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Autoscopia: um procedimento de pesquisa e de

formação

Ana Maria Falcão de Aragão Sadalla


Universidade Estadual de Campinas
Priscila Larocca
Universidade Estadual de Ponta Grossa

Resumo

Este artigo trata de um procedimento de coleta de dados deno-


minado autoscopia. A autoscopia vale-se do recurso de
videogravação de uma prática, visando a análise e auto-avalia-
ção por um ou mais protagonistas dessa prática. Por meio da
videogravação objetiva-se apreender as ações do ator (ou ato-
res), o cenário e a trama que compõem uma situação. O material
videogravado é submetido a sessões de análise a posteriori da
ação os quais se destinam a apreensão do processo reflexivo do
ator (ou atores), através de suas verbalizações durante a análise
das cenas videogravadas. O artigo apresenta uma fundamentação
teórica do procedimento de autoscopia, aborda vantagens e limi-
tes de sua utilização, bem como os cuidados a serem considera-
dos e, finalmente, descreve as experiências das autoras em duas
pesquisas em que o procedimento foi utilizado. A partir de duas
experiências, apontam-se diferenças e semelhanças entre os tra-
balhos, especialmente relacionados aos participantes, objeto e à
distribuição no tempo das videogravações. As autoras tecem
considerações sobre o potencial formativo-reflexivo do procedi-
mento, tanto em situações de pesquisa como de aprendizagem e
formação de diferentes profissionais, considerando ser este um
excelente instrumento de formação. No entanto, é vital que se
tenha em mente a necessidade de reconhecer e devolver ao pro-
fessor, enquanto partícipe autoscópico, a condição de sujeito de
sua própria profissão, promovendo, portanto, além da avaliação
de si, também a autonomia do seu pensar e fazer.

Palavras-chave

Metodologia de pesquisa – Autoscopia – Formação profissional –


Formação reflexiva.
Correspondência:
Ana Maria F. de Aragão Sadalla
Rua Eng. Alexandre A. Cavaleri,
160 – casa 2
13101-518 – Campinas – SP
e-mail: anaragao@terra.com.br

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 419-433, set./dez. 2004 419
Autoscopy: a procedure of research and education

Ana Maria Falcão de Aragão Sadalla


Universidade Estadual de Campinas
Priscila Larocca
Universidade Estadual de Ponta Grossa

Abstract

This article considers a procedure for data collection called


autoscopy. Autoscopy entails the video recording of a practice
with the purpose of allowing analysis and self-evaluation by one
of the protagonists of that practice. The objective of the video
recording is that of apprehending the actions of the agent (or
agents), the scenario, and the plot that make up a situation. The
recorded material is subjected to sessions of analysis after the
action that aim at the understanding of the reflective process of
the agent (or agents) through their verbalizations during the
analysis of video recorded scenes. The present text introduces a
theoretical basis for the procedure of autoscopy, deals with
advantages and limitations of its use, as well as with aspects that
deserve attention and, finally, describes the authors’ experiences
in two studies in which the procedure was employed. Starting
from these two experiences, differences and similarities are
pointed out between the studies, especially regarding the
participants, object, and the time distribution of the video
recordings. The authors draw considerations about the formative-
reflective potential of the procedure, both for research situations
and for the learning and training of various professionals,
considering it to be an excellent educational instrument. It is,
however, vital to keep in mind the need to recognize and return
to the teacher, as an autoscopic participant, his condition as
subject of his own profession, thereby promoting, besides the
self-evaluation, also the autonomy of his thinking and doing.

Keywords

Research methodology – Autoscopy – Professional training –


Reflective education.

Contact:
Ana Maria F. de Aragão Sadalla
Rua Eng Alexandre A. Cavaleri,
160 – casa 2
13101-518 – Campinas – SP
e-mail: anaragao@terra.com.br

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A palavra “autoscopia” é composta pelos Fundamentação
termos “auto” e “scopia”. O primeiro trata de uma
ação realizada pelo próprio sujeito e o segundo O procedimento de autoscopia é en-
refere-se a escopo (do grego skoppós e latim contrado em estudos como os de Linard (1974;
scopu), que quer dizer objetivo, finalidade, meta, 1980), Prax; Linard (1975), Nautre (1989),
alvo ou mira. A idéia de autoscopia diz respeito, Rosado (1990; 1993) e Ferrés (1996), que
portanto, a uma ação de objetivar-se, na qual o detalharam a função de avaliação de si mesmo
eu se analisa em torno de uma finalidade. que a videogravação permite através da con-
Neste artigo, a autoscopia é tratada frontação da imagem de si na tela. Allan (1986)
como técnica de pesquisa e de formação que se utiliza o termo “microensino”.
vale de videogravação de ações de um ou mais O procedimento denominado de micro-
sujeitos, numa dada situação, visando a poste- ensino é considerado por Cooper (1983) como
rior auto-análise delas. Em sua especificidade, a um precursor da formação do professor basea-
autoscopia supõe dois momentos essenciais: a da em competências. Eram filmados em vídeo
videogravação propriamente dita da situação a os modelos de competência que se desejavam
ser analisada e as sessões de análise e reflexão. ensinar e as fitas eram, então, exibidas aos
Pela videogravação busca-se apreender professores em formação.
as ações do ator (ou atores), o cenário e a tra- Na técnica da autoscopia, o indivíduo
ma que compõem a situação. As sessões de se vê em ação, o que permite o retorno da
análise ocorrem a posteriori da ação e destinam- imagem e do som, retorno da informação, pos-
se a suscitar e apreender o processo reflexivo do sibilitando uma modificação da ação pela per-
ator (ou atores) por meio de suas verbalizações cepção de causas e efeitos (Linard, 1980).
durante a análise das cenas videogravadas. A autoscopia pode ser utilizada tanto
Com pequenas diferenças e muitas em situações de pesquisa como nas de aprendi-
aproximações, as autoras deste artigo utilizaram zagem e formação de diferentes profissionais. O
a autoscopia como principal estratégia de co- sujeito é o próprio objeto de feedback visual, ao
leta de dados em pesquisas na área de Psico- se deparar com a imagem de seu corpo, a apre-
logia Educacional. Em ambos os casos, descri- ensão, pela memória, de sua representação e
tos mais adiante, as videogravações foram reali- aparência.
zadas em escolas, especialmente no ambiente Para Rosado (1990), a videogravação é
de sala de aula, cujos protagonistas do proces- uma técnica que permite a construção de uma
so foram os docentes. Sabe-se, contudo, que a representação do real, como espaço, tempo,
aplicação da técnica pode ser viável para con- objetos, personagens, assim como de seus
textos profissionais diferentes do magistério, em movimentos, suas ações e suas interações. Essa
que o feedback das ações e a reflexão sobre elas linguagem permite a consciência do real e
sejam princípios importantes. possui componentes cognitivos e afetivos.
Com o propósito de apresentar e discutir Adotando uma perspectiva interacio-
a autoscopia no panorama metodológico da pes- nista, Rosado (1993) compreende que o sujei-
quisa e da formação profissional em educação, to que assiste às videogravações não é um
busca-se fundamentar, neste artigo, o procedimen- mero telespectador, no sentido passivo do ter-
to e abordar vantagens do seu uso, além de al- mo. Ele é ativo perante os elementos da recep-
guns limites e cuidados a serem considerados, ção videográfica, aos quais atribui sentidos
apresentando brevemente as experiências das au- dentro do contexto em que a situação apresen-
toras com o procedimento. Finalmente, algumas tada acontece. Há, portanto, uma atividade psi-
considerações são tecidas sobre o potencial cológica que é subjacente ao processo de re-
formativo-reflexivo da autoscopia. cepção televisual. Nessa atividade, o sujeito

