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2006 - P refrnpr.
Este livro ou parte dele não pode ser reproduzid;::, por qualquer meio sem
autorização escrita do Editor
GEORGE YúDICE
D585e Yúdice, George
A conveniência da cultura: usos da cultura na era global / George
Yúdice; tradução de Marie-Anne Kremer. - Belo Horizonte: Editora
UFMG; 2004.

615 p. - il. (Humanitas)


Inclui referências.

Título original: The expediency of culture: uses of culture in ESTE LIVRO ~ PATRIMÔNIO CULTURAL DA
the global era UN'IVERSIOADf FEDERAI DO PAMPA ZELE
ISBN: 85-7041-438-2 TENHA MÁXIMO CUIDADO COM ELE
PORQUE l'I.PÓ~ voe~ OUTROS
1. Cultura. 2. Política cultural. 3. Globalização - Aspectos sociais. L PRECISARÃO USÁ-LO TAMBÉM.
Título II. Kremer, Marie-Anne.

CDD: 306
CDU: 316.7

Ficha catalográfica elaborada pela CCQC - Central de Controle de Qualidade


da Catalogação da Biblioteca Universitária - UFMG

chamada: 316.7 Y94c


UB022569
A CONVENIÊNCIA DA CUlTURA
cod barras:
SAOBORJA
local:
inclUSão: 16/01/2013 USOS DA CUlTURA NA ERA GlOBAl
n controle: 00045164
TRADUÇÃO
EDITORAÇÃO DE TEXTO: Ana Maria de Moraes
MARIE-ANNE KREMER
REVISÃO DE TEXTO E NORMALIZAÇÃO: Maria do Carmo Leite Ribeiro
REVISÃO DE PROVAS: Maria do Carmo Leite Ribeiro, Rúbia Santos Santa Fé
PROJETO GRÁFICO: Glória Campos - Mangá
FORMATAÇÃO E PRODUÇÃO GRÁFICA: Eduardo Ferreira
CAP A: Montagem de Cássio Ribeiro
IMAGEM DA CAPA: Detalhe de "La nube"/"The cloud" ["A nuvem"], de Alfredo Jaar. 1ª REIMPRESSÃO
insite2000. Fotografia de George Yúdice.

EDITORA UFMG
Av. Antônio Carlos, 6627 - Ala direita da Biblioteca Central - Térreo
Campus Pampulha - 31270-901 - Belo Horizonte/MG
Te! (31) 3499-4650 Fax (31) 3499-4768
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Belo Horizonte
Editora UFMG
2006
Lraua111u LUlLU.t.á.1 HHUll\...a. a. UHC:lC:11'1;,á. lV\...á.1 \...VJ.11 a Q.UiU.J.lU.:)l.lQ.'i;,á.V
N T R o D u ç A u
e o investimento transnacionais. Isso não significa que os
efeitos dessa cultura transnacional crescente - evidente nas
indústrias do entretenimento e na assim chamada sociedade
civil global das ONGs - sejam homogeneizados. Diferenças
regionais e nacionais, entendidas como campos de força dife-
rentemente estruturados que formam o sentido de qualquer Em recente encontro internacional de especialistas em
fenômeno - de uma canção pop ao ativismo ambiental e política cultural, uma funcionária da UNESCO lamentou o fato
anti-racista - são funcionais para o comércio e o ativismo de que a cultura é invocada para resolver problemas que
globais. anteriormente eram da competência das áreas econômica e política.
No entanto, ela prosseguia, o único meio de convencer os
líderes governamentais e empresariais de que vale a pena
apoiar a atividade cultural é argumentando que ela reduz os
conflitos sociais e promove o desenvolvimento econômico
(Yúdice, 2000b: 10). Este livro visa fornecer uma compreensão,
além de uma série de ilustrações, de como a cultura, enquanto
recurso, ganhou legitimidade e deslocou ou absorveu outros
conceitos a ela conferidos. Permita-me enfatizar desde já que
não estou ·reprisando a crítica de Adorno e Horkheimer no
que concerne aos bens de consumo e sua instrumentalização.
Conforme explico no Capítulo I, a cultura como recurso é muito
mais do que uma mercadoria; ela é o eixo de uma nova estrutura
epistêmica na qual a ideologia e aquilo que Foucault denominou
sociedade disciplinar (isto é, a imposição de normas a instituições
como a educacional, a médica, a psiquiátrica etc.) são absorvidas
por uma racionalidade econômica ou ecológica, de tal forma
que o gerenciamento, a conservação, o acesso, a distribuição
e o investimento - em "cultura" e seus resultados - tornam-se
prioritários.
A cultura como recurso pode ser comparada à natureza
como recurso, especialmente desde que ambas negociem através
da moeda da diversidade. Pense em biodiversidade 1 incluindo
o conhecimento tradicional e científico que dela se tem, que,
segundo a "Convenção da Diversidade Biológica", precisa ser
protegida e conservada a fim de "manter ( ... ) seu potencial
de atender as necessidades e aspirações de gerações presentes
e futuras" ("Convenção 5"). Levando em consideração a
propensão da empresa privada em buscar lucros a todo custo,
a tendência de nações desenvolvidas de ter vantagens sobre
os países em desenvolvimento, a legitimidade do conheci-
mento científico maior do que a do tradicional, a poluição

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Enquanto eu abertamente identifico vilões e heróis neste
sempre crescente, e assim por di~nte, então a questão ~rincipal
livro, a maioria das situações que examino são mais complexas.
mais solícita é o gerenciamento oe recursos, de conhecimentos,
Alguns leitores dos meus manuscritos se perguntavam se eu
de tecnologias, e o risco proveniente desses itens, definido
não estaria sendo pessimista a respeito das perspectivas dos
de várias formas.
movimentos sociais. Um leitor anônimo observou que "con-
A cultura, para a maioria das pessoas, não evoca a mesma clusões preventivas têm mais peso do que a política comunitária
urgência no combate à ameaça de morte, embora seja verdade do trabalho cultural". Estou, certamente, emitindo uma nota
que muitos lamentam a devastação que o turis~o, o Jastfood de precaução no que tange à celebração da agência cultural,
[comida rápida] e as indústrias de entretenimento global tão preponderante no trabalho dos estudos culturais. Mas essa
provocam nos estilos de vida tradicionais. Entretanto, mais precaução não é resultado de um desejo de ser desmancha-
recentemente, os mesmos administradores de recursos prazeres; ela decorre de uma noção diferente de agenciamento.
globais "descobriram a cultura", e referiram-se, _pelo ~enos Para alguns, os relativamente "sem poder" podem extrair força
verbalmente, às noções de manutenção cultural e investimento de sua cultura para enfrentar a investida violenta dos poderosos.
cultural. Por um lado, chegou-se ao senso comum que, para Para outros, o conteúdo da cultura em si é quase irrelevante;
preservar a biodiversidade, as tradições culturais també~ o que importa é que ela escora uma política de mudança. Ao
precisam ser mantidas. Por outro lado, debat~-se - o___u ate mesmo tempo que essas perspectivas podem ser bastante
mesmo, acredita-se - que o investimento (sensivel ao genero atraentes, é também verdade que a expressão cultural em si
e raça) em cultura fortalecerá a fibra da sociedade civil, que, não é suficiente. Nesses debates, é bom munir-se de sólido
por sua vez, serve de hospedeiro ideal para o desenvolvi- conhecimento acerca das complexas maquinações envolvidas
mento político e econômico. no exame de uma agenda vista através de uma gama de instâncias
Nem sempre é fácil fazer com que ambos os aspectos - µ.itermediárias, situadas em diversos níveis, povoadas de outras
sociopolíticos e econômicos - de gerenciamento cultural agendas similares, que se sobrepõem ou se diferenciam. Os
cheguem a um acordo sem problemas ou contra_diçõe~. pesquisadores dos estudos culturais muitas vezes enxergam
Considere, por exemplo, que ao aceitar as formas ocidentais a agência cultural de forma mais circunscrita, como se a
de legislação a fim de proteger suas tecnologias (por exempl~, expressão ou a identidade individual ou grupal em si levasse
a engenharia das variedades de grãos) e práticas culturais à mudança. Mas, como Iris Marion Young aponta: "Nós nos
(por exemplo, as pinturas oníricas dos aborígenes), povos não encontramos situados em relações de classe, gênero, raça,
ocidentais podem sofrer transformações ainda mais rápidas. nacionalidade, religião e assim por diante, [dentro de uma
Se determinada tecnologia ou um certo ritual não é comu- 'dada história de significados sedimentados e uma paisagem
mente incluída(o) como forma de propriedade protegível, a material, interagindo com outros no campo social'] que são fontes
apelação à legislação ocidental ·para assegurar que/ terceir~s tanto de possibilidades de ação como de coação" (2000: 100).
não se aproveitem dela quase certamente acarretara na acei- Os ativistas negros participantes do Grupo Cultural Afro
tação do princípio de propriedade. O que acontecerá quando Reggae, cujo ativismo cultural eu examino no Capítulo V, não
formas não ocidentais de conhecimento, tecnologia e práticas conseguem simplesmente se estabelecer sem negociar com
culturais forem incorporadas à lei de propriedade intelectual e ativistas sociais oficiais, pessoas de destaque da comunidade,
de direitos autorais? Será que a venda da cultura "inalienável" representantes da Igreja, jornalistas, advogados, acadêmicos,
se tornará algo parecido com a vepda de licença de poluição empresários, filantropos, indústrias do entretenimento e da
nos Estados Unidos, pela qual, companhias que reduzem sua música, grupos de solidariedade internacionais, e represen-
emanação tóxica podem vender os direitos de emissão de tais tantes de fundações. Eles precisam trabalhar, algumas vezes
poluentes do ar? Cada vez mais, tanto nos recursos culturais com estratégias diferentes, em várias frentes. E cada um dos
quanto nos naturais, gerenciamento é o nome do jogo. militantes com que eles se confrontam em determinada situação

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também precisa negociar em vários níveis. O funcionário da para o turismo e para a promoção das indústrias que exploram
Fundação Ford no Rio, por exemplo, precisa se comunicar 0 patrimônio cultural. As indústrias da cultura de massa, em
com o diretor do escritório central e com os funcionários da especial as indústrias do entretenimento e dos direitos do
Fundação em Nova York antes da aprovação de qualquer autor que vêm integrando cada vez mais a música, o filme, o
agenda. vídeo, a televisão, as revistas, a difusão por satélite e a cabo,
Trabalhar nesses diferentes níveis, um fenômeno cada vez constituem os maiores contribuidores americanos do produto
mais familiar quando os agentes transnacionais se envolvem nacional bruto.
no "local", impulsiona a agência na direção da performativi- A noção de cultura como recurso pressupõe seu gerencia-
dade, que é o tópico do Capítulo II. Quando a negociação da mento, uma perspectiva que não era característica nem da
agência cultural depende de numerosas instâncias, o "cuidado alta cultura nem da cultura cotidiana no sentido antropológico.
de si [individual ou coletivo]" torna-se performativo. Como E para complicar ainda mais a questão, a cultura como recurso
argumento no final do Capítulo I, sobre a conveniência, existe circula globalmente, numa velocidade crescente. Conse-
uma compatibilidade entre a noção de Foucault a respeito do qüentemente, seu gerenciamento, que por meio século foi dirigido
cuidado de si [souci de soi] e a performatividade; a ética de em escala nacional na maioria dos países da Europa, da Amé-
Foucault pressupõe uma prática reflexiva do autogerencia- rica Latina e nos Estados Unidos - embora neste país, a
mento frente a modelos (ou aquilo que Bakhtin denomina administração local da cultura predominou sobre a escala
"vozes" e "perspectivas") impostos por uma determinada nacional, ·inclusive no auge do NEA (National Endowment
sociedade ou formação cultural. A noção bakhtiniana do autor for Atts) - , é agora coordenado tanto local quanto supra-
pode servir de protótipo da ética performativa de Foucault, nacionalmente por corporações e pelo setor não-governamental
uma vez que ele/ela é uma orquestração das "vozes" alheias, ipternacional (por exemplo, UNESCO, fundações, ONGs). Apesar
uma apropriação que consiste em "povoar essas 'vozes' com da circulação global, ou talvez por causa dela, emergiu uma
as intenções do próprio indivíduo, com os sotaques próprios nova divisão internacional de trabalho cultural que imbrica a
do indivíduo em questão" (1981: 293\rEle ou ela que pratica diferença local com administração e investimento transnacio-
o cuidado de si precisa também forjar'$ua própria liberdade nais. Isto não significa que os efeitos dessa cultura transnaci-
trabalhando através dos "modelos que ele [sic] encontra em onal crescente - evidente nas indústrias do entretenimento
sua cultura e que são propostos, sugeridos, impostos a ele e na assim chamada sociedade civil global das ONGs - sejam
por sua cultura, sua sociedade, e seu grupo social" (Foucault, homogeneizados. Diferenças regionais e nacionais, entendidas
1997: 291). como campos de força diferentemente estruturados que
No Capítulo I, faço uma revisão das maneiras de se investir formam o sentido de qualquer fenômeno - de uma canção
em cultura, distribuída nas mais diversas formas, utilizada pop ao ativismo ambiental e anti-racista - são funcionais
como uma atração para o desenvolvimento econômico e turístico, para o comércio e o ativismo globais.
como mola propulsora das indústrias culturais e como uma fonte No Capítulo II, "O imperativo social do desempenho",
inesgotável para as novas indústrias que dependem da proprie- examino como esses campos estruturados de força são com-
dade intelectual. Conseqüentemente, o conceito de recurso preendidos enquanto conjuntos de injunções performáticas
absorve e elimina distinções até então prevalecentes nas relacionadas com os pactos de reciprocidade, estruturas
definições da alta cultura, da antropologia e da cultura de interpretativas e condicionamentos institucionais de produção
massa. A alta cultura torna-se um recurso para o desenvolvi- de comportamento e de conhecimento. A sinergia produzida
mento urbano no museu contemporâneo (por exemplo, o pelas relações entre as instituições do Estado e da sociedade
Guggenheim de Bilbao). Rituais, práticas estéticas do dia-a-dia, civil, o judiciário, a polícia, escolas e universidades, a mídia
tais como canções, lendas populares, culinária, costumes e outras e mercados de consumo delineia a compreensão e o compor-
práticas simbólicas, também são mobilizados como recursos tamento. Essa força performativa é exemplificada por uma

