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DILEMA DA UNIVERSIDADE BRASILEIRA "PÓS-MODERNA": ENTRE A

DEMOCRATIZAÇÃO E A COMPETÊNCIA

RIBEIRO, Marlene*
http://www.anped11.uerj.br/19/RIBEIRO.htm

Condições que alguns autores, entre os quais Boaventura Souza Santos (1994), identificam como "pós-
modernas", tendo em vista principalmente a incapacidade da modernidade em cumprir uma de suas
promessas essenciais, a emancipação social, impõem um grave dilema à universidade: ou esta instituição
retoma o seu formato original como formadora de elites e produtora de pesquisa básica para subsidiar
processos produtivos ( competência ), ou a universidade cede à pressão das camadas subalternas,
ampliando possibilidades de acesso e permanência, e considerando os diferentes saberes e interesses
peculiares a essas camadas (democratização). Penso que este seja um falso dilema, pois só
historicamente se explica que os polos competência e democratização se constituam em uma relação
antagônica, ocultando interesses diferenciados e conflitantes que atravessam a organização acadêmica e
a produção de conhecimento, ciência e tecnologia.

Com referência à universidade brasileira, esta surge no bojo do processo de modernização da sociedade,
nos anos 30, quando a produção industrial passa a ter na economia um peso maior do que a monocultura
do café. Por esta razão, pode-se afirmar que a universidade brasileira nasce "moderna", apesar de
bastante distanciada das questões que a modernidade impôs à reorganização das universidades européias
no final do século XVIII, principalmente no que se refere à produção de ciência para alicerçar os
processos produtivos fabris ( FÁVERO, 1977 e CUNHA, 1988 ).

A criação tardia das universidades brasileiras dá continuidade à formação de profissionais liberais que já
vinha sendo feita desde o século XIX pelos considerados cursos "nobres", Medicina, Engenharia e
Direito. Assim, de uma certa forma, pode-se afirmar que a universidade brasileira nasce moderna sem
ser moderna, isto é, responde por uma demanda de profissionais liberais por parte do processo de
modernização da sociedade, mas não corresponde àquelas exigências decorrentes das transformações do
feudalismo para o capitalismo, no que tange à produção de ciência vista como propulsora do progresso,
uma característica da modernidade.

Nos anos 60, tem início uma das maiores crises no processo de acumulação de capital, crise esta na qual
estão compreendidas transformações radicais nos processos produtivos em decorrência da aplicação de
novas tecnologias concentradoras de postos de trabalho qualificado e geradoras de desemprego em
massa. A solução para a crise, na perspectiva do capital, tem sido buscada no desmantelamento do
Estado do Bem-Estar Social( SOUZA SANTOS,1994) iniciativa esta que, se de um lado afirma-se com
o malogro das experiências de "socialismo real" feitas no Leste Europeu, de outro, enfrenta os riscos
decorrentes do desemprego estrutural que gera. Justificam, os ideológos do neoliberalismo, a
necessidade de libertar o mercado dos "grilhões" do Estado para que a economia possa fluir sem peias,
rompendo as fronteiras dos estados nacionais, desestruturando políticas públicas de proteção ao trabalho,
à saúde, à educação e exigindo, da parte dos organismos de produção de conhecimento, ciência e
tecnologia, uma agilidade que, ainda segundo esses senhores, as instituições universitárias estatais
burocratizadas não teriam.

Nesse contexto de implantação de um Estado neoliberal, que retoma de forma reacionária e exacerbada
princípios liberais que nortearam processos revolucionários do século XVIII, alguns autores elaboram
críticas que desvelam a inconsistência de paradigmas teórico-práticos forjados na era moderna iniciada
pela Renascença, representada pelo pensamento filosófico de Descartes, pelo empirismo de Bacon,
consubstanciada pelo Iluminismo expresso principalmente pelas idéias de Rousseau e de Kant
( TOURAINE, 1994). A modernidade que demarcou as fronteiras dos estados nacionais, que apontou
possibilidades emancipatórias através de uma produção social e que instaurou as bases da ciência na
objetividade, neutralidade, desinteresse e validade tem seus alicerces abalados pela globalização da
economia que redesenha o território e o papel do Estado, pelas políticas neoliberais que transferem o
direito de cidadania para a "liberdade de mercado", e por uma produção científico-tecnológica cada vez
mais concentradora e excludente ( SILVA, 1993; GENTILI et alii, 1995 e FRIGOTTO, 1995).

