O Direito Achado Na Rua

O Direito Achado na Rua
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José Geraldo de Sousa Junior
O Direito Achado na Rua:

Concepção e Prática
Coleção Direito Vivo. Volume 2
Editora Lumen Juris

Rio de Janeiro
2015
Copyright © 2015 by José Geraldo de Sousa Junior
Categoria: Introdução ao Direito
Produção Editorial
Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.
A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA.

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Todos os direitos desta edição reservados à

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Impresso no Brasil
Printed in Brazil
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________________________________________
Sumário
INTRODUÇÃO
O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática.
Plataforma para um Direito Emancipatório�� 1
PARTE I
1. O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática�� 61
1.1. A Nova Escola Jurídica Brasileira e
sua Vocação Teórica para a Liberdade�� 62
1.2. O Direito como Enunciação da
Legítima Organização Social da Liberdade�� 75
1.3. O Direito Achado na Rua como Produto
e Enunciação de uma Nova Práxis no Direito�� 84
1.3.1. Uma Dimensão Epistemológica�� 85
1.3.2. Uma Dimensão Orgânica e Prática�� 88
Referências�� 95
PARTE II
2. A Fortuna Crítica de O Direito
Achado na Rua: História e Desenvolvimento�� 101
2.1. O Percurso e o Desenvolvimento no Âmbito Teórico�� 102
2.1.1. A Partir dos Campos do Pensamento
Crítico do Pluralismo Jurídico�� 106
2.1.2. Ideias de Sustentação do Projeto
o Direito Achado na Rua�� 107
2.2. A Fortuna Produzida pelo Direito Achado na Rua�� 112
2.2.1. Descrição: Graduação, Pós-graduação, Publicações,
Experiências de Extensão, Pesquisas�� 112
2.2.2. Articulação com Outros Espaços e Instâncias�� 117
2.3. A Produção Crítica sobre o Direito Achado na Rua�� 119
2.3.1. Apresentação Histórica das
Referências nas Diversas Dimensões�� 120
2.3.2. Aprofundamento de Algumas Críticas Apresentadas�� 129
2.3.2.1. Da Juridicidade�� 129
2.3.2.2. Sujeito Coletivo de Direito – Projeto
Político de Transformação Social – Categoria
Político Democrática�� 133
2.3.2.3. A Constituição de 1988 Esgotou
a Demanda do Pluralismo Jurídico?�� 139
PARTE III
3. O Direito Achado na Rua: Exigências
Críticas para a Pesquisa, a Extensão e o
Ensino em Direito e em Direitos Humanos�� 151
3.1. Por uma Práxis Libertária:
Contribuições Epistemológicas e
Políticas e o Direito Achado na Rua�� 154
3.2. Pesquisa-ação, Ensino Crítico e
Extensão Popular: Diálogos Libertários�� 165
3.3. Experiências Inovadoras em Direito e
Direitos Humanos: Ocupar, Resistir e Produzir�� 176
3.3.1. Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade
de Direito da Universidade de Brasília�� 180
3.3.2. Assessoria Jurídica Popular:
O Caso da Assessoria Jurídica Universitária
Popular Roberto Lyra Filho - UnB�� 184
3.3.3. Direitos Humanos e Gênero:
Promotoras Legais Populares - UnB�� 189
3.3.4. Centro de Referência em Direitos Humanos da
Universidade Federal da Paraíba: Grupo
de Pesquisa e Extensão Loucura e Cidadania�� 193
3.3.5. Novos Cursos de Formação em Direito – Turmas do
Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária�� 197
3.3.6. Novos Cursos de Pós-graduação
em Direitos Humanos�� 200
PARTE IV
4. O Direito Achado na Rua: Desafios, Tarefas
e Perspectivas Atuais�� 213
Introdução�� 214
4.1. Percurso Metodológico�� 215
4.1.1. Momentos Metodológicos: Movimentos, Carrossel
e Possíveis Tarefas de o Direito Achado na Rua�� 217
4.2. Desafios e Perspectivas Visualizados�� 220
4.2.1. Epistemologia�� 220
4.2.1.1. Pluralismo Jurídico e América Latina�� 220
4.2.1.2. Análise dos Elementos do
Novo Constitucionalismo Brasileiro�� 224
4.2.1.3. Descolonização do Saber�� 225
4.2.2. Ensino, Pesquisa e Extensão�� 228
4.2.3. Práxis e Participação Popular�� 237
4.2.3.1. Modelos e Discursos sobre a Democracia�� 237
4.2.3.2. Criminalização dos Movimentos Sociais�� 238
4.2.3.3. Análise e Reforma das Instituições Brasileiras�� 240
4.2.3.4. O Espaço Urbano e a Ida às Ruas�� 240
4.2.3.5. Novas Linguagens, Novas Pautas,
Novas Direções�� 242
4.3. Possíveis Tarefas de O Direito Achado na Rua�� 243
Conclusão�� 251
APÊNDICE
Roberto Lyra Filho: Anotações Biográficas�� 257
INTRODUÇÃO

Concepção e Prática. Plataforma
para um Direito Emancipatório
José Geraldo de Sousa Junior1
O Direito Achado na Rua: Origem

Com o título de O Direito Achado na Rua: concepção e
prática, fiz a apresentação da 4ª edição, em 1993, de Introdução
Crítica ao Direito, que passou a se constituir o volume nº 1 da,
desde aí, Série O Direito Achado na Rua, lançada originalmente
em 1987, pela Universidade de Brasília, em projeto coordenado
pelo Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos – NEP e
pelo CEAD – Centro de educação a Distância, da UnB (SOUSA
JUNIOR, 1982, p. 7-10).
Desde o lançamento da 1ª edição em 1987 e do curso à dis-
tância respectivo, assinala-se uma virada programática na edu-
cação a distância da UnB, tal como anotam Gomes e Fernandes
(2013, passim), indicando que a Série O Direito Achado na Rua
vem se constituindo numa coleção de referência na universidade
em seu diálogo com os movimentos sociais, suas assessorias jurí-
dicas, operadores do Direito e agentes de cidadania, a partir dos
temas que formam um expressivo acervo por meio do qual se esta-
1 Professor da Faculdade de Direito e do Programa de Mestrado em Direitos Humanos

e Cidadania da UnB; coordena o projeto O Direito Achado na Rua.
1
belece o diálogo entre a justiça social e o conhecimento necessário

à sua realização.
De fato, essa primeira publicação se inscreve na sequência
de títulos ao longo desse tempo, desde então formando uma Série:
vol. 1 – Introdução Crítica ao Direito; vol. 2 – Introdução Críti-
ca ao Direito do Trabalho; vol. 3 – Introdução Crítica ao Direito
Agrário; vol. 4 – Introdução Crítica ao Direito à Saúde; vol. 5 –
Introdução Crítica ao Direito das Mulheres, com uma 2ª edição
lançada em 2015, vol. 6 – Introducción Critica ao Derecho a la
Salud, esta, com a intenção de expandir para o continente a pers-
pectiva emancipatória do projeto, numa área – a saúde – na qual
o Brasil, com a experiência da Constituinte de 1987-1988 e das
conferências e processos de participação que a conduziram, pôde
inscrever na Constituição um modelo de saúde como direito de
todos e dever do Estado, com um modelo – o SUS (Sistema Único
de Saúde), exemplar. Agora em 2015, também, o 7º volume: Intro-
dução Crítica ao Direito e à Justiça de Transição na América Latina
(SOUSA JUNIOR et al, org, 1987, 1993, 2002, 2011, 2015).
Como se pode observar, a Série O Direito Achado na Rua
provoca, na universidade, uma exigência de interdisciplinaridade
e de interinstitucionalidade que caracteriza todas as dimensões de
sua realização. Diferentes unidades acadêmicas, a Faculdade de
Direito, o Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares, com
o Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos que a ele
se vincula e o CEAD – Centro de Educação a Distância, apoiados
pelos Decanatos de Graduação, de Pós-Graduação e de Extensão,
precisaram se integrar e se articular com organismos governamen-
tais e não governamentais, nacionais e internacionais, para, em
interlocução firme e contínua, desenvolver a “Série” e lhe dar for-
ma e substância.
Naquela apresentação de 1993, a montante de um percurso
ainda apenas projetado, destaquei que a concepção de O Direito
2
Achado na Rua era fruto da reflexão e da prática de um grupo de

intelectuais reunido num movimento denominado Nova Escola
Jurídica Brasileira, cujo principal expoente era o professor Ro-
berto Lyra Filho que lhe indicou o nome e traçou os contornos
de seus fundamentos.
Então, tomei como elementos norteadores para a localização
paradigmática desses fundamentos e o significado de sua contri-
buição, alguns textos de referência, naquela altura com razoável
circulação2, para concluir, propondo, pela primeira vez, para que
objetivo se voltava o projeto: orientar o trabalho político e teóri-
co de O Direito Achado na Rua, que consiste em compreender
e refletir sobre a atuação jurídica dos novos movimentos sociais
e, com base na análise das experiências populares de criação do
direito: 1. Determinar o espaço político no qual se desenvolvem
as práticas sociais que enunciam direitos, a partir mesmo de sua
constituição extralegal, como por exemplo, os direitos humanos;
2. Definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar
um projeto político de transformação social e elaborar a sua re-
presentação teórica como sujeito coletivo de direito; 3. Enquadrar
os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e
estabelecer novas categorias jurídicas para estruturar as relações
solidárias de uma sociedade alternativa em que sejam superadas as
condições de espoliação e de opressão entre as pessoas e na qual o
direito possa realizar-se como um projeto de legítima organização
social da liberdade (SOUSA JUNIOR, 1982, p. 10).
2 Direito e Avesso. Boletim da Nova Escola Jurídica Brasileira. Brasília: Edições

Nair, nºs 1 e 2, l982 e nº 3, 1983; LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. São
Paulo: Editora Brasiliense, 1982; LYRA FILHO, Roberto. A Nova Escola Jurídica
Brasileira. In ATIENZA, Manoel. DOXA – problemas abiertos en la filosofia
del derecho 1. Universidad de Alicante, Espanha, 1984; SOUSA JUNIOR, José
Geraldo de. Para uma crítica da eficácia do direito. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris Editor, 1984.
3
Desde então, alcançando novas e fortes interlocuções e con-

dições de institucionalização, o projeto consolidou-se e expandiu-
-se, como curso à distância, formando a Série O Direito Achado
na Rua; como linha de pesquisa, certificada na Plataforma Lattes
de Grupos de Pesquisa do CNPq, e nos programas de Pós-Gradua-
ção – Mestrado e Doutorado em Direito (Faculdade de Direito
da UnB) e Direitos Humanos e Cidadania – Mestrado – (CEAM
– Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares, da UnB), e
como disciplinas na Graduação e na Pós-Graduação em Direito
(Faculdade de Direito da UnB). Além disso, ensejou uma adensa-
da e refinada bibliografia, fruto da difusão do projeto e do diálogo
que ele proporciona, para o que muito contribuiu a formação de
coletivos com a mesma denominação – O Direito Achado na Rua
– em várias universidades e centros de pesquisa no Brasil.
Em 1992, a Revista Humanidades da Universidade de Bra-
sília, em edição comemorativa dos 30 anos da UnB, incluiu em
seu núcleo editorial, estudos que marcassem a identidade dessa
universidade, reconhecidamente uma referência muito singular,
desde a sua origem, para o desenvolvimento da educação univer-
sitária brasileira. Pois bem, para marcar os vínculos do projeto pe-
dagógico da UnB com a nova cidadania inscrita no horizonte de
redemocratização do país, a edição desse número especial pôs em
relevo, exatamente, O Direito Achado na Rua.
Para justificar o destaque, esclareceram os editores: “Entre as
inovações acadêmicas desenvolvidas na UnB, destaca-se o importan-
te trabalho realizado pelos professores que herdaram de Roberto Lyra
Filho a chamada Nova Escola Jurídica Brasileira. Diversificam-se os
papéis e as responsabilidades do direito por meio da integração com-
preensiva de seus determinantes sociais. A prática jurídica é contex-
tualizada, obtendo-se, com isso, uma aplicação e inteligibilidade mais
seguras” (Humanidades, 1992, p. 494). E, para fundamentar essa
configuração incluem na edição três artigos: O Direito Achado na
4
Rua: concepção e prática, de minha autoria (Humanidades, 1992,

p. 495-497), Movimentos Sociais; cidadania e espaço público – anos
90, de autoria da professora Maria Célia Paoli, da USP, também
autora em O Direito Achado na Rua, volume 1, da Série (Huma-
nidades, 1992, p. 498-504) e um texto de Roberto A. R. de Aguiar,
Histórico e Proposta para novas práticas jurídicas (Humanidades,
1992, p. 505-507). Além disso, incluiu em um Box, tradução de
resenha elaborada pelo professor André-Jean Arnaud sobre O Di-
reito Achado na Rua, publicada na revista por ele atualmente diri-
gida e que foi fundada por Kelsen e Duguit no século XIX – Droit
et Société – Revue internationale de theorie du droit et de sociologie
juridique, Paris, nº 3 (Humanidades, 1992, p. 501).
Como quer que seja consolidado e difundido em meios aca-
dêmicos e sociais, redes e mídia (vídeos, programas televisivos,
radiofônicos, entrevistas, debates), O Direito Achado na Rua
construiu uma fortuna crítica e enraizou-se no ensino, na pes-
quisa e na extensão em direito e em direitos humanos, motivando
estudiosos e pesquisadores que o incorporaram, enquanto para-
digma, em suas escolhas temáticas e nos objetivos de seus estudos
e trabalhos de pesquisa e de divulgação científica.
Bases para uma Ideia Editorial

É o de que cuida este livro, que passa a integrar a Coleção
Direito Vivo (Organizadores: Alexandre Bernardino Costa e José
Geraldo de Sousa Junior) como o seu volume 2, agora sob o selo
da Editora Lumen Juris. Essa nova edição, tal como seu volume 1,
lançado pela Editora Universidade de Brasília em 2013, associa o
processo de reflexão dos coletivos Diálogos Lyrianos3 e Movimento
3 Cf. www.odireitoachadonarua.blogspot.com;
5
Direito4, ambos inscritos na matriz epistemológica de O Direito

Achado na Rua.
Originado de um programa de docência, como desenho cur-
ricular de duas disciplinas O Direito Achado na Rua (Mestrado e
Doutorado da Faculdade de Direito) e Tópicos Especiais em Di-
reitos Humanos e Cidadania (Mestrado em Direitos Humanos e
Cidadania), desenvolvidas em conjunto no 1º Semestre de 2014,
tendo como eixo recuperar, no percurso de Roberto Lyra Filho, a
concepção e a prática de O Direito Achado na Rua e a sua fortuna
crítica. Assim também a sua história e desenvolvimento, as exi-
gências críticas para a pesquisa, a extensão e o ensino em direito
e em direitos humanos, que decorrem de O Direito Achado na
Rua e que desafios, tarefas e perspectivas atuais se põem tendo em
vista a continuidade do projeto e das ações e reflexões deduzidas
dos coletivos que em torno dele se formam.
Durante o curso, os alunos matriculados se envolveram com
o plano de curso das disciplinas, desenvolvendo metodologias, di-
nâmicas, seminários e debates, ao cabo do que, entregaram suas
monografias aptas a obter o rendimento de integralização das
obrigações curriculares. Um grupo destacado desse coletivo com-
pulsório permaneceu, contudo, mobilizado e, ao longo do 2º Se-
mestre de 2014, manteve um programa de discussão e elaboração
de textos, tendo como meta, produzir um livro de atualização da
saga de O Direito Achado na Rua.
Além das discussões preparatórias, esse grupo, que foi se de-
finindo com o viés autoral, participou intensa e sistematicamente
da programação de curso levada a efeito na Faculdade de Direito
da UnB, na matéria PAD 1 (Prática e Atualização do Direito) – O
4 COSTA, Alexandre Bernardino (Org.). Direito vivo: leituras sobre

constitucionalismo, construção social e educação a partir do Direito Achado na
Rua. Coleção Direito Vivo, Vol. 1. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2013.
6
Direito Achado na Rua, sob a minha regência. O plano de curso da

disciplina, deliberadamente, foi elaborado sob ementa com a mes-
ma denominação do Projeto – O Direito Achado na Rua: Concep-
ção e Prática, desdobrada nos itens também de igual nomenclatu-
ra, agora transformado em sumário do livro. Os autores de cada
módulo ou parte do livro apresentaram e discutiram com os alu-
nos de graduação da disciplina, os quais, por sua vez, elaboraram
seus trabalhos acadêmicos do semestre, com atividades ligadas aos
conteúdos ministrados – resenhas, artigos, pesquisas – que foram
encaminhados para os autores e as autoras do projeto. Entre essas
atividades, incluiu-se uma pesquisa, com classificação de assuntos
e um sumário de conteúdo, realizada no Google Acadêmico, base
mais especializada, já que o Google geral apesar de oferecer mais
de uma centena de milhar de registros, tendo como expressão-
-chave O Direito Achado na Rua, guarda pouca seletividade e
muita redundância. Entre os alunos dessa disciplina, com notável
presença e participação, destaco as contribuições de Ana Luiza
Vale de Lima, Fabrício França Oliveira Guimarães, Lucas Viei-
ra da Costa e Vitor Guimarães. Também na disciplina Sociologia
Jurídica, por mim ministrada no 2º Semestre de 2014, na Facul-
dade de Direito da UnB, ocorreu um seminário de encerramento
do curso, conduzido por Talita Tatiana Dias Rampin, quando ela
apresentou para discussão com os alunos da disciplina o projeto
do livro, e dirigiu um bom debate sustentado pelo conhecimento
prévio dos participantes da disciplina, uma vez que elaboraram
resenhas sobre o esboço preliminar do livro a eles oferecido com
as ressalvas de edição restrita, disponível tão somente para utiliza-
ção reservada de natureza acadêmica. As resenhas elaboradas por
todas as alunas e alunos da disciplina, e um total de 60 matrícu-
las, foram colocadas à disposição das autoras e autores do livro.
Ao fim e ao cabo, a autoria restou circunscrita às seguintes
autoras e autores e respectivos temas do sumário: Antonio Escri-
7
vão Filho, Fredson Oliveira Carneiro, Karoline Ferreira Martins,

Priscila Paz Godoy, Raquel Negreiros Silva Lima, Roberta Ama-
najás Monteiro, Rodrigo Melo Mesquita, Valquíria Theodoro, au-
tores do capítulo O Direito Achado na Rua: concepção e prá-
tica. No percurso de Roberto Lyra Filho. Carlos Inácio Prates,
Eneida Vinhaes Bello Dultra, Gianmarco Loures Ferreira, Rafael
de Acypreste, A fortuna crítica de O Direito Achado na Rua:
história e desenvolvimento. Érika Lula de Medeiros, Helga Ma-
ria Martins de Paula, Ludmila Cerqueira Correia, Mariana Perei-
ra Conceição, Priscila Bessa Rodrigues, Raquel Cerqueira Santos
e Talita Tatiana Dias Rampin, escreveram a Parte 3, O Direito
Achado na Rua: exigências críticas para a pesquisa, a extensão
e o ensino em direito e em direitos humanos. Diego Mendon-
ça, Euzamara de Carvalho, Mayane Burti, Paulo César Machado
Feitoza, Pedro Brandão, Renata Cristina do Nascimento Antão e
Tédney Moreira da Silva, autores da Parte 4, O Direito Achado
na Rua: desafios, tarefas e perspectivas atuais.
Roberto Lyra Filho e o Direito Achado na Rua:

Uma Conexão Incindível
No livro inclui-se, ainda, elaborado pelas autoras e autores,
um apêndice referido a Roberto Lyra Filho: anotações biográ-
ficas. Nada mais pertinente, uma vez que o desenvolvimento de
O Direito Achado na Rua está, de modo incindível, colado ao
percurso de Roberto Lyra Filho.
Adiante reforçarei esse vínculo, mas é impossível tratar de
um sem estabelecer conexão com o outro. Ainda mais agora que
se aproxima – 2016 – os registros de memória de 30 anos de sua
morte, ocorrida em 11 de junho de 1986, tenderão a se fazer mais
eloquentes. Então, quando celebraria 60 anos de nascimento, foi
8
planejado e logo publicado como homenagem póstuma, o livro

Desordem e Processo – Estudos sobre o Direito em Homenagem a
Roberto Lyra Filho (LYRA, 1986).
Já agora, em 2014, esta mesma Editora Lumen Juris que aco-
lhe a presente publicação, lançou a tese de Sergio Roberto Lema:
Roberto Lyra Filho e o Direito Alternativo Brasileiro. Tendo
como pressuposto para o trabalho de reflexão teórica, “como com-
preender a situação dos juristas críticos que, engajados na causa da
defesa, promoção e luta pela eficácia dos Direitos Humanos, acre-
ditam na instância jurídica como um campo de lutas válido e im-
portante, embora não seja o único, para a construção de uma nova
sociedade mais justa e livre do que a atual?” (LEMA, 2014, p. 4).
O autor, conforme assinala Edmundo Lima de Arruda Jú-
nior na apresentação da obra, depois de ter sido o orientador do
trabalho acadêmico original, cumpre o papel de “uma belíssima
retrospectiva do humanismo dialético na filosofia da práxis jurí-
dica de Roberto Lyra Filho”, como, diz ele ainda, “um necessário
registro histórico, urgentíssimo pois as teses lançadas pelo mais
erudito de todos os juristas brasileiros ainda necessitam: a) serem
socializadas em todos os cursos jurídicos para que os estudantes
de direito tenham acesso a uma obra absolutamente fundamental
em termos de cultura jurídica; b) serem ampliadas as hermenêuti-
cas possíveis não somente de Roberto Lyra Filho, mas de todos os
autores nacionais que já são clássicos, ensejando o que o fundador
da Nova Escola jurídica mais almejava, a ampliação das discussões
sobre o direito entre alunos e profissionais do direito, e a redefini-
ção das práticas jurídicas num sentido emancipatório” (ARRUDA
JÚNIOR, 2014, p. XV).
Por isso é, de fato, O Direito Achado na Rua, uma platafor-
ma para construir um direito emancipatório. Essa condição, que
Boaventura de Sousa Santos pontuou em postura problematiza-
dora, no sentido de se propor como tarefa, “aferir o potencial de
9
experiência (sócio-jurídica) tendo em vista a reinvenção da eman-

cipação social” (SANTOS,2003, p. 70) , reivindica, para além das
condições sociais, as possibilidades teóricas, que permitam deli-
near o processo de emancipação (SOUSA JUNIOR, 2002), algo
que, na concepção e na prática de O Direito Achado na Rua, cui-
da de realizar “a conciliação da produção de conhecimento com as
necessidades sociais (brasileiras), concretizando o sentido utópico
transformador” do próprio Direito (SOUSA JUNIOR, 2012, p. 7).
É desse modo emancipatório que Sergio Roberto Lema en-
quadra a vinculação de Roberto Lyra Filho, sua concepção crítica
e dialética de Direito e a sua materialização posterior em O Direi-
to Achado na Rua. Num complemento a sua obra sobre Roberto
Lyra Filho, em passagem na qual traça um histórico e balanço pre-
liminar sobre o Direito Alternativo e a modernização do direito,
ele trata de exaltar essa conexão (LEMA, 2012, p. 111):
Um dos precursores mais importantes que deve ser destaca-

do como espaço crítico de reflexão e ação jurídico política
emancipatória, é o projeto da Universidade de Brasília “O
Direito achado na rua” coordenado pelo Professor José Ge-
raldo de Souza Junior (2009). Este projeto, conforme estu-
do anterior desenvolvido pelo autor deste trabalho (LEMA,
1995) é produto das discussões originadas num movimento
liderado pelo Professor Roberto Lyra Filho, também da UnB,
e que recebeu o nome, na década de 1980 de Nova Escola
Jurídica Brasileira (NAIR).
Uma notável apreensão dessa imbricação emancipatória se

apresentou mais recentemente, de forma inesperada. Há poucos
meses, recebi um pedido de Nita Freire, colaboradora e viúva de
Paulo Freire, que me solicitava referências jurídicas de uma possível
relação que se pudesse estabelecer entre o pensamento do educador
brasileiro, forte numa pedagogia de autonomia, e o direito. É que
10
ela havia sido convidada a proferir uma conferência na Escuela del

Servicio de Justicia, a Escola de Magistratura argentina, e gostaria
de focalizar a sua apresentação pondo em relevo essa relação.
Eu havia conhecido Nita, por ocasião da cerimônia de outor-
ga do título de Doutor Honoris Causa, post-mortem, a Paulo Freire,
evento que presidi na qualidade de Reitor e Presidente do Conselho
Universitário da UnB e para o qual, a havia convidado para fazer o
discurso de elogio ao homenageado. Já ali descobrimos muitas afi-
nidades entre a pedagogia da autonomia e o direito emancipatório.
Diante do pedido de Nita5, enviei-lhe duas dissertações de
mestrado6, ao final, fortemente citadas em sua conferência - “Aces-
so à Justiça e a pedagogia dos vulneráveis”; ou “O pensamento
de Paulo Freire e sua relação com o Direito como prática para
a libertação” – em base das quais desenvolveu os seus argumentos
afirmativos da relação procurada (FREIRE, 2014)7.
5 Ana Maria Araújo Freire (Nita Freire). Biógrafa e sucessora legal dos direitos de
Paulo Freire, a conferencista é viúva do grande educador, sendo com ele coautora
em diversos trabalhos. Mestra e doutora em Educação pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUCSP). É autora, também, de Analfabetismo no Brasil:
da ideologia da interdição do corpo à ideologia nacionalista, ou de como deixar
sem ler e escrever desde as Catarinas (Paraguaçu), Filipas, Madalenas, Anas,
Genebras, Apolônias e Grácias até os Severinos (3ª ed. São Paulo: Cortez, 2001)
e Centenário do nascimento: Aluízio Pessoa de Araújo (Olinda: Edições Novo
Estilo, 1999).
6 FEITOZA, Pedro Rezende Santos. O direito como modelo avançado de legítima
organização social da liberdade: a teoria dialética de Roberto Lyra Filho. Dissertação
apresentada em 2014, na UnB; GÓES JUNIOR, José Humberto de. Da Pedagogia
do Oprimido ao Direito do Oprimido: Uma Noção de Direitos Humanos na Obra
de Paulo Freire. Dissertação de Mestrado, Mestrado em Ciências Jurídicas, UFPB,
João Pessoa, 2008.
7 FREIRE, Ana Maria Araújo Freire (Nita Freire). Conferência proferida em Buenos
Aires, em 25 de setembro de 2014, na Escola de Serviço de Justiça, em programa
de especialização em Magistratura. www.odireitoachadonarua.blogspot.com, acesso
em 03.02.2015.
11
Não deixou, entretanto, de ser uma surpresa rica e inespe-

rada, acompanhar o modo como a conferencista estabeleceu a
relação e soube se valer das contribuições que lhe foram ofereci-
das, tanto mais valiosas quanto elaboradas por dois bem investidos
do conhecimento e da prática que balizam O Direito Achado na
Rua, para operar com as categorias formuladas por Roberto Lyra
Filho e designar, na interconexão que logra estabelecer, entre Ro-
berto Lyra Filho e Paulo Freire, entre o Direito e a Pedagogia da
Autonomia, na sua leitura, tornada possível pela mediação de O
Direito Achado na Rua. Percebe-se isso na conclusão que propõe
(FREIRE, 2014):
Por tudo que foi exposto torna-se possível asseverar, que, a re-
lação de Paulo Freire com o Direito nega veemente a concep-
ção tradicional do direito da Modernidade e se alia ___ talvez
fosse mais correto dizer que ele, ao lado de outros intelectuais
que enriqueceram o pensamento da esquerda mundial criaram
um nova leitura do mundo, humanista e transformadora,
dentro da qual meu marido concebeu uma teoria epistemoló-
gico-ético-político-antropológico-critica de educação, que está
alinhada com a concepção do Direito Achado na Rua, a
Teoria Dialética Social do Direito. Entretanto, cabe aqui
uma ressalva: o jurista Roberto Lyra Filho, que embasa Fei-
toza e Góes, como também este meu trabalho, não cita Paulo
Freire em nenhum dos seus mais de 40 livros. Porém, fica evi-
dente, com uma simples leitura dos trabalhos deles, que Lyra
sorveu princípios e utilizou algumas categorias fundamentais
da teoria do educador brasileiro, seu conterrâneo.
12
O Humanismo Emancipatório de O Direito

Achado na Rua
Tenho tratado de O Direito Achado na Rua (SOUSA JU-
NIOR, 2011, passim), aludindo, depois de caracterizá-lo, a uma
concepção de Direito que emerge transformadora dos espaços pú-
blicos – a rua – onde se dá a formação de sociabilidades reinventa-
das que permitem abrir a consciência de novos sujeitos para uma
cultura de cidadania e de participação democrática.
Nesta consideração, tenho em mente não apenas responder
uma questão concreta – a restrição a amplos segmentos sociais de
excluídos da cidadania do acesso ao direito republicano de se ins-
talar e de se expressar nos espaços da cidade, mas, também refutar
uma interpretação hostil a O Direito Achado na Rua, já identifica-
da em outras passagens, que aparece apoiada numa leitura equi-
vocada que o vê “transformar-se em fundamento teórico de um
direito futuro, conquistado pelos movimentos sociais em benefício
dos deserdados da fortuna ou vitimados pelo sistema econômico”
em razão de uma concepção de homem que “reduz as possibili-
dades de uma transformação jurídica a favor do homem na sua
integralidade, desconsiderando-o como valor transcendente e es-
piritual, gerando o risco dialético da continuação do conflito e
não da sua solução pelo direito” (POLETTI, 2005 e 2006).
Com efeito, tanto na afirmação de O Direito Achado na Rua,
quanto na crítica que se lhe opõe, está em causa a questão do
humanismo. Mas não há um humanismo, senão muitos huma-
nismos, tanto que esta expressão pode aplicar-se, perdendo em
precisão, a quase todas as concepções modernas e contemporâ-
neas, desde o Renascimento. Assim, o que ressalta da crítica é
antes uma objeção ideológica, centrada num transcendentalismo
fundamentalista, que invocando um homem universal metafísico
13
(o homem como valor em si mesmo e criação original), faz objeção

à experiência de humanização que se realiza na história, como
emancipação consciente inscrita na práxis libertária (SOUSA JU-
NIOR, 2008, p. 87-88).
Trata-se de um fundamentalismo fechado ao diálogo – “As
proposições do ‘Direito Achado na Rua’ são marxistas. O homem
representa o único sentido e realidade da história. Produz a si
próprio em uma dialética com a natureza” (POLETTI, 2005) –,
recalcitrante às formas de alteridade que forjam a consciência e a
liberdade, como lembra Marilena Chauí (1982, p. 21-30).
O Direito Achado na Rua: O Direito como Liberdade

Na apresentação ao livro por eles organizado (1999), Cláu-
dio Souto e Joaquim Falcão, que, junto com F. A. Miranda Rosa,
detém o pioneirismo da institucionalização do campo de estudos
e pesquisas, estrito senso, da Sociologia Jurídica no Brasil, reivin-
dicam para o conhecimento sócio-jurídico uma distinção relativa
ao conhecimento jurídico-dogmático para atribuir ao primeiro a
pretensão de “fazer avançar um processo de desideologização da
realidade jurídica” e, a partir daí, abrir caminhos epistemológicos
para “o encontro desejável do ‘direito positivo’ com a realidade”.
Os estudos desses três autores, contribuindo para o adensa-
mento do conhecimento sócio-jurídico aos poucos inserido no sis-
tema curricular das faculdades de direito a partir da década de se-
tenta, tiveram sempre a preocupação de superar “a crise do direito
entendida como a distância que tem separado o ‘direito positivo’
da realidade, dos fatos sociais”. Com o rigor epistemológico carac-
terístico de suas abordagens, esses autores fizeram aproximações
relevantes para o desenvolvimento de concepções sociológicas do
Direito, desde a busca de uma substantivação científica do campo
14
e de uma ordenação metodológica dos procedimentos empíricos

de suas pesquisas, até as classificações dos fenômenos constituídos
pelos procedimentos e desempenhos dos operadores jurídicos que
formam a práxis do direito tal como ele é praticado no cotidiano
das organizações e instituições.
Com seus trabalhos, esses autores puderam indicar catego-
rias e instrumentos para a análise e a avaliação de “conceitos e/ou
proposições sobre os processos de consenso, competição e conflito
entre indivíduos, grupos sociais em particular, possibilitando uma
correspondente explicação de fundo empírico e histórico e for-
necendo instrumental conceitual e metodológico capaz de diag-
nosticar essa distância, donde estabelecem-se as bases, ou de sua
superação racional, ou da permanência ideológica da distância”
(SOUTO e FALCÃO, 1999, p. xi).
Em outra vertente de estudos pioneiros para a constituição
do campo sociológico-jurídico e para o conhecimento da formação
dos ordenamentos jurídicos, Roberto Lyra Filho (1982, passim) re-
toma a antítese ideológica que interfere e aprofunda o distancia-
mento entre Direito e realidade social, a partir da aporia entre os
principais modelos de ideologia jurídica em que essa antítese se
representa (isto é, da oposição entre jusnaturalismo e juspositi-
vismo, para sustentar que o impasse só se dissolverá quando, no
processo histórico-social, se encontrar o parâmetro para a deter-
minação própria do Direito). Para Lyra Filho, incumbe à Socio-
logia procurar no processo histórico-social o aspecto peculiar da
práxis jurídica: “na historicidade não meramente factual, porém
com balizamento científico, sem esquemas ou modelos previamen-
te designados, para estabelecer as conexões necessárias entre fatos
relevantes, seguindo uma hipótese de trabalho e suas constantes
verificações metódicas (fenômenos – hipótese de trabalho – veri-
ficação ante os fenômenos – reajuste das hipóteses)”.
15
Trata-se, pois, de uma Sociologia Histórica, “porque é Socio-

logia a disciplina mediadora, que constrói, sobre o acúmulo de fatos
históricos, os modelos, que os organizam; enquanto a História re-
gistra o concreto-singular, a Sociologia o aborda na multiplicidade
generalizada em modelos, segundo traços comuns”, que, aplicada
ao Direito, tornará possível esquematizar os pontos de integração
do fenômeno jurídico na vida social, bem como perceber a sua pe-
culiaridade distintiva, integrada a uma estrutura de ordenação.
Neste ponto, Lyra Filho (1982) oferece uma distinção sin-
gular, uma vez que todos os demais autores empregam indistinta-
mente as expressões “Sociologia Jurídica” e “Sociologia do Direi-
to”, expressões que, segundo ele, representam duas maneiras de
ver as relações entre Sociologia e Direito, constituindo, portanto,
abordagens diferentes, apesar de interligadas em um intercâmbio
constante. Assim, “falamos em Sociologia do Direito, enquanto
se estuda a base social de um direito específico” e se faz a análise,
por exemplo, de como o direito positivo oficial reflete a sociedade
na qual se aplica; já a “Sociologia Jurídica, por outro lado, seria o
exame do Direito em geral, como elemento do processo sociológi-
co, em qualquer estrutura dada”, de tal sorte que lhe pertence, por
exemplo, o estudo do Direito como instrumento, ora de controle,
ora de mudanças sociais.
À base dessa distinção, Lyra Filho (1982) traz para a Socio-
logia Jurídica a modelagem inserida por Ralf Dahrendorf (1981)
para determinar as suas posições fundamentais, identificadas nos
modelos de “estabilidade, harmonia e consenso” e de “mudança,
conflito e coação”, e procura oferecer uma posição de síntese dia-
lética que capte o jurídico no processo histórico de “atualização da
Justiça Social, segundo padrões de reorganização da liberdade que
se desenvolvem nas lutas sociais do homem”.
A análise dos ordenamentos jurídicos à luz desses padrões,
portanto, insere a sua problemática na mesma ordem de fenôme-
16
nos já examinados por Boaventura de Sousa Santos a partir de sua

consideração acerca do pluralismo jurídico e dos modelos de inter-
legalidades que nele se fundamenta. Santos, de fato, designa as po-
rosidades de diferentes ordens jurídicas, contrapondo-se à visão de
unidade de ordenamentos, que obrigam a constantes transições e
transgressões referidas a práticas sociais emancipatórias, nas quais
as transgressões concretas são sempre produto de uma negociação
e de um juízo político. Compreender, pois, a estrutura de um or-
denamento como unidade hierarquizada de uma ordem jurídica
sujeita a um monopólio de jurisdição (ou designá-la a partir da
competitividade de padrões em permanente negociação) resulta,
em todo caso, em opção teórica e política de reconhecimento da
validade e da legitimidade normativa desse modo produzida8.
8 A questão do pluralismo jurídico é objeto de minha atenção desde longa data (1984,
passim). Neste tempo tenho feito infletir a minha observação do fenômeno atento
às variações conceituais apresentadas nos primeiros estudos de Boaventura de
Sousa Santos, com base em seus estudos de forte teor antropológico na favela que
ele denominou “Pasárgada” (Santos, 1987, 42-46) e em seus estudos mais recentes,
nos quais opõe, sob o enfoque do pluralismo jurídico, as situações derivadas de um
direito despótico com as de um direito emancipatório (Santos, 3-76). Os autores
têm reconhecido em meu trabalho a reivindicação e a defesa do pluralismo jurídico
(Rubio e Herrera Flores (2004, p. 14): “A reivindicação e a defesa do pluralismo
jurídico, hoje no Brasil, se dá em dois níveis: (a) a instância teórica representada pelo
‘pluralismo jurídico comunitário-participativo’, que tem como principal expoente
Antonio Carlos Wolkmer; e (b) a perspectiva prática, configurada no movimento
denominado ‘Direito Achado na Rua’, coordenado por José Geraldo Souza Jr”.
Do mesmo modo Diaz (1998, p. 85-86): “Sin pretender resumir aqui tal historia, si
bien contando en la medida de lo posible con ella, asumiendo criticamente el pasado y
presente del llamado pluralismo jurídico, hablaré yo en estas páginas de la conexión en
nuestro tiempo entre poder social, poder político y poder jurídico. Como puede verse es
con variantes y correcciones el tema ya clásico y, con sus propias especificaciones, siempre
actual de la relación (interrelación) Sociedad-Estado-Derecho (cfr. Aquí sobre ello, con
interessantes implicaciones en el debate acerca del sentido de la democracia en nuestros
dias, los trabajos, entre otros, de Boaventura de Sousa Santos, José Eduardo Faria,
Antonio Carlos Wolkmer, José Geraldo de Sousa Junior e Celso Fernández Campilongo)”.
17
Mas é, sem dúvida, Antonio Carlos Wolkmer quem melhor

trata e sistematiza este assunto, sendo o autor de referência para
este conceito. O seu livro Pluralismo Jurídico. Fundamentos de uma
Nova Cultura no Direito, conta com sucessivas edições, com ampla
acolhida na bibliografia do tema e em trabalhos desenvolvidos sob
a orientação do autor.
Em estudo que se debruça sobre esta obra, Sánchez Rubio
(2008, p. 33-49) indica que ela representa um novo paradigma social
de produção normativa, de caráter emancipador, traduzindo, assim,
o que o próprio autor denomina Direito comunitário participativo9.
É por esta senda, aliás, que um de seus principais discípu-
los, vai encontrar, seguindo as suas referências, um caminho de
aproximação entre o pluralismo jurídico e a filosofia da liberta-
ção latino-americana. Com efeito, com base em leitura rigorosa
do pensamento emancipatório do filósofo argentino Enrique Dus-
sel e o emprego de categorias desenvolvidas por Antonio Carlos
Wolkmer, José Carlos Moreira da Silva Filho (1998) chega a uma
ética concreta da alteridade como pressuposto de um pluralismo
jurídico-comunitário-participativo, para fundamentar a prática de
novos sujeitos coletivos de direito10.
9 Diz Sánchez Rubio, (2008, p. 46): “Para constituir conceptualmente lo que

el iusfilósofo brasileño entiende por pluralismo jurídico emancipador al que
denomina Derecho comunitário participativo, y que trata de vincularlo en todo
momento con las prácticas sociales de los excluídos, utiliza cinco campos de
efectividad que a continuación describeremos brevemente: dos materiales que
se refieren a los contenidos y a los elementos constitutivos, y três formales, de
ordenación práctico-procedimental. Los primeiros son la emergência de nuevos
sujetos colectivos y la satisfacción de las necesidades humanas fundamentales.
Los de emergência formal se concretizan en: la reordenación del espacio público
mediante políticas democrático-comunitarias descentralizadoras y participativas,
el desarrollo de una ética de la alteridad y la construcción de procesos para
ejercitar una racionalidad emancipadora”.
10 Fico satisfeito em constatar a fidelidade de Silva Filho (2008, p. 51-74) ao duplo
pressuposto de seu pensamento de alteridade: o pluralismo jurídico e o sujeito
18
Ao colocar o problema do pluralismo jurídico como articulá-

vel ao problema do conceito de direito, Boaventura de Sousa San-
tos dirigiu importantes interpelações à Filosofia e à Teoria do Di-
reito. Porém, como essas interpelações procedem de uma questão
prévia que lhe é pressuposta – a de autenticidade e de validade,
nos planos sociais e teóricos, da normatividade plural –, também
à Sociologia Jurídica coube abrir pautas epistemológicas para a re-
solução desse problema original.
coletivo de direito: “Hablar em la legitimidad de nuevos derechos significa participar

de la concepción de que el Derecho no emerge solo del Estado, admitiéndo se la
existência de otros centros de producción normativa, sea en la esfera supranacional
(organizaciones internacionales), o en la esfera infra-estatal (grupos asociativos,
cuerpos intermediarios, organizaciones comunitárias y movimientos sociales). En
ese sentido, en contra de la doctrina oficial que delimita las fuentes clássicas del
Derecho, la sociedad surge como su fuente primaria. De entre todos los cuerpos
intermediários se privilegian, non solo por su comprensión, sino también por sus
características peculiares ya examinadas (en especial la práctica de transformar
sus demandas por satisfacción de necesidades en afirmación de derechos), los
movimientos sociales. Es en esse sentido que cabe hablar de los movimientos
sociales como nuevos sujetos colectivos de derecho. JOSÉ GERALDO DE SOUSA
JUNIOR se destaca, en el escenario del pensamiento jurídico brasileño, por la
preocupación que tiene respecto del tema. Afirma que, con base en los análises
político-sociológicos de los nuevos movimientos sociales, es perfectamente posible
identificar un proceso por el cual las carências vivenciadas colectivamente se
transforman en exigência de derechos y a partir de ahí posibilitan la construcción
de un sujeto colectivo de derecho. No obstante, alerta Wolkmer que esse nuevo
sujeto colectivo de derecho no permanece como objeto de si mismo, que su
característica fundamental se encuentra en la relación que establece com otros
sujetos en las identificaciones de experiências vitales y de valores que se orientan
hacia la búsqueda de satisfacción de necesidades y exigência de derechos. Es en esa
perspectiva que, fundamentalmente, se establece una relación de alteridade entre
los sujetos. Sin embargo, es preciso estar atento a una grave tendência en el interior
de esses nuevos sujetos, consistente en la tendência a un corporativismo en la
medida en que se prescinde de una perspectiva política más amplia. Apesar de eso,
aun las experiências de movilización popular que se tienen controladas por la faceta
integrativo-corporativa son puntos de referencia para movimientos posteriores,
permaneciendo en la memória colectiva de los movimientos sociales”.
19
Boa parte da produção sociológico-jurídica brasileira a partir

dos anos oitenta, sob a dupla influência da crítica jurídica e da
tomada de posição sobre o tema da alternatividade do Direito,
deriva de uma interlocução com as propostas e as categorias desses
dois autores (Roberto Lyra Filho e Boaventura de Sousa Santos).
Em um texto com características de balanço, oferecido a
uma coletânea organizada pela Comissão de Ensino Jurídico do
Conselho Federal da OAB, (OAB: 1992) Luis Alberto Warat cita
o nome de José Eduardo Faria para identificá-lo como “o sociólogo
do Direito brasileiro mais importante da década, destacando-se
as suas contribuições na análise da função social do Poder Judi-
ciário (além de sua participação na formação dos futuros sociólo-
gos do Direito brasileiro)”. Não apenas neste campo destaca-se a
contribuição de José Eduardo Faria, autor de uma obra alentada
e expressiva. No plano da Sociologia Jurídica, é importante por
em relevo, além de seus escritos individuais atualmente orientados
para os estudos da complexidade jurídica globalizada pela media-
ção de seu conceito de lex mercatoria, a bem posicionada contri-
buição em coautoria com Celso Fernandes Campilongo (1991) A
Sociologia Jurídica no Brasil, configurando o campo de estudos no
Brasil a partir das contribuições de autores e organizações com
protagonismo político, cujo enfrentamento à realidade de negação
dos direitos nos anos oitenta do século XX, numa conjuntura au-
toritária, pleiteava a alternatividade jurídica pelos vieses da crítica
ao dogmatismo legal oficial, ao ensino jurídico alienante e ao con-
formismo teórico e político dos operadores de Direito.
O balanço epistemológico das principais contribuições nes-
te âmbito e a configuração dos centros de investigação a partir
dos quais as principais linhas de pesquisa foram organizadas,
aparece também em um trabalho que tem a coautoria de João
Maurício L. Adeodato e Luciano Oliveira (1996), embora os au-
tores concluam pela constatação de um panorama “menos de
20
inexistência do que de descontinuidade”, sugerindo um epílogo

pessimista ao final do século XX para o estado da arte e da pes-
quisa sociojurídica no Brasil.
A perspectiva de alternatividade, de toda forma, tem mantido
no horizonte crítico – não obstante o formidável movimento inau-
gurado pelos juízes do Rio Grande do Sul e pelos acadêmicos de
Santa Catarina, entre os quais se destaca o impressionante traba-
lho de organização, difusão e sistematização conduzido pelo Insti-
tuto de Direito Alternativo dirigido por Edmundo Lima de Arruda
Junior – a preocupação de preservar a passagem do discurso da
crítica para o adensamento epistemológico de seu corpo teórico.
Cláudio Souto (1997), que tem dado grande contribuição
à substantivação do campo, revelou essa “preocupação teórico-
-substantiva” que “se situa para além de meros formalismos e no-
minalismos estatais ou grupais: o próprio e expressivo movimento
jusalternativo brasileiro, a que se deve o inestimável serviço de,
pela primeira vez, contestar-se entre nós, com eficácia, o impe-
rialismo da Dogmática Jurídica, esse movimento mesmo não tem
usualmente escapado a um formalismo grupal”.
Trata-se, entretanto, de uma recomendação de solidária ade-
são – semelhante à que Luciano Oliveira formulou em suas Notas
Críticas sobre o Direito Alternativo (OAB: 1992) que não ignora
a importância das contribuições do movimento para realçar a
atualidade e tarefas da Sociologia Jurídica, o expressivo número
de proposições para redesignar a própria disciplina Sociologia Ju-
rídica ou Sociologia do Direito por Direito Alternativo.
Certamente, neste diapasão, é importante não perder, como
advertem Roberto Lyra Filho e Boaventura de Sousa Santos, o
sentido autorreflexivo da condição de alternatividade, pois, sem
tal cuidado, diz o primeiro, “isto é, sem retificar a ideologia jurídi-
ca que serve ao ‘uso comum’, conservador do Direito, não se pode
saber por que, nem para que, se vai alternar, juridicamente, isso ou
21
aquilo, o que envolve também o como alternar” (LYRA FILHO,

1982ª, p. 48). Sousa Santos (2000, p. 344-345), por outro lado,
lembra: “não basta pensar em alternativas, já que o pensamento
moderno de alternativas tem-se mostrado extremamente vulnerá-
vel à inanição, quer porque as alternativas são irrealistas e caem
no descrédito por utópicas, quer porque as alternativas são realis-
tas e são, por essa razão, facilmente cooptadas por aqueles cujos
interesses seriam negativamente afectados por elas, sendo preciso,
pois, um pensamento alternativo de alternativas”.
Essas considerações são diretamente aplicáveis ao trabalho
de Eliane Botelho Junqueira – contribuição rigorosa e relevante
para a determinação do campo de discussão e para a problemati-
zação dos temas objetivos que formam o acervo sociológico atual.
Já tive oportunidade de salientar (SOUSA JUNIOR, 2002) que o
ponto de partida do trabalho de Eliane Junqueira é epistemológico
– “o começo de uma sociologia da sociologia do direito brasileiro”
– enquanto preocupação com uma sociologia do conhecimento,
no que se designa a “compreensão do lugar social e teórico ocupa-
do pela Sociologia do Direito no Brasil”. Mas há também balanço
crítico, enquanto organiza o repertório de tendências da ciência
moderna e seus reflexos nas teorias jurídicas e nas experiências de
institucionalização que balizam o agir dos operadores nos planos
da investigação e da práxis social.
Na cartografia dos temas, a análise da formação, no viés do
ensino jurídico, e a análise operativa, no viés do acesso à justiça,
oferecem material suficiente para a compreensão do processo de
“reelaboração teórica dos conceitos de juridicidade e de direito”.
Essa cartografia, ao designar linhas de atuação, de pesquisa e de
ensino e suas específicas matrizes teóricas, notadamente na for-
mulação crítica, é extremamente valiosa. Em certa medida, ela
contribui para a percepção, tal como faz Boaventura de Sousa
Santos, de como se produziram condições teóricas e condições
22
sociais para uma transição da visão normativista, substantivista

do direito, com unidade de análise centrada na norma, para uma
concepção processual, institucional e organizacional, com unida-
de de análise centrada no conflito.
Em uma perspectiva de transição paradigmática, a aborda-
gem de Eliane Junqueira (1993) assume características inéditas em
seu peculiar modo de conhecer a realidade sociológica: sincerida-
de, amor pela disciplina, mas, ao mesmo tempo, grau máximo de
objetividade. A permanência de um utopismo engajado, tendente
a configurar o protagonismo dos professores de Sociologia Jurídi-
ca, abre à disciplina um lado político para fomentar a desconsti-
tuição de imagens incompletas e até falsas do fenômeno jurídi-
co e derivadas do dogmatismo de paradigmas tradicionais; mas,
simultaneamente, reivindica o desenvolver-se, livremente, como
ciência social, apta a elaborar categorias plausíveis do que pode ser
considerado jurídico.
Por esta razão, é possível perceber neste trabalho de Eliane
Junqueira, e em outros textos seus, a sua projeção atualizada de
categorias e conceitos firmes para identificar, nas condições so-
ciais de análise, o estudo dos novos movimentos sociais, dos novos
conflitos e dos novos sujeitos de direito e, nas condições teóricas
de análise, os temas da reorientação do ensino jurídico e do plu-
ralismo jurídico.
Tendo conduzido também uma crítica altiva a certos impulsos
alternativistas, o trabalho de Eliane Junqueira permanece otimista,
ao menos como o “optimismo trágico” definido por Boaventura de
Sousa Santos, enquanto “alternativa realista ao pessimismo” para
caracterizar a “subjetividade do cientista”, na busca da “criação de
canais próprios de interlocução e de instâncias de produção de co-
nhecimento e de legitimação, de consolidação e consagração do
direito” (SANTOS, 2003, p. 3-76) sem sucumbir ao “desencanta-
23
mento” presente no que Luis Alberto Warat chamou de “crescente

mal-estar na cultura jurídica” (WARAT, s/d: 32).
Talvez o mais importante canal aberto na década de 1990
para essa interlocução tenha sido o debate e o movimento de
reforma do ensino jurídico no Brasil que, iniciado com o prota-
gonismo da Ordem dos Advogados do Brasil, mobilizou todas as
energias utópicas constituídas no processo crítico de revisão dos
paradigmas do Direito. Neste processo, não só foi possível a identi-
ficação de linhas de superação das contradições assim levantadas
que apelam à renovação do jurista para que venha a constituir-se
em sujeito do processo de construção jurídica de novas categorias
e de novos conteúdos emergentes do dinamismo social, levando
a novas “figuras de futuro”, como se erigiu a Sociologia Jurídica
como campo apropriado para fazer a mediação apta à realização
dessas figuras no espaço da reforma, tornando-se, ela própria, uma
matéria, enfim, plenamente institucionalizada.
No final dos anos 1960, a crise de paradigmas de conheci-
mento e de ação humanas projetadas no mundo abriu, no campo
jurídico, o mesmo debate crítico que se travava nos demais âm-
bitos sociais e teóricos. Sob o enfoque da crítica, portanto, e ao
impulso de uma conjuntura política complexa em sua adversidade,
notadamente no contexto social da realidade latino-americana, o
pensamento jurídico ocidental buscou reorientar-se paradigmati-
camente, rejeitando a matriz positivista de redução da complexi-
dade ao formalismo legalista e de deslocamento dos pressupostos
éticos que fundam uma normatividade legítima.
Um pouco por toda parte, no Brasil também, organizaram-se
núcleos críticos de pensar jurídico, com vocação política e teórica,
reorientando o sentido de sua reflexão. Com denominações co-
muns – “critical legal studies”, “critique du droit”, “uso alternativo del
derecho”, “direito insurgente” – esses movimentos convocavam em
manifestos a uma reinserção do direito na política, impulsionados
24
por um protagonismo que derivava em geral da crítica marxista e

uma atitude militante, sob a perspectiva ora de um “jusnaturalismo
de combate”, ora de um “positivismo ético”.
A partir dos estudos desenvolvidos em perspectiva dialéti-
ca desde os anos 1960 na Universidade de Brasília, Roberto Lyra
Filho organizou a seu turno uma sofisticada reflexão crítica ao
positivismo jurídico, inicialmente inscrita num manifesto lido na
UnB em 1978 – Para um Direito sem Dogmas –, no qual formulou
os fundamentos de uma concepção de Direito livre dos condicio-
namentos ideologizantes dos modelos antitéticos do juspositivismo
empiricista e do jusnaturalismo metafísico. Lyra Filho entende o
Direito, assim, não como a norma em que se exteriorize, senão
como “enunciação dos princípios de uma legítima organização so-
cial da liberdade” (LYRA FILHO, 1980).
Sintetizada essa posição em livro publicado em 1982, en-
quanto Roberto Lyra Filho procurava imprimir à sua reflexão
uma perspectiva dialética que permitisse romper a aporia dos pa-
res ideológicos jusnaturalismo e juspositivismo, Marilena Chauí
torna-se a referência filosófica para a superação do obstáculo epis-
temológico: “Penso que o livro de Roberto Lyra Filho trabalha no
sentido de superar uma antinomia paralisante: a oposição abstrata
entre o positivismo jurídico e o idealismo iusnaturalista”, pois, “se
o Direito diz respeito à liberdade garantida e confirmada pela lei
justa, não há como esquivar-se às questões sociais e políticas onde,
entre lutas e concórdias, os homens formulam concretamente as
condições nas quais o Direito, como expressão histórica do justo,
pode ou não realizar-se”.
Volto aqui à questão do humanismo de O Direito Achado
na Rua para associá-lo, em conclusão deste trabalho, à percepção
emancipatória do Direito como consciência da liberdade (SOUSA
JUNIOR, 2008, p. 87-88). O humanismo de O Direito Achado na
Rua, como salienta o Professor Roberto Lyra Filho (1982; 1983 e
25
1986), formulador de seus princípios, longe de se constituir numa

idolatria do homem por si mesmo, procura restituir a confiança de
seu poder em quebrar as algemas que o aprisionam nas opressões e
espoliações que o alienam na História, para se fazer sujeito ativo,
capaz de transformar o seu destino e conduzir a sua própria expe-
riência na direção de novos espaços libertadores. Mas a liberdade,
ele acrescenta, “não é um dom; é tarefa, que se realiza na História,
porque não nos libertamos isoladamente, mas em conjunto”. E se
ela não existe em si, o Direito é comumente a sua expressão, porque
ele é a sua afirmação histórico-social “que acompanha a conscien-
tização de liberdades antes não pensadas (como em nosso tempo,
a das mulheres e das minorias eróticas) e de contradições entre
as liberdades estabelecidas (como a liberdade contratual, que as
desigualdades sociais tornam ilusória e que, para buscar o caminho
de sua realização, tem de estabelecer a desigualdade, com vista a
nivelar os socialmente desfavorecidos, enquanto ainda existam)”.
Wolkmer (2005, IX), referindo-se ao humanismo jurídico,
neste passo, o compreende como um programa capaz de ofere-
cer elementos que “permitam emancipar os atuais conhecimentos e
práticas do Direito positivado contemporâneo, profundamente afetado
pelas diversas crises axiológicas da modernidade, pelos niilismos feti-
chistas e desumanizadores da cultura oficializada e pelos formalismos
tecno-normativistas negadores ou indiferentes à justiça concreta, ao
pluralismo democrático e aos direitos fundamentais”, reivindicando
uma aproximação filosófica do humanismo ao Direito11.
É somente neste sentido que se pode pensar a liberdade mo-
derna, configurada em seu traço distintivo e diferencial, por seu
11 Assim, diz ele, “a aproximação filosófica do humanismo ao Direito permite

transcender os limites históricos das múltiplas formas opressoras e abstratas de
legalidade, reordenando-as crítica e culturalmente para instrumentalizar o diálogo
emancipador entre as regras de convivência institucional e as exigências humanas
de dignidade, justiça e liberdade”.
26
caráter jurídico. Trata-se, para pensar com Cerroni (1972, p. 11),

da liberdade que já carrega em sua designação um sentido de po-
sitividade material, independentemente de ser fixada por normas
jurídicas impostas pelo Estado12.
Por esta razão, segundo Roberto Lyra Filho, sem nenhuma
contradição com a possibilidade de “autotranscendência do mun-
do”, ou de “ultrapassagem imanente”, “o Direito não é; ele se faz,
nesse processo histórico de libertação – enquanto desvenda pro-
gressivamente os impedimentos da liberdade não lesiva aos de-
mais. Nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos”, até se
consumar, pela mediação dos Direitos Humanos, na “enunciação
dos princípios de uma legítima organização social da liberdade”
(LYRA FILHO, 1982, passim).
Posicionamento a Partir de Pontos Controversos

Considero que as autoras e autores, nos quatro capítulos ou
partes e ainda no apêndice, que formam este livro, lograram es-
tabelecer, em boa medida, o estado da arte no tocante à atuali-
dade de O Direito Achado na Rua. Com efeito, com bom roteiro
oferecem uma compreensão plena do que aqui, denominamos O
Direito Achado na Rua: Concepção e Prática.
Não me cabe percorrer caminhos já trilhados e bem ma-
peados. Além do que, em suas narrativas, tiveram a acuidade de
identificar questões controversas e objeções, algumas hostis, as-
sentadas em face de O Direito Achado na Rua. Considero que
12 La libertad de los modernos: “Parece perfectamente evidente que el rasgo

constitutivo y diferencial de la libertad moderna es su carácter jurídico. Esto
no significa solamente que se trate de una libertad fijada por normas jurídicas
impuestas por el Estado, sino que además, y precisamente por ello, se trata de una
libertad ‘positiva’, eminentemente mundana y laica” (CERRONI, 1972, p. 11).
27
souberam as autoras e autores assumir pontos de vista sobre as

questões trazidas para o debate.
Em seguimento, retomarei algumas dessas questões, não para
complementar o que sobre elas já disseram as autoras e autores.
Mas, para afirmar posicionamento a partir de pontos que se man-
terão sempre controversos e que animam ainda algumas tensões
correntes, nos planos político e teórico. Ao fazê-lo, deixarei de ar-
rolar as referências em relação às quais se manifestam, remetendo
ao lugar próprio, nos capítulos respectivos, onde estão referidas.
O Problema do Conhecimento e da Pesquisa

Jurídica no Limiar do Século XXI
Em estudo preparado para o 3º volume da Série OAB - En-
sino Jurídico: Novas Diretrizes Curriculares, procurei trabalhar, na
perspectiva da reforma do ensino jurídico, ao final do séc. XX, o
tema da pesquisa e da interdisciplinaridade. O meu ponto de par-
tida, naquele estudo, foi a afirmação de não ser possível estruturar
um sistema de pesquisa e mesmo de ensino sem definição de um
campo objetivo e de uma problemática.
Problematizar, conforme Antônio Alberto Machado (2009,
passim), significa a possibilidade de romper o pragmatismo de-
corrente do ensino tecnicista infenso à percepção da direção das
correntes de transformações, e dos protagonismos que as impul-
sionam, constituindo-se este processo, no tocante à pesquisa, o
meio para a superação da distância que separa o conhecimento do
Direito de sua realidade social, política e moral, espécie de ponte
sobre o futuro, através da qual transitem os elementos para a es-
truturação de novos modos de conhecer a realidade do Direito.
Trata-se de um trabalho crítico e consciente apto a afastar o jurista
das determinações das ideologias jurídicas, quebrar a unidade do
28
mundo e do pensamento jurídico constituídos nestas ideologias.

