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S A N D R A G U A R D I N I T E I X E I R A V A S C O N C E L O S

Os mundos de Rosa
Em entrevista ao Jornal da Unicamp, Alfredo
Bosi, fazendo um balanço da produção literária brasi-
leira das últimas décadas, avalia que “em termos de
ficção nada se escreveu nos últimos 40 anos de tanta
importância, de tamanha grandeza, que se possa com-
parar à obra de Guimarães Rosa” (1).
De fato, decorridos trinta anos da morte do escritor,
em 19 de novembro de 1967, a literatura brasileira de
ficção parece não ter produzido nada que se lhe iguale.
Se, por um lado, pode-se explicar esse alto patamar de
realização, de um ponto de vista formal, pela via 1 “Entrevista de Alfredo Bosi a
Antonio Roberto Fava”, Jor-
nal da Unicamp, Campinas,
adorniana do acerto de contas do autor com os mate- agosto de 1997, p. 6. Bosi se
refere especificamente a
Grande Sertão: Veredas e,
embora aponte a publicação
riais à sua disposição, naquilo que seu romance e con- do que julga serem “obras
notáveis”, reitera que “a lite-
ratura brasileira nada apre-
tos contêm de reflexão sobre a questão dos gêneros, sentou de tão importante
quanto a publicação” do ro-
mance de João Guimarães
Rosa.
também é possível ler sua obra como um espaço de
tensão permanente entre o arcaico e o moderno, o rural SANDRA
GUARDINI
TEIXEIRA
VASCONCELOS
e o urbano, o oral e o escrito. É do movimento pendular é professora
do Departamento
de Letras Modernas
entre esses pólos que nasce uma obra que, ao mesmo da FFLCH/USP.