O que alguns autores caracterizam como "condição pós-moderna" identifica tanto a impotência da
modernidade em dar conta da expectativa da libertação social que gerou, quanto a fragilidade de alguns
de seus pressupostos. No que me interessa, neste trabalho, para situar a problemática da universidade
brasileira, estou me referindo não só à redefinição dos objetos, métodos e campos científicos em virtude
de descobertas que ultrapassam os marcos tradicionais de objetividade, mas sobretudo, à questão
ecológica que impõe limites à suposta neutralidade, exigindo um controle ético sobre a produção
científica e técnica, e à questão social que se interroga sobre a destinação daquela produção que, apesar
de social, é apropriada, tornando-se privada (SOUZA SANTOS, 1994).

Este preâmbulo serve para situar a crise da universidade brasileira, vivenciando dilemas próprios da
pós-modernidade, ao mesmo tempo em que enfrenta exigências que seriam próprias da modernidade,
especialmente no que se refere à produção de ciência e tecnologia. Nesse contexto e dentro dos objetivos
e limites estabelecidos pela ANPED, pretendo revisar alguns autores que nos fornecem instrumentos
conceituais para pensar a universidade, seja sob o aspecto das relações de poder/saber, seja sob o ângulo
da crise do Estado, para explicitar o aparente dilema democratização x competência, possibilitando,
dessa forma, visualizar algumas perspectivas que estão hoje postas para a formulação de projetos
acadêmicos de interesse das camadas subalternas.

O abandono da promessa moderna ( leia-se capitalista ) de emancipação, baseada numa produção social
para satisfazer necessidades básicas que o regime feudal não tinha condições de atender, deixa sem
solução o problema que se agrava com o crescimento do número de pessoas excluídas de condições
mínimas de sobrevivência, tendo em vista a aplicação de tecnologias que eliminam de vez milhares de
postos de trabalho sem oferecer a contrapartida da realocação dos trabalhadores desempregados.
Possibilidades mínimas de emancipação foram acenadas às camadas populares, principalmente com a
instituição de um Estado do Bem-Estar Social, explicando o aumento do número de pessoas que
ingressaram nas universidades européias após a II Guerra Mundial ( SOUZA SANTOS, 1994). Essa
perspectiva, no entanto, é eliminada no modelo neoliberal de Estado ( ANDERSON, 1995).

No Brasil, ainda que não se tenha intituído um autêntico Estado do Bem-Estar Social, ocorre um
crescimento significativo de cursos superiores e/ou criação de universidades públicas no final dos anos
50, intensificando-se no início dos anos 70 (CUNHA, 1989). A crise começa na década de 80 e tem sua
intensidade aumentada nos anos 90 com o emprego de políticas que empurram as universidades públicas
à privatização (VIEIRA, 1995). Entre as justificativas apresentadas para essa estratégia destacam-se
duas. A que afirma serem os pobres minoria nas universidades públicas e a que aponta o ingresso
indiscriminado de pessoas despreparadas intelectualmente como responsável pela perda gradual da
competência acadêmica.

