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IZA DE MACEDO

eu não f
ui
a Princesinha
da escola
IZA DE MACEDO

eu não fui a

Princesinha da Escola
O OITAVO ROMANCE DA IZA
VERSÃO DIGITAL 2021

ESTE É O DÉCIMO
SEGUNDO LIVRO
DIGITAL ENTREGUE
PELA IZA EM 2021

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS À


AUTORA IZA DE MACEDO
A ADOLESCÊNCIA
A adolescência é um
período de intensa busca
pela identidade. Ainda não
sabemos quem somos. E
é exatamente por não
termos a menor ideia da
pessoa que seremos é
que queremos ser várias.
Criamos no nosso imaginário várias
mulheres ideais, recortamos traços de
personalidade de várias celebridades para
compor nossa identidade ideal. Sonhamos
com o corpo de uma, com o trabalho da
outra, com o marido de uma terceira e com a
conta bancária de mais uma. Visualizamos
várias verdades possíveis para uma vida
feliz: uma mulher com muita liberdade e
independência e que viaja o mundo antes
dos trinta anos; ou uma mulher feliz e
realizada que faz yoga às 5h30 e dá café da
manhã para os gêmeos às 7h pouco antes
de sair para trabalhar; ou uma mulher que
casou com o amor da sua vida e que por
uma incrível coincidência ele é alto, forte,
corajoso, bem-sucedido e um pai brincalhão;
ou a mulher que colocou a carreira em
primeiro lugar e ainda muito nova é uma
empreendedora de sucesso.
São todas verdades possíveis. Dentro de
um mundo no qual pouquíssimas vezes
nossas expectativas correspondem à
realidade. Somos plurais e multipotenciais e
justamente por isso podemos seguir
caminhos que mais se alinhem aos nossos
talentos e aos nossos desejos.

Mas, na adolescência, poucas de nós têm


a habilidade de ser autêntica nos ambientes
de socialização. Normalmente existe um
padrão de comportamento e de beleza que
definem quem são os reis da festa, ou, o
príncipe e a princesa da escola. Quase que
num cenário de filme bobo norteamericano,
seguimos um padrão de bullying contra
quem não segue os padrões sociais.
A luta pela definição urgente da identidade,
na busca incessante por aprovação social é
mais evidente na fase da adolescência -
embora eu acredite que seja uma luta eterna
que começa ainda na infância - , gera uma
insegurança tão imensa que faz com que
tomemos atos desesperados em busca de
pertencimento e aceitação nos diferentes
ambientes de convívio. Do ambiente familiar
ao escolar, o pertencimento é chave
fundamental para a autoaceitação e
segurança em seguir os próprios propósitos
assumindo uma identidade que condiz com
nossos valores e nossa personalidade.
Existe uma pressão coletiva que vai
conduzir toda a verdade social na qual
estamos inseridas a partir dos valores que
são relevantes para o grupo social. Numa
família religiosa, por exemplo, a tendência é
que seus membros desejem seguir a religião
na busca pelo pertencimento. Se os amigos
começam a beber, e eu quero pertencer a
esse grupo que é tão importante para mim, a
tendência é que eu comece a beber junto
com eles. Se meus amigos praticam bullying
com determinado garoto, é preciso que
existam outros valores mais importantes para
mim (como aqueles inseridos pela minha
família) que me façam querer não praticar os
mesmos atos.
PERTENCIMENTO

A chave das relações sociais é o


pertencimento.

Querer (e ter a necessidade humana de)


pertencer é a base da sociedade. Existe um
desejo real e profundo de ser parte de
determinados grupos, normalmente aqueles
que estão mais próximos de mim. E na
adolescência, por ainda não estarmos
confortáveis em nós mesmos, por estarmos
inquietos descobrindo o mundo, as pessoas,
por estarmos numa ebulição hormonal
ininterrupta, estamos mais propensos e
abertos para novas oportunidades de
pertencimento, a novos grupos, novos
ambientes, novas experiências.
E é justamente essa abertura maior ao
novo, a descobertas, aos mundos possíveis
que torna essa fase tão turbulenta
emocionalmente e tão ‘perigosa’. Podemos
ser quem quisermos e estamos abertos a
isso, e não nos sentimos seguros ainda para
definir um ou outro grupo como aquele ao
qual pertenço. A ideia de transitar entre
sensações e emoções, a possibilidade de
novas descobertas é que fazem da
adolescência um terreno tão fértil e tão
movediço.
Quando somos adolescentes, a tendência é
que repitamos comportamentos que já foram
aceitos naquele contexto. Daí vemos tantas
meninas gostando do mesmo garoto. Tantos
garotos não querendo as mesmas meninas.
Tantos garotos querendo ser machões.
Tantas garotas querendo ser princesinhas.
Embora eu acredite que esse padrão esteja
mudando, pois há um movimento de mais
pluralidade e mais liberdade individual diante
de um contexto maior de aceitação às
diferenças, a verdade é que nós, mulheres já
adultas, passamos por um contexto ainda
bastante padronizado.
E é justamente por (tudo) isso que
passamos nossa adolescência (fase que
começamos a nos abrir para o amor físico
e emocional) vendo garotos exigindo
perfeição estética das garotas (pois os
machos-alfa reais só ficam com mulheres
capa de revista) e garotas tristes por não
terem o corpo da Fernanda Lima quando
colocam os seus biquínis.