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tempo que se vincula à linha regionalista arcaísmos e neologismos e regionalismos
de Afonso Arinos, Simões Lopes Neto e e estrangeirismos.
Valdomiro da Silveira, inscreve-se ainda O Arquivo João Guimarães Rosa, do
na tradição dos escritores brasileiros que, Instituto de Estudos Brasileiros, oferece
como Mário de Andrade, estiveram em- uma prova cabal do ânimo investigativo e
penhados numa pesquisa quase de cunho curioso do escritor, demonstrado numa
etnográfico em seu projeto de mapear o impressionante massa documental que lhe
Brasil. serviu de alicerce e material. Ali, se o pes-
Enquanto Mário se tornou turista apren- quisador da língua aparece nos incontáveis
diz, em suas viagens ao norte e nordeste do estudos de vocabulário e expressões, o es-
país na década de 20, onde coletou farto tudioso da cultura, tanto erudita quanto
material sobre lugares, modos de vida e ex- popular, também se faz presente. O que salta
pressões culturais daquelas regiões, Gui- aos olhos, nas pastas e cadernos, é seu in-
marães Rosa, depois de deixar Cordisburgo teresse especial pela cultura sertaneja e,
em 1918 para estudar em Belo Horizonte, dentro dela, o gosto indisfarçado por bois e
também, à sua maneira, fez sua viagem vaqueiros, manifestado nos registros e ano-
etnográfica ao sertão de Minas, que per- tações de suas andanças por Minas Gerais
correu a cavalo, seja como médico, na dé- em 1945 e 1952. Desde Cordisburgo, cida-
cada de 30, ou já diplomata, em dezembro de situada entre Curvelo e Sete Lagoas, na
de 1945 e maio de 1952. Nessas ocasiões, zona de fazendas de criação e engorda de
curando doentes ou revendo o mundo em gado, Rosa conviveu intensamente, mes-
que vivera quando menino, Rosa retoma mo que durante largo tempo apenas no pla-
contato com os costumes, falas, histórias, no da memória, com o universo daquilo
cantos e danças dos homens do sertão. que ele mesmo referiu como “pé-duro (5),
Trata-se, portanto, de um escritor cuja chapéu-de-couro”.
formação foi profundamente marcada por O sertão, ainda que designe uma área
essa experiência de mediação entre dois vasta e indefinida no interior do Brasil,
2 Ver Walter Benjamin, “O mundos, ou entre dois modos de vida, um apresenta uma certa continuidade, conferida
Narrador. Considerações so- rural e tradicional e outro urbano e moder- por uma das atividades econômicas ali pre-
bre a Obra de Nikolai
Leskov”, in Magia e Técnica, no. Acostumado desde criança a ouvir as dominantes, a pecuária extensiva. É a pre-
Arte e Política (Ensaios sobre
Literatura e História da Cultu- narrativas de Juca Bananeira, o pajem ne- sença do gado que unifica o sertão, e sua
ra), São Paulo, Brasiliense, gro que lhe contava histórias de boiadeiros importância se confirma na freqüência com
1985, pp. 197-221.
e jagunços, Guimarães Rosa formou-se que aparece nos topônimos, nos objetos do
3 Gunther W. Lorenz e João
Guimarães Rosa, “Literatura
lenta e gradualmente nas artes da narração. cotidiano, nos ditados e máximas e nas
Deve Ser Vida – um Diálogo Mais tarde, como diplomata, correu mun- histórias que circulam entre sua população.
de GWL e JGR (Gênova, ja-
neiro de 1965)”, in Exposição do – Rio de Janeiro, Paris, Bogotá, Ham- Em 1711, Antonil já registrava como as
do Novo Livro Alemão no Bra- burgo – armazenando o “saber das terras fazendas e os currais de gado “se situam
sil, 1971, pp. 321 e 323, res-
pectivamente. distantes” (2). Esse “homem do sertão”, onde há largueza de campo, e água sempre
4 As pastas de estudos do es-
“meio vaqueiro”, como ele se define em manante de rios e lagoas” (6). De fato, desde
critor, depositadas no Insti- entrevista a Gunther Lorenz (3), era tam- o século XVII, o boi ocupa um lugar de re-
tuto de Estudos Brasileiros
(USP), dão testemunho des- bém o sofisticado leitor de uma gama ex- levo na paisagem rural brasileira e constitui-
sas leituras, assim como o li- tensa de assuntos, como zoologia, heráldi- se num fator determinante de ocupação da
vro de Suzi Frankl Sperber,
Caos e Cosmos: Leituras de ca, religião, literatura, filosofia, pintura (4). terra, tendo auxiliado na aceleração do pro-
Guimarães Rosa (São Paulo,
Duas Cidades/SCCT, 1976). A mistura programática desses saberes faz cesso de povoamento de áreas extensas e
da obra de Rosa um espaço permanente de transformado a fazenda de gado em centro
5 Ele mesmo explica que “pé-
duro” são “os bois de raça negociação entre a modernidade urbana e a de poder. Aí os vaqueiros assumem papel
conformada à selvagem semi-
aridez”.
cultura tradicional-oral das comunidades fundamental, pois a eles são atribuídas tare-
rurais, ou de articulação entre o espírito de fas para cuja execução são necessárias cora-
6 André João Antonil (João An-
tonio Andreoni), Cultura e vanguarda e o interesse no regional, o que, gem e experiência: amansar, curar e prote-
Opulência do Brasil, São Paulo, superando dualismos e dicotomias, resulta ger os animais, preparar os campos de pas-
Cia. Editora Nacional, 1967,
quarta parte, pp. 307-12. numa mescla de formas cultas e populares, tagens, transportar boiadas, etc. Acostuma-

