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Campo/evento/arquivo, as possibilidades do
arquivo atual como exposição problemática
de (algumas) obras contemporâneas

Cristina Ribas
A partir de uma prática de arquivo propõe uma articulação dinâmica entre o campo
da arte, os eventos que o circunscrevem e iniciativas historiográficas tais como os
arquivos. Realizações atuais em arte contemporânea brasileira motivam a escrita do
artigo, que remonta a estudos locais, como o conceito de “circuito” desenvolvido
por Ronaldo Brito para pensar um campo em constituição.
Arquivo, arte contemporânea, evento, historiografia.

O sentido nasce da, se forma na coo- se caracterizam estritamente enquanto tais,


peração linguística.1 visto que pelo perfil de suas ações fazem
migrar práticas críticas e políticas, incorpo-
Observando alguns trabalhos de arte reali- rando-as, desenvolvendo cruzamentos en-
zados no Brasil, entre meados de 1999 e a tre elas e tornando-se organizadores, edu-
atualidade, elaboro “epiteses”2 e dúvidas que cadores, gestores, historiadores, mediadores,
analisam a forma como eventos seleciona- entre outros atores, dessas mesmas ações.
dos interferem – e simultaneamente corro- Refiro-me a eventos recentes, cuja caracte-
boram – na circunscrição de um campo da rística comum é, além de propor articula-
arte, de um campo móvel e problemático, ções específicas para o acontecimento da
que interage nas determinações de uma his- arte, a constituição dessa especificidade na
tória e de um arquivo. Apresento questões forma de “esferas públicas”3 de debate so-
para elaborar no contexto brasileiro um bre tal acontecimento. Importam nessa “es-
debate que corre o mundo na atualidade: a fera pública” as intensas trocas sociais pro-
necessidade dos arquivos e a ativação de porcionadas entre participantes não identifi-
memórias a partir deles. O artigo apresenta cados estritamente ao campo, mas a ele as-
uma pesquisa em curso, sem tomar o tem- sociados pela via direta das práticas artísti-
po necessário de elaborar uma tradução mais cas, comunicativas, criativas e expressivas que
afinada dos termos que trafica (elementos se desenvolvem e de problemáticas sociais
de investigação ancorados em autores cita- vividas por todos. Os conceitos “campo”,
dos) e arriscando observar uma proprieda- “evento” e “ arquivo” não são, antes de tudo,
de (campo artístico) no atravessamento de utilizados como vocabulário comum pelos
outros estudos, a ver de que forma historia- organizadores desses eventos e são invoca-
dores, pesquisadores, críticos e artistas iden- dos neste artigo como instrumentos de sua
Arquivos do presente tificados com o próprio “campo da arte” têm articulação, abrindo um debate formulado
elaborado sua constituição.
organizado por A
Arquivista e Cristina em perguntas e desejos partilhados.
O foco motivador da pesquisa constitui-se
Ribas, Arquivo de
emergência, Museu da Observo os eventos Arte esfera pública/Base
Maré, Rio de Janeiro, de iniciativas organizadas por artistas e suas Móvel (2008), Circuitos Compartilhados
2009 “coletivações”. Artistas que muitas vezes não (2007-2009), Jogo do E.I.A. e Experiência

