meio da criação da coleção literária PAIC Prosa e Poesia 338. Nesse sentido, as escolas

337
PAIC - Programa desenvolvido no Estado do Ceará com foco na alfabetização de alunos na
idade certa. Possui cinco eixos na sua concepção: Gestão Municipal, Avaliação Externa,
Alfabetização, Formação do Leitor e Educação Infantil. Juntos, os eixos buscam assegurar que
essa alfabetização aconteça com foco no letramento e na autonomia do educando.
338
PAIC Prosa e Poesia - coleção literária distribuída às escolas públicas de Ed. Infantil ao 5º
ano, do estado do Ceará.
1693

se propuseram a protagonizar projetos que levaram a leitura literária para todos os


espaços dessas instituições.
Para tanto, embasamos nosso estudo nas leituras de Zilberman (2003),
Coelho (2000) e Cademartori (2010) acerca da importância da literatura infantil; nas
leituras de Solé (1998) sobre as estratégias de leitura; Lerner (2002) destacando a
escola como locus real e ideal para o desenvolvimento da leitura; Soares (1999)
subsidiando os estudos de uma escolarização da literatura e as consequências para a
aprendizagem.
Como metodologia, escolhemos uma abordagem qualitativa, com
características de estudo de caso, levando em consideração a realidade de duas
Escolas do Município de Fortaleza. Essas escolas introduziram e desenvolveram
projetos de leitura pautados na utilização da literatura infantil, com a finalidade de
formar leitores. Para a coleta das informações utilizamos a observação, por vezes
participante, visitas programadas para o acompanhamento dos projetos, diário de
bordo, além de entrevistas e conversas informais com alunos, professores e
coordenadores.

As Políticas de incentivo à leitura no contexto nacional e local

Quando o assunto é promoção da leitura, o Brasil tem se mostrado atuante,


haja vista os muitos programas e projetos que nortearam e ainda norteiam sua política
de formação de leitores. Evidente que muitos desses programas e projetos não se
consolidaram dentro da nossa política educacional, mas, pelo menos, subsidiaram
uma melhoria na promoção dessa leitura, uma vez que:
A instituição de uma política de formação de leitores é condição
básica para que o poder público possa atuar sobre a democratização
das fontes de informação, sobre o fomento à leitura e à formação de
alunos e professores leitores. (BEREMBLUM, 2006, p.9)
Dentre os inúmeros programas de formação de leitores no Brasil,
destacamos: o PNSL (Programa Nacional Salas de Leitura, que durou de 1984 a
1987); o PROLER (Programa Nacional de Incentivo à Leitura, que surgiu em 1992); o
Pró- Leitura, também criado em 1992 e, por último, o PNBE (Programa Nacional
Biblioteca da Escola, criado em 1997). Dentre esses e outros programas, deter-nos-
emos em três políticas mais recentes de incentivo à leitura, que são: O Programa
Nacional de Bibliotecas Escolares (PNBE); o Pacto Nacional Pela Alfabetização na
Idade Certa (PNAIC) e o Programa de Alfabetização na Idade Certa (PAIC), os dois
primeiros na esfera nacional e o último no âmbito estadual.

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O PNBE, instituído em 1997, através da portaria interministerial nº 584,


consolidou-se enquanto programa logo após a extinção do Programa Nacional
Biblioteca do Professor339. Uma de suas principais metas era dinamizar o acervo
literário entre todas as escolas distribuídas no território nacional, além de promover
políticas de incentivo a formação de leitores e de mediadores de leitura (professores,
bibliotecários e auxiliares de biblioteca).
Outra ação consolidada pelo PNBE foi o estímulo à criação e fortalecimento
dos espaços de leitura nas escolas, tais como: cantinhos de leitura, restruturação de
bibliotecas escolares e salas de leitura, para que os alunos e toda a comunidade
escolar pudesse ter acesso aos livros de literatura destinados ao trabalho com a leitura
literária.
Estima-se que entre os anos de 2006 a 2014, mais de R$ 473.638.642,13 de
recursos foram destinados à aquisição de acervos para compor os espaços de leitura
dentro das escolas, o que nos leva a um quantitativo de 21.120.92 alunos
beneficiados, além de 123.775 escolas atendidas. A esse montante soma-se um total
de mais de 7.426.531 obras distribuídas nesses espaços educacionais. Os números
espantam, mas se tomarmos como referência o tamanho do nosso país e o
quantitativo de alunos distribuídos em milhares de escolas dentro do nosso território,
esses números ainda deixam muito a desejar para uma nação que se preocupa de
fato com a formação de leitores.
O estado do Ceará, antecipando-se as decisões debatidas com os municípios
na elaboração do Plano de Desenvolvimento da Educação, PDE 2007, que definia no
inciso II do art. 2º, que seria de responsabilidade dos municípios a ―alfabetização dos
alunos até, no máximo, os oito anos de idade, aferindo resultados por exames
periódicos específicos‖, firma metas para consolidação dessas decisões, dentre elas
um mapeamento dos índices de alfabetização no estado e de sua consequente
qualidade.
Dessa forma, em 2009, o Ceará promoveu uma intensa força tarefa com o
intuito de mapear os índices de analfabetismo no estado e a qualidade da
alfabetização de seus municípios, nascendo dessa iniciativa o PAIC (Programa de
Alfabetização na Idade Certa), que além de estabelecer metas para a melhoria na
qualidade da alfabetização das crianças e sua consolidação até o 2º ano do Ensino

339
Programa criado entre os anos de 1994 – 1997 para dar suporte ao professor com ações de
fomento à leitura na escola. O programa atuava em duas linhas de ações: aquisição de
materiais e capacitação dos docentes para o trabalho com esses materiais.
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Fundamental, estabeleceu dentro de um de seus cinco eixos estruturais a propagação


da formação de leitores e o incentivo à leitura literária.
Para o programa, a aprendizagem da leitura representa a aquisição
de uma nova linguagem, que permite o acesso a conhecimentos e
informações, ampliação de horizontes, desenvolvimento de
capacidade crítica e exercício da cidadania. O ato de ler ocorre se
houver contato constante dos alunos com materiais estimulantes,
articulados a ações pedagógicas intencionais mediadas pelo
professor. (SEDUC, 2012, p. 135)
Nascido assim, o eixo de Literatura Infantil e Formação do Leitor estimulou a
criação dos cantinhos de leitura nas salas de aula, além de viabilizar a distribuição de
uma coleção literária própria, intitulada ―Coleção Paic Prosa e Poesia‖, composta por
livros de literatura infantil, escritos por autores cearenses, pautados nos gêneros
literários e que trouxesse como foco central a cultura do estado e suas peculiaridades.
A cada edição da coleção, um concurso literário era lançado para a escolha
dessas obras, que seguiam requisitos pré-estabelecidos por um edital, tais como:
qualidade literária; contribuição do autor a cultura regional; originalidade; coerência
com a faixa etária do leitor (características lúdicas, temáticas voltadas para a infância
e vocábulos associados ao contexto do dia a dia da criança). Anualmente, esses livros
eram distribuídos às escolas, pela secretaria do estado, e dinamizados por meio de
projetos de leitura desenvolvidos nas instituições escolares.
Com a disseminação da política de Alfabetização na Idade Certa (PAIC) por
todo o estado do Ceará e seu reconhecimento por muitos estados da Federação, em
2013, o Governo Federal, tomando por base o compromisso assumido no plano de
desenvolvimento da educação, PDE de 2007 e no Plano Nacional de Educação (PNE),
resolveu consolidar essa política em âmbito nacional, e criou então o PNAIC (Pacto
Nacional pela Alfabetização na Idade Certa) que, utilizando as bases da política
educacional definidas no PDE de 2007 e do PNE, estabeleceu parâmetros para o
desenvolvimento dessa alfabetização e sua consolidação dentro do chamado ciclo de
alfabetização (do 1º ao 3º ano do Ensino Fundamental).
O PNAIC também contemplou a formação de leitores e, para isso, viabilizou a
distribuição de acervos de literatura infantil destinados aos ciclos de alfabetização,
chegando às escolas a colação PNBE/PNAIC com livros de literatura das mais
variadas temáticas e trazendo consigo um time de autores consagrados na literatura
infantil nacional e mundial. Essas obras adentram as escolas para, juntamente, com a
coleção Paic Prosa e Poesia, compor os cantinhos de leitura montados nas salas de
aula e promover o desenvolvimento de projetos de leitura pautados no trabalho com a
literatura infantil.

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É interessante ressaltar que para as Políticas de incentivo à leitura, é de


suma importância que tenhamos leitores sendo formados nas escolas e que a
qualidade dos materiais destinados para essa formação seja bem conduzida, sem
esquecer o papel do mediador nesse processo.
[...] apenas o acesso aos livros não garante sua apropriação, sendo
de fundamental importância a mediação do professor para a formação
dos leitores. Mediar a leitura significa intervir para aproximar o leitor
da obra e, nesse sentido, o trabalho do professor assume uma
dimensão maior, uma vez que extrapola os limites do texto escrito,
promovendo o resgate e a ampliação das experiências de vida dos
alunos e do professor mediador. (PNBE na Escola, 2014, p. 7)
Esse processo de mediação não inclui apenas os professores, mas os pais e
responsáveis pelos alunos, haja vista que o processo de leitura deve transpor o
ambiente escolar e adentrar na comunidade, nas casas dos alunos e contagiar o
máximo de adeptos possíveis. Como nas palavras de Rubem Alves sobre o prazer da
leitura ―[...] Ouvindo, os estudantes experimentarão os prazeres do ler. E acontecerá
com a leitura o mesmo que acontece com a música: depois de ser picado pela sua
beleza é impossível esquecer.‖ Assim se concebe o nascer de um leitor que por
intermédio de um mediador experimenta e se contagia com a leitura e suas tessituras.

A Literatura Infantil no contexto das políticas públicas de incentivo à


leitura

Destacamos, anteriormente, que a Literatura Infantil se faz presente nas


Políticas Públicas de incentivo à leitura por meio da aquisição de materiais de leitura
como: livros, periódicos e materiais para formação de mediadores.
É importante salientar que a aquisição de obras literárias é muito importante,
mas não o suficiente para garantir a formação de leitores e que a presença da
Literatura infantil urge ser mais que a aquisição de obras literárias. Se tomarmos por
base a grande preocupação com a alfabetização das crianças e a melhoria na
compreensão textual de alunos, seja no final do Ensino Fundamental, ou no final do
Ensino Médio, veremos as Políticas Públicas focadas em promover o contato com o
texto literário como forma de melhorar a qualidade da leitura das crianças. Mas, será
esse o único papel da literatura infantil?
Instituiu-se um vínculo muito forte entre Literatura Infantil e educação, ao
ponto dessa literatura vir a ser subsidiária dessa educação formal, mas como bem nos
esclarece Cademartori (2010), a natureza literária põe o texto literário mais adiante
dos objetivos pedagógicos ―[...] É como entretenimento, aventura estética e subjetiva,
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reordenação dos próprios conceitos e vivências, que a literatura oferece, aos


pequenos, padrões de leitura do mundo (p. 8)‖.
Essa literatura, que muitas vezes foi denominada de arte menor, ocupou seu
lugar de destaque no panorama educacional, não apenas como instrumento para o
ensino da língua, mas como arte que liberta pela palavra, que encanta e promove
construção de significados por toda sua subjetividade. Arte que permite a criação de
interpretações e o encontro entre a língua e suas múltiplas facetas.
Desse modo, a literatura infantil adentra nas Políticas Públicas de promoção
da leitura com papel de destaque, permitindo que se tenham experiências com a
linguagem e com os sentidos, dentro de um espaço de liberdade que só a leitura
literária pode oferecer, mas sempre com cautela para não didatizá-la ao ponto de
extinguir seu papel de promover uma interação prazerosa entre leitor e livro. Como
nos deixa claro Soares (2001, p. 24-25) quando diz que:
[...] o que se quer deixar claro é que a literatura é sempre e
inevitavelmente escolarizada, quando dela se apropria a escola; o
que se pode é distinguir entre uma escolarização adequada da
literatura – aquela que conduza mais eficazmente às práticas de
leitura que ocorrem no contexto social e às atitudes e valores que
correspondem ao ideal de leitor que se quer formar – e uma
escolarização inadequada, errônea, prejudicial da literatura – aquela
que antes afasta que aproxima de práticas sociais de leitura, aquela
que desenvolve resistência ou aversão à leitura.
Se por um lado garantir o direito e o acesso a materiais de leitura é papel
preponderante das Políticas Públicas de incentivo e formação de leitores, não
podemos deixar de cobrar dessas políticas que esse papel seja realizado levando-se
em consideração a formação holística desses alunos, pois não lemos apenas para
adquirimos conhecimentos sistematizados, lemos também para imergir no imaginário,
para conhecer outras culturas, para nos familiarizarmos com a língua, para dar
mobilidade aos nossos anseios, para deixar fluir nossos sonhos, para descobrir os
encantos da vida, para mergulhar nas entranhas do desconhecido, que
gradativamente vai se desvelando ao passar das páginas de um bom livro.
Por conseguinte, Cademartori (2010) nos esclarece que ―a Literatura Infantil é
um modo de oferecer aos pequenos um tipo de informação e de recorte do mundo
distintos daqueles que consomem diariamente‖, nos levando a compreender que a
literatura infantil tem um papel preponderante na formação e no desenvolvimento
cognitivo das crianças, envolvendo aspectos ligados às emoções, às aprendizagens, à
criatividade, à autonomia e à sensibilidade das crianças.
Importante lembrar também que as Políticas Públicas de incentivo à leitura
desempenham um papel na escolha dessa literatura que circula nos espaços

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escolares, exercendo um papel fiscalizador, principalmente, na escolha das obras que


farão parte desses espaços, levando em consideração a qualidade textual
representada pelos aspectos estéticos, éticos, literários e estruturais. Além disso,
observando também questões atreladas a escolha vocabular que respeite e amplie o
repertório linguístico de cada público, levando em consideração suas especificidades.
O compromisso assumido por essas políticas é fazer com que o livro chegue
às escolas e em quantidade suficiente aos espaços escolares e possam ser mediados
e usufruídos da melhor forma pelos alunos, e que contribuam de alguma forma, na
formação cada vez maior de leitores críticos, comprometidos e conscientes do seu
papel presente e futuro dentro da sociedade a qual pertencem.

Os espaços de leitura literária dentro das escolas: os projetos de leitura

Dentre as diversas funções da escola, uma delas, que pode ser considerada
como primordial, é de formar indivíduos leitores. Ela é constituída por espaços que
propiciam a formação leitora dos alunos a partir do desenvolvimento do gosto pela
leitura dos diferentes textos apresentados ao seu público. Coelho (2000, p. 16)
destaca esse papel da escola como espaço fecundo para o desenvolvimento de
práticas de leitura literária.
[...] a escola é, hoje, o espaço privilegiado, em que deverão ser
lançadas as bases para a formação do indivíduo. E, nesse espaço,
privilegiamos os estudos literários, pois de maneira mais abrangente
do que quaisquer outros, eles estimulam o exercício da mente; a
percepção do real em suas múltiplas significações; a consciência do
eu em relação ao outro; a leitura do mundo em seus vários níveis [...]
É na escola, que a literatura infantil encontra espaço para adentrar ao
universo das crianças, despertando a atenção e a reflexão sobre sua condição
pessoal, como num jogo entre realidade e fantasia. A maior parte dessas crianças tem
o primeiro contato com os livros no espaço escolar, apesar da imposição e
obrigatoriedade cheia de pretextos educativos e pedagógicos.
Desse modo, a escola transforma-se para que uma nova consciência leitora
nasça. Assim, os projetos de leitura adentram o ambiente escolar e proporcionam um
enlace entre leitura literária, planejamento pedagógico e formação de leitores. Lerner
(2002, p. 80) nos diz que: ―Os projetos vinculados à leitura literária se orientam para
propósitos mais pessoais [...] permitem transcender os limites da realidade cotidiana.‖
Tem-se a leitura como arte da palavra que encanta e permite a transposição de
saberes pedagógicos e a construção de relações sociais.

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A leitura para ter significado precisa antes ser um processo interativo entre os
sujeitos participantes. Na sala de aula, este acontece por meio da interação do
professor com os alunos, pois é durante essa interação que o leitor inexperiente se
aproxima do objeto de estudo e passa a conhecê-lo e compreendê-lo melhor. Nos
espaços coletivos extra sala de aula, as interações acontecem entre os pares
aluno/aluno, aluno/professor, professor/professor, aluno/funcionário,
professor/funcionário, alunos/comunidade. Nas palavras de Colomer (2007) a leitura
literária se destaca na prática cotidiana:
Na prática escolar é evidente que a leitura literária acessível aos
alunos ganhou espaço nas aulas. Na pré-escola e no primário, a
presença de livros para crianças se acha em consonância com
determinados objetivos escolares, que têm a vantagem de ser
percebidos e aceitos com clareza por todos. Os professores sentem-
se seguros ao afirmar que ler livros com os meninos e meninas ajuda
a que se familiarizem com a língua escrita, facilita a aprendizagem
leitora e propicia sua inclinação para a leitura autônoma. (COLOMER,
2007, p.33)
A construção do prazer de uma boa leitura atravessa também as interações
vividas dentro do contexto escolar que precisa dar-se de maneira sistemática e
diversificada, suscitando uma aprendizagem significativa para o aluno.
Destarte, destacamos os projetos envolvendo esse tipo de leitura no cotidiano
de duas escolas públicas do município de Fortaleza, no estado do Ceará, no ano de
2016. O acompanhamento a essas escolas era realizado, pelo menos, uma vez por
semana pelas equipes de ensino envolvidas na formação de professores340 e no eixo
de formação de leitores4.
As equipes de acompanhamento, com antecedência, recebiam o plano de
ação das escolas e juntos a esse plano a descrição de todos os projetos de leitura a
serem desenvolvidos pela escola durante o período letivo. Importante ressaltar que
nessas escolas em particular, todos os segmentos de ensino se envolveram no
planejamento, desenvolvimento e execução dos projetos de leitura. As duas escolas
apresentavam um público que abrangia alunos da Ed. Infantil ao 5º ano do Ensino
Fundamental, distribuídos entre os turnos manhã e tarde.
Nos acompanhamentos, a equipe do eixo de literatura infantil e formação do
leitor verificava o desenvolvimento desses projetos junto aos professores e
coordenadores, no momento do planejamento. Além disso, acompanhávamos a

340
Fortaleza é divida em seis Distritos, dentre os quais estão os Distritos de Educação que são
responsáveis pelo acompanhamento das escolas que fazem parte do seu entorno. Cada
distrito dispõe de equipes para esse acompanhamento. São elas: equipe de Formação de
Professores, Avaliação, Literatura Infantil e Formação do leitor, EJA, Atendimento Educacional
Especializado, Ed. Infantil, Gestão Escolar e Superintendência.
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execução do projeto por toda escola. O envolvimento de todos foi muito significativo
para o sucesso das ações leitoras desenvolvidas. O exemplo disso foi o ―projeto
Pequenos Escritores‖, apresentado por uma das escolas citadas neste trabalho. Nesse
projeto, uma aluna teve seu primeiro livro de poemas, publicado em parceria com a
escola, e distribuído, num dia de autógrafos, entre toda a comunidade escolar. Lerner
(2002, p. 79) nos esclarece sobre esse tipo de atividade desenvolvida na escola:
Na escola, já dissemos, a leitura é antes de mais nada um objeto de
ensino. Para que também se transforme num objeto de
aprendizagem, é necessário que tenha sentido do ponto de vista dos
alunos, o que significa, entre outras coisas, que deve cumprir uma
função para a realização de um propósito que ele conhece e valoriza.
Em vista disso, os projetos de leitura que serão descritos a seguir, mostram a
teia de relações estabelecidas dentro e fora da escola. Haja vista ser este o locus de
integração das relações sociais que envolvem leitura, escrita, saberes e construção de
conhecimentos.
Preservar as relações entre a literatura e a escola, ou o uso do livro
em sala de aula, decorre de ambas compartilharem um aspecto em
comum: a natureza formativa. De fato, tanto a obra de ficção como a
instituição do ensino estão voltadas à formação do indivíduo ao qual
se dirigem. (ZILBERMAN, 2003, p. 25).
Esses projetos, fomentados pela necessidade de ressignificar as ações
leitoras que aconteciam nas escolas e que, muitas vezes, suscitavam apenas saberes
pedagógicos atrelados aos conteúdos escolares, deram as escolas e a seus atores
uma nova perspectiva do trabalho pedagógico pautado na ideia de leitura como prática
cultural subsidiada pelo texto literário expresso por meio de relatos orais, contações de
histórias, leituras compartilhadas, contato com livros e autores.
Os projetos que mais se destacaram estão descritos abaixo, seguidos de um
breve relato de como aconteciam nas escolas, quais eram os principais objetivos e
quem eram os envolvidos.
Acolhida literária foi um projeto desenvolvido nas escolas supracitadas
durante todo o ano letivo de 2016, cujo objetivo principal era integrar, num mesmo
ambiente leitor, pais, alunos e professores na disseminação da leitura literária. Esse
projeto era realizado em espaços coletivos das escolas como: pátio, biblioteca e
corredores. Essa ação, descrita no plano de ação da escola, foi vivenciada por todos
os segmentos presentes na escola, desde a Ed. Infantil aos anos finais do ensino
fundamental.
O Projeto Pequenos Escritores, mencionado anteriormente, destacou o
protagonismo de alunos na construção do texto literário e na apresentação de suas
produções à comunidade escolar, por meio da publicação e disseminação, na escola,

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da obra produzida pelos alunos, sendo a mesma lidae apreciada por todos. As
produções englobavam textos em prosa e poesia.
No Recreio Literário, alunos, professores e funcionários disfrutavam do prazer
de uma boa leitura no momento do intervalo das aulas. Nos espaços coletivos, os
livros de literatura eram dispostos ao manuseio das crianças e a leitura era
compartilhada por todos.
A Biblioteca viva proporcionava aos alunos encontros periódicos no espaço
da biblioteca escolar e o contato com o acervo literário, envolvendo diversos livros de
literatura infantil e infanto-juvenil. Além disso, nesse espaço os alunos dispunham do
momento de empréstimos de livros que podiam ser levados para serem lidos em casa
com seus familiares.
A sacola literária tornou-se febre entre as escolas Esse projeto contou com a
participação ativa dos professores, pois os mesmos eram encarregados da escolha
dos livros que seriam colocados nas sacolas e levados pelos alunos, proporcionando
aos pequenos leitores momentos de leitura compartilhada com pais, responsáveis e
possíveis interessados.
O Projeto escritor do mês trazia para o estudo das crianças a vida e obra de
um escritor, geralmente escolhido dentro do planejamento pedagógico. Cada turma
ficava responsável por fazer pesquisas, garimpar obras na biblioteca da escola,
conhecer a fundo tudo sobre o escritor destinado a sua turma. Todo esse trabalho
supervisionado e amparado pelo professor que buscava, quase sempre, destacar o
protagonismo das crianças e adolescentes da sala.
Todos os projetos aqui mencionados foram compartilhados e vivenciados por
todos nas escolas. Seja por um período estabelecido, seja por todo período letivo,
esses projetos trouxeram à tona como destaque a atuação das escolas como um todo.
Desde o planejamento das ações, à preparação dos materiais, passando pelo
engajamento de alunos, professores, coordenadores pedagógicos, funcionários,
comunidade na realização de seminários, apresentações artísticas e teatrais, diálogos
sobre vida e obra dos escritores, exposições, momentos de leitura livre nos pátios,
corredores, salas de aula, visitas ilustres de escritores cearenses consagrados nos
gêneros literários, enfim, uma verdadeira menção honrosa ao trabalho dignificante que
a literatura exerce no cotidiano pedagógico.

Considerações Finais

O estudo nos desvelou algumas constatações acerca da utilização da leitura


literária no espaço escolar e como essa prática pode realmente transformar contextos
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educacionais e potencializar o desenvolvimento de ações leitoras que representem a


construção de significados para os alunos dentro e fora do contexto escolar.
Primeiramente, destacamos a importância que as Políticas de Formação de
leitores, dentro e fora do contexto escolar, destinaram às instituições de ensino, seja
por meio da aquisição de materiais de leitura, seja pela formação de professores
disseminadores dessa prática, ou pela valorização dos espaços como bibliotecas e
salas de leitura.
Em seguida, a literatura infantil se apresenta como ferramenta para fomentar
a formação de leitores com características que transcendam a leitura como
instrumento de compreensão do sistema notacional, a simples decodificação e
estabeleça um enlace com o texto e suas tessituras, suas artimanhas, seus segredos,
estabelecendo, assim, uma relação de troca de sentidos, de existência, de saberes e
experiências que proporcione às crianças a construção de significados a partir do texto
lido.
Logo, a escola aparece como espaço privilegiado para que essa literatura se
apresente e se manifeste, promovendo ações que envolvem a leitura literária. Aqui,
escola e sujeitos aprendentes dividem tarefas na busca por um único objetivo,
disseminar a leitura e formar leitores comprometidos não só com o bom uso da língua,
mas também com a leitura que farão do mundo a seu redor, propagando sentimentos,
conceitos e atitudes.
E, finalmente, o protagonismo apresentado por alunos, professores e
comunidade escolar traz a baila e concretiza a importância da literatura infantil e a
propagação da leitura literária, por meio dos projetos de leitura desenvolvidos nas
escolas, que deixa em nossas mentes a certeza de que o encantamento pela palavra,
jamais se dissipara e que formar leitores requer compromisso, planejamento e uma
―pitada‖ de imaginação.

Referências

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19/07/2001.
BERENBLUM, Andréa. Por uma política de formação de leitores / elaboração
Andréa Berenblum, Jane Paiva. – Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de
Educação Básica, 2006.
BRASIL. Lei n.º 12.244 de 25 de maio de 2010: Dispõe sobre a universalização das
bibliotecas nas instituições de ensino do País, Brasília: DF. Diário Oficial da União.
Poder Legislativo, 25/05/2010, seção 1, p. 3.
BONA, Elisa Maria Dalla. Letramento literário: ler e escrever literatura nas séries
iniciais do Ensino Fundamental. 01/02/2012, 312f. Tese (Doutorado em Educação).
Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2012.
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CEARÁ. Secretaria da Educação.Regime de colaboração para a garantia do direito


à aprendizagem: o Programa Alfabetização na Idade Certa (PAIC) no Ceará /
Secretaria da Educação, Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). --
Fortaleza: SEDUC, 2012.
_______. Secretaria da Educação. Proposta Curricular de Língua Portuguesa- 1º
ao 5º ano – Estado do Ceará. Fortaleza: SEDUC, 2014.
CADEMARTORI, Lígia. O que é Literatura Infantil. 2. ed. São Paulo: Brasiliense,
2010. (Coleção Primeiros Passos)
COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: teoria, análise e didática. São Paulo:
Moderna, 2000.
COLOMER, Teresa. Andar entre livros: a leitura literária na escola. [tradução Laura
Sandroni]. São Paulo: Global, 2007.
FEBA, Berta Lúcia Tagliari e SOUZA, Renata Junqueira de. Leitura Literária na
escola: reflexões e propostas na perspectiva do letramento. Campinas, SP: Mercado
de Letras, 2011.
LERNER, Délia. Ler e aprender na escola: o real, o possível e o necessário. Porto
Alegre: Artmed, 2002.
PAIVA, Aparecida [et al]. Letramento literário na sala de aula: desafios e
possibilidades In: Alfabetização e letramento na sala de aula. CASTANHEIRA,
Maria Lúcia (Org). Belo Horizonte: Ceale, 2009, p. 103 a 119.
______.Reflexões sobre políticas públicas brasileiras de leitura. (Coleção Didática
e Prática de Ensino). Convergências e tensões no campo da formação e do
trabalho docente. BeloHorizonte: Autêntica, 2010, p. 509 a 522.
PNBE na escola: literatura fora da caixa/ Ministério da Educação; elaborada pelo
Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita da Universidade Federal de Minas Gerais. –
[Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2014].
SOARES, Magda. A escolarização da literatura infantil e juvenil. In:
EVANGELISTA, A. et al. (Org.). A escolarização da literatura infantil: o jogo do livro
infantil e juvenil. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
SOLÉ, Isabel. Estratégias de Leitura. 6 ed. Porto Alegre: Artmed, 1998.
ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. 11. ed. São Paulo: Global,
2003.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

A LITERATURA INFANTIL EM ESPAÇOS EDUCATIVOS DE


PRESIDENTE EPITÁCIO

Eliane Aparecida Bacocina, IFSP / Presidente Epitácio, Eixo temático 9 – Os


espaços da leitura literária
Amanda Gabriella Bonilha da Silva, IFSP / Presidente Epitácio, Eixo temático 9
– Os espaços da leitura literária
Sthephany Rodrigues Pereira, IFSP / Presidente Epitácio, Eixo temático 9 – Os
espaços da leitura literária.

Considerações Iniciais

Era uma vez…


Assim começam quase todas as histórias… Então, também começaremos
assim.
Era uma vez um projeto de extensão encarregado de uma importante missão,
seu nome era comprido: Comunidade criativa da Orla do Rio Paraná: Produzindo arte
através da literatura. Seu objetivo primordial é compartilhar a arte e estabelecer
vínculos por onde passar. Inicialmente, esse projeto ficava limitado às paredes das
salas de aula do Instituto Federal de São Paulo - Câmpus Presidente Epitácio e a
aulas sobre arte e cultura destinadas a professoras e artistas da cidade, mas ao longo
do tempo esse espaço tornou-se pequeno, porque a arte e a literatura não conseguem
limitar-se. Percebendo essa tendência do curso de transbordar conhecimento, uma
das educandas do próprio projeto de extensão nos convidou para a liberdade,
convocando-nos para participar da APAE regional. Ao recebermos esta solicitação,
ficamos extasiados de tanta alegria.
Mas, espera, o que é a APAE?
A APAE é a associação de pais e amigos dos excepcionais de Presidente
Epitácio. Nosso primeiro contato fora estabelecido em uma pesquisa de campo com o
intuito de conhecer a instituição em ambos os períodos ( matutino e vespertino ) e
cada sala do ambiente. Chegamos a conclusão que indubitavelmente seria necessário
1705

estabelecer um tipo de atividade para cada turma, considerando as especificidades de


cada turma, ou melhor, de cada pessoa atendida pelo local.
Nosso retorno estava previsto para a Semana do Excepcional, portanto,
tínhamos tempo para nos debruçarmos sobre pesquisas e atividades destinadas à
especificidade de cada sala.

As ações do projeto
O projeto de extensão Comunidade criativa da orla do Rio Paraná: produzindo
arte através da literatura é um projeto do câmpus IFSP - Presidente Epitácio,
institucionalizado a partir do edital da PRX 823-2016, possui como objetivo principal
estimular manifestações artísticas dos educandos. São ações do projeto:
- Curso para educadores ―A linguagem visual na sala de aula‖, oferecido em
duas turmas, no 1º e 2º semestres de 2017.
- Atividades culturais - saraus, desenvolvidos no câmpus do IFSP Presidente
Epitácio e outros espaços do município.
- Atividades educativas a partir da arte e da literatura em instituição do
município.
Nosso texto terá como foco a terceira ação acima apresentada - a busca e
atuação em espaços educativos.
Como definir esses espaços? Nossa proposta é que essa ação surgisse de
convite dos educadores participantes do curso que se identificassem com nossa
proposta.
Quando apresentamos nosso projeto, já nos primeiros encontros do curso, o
convite surgiu. E foi para desenvolvermos um trabalho na APAE, um lugar todo
especial, repleto de pessoas que possuem modos especiais de viver e conviver, ver o
mundo... Dessa forma, quando o projeto foi ampliado, expandindo os limites da aula e
chegou a APAE, seu propósito não se alterou.
Em cada ambiente da instituição há uma particularidade e, para cada um
deles, alguns desafios. Para sermos bem recebidas sem causar transtornos, fomos
vestidas trajando um sorriso no rosto e esperança, sapato colorido para entrar na
dança, cabelos divertidos (só faltou fazer uma trança) e uma história bem elaborada
para as crianças ― O mundo de Blue‖. Essa história envolve a individualidade, a
diversidade e possui a reflexão sobre respeito e sua essência é fundamentada em
sonhar e criar.

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O feedback fora extremamente positivo, com direito a pintura de rosto para


alegrar ainda mais o espaço que nos fora concedido, acompanhado de dança e
bambolês.

Experiência da leitura e o papel da literatura

O homem é um vivente com palavra. E isto não significa que o


homem tenha a palavra ou a linguagem como uma coisa, ou
uma faculdade, ou uma ferramenta, mas que o homem é
palavra, que o homem é enquanto palavra, que todo humano
tem a ver com a palavra, se dá em palavra, está tecido de
palavras, que o modo de viver próprio desse vivente, que é o
homem, se dá na palavra e como palavra. (LARROSA, 2002, p.
21).

Palavras… modos de nos comunicar com o mundo. Na APAE, em alguns


momentos, foi necessário ir além das palavras… considerando a forma como cada um
dos participantes vê e interage com o mundo.
Iniciamos pela literatura. Literatura é palavra. Palavra que conduz ao processo
de humanização, tal como apresenta Antonio Cândido (1995):

Entendo aqui por humanização o processo que confirma no


homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o
exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição
para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade
de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a
percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do
humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade
na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos
para a natureza, a sociedade, o semelhante. (CÂNDIDO,1995,
p. 180).

Visitar a APAE e percorrer seus espaços colocou-nos em contato com a nossa


própria humanidade.... abrir-nos ao modo de aprender do próximo, afinar nossas
emoções… parar para pensar na experiência que ali está envolvida. Experiência no
sentido que Larrosa apresenta em seu texto Notas sobre a experiência e o saber de
experiência (2002).
O trabalho de extensão tem sido pensado a partir da concepção de Paulo
Freire (1993) e Jorge Larrosa (2002), dois autores que propõem educar a partir da
leitura de mundo e da experiência, ideias segundo as quais a arte e a literatura
constituem-se como campos privilegiados de atuação. Assim como a formação dos
educadores tem se desenvolvido a partir de atividades de experimentação e reflexão
sobre as temáticas da arte, da literatura e do papel da arte na formação dos
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educadores participantes do projeto, procuramos levar essas mesmas temáticas para


a APAE.
Enquanto educadoras, uma das principais referências que temos no que se
refere à formação do educador é o professor português Antonio Nóvoa (1991), que
leva a pensar que a formação vai além do conhecimento técnico. A partir do
pensamento do autor, ousamos pensar que ―o professor é a pessoa. E uma parte
importante da pessoa é o professor. ‖ E como ele continua: ―Urge por isso (re)
encontrar espaços de interacção entre as dimensões pessoais e profissionais,
permitindo aos professores apropriar-se dos seus processos de formação e dar-lhes
um sentido no quadro das suas histórias de vida‖. (NÓVOA, 1995, p. 25), o que nos
leva retomar nosso encontro com a APAE. Como separar quem somos e a formação
que recebemos, nossas histórias de vida, da vivência a ser planejada e desenvolvida
na APAE? Para o planejamento das atividades, retomamos muito da nossa própria
vivência com a literatura e com nosso processo educativo, nos deparamos também
com nossas inseguranças e nossas incertezas, ao pensar sobre algumas deficiências
com as quais não soubemos como agir… Em contato com nossa humanidade, mais
uma vez citando Cândido, penetramos nos problemas da vida e nos deparamos com a
complexidade do mundo, afinando nossa sensibilidade.
Na visão de Freire, que destaca o papel da leitura de mundo no processo de
aprendizado, afirmando que ―linguagem e realidade se prendem dinamicamente‖
(FREIRE, 1993) e de Larrosa, quando afirma que ―somente o sujeito da experiência
está, portanto, aberto à sua própria transformação. ‖ (LARROSA, 2002, p. 26),
podemos dizer que ao nos abrirmos para a experiência, ao nos permitimos ser
agentes de transformação naquele espaço educativo, formo, ao mesmo tempo,
transformadas por ele.
Criamos uma história - ―O mundo de Blue‖, a partir da qual tínhamos como
objetivo que as crianças se identificassem com nossa personagem diferente. Essa foi
a mensagem que quisemos compartilhar.

Era uma vez Blue, uma menina azul.


Isso mesmo, uma menina da cor azul como o céu.
Seu cabelo era rosa Pink como chiclete.
E dentes brancos como a nuvem.
Ela era feliz e vivia em um mundo onde podia fazer tudo o que
queria.
Até que, em um belo dia, sua mãe disse que ela estava
crescendo e precisava ir à escola, afinal um novo mundo a
esperava lá dentro da escola.
Ela estava ansiosa, não sabia o que a esperava naquele novo
lugar...
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Até que chegou o dia, ela se arrumou e estava linda, vestiu


suas roupas de coragem, colocou no rosto seu melhor sorriso e
foi.
Chegando lá, encontrou um mundo alegre, onde ela poderia se
tornar tudo o que quisesse, mas para isso teria que se esforçar,
lutar pelos sonhos. Blue queria ser bombeira, médica, jogadora
de futebol, veterinária e... astronauta. Isso mesmo: astronauta.
Parece loucura, mas para Blue tudo era possível, afinal,
sempre vivia com a cabeça na lua.
Mas ela se sentia diferente no meio das outras pessoas,
porque ela era única azul..., mas todo mundo dizia que ela era
especial, mas ela não entendia o que isso significava.
Na escola ela fez vários amigos, e conheceu sua primeira
professora, que explicou que todos eram diferentes, e ser
diferente não era motivo para viverem sozinhos. Já pensou
como o mundo seria chato se fossem todos iguais e gostassem
das mesmas coisas?
Blue ainda estava pensativa sobre ser especial e foi explorar o
seu novo mundo.
Reparou que cada coisa tinha a sua cor, mas não entendia
como isso era possível.
Foi até o jardim e viu um lago.
Aproximou-se dele e viu que tinha um lindo peixe com várias
cores, assim como o arco-íris.
Aproximou do peixe, pois nunca tinha visto um igual e, para
sua surpresa, o peixe falou com ela. Ela se assustou, mas
respondeu para o tal peixe...
- Uau! Que cor mais interessante a tua, menina!
- Você... você fala?
- Sim e, pelo jeito, você também.
E continuou o peixinho:
- Você tem uma cor muito linda!
- Eu não gosto muito, porque os meus amigos não são iguais a
mim...
- E isso é maravilhoso, menina! Isso te torna única. Você já viu
como o céu é grande? Ele está em cima de tudo e todos, ele é
lindo, único e especial, assim como você!
Blue escutou cada palavra do peixinho, e viu o quão era bom
ser diferente. Então entendeu o significado da palavra especial
- era ser única, ser ela mesma, ser livre. Era ter asas para
voar... Por falar em asas... todos nós temos asas. Então voe
nas asas da imaginação. E vá para onde quiser... seja o que
quiser ser, seja Blue, seja peixe, seja você.
(Texto produzido pelas autoras deste artigo).

Não sabemos dizer ao certo de que forma cada pessoa que ouviu a história a
assimilou. Procuramos criar um cenário semelhante ao que propõe Ricardo Azevedo,
quando discorre sobre o papel da literatura. Um cenário no qual fosse possível o
compartilhar.

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É riquíssimo imaginar um cenário onde, juntos, adultos e


crianças - em casa, numa sala de aula, seja onde for - possam
trocar ideias e impressões sobre assuntos diante dos quais
ninguém, seja qual for a faixa etária, pode ―ensinar‖. Neste
cenário, só é possível compartilhar experiências. Suspeitar ou
sugerir, por outro lado, que crianças não tenham experiência
de vida suficiente a ser compartilhada com adultos é ignorar a
experiência humana concreta. (AZEVEDO, 2004, p. 44).

Enfatizamos que essa experiência de troca de ideias, por se tratar de um local


tão especial e cheio de diferenças, nem ocorreu apenas com palavras, mas também
com olhares, toques minuciosos e singulares.
Para tocar cada um deles, juntamente com a história, levamos também tintas
coloridas, que ficaram carimbadas em todos os rostinhos que estavam ali, além de
bambolês, caixa de som e outros acessórios.

A experiência
A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos
toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase
impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar,
parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar,
olhar mais devagar e escutar mais devagar; parar para sentir,
sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a
opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o
automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir
os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece,
aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do
encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.
(LARROSA, 2002, p. 24).

Olhar para a APAE exigiu de nós um olhar mais demorado, ao planejar cada
uma das atividades que levamos aos grupos de pessoas que ali frequentam.
Traremos aqui o nosso olhar… olhar em imagens… já que as palavras pouco
dão conta de contar…

Figura 1: Vamos conversar? O sorriso diz tudo...

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Fonte: arquivos das autoras

Figura 2: Quem começa o jogo?

Fonte: arquivos das autoras

Figura 3: O pessoal gosta de música e futebol

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Fonte: arquivos das autoras

Figura 4: Bambolês fazem parte da brincadeira

Fonte: arquivos das autoras

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Figura 5: Blue, a menina azul. Qual a cor de cada um?

Fonte: arquivos das autoras

Figura 6: O toque e as cores chamaram a atenção

Fonte: arquivos das autoras


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Figura 7: No rosto, um coração. E no coração, o que ficará?

Fonte: arquivos das autoras

Considerações finais
É experiência aquilo que ―nos passa‖, ou que nos toca, ou que
nos acontece, e ao nos passar nos forma e nos transforma.
Somente o sujeito da experiência está, portanto, aberto à sua
própria transformação. (LARROSA,, 2002, p. 26).

Colocando em prática a ideia de Azevedo, de ―levar em consideração certas


características e especificidades da Literatura, entre elas, seu compromisso profundo
e essencial com a experiência humana concreta‖. (AZEVEDO, 2004, p. 46), o que
ficou como possibilidade de transformação foi a experiência que acrescentou em
nossa bagagem de conhecimento...
Experiência que compõe a essência humana...
Vivências que inovam ...
Artes como forma de integração...
Literatura que transforma e abre portas...
Encontros como forma de união de pensamentos...
Imagens que expressam histórias e sentimentos...
A importância de escutar o que se diz... com e sem as palavras…
Aqui terminamos nosso texto, ainda com tantas coisas a contar, mas cuja
profundidade as palavras não alcançam.

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Como terminar?
Assim como terminam a maior parte das histórias…
―Entrou por uma porta
Saiu pela outra.
E quem quiser que conte outra. ‖

Referências

AZEVEDO, Ricardo. Formação de leitores e razões para a literatura. In: SOUZA,


Renata Junqueira. Caminhos para a formação do leitor. 1ª ed. São Paulo: DCL,
2004.
BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte: anos oitenta e novos tempos.
São Paulo: Perspectiva; Porto Alegre: Fundação IOCHPE, 1991.
_____________. (org.). Inquietações e mudanças no ensino da arte. 2a ed. São
Paulo: Cortez, 2003.
CÂNDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: ______. Vários escritos. 3ª ed. São
Paulo: Duas cidades, 1995.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler em três artigos que se completam. 28
ed. São Paulo: Cortez, 1993.
LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. In: Revista
Brasileira de Educação. Jan/fev/mar/abr, 2002.
NÓVOA, António. (org.). Vidas de professores. Porto: Porto, 1995.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

BIBLIOTECA ESCOLAR E PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO:


PLANEJAMENTO INTEGRADO?

Maria Marismene Gonzaga, UNESP, Os espaços de leitura literária


Renata Junqueira de Souza, UNESP, Os espaços de leitura literária

Considerações Iniciais

O conhecimento aprendido na escola e construído ao longo da trajetória do


educando pode propiciar o desenvolvimento de pessoas críticas e conscientes e, por
conseguinte, a prática social e cultural.
Nesse sentido, a biblioteca escolar (BE) tem muito a contribuir para que isso
aconteça, pois a aquisição do conhecimento não se dá somente na sala de aula, por
meio do professor. É preciso reconhecer que a BE é parte integrante do processo
educativo, sendo essencial a qualquer tipo de estratégia de longo prazo, no tocante ao
aprimoramento da leitura e da escrita, ao acesso à informação e ao desenvolvimento
social, cultural e econômico.
Nesse sentido, é mister que a biblioteca, como espaço de informação e
conhecimento, desenvolvimento das habilidades informacionais e acesso à cultura
letrada, seja contemplada no projeto político-pedagógico da escola (PPP) de maneira
a contribuir e organizar o currículo escolar e instigar o trabalho interdisciplinar.
Considerando esse pressuposto, desenvolvemos uma pesquisa 341 cujo
objetivo principal foi analisar o enfoque dado à biblioteca no PPP e sua contribuição
para o trabalho de formação de leitores, e para o acesso a objetos informacionais e
bens culturais. Para tanto, realizamos um estudo de caso com abordagem qualitativa,

341Título original da dissertação: Biblioteca escolar e projeto político pedagógico: um estudo de caso. Professora orientadora Dra. Renata
Junqueira de Souza
1716

desenvolvido em uma escola pública da rede municipal de educação básica de


Presidente Prudente, SP.
As análises e teorias que subsidiaram a estrutura do estudo foram baseadas
em teóricos que discutem a função da biblioteca escolar, o projeto político-pedagógico,
a leitura e a leitura da literatura. De modo que a referência bibliográfica tem como
principal respaldo Campelo (2010), Veiga (1995, 2013), Veiga e Resende (1998).
Foram utilizados dois instrumentos de pesquisa – um roteiro para a análise
documental e outro para as entrevistas, elaborados exclusivamente para o estudo.
Fizeram parte dessa investigação dez entrevistados: profissionais que atuam na
biblioteca escolar, professores, o orientador pedagógico, o diretor da escola e
representante do Conselho de escola, segmento pais.
Os entrevistados foram nomeados, respectivamente, B1e B2 (para as
pessoas que atuam na biblioteca); P1, P2, P3e P4 (para professores); C (para
orientador pedagógico), D (para diretor); M1 e M2 (para pais). A coleta dos dados deu-
se por meio de análise documental e de entrevistas semiestruturadas. Os resultados
foram analisados utilizando a técnica de análise do discurso.

Resultados e discussão

Na análise do projeto político-pedagógico da escola em relação ao tratamento


que este documento dá à biblioteca, percebemos que a BE está inserida em vários
itens do documento.
No que se refere à caracterização da unidade de ensino (UE), foi considerado
o espaço físico destinado à biblioteca, os recursos humanos e materiais. Além disso,
quanto ao levantamento e à identificação de problemas e necessidades para atender o
Ensino Fundamental, há carece de investimento em acervos e na infraestrutura,
especialmente, na ampliação do espaço físico da BE.
No entanto, ao apresentar os planos de trabalhos/funções e
responsabilidades dos profissionais da escola, a biblioteca não se faz presente, bem
como nas funções e responsabilidades do bibliotecário/profissional que atua na
biblioteca. Todas as funções e ações dos profissionais estão contidas no PPP, menos
a do profissional que responsável pela BE. Tampouco são apresentadas ações
pedagógicas coletivas entre os profissionais da escola no projeto.
A seguir foi avaliado o ponto de vista dos entrevistados referente às relações
participativas dos profissionais e da comunidade na construção do projeto político-
pedagógico da escola e a atenção dispensada à biblioteca no documento.

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Em relação à relevância da construção do projeto político-pedagógico da


escola e o envolvimento da comunidade escolar nessa construção foi detectado
que os participantes do estudo reconhecem a importância de se construir um PPP
para escola e o consideram como guia de referência, no qual estão contidos os
objetivos, propostas, o que se deseja alcançar.
Sabem também da relevância de a comunidade participar da construção
desse documento, pois o PPP diz respeito a todos. Além disso, entendem que escutar
a comunidade, principalmente os pais, para realizar o processo pedagógico é
fundamental, conforme os discursos a seguir:

O PPP é a cara da escola, mas, além da cara, é ele que dá corpo pra
escola. [...] ele se constrói diariamente. E é assim, ele se constrói, por
exemplo, a gente teve inauguração da biblioteca e teve outra
demanda e aí o que vamos fazer? Se a gente sentiu a necessidade
de ampliação da biblioteca, então qual o objetivo, não é? Qual é o
objetivo político? Qual é a importância da biblioteca na construção da
aprendizagem dessas crianças? Então o PPP é fundamental. (D)

Eu acho muito importante tanto pra escola como para os alunos.


Acho que pra o andamento, pra uma melhoria... Não adianta a gente
tá reunido aqui e a comunidade não participar de nada e aí como
ficam as crianças? Porque se o pai não participar não tem como. (B1)

É importante porque às vezes a realidade da escola não é a da


comunidade, então a gente tem que escutar a comunidade,
principalmente os pais, a família... Prata realizando o processo
pedagógico mesmo. A participação deles é fundamental. (B2)

É importante não só a participação da comunidade, mas de todos


docentes, discentes, os funcionários da escola. Todos em prol do
crescimento e desenvolvimento da questão da aprendizagem das
crianças. Essa preocupação deve ser de todos e principalmente da
comunidade. (C)

Eu entendo que o PPP é o momento em que você levanta, não só


questões da sala de aula, mas questões da escola inteira:
funcionamento da escola, pra que beneficiário? O nosso aluno. Eu
acho que é importante pra isso, pra que todos se encaixem pra que
haja uma engrenagem, todos se unem e pra beneficiar o aluno. Seja
o da biblioteca, seja dos serviços gerais, seja o da cozinha, todos têm
que trabalhar para um objetivo só, e o PPP nos dá essa direção. O

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nosso objetivo é que o nosso aluno tenha um ambiente agradável,


tenha condições agradáveis pra que ele aprenda melhor. (P2)

Há nesses discursos a visão de que a participação de todos na construção do


PPP é importante e também de que o documento abrange todo o funcionamento da
escola, envolvendo todos os profissionais e a comunidade, colocando-a como o
espaço de ensinar e aprender, como nos trouxe Veiga (2013) ao afirmar a
necessidade de compreendermos que o envolvimento de todos na construção do
projeto, desencadeia uma reflexão coletiva e promove a adoção de uma prática
educativa, na medida em que reflete individual e coletivamente sobre ela.
Quanto ao ponto de vista do professor entrevistado é importante a presença
dos pais nas reuniões e na elaboração do PPP:

Eu quando trabalho na reunião de pais eu coloco pros pais ‗se vocês


não forem meus parceiros eu não consigo trabalhar, eu preciso de
vocês‘. Então, é assim que eu também acredito no PPP. Com pai
dentro, ele sabe como acontece, o que funciona, quais os deveres
dele.

Aqui nessa escola eu sinto bastante a participação dos pais. Eu tenho


pais, que são bem ativos na reunião de conselho, nas reuniões de
pais. E nessa questão do PPP também. (P2)

E ainda, destaca positivamente a politização dos pais ―têm pais que são
envolvidos politicamente, eu acho legal isso nessa escola‖ e a visão democrática do
diretor ―E o diretor dá muito essa abertura de conversar bastante, de buscar essa
parceria com os pais. Ele tem essa visão, que é muito importante para o gestor?‖
A abertura da escola à democratização é condição relevante para
acontecerem as relações participativas, e o diretor tem um papel importante nessas
relações dentro dessa escola. De acordo com Watanabe (1999), o diretor exerce papel
fundamental na condução da escola. Ele é facilitador da participação da comunidade
escolar na tomada de decisão da vida da unidade de ensino. À medida que as
pessoas participam se sentem responsáveis e colaboram solidariamente,
concretizando uma participação coletiva.
É importante que o diretor, não só articule a organização do trabalho da
escola, mas também dos espaços de decisões junto à comunidade, envolvendo-a e
convidando-a a participar das discussões.

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De acordo com Libâneo (2008), entre outras referências para a formulação


dos objetivos educacionais, menciona as necessidades e expectativas de formação
cultural exigidas pela população majoritária da sociedade.
O segmento representante dos pais vê grande importância do PPP e da
participação da comunidade escolar na construção do documento. Destaca com
clareza a necessidade do envolvimento de todos na elaboração, dando relevância à
prestação de um serviço público ao seu usuário.

Ele (o projeto político-pedagógico) é importantíssimo. É ele que vai


direcionar todas as ações da escola, ver quais as suas metas, como
englobar tudo. Porque primeiro você atende a comunidade. Então
você tem que saber o que a comunidade espera do seu trabalho.
Você não faz um trabalho pra você. Você faz um trabalho para o
outro, você tem que saber o que o outro precisa. Você tem que
atender a necessidade do outro. Então você tem que pensar que ele
é o princípio da gestão democrática, pensar no que você vai trabalhar
e como você vai trabalhar. E pra quem você vai trabalhar. (M2)

Entretanto, foi constatado que um dos pais entrevistados, não sabia o que era
o PPP. Solicitou explicação e após inteirar-se sobre o tema, manifestou sua opinião:
―Se o projeto é isto. Então é muito importante, porque traz o planejamento da escola‖.
(M1). Assim, verifica-se que ele não participou da construção do projeto.
Quanto à participação dos profissionais da escola na construção do
PPP, para alguns dos entrevistados parece não haver distinção entre o período de
construção, acompanhamento e avaliação do PPP e das reuniões pedagógicas ―Minha
participação é mais aqui (biblioteca). Não participo da Hora de Trabalho Pedagógico
Coletivo (HTPC), essas coisas todas... Não.‖ (B1)
No discurso abaixo percebemos o senso de responsabilidade, porém, não fica
claro se há participação na elaboração do PPP.

A minha participação é uma participação muito importante. [...] Ter


essa visão de toda a equipe de professores, de ver o que nós
podemos fazer, de incentivar os professores a pensar junto comigo
em ações, estratégias, em buscar parcerias, aliados, os funcionários
pra ta nos ajudando nesse bem comum que é a aprendizagem dos
alunos. Eu tenho que movimentar tudo. Eu sou o elo de ligação da
equipe gestora com os professores, com os funcionários. Eu tenho
que fazer essa ligação de todos. (C )

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Assumindo-se responsável pela administração da unidade de ensino, o diretor


diz:

Eu tenho que saber o que é a proposta da escola, não é? O que ela


tem de importante, qual é a importância dela pra essa comunidade.
Então, a minha participação é dar vida a esse Projeto. É fazer com
que ele aconteça. (D)

É fundamental que o diretor consciente da função que exerce e da relevância


do PPP para comunidade escolar reflita sobre a concepção de educação da escola e
coloque em prática.

[...] a base do projeto político-pedagógico é o contexto escolar


existente e seu objetivo é a melhoria da prática que se desenvolve na
escola, com vistas a uma educação de qualidade, ele necessita
refletir a concepção de educação que vai nortear o seu trabalho
(GRACINDO, 2005, p. 41).

Uma dos professores entrevistados diz que a participação seria dando suas
próprias opiniões, professores, falando sobre seus anseios, às vezes das dificuldades
que têm, mas isso era o que eles menos faziam.
Outra relatou que:

A gente tem que estar participando, em todo momento nas tomadas


de decisões, no levantamento das dificuldades. Mas esse ano é que a
gente vai começar. É que... eu tô falando na visão de outras escolas.
Na outra escola eu era orientadora. Então eu participava bem, do
Conselho, né, do PPP. Fiz alguns cursos sobre esse PPP, já fiz pra...
ter como a gente conquistar os pais, uma forma... Então eu acho que
a participação... ‗eu sou professora só lido com o planejamento
anual,‘ num tem isso, eu preciso ta por dentro porque o ano que vem
eu recebo aquele aluno que está lá no outro lugar, eu tenho que
conhecer esse aluno, as estratégias que são usadas, pra que ele
melhore, pra que possa usar, às vezes, também as minhas
estratégias ou aprimorar. . Não adianta a gente ser individualista, a
gente precisa ser ... Eu acredito muito nisso. (P2)

Na exposição seguinte, o professor parece-nos mostrar uma participação


parcial, justificada pela falta de tempo ao dizer que quando o diretor coloca alguma
meta, eles opinam e participam ―A gente participa de algumas partes, outras partes
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nós somos sondados. Porque o nosso horário não dá pra gente sentar e ficar lendo‖.
(P3)
E continua justificando:

E depois tem a minha parte de professora, com meu projeto, com


meu plano de ensino anual. Esse tem que fazer, tem que rever, tem
que melhorar. Até o Plano de Ensino, né, o anual, que você ...eles
colocam ali, no início do ano, por exemplo, uns três dias de
planejamento, que fala. Ali se discute tudo que tem que discutir, que
aconteceu... aí quando chega a hora de planejar mesmo já estamos
no último dia. E isso a gente já vem reclamando já há muitos anos.
Só que a rede não muda. Então... ora fazemos assim... nós nos
juntamos no HTPC ou, hora uma faz uma parte, a outra faz outra e
uma dá uma olhada, outra dá uma olhada. (P3)

Nesse trecho é perceptível verificar sobre o momento de trabalho coletivo da


escola e o espaço de tempo para que isso aconteça. A falta de tempo para o
planejamento ocasiona a junção de partes planejadas não demonstrando ser um
trabalho feito no coletivo.
Apesar de representar uma conquista, a gestão democrática tem implicado
mais exigência para a escola: os trabalhadores devem participar da gestão, da escolha
direta para diretores e coordenadores escolares, além de representação junto aos
conselhos escolares, da relação com a comunidade, etc. Além disso, a gestão
democrática pressupõe o trabalho coletivo de elaboração do planejamento escolar e
dos programas e currículos (OLIVEIRA apud BRASIL, 1996).

Podemos considerar que houve uma dilatação, no plano legal, do que


seja o pleno exercício das atividades docentes. Agora, o trabalho
docente deve contemplar as atividades em sala de aula, as reuniões
pedagógicas, a participação na gestão da escola, o planejamento
pedagógico, dentre outras atividades. Esse quadro tem resultado em
significativa intensificação do trabalho e precarização das relações de
emprego, em mudanças que repercutem sobre a identidade e
profissão docente. (OLIVEIRA, 2008, p. 29-39).

Em pesquisa publicada pelo Ministério da Educação (MEC) relativa ao PNBE,


em 2008, é reafirmado o pouco tempo do professor para leitura e estudo.

Algumas escolas acusaram o recebimento da coleção Biblioteca do


Professor, que incluiu títulos adequados à formação continuada,
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porém os relatos indicavam que os professores quase não liam e/ou


estudavam a partir deles. O tempo parcelado do trabalho docente, a
falta de tempo para a leitura — que relacionam à multiplicidade de
tarefas requeridas nas escolas e a necessidade de trabalhar em mais
de uma instituição — aliados à frágil condição de leitores que detêm,
parecia ter grande responsabilidade nessa situação (BRASIL, 2008,
p. 101).

No segmento representativo dos pais, um entrevistado diz que não participou


da elaboração do PPP e o outro reivindica informação a respeito da construção desse
documento Como mãe eu gostaria de ser informada durante a construção, pode ser
em reunião de pais mesmo, pra nós podermos optar e sugere que nas reuniões de
pais, vá esclarecendo a eles sobre funcionamento do projeto, da sua construção ―um
pai que não conhece a estrutura de um PPP, não vai saber exatamente como ele
funciona, mas os professores poderiam direcionar em reunião. Sempre orientando a
melhor forma de ele estar participando‖. E continua dizendo que nos três anos em que
o filho estuda na escola, ela nunca viu a temática trabalhada com os pais.
Uma educação democrática e emancipadora pressupõe a participação de
toda a comunidade escolar por meio do Conselho de escola e/ou da construção do
projeto político-pedagógico. Assim, ―essa participação requer, em primeiro lugar, que a
comunidade tenha conhecimento e consciência de seu espaço de poder, e de que a
―coisa pública‖ pertence aos cidadãos‖ (BORDIGNON, 2005, p. 6).
No discurso dos representantes do segmento pais, fica claro que não há
participação na elaboração do PPP.
Em relação à participação do bibliotecário e (ou) profissionais que atuam
na biblioteca no planejamento pedagógico da escola, conforme entrevistas, não
ficou muito clara a participação dos profissionais que atuam na BE, e (ou) é uma
participação restrita. É fato que na escola pesquisada não há presença do profissional
bibliotecário e sim professores com limitação das funções em sala de aula.
Inferimos, a partir da exposição dos discursos seguintes, que os profissionais
da BE participam do planejamento e reuniões quando são chamados.
―Ela trabalha dentro do horário de trabalho dela, ela terminou o horário de
trabalho dela, ela não faz parte do planejamento. Ela segue as orientações que são
previamente determinadas‖ (P4);
―Quando tem alguma coisa que a gente precisa tá conversando ele chama, eu
participo com eles, mas em geral não.‖ (B1);
―Elas participaram nessa organização dos conteúdos, dos gêneros [...]‖ (C);
―[...] Ela segue as orientações que são previamente determinadas.‖ (P4)
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Conforme discurso a seguir, o diretor demonstra que não há um trabalho


articulado:―Um planejamento articulado com os professores é muito difícil ter.‖ (D)
O discurso seguinte mostra que não há participação dos profissionais que
atuam na biblioteca e aborda sobre o fato de eles serem readaptados.