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do à vida livre nos pastos extensos, o gado nos campos e serras, conseguindo fugir da
era reunido no curral apenas durante a “apar- perseguição dos vaqueiros até o dia em que
tação”, época em que a habilidade dos va- seu dono resolve “dar campo” ao animal
queiros em localizar e perseguir bois des- rebelde. Assim, os vaqueiros saem para o
garrados era testada e confrontada com a mato e derrubam o boi para trazê-lo, venci-
força e rapidez do animal que se rebelava do, de volta ao curral.
contra o jugo do laço e do ferrão. É, portanto, a partir de uma atividade
Trabalho para homens livres – brancos, corriqueira nas fazendas que a imaginação
mulatos, pretos forros e também índios –, dos anônimos poetas populares criou um
o ofício de vaqueiro ou boiadeiro criava ciclo de histórias ou romances –Boi
fortes vínculos entre homem e animal e abria Surubim, Rabicho da Geralda, Vaca do
a possibilidade concreta de uma pequena Burel, Boi Espácio, por exemplo – cujo
ascensão social, isto é, de passagem do motivo central gira em torno de um mesmo
estatuto de empregado a dono, como relata núcleo temático, em que pese o acréscimo
Capistrano de Abreu: de novos episódios; trata-se sempre da luta
do boi com um vaqueiro (ou vaqueiros) que
“Adquirida a terra para uma fazenda, o tra- ambiciona mostrar sua coragem e habili-
balho primeiro era acostumar o gado ao dade na derrubada do animal que, por sua
novo pasto, o que exigia algum tempo e vez, procura fugir e defender sua liberda-
bastante gente; depois ficava tudo entre- de, mantendo-se à solta pelos campos.
gue ao vaqueiro. A este cabia amansar e Essa atividade econômica, dessa forma,
ferrar os bezerros, curá-los das bicheiras, acaba criando um modo de vida, com suas
queimar os campos alternadamente na es- rotinas cotidianas, suas histórias, sua teia
tação apropriada, extinguir onças, cobras e de relações, que pode ser melhor descrito
morcegos, conhecer as malhadas escolhi- como uma subcultura, assim definida de
das pelo gado para ruminar gregariamente, maneira ampla:
abrir cacimbas e bebedouros. Para cumprir
bem com seu ofício vaqueiral, escreve um “[...] uma subcultura conota um mélange
observador, deixa poucas noites de dormir bem distinto de comportamentos, artefa-
nos campos, ou ao menos as madrugadas tos e elementos cognitivos que caracteri-
não o acham em casa, especialmente de zam o modo de vida de um conjunto de
inverno, sem atender às maiores chuvas e indivíduos e os distinguem de outros gru-
trovoadas, porque nesta ocasião costuma pos ou agregados no interior da sociedade
nascer a maior parte dos bezerros e pode mais ampla. As subculturas tendem a se
nas malhadas observar o gado antes de es- solidificar em torno de um conjunto de
palhar-se ao romper do dia, como costu- indivíduos que partilham um ou mais tra-
mam, marcar as vacas que estão próximas ços ou dilemas comuns, têm interesses cor-
a ser mães e trazê-las quase como à vista, respondentes e provavelmente se associ-
para que parindo não escondam os filhos am uns aos outros” (9).
de forma que fiquem bravos ou morram de 7 J. Capistrano de Abreu, Capí-
tulos de História Colonial
varejeiras. Depois de quatro ou cinco anos É dessa subcultura sertaneja, povoada (1500-1800), Rio de Janeiro,
de serviço, começava o vaqueiro a ser pago; Livraria Briguiet, 1954, p. 218.
por tropeiros, capiaus, boiadeiros, peque-
de quatro crias cabia-lhe uma; podia assim nos fazendeiros que trata a obra de Guima- 8 Ver Bráulio do Nascimento,
“O Ciclo do Boi na Poesia
fundar fazenda por sua conta” (7). rães Rosa. É o mundo da arraia miúda, da Popular”, in Literatura Popu-
roça, o espaço privilegiado por ele, em que lar em Verso, Estudos, Tomo
I, Rio de Janeiro, MEC/Funda-
Dos embates e correrias pelo campo, “o boi e o povo do boi” ocupam o primeiro ção Casa de Rui Barbosa,
1973, pp. 165-231.
nasceram as lendas que envolviam tanto plano e se tornam protagonistas de suas
bois quanto vaqueiros e que acabaram dan- vidas e histórias. O povo em Guimarães 9 David A. Snow e Leon
Anderson, Down on Their Luck.
do origem aos romances de bois que co- Rosa canta, diz versos, conta histórias, A Study of Homeless Street
nhecemos (8). Esses romances, em geral, dança, reza, expressa suas superstições e People. (Berkeley, University
of California Press, 1993, p.
contam histórias de bois que se perderam crenças, repete provérbios. Sua cultura é 39.) Tradução minha.

