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RIO DE JANEIRO
2017
Lilian Alves Gomes
1 v.
Rio de Janeiro
2017
CIP – Catalogação na Publicação
Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos pela autora.
Para Vó Conceição, que partiu enquanto eu tecia esse trabalho; e tantas outras mulheres
- em especial minha mãe e minhas madrinhas Alaíce e Sãozinha - que me ensinaram
diferentes formas de lidar com o sagrado e suas contexturas.
AGRADECIMENTOS
Esta tese envolveu muitas itinerâncias. E eu não ando só. Os nomes que por ora
retomo, são as coordenadas institucionais, afetivas e efetivas que a possibilitaram. Inventariar
nomes e colaborações é uma maneira de me aproximar das condições de possibilidade do
trabalho. Como toda tentativa de inventário, essa lista ambiciona atenção aos detalhes, mas é,
a priori, falha por tentar palavrear tantos enredamentos que passaram por outras veredas. E é
também inventada, pois diz quem e o que tornaram a conclusão possível e esfumaça os
percalços e as paragens do caminho. É um compêndio deliberadamente celebrativo, que não
hierarquiza gratidão e obrigação. Passemos aos responsáveis e às suas graças.
À Fernanda Lima e sua generosidade, que torna a palavra gratidão ridiculamente
insuficiente para tatear sua contribuição nessa tese (e na minha vida). Fernanda levou a sério a
importância das imagens no texto e as bordou no trabalho como quem não soubesse da
pureza e do perigo envolvidos na empreitada. Ao Julio e ao Antônio, o passarinh o deles –
meu menino de Sto. Antônio – que entenderam a ausência da Fê e que, em tantos outros
momentos do percurso do doutorado, o fizeram tão mais afetuoso.
A Antônio Marques, querido Toinho, professor, amigo, mestre, interlocutor e
direcionador do meu olhar: obrigada por cada carão, presente, desafio, desabafo, dever de
casa. Você não me ensinou apenas a ver, mas a me deparar com festas para os olhos.
À Renata Menezes, pela orientação, pelos cursos que tanto contemplaram minhas
preocupações de pesquisa, pelo ambiente de interlocução e recursos no âmbito do GPAD.
A Edmundo Pereira, pela contribuição no exame de qualificação e pela generosidade
em incrementá-la tornando-se co-orientador deste trabalho.
A Antonio Carlos de Souza Lima e Nuno Porto, pelas contribuições na qualificação.
A José Reginaldo Gonçalves, Federico Neiburg e Maria Beatriz Mello e Souza, pelo
acolhimento nas disciplinas do doutorado e ampliação dos meus horizontes de indagações.
À Giordana Charuty, pelo estímulo intelectual durante o estágio na EPHE e por
possibilitar minha participação junto ao LAHIC.
À Michele Coquet, pelos comentários a respeito de minha pesquisa apresentada no
seminário L'autre de la religion (em colaboração com Giordana Charuty).
À École du Louvre, em especial, à Claire Merleau-Ponty, por viabilizar minha
participação no SIEM. Meu muito obrigada aos colegas dessa incursão. À Mariana Ferraz de
Albuquerque, pelos diálogos sobre museus com coisas de igreja e igrejas com coisas de
museu, e à Helena Wangefelt Ström, pelas trocas sobre santos desfigurados de lá e de cá.
A Luc Boltanski e Arnold Esquerre, pela oportunidade de assistir a algumas sessões
do seminário La valeur des choses: collections, sélections, préservation, no Musée Quai Branly.
A Luiz Fernando Dias Duarte, Federico Neiburg, Manuelina Duarte, Daniel Bitter, Carla
Dias e Carlos Fausto, membros da banca, por aceitarem o convite para avaliar meu trabalho.
A Paulo Henriques Britto, pela gentileza na elaboração do resumo em inglês.
À Drica Valcarce, pelo carinho e cuidado, principalmente nos momentos em que eu
não pude estar presente para encaminhar documentações e afins.
Aos funcionários das bibliotecas Parque Estadual – BPE e CCBB Rio, pelo ambiente
propício ao trabalho intelectual e pelo inestimável acesso aos catálogos e outros materiais
analisados nesta tese. Infelizmente, a BPE foi fechada e seu precioso acervo, bem como o
espaço dinâmico ali cultivado, estão inutilizados em razão do mais recente desmonte dos
serviços públicos orquestrado pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro.
À Maria Isabel Mendes de Almeida, querida Bebel, pela partilha intelectual,
compreensão, diálogo, amizade e oportunidade de trabalho no CESAP/UCAM. À Thais
Costa, por tecer tudo isso conosco e ter levado o significado de parceria a outro patamar na
minha atuação profissional.
A Anthony e Edu, por nosso aprendizado contínuo e tardes bem-humoradas (depois
do café, claro).
A Enrique Larreta, da UCAM, pela atenção ao meu deslumbramento com (uma
edição específica) de Walter Benjamin e suas Passagens. Ainda a encontraremos por aí, num sebo.
Ao pessoal do IEPHA, MPMG e CECOR, em especial, Raphael Hallack Fabrino,
Janaína Mota, Maria Ângela Pinheiro, Marcos Paulo Miranda, Paula Novaes, Frederico
Joviano e Beatriz Coelho.
À Irene Van den Berg, por ter me posto em contato com o principal interlocutor do trabalho.
A Nildo, pelos passeios em Natal e pelo sertão potiguar, pelo humor contagiante e
suas preciosidades de colecionador de coisas, sabores e experiências.
À Luzia e sua filha Dalva Dantas, pela generosidade da recepção em Currais Novos.
À Paulina Fagundes (in memorian), por seu singelo legado, também um fruto do
aprendizado com Antônio Marques.
À equipe do Museu Câmara Cascudo, em especial, Jailma Santos, pela presteza com
que me recebeu na instituição e pela generosidade em me enviar as informações que lhe
solicitei posteriormente.
À Isaura Rosado, pelo interesse por minha pesquisa e pelo apoio para que ela
contemplasse os santuários potiguares.
À Marília Gonçalves, pela acolhida na chegada em Natal, por me apresentar seus
cantinhos na cidade, pelas fotos na Casa dos Milagres (com seu Djidjidjiê) e sua prontidão
irrestrita em colaborar.
A Rodrigo Cordeiro e Dani Maia, por me receberem em Aracaju. Sou grata ainda à
Dani, pela recomendação de conversar com Verônica Nunes.
À Alene Lins, de Salvador, pelo contato de Jomar Lima. Agradeço a Jomar e ao prior
Sr. Ivo pela apresentação do Conjunto do Carmo, em Cachoeira-BA.
À Graça Ohana, e seu encantamento pelo mundo marioandradiano.
A Rhuan Carlos Lopes, pela colaboração no entendimento dos ex-votos que figuram
no último capítulo da tese.
Aos amigos que leram partes do trabalho e o enriqueceram com suas numerosas sugestões,
apontamentos e indicações: gratidão pela eficácia em tornar a solidão da escrita menos perversa.
A Edilson Pereira, pelas nossas parciais e gloriosas connections.
A Guillermo Sanabria, pela faxina nas minhas notas, curiosidade e admiração em
relação ao meu tema, encorajamento e torcida pela finalização do trabalho.
À Raquel Lima, pela atenção à minha escrita, que, como será visto adiante, é em muito nossa.
Pelo tanto que posso contar contigo, por me escutar, por vir ao Rio sambar que “somos verdade”.
À Jaqueline Silva, Jac, que banca a itabirana de ferro nas veias e tece comentários com
cheiro de cravo, rosa e botão de laranjeira. Pelo axé enviado, d’além mar, quando foi
necessário, e agora do lugar onde o desejo sossegou (por enquanto).
À Patrícia Lânes, pela presença afetuosa de cada dia; pelos encontros entre a
Republique e a Praça XV, passando pela Tiradentes e terminando (se for o caso) numa certa
esquina, na companhia de Gabriela e Gengibre.
A Paulo Victor Leite Lopes, pelas trocas silenciosas (ao menos em nossos termos) de
estratégias de sobrevivência iniciadas quando mal imaginávamos que nosso encontro se
desdobraria em “nova conjugalidade”. Pelo “controle social” para que o outro não desistisse,
por ter me conduzido pela mão quando precisei de auxílio espiritual e burocrático. Quem
conhece PV sabe o privilégio que é estar na presença de sua gargalhada, ironia, desenrolos,
parceria, ranzinzice e esquisitices de virginiano.
À Julia Zanetti, pelos deboches afins de seu alter ego PV.
A Arthur Lobo, pelas aulas de francês e pela amizade que cultivamos enquanto eu m e
preparava para o estágio no exterior.
À Simita Delaire, que me apresentou a Luis Antônio de Carvalho, e este por me mostrar sua
Paris, pelas discussões sobre a Aurélia e pela minha despedida antológica na Rue de Soleil.
À Viviane Lay Pradel, pelo cantinho na Turbigo e discussões em portunhol sobre santidade.
À Marcela Franzen, minha bastidiana, por tudo que minha estadia na França se tornou
depois de sua chegada e pelo que viramos depois disso. Que venha Clarice.
À Bela Welter e Romain Crouzet, pela mineirice aportada em Paris.
Aos meus amores de multidão, a quem de primeira eu não conseguiria agradecer
individualmente, afinal, somos um desbunde juntos (e brigando): Pimenta, Andrea, Flora, Uri,
Denise, Zé, Livia, Quel e Andrea. E por tudo que eu queria agradecer a um por um: à Livia,
hermana, por tantos caminhos que hoje desaguam em rio no fundo de seu quintal; à P imenta
pelas correspondências epifânicas; à Andrea pelas notícias astrológicas; à Flora e seus potlachs:
Bê e Ravi; à Denise da Costa e seu amor; à Quel e seu tambor; ao Zé, por conter minhas
vírgulas, à Uri por seu devir divinopolitana.
A propósito, Uri e Di Caprio, eu não tenho nada a ver com isso. Ao Di Caprio, pela
forma como esteve ao meu lado quando mais precisei e que hoje posso lembrar como o dia
no qual descobri que sempre fomos “amigos de infância”.
À Ludi e Ló, varistas queridas, que nos períodos mineiros da pesquisa me recebiam
em BH com dieta de engorda. Ao resto da Varistada, obrigada por (c)orações e momentos
familiares de bagunça.
À minha mãe, por entender a ausência, saber ser presença e me apoiar
incondicionalmente. Obrigada por lutar para que eu estudasse nas melhores escolas, por ter
me ensinado sobre cuidado com o outro e sobre tantas coisas do mundo.
A meu pai, pelas leituras compartilhadas, pelo orgulho sempre reiterado pela “caçula
do meio” e por sempre ter me intrigado com “o que não parece com o dono é roubado”.
Essa pesquisa fala um tanto disso.
Aos irmãos Renata e Lucas. Ao Lucas, por ter me dado Gisa, Pedro e Gu.
Às amigas do tempo de escola: Ana, Aline, Daniela, Juliana, Larissa, Nayra, Renata,
Simara, Vanessa Daldegan, Vanessa Gomes. À Simara, por trazer tanto de nós para o Rio.
A Juca e Lalá, casal querido que se celebrará em breve.
À Léa, que trouxe Tony, que chamou Karla e Érika, que me deu Melissa, que me
agraciou Isaac.
À Cláudia Rodrigues e Gilmar Oliveira, pela dedicação ao curso de Licenciatura em História
UNIRIO/CEDERJ. Aprendi muito com o empenho de vocês. Às professoras Neiva Oliveira,
Mônica Grin e Márcia Chuva, por me confiarem a condução das tutorias de suas disciplinas. Às
colegas professoras em Caxias, em especial, à Beatriz Bastos pelo auxílio na coordenação,
imprescindível para finalização desse trabalho. Aos alunos de DCA, pelo apoio e aprendizado mútuo.
Minha formação foi possível graças ao esforço de alguns dos profissionais citados
acima e muitos outros que me incentivaram em todo esse percurso. Alguns professores da
graduação na UFMG se tornaram amigos, outros figuram em minha memória como grandes
mestres: Ana Lúcia Modesto, Antônio Mitre, Daniel Simião, Deborah Lima, Eduardo Vargas,
Lea Perez, Leonardo Figoli, Regina Horta e Rubem Caixeta.
No PPGAS do Museu Nacional, além dos professores mencionados anteriormente
por terem participado de etapas mais específicas do processo de elaboração da tese, tive a
honra de aprender com Eduardo Viveiros de Castro, Giralda Seyferth, José Sérgio Leite
Lopes, Marília Facó, Marcio Goldman, Olívia Cunha e Tânia Clemente.
Minha trajetória no ensino público, gratuito e de qualidade foi potencializada pelas
bolsas CAPES (doutorado e estágio no exterior), pelos recursos para participação em
congressos e, fundamental e principalmente, pelo apoio financeiro do PPGAS -MN para
trabalho de campo. Em tempos em que essas possibilidades estão cada vez mais escassas,
seria eufemismo chamá-las de auxílio – quando, na verdade, são condições objetivas de
pesquisa – e absurdo não considerar que cursei a pós-graduação em condições bastante
privilegiadas e que deveriam ser acessíveis a todos.
Por fim, meu muito obrigada aos amigos de outras paragens com quem cruzei no
MN: João Laguens, Marcelo Mello, Mariana Renou, Raphael Bispo, Rita Santos, Rodica
Weiztman. Peter Fremlin, literato poliglota querido, gracias por tudo! A sensibili dade de
Maria Rossi foi especialmente fundamental para arrefecer meu retorno do exterior. Obrigada
por continuar me brindando com sua presença terna.
Os agradecimentos são um [pretenso] rito de entrada, uma vez que abrem a tese e, na
verdade, são escritos quando ela é finalizada. Os tantos exercícios de campo envolvendo
expressões plásticas de gratidão potencializaram mais ainda o clichê da insuficiência das
palavras para agradecer, mas como elas são o que tenho para expor por ora, abri então meu
‘relicário’, o documento onde fui guardando nomes durante o percurso do doutorado.
Coleção de cacos
Carlos Drummond de Andrade1
1. In: Esquecer para lembrar. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. pp. 44-45.
RESUMO
GOMES, Lilian Alves. A peregrinação das coisas: trajetórias de imagens de santos, ex-votos e
outros objetos de devoção. 2017. Tese (Doutorado em Antropologia Social)- Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.
Nesta tese analiso as relações engendradas por imagens de santos, ex-votos e outros
objetos de devoção em situações nas quais os mesmos são mobilizados para outros fins que não
o culto religioso. Além das trajetórias dos objetos em questão, discuto as motivações de quem os
retira de espaços onde eles são expostos para finalidades devocionais e os desloca para outros,
como museus e locais privados nos quais as coleções são elaboradas. A elucidação de tais
questões vale-se principalmente de dados produzidos a partir de Natal-RN, onde realizei um
longo investimento na observação participante do cotidiano de um colecionador, ex-galerista,
estudioso e comerciante de arte e suas interações em práticas de busca, comercialização,
colecionamento e exposição de objetos. Através dessa interlocução mais específica em torno de
um conjunto de obras — classificadas, em sua maioria, como “arte popular” — convivi com
diversas outras peças entendidas neste trabalho como emaranhados de relações tecidas no
decurso de sua produção, circulação, exposição e mesmo destruição. São esculturas, como os já
aludidos santos e ex-votos, passando por exposições e publicações delas decorrentes, tais como
livros e catálogos; pensadas como imiscuídas no fluxo da ação social de agentes diversos:
fornecedores de material, artistas, marchands, colecionadores, folcloristas, intelectuais,
restauradores, curadores, inventariadores, museus, professores universitários, órgãos culturais etc.
A abordagem etnográfica privilegia processos (colecionamento, artificação, patrimonialização,
exposição etc.) em vez de estados reconhecidos dos objetos (obra-prima, artefato, obra de arte,
coleção etc.). Desse modo, destaco a rentalibilidade de ritualizar atos de criar, ver, manipular,
transacionar e mostrar certos objetos. Essa proposta envolve a descrição do processo de
musealização de parte de um acervo particular. A análise da exposição de santos e ex-votos
decorrente desse processo culmina na discussão sobre a possibilidade de criação (ou
reatualização) da força ritual presente nessas coisas em suas utilizações pretéritas.
Palavras-chave:
imagens de santos; ex-votos; objetos de devoção; Antropologia da Arte; Antropologia dos objetos.
ABSTRACT
In this dissertation I analyze the relationships formed in the context of statues of saints,
ex-votos, and other devotional objects in situations where they are mobilized for other purposes
than religious worship. In addition to the trajectories followed by these objects, I discuss the
motivations of those who transplant them from devotional spaces to such places as museums
and private collections. To elucidate these issues, I relied mostly on data from Natal, Rio Grande
do Norte State, where for a long time I was a participant observer of the everyday life of a
collector, former gallery owner, art scholar and art dealer, procuring, marketing, collecting, and
exhibiting objects. As I observed his transactions involving a number of items—most of them
classified as “popular art”—I had access to other objects, here envisaged as sets of entangled
relationships generated in the process of production, circulation, exhibition, and even destruction
of these objects. These sculptures—for instance, images of saints and ex-votos—are included in
exhibitions and in the catalogues and books associated with them; they are envisaged as
immersed in the flux of the social action of various agents: suppliers of materials, artists, art
dealers, collectors, folklorists, intellectuals, restorers, curators, organizers of inventories,
museums, college professors, cultural agencies, and so on. The ethnographic approach privileges
processes (collecting, artification, patrimonialization, exhibiting, etc.) rather than recognized
states (masterpiece, artifact, work of art, collection, etc.). In this way, I emphasize the
effectiveness of ritualizing the acts of creating, seeing, manipulating, buying, selling, and
exhibiting certain objects. This proposal involves the description of the process of musealization
of part of a private collection. The analysis of the exhibition of statues of saints and ex-votos
that are the culmination of this process ends with a discussion of the possibility of creating (or
reactualizing) the ritual force present in these objects in their former capacity.
Keywords:
statues of saints; ex-votos; devotional objects; anthropology of art; anthropology of objects.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Capa e contracapa: A imagem que abre e fecha este trabalho é um milagre atribuído ao santeiro
Salomão Gurgel. A fotografia da peça foi feita por Giovanni Sérgio e consta na pág. 18 do
catálogo da exposição Casa dos Milagres: Santos e Ex-votos na Coleção de Antônio Marques (2013).
REFERÊNCIAS..........................................................................................................................................
288
- Referências Bibliográficas...........................................................................................................................
288
- Catálogos e estudos de coleção.................................................................................................................297
- Reportagens.............................................................................................................................................. 300
Minha inquietação inicial ao buscar imagens de santos e outros objetos de devoção se deu
com o intuito de verificar quais relações eles engendram quando são mobilizadas para outros fins
que não o culto religioso. Interessavam-me, assim, não somente as trajetórias dos objetos em
questão, mas também as motivações de quem os retira de espaços onde eles são expostos para
finalidades devocionais e os desloca para outros, como museus e locais privados nos quais as
coleções são elaboradas. Se nem só os devotos querem tê-los consigo, quem seriam essas pessoas
que também os desejam, quais seriam esses objetos e o que elas buscariam neles, pressupondo-se
que não seria a presença ativa e taumatúrgica de um santo? Ao pensar nos santos „fora de casa‟1,
uma imagem primeira que me instigava era a do colecionador que os retira de igrejas e capelas,
destituindo-os de seus respectivos papéis rituais em práticas coletivas para inseri-los no âmbito de
coleções particulares. Qual seria o deleite envolvido nesse culto privado?
Ao longo de anos assisti a chamadas televisivas em que altares de igrejas e capelas eram
mostrados vazios ao som de músicas tristes2. Esse tipo de ação noticiava campanhas visando à
recuperação de “bens culturais desaparecidos”. Em uma chamada específica do Instituto do Patrimônio
Artístico e Histórico Nacional (IPHAN), imagens de santos com feições suplicantes são mostradas
rodeadas de objetos litúrgicos de ourivesaria e prataria – castiçais, sacrários, tocheiros, cálices etc.
Quando a voz em off do locutor enuncia que “comprar e vender peças de arte ou antiguidades roubadas
é crime”, surge em primeiro plano, o rosto de uma santa com os olhos marejados. O comercial é
finalizado com lágrimas escorrendo pelo rosto da peça integrante do “patrimônio cultural do Brasil”3.
Os objetos do „comercial anticomércio' eram mostrados na penumbra, em um local não
identificado. Essa indicação e a assertiva em torno do caráter ilegal da movimentação de arte sacra
apontavam para o fato que uma pessoa interessada não acessaria facilmente os agentes que a realizam,
tampouco os espaços onde certas transações são realizadas. Face a isso, como eu me aproximaria de
pessoas para desenvolver uma tese sobre algo que poderia comprometê-las? Como trataria de
imagens de santos que não são solenemente expostas ao olhar de um público mais amplo?
1 As aspas simples serão sempre utilizadas, no decorrer deste texto, para assinalar minhas próprias categorias ou a
relativização de algum termo ou expressão. Aspas duplas serão empregadas como forma de marcar citações e
categorias que não as minhas – sejam „nativas‟ ou de cientistas sociais e outros pesquisadores. O negrito será utilizado
como marcador de ênfase. As palavras em itálico indicam termos significativos do universo pesquisado e, como de
praxe, vocábulos estrangeiros ou títulos de trabalhos.
2 Veiculadas pela emissora de televisão pública de Minas Gerais.
3A campanha “Lágrimas de Bens Procurados” pode ser visualizada em https://www.youtube.com/watch?v=2jMu-
f57kho.
22
Meu tipo ideal de interlocutor, àquela altura, era o „caçador de imagens‟. Assim, estando
diante de um colecionador e das pessoas que participam das movimentações para que as imagens
cheguem até eles, eu poderia indagá-las sobre as astúcias, ferramentas e „terrenos de caça‟
explorados com vistas à composição de „santuários particulares‟. Poderia também entender a
atração específica exercida pelas imagens sobre eles. Por que colecioná-las?
Apresentei essas primeiras inquietações para minha orientadora e avaliamos que se naquele
momento inicial da pesquisa, o contato com colecionadores de arte sacra e o acesso aos locais que
acondicionam suas respectivas coleções parecia complicado, talvez fosse interessante compreender
a musealização de imagens de santos. Gostei da sugestão por entrever tal prática como voltada à
prevenção de roubos que me intrigavam. Um dos museus sugeridos abriga imagens provenientes de
igrejas descritas como “peladas”, ou seja, templos religiosos também são „desnudados‟ para
composição de coleções de museus. Estes, no entanto, funcionariam como vitrines ou como
cofres? Quais as implicações da exposição dessas coisas preciosas? Em quais circunstâncias admite-
se que a „morada‟ mais adequada de uma imagem é uma instituição museológica e não uma igreja?
Ao passo que eu me preocupava com os caminhos que levam as imagens para fora de seus
loci rituais, fui alertada que a forma de exposição dos museus em si poderia ser preciosa. Certos
displays possibilitam a visualização de séries de imagens de santos provenientes de diferentes locais
que, por estarem dispostas lado a lado, permitem a comparação entre variações ou mesmo
mudanças históricas nas representações iconográficas, portanto, tratava-se de uma forma específica
de classificar e mostrar as peças propiciadas justamente pela descontextualização ritual delas.
*****
23
4 Durante o doutorado frequentei os seguintes cursos: Antropologia da Economia (2011/1°), ministrado por
Federico Neiburg (PPGAS/MN/UFRJ); Antropologia dos Objetos (2011/1° semestre), conduzido pelo
Professor José Reginaldo Gonçalves (PPGSA/IFCS/UFRJ); Sobre a “Cultura Popular”: as Festas (2011/1°),
ministrado por Renata Menezes (PPGAS/MN/UFRJ); Pintura e Sociedade: teorias da imagem, funções e apropriações
(2011/2), oferecido por Maria Beatriz de Mello e Souza (PPGHIS/IFCS/UFRJ) e Objeto, Imagem, Corpo,
Religião: Materialidades do Sagrado (2012/1°), com Renata Menezes.
5 Coordenado pela Dra. Renata Menezes, realiza reuniões e debates desde 2007, tendo se consolidado
oficialmente em 2010, junto ao Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq, com o suporte institucional do
PPGAS/MN/UFRJ. “O grupo se articula em torno de temas como a produção de novas análises sobre
símbolos e práticas associados à religião, seja esta entendido enquanto um princípio de valores e
representações, ou ainda como um conjunto de práticas de "enredamento" social. Assim, os membros do
grupo têm pesquisado sobre culto aos santos, festas religiosas, objetos religiosos, relação religião -arte,
religião-mercado, religião-Estado.” Fonte: dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/4672762409992537.
6A saber: Museu de Arte Sacra de Laranjeiras – SE, sugerido por Renata Menezes; Museu de Arte Sacra de
São Cristóvão, SE; e Museu de Arte Sacra de Salvador – BA, indicado por Maria Beatriz de Mello e Souza,
historiadora da arte. Fui aluna de Beatriz no seminário Pintura e Sociedade: teorias da imagem, funções e
apropriações, realizado no segundo semestre de 2011, na Pós-Graduação em História Social do IFCS/UFRJ.
7 Contactei-o por intermédio de Irene van den Berg, professora da Universidade Estadual do Rio Grande do
Norte (UERN), que ciente do interesse dos pesquisadores do GPAD pelas “materialidades da devoção ”, em
troca de e-mails com Renata Menezes, mencionou conhecer um “excelente ex-professor da antropologia que
se dedica hoje à curadoria de imagens sacras e tem uma coleção belíssima de ex -votos do RN”. Solicitamos
então o referido contato e Antônio Marques se dispôs a me receber.
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Alguns meses depois, em setembro de 2012, voltei a Natal com a proposta de uma
observação mais detida naquela galeria de arte. Meu objetivo inicial era lidar com imagens
expostas para comercialização, acompanhando a exibição e a venda das peças no estabelecimento
comercial. No entanto, o espaço em questão estava sendo vendido para outro comerciante de
arte/colecionador, mas este fato não impossibilitou a pesquisa sobre a circulação de imagens.
Mesmo não estando mais à frente da galeria, o colecionador, que se tornou meu principal
interlocutor, não deixou nem de comercializar, nem de adquirir peças, e pude acompanhá-lo nessa
movimentação. Fiquei em Natal até fevereiro de 2013 e produzi dados por meio de Observação
Participante em diversas situações: viagens ao interior do estado em busca de objetos em
santuários, antiquários e fazendas; reuniões com a Secretaria de Cultura do Rio Grande do
Norte com vistas à organização de um museu; organização de uma exposição de presépios,
visitas a ateliês de artistas, a espaços de colecionamento e a feiras de arte e de artesanato.
Após meu retorno ao Rio de Janeiro, as relações estreitadas nesse campo foram
mantidas através da troca de e-mails, interações em redes sociais e, especialmente, contatos
telefônicos. Antônio e seu sócio estiveram no Rio em 2013 e 2016 e fomos juntos a feiras de
antiguidades, antiquários e museus. Em 2014, durante minha estada na França para realização
do Doutorado-Sanduíche, contei com a colaboração de Raquel Lima e Edilson Pereira,
colegas do GPAD, que estiveram em Natal e registraram em áudio e imagens a visita à
exposição Casa dos Milagres – Santos e Ex-votos na Coleção de Antônio Marques, de importância
capital para a argumentação desenvolvida nesta Tese. Em 2015 também visitei a mostra em
questão. Nesse mesmo ano contei com a colaboração de Marília Gonçalves, assistente de
pesquisa que realizou registros fotográficos de obras cuja visualização se tornou indispensável
para o desenvolvimento de alguns trechos desse trabalho.
8 De acordo com a listagem de bens desaparecidos disponibilizada na página do IEPHA -MG, busca-se uma
“Escultura busto de Antônio Aleixo” e uma “Escultura Monumento Comemorativo da Inauguração da BR
041”. Todos os demais itens da lista são imagens de santos e suas partes integrantes (ou seja, atributos ou
acessórios, cujas definições conheceremos mais adiante), instrumentos litúrgicos e partes de estruturas da
igreja. Fonte: http://www.iepha.mg.gov.br/bens-desaparecidos/lista-de-dens-desaparecidos.
26
Como será visto adiante, a eleição dos dados produzidos principalmente a partir da
interação com o interlocutor potiguar permitiu o desenvolvimento dessa Tese em torno de
diferentes trajetórias: de objetos específicos; de uma coleção e do colecionador que a elabora.
Diversos aspectos que serão problematizados, entretanto, não deixaram de ser iluminados por
questões cuja elaboração foi possibilitada pelas visitas aos museus do meu primeiro de
trabalho de campo ou pelo confronto com a expertise dos profissionais mineiros em busca de
bens desaparecidos. Em vista disso, alguns dados produzidos nesses outros contextos
poderão ser oportunamente acionados.
*****
9 Vide, por exemplo, os trabalhos de Krzysztof Pomian (1987) e Jean Baudrillard (2004).
27
Entretanto, a utilização desses mesmos objetos rituais para outros fins que não a
transação com divindades permanece pouco estudada. Arjun Appadurai (2008, p. 42) assevera
que “o desvio de objetos para fora das rotas especificadas é sempre um sinal de criatividade ou
crise, seja estética ou econômica”. Essa pista sobre o potencial das transações ser tanto criativo,
quanto perigoso – e, por conseguinte, pregnante de possibilidades de recomposição das
significações em torno dos objetos – reitera a pertinência de estudar a utilização de objetos rituais
para outros fins que não as trocas com divindades.
Considerando que a literatura nos possibilita a entender o ritual como o tempo potencial para
troca, mudança ou inversão de papéis em oposição ao cotidiano marcado pela permanência dos
papéis habituais, torna-se interessante „ritualizar‟ os processos envolvidos nos trânsitos de objetos que
10Segundo Baudrillard (2004), “qualquer que seja a abertura de uma coleção, há nela um elemento irredutível
de não-relacionamento com o mundo.”.
11Lembrancinhas são souvenirs, objetos – geralmente de pequena dimensão – vendidos em locais onde se
observa fluxo de visitantes, que adquirem esses artigos para lembrar da experiência de estar em tal local ou
presentear outras pessoas.
28
Tendo em vista que meu interesse se direcionava, sobretudo, às coisas que mudaram ou
foram mudadas de lugar, me ater à ideia de peregrinação não parecia inadequado. Tratei de
procurá-las, como indiquei nos primeiros títulos que conferi à pesquisa, „para além do altar e do
andor‟ ou, minimamente, „nem só no altar e no andor‟. Altares e seus correlatos móveis, os
andores, grosso modo, são mecanismos que capitalizam o foco para o que mostram com
destaque para ser venerado. Contudo, os dados coletados por ocasião da primeira jornada de
trabalho de campo já mostravam que os deslocamentos que eu colocaria em pauta podem ser
nada solenes ou pomposos quando pensados em relação àqueles observáveis em cerimônias nas
quais os santos são celebrados sobre os referidos suportes de direcionamento de atenção.
12De acordo com Renata Menezes (2004), as relações estabelecidas com os santos caracterizam-se por vinculações de
profundidade e de duração variadas. Na perspectiva da autora, os santos são divindades que articulam três dimensões –
de mediação, intercessão e taumaturgia – que podem ser acessadas de modo pontual, para realização de uma promessa
ou pedido, ou num ato em que se “experimenta” o santo ou na forma mais duradoura da relação de devoção. A
especificidade desta dimensão reside no estabelecimento de “vínculos significativos” que relacionam aspectos da vida do
santo e do devoto, envolvendo fé, amizade, intimidade e confiança. O devoto conta com a proteção contínua do santo
porque estabelece com ele uma relação calcada na gratidão, que pode ser inclusive em relação à própria vida como um
todo, povoada de graças diversas e não apenas por feitos extraordinários esporádicos.
29
Meu posicionamento como etnógrafa em campo, por sua vez, foi se configurando menos
como o da pessoa em uma procissão que segue ou vai ao lado do santo – participando da mesma
cena que ele – e mais como o do peregrino ou romeiro, que o alcança após percorrer
determinado percurso. Não posso prosseguir com a analogia, por ora, porque uma peregrinação é
realizada com vistas à chegada em um local sagrado definido e eu optei justamente por buscar
imagens fora dos endereços previsíveis onde elas são dadas a ver.
*****
Meu interesse pelas imagens de santo deriva da minha bagagem de reflexões sobre o culto
a essa categoria de divindades. Tanto em minha monografia de conclusão de graduação em
Ciências Sociais (GOMES, 2008), quanto em minha dissertação de mestrado em Antropologia
Social (GOMES, 2011), abordei a devoção a Padre Libério13, que ainda em vida foi considerado
santo e após sua morte continua sendo cultuado a partir de Leandro Ferreira, uma pequena
cidade do interior de Minas Gerais. Esses exercícios de análise consistiram na circunscrição da
ampla problemática da santidade – fenômeno observável na maior parte das grandes religiões e
vulgarizado, principalmente, pelo Cristianismo e, em menor medida, pelo Islamismo
(VAUCHEZ, 1987) – ao entendimento de como sentidos universais e hierárquicos característicos
à Igreja Católica são vivenciados localmente na atribuição de santidade.
recordação, um objeto milagroso, um meio de provar que o santo é mesmo poderoso. Durante
todo o processo daquela pesquisa me deparei com a temática dos objetos, que problematizei de
modo mais específico no capítulo 4 da Dissertação, mostrando como eles atuam no sentido de
construir e atualizar a potência do santo. Nesse sentido, medalhinhas, santinhos, imagens
tridimensionais, fotografias, ex-votos etc., foram analisados como coisas que, 1) imiscuídas em
relações de devoção, podem carregar consigo a presença milagrosa do santo e 2) circulam através
de transações sustentadas por uma moralidade que coloca em relevo as particularidades do
comércio de artigos religiosos, no qual as negociações são frequentemente avaliadas segundo
princípios e valores que ultrapassam interesses entendidos como meramente econômicos.
É esse quadro conceitual que possibilita Patrick Geary (2008; 1990) falar em
commodities sagradas, iluminando processos de circulação de relíquias, partes dos corpos dos
santos ou de coisas que estiveram em contato com eles (as chamadas relíquias de contato). O
caráter móvel e fragmentável conjugado ao poder das coisas impregnadas de santidade de
incitar o estabelecimento de novos locais de culto – visto que eram percebidas no período
medieval como os próprios santos vivos – transforma as relíquias em mercadorias de luxo e
15 E. P. Thompson (1998[1971]) já havia utilizado tal noção anteriormente, ao discorrer sobre os conflitos,
ocorridos na Inglaterra do século XVIII, entre o tradicionalismo e a nova economia política que giravam em
torno das Leis dos Cereais. Segundo o autor, nas revoltas por ele estudadas, a multidão apelava a costumes e
normas morais que diziam como deveriam ser as relações recíprocas entre os homens; e que eram, por sua vez,
perpassadas mais por um senso de justiça do que por valores financeiros.
31
Com efeito, a necessidade de uma antropologia das imagens tem sido postulada no âmbito
do debate historiográfico em torno da iconografia religiosa e contrapõe-se aos procedimentos
analíticos consagrados pela História da Arte. Assim, para além da estética, produção, evolução e
estilo, estes autores conduzem suas reflexões em direção à função, aos usos, à recepção, enfim,
às interações com as imagens, de modo a explorar o potencial delas de produzir efeitos nas
pessoas em diferentes contextos e períodos. Em Semelhança e Presença: a história da imagem antes da
era da arte, Hans Belting (2010) afirma que o cunho religioso das imagens não é mais
autoevidente porque elas passaram por uma desvalorização ontológica mediante uma nova
estética que surge no fim do período medieval, quando há uma “crise da imagem” e seu valor
estético se torna muito maior que o religioso. Segundo esse autor, seria o início da “era da
arte”, quando então surgem as imagens “artísticas” executadas por alguém com conhecimento
das regras da arte e que contaria com relativa liberdade de criação, que o permitiria representar
o que tinha em mente, tornando presente uma ideia.
Jean Claude Schmitt (1996, 2007) propõe o uso do termo imagem, ao invés de arte, de forma
a salientar a amplitude de significados presentes na “cultura do imago” medieval, um repertório
complexo de concepções de mundo que inclui a arte, mas vai além dela, ao abarcar também as
imagens materiais desprovidas de qualidade artística (como os ex-votos e certas relíquias), além de
imagens mentais, sonhos, visões, descrições etc., das quais os homens não conservam senão os traços
fugidios, escritos ou figurativos e que muitas vezes se conectam de, alguma forma, com as imagens
materiais. Esse alargamento leva em conta a participação de valores estéticos no funcionamento de
coisas religiosas, mesmo antes da consolidação da atual acepção de "arte", mais ligada à visualidade e
abarcadora de uma matriz de relações sociais que começa a se delinear com o Renascimento.
Isto posto, podemos dizer que ao falar de uma “cultura visual” no medievo, Schmitt
dissolve a ideia do uso das imagens nesse período como unicamente ritualístico. Uma
antropologia das imagens contemporâneas que leve a bagagem gerada por essa complexificação
a sério precisa ter em conta que as obras em questão sempre, de algum modo, portaram
múltiplos sentidos e, portanto, uma análise linear no qual elas passariam de objetos de culto a
obras de arte é descabida. Em direção semelhante à proposição de Schimitt de dar relevo ao
“corpo das imagens” em si – em vez de tomá-las como símbolos que remetem a outras coisas –
Jerome Baschet (2006) propõe a noção de “imagem-objeto”. Por essa noção, o autor
problematiza tanto o caráter de objeto das imagens, quanto sua dimensão ornamental, tendo
em vista que esta sabidamente influi na eficácia da imagem enquanto sagrada.
*****
17 Conveniadoao CNRS – Ministère de la Culture. Fui supervisionada por Giordana Charuty, a partir da École Pratique
de Hautes Etudes (EPHE).
33
Por outro lado, nas sessões em que o foco das discussões era os objetos que povoam os
edifícios religiosos, houve grande interlocução com os dados que tive a oportunidade de apresentar
para meus colegas. Foi nesse contexto que minha pesquisa, até então pensada em torno da circulação
de objetos religiosos, tornou-se uma proposta de reflexão sobre a „peregrinação‟ das coisas. Por meio
dessa noção, passei a pensar os processos envolvidos nos deslocamentos de objetos outrora
envolvidos em relações de devoção como „ritos‟ que buscam instituir novos status para as coisas.
*****
18Capela do Museu Arts e Metiers, Basílica de Saint-Denis, Castelo de Angers, Museu de Arte e História do Judaísmo,
Catedral de Notre-Dame de Paris, Saint Chapelle, Instituto de Teologia Ortodoxa e Igreja Saint Serge, Oratório do
Louvre, Grande Mesquita de Paris, Museu Nacional de Artes Asiáticas Guimet e Sinagoga Buffault.
34
Apesar de ter enunciado que os significados de imagem são múltiplos e nem sempre
coincidentes, as que colocarei em evidência são principalmente aquelas que ganham corpo em
forma de escultura. A grafia do termo em itálico, a partir desse ponto da tese, sinaliza essa
mobilização específica dentre as várias possibilidades de materialização das divindades. O
acionamento dessas demais possibilidades será sinalizado.
Segundo Hans Belting, “na história pictórica de Cristo e dos santos, o retrato, ou imago,
sempre teve maior valor do que a imagem narrativa, ou história” (BELTING, 2010, p. 11, itálico
no original). A despeito dessa hierarquização, a iconografia de uma imagem tradicionalmente
inspira-se na hagiografia do santo, os escritos sobre sua trajetória. Esse tipo de fonte de
informação serve como modelo de vida virtuosa e pode se consubstanciar na forma de alguns
atributos, objetos simbólicos que, na imaginária, ajudam a identificar a invocação de um santo.
Os santos que triunfaram como mártires, por exemplo, costumam carregar uma palma, que se
configura, portanto, como um atributo coletivo. Os atributos pessoais relacionam-se a
episódios específicos da vida ou morte de um santo, como os instrumentos de seu martírio,
possibilitando sua identificação, ou seja, certos atributos individualizam, de forma a tornar
certas figuras inconfundíveis e outros associam grupos de santos: mártires, virgens etc.
As imagens também podem, por seu turno, “inspirar visões que serão em seguida
transmitidas pela hagiografia escrita, que por sua vez poderá suscitar novas imagens.”
(BOESCH-GAJANO, 2002, p. 461) O corpo do santo, nesse caso, é o ponto de partida de
uma [nova] tradição hagiográfica. Esse é o caso da imagem em terracota de Nossa Senhora da
Conceição encontrada em 1717 por pescadores em um rio no interior de São Paulo e que
após essa aparição se torna, em 1931, Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil.
Outra forma de imagem relevante neste trabalho, e que carece de uma introdução
preliminar, é o ex-voto. O termo ex-voto deriva-se da forma latina ex voto suscepto, que remete
a uma delimitação preliminar de algo ofertado em reconhecimento a uma promessa ou voto
realizado ou a uma graça recebida independente de pedido. Em outros trabalhos (GOMES,
2013; 2011) mostrei que os objetos votivos não se resumem a pagamentos endereçados aos
santos em troca de favores. Além de gratidão, eles também podem materializar pedidos, mas,
sobretudo, são corroborações do vínculo santo-devoto19.
*****
19O sentido do termo “voto” abordado na etnografia de Carlos Steil (1996) é pertinente para elucidar minha
argumentação: “Embora em várias situações o voto possa ser usado como sinônimo para promessa, foram
poucos os romeiros entrevistados que afirmavam estar pagando promessa. A maioria falava apenas que tinha
um voto para com o Bom Jesus. Ao que parece, na compreensão dos romeiros, a promessa si gnifica um
compromisso de curto prazo ou de uma dívida que pode ser paga, sustando o contrato. O voto, ao contrário,
tem a conotação de uma relação mais permanente que compromete o romeiro com o Bom Jesus por uma longa
duração de tempo. (STEIL, 1996, p. 100).
36
Essa tese foi estruturada em seis capítulos, além dessa introdução e de uma sessão
referente às considerações finais. No primeiro, intitulado Em busca de caçadores de imagens, abordo
os locais onde iniciei a realização da etnografia, nos quais fui confrontada a diferentes tipos de
imagens, formas de buscá-las e mostrá-las. Apresento os agentes com os quais travei contato e
mostro como em algumas interações também me relacionei com pessoas que seriam mais
„cuidadoras‟ do que „caçadoras‟ de imagens. Mostro como elas me possibilitaram entrever os limites
sobre quem pode ver e manipular os corpos dos santos, bem como a ênfase na importância do
“olhar treinado” no âmbito do relacionamento com as obras.
Seguindo essas pistas, no segundo capítulo – Olhos de santos e de quem os vê – explicito como
a necessidade de “ter olho” permeou a montagem de uma exposição de presépios. Em seguida,
discuto a relevância de diferentes tipos de olhar: o que a imagem lança em direção ao devoto,
decorrente de artifícios técnicos particulares; o que o colecionador e outros tipos de connaisseurs
lançam em direção às obras de arte e, como não poderia deixar de constar em uma tese de
Antropologia, tematizo a minha mirada e como ela foi reorientada a partir das interações no
campo. A partir do que qualifico de “Efeito Aleijadinho”, abordo como a atividade de identificação
e/ou atribuição de autoria é também uma experiência visionária na qual o observador de uma
imagem não é um espectador passivo de algo inerte.
No terceiro capítulo, chamado As mãos e as imagens, discorro sobre as manipulações das imagens
levadas a cabo tanto por colecionadores, quanto por devotos. As ações desses últimos, ao passo que
potencializam a condição das obras de presenças sagradas, podem ameaçar as características físicas
desejadas nos itens de coleção. As intervenções dos devotos nos santos incluem rituais que os
ratificam como coisas sagradas, gestos voltados à manutenção da integridade dos corpos das imagens e,
em alguns casos, sua mutilação deliberada. Por outro lado, mostro como a entrada de santos na
coleção também pode envolver a mediação de certos ritos levados a cabo pelos colecionadores.
O quarto capítulo foi nomeado „Prelúdio sobre a inventividade dos santos do sertão‟ por
abordar as imagens e outras criações regionais – como os tipos nordestinos ou as cenas da vida do povo –
principalmente em diálogo com o texto “Prelúdio do artista popular”, no qual Câmara Cascudo
(1974) institui a figura do imaginário como antecessor do santeiro e este do escultor popular.
Desse modo, argumento a respeito da participação de intelectuais – tais como os folcloristas – na
„nordestinização‟ do corpo dessas imagens e na consolidação da presença da escultura popular no
circuito oficial de arte. Apesar da autoria de tais obras abertamente derivar da relação dos
escultores com as pessoas interessadas em suas criações, evidencio o tabu em torno das
“encomendas” de peças consideradas estranhas ao universo de produção dos artistas, ou seja, que
não digam respeito ao Nordeste e seu âmago, o sertão.
37
No intuito de dar a ver As outras moradas dos milagres, no sexto e último capítulo me dedico
à trajetória de ex-votos específicos. A reconstituição da sua biografia permite elucidar a dimensão
de “coleta” que antecede a entrada de objetos no âmbito da coleção, lançando luz sobre suas
distintas formas de apropriação em locais de culto, ateliês/oficinas de artistas e outros locais nos
quais o fenômeno votivo irrompe. Trata-se de problematizar os gestos de coleta que levaram à
formação da coleção de milagres, bem como a tônica dessa formação, valendo-me especialmente das
situações em que os objetos mudam de mão. Por fim, apresento a Casa dos Milagres e busco explorar
como o processo de publicização de parte da coleção fomenta questões que vão além do evidente
aspecto de coroamento da carreira do colecionador.
38
Nessa parte inicial da tese apresento os locais onde iniciei a realização da etnografia, nos quais
fui confrontada a diferentes tipos de imagens, formas de buscá-las e mostrá-las. Como aventei na
introdução, comecei a pesquisa tendo em vista ‘caçadores de imagens’ como interlocutores típicos
ideais. Entretanto, durante o percurso que será descrito, estive envolvida em interações nas quais um
leque de ações que ultrapassa a procura pelas obras foi mobilizado, abarcando, por exemplo, a
dimensão do cuidado. Exploro como fui me enredando no campo por meio de categorias,
personagens, narrativas e segredos. Por fim, tematizo como essas searas me fizeram tanto entrever a
importância do olhar no âmbito do relacionamento com as obras, quanto a reiterada demarcação de
limites por meio dos quais se tenta estabelecer quem pode acessá-las, vê-las e tocá-las.
1.1 SANTOS-SOUVENIR
Cheguei a Natal alguns dias antes da data que eu e Antônio Marques havíamos acertado para uma
conversa. Aproveitei para conhecer o Centro de Turismo (CT), onde a galeria do curador ficava
abrigada. O CT funciona desde 1976 em uma construção do século XIX que já funcionou como
abrigo de mendigos, orfanato e cadeia pública. De modo geral, no andar térreo, cada loja ocupa
uma antiga cela da prisão, como se fosse um box de “shopping de artesanato”, que é como são
chamados os estabelecimentos da cidade que agregam comércios variados de “produtos regionais”.
Nessa direção, encontramos nas cerca de quarenta lojas do CT, comidas típicas, garrafinhas de
vidro transparente com desenhos feitos de areia colorida, peças em tecido bordadas e com
aplicações de rendas, bolsas de palha, camisetas estampadas com nomes e imagens das praias da
região, bijuterias e diversas mercadorias facilmente encontradas em outras regiões turísticas do
litoral brasileiro: de imãs de geladeira a porta-retratos feitos com conchas.
Enquanto souvenirs vendidos naquele Centro de Turismo, por seu turno, as imagens, mais do
que um santo e um santuário geograficamente localizado em um local específico, fazem lembrar
toda uma região e o fato dela ser fortemente vinculada a devoções. Interessante notar como estas
conjugam no presente, santos que viveram em tempos e espaços distintos20 a ponto de torná-los
mercadorias que coabitam o mesmo expositor em uma loja. Tendo em vista que a “geografia
religiosa” do Brasil comporta “vários centros” 21, estar em Natal e no Rio Grande do Norte é estar
sob o “raio de atuação” de santos representativos das devoções locais. O produto comprado para
emblematizar a estada em terras potiguares, desta feita, pode ser um santo-souvenir. Assim, a presença
de diversas imagens nas prateleiras indica que a forma material de certas divindades também é
potente para conectar pessoas não só a seres sagrados, mas também a lugares22.
20 São Francisco (*Assis, Itália, 1183 † Assis, Itália, 1226) e Padre Cícero (*Crato, CE, Brasil, 1844 † Juazeiro, 1934).
21 Essa ideia é desenvolvida por Fernandes (1988) ao afirmar que o culto à padroeira do Brasil, Nossa Senhora
Aparecida, só pode ser tomado como “devoção principal” no âmbito do Centro-Sul do Brasil: “devotos baianos
voltam-se em primeiro lugar para Bom Jesus da Lapa, N. Sra. da Conceição da Praia ou o Senhor do Bonfim. A
imagem controvertida do Pe. Cícero ainda domina no Nordeste. N. Sra. de Nazaré, em Belém do Pará, centraliza as
atenções do Norte.” (FERNANDES, 1988, p. 88).
22 Stewart (1984) aborda o souvenir como exteriorização material de experiências realizadas fora do contexto familiar, como
viagens, por exemplo. Para a ensaísta, certos objetos se revestem do poder mágico de evocar suas “cenas de origem”.
40
de Jesus. Além dos reis citados acima, participam da cena de adoração ao Menino-Deus bebê na
manjedoura, seus pais José e Maria e, muito frequentemente, os animais que testemunharam a
passagem bíblica da natividade em um estábulo.
A forte impressão de produção em série que tive a respeito dos santos e outros souvenirs
das lojas de artesanato do térreo se desvaneceu ao subir o lance de escadas que leva ao 1º andar,
onde ficava a ampla Galeria de Artes Antigas e Contemporâneas. Ao se voltar para o salão, o visitante
depara-se com janelas ao fundo que oferecem uma bela vista para o mar e para o rio Potengi e,
diante destas, balcões, vitrines e outros suportes sobre os quais eram expostos livros, antiguidades,
quadros e outras coisas de natureza diversa, mas certamente os objetos religiosos – crucifixos,
imagens de santos, ex-votos etc. – figuravam não só em maior número, como também com maior
destaque na configuração espacial do local.
Logo após chegar à Galeria me deparei com uma estrutura expositiva constituída por
uma cavidade na parede protegida por um vidro, cujo interior contava com iluminação
própria que recaía sobre diferentes objetos. Alguns deles remetiam aos elementos
relacionados à cidade de Natal e explicitados anteriormente, como um quadro com paisagem
litorânea e um conjunto de Reis Magos esculpidos em madeira, que estavam acompanhados
de outros que destoavam dos que eu já tinha visto até então no CT: uma escultura em forma
de pássaro, uma imagem de Santo Expedito, uma de Santa Luzia (faltando uma das mãos) e
um vaso de porcelana branca pintado com motivos florais. Os objetos pareciam ser antigos e
singulares, pois não se repetiam e estavam linearmente expostos de modo a fazer o olhar do
visitante pousar neles, uma vez que não havia outros ao seu redor.
Outra estrutura expositiva que ressaltava a distinção das mercadorias da galeria em relação
às das lojas de artesanato eram armários ao estilo “cristaleira”, feitos de madeira, com prateleiras
e portas de vidro e fundo recoberto com espelho, ao contrário do expositor descrito acima,
nesses móveis, a quantidade de santos era maior. As imagens eram diferentes em suas formas,
mas semelhantes em termos iconográficos, havia, por exemplo, uma prateleira só com São
Sebastiões e quando me defrontei com ela a impressão primeira foi de que eu estivesse diante de
um exército composto por diferentes imagens do santo ferido com flechas e amarrado a uma
árvore. Para que uma delas fosse tocada, era preciso destrancar o móvel onde estavam expostas.
As imagens de santo maiores eram protegidas por redomas e algumas eram exibidas em
prateleiras e pedestais que não ofereciam qualquer barreira entre elas e os visitantes. Crucifixos e
quadros estavam expostos ao longo e rente às paredes. Certos santos grandes, vistosos e
coloridos, contendo detalhes dourados, contrastavam com peças em madeira presentes em alguns
nichos. O fato dessas últimas não serem pintadas me fez associá-las brevemente a alguns dos
santos-souvenirs, por também apresentarem a matéria-prima não recoberta de tinta.
Entretanto, ao chegar mais perto era possível ver que esses santos eram mais elaborados:
as vestes davam ideia de movimento, as formas eram sinuosas, sendo que as imagens compradas
nos locais que vendem lembrancinhas eram mais rígidas, ‘quadradas’. Como não havia anteparo
que me impedisse de tocar esses santos, levantei um deles e vi uma pequena etiqueta indicando
quanto custavam: R$ 600,00, já um santo de porte similar, comercializado enquanto souvenir,
poderia ser comprado por R$ 50,00.
42
Ao lado do nicho dedicado às peças de madeira ‘nua’ havia uma estante cujas prateleiras
superiores continham diversos ex-votos. Com exceção da representação de uma garrafa de
cerveja feita em barro e de um pequeno quadro com uma figura feminina, as peças em madeira
reproduziam o formato de partes do corpo humano, algumas delas com feridas: cabeças, seios,
pés, pernas, coração, mão. Como pode ser visto na foto abaixo, em uma mão de madeira era
possível ver uma etiqueta adesiva contendo numeração da peça e preço: R$ 35,00.
Os ex-votos não pareciam novos e sem uso, como os santos do nicho descrito acima e os
dizeres do pequeno quadro, inclusive, apontavam para local, motivação e ano da oferta: “Cruz da
Menina - PB/Graça Alcançada/2009”.
Essas peças anunciadas sob o apelo de uma “promoção” não apresentavam indicações de
quanto custavam. Já outras da Galeria continham discretas etiquetas com preço. Nas proximidades
de algumas havia um código. Dessa forma, para saber o valor da maioria das obras, era necessário
consultar o funcionário do estabelecimento, que por sua vez se valia de um catálogo. O
procedimento era muito diferente daquele das lojas de artesanato, pois em algumas delas o preço
evidente era um chamariz para o turista que passeava pelo local. No caso da galeria, o conhecido
44
artifício de comerciantes de não evidenciar o valor de coisas caras para não espantar os potenciais
clientes cujos olhares foram capturados, se reveste de esforço de esfumaçar a própria condição de
mercadoria daquilo que é vendido e exposto, antes de tudo, como obra de arte23.
No famoso texto de Benjamin (1987), A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica, ele
aborda como a arte laica não se destaca completamente do culto mágico e religioso. Apesar disso,
a reprodutibilidade é sempre uma ameaça de perda de “aura”, pois envolve o risco da perda do
caráter de “aparição”, de “ocorrência única” característico das coisas rituais. Nessa perspectiva, as
coisas autênticas e únicas têm “valor de culto”, ao passo que aquelas não tão singulares possuem
“valor de exposição”. Essa conceituação é interessante para pensar algo que está sendo oferecido
como mercadoria, mas que não pode ser exatamente mensurado em termos de valor de uso e ou
de troca (MARX, 1988), uma vez que há uma separação (mesmo que temporária) da esfera da
utilidade e não se mede uma força-trabalho.
23Comecei a notar tal prática ao observar uma exposição no Aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro (antes do meu
embarque para a viagem de campo em tela). Logo após a escada rolante que leva ao segundo andar, no hall através do qual se
chega ao embarque, me deparei com um conjunto de imagens de santos variadas. Tratava-se de um panteão esculpido por
“santeiros de Pernambuco”, exposto por uma loja de arte popular que funciona no local. Como ressaltei em relatório de
pesquisa, a presença de um livro de assinaturas, a denominação da forma de mostrar como “exposição” e a ausência de preço
nas peças ressaltavam a condição dos santos enquanto obra de arte e pouco dizia sobre o caráter de mercadoria deles.
