Você está na página 1de 7

Educação Unisinos

11(1):15-21, janeiro/abril 2007


© 2007 by Unisinos

Do capitalismo industrial ao pós-industrial


Reflexões sobre trabalho e educação

From industrial to post-industrial capitalism


Reflections on labor and education

Ivete Keil
ivetek@hotmail.com

Resumo: A história da sociedade ocidental na perspectiva da educação está intimamente


ligada às grandes transformações do mundo do trabalho. Na sociedade rural, o saber passava
de uma geração à outra na própria experiência vivida. O modo de agir e de pensar, portanto,
era muito mais uma herança familiar e comunitária do que nos dias de hoje, em que existe
maior diversidade de influências. A sociedade industrial, pressionada pela necessidade de
trabalhadores com competência para trabalhar nas máquinas, portanto, com saberes
específicos e disciplina de fábrica, abriu a escola para as classes pobres. Estes a inseriram em
seus projetos. Na sociedade pós-industrial, onde a hegemonia do trabalho imaterial necessita
de um trabalhador intelectual criativo, as exigências ao nível da educação passam a ser
outras. Em todos esses tempos, contra as perversidades do capitalismo, as populações
tiveram que produzir espaços de resistências e de insurreições. Neste texto, pretendo
abordar essas questões. Para tanto, haverá nele dois movimentos: no primeiro, no limite de
um artigo, farei uma incursão nas transformações do mundo do trabalho tendo em vista as
sociedades industrial e pós-industrial; no segundo, tentarei entender as necessidades gerais
da educação para o novo contexto.

Palavra-chave: educação, trabalho, capitalismo pós-industrial.

Abstract: From the perspective of education, the history of Western society is intimately
linked with the major transformations in the world of labor. In rural society, knowledge was
passed on from one generation to the next in lived experience itself. Thus, people’s way of
acting and thinking was a family and community legacy to a much greater extent than it is
today, when there is a greater diversity of influences. Since industrial society needed workers
with the necessary competence to operate the machines – i.e., with specific knowledge
and shop floor discipline –, it opened up the school to the poor. The latter included it in
their life project. In post-industrial society, where the hegemony of immaterial labor requires
a creative intellectual worker, the demands in terms of the level of education or training
have changed. During all these periods, people had to create spaces of resistance and
insurrection against the perversities of capitalism. This paper discusses these issues in two
steps. In the first one it examines the transformations in the world of labor in relation to
industrial and post-industrial society. In the second it tries to understand the general
educational needs for the new context.

Key words: education, labor, post-industrial capitalism.