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uma fala, através da qual se revela seu modo criação de uma nova forma de romance,
de vida. O popular flui, nasce do texto, da gênero privilegiado por Rama. Interessa-
boca dos homens, mulheres e crianças do lhe examinar como as regiões internas re-
sertão; é fruto de sua experiência e parte de cebem os impulsos das mais moderniza-
suas vidas e cotidiano. A matéria popular das, de modo que se cumpram dois proces-
vai se entretecendo na trama do texto, bor- sos transculturadores sucessivos:
rando as fronteiras entre o popular e o eru-
dito. Sua função não é contribuir para a cor “[...] o que realiza, aproveitando-se de seus
local, nem ela é tratada como um elemento melhores recursos, a capital ou, sobretudo,
pitoresco. o porto, já que é aqui que a pulsão externa
João Guimarães Rosa, ampliando e ganha suas melhores batalhas, e o segundo,
aprofundando o legado de Simões Lopes que é o que realiza a cultura regional inter-
Neto, transpõe o fosso aberto entre a voz do na, respondendo ao impacto da transcultu-
narrador culto e a voz do personagem ração que lhe translada a capital. Esses dois
iletrado ou semiletrado e, através do uso processos, esquematicamente perfilados e
freqüente do indireto livre, elide a distân- distribuídos no espaço e no tempo, em mui-
cia entre um e outro, misturando pontos de tos casos, se resolveram graças à migração,
vista e colocando em contato duas esferas em direção às cidades principais de cada
diversas de experiência. país, de muitos dos jovens escritores pro-
A esse trânsito vital, ou jogo dialético, vincianos, mesmo que nascidos na capital.
entre culturas, o sociólogo cubano Fernando As soluções estéticas que nasceram nos
Ortiz denominou transculturação, em seu grupos desses escritores mesclaram em
estudo pioneiro da cultura afro-cubana, em várias doses os impulsos modernizadores e
substituição aos conceitos correntes de as tradições localistas” (11).
aculturação e desculturação:
Não é por acaso, portanto, que Rama
“Entendemos que o vocábulo transcultu- elege João Guimarães Rosa como um dos
ração expressa melhor as diferentes fases do transculturadores, apontando nele a supe-
processo transitivo de uma cultura a outra, ração da dicotomia entre vanguardismo e
porque este não consiste somente em adqui- regionalismo, graças à conjugação dessas
rir uma cultura distinta, que é o que a rigor duas linhas de força em sua obra. Não
indica a voz anglo-americana aculturação, obstante Rama comente apenas Grande
mas que o processo implica também neces- Sertão: Veredas, em que a mediação entre
sariamente a perda ou desarraigamento de os aspectos tradicionais da sociedade bra-
uma cultura precedente, o que poderia di- sileira e o impulso da modernização se fa-
zer-se uma desculturação parcial e, além zem mais evidentes, suas observações so-
disso, significa a conseguinte criação de bre as soluções artísticas encontradas por
novos fenômenos culturais que poderiam Rosa se aplicam perfeitamente ao conjunto
denominar-se de neoculturação” (10). da obra do escritor mineiro. Nela, as
subculturas da região do sertão mineiro –
Na década de 70, o crítico uruguaio quer a de vaqueiros quer a de jagunços –
Ángel Rama incorporou o termo aos estu- encontram voz e são colocadas em situa-
dos literários para explicar de que maneira ção de permanente diálogo com a cultura
formas da modernidade européia haviam, letrada e urbana, representada pelo narra-
através de um processo de transculturação, dor, ou, no caso específico de Grande Ser- 10 Fernando Ortiz, Contrapun-
teo Cubano del Tabaco y el
se adaptado à realidade latino-americana, tão: Veredas e “Meu Tio, o Iauaretê”, pelo Azúcar, Caracas, Biblioteca
Ayacucho, 1987, p. 96. Tra-
vista como sua caudatária. Nesse sentido, interlocutor. O mundo do campo torna-se, dução minha.
não se trata apenas de uma adaptação do assim, permeável aos ecos que chegam da
11 Ángel Rama, “Literatura y
referente – a América Latina – a uma forma cidade, através, inclusive, da intervenção Cultura”, in Transculturación
européia, como a do romance, mas da de personagens, como, por exemplo, a fi- Narrativa en América Latina,
México, Siglo Veintiuno,
imbricação entre dois pólos que resulta na gura de Zé Bebelo, em Grande Sertão: Ve- 1982, pp. 36-7.