45
*****
Dias depois do primeiro contato não mediado com a Galeria, me encontrei com seu
proprietário. Se a tônica da minha primeira ida ao local foi de passeio e distração, na conversa
com Antônio Marques, que se iniciou enquanto nos deslocávamos para o CT, fui orientada a
me concentrar em aspectos específicos, com sugestões do tipo “Isso é importante você tomar
nota” ou “preste atenção naquilo”. Conversamos na companhia de inúmeros exemplares de São
Sebastião, Nossa Senhora da Conceição, Santa Luzia, São Benedito, São Miguel Arcanjo e
outros santos que agora posso mencionar pelos seus respectivos nomes porque foram
apresentados a mim por Antônio.
Aí aqui vêm todos esses santos pequenininhos, muitas vezes, a pessoa anda com esse
dentro do bolso. Esse é um Santo Onofre, que aqui é muito cultuado, porque...
dizem, ele anda com isso aqui, é um saquinho, cheio de farinha, quem tem ele em
casa não falta farinha. Mas essa não é a verdade. Ou melhor, é uma versão. A verdade
dele mesmo é que ele é um santo que leva um oratoriozinho aqui e sai de casa em
casa pedindo ajuda para um santo. E a ajuda vai botando dentro do saco. Isso é um
santo de esmolar. Mas o povo não interpreta assim.
[Essa imagem] É Nossa Senhora da Conceição. É outra coisa, você anote isso aí, você
precisa ver a santa e saber. Nossa Senhora da Conceição sempre é representada com
anjos e de mão posta. Isso aqui são louros e isso aqui não são chifres, são luas. É a lua e
ela está subindo ao céu levada por esses anjinhos. Isso também é fundamental, não
adianta você fazer um estudo de santo sem você saber quem é Nossa Senhora da
Conceição, do Carmo, das Dores. Tem que saber e é ótimo saber isso. Você vai fazer
uma viagem. Vem ver logo aqui uma das Dores.
A “viagem” pela iconografia dos santos, quando guiada pelo galerista, nos leva ao
encontro de Santo Onofre, que é um santo que esmolava e, numa “versão” alternativa, é utilizado
para não faltar comida em casa. Nossa Senhora da Conceição tem anjos e um crescente lunar sob
os pés, mas a lua que leva a santa ao céu é popularmente chamada de chifres ou ainda cornos do
diabo. Um mesmo atributo, como fui levada a perceber, pode ter um significado de acordo com a
ortodoxia católica e outro segundo a interpretação popular. Entretanto, é importante considerar
que ambas as leituras caracterizam invocações específicas.
A iconografia de Maria varia ao longo das fases de sua vida. Nessa direção, a mãe de Jesus
pode ganhar corpo em uma imagem sendo elevada aos céus por anjos e pela lua ou tendo o
corpo dilacerado pelas dores causadas pelo sacrifício de seu filho, que ganham a forma de estrelas
em sua coroa ou espadas que lhe traspassam o coração. Não bastassem as diversas possibilidades
de representações da carga dramática da invocação em questão, eu deveria ver estilo, região de
produção, trabalho fino de pintura...
Essa santa é provavelmente baiana, eu também conheço pelo estilo, pela maneira de
pintar, pelo pedestal, você vê que ela não é pernambucana e nem mineira.
Ele tinha algum adorno na cabeça, mas certamente perdeu-se quando eu consegui,
mas isso não quer dizer que eu não arranje um outro, porque esses adornos
viajam muito. Uma pessoa chega, tira, vende, coloca outro, manda derreter
porque é ouro, então é muito difícil você encontrar... Só quando você encontra em
uma capela, que é muito conservada, que a dona tinha muito zelo, aí você encontra
tudo. O menino [Jesus] também viaja muito, esse aqui é dele, mas é muito raro
o menino do santo. Ele é solto, fácil de levar, aí as pessoas levam até porque existe
uma tradição de, se você é solteira e leva um menino desse, você diz “olha, eu lhe
devolvo, quando você me casar”. (grifos meus)
Como se pode perceber nos trechos acima, por cada imagem que passávamos, o
volume de informações era imenso. O galerista não só identificava o santo, mas também as
técnicas utilizadas em sua fabricação, os atributos presentes e os ausentes (devido à perda,
furto, quebra, degradação) e a possível origem da peça e de seus donos. Não foi simples
acompanhá-lo, tentando abstrair aspectos específicos – como um rosto de traços europeus ou
nordestinos – face ao intricado mosaico de elementos que acompanhava cada santo. A
informação sobre a procedência também implicava numa série de elementos, pois as imagens
não vinham de um único fornecedor.
Já as imagens de fatura mais recente, as peças em madeira ‘nua’ que descrevi acima, eram
buscadas diretamente nos ateliês de “artistas da terra”. Em vista disso, não tinham sido expostas e
utilizadas para fins devocionais antes de serem mostradas como uma obra à venda. Diferenciavam-
se dos santos antigos pela ausência de policromia, ou melhor, os ‘santos novos’ não eram pintados e
sua aparência mais exterior de madeira ‘ao natural’ lhes conferia um aspecto rústico.
47
Porém, na galeria também havia santos fornecidos diretamente por artistas, ou seja, ‘santos-
novos’, que, no entanto, diferenciavam-se dos acima descritos por serem policromados, revestidos
com folhas de ouro e possuírem formas eruditas, ou seja, não eram santos usados, mas foram
produzidos “ao estilo antigo”, inspirados nas técnicas de fabricação e no estilo barroco24.
Eu acho ridículo você dar a um santeiro um retrato de imagem pra ele reproduzir e
tem muito estudioso que não assume, mas faz isso com frequência, encomenda
santos totalmente europeus. Além de ficar parecendo uma fábrica, com aquele monte
de peça parecida, enquanto que um artista bom não faz uma peça igual à outra.
24 Eu já havia observado exemplares de santos novos produzidos segundo estilo e técnicas “do passado” na
Outro fator que estaria levando à serialização das imagens, algo descrito como um
“crime”, “uma coisa absolutamente grave” foi a implantação de “esboçadeiras”, as “máquinas
de fazer santos”. Trata-se de equipamentos industriais que foram levados ao Nordeste
(especialmente para Pernambuco) por meio de projetos de incentivo à produção de
“artesanato”. Os santos são produzidos mais rapidamente e têm menor custo, mas não
alcançam o nível de detalhamento do trabalho artístico realizado apenas pelo escultor com
auxílio de algumas ferramentas básicas. De acordo com o galerista, os artistas que optaram
por incluir as máquinas em suas rotinas de trabalho ficaram com sua produção “encalhada”,
pois as peças resultantes são seriais e “não têm beleza”.
O galerista afirmou ter alguns poucos exemplares desses santos e os utiliza como uma
espécie de ‘grupo de controle’. Assim, quando um potencial cliente reclama do preço de uma
obra singular esculpida sem o auxílio da máquina – como uma peça de R$ 6.500,00 que estava
exposta na galeria – Antônio mostra a que poderia vender mais barato, mas tem qualidade tão
inferior que ele prefere não comercializar.
A conversa com o galerista foi importante para travar contato não só com suas
atividades como marchand/comerciante, mas para entender porque tomei conhecimento da
sua existência enquanto “curador”. Antônio também se apresenta como professor e estudioso
de arte, inclusive em suas dimensões litúrgicas e socioantropológicas26. Foi, portanto, na
singular posição de potencial interlocutor e de colega antecessor, que ele afirmou que minhas
questões acerca da circulação de imagens de santos e outros objetos religiosos poderiam ser
respondidas através do percurso de dois caminhos distintos:
Você colocou a questão de visita a museus. É muito bom que você visite e conheça os
museus. Mas, o que você vai encontrar no museu? Você vai encontrar uma arte, arte
sacra, evidentemente, mas aquela absolutamente oficial, aquela consagrada, aquela que
foi feita com essa intenção de ser sacra e religiosa. E isso faz, já é uma dica que eu estou
lhe dando, com que essa peça dificilmente seja assinada, porque o artista não tem
necessidade de dizer: “essa peça é minha”. Então ele fazia aquela peça... o Aleijadinho,
não me consta que ele tenha assinado peça. Se sabe que é dele por uma documentação
externa à própria peça. O que é que faz que a gente reconheça uma peça de
Aleijadinho? O estilo. Porque o Aleijadinho não estava construindo a obra dele, o
trabalho dele como hoje se tem essa concepção. Você não vai publicar sua tese sem ter
seu nome, porque você está construindo seu trabalho. Mas se você tivesse fazendo e
fosse uma beata, uma religiosa da igreja, há 300 anos atrás, seu nome estava eliminado, o
que contava era o conteúdo de sua obra. O Aleijadinho, como ele tinha contrato pra
fazer aquilo, talvez ele seja dos únicos que tem a documentação que possa dizer, porque
ele teve um contrato “santo tal, para igreja tal, Nossa Senhora do Carmo”. Então essas
peças de museus, até agora que eu sei, de museus brasileiros, você só vai encontrar peça
do que se chamaria arte religiosa, mas uma arte mais para erudita, ou pelo menos arte
oficial. Então isso é um campo que eu acho que já foi muito estudado, não sei se vale a
pena você ir por aí, por que como é que você vai fazer uma tese hoje sobre Aleijadinho?
É possível fazer? É, mas já tem tanta tese sobre o Aleijadinho que se você quer explorar
um campo novo... A não ser que você pegue uma imagem dele, duas, três e vá dissecar
até a alma da estátua. Talvez seria até interessante. Mas já tem estudos. […] O que as
pessoas têm que distinguir muito claramente é que o Brasil sempre foi um país grande,
onde as igrejas se situam nas grandes cidades, mas também nas fazendas, nos sítios...
No interior, sem igrejas, como é que era? Era fazenda, era a pequena capelinha. Tem a
vertente oficial. Esse é um caminho. Não adianta você juntar os dois caminhos. Outro
caminho é o caminho da espontaneidade, da religião do povo, daquela que reflete a
religião oficial, mas na minha capela eu vou botar o santo que eu quero botar, eu vou ter
meu oratório, com meu padroeiro, com o tamanho do meu dinheiro. Se eu tiver muito
dinheiro eu posso até fazer uma capela grande, mas é muito difícil ela ficar como a
oficial... Então é aí que vem a tradição popular.
Realizar trabalho de campo em museus de arte sacra, de acordo com o galerista, seria
trilhar uma seara já percorrida e insistir em um objeto pré-construído. Por outro lado, ao me
enveredar pelo “caminho da espontaneidade” sugerido, eu não poderia arrefecer minha
inquietação acerca do prazer secreto e proibido envolvido na convivência, na intimidade do lar,
entre colecionadores e santos que outrora figuraram em altares de igrejas. Uma vez que as
imagens comercializadas e colecionadas por Antônio, segundo ele, já foram produzidas para
oratórios domésticos ou capelas de fazendas – pequenas igrejas de natureza particular – ele não
poderia ser visto como alguém que realiza as transações que me instigavam.
[o culto] Não é de todo privado, porque ele recebe uma orientação. Isso aí você tem que
estudar bem, como é que se dá esse culto super controlado e esse culto mais... […] você
sabe que entre o cristianismo oficial e a prática há uma possibilidade de desvio, vamos
dizer... até aceitável. Porque a igreja não vai... nesse caso a Igreja até incentiva, oratório
doméstico. Ela não vai lá, hoje fazer casamento é proibido, fazer missa é proibido, mas
ela aceita que o dono da fazenda faça uma novena, uma oração, um terço, uma festa...
aqui, certamente em Minas é igual, por exemplo, tinha o Antônio, o dono do sítio, então
o protetor era Sto. Antônio, era a imagem que não falta. É a imagem do dono da
fazenda. Ou lá na capela tem o quê? Tem o Cristo, porque Cristo é absoluto, é Deus e
não pode faltar. A mãe de Cristo também não pode faltar. Então, no mínimo, três
imagens, você vai encontrar um oratoriozinho daquele, um Cristo no meio e dois santos
ao lado. Já teve muito essa tradição, que botava muito uma manjedoura abaixo. Aqui
tudo é culto doméstico, olha os oratoriozinhos. Não é culto da igreja, oficial.
“O patrimônio” não traz problemas a Antônio porque as coisas que lhe interessam como
obras de arte não são consideradas preciosas ou dignas de proteção pelo Estado e, por
conseguinte, ficam de fora do horizonte de visão onde o IPHAN “está de olho”. A ação mais
efetiva do órgão em certos locais não incide apenas nas “peças de igreja” patrimonializadas, mas
também como fator que reforça a corrida por coisas diversas – incluindo as “imagens pequenas”
e “antiguidades” – nos lugares tradicionalmente entendidos como “históricos”. Nesse sentido,
apesar de em Minas Gerais as imagens também participarem de cultos – mais ou menos “oficiais”
– elas já não se encontram mais lá:
Então tudo isso que eu lhe apresentei aqui é do culto doméstico, em geral, do Nordeste.
Eu não vou ao Rio, eu não vou a Minas, até porque se eu for a Minas, e as vezes que eu
fui, eu não encontrei nada. Em Minas não tem mais antiguidade. Em Ouro Preto você
não encontra nem uma mão de um santo pra vender. Já foi tão procurado... Aí o povo
pensa assim, quem começa a estudar agora “é em Minas que tem a tradição”. Minas não
tem mais nada. Vendo mineiros aqui, porque me compram e dizem: “vou dizer que é de
Minas”, mas quem sabe, sabe que é daqui.
Pernambuco também não tem tanto santo, porque também tem uma construção de
uma identidade [como cidade histórica]. Natal é tão velha quanto Recife, Recife deve ter
uns 10 ou 15 anos a mais, mas nós aqui não temos aquele glamour de patrimônio, não foi
construído, não tivemos intelectuais para fazer isso, até perdemos muita coisa, templos
maravilhosos caíram... E essa arte dos santeiros eu consigo muito mais por aqui do que
outro lugar.
De acordo com o que também já sinalizei, o colecionador e comerciante de arte lida ainda
com imagens produzidas mais recentemente, por isso, ele sugeriu que eu visitasse a santeira Luzia
Dantas, de Currais Novos, cidade “lá da boca do sertão”. Seria oportuno que eu não deixasse a
ida até a artista para uma outra ocasião em que estivesse no RN, pois poderia perder a
oportunidade de vê-la ainda em atividade. Segui a recomendação e para tanto me vali de uma
ligação de Antônio para a santeira solicitando que ela me recebesse27. Antônio também indicou
que no Museu Câmara Cascudo (MCC/UFRN), eu encontraria algumas obras da artista, mas de
uma outra fase de sua carreira, em que as peças não eram tão aprimoradas. Também segui essa
recomendação, como será visto abaixo.
Não deixei de visitar os museus que estavam em meu roteiro, inclusive outros foram
acrescentados à listagem que eu havia preparado. Contudo, notadamente, eu tinha sido enredada
pelo “olho treinado” de Antônio Marques ou, nas palavras de Benjamin (2006), eu estaria sob o
efeito de uma organização mágica dos objetos:
Pois é preciso saber: para o colecionador, o mundo está presente em cada um de seus
objetos e, ademais, de modo organizado. Organizado, porém, segundo um arranjo
surpreendente, incompreensível para uma mente profana. Este arranjo está para o
ordenamento e a esquematização comum das coisas mais ou menos como a ordem
num dicionário está para uma ordem natural. Basta que nos lembremos quão
importante é para cada colecionador não só o seu objeto, mas também todo o passado
deste, tanto aquele que faz parte de sua gênese e qualificação objetiva, quanto os
detalhes de usa história aparentemente exterior: proprietários anteriores, preço de
aquisição, valor etc. Tudo isso, os dados “objetivos”, assim como os outros, forma para
o autêntico colecionador em relação a cada uma de suas possessões uma completa
enciclopédia mágica, uma ordem no mundo, cujo esboço é o destino de seu objeto. […]
Basta que acompanhemos um colecionador que manuseia os objetos de sua vitrine. Mal
segura-os nas mãos, parece estar inspirado por eles, parece olhar através deles para o
longe, como um mago. (BENJAMIN, 2006, p. 241, grifo no original).
De fato, dado que me alertaram que colecionadores não gostam de falar sobre o que têm, foi
impactante conversar com quem tinha tanto a dizer – inclusive apontando para um complexo jogo de
acusações – e além do mais conjuga diversas formas de apresentação de si (“comerciante/marchand”,
“professor”, “estudioso”, “colecionador” etc.). As visitas aos museus que fiz após a referida conversa
em muito foram norteadas por diversas coordenadas que Antônio me apresentou. Os objetos que
capturaram minha atenção nessas instituições, nesse sentido, constituíram-se nós prévios de uma rede
armada a partir da Galeria de Artes Antigas e Contemporâneas. Desse modo, ao invés de descrições
exaustivas dos locais que percorri, opto deliberadamente por dar a ver as imagens e indicações sobre
elas e que fui entrelaçando à referida rede durante meu percurso.
1.3 SANTOS-ACERVO
Ao contar do meu interesse em objetos religiosos, fui direcionada para parte das
“madeiras”, onde fui apresentada a algumas “peças eruditas de origem portuguesa do período
barroco” e a uma grande quantidade de santos e ex-votos, descrita como “a produção de arte
sacra dos artistas locais do RN”. “Perguntei-lhe se essa classificação, “arte sacra”, era uma
forma de organizar as peças e ela afirmou que sim: “– E o sacro é junto, o erudito e o
popular, apesar da maioria dos santos ser popular.” 29. As imagens de santos são maioria, mas
também observei alguns crucifixos, presépios e alguns poucos objetos litúrgicos, como
alfaias. A coleção de arte sacra contém 195 peças.
A funcionária destacou algumas imagens feitas por nomes conhecidos no RN, como
Xico Santeiro, Luzia e sua irmã Ana Dantas. A produção desses artistas não se resume a
santos, outras peças, como aquelas que retratam “tipos nordestinos” – em vaquejadas ou
trabalhando em casas de farinha, por exemplo – são classificadas como “arte popular” 30,
categoria que também inclui os ex-votos, apesar destes não serem relacionados a autorias
específicas. Há uma grande quantidade deles no local.
28As atividades do IA/UFRN, que em 1973 se torna MCC, eram divididas em três departamentos: Antropologia
Física, sob a responsabilidade de José Nunes Cabral de Carvalho; Etnografia Geral, sob o comando de Luís da
Câmara Cascudo, com o apoio de Veríssimo de Melo na direção da Seção de Folclore; e Genética, conduzido pelo
professor Monsenhor Nivaldo Monte.
29 Além das coleções de Arte Sacra e Arte Popular, já mencionadas, o acervo de Etnologia compreende: Arte Indígena,
Arte Africana e Afro-Brasileira, Ciclo da Cana-de-açúcar, Ciclo do Couro, Renda de Bilro, Arte Pesqueira, Renda de
Agulha e Bordados.
30 A coleção de arte popular é dividida em 10 subcoleções: cerâmica lúdica, escultura em cerâmica, cerâmica utilitária,
garrafas de areia, escultura de madeira, escultura de materiais diversos, ex-votos, brinquedos populares, teatro de
bonecos, utilitários em fibra.
54
Jailma foi abrindo portas e gavetas e dizendo “ex-votos, ex-votos, ex-votos... é ex-voto que
não acaba mais...”. A maioria constitui-se daqueles comumente chamados de “ex-votos anatômicos”,
cuja organização remete às partes do corpo humano que evocam, há gavetas e prateleiras apenas com
cabeças e outras estruturas, em menor número, guardam pés, pernas, braços, mãos, corações etc.. No
tocante ao material, há exemplares em gesso e cerâmica, mas as peças esculpidas em madeira
predominam. A coleção de ex-votos tem 332 peças, das quais 209 são cabeças.
Posto que o espaço expositivo do museu estava em reforma, todo o acervo foi
concentrado na reserva técnica e isso significou lidar com as peças no lugar em que elas são
acondicionadas, não necessariamente para ficarem visíveis31, mas principalmente tendo em vista
seu armazenamento seguro. Nessa lógica, a garantia permanente da integridade das obras é
fundamental para que elas possam ficar disponíveis para pesquisa ou práticas museológicas e, por
isso, fui solicitada a calçar luvas para o caso de querer tocar alguma peça.
A visita aos santos e ex-votos na reserva técnica foi importante para ter contato com um
ambiente onde o toque não é interditado, mas controlado. Também foi diferente lidar com santos
‘deitados’ – sobre plástico bolha ou isopor – em gavetas e prateleiras, já que eu estava habituada a
encontrá-los de pé, apoiados sobre sua base (também chamada de peanha), expostos em altares e, mais
recentemente, expositores de galerias e museus ou vitrines comerciais. Manipulá-los, nesse sentido, foi
experimentar brevemente a sugestão de Lévi-Strauss (1989 [1954]) acerca do aprendizado sensível ao
qual o etnólogo pode se submeter nos museus de Antropologia, entendidos pelo autor como um
31 A condição de estar ao alcance dos olhos é uma das que constituem a célebre definição de coleção cunhada pelo
historiador e ensaísta polonês Krzysztof Pomian (1987): “todo conjunto de objetos naturais ou artificiais, mantidos
temporariamente ou definitivamente fora do circuito de atividades econômicas, submetido a uma proteção especial em
um lugar fechado, mantido com este propósito, e exposto ao olhar.” (POMIAN, 1987, p. 18, grifo meu).
55
importante prolongamento do campo32. Após minha visita ao MCC, ficou evidente o quanto o museu
seria um excelente campo em si. Nesses termos, a Reserva Técnica é um local precioso, ao passo que
permite certos manuseamentos interditados aos espectadores de espaços expositivos.
Em linhas gerais, as publicações não abordam apenas a obra, mas também a vida que quem
as produziu, ou seja, para o MCC, atualmente, aqueles objetos importam enquanto obras de
artistas populares singulares, mas quando chegaram ao museu não eram investidas dessa
32Nas palavras do autor, “De fato, o contato com os objetos, a humildade inculcada aos museógrafos por todas as
pequenas tarefas que estão na base de sua profissão – como a desembalagem, a limpeza, a manutenção – o profundo
senso do concreto desenvolvido por esse trabalho de classificação, identificação e análise das peças de coleção, a
comunicação com o meio indígena, estabelecida indiretamente por intermédio de instrumentos que é preciso saber
manejar para conhecer, e que possuem, além disso, uma textura, uma forma, muitas vezes até um cheiro, cuja
apreensão sensível, milhares de vezes repetida, cria uma familiaridade inconsciente com modos de vida e de atividade
remotos, e, por fim, o respeito pela diversidade das manifestações do gênio humano, que fatalmente resulta de tantos
e incessantes testes para o gosto, a inteligência e o saber, a que os objetos aparentemente os mais insignificantes
submetem todos os dias os museógrafos, tudo isso constitui uma experiência de uma riqueza e de uma densidade que
não devem jamais ser subestimadas.” (LÉVI-STRAUSS, 1989 [1954], p. 400).
56
significação. Logo, hoje uma das tarefas dos funcionários é criar novas narrativas para relacionar
as criações a artistas específicos e não tão somente ao doador (ou vendedor) colecionador. Além
de artísticas, as obras em questão são, nesse sentido, testemunhos de mudanças de perspectiva
dos múltiplos olhares que podem ensejar. Ademais, apesar de constituírem parte significativa do
acervo de um museu atrelado em sua origem à pesquisa e coleta, são representativas dos objetos
que movimentam a modalidade mais frequente na constituição do acervo dos museus de arte
brasileiros: a doação (OLIVEIRA, 2014).
Os atuais funcionários do museu precisam estar atentos a tais informações textuais e outras
pistas que permitam inferências sobre a trajetória dos objetos, uma vez que a assimilação de peças ao
acervo nem sempre se fez acompanhada de atividades de pesquisa subsequentes à entrada na coleção.
Ao se deparar com a fotografia abaixo, de ex-votos da capela de Nossa Senhora dos Impossíveis,
Jailma percebeu que a maior das figuras havia sido integrada ao acervo do MCC, porém
desmembrada em braços, pernas e cabeça. Quem teria desmontado a peça única? E por quais razões?
Tal informação só poderia ser dada por quem a coletou, ouviu sobre ou testemunhou o
gesto. A empreitada de substituir informações vagas ou mesmo de suprir a ausência de registros,
como se vê, se vale de artifícios tais como o confronto com fotografias e outros documentos
institucionais. Inferências sobre autoria, por sua vez, frequentemente são feitas com o auxílio de
57
pessoas externas ao MCC, dentre elas, Jailma citou o professor Antônio Marques, salientando o
quanto ele tem não apenas tato, mas principalmente o “olho” essencial para auxiliar o museu a
preencher as fichas dos objetos: “– É impressionante, ele bate o olho e diz: – essa Santa Luzia é
um Xico Santeiro, esse ex-voto é de Ana Dantas”.
Ao saber da receptividade de Antônio à minha pesquisa, Jailma sublinhou que ele seria um
excelente interlocutor para saber mais sobre a circulação de objetos religiosos. A historiadora
afirmou que o acervo do colecionador é infinitamente maior que o do MCC e relatou já tê-lo
consultado não só a respeito da autoria das peças, mas também sobre onde localizar artistas e/ou
seus familiares; acerca ainda da pertinência de certas aquisições para o MCC e que ele, por seu
turno, encaminhou para a instituição ofertas de coisas que lhe foram feitas e não lhes
interessavam, mas que acreditava serem pertinentes ao acervo do museu33.
Jailma tanto deixou claro o grande potencial de pesquisa no MCC, quanto incentivou o
estudo junto a Antônio Marques, pois nesse caso eu poderia acompanhar in loco a busca pelos
objetos, a empreitada de ‘caça’ que tanto me inquietava. Se eu optasse pela pesquisa na
instituição, teria que lidar com as lacunas. A historiadora disse que em Natal eu ainda
encontraria os objetos que me interessavam no Museu de Arte Sacra (MAS/RN), no Museu de
Arte Popular e no Memorial Câmara Cascudo, entretanto, ressaltou: “– As imagens que você
vai encontrar são essas mesmo, esses são os nossos santeiros.”
33 Como, por exemplo, objetos provenientes de um terreiro que havia sido desativado. O colecionador ficou com
alguns e sugeriu que a pessoa que estava ofertando-os procurasse o MCC.
34 * Natal, RN, 1898 † Natal, RN, 1986.
35A atuação efetiva de Cascudo na instituição não chegou a um ano. O então diretor do IA renunciou ao cargo em
1961 alegando não conseguir acompanhar o ritmo das atividades: "enquanto eu caminho de carro de boi, vocês voam
de avião a jato." (SANTOS, 2010, p. 36).
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Foi Daliana Cascudo, sua neta, que traduziu para mim os dizeres em questão: “Encontrei
meu porto. Esperança e fortuna, adeus. Muito me iludistes. Ide iludir outros agora.” O recurso ao
latim também é utilizado no nome do instituto e está presente em sua logomarca, espécie de
brasão composto ainda pela figura de um peixe cascudo36. De acordo com Daliana, a inspiração
para a nominação do instituto foi o episódio narrado pelo avô sobre seu batismo, no qual o padre
que o realizou pronunciou o nome de Luís em latim: Ludovicus. O padre em questão, João Maria,
também é conhecido de todos em Natal (vamos conhecê-lo melhor adiante).
Logo percebi que a Casa, por mais que fosse aberta ao público, demandava a mediação de
objetos e pessoas – como a placa de azulejos e sua tradutora – que solenizassem o acesso à
dimensão interior característica ao espaço doméstico37. Tal qual um álbum de família, a Casa
precisa de indicações a respeito das coisas a serem mostradas. O “porto” de Cascudo apresentado
por seus familiares nos interessa ao passo que pode ser visto como lugar de ancoragem de
objetos no universo privado de um colecionador. A Casa/Instituto Ludovicus tem características
36Cascudo é uma designação comum dada a peixes de “casca grossa” ou “pele dura”, pertencente a diversos gêneros
e espécies no Brasil.
37 Portas e soleiras, como indica Van Gennep (1978), funcionam enquanto marcos de separação. São espaços
liminares por excelência, promovendo a passagem entre o exterior e o “sagrado” do interior. Atravessá-los, por
conseguinte, é realizar um rito de passagem.
59
de museu-casa, uma vez que se procura guardar a disposição que os elementos ocupavam no
espaço quando ele era habitado pelo homenageado. O propósito desse tipo de museu é enfatizar
a relação entre o lugar e a vivência de seus proprietários: onde eles dormiam, trabalhavam,
recebiam visitas etc. Há várias nuanças ainda de museu biográfico, pois além dos objetos que
testemunham o uso de um ambiente residencial, são expostos outros tantos que testemunham a
trajetória e a notoriedade de uma personalidade.
Em suas “Passagens”, Walter Benjamin também nos encaminha para a interioridade dos
locais onde as coleções são elaboradas. Elas são o refúgio no qual o colecionador expia a
condição de mercadoria das coisas ao inseri-las em uma nova ordem:
38 Além do acervo bibliográfico e documental de Câmara Cascudo, a Casa expõe ao todo dez coleções: Etnografia
Africana, Etnografia Indígena, Arte Sacra Católica, Arte Popular Brasileira, Arte Popular Estrangeira,
Iconografia/Pinacoteca, Mobiliário, Alfaias, Objetos Pessoais e Comendas. Para além dos objetos de coleção, outra
“atração” da Casa são as paredes da biblioteca, autografadas, a pedido de Cascudo, por personalidades, como
Gilberto Freyre, Juscelino Kubitschek e Heitor Villa-Lobos.
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Figura 13 – Santos na Casa de Cascudo, a dimensão das obras indica que são
“imagens de igreja” deslocadas para o ambiente doméstico
Fonte: http://arquivos.tribunadonorte.com.br/fotos/87844.jpg
Para dar a ver tais “rastros”, a família precisou abrir alguns estojos e gavetas, colocando à
vista coisas antes guardadas e apinhando mais ainda os móveis e paredes já ‘carregados’ de
elementos sobrepostos. A memória de Cascudo é então multiplicada por todas as coisas que ele
possuía. Para Benjamin (1987), a posse é o tipo de relação com objeto que nos coloca na presença
do “colecionador autêntico”,
Tais reflexões são ensaiadas por Benjamin (1987), em um texto dedicado à reflexão sobre o
colecionamento de livros, porém, o autor sublinha que não dizem respeito a uma coleção
específica e sim à “arte de colecionar” coisas diversas. Como visto, a ideia de coleção que se
converte em morada do colecionador a ponto de fusioná-lo com suas coisas é pertinente para
pensar o encontro com Cascudo que continua a ser possibilitado por seus familiares. A Casa é um
espaço íntimo, povoado não só de obras de arte adquiridas ao longo de anos de trabalho
intelectual, mas também de “objetos pessoais”.
Pode-se contrapor essa elaboração do homem público no seu reduto privado com outras formas
de rememoração do intelectual em Natal. O Memorial Câmara Cascudo foi criado em 1987, apenas seis
meses após a morte do homenageado, pelo Governo do Estado do Rio Grande do Norte, representado
pela FJA. Na frente do prédio da instituição há uma estátua em bronze de corpo inteiro de Cascudo,
erguida por uma mão aberta de um braço que sai do chão.
No monumento projetado por Sami Elali, o homenageado ganhou forma pela lavra do artista
plástico Dorian Gray, tornando-se assim uma imagem que cabe na palma de uma mão39. O então altivo
Cascudo – cravado na “parte histórica” de Natal, no entorno do “marco zero da cidade” - fita, através
dessa perspectiva, a antiga Catedral de Nossa Senhora da Apresentação (padroeira da cidade).
39 Sou grata a Edilson Pereira por ter me alertado sobre tal transformação.
62
Na parede do fundo da sala foi desenhada uma igreja e rente a ela foram colocados
tocheiros com velas, criando interação entre elementos bi e tridimensionais. No centro, do
lado de fora e defronte à porta da igreja, logo, como se fosse a céu aberto, tem-se um cruzeiro.
Trata-se de uma estrutura com a base em forma de degraus, encimada por uma cruz de
onde pendem fitas de cetim. No topo da estrutura, ou seja, ao pé da cruz, há uma imagem de
Pe. Cícero, em gesso, não pintada, ladeada por ex-votos, que também ocupam a superfície
dos degraus. As fitas de diversas cores e o amarelado de algumas velas e ex-votos em
parafina quebram a predominância do branco do cruzeiro e da igreja, que em ambos os
elementos sugere a simplicidade característica das coisas caiadas, ou seja, pintadas com a
mistura de cal, água e cola.
63
Como visto, durante a presença no local, o visitante tem a oportunidade de fazer sua breve
oração e de estar diante de uma forma de materialização do culto do intelectual às práticas de devoção
do povo (senão às divindades propriamente ditas). Lembrando que quem chega ao Memorial é
recepcionado por uma foto de Cascudo avisando “ser um homem mais de fé do que de culto”. O
posicionamento dessa mensagem na porta dá as boas-vindas ao visitante que vai se deparar não
exatamente com um ambiente doméstico, mas com o universo que Cascudo 'domesticou' e tornou
familiar em suas obras. Desse modo, o Memorial não expõe os santos que pertenciam a Cascudo e
sim os objetos participantes das práticas populares com as quais ele “foi se entender pessoalmente”,
assim, como declarou que faria com Deus quando se visse diante da morte e, por conseguinte, da
(não) necessidade do último sacramento administrado pelos padres aos moribundos. A dispensa da
extrema-unção, contudo, não implicou em ausência da mediação sacerdotal na morte do intelectual.
Cascudo foi velado e enterrado tendo nas mãos um terço que pertencera ao Pe. João Maria.
Pe. João Maria é o “santo dos natalenses” 41 e, por causa dele, não é preciso ir até um local de
devoção a Pe. Cícero para se observar um arranjo de objetos similar ao que foi reconstituído no
Memorial e descrito acima. Na Praça Pe. João Maria, em Natal, diariamente são deixados ex-votos no
busto que homenageia o sacerdote. A base que sustenta a imagem é decorada com fitas coloridas e
guirlandas de flores artificiais. Na primeira ocasião em que estive nessa praça, em fevereiro de 2012,
entre as fitas da base do busto observei bonecos de pano, partes do corpo também confeccionadas
40O sinal da cruz pode ser realizado sobre si mesmo, sobre outras pessoas e ainda ser dirigido a objetos,
configurando, nessas duas últimas situações, um ritual de bênção.
41 * Jardim de Piranhas, RN, 1848 † Natal, RN, 1905.
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em pano, terços, orações e fotografias. No chão, próximo à base e sobre um tapete, havia dois baldes
coloridos contendo mais flores artificiais e, entre eles, uma cabeça em gesso e uma pequena imagem,
que identifiquei como Pe. Cícero. Numa pilastra, à frente do busto, encontrava-se um balde preto com
água, na qual as pessoas colocavam a mão e tocavam em si mesmas em seguida (geralmente no rosto).
42 Meu contraponto mental para tal normalidade seria um dia de festa de santo, no qual a irrupção do culto no
No Museu de Arte Sacra de Natal (MAS) não me deparei com menções aos nomes dos
artistas que esculpiram as peças expostas, as informações nas plaquinhas junto aos santos se
resumiam à invocação (por exemplo, Nossa Senhora da Conceição), técnica de execução (ex.:
Madeira policromada) e período (ex.: século XIX). Os dados sobre as maiores, significativamente,
incluíam “altura”, informando o tamanho de peças que variam de 50 a 60 cm. A exposição,
entretanto, contemplava imagens de portes variados: no extremo oposto dessas obras maiores –
que, de acordo com as primeiras interpretações que ouvi em campo, provavelmente já foram
“peças de igreja” – podia-se notar a presença de um pequenino santo em nó de pinho, de cerca
de 3 cm. É interessante frisar que a dimensão reduzida da imagem sequer é mencionada em sua
descrição, contida em uma placa de acrílico que tem várias vezes o seu tamanho, o que se ressalta
é a relevância da peça enquanto integrante da imaginária sacra afro-brasileira43.
Não havia nenhum visitante quando estive no MAS e, ao conversar com o recepcionista
do local sobre as respostas do público ao acervo exposto, o que veio à baila foi um leque de
gestos concernentes ao culto aos santos. Uma vez mais, portanto, dentre os visitantes, muitos
são visivelmente devotos. O próprio funcionário da instituição se colocou como tal e relatou
que quando está a caminho do museu não deixa de passar pela estátua do Pe. João Maria na
praça, fazer uma oração e colocar um pouquinho da água “dele” na testa: “E aqui também [no
MAS] o povo não vem só ver. Só não tem mais reza aqui porque tem que pagar44 para entrar”.
43 Esse tipo de imagem, produzido com a parte mais dura do pinheiro, o nó, é encontrado, sobretudo, em São Paulo.
O santo de nó de pinho pode ser carregado no bolso ou dependurado no pescoço, como pingente e, por isso,
geralmente contém um orifício para passar a corda que serve de colar. As diminutas figuras não são cobertas por
tinta e, além disso, têm em comum com os artefatos de madeira utilizados nas religiões afro-brasileiras, a cor
escurecida que lembra o ébano africano e o estilo sintético do corte. Apesar de darem corpo a santos católicos –
geralmente Santo Antônio e, com menos frequência, Nossa Senhora (ETZEL, 1979, p. 83) – por serem vistas como
amuletos, por meio dos quais “frequentemente o culto religioso se transformava em superstição e até mesmo em
fetichismo”, como reitera Herstal (1956, p. 33), as imagens em miniatura foram usadas pelos negros de forma
discreta e “guardadas ciosamente dos olhos alheios, [e] passaram desconhecidas de geração em geração”.
44 A entrada custava R$ 4,00 em 2012.
67
A oração, segundo o recepcionista, seria uma constante também no interior do museu, bem
como a oferta de coisas para os santos expostos. Com efeito, quando fui assinar o livro de
presença encontrei entre as folhas não apenas os nomes e locais de origem dos visitantes, como
também pedidos, agradecimentos, um santinho45 de São Cristóvão e uma oração a Nossa Senhora
de Fátima. De acordo com o recepcionista, as pessoas que trabalham na limpeza encontram
impressos do tipo também aos pés das imagens, bem como bilhetes manuscritos.
A historiadora Verônica Nunes, com quem conversei a respeito do cotidiano dos museus
de arte sacra de São Cristóvão e Laranjeiras em Sergipe, destacou como a realização de práticas
devocionais coloca desafios particulares para as equipes das instituições:
45Como precisa Menezes (2011), “os santinhos são retângulos de papel cujas faces comportam, de um lado, uma
imagem de santo (ou santa, ou santos), e, do outro, textos em que se combinam preces e prescrições para utilizá-las
corretamente, detalhes da vida do santo, propaganda da gráfica que imprime o material, etc.” (MENEZES, 2011, p.
43). A autora nota ainda que tais impressos, que em geral medem 7 x 11 cm, são comprados aos milheiros e devem
ser distribuídos por ocasião de pedidos ou agradecimentos por graças alcançadas, o que coloca para o devoto o
desafio de distribuir uma grande quantidade de santinhos.
68
Muita gente insiste em acender vela, e não adianta pedir para eles fazerem isso no
velário da igreja. Eles querem acender no pé do santo deles. Outros deixam recadinhos
para o santo e quando a gente vai limpar está lotado. Enfim, quanto mais simples são as
pessoas, mais gestos de reverência para com os santos. Eles entram, tiram o chapéu...
Como se vê, a permanência da sacralidade das imagens é uma constante após a destinação
museal. Em alguns casos, observa-se também uma extensão do atrelamento dos devotos aos
corpos dos santos. O acervo do Museu de Arte Sacra de São Cristóvão (MAS-SE)46 foi
constituído com peças das paróquias da Arquidiocese e outras entregues por doadores. A maioria
destes últimos aparece identificada nas informações constantes nas etiquetas que acompanham as
peças ou ainda na descrição das imagens feita pelo “orientador cultural” que guia a visita: “Esse é
São Benedito. Ele era italiano da Sicília e viveu no século XVI. Ele foi doado pela família do
fazendeiro X, e quando chegou na mão do restaurador ele descobriu essa roupa debaixo da que
estava com ele.” A biografia cultural (KOPYTOFF, 2008) de uma imagem de santo pode
começar a ser contada a partir da hagiografia da divindade e prosseguir sem grande
descontinuidade até o momento de sua chegada no museu.
Nesse mesmo museu onde o orientador cultural mencionado acima lamentou que
“infelizmente as imagens [do Senhor dos Passos] ainda são utilizadas em procissão”, expressando
claramente o ideal de isolamento absoluto das obras em relação ao culto religioso; há uma
Santana doada por uma família “de posses” cujo emprego ritual periódico foi destacado por
Verônica Nunes. Um acordo firmado no momento da entrega de várias imagens à instituição
prevê que a imagem de Santana Guia, que conduz uma Nossa Senhora Menina, anualmente volte à
fazenda de seus antigos proprietários, que fica em Carmópolis, no interior de Sergipe, por ocasião
da festa onde é louvada, em 26 de julho: “Enquanto tiver alguém na família com interesse de
realizar a festa o museu tem que ceder a imagem para o retorno triunfal dela”47.
Verônica atuou na consolidação dos museus de arte sacra de São Cristóvão e Laranjeiras e,
por isso, acompanhou de perto várias situações de ruído entre museólogos, conservadores e
devotos. Diante de sua experiência, afirmou que o acordo envolvendo a imagem de Santana era um
bom meio-termo, haja vista que outras experiências, como a substituição, feita em Laranjeiras, de
imagens por réplicas – produzidas pela igreja em parceria com a Secretaria de Cultura – foi rechaçada
pelos devotos: “Não era o santo deles que estava ali. […] mas com o tempo o pessoal entendeu que
a comunidade era zelosa com o patrimônio dela e então as imagens voltaram a sair nas procissões.”
46A instituição é fruto de um convênio, celebrado em 1974, entre a Arquidiocese de Aracaju, a Universidade Federal
de Sergipe e o Governo do Estado.
47De acordo com a historiadora, um membro da referida família vai pessoalmente ao MAS - SE buscar a imagem na
semana que acontece a festa, na qual reza-se o terço, realizam-se cantorias e no domingo há batizados e animação da
banda de música cedida pela prefeitura.
69
Figura 20 – Da série Irredentos, de Christian Cravo Figura 21 – “Modo correto de transportar objetos”48
Fonte: www.christiancravo.com
As procissões despontaram como momentos críticos, uma vez que, nessas ocasiões, as imagens
cedidas em regime de comodato para os museus são reivindicadas para ocupar o lugar de destaque
que lhes cabe nas festas de santo. Os corpos dos santos são retirados, portanto, de seus abrigos
técnicos de proteção, nos quais o toque é controlado, e são levados ao espaço público para serem
louvados. A esta altura, uma categoria específica de imagens, as processionais, se tornam o centro
da discussão. Em tese, qualquer tipo de imagem pode ser utilizado em uma procissão, incluindo as
bidimensionais e as de vulto (também chamadas de talha “inteira” ou “completa”). Entretanto,
certas imagens já foram fabricadas com a previsão de uso processional, o que implicava, por parte
do artista, no preparo de corpos de santos para serem manipulados por devotos.
Contudo, a funcionária do MAS de Laranjeiras tocou a imagem de uma forma que eu ainda
não tinha presenciado. O contato era carregado de carinho e cuidado, como o toque de alguém
que limpa uma ferida se solidarizando com o sofrimento alheio. Tratava-se do corpo flagelado de
Cristo, que anualmente, na quarta-feira santa, sai do museu para a encenação da Paixão, momento
em que encontra com Nossa Senhora das Dores. Esta estava localizada em um canto da sala e,
naquela interação, a impressão é que fora imobilizada pela dor, mas que, na impossibilidade de
agir diretamente sobre seu filho, lançava um olhar de piedade sobre quem estava em condições de
cuidar dele. O carinho devotado àquele Cristo foi notadamente discrepante em relação à
apresentação de outros santos do museu.
Essa “essência” sempre vinha à tona quando eu dizia que me interessava pela relação das
pessoas com as imagens: “Ah, então você tem que estudar as imagens de vestir!”. Era como se os
corpos de santos classificados em outras categorias não instassem relações, nessa linha de
raciocínio, fui notando que quanto mais uma imagem é “artificada” (HEINICH; SHAPIRO, 2012),
mais é entendida como apartada do mundo e seus vínculos sociais. E, em sentido inverso, quanto
menos fossem “essenciais” para a arte, mais envolvidas seriam no mundo das relações
‘mundanas’ que interessam aos antropólogos.
50A convite do primeiro diretor do IPHAN, então SPHAN, Rodrigo Melo Franco de Andrade. O trabalho de Bazin
será abordado novamente no capítulo seguinte.
72
Figura 22 – Exposição de imagens de vestir na Mostra do Redescobrimento, realizada em São Paulo, em 2000.
O display é interessante por permitir a visualização dos corpos dos santos tanto “nus”, quanto vestidos.
Foto: Denise Andrade, reproduzida em Salvat (s.d., p. 13).
Edilson Pereira (2014) também observou que a interdição da exposição da nudez das
imagens de vestir é difundida não só pelos devotos:
Edjane enfatizou que a resistência não se deve à “ignorância do povo” quanto ao valor
artístico das peças, como muitos afirmam. Para exemplificar que as imagens são buscadas como
forma de presença dos santos por pessoas de diferentes classes sociais, a museóloga contou a
respeito de Nossa Senhora das Maravilhas, cujos primeiros prodígios datam da chegada dos
portugueses ao Brasil e se estendem até os dias atuais53. Conta-se que foi rezando diante dela que
o Padre Antônio Vieira sentiu certo dia, quando criança, o célebre “estalo” que o transformaria
no maior orador sacro da língua. Assim, a obra é buscada por pessoas que vão se submeter a
testes, como concursos públicos e vestibulares, porque assim elas também teriam “estalos” de
conhecimento. A entrevistada ressaltou que “até médico já veio em busca dela, trazendo o filho
que ia fazer prova, não é só gente humilde que busca essa Nossa Senhora não”.
Os santos “fora de casa” que encontrei nos museus não correspondiam à projeção que
eu tinha da imagem fora do seu lugar, ‘destronada’. Guardadas as especificidades de cada
contexto, o abrigo do objeto religioso como peça de museu não implica na perda da
sacralidade, mas na convivência desta com outras funcionalidades; o que gera um amplo
espectro de reações dos profissionais, passando pela consternação em relação à continuidade
do uso ritual; pela ponderação sobre a impossibilidade de isolamento absoluto de práticas de
culto religioso e mesmo por uma certa celebração do fato das imagens continuarem
funcionando enquanto presenças divinas no ambiente museal.
53 Trata-se de uma peça de 65 mm, em madeira policromada e dourada, com revestimento de prata cinzelada.
Acredita-se que tenha sido trazida ao Brasil em 1552 por D. Pedro Fernandes Sardinha, o primeiro bispo do Brasil.
Seria, portanto, uma das primeiras imagens que chegaram ao Brasil. Foi uma das raras peças que se salvaram quando
em 1624 os holandeses invadiram a Bahia, destruindo todas as imagens que se achavam na Sé. O revestimento em
prata foi feito já em terras brasileiras (MAIA, 1987, p. 146).
74
É válido lembrar que os museus de arte sacra visitados funcionam em parceria com a
Igreja, em espaços praticamente anexos a templos ou que tiveram finalidade religiosa no passado
(conventos etc.). A linguagem museográfica, de modo geral, dialoga com esses espaços
arquitetônicos e auxilia na (re)criação da atmosfera sagrada característica das igrejas. Os gestos
“espontâneos” e significativos que se avultam nessa ambiência são os dos devotos. A presença da
devoção é ambígua, pois diz tanto sobre a eficácia da exposição de coisas sagradas, quanto da
constante ameaça à integridade dessas coisas enquanto obras de arte. Nesse sentido, é o valor
devocional que torna a imagem preciosa, mas também a coloca em risco ao convocar os mais
diversos atos por parte dos fiéis. Já a ameaça em função de valor comercial praticamente não foi
verbalizada pelos funcionários com os quais dialoguei54, apesar dos furtos e roubos serem
combatidos por meio das proibições de ações que possam facilitá-los, tais como a entrada nos
museus com bolsas e a fotografia da exposição.
A busca por ‘caçadores de imagens’ em Minas Gerais foi mobilizada por alguns fatores.
Como disse na introdução, acompanhei por anos anúncios sobre a realização de “campanhas de
recuperação de bens desaparecidos”. Além disso, depois da incursão por Natal eu tinha algumas
questões decorrentes da observação etnográfica: em Minas eu me depararia com “objetos do
Estado” e não encontraria “nem uma mão de santo para vender”.
54 Uma das exceções aconteceu no Museu de Arte Sacra de Laranjeiras, onde a imagem [processional] de Nossa
Senhora das Dores foi apresentada por meio de atributos que hoje estão ausentes: “ela tinha lágrimas de brilhantes,
que foram roubadas, junto com uma coroa de ouro e o punhal. E ela, devido ao porte, não conseguiram levar.”
75
Outro paradoxo apontado pelo representante do MP-MG é o fato das peças serem
expostas em igrejas, capelas e outros locais com frágil ou nenhum sistema de segurança, ou seja,
são preciosidades ao alcance de qualquer um. Medidas que restringem que os visitantes
fotografem obras de arte, comuns em museus, por exemplo, dificilmente serão aplicadas em
locais onde são feitos registros de cerimônias de casamento, batizado e outros rituais. Desse
modo, antes de deslocarem efetivamente as imagens, os ladrões têm condições de estudar a exata
localização delas e até mesmo de produzir um “book” com fotografias delas para mostrar as peças
para potenciais clientes – atravessadores, que fazem a ponte com os colecionadores e antiquários
– e só realizarem o furto depois da confirmação de interesse.
Logo compreendi que a produção de conhecimento sobre as imagens é vista de modo ambíguo. É
importante que os “bens culturais” sejam inventariados, pois esse instrumento facilita a busca em caso
de desaparecimento, por exemplo, para que as peças constem entre as obras de arte procuradas pela
International Criminal Police Organization (INTERPOL), é necessário que sejam minuciosamente
descritas. A divulgação de informações precisas sobre as obras que continuam em seus loci rituais,
entretanto, não é estimulada porque pode suscitar o interesse de colecionadores, ladrões que levam as
peças até eles e atravessadores. Além disso, a posse de dados sobre dimensões e outras características
peculiares das imagens procuradas facilita que os receptadores sejam cirúrgicos em modificá-las para
dificultar sua identificação e possível restituição.
55Ambas escritas pelo promotor em parceria com outros autores, são as seguintes: PAIVA, C.M.S.; MIRANDA,
M.P.S. Direito do Patrimônio Cultural: compêndio da legislação brasileira. Ouro Preto: UFOP, 2011 e
MIRANDA, M.P.S.; ARAÚJO, G. M.; ASKAR, J.A. Mestres e Conselheiros: manual de atuação dos agentes
do patrimônio cultural. Belo Horizonte: IEDS, 2009.
76
casos específicos de procura de imagens em Minas ter sido preterida no desenho final da tese em nome
de um maior aprofundamento no contexto potiguar, as jornadas no órgão patrimonial desse estado
foram valiosas pela troca de impressões sobre “o que está fora dos autos” e acerca de práticas que
atravessam o cotidiano de trabalho dos profissionais mencionados.
O fato do gesso ser mencionado como material diacrítico na produção de valor cultural não era
novo para mim. Uma professora já havia me provocado nesse sentido, ao relatar que quando buscava
peças antigas para estudar no interior de Minas e os padres perguntavam que tipo de imagem ele
procurava, respondia que estava atrás de santos de madeira, pois os de gesso não seriam antigos e, dessa
forma, poderiam ser de interesse “de antropólogos, que nivelam tudo, mas não de quem está
preocupado com a história da arte”. Uma restauradora do IEPHA não escondeu seu incômodo com o
referido nivelamento: “não sei se sou eu que sou muito barroca, mas acho estranho tudo agora poder
ser patrimônio. O patrimônio é uma narrativa e uma narrativa você pode tecer em relação a tudo”.
A passagem pelos museus já havia sido significativa no sentido de mostrar que o afeto em
relação aos corpos dos santos não dizia respeito apenas aos devotos. Durante a consulta aos
arquivos não foi diferente: travei contato com os documentos na mesma sala onde acontece o
trabalho na gerência de identificação e vez ou outra eu interrompia a restauradora Maria Ângela
Pinheiro para perguntar sobre algo na documentação. Numa dessas situações, ela apontou para a
imagem no monitor de seu computador e me explicou: “esse santo aqui tinha um dedinho
apontado para cima, eu sei porque eu já restaurei ele. Olha que dó ver assim...” O fato da peça
estar ‘machucada’ claramente despertava piedade na profissional. Para além da expressão desse
lado terno, também registrei momentos em que a técnica compartilhava desafios mais objetivos
do seu trabalho: “Como vocês acham que eu posso descrever esse panejamento aqui? É uma
veste até a canela? Meia-perna? Abaixo do joelho?”.
Outra interlocução profícua no IEPHA se deu com Raphael Hallack Fabrino, que
substituiu Ângela Dolabela como Gerente de Identificação. Raphael é historiador da arte e em
sua dissertação de mestrado em preservação do Patrimônio Cultural estudou os furtos de obras
de arte sacra em igrejas tombadas do Rio de Janeiro (FABRINO, 2012). Em vista disso,
conversávamos muito sobre a historicidade do campo patrimonial no Brasil.
56 O último Concílio Católico (Vaticano II, 11 de outubro de 1962 a 8 de dezembro de 1965) é marcado pela
“renovação da liturgia”. O latim foi substituído pelas línguas locais e reforçaram-se os traços essenciais da
“romanização”, o processo de reformas religiosas iniciado durante o pontificado de Pio IX (1846-1878) que visava
implantar, no mundo todo, o mesmo modelo de Catolicismo: o romano, calcado na espiritualidade centrada na
prática dos sacramentos e no senso da hierarquia eclesiástica (OLIVEIRA, 1976). Com o Vaticano II, portanto, a
Igreja torna-se oficialmente mais cristocêntrica e dispensa que seus templos sejam povoados de imagens, como era
muito comum no Catolicismo brasileiro de herança portuguesa, acentuadamente afeito ao culto aos santos. Passa-se a
recomendar a exposição, preferencialmente, de apenas três imagens nos templos: o Cristo (única requerida), a Virgem
78
Ainda de acordo com Raphael, não se pode negar que o mercado de arte “é uma
realidade, existe, é pujante e anterior ao serviço de patrimônio.” Essa anterioridade se refere à
lacuna de regulamentação observada entre a criação do SPHAN por meio do Decreto Lei n. 2557,
de 1937; e a normativa instituída por meio do parecer do processo n. 13/85, que reconheceu
juridicamente todos os bens móveis e integrados que faziam parte do acervo de uma determinada
igreja na época do seu tombamento, como bens igualmente tombados, pois sem seus
“acessórios” os edifícios religiosos não teriam “função ativa”.
Em resumo, nesse intervalo entre 1937 e 1985, nem sempre os “bens móveis e
integrados” receberam a mesma atenção que era dispensada aos prédios tombados dentro dos
quais estavam inseridos. Inclusive, é significativo que de modo recorrente os relatos sobre
desaparecimentos incluam justificativas de padres que alegaram ter vendido objetos religiosos
que estavam sem uso justamente para fazer melhorias nos telhados das igrejas, por exemplo.
Como diz Beatriz Coelho (2005),
[...] todos sabemos que padres vendiam imagens para financiar obras sociais ou para
sustento da igreja, mas, atualmente, há verdadeiras gangues que roubam para vender.