Existe um descompasso real entre quem


esses adolescentes desejam ser e quem
eles realmente são. É uma grande
simulação da vida adulta, cruel e definidora
de traumas. Quando tudo que desejamos é
pertencimento, o que realmente
vivenciamos é uma sucessão de exclusões
sociais por não cumprirmos os ditados
sociais de perfeição.
Mas depois tudo isso passa. Ou melhora.
Ou ameniza. Ou, se agrava. Sei lá. Eu era
gordinha e sardenta. Tinha o cabelo ruivo e
meio ondulado. Usei aparelho de ferro nos
dentes e tinha uma olheira fenomenal por
conta de uma asma crônica que só
melhorou quando fiz vinte anos. Eu não fui
a princesinha da escola. Mas passei minha
adolescência toda querendo ser vista pelo
Príncipe Encantado dos corredores
escolares. O André.
ANDRÉ
O André nasceu com talento. Aos quinze
anos de idade ele exibia uma inteligência
social impecável. Transitava (sendo
idolatrado) pelas diferentes tribos que
conviviam naquele ambiente hostil e
desafiador que era a minha escola. Nós, os
estudiosos, gostávamos quando ele
escolhia o nosso grupo para fazer trabalho
(cobrindo toda a parte dele, claro, pois a
tarefa dele já tinha sido cumprida no exato
momento em que ele sentou conosco), as
princesinhas adoravam quando ele sentava
com elas e as deixava mexer nos seus
cabelos bagunçados, os garotos sentiam-se
poderosos quando André os escolhia como
sua gangue.
O André era uma estrela, um rock star,
um talentoso ser social que sabia
exatamente quem ele era e não tinha
qualquer mancha na sua identidade nem
qualquer problema de autoestima. Todos os
garotos queriam ser como o André. E todas
as garotas queriam ser gostadas pelo
André.

E assim foi até o vestibular.


Eu vi o André ser o ator mirim mais
aplaudido dos teatros infantis temáticos do
jardim de infância. Vi o André ganhar uns
três concursos de banda do colégio (ele era
o vocalista, claro). Vi o time de futebol do
André ganhar pelo menos uns dez torneios
interescolares. Fui da sua torcida em cada
um deles. Vi o André quase reprovar em
matemática na oitava série. Vi o André
sorrir ao saber que seu nome estava entre
os aprovados no vestibular. Vi o André ir
embora no último dia de aula cheio de tinta
na roupa, de carta perfumada nas mãos, de
amigos abraçados com ele.
Nunca mais vi o André.
UMA MULHER INFELIZ
Minha vizinha e melhor amiga, a Luana,
mudou de escola duas ou três vezes. Ela
não se mudou de bairro, nem teve alguma
mudança familiar que justificasse as
mudanças. Elas ocorreram única e
exclusivamente por questão de adaptação –
dela à escola.

Claro que na época a gente não entendia


direito o motivo das mudanças, era uma
decisão dos pais. E decisão de pais não se
questiona, obedece. A mãe dela é
pedagoga e o pai é médico. E ela é filha
única. Lembro de jantar na casa dela
algumas vezes, depois da aula. Os seus
pais lhe perguntavam como tinha sido o
seu dia, sabiam o nome dos seus colegas
(dos bons e dos maus), lembravam da
tarefa e perguntavam se ela tinha entendido
a matéria.
A minha mãe nunca me perguntou nada,
ela só ia buscar o boletim no final do
bimestre e minhas notas eram sempre
acima de oito. Nenhum professor tinha
nada para falar de mim, afinal os bons e
medianos nunca são interessantes.

Passei despercebida durante toda a


minha fase escolar, inclusive para os meus
divorciados pais.
Meu pai eu via nos finais de semana. E
nas férias eu viajava com ele para a casa
dos meus avós, no interior. Meu pai é meio
turrão. Meio bronco. Criado na fazenda mas
com bastante dinheiro. Nunca lhe faltou nada,
inclusive trabalho. E minhas conversas com
ele se limitavam a infinitos ensinamentos
sobre como viver a vida e imposição de
metas quase inalcançáveis. Por muitos anos,
eu fui o filho homem que ele queria. Uma
grande decepção conformada.

Mas depois vieram o Afonso e o Igor, meus


irmãos mais novos por parte de pai. O
Afonso é tão mal lapidado quanto o meu pai,
o machinho do papai. E mesmo assim eu o
amo de todo o coração. E o Igor é o legal.
Entre nós três, com certeza ele é o melhor. O
mais divertido, o mais livre, o mais inteligente
e, sinceramente, o mais bonito.
Quando meu pai se casou com a Ivone,
minha mãe praguejou aquele matrimônio. E
me usou de espiã até eu entender o que eu
e ela estávamos fazendo. Minha mãe
nunca superou o fato de seu casamento
não ter dado certo. Afinal, mulheres de
sucesso não são solteiras, muito menos
divorciadas. Ela acredita que fracassou. Por
ter se divorciado. Eu acredito que ela
fracassou por ter casado. Eles obviamente
não se gostavam. Minha mãe é uma
patricinha da cidade. Adora cinema cult e
teatro. Vai a musicais e lê romances. Tem
até livro de poesia na cabeceira da cama.
Meus pais juntos seria impossível. Mas eu
apareci para carimbar essa união
fracassável. E eles tentaram se suportar
por alguns anos, afinal, não era bonito para
duas famílias ricas terem dois filhos jovens
divorciados com um bebê de colo. Ridículo.
Minha mãe foi uma mulher infeliz até me
ver com vinte e poucos anos. Quando,
finalmente, atingi algumas das metas que
ela tinha traçado para mim. Eu estava mais
mais bonita, estava formada e tinha
estudado um ano na Europa. Eu não era
mais a filha desengonçada, sardenta
doente e complexada. Eu tinha virado uma
mulher bonita, livre, culta e independente.