Romper, em suma, com a estrutura de um pensamento abstrato
convertido em concepção jurídica do mundo, por isto, ideologia
jurídica, inapto para captar a complexidade e as mutações das rea-
lidades sociais e políticas.
A pesquisa insere-se, pois, no processo de conhecimento do
Direito enquanto exigência de identificar parâmetros para a com-
preensão da legitimidade epistemológica de novos conceitos e de
ampliação crítica de novas categorias em condições de organizar
uma prática de investigação na qual a disponibilidade dos artefatos
científicos operacionais e de hipóteses de trabalho não venham a
funcionar como substitutivos de uma visão global dos fenômenos
pesquisados, ao risco de condicionar todo o procedimento de in-
vestigação e de predeterminar os seus resultados.
Por esta razão, fiz referência a Roberto Lyra Filho, quando
este indica a necessidade de preocupação com a pesquisa, por-
quanto ela visa a uma definição de posicionamento:
[...] o simples recorte do objeto de pesquisa pressupõe,

queira ou não o cientista, um tipo de ontologia furtiva.
Assim é que, por exemplo, quem parte com a persuasão de
que o Direito é um sistema de normas estatais, destinadas
a garantir a paz social ou a reforçar o interesse e a con-
veniência da classe dominante, nunca vai reconhecer, no
trabalho de campo, um Direito praeter, supra ou contra
legem e muito menos descobrir um verdadeiro e próprio
Direito dos espoliados e oprimidos. Isto porque, de plano,
já deu por ‘não-jurídico’ o que Ehrlich e outros, após ele,
denominaram o ‘direito social’.
Para Lyra Filho, em suma, a definição de posicionamento,

assegura localizar a pesquisa no sistema que ela deve construir, ou
seja, conhecer o “Direito, não como ordem estagnada, mas posi-
29
tivação, em luta, dos princípios libertadores, na totalidade social

em movimento, onde o Direito, reino da libertação, tenha como
limites, apenas, a própria liberdade”.
A falta da problematização e de posicionamento, de um lado,
gera o “saldo trágico” a que se refere José Eduardo Faria (1997), em
artigo de balanço sobre a pesquisa jurídica no Brasil13. Com efeito,
Faria aponta, em sua condição de membro-assessor do CNPq, o
Conselho de Pesquisa e Ciência do país, na área Direito, o enve-
lhecimento dos esquemas cognitivos do processo de ensino e de
pesquisa em Direito,
[...] pelo esgotamento de seus paradigmas. Por isso, ele se

tornou incapaz de identificar e compreender a extrema
heterogeneidade dos novos conflitos, a enorme comple-
xidade técnica das novas normas, as interdependências
cada vez mais presentes no funcionamento da economia,
os valores, as demandas e as expectativas por ela geradas e
a emergência de um sem-número de novas fontes de direi-
to com a preeminência dos conglomerados transnacionais
como atores internacionais.
De outro lado, provoca, tal como assinalam Luciano Oliveira

e João Maurício Adeodato, em trabalho preparado para o Centro
de Estudos Judiciários, do Conselho da Justiça Federal (1996) um
panorama “menos de inexistência do que de descontinuidade”, su-
gerindo um epílogo pessimista neste final de século para o estado
da arte da pesquisa jurídica e sócio-jurídica no Brasil.
Nestas condições, pensando alternativas para a pesquisa do
Direito no adentrar do Século XXI, tenho em mente, a partir da
sugestão de José Eduardo Faria no artigo referido, a necessidade
de “definição de campos temáticos e dos problemas específicos
13 Jornal “O Estado de S. Paulo”02/05/97, p. A-2.
30
passíveis de ser financiados com recursos públicos, estimulando,

assim, os cursos jurídicos a promover as reformas que eles não fo-
ram capazes de realizar espontaneamente e a desenvolver marcos
teóricos capazes de tornar viável a compreensão dos novos ins-
titutos jurídicos e das relações socioeconômicas que lhes deram
origem e função”.
A minha leitura, neste propósito, orientada pelos valores de
O Direito Achado na Rua, carrega o olhar dos movimentos sociais
e suas práticas instituintes de direito. E isso é tanto mais neces-
sário, quanto na sua origem, atendeu O Direito Achado na Rua
à convocação de assessorias jurídicas de movimentos sociais que
reclamavam da universidade uma reflexão orientada pela práxis e
não apenas diletante, pedindo uma orientação para a apropriação
do direito em dimensão emancipatória e não, ideologicamente,
como instrumento de subordinação.
Muito da crítica que aparece nas posições que foram iden-
tificadas pelas autoras e autores, sob a boa intenção do avanço
intelectual, animado pelo conforto da institucionalidade corrente,
é bem financiada, mas cria a base acadêmica para livrar o pensa-
mento das exigências de engajamento político.
Pesa sobre O Direito Achado na Rua, conforme lembra Ro-
berto Lyra Filho, o mal-estar, o desconforto do comprometimento
de aliança com o povo-sujeito, que luta por emancipação.
Lembra Lyra Filho, em texto emblemático (1980, p. 8):
Acho que os intelectuais brasileiros têm dupla missão: a infle-

xibilidade dos princípios e a flexibilidade conjuntural das táti-
cas. Se afrouxam os princípios, a caverna platônica os engole;
se enrijecem as táticas, ajudam sem querer o adversário, pelo
triunfalismo arrogante com que escondem a própria impotên-
cia. O anarquismo teórico e prático, no modelo francês de 68
ou de safra diversa, acaba trovejando sua rebelião nos braços
do Estado paternalista, como garotos egressos dum chienlit
31
desarvorado. Este tipo de inconformista logo completa o ciclo

da agitação sem objetivo à rendição total. Ontem, as lou-
curas de maio; hoje, os noveaux philosophes... teoricismo
desbragado desempenha a mesma função. Corta manteiga,
sem chegar ao pão e ao miolo do que é socialmente retrógado.
No fundo, a crítica, e me refiro à honesta, bem intencionada,

assenta em parti pris. Isto é, em uma concepção epistemológica,
em um modo de conhecer. Boaventura de Sousa Santos lembra, a
esse respeito, que não há garantia de racionalidade em um único
modo de conhecer, senão, na integração de todos eles (1999, pas-
sim). E Lyra Filho, em vários textos, mas desde 1966 (2005, p. 287),
adverte, mesmo ao se exaltar a dimensão científica do Direito, que
se trata de “ciência humana e social (que) abrange, no seu coração
mesmo, a convergência das raízes sociais, das incisões filosóficas e, até,
do estremecimento religioso, desde o organismo humano, em suas bases
físico-psíquicas aos problemas fundamentais do espírito, na superação
das antinomias entre o homem-produto do meio e da base física e
o homem incondicionado, entre o potencial livre e a efetividade das
pressões internas e externas”.
Se o problema se põe quanto ao posicionamento epistemo-
lógico que acentua o parti pris do qual procede a crítica, ele se
propaga para as dimensões empíricas, onde o conhecimento se
realiza. Refiro-me ao problema da pesquisa. Para situar a questão,
reporto-me à entrevista que concedi ao grupo gestor do programa
Pensando o Direito (Ministério da Justiça, Secretaria de Assun-
tos Legislativos), para refutar o argumento de que, em O Direito
Achado na Rua, a retórica política esvaziaria a concretude do em-
pírico no processo de investigação do jurídico.
A primeira questão que me colocaram foi a de saber qual o
meu diagnóstico da pesquisa empírica em direito no Brasil. Se há
mudanças significativas no interesse dos pesquisadores pelo uso
32
de metodologias empíricas nos últimos anos, e se sim, a que eu

atribuiria esse maior interesse.
A minha resposta remontou a uma questão antecedente. A
criação dos cursos jurídicos no Brasil, no século XIX, em que pese
o caráter retórico inscrito no seu modelo de origem, ainda mui-
to colado à ideologia do jusnaturalismo idealista e da reprodução
ideologizada do modelo coimbrão que o inspirou, se implantou
num tempo epistemológico de mudança paradigmática orientada
pelo positivismo cientificista da modernidade. Assim, o Direito
logo se viu inserido em seu contexto de ciência social e fortemente
instigado pelo empirismo da abordagem sociologista que foi a ex-
pressão científica do jurídico nesse contexto.
Basta ver, nesse aspecto, já o mencionei em outro lugar
(SOUSA JUNIOR, 2002), não ser acaso que o movimento con-
traposto à idéia de sistema que serviu para constituir a ciência ju-
rídica e que se realizou teoricamente no Século XIX, sob a epígrafe
de jurisprudência dos conceitos, tenha arrancado, como anota Karl
Larenz (1969), “não do terreno da filosofia, mas da recentemente sur-
gida ciência empírica da realidade social, isto é, da sociologia”.
Cabe anotar, não obstante o desvio retórico e meramente abs-
trato da orientação que se passou a imprimir na formação jurídica,
a preocupação empírica presente no contexto da sistematização do
ensino superior e do ensino jurídico no Brasil. Não é demais lem-
brar, também registrei em meu trabalho já mencionado, o Parecer
de Rui Barbosa, afinal nunca aprovado em razão da queda do Ga-
binete em 1882, para a análise do Projeto de Reforma da Educação
Superior e Primária, no qual se propôs para a Faculdade de Direito,
em substituição ao jusnaturalismo metafísico, o estudo da Sociolo-
gia: “(...) o princípio do progresso social que Comte enunciou, e que é o
determinante de todos os deveres, pelo único meio de verificação que a
ciência dispõe: aquele da relação visível das coisas; aquele da observa-
ção real dos fatos; aquele da sucessão natural das causas e efeitos. Esta
33
é a base da Sociologia, enquanto o direito natural procura se apoiar na

natureza: que a história não descobre em nenhuma época, em nenhu-
ma reunião de criaturas pensantes...; ao direito natural, que é metafí-
sica, nós preferimos a Sociologia” (SOUSA JUNIOR, 2002, p. 14).
Sabe-se que até pelo ano de 1994, com a mais recente refor-
ma do ensino jurídico no Brasil, prevaleceu uma axiomatização
retórica do jurídico movido pela ideologização positivista e suas
formas redutoras (conhecimento reduzido à ciência; política redu-
zida ao estatal e jurídico configurado como exclusivamente legal),
infletindo, com as novas diretrizes, para o conhecimento do real
pela mediação do empírico, com o retorno aos currículos das ma-
térias sociologia, antropologia e história.
Todavia, aquela preocupação epistemológica de um conheci-
mento que não se evolasse em nefelibatismo abstrato manteve seu
espaço de busca empírica do real, bastando registrar as pesquisas
de Victor Nunes Leal (Coronelismo Enxada e Voto); de Cláudio
Souto e Solange Souto (e suas pesquisas empíricas desenvolvidas
na Universidade Federal de Pernambuco desde os anos 1970, O
que é pensar sociologicamente; A explicação Sociológica, entre ou-
tras, todas resultado de pesquisas empíricas); de Joaquim Falcão
(com seus trabalhos realizados com apoio do Departamento de
Pesquisas da Fundação Joaquim Nabuco, de Pernambuco, entre
outros, Conflito de Direito de Propriedade – Invasões Urbanas; Pes-
quisa Científica e Direito). Sobre as características empíricas des-
ses estudos, vale consultar o trabalho realizado por João Maurício
Adeodato e Luciano Oliveira, a partir de edital do Conselho da
Justiça Federal, O estado da arte da pesquisa jurídica e sócio-jurídica
no Brasil, editado na Série Pesquisas do CEJ, 4, Brasília: CEJ –
Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal,
1996, exatamente para demarcar esse percurso.
Quero salientar que o projeto Pensando o Direito, instituí-
do no âmbito da Secretaria de Assuntos Legislativos, do Minis-
34
tério da Justiça, se insere nessa vertente e contribuiu e contribui

para estimular grupos de pesquisa nas universidades e em outros
centros de investigação, essa vertente fundamental para o co-
nhecimento do Direito, seu ensino e a formulação de políticas
públicas nesse campo.
A entrevista queria nesse aspecto, aferir quais as dificuldades
para a internalização da pesquisa empírica como um instrumento
mais comum nas análises dos pesquisadores.
Também seguindo os valores de O Direito Achado na Rua,
mencionei que toda a questão está inserida num processo dramáti-
co de mudança paradigmática. Crise de modelo de conhecimento
e de legitimação das racionalidades que o orientam, tal como vêm
indicando os intérpretes dessa transição, marcante também no
campo do Direito. Remeto aos estudos de Edgar Morin e de Boa-
ventura de Sousa Santos, em geral, e de Roberto Lyra Filho, es-
pecificamente, no Brasil. As interpelações radicais formuladas por
Roberto Lyra Filho, propugnando precisamente o que configurou
como O Direito Achado na Rua, estão em nosso horizonte atual de
busca de localização, com todas as dificuldades que isso acarreta
– teóricas e políticas. Penso aqui em seus textos-manifestos: O
Direito que se ensina errado (1980c) (mostrando o duplo equívoco
que a expressão título pretende mostrar: inadequada percepção do
objeto de conhecimento e os defeitos pedagógicos que disso deri-
vam, o não ensinar bem o que se apreende mal); Para um direito
sem dogmas (contra o fetichismo ideológico do jurídico na moder-
nidade); O que é direito? (para acentuar que o Direito não é norma,
antes a “enunciação dos princípios de uma legítima organização social
da liberdade”); e, com relevo, Pesquisa em QUE Direito?, síntese das
preocupações que são lançadas aqui nas questões desta entrevista,
na medida em que procura “situar o papel e o trabalho do pesquisa-
dor em Direito”, com bem equilibrada articulação entre o teórico e
o empírico, de modo a, diz ele, assegurar, valendo-se da metáfora
35
de uma usina hidrelétrica que, na pesquisa, “a correnteza dos fatos

sociais – isto é, a práxis jurídica inteira e sem mutilações – forma a
energia esclarecedora das idéias, que logo regressam às mesmas águas
potentes, estabelecendo a conexão com o fluxo da realidade móvel, sem
a qual não há luz, nem se faz avançar o saber” (LYRA, 1984a).
Chamo a atenção, dada a preocupação exatamente de con-
frontar dificuldades e de procurar internalizar a pesquisa empíri-
ca como instrumento relevante para o conhecimento do Direito,
porém, não sem as tensões a que alude Roberto Lyra Filho, para
a criação da Rede de Pesquisa Empírica em Direito, que reúne
pesquisadores e grupos de pesquisa institucionalizados, tal como
a sua denominação indica. Em seu último (IV) encontro nacional
realizado em Brasília, na UnB, em setembro deste ano de 2014,
todas essas preocupações estiveram presentes e foram abordadas
em diferentes painéis, como eu disse, não sem tensões e confli-
tos epistemológicos e técnicos. Participei do primeiro painel, logo
após a abertura, com o tema “O direito achado na rua e a an-
tropologia do direito”. Detalhe, o Encontro instalou-se com uma
homenagem inscrita na convocatória: Roberto Lyra Filho: Pesquisa
em (que) Direito? (1984a).
Em razão disso, o meu apoio a projetos como o Pensando o
Direito por sua influência direta no incentivo à pesquisa empíri-
ca. Porque, além de instalar um campo de fomento formidável,
bastando ver a mobilização de grupos de pesquisadores para res-
ponder aos editais, logo se apreende pela divulgação, a qualidade
dos trabalhos apresentados, sabatinados e publicados no repertó-
rio criado pelo projeto. O impacto desse fomento é duplamente
constatado. Primeiro, pelo incentivo à formação de grupos de pes-
quisa, mobilizando competências e gerando formas de integração
de diferentes perfis de investigadores: iniciação científica, jovens
talentos, bolsistas inscritos em grupos de pesquisa e investigadores
seniores, líderes de projetos institucionalizados em diferentes pla-
36
taformas (por exemplo, Plataforma Lattes de Grupos de Pesquisa,

do CNPq); segundo, pela possibilidade, real, de implementação de
políticas públicas inscritas nas projeções dos resultados das pes-
quisas. Cito a minha experiência, que levou à institucionalização
de um Observatório da Justiça, numa interessante interinstitucio-
nalidade acadêmico-funcional envolvendo o Ministério da Justiça,
um centro internacional de estudos e pesquisas (CES da Univer-
sidade de Coimbra) e uma universidade pública – UFMG (2009).
O Direito Achado na Rua: Conhecimento

e Realização
Um dado de afirmação de O Direito Achado na Rua reside
na clareza política de que o Direito, para ser realmente emanci-
patório, deve passar por disputa pela sua apropriação e realização.
Esta disputa se dá tanto no campo hermenêutico quanto no
de sua aplicação, para o que concorremos juristas e os operadores,
entre estes, os que se afirmam no campo funcional de sua aplica-
ção. Apoio-me nesta posição, em entendimento que recolhi de J.
J. Gomes Canotilho, em entrevista que me concedeu para o Ob-
servatório da Constituição e da Democracia. Segundo o constitu-
cionalista português, em nota que serve também às observações
de alguns críticos identificados nos artigos deste livro (Cf. a crítica
de Streck e Guedes no Capítulo 2 deste livro), “a ‘luta constituinte’
é uma luta por posições constituintes e a lógica do ‘pluralismo de intér-
pretes’ não raro esconde que essa luta continua depois de aprovada a
constituição” (2008, p. 12-13).
Considero que o Coletivo O Direito Achado na Rua já ofe-
recera, de forma abrangente, uma resposta adequada ao acicate da
crítica, mostrando que ela deixa “de enxergar, contudo, que a causa
continua viva e pulsante” e que, a “despeito de nos acostumarmos,
37
cada vez mais, a um ambiente democrático e plural, o projeto inau-

gurado pela Constituição de 1988 encontra-se ainda inacabado”. Na
resposta, toma-se em conta que “a indiscutível participação social no
momento fundante foi de enorme importância para a consolidação de-
mocrática”. E é “nesse sentido que se justifica a militância ativa de O
Direito Achado na Rua. A luta agora é em favor da instauração plena
da legalidade, sem, porém, que nos deixemos levar por um formalis-
mo inócuo, que resulte da perda de direitos fundamentais a tão duras
penas conquistados através de décadas. A atuação dos movimentos
sociais e outros sujeitos coletivos de direitos, neste momento, continua
a mostrar-se essencial para que a aplicação da Constituição não se
volte contra o humanismo pretendido no momento revolucionário de
redemocratização no Brasil” (NARDI et al., 2013, p. 239-240).
Recupero as observações críticas, considerando que Néviton
Guedes é autor em O Direito Achado na Rua e que, portanto, não
abjura os valores que o guiaram até a posição atual de magistrado
em tribunal federal, nem traem a orientação que recebeu na eta-
pa doutora de seu mestre Canotilho. A posição de Lênio Streck
se situa na própria hesitação que parece vivenciar entre uma ex-
pectativa de neoconstitucionalismo e um constitucionalismo mais
dialógico. Esta posição um tanto fetichista já havia sido manifesta-
da em matéria temática, preparada pela Revista IHU – Revista do
Instituto Humanitas Unisinos, voltada, em sua matéria principal
para o tema: O Direito Achado na Rua. Alguns Apontamentos
(2009, p. 6-23), a partir de entrevistas que recolheram a minha
posição, de Jacques Alfonsin, de José Carlos Moreira Filho, de Ro-
berto Efrem Filho e de Lenio Luiz Streck, para quem, “Nesta qua-
dra da história, não é mais possível colocar-se de forma ‘alternativa’,
buscando um direito que ‘esteja na rua’ ou, simplesmente, no cotidia-
no. Vivemos sob a égide de uma Constituição democrática que, aliás, é
prenhe em direitos fundamentais” (IHU, 2009, p. 22-23).
38
Por isso, a pergunta precisa que fiz ao professor Canotilho: “A

multiplicidade de sujeitos que se movem no debate constitucional con-
temporâneo tende a abrir expectativas de diálogo político estruturado na
linguagem do Direito. Para usar uma expressão sua, quais as principais
‘posições interpretativas da Constituição’ que emergem desse processo?”
Em sua resposta, que poderia bem servir a uma disposição in-
telectual, satisfeita na indolência, até que seja sacudida e se mostre
disposta a ir para o meio da rua14, mostra Canotilho um caminho
possível: “Boa pergunta! Em trabalhos anteriores demos conta de que
a ‘luta constituinte’ era (e é) uma luta por posições constituintes e de
que a lógica do ‘pluralismo de intérpretes’ não raro escondia que essa
luta continuava depois de aprovada a constituição. A interpretação
seria afinal um ‘esquema de revelações’ de precompreensões políticas.
Continuamos a considerar que a metódica jurídica reflecte todas as
dimensões de criação e aplicação das normas jurídicas e a prova disso
é a de que as diferenças entre legislação (legislatio), jurisprudência
(jurisdictio), e doutrina (jurídica e política) surgem cada vez mais
imbricadas e flexíveis. De qualquer forma, o elemento central da nos-
sa posição reconduz-se ainda à ideia de conformação constitucional
dos problemas segundo o princípio democrático e não de acordo com
princípios a priori ou transcendentais. Se vemos bem as coisas, as di-
ficuldades da metódica jurídica residem mais na sua rotina e falta de
comunicação com outros horizontes de reflexão como a sociologia e
a filosofia do que nos seus pontos de partida quanto à investigação
e extrínsecação do sentido das normas para efeito de sua aplicação
prática” (C & D, 2008, p. 13).
14 “Do outro lado da rua, o ‘direito achado na rua’ e, perante o sangue vivo que brota
dos vasos normativos da realidade e a sedução de um direito outro, alternativo
ao direito formal das constituições, códigos e leis, compreende-se que o discurso
hermenêutico dos juristas mais não seja que um manto ocultador do insustentável
peso do poder” (CANOTILHO, 2008a: 119).
39
Tratei dessa questão em artigo para a coluna que mantive por

vários anos na Revista do Sindicato dos Trabalhadores do Poder
Judiciário e do Ministério Público da União no DF - Sindjus, pro-
curando ressignificar a expressão: O Direito se encontra na lei ou
na rua? (2008a: 5). Com efeito, no julgamento da ADPF nº 144, o
Presidente do Supremo Tribunal Federal fez uma afirmativa que
teve ampla repercussão: “cada vez mais nós sabemos que o Direito
deve ser achado na lei e não na rua”.
Comentando esta expressão, o Professor Marcelo Cattoni
da UFMG, não pôde deixar de estabelecer interconexão entre o
juízo do Chefe de Justiça e a proposta de “O Direito Achado na
Rua”, numa argumentação que serve bem para esclarecer a falsa
oposição entre a lei e a rua (tomando-se por dado que se reco-
nheça que a rua aí considerada é uma designação metafórica de
esfera pública), negada na afirmação do Ministro, que foi, aliás,
reivindicada como citação sua pelo jornalista Reinaldo Azevedo,
que em Veja (edição 2016, 11/07/2007), arrepia-se também em
face de “O Direito Achado na Rua” porque “tal corrente enten-
de que o verdadeiro direito é o que nasce dos movimentos sociais”
(SOUSA JUNIOR, 2008a: 5).
Segundo o Professor Cattoni, “no Estado Democrático de Direito,
este tipo de afirmação merece maiores explicações, para que não se crie
uma falsa oposição entre lei e rua. Pois se é certo que o Direito não deve
ser reduzido à vontade – não-mediada institucionalmente – de maiorias
conjunturais, por outro não pode ser reduzido à mera estatalidade”.
Para ele “o pluralismo jurídico que Gilmar Mendes critica com
seu pronunciamento não coloca em risco a constitucionalidade demo-
crática. Numa sociedade democrática, aberta de intérpretes da Cons-
tituição, o pluralismo jurídico é interno ao próprio Direito democrático
e é condição de racionalidade discursiva para que publicamente possa-
mos no exercício da cidadania construir, ao longo da história da nossa
comunidade jurídica, os ideais de justiça e de bem-comum que devem
40
dar sentido a essa história (art. 1.º, V, da CRFB). Assim é que a coe-
rência normativa exigida pela integridade do/no Direito é de princípios
e não a meras convenções do passado.
Se o Direito não nascer na rua, se a legalidade não nascer da
informalidade e na periferia, e não se sustentar com base em razões que
sejam capazes de mobilizar os debates públicos pela atuação da socieda-
de civil e dos setores organizados da sociedade, e assim, sem uma pers-
pectiva generalizada, universalizada, instaurada pelas lutas por reco-
nhecimento e inclusão, não ganhar os fóruns oficiais, não ganhar o cen-
tro do sistema político, e não se traduzir em decisões participadas, como
falar-se em legitimidade democrática?”(SOUSA JUNIOR: 2008a: 5).
De outra parte, em interessante artigo cujo título é “A Con-
tribuição do Direito Achado na Rua para um Constitucionalismo
Democrático” (2007, p. 9-10), o Professor Menelick de Carvalho
Netto chama a atenção para a virtualidade heurística de O Direi-
to Achado na Rua ao mostrar a sua atualidade teórica para rom-
per com a visão redutora, formalista, anti-povo e autoritária que
se retrai diante do movimento do social e que perde a perspectiva
de apreensão do “nexo interno entre o sistema de direitos e da de-
mocracia”, numa espécie de cegueira para o surgimento “em toda
a sua clareza das demandas expressas nas lutas por reconhecimento
dos movimentos sociais, tornando visível a exigência de permanente
abertura do Direito e da política”.
Constitucionalismo Achado na Rua

Para quem aprendeu a atravessar a rua, e a abrir a audiência
para a demanda de direitos, não tem sido estranho discernir as
exigências de um novo “constitucionalismo achado na rua”. A ex-
pressão está inscrita na narrativa do Capítulo 4 e se mostra plena
da virtualidade heurística a que remete o Professor Menelick de
41
Carvalho. Dirijo a atenção dos leitores para essa parte do livro.

Mas peço que, antes, me acompanhem mais uma vez num percur-
so de revelação de posicionamento.
Parto de uma reminiscência. Há alguns anos, vivenciei a for-
te experiência de participar, como painelista, de um encontro de
juízes no Rio Grande do Sul, convocados por suas entidades asso-
ciativas para discutir a crise da conjuntura: da ordem econômica
internacional, do sistema judiciário, da lei e da subjetividade dos
magistrados. Neste painel, chamava a atenção, a presença majori-
tária de palestrantes psicanalistas.
Lembro-me desse encontro pela afirmação forte do mais
reconhecido expoente entre os seus pares, incumbido da fala de
clausura, de que “os juízes se encontravam no fundo da lata de lixo da
história”. A afirmação fora feita na confiança de que ali se encon-
travam alguns poucos convidados não pertencentes à categoria de
juízes, mas suficientemente solidários para entenderem que o de-
sabafo não traduzia uma rendição, ou o desalento angustiado, mas,
ao contrário, um chamado à mobilização por quem dispunha de
força e protagonismo bastantes para exercitar a insegurança pró-
pria a tempos de crise, sem se deixar sucumbir às suas incertezas.
Daquele encontro e das constatações que ele permitiu esta-
belecer, pude extrair referenciais paradigmáticos posteriormente
apresentados em livro de cuja organização participei (SOUSA JU-
NIOR, 1996), mostrando que as profundas alterações que se dão
na sociedade e nos valores que estruturam as bases éticas das ins-
tituições, afetam igualmente o Judiciário e os juízes, postos diante
da necessidade de compreender essas mudanças. O claro esgota-
mento do modelo ideológico da cultura legalista da formação dos
juristas e dos magistrados e o franco questionamento ao papel e
à função social dos juízes, não poucas vezes tem empurrado seus
principais órgãos e operadores à inusitada situação identificada
42
pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos, segundo a qual, “faz-

-se da lei uma promessa vazia”.
Desde então, como acadêmico atuante no processo de capa-
citação de juristas, entre eles os juízes, especialmente nas frequen-
tes exposições em cursos de formação para efetivação e vitalicia-
mento, tenho constatado a projeção ainda no presente dessa sorte
de agonia funcional em face da persistência daqueles obstáculos
a que já me referi, de ordem existencial ou de ordem teórica, que
trazem dificuldades ao agir dos magistrados.
Para reter um desses aspectos, aludo, por exemplo, à obser-
vação feita pelo notável jurista Antonio Augusto Cançado Trin-
dade, atualmente em exercício na Corte Internacional de Justiça,
em Haia, na ocasião, presidente em inédito segundo mandato, da
Corte Interamericana de Direitos Humanos. Cançado Trindade se
referia ao obstáculo epistemológico do positivismo jurídico, na sua
versão mais vulgarizada e empobrecida, responsável por impedir
relativamente à proteção dos direitos humanos, um entendimento
jurisprudencial mais avançado contido em interpretações dinâmi-
cas ou evolutivas dos tratados internacionais, baldas de respostas
criativas da própria ciência do direito impossibilitada de libertar-
-se das amarras daquele pressuposto explicativo do conhecimento
jurídico. Anotei essa passagem no meu livro Sociologia Jurídica:
condições sociais e possibilidades teóricas (SOUSA JUNIOR: 2002).
Nesse livro, chamo igualmente a atenção, já em sede de di-
reito constitucional, para a advertência lançada pelo, a meu ver,
mais importante constitucionalista em língua portuguesa J. J. Go-
mes Canotilho, insistindo na necessidade de que nesse campo de
conhecimento jurídico se recupere, diz ele, “o impulso dialógico e
crítico que hoje é fornecido pelas teorias críticas da sociedade”, sob
pena de restar “definitivamente prisioneiro de sua aridez formal e do
seu conformismo político”.
43
Por isso que, num apelo à ampliação das possibilidades de

compreensão e de explicação dos problemas fundamentais do di-
reito constitucional, propõe o publicista português “o olhar vigi-
lante das exigências do direito justo e amparadas num sistema de
domínio político-democrático materialmente legitimado”. Trata-se,
segundo ele, de “incluir-se no direito constitucional outros modos
de compreender as regras jurídicas”, valendo por em relevo, a este
respeito, referência sua que me é altamente lisonjeira: “Estamos a
referir sobretudo as propostas de entendimento do direito como
prática social e os compromissos com formas alternativas do direito
oficial como a do chamado direito achado na rua”, compreenden-
do nesta última expressão, acrescenta, um “importante movimento
teórico-prático centrado no Brasil” (1998).
As alternativas abertas para lidar com as aporias derivadas
dessas múltiplas crises tem apontado para a necessidade de reco-
nhecer que, da contraposição entre o direito oficialmente instituído
e formalmente vigente e a normatividade emergente das relações
sociais, de um lado; e da distinção entre a norma abstrata e fria das
regras que regem os comportamentos e a normatividade concreta
aplicada pelos juízes de outro; tem-se acentuado a pertinência de
compreender novas condições sociais, como a emergência de mo-
vimentos sociais, de novos conflitos, de novos sujeitos de direitos, e
do pluralismo jurídico que instauram e reclamam reconhecimento.
Anotei, em texto de divulgação que publiquei, juntamente
com Nair Heloisa Bicalho de Sousa, o quanto é importante buscar
compreender, a partir do espaço público social e de fenômenos
de mobilizações de rua, o alcance hermenêutico dessa metáfora,
utilizada para “caracterizar a esfera pública na qual, em encontros e
desencontros, reivindicando a cidadania e os direitos, a multidão tran-
seunte se transforma em povo” (2013, p. 15).
Este desafio se coloca de forma premente para o jurista e
para o juiz. Para melhor representar essa ideia, valho-me de um
44
texto célebre de Anatole France, Prêmio Nobel de Literatura de

1921, um dos fundadores da Liga dos Direitos do Homem, notável
escritor. Fiz esse registro em artigo (2011a: 4). O texto se intitula
Os Íntegros Juízes e nele o escritor procura transmitir a impressão
retida da observação de um quadro de Mabuse (Jan Gossaert),
talvez a mesma que se possa perceber na pintura de van Eyck (o
Políptico de Gantes), em que são figurados também os juízes ínte-
gros, tal como são conhecidos.
De sua observação, diz Anatole, pode-se concluir ter o mes-
tre dado aos dois juízes o mesmo ar grave de doçura e de serenida-
de. Mas, vistos os detalhes que caracterizam um e outro, pode-se
ver que eles, no entanto, são diferentes, na índole e na doutrina.
Um traz na mão um papel e aponta o texto com o dedo; o outro
ergue a mão com mais benevolência do que autoridade, como que
a liberar um pensamento prudente e sutil. São íntegros os dois,
conclui o escritor, mas é visível que o primeiro se apega à letra, o
segundo ao espírito.
Esta tensão, entre a letra e o espírito, já havia aparecido
em outro texto de Anatole France – Crainquebill –, (A Justiça
dos Homens, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1978)
buscando encontrar um equilíbrio possível entre a ordem e a re-
gularidade e uma expectativa humana e sensível para represen-
tar uma justiça justa.
Ainda sobre este tema, em A Lei é Morta o Juiz é Vivo (A Jus-
tiça dos Homens, op. cit.), alinha parêmias do célebre magistrado
Magnaud erigido, na doutrina e na literatura (Victor Hugo, em
Os Miseráveis), em expressão de aplicação equitativa do Direito,
com a fórmula, ensina Carlos Maximiliano, “decidir como o bom
juiz Magnaud”.
Seu ponto de partida é trazer a Justiça para o social, de modo
a permitir um processo de aplicação que leve a ultrapassar as con-
dições limitadoras de seu momento de produção: “Enquanto a so-
45
ciedade for fundada na injustiça, as leis terão por função defender e

sustentar a injustiça”.
No texto mencionado, o sentido de sua crítica é, pois, convo-
car a integridade do juiz para a necessidade de vencer e de ultra-
passar pelo inconformismo transformador, a reprodução, nas leis,
da iniquidade social, hierarquizante e excludente. Do contrário,
nestas condições, diz ele num texto que depois seria recuperado
por João Mangabeira (A oração do paraninfo) em mensagem a es-
tudantes de direito da Bahia, só restará ao magistrado “a missão
augusta de assegurar a cada um o que lhe toca: ao rico a sua riqueza
e ao pobre a sua pobreza”.
Por isso o chamamento que faz Anatole France ao juiz vivo
para se posicionar ativamente em face da lei morta: “A bem dizer,
eu não teria muito receio das más leis, se elas fossem aplicadas por
bons juízes. Dizem que a lei é inflexível. Não creio. Não há texto que
não se deixe solicitar. A lei é morta. O magistrado é vivo; é uma gran-
de vantagem que leva sobre ela. Infelizmente não faz uso disso com
frequência. Via de regra, faz-se mais morto, mais frio, mais insensível
do que o próprio texto que aplica. Não é humano: é implacável. O
espírito de casta sufoca nele toda simpatia humana. E vejam que só
estou falando dos magistrados honestos”.
Para este chamamento, no entanto, adverte Jean Cruet no
livrinho paradigmático publicado em 1908 (A vida do direito e a
inutilidade da lei), é preciso que os magistrados ousem “sair fora dos
textos, para compreender o mundo social em toda a sua extensão, em
toda a sua complexidade e em todo o seu movimento”. Não se trata de
desconsiderar os textos legislativos, mas de compreender que a rigi-
dez das fórmulas em que se expressam, não dispensa uma mediação
que recupere “o aspecto verdadeiro das coisas” de modo a desvendar
o direito que se revela “na sociedade organizando-se por si própria”.
Daí a necessidade de os juízes se darem conta, como mostra
Bistra Apostolova (1998), de que prefigurar o sentido dos conflitos
46
é a tarefa que lhes cabe e que mediá-los requer compreender o

significado que eles alcançam em seu próprio tempo. Como dis-
posição e como atitude, sem o desespero aniquilador que Tolstoi
impõe ao juiz de sua narrativa (A morte de Ivan Ilich), para abrir-
-lhe a consciência que desnuda a sua trajetória profissional, social
e familiar como “monstruosa mentira camuflando vida e morte”.
No plano das habilidades, que é o que remete mais imediata-
mente à constituição de perfis profissionais, a alusão a uma justiça
poética quer mais designar a categoria subjetividade, como própria
ao afazer do jurista para interpretar criativamente e com imagina-
ção as relações do ser humano com o mundo e com o outro. É com
este sentido que Martha Nussbaun fala em poesia e imaginação
(1997), ou seja, para caracterizá-las como “ingrediente indispensá-
vel ao pensamento público, com condição de criar hábitos mentais
que contribuam para a efetivação da igualdade social”.
Não se trata, nessa referência a uma justiça poética, o que
poderia parecer à primeira vista, a uma busca de relação entre
a justiça e a literatura, para por em relevo a inclinação de ma-
gistrados para o uso da linguagem artística. Não que isso deixe
de ocorrer ou que se rejeite o pendor estético quando se trata de
desenvolver o discurso jurídico.
Aplicadas aos juízes, essas categorias traduzem as expectati-
vas de mediação humanística entre visão de mundo e consciência
social, de modo a traduzir aquela exigência funcional já destacada
por Bistra Apostolova (Perfil e Habilidades do Jurista: razão e sensi-
bilidade) como “a habilidade de ver o outro como diferente e saber co-
locar-se no lugar dele, e desse modo, desenvolver a capacidade de ima-
ginar e de compreender, essencial na formação do bacharel”. Mas para
isso, há que se reconhecer e superar o que Sá e Silva identifica por
uma espécie de “bloqueio cultural” dos profissionais do direito,
cuja insensibilidade social e baixa capacidade para dialogar com
aspectos culturais, políticos e sociológicos da realidade acaba por
47
transformá-los naquele kafkiano porteiro da lei (O Processo, Franz

Kafka), que diante do camponês que lhe dirige um singelo “posso
entrar”, responde altivo e enigmático: “É possível, mas agora não”
(Sá e Silva, 2010: “É possível, mas agora não”:a democratização da
justiça no cotidiano dos advogados populares).
Por isso Anatole France ainda acrescentava às qualidades
próprias do bom juiz, certamente inspirando-se no Presidente
Magnaud, a combinação entre o espírito filosófico e a simples bon-
dade (A Lei é morta o juiz é vivo, op. cit.). Algo que permita o salto
humanizador que o exalte para além daquele lugar automático que
já no século XIV mereceu a reprimenda de Bartolo de Sassoferrato
(“I merileggisti sono puriasini”). Um lugar veementemente recusado
por Floriano Cavalcanti (O Juiz e a importância de sua missão): “As-
sim apercebido, estará a altura do seu nobre ofício, capaz de exercer a
função de criador do Direito e humanizador da Lei, dando movimento
aos textos imotos dos Códigos, adaptando os velhos preceitos às novas
condições sociais. Nesse trabalho reajustativo torna-se ele o artífice da
formação e do aprimoramento da norma jurídica, plasticizando-a ou
suprindo as suas deficiências e omissões, ou fazendo sentir ao legisla-
tivo a necessidade de sua revisão ou reforma. Dessa maneira, o Juiz
faz com que o Direito, estratificado na Lei, não se fossilize, e evolva
como um organismo vivo. E os julgados proferidos em Tribunal (Ju-
risprudência), além de fontes documentárias da evolução jurídica, são
preciosos repositórios para o estudo da Sociedade, pelos flagrantes das
épocas em que foram pronunciados”(SOUSA JUNIOR,1998; 2013a).
Estamos falando, pois, daquela estirpe de íntegros juízes que
sabe fazer a jurisprudência andar pelas ruas. Trata-se de designar
uma estirpe de juízes que, na sua judicatura provincial – Floriano
Cavalcanti de Albuquerque; ou no Supremo Tribunal Federal –
Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva, entre eles – souberam
exercitar a compreensão plena do ato de julgar, rejeitando a falsa
oposição entre o político e o jurídico, ao entendimento de que,
48
para se realizar, “a justiça não deve encontrar o empecilho da lei”.