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Imersiva Ambiental (E.I.A.) (2005-2009), um campo da arte pela natureza dialógica
Assembleia Pública de Olhares, coletivo das negociações de valor ou emissão de for-
Contra Filé (2007), FebeaRio (Festival de ças nesse campo. Atualmente observa-se no
Besteiras que Assola o Rio de Janeiro, 2008), Brasil, tal como em outros sítios, o (res)sur-
MIL971 (2007), Lotes Vagos (2005-2009), gimento de práticas artísticas coletivas e
Reverberações (2004/2006/2008) e ante- efêmeras significativas, que elevam o evento
riores Rejeitados nonono (2002), Encontro ao teor de obra (e confundem os lugares/
ACMSTC ou Coletivos no Prestes Maia conceitos que apartam obra e evento) e que,
(2003), Salão de Maio (2004) Catadores de portanto, articulam diferencialmente sua re-
Histórias (2003-2006), entre outros. Eles são lação com instituições de legitimação, como
“epicentros”4 de outros tantos eventos que o museu de arte e seus agregados. A organi-
os atravessam, sendo também efêmeros e zação desse arquivo, levada a cabo pela Ar-
preocupados, cada um a sua maneira, em quivista com meu apoio,6 mistura-se de cer-
estabelecer esferas públicas dirigidas também ta forma a minha própria trajetória artística
a um debate sobre a arte e o artístico longe e, sem dúvida, surge de uma paixão conferida
espacialmente das instituições de investiga- também nos eventos: reaver um espaço
ção ou legitimação, como a universidade, o público não como palco, mas como territó-
museu, a escola e a galeria de arte. Os even- rio colaborativo de significação, de produ-
tos evidentemente “vazam” as incursões do ção de valor e de revolução sensível cujas
texto provocando atravessamentos ferramentas comuns podem ser criatividade,
conceituais e espaciais incapturáveis. O de- sensibilidade, expressividade, intervenção,
safio é manter o olhar atento à forma de imaginação, ad infinitum.
articulação que propõem ao campo da arte
e ao arquivo sem sucumbir à captura de uma O conceito de “esfera pública” reelaborado
estabilização (historicizar sem crítica?). Como por Paolo Virno é central. Espaço de
parte do método, o denominador comum performatividade, onde as ações humanas
eleito para analisar a relação dinâmica cam- são compartilhadas ou tornadas públicas e
po/evento/arquivo não pretende achatá-los por isso exercitadas em modos políticos.
em uma definição majoritária, classificatória. Assim também o conceito de General
O “evento” é problemático em si, apresen- intellect (capacidade criativa e cognitiva ele-
tando as contradições que o constituem, vada à categoria de “recurso” no capitalismo
sendo por isso essencial apontar a relação contemporâneo) que o autor associa à
com a complexidade de um “campo” (e não virtuose das obras contemporâneas e eu
um sistema), visto que interatuam incitando adiciono as iniciativas críticas que as acom-
novos paradigmas às articulações entre as panham e agora as constituem. Na atualida-
porções acadêmica ou científica, autônoma, de, segundo o autor, a comunicação é “com-
militante, estatal, institucional e mercadológica petência linguística comum”, mobilizada por
da arte, e arquivística. um “intelecto [que] tornou-se a principal
força produtiva, premissa e epicentro de
As assertivas surgem de uma prática do ar- qualquer poiesis”.7 A instância reflexiva de
quivo chamado de Arquivo de emergência,5 parte das proposições contemporâneas de
que começa no Brasil em 2005, como dis- interesse parece tangenciar o desenho des-
positivo formado por material documental sa esfera pública que, por sua vez, introduz
impresso e pela realização de ações, desti- práticas políticas de ordem não hierárquica
nado a articular eventos em arte contempo- como intervenção no cerne da constituição
rânea brasileira que atuam, conforme a tese desse campo, perto ou não de algumas pos-
do próprio Arquivo, na (in)determinação de sibilidades de cristalização ou de um “limiar

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de formalização” (história da arte?), aproxi- te do potencial crítico que pode fomentar
mando conceitos de Michel Foucault.8 Por- iniciativas historiográficas. Renomear, por
tanto, o desejo da Arquivista seria articular outro lado, pode ser visto como colocar um
o arquivo da seguinte forma: se o arquivo nome em movimento: rearticulá-lo. Essa é
está conectado às ferramentas que herda do também a natureza de um conceito.
seu feito “fazer-história” e os eventos são a
abertura de perguntas; ao emitirem-se críti- Os eventos selecionados pelo arquivo res-
cas ao primeiro o mesmo deverá fazer-se pondem antes a uma chamada comum: ca-
como o segundo, estrutura duplamente rígi- racterizam-se como eventos artísticos, mes-
da e macia, determinante e aberta instigando mo que na maioria dos acontecimentos esse
sua participação em uma dita esfera pública.9 “dado” não seja um aporte visível nem
condicionante da experiência. Outro aspec-
Se, em um momento, a intenção do Arqui- to comum é que, segundo entrevistas reali-
vo de emergência diante desses eventos se- zadas, derivam de acontecimentos
ria produzir uma sistemática de arquivo or- posicionados em uma virada histórica reple-
ganizando materiais documentais em um ín- ta de quebras de paradigmas sociais e cultu-
dice classificatório (“assuntos”), esse feito se rais: “ambientes” de Hélio Oititica, experi-
apresenta em parte contraditório visto que ências relacionais de Lygia Clark, recupera-
a natureza dos eventos pode ser exatamen- ção intensiva do movimento Internacional
te escapar à determinação de uma indexação, Situacionista e leitura coletiva de edições
mas talvez não de um conceito. Os espaços traduzidas autonomamente de movimentos
dialógicos que os eventos promovem urbanos que fazem da criatividade ferramenta
interatuam com as nominações da experi- de protesto e posicionamento.10 Reiteran-
ência proposta (“arte”). No campo dos ar- do o foco nos problemas de arquivo, é ne-
quivos, nomear é fazer pertencer e, portan- cessário investigar a natureza disruptiva de
to, nomear enquanto arte é demarcar um eventos em arte contemporânea brasileira
território de sentidos. A não normatividade e pensar se podem arquivos expor a circuns-
das práticas artísticas atuais distante das crição problemática dos próprios eventos,
formalizações modernas poderia atestar uma ao mesmo tempo em que o arquivo, ele
inviabilidade total de aliar uma formação à mesmo, corrobore a elaboração crítica de
outra (o evento ao arquivo), análise fatalista sua própria articulação (exposição crítica do
que só pode ocorrer distanciada da íntima próprio arquivo) e não sobreponha por meio
observação das metodologias criativas atuais de seus documentos sua teoria ou sua lei às
propostas pelos coletivos ou mesmo distan- micropolíticas agenciadas pelos eventos.