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ressignifica os elementos apresentados, inter- da minha voz, da qualidade e da quantida-
pretando conteúdos e estabelecendo arranjos de de meus gestos, de minhas atitudes, de
particulares, procedendo a articulações e atri- minha postura, de minha maneira de atuar
buindo certos valores aos elementos, conforme e de ser. (1996, p. 52)
sua bagagem pessoal de experiências e conhe-
cimentos anteriores (p. 31). Por tudo isto, o funcionamento de uma
Ao levar em conta a interação entre as análise através do recurso do vídeo não é ta-
videogravações e o sujeito telespectador ativo, refa fácil para se realizar. Ela envolve um pro-
ele próprio protagonista de cenas videogravadas, cesso de tomada de consciência e reflexão si-
a técnica da autoscopia considera a imagem multânea de variados códigos expressivos: lin-
projetada na tela como categoria intermediária guagem, metalinguagem, deslocamentos, pos-
entre o aspecto exterior objetivo e a visão inter- turas, expressões faciais, maneirismos, entre
na subjetiva, não pretendendo senão ocupar-se outros, tanto de si como das demais pessoas
dos produtos que resultam dessa interação envolvidas na situação registrada.
(Linard,1980, p. 8). Isso significa que o interes- O encontro objetivado consigo, por
se consiste, sobretudo, na análise que o sujeito meio do vídeo, torna-se um instrumento para
realiza, ao confrontar-se com a imagem de si na provocar verbalizações mediante o conflito que
tela. É isso que Ferrés (1996) designa por vídeo- se instala entre a imagem e o eu subjetivo e
espelho, com o sentido de o vídeo potencializar mediante a possibilidade de promover articula-
a função de auto-avaliação. ções entre elementos envolvidos nos registros.
A função auto-avaliadora contida no Nesse encontro consigo, a pessoa se descobre
procedimento implica contemplação e conse- e se comenta, olha a si como se olhasse a outro,
qüente reflexão sobre o próprio comportamen- permitindo-se fixar o olhar (Ferrés, 1996). É
to. A propósito disso, o autor lembra Auguste esse confronto que, paradoxalmente, ajuda a
Comte, que rejeitava a introspecção, argumen- re-instalar o sujeito com todo o seu potencial
tando que não se pode observar algo ao mes- reflexivo e expressivo.
mo tempo na rua e na janela. Comenta o autor Com efeito, Linard aproxima-se desta
que, a partir do desenvolvimento da tecnologia constatação, afirmando:
de vídeo, esta objeção de Comte já não faz mais
qualquer sentido. Ora, a imagem de si pelo vídeo é certamen-
A palavra “vídeo”, segundo Ferrés, pro- te o lugar por excelência das defasagens e
vém do latim, do verbo videre, que quer dizer conflitos (...); entre gestos e palavras, entre
“eu vejo” . Segundo ele, o vídeo é como um percepções externas e projetos internos,
espelho, porém mais poderoso, pois: entre contrastes “após” e intenções “antes”,
entre “eu” e “os outros”, entre “aqui-agora”
O espelho devolve à pessoa sua imagem e “acolá, outrora, mais tarde”. (1980, p. 17
invertida. O vídeo não. No espelho, a pes- [tradução das autoras])
soa pode se olhar nos olhos. No vídeo não.
O espelho impõe um único ponto de vista. E acrescenta:
No vídeo, a pessoa pode contemplar-se a
partir de infinitos pontos de vista. (...) no Pelo aspecto da representação de si na tela,
vídeo vejo-me como sou visto, descubro conservada sob a forma de traço repetível so-
como os outros me vêem. Vejo-me para me bre uma fita, esta imagem intermediária entre
compreender. O fato de ver-me e de escu- objetivo e subjetivo, é certamente também um
tar-me leva a uma tomada de consciência lugar privilegiado de articulação entre expe-
de mim mesmo, de minha imagem, do som riência individual, consciente e inconsciente, e