E no dia da minha formatura, quando vi


orgulho nos olhos da minha mãe pela
primeira vez, meu pai me disse com alegria
(como se estivesse sendo um ótimo e
indispensável pai): isso aí minha filha,
agora só falta ganhar dinheiro.
As metas da minha mãe estavam batidas.
Dalí em diante, eu só precisaria bater as
metas do meu pai, que na verdade se
resumia a uma só: uma gorda conta
bancária.

Nunca entendi direito esse seu apego ao


dinheiro. Uma coisa quase doentia. Ele
sempre tendo muito, acha que o dever de
todos é mergulhar na piscina de dólares do
tio Patinhas. Para ele, gente mais ou
menos é gente que não sabe ganhar
(muito) dinheiro.
Enquanto minha mãe avalia meus
namorados pela capacidade que eles têm
de ler um bom livro, de criticar um filme e
de conversar sobre a sociedade; meu pai
torce o nariz para os que aparecessem de
all star. É questão de valores, ele diz, não
posso aceitar um genro de esquerda. Mas
não tem nada a ver com política, é questão
de dinheiro.

O Igor é tão imenso que ele usa all star


só para provocar o meu pai. E fala umas
frases comunistas nos grandes jantares que
minha avó dá. E me olha como se eu fosse
cúmplice. O Afonso nos olha com cara de
irmão mais velho e eu os amo por serem
meus irmãos.
Eu nem sei se eu quero me casar.

Só sei que não quero ser infeliz como a


minha mãe foi por mais de vinte anos. Nem
quero fingir alegria e amor através da
submissão como a Ivone faz com o meu
pai - nenhuma mulher está sempre sorrindo
e com os cabelos escovados.

Quero só ser feliz. E pronto.


UMA MULHER BONITA
Eu não nasci bonita e esguia como a
minha mãe. Minha beleza foi aparecer com
a minha juventude. Ou talvez tenha sido na
juventude que eu tenha começado a me ver
bonita, apesar dos desencontros da minha
imagem com os padrões internacionais de
beleza. Comecei a encontrar meu próprio
de jeito de arrumar o cabelo, como eu
gostava das minhas sobrancelhas. Passei a
comprar as minhas próprias roupas e
encontrei meu estilo. Emagreci depois de
optar por uma alimentação mais natural e
vegetariana (para uma nova grande
decepção do meu pai). Comecei a praticar
Yoga e a correr algumas manhãs. Fiz as
pazes com o espelho e aceitei minhas
falhas. E esse processo todo mudou meu
campo energético. Comecei a atrair
pessoas mais legais. Conheci homens
gentis. Fiz novas amizades.
Eu tinha encontrado minha identidade.
Muito diferente das modelos mentais que
eu tinha aos 15 anos. Eu não sou sexy
como a Fernanda Lima e nem exuberante
como a Cláudia Raia. Eu não tenho o
sorriso da Grazi Massafera e nem o corpo
da Juliana Paes. Mas eu me tornei uma
mulher bonita. Pelo menos é como me
sinto.

E, na verdade, o mundo é o que


pensamos sobre ele, e nada mais.
SARDINHAS
Era sábado e eu acordei disposta. Tomei
café expresso da máquina (que aprendi a
tomar com a minha mãe, meu pai acha
uma ofensa – café precisa ser coado, ele
diz como se estivesse recitando o alfabeto).
E fui correr.

Adoro correr pela rua. É uma sensação


de liberdade. Corro sem destino, sem
relógio controlando meu tempo, sem
aplicativo que mede distância. Corro para
me sentir livre, não para cumprir uma meta.

Eu estava de shorts de corrida, camiseta


branca, tênis e rabo de cavalo. Suada,
resolvi tomar café da manhã na padaria
que fica no bairro ao lado.
O bairro mais charmoso da cidade. Onde
fica minha rua preferida. É uma rua larga
de duas mãos bem arborizada, com prédios
recuados com jardim em frente e lindas e
enormes casas. A padaria não fica nessa
rua, mas fica próxima. Desci correndo pela
rua do meu sonho e parei para escolher
qual bolo eu pegaria no buffet.

Quando sentei na mesa com uma caneca


de café coado e uma imensa fatia de bolo
de fubá e um misto quente, meu coração
desacelerou no ato. Como se tivesse o
tempo parado um instante para eu aceitar
que aquele homem sentado na mesa no
canto direito não era só um homem
tomando sozinho um expresso (a dizer pelo
tamanho da xícara).
Aquele homem que transpirava sucesso
mesmo às 9 horas da manhã de um
sábado qualquer no canto direito de uma
padaria era o André.
O mesmo André que eu amei por dez
anos da minha vida. Enquanto era eu a que
sentava no canto. Aquele André que
mesmo sendo da minha turma por dez
anos, muito provavelmente não sabia nem
o meu nome e certamente não saberia
quem eu sou. Aquele André que amei em
silêncio e nunca contei nem para a Luana,
minha melhor amiga. Era o André, sendo
imenso mesmo no canto da padaria. Sem
aliança dourada no dedo e tomando sozinho
um café expresso sem mexer no celular.
Aquele André sorridente e educado e
charmoso agora parecia ser um homem de
bem com a vida que toma sozinho café da
padaria.
Enquanto eu o olhava sem muita noção
de tempo, lembrei de uma foto que temos
juntos. A gente deveria ter uns cinco ou
seis anos de idade. Era festa junina e ele
era meu par. Foi a única vez que tivemos
algum contato físico. Ele segurou a minha
mão para tirarmos a foto. Dançamos juntos
a quadrilha. Acho que meu amor nasceu
ali... e foi se transformando com o tempo.

