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LP

EM.10.LP.3.34.21.A-1619

Sequência Didática do Aluno


Campo artístico-literário
Leitura e
Interpretação

Ensino Médio Crônica e conto

Ponto de
PARTIDA

Você tem lembrança de cenas que viu e que chamaram sua atenção? É capaz de descrevê-las? Que sentimentos elas
despertaram em você? Por que acha que isso aconteceu?
Observe as fotos a seguir.

Sequência Didática | Língua Portuguesa | Leitura e Interpretação de Textos | Crônica e conto 1


Imagens disponíveis em
www.iqe.org.br/surl/?004ee2
www.iqe.org.br/surl/?1e9a69
www.iqe.org.br/surl/?aaf5fe
www.iqe.org.br/surl/?f1bac7
Acesso em 10/03/2019.

As fotos ´levaram` você para um lugar, um tempo específico? Elas podem ser consideradas atemporais? Um ´flagran-
te` de um acontecimento a ser eternizado? Elas tocariam você de uma forma diferente? Podem fazer rir, chorar, refletir, se
revoltar, se indignar? Por quê?

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Atividade 1

Depois de fazer a leitura das fotos, você fará a leitura de um texto que tem relação com o Ponto de Partida. Para a leitu-
ra/compreensão do texto, há questões para orientar estratégias de leitura necessárias ao processo.

“A crônica é algo para ser lido enquanto se toma o café da manhã, pois ela busca o pitoresco ou o irrisório no
cotidiano de cada um. É o fato miúdo: a notícia em que ninguém prestou atenção, o acontecimento insignificante,
a cena corriqueira. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano. Visava ao
circunstancial, ao episódico. Nessa perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras
de uma criança, ou num incidente doméstico, torno-me simples espectador”.

Fernando Sabino. Trecho presente em COSTA, Sérgio Roberto. Dicionário de gêneros textuais. Belo Horizonte: Autêntica: 2008.

1. No contexto em que elas se apresentam, como você definiria as palavras ´pitoresco` e ´irrisório`?
2. Como o autor explica a expressão ´fato miúdo`?
3. O uso do pronome ´eu`, na terceira linha do texto, remete a quem?
4. No contexto em que ela se apresenta, como você definiria a frase ´Visava ao circunstancial, ao episódico`?

5. Assinale as alternativas que representam fatos inusitados do cotidiano:


a) Jovem tinha biblioteca de livros roubados em casa
b) Galinha de 1 metro é vendida por R$ 74 mil em leilão
c) Menino telefona para a polícia e pede ajuda com dever de Matemática
d) Urubu Casemiro é enterrado com pompa em MG

6. O texto apresenta
a) um ponto de vista do cronista sobre incidentes domésticos.
b) uma sucessão de fatos corriqueiros do ponto de vista do leitor.
c) uma definição de crônica do ponto de vista do cronista.
d) um ponto de vista do cronista sobre a insignificância das pessoas.

7. De acordo com a definição de crônica exposta pelo autor, marque as alternativas que representam fatos do cotidiano:
a) a perda de um animal de estimação.
b) o encontro entre um fã e seu ídolo.
c) a final de um campeonato de futebol.
d) a perda de um ente querido.
e) o nascimento de uma criança.

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Atividade 2

Como você já sabe, a crônica é um gênero textual que explora fatos do dia a dia, acontecimentos que propiciam mo-
mentos de nostalgia, enternecimento, indignação, diversão etc. Agora, você lerá uma crônica escrita por Ivan Ângelo, publi-
cada na revista Veja.