A universidade brasileira "pós-moderna", ameaçada pelas políticas neoliberais de minimalização do


Estado, ou de privatização de bens e serviços públicos, experimenta um conflito que coloca, de um lado,
demandas das camadas subalternas por cursos superiores e, de outro, exigências, por parte do Estado, de
diminuição dos investimentos nos serviços básicos como solução para a crise de acumulação de capital.
Não estou entrando em outras demandas, tais como emprego, saúde, educação elementar, moradia e
segurança que escapariam à temática "universidade" que estou me propondo a tratar. Também não
cogito de exigências de produção científico-tecnológica que, com exceção de alguns setores e de
algumas universidades públicas, é efetuada em universidades e/ou institutos de pesquisa e/ou empresas
multinacionais nos países capitalistas centrais, muito embora essa necessidade seja enunciada, pelo
menos no discurso dos representantes do Estado. Nesse contexto é que o dilema democratização x
competência faz sentido para a universidade brasileira que entra na era "pós-moderna" sem ter
enfrentado questões peculiares à Idade Moderna.

Penso que a polêmica travada em torno da relação democratização x competência é o aspecto mais
visível de três crises que se entrelaçam e que Boaventura Santos ( 1994) identifica como de hegemonia,
de legitimidade e de autonomia. Esta polêmica traz à tona questões que estão inscritas nas funções
especificamente acadêmicas, como: ensino, pesquisa, extensão; na sua estrutura organizativa, como:
departamento x interdisciplinaridade e questões mais diretamente vinculadas às relações da
universidade com a sociedade, como: autonomia e democratização. Nessa direção, pergunto-me: tendo
como suporte teórico alguns autores que participam do debate sobre a universidade, como é possível
inferir sobre algumas tendências do movimento das universidades brasileiras ameaçadas pelo Estado
neoliberal e reclamadas por estratos sociais tradicionalmente excluídos da formação acadêmica?

Neste texto, farei apenas uma síntese que retrace a trajetória em busca de autores para subsidiar uma
análise sobre a crise da universidade, feita na minha tese de doutorado, tendo em vista que me parece
pertinente refletir sobre as questões que estão colocadas para a universidade brasileira. Seguindo este
caminho, um problema sério colocou-se quando precisei decidir sobre que autor fundamentar esta
análise. De início, pensei em trabalhar com Pierre Bourdieu, usando as categorias de habitus para
explicar o processo de dominação simbólica articulada à dominação econômica e de campo científico
com que o autor desmascara os interesses que, sob aparente "desinterese", subjazem aos julgamentos
sobre a capacidade científica de estudantes e professores, a definição de ciência, a eleição de
determinados problemas de investigação como relevantes em detrimento de outros e a publicação dos
resultados das pesquisas O processo de dominação ideológica, através da estrutura do habitus teorizada
por Bourdieu, tem um substrato material ( as condições materiais de existência) e um conteúdo
simbólico que reforça o primeiro, possibilitando a reprodução social e cultural. Porém, a eficácia do
poder simbólico não está tanto em ser exercido como em ser aceito, ou quanto mais é capaz de ocultar as
condições em que se realiza ( BOURDIEU, 1983: 73-81).

Pensei também em ampliar a análise dessas relações de poder associadas à produção científica ( saber)
privilegiadas por Michel Foucault (FOUCAULT, 1984a). Interessei-me particularmente pelas questões
levantadas por este autor a respeito da insurreição dos saberes dominados, das relações de poder como
produtoras de regimes de verdade e do esvaziamento da função do intelectual tradicional que é hoje
chamado a desempenhar um papel localizado, próximo ao seu lugar de atuação profissional onde possa
estabelecer novos modos de relação teoria/prática. A insurreição dos saberes dominados não é contra os
conteúdos, métodos e os conceitos de ciência, mas contra a pretensão em nome de uma "teoria unitária"
de sistematizá-los e hierarquizá-los dentro de uma lógica científica que só alguns poucos possuem. O
autor mostra que essa "lógica" implícita na produção de saberes constrói-se sob relações de poder,
portanto não é neutra ( FOUCAULT, 1984 b).