Arte e esfera pública,


organizado por Graziela
Kunsh e Vitor César
Centro Cultural São Paulo,
São Paulo, 2008
Participavam os projetos
Arquivo de emergência,
Café Educativo e Base
Móvel

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Epiteses caracterizam a história moderna e contem-
porânea.
Aponto duas epiteses como proposição de
abertura de um espaço discursivo, neologis- O [AE] ARQUIVO DE EMERGÊNCIA
mo para delatar a investigação em curso. A é um arquivo independente, de inte-
primeira, a proposição de um campo de sig- resse público. A Arquivista o concebeu
nificação artístico tomado por “campo da e é encarregada de gerenciá-lo. O [AE]
arte”, cujo atributo mais intensivo consiste é aberto para o futuro. O marco tem-
nas relações de cooperação linguística ope- poral dos MATERIAIS [M] que o [AE]
radas por seus agentes, atravessadas eviden- arquiva são ações realizadas no Brasil
temente pelas positivações ou heranças de inscritas no > CAMPO a partir de me-
uma história e de normatizações de uma ados de 1998 quando se observa não
prática, discursos, produção e captura de só neste território uma mobilização di-
valor.11 A segunda proposição, a de que uma ferencial na criação e coletivização da
teoria ou uma história recente da arte se ARTE em contato intenso com demais
assumem como paradoxo das práticas polí- práticas artísticas, comunicativas, criati-
ticas e de suas negociações sociais,12 modifi- vas e expressivas que constituem uma
cando as sistematizações e as historiografias > ESFERA PÚBLICA.
(crítica dos processos históricos). Nesse sen-
tido a “esfera pública” instiga a produção dis- O [AE] possui um formação [M] MA-
tinta das teorias e das histórias, sobretudo TERIAL e uma porção [CS] CRÍTICO-
porque se orienta por conhecimento SITUACIONAL exposta na > PESQUI-
colaborativo, mais perto das dinâmicas anár- SA. A dimensão [CS] é a parte que cabe
quicas de aprendizagem do que exatamen- ao ARQUIVO no fomento de uma
te da linearidade mestre/aluno que caracte- ESFERA PÚBLICA, participando de re-
riza os modos de ensino e parte das trocas des e projetos e promovendo ações
sociais que vão fundamentar a universidade como o acompanhamento da produ-
(e por consequência a sociedade) ocidental. ção de grupos e artistas, conversas, en-
trevistas, encontros, exposições, produ-
Arquivo/laboratório ções críticas, seminários, entre outros.
Primeiro instrumento de articulação: o pon- O Arquivo resulta antes de uma prática de
to de articulação comum (ou o laboratório) colecionismo simultânea à atuação e ao
de emergência dessas epiteses é o Arquivo acompanhamento de diversos movimentos
(que poderá servir como teoria reflexiva de nos 10 anos que decorrem, e se especializa
outros arquivos), investigando sua natureza na determinação de uma “lei” de arquivo
e sua especificidade no desafio de resguar- movente como o embate constante das di-
dar na situação proposta acontecimentos em nâmicas criativas e expressivas em curso.
curso. O Arquivo de emergência não apare- Incerta se é possível de desviar, o desejo
ce gratuitamente como instrumento inapagável do arquivo de operar o registro
discursivo das práticas artísticas, mas da ur- (ou “marca”) é uma vontade de “absoluto
gência de produzir uma estratégia de articu- começo”, uma eficiência que devo FebeaRio, organizado por
lação reflexiva dessas práticas em aconteci- equacionar em sua forma potente (poetica-
Grupo Py (Daniel
Toledo, Julia Cseko, Joana
mento que oferecem uma trama complexa mente?), e não com índices paternalistas de Cseko), Espaço Cultural
impossível de ser mapeada em totalidade. Sérgio Porto, Rio de
Investiga e interpõe-se com as Janeiro, 2008
transmissividades uma vez que as rupturas