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experiência social, presente e passada. (1980, Na pesquisa autoscópica, os dados pro-
loc. cit. [tradução das autoras]) vêm das sessões de análise do material video-
gravado. Em face dessa particularidade, outra
Trata-se, pois, de uma reapropriação de vantagem proporcionada pela tecnologia da
si e também de uma ocasião privilegiada de videogravação é a versatilidade durante a exi-
autocrítica em face da representação que se bição.
tem do próprio papel no mundo e a atuação Rosado (1993) compara esta versatili-
que nele se verifica. dade com o “folhear de um livro”, que permi-
te ao leitor proceder a avanços, recuos, repe-
Algumas vantagens no uso do tições, pausas. No vídeo, o material pode ser
procedimento autoscópico exibido em ritmo normal, acelerado, ou poden-
do contar, inclusive, com a possibilidade de
A gravação em vídeo é uma forma de congelar imagens ou repeti-las quantas vezes
registro da imagem que conserva algo que já é forem necessárias à boa apreensão. Toda essa
passado; assim, a videogravação pode restituir o versatilidade potencializa a possibilidade analí-
presente “como presença de fato, pois nele a tica, contribuindo para desentranhar os meca-
exibição da imagem pode se dar de forma com a nismos subjacentes ao processo analisado. A
sua própria enunciação” (Machado, 1988, p. 67). técnica, então, coloca-se a serviço de necessi-
A imagem gravada, portanto, prolonga a sua dades que vão se configurando, ao longo do
existência no curso do tempo (Zuzunegui, 1992). processo de análise, para os sujeitos envolvidos.
Além disso, a tecnologia de videogra- Analisando as vantagens da abordagem
vação é bastante adequada para o registro e in- videográfica em pesquisas em sala de aula,
vestigação de fenômenos nos quais intervém o Meira (1994) apontou que esta técnica permi-
movimento (Ferrés, 1996). Fenômenos comple- te construir uma “compreensão profunda sobre
xos formados pela interferência de múltiplas va- alguns casos significativos, ao invés de conclu-
riáveis, muitas das quais atuam simultaneamen- sões supostamente amplas” (p. 63), compreen-
te, como a prática pedagógica, por exemplo, são didas apenas superficialmente por outras for-
carregados de vivacidade e dinamismo. Para se- mas de abordagem.
rem mais bem compreendidos, necessitam de Além de propiciar a amostragem do
uma metodologia capaz de conservar essas ca- máximo de elementos possíveis que fazem parte
racterísticas. Desse modo, a videogravação per- de um fenômeno, a autoscopia oferece condi-
mite registrar, até mesmo, acontecimentos fuga- ções de análise crítica, permitindo exercitar
zes e não-repetíveis que muito provavelmente uma intensa atividade intelectual. Rosado
escapariam a uma observação direta. (1993) diz que, ao tentar entender e dotar de
Outra particularidade contida nesse sentido o que lhe é apresentado, o sujeito
procedimento é a facilitação do distanciamento apreende o objeto, percebendo aspectos que
emotivo necessário para a análise reflexiva do antes desconhecia, constatando contradições. E
material registrado. Na observação direta, a é esse processo reflexivo que o faz procurar
carga emotiva que acompanha a situação a ser novos conhecimentos. A confrontação, pela
registrada dificulta uma percepção mais isenta imagem, com as representações que se tem
e profícua do fenômeno a ser compreendido. sobre si, já permite uma mudança de atitude.
Graças a esse distanciamento, a tecnologia de Por mais que não seja este o objetivo da utili-
videogravação carrega o potencial de transfor- zação da autoscopia, que ela não tenha como
mar em novidade a ser conhecida muitas da- meta a intervenção, só o fato de se ver na tela
quelas realidades do dia-a-dia, que parecem tão provoca, no indivíduo, possibilidades de modi-
familiares aos sujeitos (Ferrés, 1996). ficações, a partir de vários pontos de vista.

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Alguns limites e cuidados a diam a evitar que a lente captasse a sua ima-
serem considerados gem. Esquizofrênicos permaneceram numa ati-
tude de imobilidade durante todo o tempo de
A imagem de si, no vídeo, não é ino- filmagem.
cente. Ela provoca manifestações nos indiví- Concluíram, também, que mesmo para
duos, especialmente naqueles que são mais re- os adultos considerados não-patológicos, a
sistentes a mudanças. A sua utilização deve ser autoscopia gerava ansiedade quando o indiví-
cuidadosa, com a consciência de que ela pode duo se via em ação, no vídeo. Por isso, é es-
causar até mesmo o desequilíbrio psíquico em perado que durante o procedimento, apareçam
indivíduos com personalidade patológica. atitudes elusivas, de não-identificação ou rejei-
Além disso, seria ingenuidade assegurar ção, como recusa em se rever, atitudes depres-
que a câmera de vídeo, durante as gravações, sivas ou agressivas, atrasos ou ausências, par-
apresente-se como um elemento neutro. Aque- tidas súbitas, entre outras manifestações defen-
les que fazem pesquisas em psicologia sabem sivas por parte do sujeito.
bem que a simples presença do observador na Ferrés (1996) advertiu sobre duas ati-
sala de aula, por exemplo, já produz mudanças tudes contrapostas. De um lado, o sujeito
no ambiente pesquisado. Tem-se clareza, por- autoscópico pode fascinar-se, evidenciando
tanto, de que a câmera de vídeo realiza uma uma certa dose de narcisismo. De outro, po-
espécie de violação, porque penetra na intimida- derá adotar mecanismos defensivos ou rejei-
de, na privacidade do ser para depois entregá- tar-se em razão do impacto causado pela
lo novamente ao olhar. Contudo, a utilização do percepção da distância entre o eu-observado
vídeo, segundo Meira (1994), tem a vantagem e o eu-idealizado. Geralmente, nessa situação,
de registrar em detalhe as reações dos sujeitos observam-se maneirismos e gestos de recom-
investigados, possibilitando reconhecê-las e posição na pessoa.
desconsiderá-las, se necessário. Na área da formação profissional de
Ao estudar os efeitos do feedback pelo professores, objetivando apanhar a evolução de
vídeo sobre o processo ensino-aprendizagem estagiários de magistério para melhorar a pers-
em salas de aula, Linard (1974) concluiu que picácia e objetividade de análise, Nautre (1989)
este retorno das informações, dos efeitos sobre encontrou outros problemas na utilização da
as causas, é importante porque possibilita a técnica, que devem ser observados para que se
todos os indivíduos envolvidos o conhecimento possam evitá-los:
dos efeitos de seu próprio comportamento, e
assim repará-los e corrigi-los, não só em rela- • o risco da “análise superficial”, ou seja, o
ção às divergências de atitudes, mas também indivíduo pode fazer uma análise muito pou-
de normas, de motivações perante os compa- co profunda, não parando a fita nos pontos
nheiros envolvidos. críticos e não permitindo uma discussão des-
A preocupação com os efeitos do feed- tes aspectos, a não ser de modo superficial;
back, mais adiante, levou Prax e Linard (1975) • o risco da “ferramenta falha”, ou seja, o su-
a estudarem a relação entre as características de jeito pode fazer uma análise implementada
personalidade dos indivíduos em tela e a sobre ferramentas conceituais tão complexas
autoscopia. Concluíram que dependendo da que necessitam de uma parada para explica-
estrutura de personalidade, o indivíduo se por- ção, por parte do próprio indivíduo, ou pelo
tava de diferentes maneiras, até mesmo diante docente que o acompanha;
da câmera de videogravação. Indivíduos manía- • o risco do “ponto de vista negativo”, quando
cos, por exemplo, ficaram rindo, interrompen- o estagiário tem necessidade de que o profes-
do a filmagem, fazendo mímicas. Fóbicos ten- sor o auxilie a revelar e a reforçar os pontos

