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Texto Semana 10 - Texto de APOIO - Autoscopia Sadalla Larocca
Texto Semana 10 - Texto de APOIO - Autoscopia Sadalla Larocca
formação
Resumo
Palavras-chave
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 419-433, set./dez. 2004 419
Autoscopy: a procedure of research and education
Abstract
Keywords
Contact:
Ana Maria F. de Aragão Sadalla
Rua Eng Alexandre A. Cavaleri,
160 – casa 2
13101-518 – Campinas – SP
e-mail: anaragao@terra.com.br
420 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 419-433, set./dez. 2004
A palavra “autoscopia” é composta pelos Fundamentação
termos “auto” e “scopia”. O primeiro trata de uma
ação realizada pelo próprio sujeito e o segundo O procedimento de autoscopia é en-
refere-se a escopo (do grego skoppós e latim contrado em estudos como os de Linard (1974;
scopu), que quer dizer objetivo, finalidade, meta, 1980), Prax; Linard (1975), Nautre (1989),
alvo ou mira. A idéia de autoscopia diz respeito, Rosado (1990; 1993) e Ferrés (1996), que
portanto, a uma ação de objetivar-se, na qual o detalharam a função de avaliação de si mesmo
eu se analisa em torno de uma finalidade. que a videogravação permite através da con-
Neste artigo, a autoscopia é tratada frontação da imagem de si na tela. Allan (1986)
como técnica de pesquisa e de formação que se utiliza o termo “microensino”.
vale de videogravação de ações de um ou mais O procedimento denominado de micro-
sujeitos, numa dada situação, visando a poste- ensino é considerado por Cooper (1983) como
rior auto-análise delas. Em sua especificidade, a um precursor da formação do professor basea-
autoscopia supõe dois momentos essenciais: a da em competências. Eram filmados em vídeo
videogravação propriamente dita da situação a os modelos de competência que se desejavam
ser analisada e as sessões de análise e reflexão. ensinar e as fitas eram, então, exibidas aos
Pela videogravação busca-se apreender professores em formação.
as ações do ator (ou atores), o cenário e a tra- Na técnica da autoscopia, o indivíduo
ma que compõem a situação. As sessões de se vê em ação, o que permite o retorno da
análise ocorrem a posteriori da ação e destinam- imagem e do som, retorno da informação, pos-
se a suscitar e apreender o processo reflexivo do sibilitando uma modificação da ação pela per-
ator (ou atores) por meio de suas verbalizações cepção de causas e efeitos (Linard, 1980).
durante a análise das cenas videogravadas. A autoscopia pode ser utilizada tanto
Com pequenas diferenças e muitas em situações de pesquisa como nas de aprendi-
aproximações, as autoras deste artigo utilizaram zagem e formação de diferentes profissionais. O
a autoscopia como principal estratégia de co- sujeito é o próprio objeto de feedback visual, ao
leta de dados em pesquisas na área de Psico- se deparar com a imagem de seu corpo, a apre-
logia Educacional. Em ambos os casos, descri- ensão, pela memória, de sua representação e
tos mais adiante, as videogravações foram reali- aparência.
zadas em escolas, especialmente no ambiente Para Rosado (1990), a videogravação é
de sala de aula, cujos protagonistas do proces- uma técnica que permite a construção de uma
so foram os docentes. Sabe-se, contudo, que a representação do real, como espaço, tempo,
aplicação da técnica pode ser viável para con- objetos, personagens, assim como de seus
textos profissionais diferentes do magistério, em movimentos, suas ações e suas interações. Essa
que o feedback das ações e a reflexão sobre elas linguagem permite a consciência do real e
sejam princípios importantes. possui componentes cognitivos e afetivos.