Percebi que em alguns aspectos as análises de Foucault sobre as relações de poder/saber e de Bourdieu
sobre o habitus coincidiam, de modo que poderia estabelecer aproximações entre os dois autores, porém
em outros pontos se afastavam. A observação do confronto entre grupos acadêmicos mostrava que estes
não possuíam uma configuração homogênea nem definitiva, portanto, as análises de Foucault sobre as
relações de poder/saber permitiam compreender melhor as nuances desses grupos que escapavam à
estrutura de campo científico concebida por Bourdieu, até porque as lutas ultrapassavam os limites da
universidade. Em determinado momento fui aconselhada a visitar estudos de Max Weber (1982 ) sobre
burocracia, correspondentes aos aspectos formais da administração acadêmica ( títulos, hierarquias,
papéis, funções), que sob a aparência técnica mascaravam o conteúdo político das relações de
poder/saber.

Mesmo com toda essa busca, tinha para mim que o marxismo ainda era a opção metodológica onde
encontraria instrumentos conceituais com maior capacidade de explicação das relações de poder/saber e
dos nexos econômicos e sociais da crise da universidade brasileira. Tinha uma certeza, a de que no
conceito gramsciano de hegemonia, que tem sido usado por inúmeros autores brasileiros ao enfocar as
relações entre a universidade e o Estado, eu poderia encontrar uma chave para a compreensão dos
enfrentamentos de projetos diferenciados de universidade. A hegemonia de uma classe, segundo
Gramsci, isto é, o consenso/coerção que possibilita a dominação e direção política de uma classe sobre a
outra, é efetuado/a através dos intelectuais produtores e difusores de ideologias que dão unidade às
concepções contraditórias, fragmentadas, heterogêneas do povo, onde se misturam elementos do mundo
do trabalho, do folclore e da religião. Decidi adotar o conceito gramsciano de classes subalternas cuja
demasiada abrangência poderia, ao mesmo tempo, ser um defeito pelos elementos que permitia abarcar e
uma qualidade ao possibilitar a inclusão de categorias que não se prestavam à identificação como
classes sociais, nesse caso, os índios, as mulheres, os negros... Com todos os seus limites, subalterno me
parece menos problemático do que popular, que uso com o sentido de explorado, submetido,
subordinado, dominado, oprimido ( GRAMSCI, 1986 a ).

Apesar da confiança em Gramsci, senti curiosidade em ver como Nicos Poulantzas, outro autor marxista,
incluia a universidade na sua teoria do Estado. Interessei-me pela sua concepção de poder, que
compreende a materialidade da dominação ideológica ( idéia tomada de Foucault) e o enfrentamento de
interesses antagônicos. Importante ainda, deste autor, são as contradições presentes no interior das
instituições enquanto aparelhos de Estado, contradições estas manifestas pela presença das classes
sociais antagônicas na composição do "pessoal do Estado". Aproximando-se de Bourdieu, para quem as
disputas entre grupos não visam destruir a estrutura do campo científico senão modificar a sua
configuração, Poulantzas considera que as lutas institucionais não pretendem eliminar o Estado que os
funcionários concebem como neutro e necessário, uma vez que representa os "interesses gerais da
sociedade". Embora um número expressivo de funcionários tenha vínculos com as camadas subalternas,
as suas lutas visam apenas "descolonizar" o Estado de grandes interesses empresariais na tentativa de
fazê-lo cumprir a sua "função social", o que se aproxima de algumas discussões que se fazem a respeito
da universidade ( POULANTZAS, 1980 ).

Ainda insatisfeita, decidi consultar Georges Lapassade, um dos teóricos da Análise Institucional,
movimento vinculado ao Maio/68 francês. Para este autor, a universidade compreenderia 3 dimensões: a
econômica, pelo vínculo com a produção; a política, pelo vínculo com o Estado e a ideológica, pelo
vínculo com as camadas dominantes. Aproximava-se também de concepções foucaultianas a respeito da
relação poder e verdade, ao defender que "a universidade produz e difunde uma ideologia, ao afirmar
que em geral, essa ideologia é a ciência" ( LAPASSADE, 1983).