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positivos de sua postura, atitudes, pensamen- filmagem. Entretanto, depois do terceiro encon-
tos, para que também possa considerá-los. tro, ficou mais tranqüila, pois percebeu que
“podia dar conta” do que a pesquisadora lhe
Apesar do exposto, deve-se considerar solicitava, ou seja, falar sobre o que estava
que a autoscopia também tem a vantagem de vendo. Considerou que o conteúdo filmado
assinalar, por si mesma, seus próprios limites. constituía “uma boa amostra de como a classe
Por tudo isto, pode-se perceber que, na funcionava e que as suas quartas-feiras come-
autoscopia, a imagem funciona como uma çaram a render mais, porque os alunos sabiam
dobradiça que articula, ao seio do sujeito, os que seriam filmados e voltavam logo do recreio
elementos do seu mundo real com o seu mun- e começavam a trabalhar”.
do imaginário, suas vivências pessoais, suas A partir do momento em que ficou
motivações, atenções e conhecimentos (Rosa- decidido que a classe da professora Letícia é
do, 1990). Para Ferrés (1996), a autoscopia que seria videogravada, a pesquisadora foi a até
permite “o encontro consigo mesmo, o encon- a sala e conversou com os alunos dizendo que
tro com o próprio corpo e, por intermédio dele, faria um trabalho e que, para isso, precisaria
com a personalidade como um todo. Um en- filmar a classe durante alguns meses. De ime-
contro que é requisito indispensável para a diato as crianças reagiram animadamente, con-
tarefa da transformação” (p. 54). E, para Nautre cordaram com a gravação e perguntaram se
(1989), a “autoscopia permite uma tomada de iriam “aparecer na televisão”. A pesquisadora
consciência na busca de uma melhor consciên- informou-lhes que o filme só poderia ser visto
cia de si e do fenômeno do grupo” (p. 29). na “TV da escola” e que se quisessem, poderia
Em razão de seus limites, Linard (1980) ser combinado um dia para assistirem a ele,
recomendou que o procedimento seja utilizado juntos, o que acabou acontecendo após a co-
com pessoas adultas e responsáveis, que con- leta de dados.
siderem a autoscopia “bem-vinda” e se mos- Detalhando o procedimento realizado,
trem cientes de seus problemas. deve-se informar que, às quartas-feiras,1 a pes-
quisadora realizava uma videogravação da sala
Duas pesquisas com de aula (das relações professora e aluno, pro-
fundamento austocópico fessora e grupo-classe, professora e alunos,
aluno e aluno, aluno e classe), durante aproxi-
Pesquisando as relações entre as crenças madamente uma hora e meia. As sete sessões de
e as ações da professora Letícia filmagem foram planejadas para acontecer após
o horário do recreio, tentando, com isso, evi-
Uma das autoras utilizou a autoscopia tar as situações iniciais de correção de lição e
com o objetivo de identificar, descrever e ana- organização do dia. O material videogravado
lisar as crenças de uma professora (Letícia) a não focalizava obrigatoriamente a professora, e
respeito de sua sala de aula, bem como discu- foram buscadas as mais variadas situações
tir as possíveis relações entre o pensamento e curriculares e interacionais.
a ação docente. Foram realizadas, no decorrer Em um outro dia da semana, às sextas-
do segundo semestre de um ano letivo escolar, feiras, realizavam-se as sessões de discussão,
sete sessões de filmagem e, em seguida, sete quando o material filmado era exibido à profes-
de discussão. sora e os episódios para sua análise eram seleci-
Letícia afirmou que no início do proce-
dimento de coleta de dados ficava um pouco 1. Este dia da semana foi escolhido em comum acordo entre a professora
e a pesquisadora, considerando as disponibilidades de tempo de ambas e,
ansiosa por participar da pesquisa, tendo, in- também, por ser este um dia em que as crianças não saíam da classe para
clusive, dificuldades para dormir na véspera da aulas de Educação Física ou Artística.