Com o propósito de apresentar e discutir Adotando uma perspectiva interacio-
a autoscopia no panorama metodológico da pes- nista, Rosado (1993) compreende que o sujei-
quisa e da formação profissional em educação, to que assiste às videogravações não é um
busca-se fundamentar, neste artigo, o procedimen- mero telespectador, no sentido passivo do ter-
to e abordar vantagens do seu uso, além de al- mo. Ele é ativo perante os elementos da recep-
guns limites e cuidados a serem considerados, ção videográfica, aos quais atribui sentidos
apresentando brevemente as experiências das au- dentro do contexto em que a situação apresen-
toras com o procedimento. Finalmente, algumas tada acontece. Há, portanto, uma atividade psi-
considerações são tecidas sobre o potencial cológica que é subjacente ao processo de re-
formativo-reflexivo da autoscopia. cepção televisual. Nessa atividade, o sujeito
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ressignifica os elementos apresentados, inter- da minha voz, da qualidade e da quantida-
pretando conteúdos e estabelecendo arranjos de de meus gestos, de minhas atitudes, de
particulares, procedendo a articulações e atri- minha postura, de minha maneira de atuar
buindo certos valores aos elementos, conforme e de ser. (1996, p. 52)
sua bagagem pessoal de experiências e conhe-
cimentos anteriores (p. 31). Por tudo isto, o funcionamento de uma
Ao levar em conta a interação entre as análise através do recurso do vídeo não é ta-
videogravações e o sujeito telespectador ativo, refa fácil para se realizar. Ela envolve um pro-
ele próprio protagonista de cenas videogravadas, cesso de tomada de consciência e reflexão si-
a técnica da autoscopia considera a imagem multânea de variados códigos expressivos: lin-
projetada na tela como categoria intermediária guagem, metalinguagem, deslocamentos, pos-
entre o aspecto exterior objetivo e a visão inter- turas, expressões faciais, maneirismos, entre
na subjetiva, não pretendendo senão ocupar-se outros, tanto de si como das demais pessoas
dos produtos que resultam dessa interação envolvidas na situação registrada.
(Linard,1980, p. 8). Isso significa que o interes- O encontro objetivado consigo, por
se consiste, sobretudo, na análise que o sujeito meio do vídeo, torna-se um instrumento para
realiza, ao confrontar-se com a imagem de si na provocar verbalizações mediante o conflito que
tela. É isso que Ferrés (1996) designa por vídeo- se instala entre a imagem e o eu subjetivo e
espelho, com o sentido de o vídeo potencializar mediante a possibilidade de promover articula-
a função de auto-avaliação. ções entre elementos envolvidos nos registros.
A função auto-avaliadora contida no Nesse encontro consigo, a pessoa se descobre
procedimento implica contemplação e conse- e se comenta, olha a si como se olhasse a outro,
qüente reflexão sobre o próprio comportamen- permitindo-se fixar o olhar (Ferrés, 1996). É
to. A propósito disso, o autor lembra Auguste esse confronto que, paradoxalmente, ajuda a
Comte, que rejeitava a introspecção, argumen- re-instalar o sujeito com todo o seu potencial
tando que não se pode observar algo ao mes- reflexivo e expressivo.
mo tempo na rua e na janela. Comenta o autor Com efeito, Linard aproxima-se desta
que, a partir do desenvolvimento da tecnologia constatação, afirmando:
de vídeo, esta objeção de Comte já não faz mais
qualquer sentido. Ora, a imagem de si pelo vídeo é certamen-
A palavra “vídeo”, segundo Ferrés, pro- te o lugar por excelência das defasagens e
vém do latim, do verbo videre, que quer dizer conflitos (...); entre gestos e palavras, entre
“eu vejo” . Segundo ele, o vídeo é como um percepções externas e projetos internos,
espelho, porém mais poderoso, pois: entre contrastes “após” e intenções “antes”,
entre “eu” e “os outros”, entre “aqui-agora”
O espelho devolve à pessoa sua imagem e “acolá, outrora, mais tarde”. (1980, p. 17
invertida. O vídeo não. No espelho, a pes- [tradução das autoras])
soa pode se olhar nos olhos. No vídeo não.