Provedores de uma “justiça poética” (SOUSA JUNIOR, 2011b: 4)
é esta estirpe de juízes que, lembra Josaphat Marinho em discurso
de homenagem a Víctor Nunes Leal na UnB, citando Aliomar Ba-
leeiro, leva a jurisprudência do Supremo a andar pelas ruas porque,
“quando anda pelas ruas, colhe melhor a vida nos seus contrastes e se
prolonga pela clarividência da observação reduzida a aresto”(SOUSA
JUNIOR, 2013a).
O Direito Achado na Rua na Perspectiva dos

Direitos Humanos
Os direitos humanos, assim, se erigem como um programa
que dá conteúdo ao protagonismo humanista, conquanto orienta
projetos de vida e percursos emancipatórios que levam à formula-
ção de projetos de sociedade, para instaurar espaços recriados pe-
las lutas sociais por dignidade. Retomo aqui um tema que desen-
volvi com Antonio Escrivão Filho (2014), aludindo a um programa
de representação do jurídico que bem se presta a inserir a temática
sofisticada dos direitos humanos como projeto de sociedade.
Isso para acentuar que se trata de um programa com o qual
se forja o humanismo de “O Direito Achado na Rua”, conforme
salienta Roberto Lyra Filho, formulador de seus princípios, o mais
importante dos quais é conceber o Direito como a “enunciação
dos princípios de uma legítima organização social da liberdade”,
designado, conforme já acentuamos antes, a partir de uma teo-
ria geral dos direitos humanos emancipatórios. Tem-se aí algo que
procura restituir a confiança no poder de quebrar as algemas que
aprisionam os sujeitos sociais em meio às opressões e espoliações
que o alienam na História, e os impedem de exercitar a capacidade
de transformar seus destinos e de conduzir a sua própria experiên-
49
cia na direção de novos espaços de emancipação (LYRA FILHO,

1982; SOUSA JUNIOR, 2011, passim).
Mas a liberdade, ele acrescenta, repito aqui o que já anotei
antes, “não é dom; é tarefa, que se realiza na História, porque
não nos libertamos isoladamente, mas em conjunto”. E se ela não
existe em si, o Direito é comumente a sua expressão, porque ele
é a sua afirmação histórico-social “que acompanha a conscienti-
zação de liberdades antes não pensadas (como em nosso tempo, a
das mulheres e das minorias eróticas) e de contradições entre as
liberdades estabelecidas (como a liberdade contratual, que as de-
sigualdades sociais tornam ilusória e que, para buscar o caminho
de sua realização, tem de estabelecer a desigualdade, com vista a
nivelar os socialmente desfavorecidos, enquanto ainda existam”
(1986, p.307).
Por esta razão, voltando a Roberto Lyra Filho, é de lembrar
que “o Direito não é; ele se faz, nesse processo histórico de liber-
tação – enquanto desvenda progressivamente os impedimentos da
liberdade não lesiva aos demais. Nasce na rua, no clamor dos es-
poliados e oprimidos”, até se consumar, vale repetir, pela mediação
dos direitos humanos, na “enunciação dos princípios de uma legítima
organização social da liberdade” (LYRA FILHO, 1982, passim).
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59
PARTE I
1. O Direito Achado na Rua:

Concepção e Prática
No percurso de Roberto Lyra Filho
Antonio Escrivão Filho15

Fredson Oliveira Carneiro16
Karoline Ferreira Martins17
Priscila Paz Godoy18
Raquel Negreiros Silva Lima19
Roberta Amanajás Monteiro20
15 Doutorando Bolsista CAPES no Programa de Pós-Graduação em Direito da

Universidade de Brasília (UnB). Advogado Popular membro do Conselho da
Terra de Direitos e Consultor de Direitos Humanos do Escritório Cezar Britto
Advogado Associados.
16 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania
da Universidade de Brasília (UnB). Advogado Popular membro da Associação de
Advogados dos Trabalhadores Rurais da Bahia – AATR.
17 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília
(UnB). Advogada popular integrante da Assessoria Jurídica Universitária Popular
Roberto Lyra Filho (AJUP-RLF). Analista jurídica do Conselho Federal da Ordem
dos Advogados do Brasil (OAB).
18 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da
Universidade de Brasília (UnB). Advogada, Consultora do Conselho Nacional da
Saúde/Ministério da Saúde.
19 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília
(UnB). Analista em Direito do Ministério Público da União, Assessora em Matéria
Cível do Gabinete do Procurador-Geral da República.
20 Doutoranda Bolsista CAPES no Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade de Brasília (UnB). Advogada Popular. Membro do Conselho da
Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos.
61
Rodrigo Melo Mesquita21

Valquíria Theodoro22
1.1. A Nova Escola Jurídica Brasileira e sua

Vocação Teórica para a Liberdade
Marilena Chauí, em gesto de amizade e reconhecimento
acadêmico da proposta filosófico-jurídica de Roberto Lyra Filho,
elaborou o ensaio intitulado “Roberto Lyra Filho ou da Dignidade
Política do Direito” (CHAUÍ, 1982). O texto destinava-se a inte-
grar o segundo volume do Boletim Direito e Avesso, que se pro-
punha a ser o veículo semestral de divulgação das ideias gestadas
pela Nova Escola Jurídica Brasileira, carinhosamente apelidada de
NAIR, em homenagem fraternal de seu criador à professora e pes-
quisadora Nair Heloísa Bicalho de Sousa23.
Afastando a adoção da nomenclatura escola por dogmatismo,
Roberto Lyra Filho alinhava-se a uma tradição que se configurava
21 Rodrigo Melo Mesquita, advogado, graduado pela UFPI, representante da OAB

Nacional no Conselho Nacional de Juventude.
22 Aluna Especial no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania
da Universidade de Brasília (UnB). Especialista em Gestão de Iniciativas Sociais, e
Presidente da Associação dos Pais de Alunos com Altas Habilidades do DF – APHAS.
23 A adoção do nome NAIR como sigla da escola que se formava foi detidamente
esclarecida pelo autor no terceiro volume do Boletim Direito e Avesso: “A
Nova Escola Jurídica Brasileira adotou a abreviatura NAIR -, antes de tudo em
homenagem a Nair Heloísa Bicalho de Sousa, cientista social e esposa do nosso mais
antigo e fiel companheiro, José Geraldo de Sousa Junior. Esta NAIR-gente foi, assim,
a madrinha da NAIR-Escola, porque, desde o primeiro momento, nos incentivou,
embora não seja responsável pelas nossas opções teóricas e práticas. Adotando seu
nome, quisemos transmitir, igualmente, a sugestão de brilho e luminosidade, pois
também julgamos receber alguma luz, varando as trevas estéreis e repetitivas das
ideologias jurídicas tradicionais.” LYRA FILHO, Roberto. Humanismo dialético.
Direito e Avesso. Boletim da Nova Escola Jurídica Brasileira. Boletim da Nova
Escola Jurídica Brasileira, Brasília, n. 3, p. 15-103, jan./jul. 1983, p. 27.
62
em outras terras como as experiências da Escola dos Annales e da

Escola de Frankfurt. Segundo apontava, “Escola, para nós, quer
dizer fraternidade, entrosamento e comunhão de esforços, que se
escoram reciprocamente e se reajustam à crítica dos consórcios”
(LYRA FILHO, 1982a, p. 13).
Em ensaio de apresentação da proposta da NAIR, Lyra Filho
apontara porque essa era uma experiência nova, jurídica e brasi-
leira. Segundo o mentor da Escola, que a visualizava como “en-
treposto de trocas intelectuais”, a Escola é nova “porque se opõe
à tradição morta” (LYRA FILHO, 1982a, p. 13). Deixava claro,
entretanto, que, com isso, não se estavam renegando “as grandes
vozes do passado (...) à luz dos grandes precursores, conscientes,
inquietos, indomesticáveis”, pelo contrário, imaginava que a tarefa
da escola era “a retomada de corrida em revezamento”, constituin-
do “superações, que não cancelam o exemplo e mensagem dos que
a nós passaram o bastão” (LYRA FILHO, 1982a, p. 13).
Para ele, a Nova Escola é jurídica “porque visa, antes de
tudo, reexaminar o Direito não como ordem estagnada, mas como
a positivação, em luta, dos princípios libertadores, na totalidade
social em movimento” (LYRA FILHO, 1982a, p. 13). Nessa pro-
posta, a meta a ser alcançada “é justiça militante, não metafísica,
nem idealista, nem abstrata, mas conscientizada, em toda etapa,
na práxis vanguardeira, em oposição às resistências imobilistas e
retrógradas” (LYRA FILHO, 1982a, p. 14).
Essa Nova Escola Jurídica é brasileira “porque brasileiros são
os seus membros e brasileiro o seu estandarte anti-imperialista, a
sua denúncia de todo genocídio material e cultural” (LYRA FI-
LHO, 1982a,p. 14), com o que é possível observar a antecipação
de tendências atuais dos estudos pós-coloniais e descoloniais de
países africanos e latino-americanos24.
24 Lyra Filho deixa clara a necessidade de superação do colonialismo do saber ao afirmar

como posicionamento da NAIR: “Condenamos o ‘portinglês’ dos PhDs, formados
63
Acreditava Marilena Chauí que o projeto de releitura do Di-

reito empreendido por Lyra Filho era exitoso ao retomar a neces-
sidade do debate jurídico sobre formas de realização da Justiça,
deixado à margem da corrente do positivismo jurídico, sem cair na
proposta fixista e abstratamente universalizante do jusnaturalismo
(CHAUÍ, 1982). De acordo com o esquema teórico de Lyra Filho,
o Direito só existe e se perpetua na medida em que é movimento
histórico de transformação dialética. A historicidade é a válvula
que o atualiza e revigora, ofertando possibilidades de expansão do
projeto coletivo de emancipação das excluídas e excluídos e opri-
midos (LYRA FILHO, 1986).
O ponto crucial de articulação da teoria lyriana – influen-
ciada pela obra de Karl Marx, porém não subserviente aos seus
postulados – era a percepção crítica de que o justo e o injusto
são frutos do processo de transformação forjado no campo das
disputas sociais. Lyra Filho e seus colaboradores propunham-se a
“mergulhar, à luz da pesquisa, no cerne da estrutura de classes da
sociedade para desvendar o mito da coesão, mantido a partir de
normas e padrões estabelecidos pela classe dominante” (SOUSA
JUNIOR, 1982, p. 16).
O objetivo compartilhado com as e os demais integrantes da
NAIR era o de guiar olhares para a interpretação de um mundo
jurídico que não se exaure na ordem instituída, nem com ela se
identifica. Consubstancia-se, diferentemente, na legítima organi-
zação solidária de um projeto de libertação coletivo (LYRA FI-
LHO, 1982b). Opõe-se ao não direito, que, de sua parte, estaria
na ‘matriz’, ou aqui ‘possuídos’ mentalmente por seus mestres e doutores da lei,

sempre embasbacados diante de qualquer nominho ou flato mental da dominação
empavonada. Conclamamos os estudiosos a lembrarem os nossos valores autênticos,
os nossos mestres inconformistas, enterrados sob a pata industrial-colonizadora,
que recebe as carícias manhosas do complexo de inferioridade ‘nativa’” (LYRA
FILHO, 1982a, p. 14).
64
presente nas normas travestidas de estatalidade, mas resultantes

do modelo autoritário de “estruturação da convivência” e “padro-
nização de condutas” (LYRA FILHO, 2000).
Esse é o contexto em que a suposta neutralidade da academia
é identificada como modo dissimulado de mascarar a existência de
um sistema de dominação estruturado em torno das normas po-
sitivadas pelo Estado (LYRA FILHO, 2000). A reflexão filosófica
sobre a ontologia do Direito, em perspectiva que parte do clamor
silenciado das marginalizadas e marginalizados, seria, assim, um
convite à participação acadêmica no processo de constituição per-
manente e progressiva dos Direitos Humanos. Havia temas como
as demandas de igualdade entre classes, etnias e sexos em plena
emergência. Experiências de geminação de Direitos que merece-
riam ser vivenciadas e refletidas também na academia, com trans-
parência e honestidade em relação à política de conhecimento que
guia a pesquisadora e o pesquisador.
Assim é que a reflexão sobre os meios a percorrer para en-
frentar a impermeabilidade do direito estatal, promovendo a sua
irrigação a partir do clamor das excluídas e excluídos, ganhou vi-
gor com a fundação da Nova Escola Jurídica Brasileira e a publi-
cação dos três fascículos do Boletim Direito e Avesso, série inter-
rompida ante o falecimento de seu idealizador, Roberto Lyra Filho,
e em respeito à sua memória, no ano de 1986.
Naqueles três livros, buscava-se apresentar a essência liber-
tadora do Direito e apontar o lado avesso do conceito, consistente
no equívoco reducionista de identificar o fenômeno jurídico com
as normas de positivação estatal. Reuniam-se, para tanto, vozes
de diversas pesquisadoras e pesquisadores, dentre eles “visitantes e
correspondentes nos Estados e a assessoria conselheiral e egrégia
de Raymundo Faoro e Marilena Chauí”, bem assim José Geraldo
de Sousa Junior, Agostinho Ramalho Marques Neto e Tarso Gen-
ro (LYRA FILHO, 1983).
65
Denunciavam a realidade de abusos e omissões do Estado,

violências invisibilizadas e que se justificavam por intermédio do
aparato jurídico positivo, com suas leis e suas operadoras e opera-
dores. A criação intelectual dos Boletins da NAIR se fazia a partir
de dilemas reais, tais como as inconsistências do direito penal, a
necessidade de propiciar pilares teóricos para o direito à moradia e
a repressão nos conflitos agrários. Esta última questão foi temati-
zada no primeiro volume do Boletim, pelo conselheiro Raymundo
Faoro. Pontuava, nesse particular, que a violência utilizada pelos
organismos institucionais não solucionava o problema, desfazendo
a tensão anômica. Pelo contrário, exacerbava o modelo autoritário
míope e instável de contenção dos conflitos (FAORO, 1982a).
Também encontravam espaço nas publicações, temas rela-
cionados à transição e à abertura democrática do início da década
de 1980. Marilena Chauí, por exemplo, dedicou-se, no terceiro
volume do Boletim Direito e Avesso, a abordar a realidade de crise
institucional e de direitos que se vivia. Cuidou de apontar limites
e dificuldades do processo de democratização do país, fortemente
marcado pela doutrina da segurança nacional.
O momento histórico era o da implementação da Lei de Se-
gurança Nacional, da atividade do Serviço Nacional de Informa-
ção, dos Senadores Biônicos e das medidas de garantia da impu-
nidade dos torturadores das décadas de 1960 e 1970. Tempos de
forte repressão às manifestações de massa, às greves operárias, às
lutas camponesas e de uso extremo da violência policial para a
obtenção da confissão de presas e presos comuns (CHAUÍ, 1983).
Do mesmo modo, os Boletins eram meios de divulgação de
propostas de análise do funcionamento excludente e opressor da
máquina judiciária, como se observa na contribuição de Boaven-
tura de Sousa Santos, no artigo “O direito e a comunidade: as
transformações recentes da natureza do poder do Estado nos paí-
ses capitalistas avançados” (SANTOS, 1983). Ali, colocava-se a
66
possibilidade de reforma do modelo tradicional de administração

da Justiça com a criação de processos “descentralizados, informais
e desprofissionalizados” (SANTOS, 1983, p.140), que substituís-
sem ou complementassem áreas dos serviços judiciários, corrigin-
do o quadro de “distribuição assimétrica da dominação política”
(SANTOS, 1983, p. 144) reproduzida no contexto Judiciário25.
Em suma: os Boletins impulsionavam, na esfera do diálogo ju-
rídico acadêmico, inquietudes filosóficas para a resolução criativa
de problemas práticos decorrentes da opressão estatal e punham-
-se à disposição da denúncia de violações e da identificação de
mitos brasileiristas domesticadores da população (CHAUÍ, 1983).
Roberto Lyra Filho via no trabalho da pesquisadora e do
pesquisador em Direito a responsabilidade pelo estabelecimen-
to de conexões entre o mundo das ideias e “o fluxo da realidade
móvel”, alimentado pela “correnteza dos fatos sociais” (LYRA FI-
LHO, 2000). O exemplo vinha das e dos integrantes da NAIR,
que se posicionavam dentro da militância política, colocando-se à
disposição de campanhas vanguardistas suprapartidárias, à época
também cristalizadas nas pautas de anistia, reconstitucionalização
e “Diretas Já” (LYRA FILHO, 2000).
Nesse quadro conjuntural, Lyra Filho teve o cuidado de sis-
tematizar, de maneira sintética, o posicionamento da NAIR em
25 Salientava o autor português, na conclusão do texto: “À luz de tais tendências,

não há razões para pensar que a dominação capitalista só pode ser exercida
através do conhecimento científico profissional como pretendem tanto Illich como
Foucault. Pelo contrário, se o poder for deslocado das instituições para as redes
sociais, haverá um deslocamento paralelo do conhecimento jurídico-científico
para o conhecimento jurídico-vulgar. O novo conhecimento não científico e não-
disciplinar não será classificável na dicotomia verdade/falsidade (a matriz básica
do paradigma científico), mas antes apontará (enquanto utopia) para a dicotomia
libertação/opressão. Esta ‘revolução cognitiva’ poderia constituir a crise final do
paradigma científico e da teoria do conhecimento sobre os quais a sociedade
burguesa baseou a permanente revolução tecnológica da produção e a concomitante
degradação do processo de trabalho.” (SANTOS, 1983, p. 158).
67
quinze proposições, quais sejam: “cinco relativas ao que ela não

é; cinco relativas ao que ela combate e cinco relativas ao que ela
sugere” (LYRA FILHO, 2000, p. 504). As proposições da NAIR
contra as inversões positivistas se fundiam em cinco postulados,
marcadamente enunciados por Lyra Filho nos seguintes termos:
a) não tomamos a norma pelo Direito;
b) não definimos a norma pela sanção;
c) não reconhecemos apenas ao Estado o poder de normar

e sancionar;
d) não nos curvamos ante o fetichismo do chamado direi-

to positivo, seja ele costumeiro ou legal;
e) não fazemos do Direito um elenco de restrições à liber-

dade, como se esta fosse algo a deduzir a contrario sensu
do que sobra, depois de sancionado o furor criativo de
ilicitudes, quer pelo Estado quer pelos micro-organismos
concorrentes, que estabelecem o poder social dividido (o
chamado poder dual). (LYRA FILHO, 2000, p.499).
As cinco proposições positivas que se contrapunham às enu-

meradas eram então sintetizadas em:
a) que o Direito é, antes de tudo, liberdade militante, a

afirmar-se evolutivamente, dentro da convivência social
de indivíduos, grupos, classes e povos – e isso quer dizer
que o Direito é então, em substância, processo e mode-
lo de liberdade conscientizada ou conscientização liber-
tadora, na e para a práxis transformativa do mundo; e
não ordem/social (que procure encerrá-lo e detê-lo), nem
norma (que bem ou mal o pretenda veicular), nem como
princípio abstrato (que o desvincule das lutas sociais e
68
concretas), nem apenas luta social e concreta (que des-

conhece os limites jurídicos de uma práxis transformativa
do mundo e reivindicadora de direitos sonegados: não se
conquistam Direitos pelo esmagamento de Direitos, isto
é, Direitos Humanos e gerais, pois o livre desenvolvimen-
to de cada um é condição para o livre desenvolvimento
de todos, o que exclui a pretensa legitimidade duma ação
majoritária aniquiladora do que são, sentem, pensam,
carecem e reclamam os titulares do Direito inalienável à
diferença pessoal ou grupal irredutível);
b) que a justiça histórica e concreta (como estalão avalia-

tivo das séries concorrentes de normas, produzidas pelos
grupos, classes e povos desnivelados) não se determina
senão pelo estabelecimento gradual de porções crescentes
de liberdade conscientizada, na luta dessas classes, grupos
e povos, refletindo a dialética de opressores e oprimidos,
espoliadores e espoliados; em síntese: dominadores e do-
minados, no interior dos Estados e nações e na comuni-
dade internacional e interestatal;
c) que o padrão de legitimidade, na concorrência das nor-

mas, está no vetor histórico, donde se extrai a resultante
mais avançada duma correlação de forças, em que se tor-
na reconhecível a vanguarda, marca-se o posicionamento
progressista e atua-se para garantir as suas reivindicações,
tratando de exprimir o sumo e o extrato do processo liber-
tador a que se dá o nome de Direitos Humanos (e, note-
-se, não apenas as declarações, por assim dizer oficiais
desses Direitos, porém os Direitos mesmos, emergentes e
ainda não “declarados” senão em polarizações da práxis,
ou declarados em documentos “não-oficiais” como, por
exemplo, o de Argel);
69
d) que o processo mesmo de libertação nem pode desco-

nhecer os seus limites jurídicos (ver a) nem deferir a tuto-
res (estatal, partidário, classístico ou grupal) a determina-
ção exclusiva e concreta do círculo de liberdade de cada
um, já que a própria “emancipação das classes trabalhado-
ras não significa uma luta por privilégios e monopólios de
classe e, sim, uma luta por Direitos e deveres iguais, bem
como pela abolição de todo domínio de classe”;
e) que a positivação dialética do Direito, isto é, a sua

efetivação gradual e em luta na totalidade histórica em
movimento, mediante a qual se esclarecem, concretizam
e polarizam, como Direitos reclamados, os aspectos con-
cretos do Direito geral de libertação, jamais toleram que
aquela positivação seja acorrentada numa ordem social
e seu suposto “direito positivo” (que, tantas vezes, não é
nada “positivo”, isto é, não vige, materialmente, na socie-
dade global ou em amplos setores dela; nem, caso obtenha
essa vigência, dá mais que um efeito transitório, que ade-
mais não depende para cair em desuso ou romper-se pela
contestação eficaz, de um dispositivo formal revogador: o
silêncio ou a repulsa social revogam as normas estatais ou
não estatais com muito mais força do que as leis) (LYRA
FILHO, 2000, p.499-501).
A NAIR partia da defesa da possibilidade de superação pro-

gressiva do Direito, no tempo, na história, em meio aos influxos
ordenadores e desordenadores do processo dialético (LYRA FI-
LHO, 1986). A retomada dinâmica do Direito como instrumento
atrelado ao devenir histórico era não apenas meio para superar
“a carga revolucionária extinta e pretérita do direito natural e o
lastro conservador do positivismo” (FAORO, 1982b, p.32), mas
também figurava como saída para a crise do ensino do Direito,
fruto do ensino jurídico de perspectiva fixista.
70
A proposta era acompanhada do otimismo que convida a

agir extramuros acadêmicos. O manifesto da NAIR era também
provocação. O Direito emergente era tomado como instrumento
de rebeldia (BARATA, 1982) e a resistência era o fruto legítimo
do impulso crítico acerca do direito.
Como mencionado, buscava-se que as estudiosas e estudiosos
do Direito passassem a se movimentar dentro do processo de cons-
trução dos Direitos Humanos, engajando-se na busca de “vias pró-
prias de manifestação num projeto de estabelecimento de verdadei-
ro poder popular”26 (SOUSA JUNIOR; SANT’ANNA, 1982, p.5).
Isso reverberava na adoção de métodos de pesquisa acadêmica, por
incitar a realização de investigações de campo, pouco comuns na
academia jurídica, e a produção de pesquisas participantes.
Assim é que a NAIR sugeria (i) cancelar inversões positi-
vas para repor o Direito em seu lugar; (ii) inseri-lo na luta pela
Justiça histórica, social e concreta; (iii) sustentar os Direitos de
classes vanguardistas; (iv) não olvidar que o processo de libertação
se desnatura quando pretende sacrificar Direitos em prol de seus
fins; (v) evidenciar que o processo de transformação do Direito é
incessante e superior à ordem determinada ou às instituições e aos
sistemas que pretendem controlar o movimento histórico (LYRA
FILHO, 2000).
26 A proposição de José Geraldo de Sousa Jr. se desenvolve mais à frente na obra.

Assenta ele: “No campo do direito, ontologicamente reenquadrado, a tarefa envolve
a instrumentalização de organizações populares de base, com o aproveitamento
das contradições de sistemas normativos, para obrigar o reconhecimento,
através da legalidade vigente, de alguns interesses das classes populares e, com
a criação de novos instrumentos jurídicos de intervenção, dentro da pluralidade
de ordenamentos. [...] Trata-se, assim, de participar do projeto de organização e
de expressão das classes populares para a reivindicação e defesa de seus interesses
gerais e específicos, os quais encontram, em situações conjunturais objetivas, as
vias próprias de manifestação”. SOUSA JUNIOR, José Geraldo. Fundamentação
Teórica do Direito de Moradia. Direito e avesso. Boletim da Nova Escola Jurídica
Brasileira, Brasília, ano I, n. 2, p. 13-17, jul./dez. 1982a, p. 14 e 17.
71
Conforme nos aponta, Lyra Filho não fundamenta exaus-

tivamente essas proposições, que já encontravam debates numa
“mais profunda e ampla discussão que lhes dei em outros escri-
tos” (LYRA FILHO, 2000, p. 503). No entanto, faz questão de
enfatizar que, dialeticamente, o trabalho da NAIR buscava uma
superação no diálogo entre “a herança liberal [...], a dialética de
Hegel [...], a ontologia jurídica do jovem Marx [...], a sociologia crí-
tica marxiana dos anos maduros [...], a contribuição da sociologia
crítica pós-marxiana [...] e a hermenêutica material [...]” (LYRA
FILHO, 2000, p. 503). Afastando a ideia de que esse poderia ser
um ecletismo intelectualmente pobre, Lyra Filho afirma tratar-
-se de uma verdadeira Aufhebung– superação –, já que não adota
cegamente nenhuma dessas grandes referências, pelo contrário,
“incorpora, transfunde e reenquadra os materiais assim discrimi-
nados” (LYRA FILHO, 2000, p. 503).
Nesses termos, ao buscar essa Aufhebung para a análise do
Direito, Lyra Filho afirma que “a Nova Escola Jurídica Brasileira
é, em última análise, humanismo, porém dialético e este há de ser
entendido (...) no sentido de ‘historicidade dialética da liberdade
em seu avanço sobre a necessidade’” (LYRA FILHO,1983, p. 15),
em outros termos, citando Agostinho, “humanismo real” (LYRA
FILHO, 1983, p. 15).
A categoria jurídica do humanismo dialético era o funda-
mento teórico que se conectava diretamente com a defesa dos Di-
reitos Humanos e embasava a luta contra a opressão. Tratava-se
de conceito operativo, na medida em que oferecia resposta à anti-
nomia aparentemente insolúvel entre a Justiça e a Lei. A NAIR,
por sua vez, apresentava-se ao mundo como condensação desse
mesmo conceito teórico humanista, na forma de proposições ar-
ticuladas em prol das metas de (i) resgatar a dignidade política do
Direito, (ii) apoiar aos movimentos progressistas libertadores, (iii)
72
reagir e opor-se a relativistas e reacionários, bem como (iv) defen-

der um socialismo democrático (LYRA FILHO, 1986b).
O passo seguinte na articulação do programa criado por Lyra
Filho seria concretizar um projeto de intervenção jurídica atrelado
à práxis social dos movimentos de vanguarda apoiados pela NAIR.
Surgia, em 1986, o esboço de O Direito Achado na Rua, projeto
que foi extraído do papel apenas após a morte de seu mentor.
Idealizou-se a obra O Direito Achado na Rua como um com-
pêndio de Introdução ao Direito alinhado à doutrina da NAIR.
Lyra Filho almejava explicar os meios de realização do Direito e
lançava mão, para esse desiderato, de uma abordagem dialética
concatenadora, capaz de alcançar, dentro da “normação plural e
contraditória, a estimativa móvel e progressista do grau de legi-
timidade presente em cada sistema de normas e a eficácia socio-
lógica do Direito – que nasce na ‘rua’, isto é, na conscientização,
clamor e etapas de libertação de povos, classes e grupos espoliados
e oprimidos” (LYRA FILHO, 1986b).
Com O Direito Achado na Rua, Lyra Filho vislumbrava con-
solidar a NAIR como uma doutrina teórica e prática libertadora,
fundada no humanismo dialético. Doutrina na medida em que
pretendia apresentar-se como sistema coeso de ideias articuladas,
o que não era incompatível com a crítica de seu criador ao dogma-
tismo (LYRA FILHO, 1980a). Isso porque se, de um lado, teciam-
-se considerações para compreender melhor a ontologia do Direi-
to, bem como para superar o binômio positivismo-jusnaturalismo,
de outro, as ideias embasadoras da doutrina eram apenas pontos
de partida para a instauração de um debate crítico, a enriquecer-se
no ambiente das demandas emergentes por Direitos.
Assim, O Direito Achado na Rua teria o escopo de examinar
todo o programa tradicional de Introdução ao Estudo do Direi-
to. Propunha a inovação do método, do foco, da disposição e do
73
tratamento da matéria. A síntese do projeto constava do sumário

deixado por Lyra Filho:
PREFÁCIO.
I - TEORIA GERAL; INTRODUÇÃO; Cap. 1. Huma-

nismo; Cap. 2. Filosofia; Cap. 3. Dialética.
II - TEORIA ESPECIAL; INTRODUÇÃO; Cap. 4. Ve-

tor Histórico; Cap. 5. Direitos Humanos; Cap. 6. Positi-
vação do Direito; Cap. 7. Dignidade Política do Direito e
Dignidade Jurídica da Política; Cap. 8. Humanismo Dia-
lético e Transformação da Ciência do Direito.
III - TEORIA MEDIADORA; INTRODUÇÃO; Cap. 9.

Fontes, Limites, Aplicação e Hermenêutica Material do
Direito; IV - PRAXIS; INTRODUÇÃO. Cap. 10. Diretri-
zes da Prática Jurídica Avançada. (LYRA FILHO, 1986b).
Após a morte de Roberto Lyra Filho e no decorrer das úl-

timas três décadas, o projeto O Direito Achado na Rua se auto-
nomizou e ganhou forma, tamanho e influência sob a orientação
de José Geraldo de Sousa JUNIOR. As projeções lyrianas se con-
cretizaram em diversas frentes de atuação na luta pelo reconheci-
mento de Direitos. Congregaram-se estudantes, pesquisadoras e
pesquisadores, ativistas sociais e uma gama de cidadãs e cidadãos
no programa teórico e prático de emancipação social. Organi-
zou-se a ação guiada pelo manto utópico da autogestão, com a
preocupação de aprofundar e validar a teoria no campo da práxis
social. Passou-se à consagração paulatina do desejo lyriano, em
realidade e movimento.
74
1.2. O Direito como Enunciação da Legítima

Organização Social da Liberdade
Direito é processo, dentro do processo histórico: não é uma

coisa feita, perfeita e acabada; é aquele vir-a-ser que se en-
riquece nos movimentos de libertação das classes e grupos
ascendentes e que definha nas explorações e opressões que o
contradizem, mas de cujas próprias contradições brotarão as
novas conquistas. (Roberto Lyra Filho)
Uma das mais sofisticadas elaborações teórico-práticas do

pensamento jurídico nacional, O Direito Achado na Rua, que
representa a continuidade do trabalho do Grupo de Brasília, or-
ganizado em torno da NAIR, tem como horizonte de sentido a
formulação ontológica e epistemológica do Direito conforme defi-
niu o professor Roberto Lyra Filho, líder intelectual da NAIR e um
dos maiores expoentes do pensamento jurídico-crítico, nacional e
internacionalmente reconhecido.
Dedicando-se à superação das ideologias hegemônicas no
campo do Direito, o jusnaturalismo e o juspositivismo, Roberto Lyra
Filho orienta boa parte de sua obra à desconstrução das falsas ima-
gens acerca do Direito, denunciando a ontologia furtiva que está na
base de diversos discursos filosóficos, científicos e institucionais
sobre o fenômeno jurídico. Como pontua, “a maior dificuldade,
numa apresentação do Direito, não será mostrar aquilo que ele
é, mas dissolver as imagens falsas ou distorcidas que muita gente
aceita como retrato fiel” (LYRA FILHO, 2006, p. 7).
Assim, Lyra Filho procede a uma negação do jusnaturalismo
em virtude de sua imutabilidade e da adoção de princípios abstra-
tamente formulados, apartados das lutas sociais, rejeitando que os
75
Direitos e valores de uma sociedade sejam dados pela natureza,

por desígnio divino ou pela simples elucubração racional.
De outro lado, rejeita o positivismo jurídico por ser este “uma
redução do Direito à ordem estabelecida” (LYRA FILHO, 2006,
p. 29), que toma a validade das normas pela sua positividade, im-
pedindo que estas tenham sua legitimidade questionada. “O po-
sitivismo é dogmático, no sentido de que erige certas pautas nor-
mativas em dogmas, a pretexto de que não cabe contestá-las nem
propor a elas qualquer alternativa” (LYRA FILHO, 1980b, p. 12).
Por esse motivo, reúne seus esforços teóricos para demonstrar
que a compreensão sobre o Direito “como um corpus autônomo,
dotado de princípios abstratos e objetivos, capazes de articular
uma teoria pura” (FAORO, 1982b, p. 31), corrente entre advoga-
dos e juristas, está equivocada.
Em trabalho publicado em 1980, Lyra Filho aponta que o
equívoco quanto ao conceito de Direito guarda sua relação com
a compreensão ontológica desse fenômeno, já que “não se pode
ensinar bem o direito errado; e o direito, que se entende mal, de-
termina, com essa distorção, os defeitos da pedagogia”. (LYRA
FILHO, 1980b, p. 5). Para o autor, há, basicamente, dois sentidos
em que se pode entender o Direito que se ensina errado, quais
sejam: “como o ensino do direito em forma errada e como errada
concepção do direito que se ensina” (LYRA FILHO, 1980b, p. 5),
sendo o primeiro equívoco relacionado a vícios metodológicos e
o segundo a uma compreensão incorreta dos conteúdos a serem
desenvolvidos e do próprio conceito do Direito a ser ensinado.
Buscando a superação desses vícios, diretamente vinculados
às ideologias preponderantes no campo do Direito, Lyra Filho, por
meio da adoção da Filosofia Dialética, na leitura que faz da obra
de Hegel e Marx, buscará os fundamentos para se pensar uma
nova ontologia jurídica, capaz de superar a aparente aporia entre
positivismo e jusnaturalismo. Deste modo, desenvolverá uma nova
76
concepção do Direito, que o localiza dentro do processo histórico-

-social, como parte integrante da própria dialética da sociedade.
Trabalhando com um esquema teórico denominado Dialética
social do Direito, Roberto Lyra Filho elabora a negação da negação,
no procedimento dialético, que supera a tese e a antítese ante-
riores, construindo uma síntese que, por um lado, não descarta a
importância da positivação de Direitos, e por outro, não prescinde
do ideal de justiça. Ora, ao devolver o fenômeno jurídico ao seio
social do qual surge, Lyra Filho apontará a existência de diversas
forças sociais em conflito com legitimidade e pretensões normati-
vas distintas. Segundo nos aponta o próprio autor:
A contradição entre a injustiça real das normas que ape-

nas se dizem justas e a injustiça que nelas se encontra
pertence ao processo, à dialética da realização do Direito,
que é uma luta constante entre progressistas e reacioná-
rios, entre grupos e classes espoliados e oprimidos e gru-
pos e classes espoliadores e opressores. Esta luta faz parte
do Direito, porque o Direito não é uma “coisa” fixa, pa-
rada, definitiva e eterna, mas um processo de libertação
permanente (LYRA FILHO, 2006, p. 82).
Segundo concebe Lyra Filho, a compreensão do fenômeno

jurídico não pode se afastar da análise das próprias relações so-
ciais as quais se desenvolvem na infraestrutura, influenciadas pelo
modo de produção, que promove a divisão da sociedade em classes
– espoliadoras e espoliadas –, mas também observando a divisão
que ocorre entre grupos étnicos, religiosos, sexuais – opressores e
oprimidos. Conforme nos aponta Lyra Filho:
Essa contradição, surgida na própria infraestrutura, é

que forma o núcleo de toda a dialética do direito, seja no
seu acabamento, em sistemas normativos (plurais e con-
77
flituais), seja na influência de retorno que as resultantes

normadas possam ter na infraestrutura mesma. (LYRA
FILHO, 1980b, p. 16).
Trata-se de um processo histórico de constante devir, em que

a síntese dos conflitos novamente se insere no processo dialético,
sofrendo novas negações e negações das negações, dando origem
a novas sínteses, num processo dialético incessante, em que a in-
fraestrutura influencia as resultantes normadas e estas influen-
ciam, de volta, a própria realidade social.
Dessa forma, a síntese jurídica não consiste em “cristaliza-
ções de qualquer ‘essência’ metafísica, mas o vetor histórico-social
resultante do estado do processo, indicando o que se pode ver, a
cada instante, como direção do progresso da humanidade na sua
caminhada histórica” (LYRA FILHO, 2006, p. 78).
Sendo assim, delineado o paradigma teórico, “a práxis deri-
vada das exigências de uma conjuntura de luta social e de crítica
teórica conduz à construção de um saber alternativo, natural-
mente comprometido com a análise da estrutura social” (SOUSA
JUNIOR, 1993, p. 8). A síntese desse pensamento comprometido
e engajado foi forjada como Humanismo Dialético, espécie de pro-
nunciamento oficial e coletivo da NAIR, que conjuga a filosofia
jurídica crítica do autor.
Diante do exposto, importa agora desenvolver a formulação
central da Filosofia Jurídica de Roberto Lyra Filho, que serve de
lastro teórico para a práxis orientada na experiência de O Direito
Achado na Rua. Afastadas as ideologias preponderantes no cam-
po jurídico, Roberto Lyra Filho, lançando mão da dialética, defini-
rá o Direito como legítima organização social da liberdade.
Entretanto, o que vem a ser essa legítima organização social
da liberdade? Antes de responder a esse questionamento, impor-
ta mencionar que o próprio Roberto Lyra Filho, ao trabalhar sob
78
uma perspectiva dialética, aponta que não há que se falar no que o

Direito é, mas no que ele vem a ser, no processo social desencadea-
do ao longo da História. Em outros termos, o Direito, assim como
os demais elementos constitutivos da Sociedade, está inscrito na
História, e, por isso, sujeito às mudanças inauguradas pelo tem-
po. Não é estação onde param os trens, mas um dos comboios do
trem do tempo em constante movimento e transformação. Como
afirma, em outro sentido, o Direito, que não é um conjunto de
leis e costumes imutáveis, não se confunde com a “pura restrição
à liberdade” (LYRA FILHO, 2006, p. 88). Em sentido contrário,
ele é a própria “afirmação da liberdade conscientizada e viável à
coexistência social” (LYRA FILHO, 2006, p. 88) de um determi-
nado tempo, com as limitações dos antagonismos e contradições
de uma dada sociedade.
Por isso, o que o autor chama de legítima, em sua concepção,
diz respeito à organização solidária de um projeto de libertação cole-
tivo (LYRA FILHO, 1982b). Com isso, Lyra Filho erige o princípio
da legitimidade, ou seja, da adesão das maiorias e das minorias
sociais à construção de um projeto de coexistência histórica, à
condição de validade e reconhecimento do Direito, em contra-
posição à simples legalidade postulada pelos positivistas. E o que
confere os padrões de legitimidade a essa organização social? O
próprio Lyra Filho responde a esse questionamento. Para ele, o
que confere a legitimidade é o fato de que o Direito é o “aperfei-
çoamento dos padrões de convivência” (LYRA FILHO, 1986, p.
307), no sentido da construção de relações sociais de liberdade
e equidade, o que implica no respeito à existência dos diversos
grupos e classes sociais como sujeitos coletivos capazes de insti-
tuir Direitos, ainda que não institucionalizados ou mesmo contra
legem; por outro lado, o autor compreende a liberdade num senti-
do mais alargado do que postulado pelo liberalismo político, haja
vista a inclusão dos espoliados e oprimidos, na afirmação da sua
79
liberdade, que nasce na rua e orienta uma nova práxis social, capaz
de aprofundar os sentidos da democracia e do exercício da cida-
dania, na luta contra as desigualdades tecidas pelas degenerações
dos poderes instituídos.
Nesse sentido, Lyra Filho, repetindo a tradição fomentada
por Marx, enfatiza que libertar-se é tarefa que se realiza na His-
tória, não abstratamente, nem individualmente, mas no conjunto
social que forma o todo da sociedade, por isso organização social da
liberdade. Não se trata da organização institucional da liberdade,
elaborada pelo Estado ou por outras instituições como a Igreja,
tampouco, de uma organização de classe, mas, da organização de
toda a sociedade em suas relações antagônicas, preponderando-se
aquilo que representar avanço no aprofundamento da liberdade de
todos e todas, por isso legítimo. Esse itinerário é o que delimitará
os espaços do Direito, já que a legitimidade dessa organização social
indica o caminho de construção da liberdade, através dos conflitos
instalados entre espoliados e espoliadores, oprimidos e opressores,
não se aceitando que o Direito seja apenas um mero instrumento
de dominação das classes e grupos detentores do poder político,
ou mesmo manifestações autoritárias dos espoliados e oprimidos.
Sendo assim, importa ressaltar que Lyra Filho não sustenta
uma concepção romântica do ser humano ou mesmo da socieda-
de, em que haveria a polarização entre bons e maus, determinada
apenas pela sua posição de classe. Tanto que o autor deixa claro
que aquilo que não se dispuser à construção da liberdade não-
-lesiva aos demais, não pode ser chamado de Direito, sendo o ver-
dadeiro Antidireito, o seu oposto. Esse, o critério que define aqui-
lo que, dentro do processo histórico, não compõe o Direito. Por
isso, deve haver “uma filtragem nas normas costumeiras e legais”
(LYRA FILHO, 1986, p. 312), tendo em vista que elas podem ge-
rar tanto “produtos autênticos” (LYRA FILHO, 1986, p. 312), que
indiquem o caminho da libertação e da equidade, como “produtos
80
falsificados” (LYRA FILHO, 1986, p. 312), já que o autoritarismo

e os fascismos também compõem o imaginário e os costumes de
grupos e classes sociais, manifestando-se socialmente nas situa-
ções mais diversas, orientados para fins, muitas vezes, desumanos.
Deste modo, Lyra Filho propõe, como afirmou José Geraldo
de Sousa Junior, uma “definição problemática e dialética em seus
pressupostos” (SOUSA JUNIOR, 2008, p. 116), em que o Direito
é em si a “positivação da liberdade conscientizada e conquistada
nas lutas sociais”, fundado nos “princípios supremos da Justiça
Social que nelas se desvenda” (LYRA FILHO, 2006, p. 88). E
a liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais não
é outra coisa senão a constituição de sujeitos coletivos de direi-
tos que, por meio de sua ação política, tencionam a ampliação
da cidadania, o aprofundamento da experiência democrática e o
descortinar de novos direitos.
Assim, lembra Lyra Filho, com apoio em Marx, que a es-
sência da mulher e do homem é a sua capacidade de libertação,
e esta se realiza quando ela e ele se conscientizam sobre quais as
circunstâncias da natureza e da sociedade os condicionam e à
medida que vai conquistando mais amplos e profundos graus da
liberdade não lesiva aos demais. A essência do Direito é, pois, a
mediação, preservação e ampliação, num processo dialético, des-
sas liberdades conquistadas.
Quando visualiza o Direito dentro do processo histórico-
-social mais geral, Lyra Filho sugere que “o aspecto jurídico do
processo é o que delineia a forma positivada, alcance próprio dos
princípios da práxis social justa e do controle social legítimo, com
a indicação das normas em que ele venha a se organizar, no mo-
delo atualizado e vanguardeiro de organização social da liberdade”
(LYRA FILHO, 2006, p. 87).
Essa visão do Direito como enunciação da legítima organi-
zação social da liberdade – liberdade conquistada no interior do
81
processo histórico, dialético e social, suas lutas e contradições –

desloca o ponto de vista do jurista da norma fria e abstrata, para
a sociedade concreta, dinâmica e plural, pois é nela mesma que
o Direito se constrói: nas ruas. Daí a denominação “O Direito
Achado na Rua”, a rua aqui, entendida enquanto metáfora do es-
paço público, o local, por excelência, de onde emergem as lutas
sociais e o Direito.
No mesmo sentido, o entendimento de Roberto Aguiar, para
quem, a partir dessa visão,
[...] o Direito passa a ser o locus onde as contradições,

as lutas, os jogos, os debates e as conquistas se dão. Ele
sai da condição de corpo normativo conservado criogeni-
camente para se tornar vivo, comprometido, ideológico,
simbólico e conforme as preocupações mais atualizadas
da filosofia, da ciência em geral e das ciências em particu-
lar (AGUIAR, Roberto, 2002, p. 51).
Essa concepção afasta, portanto, o mito da neutralidade en-

quanto pressuposto do pensamento científico, lastreando a com-
preensão de que é possível uma ciência engajada, militante e com-
prometida com a emancipação social e a libertação das mulheres e
homens das opressões sofridas.
Partindo dessa perspectiva teórica, José Geraldo de Sousa
Junior demonstrará que “o sentido que orienta o trabalho político
e teórico de O Direito Achado na Rua consiste em compreender
e refletir sobre a atuação jurídica dos novos sujeitos sociais”, para
que, por meio da “análise das experiências populares de criação de
direitos” seja possível:
1. Determinar o espaço político no qual se desenvolvem as

práticas sociais que enunciam direitos, a partir mesmo de
sua constituição extralegal, por exemplo, direitos humanos;
82
2. Definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de

elaborar um projeto político de transformação social e
elaborar a sua representação teórica como sujeito coleti-
vo de direito;
3. Enquadrar os dados derivados destas práticas sociais

criadoras de direitos e estabelecer novas categorias ju-
rídicas para estruturar as relações solidárias de uma so-
ciedade alternativa em que sejam superadas as condições
de espoliação e de opressão do homem pelo homem e na
qual o direito possa realizar-se como projeto de uma legí-
tima organização social da liberdade. (SOUSA JUNIOR,
1993, p. 10).
A partir desse itinerário, observa-se que O Direito Achado

na Rua propõe um novo esforço teórico às e aos juristas, já que sua
concepção impõe o reconhecimento de dimensões não considera-
das nas teorias tradicionais do campo jurídico, pelas características
conservadoras e restritivas que as fundamentam. Elaborado como
horizonte teórico possível para pensar a liberdade e a emancipação
humanas, O Direito Achado na Rua continua desempenhando o
papel de farol a iluminar o turvo mar que sucumbe à escuridão
da noite veloz dos dias presentes. Por isso, é ainda o espaço onde
se encontram utopias e esperanças, como ventos a soprar as velas
capazes de orientar uma nova prática social, institucional e profis-
sional de acadêmicos, juristas e militantes, conforme desenvolvido
no tópico seguinte.
83
1.3. O Direito Achado na Rua como Produto e

Enunciação de uma Nova Práxis no Direito
Nascido em meio à resistente beleza do cerrado, em uma
cidade caracterizada por um duplo projeto de poder e moderni-
dade, O Direito Achado na Rua emerge na Capital Federal para
constituir-se em um projeto de enunciação e práxis de uma nova
concepção de Direito: o Direito como liberdade. Ao apresentar-se
a partir de um enunciado nada convencional para os salões nobres
do direito, e afirmar-se por meio de uma nova concepção filosó-
fica, o projeto até hoje provoca em suas interlocutoras e interlo-
cutores ora instigantes, ora indignadas e temerosas reações, em
uníssono tom de curiosidade: em que consiste este tal O Direito
Achado na Rua?
A resposta não é fácil, mas vale a tentativa de explorá-la. Um
bom início de percurso compreensivo parece ser a mirada para a
sua própria concepção de Direito, fundada sobre uma práxis de
liberdade. “Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta,
que não há ninguém que explique, e ninguém que não entenda”.
Curioso e instigante, assim como na poesia de Cecília Meirelles,
O Direito Achado na Rua se expressa como a liberdade que lhe dá
fundamento. Inspira-se menos em tentativas de definição abstrata
e universal, que nas iniciativas de suas idealizadoras e idealizado-
res e dos sujeitos de direitos que o constroem na medida de uma
práxis essencialmente implicada na relação entre universidade e a
realidade social.
É desse modo que O Direito Achado na Rua pode ser com-
preendido como um projeto constituído desde uma múltipla pers-
pectiva epistemológica, orgânica e prática, emergindo assim, na
Universidade de Brasília, como fruto e enunciação de uma nova
práxis para o Direito.
84
1.3.1. Uma Dimensão Epistemológica

Desde uma perspectiva epistemológica, conforme já aborda-
do, O Direito Achado na Rua caracteriza-se, sucintamente, pela
alusão a um Direito que emerge dos espaços públicos, notadamen-
te a rua, “onde se dá a formação de sociabilidades reinventadas que
permitem abrir a consciência de novos sujeitos para uma cultura
de cidadania e de participação democrática” (COSTA; SOUSA
JUNIOR, 2008, p. 17). A rua, portanto, polêmico elemento que
dá nome e sentido ao projeto, constitui, aqui, metáfora de sentido
filosófico e poético.
Como filosofia, a rua designa o próprio significado ontológico
do espaço de criação e realização do Direito, conforme desvenda-
do por Lyra Filho, resgatado dos códigos, panteões e palácios para
ser finalmente apresentado e colocado à disposição do povo, sujei-
to histórico dotado de capacidade criativa, criadora e instituinte
de diretos (SOUSA JUNIOR, 2011). E neste ponto encontra a sua
expressão poética, também compreendida enquanto dimensão de
conhecimento, em interlocução e disputa com a afirmação hege-
mônica da ciência enquanto única e verdadeira forma de saber.
A rua emerge assim da poesia como referência a uma com-
preensão ontognosiológica da filosofia geral e jurídica (LYRA FI-
LHO, 1982c), extraída de um poema de Karl Marx traduzido por
Lyra Filho: “Kant e Fichte buscavam o país distante,/ pelo gosto de
andar no mundo da lua,/ mas eu tento só ver, sem viés deformante/
o que pude encontrar bem no meio da rua”. Neste sentido, aparece
também para afirmar o espaço político da participação popular:
Em Cassiano Ricardo (1944) no poema “Sala de Espera”:

‘[...] Mas eu prefiro é a rua. / A rua em seu sentido usual de
‘lá fora’./ Em seu oceano que é ter bocas e pés para exigir e
caminhar/ A rua onde todos se reúnem num só ninguém
85
coletivo./ Rua do homem como deve ser/ transeunte, re-

publicano, universal/ onde cada um de nós é um pouco
mais dos outros/ do que de si mesmo./ Rua da reivindica-
ção social, onde mora/ o acontecimento [...]. (COSTA;
SOUSA JUNIOR, 2008, p. 18).
Ainda desde uma perspectiva epistemológica, logo no volu-

me 1 da série “O Direito Achado na Rua”, é que José Geraldo
de Sousa Junior (1993b, p. 10) vem expressar as multicitadas três
dimensões que orientam a concepção e prática teórica e política
do projeto, anunciadas como proposta metodológica para a com-
preensão e reflexão sobre a atuação jurídica dos novos sujeitos
sociais, a partir da análise das experiências populares de criação
do Direito, identificadas pela 1) determinação do espaço político
no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos;
2) definição da natureza jurídica do sujeito, e elaboração da sua
representação teórica como sujeito coletivo de direito; e 3) enqua-
dramento dos dados derivados destas práticas sociais criadoras de
direitos, e estabelecimento de novas categorias jurídicas para que
o direito possa realizar-se como um projeto de legítima organiza-
ção social da liberdade.
De fato, estas três orientações inspiram-se e aprofundam a
noção filosófica lyriana que identifica na crise do real o elemen-
to de viragem paradigmática da concepção epistêmica do Direito,
exigindo da e do jurista uma atitude filosófica que alia o desven-
damento da realidade aparente com um conhecimento jurídico
compreendido de forma interdisciplinar e ética.
Neste sentido, Lyra Filho (1982c) apontava em sua inves-
tigação filosófica e de viragem paradigmática do Direito quatro
categorias, dentre outras, que devem compor o repertório episte-
mológico de O Direito Achado na Rua, sendo elas as noções de
ontognosiologia, ideologia, dialética e práxis.
86
Inspirada na ontologia marxiana, a investigação sobre o fe-

nômeno jurídico deve partir de uma perspectiva ontognosiológi-
ca, orientada pelo real, procurando por categorias analíticas que
expressem o Direito como formas do ser social concreto, em sua
emergência nas relações sociais, que, por seu turno, significam re-
lações de poder. Neste percurso, a investigação encontra e terá de
enfrentar o desvendamento da ideologia imanente às concepções
tradicionais de Direito, constituídas enquanto pensamento teó-
rico abstrato, mas que em sua entranha é reflexo das relações de
produção social da vida.
Para a contraposição entre uma compreensão ontognosio-
lógica do fenômeno do Direito e o embate com posturas ideoló-
gicas tradicionais, a atitude filosófica interdisciplinar recorre à
concepção dialética que identifica no movimento da realidade a
condição de possibilidade para uma compreensão do fenômeno
do Direito na história. E, por fim, tal atitude filosófica inspirada
e implicada na compreensão e transformação do real não pode-
ria acomodar-se em uma postura meramente contemplativa, de
modo que a categoria da práxis vem conferir-lhe um sentido de
validação da sua própria concepção filosófica, desenvolvida na
medida da fusão entre teoria e prática em um roteiro circular de
interação recíproca na realidade.
Eis o sentido epistemológico que orienta o projeto de O Di-
reito Achado na Rua, que emerge, portanto, no debate sobre o
Direito, para explicar e se posicionar diante das “crises de para-
digmas que permeiam a universidade, o conhecimento científico
e, em especial, o conhecimento jurídico” (COSTA; SOUSA JU-
NIOR, 2008, p. 23).
87
1.3.2. Uma Dimensão Orgânica e Prática

Tratar de O Direito Achado na Rua é considerar a sua prá-
xis. De fato, dentre as categorias epistemológicas de maior impac-
to e característica em sua atuação, é na atitude filosófica de um
pensar-agir implicado na compreensão e transformação da reali-
dade do Direito que melhor se define O Direito Achado na Rua.
Como explicitado por José Geraldo de Sousa Junior (2009),
umas das categorias essenciais da concepção do Direito como li-
berdade é a noção de sujeito coletivo. Coerente com a sua própria
concepção, a práxis de O Direito Achado na Rua se realiza e de-
senvolve na medida de uma dimensão orgânica, ou seja, a integra-
ção de um coletivo político-acadêmico que, na transição constitu-
cional para o regime político de enunciado democrático no Brasil,
se identifica com um projeto de transição paradigmática também
na concepção e prática do Direito na academia e na realidade.
De fato, esta dimensão orgânica crítica e engajada já podia
ser observada nos idos do ano de 1993, quando, na apresentação
do volume 2 da série “O Direito Achado na Rua”, José Geraldo de
Sousa Junior e Roberto Aguiar anunciavam os horizontes avista-
dos pelo projeto, compreendido como uma inovação acadêmica
originária da Universidade de Brasília (1993, p. 14):
Seja na consolidação de uma produção intelectual organi-

zada, configurando a autonomia de um pensamento jurí-
dico reconhecido pela relevância das teses que sugere, com
as características de Escola – a Nova Escola Jurídica; seja,
em consequência, na elaboração de linhas de pesquisa,
de docência e editorial, que estimulem a divulgação des-
te pensamento heterodoxo, não-conformista e crítico de
transformação do direito; o certo é que a trajetória de “O
Direito Achado na Rua” estruturou uma ampla rede de
intercomunicação, incrementando um sistema de trocas
88
intelectuais e de reflexão sobre práticas teóricas e sociais

acerca de experiências de criação de direito no Brasil.
É desse modo que O Direito Achado na Rua apresenta-se

como projeto que assume uma atitude não apenas crítica (episte-
mológica), mas engajada (orgânica), que compreende a universida-
de como o seu local de origem, mas não exclusivo, constituindo-se
enquanto ponto de partida para o desenvolvimento de uma nova
práxis no Direito realizada na medida da interação e diálogo com
os sujeitos coletivos de direitos, organizados comunitariamente,
em sindicatos e movimentos sociais.
Elemento de maior originalidade do projeto, portanto, é a
sua conexão com a intervenção na realidade do Direito, consti-
tuindo-se, assim, enquanto práxis histórica e de referência no que
diz respeito à educação a distância e à interação universidade e
sociedade, nacional e internacional. De fato, esta interação, que
assume verdadeiro ar de intencionalidade, já seria anunciada logo
no volume 1 da série, intitulado “Introdução Crítica ao Direito”,
notabilizada na forma de curso de educação a distância:
São os seguintes objetivos deste curso:
• Promover uma reflexão criativa do direito subsidiando os as-

sessores jurídicos populares e advogados de direitos humanos
em sua prática cotidiana, visando à democratização da justiça;
• Estabelecer uma identidade de intervenção, conferindo

vínculo institucional para uma prática profissional atual-
mente dispersa e desassistida;
• Trazer para a reflexão acadêmica a realidade de uma expe-

riência que deve se constituir, necessariamente, referência
para a definição de novas práticas docentes e de pesquisa.
(SOUSA JÚNIOR, 1993, p. 13)
89
De notar como as dimensões epistemológicas e prática dia-

logam já na origem dos objetivos do curso, ao aliar a reflexão cria-
tiva do Direito com o estabelecimento de uma identidade orga-
nizada de intervenção, ao passo em que realiza a interação entre
a academia e a sociedade em uma via de mão dupla: de um lado
se projeta enquanto formação de assessoras e assessores jurídicos
populares e advogadas e advogados de Direitos Humanos e, de
outro, se abre receptivamente para o aprendizado que estas práti-
cas emergentes vêm apresentar para a compreensão do Direito na
realidade sindical (vol. 2), agrária (vol. 3), da saúde (vol. 4), com
edição ampliada para a esfera internacional, reformulada e publi-
cada em língua espanhola (vol. 5), das mulheres (vol. 6), da justiça
de transição (vol. 7 – no prelo), e da assessoria jurídica popular
(ainda em perspectiva de elaboração editorial).
O curso de “Introdução Crítica ao Direito”, organizado até
aqui em oito volumes voltados para a educação a distância, nota-
bilizou-se como o meio pelo qual se propaga o projeto de O Direito
Achado na Rua, anunciando em sua concepção epistemológica,
em seus objetivos e metodologia de trabalho, uma nova práxis de
interação reflexiva entre teoria e prática, integrando a teoria crí-
tica do direito na luta por Direitos, ao passo em que integra a luta
por Direitos na teoria do direito.
Eis que surge uma nova postura de pensar-agir, reflexão-
-intervenção crítica e engajada na construção da justiça social e
da democratização da justiça. Nasce da crise da universidade e
dos padrões de conhecimento científico e jurídico, para repensar
estes paradigmas a partir de uma proposta de ensino, pesquisa e
extensão desenvolvidos em uma estratégia combinada de atua-
ção em perspectiva interdisciplinar e de referencial ético e crítico
para o Direito.
A iniciar por uma concepção crítica inserida na graduação
em Direito da UnB, alimentada pela oferta de disciplinas pro-
90
pedêuticas de introdução crítica e sociologia jurídica, além da

construção de um plano de disciplina originalmente ofertado na
graduação e pós-graduação em Direito e em Direitos Humanos
sob a plataforma denominada O Direito Achado na Rua. Ainda
junto ao Programa de Pós-Graduação em Direito da UnB, o pro-
jeto consolidou-se, há mais de uma década, como uma das suas
linhas de pesquisa.
Desde uma perspectiva político-pedagógica, o projeto este-
ve comprometido com a abertura da universidade para a efetiva
presença, ocupação e participação de setores da sociedade histo-
ricamente apartados do acesso à educação, em um processo de
ausências ativamente produzidas pela gestão e concepção acadê-
micas que encobrem, através de um discurso de excelência, uma
estrutura de colonialidade do saber vinculada à cultura de con-
centração do poder.
Em sentido contrário, O Direito Achado na Rua se fez his-
toricamente presente em iniciativas de projetos de especialização
construídos junto à Renap – Rede Nacional de Advogadas e Ad-
vogados Populares, e apoiou a construção das turmas especiais de
graduação em Direito para camponesas e camponeses, quilombo-
las e membros de comunidades tradicionais. Isto sem olvidar, por
suposto, o engajamento na conquista do sistema de ações afirma-
tivas de caráter social e étnico-racial na Universidade de Brasília,
em sua condição de paradigma para todas as universidades públi-
cas do Brasil, a partir do julgamento da ADPF 186 pelo Supremo
Tribunal Federal.
No que diz respeito à pesquisa, O Direito Achado na Rua
apresentou ao cenário brasileiro uma nova postura crítico-con-
ceitual e metodológica, realizando um diálogo interdisciplinar e
a tradução de outras disciplinas das ciências sociais, agrárias e da
saúde, dentre outras, para o campo da pesquisa em Direito.
91
Nestes termos, a pesquisa em direito ganha aporte empírico

e crítico até então quase inexistente no Brasil, em meio a uma
produção hegemonicamente fundada sobre um pressuposto de
neutralidade, e orientada para a manifestação de comentários e
opiniões pessoais sobre a legislação e a dogmática, “gerando efeitos
perversos na prática jurídica cotidiana, que se esconde atrás da
alegada neutralidade para implementar uma visão de mundo con-
servadora sobre a normatividade e as relações sociais” (COSTA;
SOUSA JUNIOR, 2008, p. 23).
Propondo a superação desta cultura e dos paradigmas de
investigação em Direito no Brasil, O Direito Achado na Rua
organiza-se em grupo de pesquisa vinculado à plataforma CNPq
desde o ano de 1987. Reivindica a pesquisa-ação como método
de recuperação das ausências produzidas na pesquisa em Direito,
e produz trabalhos científicos que se orientam por uma atitude
filosófica que busca descortinar as categorias do Direito do manto
ideológico do binômio jusnaturalismo-positivismo, descobrindo-as
na realidade histórica em sua manifestação ontológica na práxis
social (LYRA FILHO, 1982c, p. 154).
É nesses termos que O Direito Achado na Rua produz tra-
balhos científicos que operam um deslocamento dos sujeitos da
pesquisa em Direito – agora identificados nos movimentos sociais,
na advocacia popular, nas mulheres, entre trabalhadores rurais
sem terra, trabalhadores urbanos e catadores de resíduos sólidos,
por exemplo. Do mesmo modo, observa-se uma transformação do
objeto de pesquisa para novos temas, espaços e instituições onde
se reconhece o caráter de produção e aplicação do Direito – nota-
damente a rua, as áreas de reforma agrária, as ocupações de mo-
radia, os depósitos de resíduos sólidos, dentre outros espaços de
manifestação do pluralismo jurídico. Assim, verifica-se que o Di-
reito Achado na Rua vem inspirando a produção de pesquisa em-
pírica e crítica em Direito a partir de diversos institutos ligados ao
92
ativismo em Direitos Humanos e aos movimentos sociais, como,

por exemplo, a pesquisa intitulada “Mapa territorial, temático e
instrumental da assessoria jurídica e advocacia popular no Brasil”
(GEDIEL et al, 2011).
Desse modo, como elemento essencial da práxis de O Direito
Achado na Rua, aparecem os seus projetos de extensão universi-
tária que buscam “reconhecer e estabelecer comunicação entre a
universidade e o espaço político no qual se desenvolvem as práticas
sociais que enunciam direitos” (GEDIEL, 2014, p. 88). Fundados
a partir das suas noções epistemológicas, os projetos de extensão
também operam as mesmas transições paradigmáticas identifica-
das em relação à pesquisa, realizando o deslocamento dos sujei-
tos, espaços e instituições consideradas ambientes de produção
da justiça, para então desenvolver atividades de empoderamento
comunitário através da educação jurídica popular e assessoria ju-
rídica popular junto a comunidades marginalizadas e movimentos
sociais, além de projetos institucionais de projeção de capacitação
e informação sobre o Direito e a Justiça.
Assim a extensão se consolida como instrumento político no
desenvolvimento de habilidades e competências para uma edu-
cação jurídica democrática (TOKARSKI, 2009), operando em
uma via de mão dupla pela troca de saberes entre universidade
e sociedade, em uma relação onde “a sociedade ganha processos
de autonomia na sua luta emancipatória, e a universidade ganha
ao aprender com a comunidade formas de realização da justiça
social” (COSTA; SOUSA JUNIOR, p. 23, 2008). Inspirado nestes
paradigmas, O Direito Achado na Rua desenvolveu uma ampla
gama de experiências extensionistas ao longo dos vinte e cinco
anos de sua história, analisadas por Nair Bicalho (et al. 2010).
Como afirma a autora, os projetos de extensão de O Direi-
to Achado na Rua se orientam por uma concepção freireana de
educação como prática de liberdade, orientada por princípios de
93
diálogo, horizontalidade e, sobretudo, pela proposta de emancipa-

ção de sujeitos oprimidos que, neste processo de trocas de saberes
e experiências, passam a se reconhecer e a ser reconhecidos como
sujeitos de direitos (FREIRE, 1999), o que levou Boaventura de
Sousa Santos (2013, p. 333) a concluir:
De salientar ainda o projecto do Direito Achado na Rua,

que visa recolher e valorizar todos os direitos comunitá-
rios, locais, populares, e mobilizá-los em favor das lutas das
classes populares, confrontadas, tanto no meio rural como
no meio urbano, com um direito oficial hostil ou ineficaz.
Como se observa, O Direito Achado na Rua se consolidou ao

longo de sua história como uma proposta que surge na universida-
de para ganhar corpo e potência na medida da sua interação com
a sociedade organizada em torno da luta por Direitos. Desse modo,
a práxis de O Direito Achado na Rua acaba por se projetar para
outros campos de atuação-reflexão sobre o Direito na realidade,
para além dos limites da universidade.
Através de seus projetos, publicações, cursos, eventos, mili-
tância no campo da educação para os Direitos Humanos e com-
promisso com a superação das injustiças, O Direito Achado na
Rua inspira, aprende e conspira com diversos grupos, entidades,
coletivos autônomos, redes, movimentos sociais e outras expres-
sões da sociedade civil organizada na luta por Direitos no Brasil.
Seja através da educação popular com vistas ao empodera-
mento social e comunitário, seja como repertório político, concei-
tual e ideológico para o ativismo político e em Direitos humanos;
seja na formação de operadoras e operadores do direito das mais
diversas áreas e instituições, identificadas e identificados com uma
compreensão do Direito como liberdade, e da sociedade como fon-
te criativa e legítima de Direitos; seja, finalmente, na práxis da
advocacia popular, enquanto presença conceitual, referencial e
94
orgânica na Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares

– Renap, O Direito Achado na Rua se faz presente e emerge em
materiais didáticos, seminários, encontros de debate e deliberação,
em práticas de formação comunitária, de capacitação de quadros
de militância orgânica dos movimentos sociais.
É desse modo, enfim, que O Direito Achado na Rua se reno-
va como práxis de autoaprendizado e construção de uma cultura e
concepção que reconhece e compreende o Direito a partir da sua
emergência e afirmação no ambiente social, como enunciação de
princípios de uma legítima organização social da liberdade (LYRA
FILHO, 2006).
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99
PARTE II
2. A Fortuna Crítica de

História e Desenvolvimento
Carlos Inácio Prates27

Eneida Vinhaes BelloDultra28
Gianmarco Loures Ferreira29
Rafael de Acypreste30
O presente Capítulo deseja apresentar o percurso e o desen-

volvimento de O Direito Achado na Rua, desde sua perspectiva
epistemológica, associada ao pluralismo jurídico, passando pelo re-
sumo das principais ideias de sustentação teórica e chegando a sua
fortuna crítica. Em itens específicos deste capítulo será mostrado
também o arcabouço das principais críticas produzidas sobre O
Direito Achado na Rua dentro do espaço jurídico.
27 Mestre em Saúde Pública pela FIOCRUZ e Advogado da União.