Nos últimos trinta anos, grande número de peças pertencentes a igrejas tombadas pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e Instituto Estadual
do Patrimônio Histórico e Artístico (IEPHA) foram furtadas em Minas Gerais.
(COELHO, 2005, p. 243).
Maria e o santo padroeiro da igreja ou de devoção da comunidade. A ordem de exposição deve corresponder à justa
hierarquia de devoção priorizando sempre o Cristo (BAPTISTA, 2002). As orientações advindas do Concílio
também vão influir no destino dos ex-votos: é a partir desse período que muitos santuários começam a descartá-los
de modo mais sistemático. A orientação oficial em relação às imagens e aos objetos litúrgicos, entretanto, será
diferente: a Igreja passa a incentivar a criação de comissões de arte nas dioceses e tenta se apropriar da injunção
patrimonial que emana do Estado, incluindo suas práticas e seu vocabulário (NOTTEGHEM, 2012). No Brasil, tais
orientações culminaram na formação de muitos museus de arte sacra que foram criados e são administrados pela
Igreja em parceria com órgãos estatais, como secretarias de cultura e universidades.
57Este decreto define o conceito de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, institui o tombamento como medida
tutelar e organiza a proteção do patrimônio nacional.
79
Nas francas palavras da restauradora, a prática de venda de imagens realizada por certos
agentes e de conhecimento de “todos” é em certa medida tolerável, pois é realizada para
determinados fins. Porém, o crescimento do deslocamento dessas peças – perpetrado por
gangues de pessoas alheias à lógica das obras sociais e do sustento das igrejas – é denunciado.
A realização mais sistemática de inventários foi uma das formas encontradas de frear a
dilapidação, por isso mesmo, os agentes que realizaram esses levantamentos foram pessoas
reiteradamente citadas por Raphael Fabrino como as mais indicadas para falar sobre a
“origem” das peças. O gerente de identificação possui formação que o habilita nesse sentido,
tanto que ao passear por um shopping de lojas de decoração no Rio de Janeiro reconheceu uma
imagem proveniente de igreja tombada que estava exposta em um antiquário. A grande
dimensão – 1 metro de altura – era o indício mais visível de que a origem daquele santo – um
São Miguel – provavelmente fosse uma igreja, ou, mais especificamente, um retábulo no
interior de alguma, pois a figura tinha os olhos apontados para baixo, “como se olhasse para
o fiel” e o panejamento típico das imagens retabulares58.
Como os indícios eram bem evidentes, não foi difícil inferir que o santo era um bem
cultural, mas, de acordo com Raphael, em muitos casos, a empreitada de identificação não
prescinde do saber de pessoas que já arrolaram e estudaram as peças anteriormente. Nessa
direção, esse interlocutor sempre mencionava seus antecessores como mais habilitados e,
mais do que isso, expressava sua preocupação com o envelhecer de uma geração que detêm
um conhecimento fundamental, tais pessoas são tanto profissionais de órgãos públicos,
quanto agentes da Igreja59.
58 A apreensão do santo pela Polícia Federal gerou repercussão midiática e especulações sobre o valor monetário da
imagem. Por isso, depois da restituição à sua cidade “de origem”, o São Miguel em questão passou a ser exposto em
uma igreja dentro de “cela”, como forma de prevenção de um novo furto.
59 Um exemplo citado foi Frei Roger Brunório, Diretor de Patrimônio da Província da Imaculada Conceição, que
identificou a imagem do Pai de São Francisco de Assis, Pedro Bernardone, quando a viu como parte do cenário do
filme “A guerra dos Rocha”. O santo estava desaparecido há mais de cinquenta anos.
80
A questão do “contato” com as peças estava novamente sendo colocada e Raphael foi mais
um interlocutor que me falou de pessoas cuja reputação foi construída pela experiência, mas cujo
saber não era propriamente só prático. O profissional do IEPHA afirmou investir no cultivo dessa
expertise tão singular, mas que outras atribuições da GID – tais como a realização de “relatórios de
impacto cultural” de grandes empreendimentos – impossibilitavam uma dedicação contínua.
A pesquisa no órgão patrimonial foi interessante para mostrar que a referida retórica,
atualmente, também pode ser estendida aos recursos humanos que se dedicaram aos santos e
outros objetos feitos de materiais diversos que povoavam o chamado “patrimônio de pedra e cal”.
Os antecessores de Raphael olhavam para a minúcia, ao passo que toda atenção estava voltada para
o monumental. Em vista disso, tanto a problemática da eleição de monumentos específicos – como
as igrejas – como emblemas da “nação”, quanto a concepção de que essa eleição foi superada com
a emergência da noção de patrimônio imaterial, não dão conta dos processos sociais concretos que
me foram colocados em perspectiva. Estes processos não são constituídos apenas de discursos
totalizadores, mas por práticas, formas de fazer-saber que cotidianamente alteram e modulam a
eleição pretérita de símbolos do patrimônio e de uma grande narrativa nacional.
Além do elogio direcionado a algumas pessoas e suas miradas privilegiadas para as imagens, é
mister recuperar que em diversas situações observadas, meus interlocutores tentaram demarcar os
limites sobre quem pode acessá-las, vê-las e, mais precisamente, tocá-las. Nesses termos, a
aproximação de certas obras religiosas – mesmo a partir de uma instância ‘profana’, como um
60Ao se debruçar sobre a gênese desse vínculo entre barroco e origens da nação no âmbito da ação de proteção ao
patrimônio histórico e artístico nacional, Márcia Chuva (2009) ressalta que tal construção de uma fisionomia de
Brasil sem regionalismos, apesar de ir ao encontro dos interesses do Estado Novo, não foi isenta de conflitos. Mario
de Andrade, por exemplo, seria voz dissonante, ao defender que as preocupações do serviço de proteção deveriam
ser plurais, de caráter histórico, e não necessariamente estético: “...há de se reverenciar e defender especialmente as
capelinhas toscas” (apud Chuva, 2009, p. 263). A noção de patrimônio histórico brasileiro que se consagraria,
entretanto, foi a que vinculou o Brasil à civilização e à história da arte ocidental através da arquitetura barroca,
entendida pelos modernistas como constitutiva do tecido “autenticamente nacional” porque tanto nos remete à
ancestralidade portuguesa, quanto aos princípios da “boa arquitetura” que ganhava destaque naquele momento
histórico: a arquitetura moderna.
81
órgão patrimonial, um museu ou uma galeria comercial – pode se configurar como violação. Essa
forma de ‘corporativismo’ pode ser pensada, nos termos de Michael Taussig (1999), como prática
que coloca em relevo o delineamento do sagrado pelo reforço de um mistério. Ao tornar tal
mistério impenetrável aos leigos, o segredo profissional confere ares de sacerdote àqueles
legitimados a atuarem próximos das coisas poderosas.
Assim, “todos sabemos” de atos de vilipêndio que, apesar de interditos, são levados a cabo.
A divulgação deles, entretanto, potencializa o contato com dimensões sagradas antes acessadas
por poucos. Ainda nessa linha de raciocínio e contando também com as considerações de outro
texto de Taussig (1997), pode-se entender o caráter da produção de conhecimento sobre as
imagens – abordado a partir da Promotoria em MG como ambíguo – a partir de seu viés de
“transgressão” e, por isso, a evitação de tal produção por agentes externos àquele órgão.
82
Uma janela aberta deixava entrar o vento, que sacudia frouxamente as cortinas, e eu
fiquei a olhar para as cortinas, sem as ver.
Memórias Póstumas de Brás Cubas
Machado de Assis
Alguns presépios eram bem simples, formados apenas por Jesus bebê, Maria e José, as
imagens elementares desses conjuntos. Quando esse trio é representado sem os elementos
cenográficos da natividade, como a manjedoura sobre a qual Jesus foi colocado depois de nascer,
é chamado de Sagrada Família ou Sagrada Parentela. Na cena da natividade, as imagens ficam em
posição de adoração, geralmente ajoelhados e voltados para o bebê em seu leito de palha. No
conjunto da família, o menino normalmente está no colo de um dos adultos.
83
Os Reis Magos são santos cujas imagens geralmente são apresentadas juntas. Quando
Belchior, Baltazar e Gaspar são encontrados individualmente, suspeita-se que sejam partes
desgarradas de um presépio. Segundo a tradição cristã, os referidos reis partiram de diferentes
destinos, mas, guiados por uma estrela – que aparece como o elemento mais alto de muitos
presépios – chegaram juntos para visitar e presentear Jesus logo após seu nascimento. Os demais
elementos que compõem a cena são chamados de “figuras”: são anjos, animais, pastores.
Enquanto Antônio trabalhava no texto no escritório, eu, Paulina e Nildo nos dedicávamos à
montagem para as fotos. Paulina conheceu o colecionador na condição de estudante de Artes Visuais
da UFRN, quando integrava um grupo de pesquisa que utilizou obras do acervo de Antônio Marques
em estudos sobre arte popular potiguar. Depois dessa experiência, passou a auxiliá-lo quando
demandada. Nildo foi sócio de Antônio na galeria do Centro de Turismo e também assinava a
84
curadoria da exposição que preparávamos, ou seja, eu era a mais inexperiente e a produção, a toque de
caixa, não possibilitava que eles ficassem me dando explicações a todo o momento.
Primeiramente, Veriano cobriu a maior parte dessa estrutura com um papel onde havia
pintado o céu, com destaque para a estrela-guia que orientou a busca dos Reis Magos pelo local
do nascimento de Jesus. Posteriormente, ele ‘construiu’ a gruta sobre a mesa que dispôs junto ao
painel, utilizando-se, para tanto, de uma cadeira coberta por papel pintado com uma mistura de
tintas cujo efeito visual obtido sugeria que o material era pedra. Antes de espalhar os personagens
do presépio, ele afixou plantas características do Nordeste no cenário, como cactos e xique-xique.
85
Figura 27 – Impresso de
apresentação da exposição
de presépios
Foto: Acervo da autora,
dez. 2012
61
Realizado por Isaura Rosado, então Secretária Extraordinária de Cultura do RN, no âmbito do projeto “Privado é
público”, que se volta à realização de mostras de Artes Visuais a partir de acervos particulares do RN. Cada
exposição ocupava a galeria Newton Navarro por, aproximadamente, um mês. Este espaço já havia sido ocupado por
parte do acervo de Antônio Marques entre 15 de agosto e 6 de setembro de 2012, com a exposição “Arte Popular na
Coleção de Antônio Marques”, que também se deu no âmbito do projeto “Privado é Público”.
86
Em um dos meus retornos da gráfica, me deparei com um debate caloroso entre Antônio
e Veriano, o motivo foi o tecido utilizado pelo artista para forrar as laterais da mesa sobre a qual
foi disposto o presépio que ganhou um cenário por ele executado. O ex-aluno utilizou um tecido
roxo com estampas douradas formadas por losangos e cruzes. Antônio não se conformava:
“Roxo para falar de natividade?”. Veriano respondeu que adquiriu o tecido orientado por uma
pessoa. O ex-professor retrucou: “– Pois essa pessoa precisa estudar Teologia! Cores são
símbolos na liturgia, roxo é para Quaresma, no Natal se usa vermelho e verde.” A repreensão foi
feita, mas não havia tempo hábil para substituir o tecido. Para adquirir qualquer material que
precisássemos, o responsável pelas compras da FJA precisava fazer três orçamentos antes... Por
isso, Nildo comprou alguns materiais para acabamento – tecidos e enfeites natalinos, como
“festão” – com recursos próprios, mas Veriano disse que não faria o mesmo.
Figura 29 – Detalhe do presépio no Figura 30 – Presépio de Francisco Felix de Lima (Chico Santeiro) disposto no cenário
cenário de Veriano
Fotos: Acervo da autora, dez. 2012
e convocações com a ajuda de um carro de som62. Como a galeria fica na entrada do prédio
diante do qual protestavam, quando precisavam passar por ali paravam, queriam tocar nas
peças, faziam perguntas... Enquanto corríamos contra o relógio. Muitas pessoas não
conseguiam atravessar o local, em tese, de passagem, sem serem atraídas pelas peças que
organizávamos. A comoção era verbalizada: “– Que bonitinho!”, “– Olha a manjedourinha!”,
“– Olha que lindo!”, “– Que gracinha!”, “– É de madeira?”, “– Quando abre a exposição?”.
62 Os funcionários reivindicavam o cumprimento de uma ordem judicial que obrigava o Governo do Estado a pagar
Uma senhora estranhou o fato da figura do menino já ter sido colocada por nós nos
presépios, já que na casa dela: “– Jesus só chega dia 25. E os Reis no dia 6 de janeiro, mas eles a
gente coloca antes, porque dia 6 é dia de guardar [a decoração de Natal]”, ou seja, ela estava nos
recomendando que a montagem fosse feita como na casa dos devotos e seguisse, em certos
termos, a temporalidade da natividade, na qual Jesus nasce dia 25 de dezembro e é visitado pelos
reis Belchior, Baltazar e Gaspar no dia 6 de janeiro. A periodicidade da mostra, entretanto, foi
outra. O vernissage aconteceu na noite do dia 19 de dezembro, a abertura para visitação se
iniciou na manhã seguinte e se encerrou no dia 31 de janeiro de 2013.
Nossa interlocutora de ocasião também sugeriu que completássemos alguns presépios com
elementos cenográficos, como, por exemplo, fazendo “laguinhos” para compor as cenas com
camelos, assim, nesses conjuntos os bichos poderiam “matar a sede”, mas a montagem das imagens,
com exceção da obra utilizada por Veriano, não foi acompanhada de cenário. Alguns conjuntos
foram apenas circundados de “festão” verde, outros foram dispostos de forma protegida sobre
caixas de acrílico, redomas ou no interior de estantes com portas envidraçadas levadas pelos
colecionadores. O ideal, na opinião deles, é que todos os grupos de peças fossem protegidos por
anteparos, mas não tínhamos tais estruturas, principalmente para os presépios compostos de muitas
figuras e dispostos sobre mesas de mais de 2 metros de comprimento. A solução encontrada foi
ligar as peças umas às outras com um fio transparente de nylon, cujas pontas foram amarradas para
que ninguém conseguisse remover elementos isolados dos conjuntos.
A montagem se estendeu por dias e foi bastante exaustiva. A identificação dos presépios
com pequenas etiquetas adesivas não tinha como ser feita sem a consulta aos colecionadores,
uma vez que os autores das obras não eram evidentes para mim. Já seus proprietários
respondiam com apenas um golpe de vista: “– Esse é Gregório”, “– Ah, esse é Luzia Dantas, é
63 Lévi-Strauss (1989) pensa a escolha pelo modelo reduzido como propulsora da transformação do espectador em
agente criador, pois tal opção facilita a apreensão do modo de fabricação das obras de arte: “Unicamente pela
contemplação, o espectador é, se se pode dizê-lo, introduzido na posse de outras modalidades possíveis da mesma
obra, das quais confusamente ele se sente melhor criador que o próprio criador que as abandonou, excluindo-as de
sua criação; e essas modalidades formam muitas outras perspectivas suplementares, abertas à obra atualizada. Dito de
outra maneira, a virtude intrínseca do modelo reduzido é que ele compensa a renúncia das dimensões sensíveis pela
aquisição de dimensões inteligíveis.” (LEVI-STRAUSS, 1989, p. 40).
89
Contudo, o momento de maior aflição duraria algumas horas: quando montamos todos
os presépios, o colecionador sentiu a falta de um dos conjuntos de peças. Reviramos as caixas
cheias de jornais onde eles tinham sido embrulhados; olhamos debaixo das mesas, sob as toalhas
que as cobriam; verificamos os porta-malas dos carros... e nada: “ – Nildo, Lilian, é o presépio de
Xico Santeiro, vocês têm ideia do que isso significa?”. Não se tratava da obra organizada sobre o
cenário feito por Veriano, feita por outro Chico, o de nome grafado com Ch. Também não era
um conjunto preso sobre uma base onde poderia conter a identificação da autoria.
Como eu não sabia as características das peças de Xico, me cabia a inglória tarefa de
procurar sem saber exatamente o que precisava encontrar. O que tinha em mente é que o “Xico
Santeiro” em questão relacionava a angústia em torno do presépio sumido e a comoção do sócio de
Antônio diante de uma obra quando a preparávamos para ser fotografada.
Fui para casa preocupada, porém, ciente de que havíamos esgotado as possibilidades de busca
que estavam ao nosso alcance. Quando voltei à galeria da FJA mais tarde, já para a abertura da mostra,
me surpreendi com o fato da exposição de quadros de Iaperi Araújo, prevista para acontecer
concomitantemente a dos presépios, ter sido montada no ínterim em que fui em casa me arrumar para
abertura e voltei para FJA. Como demoramos quase uma semana para organizar as obras das coleções
de Antônio e Nildo e durante esse período ninguém apareceu com os quadros, imaginamos que o
artista poderia ter desistido de expô-los. O fato é que eles eram bem mais fáceis de dispor...
A mostra das telas de Iaperi foi batizada de “A mãe do filho de Deus e os bailados do
Natal”. O artista buscou na “iconografia popular” a inspiração para o registro de onze expressões
de Maria e dos festejos que, no passado, aconteciam diante dos presépios:
A governadora Rosalba não compareceu à abertura, não houve protestos dos funcionários
que realizavam a paralisação durante a montagem da exposição. Mesmo assim, Antônio não
aparentava estar tranquilo. Quando lhe perguntei o motivo da tensão, fui surpreendida pela
informação que o presépio desaparecido havia sido encontrado e foi integrado à exposição.
Estava lá em casa, na pressa, nós esquecemos de trazer. É um perigo a gente fazer tudo
[selecionar, embalar, transportar, montar]. Pense que a gente poderia ter perdido ele
aqui na porta... Às vezes, a gente coloca a peça em cima do carro para pegar outra lá
dentro e, como estamos com cabeça cheia, lá em cima ela fica, para qualquer um que
passar pegar. O susto foi tão grande que hoje mesmo esse presépio volta comigo, não
tenho tranquilidade de deixar aqui.
Figura 32 – Presépio de Xico Santeiro. Madeira policromada. Foto de Anchieta Xavier, dez. 2012
64Nas palavras do curador no impresso de apresentação da mostra: “de acordo com relatos históricos, o primeiro
presépio foi montado por São Francisco de Assis, no Natal de 1223. O religioso projetou o presépio em argila, na
região do Lácio, na Itália. Sua ideia era explicar às pessoas mais simples, não apenas o significado, mas também a
forma como aconteceu, historicamente, o nascimento de Jesus”.
91
Apesar de não ter estabelecido os santos barrocos como objetos privilegiados nesta tese,
frequentemente as imagens com as quais travei contato durante o trabalho de campo resvalaram
nas qualidades intrinsecamente atribuídas a eles. No imaginário daqueles que apreciam as imagens
brasileiras enquanto obras de arte, os santos barrocos ocupam o lugar de apogeu do virtuosismo
técnico. Nessa direção, o barroco não é delimitado precisamente em termos estilísticos ou de suas
respectivas periodicidades e variações dentro e fora do Brasil.
Em meu primeiro encontro com Antônio Marques, quando eu ainda estava definindo
quais seriam meus principais interlocutores, o então galerista foi enfático que se eu quisesse
explorar um “campo novo” precisaria me afastar da arte erudita e oficial produzida pelo
escultor e arquiteto Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, consagrada na história da arte e
conservada nos museus de arte sacra. A despeito dessa colocação e de o colecionador afirmar
não ter peças “representativas” do período barroco, não raro a obra de Aleijadinho foi citada
como parâmetro, seja pela sua talha “inconfundível”, seja pelo posto de destaque sem igual
no rol de artistas que deram corpo a imagens sagradas no Brasil. Trago novamente a lume um
importante extrato de nossa conversa:
Então isso é um campo que eu acho que já foi muito estudado, não sei se vale a
pena você ir por aí, por que como é que você vai fazer uma tese hoje sobre
Aleijadinho? É possível fazer? É, mas já tem tanta tese sobre o Aleijadinho que se
você quer explorar um campo novo... a não ser que você pegue uma imagem
dele, duas, três e vá dissecar até a alma da estátua. Talvez seria até
interessante, mas já têm estudos.
65A imaginária religiosa erudita produzida no Brasil é enquadrada em três períodos estilísticos distintos: “uma fase
maneirista, durante todo o século XVII, quando predominavam as oficinas conventuais; um período barroco
propriamente dito, entre 1720 e 1770, e, finalmente, uma fase rococó, nas três décadas finais do século XVIII, com
prolongamento no século XIX em algumas regiões”. (COELHO; QUITES, 2014, p. 34).
66* 1738 † 1814. Segundo o Dicionário Oxford de Arte, o escultor “era conhecido como Aleijadinho em virtude de
uma enfermidade que, a partir dos seus 30 anos, privou-o do uso das mãos; diz-se que trabalhava com martelo e
cinzel amarrados aos membros semiparalisados.” (CHILVERS, 2007, p. 310).
92
A imagem da dissecação de uma obra até sua alma não parece metafórica nos laboratórios
do Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis (CECOR)67. O processo de
restauração busca devolver a estabilidade física e estética dos santos. Para tanto, as imagens passam
por processos de desinfestação, limpeza, remoção de repinturas e reintegração de camadas, que
podem demandar o esquadrinhamento de seus corpos por meio de exames de prospecção
estratigráfica, raio-x, tomografia, endoscopia etc.
Conversei a respeito desse trabalho com Beatriz Coelho, uma das idealizadoras do
CECOR. A restauradora-autora de obras de referência sobre escultura devocional é, atualmente,
presidente do Centro de Estudos da Imaginária Brasileira (CEIB)68, fundado por ela juntamente
com a historiadora da arte Myriam Ribeiro de Oliveira, que se notabilizou como especialista em
barroco e na obra de Aleijadinho. De acordo com Beatriz69, a figura do escultor é tão
paradigmática que “embaça” o estudo de outros bons artistas eruditos: “– Tudo que é bom se
pensa que é do Aleijadinho, mas tivemos outros, que não foram tão gênios quanto ele, mas
existiram, e o CEIB existe justamente para mostrar que há outros com trabalho de alta qualidade.
Não são populares, são eruditos desconhecidos”.
Mais adiante nos debruçaremos sobre as características dos santos populares, por ora, é preciso
discorrer um pouco mais acerca dos artistas eruditos desconhecidos mencionados pela restauradora.
Resumindo uma longa discussão para começar a tateá-la, nas palavras de Beatriz, dizer que um artista
é erudito significa “– Que ele produziu de acordo com o estilo e as técnicas de um período”.
A ‘dissecação’ de um santo, nesse sentido, busca revelar técnicas construtivas, possível local
de origem da fatura e o período cronológico de produção. A operação tem o potencial de trazer à
tona dados e informações que ajudam a atribuir a autores obras não documentadas. Os autores dos
corpos das imagens são desconhecidos porque não eram vistos como artistas quando produziram os
objetos que nos interessam, tampouco as imagens que lavravam eram assinadas como obras de arte.
Os santos eram feitos por meio do trabalho de pessoas atentas a necessidades devocionais
que passavam ao largo dos conceitos modernos de autoria, de estilo e de originalidade. A construção
de vínculos das imagens com essas noções passou a ser feita posteriormente, quando começam a
ser atribuídas a autorias específicas. Um dos caminhos para tanto é o cruzamento de suas
características físicas com contratos, recibos, livros de tombo ou outras formas de documentação
das irmandades, ordens terceiras e das igrejas que encomendaram as peças no passado.
restauradora, abordo as primeiras informando o primeiro nome de Beatriz e as segundas de acordo com as normas
de citação, ou seja, como Coelho (2005); Coelho; Quites (2014); Coelho et al. (2003).
93
É o caso de Mestre Piranga que, como ressaltam muitos profissionais, deveria ser
chamado de Mestre de Piranga, assim como se passa com o Mestre de Barão de Cocais e com o
Mestre de Jacuí. A inclusão da partícula de, nessa direção, deixaria claro que Piranga não designa
uma pessoa e sim a localidade no entorno da qual o artista teria atuado mais significativamente.
Outra forma comum de nominação é inspirada pelas marcas impressivas que mais se destacam
nas séries de imagens. A partir dessa lógica, o colecionador José Alberto Nemer (2008) nos
apresenta os artistas “Mestre do Cabelo Longo”, “Mestre do Leque”, “Mestre do Estilo
Delicado”, “Mestre da Cara Larga”, “Mestre da Cara Simples” e outros.
Os nomes dos artistas são então produzidos pela associação dos traços formais de suas
imagens ou da ligação com espaços regionais de produção. Tem-se, então, um princípio de
identificação que ultrapassa a singularidade de cada obra para alcançar a particularidade do conjunto
do trabalho de um artista. Este, quando identificado, passa a se fazer presente nos santos, cujos
corpos, nesse sentido, envolvem mais que a evocação de uma divindade do panteão católico.
Nesses termos, “um São Jorge” passa a ser “um São Jorge do artista tal”. Em linhas
gerais, isso quer dizer que uma imagem específica foi atrelada a um repertório autoral mais amplo,
no qual se verifica a recorrência de certas características. No caso de uma peça feita por aquele
que é considerado o maior artista colonial brasileiro, um São Jorge pode ser chamado
‘simplesmente’ de “um Aleijadinho”70.
70 Como se pode ver, por exemplo, nas seguintes manchetes: “Quanto vale um Aleijadinho?” e “O homem que
[...] panejamentos angulosos, esculpidos em largos planos cortados por arestas vivas, os
cabelos e barbas com deliberado efeito ornamental, os olhos amendoados com
acentuação dos lacrimais, as sobrancelhas altas e ligadas visualmente ao nariz, os lábios
de desenho sinuoso, os bigodes em linha contínua com o septo nasal, a articulação em
V dos pescoço e estrutura robusta dos corpos, com musculatura e veias evidentes.
(OLIVEIRA et al. 2002, p. 24).
Os autores que elencaram esses traços como típicos do estilo pessoal de Aleijadinho
arrolaram ainda outros – “o canon baixo das esculturas, a implantação paralela do polegar e os pés
dispostos em ângulo reto” (OLIVEIRA et al. 2002, p. 23) – como pertencentes a um repertório
mais geral de gosto e estilo de época, que apesar disso, rotineiramente é associado apenas ao
famoso escultor. Além disso, certas especificidades – “como a barba bipartida deixando a parte
central do queixo aparente, as barbas frisadas em rolos, as mechas em vírgula na testa, os malares
salientes [...]” (OLIVEIRA et al. 2002, p. 24) – a despeito de dizerem respeito, sobretudo, aos
personagens de uma obra específica do escultor, os Passos da Paixão, são procuradas a todo custo em
imagens que não fazem parte desse conjunto.
Vulgarmente, para um São Jorge ser “um Aleijadinho”, portanto, não basta o corpo de
um santo que possua lança, armadura de soldado etc., é preciso também conter a presença dos
elementos diacríticos mencionados acima. Muitos deles se referem, entretanto, a imagens, como as
dos Passos, feitas para atuarem em uma localização bastante específica. O conjunto em questão
continua integrando o adro da igreja para o qual foi esculpido entre 1800 e 1805, a Matriz de
Matosinhos da cidade de Congonhas-MG. Essa integração é fundamental para compreender a
gestualidade das imagens, exacerbada, feita para ser vista à distância e “incompreensível” se
desligada do seu contexto. Não há comunicação direta com o observador: as relações se fazem
entre os próprios personagens do grupo, subordinados à ação dramática da cena representada, a
martirização de Cristo, comumente chamada de “Paixão”.
Na visão dos especialistas, as características desse conjunto, considerado a obra-prima de
Aleijadinho, não podem ser tomadas como pertencentes a toda sua produção. Primeiramente, por
causa da especificidade de sua localização e também porque são representativas, ainda de acordo
com Oliveira et al. (2002), da fase mais madura da trajetória do artista, caracterizada por uma
maior estilização em contraposição ao naturalismo de quando estava formando seu próprio estilo71.
A partir de comparação com os problemas de autoria colocados por obras literárias
Guiomar de Grammont (2008) critica o estabelecimento de convenções nas Artes Plásticas que
levam à anacrônica construção de uma individualidade autoral. A autora discute ainda como as
71Segundo Oliveira et al. (2002), o caminho de Aleijadinho do naturalismo à estilização compreendeu três fases:
Primeira fase (Formação do estilo - c. 1760-1774); Segunda fase (A realidade idealizada - c. 1774-1790); Terceira fase
(A espiritualidade sublimada - c. 1790-1812).
95
características do que seria o estilo Aleijadinho acabam por dificultar o trabalho das próprias pessoas
que as alçaram ao caráter de “padrão”, principalmente quando estas se deparam com um curioso
fenômeno: peças que são visivelmente “um Aleijadinho”, mas não se parecem com Aleijadinho.
Grammont cita o exemplo de Germain Bazin72, um dos primeiros a estabelecer alguns
dos parâmetros que se tornaram praticamente cânones das imagens do artista, que ao defrontar-
se com uma imagem de Cristo Flagelado a atribuiu inicialmente ao escultor, mas posteriormente
hesitou por encontrar na peça a falta do furo no queixo e barba sem a famosa repartição que seria
característica de qualquer “Aleijadinho”. Os chamados estilemas autorais não se faziam presentes
na imagem, mas o autor sim. Afinal, como uma peça tão extraordinária não seria obra da persona
artística mais extraordinária de que se tinha notícia em termos de esculturas de santos coloniais?
Todo mundo quer ter um Aleijadinho. Porque se for um museu, o museu cresce, o acervo
do museu fica melhor. Se for um comerciante, algo que vale dez, se for do Aleijadinho vale
cem. Ele teria que ter vivido três vidas para produzir tudo que dizem que é dele.
72 Historiador da arte e ex-curador do Museu do Louvre que, como informado no capítulo anterior, visitou igrejas
brasileiras a convite do primeiro diretor do então SPHAN, Rodrigo Melo Franco de Andrade.
96
A pretensa vastidão da obra do artista (e aqui não chamá-lo de artífice é uma forma de me
aproximar dos meus principais interlocutores em campo) coloca em relevo uma série de aspectos.
As imagens que fogem da tipologia esperada para uma peça do escultor contrariam especialistas ao
passo que revelam outros. Exemplo ilustrativo é o de um colecionador que foi processado por ter
afirmado que um Cristo de Aleijadinho pertencente a outro colecionador seria “ruim e bixiguento”
(CLAUDIO, 2016). A apreciação negativa foi feita por ocasião da exposição na mostra “Brasil
Barroco – entre o céu e a terra”, apresentada no Petit Palais de Paris em 1999. De acordo com o
proprietário da imagem, o comentário fez um potencial comprador desistir da aquisição da obra,
apesar do Cristo em questão ter sido atribuído a Aleijadinho, no passado, por Germain Bazin.
73 Myriam Oliveira, como já foi mencionado, é historiadora da arte, atualmente professora da UFRJ e consultora do
IPHAN. Olinto Rodrigues e Antônio Fernando integram os quadros do IPHAN e participaram da realização de
inventários de milhares de bens tombados pela instituição, especialmente, em Minas Gerais, por isso mesmo foram
citados várias vezes por ocasião do trabalho de campo que realizei no IEPHA-MG.
97
74 O lance mínimo para arrematar um lote de sete peças atribuídas ao escultor colocado a leilão no Rio de
Essa longa incursão no universo de questões em torno das obras de Aleijadinho se fez
necessária porque a incontornabilidade dessa figura que, por essência, ofusca, é rentável nesse
trabalho à medida que aponta para uma “antropologia da admiração”, como na elaboração de
Natalie Heinich (1991), a propósito do “l'effet Van Gogh”. Ao discutir a glorificação do pintor
holandês, a autora argumenta como a utilização do termo legenda ou hagiografia não é
metafórico, pois a celebração biográfica do artista recupera as principais características das vidas
dos santos, abarcando tópicos de dimensão sacrificial e heroísmo, por exemplo.
Nessa mesma direção, Roger Bastide (1941, p. 13) já havia salientado o tom hagiográfico
que permeia as narrativas sobre Aleijadinho: “assim como em torno do santo, flutua em torno do
artista uma auréola de legenda.” Para o autor, o “mito” sobre o escultor compõe um conjunto de
representações coletivas em torno dos grandes mestres das artes no Ocidente pautado no modelo
do herói, do ser que “escapa à condição humana porque é um mensageiro dos deuses”,
perseguido pela “Fatalidade” (BASTIDE, 1941, p. 15, maiúsculo no original).
A partir dessas referências, o ‘efeito Aleijadinho’ diz respeito em menor medida a esse
deslocamento para o domínio das biografias de artistas de formas de vida consagradas como
santificadoras; mas, sobretudo, e indo além dos textos, ao modo como a canonização em questão
envolve formas e particularidades autorais capazes de nos colocar na presença de entidades e de
especialistas reputados como hábeis para identificar a presença delas.
Tal caminho analítico leva ao domínio da magia, no qual os seres, no nosso caso,
obra(s) e artista, não se distinguem substantivamente entre si. Imagino que o
enveredamento por essa seara não seja uma surpresa para o leitor, uma vez que se
abordaram objetos que têm a “força de expressão” característica de um artista como fator
constituinte de sua excepcionalidade enquanto obra de arte. Como visto, ao simular as
condições de execução da peça e entrever sua lógica de construção plástica, o especialista
pode especular sobre a complementaridade da matéria e das técnicas empregadas, mas
termina por ratificar que a imagem é um feito fora do comum, que discípulo ou falsificador
nenhum seria capaz de copiar.
Nesse sentido, a avaliação de um santo como “ruim e bixiguento” pode soar como
imprecação de colecionador invejoso, mas também como alerta de quem tem um
conhecimento específico de causa. O olho bom é tanto acionado, quanto visto com
desconfiança pelos próprios colecionadores, posto que enxergaria além em causa própria,
atribuindo peças de suas próprias coleções particulares a grandes artistas. Nesses casos, o
olho bom, não passaria, portanto, de olho grande, que quem tem, obviamente, é sempre o outro.
75 O olhar é inclusive um dos caracteres físicos que revelam o mágico quando ele se esconde: trata-se de um
olhar vivo e nervoso, que pode fazer com que a pessoa seja temida por sua capacidade de lançar “mau olhado”
e, consequentemente, fazer mal ao outro. Para além desses agentes, cuja especialidade se faz visível através do
olhar, os autores destacam ainda que as pessoas com inteligência considerada anormal têm olhos diferenciados.
100
Por tudo já visto podemos traçar tipos ideais de olho e considerar que ter olho bom
é diferente de ter olho treinado. O olho bom, mais do que exercitado, é o olho de alguém com
capacidade acentuada de discriminar estímulos sensoriais. O elogio dessa acuidade é
propalado e faz parte do ethos dos colecionadores, mas é interessante explorar que tal
capacidade não é acionada textualmente sem maiores constrangimentos pelos
profissionais do campo do patrimônio mencionados acima. Como me disse um
historiador da arte, “um especialista na obra de Aleijadinho nunca vai colocar isso em um
laudo, mas para nós fala coisas do tipo: – é obra dele porque eu sinto isso”. É interessante
notar que essa ‘certeza interior’ não é completamente apagada nos textos sobre as obras
atribuídas ao artista, como visto no tópico anterior.
Nem visão trivial, nem investigação científica: quem tem olho enxerga mais do que aquilo
que se vê porque, ao ser eleito pelos desígnios do artista, consegue se comunicar com a força de
sua obra. Essa transação envolve tanto intimidade – sente-se a presença e emula-se as astúcias
técnicas para criá-la – quanto respeito – admite-se que ninguém mais seria capaz de fazê-lo.
Quando me propus a aprender com o colecionador, estava claro que uma das minhas
empreitadas seria treinar meu olhar:
Essa santa é provavelmente baiana, eu também conheço pelo estilo, pela maneira de pintar,
pelo pedestal, você vê que ela não é pernambucana e nem mineira.
Já esse aqui é pernambucano, esse pedestal não é autêntico, de uma parte ele é todo
autêntico, mas daqui pra baixo ele não é. Se você tiver um olho bom você percebe
que foi construído. Está bem harmonioso, mas ele só é autêntico daqui para aqui.
Essa santa é provavelmente europeia, provavelmente portuguesa, essa é
provavelmente de Pernambuco. Tudo eu sei pelo estilo. Essa é portuguesa, com
toda certeza, por esse tipo de pedestal bem elaborado, mas eu ainda penso que essa
santa tem alguma coisa de italiana. Aí você vê que é um santo muito próximo da
arte grega, olha já a arte baiana como é nordestina.
Como se pode perceber, nos momentos iniciais do trabalho de campo, nos quais
essas falas foram registradas, o que me era apontado não eram questões de autoria. Fui
primeiramente orientada a notar origem (“pernambucana”, “mineira”, “portuguesa”,
“italiana”); autenticidade e integridade da peça (se suas partes constituintes lhe foram
acrescentadas, subtraídas, modificadas ou substituídas); originalidade do acabamento e, não
menos importante, a iconografia.
78Os ex-votos que abordei durante esse percurso de pesquisa não são considerados artísticos. Fotografá-los
foi justamente um exercício de destacá-los da multidão em que se inseriam para discutir outras formas de
singularização das peças. Parte do conjunto de fotos resultante desse exercício resultou no ensaio “E o
milagre se fez corpo”, apresentado em 2009 na exposição fotográfica da VIII Reunião de Antropologia do
Mercosul, em Buenos Aires.
103
Na opinião do professor, por mais que eu tivesse lidado basicamente com objetos
industrializados, feitos de cera, parafina e outros materiais considerados pouco nobres, eu deveria
ter me atentado à possibilidade de texturas variadas, densidades, volumes e formas nem sempre
decodificáveis pelos olhos, quanto mais em reproduções bidimensionais. Nessa linha de
raciocínio, uma neófita no mundo das coisas só deixaria de ser principiante se adquirisse
conhecimento de modo – literalmente – palpável79.
Eu deveria ter ex-votos para quando precisasse consultá-los, assim como recorremos a um
livro na biblioteca pessoal. Na impossibilidade de adquirir uma imagem antiga, eu deveria possuir ao
menos um fragmento para frequentar a constituição da escultura. O que estava sendo dito é que o
saber sobre as coisas envolve a aquisição não só de um olhar privilegiado, mas de uma certa
proficiência sensorial. Assim, para além da visão, outros sentidos precisavam ser convocados e, mais
do que isso, adestrados. A integridade de uma imagem exteriormente conservada, por exemplo, pode
ser aferida com batidas na madeira. Para quem tem a audição apurada, o teste de percussão indica
se o interior da obra está oco, se há indício de infestação de cupins etc.
79 Para Benjamin (2006, p. 241), a relação do colecionador com suas coisas é permeada de “instinto prático”, cuja
posse permite o aprimoramento: “possuir e ter estão relacionados ao caráter tátil e se opõem em certa medida à
percepção visual. Colecionadores são pessoas com instinto tátil. A propósito, com o abandono do naturalismo
terminou recentemente a primazia do óptico que dominou o século anterior.”.
104
Certo dia durante o trabalho de campo, Antônio me intrigou ao dizer que meu lugar de
“aprendiz de feiticeiro” estava garantido, mas que se pensássemos em “quadro teórico como
religião”, ele ainda estava por saber qual seria a minha. Entendi que o professor esperava uma
postura mais propositiva da aluna e tentei amenizar lhe mostrando um artigo que tinha publicado
recentemente (GOMES, 2013) a partir do qual conversamos bastante. Além disso, reiterei que
meu percurso acadêmico de modo algum se equivalia ao que eu poderia aprender observando-o.
105
Comecei a ser apresentada mais detidamente aos santos da coleção de Antônio por
meio de duas imagens de Santa Luzia. A iconografia dessa santa não me era completamente
estranha. Trata-se de uma santa muito conhecida como protetora dos olhos, logo, muito
invocada por pessoas que buscam a cura para problemas de visão. A associação da santa com
tal parte do corpo diz respeito a duas versões de sua hagiografia. Uma delas é feita pela
referência ao seu nome, que remete à luz, fundamento da visão e da via lucis, o caminho reto e
iluminado (VARAZZE, 2006). Outra, bastante corrente no Brasil, ressalta o episódio do
martírio na qual a jovem Luzia teve os olhos extraídos. Em decorrência disso, estes últimos se
tornaram um atributo particular da santa, que os mostra em um prato ou taça. Vejamos em que
termos Antônio me apresentou suas Santas Luzias:
Uma Santa Luzia dessa foi encomendada por alguém que tinha dinheiro. Aqui é a
mesma técnica do Aleijadinho, uma talha fantástica. Isso é muito erudito. A pessoa
que entalhou é provável que seja a mesma pessoa que tenha dourado. Isso aqui é
folha de ouro. Essa santa tem mais de cem anos. Essa coroa é prata e ela está
absolutamente dentro dos padrões do barroco. Se você compara com essa outra
Santa Luzia, essa aqui é tão bonita quanto, só que essa aqui é uma santa do culto
doméstico. Autor, o mesmo problema que tinha lá tem aqui. Talvez aquela lá até
tenha um recibo e se identifique o autor. Essa aqui nem recibo tem.
106
Ambas as santas chamadas de Luzia, de acordo com o que o colecionador mostrou, têm
corpos bastante diferentes. É interessante notar que os dois pares de olhos – os da face e os
mostrados em um objeto segurado pela santa – sequer são mencionados. O que se ressalta é que
uma das imagens custou caro, foi talhada de forma erudita, dourada com folha de ouro, ostenta um
adorno em metal precioso e talvez a pessoa que lhe deu forma tenha emitido um recibo que
ateste a venda do seu trabalho. A outra é “– Tão bonita quanto”, porém “– É uma santa do culto
doméstico” de autoria não identificada. Tais distinções, tão nítidas para meu interlocutor, para
mim constituíam um imenso volume de dados opacos. Nas primeiras descrições de imagens que fiz
em minhas notas de campo eu não conseguia mais do que adjetivá-las como mais ou menos
‘interessantes’, ‘reluzentes’ ou ‘vistosas’.
Essa caracterização pode até sugerir algum encantamento, mas é pertinente notar que
comecei a complexificar essas imagens justamente a partir de outras que, num primeiro golpe de
vista, ao invés de despertar minha admiração, me causaram estranheza pelo estado em que se
encontravam. São as imagens de santos desfiguradas, os fragmentos mencionados como mercadorias
em promoção na descrição da galeria de Antônio Marques presente no primeiro capítulo. Para o
colecionador, esses objetos são importantes a despeito de não (mais) personificarem santos
imediatamente identificáveis aos olhos mais leigos porque nos contam a respeito da “história” da
peça e, além disso, nos ensinam sobre processos de fabricação dos santos.
Porque o santo perde a cabeça? Porque em geral, pra ter o olho de vidro, eles dão
um corte na cabeça, para colocar o olho por trás... Então, esses sem a parte da
frente da cabeça, servem inclusive para você saber como eram feitos os santos
[antigos] pintados. Primeiro, é a madeira, depois é estucado com um gesso especial,
aí depois é que eles vão aplicando as camadas de ouro, de tinta, colocando olho...
essas peças são uma lição. (grifo meu)
Por meio desses dizeres, percebi que por mais que seja estranho olhar para um rosto
que não ‘olha de volta’, precisava entender a desfiguração como característica instituinte da
função dos fragmentos naquele contexto. Nessas peças, a falta dos olhos não é exatamente uma
ausência, e sim uma pista sobre o uso de uma solução técnica que buscava incutir efeito de
realismo no olhar da imagem. Para tanto, como o colecionador explicou, a cabeça era cortada
verticalmente depois de talhada, do alto até debaixo do queixo, na direção das fibras,
separando a face do crânio com um golpe seco de formão80.
80O formão é um dos principais instrumentos de trabalho do escultor. Formado por um cabo de madeira e uma lâmina de
aço afiada, de modo geral, é utilizado juntamente com o martelo nas partes da obra que demandam gestos incisivos e
enérgicos para trabalhar a madeira, como o desbaste inicial para subtrair partes que não participarão da forma final da
imagem e o mencionado “golpe seco” para separação da face e do crânio com vistas à colocação de olhos de vidro.
107
A partir do aporte de Gell (1998, p. 6), e sua perspectiva relacional contida na obra
póstuma Art and Agency, cabe pensar como um objeto “age” enquanto integrante de um
“sistema de ação”. Assim, somos levados a buscar aquilo que acontece com e por causa dos
objetos, que por sua vez constituem-se das relações que instanciam. Um soldado é uma das
diversas figuras utilizadas pelo autor para pensar a relação entre pessoas e coisas: “um
soldado não é só um homem, mas um homem com uma arma” (GELL, 1998, p. 20). É o
objeto que faz do homem o que ele é, já que sua agência só existe em conjunção com a arma
que ele tem à disposição. Assim, repensamos o homem, mas também a arma que ele segura.
Através dessa linha de raciocínio contextual, visualizo o fragmento enquanto coisa que
faz do interlocutor-colecionador um professor. Este, por sua vez, ativa no santo danificado
– prenhe de possibilidades de funcionamento – o caráter de lição. Os olhos de Santa Luzia,
como visto, são sinais distintivos da imagem dessa santa em particular, mas sequer foram
citados na descrição que Antônio fez de duas delas. Já nos fragmentos, são os olhos de vidro
– ou melhor dizendo, a ausência deles – que nos direcionam para um modo de construir
tecnicamente o olhar e as expressões fisionômicas fixadas por esse elemento no rosto dos
santos, ou seja, no contexto em que fui apresentada a algumas imagens, os olhos importavam
enquanto artifício e não como atributo específico de uma santa ou, tomando em
consideração outras estátuas de divindades, como elemento que possibilita comunicação
visual entre quem vê e quem é olhado.
Não ser olho de santo. Não ser coisa que exija excesso de cuidado, exagerada preocupação
de acabamento. (AURÉLIO, 2008)
Os olhos de vidro são elementos do rosto dos santos que frequentemente figuram no
centro de episódios em que se noticia a agentividade de imagens que choram, piscam e acompanham
o deslocamento das pessoas com o olhar. David Freedberg (1989) nos diz a respeito:
Eyes […] provide the most immediate testimony of life in living beings; in images –
where substance, at the first level, excludes the possibility of movement – they are
even more powerfully capable of doing so. If an image is perceived as particularly
lifelike, then the absence of the eyes may inspire terror. Their presence enables the
mental leap to an assumption of liveliness that may not, in the first instance, be
predicated on similarity or on te skill of the artist of craftsman. Hence the
perceived liveliness of images with eyes, or the acquisition of vitality by acts of
completion involving the insertion of eyes. (FREEDBERG, 1989, p. 202).
Apesar desse relevo conferido aos olhos, é preciso ter em conta que outras coisas
participam da construção das imagens carregando-a de possibilidades de interação sensorial
com os devotos ao torná-las semelhantes ao corpo de uma pessoa: perucas confeccionadas
com cabelos humanos, roupas em tecidos luxuosos, joias feitas de metais e pedras preciosas,
rubis para efeito de gotas de sangue e cristais para lágrimas.
Como bem demonstrou Edilson Pereira (2014), não é possível afirmar quando uma
imagem está “completa”, também inspirado em Gell (1998), o autor afirma; “No caso de
imagens religiosas, o próprio templo pode ser tomado como uma parte que lhes abriga. A
imagem seria, nesse caso, o ‘coração’ do templo, e esse mesmo o corpo.” (PEREIRA, 2014, p.
57). Nessa perspectiva, uma estátua de santo é uma composição instável e não a soma
contínua de coisas que em algum momento lhe confere uma forma acabada, pois a totalidade
de um corpo que pode ser continuamente expandido é sempre provisória.
110
Sabe-se que as imagens barrocas foram feitas para interagir não apenas com quem as
olha, mas também com o ambiente onde figuram. Sendo assim, a noção de movimento que
pode ser transmitida pelo olhar diz respeito ainda ao vento e à luz das velas e lamparinas que
incide nos olhos de vidro. Essa mesma iluminação vacilante sugere movimentação dos
planejamentos quando recai sobre os detalhes dourados das roupagens.
Face ao exposto, vale lembrar que não necessariamente uma imagem com numerosos
elementos em seu corpo (ou ao redor dele) instancia mais relações do que uma de
configuração mais sucinta. A humanização das imagens de vestir, por exemplo, pode ser
evidenciada não só quando estão ricamente ornadas e prontas para serem expostas, mas
também nas situações em que se prescreve que elas não podem ser vistas “nuas”. Como
abordei no primeiro capítulo, na opinião de alguns profissionais que lidam com essas imagens,
não só “as vergonhas” delas devem ficar escondidas, como também o processo construtivo
daqueles corpos, que não é do conhecimento de todos.
De acordo com o que demonstrei a partir das considerações de Taussig (1999, 1997), o
tabu sobre a revelação das partes mais recônditas das imagens não se resume apenas ao
respeito dos profissionais à lógica devota de relacionamento com os corpos dos santos. Em
vista disso, inferi a respeito da transgressão envolvida na exposição do que só poderia ser
dado a ver pela mediação de um conhecimento técnico particular. Essa proposta analítica que
tematiza o acesso ao sagrado a partir de uma complexa dinâmica de ocultação e revelação
também é pertinente para refletir sobre outro tipo de imagem ‘despida’: o fragmento.
Lembremos que na análise de Taussig, as desfigurações – de monumentos, símbolos ou
corpos – são particularmente reveladoras, uma vez que o defacement, o gesto que desmascara,
atrai ao passo que revela a interioridade.
Não é qualquer gesso. Tem que ser o gesso cré, que é barato, mas não se compra em
qualquer lugar. Ele é especial porque você prepara e ele não endurece de imediato,
você passa um mês com ele preparado e ainda pode ir uniformizando a madeira com
ele. Com gesso normal não é possível fazer esse nivelamento preciso, que deixa a
superfície regular, porque o gesso normal seca rápido e tende a craquelar.
A camada de gesso era molhada com água ou albumina (clara de ovo) para facilitar a
aderência de folhas de ouro à peça (ETZEL, 1979, p. 66), mas geralmente o pré-
douramento era feito com aplicação de “bolo armênio”, uma argila de tom avermelhado de
origem inicialmente armênia e depois trazida também da África. As folhas de ouro,
igualmente importadas, recobriam total ou parcialmente a indumentária e os atributos dos
santos. Por serem extremamente delgadas, sua aplicação demandava gestos precisos e
delicados. Segundo meu principal interlocutor,
Aplicar folha de ouro é um negócio de outro mundo, por isso, a gente entende que
esse costume foi sendo deixado de lado pelos santeiros. Ela é finíssima, se você soprar
ela se quebra, para você ter uma ideia. Então no lugar de aplicação não pode ter
nenhum ventinho. Elas chegam inteiras porque vêm de fora em bloco. (grifo meu).
Sobre as folhas de ouro aplicava-se ainda uma pintura, em geral, têmpera, deixando
descobertas áreas do metal que compõem ornamentos dos tecidos. Outra possibilidade era
a retirada da pintura, deixando linhas douradas aparentes (o esgrafiado, ou sgrafitto) e, ainda,
o trabalho de incisões e relevo sob o ouro. Como afirma Eduardo Etzel, “o estofamento foi
o acabamento do século XVIII por excelência, e com ele a virtuosidade do artista-santeiro
chegou ao seu ponto mais alto.” (ETZEL, 1979, p. 66).
81 Ao longo do texto faço menção, sobretudo, ao trabalho sobre madeira, material da maioria das imagens com as
quais lidei em campo. A constituição material diferenciada de um santo será mencionada quando for relevante
para a discussão em questão. Por ora, ressalte-se que apesar do predomínio da madeira, desde o período colonial
têm-se imagens em barro, pedra sabão, marfim, osso, metal e, mais recentemente, em gesso e resina.
112
Ter olho para certas astúcias técnicas não significa ser capaz de produzir imagens tais
como aquelas esculpidas no bojo do ‘efeito Aleijadinho’. É nessa decalagem, segundo
Gell (2005), que reside o “encanto da tecnologia”. Quando os expectadores de uma obra
se indagam sobre os procedimentos empregados para produção de efeito (de vida,
movimento etc.) e mesmo assim não conseguem reconstruí-la mentalmente, o artista
alcançou um ideal mágico. A maestria reside, assim, na habilidade de produzir imagens que
maravilham a ponto de personificarem os processos técnicos que lhe dão forma,
dispensando a necessidade de explicação sobre eles e certos tipos de perícia, como
Antônio enunciou, são “negócio de outro mundo”.
Nesse sentido, tornar visível o trabalho do artista que incrusta os olhos nos rostos dos
santos é uma forma de desmistificar a produção do olhar que a imagem lança em direção aos
devotos. Esse movimento, entretanto, não elimina por completo o mistério dessas obras.
Uma vez que o rosto é uma parte particularmente ‘transparente’ do corpo – e “não conhece
nudez, porque sempre já está nu” (AGAMBEN, 2007, p. 70) – o santo mutilado é aquele que
assusta ao prescindir da expressividade da face para revelar sua verdade. Seu encantamento
específico, para o colecionador, não está no olhar. A beleza oculta e particular dessas peças
está nas camadas que concentram o que restou de preciosismo técnico.
113
3 AS MÃOS E AS IMAGENS
Figura 34 – São João Batista Menino E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Foto: Lucas Galeno para o Catálogo Com uma coroa toda à roda de espinhos
Patrimônio Recuperado, sem data, p. 58 E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
[...]
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três,
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
[...]
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
[...]
Depois ele adormece e eu deito-o
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.
[…]
No capítulo anterior aventei o quanto a destreza dos gestos criadores característicos das
imagens eruditas envolve o aperfeiçoamento do corpo entalhado com recobrimento de outras
camadas de material. O fragmento, o santo desfigurado, além de permitir a visão dessas camadas,
compostas de materiais diversos, transfigura-se em aula porque mostra outras possibilidades de
acabamento e sugere os motivos do desgaste revelador. Nas palavras do colecionador-professor,
Veja esse Santo Antônio aqui. Eu encontrei desse jeito. Eu poderia procurar um
bom restaurador e colocar o bracinho, tirava essa tinta, colocava um boa, botava até
folha de ouro. Só que fica caro e, além disso, a história dele é essa. A pessoa não
teve cuidado, a família... mas... esse Santo Antônio, você olha pra ele e vê uma
expressão de tempo maravilhosa, de coisa gasta.
Restaurar a peça, remover sua pintura e colocar uma tinta boa, quiçá recobri-la com folha de
ouro, são ações ao alcance do colecionador, que deve conhecer profissionais adequados para tais
intervenções. Entretanto, “ – A vivência com as peças faz com que um bom colecionador seja
também um pouco restaurador”, afirma Antônio, agora não só com fragmento em mãos, mas também
com alguns instrumentos utilizados no seu cotidiano com os corpos das imagens: pincéis, trinchas,
goivas e outros: “ – Mandar para o restaurador nem sempre é uma boa porque, às vezes, são pessoas
que aprenderam a técnica, mas não tem a vivência necessária para saber o que deve mexer ou não.”
Os restauradores com técnica e sem “vivência com as peças” – isto é, que as têm em mãos em
um momento específico para prestar um serviço para terceiros que convivem com elas de modo
permanente – podem remover parte da biografia da imagem que não é composta apenas de preciosismo
técnico ou de usos que conservam suas superfícies intactas, incluindo o encontro do colecionador com
o exemplar. Nota-se que, se de um lado, o colecionador ressalta ser um pouco restaurador também, por
outro, ressalta a opção por manter a peça do jeito que encontrou. A obra ‘descascada’ deixa entrever
melhor a forma e os estratos – de materiais, de tempo – que conformam sua história.