Complicado. Geralmente são os professores, mas como eles são


readaptados, eles ficam aqui na escola mas não participam. Estão
desempenhando outras funções, fazendo... porque o começo do ano
quando a gente ta fazendo a parte do planejamento o pessoal da
biblioteca tá fazendo outra coisa, então... assim é tudo ligado ao que
a gente tá fazendo, mas estar ali estudando, ali junto com a gente,
propondo ... não. (P1)

A respeito do fato de as bibliotecas escolares muitas vezes contarem com


profissionais readaptados, a pesquisa do PNBE (2008, p. 46) corrobora o discurso do
entrevistado ―Os responsáveis pela guarda e uso dos livros nas escolas, e pelas salas
de leitura ou bibliotecas eram, frequentemente, professores readaptados.‖
De acordo com Nóbrega & Mollo (2011) é muito recorrente que a biblioteca
escolar, seja gerenciada por funcionário não especializado, às vezes, afastado do
contato direto com os alunos por motivos de saúde. Esse profissional não pode ser
apenas o arquivista responsável por catalogar e armazenar livros, mas,
principalmente, precisa ser o mediador, aproximando os estudantes da informação
desejada, auxiliando na compreensão dos textos e na avaliação crítica das fontes,
entre outras ações, bem como promover atividades culturais referentes ao mundo da
cultura escrita, articular as ações escolares com as da comunidade, tecendo uma rede
de informação e de negociação de sentidos.
Outro entrevistado deixa dúvidas quanto à participação dos profissionais da
biblioteca nas reuniões, porém, acredita que há planejamento com o orientador
pedagógico. Pelos menos no trabalho referente a gêneros acontece um planejamento
articulado, mas somente entre orientador pedagógico e profissionais da biblioteca ―É
claro que quando se faz os planejamentos, os projetos que vão ter para a biblioteca,
eu creio, eu não sei, que ela é chamada pelo orientador e eles sentam e conversam e
planejam juntos.‖ (P2)
Um dos profissionais que atuam na BE fala também da limitação, mas diz que
participam do planejamento inicial da escola e dão suas contribuições ―Todo começo
de ano a gente participa. A gente também é incluso nele. A gente dá contribuição.‖
(B2)

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Apesar de os discursos anteriores mostrarem uma limitação da participação


dos profissionais da BE no planejamento pedagógico, este professor diz que ―Nas
reuniões que nós temos eles estão sempre presentes, a escola num todo.‖ (P3)
Considerando a relevância da participação de toda a comunidade escolar na
construção do projeto político-pedagógico, visando, entre outros aspectos, a qualidade
do ensino, a participação do bibliotecário e ou profissionais que atuam na biblioteca,
na construção do PPP se faz necessária. E devem ser garantidas ações da BE no
PPP, no sentido de garantir o cumprindo de seu papel educativo, cultural e social na
comunidade escolar da qual está inserida.
Segundo Nóbrega &Mollo (2011), o bom funcionamento da biblioteca escolar
depende de ações estratégicas. O trabalho coletivo entre professores e bibliotecário
fará com que os serviços prestados pela BE sejam relevantes para toda comunidade
escolar.
A participação de todos é importante tanto na construção do PPP bem como
na sua avaliação, ajustando-o às necessidades e interesses da escola. Por isso, ser
um documento processual.
Referente ao significado do projeto político-pedagógico para os profissionais
nas suas ações cotidianas, percebemos que o documento é consultado e avaliado nas
reuniões pedagógicas. No entanto, não fica claro como isso é feito ―a gente tem as
reuniões pedagógicas que acontecem no ano, no meio do ano sempre tem pra
retomar pra ver se tá dando certo e continua.‖ (B1)
O coordenador foi enfático na resposta, afirmando ―Sim. Ele acaba sendo o
nosso guia, a nossa bússola;‖ (C) e mostra que o PPP é retomado nas reuniões de
planejamento – HTPC – bem como no Conselho:

[...] nas nossas reuniões ... ‗nós colocamos esses objetivos, nós
estamos alcançando, essas ações aqui, nós estamos realizando?‘ E
pedindo essa colaboração pra que ele realmente possa ser colocado
em prática. Em nossos HTPCs a gente procura retomar alguns
compromissos que nós tivemos e também nas reuniões de
planejamento pra que possamos cumprir todo ele, até o término dele.
Nas reuniões de Conselho também porque as decisões do PPP são
passadas através do Conselho. (C)

É importante que os setores mencionados estejam acompanhando o PPP,


avaliando-o, sugerindo mudanças, bem como todos os setores da escola. Conforme
discursos seguintes, a avaliação e as sugestões se dão nas reuniões de planejamento:

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A direção, a orientação vem e fala: ó, nosso projeto tem isso, o que


nós vamos fazer em cima disso, então já vem, não tem assim que ta
pegando. Na construção há a participação dos professores. (P1)

Olha... falar a verdade a gente não costuma... eu não sei ... a gente
cai muito só mais na questão do planejamento, né. É que ...pra falar a
verdade... pegar, pegar... a gente não pega. O que acontece muitas
vezes com a orientação, estou falando isso como quando eu fui
orientadora. A gente pega muita coisa de lá e traz pra reunião de
planejamento,... ‗Ó, gente, a gente está esquecendo isso, vamos
retomar isso? Nós planejamos isso. E não está acontecendo. Vamos
rever?‘ Então a gente não pega no papel, mas a nossa liderança, a
nossa gestão, sempre está trazendo a tona pra gente, coisas que nós
nos comprometemos em fazer e às vezes estamos esquecendo. (P2)

Esse professor parece contar experiências de outra escola onde foi


orientador, mas o discurso dele está em consonância com outros aqui registrados.
Há acesso para consulta quando necessário. Há liberdade para fazê-lo
―Depois que ele está feito, geralmente é passado pra nós, o que contém. E aí, se caso
precisamos consultar alguma coisa, nós temos acesso, não é barrado não.‖ (P3)
A declaração ―Depois que ele está feito, geralmente é passado pra nós, o que
contém‖, (P3) dá uma ideia de que não houve participação na construção do PPP.
E, a afirmação seguinte nos leva a inferir que somente os participantes do
Conselho Escolar têm livre acesso ao projeto.

Não. Eu era do Conselho, eu saí há um ano e pouco, poucas vezes


eu tive a oportunidade de pegá-lo e de folheá-lo. Anteriormente, há
uns três anos atrás, eu tinha amplo acesso a ele, eu via, eu lia, ele
era debatido. Eu tinha um contato muito amplo com ele, agora tá mais
restrito. (P4)

O segmento pais mostra desconhecimento do documento. Dizendo que o


PPP é disponibilizado somente quando conveniente.

Esse documento, com certeza, não é aos pais, disponibilizado. Vai


ser disponibilizado quando eu mãe vir reclamar de a ou b ou
contestar uma proposta, eles vão buscar dentro do PPP onde ele está
embasado, que a questão ta sendo trabalhada, mas não que eu
tenha acesso, que eu posso manipular esse material. Como mãe, eu
nunca vi ele assim disponível, pra consulta, não. (M2)

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Em relação ao projeto pedagógico, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação


(LDB) determina que cada estabelecimento de ensino tem a incumbência de elaborar
e executar sua proposta pedagógica, coma participação dos professores e dos
profissionais da educação, respeitadas as normas comuns a seu sistema de ensino.
(BRASIL, 1986).
A construção do PPP é resultado de um processo de reflexão e decisão
coletivo de toda a comunidade escolar. ―Trata-se, ao mesmo tempo, de um processo
de organização da escola e um instrumento de trabalho para seus dirigentes,
professores e demais profissionais da equipe escolar‖ (MACEDO, 2005, p. 256).
O mesmo autor mostra que nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de
1ª a 4ª série a biblioteca escolar é indicada como proposições referenciais para a
organização do ensino e fundamental, para o trabalho pedagógico. (MACEDO, 2005).
A respeito da inserção da biblioteca no projeto político-pedagógico, de
acordo com os entrevistados, percebemos que não está inserida no documento, no
que se refere ao trabalho pedagógico, ao trabalho coletivo dos profissionais.
O entrevistado seguinte diz não ter conhecimento da inserção da biblioteca no
PPP ―Não. Não tenho esse conhecimento.‖ (B1) E quando questionada em relação ao
planejamento pedagógico diário, B1 diz que ela participa, mas na verdade a
participação do profissional é com o atendimento na BE e não no planejamento dia a
dia ―Estou aqui participando. Não é assim... Participando. Tô trabalhando. Tô
recebendo as crianças. Tô entregando os livros. A pergunta que ela faz pra mim eu
respondo. Onde tá o livro ... tal livro. (B2)
O outro funcionário diz que a BE faz parte do projeto, mas, não percebemos,
em seu discurso, um trabalho coletivo entre professores e bibliotecários:

Ela está no projeto. [...]A gente tá sempre observando. Vendo se ta


funcionando ou não. Isso é passado pra direção, se acontecer
alguma coisa que a gente não tá de acordo a gente passa para a
direção e é conversado pra ver se vai mudar ou não, se ta dando
certo ou não aí, tem as mudanças. (B2)

Por meio dos discursos de B1 e B2 percebemos o desconhecimento do PPP,


sua função, assim como a inserção da biblioteca nele. B1 relata que não tem
conhecimento. Ele participa fazendo o trabalho dele, atendendo quem vai à biblioteca
procurar, saber sobre livros e outros materiais.

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Percebemos que não há uma discussão no coletivo, tanto os acertos quanto


as falhas são ditas à direção. Nenhuma atividade planejada em equipe foi
mencionada, como constado nos discursos anteriores e nos seguintes:

Eu acredito que, como eu falei no começo da minha fala, a biblioteca


é um espaço muito importe de enriquecimento. Tanto que a gente
gosta que as nossas HTPCs aconteçam dentro da biblioteca. Dentro
da biblioteca é importante, porque ele tem o acervo, ele já está ali.
Então o planejamento a costuma acontecer ali pra que o professor
estando ali e consulta o acervo. (C)

E, considerando a resposta de D, a seguir, em relação ao pedagógico, a


biblioteca não faz parte do PPP:

Então... a biblioteca não estava inserida, então agora a gente já


começa a pensar qual é a importância dessa biblioteca na formação
de nossos alunos. Até é importante a provocação da sua pesquisa
pra gente começar a inserir a biblioteca como espaço mesmo de
aprendizagem para os alunos. (D)

O discurso do diretor demonstra que de fato a BE, no que refere a ações


pedagógicas, não faz parte do PPP. No entanto, percebemos, a partir desse diálogo, a
significação dada à biblioteca e também à pesquisa que estávamos realizando.
Para Nóbrega & Mollo (2011) a biblioteca precisa estar enraizada no projeto
pedagógico da escola, pois a BE é relevante para a formação de usuários
competentes da linguagem escrita, constituindo-se como dimensão capacitadora das
aprendizagens em todas as áreas. No entanto, para que possa atuar como centro de
informação, além do diálogo entre os profissionais que atuam na instituição, a
biblioteca precisa estar equipada e organizada para funcionar bem. Um espaço
agradável, com acervos impressos e digitais de forma a atender as demandas da
escola.
A BE deve ser considerada no PPP tanto no que se refere às questões de
infraestrutura quanto às pedagógicas.
Entre os professores entrevistados, um deles disse que não se lembrava ―Não
lembro, até porque quando ele foi feito eu não tava aqui, né? É o segundo ano que
estou aqui.‖ (P1)

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Outro disse que iniciariam uma discussão sobre o PPP à época da pesquisa.
O anterior correspondia a triênio 2013- 2015: ―Olha, eu não posso te responder isso.
Até porque a gente vai começar a trabalhar o nosso PPP agora. Então a gente não
começou essa questão, eu não sei como é que ta. Não sei te responder essa
questão.‖(P2)
Outros dois professores disseram que há a inserção da biblioteca no
documento. O primeiro justifica seu discurso pelo fato de um projeto de leitura estar
inserido no documento no triênio 2013 – 2015 e ter continuidade até então ―Eu
conheço o documento e eu sei que está inserido. E eu falo assim por ser algo que
existe há muitos anos e não morreu ainda. Então é assim, o valor dele é o mesmo dos
outros projetos que têm na escola.‖ (P3)
O segundo diz que a biblioteca está inserida no documento da escola, mas
fala em Plano Diretor.

Então, no Plano Diretor da escola sei falar, eu li e sei onde ela ta


inserida. Anteriormente, ele estava sim inserida, através dos Sis-
compra, através do Projeto ―Eu li, gostei, recomendo‖ Então existia
sempre uma inserção muito grande no processo ensino aprendizado
dos alunos. No momento eu não sei como anda, porque a gente não
ta tendo acesso, nós professores, ao PPP, nem ao Plano Diretor. (P4)

Por meio da análise do PPP da escola, vimos que é mencionado um projeto


de leitura ―Eu li, gostei, recomendo‖, mas, há apenas citação do projeto, não há
atividades que mostrem um trabalho desenvolvido pelo coletivo dos profissionais, e o
mesmo não consta no PPP da escola. Entretanto, o segmento pais acredita que esteja
inserida, pois havia discussão sobre a organização da BE no Conselho de escola, à
época das reuniões sobre a ampliação da biblioteca ―Não sei. Mas creio que esteja
inserida, pois foi organizada essa biblioteca. E foi discutido o projeto feito pela
professora. Foi mostrado pra nós, nas reuniões do conselho escolar. Pediram
sugestão.‖ (M1)
O projeto político-pedagógico da escola pesquisada foi construído em outra
gestão e finalizou no triênio 2013-2015. No ano de realização do estudo começaria o
movimento para elaboração do PPP para o triênio seguinte.
Conforme Gracindo (2004), o projeto político-pedagógico retrata a escola em
movimento e reflete o trabalho coletivo no sentido de estabelecer as ações
pedagógicas e administrativas, servindo de ―ponte‖ entre o existente e o desejável.

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Ademais, o PPP também pode garantir uma continuidade das atividades planejadas,
ainda que haja rotatividade dos profissionais na unidade de ensino.

Considerações Finais

Os participantes da pesquisa reconhecem a relevância da construção do


projeto político-pedagógico da escola e o envolvimento da comunidade escolar nessa
construção. Entretanto, em relação à participação dos profissionais da escola, não foi
possível elucidar se referiam a reuniões pedagógicas, Plano Diretor ou outras. No
discurso dos representantes do segmento pais, fica claro que estes não participaram
das reuniões para elaboração do PPP, e sim, das reuniões de pais ou do Conselho
Escolar.
Assim, após análise, verificamos que o PPP não fora construído com a
participação de toda comunidade escolar, mas com parte dela, por meio do Conselho
de Escola. Em alguns momentos, e para alguns dos entrevistados, parece não haver
distinção entre o projeto político-pedagógico es reuniões pedagógicas, mas o discurso
dos entrevistados mostra que têm conhecimento do PPP construído no triênio 2013 –
2015, e que este era considerado pela atual direção da escola e ações propostas
vinham sendo executadas. Um exemplo bem claro é a ampliação da BE.
No discurso dos entrevistados não percebemos a existência de um trabalho
coletivo entre professores e bibliotecários. Tanto os acertos quanto as falhas são ditas
à direção. Além disso, também não foi mencionado sobre algum tipo de atividade que
tenha sido planejada em equipe. Aliás, no projeto político-pedagógico da escola, não
são apresentadas ações pedagógicas coletivas entre os profissionais da unidade de
ensino.
A pesquisa e estudo da literatura sobre o tema não deixam dúvidas de que é
imprescindível a inserção da BE no currículo escolar. Ela é o eixo que pode garantir e
sustentar os processos de ensino e aprendizagem. É essencial que o bibliotecário faça
parte das discussões pedagógicas. Vimos também que é indispensável a participação
coletiva da comunidade escolar na construção do projeto político-pedagógico.

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para o Futuro. TV escola. Ministério da Educação. Gestão democrática da educação.
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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

BIBLIOTECA ESCOLAR: ESPAÇO DE MEDIAÇÃO DA


LITERATURA INFANTOJUVENIL

Eixo 9 - Os espaços de leitura literária

Rovilson José da Silva, UEL/Departamento de Educação


Greice Ferreira da Silva, UEL/ Departamento de Educação
Andrea Haddad Barbosa, UEL/ Departamento de Educação
Sueli Bortolin, UEL/Departamento de Ciência da Informação

1 Introdução
A utilização pedagógica da biblioteca no ensino fundamental com
objetivo de formar leitores apresenta, em especial, dois aspectos fundamentais
a esse propósito: um deles é o espaço onde ocorrem as mediações de leitura
e, o outro, refere-se à especificidade do texto literário, da literatura
infantojuvenil.
Embora interligados, esses aspectos carecem de estudos e reflexão
contínuos acerca da ação pedagógica a ser desenvolvida na biblioteca com a
literatura a fim de formar leitores. Nesse contexto, esta pesquisa em
desenvolvimento pelo projeto de pesquisa Biblioteca no ensino fundamental de
escolas públicas de Londrina: mediação pedagógica da leitura e informação e
do Grupo de Pesquisa Leitura, biblioteca escolar e mediação
pedagógicadesenvolveu investigação inicial para evidenciar quais são os
procedimentos empregados numa escola pública em relação à biblioteca e à
leitura literária.
Este trabalho apresenta um recorte da coleta de dados e observação
ocorridos em 2016, nas aulas conhecidas como Hora do Conto, realizadas pelo
Professor Regente de Oficina de Biblioteca (PROB), numa escola pública
municipal de Londrina para os Anos Iniciais do Ensino Fundamental I, com
alunos do 1º ao 5º ano.
1732

Assim, busca-se a partir do conceito de mediação pedagógica da


leitura, ancorada em Bortoni-Ricardo et al.(2012), quais os prodecimentos na
interação do professor na biblioteca escolar com os alunos a fim promover o
estímulo à leitura literária e à compreensão do texto.
A pesquisa na busca de evidenciar como se manifesta a mediação
pedagógica da leitura na biblioteca utiliza-se como suporte teórico: Dagoberto
Buim Arena (2003, 2010, 2011), Mikhail Bakhtin (1992), Maria Teresa de
Assunção Freitas (1994), Greice Ferreira da Silva (2009) e Rovilson José da
Silva (2013).

2 A Mediação da Literatura na Biblioteca Escolar


Inserida no contexto escolar, a biblioteca torna-se uma ferramenta
pedagógica que contribuirá para a formação do aluno de modo a ampliar seu
acesso à leitura e à informação, promovendo seu contato com a cultura
produzida historicamente.
Nos últimos anos ocorreram mudanças em relação à biblioteca escolar,
sobretudo nas leis e nas pesquisas a respeito da temática, mas ainda há
lacunas em relação à atuação pedagógica dessa instituição na escola, que não
tem sido explorada em sua potencialidade, devido à descontinuidade dos
trabalhos realizados nela, conforme Silva (2013, p.364):

Em relação à biblioteca permanece a de ausência de


planejamento de ações pedagógico-administrativas que
prevejam investimento nos planos pedagógico e financeiro.
Dessa forma, haveria continuidade no amadurecimento de
propostas que fortaleçam o papel da biblioteca na busca de
conhecimento, informação e lazer na escola, em concomitância
com o investimento financeiro em acervo, espaço, mobília e
aparatos tecnológicos.

O que parece óbvio ainda não acontece na biblioteca escolar de parte


de nosso país: o uso pedagógico da biblioteca, o acesso irrestrito dos alunos
ao seu acervo. A biblioteca escolar caminha em busca de conquistar seu
espaço de trocas pedagógicas, culturais e simbólicas. É um local onde se
estabelecem relações e conexões, que devem ser consideradas e estimuladas
no sentido de contribuir para a constituição do leitor.

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No âmbito da leitura que se realiza ou se encontra na biblioteca está a


literatura infantojuvenil, reconhecida como prática cultural, conforme
Dagoberto Buim Arena (2010, p.32-33)

[...] a formação humana, alinhavada pelas relações histórico-


culturais, encontra na literatura, sobretudo infantil, uma das
mais ricas manifestações culturais, pelas quais a criança-aluno
cria, recria e se apropria da cultura humana, com imaginação e
razão indissociadas. As vozes do outro cultural e histórico [...],
ampliam e transcendem a experiência do pequeno leitor [...].

A literatura faz parte da construção histórico-cultural de um povo e a


promoção do encontro da criança com ela no ambiente escolar carecerá de
mediação pedagógica da leitura, ou seja, construir uma relação dialógica entre
um leitor mais experiente e o outro inexperiente de modo a subsidiar, como se
fosse por meio de andaimes, apoio para que a leitura do outro se estabeleça
(BORTONI-RICARDO et al., 2012, p.9).
Para que os andaimes sejam montados em prol da leitura e sua
compreensão surge a figura do mediador, como afirma Fernandes (2015, p.23)

Quando um mediador, com um conhecimento um pouco maior,


fornece andaimes, ele cria um apoio para a aquisição de novas
ideais. Consideramos que a aprendizagem por mediação
pedagógica torna-se bem fundamentada quando se processa
por meio de andaimes. Os andaimes, como gestos facilitadores
para apoiar a compreensão da leitura, podem ser questões
específicas sobre o texto, troca de experiências ou incentivos
para sobrepujar dificuldades.

O professor/mediador, leitor mais experiente, caminha ao lado do leitor


que se encontra com a literatura; ensina-o a lidar com o texto, a descobrir seus
caminhos, a se apropriar dele sem, entretanto, distorcer o seu conteúdo
artístico em prol de uma errônea escolarização, como pondera Soares (1999,
p.22):
[...] o que se pode criticar, o que se deve negar não é a
escolarização da literatura, mas a inadequada, a errônea, a
imprópria escolarização da literatura, que se traduz em sua
deturpação, falsificação, distorção, como resultado de uma
pedagogização ou uma didatização mal compreendidas que,
ao transformar o literário em escolar, desfigura-o, desvirtua-o,
falseia-o.

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Assim, o mediador terá a incumbência de criar a necessidade da leitura


literária nos alunos, auxiliando-os a se apropriarem desse gênero textual, além
de estabelecerem diálogo com suas ideias, em busca da construção de sentido
para o que foi lido.
Nesse contexto, mediar a leitura pressupõe compreendê-la como uma
atividade social, dinâmica que exige do leitor, além de conhecimentos
linguísticos, experiência de mundo para processar as informações contidas no
texto. (ANA A. VIEIRA MOURA; LUZINETH RODRIGUES MARTINS, 2012,
p.88-89).

3 Procedimentos Metodológicos
Toda investigação exige do pesquisador um planejamento com base
em princípios científicos, sendo ele construído tendo como ponto de partida seu
objetivo. Esta pesquisa visa evidenciar a mediação pedagógica da leitura
literária na biblioteca, o uso deste espaço e a ocorrência do empréstimo
domiciliar.
Ela tem natureza qualitativa, isto é, sem a intenção de utilizar uma
quantificação numérica e objetiva dos dados. Este gênero de pesquisa, nas
palavras de Augusto Silva Nibaldo Triviños (1987, p.120) ―[...] tem suas raízes
nas práticas desenvolvidas pelos antropólogos, primeiro e, em seguida, pelos
sociólogos em seus estudos sobre a vida em comunidade. Só posteriormente
irrompeu na investigação educacional.‖
Observa-se que na área de Educação o viés qualitativo é utilizado
abundantemente e, em geral, permite inferências que revelam o cenário de
instituições públicas ou privadas, elementares ou complexas, visando contribuir
com o entendimento de diferentes grupos.
O método de pesquisa utilizado foi a pesquisa-ação que em geral,
possibilita um processo dialógico e uma interação universidade-escola. Para
Michel Thiollent (2000, p.14)

[...] é um tipo de pesquisa social com base empírica que é


concebida e realizada em estreita associação com uma ou com
a resolução de um problema coletivo e no qual os
pesquisadores e os participantes representativos da situação

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ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou


participativo.
Além disso, Thiollent (2000, p.15) afirma: que ―[...] é preciso que a ação
seja uma ação não-trivial, o que quer dizer uma ação problemática merecendo
investigação para ser elaborada e conduzida.‖
Como instrumento de coleta de dados optou-se pela observação que
para Uwe Flick (2009, p.204) é uma prática que ―[...] envolvem praticamente
todos os sentidos – visão, audição, percepção, olfato.‖ Neste caso a escolha
deu-se pela observação-não participante e sistemática.
A observação foi realizada no período matutino e vespertino por duas
docentes integrantes do referido Grupo de Pesquisa que tem sua formação
inicial em Pedagogia. A escola, foco desta pesquisa atende o Ensino
Fundamental I, Anos Iniciais (alunos do 1º ao 5º ano). Está localizada em
região periférica da cidade de Londrina – Paraná. Recebeu a melhor nota (8,2)
na cidade de Londrina no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica
IDEB (2016). Além disso, a 5ª melhor nota do Estado do Paraná.
No primeiro semestre de 2016 foram feitasobservações na Hora do
Conto, atividade de incentivo à leitura, à formação de leitores que acontece na
biblioteca escolar. A Hora do Conto tem duração de 50 minutos para cada
turma, às segundas-feiras são realizadas a contação de histórias para o 1º, 3º,
4º e 5º ano. O segundo ano participa na terça-feira, dia em que também são
realizados os empréstimos.

4 Análise de Resultados
Vale destacar que o foco das observações deu-se nas práticas
mediadoras da literatura infantojuvenil da professora responsável pela
biblioteca da Escola. Após essa etapa, foram estabelecidas categorias para
tratar a coleta, sendo elas: 4.1 ambiente/estrutura para Hora do Conto, 4.2
recepção da literatura infantojuvenil pelos alunos, 4.3 apropriação da biblioteca
e interação professora/alunos e aluno/aluno e 4.4 empréstimo domiciliar.

4.1 Ambiente/Estrutura para Hora do Conto

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A leitura ocorre na atividade da própria língua em seu uso nas relações


sociais, na interação do escritor com o leitor. Nessa perspectiva, a leitura é um
objeto da cultura e, como tal, ocorre de forma dinâmica, que refuta, reflete,
refrata e que promove o diálogo do leitor com o texto porque o leitor atua nele e
tem uma atitude responsiva ativa (SILVA, 2009). Nessa perspectiva, a
organização do espaço para a realização da Hora do conto é uma aspecto
fundamental para promover o encontro do leitor com os materiais escritos e
com o escritor.
A organização e o uso desses espaços mediados pela professora
podem ser percebidos nas situações observadas a seguir:

Obs [...] a turma do 4º ano com 22 alunos. As crianças


chegaram à biblioteca, sentaram-se nas cadeiras ao redor das
mesas, mas a professora solicitou que deixassem seus estojos
sobre a mesa e que se sentassem próximas a ela no chão.

Nesse primeiro momento é possível constatar que embora a biblioteca


possua um espaço com cadeiras e mesas adequadas, planejadas para atender
as especificidades das turmas de crianças nas idades que compõem os Anos
Iniciais do Ensino Fundamental, no momento da Hora do conto, a professora
solicita às crianças que se sentem próximas a ela e, nessa atitude inicial,
denota criar uma relação de aproximação com a história a ser proferida, com a
mediadora da leitura e entre as crianças.

Obs A professora fez a leitura do livro: Choro e choradeira,


risos e risadeiras de Tatiana Belinky. Para introduzir o assunto
que seria tratado no livro que a ser lido, fixou na lousa duas
máscaras símbolos do teatro (uma triste e outra alegre). Em
seguida, perguntou o que cada uma das máscaras
representam e as crianças responderam. Feito isso, perguntou
quais outras palavras também representam a tristeza e a
alegria e as crianças responderam: * com relação a alegria –
felicidade, feliz, rir, risada; *com relação à tristeza - mágoa,
magoado, triste, choro. Desse modo, a professora mostrou o
livro, leu o título, o nome da autora e mostrou no notebook a
foto da autora do livro (Tatiana Belinky), bem como leu uma
breve biografia dela. Durante a leitura, as crianças eram
levadas a completarem os versos com rimas criadas pelas
crianças por meio das pistas dadas pela professora e pela
narrativa do texto.

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Pode-se inferir que a professora por meio de uma ação intencional


revela formas de criar necessidades de leitura nas crianças. Antes de iniciar a
leitura do texto, além de trazê-las próximas, mostra o livro, apresenta o título e
a autora e faz uso não somente do próprio livro, mas de outros recursos como
o notebook, presentes no espaço da biblioteca. Essas atitudes aparentam
revelar uma organização do espaço, mas também dos recursos e estratégias
que envolvem a Hora do conto para que ele se constitua como um momento
promotor de leitura. Em outras palavras, para que as crianças estabeleçam
interlocução, produzam sentido ao que foi lido. Desse modo, entende-se a
biblioteca escolar como um espaço de relações.

[...] Não bastam espaços, livros, materiais ideográficos e


documentos guardados para caracterizar a existência de uma
biblioteca escolar. Não são os objetos físicos que dão a ela
existência e vida. Não é somente com eles que se pode
confirmar a existência de biblioteca na escola; mas é com as
relações entre alunos, livros, bibliotecários, professores de
biblioteca e professores de salas de aula que se pode
conquistar o estatuto de lugar dos livros ou de biblioteca.
(ARENA, 2011, p.13).

Diante desse pressuposto, a biblioteca escolar somente existe como tal


e se constitui como um espaço de relações se for um local dinâmico, vivo, em
que o (a) mediador (a) da leitura crie as condições adequadas para que essas
relações aconteçam. E entender a mediação pedagógica é entender
diretamente essas relações e como elas podem ocorrer. É criar nas crianças
necessidades de leitura, de pesquisa, de interlocução.
As ações da professora nesse espaço revelam formas de garantir que
as crianças estabeleçam relações intensas com o livro, com a narrativa, com as
pistas visuais, com o contexto em que se dá a história. Ao terminar a leitura do
livro, a professora faz uma proposição articulada com a discussão inicial sobre
as máscaras do teatro que desvelam a questão central da história lida. Por
meio dessa proposição, revela ainda o uso dos espaços – ao utilizarem-se
também das mesas e cadeiras – e dos recursos da biblioteca como a lousa.

Obs Terminada a leitura, a professora perguntou às crianças,


como essas máscaras símbolos do teatro, como os
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sentimentos de tristeza e de alegria são representados hoje em


dia na tecnologia (a professora pegou o celular). Uma criança
falou que são por meio dos ―emotions‖. Desse modo, pediu que
as crianças voltassem a se sentar nas carteiras e deu a cada
uma delas dois quadradinhos de sulfite com um círculo dentro.
Orientou para que desenhassem uma carinha triste e uma
carinha alegre em cada um dele. Ao finalizar, cada criança
colou na lousa o seu desenho, logo abaixo as imagens das
máscaras símbolos do teatro que a professora havia afixado.

A preocupação em planejar com intencionalidade as situações de


leitura envolve a necessidade de organizar os tempos e os espaços destinados
a esse fim, para que, desde cedo, as crianças percebam que existem
determinados materiais, determinados modos e determinados lugares de ler e
para que percebam a leitura como uma prática cultural. Espaços, tempos e
materiais organizados intencionalmente propiciam oportunidades propulsoras
de um desenvolvimento amplo da criança e da sua formação leitora.

4.2 Recepção da Literatura Infantojuvenil pelos Alunos

Ao discutir sobre a recepção da literatura Infantojuvenil pelos alunos,


cabe lembrar que ―a literatura medeia a relação da criança com a cultura de
sua época, mas transcende a ela, tanto para o passado, quanto para o futuro‖
(ARENA, 2010, p.15). Nesse ínterim, pensar a mediação pedagógica da leitura
e da literatura, é considerar que ―a criança, imersa em um contexto cultural,
necessita desse contexto para se apropriar da cultura que encharca o gênero
literário a que tem acesso‖ (ARENA, 2010, p.15).
As situações apresentadas neste item retratam as relações entre a
literatura, a criança e a professora.

Obs Choro e choradeira, risos e risadeiras de Tatiana Belinky


cabe lembrar que as ilustrações causaram muitos risos nos
alunos. Outro aspecto a ressaltar é que durante a leitura do
livro pela professora, as crianças solicitaram insistentemente
para que chegasse rapidamente a parte na história sobre o
riso, sobre a alegria, porque todo o início da história, toda a
primeira parte versa sobre o choro, a tristeza. O tema
aparentava afetar as crianças, causar desconforto mesmo
tendo uma narrativa leve em forma poética, tendo rimas que
causavam risos e sendo tratado com ludicidade.
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Diante do exposto, pode-se dizer que as crianças, se envolveram com


a história, fizeram inferências por meio dos indícios visuais percebidos por suas
reações de risos e por completarem as rimas enunciadas pela professora
durante a leitura. As insistentes falas para que ela abordasse o lado do riso e
da alegria na história e o desconforto percebido nelas no momento em que era
abordada a tristeza e o choro denotam as relações estabelecidas pelas
crianças no ato da leitura e o comportamento leitor

[...] marcado pela atitude responsiva do leitor que interage com


o texto e com o autor e já traz no momento da leitura uma
contrapalavra. Essa dinamicidade interlocutiva permite que o
leitor considere, critique, avalie, retome, desconsidere, debata
o texto e num contínuo processo de compreensão responda as
suas próprias perguntas e àquelas propostas pelo autor que já
tem dentro dele um leitor. (SILVA, 2009, p.58).

Ao analisar a situação observada, vale ressaltar ainda que:

Na verdade, a pequena criança-aluna-leitora posiciona-se


como o outro no diálogo, no movimento de apropriação cultural
e, por essa razão, aprende e apreende o modo de atribuição de
sentido em sua relação com o gênero literário e, ao posicionar-
se, atende à incompletude dos enunciados e a eles responde
em atitude própria de um ser outro em relação dialógica.
(ARENA, 2010, p.15).

Outra situação referente ao processo de mediação da leitura literária


apresenta-se a seguir:

Obs A professora fez a leitura do livro ―Ofélia, a ovelha‖, de


Marina Colasanti. Os alunos permaneceram sentados nas
cadeiras das mesas da biblioteca para ouvirem a história lida.
Fizeram poucas inferências durante a leitura.

Ao terminar a leitura do livro e ao constatar as reações das crianças


diante da leitura feita, a professora imediatamente após a saída da turma da
biblioteca, volta-se à observadora e numa atitude responsiva de quem atua
ativamente no processo de mediação da leitura relata que havia pensado em
alguns possíveis fatores para justificar o desinteresse durante a hora do conto.

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Um primeiro aspecto ressaltado pela professora é que se tratava de um livro


com uma história mais longa e, portanto, poderia ter sido feita a leitura por
capítulos e não de uma só vez.
Ao analisar a estratégia utilizada e ao pensar em outras estratégias
para a leitura do livro, denota sua ação intencional em promover a interlocução
e garantir o encontro da criança com o autor e com a leitura para que ela possa
atribuir sentido ao que foi lido e estabelecer relações dialógicas, o que
supostamente, a professora percebeu que não havia conseguido realizar por
meio da estratégia inicial.
Um segundo aspecto considerado na reflexão da professora sobre o
limitado envolvimento dos alunos se deu pelo fato da autora ter uma forma
bastante particular de escrever que envolve uma narrativa mais densa, com
temas complexos e linguagem mais profunda. Diante do exposto constata-se
que a professora faz uma reflexão ativa sobre sua atuação, suas escolhas e
sobre a necessidade de buscar caminhos que aproximem a criança da leitura,
do livro, das histórias, da biblioteca, da literatura. Posto isso, Freitas (1994)
assinala que na perspectiva dialógica de Bakhtin,

[...] o texto não preexiste ao leitor. Ele se constitui no momento


da interação com o leitor, da interlocução. Com base nessa
interação, cada pessoa produz uma leitura diferente, tem um
entendimento diferente. De acordo com Geraldi (1984), o leitor
re-constrói o texto na sua leitura, atribuindo-lhe um sentido
pessoal. É por isso que se pode falar em leituras possíveis.
Essas leituras efetuam-se, portanto, de acordo com as
condições pessoais de cada um, com seu lugar social, com a
sua visão de mundo, com a sua perspectiva ou com o seu
comprometimento político. O sentido de um enunciado está
determinado pela interação das vozes ou perspectivas
ideológicas múltiplas, pelas representações de diferentes
posições sociais na estrutura da sociedade. (FREITAS, 1994,
p.125-126).

Desse modo, é possível verificar que a professora ao perceber as


manifestações das crianças que demonstravam desinteresse diante da história
lida ou ainda um restrito envolvimento e, ao analisar a sua própria atuação
como mediadora e todos os aspectos que envolvem esse processo de
mediação da leitura literária – as condições pelas quais se deram esse

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momento: o estilo da autora, a obra escolhida, a forma como foi apresentada –


trazem em si também uma atitude responsiva da professora comprometida
nesse processo de garantir que as crianças estabeleçam interlocução,
estabeleçam relações e potencializem o ato de ler.

4.3 Apropriação do uso da Biblioteca e a Interação Professora/aluno e


Aluno/aluno

No espaço da biblioteca escolar considera-se o contexto de relações,


estabelecendo diálogo, para que os sujeitos possam ensinar e aprender a
prática da leitura como processo de manifestações culturais. (ARENA, 2011).
Ao considerar os pressupostos discutidos ao longo desse trabalho, a
situação que será apresentada em seguida revela a apropriação do uso da
biblioteca pelas crianças na escola em que se realiza a pesquisa e a interação
entre professora e alunos.

Obs Cabe relatar e ressaltar que, logo no início do período, no


trajeto que a professora fazia para a biblioteca para iniciar seu
trabalho, uma criança encontra a professora da biblioteca e diz
em voz alta: ―Hoje eu vou levar o livro da bruxa!‖ (livro
disputadíssimo entre as crianças). A professora orienta que é
preciso verificar se não está reservado ou emprestado.

Esse dado aponta para o fato de que as crianças convivem de forma


próxima com a biblioteca, com a professora, com os livros e com a leitura. Ao
se deparar com a professora nos corredores da escola no início do período de
aula e por solicitar o empréstimo do livro antes mesmo que fosse o dia de
empréstimo ou um momento em que estivesse na própria biblioteca com a
professora, a criança demonstra sua atitude leitora pela forma com a qual
manifesta seu interesse pelo livro na tentativa deliberada de garantir seu
empréstimo.
Pode-se verificar ainda que essa atitude revela também o
entendimento que a criança tem do espaço da biblioteca, da apropriação desse
espaço em que possivelmente presencia atos de leitura, conhece diferentes
histórias, pesquisa e potencializa suas aprendizagens. Com isso, pode-se dizer

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que os mediadores e professores devem criar nos estudantes necessidades de


leitura. Essas necessidades somente são criadas a partir das relações entre os
homens, nas interações com o outro. (ARENA, 2003).
A biblioteca e o uso que as crianças fazem dela na referida escola
colocam a criança no fluxo da aprendizagem da leitura literária. As crianças
convivem no espaço da biblioteca escolar e experimentam diferentes situações
em que podem ouvir, ver, opinar, supor, levantar hipóteses, discordar, propor,
sentir diferentes emoções com as histórias lidas. E ao fazerem isso num
processo de mediação pela professora, se constituem pouco a pouco como
leitores. Por essa razão, pode-se dizer que as situações criadas e vivenciadas,
bem como as relações estabelecidas provocam a necessidade de leitura nas
crianças e dão valor a ela. As pessoas se constituem na relação com o outro.
(SILVA, 2009).
Outra situação em que se verifica a interação entre a professora e os
alunos e a ação mediadora da dela no momento da hora do conto são
apresentadas nesse relato.

Obs ―A vaca que botou um ovo‖ de Andy Cutbill as crianças


demonstraram interesse e inquietação percebidos pelos
questionamentos que faziam para saber o final da história.
Uma criança se levantou da cadeira em que ouvia atentamente
e tenta ir por trás da professora para ver a ilustração para
saber o que ia acontecer na história antes mesmo que a
professora mostrasse e que os demais colegas soubessem. A
professora percebe e surpreende a criança envolvendo-a ainda
mais por meio das relações que ensina as crianças a fazerem
apoiadas nos elementos que já conhecem da história.

Diante disso, na análise dos dados é possível constatar o fundamental


papel mediador da professora no processo de formação leitora das crianças.
Ela criou mediações e mediou as situações de leitura desafiando os alunos a
debaterem o texto, a construí-lo e desconstruí-lo, instigando-os a terem um
comportamento ativo, vigilante, de construção inteligente de significação.
(CHARMEUX, 1997).
Os dados também apontam para a importância da atuação da
professora nas diversas situações de leitura em que a relação direta com as
crianças se deu por meio da interação dialógica, o que possibilitou levá-las a
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perceberem a leitura como algo vivo, dinâmico, que condiz com as suas
necessidades e que por meio dela se criam outras necessidades. Nesse
processo, ao se colocar na posição de interlocutora, de outro (BAKHTIN, 1992),
provocava nas crianças sempre uma atitude responsiva em que os enunciados
proferidos por ela e pelas crianças já guardavam uma contrapalavra, uma
resposta.

4.4 Empréstimo Domiciliar

O processo de formação leitora das crianças e a mediação pedagógica


da leitura na biblioteca escolar também podem ser exemplificados nos dados
apresentados.

Obs Os alunos transitam pela biblioteca com liberdade,


manuseiam os livros, observam os livros nas estantes até
realizarem suas escolhas. Há crianças que pegam livros,
sentam-se nas mesas da biblioteca, folheiam ou leem um
trecho, possivelmente para fazer a escolha e emprestá-los.
Quando o aluno não sabe qual livro emprestar, a professora
auxilia dando sugestões. Ocorreu que em um momento, a
professora, ao perceber que um aluno hesitava em escolher, se
aproximou dele e estabeleceu um diálogo permeado de
questões como: Qual assunto você gosta? Você gosta de
esportes? Você já leu esse livro? (Mostra o livro para o aluno)
Você já levou algum livro do Ziraldo? (ou outros escritores que
mencionou).

Pode-se inferir por meio da situação relatada que a professora busca


criar interesses nas crianças por meio de relações com o que supostamente
elas já viram, ouviram, experimentaram, conhecem e assim, ampliar as
possibilidades de leitura e o acesso ao universo literário.
A professora medeia durante todo o tempo do empréstimo dos livros.
Demonstra rapidez para anotar todas as devoluções e os novos empréstimos,
o que dificulta que ela medeie ainda mais nesse momento, uma vez que realiza
tudo sozinha. No entanto, não deixa de fazê-lo. Denota ter domínio do trabalho
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e cria situações em que possa instigar, criar necessidades de leitura nos alunos
e provocar curiosidades de ler outras histórias.

Obs Ao atender as crianças anotando os empréstimos, a


professora aproveita todas as oportunidades de mediar com
perguntas aparentemente simples, mas que podem se
constituir como promotoras do ato de ler: Você gosta desse
personagem? Você gosta mais deste ou daquele? Por quê?
Você vai levar esse livro de novo? Por quê? O que achou?
Você conhece esse livro? (No caso referia-se A Bela
Adormecida). Você sabe por que esse livro se chama A Bela
Adormecida? (Ouve as respostas das crianças e conversa com
elas buscando as coerências das respostas e das relações
com a narrativa). Você acha que esse livro fala do quê? (A
criança do primeiro ano observa o desenho, a ilustração da
capa do livro. Tratava-se da imagem de um tigre e a professora
leu o primeiro parágrafo do livro para a criança, possivelmente
na tentativa de ajudá-la a aliar o que observou ao que está
escrito).

É relevante ressaltar que todas as crianças podem fazer empréstimos


de outros materiais de leitura, além dos livros (gibis, almanaques, revistas),
mas o empréstimo do livro é fundamental, é condição, privilegiando o acesso à
literatura infantojuvenil.

5 Considerações Finais

O uso da biblioteca pressupõe sua inserção na organização


pedagógica escolar de modo a disseminar a leitura e a informação,
fortalecendo os laços dos alunos com a leitura, com a dinâmica cultural que
impele o sujeito a dialogar com o que lê, a se relacionar com as pessoas da
comunidade escolar.
Nesse processo de aprendizagem de mão dupla, pois ―quem ensina
aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender‖ (FREIRE, 2003,
p.23), a arte literária dialoga com a criança de maneira que ela compreenda a
si mesma e ao mundo que a rodeia, além de promover o estímulo à
sensibilidade, à observação, ao seu amadurecimento psicológico, a sua
apropriação do universo cultural.

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Se a biblioteca e a literatura estão no âmbito cultural, então será


premente que o professor, o par mais experiente, possa contribuir para
promover as interações, interlocuções entre os alunos e os textos, de modo
que eles encontrem caminho para ampliar a sua leitura da literatura, de modo a
internalizá-la como um valor cultural, social.
As observações realizadas na escola pública de Londrina apontam que
a professora estabelece continuamente relação dialógica com a os alunos,
procurando conforme Bruner (1983 apud BORTONI-RICARDO, 2012, p.9)
andaimes para dar suporte às interações realizadas pelos alunos, criando neles
a necessidade pela literatura, pelas interlocuções e pequisa.
O espaço da biblioteca, principal local das mediações de leitura, faz
parte da rotina das crianças que o utilizam com desenvoltura e intimidade, de
acordo com a proposta realizada pela professora, pois o ambiente era
organizado de diferentes maneiras no momento da Hora do Conto, tudo
mediado por ela que estava sempre próxima aos alunos.
Outro aspecto a ser destacado é o acesso dos alunos ao acervo:
manuseiam à vontade os livros, as revistas e os gibis; recorriam às prateleiras,
a indicações dos colegas, trocavam informações com a professora, num
processo dialógico, dinâmico até que encontrassem a obra a ser emprestada.
A atuação da professora revela a intencionalidade pedagógica para se
criar a necessidade de leitura nos alunos, utilizando-se do espaço, do acervo e,
principalmente, da mediação e interlocução que faz com os alunos e, ao
mesmo tempo, incentiva que eles façam com os colegas, que produzam
sentido acerca da leitura feita.
As observações da professora apontam para o seu conhecimento e
domínio do trabalho que realiza, pois cria situações e instiga os alunos à
pesquisa, ao diálogo com as obras e com os colegas, oferece-lhes suportes
(andaimes) para que as vozes se encontrem dentro e fora do livro.

Referências

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compreender: estratégias de leitura. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2010, p.13-
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CHARMEUX, Eveline. Aprender a ler: vencendo o fracasso. Tradução Maria José do


Amaral Ferreira. 4.ed. São Paulo: Cortez, 1997.

FERNANDES, Eliane Marquez da F.; SOUSA FILHO, Sinval Martins de (Orgs.).


Leitura: ações de mediação pedagógica. Campinas: Pontes Editores, 2015.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

BIBLIOTECAS ESCOLARES DE RIO VERDE – GO: ALÉM DOS


MODELOS, EM BUSCA DE PROJETOS DE TRANSFORMAÇÃO
COLETIVA

Prof. Dr. Leonardo Montes Lopes, Universidade de Rio Verde – UniRV. Eixo 9
Os Espaços de Leitura Literária

1.Considerações Iniciais

Este trabalho é parte do resultado de pesquisa (doutorado), onde são


apresentadas as práticas e os projetos de leitura nas bibliotecas escolares da rede
municipal de ensino de Rio Verde – GO; cidade de 220 mil habitantes que fica
localizada no sudoeste goiano, a 220 km de Goiânia capital do estado de Goiás. Trata-
se de um trabalho de caráter quanti-qualitativo, realizado por meio de estudos
bibliográficos, análise de documentos, entrevistas com professores que atuam nas
bibliotecas escolares de Rio Verde, estudo das condições de funcionamento, além da
ênfase maior do presente trabalho, que é um olhar para a biblioteca que vai além dos
modelos pré-estabelecidos, ou de trabalhos normatizados para a exploração dos
espaços de leitura. Assim, trata-se de um trabalho que objetiva a consolidação das
bibliotecas escolares de Rio Verde, com vistas em espaços de leitura, onde as
diversas vozes sejam ouvidas e consequentemente apropriadas por meio da
coletividade, indo ao encontro das concepções de apropriação de discurso de Mikhail
Bakhtin (1999), ou seja, transformar os espaços das bibliotecas escolares de Rio
Verde, em ambientes de discussão, apropriação e formação de cidadãos críticos e
reflexivos.

2. Biblioteca Escolar: Espaço de Coletividade

A biblioteca escolar pode ser o ambiente potencialmente ideal para a


realização do trabalho de repensar o mundo, visto que oferece material suficiente para
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unir o conteúdo dado em sala de aula e a realidade dos fatos científicos e do cotidiano
sob variados pontos de vista. Mas, além disso, a biblioteca pode se tornar o lugar
onde, por meio da discussão aprofundada, os alunos sintam-se estimulados a uma
postura crítica, analítica e interativa diante daquilo que lhes é dado a conhecer.
Para que a biblioteca escolar seja de fato esse ambiente de estímulo e
apropriação, é importante que ela seja constituída de propostas que a transformem
mediante a coletividade, ou seja, por meio da elaboração de um projeto político-
pedagógico com vistas a um processo coletivo, envolvendo os diversos agentes que
fazem parte da realidade escolar. Segundo Celso dos Santos Vasconcelos (2004, p.
169), um projeto político-pedagógico pode ser entendido como:

Um processo de planejamento participativo, que se aperfeiçoa e se


concretiza na caminhada, que define claramente o tipo de ação
educativa que se quer realizar. É um instrumento teórico-
metodológico para a intervenção e mudança da realidade. É um
elemento de organização e integração da atividade prática da
instituição neste processo de transformação.

Assim, compreende-se que um projeto pode nortear os trabalhos nas


bibliotecas escolares de Rio Verde - GO, por encaminhar ações para o futuro com
base na realidade atual e histórica, constituindo-se também um planejamento que
prevê ações a curto, médio e longo prazo, intervindo diretamente nas atividades
realizadas nas bibliotecas. Vale ressaltar, que as ações destacadas no projeto político-
pedagógico devem incluir todos os aspectos que a comunidade escolar compreende
que necessita de melhorias e ajustes.
Porém, essa busca por uma biblioteca dinâmica e atuante precisa partir do
princípio de que os projetos não podem ser impostos. Mas, devem ser construídos
coletivamente, com suporte técnico e teórico, pois as atividades desenvolvidas em
cada biblioteca necessitam expressar a identidade de uma comunidade escolar, e não
de um grupo ou equipe isoladamente, sendo uma necessidade de transformação e
não uma obrigação.
Dessa maneira, uma nova biblioteca só será possível, por meio de discussões
e reuniões que envolvam toda a comunidade escolar: professores, alunos, pais,
direção e poder público. Todos focados na melhoria dos aspectos que constituem o
espaço da biblioteca escolar, transformando ideias e concepções em movimentos de
ações importantes e fundamentais para constituição de bibliotecas dinâmicas e
atuantes na comunidade escolar de Rio Verde - GO.Não podendo deixar de dizer, que

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cada ator desse processo contribui até determinado ponto para que se construa o
coletivo, por isso é preciso formação e conhecimento teórico.

3. Quebrando Paradigmas em Busca da Transformação

É importante reafirmar que este trabalho aponta para uma proposta coletiva e
flexível, em que toda a comunidade escolar é ouvida e tem voz. Afinal, ninguém
conhece mais as carências e a ausência de investimentos tanto no material quanto no
pedagógico, do que a própria comunidade que vivencia essa realidade diariamente.
Daí a proposta de um projeto participativo, que abarque aspectos pedagógicos e
estruturais das bibliotecas escolares de Rio Verde - GO e que se adéque à realidade
de cada escola e de cada comunidade, onde as propostas levantadas e executadas
serão definitivamente enraizadas nessas bibliotecas, uma vez que foram elaboradas e
implantadas pela própria comunidade escolar.
Diante disso, vale ressaltar, que quando o poder público estipula modelos
engessados para todas as bibliotecas escolares, corre-se o risco desses projetos já
nascerem fragilizados, pois, na maioria das vezes, quando se muda as gestões
municipais, consequentemente, altera-se o que foi implantado pela gestão anterior.
Por isso a importância de não se fazer modelos, mas sim projetos e propostas de
transformação coletiva, com a participação de toda comunidade; já que a escola e
seus departamentos não são de propriedade dos dirigentes políticos, nem dos
gestores e professores, o que me reporta a Fernando Hernádez (2003, p. 25), quando
afirma que: ―A escola não pode ser propriedade dos professores, ela deve incluir toda
comunidade no planejamento de suas metas e melhorias‖.
Ainda alicerçado nas ideas de Hernádez (2003), na elaboração de um projeto,
é importante conhecer a realidade dos alunos da escola, sua história de vida e suas
metas para o futuro. Nesse sentido, as atividades voltadas para as bibliotecas
escolares de Rio Verde - GO precisam incluir toda comunidade escolar, com vistas a:
observar, dialogar e compreender a importância da biblioteca escolar para a vida dos
alunos. Dessa forma, na elaboração de propostas que contemplem uma biblioteca
atuante, é fundamental ouvir os estudantes, para que se compreenda a visão que eles
têm desse espaço. Uma vez que promover a participação dos alunos nesse processo
de mudança, é atestar para eles sua importância, e evidenciar que uma nova
biblioteca está sendo constituída, e que a comunidade escolar fará parte dessa
transformação, bem como poderá usufruir dos benefícios de um espaço cultural
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dinâmico e atuante. Mas, além disso, os alunos precisam sentir o pertencimento ao


espaço, isso só amadurece no cotidiano, com uso pedagógico bem estruturado e com
acesso livre à biblioteca escolar.
Assim, o presente trabalho visa levantar propostas objetivando contribuir com
as bibliotecas escolares de Rio Verde - GO, no sentido de romper com o isolamento e
a individualidade na execução de projetos. É importante primar pela participação de
todos os envolvidos no processo de consolidação do espaço das bibliotecas escolares,
o primeiro passo é acabar com o isolamento nas decisões e nos projetos, e a partir
disso, resgatar a biblioteca como espaço democrático, comunitário e público, que
procure aproximar a família junto à escola. Esse contexto me remete as ideias de A. P.
C Rigoleto e Cristiano A. G. Di Giorgi (2009, p. 235), quando afirmam que: ―A escola
pode promover eventos que agreguem a família e os alunos na biblioteca [...] o
bibliotecário configura-se como o elo entre a família e a escola‖.

4. Considerações Finais

É válido destacar que a construção de uma biblioteca escolar participativa e


democrática não é tarefa fácil. Afinal, ela implica diversos enfrentamentos pessoais e
coletivos, sendo fundamental para o sucesso uma forte equipe articuladora e que não
se considere detentora da situação. Assim, com o intuito de obter bibliotecas
escolares cada vez mais atuantes em Rio Verde - GO, é importante ressaltar que esta
pesquisa342 evidenciou que os paradigmas do isolamento e da centralidade das ações
estão sendo quebrados gradativamente, consolidando assim uma construção possível,
que está sendo pautada em dois princípios: o da necessidade de se ter bibliotecas
escolares que contribuam com a formação de leitores; e o segundo, o de se ter a
consciência de que isso é possível por meio do envolvimento e propostas que
privilegiem a interação entre biblioteca escolar e comunidade. Esses aspectos são
muito discutidos por Paulo da Terra Caldeira (2008, p. 48), para ele: ―A biblioteca
como espaço coletivo, onde os recursos serão compartilhados pela comunidade
escolar, oferece excelentes oportunidades para o exercício da cidadania‖. Isso reforça
a importância de se ter projetos com vistas na promoção e consolidação das
bibliotecas escolares de Rio Verde - GO, favorecendo a inclusão dos alunos e
fortalecendo a cultura local.

342
*Tese de Doutorado: Bibliotecas Escolares de Rio Verde – GO: Uma Possível Política
Municipal de Leitura. (2014). Orientadora: Prof.ª. Dr.ª Renata Junqueira de Souza.
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Referências

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Santos. Et al. Biblioteca escolar: temas para uma prática pedagógica. Belo Horizonte:
Autêntica, 2008. P. 47 – 50.

HERNÁDEZ, Fernando. O projeto político pedagógico vinculado à melhoria das


escolas. Pátio, Porto Alegre: Artmed, n.5, p. 08-11, fev.2003.

RIGOLETO, A. P. C; DI GIORGI, C. A. G. Outros parceiros da biblioteca escolar:


democratização e incentivo à leitura. In: SOUZA, Renata Junqueira de. (Org.)
Biblioteca escolar e práticas educativas. Campinas – SP. Mercado de Letras. 2009. P.
219-238.

VASCONCELLOS, Celso dos Santos. Coordenação do trabalho pedagógico: do


projeto político-pedagógico ao cotidiano da sala de aula. São Paulo: Libertad, 2004.

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FAROL DO SABER:O USO DA BIBLIOTECA PELA COMUNIDADE


ESCOLAR

Charlene da Silva Andrade de Lima, Universidade Federal do Paraná, eixo


temático 9 – Os espaços de leitura literária.
Elisa Maria Dalla-Bona, Universidade Federal do Paraná, eixo temático 9 – Os
espaços de leitura literária.

Considerações Iniciais

No ano de 2015 foi desenvolvida uma pesquisa343 com o objetivo de observar


as rotinas de um Farol do Saber (biblioteca escolar em Curitiba). A abordagem
metodológica foi de natureza etnográfica, ou seja, um ―estudo em profundidade de um
fenômeno educacional, com ênfase na sua singularidade e levando em conta os
princípios e métodos da etnografia‖ (ANDRÉ, 2008, p. 19). Trata-se de um estudo de
caso, que possibilitou realizar uma análise profunda de um objeto de pesquisa,
visando o detalhamento de um ambiente (GODOY, 1995) e de seu funcionamento. Por
ser um estudo de natureza qualitativa, ele não visou a análise de dados estatísticos
(NEVES, 1996), mas a partir das observações de um ambiente natural procurou
conhecer e interpretar a realidade sem nela interferir.
O estudo foi orientado pelas perguntas: como ocorre a formação do leitor no
Farol do Saber, ou numa biblioteca escolar? E como são realizadas as mediações de
leitura neste espaço? A pesquisa de campo foi realizada num Farol do Saber anexo a
uma escola municipal que atende 438 alunos dos anos iniciais do Ensino
Fundamental, na região sul de Curitiba, no bairro do Pinheirinho.
O quadro teórico do texto está baseado em temas de literatura e letramento
literário e concentram-se principalmente nos estudos de Rildo Cosson, Teresa
Colomer, Michèle Petit e Magda Soares. Os campos de estudo da biblioteca escolar e

343
Farol do saber: limites e possibilidades na formação de leitores de uma biblioteca escolar em
Curitiba. Orientadora Drª Elisa Maria Dalla-Bona. Texto completo disponível em:
http://www.prppg.ufpr.br/siga/visitante/trabalhoConclusaoWS?idpessoal=29319&idprograma=4
0001016080P7&anobase=2016&idtc=5.
1754

mediação de leitura são referenciados por autores como Bernadete Campello, Renata
Junqueira de Souza, Rovilson Silva, Aparecida Paiva, Geneviève Patte, Aparecida
Paiva entre outros.

Farol do Saber em Curitiba (Campo de Pesquisa)

Os Faróis do Saber são bibliotecas dos bairros da cidade de Curitiba que, em


geral, são integrados às escolas municipais atendendo aos alunos, professores e a
comunidade. Esses espaços têm 88 m² de área e dois pavimentos, sendo que o térreo
abriga o acervo literário e o mezanino os computadores disponibilizados para
pesquisa.
Cabe destacar, que no âmbito da RMBE os Faróis do Saber são entendidos
como ambientes pedagógicos e são integrados às escolas e ao seu processo
pedagógico, sendo um espaço para mediação da leitura, pesquisas e difusão cultural.
No ano de 2015 a Rede Municipal de Bibliotecas Escolares de Curitiba - RMBE
era composta por 193 Bibliotecas, sendo 178 Bibliotecas Escolares (146 Bibliotecas
em Escolas e 32 Faróis do Saber anexo às escolas); 9 Faróis do Saber em Praças; 3
Bibliotecas Temáticas; 1 Biblioteca Especializada em Educação e 2 gibitecas.
No Farol do Saber estudado trabalhavam 3 professoras, que são denominadas
agentes de leitura e 1 estagiário responsável pelo acesso dos visitantes à área de
computadores. Este Farol do Saber seguia o calendário e horários da escola,
funcionando das 7h30 às 11h30 e 13h30 às 17h30. Fechando 2 horas para o almoço.
Seu acervo tem em torno de 6.000 exemplares, sendo que a maior parte
desses livros chegaram no ano de sua inauguração (1997). A atualização do acervo
ocorre principalmente pelo recebimento das obras do Programa Nacional Biblioteca da
Escola - PNBE (só em 2015 enviou 450 livros), pela compra com os recursos da
escola e, eventualmente, são enviados livros pela Prefeitura Municipal de Curitiba. Há
também doações pela comunidade. Em 2015, foi significativo o número de
empréstimos realizados por alunos e pela comunidade, em torno de 7.000. Entretanto,
detectou-se que alguns alunos emprestam o livro por obrigação e não o leem.
As obras do acervo estão organizadas nas prateleiras conforme as seguintes
classificações: infantis, infanto-juvenis, didáticos, biografias, poesia, história geral,
história do Brasil, gibis, dicionários, direito, religião, autoajuda, literatura brasileira,
literatura estrangeira, doações, conto e referência. Também existem disponíveis e de
fácil acesso diversos periódicos, direcionados ao apoio pedagógico dos docentes
(principalmente PNBE professor, de 2010 e 2013).
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O piso térreo do Farol do Saber abriga os livros organizados em três estantes,


num espaço bastante reduzido e que permite a circulação de pouquíssimas pessoas
ao mesmo tempo. As estantes são altas e dificultam o acesso de deficientes físicos e
de crianças. Porém os agentes de leitura tomam o cuidado de deixar nas prateleiras
baixas os gibis, livros infantis, e infanto-juvenis, o que facilita o acesso do público
infantil.
No térreo também fica o balcão de atendimento e uma mesa e dois bancos
para pesquisas ou leitura. A luminosidade é adequada, pois além das lâmpadas o
Farol do Saber é todo envidraçado. Contudo nos dias em que há muito sol é preciso
abaixar as cortinas deixando o local escuro e abafado.
O Farol do Saber tem duas portas, uma de acesso à escola e outra para a
comunidade. No acesso da escola há ainda um portão que, por razões de segurança
está permanentemente trancado. Esta barreira cerceia o acesso das pessoas da
escola. Os alunos dependem que um adulto (geralmente inspetor ou secretária)
autorize sua passagem e abra o portão.
O acesso ao piso superior é por uma escada, o que o torna inacessível a um
cadeirante ou deficiente físico. Neste andar estão os computadores para pesquisa e
acesso à internet. É também nesse local onde são realizadas as atividades de leitura e
contação de histórias. No início do ano de 2015 foi comprado pela escola um tapete e
almofadas para que o espaço ficasse mais confortável e convidativo. Nesse Farol do
Saber as atividades denominadas ―momentos culturais‖ acontecem mensalmente e
participam dessa atividade todos os alunos da turma no horário estipulado pela escola.

As especificidades de uma biblioteca escolar

A literatura deve ser o objeto principal de leitura da biblioteca escolar, cuja


função educativa e de formação de leitores é fundamental. Entretanto, sabemos que

O descaso com a biblioteca escolar não é incomum em nosso


país, pois parte das escolas não possui biblioteca, contudo, as
que possuem, não a exploram como deveriam, usam-na
apenas como depósito de livros, sem uma organização
pedagógica, sem integrá-la ao projeto educativo da escola
(SILVA, 2009a, p. 118).

A biblioteca escolar diferencia-se das demais bibliotecas, pois sua função


eminentemente educativa e pedagógica deve estar em consonância com o Projeto
Político Pedagógico da escola da qual faz parte. Entretanto, conforme sinaliza Souza

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―embora exista biblioteca em parte de nossas escolas, os alunos têm pouco acesso a
ela e seu acervo raramente é explorado (...)‖ (2009, p. 13). Fernandes (2013, p. 50)
também ressalta que ―o cotidiano da maior parte das escolas públicas brasileiras
revela a carência ou mesmo a ausência da (do uso) da biblioteca escolar‖. Às vezes
mesmo com uma boa estrutura física e com acervos de qualidade, e em quantidade
suficientes é ―marginal o lugar da biblioteca na vida escolar. O espaço não é visto
como importante, desprestígio que afeta aqueles que nele trabalham‖
(CADEMARTORI, 2012, p. 10).
A biblioteca deve ser integrada à dinâmica escolar, e não um espaço à parte
das decisões, processos de aprendizagem e atividades da escola. É necessário
repensar o papel da biblioteca no projeto político-pedagógico da escola para que esse
local seja realmente um espaço de convivência, de debate, de reflexão e de incentivo
à leitura. (BRASIL, Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE): leitura e
biblioteca nas escolas públicas brasileiras, 2008).
Campello (2012) sublinha que mesmo em países adiantados não há
compreensão clara do valor da biblioteca escolar. Ela aponta que é necessário
mensurar evidências da importância desse espaço, e para isso não é suficiente
apenas verificar os tipos de serviços que a biblioteca oferece. A principal evidência de
que a biblioteca escolar é importante na escola é a sua comprovada influência nos
resultados da aprendizagem, e por isso é necessário repensar no potencial da
biblioteca escolar para que ela de fato faça a diferença.
A biblioteca escolar atende prioritariamente os alunos e comunidade escolar e
diferentemente das demais bibliotecas não deve ser o lugar do silêncio e da
passividade, mas o ―pulmão‖ da escola renovando constantemente o conhecimento
que circula nas salas de aulas, na vizinhança, na comunidade do entorno e entre os
seus usuários. (SILVA, 2009).
Para ter sua identidade como espaço de cultura e ser de fato o ―pulmão‖ da
escola, a biblioteca escolar deve promover a autonomia dos usuários para que estes
consigam autonomamente interagir e circular no espaço para buscar o que desejam e
refletir sobre a leitura realizada, acessar diversos materiais, e de acordo com Silva
(2009a) ser um organismo vivo capaz de expandir e ampliar a compreensão de mundo
dos alunos e não um espaço meramente decorativo. Campello (2012) aponta ainda
para a possibilidade de combinar na biblioteca escolar as dimensões de prazer e
liberdade com aprendizagem. Sugere que o espaço seja um local de conhecimento
organizado, liberdade de expressão e atividade intelectual e criativa.

