Você está na página 1de 293

Os Meninos do Brasil

Ira Levin

Os Meninos do Brasil

Círculo do Livro
CÍRCULO DO LIVRO S.A.

Caixa Posta 7413


São Paulo, Brasil

Edição Integral
Título do original:
"The boys from Brazil"
Copyright Ira Levin
Tradução de César Tozzi
Capa de Antonio Carlos Espilotro

Licença editorial para o Círculo do Livro


por cortesia da Livraria Francisco Alves Editora S.A.
É proibida a venda a quem não pertença ao Círculo
Composto pela Linoart Ltda.
Impresso e encadernado em oficinas próprias
2 4 6 8 10 9 7 5 3 1
Formatação:
Luis Antonio Vergara Rojas - LAVRo
O AUTOR E SUA OBRA

Alguns críticos já definiram Ira Levin como um dos


mais brilhantes discípulos da escola de Alfred Hitchcock,
aquela que reúne os chamados "mestres do suspense".
Enquanto o velho Hitchcock arrepia multidões em salas de
cinema, Ira Levin vem se transformando num conhecido
escritor de best sellers, onde a intriga, o medo e o
mistério arrebatam milhares de leitores em todo o mundo.

Natural de Nova York, onde nasceu a 27 de agosto de


1929, Ira Levin era um escritor em busca do sucesso
desde 1953, época em que escreveu o primeiro romance,
"A kiss before dying". Porém, foi somente em 1967 que Ira
Levin viu realizado o seu objetivo: nesse ano, ao ser
editado o romance "Rosemary's baby", o seu nome
passaria a ser rapidamente conhecido, como livro
esgotando as tiragens em poucas semanas. E chegaria ao
êxito absoluto um ano depois, quando o diretor Roman
Polansky transformou "O bebê de Rosemary" numa das
fitas mais célebres da história do cinema de suspense.

Autor de "Este mundo perfeito" (1972) e "As


possuídas" (1974), lançadas no Brasil, Ira Levin continua
nesta obra a técnica de opressão e de intriga que domina
com desenvoltura: "Os meninos do Brasil" (1976) narra a
ambição de um ex-nazista em deflagrar o aparecimento
do IV Reich na América Latina — uma fantasia que o
desenvolvimento da engenharia genética poderá
converter em aterradora realidade.
Este livro é uma obra de ficção.

Os acontecimentos nele descritos são


imaginários, e as personagens — com
exceção das pessoas famosas citadas por
seus nomes verdadeiros — são também
imaginárias e não têm a intenção de
representar determinadas pessoas vivas.

O autor agradece as informações que lhe


foram dadas pelo Dr. Maurice F.
Goodbody, Jr., Mr. e Mrs. Halperin, Mr.
Anthony Koestler e Mr. Edmund C. Wall.
Para
Jed Levin
Nicholas Levin
Adam Levin

E à memória de
Charles Levin
-9-

Em setembro de 1947, ao anoitecer, um pequeno avião


bimotor, prateado e preto, aterrissou numa pista auxiliar do
Aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Diminuindo a
velocidade, fez uma curva e deslizou em direção a um hangar,
onde uma limusine estava à espera. Três homens, um deles de
branco, passaram do avião para o carro, que saiu de
Congonhas em direção aos arranha-céus brancos do centro de
São Paulo. Uns vinte minutos depois, na Avenida Ipiranga, o
veículo parava diante do Sakai, restaurante japonês em estilo
de templo.

Lado a lado, os três homens penetraram no espaçoso


vestíbulo laqueado de vermelho do Sakai. Dois deles, de
ternos escuros, eram corpulentos e de aspecto agressivo, um
louro e o outro de cabelos pretos. O terceiro homem,
empertigado entre eles, mais magro e mais velho, vestia-se de
branco, do chapéu aos sapatos, à exceção da gravata amarelo-
limão. Balançava na mão enluvada de branco volumosa pasta
bege e assobiava uma música, olhando em torno com aparente
satisfação.

Uma recepcionista de quimono inclinou-se, sorriu


graciosamente e, recebendo o chapéu do homem de branco,
fez menção de apanhar sua pasta. Ele esquivou-se, porém, e
dirigiu-se a um jovem e esguio japonês que vinha ao seu
encontro de smoking e com um sorriso.

— Meu nome é Aspiazu — anunciou em português


endurecido por ligeiro sotaque germânico. — Reservei uma
sala. — Aparentava sessenta e pouco anos, tinha cabelos
grisalhos cortados rentes, olhos castanhos brilhantes e joviais
e um bigode grisalho, fino e bem aparado.

— Ah, Sr. Aspiazu! — exclamou o japonês, em sua versão


própria do português. — Está tudo pronto para a sua reunião!
Quer ter a bondade de me acompanhar por aqui? Somente
alguns degraus. Vai ficar feliz, estou certo, quando vir os
preparativos.

— Feliz já estou — retorquiu o homem de branco,


sorrindo. — É um prazer estar na cidade.
- 10 -

— Mora no interior?

O homem de branco, subindo atrás do louro, fez um sinal


afirmativo com a cabeça e suspirou.

— Sim — proferiu secamente. — Moro no interior.

O homem de cabelos pretos seguiu atrás dele, e o japonês


foi por último.

— Primeira porta à direita — exclamou para os da frente.


— Querem fazer a gentileza de tirar os sapatos antes de
entrar?

O louro abaixou-se a fim de espreitar através de uma


abertura octogonal na parede, depois firmou a mão no umbral
da porta, ergueu o pé para trás e puxou o sapato. O homem de
branco espichou um pé calçado de branco no tapete do
corredor, e o homem de cabelos pretos agachou-se e
desapertou-lhe a fivela dourada lateral. O louro, colocando de
lado os sapatos, abriu uma porta intricadamente ent alhada e
entrou num aposento verde-claro. O japonês desembaraçou-se
das sapatilhas com grande destreza, usando os dedos dos pés.

— Nossa melhor sala, Sr. Aspiazu — disse. — Muito


agradável.

— Certamente, sem dúvida. — O homem de branco premiu


os dedos enluvados de branco de encontro ao umbral,
enquanto observava a remoção de seu segundo sapato.

— Nosso jantar imperial está marcado para as sete, com


cerveja em vez de saque e conhaque e charutos depois.

O louro foi até a porta. Pequenas cicatrizes cerziam-lhe o


rosto; uma de suas orelhas não tinha lóbulo. Acenou
afirmativamente com a cabeça e deu um passo para trás. O
homem de branco, agora mais baixo sem os saltos
avantajados, entrou no recinto. O japonês acompanhou -o.

O cômodo era fresco e de odor adocicado, um plácido


retângulo de paredes de seda, envolto no vago verde-claro de
suas esteiras de tatame. No centro, espaldares de bambu com
almofadas estampadas em bege e branco guarneciam três
lados de uma mesa retangular escura e baixa, servida com
- 11 -

xícaras e pratos brancos; três lugares com encosto em cada


lado da mesa e uma na cabeceira da direita. Um descanso
baixo para os pés via-se por baixo da mesa. Na extremidade
direita do quarto havia outra mesa baixa e escura junto à
parede, com dois lampiões elétricos em cima. A parede oposta
era feita de biombos de papel branco emoldurado de preto.

— Espaço bastante para sete — disse o japonês, indicando


a mesa central. — E serão servidos pelas nossas melhores
garotas. As mais bonitas. — Sorriu, alçando as sobrancelhas.

O homem de branco, apontando os biombos, perguntou:

— O que há ali atrás?

— Outra sala privada, senhor.

— Está ocupada esta noite? — Ainda não foi reservada,


mas talvez um grupo a queira.

— Reservo-a para mim. — O homem de branco fez um


gesto para o louro abrir os biombos.

O japonês olhou para o louro e de novo para o homem de


branco.

— É uma sala para seis — disse, inseguro. — Talvez para


oito.

— Certamente. — O homem de branco caminhou até o


canto da sala. — Pagarei mais oito jantares. — Curvou-se a fim
de examinar os lampiões sobre a mesa. Sua volumosa pasta
bateu contra a calça.

O louro abria os biombos. O japonês aprestou-se a ajudá-


lo, talvez para evitar que os danificasse. O cômodo vizinho
revelou-se uma réplica do outro, a não ser pelo painel de
iluminação no teto, que era escuro, e pela mesa, que estava
posta para seis, dois de cada lado e um em cada cabeceira. O
homem de branco voltou-se para olhar. Do outro lado do
aposento, o japonês sorriu-lhe, embaraçado.

— Só cobrarei se alguém pedir a sala — declarou. — E,


nesse caso, apenas a diferença entre o preço lá de baixo e o
que cobramos aqui em cima.
- 12 -

O homem de branco, mostrando-se surpreso, exclamou:

— Esplêndido! Obrigado.

— Com licença, por favor — disse o homem de cabelos


pretos ao japonês. Mantinha-se dentro dos limites do
aposento, o terno escuro amarrotado, o rosto redondo e
moreno reluzindo de suor. — Existe algum modo de tapar
isto? — Apontava em direção à abertura octogonal na parede.
Falava como um brasileiro.

— É para as garotas — assegurou o japonês. — Para verem


se estarão à espera do prato seguinte.

— Está bem — disse o homem de branco ao homem de


cabelos pretos. — Você fica do lado de fora.

— Julguei que talvez ele pudesse... — tornou o homem de


cabelos pretos, e encolheu os ombros como que se
desculpando.

— Considero tudo satisfatório — disse o homem de


branco ao japonês. — Meus convidados chegarão às oito horas
e...

— Virei trazê-los.

— Não precisa. Um de meus homens ficará esperando


embaixo. E, depois de comermos, faremos uma conferência
aqui.

— Poderão ficar até as três, se quiserem.

— Não haverá necessidade disso também, espero. Uma


hora deverá bastar. E agora faça-me o favor de trazer um
cálice de Dubonnet, tinto, com gelo e casca de limão.

— Sim, senhor. — O japonês inclinou-se.

— E seria possível um pouco mais de luz? Pretendo ler


enquanto espero.

— Infelizmente, senhor, só dispomos desta aí.

— Eu me arranjo. Obrigado.

— Obrigado, Sr. Aspiazu. — O japonês inclinou-se


novamente, curvou-se um pouco menos diante do louro e
- 13 -

quase nada para o homem de cabelos pretos, retirando -se


rapidamente da sala.

O homem de cabelos pretos fechou a porta e, frente a ela,


levantou os braços para o alto, curvou os dedos e colocou
suas pontas no cimo da moldura da porta, como se fosse tocar
num teclado. Foi afastando as mãos vagarosamente.

O homem de branco postou-se de costas para a abertura


na parede, enquanto o louro se dirigia para o espaldar na
cabeceira da mesa e se agachava ao lado. Apertou as
almofadas beges e brancas, retirou-as da armação de bambu e
deixou-as de lado. Examinou a armação, virou-a para olhar o
fundo e largou-a junto às almofadas. Apalpou a esteira de
tatame à volta de toda a extremidade da mesa; com as mãos
abertas, inspecionou o capim entrançado, apertando-o
suavemente.

Pondo-se de joelhos, enfiou a cabeça loura embaixo da


mesa e olhou dentro do descanso para os pés. Curvou-se mais,
virou a cabeça e espiou com um dos olhos azuis o reverso da
mesa, esquadrinhando-o vagarosamente de um a outro lado.

Afastou-se da mesa, pegou a armação de bambu,


recolocou as duas almofadas e dispôs o espaldar em ângulo
acessível. Erguendo-se, postou-se, atento, atrás dele.

O homem de branco aproximou-se, desabotoando o


casaco. Pôs a pasta no chão, virou-se e se abaixou
cuidadosamente, ao encontro dos braços do espaldar. Dobrou
as pernas embaixo da mesa, com os pés na direção do
descanso.

O louro, curvando-se, empurrou o espaldar, ajustando-o à


mesa.

— Danke (obrigado) — disse o homem de branco. —

Bite (de nada) — respondeu o louro, e foi se colocar de


costas para a aberturada parede.

O homem de branco retirou uma das luvas, fitando com


um ar de aprovação a mesa à sua frente. O homem de cabelos
pretos, braços esguios, caminhou com lentos passos laterais
- 14 -

pela passagem entre os dois aposentos, tateando o topo de


uma saliente verga preta.

Batidas leves soaram. O louro dirigiu-se à porta e o


homem de cabelos pretos voltou-se, baixando os braços. O
louro pôs-se à escuta e abriu a porta para uma garçonete de
quimono rosado, que entrou de cabeça inclinada, trazendo um
tilintante cálice sobre uma bandeja. Seus pés cobertos por
meias brancas sussurravam pelo tatame.

— Ah! — exclamou, satisfeito, o homem de branco,


dobrando as luvas. Sua expressão entusiástica esmoreceu
quando a garçonete, mulher de rosto inexpressivo, agachou-se
junto dele e removeu o guardanapo e os pauzinhos do seu
prato. — E qual é o seu nome, querida? — perguntou com
forçada jovialidade. — Tsuruko, senhor — A garçonete colocou
um descanso de papel sobrea mesa.

— Tsuruko! — Olhos arregalados e lábios franzidos, o


homem olhou para o louro e para o homem de cabelos pretos,
como se compartilhasse com eles o assombro causado por
notável revelação.

A garçonete, depois de deixar a bebida na mesa, ergueu -se


e recuou.

— Até que meus convidados cheguem, Tsuruko, não quero


ser perturbado.

— Sim, senhor. — Ela voltou-se e, em passos curtos,


deixou apressadamente a sala.

O louro fechou a porta e retomou seu lugar diante da


abertura da parede. O homem de cabelos pretos virou-se e
ergueu as mãos até o topo da verga.

— Tsu-ru-ko — repetiu o homem de branco, aproximando


a pasta. Acrescentou, em alemão: — Se ela é das bonitas, como
serão então as que não forem tão bonitas assim?

O louro grunhiu uma risada.

O homem de branco acionou com o dedo o fecho da pasta


e abriu-a o suficiente para que não se tornasse a fechar.
Enfiou as luvas dobradas num dos cantos e, folheando as
- 15 -

bordas dos papéis e envelopes de manilha, retirou do meio


deles uma revista fina. Colocou-a na mesa, ao lado do seu
prato. Era um exemplar do Lancet, o periódico inglês de
medicina. Examinando atentamente a capa, retirou do bolso
superior um estojo forrado de pano pintalgado de bolinhas,
puído e desbotado, do qual puxou um par de óculos de aros
pretos. Abrindo-os, colocou-os, guardou no bolso o estojo e
passou a borda dos dedos pelo bigode fino e eriçado. Tinha as
mãos pequenas, rosadas, imaculadas, de aspecto jovem. Tirou
do casaco uma cigarreira de ouro, na qual estava gravada uma
extensa inscrição em letra manuscrita.

O louro permanecia diante da abertura da parede. O


homem de cabelos pretos examinava as paredes, o chão, a
mesa de serviço e os espaldares. Afastou para o lado um dos
lugares do meio da mesa, esticou ali o lenço e, pisando sobre
ele, abriu com uma chave de parafusos o painel de iluminação
de bordas cromadas.

O homem de branco lia o Lancet, sorvendo vez por outra


o seu Dubonnet e fumando um cigarro. Silvava absortamente
através de uma fenda nos dentes superiores. Eventualmente
parecia surpreso com o que lia. A certa altura, exclamou em
inglês:

— Absolutamente errado, senhor!

Os convidados chegaram dentro de quatro minutos, o


primeiro entregando à recepcionista o chapéu, mas não a
pasta de documentos, três minutos antes das oito, o último
um minuto depois das oito. À medida que cada um abria
caminho através dos grupos e casais até o japonês de
smoking, era cortesmente conduzido até o louro no sopé da
escada. Trocavam-se palavras e o convidado era encaminhado
ao andar de cima, até o homem de cabelos pretos, que
apontava a fileira de sapatos junto à porta aberta.

Eram seis homens de negócios bem-vestidos, de cinquenta


e tantos anos, pele clara, nórdicos. De meias, acenavam com
- 16 -

polidez uns para os outros e prontamente iam se apresentar


em português e espanhol ao homem de branco.

— Ignácio Carreras, doutor. É uma honra conhecê-lo.

— Olá! Como vai? Não posso me levantar, estou entalado


aqui. Este é José de Lima, do Rio.

Ignácio Carreras, de Buenos Aires.

— Doutor? Sou Jorge Ramos.

— Meu amigo! Seu irmão era meu braço direito. Desculpe-


me estar sentado, estou entalado aqui. Ignácio Carreras, de
Buenos Aires, José de Lima, do Rio. Jorge Ramos, daqui mesmo
de São Paulo.

Dois dos convidados eram velhos amigos, felizes de se


encontrarem.

— Em Santiago! E você, onde tem estado?

— No Rio.

Um outro apresentou-se com um bater de calcanhares que


falhou:

— Antônio Paz, de Porto Alegre.

Deixaram-se cair nos lados da mesa, com gemidos,


gracejando acerca de sua inabilidade. Instalaram-se com as
pastas de documentos bem perto; abriram os guardanapos
com sacudidelas, pediram seus drinques a uma garçonete
jovem e bonita, graciosamente agachada. A inexpressiva
Tsuruko colocou diante de cada conviva um fumegante pano
de rosto. O homem de branco e seus convidados esfregaram
com agrado as mãos e a boca.

Aparentemente, era como se estivessem retirando da


boca, com o pano, o português e o espanhol. O alemão
começou a emergir. Trocaram-se nomes em alemão.

— Ah, estou reconhecendo você. Serviu junto a Stangl,


não foi? Em Treblinka?

— Você disse "Farnbach"? Minha esposa é uma Farnbach,


de Langen, perto de Frankfurt.
- 17 -

Serviram-se drinques e pratinhos de antepastos —


camarões miúdos e croquetes de carne. O homem de branco
mostrou como se usavam os pauzinhos. Os que já sabiam
ensinaram os inexperientes.

— Um garfo, pelo amor de Deus!

— Não, não! — O homem de branco ria para a garçonete


jovem e bonita. — Vamos fazê-lo aprender! Ele tem que
aprender!

O nome dela era Mori. A garota de quimono comum, que


levava pratos e tigelas cobertas para Tsuruko, na mesa de
serviço, disse, enrubescendo:

— Yoshiko, senhor.

Todos comiam e bebiam. Falavam do terremoto no Peru e


do novo presidente americano, Ford.

Serviam-se tigelas de sopa clara e mais pratos de comida,


frita e crua. E também chá.

Os homens conversavam sobre a crise do petróleo e a


provável diminuição de simpatia do Ocidente por Israel.

Serviu-se mais comida — espetinhos de carne cozida,


porções de lagosta — e cerveja japonesa.

Falaram sobre as mulheres japonesas. Kleist-Carreras,


magro, com um olho de vidro que se movia com dificuldade,
contou uma história muito engraçada acerca das desventuras
de um amigo num bordel de Tóquio.

O japonês de smoking entrou e indagou se tudo corria


bem.

— Tudo de primeira! — assegurou-lhe o homem de branco.


— Excelente!

Os demais concordaram, em português-espanhol-alemão.

Serviu-se melão. E mais chá.

Falou-se de pesca e das diferentes maneiras de preparar


peixe.
- 18 -

O homem de branco pediu Mori em casamento. Ela sorriu


e alegou que tinha marido e dois filhos.

Os homens se ergueram, fazendo ranger os espaldares,


estiraram os braços, puseram-se nas pontas dos pés, deram
pancadinhas na barriga. Alguns, entre os quais o de branco,
saíram para o corredor, em direção ao banheiro dos homens.
Os outros falaram sobre o homem de branco, como era
simpático, jovial e bem conservado para os seus... sessenta e
três anos? Sessenta e quatro?

O primeiro grupo voltou, outro saiu.

A mesa preta estava limpa, arrumada com copos de


conhaque, cinzeiros e uma caixa de charutos acondicionados
em tubos de vidro. Mori fez a volta, baixando a garrafa,
cobrindo de âmbar escuro os fundos dos copos. Tsuruko e
Yoshiko cochichavam na mesa de serviço, discordando quanto
à melhor maneira de arrumá-la.

— Fora, garotas — ordenou o homem de branco, dirigindo-


se ao seu lugar. — Queremos conversar em particular.

Tsuruko foi enxotando Yoshiko à sua frente. De


passagem, desculpou-se:

— Depois tiramos a mesa.

Mori serviu a última dose de conhaque, deixou a garrafa


na cabeceira vaga da mesa e apressou-se em direção à porta,
detendo-se de lado, com a cabeça inclinada, enquanto os
demais homens entravam.

O homem de branco arriou-se no seu espaldar. Farnbach-


Paz auxiliou-o a acomodar-se.

O homem de cabelos pretos olhou lá da porta, contou os


circunstantes e fechou-a.

Os homens sentaram-se nos seus lugares, solenemente


desta vez, sem brincadeiras. A caixa de charutos circulou.

A abertura da parede foi encoberta do outro lado pelo


pano escuro de um terno.
- 19 -

O homem de branco tirou um cigarro da sua cigarreira


dourada, fechou-a, olhou-a e ofereceu-a a Farnbach à sua
direita, que meneou a cabeça raspada a navalha. Verificando,
porém, que era convidado a ler e não afumar, segurou a
cigarreira, focalizando a visão. Seus olhos azuis arregalaram-
se, identificando.

— Ah! — Enquanto lia, os grossos lábios franzidos


sugaram o ar. Sorrindo alvoroçado para o homem de branco,
exclamou: — Maravilhoso! Melhor ainda que uma medalha!
Permite-me? — e acenou com a cigarreira em direção a Kleist,
ao seu lado.

O homem de branco fez um aceno afirmativo de cabeça,


sorrindo, as faces rosadas, e virou-se a fim de encostar o
cigarro à chama de um isqueiro à sua esquerda. Semicerrando
os olhos ante a fumaça, puxou mais para perto a pasta ao lado
e escancarou-a novamente.

— Maravilhoso! — exclamou Kleist. — Olhe, Schwimmer.

O homem de branco localizou e retirou da pasta um maço


de papéis. Colocou-os à sua frente, depois de afastar o
conhaque. Pousou o cigarro num cinzeiro branco. Observando
o belo e bem-conservado Schwimmer passar a cigarreira para
o outro lado da mesa, em direção a Mundt, ele tirou um estojo
do bolso de cima e dali os óculos. Sorriu ante os sorrisos de
admiração de Schwimmer e Kleist, embolsou o estojo, abriu
numa sacudidela os óculos e escorregou-os sobre as orelhas,
ajustando-os. Um assobio da parte de Mundt, prolongado e
baixo. O homem de branco pegou o cigarro, puxou uma
baforada satisfeita e largou-o de novo no cinzeiro. Endireitou
os papéis à sua frente e examinou o de cima, pegando o
conhaque.

— Hummmm! — veio de Traunsteiner.

O homem de branco sorveu o conhaque, folheou o final


do maço de papéis.

A cigarreira voltou para ele, vinda de Hessen, de cabelos


prateados, olhos azuis brilhando no rosto ossudo.
- 20 -

— Que maravilha possuir algo assim!

— Sim — assentiu o homem de branco, com outro aceno


afirmativo. — Tenho imenso orgulho dela. — Pousou a
cigarreira ao lado dos papéis.

— Quem não teria? — indagou Farnbach.

O homem de branco afastou o copo de conhaque e disse:

— Vamos ao nosso assunto agora, rapazes. — Inclinando a


tosada cabeça grisalha, baixou os óculos sobre o nariz e fitou
os homens por cima deles. Eles o encaravam atentos, charutos
em riste. O silêncio invadiu o aposento, quebrado apenas pelo
gemido baixo do ar-condicionado.

— Vocês sabem o que têm a fazer — disse o homem de


branco —, e não ignoram que se trata de árduo trabalho. Vou
fornecer os detalhes agora. — Curvou a cabeça para a frente,
baixando o olhar através dos óculos. — Noventa e quatro
homens têm de morrer, em determinadas datas ou perto delas,
dentro dos próximos dois anos e meio — anunciou, lendo. —
Dezesseis estão na Alemanha Ocidental, catorze na Suécia,
treze na Inglaterra, doze nos Estados Unidos, dez na Noruega,
nove na Áustria, oito na Holanda, e mais dois grupos de seis
na Dinamarca e no Canadá. Total, noventa e quatro. O
primeiro deverá morrer por volta de 16 de outubro, o último,
por volta de 23 de abril de 1977.

Recostou-se, fitando novamente os homens.

— Por que estes homens precisam morrer? E por que em


datas especiais ou perto delas? — Meneou a cabeça. — Agora
não, mais tarde poderão ser informados. Mas isto posso lhes
dizer agora: suas mortes constituem o passo final de uma
operação à qual eu e os líderes da Organização dedicamos
muitos anos, um esforço imenso e uma grande parte das
finanças da Organização. É a mais importante operação jamais
empreendida pela Organização, e "importante" é uma palavra
demasiado fraca para qualificá-la. A esperança e o destino da
raça ariana estão em jogo. Não há exagero aqui, meus amigos.
É a verdade literal: o destino da gente ariana — seu
predomínio sobre os eslavos e semitas, negros e amarelos —
- 21 -

será cumprido se a operação tiver êxito, e não será cumprido


se a operação falhar. Portanto, "importante" não é uma palavra
suficientemente forte, não é verdade? "Sagrada", talvez? Sim,
esta cai melhor. É uma operação sagrada esta em que tomam
parte.

Pegou o cigarro, bateu a cinza e levou cuidadosamente


aos lábios a ponta restante.

Os homens entreolharam-se silenciosamente, pasmos.


Lembraram-se de tirar baforadas dos charutos, sorver os
conhaques. Voltaram o olhar para o homem de branco. Ele
esmagou o cigarro no cinzeiro e fitou-os.

— Vocês sairão do Brasil com novas identidades —


declarou, tocando na pasta ao lado. — Está tudo aqui. Negócio
tranquilo, nada de falsificações. E disporão de abundantes
fundos para os próximos dois anos e meio. Em diamantes —
ele sorriu — que, receio, terão de fazer passar pela alfândega
de maneira bem incômoda.

Os homens sorriram, encolhendo os ombros.

— Cada um será responsável pelos homens em um ou dois


países. Terão de treze a dezoito missões cada um; entretanto,
alguns deles já terão morrido de causas naturais. Eles têm
sessenta e cinco anos. Não muitos terão morrido, porém, já
que tinham excelente saúde por volta dos cinquenta e dois
anos, sem sinais de doença.

— Todos têm sessenta e cinco? — indagou Hessen,


mostrando-se intrigado.

— Quase todos — respondeu o homem de branco. — Isto


é, quando suas datas chegarem. Uns poucos terão um ano ou
dois a mais ou a menos. — Pôs de lado o papel no qual lera os
países e as cifras e apanhou as outras nove ou dez folhas. —
Os endereços — informou aos homens — são os de 1961 e 62,
mas vocês não deverão ter muito trabalho para localizá-los
agora. A maioria provavelmente ainda estará onde estava. São
homens de família, estáveis. Funcionários públicos, na maior
parte — fiscais de impostos, diretores de escolas, e assim por
diante. Homens de pouca autoridade.
- 22 -

— Também têm isso em comum? — indagou Schwimmer.

O homem de branco acenou afirmativamente.

— Um grupo extraordinariamente homogêneo — observou


Hessen. — São membros de outra organização, contrária à
nossa?

— Nem sequer se conhecem entre si. Nem tampouco a nós


— disse o homem de branco. — Pelo menos, espero que não.

— Devem estar aposentados agora, não é? — indagou


Kleist. — Já que têm sessenta e cinco? — Seu olho de vidro
olhava para outro ponto.

— Sim, a maioria estará provavelmente aposentada —


assentiu o homem de branco. — Mas, se mudaram de
residência, podem ficar certos de que tiveram o cuidado de
deixar os novos endereços. Schwimmer, você pega a
Inglaterra. Treze, o menor número. — Entregou uma folha
datilografada a Kleist, para que passasse a Schwimmer. —
Nenhum desabono às suas habilidades — e sorriu para
Schwimmer. — Pelo contrário, trata-se de um reconhecimento
delas. Sei que você é capaz de se transformar num inglês do
qual a própria rainha não suspeitaria.

— Você de fato sabe lisonjear, meu velho. — Schwimmer


arrastou o seu inglês oxfordiano, acariciando o bigode ruivo,
enquanto olhava a folha. — A verdade é que a velhota não é
tão inteligente assim, você sabe.

O homem de branco sorriu.

— Este talento pode muito bem revelar-se útil — disse ele


—, embora sua nova identidade, como a de todos os outros,
seja a de um filho da Alemanha. Serão caixeiros viajantes,
rapazes. Talvez entre uma missão e outra tenham tempo de
descobrir algumas filhas de fazendeiros. — Passou o olhar
para a folha seguinte. — Farnbach, você viajará pela Suécia. —
Entregou a folha para a direita. — Com catorze fregueses para
as suas finas mercadorias importadas.

Pegando a folha, Farnbach inclinou-se para a frente, com a


testa franzida até o início da careca.
- 23 -

— Todos eles funcionários públicos idosos — ponderou.


— Matando-os, daremos cumprimento ao destino da raça
ariana?

O homem de branco fitou-o por um momento.

— Isto foi uma pergunta ou uma afirmativa, Farnbach? —


indagou. — Pareceu-me uma pergunta ambígua, e se for assim
considero-me surpreso. Porque você, e todos os demais, foram
escolhidos para esta operação com fundamento em sua
incontestável obediência, como também em suas outras
características e talentos.

Farnbach recostou-se, os lábios grossos apertados, as


narinas frementes, o rosto ruborizado.

O homem de branco olhou para as próximas folhas


grampeadas.

— Não, Farnbach, estou certo de que era uma afirmativa


— asseverou —, e neste caso preciso corrigi-la ligeiramente:
matando-os, você preparará o caminho para o cumprimento
do destino, etc. Ele virá. Não em abril de 1977, quando o
nonagésimo quarto homem morrer, mas no devido tempo.
Apenas, tratem de obedecer às ordens. Traunsteiner, você tem
a Noruega e a Dinamarca. — Ele passou as folhas. — Dez
numa, seis na outra.

Traunsteiner pegou as folhas, o quadrado rosto


avermelhado expressando feroz determinação: Obediência
Incontestável.

— A Holanda e a parte alta da Alemanha — disse o homem


de branco — são para o Sargento Kleist. Dezesseis novamente,
oito e oito.

— Obrigado, Herr Doktor.

— Oito na baixa Alemanha e nove na Áustria perfazem


dezessete para o Sargento Mundt.

Mundt, rosto redondo, cabeça tosada, de monóculo,


sorria, esperando as folhas lhe serem passadas.
- 24 -

— Enquanto estiver na Áustria — declarou — vou


aproveitar para cuidar de Yakov Liebermann. — Traunsteiner,
passando-lhe as folhas, sorriu, mostrando os dentes com
obturações em ouro.

— Yakov Liebermann — tornou o homem de branco — já


recebeu os devidos cuidados por parte do tempo, má saúde e
falência do banco onde guardava seu dinheiro de judeu. Vive à
caça de contratos para conferências, e não de nós. Esqueça-se
dele.

— Evidentemente — assegurou Mundt. — Eu estava apenas


brincando.

— E eu não estou. Para a polícia e para a imprensa, ele


não passa de velha praga enfadonha, com um arquivo cheio de
fantasmas. Matá-lo significa transformá-lo em herói
desprezado, com inimigos vivos ainda por capturar.

— Nunca ouvi falar do maldito judeu.

— Quisera poder dizer o mesmo. Os homens riram.

O homem de branco entregou seu último par de folhas a


Hessen. — E para você, dezoito — disse ele, sorrindo. — Doze
nos Estados Unidos e seis no Canadá. Espero que faça jus ao
seu irmão.

— Farei — retorquiu Hessen, erguendo a cabeça prateada,


uma expressão de orgulho nas feições marcadas. — Verá que
sim.

O homem de branco olhou os circunstantes.

— Eu lhes disse — declarou — que os homens deverão ser


mortos na data, ou nas proximidades dela, fornecida
juntamente com o nome de cada um. "Na" evidentemente é
melhor do que "nas proximidades", mas apenas
microscopicamente. Uma semana a mais ou a menos não fará
grande diferença, e mesmo um mês será aceitável, se tiverem
razões para julgar que a missão se tornará menos perigosa.
Quanto aos métodos: quaisquer que escolherem, contanto que
variados e que afastem sempre a ideia de premeditação. As
autoridades de nenhum dos países deverão suspeitar que uma
- 25 -

operação está em andamento. Não será difícil para vocês.


Tenham em mente que se trata de homens com sessenta e
cinco anos de idade: sua vista está falhando, têm reflexos
lentos, força diminuída. É provável que dirijam mal,
atravessem as ruas descuidadamente, sofram quedas, sejam
esfaqueados e roubados por assaltantes. Existem dúzias de
maneiras mediante as quais tais homens poderão ser mortos
sem atrair demasiada atenção. — Ele sorriu. — Confio em que
as descubram.

— Poderemos contratar alguém para se encarregar de uma


missão ou para servir de auxílio? Se esta for a melhor maneira
de executá-la? — indagou Kleist. O homem de branco
espalmou as mãos em atônita surpresa. — Vocês são homens
sensatos, de bom discernimento — recordou a Kleist. — Por
isso os escolhemos. Se acharem que a missão deva ser
executada de certo modo, assim deverão agir. Desde que os
homens morram na época certa e as autoridades não
suspeitem de uma operação, vocês terão completa liberdade
de ação. — Ergueu um dedo. — Não, completa, não,
desculpem. Há uma condição, e bastante importante: não
queremos que as famílias dos homens sejam envolvidas, quer
como vítimas, em qualquer espécie de acidente, ou, no caso,
digamos, de jovens esposas que se mostrem acessíveis a
propostas românticas, como cúmplices. Repito: as famílias
não deverão ser envolvidas de maneira alguma. Somente
estranhos poderão servir de cúmplices.

— Para que necessitaríamos de cúmplices? — perguntou


Traunsteiner.

— Nunca se sabe o que se terá pela frente — respondeu


Kleist.

— Viajei por toda a Áustria — asseverou Mundt, olhando


uma das folhas —, e há lugares aqui de que nunca ouvi falar.

— É — resmungou Farnbach, olhando sua única folha. —


Conheço a Suécia, mas certamente nunca ouvi falar de
nenhuma "Rasbo".
- 26 -

— É uma cidadezinha a uns quinze quilômetros a nordeste


de Uppsala — informou o homem de branco. — Trata-se de
Bertil Hedin, não? Ele é agente do correio de lá.

Farnbach fitou-o, as sobrancelhas soerguidas.

O homem de branco sustentou-lhe o olhar e sorriu


pacientemente.

— Matar o agente de correio Hedin — asseverou — é por


todos os modos importante — corrija-se, sagrado —, conforme
declarei. Vamos lá, Farnbach, seja o excelente soldado que
sempre foi.

Farnbach encolheu os ombros e voltou os olhos para a sua


folha.

— Você... é quem manda — disse ele.

— Exatamente — assentiu o homem de branco, ainda


sorridente ao se voltar para a sua pasta.

Hessen, olhando as suas folhas, observou:

— Aqui está uma boa: "Kankakee".

— Nas imediações de Chicago — informou o homem de


branco, apanhando entre as mãos abertas um monte de
envelopes de papel manilha. Derramou-os sobre a mesa, meia
dúzia de grandes envelopes abarrotados cada um com um
nome escrito num canto: "Cabral", "Carreras", "de Lima". Um
copo de conhaque foi derrubado na precipitação com que os
envelopes deslizaram.

— Desculpem — disse o homem de branco, recostando-se.


Com um gesto, ordenou que os envelopes fossem distribuídos
e retirou os óculos. — Não abram aqui — determinou,
apertando o nariz e esfregando-o. — Eu mesmo verifiquei tudo
esta manhã. Passaportes alemães, com carimbos de entrada
brasileiros e os vistos em ordem, licenças de trabalho, de
motorista, cartões de visita e documentos, está tudo aí.
Quando voltarem para seus quartos treinem suas novas
assinaturas e assinem tudo o que for preciso. Suas passagens
aéreas estão aí também, e algum dinheiro dos países a que se
destinam, no valor de uns poucos milhares de cruzeiros.
- 27 -

— E os diamantes? — indagou Kleist, segurando com as


duas mãos o envelope escrito "Carreras".

— Estão num cofre da sede. — O homem de branco


guardou os óculos no estojo estampado de bolinhas. —
Apanhem-nos quando estiverem a caminho do aeroporto —
partirão amanhã — e entreguem a Ostreicher seus atuais
passaportes e documentos pessoais, para que fiquem
guardados até a volta.

— Logo agora que já me habituara ao "Gómez" —


lamentou-se Mundt, mostrando os dentes num sorriso. Os
outros riram. — Quanto estamos recebendo? — perguntou
Schwimmer, passando o fecho ecler na pasta. — Em
diamantes, quero dizer.

— Cerca de quarenta quilates cada um.

— Ui! — antecipou Farnbach.

— Não, os tubos são muito pequenos. Apenas cerca de


uma dúzia de pedras de três quilates. Vale cada uma uns
setenta mil cruzeiros pelo mercado atual, e mais no futuro,
com a inflação. Portanto, terão o equivalente a pelo menos
novecentos mil cruzeiros para os dois anos e meio. Viverão
com muito conforto, digno de vendedores das grandes firmas
alemãs, e disporão de dinheiro mais do que suficiente para
todo o equipamento de que necessitarem. A propósito, tratem
de não levar arma alguma no avião. Estão revistando todo
mundo presentemente. Deixem todas as que tiverem com
Ostreicher. Não terão dificuldades em vender os diamantes.
Na verdade, talvez precisem é afastar os compradores. Tudo
entendido?

— E o controle? — indagou Hessen, pondo ao seu lado a


pasta.

— Não falei nisso? Primeiro dia de cada mês, por telefone,


para a filial brasileira da sua companhia — a sede, é claro. Da
maneira mais natural possível. Especialmente você, Hes sen.
Tenho certeza de que nove entre dez telefones dos Estados
Unidos são censurados.
- 28 -

— Não falo norueguês desde a guerra — declarou


Traunsteiner.

— Estude. — O homem de branco sorriu. — Alguma coisa


mais? Não? Bem, então tomemos mais um pouco de conhaque,
que pensarei num brinde apropriado para o bota-fora. —
Pegou a cigarreira, abriu-a e retirou um cigarro. Fechou-a,
contemplou-a e, aproximando a manga branca do lado
inscrito, deu-lhe enérgico polimento.

Tsuruko inclinou-se e agradeceu ao senhor. Enfiando as


notas dobradas na cintura do quimono, passou de mansinho
por ele, rapidamente, em direção à mesa de serviço, onde
Yoshiko juntava as tigelinhas de restos ressequidos.

— Ele me deu vinte e cinco! — cochichou Yoshiko em


japonês. — Quanto você ganhou?

— Não sei — sussurrou Tsuruko, agachando-se, ajustando


a tampa apenas encostada de uma terrina de arroz embaixo da
mesa. — Não olhei ainda. — Puxou com as duas mãos a larga e
achatada terrina laqueada de vermelho.

— Cinquenta, aposto!

— Tomara que sim.

Levantando-se, Tsuruko passou apressada, com a terrina,


pelo senhor e um de seus convidados que brincava com Mori,
e saiu para o corredor. Ziguezagueou por entre os outros
convidados — que se ajudavam com calçadeiras, curvados,
agachados — e abriu com o ombro uma porta de vaivém.

Desceu com a terrina um estreito lance de escadas


iluminado por lâmpadas nuas dependuradas de fios e entrou
por um corredor igualmente estreito, com paredes revestidas
de madeira.

O corredor dava para uma cozinha fumegante e ruidosa,


onde antiquados ventiladores de teto giravam vagarosamente
suas pás por sobre o alarido das garçonetes, cozinheiros e
ajudantes. No seu quimono rosado, Tsuruko carregou a larga
terrina vermelha por entre eles, passando por um ajudante
que picava verduras, e um outro que ergueu o olhar para ela,
- 29 -

enquanto puxava uma bandeja de pratos de uma gotejante


máquina de lavar louça embutida.

Colocou a terrina sobre a mesa, onde estavam empilhadas


caixas de cogumelos, e, virando-se, tirou de uma cesta de lona
para guarnição de mesa um guardanapo usado, que sacudiu e
esticou sobre a superfície metálica. Retirou a tampa da terrina
e colocou-a de lado. Dentro da terrina vermelha havia um
gravador preto cromado, um Panasonic, com indicações em
inglês nos controles, as engrenagens do cassete girando
suavemente no visor do aparelho. Tsuruko hesitou, a mão
sobre os botões, franziu a testa, indecisa, e retirou o gravador
da terrina, colocando-o sobre o guardanapo e amarrando as
pontas dor cima.

Segurando o gravador embrulhado junto ao peito, dirigiu-


se a uma porta envidraçada e agarrou a maçaneta. Um homem
sentado nas proximidades, costurando um avental, ergueu o
olhar.

— São restos — disse ela, exibindo o volume envolto no


guardanapo. — Uma velha vem apanhar.

O homem pousou nela os olhos cansados de seu murcho


rosto amarelo e baixou-os para as mãos que cosiam.

Ela abriu a porta e saiu para uma pequena área. Um gato


pulou de umas latas de lixo e disparou em direção ao fim de
uma passagem, onde se divisavam as luzes da rua e as de
néon.

Tsuruko fechou a porta atrás de si e inclinou-se para a


escuridão.

— Ei, está aí, Sr. Hunter? — chamou baixinho em


português.

Um vulto surgiu rapidamente de um lado da passagem,


um homem alto emagro, com uma bolsa a tiracolo.

— Você fazer o serviço?

— Sim — disse ela, desembrulhando o gravador. — Ainda


está girando. Não achei o botão de desligar.
- 30 -

— Bom, bom, não ter importância. — Ele era moço. A luz


da porta bateu sobre "seu rosto de belas feições e cabelos
castanhos crespos. — Onde você instalar isto? — indagou.

— Numa terrina de arroz embaixo da mesa de serviço. —


Entregou-lhe o gravador. — Com a tampa encostada para eles
não verem.

Ele inclinou o gravador em direção à porta; e apertou um


dos botões e depois outro. Um agudo chilrear ressoou.
Tsuruko, observando, afastou-se afim de lhe dar mais luz.

— Perto de onde eles sentar? — perguntou ele. Falava mal


o português.

— Como daqui até ali. — E mostrou com um gesto a


distância até a lata de lixo mais próxima.

— Bom, bom. — O rapaz apertou um botão, acabando com


o chilrear, e premiu outro: a voz do homem de branco falou
em alemão, distante, circundada de um eco. — Ótimo! —
exclamou o rapaz, e parou a voz com outro botão. Apontou
para o gravador. — Quando começar a gravar?

— Depois que eles acabaram de comer, logo antes de nos


mandarem sair. Falaram durante quase uma hora.

— Eles ir embora?

— Estavam saindo quando desci.

— Bom, bom. — O rapaz deu um puxão no fecho ecler da


sua bolsa azul e branca de uma linha aérea. Usava blusão e
calças de zuarte azul. Aparentava ter uns vinte e três anos, e
ser norte-americano.

— Você ser grande ajuda minha — disse a Tsuruko,


enfiando o gravador na bolsa. — Minha revista estar muito
feliz quando eu levar para casa uma história sobre o Sr.
Aspiazu. Ele ser o mais famoso fazedor de cinema. — Levando
a mão à cintura, retirou uma carteira, abrindo-a em direção à
luz.

Tsuruko observava, segurando o guardanapo embolado.

— Uma revista norte-americana? — perguntou.


- 31 -

— Sim — respondeu o rapaz, contando as notas. — Movie


Story. Revista muito importante de cinema. — Sorriu
alegremente para Tsuruko e entregou-lhe o dinheiro. — Cento
e cinquenta cruzeiros. Muito obrigado. Você ser grande ajuda
minha.

— Obrigada. — Ela olhou as notas e sorriu-lhe com uma


inclinação rápida de cabeça.

— O seu restaurante ter cheiro bom — disse ele,


embolsando a carteira. — Ficar com muita fome enquanto
esperar.

— Gostaria que lhe arranjasse alguma coisa? — Ela enfiou


as notas no quimono. — Eu poderia...

— Não, não. — Ele tocou-lhe a mão. — Eu comer no meu


hotel. Obrigado. Muito obrigado. — Deu um aperto na mão
dela, voltou-se e afastou-se em largas passadas pela
passagem.

— Sempre às ordens, Sr. Hunter! — gritou ela. Ficou


olhando por um momento, depois virou-se, abriu a porta e
entrou.

Tiveram uma rodada de drinques de cortesia no bar, a


isso persuadidos menos pela instância do japonês de smoking
— que se apresentou como sendo Hiroo Kuwayama, um dos
três donos do Sakai — do que pela presença ali da novidade de
um jogo de pingue-pongue eletrônico, que se revelou tão
atraente que foi pedida e consumida outra rodada, e ainda
proposta outra, que afinal não foi pedida.

Por volta das onze e meia, dirigiram-se em massa à


recepção, a fim de apanharem os chapéus. A garota de
quimono, entregando a Hessen o seu, sorriu e disse: — Um
amigo seu veio à sua procura, mas não quis subir sem ter sido
convidado.

Hessen olhou-a por um momento.

— Ah, sim — fez ele.

Ela fez um aceno afirmativo de cabeça.


- 32 -

— Um rapaz. Norte-americano, acho.

— Ah — tornou Hessen. — Claro. Sim. Sei quem é. Veio me


procurar, segundo diz.

— Sim, senhor. Quando o senhor subia as escadas.

— Perguntou aonde eu ia, claro.

Ela fez um aceno afirmativo de cabeça.

— E lhe disse?

— Que era uma reunião particular. Ele julgou saber quem


a estava oferecendo, mas enganou-se. Eu lhe disse que era o
Sr. Aspiazu. Ele também o conhece.

— Sim, sei — disse Hessen. — Somos todos bons amigos.


Ele devia ter subido.

— Disse que provavelmente se tratava de encontro de


negócios e que não queria perturbar. Além do mais, não estava
vestido direito. — Desceu as mãos ao longo do corpo, com ar
de pena. — Estava de blue jeans. — Roçou os dedos finos no
pescoço. — E sem gravata.

— Ah — fez Hessen. — Bem, de qualquer maneira, foi uma


pena ele não ter subido, quando mais não fosse para dizer
"olá". Foi embora logo? Ela fez um aceno afirmativo.

— Está bem. — Hessen sorriu e deu-lhe um cruzeiro.

Foi falar com o homem de branco. Os outros, segurando


os chapéus e as pastas, aglomeraram-se em volta.

O louro e o homem de cabelos pretos dirigiram-se


rapidamente às entalhadas portas de entrada. Traunsteiner
entrou apressado no bar e voltou um momento depois
acompanhado de Hiroo Kuwayama.

O homem de branco pousou a mão enluvada de branco no


ombro negro de Kuwayama e falou-lhe com ar grave.
Kuwayama ouviu, respirou fundo, mordeu o lábio, meneou a
cabeça. Respondeu com gestos tranquilizadores e dirigiu-se às
pressas aos fundos do restaurante.
- 33 -

Com um gesto brusco, o homem de branco afastou os


outros homens. Foi para o outro lado do saguão e pousou o
chapéu e a pasta, menos volumosa agora, sobre uma mesa
preta com abajur. Permaneceu olhando para os fundos do
restaurante, franzindo a testa e esfregando as mãos
enluvadas. Baixou os olhos para elas e desceu-as junto ao
corpo.

Vieram dos fundos do restaurante Tsuruko e Mori, de


slacks e blusas coloridas, e Yoshiko, ainda de quimono.
Kuwayama empurrou-as à frente. Pareciam confusas e
preocupadas. Os fregueses lançaram-lhes olhares.

O homem de branco curvou a boca num sorriso amistoso.

Kuwayama entregou as três mulheres ao homem de


branco, inclinou-se e colocou-se de lado, assistindo de braços
cruzados.

O homem de branco sorriu, meneou tristemente a cabeça,


correu a mão enluvada pelos tosados cabelos grisalhos.

— Meninas — anunciou —, uma coisa realmente ruim


aconteceu. Ruim para mim, quero dizer, não para vocês. Boa
para vocês. Vou explicar. — Respirou fundo. — Sou fabricante
de maquinaria agrícola — disse ele —, um dos maiores da
América do Sul. Os homens que estão comigo esta noite —
apontou por cima do ombro — são meus vendedores.
Reunimo-nos aqui afim de que eu pudesse lhes falar a respeito
de umas novas máquinas que estamos pondo em produção,
dar-lhes todos os detalhes e características, vocês sabem.
Tudo ultra-secreto. Agora descobri que um espião de uma
empresa norte-americana rival soube de nossa reunião logo
antes de ela começar, e, conhecendo a maneira como essa
gente age, estou propenso a apostar que ele se dirigiu à
cozinha, pegou uma de vocês, ou mesmo todas vocês, e pediu-
lhes que escutassem nossa conversa de algum... esconderijo
secreto, ou, talvez, tirassem fotografias. — Levantou o dedo.
— Olhem — explicou —, alguns de meus vendedores
trabalharam anteriormente para essa empresa rival, e eles não
sabem — os da empresa não sabem — quem trabalha comigo
- 34 -

atualmente. Portanto nossas fotografias lhes seriam


igualmente úteis. — Inclinou a cabeça, com um sorriso
pesaroso. — É uma atividade muito competitiva — observou.
— A lei do cão.

Tsuruko, Mori e Yoshiko, com um olhar inexpressivo,


meneavam de leve as cabeças.

Kuwayama, que se pusera de lado, por trás do homem de


branco, proferiu severamente:

— Se alguma de vocês fez o que o senhor...

— Deixe comigo! — O homem de branco lançou a mão


aberta para trás, mas sem se voltar. — Por favor. — Baixou a
mão, sorriu, deu meio passo à frente. — Este homem —
prosseguiu, com bom humor —, um jovem norte-americano,
lhes teria oferecido dinheiro, claro, e lhes teria contado algum
tipo de história, referente a uma brincadeira ou coisa
parecida, uma travessurazinha inofensiva que fazia conosco.
Agora, posso entender inteiramente como garotas, que não
são, estou certo, lá muito bem pagas... — vocês não são, não é
mesmo? Acaso meu amigo aqui as estará pagando muito bem?
— Seus olhos castanhos cintilaram à espera de uma resposta.

Dando risadinhas, Yoshiko meneou com veemência a


cabeça.

O homem de branco riu também e estendeu a mão em


direção ao seu ombro, recolhendo-a, porém, antes de tocá-la.

— Bem que eu achei! — exclamou. — É o que eu achava!


Quer dizer, eu tinha certeza que não! — Sorriu para Mori e
Tsuruko. Elas sorriram-lhe de volta, hesitantes. — Ora, posso
entender muito bem — continuou, novamente sério — que
garotas na situação de vocês, trabalhadoras, com
responsabilidade de família — você com seus dois filhos, Mori
—, posso entender muito bem que concordariam com uma
oferta dessas. Na verdade, não posso é entender como não
haveriam de concordar com ela. Seriam imbecis se não o
fizessem! Uma brincadeirazinha inofensiva, alguns cruzeiros
extras. As coisas andam caras hoje em dia, eu sei. Por isso dei -
lhes boas gorjetas lá em cima. Portanto, se a oferta foi feita, e
- 35 -

foi aceita, acreditem-me, garotas: não há raiva de minha parte,


nem ressentimento. Somente compreensão e a necessidade de
saber.

— Senhor — protestou Mori —, dou-lhe minha palavra,


ninguém me ofereceu coisa alguma ou me pediu para fazer
qualquer coisa.

— Ninguém — reiterou Tsuruko, meneando a cabeça.

E Yoshiko, meneando a sua, confirmou:

— Sinceramente, senhor.

— Como prova de minha compreensão — tornou o homem


de branco, abrindo o casaco e procurando dentro dele — vou
dar-lhes o dobro do que ele lhes ofereceu, ou seja, duas vezes
o que ele gastou. — Retirou uma grossa carteira de crocodilo,
abriu-a de chofre e mostrou a margem interna de dois maços
de notas. — Foi isto que quis dizer antes — disse — quanto a
ser uma coisa ruim para mim, mas boa para vocês. — Olhou de
uma mulher para outra. — O dobro do que ele lhes deu —
insistiu. — Para vocês, e a mesma quantia para o senhor... —
virou para trás a cabeça, em direção a Kuwayama, que logo
declinou o seu nome. — Para que ele também não fique
zangado com vocês. Hein, garotas? Por favor! — O homem de
branco mostrou o seu dinheiro a Yoshiko. — Anos foram
gastos nisto, nestas novas máquinas — disse-lhe. — Milhões
de cruzeiros! — Mostrou o dinheiro a Mori. — Se eu soubesse
quanto o meu rival sabe, então poderia tomar medidas a fim
de me proteger. — Mostrou o dinheiro a Tsuruko. — Posso
acelerar a produção, ou talvez encontrar este rapaz e... fazê -lo
passar para o meu lado, dar dinheiro para ele, como também
para vocês e o senhor...

— Kuwayama. Vamos, garotas, não tenham medo. Digam


ao Sr. Aspiazu. Não ficarei zangado com vocês.

— Estão vendo? — instou o homem de branco. — Somente


o bem pode vir. Para todos!
- 36 -

— Nada há para contar — insistiu Mori, e Yoshiko,


olhando para a carteira aberta, com seus maços de notas,
insistiu tristemente:

— Nada. Sinceramente. — Ergueu o olhar. — Eu contaria


com satisfação, senhor. Mas realmente não há nada.

Tsuruko olhava para a carteira.

O homem de branco observava-a.

Ela ergueu os olhos para ele e, hesitante, embaraçada, fez


um aceno afirmativo com a cabeça.

Ele soltou a respiração, fitando-a atentamente.

— Foi justamente como disse — reconheceu ela. — Estava


na cozinha, na hora em que nos preparávamos para servi-los,
e aí um dos rapazes veio me dizer que um homem lá fora
queria falar com alguém que tivesse sido destacado para
servi-lo. Era muito importante. Por isso saí, e ali estava ele, o
norte-americano. Deu-me duzentos cruzeiros, cinquenta antes
e cento e cinquenta depois. Disse que era repórter de uma
revista, e que o senhor fazia filmes e nunca dava entrevistas.

O homem de branco, olhando-a, ordenou:

— Prossiga. — Disse que seria uma boa reportagem se


descobrisse que filmes o senhor estava planejando. Falei-lhe
que o senhor ia conversar com os seus convidados depois —
conforme nos disse o Sr. Kuwayama — e ele...

— Pediu-lhe que se escondesse e escutasse.

— Não, senhor, ele me deu um gravador, eu o trouxe e


devolvi-o quando acabaram de conversar.

— Um... gravador? — Ele me ensinou a fazê-lo funcionar.


Dois botões de uma vez. — E com os dois indicadores ela
apertou o ar à sua frente.

O homem de branco fechou os olhos e permaneceu


imóvel, a não ser por um leve balanço de um lado para o
outro. Abriu os olhos e olhou Tsuruko, sorrindo fracamente.

— Um gravador esteve ligado durante nossa conferência?


— indagou.
- 37 -

— Sim, senhor — respondeu ela. — Dentro de uma terrina


de arroz, embaixo da mesa de serviço. Deu muito certo. O
homem experimentou antes de me pagar, e ficou muito
satisfeito.

O homem de branco aspirou ar pela boca, passou a língua


pelo lábio superior, deixou sair o ar, fechou a boca e engoliu.
Levou a mão enluvada de branco à testa e limpou-a
vagarosamente.

— Duzentos cruzeiros ao todo — confirmou Tsuruko. O


homem de branco fitou-a, aproximou-se mais e respirou
fundo. Seu sorriso caiu sobre Tsuruko, meia cabeça mais baixa
que ele.

— Minha cara — falou suavemente —, quero que me conte


tudo o que puder sobre o homem. Era jovem, de que idade?
Que aspecto tinha?

Desconcertada com sua proximidade, Tsuruko disse:

— Tinha vinte e dois ou vinte e três, acho. Não pude vê-lo


claramente. Era muito alto. Bonito, gentil. Tinha cabelos
castanhos crespos.

— Está bem — disse o homem de branco —, esta é uma


boa descrição. Estava de blue jeans...

— Sim. E com um blusão igual, sabe, curtinho e azul. E


tinha uma bolsa de alça de uma companhia aérea. — Fez um
gesto por cima do ombro. — Era onde guardava o gravador.

— Muito bom. Você é muito observadora, Tsuruko. De que


companhia aérea?

Ela pareceu mortificada.

— Não reparei. Era azul e branca.

— Uma bolsa azul e branca de uma companhia aérea.


Bastante bom. E o que mais?

Ela franziu a testa, meneou a cabeça e lembrou-se, feliz:


— O nome dele é Hunter, senhor!

— Hunter?
- 38 -

— Sim, senhor! Hunter. Ele disse bem claramente.

O homem de branco sorriu ironicamente.

— Estou bem certo de que o fez. Prossiga. Que mais?

— Falava mal o português. Disse que eu fui "grande ajuda"


dele e cometeu todo tipo de erro. E tinha pronúncia errada.

— Então ele não se demorou muito aqui, não foi? Está


sendo uma "grande ajuda" para mim, Tsuruko. Continue.

Ela franziu a testa e encolheu debilmente os ombros.

— É só isto, senhor.

— Por favor, procure lembrar-se de alguma coisa mais,


Tsuruko — insistiu. — Você não faz ideia de como isso é
importante.

Ela mordeu um dos nós do punho fechado e, olhando -o,


meneou a cabeça.

— Ele não lhe disse como entrar em contato com ele, no


caso de eu convocar outra reunião?

— Não, senhor! Não! Nada disso. Eu haveria de lhe dizer.

— Continue pensando.

Seu rosto aflito de repente se iluminou.

— Ele está num hotel. Isto ajuda?

Os olhos castanhos fitaram-na interrogativamente.

— Ele disse que ia comer no seu hotel. Perguntei-lhe se


queria alguma comida — ele tinha ficado com fome esperando
— e foi isto o que respondeu, que ia comer no seu hotel.

O homem de branco olhou para Tsuruko e disse:

— Está vendo? Havia alguma coisa a mais. — Deu um


passo para trás e, baixando o olhar, abriu a carteira. Retirou
quatrocentos cruzeiros e entregou-os a ela.

— Obrigado, senhor!

Kuwayama aproximou-se, sorridente.


- 39 -

O homem de branco deu-lhe quatro notas, e uma de igual


valor para Mori e Yoshiko. Guardando a carteira no casaco,
sorriu para Tsuruko e repreendeu-a:

— Você é uma boa garota, mas no futuro deve pensar mais


nos interesses de seus fregueses.

— É o que farei, senhor! Prometo!

E a Kuwayama, aconselhou: — Não seja muito duro com


ela.

— Oh, não, agora não! — Kuwayama arreganhou os dentes


num sorriso, retirando a mão do bolso.

O homem de branco pegou o chapéu e a pasta de cima da


mesa do abajur e, sorrindo para as mulheres e para
Kuwayama, inclinados numa mesura, voltou-se e dirigiu-se aos
homens que estavam à espera, observando-o.

Seu sorriso morreu, seus olhos estreitaram-se. Ao chegar


junto aos homens, sussurrou em alemão:

— Puta amarela, chupadora e fodida, gostaria de cortar-


lhe as tetas!

Contou-lhes acerca do gravador.

— Examinamos a rua e todos os carros — disse o louro. —


Não há sinal de nenhum norte-americano jovem de blue jeans.

— Vamos achá-lo — assegurou o homem de branco. — Ele


trabalha sozinho. Os grupos ainda ativos são todos de homens
do Rio e de Buenos Aires. Além do mais é um amador, não
apenas pela idade — vinte e dois ou vinte e três —, mas
também por dar o nome de "Hunter", que é "caçador" em
inglês. Ninguém com experiência se preocuparia com tais
brincadeiras. E deve ser imbecil, do contrário não teria
deixado aquela puta saber que está num hotel.

— A menos — ponderou Schwimmer — que de fato não


esteja.

— Neste caso, é esperto — retorquiu o homem de branco


—, e amanhã de manhã eu me enforcarei. Vamos descobrir.
Hessen, nosso paulista, que se deixou seguir por um "caçador"
- 40 -

amador, irá agora penitenciar-se, fornecendo a cada um de


vocês o nome de um hotel. — Olhou para Hessen, que
levantou os olhos, deixando de examinar o chapéu. — Um
hotel de categoria suficiente para servir comida tarde da noite
— orientou-o o homem de branco —, mas não tanto a ponto de
desencorajar o uso de blue jeans. Ponha-se no lugar dele: você
é um rapaz dos Estados Unidos que veio a São Paulo atrás de
Horst Hessen ou talvez mesmo Mengele. Em que hotel se
hospedaria? Você tem dinheiro suficiente para oferecer
subornos excessivos a garçonetes — não creio que a puta
tenha mentido quanto à quantia —, mas é romântico. Quer se
sentir um novo Yakov Liebermann, não um turista tranquilo.
Cinco hotéis, por favor, Hessen, por ordem de probabilidade.

Olhou para os outros.

— Quando Hessen disser os nomes dos hotéis — disse ele


—, cada um de vocês apanhará uma caixa de fósforos daquele
recipiente ali e repetirá o nome para um motorista de táxi.
Quando chegarem ao hotel, procurarão saber se eles têm lá
um jovem norte-americano alto, de cabelos castanhos crespos,
que voltou há pouco de blusão e calças blue jeans, e com uma
bolsa azul e branca de uma companhia aérea a tiracolo.
Telefonarão, então, para o número que está na caixa de
fósforos. Estarei aqui. Se a resposta for "sim", eu, Rudi e Tin-
Tin logo estaremos lá. Se a resposta for "não", Hessen dará o
nome de outro hotel. Tudo claro? Bom. Dentro de meia hora
haveremos de pegá-lo, e ele nem terá tido tempo de acabar de
ouvir a maldita fita. Então, Hessen?

Hessen disse a Mundt:

— O Nacional.

Mundt repetiu:

— O Nacional. E foi apanhar uma caixa de fósforos.

Hessen disse a Schwimmer:

— O Del Rey.

E a Traunsteiner: — O Marabá.

A Farnbach:
- 41 -

— O Comodoro.

A Kleist:

— O Savoy.

Ele ouviu durante cerca de cinco minutos, depois parou,


voltou atrás e começou de novo, a partir de quando tinham
acabado de admirar qualquer coisa que estavam admirando, e
"Aspiazu" disse "Lasst uns jetzt Geschäft reden, meine
Jungens", e entraram mesmo no assunto. Assunto! Santo Deus!

Ouviu a coisa inteira desta vez, exclamando: "Santo


Deus!", e: "Deus todo-poderoso!", e vez por outra: "Que filho
da puta!" Depois de um ruído e de um longo silêncio, que
deveria corresponder à garçonete trazendo para baixo a
terrina, parou, voltou uma parte e tornou a passar alguns
pedaços e trechos, só para se certificar de que estavam ali, e
ele não estava delirando por fome ou qualquer outra coisa.

Em seguida, andou o quanto lhe permitia o espaço do


aposento, balançando a cabeça e cocando a nuca, tentando
imaginar que diabo fazer naquele lodaçal, onde sabe-se-lá-
quem-não-é-um-deles-ou-pelo-menos-não-estará-por-eles-
sendo -pago.

Havia somente uma coisa a fazer, decidiu finalmente. E


quanto mais cedo melhor, não importava a diferença de horas.
Levou o gravador para a mesinha-de-cabeceira e colocou-o
junto ao telefone. Retirou sua carteira e sentou-se na cama.
Encontrou o cartão com o nome e o número escritos, enfiou-o
por baixo do aparelho e pegou o fone, embolsando a carteira.
Pediu ligação internacional.

— O senhor será chamado quando eu completar a ligação.


— A voz dela era agradável e sensual.

— Ficarei ao telefone — disse ele, a fim de que ela não se


aproveitasse para ir sambar em algum lugar. — Depressa, por
favor.

— Vai demorar cinco ou dez minutos, senhor.


- 42 -

Ouviu-a dar o número a uma telefonista internacional e


ensaiou de cabeça o que iria dizer. Supondo, evidentemente,
que Liebermann estivesse lá e não fora, fazendo alguma
conferência ou seguindo uma pista. Esteja em casa, por favor,
Mr. Liebermann!

Soou leve batida na porta.

— Já era tempo — disse ele em inglês e, segurando o fone,


levantou-se, estirou-se, mal conseguindo dar à maçaneta o
giro que abria. A porta se abriu de encontro à sua mão, e o
garçom de bigode caído entrou com um prato coberto com um
guardanapo e uma garrafa de Brahma, mas sem copo sobre a
bandeja.