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onados por ela. Esta seleção dependia de alguns to ou errado nas suas verbalizações. Isto deve
critérios que nem sempre foram explicitados por ter dado à professora um pouco mais de tran-
Letícia. Ocorreram situações, por exemplo, em que qüilidade para falar, dado que não seria, de for-
as cenas eram muito extensas e a professora afir- ma alguma, censurada pela pesquisadora.
mava que não apresentavam conteúdos relevan- É interessante observar que já no pri-
tes para o objetivo do trabalho, ou as crianças meiro dia de filmagem houve uma alteração na
estavam realizando uma atividade em silêncio dinâmica da sala de aula como um todo, o que
(cópia, por exemplo) sem haver comunicação. já era esperado. A professora, por exemplo,
Outras vezes, a classe toda estava trabalhando in- informou, na entrevista final, que as crianças
dividualmente na produção de algum material estavam “mais santas” do que normalmente
solicitado pela professora (tais como relatos de eram. Com o passar do tempo, os alunos foram
atividades) e pouco ou nada falavam com os se acostumando com a câmera voltada para
colegas ou com a docente, e nestas ocasiões, eles, até mesmo “se esquecendo” dela em vá-
Letícia dizia que a pesquisadora podia “correr a rios momentos. No início, alguns alunos solici-
fita” para que outras cenas fossem vistas. tavam que fossem filmados, eles mesmos ou as
Foram, portanto, selecionados pela pró- suas tarefas escolares, e a pesquisadora os aten-
pria docente, os registros em que apareciam dia. Houve, também, uma ocasião em que eles
situações mais motivadoras para sua fala, e por quiseram filmar, olhando por trás da câmera, e
não ser esta seleção o objetivo do trabalho, se organizaram para que todos pudessem fazê-
Letícia não foi questionada a respeito dos cri- lo. Estas ações acabaram por aproximar a pes-
térios utilizados em sua escolha. quisadora do grupo, possibilitando menor in-
Após a apresentação das cenas ininter- terferência na dinâmica da sala de aula duran-
ruptamente (sem seleção prévia por parte da te as filmagens.
pesquisadora), solicitava-se à professora que se A autora conclui o estudo afirmando
manifestasse sobre o que considerara importan- que esse procedimento de coleta de dados foi
te a respeito do material filmado. Em alguns considerado bastante profícuo. Falando espe-
momentos, a docente apenas descrevia o que cificamente sobre as sessões de filmagem,
estava ocorrendo e, em outros, analisava a Letícia revelou que, apesar da ansiedade inici-
ocorrência, acrescentando relatos de episódios al, havia gostado muito de assistir ao funcio-
que não estavam na videogravação. Por exem- namento de sua classe, como eram as relações
plo, referiu-se a um material coletado por um entre as crianças, como elas se comportavam e
aluno no recipiente para lixo reciclado e rela- como ela agia com os alunos e, mais ainda,
tou o que ocorrera antes e depois de ele pegar que, apenas a partir das videogravações, pode
os papéis. conscientizar-se de algumas “coisas que preci-
Nas sessões de discussão, a pesquisado- sariam mudar e onde devo puxar mais nas
ra limitava-se a questionar a professora sobre as matérias. Devia ter isso todo ano!”.
ocorrências videogravadas com perguntas do
tipo “O que está ocorrendo?” ou “O que é que Pesquisando a relação entre
você me diz?”, ou, então, solicitava que a do- psicologia e prática
cente tecesse considerações sobre a dinâmica de pedagógica no processo
um grupo de alunos. Em alguns momentos tam- reflexivo da professora Gil
bém, pedia maiores explicações sobre falas pou-
co compreensíveis. No início do procedimento A outra pesquisadora também encon-
de coleta de dados, a pesquisadora informou a trou na autoscopia um procedimento adequa-
docente de que o importante seria sua fala a do para investigar articulações entre os conhe-
respeito de sua sala de aula, não havendo cer- cimentos de psicologia portados por uma pro-

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fessora (Gil) e a sua prática pedagógica, partin- cloro. Sentei perto delas e perguntei se co-
do do acompanhamento ao processo reflexivo nheciam algum desinfetante e se sabiam para
sobre suas ações. que era usado. Então, ficou esclarecido que a
Após a adesão da professora Gil, num desinfecção é a eliminação de germes e que
encontro preliminar, discutiu-se a melhor forma há cloro nos desinfetantes de banheiro, na
para que os alunos se acostumassem com a água tratada e em produtos de limpeza em
presença da pesquisadora em classe. Julgava- geral. As meninas lembraram da Kboa [marca
se importante introduzir a câmera com o míni- de uma água sanitária] e da recomendação
mo de interferência possível. A opção foi a de de colocar Kboa na água por causa do cólera
tentar garantir, inicialmente, a aceitação da (...).” (DC – 11/05/99)
pesquisadora pelos alunos. “Não me sinto intrusa nas classes. (...) Os alu-
Por isso, num primeiro momento, a nos estão bem naturais e não se alteraram
câmera de filmagens não foi levada. Adotou-se com a presença da câmera. Apenas um ou
um comportamento à semelhança de um auxi- outro fez acenos aos quais respondi, também,
liar de classe, pois dessa forma, a nosso ver, a com acenos. (...) Como fomos para as ruas
integração com os alunos seria favorecida. fazer a pesquisa na comunidade, na volta à
Definiu-se também que as videogravações se- escola desliguei o aparelho. Estava fazendo
riam realizadas nas turmas da manhã, o que se muito frio e, queixando-se dele, uma aluna
deu de acordo com o horário das aulas de enganchou no meu braço para ficar mais
Ciências naquele turno. 2 pertinho. Com o grupo de alunos, subimos a
A estratégia planejada para as primeiras rua, conversando a respeito das impressões
interações mostrou-se eficaz para preservar a que tiveram nas entrevistas. Chegando na
naturalidade e espontaneidade do processo classe, todos sentamos. O garoto que se sen-
ensino-aprendizagem. Bastaram quatro dias tou ao meu lado ofereceu-me uma bala. Acei-
letivos (correspondentes a vinte aulas) para tei dizendo que guardaria para o intervalo. Na
introduzir gradativamente a câmera para o re- saída da classe, um grupinho de garotas que
gistro das atividades e interações entre profes- passava perto de mim perguntou sobre o per-
sora e alunos. Isto ocorreu à medida que se fume que eu estava usando. Dei atenção e
identificavam manifestações concretas dos alu- elas chegaram até a ‘me cheirar’. A professora,
nos de que a presença da pesquisadora estava vendo a cena, comentou sorrindo: ‘Viu, como
incorporada. Registrou-se no Diário de Campo já te aceitaram?’. Fiquei satisfeita porque me
algumas situações a respeito: sinto à vontade com eles e eles se mostraram
à vontade comigo.” (DC – 20/05/99)
“Cheguei cedo. Desde a entrada há alunos
que já me reconhecem e me cumprimentam. A primeira tentativa de videogravação
(...) Com o sinal, fomos para a sala. (...) Na 7ª ilustra dificuldades que um pesquisador encontra
A, a professora organizou os alunos em du- ao se propor a utilizar uma tecnologia mais so-
plas, cada qual recebendo um texto diferen- fisticada. O treinamento antecipado do manuseio
ciado sobre elementos químicos e sua utiliza-
ção na vida cotidiana. Nesse processo, as du- 2. Uma das diferenças entre ambos os trabalhos refere-se ao objeto e a
distribuição no tempo das videogravações. Enquanto na primeira pesquisa
plas interagiam entre si e houve momentos se fez o registro de uma única classe de 2a série do ensino fundamental,
em que solicitavam a professora para esclare- uma vez por semana (quartas-feiras), na segunda registrou-se, de modo
contínuo, 5 classes, sendo uma 6 a série, duas 7 as e duas 8 as séries do
cer dúvidas. Enquanto a professora atendia ensino fundamental, cada qual com aulas de cinqüenta minutos, seguindo-
uma dupla de alunos, outra dupla voltou-se se os mesmos horários semanais da atuação da professora na disciplina
de Ciências na escola. Deve-se considerar, ainda, que os alunos
para mim e perguntou ‘o que é desinfecção?’. videogravados na primeira pesquisa, eram crianças, enquanto que os da
O texto que elas tinham falava a respeito do segunda pesquisa eram adolescentes.