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A dificuldade em formar leitores nas escolas muitas vezes é reflexo da falta de


efetividade e visibilidade da biblioteca escolar. Não é suficiente uma estrutura
adequada, profissionais para trabalhar e bons acervos se a biblioteca escolar está
vazia de sentidos, de atividades, de incentivo, de usuários, como um espaço sombrio e
estático à parte da escola. Arena (2009) enfatiza que não há uma biblioteca com a
simples existência de espaço e livros. Sua existência efetiva-se quando acontece a
relação sem horários pré-determinados entre os alunos, livros, professores de
bibliotecas e professores de sala de aula.
Quando os alunos e professores perceberem a biblioteca escolar como
ambiente formador, quando de fato tiverem acesso irrestrito a ela, e puderem se
apropriar dos livros que lá são guardados, e muitas vezes sequer abertos, quando a
mediação de leitura de fato ocorrer é que terá valido a pena sua existência. E para,
além disso, Silva (2003) aponta a necessidade de que a biblioteca não seja uma
instituição parada que só serve quando há trabalhos escolares a realizar. Todas as
atividades promovidas pela biblioteca devem ser sempre pensadas e executadas por
toda a comunidade escolar.
Sem a presença de alunos, da comunidade, dos professores, não faz sentido
manter uma estrutura de biblioteca, e ―certamente o professor é o principal artífice do
processo de aproximação entre o aluno, a leitura, e a biblioteca escolar.‖ (SILVA,
2003, p. 73). Campello (2012) chama a atenção para a importância fundamental do
apoio da direção da escola para o sucesso da implantação e manutenção das
atividades realizadas pela biblioteca escolar. A direção que confia e valoriza no
trabalho do profissional da biblioteca escolar, e percebe essa instituição como parte da
escola e não como uma instância isolada que precisa ser administrada consegue obter
melhores resultados.
Para Patte (2012) a biblioteca é um elo de convivência, uma necessidade. Ela
é um ambiente cultural único e profundamente humano em que os contratos, a
diversidade, o encontro, as relações interpessoais e a comunicação são acentuados
em torno da necessidade de conhecer, conhecer-se e pensar que a leitura ocupa o
eixo central. De acordo com a autora, para que a criança possa ter uma experiência
literária plena, os momentos na biblioteca devem se distinguir dos tempos de
aprendizagem estritamente escolar de rigidez e de controles de qualquer tipo. A leitura
deve ser vivida de maneira autêntica, livre, aberta, informal e em movimento e o
mediador deve ser um provocador positivo estabelecendo uma relação genuína com a
criança.

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Patte (2012) ressalta que a biblioteca deve priorizar o compartilhamento de


leitura livre de intenção pedagógica e objetivo utilitário entre pessoas. Essa troca entre
as crianças e entre os adultos e crianças é importante para que cada um encontre
aquilo que chama sua atenção que o sensibiliza. Para a autora, a leitura não deve ser
imposta, e por isso cada um deve se sentir motivado, estimulado a falar sobre o livro a
leitura e as histórias.
Todas as atividades propostas pelo agente de leitura, desde a contação de
histórias, empréstimos, roda de leituras, momentos culturais etc. devem ser planejadas
sendo que ―(...) qualquer destas atividades deve orientar-se pelo objetivo fundamental
de circulação e apropriação da leitura/escrita na escola, demandando um
planejamento cuidadoso do mediador de leitura que orientará o trabalho.‖ (SANTOS;
SOUZA, 2009, p. 105).
Todo momento dentro da biblioteca escolar deve ser planejado e não
simplesmente acontecer, de modo improvisado, impensado ou rapidamente, sem que
a devida reflexão sobre os processos e resultados seja realizada tanto pelo agente de
leitura quanto pela escola de um modo geral, ―assim, estar na biblioteca escolar
deverá ser um prazer para o aluno, o que impõe certas preocupações também quanto
à organização e à decoração daquele espaço.‖ (SILVA, 2003, p. 106).
É primordial a clareza das intenções, bem como a organização prévia dos
espaços e proposições de atividades integradas às salas de aula, dessa forma,
conforme as afirmações de (SILVA, 2009a), a organização da biblioteca escolar deve
facultar aos alunos e comunidade a busca pela leitura e cooperar com as ações da
escola. Para isso é preciso estabelecer uma ação pedagógica integrada entre a sala
de aula, biblioteca e comunidade.
A integração entre a biblioteca e a escola enriquece e potencializa a formação
do leitor, pois se percebe a partir da sequência de encaminhamentos e intenções
pedagógicas, um movimento único e direcionado. Tanto as atividades quanto os
espaços físicos devem ser organizados pensando nesse leitor em potencial. Assim,
―defendemos que a sala de aula ou a biblioteca escolar, com a composição de seus
espaços físicos podem ajudar a refletir acerca desse leitor que a escola recebe e quer
formar.‖ (SILVA, et al., 2009, p. 58). Uma biblioteca com as prateleiras sempre
organizadas e com livros intactos, um lugar de silêncio e que provoca medo não é um
lugar pensado no leitor. Nesse sentido, além da dinâmica de atividades o espaço da
biblioteca escolar também precisa ser repensado, como um ambiente favorável à
leitura ―um lugar da variedade, do diverso, do plural, do desigual que, colocando em

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convivência diferentes autores, matérias, recursos, nacionalidades, se revela, de certa


forma desordenado.‖ (SILVA et al., 2009, p. 62).
As atividades desenvolvidas com mais frequência pelas bibliotecas escolares,
como a contação de histórias, por exemplo, também têm fundamental importância no
processo de formação do leitor, pois ―a Hora do Conto pode ser parte das atividades
da BE, reafirmando o espaço desta biblioteca como local propício à atividade literária,
pois por ele circulam não só os livros e conhecimento, como também pessoas.‖
(GIROTTO; SOUZA, 2009, p. 22). A hora do conto, o empréstimo de livros, projetos,
sequência de atividades, a leitura livre e direcionada, recitais de poesia, oficinas de
criação literária etc. também demandam reflexões e planejamento sob pena de
perderem seu sentido, ou serem muito repetidas, sem diferenciação. A diversificação e
a qualidade das atividades são resultantes de um planejamento bem elaborado e com
objetivos claros. Dessa maneira ―A reflexão acerca da formação do leitor solicita um
olhar atento para as bibliotecas escolares das redes públicas de ensino, para a
constituição de seus acervos de literatura, organização, condição de funcionamento e
práticas pedagógicas desenvolvidas nessas instâncias escolares.‖ (SOUZA, 2009, p.
9).
A biblioteca escolar é, portanto o local ideal para que as mediações de leitura
ocorram. Nesse sentido, ―a biblioteca escolar precisa ser percebida como um ambiente
de formação de leitores e pesquisadores, e os profissionais que nela atuam devem
criar em torno das ações de leitura e pesquisa um clima de liberdade e ludicidade (...).‖
(BORTOLIN; JÚNIOR, 2009, p. 206). Diferentemente de outros tipos de biblioteca, o
movimento de leitores, a ludicidade das ações, e sua dinâmica por vezes barulhenta,
são o que a torna realmente eficaz. Contudo, como já dito anteriormente, a função do
mediador é fundamental para o sucesso no processo de formação de leitores. Cabe
ressaltar que ―mediar a leitura na escola pressupõe criar os suportes para que ela se
dê. Dentre esses suportes, estão a biblioteca e o livro em consonância com a ação do
professor mediador.‖ (SILVA, 2009, p. 178).

O uso do Farol do Saber pela comunidade escolar

No Farol do Saber estudado o horário de permanência dos alunos é em média


de 50 minutos. Considerando que as turmas são numerosas e o espaço é pequeno, a
turma é dividida entre duas professoras sendo que uma delas acompanha metade da
turma ao Farol do Saber (média de 15 alunos) e outra professora acompanha os
demais ao laboratório de informática. Assim, os alunos vão ao Farol do Saber apenas
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duas vezes ao mês para fazer empréstimo e só podem retirar dois livros ou gibis de
cada vez. Notou-se que este acesso esporádico ao Farol do Saber poderia ser
atenuado viabilizando a abertura dos portões na hora do recreio. Vemos que ainda
precisamos refletir sobre ―o fator acesso, que é a primeira garantia que os indivíduos
das camadas populares devem ter‖ (PAIVA, 2012, p. 141), acesso tanto ao que diz
respeito ao espaço físico quanto ao livro.
Observou-se que durante a permanência dos alunos no Farol do Saber não
havia uma programação de leitura ou um convite para a troca de impressões sobre o
livro que escolheram. Campello (2010) sinaliza que infelizmente as opções de uso das
Bibliotecas Escolares limitam-se à consulta ao acervo e ao empréstimo de livros. Ela
aponta que da mesma maneira que observado no Farol do Saber, embora a biblioteca
seja utilizada ela permanece um simples estoque de livros, pois o uso não é
adequadamente mediado e as atividades ali realizadas pelos alunos não são
compartilhadas com os mediadores. A efetividade do processo de formação do leitor
implica na disponibilização de livros e na interação constante entre o professor e os
alunos e entre os próprios alunos. O diálogo sobre as leituras realizadas, as
indicações de autores e obras e atividades específicas deveriam nortear todo o
contexto de formação do leitor. Entretanto, no Farol do Saber pesquisado foram vistas
raros movimentos nesse sentido.
O conhecimento do acervo pelo profissional que atua no Farol do Saber é um
fator essencial a se considerar, pois é fundamental esse conhecimento para subsidiar
o preparo de um planejamento de leitura ou indicação um livro. Ferreira (2009) sinaliza
que justamente pelo fato dos professores não serem leitores dificilmente incentivarão a
leitura ou a frequência à biblioteca escolar, questão observada nesta realidade.
Durante o período de observação não foi visto um professor entrar no Farol do Saber
para realizar uma leitura.
Observou-se que os livros disponibilizados para empréstimo pelos alunos são
apenas os separados pelas agentes de leitura. Elas escolhem os livros que
consideram importantes ou adequados aos alunos, sua faixa etária e interesses, e os
deixam em uma mesa. Ignoram que o aluno tem o direito de escolher o livro que
deseja ler. É fundamental que o acesso ao acervo seja livre apesar dos transtornos
provocados pelos extravios de obras e pela carga de trabalho investida na
reorganização diária. Todavia nada justifica impedir a liberdade de acesso às estantes,
sobretudo quando se trata da formação de leitores. (SILVA, 2003).
Durante as férias escolares os alunos não podem levar livros para casa sob a
alegação que podem se perder. Essa prática é bastante questionável principalmente
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nas férias de julho, que tem duração de apenas duas semanas, quando seria um
período propício para a leitura deleite. Além do Farol do Saber ficar fechado nesse
período, pois ele segue o calendário escolar.
Ressalta-se ter ficado clara a desconexão entre o Farol do Saber e a escola.
Durante o horário em que os alunos deveriam estar no Farol do Saber, já que não
havia uma programação de leitura ou um simples convite para a troca de impressões
sobre o livro que escolheram, alguns professores da escola buscavam locais
alternativos para que o tempo de contato com o livro não fosse perdido. A sala de
aula, a quadra e mesmo o chão do pátio viraram locais onde os alunos podiam
compartilhar a leitura com seus pares ou às vezes simplesmente ler. A sensibilidade
dessas profissionais para a necessidade desse espaço de contato efetivo com o livro
chama atenção para outra realidade observada: os professores da escola não leem.
Durante o tempo em que realizei o estudo não vi nenhum professor entrar no Farol do
Saber e realizar uma leitura. E o que é pior: mesmo estes professores que
estimulavam a prática de leitura dos alunos não liam. Enquanto os alunos estavam
lendo os professores corrigiam provas conversavam com seus colegas ou preparavam
materiais.
A efetividade do processo de formação do leitor conforme vimos implica na
disponibilização de livros e na interação constante entre o professor e os alunos e
entre os próprios alunos. O exemplo do adulto que também lê é fundamental nesse
processo em que se assume um compromisso com a formação do leitor. O diálogo
sobre as leituras realizadas, a leitura silenciosa, estudo dos textos, as indicações de
autores e obras e atividades específicas deveriam nortear todo o contexto de formação
do leitor. Entretanto, no Farol do Saber pesquisado não vemos nenhum movimento
nesse sentido, nem mesmo programas de leitura efetivos. Apenas para cumprir as
exigências normativas da RMBE é que são realizadas mensalmente as contações de
histórias, porém além desta atividade o Farol do Saber permanece vazio. Silva (1995,
p. 75) chama atenção para o fato que oferecer apenas atividades culturais e de
entretenimento para atrair os alunos e tornar a biblioteca Escolar atrativa e dinâmica
desvinculada de programas de leitura é constituir um ―simples oba-oba de eventos
bombásticos e esporádicos‖ que não democratizam a biblioteca e muito menos
formam leitores.
Evidencia-se que só haverá uma efetiva articulação entre a escola e o Farol do
Saber quando: a leitura, especialmente a literária, passar a ser considerada
fundamental para o desenvolvimento dos alunos e a biblioteca um espaço de
convivência, de difusão cultural, um local de livre acesso e libertador.
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Ainda que o Farol do Saber esteja tão próximo à escola são raras as ações que
objetivam a mediação da leitura especificamente. Apenas uma vez por mês são
realizadas as atividades de contação pelas agentes de leitura. Entretanto, apesar de
todas as deficiências apresentadas pela leitura literária no Farol do Saber essa
inserção é preferível a nenhum contato com as obras literárias. As demais atividades
que os alunos realizam no Farol do Saber limitam-se a emprestar e devolver os livros
de maneira automática. O ritmo acelerado a passo militar para visitar a biblioteca e
escolher livros (PETIT, 2008) desconsidera a liberdade e a necessidade de que o leitor
compreenda o espaço do Farol do Saber como local de formação e local de leitura.

Considerações Finais

O Farol do Saber poderia ser o espaço ideal para a formação do leitor,


entretanto não tem funcionado como ―campo profícuo para o desenvolvimento de
práticas de incentivo à leitura, como lócus privilegiado para a formação de leitores
literários e um núcleo ligado ao esforço pedagógico dos professores‖ (MORAIS, 2012,
p. 39). Seu lugar e função precisam, portanto ser repensados constantemente.
A baixa frequência dos alunos à biblioteca (apenas quinzenalmente), o
impedimento de exercitarem uma busca nas estantes, o cerceamento pelos agentes
de leitura das escolhas sobre que livros os alunos podem emprestar, os raros
momentos (apenas mensal) de vivência de uma mediação qualificada de contação de
história, a inexistência do diálogo sobre as leituras que os alunos realizam, o
desinteresse dos professores pela biblioteca e pela leitura, o desconhecimento do
acervo até mesmo pelos agentes de leitura do Farol do Saber são alguns dos pontos
abordados neste texto e que têm como consequência o pouco uso do espaço do Farol
do Saber.
As ações do Farol do Saber e da escola devem ser planejadas e pensadas em
conjunto objetivando a formação do leitor e o estímulo às práticas de leitura. Trata-se
de uma demanda permanente de reflexão comum entre os professores e agentes de
leitura em torno dos livros.
O uso efetivo do Farol do Saber e a ampliação da participação efetiva da
comunidade escolar neste espaço depende da intensificação dos esforços conjuntos
envolvendo os agentes de leitura, os professores, a prefeitura e a gestão da escola. A
compra dos acervos, a formação dos professores e agentes de leitura, a adequada
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utilização do espaço e dos livros e o planejamento conjunto das atividades dependem


de vontade política, de esforço coletivo de todos estes agentes.

Referências

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

FRUTO DO CONHECIMENTO: A PRAÇA, O PÚBLICO, O LIVRO

Ivanir Maciel, Faculdade Municipal de Palhoça(FMP), Os espaços de leitura


literária

Interlocuções Iniciais

Este trabalho tem por objetivo apresentar os princípios fundantes do Projeto


―Fruto do conhecimento: a praça, o público, o livro‖. Tal projeto oferta gratuitamente
em uma praça pública os livros de leitura literária arrecadados e distribuídos pela
comunidade acadêmica da Faculdade Municipal de Palhoça (FMP). É coordenado
pelo curso de Pedagogia em conformidade com o Projeto Pedagógico do Curso
(PPC), o qual pretende formar profissionais qualificados para que implementem ações
diversificadas, numa perspectiva de transformação ao considerar as demandas da
sociedade por meio da observação crítico-reflexiva. O projeto teve início em 2015, é
anual e está na 3ª edição (2017). Visa contribuir para a constituição de leitores que
transitam pela Praça Sete de Setembro, no centro do Município de Palhoça, além de
promover a reflexão sobre a formação inicial dos estudantes de Pedagogia, em um
Grupo de estudos de literatura infantil e constituição de leitores(as).
Constituir-se leitor implica experienciar a própria vida ao ler um texto, pois
durante a leitura este estabelece relações com a leitura de mundo da qual se
apropriou nos diferentes contextos sociais. Os aportes teóricos utilizados na produção
deste estudo fundamentam-se em Nelly Novaes Coelho (2000), que contribui com a
discussão da leitura enquanto a linguagem da arte, em Paulo Freire (1992), que
aponta a leitura de mundo que antecede a leitura da palavra, Mikhail Bakhtin (2003),
que traz a criação verbal como processos de (re)criação entre texto e leitor e, também,
Lev Semionovich Vigotski (2009), por acrescentar a esta discussão a imaginação e
criação como norteadora na compreensão de que a experiência torna-se vital para a
imaginação, pois favorece a criação de novas possibilidades, saberes, ou seja, é
1766

conteúdo para desencadear as relações estéticas entre texto/leitor. A linguagem


literária, cujo objeto é a palavra, sugere uma representação de situações vividas em
um contexto de práticas culturais, portanto é uma leitura da leitura do mundo, que
antecede a leitura da palavra.
A praça, o público e o livro como elementos em relação demarcam um
espaço não formal de leitura e constituição de leitores, cujo direito de ler vem
acrescido da gratuidade do livro, em uma conjuntura econômica atual em que um bem
cultural, nominado livro, compõe um dos primeiros itens a serem excluídos da lista de
gêneros prioritários para a existência humana. A praça como um lugar de acesso aos
munícipes da cidade de Palhoça; o público que usufrui de seu direito à travessia na
praça e interage com diferentes classes sociais; o livro e a leitura que empoderam este
público para a transform(a)ção de si e de seu entorno. Enfim, o ato livre da leitura, sem
a prerrogativa de uma possível escolarização da leitura literária. Assim, ―Fruto do
conhecimento: a praça, o público, o livro‖ promove o ato da leitura livre e gratuita de
livros fora do ambiente escolar.

Leitura literária e as relações estéticas entre o leitor e o frutolivro do


conhecimento

O ―Fruto do conhecimento: a praça, o público o livro‖ ao imprimir uma


transform(a)ção favorece a constituição leitora dos cidadãos do município localizado
na região metropolitana de Florianópolis, no estado de Santa Catarina.
Transform(a)ção esta que reverbera práticas de oferta de leitura literária a um público
que faz uso da Praça Sete de Setembro, na região central da cidade, como rota
imprescindível de sua atividade cotidiana, e que, consequentemente a participação e a
operacionalização realizada pelos acadêmicos do curso de Pedagogia também os
constitui leitores.
Uma praça como lugar de travessia para acessar a diferentes prestadores de
serviços à comunidade, que também acolhe os moradores para momentos de
travessuras e descanso. Praça que dispõe de um espaço instituído para o tradicional
jogo de dominó entre amigos, além de possuir um relógio de sol, construído entre os
anos de 1999 e 2000, pelo artista uruguaio Felix Carbajal.
O público que circula nesta praça está envolto em sua rotina cotidiana,
composta por diferentes temporalidades humanas, que vão desde a infância bem
pequena, até a melhor idade. Os sujeitos compreendidos enquanto históricos e
culturais, constituídos por experiências que foram apropriadas durante a existência de
uma vida em contextos sociais diversos. Está implícita a dimensão pública e
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democrática de utilização do espaço urbano, pois este público demarca-a por suas
diferentes necessidades e expectativas.
O livro, provém do latim liber, um termo relacionado com a cortiça da árvore.
De acordo com o Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa:
coleção de folhas de papel, impressas ou não, cortadas, dobradas e
reunidas em cadernos cujos dorsos são unidos por meio de cola,
costura etc., formando um volume que se recobre com capa
resistente [...] considerado também do ponto de vista do seu
conteúdo: obra de cunho literário, artístico, científico, técnico,
documentativo etc. [...] (HOUAISS 2001, p.1774)

O objeto livro neste trabalho é entendido enquanto instrumento fundamental


para o encontro entre o leitor e o texto literário, por compreender que agrega os fins
norteados pela singularidade de cada sujeito leitor(a).
Desta maneira, ―Fruto do conhecimento: a praça, o público e o livro‖ confluem
para ofertar o encontro inusitado do leitor com o texto literário. Assim, a praça como
um lugar demarcado como a travessia dos moradores/leitores da cidade. O público
que usufrui de seu direito de ir e vir nesta, em interação com o entorno social. O livro
por possibilitar o empoderamento de seus leitores para que transformem a si e ao seu
cotidiano. Enfim, o ato livre da leitura, sem a prática necessária à escolarização da
leitura literária. A escolarização da literatura sem o sentido pejorativo, mas sim na
condução e função eficaz em práticas de leitura literária, na interlocução com o
contexto social, atitudes e valores estipulados na defesa da formação de leitor(a),
portanto:
Não há como evitar que a literatura, qualquer literatura, não só a
literatura infantil juvenil, ao se tornar ―saber escolar‖, se escolarize, e
não se pode atribuir, em tese, como dita anteriormente, conotação
pejorativa a essa escolarização, inevitável e necessária; não se pode
criticá-la, ou negá-la, porque isso significaria negar a própria escola
(SOARES, 2006, p. 21).

De tal modo, a oferta de livros de leitura livre e gratuita fora dos contextos
escolares, na praça pública do município de Palhoça, em que o(a) leitor(a) entrega-se
por inteiro na escolha do livro e consequente ao deleite literário que o constitui como
tal, apresenta-se como um profícuo espaço de formação de leitores.
Por conseguinte, ―O fruto do conhecimento: a praça, o público, o livro‖,
caracterizado como evento que surgiu em 2015, para comemorar os dez anos de
fundação da Faculdade Municipal de Palhoça (FMP) – instituição de ensino público e
gratuito, conquistou relevância após três anos de realização e está consolidado na
agenda acadêmica da faculdade como atividade sociocultural no município. A
Faculdade Municipal de Palhoça é considerada ―um marco inicial para a transformação
do ensino em Palhoça, e está inserida nos processos históricos de transformação
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social, com vistas à melhoria da qualidade de vida para todos‖ (PPC, 2017, p.57).
Cidade esta que vem se destacando no crescimento demográfico, industrial,
econômico, turístico, educacional e social no estado de Santa Catarina.
O curso de Licenciatura em Pedagogia da FMP visa estabelecer uma relação
dinâmica e positiva de reciprocidade entre a comunidade Palhocense e a Faculdade,
articulando o conhecimento científico e artístico-cultural em suas demandas junto ao
entorno social. Para tanto, o ―Fruto do conhecimento: a praça, o público, o livro‖
corrobora com os moradores do Município de Palhoça que se fazem presentes
anualmente na praça. Proporciona a leitura e a doação de livros de literatura infantil,
juvenil e adulta, além de outros gêneros arrecadados pela comunidade acadêmica.
Contudo, passou a oportunizar aos estudantes e professores da FMP um espaço
diferenciado para o exercício da prática da cidadania, além de ações transformadoras
que evidenciam a relação teórica entre o contexto social e o universitário,
proporcionando ao público palhocense a aquisição e/ou ampliação de seu repertório
de leitor(a) (PPC, 2017).
Em sua primeira edição, em nove de maio de dois mil e quinze, foram doados
à comunidade aproximadamente um mil e trezentos livros. A 2ª edição aconteceu em
nove de março de dois mil e dezesseis, com contação de histórias e com acadêmicos
do curso de Pedagogia caracterizados de personagens literários para interagir com o
público. Vale destacar que a 3ª edição aconteceu em seis de maio de dois mil e
dezessete, distribuiu aproximadamente três mil livros e contou com um grande público
em busca de seu livro literário. Contou também com apresentações culturais, como o
Coral da Maturidade - programa da Maturidade, o qual atende mais de 180 pessoas
acima de 50 anos, na FMP, e o Boi de mamão com as crianças que frequentam a
Brinquedoteca da referida instituição, a qual atende crianças de 03 a 12 anos, cujo
objetivo é ―incentivar o brincar livre, explorar brinquedos e brincadeiras, jogos e
literatura, enriquecer a imaginação, propiciar o acesso às interações sociais com seus
pares, com os adultos e com espaço físico para ampliar suas experiências culturais de
forma autônoma‖ (PPC, 2017, p.59).
Percebeu-se o grande interesse das pessoas devido à gratuidade dos livros,
principalmente de gênero infantil e religioso. Analisando as obras que arrecadamos na
FMP para doar aos leitores(as), verificamos que as mesmas partem de estudantes que
frequentam a graduação e o leitor(a) que comparece à praça busca grande parte
dessas obras doadas, o que nos instiga a investigar esses dados em uma próxima
pesquisa.

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A participação dos acadêmicos, professores e da comunidade configura-se


numa tessitura, cujos fios se entrelaçam na oferta e na busca do livro, que enlaça a
todos(as) no ato de ler. A (re)organização da praça transforma aquele ambiente em
um pomar de sabores de frutoslivros para presentear gratuitamente o público leitor.
Ao adentrarem naquele labirinto formado de árvores com galhos coloridos e
carregados de livros, o público de diferentes temporalidades humanas (da infância à
maturidade) saboreia em determinados títulos o prazer de (a)colher o seu frutolivro. De
posse de seu frutolivro o leitor parte para guardá-lo em algum lugar demarcado no seu
domicílio e, assim (re)ler tantas vezes forem o seu desejo de deleitar-se com o lido,
com o vivido, entretecido pela irrepetível experiência estética.
Podemos conferir tais resultados nos depoimentos de participantes do evento:
A distribuição de livros realizada no dia 09/04/2016, na praça 07 de
setembro em Palhoça, pode-se perceber grande interesse das
pessoas pelos livros, principalmente de gênero infantil e religioso.
Achei muito interessante a participação dos acadêmicos,
professores e da comunidade em geral. Foi muito importante a
organização do ambiente preparado para receber as pessoas, em
especial o lugar reservado para a contação de histórias para as
crianças. Momentos que marcaram para mim foram as pessoas
perguntando o custo do livro, pois não podiam pagar, além da
interação de todos, levando os livros para suas casas. Muitos
ficaram surpresos e contentes ao saber que os livros seriam
doação, e assim poderiam escolher e levar (Cláudia Gonçalves Eli,
2ª fase Pedagogia, 2015).

Parabéns pela iniciativa segundo ano, e com o acesso que está


tendo, devemos trabalhar para continuar essa nobre iniciativa
(Camilo Martins, prefeito municipal, 2016).

Adorei a ideia de trazer livros. Ah, se eu pudesse levaria tudo.


Obrigada e parabéns a todos (Jane Ap. de Oliveira, público 2017).

Diante destes e muitos outros depoimentos que compõem o acervo do


projeto, reafirmamos que a leitura de literatura é linguagem artística e proporciona em
seus leitores o desejo de posse do objeto livro, ou simplesmente o reconhecimento da
sua importância no existir humano.
É sabido que a literatura, por ser considerada uma das linguagens da arte
proporciona aos leitores experiências estéticas. A experiência estética é composição
inerente à arte em sua forma objetivada, em suas múltiplas linguagens. Portanto, a
arte como meio de expressão pela linguagem literária desencadeia inúmeras vivências
estéticas.
A estética é muito mais vasta do que a própria arte, sendo a arte um dos
meios para consolidar tais vivências estéticas. Ao nos referirmos às experiências
estéticas, cabe situar a educação estética como uma das possibilidades de constituir

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estes novos olhares para a leitura de literatura, o que consiste em uma imperiosa
necessidade de perceber as mudanças que provocamos.
Entende-se que é estética
[...] porque mobiliza criação. Estética porque pode sensibilizar
apropriações da realidade polifacetada, interpretando-a em suas
diferentes formas de apreensão sígnica. Estética porque supera o
estético alcançando pensares e fazeres a patamares onde se
bricolam inovações (ZANELLA et al., 2007, p. 13).

Ao se relacionar com a leitura literária o(a) leitor(a) estabelece relações


estéticas na medida em que se relaciona com o(s) outro(s), seja por meio do texto,
autor ou ele próprio, mediado pela leitura da palavra/imagem. Pode-se dizer que
vivencia uma relação dialógica e a partir daí evoca memórias e consequentemente a
produção de sentidos. Partindo dessa compreensão, tal esboço teórico expõe ações
práticas, que considera todos os sujeitos envolvidos no processo, como histórico-
culturais.
Conforme Bakhtin, podemos acrescentar que
[...] o homem tem uma necessidade absoluta do outro, do seu
ativismo que vê, lembra-se, reúne e unifica, que é o único capaz de
criar para ele uma personalidade externamente acabada; tal
personalidade não existe se o outro não a cria; a memória estética é
produtiva, cria pela primeira vez o homem exterior em um novo
plano da existência (BAKHTIN, 2003, p. 33).

Dito isso, entendemos que num primeiro olhar captura-se o que o outro quis
dizer e, no segundo momento, já de volta ao seu lugar, totaliza o que viu de acordo
com ―seus valores, sua perspectiva, sua problemática‖ (AMORIM, 2006, p. 96).
Destacamos o conceito de exotopia em Bakhtin por entender que mais de um ponto de
vista é estabelecido durante a leitura da palavra/imagem e, consequentemente, a
leitura da própria vida, para, a partir de então projetar-se em outras experiências.
Este movimento dinâmico de relações estéticas que se dão no encontro entre
o(a) leitor(a) e o texto literário aciona a produção de sentidos impregnada de
experiências apropriadas em contextos socioculturais, que possibilitam uma
(re)significação em relação ao vivido no tempo presente e dessa forma, projeta-se um
possível vir a ser.
Para Juliana Ormastroni Carvalho Santos (2014) em seu artigo ―Uma
discussão sobre a produção de sentidos na leitura: entre Bakhtin e Vygotsky‖ há um
profícuo diálogo entre a historicidade de cada sujeito, o seu outro e a sua experiência
pessoal.
Assim,

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[...] a leitura é baseada na relação dialógica entre leitura-texto e


texto-contexto. Dessa forma, o sentido relaciona-se ao contexto
imediato e sócio-histórico e, para o leitor, importa o meio social e
histórico concreto em que ele opera. Assim, a leitura é uma
atividade social marcada pela historicidade dos sujeitos, as vozes
que os constituem e sua situação material de vida (SANTOS, 2014,
p. 85).

A linguagem literária inserida na arena do discurso em contextos específicos


implica tensões, discordâncias, sentidos, aproximações significativas, memórias,
empatias, etc., ou seja, emerge daí a intensa relação dialógica entre o
texto/contexto/leitor(a). Há a compreensão de que a literatura é ―fenômeno da
linguagem plasmado por uma experiência vital/cultural direta ou indiretamente ligada a
determinado contexto e à determinada tradição histórica‖ (COELHO, 2000, p. 10), uma
vez que constituir-se leitor(a) significa experienciar a sua própria vida ao ler um texto,
pois durante a leitura é possível estabelecer relações com a leitura de mundo da qual
se apropriou nos diferentes contextos culturais dos quais estava inserido. A leitura da
palavra sugere a objetivação de situações vividas em contextos de práticas culturais,
conforme agrega Paulo Freire (1992), em seu livro ―A importância do ato de ler: em
três artigos que se complementam‖ a exemplo de seus próprios medos noturnos:

Os meus temores noturnos terminaram por me aguçar, nas manhãs


abertas, a percepção de um sem-número de ruídos que se perdiam
na claridade e na algazarra dos dias e que eram misteriosamente
sublinhados no silêncio fundo das noites. [...] me fui tornando íntimo
do meu mundo, em que melhor o percebia e o entendia na ―leitura‖
que dele ia fazendo, os meus temores iam diminuindo (FREIRE,
1992, p.15).

Essas ricas experiências vividas durante a infância por Paulo Freire (1992,
p.15) ilustram de forma belíssima a sua reflexão sobre a leitura da palavra em que ―a
decifração da palavra fluía naturalmente da ‗leitura‘ do mundo particular‖.
Portanto, entendemos que a literatura é Arte cuja ―matéria é a palavra (o
pensamento, as idéias, a imaginação), exatamente aquilo que distingue ou define a
especificidade do humano. [...] ligada a uma das atividades básicas do indivíduo em
sociedade: a leitura‖ (COELHO, 2000, p. 10). Também defendemos a leitura literária
como um direito humano, juntamente com Antonio Candido (2004), que em seu livro
―Vários escritos‖, sobre o direito à leitura, afirma que o ser humano necessita de
momentos de entrega à fruição da linguagem literária,

[...] ora, se ninguém pode passar vinte e quatro horas sem


mergulhar no universo da ficção e da poesia, a literatura concebida
no sentido amplo a que me referi parece corresponder a uma

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necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfação


constitui um direito (CANDIDO, 2004, p. 175).

Sabemos que o nosso cotidiano por vezes nos desafia a buscar refúgios pelo
viés da imaginação, para que (re)criemos situações ora prazerosas, ora densas, ora
esdrúxulas. Neste sentido, a imaginação se faz necessária nesta interlocução porque
abarca a complexidade desta reflexão, no sentido de compreender que quanto mais
experienciamos novos saberes e/ou inform(a)ções, mais rica será a nossa (re)criação.
O enfoque dado à imaginação é a formação especificamente humana
relacionada diretamente à atividade criadora do homem. O uso de signos/palavras e a
capacidade de criação explica o funcionamento psíquico, cultural e pessoal. O meio e
o modo de comunicação com as experiências vividas e também na relação com o(s)
outro(s) são destacados por Vigotski, porque centralizam o desenvolvimento do
pensamento e da consciência humana. Em seu livro Imaginação e criação na infância
Lev Semionovich Vigotski (2009) também analisa as relações entre imaginação e
realidade e mostra como a imaginação se apoia na experiência; como a experiência se
apoia na imaginação; como a emoção afeta a imaginação e como a imaginação
provoca emoções. Ainda em seus argumentos o autor diz que ―a imaginação na
qualidade de atividade humana afetada pela cultura, pela linguagem, vai sendo
marcada pela forma racional de pensar historicamente elaborada‖ (VIGOTSKI,2009, p.
9).

Intervenções práticas na formação inicial dos estudantes de Pedagogia

Sabemos que no espaço formal da escola ainda encontramos um caráter


socializante norteado de saberes que reproduzem práticas tradicionais de ensino e
aprendizagem, e consequentemente asfixiam o que há de conhecimentos práticos,
tanto dos sujeitos que a frequentam, quanto do próprio espaço físico que a delimita.
Freire, a propósito, acrescenta (2000, p. 50):

[...] se estivesse claro para nós que foi aprendendo que aprendemos
ser possível ensinar, teríamos entendido com facilidade a importância
das experiências informais nas ruas, nas praças, no trabalho, nas
salas de aula das escolas, nos pátios dos recreios, em que variados
gestos de alunos, de pessoal administrativo, de pessoal docente se
cruzam cheios de significação.

O espaço não formal impregnado de experiências históricas, políticas,


culturais e sociais em que os estudantes de Pedagogia da FMP estão inseridos e
consequentemente se apropriam de saberes significativos, implica no processo de

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aprendizagem. Entendemos que a educação não formal por sua especificidade não é
oposição e/ou negação à educação formal, mas sim o entendimento de que a escola
não poderá ser tomada como a única difusora do conhecimento (GADOTTI, 2005).
Assim, é mais significativo ensinar aos estudantes do curso sobre o exercício da
docência, em que a prática de doar livros numa praça pública vem ao encontro do que
propõe a RESOLUÇÃO Nº 2, DE 1º DE JULHO DE 2015, do MEC/CNE que define as
Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial em nível superior:
Art. 3º A formação inicial e a formação continuada destinam-se,
respectivamente, à preparação e ao desenvolvimento de profissionais
para funções de magistério na educação básica [...] em seu § 1º Por
educação entendem-se os processos formativos que se desenvolvem
na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições
de ensino, pesquisa e extensão, nos movimentos sociais e
organizações da sociedade civil e nas relações criativas entre
natureza e cultura.

Embebido nessa perspectiva, o livro literário ofertado gratuitamente na praça


central do Município de Palhoça, na Grande Florianópolis, se insere neste estudo
como um espaço potencial para a totalidade do processo formativo inicial de
pedagogos, porque abarca ensinamentos associados à formação humana e a
constituição de leitores, portanto sociocultural.
Falar em constituição de leitores(as) na formação inicial de professores
significa intensificar a reflexão da práxis docente em encontros formativos continuados
para que assim os mesmos a problematizem e ressignifiquem, a partir dos
fundamentos teóricos/práticos apreendidos nos encontros do Grupo de estudos em
literatura infantil e a constituição de leitores(as). O grupo de estudos iniciou seus
encontros em agosto de dois mil e dezessete com o intuito de ampliar o repertório de
leituras literárias dos estudantes, bem como refletir sobre a sua própria constituição
leitora. Dessa forma, os estudantes desenvolvem as práticas leitoras no período em
que participam da organização da praça para a doação de livros literários, bem como
realizam intervenções significativas de leitura literária nos estágios obrigatórios do
curso. Essa relação entre a atividade teórica e a prática no grupo de leitura, em
encontros sistemáticos, qualifica o fazer pedagógico para aprimorar as interlocuções
com o objeto livro de literatura infantil, bem como o exercício de constituir-se leitor.
Portanto, a formação inicial de professores necessita propor um trabalho docente
para com o livro, a leitura e a constituição de leitores(as).

Interlocuções Finais

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Na tessitura desta reflexão foram dispostos os referenciais teóricos que


norteiam os princípios de execução do projeto ―Fruto do conhecimento: a praça, o
público, o livro‖ e assim nos permite afirmar que estamos em processo de organização
e análise dos registros que demarcaram as ações realizadas nas três edições até esse
momento, bem como esta produção teórica com os princípios fundantes do projeto.
Cabe ressaltar que diante de algumas ações planejadas a partir das demandas
levantadas até o momento, houve a criação de um grupo de estudos com os
estudantes da graduação em Pedagogia para estudar, refletir e produzir trabalhos
acadêmicos que venham ao encontro das necessidades para auxiliar a ampliação de
repertórios de leitor, bem como estudar os referenciais teóricos sobre a leitura, a
literatura e a constituição de leitores no percurso da formação inicial no curso de
graduação, principalmente na participação da organização da praça para ofertar
gratuitamente os livros de literatura ao público, nos estágios interdisciplinares e na
atuação docente após a conclusão do curso. O ―Grupo de estudos em literatura infantil
e a constituição de leitores(as)‖ iniciou suas atividades em agosto de dois mil e
dezessete. É possível asseverar que neste grupo a leitura da palavra, a leitura da
imagem e a leitura da realidade entretecem acadêmicos(as) e docentes ao emergirem
em seus enunciados, a boniteza da linguagem literária e as entrelinhas da realidade.
Este grupo também marcará a presença durante a próxima edição da praça com
novos olhares, novas ferramentas e uma escuta sensível ampliada para dialogar com
o público leitor, auxiliando-os na busca de seus desejados frutolivros.

Referências

AMORIM, Marilia. Cronotopo e exotopia In: BRAIT, Beth (org.). BAKHTIN, outros
conceitos chave. São Paulo: Contexto, 2006
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários Escritos. Rio de Janeiro: Duas
cidades, 2004.
COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, análise, didática. São Paulo:
Moderna, 2000.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigo que se completam. São
Paulo: Cortez, 1992.
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss de Língua
Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
SANTOS, Juliana Ormastroni C. Leitura: Teoria & Prática, Campinas, v.32, n.62, p.75-
86, jun. 2014.
SOARES, Magda. A escolarização da literatura infantil e juvenil. In: EVANGELISTA,
Aracy Alves Martins; BRANDÃO, Heliana Maria Brina; MACHADO, Maria Zélia
Versiani. A escolarização da leitura literária. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
VIGOTSKI, Lev Semionovich. Imaginação e criação na infância. São Paulo: Ática,
2009.

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ZANELLA, Andrea Vieira et al. (Org.). Educação estética e constituição do sujeito:


reflexões em curso. Florianópolis: NUP/CED/UFC, 2007 .

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

O PAPEL DA BIBLIOTECA NO CONTEXTO DA ESCOLA


PÚBLICA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES

Fabiana Sala, Bibliotecária no Instituto Federal de Educação, Ciência e


Tecnologia de São Paulo, mestranda no Programa de Pós-Graduação em
Educação da FCT/Unesp, eixo temático 9: Os espaços de leitura literária

Considerações Iniciais

O debate sobre a questão da escola ser ou não capaz de contribuir para a


transformação social tem dedicado grande espaço no contexto atual. Diversos autores
como Paro (2003) e Libâneo (2004), afirmam que a escola pode contribuir para a
transformação social desde que se torne capaz de proporcionar às camadas
trabalhadoras a apropriação de saberes e o desenvolvimento de consciência crítica
que, historicamente são acumuladas pelas classes privilegiadas.
Devido aos avanços científicos e tecnológicos, a sociedade brasileira passa
por momentos de fortes transformações. Canário (2002), afirma que a escola é uma
instituição que, por meio de um conjunto de valores, vem se tornando uma ―fábrica de
cidadãos‖, ao desempenhar um papel unificador político e cultural. É neste processo
de mudanças que a escola está inserida e deve trabalhar para realizar a integração da
diversidade.
Portanto, a função da escola pode ser compreendida como de formação a
cidadãos críticos e participativos. Aliada a essa função de provocar e despertar a
curiosidade do aluno no processo formativo, o professor pode contar com a biblioteca
escolar como uma forte aliada, uma vez que estabelece um espaço de aprendizagem
por excelência quando desenvolvidas ações pedagógicas voltadas para atender os
objetivos delineados pela escola.
Isto posto, o presente artigo tem como objetivo principal, compreender qual o
papel atual da biblioteca e do bibliotecário escolar no contexto da escola pública e de
que forma a colaboração entre bibliotecários e professores pode contribuir no
processo de aprendizagem.
1777

A função pedagógica da biblioteca e o papel do bibliotecário no processo


de aprendizagem

A escola possui uma função que lhe é específica, ensinar, e no cenário atual
isso significa ajudar os alunos a desenvolverem suas capacidades intelectuais e
reflexivas em face da complexidade do mundo moderno, da forte influência das mídias
e dos problemas sociais.
Desse modo, é necessário que a escola conte com professores que saibam
organizar os conteúdos tendo em vista as características individuais, sociais e culturais
que os alunos trazem a sala de aula. Além de ter uma noção clara de como os alunos
aprendem a pensar, aprendem a desenvolver suas capacidades intelectuais, levando
em conta os motivos estabelecidos pelos alunos e a relação que esses alunos
estabelecem com o saber que os próprios professores ensinam (CHARLOT, 2001).
A missão do professor não é apenas dar respostas prontas, respostas essas
que são facilmente encontradas em livros e na Internet, a missão do professor vai
muito além das respostas, é provocar a inteligência, o espanto e a curiosidade
(LIBÂNEO, 2004).
Campello (2003), afirma que a biblioteca escolar pode desenvolver diversas
atividades que contribuem efetivamente para a formação do aluno. Dentre elas, as que
mais se destacam são aquelas voltadas para o incentivo à leitura e o letramento
informacional, aliadas ao desenvolvimento do senso ético e cidadão, visto que
possibilitam o aluno desenvolver e/ou ampliar o interesse pela leitura, a capacidade de
compreensão da necessidade, localização, seleção e interpretação da informação de
forma crítica e responsável.
A biblioteca da escola é o espaço, por excelência, para o
desenvolvimento de atividades de produção do conhecimento, que
colocam o aluno no centro do processo de aprendizagem. Uma das
mudanças mais significativas que o professor interessado em
desenvolver esse tipo de atividade vai enfrentar é o trabalho em
colaboração. O bibliotecário da escola pode ser um parceiro nesse
processo por estar acostumado a ver a boa biblioteca como um
espaço de construção do conhecimento (CAMPELLO, 2010, p. 26).

Inserir a biblioteca no processo de ensino é ofertar aos alunos a possibilidade


de ampliar o conhecimento através dos diversos materiais disponíveis no acervo. No
entanto, é necessário que o local conte com profissionais habilitados para o
desenvolvimento de práticas pedagógicas que incentivem os alunos a utilizarem o
espaço não apenas para os fins de pesquisa, mas como um instrumento pedagógico e
formativo que auxiliam os professores no processo de aprendizagem.

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O profissional bibliotecário dispõe de conhecimentos necessários sobre as


ferramentas informacionais que podem contribuir para a formação do indivíduo com
maior clareza e consciência crítica sobre a sociedade. Por isso, é capaz de intervir de
forma colaborativa com vistas a transformar o ambiente em que atua.
Nesta perspectiva, o Manifesto IFLA/UNESCO para Biblioteca Escolar,
elaborado pela International Federation of Library Associations and Institutions (IFLA)
e aprovado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura
(Unesco) em sua Conferência Geral de novembro de 1999, ressalta que:
Está comprovado que bibliotecários e professores, ao trabalharem em
conjunto, influenciam o desempenho dos estudantes paro o alcance
de maior nível de literacia na leitura e escrita, aprendizagem,
resolução de problemas, uso da informação e das tecnologias de
comunicação e informação (IFLA, 2017).

É de conhecimento social e reconhecimento comprovado por diversos autores


que, a biblioteca escolar é uma instituição dinâmica capaz de interagir com a escola e
o meio social em que está inserida. No entanto, ainda é comum encontrarmos
realidades em que a biblioteca encontra-se distante da comunidade escolar. Entre as
inúmeras motivações que levam a esse distanciamento, a mais problemática, sem
dúvidas, é a falta de integração da biblioteca escolar com o projeto educacional da
escola.
De acordo com Assis (2010), quando bem integrada ao projeto político
pedagógico da escola, a biblioteca escolar pode contribuir com o desenvolvimento das
habilidades do aluno, proporcionando estudo independente, autoeducação,
criatividade, autonomia e consciência crítica para a formação da cidadania, além de
fornecer diversos serviços e recursos à comunidade escolar.
Em 1944, durante a Conferência da Série ―A educação e a biblioteca‖,
Lourenço Filho já destacava a função educativa da biblioteca escolar, ao afirmar que:
Ensino e biblioteca não se excluem, completam-se. Uma escola sem
biblioteca é instrumento imperfeito. A biblioteca sem ensino, ou seja,
sem a tentativa de estimular, coordenar e organizar a leitura, será,
por seu lado, instrumento vago e incerto (LOURENÇO FILHO, 1946,
p. 4).

Contudo, a biblioteca escolar tem contribuição fundamental no processo


educativo e suas funções vão muito além de um simples depósito e guarda de
materiais, oferecendo aos alunos as condições necessárias para atender às suas
demandas e interesses.
De acordo com Castro (1998, p. 7),
Resignificar a biblioteca enquanto espaço de produção e
disseminação do conhecimento – e não apenas o lugar de estocagem
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da informação -, implica em trabalhar uma visão nova da própria


escola: a escola enquanto espaço de formação de sujeitos ativos e
cidadãos emancipados deve buscar implementar uma concepção de
conhecimento que se caracteriza pela pluralidade de suas
dimensões. Tais dimensões se apresentam tanto sob a forma de
conteúdos curriculares que privilegiam a cognição e possibilitam o
acesso ao saber universal constituído na história do homem, quanto
dos elementos que, expressos na socialização e na experiência
cultural dos diversos grupos sociais, se mostram vitais para a
construção das identidades dos sujeitos participantes do processo
educacional.

―A biblioteca escolar é fundamental dentro do sistema educacional de um


país, pois, como parte integrante do sistema de informação, pode colaborar
consideravelmente para a adoção desses novos paradigmas‖ (FURTADO, 2015, p. 2).
A partir de um planejamento estratégico para a inserção desta nas atividades
desenvolvidas nas escolas, há a possibilidade de transformação da realidade, fazendo
com que a biblioteca escolar possa atuar de forma efetiva no sistema educacional,
cumprindo seu papel dentro da sociedade da informação.
Pensar neste ambiente é reconhecê-lo como um importante componente
educacional, capaz de contribuir para o desenvolvimento potencial de diversas
competências e habilidades, não apenas dos alunos, mas de toda a comunidade em
que está inserida. ―É imaginar um mundo de descobertas, aprendizagens e
principalmente de possibilidades‖ (ANDRADE; MACHADO, 2014, p. 20).
Sua função educativa está diretamente relacionada com o contexto em que
está inserida. Portanto, ao analisar o papel da biblioteca escolar não se pode deixar de
observá-la no âmbito da sociedade da informação, que exige repensa-la, como:
Um espaço de promoção de aprendizagens e formação de indivíduos
críticos/reflexivos capazes de gerenciarem informações de forma
autônoma e responsável mediante práticas leitoras e culturais
diversas (ANDRADE; MACHADO, 2014, p. 20).

Para tanto, é necessário que a biblioteca proporcione à comunidade escolar


condições favoráveis para o processo de aprendizagem, e conte com espaço físico
adequado, profissionais capacitados, coleções atualizadas, práticas culturais
direcionadas e elaboradas de forma colaborativa.
Para Dudziaki (2003), a biblioteca escolar é um espaço que possuí muito
mais do que acervo e atividades para atender os usuários, ela é vista como um lugar
onde se articulam recursos e ferramentas para a promoção do conhecimento crítico.
Conhecimento esse que é construído ao articular currículo e pesquisa informacional,
atividade está que pode ser desenvolvida com excelência pelo profissional
bibliotecário.

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Bibliotecas que contam com bons profissionais propiciam a seu público uma
aprendizagem peculiar, bem diferente daquelas em que os alunos são apenas
recipientes passivos de informações que são transmitidas pelo ―professor
readaptado‖344.
É um processo de aprendizagem no qual os estudantes constroem o seu
conhecimento, integrando e assimilando em seu contexto as experiências vivenciadas
por outros sujeitos, por meio das quais atraem significados e agregam suas próprias
experiências.
Nesse processo, o bibliotecário não é apenas o mediador da informação, mas
é também do acesso às tecnologias informacionais e das práticas educativas. É um
profissional capacitado, consciente de seu papel social transformador, que tem a
clareza da sua função educativa no ambiente escolar e que, por isso, desempenha
ações fundamentais no processo de aprendizagem, de construção do conhecimento,
bem como a formação de consciência crítica e cidadã.
Realizar um planejamento estratégico e inserir estas atividades mediadoras
no cotidiano escolar, possibilita a transformação da realidade, e faz com que a
biblioteca possa atuar de forma efetiva no sistema educacional, cumprindo seu papel
dentro da sociedade da informação.

O trabalho colaborativo entre professor e bibliotecário

O trabalho colaborativo pode ser considerado uma chave para o sucesso das
organizações e um recurso essencial na educação. Autores como (Haycock, 2004;
Todd & Kuhlthau, 2004; Lance, Rodney & Schawarz, 2010; Campello, Small,
Shanahan & Stasak, 2010; Dow, Lakin & Court, 2012) entre outros, demonstram a
forte conexão que existe entre o desempenho dos alunos e o suporte oferecido pela
biblioteca escolar, principalmente quando o bibliotecário trabalha em colaboração com
os professores.
No entanto, são muitos os desafios enfrentados pelas escolas, professores e
bibliotecários para que possam realizar um verdadeiro trabalho colaborativo. Campello
(2010), destaca que a colaboração entre bibliotecário e professor depende do grau de
intervenção envolvido no processo de aprendizagem.
É necessário que o bibliotecário exerça um papel mais decisivo na escola e
busque exercer sua função educativa de maneira mais efetiva, desenvolvendo

344
Profissional afastado da sala de aula por limitações físicas e/ou mentais que o impedem de continuar
exercendo sua função, assumindo assim um novo cargo na instituição. Frequentemente esses
profissionais são encontrados à frente das bibliotecas escolares nas escolas públicas do país.
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atividades conjuntas com os professores, auxiliando em trabalhos dentro e fora da sala


de aula, para que possam conquistar seu espaço na comunidade escolar.
Inserir o bibliotecário na comunidade educacional nem sempre é fácil.
Embora muitos bibliotecários se considerem educadores e possuam
status para tal, nem sempre as escolas e faculdades às quais estão
vinculados percebem esses profissionais como colegas engajados no
processo educacional. Em geral, admite-se que as coleções das
bibliotecas são essenciais para a formação do estudante, mas a
necessidade de se educar para ter o ―domínio da informação‖ fica
muitas vezes em segundo plano (DUZIAK, 2001, p. 115).

Colaborar pressupõe um clima de confiança e respeito, objetivos comuns e


visão partilhada (MORONAGA; HARADA, 1999). Para que os participantes se sintam
motivados a colaborarem é necessário a presença do sentimento de mais-valia e
comprometimento. Os participantes devem estar dispostos a assumir
responsabilidades conjuntas e trabalhar para desenvolver soluções em parceria.
No trabalho colaborativo cada profissional cumpre um papel bem definido.
Para ter maior impacto as relações de trabalho devem se estender por um período
relativamente longo. Roldão (2007, p. 27), afirma que o trabalho colaborativo se
estrutura:
Essencialmente como um processo de trabalho articulado e pensado
em conjunto, que permite alcançar melhor os resultados visados, com
base no enriquecimento trazido pela interação dinâmica de vários
saberes específicos e de vários processos cognitivos em
colaboração. Implica conceber estrategicamente a finalidade que
orienta as tarefas e organizar adequadamente todos os dispositivos
dentro do grupo que permitam: alcançar com mais sucesso o que se
pretende; ativar o mais possível as potencialidades de todos os
participantes; ampliar o conhecimento construído por cada um pela
introdução de elementos resultantes da interação com todos os
outros.

A colaboração propicia um ambiente diferenciado, que constitui um ambiente


de criatividade, aprendizagem e diversidade de pensamento dentro de um contexto
rico em investigação e solução de problemas. Trabalhar de forma colaborativa
possibilita ensinar mais e melhor (ROLDÃO, 2007).
Por possibilitar a discussão de ideias, a busca de consenso e a superação de
conflitos, o trabalho colaborativo promove maior envolvimento e apropriação de novos
conhecimentos que vão além da concepção de novas práticas pedagógicas. Essa
ação tem impacto crucial na aprendizagem dos alunos, objetivo este que vai ao
encontro da missão do bibliotecário.
A colaboração entre biblioteca escolar, bibliotecários e professores está
presente em diversos documentos institucionais, o que ressalta sua importância no

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processo de aprendizagem. As Diretrizes da IFLA/UNESCO para a Biblioteca Escolar


(2016, p. 12), declara a defesa da prática colaborativa entre professor e bibliotecário:
A cooperação entre professores e bibliotecário escolar é essencial
para otimizar o potencial dos serviços da biblioteca. Professores e
bibliotecários trabalham em conjunto para atingir o seguinte: •
Desenvolver, instruir e avaliar a aprendizagem dos alunos ao longo
do curriculum; • Desenvolver e avaliar as competências dos alunos
345
em literacia da informação e em conhecimento da informação; •
Desenvolver planificações de atividades letivas; • Preparar e conduzir
programas de leitura e eventos culturais; • Integrar tecnologias de
informação no curriculum; • Explicar aos pais a importância da
biblioteca escolar.

De fato, a colaboração é essencial para o desenvolvimento de um bom


trabalho na biblioteca. A colaboração efetiva de professor e bibliotecário contribui para
a criação de comunidades de aprendizagem vibrantes e comprometidas, além de
reforçar o projeto educativo da biblioteca e da escola.
No entanto, é comum que os professores necessitem de ajuda na transição
para o modelo de trabalho colaborativo. Assim, o bibliotecário passa a ser o agente
transformador que pode atuar como mediador durante esse processo.
Entretanto, para que isso aconteça, a escola precisa compreender o papel
educativo da biblioteca e do bibliotecário. Entender que nos trabalhos colaborativos
cada profissional tem uma função e papel específicos e que, ao atuarem em conjunto
os profissionais exercem também a tolerância profissional, um requisito fundamental
para o processo de formação na escola.
De acordo com Ibernón (2016, p. 205),
Uma finalidade importante de uma comunidade de prática formativa
na escola seria construir um projeto educacional na qual prevaleça
uma formação baseada na cooperação e na solidariedade, a partir
não tanto das fraquezas, e sim das forças que cada um e a escola em
seu conjunto possuem. Tal projeto deveria ser construído com base
na ideia de que os recursos que a comunidade de prática do
professorado possuí devem ser avaliados e articulados levando em
conta as necessidades e possibilidades específicas do grupo para a
melhoria da escola.

345
O conceito de literacia da informação pode ser entendido como um conjunto de
competências de aprendizagem e pensamento crítico necessárias para aceder, avaliar e usar a
informação de forma eficiente. O papel das bibliotecas no desenvolvimento da literacia da
informação é fundamental, pois, pelo fato de possuírem recursos de informação variados e em
quantidade, sistemas de gestão de informação e pessoal especializado, são intervenientes
decisivos neste processo (ISCT, 2017).

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O professor conhece os alunos, seus interesses e dificuldades. O bibliotecário


domina as competências informacionais, as ferramentas web e os métodos para
integrá-las ao currículo. Assim, ao trabalharem em conjunto eles podem criar
atividades didáticas mais atraentes e apropriadas às necessidades dos alunos. Para
tanto, a escola precisa estar disponível, e perceber os benefícios que esta parceria
pode gerar.
Entre as qualidade do bibliotecário que podem auxiliar no trabalho
colaborativo, Furllan e Hargreaves (2001), destacam: Capacidade de iniciativa;
Capacidade de gerar confiança; Competências de comunicação; Qualidades de
liderança; Disposição a assumir riscos.
Shepher (2004), destaca que o bibliotecário, além de possuir as
características essenciais para o desenvolvimento do trabalho colaborativo, deve estar
sensível para desenvolver uma atitude positiva no grupo, resistindo a tendência de
controle, mantendo o equilíbrio para que as coisas aconteçam naturalmente.
Diversas são as possibilidades de trabalho colaborativo entre professores e
bibliotecários. Muronga e Harada (1999), afirmam que o trabalho colaborativo pode
acontecer em três níveis:
 Nível 1: As competências são planejadas e implementadas isoladamente. O
bibliotecário ensina o aluno a utilizar uma fonte de informação mas essa
competência não é reforçada posteriormente pelo professor na sala de aula.
 Nível 2: Colaboração simples, e/ou acidental. O Bibliotecário trabalha alguma
competência que por acaso o professor também desenvolve em sala de aula.
 Nível 3: Colaboração total e/ou deliberada. O bibliotecário e o professor
planejam em conjunto a unidade didática e posteriormente avaliam o resultado.
Ao destacar a importância da colaboração para o programa de atividades da
biblioteca escolar Loertscher (2000), também procurou classificar esse trabalho por
meio de taxinomias. Destacando o papel do bibliotecário no desenvolvimento de
trabalhos que auxiliam os alunos a obterem sucesso escolar, conforme pode ser
observado no quadro a seguir.

Quadro 1: Loertsher – Taxonomias do professor e do bibliotecário sobre colaboração.


Taxinomia do Professor Taxinomia do Bibliotecário
Níveis Descrição Níveis Descrição
1 O professor leciona de forma 1 O bibliotecário não se envolve na
Independente. lecionação de nenhuma unidade
didática.
2 O professor leciona com recurso a 2 O bibliotecário organiza e
fundos documentais privados. disponibiliza informação.
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3 O professor leciona com recurso a 3 O bibliotecário atende às solicitações


fundos documentais requisitados em de alunos e professores e apoia na
bibliotecas. utilização das novas tecnologias.
4 O professor recorre à biblioteca para 4 O bibliotecário responde às
recolher sugestões e obter novos necessidades, aproveitando as
materiais. ideias espontâneas dos professores,
disponibilizando materiais.
5 O professor recorre à biblioteca para 5 O bibliotecário planifica
enriquecer/ complementar uma informalmente e de forma superficial
unidade didática. com os professores.
6 O professor utiliza os recursos da 6 O bibliotecário se reúne com os
biblioteca como parte dos conteúdos professores para saber quais os
de uma unidade didática. materiais necessários ao
desenvolvimento do projeto ou de
uma unidade didática.
7 O bibliotecário faz um esforço para
promover a biblioteca escolar e o
seu programa.
7 O professor e o bibliotecário são 8 O bibliotecário implementa um plano
parceiros no ensino: preparam, de ação para a biblioteca tendo em
decidem, planificam, apresentam os conta o desenvolvimento da
conteúdos e avaliam em conjunto. colaboração, leitura, literacia da
informação e aprendizagem através
da tecnologia.
9 O bibliotecário consegue que o
programa da biblioteca atinja um
nível de maturidade em todos os
seus elementos programáticos.
8 Os professores e o bibliotecário 10 O bibliotecário planifica e organiza
desenvolvem, em conjunto, o com os outros professores o que vai
currículo. ser ensinado, participando
ativamente no desenvolvimento do
currículo.
Fonte: ARAÚJO, 2014, p. 8.

Montiel-Overall (2005), a partir da taxinomia de Loertscher (2000) também


analisa o trabalho colaborativo entre professores e bibliotecários e propõe 04 modelos
para descrever as relações de trabalho entre os profissionais.

Quadro 2: Relações de trabalho colaborativo entre professor e bibliotecário.


Modelo A – Coordenação • Pressupõe que os professores se reúnam para se
ajudarem uns aos outros ou para tornar mais eficiente o
seu trabalho. Organizam, por exemplo, eventos
conjuntos, o que é uma prática muito comum.
Modelo B - Cooperação/ Parceria • Duas ou mais entidades trabalhem em conjunto, com
os mesmos objetivos e com o mesmo propósito.
• Por vezes, dividem responsabilidades e quando há um
maior envolvimento também existem maiores níveis de
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confiança;
• Pode não haver um compromisso profundo, uma
comunicação intensa ou um planeamento conjunto.
Cada parceiro fica responsável por uma parte que
termina e com a qual contribui para um produto final.
• A relação é do tipo unilateral (por exemplo, o professor
bibliotecário por vezes disponibiliza livros para apoiar a
lecionação de um conteúdo em sala de aula).
Modelo C - Ensino Integrado • Os parceiros estão todos focados em integrar os seus
conhecimentos diversificados em experiências de
aprendizagem que sejam significativas para os alunos e
os ajudem a desenvolver o seu potencial.
• Os parceiros trabalham lado a lado na planificação de
aulas e de unidades didáticas e na sua avaliação.
• Procura-se integrar os conteúdos em literacia da
informação com os conteúdos trabalhados na sala de
aula.
Modelo D - Currículo Integrado • Quando o processo descrito no modelo C ocorre em
todo o currículo estamos perante o modelo D.
• O diretor fica responsável por flexibilizar horários,
distribuir recursos, incentivar a colaboração entre a sala
de aula e a biblioteca.
• O diretor reconhece o bibliotecário como um professor
ao mesmo nível dos outros, capaz de desenvolver e
implementar currículos.
Fonte: ARAÚJO, 2014, p. 9.