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origem, identidade, estigmatização. Jacques adas formações / MATÉRIA DE AÇÕES
Derrida indica que o princípio do arquivo é / CARIMBOS EXISTENCIAIS / lugar de
o princípio ele mesmo: da natureza ou da liberdade, contradição, limite, embate.
história, “ali onde as coisas começam; princí-
pio físico, histórico ou ontológico, mas tam- Observando a INSTITUIÇÃO PRO-
bém princípio da lei ali onde os homens e BLEMÁTICA dos [E] [EST] ao força-
os deuses comandam”, lugar de onde se rem barreiras de condicionamentos ou
exerce a “ordem social” e a partir de onde cerceamentos das > CONDIÇÕES DE
ela é dada: “princípio nomológico”.13 É pre- PRESENÇA possíveis para a ARTE na
ciso, portanto, rever os caminhos que insta- atualidade considerando vetores soci-
lam esse princípio nomológico e as conver- ais, econômicos, políticos e seus infini-
sas que articulam suas ressignificações.14 tos entrecruzamentos, o [AE] preten-
de expor esta / INSTITUIÇÃO PRO-
O “absoluto começo” não é aquele absolu-
BLEMÁTICA / e colocar-se também
to “no passado” de algo que foi “perdido”:
como instrumento de > RUPTURA.
lidamos aqui com uma história em emergên-
cia, de fatos recentes e atuais, cujas reverbe- Campo
rações não deixam silenciar as potências cri-
ativas. Não se trata daquela utopia iluminista Aportando o segundo instrumento de arti-
(conhecimento/verdade) – por mais que culação neste trabalho dos conceitos, a no-
depois de mencionar “arquivo” o encadea- ção de “campo” aplicada a este artigo trafi-
mento de nomos seguintes, pendurados quei da concepção no Arquivo de emergên-
nessa “sanga”, sejam a universidade, o co- cia, já exposta. Rosalind Krauss, em um exer-
nhecimento, a enciclopédia e outros tan- cício de aplicação inicial do conceito postu-
tos...15 – e aí manteremos os olhos atentos lou na década de 1970 um “campo surgido
para não sucumbir às determinações da problematização do estatuto da “escul-
normativas de um superdispositivo cuja ope- tura”.16 A escultura passa a ser qualquer coi-
ração violenta “dentro e fora” (do arquivo) sa que não paisagem nem arquitetura: tor-
dê seguimento a práticas disciplinares. O alar- na-se assim uma “combinação de exclusões”.
gamento do arquivo contemporâneo preci- “Campo”, portanto, não é apenas a aparição
sa sofrer uma articulação ampla: arquivo não de um novo termo no corpo de práticas
dentro e fora, mas através dos eventos. Ar- artísticas, mas refere mudanças processuais
quivo como novo dispositivo de articulação... que consideram a incidência de “vetores de
forças” que modificam a ideia de autonomia
O ARQUIVO DE EMERGÊNCIA sur- de um objeto artístico.
ge numa articulação entre o COMUM
e algo que se propõe chamar CAM- Ampliando espacialmente, e transportando
PO. Não se sabe se pode ser chamado para um contexto brasileiro e atual este
de lugar. O CAMPO surge no aconte- “campo” pode ser tomado como ambiente
cimento da ARTE. É inscrito pelas pró- relacional de acontecimento, inscrição,
prias ações. O CAMPO é o lugar de valoração e institucionalização da arte. Um
RESIDÊNCIA MÓVEL das práticas que campo cujo objetivo subjacente parece ser
Lotes Vagos, projeto promovem a ARTE nas suas mais vari- a investigação epistemológica da arte, visada
realizado por Louise Ganz a partir de relações desenhadas no campo
e Breno Silva, convite para da filosofia política ou na filosofia do sujeito.
lançamento do livro Constitui-se na projeção conceitual um “pla-
no de imanência”, segundo Gilles Deleuze.
Espaços colaterais, Belo
Horizonte, 2008