O espelho impõe um único ponto de vista. E acrescenta:
No vídeo, a pessoa pode contemplar-se a
partir de infinitos pontos de vista. (...) no Pelo aspecto da representação de si na tela,
vídeo vejo-me como sou visto, descubro conservada sob a forma de traço repetível so-
como os outros me vêem. Vejo-me para me bre uma fita, esta imagem intermediária entre
compreender. O fato de ver-me e de escu- objetivo e subjetivo, é certamente também um
tar-me leva a uma tomada de consciência lugar privilegiado de articulação entre expe-
de mim mesmo, de minha imagem, do som riência individual, consciente e inconsciente, e
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Alguns limites e cuidados a diam a evitar que a lente captasse a sua ima-
serem considerados gem. Esquizofrênicos permaneceram numa ati-
tude de imobilidade durante todo o tempo de
A imagem de si, no vídeo, não é ino- filmagem.
cente. Ela provoca manifestações nos indiví- Concluíram, também, que mesmo para
duos, especialmente naqueles que são mais re- os adultos considerados não-patológicos, a
sistentes a mudanças. A sua utilização deve ser autoscopia gerava ansiedade quando o indiví-
cuidadosa, com a consciência de que ela pode duo se via em ação, no vídeo. Por isso, é es-
causar até mesmo o desequilíbrio psíquico em perado que durante o procedimento, apareçam
indivíduos com personalidade patológica. atitudes elusivas, de não-identificação ou rejei-
Além disso, seria ingenuidade assegurar ção, como recusa em se rever, atitudes depres-
que a câmera de vídeo, durante as gravações, sivas ou agressivas, atrasos ou ausências, par-
apresente-se como um elemento neutro. Aque- tidas súbitas, entre outras manifestações defen-
les que fazem pesquisas em psicologia sabem sivas por parte do sujeito.
bem que a simples presença do observador na Ferrés (1996) advertiu sobre duas ati-
sala de aula, por exemplo, já produz mudanças tudes contrapostas. De um lado, o sujeito
no ambiente pesquisado. Tem-se clareza, por- autoscópico pode fascinar-se, evidenciando
tanto, de que a câmera de vídeo realiza uma uma certa dose de narcisismo. De outro, po-
espécie de violação, porque penetra na intimida- derá adotar mecanismos defensivos ou rejei-
de, na privacidade do ser para depois entregá- tar-se em razão do impacto causado pela
lo novamente ao olhar. Contudo, a utilização do percepção da distância entre o eu-observado
vídeo, segundo Meira (1994), tem a vantagem e o eu-idealizado. Geralmente, nessa situação,
de registrar em detalhe as reações dos sujeitos observam-se maneirismos e gestos de recom-
investigados, possibilitando reconhecê-las e posição na pessoa.
desconsiderá-las, se necessário. Na área da formação profissional de
Ao estudar os efeitos do feedback pelo professores, objetivando apanhar a evolução de
vídeo sobre o processo ensino-aprendizagem estagiários de magistério para melhorar a pers-
em salas de aula, Linard (1974) concluiu que picácia e objetividade de análise, Nautre (1989)
este retorno das informações, dos efeitos sobre encontrou outros problemas na utilização da
as causas, é importante porque possibilita a técnica, que devem ser observados para que se
todos os indivíduos envolvidos o conhecimento possam evitá-los:
dos efeitos de seu próprio comportamento, e
assim repará-los e corrigi-los, não só em rela- • o risco da “análise superficial”, ou seja, o
ção às divergências de atitudes, mas também indivíduo pode fazer uma análise muito pou-
de normas, de motivações perante os compa- co profunda, não parando a fita nos pontos
nheiros envolvidos. críticos e não permitindo uma discussão des-
A preocupação com os efeitos do feed- tes aspectos, a não ser de modo superficial;
back, mais adiante, levou Prax e Linard (1975) • o risco da “ferramenta falha”, ou seja, o su-
a estudarem a relação entre as características de jeito pode fazer uma análise implementada
personalidade dos indivíduos em tela e a sobre ferramentas conceituais tão complexas
autoscopia. Concluíram que dependendo da que necessitam de uma parada para explica-
estrutura de personalidade, o indivíduo se por- ção, por parte do próprio indivíduo, ou pelo
tava de diferentes maneiras, até mesmo diante docente que o acompanha;
da câmera de videogravação. Indivíduos manía- • o risco do “ponto de vista negativo”, quando
cos, por exemplo, ficaram rindo, interrompen- o estagiário tem necessidade de que o profes-
do a filmagem, fazendo mímicas. Fóbicos ten- sor o auxilie a revelar e a reforçar os pontos
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onados por ela. Esta seleção dependia de alguns to ou errado nas suas verbalizações. Isto deve
critérios que nem sempre foram explicitados por ter dado à professora um pouco mais de tran-
Letícia. Ocorreram situações, por exemplo, em que qüilidade para falar, dado que não seria, de for-
as cenas eram muito extensas e a professora afir- ma alguma, censurada pela pesquisadora.