Os modelos C e D de trabalho colaborativo propostos por Montiel-Overall,


exigem maior esforço e conhecimento de ambas as partes pois, o nível de tempo e
compromisso necessários para a realização também são maiores.
Já Zmuda (2006), ao classificar a relação de colaboração entre professores e
bibliotecários identifica os seguintes níveis e/ou modelos:
• Evento isolado - O professor apenas reserva o ambiente para os alunos
utilizarem os recursos da biblioteca no cumprimento das tarefas; o professor
coordena a aula e o bibliotecário atende as solicitações feitas por professor e
alunos; o bibliotecário não participa da avaliação.
• Esforço coordenado - O professor solicita ao bibliotecário informações e ideias
de recursos que possam contribuir para o desenvolvimento das tarefas; o
professor estabelece as metas e o bibliotecário fornece os recursos; o
professor faz a avaliação do trabalho, relata o progresso da atividade e repassa
ao bibliotecário.
• Parceria - o professor apresenta o projeto ao bibliotecário e trabalha em
parceria para o seu desenvolvimento; Trabalho conjunto desde o planejamento,

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orientação dos alunos utilização das fontes de informação, seleção, análise e


tratamento; nesse modelo, a avaliação contempla diversos parâmetros,
incluindo os conteúdos didáticos e a literacia da informação.
Portanto, é nesta última perspectiva que deseja-se encaixar a biblioteca escolar
e a atuação do bibliotecário, uma vez que elas não devem funcionar de forma isolada
no contexto educacional, desarticuladas dos projetos da escola ou mesmo alheia às
necessidades dos alunos. Afinal, é por meio do compartilhamento de experiências e
trabalho conjunto que se pode conquistar as melhores práticas e alcançar a eficiência
no processo de formação dos alunos.
Dentre os profissionais que podem colaborar para esse processo formativo,
os que mais se destacam são o professor e o bibliotecário escolar, pois, ambos
interferem pontualmente no processo de aprendizagem dos alunos e, ao trabalharem
de forma colaborativa, proporcionam um ambiente favorável e estimulante,
possibilitando assim, o estabelecimento de ligações concretas entre o que é ensinado
e as experiências vivenciadas pelos alunos.
Por isso, é necessário compreender que o conhecimento concebido através
da escola não ocorre apenas dentro da sala de aula com a intervenção do professor. A
biblioteca escolar e o bibliotecário, não só podem como devem auxiliar no processo
formativo. Afinal, o trabalho colaborativo possibilita não apenas que as atividades e
propostas elaboradas contribuam de forma mais significativa para o processo de
aprendizagem dos alunos, como também é considerada uma excelente ferramenta de
formação para os profissionais envolvidos.

Considerações finais

A ação educativa da biblioteca escolar deve ser pensada e gerenciada


visando à sua interação com o ensino e aprendizagem. Para que ocorra o
desenvolvimento pleno do aluno no ambiente escolar, é imprescindível a inserção de
uma biblioteca que seja atualizada, dinâmica e atenda às necessidades do plano de
ensino estabelecido pela escola a qual está inserida.
No entanto, para que o aluno se torne um indivíduo crítico e consciente,
conforme objetiva a escola pública, é necessário que passe por um processo
formativo, dispondo da colaboração de profissionais que atuem diretamente na
elaboração de projetos e atividades que contribuam para o processo de aprendizagem
e produção do conhecimento.

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A colaboração entre professores e bibliotecário exige a elaboração de


projetos que sejam capazes de gerar uma nova cultura profissional e a superação de
problemas que estão enraizados na maioria das escolas brasileiras, como o
funcionamento individualista; a tendência à burocratização e, principalmente, a falta de
tolerância profissional.
Para garantir de forma efetiva a apropriação das concepções e acesso à
informação, a articulação entre professores e bibliotecários deve ser permanente. É
necessário que a biblioteca escolar esteja presente no planejamento e no projeto
político pedagógico da escola, e que o trabalho realizado pelos professores incluam a
participação do bibliotecário, tendo em vista o desenvolvimento do trabalho
colaborativo, para que possam se apoiarem no processo de aprendizagem e ascensão
econômica, social e cultural.
Para tanto, os bibliotecários devem estar comprometidos com o
desenvolvimento de ações pedagógicas fundamentais, tais como: A literacia da
informação e das mídias informacionais; A aprendizagem apoiada na investigação; A
formação de professores e; A valorização da cultura.
Contudo, a biblioteca escolar é um ambiente transdisciplinar, considerada por
diversos autores como um instrumento pedagógico capaz de promover a construção
de conhecimentos que serão utilizados de forma racional nas decisões que os alunos
virão a tomar ao longo da vida. Assim, é fundamental que professores e bibliotecários
atuem de forma conjunta e positiva, formando os alunos para espaços que vão além
dos muros da escola, preparando-os para a vida em sociedade.

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pedagógica no contexto de uma biblioteca escolar: delineando caminhos para
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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

OS ESPAÇOS DE LEITURA LITERÁRIA E A EMANCIPAÇÃO DO


SUJEITO

Antonio Cezar Nascimento de Brito, Faculdade Projeção - Brasília, Os espaços


de leitura literária

Considerações Iniciais

Falar sobre emancipação do sujeito requer uma reflexão sobre Direitos


Humanos, tendo em vista que é por meio da conscientização e da afirmação dos
Direitos que o sujeito pode afirmar-se enquanto cidadão pleno. Levando-se em
consideração a atual conjuntura social, política e histórica em que o Brasil se encontra,
estabelecer relações entre a literatura e os direitos humanos pode ser entendida como
uma forma de resistência à usurpação dos direitos de todo cidadão.
Sabe-se que a literatura faz parte do patrimônio cultural acumulado e que, por
isso, seu acesso deveria ser garantido a todas as pessoas, especialmente àqueles
que se encontram em fase de formação e que, muitas vezes, vivem em situações de
vulnerabilidade social e que têm seus direitos negados cotidianamente.
Nesse sentido, mesmo indo na contramão dos episódios sociais, políticos e
históricos que a cada dia retiram direitos, inclusive de estudantes, em diversos âmbitos
educacionais, estabelecer relações entre a literatura infantojuvenil e a emancipação do
sujeito, refletindo sobre o acesso dos leitores à literatura, bem como sobre os espaços
de formação de leitores e de mediação de literatura, deve estar no horizonte de todos
que atuam como fomentadores de leitura literária.
A partir desses pressupostos, este artigo tratará de abordar essas questões,
tomando como eixos norteadores os textos de Antonio Candido, Michèle Petit, Nelly
Novaes Coelho, dentre outros autores que discutem sobre leitura e literatura,
mediação literária e sobre espaços de leitura de literatura.
Relataremos três experiências desenvolvidas durante um projeto de leitura
realizado no Centro de Convivência Estrutural, na cidade Estrutural – DF, de modo a
1791

perceber de que maneira a leitura de literatura pode auxiliar na emancipação de


crianças e jovens que vivem em situação de vulnerabilidade social.

Direitos humanos e mediação de leitura literária


Em seu artigo ―O direito à literatura‖, Antonio Candido (2004) nos diz que os
fatores que fizeram com que a humanidade alcançasse um nível de progresso nunca
antes imaginado, por meio do qual poderiam ser solucionados diversos problemas
estruturais da sociedade, como a fome e a desigualdade social, também fizeram com
que a irracionalidade levasse os homens a agirem em sentido oposto, trazendo mais
desgraças que benefícios para a humanidade. Nesse sentido, infelizmente, a
afirmação de sujeito portador de direitos não se aplica a todos os cidadãos.
Candido também aponta que, ao pensarmos em direitos humanos,
primeiramente temos que reconhecer que aquilo que consideramos como direito
imprescindível para nós também deve ser para todas as pessoas. A partir dessa
consideração, ao relacionar a literatura aos direitos humanos, o crítico faz uma
diferenciação entre bens compressíveis e bens incompressíveis. Chama ele de bens
compressíveis aqueles que são considerados supérfluos e que, caso não tenhamos
acesso a eles, isso não interfere na nossa humanidade. Podem ser citados como
exemplos de bens compressíveis joias, perfumes, roupas supérfluas, um aparelho de
telefone celular ou um notebook de última geração etc. Já os bens incompressíveis
são aqueles que não podem ser negados a ninguém, sob pena de mutilar a
humanidade do sujeito, podendo ser citados como exemplo de bens incompressíveis o
direito à moradia, ao alimento, à educação, à justiça etc. Nesse sentido, pode também
ser alçada à categoria dos bens incompressíveis a literatura, vista como uma
necessidade profunda do ser humano, a qual não pode deixar de ser satisfeita.
Assim, quando lê um texto literário, o leitor tem a possibilidade de organizar o
seu pensamento e, com isso, compreender a si e ao mundo e, com isso, reafirmar a
sua humanidade e entender-se enquanto sujeito e cidadão do mundo em que vive.
No entanto, para que isso seja possível, é necessário que o acesso à
literatura seja garantido a todas as pessoas. Sabemos que, embora seja um bem
cultural que deveria ser direito de todas as pessoas, o acesso e a leitura da literatura,
assim como muitos dos direitos citados anteriormente, são negados a grande parte da
população, em especial àqueles que fazem parte de uma parcela da sociedade que
fica excluída do acesso aos bens culturais. Isso se aplica também à literatura
infantojuvenil que, ainda que seja de fundamental importância para a formação de
leitores e, consequentemente, de sujeitos conhecedores de si mesmos, do outro e de
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sua participação no mundo, tem sido, cada vez mais, relegada a segundo plano na
formação de crianças e jovens.
Michèle Petit (2013), ao se referir à promoção da leitura, especialmente no
que se refere aos leitores em formação, questiona o uso do termo ―promoção‖, tendo
em vista que há, na leitura, algo que se contradiz à ideia de ―promoção‖ e que se
relaciona com o sentido de desejo, de curiosidade, de amor. Caberia então, uma
promoção do amor, como se promove a leitura?
Petit desenvolve sua argumentação de modo que podemos relacioná-la ao
que é apontado por Candido. Isso é corroborado pela afirmação de que todos temos
direitos culturais, assim como ao imaginário, ao conhecimento, ao pertencimento a
uma comunidade:
Cada um de nós tem direitos culturais: o direito ao saber, mas
também o direito ao imaginário, o direito de se apropriar dos bens
culturais que contribuem, em todas as idades da vida, à construção
ou à descoberta de si mesmo, à abertura para o outro, ao exercício
da fantasia, sem a qual não há pensamento, à elaboração do espírito
crítico. Cada homem e cada mulher têm direito de pertencer a uma
sociedade, a um mundo, através daquilo que produziram aqueles que
o compõem: textos, imagens, nos quais escritores e artistas tentam
transcrever o mais profundo a experiência humana. (PETIT, 2013, p.
23)

Dessa maneira, o acesso à literatura e a experiência propiciada pela leitura


diferem não exatamente devido ao meio social em que os leitores se encontram, mas
aos obstáculos que são impostos, ou seja, alguns têm acesso à literatura desde o
nascimento, entendendo-se aí a participação da família, da escola e de outras
instituições sociais no que se refere ao ensino de literatura e o incentivo e as políticas
de leitura, enquanto que, para outros, somam-se os obstáculos econômicos,
geográficos e mesmo psicológicos que interferem na formação do leitor: ―Quando se
vive em bairros pobres na periferia da cidade, ou no campo, os livros são objetos
raros, pouco familiares, investidos de poder, que provocam medo. Estão separados
deles por verdadeiras fronteiras, visíveis ou invisíveis.‖ (PETIT, 2013, p. 24)
Seguindo a linha do raciocínio, Petit afirma que, nesses casos, muitas vezes
a experiência de leitura que esses sujeitos têm se dá na escola, e algumas até com
más recordações, com lembranças de fracassos ou humilhações.
Nesse sentido, retoma-se a questão da promoção da leitura apontada
anteriormente, mas agora com um sentido diferente, ou seja, referindo-se àquele
sujeito que se propõe a promover a leitura e que, nesse caso, deve atuar como um
mediador. Na teoria marxista, o termo mediação é uma categoria central da dialética e
se refere ao ato de estabelecer conexões através de algum intermediário, levando-se
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em consideração a ―negação e as relações complexas das ‗mediações concretas‘ com


a ‗totalidade concreta‘‖ (BOTTOMORE, 2001, p. 264), o que significa dizer que as
relações que se constituem são mediadas pela estrutura da totalidade.
Quando utilizada no sentido restrito à leitura, a palavra mediação é
comumente utilizada como termo que alude ao sujeito que é intermediário entre o leitor
e o texto. No entanto, preferimos empregar o conceito de mediação utilizado por Edmir
Perroti e Ivete Pieruccini (2014), definido como um modelo triádico em que os três
elementos (texto – mediador – leitor) interagem de modo a interferir no comportamento
dos envolvidos, conduzindo-os a adotar certas práticas, como pode ser percebido na
figura abaixo346 :

Assim, a mediação pode ser entendida como um processo que possibilita o


desenvolvimento de relações sociais, colaborando para o conhecimento dos sujeitos,
de sua relação com o outro, com o mundo e, consequentemente para a afirmação de
si mesmos enquanto indivíduos portadores de direitos, em sua relação com a
coletividade, o que poderá levar à emancipação do sujeito.
Nelly Novaes Coelho também utiliza-se do termo mediação para se referir a
uma característica da literatura que, por ser construção estética, também pode auxiliar
no amadurecimento do sujeito leitor:
Ela é linguagem da representação, linguagem imagística que, como
nenhuma outra, tem o poder de concretizar o abstrato (e também o
indizível), através de comparações, imagens, símbolos, alegorias, etc.
desde o início dos tempos históricos, ela tem sido a mediadora ideal
entre as mentes imaturas com sua precária capacidade de percepção
intelectiva e o amadurecimento da inteligência reflexiva (a que
preside ao desenvolvimento do pensamento lógico-abstrato,
característico da mente culta). (COELHO, 2000, p. 43, grifos da
autora)

346
Essa figura trata da passagem do modelo diático para o modelo triádico de informação e
comunicação e está disponível no artigo ―A mediação cultural como categoria autônoma‖,
publicado por Perroti e Pieruccini na revista Informação & Informação, da Universidade
Estadual de Londrina.
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Nesse sentido, a leitura de literatura por crianças e adolescentes é


imprescindível como mediadora das relações com o outro e como forma de auxiliá-la a
desenvolver suas potencialidades naturais e no amadurecimento que medeia a
infância e a idade adulta.

A leitura de literatura como processo de emancipação de crianças e jovens


leitores em um Centro de Convivência do Distrito Federal
Desde o mês de maio de 2016, temos desenvolvido um projeto de leitura
literária com crianças e jovens usuários do serviço de fortalecimento de vínculos do
Centro de Convivência Estrutural347, na cidade Estrutural, no Distrito Federal. A
referida unidade é vinculada à Secretaria do Trabalho, Desenvolvimento Social,
Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos do Distrito Federal (SEDESTMIDH) e
atende usuários em situação de vulnerabilidade social, sejam crianças, adolescentes
ou idosos. A cidade onde está localizado o Centro de convivência é uma das cidades
do DF mais desfavorecidas economicamente, desenvolvida ao redor do maior aterro
sanitário da América Latina, o Lixão da Estrutural. Diversos moradores da cidade
trabalham no aterro, como catadores, o que faz com que a comunidade tenha número
elevado de episódios de trabalho infantil, além de alto índice de violência e de tráfico
de entorpecentes.
Os usuários do Centro de Convivência são, na maioria, filhos de catadores ou
mesmo crianças e jovens que trabalham no aterro, além de muitos desses sujeitos
serem vítimas de violência doméstica, abuso ou exploração sexual. O atendimento aos
usuários é realizado em contraturno escolar, por meio de oficinas socioeducativas e de
fortalecimento de vínculos familiares, afetivos e sociais e de promoção à arte, ao lazer
e à cultura.
O início do Projeto de Leitura, intitulado ―Passaporte de Leitura‖, deu-se por
meio da leitura coletiva do livro ―O pequeno príncipe‖, de Antoine de Saint-Exupéry. A
partir dessa leitura, realizada diariamente no acolhimento aos usuários, surgiu a
inquietação de promover o acesso à leitura a essas crianças e jovens, identificando e
utilizando estratégias que vinculassem a mediação da leitura à emancipação do sujeito
leitor. Ainda no que se refere a essa primeira atividade, é importante destacar que,
inicialmente, a leitura era feita diariamente pelos educadores sociais até que, em

347
Por ser uma unidade vinculada a uma secretaria do Distrito Federal, os funcionários são
servidores públicos efetivos, dentre os quais o autor deste artigo faz parte. Os usuários são
atendidos por esses servidores que possuem formação em nível superior em diversas áreas e
são lotados na secretaria no cargo de Especialista em Assistência Social, com a função de
Educador Social, além de possuírem pós-graduação em nível lato sensu e/ou stricto sensu.
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determinado momento, uma criança indagou se ela poderia fazer a leitura.


Evidentemente a ideia foi acatada de bom grado pelos educadores e, a partir desse
episódio, a cada dia um dos usuários lia um trecho do livro, que era comentado pelos
educadores e pelas demais crianças e jovens, até o final da obra.
Esse episódio remete a uma bela passagem do livro Como um romance, de
Daniel Penac, em que o autor nos mostra que o incentivo ao hábito da leitura se dá
muito mais efetivamente pelo exemplo que pela imposição:

Esse professor não inculcava o saber, ele oferecia o que sabia. Era
menos um professor do que um mestre trovador, um desses
malabaristas de palavras que povoavam as hospedarias do caminho
de Compostela e diziam canções de gesta aos peregrinos iletrados.
Como é preciso um começo para tudo, ele agrupava, a cada ano, seu
pequeno rebanho em torno das origens orais do romance. Sua voz,
como a dos trovadores, se endereçava a um público que não sabia
ler. Ele abria os olhos. Acendia lanternas. Engajava sua gente numa
estrada de livros, peregrinação sem fim nem certeza, caminhada do
homem na direção do homem.
- O mais importante era o fato de que ele nos lia em voz alta! Essa
confiança que ele estabelecia, logo no começo, em nosso desejo de
compreender... O homem que lê em voz alta nos eleva à altura do
livro. Ele se dá, verdadeiramente, a ler!‖ (PENAC, 1993, p. 91, grifos
do autor)

Fazer a leitura em voz alta é permitir que o ouvinte leia o leitor, ou seja, o
texto literário passa a ser o mediador entre relações sociais, como apontamos acima.
Ao oferecer a leitura, especialmente a um grupo que não sabia ler, não por
desconhecimento dos códigos linguísticos que permitem a decifração do texto, mas
porque não havia sido desenvolvido nesses sujeitos o interesse pela leitura de
literatura, era também oferecer a si mesmo a esse grupo. Era abrir os olhos e acender
as lanternas, como diz Penac, permitindo que a fagulha de luz surgida nesses
momentos de leitura em voz alta fossem crescendo até que se expandissem na voz do
sujeito que diz: ―Posso ler hoje?‖ A partir dessa indagação, iniciou-se a peregrinação
pelos livros, sem ter a certeza do fim ou a direção do caminho, mas havia a confiança
de que se iniciara o engajamento do sujeito na direção de outros sujeitos.
Após esse acontecimento, iniciamos o projeto de leitura literária, desenvolvido
uma vez por semana. Pelo fato de o grupo de usuários atendidos ser heterogêneo (em
média 30 usuários entre 6 e 14 anos em cada período), optamos por fazer uma
seleção prévia dos livros que seriam utilizados em cada etapa do projeto,
classificando-os por nível de compreensão e por faixa etária aproximada, sem, no
entanto, impedir que os usuários utilizassem outro livro que não o indicado para seu
grupo etário, caso fosse de seu interesse.
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Como foram inúmeras atividades de leitura ocorridas durante o projeto, torna-


se inviável relatar cada uma delas neste artigo. Selecionamos, então, três experiências
que entendemos como as que demonstram o resultado efetivo da leitura como forma
de emancipação do sujeito.
Logo no início do projeto de leitura, selecionamos livros de imagem que
seriam lidos em grupo e apresentados pelos usuários do Centro de Convivência.
Dentre as obras elencadas, destacam-se os títulos História de amor e 500 anos, de
Regina Rennó, Cenas de rua, de Ângela-Lago, Casulos, de André Neves e Faz de
conta, de Romont Willy e Tino Freitas, entre outros títulos. Essas obras foram
escolhidas por se tratarem de livros que, pelo fato de serem compostos somente por
imagens, a qualidade estética leva os leitores a estabelecerem relações dialógicas
com a narrativa e se questionarem a respeito do que é literatura. Afinal, para que um
texto literário seja considerado arte, ele precisa, necessariamente, da palavra escrita?
Inicialmente, apresentamos o livro História de amor, mostrando as ilustrações
para o grupo de leitores que estava sentado em um grande círculo. Em seguida
solicitamos que fossem destacando o que lhes chamou a atenção no texto. Em um
terceiro momento, fizemos, junto com os usuários, uma leitura mais aprofundada da
obra, destacando o papel das cores, das linhas, dos traços e das molduras em cada
imagem, de maneira a auxiliar os leitores a perceberem que esses aspectos se
relacionam com o conteúdo da obra, auxiliando-os na compreensão do texto.
A partir dessa atividade, distribuímos os livros entre os leitores, de modo que
cada grupo era composto por três a cinco crianças/jovens, orientando-os que lessem
os livros para, em seguida, apresentá-los para os demais usuários, contando a história
que era apresentada, destacando como compreenderam a composição da narrativa e
o que aquela obra dizia a cada um deles, ou seja, de que maneira cada leitor era
subjetivamente instigado pela literatura.
Esse momento de leitura em grupo foi bastante importante porque, além de
permitir que as crianças e jovens percebessem que a narrativa visual é elemento de
grande relevância no processo de criação artística desse tipo de literatura, levou-os a
estabelecer relações dialógicas e sociais com o texto literário e também com os
demais leitores. Um aspecto que merece destaque é o que se refere à apresentação
do grupo que havia lido o livro 500 anos, pois, embora o grupo fosse formado por
leitores de 6, 9, 11 e 12 anos, quem apresentou a leitura e a discussão para o grande
grupo foi a leitora mais nova, uma menina de 6 anos que, auxiliada pelos colegas,
apresentou de maneira aprofundada a compreensão que haviam feito da obra.

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Nelly Novaes Coelho (2000), a respeito da relação entre a literatura e o


desenvolvimento cognitivo da criança, diz que os estudos da psicologia e da
pedagogia nos mostram que
[...] o conhecimento infantil se processa basicamente pelo contato
direto da criança com o objeto, por ela percebido não só no sentido
de promover o encontro da criança com o imaginário literário (que
tanto a seduz), mas também no de seu desenvolvimento psicológico.
(COELHO, 2000, p. 196, grifos da autora)

Nesse sentido, ao iniciarem seu percurso literário por meio de livros de


imagens, que são esteticamente representações do mundo infantil e juvenil e que na
sua própria forma internalizam as contradições da realidade, os leitores em formação
tiveram a possibilidade de perceber que a leitura literária, além de servir como fruição,
pode ser forma de conhecimento, auxiliando-os a se entenderem como sujeitos do
mundo.
A segunda experiência que relataremos se refere ao trabalho de leitura com
a utilização de uma estratégia de metodologia ativa denominada TBL (Team Based
Learning)348 e foi realizada a partir da leitura do livro Minha mãe trouxe um lobo para
casa, de Rosa Amanda Strausz. Inicialmente, como dispúnhamos de apenas um
exemplar da obra, lemos o livro em voz alta para as crianças e jovens e, em seguida,
as questões que havíamos preparado foram projetadas utilizando-se recursos como
Datashow e PowerPoint. A atividade foi desenvolvida segundo as orientações dessa
metodologia, com respostas individuais e depois em grupo, para, em seguida, ser
apresentado o gabarito e os leitores compararem as respostas dadas às questões.
O objetivo de utilizarmos essa metodologia foi motivado pelo desejo de
testarmos com crianças e jovens uma estratégia geralmente desenvolvida com
estudantes adultos de nível superior, além de aplicá-la na leitura de texto literário, já
que é comumente utilizada a textos teóricos. Ao testarmos essa metodologia,
pudemos perceber que o texto literário se insere como fator determinante na relação
social entre os usuários/leitores do Centro de Convivência, pois, ao discutirem em
grupo qual a resposta correta a cada questionamento, crianças e jovens

348
Essa metodologia é muito utilizada no ensino superior e prevê que os estudantes façam
uma leitura prévia de um texto disponibilizado pelo professor, o qual elabora questões sobre o
tema, com respostas fechadas, geralmente do tipo verdadeiro ou falso, com questões de
múltipla escolha. O professor apresenta cada questão e os estudantes devem responder
individualmente à alternativa que julgarem correta. Em uma segunda etapa, o professor repete
o procedimento, mas desta vez com os alunos em grupo, os quais devem chegar a um
consenso sobre qual a alternativa correta e elegerem uma única resposta. Ao final é
apresentado o gabarito e os estudantes conferem as respostas, verificando se atingiram maior
pontuação individualmente ou em grupo. Na maioria das vezes, o resultado mais satisfatório é
do grupo, demonstrando que o aprendizado é mais efetivo quando se trabalho em equipe.
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desenvolveram a sensibilidade em relação ao outro, à escuta e ao seu posicionamento


diante de determinadas situações oportunizadas por meio da leitura da literatura.
Essa experiência foi repetida posteriormente, com o mesmo texto literário,
mas questões elaboradas com aprofundamento na compreensão e na análise da
narrativa. Pode-se perceber, nesse segundo experimento, que é necessário que se
trabalhe mais com as estratégias de leitura349, de modo a contribuir para a formação
do leitor competente, tendo em vista que, ao se depararem com questionamentos que
exigiam um nível mais elevado de compreensão leitora, os sujeitos da pesquisa
encontraram dificuldades para responder às perguntas. No entanto, tal como na
primeira etapa, o posicionamento de escuta e a sensibilidade em relação ao outro
mantiveram-se no mesmo nível.
A terceira experiência que queremos destacar refere-se ao trabalho de
leitura com livros artesanais de literatura infantojuvenil que foram criados por
acadêmicos do curso de Pedagogia da Faculdade Projeção, onde este autor leciona,
durante a disciplina de Literatura Infantil e Juvenil. Ao apresentar os livros para os
usuários do Centro de Convivência e explanar que se tratava de produções de alunos
da faculdade, as crianças e os jovens ficaram entusiasmados pela leitura das obras,
especialmente porque, segundo afirmaram, não imaginavam que qualquer pessoa
pudesse escrever literatura. Para eles, havia um distanciamento entre eles e os
autores das obras que liam, como se o artista fosse um ser que ocupasse um lugar
demasiado distante do deles. Isso explica-se, em parte, porque, como são crianças e
jovens moradores de uma comunidade de extrema pobreza, o contato com o livro se
dá na escola, quando esta realiza um trabalho de incentivo à leitura, e no Centro de
Convivência, por meio deste projeto de leitura e da Biblioteca que há na unidade, onde
podem escolher livremente os livros que querem ler e emprestá-los, levar para casa e
devolvê-los quando quiserem. Encontrar autores de livros que tiveram oportunidade de
ler seria, então, algo que estaria distante de seu horizonte.
Essa atividade de leitura foi extremamente importante para a análise que
estamos desenvolvendo, por dois motivos. O primeiro se refere à qualidade estética
dos livros artesanais que foram apresentados a esses sujeitos. De fato, são obras que
possuem grande qualidade estética, tanto no que se refere aos textos literários quanto

349
Como este trabalho limita-se à emancipação do sujeito leitor por meio da leitura de
literatura, não aprofundaremos o que se refere às estratégias de leitura e ao nível de
compreensão leitora. A esse respeito, consultar SOLÉ, Isabel. Estratégias de Leitura. Porto
Alegre; ArtMed, 1998 e COSSON, Rildo. Círculos de leitura e letramento literário. São Paulo:
Contexto, 2014.

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à ilustração e composição das obras. Segundo porque os sujeitos se interessaram de


maneira muito satisfatória pela leitura dos livros e pela apresentação das obras para o
os colegas após concluída a leitura, o que nos levou a perceber que, por meio da
leitura de literatura, crianças e jovens desenvolveram autonomia e houve uma
mudança de postura e de posicionamento diante de determinadas situações.
Referimo-nos ao fato de que crianças e jovens que inicialmente eram
fechados e inibidos passaram a se expressar de maneira desenvolta, além de que
ampliaram o repertório cultural e a sensibilização em relação ao outro, percebendo-o
como seu semelhante e percebendo a si mesmos como sujeitos que podem ter um
posicionamento crítico diante da realidade.

Considerações Finais
Neste artigo, procuramos refletir sobre a emancipação do sujeito a partir da
leitura de literatura, percebendo os espaços de leitura literária que oportunizam a
autonomia e a criticidade do leitor, a percepção de si mesmo enquanto cidadão, assim
como seu posicionamento diante da realidade em que se insere.
Tomando como eixos norteadores os textos de Candido e de Petit, que
fundamentam esta pesquisa, é possível afirmar que a literatura é um direito essencial
na vida de todas as pessoas. No entanto, assim como todos os demais direitos, ele é
negado a uma significativa parcela da sociedade, especialmente àqueles que vivem
em situações de vulnerabilidade social.
Oportunizar a esses sujeitos o acesso a esse bem cultural é papel de todos e
não deve ser visto como um favor. Pelo contrário, como direito, o acesso à leitura de
literatura deve ser garantido a todos.
Por meio do projeto desenvolvido no Centro de Convivência Estrutural,
comprovamos que a leitura de literatura pode fazer com que o ser humano saia da
alienação em que se encontra, como aponta Candido (2002), auxiliando-o a se
entender como sujeito de uma realidade que passará a ser questionada e criticada,
demonstrando que o leitor passa a se perceber como sujeito portador de direitos e,
nesse sentido, encaminhando-o para sua emancipação.
Além disso, a percepção de que esses sujeitos, que antes não se
interessavam pela leitura de literatura e que a partir desse trabalho veem o texto
literário como algo que pode ser atrativo e ao mesmo tempo proporcionar-lhes
maneiras de se conhecerem e se entenderem enquanto cidadãos levou-nos a indagar
se essas crianças e adolescentes também podem se tornar escritores de literatura. A
resposta a essa indagação possivelmente será positiva. No entanto, ainda está em
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fase de descoberta, tendo em vista que há um outro projeto que está em


desenvolvimento a partir desse questionamento.

Referências

BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar


Ed., 2001.

CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 4 ed. São Paulo: Duas Cidades; Rio de Janeiro:
Ouro Sobre Azul, 2004.

______. ―A Literatura e a formação do homem.‖ In: Textos de intervenção. Seleção,


apresentações e notas de Vinicius Dantas. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2002.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: Teoria, análise, didática. São Paulo:
Moderna, 2000.

PENNAC, Daniel. Como um romance. Trad. WERNECK, Leny. Rocco: Rio de Janeiro,
1993.

PERROTTI, Edmir; PIERUCCINI, Ivete. A mediação cultural como categoria


autônoma. Informação & Informação, [S.l.], v. 19, n. 2, p. 01-22, out. 2014. ISSN 1981-
8920. Disponível em:
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/informacao/article/view/19992/17341 Acesso
em: 10 set. 2017.

Petit, Michèle. Leituras: Do espaço íntimo ao espaço público. São Paulo: Editora 34,
2013.

SANTOS, Boaventura de Souza. Direitos Humanos, democracia e desenvolvimento.


São Paulo: Cortez, 2013.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

OS ESPAÇOS DE LEITURA LITERÁRIA NA SOCIEDADE ATUAL:


EM FOCO A EDUCAÇÃO ESCOLAR

Letícia Vidigal, Universidade Estadual de Londrina, eixo temático 09: Os


espaços de leitura literária.
Nathalia Martins, Universidade Estadual de Londrina, eixo temático 09: Os
espaços de leitura literária.
Geuciane Felipe Guerim Fernandes, Universidade Estadual de Londrina, eixo
temático 09: Os espaços de leitura literária.
Sandra Aparecida Pires Franco, Universidade Estadual de Londrina, eixo
temático 09: Os espaços de leitura literária.

Considerações Iniciais

É recorrente no espaço escolar a preocupação de professores, pedagogos e


diretores no que diz respeito ao ensino e à aprendizagem da leitura e escrita pelos
educandos. Nos anos finais da escolarização, nos quais os estudantes apresentam um
maior domínio no campo do ler e escrever, a preocupação acerca destes conteúdos
não é secundarizada e os anseios que envolvem a formação de um estudante capaz
de compreender a leitura e utilizar-se da escrita como meio para a objetivação de seu
pensamento ainda faz-se presente.
Tendo em vista o quadro verificado, a presente pesquisa partiu do seguinte
questionamento: quais os possíveis sentidos da escassez dos espaços de leitura
literária na sociedade atual? Para tanto, seu objetivo consistiu em: desenvolver
uma análise social acerca dos espaços de leitura literária na educação escolar
considerando a sociedade vigente pautada no modo de produção capitalista, à
luz do Materialismo Histórico e Dialético.
Destacamos três aspectos acerca dos espaços de leitura literária na
sociedade atual. Primeiramente, explicitamos a concepção de leitura adotada neste
trabalho e algumas reflexões sobre o papel da leitura literária para a formação do
sujeito. Em um segundo momento, discutimos o contexto e as intencionalidades
marcadas pela organização social vigente, caracterizada pelo modo de produção
1802

capitalista, a fim de chegarmos ao terceiro momento, por meio do qual buscamos


delinear, dialeticamente, uma discussão em torno da importância da leitura literária
para a superação das contradições postas pelo capitalismo.
Com vistas a atingir ao objetivo deste trabalho, optou-se por realizar a pesquisa
bibliográfica, de abordagem crítico-dialética, uma vez que a fonte dos dados se dará
por meio de textos on-line e impressos, livros e demais publicações.
A análise teve por base em autores como Dagoberto Buim Arena (2010), Karl
Marx e Friederich Engels (1848), Dermeval Saviani (2011), Lev Semenovich Vigotski
(1998), Mariana de Cássia Assumpção e Newton Duarte (2015), entre outros.

Leitura Literária e Sociedade Capitalista

A leitura literária é tida como um importante instrumento para que se possa


contribuir com a formação de leitores. Consiste na arte capaz de desenvolver a
subjetividade dos sujeitos por meio da apropriação de sentidos produzidos pela
humanidade (ASSUMPÇÃO; DUARTE, 2015), porém, encontra-se transpassada por
um contexto marcado pelo esfacelamento de sua prática nos diversos espaços da
sociedade.
Ocorre que, muitas vezes, contrapondo-se aos seus objetivos fundantes de
formação humana, nas instituições escolares verificam-se práticas com o texto
literário, quando existentes, voltadas às finalidades imediatas que, sozinhas, não
visam a formação do sujeito leitor, como a aquisição da técnica da leitura e escrita e a
decifração mecânica de sinais gráficos. Arena (2010, p. 240) explica que, na verdade,
―A escola refletiu e reflete os movimentos históricos e as concepções historicamente
construídas.‖.
Para iniciarmos a análise aqui empreendida como objetivo desse trabalho,
buscamos elucidar a concepção de leitura sob a qual apoia esta discussão, afinal, o
que se entende por leitura? A fim de quais objetivos é desenvolvido seu ensino?
Consideramos que tais questões são fundamentais para analisarmos os espaços de
leitura literária em sala de aula, pois, como será visto, a literatura tem um significado
amplo e profundo e sua noção possui extrema relação com as concepções de ensino,
sociedade e homem considerados pelos docentes no exercício de seu trabalho.
Assim, de acordo com Greice Ferreira da Silva e Arena (2012, p. 7), a leitura literária
―[...] implica diálogo, interação com o texto, com a estética e, por isso, requer para si
leitores e não ledores. [...] exige do leitor, uma interlocução, envolvimento, esforço
para atuar no texto e com o texto [...]‖.

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1803

Com base em Silva e Arena (2012, p. 6), leitura tem seu significado expresso
pelas seguintes ideias: ―[...] compreensão, [...] produção de sentidos e [...] prática
social.‖. Compreendemos que a leitura consiste numa necessidade resultante das
próprias relações entre os indivíduos, não caracterizando-se apenas como hábitos,
gostos ou prazeres, mas sendo necessária enquanto via de acesso para a
participação dos sujeitos na cultura da escrita.
Conforme Saviani (2011), a educação escolar é necessária enquanto meio de
socialização e apropriação dos conhecimentos desenvolvidos pela humanidade e
acumulados historicamente, a fim de que o sujeito adquira uma formação omnilateral,
isto é, em sua totalidade e, com isso, tenha a possibilidade de refletir, compreender e,
a partir disso, agir sobre sua prática social. A leitura, neste sentido, reflete um meio
necessário para que o sujeito adquira participação social e consciência de sua
realidade; reside como aspecto necessário para a emancipação das classes inferiores.
(SILVA; ARENA, 2012).
De acordo com Silva e Arena (2012), a leitura, a partir deste entendimento,
torna os sujeitos ativos e criativos e revela-se como um elemento norteador para a
produção de sentidos, ao passo que, na interlocução entre autor, leitor e obra, há o
encontro de experiências que possibilitam um novo olhar, uma nova compreensão, um
novo sentido para o que se lê.
Para Arena (2010), o termo mais apropriado para a leitura a partir desta
concepção, enquanto prática social, histórica e cultural, reside como o ato de ler. O
autor enfatiza o aspecto interlocutor da leitura e compreende que no ensino e
aprendizagem o professor precisa ensinar o modo como o leitor deve agir sobre um
texto a fim de estabelecer sua compreensão. A leitura, neste caso, não poderia ser
ensinada, mas o ato de ler sim, pois com isso ensinara-se um ato cultural para a
criação de uma própria leitura ou para a criação de uma necessidade autêntica de ler.
Desta forma, ampliamos a compreensão acerca do ato de ler e seu ensino,
superando a visão de aprendizagem da leitura como a simples decodificação de
códigos linguísticos, sem que haja o entendimento do texto. Supera-se também a
formação de ledores - aqueles sujeitos passivos, que não acrescem muito ao ato de
ler e apenas repetem palavras e frases, por leitores, cujo olhar não é definido, mas
criativo, além do que participam dialogicamente do processo de significação da leitura
(SILVA; ARENA, 2012).
No campo da leitura e do ensino do ato de ler, a leitura literária faz-se
presente como um instrumento de transformação do sujeito que lê e define-se por uma
especificidade artística, diríamos, encantadora. Para Assumpção e Duarte (2015), a
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leitura literária caracteriza-se como arte cuja criação adveio da necessidade de dar
existência social aos sentimentos, que encontram-se na subjetividade dos indivíduos,
possibilitando um contato com àqueles próximos do gênero humano.
Esta característica é fundamental quando concebemos o homem como um
sujeito que não nasce pronto, mas que encontra-se em constante desenvolvimento e
que por meio da aprendizagem de conhecimentos propriamente humanos e
capacidades psíquicas superiores tem a possibilidade de formar-se como ser genérico,
ser representante do gênero humano. (VIGOTSKI, 1998).
As obras de arte possuem o papel de expandir as experiências vivenciadas
pelos indivíduos ao passo que permitem que os mesmos experimentem e vivenciem
sentimentos que extrapolam os limites de sua vida cotidiana. Por meio destas obras,
os homens têm a possibilidade de entrar em contato com objetivações em um nível
alto de humanização, as quais não seriam possíveis por meio apenas das situações
presentificadas em nossas vidas. (ASSUMPÇÃO; DUARTE, 2015).
Conforme Assumpção e Duarte (2015), a literatura proporciona o
enriquecimento da subjetividade do leitor. Uma obra de arte não caminha em linhas
retas, mas é permeada por linhas curvas e contraditórias que permitem o ir e vir do
receptor por vários momentos e passagens. Esta forma característica das obras de
arte são intencionais e conferem a elas seu caráter estético; suscita diversas reações
ao receptor em um nível elevado capaz de excitar curiosidades, desdobrar nossa
atenção, revelar sentimentos opostos e, com isso, transformar nossa subjetividade.
A ação das obras de arte recai sobre a subjetividade do receptor. Não incide
com um caráter imediato na prática social do sujeito, mas age sobre o indivíduo de
maneira indireta e mediata, provocando uma contradição emocional, suscitada por
sentimentos opostos, denominada catarse (ASSUMPÇÃO; DUARTE, 2015), a qual
―[...] é entendida por Lukács como um momento no qual o indivíduo se vê diante da
necessidade de questionar sua concepção de vida e de si mesmo (DUARTE, 2016, p.
84).
Tendo por base estes aspectos, por que a literatura não tem papel primário
no cotidiano dos indivíduos? Por que a educação ainda não se ocupou como deveria
da tarefa precípua do ensino do ato de ler?
Suzana dos Santos Gomes (2017, p. 222) afirma que ―A análise dos
resultados de desempenho em leitura mostra que, de maneira geral, as médias do
Brasil estão abaixo do que seria aceitável. Complementa, porém, que ―[...] não se pode
negar que várias tentativas de modificar essa realidade têm sido feitas, tanto pelas

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pesquisas críticas quanto pelas que propõem um instrumento alternativo do ensino da


leitura [...]‖. (GOMES, 2017, p. 2230).
A autora explica, utilizando-se de Maria Helena Wagner Rossi (2003) e
Claudia de Oliveira Fernandes (2004) respectivamente, que ―[...] a crise da leitura
exige que se aborde o modo como a leitura, livros e leitores vêm sendo tratados na
escola.‖ Além disso, que ―[...] de modo geral, as práticas de leituras nas escolas não
estão dando condições ao aluno de participarem ativamente da transformação social.‖
(GOMES, 2017, p. 223- 224).
As concepções de leitura expostas anteriormente vão em direção à finalidade
da leitura literária, que por sua vez, aproximam-se das necessidades expostas por
Gomes (2017) no que se refere à melhoria da qualidade do ensino da leitura na
educação escolar.
As respostas para as perguntas abordadas acima podem conter respaldos
mediante uma leitura da sociedade atual e seu projeto de educação. Tratamos, pois,
da sociedade vigente, a qual é organizada sob o modo de produção capitalista, cujas
intencionalidades podem ser, sob uma análise social, distanciadas dos objetivos
formativos proporcionados pelo ensino do ato de ler por meio da literatura.
Faz-se necessário compreender um contexto mais amplo no qual a educação
tem fortes determinantes e influências. Tomando por base a tese defendida por José
Claudinei Lombardi (2012, p. 99), temos que

[...] a educação (e o ensino) é determinada, em última instância, pelo


modo de produção da vida material; isto é, pela forma como os
homens produzem sua vida material, bem como as relações aí
implicadas – quais sejam, as relações de produção e as forças
produtivas – são fundamentais para apreender o modo como os
homens vivem, pensam e transmitem as ideias e os conhecimentos
que têm sobre a vida e sobre a realidade natural e social.

Para Mario Borges Netto e Carlos Lucena (2016), a educação no interior do


sistema capitalista, caracteriza-se como um instrumento ideológico nas mãos da
classe dominante; possui um caráter determinado de acordo com interesses
particulares; está à disposição somente de uma parcela da humanidade, da menor
parcela e, portanto, não constitui-se como um elemento de igualdade social, mas pelo
contrário, como um mecanismo de manutenção da desigualdade.
Sobre esta questões, teorias e compreensões tiveram seu lugar no cenário
teórico da educação escolar. Por um lado, tivemos teorias não-críticas, que envolvem
a Pedagogia Tradicional, a Pedagogia da Escola Nova e a Pedagogia Tecnicista, que
compreendiam a educação como um instrumento de equalização social, enquanto

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possibilidade de superação da marginalidade, isto é, da falta de acesso dos indivíduos


à escola ou de sua marginalização em seu próprio interior, com a não-aprendizagem.
Por outro lado, tivemos o grupo das teorias crítico-reprodutivistas (Teoria do sistema
de ensino enquanto violência simbólica, a Teoria da escola enquanto aparelho
ideológico de Estado (AIE) e a Teoria da Escola Dualista) que, de uma maneira
bastante pessimista, entendem a educação enquanto instrumento de discriminação
social, logo, um fator de marginalização. (SAVIANI, 1999).
A segunda visão, embora crítica, não considerou a possibilidade de
transformação social por meio da educação e, com isso, não apresentou nenhuma
proposta de intervenção prática, limitando-se a constatar. No entanto, os professores
clamavam por uma busca de saídas e, no âmago deste anseio, surgiu a necessidade
de uma proposta que superasse a visão crítico-reprodutivista, resultando, pois na
formulação da Pedagogia Histórico-Crítica por Saviani. Consideramos que a mesma
carece de reconhecimento neste texto posto que trata-se de uma concepção
pedagógica cujos pressupostos vão em direção aos mesmos pelos quais
compreendemos o ensino do ato de ler leitura literária (SAVIANI, 2011), além do que,
a teoria que serviu de base para a proposição da Pedagogia Histórico-Crítica foi o
Materialismo Histórico-Dialético. Marx e Engels (1848) contribuíram no campo da
economia com a filosofia marxista, a qual analisou a história da sociedade a partir da
história da luta de classes, o que lhes permitiu verificar, em todos seus momentos,
uma relação de constante oposição entre opressores e oprimidos, isto é, uma relação
presente de posições sociais distintas.
Conforme Netto e Lucena (2016), ao longo da história, a educação
acompanhou os vaivéns desta luta entre burguesia e proletariado, fazendo com que
surgissem dois projetos antagônicos de educação que marcaram a Pedagogia. São
eles: a concepção pedagógica burguesa e a concepção pedagógica socialista.
A primeira concepção e seu projeto de educação e pedagogia tem por
finalidade perpetuar o domínio técnico, formando profissionais capazes e produtivos.
Tem como base o positivismo, o qual, de um modo geral, exalta a ciência e a técnica.
Além disso, possui como lema ―aprender a aprender‖. A segunda concepção, por sua
vez, tem por objetivo operar uma emancipação humana das classes inferiores
mediante a difusão da educação. Almeja-se, de um modo geral, libertar a mente e a
consciência do sujeito em direção à libertação política. (NETTO; LUCENA, 2016).
A segunda posição é verificada posto que Marx e Engels, embora não tenham
elaborado nenhuma teoria pedagógica ou não tenham tido o objetivo de tratar
especificamente da educação, tomando por base um contexto paradoxal de, por um
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lado, um avanço científico e tecnológico nunca visto antes pela humanidade e, por
outro, uma situação de miséria e pobreza em graus altíssimos, firmam uma crítica
acirrada às teorizações e práticas burguesas pautadas no sistema capitalista.
(NETTO; LUCENA, 2016).
No interior desta oposição, os meio de produção são suprimidos da
população como um todo (trabalhadores) e centram-se nas mãos de uma minoria – da
burguesia, dado que a burguesia detém, no processo de trabalho, o domínio dos
meios de produção e o exercício do trabalhador é destinado ao capital. Com isto,
ocorre também a centralização da política, por meio da qual interesses, governos e
direitos que deveriam ser de todos e para todos são comprimidos em interesses,
governos e direitos específicos e que dizem respeito a poucos. (MARX; ENGELS,
1848).
Marx e Engels viam no trabalho o ―germe da educação futura‖. Entendiam-no
como processo intrínseco à formação dos homens como seres do gênero humano,
pois, de acordo com Lombardi (2012), o homem não nasce pronto, tem que tornar-se
homem. Tal processo ocorre mediante a aprendizagem da produção de sua própria
existência, a qual é propiciada por meio do trabalho.
Para Saviani e Duarte (2012), o trabalho distingue o homem das demais
espécies vivas, posto que caracteriza-se como uma atividade consciente que se
objetiva em produtos que passam a ter funções específicas pela prática social. Ao
contrário dos animais que se adaptam à natureza, o homem adapta a natureza às
suas necessidades de subsistência, que fazem surgir necessidades propriamente
sociais.
Contudo, na sociedade capitalista, o produto do trabalho é pertencente ao
capital; a realização do trabalho equivale à desrealização do trabalhador; a
objetivação, que seria o processo de tornar presente os objetos humanizadores,
consiste na servidão a ele; e a apropriação que deveria ocorrer pelo trabalhador, nada
mais é que a sua alienação, ou seja, o trabalhador é expropriado da totalidade da
riqueza material e não material produzida pelo trabalho (SAVIANI; DUARTE, 2012), de
modo que os homens, conforme Larissa Quachio Costa (2014), são impedidos de se
apropriarem das forças essenciais humanas, objetivadas pelo trabalho.
Consideramos, com isso, que a finalidade precípua do ato de ler leitura
literária caminha em paralelo ao projeto de sociedade vigente. Contudo,
dialeticamente, podemos verificar na literatura um instrumento de superação desta
realidade quando ampliados seus espaços na educação.
Para Rafael dos Santos Fernandes Sales (2009, p. 69),
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[...] a arte, em especial a literatura, teria, na concepção de Lukács


1978), o papel de reconstruir a totalidade subtraída da realidade, para
além de sua aparência superficial. Assim, para ele a literatura é tão
mais elevada quanto mais fiel for o reflexo da realidade objetiva que
ela oferecer, elevando o indivíduo a partir do conhecimento
aprofundado da realidade, proporcionado por ela.

Tendo em vista a importância da totalidade da realidade para a humanização


do sujeitos, a qual não é possível aos indivíduos devido às condições de alienação
que são submetidos na sociedade de modo de produção capitalista, a arte resultaria
como um meio necessário à reconstrução desta totalidade, posto que pode
proporcionar um reflexo da realidade objetiva, tomada anteriormente como a vivência
das experiências que não são possíveis por meio da realidade cotidiana.
Consoante o autor, a arte atua como reflexo da realidade porque a conjuntura
da sociedade atual não permite que a realidade seja tomada em sua totalidade. A
partir da reificação, a grosso modo, a coisificação dos homens, ocorre uma
expropriação das máximas possibilidades de desenvolvimento humano e, tendo a arte
o papel de copiar fielmente a realidade, o indivíduo seria novamente distanciado da
verdade mascarada. Tomando por base Lukács (1978), a ―[...] arte [...] é um elemento
de mediação entre essa realidade reificada e o próprio indivíduo, assumindo, nesse
contexto, um papel de esclarecimento, e somente dessa forma pode alcançar sua
eficácia estética. (SALES, 2009, p. 70).
A leitura literária, enquanto obra de arte, atuaria na direção da tomada de
consciência da realidade. Duarte (2009, p. 469) explica que

Uma obra de arte produzida em sociedades do passado gera em nós


essa autoconsciência, porque a relação entre seu conteúdo e sua
forma nos leva a viver os conflitos humanos representados na obra
artística como nossos conflitos. A obra de arte opera, nessa relação
entre conteúdo e forma, uma crítica à vida, leva o sujeito, no processo
de fruição, a uma intensificação daquilo que em sua própria
cotidianidade ele vive de forma muitas vezes fetichista e superficial.

O autor complementa, apresentando o caráter dialético da obra de arte:

A obra de arte caracteriza-se por uma unidade dialética entre a


singularidade e a universalidade, entre a objetividade e a
subjetividade, entre a total absorção da subjetividade pela riqueza
concreta de um momento específico e o significado desse momento
para a autoconsciência do gênero humano. (DUARTE, 2009, p. 469).

Com isso, temos a importância da arte em direção à vivência de inúmeras


experiências humanas, as quais, possibilitadas por meio de situações exteriores a nós,

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são capazes de transformar a nossa subjetividade e permitir uma autoconsciência de


nossa condição como seres sociais. Desta forma, ―Se a arte propiciar aos indivíduos
uma vivência subjetiva intensificada de conflitos que impulsionem a autoconsciência a
níveis cada vez mais elevados, ela desempenhará uma função formadora, isto é,
educativa.‖ (DUARTE, 2009, p. 470).
Na educação escolar, portanto, a literatura poderia ser utilizada para
enriquecer a subjetividade do educando, modificar sua visão de mundo, elevar sua
autoconsciência e propiciar a catarse. Poderia proporcionar a superação do
sentimento cotidiano por meio da elevação de sua subjetividade, apropriando-se dos
elementos culturais mais desenvolvidos que residem como reflexos da realidade
objetiva e permitem a apreensão da realidade em sua totalidade. Poderia proporcionar
o rompimento com suas vivências cotidianas espontâneas em direção à compreensão
da realidade concreta (ASSUMPÇÃO; DUARTE, 2015; SALES, 2009).

Considerações finais

O objetivo do presente trabalho consistiu em: desenvolver uma análise


social acerca dos espaços de leitura literária na educação escolar considerando
a sociedade vigente pautada no modo de produção capitalista, à luz do
Materialismo Histórico e Dialético. Tal empenho realizou-se na direção de elucidar a
questão: quais os possíveis sentidos da escassez dos espaços de leitura literária
na sociedade atual?
Por meio das leituras e análise realizadas foi possível elucidar três
movimentos intrínsecos aos espaços de leitura literária na sociedade atual no tocante
à educação, sendo eles:
1) A influência da concepção de leitura adotada pelo docente responsável
pela formação dos educandos: a mesma pode resultar em diferentes
propostas de trabalho, sendo elas, por exemplo, voltadas à manutenção
da sociedade vigente, dado que o educando não exerce consciência
sobre sua realidade ou com vistas à propiciar ao sujeito o
desenvolvimento de capacidades superiores fundamentais à
compreensão do contexto no qual está inserido.
2) A organização social vigente atua na direção da perpetuação das
condições de exploração e expropriação da riqueza material e imaterial
produzida na sociedade: tal organização pressupõe como primordial

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aspectos voltadas à manutenção de seus interesses e, com isto,


secundariza-se o trabalho com a leitura literária.
3) O trabalho com a leitura literária, devido às suas características de
enriquecimento da subjetividade e contato diversos conflitos sem que
tenham sido vivenciados pela experiência direta, permite a tomada de
consciência do sujeito rumo à superação de sua condição de alienação.

Consideramos, portanto, a premência da luta pela superação da sociedade


capitalista a partir, sobretudo, do trabalho educativo voltado às finalidade de
emancipação humana. A leitura literária, enquanto obra de arte com ricas
características e possibilidades, consiste num instrumento importante de apropriação
de capacidades necessárias à formação humana.

Referências

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PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 27, n. 2, p. 461-479, jul./dez. 2009

ASSUMPÇÃO, Mariana de Cássia; DUARTE, Newton. A arte e o ensino de literatura


na educação escolar. Contexto, Vitória, n. 27, 2015.

COSTA, Larissa Quachio. Ensino de Literatura: possível humanização do indivíduo


no contexto da atual sociedade. Dissertação (Mestrado em Educação Escolar) –
Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖, Faculdade de Ciências e
Letras (Campus de Araraquara). 157 f. 2014.

DUARTE, Newton. Arte e educação contra o fetichismo generalizado na sociabilidade


contemporânea. PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 27, n. 2, 461-479, jul./dez. 2009

DUARTE, Newton. Os conteúdos escolares e a ressurreição dos mortos:


contribuição à teoria histórico-crítica do Currículo. Campinas, SP: Autores Associados,
2016.

GOMES, Suzana dos Santos. Avaliação das capacidades de leitura. Educar em


Revista, Curitiba, n. 63, p. 221-236, jan./mar. 2017

LOMBARDI, José Claudinei. Educação e Ensino em Marx e Engels. In: LUCENA, C.;
SILVA JUNIOR, J. R. (Orgs). Trabalho e Educação no Século XXI: experiências
internacionais. São Paulo: Xamã, 2012. P. 99-125.

MARX, Karl; ENGELS, Friederich. Manifesto do Partido Comunista. In: ______ Obras
Escolhidas. [s.l.]. [s.n.]. 1848. Disponível em:
https://www.marxists.org/portugues/marx/1848/ManifestoDoPartidoComunista/cap1.ht
m#(3*) Acesso em: 05 jun. 2017.

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NETTO, Mario B.; LUCENA, Carlos. A Luta pela Instrução Pública na obra de Marx e
Engels. In: OMENA, A.; LIMA, A. B.; LUCENA, Carlos. Trabalho, Estado e Educação:
considerações teóricas. Uberlândia: Navegando publicações. 2016. p. 55-82.

SALES, Rafael dos Santos Fernandes. A sociologia da literatura de Georg Lukács.


Senso Comum, Goiás, n. 1, p. 67-75, 2009

SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia: teorias da educação, curvatura da vara,


onze teses sobre educação e política. 32. ed. Campinas, SP: Autores Associados,
1999.

SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. 11. ed.


Campinas: Autores Associados, 2011.

SAVIANI, Dermeval; DUARTE, Newton (orgs). Pedagogia histórico-crítica e luta de


classes na educação escolar. Campinas, SP: Autores Associados, 2012.

SILVA, Greice Ferreira da; ARENA, Dagoberto Buim. O pequeno leitor e o processo de
mediação de leitura literária. Álabe, Spain, n. 6, p. 1-14, dez. 2012

VIGOTSKI, Lev Semenovich. A formação social da mente. Tradução de José Cipolla


Neto, Luíz Silveira Menna Barreto e Solange Castro Afeche. 6. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1998.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

SOBRE ARTE, LEITURA E EDUCAÇÃO: A MISSÃO


(IMPOSSÍVEL) DA LITERATURA

Cristiane Rogerio, A Casa Tombada, Eixo 9: Os espaços da leitura


literária
Natália Tazinazzo Figueira de Oliveira, Prefeitura de São Paulo, Eixo 9:
Os espaços da leitura literária

Considerações Iniciais: A COISA PERDIDA

(Ou o que nos trouxe até aqui)

De vez em quando, ainda penso naquela coisa perdida. Especialmente quando, de


passagem, noto alguma coisa um pouco deslocada!
Sabe como é, algo com um jeito estranho, triste, perdido. Mas, ultimamente, vejo cada
vez menos esse tipo de coisa. Talvez já não existam tantas coisas perdidas por aí.
Ou talvez eu tenha deixado de percebê-las.
Ando ocupado demais com outras coisas, eu acho.
Shaun Tan (do livro A coisa
perdida, Edições SM.)

(Ilustração de Shaun Tan)


1813

Entre tantas ocupações, duas pessoas procurando abrir uma conversa na


escola. Uma de dentro para fora; outra de fora para dentro. Uma no papel de
professora polivalente; outra no papel de mãe da primeira infância e especialista em
literatura infantil. Ambas procurando entender a coisa perdida: por que se fez tanta
distância entre a vida do adulto e a da criança quando se trata de arte?
Fez-se o encontro.
Encontro cercado de livros, de narrativas da prática, de histórias, de cheiros e
cores... Acreditamos estar perto da coisa perdida: o livro ―adequado‖ (pedagógico?) e
sua inadequação como experiência. Tantas obrigatoriedades, tanta necessidade de
compreensão, tanta disputa saber/poder, tanto ―desconhecido‖ e ao mesmo tempo
tanta proteção. Mas tão pouco encontro, tão pouca vida, tão pouco afeto e
encantamento... Tantas leituras únicas da vida. Não vem a literatura para nos dar mais
tipos de vida?
Parece-nos indiscutível o encantamento que as crianças ainda têm pelos livros,
apesar de, em muitos casos, viverem um acesso restrito, muitas vezes apenas na
escola, a qual precisa escolarizar quando compartilha cada página lida. Como pessoas
pensantes sobre a cultura da infância e sobre o livro presente na vida, nascem as
perguntas que nos trazem até aqui e que nos fazem querer desvendar nuances da
relação do professor como mediador de livros para as crianças. Em que pé estamos
nessa prática? Por que ainda encontramos tantos professores e professoras em
compasso de repertório diferente com a oferta que temos hoje no mercado de livros?
Por que as escolhas ainda são as mesmas de 20, 30 anos atrás? Ou o que estas
obras têm de diferente das publicadas mais recentemente que mereçam a reflexão
sobre nossos acervos?Que espaço a literatura ocupa nos cursos de formação
acadêmica e continuada? Finalmente, o que as escolhas e o repertório nos dizem da
relação dos professores e professoras com ―suas‖ leituras e leituras para o outro?

Ler é um ato escolar?

Era uma vez uma criança que vivia em um mundo onde os livros eram para
quem sabia ler. Foi à escola, o lugar de se tratar da leitura, de aprender a técnica, a
mecânica e, claro, a interpretação correta. De vez em quando, um bom trabalho
moralizante:
— Essa história é boa para ensinar isso...
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1814

— Esse conto é bom para ―trabalhar‖ aquilo...


Não frequentou bibliotecas. Não sabia direito o que era um sebo. Quase não ia
ao teatro, tampouco ao museu. Passados alguns anos, adquiriu autonomia para dar
conta das leituras obrigatórias. Engraçado dizer que se lê com ―autonomia‖apesar de
não escolher sobre o que se debruçar...
Tornou-se adulta. Passou a ir à livraria, dentro do shopping, a consumir a
indústria cultural. Formou-se professora. Na faculdade, quase nenhuma literatura para
a infância – e muito menos o que isso poderia querer dizer. Na escola, a missão de
―incentivar a leitura‖. Começar por onde? Dentre muitas atribuições, esperava-se
agora que ela narrasse com encantamento boas histórias, que trouxesse a criação
como protagonista de cada atividade, que utilizasse a arte como meio de expressão?
Esperava-se ainda a natural afetividade pela leitura, um reconhecível repertório e que
pudesse despertar na criança o mais voraz desejo pela leitura. Mas... que histórias?
Deveria ela ensinar algo? Quem tomaria essa decisão? O Eu pedagogia ou o Eu
literatura? Ligia Cadermatori (2010, p. 24) nos alerta:

O caráter formador da literatura infantil vinculou-a, desde sua


origem, a objetivos pedagógicos. Ora, isto cria uma tensão
entre o saber da obra literária (que diz ―apresento o mundo
assim‖) e o ideal da pedagogia (que diz ―o mundo deveria ser
assim‖).Tal tensão é o grande desafio da obra destinada ao
público infantil que, não solucionado, muitas vezes abala o seu
próprio estatuto literário.

Quando nos encontramos na posição de mediador de livros, o desafio está


instalado e é preciso sair das armadilhas para não chegar à conclusão do francês
Daniel Pennac (1993, p. 21), pedagogo e escritor que se viu em grande dificuldade em
manter a leitura do filho: ―Que pedagogos éramos, quando não tínhamos a
preocupação da pedagogia!‖
Se a educadora do relato é fruto de uma falta, teria ela como aceitar a
poderosa missão? Que justiça há em depositar na vida de professor a nossa missão
mais importante? De acordo com Pennac (1993, p. 145):

O dever de educar consiste, no fundo, no ensinar as crianças a


ler, iniciando-as na Literatura, fornecendo-lhes meios de julgar
livremente se elas sentem ou não a ―necessidade de livros‖.
Porque, se podemos admitir que um indivíduo rejeite a leitura,
é intolerável que ele seja rejeitado por ela.