— Desculpe a demora — explicou ele. — Às onze todos


eles saem. Tive de preparar eu mesmo.

— Está bem — retorquiu em português. — Pôr a bandeja


na cama, por favor.

— Esqueci o copo.

— Está bem. Não precisar de copo. A nota e o lápis, por


favor.

Assinou a nota de encontro à parede, firmando-a ali com a


mão que segurava o fone. Acrescentou uma gorjeta além da
taxa de serviço.

O garçom saiu sem agradecer e arrotou ao fechar a porta.

Jamais deveria ter saído do Del Rey.

Sentou-se de volta na cama, o fone sibilando cavamente


no ouvido. Virou-se para endireitar a bandeja, e olhou com
desconfiança o guardanapo amarelo com "Miramar" gravado
em grandes letras pretas, um seguro contra ladrões, num
canto. Levantou-o, e, o que quer que fosse, retirou num puxão:
o sanduíche era grosso e bonito, tudo frango, sem alface ou
qualquer outra merda. Perdoando o garçom, agarrou metade
dele, curvou a cabeça ao seu encontro e deu uma grande e
deliciosa mordida até o meio. Deus, como tinha fome!
- 43 -

— Ich möochte Wien 1 — pedia uma telefonista. — Wien!

Pensou na fita e no que ia dizer para Yakov Liebermann, e


pareceu ter a boca cheia de papelão. Mastigou, mastigou e de
alguma forma conseguiu engolir. Pousou o sanduíche e
apanhou a cerveja. Era uma cerveja realmente esplêndida e no
entanto lhe caiu mal.

— Aguarde mais um pouquinho — disse a telefonista


agradável e sensual.

— Assim espero. Obrigado.

— Sua ligação está pronta, senhor.

A campainha tocou.

Tomou outro gole, pousou a garrafa, enxugou a mão no


joelho do blue jeans, chegou-se mais para o telefone.

O outro telefone tocou, tocou e aí atenderam.

— Ja? 2 — ressoou, tão perto como se fosse na esquina. —


Mr. Liebermann?

— Ja. Wer'st da? 3

— Aqui é Barry Koehler. Lembra-se, Mr. Liebermann?


Procurei-o no início de agosto, querendo trabalhar para o
senhor. Barry Koehler, de Evanston, Illinois.

Silêncio.

— Mr. Liebermann?

— Barry Koehler, não sei que horas serão em Illinoise, mas


em Viena está tão escuro que não posso enxergar o relógio.

— Não estou em Illinois, e sim em São Paulo, Brasil.

— Isto não torna as coisas mais claras em Viena.

— Desculpe, Mr. Liebermann, mas tenho um bom motivo


para telefonar. Espere até saber.

— Não me diga, já adivinhei: avistou Martin Bormann.


Numa estação rodoviária.
1
"Eu queria falar com Viena." Em alemão no original. (N. do E.)
2
"Sim?" Em alemão no original. (N. do E.)
3
"Sim. Quem é?" Em alemão no original. (N. do E.)
- 44 -

— Não, Bormann, não. Mengele. E não o vi. Tenho é uma


fita dele falando. Num restaurante.

Silêncio.

— Dr. Mengele! — lembrou ele. — O homem que dirigia


Auschwitz! O Anjo da Morte!

— Obrigado. Pensei que se referisse a um outro Mengele.


O Anjo da Vida.

— Desculpe — tornou Barry. — O senhor estava tão...

— Enxotei-o até a selva. Conheço Josef Mengele.

— É que o senhor estava tão calado, tive de dizer alguma


coisa. Ele deixou a selva, Mr. Liebermann. Estava num
restaurante japonês esta noite. Ele não usa o nome de
Aspiazu?

— Ele usa muitos nomes: Gregory, Fischer, Breitenbach,


Rindon...

— E Aspiazu, não?

Pausa. — Ja. Mas acho que talvez seja usado também por
pessoas que se chamam assim.

— É ele — insistiu Barry. — Tinha a metade das SS lá. E vai


enviá-la para matar noventa e quatro homens. Hessen estava
lá, e mais Kleist, Traunsteiner, Mundt.

— Ouça, não tenho certeza de estar acordado. Você está?


Sabe do que está falando?

— Sim! Vou ligar a fita! Está aqui do lado!

— Espere um minuto. Comece pelo princípio.

— Está bem. — Pegou a garrafa e bebeu um pouco mais de


cerveja. Que ele agora ouvisse um pouco de silêncio, para
variar.

— Barry?

Aah! — Estou aqui. Estava só bebendo um pouco de


cerveja. — Ah.
- 45 -

— Um gole apenas, Mr. Liebermann. Estou morrendo de


sede. Não jantei ainda e estou tão cheio desta fita que não
consigo comer. Tenho aqui uma beleza de sanduíche de
frango e nem sequer posso engoli-lo.

— O que está fazendo em São Paulo?

— O senhor não quis me aceitar, por isso resolvi vir aqui


por minha conta. Minha motivação é maior do que o senhor
pensa.

— É questão das minhas finanças, e não de sua motivação.

— Eu disse que trabalharia de graça. Quem está me


pagando agora? Olhe, deixemos isto de lado. Vim aqui, farejei
por aí, e finalmente verifiquei que a melhor coisa a fazer seria
ficar rondando a fábrica da Volkswagen, onde Stangl
trabalhou. Foi o que fiz. Aí, uns dois dias atrás, locali zei Horst
Hessen. Pelo menos julguei tê-lo feito, não tinha certeza. O
cabelo dele está meio prateado agora, e deve ter feito alguma
cirurgia plástica. Mas, de qualquer forma, julguei que era ele e
comecei a segui-lo. Ele foi para casa cedo hoje — mora na
casinha mais bonita que o senhor possa imaginar, com uma
esposa de endoidar a gente e duas filhas —, e às sete e meia
saiu de novo, tomando um ônibus para o centro. Segui-o até o
tal restaurante japonês e aí ele foi para o andar de cima, a
uma reunião particular. Havia um nazista de guarda na
escada, e a reunião era convocada pelo "Sr. Aspiazu". Dos
Aspiazu de Auschwitz.

Silêncio. — Prossiga.

— Então dei uma volta e abordei uma das garçonetes.


Duzentos cruzeiros mais tarde, ela me forneceu uma fita
inteira de "Mengele despachando seus soldados". Mengele está
claro que nem cristal. Os soldados variam de "razoavelmente
claro" a "ininteligível". Mr. Liebermann, eles vão partir,
amanhã, para a Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos,
Escandinávia, o mundo todo! É uma operação da
Kameradenwerk, pomposa, maluca, estou arrependido de me
ter metido nisso, ela deverá...

— Barry.
- 46 -

— ...dar cumprimento ao destino da raça ariana, por Deus


do céu!

— Barry!

— O que ê?

— Acalme-se.

— Eu estou calmo. Não, não estou. Está bem. Agora estou


calmo. Realmente. Vou voltar a fita e ligá-la para o senhor.
Apertarei o botão. Ouviu? — Quem vai partir, Barry? Quantos?

— Seis. Hessen, Traunsteiner, Kleist, Mundt, e dois


outros, deixe ver, Schwimmer e Farnbach. Ouviu falar deles?

— Schwimmer, Farnbach e Mundt, não.

— De Mundt? Não ouviu falar de Mundt? Ele está no seu


livro, Mr. Liebermann! Foi lá que eu vim a saber dele.

— Um Mundt, no meu livro? Não.

— Sim! No capítulo sobre Treblinka. Tenho na minha


mala. Quer que lhe dê o número da página?

— Nunca ouvi falar de Mundt, Barry. Trata-se de um


engano da sua parte.

— Oh, Cristo. Está bem, esqueça. De qualquer forma, são


seis deles, e vão estar em campo durante dois anos e meio, e
dispõem de certas datas em que deverão matar determinados
homens, e aí é que vem a parte maluca. Está preparado, Mr.
Liebermann? Esses homens que eles vão matar são noventa e
quatro, e são todos funcionários públicos de sessenta e cinco
anos. Sentiu a barra?

Silêncio.

— Barra?

O outro suspirou.

— É uma expressão.

— Barry, deixe-me fazer-lhe uma pergunta. Esta fita é em


alemão, hein? Você...
- 47 -

— Entendo-a perfeitamente! Não spreche muito bem, mas


compreendo perfeitamente. Minha avó não fala outra língua e
meus pais utilizaram-na para segredinhos. Não adiantava nem
quando eu era criança.

— A Kameradenwerk e Josef Mengele estão enviando


homens...

— Para matar funcionários públicos de sessenta e cinco


anos. Alguns deles têm sessenta e quatro e sessenta e seis. A
fita já está virada, e vou ligá-la, e depois o senhor vai me
dizer para quem devo levá-la, alguém de alta categoria e de
confiança. O senhor telefonará para ele, e lhe dirá que irei
procurá-lo, para que ele me receba, e depressa. Eles têm de
ser detidos antes de partirem. A primeira morte está marcada
para 16 de outubro. Agora espere, tenho de encontrar o lugar
certo. Antes tem muita história de sentar e ficar admirando
não sei que troço.

— Barry, é ridículo. Seu gravador não deve estar muito


bom. Ou então... eles não são os homens que você está
pensando.

Houve uma tripla batida na porta.

— Vão embora! — berrou ele, cobrindo o fone. E


lembrando-se do português:

— Eu falar no interurbano! — São outras pessoas — veio a


voz pelo fone. — Estão fazendo uma brincadeira com você.

— Mr. Liebermann, quer ouvir a fita?

Batidas mais fortes, sem parar.

— Merda. Espere aí. — Pondo o fone sobre a cama,


levantou-se, dirigiu-se para a porta barulhenta, segurou a
maçaneta. — O que é?

Ouviu-se uma voz de homem, num português vertiginoso.

— Devagar! Devagar!

— Senhor, há uma senhora japonesa aqui, à procura de


alguém que se parece com o senhor. Diz que precisa avisá -lo
sobre uma coisa que um homem está...
- 48 -

Ele girou a maçaneta e da porta explodiu um sombrio


touro humano. Foi agarrado, virado, a boca apertada, o braço
torcido para trás, a ponto de quebrar. O nazista da escada
vibrou uma estocada com uma faca de quinze centímetros de
cintilante agudez. Sua cabeça foi puxada para trás, o teto
deslizou, pintado de filigranas de um marrom esmaecido. O
braço doeu, e mais o estômago, lá dentro.

O homem de branco entrou no quarto, de chapéu e pasta.


Fechou a porta e, detendo-se diante dela, assistiu ao louro
furar e furar o jovem americano. Cravar, torcer, puxar. Cravar,
torcer, puxar. Por baixo da mão, agora, a faca raiada de
vermelho por entre as costelas cobertas pela camisa justa.

O louro, ofegante, parou de furar, e o homem de cabelos


pretos arriou mansamente o rapaz de olhar surpreso até o
chão, depositando-o ali, metade sobre o tapete cinzento,
metade sobre a madeira envernizada. O louro manteve a mão
na faca, sobre o rapaz, e pediu ao homem de cabelos pretos:

— Uma toalha.

O homem de branco olhou em direção à cama, aproximou -


se dela e pousou a pasta no chão.

— Barry? — chamou o fone sobre a cama.

O homem de branco olhou o gravador na mesinha-de-


cabeceira.

Comprimiu o último botão com a ponta branca do dedo. A


tampa levantou, a fita saltou. O homem de branco pegou-a,
olhou-a, e fê-la escorregar no bolso do casaco. Vislumbrou o
cartão enfiado sob o telefone, tirou-o, e avistou o fone sobre a
cama.

— Barry! — Vinha dali. — Responda!

O homem de branco estendeu vagarosamente a mão e


apanhou o fone. Ergueu-o, levou-o ao ouvido. Escutou, com os
olhos castanhos estreitados, as narinas raiadas de veias
palpitando. Os lábios abriram-se para o bocal, permaneceram
abertos. E se fecharam, cerrando-se firmemente, o bigode
eriçando-se.
- 49 -

Pôs o fone no gancho, esgueirou os dedos, fitou o


telefone. Voltando-se, disse:

— Quase falei com ele. Não me faltou vontade.

O louro, a faca avermelhando a toalha, olhou-o, curioso.

O homem de branco confessou:

— Odiando um ao outro tanto tempo. Ele estava aqui, na


minha mão. Falar finalmente com ele! — Voltou-se de novo
para o fone, meneou a cabeça, pesaroso. Suavemente, sibilou:
— Liebermann, canalha judeu. Seu ajudante morreu. Quanto
ele lhe terá revelado? Não faz diferença. Ninguém aqui lhe
dará ouvidos, pelo menos sem provas. E a prova está no meu
bolso. Os homens voarão amanhã. O Quarto Reich está a
caminho. Adeus, Liebermann. Encontro-o à porta da câmara de
gás. — Meneou a cabeça, sorrindo, e voltou-se, pondo o cartão
no bolso. — Afinal de contas, seria uma tolice — disse ele. —
Eu poderia estar gravando outra fita.

O homem de cabelos pretos, junto ao armário embutido,


apontou a mala lá dentro e perguntou em português:

— Arrumo as coisas dele, doutor?

— Rudi o fará. Desça onde está Traunsteiner. Encontre


uma porta nos fundos que você possa abrir e onde possa
encostar o carro. Depois, um de vocês sobe para nos ajudar a
descer. E não lhe diga que o rapaz estava ao telefone. Diga
que estava ouvindo a fita.

O homem de cabelos pretos assentiu e saiu.

O louro disse em alemão:

— Eles não serão apanhados? Os homens, quero dizer.

— O serviço tem que ser feito — disse o homem de


branco, retirando o seu estojo de óculos. — Tanto quanto
possível, a qualquer preço. Com sorte, hão de cumpri-lo todo.
Alguém dará ouvidos a Liebermann? Ele próprio não acreditou.
Você ouviu como o rapaz argumentava com ele. Deus nos
ajudará. Um número suficiente dos noventa e quatro há de
morrer.
- 50 -

Pôs os óculos e, tirando uma caixa de fósforos do bolso,


virou-se para o telefone. Ergueu o fone e leu um número para
a telefonista.

— Olá, minha amiga — disse animadamente —, Sr. Hessen,


por favor.

— Desviou o olhar, cobrindo o bocal. — Esvazie os bolsos


dele, Rudi. E tem uns tênis ali debaixo da escrivaninha.
Hessen? É o Dr. Mengele. Está tudo ótimo, não há com que se
preocupar. Exatamente o amador que eu esperava. Acho que
nem entendia alemão. Mande os rapazes para casa, para
treinarem as assinaturas. Apenas uma emoção para completar
a noite. Não, pelo menos até 1977, receio. Volto para o
vilarejo, logo que arrumarmos tudo. Portanto, vá com Deus,
Horst. E transmita-o aos outros por mim: "Vão com Deus". —
Desligou e disse: — Heil Hitler.

O Burggarten, com o lago e o monumento a Mozart, seus


gramados, alamedas e o equestre Imperador Franz, fica
suficientemente perto dos escritórios de Viena da Reuters, a
agência internacional de notícias, para que os
correspondentes e as secretárias tragam seus lanches para ali,
nos meses mais amenos do ano. Segunda-feira, 14 de outubro,
fazia um dia frio e encoberto; mesmo assim, quatro
funcionários da Reuters vieram ao jardim. Acomodaram-se
num banco, desembrulharam sanduíches e deitaram vinho
branco em copos de papel.

Um dos quatro, o que servira o vinho, era Sydney Beynon,


correspondente veterano da Reuters em Viena. Um egresso de
Liverpool de quarenta e quatro anos, com duas ex-esposas
vienenses, Beynon se parecia muito com um abdicante Rei
Eduardo de óculos de aro de chifre. Ao descansar a garrafa no
banco ao seu lado e sorver apreciativamente do copo, avistou,
com um repentino sobressalto de culpa, Yakov Liebermann
vindo tropegamente em sua direção, de chapéu marrom e um
impermeável preto aberto.

Durante toda a semana anterior, Beynon recebera várias


vezes recados de Liebermann pedindo-lhe que lhe telefonasse.
- 51 -

Ainda não o fizera, embora fosse geralmente um escrupuloso


retribuidor de telefonemas. Defrontando-se agora com sua
involuntária esquivança, sentiu-se duplamente culpado:
primeiro, porque Liebermann, nos seus anos de apogeu, na
época das capturas de Eichmann e Stangl, constituíra a fonte
de algumas de suas melhores e mais recompensadoras
matérias, e depois porque o caçador de nazistas fazia sempre
todos se sentirem culpados. Alguém dissera dele (teria sido
Stevie Dickens?): "Leva preso às abas do casaco todo o maldito
cenário dos campos de concentração. E legiões de judeus
gemem em suas sepulturas cada vez que Liebermann entra no
aposento". Era triste mas verdadeiro.

E talvez Liebermann tivesse consciência disso, pois


sempre se apresentava, como naquele instante diante de
Beynon, um passo atrás da distância social comum, com um
ligeiro ar de desculpas. Ou melhor, pensou Beynon, como um
urso deferente, com alguma coisa de contagioso.

— Olá, Sydney — disse Liebermann, o urso, tocando a aba


do chapéu. — Por favor, não se levante.

A culpa de Beynon era mais incômoda do que todo aquele


sanduíche sobre o seu colo, por isso ainda assim fez um
esforço, soerguendo-se.

— Olá, Yakov! Prazer em vê-lo. — Estendeu a mão e


Liebermann, inclinando-se, alcançou-a e envolveu-a, sem
apertá-la, no calor de sua mão maior. — Desculpe ainda não
lhe ter telefonado — disse Beynon. — Fiquei indo e vindo de
Linz durante toda a semana passada. — Voltou a sentar-se e
esboçou as apresentações com a mão que segurava o copo:

— Freya Neustadt, Paul Higbee, Dermot Brody, este é


Yakov Liebermann.

— Puxa! — Freya limpou a mão ossuda na saia e estendeu-


a, sorrindo animadamente. — Como vai? Que grande prazer. —
Ela parecia culpada.

Vendo Liebermann acenando e apertando as mãos em fila,


Beynon ficou consternado ao perceber o quanto ele
envelhecera e minguara desde seu último encontro, dois anos
- 52 -

antes. Ainda tinha o mesmo porte, mas não era mais tão
imponente, nem trazia mais implícito o vigor de um urso. Os
ombros largos pareciam arriados sob o escasso peso do
impermeável, e o rosto outrora enérgico estava enrugado e
pardacento, os olhos abatidos sob pálpebras caídas. O nariz
pelo menos não mudara — aquele gancho semítico
proeminente —, mas o bigode tinha traços grisalhos e
precisava ser aparado. O pobre homem perdera a mulher, um
rim ou coisa parecida, e os fundos do seu Centro de
Informação de Crimes de Guerra. As perdas estavam todas
estampadas em sua aparência — o velho chapéu amarrotado e
com marcas de uso, o laço escurecido da gravata — e Beynon,
lendo aquele registro, verificou por que, no seu íntimo,
bloqueara o telefonema de resposta. Sua culpa avolumou-se,
mas ele reprimiu-a, dizendo a si mesmo que esquivar-se aos
derrotados era um instinto natural e saudável, mesmo — ou
talvez especialmente — àqueles que antes foram vencedores.

Contudo, havia a disposição de ser amável, é claro.

— Sente-se, Yakov — convidou calorosamente, fazendo


um gesto para a extremidade do banco ao seu lado, e puxando
mais para perto a garrafa de vinho.

— Não quero perturbar o seu lanche — retorquiu


Liebermann, no seu inglês de forte sotaque. — Não
poderíamos conversar mais tarde?

— Sente-se — insistiu Beynon. — Já aturo bastante estes


camaradas lá no escritório. — Pôs-se de costas para Freya e
empurrou-a um bocadinho. Ela cedeu alguns centímetros e
virou para o outro lado. Beynon abriu o espaço para a ponta
do banco e, sorrindo para Liebermann, indicou-o com um
gesto.

Liebermann sentou-se e suspirou. Segurando os joelhos


com as mãos volumosas, espiou por entre eles com uma
careta, gingando os pés. — Sapatos novos — lamentou-se. —
Estão me matando.

— Afora isso, como vai você? — indagou Beynon. — E


como está sua filha?
- 53 -

— Estou bem. Ela está ótima. Tem três filhos agora, duas
meninas e um menino.

— Oh, que bom. — Beynon tocou no gargalo da garrafa. —


Lamento não termos outro copo. — Não, não. De qualquer
modo, não posso. Nada de álcool.

— Soube que esteve no hospital...

— Entrei, saí, entrei, saí. — Liebermann encolheu os


ombros e pousou seus fatigados olhos castanhos em Beynon.
— Recebi uma chamada telefônica muito maluca — disse. —
Algumas semanas atrás. No meio da noite. Um rapaz dos
Estados Unidos, de Illinois, me telefonou de São Paulo. Com
uma fita de Mengele. Você sabe quem é Mengele, não?

— Um de seus nazistas procurados, não é?

— Um de todos — corrigiu Liebermann —, não apenas


meu. O governo alemão ainda oferece sessenta mil marcos por
ele. Era o médico principal de Auschwitz. Chamavam-no "O
Anjo da Morte". Dois títulos, de doutor em medicina e em
filosofia, e realizou milhares de experiências com crianças,
gêmeos, tentando fabricar bons arianos, mudar olhos
castanhos para azuis, mediante produtos químicos, através do
gene. Um homem com dois títulos! Matou milhares de gêmeos
de toda a Europa, judeus e não-judeus. Está tudo no meu livro.
— Beynon pegou metade do seu sanduíche de salada e ovo e
mordeu-o com decisão.

— Ele foi para a Alemanha depois da guerra — prosseguiu


Liebermann. — Tem família rica lá, em Günzburg, maquinaria
agrícola. Mas seu nome começou a aparecer nos julgamentos,
a ODESSA expulsou-o e ele foi parar na América do Sul. Nós o
descobrimos e o perseguimos de cidade em cidade: Buenos
Aires, Bariloche, Assunção. Desde 59 vive na selva, num
vilarejo à margem de um rio, na fronteira do Brasil com o
Paraguai. Tem um exército de guarda-costas e cidadania
paraguaia, portanto não pode ser extraditado. Mas, de
qualquer forma, tem de se precaver, pois grupos de jovens
judeus locais ainda tentam pegá-lo. Alguns são encontrados
boiando rio abaixo, no Paraná, com os pescoços cortados.
- 54 -

Liebermann calou-se. Freya bateu no braço de Beynon e


pediu vinho. Ele passou-lhe a garrafa.

— O rapaz, então, consegue uma fita — tornou


Liebermann, olhando em frente, as mãos sobre os joelhos. —
Mengele num restaurante enviando antigos homens das SS
para a Alemanha, Inglaterra, Escandinávia e Estados Unidos.
Para matar uma quantidade de homens de sessenta e cinco
anos. — Virou-se, sorrindo, para Beynon. — Que loucura, hein?
E é uma operação muito importante. A Kameradenwerk está
envolvida também, não apenas Mengele. A Organização dos
Camaradas, que os mantém seguros e com empregos. Sentiu a
barra, como se diz agora?

Beynon fitou-o, pestanejando, e sorriu.

— Não, acho que não. E você ouviu mesmo a tal fita?


Liebermann meneou a cabeça.

— Não. Justamente quando ele se preparava para tocá-la


para mim, houve uma batida na porta, na porta dele, e ele foi
atender. Ouvi colisões e baques, e pouco depois o telefone foi
desligado.

— Sincronização perfeita — observou Beynon. — Cheira


mais a mistificação, não acha? Quem é ele?

Liebermann encolheu os ombros.

— É um rapaz que me ouviu falar há dois anos, na sua


universidade, Princeton. Procurou-me em agosto, e disse que
queria trabalhar para mim. Mas eu preciso de novos
colaboradores? Estou usando apenas alguns dos antigos. Você
sabe, presumo, que todo o meu dinheiro, todo o dinheiro do
Centro, estava no Allgemeine Wirtschaftsbank.

Beynon fez um aceno afirmativo.

— O Centro fica agora no meu apartamento: os arquivos


todos, algumas mesas, eu e minha cama. O teto no andar de
baixo está rachando. O senhorio me processa. Os únicos novos
colaboradores de que necessito são os angariadores de
fundos, o que não constitui o campo de interesse do rapaz.
Por isso, ele foi para São Paulo, por conta própria.
- 55 -

— Não seria precisamente a pessoa em quem eu


depositaria muita fé.

— Exatamente o que pensei enquanto ele falava comigo. E


ele mesmo ainda não conseguiu coligir todos os seus fatos.
Um dos homens das SS chama-se Mundt, diz ele. Ouviu falar
desse Mundt através do meu livro. Ora, no meu livro sei que
não existe Mundt algum. Nunca ouvi falar de um Mundt.
Portanto, isto não contribui para aumentar minha confiança.
Mas ainda assim... após as colisões e baques, enquanto o
chamava de volta ao telefone, houve um determinado som,
não muito alto, mas bastante claro. Só podia significar uma
coisa e nada mais: o som de uma fita ejaculada de um
gravador.

— Ejetada — corrigiu Beynon.

— Não é ejaculada? Expulsa?

— É ejetada. Ejaculada é outra coisa.

— Ah! — assentiu Liebermann. — Obrigado. Ejetada de um


gravador. E mais um pormenor: houve silêncio então, por
muito tempo, e fiquei também calado, aliando as colisões e
baques ao som da fita. Mas durante aquele longo silêncio —
lançou um olhar de augúrio sobre Beynon — o ódio veio pelo
telefone, Sydney. — Fez um aceno afirmativo. — Ódio como
jamais senti antes, nem mesmo quando Stangl me olhou no
tribunal. Chegou-me tão claro como a voz do rapaz, talvez
devido ao que ele revelou. Tive absoluta certeza de que o ódio
provinha de Mengele. E quando o fone foi desligado, tive
absoluta certeza de que Mengele é que havia desligado. —
Desviou os olhos e inclinou-se para a frente, apoiando os
cotovelos nos joelhos, uma das mãos segurando o punho da
outra.

Beynon fitou-o, incrédulo, apesar de emocionado.

— O que fez? — indagou.

Liebermann sentou-se empertigado, esfregou as mãos,


olhou para Beynon e encolheu os ombros.
- 56 -

— O que poderia eu fazer em Viena às quatro da manhã?


Anotei o que o rapaz me contara, tudo o que podia me
lembrar, li-o, e disse a mim mesmo que ele estava maluco e eu
também. Só que... quem teria ejetado a fita e desligado o
telefone? Talvez não tenha sido Mengele, mas foi alguém. Mais
tarde, quando amanheceu, telefonei para Martin McCarthy, da
embaixada dos Estados Unidos em Brasília. Ele telefonou para
a polícia de São Paulo, e lá eles ligaram para a companhia
telefônica e descobriram de onde viera a chamada. De um
hotel. Um rapaz desaparecera dali durante a noite. Telefonei
para Pacher aqui e perguntei-lhe se poderia alertar as
autoridades brasileiras sobre os homens das SS. O rapaz havia
dito que eles estavam de partida naquele dia. Pacher não
chegou propriamente a rir de mim, mas recusou-se a fazê-lo, a
menos que lhe apresentasse alguma coisa de concreto. Um
rapaz que desaparece de um quarto de hotel sem pagar a
conta não é algo concreto. E tampouco eu estar dizendo que
os homens das SS estavam de partida, porque foi o que o
rapaz me revelou. Tentei falar com o promotor alemão
encarregado do caso Mengele, mas ele não estava. Se ainda
fosse Fritz Bauer, estaria em casa para mim; o novo, não. —
Encolheu novamente os ombros, esfregou o lóbulo da orelha.
— Portanto, os homens deixaram o Brasil, se o rapaz estiver
certo, e ele ainda não foi encontrado. O pai dele está lá,
pressionando a polícia, um homem de posses, segundo me
constou. Mas tem um filho morto.

Beynon proferiu em tom de desculpa:

— Você não acha que é muito difícil para mim apurar uma
história em Viena sobre...

— Não, não, não — interrompeu Liebermann, pousando


suavemente a mão sobre o joelho de Beynon. — Não lhe peço
que apure uma história. O que quero pedir é outra coisa,
Sydney. Estou certo de que é possível e espero que não dê
muito trabalho. O rapaz disse que a primeira morte
aconteceria depois de amanhã, 16 de outubro. Mas não disse
onde. Será que você obteria da sua agência principal de
Londres recortes ou relatos de suas outras agências? A
- 57 -

respeito de homens de sessenta e quatro a sessenta e seis


anos de idade, assassinados ou mortos em acidentes?
Qualquer coisa, exceto mortes naturais, a partir de quarta-
feira. Somente homens com sessenta e quatro a sessenta e seis
anos.

Beynon franziu a testa, empurrou os óculos e no olhar


expressou suas dúvidas a Liebermann.

— Não foi mistificação, Sydney. Ele não era um rapaz que


fizesse isso. Está desaparecido há três semanas, e escrevia
para casa regularmente, telefonava até mesmo quando mudava
de hotel.

— Admitamos que provavelmente esteja morto — disse


Beynon. — Mas não teria sido morto simplesmente por se
intrometer onde não era chamado, mais um outro rapaz atrás
de Mengele? Ou então não teria sido roubado e morto por um
assaltante comum? Sua morte de modo algum prova que... um
plano nazista está sendo posto em prática no sentido de matar
homens de certa idade.

— Ele tinha isso na fita. Por que haveria de me mentir?

— Talvez não o tenha feito. A fita talvez tenha sido uma


mistificação forjada para ele. Ou talvez a estivesse
interpretando erradamente.

Liebermann respirou, expeliu o ar e fez um aceno


afirmativo.

— Eu sei — assentiu. — Isso é possível. Foi o que pensei a


princípio. E ainda penso às vezes. Mas alguém precisa
investigar um pouco, e, se eu não o fizer, quem o fará? Se ele
estava errado, estava errado. Perdi tempo e importunei
Sydney Beynon por nada. Mas se ele estava certo, então
estamos diante de coisa muito grande, e Mengele deve ter
motivos para realizá-la. Preciso encontrar alguma coisa de
concreto, de modo que os promotores estejam em casa para
conseguir detê-la antes que se complete. Vou lhe dizer uma
coisa, Sydney. Sabe o que é?

— Sim?
- 58 -

— Existe um Mundt no meu livro. — Assentiu gravemente.


— Exatamente onde ele disse que havia, numa lista de guardas
de Treblinka que cometiam atrocidades. Hauptscharführer
Alfried Mundt. Eu me esquecera dele. Quem pode se lembrar
de todos? Sua ficha é muito pequena: uma mulher de Riga viu-
o partir o pescoço de uma garota de catorze anos e um homem
da Flórida que foi castrado por ele ainda está disposto a depor
se eu apanhá-lo. Alfried Mundt. Portanto, se o rapaz acertou
uma vez, talvez tenha acertado duas. Pode então arranjar os
recortes, por favor? Ficaria agradecido.

Beynon respirou fundo, e consentiu.

— Verei o que posso fazer. — Aconchegou mais o copo e


apanhou no interior do casaco o caderno de notas e a caneta.
— Que países você disse?

— Bem, o rapaz falou na Alemanha, Inglaterra,


Escandinávia — Noruega, Suécia, Dinamarca — e Estados
Unidos.

Mas, da maneira como falou, parece que havia outros


lugares que não estava citando. Por isso você deve se informar
também na França e na Holanda.

Beynon lançou rápido olhar a Liebermann e anotou em


taquigrafia.

— Obrigado, Sydney — disse Liebermann. — Estou muito


grato. Qualquer coisa que eu descubra, você será o primeiro a
saber. Não apenas disto, mas de tudo.

— Tem ideia de quantos homens de sessenta e poucos


anos morrem diariamente? — indagou Beynon.

— Por assassinato? Ou em acidentes que poderiam ser


assassinatos? — Liebermann meneou a cabeça. — Não, não são
muitos. Espero que não. E alguns eu conseguirei eliminar
pelas profissões.

— Como assim?

Liebermann passou a mão no bigode e segurou o queixo, o


dedo atravessado sobre os lábios. Um momento depois, baixou
a mão e encolheu os ombros.
- 59 -

— Não é nada — respondeu. — São mais outros detalhes


que o rapaz deu. Escute — apontou para o caderno de notas de
Beynon —, não esqueça de pôr aí "entre sessenta e quatro e
sessenta e seis".

— Eu pus — retorquiu Beynon, olhando-o. — Que outros


detalhes?

— Nada de importante. — Liebermann enfiou a mão no


casaco. — Voarei para Hamburgo às quatro e meia —
anunciou. — Farei conferências na Alemanha até 3 de
novembro. — Retirou uma carteira marrom, grossa e usada. —
Portanto, tudo o que conseguir, remeta por favor para meu
apartamento, a fim de que eu me informe quando regressar. —
Entregou um cartão a Beynon.

— E se eu descobrir o que se afigura uma matança


nazista?

— Quem sabe? — Liebermann recolocou a carteira no


casaco. — Dou apenas um passo de cada vez. — Sorriu para
Beynon. — Especialmente nesses sapatos. — Apoiou as mãos
nas coxas e levantou-se, olhando em volta e abanando a
cabeça com ar de desaprovação. — Hum. Dia feio. — Voltou-
se, numa censura a todos eles.

— Por que comem ao ar livre num dia assim?

— Formamos o Clube Mozart das Segundas-Feiras —


retorquiu Beynon, sorrindo e virando o polegar em direção ao
monumento.

Liebermann estendeu a mão. Beynon apertou-a. Sorriu


para os demais e disse:

— Minhas desculpas por afastar dos senhores esse homem


encantador.

— Ele está à sua disposição — respondeu Dermot Brody.

— Obrigado, Sydney — disse Liebermann a Beynon. —


Sabia que poderia confiar em você. Ah, escute. — Curvou-se e
falou mais baixo, segurando a mão de Beynon. — Peça-os de
quarta-feira em diante. Continuamente, quero dizer. Pois, se o
rapaz revelou que iam partir seis, a troco de que Mengele
- 60 -

haveria de enviá-los de uma vez, se alguns ficariam sem nada


fazer por muito tempo? Portanto, deverá haver mais dois
assassinatos não muito depois do primeiro — isto, se
estiverem trabalhando em equipes de dois — ou cinco mais,
que Deus não permita, se trabalharem isolados. E também se,
é claro, o rapaz estiver certo. Fará isto?

Beynon assentiu.

— Quantos assassinatos deverá haver ao todo? —


perguntou.

Liebermann fitou-o.

— Muitos. — Largou a mão de Beynon, aprumou-se e se


despediu dos outros com acenos de cabeça. Enfiando as mãos
nos bolsos do casaco, voltou-se e partiu apressado em direção
ao alvoroço do tráfego da Ringstrasse.

Os quatro no banco observaram-no afastar-se.

— Oh, Deus — proferiu Beynon, e Freya Neustadt meneou


tristemente a cabeça.

Dermot Brody inclinou-se para a frente e indagou:

— Como é que foi aquele último pedaço, Syd?

— Se eu podia pedir-lhes que continuassem enviando


recortes. — Beynon guardou o caderno de notas e a caneta
dentro do casaco. — Haverá três ou seis assassinatos, não
apenas um. E mais outros ainda.

Paul Higbe e retirou o cachimbo da boca e observou:

— O engraçado é que ele pode estar absolutamente certo.

— Ora, deixe disso — retrucou Freya. — Nazistas odiando-


o pelo telefone?

Beynon pegou o copo e agarrou a metade de um


sanduíche.

— Os dois últimos anos foram terrivelmente duros para


ele — disse.

— Que idade ele tem? — indagou Freya, mordaz.


- 61 -

— Não sei bem — respondeu Beynon. — Ah, sim, percebo.


Por volta de sessenta e cinco, me parece.

— Está vendo? — tornou Freya a Paul. — Então os nazistas


estão matando homens de sessenta e cinco anos. Trata-se de
uma fantasia paranoica minuciosamente delineada. Daqui a
um mês estará dizendo que estão no seu encalço.

Inclinando-se de novo para a frente, Dermot Brody


perguntou a Beynon:

— Vai mesmo arranjar os recortes?

— Claro que não — asseverou Freya, e voltou-se para


Beynon. — Não vai, não é mesmo?

Beynon sorveu o vinho, segurando o sanduíche.

— Bem, eu disse que ia tentar — declarou. — Se não o


fizer, quando ele voltar não me largará. Além do mais,
Londres pensará que estou trabalhando em alguma coisa. —
Sorriu para Freya. — Nunca faz mal causar boa impressão.

Ao contrário da maioria dos homens da sua idade, Emil


Döring, de sessenta e cinco anos de idade, outrora segundo-
assistente administrativo do diretor da Comissão de
Transportes Públicos de Essen, não se deixara transformar
num escravo dos hábitos. Atualmente aposentado e morando
em Gladbeck, uma vila ao norte da cidade, empenhava-se em
variar a rotina diária. Não tinha hora certa para ir comprar os
jornais da manhã, não visitava a irmã em Oberhausen em
tardes determinadas, e não passava as noites — para não falar
de quando decidia ficar em casa no último minuto — em
nenhum bar favorito das vizinhanças. Ao contrário, eram três
os seus bares favoritos, e só escolhia um na hora de sair do
apartamento. Às vezes estava de volta dentro de uma hora ou
duas, outras vezes só depois da meia-noite.

A vida inteira Döring estivera de sobreaviso quanto a


inimigos à sua espreita, e protegia-se não apenas andando
armado, como também tornando seus movimentos os mais
imprevisíveis possíveis. Primeiro, foram os irmãos maiores de
- 62 -

colegas pequenos que o haviam acusado injustamente de os


ter maltratado. Depois, seus colegas soldados, todos uns
obtusos, começaram ase mostrar ressentidos com a sua
habilidade em granjear a simpatia dos oficiais e obter missões
fáceis e seguras. Posteriormente, surgiram rivais na Comissão
de Transportes, alguns capazes de dar lições de perfídia a
Maquiavel. Que histórias não tinha Döring para contar da
Comissão de Transportes!

E agora, nos que deveriam ser seus anos propícios,


quando julgara poder finalmente baixar a guarda e afrouxar,
deixando a velha Mauser na gaveta da mesinha-de-cabeceira —
agora mais do que nunca reconhecia-se em real perigo de
ataque.

Sua segunda esposa, Klara — que era, conforme nunca se


cansava de lhe lembrar através de maneiras sutis, vinte e três
anos mais moça —, alimentava, disso tinha certeza, um caso
com o antigo professor de clarinete do seu filho, um
desprezível sujeito abicharado de nome Wilhelm Springer,
mais novo, ainda por cima, do que ela — trinta e oito anos! —
e pelo menos metade judeu. Döring não tinha quaisquer
dúvidas de que Klara e o seu judeu bicha, Springer, ficariam
felizes em afastá-lo do caminho, pois não apenas ela ficaria
viúva, como também viúva rica. Ele dispunha de mais de
trezentos mil marcos (de cuja existência ela sabia, e mais
quinhentos mil dos quais ninguém sabia, enterrados em dois
cofres de aço no quintal da sua irmã). O dinheiro é que
impedia Klara de se divorciar. Estava à espera, e sempre fora
assim desde o dia em que se casaram, aquela puta.

Pois bem, ela que continuasse esperando. Ele gozava de


ótima saúde e estava pronto para enfrentar uma dúzia de
Springers que saltassem de becos escuros. Frequentava o
ginásio duas vezes por semana — não em tardes certas —, e,
com sessenta e cinco ou não, era ainda danado de bom em
luta livre, embora já não o fosse tanto naquela de outro tipo, a
de homem com mulher. Era ainda danado de bom e sua
- 63 -

Mauser ainda danada de boa, gostava de dizer a si mesmo,


sorrindo ao acariciar a volumosa saliência dura através do
casaco, junto ao sovaco.

Contara isso também a Reichmeider, o vendedor do


equipamento cirúrgico que encontrara no Bar Lorelei, na noite
passada. Que sujeito simpático o Reichmeider! Mostrara-se
realmente interessado nas histórias de Döring da Comissão de
Transportes — quase caíra da sua banqueta rindo das
consequências do negócio de apropriação de 58. Conversar
com ele fora a princípio um pouco embaraçoso, devido à
maneira extravagante como movia um olho — era obviamente
artificial —, mas Döring logo se acostumou e falou-lhe não
apenas sobre o negócio da apropriação como também sobre a
investigação governamental de 64 e o escândalo de
Zellermann. Depois atingiram plano mais pessoal — cinco ou
seis cervejas já tinham descido pelas comportas, nessa altura
— e Döring abriu-se acerca de Klara e Springer. Foi quando
dera as pancadinhas na Mauser e revelara o que havia entre os
dois. Reichmeider não conseguia acreditar que ele tivesse
mesmo sessenta e cinco anos.

— Juraria que não tinha mais de cinquenta e sete, no


máximo! — insistira.

Que bom sujeito! Pena que ficasse ali apenas por uns dias.
Sorte, no entanto, que permanecesse em Gladbeck, em vez de
Essen propriamente dita.

Tinha sido para encontrar Reichmeider de novo, e falar-


lhe sobre a ascensão e queda de Oskar Sabe-Tudo Vowinckel,
que Döring voltara ao Bar Lorelei aquela noite. Mas as nove
horas já haviam transcorrido há muito tempo e nem sinal de
Reichmeider, apesar de haverem combinado o encontro na
noite anterior. Havia um bando ruidoso de rapazes e moças
bonitas, uma delas com a metade dos seios de fora, e somente
alguns velhos fregueses — Fürst, Apfel, sei-lá-quem —,
nenhum deles bom ouvinte. Parecia mais uma sexta ou um
sábado do que uma quarta. Um jogo de futebol flutuava de cá
para lá na televisão. Döring observou-o, bebeu vagarosamente
e olhou pelo espelho os esplêndidos peitos jovens. Vez por
- 64 -

outra inclinava-se para trás na banqueta e tentava pegar um


vislumbre dos recém-chegados pela porta, esperando ainda
que Reichmeider fizesse a prometida aparição.

E ele o fez, mas da maneira mais estranha e repentina,


uma mão agarrando o ombro de Döring, numa premência de
cochichos e olhar torto:

— Döring, venha aqui fora depressa! Preciso lhe dizer uma


coisa! — E saiu.

Confuso e intrigado, Döring chamou com um sinal a


atenção de Franz, jogou uma nota de dez sobre o balcão e
abriu caminho até a saída. Reichmeider acenou com decisão,
afastando-se Kirchengasse abaixo. Um lenço envolvia-lhe a
mão esquerda, como se estivesse machucada. As pernas e os
ombros do seu terno cinzento, de aparência cara, tinham
manchas de poeira de cal.

Apressando-se em sua direção, Döring perguntou:

— O que há? Que aconteceu com você?

— É a você que as coisas podem acontecer, não a mim! —


exclamou Reichmeider alvoroçadamente. — Andei aos
tropeços por aquele edifício que estão demolindo, lá embaixo
na rua do próximo quarteirão. Escute, como é o nome dele,
daquele sujeito de quem você me falou, o que anda metido
com sua mulher? — Springer — disse Döring, profundamente
intrigado, mas contagiando-se com o alvoroço de Reichmeider.
— Wilhelm Springer! —

Sabia que era isto! — exclamou Reichmeider. — Sabia que


não estava enganado! Que sorte por acaso eu ter... Escute, vou
explicar tudo. Vinha por esta rua aqui, para o bar, quando tive
de dar uma mijada, não havia jeito de prender. Chegando
junto ao prédio, esse que estão demolindo, entrei no beco ao
lado. Mas havia muita luz ali, por isso procurei uma entrada
pelas portas que existem no local e enfiei-me de mansinho.
Fiz o que tinha de fazer e, justamente quando me preparava
para sair, dois homens chegaram e pararam bem no lugar onde
eu entrara. Um chamou o outro de Springer — lentamente,
acenou com a cabeça, enquanto Döring respirava fundo — e
- 65 -

este então disse para o primeiro coisas assim: "Ele está no


Loreleinesse instante, o velho maldito", e: "Vamos espremer as
tripas daquele corno manso". Eu sabia que Springer era o
nome que você tinha falado! Este é mesmo o seu caminho de
casa, não?

Döring, de olhos fechados, respirou fortemente e engoliu


parte da sua fúria.

— Às vezes — murmurou, abrindo os olhos — tomo


caminhos diferentes.

— Pois bem, esta noite eles estão esperando você naquele


trajeto. Encontram-se lá, à espreita, com uns paus, bonés
sobre os olhos, golas viradas para cima, exatamente como
você disse ontem à noite, Springer prestes a saltar de um
beco. Percorri o prédio e descobri uma saída do lado de cá.

Döring respirou fundo outra vez e bateu a mão no ombro


poeirento de Reichmeider, agradecido.

— Obrigado — disse. — Obrigado.

Sorridente, Reichmeider prosseguiu:

— Tenho certeza de que você poderá dar conta dos dois


com uma das mãos amarrada nas costas. O outro sujeito é um
magricela insignificante, porém o mais sensato, é claro, seria
simplesmente voltar para casa por outro trajeto. Posso
acompanhá-lo, se quiser. A menos que prefira se livrar desse
Springer de uma vez por todas.

Döring encarou-o, interrogativo.

— É uma oportunidade de ouro, realmente — salientou


Reichmeider —, e de qualquer modo ele há de atacá-lo uma
outra noite, se não aproveitar esta. É muito simples: você vai
até lá, eles investem — baixou o olhar para o casaco de Döring
e sorriu de olho enviesado — e aí você dá cabo deles. Estarei
alguns passos atrás, para servir-lhe de testemunha, e na
improvável eventualidade de eles lhe darem trabalho —
inclinou-se mais para perto e, abrindo a lapela, mostrou uma
coronha de arma surgindo do coldre — cuidarei deles e você
será minha testemunha. De uma maneira ou de outra, ficará
- 66 -

livre dele, e o máximo que lhe poderá acontecer será levar


uma ou duas pauladas.

Döring encarou Reichmeider. Levou a mão ao casaco,


apertou a dura saliência lá dentro.

— Deus meu! — exclamou, assombrado. — E pensar que


vou mesmo usar esta coisa!

Reichmeider desenrolou o lenço da mão e soprou um


arranhão sangrento no dorso.

— Isto dará à sua esposa alguma coisa em que pensar —


observou.

— Deus do céu! — exultou Döring. — Nem tinha pensado


nisso! Ela vai desmaiar aos meus pés! "Escute, Klara, lembra-se
de Wilhelm Springer, o professor de clarinete de Erich?
Atacou-me na rua esta noite — não faço ideia por quê — e
matei-o." — Agarrou as bochechas, radiante, e assobiou. —
Meu Deus, isto há de matá-la também!

— Venha, vamos fazê-lo! — instou Reichmeider. — Antes


que eles percam a coragem e fujam!

Apressaram-se pelo escuro declive da Kirchengasse.


Faróis em subida varriam-nos de luzes e passavam, velozes.

— Quem disse que não há justiça, hein?

— "Corno manso"? Ah, seu bichinha de merda, hei de


acertá-lo bem no coração!

Atravessaram a Lindenstrasse deserta. Agora andavam


devagar e em silêncio, rentes às portas fechadas das lojas. E
chegaram junto aos quatro andares do arcabouço de pedra de
um edifício, o topo semidemolido recortando-se numa
silhueta de encontro ao céu enluarado, percorrido à frente e
aos lados por passagens de tábuas e portas pintadas.
Reichmeider puxou Döring para a escuridão da passagem
lateral.

— Fique aqui — sussurrou. — Vou me certificar se não


pegaram mais outros dez como reforço.
- 67 -

— É, acho bom. — Döring sacou da arma.

— Agora sei o caminho e tenho uma lanterninha de bolso.


Não me demoro. Fique aqui mesmo.

— Não deixe que eles o vejam!

Já se afastando, Reichmeider cochichou:

— Não se preocupe.

À obscura luz oscilante, surgiu a passagem, de teto de


pranchas e murada de portas. O vulto alto e magro de
Reichmeider entrou por ela, contornando a parede interna, e
desapareceu, deixando a escuridão atrás de si.

Ligeiro e agitado — e com vontade de mijar — Döring


segurava a Mauser maravilhosamente pesada, há tantos anos
carregada e agora prestes a ser usada. Levou-a até junto da
entrada da passagem e examinou-a à luz fraca da
Lindenstrasse. Acariciou-lhe o cano liso e destravou-a. Ei-la
pronta para atirar.

Voltou a recostar-se na parede, onde Reichmeider o


deixara. Que amigo! Que homem de fato! Amanhã à noite iria
convidá-lo para jantar no Kaiserhof. E dar-lhe de presente
alguma coisa de ouro. Abotoaduras, talvez.

Sentindo volumosa a arma em sua mão, quedou-se na


passagem, tornando-se agora cada vez mais visível. Imaginou-
se despejando sua carga mortífera sobre Wilhelm Springer.

E depois — resolvida a questão com a polícia — voltando


para casa e contando a Klara. Morra, sua puta.

Haveria até reportagens nos jornais! "Administrador da


Comissão de Transportes aposentado mata assaltantes." Um
retrato dele também. E as entrevistas na televisão?

Precisava mesmo mijar. Era a cerveja. Empurrou de novo a


trava e devolveu a arma ao coldre. Virando-se para a parede,
abriu o fecho ecler da braguilha e, de pernas bem abertas,
deixou sair. Que alívio!

— Você está aí, Döring? — Baixinho, veio de cima a voz de


Reichmeider.
- 68 -

— Sim! — respondeu erguendo o olhar para as pranchas.


— O que está fazendo aí em cima?

— É que fica mais fácil andar por aqui. Embaixo, há


porcarias de toda espécie. Dentro de um minuto estarei com
você. Fique aí. A luz acabou e não vou conseguir encontrá-lo
se você se mexer.

— Chegou a avistá-los?

Não veio resposta. Continuou mijando, olhando por uma


fresta entre as portas desbotadas. Será que Reichmeider
conseguiria descer direito sem luz? E teria avistado Springer e
o outro, ou ainda estaria a caminho? Depressa, Reichmeider!

Ressoou um tamborilar acima. Ergueu novamente o olhar.


Era cascalho ou qualquer outra coisa caindo sobre as tábuas.
Saltaram sobre ele, com um trovão atrás. Atônito, dolorido,
morreu rapidamente.

Quando falara pela última vez em Heidelberg — fora em


1970 — o auditório tinha sido uma magnífica catedral antiga
de carvalho enegrecido, abarrotada além da sua capacidade de
mil lugares. Desta vez era uma nova concha acústica cor de
areia, para quinhentas pessoas, muito moderna e bem
planejada, com as duas últimas fileiras vazias. A voz corria
muito mais fácil, é claro, era como falar numa espaçosa sala
de estar de alguma residência. Um verdadeiro contato cara a
cara com todos aqueles jovens inteligentes. Mas ainda assim...

Bem, a coisa ia muito bem, como em todas as noites até


então. As plateias alemãs, as jovens, eram sempre as
melhores. Verdadeiramente interessadas, atentas,
preocupadas com o passado. Levavam-no a dar o melhor de si,
por estar, mais uma vez, diante de uma sensibilidade
autêntica, ao passo que as plateias americanas e inglesas,
menos envolvidas, permitiam-lhe cair em mecânica elocução
de trechos decorados. Falar em alemão também fazia
- 69 -

diferença, é claro — a liberdade de usar naturalmente as


palavras ao invés de enfrentar os "was" e "were" (e mais
"ejacular" e "ejetar"; está me arranjando mesmo os recortes,
Sydney?).

Voltou a concentrar-se no que dizia.

— No princípio eu queria apenas vingança — dirigiu-se a


uma garota que assistia, atenta, na segunda fila. — Vingança
pela morte de meus pais e minhas irmãs, vingança pelos anos
que passei nos campos de concentração — dirigiu-se às filas
mais distantes —, vingança por todas as mortes, pelos anos
que todos passaram. Por que teria eu sido poupado, senão
para exigir vingança? — Fez uma pausa. — Viena certamente
não precisava de outro compositor. — Sobreveio a ondinha
costumeira de riso aliviado. Sorriu em acompanhamento, e
escolheu um rapaz de cabelos castanhos na extrema direita
(levava um pouco o jeito de Barry Koehler). — O problema com
relação à vingança — dirigiu-se a ele, procurando não pensar
em Barry — é que, primeiro, não se consegue obtê-la,
verdadeiramente — desviou o olhar do rapaz com o jeito de
Barry, abrangendo a plateia toda —, e, segundo, ainda que o
conseguíssemos, adiantaria alguma coisa? — Meneou a cabeça.
— Não. Por isso desejo agora alguma coisa melhor que
vingança, quase tão difícil de alcançar. — Voltou-se para a
garota da segunda fila. — Desejo a recordação. — E
abrangendo a todos: — Recordação. É difícil de conseguir
porque a vida continua. Todos os anos temos novos horrores;
um Vietnam, atividades terroristas no Oriente Médio e na
Irlanda, assassinatos — (noventa e quatro homens de sessenta
e cinco anos?) — e a cada ano — prosseguiu — o horror dos
horrores, o Holocausto, torna-se mais distante, um pouco
menos horrível. Mas os filósofos nos preveniram: se
esquecermos o passado, estaremos condenados a repeti-lo. E
por isso é que é importante capturar um Eichmann e um
Mengele, a fim de que eles possam... — Ouviu o que dissera e
- 70 -

perturbou-se. — Um Stangl, quero dizer — atrapalhou-se. —


Desculpem-me, acabo de ser traído por um velho sonho.

Riram um pouco, mas não adiantou, rompera-se a


estrutura; tentou recompô-la.

— E por isso é que é importante capturar um Eichmann e


um Stangl — continuou. — A fim de que sejam submetidos a
julgamento — não necessariamente para serem condenados,
não, mas a fim de que sejam ouvidas testemunhas que façam
lembrar ao mundo, e especialmente a vocês, ainda não
nascidos quando essas coisas aconteceram, que homens em
nada diferentes por fora de vocês e de mim são capazes de
cometer, em determinadas circunstâncias, as mais bárbaras e
desumanas atrocidades. Afim de que você — apontou — e você
— e você — e você — providenciem para que tais
circunstâncias jamais tenham possibilidades de ressurgir.

O fim. Inclinou a cabeça. O aplauso veio em dilúvio sobre


ele. Recuou um passo da tribuna e, apoiado em uma das mãos,
agradeceu. Esperou, respirando forte, em seguida se adiantou,
agarrou a tribuna de novo com as duas mãos e enfrentou o
aplauso, que esmoreceu até o quase silêncio.

— Obrigado — proferiu. — Se tiverem perguntas a fazer


agora, vou me esforçar ao máximo para respondê-las. — Olhou
em todas as direções, escolheu e apontou.

Traunsteiner, inclinando-se sobre o volante agarrado com


firmeza, disparou seu carro a toda velocidade em direção a
um homem de cabelos grisalhos que caminhava, de costas
para ele, pelo ressalto da estrada. Agigantando-se sob o
explosivo fulgor dos faróis, o homem voltou-se, ergueu uma
revista dobrada até acima dos olhos, deu um passo para trás.
O para-choque do carro atirou-o para cima e para longe.
Reprimindo um sorriso, Traunsteiner guinou o carro em cheio
para cima da calçada, quase de encontro a um aviso de
cruzamento em letras brancas num fundo azul. Freando uma e
outra vez, girou o carro, guinchando, para uma estrada mais
larga, com um marco assinalando "Esbjerg — 14 km".
- 71 -

— Principalmente através de contribuições — anunciou


Liebermann — de judeus e outras pessoas interessadas de
todo o mundo. E também mediante o que recebo escrevendo e
fazendo conferências como esta. — Apontou para uma mão na
fila do fundo. Uma moça levantou-se, rosada e rechonchuda.
Começou a formular o que ele viu que ia ser a pergunta sobre
Frieda Maloney.

— Reconheço — disse a moça — que seja importante


submeter a julgamento as pessoas-chave, as que ocuparam
posições elevadas. Mas não estará o senhor ainda motivado
pela vingança num caso como o de Frieda Maloney, guarda
comum que veio arrastada para cá, após ser cidadã americana
durante tantos anos? O que ela fez durante a guerra não terá
sido compensado pelo que fez a partir de então? Ela foi uma
cidadã muito útil lá. Ensinando, etc.

A moça sentou-se.

Ele acenou com a cabeça e permaneceu silencioso por um


momento, alisando o bigode, meditativo, como se nunca lhe
tivessem feito aquela pergunta antes. Em seguida, disse:

— Depreendo de sua pergunta que uma mulher professora


de jardim de infância que descobria lares para crianças
desvalidas, boa dona-de-casa, bondosa para cães vira-latas,
possa igualmente ter sido — a mesmíssima mulher — guarda
"comum" de campo de concentração, culpada, talvez — seu
julgamento, quando finalmente acontecer, nos dirá —, de
homicídio em massa. Perguntou-lhe agora: você estaria a par
dessa possibilidade, de certo modo surpreendente, se Frieda
Altschul Maloney não fosse encontrada e extraditada? Creio
que não, e não julgo que isso constitua uma possibilidade sem
importância, que possa prescindir do seu conhecimento. Nem
do conhecimento do seu governo.

Olhou em torno, para as mãos levantadas, inclusive a do


rapaz com o jeito de Barry. Desviou o olhar dele (agora não,
Barry, estou ocupado) e apontou para um rapaz louro, de
aspecto sagaz, bem no centro. ("Há noventa e quatro deles",
- 72 -

insistia a voz de Barry no telefone, "e são todos funcionários


públicos de sessenta e cinco anos. Sentiu a barra?")

Uma nova pergunta lhe era dirigida.

— Mas Frieda Maloney nem sequer foi indiciada — estava


dizendo o rapaz louro. — Estará o nosso governo realmente
tão interessado em perseguir criminosos nazistas? Estará
qualquer governo do mundo, mesmo ode Israel? Não se terá
verificado um declínio de interesse, e não será essa uma das
razões por que o senhor não conseguiu reabrir o seu Cen tro
de Informações?

Quem lhe mandou escolher os de aspecto sagaz?

— Primeiro que tudo — informou ele —, o Centro


encontra-se temporariamente instalado em dependências
menores, mas ainda está aberto. Há gente trabalhando, cartas
chegam, consultas saem. Como disse antes, somos financiados
por pessoas isoladas, de modo algum dependentes de
qualquer governo. Em segundo lugar, embora verdadeiro que
os promotores alemães e austríacos não sejam mais tão...
receptivos quanto outrora, e Israel tenha outros problemas
mais prementes, a causa da justiça ainda não foi abandonada.
Sei de fonte limpa que Frieda Maloney será indiciada em
janeiro ou fevereiro, e levada a julgamento logo depois. As
testemunhas foram encontradas, tarefa difícil e demorada, da
qual o Centro participou.

Olhou novamente as mãos levantadas, jovens rostos


inteligentes — e de repente teve a noção exata do que tinha
diante dos olhos. Uma mina de ouro, por Deus! Bem na frente
dele!

Ali, naquela luminosa concha acústica, achavam-se quase


quinhentos dos mais inteligentes jovens da Alemanha, a nata
de sua geração, e ele tentava resolver a coisa sozinho, um
velho tolo, de cérebro cansado. Bom Deus!

Consultá-los? Loucura!

Certamente apontara para alguém, a pergunta sobre o


neonazismo fora formulada.
- 73 -

— Dois fatores são necessários para o ressurgimento do


nazismo — enumerou rapidamente: — um agravamento das
condições sociais até se aproximarem das existentes nos
primeiros anos 30, e o aparecimento de um líder semelhante a
Hitler. Se esses dois fatores viessem a surgir, os grupos
neonazistas do mundo inteiro se tornariam evidentemente um
foco de perigo, mas, no momento, não, não me sinto
especialmente alarmado. — Mãos se levantaram subitamente,
mas ele ergueu a sua, detendo-as. — Um minuto apenas, por
favor — solicitou. — Gostaria de interromper as perguntas por
um instante e formular uma, ao invés de responder.

As mãos caíram. Os jovens rostos inteligentes olharam -


no, na expectativa.

Loucura! Mas como não tentar utilizar um poderio mental


desses?

Agarrou com as duas mãos a tribuna, respirou, refletiu.

— Quero — dirigiu-se àquela concha repleta de tão


magníficas pérolas — pedir emprestados seus cérebros para
resolver um problema. Um problema hipotético que um jovem
amigo me propôs. Estou muito ansioso para resolvê-lo, tanto
assim que me sinto disposto a trapacear um pouco e pedir
auxílio. — Risadinhas. — E quem melhor me poderia ajudar
senão os estudantes desta grande universidade e os seus
amigos?

Tirou as mãos da tribuna e aprumou-se, olhando-os


despreocupadamente — um homem propondo um problema
hipotético e não um problema real.

— Já lhes falei acerca da Organização dos Camaradas, da


América do Sul — disse ele —, e acerca do Dr. Mengele. Eis o
problema apresentado pelo meu amigo. A Organização e o Dr.
Mengele decidiram matar grande número de homens em
diversos países da Europa e da América do Norte. Noventa e
quatro homens, para ser exato, e todos de sessenta e cinco
anos e funcionários públicos. Os assassinatos deverão ocorrer
num período de dois anos e meio, e existe uma motivação
política, uma motivação nazista. Qual é? Poderão encontrar
- 74 -

uma resposta para mim? Quem são esses homens? Por que
suas mortes são desejáveis para a Organização dos Camaradas
e para o Dr. Mengele?

O auditório de jovens ficou perplexo. Um zumbido de


cochichos cresceu no meio deles. Uma tosse irrompeu, ecoada
por outra.

Assomou à tribuna, despreocupadamente.

— Não estou brincando com vocês — declarou. — Este


problema me foi proposto. Como um exercício de lógica.
Podem me ajudar?

Inclinaram-se uns para os outros, e o zumbido de


cochichos intensificou-se, transformou-se em zumbido de
ideias aventadas.

— Noventa e quatro homens — proferiu ele


vagarosamente, à guisa de orientação. — De sessenta e cinco
anos. Funcionários públicos. De vários países. Dentro de dois
anos e meio.

Uma mão levantou-se, e mais outra.

Esperançoso, escolheu a primeira — algumas fileiras atrás


do meio, um pouco à esquerda.

— Sim?

Um rapaz de suéter azul ergueu-se.

— Os homens detêm posições de responsabilidade —


disse, com uma voz inesperadamente aguda. — Suas mortes
acarretarão direta ou indiretamente o deterioramento das
condições sociais a que o senhor acabou de se referir, criando
clima mais favorável a um ressurgimento do nazismo.

Ele meneou a cabeça.

— Não, creio que não. Seria possível o prosseguimento de


assassinatos, durante meses, de homens altamente colocados,
para não falar em dois anos e meio, sem atrair atenção e
provocar investigações? Não, os homens têm de pertencer ao
segundo escalão de funcionários. E, aos sessenta e cinco anos,
é mais do que provável, de qualquer modo, que estejam se
- 75 -

aposentando; portanto, removê-los de seus cargos não seria


absolutamente o objetivo de tais assassinatos.

— Por que matá-los, afinal de contas? — exclamou uma


voz, vinda dos fundos, à direita. — Não tardarão a morrer
naturalmente!

Ele concordou com um aceno.

— Está certo. Não tardarão a morrer naturalmente.


Portanto, por que matá-los, afinal de contas? É isso que estou
lhes perguntando.

Apontou a segunda mão que se levantara, no fundo, ao


centro. Outras mãos estavam agora erguidas.

Um rapaz alto levantou-se, dizendo: — São simpatizantes


nazistas sem famílias, que deixaram todas as suas economias
para grupos nazistas. Trata-se de assassinato por dinheiro.
Talvez necessitem de fundos agora, e não daqui a cinco ou
dez anos.

— Isso é possível — acedeu —, embora pareça improvável.


Como já disse, a Organização dos Camaradas dispõe de
enorme fortuna trazida clandestinamente da Europa antes do
fim da guerra. — Puxou a caneta do bolso de cima e fez sair
sua ponta com um estalido. — Ainda assim, é uma
possibilidade. — Virou uma de suas fichas de notas sobre a
tribuna, e no verso escreveu: "Dinheiro?" Ergueu a caneta e
apontou para a direita.

Uma moça de óculos e compridos cabelos castanhos


levantou-se.

— Parece-me muito mais provável — disse ela — que os


homens sejam antinazistas do que pró-nazistas, e obviamente
existe algum tipo de ligação entre eles. Poderiam ser membros
de algum grupo internacional judaico que de algum modo
ameace a Organização dos Camaradas?

