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ARTIGO ORIGINAL • ORIGINAL ARTICLE

Mulheres no cárcere: significados e práticas cotidianas de


enfrentamento com ênfase na resiliência
Women in prison: meanings and everyday practices of coping with emphasis on resilience

Gigliola Marcos Bernardo de Lima1, André de Faria Pereira Neto2, Paulo Duarte de Carvalho
Amarante3, Maria Djair Dias4, Maria de Oliveira Ferreira Filha5

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Doutoranda em Saúde Pública pela RESUMO: Este estudo se propõe a conhecer os significados do encarceramento, bem
Escola Nacional de Saúde Pública da
Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/FIOCRUZ) como as estratégias de enfrentamento com ênfase na resiliência. A metodologia baseia-
– Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Professora da
Universidade Federal de Campina Grande, se na abordagem qualitativa à luz da técnica de História Oral Temática. As falas revelam a
Campus Cuité (UFCG) – Campina Grande
(PB), Brasil.
prisão enquanto processo de ‘mutilação do eu’. A morte civil, a substituição do convívio
gigliolajp@hotmail.com familiar, o vazio de ordem emocional e material, e a ausência da autonomia caracterizam
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Professor Doutor do Programa de Pós- o significado do cárcere. As estratégias de enfrentamento com resiliência dentro do coti-
Graduação em Saúde Pública pela Escola
Nacional de Saúde Pública da Fundação diano prisional foram a fé, o amor aos filhos, o trabalho, a música e a espera pela liberdade.
Oswaldo Cruz (ENSP/FIOCRUZ) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
É preciso que a prisão se comporte para além do caráter punitivo e proporcione cuidados
andrepereiraneto@gmail.com especializados à mulher encarcerada.
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Professor Doutor do Programa de Pós-
Graduação em Saúde Pública pela Escola PALAVRAS-CHAVE: Mulheres; Prisões; Resiliência Psicológica.
Nacional de Saúde Pública da Fundação
Oswaldo Cruz (ENSP/FIOCRUZ) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil. ABSTRACT: This study aims to know the meanings of incarceration as well as strategies for
pauloamarante@ensp.fiocruz.br
coping with emphasis on resilience. The methodology is based on a qualitative approach to the
4
Professora Doutora do Programa de
Pós-Graduação em Enfermagem pela light of thematic oral history technique. The reports revealed the arrest as a process of ‘mutila-
Universidade Federal da Paraíba (UFP) –
João Pessoa (PB), Brasil.
tion of self’. The civil death, the replacement of family life, the void of emotional and material
mariadjair@yahoo.com.br orders and the lack of autonomy characterize the significance of jail. Coping strategies for re-
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Professora Doutora do Programa de silience for everyday were faith, the love of children, work, music and hope for freedom. Prison
Pós-Graduação em Enfermagem pela
Universidade Federal da Paraíba (UFP) – needs to be beyond punitive and provide specialized care to incarcerated women.
João Pessoa (PB), Brasil.
marfilha@yahoo.com.br KEYWORDS: Women; Prisons; Coping; Resilience, Psychological.

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LIMA, G. M. B.; PEREIRA NETO, A. F.; AMARANTE, P. D. C.; DIAS, M. D.; FERREIRA FILHA, M. O. • Mulheres no cárcere: significados e práticas cotidianas de enfrentamento
com ênfase na resiliência