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Para completar a história, essa professora está diante de um acervo de livros


para a infância que pouco lembram o de sua época de criança. A relação texto,
imagem e projeto gráfico propõe novos desafios, principalmente nas publicações dos
anos 2000 para cá. Sempre existiram autores experimentando e propondo ideias
novas, mas só a partir de diversas políticas de incentivo (da economia à circulação do
livro e do pensamento sobre literatura e infância) é que o repertório disponível
começou a mudar. Livros estrangeiros clássicos, do universo do que chamamos ―livro
ilustrado‖, começaram a ser traduzidos por aqui, como Onde vivem os monstros, de
Maurice Sendak, ou Este chapéu não é meu, de Jon Klassen, em que a história é
narrada a partir da relação palavra-imagem-design. Acompanhou a publicação dessas
traduções o olhar (ou a coragem também, por que não?) de editoras que deram mais
vez e asas à imaginação de autores brasileiros, que tinham projetos incríveis
engavetados. Formou-se uma rede de estímulos e produções. E, sim, conversas em
seminários, congressos e cursos de reflexão e produção sobre este ―novo‖ jeito de
fazer livros. Então, essa educadora pega o livro nas mãos e sabe que tem algo
diferente ali. Impacta-se com ele. Porém, não tem argumentos para se relacionar com
ele. É preciso trilhar um caminho parecido com o proposto pela especialista francesa
Sophie Van Der Linden (2011, p. 8-9):

De imediato, o livro ilustrado evoca duas linguagens: o texto e


a imagem. Quando as imagens propõem uma significação
articulada com a do texto, ou seja, não são redundantes à
narrativa, a leitura do livro ilustrado solicita apreensão conjunta
daquilo que está escrito e daquilo que é mostrado.
As imagens, cujo alcance é sem dúvida universal, não exigem
menos do ato de leitura. Nisso talvez resida um mal-entendido
crucial. Considerada adequada aos não alfabetizados – a quem
esses livros são destinados em particular –, é raro que a leitura
de imagens resulte de um aprendizado, uma vez que ela irá
paulatinamente desaparecer da nossa trajetória de leitores.
Ora, assim como o texto, a imagem requer atenção,
conhecimento de seus respectivos códigos e uma verdadeira
interpretação.
Ao longo de sua evolução histórica, o livro ilustrado infantil
conheceu grandes inovações. A imagem foi gradativamente
conquistando um espaço determinante. Hoje, ela revela sua
exuberância pela multiplicação dos estilos e pela diversidade
das técnicas utilizadas. Os ilustradores exploram ao máximo as
possibilidades de produzir sentido.
Assim, ler um livro ilustrado não se resume a ler texto e
imagem. É isso, e muito mais. Ler um livro ilustrado é também
apreciar o uso de um formato, de enquadramentos, da relação
entre capa e guardas com seu conteúdo; e também associar
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representações, optar por uma ordem de leitura no espaço da


página, afinar a poesia do texto com a poesia da imagem,
apreciar os silêncios de uma em relação à outra… Ler um livro
ilustrado depende certamente da formação do leitor.

―Formação do leitor‖, sim. Mas desse leitor de qualquer idade. Desse leitor que
também é o professor. É urgente, como diante de uma nova obra de Picasso ou de um
novo livro de Machado de Assis, que esta obra em mãos seja discutida como arte, que
se troquem ideias sobre ela, que haja conversas, reflexões, encontros a partir dela.
A história aqui simbolizada poderia ser de muitos professores ou de um(a)
professor(a) formado(a) há muito tempo ou recentemente. Todos estamos nesse
mesmo barco de incertezas e infinitas possibilidades de navegar. O que a especialista
francesa compartilha pode ser colocado em vários tipos de arte. Apesar da
progressiva valorização da leitura nos mais diversos âmbitos da sociedade, em que ler
é ação defendida arduamente por entidades governamentais e privadas, mídias e
redes sociais, ainda temos muitos entraves com relação à formação do leitor no
âmbito escolar. Além disso, muitos estudiosos apontam que tantos programas,
inciativas e discursos têm seus avanços, porém ainda se mostram insuficientes em
nosso país. São vários os motivos ligados a esse contexto, alguns inclusive presentes
nas histórias dos educadores, como mencionamos aqui, e outros fazem parte da
história da própria Escola, de suas concepções, funções e atributos.
Qual é o principal lugar da leitura? Arriscamos dizer que a resposta para essa
pergunta traria quase com unanimidade ―A escola‖. Escola. O lugar onde se aprende a
ler e a escrever, onde se pedagogiza a leitura e onde comumente se diz que não há
avanço sem sofrimento. Questionar a pedagogização seria negar esse sofrimento?
Em absoluto. Somos receosas contra o sofrimento causado pelo ato de ler e
não pelo sofrimento que a leitura pode nos causar. A literatura como um revelar a si
mesmo é fundamental. Para que se defender o sofrimento-escolarizado se há o
sofrimento-experimento? Ler é ato de afeto, é ato político, e como nos diz Pennac
(1993, p. 80-81):

Cada leitura é um ato de resistência. De resistência a quê? A


todas as contingências. Todas: – Sociais. – Profissionais. –
Psicológicas. – Afetivas. – Climáticas. – Familiares. –
Domésticas. – Gregárias. – Patológicas. – Pecuniárias. –
Ideológicas. – Culturais. – Ou umbilicais.
Uma leitura bem levada nos salva de tudo, inclusive de nós
mesmos.

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Na leitura cabe o tempo do ócio, a memória da infância, a memória recente, o


hábito, a função social, o não ler. Enquanto escrevíamos este ensaio, íamos
rememorando algumas de nossas próprias marcas, marcas das narrativas que
também compõem a nossa história.

Minha mãe guardou os dois primeiros livros ―paradidáticos‖


adotados na escola em que eu estudava. Foi com eles que
aprendi a ler. São dois livros cujo tema é ―aprender a ler‖, bem
focado na alfabetização em si, e os tenho até hoje, não pelas
marcas da história que sei bem por já ter lido e relido muitas
vezes, mas sim pelo fato de terem se tornado um guardado da
minha mãe. Ela já não está mais aqui, mas seu orgulho pela
minha conquista ainda anda comigo, na minha ―coleção‖ de
livros infantis que se constrói a cada ano e que mora na
escola... Apesar de, hoje em dia, achar os tais livros
―inapropriados‖ por serem histórias com nítida função escolar,
fico com as histórias em si, guardadas em minha lembrança...
Lembro ainda de quando li Robson Crusoé e meu afeto pelos
livros virou permanente. Desde pequena, por pura vontade,
ouvi repetidas e incansáveis vezes cada história do meu avô,
meu contador de histórias favorito e que me provocava a
conhecer cada cantinho do mundo que pudesse fazer parte da
história... (FIGUEIRA, 2017)

Minha infância não foi de muitos livros. Era mais lugar da


música e dos filmes. Na escola, minha lembrança de biblioteca
é de porta fechada; na biblioteca pública, silêncio sempre. Mas
a resistência acontecia e as memórias se formavam. Raul da
Ferrugem Azul ganhei de minha irmã mais velha, e o livro de
Ana Maria Machado conversava comigo sobre os tempos da
ditadura, sobre injustiças. Minha mãe amava contar e relembrar
histórias e, no centro espírita que frequentávamos, li mais
Monteiro Lobato do que na escola ou em casa. Meu cunhado
era (e ainda é) um contador de causos, hoje focos de estudo
para mim. Tudo misturado, entrelaçado, definitivo para nascer
a Cris leitora que aos 13 anos leu Memórias Póstumas de
Brás Cubas e pensou ―se ele pode fazer isso, podemos fazer
tudo‖. (ROGERIO, 2017)

Memórias possíveis porque nos remetem à própria experiência. A memória de


leitura não tem julgamento de ―bom ou ruim‖. Ela simplesmente é. Precisamos falar
sobre, cavucá-las, des-cobri-las. Entretanto, essas marcas parecem ser aos poucos
desconstruídas dentro das instituições escolares. A leitura ganha desde muito cedo
uma funcionalidade que não tem fim em si mesma ou em seu processo, tornando o
livro um instrumento pedagógico a serviço de áreas do conhecimento, de princípios
morais ou da doutrinação. A adoção ou indicação de livros nos espaços escolares
ainda segue regras que desviam a importância artístico-literária como critério. Uma
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―utilidade‖ para a obra ainda impera; obra que, mesmo assim denominada, perde sua
significância como arte. Os adultos mediadores buscam ―ensinar algo‖ ao leitor jovem,
muitas vezes mantendo uma cadeia pedagogizante não apenas com relação aos
conteúdos, como também com relação à leitura como procedimento, com certas
condutas, modos e interpretações. A leitura parece não bastar, há que se fazer algo
―produtivo‖, no sentido de algo palpável. Seria esse o verdadeiro espaço da leitura?
Há livro para tudo: de como ensinar a escovar os dentes, desfraldar, a evitar o
bullying; para ficar rico ou ter sucesso; para falar de morte, de amor, de birra. Todos
são bons? Todos são ruins? Quais critérios estão sendo levados em conta entre os
educadores ou estão articulando vozes de um mercado desinteressado em construir
uma sociedade com o olhar diferente para o outro e para si? Há a preocupação de
potencializar? Proteger? É de Regina Zilberman (2003, p. 12) que ouvimos/lemos:

É o enfoque estético que preside a abordagem do livro para


crianças, porque somente a realização literariamente válida
rompe os compromissos (que estão na gênese histórica da
literatura infantil) com a pedagogia e, sobretudo, com a
doutrinação.

Então o dilema não seria mais profundo? Estaríamos nós lidando com um
objeto de arte dentro da escola? E, se sim, somos formados para recebê-lo?
Zilberman (2003, p. 176) vai além, oferecendo algumas pistas:

Se [a literatura infantil] quer ser literatura, precisa entregar-se


ao projeto desafiador próprio do fenômeno artístico. Assim,
deverá ser interrogadora das normas em circulação,
impulsionando seu leitor a uma postura crítica perante à
realidade e dando margem à efetivação dos propósitos da
leitura como habilidade humana.

Um primeiro passo seria refletir e reconhecer o valor de um livro por si só,


pelas potências dispostas em suas páginas, por sua inteireza, por sua profundidade e
pelo que ele provoca enquanto corpo. Assim como Jorge Larrosa (2002) em seu
percurso teórico e filosófico define a experiência como algo que nos acontece e nos
afeta, não existe afeto sem corpo. Não há um único caminho: cheirar as páginas,
marcar palavras e frases, rabiscar, escrever, folhear de trás para frente, ler e reler com
linearidade, em fragmentos, em busca ou não de sentido; ler deitado, sentado, parado,
andando… O papel da narrativa não muda! E segundo a argentina Maria Tereza
Andruetto (2012, p. 54), este papel é:
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[…] Uma viagem que nos remete ao território de outro ou de


outros, uma maneira, então, de expandir os limites de nossas
experiências, tendo acesso a um fragmento de mundo que não
é o nosso. Reflete uma necessidade muito humana: a de não
nos contentarmos em viver uma única vida e, por isso, o desejo
de suspender um pouco o transcurso monocórdio da própria
existência para ter acesso a outras vidas e outros mundos
possíveis, o que produz, por um lado, certo descanso ante a
fadiga de viver e, por outro, o acesso a aspectos sutis do
humano que até então nos haviam sido alheios […].

Narrativas e leituras tidas como experiência trazem o repertório ―adotado‖ na


escola como escolha, possibilidade estética. Como podemos dizer algo ao outro se a
obra não nos diz nada? Um currículo literário, o qual, como qualquer currículo, diz de
um posicionamento, pode ter mais sentido no partilhar pela experiência e pela estética,
que nada mais é que o encontro pelo e através do sensível. Nessa perspectiva,
gêneros, faixa etária, autores famosos, o que está na vitrine perderiam espaço como
critérios de seleção. Arriscamos dizer ainda que diminuiriam amarras, lugares-comuns,
mesmices e escolarização.
Além de circular pelo desconhecido, a escola é, segundo Pennac (2013), o
espaço de organização da produção intelectual, da expansão e sistematização do
conhecimento e de conteúdos que transcendam o senso comum. Uma leitura criativa e
inventiva poderia aproximar-se de como Luiza Christov (2012) nos mostra o ato de
educar: ―É lugar de criar sempre, de inventar, de lidar com mistérios‖.

Experiência, estética, imagem: o livro como objeto

Se estamos propondo uma relação estética com o livro, trazemos novamente


os pensamentos de estudiosos, como a francesa Van Der Linden, e podemos, então,
citar um colega dela, o brasileiro Odilon Moraes, autor de livros ilustrados e
pesquisador da relação palavra e imagem no livro. Moraes (2013 p.159-160) nos faz
colocar em perspectiva o livro como objeto:

Dentre as classificações de livros segundo seus aspectos


formais ou conceituais (livro-imagem, livro-animado, livro-
poema, etc.) temos uma denominada livro-objeto. O que viria a
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ser isso, já que o próprio nome soa redundante, pois, com


exceção dos atuais livros virtuais, todo livro é um objeto? […]
―Livros são papéis pintados de tinta‖, escreveu Fernando
Pessoa, em ―Liberdade‖, lembrando-nos de que o livro, antes
de mais nada, é um objeto, embora ofuscado na condição de
suporte. Salvo em alguns poucos momentos da literatura ou
das artes, a materialidade do livro foi chamada à presença e
dada a ela um papel fundamental. Na maioria das vezes, como
se sabe, a sua utilização como suporte desprezou a dimensão
poética desse objeto.

Quando tocamos na questão da ―materialidade‖, parece-nos que o livro – ou a


literatura – nos escapa ainda mais. Do que será que estamos falando, afinal? Mas
basta colocar um livro diante de um bebê que ela, a materialidade, nos salta aos olhos
como importância fundamental. Quem mais do que um bebê se relaciona
instintivamente com a materialidade de algo? Livro para virar de ponta-cabeça? Livro
com buracos, mordidas, portas, janelas? Livro que o texto diz uma coisa, mas o
desenho provoca outra? Quem mais se não a criança para aceitar um convite desses?
E essa ―abertura‖ do bebê para a vida pode lá ser fonte de inspiração para todas as
relações serem humano-literatura. Estão atentos a tudo, no extremo oposto ao que,
em geral, o adulto se fecha, deixa de se permitir. Conectados ao que o escritor
moçambicano Mia Couto (2011, p. 103-104) chama ―infância‖:

A infância não é um tempo, não é uma idade, uma colecção de


memórias. A infância é quando ainda não é demasiado tarde. É
quando estamos disponíveis para nos surpreendermos, para
nos deixarmos encantar. Quase tudo se adquire nesse tempo
em que aprendemos o próprio sentimento do Tempo.
A verdade é que mantemos uma relação com a criança como
se ela fosse uma menoridade, uma falta, um estado precário.
Mas a infância não é apenas um estágio para a maturidade. É
uma janela que, fechada ou aberta, permanece vida dentro de
nós.

Essas janelas também são, claro, uma possibilidade de descontrole. Da classe,


da interpretação, do resultado para o projeto pedagógico planejado no início do ano,
da reação dos pais… E é aí que, ao invés de se encarar mais um desafio de leitura e
propor uma nova chance de interpretação de cada leitor, muitas vezes a decisão do
educador é partir para o ―já sabido‖. Ora, não há problema nisso: Monteiro Lobato soa
revolucionário até hoje! Afinal, falar de pós-morte como ―hipótese‖ ou se autodeclarar,
como Emília o fez, ―sou independência ou morte‖ (LOBATO, 2009, p.75), é um grito
ainda calado em pleno 2017. Nos anos 1970 e 1980, o Brasil assistiu a um boom em
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criatividade para contar histórias, para experimentar linguagens, até mesmo pensando
o livro como objeto e seguindo marcas deixadas pelo Movimento Concretista dos anos
1950 e 1960. O ―como se lê‖ pega carona no ―o que se lê‖.
Como dissemos, um novo acervo passa a tomar conta das livrarias das
grandes cidades e a invadir também as compras de governo, o que afeta, entretanto,
os acervos das bibliotecas e escolas de todo o Brasil. Novos livros (ou nem tão novos
assim) que podem ser ―absorvidos‖ estética e literariamente de outra maneira. De
acordo com Martin Salisbury e Morag Styles (2012, p. 50):

Os melhores livros ilustrados tornam-se pequenas galerias de


arte atemporais em nossas casas – uma mistura de conceito,
arte, design e produção, que gera prazer e estimula a
imaginação de crianças e adultos. Talvez seja uma analogia
mais apropriada compará-los a uma pequena produção teatral:
ela reconhece a fusão de imagem e palavra, que é fundamental
para a experiência do livro ilustrado.

O educador-mediador se vê diante, então, do dilema imposto a Emília no livro


A chave do tamanho, de Monteiro Lobato, quando ela, em busca de fechar a chave
da guerra, acaba alterando os parâmetros de forma de todos os seres humanos. A
boneca se vê do tamanho de uma caixa de fósforos e fica sem saber o que fazer.
Lobato (2008, p.20) nos relata, então: ―A situação era tão nova que as suas velhas
ideias não serviam mais. Emília compreendeu um ponto que Dona Benta havia
explicado, isto é, que nossas ideias são filhas de nossa experiência‖.
A escola ainda não se acostumou ao fato de ser (e de precisar ser) colocada
em xeque. Dessa forma, o medo do imprevisível constrói as amarras que impedem
novas práticas e, assim, novas experiências. Muitos de nós ainda não veem o livro
como uma obra de arte que nos colocará no caos criativo e que nos mobilizará para
novos tombamentos. Talvez seja tempo de viver o livro.

A leitura na infância

A importância da leitura na Educação Infantil está posta nos cursos de


formação acadêmica e continuada e é possível afirmar seu espaço na rotina escolar,
para muitos professores e professoras, como prática diária. O momento atual nos
possibilita discutir como esta prática acontece e o que está embutido nela. Para tanto,

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precisamos nos perguntar: quais são as intenções deste momento? Qual é a função
da leitura na Educação Infantil? Deveria ela ter uma função?
Cada escolha afirmada na prática pedagógica e na construção do currículo
reflete a concepção de infância embutida nesse processo de reflexão. Ainda hoje, a
visão moderna da criança como ser inacabado, fragmentado, desprotegido predomina
em muitos espaços educacionais. Na literatura, essa relação entre escolha e
concepção não é diferente e com isso criam-se grandes expectativas quanto à
formação do leitor, o trabalho com gêneros literários e a adequação para faixas
etárias.
Para essa postura leitora, é dito aos pais que leiam todas as noites, que sejam
modelos para as crianças e, dessa maneira, formarão um bom leitor. Nas escolas,
indicamos quantidade e diversidade nas bibliotecas para que a leitura aconteça,
adotamos livros para todos e aprovamos projetos de incentivo ao ato de ler, à troca ou
ao acesso às obras. E dá certo? É o suficiente?
Como pessoas encantadas pelo universo do livro, a leitura tem seu espaço
diário garantido em nossas vidas, em momentos individuais e com as crianças que
dividem conosco o processo de educar. Com elas, assumimos o papel de mediadoras,
uma ponte entre as crianças e os livros, mas essa mediação começa antes das rodas
de leitura ou da história antes de dormir. Essa mediação começa com a curiosidade,
com o desprendimento de estereótipos e lugares-comuns, com a desimportância da
adequação; passa pelo encontro com aquelas palavras, que pode ter tantos jeitos e
narrativas, mas que terá um sentido único quando for experiência.
O que é uma mediação? É ato de assistir/ver ou de assistir/cuidar? O que tem
de estar junto nesta prática? Podemos decidir uma vez e seguir anos oferecendo o
mesmo repertório? Ou temos compromisso com individualidades e novidades?
Tratada como um ser da falta, é tratada como são tratadas outras minorias sociais:
desigual, porém, como grupo homogêneo – nunca como diverso. Tratar como desigual
é ainda um ato excludente. A inclusão trata do diverso.
Tudo varia. Tudo é possível. Qual é o papel do educador: ter
respostas/indicações ou perguntas/permissões para novas interpretações? Voltamos,
então, à questão proposta anteriormente: se estou diante de um objeto de arte, por
que o estou mediando? Quando olho para um livro, o que devo levar em conta?
Segundo Cademartori (2010, p. 33):

No exame de um livro para criança que se apresente como


literário, pode-se iniciar uma avaliação procurando a resposta à
seguinte pergunta: esse livro permite que a criança perceba a
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força criativa da palavra ou da imagem? Ou não há nele


nenhuma novidade, nada que atraia ou prenda a atenção no
arranjo dos signos, no modo como foi composto?

Tratamos, então, de atribuição de sentido não como um único significado tido


como verdadeiro, mas como a exposição do sensível, a experiência irracional que
dispara sensibilidade e, portanto, sentido.

Ser leitor, ser professor: caminhos da formação

Um dos preceitos para uma sociedade democrática contemporânea e ocidental


é o direto de acesso e permanência à educação. Ao afirmarmos que um dos principais
lugares da leitura hoje é a escola, estamos dizendo que ler é um direito? Que a leitura
é ―salvadora‖?
Arriscamos dizer que não é salvadora nem condena. A leitura pode estar a
serviço de qualquer ideologia, para o bem ou para o mal. Para Luiz Percival Britto
(2015, p. 43):

A autonomia implica conhecimento, discernimento e análise da


situação, e isso se aprende. O leitor autônomo não é
simplesmente aquele que lê conforme seus desejos, opções,
interesses (porque os desejos, opções e interesses podem
resultar da ação de fatores exógenos), mas aquele que dispõe
de possibilidades de conhecer e controlar esses fatores.

É possível dizer da leitura como necessidade, não apenas quanto ao ato de ler
em si, mas também ao tratarmos do que se lê. Ler é tempo, é pesquisa, é passagem e
deve privilegiar a escolha sensível já que, segundo Pennac (1993, p.118), ―o tempo
para ler é sempre um tempo roubado‖.
Assim, em vez de pensarmos na leitura ―efetiva‖ para o ensino, preferimos
pensar na leitura ―afetiva‖. O que queremos do que lemos? O que seremos com o que
lemos? Para que lugares a leitura nos leva? Movemo-nos ou comovemo-nos?
Hannah Arendt (1990) nos traz a educação como a apresentação de nossa
herança, de nosso caminho construído até aqui. A educação (e por que não a leitura, a
cultura, a arte?) mostra a quem chega ao mundo nossa construção e representação
dele até aqui, oferecendo a possibilidade de novas atuações, impressões e

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representações. A literatura, como experiência, também está entre o passado e o


futuro, enquanto encontro presente com o que nos cerca.

Considerações Finais

A escrita e a leitura são, e muito provavelmente continuarão a ser, instrumentos


de poder. Nessa perspectiva, o grande sentido da promoção da leitura está em ser um
ato político, um movimento de contrapoder quanto ao direito de ler (BRITTO, 2015),
que confronta a concepção marcada na sociedade industrial em que vivemos, onde o
livro é uma mercadoria como outra qualquer e o que prevalece é a sensação de
satisfação. Segundo Benedito Nunes (1996, p. 3), a dimensão ética da leitura
representa ―a descoberta e renovação da nossa experiência intelectual e moral, de
adestramento reflexivo, de um exercício de conhecimento do mundo, de nós mesmos
e dos outros‖.
O ―fácil‖ ou ―gostoso‖ na leitura pode nos colocar na armadilha que empobrece
a intelectualidade e a estética no âmbito da educação. Recorrendo novamente a Britto
(2015, p. 58), ―ler não é um prazer, ainda que possa ser‖ e há um perigo na ideia da
leitura como um bem em si, edificante e civilizado. É esse gesto desinteressado que
interessa quando falamos em direito à leitura: o direito de ser no mundo e de, sendo,
fantasiar e fantasiar-se.
Assim, professores e professoras, que lutam diariamente pelo direito à
educação, lutam por esse direito de ser sujeito no mundo, agir, sentir e experenciar. A
arte literária que não traga esse viés não possibilita esse tipo de encontro com a
palavra, o encontro para co-mover o mundo. E como se chega a ela? No encontro, na
conversa, na dita ―formação‖. No resgate do adulto da capacidade de perguntar, de se
surpreender, de tombar pelo outro, pela experiência com o outro.

Referências

ANDRUETTO, Maria Teresa. Por uma literatura sem adjetivos. São Paulo: Pulo do
gato, 2012.

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1990.

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BRITTO, Luiz Percival Leme. Ao revés do avesso. São Paulo: Pulo do gato, 2015.

CADEMARTORI, Ligia. O que é literatura infantil? São Paulo: Brasiliense, 2010.


(Coleção Primeiros passos).
CHRISTOV, Luiza. A educação como mistério. In: Narrativas de educadores:
mistérios, metáforas e sentidos. São Paulo: Porto das ideias, 2012.

COUTO, Mia. E se Obama fosse africano? São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista


Brasileira de Educação, nº19. Unicamp, 2002.

LOBATO, Monteiro. A chave do tamanho. São Paulo: Globo, 2008

LOBATO, Monteiro. Memórias de Emília. São Paulo: Globo, 2009.

MORAES, Odilon. O livro como objeto e a literatura infantil. In: Entre Ser um e Ser
Mil. São Paulo: Senac, 2013

NUNES, Benedito. Ética e leitura. Teoria e prática. Leitura: teoria e prática, Campinas,
ano 15, n. 27, jun. 1996.

PENNAC, Daniel. Como um romance. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.

SALISBURY, Martin; STYLES, Morag. Livro infantil ilustrado: a arte da narrativa


visual. São Paulo: Rosari, 2012.

VAN DER LINDEN, Sophie. Para ler o livro ilustrado. São Paulo: CosacNaify, 2011.

ZILBERMAN, Regina. A Literatura Infantil na Escola. São Paulo, 2003.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

TEMPOS E ESPAÇOS DE LEITURA LITERÁRIA NA EDUCAÇÃO


INFANTIL

Maiara Ferreira de Ferreira, Universidade Federal de Juiz de Fora, Os espaços de


leitura literária.

Considerações Iniciais

Este artigo apresenta um recorte da dissertação produzida no âmbito do


curso de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJF)350. O foco deste texto volta-se para a criação de tempos e espaços escolares
destinados à leitura literária em uma turma do 2º período da educação infantil, de uma
escola pública situada no município de Juiz de Fora/MG. O estudo baseou-se na
análise das fotografias, referentes aos espaços de leitura, e das notas de campo
expandida, produzidas a partir da análise de oficinas de leitura organizadas na relação
com os profissionais da educação básica que atuam nessa turma.
Nessa proposta de interação desenvolvi uma pesquisa-ação durante seis
messes e para fins deste texto foram consideradas duas oficinas literárias. As
intervenções originadas a partir dessas oficinas foram analisadas numa abordagem
qualitativa a partir do viés teórico-metodológico sócio-histórico e os procedimentos
metodológicos utilizados foram a análise das fotografias, a observação participante e o
registro de notas de campo expandidas das oficinas literárias.
Com base na teoria histórico-cultural pode-se afirmar que os tempos e
espaços de leitura, na educação infantil, proporcionam a interação entre as crianças e
das crianças com os adultos, através de um ambiente organizado e planejado
conjuntamente, além de respeitar o tempo singular de cada indivíduo. Assim, a relação
da criança com a leitura literária, em determinado tempo e espaço, mediada pelo
professor, pode proporcionar diferentes e significativas vivências (Vigotski, 2010;
Barbosa, 2006; Paulino, 1999 e outros).

350
A dissertação que deu origem a este texto é intitulada Tempos e espaços de leitura literária na
educação infantil. Esta pesquisa está sendo orientada pela professora Drª. Hilda Micarello.
1827

Com um texto organizado em três pontos, abordo no primeiro a discussão em


torno das demandas contemporâneas de formação continuada de professores com
ênfase na questão da mediação literária. Com essa preocupação, discorro sobre a
concepção de leitura que sustenta as análises e a perspectiva teórica que ampara a
defesa da importância de se definir, no cotidiano das escolas, tempos e espaços para
a circulação da leitura literária. No segundo ponto apresento brevemente o contexto de
investigação observando a organização de tempos e espaços na educação infantil. Na
sequência, apresento análises das notas de campo produzidas a partir da oficina de
leitura literária. As conclusões caminham no sentido de problematizar que o ato de
mediar leituras ocupa um lugar de destaque na formação de leitores desde a
educação infantil.

A formação do leitor na Educação Infantil


A leitura literária, entendida como prática humanizadora, permite que o
indivíduo reelabore situações que lhe tenham despertado algum sentimento -
ansiedade, medo, raiva, felicidade, dentre outros. Entendo como processo de
humanização, a constituição do ser humano como tal. Para Pino (2005, p. 66), à
―medida em que as ações da criança vão recebendo a significação que lhe dá o Outro
– nos termos propostos pela tradição cultural do seu meio social – ela vai incorporando
a cultura que a constitui como um ser cultural, ou seja, como um ser humano‖. Isso
significa dizer que o processo de humanização das crianças, por meio da leitura
literária, passa pela maneira como cada um se constitui como ser humano, levando
em consideração vivências e aprendizagens.
A leitura é uma atividade complexa,

em que o leitor produz sentidos a partir das relações que estabelece


entre as informações do texto e seus conhecimentos. Leitura não é
apenas decodificação, é também compreensão e crítica. Isso significa
que o bom leitor precisa realizar essas ações sobre o texto. A
decodificação é uma parte da leitura, na qual o leitor, basicamente,
junta letras e forma sílabas; junta sílabas e forma palavras e junta
palavras para formar frases. No processo de leitura, à medida que
informações de um texto vão sendo decodificadas e o leitor consegue
estabelecer relações entre essas informações e os seus
conhecimentos prévios, unidades de sentido vão sendo construídas.
Ou seja, a compreensão se processa. Ao compreender o texto, o
leitor é capaz de apreciar o que ele diz, é capaz de se posicionar, é
capaz de realizar a crítica ao que é dito. (Glossário CEALE)

Quando a leitura vai além de um meio de comunicação, permitindo admiração


e prazer, caracteriza-se como leitura literária.
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A leitura se diz literária quando a ação do leitor constitui


predominantemente uma prática cultural de natureza artística,
estabelecendo com o texto lido uma interação prazerosa. O gosto da
leitura acompanha seu desenvolvimento, sem que outros objetivos
sejam vivenciados como mais importantes, embora possam também
existir. O pacto entre leitor e texto inclui, necessariamente, a
dimensão imaginária, em que se destaca a linguagem como foco de
atenção, pois através dela se inventam outros mundos, em que
nascem seres diversos, com suas ações, pensamentos, emoções.
(Glossário CEALE)

Com base nessas concepções, acredito que o objetivo da escola, ao se voltar


para a formação do leitor literário, passa pela finalidade de que esse sujeito possa se
inserir em uma comunidade, manipular seus instrumentos culturais e construir com
eles um sentido para si e para o mundo em que vive.
Nessa linha argumentativa, a leitura literária é concebida neste trabalho como
prática cultural que contribui, assim como outras práticas, para o processo de
humanização dos sujeitos. Entendida como objeto cultural que precisa ser mediado
para o estabelecimento de sentidos, encontra no outro o elo encadeador para a
multiplicação de experiências literárias. Interessa-nos neste texto, o outro professor,
enquanto parceiro mais experiente, que pode mediar a relação da criança com o texto
contribuindo para que ela produza sentidos para o lido/ouvido e para a própria
experiência leitora.
O papel da leitura literária, na perspectiva histórico-cultural, instiga a pensar
na escola como fonte de humanização e sensibilização, voltada para a formação do
sujeito leitor pelo viés estético. Em sentido complementar, essa concepção representa
uma educação humanizadora que, por meio da mediação literária na escola, pode
contribuir para formar sujeitos conscientes do seu papel na sociedade em que vivem,
como construtores e reconstrutores de conhecimentos.
As ideias de Escolano (1998 apud FARIA FILHO; VIDAL, 2000), ao ressaltar
que a organização de tempos e de espaços351 está diretamente relacionada ao
desenvolvimento de práticas significativas de leitura literária e às mediações com os
textos literários realizadas na escola, vão ao encontro do que defendo neste texto.
Nesse sentido, percebe-se que os tempos e os espaços não são estruturas neutras e
podem reproduzir – ou não – as formas dominantes como as experimentamos. Assim,

351
Importante ressaltar que, dado os limites deste texto, não adentraremos aqui nos diferentes conceitos de
espaço, ambiente e lugar, por isso adotaremos a noção de inseparabilidade entre os termos. Assim, com
base em Lima (1989), o conceito de espaço que utilizamos é amplo e abrange todo espaço físico
frequentado pelas crianças.
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os tempos e os espaços escolares, a nosso ver, podem e devem ser preparados para
estimular a curiosidade e a imaginação da criança.
Nessa linha argumentativa, os espaços são elementos fundamentais no
desenvolvimento das crianças, já que um ambiente organizado e estruturado torna-se
desafiador, além de auxiliar na autonomia dos pequenos. No que se refere a relação
entre espaço e experiência literárias defendemos que a presença de estantes baixas
que possibilitem o acesso a livros é um fator que colabora com a formação do leitor da
educação infantil, uma vez que a organização do espaço, na concepção sócio-
histórica, é constituída e constituidora dos sujeitos.
Outro ponto importante é a necessidade da instituição de uma sequência de
atividades planejadas em que os tempos destinados à leitura literária sejam
incorporados à rotina, uma vez que quando sistematizados, tornam-se uma das
maneiras de contribuir de forma significativa para a sensibilização do leitor.
Diante do exposto, acredito que um dos desafios que se coloca na formação
de leitores literários contemporâneos, perpassa pela constituição dos espaços, na
distribuição dos tempos de leitura e na ampliação de mediações leitoras. Noutras
palavras, uma forma outra de organização curricular que atenda não só às demandas
diretamente implicadas na leitura que (in)forma sobre o mundo, mas que permite uma
visão estética do mesmo.
Ao oportunizar que crianças vivenciem experiências em tempos e em
espaços destinados à leitura, possibilitamos que desde a mais tenra idade vivam
momentos de estímulo à criação e à imaginação e, na mesma medida, vivenciem
situações de estesia e experiências estéticas que as humanizam, as constituem como
sujeitos, as inserem em uma cultura letrada e, consequentemente, as formam leitores.
Foi com esse princípio articulador que as oficinas literárias, ministradas na
educação infantil, foram organizadas. No tópico seguinte desenvolvo um pouco desse
lócus de pesquisa e o que lá ocorreu.

A rotina da Educação Infantil

Ao observar a rotina das crianças do 2º período e constatar a ausência de


momentos literários, surgiu, em diálogo com minha orientadora e a professora regente,
a necessidade de desenvolver uma pesquisa-ação. Nessa perspectiva a rotina foi
alterada com a proposição de um momento especialmente destinado à contação de
histórias, que antes não estava incorporada às atividades da turma.

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Quadro 1: Organização da rotina do 2ºperíod B


Dias da Semana
Horário
segunda-feira terça-feira quarta-feira quinta-feira sexta-feira

07:10 Chegada Chegada Chegada Chegada

Brinquedos de Brinquedos de
07:15
montar montar

Recolhe os
Recolhe os
brinquedos/orga
07:40 brinquedos/organi Educação física Aula de artes
nização da
zação da rodinha
rodinha
Roda de
Roda de
7:50 conversa*
conversa*

Roda de
8:20 Atividade** Atividade** Atividade** conversa*

Extraclasse
Merenda da Merenda da Merenda da Merenda da da
9:00
escola escola escola escola professora.

Merenda da Merenda da Merenda da Merenda da


9:20
escola escola escola escola

09:55 Massinha Massinha Massinha

10:20 Atividade** Informática Atividade** Atividade**

Organização dos Organização Organização


10:50
materiais dos materiais dos materiais

10:55 Saída Saída Saída Saída

*A roda de conversa não apresenta uma sequência de atividades planejadas: alguns dias as
crianças cantam, outros conversam sobre a data comemorativa mais próxima, falam das letras
do alfabeto, dentre outras atividades possíveis.
**As atividades são todas mimeografadas. Algumas para as crianças colorirem, outras para
cobrirem pontilhado. E sempre feitas na sala de atividades, com as crianças organizadas nas
mesas.

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Ao analisar a tabela, construída a partir da observação da turma do 2º


período, constata-se que a professora regente segue uma rotina rotineira 352 em que as
atividades são constituídas em uma ordem cronológica visando a internalização dos
códigos da escrita. Dessa forma, a maior parte do tempo em que as crianças estão na
escola é destinado as atividades mimeografadas. Em diálogo com a professora
regente, coordenadora e diretora da escola percebi que elas explicam essa rotina a
partir do estereótipo de que a turma é difícil e agitada, o que limita tarefas que
envolvam os diferentes espaços da escola. Diante desse contexto e após combinar
com a equipe envolvida nesse processo que minhas ações se concentrariam na
criação de tempos e espaços de leitura, a professora regente sugeriu que tais ações
acontecessem no momento da roda de conversa.
A organização dos tempos e espaços de leitura, bem como a mediação do
trabalho com o texto literário visando à formação do leitor literário da Educação Infantil,
colocam-se como discussão basilar que perpassará essas análises. Para tanto, me
basearei na teoria histórico-cultural, ao considerar que sujeito e meio constituem uma
unidade, ou seja, o desenvolvimento humano se dá na integração entre a criança e o
meio, ou seja, nas vivências da criança
Ao nascer no meio cultural o ser humano se relaciona com esse meio e vai se
constituindo enquanto sujeito. A capacidade do homem de interpretar os elementos do
meio se dá a partir das vivências que ele tem nesse meio. Nesse sentido, Vigotski
ressalta que é impossível pensar no tempo sem pensar no espaço, pois essas duas
experiências com o meio constituem o ser humano, que se situa a partir de sua
vivência interna e externa. O homem, enquanto sujeito histórico-cultural, está situado
num determinado tempo e espaço, num meio, numa sociedade. Ele transforma o meio
e, ao transformá-lo, também se transforma (Vigotski, 2010). Nesse sentido, é que se
faz importante discutir os tempos e espaços de leitura na Educação Infantil, uma vez
que esses vão constituir as vivências das crianças na primeira infância.

Oficina Literária: João e o pé de feijão

Essa oficina foi planejada a partir da constatação de que na turma do 2º


período não havia tempos e espaços de leitura e pelo interesse das crianças quando
tiveram a oportunidade de manusear livros enquanto esperavam o horário da

352
Segundo Barbosa (2006, p.39) esse tipo de rotina nasce quando as ações e as relações
sociais não procuram ser compreendidas e explicadas, não havendo a necessidade de criação,
de desenvolvimento, e o resultado do que se faz não é necessariamente aquilo que se quer ou
o que se pensa ter feito, mas aquilo que foi passado aos sujeitos.
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merenda. Diante disso, eu e minha orientadora, em diálogo com a professora regente,


optamos por iniciar as ações nessa turma com a contação de contos clássicos .
De acordo com Calvino (1993) os clássicos são aqueles livros que chegam
até nós trazendo consigo ―as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de
si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais
simplesmente na linguagem ou nos costumes)‖. Os clássicos são livros que, quanto
mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam
novos, inesperados, inéditos.
Compartilhando dessa concepção, desenvolvi nos dias 24, 25 e 27 de abril, a
oficina baseada na releitura do clássico João e o pé de feijão, escrito e ilustrado por
Ingrid Biesemeyer Bellinghausen, os desdobramentos dessa oficina se estenderam
pelas duas semanas seguintes. Como combinado com a professora, anteriormente, o
momento da leitura aconteceria na roda de conversa.
Preparei todo um ritual que instigasse a imaginação e curiosidade das
crianças. Encapei uma caixa, com pedaços de papéis coloridos de uma forma que
remetesse a uma colcha de retalhos. Dentro da caixa coloquei o livro, o feijão, algodão
e os potinhos para plantarmos os grãos de feijão, materiais necessários para o
desdobramento da oficina. No chão, forrei uma colcha de retalhos, a qual chamamos
de colcha da leitura. A ideia que nos conduziu a escolher esses objetos foi a de que a
colcha e a caixa se tornassem signos desse momento de leitura e estivessem
presentes em todos os momentos de leitura.
Nas fotos 1 e 2, a seguir, pode-se observar a introdução desses objetos no
grupo.

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Imagens 1 e 2: Apresentação da colcha e da caixa leitora na turma do 2º período.

Fonte: Arquivo da pesquisadora.

Essas duas fotos353, representam o primeiro contato das crianças com os dois
materiais que iriam simbolizar esse momento. As crianças ficaram encantadas, tanto
com a caixa quanto com a colcha. Quando estiquei a colcha no chão e convidei-as
para formar uma roda sobre a colcha, foi um momento de encantamento. Antes de se
organizarem, deitaram sobre a colcha, cheiraram, apertaram... Exploraram de diversas

353
No ato da matrícula os responsáveis assinam uma autorização para uso irrestrito de fotos
das crianças. Além dessa autorização, conversei com as crianças e todas consentiram a
utilização das imagens neste trabalho.
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formas. Deixei que elas fizessem esse primeiro contato e em seguida pedi para se
organizarem em roda para descobrimos juntos o que havia na caixa.
A colcha, a caixa e a literatura constituiram um ambiente envolvente e
instigante para as crianças, de tal modo que elas puderam vivenciar a narrativa de
uma maneira diferente, conjugando diferentes sentidos e experiências individuais e
coletivas. Para Vigotski (2010), ―essas interferências sensoriais estão construídas de
tal modo que estimulam no organismo um tipo de reação diferente do que
habitualmente ocorre, e essa atividade específica, vinculada aos estímulos estéticos, é
o que constitui a natureza da vivência estética‖.(p.333).
Assim, às 7 horas e 40 minutos, organizamos a roda e explicamos às
crianças o que iria acontecer e que para esse momento era necessário fazermos
alguns combinados:

Pesquisadora: Hoje eu trouxe uma surpresa para vocês. Mas antes


de mostrar a surpresa, nós precisamos combinar algumas coisas...
Vocês vão ficar na roda e quando quiserem falar irão levantar o dedo.
Nesse momento, V. me interrompeu e disse:
V.354: E ficar quieto também, né tia?!
Professora: E sem bater no colega também.
Pesquisadora: Sim. Então estamos combinados? Posso contar com
a ajuda de vocês?
Turma: Siiiiim.
Nesse momento as crianças estavam muito atentas ao que eu falava.
(Nota de campo, 24 de abril de 2017)

Com todos organizados na colcha, sacudi a caixa e perguntei as crianças o que


havia dentro dela.

Crianças: Chocolate, refrigerante, pizza ...


Pesquisadora: Só tem uma coisa que podemos comer - e tirei o
feijão. Agora o que tem na caixa não é de comer.
L. (olhou dentro da caixa quando eu fui tirar o feijão e disse): tem
algodão tia.
Depois de algumas tentativas...
R. : É um livro, é um livro!
(Nota de campo, 24 de abril de 2017).

Organizei todos os objetos sobre a colcha para as crianças olharem e


perguntei se queriam escutar a história e depois fazer uma atividade com aqueles
materiais. Todas disseram que sim. Algumas crianças, encantadas com o saco de
feijão, queriam pegá-lo, deixei que explorassem os objetos. Afinal todo esse momento
era uma novidade, e tudo que é novo desperta o desejo de conhecer, pegar, apreciar.

354
Foram utilizadas as iniciais dos nomes das crianças com o intuito de resguardar suas identidades.
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Em seguida, relembrei as regras que havíamos combinado e organizamos a roda para


iniciar a leitura.
Antes de iniciar a leitura conversei com as crianças sobre do que elas
achavam que a história iria tratar:

Pesquisadora: Olhando para a capa do livro, o que vocês acham


que essa história vai falar?
J.G.: Tem a minha letra.
N: Vai falar de planta.
R.: É o pé de feijão.
Pesquisadora: Isso mesmo R., o título dessa história é João e o pé
de Feijão. Quem escreveu e ilustrou o livro foi uma moça chamada
Ingrid Biesemeyer Bellinghausen.
(Risadas e comentários sobre o nome da autora e ilustradora do livro)
J. G.: Ele é João igual eu tia.
Pesquisadora: Verdade. E será que a história desse João se parece
com a sua?!
(Risadas)
Pesquisadora:Vocês querem escutar essa história?
Turma: Sim.
Pesquisadora: Então, antes, vamos fazer uma mágica. Eu falo e
vocês repetem: Abra cadabra, pé de cabra, eu vou contar até três e
era uma vez. 1,2,3...
(Nota de campo, 24 de abril de 2017)

A caixa, a colcha e a música, elementos que estarão presentes em todas as


contações, nos convidam a refletir sobre a mediação a partir de signos e instrumentos,
que concorrem para o processo de atribuição de sentidos, pelas crianças, para os
textos literários com os quais vivenciam práticas de leitura significativas. De acordo
com Micarello, (2012),

nas relações que as crianças estabelecem com a leitura, estão


presentes, simultaneamente, dois tipos de mediação. A mediação
dos instrumentos materiais se faz a partir da relação que os
pequenos estabelecem com os diferentes suportes nos quais os
textos ou os enredos circulam no espaço da sala de aula; a mediação
dos signos ou ferramentas simbólicas se dá a partir da linguagem na
qual os textos se materializam, cujos sentidos se constroem na
relação com o outro, seja ele o professor ou os pares. (MICARELLO
et all, 2012, p. 2).

É interessante perceber, a partir do trecho da nota de campo, que os


instrumentos que simbolizam o momento da leitura literária contribuem para o
processo de produção de sentidos pelas crianças para o texto literário.

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Imagem 3: Contação da história ―João e o Pé de Feijão‖ na turma do 2º período.

Fonte: Arquivo da pesquisadora.

Ao observar a imagens 1 e 2 quando os objetos foram apresentados – caixa e


colcha - mas o livro ainda não havia sido apresentado, é possível perceber o olhar
atento das crianças para os objetos e a organização da roda se manteve. Em relação
a esse cenário, a imagem 3 demonstra uma aproximação das crianças ao livro,
mantendo os olhos voltados para a esse suporte que, nesse momento, se tornou um
objeto de desejo, de admiração, de encantamento.
Durante a leitura, quando João sobe pelo pé de feijão, antes de eu dizer o
que o menino encontrou ao chegar no topo, R. adiantou: ―Tem um gigante lá‖. Essa
intervenção pode indicar que a menina já teve contato com essa história. Em
outro momento, durante a leitura, quando o gigante morreu, L. que estava ao meu lado

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e viu que havia mais uma página no livro gritou: ―Não acabou a história não, presta
atenção!‖.
A fala das crianças no fragmento anterior demonstra sua participação ativa ao
ouvirem a história, isso acontece de maneiras e em graus diferentes em função do
próprio amadurecimento biológico. A mediação que ocorre entre crianças ou entre
crianças e adultos, permite que as crianças vão construindo conceitos, apropriando-se
da cultura e se integrando às práticas sociais. É nesse contexto que vão construindo
hipóteses, que no caso foi sobre o livro ―João e o pé de feijão‖. Dessa maneira, as
crianças reconstituem ativamente a realidade e interfere nela fabricando uma versão
diferente da realidade externa e da própria vivência simbolizada na palavra
(VIGOTSKI, 2010).
Ao final da leitura, conversei com as crianças sobre a parte que mais
gostaram e todos quiseram falar, N., T., V. disseram ter gostado da parte em que o
gigante caiu e bateu a cabeça no chão. R. falou que gostou muito da ―galinha de ouro‖,
outras crianças expressaram a parte que mais gostaram, porém, como falaram
juntamente com outro colega não consegui registrar. Após esse momento, perguntei
se no dia seguinte queriam escutar essa história de novo, eles responderam que sim.
As crianças já demonstravam certa agitação, mas ainda sim consegui explicar
a elas que iríamos plantar os feijões e observar o crescimento deles (essa explicação
foi de forma rápida).
O momento da leitura durou 30 minutos, e aconteceu de 7 horas e 50 minutos
às 8 horas e 20 minutos. Em seguida as crianças se organizaram nas mesas. Com as
crianças organizadas em seus lugares, expliquei novamente o que iríamos fazer com
os feijões e pedi L. para me ajudar a entregar os materiais. A escolha da menina como
ajudante aconteceu devido à necessidade demonstrada por ela de andar o tempo todo
pela sala, então achei que ao me ajudar essa energia estaria concentrada na
atividade.
Imagem 4: As crianças plantando feijão no algodão

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Fonte: Arquivo da pesquisadora.

A partir da preocupação de N., B. e JG., em saber se o feijão iria crescer ou


não, expliquei à turma, que o feijão que não crescesse, nós iríamos plantar outro e que
quando crescesse um pouco, iríamos plantar na horta da escola. L., AK. e I. se
preocuparam com a quantidade de água e de algodão:

AK.: Coloca mais água pra mim, tia.


I.: Pra mim também, tia.
L.: Tia, só isso de algodão vai fazer o feijão crescer até o céu?
Pesquisadora: Isso que nós vamos observar durante os próximos
dias.

Com muito cuidado, as crianças foram me entregando os copinhos com os


feijões para serem organizados na parede da janela. Os feijões ficaram nesse local,
pois precisavam receber luz direta para crescerem. A professora assumiu a
responsabilidade de aguá-los nos dias em que eu não estivesse presente. O plantio do
feijão foi importante pois reuniu as crianças em torno de um objetivo comum: cuidar do
feijão e observar seu crescimento. Terminamos a atividade às 9 horas e já era hora de
ir merendar.
No dia seguinte (25/04/2017), fiz o mesmo procedimento. Seguindo a rotina
da turma, após brincarem com as peças coloridas de montar, às 7 horas e 45 minutos
organizamos a roda. Dessa vez a colcha de leitura e a caixa mágica já estavam no
chão da sala e as crianças se organizaram ao redor da caixa, sobre a colcha.

Imagem 5: As crianças organizadas ao redor da caixa de leitura

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Fonte: Arquivo da pesquisadora.

A partir da análise da imagem 5, é possível observar o encantamento das


crianças pelos símbolos que conduz nossa interação – caixa e colcha – e também a
curiosidade de saber o que tem dentro da caixa. Outro ponto que chama atenção na
foto é a professora regente, que está fora da roda, mesmo ela concordando com a
pesquisa, ainda não havia interagido no momento literário. No momento da leitura
ficava observando.
Como as crianças haviam pedido a mesma história do dia anterior, coloquei o
livro João e o pé de feijão dentro da caixa, sem que elas vissem e iniciamos um
diálogo.

Pesquisadora: O que vocês acham que tem dentro dessa caixa?


Crianças: Feijão, algodão, livro.
Pesquisadora: O feijão e o algodão nós usamos ontem. Hoje está o
livro. Quem lembra o nome dessa história?
V.: Pé de feijão.
I. (Aluno que não estava na aula no dia anterior): É João e o pé de
Feijão.
Pesquisadora: Vocês querem escutar a história do João e o pé de
feijão?
Crianças: Sim.
B.: Mas esse a gente já conhece.
Pesquisadora: Mas você quer escutá-lo novamente B.?
B. balança a cabeça em modo afirmativo.
Pesquisadora: E vocês lembram quais os combinados para a hora
da leitura?
Crianças: Não conversar, ficar na rodinha...
Pesquisadora: Isso mesmo. Então vamos fazer a mágica!?
Todos: Abra cadabra, pé de cabra, eu vou contar até 3 e era uma
vez. 1,2,3.
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(Nota de campo, 25 de abril de 2017)

Nesse trecho da nota de campo, a fala de I. me chamou atenção, ele não


estava presente no dia anterior e mesmo assim ao olhar o livro pronunciou o título da
obra. Essa atitude pode ter relação com leituras anteriores as quais ele teve contato,
mas também pode ter remetido as conversas com os colegas que estavam presentes
no momento da leitura, já que quando cheguei na sala o assunto era o crescimento
dos feijões.
Durante a leitura, aconteceram alguns conflitos e a professora precisou
mediar, já que eu estava fazendo a contação do livro. Acredito que um dos motivos
para isso foi a quantidade de crianças, que neste dia eram 22, e não cabiam todos
confortavelmente na colcha, ficaram bem próximas. Por isso decidi levar mais uma
colcha na semana seguinte. A quantidade de crianças na turma, que hoje está em seu
limite com 25 matrículas, é um limitador para a atribuição de sentidos pelas crianças e
implica em um esforço do mediador para proporcionar vivências significativas.
No segundo dia de leitura, as crianças, demonstraram mais uma vez gostar
bastante do momento em que o gigante cai do pé de feijão e morre.

L.: Mostra tia, mostra ele caindo.


N.: Eu vou matar o gigante. Pápápá. (E faz com as mãos um
movimento de arma)

Imagem 6: Contação da história ―João e o pé de feijão‖

Fonte: Arquivo da pesquisadora.

Imagem 7: Contação da história ―João e o pé de feijão‖


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Fonte: Arquivo da pesquisadora.

Nas imagens 6 e 7 é possível perceber os olhos das crianças não


desgrudavam das páginas e a medida que as ilustrações da história eram
apresentadas o encantamento das crianças pelo livro e pela narrativa aumentava. Ao
final da história conversamos sobre a parte que mais gostaram, e o momento em que
o gigante cai do pé de feijão foi, mais uma vez, enfatizado por todos. Em seguida,
perguntei se no dia seguinte queriam escutar outra história ou essa história. Pediram
para escutar essa história. Como na quarta não vou à escola, pedi à professora para
fazer a contação. Mas ela demonstrou resistência e disse: ―Ah Maiara, amanhã é um
dia muito corrido, a primeira aula é artes. Não dá tempo pra quase nada‖. Mas mesmo
assim, deixei a caixa e todos os materiais com ela.
A organização do tempo, de acordo com Barbosa (2006), sofreu algumas
modificações: antes do advento da modernidade seguia o ritmo da natureza, cíclico, e
agora segue o ritmo linear do relógio, as atividades tem hora de iniciar e de terminar.
Nesse sentido, ―a jornada escolar é [...] apenas um sistema de justaposição de horas:
uma hora após a outra. [...] No início do ano letivo, fixa-se de modo definitivo, uma
jornada-padrão, que é repetida, invariavelmente, ao longo de todo o ano‖ (BARBOSA,
2006, p.152). Concomitante a esse tempo fragmentado, a alternância de diferentes
professores na turma pode ser um elemento dificultador da promoção de vivências
mais significativas e duradouras das crianças .
Na quinta-feira, dia 27 de abril, cheguei à escola e a professora logo avisou
que não havia feito a leitura, mas que havia aguado os feijões. As crianças me
receberam com perguntas:
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N.:Tia, quando o nosso feijão crescer a gente vai poder subir nele?
Pesquisadora: E o que será que vamos encontrar lá no topo?
N.: Um robôzão bom.
B.: Tia, me mostra o meu feijão...
Nesse momento, outras crianças pediram para ver o seu feijão
também.
(Nota de campo, 27 de abril de 2017)

A partir do diálogo acima, percebe-se que o desdobramento da história e o


acompanhamento pelas crianças do crescimento do feijão permitiram que elas (re)
criassem cenas e falas, conjugando fantasia e realidade. Para Vigotski (2009), os
processos de criação manifestam-se com toda a sua força já na mais tenra infância.

Todos os elementos dessa situação, é claro, são conhecidos por ela


[a criança] de uma experiência anterior, pois do contrário ela nem
poderia cria-la. No entanto, a combinação desses elementos já
representa algo novo, criado, próprio daquela criança, e não
simplesmente alguma coisa que reproduz o que ela teve a
oportunidade de observar ou ver. (VIGOTSKI, 2009 p. 17).

Nesse dia, outro fato chamou minha atenção. Na hora da roda, quando avisei
às crianças que iríamos ver o filme sobre o livro que estávamos lendo, T. pede para
contar a história do ―Pé de feijão‖. As crianças fecham o círculo e querem ficar perto
dele. Todos escutam atentamente.

Imagem 8: Contação da história ―João e o pé de feijão‖ por T.

Fonte: Arquivo da pesquisadora

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Observando a sequência de fotos até aqui apresentadas é possível perceber


que o círculo vai se fechando e com isso as crianças vão ficando cada vez mais
próximas ao livro. Acredito que esse movimento corporal das crianças demonstra o
interesse e a vontade de apreciar o livro. Essa unidade entre o sujeito e o meio e a
criação de um tempo/espaço de leitura na sala proporcionou as crianças novas
vivências no grupo, que favorecem a curiosidade, a experiência estética com o livro e
com os próprios objetos introduzidos no cotidiano do grupo.
É interessante observar a forma como T. narrou a história utilizando alguns
elementos explorados por mim, mas também recriando e imaginando novos enredos.
Possibilitando o intercâmbio de experiências entre as crianças e entre crianças e
adultos. A atividade criadora da imaginação depende diretamente da riqueza e da
diversidade da experiência anterior da pessoa, porque essa experiência constitui o
material com que se criam as construções da fantasia. ―Quanto mais a criança viu,
ouviu e vivenciou, mais ela sabe e assimilou; quanto maior a quantidade de elementos
da realidade de que ela dispõe em sua experiência, (..) mais significativa e produtiva
será a atividade de sua imaginação.‖ (VIGOTSKI, 2009, p. 23).
Para Prestes (2012), ao discorrer sobre o conceito de perejivanie,
desenvolvido por Vigotski, a criança e o meio formam uma unidade, sendo que este
tem sentidos diferentes para a criança nos diferentes momentos de sua existência,
razão pela qual é necessário, no estudo do desenvolvimento humano, compreender as
diferentes relações que os indivíduos estabelecem com esse meio. Em outras
palavras, a vivência se constitui como a união indivisível entre as particularidades do
meio e da personalidade. Só podemos analisar o papel do meio no desenvolvimento
da criança quando consideramos a relação entre a criança e o meio, que se dá na
vivência. A relação das crianças com o meio, mesmo que em situações iguais, são
diferentes, pois cada uma constrói um sentido para a vivência (VIGOTSKI, 2010).
Após a leitura de T., organizamos a fila e nos dirigimos à biblioteca para ver o
desenho sobre o livro.

Imagem 9: Apreciação do desenho referente a história ―João e o pé de


feijão‖

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Fonte: Arquivo da pesquisadora

Na imagem 9 as crianças estão organizadas sobre a colcha e observando


atentamente as cenas do filme ―João e o pé de feijão‖. A relação entre imaginação e
realidade, em que permite que as sementes de feijão, após plantadas, cresçam até
chegar ao céu instiga a imaginação criadora das crianças e proporcionam tal
encantamento.
Essa oficina seria finalizada com as crianças plantando os feijões na horta da
escola. Mas o mato estava muito alto e até o dia de plantar a empresa que faria a
limpeza do espaço não havia feito o serviço. Levei o material necessário para limpar
uma parte da horta, mas a direção achou melhor aguardar a empresa, visto que eles
poderiam destruir os feijões. Assim, as crianças levaram os feijões para casa, sendo
orientadas a plantá-lo. O crescimento do feijão foi registrado através de desenhos.
Segundo Vigotski (1999) as crianças pequenas desenham de memória, não
tomando como padrão o natural, ou seja, ela não desenha o que vê, mas o que
imagina. No desenho, a criança não se preocupa com a semelhança completa e exata,
representando aquilo que faz sentido para ela. A partir da atividade de desenho, a
criança externaliza seus pensamentos.

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Os significados dos desenhos das crianças constituem-se como um processo


cultural, sendo, portanto, produto das suas experiências no mundo. Para a teoria
histórico-cultural o desenho da criança representa a sua necessidade de significar o
mundo e o pensamento. O meio social, as pessoas com as quais as crianças
convivem, os recursos materiais e as experiências concretas das crianças contribuem
para a construção do significado infantil (ARAUJO, 2010).

Imagem 10: Crescimento dos feijões

Fonte: Arquivo da pesquisadora

Imagem 11: Registro do crescimento do feijão

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Fonte: Arquivo da pesquisadora

Ao realizar essa oficina, ancorada pelas reflexões da teoria histórico-cultural, fui


elencando junto com as crianças símbolos que conduziram nossas interações e
instituíram rotinas para o momento literário, o que me permitiu perceber a importância
da organização dos tempos e espaços de leitura, bem como a instituição desses
elementos na rotina das crianças pequenas. Acredito que essa oficina tenha se
transformado em vivências significativas para as crianças e elas demonstraram isso
através dos relatos.
Jader Janer, autor do livro O menino que colecionava lugares, no dia em que
foi visitar a escola e conversar com as crianças relatou que uma criança foi contar a
ele sobre a história do ―João e o pé de feijão‖ e que o feijão cresceu até o céu. A
criação literária infantil permite à criança fazer uma interlocução entre os elementos da
fantasia e da vida, ampliando as capacidades criadoras. A partir da fala, a criança
começa a compreender a literatura como um instrumento delicado e complexo de
formação humana.

Considerações Finais

As experiências literárias promovidas pela oficina de leitura contribuíram na


formação de professores-mediadores de leitura e, na mesma medida, oportunizaram
reflexões sobre a organização dos tempos e dos espaços destinados à leitura.
As análises das notas de campo permitiram compreender que as vivências
com a leitura literária possibilitam aos sujeitos envolvidos produzir e compartilhar

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sentidos e significados. Assim, a mediação da leitura literária nos diferentes tempos e


espaços escolares é um pilar da relação criança-adulto-formação do leitor.
As possibilidades colocadas na intervenção relatada neste texto foram,
simultaneamente, limites e possibilidades, uma vez que me fizeram refletir, pelas
análises, que ainda há muito o que se fazer para que a criança da educação infantil
possa cada vez mais experienciar situações de estesia.
Diante disso, enxergo a escola como a principal instância responsável pela
formação literária, no sentido de garantir o direito das crianças a essa formação. É
fundamental considerar também a importância do papel dos principais agentes
mediadores nesse processo de formação de leitores literários, pois esse trabalho
conjunto é primordial no sentido da escolha das propostas, da forma, do tempo, do
espaço e da perspectiva em que essa mediação será conduzida.
Por fim, o texto literário contribui fortemente para a formação integral dos
sujeitos e as vivências influenciam nos processos de mediação e aprendizado da
leitura, uma vez que estão imbricadas pela base cultural, econômica e social na qual
estamos inseridos. Portanto, para que haja um efetivo trabalho de mediação literária,
na educação infantil, em diferentes tempos e espaços escolares, visando seu caráter
humanizador e estético, é necessário imbricar a relação teoria e prática que envolve o
trabalho com literatura.

Referências

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Editora UFJF, 2010.

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Tradução: Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, (p.9-16).

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LIMA, M. S. A criança e a cidade. São Paulo: Nobel, 1989.

MICARELLO , H. A. L. S.; CAMPOS, V. R.; RODRIGUES, P. A.; TAVARES, A. L. D.


Tecendo tapetes, costurando enredos: leitura e experiência na educação infantil.
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PINO, A. As marcas do humano: às origens da constituição cultural da criança na


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VIGOTSKI. L. S. Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico: livro para


professores. Tradução Zoia Prestes. São Paulo: Ática, 2009.

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TRAVESSIAS OU TRAVESSURAS: PARA QUEM E PARA QUE


SERVE A LITERATURA INFANTIL NA CONTEMPORANEIDADE?

Soraya Souza, UNIVAP, Os espaços da leitura literária


Ana Archangelo, UNICAMP, Os espaços da leitura literária
Flávia Casarini Tomaz, UNICAMP, Os espaços da leitura literária

A única coisa que interfere


na minha formação é minha
educação. (EINSTEIN apud
THORPE, S., 2009, p.19,
tradução nossa)

Considerações Iniciais

O presente trabalho objetiva discutir o impasse na contação de histórias como


um dos nomes dos avatares contemporâneos, através de uma experiência no ensino
fundamental de uma escola municipal de Campinas, onde há alguns anos se vem
desenvolvendo um projeto que oferece o ―momento para o brincar‖ e a ―contação de
histórias‖ e, atualmente, tem evocado em algumas crianças comentários do tipo ―as
crianças não desejam a contação, elas querem o brincar‖. O que a escola, através dos
contos infantis, pode transmitir sobre a experiência de vida ou vivência destas
crianças? Qual será a ―pedra no meio do caminho‖? O que será que as crianças
aprendem com a contação de histórias na escola?
Escutando e acolhendo essa afirmação, produzimos este texto como forma de
nos questionarmos sobre os novos efeitos do aprender no contexto escolar. Por que
as crianças preterem escutar histórias e preferem brincar na escola? Assim afirma
Geoff Dyer (2017, p. 60): ―se ao ler moldamos nossas ideias e aprendemos algo sobre
a vida, então não deve espantar que a leitura tenha um impacto maior na juventude e,
com o tempo, passe a desempenhar um papel menor dentro das possibilidades que
ela própria abriu‖. Será que o impasse a que nos referimos representa as ideias de
Dyer ao contrário? Estariam as crianças em uma condição em que a contação ainda
não forneceria instrumentos comunicativos eficazes para ―aprender algo sobre a vida‖,
fazendo-as preferir o ―repertório‖ dos brinquedos e do brincar? Tem a contação de
histórias perdido espaço para o brincar neste cenário educacional, porque nos contos
infantis não há o que aprender sobre a experiência da vida ou sobre a vivência?