Sozinha divagando, eu sorri ao lembrar


da foto. E nesse mesmo instante, ele
direcionou o seu olhar para mim. E me
pegou sorrindo enquanto eu o percebia.
Desviei rapidamente o olhar, querendo
sumir. Enfiei quase aquele pedaço todo de
bolo de uma vez na boca, fingindo fome e
pressa.
Mas ele continuou me olhando. Com certa
malícia. Deixou a cabeça semiabaixada,
olhando para cima na minha direção. Tentei
não olhar de novo, mas não conseguia. Eu
precisava sentir aquilo: a sensação de ser
olhada por ele. Afinal, passei por invisível
por tantos anos...

E foi tomando um gole do meu café que


me toquei. Ele não tinha me reconhecido.
Aquele olhar era um flerte. Ele tinha me
visto olhando (e sorrindo) para ele e
respondeu com malícia. Talvez ele ainda
fosse aquele garoto arrogante de QI alto e
jogo social. E talvez eu ainda fosse
invisível.
Comecei a me sentir ridícula. O misto
ficou frio. O café, gelado. Eu queria ir
embora e fingir que não tinha me sentido
uma adolescente de quinze anos insegura,
com a autoestima abalada, nervosa ao
encontrar por acaso o semideuso escolar.
Mas pedi um suco de laranja.

A esse ponto ele já estava comendo um


omelete com café com leite. E eu
mordisquei alguns pedaços do misto frio.
Peguei o celular para fingir ter muitos
assuntos com muita gente, e na verdade
acabei me distraindo um pouco. Quando
levantei os olhos, ele estava vindo na
minha direção. E antes que eu pudesse
fugir dali, ele perguntou com um
indescritível e clichê charme de galã que
tem a voz semirrouca...
CADÊ AS SARDINHAS?
ENCONTRO MARCADO
O André tem um campo magnético. Ele
atrai pessoas e boas oportunidades sem
fazer muito esforço. É um talento natural
sua capacidade de ser gostado, admirado,
amado. Talvez seja químico ou coisa de
aura. Depende se você for mais racional ou
mais espiritual. Eu acredito num misto de
coisas, entre elas o fato de que eu não
tenho qualquer controle sobre meus
impulsos com relação ao André.

Na padaria, achei graça no jeito de ele se


aproximar. Primeiro por ter sido original. E
depois por ter mostrado que não só lembra
de mim, como me reconheceu mesmo após
tantas mudanças. Nem meus parentes
(mais distantes claro) me reconhecem em
festas de casamento ou aniversários de
noventa anos.
Depois do meu sorriso quase
involuntário, ele me perguntou se eu
morava ali perto. E eu disse ‘no bairro ao
lado, vim correndo’. Quase na tentativa de
me explicar, de justificar porque eu estaria
ali sentada olhando para ele às nove da
manhã. Era como se eu sentisse um certo
medo de ele imaginar que eu fosse a louca
que o persegue. Foi sem querer, foi sem
querer, meu inconsciente gritou. E eu
repeti: eu corro às vezes. E resolvi tomar
café aqui. Ele sorriu, como se percebesse
meu estado de nervos e disse que morava
no prédio ao lado e que todos os sábados
tomava café ali. Eu sorri com pressa,
querendo que aquele momento embaraçoso
tivesse um fim. Ele tinha um cheiro bom. O
mesmo de quando ele saía do futebol do
recreio, suado e cheiroso. O mesmo cheiro.
O mesmo.
Nos vemos no próximo sábado?

Ele perguntou já se esquivando em


direção à saída. E eu respondi no ato, sem
pensar ou controlar ou mesmo sem querer
‘NO MESMO HORÁRIO’.

Ele acenou com a cabeça, concordando.