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análise das guerras culturais amencanas_ . , argumemo, .sao
a perder frente às vicissitudes elaboradas pela globalizaçao. A
uma fantasia societária pela qual o nonr;« e o não norma-
sociedade civil tornou-se o conceito dileto de muitos movi-
tivo colidem frontalmente, mas acabam igualando. Por um
mentos partidários da reforma e da revolução, abrandados
lado, as guerras culturais nos trouxeram u; delírios de ]esse
pela inviabilidade do socialismo como uma alternativa
Helms e outros conservadores; por outro lado, muitos
.r política, pelo menos num futuro próximo. O atual domínio
esquerdistas culturais ficaram mais do que satisfeitos em apertar
do neoliberalismo - o pacote de medidas que inclui a
os botões certos e, no processo, ganhar a visibilidade que
liberalização do comércio, a privatização, a redução (e, em
acompanha a hipocrisia e o espetáculo escancarado. A noção
alguns casos, a quase eliminação) de serviços sociais subsi-
de fantasia é utilizada no sentido psicanalítico para referir-se
diados pelo Estado, tais como assistência médica e educação,
ao caráter projetivo desse distanciamento cultural.
a redução de salários e o enfraquecimento dos direitos
Um dos aspectos mais significativos do ativismo cultural , trabalhistas - tem contribuído para o desvio da atenção
de grupos de identidade é que ele foi, em parte, facilitado política da esquerda desde a tomada do poder estatal (que,
pela legislação e devido processo. Enquanto teóricos da em muitos casos, não sanou a questão da soberania) até
crítica racial pensam que o império da lei é "composto
questões de direitos civis e humanos e qualidade de vida.
essencialmente por escolhas feitas a favor ou contra o povo e
Partidos políticos convencionais e mesmo progressistas
imposto pela violência" Ross (2000), concordando com a visão
conseguiram fazer muito pouco para opor-se a essas políticas,
de lei de Foucault 0997) como um imperativo violento de
ora porque o processo político institucionalizado é altamente
uma "sociedade que se defende a si mesma", a lei é, entretanto,
ineficaz en;i sua resposta aos anseios sociais, ora porque grandes
um princípio fundamental para a ação. De fato, a lei é também
pressões oriundas de interesses econômicos internacionais
um dado na performatividade cotidiana da sociedade ameri-
não somente desencorajaram a reforma, mas também efetiva-
cana, como observado por Judith Butler. Talvez a maior
mente pioraram as condições, tais como a lacuna cada vez
discrepância entre os Estados Unidos e outros países das
maior na distribuição de renda. Conseqüentemente, os
Américas tem a ver com a força performativa da lei. É ampla-
atores mais inovadores no estabelecimento de temários para
mente reconhecido por todas as Américas que a lei é permeável
programas sociais e políticos são os movimentos das bases e
ao favor, à hierarquia e outras vicissitudes personalistas,
as organizações não-governamentais nacionais e internacionais
mesmo nos anos que se seguiram à ditadura quando a legis-
(ONGs) que os apóiam. Esses atores apostaram na cultura,
lação dos direitos humanos acompanhava boa parte do
definida de várias formas, como um recurso já na mira da
ativismo da região. A lei, portanto, não desperta as mesmas
exploração pelo capital (por exemplo, na mídia, no consu-
fantasias projetivas em todas as sociedades, fantasias estas
mismo e no turismo), e uma base de resistência à devastação
que invadem as questões de identidade. Um exame da cultura
do favor no Brasil traz à tona essa diferença. desse mesmo sistema econômico.
O Capítulo III, "A globalização da cultura e a nova socie- __ Os Capítulos IV e V - "A funkificação do Rio" e "A cultura
dade civil", explora de que maneira o campo transdisciplinar a serviço da justiça social"-, como um todo, constituem um
dos Estudos Culturais poderia lidar com as mudanças culturais estudo de caso da transformação da luta social, especialmente
forjadas pelos processos de globalização. Interessa-me em a exclusão racial e a ilegalidade nas favelas do Rio de Janeiro,
especial como esses processos geraram discussões sobre o num recurso que grupos culturais "ONG-izados" podem
_papel da sociedade civil na renegociação do compromisso mobilizar para obter maior capacidade de ação. O Capítulo
tradicional entre o Estado e os diversos segmentos da nação IV narra o denegrecimento da maior parte dos jovens negros
(o E pluribus unum). Essa revisão é muitas vezes trazida à das favelas e sua música predileta, especialmente o funk, que
baila por comunidades locais que têm muito a ganhar ou muito vem sendo associado à violência, como o rap nos Estados
Unidos dos anos 1980. É significativo que a preferência pelo

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funk tenha se distanciado da tradicional adesão ao samba, a percepção da sociedade civil não como o espaço habermasianq'
"música do povo". Na verdade, os "funkeiros" buscaram de livre debate e fo~mação de opinião, mas como uma serviçal
contrariar o desempenho do "popular", subordinado, mas, das políticas neoliberais que reduzem e privatizam o social~
no entanto, aceito pela elite, com uma música que desafiasse . o cultural. Até mesmo a atividade política pode acontecer em
essa acomodação. O funk, e outras músicas negras proveni- lugares onde "a compra de mercadorias representa um ato
entes da diáspora como o rap e reggae, contestou o lugar do político", bem como o uso de cartões de crédito com consci-
povo negro no Brasil, uma forma de ter o controle do acesso ência social. Literalmente, é possível fazer política nas compras
ao espaço público privatizado. ou exibindo nas roupas o próprio slogan político favorito.
À medida que os apelos de extração racial feitos em nome Os pesquisadores dos estudos culturais defenderam essa
do funk e do rap ganharam maior reconhecimento, especi- política consumista nos anos 1980 e 1990 alegando que, à
almente por parte de ONGs nacionais e internacionais e fundações medida que o consumismo fortalece a identidade, o indivíduo
americanas como a Rockefeller, "grupos culturais" tiveram a _está mais bem preparado para fazer exigências na esfera
chance de abrir um espaço para a busca de seus direitos. No institucional neoliberal. Tal política ainda precisa passar por
Capítulo V, examino uma rede cultural jovem e uma iniciativa um teste mais rigoroso, especialmente se ela é crivada de
de ação de cidadania, ambas destacando a noção de cultura contradições advindas de opositores à globalização que,
como terreno no qual novas narrativas legitimadoras foram entretanto, consomem a música e outras formas de diversão
construídas para naturalizar a aspiração neoliberal de expur- produziclas pela mais globalizante das indústrias - os con-
gar o social do governamental. O neoliberalismo re-introduz glomerados do entretenimento.
a expectativa de que "instituições de assistência" devem ser O Capítulo VII, "A globalização da América Latina: Miami",
situadas dentro da sociedade civil, não no governo. Essa examina a "ponte" ou "corredor" cultural-econômica(o) entre
questão abre novos espaços para o ativismo que permite certos >os Estados Unidos e toda a América Latina. Miami é exemplo
tipos de habilitação ao mesmo tempo que disponibiliza das economias criativas que foram observadas nos últimos
novas formas de gerenciamento social. Como lembra Foucault, anos devido ao uso que fazem da cultura e da inovação como
"a sociedade civil é o conjunto concreto dentro do qual esses propulsaras do crescimento econômico. Em Miami, as indústrias
pontos abstratos, os homens econômicos, precisam ser situados da cultura, em especial a da música, da televisão, dos portais
para que sejam gerenciáveis adequadamente" (1979). A da Internet, da fotografia fashion e das instituições artísticas,
estrutura da rede adotada pelos grupos que examino nesta desempenham esse papel. Inicialmente ali localizadas para
obra também dissemina o fenômeno da agência: ela é estrati- tirar vantagem dos mercados latino-americanos e dos mercados
ficada por atores de diferentes posições sociais, a saber, os americano.:.latinos, essas indústrias também reúnem grupos
grupos de ativistas culturais, a comunidade em cujo nome o de trabalhadores culturais que se interessaram pela própria
ativismo é desenvolvido, fontes de fomento que variam desde Miami e começaram a transformar a cidade. Argumento que
órgãos governamentais e fundações locais até corporações essa transformação é parte de uma internacionalização que
transnacionais e ONGs, inclusive o Banco Mundial e o Banco torna Miami uma cidade pós-Cubana ou pós-Caribenha. Mas
Interamericano de Desenvolvimento (BID). Os discursos desses essa é uma internacionalização problemática, pois a fusão
grupos são amplamente influenciados por aquela rede de entusiasmada do multiculturalismo americano e da mestiçagem
colaboradores e intermediários. latino-americana, embora mais conciliadora do que a tradicional
O Capítulo VI, "Consumo e cidadania?", é uma exploração ordem racial americana, intensifica a desigualdade histórica,
mais abrangente dos meios pelos quais o consumismo invadiu especialmente a dos imigrantes negros. Nesse capítulo também
as formas de negociação da identidade, do status e da influência examino a alegação de que os imigrantes racializados contri-
política das pessoas. Nesse capítulo, estimo o grau de viabilidade da buem para a economia cultural, ao mesmo tempo que são
explorados por ela; eles "dão vida" à cidade, como argumenta

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Castells, não somente através de seu trabalho nas indústrias
a fronteira, como também na noção mesma de colaboração,
de serviço, como também por seu impacto cultural através da
ser um conceito importante para aqueles que advogam a
música, dança, culinária e festividades. Essa é uma contribuição
habilitação legal através de programas artísticos embasados na
pouco reconhecida na divisão internacional do trabalho cultural.
comunidade. Algo parecido com o que ocorre com as
No Capítulo VIII, "Livre-comércio e cultura", examino os maquíladoras industriais acontece nesse lugar, o que nos
regimes de propriedade internacional que permitem aos con- permite falar em maquiladoras culturais.
glomerados manter o domínio sobre uma parte considerável
Na "Conclusão" considero, de forma breve, se os fenômenos
da produção cultural e, especificamente, sobre a sua distri-
examinados nos capítulos anteriores se mantêm num mundo
buição e os benefícios dela decorrentes. O próprio conceito
caracterizado pela crise, exemplarmente a que foi gerada pelos
de inovação como mola propulsora de acúmulo de capital é
ataques de 11 de setembro, contrastados à estabilidade
muitas vezes identificado com a cultura. Nesse capítulo
assumida por aqueles que reclamam conveniência para a cultura.
vemos de que maneira as estratégias do comércio global
A cultura teria o poder de reconstruir a comunidade quando
rearticulam todas as concepçõés de cultura, até mesmo com os o mundo é lançado à crise?
produtos e serviços economicamente mais rentáveis, por exemplo,
o software de computação e os sites da Internet, que são tratados
como formas culturais de propriedade intelectual e "conteúdo"
cultural, respectivamente. Além disso, analiso as estratégias
para a integração cultural na América Latina, que, mesmo con-
testando a desmesurada influência dos Estados Unidos e da
cultura do entretenimento transnacional, também dependem
cada vez mais das associações com o capital privado e as
políticas neoliberais. Dou especial atenção aos complementos
culturais do Tratado de Livre-Comércio da América do Norte
(NAFTA) e do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL). A diver-
sidade cultural, por exemplo, se incorpora e, de certa forma,
se. neutraliza com esses lugares como parte da divisão inter-
nacional do trabalho cultural.
O Capítulo IX, "Produzindo a economia cultural: a arte
colaboradora do ínSite", é uma extrapolação do Capítulo VIII
de um estudo de caso de um programa trienal de eventos
artísticos, o ínSite, realizado no corredor San Diego-Tijuana
que atravessa a fronteira Estados Unidos-México. Não obs-
tante o evento se desvie significativamente das questões vin-
culadas ao comércio, uma boa parte da divisão do trabalho
cultural que caracteriza as relações mercantilistas também aqui
é evidente. Essa divisão é encontrada no financiamento do
evento, na relação entre artistas e o público, e nas expectativas
suscitadas pelas "comunidades" ou delas. O capítulo versa sobre
a economia política e cultural de um vasto evento artístico,
cada vez mais influente. É central à questão o fato de labor
(trabalho), não só na assimetria que corta transversalmente

22
23
e A r u L u

A CONVtNlf NCIA DA CUlTURA

Mas é a cultura - não somente a crua tecnologia - que


determinará se os Estados Unidos mantêm seu status de nação
preeminente da Internet.
Lohr