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Desenvolvimento
Este impasse contemporâneo nos coloca diante do homem pós-histórico, que,
em nome da eficiência, busca a satisfação imediata e, num instante, perde sua
condição humana de existir, num continuum. A eficiência do discurso capitalista se
tornou a deficiência daqueles processos de desenvolvimento básico que são mediados
e não imediatos – como a linguagem, a atenção e a memória.
A linguagem das crianças, invadida pela tecnologia e transformada em
discursos imediatos que podem fazer circular todas as coisas a todo tempo,
desvanece-se antes mesmo de poder comunicar ou transmitir qualquer mensagem a
alguém significativo para elas. Tendencialmente, o mesmo pode ser sentido sobre a
comunicação endereçada a elas: um discurso imediato que não chega a afetá-las. A
atenção e a memória, diante dessas inúmeras informações, sucumbem em sua
potência, pois não é possível para o humano descobrir(-se) e dominar a sua
descoberta sobre si e sobre o mundo. O excesso sobrepuja o desejo, destrói o
humano, na figura do homem propriamente dito.
Na contemporaneidade, a instituição escola está inserida numa nova lógica, em
que o excesso predomina e produz a cultura, transformando e adjetivando o homem
como híbrido: compreendido aqui como aquele que faz tudo o tempo todo, fala, ouve e
vê o tempo todo, também pode estar em qualquer posição: sujeito ou objeto, porque
de partida é sem posição. O discurso capitalista faz um apagamento do espaço que
funda o ato de experienciar a existência; logo, o homem existe independente de sua
história: ele não sabe sobre si mesmo; ele não é, está de passagem no imaginário e
imerso num real que possibilita apenas a repetição dos atos; não funda e se afunda;
torna-se produto do sistema.
Poderíamos pensar que o apagamento da divisão sujeito/objeto pode fazer
aparecer o homem pós-histórico? Castro(2012, p.173) discute, em Introdução a
Giorgio Agamben: uma arqueologia da potência,

[...] Antes de tudo não se trata de uma catástrofe natural ou uma


catástofre biológica, [...] o que desaparece é o ―homem propriamente
dito‖, o homem do erro e da ação negadora. Os homens convertem-
se, segundo uma expressão de Kojève, em monos sábios, em homo
sábios, em animais pós-históricos da espécie Homo sapiens.
Tornando animal o homem já não busca ser feliz, limita-se a estar
satisfeito. Os animais da espécie homo sapiens reagirão por reflexos
condicionados aos sinais sonoros ou mímicas e seus chamados
discursos serão semelhantes a pretendida linguagem das abelhas. O
que desaparecerá não é somente a Filosofia ou a busca da sabedoria
discursiva, mas também a sabedoria mesma. Porque não haverá
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mais, nos animais pós-históricos conhecimento [discursivo] do Mundo


e de si.
Nessa travessia, o discurso capitalista, em nome da produção eficiente, elimina
o homem do erro e da ação negadora, altera e burocratiza o tempo, pois não há tempo
para realizar nenhuma ação, e nenhuma ação se realiza sem ele. Desse modo, opera
o efeito de esvaziar a ação, transformando-a em mero procedimento ou paralisia.
Podemos dizer que, em certa medida, tal efeito se equipara ao que, na Bhagavad Gita,
filosofia oriental de cerca de 5000 anos antes da Era Cristã, é chamado como o ―falso-
agir‖ e o ―não-agir‖, dos quais deveria estar equidistante o ―reto-agir‖, que permite ao
Homem agir por amor ao Eu, e exigiria uma travessia rumo a conhecer a verdade
sobre si mesmo (BHAGAVAD GITA, s.d., p.16). No discurso capitalista, no entanto,
opera perversamente uma manobra da vida das pessoas, como se essas fossem
marionetes, sujeitos-gadgets, ou seja, um sujeito-procedimento ou um ―sujeito [...]
colado ao objeto e situado numa condição de resto. (SOUZA, 2013, p. 96).‖
O discurso capitalista constrói realidades que impõem o ―falso-agir‖ do sujeito-
gadget, em um modo discursivoque destrói o outro, a figura de alteridade. E, por
consequência, destrói o ―si mesmo‖ e a possibilidade de busca de si. No desejo de
destruir aquilo que aponta para a castração, o suposto sujeito é consumido e
consumado, nesse além da governabilidade, numa posição de sem lugar, mas opera
de um lugar social que se constitui à margem dos discursos, faz laço e se reconhece;
e é reconhecido pelo efeito de atender à demanda do Outro.
Em tempos de Pinóquio, como apostar na transformação do homem? Como
podemos apostar em transformar sujeito gadgets/marionetes empessoas que, em sua
condição humana de existir, desejam aprender e modificar as suas vidas? Esse conto
de Collodi, de 1940, dizia o que as crianças deviam fazer, apontava a elas um
caminho, um como deveria se viver a vida. Assim, Gepeto diz para o boneco: "Você
deve ir para a escola, Pinóquio!". Assim pondera Koball (2005): ―A mensagem é
simples e óbvia para as crianças: na escola ganha-se experiência do que é ou não é
correto no mundo de hoje - isso em 1940, mas vale agora também, mais do que
nunca, em 2005‖.
Atualmente, podemo-nos questionar: o que o boneco de verdade poderia dizer
para Gepeto e para Pinóquio, levando em consideração que o sujeito e o objeto são
unos, produtos discursivos que esvaziam o ―reto-agir‖, a busca? Será que a escola
continua sendo esse espaço de aprendizagens e, portanto, civilizatório e
transformador de vidas?
Se não somos sujeitos de ―verdade‖, aqui entendida na sua dimensão subjetiva, quem
somos, quem são nossas crianças? Para Tofler (apud THORPE, 2009, p. 30, tradução
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nossa), ―os analfabetos do século XXI não serão aqueles que não podem ler e
escrever, mas aqueles que não podem aprender, esquecem o que foi aprendido e
aprendem de novo‖. Será que o homem pós-histórico é o analfabeto do século XXI?
Somos analfabetos? O que devemos aprender na nossa experiência de vida? O que
esquecer para aprender de novo? Como isso se diferencia dos discursos imediatos
mencionados anteriormente, em que tudo circula, mas que nada comunica ou afeta?
O capitalismo selvagem, com seus dispositivos modernos, tecnológicos, tem o
poder de destruir/construir, inventar/reinventar categorias de realidade, princípio de
prazeres, processos civilizatórios, linguagens e pode operar sobre o desejo que nos
torna humanos. Na ausência, tanto como na presença, o sujeito figura como resto que
constitui o bando, circunscrito na sociedade.
O mal-estar da humanidade denuncia que esses instrumentos são apenas os
novos nomes do poder e não trazem aquilo que prometem – nem felicidade, nem paz;
operam ilusões que nos trazem a desesperança. Na tentativa de capturar o sujeito,
destroem sua interioridade e, logo, perdem-no.
O sujeito não é mais substancial; no discurso capitalista, não precisa almejar
deixar de ser um ―boneco de madeira‖ para engajar-se na aventura de se tornar ―um
menino de verdade‖. Foi capturado pelo Stromboli; está aprisionado, portanto. Sendo
assim, como é possível pensar uma dimensão que se articula com outras e, desse
modo, cria novos arranjos?
Para Agamben, em Infância e história: destruição da experiência e origem da
história (1978/2005, p. 21), ―o homem contemporâneo foi expropriado de sua
experiência: aliás, a incapacidade de fazer e transmitir experiências talvez seja um dos
poucos dados certos de que disponha sobre si mesmo‖. Nesse texto, Agamben cita
Benjamim, que, já em 1933, havia diagnosticado a ―pobreza de experiências
compartilháveis‖ como uma das causas da catástrofe da guerra mundial. O autor
afirma que o cotidiano do homem contemporâneo não contém quase nada que seja
ainda traduzível em experiência – é inexperienciável, é apenas vivido.
A palavra es-per-iencia expressa um porvir-de e um ir-através de. A
experiência de vida(Erfahrung) e a experiência no sentido de vivência (Erlebins)
distinguem-se uma da outra, como pensadas por Agamben: a primeira, no sentido da
sabedoria, como experiência de vida (Lebenserfahrung) ou conhecimento do mundo
(Welterfahrung); da segunda, não se extrai nenhuma sabedoria. Desse modo,
podemos pensar que o vivido é a repetição daquilo que, num instante, resta e insiste
em retornar em busca de sentido, à procura do suposto sujeito de desejo.

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Partimos do pressuposto de que as histórias possibilitem a construção de uma


trama política que ultrapassa o texto literário e cria uma ―narrativa política‖, tornando
as crianças ouvintes/leitoras autoras de sua própria história. Será que os mitos, os
contos de fadas podem sustentar ainda as dimensões do real, imaginário e simbólico,
construindo narrativas que possibilitem uma sustentação política no modo de
experienciar dessas crianças?

Não há nada que seja um


sinal mais claro de
demência do que fazer
algo uma e outra vez e
esperar que os resultados
sejam diferentes.
(EINSTEIN apud
THORPE, 2009, p.18,
tradução nossa.)

Desta experiência aqui relatada, circunscrita no Projeto de Iniciação à Docência


– Pibid/Capes - Pedagogia da Unicamp, participam formalmente professores e alunos
da escola, alunos do Curso de Pedagogia e Letras e supervisores-pesquisadores da
Unicamp. Metodologicamente, fundamenta-se na psicanálise, sendo o método
entendido aqui como um modo de operar, neste caso específico, no acontecimento
escolar a partir da escuta e da transferência, produzindo uma diferença, um discurso
alternativo.
Mediante a escuta das atividades de supervisão, tem-se verificado que aquilo
que Benjamin afirmara em 1933 sobrevive nas atividades de contação: a ―pobreza de
experiências compartilháveis‖, o que faz do homem pós-histórico um animal e da
literatura um produto, e não uma Arte.
A literatura como produto já é fato consumado, não apenas na escola. Ali,
contudo, a situação fica evidente, pois é frequente que os livros apenas figurem em
atividades obrigatórias, no planejamento pedagógico. Como atividade extracurricular,
torna-se uma atividade de casa, para ocupar o tempo e ser objeto de cobrança
posterior, sem que se transforme em experiência de vida.
O inusitado aparece no discurso das crianças e pode ser escutado e acolhido,
tanto pelas estagiárias, quanto pelos supervisores-pesquisadores: ―Algumas crianças
não desejam a contação, elas necessitam brincar‖. Nessa formulação, o desejo não é
sustentável, e prevalece a necessidade como modo de satisfação.

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As professoras insistem para que essas crianças façam a atividade, porque


senão perderão o momento do brincar. O brincar, circunscrito no país dos brinquedos,
está atravessado pelo capital: quando brincam, as crianças preferem o ―dinheirinho‖.
As estagiárias se questionam sobre o que falta para que sejam motivadas para a
contação. Revisam o planejamento, modificam os livros, apelam para o estímulo
visual, na tentativa de envolver as crianças. No entanto, falta-lhes motivo para escutar
uma história.
Podemos supor que o capitalismo opere uma cisão profunda, constatada não
apenas na divisão de classes, mas numa dissociação do humano? Uma parte cada
vez maior do sujeito se recusa a produzir/penetrar a interioridade (ou uma parte cada
vez maior de interioridade impenetrável?) e vive num mundo sem arte. Outra parte do
sujeito, mais e mais diminuta, ―carrega a cruz‖ da interioridade humana. Por ser
diminuta, a parte responsável pela interioridade vive-a de forma demasiadamente
intensa, penetrante, penetrável. Aqueles que se apegam à área de impenetrabilidade
sucumbem. Os que procuram oportunidades de encontro com a interioridade
produzem arte ou se tornam professores que contam histórias para seus alunos,
tentando ampliar o espaço de penetrabilidade da interioridade. Mas não se trata de
tarefa fácil: as bolsistas atuais parecem estar enfrentando a dificuldade de sair da área
de impenetrabilidade. Deslizam sobre terreno plano, escorregadio, sem qualquer
adesividade. Talvez por isso as histórias não tenham tido a repercussão esperada em
vários dos casos. A grande área impenetrável tende a ser superficial e, portanto,
imediatista e vulnerável a qualquer estímulo – o gadget, nos termos citados
anteriormente.
Muitas vezes, o momento do brincar traz à baila as cenas da vida cotidiana: o
consumo operando como significante, ―as crianças gostam de brincar com o
dinheirinho, de tráfico, de prostituição como um dos nomes do trabalho no capital‖.
Como reinventar a experiência através desse jogo de repetição que invade a vida?
Podemos falar, então, que a impenetrabilidade da interioridade que impede o desejo
pela contação é sintoma social?
SegundoFreud (1921/1970), no capítulo VII, o sintoma compartilhado é
precursor do sintoma social e referencia-se pelas construções de ideais que indicam a
qualidade de pertencimento e reconhecimento do sujeito no grupo e nas instituições.
Conforme relata Rosa (2004, p.35), Melman (1992) assim descreve o sintoma social:
―aquilo que está inscrito nas entrelinhas do discurso dominante de uma sociedade em
dada época‖.

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Ainda segundo de acordo com Rosa (2004, p. 335), Volnovich (1993) não
adjetiva o sintoma como social, mas reafirma, como Freud, que sua produção é
compartilhada e mostra como tende a tomar a forma da cultura a que pertence:

[Volnovich …] não adjetiva o sintoma como social mas destaca seu


estatuto de mensagem da conflitiva individual, familiar e sócio-
política-institucional, mostrando como o sintoma tende a tomar a
forma da cultura a que pertence; sintomas refletem uma organização
subjetiva que contém uma mensagem e sinaliza processos sociais e
particulares de sua forma de advir como sujeito.

As crianças insistem, são potências em ato, são criadoras, mas precisamos


apostar nelas, para que não fiquem na repetição do sintoma social. É preciso que
professores e alunos de Pedagogia resistam ao discurso capitalista, procurando, tanto
quanto possível, subvertê-lo e não transmiti-lo. O trabalho de contação realizado pelas
bolsistas pode ser uma das formas de fazê-lo. A atitude política do professor e do
bolsista deve ser a de fazer a história ―conversar‖ com aquela parte diminuta do ser,
que clama por arte, para dar forma à interioridade. Ou, em outras palavras, clama por
expansão, e não por submissão aos ditames do discurso capitalista.

Considerações Finais
Os resultados obtidos nos interrogam sobre se o discurso capitalista teria
produzido um homem como animal pós-histórico e a literatura como um produto,
fazendo desvanecer a interioridade subjetiva e teria, desse modo, feito a fruição da
Arte rarear entre nós. No que tange à literatura, correr-se-ia o risco de fazê-la presente
predominantemente na superficialidade das vivências, impedindo que se transforme
em experiência de vida para essas crianças. Nessa travessia, precisamos fazer
travessuras, romper paradigmas e resgatar o humano. E, desse modo, trazer a
tonicidade política do sujeito, como ser de potência, aquele que está presente na
experiência, autor de sua vida e responsável de si.
Uma possível formulação seria tornar o sujeito herói da sua própria história,
num dispositivo de reordenamento da fantasia, na travessia da vivência real para
experiência simbólica de vida e de conhecimento de mundo. Parafraseando Carlos
Drummond de Andrade: ―No meio do caminho há uma pedra, há uma pedra no meio
do caminho‖, e nele, nesse caminho, a Arte como literatura poderá nos ajudar a
reinventar o homem como humano, como um narra-dor, aquele que faz, da sua dor de
existir, potência e não potência. E, através dessa narrativa política, compõe sua
criação.
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REFERÊNCIAS

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Católica de São Paulo, São Paulo, 2013. 304p.

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THORPE, S. Pensar como Einstein. Barcelona: Amat, 2009.

EIXO TEMÁTICO 10

Formação de Leitores e Mediação


de Leitura

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Educação literária, Letramento literário, formação e


mediação de leitores literários: entrecaminhos do
saber/aprender
Eliane Santana Dias Debus (Universidade Federal de Santa Catarina), Silvana
Augusta Barbosa Carrijo (Universidade Federal de Goiás), Danglei de Castro
Pereira (Universidade de Brasília).

O eixo congrega pesquisas, trabalhos de extensão e ensino que focalizam


aspectos teóricos/metodológicos relacionados a práticas pedagógicas e ao
ensino de literaturas em Língua Portuguesa (LsELP), à mediação de leitura e a
formação de leitores em um contexto que contemple a leitura como ato
formativo para o leitor em formação. Entendemos, como premissa para os
estudos do eixo, a leitura literária como de fundamental importância na
formação do leitor em diferentes espaços formativos. Pensamos, ainda, nos
trabalhos do eixo incluir reflexões sobre a formação do docente de Letras,
Pedagogia e áreas afins como provocação a uma formação continuada ligada à
leitura literária em um sentido amplo que congrega, portanto, a diversidade de
enfoques da leitura não só do texto como do mundo. A proposta tem como
principal foco, por meio dos diferentes trabalhos apresentados no eixo, refletir
sobre as práticas pedagógicas e a situação do ensino de literaturas em Língua
Portuguesa na Educação Básica e, na medida do possível, traçar um perfil do
professor de literatura em âmbito da formação acadêmica e políticas públicas
ligadas ao ensino e difusão da leitura literária que pensem a formação de
leitores e a mediação de leitura em um sentido amplo, no qual residem as
concepções de letramento literário e educação literária.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

A CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS E A ESCOLA: UM DESPERTAR


PARA O MUNDO DA LEITURA

Izabele Dias dos Santos, FCT/UNESP/CELLIJ, Formação de leitores e


mediação de leitura, Capes
Paula Cristina Dantas dos Santos, FCT/UNESP/FCE/CELLIJ, Formação de
leitores e mediação de leitura

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A contação de histórias, importante recurso na formação de leitores, ainda é


negligenciada dentro do espaço escolar ou, quando acontece, não pode ser chamada
de ―contação de histórias‖, pois essa se resume a uma breve leitura de um livro
paradidático no início da aula.
Ler histórias e contar histórias são atividades diferentes (SILVA, 1997) e
requerem técnicas diferentes, o professor precisa estar atento e saber trabalhar de
todas as maneiras.
Betty Coelho Silva (1997) nos apresenta diversas técnicas para contar
histórias tanto na sala de aula quanto para públicos diversos através do seu livro
―Contar histórias: uma arte sem idade‖. Renata Junqueira de Souza et all (2015)
também nos apresenta diversas técnicas e recursos para a contação de histórias no
seu livro ―A arte narrativa na infância: práticas para o teatro da leitura e a contação de
histórias‖.
É necessário que o professor se aproprie das mais variadas técnicas de
contação para poder instigar em seus alunos o prazer em ouvir e ler histórias. Mas
antes de contar qualquer coisa, é preciso saber: O que contar? Como contar? Para
que contar? Este trabalho procura orientar o professor/leitor a contar histórias para
crianças, visando despertar nelas o interesse pela leitura literária. Com isso, definimos
como objetivo principal utilizar a contação de histórias na escola como ferramenta para
despertar nas crianças o interesse pela leitura literária e, os objetivos secundários são
instigar o gosto pela leitura literária; ampliar o repertório de livros conhecidos;
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relacionar o prazer à leitura e introduzir no cotidiano escolar atitudes docentes que


colaborem para a formação do leitor desde pequeno.

INTRODUÇÃO E JUSTIFICATIVA
Desde os tempos primórdios, as pessoas contam histórias. Seja numa noite
escura a luz de velas, ou ao redor do fogo nos invernos rigorosos, todos já ouviram
alguma narrativa. Um diálogo com um amigo, a descrição de um acontecimento
engraçado, tudo são histórias.
As histórias podem chegar aos ouvintes de diferentes maneiras: seja através da
leitura de um livro, através da leitura de uma propaganda, através da leitura de um
bom filme ou através da contação de histórias. As narrativas podem despertar no
ouvinte o interesse pela leitura de livros, e este é um dado interessante já que a leitura
e escrita está diariamente presente no cotidiano das pessoas.
Numa sociedade alfabetizada e letrada, Ana Maria Galvão e Maria Clara Di
Pierro (2007) alegam que um analfabeto se sente perdido e constrangido por não
saber assinar seu nome em documentos, ou não saber ler em qual porta se encontra o
banheiro feminino ou masculino. Fatos simples que passam despercebidos aos olhos
de um alfabético.
Números de telefone, endereços, tudo depende muito do conhecimento e
domínio da leitura e escrita. Desta forma este trabalho visa colaborar para a sociedade
estimulando as crianças a ter o prazer em ler e manusear um livro, e ao mesmo tempo
contribuir para a diminuição do analfabetismo, já que o prazer em pegar um livro é o
primeiro passo para instigar o gosto pela leitura. A contação de histórias, neste caso, é
utilizada como recurso para provocar o interesse e a curiosidade em ler livros e
conhecer boas histórias.
O despertar pela leitura se mostra importante quando Renata Junqueira de
Souza e Berta Lúcia TagliariFeba (2013) mencionam uma pesquisa feita pelo IBGE em
2005 que apontou que ―11% da população, aproximadamente 14,9 milhões de
pessoas, não sabem ler e escrever, ou se já sabem, muitos ainda não têm acesso a
livros [...]‖ (p. 140). Assim, quando a história é contada, livros são sugeridos e boas
histórias são indicadas. Portanto a criança tem a oportunidade de ler e conhecer o
mundo da imaginação e da fantasia através da literatura.

METODOLOGIA

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O que contar?
Contar histórias é uma arte e ―como toda arte, a de contar histórias também
possui segredos e técnicas‖ (SILVA, 1997, p. 9). O primeiro passo para se contar uma
história é que se estude o enredo antes de contá-lo, visto que nenhuma história vem
pronta pra ser contada. ―A linguagem escrita, por mais simples e acessível, ainda
requer a adaptação verbal que facilite sua compreensão e a torne mais dinâmica, mais
comunicativa‖ (SILVA, 1997, p. 13).
É necessário atentar-se a faixa etária para a qual se vai contar a história, visto
que Betty Coelho nos alerta em seu livro Contar histórias: uma arte sem idade (1997)
para o fato de que em cada etapa da vida, a criança demonstra interesse e encanto
por determinado tema literário.
Na fase pré-mágica (0 à 3 anos), por exemplo, o interesse é por histórias de
bichos e brinquedos, coisas que rodeiam a vida e o cotidiano dos pequenos. Deste
modo eles conseguem ‗viver‘ a história contada e visualizar o cenário em que ela se
passa. Nesta etapa é preciso contar histórias com muito ritmo e repetição,
preferencialmente, rápidas e dinâmicas, para chamar a atenção da criança.
A próxima fase descrita é a fase mágica (3 à 6 anos), etapa em que a criança
exige narrativas um pouco mais longas. Normalmente, eles pedem que se conte a
mesma história mais de uma vez. A pesquisadora esclarece este fato:

As crianças o exigem por uma forte razão: da primeira vez,


desconhecendo o que irá suceder, a expectativa é muito forte. Nas
seguintes, conhecendo o enredo, já identificadas com algum
personagem, apreciam melhor a trama, podem antecipar as emoções
e torná-las mais ricas, mais duradouras (SILVA, 1997, p. 55).

Após a fase mágica, se encontra a fase escolar (6 à 8 anos), etapa em que os


pequenos possuem um interesse por contos de encantamentos. Basicamente, são os
contos de fadas, que possuem bruxas, princesas, príncipes e fadas. Estas narrativas
são recheadas de magia, com um enredo mais longo e acontecimentos mais
complexos, de acordo com a cognição das crianças.
Silva (1997) afirma que ―nesse momento a maioria dos professores deixa de
contar histórias (se é que contava antes). Eles justificam a atitude alegando que os
meninos da terceira série em diante não se interessam mais‖ (p. 19). É uma pena,
visto que a própria autora esclarece que até um adulto se interessa e se encanta em
ouvir uma boa história, pois ela é um importante alimento para a imaginação e agrada
a todos de modo geral, sem distinção de raça, idade, gênero, classe social ou
circunstâncias de vida (SILVA, 1997, p. 12).

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Dessa maneira, o contador de histórias deve estudar seu público alvo e escolher
uma história que se encaixe nos seus interesses, já que ―a história é um alimento da
imaginação da criança e precisa ser dosada conforme sua estrutura cerebral‖ (SILVA,
1997, p. 14).

Como contar?
Uma vez escolhida à história, o contador deve estudá-la. Memorizar a
essência da narração, adicionar o que achar necessário e adaptar de acordo com a
técnica utilizada. A adaptação da estória se faz necessário quando ela é adaptada da
linguagem escrita para a linguagem oral: ―Se a história é lida, a criança pode suprir a
falta. Mas se é para ser ouvida, cabe ao narrador completar, adaptar [...]‖ (SILVA,
1997, p. 22).
Segundo Betty Coelho (1997) as músicas, palmas e gestos ajudam na
concentração das crianças, portanto estes se mostram um grande caminho para a
conquista dos ouvintes.
Escolhido e estudado, o livro pode ser apresentado de várias formas. Silva
(1997) apresenta algumas: simples narrativa, com o livro, com gravuras, flanelógrafo,
com desenhos e com interferência do narrador.
A simples narrativa é a mais simples e mais profunda, já que ―As emoções se
transmitem pela voz, principal instrumento do narrador‖ (SILVA, p. 50). Ou seja, o
único recurso utilizado nesta técnica é a voz do narrador, que leva as crianças ao
imaginário e a fantasia, encantando, divertindo e entretendo. Essa técnica remete as
contações orais que aconteciam ao redor do fogo nos invernos rigorosos pelas figuras
mais velhas, normalmente avôs ou avós que narravam histórias assustadoras ou
encantadoras (BUSATTO, 2008).
Na contação com o livro, o contador pode utilizar a postura nomeada por Elie
Bajard (2007) de Face a face, onde o mediador fica à frente das crianças, expondo o
livro e narrando os acontecimentos. De acordo com Betty Coelho (1997) narrar a
história não é lê-la para os ouvintes. O narrador já estudou e vai descrevendo os fatos
sem vacilos e titubeios, pois isso prejudica a integridade da narrativa.
Para as crianças pequenas, que ainda não dominam a leitura de textos, a
apresentação de uma história com gravuras é uma saída. Enquanto elas vão ouvindo
e vendo a história, os fatos vão sendo organizados em sua cabeça, identificando a
ideia principal e os acontecimentos secundários, que posteriormente colaborarão para
a compreensão de histórias mais complexas.

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Assim, quando a história é comentada na roda de conversa, a criança


relembra com o educador os acontecimentos e vai interiorizando a ordem dos
acontecimentos, o nome dos personagens, conectando suas vivências com o enredo
literário.

Segurar, por exemplo, um livro (cartonado, de pano, emborrachado,


etc) imitando o modo de ler de um adulto, na condição de bebê e/ou
de criança pequena, garante a ela a possibilidade da formação de
ações mentais. [...] A formação dessas ações internas constitui o
conteúdo principal do desenvolvimento mental da criança: são as
operações de percepção, da razão, da imaginação, da memória, da
atenção, isto é, são os atos psíquicos que permitem à criança
orientar-se no mundo [...] (SOUZA & FEBA, 2013, p. 25).

O flanelógrafo é um lugar (lousa, pedaço de papelão, tripé) onde os


personagens serão posicionados e movimentados no decorrer da contação,
normalmente ele faz o papel de cenário da narração. Ele é feito/encapado com feltro
para a melhor fixação dos elementos da história. Este acessório é uma forma de
apresentação mais dinâmica, que exige da narração e do contador movimentos
constantes e trocas de cenas. Para escolher esta forma de apresentação é preciso se
atentar ao tipo de livro, observar se ele ‗pede‘ para ser contado desta maneira. Se a
obra não possuir ações dos personagens e poucas trocas de cenas, então o livro não
deve ser contado com este recurso (SILVA, 1997).
Existem contos que são complementados por desenhos, que é mais uma das
maneiras de contar histórias. Não foi dito imagens, nem ilustrações mas desenhos.
Enquanto o enredo é descrito, um risco aqui, um rabisco ali e pronto. Forma-se um
desenho que está diretamente relacionado com a narração. Desenhar enquanto se
conta a história aguça a curiosidade das crianças, e pode ser feito em lugares comuns
na escola como lousa, papel metro ou painéis. O importante é chamar a atenção para
a narrativa (SILVA, 1997).
Outra forma interessante de se experimentar a contação é com a interferência
do narrador, que nada mais é do que a participação ativa dos ouvintes. Seja com uma
canção introduzida no meio da história, seja com um trecho repetitivo que os ouvintes
podem repetir com o contador, seja o comando do narrador com um gesto para
realizar alguma ação. O importante neste tipo de apresentação é a participação ativa
do ouvinte.
Então, o ato de contar histórias não é tão simples quanto parece já que é
preciso uma seleção de histórias, inicialmente, considerando as características
cognitivas, emocionais e sociais do ouvinte, bem como sua idade e,
consequentemente seu interesse por determinados temas (SILVA, 1997). Há várias
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formas de se apresentar um livro, levando em conta também os recursos disponíveis,


o lugar de contação e o público alvo. Assim, realizar uma contação de histórias
significativa e de qualidade se mostra complexo e exige do contador estudo e
conhecimento da área.
Após ler, e escolher uma história para se contar, é preciso estudá-la. Captar
sua essência, entendê-la e interiorizar um pouco dela, adicionando traços de sua
personalidade nela.

A literatura oral sofreu alterações, como acréscimo de informações


relativas à época e aos valores da comunidade onde era narrada, à
omissão de detalhes que para aquele narrador eram insignificantes.
Não podemos esquecer que o contador de histórias sempre incluía
elementos muito pessoais ao conto, e com isso o transformava em
matéria prima viva adaptada às necessidades dos seus ouvintes
(BUSATTO, 2008, p. 22).

Compartilhando um estado de união e compatibilidade, ―o contador de


histórias empresta seu corpo, sua voz e seus afetos ao texto que ele narra, e o texto
deixa de ser signo para se tornar significado‖ (BUSATO, 2008, p. 9). Desta forma, a
partir do momento que o contador conta uma história, ele se apropria dela, ele vive
ela, ele faz com que ela se torne importante e significativa.

POR QUE CONTAR?

O dever da escola, segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais da


Educação Infantil (BRASIL, 1999), os Referenciais Curriculares Nacionais da
Educação Infantil (BRASIL, 1998), os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL,
1997) é formar o cidadão crítico e participativo, capaz de exercer sua cidadania
quando adulto e se tornar ator de sua própria história e construtor de seu destino.
A literatura colabora diretamente para esta formação quando Vânia Dorme
(2014) esclarece que ―as histórias preparam a estrada para um pensamento coerente,
preparam para pensar, e pensar é um ato que envolve o senso crítico. Assim, elas são
grandes auxiliares na formação do senso crítico.‖ (p. 3). Portanto, elas ajudam o
desenvolvimento da criticidade e autonomia, sendo úteis em todas as etapas do
ensino básico.
ÉlieBajard (2007) pontua que o ser humano necessita da ficção para a vida.
Seja ela retirada de livros, filmes ou novelas. A literatura infantil, como expõe Andréia
Siqueira (2013), não foi feita somente para crianças. Ela foi escrita para quem quiser

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ler, quem gosta e quem se diverte. O importante é ler livros e se desprender um pouco
da televisão.

Segundo Aragão (2003), dentre outros, a literatura,


independentemente de ser infantil, infanto-juvenil ou quaisquer outros
adjetivos que receba, é, antes de tudo arte e deleite. Sendo assim, o
termo infantil associado à literatura não significa que ela tenha sido
feita necessariamente para crianças. Esse autor acrescenta que a
literatura infantil acaba sendo aquela que corresponde de alguma
forma, aos anseios do leitor e que se identifique com ele (ARAGÃO,
2003 apud SIQUEIRA, 2013, p. 8).

O interesse da criança, na literatura infantil, parte do que ela já conhece, dos


seus conhecimentos prévios para então chegar ao aprendizado. Portanto, os temas
dos livros têm de estar diretamente ligados ao cotidiano das crianças, como explica
Siqueira (2013) fundamentada em Bruno Bettelheim (1996):

Segundo Bettelheim (1996), para que uma estória realmente prenda a


atenção da criança, deve entretê-la e despertar sua curiosidade. Mas
para enriquecer sua vida, deve estimular-lhe a imaginação: ajudá-la a
desenvolver seu intelecto e a tornar claras suas emoções; estar
harmonizada com suas ansiedades e aspirações; reconhecer
plenamente suas dificuldades e, ao mesmo tempo, sugerir soluções
para os problemas que a perturbam (BETTELHEIM, 1996 apud
SIQUEIRA, 2013, p. 10).

Portanto, é na literatura que o infante busca o divertimento, o entendimento


no mundo como um todo e a diversão:

―Ouvir e ler histórias é entrar em um mundo imaginário, interessante e


cheio de magia, que diverte e ensina. É na exploração da fantasia e
da imaginação que se cria uma relação prazerosa da criança com os
livros fortalecendo a interação entre texto e leitor‖ (SIQUEIRA, 2013,
p. 4).

Ou seja, a relação da criança com o livro deve ser uma experiência prazerosa
e criativa. Textos lidos obrigatoriamente trazem a falsa impressão de estimulação da
leitura. Na verdade ocorre o oposto, já que o indivíduo não gosta, mas lê porque se vê
obrigado e acaba concluindo, com sua experiência, que a leitura é chata, monótona e
sem graça.

Quando lemos um conto de fadas somos atingidos por uma áurea de


fantasia que nos transporta para um mundo de imaginação, envolto
em uma névoa que embora indescritível é suficiente para justificar um
ambiente onde tudo é possível, não necessitando de muita explicação
(DOHME, 2014, p. 3).

Quando essa leitura ocorre de forma impositiva, não espontânea, não há


mágica, não há prazer, não há aprendizado.

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Uma forma de efetivar a participação das crianças acerca da história contada


é relacioná-la ao divertimento através da dramatização. Com o uso deste recurso eles
terão que entender os personagens, compreender o enredo, incorporar ações que não
estão no livro e entender as inferências contidas nas entrelinhas.

A participação em atividades teatrais dará oportunidade à criança de


um crescimento pessoal e o relacionamento entre o individual e o
coletivo, permitirá a vivência de situações importantes para o seu
convívio social, o exercício de direitos e deveres, a exploração da
camaradagem, o respeito às diferenças, dentre outros (DOHME,
2014, p. 4).

Talvez através da dramatização as crianças compreendam que livros contém


um universo totalmente desconhecido e mágico, com cenários diferentes,
personagens desconhecidos e problemas aparentemente sem solução. A única coisa
que um livro espera é um leitor, capaz de acompanhar e viver o desenrolar da história
com prazer.

E A HISTÓRIA COMEÇA ASSIM... BREVE RELATO DE EXPERIÊNCIA

Durante o ano de 2015 foramcontadas histórias para crianças de uma escola


municipal da rede pública do município de Martinópolis. A contação acontecia na
biblioteca, uma vez durante a semana, no horário da troca de livros e somente no
período da manhã. Além das técnicas citadas pela Betty Coelho (1997), foram
utilizados outros recursos como tapetes, caixas literárias, teatro de fantoches, histórias
ampliadas e multimídia para adaptar histórias ou torná-las mais atraentes.
Quem realizava a narrativa era uma das autoras que se propôs ao serviço.
Ela escolhia uma história, adaptava para a oralidade e contava para as crianças. Era
recebida uma turma por vez na biblioteca para a apresentação e, por vezes, a
professora acompanhava.
Normalmente, ela ocorria antes da retirada dos livros para instigar as crianças
a pegar os livros contados, se interessar mais pela leitura e desfrutar do paraíso que é
a biblioteca escolar. Por ser algo rotineiro e semanal, desde os primeiros anos eles
não consideram o material contido na biblioteca como algo de valor. Muitas vezes era
observado e constatado que nem manusear o livro com cuidado eles sabiam, quanto
mais ler autonomamente e criticamente.
Após a contação, eram realizados comentários críticos sobre a história, eram
respondidos questionamentos por parte das crianças e o encontro encerrava-se com a
retirada dos livros. Durante muitas vezes as professoras admiravam e elogiavam o
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trabalho, mas sempre com os comentários de que quando se está dentro da sala de
aula não era possível realizar esse tipo de trabalho pontual e planejado.
Durante um ano inteiro essas crianças foram alimentadas com histórias de
encantamento, aventura e mistério e era possível ver nos olhos delas que não
esperavam a hora de retornar a biblioteca para escutar uma história.
Como a alfabetização é um trabalho que se constrói diariamente e com
calma, as professoras dos primeiros anos, e algumas do segundo ano que aderiram a
metodologia, alegavam não ir à biblioteca porque seus alunos não tinham tempo para
isso, ou que eles não apresentavam atitudes leitoras, se mostrando desinteressados e
dispersos ao objetivo do ambiente, ou ainda que não era preciso levá-los à biblioteca,
pois eles nem sabiam ler.
De acordo com Souza e Feba (2013), essa opinião se mostra errada, já que a
criança não realiza a leitura convencional, mas consegue fazer a leitura de imagem e
de mundo, relacionando as ilustrações e imagens ao seu cotidiano.
Assim, a contadora se propôs a realizar a narração na sala, pois seria rápida,
não dispersaria tanto, e as crianças não ficariam sem ouvir a história da semana que
seria comentada no intervalo pelos colegas de outros anos. As professoras aceitaram
e não se mostraram resistentes, deixando que fosse tomado pouco tempo de sua aula
para a diversão e entretenimento das crianças.
Nesse contexto foram realizadas contações durante um ano letivo inteiro e os
resultados serão comentados a seguir.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Foi constatado que após um ano de bagagem literária contada para as


crianças elas se mostraram mais interessadas nos livros disponíveis da biblioteca.
Antes elas só iam ao ambiente em dupla ou trio, trocava o livro e voltava para sua
aula. Com as contações acontecendo neste ambiente, a contadora aproveitava o
cenário para ressaltar a importância de ler, de viajar no mundo da leitura e de
conhecer vários personagens legais sem sair de casa.
A cada história contada, o livro era mostrado e disponibilizado na estante para
empréstimo. As crianças chegaram a brigar para ver quem iria pegá-lo primeiro. Além
disso, eles começaram a trazer livros de casa e comentar com a contadora. Ela ouvia
o resumo da história que eles falavam com tanto interesse e por vezes pedia o livro
para ler e conhecer o tipo de literatura presente na casa dos pequenos.

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Muitos livros eram aqueles de paradidáticos em quatro páginas, com um


resumo pobre e uma ilustração computadorizada, mas o clássico poderia ser salvo se
fosse buscar em sua fonte original. Era apresentado as crianças versões diferentes da
mesma história, que após a leitura eles sempre comentavam o que havia de
semelhante e diferente em cada história.
O brilho nos olhos deles era o que mais encantava. Podia ser visto de longe
que naquele dia, especialmente naquele, haveria visita à biblioteca e isso significava
que haveria novas histórias. A retirada de livros aumentou substancialmente na escola
e nas horas de entrada e recreio era possível que eles visitassem o espaço da
biblioteca para ler algum livro de seu interesse.
A gestão se mostrou surpresa com a atitude da estagiária, já que não era sua
função, mas deixou que seus conhecimentos fossem utilizados em algo que ela
gostasse e que traria benefícios a escola. Ao final do ano letivo, foi possível perceber o
resultado desse trabalho, pois as crianças daquele período eram outras, com muito
mais entusiasmo pela leitura e frequentadoras do espaço da biblioteca escolar.
Portanto, além de despertar a curiosidade e o interesse em ler e ouvir
histórias, a retirada de livros aumentou e as professoras perceberam que não
precisava de muito para elas fazerem algo semelhante, bastava elas quererem e
estarem dispostas a modificar sua forma de pensar, sua prática e o cotidiano que as
crianças possuíam sem encantamentos e imaginação.

REFERÊNCIAS

BAJARD, Élie. Da escuta de textos à leitura. São Paulo: Cortez, 2007.

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1996. 11 ed.

BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Conselho Nacional de Educação.


Diretrizes curriculares nacionais para a Educação Infantil; Resolução n. 1, de
7/4/1999, Brasília: MEC, 1999

BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação


Fundamental. Parâmetros curricularesnacionais. Brasília: MEC/SEF, 1997.

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BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação


Fundamental. Referencial curricular nacional para a Educação Infantil. Brasília:
MEC/ SEF, 1998.

BUSATTO, Cléo. Contar e encantar: pequenos segredos da narrativa. Petrópolis, RJ:


Vozes, 2008. 5ª ed.

DOHME, Vania D‘Angelo. Atividades lúdicas na educação – o caminho de tijolos


amarelos do aprendizado. Texto integrante dos Anais do XVII Encontro Regional de
História – o lugar da história. ANPUH/SP – UNICAMP. Campinas, 6 a 10 set de 2014.
CD-ROM.

GALVÃO, Ana Maria de Oliveira; DI PIERRO, Maria Clara. Preconceito contra o


analfabeto. São Paulo: Cortez, 2007.

SIQUEIRA, Andreia Carla Bono de. O mundo imaginário da criança. Laurentino,


Santa Catarina: Secretaria da Educação, Cultura e Esportes, 2013.

SILVA, Maria Betty Coelho. Contar histórias: Uma arte sem idade. São Paulo: Ática,
1997.

SOUZA, Renata Junqueira de; FEBA, Berta Lúcia Tagliari (ORG.) Ações para a
formação do leitor literário: da teoria à prática. Assis, São Paulo: Storbem Gráfica e
Editora, 2013.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

MEDIAÇÃO LITERÁRIA EM BIBLIOTECAS INFANTIS

Sueli Bortolin, UEL


Clara Duarte Coelho, UEL, CNPQ
Leda Maria Araújo, Biblioteca Pública Municipal de Londrina

Introdução
Entre as atribuições de uma biblioteca infantil pode-se apontar a de formar
leitores plurais, leitores interessados na literatura de diferentes gêneros. O enfoque
dessa comunicação é a mediação da literatura para crianças surdas e cegas no
espaço da biblioteca infantil.
Nas últimas décadas foram realizadas, por pesquisadores de diferentes
áreas, incontáveis pesquisas e publicações a respeito da inclusão das crianças com
necessidades especiais. Porém, pouco se tem investigado a respeito da formação de
acervos que permitem aos referidos leitores lerem literatura.
O senso comum pode levar as pessoas a indagar: qual a necessidade de um
acervo especializado para os leitores com necessidades especiais? A resposta para
essa questão é que o acervo tradicional necessita ser ampliado com livros acessíveis,
além do acréscimo de suportes que possibilitem a leitura autônoma para os surdos e
cegos. Para esses leitores é fundamental uma ação mais efetiva no sentido de
aparelhar a biblioteca infantil, visando aproximar o leitor de múltiplos textos.
Além disso, é necessário que a biblioteca infantil tenha em seu quadro de
funcionários profissionais que façam a leitura compartilhada, permitindo trocas e
influenciando outros leitores.
Neste sentido, é necessário refletir a respeito do material que compõe ou
deveria compor a biblioteca infantil para que ela realmente seja inclusiva. Dentre esses
materiais estão o livro braile, o audiolivro, o livro digital e o livro sensorial, bem como
as tecnologias que permitem o acesso aos textos.
Para tanto, esse trabalho foi assim estruturado: procedimentos
metodológicos; biblioteca infantil, seu histórico, conceitos e objetivos; mediação da
1871

literatura na biblioteca infantil; acervos inclusivos e acervo inclusivo específico para o


leitor cego e para o leitor surdo. Finalmente as considerações finais.

Procedimentos Metodológicos
Nos dias atuais as áreas de conhecimento estão se preocupando em
desenvolver pesquisas variadas e com recortes multidisciplinares. Isso torna também
múltiplos os procedimentos metodológicos, bem com seus instrumentos de coleta de
dados. Utilizou-se neste trabalho um método constantemente testado, que é o
bibliográfico.
Parece-nos ser necessário esclarecer que a pesquisa bibliográfica diferencia-
se da revisão bibliográfica, que é uma obrigação de todo pesquisador, em outras
palavras, é quando os pesquisadores ―bebem na fonte‖ de outros pesquisadores para
fundamentar teoricamente sua investigação. Quanto à pesquisa bibliográfica,
―Compreende a busca e a análise sistemática da informação, contida em um acervo
documental bibliográfico, cujos parâmetros são cuidadosamente especificados e
segue procedimentos adequados aos objetivos e norteadores da mesma.‖
(GERALDINE PORTO WITTER, 1990, p. 24).
A justificativa para essa decisão é que, em especial, quando se trata de tema
pouco abordado buscam-se teóricos para o aprofundamento de uma questão,
permitindo novas reflexões e argumentações. No entanto, isto não pode ser de forma
restritiva a uma área e sim realizado de maneira multidisciplinar.
Na construção dessa comunicação nos apropriamos de documentos da
Biblioteconomia, Letras e Educação, áreas ―irmãs‖ que devem conviver em uma
excelente relação. Para tanto, os temas apropriados das publicações foram: biblioteca
infantil, mediação da literatura, biblioteca acessível e acervo inclusivo.

Biblioteca Infantil

Este gênero de biblioteca está presente no Brasil desde a década de 20.


Segundo Yvette Zietlow Duro (1979), a primeira biblioteca infantil brasileira foi
idealizada pela escritora Cecília Meireles no Rio de Janeiro. Posteriormente, em 1933
Lenyra Camargo Fraccaroli instala uma biblioteca infantil no Instituto Caetano de
Campos em São Paulo (CARMEM DE FARIAS PANET, 1988, p. 21), biblioteca esta
que foi o início da criação da Biblioteca da Vila Buarque (mais tarde Monteiro Lobato)
e de outras que compõem, até hoje, o Sistema de Biblioteca Infantojuvenil da capital
paulista; sendo uma inspiração para novas bibliotecas infantis em terras brasileiras.
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Depois desta foram criadas, por exemplo: Biblioteca Monteiro Lobato de


Salvador - Bahia (1950); Prof. Luiz de Bessa de Belo Horizonte – Minas Gerais (1954);
Biblioteca Lucilia Minssen de Porto Alegre – Rio Grande do Sul (1955); Biblioteca
104/304 em Brasília – DF (1970); Maria Mazzetti na Casa de Rui Barbosa (1970).
Além destas, conforme Panet (1988, p. 22-23), na década de 70/80 instalaram-se no
Brasil as bibliotecas infantis do Recife (1972 e 1981), de Sergipe (1974), de Lorena -
SP e de João Pessoa (1981). Na cidade de Londrina – Paraná, segundo pesquisa de
Araújo (2014, p. 204) a biblioteca infantil ―[...] foi criada pela Lei n o 3.757 de 14 de
dezembro de 1984 [...]‖.
Para este gênero de biblioteca existem diferentes conceitos e objetivos.
Utilizando-se uma linha temporal, no quadro 1, apresenta-se alguns desses:

Quadro 1 – Conceitos de Biblioteca Infantil


Conceitos Objetivos

Década de 1970 Década de 1970

―[...] um centro cultural – recreativo de - Fomentar o acesso às obras;


alta significação na vida da cidade, já que - Promover serviços de extensão;
se propõe a ajudar à formação intelectual - Proporcionar: entretenimento,
das crianças e jovens.‖ (TAVARES, 1970, informação e instrução.
p.11) (MULLER, 1978)

―[...] lectores de edad pre-escolar y - Facilitar o uso da biblioteca;


escolar, esto es, hasta los doce - Apoio à seleção do material de leitura;
aproximadamente. [visando] [...] - Estimular o prazer da leitura;
despertar y cultivar en el niño el gusto por - Desenvolver ao máximo suas
la lectura y, sobre todo, de la lectura de habilidades pessoais;
carácter recreativo.‖ (BUONOCORE, - Colaborar com as instituições que
1976, p. 78) promovem o bem estar da criança.
(LITTON, 1973)
―[...] es un centro creado exclusivamente
para lectores infantiles, al que acuden los
niños para poder entregarse a la lectura
de los libros que más le agraden o
interesen [...]‖. (MÜLLER, 1978, p. 7)

Década de 1980 Década de 1980

―[...] um lugar onde se privilegie a palavra, - Estimular o hábito de ler;


a expressão pessoal e, sobretudo, - Apoiar nos trabalhos de casa;
individual. [...] Deve ser sempre um lugar - Orientar as pesquisas;
de integração entre crianças, adultos e - Desenvolver a responsabilidade.
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aqueles que estão entre eles [...]‖. (FRACCAROLI, 1982)


(LEITURA, 1989, p. 4)
- Despertar o gosto pelos livros;
- Ensinar a utilização adequada dos
livros;
- Motivar a freqüência à biblioteca;
- Proporcionar o lazer cultural;
- Possibilitar a exteriorização da
criatividade;
- Apoiar na educação formal;
- Desenvolver o comportamento para a
leitura;
- Promover o uso dos documentos.
(ALVES, 1989)

Década de 1990 Década de 1990

―[...] devem estar mais voltadas para a - Disponibilizar o acervo;


recreação [...] [e] podem proporcionar - Desenvolver o interesse pela
atividades como: organização do clube informação;
de leitura, escolinhas de arte, exposições, - Desenvolver habilidades para pesquisa;
dramatizações, etc..‖. (SILVA; ARAÚJO, - Disponibilizar atividades culturais para
1997, p. 21) serem melhores leitores.
(COSTA e SILVA, 1994)

- Colaborar para a formação do indivíduo;


- Estimular a percepção de sua
cidadania.
(CUNHA, 1994)

Década de 2000 Década de 2000

―A biblioteca infantil é um espaço lúdico ―[...] despertar o gosto pela leitura, o


por excelência, pois é o lugar do brincar espírito, a criatividade, o raciocínio lógico,
com os livros e com as letras, do faz de proporcionar conhecimento, ampliar
conta, do contar e do ouvir histórias.‖ conceitos e visão de mundo, desenvolver
(CAMPOS, 2014) valores, assim como melhor conhecer,
promover e defender a Língua
Portuguesa, estimulando a consciência
da identidade nacional.‖
(MELO; NEVES, 2005)

Fonte: Adaptado de Bortolin (2001, p. 39-42).

A partir desse panorama é possível inferir que a biblioteca infantil teve, no


decorrer de sua história, a função cultural, educacional e recreativa, sendo um espaço
de liberdade para as crianças que perderam lugares de brincar, por exemplo, ruas e
quintais.
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Em uma concepção mais atual, pode-se afirmar que uma biblioteca infantil é
um espaço privilegiado para diversas mediações (informacionais e literárias), em
variados suportes, mídias e linguagens. Um local que tem como missão permitir que
todos os leitores (sem discriminação) se apropriem de maneira igualitária das culturas,
das narrativas ficcionais e históricas da comunidade a que pertencem.

Mediação da literatura na biblioteca infantil

A leitura é a principal forma para inserção do indivíduo nas sociedades


grafocêntricas, entretanto, pode tornar-se instrumento de dominação ou exclusão para
quem por algum motivo não pode ter acesso ao mundo letrado. ―Em todas as
sociedades letradas, os que têm acesso à escrita podem desenvolver quatro
habilidades no uso da língua: falar e escrever, ouvir e ler‖ (LUIZ ANTONIO
MARCUSCHI, 1999, p. 38, grifo do autor).
Ao se tratar de pessoas com necessidades especiais essas habilidades
tornam-se prejudicadas em virtude das barreiras impostas pela deficiência e falta de
acessibilidade aos suportes de leitura, sendo atribuída uma fragilidade em relação às
suas potencialidades cognitivas não condizentes com a realidade, e exigindo um
agente que interfira mediando esse contato para a posterior produção de sentidos.
A mediação da leitura é a interferência de um ator externo para facilitar a
aproximação entre texto e leitor, de acordo com Barros (2006, p. 17) ―[...] é fazer fluir a
indicação ou o próprio material de leitura até o destinário-alvo, eficiente eficazmente,
formando leitores‖. Conforme ressalta Arena (2011, p. 16) o mediador exerce
influência positiva no ato de ler. Continuando a descrição do mediador, o autor afirma:

[...] diante do aprendiz que culturalmente se apropria dos modos de


ler, ensina como lidar com os conhecimentos já organizados para
levá-los ao texto durante a ação de ler e, simultaneamente, ensina a
imprescindível ação intelectual de aprender a fazer perguntas, a
responder ao texto e a procurar nele as respostas às perguntas
formuladas.

Na infância a mediação contribui para despertar o interesse pela leitura, que é


guiada por um leitor com maior domínio. ―Os relatos de vida revelam a importância das
experiências precoces, o papel decisivo representado pelos mediadores, a força de
atração das leituras proibidas, a irreversibilidade das iniciações.‖ (CHARTIER, 2003, p.
37).

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A utilização do texto literário, principalmente para crianças, estimula a


imaginação, possibilitando por meio do lúdico o questionamento de padrões
estabelecidos. ―A leitura literária democratiza o ser humano porque traz para seu
universo o estrangeiro, o desigual, o excluído, e assim nos torna menos
preconceituosos, menos alheios às diferenças [...]‖ (SOARES, 2004, p. 32).
Assim, a literatura infantil é ―[...] um recurso importante para a evolução
psicossocial de crianças cegas, dando-lhes a oportunidade em desenvolver suas
aptidões e seu intelecto.‖ (PEREIRA, 2000, p. 1). Também pode ser mediada com
crianças com outros tipos de deficiências. Mediar o contato com as narrativas literárias
é tarefa de muita responsabilidade, pois a curiosidade nessa faixa etária é uma das
principais características. Passar a emoção de uma história sem que a criança tenha
possibilidade de ver ou ouvir requer a utilização de livros que despertem outros
sentidos.
A biblioteca é o espaço onde essa mediação pode ocorrer de forma
substancial, entretanto ainda é inexistente na maioria delas um acervo inclusivo com
tecnologias de acessibilidade e profissionais capacitados para utilizar esse aparato. É
preciso repensar as mediações visando às diferenças de recepção, pois a contação de
histórias para o leitor surdo precisa da língua de sinais, assim como para o leitor cego
a produção textual, após a mediação, necessita da escrita Braille. A respeito dos
acervos inclusivos tratar-se-á na próxima seção.

Acervos Inclusivos

Abordando a biblioteca infantil, Walda de Andrade Antunes e Gildete de


Albuquerque Cavalcanti (1989, p. 14) afirmam que: ―Seu acervo é formado por livros
de literatura infantil e infantojuvenil. Possui também obras de referência como
dicionários, enciclopédias, atlas, etc. [...]‖. Avalia-se que de 1989 para os dias atuais
houve muitas mudanças (pelo menos na teoria) e a composição dos acervos não se
limita às obras impressas e nem às configurações tradicionais.
Acredita-se ser necessário destacar que neste trabalho optou-se em utilizar a
expressão acervo inclusivo, por considerar que acervo acessível pode estar
relacionado apenas àquele que não está ao alcance das mãos, por exemplo, acervo
fechado ou livros de maior valor financeiro, que são colocados em estantes fora do
alcance das crianças para conservá-los.
Uma comprovação da necessidade de mudanças de paradigmas é a
recomendação existente no documento Formação e Desenvolvimento de acervos em
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bibliotecas públicas: orientações gerais,que no item Acessibilidade inclui o seguinte


discurso: ―[...] respeitar o mínimo [de] 5% de materiais de leitura em formato acessível
(livros em Braille, áudio-livros, livros digitais, entre outros) [...]‖355 (SISTEMA..., 2017).
Os esforços na seleção e aquisição de obras para uma biblioteca com parcos
recursos são desafios a serem enfrentados, mas não há mais como descuidar dos
leitores com necessidades especiais, afinal almejamos um país sem desigualdades. A
responsabilidade em construir um acervo que atenda todas as manifestações culturais,
os gêneros e as etnias, entre outras questões, sempre preocupou os bibliotecários,
mas na prática ainda há poucas ações nesse sentido.
Na atualidade percebe-se um empenho por parte da maioria dos profissionais
do livro em colocar à disposição do leitor infantil obras diversificadas e de qualidade
literária, tanto nacionais quanto estrangeiras. No entanto, em geral, os bibliotecários
têm dificuldade de identificação e compra de suportes que atendam às necessidades
do leitor cego e surdo. Como exceção, o documento Fortalecimento de Bibliotecas
Acessíveis e Inclusivas: manual orientador aponta que―[...] há editoras que se
especializaram na produção de livros em formatos acessíveis, tais como a Editora
Arara Azul (editora-arara-azul.com.br/site) e Editora WVA (wvaeditora.com.br)‖.
(FORTALECIMENTO..., 2016).
Estas iniciativas possibilitam ao bibliotecário transformar, realmente, as
bibliotecas infantis em uma biblioteca inclusiva, receptiva e acolhedora.

Acervo Inclusivo para o Leitor cego

Tendo como base Edson Luiz Defendi (2011), Christoffer Moacir Sabatke
(2017, p. 43) constata em sua pesquisa que:

[...] além dos livros em braille, fazem parte também: os livros com
letras ampliadas, voltados para pessoas com baixa visão; livros
tinta/braille, que unem a impressão de letras ampliadas e o braille em
um mesmo material, sendo indicado tanto para cegos, quanto para
pessoas com baixa visão; livros falados, que são compostos por
arquivos de som no formato MP3, sendo estruturados de uma forma
que facilite a navegação do usuário; e o livro digital acessível, que
oferece várias ferramentas que possibilitam o usuário consultar,
pesquisar e navegar pelo conteúdo de uma forma mais rápida e
eficaz do que em livros em braille tradicionais.

355
Evidentemente respeitando a recomendação da ABNT – NBR 9050 no momento da
adaptaçãodas obras.
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Para Sabatke (2017) existem outros livros acessíveis: o tátil e o sensorial. O


livro tátil não é elaborado exclusivamente para as crianças cegas, é composto de
elementos que, ao tocá-los, o leitor sente aspereza, maciez etc., ou ainda pode abrir e
fechar um zíper, amarrar um cadarço, fazer um laço. Ele difere do livro sensorial que
―[...] por sua vez, além de utilizar os métodos tradicionais de um livro comum (escrita e
imagens impressas) traz [...] figuras em alto relevo e, em alguns casos, com aromas
específicos.‖ (SABATKE, 2017, p. 45). Para as crianças cegas em cada página
acrescenta-se a escrita braile.
Quanto aos equipamentos, há no mercado uma infinidade de suportes que
permitem a leitura, entre eles os recursos óticos, os óculos especiais, lupas de
diferentes formatos, máquinas de datilografia braile, réguas de leitura, impressoras e
escâner acoplado ao computador.
Ainda dentre os equipamentos de tecnologias assistivas existem variados
softwares. Destaca-se aqui o MecDAISY, que permite a leitura de livros digitais. O
programa foi desenvolvido por meio de uma parceria entre o Ministério da Educação e
o Núcleo de Computação Eletrônica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e está
disponível gratuitamente na web.
Deve-se evidenciar aqui a contribuição da Fundação Dorina Nowill para a
leitura e educação do sujeito que tem perda total ou parcial da visão. Dentre os
projetos realizados por esta Fundação pode-se citar a Rede de Leitura Inclusiva e a
Dorinateca, que disponibiliza livros acessíveis (livros em braile, livros falados, tiras de
HQ com descrição).
Evidentemente que pesquisas científicas, projetos e tecnologias acessíveis
estão entre as preocupações das instituições e empresas, porém, Layara Feifer
Calixto Seco (2017, p. 13) adverte que a igualdade de oportunidades requer ainda
muito empenho, pois:

Para execução de alguma peça musical (instrumental ou vocal)


oacessoàinformaçãosedáprincipalmentepormeiodaleituradepartituras
e,nocasodos musicistas
deficientesvisuais,asdificuldadesencontradassereferemàescassezdep
artiturastranscritasparaosistema
Brailleeàfaltadeiniciativasafavordadisseminaçãodanotaçãomusicalpar
apessoascegas,prejudicandoodesenvolvimentoeducacionaleculturald
essesindivíduos.

Dessa forma, ao mediador/bibliotecário resta ultrapassar as barreiras


que ainda existem para a aquisição de obras, equipamentos acessíveis, bem

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como buscar a composição de grupos (funcionários e voluntários) para a


criação de recursos que permitam a leitura pelos sujeitos cegos.

Acervo Inclusivo para o Leitor surdo

Ao abordar os leitores surdos, vale destacar que nessa comunicação


não se abordou a escrita dos surdos, apenas a leitura dos mesmos. Porém, os
profissionais que atuam na biblioteca infantil necessitam ter conhecimento do
processo de escrita dos mesmos, que é diferenciado daquele do sujeito
ouvinte. De maneira sumarizada vale destacar, por exemplo, que em uma
oficina de produção de textos devem-se considerar possíveis ausências ou
troca de artigos, elementos de ligação, gênero, verbos entre fatores
gramaticais. Sueli Fernandes (2013, p. 07), em seu artigo intitulado Avaliação
em língua portuguesa para alunos surdos, cita a seguinte experiência de
escrita:

Jardim Botânico Aniversário de Curitiba


Eu gosto bom ele Jardim Botânico.
Eu foi vi ele bom rosa muito Jardim Botânico.
Eu fui passear vi muito frboi bom no cor.
Nós vamos e amigos na foi eu fui sim.
Eu gosto bom ele frboi. Ele muito passirios.
Eu casado pé no calhor.
Eu comei um coca–cola de pissar.
Eu viu muito rio.
babaita amivisado bom Curitiba 305 anos.

No entanto, a dificuldade da comunicação escrita está sendo superada pela


utilização do signwriting em mais de 35 países, entre eles o Brasil. Segundo artigo
publicado no Wordpress.com em 2010, signwriting ―[...] é um sistema de escrita para
escrever línguas de sinais. Essa escrita expressa as configurações de mãos, os
movimentos, as expressões faciais e os pontos de articulação das línguas de sinais.‖
(ESCRITA..., 2010b).
Esse sistema já está presente em obras infantis, e algumas delas foram
publicadas pela Universidade Luterana do Brasil, por exemplo: Rapunzel surda e
Cinderela surda, de autoria de Carolina Hessel Silveira Fabiano Rosa e Lodenir
Becker Karnoop. (ESCRITA..., 2010a).

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Essas e outras iniciativas precisam ser incentivadas e divulgadas para que os


familiares, os profissionais e demais cidadãos possam promover a equiparação de
oportunidades de comunicação e uso da informação.