— Acho que eu teria conhecimento deste grupo —


asseverou ele —, e jamais ouvi falar de grupo algum, de
qualquer espécie, cujos membros tenham todos sessenta e
cinco anos.
- 76 -

A moça permaneceu de pé.

— Talvez o fato de eles terem sessenta e cinco anos não


seja o importante — contrapôs. — A... ligação poderia ter sido
estabelecida quando eram mais jovens, quando todos
tinham... trinta ou vinte anos. Talvez estivessem envolvidos
em determinada ação militar, durante a guerra, e matá-los
seria ato de vingança.

— Alguns são alemães — disse ele —, outros ingleses,


americanos. Também há suecos, que eram neutros. Mas...

— Uma patrulha das Nações Unidas! — exclamou alguém.

— Seriam demasiado idosos — respondeu ele, e olhou


novamente para a moça de cabelos compridos, que se havia
sentado. — Mas é um ponto crítico — ponderou — o fato de
sessenta e cinco anos poder não ser a idade importante; é
claro que durante toda a vida eles tiveram as mesmas idades,
portanto isso dá margem a outras possibilidades. Obrigado.

Escreveu: "Ligação numa idade anterior?", e aí alguém


exclamou:

— São naturais desses países ou apenas vivem lá?

Ele ergueu os olhos.

— Outro ponto bom — disse.

— Não sei. Talvez originalmente fossem da mesma


nacionalidade. — "Onde nasceram?", escreveu. — Isto está
bom, continuem assim! — Apontou.

Um rapaz sentado de pernas cruzadas na primeira fila


aventou:

— São pessoas que ajudam o senhor, importantes


colaboradores seus.

— Está me lisonjeando. Não sou tão importante assim,


como também não disponho de noventa e quatro
colaboradores. De qualquer idade. — Apontou outro lugar.

O rapaz com o jeito de Barry disse:


— Quando começa o período de dois anos e meio, senhor?
- 77 -

— Começou há dois dias.


— Então termina na primavera de 1977. Há algum
acontecimento político importante marcado para ocorrer
então? Talvez os assassinatos sejam anunciados como
demonstração de força, ou aviso.
— Mas por que especialmente tais homens? Contudo,
temos outro ponto interessante. Alguém sabe de um
acontecimento importante, político ou não, marcado para a
primavera de 1977? — Olhou em torno.
Silêncio, menear de cabeças.
— Minha formatura! — gritou alguém. Risadas e aplausos.
"Primavera de 77?", escreveu ele e, sorrindo, apontou.
O rapaz de suéter azul novamente, com a sua voz aguda,
falou:
— Os homens não estão altamente colocados, mas sim
seus filhos, que têm seus quarenta e tantos anos. E os homens
serão mortos a fim de que seus filhos tenham de abandonar
trabalhos importantes para assistir ao enterro.
Zombarias, vaias e assobios de menosprezo.

— Um tanto forçado — declarou ele —, mas mesmo assim


contém o germe de alguma coisa em que pensar. Serão os
homens aparentados com gente importante, ou estarão a eles
associados de alguma forma? — Escreveu: "Parentes?
Amigos?", e apontou.

O louro de aspecto sagaz levantou-se. Sorrindo, indagou:

— Herr Liebermann, será que este problema é mesmo


hipotético?

Jamais apontar de novo para este rapaz. O silêncio


expandiu-se pelo auditório.

— Claro que é — respondeu.

— Então deve pedir mais informações ao seu amigo —


retrucou o rapaz de aspecto sagaz. — Nem mesmo os maiores
cérebros de Heidelberg poderão resolver este problema, se
não lhes derem, ao menos, algum fato pertinente acerca dos
- 78 -

noventa e quatro homens. Com as informações de que


dispomos presentemente, só nos resta especular às cegas.

— Tem razão — disse ele —, são necessárias mais


informações. Mas a especulação ajuda, sugere possibilidades.
— Olhou em torno. — Alguém tem mais especulações?

Uma mão levantou-se ao fundo, à esquerda. Ele apontou


para ela.

Um homem idoso ergueu-se, de cabelos brancos e de


aspecto frágil — membro da faculdade ou o avô de alguém.
Apoiando-se no espaldar do assento à sua frente, proferiu em
voz firme e sobranceira: — Nenhuma das sugestões feitas até
agora assinalou a presença do Dr. Mengele no problema. Por
que haveria ele de surgir se os assassinatos são apenas de
ordem política, do tipo comum, que a Organização dos
Camaradas poderia planejar sem a sua presença? Ele surgirá, é
claro, devido à sua formação de médico, e portanto sugiro
uma perspectiva médica para os assassinatos. Eles poderiam,
por exemplo, constituir a experiência dissimulada de novas
maneiras de matar, e nesse caso os homens teriam sido
escolhidos precisamente porque são velhos, sem importância,
não constituindo ameaça para o nazismo. Um programa de
experiências explicaria igualmente o extenso período de
tempo. Na primavera de 1977 os verdadeiros assassinatos
começariam. — E ele sentou-se.

Liebermann ficou olhando para ele por um momento e, a


seguir, disse: — Obrigado, senhor. — E dirigiu-se ao auditório
inteiro: — Espero que para sorte dos senhores este cavalheiro
seja um de seus professores.

— E é — asseguraram-lhe várias vozes contundentemente,


e o nome de Geirasch foi repetido.

"POR QUE M.???", escreveu e ergueu de novo os olhos na


direção do homem.

— Não creio que um programa de experiências se limitaria


a funcionários públicos — disse ele —, ou seria cumprido
nesta parte do mundo, ao invés de na América do Sul, mas o
senhor certamente está certo quanto a haver uma razão
- 79 -

específica para a presença do Dr. Mengele. Poderá alguém


lembrar-se de alguma? — Olhou em torno.

Os jovens permaneceram calados.

— Uma perspectiva médica para os noventa e quatro


assassinatos? — Olhou a moça de cabelos compridos. Ela
meneou a cabeça.

O rapaz com o jeito de Barry balançou a sua, e também o


rapaz de suéter azul.

Ele hesitou — e olhou o rapaz louro de aspecto sagaz, que


lhe sorriu e também sacudiu a cabeça.

Olhou para a ficha sobre a tribuna:

"Dinheiro?

Ligação numa idade anterior?

Onde nasceram? Primavera de 77?

Parentes? Amigos?

POR QUEM.???"

Olhou a plateia.

— Obrigado — disse. — Vocês não resolveram o problema,


mas me deram sugestões que talvez me levem à solução, por
isso têm a minha gratidão. Voltaremos agora às suas
perguntas.

Mãos levantaram-se. Ele apontou.

Uma moça junto do rapaz com o jeito de Barry levantou-


se e indagou:

— Herr Liebermann, qual a sua opinião sobre Moshe Gorin


e os Defensores Judaicos?

— Nunca estive com o Rabino Gorin, por isso não tenho


opinião pessoal a seu respeito — respondeu automaticamente.
— Quanto aos Jovens Defensores Judaicos, se estiverem
defendendo, ótimo. Mas se, conforme tem constado às vezes,
estiverem atacando, então não será tão bom. Camisas pardas
nunca dão certo, não importa quem as vista.
- 80 -

E Horst Hessen, com os seus cabelos prateados, suando ao


sol brilhante, levou os grandes binóculos aos olhos azuis e
observou um homem de peito nu, de chapéu de sol branco,
dirigindo um cortador de grama a motor, vagarosamente,
sobre a relva de um verde brilhante. Num mastro estava
hasteada uma bandeira americana. A casa atrás era uma caixa
de sequoia e vidro, bem-arrumada e de um andar só. Um tiro,
e uma nuvem escura, onde dançava o alaranjado, substituiu o
homem e o cortador de grama; um som surdo de explosão veio
bruscamente de longe.

Mengele mudara o retrato do Führer e todas as


fotografias menores e recordações dele para a parede oeste,
por cima do sofá — o que significou mudar seus diplomas,
comendas e fotografias de família para quaisquer espaços que
pôde encontrar, entre as duas janelas externas da parte sul e
em volta da janela de observação do laboratório e da porta na
parede leste. Providenciara então que a parede norte, toda
limpa, recebesse uma moldura de madeira de sete centímetros
de largura, à altura da metade, acima da qual fora tirado o
papel de parede cinzento-claro. Duas mãos de tinta branca
tinham sido passadas, a primeira fosca e a segunda
semilustrosa. A moldura fora pintada de cinzento-claro.
Quando toda a tinta secou inteiramente, ele mandou vir de
avião, do Rio, um pintor de cartazes.

O pintor de cartazes fazia linhas finas magnificamente


retas e bonitas letras, mas nos seus primeiros traços leves, a
lápis, revelou inclinação para copiar errado, e/ou colocar fora
do lugar sinais de pronúncia, além de obedecer à sua maneira
brasileira de soletrar. Durante quatro dias, pois, Mengele
- 81 -

sentara-se à sua escrivaninha, observando, ensinado,


advertindo. Aos poucos, foi tendo aversão ao pintor de
cartazes, e por volta do segundo dia aceitava de bom grado a
ideia de que o beócio ia ser atirado do avião.

Quando o serviço terminou, e a mesa comprida, com as


suas estantes de jornais arrumadas, foi posta no lugar junto à
parede, Mengele pôde recostar-se na sua cadeira de aço e
couro e contemplar o quadro que imaginara. Os noventa e
quatro nomes, cada um com o seu país, data e quadradinho ao
lado, como para as eleições, foram dispostos em três colunas,
a do meio necessariamente contendo um nome a mais que as
duas de fora (uma pequena contrariedade, mas o que poderia
ser feito a esta altura?).

Ali estavam todos eles, de "1, Döring — Deutschland —


16/10/74 " a "94. Ahearn — Kanada — 23/4/77 ". Como
ansiava por preencher cada um desses quadradinhos! Ele
próprio faria isso, claro, com tinta vermelha ou preta, ainda
não decidira qual. Talvez tentasse desenhar cruzes, e, se as
primeiras não saíssem uniformes, aí então trataria de cobrir
os quadradinhos.

Girou na cadeira e sorriu para o Führer. "Não se importa


de ser afastado para o lado por causa disto, não é mesmo,
meu Führer? Claro que não. Como poderia?"

Por ora, infelizmente, nada restava senão esperar até 1 .°


de novembro, quando os chamados chegariam à sede.

Estivera trabalhando no laboratório, tentando, sem muito


entusiasmo, transplantar cromossomos em núcleos de células
de rãs.

Certo dia, voara até Assunção. Visitou seu barbeiro e uma


prostituta, comprou um relógio digital, comeu um bom bife no
La Calandria, com Franz Schiff.

E agora, finalmente, chegara o dia — bonito, de uma


luminosidade tão ofuscante que tivera de cerrar as cortinas do
escritório. O rádio estava ligado, sintonizado para a
frequência da sede, com os fones de prontidão ao lado de um
bloco de memorando e uma caneta. Num canto do tampo de
- 82 -

vidro da escrivaninha estava estendida uma toalha de linho


branco. Sobre ela, e mordem cirúrgica, uma latinha fechada de
esmalte vermelho, uma chave de parafuso, um pincel novo e
fino de cerdas curtas, uma placa de Petri descoberta e uma
lata de terebintina com tampa de atarraxar. A extremidade
esquerda da mesa comprida fora afastada da parede. Uma
escadinha fora colocada diante da primeira coluna de nomes e
países.

Resolveu então tentar as cruzes.

Pouco antes do meio-dia, quando começava a perder a


paciência, o zumbido de um avião chegou com crescente
intensidade através das cortinas. Era o zumbido do avião da
sede, o que significava notícias muito boas ou muito más. Saiu
apressado do escritório, passou pelo vestíbulo e chegou à
varanda, onde algumas crianças, filhas dos empregados,
estavam sentadas, partindo uma espécie de bolo achatado.
Passou por cima delas, deu a volta pelo lado da casa, em
direção aos fundos, e desceu uns degraus. O avião acabava de
baixar por trás da copa das árvores. Protegendo os olhos com
as mãos, precipitou-se pelo quintal — um empregado que
descansava na enxada começou a manejá-la — e passou pela
casa dos empregados, pelos barracões e pelo galpão do
gerador. Correndo com passos curtos, entrou pela trilha
verdejante aberta por entre a densa folhagem da mata. Ouviu
o avião aterrissar. Passou para uma marcha rápida, enfiou a
fralda de trás da camisa para dentro das calças, tirou o lenç o
e limpou a testa e o rosto. Por que o avião e não o rádio?

Alguma coisa tinha dado errado; tinha certeza.


Liebermann? Será que aquele lixo conseguira de algum modo
pôr fim a tudo? Em caso afirmativo, ele próprio iria
pessoalmente a Viena descobri-lo e dar cabo dele. O que mais
lhe restaria para fazer da vida?

Atingiu a beira da faixa de pouso gramada a tempo de ver


o bimotor vermelho e branco rolando vagarosamente para
perto do seu — menor, prateado e preto. Dois guardas
estavam ali com o piloto, que lhe acenou. Inclinou a cabeça
em saudação. Outro guarda estava do outro lado da pista,
- 83 -

junto à cerca gradeada, enfiando alguma coisa através dela,


tentando atrair um animal. Era contra o regulamento, mas não
o repreendeu. Observou a porta do avião vermelho e branco,
agora parado, as hélices morrendo. Rezou baixinho.

A porta foi aberta e um dos guardas apressou-se a ajudar


um homem alto, de terno azul-claro, a descer os degraus.

Coronel Seibert! Tinham de ser más notícias.

Adiantou-se vagarosamente.

O coronel avistou-o, acenou — aparentemente alegre — e


veio em sua direção. Trazia uma sacola vermelha.

Mengele andou mais depressa.

— Notícias? — exclamou.

O coronel acenou afirmativamente, sorrindo.

— Sim, boas notícias!

Graças a Deus! Acelerou ainda mais o passo.

— Estava preocupado.

Apertaram-se as mãos. O coronel, com o seu belo e


enérgico rosto nórdico, sorriu e disse:

— Todos os "vendedores" deram notícias. Os "fregueses"


de outubro foram visitados. Quatro nas datas marcadas, dois
um dia antes, e um dia depois.

Mengele apertou o peito e respirou.

— Graças a Deus! Estava preocupado com a chegada do


avião.

— Senti vontade de dar um voo — retorquiu o coronel. —


O dia está tão bonito!

Caminharam juntos em direção à trilha.

Todos os sete? — Todos os sete. Sem obstáculo algum. —


O coronel estendeu a sacola. — Isto é para você. Um
misterioso fardo da parte de Ostreicher.

— Ah — fez Mengele, apanhando-o. — Obrigado. Não é


mistério algum. Pedi-lhe que me arranjasse um pouco de seda.
- 84 -

Uma de minhas empregadas vai me fazer camisas. Você fica


para o almoço?

— Não posso — respondeu o coronel. — Tenho um ensaio


para o casamento da minha neta às três horas. Sabia que ela
vai se casar com o neto de Ernst Robbling? Amanhã. Mas
aceito um café e conversaremos um pouco.

— Espere até ver meu quadro.

— Quadro?

— Você vai ver.

O coronel viu e ficou encantado.

— Lindo! Uma verdadeira obra de arte! Não foi você quem


fez, pois não?

Pousando a sacola junto à escrivaninha, Mengele


respondeu alegremente:

— Céus, não, pois se nem estou certo de saber desenhar


direito as cruzes! Mandei vir um homem de avião do Rio.

O coronel voltou-se e fitou-o, surpreso e interrogativo.

— Não se preocupe — tornou Mengele, erguendo


tranquilizadoramente a mão —, ele teve um acidente na volta.

— Grave, espero — aventou o coronel.

— Muito.

Trouxeram café. O coronel examinou algumas fotografias


do Führer e em seguida sentaram-se no sofá e bebericaram em
pequenas xícaras douradas e brancas de fumegante negror.

— Todos eles instalaram-se em apartamentos — informou


o coronel —, exceto Hessen, que comprou um reboque de
acampar. Disse-lhe para dar notícias uma vez por semana,
logo que surgisse alguma coisa. Ele utilizará o reboque
somente até a chegada do mau tempo.

— Preciso das datas em que os homens foram mortos —


disse Mengele. — Para os meus registros.
- 85 -

— Certamente. — O coronel pousou a xícara e o pires


sobre a mesa de café. — Tenho tudo batido a máquina. —
Enfiou a mão dentro do casaco.

Mengele pousou a xícara e o pires e pegou a folha dobrada


de papel fino que o coronel lhe entregou. Abriu-a, afastou-a de
si, apertando os olhos para as letras datilografadas. Sorrindo,
meneou a cabeça.

— Quatro dentre sete nas datas marcadas! — maravilhou-


se. — Não é sensacional?

— Eles são bons — disse o coronel. — Schwimmer e Mundt


já têm os seus próximos preparados. Farnbach precisou de
algumas explicações. Ele é um tanto perguntador.

— Eu sei — retorquiu Mengele. — Deu-me trabalho quando


lhes transmiti as instruções.

— Não creio que vá dar mais — tornou o coronel. —


Passei-lhe uma boa espinafração.

— Fez bem. — Com um agradável barulhinho crepitando,


Mengele dobrou de novo o papel e o deixou no canto da mesa
de café, arrumando-o cuidadosamente na quina. Olhou para o
quadro e imaginou as sete cruzes vermelhas que ia pintar
quando o coronel se retirasse. Ergueu a xícara, na esperança
de ver seguido seu exemplo.

— O Coronel Rudel telefonou-me ontem pela manhã —


disse o coronel. — Está na Costa Brava.

— Ah, sim? — Mengele verificou de imediato que o prazer


de voar não fora a única razão para a vinda do coronel. Qual
seria? — Como está passando ele? — indagou, e sorveu seu
café.

— Esplendidamente — respondeu o coronel. — Mas um


pouco preocupado. Recebeu uma carta de Günter Wenzler,
avisando-o de que Yakov Liebermann talvez esteja na pista de
uma de nossas operações. Liebermann falou em Heidelberg há
duas semanas. Fez à plateia uma "pergunta hipotética"
bastante inusitada. Um amigo de Wenzler, cuja filha estava lá,
disse-lhe que convinha relatar o fato, por via das dúvidas.
- 86 -

— O que Liebermann perguntou exatamente?

O coronel olhou para Mengele por um momento, e disse:

— Por que nós — você e nós — haveríamos de querer


matar noventa e quatro funcionários públicos de sessenta e
cinco anos. Uma "pergunta hipotética".

Mengele encolheu os ombros.

— Então é óbvio que ele não está a par — concluiu. —


Tenho certeza de que ninguém deu a resposta certa.

— Rudel também tem certeza — asseverou o coronel —,


mas gostaria de saber como Liebermann surgiu com a
pergunta certa. Você não parece muito surpreendido.

Mengele sorveu seu café e falou despreocupadamente.

— O americano não estava ouvindo a fita quando o


encontramos. Falava com Liebermann. — Pousou a xícara e
sorriu para o coronel. — Estou certo de que você apurou isso
na companhia telefônica ontem à tarde.

O coronel suspirou e inclinou-se na direção de Mengele.

— Por que não nos disse?

— Para ser franco — confessou Mengele —, temi que vocês


adiassem a operação, no caso de Liebermann estar
investigando.

— Tem razão, é exatamente o que haveríamos de querer —


assentiu o coronel. — Três ou quatro meses... seria assim tão
terrível?

— Poderia modificar completamente os resultados.


Acredite-me, coronel. Pergunte a qualquer psicólogo.

— Então deixaríamos de lado esses homens e cuidaríamos


dos outros!

— Fazendo cair em vinte por cento o resultado? Há


dezoito homens nos primeiros quatro meses.

— E não acha que reduziu mais o resultado dessa


maneira? — insistiu o coronel. — Liebermann estará falando
apenas a estudantes? Os homens, nossos homens, poderiam
- 87 -

ser presos amanhã! E o resultado reduzido em noventa e cinco


por cento!

— Coronel, por favor — apaziguou Mengele.

— Supondo, é claro, que haja um resultado. Até agora


temos apenas sua palavra quanto a isso, você sabe!

Mengele, sentado em silêncio, respirou profundamente. O


coronel ergueu sua xícara, olhou-a fixamente, e pousou-a de
novo.

Mengele suspirou.

— Haverá exatamente o resultado que prometi —


assegurou. — Coronel, pare e pense um momento. Liebermann
se preocuparia em fazer perguntas a estudantes se alguém
mais o estivesse ouvindo? Os homens partiram, não?
Cumprindo suas missões? Claro que Liebermann falou com
outros — talvez com todos os promotores e policiais da
Europa! Mas evidentemente não lhe deram atenção. O que
mais poderiam fazer? — um velho nazífobo como ele
procurando-os com uma história que há de parecer louca, uma
vez que ele não pode fornecer o motivo que a justifique. Foi
com isso que contei quando tomei minha decisão.

— Não cabia a você tomar essa decisão — retrucou o


coronel. — Você submeteu seis de nossos homens a muito
mais perigo do que constou de nosso pacto.

— E assim fazendo ficou preservado seu enorme


investimento, para não falar no destino da raça. — Mengele
levantou-se e foi até a escrivaninha, tirando um cigarro de
uma salva de bronze cheia deles. — Seja como for, são águas
passadas — disse.

O coronel sorveu o café, olhando para as costas de


Mengele. Baixou a xícara, anunciando:

— Rudel queria que eu mandasse chamar os homens hoje.

Mengele voltou-se, tirou o cigarro aceso dos lábios.

— Não acredito nisso — proferiu.

O coronel acenou com a cabeça.


- 88 -

— Ele leva suas responsabilidades de oficial muito a sério.

— Ele tem responsabilidades é como ariano!

— Certo, mas ele nunca esteve tão seguro quanto nós de


que o projeto daria resultado. Você sabe disso, Josef. Bom
Deus, quanto tempo para que o convencêssemos!

Mengele permaneceu calado; hostil, em expectativa.

— Disse-lhe praticamente o que você acaba de me dizer —


falou o coronel. — Se os homens deram notícias e tudo corre
bem, sem que Liebermann tenha podido interferir, então por
que não deixá-los em ação? Ele acabou concordando. Mas
Liebermann será vigiado de agora em diante — Mundt
encarregou-se disso — e, se houver qualquer sinal de que
esteja interferindo, então terá de ser tomada uma decisão:
matá-lo, o que só poderia complicar ainda mais as coisas, ou
então trazer os homens de volta.

— Faça isso e irá tudo por água abaixo — asseverou


Mengele. — Tudo o que consegui. Todo o dinheiro que você
gastou em pessoal, equipamento e distribuição de tarefas.
Como ele sequer ousaria pensar nisso? Eu enviaria seis outros
homens se os atuais fossem apanhados. E mais seis. E mais
seis!

— Concordo, Josef, concordo — acalmou o coronel. — E


gostaria muito que você tivesse voz ativa na decisão, se ela
viesse mesmo a ser tomada. Voz forte. Mas se Rudel souber
que você deixou os homens partirem sabendo que Liebermann
estava avisado... ele há de cortá-lo por completo da operação.
Você nem receberá os relatórios mensais. Por isso, prefiro não
lhe contar. Mas, antes, tenho de obter de você a garantia de
que não... tomará mais decisões sozinho.

— Acerca de quê? Não há mais decisões a tomar, a não ser


manter os homens em operação.

O coronel sorriu.

— Não duvido que você fosse capaz de pular sozinho num


avião e sair atrás de Liebermann.

Mengele tirou uma baforada do cigarro.


- 89 -

— Não seja ridículo — disse. — Sabe que eu não ousaria ir


à Europa. — Voltou-se para a escrivaninha e bateu a cinza
numa bandeja.

— Posso ter sua palavra — indagou o coronel — de que


não fará coisa alguma capaz de afetar a operação, sem
consultar a Organização?

— É claro que pode — disse Mengele. — Absoluta.

— Então direi a Rudel que é um mistério Liebermann saber


das coisas.

Mengele meneou, incrédulo, a cabeça.

— Não posso crer — asseverou — que esse velho idiota —


refiro-me a Rudel, não a Liebermann — seja capaz de
malbaratar tanto dinheiro, juntamente com o destino ariano,
só por amor à segurança de seis homens comuns.

— O dinheiro era apenas uma fração do que dispomos —


declarou o coronel. — Exageramos sua importância a fim de
que você mantivesse a noção dos gastos. Quanto ao destino
ariano... bem, como eu já disse, ele nunca acreditou de fato
que o projeto funcionasse. Acho que para ele cheira um pouco
a magia ou feitiçaria. Ele está longe de ser um homem com
mentalidade científica.

— Você seria louco se lhe confiasse a última decisão.

— Atravessaremos a ponte quando a atingirmos — disse o


coronel. — Se a atingirmos. Esperemos que Liebermann pare
de falar, mesmo a estudantes, e você desenhe noventa e
quatro cruzes nesse belo quadro. — Levantou-se. —
Acompanhe-me ao avião. — Esticou à frente uma rígida perna
de robô e deu uma passada pesada, cantarolando: — "Lá vem a
noiva" — uma passada! — "Toda de branco" — outra passada!
— Que amolação! Prefiro casamentos simples, e você? Mas
experimente dizer isso a uma mulher.

Mengele levou-o até o avião, acenou quando este decolou


e voltou para casa. Seu almoço estava à espera na sala de
jantar, por isso comeu-o, depois lavou as mãos na pia do
laboratório e foi para o escritório. Deu uma boa sacudidela na
- 90 -

lata de esmalte e utilizou a chave de parafuso para abrir -lhe a


tampa. Pôs os óculos e, segurando a lata de vermelho -vivo e o
novo pincel fino, subiu a escadinha.

Molhou as cerdas, raspou-as de encontro à borda da lata,


tomou uma respiração reanimadora e levou o pincel de ponta
vermelha até o quadradinho depois de "Döring — Deutschland
— 16/10/74".

A cruz saiu bastante boa: vermelha, reluzente sobre o


branco, de bordas retas e vistosa.

Retocou-a um pouco e pintou uma cruz igual no


quadradinho de "Horve — Dänemark — 18/10/74". E no de
"Guthrie — V. St. A. — 19/10/74".

Desceu da escadinha, recuou e estudou através dos óculos


as três cruzes.

Sim, elas serviriam. Subiu novamente na escadinha e


pintou cruzes nos quadradinhos de "Runsten — Schweden —
22/10/74"', "Rausenberger — Deutschland — 22/10/74"',
"Lyman — England — 24/10/74", e "Oste — Holland —
27/10/74".

Desceu e deu outra olhada.

Muito bem. Sete cruzes vermelhas.

Mas praticamente nenhum prazer.

Maldito Rudel! Maldito Seibert! Maldito Liebermann!


Malditos todos!

Pandemônio foi o que ele encontrou na volta. Glanzer, o


senhorio, que teria dado um magnífico anti-semita não fosse o
fato de ser judeu, berrava acusações a uma Ester pequenina e
trêmula, enquanto Max e uma moça aparvalhada, que
Liebermann nunca vira antes, empurravam a escrivaninha de
Lili para o canto junto à porta do quarto. Um pinga -pinga e
chape-chape muito musicais provinham das panelas e tigelas
dispostas por toda a parte, apanhando as gotas de água que
caíam das escuras manchas de umidade espalhadas pelo teto.
Uma louça quebrou na cozinha — Oh, droga! — (era Lili que
estava lá), e o telefone tocou.
- 91 -

— Ah-ah! — exclamou Glanzer, voltando-se e apontando.


— Aí vem a grande figura mundial que não se importa com a
propriedade do homem comum. Não arrie essa mala que o
chão não aguenta!

— Bem-vindo ao lar — proferiu Max, puxando por uma das


extremidades da escrivaninha.

Liebermann pousou a mala e a pasta. Por se tratar de uma


manhã de domingo, esperava encontrar o apartamento
sossegado e vazio.

— Que aconteceu?

— Que aconteceu? — Glanzer avançou em direção a ele,


espremendo-se por entre dois rebordos de escrivaninhas, o
rosto bulboso em brasa. — Eu lhe digo o que aconteceu!
Tivemos uma inundação no andar de cima, eis aí! Você põe
peso demais no assoalho, força os canos! Por isso eles
arrebentam! Acha que podem aguentar toda essa carga que
você tem aqui?

— Ah, os canos de cima arrebentam e eu levo a culpa? —


Tudo tem ligação! — berrou Glanzer. — O excesso de peso se
propaga! A casa inteira vai desabar por causa do excesso de
peso que você tem aqui!

— Yakov? — Ester estendeu o fone, tapando com a mão o


bocal. — Um homem chamado Von Palmen, de Mannheim.
Telefonou na semana passada. — Uma mecha de cabelos
grisalhos sobrava por baixo da sua peruca ruiva.

— Pegue o número que eu telefono para ele.

— Acabo de quebrar a tigela cor-de-rosa — disse Lili,


melancolicamente parada à porta da cozinha. — A favorita de
Hannah.

— Fora! — berrou Glanzer, mais alto do que Liebermann, e


espalhando mau hálito. — Todas essas escrivaninhas saem!
Isto aqui é um apartamento domiciliar, não um prédio
comercial! E também os fichários, fora!

— Fora você! — berrou Liebermann na mesma altura, a


melhor maneira de lidar com Glanzer, segundo descobrira. —
- 92 -

Vá consertar seu encanamento podre! Este é o meu mobiliário,


escrivaninhas e fichários! Será que o contrato menciona
apenas mesas e cadeiras? — Você verá no tribunal o que diz o
contrato!

— Você é que verá o que vai pagar por esse prejuízo com
a água! Saia! — Liebermann apontou o dedo para a porta.
Glanzer pestanejou várias vezes. Olhou para o chão ao seu
lado, como se ouvisse alguma coisa, olhou para Liebermann,
preocupado, acenou afirmativamente. — Não tenha dúvida de
que vou sair — murmurou. — Antes do desastre. — Levou seu
corpanzil na ponta dos pés em direção à porta aberta. — Para
mim, minha vida é mais preciosa que minha propriedade. —
Saiu na ponta dos pés e fechou cautelosamente a porta.

Liebermann bateu com os pés no chão e exclamou:

— Estou batendo com os pés no chão, Glanzer!

— Despenque por ele! — veio de longe.

— Yakov, não faça isso — disse Max, tocando no braço de


Liebermann. — Corremos esse risco.

Liebermann voltou-se. Olhou em volta, para cima, e


deixou escapar um pesaroso "Ai, ai, ai", mordendo o lábio
inferior.

Ester, esticando-se para limpar a parte de cima de um


fichário, revelou:

— Aparamos a água logo cedo, não é tão ruim assim.


Graças a Deus usei o forno de manhã. Fiz um bolo de nozes.
Quando vi o que estava acontecendo, chamei Max e Lili. É
somente aqui e na cozinha, os outros cômodos não foram
atingidos.

Max apresentou a moça acanhada, que tinha belos olhos


pardos. Era a sobrinha Alix, dele e de Lili, de Brighton,
Inglaterra, que passava as férias com eles. Liebermann
apertou-lhe a mão, agradeceu a ajuda, tirou o paletó e juntou -
se ao trabalho.

Enxugaram escrivaninhas e outras peças do mobiliário,


substituíram panelas e tigelas cheias por vazias, passaram
- 93 -

vassouras enroladas em toalhas nos lugares úmidos do teto


.Depois, sentados nas escrivaninhas e na parte disponível do
sofá, tomaram café com bolo. As goteiras tinham decrescido
até uma meia dúzia de pingos lentos. Liebermann falou um
pouco sobre a viagem, os velhos amigos que visitara, as
mudanças que notara. Alix, num alemão vacilante, respondeu
a perguntas de Ester sobre seu trabalho como desenhista
têxtil.

— Um bocado de contribuições, Yakov — anunciou Max,


acenando solenemente a cabeça grisalha.

— Sempre depois dos dias santos — atalhou Lili.

— Porém, mais neste ano do que no último, querida —


asseverou Max, e para Liebermann: — As pessoas já conhecem
o banco.

Liebermann concordou com a cabeça e olhou para Ester.

— Veio alguma coisa para mim da Reuters? Relatórios?


Recortes?

— Veio um envelope da Reuters, grande — disse Ester. —


Mas nele está escrito: "Pessoal".

— Relatórios? — indagou Max.

— Falei com Sydney Beynon antes de partir. Sobre a


história daquele rapaz, Koehler. Não havia nada sobre ele,
havia?

Eles sacudiram a cabeça.

Ester, levantando-se com a xícara e o pires sobre o prato,


observou:

— Não pode ser verdade, é loucura demais. — Foi para a


escrivaninha de Max. Lili levantou-se, recolhendo seus pratos,
mas Ester ordenou: — Deixe tudo que eu limpo. Vá mostrar a
cidade a Alix.

Liebermann agradeceu a Max, Lili e Alix, enquanto estes


punham os casacos. Beijou Lili, apertou as mãos de Alix e
desejou-lhe felizes férias, bateu nas costas de Max. Fechando
- 94 -

a porta depois que eles saíram, apanhou a mala e levou-a para


o quarto de dormir.

Foi ao banheiro, tomou suas pílulas das doze horas,


pendurou o outro terno no armário, trocou o paletó pelo
suéter e os sapatos por chinelos. De óculos na mão, voltou
para a sala de estar, apanhou a pasta e passou, rodeando e
espremendo-se por entre as escrivaninhas, em direção às
portas envidraçadas, para a sala de jantar.

— Vou ficar por aí de olho nas goteiras — disse Ester, da


porta da cozinha. — Quer que ligue para aquele homem de
Mannheim?

— Mais tarde — respondeu Liebermann, e foi para a sala


de jantar, seu escritório no momento.

A escrivaninha estava coberta de revistas e pilhas de


cartas abertas. Pousou a pasta, acendeu a lâmpada, pôs os
óculos e retirou uma pilha de cartas de cima de vários
envelopes grandes. Encontrou o envelope cinzento da Reuters,
endereçado a mão, recheado. Tantos assim?

Sentando-se, afastou tudo da sua frente, empurrou


montes de correspondência para os lados e para os fundos da
escrivaninha. O retrato de Hannah tombou, revistas
desabaram barulhentamente no chão.

Desamarrou o barbante em torno do envelope e rasgou a


fita adesiva da aba. Virando o envelope em cima do mata-
borrão verde, sacudiu, puxando para fora, um montão de
recortes de jornais e pedaços arrancados de teletipos. Vinte,
trinta, talvez mais, alguns deles fotocópias, a maioria retalhos
de jornal cortados rapidamente a tesoura. "Mann getötet in
Autounfall." "Padre morto por assaltantes." "Eldsvåda dödar
man, 64." Etiquetas azuis e amarelas, com datas e nomes dos
jornais, estavam coladas a alguns recortes. Uns bons quarenta
tópicos ao todo.

Olhou dentro do envelope e encontrou mais dois


pequenos recortes e uma folha de papel em branco que fora
enrolada em torno do maço.
- 95 -

"Mantenha-me informado", vinha escrito em caligrafia


nítida, no seu centro. "S. B." Datado de 30 de outubro.
Pôs de lado aquilo, juntamente com o envelope, e,
espalhando os recortes e os pedaços dos teletipos com as
duas mãos, ele os expôs a uma maior visibilidade, uma
verdadeira colcha de retalhos de francês, alemão, inglês,
sueco, holandês e idiomas indecifráveis, a não ser por uma
palavra ou outra. "Död" era certamente "tot" e "morto".
— Ester! — chamou.
— Sim?
— Os dicionários para traduzir sueco, holandês,
dinamarquês e norueguês. — Pegou um recorte em alemão:
uma explosão numa fábrica de produtos químicos em Solingen
matara um vigia noturno, August Mohr, de sessenta e cinco
anos. Não. Pôs de lado.
Apanhou-o de volta. Não poderia um funcionário público,
de baixo escalão, ter um outro emprego à noite? Pouco
provável para alguém de sessenta e cinco anos, mas possível.
A explosão ocorrera à uma da manhã, no dia anterior ao da
reportagem, portanto em 20 de outubro.
A luz de cima acendeu-se, e Ester, atravessando o
aposento, disse:
— Devem estar aqui. — Dirigiu-se à mesa de jantar
encostada à parede e leu os lados das caixas de papelão que
se encontravam sobre ela. — Não temos o dinamarquês —
observou. — Max utiliza o norueguês.
Liebermann tirou um bloco da gaveta.
— Acho melhor você me dar o francês também.
— Primeiro me deixe encontrar.
Estendeu a mão para a caneta, espetada por entre a
correspondência. Examinando de novo os recortes, escreveu
no grande bloco amarelo, depois de esfregar a ponta da caneta
a fim de fazê-la funcionar: "20; Mohr, August; Solingen", e pôs
um ponto de interrogação em seguida.

— Dicionários — anunciou Ester, e abriu as abas de uma


das caixas.
- 96 -

— Norueguês, sueco, francês?

— E holandês, por favor. — Empurrou o recorte para a


esquerda, ondeiam ficar os possíveis. Procurou o que viera em
inglês, sobre o padre, encontrou-o, passou os olhos e, com
uma exclamação de pesar, empurrou-o para a direita.

Ester entrou, carregando, vacilante, quatro grossos


volumes encadernados em azul. Empurrou a correspondência,
para abrir lugar do lado da escrivaninha.

— Antes estavam todos organizados — lamentou-se,


arriando-os sobre a mesa.

— Vou reorganizá-los. Obrigado.

Ela empurrou o cabelo para dentro da peruca.

— Devia ter pedido a Max para ficar, se pretendia


traduzir.

— Não pensei nisso.

— Devo tentar encontrá-lo?

Ele meneou a cabeça, pegando outro recorte em inglês:

"Briga termina em facada mortal".

Ester, olhando aflita os recortes espalhados, indagou: —


Tantos homens assassinados?

— Nem tanto — disse ele, empurrando o recorte para a


direita. — Alguns são acidentes.

— Como vai saber quais os que os nazistas mataram?

— Não sei — tornou ele. — Terei de examinar. — Pegou


um recorte em alemão.

— Examinar?

— Para ver se consigo encontrar um motivo.

Olhou-o, de testa franzida.

— Tudo porque um rapaz telefona e depois some?

— Passe bem, Ester querida.

Ela afastou-se da escrivaninha.


- 97 -

— No seu lugar, estaria escrevendo artigos para fazer


algum dinheiro.

— Escreva que eu os assinarei.

— Quer comer alguma coisa?

Ele meneou a cabeça.

Alguns tópicos noticiavam as mesmas mortes dos outros,


alguns dos mortos achavam-se fora da faixa de idade. Havia
muitos comerciantes, fazendeiros, operários industriais
aposentados, vagabundos. Muitos foram mortos por vizinhos,
parentes, bandos de jovens desordeiros. Esquadrinhou os
dicionários bilíngues com a sua lente de aumento. Um
"makelaar inonroerende goederen" era um corretor de imóveis,
um "tulltjänsteman" era um funcionário da alfândega. Puxou
os impossíveis para a direita, os possíveis para a esquerda. A
maioria das palavras dos recortes em dinamarquês
encontravam-se no dicionário norueguês-alemão.

No final da tarde, juntou o último recorte aos


impossíveis.

Havia onze possíveis.

Arrancou a lista deles do bloco e começou uma nova lista,


anotando-os precisamente de acordo com as datas das mortes.

Três haviam morrido em 16 de outubro: Chambon, Hilaire,


em Bordéus; Döring, Emil, em Gladbeck, uma cidade na região
de Essen; e Persson, Lars, em Fagersta, Suécia.

O telefone tocou. Ele deixou Ester atender.

Dois no dia 18: Guthrie, Malcolm, em Tucson...

— Yakov? É Mannheim de novo.

Pegou o fone.

— É Liebermann quem fala.

— Alô, Herr Liebermann — disse uma voz masculina. —


Como foi de viagem? Descobriu o motivo dos noventa e quatro
assassinatos?
- 98 -

Quedou-se, imóvel, de olhos na caneta em sua mão. Já


ouvira aquela voz antes, mas não conseguia localizá-la.

— Quem é, por favor? — indagou.

— Meu nome é Klaus von Palmen. Ouvi o senhor falar em


Heidelberg. Talvez se lembre de mim. Perguntei-lhe se o
problema era realmente hipotético.

Claro. O rapaz louro de aspecto sagaz.

— Sim, lembro-me de você.

— Alguma de suas plateias terá se saído melhor que a


nossa?

— Não voltei a formular a pergunta.

— E não era hipotética, não é verdade?

Teve vontade de dizer que era e desligar, mas um impulso


mais forte apossou-se dele: poder falar abertamente com
alguém disposto a acreditar, ainda que fosse aquele jovem
alemão contestador.

— Não sei — admitiu. — A pessoa que me falou a


respeito... desapareceu. Talvez estivesse certa, talvez errada.

— Foi o que suspeitei. Interessaria ao senhor saber que


em Pforzheim, a 24 de outubro, um homem caiu de uma ponte
e afogou-se? Tinha sessenta e cinco anos e acabara de se
aposentar do serviço postal.

— Era Müller, Adolf — disse Liebermann, olhando na lista


dos possíveis. — Já sei deste e de cerca de mais dez outros:
em Solingen, Gladbeck, Birmingham, Tucson, Bordéus,
Fagersta...

— Ah!

Liebermann sorriu, de olhos na caneta, e confessou:

— Tenho uma fonte de informações na Reuters.

— Isso é muito bom! E terá tomado medidas no sentido de


descobrir se será estatisticamente normal que onze
funcionários públicos, de sessenta e cinco anos, tenham tido
- 99 -

morte violenta dentro de — qual é mesmo? — um período de


três semanas?

— Houve outros — tornou Liebermann — que foram


mortos por parentes. E ainda outros, estou certo, que a
Reuters deixou escapar. E dentre todos, creio que apenas seis
no máximo poderão ser... aqueles que temo. Seis acima do
normal comprovarão alguma coisa? E, além do mais, quem
organiza as estatísticas? Mortes violentas em dois
continentes, por idade e ocupação. Deus, talvez, haveria de
saber o que é "estatisticamente normal". Ou uma dúzia de
companhias de seguros reunidas. Não perderia tempo
escrevendo para elas.

— Falou com as autoridades?

— Foi você, não, quem assinalou que elas não estão tão
interessadas na caça aos nazistas hoje em dia? Falei, mas não
deram ouvidos. Pode-se, na verdade, culpá-las quando tudo o
que pude adiantar foi: "Talvez alguns homens sejam mortos, e
não sei por quê"?

— Então precisamos descobrir por que, e a maneira de


fazê-lo será examinando alguns desses casos. Teremos de
investigar as circunstâncias das mortes, e, mais importante
ainda, os caracteres dos homens e seus antecedentes. —
Obrigado — disse Liebermann. — Planejei tudo isso por mim
mesmo, quando eu ainda era "eu" e não "nós".

— Pforzheim fica a menos de uma hora daqui de


automóvel, Herr Liebermann. E sou um estudante de direito, o
terceiro colocado em minha classe, suficientemente apto para
fazer observações e formular perguntas pertinentes.

— Estou a par das tais perguntas pertinentes, mas na


verdade você nada tem a ver com isso, meu jovem.

— Ah, é? E por quê? Terá o senhor de algum modo


adquirido direitos exclusivos de se opor ao nazismo? Em meu
país?

— Herr von Palmen.


- 100 -

— O senhor apresentou o problema em público; devia,


então, ter nos informado que ele era de sua exclusiva
propriedade.

— Ouça-me. — Liebermann meneou a cabeça: que alemão!


— Herr vonPalmen, a pessoa que apresentou o problema a
mim era um rapaz como você. Mais amável e respeitador, mas
em outros pontos não tão diferente. E quase com toda a
certeza ele foi assassinado. Eis por que não lhe diz respeito,
por se tratar de assunto para profissionais e não para
amadores. E também porque você seria capaz de complicar
tanto as coisas que quando eu chegasse a Pforzheim a missão
se teria tornado ainda mais difícil.

— Eu não vou complicar as coisas e tentarei evitar ser


assassinado. Quer que lhe telefone e diga o que for
descobrindo, ou guardarei as informações para mim mesmo?

Liebermann teve um olhar feroz, tentando encontrar uma


maneira de detê-lo, mas estava claro que não havia.

— Pelo menos você sabe que informações procurar? —


indagou.

— Claro que sim. Para quem Müller deixou o seu dinheiro,


quais os seus parentes, quais eram suas atividades políticas e
militares...

— Onde nasceu...

— Eu sei. Todos os pontos sugeridos aquela noite.

— E se ele poderia ter tido qualquer contato com Mengele,


fosse durante a guerra ou imediatamente depois. Onde serviu?
Teria alguma vez estado em Günzburg?

— Günzburg?

— Onde Mengele morava. E procure não agir como um


promotor. É mais fácil apanhar moscas com mel do que com
vinagre.

— Posso ser encantador quando me apraz, Herr


Liebermann.
- 101 -

— Estou ansioso por uma demonstração. Dê-me seu


endereço, por favor. Vou enviar-lhe retratos de três dos
homens que se supõe estejam cometendo os assassinatos. São
fotografias antigas, de trinta anos atrás, e pelo menos um dos
homens fez cirurgia plástica, mas poderão ser úteis, caso
alguém aviste estranhos nas proximidades. Vou enviar-lhe
também uma carta declarando que trabalha para mim. Ou
prefere enviar uma para mim, declarando que estou
trabalhando para você?

— Herr Liebermann, tenho a maior admiração e respeito


pelo senhor. Acredite-me, estou verdadeiramente orgulhoso
de poder lhe ser útil de alguma forma.

— Está bem, está bem.

— Não foi encantador? Está vendo?

Liebermann tomou o endereço de Palmen e o número do


telefone, deu-lhe mais algumas indicações e desligou.

Um "nós". Mas talvez o rapaz aprovasse, não havia dúvida


de que era bastante inteligente.

Acabou de fazer a segunda lista, examinou-a por alguns


minutos, em seguida abriu a última gaveta da escrivaninha, à
esquerda, e retirou a pasta de fotografias que obtivera dos
arquivos. Pegou uma de cada, de Hessen, Kleist e Traunsteiner
— rapazes em uniformes das SS, sorridentes ou carrancudos,
em instantâneos ampliados, de granulação grosseira. Quase
imprestáveis, mas era o melhor que havia.

— Ester! — chamou, pondo-os sobre a escrivaninha.


Hessen sorria para ele, de cabelos escuros e ar de lobo,
abraçado aos pais radiantes. Liebermann virou de costas a
fotografia e por baixo do histórico mimeografado colado no
verso escreveu: "Cabelos prateados atualmente. Fez operação
plástica".

— Ester?

Apanhou as fotografias, levantou-se da cadeira e dirigiu-


se à porta.
- 102 -

Ester dormia sentada à sua escrivaninha, a cabeça sobre


os braços dobrados. Uma panela de água jazia junto ao seu
cotovelo.

Chegou-se na ponta dos pés, deixou as fotografias no


canto da escrivaninha, e passou na ponta dos pés pela sala de
estar, entrando no quarto de dormir.

— Então aonde é que vai? — perguntou Ester.

Surpreso por ela haver acordado e perguntar, respondeu


de onde estava:

— Ao banheiro.

— Pergunto aonde é que vai. Investigar.

— Ah! — fez ele. — A um lugar perto de Essen e Gladbeck.


E a Solingen. Está de acordo?

Farnbach parou do lado de fora do hotel. Admirando o


luminoso crepúsculo azul-violeta, que o recepcionista lhe
assegurara que ia permanecer assim durante horas, enfiou as
luvas, levantou a gola de peles e agasalhou-se melhor com o
seu gorro, ajustando-o sobre as orelhas e a nuca. Storlien não
era tão frio quanto temera, mas o suficiente. Graças a Deus,
aquela era a sua missão mais setentrional de todas. O Brasil
fizera dele uma orquídea.

— Senhor? — bateram-lhe no ombro.

Voltou-se e um homem de chapéu preto, mais alto que ele,


mostrou um cartão de identidade na palma da mão.

— Detetive-Inspetor Löfquist. Pode me conceder uma


palavra, por favor?

Farnbach pegou o cartão, no seu envoltório de plástico e


couro. Fingiu ter maior dificuldade de lê-lo ao crepúsculo do
que de fato acontecia, de modo a proporcionar-se pelo menos
aquele momento para pensar. Devolveu o cartão ao Detetive-
Inspetor Lars Lennart Löfquist e, antepondo um sorriso
amável (assim esperava) ao susto e confusão que iam dentro
dele, respondeu:
- 103 -

— Sim, claro, inspetor. Estou aqui apenas desde o meio-


dia. Estou certo de ainda não ter infringido lei alguma.

Sorridente também, Löfquist retorquiu:

— Estou certo de que não. — Guardou o cartão dentro do


casaco de couro preto. — Podemos caminhar enquanto
falamos, se prefere.

— Ótimo — assentiu Farnbach. — Vou dar uma espiada na


cachoeira. Parece que é tudo o que temos a fazer por aqui.

— Sim, nesta época do ano. — Começaram a atravessar o


pátio calçado de pedras, à frente do hotel. — As coisas ficam
mais animadas em junho e julho — assegurou Löfquist. —
Temos então o sol a noite inteira e bom número de turistas.
No fim de agosto, no entanto, até o centro da cidade fica
deserto depois das sete ou oito, e aqui então é praticamente
um cemitério. O senhor é alemão, não?

— Sim — assentiu Farnbach. — Meu nome é Busch.


Wilhelm Busch. Sou vendedor. Há alguma coisa de errado,
inspetor?

— Não, nada. — Passaram por um portão com um arco por


cima. — Fique descansado — tornou Löfquist. — Isto nada tem
de oficial.

Viraram para a direita e caminharam lado a lado ao longo


do rebaixo da estrada de cascalho.

Farnbach sorriu, observando:

— Mesmo um inocente se sente culpado quando um


detetive-inspetor bate em seu ombro.

— Creio que sim — acedeu Löfquist. — Desculpe-me se o


fiz preocupar-se. Não, é que simplesmente gosto de manter
certa vigilância sobre os estrangeiros. Alemães especialmente.
É tão... instrutivo conversar com eles! O que o senhor vende,
Herr Busch?

— Equipamentos de mineração.

— Ah!
- 104 -

— Sou o representante sueco de Orenstein e Koppel, de


Lübeck.

— Não creio ter ouvido falar deles.

— São bastante importantes no ramo — asseverou


Farnbach. — Estou com eles há catorze anos. — Olhou para o
detetive caminhando à sua esquerda. O nariz arrebitado e o
queixo pontudo do homem fizeram-no lembrar-se de um
capitão sob cujas ordens servira nas SS, o qual costumava
iniciar os interrogatórios exatamente com aquela conciliatória
besteira de "fique descansado, isto nada tem de oficial". E
depois vinham as acusações, as exigências, as torturas.

— O senhor é de lá? — indagou Löfquist. — De Lübeck?

— Não, sou natural de Dortmund, e atualmente moro em


Reinfeld, que fica perto de Lübeck. Isto é, quando não estou
na Suécia. Tenho um apartamento em Estocolmo. — O que este
filho da puta sabe, perguntava a si mesmo Farnbach, e como,
em nome dos céus, veio a descobrir? Será que a operação
inteira fracassara? Estariam Hessen, Kleist e os outros
enfrentando a mesma situação agora, ou apenas ele não fora
bem sucedido?

— Vire aqui — aconselhou Löfquist, apontando em direção


a uma trilha para dentro da floresta, à direita. — Conduz a um
melhor ponto de observação.

Penetraram pelo caminho estreito e seguiram montanha


acima, através de sua obscuridade quase noturna. Farnbach
desabotoou a parte superior do casaco, preocupado em ter a
arma pronta para sacar, se o pior viesse a acontecer.

— Passei algum tempo na Alemanha — disse Löfquist. — A


propósito, embarquei em Lübeck, certa ocasião.

Ele passara a falar alemão, e por sinal esplêndido.


Farnbach, embaraçado, pensou que talvez não houvesse
mesmo nada com que se preocupar; era possível, afinal de
contas, que Lennart Löfquist quisesse apenas uma
oportunidade para usar o seu alemão. Seria esperar demais.
- 105 -

— Seu alemão é muito bom — observou, também em


alemão. — Por isso é que gosta de falar conosco, para ter uma
oportunidade de usá-lo?

— Não falo com todos os alemães — retorquiu Löfquist, a


voz carregada de riso reprimido. — Somente com antigos
cabos que engordaram e usam o nome de "Busch", ao invés de
"Farnstein"!

Farnbach parou e encarou-o.

Sorrindo, Löfquist tirou o chapéu. Levantou a cabeça e se


colocou mais sob a luz. E rindo agora, virou-se para Farnbach
e estendeu um dedo à guisa de bigode.

Farnbach estava assombrado.

— Oh, meu Deus! — arquejou. — Pensei no senhor um


segundo atrás! Creio que eu... Meu Deus! Capitão Hartung!

Os dois apertaram-se as mãos entusiasticamente, e o


capitão, rindo, abraçou Farnbach e bateu-lhe nas costas. Em
seguida enterrou o chapéu na cabeça, agarrou os ombros de
Farnbach com as duas mãos e arreganhou os dentes num
sorriso.

— Que alegria ver de novo um rosto amigo! — exclamou.


— Sou capaz até de chorar, com os diabos!

— Mas... como pode ser isso? — indagou Farnbach, agora


inteiramente confuso. — Estou... estarrecido!

O capitão riu.

— Você pode ser Busch — disse. — Por que não posso ser
Löfquist? Deus meu, peguei sotaque! Escute-me só, agora não
passo de um sueco fodido!

— E é mesmo detetive?

— Sou mesmo.

— Céus, chegou a me assustar de fato, senhor.

O capitão inclinou a cabeça, pesaroso, batendo no ombro


de Farnbach.
- 106 -

— É, ainda tememos que o machado possa cair sobre nós,


hein, Farnstein? Mesmo depois de todos esses anos. Por isso é
que fico de olho nos estrangeiros. De vez em quando ainda
sonho que sou arrastado a julgamento!

— Não posso acreditar que seja o senhor! — tornou


Farnbach, ainda não refeito. — Acho que nunca tive surpresa
igual!

Continuavam percorrendo o caminho.

— Nunca esqueço um rosto, nunca esqueço um nome. — O


capitão pousou o braço nos ombros de Farnbach. — Avistei-o
parado junto ao seu carro, no posto de gasolina de
Krondikesvägen. "Aquele ali de casaco elegante é o Cabo
Farnstein", pensei. "Aposto cem coroas."

— É "Farnbach", senhor, e não "stein".

— Ah, sim? Bem, "stein" é bastante perto, não, depois de


trinta anos? Com todos os homens que comandei? Está claro
que tinha de estar absolutamente certo antes de lhe dirigir a
palavra. Foi sua voz que me deu confiança. Ela não mudou
nada. E deixe de lado o "senhor", viu? Embora reconheça que é
agradável ouvi-lo de novo.

— Por que cargas d'água veio parar aqui? — indagou


Farnbach. — E ainda por cima como detetive!

— É uma história em nada extraordinária — disse o


capitão, tirando o braço do ombro de Farnbach. — Tinha uma
irmã casada com um sueco, numa fazenda de Skåne. Após ser
capturado, fugi de um campo de internamento, embarquei
num navio — de Lübeck a Trelleborg, a travessia a que me
referi — e fui me esconder com eles. Ele não gostou muito da
coisa. Lars Löfquist. Um bom filho da puta. Maltratava a pobre
Eri, uma coisa horrível. Após um ano e tanto, eu e ele tivemos
uma grande briga e matei-o acidentalmente. Pois bem, tratei
de enterrá-lo bem fundo e tomei o seu lugar! Éramos
fisicamente do mesmo tipo, portanto seus documentos me
serviram, e quanto a Eri, ficou satisfeita em ver-se livre dele.
Quando aparecia alguém que o conhecera, eu punha atadura
no rosto e ela explicava-lhe que uma lâmpada explodira e eu
- 107 -

não podia falar muito. Passando uns dois meses, vendemos a


fazenda e viemos para o norte. Primeiro para Sundsvall, onde
trabalhamos numa fábrica de conservas, o que foi terrível. E
três anos depois, aqui para Storlien, onde havia lugares na
polícia e empregos para Eri nas lojas. E eis tudo. Gostei do
trabalho na polícia. Que melhor maneira de se saber se
procuravam por mim? Esse rugido que está ouvindo é
acachoeira. Fica logo depois da curva. E agora quanto a você,
Farnstein? Farnbach! Como se transformou em Herr Busch, o
próspero vendedor? Este casaco deve ter custado mais do que
ganho num ano inteiro!

— Não sou "Herr Busch" — retrucou Farnbach


asperamente. — Sou o "Sr. Paz", de Porto Alegre, Brasil. Busch
é postiço. Estou aqui a serviço da Organização dos Camaradas,
por sinal um serviço danado de maluco.

Agora foi a vez de o capitão parar e arregalar os olhos,


atônito.

— Quer dizer então... que é verdade? A Organização


existe? Não é só... história de jornais?

— É verdade, sim — assegurou Farnbach. — Eles me


ajudaram a estabelecer-me lá, arranjaram-me um bom
emprego...

— E estão aqui agora? Na Suécia? —

Eu estou aqui agora. Eles ainda estão lá, trabalhando com


o Dr. Mengele para "cumprir o destino ariano". Pelo menos é o
que me dizem.

— Mas... isso é maravilhoso, Farnstein! Meu Deus, é a


notícia mais emocionante que eu... Não acabamos! Não
seremos derrotados! O que está acontecendo? Pode me dizer?
Seria uma violação de ordens dizer a um oficial das SS?

— Fodam-se as ordens, estou farto delas — retorquiu


Farnbach. Fitou um momento o surpreso capitão, em seguida
anunciou: — Estou aqui em Storlien para matar um professor.
Um velho que não é nosso inimigo e quede forma alguma pode
influir no rumo da história. Mas matá-lo, e a uma série de
- 108 -

outros, constitui uma "operação sagrada" que de algum modo


nos há de levar de volta ao poder. É o que diz o Dr. Mengele.
— Voltou-se e afastou-se pelo caminho acima.

Confuso, o capitão observou-o ir-se, em seguida


precipitou-se, furioso, atrás dele.

— Com os diabos, qual é a ideia? — inquiriu. — Se não


pode me dizer, fale! Não me dê... Era tudo conversa?
Brincadeira idiota que está fazendo comigo, Farnbach!

Farnbach, respirando forte pelas narinas, atingiu um


pequeno balcão de rocha saliente e, agarrando a sua grade de
ferro com as duas mãos, contemplou, rancoroso, um largo
lençol de água reluzente que se despejava torrencialmente à
sua esquerda. Acompanhou com os olhos a descida do
cintilante lençol de água, até a sua ruidosa bacia de espuma, e
cuspiu nela.

O capitão fê-lo voltar-se com um puxão.

— Foi uma brincadeira idiota esta — berrou, alto e sonoro,


contra outro vejar da cachoeira. — Cheguei a acreditar em
você! — Não foi brincadeira — tornou Farnbach. — É verdade,
cada palavra! Matei um homem em Göteborg duas semanas
atrás — um professor também, Anders Runstein. Ouviu falar
nele alguma vez? Nem eu. Nem ninguém. Um zero completo,
aposentado, de sessenta e cinco anos. E colecionador de
garrafas de cerveja, imagine! Gabou-se comigo das suas
oitocentas e trinta garrafas de cerveja! Eu... dei-lhe um tiro na
cabeça e esvaziei-lhe a carteira.

— Göteborg — proferiu o capitão. — Sim, lembro-me da


notícia!

Farnbach virou-se para a grade, segurou-a e fitou o


paredão de rocha do outro lado do trovejante abismo sombrio.

— E sábado vou matar outro — anunciou. — Não faz


sentido! É loucura! Como seria possível... resultar em alguma
coisa?

— Existe data certa?

— Tudo é extremamente preciso.


- 109 -

O capitão colocou-se ao lado de Farnbach.

— E as suas ordens lhe foram transmitidas por um oficial


graduado?

— Por Mengele, com aprovação da Organização. O Coronel


Seibert apertou nossas mãos na manhã em que partimos do
Brasil.

— Não foi só você?

— Há outros homens em outros países.

Agarrando o braço de Farnbach, o capitão exclamou,


indignado:

— Então não me deixe ouvi-lo de novo dizer: "Fodam-se as


ordens! "Você é um cabo, a quem foi conferido um dever, e se
os seus superiores decidiram não lhe revelar o motivo é
porque têm razões para isso também. Deus do céu, você um
homem das SS, proceda como um deles. "Minha honra é a
lealdade." Estas palavras deviam estar gravadas na sua alma!

Voltando-se e encarando o capitão, Farnbach proferiu:

— A guerra acabou, senhor.

— Não! — gritou o capitão. — Não se a Organização


estiver viva e operando. Pensa que o seu coronel não sabe o
que está fazendo? Meu Deus, homem, se existir uma
possibilidade em cem de o Reich ser restaurado, como
deixaria você de fazer tudo a seu alcance para colaborar neste
sentido? Pense nisso, Farnbach! O Reich restaurado!
Poderíamos voltar à pátria de novo! Como heróis! Para uma
Alemanha de ordem e disciplina no meio deste indisciplinado
mundo fodido!

— Mas como pode a matança de homens inofensivos...

— Quem é esse professor? Aposto como não é tão


inofensivo quanto você pensa! Quem é ele? Lundberg?
Olafsson? Quem?

— Lundberg.

O capitão calou-se por um momento.


- 110 -

— Bem, admito que parece inofensivo, mas como


saberemos o que está realmente maquinando, hein? E como
saberemos o que o seu coronel sabe? E o doutor! Vamos,
homem, aprume a espinha e cumpra o seu dever! "Uma ordem
é uma ordem."

— Ainda que não faça sentido?

O capitão fechou os olhos, respirou fundo. Abriu os


olhos, olhou ferozmente para Farnbach.

— Sim — assentiu. — Mesmo quando não faz sentido. Faz


sentido para os seus superiores, do contrário não lhe teria
sido dada. Meu Deus, há esperança ainda, Farnbach. Será que
resultará em nada, devido à sua fraqueza?

Franzindo a testa, contrafeito, pôs-se ao lado do capitão.

Este voltou-se, a fim de encará-lo.

— Você não terá a mínima dificuldade — disse. — Vou


mostrar-lhe Lundberg. Posso até contar-lhe seus hábitos. Meu
filho foi aluno dele durante dois anos. Conheço-o bem.

Farnbach ajustou o gorro. Sorriu ironicamente e


perguntou:

— Os Löfquist... têm um filho?

— Sim, por que não? — O capitão fitou-o, enrubescendo


em seguida. — Ah — proferiu, e acrescentou friamente: —
Minha irmã morreu em 57. Depois, eu casei. Você tem uma
mente imunda.

— Perdoe-me — disse Farnbach. — Desculpe.

O capitão enfiou as mãos nos bolsos.

— Bem! — exclamou, ainda ruborizado. — Espero ter


conseguido incutir-lhe nova vitalidade.

Farnbach assentiu.

— A restauração do Reich. Só nisso é que tenho de pensar.

— E os seus oficiais e colegas soldados — tornou o


capitão. — Eles dependem de você para cumprir sua missão.
Não vai deixá-los desmembrados, hein? Vou ajudá-lo com
- 111 -

Lundberg. Estou de serviço no sábado, mas trocarei com um


dos homens. Não há problema.

Farnbach meneou a cabeça.

— Não será Lundberg — proferiu.

Investiu, as mãos enluvadas empurrando o peito de couro


negro.

O capitão, um olho arregalado debaixo do chapéu, caiu


para trás, por cima da grade, soltou as mãos do casaco e
agitou braçadas no ar. Girando de cabeça para baixo,
despencou em direção à bacia de espuma.

Farnbach debruçou-se sobre a grade e olhou, pesaroso,


para baixo.

— E não terá que ser no sábado — murmurou.

Descendo do avião, da linha Frankfurt-Essen, no


Aeroporto de Essen-Mülheim, Liebermann verificou com
surpresa que se sentia muito bem. Não diria esplendidamente,
mas sem nada de péssimo, pois péssimo foi como se sentira
das duas outras vezes em que pisara o Ruhr. Dali é que viera
tudo: as armas, os tanques, os aviões, os submarinos. Aquele
lugar fora o arsenal de Hitler, e o seu manto de névoa
parecera a Liebermann (em 59 e de novo em 66) um sinal, não
de indústria de tempo de paz, mas de culpabilidade de guerra.
Uma mortalha a impedir o sol, mais se diria estendida lá de
cima do que erguida de baixo. Mergulhando nela, sentira-se
deprimido e desalentado, perseguido pelo passado. Péssimo.