115
Para Antônio, o fato de alguém retirar a policromia feita pelo santeiro no momento de
finalização da peça é um processo delicado não só porque “apaga a intenção do artista”, mas
também pelo seu potencial de “machucar” a peça. Isso porque a tinta aplicada diretamente na
madeira adere-se a ela e sua remoção de modo geral implica em retirada não só da pintura,
mas também de pequenas lascas do material que a policromia recobria. Entretanto, segundo
meu interlocutor, “– Outra coisa é ir arreando as camadas de uma santa que recebeu, de
pessoas diferentes, quatro, cinco mãos de tinta e que chega muito danificada até você. Isso eu
já fiz. Aí o complicado é que tem que saber a hora de parar.”
116
Há duas tendências nesse assunto: uma prefere a imagem em sua pureza original
ainda que mutilada; outra admite em certos casos a complementação.
Observando-se uma peça antiga, nem sempre há necessidade de uma reposição de
mãos, por exemplo. Ela é bela como está e a reposição iria alterar o equilíbrio
entre a idade do objeto e seu compreensível mutilamento. Seria o mesmo que
colocar os braços na Vênus de Milo. Em outros casos, há necessidade de
complementação para estabelecer o equilíbrio estético da peça, estando indicada a
reposição. (ETZEL, 1979, p. 150).
82
Os resplendores são os acessórios comuns a vários santos e remetem ao halo (ou nimbo), um círculo de
luz que circunda a cabeça dos santos ou auréola com raios dando destaque a essa parte do corpo: “O halo,
em si, traduz uma característica subjetiva de santidade, de dignidade, de honra e de inteligência, própria da
figura da coroa – a qual nem sempre é dada a um santo.” (TAVARES, 1990, p. 157) A coroa, por seu turno,
seria reservada às representações da Virgem Maria, do Menino Jesus e do próprio Cristo (COELHO;
QUITES, 2014, p. 115) e dos santos que foram reis ou rainhas.
83 Pinos, grampos e hastes também eram incutidos nos santos para propiciar a adaptação de enfeites no topo da
Quantas vêzes, por não serem concedidas as graças solicitadas, os santos eram
mutilados: arrancavam-lhe as mãos, quebravam-lhes os dedos, tiravam-lhes os
atributos. Quando, porém, o santo mostrava-se bondoso retribuíam-lhe com presentes:
jóias, dinheiro, comida ou mesmo nova encarnação. (HERSTAL, 1956, p. 93-95)
Apesar do uso dos verbos no passado feito pelo colecionador de imagens antigas, sabe-se que
eles também designam ações praticadas nos dias atuais: “Devotos mantêm relações com as imagens
que envolvem proximidade, manuseio, deslocamento, exposição às intempéries, em atos como
pegá-las, beijá-las, molhá-las, movê-las.” (MENEZES, 2013) As festas de santo são ocasiões em que
essas ações notadamente se multiplicam, a começar pela preparação da imagem com flores e outras
coisas que são colocadas sobre seu corpo ou na sua vizinhança. O ato de mostrar o santo nos dias
festivos, muitas vezes, é precedido pela limpeza do seu corpo, lavado em água corrente.
Raquel Lima (2014) aponta para a preocupação dos devotos com a limpeza dos santos. A
partir da descrição de uma situação na qual uma vendedora de artigos religiosos ensina um
devoto a lavar Santa Rita utilizando sabonete, esponja e pano novos, pois não usaria “pano de
cozinha” para assear a santa, a autora discute como o gesto em questão motiva as pessoas
envolvidas a estabelecerem os limites da interação com a imagem.
É nessa seara de pensar certas práticas devocionais como ambíguos gestos de cuidado que
Renata Menezes (2013) discute os limites e as continuidades entre objeto religioso e objeto de arte.
Valendo-se da ação amplamente alardeada como “restauração desastrosa” de um quadro com a face
de Cristo em Borja, na Espanha, a autora levanta a hipótese que a senhora octogenária responsável
pela renovação da obra “seria menos uma restauradora espontânea e mais uma devota zelosa”84.
84 A restauração do quadro foi amplamente noticiada em 2012. O rosto de Jesus do episódio foi
originalmente pintado por Elias García Martínez, no século XIX, numa das paredes do Santuário da
Misericórdia, uma pequena igreja local.
118
Se for cruzada a reflexão acima com a noção de vivência com as imagens de meu principal
interlocutor, é interessante notar como o paradigmático episódio que tirou um Ecce Homo do
anonimato e o tornou “o Cristo de Borja” amplificou o abismo entre o cuidado realizado no
contexto de uma relação de devoção e a conservação/restauração mobilizada pelo saber
empírico acumulado ao longo dos anos de prática de colecionamento. Se no primeiro contexto
a convivência com as peças pode propiciar o acesso e a liberdade para intervenção nelas; no
quadro de ações do segundo, têm-se agentes com parâmetros muito distintos de cuidado.
Para o devoto, entretanto, a imagem em gesso pode ser carregada de valores de outra
ordem. A prescrição da bênção se faz, sobretudo, para despojar a peça de seu caráter de
mercadoria. Durante o rito, as imagens são tocadas pela água benta aspergida por um
sacerdote. Desde Durkheim (1989) sabe-se que os ritos de consagração colocam em operação
a “contagiosidade do sagrado”85, aqui interessa pensar a água como veículo desse contágio.
85Diz o autor: “Longe de ficar preso às coisas que trazem a sua marca, [o sagrado] é dotado de uma espécie
de fugacidade. Até o contato mais superficial ou mais mediato basta para que ele se propague de um objeto a
outro. […] é sobre esse princípio da contagiosidade do sagrado que repousam todos os ritos de
consagração.” (DURKHEIM , 1989, p. 384-385).
120
Ainda de acordo com o autor, “em Portugal e Brasil diz-se que o santo era visitado
comumente pelo Menino Deus, e a iconografia antonina reproduz abundantemente a
tradição.” (CASCUDO, 1988, p. 90) Nessa direção, o menino carregado por Santo Antônio, um
de seus principais atributos, é o alvo preferencial para coagi-lo a “arrumar” namorados e
maridos para as devotas. A escultura do bebê ou criança destacada da figura principal,
configurando um corpo independente bem-definido à parte, inclusive pode ser entendida
como atendimento à demanda de uma imagem em que esse elemento específico é passível de
ser “roubado” de forma temporária e, posteriormente, restituído, caso o santo seja solícito na
“arrumação” dos parceiros. Não raro exemplares de Santo Antônio chegam aos
colecionadores portando a ausência do menino atributo e, por conseguinte, uma suspeita de
sequestro de parte constitutiva da imagem, como na descrição de Luís Saia:
Santo Antônio
Madeira – 20 cm de altura
São Miguel Paulista. SP. 1940.
O escultor colocou o santo em questão sob uma redoma fornecida pelo próprio
Antônio. Apesar da proteção da obra nessa espécie de sala de espera onde ela aguardaria sua
vez de ser trabalhada – já que o artista tinha outras encomendas para finalizar – o
colecionador não deixou de exprimir que só deixa uma imagem estimada como aquela com
quem tem muita confiança e, mesmo nesses termos, a separação temporária “dói”:
O ciúme da gente é uma coisa de louco, eu fico fora de mim se acontecer alguma coisa.
E infelizmente é mais comum do que se imagina, uma peça daquela pode ter ficado
quase intocada por mais de um século dentro de um oratório e na movimentação que a
gente faz quando traz para casa, leva para uma exposição, quando vai limpar,
complementar; esbarram, deixam cair... E dói de novo só de pensar.
Os suplícios nos corpos das imagens também derivam da ação de insetos e fungos,
responsáveis por processos de deterioração que devem ser interrompidos pelo colecionador.
Antônio me ensinou que uma das técnicas consiste em “trancar” a imagem dentro de saco
plástico após a dedetização até que o cupinicida ou outro produto químico eficiente na
eliminação dos agentes prejudiciais seja absorvido e evaporado: “– Para o bicho morrer mesmo,
porque se a peça está muito furada, muito carcomida, se você apertar, ela pode se acabar.” Por
isso, a consolidação da estrutura física degradada pode requerer que buracos sejam tapados e
galerias sejam preenchidas, o que é realizado, muitas vezes, com a inserção de extratos de madeira
ou cera. Esta última é indicada principalmente quando o estrago é considerável.
É ainda preciso ter em conta as modificações tributadas às condições climáticas. O
excesso de umidade da região Norte do país ou a falta de partículas de água no ar na região
central, como acontece em Brasília, provoca movimentos na estrutura da madeira e o risco de
destaque da camada de estofamento, devido à sua dissolução ou ressecamento contínuo. Os
colecionadores dessas regiões precisam ser cuidadosos com a climatização dos ambientes onde
guardam seus santos ou privilegiar aqueles nos quais a pintura foi feita diretamente na madeira,
tornando-os mais resistentes, apesar do “acabamento menos sofisticado”.
A passagem do tempo em si não estraga a imagem. Uma certa roupagem conferida pela
temporalidade, a expressão de tempo, é inclusive benquista, como visto anteriormente. Considera-se
que a exterioridade das imagens antigas é especialmente incrementada quando a sua superfície foi
escurecida paulatinamente pelas fuligens originadas nas chamas dos fogões a lenha e das velas.
Nos estudos de Etzel (1979), a descrição do processo de envolvimento dos santos com a fuligem
– chamada de picumã – evoca a ideia de “pátina do tempo”:
Quando por acaso [a imagem] não tenha sido repintada, a pátina do tempo em casas
enfumaçadas lhe dá o aspecto usual escuro, marrom pela impregnação de gordura e de
fuligem. Nestas condições, limpá-la seria remover esta camada escura que é a marca
registrada e o selo de sua autenticidade. (ETZEL, 1979, p. 75, grifo meu).
No caso da fuligem, interessa remover uma parte sem limpar completamente a imagem
conservando-se uma pátina que enalteça a beleza da peça na sua antiguidade. Não
convém uma restauração para dar à imagem o aspecto de nova. (ETZEL, 1979, p. 149).
Annete Weiner (1992, p. 39) também observa o encrustamento de pátina como consequência
da passagem do tempo que altera os objetos sem, entretanto, diminuir seu valor, mas, como já
abordado, nem toda ‘pele’ sobreposta à imagem é indício de autenticidade. As imagens pintadas sem a
preparação com estofamento ou aquelas reencarnadas para o atendimento de propósitos devocionais estão
sujeitas a terem suas camadas mais externas removidas pelos colecionadores interessados nas formas
cujos detalhes consideram mascarados por pinturas feitas de forma amadora e utilizando-se de
materiais grosseiros. A retirada da 'roupa de festa' com a qual os devotos recobrem a imagem quando
solicitam que ela seja reencarnada, nesse sentido, pode significar até mesmo a dissolução da camada de
ouro (ou de outro material utilizado pelo artista popular para finalidade de douramento) com vistas a,
paradoxalmente, dar a ver o que “vale como ouro”: o trabalho escultórico.
O senso comum de que imagens são raspadas por pessoas interessadas em vender o
material precioso retirado de forma criminosa não se justifica. Como já informamos, as folhas de
ouro são extremamente delgadas e, portanto, a quantidade de ouro utilizada na nobre cobertura
dos santos é insignificante. A ‘desencarnação’ tem outras razões.
Quando a imagem já “está quase só no gesso”, com poucos resíduos de tinta, uma opção é
mergulhá-la em água durante dois ou três dias para dissolver a camada, processo facilitado pelo
intumescimento da madeira provocado pela submersão no líquido. Outra forma de acelerar o
processo é fervê-la em água. “ – Mas, às vezes, nem fervendo a tinta sai toda”, relata Antônio.
Há a possibilidade destas buscas pela proeza técnica escondida, tornarem, por outro lado,
a imagem “limpa demais”, como se tivesse sido submetida à “higienização museológica” cujo
resultado final não agrada ao meu interlocutor porque ao fim e ao cabo: “– Descaracteriza a
peça”86. Em vista disso, ele prefere a limpeza superficial realizada com pano, pincel e trincha,
86 A despeito da colocação do meu interlocutor sobre a prática de higienização levada a cabo nos museus, as
diretrizes museológicas atuais também não recomendam a assepsia generalizada. Um “ótimo estado de conservação”
diz respeito “... ao objeto [que] apresenta suas características originais preservadas, podendo possuir uma tênue
124
Já foi visto como ‘vestimentas’ e outras adições feitas por santeiros e por devotos têm
o potencial de modificar os corpos das imagens, podendo inclusive, por meio do acabamento
grosseiro, acrescentar grande contingente de fatura popular às peças de acabamento erudito. A
transformação de uma imagem popular em erudita, por outro lado, não se mostra como
alternativa atraente para os colecionadores. Em vista disso, a retirada da pintura de má
qualidade feita pelo santeiro ou da reencarnação realizada a pedido do devoto, geralmente, não
é seguida do processo de acabamento refinado, mesmo considerando que os colecionadores
conheçam seu funcionamento ou profissionais que saibam executá-lo.
Se a imagem é decapada para dar a ver o trabalho esmerado do artista na escultura, por
que o que é encontrado sob a tinta espessa ganha novas roupagens, como um “tom de
antigo” atingido com pinceladas de betume, mas não é lapidado para ter o brilho dos santos
eruditos? Se até então nos detivemos principalmente nos revestimentos das imagens, para
responder tal questão é preciso analisar em que medida as formas sob as camadas mais
externas dos santos populares são diferentes das dos eruditos.
... não houve um senhor branco, por mais indolente, que se furtasse ao sagrado
esforço de rezar ajoelhado diante dos nichos [...] o terço, a coroa de Cristo, as
ladainhas. Saltava-se das redes para rezar nos oratórios [...] rosários, bentos, relicários,
patuás, Santo Antônios pendurados no pescoço, todo material necessário às
devoções e às rezas [...]. Dentro de casa, rezava-se de manhã, à hora das refeições, ao
meio-dia e de noite, no quarto dos santos; os escravos acompanhavam os brancos no
terço e na salve-rainha [...]. (FREYRE, 2000, p. 254, grifo meu).
pátina do tempo, o que não impede sua perfeita leitura estética.” (CADERNO de Diretrizes Museológicas, 2006, p.
55, grifo meu) Nessa direção, “uma das preocupações permanentes dos profissionais de conservação é de que a
higienização dos objetos, ou seja, a ação de eliminação de sujidades, como poeiras e partículas sólidas, se restrinja a
uma limpeza superficial, sem causar danos à peça.” (ibid., p. 132)
87 Substância mineral escura e viscosa, resultante da decomposição de matéria orgânica.
125
Nesse quadro cultural, a religião diz respeito a uma esfera da existência cujo funcionamento
está mais sob o jugo do patriarca do que da Igreja. Esse espectro de relativa autonomia também incide
sobre os santos feitos para serem louvados na intimidade dos lares mais modestos. São santos que
“refletem” a religião, mas são menos oficiais, mais espontâneos e dizem sobre o tamanho limitado do
orçamento de quem os compra, que por sua vez tende a reduzir a dimensão dos corpos das imagens.
O atendimento da demanda de santos para culto doméstico é citado como um dos fatores
que impulsionou a expansão da produção de imagens para além das oficinas ligadas às ordens
religiosas. Nos ateliês e em outros espaços leigos de produção de santos, as técnicas de fabricação
passavam muitas vezes ao largo da utilização dos cânones clássicos para a construção das figuras
e dos padrões iconográficos. A expansão, portanto, não implicou simplesmente em maior
produção, mas também em variações nos corpos das imagens. A variedade em questão tornou os
santos, alvo de paixão de muitos colecionadores de arte, que veem as imagens como o verdadeiro
“berço da arte brasileira” (ETZEL, 1986).
O nascimento de nossa arte, nesse sentido, teria se dado quando as feições do brasileiro
começaram a aparecer nos santos, não mais baseados apenas em rostos europeus e em outros
padrões ensinados pelos escultores das ordens religiosas.
[as imagens pequenas são] as mais típicas, uma vez que as grandes, de encomenda,
eram geralmente baseadas em modêlos estrangeiros. As menores, executadas pelos
simples santeiros, muitas vêzes sem escola, sem a preocupação de satisfazer um
determinado gôsto, são muito mais espontâneas e ingênuas. Por isso de maior
originalidade e mais características da arte brasileira (HERSTAL, 1956, p.19).
126
Um dos pontos de evidência das características marcadamente brasileiras nos corpos das
imagens é o rosto. As mencionadas feições brasileiras inclusive passam a remeter a biótipos
regionais. Nessa direção, os santos que interessam ao meu interlocutor são aqueles que, mais que
“cara de brasileiro”, têm “cara de nordestino”. Em suas palavras,
Mais do que apontar para o rosto do santo como reflexo da “realidade”, os dizeres do
colecionador também evocam o “porte nordestino” das imagens. Pode-se entender pouco ou
quase nada sobre tal característica olhando apenas para o tamanho dos santos. Aqui, mais do que
suas dimensões em centímetros, o que importa são suas feições “sofridas” e “marcadas” e, além
disso, como eles atualizam certa gestualidade.
O direcionamento do olhar para a “cara” do santo é facilitado por uma peculiaridade das
imagens populares, que de modo geral possuem cabeças desproporcionais – ora muito grandes, ora
muito pequenas – em relação ao restante do corpo. A noção de cânon ou cânone em escultura diz
respeito justamente à altura do corpo dividida pelo tamanho da cabeça (medida do queixo até o
alto do crânio). A escultura clássica tem como referencial a “regra de Policleto”, que prevê que a
altura total da figura humana adulta seja de 7 a 8 vezes a altura da cabeça.
Quando indaguei Antônio sobre a noção de cânon, fui alertada que “– nem os clássicos
usavam a regra clássica”. O cânon das imagens eruditas, aquelas que, em tese, são
proporcionalmente harmônicas, varia entre 6, 7 ou 8 cabeças. Já os aspectos físicos dos corpos
das imagens populares definitivamente não são retratos fiéis da aparência dos homens como
aqueles buscados pelos escultores que tentam se guiar por manuais clássicos.
Eduardo Etzel, a quem tenho longamente recorrido nesse capítulo, foi um estudioso de
imagens que as esquadrinhava com base em padrões de Atlas de Anatomia. Os corpos que ele
colecionava eram alvo de seu olho clínico de médico. Seu saber advindo da Medicina floresce nos
trechos de sua obra em que ele menciona, por exemplo, imagens de criança que têm cabeça de
adulto88, anjos “cabeçudos” e outras figuras desproporcionais.
88 O cânon para o corpo recém-nascido é de quatro cabeças para a altura do corpo; para as crianças, quatro e
meia; chegando no adulto, a sete cabeças e meia para a altura do indivíduo (ETZEL, 1995, p. 55).
127
A cabeça não é a única variável para aferição de desproporção anatômica. Eduardo Etzel
sublinha o destaque dado pelos artistas populares às mãos e aos pés:
A desproporção anatômica que se observa nas imagens populares salta aos olhos,
sendo característica que paradoxalmente agrada o observador. O cânon destas
imagens foge ao normal, assim como os pés e as mãos. O caboclo que labuta
eternamente na lavoura tem os pés e as mãos seus elementos fundamentais. Descalço
no passado, só modernamente adotou o chinelo “havaiana”. Daí pés rudes,
embrutecidos pelos insultos de tocos e pedras, acidentes na sua deambulação. As mãos
que manejavam a enxada e a foice também se avantajavam na luta pelo ganha-pão.
Talvez por isso os santeiros - homens do povo – tenham dado às mãos e aos pés um
destaque especial. O corpo é usualmente avantajado, peças curtas e encorpadas
num desconhecimento da anatomia mas com grande sensibilidade quanto à
pessoa humana que deve ser forte e potente como uma representação da
divindade. (ETZEL, 1979, p. 71, grifos meus).
Quando no passado as pessoas não tinham dinheiro pra pagar, o que elas
encomendavam? Essas imagens mais simples, mais populares. Igualmente pro culto
doméstico, igualmente pros oratórios, mas sem ouro, olha. Você vê que elas são muito
simples. Aí fica uma imagem barata. Aí o artista também é menos conceituado, é menos
clássico, tem menos contato com as fontes eruditas da arte. Então, é que vai aparecendo
as figuras com cara de nordestino, com cara de brasileiro.
As imagens populares são “simples” porque nelas não se empregam as técnicas escultóricas
utilizadas nos santos de fatura erudita. Se por um lado, a produção que não toma “o cânon” da
escultura do corpo humano como referencial pode ser lida como caricata e ingênua; por outro é
tomada como genuína e original, justamente por não se atrelar de forma estrita a outros cânones,
no caso, os que fornecem os referenciais iconográficos de representação dos santos.
Nessa ótica, Eduardo Etzel menciona tanto “confusões iconográficas que estão dentro
das prerrogativas do santeiro popular” (ETZEL, 1975, p. 98), quanto acrescenta a essas
prerrogativas a “liberdade de composição” (ETZEL, 1975, p. 99). Ao encontrar o rosário de
Nossa Senhora do Rosário não só na mão da santa da referida invocação, mas também na do
Menino Jesus segurado por ela, o autor argumenta que
Ao santeiro deve ter parecido lógico que o menino Jesus também segurasse um
rosário, pondo de lado sua idade e impossibilidade de manejá-lo. Mas deve ter
encantado seus clientes como o faz ainda hoje conosco. […] Acreditamos que
na tranquilidade da vida rural, com isolamento da povoação, tudo se passava com
certa condescendência, sem a exatidão e as exigências que caracterizam nossos dias.
Uma imagem de Maria com as mãos em prece, pés descalços, pode ser Nossa
Senhora da Conceição ou Santa Maria, como depois veio a ser Nossa Senhora
Aparecida, no “mais ou menos” da pasmaceira decadente da segunda metade do
século XIX. Fez deliberadamente Conceição com vasta lua ou pisando a cobra, mas
também esculpiu Nossa Senhora com o Menino, que pode ser uma Nossa Senhora
do Parto, com grande lua aos pés. E por que não um rosário nas mãos do Menino
Jesus? Tudo isto representa uma iconografia sem maior rigor hagiográfico,
embora em trabalho criterioso e de boa qualidade. (ETZEL, 1975, grifos meus).
Segundo Antônio, é previsível que o santo popular confunda o espectador que o mira a partir
dos guias iconográficos, já que os artistas misturam possibilidades e criam combinações inesperadas.
Se ele [o autor da publicação que folheávamos] tivesse olhado para esses arcos com
mais atenção e pesquisado sobre o significado deles, saberia que é uma ponte, um
viaduto, e esse santo é São Gonçalo, padroeiro dos engenheiros [e não São
Domingos, como é afirmado na publicação]. Quando ele [São Gonçalo] aparece
com a viola é o padroeiro dos músicos, dos boêmios, como é muito comum de se
ver na tradição mineira, paulista e até aqui também no Nordeste. Mas o popular
confunde mesmo, porque não pode ser lido pela ótica da arte oficial, onde os
artistas seguem cânones. Estudar os grandes é fácil, os atributos são aqueles que
são previstos para o santo. Mas na arte popular se combina, se modifica, se
agrega a cara e as cores do sertão... (grifo meu)
Nos termos do meu interlocutor, os artistas populares não são confusos, alguns
espectadores de suas obras é que são confundidos pelas possibilidades de combinação exploradas
nos santos. Assim, o trato com as imagens populares exige mais que erudição. Elas não podem ser
decodificadas simplesmente com o auxílio de um dicionário de iconografia ou de termos
artísticos. A liberdade e a criatividade do artista popular conferem certa originalidade às imagens
antigas que, deslocadas de seus contextos devocionais, precisam ser compreendidas a partir de
129
uma expertise sensível às suas particularidades. As obras imprevisíveis são complexas e constituem
a complexidade do trabalho do colecionador, que não pode de modo apressado taxar como erro
o que é “ilegível segundo a ótica da arte oficial”. Para entender um santo com a cara e as cores do
sertão, é preciso se embrenhar pelos seus caminhos. Voltaremos a eles mais no próximo capítulo.
A partir das indicações que colidi durante minha interação com Antônio Marques,
cotejadas com a literatura produzida por ‘autores-colecionadores’, sumarizo os polos onde as
imagens são alocadas de acordo com a forma de classificação de sua fatura:
Barata Cara
Proporções harmônicas
Desproporcional, assimétrica
Rigor formal, cânones “clássicos”
Feita por escultores autodidatas ou Feita por escultores com referências clássicas
sem formação institucional (ensino formal ou informal)
Pequenas Grandes
Corte impreciso, sem profundidade dos volumes, Corte preciso, com a devida profundidade para
talha rasa, feita com gestos bruscos, adestramento acolher outras camadas de materiais que culminam no
escultórico precário, mau acabamento acabamento típico da fatura erudita
130
Vale lembrar que nem só a devoção a Santo Antônio é atrelada à manipulação da imagem
para se obter ação sobre outras coisas e pessoas. São Gonçalo também é casamenteiro. Além
disso, como narra Gilberto Freyre, é festeiro e boêmio. Sua imagem é o corpo que praticamente
“torna-se carne” na leitura desse autor sobre o relacionamento lírico, sensual e permissivo entre
devotos e santos do Catolicismo luso-brasileiro.
os santos e os anjos só faltando tornar-se carne e descer dos altares nos dias de festa
para se divertirem com o povo; os bois entrando pelas igrejas para [serem] benzidos
pelos padres; as mães ninando os filhinhos com as mesmas cantigas de louvar o
Menino-Deus; as mulheres estéreis indo esfregar-se, de saia levantada, nas pernas de
São Gonçalo do Amarante; os maridos cismados de infidelidade conjugal indo
interrogar os “rochedos dos cornudos” e as moças casadouras os “rochedos do
casamento”; Nossa Senhora do Ó adorada na imagem de uma mulher prenhe.
(FREYRE, 1998, p. 21-22).
Na contramão dessas leituras, para meu interlocutor, é importante mostrar que a iconografia
de São Gonçalo não resume à do santo farrista. Ao abordá-lo como padroeiro dos engenheiros, o
colecionador direciona nossa atenção para um elemento específico de um dos São Gonçalos da sua
coleção, focalizando como o artista popular desloca a ponte ou o viaduto que geralmente aparece nas
mãos do santo para debaixo dos seus pés. A possibilidade do atributo ser visto apenas como uma
peanha elaborada da imagem, ou seja, passar despercebido enquanto sinal diacrítico do santo padroeiro
dos engenheiros, é facilitada pelo imaginário em torno da iconografia mais difundida de São Gonçalo.
A despeito do imaginário sobre São Gonçalo como o santo que traz a viola, para Antônio, a
ponte é o detalhe revelador90 que deve ser destacado. Assim, a plasticidade e a capacidade de
incorporação do Catolicismo brasileiro, tão salientada por Freyre e por seus seguidores, são buscadas
pelo colecionador diretamente no corpo da imagem e não no que os devotos fazem com ela. Antônio
prefere o santo sério para falar de como leva sua prática de colecionar o sertão a sério.
90 A necessidade de atentar para o detalhe revelador é desenvolvida por Carlo Ginzburg em seu famoso texto “Raízes de
um Paradigma Indiciário” (1989). Abordo a importância das proposições do historiador italiano mais adiante.
131
Colecionar não é só celebrar. É admitir que imagens se quebram quando estão sendo
transportadas e não porque viviam em festa. É precisar encomendar um menino perdido apesar de
ter uma caixa cheia deles e mesmo assim correr o risco de ter que continuar buscando o atributo
que combine com as suas imagens de Santo Antônio. No universo particular do colecionador, elas
são únicas e por isso desestabilizam qualquer versão vulgar que não as trate como tais.
Nessa direção, Antônio insiste que os danos se dão no uso e que estes, como foi
colocado anteriormente, são causados inclusive pelas movimentações que o próprio
colecionador e os agentes no seu entorno fazem com o objeto após sua entrada na coleção
(exposição, limpeza, complementação etc.).
Você já me viu transtornado quando achei que a gente tinha perdido aquele
presépio91. Não tem jeito, nisso de ir para lá e para cá pode acontecer de tudo,
principalmente, quando não temos como transportar de modo adequado, fica tudo
nas nossas costas. E na hora que você pensa que perdeu ou que alguém quebrou uma
peça sua o desespero é tão grande que não importa se a pessoa que fez é amiga,
parente, empregado. Eu fico louco! No oratório, a peça está protegida, muitas vezes
fica fechada, no alto. Mas na mão das pessoas... Então é isso, acontece, não tem
jeito. Mas daí a inventar que se come pedaço da imagem é... Olha que explicação sem
sentido para não admitir que a imagem sofreu um dano. E mesmo que ela já tivesse
chegado nas mãos do colecionador assim, tem que pesquisar mais, deixar espaço para
dúvida... Não tem que explicar tudo. (grifo meu).
A explicação sem sentido questionada pelo colecionador diz respeito a uma Nossa
Senhora do Leite em terracota citada por Etzel (1979, p. 15) cuja “perna esquerda do
Menino Jesus foi “comida” por uma devota em cumprimento de promessa”. Quando lhe
mostrei a publicação e a legenda da imagem, discutimos se as aspas no verbo atuariam no
sentido de torná-lo figurativo, já que o autor da publicação não deixa isso evidente. Antônio
então me instruiu a observar que
a perna quebrada é a parte mais exposta, exterior, vamos dizer, saliente da imagem.
Acontece que ninguém quer assumir que quebrou a peça que apareceu danificada.
Então é melhor dizer que uma mulher comeu a perna do santo tendo feito antes uma
promessa. Mais uma explicação baseada no folclore, isso não tem fundamento
antropológico. (grifo meu).
Alguns dias depois de eu ter lhe mostrado a foto da imagem com o menino de perna
“comida”, o colecionador me enviou uma foto com a seguinte mensagem:
Veja que o pezinho do Menino Jesus está quebrado de um jeito muito próximo daquele
que você falou para eu olhar no livro do Etzel, que diz que o pezinho esquerdo foi
comido por alguém. Essa peça é portuguesa, do século XIX, em porcelana, encontrada
aqui no Rio Grande do Norte. A porcelana é da família da terracota.
Segundo o colecionador, algum devoto pode até ter feito chá com partes do santo, mas tal
gesto não pode ser generalizado como uma ação recorrente e os “ferimentos” devem ser atribuídos a
fatores generalizáveis, como queda, perda e descolamento de encaixes mal colados. Os “maus-tratos”
apontados por meu interlocutor, nesse sentido, não são propositais como as “maldades” dirigidas a
Santo Antônio ou os “machucados” que seriam intencionalmente provocados em outras imagens.
O que torna evidente que uma máscara primitiva viveu, como visto, a propósito da pátina do
tempo e do picumã para as imagens, pode ser a sujeira, outra camada de tinta ou de verniz. Desse modo,
as coisas que se depositam sobre o objeto recobrindo-o no sentido literal, como uma pele, por outro
lado, reenviam a uma dimensão que não reside nem na matéria, nem na intenção que presidiu a
realização das máscaras. O objeto remete a um outro lugar: geográfico, temporal, mental e a
“emoção” envolvida nessa operação é tamanha que, de acordo com as autoras, se para seus
interlocutores é preciso pensar que o objeto foi bem utilizado pelos indígenas, o conhecimento das
condições precisas desse uso está longe de parecer indispensável. A insistência recorrente dos
colecionadores em usos rituais, mágicos e sagrados é entendida tanto como corroboração de
estereótipos primitivistas, quanto como recusa de certos aspectos da civilização ocidental.
Ao acionar a discussão em torno da aura emanada por uma máscara que é autêntica
porque viveu, não pretendo afirmar que o que está em jogo no colecionamento de objetos
primitivos pode ser automaticamente transposto para a prática que acompanhei durante meu
trabalho de campo. Entretanto, como tais máscaras são analisadas como instâncias que colocam
os colecionadores na presença de realidades que estão além dos objetos, aqui são também
pertinentes para pensarmos como o “outro” que dança e faz chá com as imagens pode ser tão
distante e exotizado quanto um trobriandês o é por colecionadores parisienses.
133
Bolo armênio. Cera do Equador. Folha de Ouro. Tinta grossa. Tinta boa. Cores do sertão.
Gesso-cola. Dourar. Arrear. Fixar. Trancar. Estabilizar. Listar os ingredientes que compõem as
imagens, bem como seus procedimentos de manipulação, não necessariamente nos aproxima de
uma receita. Conhecer, no caso, não é saber fazer. Não há fórmula exata. A eficácia dos gestos
que manipulam as imagens não reside em sua realização mecânica impecável, isso seria mera
técnica, que coordena gestos, instrumentos e agentes físicos. O colecionador sabidamente maneja
técnicas, mas de forma a magicamente combiná-las para chegar ao efeito desejado.
Ao tratarem dos “ritos manuais” no “Esboço de uma teoria geral da magia”, Mauss e
Hubert (2003) mostram como a arte de dispor as coisas vale-se de outras fabricações, pois
utiliza imagens, escapulários, talismãs e uma infinidade de outros objetos produzidos por outros
ofícios e que atuam como “ritos continuados” (MAUSS; HUBERT, 2003, p. 90). Os atos
solenes, por mais díspares que sejam, buscam em sua generalidade modificar o estado de
pessoas e coisas. O intuito ao transformar um estado dado é fazê-las sair de uma condição
prejudicial por meio de um saber eminentemente prático e de ideias que prescindem da teoria:
“fala-se delas como de coisas concretas e de objetos materiais; lança-se um encanto, uma runa;
lava-se, afunda-se na água, queima-se um sortilégio.” (MAUSS; HUBERT, 2003, p. 98).
Essas ações têm poder criador, elas fazem. O efeito obtido não é da mesma ordem que a
soma de gestos sensíveis. O resultado faz ver outra coisa. Nessa direção, podemos analisar a retirada
de (re)pintura, vista como um anteparo enganador, como um sortilégio dos colecionadores para
assegurar seu encantamento com as obras. A fórmula é narrada por Etzel (1975, p. 81): “De algumas
imagens retiramos a pintura; pudemos assim observar o rosto lavrado com alguns cortes apenas,
obtendo o efeito desejado com sobrancelhas, olhos, nariz, boca e até bochecha.”.
134
No caso dos santos populares antigos, que, como visto, já saem mal pintados ‘de fábrica’,
o conhecimento das condições sociais de produção das imagens por parte dos colecionadores
é praticamente um oráculo da tragédia, pois traz a certeza que a obra não teria como escapar
do destino inevitável de um acabamento precário.
Revendo e estudando a obra de Pituba 50 anos após sua morte, temos que respeitar
suas intenções ao pintar peças de madeira; mas impõe-se o estudo da escultura em
si, da lavra da madeira, pois aí vamos encontrar os verdadeiros elementos da sua
arte. Hoje, distantes do cenário local, podemos separar o joio do trigo, isto é,
observar a criatividade sem o véu da espessa camada que a cobre e avaliar a obra
através desse anteparo enganador. (ETZEL, 1975, p. 82).
Nessa chave de entendimento, quando Antônio me contou que tem uma peça não
pintada de um artista que nunca deixou de dar cor às suas obras, explicou que queria mostrar
para os alunos como o artista fazia as emendas nas peças, então foi até a casa dele e pegou a
peça antes do acabamento, como um empréstimo. Vê-se então como é necessário mostrar
que há ganho de valor estético, de visualidade de processos técnicos, enfim, de aspectos que
dão plausibilidade ao gestos de manipulação. Desse modo, os agentes em questão antecipam-
se a possíveis denúncias trazendo eles mesmos ao centro do julgamento, os testemunhos
materiais que fundamentam suas ações.
135
A menção à bênção como bendizer é importante para nos lembrar que a confirmação
da natureza divina do objeto envolve coisas (aspersor, água etc.), mas também palavras, como já
abordado. De acordo ainda com o autor que teorizou o “poder das imagens”, é por meio de
fórmulas e homílias que o espírito ingressa no objeto e, para tanto, a mediação de um ser vivo é
indispensável. Sacerdotes, nesse sentido, são atuantes na conjunção de “fusão do signo e
significado” (FREEDBERG, 1992, p. 50).
A entrada de santos na coleção também não se faz sem a mediação de certos ritos levados
a cabo pelos colecionadores. Entretanto, ao passo que na mudança de status de um objeto para
coisa sagrada o sacerdote influirá, sobretudo, verbalmente, na transmutação do santo para objeto
de arte observa-se a preponderância dos ritos manuais realizados no âmbito privado. A remoção
de uma (re)pintura não seria uma espécie de benção às avessas?
Tal gesto, entretanto, não constitui uma passagem absoluta de um modo de funcionamento em
que o objeto é ‘receptáculo do sagrado’ e se transmuta em ‘recipiente do belo’. Muitos aspectos que
participavam da eficácia da imagem enquanto sagrada são preservados, como por exemplo, as
propriedades de certos materiais. Quando o colecionador retira estratos de materiais “vagabundos” e
industrializados para dar a ver a madeira, está trazendo à tona um material vivo. Nesse sentido, a madeira
de lei, como mogno, jacarandá e outras, estava destinada desde sempre a eternizar um ser divino.
O colorido pode até tornar a imagem devocional autenticamente brasileira, mas a tinta não
atrai alguns colecionadores tanto quanto uma certa materialidade primordial dos santos. A
devoção, no âmbito da coleção, volta-se não só ao trabalho artístico, mas também aos materiais
que antes de ganharem forma de imagem já a incitam, ou seja, anunciam o sagrado que têm o
poder de corporificar mais tarde pela ação de um escultor.
Nessa direção, Antônio considerou um acinte, por exemplo, quando foi convidado a
colaborar em um projeto cujo resultado do trabalho de artistas seriam oratórios de Eucatex92. Os
santos colecionados por meu interlocutor não foram esculpidos necessariamente em madeira
nobre, mas também não são de “madeira branca”, propícia à infestação de bichos. Apesar do
nome, esse tipo de madeira caracteriza-se mais pela contextura mole, pouco rija, do que pela
coloração clara em si. Na coleção de Antônio prevalecem peças feitas em umburana, também
chamada de imburana93, uma árvore pequena, esgalhada e típica da caatinga.
A forma de exposição da coleção também guarda algo de sagrado, não que as estantes e
prateleiras das casas de Antônio94 sejam altares como aqueles organizados pelos devotos.
Enquanto esses últimos contêm velas, santinhos, bíblias e outros objetos religiosos; nos arranjos
formados pelo colecionador, as imagens eram rodeadas por outras que lhe são irmanadas, por
objetos que ajudassem no seu cuidado, como pincéis e redomas, e ainda por coisas que
auxiliassem na compreensão de sua natureza, como fotos e catálogos de arte.
92 Marca comercial de compensados, placas formadas por camadas finas de madeira superpostas, coladas e prensadas.
93 E ainda conhecida popularmente, como cumaru-do-ceará, cumaru das caatingas, imburana de cheiro,
A arte dele não justifica o que ele faz com os santos, eu acho eu acho sem respeito pela
arte anterior. Eu vi um trabalho de Farnese com uma santa de um dos santeiros de
Pernambuco que eu mais gosto, a santa completamente deslocada. Ele fazer isso com
uma boneca que você compra na esquina, tudo bem, mas com um santa daquela não se
faz isso.
Ao utilizar em suas assemblages97 imagens que, diferentemente de bonecas, são vistas como
obras de arte, Farnese torna-se um profanador; ao passo que, na opinião de meu interlocutor,
poderia ser um revelador de autorias desconhecidas.
o que pode ser feito para aliviar o sentimento de perda presente nas ruínas? O que pode ser
feito para tentar contornar o caráter melancólico e assustador, do desfalecimento e do ruir
dessas imagens, que pereceram, mesmo estando a serviço de Deus? Na maioria das vezes,
nada. Um restaurador consciente de suas atitudes éticas, impossibilitado de operar
milagres e falsificações, tem somente a possibilidade de conter as degradações,
estabilizar a estrutura material dos componentes construtivos da imagem e mantê-la
como um registro.
a degradação da matéria constituinte das imagens por vezes chega a um grau tão
acentuado que a única maneira de mantê-las é na forma de registros históricos, onde
essas ruínas vão ter agora somente a função de relatar o infortúnio do tempo e
discutir os componentes dialéticos entre passado e futuro. O que elas representam não
apenas indica o que foi este passado, mas por vezes carregam consigo os lamentos da
felicidade perdida neste passado. (COLNAGO FILHO, 2011, s/p, grifos meus).
A imagem que apraz o colecionador que “também é um pouco restaurador”, como visto,
não é intocável. Seu corpo é constantemente manipulado para emanar a aura ideal, mas por que
em algumas situações esses feiticeiros combinam materiais para chegar ao efeito desejado e em
outras se veem incapazes de fazê-lo? Se, inspirados nas proposições de Mauss e Hubert (2003),
entende-se os gestos dos colecionadores (e outras pessoas que manipulam as imagens) como atos
simpáticos, ficamos uma vez mais diante dos limites das manipulações. Os gestos não podem
afetar a imagem como um todo, sob o risco do apagamento do mana do artista. Ressaltar a beleza
da obra é diferente de torná-la sua própria obra.
Não se pode esquecer que as manipulações são frequentemente interditas, posto que
no imaginário que a humanidade formou sobre a magia tendem para o malefício (MAUSS e
HUBERT, 2003, p. 59). Nesse imaginário – e substancializando por ora uma distinção que
adiante questionaremos – a magia, ao contrário da religião, opera às escondidas e é potente na
geração de efeitos físicos negativos. A manipulação mais moralmente condenada entre os
apreciadores de imagens é a “maquiagem” de obras. Trata-se da ação transformadora de
imagens de fatura recente em antiguidades. Para que isso se passe, santos atualmente esculpidos
e policromados de acordo com os padrões eruditos pretéritos98 são submetidos a processos que
lhes conferem o aspecto de antigos. Assim, imagens são enterradas; expostas a cupins e outros
agentes danosos; revestidas com materiais específicos para que pareçam tão velhas quanto
peças produzidas nos séculos XVIII e XIX.
98 Como as imagens produzidas “ao estilo antigo” expostas no Aeroporto Santos Dumont e na Galeria de Artes
Então, você vê como é complicado o mundo dessas artes. Uma imagem dessa aqui
eu já encontrei em SP como sendo autêntica. Eu mesmo já comprei uma pensando
que era autêntica, de tão bem feita a maquiagem. Quando eu cheguei em casa, aí
eu... é interessante, a pessoa que já tem uma sensibilidade, eu já estava deitado,
“será que aquela santa é autêntica? Eu tô achando que não é.” Aí me levantei, liguei
para o artista, era um de Pernambuco. “Olhe, você fez uma santa assim e tal?”. Ele
disse que sim e perguntou porquê eu queria saber isso. Eu disse que só queria
saber. Mas liguei pra quem me vendeu: “se prepare, porque amanhã eu tô aí pra
você me devolver meu dinheiro.” Ela foi vendida por 10 mil reais e ele devolveu.
Como é possível perceber a partir do relato, considera-se que os artistas que produzem os
santos “neobarrocos” nem sempre o fazem visando o embuste. Entretanto, suas produções podem
ter o status adulterado para antiguidade quando mudam de mão, especialmente se os materiais utilizados
forem semelhantes aos utilizados pelos santeiros coloniais. A utilização de madeira obtida em
demolições e outras substâncias pouco modernas contribui para dificultar o diagnóstico da peça
enquanto falsa, ao passo que o emprego de materiais industrializados – tais como pregos e tintas
sintéticas – torna a fraude óbvia, ao menos para quem tem a percepção minimamente aguçada.
A detecção de fraudes só pode ser adquirida através de anos de contato com obras, de
décadas de treinamento do olho. Ao falar uma vez mais de olhar numa seara tão pautada pelas
fórmulas manuais e orais é preciso fazer menção à metodologia pensada pelo historiador
Carlo Ginzburg (1989, p. 150-151) como a forma de saber que “emergiu no final do século
XIX – mais precisamente, na década de 1870-80 – e começou a se firmar nas ciências
humanas como um paradigma indiciário baseado justamente na semiótica. Mas as suas raízes
eram muito antigas.” E, conforme argumenta o autor, são
formas de saber tendencialmente mudas – no sentido de que [...] suas regras não se
prestam a ser formalizadas nem ditas. Ninguém aprende o ofício de conhecedor ou de
diagnosticador limitando-se a pôr em prática regras preexistentes. Nesse tipo de
conhecimento, entram em jogo (diz-se normalmente) elementos imponderáveis: faro,
golpe de vista, intuição. (GINZBURG, 1989, p. 179).
atenção a certos sinais. As pistas a serem seguidas, no caso de Sigmund Freud, são sintomas; no caso
de Sherlock Holmes, indícios; e signos pictóricos no caso do crítico de arte italiano Giovanni Morelli.
A trama de saberes indiciários é deslindada por Ginzburg através de suas raízes na semiótica médica:
“Freud era um médico; Morelli formou-se em medicina; Conan Doyle havia sido médico.”
Para tanto, porém (dizia Morelli), é preciso não se basear, como normalmente se
faz, em características mais vistosas, portanto mais facilmente imitáveis, dos
quadros... Pelo contrário, é necessário examinar os pormenores mais
negligenciáveis, e menos influenciados pelas características da escola a que o pintor
pertencia: os lóbulos das orelhas, as unhas, as formas dos dedos das mãos e dos
pés. Dessa maneira, Morelli descobriu, e escrupulosamente catalogou, a forma de
orelha própria de Botticelli, a de Cosme Tura e assim por diante: traços presentes
nos originais, mas não nas cópias. (GINZBURG, 1989, p. 144).
Um catálogo de formato de orelhas, nesse sentido, pode ser mais precioso para captar a
realidade mais profunda do conjunto da obra de um autor do que suas marcas impressivas mais
evidentes. A atenção aos “vícios” e “cacoetes” dos artistas desmistificava falsários e corrigia atribuições
errôneas porque os pormenores em questão eram negligenciados, mas... E quando a obra de um artista
já foi tão estudada que até o formato que ele dava a unha das estátuas que esculpia é conhecido?
É sabido que catálogos de Aleijadinho são inflados por obras relacionadas a ele e que não
resistem a um exame mais minucioso de pessoas reputadas como especialistas, mas também escutei
em campo que algumas imagens, entretanto, quase mereceriam a atribuição, de tão bem
artificiosamente fabricadas. Nessa direção, um restaurador já falecido e cuja astúcia é considerada
incomparável por colecionadores, comerciantes de arte e profissionais do patrimônio era conhecido
como “Aleijadinho do Mal”. A alcunha torna explícita a relação entre poder da técnica e fabricação
de malefício. Ao modificar imagens de modo a torná-las identificáveis como Aleijadinhos, o
restaurador em questão tinha o poder não só de incutir os “cacoetes” já inventariados do escultor
colonial nas obras, mas também a “força” característica do artista emulado.
141
São muitos os artistas que produzem santos como “o mestre”, mas deixam claro que o
trabalho é uma “inspiração” e não uma fraude deliberada, tanto que assinam suas obras. Em
2014, o escultor Elias Layon requisitou a autoria de duas imagens que constavam em um
“Catálogo Geral da Obra” de Aleijadinho. O artista inclusive apontou que as peças originais
nas quais teria se inspirado também constavam na publicação. Quem realizou as adulterações
se valeu de recursos tais como a raspagem da assinatura do artista da base das imagens;
alteração da policromia; a amputação de um braço e a introdução de um olho de vidro no
globo ocular de uma delas (BORTOLOTI, 2014).
determinado artista, com indicações, como origem, medidas, técnica, natureza do suporte, detalhes de
assinatura e datação, bibliografia e ainda outros dados que caracterizem perfeitamente cada obra, da qual é
também fornecida uma ilustração fotográfica.” (LEITE, 1988, p. 115).
100 Descrevo minha interação com Marcos Paulo no primeiro capítulo da tese (Tópico 1.4 – Santos Desaparecidos).
143
Quem atesta a validade do atestado? Aquele que assinou o título que licencia para
atestar. Mas quem deu licença a este? Somos levados a uma regressão ao infinito, ao
final da qual “é preciso parar” e podemos, como os teólogos, escolher atribuir o nome
de Estado ao último (ou ao primeiro) anel da longa cadeia dos atos oficiais de
consagração. [...] Ao enunciar, com autoridade, que um ser, coisa ou pessoa, existe em
verdade (veredicto) em sua definição social legítima, isto é, é o que está autorizado a ser,
o que tem direito a ser, o ser social que ele tem o direito de reivindicar, de professar, de
exercer (por oposição ao exercício ilegal), o Estado exerce um verdadeiro poder
criador, quase divino. (BOURDIEU, 1996, p. 113-114).
*****
Ao trazer à baila o quanto os corpos das imagens são trabalhados, procurei incluir na
análise as mãos que transformam os aspectos das imagens. Vimos que não é com qualquer
aura que a imagem peregrina para coleção. Se a ideia de aura evoca um suposto halo luminoso
que só os iniciados veem, vimos que essa aparição também é convocada manual e
materialmente. Nesse sentido, algumas substâncias que recobrem as imagens são vistas como
disfarces da sua “verdade”, enquanto outras reforçam sua autenticidade.
Latour (2008, p. 117) propõe “que quanto mais humanos há, mais o trabalho humano se
mostra, melhor a apreensão da realidade, da santidade, da devoção”. O foco do autor, nessa linha
de raciocínio, leva mais às incertezas, às situações em que, frequentemente, hesitamos diante das
imagens, já que nos relacionamos com elas em situações ambíguas a ponto de não sabermos ao
certo se nossos gestos serão construtivos ou destrutivos. Temos, então, um “iconoclash”:
Iconoclasmo é quando sabemos o que está acontecendo no ato de quebrar [uma obra
de arte] e quais são as motivações para o que se apresenta como um claro projeto de
destruição; iconoclash, por outro lado, é quando não se sabe, quando se hesita, quando
se é perturbado por uma ação para a qual não há maneira de saber, sem uma
investigação maior, se é destrutiva ou construtiva. (LATOUR, 2008, p. 112-113).
A partir dessas indicações, não cabe dizer quem ultraja a imagem, se é a devota de Santo
Antônio que o coloca de cabeça para baixo; o restaurador que realiza decapagens ou adições no
corpo da imagem; o autor que a descreve dançando lascivamente ou o colecionador que a
preserva do jeito que a encontrou. Afinal de contas, é “como se a desfiguração de um objeto
pudesse inevitavelmente gerar novas faces; como se o desfiguramento e o “refiguramento”
fossem necessariamente coetâneos.” (LATOUR, 2008, p. 114).
144
Assim, as imagens abordadas são potencialmente ricas para reflexão justamente pela
quantidade de mãos que as tocaram e que as fizeram funcionar como sagradas, como
instrumentos pedagógicos, como belas, como obras de arte que fascinam.
Para que os fetiches possam fazer, eles precisam antes serem feitos. Não se fabrica,
contudo, a partir de qualquer matéria. Para que a produção seja eficaz, é preciso agenciar
materiais, gestos e enunciações específicas, como procurei colocar em evidência. Mostrar o
quanto as imagens são manipuladas material e simbolicamente significa pensá-las como
coisas em produção contínua, que nunca atingem um acabamento definitivo porque estão
imiscuídas em um fluxo de relações sociais mais complexo do aquele compreendido entre
polos passivos de produção e recepção.
145
[...]
Oia Santo
Santo Onofre
Menino Deus
Senhora Santana
Santa Teresa do Menino Jesus
Olha ceia!
As mulheres do Mangue sorriem
– Todas temos
Na parede do quarto
A Santa Ceia
É a de Leonardo
Todas temos
[…]
O santeiro do Mangue
Oswald de Andrade
difundida iconografia deste santo na qual ele aparece montado de forma imponente e
combativa em um cavalo branco, matando um dragão feroz.
O animal montado por São Jorge é um jegue manso com sela simples, em vez do cavalo
bravo altivo e adornado. A movimentação das patas dianteiras do jegue mais parece descansar
sobre o dorso da criatura combatida, o dragão, que na iconografia mais conhecida do santo é
frequentemente pisoteado. O dragão ameaçador e em movimento sinuoso entre as patas do
cavalo ganha corpo na imagem esculpida como um réptil achatado e estático, com formato pouco
definido apesar da forma arredondada em uma das extremidades, que dá ideia de cabeça, e
pontiaguda em outra, sugerindo um rabo. A arma comprida e fina segurada pelo ‘santo-
sertanejo’, aparentemente frágil como o graveto ou palito que lhe dá forma, mais se assemelha a
um cajado com o qual ele se apoia no monstro, em vez da lança usada para traspassar o dragão.
Como se vê, é possível decompor a imagem de São Jorge nos elementos listados
acima a partir do frame (BATESON, 1972) no qual o colecionador apontou para o sertanejo
no santo guerreiro. Essa forma de enquadramento não só ‘recorta’ a imagem de São Jorge da
reunião de santos em que ela está inserida, como também funciona como uma lupa com a
qual se detecta e se aumenta as marcas (nem sempre relativas ao uso) que corroboram o
enunciado do colecionador. O compartilhamento dessa moldura de sentido foi atualizado e
eventualmente modificado por diversas imagens.
147
Logo, a iconografia tradicional deste santo também remete a uma cena de embate e uma vez
mais, no âmbito da coleção, a figura guerreira aparece de certa forma ‘apaziguada’ na criação de um
artista popular. A hagiografia do arcanjo101 Miguel inclui sua associação ao juízo final em referência
direta no livro do Apocalipse, que o identifica ainda como o “chefe de milícias celestes”, condutor
dos anjos à vitória na batalha contra o mal. Além da balança, sua representação costumeira inclui
asas, vestimenta de guerreiro, bem como uma espada ou lança com a qual subjuga o demônio, que
pode aparecer sobre a forma de serpente, de dragão ou meio-humano. Em algumas representações, o
demônio tenta roubar as almas dispostas sobre o prato da balança (GIORGI, 2011, p. 284-287).
Na foto acima se pode observar os atributos citados anteriormente: asas, balança, espada e
demônio. Ao invés da figura do homem vigoroso mencionado por Cascudo, se vê um sujeito com
expressão facial triste e aflita, com olhos caídos e olhar perdido que não encara o demônio. A
espada segurada por uma das mãos, posicionada na altura do abdômen, é direcionada para o alto e
não para a criatura que jaz sob os pés do santo. Ela tem volumes mais definidos em relação à
combatida por São Jorge, suas extremidades aparentam ser cabeça e cauda e avançam para fora da
base quadrada que sustenta a cena de ‘combate’. A melhor definição do inimigo como sendo um
dragão também pode ser vista nas asas que surgem lateralmente ao seu ‘tronco’, mas o esmero do
artista é direcionado às asas do próprio arcanjo, como será visto abaixo.
101
“Arcanjo” é o nome dado à categoria de anjos responsáveis pela transmissão de mensagens importantes.
Juntamente com São Rafael e São Gabriel, São Miguel Arcanjo é uma das principais entidades da hierarquia
angélica, tendo atingido tal importância que os três adquiriram o estatuto de santos.
148
A balança, devido à sua grande proporção em relação ao conjunto como um todo, parece
mais ser um elemento de desequilíbrio do eixo do ‘santo-sertanejo’ do que o instrumento de
poder usado por São Miguel para pesar os méritos e deméritos daqueles que estão no purgatório.
A despeito desse ‘peso’, é segurada apenas pelo encontro dos dedos polegar e indicador de uma
das mãos do santo, dando a impressão que o atributo precisa ser mostrado (e não necessariamente
sustentado). É interessante notar que os pratos da balança são ligados ao eixo dela por cordas, o
que introduz um elemento flexível distinto da madeira na escultura.