mava que não apresentavam conteúdos relevan- É interessante observar que já no pri-
tes para o objetivo do trabalho, ou as crianças meiro dia de filmagem houve uma alteração na
estavam realizando uma atividade em silêncio dinâmica da sala de aula como um todo, o que
(cópia, por exemplo) sem haver comunicação. já era esperado. A professora, por exemplo,
Outras vezes, a classe toda estava trabalhando in- informou, na entrevista final, que as crianças
dividualmente na produção de algum material estavam “mais santas” do que normalmente
solicitado pela professora (tais como relatos de eram. Com o passar do tempo, os alunos foram
atividades) e pouco ou nada falavam com os se acostumando com a câmera voltada para
colegas ou com a docente, e nestas ocasiões, eles, até mesmo “se esquecendo” dela em vá-
Letícia dizia que a pesquisadora podia “correr a rios momentos. No início, alguns alunos solici-
fita” para que outras cenas fossem vistas. tavam que fossem filmados, eles mesmos ou as
Foram, portanto, selecionados pela pró- suas tarefas escolares, e a pesquisadora os aten-
pria docente, os registros em que apareciam dia. Houve, também, uma ocasião em que eles
situações mais motivadoras para sua fala, e por quiseram filmar, olhando por trás da câmera, e
não ser esta seleção o objetivo do trabalho, se organizaram para que todos pudessem fazê-
Letícia não foi questionada a respeito dos cri- lo. Estas ações acabaram por aproximar a pes-
térios utilizados em sua escolha. quisadora do grupo, possibilitando menor in-
Após a apresentação das cenas ininter- terferência na dinâmica da sala de aula duran-
ruptamente (sem seleção prévia por parte da te as filmagens.
pesquisadora), solicitava-se à professora que se A autora conclui o estudo afirmando
manifestasse sobre o que considerara importan- que esse procedimento de coleta de dados foi
te a respeito do material filmado. Em alguns considerado bastante profícuo. Falando espe-
momentos, a docente apenas descrevia o que cificamente sobre as sessões de filmagem,
estava ocorrendo e, em outros, analisava a Letícia revelou que, apesar da ansiedade inici-
ocorrência, acrescentando relatos de episódios al, havia gostado muito de assistir ao funcio-
que não estavam na videogravação. Por exem- namento de sua classe, como eram as relações
plo, referiu-se a um material coletado por um entre as crianças, como elas se comportavam e
aluno no recipiente para lixo reciclado e rela- como ela agia com os alunos e, mais ainda,
tou o que ocorrera antes e depois de ele pegar que, apenas a partir das videogravações, pode
os papéis. conscientizar-se de algumas “coisas que preci-
Nas sessões de discussão, a pesquisado- sariam mudar e onde devo puxar mais nas
ra limitava-se a questionar a professora sobre as matérias. Devia ter isso todo ano!”.