Preparara-se para a mesma reação desta vez, mas não,


sentia-se muito bem. A neblina era apenas neblina, em nada
diferente da de Manchester ou Pittsburgh, e nada havia que o
estivesse perseguindo. Ao contrário, era ele — num táxi
Mercedes novo, serenamente veloz — quem estava
perseguindo. E já era tempo. Quase dois meses atrás, ouvira
de São Paulo a extravagante história de Barry Koehler, e
sentira o ódio por Mengele acometê-lo. E agora, finalmente,
estava agindo, dirigindo-se a Gladbeck, a fim de fazer
- 112 -

perguntas a respeito de Emil Döring, de sessenta e cinco


anos," até pouco tempo atrás pertencente ao quadro de
pessoal da Comissão de Transportes Públicos de Essen". Teria
sido assassinado? Estaria ligado de alguma forma a homens
em outros países? Haveria uma razão para que Mengele e a
Organização dos Camaradas quisessem matá-lo? Se realmente
noventa e quatro homens deviam morrer, havia uma
possibilidade em três de Döring ter sido o primeiro. Hoje à
noite poderia saber.

Mas... e se a Reuters deixasse escapar alguns dos


possíveis de 16 de outubro? A possibilidade poderia
realmente ser uma em quatro ou cinco. Ouseis. Ou dez. "Não
pense nisso. Continue se sentindo bem."

— Ele entrou numa passagem para se aliviar — explicou o


Inspetor-Chefe Haas, no seu sotaque gutural do norte da
Alemanha. — Azar o dele. O lugar errado na hora errada. — Era
um homem de aspecto severo, de quase cinquenta anos, rosto
corado e picado de bexigas, os olhos azuis próximos; o cabelo
louro quase acabara de todo. Suas roupas eram elegantes, sua
mesa arrumada, seu gabinete limpo. Suas maneiras para com
Liebermann foram corteses. — Foi toda uma parte da parede
do terceiro andar que desabou sobre ele. O mestre-de-obra
disse que alguém deve tê-la abalado com uma alavanca, mas é
claro que ele haveria de dizer isso, não? nada se pôde provar,
pois a primeira coisa que fizemos, naturalmente, após retirar
Döring dos escombros, foi usar alavancas nós mesmos, a fim
de derrubar tudo o que ainda ameaçasse ruir. Pareceu-nos um
acidente verdadeiro. E assim era, conforme declarado. Os
seguradores dos demolidores já fizeram um acordo com a
viúva. Se houvesse suspeita de assassinato, pode ficar cert o
de que não teriam tido tanta pressa.

— Mas ainda assim — disse Liebermann — poderia ter


sido assassinato.

— Depende de que tipo quer dizer — retorquiu Haas.

— Alguns vagabundos ou desordeiros poderiam estar


zanzando pelo edifício, sim. Veem então um homem entrar
- 113 -

numa das passagens e resolvem ter alguma mórbida distração.


Sinto, isso é concebível. Um pouco. Mas um assassinato com
um motivo mais normal, dirigido especialmente contra Herr
Döring? Não, isso não é concebível. Como poderia alguém que
o estivesse seguindo ter chegado ao terceiro andar e soltado
com uma alavanca toda uma parte da parede no curto tempo
em que ele se encontrava na passagem? Ele estava no ato de
urinar quando morreu, e tomara duas cervejas, e não
duzentas. — Haas sorriu.

— O trabalho de soltar a parede pode ter sido feito com


antecedência — aventou Liebermann. — Um homem na
expectativa, pronto a dar o empurrão final, e outro, junto a
Döring, de algum modo o persuade a... ir para o lugar certo.

— Como? "Por que não pára e dá uma mijada, meu amigo?


Bem ali, naquele X que alguém pintou?" E ele saiu do bar
sozinho. Não, Herr Liebermann — falou Haas com
determinação —, já vi casos semelhantes; pode estar certo de
que foi acidente. Assassinos não chegam a tais extremos.
Escolhem as maneiras simples: atiram, apunhalam, golpeiam.
O senhor sabe.

— A menos que tenham muitos assassinatos a cometer, e


queiram que todos... sejam diferentes... — murmurou
Liebermann, pensativo.

Haas encarou-o com os olhos apertados.

— Muitos assassinatos? — indagou.

— O que o senhor quis dizer há pouco com "já vi casos


semelhantes"? — redarguiu Liebermann.

— A irmã de Döring esteve aqui no dia seguinte, berrando


para que eu prendesse Frau Döring e um homem chamado
Springer. É alguém... que lhe interessa? Wilhelm Springer?

— Talvez — disse Liebermann. — Quem é ele?

— É músico. Amante de Frau Döring, segundo a irmã. Ela


era muito mais jovem do que Döring. Bonita, também.

— Que idade tem Springer?


- 114 -

— Trinta e oito, trinta e nove. Na noite do acidente,


substituía alguém na orquestra da ópera de Essen. Creio que
isso o elimina, não acha?

— Pode me dizer alguma coisa sobre Döring? — indagou


Liebermann. — Quais eram seus amigos? A que organizações
pertencia?

Haas meneou a cabeça.

— Disponho apenas das informações básicas. — Virou um


papel na pasta aberta à sua frente. — Vi-o algumas vezes, mas
não cheguei a conhecê-lo. Mudaram-se para cá somente há um
ano. Aqui temos: sessenta e cinco anos, um metro e setenta,
oitenta e seis quilos... — Olhou para Liebermann. — Ah, uma
coisa que talvez lhe interesse: ele tinha uma arma.

— Ah, sim?

Haas sorriu.

— Uma peça de museu, uma Mauser obsoleta. Não havia


sido disparada, limpa ou lubrificada, Deus sabe há quantos
anos.

— Estava carregada? — Sim, mas provavelmente aquilo ia


explodir na mão dele se tentasse dispará-la.

— Poderia me dar o endereço e o número do telefone de


Frau Döring? — solicitou Liebermann. — E os de sua irmã? E o
endereço do bar? Comisso irei embora. — Chegou-se mais para
a frente no assento e desceu a mão para pegar a pasta.

Haas escreveu num bloco de memorando, copiando de um


formulário datilografado na pasta.

— Posso perguntar — indagou — como o senhor chegou a


se interessar por isso? Döring não era um "criminoso de
guerra", era?

Liebermann olhou para Haas, que escrevia


atarefadamente, e disse:

— Não, ao que sei ele não era criminoso de guerra. Pode


ter tido contato com algum. Estou investigando um boato.
Provavelmente dará em nada.
- 115 -

Ao homem do Bar Lorelei ele declarou:

— Estou investigando a pedido de um amigo dele, em cuja


opinião o desabamento não foi acidental.

Os olhos do homem do bar arregalaram-se.

— Não me diga! O senhor insinua que alguém, de


propósito...? Oh! meu Deus! — Era um homem baixo, calvo,
com um bigode de pontas enceradas. Um escudo amarelo com
uma cara risonha sorria em sua lapela vermelha. Não
perguntou o nome de Liebermann, nem este o forneceu.

— Era freguês habitual?

O homem do bar franziu a testa e acariciou o bigode.

— Humm, assim, assim. Não de todas as noites, mas de


uma vez ou duas por semana. Às vezes vinha à tarde.

— Constou-me que naquela noite ele saiu sozinho.

— É verdade. — Mas estava com alguém antes de sair?

— Estava sozinho, aí mesmo onde o senhor está agora.


Talvez no assento do lado. E saiu apressado.

— Ah, sim?

— Tinha troco a receber, deu oito marcos e meio para uma


conta de um e meio, mas não esperou por ele.

Dava boas gorjetas, mas não tanto assim. Pensei devolver-


lhe na próxima vez em que viesse.

— Disse-lhe alguma coisa enquanto bebia?

O homem do bar sacudiu a cabeça.

— Não era uma noite em que eu pudesse parar para


conversar. Deram um baile na escola comercial — apontou por
cima do ombro de Liebermann — e ficamos repletos, das oito
horas em diante.

— Ele estava esperando alguém — informou um homem na


extremidade do bar, um velho de cara redonda, de chapéu-
coco e um sobretudo surrado abotoado até em cima. — Não
tirava os olhos da porta, à espera da entrada de alguém.
- 116 -

— Conhecia Herr Döring? — indagou Liebermann. — Muito


bem — respondeu o velho. — Fui ao enterro. Foi tão pouca
gente! Fiquei surpreso. — Voltou-se para o homem do bar. —
Sabe quem deixou de ir? Ochsenwalder. Fiquei espantado. Que
compromisso teria assim tão importante? — Segurou a caneca
com as duas mãos e bebeu.

— Com licença — disse o homem do bar a Liebermann, e


dirigiu-se à outra extremidade do salão, onde alguns homens
se sentaram.

Liebermann levantou-se e, levando o seu suco de tomate e


a pasta, foi sentar-se junto do velho, no canto do bar mais
próximo de onde estava.

— Geralmente ele se sentava conosco — tornou o velho,


limpando a boca com o dorso da mão —, mas aquela noite
estava sozinho, ali no meio, de olho na porta. Esperando
alguém, olhando as horas. Apfel disse que talvez fosse o
vendedor da noite anterior. Como falava, esse Döring. Para ser
franco, não lamentávamos quando não estava por perto. Mas
podia pelo menos ter vindo dar um alô, não é verdade? Agora,
não me entenda mal: gostávamos dele, e não apenas porque às
vezes pagava a despesa. Mas é que repetia sempre as mesmas
histórias. Eram boas histórias, mas quantas vezes se aguenta
ouvir? Sempre as mesmas histórias, sobre como havia sido
mais esperto que as outras pessoas.

— E estava contando-as para um vendedor na noite


anterior? — indagou Liebermann.

O velho assentiu.

— De material de medicina. Primeiro, conversou com


todos nós, perguntando a respeito da cidade; depois juntou -se
a Döring. Döring falando e ele rindo. Na primeira vez que a
gente ouvia, as histórias eram boas.

— Isso mesmo, eu tinha esquecido — disse o homem do


bar, que havia retornado. — Döring esteve aqui na noite
anterior ao acidente. Não era habitual nele, duas noites em
seguida.
- 117 -

— Sabe a idade da mulher dele? — indagou o velho. —


Pensei que era uma filha, mas era a mulher, a viúva.

Liebermann perguntou ao homem do bar:

— Lembra-se do vendedor com quem ele conversava?

— Não sabia que era vendedor — disse o homem do bar —


, mas me lembro. Tinha um olho de vidro e um jeito de estalar
os dedos que me irritou muito; era como se eu já devesse
estar lá há dez minutos.

— Que idade ele tinha?

O homem do bar acariciou o bigode e aguçou uma de suas


pontas.

— Uns cinquenta anos, diria. Talvez cinquenta e cinco. —


Olhou para o velho. — Não acha?

— Por aí — confirmou o velho.

Abrindo a pasta no colo, Liebermann informou:

— Tenho alguns retratos. Foram tirados há muito tempo,


mas será que poderiam dar uma olhada neles e dizer se algum
dos homens aí poderia ser o vendedor?

— Com prazer — disse o homem do bar, aproximando-se.


O velho mudou de lugar.

Retirando as fotos, Liebermann perguntou ao velho:

— Ele deu o nome?

— Creio que não. Se deu, não me lembro. Mas sou bom


fisionomista.

Liebermann pôs de lado o suco de tomate e, girando as


fotos, colocou-as no balcão, separando as três. Aproximou-as
do velho e do homem do bar.

Eles se debruçaram sobre as fotos brilhantes, o velho


levando a mão ao chapéu-coco.

— Ponham mais trinta anos — explicou-lhes Liebermann,


observando. — Trinta e cinco.
- 118 -

Eles ergueram a cabeça, fitando-o cautelosamente,


ressentidos. O velho virou-se.

— Não sei — retrucou. — E pegou a sua caneca.

O homem do bar, olhando para Liebermann, ponderou:

— O senhor não pode nos mostrar retratos de... soldados


jovens e esperar que reconheçamos um homem de cinquenta e
cinco anos que vimos um mês atrás.

— Três semanas atrás — emendou Liebermann.

— Mesmo assim.

O velho bebeu.

— Esses homens são criminosos — disse-lhes Liebermann.


— São procurados pelo seu governo.

— Nosso governo — tornou o velho, descansando a caneca


sobre a sua marca úmida. — Não o seu.

— Isso é verdade — assentiu Liebermann. — Sou


austríaco.

O homem do bar afastou-se. O velho de cara redonda


observou-o ir-se.

Liebermann, abrindo as mãos sobre as fotos, inclinou -se,


reiterando:

— Esse vendedor talvez tenha assassinado o seu amigo


Döring.

O velho fitou a caneca, de lábios franzidos. Girou para o


seu lado a asa da caneca.

Liebermann fitou-o com pesar e, juntando as fotos,


guardou-as na pasta. Fechou-a, passou-lhe as presilhas e
levantou-se.

O homem do bar, voltando, disse:

— Dois marcos.

Liebermann pôs uma nota de cinco marcos sobre o bar, e


pediu:

— Umas moedas para o telefone, por favor.


- 119 -

Dirigiu-se à cabine e discou o número de Frau Döring. A


linha estava ocupada.

Tentou a irmã de Döring, em Oberhausen. Ninguém


atendeu.

Permaneceu dentro da cabine, com a pasta entre os pés,


puxando a orelha e pensando no que dizer a Frau Döring. Ela
poderia muito bem mostrar-se hostil para com Yakov
Liebermann, caçador de nazistas. E, mesmo que não o fosse,
após ouvir as acusações da cunhada, provavelmente não
haveria de querer discutir Döring e a sua morte com qualquer
estranho. Mas o que poderia dizer-lhe, a não ser a verdade? De
que outra forma conseguir um encontro com ela? Ocorreu-lhe
que Klaus von Palmen, em Pforzheim, talvez estivesse
obtendo melhores resultados. Era só o que lhe faltava, ser
vencido por Von Palmen.

Tentou Frau Döring outra vez, valendo-se dos números


claramente traçados pela caneta do Inspetor-Chefe Haas. O
telefone do outro lado da linha tocou.

— Sim? — Era uma mulher, voz apressada, irritada.

— É Frau Klara Döring?

— Sim, quem fala?

— Meu nome é Yakov Liebermann. De Viena.

Silêncio.

— Yakov Liebermann? O homem que... descobre os


nazistas? — surpresa e intrigada, porém não hostil.

— Que os procura — corrigiu Liebermann — e só às vezes


descobre. Estou aqui em Gladbeck, Frau Döring, e lhe pediria a
bondade de me conceder um pouco de seu tempo, cerca de
meia hora. Gostaria de conversar com a senhora a respeito de
seu finado marido. Acredito que talvez ele estivesse envolvido
— de forma inteiramente inocente, e sem saber — nos
assuntos de certas pessoas nas quais estou interessado. Posso
ir falar com a senhora? Quando lhe for conveniente?

Um clarinete esganiçou-se a distância. Mozart?


- 120 -

— Emil estava envolvido...?

— Talvez. Sem o saber. Estou nas proximidades da sua


residência. Posso ir até aí? Ou preferiria sair e encontrar-me
em algum lugar?

— Não. Não posso encontrá-lo.

— Frau Döring, por favor, é muito importante.

— É de todo impossível. Agora não. É o pior dia possível.

— Amanhã, então? Vim a Gladbeck com o único propósito


de falar coma senhora. — O clarinete parou, em seguida
esganiçou-se novamente, repetindo sua última frase,
definitivamente Mozart. Tocada pelo amante Springer? E por
isso haveria de ser um mau dia para encontrá-lo? — Frau
Döring?

— Está bem. Trabalho até as três. O senhor pode vir


amanhã às quatro.

— É Frankenstrasse, 12?

— Sim. Apartamento 33.

— Obrigado. Às quatro, amanhã. Obrigado, Frau Döring.

Deixou a cabine e perguntou ao homem do bar como


chegar ao prédio onde Döring morrera.

— Não existe mais. — Qual era o caminho, então?

O homem do bar, curvado, lavando copos, apontou um


dedo gotejando:

— Fica para lá.

Liebermann desceu uma rua estreita e atravessou uma


outra mais larga e movimentada. Gladbeck, ou pelo menos
aquele seu trecho, era urbana, nublada, sem encantos. A
poluição em nada ajudava.

Quedou-se contemplando um terreno repleto de entulho,


flanqueado pelas paredes de alvenaria de velhos edifícios.
Três crianças empilhavam pedras quebradas, construindo uma
barricada quadrangular. Uma delas trazia mochila.
- 121 -

Continuou a andar. A próxima transversal era a


Frankenstrasse. Seguiu até o número 12, um prédio de
apartamentos amarelo-claro, riscado de fuligem,
convencionalmente moderno, de frente para um gramado
estreito e bem-tratado. Do seu telhado elevava-se um dedo de
fumaça negra, unindo-se à mortalha da poluição.

Observou uma mulher empurrar com dificuldade um carro


de bebê, passando pela porta de entrada envidraçada, e foi em
direção ao seu hotel, o Schultenhof.

No seu quarto alemão, severo e limpo, tentou novamente


ligar para a irmã de Döring.

— Deus o abençoe, quem quer que o senhor seja! —


saudou-o uma voz de mulher. — Chegamos neste segundo! O
senhor é a primeira pessoa que nos telefona!

Ótimo. Podia imaginar.

— Frau Toppat está aí?

— Qual! Não, infelizmente ela foi embora. Está na


Califórnia, ou a caminho. Compramos sua casa anteontem. É
para Frau Toppat! Ela foi viver com a filha. Quer o endereço?
Tenho-o aqui, em algum canto.

— Não, obrigado — disse Liebermann. — Não se


incomode.

— Tudo é nosso agora: os móveis, os peixes dourados;


temos até uma horta. Conhece a casa?

— Não.

— É horrível, mas perfeita para nós. Bem, o "Deus o


abençoe" ainda está valendo. Não quer mesmo o endereço
dela? Posso encontrá-lo.

— Não. Obrigado. Boa sorte.

— Já a temos, mas ainda assim obrigado, nunca é demais.

Ele desligou, suspirou e abanou a cabeça. — Também


acho, senhora.
- 122 -

Após lavar-se e tomar suas pílulas vespertinas, sentou-se


à escrivaninha demasiado pequena, abriu a pasta e retirou o
rascunho de um artigo que estava escrevendo sobre a
extradição de Frieda Maloney.

A porta abriu-se até esticar a corrente curta, e um menino


espiou para fora, afastando da testa os cabelos pretos. Tinha
uns treze anos, era macilento e narigudo.

Liebermann, imaginando se não teria errado o número,


indagou:

— É este o apartamento de Frau Döring?

— O senhor é Herr Liebermann?

— Sim.

A porta fechou-se em parte, houve um raspar de metal. O


menino era um neto, supôs Liebermann, ou talvez — já que
Frau Döring era muito mais moça do que Döring — um filho.
Ou talvez ainda um vizinho, apenas, convidado para que ela
não ficasse sozinha com um visitante.

Fosse quem fosse, o menino abriu toda a porta e


Liebermann penetrou numa alcova de paredes de espelho,
onde se movimentaram duas ou três réplicas dele próprio
entrando, assombrosamente mal-ajambrado ("Corte esse
cabelo!", exclamava Hannah. "Apare o bigode! Ande
aprumado!"), e vários meninos de camisas brancas e calças
escuras fechando as portas e enganchando trincos de
correntes. Aprumando-se, voltou-se para o menino verdadeiro.

— Frau Döring está?

— Ela está ao telefone. — O menino estendeu a mão para o


chapéu de Liebermann.

Entregando-o, Liebermann sorriu e perguntou:

— Você é o neto dela?

— Sou filho. — O tom do menino fora de puro desdém


pela pergunta. Abriu um armário de porta de espelho.
- 123 -

Liebermann arriou a pasta e tirou o sobretudo,


contemplando a sala de estar toda de tom alaranjado, metal
aromado e vidro, tudo combinando, como numa loja, frio.

Deu o sobretudo ao menino, sorrindo, e este ajustou suas


mangas num cabide, parecendo entediado e submisso.
Chegava à altura do peito de Liebermann. Alguns casacões
estavam pendurados no armário, um deles de pele de
leopardo. Um pássaro, um corvo empalhado ou coisa parecida,
espiava por detrás de chapéus e caixas sobre a prateleira.

— É um pássaro aquilo ali? — indagou Liebermann.

— Sim — respondeu o menino. — Era do meu pai. —


Fechou a porta, olhando Liebermann com seus olhos azul -
celestes.

Liebermann apanhou a pasta.

— O senhor mata os nazistas quando os apanha? —


perguntou o menino.

— Não — respondeu Liebermann.

— Por que não?

— É contra a lei. Além do mais, é melhor levá-los a


julgamento. Dessa forma, mais pessoas ficam sabendo a
respeito deles.

— Sabendo o quê? — O menino parecia cético.

— Quem eles eram, o que fizeram.

O menino voltou-se em direção à sala de estar.

Uma mulher ali se achava, pequena e loura, de saia e


jaqueta pretas e suéter bege de gola alta. Uma bonita mulher,
com os seus quarenta e poucos anos. Ela empinou a cabeça e
sorriu, as mãos nervosamente cruzadas à sua frente.

— Frau Döring? — Liebermann andou em sua direção. Ela


estendeu-lhe a pequena mão e ele apertou-a, sentindo-a fria.
— Obrigado por ter-me recebido — disse. Sua tez era lisa por
obra de cosméticos, com algumas rugas finas junto aos olhos
azul-esverdeados. Exalava um perfume agradável.
- 124 -

— Por favor — indagou, embaraçada —, posso pedir-lhe


alguma prova de identidade?

— Certamente — assentiu Liebermann. — É prudente de


sua parte pedi-la. — Passou a pasta para a outra mão e
procurou no bolso de dentro do casaco.

— Não duvido... que seja quem diz que é — tornou Frau


Döring. — É que eu...

— As iniciais estão no chapéu dele — disse o menino,


atrás de Liebermann. — Y. S. L.

Liebermann sorriu para Frau Döring, entregando-lhe o


passaporte.

— Seu filho é um detetive — asseverou, e voltando-se para


o menino: — Muito bem, nem sequer notei que me observava.

O menino, afastando uma mecha de cabelos pretos, sorriu


complacente.

Frau Döring devolveu o passaporte.

— E, ele é esperto — acedeu, sorrindo para o menino. —


Apenas um pouquinho preguiçoso. Agora mesmo, por
exemplo, devia estar praticando.

— Não posso atender à porta e estar no meu quarto ao


mesmo tempo — resmungou o menino, atravessando
altivamente a sala de estar.

Frau Döring alisou-lhe os cabelos rebeldes, quando ele


passou.

— Eu sei, querido, estava apenas brincando.

O menino entrou, empertigado, por um corredor.

Frau Döring sorriu alegremente para Liebermann,


esfregando as mãos, como que para aquecê-las.

— Venha sentar-se, Herr Liebermann — convidou, e


recuou em direção à extremidade do aposento onde havia
janelas. Uma porta bateu.

— Gostaria de tomar café?


- 125 -

— Não, obrigado — respondeu Liebermann. — Acabo de


tomar uma xícara de chá no outro lado da rua.

— No Bittner? É onde trabalho. Sou recepcionista lá, das


oito às três.

— É bom e cômodo para a senhora.

— Sim, e já estou em casa quando Erich chega.

Comecei segunda-feira e até agora está perfeito. Estou


adorando!

Liebermann sentou-se num sofá duro, e Frau Döring numa


cadeira ao lado. Ereta, as mãos cruzadas sobre a saia preta, a
cabeça inclinada, atenta.

— Primeiro que tudo — disse Liebermann —, gostaria de


expressar-lhe minhas condolências. As coisas devem estar
bastante difíceis para a senhora no momento.

Olhos pousados nas mãos cruzadas, Frau Döring disse:

— Obrigada. — Um clarinete disparou escala acima e


abaixo, preparando-se para tocar. Liebermann olhou em
direção ao corredor, de onde emanavam as notas melodiosas,
e de volta para Frau Döring. — Ele é muito bom — observou
ela.

— Eu sei — assentiu ele. — Ouvi-o ontem, pelo telefone.


Pensei que fosse um adulto. É seu único filho?

— Sim — respondeu ela, e orgulhosa acrescentou: —


Pretende fazer carreira na música.

— Espero que o pai o tenha deixado bem provido. —


Liebermann sorriu. — Deixou? — indagou. — Seu marido
deixou o dinheiro para Erich e a senhora?

Surpresa, Frau Döring acenou afirmativamente.

— E para uma irmã dele. Um terço para cada. A parte de


Erich está sob custódia. Por que pergunta isso?

— Estou procurando — anunciou Liebermann — um


motivo pelo qual os nazistas da América do Sul pudessem ter
querido matá-lo.
- 126 -

— Matar Emil?

Ele assentiu, observando Frau Döring.

— E os outros também.

Ela franziu a testa.

— Que outros?

— O grupo a que ele pertencia. Em diversos países.

O franzido de sua testa tornou-se mais intrigado.

— Emil não pertencia a grupo algum. Aonde pretende


chegar? Quer insinuar que ele era comunista? Impossível estar
mais enganado, Herr Liebermann.

— Ele não recebeu correspondência ou chamados


telefônicos de fora da Alemanha?

— Nunca. Não aqui, pelo menos. Pergunte no seu


escritório, talvez eles saibam de algum grupo. Eu com certeza
não sei.

— Indaguei esta manhã. Eles tampouco sabem. —

Certa vez — disse Frau Döring —, três ou quatro anos


atrás, talvez até mesmo mais, a irmã telefonou-lhe da
América, onde estava de visita. É o único telefonema
internacional de que me lembro. Ah, e outra vez, há mais
tempo ainda, o irmão de sua primeira mulher telefonou de
algum lugar da Itália, tentando convencê-lo a investir em...
não me lembro, era alguma coisa que tinha que ver com prata.
Ou platina.

— E ele aceitou?

— Não. Era muito cuidadoso com o seu dinheiro.

O clarinete chegou aos ouvidos de Liebermann,


elaborando o Mozart do dia anterior. O minueto do Quinteto
para clarinete, muito bem tocado. Lembrou-se de si mesmo na
idade do garoto, passando de duas a três horas por dia em
cima do velho Pleyel. Sua mãe, que repousasse em paz,
também dissera: "Ele pensa em fazer carreira na música", com
- 127 -

aquele mesmo orgulho. Quem haveria de imaginar o que ia


acontecer? E quando tocara piano pela última vez?

Não compreendo — disse Frau Döring. — Emil não foi


assassinado.

— Pode ter sido — asseverou Liebermann. — Um vendedor


fez amizade com ele na noite anterior. Podem ter combinado
um encontro naquele prédio, caso o vendedor não aparecesse
no bar às dez horas. Dessa forma, ele teria chegado lá na hora
certa.

Frau Döring meneou a cabeça.

— Ele não teria marcado encontro com ninguém num


edifício como aquele — retorquiu. — Nem com alguém que
conhecesse bem. Suspeitava demais das pessoas. E por que
motivo os nazistas estariam interessados nele?

— Por que andava armado aquela noite?

— Sempre andava. — Sempre? —

Sempre, desde que o conheci. Mostrou a pistola no


primeiro encontro que tivemos. Pode imaginar alguém
portando arma num encontro com a namorada? E ainda por
cima mostrando-a? E o pior é que aquilo me impressionou! —
Balançou a cabeça, suspirosa e admirada.

— De quem ele tinha medo?

— De todos. Gente do escritório, gente que simplesmente


olhava para ele... — Frau Döring inclinou-se para a frente,
confidencialmente. — Ele era um pouquinho... bem, não direi
maluco, mas não chegava a ser de todo normal. Certa vez
tentei convencê-lo a consultar alguém, o senhor sabe, um
médico. Houve um programa de televisão a respeito de
pessoas como ele, gente que se julgava... alvo de alguma
conspiração, e quando acabou, fiz aminha sugestão da
maneira mais cautelosa... Pois bem! Eu é quem estava
conspirando, imagine! Para que fosse declarado maluco! Quase
me matou foi a mim, naquela noite! — Recostou-se, respirando
fundo, abalada. E franziu a testa para Liebermann,
- 128 -

perscrutadora. — O que fez ele? Escreveu ao senhor, dizendo


que os nazistas o perseguiam?

— Não, não.

— Então, o que o leva a pensar que o perseguissem?

— Um boato que escutei.

— Era falso. Creia-me, os nazistas haveriam de gostar de


Emil. Era anti-semita, anticatólico, antiliberdade, antitudo-e-
antitodos, exceto ele próprio, Emil Döring.

— Era nazista?

— Talvez tenha sido. Ele dizia que não, mas só o conheci


em 1952, por isso não posso jurar. Provavelmente não era.
Jamais aderiu a coisa alguma, podendo evitar.

— O que fez na guerra?

— Esteve no Exército, foi cabo, acho. Gabava-se dos


postos fáceis que conseguia arrumar. O principal foi num
depósito de suprimentos ou coisa parecida. Um lugar seguro.

— Nunca esteve em combate?

— Era "sabido demais" para isso. Os "trouxas" é que iam.

— Onde nasceu?

— Em Laupendahl, do outro lado de Essen.

— E viveu na região toda a sua vida?

— Sim.

— Esteve alguma vez em Günzburg, ao que saiba?

— Onde?

— Günzburg. Perto de Ulm.

— Nunca o ouvi mencionar isso.

— E o nome Mengele? Ouviu-o alguma vez referir-se a ele?

Ela fitou-o, sobrancelhas alçadas, e meneou a cabeça.

— Apenas algumas perguntas mais. A senhora está sendo


muito gentil. Receio estar metido numa caçada inútil.

— Estou certa de que está — disse ela, e sorriu.


- 129 -

— Tinha algum parente importante? No governo, digamos?

Ela pensou por um momento.

— Não.

— Amizade com alguém importante?

Ela encolheu os ombros.

— Alguns funcionários de Essen, se esta é a sua ideia de


importância. Apertou a mão de Krupp certa vez. Foi o seu
grande momento.

— Quanto tempo esteve casada com ele?

— Vinte e dois anos. Desde 4 de agosto de 1952. — E em


todos esses anos, nunca viu ou ouviu alguma coisa a respeito
de um grupo internacional a que ele pertencesse, de homens
da sua idade e do mesmo cargo?

Meneando a cabeça, ela respondeu:

— Nunca, nenhuma palavra.

— Nenhuma atividade antinazista de qualquer tipo?

— Nenhuma. Era mais pró-nazista do que anti. Votou nos


nacional-democratas, mas nunca realmente aderiu. Não era de
aderir.

Liebermann recostou-se no sofá duro e esfregou a nuca.

— Quer que lhe diga quem na verdade o matou? —


perguntou Frau Döring.

Ele fitou-a.

Ela inclinou-se para diante e respondeu:

— Deus. A fim de libertar uma moça boba do interior,


após vinte e dois anos de infelicidade. E dar um pai a Erich,
que o ajude e ame, em vez de xingá-lo — isso mesmo,
chamava-o de "efeminado" e "imbecil" — por querer ser músico
e não um funcionário público garantido e gordo. Será que os
nazistas atendem a orações, Herr Liebermann? — Meneou a
cabeça. — Não, isso cabe a Deus, e agradeço-Lhe todas as
noites, desde que Ele empurrou aquela parede em cima de
Emil. Podia tê-lo feito antes, mas de qualquer forma Lhe
- 130 -

agradeço. "Antes tarde do que nunca." — Recostou-se,


cruzando as pernas — bonitas pernas —, e sorriu radiante. —
Então! Ele não toca maravilhosamente? Guarde este nome:
Erich Döring. Algum dia há de vê-lo nos cartazes dos salões de
concerto!

Quando Liebermann deixou o número 12 da


Frankenstrasse, a noite começava a cair. Carros e bondes
enchiam a rua, transeuntes apressados apinhavam a calçada.
Caminhou vagarosamente no meio deles, carregando a pasta.

Döring fora um joão-ninguém: vaidoso, conivente,


importante para ninguém, a não ser ele próprio. Nenhuma
razão concebível para que viesse a ser alvo de conspiradores
nazistas do outro lado do mundo — nem mesmo em suas
fantasias de perseguição. O vendedor do bar? Apenas um
vendedor solitário. A saída apressada na noite do acidente?
Havia uma dúzia de razões para um homem sair apressado de
um bar.

Isto significava que a vítima de 16 de outubro deveria ter


sido Chambon, na França, ou Persson, na Suécia.

Ou alguém mais, que a Reuters deixara escapar.

Ou, muito possivelmente, ninguém.

Ei, Barry, Barry! Por que tinha de me telefonar!

Andou um pouco mais depressa, ao longo do lado sul da


apinhada Frankenstrasse.

No lado norte, Mundt apressou também o passo, de


charuto apagado na boca, jornal dobrado embaixo do braço.

Embora a noite estivesse seca e clara, a recepção era


ruim, e tudo o que Mengele ouviu foi:

— Liebermann foi craque-craque-guincho onde Döring, o


nosso primeiro homem, morava. Liebetcraque-craque a
respeito dele, e mostrou fotografias de soldados a craque-
craque GUINCHO-craque Solingen, fazendo a mesma coisa com
relação a um craque-craque que morreu numa explosão
algumas semanas atrás. Câmbio.
- 131 -

Engolindo o azedume que lhe fervia na garganta, Mengele


apertou o botão do microfone e falou:

— Quer repetir, por favor, coronel? Não ouvi tudo.


Câmbio.

Finalmente conseguiu.

— Não vou dizer que não estou preocupado — disse,


enxugando a testa com o lenço —, mas se ele foi investigar
junto a alguém com quem nada temos que ver, então
evidentemente ainda está no escuro. Câmbio.

— Craque apartamento de Döring, e não estava escuro lá.


Eram quatro da tarde, e demorou-se lá por quase uma hora.
Câmbio.

— Oh, Deus — murmurou Mengele, e apertou o botão. —


Então seria melhor cuidar dele imediatamente, por medida de
segurança. Concorda, não? Câmbio.

— Estamos craque a possibilidade, com muito cuidado.


Comunicar-lhe-ei assim que houver decisão. Tenho algumas
noticiazinhas boas também. Mundt craque-craquegundo
freguês, na data exata. O tal de Hessen. E Farnbach telefonou,
não com perguntas, graças a Deus, apenas com algumas
informações sur craque-guincho; parece que o seu segundo
freguês foi um antigo comandante seu, um capitão que
arranjou uma identidade sueca depois da guerra. Virada
engraçada, não? Farnbach não estava certo se o conhecíamos
ou não. Câmbio.

— Não deixou que isso o detivesse, hein? Câmbio.

— Ah, não, ele craque-craque dias antes da data. Portanto,


pode pôr mais três cruzes no seu quadro. Câmbio.

— Considero urgente cuidarmos imediatamente de


Liebermann — disse Mengele. — E se ele não se limitar a esse
homem de Solingen? Se Mundt trabalhar direito, estou certo
de que não haverá problema, pelo menos não mais do que já
temos. Câmbio.
- 132 -

— Enquanto estiver na Alemanha, discordo. Eles irão


craque-guincho-craque o país para mostrar que estão sendo
conscienciosos. Serão forçados a isso. Câmbio.

— Então, logo que ele saia da Alemanha. Câmbio.

— Levaremos sem dúvida suas opiniões em consideração,


Josef. Sem você, nada. Sabemos como craque-craque-guincho-
craque terminar agora. Câmbio e desligo.

Mengele olhou para o microfone e pousou-o. Retirou os


fones de ouvido, largou-os e desligou o rádio.

Saiu do escritório para o banheiro, vomitou seu jantar


meio digerido, lavou-se e gargarejou com um dentifrício
líquido.

Em seguida, saiu para a varanda, sorriu dizendo:


"Desculpem", e sentou-se para jogar bridge com o General
Farina, Franz e Margot Schiff.

Quando eles se retiraram, pegou uma lanterna e desceu


em direção ao rio, a fim de refletir. Disse algumas palavras ao
homem de serviço, seguiu no sentido rio abaixo, indo sentar-
se ao lado de um tambor de óleo enferrujado — ao diabo com
as suas calças —, e acendeu um cigarro. Imaginou Yakov
Liebermann indo às casas dos homens. Seibert e o resto das
altas patentes da Organização defrontando uma necessidade e
chamando-a possibilidade; e a sua dedicação de décadas aos
mais nobres ideais — a busca do conhecimento e a ascensão
do melhor da raça humana — que poderia ser roubada de sua
fruição definitiva por aquele judeu abelhudo e aquele
punhado de esquivos arianos. Que eram piores do que o
judeu, pois Liebermann, para sermos justos, estava
cumprindo com o seu dever, de acordo com as suas luzes,
enquanto eles estavam traindo as suas. Ou pensando em traí -
las.

Jogou o seu segundo cigarro no cintilante negror do rio,


e, com um "Permaneça vigilante" ao guarda, regressou em
direção a casa.
- 133 -

Seguindo um impulso, dobrou para um lado e abriu


caminho por entre a trilha invadida de vegetação até a
"fábrica", a vereda por onde haviam descido ele e os outros —
o jovem Reiter, Von Sweringen, Tina Zygorny, todos agora
mortos, infelizmente —, tão alegres naquelas manhãs
distantes. Curvando-se sobre a lanterna exploradora, afastou
os galhos de folhas largas, tropeçou nas raízes salientes.

E ali estava o longo prédio baixo, mordiscado pelas


árvores. A pintura descascara-se das paredes de sua estrutura,
todas as janelas estavam quebradas (os filhos dos
empregados, malditos sejam), e toda uma parte do telhado
ondulado desabara ou fora retirada da extremidade do
dormitório.

A porta da frente escancarava-se, dependurada pela


dobradiça inferior. Tina Zygorny soltara a sua risada
masculina, Von Sweringen trovejara:

— Vamos, acorde! Já teve seu sono de beleza!

Silêncio apenas. Insetos zuniam, trinavam.

Lançando a luz à sua frente, Mengele subiu o degrau e


passou pela porta. Cinco anos pelo menos, desde que pisara
pela última vez...

Formosa Bavária. O cartaz aderia à parede, poeirento e


enrugado: céu, montanha, primeiro plano florido.

Sorriu para ele, e moveu o raio de luz.

Descobriu ranhuras na madeira das paredes, de onde


prateleiras e armários haviam sido arrancados. Tubos de
encanamento eretos, em posição de sentido. A parede com as
manchas marrons onde Reiter queimara, começando o
desenho de uma suástica com o seu microscópio. Podia ter
incendiado a casa inteira, o idiota.

Caminhou cuidadosamente por entre vidro partido. Uma


casca de melão podre, formigas banqueteando-se.

Contemplou os aposentos vazios, e recordou a vida e a


atividade, o equipamento reluzente, o lamento do esteriliza-
dor, o tilintar das pipetas. Há mais de dez anos.
- 134 -

Tudo fora retirado, posto no ferro-velho ou talvez doado


a alguma clínica não sabia onde, para que, caso os bandos de
judeus chegassem — e eles estavam ativos naquele tempo, o
Comando Isaac e outros —, não tivessem pistas, nem
suspeitas.

Percorreu o corredor central. Criados nativos falavam


suavemente em dialetos primitivos, tentando se fazer
entender.

Chegou ao dormitório, de cheiro fresco e arejado, graças


ao teto aberto. As esteiras de palha ainda estavam ali,
espalhadas em desordem.

Tirem bom proveito de algumas dúzias de esteiras de


capim, seus jovens judeus.

Andou por entre elas, recordando, sorrindo. Alguma coisa


de encontro à parede lançava cintilações brancas. Aproximou -
se, baixou o olhar sobre aquilo que o facho da lanterna
revelava. Apanhou-o, soprou, examinou na mão. Eram presas
de animais, em círculo, um bracelete feminino. Talismã de boa
sorte? O poder dos animais transferido para o braço da
portadora?

Estranho que as crianças não o houvessem encontrado.


Não havia dúvida de que haviam brincado ali, rolado naquelas
esteiras, desarrumando-as.

Sim, era sinal de boa sorte aquele bracelete continuar ali


todos aqueles anos, a fim de que pudesse encontrá-lo nessa
noite de temor e incerteza, de possível traição. Enfiou por ele
os dedos, deslizou-o mão abaixo, puxando-o com o cabo da
lanterna de mão. O círculo de presas escorregou, retido pela
pulseira de ouro do relógio. Sacudiu o pulso, as presas
dançaram.

Lançou um olhar pelo dormitório, através do telhado


destruído, até o cimo das árvores e as estrelas que surgiam e
desapareciam por entre elas. E — talvez sim, talvez não — até
o seu Führer, a vigiá-lo.

"Não hei de decepcioná-lo", prometeu.


- 135 -

Olhou em torno — para aquele lugar onde tanto,


gloriosamente tanto, já fora realizado — e, de olhar fixo,
acentuou em voz alta:

— Não hei.

Quatro

— Eliminamos apenas quatro dos onze — disse Klaus von


Palmen, cortando a grossa linguiça diante de si. — Não acha
cedo demais para falar em parar?

— Quem está falando em parar? — Liebermann empurrou


com a faca o purê de batatas de encontro à parte traseira do
garfo. — Eu só disse que não iria a Fagersta. Não disse que
não iria a outros lugares, como também não disse que não
pediria a alguém para ir a Fagersta, alguém que não precise de
intérprete. — Enfiou na boca a garfada de linguiça e purê de
batatas.

Estavam no Cinco Continentes, o restaurante do


Aeroporto de Frankfurt. Era uma noite de sábado, 19 de
novembro. Liebermann providenciara uma escala de duas
horas na sua volta a Viena, e Klaus viera de Mannheim para
encontrá-lo. O restaurante era caro — Liebermann reconhecia
a legitimidade da censura de invisíveis contribuintes —, mas
na verdade o rapaz merecia uma boa refeição. Não apenas
investigara aquele homem de Pforzheim, cujo salto, e não
queda de uma ponte, fora testemunhado por cinco pessoas,
como também, depois que Liebermann lhe falara de Gladbeck
na noite de quinta-feira, viajara para Freiburg, enquanto
Liebermann se dirigia a Solingen. E, além do mais, seu ar de
sagacidade — as miúdas feições contraídas e os olhos
brilhantes — parecia de perto um misto de perspicácia e
desnutrição. Esses garotos comiam o suficiente? Portanto,
Cinco Continentes. Não poderiam conversar direito numa
lanchonete, poderiam?
- 136 -

August Mohr, o vigia noturno da fábrica de produtos


químicos de Solingen, era mesmo, conforme julgara
Liebermann, funcionário público durante o dia, e à noite
empregado do setor de vigilância do hospital onde morrera.
Contudo, as autoridades do corpo de bombeiros haviam
investigado exaustivamente a explosão que o matara, ligando-
a a uma série de acidentes que, estavam certos, não poderiam
ter sido preparados. E o próprio Mohr parecia uma vítima tão
improvável de conspiração nazista quanto Emil Döring. Semi-
analfabeto e pobre, viúvo há seis anos, morava com a mãe
inválida em dois quartos de uma estalagem miserável. A maior
parte de sua vida, inclusive os anos de guerra, trabalhara
numa fábrica de aço de Solingen. Correspondência ou
chamadas telefônicas de fora do país? A estalajadeira rira.

— Nem sequer de dentro do país, senhor.

Klaus, em Freiburg, julgara a princípio encontrar alguma


coisa. O homem de lá, um empregado do Departamento de
Águas chamado Josef Rausenberger, fora esfaqueado e
roubado nas proximidades de sua casa, e uma vizinha vira
alguém vigiando a casa na noite anterior.

— Um homem de olho de vidro?

— Ela não podia ter notado, estava muito longe. Um


homem corpulento, num carro pequeno, fumando, foi o que
ela contou à polícia. Não pôde dizer sequer a marca do carro.
Havia um homem de olho de vidro em Solingen?

— Em Gladbeck. Prossiga.

Porém, Rausenberger não pertencera a organizações


internacionais. Perdera as duas pernas abaixo dos joelhos,
num acidente de trem, quando garoto. Em consequência, não
prestara serviço militar, e tampouco pusera os pés —
artificiais, quer dizer — fora da Alemanha. ("Por favor",
repreendera Liebermann.) Destacava-se como trabalhador
eficiente e assíduo, um marido e pai dedicado. Deixara suas
economias para a viúva. Desaprovava os nazistas e votara
contra eles, nada mais. Nascido em Schwenningen. Nunca em
- 137 -

Günzburg. Um parente ilustre: um primo, o redator-chefe do


Berliner Morgenpost.

Döring, Müller, Mohr, Rausenberger, nenhum deles, nem


por qualquer esforço de imaginação, uma vítima nazista.
Quatro entre onze.

— Conheço um homem em Estocolmo — declarou


Liebermann. — Um gravador, natural de Varsóvia. Muito
inteligente. Irá com prazer a Fagersta. O homem de lá,
Persson, e o de Bordéus são os principais a serem
investigados. Dezesseis de outubro foi a única data
mencionada por Barry. Se nenhum desses dois for alguém que
os nazistas pudessem e de fato pretendessem matar, então
Barry estava enganado.

— A menos que o senhor não tivesse notícias do homem


certo. Ou que ele morresse no dia errado.

— A menos — tornou Liebermann, cortando a linguiça. —


Tudo é "amenos", "se", "talvez". Como eu gostaria que ele não
me tivesse telefonado.

— O que disse ele exatamente? Como é que foi tudo?

Liebermann narrou a história.

O garçom retirou os pratos e recebeu os pedidos de


sobremesa. Quando se afastou, Klaus perguntou:

— Já pensou que o seu nome pode estar na lista? Ainda


que não tenha sido Mengele a reconhecê-lo por telepatia — o
que não acredito um só momento, Herr Liebermann, e muito
me admira que o senhor acredite —, algum nazista desligou o
fone e há de ter se encarregado de descobrir com quem Barry
falava. A telefonista do hotel deve saber.

Liebermann sorriu.

— Tenho apenas sessenta e dois e não sou funcionário


público.

— Não brinque com isso. Se enviaram assassinos, por que


não lhes dariam mais um encargo? Com a máxima prioridade?
- 138 -

— Nesse caso, o fato de eu ainda estar vivo indica que


eles não foram enviados.

— Talvez Mengele e a Organização dos Camaradas


decidissem esperar um pouco, porque você sabia. Ou talvez
desistissem da coisa.

— Está vendo só o que dizia acerca dos "se" e dos


"talvez"?

— Não se apercebeu de que talvez esteja em perigo? O


garçom depositou um bolo de cerejas diante de Klaus e uma
torta linzer para Liebermann. Serviu o café de Klaus e o chá de
Liebermann. Quando ele se retirou, Liebermann, abrindo um
envelopinho de açúcar, disse:

— Corro perigo há muito tempo, Klaus. Parei de pensar


nisso, do contrário teria de fechar o Centro e dar outro rumo à
minha vida. Você tem razão: "se" existirem assassinos,
provavelmente estarei na lista. Por isso, investigar é o que
ainda me resta fazer. Irei a Bordéus e pedirei a Piwowar, meu
amigo de Estocolmo, para ir a Fagersta. Se os homens que ali
morreram não tiveram ligações com nazistas, examinarei
outros casos, só para ter certeza.

— Eu poderia ir a Fagersta — aventou Klaus, mexendo o


café. — Falo um pouco de sueco.

— Mas para você eu teria de comprar passagem, certo?


Enquanto para Piwowar, não. Infelizmente isso faz diferença.
Além do mais, você não deve perder aulas assim sem mais
nem menos.

— Posso perder aulas durante um mês e ainda assim me


formar com distinção.

— Céus, que cabeça. Fale-me a seu respeito. Como se


tornou tão brilhante?

— Poderia lhe dizer uma coisa a meu respeito que haveria


de surpreendê-lo, Herr Liebermann.

Liebermann ouviu, com ar sério e compreensivo. Os pais


de Klaus eram antigos nazistas. Sua mãe fora íntima de
Himmler, seu pai, coronel da Luftwaffe.
- 139 -

Quase todos os jovens alemães que ofereciam ajuda a


Liebermann eram filhos de antigos nazistas. Eis uma das
poucas coisas que o levavam a sentir que Deus existia e estava
agindo, ainda que lentamente.

— Somos terríveis.

— Não, não somos, somos sensacionais.

Devíamos até ser filmados.

— Sabe o que quero dizer. Olhe só para nós: um, dois, e já


na cama. Aposto dois tostões como esqueceu meu nome.

— Meg, de Margaret.

— Nome completo.

— Reynolds. Dois tostões, por favor, enfermeira Reynolds.

— Está muito escuro para achar minha bolsa. Não prefere


isto?

— Humm, sim, claro que sim. Humm, é delicioso.

— "Ruborizando-se, acanhada, ela perguntou: 'Não será só


esta noite, certo, meu senhor?'"

— É nisso que você está pensando?

— Não, estou pensando no preço do picles. Claro que é


nisso que estou pensando! Este não é o meu modus vivendi
habitual, você bem sabe.

— Essa não. Modus vivendi!

— Eis uma resposta direta.

— Não pretendi ser evasivo, Meg. Receio que talvez seja


apenas esta noite, mas não porque eu assim queira. Não tenho
alternativa na questão. Fui enviado aqui para... resolver uns
negócios com alguém, e ei-lo aí estirado no seu maldito
hospital, na tenda de oxigênio, sem receber visitantes, exceto
os mais chegados da família.

— Harrington?
- 140 -

— Esse mesmo. Quando me apresentar e disser que não


pude chegar a ele, provavelmente me mandarão de volta para
Londres. Nosso pessoal anda muito escasso ultimamente.

— Voltará quando ele se restabelecer?

— Não é provável. Nessa altura, estarei em outro caso, um


outro assumirá. Isso na suposição de que ele se restabeleça
mesmo. É duvidoso, ao que me consta.

— Sim, ele tem sessenta e seis anos, você sabe, e foi um


ataque bastante feio. Entretanto, sua constituição é forte.
Corre em torno do gramado todas as manhãs, às oito em
ponto; a gente pode acertar o relógio por ele. Dizem que ajuda
o coração, mas eu diria que prejudica, numa idade dessas.

— É uma pena eu não falar com ele. Se falasse, poderia


ficar pelo menos uns quinze dias. Acha que poderíamos nos
encontrar no Natal? É quando encerraremos os trabalhos. Pode
arranjar folga?

— Talvez consiga...

— Que beleza! Arranjaria? Tenho um apartamento em


Kensington, com uma cama um bocadinho mais macia que
esta.

— Alan, em que negócio você está metido?

— Eu já lhe disse.

— Isso não parece coisa de venda. Vendedores não têm


casos tão complicados. Aliás, nunca vi você com uma pasta, se
bem que não tenha muito tempo para pensar no assunto.
Vendendo o quê, hein? Você não é realmente um vendedor, é?

— Você é muito viva, hein, Meg? Pode guardar um


segredo?

— Claro que sim.

— De verdade? —

Sim. Pode confiar em mim, Alan.


- 141 -

— Bem... eu trabalho para o Imposto de Renda. Tivemos


uma denúncia de que Harrington nos teria caloteado em cerca
de trinta mil libras durante os últimos dez ou doze anos.

— Não acredito! Ele é juiz!

— Acontece com mais frequência do que você pensa.

— Deus do céu, ele é a própria estátua da Virtude Cívica!

— Talvez. Fui enviado para investigar. Sabe, era para eu


instalar um microfone escondido na casa dele, e controlá-lo de
meu quarto, para ver oque podia descobrir.

— É assim que vocês operam?

— É o método padrão em casos como este. Tenho a


autorização na minha pasta. O quarto de hospital dele seria
ainda melhor que a sua casa. No hospital o sujeito fica um
tanto nervoso, diz à mulher onde a bolada está escondida,
cochicha uma palavra ou duas com o advogado... Mas não
consigo entrar para instalar o maldito troço. Poderia exibir a
autorização para o seu diretor, mas o mais provável é que seja
amigo de Harrington. Deixa escapar uma palavra e tudo vai
por água abaixo.

— Seu patife! Seu velho patife sem-vergonha!

— Meg! O que...

— Pensa que não sei qual é o seu jogo? Quer que eu


instale o troço para você. Foi por isso que "aconteceu" nos
encontrarmos tão acidentalmente. Você me enrolou com essa
sua história de... Oh, Cristo, eu devia ter sabido o que você
pretendia. O Bonitão embeiçado por uma velha vaca gorda
como eu.

— Meg! Não fale assim, amor!

— Tire suas mãos de mim. E não me chame "amor",


agradeço. Oh, Cristo, que burra que eu sou!

— Meg querida, por favor, deite-se e...

— Largue-me! Ainda bem que ele tirou alguma coisa de


vocês. Vocês, seus malandros, vivem nos arrancando o que
podem. Ah! Que piada! Não devo me esquecer de rir.
- 142 -

— Meg! Sim, tem razão, é verdade. Eu estava esperando


que você me desse uma mão, e por isso é que nos
conhecemos. Mas não é por isso que estamos aqui em cima
agora. Pensa que sou tão fiel à maldita Renda, a ponto de ir
para a cama com quem não simpatizasse, só para apanhar um
vigaristazinho desgraçado como Harrington? E continuar
mandando brasa durante uma quinzena ou mais? Ele nada
significa comparado com a maioria dos que investigamos.
Falei a verdade em cada palavra que disse, Meg, quanto a
preferir mulheres corpulentas, maduras, e querer que você
fique comigo no Natal.

— Não acredito numa maldita palavra do que você está


dizendo!

— Oh, Meg, eu seria capaz... de arrancar minha língua!


Você é a melhor coisa que me aconteceu em quinze anos, e
agora estraguei tudo com a minha estupidez. Quer tornar a se
deitar, amor? Não vou mais falar em Harrington. Não deixaria
que você me ajudasse agora, ainda que me implorasse.

— Desse susto você não morre, não se preocupe.

— Deite-se direitinho, amor... assim... e deixe-me abraçá-


la, beijar esses grandes... Hummm! Ah, Meg, você é mesmo
divina! Hummm!

— Patife...

— Sabe o que vou fazer? Telefono amanhã e digo ao meu


chefe que Harrington está sendo remendado e que dentro de
um dia ou dois consigo instalar o troço. Talvez possa
remanchar com ele até quinta ou sexta, antes que me chamem
de volta. Hummm! Sou maluco por enfermeiras, sabia disso?
Mamãe era, e também Mary, minha esposa. Hummm!

— Ah...

— Talvez você não goste de mim, mas seus biquinhos


gostam.

— Falou sério mesmo quanto ao Natal, seu patife?

— Juro que sim, amor, e em qualquer outra ocasião que


arranjarmos. Talvez você possa até se mudar para Londres.
- 143 -

Nunca pensou nisso? Sempre há lugares para enfermeiras,


não? Com Mary foi assim.

— Oh, não poderia. Não é só pegar as coisas e mudar.


Alan? Poderia mesmo... ficar quinze dias?

— Poderei arranjar mais do que isso, se instalar o troço.


Terei de esperar que ele saia da tenda e fique conversando
com as pessoas... Mas não vou deixar que você faça isso, Meg.
Falo sério.

— Eu já sei...

— Não. Não quero correr o risco de estragar nossas


relações.

— Que besteira. Eu já sei que você é um patife, portanto,


que diferença faz? Quero ajudar o governo, não você.

— Bem... acho que não devo atrapalhar o cumprimento da


minha tarefa.

— Sabia que você ia concordar. O que devo fazer? Não sei


mexer em fios.

— Não precisa. Você simplesmente leva um pacote para o


quarto dele. Do tamanho de uma caixa de bombons. É de fato
uma caixa de bombons, toda bonita, de papel florido. Basta
desembrulhá-la, pô-la junto da cama dele — numa prateleira,
mesinha-de-cabeceira, ou coisa parecida, quanto mais perto da
cabeça melhor — e depois abri-la.

— Só isso? Abri-la?

— Funciona automaticamente.

— Pensei que essas coisas fossem pequeninas.

— As de telefone. Não desse tipo.

— Não vai fazer faísca, vai? Por causa do oxigênio, sabe?

— Oh, não, de modo algum. É apenas um microfone e um


transmissor, sob uma camada de bombons. Não deverá abrir a
caixa até colocá-la no lugar certo. Não convém sacudir de um
lado para o outro quando estiver transmitindo.
- 144 -

— Está pronto? Posso instalar amanhã. Hoje, melhor


dizendo.

— Boa menina.

— Gozado, o velho Harrington a sonegar impostos! Vai ser


uma sensação se ele for acusado!

— Você não deve dizer uma palavra disso a ninguém, até


reunirmos provas.

— Ah, não, jamais. Sei como é. Devemos fingir que ele é


inocente. Emocionante! Sabe o que vou fazer depois de abrir a
caixa, Alan?

— Não faço ideia. — Vou cochichar uma coisa dentro dela,


uma coisa que eu gostaria que você me fizesse amanhã à
noite. Em troca da minha ajuda. Você vai poder ouvir, não?

— Assim que você abrir. Estarei ouvindo de respiração


suspensa. O que é que você tem em mente, sua Meg travessa?
Oh, sim, ohh, que gostoso, amor.

Liebermann foi a Bordéus e Orléans, e seu amigo Gabriel


Piwowar a Fagersta e Göteborg. Nenhum dos quatro
funcionários públicos de sessenta e cinco anos que haviam
morrido naquelas cidades parecia vítima mais provável dos
nazistas do que os quatro já investigados.

Chegara outra remessa de recortes, vinte e seis desta vez,


seis deles possíveis. Havia agora dezessete, dos quais oito —
inclusive os três de 16 de outubro — eliminados. Liebermann
tinha certeza de que Barry se enganara, mas, lembrando-se da
gravidade da situação se, resolveu investigar mais cinco, os
mais fáceis. Dois da Dinamarca ele confiou a um de seus
colaboradores de lá, um cobrador de contas chamado
Goldschmidt, e um de Trittau, perto de Hamburgo, a Klaus.
Dois da Inglaterra ele próprio investigou, juntando trabalho e
prazer — uma visita à sua filha Dena e à família dela, em
Reading.
- 145 -

Os cinco assemelharam-se aos outros oito. Diferentes,


mas parecidos. Klaus informou que a viúva Schreiber gostaria
de ter com ele mais do que uma boa conversa.

Chegaram mais alguns recortes, com um bilhete de


Beynon: "Receio não poder mais justificar isto em Londres.
Obteve algum resultado?"

Liebermann telefonou-lhe. Ele não estava. Mas respondeu


à chamada uma hora depois.

— Não, Sydney — disse Liebermann —, foi apenas uma


tentativa frustrada. Investiguei treze, dentre dezessete
possíveis. Nenhum era homem que os nazistas pudessem
querer matar. Mas foi bom ter investigado. Só lamento ter lhe
dado tanto trabalho.

— Não foi nada. O rapaz ainda não apareceu?

— Não. Recebi uma carta do pai dele. Esteve no Brasil


duas vezes, e duas em Washington. Não pretende desistir.

— É pena. Avise-me se ele descobrir alguma coisa.

— Está bem. E mais uma vez obrigado, Sydney.

Nenhum dos derradeiros recortes mostrou-se possível. O


que não fez muita diferença. Liebermann voltou sua atenção
para uma campanha de escrita de cartas cujo objetivo era
conseguir que o governo da Alemanha Ocidental renovasse
esforços para extraditar Walter Rauff, responsável pela morte
em câmaras de gás de noventa e sete mil mulheres e crianças,
e que vivia na ocasião (e ainda vive) sob o seu próprio nome,
em Punta Arenas, Chile.

Em janeiro de 1975, Liebermann foi aos Estados Unidos


para o que seria uma temporada de dois meses de
conferências, num circuito em direção contrária à marcha dos
ponteiros de um relógio, a partir da metade leste do país,
começando e terminando na cidade de Nova York. Sua agência
de conferências contratara mais de setenta compromissos,
alguns em academias e universidades e a maioria em templos
e em almoços promovidos por grupos judaicos. Antes de
partir para a temporada, foi levado a um programa de
- 146 -

televisão na Filadélfia (juntamente com um especialista em


alimentação sadia, um ator e uma mulher que escrevera uma
novela erótica: publicidade preciosa e difícil de arranjar,
garantiu-lhe Mr. Goldwasser, da agência).

Na noite de quinta-feira, 14 de janeiro, Liebermann falou


na Congregação Knesses Israel, em Pittsfield, Massachusetts.
Uma mulher, que trouxera uma brochura de seu livro para ele
autografar, disse, enquanto ele o autografava, ser de Lenox, e
não de Pittsfield.

— Lenox? Fica perto daqui?

— Onze quilômetros — respondeu ela, sorrindo. — E eu


viria mesmo se ficasse a cem.

Ele sorriu, agradecendo.

Dezesseis de novembro: Curry, Jack; Lenox,


Massachusetts. Não trouxera a lista, mas já estava em sua
cabeça.

Naquela noite, no quarto de hóspedes da presidente da


congregação, permaneceu acordado, ouvindo os flocos de
neve batendo nas vidraças. Curry. Alguma coisa a ver com
impostos, avaliador ou auditor. Morto em acidente de caça, de
um tiro extraviado. Proposital?

Investigara. Treze em dezessete. Inclusive os três de 16


de outubro. Onze quilômetros apenas? A viagem de ônibus até
Worcester não levaria mais de duas horas, e só precisaria
chegar à hora do jantar. Mesmo depois, em caso de
necessidade...

Cedo, na manhã seguinte, tomou emprestado o carro da


sua hospedeira, um Oldsmobile grande, e rumou para Lenox.
Doze centímetros de neve haviam caído e mais estava a
caminho, mas as estradas tinham uma camada fina. Tratores
empurravam a neve para os lados, outras máquinas lançavam -
na a distância, em arcos impetuosos. Incrível, na sua terra
tudo estaria parado.

Em Lenox descobriu que ninguém confessara ter atirado


em Jack Curry. E, extra-oficialmente, o chefe de polícia De
- 147 -

Gregorio não estava certo de que fora um acidente. Um tiro


suspeitosamente perfeito, através do boné de caça vermelho,
bem na nuca. Parecia antes boa pontaria do que má sorte. Mas
Curry já estava morto há cinco ou seis horas quando
encontrado, e pelo menos uma dúzia de pessoas haviam
transitado pelo local. Portanto, o que a polícia poderia ter
encontrado? Nem ao menos o cartucho aparecera.
Investigaram, em vão, se alguém tinha alguma divergência
com Curry. Ele fora um avaliador imparcial e equitativo, um
cidadão respeitado e estimado. Pertencera a algum grupo ou
organização internacional? Ao Rotary. Afora isso, Liebermann
teria de perguntar a Mrs. Curry. Mas De Gregorio não achava
que ela quisesse falar muito. Ouvira dizer que ainda estava
bastante abatida.

Manhã avançada, Liebermann estava sentado numa


pequena cozinha suja, tomando chá de uma caneca lascada e
todo constrangido porque Mrs. Curry parecia prestes a chorar.
Como a viúva de Emil Döring, tinha quarenta e poucos anos,
mas esta era a única semelhança: Mrs. Curry era magra e feia;
tinha cabelos castanhos cortados à moda de rapaz, ombros
aduncos e seios rasos, dentro de um vestido desbotado,
estampado de flores. E era lamurienta.

— Ninguém ia querer matá-lo — insistia, esfregando os


olhos encharcados com as pontas dos dedos avermelhadas e
de unhas rachadas. — Ele era... o melhor homem sobre a face
da terra. Forte, bom, paciente e generoso. Era uma... rocha, e
agora... Oh, Deus!... estou... — E começou a chorar. Pegando
um guardanapo de papel amarrotado, apertou-o de encontro
aos olhos lacrimosos, descansou a testa na mão, o cotovelo
pontudo sobre a mesa, soluçando agitadamente.

Liebermann pousou o chá e inclinou-se para a frente,


desanimado.

Ela se desculpava por entre as lágrimas.

— Está bem — disse ele —, está bem. — Grande coisa.


Onze quilômetros através da neve, para fazer uma mulher
chorar. Treze em dezessete não eram suficientes?
- 148 -

Recostou-se, suspirando, e esperou. Desalentado, olhou à


volta da pequena cozinha manchada de amarelo, com os seus
pratos sujos, a geladeira velha e embalagens de papelão com
garrafas vazias junto à porta dos fundos. Caçada Inútil
número 14. Uma planta dentro de um copo vermelho no
parapeito da janela, atrás da pia, e uma lata de sapólio. Um
desenho de avião, um 747, grudado na porta de um armário.
Muito bom, visto de onde ele estava. Sobre a mesa da cozinha,
uma caixa de flocos de milho.

— Desculpe — choramingou ela, limpando o nariz com o


guardanapo. Seus olhos castanhos molhados fitaram
Liebermann.

— Farei apenas algumas perguntas, Mrs. Curry. Ele


pertencia a um grupo internacional ou organização de homens
da sua idade?

Ela meneou a cabeça, baixando o guardanapo.

— A grupos americanos — respondeu. — A Legião,


Amvets, Rotary...não, este é internacional. O Rotary Club. É o
único.