CULTURA COMO RECURSO

Discuto neste livro que o papel da cultura expandiu-se


como nunca para as esferas política e econômica, ao mesmo
tempo que as noções convencionais de cultura se esvaziaram
muito. Em vez de focalizar o conteúdo da cultura - ou seja,
o· modelo da melhoria (segundo Schiller ou Arnold) ou da
distinção (segundo Bourdieu), tradicionalmente aceitos, ou
a sua antropologização mais recente, como todo um meio de
vida (Williams), segundo a qual reconhece-se que a cultura
de qualquer um tem valor - talvez seja melhor fazer uma
abordagem da questão da cultura de nosso tempo, caracteri-
zada como uma cultura de globalização acelerada, como um
recurso. Permita-me fazer um breve parêntese a respeito da
referência indispensável à discussão de Heidegger sobre o
recurso como uma reserva disponível (Bestand) e ao leque de
discussões sobre a globalização. Voltarei a essas questões,
mas o que eu gostaria de frisar desde já é que a cultura está
sendo crescentemente dirigida como um recurso para a
melhoria sociopolítica e econômica, ou seja, para aumentar sua
participação nessa era de envolvimento político decadente,
de conflitos acerca da cidadania (Young, 2000:81-120), e do
surgimento daquilo que Jeremy Rifkin (2000) chamou de
"capitalismo cultural". A desmaterialização característica de
várias fontes de crescimento econômico - por exemplo, os
. direitos de propriedade mte1ecrna1 seguil(l:) a. de.PlriiÇãô do
GATT (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio) e da OMC Também no plano econômico, a Europa do século XIX
(Organização Mundial do Comércio)- e a maior distribuição assistiu à crescente sujeição do artista e do escritor ao imperativo
de bens simbólicos no comércio mundial (filmes, programas comercial. Neste contexto, e com a emergência de novas
de televisão, música, turismo etc.) deram à esfera cultural um tecnologias como a litografia, a fotografia, o filme e a gravação
protagonismo maior do que em qualquer outro momento da de som, alguns teóricos e críticos chegaram a definir arte em
história da modernidade. Pode-se dizer que a cultura sim- contraposição ao comercial. Em seu famoso ensaio datado
plesmente se tornou um pretexto para a melhoria sociopolítica de 1938, "On the fetish-character in music and regression of
e para o crescimento econômico, mas, mesmo se fosse esse o listening", Theodor Adorno rejeitou o embasamento político-
econômico da nova comunicação de massas, o que desviou o
caso, a proliferação de tais argumentos nos fóruns onde se
engajamento da" arte de seu valor de uso para lançá-la ao
discutem projetos referentes à cultura e ao desenvolvimento
"caráter fetichista das mercadorias" 0978: 278-279; 1984: 25).
locais, bem como na UNESCO, no Banco Mundial· e na assim
Se na primeira metade do século XX Adorno pôde definir
chamada sociedade civil globalizada que reúne fundações
arte como o processo pelo qual o indivíduo ganha liberdade
internacionais e ONGs, todos esses fatores têm operado uma
exteriorizando-se, em contraste ao filistino "quem anseia pela
transformação naquilo que entendemos por cultura e o que
arte por aquilo que consegue extrair dela" 0984: 25), hoje
fazemos em seu nome.
em dia é quase impossível encontrar declarações públicas que
A relação entre as esferas cultural e política ou cultural e não arregimentem a instrumentalização da arte e da cultura,
econômica não é nova. Por um lado, a cultura é o veículo no ora para melhorar as condições sociais, como na criação de
qual a esfera pública emerge no século XVIII, e, como tolerância multicultural e participação cívica através de defesas
argumentam os estudiosos de Foucault e dos estudos culturais, como as da UNESCO pela cidadania cultural e por direitos
ela se tornou um meio de internalizar o controle social - culturais, ora para estimular o crescimento econômico através
isto é, via disciplina e governamentalidade - ao longo dos de ~projetos de desenvolvimento cultural urbano e a concomitante
séculos XIX e XX. Tony Bennett (1995), por exemplo, demons- proliferação de museus para· o turismo cultural, culminados
trou que a cultura proporcionou não somente uma melhoria pelo crescente número de franquias de Guggenheim.
ideológica, segundo a qual as pessoas seriam avaliadas em Para ilustrar até que ponto isso é verdade, considere American
termos de valor humano, mas também uma inscrição material canvas, um relatório de 1997 do National Endowment for the
nas formas de comportamento. O comportamento humano foi Arts (NEA) [Fundo Nacional das Artes] sobre o lugar das artes
transformado pelas exigências físicas envolvidas na movimen- e da cultura na sociedade americana.
tação pelas escolas e museus: o modo de andar, de se vestir,
de falar etc. O que também foi bem estudada é a utilização Não mais restritas unicamente às esferas sancionadas da cultura,
política da cultura para promover uma ideologia em particular as artes poderiam ser literalmente espalhadas por toda a estru-
com vistas a interesses clientelistas ou à bajulação nas relações tura cívica, encontrando seu lugar numa variedade de serviços
exteriores, como já foi evidenciado no avanço da cultura do comunitários e atividades de desenvolvimento econômico -
proletariado pela Comissão Soviética de Iluminismo (Fitzpa- de programas para a juventude e prevenção ao crime até o
treinamento profissional e relações raciais - bem longe das
trick, 1992), no patrocínio dientelista do muralismo pelo Estado
funções estéticas tradicionais das artes. Esse papel adicional
mexicano nos anos 1920 e 1930 (Folgarait, 1998), ou na também pode ser visto nas várias novas parcerias que as
busca de influências nas relações exteriores como no caso organizações artísticas assumiram nos últimos anos, quando
do USJs Good Neighbor [ O bom vizinho dos Estados Unidos] distritos educacionais, parques e departamentos de recreação,
(Yúdice, 2000a) e nas políticas culturais durante a Guerra Fria espaços para convenções e visitantes, câmaras de comércio, e
(Saunders, 1999). um grande número de órgãos de· bem-estar social, todas ser-
vindo para dar proeminência aos aspectos utilitários das artes
na sociedade contemporânea (Larson, 1997: 127-128).
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o papel actic1ona1 comendo a cuitura se deve ern pa1rte a interessadas. 1anto que das colocam em movimento uma força
redução da subvenção estatal direta de todos os serviços sociais, performativa particular, assunto que desenvolvo no Capítulo
inclusive da cultura, o que requer uma nova estratégia de II, "O imperativo social do desempenho". Conservadores e
legitimação na era pós-Ford e pós-Direitos Civis nos Estados liberais não querem dar um ao outro o benefício da dúvida
Unidos/ A defesa da centralidade da cultura para a solução de que a arte está além do interesse. (É claro, a maioria dos
de problemas sociais não é novidade, mas ela tomou diferentes esquerdistas, seguindo Marx e Gramsci, já acreditavam que a
formas no passado, como a (re)produção ideológica de cidadãos cultura é uma luta política.) Quando os conservadores come-
dignos (tanto burgueses quanto proletários ou nacionais). çaram a exercer maior influência nos anos 1980 e 1990, essa
Embora, por muito tempo, tenha havido programas de terapia crença básica do caráter interessado da arte e da cultura era
artística para deficientes mentais ou para presidiários, a cultura manifestada pela eliminação de direitos e de programas
não era normalmente vista como a terapia adequada para redistributivos que beneficiam os grupos marginalizados e
disfunções sociais como o racismo ou o genocídio. Tampouco que constituíam a herança da Grande Sociedade de Johnson,
foi levada em consideração, historicamente, como um incentivo
e pela erradicação do legado dos direitos civis. Muitos
para o crescimento econômico. Por que nos voltamos para a desses programas foram legitimados por alegações de que
legitimação baseada na utilidade? Existem, acredito, duas razões
as necessidades desses grupos eram baseadas em premissas
principais. A globalização pluralizou os contatos entre os
de diferença cultural, que tiveram de ser consideradas como
diversos povos e facilitou as migrações, problematizando assim
um fator decisivo na distribuição do reconhecimento e de
o uso da cultura como um expediente nacional. Além disso,
recursos. Os conservadores, por outro lado, viram essas
nos Estados Unidos, o fim da Guerra Fria enfraqueceu o fun-
diferenças como incapacidades ou falhas morais (por exem p 1o,
damento legitimador de uma crença na liberdade artística, e,
a "cultura da pobreza" atribuída a minorias raciais ou o liber-
com ele, o apoio incondicional às artes, que, até o momento,
tinismo das preferências e práticas sexuais de gays e lésbi-
constituía o principal indicador da diferença com a União
,ças) que tornaram esses grupos desqualificados para assumir
Soviética. Evidentemente, esse patrocínio da liberdade motivado
recursos públicos (veja Capítulo II).
pela política era fundamental para que se desse a certas
modalidades artísticas (jazz, dança moderna, expressionismo Mas a tática de reduzir as despesas estatais, que pode
abstrato) o encorajamento necessário para que "Nova York parecer a sentença de morte das atividades artísticas e culturais
roubasse a idéia de arte moderna" de Paris, segundo Serge sem fins lucrativos é, na verdade, sua condição de possibilidade
Guilbaut (1983). continuada. O setor das artes e da cultura alega que pode
resolver os problemas dos Estados Unidos: melhorar a educação,
Sem a legitimação da Guerra Fria, não se contiveram os
abrandar a rixa racial, ajudar a reverter a deterioração urbana
argumentos utilitários nos Estados Unidos. A arte se dobrou
através do turismo cultural, criar empregos, diminuir a cri-
inteiramente a um conceito expandido de cultura que pod~--
resolver problemas, inclusive o de criação de empregos. Seu· minalidade, e talvez até tirar algum lucro. Essa reorientação
objetivo é auxiliar na redução das despesas e, ao mesmo tempo, das artes está sendo realizada por seus administradores.
ajudar a manter o nível da intervenção estatal para a estabili- Assim como nos casos clássicos da governamentalidade em
dade do capitalismo. Uma vez que todos os atores da esfera que há total subordinação dos técnicos aos administradores
cultural se prenderam a essa estratégia, a cultura não é mais (Castel, 1991: 293), os artistas estão sendo levados a gerenciar
experimentada, valorizada ou compreendida como transcen- o social (veja o Capítulo IX). E justamente quando a academia
dente. E enquanto esse for o caso, os apelos à cultura não se voltou aos "profissionais gerenciadores" que fazem a
estarão mais ligados a essa estratégia. As guerras culturais, conexão das profissões liberais tradicionais ("um acervo técnico
por exemplo, adquirem a forma que tomam num contexto em de conhecimentos, educação avançada [...] associações e
que a arte e a cultura são vistas como fundamentalmente publicações profissionais, códigos de ética") com o gerenciamento

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29
corporativo intermediador na tarefa de produzir estudos,
em desenvolvimento. Ela pode gerar renda através do turismo,
pesquisa, divulgação, desenvolvimento institucional etc.
do artesanato, e outros empreendimentos culturais" (Banco
(Rhoades; Slaughter, 1997: 23), também o setor artístico e
Mundial, 1999a: 11). "O patrimônio gera valor. Parte de nosso
cultural se expandiu criando uma enorme rede de adminis-
desafio mútuo é analisar os retornos locais e nacionais dos
tradores da arte que intermediam as fontes de fomento, por
investimentos que restauram e extraem valor do patrimônio
um lado, e artistas e/ou comunidades por outro. Como suas
cultural - não importando se a expressão é construída ou
contrapartes na universidade e no mundo dos negócios, eles
natural, tais como a música indígena, o teatro, as artes" (Banco
precisam produzir e distribuir os produtores de arte e cultura,
Mundial, 1999a: 13).
que, por sua vez, alimentam comunidades ou consumidores.
Considere agora a estratégia de empréstimo do Banco
Interamericano de Desenvolvimento na esfera cultural. Segundo
um representante do banco "dada a ortodoxia econômica em
DESENVOLVIMENTO CULTURAL
todo o mundo, o velho modelo de apoio público às artes por
parte do Estado está morto. Os novos modelos consistem de
Essa perspectiva não é exclusividade dos Estados Unidos. parcerias com o setor público e com instituições financeiras
Um importante planejador cultural e membro do Grupo Europeu internacionais, em particular os Bancos de Desenvolvimento
de Estudos sobre a Cultura e Desenvolvimento atribui vários Multilateral (BDMs) como o Banco Mundial e o Banco Intera-
propósitos à arte e à cultura: promovem a coesão social em mericano de Desenvolvimento" (Santana, 1999). O recurso
questões divergentes e, desde que é um setor de trabalho do capital cultural é parte da história do reconhecimento da
intenso, elas ajudam na redução do desemprego (Delgado, insuficiência do investimento no capital físico durante os anos
1998). De fato, quando instituições poderosas como a União 1960, no capital humano dos anos 1980, e no capital social
Européia, o Banco Mundial, o Banco Interamericano de dqs anos 1990. Cada nova noção de capital foi projetada como
Desenvolvimento (BID), as maiores fundações internacionais, um meio de melhorar algumas falhas de desenvolvimento
e assim por diante, começam a compreender a cultura como na estrutura precedente. O conceito de capital social foi
operacionalizado nos BDMs levando em consideração o cunho
uma esfera crucial para investimentos, a cultura e as artes
sodal de seus projetos desenvolvimentistas. Esse conceito
são cada vez mais tratadas como qualquer outro recurso.
também resultou do reconhecimento de que, enquanto os
James D. Wolfensohn, presidente do Banco Mundial, liderou
retornos econômicos foram substanciais nos anos 1990, a
a tendência dos bancos multilaterais de desenvolvimento de desigualdade cresceu exponencialmente. A fraca premissa da
incluir a cultura como catalisadora do desenvolvimento teoria econômica neoliberal não foi confirmada. Conseqüente-
humano. Em sua conferência de abértura para o encontro mente, recorreu-se aos. investimentos na sociedade civil, e a
internacional intitulada "As contas da cultura: financiamento, cultura é a sua maior atração.
recursos e a economia da cultura em desenvolvimento Segundo Santana 0999), os exemplos empíricos sugerem
'
sustentável" (outubro de 1999), ele enfatizou uma "visão holística que há substância nesse argumento. Por exemplo, os indica-
de desenvolvimento" _que focaliza a conquista do poder da dores sociais de Villa El Salvador no Peru apontaram para
comunidade dos pobres de forma a que possam manter - um impressionante crescimento em seus quase 30 anos de
sustentar - esses bens que os capacitam a suportar o "trauma existência. Em 1971, os sem-teto invadiram Lima e o governo
e a perda", afugentar a "desagregação social", "manter a os assentou numa área semidesértica. Vinte anos depois eles
auto-estima" e ainda fornecer recursos materiais. Ele comenta: compreendiam uma cidade de 8.100 habitantes com um dos
"Existem dimensões de desenvolvimento da cultura. A cultura melhores indicadores sociais do país. O analfabetismo caiu
material e. expressiva é um recurso subvalorizado nos países de um índice de 5, 8 para 3, 8, a mortalidade infantil foi reduzida
a uma taxa abaixo da média de 67 por 1000, e os registros da