Diferentemente do São Jorge que abordamos acima, que do pescoço para baixo, com
exceção das mãos, tem o corpo todo coberto por armadura, o traje de guerra de São Miguel é mais
leve, colorido, não cobre parte dos braços e das pernas. A calça curta marrom é em parte recoberta
pela meia túnica laranja com botões, barras e detalhes ornamentais em dourado e gola em
vermelho. O V formado pela gola na parte superior do tronco prolonga-se visualmente para fora,
através das asas pontiagudas que surgem das costas do santo, crescendo até a altura dos olhos. Os
grafismos em azul, vermelho e dourado não sugerem penas nas asas de fundo amarelo, que devido
aos desenhos e ao colorido se parecem mais com as de uma borboleta do que com as de uma ave.
Olhando a face posterior da peça vemos que as asas são formadas por dois triângulos
presos nas costas de modo a formar um V invertido entre eles ou ainda um W se olharmos o
conjunto composto por asas e tronco. Nessa parte de trás da imagem, a túnica é praticamente lisa;
os detalhes em dourado, azul e vermelho concentram-se nas asas de fundo amarelo. Apesar da
leveza emprestada às asas pelas cores, não temos a impressão que o santo alado vai se elevar em
voo, seus sapatos aparecem bem fixados ao dragão.
A hagiografia de São Jorge, por exemplo, de acordo com a historiadora da arte Rosa
Giorgi (2011, p. 88), foi transformada numa espécie de conto de fadas a partir da Legenda. O
animal montado pelo santo medieval que viveu entre os séculos III e IV passa a ser sempre
um cavalo branco, que simboliza suas qualidades irrepreensíveis. Além do dragão, outro
atributo que entra em cena é uma princesa que é salva pelo santo. A imagem de São Jorge como
um príncipe de conto de fadas, por conseguinte, nasce da confluência entre um texto que
traz um modelo de santidade e a imagem que ele fomenta.
A articulação entre texto e visualidade, entretanto, não nos diz apenas sobre a imagem
prescrita e desejada. De acordo com Carlo Ginzburg (2001), as citações proféticas nos textos
judaicos – tais como “ecce homo” (“eis o homem”); “eis a virgem”; “eis o Cordeiro de Deus”
(GINZBURG, 2001, p. 116) – incitaram uma gama de representações icônicas inesperadas.
Para o autor, o uso de certas frases nominais deu origem a imagens de culto cristãs que trazem
consigo uma dimensão narrativa de ênfase no milagre dramatizado na representação. Em
certos momentos históricos, essa dimensão se torna mais escassa, mas continua guardando
relação com as experiências místicas ou proféticas.
A partir dessas sugestões, se estamos lidando com santos apresentados em termos de “eis
o sertanejo”, também estamos travando contato com imagens sobrecodificadas, que se somam a
outras relacionadas ao sertão. Como não enxergar, por exemplo, São Jorge e São Miguel como
retirantes? Nessa leitura, os inesperados sapatos de couro de São Miguel, em vez das sandálias
com as quais é habitualmente representado, serviriam para proteger as solas dos pés em sua saga
de fuga da seca. O santo que, como arcanjo, poderia voar, mas na interpretação em pauta precisa
enfrentar o terreno árido do sertão, ganha o auxílio de um calçado mais resistente, como as botas
da imagem de São José que leva a família para o Egito às pressas.
150
Uma das imagens mais tipicamente brasileiras é a de São José de Botas. Na Europa
encontra-se uma ou outra vez um São José calçando botas; aqui o número cresceu até
tornar-se um tipo à parte. O enigma das botas era explicado como indicação da fuga
para o Egito. Esta explicação, no entanto, parece artificial, pois conhecemos diversos
santos que calçam botas do mesmo tipo: São Pedro, São Joaquim e outros.
(HERSTAL, 1956, p. 87, grifo meu).
102
No qual se inserem, por exemplo, os autores Raquel de Queiroz, José Lins do Rego e José Américo.
151
A partir dessa forma de ver que se impõe, os sapatos de São Miguel retirante são como
aqueles do São José de botas peregrino, que viaja longas distâncias em fuga. Não há como relativizá-
los como faz Herstal (1956), apontando que as botas também aparecem nos pés de outros santos. Ao
evocar êxodo, tanto o jegue montado por São Jorge, como os sapatos de São Miguel se conectam a
uma narrativa cristã atualizada com cor local. Assim, o que precisa ser combatido não é nenhum
dragão, mas a seca, provocada por um sol inclemente diante do qual só resta fugir.
Como vimos, os santos com cara de sertanejo trazem em si mais do que feições peculiares.
A dupla ‘liberdade’ em relação aos cânones escultóricos e religiosos resulta na expressividade
plástica mobilizada por linhas de força associadas pelo colecionador ao típico, ao cotidiano e ao
regional. Percebe-se, então, como o ponto sublinhado por meu interlocutor agrega ao nosso
olhar a paisagem constitutiva da imagem, que agora emolduramos como ‘imagem-paisagem’. O
sertão, mobilizado por muitos detalhes, produz esse tipo de obra autêntica que é destacada no
imperativo de olhar para “esse São Jorge” (o colecionado) e não para imagens de São Jorge
genéricas. Uma outra operação consiste em produzir ‘O’ São Jorge em questão como singular no
interior de uma classe de objetos que interessam a colecionadores.
A cara de gente humilde provém dos próprios santeiros, que produziram suas imagens no
seio da religiosidade do povo para ocupar altares de capelas de fazendas, de beira de estrada ou ainda
oratórios e outros nichos domésticos. Assim, a ‘imagem-paisagem’ é entendida como expressão
plástica diretamente relacionada à dinâmica de baixa penetração da “Igreja oficial” e seus oragos
de traços europeus no sertão. O santo humilde não traz em si somente o horizonte inescapável
da fome e da seca, ele nos transporta para uma realidade outra, a do mundo encantado do sertão.
Ainda de acordo com Albuquerque Jr. (2001), o Nordeste sertanejo não coincide exatamente
com aquele pensado por Freyre a partir da Zona da Mata pernambucana: É um “reino […] bruto,
despojado e pobre”, cuja visibilidade em tais termos é reforçada pela obra de Ariano Suassuna, que
tem como cenário uma região feudal, medievalizada, um espaço ainda sagrado, místico, que lembra a
sociedade de corte e de cavalaria, com seus profetas, peregrinos e cavaleiros andantes.
152
Tudo isto posto, fica claro porque eu não tive a menor dificuldade em ver o sertanejo
apontado nos santos, a despeito de, em vários momentos, não ter conseguido enxergar outros
elementos destacados nas imagens por Antônio. Afinal de contas, mesmo não tendo seu olho treinado,
eu era familiarizada com o potente repertório que inventa o Nordeste, o nordestino e o sertanejo. Um
colega estrangeiro e, portanto, não conhecedor do repertório em questão, ao me ver descrevendo a
imagem de São Jorge abordada acima, perguntou-me se tratava-se de um homem montado em um
pônei ou em uma figura de carrossel. A reação ao São Miguel que também descrevi anteriormente foi
chamá-lo de “homem borboleta”. Outro colega alertou-me que a peça “parece o Anjo do Klee”, o
personagem do quadro descrito por Benjamin em sua famosa tese IX sobre o conceito de História:
A aquarela de Paul Klee que tanto impactou Benjamin pertencia ao autor, que a
adquiriu em uma feira em Munique. A incorporação da imagem em sua teoria teria sido fruto
da “identificação mística” do autor com o Angelus Novus. Nessa perspectiva, o "anjo da
história" é uma visão melancólica do processo histórico como um ciclo incessante de
desespero. Quando Benjamin vai a Paris, a obra fica por um tempo sob a guarda de Georges
Bataille. Em setembro de 1940, o autor cometeu suicídio durante uma tentativa frustrada de
fugir do regime nazista. Seu amigo Scholem herdou o Angelus Novus. A viúva de Scholem doou
o quadro ao Museu de Israel, que fica em Jerusalém, onde a obra permanece até hoje103.
A interpretação da aquarela em termos de “Anjo da história” fez com que essa obra do
pintor suíço passasse também a ser o “anjo do Klee” encarnado pela visão de Benjamin. Essa
transformação de um ser angelical em mensageiro do caos mostra-nos como uma imagem pode
não só nascer da dimensão narrativa, como propõe Ginzburg (2001), como também, na direção
inversa, incitar leituras de cunho apocalíptico. O vendaval do capitalismo e seus dispositivos de
consumo levam necessariamente à catástrofe e arrasta o anjo de rosto voltado para o passado.
http://www.imj.org.il/imagine/collections/item.asp?itemNum=199799.
153
A figura de São Miguel também foi importante na minha interação com a santeira
Luzia Dantas e sua filha Dalva quando as visitei em Currais Novos - RN. A artista me
explicou que alguns elementos da iconografia de certos santos são indispensáveis na
fabricação de suas imagens: “Santa Luzia tem que ter uma coroa bonita porque ela era muito
vaidosa. São Francisco não pode ser feito sem os pombinhos... Santana Mestra está sempre
mostrando um livro para Nossa Senhora. Padre Cícero tem que estar de batina e chapéu.”
E apesar do Arcanjo Miguel ser comumente representado sobre o demônio, Luzia me
explicou porque não esculpe essa criatura, pois não quer responsável pela entrada de
“diabinhos” na igreja caso as pessoas levem a peça para benzer. A santeira, portanto, receia
que a ativação – por meio da bênção – da potência sagrada dos santos implique na entrada
de seres malignos no espaço sacro. Desse modo, a destacada ausência desses seres no
corpo da imagem mostra como a autoria de uma representação iconográfica consagrada
pode ser eivada de subjetividade.
154
O fato de Dalva ressaltar que, atualmente, as peças de Luzia são mais rebuscadas me fez
pensar nas que eu havia visto no Museu Câmara Cascudo104. Neste local, as obras da artista me
foram apresentadas juntamente com as de sua irmã, Ana Dantas, já falecida105. As principais
diferenças apontadas pela santeira entre as peças de sua autoria e as de Ana foram o rosto mais
comprido e o olho mais puxado em relação aos que a irmã conferia às produções.
Contudo, o acionamento das peças do MCC é importante principalmente para colocar em tela
as diferenças de características formais perceptíveis no universo de obras da própria Luzia. As obras
musealizadas são menos ricas em detalhes, rígidas; ao passo que suas produções contemporâneas
são consideradas mais aprimoradas e movimentadas. Segundo a artista, seu aprendizado se deu
com o tempo e a principal inspiração para o aspecto barroco que sua obra foi ganhando foram os
trabalhos de Aleijadinho: “– Eu admirava muito o trabalho dele, aquele movimento”.
De acordo com Luzia, ela fez as primeiras peças para brincar. Como sua família não tinha
dinheiro para adquirir brinquedos, ela começou a esculpir bonecos e animais com imburana,
madeira típica da região que era trazida até sua casa pelos irmãos, para ser usada como lenha.
Depois começou a fazer ex-votos e as cenas da vida nordestina, já para comercializar. As encomendas
aumentaram e sua irmã Ana, que trabalhava com costura, também começou a esculpir.
Luzia é devota de Nossa Senhora do Carmo, mas a primeira imagem que fez foi Nossa
Senhora de Fátima, a pedido de uma mulher que queria pagar promessa. Hoje, ela faz
qualquer santo, mesmo que não conheça a iconografia. Nesse caso, pode se valer de uma
foto, como já foi mencionado, ou até mesmo de outra estátua. A santeira me mostrou um
São Lucas em gesso que lhe levaram para que ela fizesse um exemplar em madeira. A artista
ainda faz ex-votos e as cenas da vida nordestina, mas em menor número, e sob encomenda. Ela
disse que a demanda por santos aumentou e que há outros artistas que podem fazer ex-votos
e as cenas por um preço mais baixo que o dela. Quando perguntei se o reconhecimento lhe
rendera demandas diferentes das habituais, ela contou aos risos de um estadunidense que
solicitou um Papai Noel e teve o pedido recusado.
A artista e sua filha não me mostraram nenhuma cena ou tipo regional. No pequeno
acervo doméstico que me foi apresentado, a única escultura de sua autoria que não é um
santo é a de uma menina com um laçarote na cabeça, brincando com um gato, que imaginei
ser uma indiazinha. Luzia explicou que a esculpiu inspirando-se em sua filha e que não vende
“por dinheiro nenhum do mundo”, apesar de já ter recebido diversas ofertas. Para manter
peças em casa, a artista precisa sempre esclarecer aos visitantes, muito bem-recebidos, que
nem tudo está à venda. Nessa direção, Luzia e a filha me mostraram um conjunto de imagens
cujos santos que o constituem só não foram vendidos porque qualquer interessado é logo
informado que tais santos pertencem à “Coleção de Dalva”.
Figura 41 – Imagens de
autoria de Luzia Dantas,
Coleção de Dalva Dantas
Foto: Acervo da autora,
fev. 2012
156
Dalva é quem acompanha Luzia em feiras e exposições que acontecem Brasil afora. Ela
vive na cidade vizinha de Sta. Cruz, onde trabalha como fisioterapeuta, mas acompanha de perto o
trabalho da mãe indo todo fim de semana para Currais Novos. A jovem lamentou que as pessoas
não se importem se um trabalho é feito à mão ou não, pois estão apenas interessadas no preço.
A essa altura, os santos feitos à máquina entraram em pauta. Comentei que havia
conversado sobre o assunto com Antônio Marques e ela se mostrou preocupada: “– Mas ele lhe
disse quem faz? Tome cuidado, porque isso pode dar até processo.” Novamente me vi diante do
jogo de acusações em torno da mecanização da fabricação de santos106.
Luzia disse que já lhe ofereceram que ela desse o acabamento em santos esboçados em
máquinas e ela recusou terminantemente. Segundo a santeira, produzir com a ajuda das máquinas
é muito mais fácil e rápido. “– Desse jeito eles vão acabar com a madeira. Eles dizem que em um
dia fabricam 100 peças, eu passo a semana inteira para fazer uma... e olhe lá. É por isso que essa
turma de Pernambuco vende praticamente de graça.”
Não foi a primeira vez que escutei essa referência à “turma de Pernambuco”. É nesse
estado que se localiza a cidade de Ibimirim, onde no início dos anos 2000 foi desenvolvido, no
âmbito das ações do Comunidade Solidária, o Programa de Artesanato e Geração de Renda. A
ação foi realizada “com o duplo objetivo de revitalizar “saberes” e “fazeres” ameaçados de se
perderem no tempo ou na massificação dos padrões globalizantes e de encaminhar
possibilidades de comércio para essa produção”, como explica Ruth Cardoso na apresentação do
catálogo da exposição Santos e Santeiros de Ibimirim, realizada no Centro Nacional de Folclore e
Cultura Popular entre 19 de dezembro de 2000 e 28 de janeiro de 2001. As imagens expostas eram
representativas de duas vertentes da produção que os santeiros foram incentivados – por meio de
cursos e encontros temáticos – a realizar.
106Abordo a questão das chamadas “esboçadeiras” no contexto de minha primeira interação com Antônio,
explorada no tópico 1.2 do 1º capítulo.
157
Afinal, por que o São Francisco – de longe, a imagem mais produzida e mais
vendida -, sendo considerado por muitos o precursor da ecologia, não poderia ter
junto a eles outros bichos além de pombos? Por que não incorporar outros
elementos da fauna e da flora, a exemplo da mais genuína tradição do barroco
tropical? Por que não fazer uso de elementos ecológicos de um ecossistema tão
específico como o da caatinga? Por que não as cabras, os bodes, as onças, as
raposas, os tatus e os frutos, representativos da aridez da caatinga? E a questão
mais pertinente: por que e para que fazer uma intervenção dessas? As respostas
vieram com os resultados das primeiras experimentações, ficando claro que estava
abrindo um novo nicho de mercado, com um filão diferenciado de consumidor,
integrado por colecionadores e amantes das artes populares, que não compram
peças por devoção ou fé, mas por seu valor artístico. Acresça-se a isso a enorme
satisfação gerada nos santeiros pela realização de peças autorais, em que suas
identidades, habilidades e talentos apareceriam, fugindo ao simples anonimato das
artesanias e manualidades, impregnando as peças de identidade cultural e de
expressão ecológica. (GONÇALVES, 2000, p. 21)
Pode-se dizer que a produção de Luzia integra a primeira vertente descrita acima, ou seja,
a santeira inspira-se no barroco, mas não recobre a madeira e não inclui elementos que considera
interferir na obra. Mesmo no tocante às cenas e aos tipos regionais a artista já havia declarado, ainda
na década de 1970, no auge desse tipo de produção, como será visto adiante, repelir intrusões
que tornassem suas peças menos realistas.
107 No catálogo supracitado não há qualquer menção à utilização de equipamentos que não as ferramentas tradicionais.
158
Atualmente, a santeira gosta de ter algumas “peças grandes” prontas, pois a qualquer
momento ela pode ser convidada para alguma feira. São Miguel e São Jorge são as obras mais
requisitadas. A iconografia dos referidos santos guerreiros exige mais trabalho da artista e, por isso,
ela cobra um valor maior por eles e um exemplar de cerca de 30 cm custa em torno de R$ 300,00.
O pôster descrito foi exibido originalmente em uma importante feira de artesanato e mostra
uma faceta constitutiva do valor das imagens: evidenciar o processo de transformação de matéria-
prima por meio do trabalho manual. Quando pedi para ver as ferramentas na varanda, Luzia
começou a esculpir um pedaço de madeira para me mostrar como as utilizava, numa espécie de ritual
com a qual parece estar acostumada. O resultado do registro de diversas ocasiões em que a santeira
foi visitada por pesquisadores também foi exposto para me receber. Sobre uma mesa, Dalva dispôs
livros (alguns autografados por seus autores, como Lélia Coelho Frota), catálogos, publicações e
recortes de jornal em que a mãe é mencionada, bem como troféus, medalhas e placas de homenagens
que ela recebeu por sua obra. Esse cuidado mostrou o quanto elas são acostumadas a receber
jornalistas e outros interessados no trabalho da artista.
Figura 46 – Luzia apresentando Figura 47 – Luzia apresentando uma Figura 48 – Santa Luzia e livros que
seu saber-fazer e a variação das obra em processo na sala de sua casa abordam o trabalho da santeira
ferramentas utilizadas
Fotos: Acervo da autora, fev. 2012
160
Antônio Marques possui a maioria dos livros que foram expostos para me receber na
casa de Luzia. Desta feita, depois de cumprida a ‘lição de casa’ que consistia em visitá-la, eu
deveria me dedicar a estudar o que já se produziu sobre aquela que me foi apresentada como “a
maior santeira do estado”. Para entender tal destaque, eu deveria saber que o posto de maior
nome da arte popular do RN já pertenceu a outro artista, qual foi o legado deste e o papel de
intelectuais diversos em sua divulgação. Trata-se de Xico Santeiro, cuja importância no âmbito
das práticas de colecionamento de meu interlocutor foi evidenciada na abordagem da exposição
de presépios que abre o segundo capítulo desta tese.
Uma das publicações que eu deveria estudar é o catálogo referente à exposição 7 brasileiros e
seu universo: artes, ofícios, origens, permanências, promovida em 1974 pelo Departamento de Ação
Cultural do então Ministério da Educação e Cultura. O texto que abre a coletânea é Prelúdio do
Artista Popular de autoria de Câmara Cascudo. Antes de dissertar sobre a figura que estava sendo
celebrada na exposição, o “artista popular brasileiro”, o folclorista declara a necessidade de
“ressuscitar” seu encontro com um santeiro, mas ainda não se trata de Xico Santeiro e sim Zé
Leão, personagem de “Tempo-de-Sertão” do autor, pontuado de casas simples e de oratórios
humildes: “inconcebível uma residência sem o pequenino armário, de forma ogival, escondendo e
denunciando os protetores da família, os deuses larários do catolicismo brasileiro.” (CASCUDO,
1974, p. 13) Esses deuses eram produtos do trabalho zeloso dos “imaginários do sertão”:
O imaginário havia sido abordado pela primeira vez em “Temas Açuenses, José Leão,
fazedor de santos”, uma das dezoito crônicas escritas por Cascudo como relato de uma viagem
ao interior do Rio Grande do Norte, reunidas no volume Viajando o Sertão.
161
Atravesso os areais da cidade de Capunga onde, numa casa caindo de velha e negra
de velhice, mora José Leão, sexagenário, fazedor de santos. […] É o tipo do
Imaginário primitivo, sereno, resignado, incompreendido, passando fome,
trabalhando sem esperança, sem ambiente, sem auxílio, sem estímulo, insensível e
obstinado, artista legítimo, com uma intuição de escultura, um senso decorativo,
um tino de moldar as fisionomias que lembra a rudeza elegante máscula de
Memling. José Leão mostra-me dezenas de santos, crucifixos, anjos, ovelhas
místicas. Não tem instrumentos. São pedaços de canivetes, troços de puas, restos
de enxós, um formão quebrado, cacos de louça, pires bolorentos, quengas de coco
seus ferros e godelets. Longe de ter a monomania da beleza dos Santos moldados
em gesso e feitos à máquina, iguais e bonitinhos, José Leão grava na imburana
plástica rostos humanos, possíveis e naturais. […] Eu tive nas mãos uma Nossa
Senhora do Perpétuo Socorro verdadeiramente maravilhosa. Um S. José, um S.
João Batista, que estão sem preço, pedem uma página de elogio pela firmeza
incrível com que aquele velho gravou os traços morais na árvore que lhes deu
nascimento e vestiu-os com uma precisão minuciosa e pictórica dum desenhista à
Herouard. (CASCUDO, 1975 [1934] p. 17-18 e 1974, p. 15).
Nessa descrição não é difícil enxergar a construção da biografia de um artista que tem uma
forma de vida característica dos santos – eivada de resignação, pobreza e incompreensão –
tampouco a identificação de particularidades autorais, ou seja, Xico pode ser visto como um
Aleijadinho regional tanto por sua trajetória próxima daquelas contadas nas hagiografias, quanto
por sua elevação à condição de excepcional levada a cabo por pessoas que registraram quais as
formas específicas de suas imagens que dão a ver seu talento. Por isso, é mister verificar a descrição
dos detalhes dos santos fabricados pelo imaginário primitivo com ferramentas improvisadas.
Onde andam os Santos de madeira? Devem ser centenas. Não vi nenhum. Lá fora,
na Europa, eles dia a dia, merecem maiores honras de colecionadores e
agiólogos [sic]. Um trabalho de madeira é sempre um esforço pessoal, direto,
próprio. Fique feio ou deslumbrante, o caso é que é um produto da inteligência
humana, sem o auxílio da máquina polidora. Um trabalho de gesso, cartão ou
massa, sempre bonito, é sempre o resultado frio da máquina, produto igual,
monótono em sua beleza, sem o calor da mão humana, rude ou apta, mas sincera.
(CASCUDO, 1975 [1934], p. 26, grifos meus).
108 Grafados ao longo de todo o ensaio de Cascudo com S maiúsculo, assim como o termo Sertão.
162
Câmara Cascudo foi responsável pela mais extensa obra nesse campo. Trata-se d“o
inventor do folclore entre nós”, como diz Albuquerque Jr. (2013) em A feira dos mitos, obra
na qual discorre sobre a contribuição dos folcloristas na corroboração de ideias de Nordeste
que se impuseram. Sua contribuição, portanto, é fundamental para compreender o lugar do
Nordeste na “paisagem imaginária” do Brasil, palco por excelência de um conjunto de
manifestações culturais que foram objeto de apropriação e nomeação por parte de um
importante grupo de intelectuais que atuaram nesta área do país entre o final do século XIX
e meados do século XX. Segundo Albuquerque Jr. (2013), não é mera coincidência que a
região tenha concentrado grande parte dos estudos de folclore e que nela tenham nascido e
vivido aqueles que são ainda considerados os maiores estudiosos desta matéria.
As cenas e figuras regionais produzidas por Xico são mencionadas como sugestões de
venda fácil, frutos de encomendas e, portanto, entendidas como criações artificiais. Tais
obras passaram a ser produzidas por santeiros quando intelectuais lhes atribuíram o status de
artistas, na esteira de movimentos que buscavam a valorização do autenticamente nacional.
Como afirma Silvia Coimbra (2009),
[…] Talvez se possa explicar, simploriamente, tudo isso, menos pelo despertar de uma
consciência artística, na província, do que por motivos de ordem política e social. Ele
atingiu a sua maior notoriedade numa época de exaltação e supervalorização de tudo que
levava o selo da “popularidade”. […] Também não se deve subestimar o trabalho de
divulgação da obra de Xico Santeiro feito por gente ilustre da cidade, professores,
administradores, políticos, jornalistas, todos externando sua admiração à obra rústica do
nosso maior “imaginário”. Vários fatores se congregam para projetar a produção do
escultor popular. Mas a contribuição do próprio artista foi significativa pelo seu valor
intrínseco. Xico foi o primeiro a produzir, em massa, no Rio Grande do Norte, essa
humanidade de figuras nordestinas e santos de madeira. (MELO, 1974, 20-21, grifos meus).
A primeira escultura profana que Xico fez em Natal foi a pedido de Protásio de Melo.
“O retrato do nego véio Fabião das Queimadas”, como ele nos dizia. Protásio fazia
sempre encomendas de santos a Xico. Um dia mostrou-lhe um desenho de Fabião, o
cantador, de autoria do Prof. Hostílio Dantas. Indagou de Xico se ele seria capaz de
talhar uma figura daquelas. Xico prometeu que faria e fez. Daí em diante, começou a
fazer outras peças que lhe foram pedindo. Durante trinta anos, fez milhares de peças, que
vendeu a colecionadores da cidade, de outros Estados e até do estrangeiro. Falava com
orgulho do Cristo que enviou ao Papa Pio XII112, por intermédio do Dr. Paulo Pinheiro
de Viveiros, recebendo bênção especial. Muita gente importante adquiriu peças de Xico,
[…] (VERISSIMO DE MELO, 1974, p. 23, grifo meu).
Xico disse a Veríssimo que Cascudo “gostava muito das imagens em miniatura de
Santo Antônio, para dar de presente às moças.” (VERISSIMO DE MELO, 1974, p. 22), o
famoso folclorista, por sua vez, declarou ignorar “qualquer representação plástica anterior ao
século XIX” (CASCUDO, 1974, p. 13), salvo aquelas produzidas por imaginários e santeiros,
na sua visão, fiéis às mesmas preocupações dos escultores medievais. Por isso mesmo,
Cascudo se posicionou abertamente contra as encomendas que eram feitas a Xico, que, além
dos santos, esculpiu tipos de rua, pescadores, mendigos, cangaceiros, rendeiras e outras
figuras que quebravam a linha de continuidade traçada pelo intelectual entre o “artista do
Povo” e “um escultor do tempo das catedrais góticas”:
Muita gente de gosto possui trabalhos de Joaquim Manuel de Oliveira [nome de batismo de
Xico Santeiro]. Muitos admiram sua habilidade, intuição e acabamento. Outros, mais
imaginativos que artistas, deformam o sentido originário do Santeiro, de técnica secular,
fazendo-o executar cousas estranhas à sua inteligência, fazendo-o concorrer com os
escultores de madeira, os homens da Arte clássica ou moderna. Joaquim Manoel vive em
nossos dias a tradição dos Santeiros portugueses de Évora e de Braga. Conserva a
112 Cascudo (1974, p. 17) também menciona um Cristo enviado ao “Presidente Kennedy”.
167
fidelidade ao azul, ao ouro, ao vermelho, típicos das velhas imagens. Dá-lhes um ar inocente
e reservado, um tanto carrancudo e severo mas doce e natural, que encontramos nos santos
de outrora, os Santos feios […]. Devíamos pedir a este artesão legítimo apenas, e
muito humanamente, as obras de sua Arte instintiva e secular. Nada que o obrigasse
a transformar sua perícia em adaptações e adivinhações. Perderia o setor popular e jamais
alcançaria o plano artístico. (CASCUDO, 1974, p. 16, grifos meus).
Albuquerque Jr. (2013) argumenta que a insistência na construção do Nordeste como o “reino
encantado do sertão”, tão presente na obra do escritor Ariano Suassuna, torna notório o combate à
inventividade perpetrado pelos folcloristas. O Nordeste diretamente ligado ao passado medieval da
Península Ibérica é uma região feudal, espaço ainda sagrado e místico e logo, barroco, antirenascentista,
anti-industrial. Tais elementos são patentes nos textos de Cascudo. Embora concordando com o
historiador que a fabricação da cultura popular não pode ser entendida sem o recurso ao folclore,
considero pertinente não se ater apenas ao lamento antimoderno desse campo discursivo.
Se na visão de Albuquerque Jr., o folclore, por essência, tenta evitar que os homens
se apropriem de sua história, o que se vê com Cascudo é a impotência do intelectual diante
do progresso. Nessa direção, mais do que a construção de uma “maneira de ver [o Nordeste]
que se impõe”, tem-se a tentativa de organização do presente que claramente lhe escapa,
evocando uma consciência de tempo perdido. Em resumo, e indo ao encontro dos objetos
que mobilizam essa tese, as “peças profanas” são condenadas pelo folclorista, mas não ficam
de fora do texto, pelo contrário, se multiplicam nele.
Assim, se Cascudo inventa a figura do fazedor de santos que se esvai – seu Prelúdio,
nesse sentido, é quase um réquiem – e se seu santeiro só pode ser imaginário, é potente
também enquanto imaginado. O interessante é que ao fabulá-lo, o intelectual nos coloca na
presença de santos peculiares, suas cores e filiações a panoramas artísticos mais amplos. E
também nos põe diante de duas personalidades artísticas. No Prelúdio e outros ensaios
acionados a partir dele, a perspectiva de Cascudo está longe de se restringir à oralidade ou a
produções anônimas. Por mais que a criação individual seja submetida ao coletivo, não deixa
de impactar o intelectual com certos traços autorais.
Dissolver a “maquinaria imagética Nordeste” (ALBUQUERQUE JR., 2013; 2001) não exigiria
desinventar alguns dos estereótipos sobre o “inventor do folclore” entre nós? Nos textos de Cascudo
utilizados, o autor não toma os objetos como desprovidos de autoria individual ou como meros
documentos etnográficos. Pelo contrário, ao falar de santos impregnados de labor devoto e revestidos
de cores rituais, o folclorista encontra a beleza das imagens trilhando um caminho muito semelhante
àquele que deságua no estético, tal qual definido por Marcel Mauss em seu Manual de Etnografia:
168
113 O Prelúdio foi escrito a partir das crônicas que originaram o livro Viajando o Sertão. A incursão que deu origem ao livro
tem caráter oficial. O autor foi convidado para viajar acompanhando o interventor federal, Mário Câmara, e outras
autoridades locais na condição de especialista nas coisas regionais. As crônicas foram publicadas individualmente no jornal
natalense “A República”, que foi por muitos anos o principal órgão da imprensa potiguar, acumulando a função de Diário
Oficial do Estado com a de periódico informativo e literário. A primeira edição de Viajando o Sertão coube à Imprensa
Oficial do Rio Grande do Norte. A segunda e a terceira ficaram a cargo da gráfica Manimbu, pertencente à Fundação José
Augusto, órgão estadual de cultura. Para compor a parte do Prelúdio na qual aborda Xico, Cascudo se vale de textos que
tinha publicado anteriormente em um jornal local apresentando o santeiro à população de Natal (RAMOS, 2015).
169
Assim, o Prelúdio de Cascudo continua a alimentar a cadeia de textos que institui o imaginário
como predecessor do santeiro e este, por sua vez, do escultor popular114. É significativo que este texto
abra a publicação que também contém as considerações acerca de Xico Santeiro e Luzia Dantas
feitas por Veríssimo de Melo, que foi aluno e é considerado um pupilo de Cascudo115.
Além dos santeiros potiguares abordados pelos autores do RN, o catálogo também
compreende um texto sobre arte popular em Minas Gerais, de autoria de Márcio Sampaio.
Nele, os escultores de santos em madeira e pedra-sabão não são chamados de imaginários ou
santeiros. Ao escrever sobre sua busca de artistas pelo interior de Minas Gerais, Sampaio narra
seu o encontro com o “profeta” Bené da Flauta em Ouro Preto. O artista conversa com o
autor enquanto dá o polimento na cara de um Santo Onofre em pedra-sabão. No final do
relato, a interação do artista com as imagens que esculpe é descrita como um verdadeiro baile
entre o céu e a terra:
Por fim, põe-se a dançar, enquanto arruma umas esculturas sobre uma tábua, no
chão, para mostrar como são, bonitas no conjunto: Santo Onofre reúne a Santa
Terezinha, num colóquio amigo. Certamente, comentam as coisas do céu. Adiante,
a cabeça de uma mulher, de um homem barbado, de umas figurinhas de anjo
trazem o mesmo sorriso, como se conhecessem, na terra, a felicidade, que não é
privilégio só dos santos do céu. É o mesmo sorriso que está sempre na boca de
Bené, atrás da barba esbranquiçada de pó de pedra-sabão, o mesmo ar de
felicidade do homem que parece um mendigo nas suas roupas sujas e rasgadas,
mas que traz consigo uma secreta alegria que imprime em tudo que diz e faz.
(SAMPAIO, 1974, p. 32).
Em seu percurso, Márcio Sampaio ainda encontra artistas que, trabalhando o “lenho
sagrado” refazem imagens barrocas, como uma “réplica da Santana Mestra de Aleijadinho”. No
fim do caminho, o autor encontra Geraldo Teles de Oliveira, “a voz do céu”. G.T.O., como
ficou conhecido, é descrito como um artista delirante e que “ainda vive a infância”, misturando
“toda sorte de personagens que lhe contavam a avó índia, o negro que o embalou no berço, e o
avô que lhe deu o livro dicionário e o levava às festas do povo” (SAMPAIO, 1974, p. 33) e o
impulso criador de G.T.O foi um sonho obsessivo, no qual viu o que deveria criar.
114 Encontrei o texto em questão integralmente republicado no catálogo da mostra “Santeiros Imaginários”, realizada no
Paço das Artes em São Paulo, em 1977 e ainda na compilação de registros de catálogos “Artes Plásticas do Rio Grande do
Norte”, realizada pelo artista plástico Dorian Gray Caldas (1989). O prelúdio é referência recorrente em catálogos de
exposições que abordam o trabalho dos santeiros, como pode ser visto nos textos de Mascelani (2002, p. 108) e Lima (2010).
115 Veríssimo faz parte da geração de intelectuais – ligados tanto à política local, quanto à universidade – que busca precisar e
incorporar o folclore do estado natal no interior do então já estabelecido folclore nordestino e brasileiro (ALBUQUERQUE
JR., 2013). É nesse quadro que se pode compreender seu esforço em documentar a trajetória de Xico Santeiro.
170
O relato do crítico de arte lembra que dentre os sujeitos populares que estavam sendo alçados
à condição de artistas, alguns eram tidos como produtores de “arte bruta”. Essa denominação foi
criada na década de 1940, pelo artista francês Jean Dubuffet, para designar criações que, em tese,
emanam diretamente do inconsciente sem serem lapidadas por padrões culturais e artísticos. Tal tipo
de arte foi localizado, sobretudo, mas não só, entre pacientes portadores de transtornos mentais que
viviam em instituições psiquiátricas e, atualmente, também é chamada de outsider art.
Na parte do catálogo dedicada aos dados biográficos de G.T.O., Márcio Sampaio reitera a
tormenta dos sonhos e visões que transformou um vigia de hospital em escultor popular de sucesso
depois de sua “descoberta” (SAMPAIO, 1974, p. 100) pelo arquiteto Aristides Salgado. Nas
fotografias que antecedem as imagens das obras do artista em fundo neutro, ele aparece
sorridente, tocando viola em seu quintal, povoado tanto por suas obras quanto por galinhas.
Abordando o relato de um crítico de arte e curador que não reivindica o lugar de estudioso
do folclore, mas entendendo sua ênfase na dança e na musicalidade, quando, na verdade, a
produção levada a público no texto tratava-se de esculturas, como reflexo do enorme relevo
conferido pelos folcloristas à literatura oral, à música e aos folguedos como vias de acesso
privilegiadas ao popular (VILHENA, 1997). O tom literário da apresentação dos artistas é um
exemplo de uma das acepções do verbo folclorizar, de que fala Vilhena (1997), que em vez de
remeter a um objeto de estudo termina por associar esse campo ao anedótico.
Em todas as ocasiões, durante o trabalho de campo, em que fui a casa ou outro local de
trabalho de artistas populares, tanto naquelas em que fui sozinha quanto nas que acompanhei Antônio
e/ou Nildo, tive a sensação de que os artistas seguiam uma espécie de roteiro: sempre me mostravam
as ferramentas e ressaltavam quais eles mesmos tinham confeccionado e, mais do que isso,
colocavam-se em ação para demonstrar a utilização delas. Nem sempre os encontrávamos em plena
atividade, porque muitas vezes chegávamos até eles à noite, mas os artistas não hesitavam em parar o
que estavam fazendo116, retornavam ao ambiente de trabalho – às vezes, uma parte integrante da casa,
como a varanda e a sala de Luzia Dantas (como narrei no tópico 4.2 desse capítulo), outras vezes um
ateliê ou oficina à parte – e faziam o que parece ser uma parte constitutiva dele: mostrar para
pesquisadores como, com o quê e com quais gestos dão forma às suas obras117.
116Não encontrei nenhum deles tocando viola, ou dançando, na maioria dos casos, em que chegávamos na parte da
noite, os artistas viam televisão em família.
117Edmundo Pereira (2016) discute os “protocolos” envolvidos nas situações de registros fonográficos, que também
tendem a ser eventos de interação bastante padronizados. Agradeço ao autor por, na condição de co-orientador, ter
me alertado sobre a rentabilidade da problematização da casa e/ou ateliê dos artistas como uma galeria.
171
Os visitantes em questão são “intelectuais” que, na maioria dos casos, quando não são
clientes, são potenciais divulgadores das obras dos artistas anfitriões. Assim, quando fui até
Currais Novos para conhecer Luzia Dantas, ela e sua filha não só me mostraram matéria-
prima, ferramentas e santos, como também diversas publicações em que a artista é
mencionada, medalhas, fotos que retratavam sua participação ou de suas obras em feiras de
arte e, não menos importante, gratidão a Antônio Marques pelo apoio na venda e na
divulgação das obras. Por ora, volto a tratar dos encontros de outros sujeitos com os santeiros.
Veríssimo de Melo (1974) não deixa dúvida que as “cenas da vida do povo” – compostas
por arranjos diversos de situações e de figuras dos “tipos nordestinos” – seriam obras cuja
autoria deriva diretamente da relação de escultores com pessoas interessadas em suas criações.
Para tanto, o autor não traça uma linha rígida entre o Xico escultor de tipos solicitados por
colecionadores e o Xico imaginário. Esta abordagem é preciosa, sobretudo, porque não há
hesitação em falar das diferentes obras do artista como mercadorias, ao passo que o dinheiro é
um elemento evitado nas observações de Cascudo sobre a circulação das imagens.
José Leão, como todos os santeiros antigos, residia nas vilas ou arruados com
capela, consertando os vultos velhos e atendendo a encomendas de novos para as
fazendas nas cercanias. Às vezes, pela “festa”, numa excursão, levava as obras,
expondo-as na casa onde se hospedava, nunca oferecendo de porta em porta
porque seria desrespeito aos santos, equiparados a farinha e feijão. Compostura de
mestre, com o segredo das formas. (CASCUDO, 1974, p. 15, grifo do autor).
172
Feita essa importante ressalva, é válido retomar os trechos acima nos quais mesmo o
santeiro que não recebe dinheiro – já que os santos não podem ser vendidos tais quais víveres de
mercado – não aparece apenas como fazedor de imagens, mas também como restaurador de
trabalhos mais antigos. Veríssimo narra ainda os reparos que levavam o pai de Xico a circular.
Menino em João Pessoa, Xico talhava imagens miúdas de Santo Onofre e Santo
Antônio, vendendo-as na rua a dez tostões a peça.
Entre 1910 e 1919, o pai de Xico morou, com a família, em várias cidades da Paraíba.
Xico o ajudava na arte. Quando o velho cegou, em 1919, Xico passou a tomar conta da
família. No lugar Lagoa Seca, em Pernambuco, o Padre José Carlos Marim muito o
estimulou. Endireitava aí os santos da igreja e atendia a encomendas da
redondeza. (VERISSIMO DE MELO, 1974, p. 22, grifos meus).
Nessa versão sobre a socialização de Xico, desde menino o santeiro já vende o fruto de
seu trabalho e se torna arrimo de família consertando santos e atendendo encomendas, ou seja, a
produção de imagens era um meio de sobrevivência, complementada pela manutenção dos já
existentes nas igrejas. Vê-se, assim, que as obras do artista em seu tempo de imaginário não
necessariamente eram produzidas em um mundo à parte dos escultores eruditos. E, como se
pode notar, já diziam respeito a pedidos de terceiros. O progressivo sucesso como escultor de tipos
populares, entretanto, é que vai torná-las especialmente valiosas:
A princípio, [Xico] vendia peças a vinte, vinte e cinco mil réis. Nos últimos tempos,
cobrava três, cinco, dez cruzeiros por uma peça, sem falar nas maiores, especiais,
como o Cristo que fez para o Presidente Kennedy (foi entregue ao irmão, Robert
Kennedy, em Natal), o que esculpiu para a nossa Escola de Música. (VERISSIMO DE
MELO, 1974, p. 23, grifos meus).
173
Entre 1961 e 1964, a Prefeitura de Natal ficou a cargo de Djalma Maranhão, grande
admirador de Xico Santeiro. Nesse período, uma casa é doada ao artista e uma grande
coleção foi formada pelo Prefeito, que se tornaria seu “maior mecenas”. De acordo com
Everardo Ramos (2015), o político comprava a primeira peça de cada novo tema tratado pelo
escultor. Com o golpe militar, o Prefeito precisou se exilar e suas iniciativas consideradas
subversivas – tais como campanhas de alfabetização, mostras de obras de arte popular em
barracas de feira e em galerias montadas em praças públicas – foram desmanteladas e
interrompidas. Algumas peças desse período hoje integram o acervo do Museu de Cultura
Popular Djalma Maranhão, mas não se sabe o paradeiro da maioria delas (RAMOS, 2015).
O tipo físico de Fabião foi descrito por Câmara Cascudo em seu livro Vaqueiros e
Cantadores (1984, p. 320), e, apesar de seu nome ter se popularizado no aumentativo, o poeta
seria “um negro baixo, entroncado, robusto, de larga cara apratada e risonha, nariz de
congolês e uns olhos tristes de escravo. Conservava a dentadura intacta e um bom humor
perene”, mas a aparência do cantor fixada por Xico estaria contida em uma fotografia que
lhe foi entregue quando o artista solicitou um modelo para executar a encomenda.
Em seu mais recente estudo sobre a obra de Xico Santeiro, Everardo Ramos (2015)
coteja “a única fotografia que se conhece de Fabião” com a sua reprodução em forma de
escultura realizada pelo artista.
“Inácio das Catigeira”, ou seja, Inácio da Catingueira (na grafia correta), célebre
cantador paraibano do século XIX. Essa nova identidade explica certamente as
pequenas diferenças em relação à imagem original: o personagem agora não tem mais
barba, só bigode, e seu instrumento não mais uma rabeca, mas uma viola. O caráter
aleatório dessas modificações – na verdade, Inácio da Catingueira tocava um pandeiro,
não uma viola, e não sabemos de registro que informasse sua aparência física – prova,
no entanto, que o importante era o aspecto geral do modelo, a imagem criada e
repetida de Fabião das Queimadas, que o escultor reproduzia literalmente ou com
pequenas variações para representar qualquer cantador, inclusive os que não têm uma
identidade precisa. (RAMOS, 2015, p. 95).
Além disso, a escultura do famigerado Buda foi pintada e Xico recobria as peças com
tinta em seu período de imaginário, quando em tese atendia apenas demandas de devotos, mas
é de conhecimento geral que, quando estes últimos já se valiam das imagens de gesso e a
clientela dos santeiros passou a ser, sobretudo, composta por intelectuais e colecionadores, os
santos deixaram de ser pintados, ao passo que os tipos nordestinos já nasceram “ao natural”.
Em algumas versões, diz-se que a demanda pelas peças cresceu tanto que os artistas não
tinham mais tempo de finalizá-las dando-lhes o acabamento tradicional. Em outras, os
encomendantes pediam abertamente que a peça não fosse pintada para dar a ver o trabalho
escultórico (ou de modelagem, no caso dos ceramistas como Vitalino).
119Diz Veríssimo de Melo (1974, p. 22): “Foi nessa localidade [Lagoa Seca, em Pernambuco] que Xico aprendeu
música, tocando trombone. Durante dez anos, tocou trombone e bombardino. Lia música apenas na clave de fá,
tendo, em Natal, tocado na Orquestra “Santa Cecília”, no Alecrim”.
176
Antônio Marques afirma que essas argumentações não convencem mais ninguém: “Noza
foi instruído até a parar de lixar! Isso é gosto de intelectual, é a ideologia que diz que o popular
fabrica o grosseiro, a imagem crua, é para mostrar o popular rústico.”. A madeira e a argila
são os materiais ideais para tanto, pois remetem à terra árida e rachada do sertão e
naturalmente possuem, portanto, “cor local”, inclusive quando trincadas.
[...] infelizmente, a maioria [dos santos], vista por trás, guarda a semelhança de um
Padre Cícero visto pelas costas, com a cabeça ligeiramente inclinada para o lado
direito. Isto era o resultado do aprendizado de Zefa e Loura que já faziam partes das
peças. Como a maior solicitação era de estátuas do Pe. Cícero, Noza apanhava uma
outra e lhe dava um acabamento que mais se identificava com um dos santos
solicitados. Contudo, em diversas delas não foi possível reproduzir o Patriarca de
Juazeiro. São os casos de São Sebastião, de N. Sra. do Perpétuo Socorro, etc. […]
Paguei ao Noza, regiamente, porque sempre deplorei que sua arte fosse tão mal
remunerada e vivesse quase a implorar a caridade pública. (CASIMIRO, 2014, p. 26).
O relato sincero do colecionador aborda ainda outro episódio em que uma atitude sua
visando incrementar a renda do escultor é frustrada. Casimiro havia comprado de Noza uma Via
Sacra talhada em tacos122, mas lhe devolve a coleção porque depois de conversar com um amigo,
avaliam que o melhor que poderiam fazer pelo artista: “ – Era meter em sua cabeça que não mais
vendesse tacos, e sim cópias de impressão tipográfica [...]”. O artista, entretanto, vende o
conjunto “ao primeiro gringo que aparecera”. (CASIMIRO, 2014, p. 26).
122 Noza também talhava matrizes de xilogravura e, antes do reconhecimento, cabos de revólveres.
178
Isso é coisa de quem quer ser colecionador de uma hora para outra ou, de repente,
virar o maior colecionador do artista x ou y, aí quando doa a coleção se promove
assim. Mas, desse jeito, ele sempre vai ter as mesmas peças, ao invés de imagens de
várias fases do artista. O colecionador se faz aos pouquinhos, é um guardião, vai
guardando uma coisinha que encontra aqui na casa de uma pessoa, outra ali no
casa do artista mesmo, quando você chega lá e está pronto. Os santos antigos, dos
santeiros que já morreram, a gente procura até sem saber se eles foram feitos...
Dos novos, a gente compra quando ninguém ainda dá valor, mas quando o artista
fica famoso a gente entende todo o processo, o rumo que a obra foi tomando. Mas
para fazer isso tem que ter vivência com artista, saber no que ele é bom, não basta
chegar lá e dar para eles uma empreitada que você tira da sua cabeça.
A compra diretamente do artista, como se vê, pode não ser vista como problemática
desde que a criação não tenha sofrido (demasiada) interferência. Entretanto, segundo
Antônio, os colecionadores não admitem facilmente quando também são criadores. Em
2013, acompanhados de Nildo, sócio de Antônio, em um museu de arte popular, fomos
convidados pelo mediador da exposição a entrar em uma sala restrita à visitação de adultos.
O local era dedicado a obras de arte erótica que teriam sido descobertas escondidas na casa de
um artista popular. Ao sairmos da sala reservada, Antônio foi categórico: “– O artista nunca
faria tantas peças, ainda mais desse tema, para ficar com ele mesmo. Isso foi encomenda de
colecionador para criar essa coisa toda”.
Nesse mesmo museu, o olho de especialista dos colecionadores captou uma peça de
Noza, um Inácio da Catingueira, que, diferentemente da maioria das peças expostas na
instituição, não identificada com o nome do autor. Para meus acompanhantes na visita, a
autoria do artista – que eles tanto admiram e tratam como um dos principais santeiros do
Nordeste e do Brasil – era evidente e deveria ser afixada em plaquinha de identificação
próxima à escultura. Conversamos com alguns funcionários do museu e fomos informados que
algumas peças realmente carecem de identificação, mas em alguns casos nem o próprio
colecionador que as reuniu estava muito certo, já que comprou, por exemplo, fornos fechados
cheios de obras de cerâmica, que muitas vezes continham obras de mais de um artista.
179
A mais recente exposição com peças de Xico Santeiro foi realizada no Museu Câmara
Cascudo entre 20 de maio e 28 de novembro de 2015. As obras que foram expostas na
mostra Xico Santeiro – uma escola de arte popular integram o acervo da instituição, recentemente
acrescido de 77 obras doadas pelo extinto Diário de Natal, além de peças pertencentes ao
Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará e de dois colecionadores particulares,
incluindo Antônio Marques. No catálogo da exposição (RAMOS, 2015), algumas obras
foram reproduzidas acompanhadas de uma interrogação entre colchetes, outras, apesar de
assinadas por Xico, foram atribuídas aos seus genros Zé Santeiro e Zé da Neusa.
Essas operações corroboram a ideia de que o artista configurou uma escola de arte
popular e que as pessoas que trabalharam ao seu redor foram seus discípulos. Ao contrário de
uma denúncia de autoria forjada, tem-se, portanto, a reafirmação de uma autoria que se
expande. Xico foi Mestre, assim como Noza, que citava suas ajudantes na empreitada de
esculpir Pe. Cíceros em documentários, entrevistas e aparecia com elas nas fotografias. No
Alto do Moura, muitas peças foram assinadas pela “Família Vitalino”. Como afirmou
Antônio Marques na apresentação do catálogo da exposição,
123 Xico assinava as peças com X, apesar de algumas publicações trazerem a grafia Chico. Seu nome de nascença, como
já mencionei, era Manuel e a alcunha Xico teria surgido de um dos intelectuais que frequentavam sua casa. Teria ele
também sugerido o X ou os erros de ortografias nas peças? A coleção do Museu Câmara Cascudo conta com um busto
de Xatobian esculpido pelo artista. Trata-se de Assis Chateaubriand (*Umbuzeiro, PB, 1892 † São Paulo, SP, 1968),
proprietário dos Diários Associados, maior conjunto de jornais e revistas no Brasil da primeira metade do século XX.
Chateaubriand foi colecionador e mecenas de muitos artistas. O referido busto no MCC indica como a produção de
Xico alcançou círculos de apreciadores que extrapolam o nicho dos colecionadores de arte popular.
180
Nota-se que o confronto de coleções leva não só ao acréscimo de mãos às obras que
teriam sido esculpidas apenas pelas de Xico, mas também à explicitação da contribuição dos
discípulos promotores da continuidade do legado expressivo do artista. Essas justificações
constroem o sentido de colecionar obras de Xico feitas pelos seus genros, ao passo que as
variações dessas peças reiteram uma individualidade criadora. Ao fim e ao cabo, tudo é Xico, mas
as pequenas obras policromadas são vistas como características da produção mais antiga do
escultor popular em sua fase de imaginário e, por isso, hoje, são as de maior interesse. Depois de
todo esse percurso, entendo o que estava em jogo quando Antônio Marques me emprestou um
catálogo para que eu entendesse a importância de Xico Santeiro. Com tal gesto, o colecionador
me versou no diálogo de vozes que inventam o escultor popular; denunciam o imaginário que
profana suas obras ao se render às sugestões de venda fácil; louvam a iniciativa do artista que,
mais do que criar, passa a ensinar sua arte tornando-se, assim, mestre.
E seu sertão, principalmente da região do Seridó-Acari, seduz quem por ali passar.
Árvores preciosas parecem dar sustento ao corpo e ao espírito: o babaçu, a carnaúba e
a oiticica. Santos e sertanejos se alternam como temas máximos da expressão de seus
artistas, que, orgulhosos e sabedores da cultura da terra, colocam cangaceiros na Santa
Ceia e esculpem santos com suas próprias feições. Esse é o milagre e o privilégio que a
liberdade de expressão na arte nos propicia. Acima de tudo, este Estado é a terra de
Câmara Cascudo, um dos mais importantes folcloristas e estudiosos da cultura popular
brasileira. Sua contribuição é inestimável e hoje faz falta um garimpeiro cultural
como ele, principalmente porque as mudanças estão ocorrendo rapidamente,
imposição da civilização contemporânea, que tem muita pressa e parece não
importar muito com suas raízes mais profundas, com aquilo que permite que ela
mesma, tão sofisticada, se mantenha em pé. (LIMA e LIMA, 2008, p. 216).
Ao longo do capítulo foi visto como os santos produzidos pelos escultores populares
são, em certa medida, materializações contíguas à ideia do sertão como o lugar da autenticidade
e do povo. Enxergar o sertão nesses termos auxilia a compreender certas motivações para a
procura de imagens, mas não auxilia a vislumbrar as nuances de seu funcionamento. O que
está em jogo no processo de colecionar o sertão por meio de imagens? Quais elementos elas
devem conter para que ‘peregrinem’ para a coleção?
181
Vale lembrar que a negativa de Noza em fazer santos que davam mais trabalho que o corte
já macio e coletivizado de um Padre Cícero é lida pelo colecionador como uma concessão do artista
à pressão dos comerciantes de artesanato. É curioso perceber que o comércio local de Juazeiro,
voltado a romeiros humildes, possa ser mais atraente que o mecenato de um colecionador letrado,
que declara sempre ter deplorado o fato do artista precisar implorar a caridade pública. A imagem
do santeiro que precisa esmolar, simplesmente não corresponde à do artista arguto que tem
gringos à sua porta para comprar a produção que ali circunstancialmente encontra.
Embora a tentativa de influenciar e participar das obras não diga respeito somente às
relações entre clientes e artistas populares, podendo ocorrer com qualquer artista,
também é sabido que os escrúpulos quanto à percepção do direito de influir na obra
alheia são maiores quando se trata da relação entre iguais. É sobre a desigualdade dos
termos da relação entre artistas populares e seus consumidores que é importante
refletir, não apenas sobre a qualidade das influências. (MASCELANI, 2002, p. 30).
Mesmo considerando que não é o caso do meu principal interlocutor, é preciso ressaltar que
muitos dos participantes dos encontros abordados nem sempre se colocam como colecionadores.
São os estudiosos, críticos de arte, inventariadores de artistas desconhecidos. Tais episódios,
entretanto, longe de serem neutros, colocam relações de distintas naturezas em operação.
Por fim, se pode analisar como o controverso Buda em madeira pintada, que se torna item
de coleção, esvazia a narrativa de “invenção da tradição” (HOBSBAWN, 1997). A peça bem-
acabada, fiel ao retrato deixado pelo encomendante, estudado com régua e compasso ao invés das
ferramentas improvisadas, coloca em evidência um artista que repete não apenas nos termos
definidos como ideais para evocar uma região pobre por um lado e culturalmente rica por outro. O
Buda de Xico Santeiro também inventa, mas no lugar de uma melodia nostálgica temos uma
cacofonia, um curto-circuito, já que somos convidados a pensar através da encomenda de uma
divindade exótica que, ao contrário dos santos de Noza, nem cor e corpo local tem.