— Era veterano da Segunda Guerra Mundial?

Ela acenou afirmativamente.

— Da Força Aérea. Ganhou a CMA, a Cruz de Mérito


Aeronáutico.

— Na Europa?

— No Extremo Oriente.

— Esta pergunta agora é pessoal, mas espero que não se


importe. Ele deixou dinheiro para a senhora?

Ela assentiu cautelosamente.

— Não deixou muito...

— Onde nasceu?

— Em Berea, Ohio. — Ela olhou para além dele, e com um


sorriso penoso perguntou: — O que você está fazendo fora da
cama?
- 149 -

Ele voltou-se. O jovem Döring estava parado à porta. Emil,


não, Erich Döring, magro e narigudo, cabelo revolto, de pijama
listrado azul e branco, descalço. Cocava o peito, olhando com
curiosidade para Liebermann.

Este ergueu-se, surpreso.

— Guten Morgen — proferiu, e constatou, enquanto o


menino acenava, entrando no aposento, que Emil Döring e
Jack Curry se conheciam. Tinha de ser assim, senão como se
explicaria a presença do menino ali? Com emoção crescente,
virou-se para Mrs. Curry e perguntou: — O que faz este
menino aqui?

— Está gripado — explicou ela. — E, de qualquer modo,


não há aula por causa da neve. Este é Jack júnior. Não, não
chegue perto, querido. Este é Mr. Liebermann, de Viena, na
Europa. É um homem famoso. Ah, onde estão seus chinelos,
Jack? O que você quer?

— Um copo de suco de grapefruit — disse o menino. Num


inglês perfeito. Com um sotaque igual ao de Kennedy.

Mrs. Curry levantou-se.

— Francamente! — exclamou — será que só vai usá-los


quando não couberem mais no seu pé? E ainda por cima
resfriado! — Dirigiu-se à geladeira.

O menino olhou para Liebermann com os olhos azul-


celestes de Erich Döring.

— Por que o senhor é famoso? — indagou.

— Ele anda atrás de nazistas. Esteve no programa de Mike


Douglas, na semana passada.

— Es ist doch ganz phantastisch! 4 — exclamou Liebermann.


— Sabe que você tem um gêmeo? Um menino exatamente
igual, que mora na Alemanha, numa cidade chamada Gladbeck.

— Exatamente como eu? — redarguiu o menino, incrédulo.

— Exatamente! Nunca vi antes tamanha... semelhança.


Somente irmãos gêmeos poderiam ser assim tão parecidos!
4
"Isto é uma coisa absolutamente fantástica!" Em alemão no original. (N. do E.)
- 150 -

— Jack, volte agora para a cama — ordenou Mrs. Curry,


parada junto à geladeira, com uma embalagem de papelão de
suco de frutas na mão. — Eu levo para você — disse sorrindo.

— Um minuto só — insistiu o menino.

— Já! — exclamou ela severamente. — Vai ficar pior, em


vez de melhorar, andando por aí desse jeito, sem roupão nem
chinelos. Vá. — Voltou a sorrir. — Despeça-se e vá.

— Ai, meu Deus do céu! — exclamou o menino. — Até


logo! — E saiu, emproado, do aposento.

— Olhe esses modos! — Mrs. Curry olhou-o, irritada, e em


seguida para Liebermann, e, dirigindo-se a um armário,
escancarou-lhe a porta. — Gostaria que ele pagasse as contas
do médico — resmungou. — Aí então pensaria duas vezes. —
Retirou um copo.

— É espantoso! — tornou Liebermann. — Cheguei a pensar


que era o menino da Alemanha que viera visitá-la! Até a voz é
a mesma, a expressão dos olhos, o andar...

— Todos têm um sósia — retorquiu Mrs. Curry,


despejando um cauteloso jorro de refresco de grapefruit no
copo verde. — A minha é de Ohio, uma garota que meu marido
conheceu antes de mim. — Pousou a embalagem de papelão e
voltou-se, com o copo cheio na mão. — Bem — disse, sorrindo
—, não quero parecer grosseira, mas, como pode perceber, há
um bocado de coisas por aqui que eu preciso arrumar. E ainda
por cima tendo Jack preso em casa. Tenho certeza de que
ninguém matou meu marido de propósito. Foi um acidente. Ele
não tinha um só inimigo no mundo.

Liebermann, os olhos pestanejando, acenou com a cabeça


e apanhou o sobretudo no encosto da cadeira.

Espantosa aquela semelhança. Como dois grãos de


ervilha.

E mais espantoso ainda quando, além da semelhança de


seus rostos macilentos e atitudes céticas, existe a de pais de
sessenta e cinco anos e funcionários públicos, vítimas de
morte violenta, com um mês de intervalo. E ainda a das idades
- 151 -

de suas mães, quarenta e um ou quarenta e dois. Como


admitir tanta semelhança?

O volante tendeu para a direita. Corrigiu-o, espiando


através das sacudidelas rápidas do limpador de para-brisas.
Era preciso concentrar-se na direção...

Não podia ser apenas coincidência, era demais. Mas o que


mais poderia ser? Seria possível que Mrs. Curry, de Lenox (que
elogiava a generosidade do finado marido), e Frau Döring, de
Gladbeck (nenhum modelo de fidelidade, ao que parecia),
tivessem tido casos com o mesmo homem macilento e
narigudo, nove meses antes de seus filhos nascerem? Mesmo
nessa eventualidade improvável (um piloto da Lufthansa
viajando entre Essen e Boston!), os meninos não seriam
gêmeos. E isso é o que eles eram, absolutamente idênticos.

Gêmeos...

O principal interesse de Mengele. O objeto das suas


experiências de Auschwitz.

Então?

O velho professor de Heidelberg dissera: "Nenhuma das


sugestões feitas até agora identificou a presença do Dr.
Mengele no problema".

Sim, mas os meninos não eram gêmeos, apenas pareciam.

Continuou lutando com aquilo no ônibus para Worcester.

Tinha de ser coincidência. Todo mundo tinha um sósia,


conforme Mrs. Curry dissera tão tranquilamente. E, embora ele
duvidasse da veracidade da afirmativa, tinha de reconhecer
que vira uma quantidade de gente parecida em sua vida: um
Bormann, dois Eichmanns, meia dúzia de outros. (Mas gente
parecida, não igual, e por que despejara ela com tanto
cuidado o grapefruit? Estaria então muito preocupada, receosa
de que um tremor demão pudesse traí-la? E depois, aquilo de
mandá-lo embora com pressa, repentinamente atarefada. Deus
do céu, estariam as esposas envolvidas? Mas como? Por quê?)

A neve cessara, o sol brilhava. Massachusetts passou num


relance, colinas e casas de um branco deslumbrante.
- 152 -

A obsessão de Mengele por gêmeos. Todos os relatos


daquele rebotalho subumano faziam referência àquilo: as
autópsias em gêmeos trucidados para descobrir as razões
genéticas de suas ligeiras diferenças, as tentativas de realizar
mudanças em gêmeos vivos...

Agora escute, Liebermann, você está ultrapassando um


bocadinho os limites. Mais de dois meses atrás, você viu Erich
Döring. Durante menos de cinco minutos. E então, agora,
vendo um menino do mesmo tipo — com uma forte
semelhança, concedamos —, você mistura coisas na cabeça,
emparelha, e pronto: gêmeos idênticos, e Mengele em
Auschwitz. Só porque dois homens, entre dezessete, tinham
filhos parecidos. O que há nisso de assombroso?

Mas, e se fossem mais do que dois? E se fossem três? Está


vendo? Está ultrapassando os limites. Por que não pensar
então em quádruplos, já que começou?

A viúva de Trittau dera bola para Klaus e oferecera -lhe


alguma coisa mais. Com sessenta e tantos anos? Talvez. Mais
provável que fosse mais jovem. Quarenta e um? Quarenta e
dois?

Em Worcester, pediu à sua hospedeira, uma tal de Mrs.


Labowitz, para dar um telefonema internacional.

— Eu lhe pagarei, claro.

— Mr. Liebermann, por favor! O senhor é um hóspede em


nossa casa: o telefone é seu!

Não discutiu. O local era praticamente uma mansão.

Eram cinco e quinze. Onze e quinze na Europa.

A telefonista informou que o número de Klaus não


respondia. Liebermann pediu-lhe que tentasse outra vez
dentro de meia hora, e desligou. Pensou um momento e
chamou-a novamente. Virando as páginas do seu caderno de
endereços, deu-lhe o número de Gabriel Piwowar, em
Estocolmo, e de Abe Goldschmidt, em Odense.
- 153 -

Foi chamado ao telefone justamente quando se sentava


para jantar com quatro Labowitz e cinco convidados.
Desculpou-se e foi atender na biblioteca.

Goldschmidt. Falaram em alemão.

— De que se trata? Mais homens para eu investigar?

— Não, são os mesmos dois. Eles tinham filhos com cerca


de treze anos de idade?

— O de Bramminge tinha. Horve. Okking, de Copenhague,


tinha duas filhas de trinta e tantos anos.

— Que idade tem a viúva de Horve?

— É jovem. Fiquei surpreso. Deixe-me ver. Pouco mais


jovem que Natalie. Quarenta e dois, digamos.

— Viu o menino?

— Ele estava na escola. Devia ter falado com ele?

— Não, só queria saber que aparência tinha.

— Era um garoto magricela. Ela guardava a fotografia dele


em cima do piano, tocando violino. Falei alguma coisa, e ela
disse que era antiga, de quando ele tinha nove anos. Agora
tem quase catorze.

— De cabelos escuros, olhos azuis, narigudo?

— Como posso lembrar? Cabelos escuros, sim. Os olhos,


não poderia saber, a foto não era colorida. Um menino,
magricela, tocando violino, de cabelos escuros. Pensei que
você estivesse satisfeito.

— Eu também pensei. Obrigado, Abe. Até a vista.

Desligou. O telefone tocou na sua mão.

Era Piwowar. Falaram em ídiche.

— Os dois homens que você investigou tinham filhos com


cerca de catorze anos?

— Anders Runsten tinha. Persson, não.

— Você o viu?
- 154 -

— O filho de Runsten? Ele fez o meu retrato enquanto eu


esperava pela mãe. Brinquei com ele, dizendo que ia levá-lo
para a minha loja.

— Que aparência tem?

— Pálido, magro, cabelos escuros, narigudo.

— Olhos azuis?

— Azul-claros.

— E que idade tinha a mãe, quarenta e poucos?

— Eu lhe disse?

— Não.

— Então, como você sabe?

— Não posso falar agora. Há pessoas me esperando. Até a


vista, Gabriel. Passe bem.

O telefone tocou de novo. A telefonista informou que o


número de Klaus ainda não respondia. Liebermann disse-lhe
que faria outra chamada mais tarde.

Dirigiu-se à sala de jantar, sentindo-se tonto e vazio,


como se as partes vivas do seu organismo estivessem em
outro lugar (em Auschwitz?) e somente suas roupas, pele e
cabelo ali em Worcester, jantando com aquela gente tão
despreocupada.

Perguntou e respondeu às questões habituais, contou as


histórias habituais. Comeu o suficiente para não desgostar
Dolly Labowitz.

Foram para o templo em dois carros. Ele proferiu a


conferência, respondeu às perguntas, assinou os livros.

Quando regressaram à casa, fez a chamada para Klaus.

— São cinco da manhã lá — lembrou-lhe a telefonista.

— Eu sei — respondeu.

Klaus atendeu, sonolento e confuso.

— O quê? Sim? Boa noite! Onde você está?


- 155 -

— Em Massachusetts, na América. Que idade tinha a viúva


de Trittau?

— O quê?

— Que idade tinha a viúva de Trittau? Frau Schreiber.

— Deus meu! Não sei, era difícil dizer, ela tinha um


bocado de maquilagem. Muito mais moça que ele, entretanto.
Trinta e muitos ou quarenta e poucos.

— Com um filho de cerca de catorze?

— Por volta dessa idade. Pouco amistoso para comigo,


mas não se pode culpá-lo. Ela mandou-o para a casa da irmã, a
fim de que pudéssemos "conversar em particular".

— Descreva-o.

Houve uma pausa.

— Magro, na altura do meu queixo, olhos azuis, cabelos


castanho-escuros, narigudo. Pálido. O que está acontecendo?

Liebermann passou os dedos pelos botões quadrados do


telefone. Redondos ficariam melhor, pensou. Quadrados, não
fazia sentido.

— Herr Liebermann?

— Não é uma caçada inútil — disse ele. — Encontrei a


ligação.

— Deus do céu! Qual é?

Ele inspirou profundamente e depois soltou a respiração.

— Eles têm o mesmo filho.

— O mesmo o quê?

— Filho! O mesmo filho! Exatamente o mesmo menino! Eu o


vi aqui e em Gladbeck, você o viu aí. E ele está em Göteborg,
Suécia, e em Bramminge, Dinamarca. Exatamente o mesmo
menino! Toca um instrumento musical, ou então desenha. E a
mãe tem sempre quarenta e um, quarenta e dois. Cinco mães
diferentes, cinco filhos diferentes; mas o filho é o mesmo, em
diferentes lugares.
- 156 -

— Não... compreendo.

— Nem eu! A ligação deveria nos fornecer o motivo, não


é? Em vez disso, a coisa está mais maluca do que quando
começamos! Cinco meninos exatamente iguais!

— Herr Liebermann... acho que talvez sejam seis. Frau


Rausenberger, de Freiburg, tem quarenta e um ou dois. E um
filho jovem. Não o vi, nem perguntei sua idade — não pensei
que tivesse importância —, mas ela disse que talvez ele fosse
para Heidelberg também. Não para estudar direito, mas para
seguir a carreira de escritor.

— Seis — repetiu Liebermann.

O silêncio prolongou-se entre eles. Mais ainda.

— Noventa e quatro?

— Seis já é impossível — tornou Liebermann. — Por que


não, então? Mas, ainda que fosse possível, e não o é, por que
haviam de estar matando os pais? Chego quase a pensar que
vou dormir esta noite e acordar em Viena na noite em que
tudo isso começou. Sabe qual era o interesse principal de
Mengele em Auschwitz? Gêmeos. Ele matou milhares deles,
"para estudos", a fim de aprender como gerar arianos
perfeitos. Quer me fazer um favor?

— Claro!

— Vá a Freiburg novamente, e dê uma olhada no garoto.


Veja se não é igualzinho ao de Trittau. Depois me diga se
estou maluco ou não.

— Irei hoje. Onde poderei encontrá-lo?

— Eu telefonarei para você. Boa noite, Klaus.

— Bom dia. Mas uma boa noite para você.

Liebermann pousou o fone.

— Mr. Liebermann? — Dolly Labowitz sorria-lhe da porta.


— Gostaria de assistir ao noticiário conosco? E comer uma
sobremesinha? Um doce ou uma fruta?
- 157 -

Os seios de Hannah haviam secado, Dena estava


chorando, por isso era natural que Hannah se preocupasse.
Muito compreensível. Mas haveria algum motivo para mudar o
nome de Dena? Hannah insistia nisso.

— Não discuta comigo — dizia ela. — De agora em diante,


vamos chamá-la Frieda. É o nome perfeito para um bebê,
depois disso terei leite de novo.

— Não faz sentido, Hannah — tornou ele, paciente,


andando com dificuldade ao seu lado, através da neve. — Uma
coisa nada tem a ver com a outra.

— O nome dela será Frieda — anunciou Hannah. — Vamos


mudá-lo legalmente.

A neve abriu-se numa garganta profunda, adiante, e ela


deslizou para dentro, Dena em prantos nos seus braços. Oh,
Deus! Ele olhou a neve, agora compacta, e achou-se deitado de
barriga para cima na escuridão, numa cama, num quarto.
Worcester. Labowitz. Seis meninos. Dena crescida, Hannah
morta.

Que sonho. De onde tirara aquilo? Frieda ainda por cima!


E Hannah e Dena deslizando para dentro daquele abismo...

Permaneceu imóvel por um minuto, desfazendo com o


bater das pálpebras a terrível visão, e em seguida levantou-se;
uma luz clara recortava-se por baixo das persianas móveis da
janela. Foi ao banheiro.

Não acordara uma vez sequer durante a noite, realmente


dormira bem. Exceto quanto ao sonho.

Voltou ao quarto de dormir, chegou o relógio para junto


de uma das janelas, apertando os olhos. Vinte para as sete.

Voltou à cama tépida, aconchegou as cobertas e quedou -


se refletindo, com um novo vigor.

Seis meninos idênticos — não, seis meninos muito


parecidos, talvez idênticos — viviam em seis lugares
diferentes, com seis mães diferentes, todas da mesma idade, e
seis pais vítimas de morte violenta, todos da mesma idade,
com ocupações semelhantes. Não era impossível, era real, um
- 158 -

fato. Portanto, precisava ser encarado, esclarecido,


compreendido.

Imóvel e tranquilo, deixou a mente flutuar livre. Meninos.


Mães. Os seios de Hannah. Leite.

O nome ideal para um bebê...

Santo Deus, claro. Tinha de ser.

Deixou que tudo se reunisse...

Pelo menos, uma parte.

Estava explicado o suco de grapefruit,

e a maneira como a mulher o havia despedido. A maneira


como despedira o menino também. Pensara rápido, fingindo
que os seus pés descalços e a falta do roupão constituíssem
motivos de preocupação.

Permaneceu ali, na esperança de que o resto viesse. A


parte principal, ade Mengele. Mas não.

Bem, um passo de cada vez...

Levantou-se, tomou um banho de chuveiro, barbeou-se,


aparou o bigode, penteou os cabelos, tomou suas pílulas,
escovou os dentes, colocou sua ponte. Vestiu-se e arrumou a
mala.

Às sete e vinte, dirigiu-se à cozinha. A empregada Francês


estava lá, e Bert Labowitz, em mangas de camisa, comia e lia.
Após os cumprimentos matinais, sentou-se diante de Labowitz
e propôs:

— Tenho de ir a Boston mais cedo do que pensava. Posso


ir com você?

— Certamente — respondeu Labowitz. — Sairei às cinco


para as oito.

— Perfeito. Preciso dar um telefonema para Lenox.

— Aposto como alguém o avisou a respeito de Dolly, da


maneira como ela dirige.

— Não, é que surgiu um dado novo.


- 159 -

— Gostará mais da viagem vindo comigo.

Às quinze para as oito, na biblioteca, ele telefonou para


Mrs. Curry.

— Alô?

— Bom dia, é Yakov Liebermann de novo. Espero não tê-la


acordado.

Pausa.

— Eu já tinha levantado.

— Como está seu filho esta manhã?

— Não sei, ainda está dormindo.

— Isso é bom. É a melhor coisa, bastante sono. Ele não


sabe que é adotado, sabe? Por isso é que ficou nervosa quando
eu lhe disse que ele tinha um gêmeo.

Silêncio.

— Não fique nervosa, Mrs. Curry. Não vou dizer a ele. Se


quiser manter segredo, não direi uma palavra. Diga-me só uma
coisa, por favor. É muito importante. Conseguiu-o através de
uma mulher chamada Frieda Maloney?

Silêncio.

— Conseguiu, ja?

— Não! Espere um minuto. — O ruído do fone sendo


arriado, passos se afastando. Silêncio. Passos voltando.
Suavemente: — Alô?

— Sim?

— Nós o conseguimos através de uma agência. Em Nova


York. Foi uma adoção perfeitamente legal.

— Por intermédio da Agência Rush-Gaddis?

— Sim.

— Ela trabalhou lá de 1960 a 1963. Frieda Maloney.

— Jamais ouvi este nome antes! Por que se intromete


desta maneira? Que diferença faz se ele tiver mesmo um
gêmeo?
- 160 -

— Não tenho certeza.

— Então, não me importune de novo! E não se aproxime


de Jack! — Estalido do fone. Silêncio.

Bert Labowitz levou-o ao Aeroporto Logan e ele pegou o


voo das nove, da ponte aérea para Nova York.

Às dez e quarenta, estava no gabinete da assistente do


diretor-executivo da Agência de Adoção Rush-Gaddis, Mrs.
Teague, uma mulher de cabelos grisalhos, magra e bonita.

— Nenhuma — disse-lhe ela.

— Nenhuma?

— Nenhuma. Ela não selecionava casos. Carecia de


habilitações para isso. Era uma arquivista. Evidentemente, seu
advogado, quando ela lutava contra a extradição, tentou criar-
lhe aspecto mais favorável, por isso insinuou que ela
desempenhava um papel mais importante aqui do que na
realidade. Mas ela era simplesmente arquivista. Cientificamos
os advogados do governo — naturalmente, estávamos bastante
ansiosos para colocar nossas ligações com ela em sua
verdadeira perspectiva — e o nosso chefe de pessoal foi
convocado como testemunha. Entretanto, ela jamais foi
chamada. Pensamos em divulgar posteriormente alguma forma
de declaração ou informe, mas acabamos decidindo que,
naquela altura, o melhor era simplesmente deixar o assunto
morrer.

— Então ela não procurava lares para os bebês. —


Liebermann puxou o lóbulo de sua orelha.

— Nenhum — respondeu Mrs. Teague. Sorriu para ele. — E


o senhor está calçando o sapato no pé errado: trata-se de uma
questão de encontrar bebês para os lares. A procura excede de
muito a oferta. Especialmente a partir da modificação das leis
sobre o aborto. Só conseguimos atender uma pequena fração
das pessoas que a nós recorrem.

— E naquela época também? De 1960 a 1963?

— Então e sempre, mas atualmente estamos na pior fase.


- 161 -

— Muitos pedidos?

— Mais de trinta mil no ano passado. De todas as partes


do país. Do continente, para ser mais exata.

— Permita-me indagar-lhe o seguinte — aventou


Liebermann. — Um casal vem procurá-la, ou lhe escreve, nesse
período de 1961-62. Gente boa, em boa situação. Ele é
funcionário público, emprego seguro. Ela — agora deixe-me
pensar um segundo — ela... tem cerca de vinte e oito ou vinte
e nove anos, e ele cinquenta e dois. Que possibilidades teriam
de arranjar um bebê com a senhora?

— Nenhuma — respondeu Mrs. Teague. — Não aceitamos


pedidos quando o marido tem essa idade. Quarenta e cinco é o
nosso limite, e só chegamos a tanto quando existem fatores
especiais. Aceitamos geralmente casais com trinta e poucos —
com idade bastante para serem estáveis no casamento e
suficientemente jovens para assegurar à criança uma
assistência contínua dos pais. Ou uma promessa disso, diria
eu.

— Então, onde um casal como eu descrevi conseguiria um


bebê?

— Não por intermédio da Rush-Gaddis. Algumas outras


agências são mais complacentes. E está claro que exista o
mercado negro. O advogado ou médico poderá saber de uma
adolescente grávida que não deseje abortar. Ou que possa ser
paga para não fazer isso.

— Mas caso tenham recorrido à senhora, a senhora os


recusou.

— Sim. Nunca aceitamos alguém com mais de quarenta e


cinco anos. Existem milhares de casais mais convenientes,
rezando, na expectativa.

— E os pedidos recusados — aventurou Liebermann —


talvez fossem arquivados por Frieda Maloney, não?

— Por ela ou algum outro de nossos empregados —


esclareceu Mrs. Teague. — Guardamos todos os pedidos e a
- 162 -

correspondência durante três anos. Cinco, naquela época, mas


atualmente dispomos de pouco espaço.

— Obrigado. — Liebermann levantou-se com a pasta. — A


senhora me auxiliou bastante. Agradeço-lhe muito.

Numa pequena cabine telefônica em frente ao Museu


Guggenheim, com a pasta e a mala ao seu lado, na calçada, ele
telefonou para Mr. Goldwasser, da agência de conferências.

— Tenho péssimas notícias. Preciso ir à Alemanha.

— Ah, meu Deus. Quando?

— Agora.

— Não pode! Falará esta noite na Universidade de Boston!


Onde é que você está?

— Em Nova York. Esta noite estarei num avião. — Você


não pode!

Aceitou o contrato! Eles venderam os ingressos! E


amanhã...

— Eu sei, eu sei! Julga que me agrada cancelar desse jeito?


Julga que não sei que é uma dor de cabeça para o senhor e
para eles, e que poderia até mesmo processar-me? Trata-se...

— Ninguém está falando em...

— Trata-se de questão de vida ou morte, Mr. Goldwasser.


Vida ou morte. Talvez até mais.

— Que chateação! Quando volta?

— Não sei. Talvez tenha de permanecer na Alemanha por


algum tempo. E depois, ir para outro lugar.

— Quer dizer que está cancelando todo o resto da


temporada?

— Acredite-me, se não tivesse que...

— Isso só me aconteceu uma vez em dezoito anos, e então


se tratava de um cantor, e não de uma pessoa responsável
como você. Escute, Yakov, admiro-o e quero muito bem a
você. Estou falando não apenas como seu representante, mas
como ser humano, um outro judeu. Peço-lhe que pense com
- 163 -

muito cuidado: se cancelar toda uma temporada dessa


maneira, de um momento para o outro, como poderemos
continuar a representá-lo? Ninguém vai querer ser seu
empresário. Nenhum grupo irá contratá-lo. Estará acabado
como conferencista nos Estados Unidos da América. Imploro-
lhe: reflita, por favor.

— Já refleti enquanto o senhor falava — respondeu ele. —


Tenho de ir. Antes não tivesse!

Tomou um táxi para o Aeroporto Kennedy e trocou a sua


passagem de volta para Viena por uma para Düsseldorf, via
Frankfurt: no primeiro voo disponível, com partida marcada
para as seis horas.

Comprou um exemplar do livro de Farago sobre Bormann


e passou atarde junto a uma janela, lendo.

Cinco

Uma denúncia acusando Frieda Altschul Maloney e mais


oito pessoas de assassinato em massa no campo de
concentração de Ravensbrück era esperada a qualquer
momento. Por isso, quando, na sexta-feira, 17 de janeiro,
Yakov Liebermann se apresentou nos escritórios dos
advogados de Frau Maloney, Zweibel & Fassler, de Düsseldorf,
não recebeu acolhimento cálido, nem sequer à temperatura
ambiente. Mas Joachim Fassler era suficientemente advogado
para perceber que Liebermann não viera ali para vangloriar-se
ou matar o tempo. Devia querer alguma coisa, e portanto
alguma coisa iria oferecer, dando margem a que se pedisse
algo em troca. Por isso, após ligar o seu gravador, Fassler
recebeu Liebermann no escritório.

Tinha razão. O judeu queria ter um encontro com Frieda e


interrogá-la acerca de certos assuntos de algum modo
relacionados com as suas atividades de tempo de guerra e sem
conexão com o seu próximo julgamento. Eram assuntos
- 164 -

americanos, envolvendo o período de 1960 a 1963. Que


assuntos americanos? Adoções que ela ou alguém mais
selecionara, na base de informações obtidas dos arquivos da
Agência Rush-Gaddis.

— Nada sei de tais adoções — declarou Fassler.

— Frau Maloney sabe — retorquiu Liebermann.

Se ela o recebesse e respondesse de maneira completa e


sincera às suas perguntas, ele revelaria a Fassler alguma coisa
acerca dos depoimentos que iam ser prestados contra ela,
através das testemunhas que localizara.

— Quais?

— Não os seus nomes, apenas parte de seu depoimento.

— Vamos, Herr Liebermann, sabe muito bem que não


estou disposto a comprar nabos em sacos.

— O preço é bastante barato, não? Uma hora e pouco do


tempo dela? Não deve ter muito o que fazer, sentada numa
cela.

— Ela pode não querer falar sobre essas supostas


adoções.

— Por que não perguntar a ela? Existem três testemunhas


cujo depoimento eu conheço. O senhor poderá ouvi-las
simplesmente no tribunal, ou então ter uma pré-estréia
amanhã.

— A verdade é que não estou tão interessado assim.

— Neste caso, acho que não vamos chegar a um acordo.

Levou quatro dias para que tudo ficasse combinado. Frau


Maloney conversaria meia hora com Liebermann a respeito dos
assuntos que interessassem a ele, contanto que: a) Fassler
estivesse presente; b) não houvesse mais ninguém presente; c)
nada fosse escrito; e d) Liebermann permitisse a Fassler
revistá-lo, imediatamente antes do encontro, para ver setinha
um gravador. Em troca, Liebermann diria a Fassler tudo o que
soubesse do provável depoimento das três testemunhas,
dando a idade, sexo, ocupação e atuais condições físicas e
- 165 -

mentais de cada uma, principalmente em relação a cicatrizes,


deformidades ou invalidez resultantes de experiências em
Ravensbrück. O depoimento e a descrição de uma testemunha
seriam fornecidos antes do encontro. Os das outras duas, após
o mesmo. Acordo de ambas as partes.

Na manhã de quarta-feira, dia 22, Liebermann e Fassler,


no carro-esporte cinza-metálico deste último, dirigiram-se à
prisão federal de Düsseldorf, onde Frieda Maloney estivera
confinada desde a sua extradição dos Estados Unidos em
1973. Fassler, homem corpulento e bem-vestido, com os seus
cinquenta e poucos anos, estava tão corado quanto de
costume, mas, ao se identificarem e serem admitidos, ainda
não havia recobrado a arrogante segurança costumeira.
Liebermann tratara com ele do depoimento da testemunha
mais prejudicial, em primeiro lugar, na esperança de que o
temor de que o pior estivesse para vir o tornasse, e através
dele Frieda Maloney, ansioso de que o encontro não deixasse
de ser satisfatório.

Um guarda levou-os de elevador e conduziu-os ao longo


de um corredor atapetado, onde alguns guardas e in spetoras
encontravam-se sentados em bancos, entre portas de nogueira
marcadas com letras cromadas. O guarda abriu uma porta
marcada com um G e introduziu Fassler e Liebermann numa
sala quadrada, de paredes bege, com uma mesa de entrevistas
redonda e várias cadeiras. Duas janelas, com cortinas de rede,
forneciam luz em paredes adjacentes, uma delas com grades e
a outra não, o que pareceu esquisito a Liebermann.

O guarda acendeu uma luz geral, fazendo pouca diferença


no aposento já claro. Retirou-se, fechando a porta.

Eles colocaram seus chapéus e pastas em escaninhos,


tiraram os sobretudos e os penduraram nos cabides.
Liebermann ficou de braços estirados e Fassler revistou-o,
com empenho e decisão. Apalpou os bolsos do seu sobretudo
pendurado e pediu-lhe que abrisse a pasta. Liebermann
suspirou, mas desafivelou-a e abriu-a. Exibiu documentos, o
livro de Farago, fechou-a e voltou a passar-lhe a fivela.
- 166 -

Esclareceu suas dúvidas com relação às janelas — a que


não tinha grades dava para um pátio de muros altos lá
embaixo, a gradeada tinha um telhado escuro bem próximo —
e em seguida sentou-se à mesa, de costas voltadas para a
janela sem grades. Imediatamente, porém, levantou-se, para
não ficar embaraçado quando Frieda Maloney entrasse.

Fassler abriu um pouco a janela gradeada e pôs-se a olhar


por ela, afastando a cortina bege de rede.

Liebermann cruzou os braços, de olhos postos numa


garrafa e copos envoltos em papel sobre a mesa, numa
bandeja.

Ele dera informações sobre a ficha e paradeiro de Frieda


Altschul às autoridades alemãs e americanas, em 1967. A ficha
fizera parte do arquivo do Centro, e fora extraída de
conversações e correspondência com dúzias de sobreviventes
de Ravensbrück (entre eles as três futuras testemunhas). O
paradeiro lhe fora fornecido por mais duas outras
sobreviventes, irmãs, que haviam localizado sua antiga guarda
num hipódromo de Nova York, tendo-a seguido até sua
residência. Ele próprio nunca se encontrara com a mulher. Não
lhe agradava a perspectiva de sentar-se à mesma mesa com
ela. Independentemente de tudo o mais, sua irmã do meio,
Ida, morrera em Ravensbrück, sendo muito possível que
Frieda Altschul Maloney tivesse colaborado na sua morte.

Tirou Ida da mente. Retirar tudo do pensamento, exceto a


Agência Rush-Gaddis e os seis meninos ou mais que pareciam
idênticos. Uma antiga arquivista da Rush-Gaddis vem aí, disse
consigo. Vamos sentar em torno desta mesa e conversar um
pouco, talvez eu descubra que diabo está acontecendo.

Fassler voltou-se da janela, arregaçou o punho, franziu o


olhar para o relógio.

A porta abriu-se e Frieda Maloney entrou, de uniforme


azul-claro, mãos nos bolsos. Uma inspetora sorriu por cima de
seu ombro e disse:

— Bom dia, Herr Fassler.


- 167 -

— Bom dia — respondeu Fassler, adiantando-se. — Como


vai?

— Bem, obrigada — tornou a inspetora. Sorriu para


Liebermann e terminou fechando a porta atrás de si.

Fassler tomou Frieda Maloney pelos ombros, beijou-lhe o


rosto e levou-a a um canto, falando baixinho. Ela desaparecera
atrás de sua corpulência.

Liebermann limpou a garganta e sentou-se, chegando a


cadeira para mais perto da mesa.

Acabara de ver o que já conhecia de fotografias: uma


mulher de meia-idade e aparência comum. Mais para pequena,
cabelos grisalhos levantados dos lados e ondulados em cima.
Pele de aspecto doentio, de um branco pardacento, queixo
largo, boca desanimada. Olhar fatigado, porém resoluto. No
uniforme da prisão, Frieda Maloney poderia passar por uma
camareira ou garçonete sobrecarregada de trabalho. Algum
dia, pensou, gostaria de encontrar um monstro que parecesse
um monstro.

Agarrou a grossa borda de madeira da mesa e tentou ouvir


o que Fassler estava dizendo.

Eles dirigiram-se à mesa.

Olhou para Frieda Maloney, e ela — enquanto Fassler


puxava a cadeira em frente — fitou-o, olhos azuis
perscrutadores, boca de lábios finos caídos. Cumprimentou
com a cabeça, sentando-se.

Ele devolveu o cumprimento.

Ela esboçou um sorriso de agradecimento a Fassler e, com


os cotovelos sobre os braços da cadeira, tamborilou com os
dedos na beirada da mesa, primeiro os de uma mão, depois os
da outra, bastante depressa. Em seguida, parou e descansou -
os ali, contemplando-os.

Liebermann olhou também para eles.


- 168 -

— São exatamente, agora — Fassler, sentado à direita de


Liebermann, consultou o relógio em seu pulso erguido —,
vinte e cinco para as doze. — Olhou para Liebermann.

Liebermann olhou para Frieda Maloney.

Ela olhou para ele. Suas sobrancelhas só ergueram-se.

Ele verificou que não conseguia falar. Nenhum alento


sobrava nele — só pensamentos em torno de Ida. Seu coração
batia forte.

Frieda Maloney mordeu o lábio inferior, olhou para


Fassler, de novo para Liebermann.

— Não me oponho a falar acerca da questão dos bebês —


disse. — Fiz muita gente feliz. É coisa que em nada me
envergonha. — Tinha um suave acento do sul da Alemanha.
Mais agradável de ouvir do que o de Fassler, áspero, de
Düsseldorf. — E quanto à Organização dos Camaradas —
acrescentou, com desdém —, não são mais meus camaradas.
Se o fossem, eu não estaria aqui, não é verdade? Estaria na
Amérrica to Sul — seus olhos dilataram-se — lefanto a poa
fita... — Ergueu a mão acima da cabeça e estalou os dedos,
gingando o torso, num arremedo do ritmo latino.

— Acho que seria melhor — Fassler dirigiu-se a ela — que


você contasse a ele tudo que contou para mim. — Voltou-se
para Liebermann. — E aí então o senhor poderia fazer as
perguntas que quisesse. Conforme o tempo permita.
Concordam?

O alento voltou.

— Sim — assentiu Liebermann. — Contanto que haja


tempo suficiente para as perguntas.

— Você não vai contar de fato os minutos, vai? — indagou


Frieda Maloney a Fassler.

— Certamente que vou — retorquiu ele. — Acordo é


acordo. — E para Liebermann: — Haverá tempo suficiente, não
se preocupe. — Olhou para Frieda Maloney e acenou com a
cabeça.
- 169 -

Ela cruzou as mãos sobre a mesa, olhando para


Liebermann.

— Um homem da Organização entrou em contato comigo


— declarou ela. — Em 1960, na primavera. Um tio meu da
Argentina falara-lhes a meu respeito. Ele já morreu. Queriam
que eu me empregasse numa agência de adoção. Alois — isto
é, o homem — tinha uma lista de três ou quatro delas.
Qualquer uma poderia servir, contanto que fosse um serviço
através do qual eu pudesse consultar os arquivos. "Alois" foi o
único nome que ele me deu, sem sobrenome. Mais de setenta,
de cabeça branca. O tipo do antigo soldado, de postura muito
empertigada. — Seus olhos interrogaram Liebermann.

Ele permaneceu impassível, e ela recostou-se na cadeira,


examinando as unhas.

— Fui a todos os lugares — continuou. — Não havia vagas.


Após o verão, porém, Rush-Gaddis chamou-me e me contratou.
Como arquivista. — Ela sorriu, divertida. — Meu marido
pensou que eu estava maluca, aceitando emprego em
Manhattan. Trabalhava então num ginásio, a apenas onze
quarteirões de casa. Disse-lhe que na Rush-Gaddis me haviam
prometido que dentro de um ano mais ou menos eu estaria...

— Apenas o essencial, está bem? — atalhou Fassler.

Frieda Maloney franziu a testa, assentiu com a cabeça.

— Muito bem, então. Rush-Gaddis. — Olhou para


Liebermann. — Oque fiz lá consistia em percorrer a
correspondência e os arquivos, à procura de pedidos em que o
marido houvesse nascido entre 1908 e 1912 e a esposa entre
1931 e 1935. O marido tinha de ter emprego no serviço
público, e os dois deveriam ser cristãos, brancos e de origem
nórdica. Foi o que Alois medisse. Sempre que achava um, e
isso ocorria apenas uma ou duas vezes por mês, copiava-o na
máquina juntamente com toda a correspondência trocada
entre o casal e a Rush-Gaddis. Preparava duas cópias, uma
para Alois e outra para mim. A dele, enviava para a caixa
postal que me indicara.

— Onde? — indagou Liebermann.


- 170 -

— Ali mesmo, em Manhattan. Na Estação Planetarium, no


West Side. Continuei fazendo isso — procurar o tipo certo de
pedidos e expedi-los — durante todo o tempo que estive lá.
Depois de um ano, mais ou menos, ficou ainda mais difícil,
pois já vasculhara os arquivos nessa altura e só tinha os
novos pedidos para consultar. O dado referente ao serviço
público se modificara, então: bastava que o emprego fosse
semelhante ao serviço público. O homem deveria pertencer a
uma grande organização e exercer alguma autoridade. Um
avaliador de companhia de seguros, por exemplo. Então, tive
de recorrer aos arquivos novamente. Ao todo, devo ter
expedido quarenta ou quarenta e cinco propostas durante os
três anos. Cópias de propostas.

Ela inclinou-se para diante e pegou um dos copos


envoltos em papel da bandeja, girando-o nas mãos.

— Entre... vejamos, o Natal de 1960 e o fim do verão de


1963, quando terminei e saí, era assim que acontecia: Alois ou
um outro homem, Willi, telefonava para mim. Geralmente
Willi. Dizia: "Veja se... 'os Smith', da Califórnia, querem um
para março. Ou qualquer outro mês, geralmente dois meses
depois. Consulte 'os Brown', de Nova Jersey, também". Às
vezes me dava três nomes. — Olhou para Liebermann,
explicando: — Gente cujos pedidos eu expedira anteriormente.

Ele assentiu.

— Pois bem. Aí, eu telefonava para os Smith e os Brown.


— Ela retirou o papel que envolvia o topo do copo. — Eu lhes
dizia que um antigo vizinho deles me informara que estavam
querendo um bebê. Estariam ainda interessados? Quase
sempre estavam. — Olhou desafiadoramente para Liebermann.
— Não apenas interessados. Rejubilantes. As mulheres
especialmente. — Segurou o copo na mão, retirando-o pouco a
pouco do invólucro. — Eu lhes dizia que poderia arranjar um,
uma criança branca, de boa saúde, com algumas semanas de
nascida, em março ou quando fosse.Com documentos de
adoção do Estado de Nova York. Mas primeiro tinham de me
enviar o mais cedo possível relatórios médicos completos —
dava-lhes o número da caixa postal de Alois — e também
- 171 -

teriam de prometer jamais dizer à criança que fora adotada. A


mãe fazia questão disso, dizia eu. E evidentemente teriam de
pagar-me alguma coisa quando viessem apanhar o bebê, se o
conseguissem. Mil, geralmente, às vezes mais, se pudessem.
Isso eu podia verificar através da proposta. O bastante para
que parecesse um ajuste comum de mercado negro.

Amassou o invólucro de papel e colocou-o na bandeja,


tirando a rolha da garrafa.

— Algumas semanas depois eu recebia novo telefonema.


"Smith não serve. Brown poderá recebê-lo a 15 de março." Ou
talvez... — Ela inclinou a garrafa sobre o copo; inclinou mais;
nada saiu. — Típico — resmungou, virando de cabeça para
baixo a garrafa preta. — Típico da maneira como este maldito
lugar é dirigido! Os copos são envoltos em papel, mas não há
água na droga da garrafa! Deus do céu! — Depositou a garrafa
com violência sobre a bandeja, fazendo com que os copos
pulassem.

Fassler levantou-se.

— Vou providenciar — disse, apanhando a garrafa. —


Prossiga. — Dirigiu-se à porta.

Frieda Maloney voltou-se para Liebermann:

— Podia lhe contar umas coisas acerca da enorme


incompetência que existe aqui... Céus! Pois bem. Sim, aí ele
me dizia quem receberia o bebê e quando. Ou talvez os dois
casais servissem, e então ele me diria para telefonar para o
segundo e dizer-lhes que era tarde demais, mas que eu sabia
de uma outra moça que esperava para junho. — Rolou o copo
entre as palmas da mão, de lábios franzidos. — Na noite em
que o bebê era entregue — prosseguiu — tudo era preparado
de antemão com muito cuidado. Tanto por mim como por
Aloisou Willi, tanto por mim como pelo casal. Eu estaria num
aposento do Motel Howard Johnson, no Aeroporto Kennedy —
antigo Idlewild —, usando o nome de Elizabeth Gregory. O
bebê chegava às minhas mãos por intermédio de um jovem
casal ou de uma mulher sozinha, às vezes uma aeromoça.
Alguns deles trouxeram mais de um — em ocasiões diferentes,
- 172 -

quero dizer —, mas geralmente em cada ocasião vinha uma


pessoa diferente. Traziam os papéis também. Exatamente
como se fossem verdadeiros, com os nomes do casal
preenchidos. Uma hora ou duas depois, o casal aparecia e
apanhava o bebê. Ficavam radiantes. Cheios de gratidão para
comigo. — Olhou para Liebermann. — Boas pessoas, que
dariam bons pais. Pagavam-me e prometiam — eu os fazia
jurar sobre a Bíblia ali mesmo — jamais dizer à criança que
era adotada. Eram sempre meninos. Umas graças. Eles os
apanhavam e iam embora.

— Sabia de onde eles vinham? — indagou Liebermann. —


Originalmente, quero dizer?

— Os meninos? Do Brasil. — Frieda Maloney desviou o


olhar. — As pessoas que os traziam eram brasileiras —
acrescentou, estendendo a mão —, e as aeromoças, da Varig,
uma linha aérea brasileira. — Recebeu a garrafa de Fassler,
chegou-a ao copo, despejou a água. Fassler deu a volta à mesa
e sentou-se.

— Do Brasil... — disse Liebermann.

Frieda Maloney bebeu, pousando a garrafa na bandeja.


Bebeu, arriou o copo, passou a língua nos lábios.

— Quase sempre tudo transcorria com a precisão de um


cronômetro. — Certa vez o casal não apareceu. Telefonei e me
disseram que haviam mudado de ideai. Aí então levei o bebê
para minha casa e providenciei avinda do casal seguinte.
Documentos novos outra vez. Disse a meu marido que
houvera uma confusão na Rush-Gaddis e que ninguém tinha
lugar para acriança. Ele não sabia nada de nada. Até hoje não
sabe. E eis tudo. Ao todo, deve ter havido cerca de vinte
bebês. Alguns, próximos uns dos outros, no começo; depois
disso, um a cada dois ou três meses. — Ergueu o copo e tomou
um gole.

— Doze minutos — anunciou Fassler, olhando o relógio.


Sorriu para Liebermann. — Está vendo? Ainda tem dezessete
minutos.

Liebermann olhou para Frieda Maloney.


- 173 -

— Que aparência tinham os bebês? — perguntou-lhe.

— Eram lindos — respondeu ela. — Olhos azuis, cabelos


escuros. — Eram todos parecidos, mais parecidos do que de
costume. Do tipo europeu, não brasileiro: pele clara e olhos
azuis.

— Disseram-lhe que eles eram do Brasil ou deduziu isso


apenas de...

— Nada me disseram sobre eles. Apenas a noite e a hora


em que seriam trazidos para o motel.

— De quem seriam os bebês, segundo acha?

— A opinião dela — atalhou Fassler — certamente não tem


a menor importância.

Frieda Maloney teve um gesto dissuasivo.

— Que diferença faz? — redarguiu, e dirigiu-se a


Liebermann: — Imaginei que fossem filhos de alemães da
América do Sul. Filhos ilegítimos, talvez de moças alemãs e
rapazes sul-americanos. Quanto ao motivo por que a
Organização os estaria passando para a América do Norte, e
escolhendo as famílias tão cuidadosamente, disso eu não fazia
a mínima ideia.

— Não perguntou?

— Bem... no princípio, quando Alois me falou do tipo de


propostas a que devia dar preferência, perguntei-lhe para que
tudo aquilo. Ele ordenou-me que não fizesse perguntas,
apenas fizesse o que me mandavam. Pela pátria.

— E estou certo de que você sabia — lembrou-lhe Fassler


— que, se não colaborasse, ele poderia expô-la ao tipo de
vexame que acabou ocorrendo anos depois.

— Sim, claro — retorquiu Frieda Maloney. — Eu sabia


disso. Naturalmente.

Liebermann aventurou:

— Os vinte casais a quem entregou os bebês...


- 174 -

— Cerca de vinte — retificou Frieda Maloney. — Talvez


um pouco menos.

— Eram todos americanos?

— Está querendo dizer... dos Estados Unidos? Não, alguns


eram canadenses. Cinco ou seis. Os demais, dos Estados
Unidos.

— Nenhum europeu?

— Não.

Liebermann permaneceu calado, esfregando o lóbulo da


orelha.

Fassler olhou para o relógio.

— Lembra-se dos nomes deles? — indagou Liebermann.


Frieda Maloney sorriu.

— Foi há treze, catorze anos. Lembro-me de um,


Wheelock, porque eles me deram um cachorro e telefonei-lhes
algumas vezes, pedindo conselhos. Eram criadores de
Dobermanns. Os Henry Wheelock, de New Providence,
Pensilvânia. Falei que estávamos pensando em arranjar um,
por isso trouxeram Sally, então com apenas dez semanas,
quando vieram buscar o bebê. Um cão lindo. Ainda a temos.
Meu marido ainda a tem.

— Guthrie? — indagou Liebermann.

Frieda Maloney fitou-o e acenou com a cabeça.

— Sim — assentiu. — O primeiro foi Guthrie, isso mesmo.

— De Tucson.

— Não. De Ohio. Não, Iowa. Sim, Ames, de Iowa.

— Eles mudaram-se para Tucson — asseverou Liebermann.


— Ele morreu num acidente em outubro último.

— Ah, sim?

— Quem veio em seguida, depois dos Guthrie?

Frieda Maloney meneou a cabeça.


- 175 -

— Nessa altura houve vários, com intervalo de apenas


duas semanas.

— Curry?

Ela olhou para Liebermann.

— Sim — confirmou. — De Massachusetts. Mas não logo


depois dos Guthrie. Espere um minuto agora. Os Guthrie
foram no fim de fevereiro, em seguida veio outro casal, de um
lugar do sul... Macon, acho, e depois os Curry. Em seguida os
Wheelock.

— Duas semanas depois dos Curry?

— Não, dois ou três meses. Após os três primeiros,


começaram a se distanciar.

— Você morreria se eu tomasse nota disso? — indagou


Liebermann a Fassler. — Não vai prejudicá-la; isso aconteceu
na América, há tanto tempo.

Fassler carregou o sobrolho e suspirou.

— Está bem — assentiu.

— Por que é tão importante? — indagou Frieda Maloney.

Liebermann retirou a caneta e encontrou um pedaço de


papel no bolso.

— Como se escreve "Wheelock"? — perguntou.

Ela soletrou para ele.

— New Providence, Pensilvânia?

— Sim. — Procure lembrar-se: exatamente quanto tempo


depois dos Curry eles apanharam o seu bebê?

— Não me lembro exatamente. Dois ou três meses. Não


havia um esquema regular.

— Mais perto de dois ou de três meses?

— Ela não se lembra — atalhou Fassler.

— Está bem — acedeu Liebermann. — Quem veio depois


dos Wheelock?

Frieda Maloney suspirou.


- 176 -

— Não me lembro quem veio e quando. Foram vinte, num


espaço de dois anos e meio. Houve um Truman, que não era
parente de Truman, o presidente. Acho que foi um dos casais
canadenses. E houve um... "Corwin" ou "Corbin", qualquer
coisa parecida. Corbett.

Ela lembrou-se de mais três nomes e de seis cidades.


Liebermann anotou-os.

— Tempo — anunciou Fassler. — Quer ter a gentileza de


me esperar lá fora?

Liebermann pôs de lado a caneta e o papel. Olhou para


Frieda Maloney e acenou com a cabeça.

Ela respondeu ao cumprimento.

Ele levantou-se e dirigiu-se ao cabide. Pôs o sobretudo no


braço e tirou o chapéu e a pasta do escaninho. Caminhou para
a porta, parou, ficou imóvel e voltou-se.

— Gostaria de fazer mais uma pergunta.

Eles o fitaram. Fassler acenou afirmativamente.

Liebermann olhou Frieda Maloney e indagou:

— Quando é o aniversário do seu cachorro?

Ela olhou-o, atônita.

— Sabe? — insistiu ele.

— Sim — respondeu ela —, 26 de abril.

— Obrigado — tornou ele, e para Fassler: — Por favor, não


demore muito, quero acabar logo com isso.

Voltou-se, abriu a porta e saiu para o corredor.

Sentou-se no banco, fazendo alguns cálculos com auxílio


da caneta e deum calendário de bolso. A inspetora, sentada ao
lado do seu casaco dobrado, indagou:

— Acha que vai conseguir libertá-la?

— Não sou advogado.

Fassler, enfiando o seu carro por entre o tráfego


engarrafado, declarou:
- 177 -

— Estou completamente aturdido. Quer me dizer, por


favor, o que fazia a Organização nesse negócio dos bebês?

— Desculpe — retorquiu Liebermann —, mas isso não faz


parte do nosso acordo.

Como se ele soubesse.

Voltou a Viena. Onde, em face de um mandado judicial, as


escrivaninhas e arquivos estavam sendo transferidos para um
local encontrado por Max, dois quartos pequenos num prédio
em ruínas do 15.° Distrito. Portanto, ele tinha de se mudar
imediatamente — Lili já estava procurando — para um
apartamento menor e mais barato (adeus, Glanzer, seu patife).
E onde, comum a coisa e outra — dois meses de adiantamento
para os escritórios, honorários de advogados, despesas de
mudanças, conta do telefone —, mal restava em caixa para
comprar uma passagem para Salzburg, quanto mais para
Washington.

Que era para onde tinha de ir, na semana depois da


próxima, 4 ou 5 de fevereiro.

Deu explicações a Max e Ester, enquanto eles tornavam a


nova sede mais parecida com o Centro de Informação de
Crimes de Guerra e menos com H. Haupt & Filho, Novidades
em Propaganda.

— Os Guthrie e os Curry — disse, raspando o segundo H


da vidraça da porta com uma gilete envolta em um pedaço de
papel — obtiveram seus bebês com cerca de quatro semanas
de intervalo, no final de fevereiro e no final de março, em
1961. E Guthrie e Curry foram mortos com quatro semanas de
intervalo, um dia adiante na mesma ordem. Os Wheelock
obtiveram o seu bebê por volta de 5 de julho — isso eu sei
porque eles deram a Frieda Maloney um cachorrinho de dez
semanas de idade, nascido a 26 de abril...

— O quê? — Ester voltou-se e olhou-o. Ela segurava um


mapa junto à parede, enquanto Max pregava as tachas.
- 178 -

—...e do final de março a 5 de julho — prosseguiu


Liebermann, raspando — são aproximadamente catorze
semanas. Portanto, há uma boa probabilidade de que
Wheelock venha a ser morto por volta de 22 de fevereiro,
catorze semanas depois de Curry. E quero estar em
Washington duas ou três semanas antes.

— Acho que estou seguindo seu raciocínio — disse Ester.

— Como não seguir? Eles estão sendo mortos na mesma


ordem em que obtiveram os bebês, e no mesmo espaço de
tempo. A pergunta é: por quê?

A pergunta, achava Liebermann, teria de esperar. Acabar


com os assassinatos, qualquer que fosse o seu motivo, eis o
que importava, e a sua melhor possibilidade de consegui-lo
seria através do Departamento Federal de Investigações dos
Estados Unidos. Eles não teriam dificuldades em confirmar
que os dois homens mortos em "acidentes" eram pais de filhos
parecidos, ilegalmente adotados, e que Henry Wheelock era
um terceiro (ou quarto, se confirmassem a hipótese de um em
Macon). Em 22 de fevereiro, aproximadamente, poderiam
capturar o futuro matador de Wheelock e saber por intermédio
dele as identidades, e talvez mesmo as datas dos outros
cinco.(Liebermann acreditava agora que os seis matadores
trabalhavam sozinhos, não aos pares, devido à proximidade
no tempo dos assassinatos de Döring, Guthrie, Horve e
Runsten — todos em países diferentes.)

Poderia também, mais facilmente, procurar o


Departamento Federal de Investigações Criminais, de Bonn,
uma vez que estava certo de que numa agência de adoção
alemã (e uma inglesa e três escandinavas) uma Frieda Maloney
pesquisara seus fichários e distribuíra bebês. Klaus achara o
menino de Freiburg idêntico ao de Trittau, e o próprio
Liebermann, quando em Düsseldorf, telefonara para as Frauen
Döring, Rausenberger e Schreiber, obtendo como resposta ao
"Diga-me, por favor, seu filho é adotivo?", dois "sim"
surpresos e cautelosos, um furioso "não", e três ordens para
se meter com a sua vida.
- 179 -

Mas em Bonn não teria nova vítima a apresentar, e a


explicação de como fizera Frieda Maloney falar não seria bem
recebida. Ele próprio tampouco seria bem recebido, ao
contrário do que esperava em relação a Washington. Além do
mais, nas profundezas de seu coração judeu, não confiava nas
autoridades alemãs tanto quanto nas americanas, no que se
referia a questões nazistas.

Portanto, Washington e o FBI.

Sentou-se ao telefone, na nova sede, telefonando para


velhos colaboradores.

— Não me agrada imprensá-lo desta maneira, mas,


acredite-me, é importante. É a respeito de alguma coisa que
está acontecendo atualmente, envolvendo seis homens das SS
e Mengele. — Inflação, alegavam eles. Recessão. Os negócios
andavam péssimos. Começou a lembrar os pais mortos, os Seis
Milhões — coisa que odiava fazer, utilizando a culpa como
angariadora de fundos. Conseguiu algumas promessas. — Por
favor, imediatamente — dizia. — É importante.

— Mas não é possível — ponderava Lili, pondo com a


colher uma segunda porção avantajada de bolinhos de batata
no seu prato. — Como pode haver tantos meninos parecidos?

— Querida — retorquia-lhe Max, do outro lado da mesa —,


não diga que não é possível. Yakov viu. O seu amigo de
Heidelberg viu.

— Frieda Maloney viu — assegurou Liebermann. — Os


bebês eram todos parecidos, mais do que de costume.

Lili, virando-se para o lado, imitou o gesto de quem


cospe.

— Tomara que morra.

— O nome que ela usou — informou Liebermann — foi


Elizabeth Gregory. Tencionava perguntar-lhe se lhe sugeriram
o nome ou ela própria o escolhera, mas esqueci.

— Qual a diferença? — indagou Max, mastigando.


- 180 -

— "Gregory" — tornou Lili. — O nome que Mengele usou


na Argentina. — Ah, sim, claro.

— Deve ter sido ideia dele — asseverou Liebermann. —


Tudo deve ter sido ideia dele, a operação toda. Ele endossou a
coisa toda, ainda que não o pretendesse.

Chegou algum dinheiro — da Suécia e dos Estados Unidos


— e Liebermann reservou uma passagem para Washington, via
Frankfurt e Nova York, para terça-feira, 4 de fevereiro.

Na noite de sexta-feira, 31 de janeiro, Mengele usava o


nome Mengele. Voara com os seus guarda-costas para
Florianópolis, na ilha de Santa Catarina, mais ou menos a meio
caminho entre São Paulo e Porto Alegre, onde, no salão de
festas do Hotel Novo Hamburgo, decorado para a ocasião com
suásticas e flâmulas vermelhas e negras, os Filhos do
Nacional-Socialismo davam um jantar-dançante a cem
cruzeiros por cabeça. Que emoção quando Mengele apareceu!
Os nazistas importantes, os que haviam desempenhado papéis
de grande importância no Terceiro Reich e eram conhecidos
no mundo todo, costumavam mostrar-se esnobes com relação
aos Filhos, recusando os seus convites sob pretexto de doença
e fazendo comentários irritadiços a respeito do seu líder,
Hans Stroop (que, até mesmo os Filhos reconheciam, às vezes
excedia-se na sua imitação de Hitler). Mas ali estava o próprio
Herr Doktor Mengele, em pessoa e de dinner jacket branco,
apertando mãos, beijando rostos, sorrindo, rindo, repetindo
novos nomes. Que gentileza a sua de vir! E como parecia
saudável e feliz!

E estava. Por que não? Era o dia 31, não era? Amanhã
pintaria mais três cruzes no quadro e completaria mais da
metade da primeira coluna — dezoito. Comparecia a todos os
bailes e festas realizados naqueles dias. Numa reação, é claro,
à angústia e depressão pelas quais passara em novembro e
início de dezembro, quando chegara a parecer que
Liebermann, aquele canalha judeu, ia estragar tudo.
Bebericando champanha naquele alegre salão de festas,
- 181 -

repleto de admiradores arianos, alguns dos homens em


uniformes nazistas (semicerrando os olhos, era Berlim nos
anos 30), lembrava-se com assombro do estado em que se
encontrava há menos de dois meses. Absolutamente
dostoievskiano! Conspirando, planejando, providenciando
como recobrar-se se a Organização o traísse (o que estiveram
prestes a fazer, não havia dúvidas quanto a isso).

Mas aí, Liebermann conduzira Mundt a um giro pela


França, e Schwimmer, através de cidades erradas da
Inglaterra; finalmente desistira, graças a Deus, ficando em
casa, na suposição, sem dúvida, de que o seu jovem
subordinado americano se enganara. (Graças a Deus, também,
tinham chegado até ele, antes que houvesse de fato passado a
fita para Liebermann.) Portanto, beberiquemos champanha e
comamos estes deliciosos e pequenos não-sei-o-quê ("Um
prazer estar aqui! Obrigado! "), enquanto o pobre Liebermann,
segundo The New York Times, anda pelos rincões da América
entregue ao que, pelo que se pode depreender nas entrelinhas
da propaganda sob controle judaico, não passa de' um giro de
conferências da mais ínfima importância. E é inverno lá! Neve,
por favor, Deus; muita neve.

Sentou-se no tablado, com Stroop à sua esquerda. Foi


saudado por ele deforma bastante eloquente — o homem não
era o perfeito idiota que esperava — e voltou sua atenção para
a maravilhosa loura à sua direita. A Miss Nazista do ano
passado, eis o que ela era, o que não era de admirar. Embora
de aliança de casada agora e — o olhar dele não se enganava —
grávida de quatro meses. Marido no Rio, a negócios, e
emocionada de estar sentada ao lado de tão ilustre... Quem
sabe? Sempre poderia pernoitar, e regressar, glorioso, bem
cedo.

Enquanto dançava com a grávida Miss Nazista, descendo


aos poucos a mão em direção ao seu traseiro realmente
magnífico, Farnbach aproximou-se, dançando, e
cumprimentou:
- 182 -

— Boa noite! Como vai? Soubemos que o senhor estava


aqui e viemos de penetra. Permite que lhe apresente minha
esposa Ilse? Querida, Herr Doktor Mengele.

Manteve-se dançando no mesmo lugar e sorrindo, achando


que bebera demais, mas Farnbach não desapareceu ou se
transformou em alguma outra pessoa. Continuou Farnbach —
tornou-se mais Farnbach, na verdade. Cabeça raspada, lábios
grossos, apresentando-se, de olhar faminto, à Miss Nazista,
enquanto a mulherzinha feiosa em seus braços tartamudeava
coisas como "honra", "prazer" e "embora o senhor tenha tirado
Bruno de mim!"

Parou de dançar, soltou os braços.

Farnbach explicou-lhe, alegre:

— Estamos no Excelsior. Uma pequena segunda lua-de-


mel.

Ele fitou-o e disse:

— Você devia estar em Kristianstad. Preparando-se para


matar Oscarsson.

Arquejo da mulher feiosa. Farnbach empalideceu, de


olhos postos nele.

— Traidor! — berrou ele. — Porco de uma... — As palavras


não bastavam. Atirou-se sobre Farnbach e agarrou-lhe o
pescoço grosso. Empurrou-o de costas, de roldão por entre os
dançarinos, estrangulando-o, enquanto as mãos de Farnbach
puxavam-lhe os braços. O inqualificável estava agora de rosto
vermelho, olhos azuis esbugalhados. Um grito de mulher,
gente se voltando: "Oh, meu Deus!" Uma mesa deteve
Farnbach, desequilibrando-se; gente recuou. Ele derrubou
Farnbach, estrangulando-o. A mesa afinal tombou, despejando
pratos e talheres, derramando sopa no crânio raspado de
Farnbach, banhando-lhe o rosto arroxeado.

Mãos puxaram Mengele, mulheres berraram, a música


estilhaçou-se e morreu. Rudi deu um arranco nos pulsos de
Mengele, fitando-o, súplice. Largou-o, deixou que o pusessem
de pé e os separassem, firmou-se nos pés.
- 183 -

— Este homem é um traidor! — gritou para todos. — Traiu


a mim, traiu a vocês! Traiu a raça! Traiu a raça ariana!

Um guincho da mulher feiosa, ajoelhada ao lado de


Farnbach, enquanto, rubro e molhado, ele esfregava o
pescoço, arquejante.

— Tem vidro na cabeça dele! — gritou ela. — Oh, meu


Deus! Chamem um médico! Oh, Bruno, Bruno!

— Este homem devia ser morto — explicou Mengele,


ofegante, aos homens ao seu redor. — Traiu a raça ariana.
Recebeu uma missão a cumprir, um dever de soldado. Preferiu
não o cumprir.

Os homens olhavam confusos e inquietos. Rudi esfregava


os pulsos avermelhados de Mengele.

Farnbach tossiu, tentando dizer alguma coisa. Empurrou


de seu rosto a mão da esposa que segurava um guardanapo e
soergueu-se no braço, erguendo o olhar para Mengele. Tossiu,
esfregando o pescoço. A esposa agarrava-lhe os ombros
molhados.

— Não se mexa! — exclamou ela. — Oh, Deus! Onde é que


tem um médico?

— Eles! — vociferou Farnbach. — Me chamaram! De volta!


— Uma gota de sangue deslizou pela frente da sua orelha
direita e transformou-se num pequeno brinco de rubi,
pendurado, crescendo.

Mengele empurrou os homens, baixando o olhar.

— Segunda-feira! — disse-lhe Farnbach. — Eu estava em


Kristianstad! Preparando as coisas para... — olhou para os
demais, para Mengele — o que eu tinha de fazer! — Seu brinco
de sangue caiu. Um outro começou a crescer no seu lugar. —
Eles me chamaram a Estocolmo e disseram — olhou em
direção à mulher, voltou os olhos para Mengele — a um
conhecido meu que eu devia regressar. Para a sede da minha
companhia. Imediatamente.

— Está mentindo — retrucou Mengele.