TROPEÇOS

O compenetrado pintor de paredes olhou as grandes manchas que se expandiam por todo o teto do banheiro
do nosso apartamento, as mais antigas já negras, umas amarronzadas, outras esverdeadas, pediu uma escada,
subiu, desceu, subiu, apalpou em vários pontos e deu seu diagnóstico:
— Não adianta pintar. Aqui tem muita "humildade".
Levei segundos para compreender que ele queria dizer "umidade". E consegui não rir. Durante a conversa, a
expressão surgiu outras vezes, não escapara em falha momentânea.
Há palavras que são armadilhas para os ouvidos, mesmo de pessoas menos humildes. São captadas de
uma forma, instalam-se no cérebro com seu aparato de sons e sentidos – sons parecidos e sentidos inade-
quados – e saltam frescas e absurdas no meio de uma conversa. São enganos do ouvido, mais do que da
fala. Como o tropeção de uma pessoa de boas pernas não é um erro do caminhar, mas do ver.
Resultam muitas vezes formas hilárias. O zelador do nosso prédio deu esta explicação por não estar o eleva-
dor automático parando em determinados andares:
— O computador entrou em "pânico".
Não sei se ele conhece a palavra "pane". Deve ter sido daquela forma que a ouviu e gravou. Sabemos que é
"pane", ele assimilou "pânico" — a coisa que nomeamos é a mesma, a comunicação foi feita. Tropeço também é
linguagem.
O cheque bancário é frequentemente vítima de um tropicão desses. Muita gente diz, no final de uma história
de esperteza ou de desacordo comercial, que mandou "assustar" um cheque. Pois outro dia encontrei alguém
que mandou "desbronquear" o cheque. Linguagens... Imagino a viagem que a palavra "desbloquear" fez na cabe-
ça da pessoa: a troca comum do "l" pelo "r", a estranheza que se seguiu, o acréscimo de um "n" e aí, sim, a coisa
ficou parecida com alguma coisa, bronca, desbronquear, sem bronca. Muita palavra com status de dicionário
nasceu assim.
Já ouvi de um mecânico que o motor do carro estava "rastreando", em vez de "rateando". Talvez a palavra
correta lhe lembrasse rato e a descartara como improvável. "Rastrear" pareceria melhor raiz, traz aquela ideia
de vai e volta e vacila, como quem segue um rastro... Sabe-se lá. Há algum tempo, quando eu procurava um
lugar pequeno para morar, o zelador mostrou-me um quarto-e-sala "conjugal". Tem lógica, não? Muitos erros
são elaborações. Não teriam graça se não tivessem lógica.
A personagem Magda, da televisão, nasceu deles. Muito antes, nos anos 70, um grupo de jornalistas, escrito-
res e atores criou o Pônzio, personagem de mesa de bar que misturava os sentidos das palavras pela semelhan-
ça dos sons. Há celebridades da televisão que fazem isso a sério. Na Casa dos Artistas, uma famosa queria pôr
um "cálcio" no pé da mesa. Uma estrela da Rede TV! falou em "instintores" de incêndio. A mesma disse que certo
xampu tinha "Ph.D." neutro.
Estudantes candidatos à universidade também tropeçam nos ouvidos. E não apenas falam, mas registram
seus equívocos. Nas provas de avaliação do ensino médio apareceram coisas como "a gravidez do problema",
"micro-leão-dourado" e, esta é ótima, "raios ultraviolentos".
Crianças cometem coisas tais, para a delícia dos pais. O processo é o mesmo: ouvir, reelaborar, inserir em
uma lógica própria e falar. Minha filha pequena dizia "água solitária", em vez de "sanitária". A sobrinha de uma

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amiga, que estranhava a irritação mensal da tia habitualmente encantadora, ouviu desta uma explicação que era
quase uma desculpa e depois a repassou para a irmã menorzinha:
— A tia Pat está "misturada".

Ivan Ângelo. Revista Veja. Disponível em: http://veja.abril.com.br/vejasp/230403/cronica.html

1. O que é possível antecipar sobre o texto apenas pelo título? O fato de estar no plural tem algum significado?

2. Qual é o fato do dia a dia que serve de tema para a crônica lida e desencadeou o relato de outros fatos?

3. Onde aconteceu o fato que desencadeou o relato de outros fatos, similares ao do ocorrido com o pintor?

4. O pintor ter trocado “umidade” por “humildade” permitiu o cronista concluir que a falha não era momentânea. O que isso
significa?

Releia o trecho do 3º§ para responder às questões 5 e 6.