015a021_ART02_Keil[rev].pmd 15 16/5/2007, 11:24


Ivete Keil

É desastrosa a noite em que todos os nos naturais e a recusa do campo das formações das sociedades. Ora, na
gatos são pardos – ela sempre nos emoções. O iluminismo coloca a raci- sociedade feudal o poder era do tipo
confunde. onalidade no centro, e a indústria se soberania. Nele, a individualidade
aproveita disso. O trabalho, e as no- permaneceu abaixo do limite da des-
O mundo do trabalho vas relações que o organizam, adqui- crição (Foucault, 1975). A crônica
re centralidade na consciência, no sobre um homem, um relato sobre sua
As sociedades ocidentais passa- pensamento e na imaginação de toda vida era um processo de heroificação.
ram ao longo de sua história por trans- a população. Desempenha, pois, uma A sociedade disciplinar (sociedade
formações importantes definindo di- função socialmente identificada e nor- industrial) mudou essa relação. A
ferentes modos de produção. Eviden- malizada na produção e reprodução descritibilidade passou a ser uma for-
temente, cada uma ao seu ritmo. Ou do social (Gorz, 1997, p. 25). O traba- ma de enquadramento disciplinar e
seja, as sociedades passaram da pro- lho, nesta fase do capitalismo, tem uma não mais de prestígio. Ou seja, a dis-
dução rural para a industrial e da in- enorme força de socialização, de nor- ciplina marca o momento em que se
dustrial para a pós-industrial.1 Algu- malização e de estandardização – re- efetua o que se poderia chamar a tro-
mas vivem um paradoxo. Por um lado, primindo ou limitando a invenção, a ca do eixo da individualização
continuam com alta produção agríco- criação, a autodeterminação individu- (Foucault, 1975, p. 157). Além disso,
la, por outro, desenvolvem indústrias al ou coletiva de necessidades e de a disciplina fixa o corpo num espaço
e tentam, também, entrar na dinâmica novas competências (Gorz, 1997, p. e no ritmo de um tempo. O tempo e o
do trabalho imaterial. Assim, alguns 15). Bem entendido, sendo específico espaço da fábrica.
países convivem, ao mesmo tempo, ao capitalismo industrial, trata-se do Para se ter uma idéia, o artesão,
com a sociedade rural, industrial e pós- trabalho como negação do seu senti- antes da industrialização, trabalhava
industrial. O Brasil é um deles. do antropológico ou filosófico. Nele, em média quatro horas por dia; a so-
A primeira revolução começa na a sensibilidade e o corpo do trabalha- ciedade industrial inventou longas
Europa em meados do século XVIII, e, dor são reduzidos ao utilitário, e ele jornadas de trabalho que iniciavam
ao longo do século XIX, a sociedade perde o sentido de realização de si. na madrugada e terminavam somen-
agrária (com 7 mil anos) dá lugar à soci- Acontece que, nesses países, hou- te no final da tarde. Este esforço pelo
edade industrial (que durará 200 anos). ve uma transformação profunda no sis- trabalho foi produzido, por um lado,
O ritmo da vida deixa de ser controlado tema de trabalho, passando da através da produção de um imaginá-
pelas estações do ano, tornando-se hegemonia da produção de bens ru- rio moral sobre ele, por outro, atra-
mais dinâmico. Sob o ponto de vista rais para a hegemonia de bens indus- vés das punições – copiadas do mo-
econômico, inicia-se a modernidade. A triais (produzidos em larga escala). As delo judiciário. Na verdade, há uma
Inglaterra deixa, por primeiro, a econo- conseqüências na estrutura da socie- penalidade – perpétua – que atraves-
mia agrária e artesanal para entrar na dade foram extremamente significativas. sa todos os pontos e controla todos
era industrial, a Alemanha e a França Em grande medida, modificam-se as os instantes das instituições disci-
em seguida, e depois outros. As socie- instituições políticas, sociais e econô- plinares (fábrica, escola, hospital, pri-
dades estamentais se transformam em micas. No plano do sujeito, apesar da são, família), comparando, diferenci-
sociedades de classes, isto é, o poder sociedade industrial exaltar sua liber- ando, hierarquizando, homogenei-
passa das mãos dos proprietários de dade e emancipação, observa-se que, zando, normalizando (Foucault, 1975,
terra (aristocracia rural) para as mãos com a industrialização, o trabalhador p. 169). A idéia que está no bojo des-
dos proprietários dos meios de produ- perde o conhecimento e o controle so- te processo é excluir aqueles que es-
ção industriais (burguesia industrial). bre o processo produtivo. Nesse pro- tão fora do padrão estabelecido pelo
Evidentemente, essa passagem não foi cesso de alienação, antes de serem cria- poder dominante, produzindo um tra-
simples. Foi um tempo de inquietações das as condições necessárias para a balhador identificado como parte da
até que os contornos da nova socieda- formação da individualidade, produz- maquinaria, seu apêndice.
de se mostrassem definidos. se um corpo dócil e homogeneizado. A sociedade industrial, com sua
A sociedade industrial nasce com Tudo graças ao sistema disciplinar que produção em massa, foi possível por
o iluminismo. Isso tem duas conseqü- caracteriza o período. causa do avanço tecnológico, mas
ências imediatas: a recusa das expli- Observa-se que o poder se movi- também organizacional. Neste senti-
cações mítico-religiosas dos fenôme- menta em consonância com as trans- do, a disciplina foi essencial. Embora
16
1
Bell, J. utilizando o esquema evolutivo em três níveis, designa três fases constitutivas da sociedade ocidental: 1) extrativa pré-industrial, 2) industrial-
fabricação e 3) pós-industrial-informação. The social framework of the information society, Mimeo.

Educação Unisinos

015a021_ART02_Keil[rev].pmd 16 16/5/2007, 11:24


Do capitalismo industrial ao pós-industrial – Reflexões sobre trabalho e educação