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31
educação básica cresceram à cifra dos 98%, acima da média. saúde, na educação, na formação de capital social ou no apoio
A variável que explica esses números, de acordo com Santana, e reforço da sociedade civil. Uma vez que o encontro em que
é a cultura, que viabiliza a consolidação da cidadania fundada Santana fez essa apresentação tinha o objetivo de alcançar
na participação ativa da população. A maioria das pessoas organizações culturais que buscavam novos parceiros de
era proveniente das terras altas do Peru e manteve seus financiamento, uma variedade de situações foi discutida. Um
costumes culturais indígenas, seu trabalho comunitário e sua dos projetos considerados aptos a receber financiamento é o
solidariedade, fatores que forneceram as características festival cultural anual CREA na Colômbia (Ochoa, 2001).
necessárias a esse desenvolvimento. Santana comparou essas Concursos de música eram realizados em todos os municípios
características às tradições cívicas e culturais que, segundo do país, e um número de finalistas era selecionado para
Robert Putnam 0993), possibilitaram o progresso da região competir em festivais estaduais, que, por sua vez, faziam uma
norte da Itália. Conseqüentemente, se pudesse ser demons- seleção dos finalistas para competir em festival de escala
trado, ele acrescenta, que a cultura produz os padrões da con- nacional. Os músicos vinham de todas as partes do país,
fiança, da cooperação e da interação social que resultam numa inclusive aquelas controladas por guerrilhas e grupos para-
economia mais vigorosa, mais democrática e governo efetivo, militares. Foi comentado que os festivais eram a única
além de menores problemas sociais, então será provável que ocasião em que havia contato e troca entre adversários e
os BDMs investirão em projetos de desenvolvimento cultural. diferentes partes do país. Conseqüentemente, pode-se concluir
Existem, naturalmente, dezenas de milhares de projetos que haveria maior probabilidade de retorno na condição de
culturais em todo e qualquer país. Como financiadores do que esses festivais contribuíssem para o processo de pacifi-
tipo do BID decidem em que investir? Mecanismos de com- cação e, nesse ínterim, criar um ambiente mais seguro para
pensação e incentivos precisam ser designados, comenta investimentos.
Santana, para gerar confiança de que haverá um retorno para ,;. Todavia, para se receber financiamentos deve haver
os investidores/ Esses mecanismos funcionariam como uma dados quantitativos para que a equipe técnica do banco possa
alternativa para o preço. Em que tipo de raciocínio os agentes avaliar o impacto dos festivais e medir o benefício em termos
econômicos podem se fiar para investir em cultura? Que tipo de um ambiente mais seguro para investimento e retorno. Os
de estrutura de incentivos surtirá em resultados? Incentivos, instrumentos de aferição precisam medir as possibilidades
ele adiciona, podem prover um ambiente estável para o além das intuições e opiniões. É por isso que a maioria dos
investimento privado em cultura, diferente do caráter heróico projetos culturais financiados por BDMs se atrelam a outros
do investimento privado em cultura. Além disso, o modelo projetos educacionais ou de renovação urbana. Esse modo
de financiamento cultural precisa ser limitado a segmentos de aproveitamento tem a ver, com a dificuldade que os bancos
específicos da cultura porque a demanda de recursos é grande têm em lidar com a cultura. Desprovidos de dados concretos,
e porque somente aqueles que podem gerar retorno serão indicadores, por exemplo, é difícil justificar investimentos em
financiados. Nesse cenário, alerta Santana, "a cultura pela projetos. E, é claro, existem dificuldades metodológicas no
cultura", seja lá o que isso represente, nunca receberá desenvolvimento de indicadores para a cultura. O conceito é
fomentas a não ser que possa oferecer uma forma indireta de cunhado segundo indicadores econômicos, que possibilitam
retorno. aos economistas a determinação da "saúde" econômica e a
As diferentes espécies de retorno são incentivos fiscais, previsão dos tipos de intervenções que a fortalecerão. Eviden-
comercialização institucional ou -valor publicitário, e a con- temente, existem diferentes abordagens para se precisar
versão da atividade não comercial em atividade comercial. indicadores, dependendo de que critérios são apresentados:
Os BDMs priorizam os projetos de financiamento cultural que econômicos (quantos empregos serão produzidos), profissionais
mantêm alguma relação com as áreas tradicionais destes bancos (seriam as instituições artísticas hegemônicas viáveis?), ou
e precisam ter um resultado instrumental, por exemplo, na referentes à justiça social (os valores e preferências culturais

32 33
dos residentes da comunidade serão compreendidos e honrados na Escócia" e "um sentido do lugar, um sentido do ser" que
quando os recursos forem destinados ao apoio cultural?) se escutam na Nova Zelândia, Escócia e Canadá, respectiva-
(Jackson, 1998: 2, 33). Na verdade, existem importantes dife- mente (Volkerling, 2001: 10). Projetos similares foram desen-
renças aqui, e o ethos democrático da terceira opção certa- volvidos numa leva de cidades latino-americanas: Puerto
mente será bem-vindo. No entanto, o resultado final é que as Madero (Berríos; Abarca, 2001) e Palermo Viejo (Oropeza,
instituições culturais e financiadores estão cada vez mais 2001) em Buenos Aires, Puerto Digital, em Fortaleza (Berríos;
voltados para a medida da utilidade, pois não há outra Abarca, 2001), e em Valparaíso, que contratou a equipe que
legitimação aceita para o investimento social. Dentro desse renovou o porto de Barcelona para as Olimpíadas de 1992 e
contexto, a idéia de que a experiência de jouíssance, o que deverá ser o primeiro anfitrião do Fórum Universal das
desvelamento da verdade, ou a crítica desconstrutiva podem culturas, cujo objetivo principal, entre outros, é explorar e
ser critérios admissíveis para investimento em cultura, celebrar as maneiras pelas quais a "criatividade de todas as
se esvai como uma fantasia digna de uma chacota kafkiana. nações" pode ser aproveitada para o desenvolvimento, a
inclusão da diversidade e a coexistência pacífica (Yúdice,
2001b, Universal Forum of Cultures - Barcelona, 2004).
A ECONOMIA CULTURAL Evidencia-se dos exemplos dados, e a partir dos que ainda
serão analisados neste livro, que a compreensão e a prática
No entanto, a noção de cultura sofreu várias mutações para da cultura· são bastante complexos, situados na interseção
satisfazer as exigências do resultado final. As tendências das agendas da economia e da justiça social. A cultura é cada
:·artísticas, como o multiculturalismo, que enfatizam a justiça vez mais invocada não somente como uma propulsora do
..social (talvez compreendida como uma representação visual desenvolvimento do capital; repetiu-se ad nauseum que a
eqüitativa nas esferas públicas) e as iniciativas para promover ini:-dústria audiovisual só perde para a indústria aeroespacial ·
a utilidade sociopolítica e a econômica foram fundidas numa ·
·nos Estados Unidos. Alguns até defendem que a cultura se
noção daquilo que eu denomino a "economia cultural" e aquilo
·transfo.rmou na própria lógica do capitalismo contemporâneo,
que a retórica New Laborite de Blair intitulou _"econonija
uma transformação que "já está desafiando muitos de nossos
criativa". Circulando domesticamente, bem como pelo mundo,
pressupostos básicos a respeito do que constitui a sociedade
·tal qual "Cool Britannia" [Bretanha legal], essa economia criativa
humana" (Rifkin, 2000: 10-11). Essa culturalização da economia
inclui uma agenda sociopolítica, especialmente o protagonismo
do multiculturalismo enquanto incorporado nas obras dos não aconteceu naturalmente, é claro; ela foi cuidadosamente
assim chamados jovens artistas britânicos, bem corno um coordenada através de acordos comerciais e de propriedade
programa econômico; por exemplo, pensar que a criatividade intelectual, como o GATT e a OMC, de leis que controlam o
fornecida por esta nova geração tenha transformado Londres movimento do trabalho mental e físico, por exemplo, leis de
num "eixo criativo para as tendências da música, moda, arte imigração etc. Em outras palavras, a nova fase do crescimento
e design" (Mercer, 1999-2000: 52). Aplicando a lógica que o econômico, a economia cultural, também ê uma economia
ambiente criativo gera inovação (Castells, 2000), promoveu-se política. Thomas Streeter observa que a "criação da proprie-
a cultura da Londres moderna como fundamento para a dade" - ou seja, a transformação, digamos, da transmissão
denominada nova economia baseada no "fornecimento de do sinal de radiodifusão em algo que pode ser comprado e
conteúdo", que deveria ser a máquina propulsora da acumu- vendido, que é fundamental para o lucro na mídia eletrônica
lação. Essa premissa é bastante disseminada pela retórica ame- - não acontece simplesmente na "ausência de controle político
ricana de uma "nova economia" e pela publicidade elogiosa ou social", mas "envolve um esforço contínuo e coletivo(. .. )
e enfática a respeito da "economia criativa" dos britânicos, de transformar atividades sociais em propriedade" (1996: 164).
reverberada nas expressões "hot nation" (nação quente), "criar

34 35
A criação da propriedade e as condjções infra-estruturais ois é a "nossa cultura" que é exportada. Todavia, pode-se
e legais para torná-la lucrativa não são, obviamente, novas. :erguntar, como já f~i, de fat~, pe;~untado, se esse_ tipo de
Considere, por exemplo, a indústria cinematográfica ameri- · .rodução faz uma diferença Simbohca quando se hda com
cana, que, desde sua fuga da Nova York sindicalizada até ~rodutos culturais, tais como filmes, música, shows de
Los Angeles nos anos 1920, estabeleceu uma relação sólida com televisão, e novas diversões para internautas. Os franceses
o capital financiador e com órgãos do governo americano já discutiram longamente a respeito,. po~ exemplo, em suas
encarregados do comércio. Quando a indústria se transfor- tentativas de isentar a cultura do c1rcmto do GATT e das
mou, no período pós-Segunda Guerra Mundial devido ao negociações da OMC, que os filmes e a música são cruciais
desafio da televisão e dos processos antimonopólio que a para a identidade cultural e não deveriam ser sujeitos aos
forçaram a se desfazer das salas de projeção, Hollywood mesmos termos do mercado, como, por exemplo, carros e tênis.
começou a equilibrar o risco do investimento em seus produtos os negociadores americanos contra-argumentaram que os
com elevado coeficiente de capital, subcontratando no exterior filmes e programas de televisão são bens, sujeitos aos mesmos
redes compostas de companhias de produção independente termos. Enquanto esse debate é realmente importante, e pode-se
para prestar serviços como a execução de roteiros, de elenco, discernir efeitos de significado devido a esse modo de
de design para cenários, cinematografia, vestuário, mixagem produção flexível (por exemplo, os filmes hollywoodianos
e direção sonora, edição, processamento fílmico etc. A confeccionados para atrair os espectadores estrangeiros), os
indústria cinematográfica vem sendo realmente caracterizada principais efeitos desta nova divi~ão internacional de trabalho
como o modelo pós-fordiano de especialização flexível cultural não se limitam, por exemplo, ao fato de utilizar ou
(Storper, 1989: 277; Yúdice, 1999b), e ela pode ainda ser vista não mais atores multiculturais ou mais atores europeus. O
como precursora daquilo que Manuel Castells · (1996) deno- que é mais importante é que os direitos autorais estão cada
minou "sociedade em rede". Além disso, uma série de pres- vei mais nas mãos dos produtores e distribuidores, dos maiores
sões, especialmente o deslocamento da produção em estúdio conglomerados de entretenimento que foram cumprindo
para uma produção de locação mais barata, levou à desinte- gradualmente os requisitos para obter a propriedade intelec-
gração vertiginosa e à recomposição do complexo industrial tual, a tal ponto que os "criadores" são hoje um pouco mais
do entretenimento (Storper, 1989: 289). Parte dessa história é do que meros "provedores de conteúdo". Na verdade,
a mudança de Hollywood para o exterior, primeiramente através Hollywood vem sendo· líder na internacionalização da lei de
de sua aquisição de cinemas no exterior para suplementar propriedade intelectual. Como notam Miller et ai., "os direitos
seus magros resultados domésticos, e, em última instância, autorais e o controle da propriedade intelectual garantiram
para tirar proveito da internacionalização de seus serviço$ o internacionalismo hollywoodiano porque eles estabilizam
de produção, ou seja, da divisão de trabalho. Hoje, um festival o mercado e o tornam previsível, um fator crucial dado aos
ou uma bienal de cinema ou de artes são tão internacionais tremendos custos da produção de filmes de longa-metragem"
quanto as roupas que vestimos ou os carros que dirigimos, (2001: Capítulo 4).
com peças de aço produzidas num país, os componentes O que começamos a ver é, assim, o modelo de maquiladora
eletrônicos em outro, e o couro e o plástico num terceiro, na indústria fílmica também presente em todas as outras indús-
sendo finalmente montados em outros países. trias nas quais a acumulação é baseada nos direitos de propri-
Os cidadãos americanos se esquecem da ameaça em edade intelectual e no conceito mais difuso dos direitos de
potencial que a internacionalização da divisão do trabalho propriedade cultural. O lucro é obtido na possessão (ou, como
oferece. Alguns podem estar conscientes da perda potencial diria Storper, criação) dos direitos de propriedade; os que
de empregos ligados à produção audiovisual para o Canadá não têm esses direitos ou que os perderam devido à aplicação
ou Austrália, mas culturalmente parece não haver ameaça, de leis concebidas para favorecer os interesses das corporações
são relegados ao trabalho de provedores de serviço e de conteúdo.

36 37
A culturalização da assim chamada nova economia, baseada a marca distintiva da grandiosidade estilística de Frank Gehry,
no trabalho cultural e mental (Terranova, 2000) - ou, os líderes da cidade instalaram o magnetismo necessário para
melhor ainda,· na expropriação do valor da cultura e do atrair atividades que "dariam vida", citando a frase de Manuel
trabalho intelectual - , tornou-se, com o auxílio da nova castells: "Juntamente com a inovação tecnológica, uma
tecnologia de comunicações e informática, a base de uma extraordinária atividade urbana emergiu (. .. ) fortalecendo a
nova divisão de trabalho. E à medida que as comunicações tessitura social de bares, restaurantes, encontros casuais na
permitem localizar serviços e produtores independentes de ma etc. que dão vida ao lugar." Melhorando dessa forma a
se estabelecerem em quase todo o mundo, também estamos qualidade de vida faz com que a cidade atraia e mantenha os
diante de uma nova divisão internacional de trabalho cultural inovadores indispensáveis à nova "economia criativa" (Castells,
(Miller, 1996) necessária ao fomento da inovação e para a 2000). "Conhecimento, cultura, arte (. .. ) ajudarão a dar um
criação de conteúdo. A culturalização é também uma economia impulso a Bilbao levando-a à restrita lista de melhores do
política, pois o governo americano vem fazendo o papel do mundo", segundo Alfonso Martínez Cearra, presidente da
maior protagonista ao certificar que os Estados Unidos Bilbao Metrópoli 30, uma rede que promove o desenvolvi-
podem manter seu domínio sobre a nova economia. Exem- mento da cidade composta por funcionários do governo,
plarmente, o relatório a respeito da Propriedade Intelectual e empresários, educadores, diretores filantropos e executivos
a Infra-estrutura Nacional da Informação realizado pelo Grupo da mídia que lideram o desenvolvimento da cidade Qacobs,
de Estudos da Casa Branca (IITF) recomendava apoio aos 1997: 14). Outra cidade pós-industrial que se voltou para a
regimes de propriedade intelectual para que a provisão de cultura para reavivar a economia é Peekskill, Nova York. Acre-
conteúdo assegurasse o domínio americano na nova economia: ditando que "os artistas são uma espécie de peixe-piloto
"Todos os computadores, telefones, scanners, impressoras, para a renovação urbana:', o conselho municipal criou um
interruptores, roteadores, cabos, redes e satélites do mundo", distrito artístico e ofereceu incentivos, como espaços de baixo
o grupo de estudos argumenta, "não criarão uma infra-estrutura êusto que os artistas possam utilizar ao chegar da cidade de
nacional de informação (NII) se não houver conteúdo. O que Nova York (Peterson, 1999).
levará a NII em frente é o conteúdo que se desloca através Essas iniciativas também têm uma desvantagem, pois, como
dessa infra-estrutura": recursos informativos e de entreteni- nos casos clássicos de ascensão social, elas tendem a deslocar
mento; acesso aos recursos culturais mundiais; inovação de residentes. Em outro momento, analiso um exemplo de
produtos; e maior variedade no consumo cultural (Estados desenvolvimento cultural que envolveu o famoso grupo
Unidos, 1995). musical afro-brasileiro Olodum tanto na renovação do
Atividades mais tradicionais como o turismo cultural e o Pelourinho, local histórico de tráfico de escravos e atual centro
desenvolvimento das artes também estão facilitando a da indústria de turismo, quanto no irônico deslocamento de
transformação de cidades pós-industriais. O exemplo mais seus residentes pobres (veja Yúdice, 2000d). Recorrer à "eco-
sensacional é o Museu Guggenheim em Bilbao, que está nomia criativa" evidentemente favorece a classe profissional
servindo de modelo para o franqueamento de museus em gerenciadora, mesmo quando ela vende seu produto baseado
outras partes do mundo, como o Rio de Janeiro e Lyons na .retórica da inclusão multicultural. Grupos subordinados
(Iturribarria, 1999; Rojas, 2000). Líderes locais da política e ou minoritários situam-se nesse esquema como trabalhadores
do empresariado, preocupados com a desgastada infra- de serviços de nível inferior e como provedores de experiências
estrutura pós-industrial de Bilbao e com a reputação pelo étnicas e outras culturas que "dão vida", que, de acordo com
terrorismo da cidade, procuraram revitalizá-la com investi- Rifkin, "representam um novo estágio do desenvolvimento
mentos na infra-estrutura cultural que atrairia turistas e capitalista" (2000: 265). Assim, o desenvolvimento econômico
lançaria fundações para uma complexa economia da indústria necessariamente pressupõe o gerenciamento de populações
de serviços, informação e cultura. Ao investir num museu com a fim de diminuir o risco de violência na compra e venda de