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Um “fazer pensar o que há”, como experi- pela proposição crítica de tensionamentos.
ência constituinte do sujeito, no próprio Sua concepção de circuito pode ser aproxi-
acontecimento que não estagna nem se su- mada à imagem de um campo de forças. Em
bordina, atravessa... Intervém o sujeito na Análise do circuito, texto de 1975, publica-
própria experiência “traçando o mapa de do na revista Malasartes, do Rio de Janeiro,
seus impasses e suas questões.” 17 Brito expõe organizadamente três articula-
ções com o circuito: (1) circuito e mercado;
Brasil (2) circuito e produção; e (3) circuito e am-
biente cultural. O “circuito de arte é lugar
No Brasil, a “arte ambiental” de Hélio Oiticica
de um incessante tráfico de signos de ascen-
ativa a sua forma um “campo”. O artista pri-
são e estabilidade social e recíprocas trocas
mava pela ética na manifestação e na cons-
de sinais de cumplicidade ideológica”. É, con-
ciência dos vetores em atravessamento: “é a
tudo, “reduzido”, mas parece potente para
manifestação social incluindo aqui fundamen-
sediar embates, associações, conflitos, entre
talmente uma posição ética (como também
outros, por mais que ele possa “abrigar toda
política) que se resume em manifestações
e qualquer obra que julgue não afetar a sua
do comportamento individual.”18 Insisto en-
condição de sistema autônomo e inatacável”
tão na observação desse propositor, ou
(grifo meu). Por um lado, se é impossível
“incitador” ... Hélio Oiticica se refere à capa-
modificar “a ideologia do mercado”, “é sem-
cidade atribuída ao artista de agir mediante
pre possível intervir criticamente na ideolo-
um “subjetivo renovado”,19 o que será base
gia do circuito em seu conjunto”, o que tor-
de uma nova produção artística brasileira, que
na o circuito uma mediação viva com de-
se vinculará a sua forma, a lutas locais articu-
mais formalizações. Há uma interseção com
ladas entre intelectuais, artistas e políticos e
“um fora” visto que é preciso estabelecer
a uma investigação das sensorialidades e da
um vínculo entre “arte” e “ambiente cultu-
matéria visual em acontecimento. Essa mu-
ral” e, sugere, deve-se “atuar em todo o es-
dança, ou ruptura, na ordem do sujeito
paço ao redor do trabalho [de arte]”.21 Brito
operante apontada por Oiticica é simulta-
parece propor um circuito em constituição,
neamente observada pelos estudos da filo-
realização empírica ou formação sempre em
sofia do sujeito e, de uma forma atualizada e
processo.
revista, na teorização do evento ou do acon-
tecimento. Situados diferencialmente nesse A construção dessa imagem diagramática faz
deslinde histórico, os artistas concretos con- Brito afirmar, em 1977, uma “relativa
sideravam o homem um “agente social e irrealidade do circuito da arte”, em texto
econômico”, e os neoconcretos, a investiga- escrito a quatro mãos com José Resende,22
ção de um “ser no mundo”. Emerge a subje- constatação que não pode ser lida erro-
tividade como constituinte de uma in- neamente nem colocada da forma quase
teratuação (cooperação) e não a objetivida- traumática que recalca no Brasil até hoje,
de da manipulação dos objetos geométri- no senso comum, a “inexistência” de uma
cos (comando); e com base no que se pode história e uma crítica da arte locais. Eles
afirmar que os neoconcretos propunham, propõem que reconhecer um “espaço da
por sua vez, uma nova relação com a obra, contemporaneidade (...) implica saber, medir
que fazia dela antes um acontecimento. e intervir no real dessa irrealidade e com isso
deixar de exorcizar o vazio (...). A questão é
Com Ronaldo Brito,20 pode-se observar igual- saber se as forças interessadas numa posição
mente um apelo de ativação do sujeito situ- de contemporaneidade podem escapar des-
ado em um possível campo, visto que o “cir- se exorcismo (...). Nesse caso, a sua função
cuito”, no vocabulário do autor, é ativado mais uma vez seria denunciar a disfunção, se-