Há palavras que são armadilhas para os ouvidos, mesmo de pes-


soas menos humildes. São captadas de uma forma, instalam-se no cé-
rebro com seu aparato de sons e sentidos — sons parecidos e sentidos
inadequados — e saltam frescas e absurdas no meio de uma conversa.
São enganos do ouvido, mais do que da fala. Como o tropeção de uma
pessoa de boas pernas não é um erro do caminhar, mas do ver.

5.
a. Qual o sentido de ´armadilhas` no texto?

b. Por que a observação de que isso ocorre, inclusive, com pessoas menos humildes?

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c) Em “e saltam frescas”, qual a intenção do autor com b. Na frase “Tropeço também é linguagem”, qual a função da
o uso do adjetivo ´frescas`? palavra ´também` na frase?

8. A partir do incidente vivenciado, o autor da crônica desen-


6. No final do 3º§ parágrafo, o autor faz uma compa- cadeou a apresentação de uma sucessão de ´tropeços` de
ração entre os “enganos do ouvido” e um “trope- linguagem, como ´assustar` e ´desbronquear` um cheque.
ção”. O que essas duas coisas têm em comum? a. Qual explicação o autor dá para ´desbronquear`, em lugar
Explique a analogia feita. de ´desbloquear`?

b. Em “a coisa ficou parecida com alguma coisa, bronca,


desbronquear, sem bronca”, qual sentido podemos
7. Releia os dois trechos. atribuir à expressão ´sem bronca`?

I. Não sei se ele conhece a palavra "pane". Deve


ter sido daquela forma que a ouviu e gravou. c. Segundo o autor, “Muita palavra com status de dicio-
Sabemos que é "pane", ele assimilou "pâni- nário nasceu assim”. A palavra ´assim` retoma uma
co" — a coisa que nomeamos é a mesma, a ideia apresentada anteriormente. Qual?
comunicação foi feita. Tropeço também é
linguagem.
II. Linguagem é a capacidade que possuímos
de expressar nossos pensamentos, ideias,
opiniões e sentimentos. Ela está relaciona-
da a fenômenos comunicativos; onde há 9. Para ratificar sua ideia de que ´tropeço também é lingua-
comunicação, há linguagem. Podemos usar gem`, o autor apresenta outros exemplos. Destaque-os no
inúmeros tipos de linguagens para estabele- próprio texto.
cermos atos de comunicação, como: sinais,
10. Segundo o autor da crônica, o ´tropeção` passa por um
símbolos, sons, gestos e regras com sinais
processo. Qual?
convencionais (linguagem escrita e lingua-
gem mímica, por exemplo).

11. Como expressão do ponto de vista do cronista sobre


temas do cotidiano, as crônicas são, em geral, escritas em
a. Depois de ler os textos é possível explicar por que o
1ª pessoa. Transcreva do texto lido palavras ou expres-
autor da crônica definiu ´tropeço` como um tipo de
sões que mostram esse recurso.
linguagem?

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?
Você
SABIA? A palavra “crônica” vem do grego chronos e significa
“tempo”. A partir disso, nota-se uma das principais caracte-
rísticas desse gênero de texto: seu caráter contemporâneo.
Trata-se de um gênero textual que oscila entre a literatura e o jornalismo.
Geralmente, é publicada em jornais ou revistas e registra fatos do nosso
cotidiano de forma simples, com doses de humor, ironia, crítica e poesia.
Sua temática aborda em geral
• fatos circunstanciais;
• situações corriqueiras;
• episódios dispersos e acidentais.
Quanto à linguagem
• pode variar entre o registo formal e informal, prevalecendo este último;
• prima pela clareza e concisão.
Já a finalidade/o objetivo da crônica é
• mostrar o que não se percebe;
• levar o leitor à reflexão;
• satirizar costumes.

Atividade 3

?
Você
SABIA?