38 39
experiências. O sistema de metrô d.e Bilbao instalou câmeras da diferença" deveria reconhecer aquele contexto e respeitar
de segurança em todas as estações para monitorar as atividades as noções de responsabilidade e direitos ali desenvolvidos
dos viajantes (Jacobs, 1997: 13-14); Peekskill teve suas ruas (Fierlbeck, 1996: 4, 6).
equipadas com essas câmeras em cada esquina num esforço
de controlar o comércio de drogas. Muitos habitantes, entretanto,
interpretaram esse procedimento como uma forma de controlar · CIDADANIA CULTURAL
os residentes negros, muitos dos quais ficaram desempregados
devido a evasão industrial em favor do Terceiro Mundo. os direitos culturais incluem a liberdade de se engajar na
Os líderes da cidade foram acusados de interpretar o
atividade cultural, falar a língua de sua escolha, ensinar sua
desenvolvimento urbano em termos raciais, tentando atrair língua e cultura a seus filhos, identificar-se com as comunidades
profissionais brancos e limitando a mobilidade das minorias culturais de sua escolha, descobrir toda uma variedade de
(Peterson, 1999). culturas que compreendem o patrimônio mundial, adquirir
A culturalização, portanto, também é baseada na mobili- conhecimento dos direitos humanos, ter uma educação, não
zação e no gerenciamento de populações, em especial das deixar representar-se sem consentimento ou ter seu espaço
populações marginais que "realçam a vida" e que nutrem a ::;;,i;:;,. . ,;,,;.i,,L~,,,'"'-'·~·~·...,............ cultural utilizado para publicidade, e ganhar respaldo público
inovação dos "criadores" (Castells, 2000). Isso significa fazer para salvaguardar esses direitos (Grupo de Friburgo, 1996).
uma aliança entre a cultura enquanto práticas vernáculas, No entanto, como expôs um comentarista, os direitos cul-
noções de comunidade e desenvolvimento econômico. Veri- turais são as "Cinderelas da família dos direitos humanos"
ficamos tal• fato nas cidades globais que concentram centrais (Filibek, 1995: 75), pois sua definição ainda é ambígua - a
de comando e controle para corporações transnacionais e, lista completa do que deve ser incluído em "cultura" ainda
simultaneamente, um número crítico de serviços complemen- g,ão está clara, e nem é fácil conciliar aplicabilidade universal
tares e avançados ao produtor. Esses serviços concentram-se ao relativismo cultural (Niec, 1996: 5). Além disso, mesmo se
nas cidades, como Manuel Castells observa, onde a inovação os direitos culturais se referem a coletividades, os direitos
resulta de uma sinergia de redes de empresas complementares individuais dos membros destas coletividades têm prioridade,
e de reservatórios de "talento humano", muitos dos quais pelo menos em tratados internacionais. Assim sendo, os
compreendiam migrantes intranacionais e internacionais. Para direitos culturais não são universalmente aceitos e, na maioria
atrair esse talento, Castells prossegue, as cidades precisam dos casos, não são jurisdicionados, o que não ocorre com
oferecer uma alta qualidade de vida, o que significa que elas os direitos econômicos cujo status é firmemente calcado na
são também as maiores geradoras de capital e valor culturais. lei internacional (Steiner; Alston, 1996: 268). Além do mais,
O papel da cultura no acúmulo de capital, não é, no entanto, mesmo se os direitos culturais chegassem a receber validade
limitado a essa função ancilar; ela é essencial aos processos universal, daí não se infere que, em contextos culturais dife-
da globalização, que são evidentes em Miami, o tópico do rentes, eles serão aplicados da mesma forma. Sistemas legais
Capítulo VII. A globalização, de fato, revigorou o conceito de diferenciados oferecem contextos fortes ou fracos nos quais são
cidadania cultural desde que os direitos políticos, na maioria assegurados os direitos da cidadania, sejam eles políticos, civis
das vezes, não se apliquem a imigrantes e trabalhadores ou humanos. É por isso que falo em diferentes campos de
indocumentados. Entretanto, a idéia de que as diferentes força para a encenação ou desempenho de normas ou para
culturas do povo e as necessidad~s daí decorrentes deveriam a crítica das normas no Capítulo II. Todavia, alguns direitos
ser reconhecidas é um poderoso argumento que encontrou jurisdicionados se sobrepõem a direitos culturais, como no
receptividade em vários fóruns internacionais. À medida que caso do direito à informação. No entanto, como esse direito
a identidade social é desenvolvida num contexto cultural é exercido depende do contexto cultural (Niec, 1996: 8). Como
coletivo, discute-se que a inclusão democrática de "comunidades observa ]avier Pérez de Cuéllar, presidente da Comissão Mundial

40 41
da Cultura e do Desenvolvimento em sua introdução ao relatório .·. onto de vista da classe hegemônica), a cultura serve de base
da UNESCO intitulado "Nossa diversidade criativa", "os ~u garantia para fazer "reivindicações de direitos no terreno
direitos econômicos e políticos não podem ser realizados público" (Rosaldo, 1997: 36). Uma vez que a cultura é o que
separadamente dos direitos sociais e culturais" (1996: 11). "cria O espaço onde as pessoas se 'sentem seguras' e 'em casa',
Nos Estados Unidos, essa legislação dos direitos culturais onde elas se sentem como pertinentes e partícipes de um grupo",
positivos remonta a precedentes jurídicos e institucionais de acordo com essa perspectiva, ela é condição necessária
estabelecidos na era dos direitos civis. A história revela uma para a formação da cidadania (Flores; Benmayor, 1997: 15).
dialética interessante entre a desvalorização de grupos mino- No Capítulo VI, faço um relato do surgimento dessa nova
ritários - por exemplo, os negros e porto-riquenhos citados forma de direitos de cidadania e indico que, originalmente,
por Moynihan (1965) e Glazer e Moynihan (1963) que são as exigências para a qualificação dos direitos convencionais
caracterizados como desprovidos, por razões culturais, de à cidadania não eram baseadas no relativismo cultural de
associações voluntárias e outras características de uma socie- pertencimento a culturas específicas.
dade civil valorizada - e o ativismo daqueles grupos que Assim, se a democracia deve ser promovida, as esferas
inverteram a tese da "cultura da pobreza", valorizando exa- públicas em que a deliberação sobre as questões do bem
tamente aquilo que os desqualificava aos olhos da cultura público é realizada deve ser permeável às diferentes culturas.
dominante (por exemplo, os clubes sociais porto-riquenhos e A conduta relativista na teoria antropológica - que defende
tradições de adoção, não reconhecidos por Glazer e Moynihan a "cultura· comunal" como um conjunto de idéias e valores
como autênticas associações benéficas). Uma vez que a que imbui o indivíduo de identidade (Sapir, 1924: 401) - é,
aculturação sujeita à norma, implícita à análise e à política desta feita, mobilizada para fins políticos. A cultura é, assim,
das ciências sociais hegemônicas, foi vista como impraticável, mais do que um ajuntamento de idéias e valores. Ela é,
as práticas culturais dos grupos minoritários puderam ser segundo Flores e Benmayor, fundamentada na diferença, que
entendidas como estratégias comunitárias de sobrevivência funciona como um recurso (1997: 5). O conteúdo da cultura
dignas de aceitação. Em contraste com os pressupostos assi- diminui em importância à medida que a utilidade da reivin-
milacionistas e progressistas subjacentes à tese de Glazer e dicação da diferença como garantia ganha legitimidade. O
Moynihan, os multiculturalistas apelam para uma posição resultado é que a política vence o conteúdo da cultura. Iris
igualitária pluralista . ou relativista através da qual diferentes Marion Young comenta que "as reivindicações pelo reconhe-
culturas têm parcelas iguais na constituição da sociedade e cimento cultural normalmente são meios para se chegar ao
são expressões de uma forma de humanidade. esvaziamento do domínio ou da privação injusta" (83). Apesar
É essa noção de cultura que sustenta o conceito de cidadania de reconhecer que "as pessoas descobrem-se a si mesmas através
cultural desenvolvido por Renato Rosaldo no fim dos anos das afinidades culturais que as solidificam em grupos em
1980 (Rosaldo, 1989; Rosaldo e Flores, 1987). Em contraposição virtude de seu encontro com aqueles que são culturalmente
às noções convencionais de cidadania, que enfatizam a diferentes", a cultura não tem um "em si", ela é um recurso
aplicabilidade universal, mesmo que formal, de direitos para a política. "É importante lembrar, todavia, que uma grande
políticos para todos os membros de uma nação, Rosal do extensão do campo de conflitos entre os grupos diferenciados
postulou que a cidadania cultural implica que grupos unidos culturalmente não é cultural, mas uma competição acerca de
por certos aspectos sociais, culturais e/ou físicos não deveriam territórios, recursos ou empregos" (91).
ser excluídos da participação nas esferas públicas de deter- Os argumentos de Young, que correspondem à nova
minada constituição política com base naqueles aspectos ou conjuntura epistêmica de "conveniência" que passo a explicar
características. Num contexto jurídico que habilita a litigação adiante, são bastante úteis, pois demonstram como o debate comu-
contra a exclusão e um etbos cultural-político que evita a nitário liberal sobre a universalidade frente à especificidade,
marginalização do "não normativo" (assim considerado pelo

42 43
ou do "bem comum" versus a perspectiva a partir dos emanc1paç • a~ 0 , a racionalidade cognitivo-instrumental
. da
"conhecimentos situados", é superado. Contra a filosofia . ... . . que infligiu danos à natureza e aJudou a regular o
c1enc1a, • d
política liberal clássica identificada com John Rawls, Young e a transformá-lo em bem de consumo por meio a
aponta que as instituições e outras entidades formadoras de corpo
. logia , tomou precedencia
A •

so b re as raciona
· 11·d a d es
b 1otecno . " . ~
redes sociais realmente importam e que indivíduos que se 1-prática e estético-expressiva. Quando a emanc1paçao
abstêm de participar de tais redes é algo que não existe. Mas morodemaª sucumbiu a, regulaçao ~ mod ema " regiºd a pe1o merca d o,
contra as perspectivas comunitárias, Young argumenta que a m1 "deixou de ser o outro da regu 1açao ~ " para se tornar seu

estrutura social toma a precedência sobre a de identidade, ~: lo. Enquanto a revolução e "futuros alternativos" já não
rejeitando o posicionamento de Charles Taylor de que a a~cem ameaçar a dominação capitalista, "uma nova sensação
política do reconhecimento das diferenças grupais (ou cultura) ~e insegurança proveniente do medo dos desenvolvimentos
seja, em si mesma, um objetivo. No lugar disso, uma política incontroláveis" resulta da "assimetria entre a capacidade de
de reconhecimento é, "geralmente, uma parte ou um meio agir e a capacidade de predizer" 0995: 8-9).
para se chegar à reivindicação pela inclusão social ou política ··A projeção de Santos de um novo paradigma utópico é
ou como um fim para as desigualdades estruturais que a pre- fundamentada (previsivelmente) na ativação de um "princípio
judicam" (104-105). Sua intenção é mostrar que "a maioria comunitário", baseado na solidariedade, e de um "princípio
das reivindicações políticas baseadas em grupos não pode estético-expressivo", baseado na autoria e na artefatualidade
ser reduzida a conflitos acerca da expressão e da preservação (1995: 478), ·que, por sua vez, deveria levar a alternativas
do significado cultural" (104). Evidentemente, a cultura é uma emancipatóriais como a abolição da hierarquia Norte-Sul
categoria reducionista para Young. Ao mesmo tempo que (1995: 487), o conhecimento centrado na autoridade compar-
reconheço a força dos argumentos de Young, explico a seguir tilhada (1995: 489), novas formas de sociabilidade caracteri-
que a governamentalidade opera num campo de força em que zadi"s por hierarquias fracas, pluralidade de poderes e leis,
o mercado, com suas técnicas de diferença gerenciada como fluidez nas relações sociais (1995: 492-493), e um gosto
recurso primário, causa grandes erosões .à esfera pública barroco pela mistura ou mestiçagem (1995: 499).
habermasiana idealizada que a autora adota.
No entanto, o que parece ter se desenvolvido com a apro-
Na seção seguinte, comento o significado da transformação ximação das duas "representações inacabadas da moderni-
da cultura em recurso. Gostaria de prefacear esse comentário dade" é um mecanismo de controle ainda mais difuso. Nas
observando qué o fato de a cultura se aproximar da comuni- últimas três décadas, ativistas e teóricos progressistas, que
dade expressa a busca da justiça social e os direitos do romperam com a tônica estatista e cognitivista do marxismo
cidadão, além de ser sobredeterminada pela penetração da tradicional e com as inflexões (modernistas) anti-racionais e
lógica do capital nos recessos ainda recônditos da vida. Em mercantilizadas das artes, colocaram a estética e a comunidade
sua definição de pós-modernidade, Fredric Jameson caracteriza na formulação de uma alternativa cultural-política para a
esses lugares como o inconsciente e o Terceiro Mundo. dominação. A guinada antropológica na conceitualização das
Segundo o modelo weberiano ou habermasiano, os dois artes e da sociedade coincide com o que poderia ser chamado
seriam definidos, respectivamente, como a fonte da raciona- de poder cultural - o termo que escolhi para expressar a
lidade estético-expressiva e como a forma de organização extensão do biopoder na era da globalização - e também é
social que ainda está fora do alcance da regulação ocidental. uma das razões principais pelas quais a política cultural
Fazendo uma elaboração a partir de.sse modelo, Boaventura tornou-se fator visível para repensar os acordos coletivos.
de Sousa Santos explica que a racionalidade estético-expres- Exatamente esse termo reúne o que na modernidade pertencia
siva e a comunidade foram· ofuscadas pela outra lógica do à emancipação, por um lado, e à regulação, por outro. Mas
desenvolvimento moderno. No eixo da regulação, o mercado como demonstro ao longo deste livro, essa conjunção é
prevaleceu sobre o Estado e a comunidade; no eixo da talvez a expressão mais clara da conveniência da cultura.