ocorrências videogravadas com perguntas do
tipo “O que está ocorrendo?” ou “O que é que Pesquisando a relação entre
você me diz?”, ou, então, solicitava que a do- psicologia e prática
cente tecesse considerações sobre a dinâmica de pedagógica no processo
um grupo de alunos. Em alguns momentos tam- reflexivo da professora Gil
bém, pedia maiores explicações sobre falas pou-
co compreensíveis. No início do procedimento A outra pesquisadora também encon-
de coleta de dados, a pesquisadora informou a trou na autoscopia um procedimento adequa-
docente de que o importante seria sua fala a do para investigar articulações entre os conhe-
respeito de sua sala de aula, não havendo cer- cimentos de psicologia portados por uma pro-
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da câmera, a leitura do manual de instruções e de Utilizou-se, apenas, o controle remoto do vídeo
um livro a respeito de videogravações não foram para parar a fita durante as verbalizações ou
suficientes e a primeira experiência acabou frus- acelerar a imagem quando a professora não via
trada. Note-se o registro no Diário de Campo: pontos de interesse para discutir.
O conteúdo verbal dessa primeira ses-
“Fui para a escola de câmera em punho, tripé, são, que foi gravado em áudio, transcrito e
fitas, bateria carregada. Escolhi a 8a A para ini- examinado, revelou alguns aspectos que leva-
ciar o trabalho pois senti que os alunos esta- ram a optar pela modificação do procedimen-
vam bem à vontade comigo. Cheguei à escola to. As falas da professora apresentavam-se ex-
pouco antes do horário. Na sala, montei o cessivamente condensadas, sem evidências de
equipamento e, com a entrada da turma, passei contextualização ou retomadas das situações
a registrar os acontecimentos. (...) à noite fui filmadas. Percebeu-se, então, que, em função
assistir, ansiosa, os registros que fizera. Que da imediata realização da sessão, não estava
surpresa! Quase nada havia sido gravado. Perdi presente para a professora a necessidade de
o trabalho daquele dia. Fiquei frustradíssima! evocar e descrever pormenores dos conteúdos
No dia seguinte, chamei um técnico para des- das filmagens, uma vez que estes tratavam de
cobrir o que fizera de errado. Apenas um bo- acontecimentos recém-ocorridos e, por causa
tão fizera toda a diferença. Treinei com ele disso, boa parte deles não se convertia em
passo a passo, diversas vezes. Mais tarde liguei dados verbalizados. Também, em virtude da
para Gil contando o acontecido. Ela me lem- ocorrência imediata da autoscopia, não se an-
brou que na próxima quinta-feira haveria a tecipou qualquer análise e reflexão dos conteú-
mesma atividade com a 8a B. Combinamos de dos da filmagem, de modo que as verbalizações
que eu estaria lá.” (DC – 18/05/99) da professora ficaram à mercê da espontanei-
dade das situações, havendo dificuldades de
A partir da situação descrita, não hou- garantir que muitos aspectos importantes da
ve maiores problemas com as filmagens que, prática pedagógica fossem contemplados.
embora amadoras, parecem ter cumprido a fi- A partir dessas constatações, optou-se
nalidade em vista. por realizar as videogravações e editar unidades
O material coletado ocupou nove fitas de sentido contidas no material video-gravado,
de 8 mm, cada qual com 120 minutos de du- agrupando-as em diferentes conjuntos de acor-
ração. As fitas foram numeradas conforme os do com a variabilidade de situações registradas.
registros aconteciam. Houve ocasião em que o Para isso, cada fita foi analisada pela
registro das atividades de um dia ocupou mais pesquisadora e submetida a uma pré-edição
de uma fita. Nestes casos, codificou-se com para organizá-la em termos de tipos de cenas,
letras para indicar que os registros pertenciam número de cenas gravadas em cada fita, tur-
ao mesmo dia de filmagem. mas e séries onde ocorreram, descrevendo-as
Durante as filmagens, com a identifica- sucintamente. Também se registraram dados
ção de situações que se repetiam muito, ou que para reconhecer o início e a finalização de
já se contava com material suficiente para cada cena,4 e para situar e explorar aspectos
ilustrá-las, ou ainda, que não se mostravam re- a serem observados durante a autoscopia.
levantes para a gravação, tendo em vista os
objetivos da pesquisa, desligava-se a câmera.3 3. Como exemplos dessas situações tem-se: o momento da chamada
nominal dos alunos; a entrada de um funcionário da escola para passar um
Para a primeira sessão de autoscopia recado à turma; a distribuição de carteirinhas nos horários próximos à
com a professora, não se organizou previamente saída da escola.