28 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Direito da UnB e Advogada Popular.
29 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Direito da UnB e Procurador do
Estado de Minas Gerais.
30 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Direito da UnB e Advogado Popular.
101
2.1. O Percurso e o Desenvolvimento no

Âmbito Teórico
A década de 1980 foi fortemente marcada pelas expressões
críticas em relação ao direito estatal dogmático e excessivamente
positivado, predominante no Brasil. A luta pela abertura políti-
ca que o país via efervescer desde o golpe civil-militar de 1964
estimulava pensadoras e pensadores do Direito a desenvolverem
novas formulações teóricas.
Vale aqui citar alguns exemplos desse instigante período do
nascedouro de novas e outras expressões epistemológicas formula-
das: o Direito Alternativo e o Direito Insurgente.
O Direito Alternativo, segundo Wolkmer (2008, p. 187), sur-
giria no fim da década de 1980, quando nasce a disciplina Direito
Alternativo, na Escola da Magistratura do Rio Grande do Sul,
coordenada por Amilton Bueno de Carvalho. Além disso, começa
a desenvolver-se, em alguns tribunais, a prática que propunha o
Direito Alternativo em três grandes campos: 1) “Uso Alternati-
vo do Direito”, que significava a interpretação e uso das lacunas
emergentes das contradições do direito estatal; 2) “Positivismo de
Combate”, que buscava utilizar o direito positivo como arma de
combate, concentrando-se no que está na lei, mas não apresenta
efetividade; 3) “Direito Alternativo em Sentido Estrito”, que seria
o direito paralelo, emergente, insurgente, não oficial, que coexiste
com o estatal; importava para ele a existência de vários direitos,
desde que sigam preceitos plurais e democráticos.
A análise do Direito Alternativo foi também realizada por
Lédio Rosa de Andrade (1996), sistematizando esta experiência
como a queda concreta do mito da neutralidade da lei, que exigiria
apenas esforço exegético e a mudança para a perspectiva da “justi-
ça dos oprimidos”. Daí decorre que o aumento real da democracia
102
não se desenvolve pelo simples fortalecimento de um aparato for-

mal ou da construção abstrata de justiça.
Para Carlos Artur Paulon (1984), a demonstração das limi-
tações do positivismo ocorre na relação entre ideologia (liberdade
individual-burguesa) e o autointeresse para que possam ser cons-
truídas as vitórias parciais e temporárias de grupos insurgentes. O
uso alternativo do Direito ainda questionava a aplicação “neutra”
das juízas e dos juízes.
A segunda formulação epistemológica, surgida nos anos de
1980, foi o chamado “Direito Insurgente”. Tem como um de seus
principais expoentes o trabalho realizado pelo advogado popular
Miguel Pressburguer, que levantava algumas diferenças concei-
tuais em relação ao Direito Alternativo, questionando-se acerca
da alternatividade a qual realidade e de que direito se queria falar.
Para Pressburguer (1990), o Direito Insurgente visava a: 1) desmas-
carar o caráter predominantemente perverso do direito codificado,
ao mesmo tempo em que luta por um direito da vontade libertada
das pessoas e grupos; 2) construir a ideia de que quem sofre opres-
são também precisam ter seus direitos, presentes nas leis vigentes,
preservados, como ocorre para a classe dominante (aqui confere
eminência à advocacia popular, à frente desta insurgência de po-
bres na conquista da igualdade e da justiça); 3) um novo Direito,
criado pelas pessoas oprimidas, de acordo com seus interesses e
necessidades, inserido ou não nas leis vigentes, para ser formaliza-
do e ter o alcance da dignidade do direito vigente; 4) entender a
advocacia do movimento popular como abertura de caminho para
as leis vigentes e para o Judiciário, desvendando a linguagem e a
simbologia das leis a vítimas da opressão e a serviço delas.
Para Miguel Baldez (2010, pp. 195-196), outro expoente des-
ta linha, o Direito Insurgente aparece como tentativa de supera-
ção da ideologia burguesa da igualdade perante a lei e
103
[...] é conceito mais amplo e subordinante das ações alter-

nativas, de uso (alternativo) ou propriamente dita (direito
alternativo). Conceito que não pode confinar-se nas es-
peculações e no ensaismo do mundo acadêmico, cuja im-
portância não deve, porém, ser minimizada, este conceito
de direito insurgente encontra sua razão de ser nas lutas
concretas da classe trabalhadora e na crítica permanente
às estruturas da sociedade capitalista.
Ainda segundo Baldez (2010, p. 203), a “luta da classe tra-

balhadora pode e, às vezes até deve, passar pelo campo do legis-
lativo, ou do executivo, ou do judiciário, mas os bons resultados
eventualmente obtidos em tais espaços não podem ser tomados
como vitórias finais e efetivas”. Diante disso, não se deve ter ilusão
em relação a essas estruturas, uma vez que acabam funcionando
também como locais de dispersão dos conflitos de classe. Conclui
ainda que Direito Insurgente é ação e expressão jurídico-política
das lutas concretas da classe trabalhadora, ação enquanto pressu-
põe movimento, e expressão em suas manifestações efetivas: ou na
resistência organizada à sentença injusta, ou nos conselhos popu-
lares, ou na elaboração interna das comunidades subalternizadas
ou na sentença contra a lei injusta, proferida pelo juiz democrata.
Na verdade, sob qualquer tipificação, Direito contra a ordem bur-
guesa. Insurgente, portanto.
Nesse sentido, uma prática insurgente significa rompimento
com a ideologia classista. Nega a ideia de que o direito é o mesmo
para todas as épocas e lugares, devendo ser aplicado indistinta-
mente, sem levar em conta as grandes diferenças sociais, econômi-
cas e culturais de classe, tanto aos interesses dos possuidores como
de despossuídos.
As duas expressões aqui, brevemente, apresentadas são dois
contemporâneos teóricos e práticos de O Direito Achado na Rua,
elaborados na perspectiva crítica ao direito dogmático e positivista
104
predominante. Cumpre indicar que a localização de todas essas

formulações no campo do Direito está mais especificamente na
Sociologia Jurídica, muitas vezes usando como fonte as referên-
cias extraídas da Tese de Doutorado do Professor José Geraldo
de Sousa Júnior, intitulada “Direito como Liberdade: O Direito
Achado na Rua. Experiências Populares Emancipatórias de Cria-
ção do Direito”, defendida em 2008 na Faculdade de Direito da
Universidade de Brasília.
Em seu livro, “A Sociologia do Direito no Brasil: introdução
ao debate atual”(1993, p.33), Eliane Junqueira pontua a caracte-
rização da crítica sociológica, focalizando que “o Brasil participa
desta ‘onda crítica’ principalmente através da Nova Escola Jurídi-
ca Brasileira (NAIR)”. A autora completa que
Paralelamente às ideias produzidas pelos movimentos crí-

ticos francês e norte-americano, surgem no Brasil alguns
movimentos de caráter antidogmático – dentre os quais
se destacam a ALMED [Associação Latino-americana de
Metodologia do Ensino do Direito] e o NAIR – , que pro-
curavam substituir os paradigmas jurídicos tradicionais.
Nesse contexto, O Direito Achado na Rua, assim nomina-

do para dar sistematização ao seu humanismo dialético, se situa
e consolida progressivamente, como disse Sousa Júnior (2008a,
p. 98): (...) “Pretende-se, em verdade, a construção de uma nova
ordem jurídica estatal, mais justa, porque tendo por referência os
direitos humanos e as demandas dos segmentos marginalizados”.
Para em seguida destacar que “é inegável que esta vertente vem
ganhando espaço no meio acadêmico, que através de pesquisas-
-ação (principalmente as realizadas pelo Núcleo de Estudos da Paz
e Direitos Humanos, da Universidade de Brasília-UnB) (...)” (idem).
A seguir serão expostas algumas referências teóricas que
articulam O Direito Achado na Rua no âmbito do pluralismo
105
jurídico e as principais ideias que sustentam sua formulação epis-

temológica e prática.
2.1.1. A Partir dos Campos do Pensamento Crítico

do Pluralismo Jurídico
Conforme destaca Wolkmer (2001), o pluralismo jurídico é
conceituado com diversidade de modelos e autorias, desde con-
servadores até radicais. No entanto, há como ponto de conver-
gência de todo pluralismo jurídico a negação de que o Estado
seja o centro único do poder político e a fonte exclusiva de toda
produção do direito.
Nesse sentido, O Direito Achado na Rua pode ser inserido
na perspectiva do pluralismo jurídico (ALBERNAZ; WOLKMER,
2013), ao adotar a supremacia de fundamentos éticos, políticos e
sociológicos sobre critérios técnicos, formais e positivistas. Daí de-
corre a constatação de que o aparato de regulação estatal, liberal
positivista e a cultura normativista lógico-formal são incapazes de
restaurar a estabilidade da ordem constituída diante dos conflitos
do sistema. Por esse motivo, põe-se como desafio questionar, re-
pensar e reconhecer as mais diversas e crescentes manifestações
normativas não estatais (informais), trazidas pelos novos sujeitos
coletivos de direito (organizações e movimentos sociais).
Antonio Carlos Wolkmer (1994, pp. 190-191 e 215) ao fazer
a revisão histórica do problema do pluralismo jurídico, resenha as
formas de apropriação e desenvolvimento do conceito:
Seguindo o ‘juridicismo dialético’ de Roberto Lyra Filho

e as investigações do pluralismo legal de Boaventura de
S. Santos, José Geraldo de Sousa Júnior destaca-se, hoje,
como um dos estudiosos brasileiros mais envolvidos com
a implementação de um projeto empírico de pluralismo
106
jurídico popular. Suas preocupações teórico-práticas inci-

dem na análise e no resgate de determinados temas como
a anomia, poder popular, movimentos sociais, pluralidade
de ordenamentos e dualidade de poderes” (...) Com efeito,
o empenho do autor é demonstrar a relação entre a con-
dição social de sujeitos populares e sua luta por reparar
carências e injustiças. O que se infere é que a apreciação
político-sociológica pode, perfeitamente, ‘precisar que a
emergência do sujeito coletivo opera num processo pelo
qual a carência social é percebida como negação de um
Direito que provoca uma luta para conquistá-lo.
A dimensão pluralista em que está inserido o sentido do Di-

reito passa a ser campo de transformação paradigmática, seja pelo
reconhecimento da multiplicidade das pessoas a que se destina e a
quem deve servir, pela variedade de suas fontes (que indicam con-
teúdos diversos) e pelos modos diferentes de legitimar os saberes
e os conhecimentos. Esse estatuto epistemológico formado torna a
expressão jurídica legitimada pela sua força social e teórico-prática.
2.1.2. Ideias de Sustentação do Projeto O Direito

Achado na Rua
Diferentemente da abordagem mais tradicional do direito, O
Direito Achado na Rua pretende se inserir no âmbito da ciência
jurídica antidogmática. Isso porque a verdade teórica posta de for-
ma dogmática fere a possibilidade da construção democrática do
direito e afasta a manifestação legítima concreta que precisa ter o
Direito. Assim, diante do complexo fenômeno da sua prática, não
se justifica restringir o conhecimento do Direito ao discurso de um
grupo seleto que elabora a chamada dogmática.
Por isso, O Direito Achado na Rua visa à superação da se-
paração entre teoria e prática. Busca contrapor-se à concepção
107
tradicional que faz uma separação entre um momento no qual ha-

veria a elaboração teórica sobre o direito – sobretudo na forma
dogmática – e um momento no qual é feita a aplicação do direito,
ambos completamente separados um do outro. Para tanto, propõe
que se desloque o olhar para as diversas fontes do Direito, saindo
do mundo abstrato para o da sociedade concreta, desigual e con-
traditória, reconhecendo o espaço político no qual se desenvolvem
as práticas sociais também como enunciadoras de direitos. Como
reforça Roberto Aguiar (2002) e também Monica Molina: “o di-
reito passa a ser o lócus onde as contradições, as lutas, os jogos, os
debates e as conquistas se dão” (MOLINA, 2002, pp. 31-32).
Como Roberto Lyra Filho destacava, o Direito não está ape-
nas nas expressões positivadas. Esse é o problema da concepção
juspositivista, que se mostra essencialmente legalista, na medida
em que foca sua atenção apenas nas formas produzidas pelo Esta-
do. O Direito é um processo global e sua própria resultante. As-
sim, O Direito Achado na Rua reconhece o caráter político da
origem normativa, inclusive como um processo que não é uno,
nem neutro, embora estatal. Decorre ele das tensões sociais e de
interesses diversos, também nos seus processos e mecanismos de
elaboração, sendo as normas instrumento para realizar o Direito.
Esse é o traço mais saliente desse conhecimento jurídico
crítico: o desaparecimento da ideia de neutralidade do Direito.
Afinal, esta pseudoneutralidade sempre serviu à perpetuação de
estruturas de exclusão econômico e social de parcelas majoritárias
da população (FÉLIX, 2006). Como denuncia Lyra Filho, o pen-
samento jurídico tradicional sempre quer “tomar as normas como
Direito e, depois, definir o Direito pelas normas, limitando estas
às normas do Estado e da classe e grupos que o dominam” (1982,
pp. 118-119).
Como alternativa, O Direito Achado na Rua volta-se para
uma concepção jurídica de transformação social, rejeitando as
108
imagens incompletas e falsas do fenômeno jurídico, derivadas de

paradigmas tradicionais (JUNQUEIRA, 1993). Dois elementos,
ignorados pela matriz positiva, entram como essenciais a esta nova
apreensão da realidade jurídica: a educação e a prática jurídicas.
Por meio da educação jurídica, a Universidade tem que es-
tar atenta à leitura da realidade social, criando novas categorias e
identificando novas demandas: sociais, de novos sujeitos, tecnoló-
gicas, éticas, técnicas, de especialização, de novas formas organi-
zativas do exercício profissional, de efetivação do acesso à justiça,
de refundamentação científica e de atualização dos paradigmas.
É na formação de juristas que se consolida a “versão oficial” do
Direito. Já pela prática, a assessoria jurídica se apresenta como
seu principal instrumento mediador. Daí a importância dada aos
projetos de extensão e às experiências práticas que serão posterior-
mente detalhadas neste e ao longo do capítulo 3.
A regulação jurídica da vida social, a partir de uma lógica
dogmática, codificante e baseada em crenças ideológicas normati-
vistas, cristalizadas em um intenso e imenso repertório de lugares
comuns31, supostamente isenta de referências axiológicas, concre-
tiza um projeto de Modernidade excludente e concentrador, além
de associar a funcionalidade do Direito para a gestão mais buro-
cratizada do Estado.
O Direito Achado na Rua, ao articular com o pensamento de
Lyra Filho (1995) em “O que é Direito”, não se resume ao modelo
de uma sociologia da estabilidade com as normas da cultura do-
31 Expressão amplamente usada por diversos autores, inclusive na obra de Luis Alberto
Warat que reflete uma consequência que o projeto de Modernidade nos causou,
reduzindo ideias e conceitos ao limite de pensar e agir por subjugação e mera
repetição. Vale citar a referência usada por Pierre Bourdieu em entrevista concedida
ao Le Monde para mencionar a aceitação inconsciente dos lugares comuns, no
sentido de Aristóteles: “noções ou teses com as quais se argumenta, mas sobre as
quais não se argumenta”. (Contrafogos – táticas para enfrentar a invasão neoliberal.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.)
109
minante para formação do consenso que prende o controle social,

onde a legitimidade é presumida e não construída. Também supe-
ra o modelo de uma sociologia do conflito, em que as tensões ge-
ram desestabilidade, e o controle social passa a ser repressivo. Isso
porque, ao mesmo tempo, o jurídico como conceito não neutro,
como fenômeno que alberga interesses conflitantes da sociedade
concreta – comunidade histórica – passa a ser vivo, dinâmico para
enfrentar as contradições da sociedade.
Ao se propor a articular teoria e prática, O Direito Achado na
Rua lida com o aprofundamento do tratamento dialético, para en-
quadrar os dados derivados das práticas sociais criadoras de direitos
e estabelecer novas categorias jurídicas para estruturar as relações
solidárias de uma sociedade. Visando à superação das condições
de espoliação e de opressão do ser humano pelo ser humano, o
Direito pode realizar-se como um projeto de “legítima organização
social da liberdade”, uma ideia de processo histórico, presente na
síntese jurídica de Lyra Filho, trazida com o modelo Dialético. No
processo histórico, as lutas contrárias não tendem nem ao consen-
so decorrente da cultura dominadora, nem a exposição apenas do
conflito, mas à construção de uma reflexão dialética dessa reali-
dade (LYRA FILHO, 1995, p. 71). O Direito é a enunciação dos
princípios sociais para formulação da liberdade e igualdade.
A ideia do humanismo de Lyra Filho, não como exaltação do
ser em si, mas de restituir a confiança das pessoas (oprimidas) para
serem protagonistas ativas de sua existência e de seu destino, está
presente em O Direito Achado na Rua, que reconhece um novo
estatuto epistemológico crítico do Direito, atento à complexidade
socioeconômica que dinamiza os momentos históricos e que exige
reflexão sobre os fenômenos jurídicos reais, para convivência de
uma cultura de cidadania e de participação democrática.
Portanto, O Direito Achado na Rua vê o Direito como
instrumento de transformação da realidade jurídica vigente, no
110
sentido de atender a demanda de direitos da sociedade e, em

especial, dos novos movimentos sociais. Realça o protagonismo
da cidadania ativa, em substituição do sujeito abstrato por novos
sujeitos de direito.
Para Sousa Júnior (2008, p. 5), entre os objetivos centrais
da linha de pesquisa e do curso organizado na Universidade de
Brasília, destacam-se o de “definir a natureza jurídica do sujeito
coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação
social e elaborar uma representação teoria como sujeito coletivo
de direito”. São sujeitos emergentes que realizam sua subjetividade
jurídica no coletivo, capazes de: a) elaborar um projeto político de
transformação/reivindicação social e; b) tratar a sua representação
como sujeito coletivo perante o direito (2008, p. 34).
Marilena Chauí (1995a), no prefácio ao livro de Eder Sader,
“Quando Novos Personagens Entraram em Cena”, e na XIII Con-
ferência Nacional da Ordem dos Advogados, realizada em Belo
Horizonte, em 1990, propõe:
A cidadania ativa é a que é capaz de fazer o salto do in-

teresse ao direito, que é capaz portanto de colocar no so-
cial a existência de um sujeito novo, de um sujeito que se
caracteriza pela sua autoposição como sujeito de direitos,
que cria esses direitos e no movimento da criação desses
direitos exige que eles sejam declarados, cuja declaração
abra o reconhecimento recíproco. O espaço da cidadania
ativa, portanto, é o da criação dos direitos, da garantia
desses direitos e da intervenção, da participação direta no
espaço da decisão política.
Também posta a discussão de cidadania ativa trazida por

Marilena Chauí no seu “Convite à Filosofia” (1995b), está defen-
dida a experiência e vivência da democracia como ambiente de
criação de direitos, aberta a conflitos, disputas e antagonismos,
111
com protagonismos dos sujeitos. Nessa disputa, está o desafio de

repensar a representatividade para além dos modelos de partidos
políticos, sustentando a ideia da efetiva democratização, através
da ampliada e qualificada participação da sociedade civil e dos
movimentos sociais, em relação ao Estado.
2.2. A Fortuna Produzida pelo Direito

Achado na Rua
2.2.1. Descrição: Graduação, Pós-graduação,
Publicações, Experiências de
Extensão, Pesquisas
Um marco temporal para o nascimento de O Direito Achado
na Rua é situado em 1987, como um curso à distância, produzido
pelo Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos – NEP
e pelo Centro de Educação Aberta, Continuada a Distância da
UnB32, todo baseado na concepção da Nova Escola Jurídica Brasi-
leira – NAIR, proposta pelo professor Roberto Lyra Filho33.
Já no ano de 2008, em fase de compilação sobre as produções
que buscam como referencial O Direito Achado na Rua, Sousa
Junior (2008, p. 52) ressalta que as referências “(...) dão conta de
uma abertura interdisciplinar conjugada a um trânsito de diálogos
interinstitucionais e acadêmicos”. Este diálogo pode ser captado
em pelo menos três âmbitos:
a) de presença, ainda que indireta, na reflexão de vários

pesquisadores e pesquisadoras, marcada pelos agradeci-
mentos anotados em suas dissertações e teses;
32 Atual Centro de Educação a distância – CEAD-UnB.

33 O detalhamento da proposta já foi apresentado no capítulo I.
112
b) o de interlocução, marcado pela partilha de ideias e ca-

tegorias comuns, igualmente anotados em dissertações
e teses e;
c) em alguns casos, nas respectivas publicações e no de-

corrente do processo de criação comum, anotado do
mesmo modo, ou seja, em dissertações de cujas orienta-
ções participei.
De fato, mais de vinte e cinco anos depois este projeto man-

tém-se vivo e pulsante, contando, atualmente, com 30 (trinta)
pesquisadores e pesquisadoras e 7 (sete) estudantes vinculados ao
grupo de pesquisa na plataforma do CNPq.
Os frutos colhidos ao longo destes anos são incomensuráveis,
seja pela formação direta dada a inúmeros estudantes, seja pelos
debates suscitados em diversas searas. Numa tentativa de quantifi-
car este legado, é possível apontar referenciais que contribuem para
o entendimento da fortuna crítica de O Direito Achado na Rua.
Nesse sentido, a Coleção “Introdução Crítica” é a primeira
a ser lembrada, com obras abrangendo a própria discussão do que
é O Direito Achado na Rua34, seguido pelo direito do trabalho35,
passando pelo direito agrário36, à saúde37, aos direitos da mulher38
e seguindo em direção à justiça de transição39. Em cada volume,
professores, professoras, estudantes e integrantes dos movimen-
tos sociais contribuíram com discussões e artigos sobre diversos
34 O Direito Achado na Rua – Introdução Crítica ao Direito, volume 1, 1987.

35 O Direito Achado na Rua – Introdução Crítica ao Direito do Trabalho, volume 2, 1993.
36 O Direito Achado na Rua – Introdução Crítica ao Direito Agrário, volume 3, 2002.
37 O Direito Achado na Rua – Introdução Crítica ao Direito à Saúde, volume 4, 2008.
38 O Direito Achado na Rua – Introdução Crítica ao Direito das Mulheres, volume 5, 2012.
39 No prelo.
113
aspectos da temática de cada obra. A coleção tomou proporções

internacionais na temática de saúde, que foi produzida também
em espanhol, em parceria com a Organização Pan-Americana de
Saúde – OPS e Organização Mundial de Saúde – OMS, com te-
mas específicos do interesse da comunidade latino-americana40.
No âmbito da academia, está presente na pós-graduação e,
também, na graduação, sendo a temática oferecida como disciplina
de Prática e Atualização do Direito 1, na Faculdade de Direito da
UnB. Estudantes têm oportunidade de discussão de questões para
formação do pensamento crítico, em 5 blocos, divididos em (1) in-
trodução crítica ao direito; (2) Universidade para quê?; (3) movi-
mentos sociais; (4) gênero e direito e (5) direito à cidade e ao campo.
Com isso, as e os estudantes passam a ter contato desde cedo
com a crítica proposta pelo O Direito Achado na Rua, o que tem
resultado numa crescente produção de dissertações e teses41, sen-
síveis aos problemas da sociedade brasileira. E tal tem-se dado não
só na Faculdade de Direito da UnB, mas também na criação do
programa de pós-graduação em Direitos Humanos, pelo Centro de
Estudos Avançados Multidisciplinares – CEAM, na UnB, além da
influência em outras instituições42.
O Direito Achado na Rua possui ligação com as experiên-
cias de prática jurídica e assessoria cidadã43. Vale a menção à luta
40 El derecho desde la calle – Introducción Critica al Derecho a la Salud, 2012.

41 Levantamento preliminar no sítio eletrônico da UnB, aponta a existência de 27
dissertações e5 teses. Entretanto, sabe-se que este número é muito maior, se somadas
as orientações dos professores vinculados à linha e a influência direta das obras de
Roberto Lyra em diversas dissertações e teses nos programas de Pós-graduação da
UnB e de outras Universidades.
42 Ver, com detalhes, os projetos em outras instituições, no próximo capitulo.
43 Para uma descrição completa das experiências aqui referenciadas ver: “O Direito
Achado na Rua: 25 anos de experiência de extensão universitária”. Disponível
em:<http://odireitoachadonarua.blogspot.com.br/2013/06/o-direito-achado-na-
rua-25-anos-de_6496.html> Acesso em 16.05.2014.
114
pela fixação do acampamento da Telebrasília, nos anos de 1990,

em que o Núcleo de Prática Jurídica atuou junto à comunidade,
não só para uma compreensão mais ampla do que seria o direito à
moradia, mas também para a própria regularização da propriedade
em benefício de inúmeras famílias.
Também é referência a Rede de Defesa dos Direitos Huma-
nos em Ceilândia (SOUSA JUNIOR, 1998a), nos idos de 1997,
que buscou mapear as organizações civis e estatais da cidade, for-
necendo um banco de dados que facilitou o desenvolvimento de
trabalhos com a comunidade. Deve-se ressaltar que os auxiliares
e as auxiliares da pesquisa foram estudantes da disciplina Direitos
Humanos e Cidadania do NEP/CEAM e essa experiência consta
relatada no livro Ceilândia: mapa da cidadania (MACHADO, Ma-
ria Salete Kern. SOUSA, Nair H. Bicalho de. 1998. Ministério da
Justiça, Faculdade de Direito/UnB).
A coluna semanal que O Direito Achado na Rua teve no
jornal Tribuna do Brasil (Brasília), também aproximou a academia
do público em geral com centenas de artigos de autoras e autores,
a maior parte sendo estudantes, tanto da graduação, quanto da
pós-graduação, que respondiam questões a partir de demandas
formuladas nos balcões de atendimento do Núcleo de Prática Ju-
rídica da Faculdade de Direito da UnB. Muitos desses textos es-
tão inseridos no livro A Prática Jurídica Na Unb: Reconhecer Para
Emancipar vol.1 (2007), organizado pelos professores José Geraldo
de Sousa Junior, Alexandre Bernardino Costa e Mamede Said
Maia Filho, editado pela Faculdade de Direito da UnB.
Também O Direito Achado na Rua participou do projeto
Observatório da Constituição e da Democracia, concebido pelo
Grupo de Pesquisa Sociedade, Tempo e Direito de forma asso-
ciada e que publicava um periódico denominado Constituição &
Democracia ali apresentando expressão livre do pensamento de
pesquisadoras e pesquisadoras ligados aos grupos, bem como dis-
115
punha, em cada volume, da coluna subscrita por Boaventura de

Sousa Santos, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de
Coimbra, que atualizava sua interlocução com o Brasil, inclusive
com pesquisas da UnB e de outros centros de estudos brasileiros e
também com as organizações dos movimentos sociais.
A garantia do direito à educação junto à comunidade de
Tororó, em 2005, foi também outra conquista, com participação
orgânica de integrantes do grupo O Direito Achado na Rua, por
meio do qual se buscou alternativas para o efetivo funcionamento
do programa de educação para jovens e adultos, ao mesmo tempo
em que se instalavam círculos de cidadania, inspirados nos círcu-
los de cultura de Paulo Freire.
Também vale lembrar a capacitação de atores sociais no Dis-
trito Federal e no Estado de Goiás, alinhado ao Plano Nacional
de Educação em Direitos Humanos44, com a formação de cerca de
500 (quinhentos) atores sociais, representantes da sociedade civil
organizada, residentes em comunidades caracterizadas pela vul-
nerabilidade social, auxiliando-os a atuarem como agentes mul-
tiplicadores capazes de assumir projetos na área da educação em
direitos humanos e em temas de educação popular.
Por fim, não se pode deixar de citar as duas experiências
extensionistas atualmente articuladas pelo O Direito Achado na
Rua: a Assessoria Jurídica Popular – AJUP Roberto Lyra Filho e
as Promotoras Legais Populares, as quais serão descritas de forma
mais aprofundada no capítulo III deste livro.
A AJUP Roberto Lyra Filho trabalha com movimentos so-
ciais e organizações populares em perspectiva multidisciplinar,
não se limitando a estudantes de direito, mas com ênfase especial
44 A íntegra do Plano pode ser encontrada na página eletrônica: http://www.dhnet.

org.br/dados/pp/edh/br/pnedh2/pnedh_2.pdf ou no link file:///C:/Users/DELL/
Downloads/plano_nacional.pdf
116
na educação popular, assessoria jurídica, urbanismo, questões fun-

diárias e ambientais, entre outros.
Conforme ressalta SANTOS (2007a, p. 39), as assessorias
jurídicas populares, como a AJUP Roberto Lyra Filho, distin-
guem-se dos escritórios modelos, por apresentar uma “forma de
assistência e de assessoria jurídica atenta aos conflitos estruturais
e de intervenção mais solidária e mais politizadas”, voltando-se
para a defesa dos direitos coletivos, em articulação com movi-
mentos sociais, e, com isso, tornando a justiça mais próxima às
cidadãs e cidadãos.
No projeto Promotoras Legais Populares, também retratado
com maior ênfase e detalhamento da experiência no capítulo 3 a
seguir, a formação de lideranças femininas em conjunto com es-
tudantes de graduação, visa a repensar os conhecimentos tratados
dentro do ambiente acadêmico de forma crítica e preparar para
um futuro de exercício profissional mais sensível às necessidades
do povo e à superação das desigualdades de gênero.
Na Série Pensando o Direito: observatório do Judiciário: mo-
delos experimentados de acesso à justiça (BRASIL, 2009), fez-se
o estudo de caso das PLPs como “um espaço que ao mesmo tempo
inova na gestão dos conflitos sociais pela linguagem do direito e
impulsiona o fortalecimento de redes e movimentos sociais para a
recriação coletiva do sentido de Justiça”.
Tais projetos, aqui expostos de forma sucinta, serão detalha-
dos no próximo capítulo.
2.2.2. Articulação com Outros Espaços e Instâncias

Não só no Brasil houve acolhimento ao projeto do Direito
Achado na Rua, sintomaticamente incorporado em programas de
ensino formal e operando como instrumento crítico de introdu-
117
ção ao estudo do direito. Também em outros países o projeto vem

sendo difundido.
Sousa Júnior (2008, p. 24) elenca trabalhos publicados fora
do país que fazem referências explícitas à proposta de O Direito
Achado na Rua e salienta que (2008, pp. 91-92):
Também em outros países vem o projeto sendo difundi-

do. Depois de figurar como tema de um dos comitês de
pesquisa do XII Congresso Mundial de Sociologia, rea-
lizado em Madrid, em 1990; foi objeto de uma resenha
de Newsletter, vol. XXVI, nº 2/3, de IPRA – International
Peace Research Asociatino, com o título People’s Law of the
Streets. Antes na França, Andre-Jean Arnaud, então di-
retor do Instituto Internacional de Sociologia Jurídica de
Onati, publicou uma recensão no nº 9 de Droit et Societé,
editada em Paris e publicada de 1926 (sic) (...) Maria Célia
Paoli,professora do departamento de Sociologia da USP
(...) em Citizenship Inequalities and Democracy: The Ma-
king of a Public Space in Brazilian Experience (1990) (...) Na
França, Andre-Jean Arnaud, além da resenha já indicada,
anota em seu texto “O Jurista no Alvorecer do Século XX
(1987) a emergência do direito na rua.
Registra, ainda, Sousa Júnior (2008, p. 94) que:
[...] aparece o registro do NEP no World Directory of Hu-

man Rights Research and Training Institutions da UNES-
CO (1992) e na 2ª edição do World Social Science Infor-
mation Directories já se destacava tanto a publicação como
o curso O Direito Achado na Rua entre os seus eventos
(p. 77 e, na 3ª Edição de 1995, p. 50)” e ressalta que “Da-
niel Cefai, em Métamorphoses du Champ Jurídico – Judi-
ciaire et Transition Démocratique, publicado em Problèmes
d’Amérique Latine – SpécielBrésil, la Documentation Fran-
çaise, Paris, alude a ‘Formes de conestation du droit et de
118
la justice’ (...) ‘Les critiques les plus agument e es sont celles

d’universitaries de différent organismes: (...) Group d’études
pour la paixel les droits de l’homme (..) et dans l’ouvrage col-
lectif NEP-CEAD, o direito achado na rua, Un. Brasília,
1989, destine aux comissions des droits de l’Homme et aux
comités d’aide juridique populaire.
Ainda em plano europeu, Boaventura de Sousa Santos tor-

nou-se parceiro e apoiador de vários projetos desenvolvidos pelo O
Direito Achado na Rua, registrando que já fazia assento da contri-
buição em texto que discute a transição “Da Ideia de Universidade
à Universidade de Ideias” (1994, p.180-181), seguindo por variadas
expressões de trabalhos conjuntos, sendo os mais recentes relacio-
nados à revolução democrática da justiça (SANTOS, 2007b).
2.3. A Produção Crítica sobre o Direito

Achado na Rua
Fortuna crítica é a designação para todo o conjunto de crítica
acadêmica já feita, escrita e publicada sobre determinada obra ou
marco teórico. Na multirreferida tese de José Geraldo Sousa Júnior
(2008), encontram-se várias referências sobre a fortuna crítica rela-
cionada ao trabalho do autor e do O Direito Achado na Rua.
Devido ao reconhecimento e diálogo que o trabalho dos
professores José Geraldo de Sousa Júnior e Alexandre Bernardino
Costa tem desenvolvido – dentre outros expoentes (seja em livros,
revistas, jornais, conferências, Universidades, no Brasil e exterior,
durante mais de vinte e cinco anos) –, pode-se dizer que este cam-
po de estudo se tornou uma referência consolidada a partir de uma
teoria crítica e sociológica do Direito.
Para este trabalho, não é possível trazer o conteúdo completo
das citações. Porém, o Grupo Diálogos Lyrianos disponibiliza na
119
sua página eletrônica45 o conteúdo integral, conforme várias mo-

dalidades de abordagem.
Procurou-se inicialmente colacionar aquelas críticas com co-
mentários epistemológicos, que apontam para o reconhecimento
da cientificidade deste campo, seu objeto e método de estudo, sua
classificação e relação com outros campos do conhecimento. Num
segundo momento, são expostas análises sobre algumas críticas ao
O Direito Achado na Rua, a partir da leitura feita pela autora e
pelos autores deste Capítulo.
2.3.1. Apresentação Histórica das Referências nas

Diversas Dimensões
Há várias referências que podem ser consideradas amisto-
sas. Sousa Júnior (2008, p.28) cita que: “Numa perspectiva que
articula sua matriz teórica à concepção de O Direito Achado na
Rua, podem ser anotados os comentários de Maria Célia Paoli,
da Universidade de São Paulo, referindo-se às características do
projeto como ‘a rica e renovada produção recente dos pensadores
jurídicos que, nesta década, buscam refletir sobre as relações entre
direito e justiça’”.
Sobre a identificação da cooperação orgânica entre José Ge-
raldo e Lyra Filho, diversos autores tem conduzido um registro,
ora para assinalar pontos que reafirmam o pensamento de Lyra
Filho, ora para determinar a contribuição de uma reflexão autô-
noma de José Geraldo.
Sousa Júnior (2008, p.18) ressalta que “Num livro de balanço
e síntese, Wolkmer (1991) elabora a primeira sistematização do
pensamento Jurídico Crítico no Brasil. No seu esboço, vai igual-
45 O endereço do Blog do DiálogosLyrianos é <http://www.odireitoachadonarua.

blogspot.com.br/>. Acesso em 23.09.2014.
120
mente aparecer a dupla referência à continuidade da proposta da

Nova Escola Jurídica Brasileira, já agora na articulação dos ex-
-alunos de Roberto Lyra Filho na UnB, organizados no Departa-
mento do Direito e, notadamente, no Núcleo de Estudo para a Paz
e Direito Humanos – NEP do CEAM, onde se gestou o projeto O
Direito Achado na Rua”.
Roberto Aguiar em seu livro “A Crise da Advocacia no Bra-
sil – Diagnóstico e Perspectivas”, ao tratar da necessidade urgente
entre os operadores da área jurídica de revisar conceitos e condu-
tas, destaca em nota específica:
As pesquisas de José Geraldo de Sousa Junior estão cen-

tradas, hoje, nesse tema. Seu ensaio “Movimentos Sociais
– emergência de novos sujeitos: o sujeito coletivo de di-
reito”. In: Lições de Direito Alternativo. Edmundo Lima
de Arruda Junior (org), São Paulo, Acadêmica, 1991, pp.
131-142, é de grande valia para o estudo do tema.
Nesse rumo, ainda registra Sousa Júnior (2008, p.32): “A par-

tir do início dos anos 1990 amplificou-se a sinalização ao trabalho
realizado nesta linha, com a ressonância decorrente da definição
de novas linhas editorias de natureza crítica”. Edmundo L. de Ar-
ruda Júnior. (1993, p. 20), a respeito da “sociologia jurídica alter-
nativa (que) está por se construir”, cita “o direito achado na rua”.
Várias citações congêneres aparecem entre os diversos autores
presentes na coletânea Lições de Direito Alternativo do Trabalho
organizada por Arruda Júnior (1993, pp. 44, 76 e 94).
Joaquim Herrera Flores e David Sanchez Rubio, da Univer-
sidade de Sevilha, em artigo publicado na Revista AJURIS (1994,
pp. 149-151), terminam com uma “tipologia teórico-doctrinal” e
uma indicação de “cientros de acción”, nos quais indicam:
121
Epistemologías histórico-sociales de perspectivas dialécticas.

Formadas por cuatro subgrupos: a) en primer lugar, el huma-
nismo dialéctico de raiz neo-hegeliana de Roberto Lyra Filho,
fundador de Ia Nueva Escuela jurídica Brasileña (NAIR) y
creador de Ia revista Direito & Avesso, junto a José Geraldo
de Souza y Agostinho Ramalho Marques Neto (...).
Antônio Celso Mendes publicou o livro “Filosofia Jurídica

no Brasil” (1992, p. 134) com um capítulo sobre “o pensamento
crítico” e, dentro dele fez um subtítulo para “a nova escola jurídica
brasileira”, a partir das bases lançadas por Lyra Filho. Sousa Júnior
(2008, p.18) assinala ainda que: “Para este autor, esta ‘tem ense-
jado o surgimento de uma profícua geração de pensadores sobre o
Direito’”. E, “na mesma linha de orientação, a coletânea de arti-
gos publicada pela Universidade de Brasília sob o título O Direito
Achado na Rua sob a coordenação Prof. José Geraldo de Sousa
Júnior, procura disseminar um discurso crítico do Direito (...)”.
As referências existentes em publicações recentes identifi-
cam O Direito Achado na Rua a uma “nova crítica do direito” ou
de “um pensamento jurídico crítico” em processo de construção.
Neste caso, Sousa Júnior destaca os autores que assumiram o pro-
pósito de demarcar este campo têm, em geral, como Wolkmer e
Herkenhoff, “assinalado um papel ao trabalho teórico e organiza-
tivo (militante) que venho realizando” (2008, p. 24).
Acrescenta que “a partir do início dos anos 1990 amplificou-
-se a sinalização ao trabalho realizado nesta linha, com a resso-
nância decorrente da definição de novas linhas editoriais de natu-
reza crítica. João Batista Moreira Pinto (1992, p.12), em referência
aos pressupostos de seu trabalho, também alude ao surgimento de
uma “Nova escola Jurídica” e fala de um ‘Direito Achado na Rua’.”
(2008, p.24). Assinala que “em São Paulo, José Eduardo Faria e
Celso Campilongo, da Universidade de São Paulo, no livro ‘A So-
122
ciologia Jurídica No Brasil’ (1991), dedicam uma seção inteira a

O Direito Achado na Rua” (2008, p.25). E cita outros autores que
fazem também esse reconhecimento, como Walter Ceneviva, em
“Coluna de Letras Jurídicas” do jornal Folha de São Paulo (1984,
de 3/10/1993), e Eliane Botelho Junqueira, em “A Sociologia do
Direito no Brasil” (1993).
Há, efetivamente, uma fortuna crítica que se expressa de for-
ma nítida sobre O Direito Achado na Rua em recorte epistemoló-
gico que ultrapassa o campo de cientificidade restrita ao Direito;
daí que Maria Célia Paoli, em “Movimentos Sociais, Cidadania e
Espaço Público” (1992, p. 498-504) dá significação a este pensa-
mento jurídico enquanto um modo de produção.
Sousa Júnior (2008, p.77) evidencia que: “A fortuna críti-
ca acumulada na continuidade de um projeto, cujos contornos e
conteúdos mais e mais se precisam, paulatinamente demarca a
sua trajetória. Dois aspectos ganham maior nitidez: um referido à
questão dos acessos à justiça representando as mediações para no-
vos conflitos, novas sociabilidades e novos direitos; outro, dirigido
ao tema do ensino jurídico, apoiado na refundamentação cientí-
fica e dos paradigmas, de modo a reorientar a cultura jurídica de
formação e de determinação social da prática”.
David Sánchez Rubio e Joaquin Herrera Flores (2004, p. 14)
no artigo “Aproximação ao Direito Alternativo na Ibero-Améri-
ca”, afirmam que:
A reivindicação e a defesa do pluralismo jurídico, hoje no

Brasil, se dá em dois níveis: a) a instância teórica repre-
sentada pelo ‘pluralismo jurídico comunitário-participa-
tivo’, que tem como principal expoente Antonio Carlos
Wolkmer; b) a perspectiva prática, configurada no movi-
mento denominado ‘Direito Achado na Rua’, coordenado
por José Geraldo de Sousa Júnior.
123
Para J. J. Gomes Canotilho (1998) ao referir-se ao Direito

Constitucional como aquele capaz de recuperar o “impulso dialó-
gico e crítico que hoje é fornecido pelas teorias políticas da justiça
e pelas teorias críticas da sociedade”, para não restar “definitiva-
mente prisioneiro de sua aridez formal e do seu conformismo po-
lítico”, há que “incluir-se no direito constitucional outros modos
de compreender as regras jurídicas”, assim explicitando a referên-
cia: “Estamos a referir sobretudo as propostas de entendimento do
direito como prática social e os compromissos com formas alter-
nativas do direito oficial como a do chamado direito achado na
rua”, a que cita como um “importante movimento teórico-prático
centrado no Brasil”.
José Carlos Castro, em “A Utopia Política Positivista e Ou-
tros Ensaios (Filosofia Política)” (1999, p. 417), assinala:
Lyra Filho abriu perspectivas inovadoras para uma visão

crítica do direito antidogmático e dialética, capaz de pro-
duzir um pluralismo jurídico democrático e sua alternati-
vidade (... ) Defende ao longo de sua obra Para uma Críti-
ca da Eficácia do Direito a clara opção epistemológica por
um ‘Direito novo’. Tal proposição do ‘Direito novo’, em
configuração pluralista, distinta do positivismo burguês
e do legalismo socialista, fundamenta-se na concepção
dialética de um humanismo realista. Suas preocupações
teóricas incidem na análise e no resgate de determinados
temas, como a anomia, poder popular, pluralidade de or-
denamentos, dualidade de poderes e ensino jurídico.
Também a indicação bibliográfica “Sousa Júnior J. G. (sousa

dir.), O Direito Achado na Rua, Ed. Universidade de Brasília, Bra-
sília, 1987” consta no verbete Alternativo (Direito), no Dicionário
Enciclopédico de Teoria e de Sociologia do Direito, sob a direção
de André-Jean Arnaud et al (1999, p. 13). Clemerson Merlin Cle-
124
ve (1988. p. 54-5), por seu turno, referia-se ao Direito Achado na

Rua a propósito da
[...] retomada de epistemologias dialéticas com um sen-

tido de engajamento histórico muito pronunciado, pro-
pondo um Jusfilósofo, além de observador, também ator
relevante da cena social (que) delineará um movimento
formado por pesquisadores aos quais chama de os novos
jusfilósofos brasileiros.
Agostinho Ramalho Marques Neto em “Direito Alternativo

e Marxismo – apontamento para em Reflexão Crítica na Revis-
ta de Direito Alternativo, n°. 1” (1992, p. 38) ao escrever sobre “a
emergência dos sujeitos coletivos de direitos”, toma como referên-
cia o trabalho de José Geraldo de Sousa Junior “Movimentos So-
ciais Emergência de Novos Sujeitos: O Sujeito Coletivo de Direito”.
Sobre esse sujeito coletivo, Ana Amélia da Silva e Nelson
Saule Jr. (1993, p. 66)46 ao incorporarem “exatamente esta acep-
ção de busca de uma identidade para o Direito que contribua
para a dinâmica das lutas sociais”, referindo-se à contribuição de
O Direito Achado na Rua. Vale ainda lembrar que José Eymard
Loguércio (1982, p.214 e 218) tem um capítulo com o título “A
Construção do ‘sujeito coletivo de direito’: um novo olhar sobre os
velhos temas”, tratando esta categoria com o conceito semelhante
ao desenvolvido pelo Direito Achado na Rua.
Nesse rumo, também vale destaque a citação feita por Luis
Edson Fachin no admirável texto “Homens e Mulheres do Chão
Levantados”, publicado em Cadernos da Pós-Graduação em Di-
reito da UFPA47, para referir-se ao conceito de cidadania, feito em
46 Em “A Cidade faz a sua Constituição”.