44 45
Ela é utilizada para resolver uma série de problemas para a encontrar essa estratégia em muitos e diferentes
comunidade, que parece só ser capaz de se reconhecer na setores da vida contemporânea: o uso da alta cultura (por
cultura, que, por sua vez, perdeu sua especificidade. Conse- exemplo, museus e outras manifestações de alta cultura) para os
qüentemente, a cultura e a comunidade são apanhadas por objetivos do desenvolvimento urbano; a promoção de culturas
um pensamento circular, tautológico. Esse é um problema nativas e patrimônios nacionais a serem consumidos no turismo;
reconhecido por representantes da instituição que tem feito lugares históricos que são transformados em parques temáticos
tudo para colocá-lo em execução. Conforme observou o diretor do tipo Disney; a criação de indústrias de cultura transnacional
da Divisão da Criatividade, Indústrias Culturais e Direitos como complemento para a integração supranacional tanto
Autorais na UNESCO, em recente encontro, a cultura está na União Européia quanto no Mercosul (veja o Capítulo VIII);
sendo invocada para resolver problemas que antes eram de a redefinição de propriedade intelectual como formas de cultura
domínio da economia e da política (Yúdice, 2000b: 10). com a finalidade de incitar o acúmulo de capital na informática,
À medida que compreensões anteriores acerca de câno- nas comunicações, nos produtos farmacêuticos, no entreteni-
nes culturais de excelência artística - padrões simbólicos mento, e assim por diante. Em outro trabalho, fiz uma revisão
que dão coerência e, portanto, equipam um grupo de pessoas de vários projetos resultantes desse caráter instrumentalista
ou sociedade com valores humanos - perdem força, vemos da política cultural (Yúdice, 1999c).
aqui uma interação da conveniência da cultura. Nos nossos American canvas, o relatório do NEA que mencionei
tempos, representações e reivindicações de diferença cultural anteriormente, ao discorrer sobre uma série de discussões
são convenientes na condição de que elas multipliquem as municipais co·m pessoas de todos os segmentos da sociedade
mercadorias e confiram direitos à comunidade. Embora interessadas na salvaguarda do sistema de apoio às artes, fez
Virgínia R. Domínguez escreva que, para se entender o que as seguintes recomendações:
cultura significa quando ela é "invocada para descrever,
analisar, discutir, justificar e teorizar", é preciso focalizar Está na hora para aqueles que conhecem o valor das artes (. ..)
"naquilo que está sendo cumprido socialmente, políticamente, de se tornarem membros do conselho da escola, da comissão
discursivamente" 0992: 21). É esse o objetivo deste livro. municipal e regional, da comissão de planejamento e de zone-
amento, do alojamento, da associação dos comerciantes, da
biblioteca (. .. ) A questão não é simplesmente reduzir a relevância
das artes àquelas várias questões cívkas, mas controlar os fundos
A CONVENIÊNCIA DA CULTURA públicos que fluem através desses canais, pois parte deles pode
ser aproveitada pelas artes.
Há vários sentidos em que a idéia de convemencia da
cultura como reserva disponível pode ser compreendida aqui, Outro defensor mencionado no relatório aponta que "precisa-
mas quero deixar claro desde o início que não é meu propó- mos insistir que, quando estradas, esgotos, prisões, bibliotecas
sito desestimar essa estratégia como uma corrupção da cultura, e escolas são planejados e financiados (. .. ) que as artes também
sejam planejadas e financiadas. Precisamos encontrar os itens
ou como uma redução cínica dos modelos-símbolos ou
pontuais, as categorias orçamentárias e os dólares em todas
estilos de vida à "mera" política. Desqualificações dessa
essas fontes locais" (Larson, 1997: 83).
natureza são muitas vezes fundamentadas num desejo nos-
tálgico ou reacionário pela restauração de um pedestal para Seria realmente cínico qualificar políticas de identidade
a cultura, presumivelmente desacreditada pelos filistinos que como uma aberração quando a conveniência da cultura é uma
absolutamente não acreditam nela. Tampouco está certo característica óbvia da vida contemporânea. Ao invés de nos
fazer expiar o tipo de política de identidade que descrevi atrelarmos à censura, pode ser mais efetivo para os propósitos
brevemente, pois ele não é o único a lançar mão da cultura do pensamento estratégico estabelecer uma genealogia da
como conveniência, como um recurso para outros fins. transformação da cultura em recurso. O que ela nos assinala
a respeito do nosso período histórico?
46 47
Embora o meu entendimento de cultura como recurso não se apresentará somente no desocultamento da reserva
tu d o f" l d
seja heideggeriano, uma breve reflexão acerca de sua noção disponível" (1977: 33). Surpreendentemente, ao ma . ?
de. reseroa disponível ajudará a situar o meu próprio argumento ensaio sobre a tecnologia, Heidegger acalenta a poss1b1-
frente à modernidade e à pós-modernidade. Em "A questão 1idade de que uma vez que a tecnol~gia tenha t?1:1ado tudo
relativa à tecnologia" (1950), Heidegger identifica tecnologia em todo lugar, "a essência da tecnologia pode advir a presença
como uma forma de compreensão na qual a natureza se trans- no acontecer da verdade". Para que isso seja possível, a
forma num recurso, um meio ao fim, ou uma "reserva dispo- reflexão sobre a tecnologia, ele nos diz, precisa acontecer
nível". Tudo, incluindo seres humanos, vem a ser enxergado "numa esfera que seja, por um lado, familiar à essência da
como algo que está pronto a ser utilizado como recurso. Em tecnologia e, por outro, fundamentalmente diferente dela".
ensaio anterior, "A era da imagem do mundo" 0938), quando Essa esfera de reflexão, ele acrescenta, é a arte. Todavia, se
ainda não fala de uma "reserva disponível", Heidegger, no a essência da tecnologia impregnou todas as coisas, impondo-
entanto, caracteriza a era moderna, em que a representação nos a percepção da arte por meio da estética, então "tanto
se oferece como tecnologia, como aquilo que torna invisível mais misteriosa se torna a essência da arte" (1977: 35).
a essência das coisas. A ciência, enquanto tecnologia como o paradoxo que soa ao fim desse ensaio oferece uma
uma transformação autônoma da práxis, a transmutação da possibilidade, dentro da modernidade ou no fim dela, que
obra de arte num objeto de "mera experiência subjetiva", a é excluída por outras interpretações do papel da arte. Para
consumação da vida humana como cultura e a perda dos Peter Bürger, por exemplo, quando a burguesia expande seus
deuses (1977: 116) são os fenômenos que realizam a "era da domínios, até mesmo as resistências à razão instrumental -
imagem do mundo", onde a opacidade da encarnação cognitiva ou poderemos substituir o ordenamento - são crescentemente
da era anterior se torna invisível. Heidegger postulava "o ordenadas via institucionalização, que desse modo separa a
cálculo, o planejamento e a modelagem de todas as coisas" estética de outras esferas da vida social. Na tentativa de con-
(1977: 135) - precisamente a definição de Foucault da ciliar a arte e a vida, a vanguarda primeiro estetiza a vida e
governamentalidade para caracterizar a transição da economia então institucionaliza essa estetização (1984: 49). Um para-
do lar para a sociedade como um todo, quando a res publica doxo semelhante é evidente na aproximação da cultura e da
ou coisas como o clima, a riqueza, a doença, a indústria, as comunidade, como Santos caracteriza essas duas "represen-
finanças, os costumes, e assim por diante precisaram ser tações inacabadas da modernidade". Elas são tomadas pela
ordenados, calculados por meio de estatísticas e gerenciados abordagem gerencial que bloqueia e até torna impenetráveis
pelos saberes da disciplina 0991: 95-103) - como os processos compreensões anteriores desses conceitos e formas de prática.
que, em virtude desse ordenamento mesmo, lançam uma Além disso, com a recíproca permeação da cultura e da eco-
"sombra invisível sobre todas as coisas", isto é, tornou sua nomia não somente como uma mercadoria - que seria o
essência invisível 0977: 135). equiv~lente da instrumentalidade - , mas um modo de
A essência da tecnologia é, assim, não meramente sua cognição, de organização social e até mesmo tentativas de
instrurnentalidade 0977: 21), mas, Heidegger nos relata, um emancipação social, parecem retroalimentar o sistema a que
"apelo" que agrupa e ordena 0977: 19), um "enquadramento" resistem ou se opõem.
[Ge-Stel!J que "destina" uma revelação de ordenamento e que
"retira outra possibilidade de revelação" (1977: 27), inclusive
poiesis e arte, que, em "A origem da obra de arte", Heidegger UMA NOVA EPISTEME?
caracterizou como a revelação da verdade, da "presença
indisfarçada da coisa" (1971: 25). Esse bloqueio de outros É nessa conjuntura que eu gostaria de propor a noção da
tipos de revelação é um perigo: "o advir à presença da tecnologia pe1formatividade como o modo, além da instrumentalidade,
ameaça a revelação, ameaça-a com a possibilidade de que pelo qual o social é cada vez mais praticado. Estou introduzindo
toda revelação será consumida no ordenamento e que

48 49
esse tópico nesse momento para antecipar um desenvolvimento Calibán, de Roberto Fernández Retamar (1971), e o How to
maior no Capítulo II. A conveniência da cultura sustenta a read Dona/d Duck, de Armand Mattelart e Ariel Dorfman
performatividade como lógica fundamental da vida social de (1972), sejam talvez os textos clássicos dessa orientação, uma
hoje. Meu argumento é o seguinte: primeiro, a globalização crítica ao imperialismo cultural já estava evidente no trabalho
acelerou a transformação de tudo em recurso. Depois, a de José Carlos Mariátegui dos anos 1920.
transformação específica da cultura em recurso representa o o argumento do imperialismo cultural foi criticado por três
surgimento de uma nova episteme, no sentido foucaultiano. razões principais. Em primeiro lugar, ele desconsiderou a
Finalmente, essa transformação não deveria ser compreendida subordinação das minorias internas que acontece dentro do
como uma manifestação de uma "mera política", contra a qual é nacionalismo de países em desenvolvimento, quando essas
simplesmente necessário invocar uma noção voluntarista e minorias questionam a agressão simbólica do poderio imperial.
politicamente conveniente de agência. Isso só aumentaria o Em segundo lugar, as migrações e movimentos diaspóricos
poder, próprio de Anteus, da conveniência desse recurso. gerados por processos globais complicaram a unidade que
se presumia existir na nação; o pertencimento pode ser infra
CULTURA E GLOBALIZAÇÃO ou supranacional. Em terceiro lugar, e de forma conexa, a
troca de idéias, informações, conhecimento e trabalho
Foi comentado que sob as condições determinadas pela
"multiplica o número de permutações e, durante o processo,
globalização, é a diferença e não a homogeneização que
cria novos estilos de vida, novas culturas", muitas vezes
difunde a lógica prevalecente da acumulação. A globalização,
baseados nos elementos de uma cultura amostrada em outra
um processo de expansão econômica que data da exploração · (Rao, 1998: 42-43), como a música rap que a juventude negra
e conquista européia no século XVI e da modernização, produz brasileira incorpora em seus próprios projetos anti-racistas
o encontro de diversas tradições como a de que "culturas não (veja os Capítulos IV e V). Não é mais viável discutir que tais
podem mais ser examinadas como se fossem ilhas num culturas híbridas não sejam autênticas (García Canclini, 1995).
arquipélago" (UNESCO 1998: 16). O recentemente publicado
Esses argumentos sugerem que existe uma relação de
World culture report 1998: culture, cteativity and markets
conveniência entre a globalização e a cultura no sentido de
[Relatório da cultura mundial 1998: cultura, criatividade e que_ existe uma adequação ou pertinência entre elas. 1 A
mercados] propõe delinear as coordenadas dessa complexi- globalização comporta a disseminação (principalmente a
dade cultural maior e a forma com que ela poderia ser comercial e a informática) dos processos simbólicos que
aproveitada "criativamente" para um maior desenvolvimento conduzem a economia e a política de maneira crescente.
e democracia. Malcolm Waters baseia todo o seu estudo sobre a globalização
Os discursos sobre a globalização, todavia, têm precedentes nesse primeiro sentido de "conveniência" [expediency, em
menos otimistas. Não faz muito tempo que o alcance global inglês]:
econômico e interventivo dos Estados Unidos e da Europa
Ocidental foram caracterizados como imperialismo cultural. O teorema que direciona o argumento deste livro é este: inter-
Expoentes dessa visão se empenharam em desvendar a gana câmbios materiais localizam; intercâmbios políticos internacio-
pelo poder implícita na reverência à alta arte ocidental, o nalizam; e intercâmbios simbólicos globalizam. Segue daí que a
globalização da sociedade humana é contingente na medida
ocultamento das diferenças de poder na celebração da huma- em que acordos culturais forem eficazes no tocante aos acordos
nidade comum compartilhada por todos os povos conforme é econômicos e políticos. Podemos esperar que a economia e a
promovida por vários trabalhos antropológicos, e a lavagem política se globalizem sempre e quando elas se culturalizarem
cerebral de todo o mundo por parte de Hollywood. Embora o 0995: 9).