Ou seja, às vezes, as coisas concebidas por múltiplas autorias para ser uma atualização estética
do Nordeste cortado à ponta de faca falham na vivificação do mito. Longe de meramente se
esculpirem ao som de músicas típicas quando dão forma aos santos e aos tipos, os artistas trabalham
em meio aos debates acalorados sobre a natureza de suas obras e, não menos importante, à
necessidade de se sustentarem com seu trabalho, observando, por exemplo, a descrição de uma obra
da santeira Luzia Dantas oferecida pelo valor de R$ 800,00124 em um site de vendas na internet:
Quando li a descrição da imagem, não foi a santa em questão que veio à minha cabeça,
mas a pilha de livros que a santeira e sua filha Dalva me mostraram quando as visitei em Currais
Novos. As pessoas que coletaram o saber-fazer de Luzia, como se pode ver, não apenas
classificaram suas obras, mas ativaram a circulação delas em circuitos mais amplos.
124
Trata-se do preço mediano em relação a outras obras da artista oferecidas pelo mesmo vendedor. A peça de menor valor –
R$ 520,00 – era um “São José de Botas de Luzia Dantas” e a de maior – R$ 1.400,00 – um “São Jorge de Luzia Dantas”.
125 Grifo meu. Fonte: http://produto.mercadolivre.com.br/MLB-705747904-senhora-aparecida-da-artista-luzia-dantas-_JM
184
5 DA IMAGEM AO MILAGRE
No início do capítulo anterior coloquei em foco imagens de São Miguel e São Jorge
sem conferir maior atenção ao artista que as esculpiu, pois o interesse era primordialmente
mostrar como os santos em questão, ao serem tratados como sertanejos, compõem um
repertório diversificado atrelado ao típico, ao popular e ao regional. As peças em questão são
pequenas, não têm olhos de vidro, não foram estofadas, tampouco douradas e sim pintadas
com esmalte sintético. Sabemos que esses aspectos participam da qualificação dessas imagens
enquanto populares. Para prosseguir pormenorizando-as, é imprescindível ainda ressaltar a
ausência de um elemento: a assinatura.
Veja esse São Jorge. Um santo guerreiro, mas que esse artista transformou em um
sertanejo como ele. Esse eu encontrei com uma parente do artista, 15 anos atrás.
E esse São Sebastião aqui, que você vê que é do mesmo artista porque os traços
são muito semelhantes – olha o nariz, a forma do bracinho, o desenho do cabelo
– esse eu encontrei em uma feira no Recife, na semana passada. Eu posso colocar
os dois aqui [no mesmo nicho da estante de casa] porque sei que são do mesmo
artista, mas preciso saber disso para procurar por aí. E, às vezes, é uma procura
de anos, você sabe com alguém aqui que fulano tem uma imagem, vai buscando,
fica sabendo acolá que alguém está se desfazendo das coisas de família... E como
eu faço isso há muito tempo, já posso juntar outras obras a os santos, porque os
santeiros também faziam ex-votos e tipos do sertão, como essas bandinhas aqui
[retira a peça de uma estante que fica em frente a dos santos e a coloca em cima
da mesa]. Veja o nariz desse tocador de trompa como é o mesmo do São Jorge.
Nenhuma dessas peças foi assinada, mas eu sei que são do mesmo artista ou pelo
menos da mesma família de artistas.
185
As peças em questão não foram assinadas, mas o colecionador sabe quem foi o
santeiro que as esculpiu, tendo o conhecido pessoalmente, ainda em atividade. Os santos em
tela são obras de Julio Cassiano 126, artista que se notabilizou também pela produção de obras
voltadas a finalidades não necessariamente devocionais. Dentre elas, destacam-se esculturas
de banda de música inspiradas na sua experiência de tocador de sax-tenor e soprano em um
conjunto de músicos de sua cidade, a Banda Euterpe Jardinense (FAGUNDES, 2015).
Os imaginários e os santeiros não conferiam feições apenas a oragos, eles também eram
solicitados a esculpir partes do corpo dos devotos e outras formas plásticas ofertadas aos santos.
Nessa direção, é comum que ex-votos em formato de cabeças humanas tenham os traços e
expressividade semelhantes aos das imagens feitas pelo mesmo santeiro. Capturá-los em meio às
multidões de peças presentes nos santuários, entretanto, demanda o olho treinado nos modos de
representação característicos dos santeiros.
Figura 52 – Prancha com fisionomias faciais de ex-votos e santos de Julio Cassiano, coleção de Antônio Marques
Fotos: Ana Paulina (FAGUNDES, 2015) e acervo da autora, jan. 2013
Seguindo a prancha acima, da esquerda para direita, podemos visualizar como Julio
Cassiano colocava as mesmas sobrancelhas, olhos, nariz, boca e orelhas em um ex-voto de cabeça
feminina, em outro masculino, no São Miguel, no São Jorge e no músico de sua banda. O formato
do rosto de modo geral é oval, o queixo arredondado e o nariz triangular. Todas as figuras são
imberbes. Os olhos são desenhados em branco e preto nos orbitais talhados, aprofundando-se nas
laterais do nariz e abaixo da testa, onde aparecem traçadas as sobrancelhas finas e longas. Os
cabelos são escuros e na maioria das peças repartem-se ao meio, deixando aparecer as orelhas. Nos
ex-votos, o esmalte vermelho destaca não só as bocas incisas, mas também os ferimentos que
cobrem extensões variadas da bochecha direita, inexistentes nos santos e no músico.
Nossa interlocução é, uma vez mais, com Alfred Gell (1998), inspirado nos
desenvolvimentos analíticos de Marilyn Strathern, o autor nos traz a ideia de pessoa fractal,
que tem a faculdade de se distribuir e de se expandir, posto que não se configura como uma
entidade discreta, ou seja, sua „natureza‟ pode ser contínua em relação a de outras pessoas e
coisas. A distinção entre esses últimos termos, inclusive, deixa de fazer sentido, posto que
“human beings are also things” (GELL, 1998, p. 125). Assim, pessoas podem ser reconhecidas
como objetos de arte e vice-versa, constituindo partes de um sistema de ação social que
mobiliza certos princípios estéticos. Nessa concepção alargada de arte, as obras atuam como
agentes sociais, logo, podem ser tratados como pessoas, pois, quando dotadas de agência, nos
fornecem índices da ação de outras pessoas e podem modificar o curso da ação social. Trata-
se de um referencial muito distinto, portanto, daqueles que enxergam as obras de arte como
fornecedoras de sentenças codificadas sobre o mundo.
A partir das peças em cera, Giordana Charuty (1992) argumenta que é necessário
complexificar a discussão sobre os “corpos em pedaços” e tomá-los como mais do que “ofertas
substitutivas”. As “representações de si” que ganham formas expressivas não só substituem, mas
constituem atos produzidos em rituais terapêuticos que envolvem a manipulação do corpo e da alma.
Deixando por ora a análise sobre a natureza da relação e voltando à discussão dessas
feições propriamente ditas, volto-me aos machucados, às feridas e às cicatrizes como problemas
plásticos colocados para o santeiro prioritariamente no momento da execução dos ex-votos.
Argumento, por conseguinte, que tais agruras à flor da pele são atributos das representações dos
corpos dos devotos. Assim, se nos capítulos anteriores tematizei imagens “machucadas”, posto que
seus corpos sofreram algum dano, agora trato de peças com estigmas e outros tipos de
ferimentos porque eles são importantes para dar a ver a mensagem que o devoto quer comunicar.
Figura 53 – Prancha com milagres e imagem de santo de autoria de Julio Cassiano, Coleção de Antônio Marques
Fotos: Ana Paulina, originalmente reproduzidas em Fagundes (2015); Foto de santo: Acervo da autora, jan. 2013
Na prancha acima se têm figuras de corpo inteiro. A primeira é um ex-voto cujas manchas
vermelhas espalhadas sugerem a afetação de praticamente todo o corpo. Na figura feminina, que
aparece em seguida, o mal concentrado entre as pernas da mulher parece ter sido extirpado e coube
ao artista evocá-lo através de uma incisão na madeira e do desenho em vermelho de uma sutura que
a cobre. A terceira figura pareceria imaculada se não lhe faltassem partes dos braços, as mãos e um
dos pés. O pé parece ter sido levado pelo desgaste da peça através do tempo, mas a ausência das
mãos pode ter sido intencionalmente provocada pelo artista para figurar uma deficiência física.
189
Essa possibilidade lembra que os ex-votos são objetos biográficos (HOSKINS, 1998), pois se
relacionam com um evento específico (no caso, de doença) ocorrido durante a vida de seu doador,
mas que após a oferta ao santo, a peça pode se modificar por fatores que não dizem respeito a quem a
ofertou. Essas alterações, apesar de significativas na biografia da peça, em tese, não influenciam a
trajetória do doador. As trajetórias dos ex-votos serão objeto de análise do próximo capítulo.
O último corpo da prancha, como é evidenciado na base da obra, é uma imagem de São
Sebastião. É interessante notar que o artista não destaca em vermelho os ferimentos causados
pelas flechas que atingem o mártir. Somadas à posição característica do martírio do santo em
uma árvore128, as flechas bastam para evocá-lo, ao passo que o artista reserva o vermelho cor
de sangue para salientar os corpos adoentados dos devotos.
Figura 54 – Prancha com detalhes das mãos de São Miguel, de São Jorge e do músico
da banda, esculturas de autoria de Julio Cassiano, da Coleção de Antônio Marques
Fotos: Acervo da autora, jan. 2013
128Note-se que se trata de um mandacaru, grande cacto de porte arbóreo e uma das plantas mais características da
caatinga nordestina. Nessa obra, portanto, a referência à região não passa pela ausência de policromia.
190
A primeira menção aos milagres de madeira na literatura sobre arte popular foi feita por
Luís Saia. Seu trabalho deriva de incursão ao sertão realizada no âmbito da “Missão de Pesquisas
Folclóricas”, organizada em 1938 por Mário de Andrade, então responsável pelo Departamento
de Cultura do Município de São Paulo. O objetivo da empreitada era recolher documentos,
textos, indumentárias, filmes e fotografias que pudessem esclarecer sobre o folclore musical,
inicialmente nas regiões Nordeste e Norte do Brasil129.
O músico e maestro Martin Braunwieser, o técnico de gravação Benedicto Pacheco e o
auxiliar geral Antônio Ladeira acompanharam o então estudante de engenharia e arquitetura Luís
Saia na equipe da Missão. A metodologia empregada pelo grupo foi fruto da promoção, pelo
Departamento, do curso “Instruções práticas para pesquisa de Antropologia Física e Cultural”,
ministrado em 1936 por Dina Dreyfus, etnóloga da equipe de Paul Rivet no Museu de Etnografia
do Trocadero. Dina acompanhava o marido Claude Lévi-Strauss, contratado pela recém-fundada
Universidade de São Paulo, juntamente com outros professores franceses, tais como Roger
Bastide e Fernand Braudel. Assim, a formação de técnicos da Prefeitura de São Paulo para
pesquisa de campo foi realizada em diálogo com teorias e formulações também discutidas em
nível internacional. O curso de Dreyfus estimulou a fundação da Sociedade de Etnografia e
Folclore (SEF), considerada a primeira organização coletiva desse gênero criada no Brasil,
iniciativa também vinculada ao Departamento de Cultura de São Paulo.
129A Missão partiu do Porto de Santos, em fevereiro de 1938, e retornou ao Porto do Rio de Janeiro em julho do
mesmo ano. Percorreu 28 cidades, ao longo de seis estados brasileiros: Pernambuco, Paraíba, Ceará, Piauí,
Maranhão, Pará. Partir de São Paulo em direção ao Nordeste e ao Norte significava, na visão dos envolvidos, ir em
busca das autênticas raízes culturais brasileiras, ao passo que na capital paulista e seu entorno o que se observava
era o avanço da industrialização e a chegada de diversas culturas estrangeiras. Antes de enviar os pesquisadores,
Mário já havia sido “Turista aprendiz” no NE. Foi hospedado e ciceroneado por Cascudo em 1927, na temporada
potiguar de sua emblemática “viagem etnográfica” (ANDRADE, 2015).
191
Ao passo que estes objetos foram negociados por Saia com a autoridade policial e
esculturas de orixás foram encomendadas a Augusto, interno de hospital psiquiátrico no
Recife, a coleta de ex-votos pelo chefe da Missão é descrita como fruto do “acaso”, pois os
pesquisadores nada sabiam da tradição do “milagre de madeira”. Ainda em junho de 1938 ,
Saia enviou para Mário de Andrade um plano de trabalho para estudar os ex -votos
coletados pelo interior dos estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Piauí. Após seu
retorno, o estudo foi levado a cabo e resultou em uma comunicação sobre os milagres
apresentada para os membros da SEF e transformada em livro em 1944.
A principal magia simpática realizada por Saia, por sua vez, será a transferência do
referencial teórico de Gilberto Freyre para os objetos. A ênfase conferida pelo autor de
Casa Grande e Senzala à presença negra no Catolicismo brasileiro, indicativa da capacidade de
incorporação da religião nos trópicos, torna-se visível nos milagres.
[…] não me parece restar a menor dúvida que a tradição, ainda viva no
Nordeste, da escultura popular em madeira é de origem afronegra. Pelo menos
por exclusão se é obrigado a aceitar esse fato. Se de um lado é impossível
explicar a escultura dos milagres como originária da ameríndia, [...] de outra
parte, uma análise mesmo superficial do material estudado (que representa sem
dúvida a generalidade do fenômeno) mostra a impossibilidade de se filiar a sua
concepção e técnica à escultura católica. Se a peça que me foi trazida da Bahia
não fôsse de cedro legitimamente nacional, poder-se-ia julgá-la de direta
proveniência africana pela semelhança de composições e soluções plásticas.
(SAIA, 1944, p. 14, grifo no original).
Para Saia (1944, p. 17), o fato dos ex-votos serem criados para “funcionamento
imediato” não os torna peças simples. O autor, pelo contrário, vê a funcionalidade dos
milagres como algo que, ao afastar a concepção da representação antropomorfa completa,
aproxima o trabalho do artista dos fenômenos de composição abstrata. O escultor que os
domina goza de liberdade plástica criadora de uma variedade infinita de interpretações
visuais partindo de elementos mais ou menos fixos e invariáveis: “É que seu ponto de
partida é um esquema simbólico, e este sim, é fixo, sendo, entretanto, a interpretação dele
condicionada por fatores que podem variar de um modo absolutamente ilimitado.” O
santeiro, diferentemente disso, precisaria se ater aos processos tradicionais.
Tais marcas impressivas lhe permitem ser categórico no desatrelamento das obras da
tradição católica, mesmo tendo-as recolhido em igrejas e capelas. O milagre, que ao primeiro
olhar de Saia, lhe pareceu um santo de roca, seis anos mais tarde foi confirmado como
“uma escultura mágica pelo funcionamento, autênticamente mestiço como fenómeno de
arte e de tradição técnica afronegra pela origem” (SAIA, 1944, p. 19). A escultura dos
negros não é vista como mera contribuição, mas como razão de ser do ex-voto nordestino,
cujo teor europeu, quando mencionado, não passa pela Igreja, mas pelo potencial dos
milagres de agirem “como estimulante dos dados de cultura pagã que existiam e existem no
popular europeu”. (SAIA, 1944, p. 12).
194
É curioso que Saia se qualifique como “colecionador frustrado”, uma vez que além de
coordenar a coleta dos objetos e registros da Missão, contribuiu largamente para o
enriquecimento do acervo pessoal de Mário de Andrade, católico praticante e colecionador de
imaginária católica desde antes das mobilizações modernistas. O escritor colecionava imagens antigas
e encomendou ao chefe da Missão, “santos católicos, até populares, e mesmo comprando se
necessário” para sua coleção particular (BATISTA, 2004, p. 22, itálico no original)130. O
interlocutor de Mário não só atendeu ao pedido relativo aos santos, como também remeteu ao
amigo outros tipos de manifestação da religiosidade, como os ex-votos.
À parte das mais de mil peças enviadas para a Discoteca Pública Municipal de São
Paulo131, Saia reservou para Mário, milagres de grande beleza e apuro técnico, que foram dispostos
pelo escritor sobre os móveis de sua casa, já povoada de imagens, quadros e livros. As cabeças
esculpidas e expostas como itens de decoração e coleção não mereceram atenção do modernista
enquanto objeto de estudo (BATISTA, 2004).
130 Esse acurado estudo aponta que as requisições de Mário de Andrade aos amigos podem também ter
incrementado seu acervo particular com artefatos carajá – duas bonecas e uma coifa – que chegaram às suas
mãos por meio de Dina e Claude Lévi-Strauss (BATISTA, 2004, p. 34). O Departamento de Cultura presidido
pelo escritor apoiou as expedições do casal ao Centro-Oeste brasileiro, também financiadas pela USP.
Pesquisadores brasileiros que estudaram as expedições em questão não encontraram registro das peças em
museus do país (SENA, 2011, p. 95).
131“Além dos discos registrados, contendo perto de 1.500 melodias, a Missão trouxe na sua bagagem 1.126
fotografias, 17.936 documentos textuais (cadernetas de anotações, cadernos de desenhos, notas de pesquisas,
notações musicais, letras de músicas, versos da poética popular e dados sobre arquitetura), 19 filmes de 16 e 35
mm, mais de mil peças catalogadas entre objetos etnográficos, instrumentos de corda, sopro e percussão.”
Fonte: <http://www.centrocultural.sp.gov.br/Colecoes_Missao_de_Pesquisa_Folclorica.html >.
195
A participação dos ex-votos na configuração da casa de Mário pode ser vista nas imagens
filmadas pouco antes de sua „exposição doméstica‟ ser desmontada e os objetos serem encaminhados
para o Instituto de Estudos Brasileiros da USP132. As imagens da Morada do Coração Perdido foram
editadas por ocasião da iniciativa que repovoou a casa com alguns de seus objetos „originais‟,
tornando-os parte da exposição permanente aberta ao público na Casa Mário de Andrade133.
Saia e outras pessoas próximas a Mário impediram que o desejo de dispersão de seu
espólio, manifestado pelo escritor, fosse levado a cabo. A notoriedade do modernista fez com
os objetos continuassem reunidos enquanto parte de uma obra 134. Já as peças coletadas pela
Missão de Pesquisas Folclóricas, para fins de exposição em um museu que seria criado após o
retorno dos pesquisadores, não chegaram a ser expostas de modo permanente ao olhar de um
público mais amplo135. O material recolhido foi catalogado por Oneyda Alvarenga, outra
aluna do curso de Dina Dreyfus, e hoje se encontra sob a responsabilidade do Centro
Cultural São Paulo e as peças podem ser vistas mediante agendamento.
A estreita colaboração entre Saia e Mário, azeitada no DC, prolongou-se na regional paulista
do SPHAN e juntos eles fizeram viagens pelos arredores de São Paulo, nas quais visitaram feiras,
compraram santos e outros objetos feitos por artistas populares. Andrade concilia o trabalho como
funcionário público e a atividade de colecionar para fins particulares, já seu auxiliar e sucessor no
SPHAN paulista continua a se especializar em coletar com vistas à promoção de pesquisa e exposição
das obras e, como mencionei anteriormente, ao incremento da coleção do amigo136.
132O espólio de Mário de Andrade foi tombado em âmbito federal em 1946 – um ano após a morte do escritor – e
adquirido pelo Governo do Estado/Universidade de São Paulo em 1968.
133 Maiores informações sobre o vídeo e a exposição mencionada em:
<https://oficinasculturais.org.br/mariodeandrade/>.
134 Assim como comentei na subseção 1.3.2 a respeito da Casa de Câmara Cascudo, a abertura do universo privado de um
colecionador configura o espaço expositivo com nuances do que tem sido chamado de museu-casa e de museu biográfico, ou
seja, observa-se a mescla tanto de objetos que eram utilizados no cotidiano da residência no passado, quanto outros que
explicitam qual foi a importância do morador ilustre. Rememora-se o tempo em que a casa recebia visitas – que
participaram da construção de um legado intelectual – transformando-a em um local que recebe visitantes.
135A ideia da criação do museu se tornou inviável com a exoneração de Mário de Andrade do Departamento de
Cultura de São Paulo em 1938, enquanto seus auxiliares ainda circulavam pelo Norte e Nordeste. O intelectual
inclusive recomendou que os pesquisadores se embrenhassem pelo sertão para impossibilitar o contato dos novos
gestores públicos da Municipalidade de SP, que poderiam ceifar a empreitada a qualquer momento.
136O arquiteto assumiu o cargo deixado por Mário quando este se mudou para o Rio de Janeiro, de onde continuou
colaborando para a estruturação do Serviço de Proteção ao Patrimônio. O anteprojeto do órgão feito pelo escritor
polivalente não raro é mencionado como arrojado – e, portanto, politicamente inviável para o período de governo
centralizador – porque já elaborava grande parte da política de patrimônio imaterial que só foi implementada nos
idos dos anos 2000. De sua parceria intelectual com Saia, entretanto, também decorreram as primeiras normatizações
do órgão acerca da circulação de bens materiais móveis, portanto, a dupla Saia e Mário também demonstrava
preocupações com o patrimônio material, mas não necessariamente o que ficou conhecido sob a rubrica de pedra e cal
196
Ao dar continuidade aos estudos sobre a escultura em madeira, Saia inscreve seu
nome do campo da criação popular como autor da descoberta do milagre do sertão
nordestino. Desse modo, não é o “colecionador frustrado” que passa a ser acionado nas
mostras que expõem os ex-votos e sim o pesquisador-descobridor, uma vez que os objetos
em questão vieram a público por causa de seu “faro”.
Praticamente uma década depois da exposição no MAM, Saia (1974) reafirma – em seu
texto no catálogo 7 brasileiros e seu universo – que o ex-voto é uma manifestação universal e que a
particularidade no milagre nordestino é a utilização de soluções plásticas da escultura afro-negra.
Uma delas é o corte africano, dado a ver na parte do corpo mais frequentemente eleita pelo devoto
para se representar: a cabeça. Nas palavras do autor,
e mais precisamente com o que habitava o interior dos monumentos. As incursões pelo Brasil, a vivência de
colecionador de Mário e a de pesquisador-coletor de Saia foram fundamentais para o delineamento de ações, como o
cadastro de negociantes de obras de arte; o inventário de colecionadores particulares; a proibição da saída de obras
produzidas antes do período monárquico para o exterior e o tombamento de acervos e coleções (e não só de
monumentos arquitetônicos).
197
Corte africano é um talhe côncavo que toma toda a extensão do rosto humano,
de alto a baixo. Neste corte dominante se inserem os olhos, a boca e o nariz,
numa forma variável de soluções indicativas. Quando o corte africano aparece
associado à solução de nariz-eixo, as peças alcançam uma proximidade maior
ainda com as peças autênticas da escultura afro-negra, […]. O que caracteriza a
solução nariz-eixo é a marcação de uma linha vertical de simetria, que domina o
conjunto, deixando um pequeno espaço para indicação do queixo e da boca.
(SAIA, 1974, p. 41).
Assim, se para Baccaro, precisamos nos esforçar, por exemplo, para ver um nariz em
uma cabeça e o problema colocado para o santeiro é basicamente “trabalhar o essencial”,
com Saia têm-se elaborações que aproximam o problema do escultor dos milagres das saídas
utilizadas no mundo da arte. Em vista disso, o que na descrição de colecionador aparece
como esboços de nariz e boca feitos por um santeiro apressado, no olhar de Saia é solução
técnica. O arquiteto se distancia da noção de arte popular associada ao passado e ao pitoresco
para atrelá-la a uma forma de criação particular e engenhosa, sem esquecer de sua finalidade
ritual. O ex-voto de Saia, nessa perspectiva, é praticamente uma peça moderna de design, que
une utilidade prática à preocupação estética.
A verdadeira imagem do Nordeste estaria nesses objetos e não naqueles que, mesmo
sendo provenientes dessa região, teriam sido transformados em “arte pela arte” num
processo de “alienação artística” conduzido pela elite e seus doutores, visando tornar
palatável a arte dos miseráveis. Sendo assim, o desenho curatorial da exposição não deixou de
considerar a literatura de cordel e a cerâmica de Caruaru, mas não lhes dedicou destaque.
Para Bo Bardi, o objeto feito à mão não necessariamente deveria ser mais estimado do que o
feito à máquina. A industrialização em curso no país só poderia ser vista como ameaçadora
para os preocupados em conservar ao invés de estimular possibilidades criativas originais
passíveis de desenvolvimento inclusive com métodos e materiais modernos.
Apesar da alegada indigestão, a presença da arte popular pouco a pouco estava se consolidando
no circuito das artes plásticas. A pertinência estética dos objetos foi inclusive chancelada por notáveis
colecionadores e marchands, que ao incluírem certas produções em suas coleções particulares e galerias,
junto com Aleijadinhos e afins, ampliaram o escopo de interesse por obras populares.
Segundo Maria Lúcia Bueno (2005), o mercado de arte brasileiro inicialmente estruturou-se
como comércio de bens de luxo e de artigos raros garimpados no interior do país: móveis antigos,
estatuária barroca e objetos de arte popular. De acordo com a autora, “o núcleo de colecionadores
responsável por um comércio regular era quase todo de estrangeiros de origem judaica. O quadro só
se modificou na virada dos anos 70, com a consolidação do capitalismo no País, quando surgiu a
figura do comprador de arte brasileiro.” (BUENO, 2005, p. 39).
Lina e seu marido, Pietro Bo Bardi, são figuras importantes desse universo que
estrutura o mercado de arte no país. O casal de origem italiana veio para o Brasil após
Pietro138, crítico e historiador de arte, ser convidado pelo mecenas e colecionador milionário
Assis Chateubriand para criar o MASP. Pietro foi diretor do museu por quase 30 anos e
também desenvolvia atividades de comercialização de arte em uma galeria.
Como nos conta James Clifford (1996), no início do século XX, o manancial de novas
formas e valores foi visto pelos europeus na África, na Oceania e na América. O acentuado
interesse pelo outro uniu artistas, amantes das artes e etnólogos a ponto da pesquisa de campo
desses últimos ser financiada por mecenas interessados na ampliação das coleções francesas.
A produção dos chamados povos primitivos passa então a incrementar não só os depósitos
dos locais de guarda e exposição de material de estudo, mas também a nutrir o ans eio dos
artistas – principalmente os surrealistas – por inspirações alheias aos dogmas e à censura. A
vanguarda buscou romper com as convenções ocidentais explorando elementos inversos à
lógica – o sonho, a loucura, a alucinação, a embriaguez, o transe – tidos como formas de
acesso privilegiado à realidade profunda do ser humano.
Todo o mundo costuma falar das influências que os negros tiveram sobre mim...
Quando fui ao velho [museu do] Trocadero... Estava sozinho. Queria ir embora.
Porém ficava, ficava. Compreendi que aquilo era algo muito importante. Algo me
acontecia de verdade? As máscaras não eram como as outras esculturas. Em
absoluto. Era algo mágico... Intercessoras, mediadoras. Estavam contra tudo, contra
os espíritos desconhecidos e ameaçantes. Seguia mirando os fetiches, e compreendi:
eu também estou contra tudo. Também acredito que tudo é desconhecido, que tudo
é inimigo. Tudo! Não os detalhes – as mulheres, os meninos, o tabaco, brincar –
mas tudo. (MALRAUX, 1974)
Nos primeiros ex-votos que vi achei graça. Era a forma de que minha confusão se
vestia. Os sucessivos, vistos sempre em equilíbrio sobre prateleiras caseiras ou até
mesmo televisores, começaram a comover-me. Não achava mais graça nesta
apresentação sub-decorativa de um objeto explicitamente trágico. Foi com esta
participação afetiva que veio surgindo a compreensão dos “milagres” com
Dentre os artistas citados, entretanto, Farnese é o único que se apropriou e manipulou as obras
em si, ao passo que os demais recriaram em outros suportes as esculturas que lhes inspiraram. O artista
comprava as imagens de santos e ex-votos de madeira em antiquários, já que em 1960, quando começou a
utilizar esses objetos em suas obras, eles estavam em moda como decoração e estava difícil encontrá-los
“ao acaso” (COSAC, 2005). As imagens de gesso, por sua vez, eram recolhidas de despachos e
oferendas que Farnese encontrava ao longo da orla carioca na qual fazia constantes caminhadas.
Por ser constituído por coisas oriundas dessas práticas religiosas, o trabalho de Farnese é
visto em associação com as ideias de objet trouvé e ready made. A primeira diz respeito ao
reconhecimento, por parte do alguém, de qualidades estéticas em coisas encontradas fora dos
circuitos artísticos. A “descoberta” é exposta e submetida à apreciação como obra de arte após
sofrer pouca ou nenhuma alteração (CHILVERS, 2007, p. 383). Já as coisas ready made são artigos
em massa, selecionadas ao acaso e sem o exercício do gosto, como salientou Marcel Duchamp
(CHILVERS, 2007, p. 438). Nota-se que tais ideias também são potentes para pensarmos o trânsito
de objetos rituais para o âmbito das coleções que temos colocado em perspectiva.
142De acordo com Mariana Renou (2011, p. 166): “As oferendas devem ter um destino específico, na própria
“natureza”. O ideal é que “oferenda” e “natureza” se fundem harmonicamente e conservem o equilíbrio e o
estado das forças de ambas. […] Se o ritual já passou e as divindades já receberam, ainda assim temos
elementos que vieram da própria “natureza” compondo a oferenda, que foram preparadas ritualmente
transformando-se em outras coisas, compostas de outras forças e possibilidades.”.
202
Ao invés de esculpido, o milagre também pode ser pintado sobre a madeira. Luís Saia
relatou ter “topado” com ex-votos desse tipo no litoral da Paraíba e da Bahia (SAIA, 1944), ou
seja, o encontro com as chamadas “tabuinhas votivas” contendo cenas milagrosas não se deu
no âmbito do sertão. Os ex-votos pictóricos presentes na literatura dizem respeito a uma
prática difundida por portugueses, que teria encontrado condições de difusão, sobretudo, em
Minas Gerais e na Bahia. Por isso, os quadrinhos são tradicionalmente tomados como registros
históricos visuais de uma prática votiva herdada da Metrópole. A colecionadora Márcia de
Moura e Castro relata seu encontro com as peças:
Quando iniciei minhas andanças pelo interior de Minas Gerais encontrei, por acaso,
na sacristia de uma capela antiga, uns pitorescos quadrinhos que desde logo
despertaram meu interesse, tanto pelos temas como pela espontaneidade do traço.
[…] Pelas datas assinaladas verifiquei que alguns deles estariam ali esquecidos há mais
de dois séculos. Desde então tenho-me dedicado a procurar e estudar esses ex-votos
sob diferentes ângulos: como expressão da arte popular, como fato histórico e como
fenômeno religioso.” (CASTRO, 1994, p. 9, grifo meu).
Lélia Coelho Frota (1981, p. 24) observa que a nomenclatura milagre era utilizada em
Portugal devido à fórmula inicial das legendas dos ex-votos pictóricos: “Milagre que fez [o santo
tal]”. O brasileiro manteve a nomenclatura e continuou a pintá-los de acordo com a “tipologia
ibérica”, que se distribui em três planos:
Valladares (1967) descreve alguns dos quadrinhos com desenho ou pintura oferecidos
pelos devotos aos santos, a partir da transcrição do texto original contido no objeto e de um
verdadeiro diagnóstico da imagem:
A presença pouco expressiva das cabeças, de acordo com Valladares, se devia à menor
frequência das ofertas tridimensionais na capital em relação ao interior; afirmação que reforça que
os ex-votos esculpidos são milagres do sertão. O autor também menciona a “cobiça” gerada pelo
valor escultórico dessas peças. Àquela altura, os ex-votos em questão já eram “mais facilmente
vistos nas prateleiras dos colecionadores do que aos pés do santo.” (VALLADARES, 1967, p. 20).
Na década de 1960, os milagres estavam migrando das salas dos milagres para as salas
das casas das pessoas, como já abordei. Os dizeres do autor confirmam o trânsito em pauta
e acrescentam que o movimento transformava os objetos de devoção não apenas em itens
de decoração, mas também de coleção.
143Na trilha de Ginzburg (1989), sabemos que o treinamento em Semiótica Médica é um recurso que qualifica
pessoas como connaisseurs de arte. Eduardo Etzel, cujas considerações sobre a imagem sacra brasileira foram
amplamente utilizadas em capítulos anteriores, também era médico.
144 Ver, por exemplo, Monsempes (1977).
204
Um aspecto marcante apontado pelo autor nas peças arcaicas é a frontalidade excessiva, a
rigidez e o rigor simétrico, que as torna hieráticas, “virtualizando soberania” e Valladares (1974)
ressalta que
[os ex-votos do sertão] têm um atributo caracterizador que é o hieratismo da figura,
sempre submetida a relevante contrição. Não é correta a informação de que o ex-voto do
sertão seja apenas uma escultura primária, destituída de expressividade. A contrição
naquela excessiva gravidade é o ponto de aferição entre a figura humana e o seu
relacionamento ao sobrenatural. (VALLADARES, 1974, p. 65, grifo no original).
Valladares infere que, em algumas situações, o próprio devoto improvisa uma peça tosca;
que em outros recorre a um carpinteiro que “tem estoque aguardando promessa indistinta: uma
cabeça, uma perna, a mão direita ou esquerda, uma cabeça de cavalo ou burro, uma pata dianteira
ou a traseira” (VALLADARES, 1974, p. 65); e por fim, que algumas peças de significativa
“correspondência ao acontecimento patológico de feridas, tumores, abscessos, barriga-d'água,
hérnias, ferimento a bala ou a faca” (VALLADARES, 1974, p. 65), provavelmente, decorrem de
encomenda a partir de relato. A alusão a carpinteiros e marceneiros especializados não é acrescida
de outras informações sobre esses produtores de ex-votos.
145Obras de imaginária católica, imaginária sincrética de cultos africanos, incluindo objetos litúrgicos, ex-votos
esculpidos em madeira ou modelados em barro, carrancas das barcas de remeiros do São Francisco, arquitetura
popular (casas sertanejas, igrejas, capelas, túmulos) e, eventualmente, alguns exemplos da cerâmica nordestina.
146 Cf. tópico 5.2.1 do presente capítulo.
205
Mesmo excluindo o recurso a esses cultos não tão comuns a partes do corpo, pode-se ainda
questionar a ideia do santo como conjunto orgânico completo a partir das próprias peças “colhidas” por
Saia. Os estudiosos da coleção de Mário de Andrade colocaram em dúvida, por exemplo, a
inventariação de um menino em madeira e cera como sendo uma imagem. São fortes as indicações de que
se tratava de um ex-voto ou de um atributo de imagem reaproveitado e trabalhado para função votiva
(BATISTA, 2004, p. 52 e 264). O esquematismo e a estilização também não são observáveis em todas as
cabeças enviadas para Andrade, uma vez que algumas obras apresentam soluções realistas.
O fato é que o reconhecimento de qualidades estéticas nos milagres realizado por Saia
pode ser visto como o início de uma cadeia que torna estudiosos inventores do s ex-votos
enquanto obras que encerram soluções plásticas negras e mestiças. Os cânones da estética
sertaneja encontrada nos objetos votivos e que passa a ser evidenciado nas exposições são,
principalmente, o “corte africano” – que ecoa a partir do texto do pesquisador da Missão – e
o “hieratismo da figura” – tematizado por Clarival Valladares.
Olhe como esse boneco é criação da mesma artista que fez esse ex-voto, Dadi. Ela
colocou esse cabelo [cacheado, em material sintético], coloriu os olhos e a boca, juntou
a roupa, que forma esse corpo tipo uma luva por onde se coloca a mão para
movimentar o boneco e então temos um objeto para outra finalidade, o manulengo, que
no teatro típico daqui é chamado de João Redondo.
Essa apresentação foi inicialmente surpreendente por abordar uma expressão autoral,
ou seja, associada a uma artista reconhecida pela particularidade do seu trabalho e não apenas
a uma noção geográfica e cultural. Não se tratava de um boneco de João Redondo “do
sertão” ou “do Nordeste”, mas sim de uma criação de Dadi 147, mas o mais inusitado foi ser
confrontada com um ex-voto com a mesma expressão de um personagem de teatro, pois no
senso comum e nas leituras informadas pelos autores tratados acima, o milagre é associado
mais imediatamente ao sofrimento e o boneco à alegria e à diversão.
No contexto potiguar, entretanto, as imagens feitas para provocar o riso não são entendidas
como completamente separadas das representações sacras. As cômicas e paródicas apresentações de
bonecos de João Redondo também são chamadas de “presepadas”. Esta expressão as relaciona
diretamente aos presépios e suas possibilidades dramatizadas de representação (por pessoas e imagens) e
celebração (os pastoris, espetáculos do ciclo natalino) do nascimento de Jesus (PEREIRA, 2010).
A continuidade entre o ex-voto e outras obras também foi mostrada por Antônio Marques a
propósito das peças tematizadas no início deste capítulo (vide pranchas do tópico 5.1) e, ainda, pelas
peças feitas por Teodora, irmã de Julio Cassiano. De acordo com o que o colecionador me explicou, é
raro que ex-votos tenham pedestal porque eles não são feitos para exposição tal qual nós concebemos.
Por isso mesmo, é mais frequente que esses objetos contenham um prego ou aro de metal em sua face
posterior ou superior ou ainda orifícios que possam ser atravessados por cordão para que possam ser
pendurados nas salas dos milagres. Já a maioria das imagens é fabricada pelos próprios artistas sob bases
que propiciem sua exposição vertical sobre algum suporte (geralmente um altar).
A imagem em questão é Santa Luzia. Seus cabelos são partidos ao meio e penteados em
mechas. A indumentária é composta de manto com florões que se abre sobre a túnica longa com
delicados detalhes dourados, que deixa aparecer apenas a ponta dos sapatos da santa. Já as vestes da
figura feminina utilizada como ex-voto são pouco solenes. Não cobrem toda a extensão dos membros
superiores e inferiores. O caimento da blusa indica a anatomia dos seios. O cabelo é preso em um
simples rabo de cavalo. A despeito dessas diferenças, suas feições apresentam o mesmo esboço de
sorriso, nariz largo, sobrancelhas finas e compridas sobre olhos expressivos e caídos.
208
A semelhança entre obras produzidas por diferentes artistas em uma mesma oficina
pode ser intencional, como já abordei. O aparentamento das peças de Julio, Teodora e de
outra irmã deles, Paulina, é de certo modo, compreensível, devido ao parentesco e ao fato de
terem aprendido o ofício com tios que trabalhavam como imaginários. Entretanto, certas
similaridades muito sutis não deixam de ser intrigantes considerando que ele sempre
produziram a partir de cidades diferentes.
O trio de irmãos exerceu o ofício de santeiros quando esta atuação já alçava os
fazedores de imagens à condição de artistas. A produção da caçula dentre eles, Paulina,
inclusive não é policromada, seguindo a lógica de „nordestinização‟ dos corpos de santos a
qual o mercado condicionava a aceitação da produção desses escultores.
Diante dessa integração ao circuito de arte popular, é curioso que esses artistas
comercializassem peças nas quais não imprimiram seus nomes: os milagres. As razões para a ausência
de “assinatura” nessa parte específica da produção de esculturas não são objeto de consenso.
209
uma seleção de obras feitas por Farnese de Andrade nas quais alguns objetos votivos,
conhecidos como ex-votos, são apropriados pelo artista, tornando-se parte de sua
composições […] e 141 ex-votos da coleção do Museu Casa do Pontal, procedentes de
Canindé/CE, de autoria desconhecida. (MASCELANI, 2012, p. 7 - 8, grifos meus).
Muitas das obras de Farnese são realizadas a partir de diferentes objetos. Além das
imagens de santos e ex-votos, cuja utilização por parte do artista já mencionei em outras
passagens da tese, suas montagens incluíam ainda oratórios, gamelas, bonecas, armários,
gavetas e caixas. Sendo assim, ao longo da exposição, não era difícil reconhecer as
composições de autoria de Farnese, geralmente constituídas por mais de um objeto.
Entretanto, artifícios expositivos utilizados em certos módulos – como a disposição lado a
lado e sem etiquetas de identificação de obras do artista e do acervo da instituição –
provocavam uma intencional dificuldade de reconhecimento de autoria.
148Em sua tese de doutorado (MASCELANI, 2001, p. 131), a autora menciona que o colecionador de arte popular e
criador do Museu do Pontal recebeu autorização do Arcebispo de Canindé para formar o que seria sua primeira
coleção expressiva.
210
Ao tematizar as buscas de objetos para a atividade dos surrealistas, Eliane Robert Moraes
(2002) explora o “acaso objetivo” como um dos pilares da atividade desses artistas:
Para a manipulação dos ex-votos que venho analisando, os “acasos objetivos” se fazem
presentes quando não nas exposições em museus de arte, nos materiais gráficos relativos a elas.
As narrações em torno dos encontros com os objetos votivos em textos anteriores ao
impacto das ideias surrealistas no mundo artístico e intelectual não envolvem a produção de
um vínculo traçado de antemão pelo destino. Thomas Ewbank (1976), por exemplo, esteve
em diversas igrejas por ocasião de sua visita ao Rio de Janeiro em 1846 e descreveu, com a
minúcia peculiar a certos viajantes, a respeito da constante presença dos ex-votos nas igrejas.
Ewbank declara abertamente que estava em busca dos objetos e pedia para ver sacristias, pois
haviam lhe dito que em toda igreja podiam-se ver, em maior ou menor número, ofertas
votivas por curas milagrosas.
O encontro com peças em altares e em quartos atrás deles, portanto, não é nada
casual. Já naquele período, o viajante observou que as ofertas dos devotos estavam sendo
afastadas dos altares:
Soubera que, embora anteriormente fossem pendurados nos altares, tais objetos
eram agora restritos às sacristias e corredores laterais. […] [nos fundos da igreja de
São Francisco de Paula] A cerca de três metros do soalho, estendem-se longas vigas
de madeira, nas quais as ofertas estão suspensas por meio de cordões e fitas.
Existem aqui quarenta e nove placas votivas, cada uma das quais com o nome do
devoto que a ofereceu, a enfermidade que o prostou e o santo que devolveu a
saúde. […] Cabeças, mãos, braços, pés, pernas, etc.; de dimensões naturais, mas
moldados em cera, misturam-se com as placas. […] Os objetos eram de qualquer
forma muito interessantes para serem abandonados. (EWBANK, 1976, p. 119-120).
211
Para além [da procura] de encontros fortuitos, outra reiteração observada concerne ao
anonimato da produção votiva. Por conseguinte, os nomes inscritos nesses eventos artísticos e,
consequentemente, nos catálogos que os registram, são os dos colecionadores que reúnem as peças,
dos estudiosos que refletem sobre elas ou dos artistas que as utilizam em suas criações (atuações face
aos ex-votos que podem se sobrepor). A condição de produção contemporânea é relacionada às
coleções, análises e composições realizadas por tais sujeitos. Já o popular é situado fora do continuum da
História da Arte, mesmo que os objetos em questão tenham sido produzidos na mesma
temporalidade das obras tomadas como contemporâneas.
De acordo com Mascelani (2001, p. 8-9), “os ex-votos guardam o anonimato característico
deste tipo de produção, na qual o artista/escultor popular se retrai a favor do suplicante que
encomendou a obra”. De fato, é preciso ter em conta que a assinatura pode confundir quem olha o
ex-voto, pois existe o risco do nome do artista ser lido como se fosse o da pessoa que ofertou o
objeto. Nessa direção, é comum que o devoto acrescente à peça um bilhete com seu nome, uma
fotografia do tipo 3x4 ou ainda da cena associada à intervenção divina que quer ressaltar, como um
acidente de carro ou uma cerimônia de formatura. Esses „acréscimos‟ reiteram os ex-votos como
objetos compósitos, produtos de atos criativos que envolvem não só um autor, mas no mínimo
quatro: o evento motivador da oferta, o devoto, o fabricante (e/ou artista) e o santo.
É preciso ainda considerar que certos visitantes das salas dos milagres se inscrevem nas
peças já ofertadas, registrando sua presença diretamente sobre as peças deixadas por outros,
assim como fazem de modo mais generalizado nas paredes e outras estruturas do espaço de
exposição. O nome deixado pode ser acompanhado de uma lista de familiares e outras pessoas,
seja porque elas estão acompanhando quem “assina” pelo grupo no momento da visita, seja
porque se pede e/ou se agradece ao santo por/em nome delas.
Figura 60 – Ex-voto contendo nomes Figura 61 – Detalhe do ex-voto da figura anterior contendo
e inscrições diversas de devotos, inscrições diversas, Coleção de Antônio Marques
Coleção de Antônio Marques
Fotos: Acervo da autora, jan. 2013
A curadora do Museu Casa do Pontal também aciona a noção de tabu para explicar o
anonimato das peças: “A motivação para construir e oferecer um ex-voto é sempre de ordem
religiosa. Sua circulação em outros circuitos é cercada de tabu. Muitos escultores em madeira
e artistas da cerâmica preferem não fazê-los, e quando os fazem, resguardam-se no anonimato.”
(MASCELANI, 2002, p. 109, grifo meu).
Para o colecionador, que foi meu principal interlocutor na pesquisa em Natal, abordar a
questão em termos de tabu é mistificá-la. Segundo Antônio Marques, quem conhece a produção
de ex-votos desde a saída deles das mãos de quem os confecciona, sabe que os objetos não são
assinados porque essa produção é entendida como menor em relação à escultura de santos. A
mãe de Luzia Dantas, por exemplo, esculpia brinquedos em casca de melancia para as filhas
brincarem. Essas esculturas motivadas pela impossibilidade de compra de itens industrializados –
uma constante na biografia dos escultores populares – não é vista como motivo de orgulho.
Por isso, na linha de raciocínio do colecionador, a celebração do potencial estético da
arte popular deve ser acompanhada de pesquisa que possibilite a promoção dos produtores
de expressões votivas como artistas, mas nem sempre os escultores estão interessados.
Antônio relatou que o artista Félix negou ter fabricado um ex-voto que inegavelmente tinha
sido feito por ele. Para o colecionador, o artista não se lembrava de ter esculpido aquela peça
213
porque produziu muitas ao longo da vida, tidas como banais e nada dignas de nota, como
colheres de pau. Porém, seriam ambos os objetos – produzidos sem pretensão artística no
sentido convencional – igualmente valorados? Cabe investigar por que o artista hesita.
A desconfiança dos sacerdotes em relação aos ex-votos pode auxiliar a entender tantos
relatos de acervos devocionais “abandonados” atrás de altares ou em sacristias, encontrados “ao
acaso” por colecionadores. E também lança luz sobre as diversas biografias de escultores de milagres
que são incentivados a esculpir santos por padres e outros agentes da Igreja. Os artistas deixam de
dar forma a partes do corpo de devotos para se dedicarem à escultura de corpos santos.
Além do fato do artista não querer se associar a algo que não é visto com bons olhos pela
Igreja, é preciso ainda considerar a reiteração, por parte dos pesquisadores, do relacionamento da
produção votiva com o universo de matriz africana149. Também no capítulo 4 foi visto que os
artistas são conhecedores – e, por que não dizer, colecionadores – da produção acadêmica que
lhe diz respeito e, além do mais, se preocupam com o destino que a peça pode ter depois de
vendida. Posto que cabeças, outras partes e ainda representações do corpo inteiro também são
ofertadas a entidades das religiões afro-brasileiras e, para alguns escultores populares, é delicado
assumir a criação de objetos potencialmente utilizados em oferendas150.
Já mencionei o imaginário preconceituoso em torno das religiões tidas como mágicas,
como afirmam Mauss e Hubert (2003, p. 67), “para o catolicismo, a idéia de magia envolve a idéia
de falsa religião”, o que isso coloca em questão no tabu em pauta é a utilização de ex-votos para a
suposta realização de “trabalhos” com vistas a causar efeitos nefastos a outrem.
149Cumpre observar que não há menção à possibilidade de variedade de estilos da produção artística africana. Fala-se em
“escultura afro-negra” como se África e negros fossem noções contíguas e homogêneas.
150Dos muitos locais de exposição de ex-votos que já visitei, o único onde a oferta de objetos é explicitamente atrelada aos
praticantes de religiões afro-brasileiras localiza-se no conjunto do Carmo, em Cachoeira, na Bahia. No segundo pavimento
há uma pequena sala com alguns poucos ex-votos pendurados no teto. Os responsáveis pela instituição informaram que os
objetos são levados por membros do candomblé, que depois de passarem pelo rito de iniciação visitam a imagem de Cristo
Morto que fica naquele pavimento e deixam objetos no seu entorno. A partir de mapeamento da prática votiva católica no
Nordeste, Bonfim (2007) observou que o convívio entre tradições católicas e afro-brasileiras nos santuários baianos é de
fato singular em comparação com o que se passa nos demais estados nordestinos.
214
Curador²: [De curar + -dor.] S.m. Bras. Feiticeiro ou rezador que, supostamente,
cura pessoas mordidas por ofícios venenosos, ou que, com sua arte, as torna
respeitadas por esses animais.
Curadoria [De curador + -ia¹] S.f. Cargo, poder ou função de curador, curatela.
Dicionário Novo Aurélio
Nessa direção,
A Casa dos Milagres – Museu do Ex-voto – que será implantada na antiga capela
do Centro de Turismo de Natal não deixa de ser uma resposta – embora com meio
século de atraso – às colocações feitas por Luís Saia, o colaborador mais próximo
de Mario de Andrade no quesito escultura popular. (CARVALHO JR., [s.d.], p. 23).
Como Antônio cultiva uma coleção de cerca de 5.000 peças votivas seguindo esses
princípios há anos, propôs a cessão – em regime de comodato – de parte dela para exposição
no museu público a ser criado e administrado por uma associação que ele presidiria 153. A
formação de parcerias com a Igreja seria levada a cabo com vistas à formação de acervo
próprio da CM, que aos poucos ficaria menos dependente das peças do colecionador. Esse
acervo formado gradualmente pertenceria ao Estado, diferentemente das obras provenientes
de sua coleção particular, que continuariam sendo de sua propriedade.
152De acordo com o colecionador, a assertiva de Saia é improcedente porque a prática do milagre de madeira ocorre
no sertão, região pouco habitada por negros, pois no RN estes historicamente “ficaram na costa”. Essa leitura é uma
constante na historiografia tradicional bastante vulgarizada do estado (ver, p. ex., Cascudo, 1975), na qual as
especificidades étnicas tendem a ser apagadas (CAVIGNAC, 2003).
153 Esse modo de gestão foi inspirado no estatuto do Museu Afro-Brasileiro, citado na seção 5.3 deste capítulo. A
Associação Museu Afro-Brasil foi criada em 2005 e qualificada como Organização da Sociedade Civil de Interesse
Público (OSCIP). Em 2009, constituiu-se como Organização Social, vinculada à Secretaria de Estado da Cultura,
recebendo recursos do Governo Estadual de SP. Para essa constituição, como entidade privada de caráter público, houve
a doação de cunho pessoal do artista plástico, colecionador e curador Emanoel Araújo, de 2.163 obras para o Estado de
São Paulo, além da doação de 314 obras da Associação Museu Afro-Brasil, bem como a doação de duas coleções
internacionais de obras de arte: Arte ancestral e contemporânea do Benin e Artes do Povo Bijagó.
217
154Período em que a então Governadora do Estado Rosalba Ciarlinni e a bancada potiguar no Congresso Federal
propuseram uma emenda parlamentar em torno de investimentos na área da cultura. Os recursos foram obtidos no
âmbito dos esforços de estruturação de Natal para a Copa do Mundo de 2014. Esperava-se que o montante de vinte
milhões de reais fosse suficiente para uma atenção especial ao Memorial Câmara Cascudo, à Fortaleza dos Reis
Magos – que receberia o investimento mais robusto, em torno de dois milhões de reais – e à Pinacoteca, onde os
valores empregados seriam mais modestos. Marcelo Dantas – curador/designer reputado como criador de inovações
em exposições permanentes valendo-se de jogos e imagens virtuais, como é possível observar nos museus da Língua
Portuguesa, da Gente Sergipana e do Caribe – foi convidado pela FJA para “assinar” novos desenhos curatoriais no
âmbito da reestruturação dos museus potiguares.
218
Antes de viajarmos, nos encontramos com Irene van den Berg Silva, pois Antônio tinha
planos de visitar o santuário estudado por ela e conhecer pessoalmente o “personagem” Seu
Bento, que ergueu e, à época, administrava o local onde acontece o culto às Covinhas das
Meninas. Dentre muitas outras coisas, o colecionador perguntou à antropóloga sobre qual a
melhor forma de presentear Seu Bento. Irene disse que o ideal seria levar brinquedos para ele
distribuir no Dia das Crianças/festa nas Covinhas, mas sublinhou que Seu Bento recebe a todos
muito bem, independentemente de agrados e se sentiria muito lisonjeado com nossa presença.
Em sua tese de doutorado, a pesquisadora esboçou uma cartografia dos locais de devoção
no RN (SILVA, 2010). Em vista disso, durante o encontro, conversamos sobre as Covinhas
localizadas no município de Rodolfo Fernandes, onde seu estudo concentrou-se, mas também
sobre muitas outras devoções. Meus interlocutores potiguares localizavam-nas “no elefante”,
figura traçada pelos contornos do mapa do RN. Irene descreveu uma dessas coordenadas com as
seguintes palavras: “– Tem a Mártir Francisca, em Tenente Ananias, longe, lá na tromba do
elefante... Lá as mulheres deixam muitos vestidos de noiva”.
Esse apontamento nos lembra que qualquer coisa pode ser oferecida como ex-voto, mas as
salas dos milagres costumam concentrar mais objetos relativos à especialidade de seus santos. O fato de
Santa Luzia ser protetora da visão, por exemplo, condiciona que muitos milagres em forma de olhos (em
pares ou individualmente) sejam levados até os locais de devoção a essa santa. Nessa linha de raciocínio,
também se pode pensar em um desenho curatorial dos espaços de exposição dos ex-votos em seu loci
rituais, no caso, esboçado pelo poder de cura que se sobressai dentre todos atribuídos a uma divindade.
Entretanto, essa curadoria das salas dos milagres, assim como a autoria dos ex-votos, só
pode ser pensada como compósita. Fomos avisados por Irene a respeito da predileção de Seu
Bento – criador e administrador do Santuário das Covinhas, que visitaríamos na cidade de
Rodolfo Fernandes – pelas cartas e fotografias em relação a outros objetos ofertados pelos
devotos. Os ex-votos escultóricos, segundo ela, são muito malcuidados e quando pediu para vê-
los “– Estavam jogados em um canto, tinha até marimbondo...”.
Os rearranjos por parte dos responsáveis pela manutenção dos espaços expositivos
são frequentes e tendem a agrupar os objetos por sua semelhança, reunindo, por exemplo,
cabeças em uma mesma prateleira, pernas em outra, cartas e fotos nas paredes etc.. Na
literatura sobre santuários de maior porte encontramos referência a casos em que os objetos
passam por um controle prévio e explícito antes de serem expostos (MENEZES, 1996;
SOUZA, 2012). Lygia Segala (1999, p. 17, grifo meu) assinala quem em Aparecida (SP), no
219
maior santuário mariano do mundo, “há uma equipe treinada que seleciona, organiza,
classifica as peças votivas por assunto e material e expõe as oferendas. [...] Purificam-se “os
milagres”, elegendo, na ordem expositiva, as expressões adequadas de reconhecim ento.”.