47 Também publicado em “Anais, volume I, XVII Conferência Nacional dos Advogados
Justiça: Realidade e Utopia, Rio de Janeiro, 1999”
125
sintonia com o contexto da categoria sujeito coletivo de direito

proposta pelo O Direito Achado na Rua.
Vale a referência a José Carlos Moreira da Silva Filho, em
dissertação aprovada no mestrado em Direito da UFSC sob o tí-
tulo de “O Pluralismo Jurídico, os Novos Movimentos Sociais e a
Exterioridade em Dussel”. Após citar o O Direito Achado na Rua,
fala dos estudos que o aproximam do fenômeno sociopolítico dos
novos movimentos sociais na identificação do pluralismo (1996,
pp. 03-04):
José Geraldo de Sousa Júnior e Antônio Carlos Wolk-

mer revelam-se os dois principais teóricos brasileiros que
abordam essa conexão. O primeiro enfatiza o aspecto do
sujeito de direitos, identificando nos Novos Movimentos
Sociais a clara expressão de um “sujeito coletivo de di-
reitos” e, com base nas análises político-sociológicas dos
Novos Movimentos Sociais, afirma que, é perfeitamente
possível identificar um processo pelo qual as carências vi-
venciadas coletivamente se transformam em exigência de
direitos e a partir daí possibilitam a construção teórica de
um “sujeito coletivo de direito”.
Maria Célia Paoli (2008, p.59) enfatiza que é importante

“mostrar de que modo a concepção de justiça popular dialoga com
a lei, produzindo outros critérios para a aplicação legítima desta”.
Herkenhoff, em “Para Onde Vai o Direito? Reflexões sobre o
papel do Direito e da Justiça” (1996, p. 76), assinala:
Será um “direito achado na rua”, expressão cunhada por

Roberto Lyra Filho, um direito que se abre às diversas for-
mas do jurídico efetivamente presentes nas relações sociais,
um direito que resulta da negação de ter o Estado o mono-
pólio da produção jurídica, um Direito aberto aos sujeitos
126
coletivos […]. A nova preconizada é a do jurista atento

para captar as manifestações não-estatais do Direito [...].
Outra linha de referência da fortuna crítica do Direito Acha-

do na Rua é localizada na concepção sobre a formação de profis-
sionais do Direito, com frequentes indicações vinculadas a ini-
ciativas de formação de assessorias jurídicas populares. Um bom
exemplo está na série “Seminários – Direito Insurgente: O Direito
dos Oprimidos”, editada pelo Apoio Jurídico Popular/FASE48.
A partir do trabalho realizado por José Geraldo na Comissão
de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB e na Comissão
de Especialistas de Ensino de Direito, do MEC, algumas noções do
trabalho ganharam adensamento e se projetaram como categorias
que passaram a ter centralidade na designação de novas figuras
fortes no âmbito do ensino do Direito. Roberto A. R. de Aguiar
(2004) acentua essa ressignificação em seu texto Habilidades. En-
sino jurídico e contemporaneidade, aludindo ao “perfil oficial das
habilidades jurídicas”, âmbito, aliás, em que estas foram primei-
ramente designadas e inscritas no universo categorial do campo.
Sousa Júnior (2008, p.85) menciona que “Horácio Wander-
lei Rodrigues (1993)49, apresenta uma preciosa coleção de ensaios
organizados pelo tema do ensino jurídico, designando em vários
deles o lugar de uma contribuição teórica e operativa à luz, inclu-
sive, do trabalho que elaborei como membro-relator da Comissão
de Ensino Jurídico do Conselho federal da OAB e como membro
da Comissão de Especialista de Ensino de Direito, do MEC.”.
Numa interseção entre ensino do Direito e Sociologia Jurí-
dica, outra vertente se abre, apontando para a institucionalização
48 Na série do texto de Osvaldo de Alencar Rocha (O Direito Encontrado na luta) no

vol. 14.
49 Em “Ensino Jurídico e Direito Alternativo”
127
nesse campo da atitude epistemológica que atribui ao campo socio-

lógico jurídico a “visão substantiva” a que aludem Claudio e Solan-
ge Souto, com reflexo na reorientação qualitativa da educação jurí-
dica. Como bem focalizado pelo Direito Achado na Rua, essa con-
figuração acadêmica se sustenta na indissociabilidade do ensino-
-pesquisa-extensão, que é própria da origem e sentido universitário.
Houve uma “explosão” de fragmentos de aspectos diferen-
ciados da matriz original da proposta da Nova Escola Jurídica
Brasileira e sua recepção diferenciada entre setores do movimento
estudantil de Direito, da sociedade civil e da mídia. A recepção
a estes fragmentos está assinalada em veículos os mais variados,
valendo trazer como exemplo a cobertura do Correio Brasiliense
ao lançamento da primeira edição do Curso a Distância O Direito
Achado na Rua:
As ruas são espaços constantes de construção de novos

direitos, mas pouca gente se dá conta desta realidade,
principalmente alguns especialistas em leis. Foi com base
nesta observação que o Professor José Geraldo de Sousa
Júnior, do Departamento de Direito da Universidade de
Brasília, desenvolveu o livro O Direito Achado na Rua
lançado e, em 1987 sob a forma de um curso à distância.
O sucesso foi tão grande que o livro foi transformado no
primeiro vídeo desenvolvido para o Centro de Educação
Aberta, Continuada à Distância (CEAD/UnB).
128
2.3.2. Aprofundamento de Algumas
Críticas Apresentadas
2.3.2.1. Da Juridicidade
A negação do Estado como fonte única e exclusiva de juri-
dicidade e o destaque à produção normativa gerada por grupos
organizados semiautônomos têm suscitado muitas críticas ao
pluralismo jurídico. Na medida em que O Direito Achado na
Rua possui este mesmo núcleo convergente, é possível conside-
rar tais críticas – quando não diretas – também aplicáveis a este
projeto epistemológico.
Uma primeira crítica que se faz refere-se à imprecisão dos
limites do próprio pluralismo. Como destaca Castro (2013, p. 169),
o pluralismo jurídico pode se referir tanto a uma situação de fato
(a investigação empírica constata uma pluralidade de ordens nor-
mativas), quanto à defesa do próprio pluralismo (a ausência de
pluralidade é em si um mal): “Quase nunca é muito clara a se-
paração entre os argumentos sobre o pluralismo como fato social
e os argumentos normativos sobre o pluralismo jurídico”. Assim,
a literatura estaria ora mais descritiva, ora mais prescritiva, sem
clara distinção entre uma e outra.
Ao apontar esta imprecisão, infirma-se a própria pretensão
de objetividade da dialética de Lyra Filho, como alerta Costa
(2008, p. 92)50, pois a ciência tem caráter descritivo, não cabendo
ao cientista constituir seu mundo. Quando tal ocorre, verifica-se
o que Castro chama de literatura prescritiva e que se confunde
mais com uma busca de transformação da realidade, do que com
a análise desta mesma realidade.
50 COSTA, A.A. 2008. Humanismo dialético: a filosofia jurídica de Roberto Lyra

Filho. Brasília: Thesauros.
129
Segundo o autor, tal confusão de papéis tem uma razão:
[...] o historicismo de Lyra não é causal, mas escatológico,

pois não compreende os fatos históricos a partir de suas
causas, mas pressupõe dogmaticamente que eles tendem a
um determinado ponto no futuro [socialismo democráti-
co], em cujo sentido se movimenta o processo incessante
da História (COSTA, 2008, p. 78).
Como resultado, Costa rejeita o próprio caráter científico do

Direito Achado na Rua, tratando-o mais como uma construção
poética, por sua sedução simbólica, que por sua lógica científica,
não argumentativa. Para o autor, o Direito Achado na Rua “pro-
duz símbolos que podem ser extremamente sedutores, mas não
explica fatos por meio de um discurso coerente e causal acerca de
fenômenos empíricos” (COSTA, 2008, p. 91).
Também é observado por Castro (2013, p. 169) que não há
um conceito muito claro do que seria o direito no pluralismo – e,
em consequência, no Direito Achado na Rua – , quando descarta
a visão monista, revelando o que seria uma imprecisão conceitual
grave, na medida em que tal amplitude de considerações sobre a
norma levaria a uma situação de anomia: “[...] se nenhuma norma
pode ser invalidada, qualquer norma é válida, inclusive uma que
prescreva o contrário da outra, inicialmente consideradas. Conse-
quentemente, nenhuma norma é realmente obrigatória”.
Por um lado esta crítica é refutável com base no referencial de
legitimidade que demarca o campo do reconhecimento normativo
defendido no pluralismo, para além do plano de validade formal
e, por outro, porque se houvesse qualquer imprecisão conceitual
isso tornaria as pesquisas empíricas, neste campo epistemológico,
impraticáveis, o que efetivamente não ocorre, porque os autores
afetos ao pluralismo jurídico adotam variados elementos opera-
tivos (de controle social e de solução de conflitos) na formulação
130
de suas categorias e definições de pesquisa, dando o tratamento

teórico e epistêmico na delimitação de suas pesquisas, como bem
esclarece Albernaz e Wolkmer (2013, p. 205).
Por fim, surge também uma crítica quanto à ausência de dis-
cussão sobre as relações de poder, que ocorrem em muitas situa-
ções, até mesmo entre os novos sujeitos de direito, e no interior de
grupos da sociedade civil que se proponham a resistir ao direito
oficial (CASTRO, 2013, p. 170).
Uma vez mais, remete-se à ausência de cientificidade do pro-
jeto epistemológico O Direito Achado na Rua, para explicar esta
“romantização” do pluralismo e da relação dos agentes na socieda-
de. Costa aponta, na verdade, que a obra de Lyra Filho baseia-se
na “presunção idealista de que existe um padrão unificado de or-
ganização da liberdade” (p. 89). E esta concepção, ao se remeter a
uma totalidade abstrata, acaba no fundo dirigindo-se a ninguém.
Apontadas essas críticas que o projeto O Direito Achado na
Rua recebe por outros acadêmicos, é possível, em seguida, apre-
sentar aspectos não considerados na exposição acima e que ser-
vem como refutação a estes argumentos.
Cumpre ressaltar, desde logo, que O Direito Achado na Rua
não possui, como possa ter parecido nas citações acima, uma di-
mensão normativa a favor do pluralismo. De fato, há, sim, uma
constatação de que o pluralismo é uma realidade, muitas vezes
ignorada pelo pensamento jurídico tradicional. E, por isso, grande
parte da realidade, com suas lutas emancipatórias e repressivas,
é desconsiderada pela dogmática positivista do direito, mas que
aqui é inserida como ponto de partida na concretude da realidade
sobre a qual o Direito deve incidir.
O Direito Achado na Rua resgata em seu projeto a rua como
o lócus de expressão do direito e, por isso mesmo, diverso, frag-
mentado, com “avanços e recuos, quebras do caminho, que não
importam, pois o rio acaba voltando ao leito, seguindo em frente
131
e rompendo as represas” (LYRA FILHO, 1995, p. 81). De fato, são

dos sujeitos plurais e de demandas reais que o Direito pode assu-
mir sua legitimidade.
Como se observa, o hábito de resumir o processo político de
deliberação ao momento de produção legislativa, com a edição de
normas gerais e abstratas, dá fundamento às críticas apresentadas,
porém desconsidera que, num processo dialético, a coexistência
de teses e antíteses, direito e antidireito, fazem parte do processo
e é exatamente aí que se encontra o Direito: “o Direito está no
processo global e sua resultante” (LYRA FILHO, 1995, p. 76).
Assim, o reconhecimento da pluralidade das fontes do Direi-
to e não apenas a lei é fundante da concepção, o que causa o in-
cômodo de autores afeitos à visão cristalizada do direito, que veem
na positividade do direito nada mais que o positivismo.
Como já trabalhado em vários trechos dessa obra, o princípio
fundante da legítima organização social da liberdade tem, ainda,
uma dimensão prática que longe está da metafísica. O Direito jus-
to, que integra a dialética jurídica, não tem como se desligar das
lutas sociais, de seu desenvolvimento histórico e da conquista per-
sistente da liberdade a todos os grupos que compõem a sociedade,
sem privilégios e exclusões.
Eis porque o autor se detém em explicar em detalhes o papel
das ideologias (LYRA FILHO, 1995, p. 13-14) e quão necessário
é abandonar “a repercussão mental na cabeça dos ideólogos” (p.
46) para se deter no fato social, nas lutas, na busca por reconheci-
mento e redistribuição. Em “O Que é Direito”, Lyra Filho acentua
que não é apenas o critério econômico o único modo de opressão.
Que há, nesse sentido, uma boa dose inspiracional nos es-
critos de Lyra Filho, não se pode negar. Todavia, como se pensar
a sociedade, em suas contradições, sem se perguntar sobre a pos-
sível forma de superação de suas injustiças? É o que o autor faz,
mas não para se perder em devaneios sobre o que seria um mundo
132
melhor. Lyra Filho, antes de tudo, como já visto, sempre esteve

muito ligado à prática, aos projetos de extensão e à preocupação
com a concretização dos direitos. Por isso, sua inspiração não toma
contornos metafísicos, repita-se, mas tem na vivência de pessoa,
sujeito de direito, a efetiva aplicação dos preceitos teóricos do O
Direito Achado na Rua.
2.3.2.2. Sujeito Coletivo de Direito – Projeto Político

de Transformação Social – Categoria
Político Democrática
A partir da concepção de O Direito Achado na Rua, ao
reconhecer a pluralidade de sujeitos ou dos novos sujeitos sociais,
ali entendidas as expressões de sujeitos que reivindicam novos
direitos ou a efetivação daqueles já legalmente instituídos, que
Marilena Chauí vai designara cidadania ativa, convém dissecar o
sentido e as críticas feitas a essa categoria assumida pelo Direito
Achado na Rua.
Identificar os sujeitos participantes e atuantes enquanto su-
jeitos coletivos, capazes de levar suas vivências/experiências de re-
presentação na perspectiva de enunciarem direitos, é uma tarefa
árdua. Não pela sua ausência, mas muitas vezes pela invisibilidade
que lhe é imposta. Essa posição de “invisibilidade” se justifica pela
dificuldade de reconhecimento do pluralismo social para justificar
uma esfera pública controlável e homogênea, com as formas de
opressão, exclusão e discriminação escondidas (Santos; 2007a).
É dessa razão indolente que Santos (2007a) entende ter sido
desperdiçada a riqueza das experiências constitutivas da sociedade
plural e, na dimensão dos espaços institucionalizados, não ter dado
voz a tantas e tantos sujeitos que são reais e produzem conheci-
mento. A visibilidade reconhecida pelo pluralismo social quer usar
133
a esfera pública para sua pauta política: a democracia. A cidadania

ativa convive com representatividade – que remete à discussão da
legitimidade da representação dos sujeitos coletivos, mas aqui não
se trata do embate interno dos movimentos sociais na definição de
sua representatividade e da legitimidade dos representantes ou do
processo de legitimação51.
Na origem e formação dessa categoria para O Direito Acha-
do na Rua, vale referência ao prefácio do livro de Eder Sader, feito
por Marilena Chauí e que propõe a questão a partir de um afas-
tamento da concepção tradicional filosófica de “sujeito” para dar
dimensão de novos sujeitos como sociais:
Por que sujeito novo? Antes de mais nada – ela própria

responde – porque criado pelos próprios movimentos so-
ciais no período: sua prática os põe como sujeitos sem que
teorias prévias os houvessem constituído ou designado.
Em segundo lugar, porque se trata de um sujeito coletivo
e descentralizado, portanto, despojado das duas marcas
que caracterizaram o advento da concepção burguesa da
subjetividade: a individualidade solipsista52 ou monádica,
como centro de onde partem ações livres e responsáveis e
o sujeito como consciência individual soberana, de onde
irradiam ideias e representações, postas como objeto, do-
51 A legitimidade na esfera pública também depende da escolha das pessoas que

vão exercer a representação para que sejam pertencentes aos sujeitos coletivos
representados e também para garantir a formação de espaços discursivos (para
compartilhar os debates) e manter a legitimidade nas decisões tomadas pelos
representantes que conduz a identidade coletiva dos representantes.
52 Solipsismo no dicionário de filosofia 4. (Q - Z) de José Ferrater Mora é um complexo
conceito para tratar da individualidade do eu, uma espécie de referencia solitária
ou também para referir-se a interindividualidade. Também usado por Husserl para
tratar da consciência como algo “aberto” concectado a outros eus. Kant ao se referir
traduz como sendo um egoísmo, um “amor a si mesmo” que dá entendimento de
suficiente ou uma forma de arrogância.
134
mináveis pelo intelecto. O novo sujeito é social; são os

movimentos populares em cujo interior indivíduos, até
então dispersos e privatizados, passam a definir-se a cada
efeito resultante das decisões e atividades realizadas. Em
terceiro lugar, porque é um sujeito que, embora coletivo,
não se apresenta como portador da universalidade defini-
da a partir de uma organização determinada que operaria
como centro, vetor e telos das ações sociopolíticas e para
a qual não haveria propriamente sujeitos, mas objetos ou
engrenagens da máquina organizadora. Referido à Igreja,
ao sindicato e às esquerdas, o novo sujeito neles não en-
contra o velho centro, pois já não são centros organiza-
dores no sentido clássico e sim ‘instituições em crise’ que
experimentam ‘a crise sob a forma de um deslocamento
com seus públicos respectivos’, precisando encontrar vias
para reatar relações com eles.
Aqui se tem uma concepção apresentada à categoria sujeito

coletivo de direito no campo filosófico, para afastar a minimização
com que alguns autores tratam, para limitá-la apenas como uma
expressão simbólica e não factível na normatização jurídica. O
enfrentamento que se propõe, conduz pela superação da ideia de
sujeito como encerrado na consciência do indivíduo para compor
um sujeito que é coletivo.
O Direito Achado na Rua esclarece que esse sujeito coletivo
não nega a existência dos sujeitos individualmente considerados,
não quer se dispor à universalidade da organização, como eram
coletividades anteriores, é novo porque também experimentam a
crise interna.
A legitimidade dos sujeitos de direito na concepção moderna
decorre dessa individualidade, consciência de sua própria subjeti-
vidade para garantir autonomia e assim lhe assegura a titularidade
de direitos. Então, o sujeito coletivo de direito para ser categoria ju-
135
rídica teria que pressupor uma identidade que aproxime os sujeitos

naquilo que seja comum. Para reconhecer esse sujeito coletivo como
categoria jurídica protagonista e destinatária de direitos o Estado
termina por exigir formalizações e opção pela via institucional,
ex. sindicato, associações etc., o que poderia ser visto como uma
limitação da categoria na concepção do Direito Achado na Rua.
Na composição dos espaços públicos são identificados grupos
sociais que se relacionam com determinada temática, que se colo-
cam no perfil de representação de segmentos sociais interessados
no tema. No entanto, aqui pode se tratar não apenas da definição
institucionalizada atribuída pelos próprios integrantes de um cole-
tivo. Pode haver um campo social que se une com expressões es-
pontâneas de segmentos que não se vinculam a uma organicidade
para reivindicar seus direitos. Há também expressões sociais co-
letivas que são resultantes de momento histórico ou que se unem
num determinado contexto imediato, na busca da saciedade de
necessidades e carências, na incessante criação e exigente concre-
tização de direitos e que, articuladamente ou na pontualidade de
um fato concreto, se apresentam nas esferas públicas como cole-
tivo, mas sem pretensões de conformarem-se como categoria jurí-
dica de sujeitos coletivos de direito. É preciso também reconhecer
essas manifestações e sua autonomia.
Para admitir os sujeitos coletivos não institucionalizados
como categoria jurídica precisa ser rompido o modelo liberal e
dogmático que reconhece o Estado como principal fonte do direi-
to e que o sistema jurídico é completo e sem contradições. Aí se
acolheriam outras formas de reconhecimento de legitimidade de
sujeitos – para admitir aqueles não institucionalizados – e da di-
versidade das fontes do Direito. É no cotidiano dos sujeitos sociais
que, em suas elaborações e manifestações, mesmo que conflitivas,
geram como consequência a abertura do campo jurídico para uma
dinamização emancipatória de suas normas e práticas. A partir
136
da mobilidade social, há que se reconhecer, portanto, uma demo-

cratização do que é jurídico para novas incorporações ao Direito,
visando sua justa e legítima aplicação.
Sem dúvida há risco de manipulações dos sujeitos coletivos.
É preciso ter atenção para a não neutralização das pessoas e suas
diferenças, para que esse coletivo não escorregue na homogenei-
zação, na massificação e contrarie o próprio sentido da sua plura-
lidade identitária.
O debate toma caminho do receio da colonização do outro,
por isso a preocupação em viver a alteridade nesse coletivo. Assim,
igualdade e liberdade dos interlocutores devem ser estabelecidas
como pré-requisitos para legitimar o sujeito coletivo. A eles são
acrescidos outros requisitos essenciais: a capacidade de ser ouvido
e; que o ouvinte possa ter as chaves da compreensão dos conteú-
dos expostos. Nisso se compõe o exercício da alteridade defendida
por Luis Alberto Warat.
O diálogo social pode ser ferramenta que se atrela a isso para
dar legitimidade ao sujeito coletivo. Internamente, esse exercício
de mediar sem transformar em dominação, em colonização do ou-
tro, talvez um desarmar de egos e o despertar da sensibilidade amo-
rosa permita um viver na alteridade a que propõe Warat (2004).
Na esfera pública: o processo de ruptura para viver e reconhecer a
diversidade, a pluralidade dos sujeitos é uma aventura que começa
internamente no ser e transborda para o coletivo, uma alteridade
ética, que se constrói na prática e não em abstrações teóricas, o
que justifica a forte defesa da categoria: sujeito coletivo de direito.
Com isso se dá a compreensão de que é possível uma ação
coletiva, somando as preocupações do exercício das liberdades ci-
vis e políticas com a proteção e eficácia dos direitos sociais, para
permitir que seja atendida a condição de igualdade da pessoa ou do
grupo. Essa categoria tem a sua natureza jurídica definida por José
Geraldo de Sousa Júnior (2008, p. 5) como: “sujeito coletivo capaz
137
de elaborar um projeto político de transformação social e elaborar

a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito”.
No Estado Democrático de Direito brasileiro, mesmo nos
espaços participativos, não estão nítidas as condições e condicio-
nantes para que os indivíduos e grupos – em sua subjetividade e na
sua relação com o outro – estejam cientes das tensões e exclusões
próprias da efetiva realização de cidadania. Que é falar de justiça
senão se comprometida com as possibilidades reais? O mesmo para
falar em democratização senão ampliando as possibilidades parti-
cipativas reais, recuperando a ideia de cidadania como realização
emancipatória das relações – e estas estão por aí, nas ruas. É tem-
po de consolidá-las!
Uma espécie de posição contra hegemônica às condutas
naturalizadas de que dispomos e que nos submete ao que Santos
(2007) chama de democracia de baixa intensidade. Isso gera uma
reflexão absolutamente atual sobre a necessidade de reconhecer a
força vibratória das soluções possíveis para o aprofundamento de-
mocrático e emancipatório, que dá garantia aos sujeitos coletivos o
direito à participação popular em defesa de seus próprios direitos;
ao mesmo tempo permite que os espaços institucionalizados repre-
sentem uma dimensão real do pluralismo democrático.
O discurso de participação social ou cidadania participativa
não encontra efetividade nem legitimidade se estiver afastado do
poder decisório do Estado. As tensões sociais no mundo contem-
porâneo fazem do elemento povo sujeitos que se reivindicam, indi-
vidualmente ou em grupo, organizados institucionalmente ou de
maneira espontânea, legítimos autores e destinatários do Direito,
em processos permanentes de comunicabilidade por discursos de-
mocráticos (MULLER, 2003).
138
2.3.2.3. A Constituição de 1988 Esgotou a Demanda do

Pluralismo Jurídico?
Duas contraposições críticas ao O Direito Achado na Rua
foram feitas, no âmbito acadêmico, pelo professor Lênio Streck,
em entrevista concedida à revista do Instituto Humanitas Unisi-
nos on-line (2009); e por uma referência que atua no Poder Judi-
ciário, o desembargador federal do Tribunal Regional Federal da
1ª Região Néviton Guedes, em entrevista à Revista dos Estudantes
de Direito da UnB (2013).
Em ambas, a linha de raciocínio dos entrevistados é de que
a Constituição Federal de 1988 trouxe uma série de significativos
avanços, cujos desafios não seriam mais buscar formas alternati-
vas de expressão do direito, mas consolidar a Constituição Fede-
ral, resultado de intensas pressões democráticas na Assembleia
Nacional Constituinte.
Segundo Lênio Streck, desenvolver dinâmicas para con-
cretização dos ditames constitucionais constitui tarefa precípua,
afirmando que:
Nossa luta atual é criar condições para que a legalida-

de tenha um terreno fértil para produzir seus frutos. Ser
crítico hoje é concretizar a Constituição. Em outras pa-
lavras, não há mais como falar em direito achado na rua,
direito alternativo ou pluralismo jurídico. A Constituição
é muito mais avançada que qualquer uma destas bandei-
ras. (2009, p. 23)
Desse modo, na visão de Lênio Streck, construir espaços al-

ternativos à Constituição gera insegurança, uma vez que “pode
enfraquecer as conquistas democráticas dos últimos anos, na me-
dida em que, ao fim e ao cabo, tais posturas acabam por apostar
demasiadamente no poder dos juízes” (2009, p. 23).
139
Já o “Uso Alternativo do Direito”, tratado por Néviton Gue-

des (2013), era uma proposta para explorar as concessões e bre-
chas do ordenamento jurídico da classe dominante, permitindo
rupturas, porque, na visão tradicional, havia a promessa da “justi-
ça e paz social”, mas defendia interesses da própria classe.
Segundo o desembargador Néviton,
Passados mais de 20 anos, o engraçado é que essa propos-

ta do “direito alternativo” e do “direito achado na rua”,
na minha opinião, acabou sendo vítima de suas próprias
virtudes. De fato, saindo amplamente vitoriosa, essa pro-
posta, com o passar do tempo, com a promulgação da
Constituição de 88, que corporativa todos os valores de
democracia e se mostrou eficaz, hoje eu não posso recusar
aplicação ao direito, eu não posso propor confrontar um
direito – como faziam os movimentos alternativos – que
concretiza precisamente os valores com os quais eu con-
cordo e pelos quais nós lutávamos. Há um momento de
lutar, um momento de reformar e um momento de conso-
lidar. (2013, pp. 25-26).
Ainda neste sentido, o desembargador Néviton afirma que

“jurista democrático, o jurista que tem compromisso com a justiça,
ele tem que fazer a afirmação desses valores hoje positivados na
constituição” (2013, p. 26). Finalizando, o desembargador federal
assume, visando uma suposta previsibilidade a necessidade de se
seguir o proposto pela lei:
Agora eu lhe digo o seguinte: o meu limite é sempre a

lei, o texto legal. Sempre. Além disso e aquém disso eu
não vou. Eu sempre trago como pressuposto a ideia de
que de onde parto e aonde eu posso chegar, quando eu
decido, num estado democrático – que tem como parâme-
tro a vontade dos representantes do povo –, eu não posso
140
afrontar a legislação definida pelo poder que foi constituí-

do para isso, que é o poder legislativo. (2013, pp. 25-26).
Apesar das importantes considerações sobre a importância

de uma análise acurada dos avanços trazidos pela constituição de
1988, é necessário ter em vista os limites de efetividade de uma
norma posta, ainda que seja no texto da lei maior. A despeito de
todas as vicissitudes do processo constituinte 87/88 (como a con-
vocação da Assembleia Nacional Constituinte mediante emenda
ao texto de 1967/69), inegável que a Constituição Federal tem
trazido conquistas como a melhor avaliação da questão indígena,
limitações sobre o direito de propriedade e sua função social, bem
como a constitucionalização de diversos direitos antes negados.
Entretanto, não se deve perder de vista que a simples posi-
tivação não garante todos os avanços até então apresentados. As
manifestações de junho de 2013, no Brasil, em que pessoas foram
para as ruas protestar por direitos que já estavam, em sua maio-
ria, constitucionalizados, demonstram que a promessa constitu-
cional pode não ser cumprida independente da força do texto.
Vale lembrar que os movimentos sociais nunca deixaram de pro-
testar e perceber a rua como espaço da reivindicação, porque já
tinham a análise de que a positivação não lhes foi sinônimo de
direitos efetivados.
Restringir o debate por direitos ao texto constitucional acaba
gerando o efeito de realizar política a partir dos gabinetes do Poder
Judiciário. Não por outro motivo se avolumam os debates acer-
ca do ativismo judicial e da politização do judiciário. Entretanto,
quando se vai por este caminho implanta-se um problema que
Gargarella (2011, p. 97) apresentou como o aumento da demanda
do Poder Judiciário, que constitui a nossa estrutura institucional
com menor controle popular. Nesse sentido, a afirmação de Lênio
Streck sobre o Judiciário como boca da lei da Constituição (2009,
141
p. 23) acaba constituindo falsa avaliação da realidade. Torna-se

necessário estender o conceito de Direito para além do simples
cumprimento da lei, conectando-o ao espaço público de reivindi-
cação que é, por excelência, a rua.
Ainda sobre a eminência do Poder Judiciário são importantes
as contribuições de Gargarella (2011, p. 96) sobre o processo cons-
tituinte, no sentido de que a esquerda brasileira (e latino-ameri-
cana) concentrou suas atenções no aumento dos direitos no texto
constitucional, olvidando-se do debate profundo sobre as estrutu-
ras institucionais do Estado, que se mantiveram intactas. Se, por
um lado, os direitos constitucionais passaram a ser reivindicados
judicialmente, por outro, a estrutura arcaica e oligárquica do Po-
der Judiciário vem se mostrando incapaz de lidar com as novas
demandas criadas pelo texto constitucional de 1988. Neste passo,
há dois campos para se travar o debate: no primeiro, é necessário
repensar a forma de organização e de controle popular sobre o Po-
der Judiciário; no segundo, é preciso continuar captando direitos a
partir da demanda social da rua, para a luta por direitos que façam
cumprir a promessa constitucional.
Mantendo-se numa visão dialética da produção social do di-
reito, também não há que se falar na conformação estrita com
os avanços do texto constitucional. Não há direito indiscutível.
Sem respaldo social, a norma estatal positivada pode se configurar
como “antidireito”.
Por fim, cabe levantar, em relação ao direito alternativo e à
proposta de O Direito Achado na Rua, que os avanços normativos
constitucionais contribuem para o que se chamou positivismo de
combate: a utilização da norma jurídica estatal como instrumento
de reivindicação por direitos, dentre os quais, os garantidos pelo
texto constitucional. Tal prática não exclui a luta por direitos que
não foram positivados e, menos ainda, os debates hermenêuticos
acerca das multissignificações do texto constitucional.
142
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149
PARTE III
3. O Direito Achado na Rua:

Exigências Críticas para a Pesquisa,
a Extensão e o Ensino em Direito
e em Direitos Humanos
Érika Lula de Medeiros53

Helga Maria Martins de Paula54
Ludmila Cerqueira Correia55
Mariana Pereira Conceição56
Priscila Bessa Rodrigues57
53 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da

Universidade de Brasília (UnB). Extensionista da Assessoria Jurídica Universitária
Popular – AJUP Roberto Lyra Filho, da UnB.
54 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Direito da UnB. Professora e
coordenadora do curso de Direito da Universidade Federal de Goiás (UFG), campus
Jataí. Coordenadora do coletivo Libertárias:Grupo de extensão Gênero, direitos e
violência, da UFG, campus Jataí.
55 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Direito da UnB. Bolsista Capes
– Processo BEX10655/14-0. Professora do Departamento de Ciências Jurídicas
da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) – curso de Direito de Santa Rita.
Coordenadora técnica do Centro de Referência em Direitos Humanos da UFPB e
do Grupo de Pesquisa e Extensão Loucura e Cidadania (UFPB).
56 Pós-graduada em Direito, Estado e Constituição pela Universidade Cândido
Mendes. Advogada colaboradora da Defensoria Pública do Distrito Federal.
57 Pós-graduada em Direito, Estado e Constituição, pela Universidade Candido
Mendes. Advogada da União.
151
Raquel Cerqueira Santos58

Talita Tatiana Dias Rampin59
Viva a rua!
Do estudante colorido
Do trabalhador braço-tempo-chão
Da mulher marcha-molotov,
Da ida sem volta
da volta em grandes abraços
Há braços arqueados, sentidos e cansados,
mas há também a história lenta, incerta,
pão, comida e ar
De todas: uma
Viva o campo, viva a rua
De dores polinizadas
De lutas arraigadas
Viva a rua!
(Helga Maria Martins de Paula)
No Brasil, a disposição constitucional60 que orienta as uni-

versidades com o tripé constituído por ensino, pesquisa e exten-
58 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Direito da UnB. Extensionista da

AJUP Roberto Lyra Filho, da UnB.
59 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Direito da UnB. Professora do
Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade de Direito da UnB. Extensionista do
“Projeto Maria da Penha: atenção e proteção às mulheres em situação de violência
doméstica e família”, da UnB.
60 “Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa
e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade
entre ensino, pesquisa e extensão”. BRASIL. Constituição da República Federativa
do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 30 jul. 2011.
152
são, é uma das expressões do ethos universitário: são elementos

indissociáveis e de identificação necessária para que determinada
instituição de ensino superior seja reconhecida como universitá-
ria. Assim qualificados, o “ser” e o “fazer” universitários apresen-
tam-se originariamente pluridimensionais, denotando saberes que
são construídos e construtores de conhecimentos produzidos com
diferentes práticas e atores. A diversidade regional brasileira tam-
bém repercute sobre o “ser” universitário, que se revela em exis-
tência na medida em que “é, sendo” (LYRA FILHO, 1982b). Isso
porque os contextos universitários revelam experiências específi-
cas condizentes às realidades vividas.
Os capítulos iniciais desta obra situam a origem de O Direito
Achado na Rua em um contexto universitário específico, corres-
pondente à Universidade de Brasília (UnB), muito embora, como se
vê neste momento, as experiências de ensino, extensão e pesquisa
lastreadas e inspiradas em O Direito Achado na Rua tenham trans-
posto os limites da instituição e adquirido contornos inovadores.
Mas como são caracterizados o ensino, a pesquisa e a exten-
são a partir dos aportes de O Direito Achado na Rua? Quais são
as exigências críticas colocadas?
O estudo das exigências críticas ao ensino, à pesquisa e à
extensão em Direito e Direitos Humanos consiste no objeto do
presente capítulo. No horizonte de análise, encontram-se as cate-
gorias da liberdade e emancipação, compreendidas no campo do
Direito e dos Diretos Humanos como áreas de conhecimento e
intervenção necessárias para a transformação social.
Para responder às questões apontadas, as contribuições epis-
temológicas e políticas de O Direito Achado na Rua serão anali-
sadas, estudo necessário para compreensão do ensino-crítico, da
pesquisa-ação e da extensão popular. Ao final, são apresentadas
experiências inovadoras em Direito e Direitos Humanos.
153
3.1. Por uma Práxis Libertária: Contribuições

Epistemológicas e Políticas e o Direito
Achado na Rua
A reflexão da práxis social, constituída na experiência de
luta por justiça e por direitos, está intrinsecamente ligada à pes-
quisa, à extensão e ao ensino em Direito e Direitos Humanos. Re-
forçando a ideia de indissociabilidade, Roberto Lyra Filho consig-
na haver menos probabilidade de erros quando pesquisa e reflexão
são empreendidas em trabalho de companheiros e companheiras
associadas, formando um vivo entreposto de trocas intelectuais
(LYRA FILHO, 1982a).
A dinâmica inserida na perspectiva da totalidade dialética,
vislumbrada numa nova concepção teórico-epistemológica e polí-
tica-práxis, permite o aporte de significação de todas as vertentes
construídas pela perspectiva de O Direito Achado na Rua.
A rua, em sua amplitude de possibilidades diretas e populares
de construção de relações que ressignificam a liberdade, é a metá-
fora para a compreensão de um Direito que se delineia com as lutas
protagonizadas pelos movimentos sociais. A rua é “o espaço onde
se dá a formação de sociabilidades reinventadas que permitem abrir
a consciência de novos sujeitos para uma cultura de cidadania e
participação democrática” (SOUSA JÚNIOR, 2008, p. 5).
A ressignificação de espaços públicos, da ideia de representa-
tividade/legitimidade e da participação popular organizada, dire-
ciona os alicerces de um Direito que atua para além e até mesmo
contra o direito estatal, descontextualizado e reprodutor de ideo-
logias dominantes modernas ocidentais (LYRA FILHO, 1982b).
Direito esse incapaz de traduzir anseios sociais, de superar a frag-
mentação inerente a um processo reprodutor de um sistema “re-
duzido à função de executar servilmente os ditames postos pelas
154
necessidades mais urgentes e imediatas de expansão do capital.”

(LYRA FILHO, 1982b, p. 23).
Experiências em direção histórica emancipadora que visibi-
lizem espoliações e opressões e podem ser desenvolvidas no seio
do Direito, vivenciado como legítima organização social da liber-
dade (LYRA FILHO, 1982b), são sistematizadas em um trabalho
de retirada do direito de sua “caixa alienada e excludente”. Trata-
-se do enfrentamento de novas abordagens do ensino jurídico, da
pesquisa na esfera do Direito que se propõe militante e embasada
em grande leque de metodologias emancipatórias, e da extensão
horizontal, educativa libertadora, todas essas dinâmicas de refle-
xão/ação compreendendo, afinal, instrumentalização de luta polí-
tica e de novas categorias jurídicas como fruto de práticas sociais
criadoras do Direito.
Mas o que são ensino, pesquisa e extensão? Qual é a sua fun-
cionalidade quando são discutidos a educação jurídica, o Direito e
os Direitos Humanos?
Ensino, pesquisa e extensão são considerados elementos ne-
cessários e indissociáveis para um “ser” e “fazer” universitários
cujo projeto pedagógico, contemplando a finalidade da educação
superior e o compromisso da responsabilidade social, seja emanci-
pador e libertário. Tais atividades são consideradas indispensáveis
a um contexto de formação coletiva e individual em uma dimen-
são de construção na alteridade, do reconhecimento de abertura
do campo jurídico – com a ruptura do dogmatismo – e à democra-
tização do que é jurídico, ou seja, experiências que evidenciam a
dialeticidade dos sujeitos coletivos de direitos.
No que se refere a uma abordagem crítica, pesquisa, ensino
e extensão são considerados instrumentos e experiências engaja-
das com o processo de transformação social e que vislumbrem o
Direito como liberdade. São exemplos: na dimensão do ensino, a
educação jurídica popular, com aporte nas construções teóricas de
155
Paulo Freire (1979, 1989, 1987, 1983); no âmbito da extensão, as

assessorias jurídicas universitárias populares, desenvolvidas com
movimentos sociais; no âmbito da pesquisa, a utilização de me-
todologias que desafiem a ontologia do Direito, buscando efeti-
var deslocamentos múltiplos – de sujeitos, objetos e técnicas de
pesquisa social – para a produção e o reconhecimento de sabe-
res. Nesse sentido, todas estas dimensões estão inseridas na dis-
posição educadora do processo de O Direito Achado na Rua, na
reinstitucionalização da Universidade e da educação jurídica em
sentido amplo, reprojetando a organização e a estrutura de poder
da instituição, propiciando a formação crítica e mais democrática
(SOUSA JÚNIOR, 2008).
Um diálogo problematizador que enxergue a educação como
prática da liberdade e da transformação social, a adoção de es-
tratégias pedagógicas e opções metodológicas que se constroem
como exigências críticas (desconforto e mal-estar epistemológico
de desnaturalização da educação conservadora-domesticadora)
e a concretização das vivências dos sujeitos coletivos de direitos:
esse é o início da pesquisa-ação e do ensino que se dão a partir
de uma extensão emancipatória, seja na esfera do Direito ou dos
direitos (possíveis), seja nas outras esferas que constroem as socia-
bilidades na/da rua.
Roberto Lyra Filho, em análise intitulada “Problemas atuais
do ensino jurídico” (1981), traz importantes contribuições para
uma concepção do ensino, considerado em sua dupla funciona-
lidade de emancipação e transformação. Lyra Filho define o en-
sino didático como atividade que estimula o espírito crítico, sem
imposição de ponto de vista. Em sua formulação, e inserido em
um contexto universitário, reconhece a prática pedagógica como
sendo aquela em que os problemas emergentes são equacionados
pela figura da e do docente a partir do oferecimento de informa-
ções atualizadas e discussão de propostas. As exigências críticas
156
ao ensino, nessa perspectiva, circunscrevem-se à tomada de atitu-

de frente às “transformações estruturais exigidas, para o advento
duma sociedade democrática.” (LYRA FILHO, 1981, p. 4). Trata-
-se, portanto, de refutar a alienação, o “direito castrado” – reto-
mando aqui expressão utilizada por Lyra Filho (1981, p. 8) –, e
assumir uma compreensão de ensino que perpassa o conteúdo do
Direito comprometido com a libertação, ao que reivindicam os
grupos e classes oprimidos e espoliados.
Talvez a maior exigência crítica que O Direito Achado na
Rua faça em relação ao ensino seja vindicar sua funcionalidade
reconhecedora para emancipação, que perpassa o redimensiona-
mento das relações nas práticas pedagógicas, a fim de incluir a e o
estudante no ensino, não como um mero expectador, que assimila
e se submete ao conhecimento que lhe é apresentado, mas, acima
de tudo, como sujeito que se apropria do ser/fazer universitário e
protagoniza o processo de construção dialógica do conhecimento.
Recorrendo à outra formulação lyriana, o papel atribuído à e ao
estudante, no ensino, é ativo: “O bom estudante não é borboleta, é
incansável pica-pau, capaz de perfurar a rija madeira dos conceitos
e teorias” (LYRA FILHO, 1993, p. 26).
Destaca-se o alerta de Lyra Filho (1981, p. 40) sobre a neces-
sária reforma do ensino jurídico, para que esteja apto a instrumen-
talizar a transformação social:
Porém o ensino jurídico permanece bitolado, sob o im-

pacto, de um lado, das rotinas ineficazes e da castração
intelectual; e, de outro, enquanto proliferem ao lado de
instituições oficiais ou para-oficiais, os estabelecimentos
particulares, no acréscimo duma comercialização desbra-
gada e cúpida. Entre conformismo e faturamento, o Direi-
to definha e se deforma. Nada se fará em reparo porém, se
não repensarmos, o Direito, para, antes de tudo, livrá-lo
de teorias cerebrinas e tecnicismos despistadores. É pre-
157
ciso começar encarando o Direito em função da práxis

sócio-política atual, da luta pelo Direito, não no sentido
de Ihering, mas no da dialética de libertação do nosso
tempo, em seu perfil local.
A reforma necessária ao ensino compreende, também, a for-

mação prática de estudantes para o uso instrumental do direito
para a transformação da sociedade. Para tanto, se faz necessária
também uma educação superior que seja socialmente engajada e
que contemple ações pedagógicas atentas à orientação política
para o exercício profissional e à formação acadêmica preparatória
para este exercício (SOUSA JÚNIOR; COSTA; MAIA FILHO,
2007, p. 31). Mas invocar a necessidade de reforma não esgota
as exigências críticas ao ensino. É preciso ir além e questionar o
componente ontológico do Direito no ensino.
O Direito Achado na Rua assume para si a indagação sobre
“O quê é o direito, para que se possa ensiná-lo? (LYRA FILHO,
1984a, p. 6)” e capacita-se para refutar o Direito que se ensina er-
rado: tanto no aspecto metodológico (práticas pedagógicas tradi-
cionais que restringem as possibilidades do e no Direito) como nos
conteúdos ministrados (o ensino tradicional limita o conteúdo do
Direito, negando seu espectro político e tolhendo as possibilidades
do ser/fazer jurídico). Nesse sentido, é reconhecido como projeto
que vindica a responsabilidade social do “ser” e “fazer” universi-
tários, com o potencial de reconhecimento de saberes populares.
A respeito, conclui o sociólogo português Boaventura de Sousa
Santos (1989, on-line, s/p):
(...) o projeto do Direito Achado na Rua, que visa recolher

e valorizar todos os direitos comunitários, locais, popula-
res, e mobilizá-los em favor das lutas das classes populares,
confrontadas, tanto no meio rural como no meio urbano,
com um direito oficial hostil ou ineficaz.
158
A dimensão do reconhecimento pressupõe uma prática ful-

crada na alteridade, haja vista que o “reconhecer” é uma atitude
que exige a consideração do “outro”, e que adquire conotações
vetoriais múltiplas, emergidas e apontadas para diferentes dire-
ções, considerando a pluralidade de atores partícipes da dinâmica
complexa que é a realidade social. Conhecer e desenvolver a ha-
bilidade de reconhecer o(s) jurídico(s), para emancipar, revela-se,
portanto, outra exigência crítica de O Direito Achado na Rua e
que perpassa o ensino de todas as disciplinas jurídicas, tendo na
prática jurídica a mediação necessária para deslocar o ensino para
a realidade social, inserindo a e o estudante na comunidade e,
portanto, diretamente em contato com os saberes populares que
protagonizam um “outro” Direito, insurgente.
A reflexão criativa de O Direito Achado na Rua abre novos
horizontes, também, à pesquisa jurídica. Na “Introdução crítica ao
Direito” (SOUSA JÚNIOR, 1993, p. 10), encontram-se pistas sobre
as exigências críticas à pesquisa em Direito e Direitos Humanos:
O sentido que orienta o trabalho político e teórico de O

Direito Achado na Rua consiste em compreender e refle-
tir sobre a atuação jurídica dos novos sujeitos sociais e,
com base na análise das experiências populares de cria-
ção do direito:
1. Determinar o espaço político no qual se desenvolvem

as práticas sociais que enunciam direitos, a partir mesmo de
sua constituição extralegal, por exemplo, direitos humanos;
2. Definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz

de elaborar um projeto político de transformação social
e elaborar a sua representação teórica como sujeito cole-
tivo de direito;
159
3. Enquadrar os dados derivados destas práticas sociais

criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurí-
dicas para estruturar as relações solidárias de uma socie-
dade alternativa em que sejam superadas as condições de
espoliação e de opressão do homem pelo homem e na qual
o direito possa realizar-se como um projeto de legítima
organização social da liberdade.
É, portanto, um referencial de pesquisa que, sem negligen-

ciar os métodos tradicionais e as técnicas empregadas nas ciências
sociais, reflete a realidade e as práticas sociais com e a partir de
sujeitos coletivos de direitos.
Desenvolvido a partir dos preceitos da Nova Escola Jurídica
Brasileira (NAIR), O Direito Achado na Rua constitui-se como
teoria dialética do Direito que combate o que Roberto Lyra Fi-
lho denominou serem as cinco “inversões” tradicionais do positi-
vismo: tomar a norma pelo Direito; definir a norma pela sanção;
reconhecer apenas ao Estado o poder de “normar” e sancionar;
curvar-se ante o fetichismo do direito positivo; e fazer do direito
um elenco de restrições à liberdade (LYRA FILHO, 1984b, p. 12).
Aplicada à pesquisa, a teoria dialética do Direito busca esquivar-
-se de uma “ontologia furtiva” e anunciar sua concepção de Direi-
to como legítima organização social da liberdade, evidenciando as
limitações do objeto, do sujeito e das análises possíveis.
A exigência da repolitização do direito é enunciada também
como premissa do “pensamento jurídico insurgente e de oposição”
apresentado por Boaventura de Sousa Santos (2011, p. 14-15), que
conta, ainda, com a crítica ao monopólio estatal e científico do di-
reito e com a sua compreensão como princípio e instrumento uni-
versal da transformação social politicamente legitimada. “Nou-
tras palavras, deve-se deslocar o olhar para a prática de grupos e
classes socialmente oprimidas que, lutando contra a opressão, a
160
exclusão, a discriminação, a destruição do meio ambiente, recor-

rem a diferentes formas de direito como instrumento de oposição”
(SANTOS, 2011, p. 15).
As indagações de Roberto Lyra Filho – “O quê é o direito?”
e “Pesquisa em quê direito?” – e de Boaventura de Sousa Santos –
“Pode o direito ser emancipatório?” – são exemplos de questiona-
mentos exigidos à pesquisa desde uma perspectiva crítica, “contra
o desperdício da experiência” (SANTOS, 2011, p. 68).
O Direito Achado na Rua pretende promover uma trans-
formação nas bases metodológicas desenvolvidas no âmbito das
ciências sociais: pretende promover um deslocamento do olhar da
pesquisadora e do pesquisador, do objeto de pesquisa e das aná-
lises realizadas, estimulando um pensar sobre e no Direito que é
politizado, sem descurar dos rigores metodológicos necessários à
investigação científica. Nesse diapasão, a práxis social consiste na
matéria prima por excelência nas pesquisas que são desenvolvidas
sob a perspectiva teórica de O Direito Achado na Rua e a partir
de abordagens empíricas e teóricas.
Quanto à atividade de extensão, revela-se valorosa a obra
“Extensão ou Comunicação?” de Paulo Freire (1983), em que o
autor reflete sobre a atividade extensionista junto aos campone-
ses e camponesas como um ato educativo em uma perspectiva
humanista. Para tanto, analisa semanticamente o termo exten-
são, muitas vezes empreendido como mera transferência de co-
nhecimentos e técnicas, um ato mecanicista, de superioridade
de quem entrega o conteúdo, o que não corresponde a um fazer
educativo libertador.
Criticando esta abordagem, o autor sustenta que a atividade
de extensão deve ser pautada em uma perspectiva humanista, de
tomada de consciência do outro (camponesa e camponês) para
que esse possa ter uma atuação transformadora no meio em que se
encontra. Para alcançar este objetivo, a educadora ou o educador
161
(técnica ou técnico agrícola) deve conhecer o contexto históri-

co, social e cultural em que as camponesas e camponeses estão
inseridos, pois do contrário correm o risco do seu conhecimento
e técnicas assumirem um conteúdo mágico, ou configurarem-se
apenas como um trabalho de adestramento ou de memorização,
sem atitude reflexiva diante do mundo (FREIRE, 1983).
Propondo um desafio conceitual entre extensão e comuni-
cação, Paulo Freire reforça a ideia de que a atividade de conheci-
mento é dialógica, está associada à comunicação entre os sujeitos,
de coparticipação, de interação no mesmo sistema linguístico per-
tencente ao universo comum de ambos. Dessa forma, educação
é comunicação por consubstanciar-se em um diálogo criativo e
uma reflexão solidária, é um desafio a pensar e não a memorizar,
é uma atividade crítica e não dogmática ou autoritária, que exige
uma reconstrução permanente do ato de conhecer por meio da
problematização do conteúdo.
Mais do que uma opção pelo termo extensão ou comunica-
ção, o texto traz à análise a superação da distinção entre ensino
e aprendizagem, educadoras e educadores frente a educandas e
educandos, teoria e prática.
A importância dessa formação humanística encontra res-
paldo também na Resolução CNE/CES nº 9, de 29 setembro de
2004, da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de
Educação, que institui as diretrizes curriculares nacionais do curso
de graduação em Direito, resgatando as diretrizes da Portaria nº
1.886, de 30 de dezembro de 1994, do Ministério da Educação.
No mesmo sentido, de acordo com Boaventura de Sousa
Santos, necessário é o estabelecimento de uma relação dialógica
entre a formação humanística, as normas de direitos humanos e
as lutas jurídicas e sociais pela cidadania e pelo reconhecimento
de direitos. Segundo esse autor, “a educação jurídica deve ser uma
162
educação intercultural, interdisciplinar e profundamente imbuída

da ideia de responsabilidade cidadã” (SANTOS, 2011, p. 64).
O Direito é resultado das lutas sociais, nascendo no cotidia-
no das reivindicações da sociedade por dignidade e justiça. Com
Lyra Filho (1982b, p. 82), “o Direito não é; ele se faz em um proces-
so histórico de libertação”. Nesse diapasão, o ensino adquire um
papel central na transformação e na eficácia do atual sistema de
justiça. Segundo esse mesmo autor (LYRA FILHO, 1982b, p. 88):
O Direito, em resumo, se apresenta como positivação da

liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais
e formula os princípios supremos da Justiça Social que
nelas se desvenda. Por isso, importante não confundi-lo
com as normas em que venha a ser vazado, com nenhu-
ma das séries contraditórias de normas que aparecem na
dialética social.
Desse modo, em virtude de sua dinamicidade, o Direito deve

ser encarado dentro das evoluções, recuos e contradições existen-
tes na dialética social. Como aponta Marilena Chauí (1982, p. 29):
A apreensão do Direito no campo das sociais e políticas

entre classes, grupos e Estados diferentes permite melhor
perceber as contradições entre as leis e a Justiça e abrir a
consciência tanto quanto a prática para a superação des-
sas contradições. Isto significa abrir o Direito para a His-
tória e, nessa ação, para a política transformadora.
A importância da extensão se insere justamente na discussão

em comento. Isso porque ela possibilita o desenvolvimento de um
trabalho cooperativo e solidário, despertando nas e nos estudantes
uma visão crítica do Direito e da realidade social, possibilitando
a superação da dicotomia teoria-prática como dois momentos dis-
tintos de realização da atividade acadêmica. O Direito Achado
163
na Rua questiona essa divisão na medida em que se assume que

não há teoria sem prática e nem prática sem teoria. A formulação
teórica deve ser feita a partir da realidade social, pois se destina a
ela e dela é oriunda.
O Direito Achado na Rua possibilita a construção social do
conhecimento jurídico e da prática do Direito. Direito esse que
não se aprende apenas nas salas de aula, uma vez que “o Direito
não é uma coisa fixa, parada, definitiva e eterna, mas um processo
de libertação permanente” (LYRA FILHO, 1982b, p. 82). Ade-
mais, assim como o Direito, o ensino jurídico dever ser compreen-
dido como algo dinâmico, em contínua construção. Conforme
destaca Agostinho Marques Neto (1982, p. 168-169):
Não será com simples reformas curriculares, mas com a

definição de um novo tipo de ensino em consonância com
um novo tipo de ciência jurídica dialeticamente integra-
da à realidade social, que se poderão propor novos obje-
tivos para um ensino de Direito engajado na construção
de uma sociedade melhor e mais justa. Só então o ensi-
no jurídico deixará de constituir uma simples e alienada
transmissão de conhecimentos, para assumir o caráter de
atividade visceralmente ligada à pesquisa e à extensão,
enriquecendo-as e enriquecendo-se com elas, dentro de
um sistema universitário aberto à investigação e à crítica.
Nesse sentido, é importante destacar, de acordo com o refe-

rencial abordado acima, práticas diferenciadas no âmbito do en-
sino, da pesquisa e da extensão, quais sejam: a pesquisa-ação, o
ensino crítico e a extensão popular.
164
3.2. Pesquisa-ação, Ensino Crítico e Extensão