4. Isto foi necessário porque a pesquisadora não contou com uma ilha de
o material bruto coletado nas videogravações, edição apropriada, que permitisse regular o início e o final das cenas atra-
realizando-a imediatamente após a filmagem. vés de minutagem.
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que necessitaram do seu manejo ou, então, reu de acordo com o tamanho e o tempo de cada
envolviam aprendizagem de valores. Neste blo- edição, e com a disponibilidade de horários da
co encontram-se cinco unidades de análise, professora para sessões mais longas ou mais cur-
conforme se segue: tas. Por isso, houve ocasião em que uma sessão
abarcou apenas uma edição, como houve sessões
• Professora sai da classe no horário de aula nas quais analisaram-se várias edições.
– uma cena. A cada sessão, tomava-se uma edição
• Alunos que não acompanham a atividade completa para ser analisada. Nessas ocasiões, Gil
desenvolvida – três cenas. anotava e esquematizava, para si própria, ob-
• Situações envolvendo valores de responsa- servações e seqüências a serem descritas ou
bilidade para com o ambiente físico e huma- discutidas no momento de verbalização. Quan-
no – três cenas. do a pesquisadora perguntou acerca desse
• O comportamento de Leandro – duas cenas. comportamento, Gil explicou que não gostaria
• A rejeição de Liana pelo seu colega Muller de “perder nada” durante a verbalização. Devi-
– uma cena. do ao dinamismo de muitas cenas, ela nem
sempre conseguia captar tudo o que desejava,
O processo de edição, que resultou nas de modo que se repetia a edição no todo ou
unidades de análise elencadas, foi conseqüência em partes, até que ficasse satisfeita e assinalas-
da decisão de recortar a realidade segundo sig- se que era possível iniciar as análises. Nesse
nificados e percepções que foram atribuídas às processo, muitas vezes, ela fazia solicitações
ações e interações videogravadas. Reafirmam-se, como: “Vá até aquele pedaço da fita e pare”;
por isso, as constatações de Dessen (1995) acer- “Não consegui pegar tudo.” “Dá para repetir
ca do envolvimento de vivências, conhecimen- aquele trecho?” Durante essas repetições Gil
tos, pressupostos teóricos e mesmo de hipóte- completava os tópicos de seu roteiro.
ses do pesquisador/observador no ato de editar, Portanto, houve retomadas e paradas
admitindo a possibilidade de que diferentes da fita, a fim de melhor dar conta do objetivo
observadores notassem diferentes aspectos no proposto. Assim que a professora sinalizava que
material video-gravado e realizassem diferentes estava pronta para iniciar as análises, o grava-
formas de edição. Como diz a autora, dor era ligado. Em todo o processo, ela mos-
trou-se atenta e meticulosa na sua tarefa. Ao
o uso do vídeo não resolve os dilemas final de uma das sessões, a professora confes-
epistemológicos fundamentais, constituin- sou-se entusiasmada com o processo autos-
do-se apenas em um recurso técnico, cujo cópico, ressaltando as possibilidades analíticas
modo de utilização independe dos procedi- do vídeo, as quais lhe permitiam estabelecer
mentos de recorte e análise de dados, os relações e focar elementos que no transcorrer
quais estão direta e intimamente ligados à das atividades em sala de aula ficavam imper-
postura teórico-epistemológica assumida ceptíveis.
pelo pesquisador. (p. 226) Durante as videogravações, observou-
se um pouco de ansiedade, logo superada pela
Após o processo de edição, apresentou- professora. Durante as sessões, sua ansiedade
se o material à professora, solicitando-lhe que parecia concentrar-se nos seus próprios regis-
buscasse fundamentar sua prática pedagógica tros, havendo, por vezes, expressões faciais ou
na psicologia da educação. manifestações verbais de aprovação, alegria,
A apresentação das edições ao longo do tristeza e até intensa autocrítica, de acordo com
desenvolvimento das sessões autoscópicas ocor- as cenas que lhe eram apresentadas.