As salas dos milagres pouco “purificadas” não raro são descritas como lugares
abjetos e vertiginosos (GOMES, 2013), principalmente considerando que esses espaços
também abrigam coisas que já estiveram nos corpos dos devotos – umbigos de bebê,
tumores retirados em biópsias, objetos engolidos ou aspirados por acidente, cálculos renais,
dentes, unhas e tufos de cabelo, por exemplo – até outras não tão „naturalmente‟ orgânicas,
mas que também „poluem‟ devido ao desgaste causado pelo tempo.
Em vista disso, pensar em um espaço expositivo para objetos reunidos por critérios
prioritariamente estéticos – e que pudesse ser considerado como a “estilização” de um
santuário – tornou-se um desafio que imaginei superar mais facilmente com o auxílio do
material sobre exposições de coleções particulares de ex-votos. Mesmo que a migração dos
milagres tidos como esteticamente significativos para museus de arte ou para locais onde são
utilizados como objetos de decoração imponha que eles sejam de stacados de seus vizinhos
habituais nas salas dos milagres, as exposições em novo contexto não deixam de ser
evocações da degradação da matéria e de patologias diversas:
155Apesar de eu ter percebido que a exibição de certos objetos era preterida para dar outros a ver e que algumas
peças específicas – como muletas e cadeiras de rodas – deixavam temporariamente a exposição quando havia a
demanda de empréstimo por parte de familiares de pessoas adoentadas.
220
Esta se afigura como irredutível, por mais que a exposição no campo da arte implique
na “higienização” dos objetos criticada por Sally Price (2016). A limpeza de objetos museais
para consumo público abordada pela antropóloga e curadora de diversas exposições de arte
primitiva envolve o silenciamento de certos momentos da trajetória das obras. Na seara dessas
indicações, a higienização museológica relativa aos ex-votos tende tanto a asseá-los em sentido
lato para exposição em museus de arte e como itens de decoração, quanto a dissolver a
possibilidade de mirá-los enquanto produto de um trabalho autoral.
A atmosfera de “mistério” que seria observada nas salas dos milagres torna-se uma
espécie de verniz que acompanha os objetos para as exposições de arte. Nessa direção, os ex-
votos são lustrados enquanto obras motivadas por intercorrências da vida de pessoas religiosas.
Em vista disso, o milagre nunca é plenamente reconhecido como “arte pela arte”.
O corpo em partes é visto como ameaçador pelo observador desavisado ou mesmo utilizado
como artifício retórico e estético pelas pessoas de modo a explorar o potencial visual já patente nas
exposições em loci rituais. A acumulação de milagres assombra por sua potência de remeter ao que é
perecível, precário, visceral, enfim, sujeito à morte. A imagem de corpos despedaçados é
frequentemente evocada nas descrições das instigantes assemblages produzidas pelos devotos.
[…] a uma espécie de arrebatamento do objeto. Na Sala dos Milagres, coisas que
em outros espaços não são vistas como dignas de exibição pública inserem -se em
um conjunto que multivocaliza a santidade [...] e torna notória a lógica de
superabundância de relações de devoção que perpassa o ambiente. Assim,
apregoa-se não só o poder do santo, mas também o dos objetos que, a despeito
de serem vistos por muitos como certezas manifestas das misérias humanas, são,
sobretudo, celebrações da potência de uma relação, em que não só se pede e se
agradece, mas também se exibe, se celebra, se propicia, se lembra, se materializa.
(GOMES, 2013, p. 191).
É também em diálogo com a teologia que Giorgio Agamben (2007) situa a fotografia na
problemática das figurações do corpo:
156 Na elaboração preciosa de Raquel Lima (2014), “o termo “como se” se apresenta como um recurso de
linguagem que permite marcar a ambiguidade de não ser, mas parecer ser, ao mesmo tempo em que nos remete
para a ambivalência de ser e não ser.” (LIMA, 2014, p. 86)
222
Obviamente, eu não esperava que Antônio concordasse com uma proposta tão
filistina 157 para elaborar a CM. Minha sugestão de „tônica‟ para a exposição era que sua
configuração não apagasse a figura do colecionador e a historicidade da formação da
coleção. No meu entendimento, era preciso evidenciar que os ex-votos foram coletados
segundo critérios, sobretudo, estéticos, enquanto que nas salas dos milagres, outras formas
de seleção podem ser observadas.
Contudo, ao ver minhas fotos de ex-votos muito mais variados (em termos de
material, fatura etc.) em relação àqueles que eu imaginava na CM, Antônio aventou que
seria interessante ter alguns deles no “nosso museu”. Ao notar minha estranheza diante da
sugestão, uma vez que as peças em questão – por exemplo, fotografias – não tinham lugar
em seu acervo, o colecionador asseverou que um museu “mais antropológico” poderia
contar com itens como aqueles. Desse modo, portanto, minha participação no que tenho
explorado como curadoria compósita ficou mais evidente e, aos poucos, fui percebendo como
meu interlocutor estava concebendo seu museu particular como um espaço que também
abrigaria peças que antes não teriam espaço em sua coleção, ou seja, a exposição contaria
com objetos votivos comuns em salas dos milagres, mas que nem sempre são
reclassificados como obras de arte.
157 Nos termos de Alfred Gell (2005), se o analista da religião precisa se valer do “ateísmo metodológico”,
submetendo crenças e afins ao crivo sociológico, a análise da arte em perspectiva antropológica requer o chamado
“filistinismo metodológico”, ou seja, a resoluta indiferença ao valor estético das obras de arte.
158O Curso de Curadoria, intitulado: “Por que escolher se transformou em um ofício?”, ministrado por Eder
Chiodetto, curador do Museu de Arte Moderna de São Paulo, aconteceu nos dias 23 e 24 de novembro de 2012, no
âmbito do IV Theória. Este evento foi promovido pela Fundação Joaquim Nabuco, que abriga o Museu do Homem
do Nordeste, sob o tema “Nordestes Emergentes, visto através da imagem entendida como ferramenta privilegiada
da prospecção social”.
159 A motivação para tanto ficará mais clara no próximo capítulo.
223
Ainda pesquisando possibilidades que nos inspirassem a fomentar outras perspectivas para
CM, mostrei-lhe fotos de uma exposição dedicada aos ex-votos ofertados a Nossa Senhora de
Nazaré em Belém do Pará, organizada pelo Museu do Círio, que, por sua vez, é gerido pelo
Governo do Estado do Pará. Contrastamos esses registros com as de outra exibição, referente à
mesma devoção, organizada pela Igreja e exposta nas dependências da Basílica de Nossa Senhora
de Nazaré. Meu objetivo, ao confrontar tais registros, foi estimular nossa reflexão sobre a diferença
entre uma exposição de ex-votos promovida no registro da „cultura‟ e outra voltada para a religião.
Porém, nem sempre a nomenclatura museu diz respeito a instituições não religiosas que
expõem ex-votos enquanto artefatos culturais. Há museus que funcionam no interior ou em
espaço anexo às igrejas e em função destas. Alguns deles compreendem locais de exposição de
milagres e espaços onde expõem objetos de valor histórico; ao passo que outros são inteiramente
dedicados aos ex-votos, ou seja, são o que tenho generalizado aqui como Sala dos Milagres.
A denominação Museu é mais frequente quando uma sala dos milagres passa por
processo de reconfiguração em toda sua extensão (e não por meio de pequenos rearranjos
contínuos e cotidianos). Foi o caso da sala da Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do
Carmo, mais conhecida como Igreja Nosso Senhor dos Passos, localizada em São Cristóvão,
Sergipe. Mostrei fotos desta para Antônio e sua avaliação foi que tal espaço “– É muito
sofisticado para um museu de ex-votos”.
De fato, quando visitei o local fui surpreendida pela sensação de “cada coisa em seu
lugar”. Não havia objetos amontoados; muitos ex-votos em madeira apresentavam pedestais
incomuns para esse tipo de oferta; as fotografias eram acondicionadas em porta -retratos e
não eram afixadas diretamente sobre as paredes, sendo que estas apresentavam consideráveis
superfícies „em branco‟. Em diversas salas dos milagres, a falta de espaço para exposição é
tamanha a ponto de tornar normais a formação de camadas de fotos e outras ofertas que vão
sendo coladas sobre as outras; o „soterramento‟ dos ex-votos tridimensionais sob outros e o
aproveitamento do teto como suporte de onde pendem coisas diversas.
Uma historiadora com a qual conversei sobre esse ambiente discordou da organização
que reconstituiu a totalidade da figura humana usando membros que dizem respeito a tantos
corpos. Segundo tal interlocutora, essa “não é a lógica do devoto” e, sem deixar de expor a
lógica de historiadora, também demonstrou preocupação com a reunião em um mesmo
suporte de peças fabricadas e ofertadas em diferentes períodos históricos.
Face ao exposto, fica evidente que pensar em apenas uma lógica norteadora para a exibição
dos ex-votos é limar várias outras possibilidades que se conjugam nas salas dos milagres. O resultado
pode ser avaliado como excesso de ordem, de evocação de [falso] mistério ou dor, de confusão.
Antônio ouvia as considerações e relatos que expus no tópico anterior com atenção,
mas sempre indicava que era importante eu conhecer os santuários que seriam estilizados na
CM. Só assim eu poderia entender como ele elaborava o museu inspirando-se diretamente na
vida religiosa do interior potiguar.
No interior da capela havia bancos de madeira, as covas das Meninas e, mais adiante, o
altar. Nele, abaixo da cruz, destaca-se o “retrato falado” das Meninas, um quadro desenhado por
um artista a partir da narração de Seu Bento sobre como se deu seu encontro onírico com as
crianças. Apesar da presença de um grande número de imagens de santos diversos no espaço, não
observamos representações tridimensionais das Meninas no santuário.
As covinhas são uma construção em alvenaria, de formato retangular, rodeada por um fosso,
e por grades. Ao pé das grades, havia restos de velas que foram acesas ali, apesar do recado pendurado
na grade: “Por favor não acendar [sic] velas dentro da igreja. Obrigado”. A folha A4 utilizada para
impressão dessa solicitação encontrava-se cheia de nomes de devotos escritos à caneta.
Junto à parede esquerda da capela havia uma mesa com duas caixas de sapato cheias de
cartas e fotografias. Uma delas traz na tampa a descrição do que se espera que seja deixado ali: os
“milagres alcançados”. Sobre a mesa também havia um livro e um caderno para registro de
presença, mas essa parecia ser gravada de modo especial nas paredes, que estão todas marcadas
com assinaturas de devotos. Não identificamos uma sala dos milagres propriamente dita, mas a
capela em si era evidentemente um local de deposição de muitas formas de agradecimento.
Quando Antônio perguntou por “milagres de madeira”, Seu Bento nos levou até um
cômodo localizado ao fundo de um galpão que fica ao lado da igreja. No canto dessa sala
havia uma imagem em gesso, que acredito ser Nossa Senhora de Fátima, e, ao lado dela, um
monte formado por roupas, pedaços de tecidos, um par de muletas e ex-votos em madeira.
Esses objetos não estavam expostos, pareciam abandonados ali. Depois de muito procurar,
Antônio e Nildo selecionaram dois ex-votos em madeira em forma de pé.
Seu Bento nos contou que queria ser enterrado no santuário quando morresse e que
não tem como passar o terreno para a Igreja, como é solicitado, porque “– Infelizmente não
tem como ninguém ir no céu e pegar uma procuração com as Meninas”. A dinâmica da
edificação e da manutenção dos espaços do santuário é realizada por iniciativa própria de Seu
Bento e seus familiares e financiada pela contribuição dos romeiros. A estrutura é bastante
precária, apesar de haver energia elétrica, não há água encanada.
Antônio há muito era curioso para conhecer Seu Bento, descrito por ele como um
“beato”, “personagem”, “criador de cultura”, enfim, um “atualizador do mito”, uma vez que
história das meninas corria há muitos anos, mas foi ele quem construiu o santuário. Sendo
assim, não fomos a Rodolfo Fernandes necessariamente em busca de ex-votos ou de artistas,
mas de um outro tipo de milagre e seu realizador. Nildo, por sua vez, não escondeu a
frustração com o santuário: “ – Mais de quatro anos que planejávamos vir às Covinhas...
Lendo o trabalho da Irene parece que é uma coisa tão grande... mas é tudo tão precário, vê se
tem como a gente falar em turismo religioso aqui... não tem nem água!”.
O „mote‟ do incentivo ao “turismo religioso” foi utilizado junto à FJA para agregar
relevância ao Museu do Ex-voto, que se localiza justamente em um Centro de Turismo. Desse
modo, o turista que vai a Natal atrás das praias e no CT em busca de souvenirs e produtos
regionais também tomaria conhecimento dos santuários potiguares.
228
Quando Antônio solicitou transporte à FJA para nossa visita aos santuários, justificou
em ofício a necessidade de irmos até o município de Tenório, localizado na Paraíba, bem
próximo da fronteira deste estado com o RN. Durante a viagem, entretanto, Ismar –
motorista que nos conduzia – alegou não estar autorizado a adentrar o estado vizinho e nos
mostrou o documento que indicava as cidades por onde passaríamos. Combinamos de arcar
com o combustível que não havia sido previsto pela administração da FJA e Ismar cedeu.
A demanda de chegar até Tenório extrapolaria os limites do RN, mas não sairia do
escopo de uma região de forte continuidade de padrões culturais: o Seridó. Tal região
interestadual é tida como espécie de essência do sertão do RN e da Paraíba, essência esta
que seria especialmente mobilizada pela religiosidade popular. Segundo Antônio, no
passado, os seridoenses potiguares e paraibanos rezaram para os mesmos corpos de santos.
Em suas andanças, os santeiros, muitas vezes, não alcançavam o litoral de seu próprio
estado, mas atravessavam essa região no coração do sertão oferecendo suas imagens.
Apesar de eu não conseguir perceber o erro que havia sido desafiada a ver, ter a
publicação em mãos foi interessante para notar como os grifos do colecionador são partes de
um quebra-cabeça que ele vai juntando a outras informações para chegar até os objetos que
deseja. Na página com a fotografia do ex-voto que motivou a ida à Paraíba, por exemplo, ele
grifou o nome de Anita, com quem estaria a peça, e em outros trechos do exemplar sublinhou
mais nomes e informações sobre pessoas que também colaboraram com a publicação. Juntando
esses dados, ele sabia que Anita era uma antiga professora na cidade de Tenório.
Fomos até a residência indicada, onde estaria morando uma sobrinha de Dona
Anita, mas a informação não procedia. Tentamos em mais algumas casas, sem sucesso.
Ismar demonstrava impaciência com o desvio da rota, as péssimas condições da estrada e o
calor escaldante do sertão em janeiro. Antônio resolveu abortar a busca: “ – Tem que vir
com uma pessoa daqui, e com tempo”.
161Presenciei outro momento de atenção ao colecionamento de pistas em uma das noites que passamos em
Jardim do Seridó. Quando visitamos a casa de Pe. Jocimar (Prefeito da cidade, colecionador e comerciante de
arte que assumiu a concessão da galeria no CT) também estavam presentes dois amigos do “padre-prefeito”,
Nanael, professor e artista; e Diego, historiador. Diego é pesquisador da História do Seridó e entregou algumas
monografias a Antônio. Os trabalhos versavam sobre devoções locais e parecia m ter sido solicitados a ele com
antecedência. O historiador e Nanael falaram de fazendas e fazendeiros da região, sobre herdeiros de espólios,
contaram a história de várias santas padroeiras, as reinterpretações locais etc. Antônio pediu que eu anotasse
diversos nomes e informações que eles mencionaram, como: “Ercina, de Caicó, tem a coleção de um santeiro
que é importante, porque foi o padre que trouxe” e “Senador Guerra, que trouxe a Santana de Caicó”.
230
Outras imagens figuravam na igreja “de cima” por ocasião de nossa visita. “Imagens
francesas restauradas que datam do século passado” habitavam o presépio montado por Ricardo
Veriano, bem maior do que o que o artista organizou na Galeria da FJA por ocasião da exposição
de presépios. O conjunto de imagens da natividade „destoava‟ do ambiente “neo-concreto” da igreja,
facilmente associável ao estilo de templos pós-Vaticano II, ou seja, caracterizado por poucos santos
e projeto arquitetônico com valorização da verticalidade, da luz e do „vazio‟. Para montar o presépio
em Patu, Ricardo contou com apoio da FJA e ainda “– Com a colaboração de crianças, idosos,
domésticas e camponeses locais” e contextualizou a cena do nascimento de Jesus na “– Realidade
da seca nordestina através da técnica da taipa de pilão, também conhecida como pau a pique”.
A Sala dos Milagres fica à direita do santuário e, segundo Antônio, sua organização é em
muito condicionada pelas ações de Ricardo Veriano, que já foi Secretário de Cultura de Patu. A
impressão de baixo número de ex-votos na sala se explicaria, a princípio, pela organização a qual
o espaço foi submetido. A reunião de grupos de objetos em suportes separados (teto, prateleiras,
vitrines etc.) influenciaria a sensação de espaço vago entre as coisas. Outra explicação aponta para
as retiradas constantes de Veriano, que utiliza as peças na decoração de sua casa. Quando
passamos por lá, ele nos mostrou alguns “achados” em bronze162.
Na visão de Antônio, essas subtrações não são condenáveis, tampouco suas suspeitas de
que algumas peças da sala sejam obras do próprio Veriano que lá as expõem. Meu interlocutor
desconfiou que um ex-voto (uma pintura de feições sobre a indicação de uma face em gesso)
que Ricardo sugeriu que fosse incorporado à CM seja de autoria do artista. Essa peça não foi
coletada, mas outras foram selecionadas.
162Durante sua gestão como Secretário de Cultura, Veriano recebeu o pesquisador Luiz Bonfim no Santuário do
Lima. Segundo o pesquisador, o informante lhe mostrou um espaço extremamente bem-cuidado, com desenvolvida
vocação para o turismo religioso e sala dos milagres com inovações nos processos expositivos (fotografias
penduradas em varais). Bonfim registra ainda que foi presenteado com um “artefato” (BONFIM, 2007).
231
Figura 67 – Visão geral da Sala dos Milagres do Figura 69 – Exemplos de uma mesma parte do
Santuário da Serra do Lima corpo: seios, confeccionados a partir de diferentes
matérias-primas, como tecido e madeira, e de
Fotos: Acervo da autora, jan. 2013 reaproveitamentos – como de sutiã e de meias
A prática apontada como inadmissível pelo colecionador foi a de utilização de ex-votos como
lenha no fogão inglês de religiosos que já ficaram a cargo do santuário. O sacrilégio em torno das
“cabecinhas usadas como combustível” foi interrompido após esforços de Antônio e outros agentes,
como Veriano, para que as peças fossem mantidas “enquanto testemunhos da fé ou ainda como obra
de arte”. Meu interlocutor destaca que o desdém em relação aos milagres não dizia respeito apenas aos
administradores do santuário. Quando passou por Patu em sua viagem pelo sertão em 1934, Cascudo
observou paredes lotadas de ex-votos e apesar de ter ouvido do padre que dezenas deles eram
retirados periodicamente163 não registrou nenhum tipo de desacordo com a prática.
163Disse o folclorista: “A capelinha, num rococó de simplicidade extrema e acolhedora, tem as paredes cobertas de
ex-votos. O Padre Francisco Scholz diz-me que retira, vez por outra, algumas dezenas pela impossibilidade de o lugar
comportar as novas testemunhas da intercessão.” (CASCUDO, 1975 [1934], p. 35-36).
232
Enquanto Leléu não voltava para nos buscar, eu e Nildo fomos caminhando. Meu
companheiro de subida disse não se importar com o esforço, uma vez que já tinha feito
aquele trajeto difícil várias vezes “– Com saco de ex-votos nas costas”, depois que
estabeleceram laços com o zelador, a empreitada de coleta ficou mais fácil.
Figura 70 – Antônio selecionando cabeças com Figura 71 – Seleção de outros formatos de milagres
auxílio do zelador do Santuário
Foto: Acervo da autora, jan. 2013
O altar que fica no interior da capela não pode ser acessado, mas apenas visualizado por
meio de uma grade. O zelador nos mostrou que a grade havia sido consertada recentemente, pois
é violada com frequência por ladrões interessados no cofre onde os fiéis depositam dinheiro.
Calcula-se que no último roubo tenham sido levados mais de R$ 2.000,00. As paredes da capela,
de modo semelhante ao que se passa nas Covinhas, são cobertas de assinaturas de visitantes. Esse
registro da visita no Monte do Galo também contraria o pedido dos administradores do
santuário, que escreveram no chão, em letras bem grandes: “Irmãos romeiros, favor não riscar as
paredes nem acender velas dentro da capela”.
Durante a curta estada no Monte do Galo pude ver a abundância de um objeto cujo
desaparecimento vem sido aventado há anos. Apesar dos estudos sobre os ex-votos lamentarem que a
tradição do milagre de madeira estar acabando, há que se perguntar se os outros suportes (fotografia,
peças de parafina etc.) não estariam se justapondo aos já existentes ao invés de suprimi-los.
O Santuário de Nossa Senhora das Graças localiza-se no “Monte das Graças”, que fica a 2
km da cidade de Florânia. A subida, que pode ser feita de carro, é ornada com as 15 estações da Via
Sacra. No alto do monte há uma capela, uma praça de oração, uma “casa de votos” e um centro de
estudos e treinamento pastoral, batizado com o nome de Centro de Estudos Linguagem e Reflexão
Dom Heitor Araújo Sales. Quatro estátuas se destacam na frente da capela: Pe. Cícero, Pe. Ibiapina,
Frei Damião e Pe. Cortez. Os restos mortais deste último, inclusive, foram trasladados para o interior
da capela em 2005 e o maior desenvolvimento do santuário é atribuído a ele.
234
Há várias versões sobre a origem do santuário, sendo que a mais propagada delas conta que,
em 1946, um frade chamado Otávio sonhou com uma menina que teria falecido de fome e de sede ao
se perder de seus pais, quando procurava um cacto para se alimentar. Em 1947, ao buscar o monte, o
frade reconheceu o local que aparecera em seu sonho. Um dos sinais que o levaram a tanto foi uma
umburana, árvore típica da região164, que exalava um perfume santo. O odor de santidade indicou o
local preciso onde ele encontrou o corpo da menina enterrado até a cintura com um pedaço de
cardeiro (tipo de cacto) na mão. Conta-se que o corpo santo foi levado para a casa paroquial, e lá
ficou escondido por muitos anos, tendo sido encontrado durante uma faxina e novamente ocultado
em um fundo falso de guarda-roupa. Outra versão diz que uma imagem da menina é que ficou
escondida, pois atraía demasiada atenção e os padres queriam evitar tumultos. A umburana foi
praticamente destruída porque seus galhos e folhas foram tomados como milagrosos.
Por isso, a ideia da promoção de Nossa Senhora do Monte foi descartada e, em seu lugar,
colocaram Nossa Senhora das Graças, cuja devoção estava em evidência àquela altura (1947) porque
Catarina de Labouré, freira francesa que presenciou aparições da Virgem, acabava de ser canonizada.
Assim, a imagem que ocupa o principal lugar no altar da capela tem os atributos da Nossa Senhora
que apareceu para a Irmã Catarina: ela pisa sobre uma serpente, tem as mãos estendidas (deles
desprendem-se os raios de suas graças) e sua cabeça é adornada por uma coroa de estrelas.
Na Casa dos Ex-votos, os objetos me pareceram bem „disciplinados‟. As fotos estão todas
expostas em porta-retratos e não são diretamente afixadas na parede. Estas, entretanto, contêm
inúmeras mensagens escritas à caneta pelos devotos. As imagens de santos, que ficam sobre uma
prateleira na parede do lado esquerdo, estão organizadas das menores para as de maior dimensão,
destacando-se, no fim da série, duas imagens de Pe. Cícero e uma de Frei Damião entre elas.
164A maioria dos milagres e santos de madeira que temos abordado desde o capítulo 4 tem como principal matéria-
prima a umburana, também chamada de imburana.
235
São muitas as coisas que remontam aos religiosos que atuaram no local ou que são
louvados como santos no Nordeste, como Pe. Cícero, Frei Damião e Pe. Ibiapina. Por sua vez, as
referências à Santa Menina, devoção que remonta às origens do santuário, são poucas. Também é
interessante pensarmos que o padecimento com a seca pelo qual teria passado a menina não é
mencionado por meio dos objetos nesse santuário. Contudo, quando se trata da história similar
das Meninas das Covinhas, o fato de elas terem morrido de sede é explicitado pelas diversas
garrafas, mamadeiras e outros recipientes com água que ficam sobre suas covas.
O fato da imagem da menina habitar o ambiente onde geralmente ficam os corpos dos
devotos é potente para indicar o quanto a já mencionada posição periférica desse tipo de local
expositivo diz sobre a natureza liminar das coisas ali expostas. Como nos ensina Mary Douglas,
poderes mágicos são muitas vezes atribuídos a pessoas e lugares socialmente marginalizados. Em
muitos casos, como no santuário em questão, o caráter de liminaridade mostra-se, na verdade,
“liminoide”, condição descrita por Victor Turner a propósito de estados potencialmente mais
criativos e subversivos dos locais, pessoas e coisas inseridos em processos rituais.
Após alcançarem o Alto, como é chamado o local onde fica o complexo de estruturas
do santuário (que, além da estátua, compreende uma “Praça dos Romeiros”, “Capela do
Santíssimo”, “Sala de Promessa”, loja de artigos religiosos e um restaurante), em geral, as
pessoas passam antes na “Sala de Promessa” e depois se dirigem para a frente da estátua. A
imensa Santa Rita é vista de frente para quem passa pela cidade, de lado no caminho do
santuário, e na entrada dele, a santa encontra-se de costas para as pessoas.
A visita a esse santuário foi a mais rápida dentre todas. Para entender um pouco
mais da dinâmica do local, solicitei à Raquel Lima seu relatório do trabalho de campo lá
realizado em 2010 165. Cotejar nossos dados foi interessante para perceber a permanência e o
„desuso‟ de certas práticas. Os dados produzidos pela pesquisadora em 2010, por exemplo,
não indicam que a Sala dos Milagres fosse fria ou esvaziada. Outra prática mais „quente‟
observada por ela foi o uso de um sino tocado pelos visitantes, que, incentivados por
funcionários do santuário, realizavam pedidos durante o ato.
Raquel Lima indicou que as informações que recolheu poderiam ser diferentes caso
ela tivesse realizado a observação alguns dias depois, pois um novo padre assumiu as
funções de pároco no santuário e fez algumas mudanças, “entre elas a demissão de Socorro,
responsável pela Sala de Milagres.” (LIMA, 2014, p. 11), penso que esse fator pode ser
determinante para atual configuração do espaço que abriga os ex -votos. Neste, observei um
quadro com o nome de várias Ritas e lendo o relatório em pauta entendi que se trata da
concretização de algo que, à época do campo realizado por minha colega, estava ainda nos
planos da administração do santuário: “Para o santuário há planos de se fazer um cantinho
chamado “eu me chamo Rita”, um painel onde as pessoas registrariam seu nome e
colocariam uma foto. A intenção é aumentar o número de crianças batizadas de Rita, e
assim a devoção à Santa.” (LIMA, 2010, p. 7).
165 Produzido no âmbito de sua pesquisa de doutorado sobre o culto à Santa Rita (LIMA, 2014).
239
Além disso, me arrisquei a traçar algumas hipóteses sobre como o controle do que é
exposto pode influenciar no que é (ou não) ofertado, sugerindo a existência de uma espécie de
„efeito cascata‟. Após visitar dezenas de salas dos milagres em diversos locais do Brasil, observei
que o acervo numeroso suscita no devoto a vontade de deixar seu testemunho de fé e relação
com o santo. Em outras palavras, a abundância do acervo parece instar quem o admira a se
inscrever no mesmo. Isto posto, nos locais em que a exposição é visivelmente mais controlada,
o crescimento do acervo também é contido. Acredito que certas estratégias expositivas
direcionam o devoto a ofertar certos objetos e não outros. Desse modo, penso que nas
Covinhas, por exemplo, não há muitos ex-votos em madeira porque os que foram ofertados
não estão expostos, caso estivessem, incentivariam outros devotos a levar objetos semelhantes.
Antônio fez Observações complementares ao relatório de viagem aos santuários do Rio Gran de do
Norte, em janeiro de 2013. Em alguns pontos do texto, ele remete ao meu relato, como por
exemplo, “... tudo começou na década de 1980, como relata em detalhes maiores a
pesquisadora Lilian Gomes, no relatório que antecede as presentes observações.” A respeito
das Covinhas, observou que “o santuário não tem uma “manutenção”: há muito lixo,
desorganização, objetos “soltos” ou deslocados dos seus lugares. São limitações dadas pela
ausência de colaboradores e pelo próprio “quadro” cultural do seu mentor, sr. Bento.” Por
isso, “enquanto santuário integrante de um Museu do Ex-voto, valeria figurar como uma
“citação”, como uma “referência” menor...”.
dos ex-votos, única forma de serem preservados... Há muitas idéias que podem ser
discutidas e colocadas nesse tópico aqui abordado.
Em primeiro lugar, dependemos que a própria comunidade saiba
preservar o acervo que ela julgar importante para a identificação do
santuário. Os ex-votos “excedentes” poderiam ser destinados a um museu
central, representante de todos os santuários. Essa proposta requer uma
articulação com os representantes da Igreja oficial e os agentes populares.
Vale lembrar que os santuários visitados encontram-se situados em paróquias
específicas e estão sob jurisdição de dioceses diferentes: Mossoró (Patu), Caicó
(Monte do Galo e Florânia) e Santa Rita de Cássia (Natal). O único que faz
exceção, por sua independência, por ser um santuário de “cunho particular”
(situado em propriedade particular e não de igreja institucional) é das “Meninas das
Covinhas”, embora Seu Bento reafirme sempre: “o santuário não é meu... é das
Meninas, é dos romeiros...”
Conclusão final: uma grande parte da história religiosa das camadas
populares do Rio Grande do Norte e estados vizinhos (particularmente a
Paraíba) está vinculada à “vida” desses santuários. Anteriormente a essa
viagem já mantivemos contatos com agentes da Igreja oficial (párocos,
bispos, etc.) e da igreja do povo (zeladores de casas dos milagres). Houve,
sempre, em nossas conversas, uma aceitação total da proposta de se criar
um museu público, em Natal, com a finalidade de preservar os ex-votos...
Esse diálogo precisa ser retomado, registrado em documento oficial.
A criação de um museu público não exclui a possibilidade de abrir nele
coleções particulares, em regime de comodato. Esse tema também merece uma
reflexão mais alongada.
Só com registro de todas as obras expostas seria possível manter o controle de entrada e
saída das peças do espaço expositivo. Caso tal esforço não fosse realizado, o sumiço de alguma obra
menor dificilmente seria constatado. Segundo Ângela, no jargão museológico, muito antes de ser
vista como mera papelada, “– A documentação é o pulmão do museu, o coração é o acervo.”.
Neste capítulo inicialmente apresento a Casa dos Milagres, exposição montada com parte do
acervo de Antônio Marques, meu principal interlocutor. Exploro como os arranjos dos objetos suscitam
respostas particulares e o modo como o colecionador busca publicizar seu devotamento à arte do povo.
Dedico-me, em seguida, à reflexão sobre trajetórias de coisas específicas. Para tanto, utilizo como mote os
ex-votos destacados em uma vitrine especial na CM. A biografia desses ex-votos é pertinente para a
continuidade da elucidação sobre a dimensão de coleta que antecede a entrada de objetos no âmbito da
coleção, lançando luz sobre distintas formas de apropriação deles em locais de culto, ateliês/oficinas de
artistas e outros locais nos quais o fenômeno votivo irrompe. Trata-se de problematizar os gestos de
coleta que levaram à formação da coleção de milagres, bem como a tônica dessa formação, valendo-me
especialmente das situações em que os objetos mudam de mão.
168A interrogação em torno da mostra já ser o museu em si ou não fica maior se consideramos que na abertura da
exposição uma “pedra fundamental” foi solenemente descoberta pelo colecionador e pela então governadora do RN,
Rosalba Ciarlini. A placa registra que “em 28 de agosto de 2013, dentro da programação do Agosto da Alegria, o
Governo do Estado do RN inaugurou o Museu do Ex-voto – Casa dos Milagres, no Centro de Turismo”.
243
Da porta até praticamente o fundo da sala se estende um tapete vermelho, que culmina no
altar da capela, elevado acima do chão por degraus. A cor forte do tapete no chão, o posicionamento
de frente para porta de entrada e a elevação da estrutura confluem para atrair a atenção do visitante.
A estrutura é descrita no catálogo da mostra com as seguintes palavras:
A nave central da capela, retomando sua dimensão antiga, é presidida por uma imagem de
Cristo de Ambrósio Córdula, esculpida em madeira, que de tão bonito lembra uma obra
expressiva de Aleijadinho. Logo abaixo, no altar-mor, Nossa Senhora da Apresentação
(Padroeira de Natal) encontra-se entronizada, ladeada por jarros e candelabros.
(CARVALHO JR., 2013, p. 17).
Observa-se que Jesus está na posição de crucificado (cabeça abaixada, braços abertos e pés
sobrepostos), mas não há uma cruz atrás da imagem. É muito comum que Cristos cheguem aos
colecionadores de objetos sacros sem a cruz, que em alguns casos se solta com o tempo e as
movimentações as quais é submetida, podendo também, em outras situações, ser retirada para dar a
ver o trabalho escultórico. Por causa da posição corporal característica, mesmo sem o suporte da
crucificação, sabe-se que se trata de um Cristo morto. Interessante perceber que o colecionador
encomenda a imagem de Jesus de grande porte – é a maior obra da CM – solicitando características
frequentes dos pequenos Cristos manipulados em coleções particulares.
244
O visitante que fita Nossa Senhora da Apresentação169, posicionada um pouco acima do nível
dos olhos de uma pessoa de altura mediana, e eleva o olhar para ver o Cristo, enxerga, acima dele, um
“divino” e se continuar direcionando os olhos para cima depara-se com o teto da capela inundado
por um „mar‟ de leves bandeirinhas de papel azul. Esse „céu‟ se movimenta com o vento praticamente
contínuo e típico de Natal que entra pela porta e pelas janelas laterais.
Tal forma de preenchimento do teto foi uma improvisação170. Segundo Antônio, a equipe que
montou a CM obviamente cogitou pendurar os ex-votos a partir do teto, como é comum nas salas dos
milagres, mas eles poderiam cair na cabeça dos visitantes. Sendo assim, a ocupação da estrutura foi pensada
em função da fragilidade do telhado da capela, que poderia não aguentar o peso de milagres pendentes.
A nave central é uma estrutura permanente da exposição, mas sua face traseira foi pensada
tendo em vista a possibilidade de realização de mostras temporárias com obras de artistas populares.
Logo, nesses nichos localizados atrás do altar encontram-se os santos da exposição não pintados, ao
passo que as imagens que ocupam os santuários estilizados (descrevo-os logo abaixo) foram policromadas
assim como as „originais‟ que visitamos e fotografamos nos locais de devoção apresentados no capítulo
anterior. Os primeiros santos que ocuparam os nichos foram os de Luzia Dantas, como forma de
homenagem à artista. Em novembro, eles deram lugar a presépios de diversos escultores.
169De autoria do mesmo artista que esculpiu o Cristo, Ambrósio Córdula, reputado como exímio realizador de
imagens ao estilo antigo.
170Dentre as diversas soluções expositivas encontradas pela equipe da CM, essa foi a mais admirada pelos participantes
do Seminário Internacional de Museologia durante o qual expus minha pesquisa na École du Louvre.
171A configuração foi fotografada por Edilson Pereira, a quem agradeço pelos belos registros visuais produzidos por
ocasião de sua visita à CM.
245
Explorado o núcleo principal da capela e seu verso, prossigo com a descrição da mostra
fazendo referência à numeração das estruturas expositivas mapeadas no plano de orientação abaixo:
Logo após a entrada da capela, há um totem com um livro de visitas e, acima deste, um banner
apresenta a exposição (ver 1 no plano de orientação), abaixo reproduzo o texto explicativo da mostra.
Se continuarmos acompanhando a parede que fica à direita de quem entra na CM, nos
deparamos com um painel de duas faces com “gravuras de santos” (ver 2). Essa estrutura contém
exemplos daqueles elementos que eu não imaginava expostos em uma mostra da coleção de Antônio,
afinal, eles não eram alvo da prática de colecionamento do meu interlocutor. Quando visitei a
exposição172, entendi que esses objetos – assim como flores, velas e toalhas de altar – foram
dispostos de modo a compor a expografia recorrente em salas dos milagres. É válido registrar que as
gravuras também são estimadas pelo colecionador porque nelas podem ser identificadas as fontes
iconográficas onde artistas diversos buscaram a inspiração inicial para esculpir certos santos.
Mais adiante temos outro painel duplo, dedicado à exposição de “ex-votos em metal” (ver 3),
nomeado “Oropa, França e Bahia”. Essa estrutura contém os milagres europeus e latino-americanos
mencionados no banner de apresentação da exposição, além de alguns “garimpados” em Bom Jesus da
Lapa (BA). São peças bidimensionais em variados tipos de metal – prata, bronze, latão – e que lembram
pequenas joias. Os exemplares menores são chamados de milagritos em países de língua espanhola, ou
seja, são milagres no diminutivo. Estes objetos foram emoldurados em quadros cobertos com vidro e
estes por sua vez foram dispostos no referido painel. A exposição deles, da forma descrita, lembra a
exibição de um mostruário de pingentes em uma joalheira. O anteparo de vidro, nesse caso, funciona
tanto para que as peças não sejam tocadas, quanto para dificultar que sejam levadas.
No painel seguinte estão os “retratos da fé” (ver 4): são fotografias recolhidas em salas dos
milagres, colocadas em porta-retratos e afixadas na estrutura expositiva. No centro da primeira fileira
há um quadro maior com dezenas de fotografias 3 x 4 cm. Em geral, os demais abrigam o típico
formato de fotografia 10 x 15 cm com cenas diversas da vida dos devotos, como ritos de passagem
(formaturas, casamentos, batizados etc.) e também momentos críticos de enfermidade (pessoas
acamadas; acidentadas, com partes do corpo mobilizadas; fotos de membros com feridas ou outras
moléstias etc.) que dificilmente encontramos em álbuns de fotos de família, porém são numerosos na
maioria das salas dos milagres.
172Amontagem aconteceu quando eu já havia finalizado o trabalho de campo em Natal. Visitei a mostra por ocasião de
um breve retorno à capital potiguar realizado em julho de 2015.
247
Rente à parede do fundo da sala, há uma estante de madeira com cinco prateleiras
contendo “Ex-votos do Ceará” (ver 5). Alguns deles contam com pedestal, com exceção de um
tronco (sem braços e com cabeça), todos os demais milagres são cabeças. Ao lado desse expositor
há uma placa descritiva: “Ex-votos do Ceará – Ex-votos em madeira provenientes do Ceará –
São Francisco do Canindé 173 e Juazeiro do Norte. Estas peças deram origem, no início dos anos
1960, à coleção de ex-votos aqui exposta. O acabamento rústico e a cabeça achatada são
características marcantes.” (grifo meu)
Logo ao lado, o espaço “Festas Religiosas” (ver 6) apresenta o Calendário de Festas Religiosas
de Tradição Católica no Rio Grande do Norte, também disponibilizado no catálogo da mostra
(CARVALHO JR., 2013, p. 47), composto por três colunas: data, local e devoção.
Paralelamente a essas estruturas dispostas junto à parede do fundo da sala há uma espécie de
divisória. No lado voltado para parede (ver 8) tem-se o espaço destinado aos “artistas populares” já
descrito acima; e no lado, voltado para entrada da capela, foi montado o “altar-mor” (ver 9) aludido
anteriormente como a estrutura que captura a atenção do visitante logo que a porta é transposta.
O tapete vermelho que percorre o centro da sala levando ao altar foi doado pelo
pessoal do Teatro Alberto Maranhão, gerido pela FJA. Em suas laterais foram dispo stas seis
vitrines retangulares de estrutura metálica e superfícies envidraçadas, também reaproveitadas
de outros museus da fundação (idênticas às que utilizamos na exposição de presépios e uma
observada na sala dos milagres do Santuário do Lima). Dentro das vitrines foram distribuídos
os seguintes grupos de milagres: “Ex-votos – animais domésticos” (ver 10), “Ex-votos –
membros e órgãos do corpo humano” (ver 11), “Ex-votos – estruturas ósseas, articulares e
órgãos dos sentidos” (ver 12), “Ex-votos – casas residenciais” (ver 13), “Ex-votos materiais
diversos” (ver 14) - “Ex-votos exumados” (ver 15).
Ou seja, os primeiros ex-votos de Antônio Marques também procedem do local onde o colecionador Jacques van de
173
Beuque, formador do acervo do Museu Casa do Pontal adquiriu suas primeiras peças votivas.
248
A presença de uma “Sala de devoção ao Pe. João Maria” (ver 16), ao fundo e no lado
esquerdo da sala, mostra o acolhimento de uma das sugestões da Secretária Extraordinária de
Cultura na expografia da CM. Como mencionei no capítulo anterior, Isaura Rosado
recomendou que o museu compreendesse, além dos santuários que visitamos, a devoção ao
“santo dos natalenses” e aos “Mártires de Cunhaú”. A imagem do sacerdote cultuado em Natal
presente na CM foi esculpida em madeira pelo artista Chico Santeiro 174. A ausência de peças
que remetam à devoção aos Mártires de Cunhaú e “outros critérios da curadoria” foram
explicitados no catálogo:
O objetivo da presente mostra não pode ir além do seu título, isto significa que estamos
apresentando peças artísticas e religiosas de uma coleção particular, sem a pretensão de
uma abordagem abrangente do tema, mesmo tendo como horizonte os santuários do
Rio Grande do Norte.
A curadoria destacou aqueles santuários que tem maior presença de romeiros e,
consequentemente, maior ocorrência de ex-votos. Um levantamento rigoroso dos
lugares e locais de devoção popular possibilitaria um acervo bem mais abrangente. Em
decorrência deste critério deixamos de registrar centros religiosos de importância para a
história cultural e religiosa do nosso estado. Exemplo claro é a ausência de uma
referência pontual dos Mártires de Cunhau e Uruaçu, e até mesmo da Igreja de Santos
Reis, localizada nas Rocas.
Nosso tema, definido pelo título da exposição, também deixou de abordar aspectos
religiosos de tradição judaica, evangélica, afro-brasileira, indígena, espírita e outros,
embora fundamentais para a formação de nossa identidade cultural. Essa explicação
não deixa de ser um indicativo para a tarefa de promover urgentemente a visibilidade de
outras tradições religiosas.
Mesmo abordando apenas alguns santuários católicos, não nos foi possível trazer à tona
toda a riqueza neles encontrada. Impraticável, sem meios adequados, dar conta da
diversidade e da quantidade dos objetos votivos depositados nos espaços sagrados.
Diante desse fato, nesta primeira mostra, fizemos a opção de selecionar os ex-votos a
partir de três critérios fundamentais:
- Representação do corpo humano;
- Representação de animais domésticos;
- Representação de casas residenciais.
Quanto às imagens sacras, a curadoria esclarece que o critério de seleção adotado foi
sempre o da relação de destaque – oragos – que elas mantem com os santuários
abordados. No entanto, imagens da devoção popular podem surgir de forma
surpreendente em qualquer parte da exposição. É a complexidade do fenômeno da
religiosidade e da estética popular que não se deixa aprisionar por regras acadêmicas.
(CARVALHO JR., 2013, p. 27, grifo no original).
Este, com Ch mesmo. Acredito que dificilmente Antônio colocaria peças de Xico de forma permanente na CM,
174
pois os visitantes mais atentos à importância do trabalho do Aleijadinho do RN poderiam não resistir à tentação
não só de tocá-las, mas de levá-las...
249
Assim como previsto no projeto, os santuários foram estilizados no interior das arcadas
originais da antiga capela. A proposta de ocupação da capela tirando proveito das possibilidades
arquitetônicas já existentes foi importante para que a implantação da CM não fosse vista como
ameaça de descaracterização do espaço. A utilização pretérita como local de cerimônias religiosas
impunha algumas configurações, como a localização do altar-mor, mas por que Antônio
imaginou santuários estilizados no interior das arcadas?
Em suas considerações sobre a função sociológica da porta, Roger Bastide (2006 [1951])
nos explica a existência de
[…] portas sem parede, portas que o arquiteto destacou da casa para jogá-las no meio
da rua: os arcos do triunfo. O arco do triunfo, com suas colunas, suas abóbadas, seus
frontões mostra a que ponto, no pensamento místico das multidões, a porta é um dos
elementos essenciais do cerimonial e como a beleza perecível da madeira esculpida ou a
beleza mais permanente da pedra talhada, do mármore colorido, acrescenta grandeza e
nobreza ao gesto do homem que caminha, que transpõem o umbral de todo um mundo.
[...] Apenas a igreja conserva a porta como espetáculo artístico, como uma moldura
de quadro em que a tela pintada é substituída por um pintura sempre cambiante - a dos
indivíduos que entram e saem e aos quais a escadaria, pela disciplina que impõe aos
músculos, confere momentaneamente um ar de dança ou de procissão ritual.
(BASTIDE, 2006 [1951], p. 130-132, grifos meus).
Na estilização do Santuário de “Nossa Senhora das Vitórias” (ver 17) tem-se uma imagem
dessa santa de autoria de Elias Sultano, feita em resina e madeira policromada e com adereços do
escultor Gean de Santa Cruz.
Figura 83 – Estilização do Santuário de Nossa Senhora das Vitórias, sendo visitada por Leléu176 e família
Foto: Helenice Dantas177
O “Santuário da Menina” (ver 18) é a atração da arcada seguinte. Como se vê, a estilização do
culto que acontece no Monte das Graças em Florânea contemplou a imagem que fica na sala dos
milagres desse santuário e não a que fica na capela principal (Nossa Senhora das Graças). Quem
esculpiu a menina foi Gean de Santa Cruz. Assim como a peça do santuário, a da capela ganhou um
manto em tecido preso com um laço de fita no pescoço da imagem.
Figura 84 – Estilização do santuário da Santa Menina. Foto: Edilson Pereira, ago. 2014
176 Leléu é zelador do santuário em questão e „curador-colaborador‟ da CM, como aventei no capítulo anterior.
177 http://blogdotoscanoneto.blogspot.com.br/2015/01/carnaubenses-visitaram-casa-dos.html
251
Adiante se tem o “Santuário de Nossa Senhora dos Impossíveis” (ver 19) com sua respectiva
imagem em madeira policromada, feita pelo artista Chico Santeiro. A santa é apresentada à frente de
um fundo vermelho e sob uma cortina branca de renda que se abre. Ao lado, e à frente da imagem, há
vasos com flores. Por fim, o “Santuário de Santa Rita de Cássia” (ver 20), cuja imagem em madeira
policromada de autoria de Ambrósio Córdula é mostrada dentro de um oratório ricamente
ornamentado, à frente do qual, foram dispostos um par de castiçais com velas e um de jarras de
porcelana contendo flores brancas.
A expressiva face de uma dessas peças ilustra a capa do catálogo da mostra. A parte
posterior da obra, na qual se destacam os cabelos estriados terminando em um esmerado coque,
figura na contracapa. Apesar de ter sido destacado dos ex-votos que lhe são aparentados e ser
apresentado sobre um totem (ver 23) em separado dos demais bustos que ficam acima da
portada, nota-se que o milagre „mestre de cerimônia‟ da publicação não tem exatamente o mesmo
relevo na configuração da exposição.
Figura 88 – Mapa das devoções potiguares do catálogo da mostra. Fonte: Reprodução, Natal-RN, 2013
254
Muitos visitantes claramente identificam a dinâmica da CM com aquela dos santuários e dos
espaços contidos nestes e onde se oferta objetos aos santos. Assim, ao adentrarem o espaço da
mostra/futuro museu seguem direto para os altares e se ajoelham para rezar diante das imagens.
Eles querem tocar nas peças, a gente pede para não tocar, porque é uma obra de arte. Tudo
de modo delicado, não chego gritando, eu explico que pode danificar a pintura. Mas tem uns
que a gente vê que estão tão envolvidos com a prática que eu deixo, não tem como. Teve uma
senhora que já entrou ajoelhada, eu falei “não, senhora, não, não”, mas ela foi de joelhos até
lá, e disse “eu fiz promessa, eu tenho que entrar”. E o que eu posso fazer? Eu deixei.
Essas palavras são de Paulina179, que foi quem acompanhou a realização desses gestos de forma
mais próxima e durante mais tempo, pois atuou como mediadora da mostra180. Segundo ela, era muito
comum que as pessoas já entrassem na capela de joelhos, tirando o chapéu ou “se benzendo”, isto é,
fazendo o sinal da cruz. Vale notar que o desejo de toque, recorrente nos relatos sobre exposições
diversas, na CM afigura-se como incrementado pela experiência devocional. Os ex-votos também
convidam ao estabelecimento de relação por meio do tato, mas as mãos dos visitantes buscam,
sobretudo, aquelas imagens que são corpos desdobrados dos patronos dos santuários. A contundência
de alguns gestos era tamanha a ponto de Paulina não conseguir se imaginar desqualificando essas
respostas às obras, apesar da ameaça que poderiam significar para a pintura dos santos.
179 Sou grata à Raquel Lima por tê-las registradas em áudio por ocasião de sua visita à CM em agosto de 2014.
180 E, para tanto, foi contratada como estagiária pela FJA.
181 Com auxílio de Antônio, Paulina identificou “12 grupos principais de peças com semelhanças estilísticas
marcantes entre si” (FAGUNDES, 2015, p. 48). O grupo mais numeroso é o formado pelas peças de Julio
Cassiano, seguido pelos de Neném de Chicó, Ramiro Barboza, Zé da Neuza e Daniel Alves. Na impossibilidade de
atribuição de alguns dos conjuntos a nomes específicos, foram ressaltadas suas particu laridades fisionômicas:
“olhos inchados”, “sobrancelhas unidas”, “Tininim” (por conter traços que lembram o personagem homônimo da
obra “A Turma do Pererê”, criada pelo cartunista Ziraldo), “cílios riscados”, “boca saliente” e “cabelos ondulados”.
Um grupo particular de ex-votos de membros inferiores foi nomeado M.S. em referência à inscrição que se repete
nas diferentes peças e que provavelmente remetem à autoria das figuras.
255
A exposição foi acrescida de novas peças desde que foi aberta ao público. Uma senhora
pediu para o filho levar uma mão esculpida em madeira e colocar a peça no altar de Nossa Senhora
dos Impossíveis. A devota fez tal solicitação após ver a notícia da inauguração da CM na televisão e
ter realizado uma promessa para ser paga lá. Dinheiro e bilhetes deixados para os santos também
foram encontrados por Paulina. Esses itens se enquadram no que Antônio Marques qualifica de
oferenda: um “gesto espontâneo” motivado pela comoção de estar face a face com aquelas imagens.
Nessa perspectiva, o “ex-voto em sua concepção tradicional” é uma representação plástica
concebida antes da visita ao santuário e criada especialmente para ser ofertada.
Os [visitantes] que já conhecem o que é, já explicam para o outro que não sabe. As
crianças perguntam muito para os pais: - O que é isso? Aí que eles explicam que são
as pessoas que fazem promessa e tal. Aí eu já percebo que conhecem a tradição. Só
que muitas vezes eles estranham o material. A maioria dos turista s que chega aqui
conhece o de cera, aí acham diferente ser de madeira, cada peça é única, tem peça
muito naturalista, alguns se surpreendem pela representação do ferimento ou da
doença em si. Tem gente que se sente bem, que sente uma paz. Tem outros que
não se sentem tão bem, já saem, as fotos impressionam. Mas a grande maioria
gosta. Eu que estou aqui todo dia, penso que se eles transmitem uma energia, é de
positividade, é um agradecimento, foi uma cura. (grifos meus) .
256
Antônio relatou ter ouvido críticas por criar uma exposição de feições delicadas a partir
de peças que, em seus contextos “originais”, exalariam a pungência do sofrimento das pessoas.
Assim, a mostra foi descrita como “alegre demais” por um visitante. Uma exposição inspirada
nas “verdadeiras salas dos milagres” não poderia ter um caráter tão festivo. Segundo o
colecionador, entretanto, “– A CM é justamente uma casa de festa”. O que precisa ser
solenizado, nessa ótica, não é a dor, mas a relação entre devotos e os patronos dos santuários
estilizados e, principalmente, os objetos que ela produz.
Figura 89 – Altar-mor da CM
Foto: Giovanni Sérgio originalmente reproduzida em www.cultura.rn.gov.br
Na CM, essas imagens passíveis de serem consideradas excessivas não estão no altar
principal, como já foi dito, mas nas representações dos santuários que foram organizadas nas
arcadas de uma das paredes laterais. Os anos de seminarista do colecionador e a longa
experiência percorrendo santuários em busca de objetos lhe renderam grande conhecimento
tanto das práticas litúrgicas recomendadas, como daquelas que não deveriam ser incentivadas.
Isto posto, insta refletir que os atos devocionais observados em um ambiente onde se exibiria, a
princípio, obras para apreciação da “dimensão estética da religiosidade popular” não se devem
unicamente ao que um olhar desavisado poderia tomar como um mal-entendido.
258
Mesmo que isso não seja declarado abertamente, ao que tudo indica, tais gestos são
esperados e atualizados em narrativas porque incrementam o discurso sobre a complexidade das
práticas do Catolicismo do povo. Afinal, foi o olhar atento ao longo de anos para os suportes
materiais de tais práticas, como os ex-votos, que permitiram a acumulação deles e,
consequentemente, aquela exibição. Desse modo, vê-se que os objetos foram reunidos na mostra
também de modo a exaltar a religiosidade vivida, a despeito da censura do clero, nas “irmandades,
santuários e capelinhas de beira de estrada”, para usar o título do texto de José Oscar Beozzo
(1977) que tão bem sintetiza os locais onde meu interlocutor, assim como esse autor, situa a
ocorrência de práticas do Catolicismo leigo e popular.
Apresentado esse cenário, dentre outras questões, podemos indagar: o que acontece
quando um ex-voto ganha o estatuto de arte, mas é (re)apresentado ao público de forma muito
similar à maneira como era mostrado em uma Sala dos Milagres de santuário? A realização da
mostra/futuro museu se avultou como ocasião privilegiada para observar como usos rituais não
são de todo obliterados no espaço configurado para apreciação estética e que, muito pelo contrário,
tais usos podem inclusive ser fomentados a partir de certos dispositivos de apresentação.
Bruno Brulon (2013) afirma que o processo de musealização tem potencial de equivaler a
uma sacralização, uma vez que o museu pode promover a regeneração simbólica do objeto. A
performance museal da CM, como visto acima, não compreende apenas a reprodução dos
ambientes das salas dos milagres. Esses espaços dos santuários foram reelaborados de forma
criativa através do arranjo do acervo em certas estruturas expositivas.
Nesse sentido, os objetos não são meramente cenográficos, pois, em sua mise-en-scène, atuam e
possibilitam a re(ativação) da força ritual de um espaço. Assim, a combinação de santos, ex-votos,
toalhas, flores e altares relativiza o caráter lateral da parede que abriga os santuários (tendo em
conta a centralidade do altar-mor). Os arranjos sob as arcadas são potentes a ponto de serem vistos
como moradas de divindades sem que precisem passar por consagrações oficiais. Nessa linha de
raciocínio, uma bênção vinda do Bispo não seria criadora dessa potência, e sim ratificadora. O
gesto autenticaria a CM como um lugar propício para a celebração de vínculos diversos com os
santos. Sendo assim, o fato de alguém cogitar sua realização também passa a ser articulado nas
narrativas de Antônio Marques sobre os efeitos da exposição nos visitantes.