Introdução proporcionalmente do crescimento de ambientes pri-


sionais. Diante disso, temos que lidar com a superlota-
O aumento de pessoas sob privação de liberdade é uma ção dos estabelecimentos penais e suas consequências,
realidade crescente nos últimos anos, no cenário na- tais como: ócio, indisciplina, indignação, tumulto, pre-
cional e internacional. Em 2004, a população apenada cariedade de higiene, aumento do consumo de drogas
mundial era de 9 milhões; em 2006, de 9,25 milhões; e de diversas formas de violências físicas e psicológicas
e em 2008, esse número correspondia a 9,8 milhões (ALMEIDA, 1998). Além das consequências da super-
(INTERNATIONAL CENTRE FOR PRISON STU- lotação, os apenados passam por uma ruptura brusca
DIES, 2012). O Brasil aparece no contexto mundial de perda da liberdade, autonomia e relações familiares,
ocupando o quarto lugar entre os países com maior sobretudo as mulheres (LEMGRUBER, 1999).
número de presos: 496.25 apenados. Os Estados Uni- As mulheres que adentram o sistema prisional em
dos detêm o primeiro lugar com 2.292.133, seguidos sua maioria são jovens, solteiras, possuem filhos, têm
pela China com 1.650.000 e pela Rússia com 806.100 baixo nível de escolaridade e renda familiar precária.
(WALMSLEY, 2009). O crescimento da população Segundo Moraes e Dalgalarrondo (2006), em geral,
apenada brasileira é ainda maior do que o crescimento antes do encarceramento não possuíam estabilidade
da população em geral. A população apenada cresceu trabalhista, pois desempenhavam ocupações de baixa
23,7%, enquanto que a média de crescimento da po- qualificação com salários proporcionais ou estavam em
pulação brasileira foi de 5,9% entre 2005 e 2009. No situação de desemprego. Alguns estudos indicam que
final de 2011, a população carcerária no Brasil totalizou estas populações trazem consigo histórias de vida mar-
514.582 pessoas, sendo que 6,6% destas equivalem às cadas por um precário vínculo familiar, perda precoce
mulheres encarceradas (INTERNATIONAL CEN- dos pais, baixos índices de sociabilidade e acesso à edu-
TRE FOR PRISON STUDIES, 2012). Considerando cação, e por diversas formas de violência (WRIGHT
a taxa média de crescimento anual de 8% da população et al., 2006; TYE; MULLEN, 2006; GUNTER et al.,
apenada, estima-se que ao final de 2012 teremos uma 2008). Nesse sentido, a prisão para a população femi-
população carcerária de aproximadamente 626.083 nina implica em problemas ainda mais impactantes, a
pessoas (DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NA- exemplo da maior estigmatização social e altos níveis de
CIONAL, 2008). problemas de saúde com ênfase no sofrimento mental
Com relação ao sexo, os dados são ainda mais (MORAES; DALGALARRONDO, 2006; GUNTER
impressionantes. A população masculina apenada bra- et al., 2008; CANAZARO; ARGIMON, 2010).
sileira cresceu 106% entre 2000 e 2010, enquanto a Assim, preservar a garantia do direito à saúde de
feminina cresceu, no mesmo período, 261%. No ano apenados no Brasil é um desafio constante, especial-
de 2000, eram 10.112 mulheres presas (4,3% do total mente no que tange à saúde mental. O direito à saúde
de apenados) e no ano de 2010, o número saltou para está ancorado a priori em base constitucional e em um
36.573 (7,4%). Desse modo, enquanto a população amplo arcabouço normativo.
apenada masculina dobrou, a feminina triplicou (DE- Levando-se em consideração o atual conceito am-
PARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL, pliado de saúde e a perspectiva de cidadania e justiça
2010). Em contrapartida, o percentual de novos esta- social, entendemos que as experiências em instituições
belecimentos penais entre 2007 e 2009 foi de escassos prisionais devem preservar a saúde dos apenados. As-
5,9%. Em 2005, o déficit de vagas no sistema prisional sim, pensar essa população em seu contexto e na sua
brasileiro era de 90.360; em 2007, de 147.179; e em complexidade aparece como elemento essencial na bus-
2009, de 126.962 (DEPARTAMENTO PENITEN- ca da garantia e da promoção dos direitos amplamente
CIÁRIO NACIONAL, 2008). afirmados nas bases documentais nacionais, a exem-
Nesse sentido, percebemos que o crescimen- plo da Constituição Federal de 1988, a qual garante
to da população apenada não foi acompanhado através do SUS (Sistema Único de Saúde) o direito à

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preservação da saúde a qualquer cidadão brasileiro, in- Assim, pensamos que a preservação da saúde du-
clusive aos confinados no sistema prisional. rante o regime de reclusão é uma forma de trazer a essas
Mesmo antes da Constituição Federal, já em pessoas a dignidade que rege o direito à saúde presidiá-
1984, a Lei de Execução Penal (LEP) – Lei nº 7.210, ria. Enfatizaremos aqui as presidiárias em regime fecha-
de 11 de julho, foi criada objetivando a proporcionar do de reclusão, que, além dos deveres, também são pro-
condições para a harmônica integração social do apena- vidas de direitos como: assistência em saúde, material,
do, apontando como base do cumprimento das penas jurídica, educacional, social e religiosa.
privativas de liberdade e restritivas de direitos um pro- A hipótese que apresentamos a partir da aborda-
grama individualizado de pena. Destaca-se no Artigo gem da vida de presidiários no Brasil segue o seguinte
14 da referida Lei, que a caracterização da “assistência à raciocínio: um indivíduo que vive a exclusão, normal-
saúde do(a) preso(a) e do(a) internado(a) de caráter pre- mente acompanhada de sofrimento, em geral vivencia
ventivo e curativo, compreenderá atendimento médico, um momento de crise na vida. Assim, para minimizar
farmacêutico e odontológico”. E ainda acrescenta, no os impactos dessas experiências, os apenados geralmen-
parágrafo segundo deste mesmo artigo, que te desenvolvem mecanismos de adaptação a fim de se
adequarem às novas formas de vida.
quando o estabelecimento penal não estiver Nesse sentido, este estudo se propõe a conhecer
aparelhado para prover a assistência médica os significados do encarceramento, bem como as estra-
necessária, esta será prestada em outro local, tégias de enfrentamento a partir das falas de mulheres
mediante autorização da direção do estabeleci- presidiárias na Paraíba. Para levantamento e análise dos
mento (SILVA; MENEZES, 2001). dados recorremos à técnica de História Oral Temática,
à literatura e a alguns conceitos de Foucault, Goffman
O estreitamento do diálogo entre a saúde públi- e Erich Fromm.
ca e a justiça intensificou-se nas últimas décadas. Nesse A relevância e a pertinência desse estudo se dão
sentido foi lançada a Portaria Interministerial nº 1.777, pela magnitude do problema do crescimento popula-
de 9 setembro de 2003, que instituiu o “Plano Nacional cional prisional, especialmente o feminino, e das con-
de Saúde no Sistema Penitenciário”, a partir da necessi- dições nas quais essas pessoas estão institucionalizadas.
dade de melhor organização das ações e serviços de saú- Desse modo, pretende-se, com este trabalho, contribuir
de no sistema prisional com base nos princípios dou- para enriquecer a literatura ainda escassa sobre este
trinários do SUS. Recentemente, em 2010, foi lançada tema, bem como disseminar as experiências de encar-
pelo Ministério da Saúde a “Legislação da Saúde no Sis- ceramento para, a partir daí, traçar estratégias a fim de
tema Penitenciário” na tentativa de socializar algumas minimizar os danos decorrentes que possam vir a existir.
normativas com o conjunto de parcerias envolvidas em Quanto às bases metodológicas, este estudo segue
ações voltadas aos apenados, em especial aos gestores a natureza descritiva sob a perspectiva da abordagem
estaduais e municipais dos Planos Operativos de Saúde qualitativa. Nesse sentido, este estudo levará em consi-
no Sistema Penitenciário (DEPARTAMENTO PENI- deração a relação dinâmica entre a prisão e as encarce-
TENCIÁRIO NACIONAL, 2010). radas, isto é, um vínculo indissociável entre o mundo
Falar da saúde dos apenados enquanto direito não objetivo e a subjetividade do sujeito. A interpretação
é uma face baseada meramente no arcabouço legal e dos fenômenos e a atribuição de significados são básicas
normativo. A maioria das pessoas que se encontram nos no processo de pesquisa qualitativa. O ambiente natu-
presídios são culturamente, socialmente e, por vezes, fi- ral é a fonte direta para coleta de dados e o pesquisador
sicamente mais frágeis, estando assim mais vulneráveis é o instrumento-chave. O caráter descritivo se volta aos
e, por consequência, mais disponíveis para o adoeci- pesquisadores tenderem a analisar seus dados indutiva-
mento. E isso remete aos direitos humanos uma forma mente. Assim, o processo e seu significado são os focos
de buscar dignidade para essas pessoas. principais de abordagem (CHIZZOTTI, 2008).