Considerações Finais

Ao realizar esse estudo percebeu-se que, apesar da quantidade de pesquisas


na área de Biblioteconomia acerca da inclusão comunicacional de pessoas com
necessidades especiais, o foco na mediação da literatura em biblioteca infantil
inexiste.
Em consequência disso, a pesquisa limitou-se a apresentar o surgimento das
bibliotecas infantis no Brasil, mudanças de seus conceitos e objetivos ao longo do
tempo, a demarcar a importância da biblioteca infantil ser inclusiva, a apontar a
dificuldade em adquirir acervos inclusivos. Mas mais do que isso pretende atribuir aos
bibliotecários a responsabilidade de reunir esforços para a execução de projetos que
venham oferecer acervos e equipamentos que satisfaçam as necessidades das
crianças cegas e surdas, e deem a elas um atendimento igualitário.
Além disso, os profissionais que atuam como mediadores na biblioteca infantil
necessitam buscar capacitação especializada para atender esse público, utilizando
estratégias e recursos para uma ação efetiva, aproximando o leitor do texto, formando
um leitor crítico.
Para que a biblioteca infantil exerça o seu papel de inclusão é necessário que
os gestores do espaço tenham consciência da importância dessa missão e atuem de
forma a beneficiar os diferentes grupos.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

NAS ENTRELINHAS DA LEITURA: O QUE LEMOS? COMO


LEMOS? O QUE SE ENSINA COM PROJETOS DE LEITURA?

Ilsa do Carmo Vieira Goulart, UFLA, Eixo Temático 8 – Formação de leitores e


mediação da leitura
Dalva de Souza Lobo, UFLA, Eixo Temático 8 – Formação de leitores e
mediação da leitura

Considerações Iniciais

O homem nasceu para aprender tanto a vida lhe permita


Guimarães Rosa (2001)

Tomando emprestada a epígrafe de Riobaldo, personagem de Grande Sertão:


Veredas, de João Guimarães Rosa, podemos dizer que a vida cabe exatamente
naquilo que aprendemos, ou seja, naquilo que lemos de nós, do outro, do mundo ou
da realidade que nos cerca. O ato de ler é um movimento intenso e constante na
nossa vida, entendendo que a leitura não se limita em decodificação de palavras, mas
amplia-se na capacidade de criar diálogos com o mundo lido, que produz
aprendizagens múltiplas para além delas. Mas é preciso ler nas entrelinhas por onde
escapam as palavras não ditas. É dessa forma que a leitura literária nos instiga,
abrindo novas travessias àqueles que por ela se aventuram. Então, cabem aqui
algumas perguntas para percorrer essas travessias: O que lemos? Como lemos? O
que se ensina em projetos de leitura?
Nessas inquietações pretendemos compreender a articulação entre a leitura
literária, a formação leitora e como se configura no processo de formação do leitor
literário, a mediação por parte dos professores. Para tanto, apresentaremos o início de
uma pesquisa com professores que desenvolvem projetos de leitura em escolas da
rede municipal de uma cidade do Sul Minas Gerais. A partir de entrevistas realizadas
com os professores do ensino fundamental I, que atuam nas salas de leitura em
escolas municipais, um dos objetivos visa refletir sobre o espaço denominado ―sala de
1883

leitura‖, examinando de que forma vem sendo utilizado pela escola e pelos docentes
em seus projetos e como nele se configuram as experiências de leitura.
Para refletir sobre nossa inquietação, dialogamos com alguns autores que
discutem concepções de leitura, leitura literária, formação leitora, enunciação
discursiva e leitura como prática cultural, na perspectiva Jean Marie Goulemot e Roger
Chartier. Entre os elencados para tal reflexão, destacamos Rildo Cosson, Mikhail
Bakhtin, e Paul Zumthor, além de Paulo Freire, em interlocução com outros autores,
para refletir sobre o papel do docente numa perspectiva crítica e dialógica.
Sobre a leitura, Paulo Freire (2006, p.13) nos convida poeticamente a adentrar
sua própria história de infância quando ―[...] ―Os textos‖, as ―palavras‖, as ―letras‖
daquele contexto se encarnavam também no assobio do vento, nas nuvens do céu,
nas suas cores, nos seus movimentos [...]‖. Dessa forma, o educador nos mostra o
quanto a leitura implica uma relação direta com as coisas e o modo como se
apresentam no dia a dia, ou seja, descreve que ―[...] a leitura de mundo precede
sempre a leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitura daquele‖.
(FREIRE, 2006, p.20).
Podemos inferir, então, que não há via de mão única quando se trata do ato de
ler, no qual se inscreve a história individual e coletiva dos sujeitos, por isso ler significa
compreender que no código linguístico estão circunscritas diferentes visões de mundo,
ideologias, intencionalidades, motivo pelo qual diferentes sentidos são atribuídos à
leitura. Obviamente não se trata apenas de leituras realizadas por diferentes leitores,
visto que a leitura de um texto, feita pelo mesmo leitor, modifica-se à medida que este
desenvolve novas percepções de mundo, a partir das quais atribui novos sentidos a
um mesmo texto.
Partindo desse pressuposto, de leitura como um ato cultural e social, para
estabelecer diálogo entre a leitura literária e a formação leitora, é importante dizer que,
a priori, a leitura literária remete ao texto, cuja linguagem é eminentemente estética e
poética, sobretudo em sua forma, haja vista as prosas poéticas e as poesias em prosa,
além de outros gêneros literários, em que lógica é anterior à forma.
Isso não quer dizer que a forma esteja restrita a si mesma, pelo contrário, a
leitura literária visa a compreensão da realidade e, nesse sentido, forma e conteúdo
são elementos fundamentais para a aquisição de conhecimento.
Independentemente do gênero literário, o leitor se apropria de conteúdos
relevantes que o levam a compreender os valores éticos relativos às diferentes
culturas e visões de mundo, como aponta o pesquisador das poéticas do Medievo,
Paul Zumthor (2014, p.27-28), para quem ―[...] um certo número de realidades e de
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valores, assim revelados, aparecem identicamente envolvidos na prática da leitura


literária‖.
Zumthor (2014, p.24) compreende ainda que a leitura literária integra gestos,
sentimentos, despertando os sentidos, sendo, portanto, um ato pleno realizado pela
leitura devido ao fato de que há sempre um ―eu‖ e um ―outro‖ envolvidos no ato leitor,
em cujos discursos anunciam-se diferentes experiências e perspectivas, as quais os
constituem como sujeitos sociais, tendo em vista que ―[...] o discurso se torna
realidade poética (literária) na e pela leitura, que é praticada por tal indivíduo‖.
Não se trata, portanto, de pensar o discurso somente na perspectiva
pragmática, mas, também na perspectiva poética que afere novos sentidos à práxis
mediante a linguagem poética, aqui compreendida como linguagem literária e cuja
especificidade se pauta na fantasia, na imaginação e na criatividade para apreensão
da realidade.
Nesta perspectiva argumentativa, para melhor reflexão da temática proposta
dividiremos o texto em dois momentos de discussões: o primeiro remete ao conceito
de leitura e variedade de discussões e compreensões que envolvem sua definição,
para em seguida destacarmos nas palavras dos docentes o que se lê, como se lê e o
que se ensina em projetos de leitura.

Entre ler e compreender: delineando os conceitos


Diante do pressuposto de que a palavra tem um direcionamento a um
interlocutor e que está sujeita a um ―auditório social‖, conforme aponta Bakhtin (2006),
a palavra materializada em texto escrito, conjuga um momento dialógico, em que a
palavra, a manifestação concreta da linguagem, se constitui no encontro com o outro,
numa interlocução constante entre leitor e texto.
Nesta perspectiva, a leitura compreendida como um processo de interação
entre leitor e texto, segundo Solé (1998, p.22), delineia-se a partir de um objetivo
proposto, pensar num leitor ativo que age e interage com o material lido, é destacar
que ―[...] sempre lemos para algo, para alcançar alguma finalidade‖. Tal finalidade
varia em diferentes momentos e contextos, precisa ser vista em diferentes
perspectivas, pois pode-se ler para devanear, preencher um tempo, divertir-se, seguir
uma instrução, informar-se ou aplicar uma informação, como estudo, entre outras
tantas possibilidades.
Neste objetivo que impulsiona a ação leitora tem-se a compreensão do lido, em
que, de acordo com Solé (1998, p.44), o leitor constrói o significado do texto, o ato de
ler está intimamente conectado à compreensão, visto que ―[...] ler é compreender e
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que compreender é, sobretudo, um processo de construção de significados sobre o


texto que pretendemos compreender. É um processo que envolve ativamente o leitor,
à medida que a compreensão que realiza não deriva do conteúdo em questão‖.
Para além de um sentido da psicolinguística, Goulemot (2001, p.107-108)
apresenta a definição de leitura como um ato de produção de sentidos, entendendo
que os textos são em sua essência polissêmicos, permitindo uma infinidade de
interpretações isso deve-se ao fato de que ―[...] ler é dar um sentido de conjunto, uma
globalização e uma articulação aos sentidos produzidos pelas sequências‖. Para o
autor, a leitura revela a polissemia do texto literário, pelo fato de trazer em evidência
―virtualidades significantes do texto‖, o que Goulemot (2001), denomina de um
movimento comunicação, de expressão dos sujeitos, uma manifestação ―aberta‖.
Considerando por ―aberta‖, na mesma perspectiva que Eco (1991, p.40) da
possibilidade que obra nos oferece de fazer a abstração de outros significados
possíveis, de modo que ―[...] passível de mil interpretações diferentes, sem que isso
redunde em alteração de sua irreproduzível singularidade. Cada fruição, é assim uma
interpretação e uma execução, pois em cada fruição a obra revive dentro de uma
perspectiva original‖.
A abertura remete a multiplicidade de significações, conforme destaca Barthes
(2004, p.62), ao explorar a ideia de que o texto não traz um sentido único e acabado,
proposto ou delineado pelas mãos criadoras do autor, longe disso está sua
multiplicidade de sentidos, ―[...] um texto é um espaço de dimensões múltiplas, onde
se casam e se contestam escrituras variadas, das quais nenhuma é original: o texto é
um tecido de citações, oriundas dos mil focos da cultura‖.
Por ser um espaço de múltiplas significações, é que permite ao leitor um
movimento plural da ação leitora, em que o leitor é convidado a adentrar pela obra e
ali, em um espaço aberto, produzir os sentidos do texto, pois no espaço da escritura,
segundo Barthes (2004, p.63), ―[...] tudo está para ser deslindado, mas nada para ser
decifrado‖.
Por ser a obra aberta, o ato de ler permite adentrar mundos imaginários,
permite a aproximação do impossível, reviver um tempo, percorrer lugares
desconhecidos, despertar sentimentos, encontrar o desconhecido, em que para
Barthes (2004), o leitor torna-se o espaço onde se inscrevem as inúmeras citações,
torna-se o espaço da unidade do texto.
Um espaço criado pelo leitor configura um movimento interpretativo que
permite a fruição da leitura em duas modulações, segundo Barthes (1987, p.18), uma
que chega às articulações da escritura, da narrativa, ―considera a extensão do texto,
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ignora os jogos de linguagem‖, enquanto a outra ―[...] não deixa passar nada; ela pesa,
coloca-se ao texto, lê, se se pode assim dizer, com aplicação e arrebatamento,
apreende em cada ponto do texto o assíndeto que corta as linguagens [...]‖.
É neste movimento intenso do leitor, seja o aligeirado, seja aquele minucioso e
delongado, que atribuem significado ao texto. A leitura como prática cultural, defendida
por Chartier (2001), apresenta duas práticas em relação à história do impresso: uma
que ignora o suporte no ato da leitura, e outra que procura compreender a história da
leitura a partir do movimento que o leitor inaugura, juntamente à materialidade do
impresso, em que a significação do texto se molda a partir da leitura que dele se
apodera. Movimentos estes que Chartier (2001, p.78) atribui à leitura o estatuto de ―[...]
prática criadora, inventiva, produtora [...]‖; pode-se dizer que são ações em que o leitor
realiza com e sobre o texto que lhe dão os sentidos, ou melhor ―[...] significações
plurais e móveis situam-se no encontro de maneiras de ler, coletivas ou individuais,
herdadas ou inovadoras, íntimas ou públicas e de protocolos de leitura depositados
sobre o texto lido‖.
Ao trazer a leitura como produção de sentidos, entende-se que a relação do
leitor é sempre ativa frente ao texto, de modo que, segundo Cosson (2014, p.35), o ato
de dar sentido decorre de uma ação dialógica entre leitor e texto, em que ler se torna o
―[...] diálogo que se faz com o passado, uma conversa com a experiência dos outros.
Nesse diálogo, eu me encontro com o outro e travo relações com ele por meio dos
sinais inscritos em algum lugar que é o objeto físico da leitura‖.
É nessa perspectiva que o projeto de leitura, objeto desta pesquisa, se
apresenta como interesse de estudo, primeiramente por constituir-se em um compilar
de ações dialógicas em que o ato de ler toma a centralidade, segundo por envolver
relações entre leitores e entre os leitores e os materiais de leitura, ações que
ultrapassam a dimensão de uma leitura do texto escrito, conforme descreveremos a
seguir.

Ação leitora e os projetos de leitura: o que dizem os professores?

A fim de se compreender a ação leitura entre o ―o quê‖ e o ―como se lê‖ para as


crianças, este trabalho realizou uma entrevista com professores do ensino
fundamental I, que atuam na ―sala de leitura‖356, em diferentes escolas da rede

356
O município faz a opção da denominação ―sala de leitura‖ para a biblioteca escolar, uma fez que
entendem que as bibliotecas não atendem o art. 2 da lei n. 12.244 de 24 de maio de 2010, que
estabeleceque ―Para os fins desta Lei, considera-se biblioteca escolar a coleção de livros, materiais
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municipal de um município do Sul de Minas Gerais. Iniciamos pelo espaço chamado


―sala de leitura‖ para compreender como os profissionais do magistério se relacionam
com o ato de ler e como se confiram as atividades leitoras ali planejadas e
desenvolvidas.
Percebe-se, ainda, que a função que se exerce no ambiente―sala de leitura‖ é
vista de diferentes formas dentro de uma mesma rede municipal de ensino.Algumas
escolas consideram este espaço apenas para a rotatividade entre os profissionais do
magistério, sem estabelecer critérios determinantes de quem assumiria este cargo,
enquanto em outras, esta rotatividade é determinada pelo critério de mérito, estar na
sala de leitura, ocorre em um tempo pré-estabelecido, visto como um prêmio,
representando um espaço para o―descanso‖ de atribuições de um profissional, por
distanciar os professores da sala de aula num período de um ano.
Para outras escolas a ―sala de leitura‖ é vista como um espaço de ações
provisórias, de refugo em que ficam os professores realocados, ou com problemas de
saúde, ou ainda, em fase de aposentadoria. Há escolas, no entanto, quecompreende
este espaço como um ambiente de trabalho dinâmico, intenso e árduo, em que ao
professor compete o desenvolvimento de projetos de leitura para cada turma da
escola.
Observa-se, também, que além do cuidado com o acervo que compõe a sala
de leitura, a função destes professores parece um tanto alargada, já que atuam em
diferentes frentes, como suplentes na substituição de professores regentes, na
organização e acompanhamento dos alunos nos intervalos de aula e no auxílio a
ações administrativas diversas.
Por motivos aos quais não cabe julgamento, visto que a intenção é somente
examinar como se configuram os projetos de leitura, nota-se que embora ricos em
conteúdo, estes projetos ainda se restringem a espaços, a horários e a condições nem
sempre tão favoráveis.
Talvez isso tenha a ver com certo descuido com os profissionais que atuam
nas salas de leitura, cujos horários ultrapassam física e emocionalmente o limite
saudável; talvez, porque algumas salas de leitura ainda permanecem mais tempo com
as portas fechadas fazendo com que os leitores potenciais (alunos, professores e
profissionais da escola) não conheçam de fato os materiais de leitura ali disponíveis.

videográficos e documentos registrados em qualquer suporte destinados a consulta, pesquisa, estudo ou


leitura‖.

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Enfim, à parte de qualquer julgamento, é importante dizer o quanto uma


pesquisa como esta aponta para o desejo, por parte da grande maioria de professores,
de criar espaços mais agradáveis de leitura e interação por meio dos projetos de
leitura.
Quanto a pergunta sobre ―o que se lê‖ para os alunos têm-se uma visão da
amplitude e, ao mesmo tempo, do cuidado do professor na ação de selecionar obras
para as atividades de leitura. O material lido varia entre fábulas, poemas, contos
clássicos, lendas, letras de músicas, textos informativos, literatura infantil, gibis, livros
de lição de moral, entre outros.
Esta variedade nos mostra uma preocupação dos professores em apresentar
um universo de possibilidades de realização de leitura e de aproximação do leitor.
Segundo Cosson (2014, p. 46) conhecer várias formas, vários modos de composição
dos textos ―[...] permite que o leitor se movimente entre eles e construa um repertório
que servirá de parâmetro para as próximas leituras‖. Cabe mencionar que tal
preocupação é recorrente por parte dos professores, o que sinaliza um aspecto
positivo frente à formação leitora.
Quanto à pergunta direcionada ao ―como se lê‖, nota-se as variadas maneiras
de condução e de mediação da ação leitora. Para melhor compreensão das respostas
destacamos alguns enunciados sobre como alguns professores357 realizam as
atividades de leitura:

P1 – As histórias são contadas de maneiras diferentes: nos livros, no


vídeo, com fantoches, com gravuras. Mas sempre faço questão de
mostrar o livro daquela história, independente da maneira como ela é
apresentada. Para despertar o interesse e o gosto pela leitura.
(Entrevista P1, 2017)

Assim, observa-se uma leitura que acontece na íntegra do texto, quando a


leitura tem como ênfase o texto, a autoria, privilegia estratégias de leitura que
antecedem o ato de ler, provocando uma reflexão sobre o texto. Um modo de ler, que
segundo Cosson (2014, p. 73) denomina de contexto-leitor, em que se procura traçar
paralelos entre a obra e o leitor, para ―identificar pontos de comunhão entre a obra e a
história de vida do leitor‖.

357
Para manter a privacidade dos professores que participaram da pesquisa, optou-se por
apresentá-los com a descrição P para professor e a numeração ordinal da ordem em que
aparecem os enunciados neste texto, por exemplo, P1.
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P2 – Como? Com entonação, ritmo, entusiasmo. Crianças sentadas em roda.


Faço perguntas. Ao mostrar a capa do livro, pergunto: Sobre o que fala este
livro...? Quem será essa personagem...? O que será que aconteceu...? Onde
aconteceu...? (Entrevista P2, 2017)

O mesmo se observa nesta fala, em que as questões lançadas após a leitura


indicam um modo de ler como contexto-leitor, conforme Cosson (2014, p. 74) em que
se ―toma como conexão pessoal percebida pelo leitor como ponto de partida para
delinear um outro modo de ver e compreender aquela experiência recriada da obra‖. A
apresentação física do livro, é uma ação coletiva de leitura, na descrição de Cosson
(2012) em que o professor chama a atenção para a capa, para as ilustrações, para os
protocolos de leitura, segundo descreve Chartier (2001).

P3 – Na aula de leitura, uso ―contar‖ a história quando ela apresenta muito


texto, pra não ficar cansativo e conseguir prender a atenção das crianças.
Quando o texto apresentado no livro é de tamanho coerente faço a leitura, mas
faço adaptações e uso entonações de voz para não perder o encantamento
deles ao ouvir a história. (Entrevista P3, 2017)

Outro movimento é a leitura que ocorre na contação de histórias, em que a


professora opta por contar a histórias com suas palavras, usando estratégias variadas,
desde a entonação, com o uso de diferentes tons de voz e gestos incorporados à
caracterização de personagens, até à própria dramatização, atuações que entram em
cena para contar uma história às crianças.

P4 – Trabalho na brinquedoteca; mas essa sala fica juntamente com a


biblioteca. Então, além de usar brinquedos lúdicos, uso também livros feitos de
pano, plástico, em formatos de animais, de letras, de brinquedos, etc., e de
material em papel. Conto histórias encenando e por muitas vezes levo os
personagens (porque os tenho) feitos de pelúcia e ou de pano, para melhor
enriquecer a atividade. (Entrevista P4, 2017)

A encenação da leitura move-se de uma linguagem que vai além das palavras,
em que se vivencia uma relação estética com o ato de ler, assume uma ação
performática da leitura. A performance exige do narrador um movimento intenso do
corpo e da voz, em que a oralidade ganha centralidade, e segundo Zumthor (2014, p.
62), de modo diferente que na antiguidade, mas que ―[...] no seio de uma cultura na

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qual a voz, em sua qualidade de emanação do corpo, é o motor essencial da energia


coletiva‖.
Ao encenar a leitura os professores acabam por despertar a curiosidade dos
alunos, mas, além disso, eles os provocam a buscar palavras que completem alguns
espaços, ou seja, esses alunos-leitores são, paulatinamente, levados a abstrair a
leitura, construindo sentidos (re)ssignificando o que leem. Nesse sentido, pode-se
afirmar que a ação desses profissionais, cada qual a seu modo, consolida a relação
contexto-leitor, ao levar o aluno a estabelecer vínculos com a realidade quando da
leitura encenada na qual o aluno-leitor é convidado a conhecer autor e obra.

Considerações finais

Retomando a epígrafe de Rosa, ―o homem nasceu para aprender tanto a vida


lhe permita‖, podemos dizer que a vida que se estabelece nesse período escolar e,
especialmente, em um espaço chamado ―sala de leitura‖, permite que crianças e
adultos aprendam e apreendam muito além do que está nos livros, posto que o
universo que se abre junto aos materiais de leitura ali oferecidos, remetem às relações
mais complexas que se pode estabelecer, quando páginas e páginas são lidas,
relidas, contadas e recontadas. Não é mais um leitor e um ouvinte, mas somam-se
vários leitores e ouvintes que (re)leem histórias considerando sua visão de mundo.
Tanto os professores-leitores quanto os alunos-leitores intercambiam o papel
de leitor-ouvinte, pois a cada leitura o professor ―se ouve‖ e ouve o seu leitor e desse
modo, o espaço é constantemente atualizado. E instaura-se um saber plural, uma
troca, quando o sujeito se abre para o mundo e para os outros, estabelecendo uma
relação dialógica, conforme descreve Freire (1996).
Sobre o espaço ou ―sala de leitura‖, o projeto revela que apesar de alguma
dificuldade, os profissionais envolvidos demonstram interesse em criar um ambiente
favorável para que a leitura interativa aconteça. Entendendo que o espaço físico não
se constitui da neutralidade, mas antes se mostra abalizado por uma intencionalidade,
na qual se interage com a aprendizagem, oportuniza-se relações interpessoais,
interações e atuações, tornando-se um mediador do ato de ler, segundo Goulart
(2013).
Quando lemos nas entrelinhas dos enunciados cedidos pelas professoras, a
esta pesquisa, perceber-se que ―o que‖ se lê e ―o como‖ se lê se constituem em ações
múltiplas, que são criadas e recriadas pelos professores em seus diferentes contextos
de atuação pedagógica. Entre o que se ensina, compreende-se ações que escapam

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as palavras não ditas, que são movidas por um saber único e ao mesmo tempo plural,
em que a individualidade do fazer pedagógico se produz em tons de expressividade,
seja na escolha da obra, seja no refinamento da ação leitora, ao se planejar como a
leitura acontecerá, seja ao primar pela voz mágica do encantamento, tornam-se ações
e atuações que acontecem em ressonância, que repercutem em palavras e gestos na
coletividade, na interação e na dialogicidade.

Referências

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ECO, U. Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. 9. ed.


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ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Trad. Jerusa Pires Ferreira e


Suely Fenerich. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

A CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS NA FORMAÇÃO DOCENTE:


HISTÓRIAS QUE BRINCAM E ENCANTAM.

Eliandra Cardoso dos Santos Vendrame (Faculdade Integrado de Campo


Mourão, Eixo 10 - Formação de leitores e mediação de leitura)

Considerações Iniciais

Este texto se constitui como relato de experiência de ensino


desenvolvida na disciplina de Fundamentos e Metodologias do Ensino de
Língua Portuguesa e Literatura Infantil em um curso de pedagogia, do 5º
período, com um total de 46 acadêmicos (as). Neste texto objetivamos relatar a
experiência na elaboração e atuação das acadêmicas do curso de Pedagogia
em confeccionar, recursos para atuar como contadores de histórias, atuando
diretamente com a Biblioteca Municipal Professor Egydio Martello de Campo
Mourão localizada no centro-oeste do Paraná.
A metodologia trata-se de uma pesquisa qualitativa, apoiada na
referência bibliográfica especializada e no relato da experiência, está baseada
na pesquisa-ação e tem como método da pesquisa estar situado no
desvendamento de uma estratégia de promoção de leitura e humanização da
criança, tendo na contação de histórias uma ferramenta de atuação ao
contador de histórias.
Considerando a contação de histórias como, um agir no processo
narrativo que permite o despertar de percepções, aguça os sentidos (visão,
audição, paladar, olfato e o tato) e isso permite que os sentidos sejam mais
sensíveis, desenvolvendo e formando habilidades cognitivas que facilitam o ato
de criação e imaginação. Para embasar nosso estudo utilizamos os autores
Abramovich (2009), Coelho (2000), Debus (2006), Sisto (2005), Thiolent
(1992), etc.
1894

A proposta parte da elaboração de uma contação de histórias por dez grupos


de estudantes de pedagogia, a partir de um livro de literatura, a ser contado a grupos
de crianças atendidas na Biblioteca Municipal Professor Egydio Martello em Campo
Mourão, Pr. Essa proposta vem do projeto de extensão ―Deixa eu contar... histórias
que brincam e encantam‖. Para este texto vamos indicar a relação da arte de contar
histórias na formação docente, em um curso de graduação em Pedagogia de uma
instituição de ensino superior privada do Município de Campo Mourão, PR. Na
sequência apresentar o projeto de extensão já nominado anteriormente e finalizar com
as considerações e ações acadêmicas na experiência com o contar histórias de livros
da Literatura Infantil.

A arte de contar histórias e a formação docente.

Pensamos o contar histórias como um brincar que envolve escuta,


imaginação e possibilidades de representar o mundo, neste sentido o trabalho
de elaborar uma contação de histórias com recursos artesanais visa privilegiar
a ludicidade da contação de histórias por meio do livro que é recurso
fundamental da leitura literária.
A contação de histórias é uma prática importante para a promoção da
leitura e para o acesso à literatura. Os contadores precisam garantir o
encantamento das crianças, dos jovens e dos adultos pela descoberta do
mundo literário e promover a eles, o processo de humanização.
Vale ressaltar que a contação de histórias nasceu com a humanidade, por
isso ela permanece em nossa sociedade e contribui para o processo de
desenvolvimento da criança, pelo fato de que, ao contar e recontar histórias da
Literatura Infantil, o contador de histórias promove a mediação da linguagem,
potencializa as interações e assegura o desenvolvimento infantil. Tais atividades
possibilitam às crianças interagirem com o mundo da fantasia e dos símbolos, pois, a
partir das histórias, elas apresentam suas opiniões e seus sentimentos. Essas ações
também permitem que elas possam compreender melhor o mundo em relação ao
cotidiano e vivenciarem o exercício social da oralidade e da escrita.
Contar histórias é um dos recursos utilizados pelos homens, assim como
pelos professores, para reproduzirem a cultura e reinventá-la. Na Educação, a partir
da contação de histórias, os professores contadores de histórias promovem às
crianças a vivência da infância e do lúdico, por meio da fantasia e da promoção da

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imaginação. As histórias também auxiliam na afetividade, nas expressões gestuais, na


coordenação motora e nos aspectos culturais, ou seja, são elementos que possibilitam
o desenvolvimento infantil.
A contação de histórias surge como uma importante prática de acesso à
literatura e à promoção da leitura, deixando claro que é preciso garantir o
encantamento pela descoberta do mundo literário desde a infância, na busca de
promover o desenvolvimento da criança, das pessoas e de seus processos de
humanização. Para esclarecer tais aspectos apresentamos o seguinte fundamento:

O desenvolvimento infantil constitui o princípio básico da psicologia.


Uma criança não é um ser terminado, mas um organismo em
desenvolvimento e, portanto, seu comportamento vai se formando
sob a influência da ação sistemática do ambiente e também com
relação a vários ciclos ou períodos de evolução do próprio organismo
infantil, que por sua vez determinam a relação do ser humano com o
meio (VYGOTSKY, 2003, p.203).

Nesta perspectiva, a contação de histórias é uma ferramenta de promoção


das relações entre o universo literário, da criança e das pessoas humanizadas. As
histórias contribuem com o aprendizado da linguagem e da criatividade, conforme
descreve Debus (2006, p.75):

O contar histórias pode influir diretamente na aprendizagem efetiva


da leitura e escrita, pois, por meio da narrativa, a criança entra em
contato com novos vocábulos, com estratégias de linguagem, já que
a estrutura início, meio e fim das narrativas auxilia a criança na
elaboração de suas próprias histórias. O leitor-ouvinte começa a ser
exposto naturalmente ao mundo ficcional, o que lhe desperta a
sensibilidade e a criatividade.

A narrativa permite o acesso à linguagem e suas estratégias, porém, ao


pensarmos as narrativas na estrutura começo, meio e fim, é importante esclarecer o
que vem a ser essa estrutura.
De acordo com Souza e Girotto (2014, p.29), há na narrativa o ―esquema de 3
atos‖, que se trata do começo, do meio e do fim. A situação inicial é o primeiro ato e
corresponde à apresentação de uma situação inicial, já o desenvolvimento, que ocorre
no processo da narrativa, vem a ser o segundo ato, e é neste momento que os
acontecimentos da história direcionam as causas, que são oriundas das situações
iniciais. O desfecho final é o momento em que a narrativa apresenta a conclusão das
situações. Neste processo narrativo há uma relação sequencial entre os ―3 atos‖, visto
que o início (1º ato), o desenvolvimento/meio (2º ato) e o fim (3º ato) estão
sistematizados nas histórias narradas.
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Para contar histórias é preciso estratégias de mediação do contador de


histórias, então, na formação dos futuros professores são necessárias ações que
possibilitem experiências com essas estratégias, visto que para aqueles que se
propõem a encantar pela leitura, literatura e arte de contar, é necessário considerar
que:

Para contar histórias – seja qual for – é bom saber como se faz.
Afinal, nela se descobrem palavras novas, se entra em contato com a
música e com a sonoridade das frases, dos nomes [...]. Se capta o
ritmo, a cadência do conto e assim ela flui como uma canção... ou se
brinca com a melodia dos versos, com o acerto das rimas, com o jogo
das palavras.... Contar histórias é uma arte... É tão linda!!! É ela que
equilibra o que é ouvido com o que é sentido, e por isso, não é nem
remotamente declamação ou teatro [...]. Ela é o uso simples e
harmônico da voz (ABRAMOVICH, 2009, p.15).

Percebe-se, portanto, que a contação de histórias é uma ferramenta de


promoção das relações entre o universo literário e a promoção da humanização,
dentre as disciplinas metodológicas da formação de professores, pensar a contação
de histórias permite aos acadêmicos do curso de pedagogia vivenciar as possíveis
ações que um livro de literatura, uma história cantada, uma poesia, cantiga de roda ou
música pode contribuir com o desenvolvimento. Para isso, é preciso entender que as
crianças necessitam ter acesso à literatura com qualidade de texto, assim como
qualidade nas ações dos contadores de histórias:

Para que o convívio do leitor com a literatura resulte efetivo, nessa


aventura espiritual que é a literatura, muitos são os fatores em jogo.
Entre os mais importantes está a necessária adequação dos textos às
diversas etapas do desenvolvimento infantil/juvenil (COELHO, 2000,
p.32).

A necessidade de conhecer a histórias e adequá-las ao desenvolvimento é


fundamental, por isso, na ação do contador de histórias, é preciso ter uma seleção de
histórias apropriadas e que possam ser agradáveis a todos.
Cabe àqueles que se dispõem a fazer uso da contação de histórias,
sistematizar e planejar, a fim de que eles possam estimular e garantir o
desenvolvimento da criatividade e da imaginação da criança, tanto é que Quintiliano
faz algumas orientações para os contadores de histórias. Para Quintiliano apud Tahan
(1961, p.10), as histórias precisam ―instruir, comover e agradar‖.
É preciso pensar também que o processo de ―sedução‖ do contador de
histórias não ocorre do dia para noite, basta recordamos Sherazade e as mil e uma

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noites. De acordo com Gullar (2006, p.5), como se sabe: ―A história das mil e uma
noites é uma reunião de fascinantes histórias inventadas e mantidas na tradição oral
pelos povos da Pérsia e Índia‖. Por meio dos contos árabes de rainhas e sultões,
gênios e monstros, lutas e intrigas, em clima de magia e de mistério, Scherazade
conseguiu mudar seu destino, que seria o de morrer, após a noite de núpcias. Para
que o contador de histórias tenha a mesma segurança que Sherazade demonstrou, ao
confiar no poder das suas histórias para salvar sua vida, eles precisam conhecer a si
mesmos, conhecerem bem as histórias que contarão e elaborarem estratégias
dinâmicas e criativas.
Neste texto, optamos por descrever um projeto de extensão que permite
indicar a atuação e processo de criação de um grupo de acadêmicas com relação a
dez livros de histórias. A seguir descreveremos as características do projeto de
extensão ―Deixa eu contar... histórias que brincam e encantam‖, suas contribuições
para a formação acadêmica.

O projeto de extensão ―Deixa eu contar... histórias que brincam e


encantam‖.

O projeto que buscamos apresentar surgiu de uma ação interdisciplinar de


três disciplinas (Fundamentos e metodologias do Ensino de Língua Portuguesa e
Literatura Infantil, Projeto Integrador V e Prática Articulada à Função do Pedagogo:
Áreas Afins) do quinto semestre do curso de pedagogia da Faculdade Integrado de
Campo Mourão.
Sabemos da importância das disciplinas metodológicas na formação de
professores, estas possibilitam as mediações adequadas nas práticas pedagógicas e
asseguram a qualidade de ensino e aprendizagem, conforme propõe Libâneo.

[...] o núcleo de uma instituição universitária é a qualidade e eficácia


dos processos de ensino e aprendizagem que, alimentados pela
pesquisa, promovem melhores resultados de aprendizagem dos
alunos. Ou seja, a universidade existe para que os alunos aprendam
conceitos, teorias; desenvolvam capacidade e habilidades; formem
atitudes e valores e se realizem como profissionais-cidadãos.
(LIBÂNEO, 2003, p. 01)

Com a perspectiva de auxiliar a formação de professores, e o


entendimento do processo de ensino aprendizagem, o projeto ocorreu em
diversas etapas, a primeira delas foi o contato com a Biblioteca Municipal

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Professor Egydio Martello de Campo Mourão localizada no centro-oeste do


Paraná. Foi estabelecida uma parceria entre a Faculdade Integrado de Campo
Mourão e a Biblioteca. Que disponibilizou calendário para os momentos de
contação de histórias e o espaço da Ludoteca, (é o espaço onde as crianças
podem conviver, ler e brincar, utilizando os livros que lhes são emprestados).
Elaborado o projeto, o mesmo foi apresentado aos acadêmicos (as) da
turma participante que se dedicou a estudar a contação de histórias e ir em
busca de uma história para ser contada, durante a realização do projeto no
espaço da Ludoteca.
As histórias foram as seguintes:

1. Menina Bonita do Laço de Fita. Autor: Ana Maria Machado.


2. O que aconteceu no Caldeirão da Bruxa. Autor: Sonia Junqueira.
3. Eugenio, o gênio. Autor: Ruth Rocha.
4. Chapeuzinho Amarelo. Autor: Chico Buarque de Holanda.
5. Os três porquinhos malcriados e o lobo bom. Liz Pichon.
6. A ovelha Rosa da Dona Rosa. Autor: Donaldo.
7. Curupira, Brinca comigo? Autor: Lô Carvalho.
8. Bom dia, todas as cores. Autor: Ruth Rocha.
9. Macacote e Porco Pança. Autor: Ruth Rocha.
10. Fofinho. Autor: Tereza Noronha.

Cada grupo buscou estudar as histórias e desenvolver uma contação


com a mesma, tivemos grupos que dramatizaram com figurinos e materiais de
apoio, essa etapa foi documentada em uma ficha roteiro sobre a história.
Tivemos confecções de livros com reprodução de ilustrações e texto em
tamanho grande, guarda-chuva como recurso para contar a história em partes,
fantoches e máscaras, tudo com a participação e confecção de todos os
representantes do grupo, essa etapa denominamos de elaboração de contação
de histórias com base em um livro de Literatura Infantil.
A primeira apresentação ocorreu em sala, para considerações iniciais,
na sequência fizemos uma noite de apresentações e exposição das histórias
na Faculdade Integrado com a participação dos demais acadêmicos da
instituição.
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A contação na biblioteca foi ocorrendo em datas previstas pelo


cronograma direcionado para atender as ações com o público de escolas
municipais e da rede privada, forma atendidas crianças inclusive de municípios
da região. Cada história foi contada para um grupo no período da manhã e um
novo grupo no período da tarde, portanto, duas contações por grupo.
Ao contar as histórias em sala de aula, os acadêmicos (as) promoveram
a identificação e trocas culturais entre as obras, e desse modo as visões de
mundo se defrontaram com visões de mundo das obras, não se detêm
necessariamente numa ou noutra nem se contrapõe, mas propiciam a
organização de novas tramas, que possibilitam novas compreensões. A
respeito disso, consideramos que

Ao lidar com a literatura infantil em sala de aula, o professor


estabelece a relação dialógica com o aluno, com sua cultura e com
sua realidade quando, para além de contar ou ler a história (informar
os alunos sobre ela), cria condições para que eles lidem com a
história a partir de seus pontos de vista, trocando impressões sobre
ela, assumindo posições sobre os fatos narrados, defendendo
posições e personagens, criando novas situações através das quais
eles vão desdobrando a história original. (OLIVEIRA, 1996, p. 52)

No quinto período houve uma importante identificação das relações culturais e


as contação de histórias, mesmo com o grupo de adultos estudantes de pedagogia a
narrativas permitiram diferentes possibilidade de desdobramento das histórias, seja
dramatizadas, narradas, apresentadas com fantoches, etc.
Ao promover o diálogo dos acadêmicos com as obras da literatura infanto-
juvenil por meio da contação de histórias, foram criadas condições que abrem as
possibilidades de leitura e de comunicação do leitor com a obra, em uma prática
pedagógica que não se apreende no ensino informativo de um saber já produzido,
mas prossegue na construção de um saber novo que considera a criança como leitor
ativo, capaz de problematizar o real e questionar o vivido, oportunizando, por meio da
contação de histórias, a leitura do contexto.

Dez histórias na Ludoteca, registros de uma ação interdisciplinar.

Sabemos, na carne, que ninguém vira contador de histórias da noite


para o dia, e que esse processo de formação somente é possível se
estiver centrado numa reflexão que envolva nossas histórias de
leitores, nossas necessidades de comunicação artística, nossa opção
pela palavra como agente sensível, lúdico, estético, enfim
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transformador, e que, sobretudo, respeite o fluir natural do tempo, o


exercício constante, sem a pressa tão comum a quem quer sair por aí
fazendo, antes de observar os sinais de maturação das coisas (até
das palavras-histórias!). (YUNES apud COSTA, 2003, p. 33).

Iniciamos esta seção com as considerações de Yunes para partilhar a


necessidade de reflexão a respeito da contação de histórias, as leituras e estudos
revelam que há uma procurar significativa por literatura para a prática docente, muitos
professores precisam compreender a relação necessária com a arte de contar
histórias, essa foi uma das perspectivas deste projeto de extensão. Instrumentalizar
momentos de contar histórias ainda na formação docente para que ao envolver-se no
processo de formação seja possível compreender a necessidade de planejamento,
intencionalidade e compromisso com a arte, presente na Literatura Infantil.
Os resultados iniciais vieram das rodas de conversas que fazíamos no retorno
das ações de contação de histórias, os acadêmicos falaram da surpresa do olhar das
crianças ouvintes das histórias, do desejo de contar novamente e da experiencia
vivenciada na Biblioteca Municipal.
Foram destas conversas que pensamos no fato de que o ouvinte tem a
oportunidade de participar do enredo, criando cenários e personagens. O contador
descreve-os, mas é o leitor quem os cria, de acordo com sua imaginação, que é única
em cada pessoa que se dispõe a ouvir uma história.
Neste aspecto, Machado (2002) corrobora que contar histórias na atualidade se
torna essencial, pois é um jeito de se comunicar às pessoas uma parte das riquezas
culturais universais que a humanidade vem acumulando há milhares de anos - um
direito que cada um tem, como herdeiro desse tesouro. A criança habituada a que lhe
contem histórias, no futuro, saberá que poderá buscar na literatura o que precisa para
satisfazer sua inevitável demanda da palavra escrita e da narrativa de ficção.
As histórias chegaram a comunidade e foram recebidas por crianças e
professores da Educação Infantil e Ensino Fundamental I, as contações permitiram o
acesso a atividades de contar histórias com o intuito de contribuir com a formação do
humano, um ser complexo em sentido denso, como a literatura, que não corrompe
nem edifica, ―mas humaniza em sentido profundo, porque faz viver. ‖ (CANDIDO,
2002, p. 85). As crianças participaram de forma ativa e com questionamentos a
respeito de personagens, das histórias, ou dos acadêmicos que se permitiram viajar
no universo literário como contadores de histórias. As experiências foram dinâmicas e
permitiu as crianças que participaram dos momentos de contação o acesso a literatura
por meio do contar histórias.

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Ao participarmos do projeto de extensão foi possível aos acadêmicos conhecer


mais a respeito dessa arte e das técnicas utilizadas pelos contadores de história para
conquistar a atenção dos ouvintes. A experiência pode ser considerada a partir da
ideia de que
[...] a experiência do sonho do devir humano no tempo fora do tempo
do ―Era uma vez‖, onde infinitamente variam e se repetem as
possibilidades criadoras de transformações, a experiência de valores
humanos, a experiência de modos de funcionamento da percepção e
da afetividade, a experiência de integridade, a experiência crítica,
presentes na reunião de um grupo de pessoas envolvidas por uma
qualidade singular de relacionamento. (MACHADO, 2004, p. 35)

Nas situações de contação de história em grupo, os estudantes estabeleceram


ações em que possibilitaram o planejamento, criação e contação para as crianças
como uma forma prática de atuar mediante a Literatura Infantil com a contação de
histórias. O uso dos recursos confeccionados permitiu uma construção de algo a ser
transformado para envolver o ouvinte na história a ser contada.

Considerações Finais

Diante dos estudos realizados e das atuações junto a biblioteca consideramos


que, a formação docente ao vivenciar, a pesquisa por histórias, escolha e confecção
de materiais para elaboração de um contação de histórias surge como uma importante
experiência de formação pedagógica, leitora e de acesso à cultura literária. Os
resultados alcançados têm indicado que a contação de histórias na formação
acadêmica do docente é importante para seu desenvolvimento pessoal e acadêmico
como futuro professor. Isso reafirma o conceito que temos a respeito da ação de
contar histórias

Contar uma história é uma maneira de vivermos juntos com aqueles


que nos contaram e de permanecer naqueles que nos ouvem. É viver
algo singular que está intrínseco em cada indivíduo. Trata-se de uma
elaboração imaginária que se organiza fora do tempo da história, pois
ao contar histórias somos transportados para o universo da narrativa,
para locais desconhecidos, com personagens fantásticos que nos
apresentam um universo fabuloso. (VENDRAME, 2015, p. 113)

Ao desenvolver o projeto de extensão ―Deixa eu contar... histórias que brincam


e encantam‖, foram desenvolvidas estratégias de contar histórias, de elaborar estudos
para levar o texto literário de uma obra para a narrativa oral utilizando recursos que
busca a partilha de uma história, que permite a viagem pelo universo imaginário como
uma forma de permitir a fantasia e a imaginação.

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Aqueles que participaram das contações foram agraciados com uma história
contada de forma a permitir o lúdico e assegurar o acesso ao universo da Literatura
Infantil. Projetos como este demostram que, podemos despertar em nossas crianças e
jovens, nossos acadêmicos (futuros professores) o prazer de ouvir uma história e, por
meio disso, sensibilizá-los para a Literatura Infantil e para a leitura, proporcionando
momentos de descontração, de imaginação e encantamento. Na certeza de que ler é
uma riqueza que ninguém pode tirar do outro, as histórias e fantasias são únicas a
cada ser humano.

Referências

ABRAMOVICH, F. Literatura infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione,


2009.
BUSATTO, C. Contar e Encantar: pequenos segredos da narrativa. 7ª ed. Petrópolis,
RJ, Vozes, 2011.
CANDIDO, A. A Literatura e a formação do homem. In: Textos de intervenção.
Seleção, apresentações e notas de Vinicius Dantas. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34,
2002.
COELHO, N.N. Literatura Infantil: teoria, análise, didática. 1ª ed. São Paulo:
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COSTA, M. M. Literatura Infantil. Curitiba: IESDE, 2003.
DEBUS, E. Festaria de brincança: a leitura literária na Educação Infantil. São Paulo:
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_______, E. A confecção de livro artesanal como recurso didático pedagógico na
educação infantil. Disponível em:
http://endipe.pro.br/anteriores/13/posteres/posteres_autor/T2125-1.doc. Acesso, dez.
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GULLAR, F. As mil e uma noites: contos árabes. Rio de Janeiro: Revan, 2006.
LIBÂNEO, J. C. O ensino de graduação na universidade: a aula universitária.
Goiânia: UCG, 2003. Disponível em
http://uniarp2015.pbworks.com/w/file/fetch/92297679/-O-ensino-de%20graduacao-A-
aula-universitaria.pdf acesso em 20 ago. 2017.
MACHADO, A. M. Como e por que ler os clássicos universais desde cedo. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2002.
MACHADO, R. Acordais: fundamentos teórico-poéticos da arte de contar histórias.
São Paulo: DCL, 2004.
MORAES, F. Contar histórias: a arte de brincar com as palavras. Petrópolis, RJ:
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OLIVEIRA, M. A. Leitura prazer: interação participativa com a literatura infantil na
escola. São Paulo: Paulinas, 1996.
SILVA, M. B. C., Contar histórias uma arte sem idade. 7ª ed. São Paulo: editora
Ática,1997.

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SISTO, C. Textos e pretextos sobre a arte de contar histórias. 2ª ed. Curitiba:


Positivo, 2005.
SOUZA, R. J.; GIROTTO, C.G.S. Era uma vez... Uma caixa de histórias: Prosa no
acervo do PNBE 2014. In: BRASIL. Ministério da Educação. PNBE na escola:
literatura fora da caixa. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação
Básica, 2014.
SOUZA, R. J. ...[et al] A arte narrativa na infância: práticas para o teatro da leitura e
a contação de histórias. Campinas: Mercado das letras, 2015.
TAHAN, M. A arte de ler e contar histórias. 3ª ed. Rio de Janeiro: Conquista, 1961.
THIOLLENT, Michel. Metodologia da Pesquisa-ação. 5ª ed. São Paulo: Cortez:
autores associados, 1992. (Coleção temas básicos de pesquisa-ação).
VENDRAME, E. C. D. S. Da história contada ao sujeito de contação: como me fiz
contadora de histórias... 2015. 132f. Dissertação (Mestrado em Educação), Programa
de Pós-graduação em Educação, Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2015.
VYGOTSKY, L.S. VIGOTSKI, Psicologia pedagógica. Trad. Claudia Schilling. Porto
Alegre: Artmed, 2003.
__________, L. S. Imaginação e criação na infância. Trad. Zoia Prestes. São Paulo:
Ática, 2009. (Ensaios comentados).
YUNES, Eliana. Prefácio difícil. In: GREGÓRIO FILHO, F. Guardados do Coração:
memorial para contadores de histórias. Rio de Janeiro: Amais, 1998.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

A CONTRIBUIÇÃO DAS RODAS DE LEITURA PARA A


FORMAÇÃO DE LEITORES

Claudia Felchicher, Instituto Federal Catarinense, Educação literária,


letramento literário, formação e mediação de leitores literários: entrecaminhos
do saber/aprender
Claudia Fátima Kuiawinski, Instituto Federal Catarinense, Educação literária,
letramento literário, formação e mediação de leitores literários: entrecaminhos
do saber/aprender

Considerações Iniciais

Aprender a ler ... ler ... gostar de ler ... histórias ... contos ... mundo da
imaginação ... mundo real ... assim vai se constituindo o processo de leitura do ser
humano, que pode iniciar desde a gestação quando contamos ou ouvimos histórias,
sejam elas verdadeiras ou inventadas.
A presente pesquisa se enredou diante da curiosidade da importância da
leitura, permeando pela seara das rodas de leitura na tentativa de compreender qual a
contribuição da literatura na formação dos pequenos leitores.
Para compreender a importância da leitura em nossas vidas, iniciou-se a
pesquisa tecendo uma breve contextualização histórica, relatando o surgimento da
leitura, desde a idade primitiva até o surgimento da escrita. Em um segundo momento,
o enfoque seguiu o viés do processo de leitura no Brasil, no período em que Portugal
aqui chegou, traçando dessa forma, um recorte histórico até os dias atuais e
destacando a leitura como forma de dominação, poder e interesse de classes
dominantes sobre classes populares. Por fim, no terceiro momento, a história da
literatura infantil no Brasil e o relato das observações, tendo por intuito o presente
artigo, sendo a metodologia o Estado da Arte, referente à história da leitura e da
literatura infantil.
A análise acerca das contribuições da contação de histórias na formação de
leitores e é um recorte do Trabalho de Conclusão do Curso de Pedagogia, e norteou-
se por vários autores estudiosos do tema, mas cabe salientar a importância das
1905

contribuições de Abramovich, Busatto, Coellho, Cunha e Zilbermann, que ofereceram


contribuições à análise em questão.

HISTÓRIA DA LEITURA

Mesmo sem o surgimento da escrita, no período primitivo, a leitura já existia,


embora muito diferente do que conhecemos hoje. A forma de comunicação desse
povo era através de desenhos e rabiscos feitos em pedras, cavernas, tronco de
árvores, entre outros materiais. Utilizava-se para a realização dessas pinturas,
pedaços de madeiras, ossos e alternativas improvisadas pelos habitantes. As imagens
feitas apresentavam o cotidiano, os costumes e outros pensamentos dos habitantes de
determinado espaço geográfico. A caça, a pesca, o tipo de animais, entre outros, eram
tidos como representações, códigos, que eram conhecidos e interpretados por um
determinado grupo. (STEVEN FISCHER, 2006)
Os primeiros Homo sapiens, segundo Fischer (2006, p.14) ―liam entalhes em
ossos sinalizando algo que lhes fosse significativo‖. Para eles, as representações
tinham informações e significados, as
tribos primitivas liam extensas mensagens imagéticas em casca de
árvores ou em couro, ricas em detalhes. Em diversas sociedades
antigas, varetas eram lidas para a contagem de quantidades. A
sinalização permitia que mensagens simbólicas fossem lidas a
distância: bandeiras, fumaça, fogo, reflexos em metais polidos e
outros dispositivos. Os incas liam os nós de quipo codificados por
cores para monitorar transações comerciais complexas. (FISCHER,
2006, p.14)

Além dessas representações gráficas, o sinal era a única forma de


comunicação entre eles. Passou a ter um som vocal por volta de 6 mil anos atrás na
Mesopotâmia. Por volta de 1550 a. C. eram utilizadas as tabuletas, nas quais escribas
(escritores oficiais em tabuletas) registravam seus textos. Essas tabuletas eram feitas
de argila, no tamanho grande, o que ocasionava dificuldades no transporte devido ao
peso. Essa forma de leitura e escrita prevaleceu até o período após o nascimento de
Cristo. (FISCHER, 2006)
Este fato, registrado pela história, assim permaneceu por um período
estimado de três milênios, quando foi então utilizado o ‗papiro‘, feito com couro e cera.
Seu formato era um rolo e para ler o conteúdo era necessário desenrolá-lo. Mais tarde,
no ano 400 d.C. foi criado o ‗pergaminho‘, que se parecia com os livros que utilizamos
hoje, encadernados e utilizando páginas feitas, ainda de couro e cera. (FISCHER,
2006)

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Com o passar do tempo, as representações gráficas, passaram a necessitar


de símbolos que não fossem apenas conhecidos nos pequenos grupos, mas que
servissem de comunicação entre os diferentes povos. É nesse contexto que começa a
se delinear o surgimento da escrita.

HISTÓRIA DA LEITURA NO BRASIL


Não há como relatar a história da leitura sem fazer ligação com as disputas
de poder, terras e da identidade de um país. Não é novidade para nós brasileiros, que
o Brasil foi colonizado por portugueses, que aqui desembarcaram no ano de 1.500 e a
partir desse acontecimento, a cultura, a língua e a identidade do índio passaram a ser
desprezadas. Desde a colonização, conforme explica Lena Lois (2010, p.12), ―até
1808, toda a iniciativa ligada à impressão de textos era proibida pela colônia. Portanto,
foram 300 anos de controle do texto escrito para que não se divulgassem opiniões e
notícias não desejadas pela corte‖.
Os padres jesuítas promoviam a educação dos nativos brasileiros. Estes
tinham o objetivo de catequizar os indígenas e pacificar suas crianças para o trabalho.
Essa educação era voltada à religião, moralidade e aos hábitos de higiene.
Consideravam os nativos como uma ‗folha em branco‘, visto que seus conhecimentos
e sua cultura, lhes eram insignificantes. (MARIA LUIZA DE ARRUDA ARANHA, 2006)
A alternativa de educação proposta na época era voltada para o contato e o
convencimento, porém essa forma de educar não apresentou resultados devido à
grande resistência dos nativos. Por volta de 1552, foi criada a ‗casa dos meninos‘ na
qual os filhos de indígenas eram ensinados a ler e escrever o português e a gramática
latina. Não havia relatos de livros de literatura para o momento. Lois (2010) relata que
em
[...] 29 de outubro de 1810 foi inaugurada a Biblioteca Nacional do Rio
de Janeiro com um acervo formado por livros vindos de Portugal e
com acesso limitado aos estudiosos e, mesmo assim, através de
consentimento régio. Nesse mesmo ano foi publicado o primeiro
romance – Marilia de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga – e em
1818 é lançada a primeira revista que se tem notícia – Variedade em
literatura (BA). (LOIS, 2010, p.12)

Os fatos apresentados mostram as relações de poder e privilégio, quando a


leitura era algo a que poucos tinham acesso, além de literaturas de outros países
serem utilizadas, desconsiderando totalmente a cultura do povo nativo.
No século XVII, a educação interessava ainda a poucas pessoas das classes
dominantes. As classes pobres, principalmente mulheres e mestiços, eram excluídos
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da educação, gerando assim a grande porcentagem de iletrados. Durante todo o


período não existia a leitura no país, exceto para os negócios da classe burguesa e na
igreja, com os padres jesuítas alfabetizando e catequizando os seus servos,
atendendo aos interesses dos burgueses que os queriam ―domados‖ para serem bons
trabalhadores. (ARANHA, 2006)
Em 1759, ocorreu a expulsão dos jesuítas, quando estes ―passam a ser
recusados pela parcela ilustrada da sociedade portuguesa, tanto como grupo religioso
quanto como colonizadores e educadores‖ (HILSDORF, 2003, p.15) e também o
fechamento dos colégios jesuíticos. Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de
Pombal, criou assim as aulas régias de Latim, Grego e Retórica. Afirma-se que ―o
objetivo das reformas pombalinas foi substituir a escola que servia aos interesses da
fé pela escola útil aos fins do Estado‖. (CLAUDINO PILETTI; NELSON PILETTI, 2006,
p.139)
Ainda no século XVIII, os pensadores iluministas, vinculados com os
dominantes e em conjunto com os pedagogos da época, segundo Regina Zilberman
(2009, p.14) ―veem no livro o instrumento fundamental para a difusão do saber e o
meio pelo qual cada um se apropria da realidade, endossando seu caráter utilitário e
ao mesmo tempo, sua natureza emancipatória‖. Esse fato deve-se ao objetivo da
política educacional em tornar a escola leiga e livre de privilégios de classes.
No período final do século XVIII e início do século XIX, entre os anos de 1770
e 1820, ―a mentalidade ilustrada que promoveu a reforma da cultura e do ensino do
período pombalino foi capaz de dar um novo rumo para a educação [...] como as
práticas de memorização, de disputas orais e uso de autores latinos do cânone
jesuítico, ao invés da observação e da experiência preconizada pelas reformas
pombalinas‖. (MARIA LUCIA SPEDO HILSDORF, 2003)
No período do império, com a vinda da família real para o Brasil, por volta de
1808, passa a ser concretizado o objetivo da reforma pombalina, em criar escola útil
para o Estado. Ampliando também para o ensino superior, com o objetivo de formar a
elite dirigente do país. Com isso surgem cursos voltados a atender as necessidades
do momento: militares, engenheiros militares, médicos e agricultores. Porém, na
leitura, o grande marco foi a criação da primeira biblioteca pública, em 1814, com um
total de 6.000 (seis mil) volumes, cedidos por D. João. (PILETTI C.; PILETTI N.;
2006)
Em 1920, o modelo educacional herdado pelo Império, que privilegiava a
educação das elites, marca o momento de grandes discussões que culmina na
revolução de 1930 e na criação do Ministério da Educação. Na Constituição de 1934,
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artigo 149, a educação aparece como direito de todos e também passa a ser
obrigatório do ensino primário. (PILETTI C. PILETTI N.; 2006)
O período ficou marcado, segundo Lois (2010) por ―uma expansão da
indústria do livro e um fomento na tradução e publicação de livros estrangeiros‖.
Nessa mesma década,

durante o período da segunda guerra mundial, o índice de leitores no


Brasil aumentou, o mercado do livro também, e São Paulo passou a
ser um dos maiores parques gráficos do Ocidente. Entre 1936 e 1944
o número de editores cresceu em aproximadamente, 50%, mas a
vigilância sobre o texto escrito ainda era muito grande. (LOIS, 2010
p.13)

A indicação de que tudo o que era produzido em termos de cultura e leituras


estava sob vigilância, devia-se ao fato de não denegrir ideais contra o representante
do país. Com o regime militar, vários livros foram proibidos, além de haver
perseguição a alguns escritores e editores. O combate ao analfabetismo fez com que
ocorresse um aumento na produção de livros didáticos, principalmente a classe média
investindo na formação de seus filhos. (LOIS, 2010)
Com a queda do regime militar, nos anos 80, expandiram-se as discussões
referentes à leitura e à literatura no ensino. Nesse período o país encontrava-se em
revolução no aspecto econômico, em consequência da revolução industrial e dos
avanços tecnológicos e científicos; mudanças políticas com a maior participação das
classes populares seguindo na direção de um sistema comunitário, e também
mudanças culturais, decorrentes das oportunidades das classes populares no acesso
ao saber. Outro fato de relevância na época foi a ampliação do sistema escolar, o que
propiciou o aumento do público leitor, em decorrência da alfabetização, assim
fortalecendo as modalidades de expressão em camadas menos favorecidas.
(ZILBERMAN, 1982, p.12)
Neste contexto, segundo Zilberman (2009, p.12), verifica-se um movimento
amplo de pedagogos e profissionais ligados aos ramos da alfabetização, que
preocupados com os rumos da escola brasileira, a qualidade de
ensino, a qualificação do professor e os resultados da aprendizagem,
que, transcorrida uma década da reforma da educação brasileira,
datada em 1970, se mostravam não apenas insuficientes, mas – e
principalmente – alarmantes, já que o horizonte futuro prognosticava
pioras, e não melhoramentos ou superação dos problemas.

Dessa forma, os pedagogos e profissionais ligados à educação realizam o I


Congresso de Leitura (COLE), no ano de 1978 em Campinas, e também o I Encontro
de Professores Universitários de Literatura Infantil e Juvenil realizado no Rio de janeiro
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em 1980 assim como a Primeira Jornada Sul-Rio-Grandense de Literatura, no ano de


1981 em Passo Fundo. As Associações de Professores de Língua e Literatura e de
Leitura do Brasil, mostram o
engajamento de educadores e pesquisadores na discussão tanto dos
problemas de ensino e aprendizagem no âmbito da escola, quanto
das políticas públicas que poderiam alavancar uma ação
simultaneamente democratizadora e competente que beneficiasse
docentes e discentes. (ZILBERMAN, 2009, p.12)

Nessas discussões, a leitura aparece como um ponto de salvação :


pois era nela que se colocavam as esperanças de superação dos
problemas experimentados na sala de aula. Com efeito, se os
diagnósticos identificavam as dificuldades de leitura e expressão
escrita por parte dos estudantes, era à literatura, representada por
obras de ficção e de poesia, que se transferiam os créditos e as
expectativas de mudanças e de sucesso quando do exercício da ação
educativa por parte dos docentes. (ZILBERMAN 2009, p.13)

No século XIX a escola sofre uma transformação, tendo assim a necessidade


de ocupar a infância e informá-la de saberes importantes para o seu futuro, a leitura
passa a ser elo entre as crianças e a cultura, como porta de entrada no universo do
conhecimento. Assim se estimulou a indústria da tipografia, com a impressão de livros,
jornais e folhetins. (ZILBERMAN, 1982, p.13)
Por outro lado, como consequência do trabalho realizado pela escola e a
habilidade de ler, aparecem as primeiras expressões da cultura massificada, que
segundo Zilberman (1982, p.13) resultam na ―explosão de uma literatura popular, cuja
transmissão se fizera, até aquele momento, por intermédio das formas orais,
acompanhadas pela música‖. Esse período acabou gerando a chamada ‗leituromania
―que levou pedagogos a campanhas de esclarecimento e alerta contra os perigos da
leitura em excesso‖. O que se propunha na época como leitura adequada eram obras
úteis, que tivessem o caráter informativo ou evangélico, meditação e aprendizagem.
No século XX a cultura sofre grandes alterações, conforme explica Zilberman
(2009):
Os meios de comunicação de massa expandiram-se de modo notável
do ponto de vista tecnológico e instrumental, e introduziram-se novos
suportes, como o eletrônico e o digital, e dispositivos revolucionários,
como o computador pessoal e o celular. (ZILBERMAN, 2009, p.14)

Embora, como enfatiza a autora, tenham se passado apenas trinta anos entre
as experiências vividas nos anos 80, se comparados com os meios de comunicação
desse novo milênio, pode-se perceber que:
na passagem dos anos 70 para os 80, o livro apresenta-se como o
receptáculo soberano e insofismável do texto, crença hoje descartada
mesmo por aqueles que entendem o impresso como constituindo
ainda o formato mais adequado para receber e perenizar a escrita,
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em decorrência de seu baixo custo e facilidades de manuseio e de


circulação.(ZILBERMAN, 2009, p.14)

Considerando todas as transformações, o livro não deixou de ser necessário


e presente como forma de aquisição do saber e da cultura. Nessa nova fase, início do
século XXI, ocorrem outras mudanças no Brasil, com a globalização, o neoliberalismo,
a indústria cultural: as histórias em quadrinhos, novelas de televisão e as
manifestações culturais: como o cordel, o funk, o rap e o hip hop, o grafite. Segundo a
autora, vivemos em um período, na qual há, ―a constatação de que tudo é cultura, e de
que tudo é válido, alarga as potencialidades de criação e de investigação, de que
resulta o bem-estar reinante nos segmentos focados nas expressões da arte e do
pensamento‖. (ZILBERMAN, 2009, p.14)
Pensando que o Brasil também tem a sua história, no século XIX surgiram os
primeiros livros escritos no Brasil. Nesse sentido, prossegue a pesquisa, abordando a
história da literatura no nosso país e como foram essas primeiras escritas, suas
influências e alguns dos principais escritores brasileiros.

