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1. Por que a amizade está em crise?

Os Evangelhos mostram muitos exemplos de belas


amizades.
Jesus era amigo de Marta, Maria e Lázaro
(provavelmente desde o tempo de infância).
Era amigo de João Batista (além de ser seu parente),
por isso fica abatido quando sabe que João foi degolado por
Herodes.
Jesus era amigo dos Apóstolos. Não eram apenas
“discípulos”, “aprendizes” de um grau inferior. Ele fazia
questão de chamá-los de “amigos”.
A tal ponto que a última palavra que dirigiu a Judas
foi essa “amigo”!

Será que essa amizade leal, verdadeira, autêntica,


sincera, continua em alta nos nossos dias?
Um autor, num artigo intitulado “a amizade está em
crise?” levantava a seguinte questão:
“A amizade estará ainda em vigor na sociedade atual ou, pelo
contrário, era mais característica de épocas passadas?
A vida social de hoje baseia-se nas relações pessoais ou antes
nas relações impessoais?”
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É uma questão importante. Será que o nosso mundo


está virando um mundo massificado, onde as pessoas tendem
a ser cada vez mais solitárias?

E a solidão é uma das coisas que mais esvazia e tira o


sentido da vida de alguém.
A maior realização do mundo, se for para ser
usufruída sozinha não vale nada.
(Descobrir a cura do câncer sozinho numa ilha e não poder
falar nada para ninguém).
(São Tomás) “Se se trata de felicidade na vida
presente, deve-se dizer com o filósofo [Aristóteles] que ‘o
homem feliz necessita de amigos´. Não para a sua utilidade,
uma vez que ele se basta a si mesmo... mas para o bem de sua
ação, isto é, para ter a possibilidade de lhes fazer o bem, para
encontrar sua alegria no bem que eles realizam e uma
colaboração no bem que ele realiza. O homem tem
necessidade da colaboração de seus amigos para agir
virtuosamente” (STh., I-II, q.4, a.8)
Para que uma pessoa possa ser feliz a amizade é uma
necessidade.
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Não porque precise para o seu próprio bem, mas para


poder fazer o bem aos outros..., para alegrar –se com o bem
dos outros...
E precisa da ajuda de amizades para atuar
virtuosamente
E no entanto há muitos que sofrem dessa “doença” da
solidão, porque é bastante evidente que a amizade está em
crise.

E por que a amizade está em crise?


Poderíamos analisar alguns motivos.

O 1º motivo da crise da amizade é que o arqui-


inimigo da amizade está em alta: o “egoísmo”.
No mundo moderno das grandes cidades isso fica
mais avivado.
As pessoas tendem a isolar-se, a ficar “cada um na
sua” (a minha música no meu fone de ouvido),
a limitar-se a cuidar da própria vida (não quero me meter no
problema do outro que quebrou o braço),
a fugir de um relacionamento pessoal (muita foto postada nas
redes sociais, mas um distanciamento dos problemas reais das
pessoas)...
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se fala muito de autoestima e nada de “alter-estima” (estima


pelo outro)

Com isso se tende a gerar uma atitude de fechamento


em si e de “falta de confiança” nos outros.
A atitude inicial com as pessoas deixa de ser “em
princípio confiar, e só desconfiar se houver algum motivo”;
para “em princípio desconfiar, e só confiar depois que houver
muita segurança”.
Isso trava enormemente os primeiros momentos da
amizade.

Também dificulta a amizade – sobretudo nas cidades grandes


– o “desencontro” (por chamar de algum modo). O ponto
de encontro é apenas
o facebook (que não é encontro porque não é pessoal,
individual, em carne e osso),
ou o corredor da escola,
ou a sala de aula no inglês,...
mas faltam outros momentos.
Talvez porque as pessoas moram muito longe uma das
outras,
porque compram as coisas em supermercados diferentes,
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porque vão tomar um café em lugares onde não se encontram.


Essas distâncias fazem com que seja necessário um
“esforço” para todo encontro que não seja aquele do ponto de
encontro natural;
esforço para marcar um almoço,
para sair para algo no fim de semana...
E nem sempre se está disposto a fazer esse esforço.
(Se você quiser fazer um teste, tente marcar uma ida ao
cinema com 3 amigas/os. Mesmo que você use a internet,
você vai ter que gastar tempo até conseguir que o plano saia,
porque umas não vão responder, outras vão discordar, várias
pessoas não vão dizer nada...)