não se possa identificar com uma ins- onalidade (fechada), mas também a escala, como na sociedade industri-
tituição nem com um aparelho, por objetividade e a especialização. Cada al, mas bens imateriais (serviço, in-
ser um tipo de poder, a disciplina fi- trabalhador efetua diariamente a mes- formação, estética...). Nesse proces-
cou a cargo das instituições, e a fá- ma tarefa milhares de vezes. Tudo na so, pelas mesmas razões por que a
brica foi uma delas. Serviu para pro- sociedade industrial se realiza em es- sociedade industrial não poderia dis-
duzir corpos submissos e exercitados cala industrial: na fábrica, na escola, pensar os bens agrícolas (apenas
para o trabalho. A disciplina aumenta na prisão, no hospital, na família... pôde re-organizar o modo de produ-
as forças do corpo (em termos eco- Claro que a sociedade industrial foi ção com máquinas, adubos químicos
nômicos de utilidade) e diminui es- capaz de grandes progressos: urba- e pesticidas), a sociedade pós-indus-
sas mesmas forças (em termos de nização, comunicação em massa, trial não pode dispensar os bens in-
política de obediência) (Foucault, avanço da tecnologia, democratiza- dustriais. Não pode dispensar os car-
1975, p. 120). O que ocorre é o au- ção da educação2... – e, foi capaz, ros, nem os eletrodomésticos. O que
mento de uma aptidão e o aprofun- também, de gerar a sociedade pós- a sociedade dispensa são os traba-
damento da dominação. Assim, toda industrial. Na sociedade pós-indus- lhadores: a sociedade industrial dis-
a sociedade industrial entrou no rit- trial, as máquinas, cada vez mais in- pensou grande parte dos trabalhado-
mo do trabalho, passando a ser ele o teligentes, substituem grande parte res agrícolas, a sociedade pós-indus-
eixo identitário em torno do qual as da massa operária, dos trabalhado- trial dispensa grande parte dos ope-
identidades foram sendo produzidas. res do comércio... rários, dos gerentes, dos dirigentes,
Este modelo foi relevante para desen- Ambas, a sociedade industrial e a enfim, dos trabalhadores industriais.3
volver a riqueza em alguns países di- pós-industrial, são sociedades capi- Como se pode observar passamos da
tos desenvolvidos. Portanto, o talistas e implicam uma relação que sociedade rural à sociedade industri-
acúmulo de riqueza e de conhecimen- compreende quem explora e quem é al e desta para a pós-industrial. Este
to determinou a passagem da socie- explorado, quem ordena e quem é or- processo, em todos os níveis, apre-
dade industrial para a pós-industrial. denado, quem subordina e quem é senta importantes conseqüências.
As características da sociedade subordinado. As transformações do Os novos tempos geram novos
pós-industrial são distintas das so- capitalismo provocadas pelas lutas comportamentos, novos princípios,
ciedades anteriores. No plano do populares, pelo desenvolvimento de novos valores e novas necessidades.
poder, observa-se que o poder passa novas tecnologias, pela ruína do Se- Sem dúvida, sempre que aparece uma
das mãos dos proprietários dos mei- gundo Mundo etc. apontam para uma nova configuração do tecido históri-
os de produção de bens materiais, nova situação histórica de transfor- co, tem-se uma mudança na perspec-
portanto, da indústria, para as mãos mação entre o moderno e o pós-mo- tiva epistemológica. Com isso, a vi-
dos proprietários dos meios de pro- derno. Claro, muitos são os pontos são sobre os fatos, sob o ponto de
dução de bens imateriais. Isso signi- que devem ser conectados para se vista prático, é modificada. Hoje, os
fica a passagem de um tipo de poder compreender a passagem de um novos paradigmas trazidos pelo ca-
a outro. A sociedade industrial ou modo de produção a outro. pitalismo cognitivo, sob o qual tem
moderna precisou do poder discipli- Seja como for, observa-se que o lugar a sociedade pós-industrial –
nar, a sociedade pós-industrial ou novo contexto possibilita a invenção mais ligados ao intelecto, à ética, à
pós-moderna (sociedade do conhe- sem limites e exige uma pessoa cole- estética, às emoções, à desestrutura-
cimento e da informação) precisa de tiva e mais livre. O capital não ofere- ção do tempo e do espaço, à raciona-
uma pessoa criativa, não mais fixa ce mais o instrumento do trabalho, lidade plural – exigem a produção de
num espaço e no ritmo das máqui- como anteriormente o fazia, mas de- novos modos de compreensão da
nas, como anteriormente. O poder pende da apropriação do conheci- realidade, ou seja, de uma nova edu-
agora opera pelo controle, sem per- mento. O que está ocorrendo, por- cação.
der, é claro, sua dimensão disciplinar. tanto, é uma grande mudança no qua- A educação é uma enorme ques-
Observa-se, portanto, que a indús- dro paradigmático do trabalho e, con- tão a enfrentar nos dias atuais. Na
tria não produziu apenas produtos em seqüentemente, na sociedade como verdade, trata-se de um grande desa-
série, mas comportamentos. Princípi- um todo. fio, na medida em que é necessário e
os e comportamentos, entre eles, Na sociedade pós-industrial, não urgente encontrar um modo de de-
como vimos, a padronização e a raci- se produzem bens materiais em larga senvolver novas correntes de racio-
17
2
Claro que a democratização do ensino é um ato reformista, por não se referir à educação popular.
3
Para aprofundar essa questão, consulte Domenico De Masi. 1999. A Sociedade Pós-Industrial (organizador) São Paulo: Senac,444.