O autor se apresenta Mia Couto www.iqe.org.br/surl/?7693bd

“Invento palavras para fazer com que digam coisas que nenhuma outra diz”.
Daí saíram “abensonhada”, “tintinar”, “perfumegante”, palavras inventadas
pelo escritor nascido na Beira, em Moçambique, país lusófono colonizado
por portugueses. “Tive muita influência do escritor angolano Luandino Vieira,
que dizia que Guimarães Rosa foi sua grande inspiração. Quando descobri
isso, saí desesperado atrás de alguma obra de Guimarães Rosa e encontrei
uma fotocópia de A Terceira Margem do Rio (conto presente em Primeiras
Estórias). Abriu-se um mundo novo, me senti autorizado a usar as palavras
como quisesse”

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Há mais de 20 anos (a primeira edição é de 1994), Mia Couto publicou o livro “Estórias abensonhadas”, uma coletânea
de 26 contos. As estórias vão dos temas de fins da guerra, de tradições moçambicanas e de sonhos de felicidade e harmo-
nia entre os indivíduos.
Agora, você lerá um desses contos, intitulado “Chuva: a abensonhada”. Boa viagem!
1. Leia o título do texto.
CHUVA: A ABENSONHADA

a. O que é possível antecipar sobre o conteúdo do texto lendo apenas do título?

b. A palavra abensonhada é resultado do processo de formação das palavras, cuja fusão de duas palavras gera uma tercei-
ra. Abensonhada é formada por quais palavras?

c. Qual a função dos dois pontos no título do conto?

Agora, vamos ler o 1º parágrafo do conto. Depois, vamos discutir e responder a algumas questões.

Chuva: a abensonhada

1º§ Estou sentado junto da janela olhando a chuva que cai há três
dias. Que saudade me fazia o molhado tintinar do chuvisco. A terra per-
fumegante se assemelha a mulher em véspera de carícia. Há quantos
anos não chovia assim? De tanto durar, a seca foi emudecendo a nossa
miséria. O céu olhava o sucessivo falecimento da terra, e em espelho,
se via morrer. A gente se indagava: será que ainda podemos recomeçar,
será que a alegria ainda tem cabimento?

2. Neste parágrafo, já é possível identificar elementos do gênero textual conto, como narrador, tempo, lugar/espaço, perso-
nagem e enredo.
a. Quais marcas no texto permitem afirmar ser o narrador um personagem da história?

b. A chuva, embora caia há três dias, é um elemento novo. Que palavra pode comprovar essa afirmação?

c. Há ´pistas` no texto sobre o lugar/espaço onde se passa a história?

d. Onde se encontra o personagem dentro desse lugar/espaço? Justifique com elementos do parágrafo lido.

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!
Você já
SABE Algumas das principais figuras de linguagem que podemos
encontrar em textos literários e não-literários são:
Antítese: trata-se da aproximação de termos contrários, de
palavras que se opõem pelo sentido.
Ironia: apresenta um termo em sentido oposto ao usual, provocando efeito
crítico ou humorístico.
Sinestesia: fusão de impressões sensoriais diferentes.
Metáfora: emprego de uma palavra ou expressão com o significado de
outra, por haver alguma relação de similaridade entre elas.
Comparação: atribuição de características de um ser a outro, em virtude
de uma determinada semelhança.
Personificação: é utilizada para atribuir sensações, sentimentos, compor-
tamentos, características e/ou qualidades essencialmente humanas (seres
animados) aos objetos inanimados ou seres irracionais.

3. Depois de ler e comentar o texto do quadro Você já sabe, identifique, no 1º parágrafo, dois exemplos de personificação.

4. Dificilmente o leitor usa seus sentidos (audição, visão, tato, olfato e paladar) na leitura de um texto. Nos contos de Mia
Couto, eles devem ser explorados. Que efeito de sentido causa no leitor, por exemplo, o verbo no trecho “o molhado tinti-
nar do chuvisco”? De qual figura de linguagem se trata? Justifique.

5. Na frase “De tanto durar, a seca foi emudecendo a nossa miséria”, é possível antecipar de qual miséria se fala?

6. Que marcas do texto mostram que o narrador passa de 1ª pessoa do singular para a 1ª pessoa do plural? O que isso
permite supor?

7. Leia novamente um trecho do texto.

“A gente se indagava: será que ainda podemos recomeçar, será que


a alegria ainda tem cabimento?”

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a. O trecho permite uma reflexão. Levante hipóteses sobre o que pode ter acontecido.

b. Qual a função dos dois pontos nesse trecho do texto? É a mesma função presente no título do conto?

c. O trecho é uma pergunta. Quem deve respondê-la? Quais expectativas ela cria no leitor?