- 184 -

— Não! — exclamou Farnbach. O seu brinco de sangue


caiu. — Todos voltaram! Um estava na... sede, quando
cheguei. Dois já haviam estado. Outros dois iam chegar.

Mengele fitou-o, engolindo.

— Por quê? — indagou.

— Não sei — respondeu-lhe Farnbach, com desdém. — Não


faço mais perguntas. Faço como me mandam.

— Onde é que tem um médico? — guinchava a esposa.

— Já está a caminho — anunciou alguém da porta.

— Eu... sou médico — proferiu Mengele.

— Não chegue perto dele!

Olhou a esposa de Farnbach.

— Cale-se — disse. Olhou em torno. — Alguém tem um par


de pinças?

No gabinete do diretor social, retirou lascas de vidro da


nuca de Farnbach com pinças e uma lente de aumento,
enquanto Rudi segurava uma lâmpada, ao lado.

— Apenas algumas mais — informou, deixando cair uma


lasca dentro deum cinzeiro.

Farnbach, sentado em posição recurvada, nada falava.

Mengele aplicou com pancadinhas o desinfetante sobre os


talhos e cobriu-os com gaze e esparadrapo.

— Lamento muito — declarou.

Farnbach levantou-se, alisou o casaco úmido.

— E quando — indagou — saberemos por que fomos


enviados?

Mengele fitou-o por um momento, e respondeu:

— Julguei que havia parado de fazer perguntas.

Farnbach girou sobre os calcanhares e saiu.

Mengele entregou as pinças a Rudi e despediu-o,


ordenando:
- 185 -

— Procure Tin-tin. Logo partiremos. Mande-o na frente


avisar Enrico. E feche a porta.

Guardou de volta as coisas no estojo de emergência,


sentou-se à escrivaninha desarrumada, tirou os óculos,
enxugou a testa com a palma da mão. Retirou a cigarreira.
Acendeu um cigarro e puxou uma baforada, largando o fósforo
sobre as lascas de vidro. Pôs de novo os óculos e retirou o
caderno de endereços.

Telefonou para o número da residência de Seibert. Uma


empregada brasileira, com risadinhas, participou-lhe que o
senhor e a senhora haviam saído, ela não sabia para onde.

Tentou a sede, não esperando que atendessem. Não


atenderam.

Siegfried, o filho de Ostreicher, forneceu-lhe outro


número, onde o próprio Ostreicher atendeu o telefone.

— Quem está falando é Mengele. Estou em Florianópolis.


Acabo de ver Farnbach.

Pausa, e depois:

— Droga. O coronel ia avisá-lo pela manhã. Vinha adiando.


Está muito contrariado a esse respeito. Lutou
desesperadamente.

— Faço ideia — retorquiu Mengele. — O que aconteceu?

— É aquele filho da puta do Liebermann. Esteve com


Frieda Maloney na semana passada.

— Ele está na América! — exclamou Mengele.

— Só se a América mudou para Düsseldorf. Ela deve ter-


lhe fornecido toda a versão de sua parte na coisa. O advogado
dela perguntou a alguns de nossos amigos como se explicava
que estivéssemos fazendo mercado negro de bebês nos anos
60. Convenceu-os de que era verdade, e eles nos consultaram.
Rudel chegou domingo passado, houve uma reunião de três
horas. Seibert queria muito que você estivesse lá. Rudel e
alguns dos outros, não... e foi tudo. Os homens chegaram na
terça e na quarta.
- 186 -

Mengele empurrou os óculos para cima e gemeu, as mãos


sobre os olhos.

— Mas por que não poderiam simplesmente eliminar


Liebermann? São lunáticos, judeus, ou o quê? Mundt teria
exultado com a oportunidade. Queria fazê-lo por sua própria
conta, desde o começo. Ele, por si só, é mais capaz que todos
os seus coronéis reunidos.

— Gostaria de ouvir as razões deles?

— Prossiga. Se eu vomitar enquanto estiver falando, por


favor me desculpe.

— Dezessete dos homens estão mortos. Isso significa,


segundo os seus cálculos, que poderemos estar certos de um
ou mesmo dois sucessos. E talvez um ou dois mais entre os
outros, já que alguns homens morrerão naturalmente aos
sessenta e cinco anos. Liebermann ainda não sabe de tudo,
pois Maloney também não sabe. Mas ela pode ter se lembrado
de nomes, e, se o fez, o próximo passo lógico de Liebermann
será tentar capturar Hessen.

— Então tragam-no de volta! Somente ele! Por que todos


os seis?

— Foi o que Seibert ordenou.

— E então?

— É aí que você vai vomitar. A coisa toda ficou muito


perigosa, segundo Rudel. Acabará pondo a Organização em
evidência, como também o faria o assassinato de Liebermann.
Melhor contentar-se com um ou dois sucessos, ou mesmo mais
— que serão suficientes, não? — e terminar com tudo. Que
Liebermann passe o resto da vida atrás de Hessen.

— Mas ele não o fará. Acabará descobrindo a verdade e


voltando a atenção para os meninos.

— Talvez sim, talvez não.

— A verdade — asseverou Mengele, tirando os óculos — é


que eles são um punhado de velhos cansados que perderam os
colhões. Querem apenas morrer de velhice nas suas vilas à
- 187 -

beira-mar. Pouco lhes importa que os seus netos sejam os


últimos arianos num mundo de merda. Por mim, colocava-os
diante de um pelotão de fuzilamento.

— Vamos lá, eles nos ajudaram a chegar até aqui.

— E se meus cálculos estiverem errados? E se a


possibilidade não for de uma em dez, mas de uma em vinte?
Ou trinta? Ou noventa e quatro? Onde estaremos então?

— Olhe, se dependesse de mim, mataria Liebermann, sem


pensar nas consequências, e prosseguiria com os outros.
Estou do seu lado. Seibert também está. Sei que não acredita,
mas ele lutou bastante. Tudo seria decidido em cinco minutos,
não fosse sua intervenção.

— Isso é muito consolador — tornou Mengele. — Tenho de


ir agora. Boa noite. — E desligou.

Sentou-se de cotovelos sobre a escrivaninha, o queixo


apoiado nos polegares das mãos, os dedos entrelaçados, os
lábios tocando na falange mais próxima. Então é sempre assim
que acontece, pensou, quando se depende dos outros. Terá
alguma vez existido algum homem de visão, de gênio (gênio,
sim, com os diabos!), bem servido pelos Rudels e Seiberts
deste mundo?

Do lado de fora da porta fechada do gabinete, Rudi


esperava, e mais Hans Stroop e seus ajudantes, o diretor
social e o gerente do hotel, e, a uma discreta distância, a Miss
Nazista, cuja atenção desligara-se do rapaz fardado que com
ela conversava.

Quando Mengele saiu, Stroop dirigiu-se a ele de braços


abertos e sorriso insinuante.

— O pobre-diabo retirou-se. Venha, estamos à sua espera


para servir o prato principal.

— Não deviam ter feito isto — retorquiu Mengele. —


Tenho de ir. — Fazendo um sinal para Rudi, apressou-se em
direção à saída.
- 188 -

Klaus telefonou e disse que sabia de tudo: como noventa


e quatro meninos poderiam ser parecidos como gêmeos, e por
que Mengele queria que os seus pais adotivos fossem mortos
em datas determinadas.

Liebermann, que não dormira na noite anterior, com dores


reumáticas e diarreia, estava de cama naquele dia, e a
primeira coisa que lhe ocorreu foi a perfeita simetria daquilo:
uma questão levantada por um jovem, por telefone, enquanto
ele estava na cama, seria respondida por outro jovem, por
telefone, enquanto ele estava na cama. Tinha a certeza de que
Klaus não estaria enganado.

— Pode falar — disse, ajeitando os travesseiros.

— Herr Liebermann — Klaus parecia embaraçado —, não é


o tipo de coisa que eu possa explicar pelo telefone. É
complicada, e na verdade não compreendo tudo. Só a obtive
de segunda mão, através de Lena, a garota com quem vivo. A
ideia foi sua, e ela falou a esse respeito com um professor. Ele
é quem realmente sabe. Poderia vir aqui, para organizarmos
um encontro? Prometo-lhe que tem de ser esta a explicação.

— Estou de partida para Washington na manhã de terça-


feira.

— Então pegue um avião amanhã. Ou, melhor ainda, venha


segunda-feira, passe a noite, e parta daqui na terça. Terá de
passar por Frankfurt de qualquer maneira, não é verdade?
Apanho-o no aeroporto e depois levo-o de volta. Podemos nos
encontrar com o professor na noite de segunda-feira. Ficará
aqui, comigo e com Lena. O senhor com a cama e nós com os
sacos de dormir.

— Dê-me pelo menos a essência da coisa agora — instou


Liebermann.

— Não. Tem que ser de fato explicada por alguém que


saiba do que está falando. É esta a razão de sua ida a
Washington?
- 189 -

— Sim. — Então, certamente há de querer o máximo de


informação possível, hein? Não estará perdendo seu tempo,
prometo-lhe.

— Está bem, confio em você. Vou avisar-lhe a hora da


minha chegada. Será melhor combinar com o tal professor e
verificar se está livre.

— Farei isso, mas estou certo de que ele poderá vir. Lena
disse que ele está ansioso por conhecê-lo e colaborar. E ela
também. É sueca, portanto está muito empenhada. Por causa
daquilo em Göteborg.

— O que o professor dela ensina? Ciência política?

— Biologia.

— Biologia?

— Isso mesmo. Tenho de sair agora, mas estarei em casa o


dia inteiro amanhã.

— Telefonarei. Obrigado, Klaus. Até a vista.

Desligou. Quanto à simetria perfeita, não era preciso


dizer mais.

Um professor de biologia?

Seibert sentia alívio por não ter sido encarregado de


transmitir as novidades a Mengele, mas achava também que se
livrara do anzol talvez depressa demais. O prolongado
relacionamento com Mengele e a admiração pelo seu talento
verdadeiramente notável inclinavam-no a oferecer alguma
forma de manifestação de conforto e encorajamento, e
rendendo justiça a si mesmo tencionava apresentar uma
descrição mais completa do que aquela que Ostreicher alegara
ter feito da ardorosa batalha que havia travado contra Rudel,
Schwartzkopf e os demais. Tentou comunicar-se com Mengele
pelo rádio durante o fim de semana; não o conseguindo, voou
para o sítio, no começo da tarde de segunda-feira, levando
Ferdi, o seu neto de seis anos, e mais umas gravações novas
de Die Walküre e Götterdämmerung.
- 190 -

A pista de aterrissagem estava deserta. Seibert duvidou


que Mengelehouvesse permanecido em Florianópolis, mas era
possível que tivesse ido passar o dia em Assunção ou Curitiba.
Ou apenas enviado o piloto a Assunção, em busca de
suprimentos.

Percorreram a trilha em direção à casa, Seibert e o


irrequieto Ferdi, como co-piloto, que queria ir ao banheiro e
seguia atrás.

Não havia ninguém por perto, nem guardas nem


empregados. O barracão, cuja porta o co-piloto experimentou,
estava trancado, e a casa dos empregados tinha as portas e
janelas fechadas. Seibert começou a ficar inquieto.

A porta dos fundos da casa principal estava trancada e a


da frente também. Seibert bateu e esperou. Um tanquezinho
de brinquedo jazia no chão de tábuas. Ferdi curvou-se para
apanhá-lo, mas Seibert advertiu severamente:

— Não toque nisso! — como se alguma pestilência


rondasse por ali.

O co-piloto espatifou uma das janelas, empurrou com os


cotovelos as pontas de vidro remanescentes e cuidadosamente
esgueirou o corpo para dentro. Um instante depois,
destrancava e abria a porta.

Casa deserta, mas em ordem, sem sinais de partida


precipitada.

No escritório, a escrivaninha de tampo de vidro estava


como Seibert a vira pela última vez, com o material de pintura
enfileirado sobre uma toalha, num canto. Voltou-se para o
quadro.

Fora retalhado de vermelho. Vergastadas que se diria


sanguinolentas rasgavam os quadradinhos da segunda e
terceira colunas. Os da primeira coluna continham cruzes
vermelhas perfeitas até a metade, que depois aumentavam,
irregulares, ultrapassando as marcas.

Ferdi, parecendo preocupado, observou:

— Ele saiu da linha.


- 191 -

Seibert contemplou o quadro devastado.

— Sim — assentiu. — Saiu da linha, sim. — E acenou com a


cabeça.

— O que é isso? — indagou Ferdi.

— É uma lista de nomes. — Seibert voltou-se e pousou o


embrulho de discos na escrivaninha. Um bracelete de presas
animais jazia no centro. — Hecht! — chamou, e mais alto: —
Hecht!

A voz do co-piloto respondendo: "Senhor?", soou distante.

— Acabe o que está fazendo e volte para o avião! —


Seibert apanhou o bracelete. — Traga-me uma lata de gasolina!

— Sim, senhor!

— Traga Schumann junto com você!

— Sim, senhor!

Seibert examinou o bracelete e jogou-o de novo sobre a


mesa. Suspirou.

— O que vai fazer? — indagou Ferdi.

Seibert indicou com a cabeça o quadro.

— Queimar isto. — Por quê?

— Para que ninguém o veja.

— A casa vai pegar fogo?

— Sim, mas o dono não voltará mais.

— Como sabe? Ele ficará zangado se voltar.

— Vá brincar com aquele brinquedinho lá fora.

— Quero olhar.

— Faça o que estou dizendo!

— Sim, senhor. — Ferdi saiu depressa da sala.

— Fique na varanda! — exclamou Seibert em seguida.

Empurrou a mesa com suas pilhas de revistas bem para


junto da parede. Depois, dirigiu-se ao arquivo embaixo da
janela do laboratório, agachou-se, abriu uma das gavetas e
- 192 -

retirou um grosso punhado de pastas e mais outro. Trouxe-os


para a mesa e enfiou-os por entre as pilhas de revistas.
Lançou um olhar pesaroso sobre o quadro vergastado de
vermelho, meneando a cabeça.

Trouxe vários carregamentos de pastas para a mesa e,


quando não havia lugar para mais, abriu as gavetas restantes.
Destrancou e abriu as janelas atrás da escrivaninha.

Ficou contemplando os souvenirs de Hitler por cima do


sofá, tirou três ou quatro da parede, olhou especulativamente
para o grande retrato no centro.

O co-piloto entrou com uma lata vermelha de


combustível. O piloto permaneceu à porta.

Seibert pôs as coisas que retirara junto ao pacote de


discos.

— Tire o retrato — ordenou ao co-piloto.

Mandou o piloto ver se não havia mesmo ninguém na casa


e abrir todas as janelas.

— Posso trepar no sofá? — indagou o co-piloto.

— Deus meu, e por que não?

Despejou gasolina nas pastas e revistas, mantendo-se bem


a distância, e lançou alguns salpicos sobre o quadro. Nomes
reluziram, umedecidos: "Hesketh", "Eisenbud", "Arlen", "Looft".

O co-piloto levou o retrato para fora.

Seibert pôs a lata do lado de fora da porta e dirigiu -se às


gavetas abertas do arquivo. Retirou de uma delas algumas
folhas de papel e torceu-as como um facho branco,
aproximando-se da mesa. Apanhou o isqueiro sobre ela, preto
e cilíndrico, e tirou fogo dele algumas vezes.

O piloto anunciou que não havia ninguém na casa e que as


janelas estavam abertas. Seibert mandou-o levar para fora os
discos, as recordações e a lata de combustível.

— Verifique se meu neto está mesmo lá fora — ordenou-


lhe.
- 193 -

Esperou um momento, isqueiro numa das mãos, facho de


papel branco na outra.

— Ele está aí com você, Schumann? — bradou.

— Está, sim, senhor!

Acendeu a ponta do facho e pousou de novo o isqueiro


atrás de si. Virou para baixo o facho, a fim de fortalecer a
chama, e, adiantando-se, jogou-o sobre as pastas e revistas,
explodindo-as em fogo. As labaredas lamberam a parede.

Seibert recuou e viu a coluna do meio do quadro,


vergastada de vermelho, empolar-se e tornar-se pardacenta.
Nomes, datas e linhas, amortalhados em chamas, consumiram-
se, enquanto a escuridão crescia em torno.

Retirou-se apressadamente.

Atrás da casa, detiveram-se e ficaram assistindo algum


tempo, bem afastados do calor tremulante e da crepitação:
Seibert segurando Ferdi pela mão, o co-piloto descansando o
antebraço na moldura do retrato de Hitler, o piloto de braços
carregados e com a lata vermelha a seus pés.

Ester estava de chapéu, casaco e um pé fora da porta —


literalmente — quando o telefone tocou. Não estava no seu
dia. Quando haveria de chegar em casa? Suspirando, voltou
atrás o pé, fechou a porta e foi atender ao telefone, que tocava
à luz fraca da vidraça da porta.

Era uma telefonista com uma chamada para Yakov, de São


Paulo. Ester disse-lhe que Herr Liebermann estava fora da
cidade. O autor da chamada, em bom alemão, declarou que
falaria com a senhora.

— Sim? — atendeu Ester.

— Meu nome é Kurt Koehler. Meu filho Barry foi...

— Oh, sim, eu sei, Herr Koehler! Sou a secretária de Herr


Liebermann, Ester Zimmer. Alguma notícia?

— Sim, há, e é má. O corpo de Barry foi encontrado na


semana passada.
- 194 -

Ester soltou um gemido.

— Bem, já esperávamos por isso... nenhuma palavra até


agora. Vou voltar para casa. Com... ele.

— Ah! Lamento tanto, Herr Koehler!

— Obrigado. Ele foi apunhalado, e depois jogado no mato.


De um avião, segundo parece.

— Ah, meu Deus...

— Julguei que Herr Liebermann haveria de querer saber...

— Claro, claro! Vou avisá-lo.

— ...e tenho também uma informação. Eles apanharam a


carteira e o passaporte de Barry, é claro — aqueles imundos
porcos nazistas —, mas havia um pedaço de papel nas suas
calças que eles esqueceram. Quer me parecer que ele teria
tomado algumas notas enquanto ouvia aquela gravação, e há
muita coisa aqui que, tenho certeza, Herr Liebermann poder á
utilizar. Poderia me dizer onde posso entrar em contato com
ele?

— Está em Heidelberg esta noite. — Ester acendeu a


lâmpada e manuseou a lista telefônica. — Em Mannheim, na
verdade. Tenho o número aqui. — Amanhã ele estará de volta
a Viena? — Não, de lá irá para Washington. — Ah! Bem, talvez
eu devesse telefonar-lhe em Washington. Estou um pouco...
abalado no momento, como pode imaginar, mas estarei em
casa amanhã e poderei falar mais facilmente. Onde ele estará
hospedado?

— No Hotel Benjamin Franklin. — Ela manuseou a lista. —


Tenho este número também. — Encontrou-o e leu-o com vagar
e clareza.

— Obrigado. E ele chegará lá... ?

— Seu avião aterrissa às seis e meia, se Deus quiser.


Deverá estar no hotel às sete ou sete e meia. Amanhã à noite.

— Espero que tenha ido por motivos ligados a esse


assunto que Barry investigava.
- 195 -

— E foi mesmo — respondeu Ester. — Barry tinha razão,


Herr Koehler. Muitos homens foram assassinados, mas Yakov
vai acabar com isso. Pode ficar descansado que o seu filho não
morreu em vão.

— É bom ouvir isso, Fräulen Zimmer. Obrigado.

— Não há de quê. Adeus.

Ela desligou, suspirou, e balançou tristemente a cabeça.

Mengele desligou também, apanhou a maleta de lona


parda, e entrou na menor das duas filas para o guichê de
passagens da Pan Am. Tinha os cabelos castanhos repartidos
de lado, um espesso bigode castanho, e usava grosso suporte
ortopédico acolchoado no pescoço. Até então parecia estar
cumprindo o objetivo de evitar que o olhassem nos olhos.

Segundo seu passaporte paraguaio, era Ramón Aschheim y


Negrín, comerciante en antigüedades, um vendedor de
antiguidades. Motivo por que levava uma arma na maleta, uma
automática Browning Hi-Power de nove milímetros. Tinha
licença para ela, como também uma carteira de motorista, uma
provisão completa de credenciais sociais e de negócios e, no
seu passaporte, páginas e páginas de vistos. O Señor
Aschheim y Negrín estava partindo para uma viagem de
compras multinacional: Estados Unidos, Canadá, Inglaterra,
Holanda, Noruega, Suécia, Dinamarca, Alemanha e Áustria.
Estava bem abastecido de dinheiro (e diamantes). Seus vistos,
como o seu passaporte, tinham sido expedidos em dezembro,
mas ainda eram válidos.

Comprou uma passagem para Nova York no voo seguinte,


que saía às sete e quarenta e cinco, o qual, em combinação
com um voo da American Airlines, o levaria até Washington,
às dez e trinta e cinco da manhã seguinte.

Tempo suficiente para se instalar no Benjamin Franklin.

Seis
- 196 -

O professor de biologia — cujo nome era Nürnberger e


que, por trás da barba castanha aparada rente e seus óculos
de aros dourados, não aparentava mais de trinta e dois ou
trinta e três anos — empurrou para trás o mindinho, como se
fosse parti-lo e oferecê-lo.

— Aparência idêntica — enumerou, e empurrou o dedo


seguinte. — Similitude de interesses e atitudes,
provavelmente em grau maior do que atualmente se sabe. —
Empurrou o outro dedo. — A colocação em famílias
semelhantes: o indício está aí. Reunamos tudo isso e só existe
uma explicação possível. — Cruzou as mãos sobre as pernas
cruzadas e inclinou-se para a frente, confidencial. —
Reprodução mononuclear — disse a Liebermann. — O Dr.
Mengele, aparentemente, estava uns dez anos adiantado nesse
campo.

— Não é de espantar — observou Lena, sacudindo uma


garrafinha, à porta da cozinha —, com as pesquisas que ele
fazia em Auschwitz, nos anos40.

— É — assentiu Nürnberger (enquanto Liebermann tentava


recobrar-se do choque de ouvir falar em "pesquisas" e em
"Auschwitz", na mesma frase: não tem culpa, é jovem e sueca,
como poderia saber?). — Os outros — estava dizendo
Nürnberger —, ingleses e americanos na maioria, só
começaram pelos anos 50, e ainda não utilizaram óvulos
humanos. Ou pelo menos é o que eles dizem. Pode-se apostar,
entretanto, que chegaram além do que admitem. Por isso,
afirmei que Mengele estava apenas dez anos adiantado, e não
quinze ou vinte.

Liebermann olhou para Klaus, sentado à sua esquerda,


para ver se ele sabia do que Nürnberger falava. Klaus
mastigava, examinando um talo de cenoura. Seus olhos
encontraram os de Liebermann, espelhando um "está vendo?"
Liebermann meneou a cabeça.

— E os russos, claro — prosseguiu Nürnberger,


balançando-se comodamente no seu assento dobradiço,
- 197 -

segurando um joelho com os dedos entrelaçados —, estarão


provavelmente ainda mais adiantados, sem a contestação da
Igreja e da opinião pública. Terão provavelmente um rebanho
inteiro de pequenos Vánias, em alguma parte da Sibéria. Mais
velhos mesmo, talvez, do que esses meninos de Mengele.

— Desculpe-me — atalhou Liebermann —, mas não


compreendo o que está dizendo.

Nürnberger mostrou-se surpreso.

— Reprodução mononuclear — repetiu, paciente.

— A produção de cópias geneticamente idênticas de um


organismo isolado. Estudou alguma coisa de biologia?

— Um pouco — respondeu Liebermann. — Há uns


quarenta e cinco anos atrás.

Nürnberger sorriu um sorriso de jovem.

— Justamente quando a possibilidade disso foi


reconhecida pela primeira vez — afirmou. — Por intermédio
de Haldane, o biólogo inglês. Denominou-a "clone", de uma
palavra grega que significa "corte", de uma planta.
"Reprodução mononuclear" é um termo muito mais explícito.
Por que fabricar palavra nova, quando as antigas transmitem
melhor o sentido?

— "Clone" é mais curto — observou Klaus.

— Sim — acedeu Nürnberger —, mas não será melhor


empregar mais algumas sílabas e dizer exatamente o que se
pretende?

— Fale-me acerca da "reprodução mononuclear" —


solicitou Liebermann. — Mas não se esqueça, por favor, de que
estudei biologia somente porque fui obrigado. Meu verdadeiro
interesse era a música.

— Experimente dizer a ele cantando — sugeriu Klaus.

— Se o fizesse, não daria uma canção que prestasse —


retorquiu Nürnberger. — Como a bela canção de amor da
reprodução comum. Neste caso temos um óvulo, ou célula-
ovo, e uma célula-esperma, cada uma comum núcleo contendo
- 198 -

vinte e três cromossomos, em cujos filamentos os genes,


centenas de milhares deles, se enfiam como contas. Os dois
núcleos fundem-se, e teremos então uma célula-ovo
fertilizada, de quarenta e seis cromossomos. Estou falando
agora de células humanas; nas diversas espécies o número
difere. Os cromossomos duplicam-se, duplicando cada um de
seus genes — realmente miraculoso, não? —, e a célula se
divide, um conjunto de cromossomos idênticos para cada
célula resultante. Esta duplicação e divisão vai se repetindo...

— Mitose — completou Liebermann.

— É.

— As coisas que ficam na memória!

— E em nove meses — prosseguiu Nürnberger — temos os


bilhões de células do organismo completo. Elas desdobraram-
se a fim de desempenhar funções diferentes — transformar-se
em osso, carne, sangue ou cabelo, reagir à luz, calor, doçura,
etc. —, mas cada uma dessas células, cada uma dentre os
bilhões de células que constituem o corpo, contém no seu
núcleo reproduções exatas de um conjunto original de
quarenta e seis cromossomos, metade da mãe, metade do pai:
uma mistura que, exceto no caso dos gêmeos idênticos, é
absolutamente única — como se fosse o projeto de um
indivíduo absolutamente único. As únicas exceções à regra
dos quarenta e seis cromossomos são as células sexuais,
esperma e óvulo, que têm vinte e três, a fim de que possam
fundir-se, completar-se e dar início a um novo organismo.

— Até agora está claro — declarou Liebermann.

Nürnberger inclinou-se para diante.

— Esta — disse — é a reprodução comum, como ocorre na


natureza. Entremos agora no laboratório. Na reprodução
mononuclear, o núcleo da célula-ovo é destruído, deixando
ileso o corpo da célula. Isso é realizado através de radiação,
constituindo, é claro, uma microcirurgia das mais
sofisticadas. Na célula-ovo de que se tirou o núcleo, é
colocado o núcleo de uma célula corporal do organismo a ser
reproduzido — o núcleo de uma célula corporal, não uma
- 199 -

célula sexual. Temos agora exatamente o que tínhamos neste


ponto na reprodução natural: uma célula-ovo com quarenta e
seis cromossomos no seu núcleo, um óvulo fertilizado que,
numa solução nutriente, passa a duplicar-se e dividir-se.
Quando ela atinge o estágio das dezesseis ou trinta e duas
células — o que leva quatro ou cinco dias —, pode ser
implantada no útero de sua "mãe", que de fato não o é,
biologicamente falando. Ela forneceu uma célula-ovo, e agora
está fornecendo um ambiente adequado ao desenvolvimento
do embrião, que nada recebeu, porém, da sua dotação
genética. A criança, ao nascer, não tem pai nem mãe, apenas
um doador — o fornecedor do núcleo —, de quem será um
exato duplo genético. Seus cromossomos e genes são
idênticos aos do doador. Ao invés de um indivíduo novo e
único, teremos a repetição de um já existente.

— Isto... pode ser feito? — indagou Liebermann.

Nürnberger acenou afirmativamente.

— Já foi feito — atalhou Klaus.

— Com rãs — tornou Nürnberger. — Um processo muito


mais simples. É o único caso reconhecido, e causou tal
impacto — em Oxford, nos anos 60 —, que todo o trabalho
subsequente foi feito em sigilo. Obtive relatos, como todo
biólogo, acerca de coelhos, cães e macacos, na Inglaterra,
América, aqui na Alemanha, em toda parte. E, como já disse,
tenho certeza de que já o fizeram com seres humanos na
Rússia. Ou pelo menos tentaram. Que sociedade planejada
poderia resistir à ideia? Multiplicar os seus melhores cidadãos
e proibir a reprodução dos piores. Que poupança nos serviços
médicos e na educação! E o aprimoramento dos predicados da
população dentro de duas ou três gerações.

— Mengele poderia ter feito isso com seres humanos no


princípio dos anos 60? — indagou Liebermann.

Nürnberger encolheu os ombros.

— A teoria já era conhecida — asseverou. — Precisaria


apenas de equipamento adequado, moças sadias e dispostas, e
um alto grau de perícia microcirúrgica. Outros a tiveram:
- 200 -

Gurdon, Shettles, Steptoe, Chang... E, evidentemente, um lugar


onde pudesse trabalhar sem interferência e publicidade.

— Ele estava na selva, nessa ocasião — declarou


Liebermann. — Foi para lá em 59. Acossei-o até...

— Talvez, não — atalhou Klaus. — Talvez ele tenha


querido ir.

Liebermann olhou-o, contrafeito.

— Mas será inútil — alegou Nürnberger — dizer se ele


poderia ou não tê-lo feito. Se o que Lena me contou é verdade,
é óbvio que o fez. O fato de os meninos terem sido colocados
em famílias semelhantes o comprova. — Sorriu. — Veja, os
genes não constituem o único fator em nosso
desenvolvimento definitivo. Estou certo de que não ignora
isso. A criança concebida através da reprodução mononuclear
crescerá igual ao seu doador e partilhando com ele de certas
características e tendências, mas se for criada em ambiente
diverso, sujeita a influências domésticas e culturais — como
fatalmente o será, quando mais não seja por ter nascido anos
depois —, bem, poderá tornar-se bastante diferente
psicologicamente do seu doador, apesar de sua uniformidade
genética. Mengele estava evidentemente interessado não em
reproduzir um determinado traço biológico, como acho que os
russos estariam, mas ele próprio, um determinado indivíduo.
As famílias semelhantes constituem uma tentativa de elevar
ao máximo as possibilidades de os meninos crescerem no
ambiente adequado.

Atrás de Nürnberger, Lena chegou à porta da cozinha.

— Os meninos — indagou Liebermann — são... réplicas de


Mengele?

— Réplicas exatas, geneticamente — respondeu


Nürnberger. — Agora, se crescerão ou não como réplicas in
totum, isso, como disse, é outra questão.

— Com licença — atalhou Lena. — Já podemos comer. —


Sorriu, desculpando-se. Seu rosto inexpressivo embelezou-se
por um instante. — Na verdade é o que teremos de fazer —
- 201 -

acrescentou —, do contrário vai ficar ruim. Se é que já não


está.

Levantaram-se e deixaram o pequeno quarto com


mobiliário híbrido, ampliações de animais e brochuras,
entrando numa cozinha quase do mesmo tamanho, com mais
ampliações de animais, uma janela com grade de aço e uma
mesa de toalha vermelha, com pão, salada e vinho tinto em
copos de tipos diferentes.

Liebermann, instalado incomodamente numa cadeira


pequena, de encosto de arame, olhou para Nürnberger, do
outro lado da mesa, passando manteiga no pão.

— O que o senhor quis dizer — indagou — com referência


aos meninos crescerem no "ambiente adequado"?

— O mais parecido possível com o de Mengele —


respondeu Nürnberger, fitando-o. Sorriu, por dentro de sua
barba castanha. — Olhe — acrescentou —, se eu quisesse fazer
um outro Eduard Nürnberger, não bastaria simplesmente
raspar um pouco a pele do meu dedo do pé, arrancar um
núcleo de uma célula e seguir todo o processo por mim
descrito — supondo que tivesse a perícia e o equipamento...

— E a mulher — completou Klaus, depondo um prato à sua


frente.

— Obrigado — disse Nürnberger, sorrindo. — Eu poderia


arranjar a mulher.

— Para esse tipo de reprodução?

— Bem, é de se supor. São apenas duas incisões


diminutas, uma para extrair o óvulo, a outra para implantar o
embrião. — Nürnberger olhou para Liebermann. — Mas isso
seria apenas parte da tarefa — asseverou. — Eu teria então de
encontrar um lar adequado para o bebê Eduard. Ele exigiria
uma mãe que fosse muito religiosa — na verdade quase uma
fanática — e um pai que bebesse demais, de modo a que
houvesse discussões constantes entre eles. E precisaria
também em casa de um tio maravilhoso, um professor de
matemática, que levasse o garoto para passear o mais que
- 202 -

pudesse, aos museus, ao campo... Essa gente teria o menino


como se fosse deles, e não como alguém concebido num
laboratório, e além disso o "tio" teria de morrer quando o
menino tivesse nove anos, e os "pais" teriam de se separar
dois anos depois. O menino passaria a adolescência num
vaivém entre os dois, juntamente com a irmã mais moça.

Klaus estava sentado com um prato diante de si, à direita


de Liebermann. Um outro jazia diante de Liebermann — um
naco de carne parecendo ressequida, cenouras estufadas em
hortelã.

— E ainda assim — tornou Nürnberger — ele poderia sair


muito diferente deste Eduard Nürnberger. Seu professor de
biologia poderia não se empolgar por ele, como o meu o fez.
Uma garota poderia deixá-lo ir para acama com ela mais cedo
do que uma outra me deixou. Leria livros diferentes, veria
televisão, quando eu ouvia rádio, estaria sujeito a milhares de
encontros ocasionais que o poderiam tornar mais ou menos
agressivo do que sou, mais ou menos afetuoso, espirituoso,
etc, etc.

Lena sentara-se à esquerda de Liebermann, olhando para


Klaus, do outro lado da mesa.

Nürnberger, abrindo a carne ressequida com o garfo,


adiantou:

— Mengele sabia da precariedade da coisa toda, por isso


criou e encontrou lares para muitos meninos. Dar-se-á por
muito feliz, suponho, se uns poucos, ou mesmo apenas um
sair exatamente certo. — Está vendo agora — indagou Klaus a
Liebermann — por que os homens são mortos?

Liebermann acenou afirmativamente.

— Para — não sei que palavra usar — moldar os meninos.

— Exatamente — assentiu Nürnberger. — Para moldá-los,


para tentar fazer deles Mengeles psicológicos, tanto quanto
genéticos.
- 203 -

— Ele perdeu o pai quando tinha certa idade — atalhou


Klaus —, portanto com os meninos deverá acontecer o mesmo.
Ou perder os homens que julgassem seus pais.

— O acontecimento — ponderou Nürnberger — certamente


foi de suma importância para moldar a sua psique.

— É como abrir um cofre — aventou Lena. — Uma vez que


se vire a maçaneta em direção a todos os números certos, na
ordem certa, a porta se abre.

— A menos que — contraveio Klaus — a maçaneta tenha


sido virada em direção a um número errado nesse meio
tempo. Estas cenouras estão ótimas.

— Obrigada.

— É — assentiu Nürnberger. — Tudo está delicioso.

— Mengele tem olhos castanhos.

Nürnberger olhou para Liebermann.

— Tem certeza? — Tive em mãos sua carteira de


identidade argentina — declarou Liebermann. — "Olhos
castanhos." E seu pai era um rico industrial, não um
funcionário público. Maquinaria agrícola.

— Ele é parente daqueles Mengele? — indagou Klaus.

Liebermann acenou afirmativamente.

Pondo salada no prato, Nürnberger observou:

— Não admira que pudesse arranjar o equipamento. Bem,


ele não deve ter sido o doador, já que os olhos não casam.

— Sabe quem é o chefe da Organização dos Camaradas? —


indagou Lena a Liebermann.

— É um coronel chamado Rudel, Hans Ulrich Rudel.

— De olhos azuis? — perguntou Klaus.

— Não sei. Terei de verificar. Como também a origem de


sua família.

Liebermann olhou para o garfo na mão, espetou-o numa


fatia de cenoura e ergueu-a, levando-a à boca.
- 204 -

— Seja como for — tornou Nürnberger —, o senhor sabe


agora por que esses homens estão sendo mortos. O que
planeja fazer em seguida?

Liebermann ficou calado por um momento. Pousou o garfo


e tirou o guardanapo do colo, pondo-o sobre a mesa.

— Com licença — disse, e saiu da cozinha. Lena seguiu-o


com o olhar, baixou os olhos para o prato, voltou -os para
Klaus.

— Não foi por isso — asseverou ele.

— Espero que não — disse ela, e empurrou o naco de


carne com o lado do garfo.

Klaus olhou além dela, observando Liebermann dirigir-se


às estantes no outro aposento.

— Não é que esta carne não seja excelente — declarou


Nürnberger —, mas chegará o dia em que todos comeremos
uma carne muito melhor e muito mais barata, graças à
reprodução mononuclear. Ela vai revolucionar a criação de
gado. E também preservará as nossas espécies ameaçadas,
como aquele belo leopardo ali.

— Está defendendo a experiência? — indagou Klaus.

— Ela não precisa ser defendida — retrucou Nürnberger.


— Trata-se de uma técnica, e, como qualquer outra técnica que
se possa mencionar, dela se pode fazer bom ou mau uso.

— Posso pensar em dois bons usos — ponderou Klaus —, e


você acaba de mencioná-los. Dê-me lápis e papel, que em
cinco minutos lhe darei cinquenta maus.

— Por que tem sempre de ficar do lado contrário? —


indagou Lena. — Se o professor tivesse dito que era uma coisa
terrível, você agora estaria falando de criação de gado.

— Isso não é verdade — contrapôs Klaus.

— É, sim. Ele contesta seus próprios argumentos.

Klaus olhou além de Lena: viu Liebermann de perfil, em


pé, cabeça curvada sobre um livro aberto, gingando
levemente, um judeu rezando. Não era uma Bíblia, porém; eles
- 205 -

não tinham uma. Seria o livro de Liebermann? Estava parado


bem no lugar do livro. Verificando a cor dos olhos do coronel?

— Klaus? — Lena oferecia a tigela de salada.

Ele pegou-a.

Lena voltou-se e olhou, depois concentrou-se na mesa.

— Terei muita dificuldade de manter a boca fechada a


respeito disso — observou Nürnberger.

— Mas vai ter que mantê-la, no entanto — disse Klaus.

— Sei, sei, mas não será fácil. Dois dos homens lá do


departamento tentaram a experiência, com óvulos de coelha.

Liebermann estava parado à porta, pálido e abatido, os


óculos dependurados na mão.

— O que é? — Klaus pousou a tigela.

Nürnberger olhou, Lena voltou-se na cadeira.

Liebermann dirigiu-se a Nürnberger.

— Permita-me que lhe faça uma pergunta tola.

Nürnberger assentiu.

— O que fornece o núcleo. O doador. Tem de estar vivo,


não é?

— Não, não necessariamente — disse Nürnberger. — As


células isoladas não são vivas nem mortas, apenas intactas ou
não. Com uma mecha dos cabelos de Mozart... nem precisa
uma mecha; com um fio de cabelo de Mozart, alguém
dispondo de perícia e equipamento — sorriu para Klaus — e de
mulheres — voltou os olhos para Liebermann — poderia gerar
algumas centenas de pequenos Mozarts. Descubram lares
adequados para eles e teremos cinco ou dez Mozarts adultos,
e uma quantidade muito maior de boa música neste mundo.

Liebermann pestanejou, deu um passo vacilante à frente,


meneou a cabeça.

— Música, não — murmurou. — Mozart, não. — Trouxe a


mão das costas e mostrou-lhes Hitler. A brochura exibia em
três negras pinceladas: bigode, nariz proeminente, topete.
- 206 -

— Seu pai era funcionário público, da alfândega. Tinha


cinquenta e dois anos... quando o menino nasceu. A mãe,
vinte e nove. — Olhou em torno, à procura de um lugar para
pousar o livro, não encontrou nenhum, colocou-o sobre um
dos bicos do fogão. Olhou novamente para eles, limpou a mão
no lado. — O pai morreu aos sessenta e cinco — acrescentou.
— Quando o menino tinha treze, quase catorze anos.

Deixaram as coisas na mesa e foram sentar-se na outra


sala, Liebermanne Klaus outra vez no sofá-cama, Nürnberger
na cadeira de armar, Lena no chão.

Olharam os copos vazios na arca em frente, os pratinhos


de talos de cenoura e amêndoas. Entreolharam-se.

Klaus pegou algumas amêndoas, jogou-as na palma da


mão.

— Noventa e quatro Hitlers — proferiu Liebermann, e


sacudiu a cabeça. — Não — acrescentou —, não é possível. —
Claro que não é — frisou Nürnberger. — Há noventa e quatro
meninos com a mesma herança genética de Hitler. Podem sair
muito diferentes. A maioria provavelmente sairá.

— A maioria — tornou Liebermann. Fez um gesto de


cabeça na direção de Klaus e Lena. — A maioria. — Olhou para
Nürnberger. — Restarão alguns.

— Quantos? — indagou Klaus.

— Não sei — respondeu Nürnberger.

— Você disse cinco ou dez Mozarts entre algumas


centenas. Quantos Hitlers em noventa e quatro? Um? Dois?
Três?

— Não sei — reiterou Nürnberger. — Estava apenas


falando. Ninguém sabe na realidade. — Sorriu ironicamente.

— As rãs não passaram por testes de personalidade.

— Faça uma suposição — solicitou Liebermann.


- 207 -

— Se os pais foram reunidos apenas por idade, raça e


ocupação paterna, diria que as perspectivas são bem ruins. Do
ponto de vista de Mengele, quero dizer. Muito boas, do nosso.

— Mas não completamente — retorquiu Liebermann.

— Não, claro que não. — Ainda que houvesse apenas um


— ponderou Lena —, restaria ainda uma possibilidade de ele...
ser influenciado da maneira certa. A errada.

— Lembra-se do que disse na conferência? — indagou


Klaus a Liebermann. — Alguém perguntou se os grupos
neonazistas eram perigosos, e o senhor respondeu que agora
não, apenas se as condições sociais piorassem — e Deus sabe
que pioram a cada dia — e aparecesse outro líder como Hitler.

Liebermann assentiu.

— Falando para o mundo inteiro ao mesmo tempo, pela


televisão via satélite. O próprio Deus no céu.

Fechou os olhos, pôs as mãos no rosto e esfregou os


dedos nas pálpebras, com força.

— Quantos pais foram de fato assassinados? — indagou


Nürnberger.

— É isso mesmo! — exclamou Klaus. — Apenas seis! Não é


tão mau quanto parece!

— Oito — disse Liebermann, baixando as mãos e piscando


os olhos avermelhados. — Você esquece Guthrie, em Tucson, e
aquele entre ele e Curry. E outros também, de que não
sabemos, nos outros países. Mais no princípio do que
posteriormente. Assim foi nos Estados Unidos.

— A leva inicial deve ter obtido um índice de sucesso


mais elevado do que ele esperava.

— Não posso deixar de pensar — declarou Klaus — que


você se mostra um tanto satisfeito com o resultado.

— Bem, terá de admitir que de um ponto de vista


estritamente científico é um passo adiante.

— Deus do céu! Quer dizer então que você, sentado aí, é


capaz...
- 208 -

— Klaus! — admoestou Lena.

— Oh, merda! — Klaus jogou as amêndoas no chão.

Liebermann dirigiu-se a Nürnberger.

— Vou a Washington, amanhã, contatar o Departamento


Federal de Investigações. Sei quem será ali o próximo pai. Eles
poderão preparar uma armadilha para o assassino, terão de
fazê-lo. Quer vir comigo e ajudar-me a convencê-los?

— Amanhã? — disse Nürnberger. — Seria impossível.

— Mesmo para impedir um novo Hitler?

— Oh, Deus! — Nürnberger esfregou a testa. — Sim, claro,


se precisa absolutamente de mim. Olhe, há homens lá, de
Harvard, Cornell, Cal Tech, cujas credenciais têm muito mais
prestígio do que as minhas, e que de qualquer modo teriam
maior peso junto às autoridades americanas, justamente por
serem americanos. Posso lhe fornecer nomes e escolas, se
desejar...

— Sim, gostaria.

—...mas se, por qualquer motivo, você me quiser, eu irei.

— Está bem — assentiu Liebermann. — Obrigado.

Nürnberger pegou uma caneta e um bloco de memorando


com capa preta, de dentro do casaco.

— O próprio Shettles provavelmente haveria de auxiliá-lo


— aventou.

— Escreva o nome dele — solicitou Liebermann. — E onde


poderei encontrá-lo. Escreva todos os nomes que lhe
ocorrerem. — Para Klaus, declarou: — Ele tem razão, um
americano é melhor. Dois estrangeiros juntos receberão
pontapés nos traseiros.

— O senhor tem contatos lá? — indagou Klaus.

— Já tive — respondeu Liebermann. São do tipo "não-


trabalha-mais-no-Departamento-de-Justiça". Mas darei um
jeito. Arrombarei as portas. O próprio Deus no céu! Imaginem!
Noventa e quatro jovens Hitlers!
- 209 -

— Noventa e quatro meninos — retificou Nürnberger,


escrevendo — com a mesma herança genética de Hitler.

O Benjamin Franklin, como hotel, um lugar de


permanência, figurava com um décimo de uma estrela,
segundo o julgamento de Mengele, e isso devido apenas a
certo encanto de peça de antiguidade que tinha a pia do
banheiro. Entretanto, como lugar para alguém se livrar de um
inimigo disposto a destruir a obra de uma vida inteira e a
última esperança (corrija-se, certeza) da supremacia ariana,
haveria de figurar com três estrelas e meia, talvez quatro.

Primeiro que tudo, a clientela no saguão era em parte


negra, o que significava, evidentemente, que naquele local o
crime não era coisa insólita. Como prova disso — se é que
precisava — a porta do seu quarto, o 404, trazia as marcas de
ranhura de um arrombamento e do lado de dentro um rótulo
adesivo em letras vermelhas encarecia: "Para a sua proteção, é
favor manter permanentemente a porta trancada". Ele
aquiesceu.

Além do mais, no estabelecimento o serviço era ruim: às


onze e quarentada manhã as bandejas do café jaziam ainda do
lado de fora das portas de alguns quartos. Logo que retirou o
maldito suporte do pescoço (apenas para atravessar a
fronteira e talvez para a Alemanha) deu um pulo rápido do
lado de fora e apanhou uma bandeja, uma cesta de pão e uma
tabuleta com o aviso: "É favor não perturbar". Escondeu a
bandeja entre o colchão e as molas, a cesta de pão num saco
de papel da lavanderia na prateleira do armário, pôs o aviso "É
favor não perturbar" na gaveta da escrivaninha, junto com
outro que já lá estava. Consultou a planta do andar pregada à
porta: havia três escadas, uma bem próxima ao 404. Saiu
novamente e encontrou-a. Abriu uma porta, entrou no
patamar, olhou para os lances pintados de cinzento, acima e
abaixo.

O atendimento nos quartos era abominável. Na hora em


que o seu almoço apareceu, já havia esvaziado e limpado o
- 210 -

tubo dos diamantes, lavara-se, passara talco no pescoço


irritado, retirara da mala tudo o que pretendia, experimentara
a televisão e preparara uma lista de tudo o que teria de
comprar e fazer. Contudo, o garçom que trouxe o almoço — aí
se justificava, certamente, mais uma estrela — era um branco
quase da idade dele, de sessenta e poucos anos, e usava um
casaco de serviço simples, de linho branco, do tipo que
poderia sem dúvida ser comprado em qualquer loja de roupas
de trabalho. Incluiu-o em sua lista, seria mais fácil que roubar
um.

O prato servido era linguado à la bonne femme... bem,


sem comentários.

Saiu do hotel pouco depois da uma, por uma porta lateral.


Óculos escuros, sem bigode, chapéu, peruca, sobretudo com a
gola levantada. Arma no coldre, junto à axila. Não haveria de
deixar nada de valor naquele quarto vulnerável, e, além do
mais, era prudente andar armado nos Estados Unidos. Não
apenas ele, como qualquer outro.

Washington era mais limpa do que esperara e bastante


atraente, mas as ruas largas estavam alagadas com neve de um
dia. A primeira coisa que fez foi parar numa sapataria e
comprar um par de galochas. Passara do verão para o inverno
e sempre fora sujeito a resfriados. As vitaminas também
faziam parte de sua lista.

Andou até chegar a uma livraria e ficou lendo aqui e ali,


após trocar os óculos escuros pelos comuns. Encontrou um
exemplar em brochura do livro de Liebermann. Examinou a
fotografia em miniatura no lado posterior. Aquele nariz
adunco de judeu não enganava. Percorreu a seção de
fotografias no centro do livro e encontrou a sua. No entanto,
Liebermann teria dificuldade em reconhecê-lo. Era a fotografia
de Buenos Aires, de 59, evidentemente a melhor que
Liebermann obtivera. Nem com a cabeleira castanha e o
bigode, nem com os seus verdadeiros cabelos grisalhos e o
lábio superior recentemente raspado guardaria de fato
semelhança, que pena, com aquela bela imagem dele próprio
- 211 -

dezesseis anos mais jovem. Além disso, é claro, Liebermann


nem sequer estaria à sua espreita.

Recolocou o livro na prateleira e deparou com uma seção


de livros de viagem. Escolheu mapas rodoviários dos Estados
Unidos e Canadá. Pagou-os com uma nota de vinte dólares e
aceitou o troco, notas e moedas, com um olhar distraído e um
aceno de cabeça.

Novamente de óculos escuros, passou a percorrer ruas


menos espaçosas, com vitrinas mais iluminadas e
espalhafatosas. Não conseguiu encontrar oque queria, e
finalmente perguntou a um jovem negro. Quem haveria de
saber melhor? Prosseguiu seu caminho, seguindo as
indicações surpreendentemente bem enunciadas.

— Que tipo de faca? — indagou-lhe um negro atrás do


balcão.

— Para caçar — respondeu.

Escolheu a melhor. De fabricação alemã, ajustava-se bem


na mão; realmente bonita. E tão afiada a ponto de cortar tiras
de um papel que pendesse frouxamente dos dedos. M ais duas
de vinte e uma de dez.

Havia uma farmácia ao lado. Comprou suas vitaminas.

E no próximo quarteirão, uma loja de uniformes e roupas


de trabalho.

— O senhor deve usar tamanho 36, não?

— Sim.

— Gostaria de experimentar?

— Não.

Por causa da arma. Comprou também um par de luvas


brancas de algodão.

Foi impossível encontrar uma loja de comestíveis.


Ninguém sabia informar, dir-se-ia que não comiam.

Descobriu finalmente uma, um fulgurante supermercado


cheio de negros. Comprou três maçãs, duas laranjas, duas
- 212 -

bananas e, para seu próprio consumo, um lindo cacho de uvas


verdes sem caroço.

Tomou um táxi de volta ao Benjamin Franklin — entrada


lateral, por favor —, e às três e vinte e dois regressava àquele
sombrio quarto de um décimo de estrela de categoria.

Descansou um pouco, comendo uvas e examinando os


mapas na poltrona (dura!), consultando vez por outra as
folhas datilografadas com os nomes, endereços e datas.
Poderia pegar Wheelock — supondo que ainda estivesse em
New Providence, Pensilvânia — quase dentro do prazo, mas
dali por diante teria de ser na base do vale-tudo. Tentaria
manter-se dentro de seis meses das datas ideais. Davis, em
Kankakee, depois uma subida até o Canadá para Stroheim e
Morgan. Em seguida a Suécia. Teria de renovar os vistos?

Após descansar, ensaiou. Tirou a peruca e vestiu o casaco


branco e as luvas. Treinou levar a cesta de frutas na bandeja.
Proferiu: "Com os cumprimentos da gerência, senhor", uma e
outra vez, até conseguir pronúncia perfeita.

Ficou de costas para a sua porta trancada, pendurou a


tabuleta "É favor não perturbar" no ar, deixou-a cair, bateu no
ar. "Com os cumprimentos da gerência, senhor." Atravessou o
quarto levando a bandeja, pousou-a na cômoda, puxou a faca
da bainha em seu cinto. Voltou-se, mantendo a faca atrás de
si. Andou, parou, estendeu a mão esquerda.

— Obrrigado, senhor. — Apanhou com a mão esquerda,


apunhalou coma direita.

— Obrigado, senhor. Obrigado. — Caprichar na pronúncia.


Apanhar com a esquerda, apunhalar com a direita.

Judeus dão gorjetas?

Experimentou alguns movimentos adicionais.

O platô de nuvens ensolarado terminava abruptamente. O


oceano azul-negro jazia abaixo, franzido e raiado de branco,
imóvel. Liebermann desceu o olhar para ele, de queixo na
mão.
- 213 -

Ei...

Permanecera acordado a noite inteira, sentara-se desperto


o dia inteiro, pensando num Hitler crescido, proferindo com
veemência seus discursos demoníacos para multidões
demasiado descontentes para se importarem coma história.
Dois ou três Hitlers mesmo, em manobras visando o poder em
diferentes lugares, reconhecidos por seus seguidores e por si
próprios como os primeiros seres humanos gerados através do
que em 1990 mais ou menos haveria de ser um processo
largamente praticado. Mais semelhantes do que irmãos, o
mesmo homem multiplicado, como não juntariam as forças,
travando de novo (com armas de 1990!) a guerra racial do
primeiro deles? Certamente esta era a esperança de Mengele.
Barry afirmara: "O objetivo é chegar ao triunfo da raça ariana,
por Deus do céu!" Qualquer coisa nesse sentido.

Um belo fardo a ser trazido para o FBI, que dera uma


reviravolta de quase cem por cento desde a morte de Hoover
em 72. Soava-lhe aos ouvidos a pergunta intrigada: "Yakov de
quê?"

Fora fácil, na noite anterior, dizer a Klaus que daria um


jeito, arrombaria as portas. Na verdade, não perdera de todo
os contatos. Conhecera senadores que ainda exerciam
mandatos. Um deles certamente haveria de abrir as portas
certas. Mas agora, tendo medido todo o horror, temia que,
mesmo com as portas abertas, muito tempo fosse perdido. As
mortes de Guthrie e Curry teriam de ser investigadas, suas
viúvas interrogadas, os Wheelock interrogados... Agora o que
mais importava era capturar o provável matador de Wheelock
e descobrir os outros cinco através dele. Os restantes dos
noventa e quatro homens teriam de permanecer vivos. Não
deixar que as maçanetas dos cofres, segundo a comparação de
Lena (boa de ser lembrada e utilizada em dias futuros),
fossem giradas em direção ao que seria talvez o último e mais
crucial número da combinação.

E, para dificultar ainda mais, o dia 22 era apenas uma


aproximação da data da morte de Wheelock. E se a data
verdadeira fosse mais cedo? E se — risível, o tipo da coisa
- 214 -

pequenina de que talvez viesse a depender a história futura —


Frieda Maloney se houvesse enganado ao dizer que o cãozinho
tinha dez semanas de idade? E se fossem nove semanas, ou
oito, o prazo em que os Wheelock obtiveram seu bebê? O
assassino poderia matar e safar-se dentro de alguns dias.

Olhou o relógio: dez e vinte e oito. Não estava certo,


ainda não o ajustara. Foi o que fez — moveu os ponteiros,
concedendo-se mais seis horas, pelo menos no que dizia
respeito a relógios: quatro e vinte e oito. Nova York dentro de
meia hora, alfândega, e depois o pequeno pulo até
Washington. Dormiria um pouco aquela noite, esperava — já
se sentia meio tonto —, e pela manhã telefonaria para os
gabinetes dos senadores. Telefonaria para Shettles também, e
alguns outros da lista de Nürnberger.

Se ao menos pudesse conseguir agora que o assassino de


Wheelock fosse vigiado, sem demora, explicações,
verificações, indagações! Devia ter vindo mais cedo. É o que
teria feito, evidentemente, se soubesse antes de toda a
enormidade...

Ei...

Precisava mesmo era de um FBI judaico. Ou de uma


sucursal estadunidense da Mossad, de Israel. Um lugar aonde
pudesse ir amanhã e anunciar: "Um nazista vem matar um
homem chamado Wheelock, em New Providence, Pensilvânia.
Protejam-no, capturem o nazista. Não façam perguntas,
explicarei depois. Sou Yakov Liebermann — acaso iria induzi-
los ao erro?" E eles se poriam em campo.

Sonho! Se ao menos uma organização dessas existisse!

As pessoas no avião afivelaram os cintos, fazendo


comentários entre si. O aviso acabara de acender.

De testa franzida, Liebermann continuava quieto em seu


lugar, junto à janela.

Após um retemperante cochilo de uma hora, Mengele


lavou-se e fez a barba, pôs a peruca e o bigode e vestiu o
- 215 -

terno escuro. Espalhou tudo sobre acama — casaco branco,


luvas, faca na bainha, bandeja com cesta de frutas e tabuleta
"É favor não perturbar" —, de modo que, mal visse Liebermann
registrar-se e soubesse o número de seu quarto, pudesse
voltar apressado e assumir sem demora o papel de garçom.

Ao sair do quarto, experimentou a maçaneta e pendurou


nela a outra tabuleta "É favor não perturbar".

Às seis e quarenta e cinco estava sentado no saguão,


folheando um exemplar da Time e vigiando a porta giratória.
Os ocasionais recém-chegados que se dirigiam com suas
maletas em direção à gerência, do outro lado do saguão, eram
quase todos homens desacompanhados, um verdadeiro
desfilar de tipos raciais inferiores. Não apenas negros e
semitas, como também um par de orientais. Um jovem ariano
de bela aparência registrou-se, mas alguns minutos depois,
como que compensando um erro, um anão negro surgiu, em
andar escarranchado, ao lado de uma maleta sobre um
carrinho de rodas.

Às sete e vinte, Liebermann entrou — alto, ombros


curvados, bigode preto, de boné e sobretudo cintado bege.
Seria mesmo Liebermann? Judeu era, mas parecia jovem
demais e sem um nariz tão adunco quanto o de Liebermann.

Levantou-se e, atravessando o saguão, tirou uma This


Week in Washington de cima de uma pilha, sobre o balcão de
mármore rachado.

— Vai ficar até a noite de sexta-feira? — indagou o


recepcionista ao provável Liebermann às suas costas.

— Sim.

Uma campainha tilintou.

— Quer levar Mr. Morris ao 717?

— Sim, senhor.

Passeou de volta pelo saguão. Um libanês ou tipo parecido


tomara o seu lugar — gordo e de aparência sebosa, com anéis
em todos os dedos.
- 216 -

Encontrou outro lugar.

O narigão dos narigões entrou, mas fazia parte da cara de


um rapaz agarrado ao cotovelo de uma mulher grisalha.

Às oito horas, entrou numa cabine telefônica e telefonou


para o hotel. Perguntou — tendo o cuidado de não deixar os
lábios encostarem no bocal, carregado de Deus sabe quantos
germes — se Mr. Yakov Liebermann era esperado.

— Um momento. — Um estalido, um toque de chamada. O


recepcionista do outro lado do saguão atendeu.

— Recepção. — O senhor tem um quarto reservado para


Mr. Yakov Liebermann?

— Para esta noite?

— Sim.

O recepcionista baixou os olhos, como se lesse.

— Sim, temos. É Mr. Liebermann quem está falando?

— Não. — Gostaria de deixar algum recado para ele?

— Não, obrigado. Telefonarei mais tarde.

Podia ficar de vigia ali dentro da cabine, por isso


depositou outra moeda de dez centavos no telefone e
perguntou à telefonista como poderia obter o número de
alguém de New Providence, Pensilvânia. Ela forneceu -lhe um
número comprido para discar. Escreveu-o na margem
vermelha da Time, retirou a moeda do receptáculo na parte
inferior do aparelho, enfiou-a de novo em cima, discou.

Havia um Henry Wheelock em New Providence. Escreveu o


número por baixo do outro. A mulher deu-lhe o endereço
também, Old Buck Road, sem número.

Um latino, de maleta e poodle atrelado, dirigiu-se à


recepção.

Refletiu um momento, em seguida chamou a telefonista e


pediu instruções. Examinou sua série de moedas sobre a
pequena prateleira da cabine, escolheu as certas.
- 217 -

Somente quando o telefone do outro lado deu o seu


primeiro toque é que ele se lembrou de que, se aquele fosse o
Henry Wheelock indicado, o próprio menino poderia atender.
Dali a um momento poderia estar de fato falando com o seu
Führer renascido! Uma vertigem de alegria tirou-lhe o fôlego,
desequilibrando-o de encontro ao lado da cabine, quando o
telefone tocou novamente. Oh, por favor, querido Menino,
venha atender ao telefone!

— Alô. — Voz de mulher.

Respirou fundo, soltando um suspiro.

— Alô?

— Alô. — Recobrou-se. — Mr. Henry Wheelock está?

— Sim, mas no momento está nos fundos.

— É Mrs. Wheelock quem fala?

— É, sim.

— Meu nome é Franklin, senhora. Segundo me consta, a


senhora tem um filho com uns catorze anos, não?

— Temos...

Graças a Deus. — Dirijo excursões para meninos dessa


idade. Estaria interessada em enviá-lo à Europa neste verão?

Riso.

— Oh, não, creio que não.

— Posso enviar-lhe um folheto?

— Pode, mas não vai adiantar.

— O endereço é Old Buck Road?

— Na verdade ele não poderá viajar.

— Boa noite, então. Desculpe tê-la incomodado.

Apanhou um folheto de uma cabine vazia destinada ao


aluguel de carros e passou a examiná-lo, sentado, levantando
os olhos cada vez que a porta giratória se movia.

Amanhã alugaria um carro e se dirigiria a New Providence.


Quando Wheelock estivesse liquidado, iria para Nova York,
- 218 -

entregaria o carro, venderia um diamante e voaria para


Chicago. Se Robert K. Davis ainda estivesse em Kankakee...

Mas onde diabo estava Liebermann?

Às nove horas, foi até a lanchonete e tomou assento no


balcão, de onde pudesse avistar a porta giratória através da
porta envidraçada. Comeu ovos mexidos com torrada, bebeu o
pior café do mundo.

Recebeu um dólar de troco ao sair, voltou à cabine


telefônica e telefonou para o hotel. Talvez Liebermann tivesse
entrado pelo lado.

Não chegara. Ainda era aguardado.

Telefonou para os dois aeroportos, na esperança — era


possível, não? — de que tivesse havido algum desastre.

Nenhuma sorte desse tipo. E todos os voos de chegada


estavam dentro do horário.

O filho da puta certamente ficara em Mannheim. Mas por


quanto tempo? Era tarde demais para telefonar para Viena e
saber através daquela Fräulen Zimmer. Ao contrário, era cedo
demais. Ainda não eram quatro da manhã lá.

Começou a preocupar-se, achando que talvez alguém


fosse se lembrar dele, sentado no saguão a noite toda e
vigiando a porta.

Onde está você, seu maldito judeu canalha? Venha para


que eu o mate!

Quarta-feira à tarde, às duas e pouco, Liebermann saltou


de um táxi retido num engarrafamento, em pleno centro da
zona de comércio de roupas de Manhattan, e seguiu pela
calçada, apesar da chuva gelada. Seu guarda-chuva, que
tomara emprestado das pessoas em cuja casa pernoitara,
Marvin e Rita Farb, tinha uma cor berrante diferente em cada
gomo (é um guarda-chuva, dizia a si mesmo, dê-se por feliz de
tê-lo arranjado).
- 219 -

Chapinhou, apressado, pelo lado oeste da Broadway,


esgueirando-se por entre outros guarda-chuvas (pretos) e
homens empurrando pilhas de roupas cobertas de plástico.
Olhava os números dos edifícios comerciais por onde passava.
Apressou o passo.

Percorreu sete ou oito quarteirões, atravessou uma rua,


lançou um olhar sobre um prédio dali — uma agência de
apostas de hipódromo, uma loja de abajures e mais uns vinte
andares de alvenaria de pedra encardida e janelas estreitas —
e penetrou por sua entrada em arco, empurrando uma pesada
porta envidraçada de vaivém, após fechar o guarda-chuva
multicolorido.

Passou pelo capacho preto do saguão — pequeno, quase


todo tomado por uma banca de revistas e de balas — e reuniu-
se à meia dúzia de pessoas à espera dos elevadores. Bateu
contra o capacho de borracha molhado os sapatos
encharcados e a ponta do guarda-chuva, fazendo cair um
pouco de água.

No décimo segundo andar — escuro, as paredes


descascando — foi lendo os números nas vidraças granuladas
das portas: "1202, Aaron Goldman, Flores artificiais"; "1203, C.
& M. Roth, Artigos de vidro importados"; "1204, Artesanato
jovem de bonecas, B. Rosenszweig". A sala 1205 tinha "JDJ"
colocado à vidraça, em letras metálicas, o D um pouco mais
alto do que os dois J. Bateu com os nós dos dedos no vidro.