50 51
DA CULTURA COMO RECURSO À POLÍTICA Se a representação é a relação entre palavras e coisas
apropriadas para o mundo ordenado do soberano, as nov~s
Como já foi comentado anteriormente, a cultura é conve-
técnicas de governo ou administração, baseadas no conheci-
niente enquanto recurso para se atingir um fim. A cultura
mento disciplinar, chegam a ocupar aquele papel mediador
enquanto recurso é o componente principal do que poderia
entre os processos primários e o sujeito autônomo. A lei, que
definir-se como uma episteme pós-moderna. Em As palavras
era O instrumento do soberano, fica em segundo lugar na
e as coisas, Foucault determina três modalidades diferentes e
internalização das normas através da disciplina. O governo,
descontínuas de relação entre pensamento e mundo, ou epis-
por sua vez, torna-se um :neio regulamentador da. vida e da
temes, que possibilitam a existência de vários campos de morte, daquilo que podena ser calculado e gerenciado entre
conhecimento em cada época. Segundo Foucault, o conheci- ambas, estendendo-se ao clima, à· doença, indústria, finanças,
mentos<; organiza em cada era, por uma série de regras de costumes e desastre. O biopoder ou a "existência biológica
operação fundamentais. O renascimento ou a episteme do refletida na existência política", os meios com que o social
século XVI é baseada na semelhança, o modo pelo qual a foi produzido, "levaram· vida e seus mecanismos ao reino dos
linguagem relaciona palavras e os traços que marcam as coisas cálculos explícitos e fizeram do poder-conhecimento um agente
(1973: 32). O conhecimento consistia em relacionar, através de transformação da vida humana". Os corpos foram identifi-
da interpretação, as diferentes formas da linguagem a fim de cados com a política, pois, administrá-los fazia parte do
"restaurar a grande planície intacta das palavras e coisas" governo do país. Para Foucault, "o 'umbral da modernidade'
(1973: 40). A episteme clássica dos séculos XVII e XVIII de uma sociedade foi transposto quando a vida das espécies
consistia na representação e classificação de todas as entidades apostou em suas próprias estratégias políticas" ("Governa-
de acordo com os princípios de ordem e medida (1973: 57). É mentalidade": 97, 92-95; História: 143).
essa episteme que Borges caricatura em sua imagem da Enci- Ainda que cético da maioria das formulações da pós-
clopédia Chinesa, citada por Foucault como a fonte que o modernidade - particularmente aquelas que meramente
inspirou para pensar seu anverso, o heteróclito 0973: xv-xix). reinterpretam a fragmentação modernista como algo novo ou
Com o aparecimento da episteme moderna, que Foucault que situam a nova episteme na crise da autoridade das grandes
situa na virada do século XVIII e princípios do século XIX, a narrativas, como se essa crise nunca houvesse ocorrido antes
representação não é mais adequada para o exame dos assuntos - eu gostaria de ampliar a periodização arqueológica de
da vida, do orgânico e da história. Essa inadequação, por Foucault e propor uma quarta episteme baseada na relação
sua vez, implica uma profundidade ou uma "densidade entre as palavras e o mundo que resulta das epistemes ante-:
ensimesmada" na qual "o que importa não são mais as identidades, cedentes - semelhança, representação e historicidade - , mas
os personagens distintos, as tabelas permanentes com todas que, no entanto, as recombina levando em consideração a
as suas possibilidades de caminhos e atalhos, mas as grandes força constitutiva dos signos. Alguns caracterizaram essa força
forças ocultas desenvolvidas a partir de seu núcleo, origem, constitutiva como simulacro, ou seja, um efeito de realidade
causalidade e história, primitivos e inacessíveis" (1973: 251). baseada na "precessão do modelo". "Os fatos não têm mais
Essas forças ocultas são análogas, no relato de Foucault, ao qualquer trajetória própria, eles surgem na interseção dos
que permanece encoberto na descrição que faz Heidegger da modelos" (Baudrillard, 1983: 32). Eu prefiro o termo perfor-
tecnologia moderna. O conhecimento moderno, portanto, matividade, que se refere aos processos pelos quais identi-
consiste do desvelamento dos proces~os primários (a infra- dades e entidades de realidade social são constituídas pelas
estrutura, o inconsciente) que espreitam nas profundezas, repetidas aproximações dos modelos (ou seja, o normativo),
debaixo das manifestações superficiais da ideologia, da bem como por aqueles "resíduos" ("exclusões constitutivas")
personalidade e do social. que são insuficientes. Como já explicitei anteriormente, à
medida que a globalização se aproxima de culturas diferentes

52 53
para contato mútuo, ela aumenta o questionamento das /n,::•rn,ar1ec:exJc1. Lembro-me de duas metáforas para tornar mais
normas e, com isso, instiga a performatividade. essa visão do indivíduo e do social. Uma é o relato
Como observou Judith Butler, o poder constitui os domí- Bakhtin do romance como uma gama de registros discur-
nios ou campos de inteligibilidade do objeto ao entender os - a "heteroglossia" - que, no entanto, se sustentam
efeitos materiais dessa constitutividade como "dados materiais como um gênero:
ou determinações primárias" que parecem operar fora do
discurso e do poder. Ela credita a Foucault a demonstração o romance pode ser definido como uma diversidade de
de que esses efeitos materiais são o resultado de uma "inves- discursos sociais (às vezes até mesmo uma diversidade de
tidura do discurso e do ·poder", mas acredita que ele não linguagens) e uma diversidade de vozes individuais, artistica-
forneceu um meio de discernir "o que restringe o domínio do mente organizadas. A estratificação interna de toda e qualquer
língua nacional em dialetos sociais característicos do com-
que é materializável" (1993: 34-35). Os princípios de inteligi-
portamento grupal, jargões profissionais, linguagens genéricas,
bilidade inscrevem não somente o que é materializável, mas linguagens próprias de gerações ou de grupos etários, lingua-
também zonas de ininteligibilidade que definem as já gens tendenciosàs, linguagens das autoridades, dos vários
mencionadas "exclusões constitutivas". As teorias do incons- círculos e de modas passageiras, linguagens que servem aos
ciente (psicanalíticas ou políticas) tendem a condensar propósitos sociopolíticos específicos do dia, ou mesmo da hora
múltiplos processos numa "lei" específica (o complexo de (cada dia tem seu próprio slogan, seu próprio vocabulário, sua
própria ênfase), em suma, essa estratificação interna presente
Édipo ou "lei paterna", a "lei de classes" que está subjacente
em toda língua em cada momento específico de sua existência
à ideologia como falsa consciência) que coloca rédeas, por
histórica é o pré-requisito indispensável para o romance
assim dizer, aos vários desvios. Performatividade, como enquanto gênero (Bakhtin, 1984: 263).
elaborada por Butler, sugere que, ao invés de leis fundamentais,
muitos princípios diferentes de inclusão e exclusão se disputam: ~:. O que define o romance pata Bakhtin aproxima..:s-e da "lei
do gênero" de Derrida, que "é precisamente um princípio de
Conferir caráter e conteúdo a uma lei que assegura os limites contaminação, uma lei da impureza, uma economia parasita"
entre o "dentro" e o "fora" da inteligibilidade simbólica significa (1980: 55). Bakhtin propõe que o efeito do romance é uma
apropriar-se da análise social e histórica necessária para
"outra consciência que não se insere no quadro da consciência
combinar numa "única" lei o efeito de uma convergência de
muitas, e frustrar a possibilidade mesma de uma futura rearticulação autoral, ele é revelado a partir da internalidade como algo
dessa delimitação que é essencial ao projeto democrático que que está do lado de fora(. .. )" (1984: 284). Para Derrida "(. .. )
Zizek, Laclau e Mouffe promovem 0993: 206-207). o traço que marca a associação inevitavelmente divide; a
delimitação do conjunto chega a formar, pela invaginação,
O que Butler invoca nesse trecho é a interface entre o um bolso interno maior do que o todo, e o resultado dessa
sujeito individual e a sociedade, com uma recomendação divisão e dessa abundância permanece tão singular quanto
implícita para uma mudança do social democrático. O que ilimitado" (1980: 65). Uma consciência que está dentro embora
conecta sujeito e sociedade são as forças performativas que esteja do lado de fora e uma invaginação singular, porém
os operam, por um lado, para "arrear" ou fazer convergir as ilimitada, são modelos virtuais ou modelos de virtualidade
muitas diferenças ou interpelações que constituem e singula- do que Laclau denomina o social. Da mesma forma que os
rizam o sujeito, e, por outro lado, para rearticular um maior sujeitos são contraditórios mesmo que nivelados pelo nome,
ordenamento do social. Tanto os indivíduos· quanto as sociedades assim também é a "impossibilidade da sociedade", constituída
são campos de força que constelam a multiplicidade. Para de uma multiplicidade de "diferenças instáveis" gerenciadas
Butler, a tensão entre essas forças ou "leis" torna possível pela hegemonia. A rearticulação do ordenamento das
aos indivíduos-enquanto-constelações mudar e não conformar-se diferenças caracteriza tanto o sujeito performativo subversivo
com as circunstâncias. No entanto, os contornos do social de Butler quanto a noção de Laclau de mudança social. "Ás

54 55
relações hegernônicas dependem de que o significado de cada h e Urry (1987) afirmam que, ao invés da ordem
elemento num sistema social não esteja definitivamente fixo. f: Las t como Marx e Weber previram, o capitalismo
Se fosse fixo, seria impossível rearticulá-lq de uma forma { 1::::~s:, na direção da desconcent:ação do capital dentro
diferente, e assim, a rearticulação somente poderia ser pensada f dos Estados-nação; houve un:ia ~ep~r:çao crescen_:e dos ban~os,
sob categorias como falsa consciência" (Laclau, 1988: 254). - indústrias e Estado; uma red1stnbmçao das relaçoes produtivas
Esse sistema flexível de (re)articulações que mantém a e dos padrões residenciais categorizados pelas_ classes. De forma
aparência de uma entidade e ainda assim é uma mudança '~emelhante, poderíamos acrescentar, existe um processo
constante é uma reminiscência de sistemas estocásticos de desgovernamentalização evidente na retirada do Estado
revistos por Bateson em Steps to an ecology of mind [Passos do bem-estar social e sua substituição por organizações hete-
para uma ecologia da mente] (1972). Para gerar algo novo, é rogêneas e mais microadministradas da sociedade civil, e
preciso uma fonte de aleatoriedades. Alguns sistemas (por por seus homólogos, as organizações d_a sociedade inciv~l
exemplo, a evolução) têm um integrante no processo seletivo (máfiats, guerrilhas, milícias, grupos racistas etc.). O movi-
que reforça certas mudanças aleatórias de forma a se tornarem mento de antiglobalização, iniciado em Seattle no ano de 1999,
parte do sistema. Existe um "governante", por assim dizer, pode ser a imagem contrária do espelho da "desordem" arrai-
que impede a dispersão das peças do caleidoscópio, embora gada no próprio capitalismo, mesmo que não tenha se eviden-
a disposição dos cristais se altere a cada giro. Similarmente, ciado ainda que ela alimente o sistema.
as sociedades mantêm sua forma de acordo com a lei do Dito isso; ·os capítulos que se seguem demonstram que
gênero, a despeito das rearticulações. Nesse modelo, a Lash e Urry estão equivocados ao presumir que, "num tempo
mudança social é parecida com um giro de caleidoscópio. cada vez mais acelerado de renovação, os objetos como os
Tal processo pode ser mais característico das sociedades artefatos culturais tornam-se dispensáveis e desprovidos de
modernas do que das pós-modernas. sigrtificado" (1987: 10). Certamente, a compra e venda de
Uma premissa básica da modernidade é que a tradição experiências que Rifkin (2000) coloca no centro da ordem
(salvaguardada na esfera doméstica) é desgastada pelas constantes capitalista viabilizam a utilização do trabalho e o desejo dos
mudanças da industrialização, novas divisões de trabalho e produtores e consumidores (por exemplo, os turistas e os
seus efeitos concomitantes, como a migração, o consumismo indígenas encarregados de representar a identidade), bem
capitalista etc. Entretanto, as últimas teorias do capitalismo como suas políticas que se fundem facilmente com as merca-
desorganizado consideram a possibilidade de que o próprio dorias (veja o Capítulo VI). Mas também é verdade que o
"sistema" ganha com a erosão daquelas tradições, isto é, que mesmo capitalismo "desorganizado" que cria um grande
possa prescindir da governamentalidade._ O capitalismo número de redes para fins de acúmulo também possibilita a
desorganizado prospera com essa erosão, assistido pelas tessitura de redes de todos os tipos de associações afins
novas tecnologias que permitem, por exemplo, a redução do trabalhando em solidariedade e cooperação.
tempo nos mercados financeiros, a internacionalização de Eu devo apontar que, embora eu compartilhe o ceticismo
serviços avançados ao consumidor, a disseminação do risco, de Hardt e Negri no tocante às organizações não-governa-
maior mobilidade de pessoas, mercadorias, sons e imagens,
mentais dedicadas ao bem-estar e à defesa de direitos, quando
a proliferação de estilos, e aquilo que caracterizei anterior-
os Estados abandonam a transação keynesiana, sinto que é
mente como uma nova divisão internacional do trabalho
por demasiado absolutista relegá-las todas à categoria das
cultural. Essas mudanças e as tentatiyas de recuperar a tradição
"ordens mendicantes do império" (2000: 36). Existem duas
alimentam o sistema. Assim sendo, o fracasso de se repetir a
razões para a minha discrepância, evidente no Capítulo V,
conduta normativa como característica constitutiva da performa-
sobre as iniciativas de ação de cidadania no Brasil. Em
tividade subversiva pode, na verdade, aprimorar o sistema e
primeiro lugar, a visão de Hardt e Negri pressupõe que todas
não o ameaçar. O sistema se alimenta da "desordem".