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A abordagem qualitativa parte do fundamento de pesquisa e estar ciente de que nenhum ganho jurídico
que há uma relação dinâmica entre o mundo real e o seria recebido mediante sua participação. Assim, após o
sujeito, uma interdependência viva entre o sujeito e a convite, concordaram em participar e foram inclusas no
subjetividade do sujeito. Dessa forma, ela trabalha com estudo oito mulheres.
o universo dos significados, dos motivos, das aspira- Entenda-se aqui regime fechado, de acordo com a
ções, das crenças, dos valores e das atitudes, fatores estes Lei de Execução Penal, como a forma de confinamento
que representam um nível de realidade não expressa em indicado para o condenado sob pena privativa de liber-
pesquisas quantitativas. dade e que, para o cumprimento desta, destina-se como
Assim, ouvir as mulheres encarceradas e observar local a Penitenciária (BRASIL, 1984).
seu cotidiano prisional foi essencial para interpretar as Os dados deste estudo provêm de uma pesqui-
formas de vivenciar o cárcere, seus significados e estra- sa original com mulheres que cumprem pena em um
tégias de enfrentamento, bases de investigação desta presídio feminino na cidade de João Pessoa, capital da
pesquisa. Podemos aqui destacar o pensamento de Be- Paraíba. Essa Instituição de Segurança Média localiza-
cker (1994, p.103) que retrata que há um valor nas se na periferia da referida cidade. A escolha por esse
cenário de investigação se deu pela relevância de sua
interpretações que as pessoas fazem da sua representatividade ao conter cerca de 60% do total
própria experiência como explicação para o da população sob confinamento feminino do Estado
comportamento, assim, para entender porque da Paraíba (DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO
alguém tem o comportamento que tem, é preci- NACIONAL, 2010).
so compreender como lhe parecia tal comporta- A pesquisa segue os preceitos da Resolução nº
mento (BECKER, 1994, p. 103). 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, que rege as
pesquisas envolvendo seres humanos. O protocolo deste
Perceber os sujeitos como atores construtores da estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa.
sua história é permitir que eles compreendam os fenô- Todas as participantes assinaram o Termo de Consen-
menos que os cercam e identifiquem-se como sujeitos timento Livre e Esclarecido antes que qualquer etapa
ativos do processo social, histórico e cultural no qual da entrevista fosse iniciada. Diante da situação pecu-
eles estão inseridos. Nesse sentido, buscamos o depoi- liar que envolvia as depoentes do estudo, preservou-
mento daquelas que estão sob cárcere penal, e que, de -se o anonimato de suas identidades através de nomes
algum modo, construíram uma história. de pássaros, simbolizando a tão esperada liberdade. A
Tendo por instrumento o roteiro de entrevista se- amostra desta pesquisa totalizou oito participantes, que
miestruturado e a técnica da História Oral, sob as bases escolheram serem representadas pelos seguintes pássa-
conceituais de Meihy (2002), é que foi realizado o le- ros: ‘Beija-Flor’, ‘Bem-Te-Vi’, ‘Arara’, ‘Papa-Capim’,
vantamento do material empírico deste estudo. O ins- ‘Pardal’, ‘Sabiá’, ‘Falcão’ e ‘Gralha’.
trumento de coleta de dados continha perguntas nor- Previamente à entrevista foram realizada visitas no
teadoras sobre o objetivo do estudo e outras voltadas à local do estudo e marcadas as entrevistas de acordo com
caracterização da amostra. Considerando as modalida- a disponibilidade das participantes. Antes do início das
des de História Oral, esta pesquisa se apoia na História entrevistas explicou-se sobre os objetivos do estudo e
Oral Temática, visto que pretende conhecer e analisar, os direcionamentos éticos do mesmo. As entrevistas
a partir de falas de mulheres encarceradas na Paraíba, as ocorreram na sala de aula do presídio e foram marca-
experiências de institucionalização penal e suas práticas das, na sua maioria, pela emoção e pela disponibilidade
cotidianas de enfrentamento (MEIHY, 2002). para falar. A análise do material obtido nas entrevistas
Os critérios de seleção para participação no es- desencadeou a construção de uma grade temática ba-
tudo foram: estar em regime fechado de reclusão, ser seada em três eixos de investigação: 1 – Caracterização
maior de 18 anos, ter aceitado participar livremente da das encarceradas depoentes; 2 – Mulheres no cárcere:

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significados do encarceramento; e 3 – Práticas cotidia- de associação pode reforçar o estigma imposto às popu-
nas de enfrentamento no encarceramento. Estas grades lações pobres como indivíduos tendentes à violência e
detalham grandes temas tratados nas entrevistas: (a) à criminalidade.
representação do mundo da prisão, (b) experiência pes- No que se refere ao estado civil a maioria das en-
soal da prisão, (c) representação do cuidado na prisão e trevistadas se declaram solteiras. A interrupção de laços
(d) práticas de superação do cárcere. Nesse sentido, se interpessoais nas unidades prisionais femininas é um
apresenta a análise deste estudo. fato muito presente, o que geralmente não ocorre nas
É preciso, antes de detalhar a análise, refletir sobre unidades penais masculinas. A perda do companheiro
o ambiente no qual esta pesquisa se desenvolveu, o cár- após o cárcere é um fato muitas vezes encarado como
cere. Estudar o ambiente prisional é compreender, logo ‘destino’. Quanto a função materna também a maior
no início, que não haverá acesso a tudo e a todos, nem parte declaram-se mães com média de 1,1 filho, Diver-
mesmo o total controle temporal e espacial da pesquisa gindo dos achados de alguns estudos onde a media de
durante seu desenrolar. O trabalho de campo em uma filhos se apresentaram maior. Talvez a média menor de
unidade prisional estará sempre sujeito a contextos ins- filhos desta pesquisa pode estar associada a faixa etá-
táveis como situações de fuga e violência, entre outros. ria mais jovem com a qual se apresentaram as depo-
Destacado esse aspecto, passamos a apresentar os eixos entes (MORAES; DALGALARRONDO, 2006; TYE;
categóricos extraídos na pesquisa. MULLEN, 2006).
O primeiro eixo refere-se à “caracterização das en- Ressalta-se que de acordo com os relatos que mui-
carceradas depoentes”. Neste sentido, o perfil das apena- tos pais também se encontram encarcerados ou estão
das depoentes apresentou idades variando entre 22 e 44 foragidos da polícia ou até mesmo não reconheceram a
anos, com média de 29,3 anos. Esta característica foi si- paternidade dos seus filhos, o que, de certa forma, con-
milar a de alguns estudos. Antes da prisão, a maioria das tribui para o aumento da ansiedade das encarceradas-
presas encontrava-se desempregada ou ocupava baixos mães frente aos seus filhos, ficando a maioria destes sob
cargos profissionais (empregada doméstica, auxiliar de a guarda dos avós, sobretudo maternos.
serviços gerais, ambulantes). A baixa ocupação laborati- O tempo de encarceramento variou de oito meses
va também corrobora outras pesquisas (WRIGHT et al., a dois anos em regime fechado. E quanto às infrações
2006; TYE; MULLEN, 2006; GUNTER et al., 2008). cometidas, foram relatados crimes violentos (homicídio
Há pouca diversidade nas ocupações às quais as e roubo) mais incidentes, seguidos dos crimes não vio-
presas podem ter acesso. As funções destinadas às en- lentos (furto e estelionato). As características criminais
carceradas mimetizam as tarefas que executam normal- das apenadas encontradas no estudo também dialogam
mente no lar, reafirmando os papéis culturamente defi- com alguns estudos. As tipificações de crimes aqui en-
nidos para as mulheres em espaços privados, a exemplo contradas divergem da maioria das outras pesquisas,
da esfera doméstica. A escassez do Estado enquanto ge- visto que não houve menção ao tráfico de drogas/en-
rador de novas habilidades para as prisioneiras colabora torpecentes ou associação ao tráfico por parte das en-
para manter a vulnerabilidade social desta população. trevistadas. Contudo, sabe-se, a partir de vários outros
Somado a este fato tem-se o estigma da delinquência autores, que esta vem sendo a grande porta de entrada
conferido pela prisão (WRIGHT et al., 2006; TYE; para as mulheres no mundo do crime (CANAZARO;
MULLEN, 2006). ARGIMON, 2010; GUNTER, 2008).
O baixo grau de escolaridade geralmente é asso- No que tange ao imaginário social construído em
ciado a baixas condições socioeconômicas e este tipo de torno da criminalidade feminina, concebe-se que a mu-
análise requer cuidados, uma vez que não se pode afir- lher, em grande escala, cometera seus crimes em espa-
mar haver uma relação direta entre essas duas variáveis ços privados, já que o espaço público ainda lhe é pouco
(condições socioeconômicas e grau de escolaridade) em concedido, incumbindo nesse sentido também uma
relação a um maior índice de criminalidade. Este tipo forte influência da construção das relações de poder e