volume 11, número 1, janeiro • abril 2007

015a021_ART02_Keil[rev].pmd 17 16/5/2007, 11:24


Ivete Keil

cínio, novas formas de pensar a vida, mas também como condição de cida- esfera do trabalho imaterial. Todavia,
a sociedade, o trabalho, o tempo li- dania ampliada (Pochmann, 2006). a educação no Brasil, presa ainda nos
vre... – em perspectivas mais criati- A passagem da sociedade indus- ditames da sociedade industrial, não
vas e inventivas. Não se trata ape- trial para a sociedade do conhecimen- está adequadamente conectada com
nas de realizar pequenas aparas, mas, to, para Castells, sociedade intensi- as transformações e valores da soci-
sim, de elaborar grandes transforma- va de conhecimento (1997), designa edade contemporânea, razão pela
ções. Diferentemente do que dizem um período de dificuldades e sinali- qual não está conseguindo preparar
alguns, o eixo dessas transforma- za uma ruptura de equilíbrio quer na adequadamente as crianças e os jo-
ções continua sendo o trabalho. Não perspectiva social, individual, cultu- vens. Para estar no seu tempo, ela (a
mais na sua forma material, mas ral ou econômica. O pensamento educação), qualificada em bases his-
imaterial. Trabalho que exige o de- abandona sua predominância linear, tórico-sociais, portanto, politizada,
senvolvimento de aptidões distintas tornando-se muito mais complexo e terá que produzir espaços visando à
daquelas exigidas na sociedade in- se estruturando, predominantemen- produção de idéias (espaços produ-
dustrial, sobretudo, aptidões ligadas te, em rede. O pensamento em rede tores de idéias). Convém insistir, mais
ao intelecto. (com seu largo fluxo de idéias) traz uma vez, que o trabalho imaterial de-
um enorme potencial cognitivo pende da criatividade, do pensamen-
A propósito da educação relativista, mas, também, exige o de- to plural e da racionalidade aberta.
senvolvimento de uma “ética comum Milton Santos observa que
Na sociedade agrária, somente a da responsabilidade” (Negri, 2000). estamos diante de outra cognocibili-
elite tinha acesso ao ensino. Na so- Toni Negri (2005) afirma, no de- dade no planeta. Neste horizonte,
ciedade industrial, como requisito ao bate com Marilena Chauí, que constata o geógrafo, o conhecimen-
mundo do trabalho industrial, a edu- estamos na época do General to deve nascer no interior da crítica,
cação formal foi democratizada, pas- Intellect e, nela, a cooperação pro- sem abstrações alienantes, sem
sando a atender diferentes classes dutiva não é imposta pelo capital, mas incompletudes que possam dar mar-
sociais e faixas etárias. Neste perío- é uma habilidade da força-trabalho gem a falsas compreensões a respei-
do, a educação teve uma perspecti- imaterial, do trabalho mental que só to de direitos, justiça, liberdades, nu-
va disciplinar e, além de docilizar o pode ser cooperativo. Para o filóso- trindo a desinteligência de setores
corpo, ensinar ritmo e organização fo, a chave da acumulação é o pró- da população e encobrindo a razão
para o trabalho, visava ao controle prio General Intellect. Seja como for, das desigualdades sociais (Santos,
dos desejos. Evidentemente, o capi- na sociedade do conhecimento, da 2000). É preciso, pois, reconhecer este
talismo industrial estava a exigir um força-trabalho desmaterializada, os momento, suas peculiaridades e, so-
comportamento técnico-burocrático que não possuem as habilidades para bretudo, as possibilidades que ele traz
voltado à indústria e à lógica do mer- tratar a informação ou não têm os em seu bojo. Aproveitar as possibili-
cado. Com isso, produziu uma sub- conhecimentos que a rede valoriza dades significa um esforço em dire-
jetividade-padrão, inibindo a capa- ficam totalmente excluídos. Fossos ção às atividades intelectuais ligadas
cidade criativa. De fato, o objetivo e diferenciações profundos entre à raridade, à inovação. Os elementos
era fazer o maior número de coisas grupos humanos estão sendo acele- inovadores é que serão capazes de
no menor tempo possível. Na socie- radamente abertos e expandidos. produzir valor.
dade pós-industrial, era da informa- Na prática, a sociedade pós-in- Ora, a mudança do quadro
ção e do conhecimento, na qual o dustrial gera uma enorme quantida- paradigmático da sociedade, isto é,
trabalho é realizado por máquinas e de de informação. A informação pre- a passagem da sociedade industrial
computadores, a educação deve in- cisa do conhecimento para ser apli- para a sociedade pós-industrial, im-
fluenciar a produção de subjetivida- cada e perder sua inutilidade. Por- plica a morte de algumas formas de
des inventivas, isto é, subjetivida- tanto, é a capacidade de pensar o trabalho, emprego e carreiras. Essas
des pensantes com idéias criativas.4 ponto diferenciador entre as pesso- esferas passam, efetivamente, por
Ela expressa uma forte tendência em as e as sociedades. Cabe à educação um importante processo de mutação.
acompanhar todo o curso da vida das o desenvolvimento da capacidade de O fim da sociedade industrial con-
pessoas, não apenas como elemen- pensar – investida como possibili- cretiza o fim da sociedade salarial e
to de ingresso e continuidade no dade de entrada na esfera da eman- exige outras formas de composição
18 exercício do trabalho heterônomo, cipação individual e coletiva e na econômica. Um aspecto importante