E o conto continua...

2º§ Agora, a chuva cai, cantarosa, abençoada. Estou es-


preitando a rua como se estivesse à janela do meu inteiro país.
Enquanto, lá fora, se repletam os charcos, a velha Tristereza vai
arrumando o quarto. Para tia Tristereza a chuva não é assunto
de clima, mas recado dos espíritos. E a velha se atribui amplos
sorrisos: desta vez é que eu envergarei o fato que ela tanto me
insiste. Indumentária tão exibível e eu envergando mangas e gan-
gas. Tristereza sacode em sua cabeça a minha teimosia: haverá
razoável argumento para eu me apresentar assim tão descortina-
do, sem me sujeitar às devidas aparências? Ela não entende.

8. O substantivo cântaro, no dicionário, significa vaso grande, bojudo e com asas para transportar líquidos, por sua descri-
ção é costume se utilizar a expressão ´chove(u) a cântaros` para dizer que chove(u) muito. Na primeira linha, o narrador-
-personagem diz que ´a chuva cai cantarosa`. Qual a relação de sentido entre chover a cântaros e cai cantarosa?

9. No título do conto, o narrador-personagem diz que a chuva é “abensonhada”. Aqui ele diz que ela é “abençoada”. Por que,
nesse momento da narrativa, a palavra ´sonhada` não está mais presente?

10. No início do parágrafo, o narrador-personagem usa uma palavra que permite observar a continuidade e progressão da
narrativa, indicadora de tempo. Qual é a palavra?

11. Na frase “Enquanto, lá fora, se repletam os charcos, a velha Tristereza vai arrumando o quarto”, o uso de um advérbio
permite ao leitor saber o lugar onde estão as personagens, que é o mesmo descrito no 1º parágrafo. Qual é o advérbio?

10
?
Você
SABIA? Antes de continuar a leitura do conto, você terá um breve intervalo para ler um trecho da nota de abertura da
obra “Estórias abensonhadas”, da qual foi retirado o conto “Chuva: abensonhada”.
Por incontáveis anos as armas tinham vertido luto no chão de Moçambique. Estes textos me surgiram entre
as margens da mágoa e da esperança. Depois da guerra, pensava eu, restavam apenas cinzas, destroços sem íntimo. Tudo
pesando, definitivo e sem reparo.
Hoje sei que não é verdade. Onde restou o homem sobreviveu semente, sonho a engravidar o tempo. Esse sonho se
ocultou no mais inacessível de nós, lá onde a violência não podia golpear, lá onde a barbárie não tinha acesso. Em todo
este tempo, a terra guardou, inteiras, as suas vozes. Quando se lhes impôs o silêncio elas mudaram de mundo. No escuro
permaneceram lunares.
Estas estórias falam desse território onde nos vamos refazendo e vamos molhando de esperança o rosto da chuva, água
abensonhada. Desse território onde todo homem é igual, assim: fingindo que está, sonhando que vai, inventando que volta.

COUTO, Mia. Estórias abensonhadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012

Atividade 4

Participando de uma leitura compartilhada, você já leu o título, o 1º e 2º parágrafos do conto “Chuva: a abensonhada”.
Agora, você lerá o restante do conto, individualmente.
Antes, no entanto, lembre-se dos procedimentos de leitura que você pode (e deve) utilizar, como:
1. marcar palavras-chave: termos que sintetizam as ideias importantes do texto;
2. grifar/sublinhar passagens do texto: acontecem quando o leitor tem a intenção de deixar marcadas ideias que con-
sidera importantes ou que revelam como o texto foi organizado;
3. fazer paráfrase: ampliar ou reduzir uma passagem, traduzi-la em uma linguagem mais simples ou interpretá-la;
4. fazer comentários: escrever uma dúvida, relacionar uma passagem com uma vivência de leitura anterior, por exem-
plo; elaborar perguntas para buscar respostas na continuidade da leitura do texto etc.
Agora, você já está pronto para continuar a leitura do conto a partir do 3º parágrafo. Boa leitura!