259
Em sua difundida definição de “Coleção”, Pomian (1984) opõe o destino incerto dos objetos
oriundos de coleções particulares ao daqueles guardados sob o cuidado das instituições
museológicas: “Contrariamente à coleção particular que, na maior parte dos casos, se dispersa depois
da morte daquele que a tinha formado e sofre as repercussões das flutuações da sua fortuna, o
museu sobrevive aos seus fundadores e tem, pelo menos em teoria, uma existência tranquila.”
(POMIAN, 1984, p. 82), não acredito que seja pertinente abordar as biografias dos objetos em
termos de descontinuidade tão delineados. A “existência tranquila” no museu, de que fala Pomian,
pode ser inclusive planejada pelo colecionador como futuro para os objetos que reúne, a exemplo da
Casa dos Milagres organizada por Antônio Marques.
Pode-se pensar no batismo do local como “Casa dos Milagres” remetendo tanto às
exposições de santos e ex-votos nos seus contextos „originais‟ – ou seja, devocionais – quanto à
fundação dos alicerces de uma morada protegida e duradoura para parte significativa da coleção
particular. O colecionador poderia ter optado por outras denominações frequentes nos santuários,
tais como “Quarto das Promessas” ou “Salas dos Milagres”, mas ao invés de optar por esses nomes
que remetem a partes de um lar, optou pelo todo evocado pela noção de casa.
O gesto de construção de uma casa – quando se poderia ter optado pela instituição de um
“museu” ou de uma “galeria” – especificamente para abrigar uma coleção nos coloca na presença
de uma forma de mostrar que publiciza sem deixar de remeter ao privado. No entanto, é
importante frisar que se trata de um registro do privado que não é absolutamente íntimo.
Coleções particulares são dadas ao olhar das visitas nas residências de seus proprietários, ainda
que para um público mais restrito 182. Em vez de opor guardar e mostrar, por conseguinte, faz
mais sentido pensar em „exibição reservada‟.
Além disso, é preciso ter em conta que a inserção em uma coleção particular não implica na
exclusão de possibilidade de circulação do objeto em outros contextos. A referência constante às casas
de colecionadores como lugares onde habitam quantidades insondáveis de coisas pode acionar a ideia
182 Como evidenciam o título e o subtítulo da matéria “Casa onde a arte faz morada – Marchand transforma a própria
residência em um espaço diversificado para o artista potiguar expor trabalhos” (Diário de Natal, 7/11/1997). A
residência noticiada foi vendida por Antônio para compra de um imóvel mais amplo, cuja entrega pela construtora se
arrastou por anos. Após meu retorno do campo, em uma de nossas conversas por telefone, perguntei ao colecionador se
ele finalmente se mudaria para o esperado apartamento e ele prontamente respondeu: “– Sim, ficou pronto, mas agora
não tenho como pensar nisso, estou quase me mudando para a Casa do Milagres”.
260
de uma prática de acumulação que “estaciona” os objetos ao subsumi-los a um conjunto que, na sua
avidez de completude, parece engoli-los. Porém, os objetos transitam – individualmente ou inseridos
em grupos representativos de recortes da coleção – por mostras, exposições, salões, museus, galerias,
são emprestados para composição de cenários, ilustração de reportagens e pesquisas etc.
Para além dessas movimentações mais pontuais, a dimensão pretendida para a coleção como
um todo pode acabar por implicar no seu deslocamento para outro espaço. Caso esse processo possa
ser orquestrado pelo colecionador, é presumível que o local de destino da coleção seja familiarizado
para que as coisas se sintam “em casa”, e não o contrário. Busca-se que a impressão da narrativa do
colecionador extrapole o corpus da coleção e afete o próprio espaço. Isso é notável em locais
construídos especificamente para abrigar e mostrar coleções, tais como os Museus Chácara do Céu183
e Casa do Pontal184, ambos indissociáveis das figuras dos colecionadores que os conceberam. No
caso da CM, como visto, parte da coleção foi alocada em um espaço já existente, mas que foi
disciplinado para que um discurso sobre o popular fosse performatizado.
183A Chácara do Céu, no bairro de Santa Tereza, Rio de Janeiro, foi concebida pelo industrial Raimundo Castro Maya
para acolher suas obras modernistas, enquanto peças de mobiliário e de artes decorativas ficaram no Museu do Açude, no
Alto da Boa Vista, também no Rio de Janeiro. Sobre o processo de institucionalização e conversão da coleção privada do
industrial em museus públicos, hoje a cargo do IBRAM, ver Batista (2012).
184A Casa do Pontal fica em um sítio no Recreio dos Bandeirantes, no Rio de Janeiro e foi idealizada por Jacques
Van de Beuque para exibir sua extensa coleção de obras de arte popular. A musealização da coleção foi analisada
por Ângela Mascelani (2001).
185Atendo-me apenas a algumas publicações impressas que dedicaram páginas à mostra, e que podem, portanto,
serem vistas como formas de „catalogação‟ da iniciativa, noto que a Casa dos Milagres figurou na capa da Revista
Ícone – Turismo e Cultura do Nordeste (2014, ano I, n. 2); e nas matérias “Nossa Senhora dos Novos Tempos” e “Fé
esculpida, desenterrada e preservada”, respectivamente publicadas na Revista Preá (FJA, 2014) e no anuário da Casa
Cor/Franquia Rio Grande do Norte de 2015.
261
mostra envolveu a cessão de itens que estavam sem uso em outros museus potiguares; a
produção do catálogo da exposição e a contratação de Paulina como estagiária. Desse modo, a
então estudiosa do acervo passou à condição de mediadora da CM.
Após concluir sua graduação, Paulina se mudou para outro estado para realizar o
mestrado e seu cargo não foi mais ocupado. A mostra deixou de ser aberta diariamente. Antônio
e Nildo se revezaram por um tempo tentando suprir a lacuna da jovem, mas na impossibilid ade
de abrir as portas da CM com regularidade, passaram a fazê-lo de modo esporádico
(especialmente quando solicitados por escolas, jornalistas, amigos etc.).
Com a saída de Isaura Rosado da direção da FJA no final de 2014, o suporte da fundação
à iniciativa – que já era considerado exíguo – se tornou praticamente inexistente. Ao conhecer a
exposição, o então novo Secretário Extraordinário de Cultura, Rodrigo Bico, declarou ter
gostado da iniciativa e que a mesma mereceria atenção da FJA 186. Entretanto, nenhuma parceria
mais efetiva para manutenção do espaço foi estruturada.
A ameaça concreta das imagens, cabeças e obras afins expostas na CM se tornarem “comida de
cupim” fez com que Antônio Marques cogitasse desmontar a exposição e retornar com as peças para
casa. Em vista disso, o colecionador foi sondado quanto à possibilidade da transferência do acervo
para o Museu Câmara Cascudo. Como foi exposto no primeiro capítulo, o acervo do MCC conta
com objetos como os da Casa dos Milagres, alguns inclusive foram parar lá por intermediação do
colecionador, outros foram atribuídos a escultores populares com auxílio de seu olho treinado.
Entretanto, a possibilidade das coisas irem parar na reserva técnica de uma instituição não lhe
parece muito animadora. Antônio tem receio que as peças sejam meramente guardadas, pois acredita
que, além de preservadas, elas precisam ser mostradas. Desse modo, entendo que para meu
interlocutor a musealização precisa não apenas conservar as coisas, mas também resguardar uma
forma de se relacionar com elas, isto é, proteger um vínculo específico.
186 “Para Bico, Casa dos Milagres merece atenção da FJA”. Publicação da assessoria de comunicação da FJA na página
eletrônica da instituição em 2 de fevereiro de 2015.
262
A publicização da coleção nos coloca diante de questões que vão além do aparente aspecto
de coroamento da carreira do colecionador, como por exemplo: a passagem mais definitiva da
coleção do espaço privado para o público seria liminar a ponto de ameaçar uma relação de décadas
entre Antônio e seus objetos? Tal relação é perpassada pela construção de hierarquias e lógicas
particulares que podem não coincidir, por exemplo, com um plano museológico ou com a definição
de um conceito unívoco da ideia a ser transmitida pelas coisas expostas. O próprio tempo
institucional não foi seguido, pois, para que a CM existisse logo, o colecionador precisou „queimar‟
etapas (licitação, confecção do plano museológico e expográfico etc.). Fazer “do jeito que deu”
também seria, em alguma medida, justificativa para fazer de modo altamente personalizado? Vale
acrescentar que a falta de pessoal especializado do quadro da FJA 187 foi tanto lamentada quanto
entendida pelo colecionador como fresta para que tudo fosse executado segundo seus exigentes
direcionamentos, o que me leva a refletir sobre o quanto expor sua coleção seria expor-se.
Abaixo desenvolvo essa reflexão através do olhar para uma das vitrines dispostas na nave
central da capela. Minha atenção se dirigirá aos milagres destacados nessa estrutura expositiva
específica, posto que eles são particularmente interessantes para discutir uma série de questões
relacionadas à biografia cultural das coisas. A vitrine em questão é retangular, sua estrutura é feita de
metal e as superfícies inferiores, superiores
e laterais são de vidro transparente. O
fundo do móvel foi forrado com material
branco, sobre o qual se destacam
esculturas em madeira escurecida – em
formato de cabeças, braços, pernas e
outras partes do corpo – com aparência
visivelmente desgastada. Sobre a vitrine
têm-se três caixas de acrílico e no interior
de cada uma delas uma cabeça, que adiante
passarei a tratar por C1, C2 e C3.
Figura 90 – Vitrine especial na nave central da capela
Foto: Marília Gonçalves, mai. 2015
187A FJA contava com apenas um museólogo em seu quadro de funcionários quando o apoio da instituição começou a
ser buscado para implantação da CM. A carência de profissionais da área tomou maior proporção com o projeto de
reestruturação de museus divulgada em 2013. Uma museóloga foi então contratada para atuar na melhoria dos
equipamentos culturais que poderiam ser alvo de visitação turística durante a Copa do Mundo de Futebol de 2014.
263
C1 e C3 são cabeças femininas esculpidas em madeira e pintadas com tinta a óleo. Ambas
possuem algumas avarias, porém seus respectivos estados de conservação são visivelmente melhores em
relação à peça do centro. Trata-se de C2, uma cabeça masculina cujo aspecto degradado se assemelha à
quase ruína dos ex-votos do interior do móvel. Qual seria o sentido de justapô-las assim?
As cabeças femininas (C1 e C3), que hoje estão na exposição da CM, não foram
encontradas pelo colecionador em alguma sala dos milagres, como poderia ser presumido em se
tratando de ex-votos. Antônio Marques foi procurado pela viúva de um advogado que buscava se
desfazer dos objetos que o marido deixara. “– Muita coisa ela estava vendendo, móveis, peças de
Vitalino, de Xico Santeiro, mas as duas cabeças ela ia me dar mesmo, provavelmente achava que
eram insignificantes, que não valiam nada, mas alguém lhe disse que eu gostava desse tipo de
coisa”. O colecionador aceitou o presente e solicitou à viúva um preço para o “lote” que formou
na reunião de outras coisas que lhe interessaram.
O advogado que detinha as peças foi deputado estadual, professor de História e memorialista.
Apreciador da cultura popular do estado, costumava enfeitar sua casa, em especial, sua biblioteca, com
obras de artistas potiguares. As cabeças em questão poderiam ter sido compradas diretamente do
artista que as fabricou ou em alguma loja, mas a inscrição “Cruz da Prêta” indicava que, ao menos, uma
delas chegou a ser ofertada como ex-voto antes de ser transformada em item de decoração. O antigo
proprietário também poderia ter recebido as peças como presente de alguém que as coletou na Cruz ou
mesmo tê-las recolhido diretamente por ocasião de uma de suas muitas viagens ao interior com fins de
campanha política ou realização de levantamentos históricos. O ponto a ser salientado é que após seu
falecimento seus familiares não se dispuseram a continuar com a posse dos objetos.
Como foi dito acima, ao buscar um comprador para as coisas do marido, a viúva procurou
negociar as que Antônio poderia revender e lhe ofertou gratuitamente o par de esculturas, pois sabia
que lhe agradariam, apesar de não possuírem valor comercial evidente para ela. Esta transação nos
coloca diante de algumas figuras: a de fornecedora eventual da viúva/herdeira, a do comerciante de
arte e de antiguidades e ainda a do colecionador; e ilumina a respeito do funcionamento inter-
relacionado desses papéis, bem como sobre as justificativas acionadas em situações de transferência
de bens entre familiares e compradores/revendedores.
264
A venda de objetos e a doação das cabeças foram motivadas por uma mudança de
apartamento, posto que no novo local de moradia os membros da família não teriam espaço
suficiente para abrigar tudo que herdaram, mas nem todas as justificações para passar objetos adiante
se referem a restrições espaciais. Em antiquários e feiras de antiguidade, ouvi muitas pessoas
alegando “modernização” da decoração de ambientes para se desfazer de coisas. Essa empreitada
tende a tornar os espaços menos povoados delas, principalmente as que remetem ao “antigo”.
Quando há espaço para imagens em ambientes modernizados, a opção das pessoas é, em geral,
pelos “santos da moda”. Durante a pesquisa de campo, São Francisco, São Miguel e Santo Expedito
foram exemplos recorrentes de santos facilmente encontrados em lojas, no entanto, é importante
precisar que não se trata da iconografia de São Francisco que ressalta sua esqualidez e seu sofrimento.
O São Francisco que está em alta continua magro, mas é alegre e rodeado de animais188. As imagens de
São Miguel e Santo Expedito, frequentes nos dias atuais, são corpos de santos guerreiros e imponentes.
Já as imagens antigas apresentadas no primeiro capítulo de forma corriqueira têm feições tristes
ou severas e, em vista disso, de acordo com meu interlocutor, dificilmente são admitidas nos
processos de redecoração de ambientes. O não lugar das coisas antigas e o apego a modismos são
avaliados como descabidos, mas, por outro lado, possibilitam que os objetos cheguem às mãos do
colecionador. Sendo assim, despertam sentimentos muitas vezes contraditórios naquele que fica feliz
ao ser procurado para comprar certas coisas, mas que, por outro lado, acredita que as pessoas
deveriam minimamente se constranger por vendê-las.
Era quando retomava sua experiência de antiquário que Antônio narrava como a herança
de um conjunto de coisas, seja ele entendido como coleção ou não, pode se conformar como um
legado complicado para os herdeiros. Muitas vezes eles cresceram ou viveram longas relações na
copresença de certos objetos, tratados por seus proprietários como parte da família e , por isso,
Para chamar minha atenção para esse fato, Antônio me mostrou esculturas de São Francisco de diferentes períodos.
188
De fato, o número de animais ao redor do santo, geralmente passarinhos, cresce com o passar do tempo.
265
em alguns casos, geravam ciúmes de esposas e filhos. Nesse sentido, a convivência com as coisas
não necessariamente resulta no mesmo apreço que os falecidos donos nutriam em relação a elas.
Em vez da afetividade de quem as reuniu, pode vir à tona o sentimento de ocasião para
renovação do ambiente, como abordado, ou mesmo de libertação. A família se vê diante da
possibilidade de se desfazer do produto de anos de acumulação – não raro, vista como
desnecessariamente dispendiosa e compulsiva – dos antepassados.
Passar as coisas adiante também pode ser um gesto doído, apesar de necessário para o
desligamento progressivo de um ente querido. Se certos objetos são intrinsecamente ligados às
pessoas de modo a despertar memórias afetivas, em alguns casos, essa ligação acaba por
presentificar ausências que devem ser superadas com o encerramento do processo de luto. Peter
Stallybrass (2016, p. 21) afirma que nos momentos de crise em que os objetos adquirem vida e se
avultam como coisas animadas por amores, histórias e manipulações, “essas matérias triviais, a
matéria da matéria, parecem desenhar-se como desproporcionalmente grandes” e, por isso
mesmo, “legados são cargas indesejadas” (STALLYBRASS, 2016, p. 38).
Uma jovem me contou que não gostaria de continuar com os santos que pertenceram ao
pai porque não via sentido em continuar com eles na falta de quem repetidamente contava a
história de como os encontrou: “– Eu choro e lembro dele quando vejo, já ele estaria aqui rindo,
lembrando de alguma viagem incrível e contando casos pra gente.” Como se vê, a familiaridade
com as obras nem sempre produz efeito de participação na tônica que orientou sua reunião.
Em alguns casos, o destino das coleções é estabelecido pelos próprios colecionadores que
as formaram; seja por anteverem os dilemas familiares que podem ser provocados por seus
legados materiais, seja por ambição de preservação do acervo reunido. Nesse cenário, a
musealização desponta como garantia de salvaguarda e como iniciativa relevante para o destino
da coleção. Por isso mesmo, pode ser empreendida pelo próprio colecionador ou delegada em
testamento a terceiros.
Se a doação é um ato que parte do autor da coleção, seja ela realizada postumamente ou
não, o mesmo não pode ser afirmado para os casos de venda. Segundo Antônio, os
colecionadores se engajam em trocas e em vendas de peças isoladas, mas dificilmente vendem
uma coleção inteira e quando o fazem escolhem o comprador, dando preferência a in stituições
museais, por exemplo; não se trata de um “quem dá mais” [dinheiro].
266
As cabeças oferecidas a Antônio não constituíam parte de uma coleção sistemática, mas eram
parte de um grupo de itens de decoração estimado pelo antigo proprietário das peças. A formação de
um “lote” para a venda delas foi uma saída prática – vendem-se vários objetos de uma só vez – que
também pode ser vista como uma medida respeitosa em relação ao trabalho de reunião dos objetos –
vende-se para alguém que, se não vai ficar com eles, vai lhes dar um bom destino. Nos lotes, mesmo
que na condição de mercadorias, os objetos deixam os lares de seus antigos proprietários imiscuídos
em partes do conjunto, cuja lógica de formação, motivou suas respectivas aquisições.
Diante do exposto, percebemos que os espólios têm tanto o potencial de dissolver coleções,
quanto o de contribuir para a elaboração de outras. A capitalização empreendida pelos herdeiros
nesse importante momento de mudança de mão dos objetos não é uma via de mão única. A
transformação de um bem em mercadoria pode ser uma forma de alienação que precede sua
reinserção em uma coleção, já que os objetos que não interessam mais a uma família podem ser alvo
do desejo de outras pessoas.
Quando Antônio se deparou com o par de esculturas de cabeças que a viúva lhe doou,
logo suspeitou que um dia elas foram ex-votos, apesar de serem plasticamente mais delicadas e
realistas em relação ao recorrente aspecto estilizado dos milagres nordestinos. O fato de C1 conter
uma grande ferida era um sinal claro de sua condição enquanto milagre. Como já explorei, o
realce das agruras pelas quais podem passar o corpo do devoto é elemento recorrente nos
objetos votivos anatômicos. Assim, é comum vermos partes do corpo esculpidas nas quais se
destaca um machucado, uma cicatriz, um curativo ou a marca de uma cirurgia.
267
Parelhas é o nome de uma cidade do interior potiguar190, de forma provável, era lá que estaria
a cruz onde foram deixados aqueles milagres. A inscrição passa a então a atuar como uma espécie de
coordenada, um elemento que diz sobre a posição de obras no espaço geográfico, particularmente
quando é cruzada com o conhecimento da prática votiva. Ela não seria decodificada por alguém que
desconhecesse que cruzes são locais de deposição de ex-votos.
189 Como problematizei anteriormente, em uma sala dos milagres, “mesmo cartas e bilhetes parecem ter uma visualidade
própria que extrapola seu caráter textual: mais do que para serem lidas, elas estão ali para serem exibidas. Estão, portanto,
afixadas em prateleiras e paredes, e não reunidas em arquivos ou livros, por exemplo.” (GOMES, 2013, p. 187).
190 Localizada a 246 km de Natal, na região do Seridó.
268
Algumas linhas se fazem necessárias a esse respeito, considerando que até então abordei os
ex-votos, sobretudo, enquanto objetos concebidos para exposição em salas dos milagres e/ou como
itens colecionáveis. Luis Saia (1944) cita o interior dos estados nordestinos como a localização do
“manancial” de milagres e foi justamente nos “cruzeiros de acontecido” das imediações de cidades e
vilas – “Tacaratú, Itabaiana, Patos, Areias, Alagoa Grande...” (SAIA, 1944, p. 10) – que ele recolheu a
maior parte da centena de ex-votos remetida a São Paulo para compor o acervo de pesquisas
folclóricas da Missão de Pesquisas Folclóricas idealizada por Mário de Andrade.
A narração sobre o primeiro encontro com os milagres nesse tipo de lugar aborda o
estado de conservação variado das peças e menciona, sem maiores desenvolvimentos, o critério
de escolha: o interesse que elas despertaram em Saia.
O grifo no trecho é do próprio autor, que esclarece em nota: “** Cruzeiro é o nome
nordestino das cruzes que marcam o lugar onde alguém foi assassinado ou morreu num
acidente.” (SAIA, 1944, p. 9). Contudo, alguns cruzeiros – erguidos em pontos altos das cidades,
em montes e em morros – podem marcar a ocorrência de outros tipos de eventos, como a
celebração do aniversário das localidades, mas, de fato, os cruzeiros qualificados como “de
acontecido” ativam a memória de eventos dramáticos. São cruzes localizadas, em sua maioria, nas
bordas de estradas para lembrar as mortes que ali ocorreram, sejam elas relativas a acidentes
automobilísticos, homicídios, suicídios ou outras causas.
Mortes disruptivas e trágicas, como nos lembra Eliane Freitas (2006), a propósito de
eventos ocorridos no RN, são potencialmente elevadoras de pessoas ao panteão de santos. O
falecimento dramático é capaz de evocar a memória de temas religiosos caros ao universo cristão,
como o sacrifício, a via crucis e o sofrimento purificador. Nesse contexto, a santidade não
necessariamente se relaciona a uma vida virtuosa, mas, sobretudo, à redenção provocada pelo
sofrimento extremo e pela violência incomum afligida no momento da morte.
A “Cruz da Prêta” de Parelhas também é chamada de Cova da Negra, o que evidencia que
a cruz protagonista do caso em tela não apenas marca o local de um falecimento, mas também o
de um enterramento. A preta – ou negra – em questão não tem nome próprio, assim como tantas
269
outras figuras santificadas no sertão, e teria morrido de fome e de sede ao fugir do cativeiro
durante a grande seca de 1877191. Seu corpo, segundo relatos, foi encontrado já em estado de
decomposição sob uma movimentação de urubus.
O local da sepultura foi sinalizado com uma cruz de madeira, aos pés da qual as pessoas
começaram a rezar pelo repouso da alma da escrava fugida e a deixar pedras e ex-votos. Anos depois
uma capela foi construída sobre a cruz. A construção existe até hoje, no bairro Cruz do Monte.
Certas práticas realizadas nos cruzeiros de acontecido são corriqueiras nos cemitérios,
tais como o acendimento de velas, a oferta de flores e a realização de orações nas proximidades
de túmulos. No entanto, essas ações direcionadas aos mortos comuns, visitados por sua família
e por seus amigos, quando voltadas aos “mortos milagrosos” dizem respeito a um culto
público, sendo acrescidas de prestações rituais específicas, dentre as quais se destaca a
realização de pedidos e o pagamento de promessas (FREITAS, 2006). Nesse contexto, os ex -
votos emergem como objetos diacríticos que não só são importantíssimos no sistema d e trocas
entre devoto e santo, como também sinalizam para o observador externo a presença de
devoção em relação a um morto específico no ambiente cemiterial.
191 Como “as Meninas das Covinhas” de Rodolfo Fernandes e a “Santa Menina” de Florânea.
270
Podemos estender essa consideração relativa aos santos de cemitérios para os cruzeiros
de acontecido. Nem todos estes últimos referem-se a fatalidades que culminaram em mortos
especiais santificados, mas em alguns há práticas coletivas de culto a partir das quais se pode
inferir que naquele local houve algum evento „detonador‟ de uma devoção.
Como foi aventado acima, a materialidade das orações feitas pela alma de um morto pode ser
visualizada pela presença de seixos paulatinamente depositados na cruz, como explica Câmara
Cascudo no verbete dedicado às “Pedras” em seu Dicionário do Folclore Brasileiro:
Quem viaja pelo interior do Brasil encontra quase sempre, ao pé das cruzes, que assinala o lugar
onde morreu, mataram, ou sepultaram um indivíduo, pequenos montes de seixos. Cada um
destes, sabe-se, representa uma oração. O viajante que passa por ali reza em favor da pobre alma do
morto um padre-nosso, ou uma ave-maria, e depois, lança uma pedra ao pé da cruz, de maneira
que, dentro de algum tempo, um monte de seixos se ergue sobre a humilde sepultura.
(CASCUDO, 1998, p. 693, grifo meu).
Nesse quadro, podemos pensar as pedras como elementos que vão de encontro à condição
de precariedade trazida à tona pela cruz que irrompe na paisagem. Ao deixarem-nas, os devotos
oram para que a alma encontre seu caminho no plano espiritual e, ao mesmo tempo, conferem
dignidade à sepultura improvisada no plano terreno.
Na percepção de Duvignaud (1997, p. 63), a mirada para as pedras, ou para o culto delas,
é justamente uma forma de compreender o poder fixador da cruz, “objeto de uma projeção
sagrada e pólo de um lugar ritual”. Para o autor, o sagrado das cruzes rurais as precede,
encontra-se no solo ou nas pedras sobre a qual elas são fincadas. Nesse sentido, as cruzes são
teofanias materiais que devem ser vistas em si e não como símbolos que remetem à instituição da
Igreja e seu crucificado fundador. São coisas “plantadas” que dizem respeito a uma visão de
mundo na qual o Cristianismo é apenas um aspecto e são eficazes nos mais diversos contextos de
culto porque cristalizam forças disseminadas de modo a irradiá-las e afirmar sua origem, que,
assim como a das pedras, reside na solidez da matéria e, por isso mesmo, é permanente, detém o
tempo, “escapa à dissolução geral, à morte.” (DUVIGNAUD, 1997, p. 66).
As coisas dotadas de forças internas, nessa perspectiva, nunca são apenas coisas. Elas são
formas de imobilizar a duração da história sem interromper o dinamismo da vida social. Assim, os
símbolos não figuram como instrumentos de conservação da memória coletiva. Se esta última é
inegavelmente sujeita a esquecimentos e a durações variadas, atrelá-la a uma coisa, seja no bojo de
concepções célticas, cristãs ou romanas, é estabilizá-la enquanto portadora de energia latente e
imanente da matéria. Nos termos da dicotomia universal da carne e do osso, isso significa substituir o
perecível pelo durável, fazendo a matéria suprir o que a morte destrói (DUVIGNAUD, 1997, p. 73-82).
271
Durante a viagem que realizei com Antônio e Nildo (para visitarmos as salas dos milagres
que poderiam ser replicadas na CM), as cruzes pontuando as bordas das vias eram numerosas a
ponto de me fazerem refletir sobre a segurança daquele percurso, afinal, indicavam quanta gente
já morreu ali. O temor não cresceu mais porque elas chamavam atenção não só pela quantidade,
mas pela forma como eram abrigadas e adornadas. Já andei por estradas em diversas regiões do
Brasil, onde as cruzes sempre estiveram presentes, mas não na companhia de outros objetos.
Aquelas da beira da estrada que nos levava a Rodolfo Fernandes estavam sob construções
que parecem casinhas, pequenas grutas ou igrejinhas. Ao pé de muitas delas, havia velas, pedras e
flores. Outras ainda continham terços, fitas... Algumas dessas composições estavam
abandonadas, mas a maior parte me pareceu bem-cuidada, o que me causou estranheza. Antônio
e Nildo explicaram que elas marcam não só os locais de acidentes fatais, mas também podem ser
erigidas por devotos em agradecimento aos santos e, em alguns casos, se tornam locais de culto.
Em vista disso, nossa primeira parada foi em um cruzeiro que avistamos do lado
esquerdo da estrada. Foi então que realizei: as salas dos milagres são locais de grande confluência
de ex-votos, mas outras concentrações deles podem ser localizadas em diferentes paisagens.
Naquela ocasião não havia nenhum ex-voto na cruz que nos deteve a caminho dos santuários.
Para explorar esta hipótese a contento é importante enfocar não só a deposição de ex-votos,
mas continuar prestando atenção aos momentos e gestos pelos quais eles são retirados dos locais
onde foram ofertados. Para tanto, recorro inicialmente a um cruzeiro de acontecido que se diferencia
dos que abordei anteriormente pelo fato de ser localizado no contexto urbano. Na cidade de Jardim
do Seridó estivemos na “Cruz da Menina”, onde faleceu Maria de Lourdes, uma criança de nove anos
que foi atropelada e teve a cabeça esmagada por um caminhão quando se dirigia à casa de uma
pessoa da comunidade para buscar leite. O local fica na borda de um mangueiral, separado da via
pública por fios de arame farpado. Diversos objetos são depositados através dos largos intervalos
entre os fios. Ao lado da cruz, uma cascata de parafina se forma a partir do interior de uma estrutura
de metal em formato de capela, evidenciando a grande quantidade de velas que foi acesa ali.
Na ocasião de nossa visita havia tantas flores artificiais sobre a cruz que não era possível
visualizá-la, mas apenas entrever sua base retangular de concreto, que se ergue desde o chão
lembrando uma lápide. Nessa estrutura, de modo semelhante ao que costumamos ver nos
cemitérios, foi afixado um retrato da menina em formato oval, que além da imagem da criança
contém suas datas de nascimento e morte (* 07/08/1946 - † 01/04/1954), e ainda a mensagem:
“A inocência do coração é o orvalho que rega a prece feita com amor”.
Entre esses elementos familiares para lembrar a morte de alguém especial, outra mensagem
surpreende: “Amigo (a), ao agradecer os favores espirituais, não retribua depositando lixo. Obrigado!”
Com esses dizeres pode-se perceber que nem tudo que é depositado ali é visto como uma retribuição
legítima à Menina. Não observei nenhum elemento naquela cruz que fosse muito diferente dos que vi em
192Em alguns casos, inclusive, a devoção concorre para o desenvolvimento de complexos que são institucionalizados com
o nome significativo de “Santuário da Santa Cruz”, numa manobra que busca apagar o evento que originou localmente a
cruz para que se saliente o martírio de Cristo.
273
outros contextos: terços, gravuras impressas e imagens de santos, flores de plástico e de papel, bonecos de
pano, tecidos, cadernos, bombons e outros tipos de guloseimas etc. Doces são ofertas muito frequentes
para crianças santificadas. Apesar disso, seriam eles as retribuições indesejadas, dado que derretem e
atraem insetos à maneira do que se passa com lixo deixado na rua?
Figuras 93 – Cruz da Menina Maria de Lourdes Figura 94 – Detalhe da Cruz, em Jardim do Seridó
Foto: Acervo da autora, jan. 2013
Não conversei com a pessoa que deixou a mensagem para saber exatamente o que é
entendido como lixo por ela ou pela coletividade na qual ela se inclui. Talvez esses elementos
indesejados nem estivessem ali, pensando que a solicitação foi atendida ou que foram retirados
logo após a deposição indevida. Essa última possibilidade, bem como a própria existência da
mensagem aos devotos, torna evidente que o local está aos cuidados de alguém, apesar de não
estar inserido no espaço de alguma instituição.
Em uma das ocasiões em que observei a praça Pe. João Maria em Natal, abordada no
primeiro capítulo em 1.3.2 (figuras 16 e 17, p. 63), encontravam-se dispostos na base do
monumento uma cabeça em gesso e uma imagem de um padre, provavelmente o próprio João
Maria, também em gesso. No corpo da coluna, destacavam-se, além das fitas mencionadas, das
fotografias e de um santinho de papel, uma imagem de gesso de Nossa Senhora de Fátima, um
pé e cinco bonecos de tecido. A semelhança entre estes últimos tornava patente o fato de terem
sido feitos pela mesma pessoa. Trata-se de Dona José Soares da Silva, uma senhora que os
fabrica manualmente, assim como outras partes do corpo em tecido, e expõe tais peças para
venda em uma barraca que fica a alguns metros da estátua.
Frente ao quadro observado, suponho que a ausência de peças em madeira decorre tanto da
facilidade que o devoto possui ao encontrar exemplares de tecido ali mesmo na praça onde vai ofertar
274
algo ao Pe. João Maria, quanto ao fato da referida senhora também coletar peças que pode vender a
outros devotos, como as de gesso; e outras que podem ser alvo de colecionadores e a antiquários, como
as de madeira193. Em uma das situações em que conversei com essa senhora, eu estava acompanhada por
Nildo, que lhe pediu para guardar peças de madeira que poderiam lhe interessar. Ela, com um olho na
linha e agulha que manuseava e outro na movimentação em torno do busto do Padre, foi incisiva: “– Eu
não tenho como esperar você passar de novo, vendo o quanto antes o que pego aqui”. Assim como se
passa nas salas dos milagres, a existência de pessoas que cuidam de outros locais de deposição dos ex-
votos claramente influi na exposição deles, bem como na sua circulação posterior.
Diante do exposto, é possível elencar algumas variáveis para pensar a formação de uma
coleção de milagres. Há o fator “golpe de sorte”, por exemplo, quando se visita um espaço sagrado
num dia em que tenha sido ofertado um objeto interessante. É importante coletá-lo antes que outro
colecionador ou curioso se apoderem dele e ainda se antecipar a um possível descarte realizado para
dar espaço a novas ofertas dos devotos, mas para que as circunstâncias conduzam a um “achado”, é
importante conhecer a dinâmica dos espaços de devoção: saber quem os administra; quais são as
políticas de descarte; os momentos de maior afluxo de objetos (como as romarias); a tônica da oferta
em cada local. A senhora da praça de Natal ou um zelador de uma sala dos milagres de um santuário
longínquo podem ser figuras fundamentais para capturar ex-votos significativos e encaminhá-los às
pessoas interessadas nesse tipo de obra. As redes de relações, portanto, são fundamentais.
Em entrevista durante uma reportagem sobre a inauguração da CM 194, Antônio disse que
o fato de ter sido seminarista lhe rendeu muitos amigos padres, que lhe orientavam sobre a
localização de peças. No catálogo da mostra há agradecimentos a vários religiosos: um
monsenhor, frades Capuchinhos de São Francisco de Canindé, um frei, um ex-padre. Quando o
colecionador nota resistência de um pároco em fornecer peças, pode recorrer ao seu círculo de
amizades que compreende pessoas próximas a autoridades eclesiásticas e solicitar cartas com
textos que recomendem a colaboração com sua empreitada. Foi apresentando esse tipo de
credencial nos santuários que Antônio começou a coletar milagres no Ceará. Atualmente, a
chancela oficial é permanente no caso do Santuário do Lima, em Patu. A retirada de ex-votos é
autorizada a título de colaboração com a CM.
193Dona Maria José também foi informante de Luís Bonfim (2007) quando este pesquisador registrou o culto na praça.
Apesar da senhora ser tratada por esse pesquisador como “vendedora ambulante”, noto que tal classificação não é de
todo apropriada, pois a despeito de não se tratar de uma loja, trata-se de um endereço de comercialização fixo.
194“Museu transforma a fé em arte no RN”, disponível em: http://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/bom-dia-
rn/videos/t/edicoes/v/museu-transforma-a-fe-em-arte-no-rn/2781705/.
275
Foi acionando suas redes de relações que Antônio descobriu que muitos ex-votos da Cruz da
Prêta haviam sido enterrados no passado, a mando de um missionário que passara pelo local. Com
isso, o par de esculturas ofertado pela viúva – utilizado como pista para rastrear a existência da
própria cruz – passou a ser visto como sobrevivente da ação de sepultamento. A inscrição em uma
das cabeças obtidas em Natal foi o detalhe revelador que permitiu o aparentamento daquela peça
com outras que estariam debaixo da terra em Parelhas.
A grafia de “Prêta” com acento circunflexo, como se usou até a década de 1970195, indicava que
aquela peça não era de fatura recente ou, no limite, teria sido esculpida por alguém que aprendeu a ler e a
escrever de acordo com uma normatização pretérita do português e que ainda a utilizava. A primeira
opção era mais factível, provavelmente aqueles milagres teriam sido ofertados há algumas décadas e quem
os recolheu o fez não muito após a deposição, posto que o estado de conservação das peças era bom.
De posse da informação do enterro dos ex-votos, Antônio e um amigo – igualmente
colecionador e comerciante de arte – procuraram o lugar do “sacrilégio” e se mobilizaram para
que as peças fossem desenterradas, dividindo em partes desiguais os mais de cem exemplares
resultantes da façanha 196, mas por que a proeza da exumação foi necessária? Se a alusão à
destruição de ex-votos não tivesse sido feita em tantas passagens da tese, causaria estranheza
sabermos que objetos com notório poder de ressaltar os feitos dos santos e de despertar o
interesse de tantos agentes sejam destruídos sem maiores explicações.
Acima fiz referência a descartes realizados para dar lugar a novos ex-votos. Não é difícil
imaginar que a acumulação contínua culmine em saturação do espaço nos cemitérios, pois os ex-votos
são deixados em espaços específicos e delimitados: os túmulos de mortos especiais. Já os contornos
dos cruzeiros de acontecido – muitas vezes localizados em descampados – não são tão evidentes.
Apesar disso, a disposição dos objetos neles não costuma acontecer de forma esparsa e desordenada. A
tendência é que fiquem aglomerados na frente da cruz ou que a circundem, criando um efeito visual
que a ressalta como marco. Nessa direção, o controle da quantidade de coisas auxilia a delimitar a
extensão da irrupção do sagrado no espaço, que não é indefinida.
195Segundo Azeredo (2008), o acento circunflexo em “prêto” foi usado no Brasil até 1971. Só nesta década foram feitas
as modificações sugeridas no Acordo Ortográfico de 1945.
196O amigo ficou com um maior número por ter ficado na dianteira da “expedição”, conduzindo os homens que foram
pagos por ambos os colecionadores para escavar e trazer as peças à superfície. Essa tomada de frente foi facilitada pela
proximidade entre Jardim do Seridó, cidade de moradia do amigo em questão, e Parelhas, onde fica a Cruz da Prêta, que é
de, aproximadamente, 23 km e que podem ser percorridos de automóvel em 20 minutos.
276
Ainda no tocante aos locais de deposição a céu aberto, torna-se pertinente refletir sobre
outros constrangimentos à agregação constante de novos ex-votos sem que se faça a retirada de
outros. É importante ter a ação dos fatores climáticos em conta, pois os objetos estarão em
contato direto com a chuva, com o sol e com o vento. Somado a isso, a mescla de ofertas de
diferentes naturezas pode concorrer para a degradação „natural‟ mais rápida do conjunto de ex-
votos. Doces podem atrair formigas, certos tipos de madeira serão alimentos para cupins e a
matéria orgânica constitutiva de algumas ofertas – tais como umbigos de bebê, tumores e tufos
de cabelo – concorrerá para uma decomposição diferenciada.
A questão da restrição de espaço é mais pronunciada nas salas dos milagres, l ocalizadas
em locais de maior afluência de devotos e, por extensão, de ex-votos. Geralmente, os descartes
acontecem antes das romarias, pois é preciso liberar espaço para novos objetos. As formas de se
desfazer das peças são variadas. Elas podem ser queimadas, enterradas ou jogadas diretamente
no lixo, o fato dessa última solução não ser a opção mais frequente não é fortuito.
Vistos de uma perspectiva mais institucional, os relatos de destruição dos ex-votos remetem
ao combate à superstição e às práticas pagãs que sempre permearam o Catolicismo. Os ex-votos hoje
destacados na CM, por exemplo, teriam sido enterrados a mando do missionário que passou pela
197 Quando Luís Saia indagou ao “guia” que lhe levou até um cruzeiro porque os ex-votos eram depositados naquele
local, ouviu a seguinte resposta: “– Porquê o Cruzeiro guarda o milagre, senão a doença fica por aí.” (SAIA, 1944,
p. 15, grifo no original).
277
Cruz da Prêta sob a alegação que “seriam coisa do diabo”. Na concepção de Antônio e seu amigo,
entretanto, eram obras de arte que foram literalmente sepultadas. A indignação com o ultraje levou-
os até as autoridades eclesiásticas locais, que lhes autorizaram a realizar a exumação, estratégia
recorrente nos gestos de coleta de Antônio.
Situações em que “terreiros” são desfeitos (seja por morte do pai-de-santo ou mãe-de-santo)
e de conversão de pessoas ao Protestantismo são citadas por Andrea Paiva (2009) como motivadoras
de dádivas para a coleção do Museu do Negro em uma igreja no Centro do Rio. Na etnografia de
Três Famílias, Luiz Fernando Dias Duarte e Edlaine Gomes (2008, p. 184) nos apresentam Elza –
“guardiã de objetos sagrados rejeitados e deserdados devido à conversões de familiares e
conhecidos” – e as movimentações de sua prática de colecionamento:
198Episódio ocorrido em 1995, no dia 12 de outubro, dia de Nossa Senhora Aparecida, quando a imagem da
Padroeira do Brasil foi atacada com um chute pelo bispo Sergio Von Helder, da Igreja Universal do Reino de Deus
(IURD), em um programa de televisão.
279
Entre seus objetos favoritos e dignos de um lugar especial em seu quarto estão imagens e
quadros de santos, além do Sagrado Coração de Jesus e da Sagrada Família. Essa coleção
não ocupa grande espaço no conjunto da casa, mas se destaca por ostentar a forte adesão
ao catolicismo. A coleção vem recebendo novos objetos, por vias curiosas. Sua nora lhe
contou que uma conhecida não sabia o que fazer com uma estátua de São Jorge que
estava há tempos na família. A conversão ao pentecostalismo lhe impusera o afastamento
da devoção ao santo. Não queria quebrá-la como demonstração explícita de seu novo
pertencimento religioso. Embora demonstrasse forte adesão ao novo credo, não de sejava
destruir a imagem, embora necessitasse romper afetiva e efetivamente com ela. O dilema
foi resolvido com a adoção de Jorge por Elza, que propôs recebê-lo em sua casa. A ex-
devota convertida não teve que levar às últimas consequências a iconoclastia de sua nova
confissão, e a católica ficou satisfeita por salvar a imagem de sua devoção. (DUARTE;
GOMES, 2008, p. 184, grifos meus)
Nos limites do quadro de questões colocados pela tese, cabe pensar tais gestos ao passo
que implicam em transações relevantes para a circulação de objetos religiosos, tais como a
doação – que pode ganhar feições de “adoção”, como vimos acima – ou a venda para antiquários
e para colecionadores ou ainda a deposição em locais acessados por eles. Imagens de santos
também podem ser deixadas em capelas, salas dos milagres e cruzes por outros motivos que não
dizem respeito às situações de trânsito religioso evocadas acima, como o fato de terem se
quebrado acidentalmente. Peças avariadas são vistas como veículos de “azar” e, por isso, devem
ser direcionadas para locais específicos. Na Umbanda, segundo Tadeu Mourão (2012, p. 185-
190), um objeto que se quebra misteriosamente indica que a casa de seus adeptos está “sofrendo
demanda”, ou seja, as entidades estão em embate espiritual contra seus inimigos, ou melhor,
“Como a representação imagética da entidade possui um pouco da sua energia, esse objeto,
acreditam por vezes os fiéis, pode servir como um espécie de receptor de energias negativas que,
ao se condensarem na imagem, deixam de afetar os fiéis.” (MOURÃO, 2012, p. 185).
Também nesses casos, a forma de se desfazer das imagens não conduz ao lixo, mas a
lugares sagrados ou a fluxos de água corrente, situações que novamente podem acabar
facilitando que elas sejam encontradas por colecionadores e seus fornecedores.
Voltando à trajetória dos ex-votos desenterrados, após receber as peças que voltaram à
superfície, Antônio as tratou para interromper o processo de degradação em curso. Depois disso,
expôs os milagres salvos da destruição na parede da garagem de uma de suas casas, onde outros
ex-votos já participavam da decoração. As obras exumadas foram dispostas em uma fileira no
alto e o aspecto corroído delas deixava evidente que passaram por um percurso diferenciado em
relação aos demais objetos que preenchiam a parede.
280
Os cabelos “escorrendo” para a testa das imagens conformam um dos principais detalhes
reveladores da presença de autoria de Salomão. “– Isso é muito Salomão”, me dizia Antônio,
cada vez que me mostrava as peças do santeiro, apontando para a parte em que os cabelos
desenhados com tinta alcançam as testas das faces policromadas. Os fios pintados abaixo da
linha que divide a testa e o couro cabeludo não chegam a configurar franjas exatamente. O
desenho sugere mais um “bico de viúva” 199 invertido. Apesar desse „avanço‟ dos cabelos sobre a
testa, eles não chegam a encobrir as têmporas.
Depois desta exposição, a queima ou destruição dos objetos votivos não pode
mais ser tolerada. A título de ilustração do que não deve ser feito com eles ,
dezenas de peças encontram-se expostas, em uma vitrine especial, na nave central da
capela. São ex-votos de aparência calcinada, decorrente do fato de terem sido
enterrados, há quase meio século, na “Cruz da Prêta”, na Cidade de Parelhas – RN,
segundo relato da comunidade local. Recentemente foram exumados e, hoje, estão
presentes na exposição. Nesse mesmo conjunto encontram-se duas cabeças, em
perfeito estado de conservação, pois foram coletadas no mesmo lugar – Cruz da Prêta
– bem antes da ação iconoclástica e de desrespeito à cultura do povo
(CARVALHO JR., 2013, p. 21, grifos meus)
199 Prolongamento de forma triangular do cabelo que converge de modo a formar um V na parte central do alto da testa.
281
A passagem “do cultual ao cultural” não é feita de forma abrupta, pois não se pretende
apagar a dimensão devocional daqueles objetos. Nesse processo, a assinatura do
colecionador/pesquisador/curador lhes é acrescentada, de modo a lembrar que eles só estão ali
porque foram selecionados, recolhidos, salvos, tratados, guardados e, enfim, apropriadamente
expostos. Na casa do colecionador, de certo modo, a narrativa que se quer imprimir ao ex-voto não
se completa. É na antiga capela/agora exposição/futuro museu que ela ganha forma, pois ali a
ambiguidade objeto votivo/obra de arte é reiterada e celebrada, de modo a expor tanto a exuberância
material de uma prática, quanto a especialidade do olhar que a capta.
Como bem notou Notteghem (2012, p.48), a pesquisa sobre reutilizações de objetos de culto
católicos e suas transformações ontológicas é um espaço privilegiado para verificar a pertinência da
noção de “biografia do objeto” inaugurada por Appadurai (1986), contudo, também é ocasião de
percebê-la como indissociável das [biografias] das pessoas. Assim, convertem-se não só objetos, mas
também aqueles que se engajam com as coisas e ainda as instituições onde eles se movem. A
proposição da autora de que os objetos são o lugar de mobilização dos indivíduos para redefinir sua
relação com a religião é particularmente fértil para o contexto que pesquisei, no qual um ex-seminarista
torna-se colecionador, professor, marchand, curador... e, significativamente, “sacerdote das artes”, como
ele vez ou outra aparece em reportagens sobre sua coleção.
Por fim, é necessário colocar em perspectiva o fato da “retórica da perda”, no contexto que
observei, também de despontar como um „problema do excedente‟. O entendimento dessa curiosa
clivagem é adensado se temos em vista o descarte de coisas que são entendidas como bens preciosos
por certos agentes. Uma vez que os ex-votos sabidamente concentram valor(es), o ato de se fazer
deles aniquilando suas formas também pode ser entendido como um gesto agonístico.
282
Além das ofertas feitas por devotos que buscam reiterar os vínculos com seus santos de
devoção na CM, o acervo também cresceu pela doação de peças feita por artistas. Diante disso, e
confrontando a concepção corrente de que escultores não gostam de associar seu nome à produção
de ex-votos, o colecionador exibe belos milagres „assinados‟. Os artistas que ofertaram as peças à CM,
portanto, passaram a afirmar junto com Antônio que a impressão de autoria em fragmentos de
corpos alheios não envolve tabu algum. Quem mistifica, nessa linha de raciocínio, é quem poderia
dar a ver a autoria das obras, mas prefere não fazê-lo ao afirmar que se trata de uma ação perigosa.
283
Esta tese envolveu itinerâncias diversas. Pouco após configurar a proposta de pesquisa em
torno de 'caçadores de imagens', me deparei com a formulação de Alfred Gell (2001) de pensar as
obras de arte justamente como armadilhas (e vice-versa). A argumentação do autor, como tantas
outras que iluminaram meu trabalho, foi tramada a partir de uma exposição. Na mostra em
questão, uma rede de caça foi exibida em um espaço intitulado "Galeria de Arte
Contemporânea". Como armadilha que é, por definição, a rede impede a livre passagem,
constituindo-se, portanto, como uma excelente metáfora recursiva de captura e contenção.
Outros objetos, contudo, quando “armados” com cuidado, detêm e mantêm em suspensão.
Galerias são, nessa perspectiva, lugares de captura por excelência, mas objetos que circulam fora
desses espaços também podem ser vistos como obras de arte.
O paralelo entre minha proposição e a leitura de Gell (2001) também foi construído
tendo em vista que fui particularmente capturada em uma “Galeria de Artes Antigas e
Contemporâneas”, como descrevi no primeiro capítulo. Dentre as muitas interações que
empreendi na busca de interlocutores em minha primeira jornada de trabalho de campo, fui
enredada por um 'caçador de imagens', seu olho treinado e os detalhes das obras que ele carregou
de índices para que eu pudesse vê-las. Logo percebi que os objetos que capturariam minha
atenção depois do encontro com o colecionador seriam, de certo modo, nós prévios da rede
armada por ele a partir de sua Galeria.
Redes, entretanto, não só capturam, mas também
deixam passar200. Essa é a lógica de funcionamento da
estrutura na figura ao lado. Outrora uma porta de
confessionário, atualmente, é utilizada como painel de
apresentação do espaço expositivo. A obra recepciona o
visitante com uma definição de ex-voto: “Em Latim,
“Ex-voto suscepto” significa – de acordo com o desejo,
de acordo com aquilo que foi preferido”. Logo, aquele
que chega é tanto convidado a olhar pela janela, quanto a
conhecer o interior da mostra e a estabelecer outras
relações com aqueles objetos.
200 Sou grata a Guillermo Sanabria por ter me inspirado a refletir por essa seara.
284
A análise foi produzida com especial atenção aos aspectos mencionados por Walter
Benjamin (1987, 2006) como “dados objetivos” da relação de um colecionador autêntico com
seus objetos. Trata-se, portanto, de uma decapagem de certas camadas oníricas que
constituem a coleção enquanto “morada de sonho” e refúgio. As coleções não são universos
estanques imunes ao tempo ou desconectados da realidade social na qual o colecionador está
inserido. Muito trabalho precisa ser feito para que elas possam se erguer como g rupos de
objetos que sugiram esse caráter de alheamento e impermeabilidade ao curso de atividades
humanas. A necessidade de realização de transações situa inevitavelmente o colecionador
numa rede de conhecimentos e contatos. Nessa rede, como demonstrei no segundo capítulo,
a produção de autoridade apreciativa é pensada em termos de olho. Quem tem olho nota as
forças expressivas particulares e próprias das coisas autênticas.
Considerando que certos usos incutem valor às imagens abordadas ao longo da tese, no
terceiro capítulo explorei como essas obras não são apenas miradas a partir de uma posição
privilegiada, mas também manipuladas. Ao trazer à baila o quanto os corpos das imagens são
trabalhados, procurei incluir na análise as mãos que transformam os aspectos das obras.
Vimos que não é com qualquer aura que a imagem peregrina para a coleção.
285
A despeito da ideia de aura evocar um suposto halo luminoso que só os iniciados veem,
trabalhei com a possibilidade – sempre arriscada – dessa aparição também ser convocada manual
e materialmente. Nesse quadro de sentido, uma imagem repintada pode ser considerada “suja”. Já
o encontro com uma obra recoberta por teia de areia e fuligem é motivo de celebração, tendo em
vista sua antecipação à ação de “caçadores de antiguidades”:
Em nosso trabalho de pesquisa de campo em São Paulo, foi freqüente ficarmos diante
de oratórios domésticos intactos, sem terem recebido a visita de caçadores de
antiguidades. A regra nestes casos é encontrarmos um oratório fechado, cheio de pó e
fuligem, que tornam tudo escuro, inclusive as teias de aranha. Aberto o oratório,
geralmente cheio de papéis, tocos de vela, flores de papel, notas de dinheiro sem valor,
baratas, encontram-se no meio de tudo isso as imagens e usualmente um crucifixo. São
sempre de várias épocas [...]. Bem atrás, mais escuras, quebradas, a cabeça colada com
vela ou cera preta de mato, alguns [exemplares de] Paulistinhas. (ETZEL, 1979, p. 90)
Além disso, sublinhei como Antônio Marques publiciza seu devotamento à arte do
povo de forma a atentar os visitantes da CM para seu papel de “guardião”. Argumentei que a
ocupação da capela no Centro de Turismo foi uma forma de dispor uma argumentação.
Alguns itens da exposição foram mostrados como especialmente representativos das ações do
colecionador para “salvar” obras de arte da destruição.
A trajetória dos ex-votos da vitrine especial da mostra pode ser vista como uma
verdadeira hagiografia do objeto. A exumação de cabeças e milagres afins nos aproxima de outras
formas de ratificação da autenticidade das coisas sagradas. Na lógica do Furta Sacra (GEARY,
1990), as coisas difíceis de encontrar, mas que se deixam apanhar, são aquelas que de alguma
forma entraram em comunicação com os autores da façanha e não ofereceram resistência,
atribui-se poder ao próprio objeto e ao modo de obtê-lo.
Obviamente desenterrar ex-votos é uma ação que causa suspeição, pois pressupõe o
contato com coisas impregnadas de forças diversas, potencialmente maléficas. Ao menos, desde
Van Gennep (1978), os ritos de passagem foram investidos da função de reduzir os efeitos
nocivos característicos dos processos de mudança do estado de pessoas e coisas. Em vista disso, e
considerando minha proposta de „ritualizar‟ os processos envolvidos nos trânsitos de objetos que
287
Ainda no intuito de dar a ver o que vislumbrei através de espelhos (in)trincados, explico
porque iniciei essas considerações finais mencionando itinerações. Na provocação de Ingold
(2010), devemos abrir mão de redes dadas previamente e pensar por meio da malha, que,
assim como a teia da aranha, é construída no percurso. O itinerar envolve improvisar,
interligar e, porque não, deixar vazar. Sendo assim, depois de mostrar tantos enredamentos –
por formas, texturas, segredos, expertises, etc. – cumpre assinalar a importância de minha
tentativa de tessitura do trabalho vislumbrando a possibilidade de linhas de fuga.
Coleção de cacos
Carlos Drummond de Andrade
201 A etnografia desse rito analisa sua execução para além dos registros preliminares que podem ser encontrados nos
catálogos. Tais publicações documentam o que se pretende mostrar em museus e exposições, mas não compreendem
as relações sociais mobilizadas durante as exibições.
288
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Em seu livro Ex-votos e orantes no Brasil: uma leitura museológica (1981) Maria Augusta
Machado Silva elabora uma classificação das principais formas ex-votivas, entre as quais estão as
categorias listadas abaixo.