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da câmera, a leitura do manual de instruções e de Utilizou-se, apenas, o controle remoto do vídeo
um livro a respeito de videogravações não foram para parar a fita durante as verbalizações ou
suficientes e a primeira experiência acabou frus- acelerar a imagem quando a professora não via
trada. Note-se o registro no Diário de Campo: pontos de interesse para discutir.
O conteúdo verbal dessa primeira ses-
“Fui para a escola de câmera em punho, tripé, são, que foi gravado em áudio, transcrito e
fitas, bateria carregada. Escolhi a 8a A para ini- examinado, revelou alguns aspectos que leva-
ciar o trabalho pois senti que os alunos esta- ram a optar pela modificação do procedimen-
vam bem à vontade comigo. Cheguei à escola to. As falas da professora apresentavam-se ex-
pouco antes do horário. Na sala, montei o cessivamente condensadas, sem evidências de
equipamento e, com a entrada da turma, passei contextualização ou retomadas das situações
a registrar os acontecimentos. (...) à noite fui filmadas. Percebeu-se, então, que, em função
assistir, ansiosa, os registros que fizera. Que da imediata realização da sessão, não estava
surpresa! Quase nada havia sido gravado. Perdi presente para a professora a necessidade de
o trabalho daquele dia. Fiquei frustradíssima! evocar e descrever pormenores dos conteúdos
No dia seguinte, chamei um técnico para des- das filmagens, uma vez que estes tratavam de
cobrir o que fizera de errado. Apenas um bo- acontecimentos recém-ocorridos e, por causa
tão fizera toda a diferença. Treinei com ele disso, boa parte deles não se convertia em
passo a passo, diversas vezes. Mais tarde liguei dados verbalizados. Também, em virtude da
para Gil contando o acontecido. Ela me lem- ocorrência imediata da autoscopia, não se an-
brou que na próxima quinta-feira haveria a tecipou qualquer análise e reflexão dos conteú-
mesma atividade com a 8a B. Combinamos de dos da filmagem, de modo que as verbalizações
que eu estaria lá.” (DC – 18/05/99) da professora ficaram à mercê da espontanei-
dade das situações, havendo dificuldades de
A partir da situação descrita, não hou- garantir que muitos aspectos importantes da
ve maiores problemas com as filmagens que, prática pedagógica fossem contemplados.
embora amadoras, parecem ter cumprido a fi- A partir dessas constatações, optou-se
nalidade em vista. por realizar as videogravações e editar unidades
O material coletado ocupou nove fitas de sentido contidas no material video-gravado,
de 8 mm, cada qual com 120 minutos de du- agrupando-as em diferentes conjuntos de acor-
ração. As fitas foram numeradas conforme os do com a variabilidade de situações registradas.
registros aconteciam. Houve ocasião em que o Para isso, cada fita foi analisada pela
registro das atividades de um dia ocupou mais pesquisadora e submetida a uma pré-edição
de uma fita. Nestes casos, codificou-se com para organizá-la em termos de tipos de cenas,
letras para indicar que os registros pertenciam número de cenas gravadas em cada fita, tur-
ao mesmo dia de filmagem. mas e séries onde ocorreram, descrevendo-as
Durante as filmagens, com a identifica- sucintamente. Também se registraram dados
ção de situações que se repetiam muito, ou que para reconhecer o início e a finalização de
já se contava com material suficiente para cada cena,4 e para situar e explorar aspectos
ilustrá-las, ou ainda, que não se mostravam re- a serem observados durante a autoscopia.
levantes para a gravação, tendo em vista os
objetivos da pesquisa, desligava-se a câmera.3 3. Como exemplos dessas situações tem-se: o momento da chamada
nominal dos alunos; a entrada de um funcionário da escola para passar um
Para a primeira sessão de autoscopia recado à turma; a distribuição de carteirinhas nos horários próximos à
com a professora, não se organizou previamente saída da escola.
4. Isto foi necessário porque a pesquisadora não contou com uma ilha de
o material bruto coletado nas videogravações, edição apropriada, que permitisse regular o início e o final das cenas atra-
realizando-a imediatamente após a filmagem. vés de minutagem.

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Todas as cenas contidas em cada fita • Metodologias para compreensão e fixação
foram elencadas, o que permitiu identificar com- de conteúdos: leitura dirigida e comentada a
ponentes importantes da prática pedagógica da partir de texto do livro didático – três cenas.
professora e classificar tipos de atividades ou • Metodologias para compreensão e fixação
interações registrados no material bruto. de conteúdos: resolução coletiva de ques-
A partir da escolha das cenas pelo pro- tões problematizadas por duplas de alunos –
cesso de pré-edição, passou-se a edições defi- uma cena.
nitivas, eliminando imagens que não se correla- • Situações de feedback sobre conteúdos e
cionavam com os objetivos do trabalho e jun- organização do trabalho do aluno: individuais
tando cenas correspondentes ao mesmo tipo de e coletivas – seis cenas.
componente pedagógico identificado (ainda que • Leitura livre de revistas em disponibilidade
estes proviessem de diferentes turmas ou mo- – uma cena.
mentos), agrupando-as em novas fitas a serem • Instruções para realização de trabalhos e
apresentadas à professora. Para todo este pro- tarefas grupais – duas cenas.
cesso havia uma questão orientadora: “Que • Recursos materiais à disposição ou confec-
tipo(s) de componente(s) pedagógico(s) (ativida- cionados em classe – três cenas
des e/ou interações) aparecem no material regis- • Atividades em grupos – duas cenas.
trado?”. Das respostas a essa questão, formaram- • Atividades de revisão de conteúdos com
se três grandes blocos de edições: apresentação de grupos ao coletivo da turma
– três cenas.
• atividades escolares centradas na dinâmica • Resolução coletiva de exercícios com regis-
da relação professor-aluno-conhecimento; tro no quadro e esclarecimento de dúvidas –
• atividades de avaliação da aprendizagem e três cenas.
da prática pedagógica;
• Interações que envolvem comportamentos O segundo bloco contemplou cinco
e valores. edições formadas pelo agrupamento de cenas
que envolveram atividades relacionadas com a
O primeiro bloco foi composto de ce- avaliação da relação aluno-conhecimento e
nas com atividades planejadas ou antecipadas avaliação das mediações da professora. Note-se:
pela professora, ligadas diretamente à organi-
zação e efetivação do ensino de conteúdos. • Avaliação individual e parcial através de tes-
Neste bloco, constaram treze unidades de aná- te escrito – duas cenas.
lise ou edições, conforme se segue: • Explicações sobre a próxima avaliação com
revisão das propostas e avaliações anteriores
• Rotinas de início de aula: pensamento ou – uma cena.
curiosidade do dia; discussão e registro de • Assembléia de avaliação final do 2º bimestre
pautas ou propostas de trabalho – nove cenas. – duas cenas.
• Exposição oral de conteúdos de ensino – • Explicações sobre como a nota é obtida a
cinco cenas. partir dos objetivos – uma cena.
• Metodologias para compreensão e fixação • Correção da avaliação com acompanhamen-
de conteúdos: Gincana/bingo; jogos de re- to do aluno e oportunidade de auto-avaliação
gras/atividades em grupo – cinco cenas. e avaliação da disciplina – uma cena.
• Metodologias para compreensão e fixação
de conteúdos: produções artísticas a partir do No terceiro bloco, agruparam-se cenas
estudo de textos do livro didático/atividade sob o critério de envolverem situações compor-
grupal – cinco cenas. tamentais não planejadas pela professora, mas