4
Nos Estados Unidos a indústria emprega atualmente, segundo Marcio Pochmann, apenas 13% do total dos ocupados e o setor agrário apenas 5%.

Educação Unisinos

015a021_ART02_Keil[rev].pmd 18 16/5/2007, 11:24


Do capitalismo industrial ao pós-industrial – Reflexões sobre trabalho e educação

é o maior valor atribuído ao conheci- assim, possa resistir à exploração e à o campo criativo do significado está
mento, à cultura, à arte, à estética, ao exclusão socioeconômica e, ao mes- corroendo a possibilidade de um
lazer impondo novos campos de tra- mo tempo, possa se insurgir, de al- controle absoluto sobre as lingua-
balho e carreira. No contexto pós- gum modo, buscando a elaboração gens (Negri, 2005).
industrial, a força produtiva depen- de novas idéias e de novos compor- Com efeito, o controle exercido
de das forças intelectuais e científi- tamentos através de dispositivos de pelo poder dominante está enorme-
cas do trabalhador. O capitalismo cooperação que se formam e se es- mente prejudicado em seu equilíbrio.
cognitivo precisa extrair a mais valia tendem pelo tecido social. Aliás, nenhum poder hoje pode con-
captando os fluxos sociais do traba- Para avançar nestas questões, trolar as linguagens, uma vez que,
lho cognitivo – o trabalho continua será útil pensar no conceito mais do que simples instrumentos de
como trabalho explorado com um espinosista de afetação, pois a sub- comunicação, elas são imediatamen-
agravante: a cidadania aparece cada jetividade é o resultado de um con- te produtivas. As multidões resistem
vez mais fortemente articulada à ca- junto de relações. A configuração do e se insurgem, seguindo dinâmicas
pacidade de consumo. sujeito emancipado, portanto, apa- moleculares, reivindicando diferen-
Pois bem, esta época cognitiva rece mediante processos de apren- ças, experimentando cruzamentos e
exige uma educação que, evidente- dizagens – através dos quais são re- hibridações, forçando o poder a ad-
mente, está sendo (ou está para ser) tirados os véus da ignorância. Sabe- mitir seus limites. Essa dinâmica abre
inventada. No processo de invenção, mos todos que os movimentos de enormes espaços de emancipação
alguns pontos são essenciais e de- resistência e de insurgência fazem coletiva. A educação pode explorar
vem ser considerados. De saída, não avançar o âmbito dos direitos, por- estes espaços, criar outros e cami-
se pode esquecer que a educação que apontam não somente para a nhar para o equilíbrio entre a liberda-
deve qualificar, crianças e jovens, esfera política pura, mas também para de e a ordem.
para a vida futura. Neste sentido, a esfera ética e cultural. O segundo ponto, isto é, a educa-
sobretudo, dois pontos aparecem na Resistência e insurgência dizem ção ligada à esfera do trabalho, abarca
cena do debate: o primeiro refere-se respeito aos políticos, aos profissio- não apenas a atividade produtiva, mas
à educação ligada ao processo nais da educação, aos pais, aos es- a integra a motivos ontológicos. O pro-
emancipatório; o segundo refere-se tudantes, enfim, a todos os interes- jeto do capitalismo pós-industrial e
à educação ligada ao trabalho (mate- sados em transformar a sociedade cognitivo é a modificação do quadro
rial e imaterial). Em outros termos, li- brasileira na perspectiva de interes- paradigmático do trabalho, constituí-
berdade e trabalho combinados com ses e desejos coletivos. A sociedade do doravante por uma quantidade de
a vida em coletivo. O que proponho industrial teve a educação como um conhecimento suportado e posto em
é um certo desaparecimento das fron- dos seus mecanismos de controle produção pela “intelectualidade de
teiras entre o político e o social, a social.5 Nesse período de transição massa” (Negri, 2005). A força produti-
produtividade e a ética da vida. para a sociedade pós-industrial, mais va nasce dos sujeitos, se materializa e
O primeiro ponto engloba dois do que nunca, observa-se o apareci- se organiza na cooperação. Isso sig-
movimentos fundamentais, isto é, mento de múltiplos poderes e espa- nifica que o trabalhador terá que ser
resistência e insurgência. Ambos ços de poder antagônicos. Este an- mais criativo, ter capacidade de ino-
apontam para a educação política e tagonismo, tendência da sociedade vação, domínio de informações e
para a educação politizada. As pes- pós-industrial, abre brechas nas tecnologias, capacidade analítica, ca-
soas devem saber recusar tutelas e quais as relações de força podem pacidade de interação e cooperação.
privilégios e tomar em suas próprias gravitar em torno da ética comum da Entretanto, no Brasil, a educação con-
mãos a defesa de seus direitos, inte- responsabilidade. Ou, pelo menos, temporânea ainda não está consoante
resses e desejos. Nesta perspectiva, expandir e aprofundar sua gravitação com o mundo do trabalho.
será necessário dar um passo maior em torno deste eixo. Isso significa O alto índice de desemprego de
do que o fez a sociedade industrial, aproveitar a situação na qual os sig- trabalhadores escolarizados e a rela-
isto é, a educação deve possibilitar nos, confiados ao trabalho vivo (que tiva facilidade de empregos para os
que a sociedade compreenda as re- constitui a forma criadora na socie- trabalhadores do chamado setor de
lações de força em seu conjunto e, dade), estão em descontrole. Ou seja, ponta, particularmente os que estão