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gênero no papel feminino. Assim, os homicídios, furtos Propomos também conhecer a dimensão dos su-
e estelionatos trazidos pelas entrevistadas confirmam jeitos que fazem parte desta pesquisa a partir de um re-
estes achados, visto que ocorreram prioritariamente na ferencial conceitual de homo sacer trazido por Agamben.
esfera doméstica (MORAES; DALGALARRONDO, Os sujeitos envolvidos neste estudo cometeram crimes,
2006; TYE; MULLEN, 2006). desacataram as leis, ultrapassaram os limites da ordem
Dada a condição de ruptura com as regras sociais e da moral, rompendo um ‘acordo social’ proposto pelo
com a consequente ação transgressora do criminoso, a senso comum. O homo sacer refere-se a um ser cuja vida
sociedade lança mão de mecanismos de punição e recu- não há valor, enigmático, obscuro, detentor de caracte-
peração destes atores criminais. Nesse sentido, Foucault rísticas de sentidos contraditórios: o sagrado, o impuro
(1983, p. 235) traz a função da “prisão” como sendo um e o não sacrificável (AGAMBER, 2002).
lugar que “torna possível, ou melhor, favorece a organi- A abordagem psicanalítica terá destaque como
zação de um meio de delinquentes, solidários entre si, referencial teórico nas argumentações e na análise das
hierarquizados, prontos para as cumplicidades futuras”. falas das mulheres entrevistadas à luz dos preceitos de
Diante disso, passaremos a conhecer o lugar que Erich Fromm (1979) sobre a condição humana. Para o
o cárcere ocupa na vida e na história das mulheres que autor, “o ponto arquimédico do dinamismo humano
se disponibilizaram a colaborar com este estudo. Assim, está na singularidade da situação do homem. Assim, o
apresentaremos o segundo eixo categórico, intitulado conhecimento da psique humana precisa basear-se na
“Mulheres no cárcere: significados do encarceramento”. análise das necessidades do homem resultantes das con-
Porém, antes de falarmos sobre os sentidos e significa- dições de sua existência” (FROMM, 1979).
dos da prisão, precisamos destacar a dimensão subjetiva O homem, no tocante ao seu corpo e às suas fun-
que essa experiência do encarceramento traz. Portanto, ções fisiológicas, é vinculado ao reino animal. O funcio-
faz-se pertinente apresentarmos o conceito de subjetivi- namento do animal é determinado pelos instintos, por
dade no qual estamos apoiados para essa análise. A sub- moldes específicos de ação, os quais são determinados
jetividade volta-se a um mundo de ideias, significados e por estruturas neurológicas herdadas. A necessidade de
emoções construído internamente pelo sujeito a partir encontrar soluções sempre renovadas para as contradi-
de suas relações sociais, de suas vivências e de sua cons- ções de sua existência, com seu próximo e consigo mes-
tituição biológica; é, também, fonte de suas manifes- mo, é a fonte de todas as forças psíquicas motivadoras
tações afetivas e comportamentais (ROTELLI, 1990). do homem, de todas as suas paixões, seus afetos e ansie-
Para Rotelli (1990), a subjetividade é a síntese sin- dades (FROMM, 1979).
gular e individual que cada um de nós vai construindo A satisfação das necessidades instintivas (fome,
conforme vai se desenvolvendo e vivenciando as experi- sede, sono, apetite sexual) não é suficiente para fazer
ências da vida social e cultural. Essa síntese nos identifica, o homem feliz, não é sequer suficiente para fazê-lo
de um lado, por ser única, e nos iguala, de outro lado, mentalmente sadio. Tais necessidades são importantes
na medida em que os elementos que a constituem são porque têm suas raízes na química interior do organis-
experienciados no campo comum da objetividade social. mo e podem fazer-se onipotentes quando não atendi-
O pensamento foucaultiano traduz que tanto as das. Porém, a satisfação total dessas necessidades não
práticas jurídicas quanto as judiciárias são pontos im- é ainda condição suficiente para o equilíbrio mental.
portantes na determinação da subjetividade, uma vez Ambos dependem da satisfação das necessidades espe-
que, por meio delas, é possível estabelecer formas de cificamente humanas que nascem da condição humana:
relações entre os indivíduos. Tais práticas, submissas ao a necessidade de relação, transcendência, arraigamento;
Estado, passam a interferir e a determinar as relações necessidade de um sentimento de identidade e de uma
humanas e, em consequência, determinam a subjetivi- estrutura de orientação e devoção (FROMM, 1979).
dade do indivíduo. O cotidiano da prisão reflete sobre a condição hu-
mana na medida em que várias rupturas do meio social