Contrapondo o material empírico com o qual estava trabalhando aos diferentes olhares de cada um
desses autores - Bourdieu, Foucault, Weber, Gramsci, Poulantzas e Lapassade - percebi que todos eles,
de certa forma, me forneciam algumas respostas às minhas indagações sobre os conflitos que marcavam
a produção de conhecimentos e a formação de professores pela universidade, evidenciando que tais
funções acadêmicas eram atravessadas por relações de poder nem sempre visíveis. Ao mesmo tempo, os
seus enfoques não respondiam uma porção de perguntas além de suscitarem novas indagações.
Sobretudo, me ofereciam uma visão fracionada do objeto que eu pretendia enfocar numa totalidade de
relações. Mesmo o marxismo gramsciano, que eu pretendia adotar, possuía limites relacionados ao
contexto em que foi gerado e à diversidade de questões que o momento histórico atual está colocando
para a sociedade e para a universidade em decorrência de avanços tecnológicos aplicados aos processos
produtivos e das conseqüências desses avanços para a natureza e para a sobrevivência da humanidade.

Estava bastante desanimada quando tive o primeiro contato com Boaventura Souza Santos, através do
texto "Da idéia de universidade à universidade de idéias". Esse autor me ofereceu uma saída que
contemplava a metodologia marxista que eu pretendia adotar, relativizando algumas categorias que se
empobreceram, outras que se redimensionaram em razão dos novos problemas colocados para a
sociedade. Essa leitura me oportunizava uma compreensão da universidade brasileira num outro
patamar, o da crise da universidade moderna que vivencia a transição designada por alguns autores
como pós-modernidade. Decidi, então, ter este autor, Boaventura Souza Santos, como eixo orientador da
minha pesquisa, contando com a colaboração dos estudiosos da universidade brasileira, principalmente
Maria de Lourdes de Albuquerque Fávero e Luiz Antônio Cunha. Por outro lado, procurei manter um
diálogo possível com aqueles autores visitados na trajetória de construção de uma metodologia como
referência para a análise da universidade brasileira, ou seja, com Foucault, Bourdieu, Weber,
Lapassade, Poulantzas e Gramsci.

Nesse sentido, em determinadas questões cuja compreensão é alargada por esses autores, estabeleço com
eles um diálogo que me parece não conflitar com a opção metodológica central e sim complementá-la e
aperfeiçoá-la. Não significa isso, cair no ecletismo que justapõe autores e fragmenta o objeto do
conhecimento. Utilizo-me dos instrumentos conceituais construídos por Souza Santos quando focaliza a
universidade moderna na ótica da tríplice crise, de hegemonia, de legitimidade e de autonomia,
recorrendo àqueles autores quando a sua contribuição amplia a compreensão do objeto de estudo, a
universidade.

A manutenção dos mencionados autores tem uma segunda justificativa. As transformações


metodológicas que estão ocorrendo nas ciências físico-naturais, às quais os métodos empregados pelas
chamadas ciências sociais e ciências humanas têm estado de alguma forma atrelados, conforme
evidencia Foucault(1987), levantam questões na ordem dos métodos, dos territórios, dos olhares, dos
conceitos, dos interesses e dos problemas, questões essas que têm sido apontadas por autores
caracterizados como "pós-modernos" e que a universidade, numa forma de fugir do conflito, tem-se
escusado de tratar mais a fundo. Essa dificuldade é mais grave na educação, onde a indefinição peculiar
à natureza desta área - entre prática e teórica - torna mais problemática a eleição de um método para a
produção de conhecimento.