19
5
Ao educador é dada a tarefa da divulgação e da reprodução ideológica. Esta tarefa está condicionada pelas relações de poder, pelo grau de polarização
política e pelo nível de organização dos movimentos sociais. Portanto, a insurgência e a resistência revelam um importante grau de politização por parte
daquele que resiste e/ou se insurge.

volume 11, número 1, janeiro • abril 2007

015a021_ART02_Keil[rev].pmd 19 16/5/2007, 11:24


Ivete Keil

inseridos nos segmentos nobres das única realidade que conduz ao ram a criação do Estado de bem-es-
empresas multinacionais, são engajamento na luta e na constru- tar e, assim fazendo, coloca em risco
emblemáticos dessa realidade. Pois, ção de uma nova sociedade muito o pacto social. A estabilidade
movida pelo capitalismo pós-indus- mais democrática, pois rompe com o contratual da sociedade contempo-
trial, a sociedade salarial se transfor- bloqueio da participação e do rânea somente estará assegurada
ma colocando populações, antes in- autogoverno da população brasilei- pela sua capacidade de gerar bons
cluídas, em zonas de precariedade ra. Bloqueio, diga-se de passagem, postos de trabalho. No Brasil, o au-
econômica e social, ou seja, há um produzido pelo pacto liberal. Numa mento da violência urbana e a gera-
forte processo de desqualificação perspectiva otimista, observa-se, por ção de um Estado paralelo são prova
social em movimento. Este processo um lado, a possibilidade de livrar o disso.
atinge não apenas os pobres, mas trabalho da exploração, por outro, a Ora, como vimos discutindo, os
populações economicamente favore- possibilidade de capacitar novas for- acontecimentos contemporâneos
cidas – redefinindo seu status social. ças de trabalho que criam o mundo são conseqüência da racionalidade
Observa Dominique Schnapper, refe- na perspectiva do bem comum. Cer- econômica que se mostra no para-
rindo-se ao século XX: o desempre- tamente, as possibilidades dos tra- doxo dos elevados ganhos de pro-
go é a gangrena do século (Schnapper, balhadores, dos oprimidos se recom- dutividade e da crescente precariza-
1991), razão pela qual está se consti- porão em novos termos. ção do trabalho e declínio do padrão
tuindo uma nova pobreza. econômico dos trabalhadores. A
Ora, o pensamento liberal domi- Palavras finais grande competição globalizada no
nante, base do capitalismo pós-in- mundo capitalista produz, de um lado,
dustrial, tem um caráter fortemente O capitalismo pós-industrial exi- os fluxos migratórios (constituídos
excludente. Nele, o que conta são as ge enormes investimentos em tanto pela mão-de-obra altamente
competências individuais. No caso tecnologia e competência neste cam- qualificada como pela mão-de-obra
do Brasil, observa-se que a grande po, assim como investimentos em sem qualificação) em busca de me-
maioria dos trabalhadores está bens e serviços de maior valor agre- lhores condições, contribuindo para