Popular: Diálogos Libertários
Recorrendo à metáfora da “rua” para invocar o sentido de es-
paço público constituinte em que são instituídas novas formas de
sociabilidades e reconhecimentos recíprocos (SOUSA JÚNIOR,
2007), O Direito Achado na Rua pode dar novas contribuições ao
ensino, à pesquisa e à extensão em Direito e Direitos Humanos,
com objetivos sociais mobilizadores.
A expressão “diálogos libertários” é tomada aqui no contexto
de abertura da Universidade ao diálogo e à promoção do debate,
atendendo à sua vocação orientada pelo princípio da indissociabi-
lidade do tripé pesquisa, ensino e extensão e ao (re)conhecimen-
to de práticas insurgentes, de sujeitos coletivos e novos direitos e
juridicidades. A qualificação de “libertário” ao diálogo proposto,
por sua vez, perpassa a dimensão constitutiva da liberdade, com-
preendida aqui como uma construção, “uma possibilidade de ser”
(SOUSA JÚNIOR, 2011, p. 27). A liberdade no agir que é realiza-
da historicamente e de forma conjunta. “A liberdade como possi-
bilidade de ser” (AGUIAR, 2000, p. 254) que é, necessariamente,
atrelada à emancipação.
Nesse sentido, vale destacar recente publicação da Faculdade
de Direito da Universidade de Brasília (UnB), a Revista do Progra-
ma de Educação Tutorial de Direito da UnB, que identificou que a
proposta de O Direito Achado na Rua “coaduna-se perfeitamente
com a proposta atual do PET-SESU-MEC, que busca, na integra-
ção do ensino, pesquisa e extensão, a realização da ideia de Uni-
versidade.” (COSTA, 2013b, p. 21-22). Realização esta que, para
Leila Chalub Martins61, é qualificada a ponto de constituir “(...) a
61 Em sua análise, Martins (2007, p. 7-10), então Decana de Extensão da UnB,

identifica em O Direito Achado na Rua uma iniciativa compromissada com uma
165
primeira e mais significativa intelectual, no sentido de responder

ao que cobrava Darcy Ribeiro, no momento do ‘renascimento’ da
Universidade de Brasília.” (MARTINS, 2007, p.8).
Nesse percurso, é importante apresentar as metodologias
contra-hegemônicas que se relacionam com O Direito Achado na
Rua a partir de alguns aspectos: a extensão como construção so-
cial; o papel da metodologia participativa; e as dimensões crítica e
reflexiva (THIOLLENT, s/d). Merecem destaque nessa discussão
o ensino crítico, a pesquisa-ação e a extensão popular, aqui com-
preendidas como expressões práticas pedagógicas, investigativas e
interventivas desenvolvidas com o objetivo de abrir a Universida-
de à sociedade e qualificá-la como emancipatória.
Neste movimento contra-hegemônico, situam-se as teorias
pedagógicas que buscam orientar a educação para a transforma-
ção da sociedade (SAVIANI, 2008). Essa visão crítica se empe-
nhou em desmontar os argumentos da concepção pedagógica pro-
dutivista, responsável pela formação de mão de obra barata cuja
função é atender o mercado, favorecendo apenas um pequeno nú-
mero de setores sociais (BERALDI, 2013).
Destaque-se que justamente no âmbito do ensino superior
há a possibilidade do desenvolvimento de um pensamento críti-
co, criativo e contextual às habilidades e técnicas profissionais,
“examinando-lhes a eficácia social e seus efeitos bem como os usos
políticos, sociais e econômicos que se possa fazer deles – da técni-
ca e do saber científico” (MACHADO, 2009, p. 86).
Analisando a prática da educação em Direito, observa-se que
o ensino jurídico introduzido no Brasil, nascido legalista e dogmá-
tico, dificulta o processo de questionamento das ideologias que o
“mudança pedagógica silenciosa” (2007, p. 9) em que é intensificado o envolvimento

da comunidade acadêmica com a extensão universitária e uma reorganização do
fazer universitário.
166
integram. Ideologias estas que perpassam, inclusive, a opção pela

manutenção da exclusão social e da restrição do acesso e popula-
rização da Universidade, e que contribuem para a construção de
um espaço institucional pensado para uma alta elite (SIQUEIRA,
2012). As escolas de Direito surgem em um momento de cresci-
mento do país, com o intuito de suprir as necessidades burocráti-
cas a partir da formação intelectual de uma classe burguesa genui-
namente brasileira que pudesse guiar a esfera jurídica e política do
Brasil (MACHADO, 2009). Desta forma, a elite brasileira teria o
controle ao seu alcance, mantendo os valores societários segrega-
cionistas. De acordo com Machado (2009, p. 93):
O ensino segue assim de forma idealista, por meio de uma

epistemologia que não responde satisfatoriamente aos re-
querimentos sociais e não permite sequer a emancipação
mesma do jurista, porquanto não proporciona a este, fora
do formalismo normativista, qualquer condição para dis-
cutir conscientemente os valores que permeiam os con-
textos político-sociais onde se realizam o seu saber e a sua
vivência profissional.
Esse modelo dogmático e conservador do ensino jurídico

ainda permanece nos dias atuais e, conforme alerta Lyra Filho
(1982b), o problema do ensino jurídico não está apenas na forma
errada de como é ensinado, mas também na errada concepção do
direito que se ensina. Para esse autor, a redução do Direito ao or-
denamento jurídico estatal é uma visão deturpada da compreen-
são do fenômeno jurídico em sua totalidade.
Cabe acrescentar que um “novo ensino jurídico” implica não
somente a implementação de técnicas e estratégias pedagógicas
mais atualizadas, mas também um reexame do que, secularmente,
vem se mostrando como “fenômeno jurídico”, ou seja, “o problema
167
pedagógico no Direito não é só de formas, mas também dos con-

teúdos transmitidos.” (WARAT, 2004, p. 362).
Machado (2009) propõe uma formação interdisciplinar que
proporcione às e aos futuros profissionais do Direito uma visão crí-
tica que os habilite a enxergar o fenômeno jurídico além dos limi-
tes estreitos do legalismo positivista, identificando o Direito como
fenômeno sociojurídico-político. Além disso, propõe o “estímulo a
compromissos que propiciem conciliar o exercício da vida profis-
sional com o exercício da cidadania, na perspectiva de um uso do
direito que possa contribuir para com o alargamento dos canais de
acesso à justiça e de participação política.” (MACHADO, 2009, p.
239). Faz-se necessária, portanto, uma prática educativa que ques-
tione e transforme essa visão estreita do direito, reconfigurando
seu conteúdo, acesso e controle, e contribuindo para a conquista
da emancipação humana.
No âmbito específico do Direito e dos Direitos Humanos,
é importante caracterizar a disciplina de prática jurídica, realiza-
da por meio de escritórios modelos e núcleos de prática jurídica
(NPJs), e as atividades de extensão como vetores do ser e fazer
universitários engajados com a realidade e os problemas sociais.
Institucionalizada na década de 1990, pela Portaria nº 1.886,
de 30 de dezembro de 1994, a previsão e obrigatoriedade do eixo
de formação prática no âmbito do ensino jurídico com vistas a
uma formação humanística da e do estudante do curso de Direito,
constitui uma estratégia pedagógica que propicia, ao mesmo tem-
po, condições à e ao estudante para que desenvolva habilidades
necessárias à sua atuação profissional – especialmente consideran-
do as necessidades de um saber jurídico que também é técnico – e
a integração necessária aos conhecimentos teóricos e práticos. A
prática jurídica realizada pela assistência jurídica gratuita à co-
munidade e/ou seguindo diferentes modelos pedagógicos e orga-
nizacionais, consiste em ferramenta que atende à responsabilidade
168
social do ensino jurídico universitário e às exigências de formação

humanista da e do profissional da área do Direito.
A prática jurídica e a extensão são exemplos de ações que
tendem a romper com a “cultura normativista técnico-burocrá-
tica” (SANTOS, 2011, p. 81-97) dominante, a partir da aproxi-
mação entre estudantes, saber/fazer universitários e a sociedade.
Boaventura de Sousa Santos (2011, p. 81-97), analisando o ensino
jurídico e a formação profissional na área do Direito, identifica
a “cultura normativista, técnico-burocrática” como sendo aquela
que se manifesta de múltiplas formas: pela priorização do direito
civil e penal; pelo estímulo a uma formação generalista; pela disse-
minação de uma ideia de autonomia das aplicadoras e dos aplica-
dores tal que incentiva a desresponsabilização sistêmica daquelas
e daqueles frente aos maus resultados do desempenho do sistema;
pela manutenção do privilégio do poder; pela preferência por um
regime burocrático e institucional; pelo desenvolvimento de com-
petências hábeis a manusear a técnica jurídica, porém, incapaz de
interpretar a realidade, como se esta pudesse estar desconexa com
aquela; e, por fim, pela relutância à colaboração interdisciplinar,
com estímulo à independência como autossuficiência.
É nesse contexto que o ensino crítico e a extensão popular
ganham maior relevo, como forma contra-hegemônica de promo-
ver o ensino jurídico e a formação profissional na área do Direi-
to. Práticas e experiências vêm sendo construídas em todo país,
em resposta ao que Paulo Freire chamou de “educação bancária”,
e que consistem no que Boaventura de Sousa Santos reconhece
como “nova possibilidade de formação” (SANTOS, 2011, p. 93).
Nas palavras desse sociólogo (SANTOS, 2011, p. 93):
Esta questão torna-se ainda mais pertinente quando se ob-

serva que existem, afinal, experiências que estão resistindo
ao modelo hegemônico e construindo uma nova possibili-
169
dade de formação. Vejam os exemplos dos projetos “Polos

de cidadania”, dinamizados por Miracy Gustin Barbosa,
na Universidade Federal de Minas Gerais, e “O Direi-
to Achado na Rua”, desenvolvido há mais de vinte anos
na Universidade de Brasília, sob a direção de José Geral-
do de Sousa Junior e a inspiração de Roberto Lyra Filho.
Com a visão clara de que é necessário romper com o ensino

tradicional no curso de Direito e, também, assumindo a responsa-
bilidade de impulsionar um projeto contra-hegemônico de ensino
jurídico e formação profissional, O Direito Achado na Rua, como
veremos posteriormente, lançou as bases necessárias para a cons-
tituição de um Núcleo de Prática Jurídica no âmbito da Faculdade
de Direito da Universidade de Brasília (NPJ/UnB), desenvolveu
um curso de capacitação de assessorias jurídicas populares e origi-
nou projetos de extensão que carregam em si o mesmo potencial
emancipatório e libertário.
Atendendo a essa especificidade, as atividades extensionis-
tas também merecem destaque, com a particularidade de serem
desenvolvidas a partir da nucleação do protagonismo estudantil.
A extensão universitária é a principal forma pela qual a Uni-
versidade se relaciona com a sociedade (ZENAIDE, 2013). Em um
contexto marcado pela necessidade de transformações sociais e por
um histórico de luta por direitos e justiças, a extensão figura no
que José Antônio Peres Gediel chamou de “canal de comunica-
ção com a sociedade, para que o conhecimento acadêmico possa
reconhecer novos problemas e renovar posições teóricas a serem
testadas, por meio da pesquisa, e a serem analisadas em sala de
aula.” (GEDIEL, 2014, p. 84). Como afirma Costa (2007, p. 11), “a
extensão universitária constitui-se como a oportunidade do saber
científico desenvolver-se com sua abertura para a sabedoria criada
e posta em prática na dinâmica social.”. E acrescenta que, na medi-
170
da em que é realizada a extensão universitária, “sobretudo voltada

para a cidadania e para os direitos humanos, a sociedade ganha por
desenvolver processos de autonomia na sua luta emancipatória, e a
Universidade ganha na medida em que aprende com a comunidade
suas formas de realização social.” (COSTA, 2007, p. 11).
A extensão ocupa uma funcionalidade qualificadora do en-
sino e da pesquisa, tanto no aspecto do resgate e assunção da res-
ponsabilidade social da universidade em seu contexto, como no
aspecto do reconhecimento e nucleação do saber/fazer emanci-
patório e popular para a educação jurídica. A respeito, importa
destacar os estudos desenvolvidos pelo grupo de pesquisa jurídica
“Movimento Direito”, criado em 2007 e composto por pesquisa-
doras e pesquisadores de diferentes instituições universitárias. O
grupo trabalha com e a partir da perspectiva teórica de O Direito
Achado na Rua, problematizando o Direito como vida e movimen-
to. Em estudo recente, o grupo analisa a extensão como elemento
modificador da educação jurídica, dado à dinâmica que é estabe-
lecida entre o saber jurídico e o saber popular (COSTA, 2013a).
A extensão universitária traz em si o potencial de dotar as
estudantes e os estudantes de “instrumental empírico, analítico
e crítico, de modo que se percebam como capazes de propor so-
luções novas e alternativas ao dogmatismo jurídico” (SANTOS,
2011, p. 59), abrindo a Universidade à diversidade jurídica que lhe
é externa ao tempo em que contribui para a formação crítica das
e dos estudantes. Para Boaventura de Sousa Santos (2011), três
características principais devem estar presentes no ensino jurídico
para que esse possa combater os pilares da “cultura normativista
técnico-burocrática”: a interculturalidade, a interdisciplinaridade
e a responsabilidade cidadã.
A extensão universitária popular propõe uma relação dialéti-
ca entre teoria e prática, ou seja, o conhecimento acadêmico sen-
do praticado correlacionado à comunidade, na busca de romper
171
as barreiras de uma academia introspectiva, a fim de que o saber

ali produzido possa ser conectado às experiências e saberes dos di-
versos grupos que compõem a sociedade. Como reflete José Melo
Neto (2005), compreendendo que o saber popular é tão importan-
te quanto o conhecimento científico, a troca de saberes ocorre de
modo horizontal, onde o grupo com o qual se trabalha torna-se
sujeito ativo e não mero recipiente de conhecimento.
A prática da extensão jurídica popular possibilita diversas
rupturas epistemológicas, teóricas, políticas e pedagógicas, e, por
se constituir através da experiência, “os processos de aprendizado
de conceitos e princípios teóricos a partir de reflexões problema-
tizadas em contextos sociais concretos possuem o potencial de
atribuição de significados que, para além da cognição, possibili-
tam um envolvimento existencial ético e social com o aprendido”
(TOKARSKI, 2009, p. 128).
Outra dimensão que nos propomos a analisar são as práticas
de pesquisa construídas desde uma perspectiva libertária.
É preciso destacar que, desde sua concepção, O Direito
Achado na Rua preocupa-se com a qualidade das pesquisas que
desenvolve e com a formação de suas pesquisadoras e pesquisado-
res. Além do Coletivo “Diálogos Lyrianos”, que se constitui como
espaço para integração e diálogo entre os grupos e projetos de pes-
quisa, ensino e extensão de O Direito Achado na Rua, em 1987 foi
constituído um grupo de pesquisa62, coordenado pelos professores
José Geraldo de Sousa Júnior e Alexandre Bernardino Costa.
A constituição do grupo atende à demanda por informações
sistematizadas e disponíveis sobre as atividades de “O Direito
Achado na Rua”, registra as produções e a evolução histórica das
pesquisas e dos projetos executados sob esse referencial e congrega
62 Informações sobre o Grupo podem ser conferidas online. Disponível em: <dgp.
cnpq.br/dgp/espelhogrupo/9125279471352609>. Acesso em: 19 out. 2014.
172
pesquisadoras e pesquisadores, estudantes e docentes em torno de

linhas temáticas compartilhadas.
As pesquisas desenvolvidas sob a égide de O Direito Achado
na Rua desafiam deslocamentos múltiplos que serão aqui anun-
ciados e, a partir da técnica da pesquisa-ação, exemplificados.
Deslocamentos estes que foram apresentados pelos professores
José Geraldo de Sousa Junior, Antônio Escrivão Filho e Lívia Gi-
menes em recente painel sobre O Direito Achado na Rua, reali-
zado no ano de 2014 durante o IV Encontro de Pesquisa Empírica
em Direito, que teve como mote norteador e intitulador do even-
to a indagação “Pesquisa empírica: em quê direito?”63, formulada
com declarada inspiração em Roberto Lyra Filho. A partir de tal
provocação, pesquisadoras e pesquisadores de todo o país foram
chamados a refletir sobre a pesquisa empírica em Direito a par-
tir de uma perspectiva que – utilizando metáfora lyriana – não
padece a uma “ontologia furtiva” e enfrenta o desafio de refletir
e expor o conteúdo do Direito, já que este repercute, invariavel-
mente, sobre a pesquisa.
Como síntese das exigências críticas de O Direito Achado na
Rua à pesquisa em Direito e Direitos Humanos, os mencionados
expositores e a expositora indicaram: a adoção de marcos empí-
ricos do pluralismo jurídico, de modo a considerar a práxis social
instituinte de direitos; a consideração de experiências sociais de
criação, aplicação ou vivência de direitos e sistemas normativos
alternativos ao monismo estatal; o deslocamento dos espaços e
instituições onde tradicionalmente se reconhece a condição de
produção e aplicação do Direito; o deslocamento dos sujeitos da
pesquisa em Direito: da e do jurista e das profissões jurídicas no in-
63 Conferir informações sobre o IV Encontro da Rede de Estudos Empíricos em Direito

no site da REED. Disponível em: <http://reedpesquisa.org/iv-eped/>. Acesso em:
30 set. 2014.
173
terior do sistema de justiça para os movimentos sociais e outros su-

jeitos tradicionalmente negados e invisibilizados pela cultura nor-
mativista, técnico-burocrática hegemônica (informação verbal).64
Parte-se da premissa de que a ciência é uma forma social de
construção de conhecimentos e compreensões sobre a realidade,
e, como tal, constitui poder político em disputa. A pesquisa par-
ticipante, como estratégia contra-hegemônica de construção de
conhecimentos e compreensões da realidade, obedece, segundo
Borda, a princípios básicos: (a) autenticidade e compromisso da
pesquisa com a causa popular; (b) antidogmatismo; (c) restitui-
ção sistemática, traduzida como técnica desalienadora que forma
novo conhecimento em nível popular; (d) feedback dialético aos
intelectuais orgânicos; (e) ritmo e equilíbrio de ação-reflexão; e
(f) ciência modesta e técnicas dialogais (BORDA, 1981, p. 49-56).
A pesquisa-ação é então identificada como técnica inserida
no espectro metodológico mais amplo da pesquisa participante, que
apresenta como elemento distintivo a intervenção na realidade que
promove. O que está sendo pesquisado é, portanto, alterado a partir
do sujeito que pratica a pesquisa-ação, que, segundo David Tripp
(2005, p. 447), pode ser caracterizada como um tipo de pesquisa
inovadora que é desenvolvida de forma contínua e proativa, permi-
te a participação dos sujeitos (pesquisadoras e pesquisadores fren-
te a pesquisadas e pesquisados) nos processos de investigação, de
modo a intervir na realidade, problematizando-a deliberadamente.
A pesquisa-ação é compreendida, portanto, como uma práti-
ca insurgente de pesquisa voltada ao fato social e que possui a po-
tencialidade de incidir na realidade, desde uma perspectiva eman-
cipadora. Assim caracterizada, torna-se fácil compreender suas
64 Notícia fornecida por Antônio Escrivão Filho e Lívia Gimenes, sobre o IV Encontro
de Pesquisa Empírica em Direito, realizado em Brasília, entre os dias 08 e 12 de
setembro de 2014.
174
interconexões com O Direito Achado na Rua e o seu potencial

libertário. Recorrendo às técnicas tradicionais da pesquisa social,
as metodologias de O Direito Achado na Rua fundamentam-se
no diálogo entre os saberes e conhecimentos, traduzido em sua
interdisciplinaridade, na horizontalidade na construção dos pro-
cessos de apreensão da realidade social e no potencial modificador
em benefício das causas populares, comprometidas com um saber
que transcende os muros da Universidade e encontram nas ruas,
lugar metafórico de construção histórica do social, sua expressão
máxima instituinte.
Por fim, é importante enfatizar o papel da interdisciplinari-
dade, a partir da proposição de O Direito Achado na Rua como
possibilidade de um conhecimento que supere a distância entre a
teoria e a prática e que busque a conexão entre os saberes científi-
cos (COSTA; SOUSA JÚNIOR, 2008, p. 24):
A interdisciplinaridade se impõe como forma de com-

preender e explicar o mundo sem estar presa a “caixas” ou
“gavetas”. Embora não negue a importância do aprofun-
damento e da especialização, a tentativa de construção
de um conhecimento específico não pode fazer com que
se saiba cada vez mais de muito pouco, o que significa
nada saber. Vale observar que a interdisciplinaridade bus-
ca uma coesão de saberes diferentes (Direito, Economia,
Política, Psicologia, Sociologia, etc.) [...].
Referenciados os marcos políticos, teóricos e epistemológicos

da concepção de ensino pesquisa e extensão de O Direito Acha-
do na Rua, como estratégia analítica, serão então apresentadas
algumas experiências inovadoras em Direito e Direitos Humanos,
todas desenvolvidas sob o marco teórico e projeto de O Direito
Achado na Rua.
175
3.3. Experiências Inovadoras em Direito e Direitos

Humanos: Ocupar, Resistir e Produzir65
As temáticas de O Direito Achado na Rua e do Pluralismo
Jurídico, bem como suas perspectivas teóricas e metodológicas,
vêm se mantendo em constante diálogo com novas iniciativas,
permitindo a sua aplicação para diversas experiências mais recen-
tes, seja no âmbito do ensino, da pesquisa e da extensão em Direi-
to e Direitos Humanos, seja nas novas relações estabelecidas entre
os movimentos populares e o ambiente acadêmico.
As perspectivas teóricas e práticas da pesquisa-ação, do en-
sino crítico e da extensão popular estão presentes em diversos
espaços acadêmicos ou da sociedade civil. Metodologicamente,
e diante da impossibilidade de realizar um mapeamento extenso
no contexto deste livro, priorizamos o levantamento de algumas
experiências que têm se relacionado mais diretamente com esses
marcos teóricos e trazem novidades para se pensar o Direito e os
Direitos Humanos.
O Direito Achado na Rua, ao longo de quase três décadas
de existência, desenvolveu e fomentou experiências diversificadas.
Nair Heloisa Bicalho de Sousa, Alexandre Bernardino Costa, Lí-
via Gimenes Dias da Fonseca e Mariana de Faria Bicalho (2010,
p. 43-53), em estudo sobre os 25 anos de experiência de extensão
universitária de “O Direito Achado na Rua”, analisam os prin-
65 Palavra de ordem do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, no seu 2º

Congresso Nacional em 1990, que sintetiza os seus desafios: o fortalecimento dos
setores, a organização interna dos assentamentos e acampamentos, a busca da
autonomia política e financeira da organização e os debates e a elaboração de uma
proposta política e organizativa para o setor de produção. Disponível em: <http://
www.mst.org.br/node/840>. Acesso em: 20 set. 2014. Nesse subtítulo, tal expressão
é utilizada no sentido de destacar a importância de novas experiências em direito e
direitos humanos que dialoguem com os movimentos sociais e se fortaleçam a partir
da atuação coletiva.
176
cipais projetos implementados no âmbito da UnB. As autoras e

autor resgatam as seguintes experiências: “Direito à Memória e à
Moradia”; “Ceilândia: Mapa da Cidadania em Rede na Defesa dos
Direitos Humanos e na formação do novo profissional do direi-
to”; “Direitos Humanos e Gênero: Promotoras Legais Populares”;
“Projeto UnB/Tribuna do Brasil: coluna de o Direito Achado na
Rua”; “Projeto de Extensão Tororó”; “Observatório Permanente da
Justiça brasileira”; e “Educação Popular e Direitos Humanos: ca-
pacitação de atores sociais no Distrito Federal e Estado de Goiás”.
O projeto Direito à Memória e à Moradia66 desenvolveu-se
a partir da experiência do Núcleo de Prática Jurídica e Escritó-
rio de Direitos Humanos e Cidadania da Faculdade de Direito
da UnB (NPJEDHC), que atuou no acompanhamento da análise
dos processos das famílias do Acampamento da Telebrasília. Essa
comunidade, que vindicava o direito à moradia qualificado pela
localização adequada e pelo acesso a serviços básicos, buscou o
assessoramento do projeto em um momento crítico de sua his-
tória: a eminência da retirada forçada dos moradores da área e
posterior transferência para o Bairro Telebrasília, construído para
esta finalidade. Maria Elenir Nardi explica que a identidade da
comunidade foi construída desde o início de sua formação, em
1956, quando era chamada de Acampamento Camargo Correia,
nos anos iniciais da construção de Brasília ([s/a], p. 34). A orga-
nização comunitária aparece como fortificação da resistência que
levou a Associação de Moradores a lutar por uma concepção de
Direito à moradia forjado pelas experiências vividas pela comuni-
66 Informações sobre o projeto estão disponíveis na obra “Direito à memória e à

moradia” (SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de; COSTA, Alexandre Bernardino
(org.). Direito à memória e à moradia: realização de direitos humanos pelo
protagonismo social da comunidade do Acampamento Telebrasília. Brasília:
Universidade de Brasília, [s/d]).
177
dade: uma identidade e um sujeito coletivo originados da luta pelo

Direito de morar.
“Ceilândia: Mapa da Cidadania em Rede na Defesa dos Di-
reitos Humanos e na formação do novo profissional do direito”, por
sua vez, foi um projeto67, igualmente desenvolvido no NPJEDHC e
teve como objetivo principal compreender experiências populares
de criação de direitos em Ceilândia/DF. Para tanto, foi realizada
uma pesquisa de campo com diversas organizações da sociedade
civil e do Estado, a fim de subsidiar levantamento de dados e cons-
trução de perfis que incluíssem informações sobre a organização
interna e externa da entidade, o programa adotado e suas cone-
xões com os Direitos Humanos, as parcerias firmadas, o perfil das
e dos dirigentes e a sua contribuição para a constituição de uma
rede de direitos humanos na localidade (SOUSA et al, 2010, p.
47). Presente desde a concepção do projeto, a inquietação sobre
as formas de atuação jurídica de novos sujeitos sociais rendeu, ao
final das atividades, importantes resultados: o fortalecimento da
participação comunitária e do diálogo entre as organizações que
atuam em defesa dos direitos humanos.
No ano de 2004 foi desenvolvido o “Projeto de Extensão
Tororó”, com base no “direito à educação e a educação do direi-
to” (PINHEIRO et al, 2007, p. 123). A comunidade do Tororó
constitui-se próxima às cidades de São Sebastião e Santa Maria,
no Distrito Federal, e apresentou como pauta reivindicatória a luta
coletiva pelo acesso à educação, já que os índices de analfabe-
tismo na localidade eram elevados. Desde o início do projeto, a
comunidade apresentava “o desejo de se apropriar do seu direito
não realizado” (PINHEIRO et al, 2007, p. 133), contribuindo para
67 Para maiores informações sobre o projeto, conferir a obra “Ceilândia: mapa da

cidadania”. MACHADO, Maria Salete Kern; SOUSA, Nair Heloisa Bicalho de.
Ceilândia: mapa da cidadania. Brasília: Universidade de Brasília, [s/d].
178
que o projeto de extensão desenvolvesse atividades com base na

educação popular e tivesse, como sua principal frente de atuação,
a mobilização para promoção da Educação de Jovens e Adultos. A
metodologia utilizada pelo projeto como estratégia de atuação foi a
realização de “círculos de cidadania”, com inspiração nos círculos
de cultura de Paulo Freire (SOUSA et al, 2010, p. 49). A partir dos
círculos, foi estabelecido um processo de aprendizagem “dialógico,
horizontal e emancipatório” (SOUSA et al, 2010, p.50), capaz de
contribuir para a identificação de experiências não convencionais
de criação e percepção do Direito e da justiça.
O projeto “Direitos Humanos e Gênero: Promotoras Legais
Populares”, como será visto em item posterior, consiste em um
projeto com quase dez anos de realização no NPJ/UnB, iniciado
em 2005 e que trabalha com as premissas da educação jurídica
popular e tem como principal objetivo a formação e capacitação
de Promotoras Legais Populares para o reconhecimento de direitos
e a luta contra a violência de gênero realizada contra as mulheres.
Em 2005, é realizado o “Projeto UnB/Tribuna do Brasil:
coluna de o Direito Achado na Rua”, concebido a partir de um
convite realizado pelo jornal “Tribuna do Brasil”, de Brasília, ao
professor doutor José Geraldo de Sousa Júnior e que, em associa-
ção colaborativa da coordenação do NPJ/UnB, configurou em
uma coluna semanal publicada pelo jornal, na qual as estudantes
e os estudantes, sob supervisão de docentes, estudantes de pós-
-graduação e monitoras e monitores, respondiam às dúvidas sobre
Direito e justiça que a população local apresentava, no formato de
cartas ao jornal. As respostas, elaboradas pelas e pelos estudantes,
eram delineadas a partir da diretriz teórica e emancipatória de O
Direito Achado na Rua, e possibilitou às e aos participantes uma
formação humanística e sensível às demandas sociais.
O projeto “Educação Popular e Direitos Humanos: capacita-
ção de atores sociais no Distrito Federal e Estado de Goiás”, por
179
sua vez, teve como objetivo maior contribuir para a constituição

de núcleos comunitários de direitos humanos. Para tanto, adotou
a perspectiva da educação popular com vistas à capacitação de
500 atores sociais representantes da sociedade civil organizada, lo-
calizados em área de vulnerabilidade no DF e no Estado de Goiás.
Além dessas experiências, outras, novas, podem ser agrega-
das ao inventário de ações em extensão e pesquisa em Direito e
Direitos Humanos de O Direito Achado na Rua: o Observatório
da Constituição e da Democracia, desenvolvido em 2006 e a As-
sessoria Jurídica Universitária Popular Roberto Lyra Filho, funda-
da em assessoramento e educação jurídica popular a movimentos
sociais no DF, que será posteriormente relatada.
3.3.1. Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade de

Direito da Universidade de Brasília
A constituição de um Núcleo de Prática Jurídica vinculado
à Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (NPJ/UnB)
tem, em sua iniciativa e marco originário, O Direito Achado na
Rua. Compreendidas no contexto da reforma universitária, da ins-
titucionalização de eixo de formação prática e da integração das
atividades de extensão com a assunção de responsabilidade social
universitária, duas experiências fundadas pelo O Direito Acha-
do na Rua antecederam a instituição do NPJ/UnB: a criação, em
1984, de um Escritório Modelo destinado a promover a disciplina
prática às e aos estudantes de Direito, por meio da prestação de
assistência jurídica gratuita; e o desenvolvimento do Núcleo de
Prática Jurídica e Escritório de Direitos Humanos e Cidadania
(NPJEDHC), coordenado pelos professores José Geraldo de Sousa
Júnior e Alexandre Bernardino Costa.
180
O projeto do NPJEDHC foi desenvolvido em parceria com o

Ministério da Justiça, Secretaria de Estado dos Direitos Humanos,
seguindo diretriz contida no Plano Nacional de Direitos Huma-
nos, com o desafio de “construir um modelo exemplar de excelên-
cia para a defesa dos direitos humanos e da cidadania, a partir das
novas exigências de prática jurídica necessária à formação do novo
perfil do profissional do Direito” (MACHADO; SOUSA, [s/d], p.
11). Desenvolveu-se em duas áreas de atuação: Ceilândia, a área
de maior população do Distrito Federal, que foi constituída a par-
tir de uma Campanha de Erradicação de Invasões (CEI), sendo o
local de atuação do Escritório Modelo da Faculdade de Direito da
UnB; e o Acampamento da Telebrasília, comunidade que teve em
sua história o desafio de efetivar o direito à moradia e que contou
com o assessoramento jurídico do projeto.
Em suas origens, identificamos os “fundamentos teórico e
político orientados segundo a concepção de O Direito Achado na
Rua” (MACHADO; SOUSA, [s/d], p. 13) e tratou de analisar, a
partir de experiências populares de criação de direitos, a determi-
nação do espaço político no qual práticas jurídicas de enunciação
de direitos são desenvolvidas, a definição da natureza jurídica do
sujeito coletivo emergente e o enquadramento de dados derivados
das práticas sociais criadoras de direitos.
José Geraldo de Sousa Júnior e Alexandre Bernardino Cos-
ta destacam como objetivos do projeto a facilitação do acesso
à justiça às comunidades por meio do reconhecimento das di-
mensões da dignidade humana e da “materialização do direito
à moradia como condição básica e núcleo essencial à afirmação
dessa dignidade e a atuação nas áreas cível, penal e trabalhista
decorrentes de demandas imediatas das carências constitutivas
do que na proposta se denominou ‘pólos pró-cidadania’” (SOU-
SA JÚNIOR; COSTA, [s/d], p. 12).
181
Assim delineado, o projeto deu as bases necessárias para a

nucleação de um espaço para o reconhecimento e efetivação de
direitos, com protagonismo da comunidade e atuação direta da
comunidade acadêmica da UnB.
O NPJ/UnB nasce e desenvolve-se com interação da uni-
versidade com o local e o tempo em que está inserida. Segundo
Mamede Said Maia Filho (2007, 2007, p. 29) “Para ser útil e pro-
ducente, ela [a universidade] precisa dialogar com a coletividade
que a cerca, interagindo de modo a proporcionar-lhe os conhe-
cimentos e saberes que vão sendo gerados.” Essa interatividade
é necessária para que a universidade aprenda com a sociedade,
“porque é da sociedade que extrai a matéria-prima que molda a
produção científica, cultural e pedagógica que lhe caracteriza.”
(MAIA FILHO, 2007, p. 29). Resultado dessa interação, o NPJ/
UnB apresenta um amplo rol de atividades de ensino, pesquisa e
extensão universitária.
No âmbito do ensino superior, são oferecidas disciplinas de
prática jurídica68 ao curso de Direito, consistentes no Estágio 2 e 3
da grade curricular. Como atividade fundamental das disciplinas
práticas, encontra-se o atendimento jurídico na área cível que é
oferecido de forma gratuita e permanente à população de baixa
renda de Ceilândia, região administrativa do Distrito Federal em
que está localizado o NPJ/UnB. As e os estudantes69 são organiza-
dos em grupos e incumbidos da responsabilidade de atender a co-
munidade, esclarecendo dúvidas sobre direitos e providenciando
as medidas necessárias para a resolução de conflitos e satisfação de
68 Informações sobre as disciplinas de prática jurídica podem ser obtidas no site

da Faculdade de Direito da UnB. Disponível em: <http://www.fd.unb.br/index.
php?option=com_zoo&task=item&item_id=254&Itemid=2994&lang=br>.
Acesso em: 19 out. 2014.
69 A cada semestre, pelo menos uma centena de estudantes cursam as disciplinas de
prática jurídica, sob supervisão de quatro docentes da Faculdade de Direito da UnB.
182
interesses. Sob supervisão de professoras orientadoras e professo-

res orientadores, as e os estudantes são estimulados, pelo contato
direto com situações de conflitos reais, a desenvolver criativamen-
te alternativas para as demandas que lhes são apresentadas. As
atividades decorrentes são variadas: sessões de mediação para re-
solução extrajudicial de conflitos, elaboração de peças processuais
para ajuizamento de ações judiciais, acionamento da rede de assis-
tência social para esclarecimentos e instauração de procedimentos
administrativos, interação com o sistema de justiça e segurança
pública para resguardar direitos das cidadãs e dos cidadãos.
Os dados sobre o período de 1998 a 2013 são reveladores:
o NPJ/UnB realizou mais de 31 mil atividades, incluindo atendi-
mentos a mais de 16 mil pessoas e famílias. Os benefícios sociais
alcançados pela implementação do NPJ/UnB em Ceilândia são de
grande proporção e contam, em boa medida, com o incremento
dos serviços e o atendimento realizado por atividades associadas a
três projetos de extensão, todos coordenados por docentes ligados
à linha O Direito Achado na Rua: “Assessoria Jurídica Universi-
tária Roberto Lyra Filho”, coordenada pelo professor José Geraldo
de Sousa Júnior; “Direitos Humanos e Gênero: Promotoras Legais
Populares”, coordenada pela professora Bistra Stefanova Aposto-
lova; e “Maria da Penha: atenção e proteção às mulheres em situa-
ção de violência doméstica e família”, coordenado pela professora
Ela WieckoVolkmer de Castilho.
183
3.3.2. Assessoria Jurídica Popular: O Caso da

Assessoria Jurídica Universitária Popular
Roberto Lyra Filho - UnB
As experiências relatadas denotam a proeminência da edu-
cação jurídica popular e do assessoramento jurídico como elemen-
tos integrantes das práticas extensionistas originadas de O Direito
Achado na Rua. Nesse sentido, merece destaque a estratégia da
Assessoria Jurídica Popular (AJP) articulada com os movimentos
sociais e as Universidades.
A AJP é uma prática jurídica diferenciada voltada para a
realização de ações para garantia do acesso à justiça, mesclando
assistência jurídica e atividades de educação popular em direitos
humanos, organização comunitária e participação popular com
grupos e movimentos populares (RIBAS, 2009). Constituem pres-
supostos da AJP: a compreensão do Direito como um instrumen-
to de transformação social; a noção ampliada sobre o Direito de
acesso à justiça; a defesa da existência de um pluralismo jurídico
comunitário-participativo; e a educação popular como abordagem
pedagógica para educação jurídica emancipatória (MAIA, GO-
MES, JOCA, 2013).70
70 Cabe registrar que no percurso da Série O Direito Achado na Rua, com a sua
primeira publicação em 1987, denominada Introdução Crítica ao Direito, voltada
para o curso O Direito Achado na Rua, implementado através do Núcleo de Estudos
para a Paz e Direitos Humanos e do Centro de Educação Aberta, Continuada, à
Distância, pretendeu-se contribuir para a formação de advogadas e advogados
populares, no contexto da redemocratização no país. Conforme prevê a apresentação
da 4ª edição desse volume (SOUSA JÚNIOR, 1993, p. 5): “A origem imediata do
projeto deste curso consiste em responder à solicitação de advogados de assessorias
jurídicas populares, de comissões de direitos humanos e de movimentos sociais e
suas organizações urbanas e rurais, no sentido de que a Universidade desenvolvesse
um programa capaz de atender às expectativas de uma reflexão acerca da práxis
social constituída na sua experiência comum de luta por justiça e por direitos.
184
A práxis da AJP se expressa em diversas experiências, cons-

tituídas juntamente com os movimentos assessorados. Na sua
atuação, percebe-se o direito (nesse caso, o estatal) como instru-
mental, estratégico às lutas dos assessorados, sendo demandado
em momentos e modos de fortalecer as lutas desses movimentos
populares (MAIA, GOMES, JOCA, 2013). Além disso, ao conhe-
cer a realidade dos grupos e movimentos assessorados, com a con-
vivência e o diálogo, as assessoras e assessores jurídicos populares
assimilam suas reivindicações dialogicamente e buscam assessorá-
-los a partir das suas demandas71.
A AJP abrange, dentre outras, ações de Educação Jurídica
Popular (EJP), que parte dos marcos metodológicos da educação
popular, possibilitando a socialização do saber jurídico e, ainda,
o apoio aos movimentos sociais e grupos vulnerabilizados a as-
sumirem o protagonismo na construção de seus próprios direitos,
favorecendo o seu empoderamento para a mudança da realidade
em que vivem. Observa-se, portanto, a contribuição da concepção
teórica de O Direito Achado na Rua, segundo a qual o Direito se
constrói socialmente, nos espaços públicos onde se exercem lutas
por reconhecimento (SOUSA JÚNIOR, 2008).
Ressalta-se o caráter dinâmico e multiplicador das experiên-
cias de educação jurídica popular, visto que os sujeitos uma vez
apropriados do conhecimento jurídico têm o papel multiplicador
em suas comunidades e espaços de intervenção. Aproximar o
povo do conhecimento sobre direitos é uma forma de estimular
71 Conforme destaca Gorsdorf (2010, p. 8), “a importância da assessoria jurídica

desponta com a formação de uma geração de juristas (advogados, professores,
promotores, juízes) que passam a ser relevantes para a discussão do acesso aos
direitos no âmbito dos movimentos sociais.” Nesse caso, a atuação articulada
da AJP possibilita a aproximação do Direito à realidade social, proporcionando
o apoio à efetivação dos direitos dos grupos vulnerabilizados, seja através de
mecanismos institucionais, judiciais ou por mecanismos extrajudiciais, políticos e
de conscientização.
185
o exercício da cidadania e contribuir no processo de mobilização

política, luta por direitos e autonomia. Conforme aponta o pro-
fessor José Geraldo de Sousa Júnior (2008), o receio frente ao for-
malismo é desconstruído e o cidadão passa a perceber o Direito
“de igual para igual”.
Dentro das experiências de assessoramento jurídico popular,
as Assessorias Jurídicas Universitárias Populares (AJUP’s) têm se
constituído um lugar privilegiado de discussão e disputa acerca das
perspectivas sobre o Direito. As Assessorias Jurídicas passaram a
se constituir no período de redemocratização do país, ligadas aos
movimentos populares, retomando, ainda sob o regime ditatorial,
a reflexão sobre a construção e a afirmação de direitos e sobre o
papel do Judiciário neste contexto.
Esse movimento, iniciado através da sociedade civil, aos pou-
cos é incluído nas Universidades, principalmente pelos grupos es-
tudantis. Somam-se assim, enquanto eixo de atuação de tais gru-
pos, a atuação junto aos movimentos sociais e a discussão acerca
do ensino, da pesquisa e da extensão tradicionalmente desenvol-
vidos nas faculdades de Direito.
Entendendo que a educação jurídica tem reflexos diretos na
perpetuação das concepções hegemônicas acerca do Direito e do
Judiciário, as AJUP’s atuam em uma dupla frente, de forma que se
constituem enquanto assessorias jurídicas junto aos movimentos
populares e como projetos de extensão das faculdades de Direito.
É nessa perspectiva que se dá a atuação da AJUP Roberto
Lyra Filho, formalizada em 2012 como projeto de extensão na Fa-
culdade de Direito da UnB. Com viés interdisciplinar, o projeto é
composto por estudantes de graduação e pós-graduação de diver-
sos cursos da UnB e de outras faculdades do Distrito Federal.
A AJUP Roberto Lyra Filho atua na promoção de educação
jurídica popular em direitos humanos e de assessoramento jurídi-
co a comunidades e a movimentos sociais do DF, estabelecendo
186
uma intrínseca relação entre a capacitação/educação em Direito

e direitos humanos e o agir político dos movimentos assessorados,
resgatando, portanto, a esfera política do Direito.
Constituído enquanto projeto permanente, o grupo esteve
em diálogo com diferentes movimentos sociais ao longo de sua
trajetória, entre eles estão a Via Campesina, o Movimento por
uma Ceilândia Melhor (MOPOCEM), o Movimento dos Traba-
lhadores Rurais Sem- Terra (MST), o Movimento Nacional de
Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) e o Movimento dos
Trabalhadores Sem-Teto (MTST). A aproximação com sujeitos
diversos resultou na organização do grupo em frentes, de forma
a articular a atuação a partir das variadas realidades concretas e
permitindo o aprofundamento em temáticas diversas. Sendo as-
sim, o grupo já desenvolveu trabalhos que se debruçaram sobre o
nó da questão agrária brasileira, as relações de consumo e a produ-
ção do lixo, a discussão do direito à moradia e do direito à cidade,
além de desenvolver discussões acerca do papel da universidade
pública, do Direito e do ensino jurídico.
A AJUP também presta assistência jurídica em demandas
apresentadas pelos movimentos/comunidades com as quais traba-
lha, sempre na perspectiva de atuar em casos que tenham uma
clara dimensão coletiva e importância estratégica para tais movi-
mentos. Como exemplo temos a atuação durante o processo de re-
integração de posse na ocupação “Novo Pinheirinho” do MTST72,
ocorrida no primeiro semestre de 2013.
72 DISTRITO FEDERAL. Terceira Vara Cível de Taguatinga do Tribunal de Justiça

do Distrito Federal e Territórios. Processo de Reintegração / Manutenção de Posse
nº 2013.07.1.000209-6 (numeração única do CNJ: 0000171-13.2013.8.07.0007).
Autor: Jarjour Veículos e Petróleo Ltda. Réu: Movimento dos Trabalhadores Sem
Teto – MTST. Data da distribuição: 8 jan. 2013. Disponível em: <http://tjdf19.tjdft.
jus.br/cgi-bin/tjcgi1?NXTPGM=tjhtml105&SELECAO=1&ORIGEM=INTER&
CIRCUN=7&CDNUPROC=20130710002096>. Acesso em: 18 out. 2014.
187
A ocupação “Novo Pinheirinho” foi realizada por cerca

de 600 famílias ligadas ao MTST, num prédio abandonado ha-
via quase 20 anos, na área central de Taguatinga (DF). Atentas
à necessidade de cumprimento da função social da propriedade,
as famílias ocuparam o prédio no intuito de garantir o direito à
moradia estabelecido constitucionalmente e de pressionar para a
implementação de políticas públicas como o pagamento do “auxí-
lio aluguel” e a efetiva implantação de programas habitacionais.73
Nesse contexto, a AJUP Roberto Lyra Filho se envolveu num
processo de realização de atividades de educação popular no am-
biente da ocupação, bem como na defesa técnica do processo de
reintegração de posse em curso, tendo inclusive pleiteado e obtido
êxito através de agravo de instrumento74 a suspensão temporária
da liminar que concedia a reintegração de posse.
73 O processo de ocupação do “Novo Pinheirinho” teve ampla cobertura midiática, para

mais informações acerca do desenrolar do processo de ocupação conferir, entre outras:
<http://www.mtst.org/index.php/inicio/496-novo-pinheirinho-de-brasilia-prepara-
resistencia-ao-despejo.html>; <http://www.revistaforum.com.br/blog/2013/02/
novo-pinheirinho-em-brasilia/>; <http://www.correiobraziliense.com.br/app/
noticia/cidades/2012/05/05/interna_cidadesdf,300950/tjdft-amplia-prazo-para-
reintegracao-de-posse-do-novo-pinheirinho.shtml>. Acesso em: 1 set. 2014.
74 “No bojo da resposta que apresentou (fls. 203/212), a agravada formaliza pedido de
reconsideração, enfatizando argumentos que, no seu entendimento, justificariam
o indeferimento do pedido de liminar. Entretanto, mantenho, ao menos por ora, o
primitivo comando, por seus próprios e jurídicos fundamentos, especialmente porque
não divisadas razões aptas a demonstrar a inexistência dos requisitos necessários à
concessão da tutela de urgência. Conforme focado na decisão deste relator, não há,
no momento, risco de dano imediato capaz de ser experimentado pela agravada
com a manutenção dos ?filiados? do agravante no imóvel cogitado nos autos. I.
Remetam-se os autos imediatamente à d. Procuradoria de Justiça para, querendo,
manifestar-se. Brasília, 25 de janeiro de 2013. Des. J. J. COSTA CARVALHO -
RELATOR.” (DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e
Territórios. Despacho (fls.391), Agravo de instrumento nº2013002001468-8.
Agravante: Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST. Decisão agravada:
liminar concedida em processo de Reintegração / Manutenção de Posse nº
2013.07.1.000209-6 (numeração única do CNJ: 0000171-13.2013.8.07.0007),
188
A perspectiva da extensão popular busca sempre a interlocu-

ção de saberes, permitindo aos sujeitos que a integram a recons-
trução permanente das concepções do Direito e do objeto jurídi-
co. A AJUP, entendendo o objeto jurídico como não restrito ao
Judiciário, tem procurado estabelecer uma interlocução entre as
atividades de formação/educação popular e a assessoria jurídica,
ressaltando as ligações entre o campo do jurídico e do político e
ampliando, portanto, os diálogos entre o campo jurídico e os sujei-
tos de direitos emergentes.
3.3.3. Direitos Humanos e Gênero: Promotoras

Legais Populares - UnB
O projeto “Direitos Humanos e Gênero: Promotoras Legais
Populares” (PLPs/DF) é uma experiência extensionista emancipa-
tória iniciada em 2005 na Faculdade de Direito da UnB e que tem
por base a prática da educação jurídica popular feminista.
Lívia Gimenes Dias da Fonseca (2012), em dissertação rea-
lizada a partir do estudo de caso das PLPs/DF, explica que, desde
sua concepção, o projeto tem o propósito de capacitar mulheres
em noções de Direito, gênero e cidadania, com vistas à formação
de promotoras legais populares para atuarem na defesa dos direitos
das mulheres e no reconhecimento de sua autonomia enquanto
sujeitos e construtoras do Direito. Segundo Fonseca (2012, p. 62):
No caso da educação jurídica popular feminista realizada

pelo projeto de PLPs, se busca a libertação das amarras
do machismo que por séculos aprisionou as mulheres ao
espaço privado e, através desse processo educativo, elas se
Terceira Vara Cível de Taguatinga. Autor: Jarjour Veículos e Petróleo Ltda. Réu:
Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST).
189
sintam empoderadas a liberar a sua voz e seus sonhos nos

espaços públicos a política e realizem, dessa maneira, uma
transformação da sua realidade e de toda a coletividade.
Nas origens do projeto, encontram-se as inquietações de

estudantes da UnB quanto à violência doméstica e familiar no
Distrito Federal que, já em 2004, apresentava-se como um grave
problema na região e cujo debate não era estimulado ou visibili-
zado no âmbito universitário (CARVALHEDO et al, 2007, p. 85).
Debate este que, nos moldes propostos pelo projeto, deveria ser
qualificado por uma perspectiva emancipatória, que questionasse
as relações de gênero e as violências e discriminações historica-
mente sofrida pelas mulheres.
A compreensão do Direito como liberdade, a defesa da cria-
ção de espaços dialógicos para convergência e construção de sa-
beres (acadêmico e popular), e a percepção dos direitos humanos
como processos históricos decorrentes de lutas sociais, são exem-
plos de conexões que o projeto estabelece com O Direito Achado
na Rua, linha sob a qual foi desenhado e que fornece importantes
referenciais ao seu delineamento.
Além de O Direito Achado na Rua, as PLPs/DF inspiraram-
-se em experiências pioneiras de PLPs no Brasil: a da União das
Mulheres de São Paulo75 e da Themis Assessoria Jurídica e Estu-
75 Maria Amélia de Almeida Teles (2012, p.45), em texto analítico das quase duas
décadas de PLPs no Brasil, explica que a União de Mulheres do Município de São
Paulo é um movimento criado na década de 1980 a partir da luta das mulheres
por creche na cidade de São Paulo e pela redemocratização do país, sob inspiração
do slogan feminista chileno “democracia em casa e na rua”. O movimento, que
atualmente conta com mais de 30 (trinta) anos de existência, é apontado como uma
das experiências pioneiras na formação de promotoras legais populares. Neste ano de
2014, o curso de PLPs oferecido pela União de Mulheres do Município de São Paulo
completou 20 (vinte) anos, tendo formado milhares de PLPs ao longo das décadas.
Sobre o movimento, conferir: http://uniaodemulheres.org.br/blogpromotoras/
190
dos de Gênero76, do Rio Grande do Sul. Como objetivos principais