E foi embora.
Voltei andando devagar para casa
pensando naquela cena pouco provável.
Pensei que se eu tivesse namorando ou
casada ou com bebês gêmeos esperando
com fome no carro, eu teria dado a mesma
resposta. Meu fascínio por ele, além de
incontrolável e meio obsceno, era
espontâneo. Tenho medo que no próximo
sábado ele me olhe com aquela mesma
malícia doce e aquele mesmo charme
abafado e diga com gentileza e ternura e
muita simpatia: vamos transar ali em casa?
Porque certamente eu responderia AGORA.
Com a mesma impulsão e totaL falta de
controle ou razão que respondi ‘NO
MESMO HORÁRIO’.
MEDO
Algumas pessoas exercem poder sobre
nós. Veja, não estou falando sobre relação
de poder homem versus mulher ou algo do
tipo. Estou falando de coisa de alma. Existe
pessoa que nos envolve, que nos domina,
que nos preenche. Essas pessoas podem
ser nossas amantes ou nossas amigas ou
até mesmo colegas ou família. Pessoas
com quem nossa química bate e a gente
acaba sucumbindo a seus pedidos, seus
desejos, suas necessidades. Perdemos um
pouco da razão quando se trata dessas
pessoas. Viramos um imenso balde de
sensações e sentimentos e acabamos
seguindo o coração e depois apanhamos
da nossa razão ao deitar no travesseiro.
O André seria desses. Caso eu me
envolvesse com ele. Ele seria aquele que
faria de mim uma máquina de dizer sim, de
concessões, de (a depender de suas
atitudes) submissão. Ele é poderoso
demais no meu campo. E eu sou passiva
demais no dele. Eu posso encontrá-lo.
Posso até me divertir um pouco. Mas
definitivamente, não tenho preparo
emocional ou controle dos meus atos para
ir para a cama com ele, para me envolver
com ele, para sentir saudade dele, ciúme
dele. Não posso sentir que ele gosta de
mim, pois vou me viciar nele. E vou sofrer
crises de abstinência quando ele não
estiver por perto. E vou morrer um pouco
se ele for embora sem me chamar. Ele é
desses. E eu sou dessas. Não sempre.
Mas com ele eu seria. E eu não posso.
Quero continuar invisível aos olhos dele. E
quero enxergá-lo de longe, para que ele
não me alcance.
Café cancelado? Não posso. Não
aparecer a um encontro simplesmente é
muito feio. E eu não tenho o número dele.
Eu vou. Tomo um expresso que é menor e
mais amargo. E vou embora dizendo: não
posso. Tenho namorado. Mas mentir
também não dá. Então eu digo: obrigada.
Foi ótimo. Mas estou muito ocupada no
momento. Mas eu não estou ocupada. Eu
só estou com medo. O André é o ícone do
meu fracasso adolescente. É a razão de
meses de terapia, pois o fato de eu não ter
sido enxergada por ele por toda uma vida
foi motivo para imensas manchas na minha
autoestima.
E se ele fizesse isso de novo? E se
depois do café ele não quisesse mais
nada? E se eu não tivesse que fugir dele,
porque antes ele fugiu de mim... não seria
pior? E se depois de tanto tempo, ele me
rejeitasse de novo? E se eu não atingisse
as metas de mulher para ele? E se ele
ainda for o mesmo babaca de sempre e eu
ainda não tiver amadurecido nem virado
mulher? E se eu for a mesma garota
sardenta, insegura, magoável e vulnerável?

Que semana impossível!


NO PORTÃO
Com que roupa se vai a uma padaria
para encontrar o seu amor platônico em um
sábado de manhã?

Foi a pergunta que guiou meus


pensamentos de segunda a sexta. Eu
poderia ir correndo de novo. Chegar suada
outra vez. Com roupa de corrida. E se ele
não gostasse de mim, não se sentisse
atraído pela minha aparência, não gostasse
do meu cheiro, seria mais fácil para eu me
conformar ou ao menos precisaria de
menos sessões de terapia. A desculpa já
estaria pronta: também, fui daquele jeito,
toda estropiada, não tem tesão que dê jeito
naquilo. Pronto.
Mas resolvi ir mais casual. E andando.
Vesti um jeans lavado, mais claro. Uma
camiseta branca mais coladinha. Um tênis
branco que virou clássico. Fui de
branquinho básico. Passei um rímel, mas
sem maquiagem. Protetor com cor de base.
Escovei um pouco a ponta do cabelo.
Como quem acorda pronta. Cheguei depois
dele. Que não tomava nada. Nem mexia no
celular. Ele estava em pé, na frente da
padaria, me esperando. Oi, ele disse
sorrindo. E eu só consegui olhar para ele
com encantamento.
Entramos. Tomamos café preto coado,
suco de laranja e misto quente. A conversa
fluiu naturalmente. Por estranhas razões,
tivemos as mesmas impressões das
vivências que tivemos. Rimos das mesmas
esquisitices da professora de matemática.
Exploramos o mesmo medo do professor
de educação física. Falamos com um pouco
de maldade das mesmas pessoas. E
compartilhamos afetivas memórias dos
mesmos passeios. Era como se dois velhos
e bons amigos estivessem conversando.
Com intimidade. Era estranhamente
confortável conversar com ele. Era como se
eu estivesse no sofá de casa.
Foi então que ele me olhou franzindo as
sobrancelhas e perguntou: por que nós não
fomos amigos antes? Eu ri da sincera
inocência de sua pergunta. E lhe disse sem
rodeios que foi porque ‘eu sempre fui
invisível’. E guardei para mim o restante da
resposta ‘principalmente para você’.

Vamos dar uma volta. Ele disse. Posso


andar com você até a sua casa, e descobrir
onde você mora. Posso? Pode, claro.

Não. Eu não escaparia desse momento.


Era o meu momento. O nosso. Tudo fluía,
dançava. Fomos bailando até em casa.
Rindo, fazendo graça. Sendo espontâneos.
Eu adorei essa versão adulta e gentil e
engraçada do André. Com o mesmo cheiro
e o mesmo poder de encantamento.
Chegando ao portão senti uma estranha
e desconfortável tensão. Como se de repente
sentíssemos que tínhamos braços e mãos e
não soubéssemos os seus devidos lugares.
Tudo ficou meio esquisito e fora de lugar.
Estava acabando e não queríamos acabar.
Tinha um estranho tesão enrustido que
parecia prestes a explodir. Fiquei um pouco
com medo de tomar qualquer atitude ou de
falar uma palavra errada. E me deu uma
saudade instantânea. Dele, daquela manhã,
daqueles sentimentos.

Então, eu moro aqui. Eu disse. Perto


demais, ele disse. Ficamos em silêncio por
uns segundos e antes que ficasse ainda mais
estranho, eu disse que ia subir. Aquela
manhã precisava terminar ali, sendo perfeita,
eterna. E ele concordou dizendo; tá bom, te
ligo. Virei as costas e abri o portão.
URGÊNCIA
Eu subia as escadas da entrada do
prédio quando meu telefone tocou. Era ele,
olhei para trás e ele fez sinal para que eu
atendesse o celular. Atendi e ele disse:
volta. Me deixa beijar essa sua boca antes
que mais quinze anos se passem e eu me
arrependa de não ter te conhecido melhor
antes como estou arrependido agora.