Isso fomenta um fenômeno do nosso tempo que


poderíamos chamar “amizade à distância”.
A internet é boa como um meio a mais na amizade;
mas não como substitutivo do contato pessoal.
Pessoas que poderiam ir à casa do/a amigo/a e acaba
falando pela internet.
Que sempre é um certo escudo.
É uma certa máscara...
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A amizade também está em crise porque são fáceis os


relacionamentos superficiais que não chegam a ser amizades:
é o mero “coleguismo”.
Não é infrequente o caso da pessoa que tem muitos
colegas e poucas ou nenhuma amizade.
(Lembro-me do caso de uma pessoa que passava o dia
rodeada de colegas – no inglês, na academia, na escola – mas
chegava à noite e chorava no travesseiro porque se sentia só).

Junto a isso, outro motivo de crise da amizade


verdadeira, é a substituição da amizade pela “turma”.
Todo mundo junto no shopping,
na pizzaria, para tirar xerox, no show de música,...
Mas é tudo tão superficial.
Tem casca de amizade, mas não tem miolo de
amizade.

Alguns indícios dessa crise da amizade verdadeira se


notam em coisas aparentemente sem importância, mas que
são significativas:
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Não saber coisas importantes das pessoas: o nome


completo das pessoas (nome e sobrenome). (A Ti; o Zé; a
Té...)
Não saber quantos irmãos tem.
Não conhecer a família (embora more na cidade).
Não saber o dia de aniversário sem o auxílio das
mídias sociais.

2. Amizade autêntica

Conhecendo todas essas dificuldades, devemos cada


um de nós pôr todos os meios para que as nossas amizades
sejam verdadeiras.
Não devemos nos limitar ao mero “coleguismo”.

(Diz um famoso escritor inglês) “Enquanto a amizade


foi a fonte principal da minha felicidade, o trato ou a
companhia em geral sempre supuseram muito pouco para
mim, e não posso compreender bem porque alguém pode
desejar conhecer mais pessoas do que aquelas com as que
pode fazer uma verdadeira amizade” (C.S. Lewis, Cautivado
por la Alegria)
Há gente que com os meios modernos quer
multiplicar indefinidamente o número de contatos que tem
(se quiser se candidatar para algum cargo político tudo
bem,...)
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Devemos poder ter toda a confiança nas nossas


amizades.
Se não são assim é que ainda não são verdadeiras
amizades.
Haverá falha por parte delas, ou parte nossa, ou por
ambas as partes.

São Josemaria Escrivá, num capítulo de um livro seu,


trata da amizade e num pensamento breve fala de 3
características que se devem dar na amizade verdadeira:
pessoal, sacrificada, sincera (cfr. S 191).

a) A amizade deve ser “pessoal”.


Mesmo que haja um grupo de 4 amigas/os, tem que haver
uma linha de ligação pessoal entre cada uma das 4 pessoas.
Exige “conversas individuais”, ocasiões de trabalho
juntos, de lazer juntos.

Amizade pessoal é aquela que é “profunda’. Entram


em jogo os ideais, o modo de encarar a vida, as dificuldades...
Fala-se das dificuldades familiares, dos problemas
econômicos, dos maus momentos e dos bons momentos.
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(Sto Agostinho é quem fala de um amigo de juventude,


afirmando que os dois pareciam ter uma só alma, de tal forma
estavam compenetrados e a tal ponto de profundidade havia
chegado a amizade).

Isso exige criar oportunidades de “conversar”,


de papos tranquilos, de troca de ideias (é uma das coisas que
mais falta nesse nosso mundo moderno de comunicação tão
rápida... que ninguém consegue falar com ninguém...).
Num churrasco, num almoço calmo, num trabalho da escola
em que se tem que estar lado a lado durante longas horas.

b) A amizade, para ser autêntica, deve ser


“sacrificada”.
Sacrificada porque sacrifica o egoísmo.
A Bíblia fala do contraexemplo: “Há amigo que só o é para
a mesa, e que não o será no dia da tribulação” (Eclo. 6,10).
A amizade sacrificada busca o bem e a alegria da
outra pessoa “antes de buscar o próprio”.
Acompanhar para ir ao banco; ajudar a digitar o
trabalho; ficar ouvindo uma história longa que a pessoa gosta
de contar e que nós já conhecemos.
Vencer a preguiça para dar uma passada na casa,
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para dar um telefonema, para passar na outra classe e


perguntar alguma coisa...

c) A amizade tem que ser “sincera”.