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redas, com seu desejo de modernizar o zação nunca se deu de forma homogênea.
sertão levando para lá o progresso, ou como Essa face contraditória do país foi captada
Miguel e dona Lalinha, em Buriti, que tra- por Guimarães Rosa, a partir do ponto de
zem para o sertão algo do modo de ver e vista daqueles cujas vozes foram silencia-
pensar da gente da cidade. das pela História. Aqui, essa História é
Em Rosa, o movimento pendular entre contada “pelo lado de baixo” e fala das
modernidade urbana e a “palavra-outra” dos culturas subordinadas de grupos subordi-
“desheredados de la modernización”, ou nados, dentro da formação social brasilei-
entre duas configurações culturais diver- ra. O arcaico, portanto, não é apenas uma
sas, atinge um alto nível de equilíbrio for- ruína do passado, mas sim um dos modos
mal, por meio daquilo que Rama denomina mais efetivos do presente e, como tal,
operações transculturadoras, que ele argu- corolário do projeto de modernização do
menta ocorrerem no nível da língua, da país, pelo qual a literatura brasileira se
estruturação literária e da cosmovisão. Tra- empenhou praticamente desde seu início.
ta-se, para o crítico uruguaio, da constru- Se o progresso pode conter a possibilidade
ção de um olhar, de uma resposta criadora de uma perda irremediável, como a morte
ao confronto entre o mundo tradicional do do mundo jagunço e de sua subcultura, em
sertão e as alterações que vão, gradual mas Grande Sertão: Veredas, essa perda, por
inexoravelmente, transformando sua face sua vez, tem como contrapartida a morte
e modos de vida. A consciência de que o do arcaísmo do favor, tão arbitrário e vio-
sertão vai lentamente sendo atingido por lento quanto o Estado que o destruiu.
mudanças, determinadas por um processo Em Guimarães Rosa, o arcaico e o
histórico irreversível, subjaz ao universo moderno não valem em si, ou por si mes-
rosiano e aparece consubstanciada, por mos, mas estabelecem uma relação com-
exemplo, no próprio desejo de alguns per- plementar e contraditória que supera
sonagens de que ele se transforme num dualismos seja no nível da língua, quando
espaço de “civilização”, como é o caso de o escritor mescla arcaísmos e neologismos,
Manuelzão, em “Uma Estória de Amor”: fazendo colidir duas temporalidades diver-
sas, seja no nível da construção, quando
“Como o João Urúgem, caso assim até articula formas narrativas modernas, que
depunha, apoucava o espírito do arredor. O incorporam a linguagem cinematográfica,
certo, de cristão, havia de ser terem ido pegar a livre associação, o descontínuo, e formas
aquele, no cujo mato, no pé-de-serra, logo narrativas arcaicas, com suas tramas e téc-
depois que se decidiu que ele mesmo de nicas típicas da oralidade.
12 João Guimarães Rosa, “Uma nada era que não tinha sido o furtador. Ir A produção desse efeito de indeter-
Estória de Amor”, in Corpo de
Baile, 8a ed., Rio de Janeiro, buscar o João Urúgem, dar banho nele, rapar minação, ou de misturas estilísticas, pode-
José Olympio, 1977, p. 143. os cabelos, cortar as unhas das mãos e dos ria conformar o que se pode chamar de uma
Todas as citações do conto
se referem a essa edição e pés, tratar direito, dar preceito… O lugar poética rosiana e, assim sendo, subjaz a toda
serão indicadas pela abrevia-
tura “EA”, seguida do núme-
carecia de progressos. Os meninos do a sua obra. Gostaria, no entanto, de explo-
ro da página. Adelço, os netinhos dele Manuelzão, iam rar essas considerações de caráter geral em
13 O vaqueiro Manoel Nardy, crescer, criar ali. Mas, como filhos de fa- relação mais especificamente a “Uma Es-
conhecido como Manoelzão, zendeiro, recolhendo as comodidades, ten- tória de Amor”, o conto acima referido,
foi responsável pela condu-
ção de uma boiada pelo inte- do livro de estudo. Criaturas como o João publicado em Corpo de Baile, juntamente
rior de Minas em maio de
1952, ocasião em que foi Urúgem, não podia mais haver, era até com seis outras narrativas, em 1956.
acompanhado pelo escritor. demoniamento” (12). “Uma Estória de Amor” nasceu da con-
Alguns dos participantes des-
ta viagem aparecem como vivência de Guimarães Rosa com os va-
personagens de Guimarães
Rosa: Camilo José dos San-
Guimarães Rosa dá voz, assim como queiros, seu mundo, costumes e imaginá-
tos, Aquiles Luiz de Carvalho, Simão Lopes Neto e Euclides da Cunha rio, durante a viagem do escritor acompa-
Raimundo Ferreira do Nasci-
mento (Bindóia) e Francisco antes dele, às contradições e dilaceramentos nhando a boiada de Manoel Nardy (13) pelo
Barbosa (Chico Bràabóz). de um país, cuja imagem se desenha como interior de Minas Gerais, em maio de 1952.
Manoelzão morreu em 5 de
maio de 1997, aos 92 anos. um espaço em que o processo de moderni- Os dez dias montado em lombo de cavalo,