Era demais para mim. Eu sabia. Eu


estava me direcionando ao precipício. Eu ia
mergulhar em areia movediça. Mas era
irresistível, urgente, necessário. Eu desci.
Abri o portão e ele veio. Devagar e
poderoso. E puxou levemente meus
cabelos da nuca virando meu rosto para o
dele e beijou a minha boca levemente. E
me olhou e disse: que mulher linda você se
tornou, Fernanda. Que mulher maravilhosa
que você é. E foi embora. Sendo eterno.
Dolorido. Imenso.
Cheguei em casa. Deitei no sofá. Eu não
sabia o que fazer comigo mesma. Eu não
cabia no meu apartamento. E meu coração
não cabia no meu peito. Tudo vibrava.
Minha pele, minha nuca, meu cabelo. Eu
estava eletrizada.

Fiquei repassando cada conversa na


minha cabeça e revendo a cena clichê do
beijo no portão que recheava minha
memória. Eu era uma clássica mulher
recém beijada. E agora?

Meu telefone tocou uma hora depois. Era


ele. Estou ficando com fome. E agora?
Puxa vida, como podemos resolver isso?
Perguntei em tom alegre (até demais)
dando corda para aquele papo de vem um
convite aí...
Para mim é muito fácil de
resolver. Visto uma roupa
bacana e descolada, fingindo que
me visto assim todos os
sábados, e passo na casa de uma
gata divertida que mora aqui
perto e vejo se ela quer sair
para almoçar comigo daqui a
pouco. Se ela aceitar, eu tento
descobrir se ela é do tipo que
faz dieta, aí eu a levo para
comer uma comida japonesa e eu
ainda marco esse ponto por ser
um cara mais saudável. Mas se
ela for do tipo comilona que
gosta de comer besteiras no
final de semana, eu a levo numa
hamburgueria que abriu aqui do
lado de casa e peço uns três
sanduíches com batata frita
para mostrar que sou maneiro.
E você, resolve como?

Ah, meu almoço


está resolvido. Vou
almoçar com um
velho conhecido que
encontrei hoje cedo
na padaria e que
ainda não sabe que
sou vegetariana. Mas
se ele me levar na
hamburgueria não tem
problema porque sou
viciada em batata
frita.
mEIODIA?
mEIODIA!
TE BUSCO.
OK.
BEIJO.
BEIJO.
QUASE DOIS MESES
Todo relacionamento tem etapas,
momentos decisivos. Aquele famoso ‘vai ou
racha’. A ficada que já extrapolou o
descompromisso e chegou a hora de
decidir se namora ou se desencanta. O
namoro que já está ficando estranho usar o
título de ‘namorada e namorado’. O
noivado que precisa logo de uma data para
o casamento. O casamento que pede uma
grande mudança ou o desembaraço.
Momentos. Que precisam de sinceridade e
clareza quanto aos sentimentos. Do próprio
e do outro.

A grande pergunta que chega no início:


O QUE SOMOS? E a partir daí, definições
externas e internas se estabelecem.
Fidelidade. Ciúme. Satisfações.
Eu e o André chegamos nessa fase. Na
primeira etapa. Na descoberta do que
estávamos virando. O primeiro almoço tinha
sido divertido. A primeira transa
sensacional. O primeiro porre, parceria. A
primeira ida ao cinema, comédia com
risadas aparentemente ensaiadas,
estaladas nas mesmas cenas. A palavra
que nos definia era ‘INTIMIDADE’. Era
como se tivéssemos sido próximos a vida
inteira. Estávamos felizes, encantados,
equilibrados. Ele me ligava para falar mal
do chefe e para contar sobre a consulta no
dentista. Eu mandava mensagem no meio
da tarde dizendo que estava com saudade.
O Igor, meu irmão, praticamente o roubou
de mim nos churrascos e minha mãe
estava mais apaixonada do que eu com
quinze anos.
Era um sábado e dormimos à tarde.
Acordamos com preguiça e resolvemos ir
tomar café num Bistrô perto de casa. Da
dele. Enquanto caminhávamos a pé, ele me
disse um pouco nervoso:

Fer, eu estou com medo.


Nunca gostei tanto de alguém
como gosto de você. Eu nunca
consegui ser tão inteiro como
sou com você.

Antes que eu o interrompesse, ele


segurou minha mão demonstrando que
queria continuar falando. E continuou...
Eu sempre vesti o personagem que
aprendi a vestir ainda
adolescente e não conseguia mais
tirar a máscara e isso sempre
deixou minhas relações pesadas
demais. Ter que ser alguém ao
invés de ser quem a gente é foi o
único jeito que aprendi a me
relacionar. E nunca deu certo. Eu
não fui um cara legal com quase
nenhuma das garotas que fiquei.
Relacionamento mais sério mesmo
eu só tive com uma garota, mas é
algo esquisito, superficial e
confuso. E com você é tão fácil,
tão certo, tão natural, tão
intenso, tão verdadeiro. Eu estou
com medo, Fer. Com medo de
errar, com medo de não dar
certo, com medo de você não
gostar de mim o tanto que eu
gosto de você.
Fiquei emocionada (claro). Mas engoli o
choro e disse:

André, eu também
amo você.