É em Gramsci que Souza Santos vai buscar o conceito explicativo da mais ampla e longa crise da
universidade, o de hegemonia, que compreende as demais e que se manifesta ao ser contestada a
exclusividade dos conhecimentos produzidos/reproduzidos/comunicados pela universidade. Conforme
este autor, o início da crise de hegemonia pode ser identificado no período do "capitalismo liberal" que
vigorou durante o século XIX. Vinculada a esta, a crise de legitimidade explicita-se ao ser questionada a
destinação social da formação e da produção/reprodução de conhecimentos pela academia, no período
do "capitalismo organizado" que se estende do final do século XIX aos anos 60 do nosso século. A crise
de legitimidade começa nos anos que se seguem à II Guerra Mundial e se intensifica na década de 60.
Iniciada nesta década, durante o período que o autor chama de "capitalismo desorganizado", a terceira
crise, a de autonomia, põe em questão a independência da universidade de organizar-se para o exercício
de suas funções.

As três crises se entrelaçam e se intensificam nos últimos 30 anos, estando associadas à destruição
Estado do Bem-Estar Social e das políticas públicas dele decorrentes. Este Estado-Providência, como o
chama Souza Santos, vem sendo substituído pela forma neoliberal de organização do Estado que se
propõe a não intervir na "liberdade de mercado", dando uma resposta conservadora à crise de
acumulação de capital em que se insere a crise da universidade moderna. A compreensão das
transformações que estão ocorrendo no Estado do Bem-Estar Social está embasada nas análises de Claus
Offe, Eric Hobsbawm e Francisco de Oliveira, além de Boaventura Souza Santos que propõe este olhar
sobre a referida crise.

Vejo a crise da universidade brasileira expressa de forma muito particular nos diferentes discursos,
acadêmicos ou não, que, na intenção de defendê-la, muitas vezes usam como argumento a necessidade
de preservar a competência e a autonomia universitárias ameaçadas pelas políticas neoliberais de
"privatização" das instituições públicas. Outros discursos tecem críticas aos interesses corporativistas
dos segmentos acadêmicos, ao afrouxamento dos critérios de ingresso e de formação profissional e à
ênfase em trabalhos de intervenção confundidos com produção de conhecimentos. Como afirma
Boaventura Souza Santos, está cada vez mais díficil à universidade continuar fugindo ao enfrentamento
do conflito de interesses que coloca, de um lado, alguns grupos sociais cobrando o retorno ao fazer
acadêmico tradicional, isolado, voltado para a pesquisa pura e como privilégio de um número reduzido
de instituições, e de outro, as camadas subalternas cobrando formação/produção/ comunicação de
conhecimentos diferenciados segundo suas necessidades e interesses.
A cobrança de avaliação de uma determinada competência da instituição acadêmica não pode estar
separada dos interesses que identificam os destinatários desta competência. Retomando aqueles autores
visitados na construção das categorias metodológicas, formulo os conceitos de democratização x
competência numa relação dialética. Afirmo que a competência não pode ser vista como uma entidade
abstrata, autônoma e desvinculada de interesses que definem saberes, disciplinas, conteúdos, métodos,
instrumentos, discursos que a legitimam como democrática ou que a impõem como relação de força,
silenciando projetos acadêmicos oriundos das camadas subalternas tradicionalmente excluídas da
academia. Percebo que a luta pela construção de competências acadêmicas legítimas inclui experiências
de ruptura com o modelo tradicional de universidade, experiências estas em que despontam alguns
princípios como: a indissociabilidade entre o ensino, a pesquisa e a extensão; a interdisciplinaridade; a
autonomia, e a democratização. A universidade terá, mais cedo ou mais tarde, de enfrentar o conflito
que Souza Santos identifica em sua análise. Nesse sentido, a instituição universitária precisa definir suas
lealdades e construir efetivas parcerias com as camadas subalternas, recusando-se a manter relações de
prestação de serviços que ocultam a dominação, o paternalismo e a substituição do Estado no
cumprimento de suas funções sociais.