(CARVALHEDO et al, 2007, p. 86-87), destacam-se a formação
de agentes – promotoras legais populares – para atuação direta na
sociedade (agentes capacitadas a reconhecer situações de violência
e a acionar e a desenvolver estratégias de garantia de direitos e justi-
ças), a formação de estudantes (fomento a uma formação integrada
pelos conhecimentos indissociáveis do ensino-pesquisa-extensão e
engajada com a realização da justiça social) e a ressignificação das
atuações profissionais e das instituições (oficinas que problemati-
zam o sentido das atuações profissionais e institucionais).
Para realizar todos esses objetivos, as PLPs/DF organizam-se
em duas frentes de atuação: “1) Como um grupo de estudos e pes-
quisa multidisciplinar de ‘Gênero e Direito’; 2) Na coordenação
do curso de formação de Promotoras Legais Populares do Distrito
Federal (FONSECA; CUSTÓDIO, 2011, p. 27).
O grupo de estudos é composto por estudantes de diferentes
cursos de graduação e pós-graduação, “(...) que se organizam para
debater e refletir sobre o que aprendem na prática extensionista
na coordenação do curso de PLPs/DF.” (FONSECA, 2012, p. 30).
Já o curso de formação destina-se à prática de educação jurídica
popular e extensionista. As atividades do projeto são desenvol-
vidas no NPJ/UnB, sob coordenação geral da professora Bistra
Stefanova Apostolova.
O curso de PLPs, elaborado com duração de nove meses, é
caracterizado como uma ação afirmativa de gênero e vem sendo
oferecido pelo projeto desde o ano de 2005, de forma ininterrupta.
Destaca-se a proposta de Educação Jurídica Popular encampada
pelas extensionistas no projeto, que propõe uma prática pedagó-
76 Trata-se da primeira experiência de PLPs do Brasil, em 1993, seguindo um

movimento em franca expansão na América Latina, em que diferentes países – como
a Argentina, a Bolívia e o Peru – já desenvolviam projetos de formação de PLPs.
191
gica construída junto com as mulheres da comunidade e concre-

tizadas por meio de oficinas semanais, realizadas aos sábados no
NPJ/UnB, com o objetivo de “(...) possibilitar o empoderamento
das mulheres e a socialização de conhecimentos a partir da valo-
rização não apenas do saber técnico-jurídico ou acadêmico, mas
também dos saberes populares advindos da experiência e da vida
cotidiana.” (FONSECA; CUSTÓDIO, 2011, p. 30).
A formação proporcionada pelo curso de PLPs abrange uma
ampla gama temática, que inclui noções sobre teorias feministas,
Direito, organização e estrutura do Estado, instrumentos de par-
ticipação popular, políticas de direitos humanos, direitos sexuais
e reprodutivos, entre outros conhecimentos. Ressalta-se o caráter
interdisciplinar do curso, constatado tanto pelo conteúdo progra-
mático, como pelos temas tratados e pelas áreas de formação e co-
nhecimento das extensionistas, estudantes em nível de graduação
e pós-graduação da UnB77.
Destacam-se, aqui, as contribuições de O Direito Achado
na Rua na experiência extensionista relatada: a concepção de que
não há teoria sem prática e nem prática sem teoria; a interdisci-
plinaridade como elemento necessário à compreensão do fenô-
meno jurídico em toda a sua complexidade (SOUSA; COSTA;
FONSECA; BICALHO, 2010, p.45); e a sua potencial instru-
77 É preciso destacar que, além das atividades extensionistas, o projeto desenvolve

pesquisas em nível de graduação e pós-graduação, e conta, ainda, com um volume
da Série O Direito Achado na Rua, intitulado “Introdução Crítica ao Direito
das Mulheres” (SOUSA JÚNIOR; APOSTOLOVA; FONSECA, 2011), que foi
organizado e desenvolvido por extensionistas, professoras e professores da UnB, e por
outras colaboradoras e colaboradores do projeto, atendendo à demanda de material
didático que servisse como base para o curso de formação das PLPs e, também, à
necessidade de socializar, sistematizar e densificar as reflexões e contribuições do
projeto. Este volume será editado em uma versão revista, atualizada e ampliada,
devido a demanda do curso das PLP’s e da comunidade acadêmica, que identifica
no volume uma obra qualificada sobre teorias feministas do direito e do acesso à
justiça, educação popular e enfrentamento à violência contra às mulheres.
192
mentalização para reflexão sobre teoria e prática da justiça. No

projeto das PLPs/DF, essas características são facilmente identi-
ficadas. O engajamento das extensionistas, cursistas e PLPs evi-
dencia a estreita relação estabelecida entre teoria e prática, com
inserção do projeto em comunidades específicas e o compromisso
que assume perante estas. Além disso, o projeto conjuga saberes
de vários campos do conhecimento, subsidiando entendimentos
diversificados e conectados à realidade sobre fenômenos sociais
que são complexos, ao tempo em que propicia uma formação hu-
manística dialética universitária.
3.3.4. Centro de Referência em Direitos Humanos

da Universidade Federal da Paraíba: Grupo
de Pesquisa e Extensão Loucura e Cidadania
O Centro de Referência em Direitos Humanos baseia-se
numa arejada compreensão dos tradicionais “Balcões de Direitos”,
pretendendo contribuir com a democratização do acesso à justiça,
agregando trabalhos de mediação de conflitos, assessoria jurídica
popular e apoio psicossocial.
A criação de um Centro de Referência em Direitos Huma-
nos na Universidade Federal da Paraíba (CRDH/UFPB) conver-
ge para a consolidação dos três pilares básicos de sustentação das
universidades públicas no Brasil: o ensino, a extensão e a pesquisa.
Nessa perspectiva, propõe-se uma interação participativa e crítica
por parte da Universidade, da comunidade atendida e dos par-
ceiros envolvidos no processo, compreendendo que a pesquisa e
a extensão no curso de Direito devem envolver as demandas da
sociedade, com uma abordagem interdisciplinar e comprometida
com a promoção dos direitos humanos. Suas ações são caracteri-
zadas por uma visão crítica ampliada do fenômeno jurídico social,
193
mas isso sem pretender suprir ou suprimir os espaços existentes de

monitoramento, articulação, judicialização e intervenções cotidia-
nas que são pautadas pela sociedade civil.
O CRDH/UFPB iniciou suas atividades em 2009, através de
uma parceria entre a Secretaria de Direitos Humanos da Presidên-
cia da República e a UFPB. Instalado com o intuito de articular
Universidade, movimentos populares e sociedade civil acerca do
acompanhamento do Relatório sobre violações de Direitos Humanos
na Paraíba produzido em 2009 e entregue à Organização dos Es-
tados Americanos (OEA), o CRDH/UFPB passou a desenvolver
atividades para além do impulso inicial.
Nos campos de atuação do CRDH/UFPB, constatam-se ele-
mentos da assessoria jurídica popular, mediação de conflitos, apoio
psicossocial, educação jurídica popular, realização de seminários,
debates e oficinas, produção de documentários e interlocução com
o Estado. Desde a implantação do CRDH/UFPB, foram criados
cinco eixos temáticos, e suas atividades envolvem a participação
de professoras e professores do Curso de Direito, bem como es-
tudantes de graduação e pós-graduação em Direito, Psicologia,
Serviço Social, Enfermagem, dentre outras áreas, afirmando uma
concepção metodológica e pedagógica interdisciplinar baseada no
diálogo constante com as comunidades, organizações não gover-
namentais e movimentos sociais assessorados.
Com a nova configuração, a partir de 2013, foram estabele-
cidos eixos de atuação sob a responsabilidade de cada professora
e professor vinculado ao CRDH, quais sejam: 1 – Terra/Territó-
rio; 2 – Gênero e Saúde; 3 – Direitos Humanos e Mediação de
Conflitos; 4 – Saúde Mental e Direitos Humanos; e 5 – Sistema
Carcerário (CORREIA; SILVA JÚNIOR, 2014). A partir de cada
eixo são elaborados e executados os projetos de extensão, voltados
à promoção e à defesa dos direitos humanos de grupos vulneráveis
no estado da Paraíba.
194
O Grupo de Pesquisa e Extensão Loucura e Cidadania está

vinculado ao eixo Saúde Mental e Direitos Humanos e iniciou
suas atividades no ano de 2012, atuando no Complexo Psiquiátri-
co Juliano Moreira (CPJM), o maior hospital psiquiátrico do esta-
do da Paraíba. Inspirando-se na perspectiva de O Direito Achado
na Rua, o grupo passou a articular o reconhecimento da produção
jurídica a partir dos movimentos sociais, em especial, o Movimen-
to da Luta Antimanicomial, com a sua ressignificação e adaptação
às reivindicações populares aprisionadas no ambiente do hospício,
configurando o que chamou de O Direito Achado no Hospício78
(CORREIA et al, 2013).
Conforme ressalta o grupo (CORREIA et al, 2013, p. 8):
O impedimento institucional à possibilidade de reivindi-

cação de direitos no espaço público decorrente do aprisio-
namento de uma pessoa em uma instituição psiquiátrica
fechada afeta diretamente o exercício da cidadania. Uma
vez que a liberdade, compreendida enquanto prerroga-
tiva para a luta por direitos (SOUSA JUNIOR, 2008),
não está acessível para os(as) usuários(as) do CPJM, essa
situação não impede que essas pessoas sejam titulares da
capacidade de serem cidadãs, mas dificulta demasiada-
mente esse processo.
O grupo orienta suas atividades na busca de afetar a natura-

lização das violações, a partir de uma inserção na própria institui-
ção manicomial. Identificando-se enquanto célula do movimento
antimanicomial, o grupo direciona suas atividades para a proble-
78 As reflexões sobre a base teórica e prática de O Direito Achado na Rua têm ensejado
diversas outras formulações acerca do direito e seus campos de intervenção prática.
Assim, a exemplo do citado O Direito Achado no Hospício, tivemos, entre outras,
as formulações de O Direito Achado no Lixo (ROCHA, 2013) e de O Direito
Achado no Cárcere (LEMOS, 2014).
195
matização da existência das instituições psiquiátricas fechadas e

para o enfrentamento da cultura manicomial violadora de direi-
tos. Colabora para a orientação sobre os direitos e para o empode-
ramento dos sujeitos, estimulando-os a transformar o lugar social
da loucura, e, ainda, para a consolidação da Reforma Psiquiátrica
(CORREIA, 2013).
Dentre as diversas atividades desenvolvidas pelos extensio-
nistas integrantes desse grupo, estão as oficinas temáticas em di-
reitos humanos, garantias de direitos e mecanismos de efetivação
destes. Em face da escolha metodológica da educação popular,
preconizada por Paulo Freire (1987), e da educação jurídica po-
pular, conforme a Carta de Princípios da Rede Nacional de Edu-
cação Jurídica Popular (REDE NACIONAL DE EDUCAÇÃO
JURÍDICA POPULAR, 2009), é possível estabelecer diálogos de
forma horizontal, nos quais todos estejam reunidos voluntaria-
mente, objetivando o abandono da hierarquização, de atitudes de
paternalismo, controle e segregação da loucura, tão marcante em
instituições fechadas.
A interdisciplinaridade orienta a execução das atividades
do grupo, que buscou desenvolver atividades voltadas aos sujeitos
socialmente vulneráveis (pessoas em sofrimento mental), com a
perspectiva da afirmação de sua condição de sujeitos de direitos,
a partir de diferentes realidades. Baseando-se na metodologia da
educação popular, o grupo vem realizando oficinas com temas re-
lacionados aos direitos das pessoas em sofrimento mental, com
destaque para o direito ao passe livre, o direito à participação po-
lítica, o direito à comunicação e o direito à saúde.
Tal prática extensionista constitui o diferencial na metodolo-
gia da educação jurídica popular, que, no campo da saúde mental,
a partir dessa experiência singular de educação em direitos hu-
manos, demonstrou que o acesso à justiça também se configura a
196
partir do acesso a informações sobre direitos e da problematização

acerca dos direitos já positivados e da construção de novos direitos.
3.3.5. Novos Cursos de Formação em Direito –

Turmas do Programa Nacional de Educação
na Reforma Agrária
A experiência do Programa Nacional de Educação na Refor-
ma Agrária (PRONERA) configura-se como uma política pública
do governo federal, que tem como objetivo promover ações educa-
tivas com metodologias de ensino específicas à realidade sociocul-
tural do campo, para a população dos projetos de assentamentos
da reforma agrária, implantados pelo Instituto Nacional de Colo-
nização e Reforma Agrária (INCRA) ou por órgãos estaduais res-
ponsáveis por políticas agrárias e fundiárias (ANDRADE, 2004).
O PRONERA, criado no final dos anos 90, vinculado ao
Ministério de Desenvolvimento Agrário, realiza projetos de Edu-
cação do Campo, nas áreas de alfabetização, ensino médio e téc-
nico, ensino superior e pós-graduação, voltados para o público do
campo, através de parcerias entre os movimentos sociais, as insti-
tuições de ensino e o INCRA. Como afirma Ranielle Sousa (2011,
p. 16), “o PRONERA é, portanto, exemplo de política pública de
ação afirmativa para o público do campo”.
O Brasil apresenta uma estrutura agrária extremamente
concentradora, como resultado dos modelos econômico e polí-
tico adotados ao longo de sua formação, tanto na fase colonial,
quanto no período denominado de pós-colonial. Significa dizer
que há uma questão agrária no país, cujos possíveis caminhos para
a solução têm sido amplamente debatidos, principalmente a partir
do protagonismo sociopolítico dos movimentos sociais no campo
(MOLINA; SOUSA JÚNIOR; TOURINHO NETO, 2002).
197
Nesse contexto e a partir dessa percepção da realidade da

questão agrária e da necessidade da reforma agrária, que algumas
Universidades no Brasil passaram a implementar turmas especiais
nos cursos de Direito a partir do PRONERA.
Vale ressaltar que a implementação de turmas especiais para
formar juristas críticos e populares também diz respeito à ques-
tão do acesso à justiça, notadamente no caso dos trabalhadores
e trabalhadoras rurais que, enquanto protagonistas de uma luta
específica, vale dizer, a realização da reforma agrária, dependem
de profissionais qualificados para este tipo de demanda, que exige
uma compreensão do fenômeno jurídico na sua inteireza, envol-
vendo, fundamentalmente, conhecimentos que propiciem uma
visão transdisciplinar do Direito. Também merece destaque o fato
das trabalhadoras e trabalhadores rurais comporem significativa
parcela do povo brasileiro que não dispõe de meios para acessar
a justiça, ainda que sob o ponto de vista meramente formal. Tal
situação abrange diversos aspectos, dentre os quais, as dificulda-
des financeiras para contratar advogadas e advogados convencio-
nais, em razão do alto custo dos serviços profissionais, bem como
a questão cultural, uma vez que a maior parte dessa população tem
dificuldade de identificar os direitos dos quais é titular.79
A primeira turma especial foi implantada pela Faculdade de
Direito da Universidade Federal de Goiás, no campus da cidade de
Goiás, no ano de 2006, sendo denominada Turma Evandro Lins e
Silva. De acordo com Ranielle Sousa (2011, p. 16),
O projeto identifica a exclusão sistemática de um segmen-

to da sociedade e se preocupa com a criação de possibi-
79 Questões apontadas nos projetos das Turmas Especiais de Direito do PRONERA da

Universidade Estadual de Feira de Santana e da Universidade do Estado da Bahia,
implantadas no ano de 2013. Tais projetos fazem menção expressa à concepção de
O Direito Achado na Rua nas suas referências.
198
lidades de inclusão qualificada deste grupo, de forma a

garantir que sua visão de vida e seus interesses possam
ser colocados no debate público. O que se resume nos
objetivos do projeto de democratizar o acesso ao ensino
superior, e “proporcionar a inclusão das trabalhadoras e
trabalhadores no meio jurídico, facilitando a expressão
desta categoria social, através de sua produção científica,
exegética e até na sua representatividade pública advinda
de uma formação jurídica”. (BRASIL, 2006, p. 7).
Conforme registra José Geraldo de Sousa Júnior (2013, p. 18-

19), tal proposta pretendeu objetivar a formação de profissionais
com um perfil diferenciado, de assessoras e assessores jurídicos
populares “com qualificação técnica que lhes permitam reverbe-
rar, permanentemente, em ações de natureza preventiva junto às
associações e cooperativas que congregam beneficiários da Refor-
ma Agrária, e ao mesmo tempo, contribuir para a pluralização do
debate no meio acadêmico.”
A referida turma se formou em agosto de 201280, e conforme
analisam Hugo Morais (2011), Ranielle Sousa (2012) e Cleuton
Freitas (2014), trata-se de experiência significativa possibilitada
pela Educação do Campo e que gerou novas reflexões sobre a
educação jurídica. Além disso, identificou-se uma nova forma de
aprender o Direito, uma forma coletiva, que é reflexo da pedagogia
80 Destaque-se que essa Turma Especial foi objeto de Ação Civil Pública, ajuizada
pelo Ministério Público Federal de Goiás, que questionou a regularidade do aporte
orçamentário do PRONERA, alegando a inadequação entre os objetivos do referido
Programa e uma Turma de Direito (que não teria vinculação direta com a questão
agrária). Tal ação foi julgada procedente em primeira instância, mas ao ser julgada
pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, após recurso (Apelação nº 0013916-
34.2008.4.01.3500), este entendeu pela legalidade/constitucionalidade da turma,
julgando a ação improcedente. A Turma se formou no dia 11 de agosto de 2012,
antes de a decisão final ter sido prolatada.
199
camponesa, o que constituiu uma metodologia diferenciada nessa

experiência inovadora (FREITAS, 2014).
A Turma Evandro Lins e Silva constitui um marco nas re-
flexões sobre as ações afirmativas, da Educação do Campo e da
educação jurídica, e serviu de referência para outras experiências
na área do Direito. Duas novas turmas de Direito apoiadas pelo
PRONERA foram criadas em 2013, uma na Universidade Estadual
de Feira de Santana (UEFS) e outra na Universidade do Estado da
Bahia (UNEB). Há uma quarta turma em fase de implantação na
Universidade Federal do Paraná.
Tais experiências possuem o condão de proporcionar uma
formação jurídica capaz de instaurar rupturas com os cânones
clássicos da dogmática jurídica no sentido de atender aos “novos
sujeitos sociais”. Portanto, apresentam potencial para a produção
e a socialização do conhecimento jurídico, através de um processo
que articule ensino, pesquisa e extensão, visando uma atuação da
bacharela e do bacharel em Direito com competência técnica e
política, comprometido com o processo de transformação social.
3.3.6. Novos Cursos de Pós-graduação em

Direitos Humanos
A partir de 2012, surgem experiências importantes do âm-
bito da pesquisa acadêmica em direitos humanos: alguns Progra-
mas de Pós-Graduação em Direitos Humanos foram criados em
Universidades Federais, os quais guardam semelhanças entre si,
seja pela característica interdisciplinar, envolvendo diversas áreas
do conhecimento, seja pela origem em Núcleos ou Comissões de
Direitos Humanos dessas Universidades, com histórico de atuação
em ensino, pesquisa e extensão em direitos humanos.
200
São eles: o Programa de Pós-Graduação em Direitos Huma-

nos e Cidadania, da Universidade de Brasília (UnB), oriundo do
Núcleo de Estudos para a Paz e Direitos Humanos; o Programa
de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas
Públicas, da Universidade Federal de Paraíba (UFPB), ligado ao
Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos; o Programa de Pós-
-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos, da Universi-
dade Federal de Goiás (UFG), oriundo do Núcleo Interdisciplinar
de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos; e o Programa de
Pós-Graduação em Direitos Humanos na Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE), a partir da atuação da Comissão de Direitos
Humanos Dom Hélder Câmara.
O Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Ci-
dadania da Universidade de Brasília (UnB) foi criado em 2012,
visando suprir uma lacuna na oferta de pós-graduação na região
centro-oeste, que tem Brasília como um centro de formulação de
políticas públicas para o país. Destaque-se a existência de um de-
bate acerca de questões relacionadas aos direitos humanos presen-
te em diversas áreas do conhecimento, tais como a Ciência Polí-
tica, Relações Internacionais, Sociologia, Antropologia, Serviço
Social, Psicologia, História, Educação, Saúde e Meio Ambiente,
entre outras, que formam profissionais com perfis de potenciais
estudantes de pós-graduação nesta área.
Desse modo, o referido programa está sediado no Centro
de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM), o que permi-
te arregimentar novas professoras e professores, pesquisadoras e
pesquisadores e especialistas de diferentes unidades acadêmicas
com interesse nessa temática. Tal programa mostra-se capaz de
oferecer uma visão crítica dos problemas relacionados aos direitos
humanos em perspectiva interdisciplinar e vem consolidar o com-
promisso social da UnB enquanto universidade pública e permitir
201
maior articulação entre áreas de conhecimento que partilham em

comum a questão dos direitos humanos.
A implantação desse programa no CEAM/UnB tem forte
influência do Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Huma-
nos (NEP), que tem desenvolvido suas atividades acadêmicas em
perspectiva temática interdisciplinar. Uma das contribuições mais
expressivas do NEP ao panorama de proteção, defesa e promoção
dos direitos humanos no Brasil são os cursos à distância que inte-
gram a série denominada O Direito Achado na Rua.
Com cerca de vinte e sete anos de ininterrupta atividade de
pesquisa, ensino e extensão na UnB, e com uma significativa con-
tribuição ao debate hoje existente acerca dos direitos humanos e
da cidadania no Brasil, o NEP contribui para a expansão do ensino
e da pesquisa em direitos humanos, através do Programa de Pós-
-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, proposto a partir
de uma perspectiva interdisciplinar que incorpora professores dou-
tores de diferentes esferas das ciências humanas, com a finalidade
de consolidar uma área de pesquisa, ensino e extensão, abrangendo
a dimensão e a complexidade das questões que interpelam o Brasil
na esfera dos direitos humanos, da cidadania e da democracia.
O Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Ci-
dadania e Políticas Públicas, da Universidade Federal de Paraíba,
também foi criado em 2012, a partir da longa experiência acadê-
mica da UFPB no ensino, na pesquisa e na extensão em direitos
humanos, o que justificou a criação do programa nessa área. Tal
Programa compreende que a existência de um pluralismo de in-
terpretações sobre o que são os direitos humanos é indispensável
para o debate acadêmico e para a formação de profissionais e de
pesquisadoras e pesquisadores da área. Conforme previsto no seu
projeto político-pedagógico:
202
Os limites deste pluralismo são dados pelo próprio pacto

social que fundamenta o Estado de Direito e que encontra
a sua expressão máxima na Constituição. Por isso, devem-
-se entender os direitos humanos como um campo de de-
bate ideológico, social e político para a sua efetivação, em
contínua transformação.81
Pela sua natureza interdisciplinar, tal Programa entende que

direitos humanos não estão restritos à área das ciências jurídicas, e,
por isso, no seu quadro docente, há professoras e professores das áreas
de Filosofia, Ciências Sociais, Educação, Serviço Social e Direito.
Já o Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direi-
tos Humanos, da Universidade Federal de Goiás (UFG), é resul-
tado da experiência acadêmica acumulada nos últimos catorze
anos, período em que a universidade desenvolveu vários cursos,
projetos e outras ações de extensão, além de atividades de ensino
e pesquisa, tanto na modalidade presencial quanto na educação
a distância. Essas atividades reuniram professoras e professores,
pesquisadoras e pesquisadores de diversas áreas e de várias unida-
des e órgãos da instituição, possibilitando a instituição do Núcleo
Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos.
Trata-se de Programa com mais de 30 professoras e professo-
res, pesquisadoras e pesquisadores associados, e significativos gru-
pos de pesquisa vinculados à UFG e cadastrados no CNPq, que
têm realizado pesquisa e extensão na área de educação, cidadania
e direitos humanos.82
81 Informações retiradas do sítio eletrônico do Programa: <http://www.cchla.ufpb.

br/ppgdh/index.php?option=com_content&view=article&id=56&Itemid=78>.
Acesso em: 30 set. 2014.
82 Informações retiradas do sítio eletrônico do Programa: <http://www.portais.atrio.
scire.net.br/ufg-ppgidh/>. Acesso em: 30 set. 2014.
203
O Programa mais recente, da Universidade Federal de Per-

nambuco, foi implantado em 2013 a partir da experiência de mais
de dez anos de ensino e pesquisa em direitos humanos da Co-
missão de Direitos Humanos Dom Hélder Câmara, com destaque
para cursos de extensão nessa área para docentes do ensino fun-
damental. Após debater e acolher proposta da Fundação Joaquim
Nabuco e da Associação Juízes para a Democracia acerca da ofer-
ta de curso de Especialização em Direitos Humanos, a Comissão
passou a estudar o atendimento às demandas sociais de qualifica-
ção profissional e intelectual neste campo temático.
Assim, após agregar novas e novos docentes e seus grupos
de pesquisa, a Comissão dedicou-se à elaboração de um projeto
de mestrado que culminou no mestrado acadêmico em direitos
humanos, entendendo que o mesmo contribuiu para “a formação
interdisciplinar, reflexiva e questionadora dos que se dedicam à
temática dos direitos humanos, na perspectiva de construção de
uma cultura voltada para a paz.”83
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rupturas. Brasília: Letra viva, 2000.
ANDRADE, Márcia Regina (et al). A educação na reforma

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NERA, 2004.
83 Informações retiradas do sítio eletrônico do Programa: <http://www.ufpe.br/ppgdh/

index.php?option=com_content&view=article&id=310&Itemid=240>. Acesso
em: 30 set. 2014.
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212
PARTE IV
4. O Direito Achado na Rua: Desafios,

Tarefas e Perspectivas Atuais
Diego Mendonça84
Euzamara de Carvalho85
Mayane Burti86
Paulo César Machado Feitoza87
Pedro Brandão88
Renata Cristina do Nascimento Antão89
Tedney Moreira da Silva90
84 Mestrando em Direitos Humanos no PPGDH-UNB.

85 Graduada em Direito pela Universidade Federal de Goiás - Turma Evandro Lins e
Silva em parceria Movimentos Sociais do Campo/PRONERA/UFG. Componente
do Setor de Direitos Humanos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
–MST e Coordenadora do Núcleo de Extensão e Pesquisa de Educação do Campo
da Pós Graduação em Direitos Sociais do Campo parceria INCRA/CNPQ/UFG.
86 Graduada em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília. Diretora Executiva da
Organização Não-Governamental União Planetária.
87 Pós-Graduado Latu Sensu pela Universidade Cândido Mendes/UCAM-RJ.
Advogado militante. Professor e Coordenador do Núcleo de Prática Jurídica da
Universidade Católica de Brasília(NPJ/UCB).
88 Doutorando em Direito pela Universidade de Brasília (UNB), na linha “Sociedade,
Conflito e Movimentos Sociais”.Assessor parlamentar na Câmara dos Deputados.
89 Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), na área de concentração
de “Direitos Humanos”. Advogada popular e pesquisadora da linha O Direito
Achado na Rua da Universidade de Brasília (UNB).
90 Advogado. Mestrando em Direito, Estado e Constituição pela Faculdade de Direito
da Universidade de Brasília.
213
Introdução
O Direito Achado na Rua é um projeto libertário e trans-
formador, que tem o objetivo de unir prática e teoria para fundar
novas e criativas possibilidades de pensar o Direito. Trata-se, por
sua própria natureza, de um projeto em constante renovação, e
por isso os desafios colocados são permanentemente atualizados
de acordo com as transformações do conjunto da sociedade e de
suas novas aspirações.
Na atual conjuntura, apontar todos os desafios e perspectivas
atuais de O Direito Achado na Rua não se mostra tarefa fácil, até
porque a nova escola jurídica já transcendeu seus limites ao inte-
grar os movimentos que propõem novas práticas e interpretações
que buscam gerar uma renovação nos campos epistemológico,
teórico e prático do direito, que não se reduzem à área jurídica,
mas antes se localizam e afirmam sua natureza interdisciplinar
(AGUIAR, 2002, p. 53).
Logo, uma breve análise não bastará para mensurar ou prever
todos os possíveis desdobramentos de O Direito Achado na Rua,
que se revela um dos mais importantes projetos de país em curso
na área jurídica, devido a sua proposta de renovação, mudança de
perspectiva e abrangência analítica. O presente texto, portanto,
não tem a pretensão de encerrar qualquer discussão concernente
a O Direito Achado na Rua; buscará apenas responder algumas
questões referentes aos Desafios, Tarefas e Perspectivas da teoria,
com foco na sua epistemologia, no ensino e pesquisa jurídicos,
e na sua práxis e participação popular.
O Direito Achado na Rua está voltado à reflexão sobre a
atuação jurídica dos novos sujeitos coletivos de direitos e das expe-
riências por eles desenvolvidas de criação de direitos e, assim, deve
corresponder a um modelo atualizado de investigação que busca
214
determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas

sociais emancipatórias.
Dentro dessa perspectiva vamos abordar quais os novos
desafios enfrentados pelo O Direito Achado na Rua, quais suas
perspectivas atuais e as possíveis tarefas de todas aquelas e todos
aqueles que, a partir da interação entre acadêmica e movimentos
sociais, procuram promover os desafio e perspectivas das possibili-
dades jurídicas no cenário democrático.
4.1. Percurso Metodológico
A coleta dos dados a seguir transcritos para análise dos de-
safios, tarefas e perspectivas atuais de O Direito Achado na Rua
foi realizada em encontros promovidos no âmbito do programa de
Pós-Graduação em Direito e do programa de Pós-graduação em
Direitos Humanos da Universidade de Brasília – UnB, em dis-
ciplina intitulada “O Direito Achado na Rua”, sob a orientação
do professor José Geraldo de Sousa Júnior. O quarto grupo, ao
qual nos vinculamos, optou por traçar um caminho metodológico
coletivo, dialético e, deste modo, participativo na condução dos
trabalhos, de sorte a propiciar maior recolhimento de informações
e demandas postas ao O Direito Achado na Rua.
Além disso, nossa tarefa consistia em estabelecer um diálo-
go com as apresentações dos grupos anteriores, bem como reali-
zar uma leitura crítica da conjuntura política contemporânea e
apontar possíveis encaminhamentos para aprimorar a práxis de O
Direito Achado na Rua, amarrando seu percurso histórico e ima-
ginando um horizonte possível de atuação.
A realização satisfatória dessa demanda seria possível se
considerasse um processo de participação de todos os estudantes
e contasse com a aproximação e diálogo com movimentos com
215
uma destacada atuação no recente período do Distrito Federal,

debatendo suas pautas e recortes de ação, tão caras à perspectiva
crítica do Direito assumida pelo O Direito Achado na Rua.
Desta forma, seriam contempladas algumas expectativas das
e dos participantes da disciplina ao proporem e debaterem pontos
que considerassem fundamentais ao identificar desafios e perspec-
tivas atuais de atuação, possíveis tarefas a serem encaminhadas,
como também seria reafirmado à importância da rua e da mobili-
zação popular por direitos.
Seguindo essa orientação participante e referenciados em
experiências de atividades e metodologias da Educação Popular
Crítica91, o Grupo 04 construiu uma proposta com diferentes
momentos para os dois encontros que coordenaria, conectando
a trajetória das outras atividades já desenvolvidas na disciplina
pelas colegas e pelos colegas dos demais grupos, recebendo e me-
diando um diálogo com integrantes de movimentos convidados.
Posteriormente, conduzimos um momento metodológico com a
participação de toda a turma discutindo rotativamente desafios e
perspectivas atuais de O Direito Achado na Rua, e ao final siste-
matizando as diferentes contribuições com um retorno em forma
de material impresso, apresentação do que foi produzido e debate
com a turma, identificando, assim, possíveis tarefas postas ao O
91 Dentre estas atividades podemos citar as desenvolvidas pela Rede de Educação

Cidadã (Recid) em seus processos locais e nacionais de formação e mobilização.
A Recid pauta sua atuação referenciada em um Projeto político-pedagógico
construído coletivamente com educadores populares e movimentos sociais em todo
o país, dialogando com a perspectiva pedagógica de Paulo Freire e outros autores
que aprofundam o pensamento crítico da Educação Popular, como Antônio Gouvêa
Silva (2007).
216
4.1.1. Momentos Metodológicos: Movimentos,

Carrossel e Possíveis Tarefas de O Direito
Achado na Rua
Como já dito acima, coube ao Grupo 04 à identificação, refle-
xão e apresentação dos desafios, tarefas e perspectivas atuais de O
Direito Achado na Rua. A primeira parte do trabalho teve início
com a apresentação de um texto elaborado por integrantes do grupo
fazendo um resgate da fortuna crítica de O Direito Achado na Rua,
sua concepção, sua história, seu desenvolvimento e sua extensão.
Em um segundo momento, dialogamos com convidadas e con-
vidados integrantes de movimentos sociais e ativistas que atuam
no Distrito Federal. Participaram do debate: i) um representante
indígena da Universidade de Brasília; ii) um integrante do Movi-
mento Passe Livre; iii) integrante do Coletiva Jurubeba e militante
em diversos espaços das pautas dos movimentos negro, feminis-
ta e anticapacitista; iv) duas representantes do Movimento dos
Trabalhadores Sem-Teto e, por fim; v) Grupo Negra, componente
do Coletivo Supernova da região administrativa de São Sebastião,
que interpretaram o texto “Gritaram-me negra”, uma performance
poética teatral que aborda a questão racial cumprindo-se, assim,
o papel da mística que cativa a jornada despertando os sentidos
através da linguagem artística que transcende o campo da razão.
Atendendo a uma provocação inicial, os convidados falaram
sobre suas lutas e as relações que identificavam com o Direito. Na
sequência foi aberto um momento para intervenções da turma,
seguidas da reação das convidadas e dos convidados. O diálogo foi
muito rico para a reflexão sobre os desafios atuais que se colocam
ao O Direito Achado na Rua a partir da ótica dos movimentos e
suas perspectivas atuais. Alguns temas que emergiram no debate
podem ser destacados, tais quais: o Direito à Cidade; ação direta e
217
junho de 2013; violação de direitos dos povos indígenas; direito à

organização, presença nas ruas e a práxis militante; extensão uni-
versitária e aproximação da academia aos movimentos na luta pela
expansão dos direitos; racismo; luta das mulheres; cotas e ações
afirmativas; dentre outros.
Todo o debate foi gravado para facilitar o processo poste-
rior de sistematização. Além do recurso ao registro videográfico,
coube-nos praticar a escuta sensível durante as falas, identificando
tópicos e temas significativos para contribuir com os encaminha-
mentos pós-atividade e a visualização de possíveis tarefas ao O
O terceiro momento metodológico do encontro é conhecido
como “atividade-carrossel” ou “Carrossel”. Seu objetivo era possi-
bilitar a participação de todos da turma nas discussões sobre de-
safios, tarefas e perspectivas atuais de O Direito achado na Rua,
aproveitando a recente contribuição das convidadas e dos convi-
dados integrantes de movimentos sociais.
Utilizamos como referência o texto “O Direito Achado na
Rua: um olhar pelo outro lado”, de Roberto Aguiar. No texto, prefá-
cio do livro “Introdução crítica ao Direito Agrário”, o autor estabe-
lece três recortes para a análise da produção de O Direito Achado
na Rua: “Sob a denominação O Direito Achado na Rua podemos
vislumbrar três facetas de produção: a teórica, a pedagógica e a de
participação cidadã, evidentemente interimplicadas em uma uni-
dade orgânica” (AGUIAR, 2002, p. 52).
Dialogando com esses recortes, reinventamos essas deno-
minações e montamos uma metodologia para um trabalho em
três eixos: i) Teórico-Epistemológico; ii) Pedagógico; iii) Práxis-
-Participação Popular.
Segundo o que fora proposto por Roberto Aguiar, foi incor-
porado ao primeiro eixo a categoria epistemológica, tão discutida
recentemente no campo do Direito e que não poderia ser resumida
218
ao recorte puramente teórico. Já em relação à faceta da partici-

pação cidadã, a alteração se deu com o adendo da práxis de O
Direito Achado na Rua ao processo de participação popular por
uma opção metodológica de se trabalhar apenas com três eixos e
nominalmente com o interesse de reafirmar a ressignificação do
termo “popular”, que vem sendo praticada por diversos movimen-
tos sociais no país.
Foram organizados três grupos, cada um correspondendo a
um desses eixos. Dentro de cada grupo, estávamos representados
por uma ou um integrante responsável pela coordenação da ativi-
dade pelas orientações necessárias e registro dos tópicos surgidos
no diálogo referentes aos desafios e as perspectivas atuais de O
Direito Achado na Rua relacionados ao eixo.
Cada grupo teve um tempo inicial para a discussão de seu
eixo, cumprindo a tarefa solicitada. Ao final desse tempo, circula-
vam para o próximo. Após o novo diálogo em outro eixo, contri-
buindo com o que já havia sido construído pelo grupo anterior, o
“carrossel” girou mais uma vez, fechando o ciclo com todos tendo
participando em todos os eixos de maneira qualificada, com me-
nos integrantes em cada grupo de trabalho e encaminhamentos
mais práticos e participativos que em uma grande roda onde pou-
cas pessoas acabam contribuindo.
Ao final do carrossel, tínhamos um material construído co-
letivamente com os recortes dos eixos propostos para a dinâmica,
com tópicos relacionados a desafios e perspectivas atuais de O Di-
reito Achado na Rua para serem trabalhados como elementos no
processo posterior de sistematização.
Neste segundo encontro, iniciamos as atividades com a re-
produção de uma música do educador popular e rapper Markão
Aborígene, seguida da leitura de uma poesia recitada em homena-
gem a Santxiê Tapuia, liderança indígena falecida recentemente.
219
Após a mística inicial, retomamos o que havia sido realizado

no encontro anterior e, na sequência, apresentamos o resultado
daquelas contribuições e reflexões. Sistematizamos as interven-
ções dos convidados dos movimentos sociais e sugerimos possíveis
tarefas, identificadas durante todo o processo metodológico. Os
produtos, reflexões e tarefas construídas em todo esse processo
serão apresentados no decorrer do capítulo.
4.2. Desafios e Perspectivas Visualizados

4.2.1. Epistemologia
Iniciado o carrossel, os grupos contribuíram para a concisão
dos principais pontos de reflexão de alteração epistemológica ne-
cessária à concreção dos objetivos de O Direito Achado na Rua
dentro do espaço acadêmico. Em sínteses, organizados em três ei-
xos, são eles: pluralismo jurídico, análise dos elementos do novo
constitucionalismo brasileiro e descolonização do saber.
4.2.1.1. Pluralismo Jurídico e América Latina

A vertente acadêmica que encara o Direito como o orde-
namento jurídico positivado, de preceitos universais e, pois, de
conteúdo unidimensional, apartado da realidade que regulamenta
e infenso às circunstâncias sociais, políticas e econômicas que o
informam, tem sofrido constantes críticas por seu reducionismo e
irrefletida contribuição para a manutenção de interesses de uma
classe hegemônica em detrimento dos mais variados atores sociais
que com ele dialogam. Assim, o pluralismo jurídico impõe-se cada
vez mais ao estudioso como reação à visão legalista e estatista do
220
Direito, fruto da confluência entre o discurso jurídico e os demais

ramos do saber com legitimação de novas fontes de conhecimento.
O pluralismo jurídico focaliza sua atenção nos subgrupos

sociais, na interação entre a ordem das comunidades lo-
cais e a ordem normativa superior, nos tratamentos di-
versificados dos conflitos que se apresentam no interior
do grupo restrito e daqueles que ocorrem entre grupos
diversos; contrapõe o direito oficial e o não-oficial e toma
como alvo a identificação do direito com o Estado (SAC-
CO, 2011, p. 93-4).
Por exercer uma função política ao se afastar do dogmatismo

científico e exaltar o direito espontâneo (SACCO, 2011, p. 95),
o pluralismo jurídico – sua conceituação, métodos e resultados –
deve ser aprofundado para maior proficiência dos objetivos pos-
tos ao O Direito Achado na Rua. Isto porque, sendo oriundo do
pluralismo jurídico, O Direito Achado na Rua resta aperfeiçoado
com a sua constante atualização, de modo a contemplar os diver-
sos atores sociais emergentes, suas demandas e formas de mani-
festação da juridicidade, não subsumidas ao legalismo do direito
posto. Significa, por outro lado, comprometer-se com a contínua
ressignificação das práticas emancipatórias dos sujeitos de direitos,
identificando-se as novas práticas sociais constituintes do direito.
Em outras palavras, um dos desafios postos ao O Direito
Achado na Rua, no que toca ao seu enfoque epistemológico, é
o de se manter perenemente atualizado quanto às manifestações
plurais do fenômeno jurídico nas diversas ordens e subgrupos com-
ponentes das sociedades, de sorte a não encerrar seu horizonte de
práxis e crítica do direito positivado. Por essa razão, como tarefa,
deve sujeitar-se à constante crítica de suas analisadoras e seus ana-
lisadores, para que o arcabouço teórico amealhado não se torne,
paradoxalmente, seu limite de atuação, mas, antes, que represente,
221
apenas, o quadro mais atualizado de vivência da realidade jurídica

em determinados contextos sociopolíticos e econômicos.
Nesse contexto, é importante destacar as experiências cons-
titucionais que ocorrem na América latina e que podem gerar
repercussões na formatação do pluralismo jurídico e na própria
dinâmica constitucional brasileira, como será visto em seguida.
Inicialmente, a história da América latina é profundamente
marcada pela exclusão dos conhecimentos dos setores subalter-
nizados, incluindo as cosmovisões afros e indígenas. A partici-
pação popular e a reorganização dos movimentos de massa com
o objetivo de combater políticas neoliberais criaram o ambiente
propício para repensar o Constitucionalismo “desde abajo”, com
amplas possibilidades de participação popular, com o reconheci-
mento de direitos sociais e inserindo as cosmovisões indígenas
nos processos constitucionais92.
Os autores espanhóis Rubén Dalmau e Roberto Viciano de-
nominaram essas experiências constitucionais de “Novo Consti-
tucionalismo Latino-Americano”, que tem se materializado nos
processos constituintes da Venezuela, Bolívia e Equador. Esses
autores têm como preocupação fundamental os mecanismos de
participação democrática nessas Constituições (VICIANO e
DALMAU, 2011). Já a autora peruana Raquel Fajardo tem uma
preocupação central com o pluralismo jurídico e a questão indíge-
na, denomina esses processos de “Constitucionalismo pluralista”,
sendo os processos mais avançados as Constituições da Bolívia e
do Equador (FAJARDO, 2011).
Notadamente essas duas últimas Constituições criaram me-
canismos interculturais e descoloniais que propiciaram novas e
92 Para uma análise mais abrangente sobre tema, verificar a dissertação “O novo
constitucionalismo pluralista latino-americano: participação popular e cosmovisões
indígenas (pachamama e sumak kawsay)”, Brandão (2013).
222
criativas formas de pensar o Constitucionalismo e o pluralismo ju-

rídico. É tanto que tais Cartas positivaram o Sumak Kawsay (Bem-
-viver), a partir da perspectiva indígena/andina, e a Pachamama,
que busca superar o antropocentrismo do Constitucionalismo tra-
dicional e positivar a Natureza como sujeito de Direitos, propondo
uma relação harmoniosa entre natureza e o ser humano. Há, nes-
tas concepções, um rompimento com a racionalidade moderna e
a abertura para outras lógicas epistemológicas, desconstruindo a
racionalidade monolítica e os imaginários totalizantes do Direito.
Mas não basta positivar Direitos, é preciso criar uma enge-
nharia constitucional que possibilite a concretização desses pro-
jetos. É dai que surge a concepção de Estado Plurinacional, que
apresenta uma série de novidades constitucionais e permite a con-
vivência harmônica entre as diferentes formas de compreender o
Direito dentro do mesmo Estado.
Na Constituição Equatoriana entende-se que as normas e
procedimentos de soluções para os conflitos internos dos povos in-
dígenas serão respeitadas pelo Estado e pelas autoridades públicas,
desde que não sejam contrários à Constituição e aos Tratados In-
ternacionais de Direitos Humanos (art. 171). Já na Constituição da
Bolívia, é estabelecido que as nações e povos indígenas exercerão
suas funções jurisdicionais através de suas autoridades, aplicando
seus princípios, valores culturais, normas e procedimentos pró-
prios aos membros dos povos indígenas dentro de sua jurisdição93.
93 Nesse sentido, a justiça autônoma indígena na Bolívia tem conexão com o Tribunal
Constitucional Plurinacional, tendo em vista que este é o órgão responsável por
proferir a última palavra em termos de interpretação. Nesse ponto, sem dúvidas, a
Constituição Boliviana cria um novo paradigma em termos de democratização da
jurisdição constitucional, pois seus membros são eleitos diretamente pela população,
mediante sufrágio universal, e os representantes dos povos indígenas devem,
obrigatoriamente, ser escolhidos para composição do Tribunal. Na Constituição
Equatoriana há a previsão Constitucional de paridade entre homens e mulheres
para composição da a Corte Equatoriana Esses exemplos são os principais avanços
223
Além das tradicionais formas de democracia adotadas pelos

modelos ocidentais, a representativa, a participativa e a direta, que
já fazem parte do constitucionalismo tradicional, a Democracia
Comunitária também está prevista na Constituição Boliviana, e
é definida por meio de eleições, nomeação e designação de auto-
ridades e representantes indígenas por normas e procedimentos
próprios das nações e comunidades dos povos originários (art. 11).
São novas formas de democracia que rompem com as teorias clás-
sicas e possibilitam uma espécie de diálogo baseado no consenso,
com fundamento na cosmovisão dos povos originários, das comu-
nidades e dos povos indígenas.
Essas experiências refletem uma espécie de “Constituciona-
lismo Achado na Rua”, em que os atores constituintes, os prota-
gonistas desses processos, que envolveram povos indígenas, femi-
nistas, campesinas e campesinos, trabalhadoras e trabalhadores e
setores historicamente excluídos, arrancam do processo constitu-
cional novas formas de pluralismo jurídico e conquistas de Direitos.
4.2.1.2. Análise dos Elementos do Novo

Constitucionalismo Brasileiro
As recentes manifestações de rua, em junho de 2013, em
que confluíram diversas demandas sociais, notadamente de
cunho urbano, demonstraram a necessidade de se repensar o
papel das instituições públicas no desempenho de suas funções
políticas. O descontentamento com as notícias de corrupção em
variados órgãos dos três poderes-função componentes do Estado,
a insatisfação com a prestação de serviços públicos essenciais e
a pouca representatividade social nas esferas da República Fe-
em termos de descolonização do Estado e, principalmente, na autodeterminação e

autonomia dos povos indígenas.
224
derativa ensejam a renovação dos instrumentos legais que dão

conformidade à organização estatal e, por este motivo, exigem,
igualmente, a renovação da hermenêutica aplicada ao constitu-
cionalismo brasileiro, visando dotá-lo de novos paradigmas de
interpretação da vida social.
Paulo Bonavides alerta para a possibilidade de minimização
das conquistas do Estado de Direito ao se sacrificar a juridicidade
das Constituições por meio de uma “(...) valorização exclusiva e
unilateralíssima do social, a cujos fins a nova hermenêutica, quan-
do utilizada sem a indispensável cautela crítica, se mostra obse-
quente e servil” (2008, p. 486). Isto, porém, não pode invalidar a
necessidade de reflexão dos institutos políticos e jurídicos postos a
regular a realidade social, principalmente quando há descompasso
entre esta e o ordenamento jurídico vigente.
De toda forma, o Constitucionalismo brasileiro, tanto no âm-
bito do pluralismo jurídico quanto nos mecanismo de participação
popular, está bem distanciado das experiências constitucionais vi-
venciadas na América latina, ainda marcado pela monoculturali-
dade e por estruturas burocráticas que impendem uma democracia
de alta intensidade. Assim, (re) pensar o novo constitucionalismo
brasileiro (que não se confunde ou reduz ao paradigma conceitual
do neoconstitucionalismo), a partir de nuestra América, é uma
das tarefas colocadas ao O Direito Achado na Rua, para fins de
acompanhar seu desenvolvimento e sugerir alterações que condu-
zam à emancipação de novos sujeitos de direitos coletivos.
4.2.1.3. Descolonização do Saber
Toda a renovação almejada no plano normativo da vida so-
cial resta prejudicada sem a consequente alteração paradigmática
no modo de produção do conhecimento. A valorização de con-
teúdo e metodologia alheios à realidade circundante é verdadeiro
225
instrumento político de manutenção da ordem socioeconômica

hegemônica, pois que feita com a finalidade de impedir a parti-
cipação dos agentes sociais desprestigiados pelo status quo. Deste
modo, toda forma de saber se constitui em poder, na medida em
que a manipulação daquele conduz à justificação ou explicação de
uma realidade determinada, impedindo sua crítica.
Na perspectiva de José Geraldo, a modernidade: i) sob o
fundamento da racionalidade científica, excluiu outras formas
de conhecimento e de explicação da realidade; ii) subordinou as
outras formas de organização política à hegemonia do Estado e;
iii) a partir da supremacia legislativa no Direito, especialmente da
codificação, colonizou os espaços jurídicos plurais baseados nas
tradições corporativas e comunitárias (SOUSA JUNIOR, 2011,
p. 57). Para superar os mecanismos totalizantes da modernidade
apontados por José Geraldo, é necessário, na linha do que propõe
Cesar Baldi, para além de trabalhar com o conceito de “sujeitos
de direito”, cogitar o conceito de “sujeitos de conhecimento”, que
envolve o processo de ensino e aprendizagem recíprocos entre os
diferentes saberes94.
Nesse sentido, é importante relatar nesse espaço a iniciati-
va dos representantes do corpo discente da Pós-Graduação em
Direito da Universidade de Brasília. Por proposta das estudantes
e dos estudantes, foi aprovada, por unanimidade, no Colegiado
do curso, a política de cotas para negras e negros e indígenas na
seleção de Mestrado e Doutorado da UNB. A sugestão também
foi defendida por representantes do Movimento Negro e Indíge-
na da Universidade.
94 BALDI, Cesar. Abrindo caminhos à imaginação jurídica. ALICE. [8 de Janeiro de

2014]. Entrevista disponível em:http://alice.ces.uc.pt/news/?p=2985. Acesso em 25
de agosto de 2014.
226
Atualmente, em uma comissão formada para elaboração do

edital, está se discutindo as possíveis formas de ingresso das alunas
e dos alunos cotistas, com dissensos, inclusive epistemológicos, so-
bre os métodos de acesso e número de vagas para os cotistas.
Tal experiência, no âmbito da Pós-graduação, entre outras,
já havia sido realizada nos cursos de Antropologia e Sociologia da
própria UnB, na linha de Direitos Humanos do curso de Direi-
to da USP, no curso de Antropologia Social do Museu Nacional
(UFRJ), todos com vagas para negras e negros e indígenas.
Importante ressaltar que a UnB, baseada em sua autonomia
universitária, foi a primeira Universidade federal do país a adotar
a política de cotas para graduação, a partir de um caso de racismo
ocorrido na Universidade. Essa decisão gerou um forte impacto
na pluralidade do espaço acadêmico da UnB e, após dez anos da
política de cotas, é visível a diferença com Universidades que não
adotaram tais políticas. Os dados da “Análise do Sistema de Cotas
Para Negros da Universidade de Brasília” mostram que a UnB já
incluiu, em 2012, um total de 41% de estudantes negros, sendo
mais do que o dobro do que ela incluía no ano 2000, antes da
implantação das cotas95.
O fato que é as Universidades brasileiras são profundamen-
te marcadas pela questão étnico-racial e as cotas, além de uma
necessidade concreta para os sujeitos historicamente ausentes
dos espaços acadêmicos, é também uma possibilidade de rein-
venções epistemológicas.
Considerando que há dimensões esquecidas na política
de cotas, notadamente na Pós-graduação, em que há um maior
compromisso com a pesquisa e extensão, Brandão (2014) consi-
dera que as cotas para negras e negros e indígenas podem pos-
95 Relatório disponível em: http://www.unb.br/administracao/decanatos/deg/downloads/

index/realtorio_sistema_cotas.pdf
227
sibilitar a formação de pesquisadoras e pesquisadores alinhados

com temas tradicionalmente invisíveis no Direito, de maneira
que “Os atores sociais envolvidos nas lutas por reconhecimento es-
tarão diretamente envolvidos nas pesquisas jurídicas. De objeto de
pesquisa podem passar a sujeitos protagonistas das investigações aca-
dêmicas.”. Assim considera que:
(...) é importante ressaltar que as cotas para Pós-Gradua-

ção em Direito, além de intensificar o processo de plura-
lidade e diversidade na Universidade, com a participação
de sujeitos antes excluídos desses espaços, funda novas e
criativas formas epistêmicas, a partir de setores que histo-
ricamente foram alijados da produção/aplicação do Direi-
to, remodelando a própria perspectiva acadêmica a partir
desses conhecimentos (Brandão, 2014).
Nesse sentido, a política de cotas atua no sentido de des-

construir a colonização do saber e possibilita a abertura a outros
conhecimentos possíveis a partir do Direito. Cabe ao O Direito
Achado na Rua o desafio de promover um discurso jurídico que
seja eminentemente emancipatório, reconhecendo novas formas
de saber não abarcadas por um cientificismo que ignore os dados
sociais e contra eles se oponha, mas que, de outro modo, relegue às
práticas sociais dos atores mais vulneráveis a condição de ateóricos
ou carecedores de logicidade e refutabilidade. E, para tais desafios,
é necessário que os atores sociais excluídos desse processo protago-
nizem novas formas de pensar o Direito e a própria academia.
4.2.2. Ensino, Pesquisa e Extensão

Nesse sentido, é claro que repensar o ensino e a pesquisa
também passa por rever as bases epistemológicas de nossa ima-
ginação jurídica. É por isso que, seguindo Boaventura de Sousa
228
Santos, desde já afastamos os riscos do epistemicídio, noção que

indica o imenso desperdício das experiências cognitivas e a neu-
tralização dos conhecimentos produzidos fora de parâmetros do-
minantes na academia (SANTOS, 2010, p. 52), optando, a partir
de O Direito Achado na Rua, por novos caminhos para incentivar
a pluralidade na produção acadêmica de maneira a permitir a pro-
liferação de conhecimentos distintos.
Portanto, o presente tópico está diretamente ligado às possibi-
lidades e condições epistemológicas que adotamos no nosso traba-
lho, sendo importante salientar que o papel da academia, ao contrá-
rio de seu pretexto oficial de difundir conhecimento, pode neutra-
lizar ou estigmatizar conhecimentos que estão fora de seus padrões
estritos, motivo pelo qual estamos dispostos a disputar um modelo
de academia que valorize outras narrativas e formas de saberes.
Para tanto, é necessário partir de uma crítica profunda dos
padrões dominantes do ensino e da pesquisa do Direito na atua-
lidade para, a partir daí, construir novas e diferentes possibili-
dades de pensamentos críticos e emancipatórios na produção do
ensino e pesquisa.
O ensino jurídico brasileiro é fortemente marcado pela lógica
do estudo para concurso público por formas egoísticas de com-
preensão dos fenômenos jurídicos, em que os temas dogmáticos
são priorizados em detrimento das possibilidades emancipatórias
do ensino que, nesse aspecto, são secundarizados nas grades cur-
riculares e no cotidiano das faculdades de Direito. Lyra Filho, em
1981, já indicava:
Se o ensino do Direito ajustar seus parâmetros pela bito-

la estreita do status quo, toda pretensão de renovação de
currículo e programas continuará gerando seus títeres e
autômatos. Neste empenho, nada melhor do que a instru-
ção programada. Põe-se a ideologia em pílulas, e o estu-
229
dante aprende a desenhar um x, nalgum ponto indicado

pelo gabarito (LYRA FILHO, 1981, p. 08).
Dessa forma, reproduzindo a lógica do status quo citado por