56 57
as organizações dessa categoria "lutam para identificar as territórios) é o domínio nada democrático do comércio
necessidades universais" e que, através de sua ação elas . acional, legalizada pelo Banco Mundial, pelo Fundo
"definem o inimigo como privação (. .. ) e reconhecem o intern
M netário . ~ Mund'ial d o eomerc10
Internacional, pela Orgamzaçao ,. .
0
inimigo como pecado" (2000: 36). Muitas dessas organizações,
e seu s predecessores · Esse uso injusto da lei não só determina
,. .
que analiso adiante e com algumas das quais colaborei, condições de investimento, da produção e do comercio
realmente "defendem os direitos humanos", mas não neces- as os assim denominados países em d esenvo1v1mento,
para . mas
sariamente o fazem de uma maneira universal; e, se o fazem, ainda provocou um deslocamento importante de valor do trabalho
elas podem fazê-lo estrategicamente, para angariar o dinheiro produtivo para o trabalho mental, ~ ~ue favorec_e ~s. centros
e fugir, por assim dizer. Em segundo lugar, muitas ONGs e os de "inovação", situados, em sua ma10na, no hem1sfeno norte.
agentes que nelas trabalham são os únicos que trabalham A emergência de uma nova (talvez melhor caracterizada como
para estabelecer a "cooperação, a existência coletiva, e as uma intensificação do mesmo velho modelo geopoliticamente
redes de comunicação que se formam e reformam dentro da determinado) divisão internacional de trabalho está centrada
multidão" (2000: 401-402), a "cidadania global" que Hardt e nas formas mental, imaterial, afetiva e cultural do trabalho,
Negri alegam ser consistente com o "poder da multidão de que, pelo·~enos até o momento, estão longe de ser a condição
reapropriar-se do controle do espaço e assim desenhar a nova de um "comunismo espontâneo e elemental" (2000: 294).
cartografia" (2000: 400). Será que eles pensam que não existem Esse deslocamento é reforçado pelas leis de propriedade
conexões entre as ONGs, as academias, os órgãos da mídia, intelectual que são criminosas, não só porque elas, por exemplo,
grupos políticos e de solidariedade, e movimentos como o determinam que os soropositivos nos assim chamados países
dos Zapatistas ou o Movimento dos Sem-terra, ou os assim em desenvolvimento não podem pagar a medicação devido
chamados protestos antiglobalização? Há uma enorme falha aos custos exorbitantes das patentes, mas, mais amplamente,
no trabalho teórico que pressupõe que as categorias que são porque elas enfraquecem a possibilidade de estabelecer um
analisadas não se entrecruzam, não se contradizem nem salário vital quando a produção assume o modelo da maqui-
coincidem umas com as outras, como afirmam Hardt e Negri ladora, que a organização trabalhista está adotando com
para comprazer com suas visões "incomensuradas, parasitas renovado vigor. A "flexibilidade" no "capitalismo flexível"
e miscigenadas" do poder constituinte (2000: 353-389). justifica o alargamento dos lucros no hemisfério norte e o
encolhimento dos salários em todos os lugares. Vários capítulos
O entender de Hardt e Negri de política é tão absolutista deste livro examinam a exploração do trabalho "imaterial"
como o seu desprezo pelas ONGs. Eles alegam que "a ficção (por exemplo, a "vida" que populações subalternas dão às
transcendental da política não se sustenta mais e não tem classes profissionais-gerenciais e aos turistas nas cidades globais
utilidade argumentativa, pois todos existimos inteiramente de hoje) e a transformação de artistas e intelectuais em admi-
dentro do universo do social e do político" (2000: 353). Esse nistradores daquela expropriação disfarçada de trabalho
ponto de vista provém de sua crença de que a globalização e "baseado na comunidade". No Capítulo IX examino as con-
a sociedade concomitante de controle tornaram ineficaz qualquer tradições que o trabalho em rede implica para projetos de
ação política originada numa base nacional. No entanto, arte baseados na comunidade que vem fomentando o valor
presumivelmente, ativistas baseados em estruturas nacionais dos bens imóveis, que incentiva investimentos, e assim por
também fazem parte dessa "multidão" que convergiu para diante.
Seattle, Davos, Praga, Washington, Porto Alegre e Gênova. O fato de a cultura como recurso situar-se no âmago
Deslegitimar a base do regime de acúmulo próprio do capitalismo desses processos não significa que o assalto do capital aos
global constitui, sem dúvida, um projeto político significativo. trabalhadores e a outros que burlam seu "império da lei" seja
Uma das maiores razões para a exploração de trabalhadores meramente virtual. É por essa razão que não é provável que
fora dos Estados Unidos, Europa e Japão (e também dentro a política cultural, pelo menos como ela é vista dentro da

58 59
tendência dominante dos estudos culturais nos Estados Unidos, ômunidade (Mazer, 2001). Ann Pa~terson (cita~a p?r
faça uma diferença. Na verdade, discuto no próximo capítulo olhnann [2001)), embaixadora americana na Co~o°:b_ia,
que a "esquerda cultural" é instruída a desempenhar uma 'imilarmente alegou que as "Forças Armadas ~evoluc1onanas
política cultural dessa natureza, como nas assim chamadas :da Colômbia (FARC) e Bin Laden ~o~partilha1:1 a mes1:1a
guerras culturais dos anos 1980 e 1990. A proteção dos recursos .iJ:lÍ. ocrisia moral e a mesma falta de 1de1as. O Tahban afegao
culturais que os conglomerados de entretenimento global fr~io representa o Islã e as guerrilhas colombianas não procu-
expropriaram envolve não somente a lei, mas também o uso A;:'râm a justiça social." O resultado final é a intensificação da
de força policial e militar, por exemplo, na perseguição da tf::Dvigilância e da militarização na América Latina. A retórica e
pirataria e daquilo que a indústria do entretenimento chama : as alegações que _corporações transnacionais geraram acerca
de "tráfico da música", que, estima-se, excede o volume do da pirataria serviram para naturalizar e justificar o uso de
narcotráfico (Yúdice, 1999b: 149). Da perspectiva da maioria forças policiais nacionais em nome das indústrias vinculadas
das formas de política cultural, pelo menos da maneira como aos direitos de propriedade (Yúdice, 1999b: 147).
são concebidas em algumas versões dos estudos culturais Após o 11 de setembro, argumentos dessa natureza dão
americanos, a subversão dos pressupostos implícitos na mídia maior legitimidade à proteção corporativa ao comércio rela-
dominante como um meio de apropriá-los é considerada uma cionado aos direitos de propriedade intelectual (TRIPS, em
opção viável. Enquanto essa opção pode certamente ser con- inglês), uma guinada dos acontecimentos que desferiu um
siderada como uma forma de resistência, dificilmente ela é duro golpe nas estratégias do movimento de antiglobalização
eficaz frente às instituições que produzem e distribuem "con- para quebrar o controle mantido pelo Banco Mundial, pelo
teúdo". De outra perspectiva, também subversiva, podemos FMI e pela OMC, e outros, que definem e controlam o valor.
imaginar o "tráfico da música" como um assalto mais frontal Cij:ando novamente Mazer (2001),
contra o capitalismo cultural global, e certamente o é.
No entanto, uma estratégia dessa natureza impulsiona a a convergência da nossa segurança econom1ca e da nossa
indústria a melhorar seu domínio jurídico e militar sobre as segurança nacional ficou estampada no dia 11 de setembro.
pessoas e espaços em que a atividade é realizada. Isso já se As assombrosas perdas econômicas das indústrias americanas
dos direitos autorais e das patentes - alarmantes em si - são agora
evidencia no fato de a Ciudad del Este estar na mira do agravadas pelo tráfico de produtos relativos à propriedade
governo dos Estados Unidos. No local, zona de fronteira tripla intelectual, destinado a financiar o terrorismo e outras investidas
entre o Paraguai, Argentina e Brasil, alega-se, há pirataria, tráfico de crime organizado.
de drogas e terrorismo relacionados uns com os outros, fazendo
a conexão de comerciantes locais com guerrilhas e traficantes No entanto, é necessário opor-se às desigualdades soeta1s
de drogas colombianos e com redes terroristas do Oriente geradas pela vantagem de que o G-7 se apropriou por meio
Médio. Na maioria das vezes, não há provas concretas, mas dessas custódias de capital corporativo para fomentar a justiça
vagas alegações, como no caso de Ali Khalil Mehri, um global e reduzir a indignação dos países que levam a pior
paraguaio naturalizado, nascido no Líbano, que "estava sendo parte. Enquanto a revogação de uma ação judicial de 39 corpo-
processado por vender milhões de dólares em software rações farmacêuticas contra a África do Sul (que, por lei, per-
falsificado, cujo lucro foi alegadamente canalizado para o mite licenciamentos compulsórios de medicamentos sem o
consentimento do titular da patente e também as importações
grupo islâmico militante Hezbollah, .no Líbano". Em conse-
paralelas por um preço mais baixo do que os produzidos pela
qüência dos "rumores das ligações entre grupos dentro da
subsidiária local do fabricante) e a decisão do governo
comunidade árabe da cidade composta de 12 mil membros e
brasileiro de violar uma patente de Hoffman la Roche para
os ataques de 11 de setembro", uma rede de vigilância trans-
produzir um genérico de um inibidor de enzima proteolítica
nacional sob a liderança americana vinha espionando aquela

60 61
não significam o fim dos TRIPS, embora "forcem uma rachadura ,,'ERA POLÍTICA"
na represa com um pé-de- cabra" ("Health Gap", 2001). Essa
afirmação, feita por um membro da Coalisão Health Gap do "i/A palavra "expediency" *, nesse sentido, refere-se, conforme
ACT-UP (uma organização que se opõe aos maus-tratos aos ,<Oxford English Dictiona:y ~1971_) a "merame~te_ político
portadores da Aids), também demonstra que a ONG-ização ;Çespecialmente, c?i:11 referencia ~ interesses. propnos)_ ~ue
da justiça social, essa última executando uma contrapolítica clescuida do que e 1usto ou certo . Eu gostana de modificar
governamentalizada de outra maneira (uma crítica que Hardt wf§:ssaacepção de conveniência, pois ela denota uma noção de
e Negri fazem comigo em Imperio, assim como eu neste lfc.erto existente fora do jogo de interesses. Uma interpretação
tperformativa da conveniência da cultura focaliza, pelo
livro), todavia promove redes de solidariedade que inclu_em
' contrário, as estratégias implícitas em qualquer invocação
ativistas (neste caso, do Brasil, África do Sul e Estados Unidos),
ONGs, fundações e outras instituições do setor terciário, fun-
,u de cultura, em qualquer invenção de tradição no tocante a
" üm objetivo ou propósito. É por haver um propósito que se
cionários do governo em países em desenvolvimento, e os
'torna possível falar de cultura como recurso. Por exemplo, o
dissidentes que militam no assim chamado movimento contra
'debate sobre o alegado exagero de Rigoberta Menchú (1984),
a globalização. Na verdade, a rede formou-se para se opor ao
,.,e, em alguns casos, invencionice, dos eventos narrados em
avanço na direção sul do Acordo de Livre-Comércio para as
,-- seu testimonio a respeito do papel produtivo desempenhado
Américas, pois ele inclui artigos que prejudicariam a lei bra-
pela cultura. Aqueles que, como David Stoll 0999) argumentam
sileira que estipula a autorização obrigatória de drogas que ela distoréeu a verdade para seus próprios fins, para seu
genéricas ("New trade agreement", 2001). interesse próprio, vêem seu testimonio como um recurso no
Países desenvolvidos consideraram as conversações sentido negativo. Stoll levanta a polêmica alegando que Menchú
comerciais em Doha, Quatar, em novembro de 2001, como não exemplifica os valores de sua cultura. Aqueles que a
uma vitória para os países em desenvolvimento numa série defendem, como John Beverley (1999), argumentam que ela
de questões, entre elas, a isenção das regras de patentes em alterou os fatos dos acontecimentos para tornar sua narrativa
favor da saúde pública, uma "concessão" feita devido à mais atraente e, assim, mais persuasiva no atrair das atenções
necessidade de "se angariar a adesão dos países pobres com para a situação difícil de seu povo. Em ambos os casos,
vistas a um acordo, o que explicaria o fato de os Estados entretanto, existe um cálculo de interesses em jogo; e, em
Unidos estarem dispostos a fazer concessões tão rapidamente ambos os casos, a cultura está sendo invocada como um
sobre a questão das patentes" (Denny, 2001). Mas, como recurso para determinar o valor de uma ação, neste caso, um
explicam Walden Bello e Anuradha Mittal (2001), os países ato discursivo, um testimonio.
em desenvolvimento não perderam terreno apenas nessa Alguns leitores poderiam supor que o meu breve relato
questão, mas em várias outras. Uma vez que não existe nada do caso de Rigoberta Menchú impõe uma visão negativa da
no acordo TRIPS que impeça os países em desenvolvimento instrumentalização da cultura, como se a verdade pairasse
de ignorar patentes quando a saúde pública está em jogo, a em algum lugar entre as várias interpretações, ataques e contra-
redação do próprio acordo em nada foi mudada, deixando, ataques. Na minha opinião, é impossível não lançar mão da
ao invés disso, a possibilidade de futuras recusas ao controle cultura como recurso. Conseqüentemente, a análise cultural
das patentes. Além disso, a União Européia conseguiu manter necessariamente pressupõe uma tomada de posição, mesmo
subsídios à agricultura, e os Estados Unidos conseguiram nos casos em que o escritor procura objetividade ou trans-
manter quotas na indústria têxtil e do vestuário. cendência. Mas essa posição não precisa ser normativa,

* O vocábulo expedíencyfoi traduzido para o português como "conveniência",


embora seja intercambiável com a palavra "recurso".

62 63
baseada no que é certo ou errado. Foucault rejeitou esse tipo
de moralismo na última fase de sua obra, postulando, ao
invés disso, uma base ética fundada na prática. A ética,
Foucault argumenta, não pressupunha uma fundamentação
teológica, normalmente atribuída ao utilitarismo. Sua noção _
de cuidado de si mesmo (souci de sai) enfatizava o papel
ativo do sujeito em seu próprio processo de constituição.
Existe uma compatibilidade entre essa noção do cuidado de
si próprio e a performatividade, pois a ética de Foucault
sugere uma prática reflexiva do autogerenciamento frente aos
modelos (ou aquilo que Bakhtin chamou de "vozes" e "pers-
pectivas") impostos por determinada sociedade ou formação
cultural. A noção de autor de Bakhtin pode servir como
protótipo da ética performativa de Foucault, uma vez que o
autor é uma orquestração de outras "vozes", uma apropriação
que consiste em "povoar essas 'vozes' com suas próprias
intenções, com seu próprio sotaque" (1981: 293). Quem pratica
o cuidado de si mesmo precisa também forjar sua liberdade
trabalhando os "modelos que o autor encontra em sua cultura
e que lhe são propostos, sugeridos, impostos por sua cultura,
sua sociedade e seu grupo social" (Foucault, 1997a: 291).
O próximo capítulo, complemento deste, elabora a noção
de força performativa, entendida como os condicionamentos,
as imposições. e pressões exercidas pelo campo multidimen-
sionado do social e pelas relações institucionais. Se neste
capítulo abordei, de uma forma mais generalizada, o que
seria a noção de cultura como recurso, no próximo, argumento ·
que as lutas específicas em torno desse recurso tomam
formas diferentes dependendo da sociedade - ou campo de
força - na qual operam.

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