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e familiar são abruptamente produzidas. A condição de e mutilação apresentados nas falas frente à experiência
isolamento decorrente do processo de encarceramento do encarceramento voltam-se à dependência do arraiga-
traz a estas populações o afastamento da família, filhos, mento humano e dos vínculos que o compõe, a exem-
parceiro, amigos e do ambiente social. Vivenciar o pro- plo de familiares e amigos, entre outros.
cesso de institucionalização revela, em geral, experiências Somada à quebra de vínculos, a atmosfera hostil
de ‘existência-sofrimento’ dos sujeitos. O sofrimento é do cárcere também traz uma peculiaridade da condição
uma “experiência essencialmente alteritária na qual o ou- humana para quem o vivencia. A sobrecarga de aspec-
tro está sempre presente para a subjetividade e se dirige a tos negativos torna as relações frágeis neste ambiente e
ele com o seu apelo e lhe endereça uma demanda” (RO- contribui significativamente para um clima de descon-
TELLI, 1991 apud AMARANTE, 1994). fiança no processo de relacionamento do ser, seja com
Partindo do entendimento da prisão enquanto de- as companheiras de detenção, com a própria família ou
tentora de mecanismos disciplinares dos sujeitos a fim até mesmo com a equipe que compõe o cárcere. Pode-
de submeter os indivíduos a seus mecanismos de poder mos identificar isto através dos seguintes relatos:
e degradadora da condição humana proposta por Erich
Fromm (1979), apresentam-se os segmentos de falas: O convívio aqui dentro do presídio é duro, é
mesquinho, é difícil. Rola muita falsidade, é
Para mim, estar hoje aqui dentro da prisão sig- um ambiente muito hostil. (Pardal)
nifica um vazio muito grande. (Gralha)
Estar na prisão é se sentir incapacitada, limita- Nesse lugar (a prisão), nós somos humilhadas
da. (Papa-Capim) de várias formas e por muitas pessoas (referin-
do-se aos funcionários e detentas). (Sabiá)
Eu me sinto, de certa forma, mutilada aqui
dentro do presídio. (Falcão) Os trechos das falas acima podem traduzir o refle-
xo da obrigatoriedade do convívio diário com pessoas
As falas apresentam os significados da prisão para desconhecidas e da hostilidade que ronda a atmosfera
apenadas que, em geral, revelam o processo de ‘muti- do cárcere. Os relatos de ‘Pardal’ e ‘Sabiá’ reforçam a
lação do eu’, o que gera mudanças da concepção de si, fragilidade das relações humanas na prisão permeadas
por rebaixamento, degradações e humilhações sofridas. geralmente por sensações de insegurança e desconfian-
Isso ocorre em função da morte civil, da substituição do ça, dificultando laços de amizade e companheirismo.
convívio familiar e da ausência da autonomia. Reforça- A instituição penal, pelo seu caráter de confina-
se assim a percepção ‘foucaultiana’ ainda hoje presente, mento, naturalmente estabelece barreiras e rompimen-
de que a prisão representa um espaço de “suplício da tos entre o mundo do trabalho, da família e das relações
alma” exercido através de seu poder institucionalizante afetivas que dificultam e perturbam o cotidiano prisio-
sobre seus sujeitos (AMARANTE, 1994). nal. Em função do abandono dos familiares, amigos e,
O ‘vazio’ de ordem emocional e material repre- sobretudo, da separação dos filhos, as experiências de
sentado nas falas acima. de ‘Gralha’, ‘Papa-Capim’ e “existência-sofrimento” são recorrentes e expressas por
‘Falcão’. vão de encontro à terceira necessidade humana sentimentos de tristeza, dor, desesperança e solidão,
de Fromm (1979), o arraigamento. Para o referido au- como os presentes nesses depoimentos:
tor, o acontecimento do nascimento do homem traz à
tona a separação do ambiente natural, um rompimento (...) ela (referindo-se à irmã) disse a mim, na pri-
com seus vínculos naturais. Mas, não poderia o homem meira vez que veio me visitar, que, por ela, eu iria
viver sozinho, isolado ou até desamparado. Existe a ne- mofar aqui na cadeia. É difícil escutar isso, foi uma
cessidade de deixar suas raízes naturais e se arraigar as dor muito grande. (Bem-Te-Vi)
raízes humanas. Assim, os sentimentos de vazio, solidão

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com ênfase na resiliência

Sinto necessidade do amor dos três homens mais im- O silêncio da noite é tenebroso, traz um peso
portantes da minha vida: meu filho, meu esposo e maior: a depressão. Não temos confiança, umsa
meu irmão. (Falcão) nas outras. (Papa-Capim)

Me sinto muito sozinha aqui, principalmente pelo Passamos muito tempo ociosas e sempre passa
desprezo da minha família, pela distância dos meus muita bobagem nas nossas cabeças. No mo-
filhos. (Arara) mento que eu fui presa, eu pensei em suicídio.
(Falcão)
Dói muito em mim quando eles (referindo-se aos
filhos) vão embora. Sei que eles sofrem muito em me Teve momentos aqui (na prisão) que eu pensei
ver aqui na prisão. Eu tô vendo meus filhos cresce- que ia ficar louca, não sabia mais quem eu era.
rem sem minha presença. (Sabiá) (Sabiá)