CHUVA: A ABENSONHADA

3º§ Enquanto alisa os lençóis, vai puxando outros assuntos. A idosa senhora não tem dúvida: a chuva está
a acontecer devido às rezas, cerimônias oferecidas aos antepassados. Em todo o Moçambique, a guerra está a
parar. Sim, agora já as chuvas podem recomeçar. Todos estes anos, os deuses nos castigaram com a seca. Os
mortos, mesmo os mais veteranos, já se ressequiam lá nas profundezas. Tristereza vai escovando o casaco que
eu nunca hei de usar e profere suas certezas:
4º§ —Nossa terra estava cheia do sangue. Hoje, está a ser limpa, faz conta essa roupa que lavei. Mas nem
agora, desculpe o favor, nem agora o senhor dá vez a este fato?
5º§—Mas, tia Tristereza: não será que está a chover de mais?
6º§ De mais? Não, a chuva não esqueceu os modos de tombar, diz a velha. E me explica: a água sabe quan-
tos grãos tem a areia. Para cada grão, ela faz uma gota. Tal igual a mãe que tricota o agasalho de um ausente

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filho. Para Tristereza, a natureza tem seus serviços, decorridos em simples modos como os dela. As chuvadas
foram no justo tempo encomendadas: os deslocados que regressam a seus lugares já encontrarão o chão mo-
lhado, conforme gosto das sementes. A paz tem outros governos que não passam pela vontade dos políticos.
7º§ Mas dentro de mim persiste uma desconfiança: esta chuva, minha tia, não será prolongadamente dema-
siada? Não será que à calamidade do estio se seguirá a punição das cheias?
8º§ Tristereza olha a encharcada paisagem e me mostra outros entendimentos meteorológicos que minha
sabedoria não pode tocar. Um pano sempre se reconhece pelo avesso, ela costuma me dizer. Deus fez os bran-
cos e os pretos para, nas costas de uns e outros, poder decifrar o Homem. e apontando as nuvens gordas me
confessa:
9º§ —Lá em cima, senhor, há peixes e caranguejos. Sim, bichos que sempre acompanham a água.
10º§ E adianta: tais bichezas sempre caem durante as tempestades.
11º§ —Não adianta, senhor? Mesmo em minha casa já caíram.
12º§ —Sim, finjo acreditar. E quais tipos de peixes?
13º§ Negativo: tais peixes não podem receber nenhum nome. Seriam precisas sagradas palavras e essas
não cabem em nossas humanas vozes. De novo, ela lonjeia seus olhos pela janela. Lá fora continua chovendo.
O céu devolve o mar que nele se havia alojado em lentas migrações de azul. Mas parece que, desta feita, o céu
entende invadir a inteira terra, juntar os rios, ombro a ombro. E volto a interrogar: não serão demasiadas águas,
tombando em maligna bondade? A voz de Tristereza se repete em monotonia de chuva. E ela vai murmurrindo: o
senhor, desculpe a minha boca, mas parece um bicho à procura da floresta. E acrescenta:
14º§ —A chuva está a limpar a areia. Os falecidos vão ficar satisfeitos. Agora, era bom respeito o senhor usar
este fato. Para condizer com a festa de Moçambique.
15º§ Tristereza ainda me olha, em dúvida. Depois, resignada, pendura o casaco. A roupa parece suspirar. Mi-
nha teimosia ficou suspensa num cabide. Espreito a rua, riscos molhados de tristeza vão descendo pelos vidros.
Por que motivo ao tanto procuro a evasão? E por que razão a velha tia se aceita interior, toda ela vestida de casa?
Talvez por pertencer mais ao mundo, Tristereza não sinta, como eu, a atração de sair. Ela acredita que acabou o
tempo de sofrer, nossa terra se está lavando do passado. Eu tenho dúvidas, preciso olhar a rua. A janela: não é
onde a casa sonha ser o mundo?
16º§ A velha acabou o serviço, se despede enquanto vai fechando as portas, com lentos vagares. Entrou
uma tristeza na sua alma e eu sou o culpado. Reparo como as plantas despontam lá fora. O verde fala a língua
de todas as cores. A Tia já dobrou as despedidas e está a sair quando a chamo:
17º§ —Tristereza, tira o meu casaco.
18º§ Ela se ilumina de espanto. Enquanto despe o cabide, a chuva vai parando. Apenas uns restantes pingos
vão tombando sobre o meu casaco. Tristereza me pede: não sacuda, essa aguinha dá sorte. E de braço dado, saí-
mos os dois pisando charcos, em descuido de meninos que sabem do mundo a alegria de um infinito brinquedo.