Uma mancha indistinta, cor de carne e branca, cresceu


sobre a vidraça.

— Sim? — veio uma voz feminina.

— É Yakov Liebermann.

A abertura para correspondência por baixo da vidraça


abriu-se com um estalido, lançando uma réstia de luz.

— Quer passar sua carteira de identidade?

Retirou o passaporte e enfiou-o pela abertura. Alguém


tirou-o de seus dedos.
- 220 -

Esperou. A porta tinha duas fechaduras, uma que parecia


mais antiga, e, abaixo, outra de metal reluzente, com aspecto
de nova.

Uma lingueta correu e a porta abriu-se.

Entrou. Uma garota gorda, de uns dezesseis anos, de


cabelos ruivos puxados para trás, sorriu-lhe e devolveu o
passaporte, saudando:

— Shalom.

Ele apanhou-o e respondeu: — Shalom.

— Temos de ser cuidadosos — desculpou-se a garota.


Fechou a porta e correu a lingueta. Usava camisa de meia
branca e blue jeans apertados. O cabelo pendia-lhe pelas
costas, num reluzente rabo-de-cavalo ruivo-alaranjado.

Achavam-se numa pequena sala de espera toda


atravancada: uma escrivaninha, um mimeógrafo sobre uma
mesa, com pilhas de papel branco e rosa, estantes de madeira
bruta, com montes de boletins e reproduções de jornais. Na
parede oposta, uma porta entreaberta, tendo colado um cartaz
dos Jovens Defensores Judaicos, uma mão brandindo um
punhal à frente de uma estrela judaica azul.

A garota estendeu a mão para o guarda-chuva. Liebermann


entregou-o, ela o colocou dentro de uma cesta de metal, com
dois outros, pretos e molhados.

Tirando o chapéu e o sobretudo, Liebermann indagou:

— Você é a jovem que atendeu ao telefone?

Ela assentiu com a cabeça.

— Providenciou tudo com muita eficiência. O rabino está?

— Ele acaba de chegar.

Apanhou o chapéu e o sobretudo de Liebermann.

— Obrigado. Como está o filho dele?

— Eles ainda não sabem. O estado dele está estacionário.

— Humm. — Liebermann meneou a cabeça, compassivo.


- 221 -

A garota encontrou lugares para o chapéu e para o


sobretudo por entre uma árvore de cabides ocupados.
Liebermann, endireitando o casaco, alisando o cabelo, lançou
os olhos para as pilhas de boletins, numa prateleira ao lado
dele: "O novo judeu"; "Kissinger beija a morte" 5; "Concessões
— nunca!"

A garota pediu licença e, passando por Liebermann, bateu


na porta coberta pelo cartaz. Abriu-a mais e espiou para
dentro.

— Rabino, Mr. Liebermann está aqui.

Abriu toda a porta e, sorrindo para Liebermann, afastou-


se.

Um homem atarracado, de barba loura, carrancudo, fitou


Liebermann quando ele entrou num gabinete abafado, com
uma barafunda de gente e de mesas, em meio a um montão de
coisas. E, saindo da mesa do canto, o Rabino Moshe Gorin,
bem-apessoado, de cabelos pretos, sólido, sorridente, rosto
lívido, colete xadrez e camisa amarela aberta no peito,
segurou a mão de Liebermann, apertando-a entre as suas, e
pousou nele seus magnéticos olhos castanhos, carregados de
sombras.

— Tenho vontade de conhecê-lo desde que era garoto —


proferiu em voz suave, porém veemente. — O senhor é um dos
poucos homens deste mundo que eu realmente admiro, não
apenas por causa do que fez, mas por tê-lo feito sem qualquer
ajuda do sistema. O sistema judaico, quero dizer.

Embaraçado, porém satisfeito, Liebermann retorquiu:

— Obrigado. Queria conhecê-lo também, rabino. Sou grato


por sua vinda aqui.

Gorin apresentou os outros homens. O de barba loura,


nariz de gavião, com um aperto de mão triturante, era Phil
Greenspan, seu subcomandante. Um alto, calvo, de óculos, era
Elliott Bachrach. Um outro, corpulento, de barba preta: Paul
Stern. O mais jovem — vinte e cinco anos mais ou menos —,

5
Trocadilho no original: KISSinger OF DEATH. (N. do T.)
- 222 -

grosso bigode negro, olhos verdes, e outro aperto de mã o


triturante: Jay Rabinowitz. Todos estavam em mangas de
camisa, e, como Gorin, de solidéu.

Trouxeram cadeiras de outras mesas, puseram-nas em


volta da extremidade da mesa de Gorin, e sentaram-se. O alto,
de óculos, Bachrach, recostou-se ao peitoril da janela, atrás de
Gorin, os braços cruzados, a cortina amarela toda baixada por
trás dele. Liebermann, em frente a Gorin, olhou aqueles
homens sisudos e de aparência resoluta, e o humilde gabinete
atravancado, com os seus mapas de parede da cidade e do
mundo, cavalete com quadro-negro, pilhas de livros, papéis,
caixas de papelão.

— Não repare na desordem — fez Gorin, com um aceno.

— Não é muito diferente do meu escritório — retorquiu


Liebermann, sorrindo. — Um pouco maior, talvez.

— Lamento pelo senhor.

— Como está passando o seu filho?

— Acho que ficará bom — respondeu Gorin. — Seu estado


está estacionário.

— Agradeço sua vinda.

Gorin encolheu os ombros.

— A mãe está com ele. Fiz minhas preces. — Sorriu.

Liebermann tentou acomodar-se na cadeira sem braços.

— Sempre que falo em público — disse —, quero dizer...


perguntam-me o que acho do senhor. Sempre digo que "nunca
o vi pessoalmente, portanto não tenho opinião". — Sorriu para
Gorin. — Agora terei de dar nova resposta.

— Favorável, espero. — O telefone sobre a mesa tocou. —


Ninguém está aqui, Sandy! — gritou Gorin em direção à porta.
— A menos que seja minha mulher! — Voltou-se para
Liebermann, indagando: — Não está esperando algum
telefonema, está?

Liebermann meneou a cabeça.


- 223 -

— Ninguém sabe que estou aqui. Pensam que estou em


Washington. — Pigarreou, sentado com as mãos sobre os
joelhos. — Saí a caminho de lá ontem à tarde — declarou. —
Para ir ao FBI, devido a uns assassinatos que estou
investigando. Aqui e na Europa. Cometidos por antigos
membros das SS.

— Assassinatos recentes? — Gorin mostrou-se inquieto.

— Ainda estão sendo cometidos — tornou Liebermann. —


Planejados pela Organização dos Camaradas, da América do
Sul, e pelo Dr. Mengele.

— Aquele filho da puta... — murmurou Gorin.

Os homens agitaram-se. O de barba loura, Greenspan,


informou a Liebermann:

— Temos uma nova ramificação no Rio de Janeiro. Logo


que estiver suficientemente organizada, treinaremos uma
equipe para apanhá-lo.

— Desejo-lhes sorte — disse Liebermann. — Ele ainda está


vivo, sim, dirigindo todo este negócio. Matou um moço lá, um
rapaz judeu de Evanston, Illinois, em setembro. O rapaz
estava ao telefone, falando comigo, quando aconteceu. Meu
problema agora é que levará tempo para convencer o FBI. Sei
do que estou falando.

— Por que esperou tanto? — indagou Gorin. — Se sabia em


setembro...

— Eu não sabia — retorquiu Liebermann. — Houve muitos


"se", "talvez", incertezas. Somente agora tenho tudo armado.
— Meneou a cabeça e suspirou. — Foi então que me ocorreu no
avião — disse a Gorin — que talvez vocês, os JDJ — olhou para
todos —, pudessem ajudar-me nisso, enquanto sigo para
Washington.

— Tudo o que pudermos fazer — tornou Gorin —, é só


pedir, que obterá. — Os outros assentiram.

— Obrigado — respondeu Liebermann. — É o que eu


esperava. Trata-se de proteger alguém, um homem na
- 224 -

Pensilvânia. Num vilarejo de lá, New Providence, um ponto no


mapa, perto da cidade de Lancaster.

— Pensilvânia, terra holandesa — disse o homem de barba


preta. — Conheço-a.

— Esse homem é o próximo a ser morto neste país —


anunciou Liebermann. — No dia 22 deste mês, talvez antes.
Talvez daqui a poucos dias. Portanto, precisa ser protegido.
Mas o homem que vem matá-lo não deve ser espantado ou
morto. Tem de ser capturado, a fim de que o interroguemos.
— Olhou para Gorin. — Tem pessoas que possam cumprir uma
missa dessas? Proteger alguém, capturar alguém?

Gorin acenou afirmativamente.

— Está olhando para elas — asseverou Greenspan, e,


dirigindo-se a Gorin: — Deixe Jay fazer a demonstração. Eu me
encarrego disso.

Gorin sorriu, inclinou a cabeça na direção de Greenspan e


informou a Liebermann:

— A maior tristeza deste aqui é ter perdido a Segunda


Guerra Mundial. É o nosso instrutor de combate.

— Será apenas por uma semana mais ou menos, espero —


assegurou Liebermann. — Somente até o FBI entrar em ação.

— Para que precisa deles? — indagou o jovem de bigode, e


Greenspan garantiu a Liebermann: — Vamos apanhá-lo para o
senhor, e obteremos mais depressa informações dele do que o
FBI. Com toda a certeza.

O telefone tocou. Liebermann meneou a cabeça.

— Tenho de usá-los — declarou — porque através deles a


coisa chega à Interpol. Há outros países envolvidos. Há mais
cinco homens além desse.

Gorin olhava em direção à porta. Voltou-se para


Liebermann.

— Quantos assassinatos houve? — indagou.

— Oito, que eu saiba. Gorin mostrou-se acabrunhado.


Alguém assobiou.
- 225 -

— Sete, que eu saiba — corrigiu Liebermann. — Um


provável. Talvez outros ainda.

— Judeus? — indagou Gorin. Liebermann meneou a


cabeça.

— Gois 6.

— Por quê? — perguntou Bach, da janela. — Com que


objetivo?

— Sim — instou Gorin. — Quem são eles? Quem é o da


Pensilvânia?

Liebermann respirou fundo. Inclinou-se para diante.

— Se eu lhes disser que é muito, muito importante —


asseverou —, mais importante a longo prazo do que o anti-
semitismo russo e a pressão sobre Israel, seria bastante para
vocês agora? Garanto-lhes que não estou exagerando.

Em silêncio, Gorin franziu a testa para a mesa diante de


si. Ergueu os olhos para Liebermann, meneou a cabeça e
sorriu, desculpando-se.

— Não — disse. — O senhor está pedindo a Moshe Gorin


que lhe ceda três ou quatro de seus melhores homens, talvez
mais. Homens, não meninos. Numa hora em que estamos
espalhados demais, em que o governo vive me pressionando,
achando que estou estragando a sua preciosa distensão. Não,
Yakov — meneou a cabeça —, dar-lhe-ei toda a ajuda que
puder, mas que espécie de líder seria eu se entregasse
cegamente meus homens, ainda que fosse a Yakov
Liebermann?

Liebermann assentiu.

— Imaginei que no mínimo haveria de querer saber —


concedeu. — Mas não me peça provas, rabino. Apenas escute e
confie em mim. Do contrário, terei perdido meu tempo. —
Olhou para todos eles, para Gorin, pigarreou. — Por algum
acaso — indagou — teriam estudado um pouco de biologia?

6
Nome dado pelos judeus aos que não são judeus. (N. do T.)
- 226 -

— Deus! — exclamou o de bigode.

— O termo usado é "clone". Saiu um artigo no Times sobre


isso há alguns anos.

Gorin sorriu levemente, enrolando uma linha solta em


torno do botão do punho.

— Esta manhã — declarou —, junto à cama de meu filho,


exclamei: "Oque virá depois, Senhor?" — Fez um gesto em
direção a Liebermann, comum aceno de cabeça, sorrindo
amargamente. — Noventa e quatro Hitlers.

— Noventa e quatro meninos com os genes de Hitler —


retificou Liebermann.

— Para mim — disse Gorin — isso significa noventa e


quatro Hitlers.

— Tem certeza de que este tal de Wheelock ainda está


vivo? — indagou Greenspan a Liebermann.

— Tenho.

— E que não se mudou? — reiterou o de barba preta.

— Tenho o seu telefone — respondeu Liebermann.

— Não queria falar com ele ainda, até conseguir saber se


vocês fariam o que eu desejava que fizessem. — Olhou para
Gorin. — Entretanto, pedi à mulher na casa de quem me
hospedei que telefonasse para ele esta manhã. Ela alegou que
pretendia comprar um cão e teve como resposta que eles eram
criadores. É ele mesmo. Ela obteve indicações de como chegar
lá.

— Teremos de fazer isto fora da Filadélfia — disse Gorin a


Greenspan. E a Liebermann: — O que não faremos é atravessar
uma fronteira estadual levando armas. O FBI adoraria um
pretexto para nos prender e aos nazistas.

— Telefono então para Wheelock agora? — indagou


Liebermann.

Gorin assentiu. — Vou colocar alguém junto dele, em sua


casa — declarou Greenspan.
- 227 -

O rapaz de bigode chegou o telefone para perto de


Liebermann.

Liebermann pôs os óculos e tirou um envelope do bolso


do casaco.

— Olá, Mr. Wheelock, seu filho é Hitler — motejou


Bachrach, da janela.

— Não vou falar no menino — alegou Liebermann. — Ele


poderá desligar o telefone na minha cara, dadas as condições
em que foi realizada a adoção. É só discar, não é?

— Se tem o código da região.

Liebermann discou, lendo o número escrito no envelope.

— Esta é a época de férias — disse Gorin. — É provável


que o menino atenda.

— Somos amigos — retorquiu Liebermann, impassível. —


Já estive com ele duas vezes.

O telefone do outro lado começou a tocar.

Tocou novamente. Liebermann olhou para Gorin, que


estava de olhar fito nele.

— Alô. — Atendeu grossa voz masculina.

— Mr. Henry Wheelock?

— É ele quem fala.

— Mr. Wheelock, meu nome é Yakov Liebermann. Estou


telefonando de Nova York. Dirijo o Centro de Informação de
Crimes de Guerra, de Viena — talvez tenha ouvido falar em
nós, não? Colhemos informações a respeito de criminosos de
guerra nazistas, ajudamos a encontrá-los e auxiliamos a
promotoria.

— Já ouvi falar. O negócio daquele Eichmann.

— Isto mesmo, e mais outros. Mr. Wheelock, estou atrás


de alguém presentemente, alguém que se acha neste país.
Estou a caminho de Washington, a fim de recorrer ao FBI. Este
homem matou dois ou três homens aqui, não há muito tempo,
e está planejando matar mais.
- 228 -

— Está procurando um cão de guarda?

— Não — respondeu Liebermann. — O próximo homem


que ele planeja matar, Mr. Wheelock — olhou para Gorin —, é
o senhor.

— Ah, é? Diga logo quem está falando! É o Ted? Arranjou


um perfeito sotaque alemon, seu cabeça de bagre.

— Não se trata de brincadeira — disse Liebermann. — Sei


que o senhor julga que um nazista não teria motivos para
matá-lo...

— Não teria? Eu matei uma quantidade deles. Aposto que


ficariam tremendamente felizes de poderem diminuir a
diferença. Se ainda existir algum por perto...

— Existe um por perto...

— Vamos acabar com isso, quem é que está falando?

— É Yakov Liebermann, Mr. Wheelock.

— Incrível! — exclamou Gorin. Ao redor, cresceu um coro


de protestos irritados.

Liebermann enfiou um dedo no seu ouvido livre.

— Juro-lhe — insistiu — que um homem, um antigo


membro das SS, está a caminho de New Providence para matá-
lo, talvez dentro de alguns dias. Estou tentando salvar-lhe a
vida.

Silêncio.

— Estou aqui, no escritório do Rabino Moshe Gorin, dos


Jovens Defensores Judaicos. Até que eu consiga a proteção do
FBI para o senhor, o que talvez demore cerca de uma semana,
o rabino tenciona enviar alguns de seus homens. Eles poderão
chegar...

Lançou um olhar interrogativo para Gorin, que respondeu:

— Amanhã de manhã.

— Amanhã de manhã — completou Liebermann.

— O senhor colaborará com eles até que os homens do FBI


cheguem?
- 229 -

Silêncio.

— Mr. Wheelock?

— Olhe, Mr. Liebermann, se é mesmo Mr. Liebermann. Está


bem, talvez seja assim. Mas deixe-me dizer uma coisa.
Acontece que o senhor está falando com um dos homens em
melhor situação de segurança dos Estados Unidos. Primeiro,
sou antigo agente de repressão de uma penitenciária estadual,
portanto sei alguma coisa a respeito de como cuidar de mim
próprio. Depois, tenho a casa cheia de Dobermanns treinados.
Digo uma palavra e eles saltam na garganta de qualquer um
que olhe torto para mim.

— Fico satisfeito em ouvir isso — tornou Liebermann —,


mas poderão eles evitar que uma parede desabe sobre o
senhor? Ou que alguém o alveje a distância? Foi o que
aconteceu com dois outros homens.

— Mas que diabo de história é essa? Nenhum nazista está


atrás de mim. O senhor está falando com o Henry Wheelock
errado.

— Existe outro em New Providence que crie Dobermanns?


Com sessenta e cinco anos de idade, uma esposa muito mais
jovem, um filho com quase catorze anos?

Silêncio.

— O senhor precisa de proteção — insistiu Liebermann. —


E o nazista precisa ser capturado, e não morto pelos cães.

— Vou acreditar quando o FBI assim disser. Não quero


saber de uns garotos judeus com bastões de beisebol à minha
volta.

Liebermann calou-se por um momento.

— Mr. Wheelock — indagou —, posso ir vê-lo a meio do


caminho para Washington? Explicarei melhor.

Gorin olhou-o, interrogativo; ele desviou o olhar.

— Venha, se quiser, estou sempre em casa.

— Quando é que sua esposa não está aí? — Ela passa fora
a maior parte do dia. É professora.
- 230 -

— E o rapaz está na escola também?

— Quando não está às voltas com sua mania de cinema.


Será um futuro Alfred Hitchcock, é o que diz.

— Estarei aí por volta de meio-dia, amanhã.

— Como quiser. Mas somente o senhor. Se eu vir algum


"Defensor Judaico" por perto, solto os cachorros. Tem um
lápis? Vou lhe dar o endereço.

— Já tenho — retorquiu Liebermann. — Vejo-o amanhã. E


espero que esta noite o senhor permaneça em casa.

— É o que estou pretendendo.

Liebermann desligou.

— Terei de dizer-lhe que isso tem relação com a adoção —


explicou a Gorin. — Sempre é preferível que ele não desligue
na minha cara. — Sorriu. — Também terei de convencê-lo de
que os JDJ não são "uns garotos judeus com bastões de
beisebol". — E, dirigindo-se a Greenspan, acrescentou: — Terá
de ficar esperando por perto, até que eu o chame.

— Tenho de ir à Filadélfia primeiro — retorquiu


Greenspan. — Para pegar meus homens e o meu equipamento.
— E preveniu a Gorin: — Quero levar Paul.

Estabeleceram os planos. Greenspan e Paul Stern iriam à


Filadélfia no carro de Stern, logo que arrumassem as suas
coisas, e Liebermann seguiria para New Providence no carro
de Greenspan, pela manhã. Quando persuadisse Wheelock a
aceitar a proteção dos JDJ, telefonaria para a Filadélfia e a
equipe partiria ao seu encontro, na casa de Wheelock. Uma
vez assentadas as coisas ele rumaria para Washington,
conservando o carro de Greenspan, até que o FBI substituísse
a equipe.

— Preciso avisar meu escritório — disse ele, mexendo o


chá. — Pensam que já estou lá.

Gorin fez um gesto em direção ao telefone.


- 231 -

Liebermann meneou a cabeça. — Não, agora não, é muito


tarde lá. Cedo, pela manhã, telefonarei. — Sorriu. — Não vou
explorar os JDJ.

Gorin encolheu os ombros.

— Telefono para a Europa o tempo todo — retorquiu. —


Para as nossas ramificações.

Liebermann aquiesceu com a cabeça, meditativo e


sentenciou:

— Os contribuintes me largaram e aderiram ao senhor.

— Acredito que alguns o fizeram — tornou Gorin. — Mas o


fato de estarmos sentados aqui juntos, trabalhando juntos,
prova que eles estão ajudando a mesma causa, não é verdade?

— Acho que sim — acedeu Liebermann. — Sim, é verdade.

Pouco depois, acrescentou:

— O garoto do Wheelock não pinta quadros. Estamos em


1975: ele faz cinema. — Sorriu. — Mas escolheu sozinho as
iniciais adequadas. Quer ser um novo Alfred Hitchcock. E o
pai, o funcionário público, não acha isso uma boa ideia. Hitler
e o pai tinham grandes discussões porque ele queria ser
artista.

Mengele atravessara a rua de manhã cedo na quarta-feira


e tomara um quarto em outro hotel, o Kenilworth, registrando-
se como Mr. Kurt Koehler, da Sheridan Road, 18, Evanston,
Illinois. Pediram-lhe, como era de se esperar, para pagar
adiantado, uma vez que trazia apenas uma fina pasta de couro
(documentos, faca, pentes para a Browning, diamantes) e um
saquinho de papel (uvas).

Não poderia telefonar para o escritório de Liebermann do


quarto do Sr. Ramón Aschheim y Negrín, pois em seguida à
morte de Liebermann os telefonemas de Koehler certamente
seriam controlados, e tampouco se sentia particularmente
disposto a juntar sete dólares em moedas e passar uma hora
encardindo o polegar enfiando-as num telefone de cabine. E,
- 232 -

como Kurt Koehler, poderia receber um telefonema, se


necessário.

No seu segundo quarto (nem um décimo de estrela)


conseguira comunicar-se com Fräulen Zimmer e explicara-lhe
que voara de Nova York para Washington, enviando o corpo de
Barry sem acompanhante, dada a avassaladora importância de
fazer chegar às mãos de Herr Liebermann o mais depressa
possível as anotações do pobre rapaz, ainda mais importantes
do que julgara a princípio. Mas onde, por favor, me digam, se
encontrava Herr Liebermann?

Não estava no Benjamin Franklin? Fräulen Zimmer se


mostrara surpresa, porém não alarmada. Ela telefonaria para
Mannheim, a fim de ver o que poderia averiguar. Talvez fosse
bom Herr Koehler tentar outros hotéis, embora ela não
pudesse imaginar o motivo por que Herr Liebermann teria ido
para outro lugar. Certamente ele telefonaria dentro em breve,
geralmente o fazia quando mudava os planos. (Geralmente!)
Sim, ela telefonaria para Herr Koehler logo que reunisse
informações. Estava no Kenilworth, gentil Fräulen. O Benjamin
Franklin estava cheio quando ele chegara. Mas comum quarto
reservado para Herr Liebermann, claro.

Na altura em que ela telefonara de volta, ele havia ligado


para mais de trinta hotéis, e para o Benjamin Franklin seis
vezes.

Liebermann deixara Frankfurt no seu pretendido voo na


terça-feira pela manhã. Portanto, ou estaria em Washington ou
se detivera em Nova York.

— Onde ele se hospeda lá?

— Às vezes no Hotel Edison, mas geralmente em casa de


amigos, colaboradores.

Tem uma quantidade deles. É uma grande comunidade


judaica, como sabe.

— Sei, sim.
- 233 -

— Não se preocupe, Herr Koehler, estou certa de que terei


notícias em breve, e lhe direi que o senhor está à espera. Vou
ficar aqui até tarde, para ocaso de isso acontecer.

Ele telefonou para o Edison, de Nova York, para outros


hotéis de Washington, para o Benjamin Franklin a cada meia
hora.

Correu até lá, debaixo da chuva gelada, a fim de


certificar-se de que suas roupas e a mala ainda estavam no
seu quarto, com a tabuleta "É favor não perturbar".

Passou a noite de quarta-feira no Kenilworth. Tentou


dormir. Ficou deprimido. Lembrou-se da arma na mesinha-de-
cabeceira... Teria realmente possibilidade de apanhar
Liebermann e os outros que ainda deviam ser mortos (setenta
e sete!) antes que ele próprio fosse morto? Ou, pior ainda,
capturado e obrigado a suportar o tipo de hediondo
pseudojulgamento que atingira os pobres Stangl e Eichmann?
Por que não acabar com tantas lutas, projetos, preocupações?

Descobriu, à uma da manhã, na televisão americana — o


que certamente era obra divina, um sinal enviado para
despertá-lo do desânimo —, um filme glorioso com o Führer e
o General von Blomberg assistindo a uma demonstração da
Luftwaffe.

Silenciou a detestável narração inglesa e ficou com os


olhos naquelas imagens mudas, granulosas e velhas, tão de
torcer o coração, agridoces, reanimadoras...

Dormiu.

Poucos minutos depois das oito, na manhã de quinta-


feira, quando estava prestes a fazer outra chamada para
Viena, o telefone tocou.

— Alô?

— É Mr. Kurt Koehler? — Era uma mulher, americana, não


Fräulen Zimmer.

— Sim...
- 234 -

— Alô, aqui é Rita Farb. Sou amiga de Yakov Liebermann.


Ele esteve hospedado em nossa casa, em Nova York. Pediu-me
para telefonar para o senhor. Ele telefonou para o seu
escritório em Viena há pouco, e soube que o senhor está à sua
espera. Ele chegará a Washington esta noite, por volta das
seis. Gostaria que o senhor jantasse com ele. Vai telefonar -lhe
assim que chegar.

Aliviado, contente, Mengele exclamou:

— Magnífico!

— Será que o senhor lhe poderia fazer um favor?


Telefonar para o Hotel Benjamin Franklin e avisá-los de que
ele irá com toda a certeza?

— Sim, com muito prazer! Sabe em que voo ele chega?

— Ele vai de carro, não de avião. Acaba de partir. Por isso


é que sou eu que estou telefonando. Ele estava um pouco
apressado.

Mengele franziu a testa.

— Não chegará então um pouco antes das seis? —


indagou. — Uma vez que já saiu?

— Não, terá de fazer um desvio até a Pensilvânia. Talvez


chegue até um pouco depois das seis, mas estará aí sem falta
e imediatamente lhe telefonará.

Mengele calou-se por um momento. Em seguida, indagou:

— Será que ele vai falar com Henry Wheelock? Em New


Providence?

— Sim, fui eu que lhe dei o endereço. É sem dúvida


interessante ter Yakov em casa. Calculo que alguma coisa
realmente importante está em andamento.

— Sim — retorquiu Mengele. — Obrigado por me ter


telefonado. Ah, sabe a que horas Yakov e Henry vão estar
juntos?

— Ao meio-dia.

— Obrigado. Adeus.
- 235 -

Apertou o botão do telefone, sem largar, consultou o


relógio, fechou os olhos e permaneceu imóvel. Abriu os olhos,
largou o botão, bateu-lhe de leve. Comunicou-se com a caixa e
pediu-lhe para aprontar a sua conta da comida e do telefone.

Pôs o bigode, a peruca. A arma. Casaco, sobretudo,


chapéu. Apanhou a pasta.

Atravessou a rua correndo e entrou no Benjamin Franklin.


Parou no guichê da caixa, a fim de dar instruções, e dirigiu-se
apressadamente à cabine de aluguel de carros. Uma moça
bonita, de uniforme amarelo e preto, deu-lhe um sorriso
radioso.

Que se tornou menos radioso quando soube que ele era


paraguaio e não tinha cartão de crédito. O custo estimado do
aluguel teria de ser pago adiantadamente. Uns sessenta
dólares, achava ela. Ia calculá-lo com mais precisão. Ele largou
algumas notas, deixou sua carteira de motorista, disse-lhe
para aprontar o carro dentro de dez minutos e não mais, e
apressou-se em direção aos elevadores.

Por volta de nove horas, estava na estrada, a caminho de


Baltimore, num Ford Pinto branco, sob um brilhante céu azul.
Arma debaixo do braço, faca no bolso do sobretudo. Deus do
seu lado.

Guiando dentro do limite de noventa quilômetros por


hora, chegaria a New Providence quase uma hora antes de
Liebermann.

De quando em quando outros carros o ultrapassavam.


Americanos! O limite é noventa, eles vão a cem. Meneou a
cabeça e permitiu-se andar mais depressa. A gente dança
conforme a música...

Chegou a New Providence — um punhado de casas


pardacentas, uma loja, uma agência de correio cor de tijolo —
às dez para as onze, mas aí precisou encontrar Old Buck Road
sem pedir indicações a alguém que pudesse depois descrever
sua pessoa, ou o carro, à polícia. O mapa rodoviário que
- 236 -

arranjara num posto de gasolina de Maryland, mais detalhado


do que o geral, mostrava uma cidade de nome Buck, a
sudoeste de New Providence. Seguiu naquela direção, por uma
estrada de duas pistas, cheia de saliências, que serpenteava
através de terras agrícolas atingidas pelo inverno. Diminuía a
marcha a cada encruzilhada e apurava a vista para as
tabuletas e marcos quase ilegíveis. Carros e caminhões
passavam com pouca frequência.

Achou Old Buck Road, com duas bifurcações, uma à


direita e outra à esquerda. Escolheu a da direita e virou para
New Providence, olhando as caixas de correio. Passou por
"Gruber" e "C. Johnson". Árvores despidas entrelaçavam ramos
por sobre a estrada estreita. Uma charrete preta veio se
aproximando. Vira outras parecidas em cartazes, na estrada
principal. A seita mennonita constituía atração turística,
segundo parecia. Sob a capota preta, um homem barbado, de
chapéu preto, e uma mulher de touca preta estavam sentados,
olhar fixo adiante.

As caixas de correio, junto a entradas que iam dar em


terrenos arborizados, eram poucas e distanciadas. O que era
bom, assim podia usar a arma.

"H. Wheelock." A bandeirola vermelha de aviso estava ao


lado da caixa" CÃES DE GUARDA", avisava (ou anunciava?) uma
tabuleta abaixo dela, em letras pretas maltraçadas.

O que era mau. Embora não inteiramente mau, uma vez


que lhe dava um motivo mais razoável do que o negócio da
excursão-de-verão-para-o-menino que pretendia impingir
novamente.

Virou à direita, guiando as rodas do carro para dentro dos


sulcos profundos do caminho de terra que subia
gradualmente, em corcova, colina acima, através das árvores.
O fundo do carro raspava de encontro ao ressalto: isso era
problema para Herr Hertz. Mas seu também, caso o carro
ficasse inutilizado. Guiou devagar. Consultou o relógio: onze
e dezoito.
- 237 -

Sim, ele se lembrava vagamente de um casal americano


que havia incluído entre os seus interesses a criação de cães.
Sem dúvida os Wheelock. E o guarda de prisão, agora
certamente aposentado, talvez tivesse transformado em
ocupação de tempo integral seu antigo passatempo.

— Bom dia! — exclamou Mengele em voz alta. — A


tabuleta lá embaixo diz "Cães de guarda", e é isso exatamente
o que estou procurando.

Apertou o bigode grosso, bateu de leve na peruca nos


lados e atrás, inclinou o espelho e olhou-se. Endireitou-o e
seguiu vagarosamente pelo caminho sulcado. Enfiou a mão
por dentro do casaco e do sobretudo, abrindo o coldre, de
modo a que a arma pudesse ser sacada livremente.

Latidos de cães, um tumulto deles, irromperam de uma


clareira ensolarada, onde uma casa de dois andares —
persianas brancas, telhas pardas — situava-se em ângulo em
relação a ele. E, nos fundos, uma dúzia de cães arrojava-se de
encontro a uma grade alta de arame, latindo, ganindo. Um
homem de cabelos brancos, de pé atrás deles, olhava em sua
direção.

Guiou até junto da alameda calçada de pedra da casa e


parou o carro ali. Pôs em ponto morto e girou a chave. Um dos
cães gania agora, filhote, a julgar pelo som. No outro extremo
da casa, uma caminhonete vermelha estava parada dentro de
uma garagem para dois carros; a outra metade estava vazia.

Destravou a porta do carro, abriu-a e saltou. Estirou-se e


cocou as costas, enquanto um gemido do carro lembrou-o de
tirar a chave. A arma moveu-se embaixo do braço. Bateu a
porta e ficou olhando o pórtico arrematado de branco na
extremidade da alameda. Então era ali que um deles morava!
Talvez uma fotografia do menino estivesse em algum canto.
Que maravilha ver aquele rosto de quase catorze anos! Deus
do céu, e se ele não estivesse na escola hoje? Ideia
perturbadora, mas emocionante!

O homem de cabelos brancos veio em passos longos pelo


lado da casa, com um cão ao lado, preto e reluzente. Usava um
- 238 -

volumoso blusão marrom, luvas pretas, calças marrons. Era


alto e largo, o rosto corado e soturno, hostil.

Mengele sorriu.

— Bom dia! — exclamou. — A...

— O senhor é Liebermann? — indagou o homem, numa


voz grossa, aproximando-se com longas passadas.

Mengele sorriu mais largamente.

— Ja, sim! — exclamou. — Sim! Mr. Wheelock?

O homem parou perto de Mengele e acenou


afirmativamente com a cabeça de cabelos brancos ondulados.
O cão, um belo Dobermann preto-azulado, rosnou para
Mengele, mostrando os dentes brancos aguçados. Um dedo de
couro preto enganchava-se na coleira de corrente.
Descoseduras e rasgões esfrangalhavam as mangas do
grosseiro blusão marrom, as fibras do forro branco
sobressaindo.

— Cheguei um pouco cedo — desculpou-se Mengele.

Wheelock olhou para além dele, em direção ao carro, e


depois contemplou-o, os olhos azuis apertando-se sob as
espessas sobrancelhas brancas. Rugas vincavam suas faces
com barba branca, curta e espetada.

— Entre — disse, enviesando a cabeça branca em direção à


casa. — Não posso deixar de reconhecer que o senhor me
despertou uma curiosidade dos diabos.

Voltou-se e foi andando na frente, pela alameda,


segurando pelo dedo a coleira do Dobermann preto-azulado.

— Lindo cão — observou Mengele, indo atrás.

Wheelock subiu até o pórtico. A porta branca tinha uma


aldrava representando uma cabeça de cão.

— Seu filho está em casa? — indagou Mengele.

— Não tem ninguém em casa — retorquiu Wheelock,


abrindo a porta. — Exceto eles. — Dobermanns, dois, três,
vieram lamber-lhe a luva, rosnando para Mengele. — Quietos,
- 239 -

meninos — tranquilizou Wheelock. — É um amigo. — Fez um


gesto para os cães recuarem — eles obedeceram — e entrou
com o outro cão, fazendo um sinal para Mengele. — Feche a
porta.

Mengele entrou e fechou a porta. Parou, os olhos em


Wheelock, agachado entre os Dobermanns negros
aglomerados, afagando-lhes as cabeças, dando palmadas em
seus flancos compactos, enquanto esfregavam nele a língua e
o focinho.

— Como são lindos — disse Mengele.

— Estes jovens aqui — tornou Wheelock, feliz — são


Harpo e Zeppo, foi meu filho quem deu os nomes, a única
ninhada que lhe permiti batizar.

Este velhote aqui é Sansão — quieto, Sansãozinho — e


este é Major. Apresento-lhes Mr. Liebermann, rapazes. Um
amigo. — Ergueu-se e sorriu para Mengele, puxando as pontas
das luvas. — Pode ver agora por que não urino nas calças
quando o senhor me diz que alguém anda no meu encalço.

Mengele acenou afirmativamente.

— É — acedeu. — Baixou os olhos para os dois


Dobermanns que farejavam seu sobretudo. — Magnífica
proteção — acrescentou —, uns cães como esses.

— Pulam na garganta de quem me olhar enviesado. —


Wheelock abriu o fecho ecler do blusão. Havia uma camisa
vermelha por dentro. — Tire seu sobretudo — recomendou. —
Pendure ali.

À direita de Mengele havia um móvel alto, com grandes


cabides pretos. Seu espelho oval mostrava uma cadeira e a
extremidade de uma mesa de jantar no aposento do outro
lado. Mengele pendurou o chapéu num cabide, desabotoou o
sobretudo. Sorriu para os Dobermanns, sorriu para Wheelock,
que tirava o blusão. Atrás deste subia uma íngreme escada
estreita.

— Então o senhor foi quem apanhou o tal de Eichmann. —


Wheelock pendurou seu blusão de mangas rasgadas.
- 240 -

— Os israelenses é que o pegaram — retorquiu Mengele,


tirando o sobretudo. — Entretanto, ajudei-os, é claro. Descobri
onde se escondia, lá na Argentina.

— Ganhou recompensa?

— Não. — Mengele pendurou o sobretudo. — Faço essas


coisas por prazer — declarou. — Odeio os nazistas. Deviam
ser caçados e destruídos como uma praga.

— Os crioulos, não os nazistas, é que nos devem


preocupar atualmente — contraveio Wheelock. — Venha cá
para dentro.

Endireitando o casaco, Mengele entrou atrás de Wheelock


na sala à direita. Dois dos Dobermanns acompanhavam-no,
fuçando suas pernas. Os outros dois acompanharam Wheelock.
O aposento era uma aprazível sala de estar, com cortinas
brancas nas janelas, uma lareira de pedra, e, à esquerda, toda
uma parede de fitas de prêmio coloridas, troféus dourados,
fotografias com molduras pretas.

— Ah, mas isso é notável — louvou Mengele, e foi olhar.


Os retratos eram todos de Dobermanns, nenhum do menino.

— Agora me diga por que há um nazista atrás de mim.

Mengele voltou-se. Wheelock estava sentado num canapé


vitoriano, entre as duas janelas da frente, retirando porções
de fumo de dentro de um pote de vidro lapidado em cima de
uma mesa baixa e enfiando-o dentro de um atarracado
cachimbo preto. Um Dobermann tinha as patas dianteiras
sobre a mesa e observava-o.

Outro Dobermann, o maior de todos, jazia sobre um


tapete oval, entre Wheelock e Mengele, de olhos erguidos para
Mengele, tranquilo, porém interessado.

Os outros dois Dobermanns farejavam as pernas de


Mengele, as pontas dos dedos.

Wheelock olhou Mengele, inquisitivo:

— Então?

Sorrindo, Mengele disse:


- 241 -

— Sabe, fica difícil para mim falar com... — e indicou com


um gesto o Dobermann ao seu lado.

— Não se preocupe — tranquilizou Wheelock, preparando


o cachimbo. — Não irão perturbar, a menos que o senhor me
perturbe. Trate de sentar-se e falar. Eles se habituarão ao
senhor.

Mengele sentou-se num sofá de couro, que rangeu. Um


dos Dobermanns saltou em pé ao seu lado, dando reviravoltas,
pronto a deitar-se de novo. O Dobermann sobre o tapete
levantou-se e veio empurrar a cabeça preta eluzidia entre os
joelhos de Mengele, farejando em direção à virilha.

— Sansão — admoestou Wheelock, sugando a chama do


fósforo dentro do fornilho do cachimbo.

O Dobermann retirou a cabeça e deitou-se no chão,


olhando para Mengele. Outro Dobermann, sentado aos pés de
Mengele, cocou a coleira decorrente com a pata traseira. O
Dobermann deitado junto a Mengele, no sofá, observava o
Dobermann sentado diante de Mengele.

Mengele pigarreou e anunciou:

— O nazista que virá é o próprio Dr. Mengele.


Provavelmente estará aqui...

— Um médico? — Wheelock, segurando o cachimbo,


sacudiu o fósforo.

— Sim — assentiu Mengele. — O Dr. Mengele. Mr.


Wheelock, não duvido que estes cães estejam perfeitamente
treinados, posso avaliar, tendo diante dos olhos estes
magníficos prêmios — indicou com o dedo a parede atrás de si
—, mas o fato é que, quando eu tinha oito anos, fui atacado
por um cão. Não um Dobermann, mas um pastor alemão. —
Tocou na coxa esquerda. — A coxa inteira — explicou — ainda
hoje é um montão de cicatrizes. E ficaram cicatrizes mentais
também. Sinto-me muito inquieto quando tenho um cão junto
de mim, no mesmo aposento, e quatro então... bem, é um
verdadeiro pesadelo!

Wheelock baixou o cachimbo.


- 242 -

— Devia ter dito isso logo de cara — disse. E levantou-se,


estalando os dedos. Os Dobermanns pularam, arremessando-
se, aos atropelos, para o seu lado. — Venham, meninos —
disse, dirigindo o bando através da sala, em direção à porta
junto ao sofá. — Temos aqui em casa um outro Wally
Montague. Entrem. — Apontou-lhes em direção à porta, retirou
com a pontado pé alguma coisa embaixo dela e fechou -a,
experimentando a maçaneta.

— Eles não podem entrar por outro caminho? — indagou


Mengele.

— Não. — Wheelock tornou a cruzar a sala.

Mengele suspirou, dizendo:

— Obrigado. Sinto-me muito melhor agora. — Chegou-se


para a frente do sofá e desabotoou o casaco.

— Conte sua história depressa — preveniu Wheelock,


sentando no sofá, pegando o cachimbo. — Não gosto de
mantê-los presos muito tempo.

— Entrarei direto no assunto — principiou Mengele —,


mas primeiro — ergueu um dedo — gostaria de emprestar-lhe
uma arma, a fim de que possa defender-se em momentos
como este, quando os cães não estão com o senhor.

— Tenho uma arma — retorquiu Wheelock, recostando-se,


com o cachimbo entre os dentes, os braços ao longo da
armação do sofá, as pernas cruzadas. — Uma Luger. — Retirou
o cachimbo da boca, soprou a fumaça. — Duas espingardas e
um fuzil.

— Esta é uma Browning — tornou Mengele, tirando a arma


do coldre. — Preferível à Luger, por ter um pente de treze
balas. — Empurrou a trava para baixo com o polegar e,
segurando a arma em posição de atirar, virou-a para
Wheelock. — Levante as mãos — ordenou. — Primeiro pouse o
cachimbo, devagar.

Wheelock franziu a testa para ele, as sobrancelhas


brancas eriçadas.
- 243 -

— Ouça — disse Mengele. — Não quero fazer-lhe mal. Por


que o faria? É um perfeito estranho para mim. Em Liebermann
é que estou interessado. Seria mais correto dizer: "É ele que
me interessa" — acrescentou Mengele.

Wheelock descruzou as pernas e inclinou-se para a frente


vagarosamente, fitando Mengele com um ar feroz, o rosto
rubro. Pousou o cachimbo e ergueu as mãos abertas acima da
cabeça.

— Na cabeça — sugeriu Mengele. — O senhor tem uma


bonita cabeleira; invejo-o. Infelizmente, isto aqui é uma
peruca. — Levantou-se do sofá, sacudindo o cano da arma
para cima.

Wheelock ergueu-se, as mãos cruzadas na nuca.

— Não me importo merda nenhuma tanto com judeus


quanto com nazistas — asseverou.

— Ótimo — retorquiu Mengele, mantendo a arma apontada


para o peito de Wheelock, coberto pela camisa vermelha. —
Entretanto, gostaria de pô-lo num lugar onde não pudesse
fazer nenhum sinal para Liebermann. Existe algum porão?

— Claro — respondeu Wheelock.

— Vá para lá. Andando tranquilamente. Há outros cães


nesta casa, além desses quatro?

— Não. — Wheelock caminhou devagar em direção ao


vestíbulo, as mãos na cabeça. — Sorte sua.

Mengele seguiu-o com a arma.

— Onde está sua esposa? — indagou.

— Na escola. Ensinando. Em Lancaster. — Wheelock entrou


no vestíbulo.

— Tem retratos do seu filho?

Wheelock deteve-se por um momento, andou para a


direita.

— Para que é que você quer os retratos?


- 244 -

— Para olhar — respondeu Mengele, acompanhando-o com


a arma. — Não estou pensando em fazer-lhe mal. Sou o médico
que o fez nascer.

— Que diabo significa isso? — Wheelock parou junto a


uma porta ao lado da escada.

— Tem retratos? — indagou Mengele.

— Há um álbum ali. Onde estávamos. Na parte inferior da


mesa onde está o telefone.

— É esta a porta?

— Sim.

— Baixe uma das mãos e abra-a, apenas um pouco.

Wheelock voltou-se para a porta, baixou uma das mãos,


abriu a porta ligeiramente. Pôs a mão de volta na cabeça.

— O resto com o pé.

Wheelock abriu toda a porta com a ponta do pé.

Mengele moveu-se até a parede oposta e encostou-se nela,


a arma junto às costas de Wheelock.

— Entre.

— Tenho de acender a luz.

— Faça-o.

Wheelock estendeu a mão, puxou um cordão. Uma luz


forte surgiu por dentro da porta. Pondo a mão de volta na
cabeça, Wheelock abaixou-se e desceu para um patamar com
utensílios domésticos presos à parede de tábua.

— Desça — ordenou Mengele. — Devagar.

Wheelock virou-se para a esquerda e começou a descer


devagar pela escada.

Mengele aproximou-se da porta, desceu para o patamar.


Virou-se para Wheelock, puxou a porta, fechando-a.

Wheelock desceu devagar os degraus do porão, as mãos


na cabeça.
- 245 -

Mengele apontou a arma para as costas cobertas pela


camisa vermelha. Disparou uma, duas vezes. Estampidos
ensurdecedores. Cápsulas pularam.

As mãos deixaram a cabeça branca, desceram, tateantes,


encontraram os corrimãos. Wheelock oscilou.

Mengele disparou outro tiro ensurdecedor nas costas


revestidas pela camisa vermelha.

As mãos escorregaram dos corrimãos e Wheelock desabou


para a frente. A testa, num baque, foi de encontro ao chão lá
embaixo. As solas dos sapatos esparramaram-se, as pernas e o
tronco resvalaram ainda mais, escada abaixo.

Mengele olhou, dilatando o ouvido com o indicador.

Abriu a porta e saiu para o corredor. Os cães latiam


furiosamente.

— Quietos! — berrou Mengele, dilatando o outro ouvido


com o dedo. Os cães continuaram latindo.

Mengele empurrou a trava para cima e pôs a arma no


coldre. Tirou fora o lenço, limpou a maçaneta de dentro da
porta, puxou o cordão da luz, fechou a porta com o cotovelo.

— Quietos! — berrou, enfiando o lenço no bolso.

Os cães continuavam latindo. Arranhavam e golpeavam


pesadamente a porta na extremidade do vestíbulo.

Mengele precipitou-se em direção à porta da frente,


espiou através da vidraça estreita ao lado. Abriu a porta e
correu para fora.

Entrou no carro, deu a partida e guiou-o em volta da casa,


até a metade vazia da garagem.

Voltou às pressas para a casa, fechou a porta. Os cães


latiam, uivavam, arranhavam, davam trancos.

Mengele mirou-se no espelho do móvel da entrada. Tirou


a peruca e puxou o bigode do lábio superior. Pôs o bigode e a
peruca no bolso do seu sobretudo pendurado, cobrindo-os
com a aba.
- 246 -

Olhou-se novamente, tocando com a palma das mãos a


cabeleira grisalha cortada rente. Franziu a testa.

Tirou o casaco, pendurou-o num cabide. Mudou o


sobretudo para o mesmo cabide, cobrindo o casaco.

Desfez o laço da gravata de listras pretas e douradas,


puxou-a fora, enrolou-a e meteu-a no bolso do sobretudo.

Desabotoou o colarinho da sua camisa azul-clara, o botão


seguinte também. Abriu o colarinho, alisando as pontas.

Os cães latiram e uivaram atrás da porta.

Mengele ajeitou a correia de trás do coldre. Olhou-se no


espelho e indagou:

— O senhor é Liebermann?

Perguntou outra vez, mais americano, menos alemão.

— O senhor é Liebermann? — Tentou fazer uma voz mais


parecida com a de Wheelock, mais grossa. — Entre. Devo
confessar que estou curioso como o diabo. Non lique parra
eles, semprre latem atsim. Ligue. Para. Não ligue para eles,
sempre latem assim. Você é Liebermann? Entre.

Os cães latiram.

— Quietos! — berrou Mengele.

Sete

Liebermann mantinha os olhos nos décimos de


quilômetros registrados vagarosamente no painel de
instrumentos do pequeno Saab que lhe moía os rins. A casa de
Wheelock ficava exatamente a seiscentos e quarenta metros da
curva à esquerda para o Old Buck Road — se é que estava
lendo corretamente a letra extravagante de Rita, o que nem
sempre conseguira até então. Entre a letra de Rita e as paradas
para descanso a que os solavancos do Saab obrigavam, já
passavam vinte minutos de meio-dia.
- 247 -

Mesmo assim, sentia as coisas ajustando-se e correndo


satisfatoriamente. Tivera a tristeza, é claro, de saber que o
corpo de Barry fora encontrado, mas a notícia chegara numa
ocasião que, pelo menos, apresentava seu lado propício: agora
tinha um ponto de partida consistente e comprovável para
utilizar em Washington. E Kurt Koehler estava lá, não apenas
com as anotações feitas por Barry — importantes e úteis, ao
que tudo indicava —, como também detentor da influência de
um cidadão respeitado. Certamente haveria de querer
continuar ajudando de todas as maneiras possíveis. O fato de
se encontrar ali era prova de seu empenho.

E Greenspan e Stern estavam na Filadélfia, prontos,


segundo se presumia, para vir com a equipe de comandos dos
JDJ, logo que Wheelock se convencesse de estar em perigo.
"Diz respeito a seu filho, Mr. Wheelock. A adoção. Foi
arranjado para o senhor e sua esposa por intermédio de uma
mulher chamada Elizabeth Gregory, não? Agora, por favor me
acredite, ninguém..."

Os seiscentos e quarenta metros deslizaram no


mostrador, e adiante, à esquerda, uma caixa de correio se
aproximava. "CÃES DE GUARDA", em letras pretas pintadas
numa tabuleta abaixo; "H. Wheelock", na tampa da caixa.
Liebermann diminuiu a marcha do carro, parou, esperou que
um caminhão passasse e atravessou a estrada. Guiou as rodas
do carro para dentro dos sulcos profundos do caminho de
terra que subia gradualmente, em corcova, colina acima,
através das árvores. O fundo do carro raspava de encontro ao
ressalto. Liebermann fez a mudança, guiou devagar. Olhou o
relógio: quase vinte e cinco minutos passados.

Meia hora, digamos, para convencer Wheelock (sem entrar


na questão dos genes: "Não sei por que estão matando os pais
dos meninos; o fato é que estão, eis tudo"), e depois, cerca de
uma hora para os JDJ chegarem. Aí, seriam pouco mais de
duas horas. Poderia talvez sair às três e chegar a Washington
às cinco, cinco e meia. Telefonaria para Koehler. Ansiava por
encontrá-lo e ver as anotações de Barry. Era de surpreender
- 248 -

que Mengele as houvesse deixado escapar. Mas talvez Koehler


superestimasse sua importância...

Latidos de cães, um tumulto deles, irromperam de uma


clareira ensolarada, onde uma casa de dois andares —
persianas brancas, telhas pardas — situava-se em ângulo em
relação a ele. E nos fundos, uma dúzia de cães arrojava-se de
encontro a uma grade alta de arame, latindo, ganindo.

Guiou até junto da alameda calçada de pedra e parou o


carro ali. Pôs em ponto morto e girou a chave, puxou o freio
de mão. Os cães ainda latiam nos fundos. No outro extremo da
casa, uma caminhonete vermelha e um seda branco estavam
dentro de uma garagem.

Saltou do carro, fechou a porta e, de pasta na mão, ficou


contemplando a casa marrom com frisos brancos. Seria
bastante fácil proteger Wheelock. Os cães — ainda latindo —
constituíam natural sistema de alarma. E repressivo. O
matador provavelmente agiria em algum outro lugar — no
vilarejo ou na estrada. Wheelock teria de seguir uma rotina
normal, deixando que o assassino tivesse oportunidade de se
mostrar. Problemas: assustá-lo o bastante para que aceitasse a
proteção dos JDJ, mas não tanto a ponto de fazê-lo ficar em
casa e trancar-se num armário.

Respirou fundo e subiu pelo caminho em direção ao


pórtico. A porta tinha uma aldrava, uma cabeça de cão de
ferro, e um botão de campainha preto, ao lado. Escolheu a
aldrava; acionou-a duas vezes. Era velha e dura. As batidas
não foram muito altas. Esperou um momento — cães latiam
dentro da casa — e estendeu um dedo na direção do botão.
Mas a porta abriu-se e um homem menor do que ele esperava,
com cabelos grisalhos cortados rentes e olhos castanhos
vividos e joviais, olhou-o e disse em uma voz grossa:

— O senhor é Liebermann?

— Sim. Mr. Wheelock?

Um aceno de assentimento da cabeça de cabelos grisalhos


cortados rentes, e a porta abriu-se mais.
- 249 -

— Entre.

Entrou num vestíbulo que cheirava a cachorros, de onde


subia uma escada. Tirou o chapéu. Cães — cinco ou seis, ao
que parecia — latiam, uivavam, arranhavam atrás de uma
porta na extremidade do vestíbulo. Voltou-se para Wheelock,
que fechara a porta e sorria para ele.

— Prazer em conhecê-lo — disse Wheelock, elegante numa


camisa azul-clara aberta no peito e com os punhos dobrados,
de calças cinzento-escuras assentando bem e sapatos pretos
de boa aparência. Não devia haver recessão no negócio de
cães de guarda. — Estava começando a pensar que você não
vinha.

— Li errado as indicações — explicou Liebermann. — Uma


senhora não lhe telefonou de Nova York? — Meneou a cabeça,
com um sorriso de desculpas. — Em meu nome?

— Ah! — fez Wheelock, e sorriu. — Tire o seu sobretudo.


— Apontou para os cabides, onde já estavam pendurados um
chapéu e um sobretudo pretos e um blusão marrom, com as
mangas descosidas e rasgadas.

Liebermann pendurou o chapéu, pousou a pasta no chão,


desabotoou o sobretudo. Wheelock mostrava-se mais amável
do que ao telefone — parecia mesmo verdadeiramente
satisfeito em vê-lo —, mas alguma coisa na sua maneira de
falar contrariava a amabilidade. Liebermann percebeu -a, sem
contudo conseguir defini-la. Olhando para a porta onde os
cães latiam e uivavam, observou:

— Não exagerou quando disse ter uma casa cheia de cães.

— É — retorquiu Wheelock, passando por ele, sorridente.


— Não ligue. Sempre latem assim. Coloquei-os lá dentro para
que não o incomodassem. Há pessoas que ficam nervosas.
Venha para cá. — Entrou pela porta à direita.

Liebermann pendurou o sobretudo, pegou a pasta e, com


um olhar meditativo para as costas de Wheelock, acompanhou -
o, passando a uma aprazível sala de estar. Os cães começaram
a dar encontrões e a latir atrás de uma porta à esquerda, perto
- 250 -

de um sofá de couro preto, acima do qual se penduravam as


fitas de prêmio coloridas numa parede de lambris, por entre
troféus e fotografias em molduras pretas. Uma lareira de
pedra emergia na extremidade da sala, com mais troféus sobre
o consolo e um relógio. Janelas com cortinas brancas na
parede da direita, um antiquado canapé entre elas. No canto,
junto à porta, uma mesa e uma cadeira, telefone, livros de
escrituração, cachimbos num suporte.

— Sente-se — convidou Wheelock, com um gesto em


direção ao sofá, enquanto se dirigia ao canapé. — Agora me
diga por que há um nazista atrás de mim. Tenho de admitir
que você me despertou uma curiosidade dos diabos.

"Curiosidade" — o R ligeiramente carregado. Era isso que o


inquietava. O amável Henry Wheelock o estava arremedando,
sombreando sua fala americana com um leve "tsotaque
alemon". Nada de exagerado, apenas o R ligeiramente
carregado, a mínima explosão de um P por trás da doçura de
um B. Liebermann sentou-se no sofá — a almofada arquejou —
e olhou à sua frente para Wheelock, inclinado para diante, no
canapé, cotovelos sobre os joelhos afastados, pontas de dedos
deslizando para a frente e para trás, ao longo da borda de um
álbum de fotografias ou de recortes sobre uma mesa baixa.
Sorrindo-lhe, na expectativa.

Teria sido o arremedo involuntário? Ele próprio às vezes


imitava o ritmo e as inflexões do alemão desajeitado de um
estrangeiro. Surpreendera-se fazendo isso e sentira-se
embaraçado.

Mas não, aquilo era intencional, tinha certeza. Do


sorridente Wheelock emanava hostilidade. E o que se poderia
esperar de um antigo guarda penitenciário anti-semita que
treina cães para se atirarem aos pescoços das pessoas?
Extrema bondade? Boas maneiras?

Bem, ele não viera até ali para fazer um novo amigo. Pôs a
pasta junto aos pés, descansou as mãos nos joelhos.
- 251 -

— Para explicar isso, Mr. Wheelock — disse —, tenho de


entrar em assunto pessoal. Pessoal relativo ao senhor e sua
família. Acerca do seu filho e de sua adoção.

As sobrancelhas de Wheelock soergueram-se, inquisitivas.

— Estou informado — tornou — de que o senhor e Mrs.


Wheelock obtiveram-no na cidade de Nova York, através de
"Elizabeth Gregory". Agora, por favor, me acredite — inclinou-
se para diante —, ninguém irá criar problemas com relação a
isso. Ninguém tentará tirar o seu filho do senhor ou acusar o
senhor de qualquer infração à lei. Já passou muito tempo e
não tem mais importância, importância direta. Dou-lhe minha
palavra.

— Acredito em você — proferiu Wheelock gravemente.

Sujeito muito frio, aquele "caladon", recebendo tudo tão


calmamente. Ali sentado, correndo as pontas dos indicadores
ao longo da borda da capa do álbum verde, unindo-as e
separando-as, unindo-as e separando-as. Alombada estava
voltada para Liebermann. A capa inclinava-se, parecendo
apoiada em alguma coisa dentro.

— "Elizabeth Gregory" — continuou Liebermann — não era


o nome verdadeiro dela. Seu nome verdadeiro era Frieda
Maloney, Frieda Altschul Maloney. Ouviu falar?

Wheelock franziu a testa, refletindo.

— Refere-se àquela nazista? — indagou. — A que foi


devolvida à Alemanha?

— Sim. — Liebermann apanhou a pasta. — Tenho aqui


algumas fotografias da mulher. Verá que...

— Não precisa — retrucou Wheelock.

Liebermann fitou-o.

— Vi o retrato no jornal — explicou Wheelock. — Pareceu-


me familiar. Agora sei por quê. — Sorriu. O "agora" saíra quase
"agorra".

Liebermann acenou com a cabeça. (Teria sido intencional?


A não ser pelo arremedo, Wheelock estava sendo bastante
- 252 -

amável.) Ajustou de volta a correia solta da pasta e olhou para


Wheelock.

— O senhor e a sua esposa — declarou, tentando não


deixar os seus próprios RR saírem carregados — não foram o
único casal a receber bebês. Um casal de nome Guthrie
também recebeu, e Mr. Guthrie foi assassinado em outubro
passado. Um casal de nome Curry igualmente, e Mr. Curry foi
assassinado em novembro.

Wheelock parecia preocupado agora. As pontas dos dedos


se tinham imobilizado na borda da capa do álbum.

— Há um nazista em atividade neste país — asseverou


Liebermann, segurando a pasta no colo —, um antigo membro
das SS, matando os pais dos meninos adotados por intermédio
de Frieda Maloney. Matando-os na mesma ordem das adoções,
e com o mesmo intervalo de tempo. O senhor é o próximo, Mr.
Wheelock. — Acenou com a cabeça. — E para breve. E há
muitos outros depois. Por isso é que vou ao FBI, e, enquanto
vou, o senhor deverá ser protegido. De forma melhor do que
por seus cães. — Fez um gesto em direção à porta junto à
extremidade do sofá. Os cães uivavam agora atrás dela, um ou
dois latidos sem muito entusiasmo.

Wheelock meneou a cabeça, assombrado.

— Humm! — proferiu. — Mas isso é tão estranho! —


Olhou, atônito, para Liebermann. — Os pais dos meninos estão
sendo mortos?

— Sim.

— Mas por quê? — Pronúncia perfeita desta vez. Ele


também estava tentando.

Deus do céu, não havia dúvida! Não se tratava de


arremedo, intencional ou não, mas de um sotaque autêntico
como o dele sendo reprimido!

— Não sei... — respondeu.

E sapatos e calças de um homem de cidade, não do


campo. A hostilidade brotando, os cães presos para não
"perturbarem"...
- 253 -

— Não sabe? — perguntou-lhe o nazista-que-não-era-


Wheelock. — Todos esses assassinatos ocorrendo e não sabe a
razon?

Mas os assassinos tinham cinquenta e poucos anos, e


aquele homem teria sessenta e cinco, talvez um pouco menos.
Mengele? Impossível. Estava no Brasil ou Paraguai, e não
ousaria vir ao norte, não poderia estar ali em New Providence,
Pensilvânia.

Meneou a cabeça para o-que-não-podia-ser-Mengele.

Mas Kurt Koehler estivera no Brasil, e viera para


Washington. O nome poderia ter constado no passaporte ou
carteira de Barry como parente mais próximo...

Uma arma surgiu de trás da capa do álbum, o cano


apontado para ele.

— Então devo lhe dizer — anunciou o homem de arma em


punho. Liebermann olhou-o, escureceu e encompridou o seu
cabelo, deu-lhe um bigode fino, completou-o, tornou-o mais
jovem... Sim, era Mengele. Mengele! O odiado, há tanto tempo
caçado. O Anjo da Morte, assassino de crianças! Ali sentado.
Sorridente. De arma apontada para ele. — Deus me livre —
disse Mengele em alemão — que você venha a morrer
ignorando. Quero que saiba exatamente o que acontecerá
dentro de uns vinte anos. Esse seu olhar ossificado é só para a
arma, ou será que me reconheceu?

Liebermann piscou, respirou fundo.

— Eu o reconheci — declarou.

Mengele sorriu.

— Rudel, Seibert e os outros — motejou — são um


punhado de mulheres velhas. Chamaram de volta os homem
porque Frieda Maloney lhe falou acerca dos bebês. Por isso,
tive de terminar sozinho a missão. — Encolheu os ombros. —
Na verdade, não me importo. O trabalho me conservará jovem.
Ouça, baixe a pasta bem devagar, sente-se de mãos na cabeça
e descanse. Tem um bom minuto ou mais antes que eu o mate.
- 254 -

Liebermann arriou lentamente a pasta, à esquerda dos


pés, pensando que se tivesse uma oportunidade de se atirar
para a direita e abrir a porta ali — supondo que não estivesse
trancada — talvez os cães choramingando do outro lado
vissem Mengele com a arma e o atacassem, antes que pudesse
dar muitos tiros. Claro, talvez os cães também o atacassem,
ou talvez não atacassem nenhum deles sem que Wheelock
(morto lá dentro) desse a ordem. Mas não lhe ocorria outra
coisa senão tentar.

— Gostaria que demorasse mais — asseverou Mengele. —


De verdade, mesmo. Este é um dos momentos mais
gratificantes da minha vida, como estou certo poderá avaliar,
e, se fosse possível, prazerosamente eu conversaria assim
com você por uma hora ou duas. Para refutar alguns dos
grotescos exageros do seu livro, por exemplo... Mas
infelizmente... — Encolheu os ombros, pesaroso.

Liebermann cruzou as mãos no alto da cabeça, sentado


ereto na beira do sofá. Começou a afastar os pés, muito
devagar. O sofá era baixo e levantar-se rapidamente não ia ser
fácil.

— Wheelock está morto? — indagou.

— Não — respondeu Mengele. — Está na cozinha, fazendo


almoço para nós. Ouça bem agora, caro Liebermann: vou lhe
dizer uma coisa que lhe parecerá inteiramente incrível, mas
juro-lhe sobre a sepultura de minha mãe que é a verdade
absoluta. Iria me dar ao trabalho de mentir para um judeu? E,
além do mais, morto?

Liebermann relanceou os olhos para a janela, à direita do


canapé, e de volta para Mengele, atentamente.

Mengele suspirou e meneou a cabeça.

— Se eu quiser olhar pela janela — disse —, primeiro o


matarei, depois olharei. Mas não quero olhar pela janela. Se
alguém estivesse se aproximando, os cães lá nos fundos
estariam latindo, não é? Não é?
- 255 -

— É — assentiu Liebermann, sentado com as mãos à


cabeça.

Mengele sorriu.

— Está vendo? Tudo me é favorável. Deus está comigo.