despreparada para a competitividade gado. Os países que não desenvol- o aumento dessa baixa remuneração
exigida pelo mercado, portanto, sem vem investimentos nessas áreas não e precarização. E, de outro, o fluxo
possibilidade imediata para se inte- poderão gerar postos de trabalho migratório das plantas empresariais
grar no novo padrão de competên- com qualidade (ótima e boa) e remu- em busca de trabalhadores a baixo
cia. Com efeito, os padrões de com- neração condizente. Nesta perspec- custo, causando um alto índice de
petência que a escola brasileira de tiva, para as pessoas não ricas des- desemprego estrutural (empobrecen-
hoje promove não correspondem aos ses países apenas resta o trabalho do enormemente grupos da popula-
exigidos pelo mercado, pois a escola precário e de execução, longas jor- ção mundial, regiões e países). Em-
ainda tem como base as necessida- nadas de trabalho, baixa remunera- bora esse nomadismo possa também
des impostas pelo capitalismo indus- ção e desemprego. Trabalhos precá- ser visto, ao mesmo tempo, como o
trial, submetendo o conjunto dos rios e desemprego significam humi- faz Negri, como insurreição, resistên-
processos educativos escolares ao lhação, constrangimentos, dessoci- cia e nova forma de luta em torno
imediatismo da formação técnico- alização e ameaçam o laço social. Com das relações de poder, cada vez mais
profissional dura. Isso está aconte- efeito, o capitalismo industrial con- mundializadas (Negri e Hardt, 2000).
cendo apesar das demandas exigirem seguiu uma relativa integração soci- Seja como for, não há uma pers-
novas competências. Para países al e estabilidade contratual pelo de- pectiva positiva imediata contra o
como o Brasil, a educação é a única senvolvimento econômico e pela projeto econômico imposto ao mun-
saída para superar o atraso promessa de pleno emprego. Nele, do pelo capitalismo pós-industrial.
tecnológico e entrar com autonomia os mecanismos de redistribuição (ou Com efeito, não se vislumbra nos
na economia global. a promessa de) funcionaram como dias de hoje uma reorganização po-
Os dois pontos, isto é, a educa- instrumento de integração e luta con- sitiva no universo do trabalho, ao
ção ligada ao processo emancipató- tra o processo de exclusão. O capita- contrário. Entretanto, o que está em
rio e a educação ligada à esfera do lismo pós-industrial aumenta a po- jogo no jogo dos poderes é a inclu-
trabalho, em termos de desenvolvi- breza existente, produz uma nova são/exclusão de pessoas, grupos,
20 mento de habilidades necessárias pobreza, não consegue assegurar os regiões e países. Sabemos todos que
(mas também de compreensão da ex- empregos e tenta destruir (e destrói) a exclusão socioeconômica é uma
ploração pelo capital), produzem uma as conquistas populares que força- construção, um produto histórico de

Educação Unisinos

015a021_ART02_Keil[rev].pmd 20 16/5/2007, 11:24


Do capitalismo industrial ao pós-industrial – Reflexões sobre trabalho e educação