HISTÓRIA DA LITERATURA INFANTIL NO BRASIL


A literatura infantil no Brasil começa a aparecer no final do século XIX,
quando o país estava num período histórico de abolição da escravatura e do advento
da república, com eleições periódicas e livres na escolha dos representantes políticos.
Concebe-se assim uma nova sociedade, na qual a classe média urbana desejava que
suas reinvindicações fossem atendidas, como por exemplo: maior liberdade política,
melhores negócios, novas oportunidades de educação. Assim o ―aparecimento dos
primeiros livros para crianças incorpora-se a esse processo, porque atende às
solicitações indiretamente formuladas pelo grupo social emergente‖. (ZILBERMAN,
2005, p.15)
Com o aparecimento dos primeiros livros, um novo mercado começou a se
delinear, o da literatura infantil, sendo necessários escritores que produzissem obras
infantis, porém não se tinha um modelo brasileiro para ser seguido, pelo fato de que
no Brasil ainda não se escrevia especificamente para crianças. (ZILBERMAN, 2005)
A solução foi apelar para a tradição popular, imitando o ocorrido na Europa.
Ocorreram as traduções das histórias contadas pelas mulheres em voz alta para seus
filhos, conforme este relato de Zilberman (2005), que afirma que a literatura infantil
procedeu, porém, da tradição popular a principal contribuição, a
saber, as conhecidas até hoje como contos de fadas. Aventuras como
João e Maria, da Bela Adormecida, da Cinderela, de Chapeuzinho
Vermelho eram contadas por e para adultos, até que homens como
Charles Perrault (1628-1703), na França, e Jacob (1785-1863) e
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Wilhelm (1786-1859) Grimm, na Alemanha, as transcreveram e


publicaram visando o público infantil. (ZILBERMAN,2005, p.16-17)

Os escritores brasileiros não fugiram às regras das traduções. O primeiro que


podemos citar foi Carlos Jansen, alemão que se mudou para o Brasil bem jovem,
traduzindo alguns clássicos como: Robison Crusoé (1885) e Viagens de Gulliver
(1888), Contos seletos das mil e uma noites, entre outras obras.
Também podemos citar Figueiredo Pimentel, que seguindo o caminho dos
Irmãos Grimm, publicou a coletânea os Contos da Carochinha (1894), com as histórias
de fadas europeias ao lado de narrativas encontradas entre os descendentes dos
povoadores do Brasil. Ele também incluiu narrativas contadas pelas escravas que
cuidavam das crianças brasileiras. Outro escritor muito difundido na época foi Olavo
Bilac (1865-1918). Suas poesias foram lidas, recitadas e memorizadas por várias
gerações. (ZILBERMAN, 2005)
A literatura infantil se converte facilmente em instrumento de difusão de
imagens de nacionalismo, culto cívico e de patriotismo, conforme mostra esse trecho
do conto ―A Pátria‖ escrita por Olavo Bilac:
As letras se baralhavam, atrapalhadas. Tremia-lhe nos dedos o papel.
Tinha de repousar um pouco: e, quando conseguia terminar a leitura,
ficava abatida e sem consolo diante daquelas notícias que não
variavam nunca. Era sempre a mesma coisa: não se sabia quando
acabaria a guerra, mas Deus velava por ele; era preciso assegurar,
conquistando um bom posto, um futuro feliz para os filhos; além disso
a Pátria estava acima de tudo. Bilac (apud Zilberman, 1985, p.41)
Essa missão patriótica se manifestava de várias maneiras: com a exaltação a
natureza, à história do Brasil, à nossa língua, entre outras. Nos textos também se
encontravam obras relacionadas a assuntos como a caridade, a obediência, a
dedicação à família e ao trabalho, questões religiosas, visões idealizadas da pobreza,
e reforços aos conteúdos curriculares. A escola tornava-se o local no qual circulavam
esses livros, e onde eles eram lidos e trabalhados.
Por volta de 1921, Monteiro Lobato escreve seu primeiro livro voltado para o
público infantil, com personagens criados por ele, como por exemplo: Narizinho,
Pedrinho, Dona Benta, Tia Anastácia, e todo o elenco do Sítio do Picapau Amarelo. Os
personagens principais estavam presentes em todos seus livros, o escritor mudava o
enredo e apresentava novos figurantes que interagiam com os personagens principais
a cada nova obra. (ZILBERMAN, 2005)
De acordo com Maria Antonieta Antunes Cunha (2002, p. 24)
Com Monteiro Lobato é que tem início a verdadeira literatura infantil
brasileira. Com uma obra diversificada quanto a gêneros e
orientação, cria esse autor uma literatura centralizada em algumas
personagens, que percorrem e unificam seu universo ficcional. No

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Sítio do Picapau Amarelo vivem Dona Benta e Tia Nastácia, as


personagens adultas que ‗orientam‘ crianças (Pedrinho e Narizinho),
‗outras criaturas‘ (Emília e Visconde de Sabugosa) e animais como
Quindim e Rabicó.

Lobato e suas obras buscam ainda o nacionalismo, ao colocar o país no


centro de seu pensamento, a exploração do folclore e da imaginação. Os seus livros
obtiveram grande sucesso. E,
graças à atividade de escritor em tempo integral, a literatura infantil
apareceu no horizonte das editoras como um negócio rentável, razão
por que elas se sentiram à vontade para publicar outros autores
nacionais. Não fosse assim, elas abrigariam apenas autores
estrangeiros em traduções ou facilitariam as adaptações de obras
consagradas, como aconteceu no início do século XX. Como vender
livros para a infância dava lucro, as editoras procuraram investir em
outros nomes, fato que conferiu consistência e durabilidade à
literatura destinada às crianças do Brasil. (ZILBERMAN, 2005, p.34-
35)

Entre esses outros nomes podemos citar, Viriato Correia, em 1930, escreve
os livros: Histórias do Brasil para crianças, Meu Torrão, A descoberta do Brasil e A
Bandeira das Esmeraldas. Porém, consagrou-se com o livro Cazuza, o qual relata a
vida cotidiana de um menino do Maranhão em escola de pobres e a sua ida a São
Luís estudar em escola de elite. (ZILBERMAN, 2005)
Graciliano Ramos escreve em 1936, A Terra dos Meninos Pelados, relatando
a discriminação do personagem que tem a cabeça pelada e olhos com cores
diferentes. Através da fantasia e do fabuloso, o menino chega a um lugar onde todos
são iguais a ele. (ZILBERMAN, 2005)
Já o romancista Erico Verissimo estabelece como personagens principais
figuras imaginárias do reino animal, conforme os títulos de suas obras: O Urso com
Música na Barriga, A Vida do Elefante Basílio, Os Três Porquinhos Pobres, Outras vez
os Porquinhos, entre outros livros. (ZILBERMAN, 2005)
Durante os anos 70, segundo Zilberman (2005, p. 52)
a literatura infantil brasileira começa a recontar a história, rejeitando o
que a antecedeu e recusando mecanismos simplórios de inserção e
aceitação social. Graças a essa empreitada arriscada, ela ganhou,
sem barganhar, espaço na escola e junto ao público. A recompensa
foi seu crescimento qualitativo, que a coloca num patamar invejável,
mesmo se comparada ao que de melhor se faz para a criança em
todo o planeta.

Nesse período é destaque na literatura, a escritora Ana Maria Machado e


também narrativas de reis, fadas e sapos com Fernanda Lopes de Almeida (1971),
Eliane Ganem (1975), Pedro Bandeira (1986), Ruth Rocha (1978), entre outros.

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Ziraldo (1969), Lygia Bojunga (1972), Clarice Lispector (1970), Edy Lima, com
narrativas envolvendo o diálogo e o convívio entre gentes e bichos vivendo no mesmo
ambiente e desfrutando de diferentes aventuras. (ZILBERMAN, 2005)
A poesia também esteve presente desde o início da literatura infantil, com
escritores como: Olavo Bilac, Cecília Meireles, Mário Quintana, Vinícius de Moraes,
José Paulo Paes, entre outros.
A inserção desses escritores e suas obras no cotidiano escolar fica a critério
dos professores quando planejam suas leituras diárias, que devem selecionar livros de
acordo com o gosto das crianças na tentativa de que exercitem a leitura crítica e
ampliem a visão de mundo dos alunos.
Na continuidade do trabalho, foi realizada uma pesquisa de campo, em que
segundo Antônio Joaquim Severino (2007, p.123), ―a coleta de dados é feita nas
condições naturais em que os fenômenos ocorrem, sendo assim diretamente
observados sem intervenção e manuseio por parte do pesquisador‖.
Para esse momento foi elaborado um questionário com aplicação em quatro
professoras que atuam em dois centros de educação infantil do município de Videira.
A intencionalidade de tal ação visou analisar como pensavam a contação de histórias,
formas de realização e aplicação, como as crianças reagiam nesses momentos e o
que acontecia ao final.
Para complementar, foram observadas quatro rodas de leituras com o foco
voltado para o interesse das crianças nas práticas de contação de histórias utilizadas
pelas professoras. Ouvir o que as crianças pensam sobre as rodas foi o ponto alto da
pesquisa, procurando identificar se elas compreenderam o enredo e os personagens
da história lida, se a linguagem do livro ficou acessível para a idade da criança, se a
ilustração do livro prendeu a atenção das crianças e se despertou o interesse de
participarem do momento.

CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS E AS RODAS DE LEITURA


De acordo com Cleo Busatto (2013, p.9-10), a roda de leitura foi ―criada nas
últimas décadas do século XX. A ‗contação de história‘ é um neologismo, uma
expressão que se refere ao ato de contar histórias‖. No entanto, elas surgiram, desde
a antiguidade onde já se tinha o hábito de pessoas se sentarem ao redor do fogo, na
varanda de suas casas ou durante as refeições para contar as vivências diárias que
foram significativas.
Betty Coelho (1999) ilustra a cena:

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Fico a pensar no homem primitivo, à entrada da caverna, noite de


luar, fogueira acesa para aquecer o corpo. De que falariam entre si?
Da faina do dia, caçadas, peixes que pescavam, chuva, sol,
contendas, troféus, estrelas distantes que talvez fossem deuses,
lendas contadas pelos antepassados. Certamente esse homem
primitivo fazia silêncio para ouvir aquele que melhor contasse uma
história e haveria de ser o que melhor a revestisse de detalhes, sem
fugir ao essencial, o que tivesse mais dons de graça, fantasia, aquele
que contasse com emoção – como se estivesse vendo o que sua
própria fala evocava na imaginação dos companheiros... (COELHO,
1999, p. 8-9)

À época do homem primitivo, as histórias não tinham um foco, um objetivo


como tem hoje, contando para as crianças, mas a partir dos anos finais do século XX,
atribuíram-se a ela detalhes que fazem a diferença: a leitura de um texto elaborado, a
existência de imagens visuais, sons e um sujeito-contador com domínio da narrativa.
Muda a forma, muitas vezes o texto e o contexto. Também muda a
intenção do contar, mas permanece o que é essencial: a condição de
encantar, de significar o mundo que nos cerca, materializando e
dando formas a nossas experiências. (BUSATTO, 2013, p.10)

A contação de história é considera uma arte. Nesse caso, então aquele que a
realiza precisa ter um domínio profundo da técnica, deve narrar como se fosse algo
que aconteceu com ele e não como um fato estranho, desconhecido pelo mesmo, sem
lhe empregar emoção e sentimento algum. (BUSATTO,2013). Assim, Busatto (2013)
relata que o contador tradicional
ao narrar os contos da tradição popular: contos de fadas, lendas,
mitos, causos, já se depara com uma particularidade desses contos,
que é a de abrir espaço para que possamos imaginar o que irá
acontecer depois do ‗[...] e foram felizes para sempre‘; ou ainda nos
estimula a imaginar o que aconteceu no intervalo de cem anos,
período que durou o feitiço da Bela adormecida; o que aconteceu
com o pai da pequena menina de Os sete corvos, enquanto ela
seguia em buscados irmãos, até o sol, até a lua e às estrelas; [...] (
BUSATTO, 2013, p. 22)
Quando a história é narrada com pausas e intervalos, como se o contador
estivesse narrando algo verdadeiro que aconteceu com ele, permite que o ouvinte
imagine o próprio cenário, estimulando assim o seu imaginário para fantasiar o que
acontece na história contada. (BUSATTO, 2013, p. 22)
Por isso é importante a realização das rodas de leituras na Educação Infantil,
pois os ―livros lidos na infância permanecem na memória do adolescente e do adulto,
responsáveis que foram por bons momentos aos quais as pessoas não se cansam de
regressar‖. (Zilberman, 2005, p.9)
Segundo Gladis Kaercher (2001, p.83) ―um processo amplo de construção de
sentidos, que não se reduz apenas ao domínio da palavra escrita, mas que,
fundamentalmente, abrange a diversas linguagens (gráfico-plástica, musical, corporal,
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imagética, etc.) [...]‖. A cada dia, através de realizações de rodas de leituras diárias,
um novo livro é apresentado e lido à turma. Esse momento diário para Fanny
Abramovich (2009)
É importante para a formação de qualquer criança ouvir muitas,
muitas histórias... escutá-las é o início da aprendizagem para ser um
leitor, e ser um leitor é ter um caminho absolutamente infinito de
descobertas e de compreensão do mundo... (ABRAMOVICH, 2009,
P.14)

Vera Lúcia Bertoni Santos (2001) corroborando com Abramovich enfatiza que
A partir do momento em que a criança torna-se capaz de imaginar,
ela passa a desenvolver diferentes formas de expressão como a
oralidade, a expressão plástica, a música e a expressão dramática,
através das quais estabelece relações com o mundo. (SANTOS,
2001, p.90)

Nas observações, realizadas em quatro turmas de Educação Infantil, foram


percebidas poucas atividades lúdicas. Em duas rodas de leitura se realizou a contação
da história e diálogo entre as crianças. Na primeira observação foi realizada
posteriormente à leitura, pintura coletiva de palitos de picolés e a construção também
coletiva de uma casa de madeira, isso no dia da observação. Durante a semana a
professora construiria a casa de palha e de tijolos representando o conto dos ―Três
Porquinhos‖. Na última observação foi realizada a construção da maquete com a
turma. Foi possível perceber que se sentiam felizes em contar como tinham construído
e coletado os objetos presentes no cenário.
Na análise da contação de história, poder ser utilizada como estratégia de
aprendizagem, cativando as crianças para torná-las futuras leitoras, foi possível
perceber, através das vivências que podem: despertar a imaginação, a curiosidade,
descoberta e compreensão de mundo, incentivar a autonomia e a criticidade, dentre
outras.
Pedro Demo (2006) afirma que o professor precisa ser o protagonista da
qualidade de leitura na escola. Se ele não sabe ler e não demostra prazer ao realizar a
leitura, não haverá aluno que goste de ler. A qualidade da leitura

Não está na repetição, mas na habilidade de fugir dela. Hábito de


leitura não é ler qualquer coisa, mas saber distinguir entre leitura
questionadora e alienante, preferir o peso da autoridade do
argumento bons autores, desconstruir leituras anteriores para que
novas e inovadoras surjam no horizonte, reconstruir desafios sob o
signo da dúvida e da incerteza, sobretudo, superar-se como leitor e
autor, sempre. (DEMO, 2006, p. 56)

Se o professor for o exemplo, há grande chance de o aluno se motivar a


leitura. Aliado a isso, um espaço adequado para ler favorece ao gostar. Na ocasião

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das observações, as rodas de leituras aconteceram em sua maioria na sala de aula.


Apenas uma aconteceu na biblioteca. Vários pontos foram destaque em relação ao
local da realização das rodas. Em duas turmas os alunos foram organizados sentados
em tatames, nos quais podiam deitar-se e se sentir à vontade para escutar a narrativa,
as crianças se mostraram confortáveis e entusiasmadas em ouvir, principalmente na
roda de leitura realizada na biblioteca. Em outra observação a roda de leitura foi
realizada com os alunos sentados em cadeiras organizados em um círculo. Nessa
formação, foi possível perceber uma inquietação por parte de alguns que ao se
movimentarem na cadeira, ocasionavam barulhos e ruídos durante o silêncio da
narrativa.

Porém, a estratégia mais prazerosa foi a utilização de um tapete


emborrachado, chamado pela turma como o tapete mágico. Nele as crianças se
organizaram da maneira que se sentissem à vontade. O combinado também entre a
turma era o respeito ao colega, em fazer silêncio para ouvir a leitura realizada pela
professora. Essa educadora demonstrou entrosamento com a obra a ser lida edomínio
do enredo. O livro foi colocado ao centro do tapete e a professora realizava a contação
como se fosse algo vivenciado por ela. As crianças foram logo convidando para sentar
no tapete com elas e também avisando ―-aqui temos de ficar em silêncio para escutar
a história!‖. Antes e depois da contação foi realizado o diálogo com a turma e todos
tiveram a oportunidade de falar.

Somente uma das duas escolas observadas, pode-se constatar que há


biblioteca, na qual foi realizada uma roda de leitura com uma das turmas. É um local
pequeno, uma janela muito pequena localizada no alto da sala, o que dificulta a
ventilação. O espaço se constitui com uma mesa grande, tatames localizados no
centro e uma estante com poucos livros de literatura infantil. Na instituição que não
possui biblioteca, existem baús com livros que ficam dentro da sala de aula e os
alunos têm acesso, podendo ser transportado para qualquer local que se pretende
utilizar.

As instituições pesquisadas, são da mesma rede e trabalham com o projeto


no qual são enviados livros, caderno de registro, lápis de cores e uma maleta de pano
personalizada com a turma. As identificações são diversas: ―mala-direta‖, ―maleta de
leitura‖ ou ―mala viajante‖. Durante as observações foi possível conhecer algumas e ler
no caderno de registro, as anotações dos pais. Alguns colam fotos da família
realizando a leitura com a criança, relatam reações e sentimentos dos filhos ao
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realizarem a leitura e muitos parabenizam a instituição por através desse projeto


incentivar esse momento na família. Em alguns registros se percebeu o desenho
realizado pela criança com a ajuda de familiares, a criança escrevendo o seu próprio
nome. Segundo Kaercher (2001),

Convidar a família das crianças para participar, registrando as suas


histórias (de vida ou as narrativas orais que são contadas de pai para
filho há gerações) e contando estas e outras histórias pode ser
desafiador e extremamente rico para as crianças. (KAERCHER,
2001, p.87)

Dentre os principais autores utilizados na atividade de contação de história,


destacam-se: Irmãos Grimm, Ruth Rocha, Ingrid Belimghasen, Ana Maria Machado,
Fernanda Lopes de Almeida, Mary e Eliardo França, Ivan e Marcello, Bartolomeu C. de
Queiros, Gerusa R. Pinto, entre outros diversos escritores da literatura infantil
brasileira.
Foram citadas obras dos contos de fadas como: Branca de Neve, Os Três
Porquinhos, João e Maria, Bela Adormecida, As Princesas, Chapeuzinho Vermelho,
entre outros. Segundo Kaercher (2001)
os contos de fadas, com seus seres mágicos e seus finais
exemplares (em que o mal é sempre punido) são histórias que
possibilitam às crianças de qualquer contexto – social, econômico,
cultural, étnico, racial – a vivência de uma experiência sem
precedentes.(KAERCHER, 2001, p.85)
Outras narrativas utilizadas pelos professores foram contos com personagens
animais, citamos como exemplo: O Sitio do Seu Lobato, A Fazendinha, O Macaco
Tagarela, O Minhoco Apaixonado, Formiga Amiga, e também situações do dia-a-dia
da criança como: Alô Mamãe, Balde das Chupetas, Nosso Corpo, Os carros.

Considerações Finais

A leitura é, sem dúvida, relevante em nossas vidas. Independe se for através


de uma roda de leitura na escola ou quando nós mesmos lemos. Se for na escola,
quando realizada com um objetivo, uma proposição de obra, não é somente um
passatempo. Contar história é uma arte, que encanta e nos transporta para um mundo
imaginário só nosso.
A pesquisa proporcionou a oportunidade de confirmar as hipóteses
levantadas, pois foi possível constatar que a contação de história representa um
instrumento didático fundamental, sugerindo que sua utilização seja no planejamento
diário dos alunos de educação infantil, pois essa atividade tende a despertar a

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imaginação, a criatividade, a interação, o diálogo e, principalmente, a formação de


leitores.
Diante do exposto ao longo do texto, as colocações apontam para a interação
necessária entre o professor e o aluno e a habilidade de contar a história, ocasionado
o incentivo à leitura, pelo prazer de descobrir novas situações e possibilitar novas
imaginações.
Há um grande número de obras disponíveis que podem ser lidas para as
crianças e que ora atuam como conteúdo, ora como leitura prazerosa, pelo simples
fato de ler.
Infere-se que para formar leitores não retiramos qualquer obra que esteja na
estante, na biblioteca ou no canto da leitura para concluir o tempo que resta da aula.
Na tentativa de formar leitores, faz-se necessário ler com amor, tornar o momento da
contação, um ato de deleite oportunizando o crescimento, o aprendizado, a troca, a
vivência...
Não há como fugir da leitura, seja ela de um livro, de uma placa, de um rótulo.
Faz parte de nosso cotidiano e da interpretação que queremos dar ao mundo. O
estudo sobre o tema prossegue. No entanto, a diferença é que será realizado tendo
como professora e pesquisadora a própria autora deste artigo, em um processo de
ação-reflexão-ação.

Referências

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

A FORMAÇÃO DO LEITOR E A MEDIAÇÃO DA LEITURA PELA VIA


DAS PRÁTICAS DE LEITURA EM TURMAS DE QUINTO ANO DO
ENSINO FUNDAMENTAL

Gisele Santos De Nadai, Universidade Federal do Espírito Santo,


Formação de leitores e mediação da leitura, Prefeitura Municipal de Serra- ES.

Considerações Iniciais

Inquietações advindas da atuação docente quando ingressei na rede municipal de


ensino de Serra-ES me motivaram a ir a campo com o intuito de investigar como têm sido
promovidas as relações de crianças no final da primeira etapa do Ensino Fundamental com
a leitura na escola. Inquietações que me levaram a refletir sobre os alunos quando transitam
pelos espaços da escola e a questionar como esse ambiente, o espaço escolar, sua
arquitetura, a própria cultura escolar, pode possibilitar ou não o incentivo à leitura e a
formação de leitores. Comecei a me indagar sobre que tipos de práticas de leitura vêm
sendo efetivadas em turmas de séries iniciais do Ensino Fundamental, suas finalidades e
quais dessas práticas são consideradas pelos professores como favorecedoras da formação
de leitores. Outra questão que me incomodava era: Seria diferente o incentivo a práticas
leitoras em escolas que estavam tendo desempenhos diferenciados?
Nesse sentido, apresento neste trabalho alguns recortes dos resultados de minha
pesquisa, em nível de mestrado, cujo objetivo principal foi investigar práticas de leitura
efetivadas com e por alunos de turmas do ensino regular de quarta série em duas escolas
públicas do Município da Serra – ES. Uma que obteve o maior desempenho de acordo com
o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) e outra o menor desempenho em
relação a esse Índice.
Mesmo entendendo que as pesquisas no âmbito da investigação das práticas de
leitura na escola não são novas, a realização deste trabalho contribui mostrando alguns
motivos que interferem na formação do leitor, uma vez que existem diversas pesquisas
promovidas por órgãos oficiais, além das produzidas na academia, nos últimos anos,
empenhadas em apresentar contornos mais nítidos do cenário em que se insere a questão
da leiturae dolivro no país, indicando, principalmente as oficiais, que os brasileiros não leem
1921

nem dois livros por ano, que nossos estudantes estão entre os piores do mundo em testes
de leitura e por meio das quais são apresentados dados concretos para que se possa
buscar sua superação.
É o caso, por exemplo, do Mapa do Alfabetismo no Brasil (Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP/MEC, 2003), do Indicador
Nacional do Alfabetismo Funcional – INAF (2001 e 2005), do Sistema Nacional de Avaliação
da Educação Básica – SAEB (2001 e 2003), do Programa Internacional de Avaliação de
Estudantes – PISA (2000) e do Retrato da Leitura no Brasil – Câmara Brasileira do Livro
(CBL) e Sindicato Nacional de Editores de Livros (SNEL) (2012), que apontam para a
precária formação de leitores.
Portanto, os dados foram coletados a partir de um percurso metodológico de
observação participante empreendido na investigação, caracterizado como estudo de casos
de cunho comparativo, de práticas de leitura efetivadas em duas unidades escolares com
IDEBs diferentes. As análises desses dados foram subsidiadas pelas formulações sobre
leitura de Roger Chartier (1991; 1994; 1997; 1999; 2001; 2002a; 2002b; 2002c; 2004; 2009;
2011) e teve como cerne as noções conceituais de apropriação, representação e práticas
desse teórico.

Ampliação da concepção de leitura a partir das contribuições de Roger


Chartier
Procuramos tratar a leitura por meio de várias concepções, entendendo-a como uma
prática cultural permeada por um processo complexo, interativo, dialógico, crítico, social e
prazeroso. Amparando-nos em Chartier (2001), que observa e/ou descreve os múltiplos
empregos do termo ―leitura‖, passamos a entendê-lo mais amplamente que apenas como
um ―esquema conceitual‖. Com Barthes e Compagnon (1987), reforçamos a ideia de que
leitura é um termo que está imerso num conjunto de práticas entendidas de várias maneiras
e por nós sintetizadas da seguinte forma:

1. Ler pode ser entendido como uma técnica, pois é preciso ter conhecimento das
convenções da escrita para descodificá-la, consumi-la, decifrá-la.
2. Ler pode ser entendido como uma prática social, pois as representações da leitura
sempre estiveram ligadas às esferas privilegiadas, por exemplo, do poder e da
religião; no entanto, conforme Chartier, a leitura é uma prática cambiante no seio de
distintas comunidades.

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3. Ler pode ser entendido como uma forma de gestualidade, pois, por muito tempo, a
leitura gestual dos atores, nos teatros, encantou as pessoas. Hoje, ela é mais
solitária, utiliza apenas os olhos; mesmo assim, envolve situações corporais que
mudaram com os tempos e que ainda compõem o ato de leitura.
4. Ler pode ser entendido como uma forma de sabedoria. Assim, a leitura era
concebida, na Idade Média, e recomendada como forma de enriquecimento
humanístico.
5. Ler pode ser entendido como um método, sendo a retórica concebida como principal
método, que consistia num certo estilo de composição nos discursos e nas escritas
de obras. Depois, passou a ser a boa leitura, a leitura intelectual como
desenvolvimento da inteligência crítica, e adquiriu ―três auréolas prestigiosas: a da
ciência (exatidão, rigor), a da razão (desmistificação), a do gosto (conformidade com
o Belo)‖ (BARTHES; COMPAGNON, 1987, p. 186).
6. Ler pode ser entendido como uma atividade voluntária, pois, hoje, tende a ser
considerada como atividade de prazer pelo leitor, como prática de fruição, como uma
forma de acesso ao Imaginário.

Como pode ser notado, o termo leitura e o ato de ler podem ser compreendidos de
diferentes maneiras. Sob esse viés, nosso trabalho se ancora nos estudos do historiador
francês Roger Chartier, que em muito contribuem para uma visão mais ampla do campo dos
estudos referentes às práticas de leitura e sua trajetória como prática cultural, além de terem
grande relevância pela contribuição dada ―ao estudo das práticas de leitura, seja do passado
– por exemplo, ao investigar a leitura na França do Antigo Regime –, seja do presente, ao
refletir sobre as leituras no mundo digital‖ (EGITO, 2010, p. 47). A esse respeito, Chartier
afirma que:

[...] as experiências individuais são sempre inscritas no interior de


modelos e de normas compartilhadas. Cada leitor, para cada uma de
suas leituras, em cada circunstância, é singular. Mas esta
singularidade é ela própria atravessada por aquilo que faz com que
este leitor seja semelhante a todos aqueles que pertencem à mesma
comunidade (CHARTIER,1999, p. 91).

No que se refere à singularidade do leitor, fica evidenciado, nas palavras de Chartier


explicitadas na citação, uma de suas noções conceituais básicas, a ―apropriação‖, ou seja, o
modo como o leitor toma o texto, considerando que cada leitor tem um modo de ler, tem um
conhecimento prévio próprio e uma intenção, ou se apropria da leitura de modo diferente.

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Por isso, a noção de apropriação utilizada por Chartier permite pensar as diferenças na
divisão, porque postula a invenção criadora no próprio cerne dos processos de recepção
(CHARTIER, 2002b, p.136). Assim, compreendemos que, para Chartier, a leitura é
entendida como uma prática plural, de modo que, numa só obra, há inúmeras possibilidades
de apropriação, dependendo, entre outras coisas, do suporte, da época e da comunidade
em que a obra circula.
Em relação à outra noção conceitual básica dos estudos de Chartier, que é a de
―representação‖, a trazemos para a pesquisa sobre práticas de leitura no âmbito escolar e
nos apropriamos dela, pois as representações podem ser pensadas como ―[...] esquemas
intelectuais, que criam as figuras graças às quais o presente pode adquirir sentido, o outro
tornar-se inteligível e o espaço ser decifrado‖ (CHARTIER, 1991, p.17). Assim, apoiamo-nos
nessa noção conceitual para identificar e analisar representações de leituras de professores
e de alunos de quarta série do Ensino Fundamental de duas escolas públicas do município
da Serra/ES. Para nós, essas representações de leitura permitiram compreender não só
formas diferenciadas de conceber a leitura, mas também concepções que vêm
fundamentando práticas leitoras que se efetivam ao final da primeira etapa do Ensino
Fundamental. Assim, identificamos sentidos que permeiam formas de entender práticas
incentivadoras de leitura ao final dessa etapa de ensino.
Pensando a leitura e, consequentemente, as suas práticas no âmbito da perspectiva
da história cultural, assim postulada por Chartier, pensamos em práticas de leitura como
práticas culturais, levando em consideração formas e modos de ler. Sendo a leitura uma ―[...]
prática criadora, actividade produtora de sentidos singulares, de significações de modo
nenhum redutíveis às intenções dos autores de textos ou dos fazedores de livros [...]‖
(CHARTIER, 2002b, p. 123), ao buscá-la nos mais variados espaçostempos das escolas,
entendemos que ela é própria de cada leitor que se apropria do texto do seu modo e o
representa por meio de suas subjetividades e exterioridades. Tornamos, ainda, os conceitos
de apropriação, representação e práticas interrelacionados e indissociáveis, como apregoa a
perspectiva chartieriana.
Ainda com Chartier (2001, p. 181), passamos a entender que ler ―é pôr em jogo o
corpo, é inscrição num espaço, relação consigo ou com os outros‖; ou seja, o processo de
leitura de um texto envolve o corpo por inteiro e se dá no meio de um contexto (social,
político e cultural), tomando em consideração nossa relação conosco mesmos. Convém
lembrar que a leitura é sempre uma prática encarnada por gestos, espaços e hábitos. Por
isso, não poderíamos deixar de considerar esses aspectos em nossas análises, tomando-

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os, principalmente, como critérios para questões de estudos que serão apresentadas a
seguir.
A respeito disso, Cavallo e Chartier (2002), no livro História da leitura no mundo
ocidental, dão atenção particular às maneiras de ler do passado que, hoje, desapareceram
ou foram marginalizadas, tal como foi com a leitura em voz alta com a função de comunicar
o escrito ou de consolidar formas de sociabilidade, o que nos faz entender que esse gesto
de leitura seguia exigências de uma dada época, do lugar e do ambiente. Os gestos de
leitura atuais, de ler em silêncio e com os olhos, até mesmo na tela do computador, refletem
um modo de ler que vem acompanhando as novas tecnologias e as mudanças do mundo
contemporâneo. A própria materialidade do texto, como já foi exposto, inicialmente em forma
de rolo e, posteriormente, em forma de livro, e o ato de rolar ou de folhear página a página
na leitura são gestos que implicaram/implicam leituras diferentes. Com o entendimento
desses aspectos, dessas peculiaridades que envolvem o ato de ler, buscamos, na tentativa
de olhar o todo, a sutileza de perceber os mais diversos gestos de leitura, em tempos e
espaços plurais, com as turmas da pesquisa, de modo que esses gestos pudessem revelar
práticas e hábitos particulares, permeados por uma dada cultura ou pelas disponibilidades e
pela acessibilidade de materiais escritos a esses leitores.
Portanto, compreendendo a leitura, segundo nosso referencial teórico, Roger
Chartier, como uma prática cultural, uma produção de sentidos e tendo ela significações tão
variadas, entendemos que é por meio das interações que ela se fará uma prática
transformadora para os sujeitos que a praticam. E é nessa direção que seguimos, buscando
interações e representações que desvelassem práticas de leitura, mediadas ou não pelos
professores, para a formação do leitor crítico, como expusemos e como almejamos.

A formação do leitor e a mediação da leitura nas escolas: práticas leitoras

Nos 101 dias dedicados à observação participante ocorrida de dezembro de 2011 a


agosto de 2012, foi possível identificar algumas práticas de leitura recorrentes nas escolas.
No conjunto das práticas de leitura observadas, percebemos que predominaram as
modalidades de leitura silenciosa e em voz alta. Essas duas modalidades se mostraram
bem perceptíveis por algumas de suas características. A leitura silenciosa foi notadamente
marcada por uma prática que insinuava gestos de leitura que consistiam no percurso dos
olhos sobre a página (ou sobre o escrito), e a leitura em voz alta foi marcada por prática que
se configurava pela necessidade da oralização, em voz alta ou baixa (CHARTIER, 2001).

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Os estudos de Chartier (1994, 1999, 2002, 2002b, 2004) mostram que o ato de ler
em voz alta foi marcado, historicamente, pelos suportes do escrito, em que o leitor do rolo lia
para outros de forma pública, pois, na Antiguidade, eram poucos os que sabiam ler e
escrever. Quando a leitura silenciosa começa a se inserir nas situações de leitura, a relação
entre o leitor e o texto passa a ser de intimidade, possibilitando àquele simultaneidade de
leituras e reflexão interiorizada do que foi lido. Essa passagem de um modo de proceder
com a leitura para outro, referida por Cavallo e Chartier (2002) como a primeira revolução da
leitura, quando tomada como referência para se pensarem práticas leitoras no âmbito
escolar, leva a crer que a escola conserva modos de ler da antiguidade que são vistos como
práticas de leitura já consagradas e, portanto, também, próprias da escola.
Dos 51 dias letivos em que permanecemos na escola A e dos 50 dias que
permanecemos na escola B358, a leitura silenciosa realizada pelos alunos nas salas de aula
apareceu mais vezes do que a leitura em voz alta, que foi mais recorrente como uma prática
realizada pelo professor para o aluno. Fora da sala de aula, nessas escolas, as crianças
realizaram mais a leitura na modalidade em voz alta. Esse fato nos permite depreender que
mecanismos reguladores da organização do ensino no interior da sala de aula podem estar
interferindo para que a prática de leitura oral pelo aluno seja mais propensa a ocorrer em
espaços escolares externos à sala de aula, o que, de certa forma, acaba controlando os
modos de agir das crianças, na escola. Nesse sentido, podemos pensar que existe, nas
escolas, tanto de maior como de menor IDEB, um certo assujeitamento das crianças aos
espaços e às normas escolares de funcionamento desses espaços que acabam definindo,
até mesmo, as modalidades de práticas leitoras na escola.
Por meio de nossas observações em campo, ficou claro que a sala de aula se
configurava como o espaço, o lugar em que mais ocorriam práticas de leitura nas escolas,
pois em todos os dias que lá estivemos, nas duas escolas, por vários momentos, os alunos
realizaram práticas de leitura nesse espaço. O fato de as crianças permanecerem quase a
totalidade do tempo escolar nesse ambiente, ou seja, de permanecerem em sala de aula por
um período de quatro horas, das quatro horas e vinte minutos em que habitam a escola,
demonstra que, ao se priorizar a realização de atividades escolares na sala de aula apenas,
contribui-se para que determinados modos de ler sejam mais enfatizados do que outros, o
que pode passar a ideia de que práticas de leitura na escola devem se restringir a ler em
voz alta ou silenciosamente.

358
A escola denominada ―Escola A‖ se localiza em bairro de classe média e apresenta o maior IDEB
2009 (6,2), e outra se localiza em bairro de classe baixa, apresenta a menor nota no IDEB 2009 do
município (3,4) e a denominamos de ―Escola B‖.

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Apenas os horários reservados para o recreio e para as aulas de Educação Física se


configuravam como momentos em que as crianças tinham a oportunidade de transitar por
outros espaços escolares. Nesses momentos, as crianças estavam quase sempre
distanciadas de práticas incentivadoras de leitura, pois acabavam participando mais de
brincadeiras e práticas esportivas do que de atividades que promovessem a leitura. Ora, se,
na maior parte do tempo, permanecem em sala de aula envolvidas em atividades
pedagógicas que exigem leituras dirigidas e controladas, quando estão fora buscam outras
atividades que sejam mais livres e descomprometidas, o que pode justificar as ausências de
práticas leitoras em ambientes fora a sala de aula.

Práticas de leitura silenciosa

A predominância da leitura silenciosa na sala de aula de ambas as escolas mostra


que a escola confere centralidade a uma prática de leitura que prioriza a compreensão
interiorizada do leitor. Dessa forma, podemos afirmar que, na escola, a prática de leitura
oral, como certo ritual coletivo, cedeu espaço à prática individual e solitária de leitura.
Em nossa pesquisa, foi possível identificar que práticas de leitura silenciosa
realizadas pelos alunos predominam com a finalidade de cumprir tarefas. A leitura nessa
modalidade apareceu com mais intensidade quando os alunos foram conduzidos a fazer a
cópia do conteúdo do quadro para os cadernos, a fazer exercícios, a buscar significados de
palavras no dicionário, a ver traçado de letras no alfabeto fixado na parede da sala de aula,
a ler bilhetinhos e recados, a escolher livros de literatura e a estudar para provas. Ou seja, a
modalidade de leitura silenciosa ficou marcada, nas salas de aula dessas escolas,
costumeiramente, por uma finalidade relacionada à prática pedagógica de leitura, em que os
alunos liam para atender a um objetivo marcado pela escola. Desse modo, é possível
afirmar que, nos contextos pesquisados, dava-se prioridade a práticas de leitura em que a
inscrição do sujeito leitor se fazia controlada e dirigida.
A título de exemplificação, entre tantas situações observadas, trazemos o relato do
dia 3 de maio de 2012, que consta do nosso Diário de Campo, da escola A. Depois de uma
avaliação, a professora passou um poema de Cecília Meireles no quadro e pediu que as
crianças o copiassem em seus cadernos e respondessem questões de localização de
informações no texto, sem antes ter sido realizada nenhuma leitura, nem qualquer estratégia
motivadora para leitura do poema. Esse relato exemplifica como a prática de leitura é
concebida na escola como atividade em que prevalece a finalidade de cumprir tarefa para
ocupar o tempo e como os aspectos semânticos do texto, tais como a ironia e a crítica
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social, não são privilegiados pela ação pedagógica. O texto foi apresentado à criança
apenas para ler silenciosamente e responder às questões de compreensão. Essa atividade
não foi retomada, nem sistematizada posteriormente. O poema para as crianças copiarem e
a atividade para realizarem foram os seguintes:

As meninas

Arabela
Abria a janela

Carolina
Erguia a cortina

E Maria
Olhava e sorria
―Bom dia!‖

Arabela
Foi sempre a mais bela

Carolina
A mais sábia menina

E Maria
Apenas sorria
―Bom dia!‖

Pensaremos em cada
menina
Que vivia naquela janela,
Uma se chama Arabela
Outra que se chama
Carolina

Mas a nossa profunda


saudade
É Maria, Maria, Maria
Que dizia com voz de
amizade
―Bom dia!‖

Cecília Meireles . Ou isto


ou aquilo. Rio de Janeiro
Nova Fronteira, 1980
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TRABALHANDO O TEXTO

1) Responda às questões:

a) Qual é o título do poema?


b) Qual é o nome da autora do texto?
c) Quantas estrofes tem o poema?
d) Quantos versos tem o poema?

2) Una as partes e forme as frases indicando o que fez cada personagem do


poema/texto.

Arabela erguia a cortina


Carolina olhava e sorria ―Bom dia!‖
Maria abria a janela

Na escola B, as práticas de leitura na modalidade silenciosa em pouco se


diferenciaram das práticas da escola A. Prova disso é o modo como a professora da
escola B iniciava suas aulas, sempre passando no quadro umtexto para leitura, o qual
os alunos deviam também copiar em seus cadernos.
No dia 5 de junho de 2012 a professora iniciou a aula passando no quadro um
texto para leitura, o qual os alunos deveriam também copiar em seus cadernos. O
texto era ―Aconteceu no taxi‖, de Patrícia Ester e Ana Paula, escrito especialmente
para a obra Coleção Fique Ligado em Língua Portuguesa, editora FAPI. Na primeira
aula, houve apenas a cópia do texto; na segunda aula, as crianças tiveram aula de
Artes, e, na terceira aula, a professora regente voltou e passou no quadro atividades
sobre o texto. A turma ficou envolvida, copiando e respondendo, até vinte minutos
antes do recreio, pois logo a professora passou a fazer a correção das atividades,
enfocando os tempos verbais e os artigos nas frases que os alunos escolheram como
resposta para a atividade um; o sentido de expressões e de palavras no texto; a
localização de informações do/no texto e as características dos personagens do texto.
Depois de responder às questões, a professora passou a dialogar com a turma a
respeito do texto, perguntando e ouvindo os alunos: ―O texto fala de que mesmo?‖,
―Vocês já andaram de táxi?‖, ―Como que era o táxi?‖, ―E o motorista?‖, ―O que é
‗negoçado‘?‖, ―Explica, o que é Isso?‖

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01

Foto 01 - Texto e atividade retirada do livro.

Como foi relatado, constatamos que foram priorizadas, também, por essa
professora, práticas de leitura com finalidades meramente didáticas que se aproximam
das práticas leitoras conduzidas pela professora da escola A. O diferencial é que a
professora da escola B, ao final da aula, fez intervenções e dialogou com as crianças a
respeito da temática dos textos lidos ou do conteúdo trabalhado, indiciando a busca
por se realizar um trabalho em que a leitura pudesse ser perpassada também pelo
aspecto discursivo.
Essa estratégia utilizada pela professora da escola B para dialogar com os
alunos, ao final do cumprimento das atividades, possibilitou outras relações de
sentidos, pois as crianças foram estimuladas a relacionar elementos do texto lido com
suas experiências de vida. Achamos, porém, necessário que essa estratégia seja
realizada no início da abordagem do texto, para que os alunos possam ativar seus
conhecimentos, esclarecer suas dúvidas, repensar sobre o escrito e ter condições de
responder às questões de forma mais coerente.
Consideramos, pois, importante, ainda, evidenciar a quantificação das
ocorrências de leitura em espaços externos à sala de aula, a fim de mostrar que as
crianças leem também em outros espaços da escola, mas que práticas de leitura
diversificadas poderiam ser mais promovidas se professores, pedagogos e diretores
não secundarizassem a importância desses lugares para incentivo de experiências de
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leitura. A escola, como espaço promotor da formação do leitor, deveria favorecer o


acesso das crianças a suportes e materiais de leitura diversificados. Ou seja, deveria
tornar disponíveis e acessíveis a elas espaços, materiais e momentos incentivadores
de práticas de leitura variadas.
A contabilização das ocorrências se deu com base nos gestos e modos de
leitura com os quais nos deparávamos nos dias das observações em campo
juntamente com um esforço empreendido no sentido de acompanhar as crianças no
máximo de momentos da rotina escolar. Sabemos, porém, que, em alguns períodos,
por exemplo, no pátio durante o recreio ou na quadra durante a aula de Educação
Física, em que as crianças se dividiam em grupos e faziam muitas coisas ao mesmo
tempo, deixamos de captar algo significativo, pois não poderíamos estar em dois
lugares simultaneamente. Assim, diante do que foi possível observar, podemos dizer
que o pátio da escola foi o segundo espaço escolar em que as crianças mais tiveram
contato com o escrito e mais puderam praticar leituras.
Esses dados demonstram que, em ambas as escolas, independentemente de
IDEBs diferenciados ou não, as práticas leitoras se fazem presentes em proporções
parecidas e que as crianças têm interesse por práticas de leitura, mas que, por conta
do didatismo, ainda se tem feito pouco para organizar atividades escolares que
possam proporcionar o maior acesso das crianças a diferentes suportes textuais.
Constatamos também com a pesquisa que, nas escolas envolvidas, a utilização
de materiais diversificados de leitura, tais como livros, jornais, revistas, gibis, apareceu
pouquíssimas vezes nas turmas. Isso indica que as crianças, tanto na escola A como
na escola B, não vivenciaram, de forma sistemática, o contato com a diversidade de
suportes textuais que circulam fora da escola, ou seja, ficaram limitadas a suportes
textuais circunscritos a atividades escolares, e, quando puderam fazer a leitura
silenciosa desses materiais, mesmo tendo sido eles disponibilizados pela escola, essa
prática de leitura partiu da iniciativa das próprias crianças. Com isso, concluímos que,
por mais que a escola disponibilizasse determinados suportes de leitura, a falta de um
trabalho que marcasse as finalidades e as características desses suportes não
contribuiu para uma apropriação mais significativa deles.

Práticas de leitura em voz alta

Na escola B, no dia 10 de agosto de 2012, depois de as crianças terem


copiado o texto do quadro (De sol a sol, de Lucilia de Almeida Prado), a professora
iniciou uma dinâmica de leitura em voz alta a qual ela chamou de ―leitura
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compartilhada‖. Nessa dinâmica, que durou duas aulas, ou seja, cerca de uma hora e
meia, cada aluno lia em voz alta uma parte do texto e a professora acompanhava
fazendo as correções na entonação da leitura e na organização do texto nos cadernos
dos alunos. Assim, ela percorreu de mesa em mesa ―tomando leitura‖ com o intuito de
saber quem lia fluentemente e quem apresentava dificuldade. Em seguida fez a
correção das perguntas, lendo as questões e solicitando as respostas dos alunos.
Focou também nos significados de algumas palavras e nos sinais de pontuação do
texto, lendo alguns trechos de forma a marcar a pontuação que ali aparecia,
explicando a funcionalidade da interrogação, da exclamação, do travessão e do ponto
final, discutindo os sentidos do texto e ouvindo como os alunos haviam entendido o
título e o enredo da história que justificava o título. Houve interação e um diálogo muito
produtivo entre a professora e os alunos, que expuseram suas opiniões, suas
vivências e foram ouvidos com carinho pela professora, o que se deu de forma
tranquila, sem tumulto.
É interessante pontuarmos que a leitura feita em voz alta, na dinâmica da sala
de aula, constituía a prática docente ou só era feita pelos alunos mediante autorização
das professoras. Insistimos em dizer que isso demonstra um ―modelo cultural [...]
claramente atravessado pela noção de poder‖ (DALVI, 2012, no prelo), pois marcam
apropriações e representações de sujeitos que tentam controlar práticas leitoras no
espaço da sala de aula. Tanto que, na escola A e na escola B, as professoras sempre
faziam leituras oralizadas de forma que elas estivessem no controle das situações,
direcionando as práticas. Porém, na escola B, a professora também utilizava essa
modalidade de leitura para dialogar com a turma e estabelecer sentidos aos textos,
enquanto a professora da escola A se mantinha na superficialidade do texto ou em
aspectos linguísticos.
Ressaltamos que a prevalência de representações de leitura como uma prática
mecânica de decodificação ou de recuperação de informações contidas nos textos,
como as evidenciadas nos relatos acima, imprime à formação de indivíduos leitores
um caráter prático utilitário. Ou seja, a escola valoriza práticas de leitura que vão
apenas servir para que as crianças saiam da escola dominando a leitura para ler
textos curtos, para realizar alguma atividade que demanda a recuperação de alguma
informação necessária à execução de uma ação, etc. Nesse sentido, até então,
práticas de leitura priorizadas com os alunos de turmas de quarta série em escolas de
desempenho IDEB diferentes nos mostram muito mais uma equidade do que uma
disparidade.

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Apesar dessa constatação, não podemos desconsiderar o fato de algumas


práticas de leitura terem contado com momentos promotores de diálogo com a turma
sobre o texto e até mesmo com o incentivo das crianças para relatarem experiências
vividas que tivessem alguma relação com o tema tratado no texto. Isso é revelador de
que existe também, na escola, certo movimento que caminha para instaurar práticas
de leitura que buscam motivar a criança a interagir com o texto e com os outros
envolvidos no processo de leitura. Nesses poucos momentos, foi possível identificar
nas escolas representações sobre leitura balizadas na crença de que ler é interagir
com o texto. No entanto, podemos perceber que toda essa prática pedagógica das
docentes tinha um pano de fundo em que o foco se atribuía ao cumprimento de
tarefas, o que evidencia um comprometimento para promoção de um leitor que
entenda a leitura na perspectiva da produção de sentidos, nos termos que Zappone
(2001) denomina por linha discursiva.
Entendemos que formar um leitor competente supõe formar alguém que
compreenda o que lê, que possa aprender a ler também o que não está escrito,
identificando elementos implícitos, e que seja capaz de estabelecer as relações entre
o texto que lê e outros textos já lidos, compreendendo que diversos sentidos podem
ser atribuídos a um texto, conseguindo justificar e validar a sua leitura.
Desse modo, no dia 31 de maio de 2012, na escola A, a pedido da professora e
conforme combinado no dia anterior, realizamos uma dinâmica de aula com a turma
no intuito de levar mais livros de literatura para os alunos e de trabalhar, de forma
lúdica, algumas estratégias de leitura. Dessa forma, como percebemos, em conversa
informal com a turma, que ainda havia interesse e encantamento pelos clássicos
infantis, socializamos com as crianças alguns livros, mas apresentamos e lemos para
elas a história do livro Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque, de modo que
pudéssemos discutir os sentidos do texto, dados pelo autor e por cada um. Oralmente,
fizemos alguns questionamentos e abordagens sobre o livro, relacionando-o com
outras histórias e ouvindo as histórias, os casos, os relatos de experiência das
crianças. Depois, apresentamos à turma um outro livro ―Chapeuzinhos Coloridos‖, de
José Robero Torero e Marcus Aurelius Pimenta com diferentes versões para a história
da Chapeuzinho Vermelho. Lemos duas versões para a turma e, como estava próximo
do horário do recreio, deixamos que eles manuseassem os livros, conversassem uns
com os outros, lessem as histórias.

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02 03

Fotos 02 e 03 - Alunos da escola A fazendo leitura de livros de literatura.

Na quarta aula, depois do recreio, a professora nos perguntou se não iríamos


continuar apresentando as histórias. A turma toda pediu que lêssemos as outras
histórias do livro Chapeuzinhos coloridos, e os alunos demonstraram muito interesse
em ouvir. Então, no ensejo da empolgação das crianças, fizemos a leitura das outras
histórias, buscando, por meio do diálogo, de pausas, de indagações sobre o que viria,
sobre o que eles achavam, trabalhar a leitura na perspectiva de ensinar as crianças
formas de dialogar com o texto e de produzir sentidos. A leitura em voz alta que
empreendemos na turma, seguindo essa perspectiva, foi realizada com pausas e
interrupções para lançamento de questionamentos sobre o texto que levavam as
crianças a anteciparem informações, a elaborarem hipóteses e inferências e a
corroborarem ou não as colocações quanto a vários aspectos do texto. Ao final, a
professora pediu que passassemos alguma atividade sobre o livro. Dessa forma,
sugerimos à turma que fosse produzidas as suas versões para a história, modificando
algumas partes, mexendo na história, assim como fizeram os autores do livro. Como
alguns alunos quiseram fazer a atividade em dupla, deixamos que se organizassem
como preferissem e, com isso, pudemos constatar que todos se envolveram na tarefa
de produção de texto, trocando ideias com os colegas e escrevendo juntos.
Propusemos também que eles apresentassem suas histórias para os colegas no dia
seguinte, de modo que realizassem a leitura em voz alta para expor suas histórias, e
eles ficaram ainda mais animados, demonstrando terem gostado da ideia.
No dia seguinte, as crianças já chegaram à escola falando a respeito de suas
produções, e cada criança ou dupla foi à frente da sala para mostrar a versão dada
para a história da Chapeuzinho, lendo a história produzida. Nesse sentido, podemos
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afirmar que as crianças foram inseridas num contexto de produção e vivenciaram uma
experiência em que o texto, nas palavras de Geraldi (1991), foi ponto de partida e de
chegada do processo ensino aprendizagem. A participação, o envolvimento e a
satisfação das crianças foram marcantes, pois puderam acionar a imaginação, a
criatividade, a inventividade numa situação de leitura significativa e produzir textos se
constituindo como sujeitos autores, que assumem o que dizem, que têm o que dizer,
uma razão para dizer e para quem dizer (GERALDI, 1991).
A leitura realizada em voz alta, tanto pelo adulto como pelas crianças, nas
situações relatadas, se configurou como fruitiva, pois prevaleceu a possibilidade
gratuita de estar com os outros e com eles compartilhar a leitura, portanto, foram
práticas que possibilitaram se constituir por meio da leitura (GERALDI, 1991). Assim,
diante dessas leituras fruitivas, do entrosamento dos alunos e das aprendizagens
possibilitadas nesse tipo de aula, perguntamo-nos: Por que se insiste em práticas de
leituras mecânicas e desestimulantes? Esse questionamento nos leva a acreditar que
a resposta está no que postula Klebis (2008):

Uma aula e leitura que não tenha outro propósito senão o de


proporcionar um contato com os textos, de aproximar livros e leitores
para que aqueles sejam ―sentidos‖ por estes, uma aula em que tão
somente se lê, não é considerada, na opinião de muitos
professores, uma ―aula-de-fato‖ (KLEBIS, 2008, p.38, grifo nosso).

Nessa direção, acreditamos que a mudança de concepção que sustenta e


orienta a prática pedagógica das docentes nessas escolas é primordial para a
mudança de metodologia do professor e para uma melhor formação de leitores. Ainda
é elementar o envolvimento dos docentes com a leitura enquanto objeto de
conhecimento, compreendendo suas abordagens teórico-metodológicas e toda a
complexidade que envolve a palavra leitura e o ato de ler.

Considerações Finais

Por meio da leitura na modalidade silenciosa, que foi a predominante,


conseguimos constatar que as práticas de leitura realizadas no âmbito das salas de
aula são controladas pelas professoras, que partem de uma concepção de leitura
como mera decodificação do texto, considerada a partir de seu aspecto utilitário,
limitando, na maioria das vezes, as crianças a leituras superficiais e acríticas, como se
o fomento ao prazer da leitura não estivesse vinculado à prática pedagógica. Essa
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visão de leitura reflete-se negativamente na formação do leitor e nos revela o quanto a


escola ainda distancia o aluno do gosto pela leitura, causando muito mais uma repulsa
do que um encantamento e deixando de cumprir o seu papel, que é o de formar
sujeitos leitores, ativos e críticos.
Por meio da prática de leitura na modalidade em voz alta, realizada
predominantemente pelas professoras para explicar, corrigir e ler para as crianças,
percebemos que as aulas, quando regidas por essa modalidade e por essas
finalidades, se tornaram cansativas e mecânicas, revelando a soberania de um sujeito
sobre os outros. No entanto, a leitura em voz alta, quando foi realizada pelas crianças
em outros tempos e espaços, de modo livre ou quando feita pelo adulto para fruição,
revelou-se atraente e descontraída. Essa observação nos indica que a escola ainda
não percebeu o aluno como ser ativo, integrante e participante do processo
ensinoaprendizagem. Há, ainda, uma tendência da escola em direcionar determinadas
práticas leitoras, como se elas fossem mais importantes do que as outras e como se a
leitura não compreendesse tudo que nos cerca, que nos envolve e que produz sentido
para as pessoas.
Em resumo, podemos perceber que, embora as escolas apresentem
desempenho IDEB diferenciado e destoante, as práticas leitoras em muito se
parecem. São predominantemente realizadas na modalidade silenciosa ou em voz alta
mediadas pelas professoras, regidas por fins específicos, em tempo e lugares próprios
e em suportes iguais. Uma abordagem ou outra diferem, pois são feitas por sujeitos
que estão em constante processo de apropriação.
Acreditamos, portanto, que políticas públicas que verdadeiramente entendam a
importância da escola e da leitura devem considerar também os aspectos sociais,
culturais e econômicos que permeiam esses contextos, e não apenas aferir nota por
meio de exames padronizados que os desconsideram. É preciso que os profissionais
envolvidos na educação de sujeitos que se queira leitores (re)pensem suas práticas e
se apropriem de referenciais teóricos que possam sustentá-las, a fim de melhor

conduzir suas representações de leitura.


DE NADAI. Gisele Santos. Práticas de leitura em turmas de quarta série do ensino
fundamental em escolas da Prefeitura Municipal da Serra-ES. Dissertação (Mestrado em
Educação) – Universidade Federal do Espírito Santo, 2013. Orientadora: Cleonara Maria
Schwartz.

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Referências

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CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. Traduzido por


Reginaldo de Moraes. São Paulo: UNESP/ Imprensa Oficial do Estado, 1999.

______. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietudes. Traduzido por


Chittoni Ramos. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRS, 2002a.

______. A história cultural: entre práticas e representações. Traduzido por Maria


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______. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os


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______. Leituras e leitores na França do Antigo Regime. Tradução de Álvaro


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______. O mundo como representação. Estudos Avançados. São Paulo, v. 5, n.11,


Jan/abr. 1991.

______. Os desafios da escrita. Tradução de Fulvia M. L. Moretto. São Paulo:


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ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2001.

DALVI, Maria Amélia. Uma leitura de O medo do mato, de Rodrigo Britto, e de Guido,
a folha e o capim, de Paulo Roberto Sodré. In: DALVI, Maria Amélia.; LOPES,
Orlando; NEVES, Reinaldo Santos. Bravos Companheiros e Fantasmas V: estudos
sobre o autor capixaba. Vitória: Edufes, 2012 [no prelo].

EGITO, Regina. Obrigação ou prazer: o mundo da leitura de alunos do curso de


Letras-português da Ufes. 2010. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa
de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória,
2010.

GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

KLEBIS, Carlos Eduardo de Oliveira. Leitura na escola: problemas e tentativas de


solução. In: SILVA, Ezequiel Teodoro da. (Org.). Leitura naescola. São Paulo: Global:
ALB-Associação de Leitura do Brasil, 2008.

ZAPPONE, Mirian Hisae Yaegashi. Práticas de leitura na Escola. Tese (Doutorado


em Letras), Universidade Estadual de Campinas, SP, 2001.

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ANAIS DO V Congresso
Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ

A FORMAÇÃO DO LEITOR NA BIBLIOTECA UNIVERSITÁRIA:


POSSIBILIDADES E LIMITES

Maria Júlia Feitosa Rojo, FFC/UNESP/Marília, Formação de leitores e


mediação de leitura.
Elianeth Dias Kanthack Hernandes, FFC/UNESP/Marília, Formação de leitores
e mediação de leitura.
Isabela Fernanda Roberto da Silva, FFC/ UNESP/ Marília, Formação de
leitores e mediação de leitura
Larissa Magron Carrion, FFC/ UNESP/ Marília, Formação de leitores e
mediação de leitura

Considerações Iniciais

Este trabalho parte do pressuposto de que a Biblioteca Universitária não tem


sido utilizada como espaço de formação do leitor. Admitimos que no espaço
universitário a Biblioteca está sendo organizada e utilizada pressupondo a existência
de estudantes que já se constituíram como leitores plenos, e isso nem sempre é real.
Nessa perspectiva é necessário aproximar a Biblioteca Universitária do público para o
qual ela existe, articulando suas finalidades e seus procedimentos ao perfil proposto
para os alunos egressos constantes nos Projetos Políticos Pedagógicos – PPP - de
cada curso de formação universitária.
Com as ideias acima expostas, decidimos investigar como a Biblioteca
Universitária pode possibilitar a formação do aluno-leitor durante seu período no
Ensino Superior. Para isso, julgamos necessário cumprir as seguintes etapas: a)
identificar o perfil leitor dos alunos do curso de Pedagogia; b) investigar os serviços
que a biblioteca oferece a seus alunos e, como este fator influencia no momento da
leitura, ou da escolha do livro; c) identificar os principais motivos que fundamentam a
opção dos alunos por não lerem; d) descrever como a mediação da biblioteca durante
o curso ajuda na formação do leitor.
1939

A natureza da pesquisa realizada é quanti-qualitativa, pois, primeiramente, foi


definido que haveria uma quantidade de pessoas para serem objetos da investigação,
ou seja, os alunos da graduação do curso de Pedagogia da UNESP de Marília, na sua
relação com o número de livros lidos e retirados (quantos e quais) da Biblioteca
universitária. Portanto as pesquisadoras precisaram estar cientes da relação de causa
e efeito desses fatores e que ocorreriam variáveis a serem consideradas e/ou
descartadas durante a realização da pesquisa. O caráter qualitativo foi dado quando
trabalhamos com o conjunto de variáveis, que foram demonstradas através das
entrevistas e questionários. O trabalho investigativo ainda está em processo, mas
quando for totalmente concluído pretendemos apresentar uma pesquisa onde todos os
dados apresentados neste período serão relevantes, pois através destes será possível
explicar as relações e mudanças que ocorrem quando o sujeito da pesquisa se
―encontra‖ com o ambiente bibliotecário.

A escolha do objeto de estudo e das etapas de pesquisa


À noite, ele saia vasculhando as estantes da biblioteca,
puxando livros a esmo daquelas milhares de estantes e lendo-
os feito um doido. Pensar naquelas estantes intermináveis
repletas de livros deixava-o ensandecido – quanto mais lia,
mais inumeráveis pareciam ser aqueles que jamais conseguiria
ler. [...] Lia insanamente, às centenas, aos milhares, às
dezenas de milhares. [...] A ideia (ele pensava) de que outros
livros estavam aguardando por ele atormentava-lhe o coração.
(Thomas WOLFE, 1935 apud Matthew BATTLES, 2003, p. 9).

Não há melhor forma de explicar a grande paixão que as autoras deste


estudo têm pelos livros do que através do pequeno treco de Of time and the river,
escrito por Thomas Wolfe, no momento que Eugene Gant descobre a biblioteca de
Widener. As nossas histórias, apesar de terem ocorrido em contextos, lugares e
tempos muito diversos, são coincidentes em um aspecto fundamental: desde
pequenas fomos muito apaixonadas por livros e pela leitura. Compartilhamos histórias
de quando éramos crianças, olhávamos as estantes das bibliotecas, bem maiores que
nós, lotadas dos mais diversos livros e ficávamos encantadas imaginando as histórias
que ali habitavam. Uma das autoras deu o seguinte depoimento no momento que
decidimos que a Biblioteca universitária seria nosso foco de pesquisa:

Quando entrei na universidade o primeiro lugar que quis


conhecer foi a biblioteca, me encantei com a quantidade de
livros que ali se encontravam. Entretanto, conforme o tempo
passava comecei a perceber que era uma das poucas alunas

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da sala que frequentava a biblioteca da universidade. (Autora


1, 2017)

Outra experiência compartilhada durante o planejamento da pesquisa foi um


acontecimento ocorrido duran

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