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caderneta presa ao pescoço, resultaram em ída de uma boiada. Marcada por práticas
dois cadernos de viagem chamados de A culturais que se constituem em formas do
Boiada 1 e A Boiada 2 (14), cujas anota- saber, do agir e do pensar do homem do
ções foram posteriormente aproveitadas na campo, a festa inclui atos de rotina, como
elaboração dos contos e novelas de Corpo carrear água, tirar leite e reunir a boiada, ao
de Baile. Suas notas e observações regis- mesmo tempo que transcende o cotidiano,
tram o que se poderia chamar de uma cul- introduzindo o tempo da distensão, da dan-
tura do boi, incluindo sua nomenclatura, ça, da música e da história.
paisagem física, costumes e atividades, O conto abriga um pequeno rosário de
como a apartação, contagem, estouros, histórias: os breves relatos dos vaqueiros
ajunta, etc. Por outro lado, os diários de mesclando notícias trazidas de longe à dura
viagem também revelam um grande inte- experiência de tanger boi, fragmentos da
resse do escritor pelos “romances” e histó- Donzela Guerreira, quadrinhas sobre o
rias de bois correntes no sertão e por festas cotidiano dos homens do campo e, sobretu-
e folguedos, tais como a folia de reis, batu- do, a história da Destemida e a Vaca Cumbi-
que, congada, lundu e o bumba-meu-boi. quinha e a Décima do Boi e do Cavalo,
Esse é o material e o substrato de grande narradas por Joana e Camilo. Coalhado de
parte de seus contos, entre eles “Uma Estó- reis e vaqueiros, princesas e mães-da-lua,
ria de Amor (A Festa de Manuelzão)”. fazendas e engenhos, e guerreiros vestidos
“Uma Estória de Amor” é a narrativa da de cetim, o imaginário dessas histórias mes-
festa de fundação da fazenda Samarra (15), cla a velha tradição do romanceiro ibérico
organizada por seu capataz Manuel Jesus aos dados da realidade do sertão. O conto,
Rodrigues, o Manuelzão. Povoado por ve- ele próprio uma história de vaqueiro, repe-
lhos contadores de histórias, romeiros, dan- te, por um jogo de espelhamento, essas his-
çarinos e tocadores de sanfona, o conto tórias de vaqueiro que a tradição conser-
entrelaça no seu tecido narrativo toda uma vou e que intervêm na narrativa nas vozes
tradição oral oriunda da memória e saber de velhos mestres da narração, trançando o
coletivos, incorporando fragmentos da imaginário individual e coletivo. Sua im-
Donzela Guerreira e romances de boi, portância na trama, desse modo, não se pode
quadras e cantigas de viola, e os faz convi- medir apenas pelo que elas referem em si
ver, no espaço da festa, com a perplexidade mesmas mas pelo papel que assumem no
e fragilidade de um personagem central que, conto, já que, nelas, Manuelzão reconhece
já velho, busca um sentido e uma explica- sua própria história, vendo ali refletidas
ção para a vida. Ele mistura, portanto, um muitas das questões que o inquietam – a
universo ainda profundamente marcado relação com o patrão, com as mulheres, com
14 Os diários de viagem encon-
pela experiência coletiva e pela tradição o filho, com a terra, com os bois. Através tram-se no Arquivo João
oral ao mundo do indivíduo problemático, delas, ele passa a limpo seu passado, en- Guimarães Rosa, no Instituto
de Estudos Brasileiros (USP).
que experimenta uma solidão tipicamente contrando a tradução, no nível simbólico, A boiada partiu no dia 19 da
fazenda Sirga, de proprieda-
moderna, no meio do sertão, em sua traves- de sua situação de vaqueiro, um emprega- de de Francisco Guimarães
sia rumo à morte (16). Em meio às quadras do morador em terra alheia, pobre e só. Moreira, primo do escritor, e
chegou à fazenda São Fran-
e histórias, lundus e som de rabeca e viola, Do ponto de vista de sua estruturação cisco no dia 29 de maio de
1952. Além disso, sobre a
Manuelzão interroga-se sobre o significado literária, portanto, o conto recupera fontes viagem de dezembro de
de seus atos e empreende uma volta ao pas- orais da narração e opera a mistura de for- 1945, há notas reunidas numa
pasta com o título de “Gran-
sado, na tentativa de revivê-lo e entendê-lo. mas narrativas tradicionais e modernas, de Excursão a Minas”.
Narrativa do aprendizado, por através da presença desse universo da
15 Transfigurada no conto com
Manuelzão, da arte de morrer, “Uma Estó- oralidade, constituído pelos cantos, qua- o nome de Samarra, a fazen-
da Sirga ficava no rio de Ja-
ria de Amor” é também um mosaico da vida dras e histórias que ressoam pelo texto, em neiro, que deságua no rio São
sertaneja, desenhado a partir da presença, meio a técnicas narrativas que incorporam Francisco, na divisa dos mu-
nicípios de Barreiro Grande
entre seus personagens, dos contadores de procedimentos cinematográficos pelo uso e Lassance, próximo a Três
Marias, Minas Gerais.
histórias Camilo e Joana Xaviel e de va- reiterado, por parte do narrador, dos planos
queiros que se reúnem para preparar a sa- geral, médio e primeiro plano, de panorâ- 16 Ver Walter Benjamin, op. cit.