mecanismos econômicos e sociais bem entendido, não põe fim à explo- Referências
(não sendo, pois, resultante de atri- ração capitalista, apenas a organiza
butos de uma pessoa isolada). Ela de outro modo. Aliás, a expansão e o BELL, J. 1980, The social framework of
resulta da ausência de emprego du- aprofundamento da exclusão the information society. Mimeo.
rável que produz, por sua vez, a per- socioeconômica são uma das tendên- CASTELLS, M. 1997. The rise of the
da das relações sociais. Dubar é en- cias da sociedade pós-industrial. network society: The information age:
economy, society and culture. Oxford,
fático ao observar que, para explicar Um projeto e execução de medi-
Blackwell, 314.
a exclusão, é preciso interrogar a evo- das positivas no campo da educa- DUBAR, C. 1996. Socialisation et
lução das políticas de emprego, os ção podem virar essa tendência. A processus. Paris, Découverte, 250.
funcionamentos do mercado de tra- educação (política e politizada) é re- FOUCAULT, M. 1975. Surveiller et pu-
balho, mas também as transforma- conhecidamente um elemento essen- nir. Paris, Gallimard, 320.
ções da família, das políticas urba- cial na construção da sociedade, so- GORZ, A. 1997. Misere du présent: Richesse
nas, dos bairros periféricos que re- bretudo, da sociedade calcada e du possible. Paris, Galilée, 230.
NEGRI, A. 2005. O comunismo da
sultam da própria exclusão econômi- estruturada sobre informação e co-
imanência. In: Debate com Marilena
ca. Para o sociólogo, não se pode nhecimento. Mas há urgência em
Chauí – promovido pelo Núcleo de
compreender nada a respeito do tema reconfigurar o modelo educacional Estudos da Subjetividade e pelas pós-
sem uma profunda análise das insti- brasileiro. Ele deve projetar – para graduações em Psicologia Clínica e Fi-
tuições (incluindo a educação), da todos – um modelo que considere losofia da PUC-SP e Universidade Nô-
integração econômica (emprego/de- os espaços de conhecimento emer- made. Mimeo.
semprego) e da filiação social gentes, abertos, de produção contí- NEGRI, T. e HARDT, M. 2000. Empire.
(pertencimento a um coletivo) nua, em fluxo e em rede, organizados Paris, Exils, 80.
POCHMANN, M. 2006. O trabalho em
(Dubar, 1996). em diálogo entre objetivos e realida-
três tempos. Revista Ciência e Cultu-
Claro que a viabilização da inclu- de. A educação no Brasil pode influ- ra, 54(4):160.
são socioeconômica no Brasil con- enciar a produção de subjetividades SANTOS, M. 2000. Por uma outra
temporâneo é possível, mas depen- capazes de lidar com as coisas do globalização: Do pensamento único
de da resolução dos seus entraves. mundo na perspectiva ética. Sabe- à consciência universal. Rio de Janei-
Isto é, depende dos interesses eco- mos o quanto as pessoas precisam ro, Record, 230.
nômicos e políticos das elites diri- estar preparadas psicológica e etica- SCHNAPPER, D. 1991. L’épreuve du
chômage. Paris, Gallimard, 260.
gentes e da qualidade da educação mente para enfrentar as dificuldades
desencadeada por esses mesmos in- produzidas em uma sociedade em Submetido em: 04/12/2006
teresses. A capacidade de conhecer transformação. Isto significa, na pers- Aceito em: 24/01/2007
permite acesso à produção e, por pectiva profissional, uma formação
meio dela, às relações intersubjetivas que capacite a migração a campos
e à continuidade da sociedade. Por- diversos, segundo desejos ou neces-
tanto, a educação formal (oferecida sidades, implicando, portanto, o de-
nas escolas) e informal (realizada senvolvimento da capacidade de
pelo conjunto social), hoje, precisa pensar. Capacidade de pensar, por
desenvolver uma ontologia do ser sua vez, implicada na capacidade de
imaterial inserido no trabalho lidar com as mudanças, com a insta-
imaterial.6 A pessoa (incluída) será, bilidade. Este é um desafio enorme;
segundo alguns teóricos, social e outro desafio para a educação diz
coletiva e determinará o valor da pro- respeito à emancipação. Em síntese:
dução. Isto é, o trabalho será organi- o grande desafio hoje para a educa-
Ivete Manetzeder Keil
zado em formas comunicativas e lin- ção, no Brasil, é difundir os valores Pesquisadora do Instituto Nacional
güísticas, e o saber será, cada vez democráticos e os valores republi- de Direitos da Infância, Adolescência
mais, cooperativo. Portanto, a pro- canos tecendo com eles todas as re- e Juventude – INDIAJ
dução vai depender das conexões e lações de trabalho e afetivas, a fim
das relações que constituem o tra- de produzir uma socialidade, de fato,
balho intelectual e lingüístico. Isso, democrática.
21
6
Entre as definições do trabalho imaterial está a de Toni Negri: conjunto das atividades intelectuais, comunicativas, afetivas, expressas pelos sujeitos
e movimentos sociais – que conduzem à produção.

volume 11, número 1, janeiro • abril 2007

015a021_ART02_Keil[rev].pmd 21 16/5/2007, 11:24

Você também pode gostar