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que necessitaram do seu manejo ou, então, reu de acordo com o tamanho e o tempo de cada
envolviam aprendizagem de valores. Neste blo- edição, e com a disponibilidade de horários da
co encontram-se cinco unidades de análise, professora para sessões mais longas ou mais cur-
conforme se segue: tas. Por isso, houve ocasião em que uma sessão
abarcou apenas uma edição, como houve sessões
• Professora sai da classe no horário de aula nas quais analisaram-se várias edições.
– uma cena. A cada sessão, tomava-se uma edição
• Alunos que não acompanham a atividade completa para ser analisada. Nessas ocasiões, Gil
desenvolvida – três cenas. anotava e esquematizava, para si própria, ob-
• Situações envolvendo valores de responsa- servações e seqüências a serem descritas ou
bilidade para com o ambiente físico e huma- discutidas no momento de verbalização. Quan-
no – três cenas. do a pesquisadora perguntou acerca desse
• O comportamento de Leandro – duas cenas. comportamento, Gil explicou que não gostaria
• A rejeição de Liana pelo seu colega Muller de “perder nada” durante a verbalização. Devi-
– uma cena. do ao dinamismo de muitas cenas, ela nem
sempre conseguia captar tudo o que desejava,
O processo de edição, que resultou nas de modo que se repetia a edição no todo ou
unidades de análise elencadas, foi conseqüência em partes, até que ficasse satisfeita e assinalas-
da decisão de recortar a realidade segundo sig- se que era possível iniciar as análises. Nesse
nificados e percepções que foram atribuídas às processo, muitas vezes, ela fazia solicitações
ações e interações videogravadas. Reafirmam-se, como: “Vá até aquele pedaço da fita e pare”;
por isso, as constatações de Dessen (1995) acer- “Não consegui pegar tudo.” “Dá para repetir
ca do envolvimento de vivências, conhecimen- aquele trecho?” Durante essas repetições Gil
tos, pressupostos teóricos e mesmo de hipóte- completava os tópicos de seu roteiro.
ses do pesquisador/observador no ato de editar, Portanto, houve retomadas e paradas
admitindo a possibilidade de que diferentes da fita, a fim de melhor dar conta do objetivo
observadores notassem diferentes aspectos no proposto. Assim que a professora sinalizava que
material video-gravado e realizassem diferentes estava pronta para iniciar as análises, o grava-
formas de edição. Como diz a autora, dor era ligado. Em todo o processo, ela mos-
trou-se atenta e meticulosa na sua tarefa. Ao
o uso do vídeo não resolve os dilemas final de uma das sessões, a professora confes-
epistemológicos fundamentais, constituin- sou-se entusiasmada com o processo autos-
do-se apenas em um recurso técnico, cujo cópico, ressaltando as possibilidades analíticas
modo de utilização independe dos procedi- do vídeo, as quais lhe permitiam estabelecer
mentos de recorte e análise de dados, os relações e focar elementos que no transcorrer
quais estão direta e intimamente ligados à das atividades em sala de aula ficavam imper-
postura teórico-epistemológica assumida ceptíveis.
pelo pesquisador. (p. 226) Durante as videogravações, observou-
se um pouco de ansiedade, logo superada pela
Após o processo de edição, apresentou- professora. Durante as sessões, sua ansiedade
se o material à professora, solicitando-lhe que parecia concentrar-se nos seus próprios regis-
buscasse fundamentar sua prática pedagógica tros, havendo, por vezes, expressões faciais ou
na psicologia da educação. manifestações verbais de aprovação, alegria,
A apresentação das edições ao longo do tristeza e até intensa autocrítica, de acordo com
desenvolvimento das sessões autoscópicas ocor- as cenas que lhe eram apresentadas.