- (Diz um autor) “A diferença entre o
relacionamento com um conhecido e aquele que
estabelecemos com um amigo está em que, no primeiro caso,
procuramos apresentar uma imagem agradável e atrativa;
empregamos a linguagem como um disfarce e a conversa
como uma camuflagem. No segundo caso, deixamos de lado
as fórmulas de cortesia e os convencionalismos, e
procuramos mostrar-nos tal como somos, abrindo o coração”.
((Amizade com Cristo))

Deve ser um relacionamento transparente.


Não é preciso fingir, nem fazer pose, nem ocultar
nada.
Não é preciso fingir porque se sabe a pessoa que é
amiga compreenderá a nossa fraqueza, o nosso furo (e
“soltará os cachorros” também) , a bagunça no quarto (e dirá
que está uma bagunça), a nota baixa (e consolará).
(S. Jerônimo) “A verdadeira amizade não deve
dissimular o que sente” ( Epist., 81,1)
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Dizer com paz da nossa chateação, da alegria, do que


se pensa.
E quando há sinceridade na amizade, se toma a
“defesa” das pessoas amigas.
Não permitir que ninguém fale mal delas na sua ausência.

Se há sinceridade se “compartilham os ideais” de


fundo:
os projetos de vida, a fé, as coisas em que se acredita...
E se “corrige” aquilo que se vê que não está bem (um
caminho que está levando para o lado errado;
um comportamento incoerente...)

Em algum caso (raro) será “preciso cortar uma


amizade”. Porque ao invés de estar contribuindo para o bem,
está levando uma das partes, ou as duas para baixo.
Para a droga; Para o afastamento da fé, Para um
comportamento totalmente irresponsável. Ao invés de levar
para cima, leva para baixo.
(Um dos personagens de D. Quixote conta uma longa história
de dois amigos em que um aceita fazer uma coisa errada por
amizade pelo outro: testar a esposa do outro para ver se ela
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era realmente fiel. E a coisa acaba mal, porque os dois se


apaixonam e acabam traindo o marido burro por testar a
esposa. E o Quixote comenta)
“Os amigos verdadeiros hão de provar os seus amigos
e valer-se deles, como disse o poeta, usque ad aras; isto é,
que não se devem valer da sua amizade em coisas que sejam
ofensa de Deus. (...) a amizade de Deus por nenhuma da terra
se há de perder!”
(Cervantes, Dom Quixote, I, 33)
Por outro lado a amizade se sé é verdadeira tende a ser
“duradoura”. Dizia Newman: “neste mundo de mudanças, é
uma grande coisa ter amigos que não mudam”
Mas também dizia com razão Machado de
Assis):“Que importa o tempo? Há amigos de oito dias e
indiferentes de oito anos” (Ressurreição, cit in Migalhas de
Machado de Assis, nº18)
Tem que haver amizade verdadeira,

3. Vida cristã e amizade

A vida cristã “facilita muito” o caminho para a


amizade: aumenta a generosidade, o otimismo, a
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cordialidade, a gratidão, o espírito de sacrifício, o


esquecimento próprio...

Tenho visto muitos exemplos interessantes de pessoas


que só tinham “turma”, ou que eram muito fechadas, ou que
se utilizavam das amizades... e que ao terem uma vida cristã
séria “criaram raízes” na amizade (para algumas pessoas a
primeira amiga de verdade foi a do centro da Obra, embora a
pessoa começasse a frequentar o ctr com mais de 18 anos...)
A vida cristã faz com que uma alma tenda a “ampliar
o círculo” de amizades e a aprofundar nas amizades que já
tem.
As amizades vão deixando de ser um mero meio de
afastar a solidão, e passam a ser um meio de “melhoria
pessoal” (porque se aprende das qualidades das outras
pessoas), e de ajudar a que as outras pessoas melhorem
também.
Quantas vezes um bom exemplo de uma pessoa amiga
ajuda a melhorar e a “mudar de vida’. (Raissa Maritain que
conta no seu livro “As grandes amizades”, a influência tão
positiva que tiveram as amizades na sua vida, para encontrar
um sentido para a vida e a fé)
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Como seria bom que através das nossas amizades


ajudássemos outras pessoas a serem mais felizes, mais
realizadas, mais coerentes...

Para nós a amizade não pode estar em crise.


Deve ser um valor cada vez mais cultivado.

Peçamos a Nossa senhora que interceda junto a Deus,


para que Ele nos dê um coração grande. Um coração em que
caibam muitas boas amizades. Em que caibam muitas
amizades profundas.

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