No plano dos interesses das camadas populares que legitimam diferenciadas competências, afirmo como
fundamental a indissociabilidade entre o ensino, a pesquisa e a extensão, tomando esta última no plural
e como desencadeadora das temáticas, dos problemas, das metodologias e dos conteúdos que irão definir
as pesquisas e os ensinos demandados por aquelas camadas. Essa indissociabilidade precisa ser
construída numa perspectiva interdisciplinar em que o mesmo objeto de conhecimento possa ser
enfocado sob diferentes ângulos tendo como horizonte, no entanto, a mesma perspectiva histórica de
democratização da sociedade e, conseqüentemente, da produção/reprodução/comunicação de
conhecimento, ciência, tecnologia, arte e educação. Esse princípio da democratização tem, nas eleições
diretas para todas as instâncias de poder, apenas um primeiro passo. Ele precisa materializar-se na
participação mais ampla de todos os segmentos acadêmicos em todos os níveis de decisão e execução
das políticas universitárias. E nessa concepção/prática de democratização da universidade é que se
fundamenta a autonomia universitária.

Nas lutas cotidianas dentro da universidade, nas salas de aula, nos projetos de pesquisa e de extensão,
articuladas às lutas mais amplas pela democratização das estruturas econômico-sociais, podemos fincar
alguns alicerces de uma concepção de universidade brasileira competente e legítima porque
democrática. Contrariando análises que responsabilizam o ingresso das camadas subalternas pela perda
da singularidade do fazer acadêmico e de uma competência que lhe é peculiar, posiciono-me no mesmo
polo de concepções que advogam a possibilidade utópica de uma universidade, ao mesmo tempo
democrática e competente, sendo esta competência democrática capaz de abarcar os diferenciados
interesses dos segmentos que hoje são excluídos da formação acadêmica.

A universidade, concebida dentro do modelo de sociedade moderna ocidental, atravessa, como esta, a
transição "pós-moderna" que se configura em uma profunda crise, ampliada pela adoção de estratégias
neoliberais de destruição de políticas sociais com a conseqüente privatização dos serviços públicos.
Nesse contexto, a contradição entre a expectativa utópica criada pelo Estado, que aparenta ser o
representante dos interesses gerais da sociedade, e a negação das demandas sociais por educação - entre
elas o ensino superior - vai tornando cada vez mais claras as forças e os interesses que se confrontam
pela imposição de projetos acadêmicos como hegemônicos. Nessa contradição se explicitam as forças e
os interesses presentes numa suposta competência acadêmica dada como neutra, que pretende justificar-
se anulando possibilidades de democratização que tornem legítima a instituição universidade.

A realidade trágica e contraditória imposta pelas políticas neoliberais, como resposta à crise de
acumulação de capital, semeia inovações tecnológicas de ponta, construídas com conhecimentos que
expressam um imenso domínio sobre os mistérios da natureza, numa sociedade adubada pelo sangue,
pelos cadáveres, pelos corpos semi-vivos de homens, mulheres velhos e crianças que não possuem nada,
nem dia seguinte, nem sonhos... Com muita dessa desesperança apregoada pelos teóricos do "fim da
história", diante de um quadro que se repete todos os dias e que a televisão destila através de notícias das
chacinas diárias, das ocupações de terras e dos índices de desemprego divulgados paralelamente às
cotações da bolsa, do dólar e das justificativas de "reformas do Estado", é que eu me sinto amparada
pelo crédito concedido por Boaventura Souza Santos ao socialismo como utopia possível. Mas o
otimismo e uma renovada disposição para a luta me são devolvidos por Perry Anderson para quem esta
utopia pode chamar-se neo-socialismo. Aproveito, então, para me apropriar das lições que este autor
retira ao fazer um questionamento profundo sobre os fundamentos da teoria neoliberal e que nos
motivam para a continuidade da luta por uma sociedade solidária onde uma universidade democrática
e competente seja possível."1º) Não ter medo de ser contra a política do nosso tempo; 2º) não transigir
em idéias; 3º) não aceitar nenhuma diluição de princípios; 4º) não aceitar nenhuma instituição como
imutável." ( ANDERSON, 1995: 197-198).

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