Ele me beijou com gosto no meio da rua


e não soltou a minha mão no caminho. Eu
adoro andar de mãos dadas com ele.
Mas foi no dia seguinte que coração
parou meu chão desabou. Fomos almoçar
num restaurante bacana do shopping.
Comer risoto, tomar vinho, essas coisas.
Mas uma mulher de uns trinta anos que
almoçava com uma amiga (ou o que
parecia ser) não parava de olhar na minha
direção. Ela estava sentada em uma mesa
que ficava atrás do André. Um pouco à
direita. Ela tinha um rosto familiar, mas
clichê. Beleza estilo barbie mas que
envelheceu um pouco rápido demais. Com
certeza tinha preenchimento labial e botox
mandibular. Uma mulher bonita, mas um
pouco exagerada. Eu não sei, algo nela
não emitia paz ou alegria.
Comecei a ficar nervosa. E o André
percebeu.

É aquela mulher que não para de me


olhar. Descaradamente. Deve ser alguma
ex sua com ciúme, eu hein?!

Ele olhou para trás e retornou o olhar


com olhos de pavor.

É ela, Fernanda. A minha namorada. Ou


melhor, a única namorada que já tive. É
a Ângela. Ela não é fácil e talvez seja
melhor a gente ir embora agora.
Ir embora? Como assim, André? Por quê?

Porque ela expulsa o monstro que vive


dentro de mim, Fer. Ela me provoca com
maldade e se ela vier até aqui mexer
conosco, do que ela é plenamente capaz,
eu não vou conseguir ser educado.

Ela está se levantando, André. Mas nós


não VAMOS embora. EU vou embora. Você
fica. Esse B.O. é seu e você deveria ter
resolvido isso antes.

Levantei antes que ele conseguisse


segurar a minha mão, mas ele veio logo
atrás, deixando dinheiro sobre a mesa.
E então ouvi ela falando alto no meio do
restaurante:

ELE NÃO ESTÁ LIVRE NÃO, TÁ


MOCINHA!?
Quando ela emitiu aquele grunhido, eu
reconheci aquela voz. Eu conhecia aquele
monstro.

André, não me diga que aquela


mulher ali é A Ângela da turma B,
AQUELA pessoa horrorosa?
É ela sim, Fernanda. E meu rolo com
ela começou na formatura do
Colégio, no baile.

André, que coisa horrível.


Para você ver como eu sofro há


anos.

Não estou sendo empática com você.


Horrível é você me envolver nesse
drama infanto-juvenil como se eu
aos vinte e oito anos tivesse
voltando aos quatorze, tendo que
disputar o príncipe do baile com a
princesa da escola. Tô fora!

Que isso, Fernanda? Você vai


terminar comigo por causa dela?

Não, André. Eu vou terminar com


você por causa de você. Você teve
quase dois meses para me contar toda
essa palhaçada. Falamos sobre a escola
e sobre todo mundo que a gente
conhecia de lá umas cem vezes. Omitir
fatos relevantes pode ser mais
prejudicial que mentir, André. Você
tinha que ter me falado naquele
primeiro sábado que passamos juntos:
“ah e sabe aquela garota besta e
malvada da turma B? Sim, aquela que
te humilhou por dois anos com a
história da mamadeira que ela viu você
tomar na sua casa? Então, ela foi
minha namorada nos últimos dez anos”.
Isso diria muito sobre você.

Fer, vamos conversar. Não vai embora.

Resolva a sua vida antes, André. Perca


esse pavor que você tem de ela aparecer
na nossa mesa. Assuma o risco de dizer
para ela que você seguiu em frente.
Supere. Fique livre, de vez. E aí me
procure. Se eu ainda estiver livre ou,
melhor, se eu ainda gostar de você, você
me procura.

Eu não posso fazer isso agora,


Fernanda.

Ué, por quê? Você não estava ainda


ontem me dizendo o quanto gostava de
mim?

E eu estava sendo sincero. Mas, Fer, ela


está grávida.

Comecei a rir no meio do corredor do


shopping. Eu não conseguia acreditar no
tamanho do abismo sentimental que ele
tinha me jogado. Eu estava bem sem ele. E
eu estava em êxtase com ele. E agora eu
estava realmente odiando tê-lo
reencontrado. Virei as costas e fui embora.
Eu não tinha fôlego para continuar aquela
história. E eu não queria mais ouvir
desculpas ou promessas de amor. Eu não
merecia entrar numa história que não era
minha. Eu não queria não ser a
protagonista da minha própria história. A
Ângela ia protagonizar, de novo. Porque é
isso que ela faz desde os cinco anos de
idade. Ela é cruel e desonrada. Isso não
muda. Pessoas ruins existem e ela é uma
delas. Ela gosta de ser má. Sente prazer
em ver o outro sofrer. Eu não posso nem
assistir isso de perto, que dirá viver isso de
novo.
DUAS SEMANAS E MEIA
O André sumiu, por duas semanas e
meia. E eu mergulhei naquele abismo para
o qual ele me empurrou. Que parecia não
ter fim. Conhecer o sabor do doce é pior do
que nunca ter experimentado. Eu estava
sofrendo de abstinência. Doía a cabeça.
Perdi o apetite. Emagreci dois quilos. Não
fiz exercícios. Não falei nada além do
estritamente necessário no meu trabalho.
Não partilhei com os meus pais esse meu
fracasso, afinal, pela primeira vez eu tinha
conseguido unanimidade dentro de casa.

Como pode existir um sentimento assim?