Lyra Filho, e que ainda é dominante na academia jurídica, exclui-
-se do horizonte dos estudantes temas relacionados às estruturas
do poder e às relações envolvendo conflitos e possibilidades na
concretização dos direitos fundamentais, a partir de um diálogo
com os conhecimentos populares. É por isso que, a partir de O
Direito Achado na Rua, o constitucionalista português J. J. Gomes
Canotilho assevera:
Do outro lado da rua, <O Direito Achado na Rua> é,

perante o sangue vivo que brota dos vasos normativos da
realidade e a vedação de um direito outro, alternativo ao
direito formal das constituições, códigos e leis, compreen-
de-se que o discurso hermenêutico dos juristas mais não
seja que um manto ocultador do insustentável peso do po-
der (CANOTILHO, 2008, p. 119).
Na pesquisa, o problema fundamental é o distanciamento da

realidade social da vida das brasileiras e dos brasileiros – que cons-
titui numa espécie de autismo acadêmico em relação às demandas
concretas. Além disso, outro problema desponta de forma mais
recente no Brasil: a lógica produtivista intensificada pelo modelo
CAPES de produção.
Diante desses problemas, há algumas possibilidades de su-
peração, de reinvenção do ensino e da pesquisa jurídica a partir
de O Direito Achado na Rua. Para romper com este modelo, o
primeiro ponto importante é a propalada separação entre teoria e
prática na construção do conhecimento, comumente encontrado
nos manuais jurídicos.
230
Na perspectiva de O Direito Achado na Rua, tendo em vista

que a formulação teórica do Direito é feita a partir da realidade so-
cial, não pode haver teoria sem prática e vice-versa (SOUSA et al,
2010, p. 45). É por isso que Lyra Filho assevera que “(...) qualquer
impulso teórico, desnutrido de práxis consciente, é cegueira alie-
nada e transmite os produtos da ideologia; mas toda práxis bruta,
sem reflexão teórica, é cegueira pragmática, gerando marionetes
de condutas infra-humana.” (LYRA FILHO, 1981, p. 16).
Outro ponto básico nessa formulação é a necessidade de
interdisciplinaridade na construção do conhecimento, tendo em
vista que o fenômeno jurídico é perpassado pelos olhares das mais
diversas disciplinas para sua compreensão, sendo dois aspectos es-
senciais para a sua prática: a sociologia jurídica e a historicidade
do fenômeno jurídico (SOUSA et al, 2010, p. 45).
Além desses pontos, acrescentamos a necessidade de dissol-
ver a hierarquia entre os sujeitos envolvidos na pesquisa, amplian-
do os espaços de construções horizontais, tanto no ensino e na
pesquisa quanto na extensão. É sempre importante salientar que
o papel dos segmentos envolvidos na investigação não são unica-
mente o de “objetos” de pesquisa, mas sim de protagonistas das
investigações acadêmicas.
Também destacamos a crítica ao produtivismo engendrado
pela CAPES. Obviamente, produzir academicamente é, também,
compartilhar conhecimento e inserir a produção em uma dinâmi-
ca de debates e diálogos que possibilitem críticas e autocríticas. No
entanto, quando esse sistema é colonizado por padrões específicos
e dominantes de produção, há o risco de sufocar outras formas de
conhecimento possíveis.
A lógica produtivista da CAPES (Coordenação de Aper-
feiçoamento de Pessoal de Nível Superior) compromete, na pers-
pectiva do antropólogo Alex Morais, a diversidade das formas de
231
fazer ciência ao impor sistemas homogêneos guiados pelas lógicas

dominantes, de maneira que:
Só as modalidades mais conservadoras e pouco imagina-

tivas de fazer ciência se adaptam, sem grandes problemas,
aos atuais imperativos de quantificação. Já os estudos
guiados pela co-investigação prolongada e participativa,
os amplos panoramas exploratórios, as práticas colabora-
tivas e situadas de escrita científica, etc. não conseguem
sobreviver a esses imperativos. Nossos prestigiosos pro-
gramas de pós-graduação mais se assemelham organismos
autistas, imersos em transe profundo, alheios a qualquer
preocupação com a importância social do conhecimento
científico (MORAIS, 2014).
Essas orientações da CAPES, portanto, vêm projetando pre-

juízos acadêmicos e norteando uma política baseada na lógica do
produtivismo com efeitos negativos na direção de um ensino jurí-
dico crítico e emancipador.
Como exemplo desse processo, podemos citar os recentes
embates junto à comissão da Pós-graduação em Direito da Uni-
versidade de Brasília quanto às linhas de pesquisa. Tal debate se
iniciou após o envio da avaliação trienal da CAPES quanto à pro-
dutividade e as orientações realizadas do Programa em Direito, o
que influi diretamente na nota de avaliação do curso.
Parte do corpo docente colocou que algumas linhas, por baixa
produtividade nos moldes da CAPES, deveriam se fundir com ou-
tras linhas ou virar sublinhas para incremento ou manutenção na
nota. Por decisão do colegiado do PPGD/UnB, O Direito Achado
na Rua, antes uma linha própria, passou a constituir uma sublinha
de pesquisa inserida na linha “Sociedade, Conflito e Movimen-
232
tos Sociais”, seguindo o modelo de avaliação proposto pela CA-

PES96). Assim, revisitamos a crítica de Morais quando afirma que:
O produtivismo está a serviço do epistemicídio porque

bloqueia ou dificulta seriamente e emergência de outras
formas de construção e enunciação do conhecimento em
um momento de relativa democratização das universida-
des públicas brasileiras. Em poucas palavras, o produtivis-
mo compromete a diversidade das formas de fazer ciência
96 Descrição da linha “Sociedade, Conflito e Movimentos Sociais”: “Esta linha de

pesquisa reúne trabalhos que examinam a relação entre o Direito e a Sociedade,
contemplando uma pluralidade de enfoques e objetos de pesquisa. Seja na tradição
dos estudos de criminologia e segurança pública, seja nos estudos voltados para
as reivindicações dos movimentos sociais e (re)conhecimento de novas práticas
políticas e direitos, ou ainda nos estudos centrados na análise de processos
institucionais de administração de conflitos e no acesso à justiça. A linha tem
uma forte vocação interdisciplinar, privilegiando o diálogo com as ciências sociais
em sentido amplo e com pesquisas de carácter empírico”. Já a sublinha “Direito
Achado na Rua, Pluralismo Jurídico e Direitos Humanos”, é descrita da seguinte
forma: “O conjunto das formas de mobilização e organização das classes e grupos
sociais constituído pelos movimentos sociais instauram práticas políticas novas em
condições de abrir espaços sociais inéditos e de revelar novos atores na cena política
capazes de criar direitos, dentro de uma noção de intensificação das experiências
democráticas e dos diálogos constitucionais. Articulando nos planos teórico e
prático o potencial emancipatório do direito, compreendido como “a enunciação
de princípios de uma legítima organização social da liberdade”, a sublinha “O
Direito Achado na Rua” – expressão criada por Roberto Lyra Filho, a partir de
seus estudos de teoria jurídica, social e criminológica, e que constitui uma das mais
antigas linhas de pesquisa da Faculdade de Direito, Universidade de Brasília (1987),
certificada pelo CNPq – reúne estudos sobre o (re)conhecimento de novos saberes
e práticas pedagógicas, incluindo experiências de extensão universitária e outras
formas de participação e aprofundamento da democracia. Partindo da concepção
teórica do pluralismo jurídico, o “Direito Achado na Rua” estimula trabalhos em três
dimensões: o conhecimento do direito e suas formas de difusão, como a educação
jurídica; o acesso à justiça, incluindo estratégias de defesa e produção de direitos
socialmente constituídos pelos sujeitos coletivos de direito; e os direitos humanos”.
Disponível em: http://www.fd.unb.br/index.php?option=com_content&view=arti
cle&id=456%3Alinha-de-pesquisa-1-pluralismo-juridico-e-direito-achado-na-rua
&catid=170&Itemid=2781&lang=br.
233
e a própria criatividade humana no exato momento em

que se converte em critério valorativo hegemônico para
a distribuição dos recursos necessários à produção de co-
nhecimento. Ao erigir-se como critério chave de avalia-
ção da relevância da produção intelectual, ele impõe sis-
temas de hierarquização que só fazem reiterar privilégios
epistêmicos de longa data e comutá-los, logicamente, em
privilégios político-institucionais (MORAIS, 2014).
Nesse aspecto, é muito sintomático constatar a ausência de

pontuação na nota CAPES referente às atividades de extensão. A
extensão pressupõe a articulação entre academia e a comunida-
de; entre o saber científico e o conhecimento popular. O Direi-
to Achado na Rua, em particular, e todas as outras experiências
jurídicas que pressupõem e efetivam diálogos entre a academia e
a comunidade, portanto, não têm sido levados em conta nas ava-
liações da CAPES. É uma forma de institucionalizar uma espécie
de neutralização acadêmica do papel da extensão, contrariando o
princípio constitucional da indissociabilidade entre ensino, pes-
quisa e extensão.
Nesse mesmo sentido, ainda sobre os meios de avaliação da
CAPES, também merece uma nota crítica à ausência de pontuação
para Programas de Pós-graduação que ofertem cotas raciais e/ou
étnicas. Dessa forma, a avaliação CAPES – que poderia ser indu-
tora de uma nova política de inclusão e reconhecimento no âmbi-
to da pós-graduação brasileira – ainda silencia sobre esse aspecto,
acabando por fortalecer uma concepção de conhecimento ainda
marcada pela exclusão das epistemologias dissidentes, como visto
no ponto que abordamos sobre política de cotas no PPGD/UNB.
O tópico chamado “inserção social” constante da avaliação
CAPES ainda é vago, impreciso e não fornece elementos para ga-
rantia efetiva de maior pluralidade nos ambientes acadêmicos da
Pós-Graduação. Assim, essa também é uma questão central na
234
atualidade que interfere no rumo das pesquisas jurídicas e do en-

sino em nosso país.
Fazendo uma conexão desse debate com as experiências do
grupo em sala de aula, como já relatado nos tópicos acima, todos
esses pontos ficaram muito evidentes em dois momentos de nos-
sa apresentação: o diálogo com os movimentos sociais e o gru-
po carrossel (ambos já explicados em pontos anteriores). A nossa
apresentação, uma tentativa de superação da relação formalista
do ensino e pesquisa jurídica, surge como prática colaboracionista
com a produção que se pretende acadêmica, mas não se pretende
exclusivista nem hierárquica.
Em razão desta postura, onde foram possíveis ricas reflexões,
pretendemos ressaltar os elementos sobre ensino e pesquisa le-
vantados pelos integrantes dos movimentos sociais e estudantes
durante a prática do carrossel. Nas falas dos nossos convidados,
podemos identificar na contribuição do estudante indígena da
Universidade de Brasília, os desafios mais intensos entre a prática
universitária e os saberes tradicionais. De acordo com o estudante,
assim como a Universidade não estava preparada para receber os
povos indígenas, os indígenas não estavam preparados para man-
terem-se na Universidade. Ele relata, além das dificuldades mate-
riais para conclusão dos cursos pelas e pelos estudantes indígenas,
que “os professores não são compreensíveis ao saber diferente”.
Embora o representante indígena destaque que há mudan-
ças graduais nesse processo, podemos identificar, claramente, a
distância abissal entre a lógica acadêmica colonial e uma práti-
ca mais aberta à diversidade e pluralidade. O Direito Achado na
Rua, para ele, portanto, é uma espécie de Direito de resistência
dos povos indígenas contra a exploração de seus territórios e a
eliminação de seus conhecimentos.
Os indígenas, como bem ressaltou o estudante, não são
compreendidos enquanto sujeitos de conhecimento que possibi-
235
litam novas e complexas formas de ensinar (e não somente de

aprender). E os povos indígenas aqui são representativos de todos
os segmentos historicamente secundarizados pela produção e pela
aplicação do Direito, como os membros das comunidades tradi-
cionais, além de tantos outros sujeitos historicamente excluídos
do acesso à Universidade.
É preciso, portanto, inverter a lógica que guia boa parte da
academia e questionar não apenas como a Universidade pode con-
tribuir para o conhecimento popular e para as comunidades, mas
como essas contribuições podem interferir na realidade acadêmica
universitária (Brandão; 2014). E, obviamente, o ensino e a pesqui-
sa têm centralidade nessa problemática.
Lyra Filho, em trabalho encomendado pelos estudantes da
UNB, observa que: “O Direito que se Ensina Errado pode enten-
der-se, é claro, em, pelo menos, dois sentidos: como o ensino do
direito em forma errada e como errada concepção do direito que
se ensina. O primeiro se refere a um vício de metodologia; o se-
gundo, à visão incorreta dos conteúdos que se pretende ministrar”
(LYRA FILHO, 1980, p. 6).
Mais de trinta anos após essas lições, embora o próprio autor
ressalte que essas duas percepções estão vinculadas, observamos
que sua crítica ao ensino jurídico do Prof. Lyra Filho permane-
ce atual: concepções metodológicas que reproduzem o vício de
subordinação da relação “professor x aluno”, rompendo qualquer
relação de horizontalidade, e, no conteúdo, de perspectivas jurí-
dico-acadêmicas que colonizam outras formas de conhecimento.
Desta forma, propor novos modelos também significa, nas
palavras de Raquel Sieder: “[...] una critica al saber jurídico domi-
nante monocultural, racista y exclusivo y um compromiso – aun-
quesea todavia al nivel discursivo - de valorar las epistemologias o
lós ‘saberes’ distintos que historicamente han sido negados, discri-
236
minados y desvalorizados”97 (SIEDER, 2011, p. 316). Contrapon-

do-se ao atual modelo dominante, portanto, que O Direito Acha-
do na Rua, cujo objetivo é o de fundar modelos e práticas plurais
na perspectiva acadêmica e política a partir dos sujeitos coletivos
de direito, oferece novas e criativas possibilidades na construção
de um ensino e de uma pesquisa que permitam uma aprendizagem
recíproca com outros conhecimentos.
4.2.3. Práxis e Participação Popular

Diversas foram as contribuições no eixo da práxis e participa-
ção popular na atividade carrossel, entendendo-se práxis enquanto
como o conjunto de instrumentos em ação, instrumentos esses
que determinam a transformação das estruturas sociais. A seguir
vamos elencar estas contribuições de forma a facilitar a compreen-
são de quão rica foi a atividade do Carrossel.
4.2.3.1. Modelos e Discursos sobre a Democracia

Conforme a análise dos participantes da disciplina, a demo-
cracia e a participação popular apresentam-se, atualmente, em dis-
puta, havendo dois modelos e discursos sobre como aquela se opera.
Em um primeiro modelo, a democracia mescla-se ao proces-
so eleitoral, realizado no momento em que o povo elege seus re-
presentantes políticos. Num segundo modelo, a democracia dá-se
cotidianamente, através da participação popular em espaços deci-
sórios e de formulação de políticas públicas. Aliás, conta com am-
97 Tradução livre: “Uma crítica ao saber jurídico dominante monocultural, racista e

exclusivista, e um compromisso – ainda que seja no nível discursivo – de valorizar
as epistemologias e os “saberes” distintos que, historicamente, são negados,
discriminados e desvalorizados”.
237
paro constitucional, sendo previsto o exercício do poder popular,

motivo pelo qual a Constituição Federal de 1988 é denominada
“Constituição Cidadã”.
A tensão entre essas duas visões de participação democrá-
tica, muitas vezes tornada invisível, mostrou-se presente com a
recente publicação de Decreto Legislativo nº 8.243, de 2014, que
institui a Política de Participação Social – PNPS, e prevê a articu-
lação de mecanismos de participação social já existentes na admi-
nistração pública federal, como conselhos, comissões, ouvidorias,
mesas de diálogo, fóruns de interconselhos, audiências públicas,
consultas públicas e ambiente virtual de participação social, além
de estabelecer diretrizes para o seu funcionamento, contribuindo,
assim, para a ampliação da cidadania de todos os atores sociais.
A existência de tais espaços de diálogo, conforme entrevis-
ta do professor José Geraldo, “traduz a conquista da sociedade,
no processo de transição da ditadura para a democracia, de ins-
titucionalizar um sistema de participação e de exercício direto da
democracia” e beneficia a sociedade que se “corresponsabiliza pela
gestão, exerce o controle social e encontra mecanismos para fazer
valer suas demandas de modo institucionalizado” 98.
4.2.3.2. Criminalização dos Movimentos Sociais

Outro problema apontado na atividade carrossel foi a cres-
cente criminalização dos movimentos sociais, que passaram por
uma forte ofensiva policial e dos governos locais ao longo das jor-
nadas de junho e dos protestos e manifestações de rua relaciona-
das aos eventos esportivos de 2014. Tal estratégia foi e é apoiada
98 SOUSA JUNIOR, José Geraldo, In. Ex-reitor: Partidos contra decreto de Dilma
querem preservar privilégios. Site Vi o mundo <http://www.viomundo.com.br/
denuncias/jose-geraldo.html> Acesso em 22 de agosto de 2014.
238
por setores conservadores, os quais buscam desqualificar e crimi-

nalizar os movimentos sociais.
A criminalização primária deu-se a partir da instauração de
inquéritos ilegais, de prisões arbitrárias e de soluções punitivistas,
utilizando-se o direito penal para o enfraquecimento dos protestos
e das manifestações. Tal perspectiva pode ser vista na fala do nos-
so convidado militante do MPL, para quem: “Essa perspectiva é o
que está em cheque agora, o que junho colocou em cheque, por-
que o tipo de cultura que a gente buscou espalhar está em disputa,
sobre que tipo de ato está na rua, sobre sua legalidade, sobre usar
máscaras, o que já fazemos desde 2004 (... ) e foi isso que conquis-
tou nossos direitos, o passe livre”.
Diretamente relacionado ao tema da criminalização, tam-
bém foi levantado o recente debate sobre a desmilitarização da
Polícia Militar, discussão que propõe o fim do vínculo da corpora-
ção com as Forças Armadas, de modo a torná-la mais próxima da
sociedade com uma atuação mais voltada à proteção da cidadania.
O tema da desmilitarização tem sido pautado há algum tem-
po por movimentos sociais e entidades populares que discutem o
genocídio negro na periferia, recentemente foi apresentado como
proposta de emenda à Constituição Federal – PEC nº 51, de 2013,
de autoria do senador Lindbergh Farias (PT-RJ), no Senado Fede-
ral, prevendo a organização dos órgãos policiais em carreira única,
a autonomia dos Estados para estruturar seus órgãos de segurança
pública, além da mudança de competências como o trabalho os-
tensivo e a investigação, funções hoje atribuídas, respectivamente,
às polícias militar e civil.
O tratamento dispensado pela mídia às manifestações e aos
movimentos sociais também está diretamente relacionado à cri-
minalização das manifestações sociais, à medida que distorceu
informações realizando editoriais sobre os protestos e defendendo
maior punição e violência, mostrando-nos os profundos problemas
239
oriundos do monopólio da mídia. Daí a necessidade apontada pelo

grupo de democratização da mídia, para concretização da demo-
cracia como um todo no País com a recusa à criminalização do
protesto social, afinal, conforme o militante do MPL nos apontou:
“A violência é a estrutura, não a reação”.
4.2.3.3. Análise e Reforma das Instituições Brasileiras

Outro ponto levantado dentro da atividade carrossel foi a
necessidade de reforma das instituições existentes, como o Legis-
lativo, o Executivo e principalmente o Poder Judiciário, que ainda
não se apresentam de forma acessível, democrática, rápida e efi-
ciente a maioria da população.
Assim, foi discutido o quanto às instituições são herméticas à
participação e as demandas sociais populares e o quanto há um sen-
timento de ausência de participação e de burocracia desnecessária.
Dentre as instituições que necessitam de mudanças também
foram mencionadas pelas participantes e pelos participantes a es-
cola e a universidade. Sendo necessária uma educação socialmen-
te inclusiva e que seja participativa; também foi discutida, uma
vez que após a ampliação do acesso ao ensino público, a perma-
nência e a qualidade passam a ser os novos horizontes da educa-
ção pública no Brasil.
4.2.3.4. O Espaço Urbano e a Ida às Ruas

Quanto ao espaço urbano foi ressaltada a necessária ressigni-
ficação dos espaços públicos e privados; tema que envolve diversas
pautas das jornadas de junho de 2013, como a mobilidade urbana,
o acesso a equipamentos públicos e o direito à cidade de forma
240
inclusiva. A rua ainda é o ponto de encontro de diversos grupos e

opiniões, o espaço no qual há o conflito e a convergência.
Os grandes projetos urbanos relacionados aos Jogos da Copa
Mundial e aos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, bem como di-
versas intervenções urbanas de revitalização, e renovação de áreas
centrais consideradas degradadas geraram muitos debates devido
as remoções arbitrarias e a gentrificação99 das áreas.
O espaço urbano está em debate e a sua produção e repro-
dução dentro de uma lógica capitalista acabam por se mostrar
excludentes, produzindo cidades para poucos. Cada vez mais nos
deparamos com muros da cidade, com pessoas vivendo de forma
enclausurada, ou na maioria das vezes, segregada nas periferias
dos grandes centros urbanos.
Este espaço urbano segregador, militarizado e excludente, foi
palco das manifestações nacionais que ocorreram em junho de
2013. Ida às ruas que nas falas dos nossos convidados, identifica-
mos na tocante contribuição da militante do MTST, para quem a
rua é espaço de luta por direitos.
(...) Outro dia fui insultada por um PM e chamada de “Ne-

gra Barraqueira”, esse processo está correndo na justiça. A
cada insulto eu me fortaleço mais, eu descobri que tenho
direito e ele está na rua, e vou fazer valer esse direito.
Vemos, assim, o quanto o espaço, urbano ou rural, foi e continua

sendo palco de lutas, devendo ser discutido, ampliado, socializado.
99 Tradução do inglês “gentrification”, fenômeno que afeta áreas urbanas, no qual a

valorização de uma área, devido a alteração de suas dinâmicas, construção de novos
espaços ou equipamentos, leva ao aumento dos custos de vida e manutenção e
acabam dificultando a permanência da população mais pobre e vulnerável nesta área.
241
4.2.3.5. Novas Linguagens, Novas Pautas, Novas Direções

A necessidade da incorporação de diferentes linguagens e sa-
beres foi apontada como um imperativo no que se refere à práxis e à
participação social, de modo que as diferenças sejam reconhecidas
e legitimadas e que vínculos sejam estabelecidos entre os diversos
atores e sujeitos coletivos de direitos. Também foi apontada a im-
portância da integração entre as pautas dos movimentos sociais
com respeito às suas diferenças, isto porque as discussões levaram a
percepção de que os sujeitos coletivos de direito também passaram
por transformações que afetaram não apenas suas pautas (amplian-
do-as ou setorizando-as), mas também sua forma organizativa.
Vemos o quanto é preciso um exercício identitário de reco-
nhecer e se reconhecer em outras pautas, enquanto estudantes,
trabalhadores, mulheres, afrodescendentes, grupos LGBT e todas
as demais pluralidades e pautas existentes.
Nesse sentido, em resumo, dentre os desafios e as perspecti-
vas apresentadas podemos citar, como relevantes, as seguintes: (I)
a tensão entre dois modelos de democracia; (II) a criminalização
dos movimentos sociais; (III) a democratização da mídia; (IV) a
necessidade de desmilitarização da Polícia; (V) as reformas das
instituições públicas, principalmente do Poder Judiciário; (VI) a
reforma da Educação e das Cidades, todas voltadas para uma edu-
cação de inclusão social e participativa; (VII) a ressignificação dos
espaços públicos e privados; a (VIII) a incorporação de diferentes
linguagens e saberes; e a (IX) a integração entre as pautas dos
movimentos sociais com respeito às suas diferenças.
242
4.3. Possíveis Tarefas de o Direito Achado na Rua

Traçar tarefas e caminhos a serem seguidos nunca foi um
trabalho fácil, principalmente quando o diagnóstico apresentado
necessita de superações políticas, sociais e econômicas que levam
anos, quiçá décadas para ocorrem. A esta dificuldade estrutural
na análise e busca por alternativas, soma-se o fato de que sempre
precisamos, antes de qualquer análise, nos posicionar enquanto
nosso local de fala, enquanto estudante, servidora ou servidor pú-
blico, assessora ou assessor parlamentar, advogada ou advogado
popular, militante de movimento social. Tais lugares da rua, da
academia ou do gabinete em que pisamos, acabam por direcionar
grande parte do que ponderamos e pregamos, por isso, qualquer
propositura de perspectivas terá que ser enxergada com base nes-
tes lugares de fala e dentro de uma temporalidade histórica.
Conforme nos foi proposto, buscamos apontar até o presente
momento, os desafios e as perspectivas atuais de O Direito Acha-
do na Rua, faltando-nos traçar as possíveis tarefas que se ensejam
aqueles que integram e estudam O Direito Achado na Rua.
Dentre as possíveis tarefas para superar os desafios teórico-
-epistemológicos, pedagógicos e quanto a práxis e participação po-
pular, podemos mencionar a ressignificação e renovação das ins-
tituições, uma vez que as instituições ainda se conservam hermé-
ticas a determinadas discussões e as diferentes realidades sociais.
O desafio da ineficácia das instituições, principalmente do Poder
Judiciário tem como principal tarefa a busca por novos espaços de
participação junto ao Judiciário.
Exemplo de tarefa é a busca para que o Conselho Nacio-
nal de Justiça convoque e envolva a sociedade civil na escolha de
parte de seus membros, realizando chamadas de candidaturas ou
audiências públicas, debates e consultas prévias quanto os critérios
de representatividade. Outra necessidade é que os concursos pú-
243
blicos e os cursos de formação para cargos no Sistema de Justiça

tratem de temas relacionados à participação social, movimentos
sociais, direitos humanos, etc. Só, assim estaremos caminhando
rumo a uma efetiva reforma do Poder Judiciário com o aprofunda-
mento dos mecanismos de participação social. É preciso abrir as
instituições ao povo e às demandas das ruas.
Discutir o papel e o local de O Direito Achado na Rua na
academia, sem o excluir de seu lugar da fala que é a rua e de seus
sujeitos coletivos, que é povo, pode resultar em um fortalecimento
de O Direito Achado na Rua enquanto marco teórico e linha de
pesquisa acadêmica, e em uma futura mudança dos critérios e pa-
râmetros de avaliação da pós-graduação e dos programas no âmbi-
to da educação superior realizados pela Coordenação de Aperfei-
çoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, principalmente
no que tange a produtividade, de modo incluir nos critérios ava-
liados atividades extensionistas.
A realização de atividades acadêmicas e extensionistas logo
no início dos períodos letivos pode levar a discussão de O Direito
Achado na Rua às novas e aos novos estudantes, mostrando-lhes
que o direito pode sim ser emancipador e instrumentalizador de
lutas políticas. As atividades extensionistas, igualmente devem
constar no currículo acadêmico enquanto atividades obrigatórias
à formação da estudante e do estudante.
Atualmente passamos por novos processos políticos e sociais
que podem se caracterizar pelo mesmo descenso dos movimentos
sociais de base que Eder Sader retrata em seu livro “Quando novos
personagens entraram em cena” e mesmo dos sujeitos coletivos de
direito que entre as décadas de 70 e 80 emergiram nos espaços
públicos, passando a fazer parte da cena histórica, lutando pela
criação de direitos, para um ascenso de movimentos que tomam
escalas globais, a exemplo dos movimentos do Occupy Wall Street,
Primavera Árabe ou Indignados na Europa. Tais sujeitos e mo-
244
vimentos continuam a atuar, mas já não juntam as massas em

lutas comuns. Vemos uma redefinição de novas práticas civis, a
pulverização de lutas e pautas, o que as novas teorias classificam
enquanto a “repolitização dos movimentos sociais e eixo das mo-
bilizações transnacionais associadas ao uso de novas tecnologias”:
A maioria desses movimentos é composta de jovens e

a forma de comunicação predominante é on-line, que
ganhou status de ferramenta principal para articular as
ações coletivas. Por isso, os recursos analíticos têm de
incorporar essa importante alteração nas relações que
se estabelecem e estruturam os movimentos (GOHN,
2012, p.353).
Tais mudanças podem ser visualizadas tanto na forma or-

ganizativa destes novíssimos sujeitos, que agora é feita em rede
(Twitter, Facebook, Youtube, etc.), com o uso da tecnologia digi-
tal para suas articulações políticas, com, na maioria dos casos,
ausência de lideranças, mas não de organicidade, como é o caso
do Movimento Passe Livre – MPL, que se caracteriza por ser um
movimento autônomo, horizontal, independente e apartidário100.
100 Buscando a carta de princípios do Movimento Passe livre – MPL, temos que
o documento ao estabelecer os pontos de unidade dos coletivos federados
nacionalmente ao MPL coloca no apoio mútuo base garantidora da existência do
movimento, visto este se constituir “através de um pacto federativo, isto é, uma aliança
em que as partes obrigam-se recíproca e igualmente e na qual os movimentos nas cidades
mantêm a sua autonomia diante do movimento em nível federal, ou seja, um pacto no
qual é respeitada a autonomia local de organização. As unidades locais devem seguir os
princípios federais do movimento. Ressalta-se que o princípio da Frente Única deve ser
respeitado, estando acima de questões ideológicas. O MPL em nível federal é formado
por representantes dos movimentos nas cidades, que constituem um Grupo de Trabalho
(GT). O GT é formado por pelo menos 1 e no máximo 3 membros referendados pelas
delegações presentes no Encontro. Os grupos locais de luta não presentes devem ter o
aval dos movimentos que fizerem parte do GT. Deve-se garantir a rotatividade dentro do
GT de acordo com as decisões do MPL local.” – Visto em http://saopaulo.mpl.org.br/
apresentacao/carta-de-principios/ - Acesso em 20.10.2014.
245
Tanto que Nair Bicalho e José Geraldo, ao escreverem sobre o

livro de Manuel Castells “Redes de indignação e esperança”, nos
mostram o quanto estas novíssimas manifestações coletivas são
espontâneas e autônomas – isto é, sem representação ou interme-
diação institucional; e o quanto estas estão repolitizando a luta
pela garantia e efetividade de direitos e o pleito dos sujeitos que
militam por direitos socais.
Para Castells, tudo se resume a uma demanda espontânea

de direito à cidade, com a novidade de que os cidadãos
têm agora um instrumento próprio de informação, auto
organização e automobilização, independentemente de
convocação institucional, partidos ou sindicatos; e que
materializa um espaço crítico instituinte por impulso de
uma cidadania ativa, profundamente democrática, capaz
de designar, representar e materializar direitos (SOUSA;
SOUSA JR. 2013, p.15).
Assim, outra importante tarefa é sempre atualizar, debater

e discutir, a categoria dos chamados novos sujeitos coletivos de
direito, ou dos novíssimos atores que entram em cena101, como
Ermínia Maricato se referiu ao MPL e às pessoas que foram às ruas
nas jornadas de junho.
É preciso fazer uma contínua (res) significação destes su-
jeitos e de suas práticas emancipatórias; bem como de quais são
as novas práticas sociais instituintes de Direito e como estes se
organizam e definem.
101 Em seu artigo publicado no Blog da Editora Boitempo, “Quando novíssimos atores
entram em cena, conquistas inesperadas acontecem”, Erminia trata do MPL,
que define como: “organizados em rede [...] informados, politizados, persistentes
[...], criativos, inovadores, bem-humorados, críticos à política institucional [...]”.
Disponível em: http://blogdaboitempo.com.br/2013/09/05/quando-novissimos-
atores-entram-em-cena-conquistas-inesperadas-acontecem/. Acesso em 20.10.2014.
246
Outra análise importante está no fato de que enquanto os

sujeitos coletivos retratados por Eder Sader apesar de descentrali-
zados, dispersos e privatizados, mas que se definiram e passaram a
agir em conjunto em torno de determinadas pautas, os novíssimos
sujeitos se encontram em um novo momento de descentralização e
dispersão, visto que, em que pese as jornadas de junho terem repre-
sentado um momento de volta às ruas em busca por participação
e representação política, não houve continuidade de organização.
No atual retrato de criminalização, falta de participação ou
mesmo de consenso de como esta participação deve ser dar; de se-
gregação e de militarização das instituições e até mesmo da cida-
de, afastando os sujeitos coletivos do espaço público, novas formas
de socialização, organização e percepção dos problemas, ainda há
muito que ser feito.
Acreditamos que por ser criado coletivamente o diagnóstico
traçado pelos coletivos, movimentos sociais e estudantes na ati-
vidade carrossel pode vir a servir como um indicativo do quanto
há que se avançar para um Estado Democrático. Assim, articular
estes novíssimos personagens e sujeitos coletivos de direitos na
criação e ampliação de espaços dentro da universidade, tanto do
ensino, quanto da pesquisa e da extensão é tarefa que urge.
A abertura às novas práticas instituintes de direito como a
mediação comunitária e outras formas de resolução de conflitos
também podem ser benéficas, pois partem do diálogo das partes
envolvidas na busca por soluções. Quanto ao reconhecimento de
novas cosmologias e formas do saber, as tarefas que se desenham
estão na própria abertura da universidade a outros grupos sociais
e aos diferentes saberes. A incorporação de diferentes linguagens
e saberes, a realização de cursos de educação popular, formações
políticas ou mesmo escolas de governo que desmistifiquem o direi-
to e o Poder Judiciário auxiliarão na instituição de novas práticas.
247
No que se refere às tarefas postas à práxis e à participação

popular e os desafios encontrados na atual tensão entre dois mo-
delos de representação democrática, que passaram a ser discutidos
depois da publicação do Decreto nº 8.243 de 2014, cuja tarefa foi a
de criar novas formas de participação, tal qual conselhos popula-
res deliberativos e consultivos, comissões de políticas públicas, ou-
vidorias, mesas de diálogo, fóruns, audiências públicas, consultas
públicas, ambientes virtuais de participação social, entre outras
formas de escuta ativa dos poderes Executivo, Legislativo e mesmo
do Judiciário, gerando nas palavras de Nair Bicalho e José Geral-
do, “institucionalidades participativas (...) para o diálogo entre a
sociedade e o Estado, como condição de reeducação da estrutura
democrática” (SOUSA; SOUSA JR. 2013, p.15).
Tais espaços, destinados para uma escuta ativa de pautas
sociais apenas se fortalecerão quando também for articulada e
garantida a participação social ao longo de todo o processo de
representação indireta vigente, com a realização de atividades, de-
bates, formações sobre sistema político, políticas públicas, formas
de atuação e participação dentro do sistema político.
Por sua vez, a criminalização dos movimentos sociais enseja
como possíveis tarefas a ampliação da discussão sobre os papéis
dos advogados populares e dos militantes em direitos humanos,
ampliando, assim, os debates quanto a atuação da polícia e do
atual modelo de Estado que exclui os movimentos sociais de deter-
minados espaços públicos. Tal tarefa se coaduna a necessidade de
democratização da mídia, sendo o apoio e a divulgação da inicia-
tiva de projeto de lei de iniciativa popular (“Campanha Expressar
a Liberdade – Uma nova lei para um novo tempo”), promovido
pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação -
FNDC102 uma das alternativas a uma mídia menos punitivista e
102 http://www.paraexpressaraliberdade.org.br/ - Acesso em 22.09.2014.
248
que não se encontre concentrada nas mãos das elites atrasadas e

predadoras, nas palavras de Aguiar.
Outra importante tarefa é o acompanhamento e o fortale-
cimento de mecanismos de Comunicação Comunitária e Rádios
Comunitárias103 que auxiliam o acesso à informação de áreas mais
desprovidas e vulneráveis. Segundo o Observatório de Comunica-
ção Comunitária104, esta se define enquanto:
[...] alternativa, popular, radical, para mudança social,

contra-comunicação, participativa, dialógica, horizontal
são expressões muitas vezes usadas para descrever uma
mesma experiência ou processos comunicacionais bem
distintos. Qualificar a comunicação como comunitária é
sempre um desafio, dada a complexidade e multiplicidade
do conceito de comunidade e de comunicação. Inclusive,
muitas vezes, no âmbito da comunicação, as noções de
alternativo e popular se confundem com o conceito de
comunidade – de fato e intencionalmente.
O estímulo a esta participação na comunicação popular, que

por ser dirigida a pequenos grupos, representam espaços para a po-
pularização democrática e de acesso à informação, fora dos gran-
des conglomerados midiáticos e meios de comunicação em massa.
Também relacionado aos movimentos sociais, sua criminali-
zação e a existência de uma mídia massificada e punitivista, temos
a questão da desmilitarização da Polícia. Esta só ganhará espaço
quando se ampliar o próprio debate sobre desmilitarização, o que
significa, em que consiste, quais são os papeis da polícia, seu his-
tórico e atual funcionamento.
103 http://artigo19.org/obscomcom/radcom/mapa/index.php - Acesso em 22.09.2014.

104 http://obscomcom.org/o-que-e-comunicacao-comunitaria/ - Acesso em 22.09.2014
249
Esta militarização também pode ser vista nos espaços físicos,

que se apresentam cada vez mais murados, isolados, repletos de
ofendículos e controle policial. Possíveis tarefas de ressignificação
dos espaços públicos e privados, bem como a ampliação da dis-
cussão referente ao direito à cidade em sua integralidade podem
avançar no debate do uso do espaço público, consolidando um
novo conceito do direito à rua.
Dentro das categorias estabelecidas por Roberto Aguiar no
prefácio do livro “Introdução crítica ao Direito Agrário”, com as mo-
dificações sugeridas pelo grupo, teórica-epistemológica, a pedagó-
gica e de práxis participação popular, o grupo partiu do diálogo
com representantes dos novíssimos atores que estão em cena, su-
jeitos de direito tecnológicos e em rede e os participantes da dis-
ciplina de O Direito Achado na Rua oferecida na pós-graduação.
Em entrevista recente dada a revista do Programa de Educação
Tutorial em Direito da Universidade de Brasília – PET-Direito105,
Aguiar teceu duras críticas ao se posicionar como vê a Universi-
dade de Brasília e O Direito Achado na Rua no cenário do ensino
jurídico brasileiro.
Tais críticas pareceram se afastar dos desafios que ele mesmo
colocou em seu texto, datado de 2002, como “o desafio da cons-
trução democrática em um país centenariamente manipulado por
elites atrasadas e predadoras. O desafio da ineficácia das institui-
ções jurídicas para atender às demandas sociais por direitos. O
desafio de sempre se renovar (...) (AGUIAR, p. 55)”, desafios estes
que não se superam em um período de dez anos.
A apontada necessidade de diálogo constante com as diversas
correntes e pensamentos não apenas se estabeleceu, como está em
constante construção, vide os diálogos com o constitucionalismo
105 COSTA, Alexandre Bernardino; e GARCIA, Rafael de Deus (Orgs.). Quiáltera.

Revista do PET-Direito da UNB. 1ª impressão. Brasília: Otimismo, 2013.
250
latino-americano e com as novas formas de organização dos mo-

vimentos sociais e coletivos que lutam por direitos humanos. Isto
porque, assim como a sociedade passa por uma constante trans-
formação, o método e a multimetodologia utilizada pelo O Direito
Achado na Rua considera que nenhum fenômeno social pode ser
compreendido quando encarado isoladamente e que o processo
social e histórico está em movimentação e libertação constante,
definindo e redefinindo o Direito, em cada etapa da sua “eterna
reconstituição” (LYRA FILHO, 1985, p.119).
Tal ressignificação está distante de ser superficialidade, afi-
nal a proximidade que O Direito Achado na Rua guarda com a
rua, as práticas sociais e as experiências práticas, é de constante
diálogo; fazendo da realidade social e da construção social do fe-
nômeno jurídico, sua base.
Conclusão
A universidade enquanto instituição que agrega diferentes
contradições que expressam a dinâmica da sociedade é definida
por Marilena Chauí (2002, p. 35) como uma instituição social.
Isso significa que ela realiza e exprime de modo determinado a
sociedade de que é e faz parte. Sua legitimação social acontece
por meio de sua capacidade autônoma de debater ideias, produzir
o saber, descobrir e criar conhecimentos.
Desse modo, a universidade é absolutamente necessária para
um projeto de desenvolvimento nacional que reflita as aspirações
da sociedade brasileira de acordo os princípios democráticos esta-
belecidos, assumindo um papel estratégico frente às desigualdades
sociais ainda existentes no Estado Democrático de Direito. Con-
tudo, existe um evidente descompasso entre a universidade e a
realidade social brasileira.
251
Boaventura propõe uma nova universidade, que responda

aos anseios do século XXI. Uma universidade capaz de produzir
um conhecimento pluriversitário, contextual, dialógico e transdis-
ciplinar. Cabe também ao O Direito Achado na Rua assumir esse
desafio e ter como horizonte de atuação a Universidade Emanci-
patória também pensada por Sousa Junior.
Trazendo o olhar para o campo do ensino do Direito perce-
be-se que desde a criação dos cursos de direito no país até os dias
atuais a formação em direito tem sido alvo de grandes debates no
ambiente da educação superior brasileira. O seu surgimento se dá
antes mesmo do aparecimento da própria ideia de universidade.
Desse modo seu surgimento está atrelado a um processo de sus-
tentação da classe dominante.
Portanto, historicamente, a formação em direito ficou restri-
ta ao autoritarismo que se estabelece por meio de um sistema nor-
mativo que passa a vigorar no Brasil. O acesso ao conhecimento
das regras que regem a dinâmica da sociedade – o Estado brasileiro
por meio do ensino jurídico possibilita a manutenção da organiza-
ção desse sistema e cria uma hierarquia para com os demais que
estão fora dessa estrutura “escravos, índios, camponeses”.
Em contraponto a esse sistema de ensino do direito e sua
aplicabilidade em meados dos anos 1980, o curso de extensão
“O Direito Achado na Rua” nascido na Universidade de Brasília
(UnB), atua hoje como uma linha de pesquisa e um movimento
teórico-político que surgiu com a proposta da nova escola jurídica
defendida por Roberto Lyra Filho e José Geraldo de Sousa Junior,
hoje seu principal incentivador.
A corrente de O Direito Achado na Rua com a posição cien-
tífica da que supera o positivismo e problematiza o Jusnaturalismo
na perspectiva de construir uma ciência jurídica antidogmática,
apresenta-se como um projeto construtor de novas formas de se
fazer e pensar o direito a luz do pluralismo jurídico. Assim, possibi-
252
litando aproximar a universidade das reais demandas da sociedade

por meio do diálogo direto com os movimentos sociais organizados
do campo e da cidade, tem contribuído no incentivo de outras
formas de ensino na defesa e construção das turmas especiais de
direito, na forma de se fazer extensão por meio das assessorias ju-
rídicas e populares e ainda fomentando uma produção científica
no campo teórico-metodológico embasado nas questões atuais de
conflitos de direitos.
Os desafios de O Direito Achado na Rua são inúmeros, e
dialogam com os desafios sociais dos mais diversos atores políticos.
As perspectivas são amplas, diversas, plurais, e abarcam a comple-
xidade dos novos movimentos sociais e dos novos protagonistas da
mobilização popular por direitos, que atuam dentro e fora da acade-
mia – linha que, conforme apresentado pelos convidados dos mo-
vimentos populares, tem ficado cada vez mais tênue e entrelaçada.
É nesse contexto que a corrente de O Direito Achado na
Rua segue reinventado a construção de direitos a partir das falas
protagonistas dos novos sujeitos de Direito.
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Senado Federal - http://www.senado.leg.br/
256
Apêndice
Roberto Lyra Filho: Anotações Biográficas

Roberto de Lyra Tavares Filho (1926-1986) descende de famí-
lia poderosa e influente desde os tempos do Império. Filho de Ro-
berto de Lyra Tavares e Sophia Augusta de Lyra Tavares (primos)
recebeu, desde a infância, primorosa educação com incursões ao
exterior, o que lhe proporcionou vasta cultura, gosto pela arte e de-
senvoltura com a língua estrangeira. Teve a oportunidade de convi-
ver com grandes nomes da política, juristas e escritoras e escritores.
Seu pai foi um notável jurista. Decano da Universidade da
Guanabara e fundador da Faculdade de Direito da UERJ, atuou
por curto período como Ministro da Educação e Cultura. Des-
tacando-se como criminologista e autor do primeiro anteprojeto
do Código das Execuções Penais, escreveu mais de 50 livros. Sua
mãe concluiu o curso de humanidades no Colégio Notre Dame
de Sion, com o objetivo de estudar arquitetura, desejo negado
por seu pai que lhe proporcionou aulas particulares de Filoso-
fia, História da Igreja, Idioma Nacional, Italiano, Inglês, Alemão,
Francês, Desenho, Pintura, Piano, Solfejo, Canto, Harmonia,
Gravura, Artesanato e Enfermagem Básica. Após o casamento,
ao mesmo tempo em que cuidava do filho e auxiliava o esposo,
dedicou-se à pesquisa para preparação de trabalhos literários e
históricos empreendendo várias viagens ao exterior, tendo publi-
cado cerca de 15 livros.
Estimulado pela família, Roberto Lyra Filho obteve, em 1942,
aos 16 anos o título de proficiência em língua e literatura ingle-
sa em Cambridge e aos 23, em 1949, concluiu o Bacharelado em
257
Direito pela Universidade do Rio de Janeiro. Alcançou o registro

profissional como sociólogo decorrente de sua experiência e pes-
quisa em Sociologia Jurídica. Já nesta época destacava-se como
jornalista e escritor. Poliglota (dominava a língua inglesa, assim
também o francês, alemão, italiano e russo), dedicou-se à tradução
de obras literárias e, sob o pseudônimo de Noel Delamare, produ-
ziu críticas literárias, ensaios e poemas, sobressaindo a coletânea
“Da Cama ao Comício”, embora se considerasse diletante e classi-
ficasse essa face de sua produção como bissexta.
Seguindo os passos do pai, especializou-se em Criminologia,
exercendo a advocacia e também a função de Conselheiro Peni-
tenciário, quando toma contato com outra realidade social. De-
senvolveu a Criminologia Dialética, trabalho pelo qual obteve re-
conhecimento internacional. Iniciando a docência como professor
substituto, regeu a Cátedra de Direito Penal na Faculdade de Direi-
to do Rio de Janeiro e posteriormente assumiu a cátedra de Direito
Processual Penal na Faculdade Brasileira de Ciências Jurídicas.
Muda-se para Brasília, com vistas a assessorar Darcy Ribei-
ro, na Casa Civil da Presidência da República, e a convite deste,
que na altura dedicava-se à instalação da Universidade de Brasília,
Lyra Filho vincula-se à Faculdade de Direito, onde leciona primei-
ramente como professor associado e depois como titular, atuando
em regime de dedicação exclusiva.
Nesta instituição, obtém o doutoramento, em 1966, com
uma tese esboçando a refundamentação da “Teoria Geral do Di-
reito Penal”. Colaborou ainda como titular-fundador do Centro
Universitário de Brasília, participou do credenciamento de cursos
de graduação e pós-graduação nas áreas de Filosofia, Sociologia,
História e Direito em outras instituições.
Considerado por colegas do porte de Heleno Fragoso como
o mais notável professor universitário de sua geração, ganhou em
1971 o famoso, grant concedido pela Comissão Fullbright, para de-
258
senvolvimento do sênior advanced research, equivalente aos cursos

de pós-doutoramento atuais, na Universidade de Ohio. Renunciou
a essa honraria, para dedicar-se às suas tarefas na Universidade de
Brasília, onde lecionou e desenvolveu pesquisa avançada até 1985,
quando se aposentou.
Após encerrar suas atividades em Brasília, passa a residir em
São Paulo e, na condição de professor visitante, percorre várias
instituições no Brasil e no exterior, pronunciando conferências,
organizando congressos e seminários, integrando bancas exami-
nadoras de concurso e titularidades. Foi ainda membro da OAB,
da Sociedade Brasileira de Filosofia, Presidente do Conselho Su-
perior do Instituto de Criminologia, conselheiro de redação dos
“Cuadernos de Filosofia Del Derecho” (Espanha) e do “Direito &
Avesso”, boletim da Nova Escola Jurídica Brasileira.
Roberto Lyra Filho evidenciou em seu trabalho que a prática
jurídica é interminável exercício de interpretação e intervenção na
realidade, que requer a interdisciplinaridade das ciências (Filoso-
fia, Sociologia, Psicologia, Psicanálise e Ciência do Direito Penal e
Processual), combinadas em uma abordagem multidimensional e
reforçadas pelo estímulo da práxis. Propõe a oxigenação da cons-
ciência ética e construir a prática efetiva para além dos manuscri-
tos formalizados nas normas.
Em sua trajetória, denunciou o isolamento teórico e buscou
uma reorientação da atuação intelectual prática e efetiva, baseado
em um pensamento crítico com fundamento científico e dialético.
Rompeu assim, barreiras, colocando o direito formalizado não em
conflito com os fatos, mas como elemento do processo jurídico.
Em sua práxis, interpreta o mundo à sua volta, abrindo as estrutu-
ras do sistema jurídico normatizado e levando suas interpretações
para o plano concreto em um exercício continuo.
Na qualidade de pensador e pesquisador, foi progressivamen-
te abandonando os estudos dogmáticos em nome da fundação da
259
categoria jurídica do Humanismo Dialético. Autodenominado

“jurista marginal”, Roberto Lyra Filho, com questionamentos ra-
dicais, apontou a crise paradigmática do direito moderno, o que
veio a constituir seu pensamento crítico dialético social. Sua obra
conserva-se contemporânea e seu grande legado, a Nova Escola
Jurídica Brasileira, permanece inquietante.
Em síntese, num desenho íntimo de sua personalidade, con-
forme nos apontara João Galvão Júnior no prefácio ao livro Da
cama ao comício, verifica-se que:
Essa figura do intelectual em Roberto como um ser colo-

cado à parte – marginalizado – foi capaz de desabrochar
no homem, a rosa cheia de espinhos: um ser eloqüente e
extremamente doce, fantasticamente corajoso e revolta-
do, para quem nenhum poder do mundo foi demasiado
grande e imponente para ser criticado e questionado de
forma incisiva (GALVÃO JÚNIOR,[2006]).
260

O Direito Achado Na Rua - José Geraldo de Sousa Júnior

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Conselheiro benemérito: Marcos Juruena Villela Souto (in memoriam)

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O Direito Achado na Rua:

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O Direito Achado na Rua:

O Direito Achado na Rua: Origem

1 Professor da Faculdade de Direito e do Programa de Mestrado em Direitos Humanos

belece o diálogo entre a justiça social e o conhecimento necessário

Achado na Rua era fruto da reflexão e da prática de um grupo de

2 Direito e Avesso. Boletim da Nova Escola Jurídica Brasileira. Brasília: Edições

Desde então, alcançando novas e fortes interlocuções e con-

Rua: concepção e prática, de minha autoria (Humanidades, 1992,

Bases para uma Ideia Editorial

Direito4, ambos inscritos na matriz epistemológica de O Direito

4 COSTA, Alexandre Bernardino (Org.). Direito vivo: leituras sobre

Direito Achado na Rua, sob a minha regência. O plano de curso da

vão Filho, Fredson Oliveira Carneiro, Karoline Ferreira Martins,

Roberto Lyra Filho e o Direito Achado na Rua:

planejado e logo publicado como homenagem póstuma, o livro

experiência (sócio-jurídica) tendo em vista a reinvenção da eman-

Um dos precursores mais importantes que deve ser destaca-

Uma notável apreensão dessa imbricação emancipatória se

ela havia sido convidada a proferir uma conferência na Escuela del

Não deixou, entretanto, de ser uma surpresa rica e inespe-

O Humanismo Emancipatório de O Direito

(o homem como valor em si mesmo e criação original), faz objeção

O Direito Achado na Rua: O Direito como Liberdade

e de uma ordenação metodológica dos procedimentos empíricos

Trata-se, pois, de uma Sociologia Histórica, “porque é Socio-

nos já examinados por Boaventura de Sousa Santos a partir de sua

Mas é, sem dúvida, Antonio Carlos Wolkmer quem melhor

9 Diz Sánchez Rubio, (2008, p. 46): “Para constituir conceptualmente lo que

Ao colocar o problema do pluralismo jurídico como articulá-

coletivo de direito: “Hablar em la legitimidad de nuevos derechos significa participar

Boa parte da produção sociológico-jurídica brasileira a partir

inexistência do que de descontinuidade”, sugerindo um epílogo

aquilo, o que envolve também o como alternar” (LYRA FILHO,

sociais para uma transição da visão normativista, substantivista

mento” presente no que Luis Alberto Warat chamou de “crescente

por um protagonismo que derivava em geral da crítica marxista e

1986), formulador de seus princípios, longe de se constituir numa

11 Assim, diz ele, “a aproximação filosófica do humanismo ao Direito permite

caráter jurídico. Trata-se, para pensar com Cerroni (1972, p. 11),

Posicionamento a Partir de Pontos Controversos

12 La libertad de los modernos: “Parece perfectamente evidente que el rasgo

souberam as autoras e autores assumir pontos de vista sobre as

O Problema do Conhecimento e da Pesquisa

mundo e do pensamento jurídico constituídos nestas ideologias.

[...] o simples recorte do objeto de pesquisa pressupõe,

Para Lyra Filho, em suma, a definição de posicionamento,

tivação, em luta, dos princípios libertadores, na totalidade social

[...] pelo esgotamento de seus paradigmas. Por isso, ele se

De outro lado, provoca, tal como assinalam Luciano Oliveira

13 Jornal “O Estado de S. Paulo”02/05/97, p. A-2.

passíveis de ser financiados com recursos públicos, estimulando,

Acho que os intelectuais brasileiros têm dupla missão: a infle-