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micas e close-ups, cortes e fade-outs, como
demonstram os exemplos abaixo:

“Para lá, para a Capela, e parecia até que


para o Céu, partia a procissão noturna, for-
mada em frente da Casa, demoradamente, e
subindo, ladeira arriba; concisos caminha-
vam. A lua minguava, mas todas as pessoas
seguravam velas de sebo” (“EA”, p. 126).

“Uma mulher carregava no colo uma


criancinha toda nua, só trespassada no pei-
to uma fita azul – por devota promessa”
(“EA”, p. 127).

“[Manuelzão] Arrastava um pouco a per-


na, arfava um pouco” (“EA”, p. 127).

“[...] mas, à luz, redondã, de uma daquelas


velas, a cara do velho Camilo se descobria,
dobrada sua palidez, diferido” (“EA”, p. 128).

Esses exemplos também ilustram a


escolha da onisciência seletiva como ân-
gulo a partir do qual se faz o relato da his-
tória de Manuelzão, com sua mescla de
discurso indireto livre e monólogo interior.
Isso possibilita ao narrador colar-se ao pro-
tagonista e formular uma perspectiva que
acaba por constituir um olhar único, uma
fusão de vozes que, como lembra Rama,
encurta a distância entre a fala do narrador-
escritor e a de seus personagens, dentro do
que ele considera um dos três níveis das
operações transculturadoras. É a visão de
mundo do personagem que se manifesta
através desse ponto de vista misturado, ex-
presso numa língua literária construída a
partir das potencialidades do sistema
lingüístico de uma comunidade rural,
reelaborado pelo escritor.
Por último, o conto ilustra de forma
significativa a abertura, dentro da cultura
contemporânea, aos relatos míticos, en-
tendidos aqui na sua acepção forte de his-
tórias verdadeiras, exemplares e sagradas.
É o caso da Décima do Boi e do Cavalo, a
história do velho Camilo que incorpora,
ao universo do conto moderno, essa outra
estrutura cognitiva ou forma do pensar
mítico.