Uma agonia que não passa? Uma saudade
de rasga o peito? Um desespero ao pensar
no ‘nunca mais’?
Eu sabia que ia ser assim. Eu sabia que
ele iria me esmagar como se eu fosse uma
formiga. Mas eu mesma me enrolei na sua
teia. A culpa é minha. Eu não deveria ter
ido tomar aquele café, nem ter ido almoçar
naquele sábado. Eu não deveria ter
convidado o André para comer brigadeiro
na minha casa e definitivamente não
deveria ter transado com ele. Ele me
engoliu no primeiro ato e me destruiu no
primeiro conflito. O final da história sou eu
miserável e invisível no sofá. Ele não me
mandou nem uma mensagem de
desculpas. Ele fez exatamente o que eu
pedi e sumiu.
Mas ressurgiu, numa quarta-feira. Duas
semanas e meia depois. Quando cheguei
em casa, ele estava no portão do prédio,
sentado.

Eu não deveria, mas vou deixar


você subir.

Ela me enganou de novo. Ele disse.

E eu, pacientemente, ouvi.


Ela não está grávida nem
nunca esteve, Fernanda. Passei
as últimas duas semanas
exigindo ir com ela fazer os
ultrassons. Acredita que ela
usou os da irmã? Para me
mandar. Eu tinha terminado com
ela há quatro meses. Uns dois
antes de te reencontrar. E ela
não se conformou e um dia
apareceu com essa notícia. Uns
dias antes daquele no
restaurante.
Eu não quero saber, André. Não
importa mais.

Como assim, Fer? Acabou. Eu me


livrei dela. Eu estou aqui para dizer
para você que estou livre e que eu
te amo e que quero você. Só você. Que
eu quero ser esse homem que eu sou
com você.

Me deixa te amar,
Fernanda.
Eu não vou suportar, André. Eu
passei metade da minha vida amando
você e você nunca me deu nem bom dia.
Eu fui invisível para você. Eu fiz
terapia por causa de você sabia? E eu
voltei a falar sobre você para a
minha terapeuta nessas últimas
semanas. Eu fiz o dobro de sessões
porque eu não estava suportando este
desespero. André, eu não posso ficar
com alguém que eu sou capaz de amar
mais do que eu amo a mim mesma. A
gente nem tem nada ainda, você nem
me chamou de namorada, nós nem
temos uma foto em porta-retrato e
você já me fez sofrer mais do que
todos os meus ex-namorados juntos.

A hora que você sair por aquela


porta, eu vou deitar no chão e chorar
até não suportar mais o gosto das
minhas lágrimas. E eu vou entrar em
desespero e vou me arrepender por
ter mandado você ir embora porque eu
não tenho o menor controle sobre
esse amor ridículo e imenso e infantil
e tarado que sinto por você. Tudo ao
mesmo tempo. Mas eu preciso que você
vá embora e não volte nunca mais,
mesmo que eu peça. Porque eu mereço
ser amada por alguém que me ame mais
do que eu já amei você. Eu mereço
receber um pouco desse amor de volta.
Ficamos em silêncio. Ele me olhava com
segurança. Esperando que eu parasse de
chorar. Eu não parei.

Então ele me abraçou com força até que


parasse. Até que o desespero passasse.
Até que o ardor do peito amenizasse.

Não sei exatamente quanto tempo


demorou para que eu sentisse meu
coração desacelerar. Para que eu
conseguisse respirar sem que o peito
ardesse. Mas em um dado momento eu
consegui. E fui me soltando lentamente
dos seus braços, numa ilusória tentativa
de me separar do colo que me deu
aconchego e que foi a razão de todo o
desespero.
Mas ele segurou as minhas mãos, olhou
com sinceridade e entrega nos meus
olhos. Eu senti um amor profundo e
imenso. E antes que eu pudesse reagir
àquele momento, ele me disse com muita
segurança e muita certeza:

Eu não vou embora,


Fernanda.

E continuou.
Mesmo que você peça. Primeiro
porque nós já temos sim uma foto
num porta-retrato, na sala da casa
da minha mãe. Você está de vestido
rosa rendado e sardinhas no rosto e
eu um cabelo tigela horrível e com
uma roupa de caipira playboy
detestável. Segundo porque se eu fui
um cretino na escola, eu preciso
passar o resto dos meus dias
provando para você que eu virei um
cara decente. Terceiro porque se
você já me amou por mais de uma
década, significa que eu estou
atrasado e eu sou um cara
competitivo, eu vou me empenhar
com toda a minha força e todo o
meu coração para que você se sinta
a mulher mais amada do universo. E
quarto, porque eu te ouvi.

Pela primeira vez eu me


importo com uma
mulher.

A ponto de ouvir o que


ela me diz.

Mesmo que esteja aos prantos,


enquanto termina comigo.

E quinto, eu vou ficar porque eu


quero ficar. Porque tudo que eu
quero na minha vida neste momento
é ficar aqui ouvindo você brigar
comigo o quanto você precisar.
Mesmo que demore. E quando você
resolver parar de brigar comigo, eu
te levo de novo em um restaurante
chique e a gente recomeça de onde
parou e eu vou te pedir em namoro
porque é assim que os homens
decentes fazem. E quando eu souber
se você me quer mesmo de verdade,
eu chamo você parar ir morar
comigo porque não faz sentido a
gente pagar duas contas de luz. E aí
talvez eu passe o resto da nossa
vida adulta compensando você por
cada bom dia que eu não te dei na
nossa infância te levando café
recém coado na cama.
Me deixa te amar,
Fernanda.

Tá bom.

Tá bom... o quê?

Eu deixo.

Fim.
este livro foi escrito, revisado
e editado por mim, a Iza

É PROIBIDA A REPRODUÇÃO,
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COMERCIALIZAÇÃO OU
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EM TODO OU EM PARTE.

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