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a instituição e o instituído, pois o sujeito é le- (treinamento/instrução), apresentando-o como
vado a situar-se em suas relações com os outros, metodologia de pesquisa e de formação de pro-
com o saber e com o poder. fessores que implica a análise e reflexão conjun-
ta de aulas gravadas ou registradas. Segundo ela,
Dentro de um quadro mais notadamente essa estratégia possiblita análises mais acuradas
terapêutico, a autoscopia pode contribuir sobre o professor e seu trabalho permitindo
para uma pedagogia do espaço transacional informações sobre a relação pensar e agir na
imaginário, entre o indivíduo e o mundo, situação de ensino.
permitindo-lhe avaliar cenários e persona- A autoscopia não é um elemento in-
gens. (Linard, 1980, p. 20) dispensável à formação, mas pode ser um
“ajudante simpático” (Nautre, 1989, p. 6). A
Um autor que pesquisou a partir do para- realidade do vivido é mais importante, sem
digma do pensamento do professor (Marcelo, dúvida, do que a imagem, mas esta técnica
1987), afirma que a observação em vídeo dos ele- pode ser uma ferramenta auxiliar na reflexão
mentos de ensino de outros professores ou de si sobre a prática vivenciada. Desse modo, a
mesmo pode ser um elemento eficaz para fazer autoscopia não deve ser usada como um ins-
com que os professores em formação reflitam trumento de controle em situações de forma-
sobre a complexidade do ato didático. Desse ção de docentes, pois corre o risco de se cri-
modo, referindo-se ao que denomina “estimulações ar um obstáculo intransponível, o que acaba-
de recordações”, este autor apresenta essa técni- ria prejudicando a própria técnica.
ca como uma possibilidade de trazer à memória os A autoscopia, sem dúvida, é um exce-
processos e os pensamentos que ocorriam quan- lente instrumento de formação. No entanto, é
do a conduta foi observada. vital que se tenha em mente a necessidade de
Allan (1986) — que utilizou o vídeo para reconhecer e devolver ao professor, enquanto
auxiliar o ensino de inglês filmando, por exemplo, sujeito autoscópico, a condição de sujeito de
entrevistas simuladas com os alunos para que eles sua própria profissão, promovendo, portanto,
pudessem, posteriormente, observar-se falando — além da avaliação de si, também a autonomia
percebeu que a vídeo-câmera lhes oferecia um do seu pensar e fazer.
instrumento de observação de suas próprias Para não incorrer numa postura mera-
performances, além de dar-lhes a chance de se mente utilitarista, pragmatista, voltada simples-
avaliar. Sua orientação é a de que cada sujeito mente ao como fazer, será preciso que não se
assista e avalie a sua própria performance, uma dispense a reflexão sobre o por que fazer, co-
vez que ninguém lucraria com a análise de outros locando em questão as finalidades educativas,
indivíduos em treinamento. sociais, políticas, éticas e humanas envolvidas
Essa autora ainda sugere que a video- no ato pedagógico.
gravação pode ser usada para que o docente Por mais sofisticada que seja essa téc-
observe como conduz a sua classe, que ele avalie nica, ela não será suficiente se não houver
as relações entre o que ele pensa e o ambiente de qualidades profissionais e humanas dos respon-
ensino em sala de aula, além de poder verificar sáveis. Sem essas qualidades corre-se o risco de
como utiliza o tempo em classe passo a passo. transformá-la em uma máquina de condiciona-
Mais recentemente, Guarnieri (1998) mento ou em um “aborrecimento pedagógico”
designou o procedimento pelo nome de coaching (Linard,1980, p. 21).
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Recebido em 14.04.04
Aprovado em 07.07.04
Ana Maria Falcão de Aragão Sadalla é professora doutora do Departamento de Psicologia Educacional da Faculdade de
Educação da Unicamp.
Priscila Larocca é professora doutora do Departamento de Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa.
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