É explicita, nos depoimentos, a necessidade que Os agentes estressores presentes nas condições de
o ser humano tem, desde o seu nascimento, de se rela- vida da prisão podem contribuir, em grande parte, para
cionar com os outros, com seres que acrescentem algo à o comprometimento da saúde mental dos indivíduos
sua vida. A essa necessidade Erich Fromm deu o nome que ali convivem. Riscos para quadros de adoecimento
de ‘relacionamento x narcisismo’. Após seu nascimento, mental, a exemplo da depressão e até do suicídio, estão
o homem tem necessidade de se arraigar a outras pesso- presentes, em geral, na população apenada.
as. Mas não poderia o homem viver sozinho, isolado ou Assim, com a análise das falas, foi possível iden-
até desamparado. Assim, familiares, amigos, parentes e tificar, por meio das duas categorias apresentadas, as
companheiros do dia a dia passam a ser elementos pre- experiências de sofrimento e as relações com a saúde
sentes na vida das pessoas (MORAES; DALGALAR- mental de mulheres apenadas. O ambiente restritivo de
RONDO, 2006; TYE; MULLEN, 2006). direitos, as relações internas e familiares de desconfian-
O ambiente carcerário se caracteriza como um ça, a ociosidade, os conflitos intrapessoais, entre outras,
local não propício a suprir a necessidade de relaciona- foram condições vivenciadas identificadas como difi-
mento proposta por Fromm, pois a atmosfera dele (o culdades da vida no cárcere.
cárcere) gira em torno de fatores como opressão, des- O somatório destes fatores dificulta o cotidiano de
confiança e temor, dificultando o ajustamento emocio- cumprimento de sua pena. Nesse sentido, a prisão vem
nal dessas mulheres. se constituindo como um cenário constante de viola-
A referência do sofrimento atrelado à ausência de ções de direitos. Ela é um instrumento do sofrimento
uma pessoa querida apresentado nas falas, seja ele um que se abate sobre o corpo do acusado sem nenhuma
filho, um familiar ou um parceiro, vincula o sofrimento perspectiva renovadora. Diante destes fatores, essa po-
a uma experiência subjetiva na qual geralmente o outro pulação lança mão de diferentes estratégias para o en-
está presente. Fica notório que as apenadas têm difi- frentamento dos problemas vivenciados no cárcere, que
culdades em lidar com os afastamentos de familiares e podem ser ilustrados pela terceira categoria, que deno-
principalmente com a separação dos filhos. minamos de “Práticas cotidianas de enfrentamento no
Percebemos que o encarceramento, como se dá encarceramento”.
nos dias atuais, não significa uma estratégia terapêutica. Na busca pela superação das experiências de sofri-
Ao contrário, se apresenta favorável ao sofrimento crô- mento, as mulheres apenadas constroem, diariamente,
nico que permeia o desconforto psíquico: estratégias de enfrentamento para adaptarem-se à ins-
titucionalização prisional e aos seus desdobramentos.
O sofrimento que sentimos aqui dentro, a meu Os fragmentos de fala mostram o desenvolvimento de
ver, é algo inexplicável. (Beija-Flor) traços de resiliência diante das adversidades do cárcere.

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com ênfase na resiliência

Assim, será a partir do conceito de resiliência que obser- Sigo aqui conversando com minhas compa-
varemos as práticas cotidianas de enfrentamento. nheiras de sofrimento, quando conversamos
De acordo com Junqueira e Deslandes (2003), uma com as outras, nos sentimos melhor. Vou
a resiliência é um tema que vem sendo presente nos embora daqui, cuidar da minha mãe e de meus
últimos anos na esfera das ciências da saúde. Origi- filhos. (Sabiá)
nalmente, o termo ‘resiliência’ veio da física e refere-se
geralmente à resistência de materiais. Vários autores já Destacam-se os trechos de depoimentos de ‘Par-
conceituaram a resiliência. No entanto, não há um con- dal’, ‘Arara’, ‘Bem-Te-Vi’, Beija-Flor e ‘Sabiá’, que re-
senso conceitual. afirmam a dimensão do sujeito homo sacer trazido por
Na maioria das definições estão presentes os se- Agamben. Mesmo tendo cometido uma desordem mo-
guintes elementos: ‘adaptação/superação’, ‘inato/adqui- ral e estando encarceradas frente a este delito, as falas
rido’ e ‘permanente/circunstancial’. A resiliência não nos apresentam os sentidos contraditórios caracterís-
significa uma volta ao estado anterior diante de um ticos do homo sace, o impuro e o sagrado juntos, na
sofrimento, mas sim, a superação ou adaptação de um medida em que estas mulheres se apoiam em um poder
indivíduo diante de uma adversidade e a possibilidade divino como mecanismo de resiliência.
da construção de um novo caminho a partir do enfren- Assim, diante dessas características humanas, o
tamento de ambientes e situações estressoras (JUN- homem está sempre na busca de soluções renovadas
QUEIRA; DESLANDES, 2003). para as contradições de sua existência. E é essa busca
Nesse sentido, para as mulheres deste estudo, que surge como força impulsionadora de suas ativi-
cinco elementos contribuem para a resiliência diante dades para consigo mesmo e com seu próximo. Nesse
do cotidiano de confinamento. São eles: fé, trabalho, sentido, a espiritualidade como parte da vida do ser hu-
música, companheiras de cárcere, filhos e a espera pela mano e de sua condição de existência.
liberdade. Observemos os trechos a seguir: Possíveis relações positivas existem entre religio-
sidade e saúde mental junto a mulheres apenadas. De
Procuro superar essa vida do presídio através acordo com os autores, é possível que a conversão reli-
do trabalho que desenvolvo aqui com as redes giosa contribua para a “reconstrução da autoimagem e
(referindo-se à fábrica de redes) e, principal- forneça um sentido para a existência do indivíduo, não
mente, nas orações a Deus. (Arara) só para a sua situação de encarcerado, mas também para
outros aspectos como pobreza e exclusão social, falta de
O que tenho feito para superar tudo isso é me trabalho, desestruturação familiar, entre outros”.
apegar muito a Deus, tentar ocupar minha Os depoimentos de ‘Arara’ e ‘Bem-Te-Vi’ versam
mente em trabalhar, tentar não desanimar. sobre o trabalho como instrumento terapêutico e de es-
(Bem-Te-Vi) perança para o cotidiano prisional. O trabalho possui
um potencial ressocializador na execução da pena pri-
(...) E para superar esse sofrimento, essa tristeza vativa de liberdade. Nesse sentido, a ocupação laboral
que eu sinto tão forte em meu peito, me for- pode ser vista como um caminho real para uma vida
taleço em Deus e em minha mãe que vem me nova e uma perspectiva para um futuro longe da prisão.
acompanhando já há oito anos – (Beija-Flor) Também identificamos nas falas das depoentes o
desejo e a espera pelo (re)convívio com a família, es-
(...) a cada dia, eu canto, eu converso, até o pecialmente com a mãe e os filhos, como formas de
dia de dizer chegou a sua hora, a liberdade é enfrentamento na prisão e desejo de dias melhores.
sua e tenho certeza que vencerei tudo isso, creio De modo geral, entendemos que os mecanismos
em Deus que sairei daqui e não voltarei mais de resiliência manifestaram-se de diversas formas ao
– (Pardal) longo dos depoimentos, seja no âmbito individual, seja