COUTO, Mia. Estórias abensonhadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012

1. Atendo-se à palavra em destaque na frase “A paz tem outros governos que não passam pela vontade dos políticos”, 6º§,
como você explica essa afirmação?
2. Do 3º ao 8º parágrafos, o texto permite ao leitor observar o conflito de pensamentos entre o narrador-personagem e a
velha Tristereza. Aquele vê a chuva como um mero acontecimento climático; esta, como uma manifestação dos espíri-
tos. Preencha o quadro com passagens do texto que possam exemplificar a afirmação.

12
Velha Tristereza
Narrador-personagem
(manifestação dos espíritos)

3. Novamente, o autor usa o recurso da personificação para dar vida a um elemento presente no texto, como em trecho do
15º§, quando diz
A. “Tristereza ainda me olha, em dúvida”.
B. “A roupa parece suspirar”.
C. “Ela acredita que acabou o tempo de sofrer”.
D. “Eu tenho dúvidas, preciso olhar a rua”.
E. “Depois, resignada, pendura o casaco”.

4. O diálogo entre o narrador-personagem e a velha Tristereza se dá enquanto esta está em serviço. O que se confirma com
a passagem
A. “Enquanto alisa os lençóis”.
B. “Tristereza, não sinta, como eu, a atração de sair”.
C. “Entrou uma tristeza na sua alma, e eu sou o culpado”.
D. “Enquanto despe o cabide, a chuva vai parando”.
E. “A chuva está a limpar a areia. Os falecidos vão ficar satisfeitos”.

5. Depois de concluída a leitura do conto, é possível afirmar que


A. a chuva exerce papel singular na narrativa, pois lava as mazelas deixadas pela guerra, limpa a terra, representa
uma benção dos deuses, atribuindo beleza e vida àquele lugar.
B. o conflito de visões sobre o significado da chuva destaca a ignorância de Tristereza que atribui aos deuses a ben-
ção das águas que encharcam a terra antes ressequida.
C. a chuva em abundância é tão somente um fenômeno meteorológico, sem relação com os acontecimentos do
passado, como a guerra.
D. a chuva, tão importante na narrativa, aproxima o narrador-personagem de sua tia, embora sejam eles tão diferentes.
E. o conflito vivido pelo narrador-personagem é resultado da incapacidade de Tristereza aceitar a chuva apenas como
um fenômeno climático.

Sequência Didática | Língua Portuguesa | Leitura e Interpretação de Textos | Crônica e conto 13


6. Leia novamente duas passagens do conto.

I - 1º§ “Será que ainda podemos recomeçar, será que a alegria ainda
tem cabimento?”
II - 18º§ “E de braço dado, saímos os dois pisando charcos, em descuido
de meninos que sabem do mundo a alegria de um infinito brinquedo.”

a. É possível inferir que o trecho II responde I? Justifique.


b. Qual imagem, em II, explica o uso da palavra ´alegria`, em I?

Sistematizando
APRENDIZAGENS

Afinal, como foi para você estudar os gêneros conto e crônica? O que mais chamou sua atenção? O que você desenvol-
veu até aqui será importante na continuação dos seus estudos? Por quê? Você sente que precisa retomar ou aprofundar
algum aspecto? Qual?

Em linhas gerais, como você avalia seu desempenho nesta Sequência Didática?

Pensando nos conhecimentos que você construiu ao longo desta Sequência Didática, responda, suscintamente:
O que é uma crônica?

O que é um conto?

Agora, vamos discutir e responder oralmente:


• O que o conto e a crônica têm em comum?
• E quais diferenças apresentam?

14

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