Sabe o que vi na televisão hoje, à uma hora da madrugada?
Filmes de Hitler. — Acenou com a cabeça. — Num momento
em que me achava gravemente deprimido, virtualmente
suicida. Se isso não foi um sinal dos céus, jamais houve outro.
Portanto, não perca seu tempo olhando para as janelas, olhe
para mim e ouça. Ele está vivo. Este álbum — apontou com a
mão livre, sem tirar os olhos ou a arma de cima de
Liebermann — está cheio de retratos dele, de uma treze anos.
Os meninos são réplicas genéticas exatas. Não perderei tempo
explicando-lhe como consegui isso e, mesmo que o fizesse,
duvido que você tivesse capacidade para compreender, mas
confie na minha palavra, eu o consegui. Réplicas genéticas
exatas. Foram concebidas em meu laboratório elevadas a
termo por mulheres da tribo Auiti, criaturas sadias, dóceis,
com um chefe dotado de espírito prático. Os meninos não
guardam mácula alguma delas, são Hitler puro, inteiramente
gerados de suas células. Ele me permitiu tirar meio litro de
seu sangue e um pedaço de pele de suas costelas — nossa
disposição de espírito era bíblica — a 6 de janeiro de 1943, no
Covil do Lobo. Ele se recusara a ter filhos — o telefone tocou.
Mengele manteve os olhos e a arma voltados para Liebermann
— porque sabia que filho algum poderia florescer à sombra de
tão... — o telefone tocou — sublime pai. Por isso, quando
soube que era teoricamente possível, que eu poderia... — o
telefone tocou — criar algum dia não o seu filho, mas um
outro ele mesmo, não uma cópia de carbono, mas... — o
telefone tocou — outro original, emocionou-se com a ideia,
tanto quanto eu. Foi então que me concedeu a posição e as
oportunidades necessárias para iniciar a pesquisa. Acha
realmente que o meu trabalho em Auschwitz foi uma loucura
sem propósito? Que estúpidas as pessoas são! Ele comemorou
a ocasião, a doação do sangue e da pele, com uma cigarreira e
uma bela inscrição. "Para meu amigo de muitos anos Josef
- 256 -

Mengele, que me serviu melhor do que muitos homens, e


talvez algum dia me sirva melhor do que todos. Adolf Hitler."
É o meu bem mais venerado, naturalmente. Demasiado
perigoso para ser levado através das alfândegas, por isso
repousa no cofre do meu advogado, em Assunção, à espera de
que eu regresse de minhas viagens. Está vendo? Estou lhe
concedendo mais de um minuto — olhou para o relógio...

Liebermann levantou-se e — um disparo soou — rodeou a


extremidade do sofá, estirando-se. Um disparo soou, outro
disparo soou, a dor arremessou-o de encontro à parede dura,
dor no peito, dor mais abaixo. Cães latiram alto no seu ouvido
colado à parede. A porta de madeira parda estremeceu com os
trancos. Estirou-se para o lado oposto, atrás da maçaneta de
vidro. Um disparo soou. A maçaneta fez-se em pedaços ao
agarrá-la, um buraquinho nas costas da sua mão foi se
enchendo de sangue. Agarrou um pedaço pontiagudo de
maçaneta — um disparo soou, os cães latiram furiosamente —
e, encolhendo-se de dor, olhos fechados, apertados, torceu o
pedaço de maçaneta, puxou. A porta se escancarou de
encontro ao seu braço e ombro, os cães uivando. Disparos
soaram, uma salva trovejante. Latidos, um grito, estalidos de
uma arma vazia. Um baque, um estardalhaço, rosnados, um
grito. Largou o pedaço de maçaneta cortante, virou-se,
arquejante, de encontro à parede. Deixou-se escorregar para o
chão, abriu os olhos...

Os cães negros empurraram Mengele de lado sobre o


canapé, as pernas esparramadas. Grandes Dobermanns, de
dentes arreganhados, olhos furiosos, orelhas pontudas para
trás. A face de Mengele bateu contra o braço do canapé. Seu
olho fitou o Dobermann à sua frente, movendo-se por entre as
pernas da mesa virada, abocanhando-lhe o pulso. A arma caiu-
lhe dos dedos. Seu olho revirou para fitar os Dobermanns
rosnando junto à sua face e pescoço. O Dobermann junto à
sua face estava entre suas costas e o encosto do canapé, as
patas dianteiras pisando-lhe o ombro, em busca de apoio. O
Dobermann junto ao seu pescoço tinha as patas traseiras no
chão, entre suas pernas esparramadas, e debruçava-se sobre a
- 257 -

coxa encolhida, o corpo arriando sobre seu peito. Subiu mais


o rosto de encontro ao braço do canapé, olhos fixos no chão,
lábios trêmulos.

Um quarto Dobermann escarrapachara-se, enorme, no


chão, de lado, entre o canapé e Liebermann, as costelas pretas
se elevando, o focinho no tapete oval. Uma réstia de luz foi se
espalhando debaixo dele, uma poça de urina.

Liebermann escorregou parede abaixo e, encolhendo-se,


sentou no chão. Esticou lentamente as pernas, observando os
Dobermanns ameaçarem Mengele. Ameaçando, não matando. O
pulso de Mengele fora solto. O Dobermann que o abocanhara
ficou rosnando para ele, de focinho contra o seu nariz.

— Matem! — ordenou Liebermann, mas somente um


murmúrio saiu. A dor que lhe trespassava o peito aumentou e
aguçou-se.

— Matem! — gritou, contrapondo-se à dor. Uma ordem


rouca saiu.

Os Dobermanns rosnavam, sem se mover.

O olho de Mengele cerrou-se apertado, os dentes


morderam-lhe o lábio inferior.

— MATEM! — berrou Liebermann, e a dor rasgou-lhe o


peito, dilacerando-o.

Os Dobermanns rosnaram, sem se mover.

Um guincho muito agudo saiu da boca de Mengele, por


entre os dentes cerrados.

Liebermann jogou novamente a cabeça de encontro à


parede e fechou os olhos, arfando. Desceu com um puxão o
laço da gravata, desabotoou o colarinho. Abriu mais outro
botão sob a gravata e levou os dedos até a dor; encontrou uma
umidade no peito, na beira da sua camiseta. Retirou os dedos,
abriu os olhos. Viu o sangue nas pontas dos dedos. A bala o
atravessara. Atingindo o quê? O pulmão esquerdo? Isso não
importava, o fato é que cada respiração intensificava a dor.
Procurou o lenço no bolso da calça, rolou para a esquerda
- 258 -

para poder alcançá-lo. Uma dor pior explodiu abaixo, no


quadril. Encolheu-se, perfurado por ela. Ai!

Tirou fora o lenço, trouxe-o até em cima, apertou-o de


encontro ao ferimento do peito e manteve-o ali.

Ergueu a mão esquerda. O sangue escorria dos dois lados,


mais da brecha irregular na palma do que do furo menor no
dorso. A bala atravessara por baixo do primeiro e segundo
dedos. Estavam entorpecidos e não conseguia movê-los. Dois
cortes sangravam pela palma.

Tencionava manter a mão para cima, a fim de que


sangrasse menos, mas não conseguiu, deixando-a cair. Não
havia mais forças nele. Apenas dor. E cansaço... A porta ao seu
lado fechava-se devagar.

Olhou Mengele seguro pelos Dobermanns.

O olho de Mengele observava-o.

Fechou os olhos, respirando suavemente para se defender


da dor que lhe queimava o peito.

— Fora...

Abriu os olhos e olhou para o outro lado da sala, onde


Mengele jazia estatelado sobre o canapé, entre os Dobermanns
rosnadores.

— Fora... — murmurou Mengele brandamente, com


cautela. Seu olho moveu-se do Dobermann diante dele para o
Dobermann no seu pescoço, e para o Dobermann no seu rosto.

— Saiam. Não tenho mais arma. Nenhuma arma. Fora.


Saiam. Sejam bonzinhos.

Os Dobermanns preto-azulados rosnaram, sem se mover.

— Quietinhos — tornou Mengele. — Sansão? Sansão, meu


velho. Saiam. Vão embora. — Virou a cabeça vagarosamente de
encontro ao braço do canapé. Os Dobermanns recuaram um
pouco as cabeças, rosnando. Mengele esboçou um sorriso
débil para eles. — Major? — indagou. — Você é Major? Meu
bom Major, meu bom Sansão. Sejam bonzinhos. Amigo. Não
- 259 -

tenho mais arma. — Sua mão, de pulsos avermelhados,


agarrou a parte da frente do braço do canapé, a outra mão
segurou as costas do canapé. Começou a soerguer-se
lentamente de lado. — Sejam bonzinhos. Saiam. Fora.

O Dobermann no meio da sala jazia imóvel, as costelas


pretas paradas. A poça de urina ao seu redor fragmentara -se
em outras menores espalhadas, cintilando nas tábuas largas
do chão.

— Sejam bonzinhos... quietinhos...

Deitado de costas, Mengele começou a levantar-se


vagarosamente no canto do canapé. Os Dobermanns rosnaram,
mas permaneceram onde estavam, encontrando outro apoio
para as patas enquanto ele se erguia, longe de seus dentes.

— Fora — disse. — Sou amigo de vocês. Estou fazendo mal


a vocês agora? Não, não, eu gosto de vocês.

Liebermann fechou os olhos, respirou suavemente.


Sentava-se no sangue que lhe escorria por trás.

— Meu bom Sansão, meu bom Major. Beppo? Zarko? Sejam


bonzinhos. Fora. Fora.

Dena e Gary tinham um problema qualquer. Mantivera a


boca fechada quando estivera lá em novembro, mas talvez não
devesse. Talvez ele...

— Está vivo, judeu canalha?

Abriu os olhos.

Mengele estava sentado no canto do canapé, ereto, uma


perna levantada, um pé no chão. Segurando o braço e as
costas do canapé. Sarcástico, comandando a situação. Exceto
quanto aos três Dobermanns encostados nele, rosnando
baixinho.

— É pena — tornou Mengele —, mas você não vai durar


muito. Posso ver daqui. Você está nas últimas. Estes cães
perderão o interesse em mim, basta que eu me sente
calmamente e fale com eles. Vão querer sair para urinar ou
- 260 -

beber água. — Dirigiu-se em inglês aos Dobermanns: Água?


Beber? Não querem água? Sejam bonzinhos. Vão beber água.

Os Dobermanns rosnaram, sem se mover.

— Filhos da puta — proferiu Mengele amavelmente em


alemão. E para Liebermann: — Então você nada conseguiu,
judeu canalha, a não ser morrer devagar, em vez de depressa,
e arranhar um pouco meu pulso. Dentro de quinze minutos
sairei daqui. Cada homem da lista morrerá na sua data. O
Quarto Reich se aproxima, não apenas um Reich alemão, mas
um pan-ariano. Viverei o bastante para vê-lo e estar ao lado de
seus líderes. Pode imaginar a admiração que inspirarão? A
autoridade mística que exercerão? O temor dos russos e dos
chineses? Para não falar dos judeus.

O telefone tocou.

Liebermann tentou mover-se da parede — arrastar-se, se


pudesse, até o fio pendente da mesa junto à porta —, mas a
dor no quadril trespassou-o, imobilizando-o, deixando-o
incapaz de reagir. Sentou-se de novo no sangue pegajoso.
Fechou os olhos, arquejando.

— Bom. Morra um minuto antes. E enquanto morre, vá


pensando nos seus netos indo para os fornos.

O telefone continuava tocando.

Greenspan e Stern, talvez. Telefonando para saber o que


estava acontecendo, por que ele não telefonara. Não obtendo
resposta, não ficariam preocupados, resolvendo vir, colhendo
informações no vilarejo? Se ao menos os Dobermanns
retivessem Mengele...

Abriu os olhos.

Mengele permanecia sentado, sorrindo para os


Dobermanns — um sorriso calmo, persistente, amistoso. Não
rosnavam agora.

Deixou os olhos fecharem.

Tentou não pensar em fornos, exércitos, multidões


bradando saudações. Imaginou se Max, Lili e Ester
- 261 -

conseguiriam manter vivo o centro. Contribuições talvez


chegassem. Haveria comemorações.

Latidos, rosnados. Abriu os olhos.

— Não, não! — exclamava Mengele, recostado no canto do


canapé, agarrado no braço e nas costas do canapé, enquanto
os Dobermanns arremetiam e rosnavam. — Não, não! Sejam
bonzinhos! Sejam bonzinhos! Não, não vou sair! Não, não.
Estão vendo como estou quieto? Sejam bonzinhos. Sejam
bonzinhos.

Liebermann sorriu, fechou os olhos.

Sejam bonzinhos.

Greenspan? Stern? Venham...

— Judeu canalha?

O lenço aderia sozinho ao ferimento, por isso ficou de


olhos fechados, sem respirar — deixe-o pensar —, e então
ergueu a mão direita e esticou o dedo médio.

Latidos distantes. Os cães nos fundos.

Abriu os olhos.

Mengele lançou-lhe um olhar feroz. O mesmo ódio que lhe


chegara pelo telefone, naquela noite, há tanto tempo.

— Não importa o que acontecer — disse ele —, eu venci.


Wheelock foi o décimo oitavo a morrer. Dezoito perderam
seus pais quando ele perdeu o seu, e pelo menos um dos
dezoito chegará a ser adulto como ele, tornando-se quem ele
se tornou. Você não sairá vivo desta sala para detê-lo. Eu
também não, talvez, mas você, com toda a certeza, não
escapa. Juro.

Passos à entrada.

Os Dobermanns rosnaram, debruçados sobre Mengele.

Liebermann e Mengele entreolharam-se a distância.


- 262 -

A porta da frente se abriu.

Fechou-se.

Olharam para a porta.

Alguém deixou cair um peso no vestíbulo. Um metal tiniu.

Passos.

O menino chegou e parou à porta — magro, nariz


proeminente, cabelos escuros. Uma larga listra vermelha
atravessava o peito de seu blusão azul de fecho ecler.

Olhou para Liebermann.

Para Mengele e os Dobermanns.

Para o Dobermann morto.

Para um lado e para o outro, os olhos azul-claros


arregalados. Afastou a mecha escura com uma luva azul de
plástico.

— Chiiiiu! — comandou. —

Mein... querido menino — disse Mengele, com um olhar de


adoração. — Meu querido, querido menino, você não pode
fazer ideia de como estou feliz, jubiloso, vendo-o aí de pé, tão
admirável, forte e belo! Quer afastar esses cães tão leais e
magníficos? Eles me mantiveram imobilizado durante horas,
sob a errônea impressão de que eu, e não aquele perverso
judeu ali, teria vindo para lhe fazer mal. Quer afastá-los, por
favor? Explicarei tudo. — Sorriu afetuosamente, sentado entre
os Dobermanns rosnando.

O menino fitou-o, e virou a cabeça vagarosamente em


direção a Liebermann.

Liebermann moveu levemente a cabeça.

— Não se deixe enganar por ele — tornou Mengele. — É


um criminoso, um assassino, um homem terrível. Veio fazer
mal a você e sua família. Afaste estes cães, Bobby. Está vendo?
Sei o seu nome. Sei tudo a seu respeito; que visitou Cape Cod
no verão passado, que tem uma câmara de cinema, que tem
- 263 -

duas priminhas bonitas chamadas... Sou um velho amigo de


seus pais. Na verdade, sou o médico que o pôs no mundo, que
acaba de voltar de fora! Dr. Breitenbach. Eles lhe falaram de
mim? Parti há muito tempo.

O menino olhou-o, em dúvida.

— Onde está meu pai? — indagou.

— Não sei — disse Mengele. — Presumo, já que aquele


indivíduo tinha uma arma que consegui tirar dele — e os cães
nos viram lutando e chegaram à conclusão errada —, presumo
que ele tenha — sacudiu a cabeça, pesaroso — dado cabo de
seu pai. Tendo acabado de chegar do exterior, como já disse,
vim fazer uma visita, e ele me deixou entrar, passando -se por
amigo da família. Quando sacou a arma, consegui dominá-lo e
tirá-la dele, mas aí ele abriu aquela porta e soltou os cães.
Mande-os embora e vamos procurar seu pai. Talvez ele só
esteja amarrado. Pobre Henry! Tomara que nada de mau tenha
acontecido. Ainda bem que sua mãe não estava aqui. Ela ainda
dá aulas em Lancaster?

O menino olhou para o Dobermann morto.

Liebermann sacudiu um dedo, tentando atrair o olhar do


menino.

O menino olhou Mengele.

— Ketchup — proferiu. Os Dobermanns voltaram-se e


correram para ele. Dois ficaram de um lado, um do outro. Suas
luvas tocavam-lhes as cabeças preto-azuladas.

— Ketchup! — exclamou Mengele, contente, baixando a


perna de cima do canapé, sentando-se para a frente e
esfregando os braços. — Nunca na vida pensaria em dizer
"ketchup"!

— Moveu os pés no chão, esfregando as coxas, sorrindo.


— Disse "saiam", disse "fora", disse "vão", disse "amigos",
jamais me ocorreu dizer "ketchup"!

O menino, franzindo a testa, tirou as luvas.


- 264 -

— Seria melhor... chamarmos a polícia — disse. A mecha


escura caiu-lhe obliquamente na testa.

Mengele continuava de olhos fitos nele.

— Como você é maravilhoso! — exclamou. — Estou tão...


— Piscou, engoliu, sorriu. — Sim — assentiu —, certamente
devemos chamar a polícia. Faça-me um favor, mein... querido
Bobby. Leve os cães e vá para a cozinha arranjar-me um copo
d'água. Preciso também comer alguma coisa. — Levantou-se. —
Chamarei a polícia e depois procurarei seu pai.

O menino enfiou as luvas no bolso do blusão.

— É seu este carro aí em frente? — perguntou.

— Sim — respondeu Mengele. — E o dele é o que está na


garagem. Ou pelo menos presumo. É o seu? O da família?

O menino olhou-o, cético.

— O que está na frente — tornou — tem um adesivo no


pára-choque, a respeito de os judeus não cederem nada de
Israel. Você disse que ele era judeu.

— E é — assentiu Mengele. — Pelo menos, parece um


deles. — Sorriu. — Isso não é hora de falar das palavras que
usei. Vá buscar água, por favor, que eu chamarei a polícia.

O menino pigarreou.

— Quer sentar-se novamente? — redarguiu. — Eu os


chamarei.

— Querido Bobby...

— Picles — ordenou o menino. Os Dobermanns


precipitaram-se, rosnando, sobre Mengele. Ele recuou no
canapé, os antebraços cruzados diante do rosto. — Ketchup! —
exclamou. — Ketchup! Ketchup! — Os Dobermanns
debruçaram-se sobre ele, rosnando.

O menino atravessou a sala, abrindo o fecho ecler do


blusão.

— Eles não obedecerão a você — declarou. Voltou-se para


Liebermann, afastou da testa a mecha escura.
- 265 -

Liebermann fitou-o.

— Ele mentiu, não foi? — perguntou o menino. — Ele tinha


a arma, e abriu a porta para você.

— Não! — exclamou Mengele.

Liebermann assentiu.

— Não pode falar?

Ele assentiu com a cabeça, apontou para o telefone.

O garoto concordou com um gesto e voltou-se.

— Este homem é seu inimigo! — gritou Mengele. — Juro


por Deus como é!

— Pensa que sou idiota? — O menino dirigiu-se à mesa,


levantou o fone.

— Não faça isso! — Mengele inclinou-se em sua direção.


Os Dobermanns avançaram e rosnaram, mas ele continuou
inclinado. — Por favor! Imploro-lhe! Pelo seu bem, não pelo
meu! Sou seu amigo! Vim aqui ajudá-lo! Ouça-me, Bobby!
Apenas um minuto!

O menino encarou-o, de fone na mão.

— Por favor! Explicarei! A verdade! Menti, sim! Eu tinha a


arma. Para ajudar você! Por favor! Escute-me só por um
minuto! Vai me agradecer, juro que vai! Um minuto!

O menino continuou a encará-lo e baixou o fone,


desligando.

Liebermann sacudiu, desesperado, a cabeça.

— Telefone! — proferiu num sussurro que mal lhe saiu da


boca.

— Obrigado — disse Mengele ao menino. — Obrigado. —


Recostou-se, sorrindo tristemente. — Devia ter visto que era
inteligente demais para que lhe mentissem. Por favor — fitou
os Dobermanns, olhou para o menino —, afaste-os. Ficarei
sentado aqui.

O menino permaneceu junto à mesa, olhando-o. —


- 266 -

Ketchup — ordenou. Os Dobermanns voltaram-se e


correram para ele. Colocaram-se ao seu lado, todos os três do
lado em que estava Liebermann, frente a Mengele.

Mengele meneou a cabeça, passou a mão sobre os rentes


cabelos grisalhos.

— Isso... é tão difícil. — Baixou a mão e olhou aflito para


o menino.

— Então? — indagou este.

— Você é inteligente, não é? — tornou Mengele.

O menino permaneceu de olhos nele, os dedos se


movendo sobre a cabeça do Dobermann mais próximo.

— Não vai bem na escola — continuou Mengele. — Foi bem


quando era pequeno, não agora. Isso porque é muito
inteligente, muito — ergueu a mão, bateu na testa. — Tem
suas próprias ideias. A verdade é que sabe mais que os
professores, hein?

O menino olhou o Dobermann morto, franzindo a testa, os


lábios. Olhou para Liebermann.

Liebermann apontou, ansioso, o telefone.

Mengele inclinou-se para o menino.

— Se vou ser sincero com você — asseverou —, você deve


ser sincero comigo! Não sabe mais que os professores?

O menino fitou-o, encolheu os ombros.

— Com exceção de um — respondeu.

— E tem grandes ambições, não é mesmo?

O menino acedeu silenciosamente.

— De ser um grande pintor, ou um arquiteto.

O menino negou com um movimento.

— Quero fazer filmes.

— Sim, é claro. — Mengele sorriu. — Ser um grande


cineasta. — Olhou para o menino, seu sorriso desvaneceu-se.
— Você e seu pai discutiram sobre isso — tornou. — Ele é um
- 267 -

velho teimoso, com um ponto de vista limitado. Você fica


indignado com ele, com razão.

O menino fitou-o.

— Está vendo? — instou Mengele. — Conheço-o mesmo.

Melhor que qualquer pessoa deste mundo.

O menino, perplexo, indagou:

— Quem é você?

— O médico que o pôs no mundo. Isso é verdade. Mas não


sou um velho amigo de seus pais. Na verdade, nunca os
conheci. Somos estranhos.

O menino inclinou a cabeça, como para ouvir melhor.

— Entende o que isso quer dizer? O homem que considera


seu pai — balançou a cabeça — não é seu pai. E sua mãe —
embora a ame, e ela o ame, estou certo — não é sua mãe. Eles
o adotaram. Fui eu quem arranjou a adoção. Através de
intermediários. Auxiliares.

O menino encarou-o.

Liebermann, apreensivo, observava o menino.

— Deve ser penoso receber notícias como essa tão de


repente — disse Mengele —, mas talvez... não de todo
desagradáveis, hein? Nunca se sentiu superior aos que o
cercavam? Como um príncipe entre plebeus?

O menino empertigou-se, encolhendo os ombros.

— Sinto-me... diferente de todos, às vezes.

— Você é diferente — asseverou Mengele. — Infinitamente


diferente, e infinitamente superior. Você tem...

— Quem são meus pais verdadeiros? — indagou o menino.

Mengele olhou, pensativamente, para suas mãos, apertou-


as, ergueu o olhar para o menino.

— Seria melhor, para você — declarou —, não saber ainda.


Quando for mais velho, mais maduro, descobrirá. Mas isso
posso lhe dizer agora, Bobby: nasceu do mais nobre sangue de
- 268 -

todo o mundo. Sua herança — não me refiro a dinheiro, mas a


caráter, talento — é incomparável. Tem dentro de si
possibilidades de satisfazer ambições milhares de vezes
maiores do que aquelas com que sonha atualmente. E irá
satisfazê-las! Mas somente — e deve ter em mente quão bem o
conheço, e confiar em mim quando digo isso —, somente se
sair daqui agora com os cães, e deixar-me... fazer o que tenho
de fazer e ir embora.

O menino permaneceu olhando para ele.

— Pelo seu bem — tornou Mengele. — Sua felicidade é só o


que levo em conta. Deve acreditar nisso. Dediquei minha vida
a você e ao seu bem-estar.

— Quem são meus pais verdadeiros? — tornou o menino.

Mengele meneou a cabeça.

— Quero saber.

— Nisso, deve curvar-se à minha decisão. Na ocasião


devida, você...

— Picles. — Os Dobermanns avançaram, rosnando, sobre


Mengele. Ele encolheu-se, os antebraços cruzados à frente. Os
Dobermanns debruçaram-se sobre ele, rosnando.

— Diga-me — ordenou o menino. — Agora mesmo. Senão


eu... direi uma coisa diferente para eles. Falo sério. Posso
fazer com que eles o matem, se quiser.

Mengele fitava o menino por sobre punhos cruzados.

— Quem são meus pais? — indagou o menino. — Vou


contar até três. Um...

— Você não tem pais! — exclamou Mengele. — Dois... — É


verdade! Nasceu da célula do maior homem que já existiu!
Renasceu! Você é ele, está revivendo a sua vida! E aquele judeu
ali é seu inimigo declarado! E dele também!

O menino voltou-se para Liebermann, os olhos azuis


confusos.

Liebermann ergueu a mão, tocou a testa com o dedo


curvado, apontou para Mengele.
- 269 -

— Não! — exclamou Mengele, quando o menino se voltou


para ele. Os Dobermanns rosnaram.

— Não sou doido! Embora você seja inteligente, há coisas


de que não tem conhecimento, acerca de ciência e
microbiologia! Você é a réplica viva do maior homem de toda
a história! E ele — seu olhar saltou em direção a Liebermann —
veio aqui matá-lo! E eu vim protegê-lo!

— Quem? — intimou o menino. — Quem sou eu? Que


grande homem?

Mengele fitou-o por sobre as cabeças dos Dobermanns


rosnadores.

— Um... — proferiu o menino.

— Adolf Hitler — respondeu Mengele. — Disseram-lhe que


ele era mau, mas à medida que crescer e vir o mundo engolido
por negros e semitas, eslavos, orientais, latinos — e a sua
gente ariana ameaçada de extinção, da qual você a salvará —,
chegará à conclusão de que ele era o melhor, o mais
admirável, o mais sábio de toda a humanidade! Vai rejubilar-
se de sua herança, e me abençoará por tê-lo criado! Como ele
próprio me abençoou por haver tentado!

— Sabe o que mais? — tornou o menino. — Você é o maior


maluco que já vi. O mais esquisito, o mais doido...

— Estou dizendo a verdade! — exclamou Mengele. —


Consulte seu coração! A energia capaz de comandar exércitos
está nele, Bobby! De submeter países inteiros à sua vontade!
De exterminar sem piedade todos os que se opuserem a você!

— Você... está maluco — disse o menino.

— Consulte seu coração — instou Mengele. — Toda a força


dele está em você, ou estará quando chegar a hora. Agora faça
como lhe digo. Deixe-me protegê-lo. Tem um destino a
cumprir. O mais alto de todos os destinos.

O menino baixou os olhos, esfregou a testa. Ergueu o


olhar para Mengele.

— Mostarda — proferiu.
- 270 -

Os Dobermanns atacaram. Mengele debateu-se, aos gritos.

Liebermann olhou. Retraiu-se, estremecendo. Olhou.

Olhou para o menino.

O menino enfiou as mãos nos bolsos do blusão azul de


listra vermelha. Afastou-se da mesa, aproximou-se
vagarosamente do lado do canapé, permanecendo de olhos
baixos. Franziu o nariz.

— Chiiiu... — comandou.

Liebermann olhou para o menino, e para os açulados


Dobermanns derrubando Mengele no chão.

Olhou para a sua mão esquerda sangrando lentamente,


dos dois lados.

Grunhidos soaram. Arreganhar de dentes. Rasgaduras.

Pouco depois, o menino afastou-se do canapé, as mãos


ainda nos bolsos. Baixou o olhar para o Dobermann morto,
cutucou-lhe a anca com a ponta do tênis. Lançou um olhar a
Liebermann, voltou-se e olhou para trás.

— Fora — ordenou. Dois dos Dobermanns ergueram as


cabeças e vieram na direção dele, as línguas lambendo as
bocas ensanguentadas.

— Fora! — exclamou o menino. O terceiro Dobermann


ergueu a cabeça.

Um dos Dobermanns farejou o Dobermann morto.

O outro Dobermann passou por Liebermann, empurrou


com o focinho a porta ao lado deste e saiu.

O menino veio colocar-se entre os pés de Liebermann,


olhos baixados sobre ele, a mecha caindo em diagonal pela
testa.

Liebermann levantou os olhos para ele. Apontou o


telefone.

O menino retirou as mãos dos bolsos e agachou-se, os


cotovelos sobre as coxas recobertas de veludo cotelê, as mãos
pendentes. Unhas sujas.
- 271 -

Liebermann olhou o rosto jovem e sombrio: o nariz


proeminente, a mecha, os olhos azul-claros sobre ele.

— Acho que você vai morrer logo — disse o menino — se


alguém não vier ajudá-lo, levando-o para o hospital. — Seu
hálito recendia a goma de mascar.

Liebermann acenou com a cabeça.

— Posso sair novamente — declarou o menino. — Com os


meus livros. E voltar depois. Dizer... que estava apenas dando
um passeio. Costumo fazer isto às vezes. E minha mãe só
volta para casa às vinte para as cinco. Garanto que você
estaria morto nessa altura.

Liebermann olhou para ele. Outro Dobermann saiu.

— Se eu ficar e chamar a polícia — indagou o menino —


dirá para ele só que fiz?

Liebermann refletiu. Meneou a cabeça.

— Nunca?

Ele meneou a cabeça.

— Promete?

Ele assentiu.

O menino estendeu a mão.

Liebermann olhou para ela.

Olhou para o menino. Este olhou para ele.

— Se pode apontar, também pode apertar a mão —


ponderou o menino.

Liebermann olhou para a mão do menino.

Não, disse a si mesmo. De qualquer forma você vai


morrer. Que espécie de médicos haveria num buraco
daqueles?

— Então?

E talvez haja uma vida depois da morte.

Talvez Hannah estivesse à espera. Mamãe, papai, as


meninas...
- 272 -

Não se iluda.

Ergueu a mão.

Apertou a mão do menino. O mínimo possível.

— Ele era realmente esquisito — tornou o garoto, e


levantou-se.

Liebermann olhou para a mão dele.

— Fora! — gritou o menino para o Dobermann ocupado


com Mengele.

O Dobermann correu para o vestíbulo, voltou, alucinado,


boca sanguinolenta, para junto de Liebermann, e saiu.

O menino dirigiu-se ao telefone.

Liebermann fechou os olhos.

Lembrou-se. Abriu-os.

Quando o menino acabou de falar, fez sinal para ele.

O garoto aproximou-se.

— Água? — indagou.

Ele meneou a cabeça, fez sinal.

O menino agachou-se ao seu lado.

— Há uma lista — sussurrou.

— O quê? — o garoto aproximou o ouvido.

— Há uma lista — proferiu, o mais alto que pôde.

— Uma lista?

— Veja se pode achá-la. No sobretudo dele, talvez. Uma


lista de nomes.

Observou o menino se dirigindo ao vestíbulo.

Hitler, meu auxiliar.

Manteve os olhos abertos.

Olhou para Mengele diante do canapé. Branco e vermelho,


onde estivera o seu rosto. Osso e sangue.

Bom.
- 273 -

Pouco depois o menino voltou, olhando uns papéis.

Ele estendeu a mão.

— Meu pai faz parte dela — disse o garoto.

Estendeu mais para o alto a mão.

O menino olhou-o, inquieto, pousou os papéis na sua


mão.

— Tinha esquecido. É melhor ir procurá-lo.

Cinco ou seis folhas datilografadas. Nomes, endereços,


datas. Difíceis de ler sem os óculos. "Döring", riscado.
"Horve", riscado. Outras páginas, sem riscos.

Dobrou os papéis de encontro ao chão, enfiou-os no bolso


do casaco.

Fechou os olhos.

Permaneça vivo. Ainda não acabou.

Latidos distantes.

— Encontrei-o.

Greenspan, de barba loura, olhou-o fixamente. Sussurrou:

— Ele está morto! Não podemos interrogá-lo!

— Está bem. Eu tenho a lista.

— O quê?

Cabelo louro crespo, solidéu bordado com alfinete. O


mais alto que pôde:

— Está bem. Eu tenho a lista. Todos os pais.

Foi levantado — Ai! — e arriado.

Numa padiola. Transportado. Aldrava com cabeça de


cachorro, luz do dia, céu azul.

Uma lente cintilante sobre ele, demorando-se, zunindo.


Nariz proeminente do lado.

Oito
- 274 -

Tinham bons médicos, conforme ficou provado.


Suficientemente bons, de qualquer forma, para deixá-lo com a
mão no gesso, um tubo enfiado no braço, e ataduras por todo
o corpo — na frente, atrás, em cima, embaixo.

No centro de tratamento intensivo do Lancaster Hospital.


Sábado. A sexta-feira fora perdida.

Ficaria bom, um médico indiano rechonchudo lhe disse.


Uma bala havia passado através do seu "mediastino" — o
médico tocou no seu peito coberto pelo avental branco.
Fraturara uma costela, ferira o pulmão esquerdo e uma coisa
chamada "nervo recorrente laringiano" e deixara de atingir a
aorta por milagre. Outra bala fraturara a cintura pélvica e
alojara-se no músculo. Outra danificara ossos e músculos da
mão esquerda. Outra esfolara uma costela do lado direito.

A bala alojada fora removida e todo o estrago remediado.


Poderia falar dentro de uma semana ou dez dias, andaria de
muletas dentro de duas semanas. A embaixada austríaca fora
avisada, embora — o médico sorriu — provavelmente não
fosse necessário. Por causa dos jornais e da televisão. Um
detetive queria falar com ele, mas teria de esperar, é claro.

Dena curvou-se e beijou-o, apertando sem parar sua mão


direita e sorrindo. Que dia era? De olheiras, mas bonita.

— Não podia ter dado um jeito de fazer isso na Inglaterra?


— indagou ela.

Foi removido para um centro de tratamento intermediário,


pôde sentar-se e escrever. "Onde estão minhas coisas?"

— Vai receber tudo quando estiver no seu quarto — disse


a enfermeira com um sorriso.

"Quando?"

— Quinta ou sexta, é o mais provável.


- 275 -

Dena leu-lhe as reportagens dos jornais. Mengele foi


identificado como Ramón Aschheim y Negrín, um paraguaio.
Matara Wheelock, ferira Liebermann, e fora morto pelos cães
de Wheelock. O filho de Wheelock, Robert, de treze anos,
chamara a polícia, ao voltar da escola. Cinco homens que
haviam chegado imediatamente depois da polícia tinham-se
identificado como membros dos Jovens Defensores Judaicos e
amigos de Liebermann. Tinham a intenção de encontrá-lo,
declararam, e acompanhá-lo numa viagem a Washington.
Manifestaram a opinião de que Aschheim y Negrín era um
nazista, mas não puderam dar qualquer explicação para a
presença dele ou de Liebermann na casa de Wheelock, ou para
o assassinato de Wheelock. A polícia esperava que
Liebermann, se e quando se recuperasse, pudesse lançar luz
sobre a questão.

— Você pode? — indagou Dena.

Inclinou a cabeça, fazendo uma boca de "talvez".

— Quando você se aproximou dos JDJ?

"Na semana passada."

Uma enfermeira veio avisar a Dena que alguém queria vê-


la.

O Dr. Chavan entrou, examinou o quadro de Liebermann,


segurou-lhe o queixo, olhou-o atentamente e declarou-lhe que
a pior coisa que havia com ele era estar precisando fazer a
barba.

Dena voltou, inclinada ao peso da valise de Liebermann.

— É falar no diabo... — disse, arriando-a junto à divisória.


Greenspan trouxera a valise. Fora buscar o carro, que a polícia
não lhe permitira retirar na quinta-feira. Deixara com Dena um
bilhete para Liebermann: "Primeiro, fique bom; segundo, o
Rabino Gorin o procurará logo que puder. Ele tem problemas
pessoais. Observe os jornais".

Doía-lhe o corpo todo. Dormiu um bocado.

Mudaram-no para um bom quarto, com cortinas listradas


e um aparelho de televisão na parede, sua pasta sobre uma
- 276 -

cadeira. Logo que o colocaram na cama, abriu a gaveta de


mesinha-de-cabeceira. A lista estava ali, junto com suas outras
coisas. Pôs os óculos e olhou os nomes datilografados. Os
números de 1 a 17 riscados. Riscado o de Wheelock também. A
data de Wheelock fora 19 de fevereiro.

Um barbeiro veio fazer-lhe a barba.

Podia falar, roucamente, mas não devia. Tanto melhor,


teria tempo para pensar.

Dena escreveu cartas. Ele leu o Philadelphia Inquirer e o


The New York Times, viu as notícias na televisão de controle
remoto. Nada sobre Gorin. Kissinger em Jerusalém, num
encontro com Rabin. Crime, desemprego.

— O que é que há, pai?

— Nada.

— Não fale.

— Você perguntou.

— Não fale! Escreva! Para isso tem o bloco!

"NADA!"

Às vezes, bem que ela era uma praga. Chegaram cartões e


flores: de amigos, contribuintes, da agência de conferências,
da irmandade do templo local. Uma carta de Klaus, que
obtivera o endereço do hospital através de Max: "Por favor,
escreva logo que puder. Dispensável dizer que eu, Lena e
Nürnberger também estamos por demais ansiosos para saber
além do que está nos jornais".

Um dia depois que teve licença para falar, um detetive de


nome Banhart veio procurá-lo, um rapaz ruivo, corpulento,
cortês, de voz suave. Liebermann não tinha muita luz a lançar
sobre o caso. Nunca vira Ramón Aschheim y Negrín antes do
dia em que este atirara nele. Nem sequer ouvira falar do
nome. Sim, Mrs. Wheelock estava certa: ele telefonara para
Wheelock um dia antes e lhe dissera que um nazista poderia
aparecer com a intenção de matá-lo. Isso se prendia a um
informe que recebera de fonte não muito fidedigna da América
- 277 -

do Sul. Viera procurar Wheelock a fim de tentar descobrir se


havia realmente algum fundamento naquilo. Aschheim o
recebera, disparara. Ele deixara os cães entrarem. Os cães
mataram Aschheim.

— O governo do Paraguai declarou que o passaporte é


falso. Tampouco sabem quem ele é.

— Não têm registro das suas impressões digitais?

— Não, senhor, não têm. Mas quem quer que fosse, parece
que andava atrás do senhor, não de Wheelock. Sabe, ele
morreu apenas um pouco antes de chegarmos. O senhor deve
ter chegado por volta de duas e meia, não foi?

Liebermann refletiu e acenou afirmativamente.

— Sim.

— Mas Wheelock morreu entre onze e meio-dia. Portanto


"Aschheim" esperou umas duas horas pelo senhor. Esse seu
informe faz pensar numa arapuca, senhor. Wheelock nada
tinha a ver com o tipo de gente que o senhor vive caçando,
temos certeza disso. Será melhor ficar de orelha em pé quanto
a informes futuros, se me permite dizê-lo.

— Perfeitamente, trata-se de um bom conselho. Obrigado.


Ficar de "orelha em pé". Perfeitamente.

Gorin surgiu no noticiário daquela noite. Estava em


livramento condicional desde 1973, quando recebera
suspensão da pena de três anos, por conspiração de ataque a
bomba, de cuja acusação se confessara culpado. Agora o
governo federal tentava obter a revogação de seu livramento
condicional, baseando-se em que ele conspirara novamente,
desta vez para raptar um diplomata russo. Um juiz marcara
audiência para 26 de fevereiro. A revogação significaria que
Gorin teria de voltar à prisão para o restante da sua sentença,
um ano. É, ele tinha problemas, sim, não havia dúvida.

E Liebermann também. Estudou a lista quando ficou


sozinho. Cinco páginas de papel fino, habilmente
datilografadas. Noventa e quatro nomes. Fitou a parede.
- 278 -

Meneou a cabeça e suspirou. Dobrou a lista várias vezes e


enfiou-a na capa do passaporte.

Escreveu cartas para Max e Klaus, sem dizer grande coisa.


Começou a receber e a dar telefonemas, embora ainda
estivesse rouco e não pudesse falar em volume normal.

Dena tivera de voltar para casa. Providenciara a respeito


da conta do hospital. Marvin Farb e alguns outros cuidariam
da conta, e, quando Liebermann voltasse à Áustria e recebesse
o seguro, trataria de reembolsá-los.

— Não se esqueça da cópia da conta — preveniu-o ela. —


Não tente andar antes do tempo. E não saia até que eles digam
que deve sair.

— Prometo, prometo, prometo.

Depois que ela saiu, ele constatou que não tinha abordado
a questão entre ela e Gary. Teve remorsos. Que pai.

Andou de muletas de um lado para o outro do corredor,


trabalho penoso com a mão ainda engessada. Conheceu outros
pacientes, reclamou da comida.

Gorin telefonou.

— Yakov? Como vai?

— Bem, obrigado. Sairei dentro de uma semana. Como vai


você?

— Não vou grande coisa. Viu o que andam fazendo


comigo?

— Sim. É uma vergonha.

— Estamos tentando conseguir um adiamento, mas a coisa


não vai bem. Estão realmente dispostos a me pegar. E eu sou
apontado como conspirador. Oh, droga. Escute, como vão as
coisas? Pode falar? Estou numa cabine, portanto não há
problema.

Ele respondeu em ídiche: — Será melhor falarmos em


ídiche. Não haverá mais assassinatos. Os homens foram
chamados de volta.
- 279 -

— Ah, é?

— E o que atirou em mim, que foi apanhado pelos


cachorros, era... o Anjo. Entende o que quero dizer?

Silêncio.

— Tem certeza?

— Absoluta. Nós conversamos.

— Oh, meu Deus! Graças a Deus! Graças a Deus! Os cães


foram bons demais para ele! E você vai ficar calado? Eu
convocaria a maior entrevista coletiva da história!

— E o que vou dizer quando perguntarem o que ele estava


fazendo ali? Um joão-ninguém do Paraguai é uma coisa, mas
ele? E, se eu não explicar, o FBI entrará em cena para
descobrir. Isso seria bom? Não sei ainda.

— Não, não, está claro que você tem razão. Mas saber e
não poder dizer! Você vem a Nova York?

— Sim.

— Onde vai ficar? Entrarei em contato.

Ele lhe deu o número dos Farb.

— Phil disse que você tem uma lista.

Liebermann pestanejou.

— Como ele sabe?

— Você lhe disse. —

Eu? Quando?

— Lá na casa. Não disse?

— Sim. Agora me lembro. É um problema, rabino.

— Eu que o diga. Fique de sobreaviso. Até breve. Shalom.

— Shalom.

Conversou com alguns repórteres e garotos de ginásio.


Andou de muletas de um lado para o outro do corredor,
pegando o jeito da coisa.
- 280 -

Uma tarde, uma mulher de cabelos castanhos, corpulenta,


de casaco vermelho e pasta, aproximou-se e indagou:

— Mr. Liebermann?

— Sim?

Ela sorriu para ele: covinhas, bons dentes.

— Posso falar com o senhor um minuto, por favor? Sou


Mrs. Wheelock. Mrs. Hank Wheelock.

Ele fitou-a.

— Sim — respondeu. — Certamente.

Foram para o quarto. Ela sentou-se numa das cadeiras,


com a pasta no colo, e ele encostou as muletas na cama e
arriou-se sobre a outra cadeira.

— Meus sentimentos — disse ele.

Ela acenou com a cabeça, olhando para a pasta,


esfregando nela o polegar de unha vermelha. Levantou os
olhos.

— A polícia me disse que aquele homem veio para


apanhar o senhor, e não para matar Hank. Ele não tinha
interesse em Hank, ou em nós. Estava apenas interessado no
senhor.

Liebermann acenou afirmativamente.

— Mas enquanto ele esperava — prosseguiu ela —,


examinou nosso álbum de família. Estava lá no chão, onde
ele... — Ela moveu um ombro, olhou para Liebermann.

— Talvez — tornou ele — o seu marido estivesse


examinando-o. Antes de o homem chegar.

Ela meneou a cabeça, os cantos da boca caídos.

— Ele nunca olhou para o álbum. Fui eu quem tirou


aquelas fotografias. Fui eu quem as arrumou lá, e fiz as
legendas. O homem é que estava olhando.

— Talvez quisesse apenas passar o tempo — ponderou


Liebermann.
- 281 -

Mrs. Wheelock permaneceu calada, olhando o quarto, as


mãos cruzadas sobre a pasta.

— Nosso filho é adotivo — declarou. — Meu filho. Ele não


sabe. Fazia parte do acordo não lhe dizermos. Na noite de
anteontem ele me perguntou se tinha sido adotado. A primeira
vez que tocou no assunto. — Olhou para Liebermann. — O
senhor lhe disse alguma coisa naquele dia que pudesse ter-lhe
posto a ideia na cabeça?

— Eu? — Ele meneou a cabeça. — Não. Como poderia


saber?

— Julguei que talvez houvesse uma ligação. A mulher que


arranjou a adoção era alemã. Aschheim é nome alemão. Um
homem com sotaque alemão telefonou e perguntou acerca de
Bobby. E eu sei que o senhor é... contra os alemães.

— Contra os nazistas — retrucou Liebermann. — Não, Mrs.


Wheelock, não tinha ideia de que ele fosse adotivo, e não
estava podendo falar quando ele chegou. Não estou falando
muito bem agora, como pode ouvir. Talvez pense desta
maneira por ter perdido o pai.

Ela suspirou, concordando.

— Talvez — disse. Esboçou um sorriso. — Desculpe tê-lo


incomodado. Estava preocupada... que isso pudesse dizer
respeito a Bobby.

— Está bem — tornou ele. — Fiquei satisfeito de nos


termos encontrado. Ia telefonar-lhe antes de partir, a fim de
expressar-lhe meus sentimentos.

— O senhor viu o filme? — indagou ela. — Não, suponho


que não tenha podido. Engraçado como as coisas acontecem,
não é mesmo? Coisas boas resultando das más. Toda essa
desgraça: Hank morto, o senhor ferido tão gravemente, aquele
homem... e também os cães. Tivemos de pô-los para dormir,
sabe? E Bobby tem a sua grande oportunidade.

— Sua oportunidade? — redarguiu Liebermann.

Mrs. Wheelock assentiu.


- 282 -

— A WGAL comprou o filme que ele fez naquele dia, e


exibiu uma parte — o senhor sendo levado para a ambulância,
os cães cobertos de sangue, aquele homem e Hank ao serem
carregados —, e a CBS, isto é, a cadeia, todas as estações do
país inteiro, aproveitaram-no, exibindo-o nas "Notícias
matinais de Hughes Rudd", na manhã seguinte. Somente o
senhor sendo levado na ambulância. Uma oportunidade dessas
pode ser tremendamente importante para um menino da idade
de Bobby. Não somente pelos contatos, como também por
questão da autoconfiança. Ele quer ser diretor de cinema.

Liebermann olhou-a e disse:

— Faço votos que o consiga.

— Acho que tem possibilidades — asseverou ela,


levantando-se com um leve sorriso de orgulho. — Não lhe falta
talento.

Os Farb vieram na sexta, 28 de fevereiro, e acomodaram


Liebermann, muletas, valise e pasta no seu deslumbrante
Lincoln novo. Marvin Farb entregou-lhe uma cópia da conta do
hospital.

Ele examinou-a, e fitou Farb.

— E ainda está barato — assegurou Farb. — Em Nova York


teria sido duas vezes isto.

— Gott im Himmel!

Sandy, a garota do escritório dos JDJ, telefonou


transmitindo um convite para um almoço na terça-feira, dia
11, ao meio-dia.

— Será de despedida.

Ele ia partir no dia 13. Seria para ele?

— Para quem é? — indagou.

— Para o rabino. Não soube?

— O recurso não foi aceito?

— Ele desistiu. Quer acabar logo com a coisa.


- 283 -

— Oh, céus! Lamento sabê-lo. Sim, claro, estarei lá.

Ela lhe deu o endereço: Restaurante Smilkstein, na Canal


Street.

O Times fizera uma reportagem de uma coluna, que ele


perdera. Ao invés de contestar a nova acusação de
conspiração, Gorin decidira aceitar a decisão do juiz
revogando o seu livramento condicional. Daria entrada na
penitenciária federal da Pensilvânia em 16 de março.

— Humm... — Liebermann balançou a cabeça. Na terça-


feira, dia 11, pouco depois de meio-dia, subiu vagarosamente
a escada do Smilkstein, apoiado a uma bengala. Um degrau de
cada vez, segurando com a mão direita o corrimão. Um
suplício.

No alto da escada, ofegante e suarento, viu-se diante de


um salão onde havia um dossel nupcial de folhagem sobre um
tablado de orquestra, uma quantidade de mesas descobertas e
cadeiras douradas de armar, e no centro, na pista de danças,
homens sentados a uma mesa, consultando cardápios, e um
garçom recurvado, tomando notas. Gorin, à cabeceira da mesa,
avistou-o, pousou o cardápio e o guardanapo, levantou-se e
aproximou-se rapidamente. De aparência tão satisfeita como
se tivesse lutado contra a decisão e vencido.

— Yakov! Que prazer vê-lo! — Apertou a mão de


Liebermann, segurou-lhe o braço. — Você está ótimo! Que
droga, esqueci que tinha escada.

— Não faz mal — retorquiu Liebermann, tomando fôlego.

— Faz mal, sim, foi burrice minha. Devia ter escolhido


outro lugar. — Encaminharam-se para a mesa, Gorin na frente,
Liebermann apoiado na bengala. — Meus dirigentes da
ramificação daqui — apresentou Gorin — e mais Phil e Paul.
Quando parte, Yakov?

— Depois de amanhã. Lamento que você...

— Esqueça, esqueça, estarei em boa companhia — toda a


assessoria de Nixon. É o "quente" para conspiradores.
Senhores, este é Yakov. E aqui, Dan, Stig, Arnie...
- 284 -

Havia cinco ou seis deles, além de Phil Greenspan e Paul


Stern.

— O senhor está com aparência cem por cento melhor do


que da última vez que o vi — declarou Greenspan, sorridente,
partindo um pão.

Sentado numa cadeira em frente a ele, Liebermann


confessou:

— Quer saber, naquele dia nem me lembro de ter visto o


senhor!

— Acredito — tornou Greenspan. — O senhor estava cor


de terra.

— Médicos esplêndidos os que eles têm lá — disse


Liebermann. — Fiquei de fato surpreendido. — Chegou para a
frente a cadeira, com auxílio do homem à sua direita.
Encostou a bengala na beira da mesa, pegou o seu cardápio.

À sua esquerda, Gorin preveniu:

— O garçom não aconselha carne assada. Gosta de pato?


Fazem muito bem aqui.

Foi uma despedida triste. Enquanto comiam, Gorin


discorreu acerca de diretrizes de comando, e providências que
ele e Greenspan estavam tomando a fim de manterem contato
enquanto estivesse na prisão. Propuseram-se ações
retaliatórias, disseram-se piadas amargas. Liebermann tentou
alegrar o ambiente com uma história sobre Kissinger,
supostamente verdadeira, que Marvin Farb lhe contara. Não
ajudou muito.

Depois que o garçom tirou a mesa e desceu, deixando -os


com o doce e o chá, Gorin, os antebraços na mesa, cruzou as
mãos e olhou para todos gravemente.

— Estes nossos problemas atuais são café pequeno —


declarou, e olhou para Liebermann. — Não é verdade, Yakov?

De olhar sobre ele, Liebermann acenou afirmativamente.

Gorin olhou para Greenspan e Stern, para cada um dos


dirigentes.
- 285 -

— Há noventa e quatro meninos — disse ele — de treze


anos de idade, alguns deles com doze e onze, que precisam
ser mortos antes que fiquem mais velhos. Não — reiterou —,
não estou brincando. Quem me dera que estivesse. Alguns
estão na Inglaterra, Rafe. Alguns na Escandinávia, Stig. Outros
aqui e no Canadá, outros na Alemanha. Não sei como iremos
apanhá-los, mas o faremos, teremos de fazê-lo. Yakov
explicará quem eles são e como... vieram a existir. —
Recostou-se e fez um gesto em direção a Liebermann. — Faça
uma síntese — solicitou. — Não precisa fornecer todos os
detalhes. — E para os outros: — Confirmo cada palavra que ele
disser, assim como Phil e Paul também o farão. Eles viram um
deles. Pode começar, Yakov.

Liebermann ficou de olhos postos na colher do seu c há.

— Você está com a palavra — tornou Gorin.

Liebermann olhou-o e indagou com a voz enrouquecida:

— Poderíamos falar um minuto em particular? — E


pigarreou.

Gorin fitou-o, inquisitivo, e em seguida mudou de


expressão. Respirou sonoramente pelas narinas, sorriu.

— Está bem — retorquiu, e levantou-se.

Liebermann pegou a bengala, segurou a borda da mesa e


ergueu-se da cadeira. Deu um passo apoiado na bengala, e
Gorin pôs a mão nas suas costas e caminhou junto dele,
murmurando:

— Já sei o que vai dizer.

Afastaram-se em direção ao tablado da orquestra, com o


seu dossel nupcial.

— Já sei o que vai dizer, Yakov.

— Pois eu ainda não. Ainda bem que você sabe.

— Está bem, direi por você: "Não devemos fazê-lo.


Deveríamos dar-lhe suma oportunidade. Mesmo os que
perderam os pais podem vir a se tornar pessoas comuns".

— Pessoas comuns, não, não acredito. Mas não Hitlers.


- 286 -

— Por isso, deveríamos ser judeus à moda antiga, bons e


generosos, e respeitar seus direitos civis. E, quando alguns
deles se tornarem de fato Hitlers, bem, então, deixemos
simplesmente que nossos filhos se preocupem com isso. A
caminho das câmaras de gás.

Liebermann deteve-se junto ao tablado da orquestra,


voltou-se para Gorin.

— Rabino — disse —, ninguém sabe quais as


possibilidades. Mengele julgou que eram boas, mas se tratava
do seu projeto, da sua ambição. Pode ser que nenhum deles se
torne Hitler, mesmo que houvesse mil deles. Eles são
meninos. Não importa quais sejam os seus genes. São
crianças. Como poderemos matá-los? Este seria serviço para
Mengele, matar crianças. Deverá ser o nosso? Eu nem sequer...

— Você de fato me surpreende.

— Deixe-me terminar, por favor. Eu nem sequer acho que


deveríamos mantê-los vigiados por seus governos, porque isso
transpirará, esteja absolutamente certo, há de colocá-los em
evidência, atraindo para eles exatamente o tipo de
meshuganahs que fariam deles Hitlers, encorajando-os. Ou até
mesmo de dentro de um governo poderiam vir os
meshuganahs. Quanto menos souberem, melhor.

— Yakov, se um deles se tornar um Hitler, apenas um...


meu Deus, você sabe o que teremos!

— Não — retorquiu Liebermann. — Não. Venho pensando


nisso há semanas. Digo nas minhas conferências que são
necessárias duas coisas para fazer com que isso aconteça
novamente: um novo Hitler, e condições sociais como as dos
anos 30. Mas isso não é verdade. São necessárias três coisas:
um Hitler, as condições... e pessoas que seguissem esse Hitler.

— E não acha que ele as encontraria?

— Não, não em número suficiente. Acredito de fato que


atualmente as pessoas são melhores e mais inteligentes, não
há tantos julgando que seus líderes são Deus. A televisão faz
uma grande diferença. E a história, o conhecimento... Alguns
- 287 -

ele encontraria, sim. Mas não mais, acho... tenho a


esperança... do que os pretensos Hitlers que temos agora, na
Alemanha e na América do Sul.

— Bem, você tem uma fé dos diabos na natureza humana,


muito mais que eu — disse Gorin. — Olhe, Yakov, pode ficar aí
falando até ficar roxo, que eu não irei mudar de ideia sobre
isso. Não apenas temos o direito de matá-los, temos também o
dever. Deus não os fez e sim Mengele.

Liebermann permaneceu olhando para ele, e acenou


afirmativamente.

— Está bem — declarou. — Pensei em levantar a questão.

— Já a levantou — tornou Gorin, e fez um gesto em


direção à mesa. — Quer explicar-lhes agora? Temos um bocado
de coisas para resolver antes de sair.

— Minha voz se gastou por hoje — retorquiu Liebermann.


— É melhor você explicar.

Voltaram juntos em direção à mesa.

— Aproveitando que estou de pé — indagou Liebermann —,


onde fica o banheiro dos homens?

— Ali.

Liebermann encaminhou-se para a escada, apoiado na


bengala. Gorin foi para a mesa e sentou-se.

Liebermann entrou no banheiro dos homens apoiado na


bengala — era pequeno — e passou para a privada, trancando-
se. Pendurou a bengala no pulso direito, retirou o passaporte,
de cujo invólucro puxou a lista bem dobrada. Pôs o passaporte
de volta no casaco, desdobrou a lista e rasgou-a, juntou os
pedaços e rasgou novamente, e ainda mais uma vez juntou -os
e rasgou. Jogou o bolo de pedacinhos dentro do vaso
sanitário, e quando os fragmentos datilografados se haviam
separado e assentado sobre a água, girou para baixo a
alavanca preta do tanque. O papel e a água remoinharam,
afunilando-se, num gorgolejo. Pedaços de papel grudaram nos
lados, outros voltaram na água que subiu.
- 288 -

Ele esperou o tanque encher de novo.

E, já que estava ali, abriu a braguilha.

Quando saiu, vendo que um dos homens na extremidade


da mesa o avistara, apontou para Gorin. O homem falou com
Gorin, e este voltou-se e olhou para ele. Fez um sinal. Gorin
hesitou um momento, levantou-se e veio em sua direção,
parecendo aborrecido.

— O que há agora?

— Prepare-se.

— Para o quê?

— Joguei a lista dentro da privada.

Gorin fitou-o.

Confirmou com a cabeça.

— É a coisa certa a fazer — disse. — Acredite-me. Gorin


olhava-o, lívido.

— Sinto-me sem graça de dizer a um rabino...

— A lista não era sua — exclamou Gorin. — Era... de


todos! Do povo judeu!

— Não podia dar meu voto? — redarguiu Liebermann. —


Estava sozinho lá. — Meneou a cabeça. — Matar crianças,
quaisquer crianças, é errado.

O rosto de Gorin ficou rubro. Suas narinas fremiram, seu s


olhos castanhos abrasaram-se, rodeados de negro.

— Não me venha dizer o que é certo ou errado —


contrapôs. — Seu bunda-mole! Seu estúpido e ignorante peido
humano!

Liebermann encarou-o.

— Devia jogá-lo escada abaixo!

— Encoste a mão em mim que lhe quebro o pescoço —


ameaçou Liebermann.

Gorin respirou fundo, de punhos cerrados.


- 289 -

— São judeus iguais a você — disse — que deixaram


acontecer da última vez.

Liebermann fitou-o.

— Os judeus não "deixaram" acontecer — retorquiu. — Os


nazistas é que fizeram com que acontecesse. Gente que
mataria até crianças para conseguir o que desejava.

Gorin cerrou os maxilares enrubescidos.

— Dê o fora daqui — proferiu. E, fazendo meia-volta,


afastou-se empertigado.

Liebermann observou-o ir-se, respirou fundo e voltou-se


para a escada. Segurou no corrimão e começou a descer
vagarosamente, apoiado à bengala, um degrau de cada vez.

Através da janela do táxi, entrando no Aeroporto


Kennedy, ele avistou Howard Johnson's Motor Lodge. Onde
Frieda Maloney distribuíra os bebês para os casais dos Estados
Unidos e do Canadá. Viu-o passar de relance, com os seus dez
ou doze andares profusamente iluminados ao crepúsculo...

Após se dirigir à Pan Am, telefonou para Mr. Goldwasser,


da agência de conferências.

— Alô! Como vai? Onde está você?

— No Kennedy, de volta para casa. E não estou tão ruim


assim. Só tenho de tomar cuidado durante alguns meses.
Recebeu meu bilhete?

— Sim.

— Novamente obrigado. Lindas flores. Boa publicidade,


heim? Primeira página do Times, CBS, a cadeia inteira...

— Espero que você nunca mais receba uma publicidade


dessas.

— Ainda assim, foi publicidade. Escute, se lhe der a minha


palavra de honra solene de que não cancelarei, gostaria de me
contratar para o final da primavera ou começo do outono?
Minha voz voltará ao normal, o médico garante.
- 290 -

— Bem...

— Vamos, com tantas flores, o senhor está interessado.

— Está bem, vou sondar alguns grupos.

— Bom. E escute, Mr. Goldwasser...

— Quer me chamar de Ben, pelo amor de Deus? Há


quantos anos nos conhecemos?

— Ben... nada de templos, nem Hadassahs. Jovens das


universidades. Até mesmo dos ginásios.

— Eles não pagam nada. — Universidades, então. ACMS.


Onde quer que existam jovens.

— Tentarei organizar um circuito bem distribuído, está


bem?

— Está bem. Preencha os intervalos com os ginásios. Dê-


me notícias. Até a vista.

Desligou e pôs o dedo no depósito de moedas. Apanhou a


pasta e, apoiado à bengala, dirigiu-se ao portão de embarque.
- 291 -

Nove

A escuridão circundava o quarto. Uma maçaneta cintilou,


um espelho, pontas de bastões de esquis. Vulto de uma cama,
de uma cadeira. Aro metálico de uma gaiola. Dentro, uma roda
de moinho girando, parando, girando. Modelos de foguete.
Asas de um aviãozinho de prata virando devagar.

No centro do quarto, uma brancura plana enquadrada sob


uma lâmpada recurvada. Uma mão molhou um pincel,
enxugou-o, encheu de tinta preta os contornos a lápis.
Fazendo um estádio: imenso, com uma cúpula circular,
transparente.

O menino trabalhava cuidadosamente, chegando o nariz


proeminente perto do papel. Começou a pôr gente, fileiras de
curvinhas representando cabeças, concentradas na
plataforma, ao meio. Molhou o pincel, enxugou-o, afastou a
mecha de cabelo com as costas da mão, pintou mais cabeças,
mais gente.

Um piano tocava: uma valsa de Strauss.

O menino levantou os olhos e ouviu. Sorriu.

Debruçou-se sobre o desenho e fez mais cabeças,


cantarolando a melodia.

Joia sem o papai aqui. Só ele e mamãe. Nada de brigas,


nada de portas abertas com violência e "Largue isso e faça seu
dever de casa, senão..."

Bem, não era "joia", não queria dizer "joia". Apenas mais
fácil, mais cômodo. Até mesmo vovó costumava dizer que
- 292 -

papai era um verdadeiro ditador. Mandão arrogante, imbuído


de preconceitos, sempre agindo como o homem mais
importante do mundo... Por isso, era mais fácil agora. Mas
isso não significava que o tivesse odiado, tivesse querido vê-
lo morto. Gostara um bocado do pai, na verdade. Não chorara
no enterro?

Entrou no desenho, onde tudo era mais bonito. Pôs-se na


plataforma, no homem em pé sobre ela. Pequeno na distância.
Pinceladas e mais pinceladas e mais pinceladas. Levantou os
braços: pinceladas e mais pinceladas.

Quem haveria de ser ele, aquele homem sobre a


plataforma? Eminente, com toda a certeza, para toda essa
gente vir vê-lo. Não apenas um cantor ou comediante. Um
homem fantástico, uma pessoa verdadeiramente boa que
amavam e respeitavam. Pagaram fortunas para entrar, e se não
pudessem pagar ele os deixaria entrar de graça. Um homem
bom assim...

Pôs uma pequena câmara de televisão no alto da cúpula.


Dirigiu mais alguns refletores sobre o homem.

Enxugou o pincel, afinando-o ao máximo, e, mediante uns


pontinhos, deu bocas às pessoas maiores mais próximas, para
que aclamassem, fazendo sentir a ele — isto é, ao homem —
como ele era bom e quanto o amavam.

Aproximou mais do papel o nariz proeminente e deu


bocas com os tais pontinhos às pessoas menores. Sua mecha
caiu. Ele mordeu o lábio, estreitou os olhos azul-claros.
Pontinhos, pontinhos, pontinhos. Começou a ouvir as pessoas
aclamando, rugindo. Uma linda manifestação de amor, como
um trovão que crescia e crescia, e depois pulsava, pulsava,
pulsava.

Como naqueles filmes antigos de Hitler.


- 293 -

Você também pode gostar