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com ênfase na resiliência

na esfera coletiva. Acreditamos que as entrevistadas bus- alívio das experiências de sofrimento traduzidas pelo co-
caram uma dimensão simbólica de superação diante do tidiano do confinamento diante da falha institucional.
encarceramento através das falas de adaptação/supera- Visando a minimizar as experiências de sofrimen-
ção do cotidiano prisional. Estas mulheres extraíram da to que o cárcere acarreta e especialmente os danos à saú-
vivência prisional um determinado aprendizado e cul- de mental é preciso transformar a prisão em um ‘kairós’
tivaram, de alguma forma, estratégias de superação dos (da mitologia grega, significa momento certo ou opor-
eventos potencialmente estressores presentes no cárcere. tuno) e não reduzi-lo a seu caráter restritivo de privação
de liberdade. Nesse sentido é preciso proporcionar às
apenadas cursos profissionalizantes, cuidados especiali-
Reflexões finais zados à condição física e psicológica feminina; elaborar
estratégias de maior convivência com os filhos; garantir
Ao final desta pesquisa podem-se conhecer as experiên- o direito à visita íntima e a intimidade da visita; e pro-
cias de sofrimento presentes no processo de institucio- mover ações de apoio espiritual, entre outras ações.
nalização da prisão geradas, sobretudo, pelas vivências Caridade, direito, utopia ou possibilidade? A pre-
da “mortificação do eu” que conduziram as mulheres servação da saúde mental das encarceradas passa pela
apenadas a desenvolverem mecanismos de resiliência perspectiva da cidadania. A garantia da saúde larga-
como estratégias de enfretamento construídas para mente instituída nas bases documentais é um direi-
adaptação aas suas novas condições de vida. to inviolável a qualquer cidadão, sem nenhuma ação
O estudo reafirma a atmosfera de ausências e rup- discriminatória.
turas que, em geral, caracterizam as instituições prisio- Maior acesso a cuidados especializados (psicológi-
nais e estão para além do isolamento penal. A perda de cos, psiquiátricos, terapêuticos, laborais) e ações de pro-
laços afetivos familiares, de relacionamentos amorosos, moção à saúde devem fazer parte da agenda prioritária
a negação da maternidade, as fronteiras erguidas entre das ações de saúde desenvolvidas no cárcere. É preciso
o ser e o ambiente, o medo, a tristeza, o desconforto, que o Estado assuma seu papel para além do seu caráter
a ansiedade, a insegurança do futuro são experiências punitivo, reconhecendo e efetivando os princípios de
ameaçadoras à saúde mental destas pessoas. cidadania e dignidade que devem estar presentes mes-
Na busca pela sobrevivência, adaptação e até supe- mo em espaços punitivos.
ração do cárcere, as mulheres desenvolvem mecanismos Por fim, esperamos que este estudo contribua para
de resiliêencia baseados em Deus, no trabalho, no amor o debate sobre a saúde das prisões no Brasil e estimule
pelos filhos, das companheiras de cárcere; e na esperança a realização de novas investigações com a finalidade de
da liberdade. Os mecanismos de enfrentamento corres- ampliar o conhecimento sobre a experiência prisional e
pondem aos suportes emocionais e sociais na busca pelo suas relações com a saúde mental.

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