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Também história de boi, a Décima é, na forvavam convivência, [...]” (“EA”, p. 112).
verdade, um amálgama de diferentes ver-
sões de um mesmo núcleo temático, tendo “Estavam de bem, só que, em qualquer
nos romances de boi o arcabouço formal a novidade, nesta vida, se carece de esperar
partir do qual Guimarães Rosa constrói sua o costume, para o homem e para o boi”
própria história – uma forma rapsódica que (“EA”, p. 113).
se vale dos diferentes processos coletivos
de criação popular e da justaposição de “Apartavam-se em grupos. Mas se reco-
romances diversos. Do ponto de vista de nheciam, se aceitando sem estranhice, fei-
sua composição, a Décima se constitui num to diversos gados, quando encurralados de
trabalho de refusão de muitos dos roman- repente, juntos” (“EA”, p. 119).
ces de boi a que Rosa teve acesso, quer pela
tradição oral quer pela escrita. Utilizando- “[...] tudo trabalho empatoso, a gente era so-
se de fragmentos retirados de diferentes frendo e tendo de aturar, que nem um boi,
romances, Rosa cria, à maneira dos daqueles tangidos no acerto escravo de todos,
rapsodos, sua própria versão para um tema sem soberania de sossego” (“EA”, p. 124).
cujas fontes orais vêm da tradição ibérica e
cuja tradição escrita, no Brasil, remonta a “[...] [mulheres acontecidas] eram gado sem
José de Alencar (17). marca [...]” (“EA”, p. 139).
De caráter épico-lírico, feito uma can-
ção de gesta medieval, a história narrada “O povo trançando, feito gado em pastos
por Camilo tem por núcleo temático as novos” (“EA”, p. 155).
proezas de um vaqueiro apelidado de Me-
nino que, com o auxílio de um cavalo en- Se essa intimidade entre homens e bois
cantado, captura um boi indomável, bravo era uma marca da cultura sertaneja na dé-
e desafiador. Trata-se de uma cosmogonia cada de 50, quando Rosa percorreu o cer-
que resgata a linguagem como identidade rado mineiro tangendo boiada, muita coi-
entre som e sentido (18), entre signo e ob- sa mudou no sertão dos anos 90. O Brasil
jeto, uma fala mitopoética que “[...] tenta moderno alterou a paisagem sertaneja e
reviver a grandeza heróica e sagrada dos seus modos de vida. Atualmente, poucos
tempos originários, unindo lenda e poema, são os homens que vivem da lida com o
mythos e epos” (19). gado, as veredas e os buritis foram subs-
Narrando uma história de medo e cora- tituídos por plantações de eucaliptos que
gem, o relato da demanda do Menino ajuda alimentam as indústrias, o carro-de-boi é 17 José deAlencar, O Sertanejo,
Manuelzão a se defrontar com seu próprio quase uma relíquia e o gado viaja de cami- São Paulo, Melhoramentos,
s.d., v. I. Refiro-me ao fato de
destino. Plena de sabedoria, a narrativa de nhão. O progresso trouxe os eucaliptos, Alencar moldar seu perso-
Camilo constrói-se como um momento epi– muitos boiadeiros viraram carvoeiros e nagem principal, Arnaldo, a
partir do herói desses roman-
fânico que, reconstituindo o mito, devolve trilhas se transformaram em estradas. ces, como também construir
uma trama narrativa que tem
ao vaqueiro sua condição de homem e dono Consciente ou inconscientemente, não como enredo arquetípico as
de seu destino, permitindo-lhe confrontar- importa, o mergulho do escritor no mundo histórias de boi.

se com o medo da miséria e da morte. e no modo de vida sertanejo acabou se 18 Ver entrevista de João Gui-
“Uma Estória de Amor”, portanto, é um marães Rosa a Gunther
tornando uma forma de preservá-lo do Lorenz, op. cit., p. 345.
caso exemplar da incorporação de uma lín- esquecimento.
19 Alfredo Bosi, O Ser e o Tem-
gua e de formas narrativas típicas de uma Se hoje, passados quarenta e cinco po da Poesia, São Paulo,
cultura pecuária, de cuja paisagem e reali- anos de sua viagem com a comitiva de Cultrix/Edusp, 1977, p. 149.

dade econômica fazem parte bois e vaquei- Manoelzão, de seus oito companheiros 20 João Henriques Ribeiro, 70
anos, de Três Marias, e
ros. Daí, certamente, a insistência na com- de jornada só restam Zito e Bindóia, que Raimundo Bindóia, 90 anos,
paração entre homens e animais, tão fre- ainda guardam na memória, muito viva, de Andrequicé. Ver, a res-
peito, o documentário Nas
qüente nesse e em outros contos: a lembrança daqueles tempos (20), do Trilhas do Rosa, baseado em
livro publicado por Fernando
escritor ficou uma obra que carrega o Granato em 1995 e exibido
“Ali e no pátio, onde os homens e animais sertão dentro de si. este ano pela TV Cultura.

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