430 Ana Maria F.A. SADALLA e Pricilla LAROCCA. Autoscopia: um procedimento...


Considerações sobre o geralmente grande, nas situações de registro
potencial formativo-reflexivo do de comportamentos, ações e atitudes.
procedimento
Quando Linard (1980) estudou a autos-
Apesar de terem se utilizado da autos- copia na formação educacional e na formação
copia como estratégia de coleta de dados em no trabalho, ela verificou que além de registrar
ambas as pesquisas, as autoras constataram no a imagem dos corpos e a voz dos indivíduos em
procedimento a possibilidade deste ser explo- atividade, esta técnica permite mais rapidamen-
rado na formação reflexiva de professores, no te o retorno não só dos comportamentos obser-
âmbito inicial ou na formação contínua. váveis, mas, também, de sua aparência, sua
Quando se centram os interesses em auto-estima, sua história, assim como de seus
torno de idéias como professor reflexivo, prá- desejos e, no sujeito, das representações psíqui-
tica reflexiva, acredita-se na importância do es- cas que ele tem de si mesmo e dos outros.
forço dos formadores de professores em criar Considerou, também, que as ambiva-
alternativas metodológicas que concretizem o lências de sentimentos podem ser tidas como “o
discurso da profissionalização reflexiva. motor do ato de aprender” (p. 17). Elas existem,
Alguns estudiosos da formação de pro- assim como as contradições, e são positivas.
fessores apontam nesta direção. Através da autoscopia, fica claro que as dicoto-
Nautre (1989) utilizou a autoscopia mias clássicas do gênero cognitivo/afetivo, de-
em cursos de formação de professores com o sagradável/prazeroso, social/individual, são im-
objetivo de oferecer uma reflexão sobre as prá- portantes e que não é necessário escolher um
ticas e uma visualização do comportamento destes pólos em detrimento do outro.
dos alunos em formação. Tinha o intuito de Ainda no mesmo estudo, verificou que a
visualizar as perspectivas de evolução do es- autoscopia pode proporcionar um considerável
tagiário, permitindo aumentar a sua perspicá- enriquecimento à prática e à concepção de for-
cia e a objetividade de sua análise. Segundo mação, uma vez que permite a reinstalação do
essa autora, a utilização da autoscopia deve sujeito com toda a sua totalidade subjetiva, ra-
ser regida por uma escolha que inclua algumas cional e social, convidando-o a dispensar os mo-
razões: delos de aquisição de conhecimentos e compor-
tamentos unicamente cognitivos e conscientes.
• a qualidade e a precisão das tomadas per- Graças à visualização imediata dos re-
mitem uma grande precisão de análise, o que gistros, a atividade de observação e autocor-
aumenta consideravelmente a eficácia peda- reção pode proporcionar um elemento dinâmico
gógica da formação; na evolução do indivíduo em formação. Não
• a tela da televisão constitui um espaço somente para ajudá-lo a corrigir seus desvios
operacional que participa desde a simulação em relação aos eventuais modelos, mas, tam-
até a possibilidade de adaptação de numero- bém, permite que se compare a outros dentro
sos cenários. Assim, por meio deste procedi- destes modelos e aprenda a se analisar e a se
mento, o indivíduo poderia assumir diferentes modificar diante de uma situação.
papéis, atuar em diferentes cenários de forma A autora ainda defende que a conserva-
simulada, podendo analisar com mais cuida- ção dos comportamentos na situação permite
do o material produzido; uma análise do vivido, aproximando teoria e
• a autoscopia permite a observação simultâ- prática pelo movimento e avaliação constante
nea, na tela, das reações do grupo e dos ato- entre as duas. Como um processo reflexivo, a
res em simulação, e, por fim, oferece um ele- autoscopia aparece como uma técnica que en-
mento de resolução ao problema de tempo, volve tanto os formadores como os formandos,

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a instituição e o instituído, pois o sujeito é le- (treinamento/instrução), apresentando-o como
vado a situar-se em suas relações com os outros, metodologia de pesquisa e de formação de pro-
com o saber e com o poder. fessores que implica a análise e reflexão conjun-
ta de aulas gravadas ou registradas. Segundo ela,
Dentro de um quadro mais notadamente essa estratégia possiblita análises mais acuradas
terapêutico, a autoscopia pode contribuir sobre o professor e seu trabalho permitindo
para uma pedagogia do espaço transacional informações sobre a relação pensar e agir na
imaginário, entre o indivíduo e o mundo, situação de ensino.
permitindo-lhe avaliar cenários e persona- A autoscopia não é um elemento in-
gens. (Linard, 1980, p. 20) dispensável à formação, mas pode ser um
“ajudante simpático” (Nautre, 1989, p. 6). A
Um autor que pesquisou a partir do para- realidade do vivido é mais importante, sem
digma do pensamento do professor (Marcelo, dúvida, do que a imagem, mas esta técnica
1987), afirma que a observação em vídeo dos ele- pode ser uma ferramenta auxiliar na reflexão
mentos de ensino de outros professores ou de si sobre a prática vivenciada. Desse modo, a
mesmo pode ser um elemento eficaz para fazer autoscopia não deve ser usada como um ins-
com que os professores em formação reflitam trumento de controle em situações de forma-
sobre a complexidade do ato didático. Desse ção de docentes, pois corre o risco de se cri-
modo, referindo-se ao que denomina “estimulações ar um obstáculo intransponível, o que acaba-
de recordações”, este autor apresenta essa técni- ria prejudicando a própria técnica.
ca como uma possibilidade de trazer à memória os A autoscopia, sem dúvida, é um exce-
processos e os pensamentos que ocorriam quan- lente instrumento de formação. No entanto, é
do a conduta foi observada. vital que se tenha em mente a necessidade de
Allan (1986) — que utilizou o vídeo para reconhecer e devolver ao professor, enquanto
auxiliar o ensino de inglês filmando, por exemplo, sujeito autoscópico, a condição de sujeito de
entrevistas simuladas com os alunos para que eles sua própria profissão, promovendo, portanto,
pudessem, posteriormente, observar-se falando — além da avaliação de si, também a autonomia
percebeu que a vídeo-câmera lhes oferecia um do seu pensar e fazer.
instrumento de observação de suas próprias Para não incorrer numa postura mera-
performances, além de dar-lhes a chance de se mente utilitarista, pragmatista, voltada simples-
avaliar. Sua orientação é a de que cada sujeito mente ao como fazer, será preciso que não se
assista e avalie a sua própria performance, uma dispense a reflexão sobre o por que fazer, co-
vez que ninguém lucraria com a análise de outros locando em questão as finalidades educativas,
indivíduos em treinamento. sociais, políticas, éticas e humanas envolvidas
Essa autora ainda sugere que a video- no ato pedagógico.
gravação pode ser usada para que o docente Por mais sofisticada que seja essa téc-
observe como conduz a sua classe, que ele avalie nica, ela não será suficiente se não houver
as relações entre o que ele pensa e o ambiente de qualidades profissionais e humanas dos respon-
ensino em sala de aula, além de poder verificar sáveis. Sem essas qualidades corre-se o risco de
como utiliza o tempo em classe passo a passo. transformá-la em uma máquina de condiciona-
Mais recentemente, Guarnieri (1998) mento ou em um “aborrecimento pedagógico”
designou o procedimento pelo nome de coaching (Linard,1980, p. 21).

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Recebido em 14.04.04
Aprovado em 07.07.04

Ana Maria Falcão de Aragão Sadalla é professora doutora do Departamento de Psicologia Educacional da Faculdade de
Educação da Unicamp.

Priscila Larocca é professora doutora do Departamento de Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa.

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