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gurar a ambiguidade, tensionar o ambiente, marcariam esse campo ou diferenciariam
piscar o olho e atravessar o ritmo”.23 Cabem suas práticas (suas formas de vida e de pro-
a esperteza para vivenciar o conflito ou o moção do vivo) de outras práticas munda-
atravessamento nessa “dança” de forças ine- nas? de que vale reavê-lo, senão para evitar
rente à dinâmica de um campo.24 sucumbir a uma territorialização congelada
e vazia? que insurgências ele aponta em re-
Forças
lação à crítica e à história da arte atual? quais
Outro elemento de investigação contempo- são os vetores, atores ou ferramentas que
râneo a Krauss é “campo de forças”. Segun- produzem o que se pode chamar de campo
do Michel Foucault,25 uma força nunca é sin- da arte no Brasil? que formas de articulação
gular, existe apenas em relação a outras for- crítica desdobrariam as iniciativas que ela-
ças. “Incitar, suscitar, produzir (ou todos os boram esse campo em constituição?
termos de listas análogas) constituem afetos
Evento
ativos, e ser incitado, suscitado, determina-
do a produzir, ter um efeito ‘útil’, afetos O evento atravessa o tempo dos arquivos,
reativos (...) Cada força implica relações de que resistem. Segundo Maurizio Lazzarato,
poder; e todo campo de forças reparte as “no evento um vê o que é intolerável de
forças em função dessas relações e de suas uma era e as novas possibilidades de vida
variações.”26 que isto contém ao mesmo tempo. O modo
As relações de poder não podem ser “co- do evento é problemático”.28 Para Mickail
nhecidas” porque a tentativa de sistematizá- Bakhtin, citado por Lazzarato, o evento re-
las será uma “diferença” ou uma produção vela a natureza do ser como uma questão
desencadeada sem nunca reduzir totalmen- ou um problema – especificamente na ma-
te (há uma irredutibilidade do poder ao sa- neira em que a esfera de acontecimento do
ber). Assim, “a integração só atualiza ou ope- evento é simultaneamente aquela do “res-
ra criando, também, um sistema de diferen- ponder e perguntar”, costurando arranjos
ciação formal. Em cada formação, uma for- corporais e singularidades individuais e cole-
ma de receptividade que constitui o visível,
tivas. O evento “abre um possível”.
e uma forma de espontaneidade que cons-
titui o enunciável (...) As substâncias forma- A constituição política de um campo da arte
das se distinguem pela visibilidade, e as fun- como instituição ampla parece dever elabo-
ções formalizadas, finalizadas, se distinguem
rar a heterogeneidade das ações remetidas
pelo enunciado”.27
a um possível lugar de significação comum,
Ambos os elementos motivam o desenho e, para tal, propus observar os próprios even-
historiográfico dos eventos observados. De tos artísticos como articulações móveis, ins-
que forma eles ocorrem em um limiar de trumentos vivos dessa constituição que atra-
institucionalização e de que forma incitam vessa vetores espaciais ou temporais, e in-
inovações, modificações, cooperações nas fringem intensivamente naquilo que se toma
práticas políticas do campo da arte? Sem por “artístico” ou sobre as formas dos acon-
querer estabelecer uma linha de resignação tecimentos artísticos em seu potencial políti-
ou captura, gostaria de sinalizar a possibili- co. Bem por isso reverberam nos arredores
dade dialógica e a condição de luta travada
na produção do valor no cerne de tais reali- contracultura
zações a partir de uma série de perguntas. antiarte
Refiro-me a um campo da arte em consti- marginalidade
tuição elaborando: que especificidades de- táticas subversivas

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... e não por acaso em alguns eventos apon- Sem dúvida, essas são “questões foucaultianas”.
tados pelo Arquivo de emergência na cena Estou tratando de investigar as discursividades
da arte brasileira recente a rua reaparece pelo método de uma “história arqueológi-
como espaço possível do embate, dessa ca”, por meio da qual a repetição tautológica
cooperação linguística. Negri nos diz: “a lin- do termo não permitirá nunca encontrar um
guagem é um viés do ser e, como qualquer significado potente nem transformar a his-
viés, é um conjunto de singularidades.”30 Da tória em algo epistemológico.33 Ou seja, há
trama do “estriado”,31 com as políticas de uma inversão, se a história seria uma
controle do espaço público que se plasmação narrativa do acontecido, ela se
radicalizam no Brasil atual tenta-se reavê-la torna uma investigação discursiva daquilo a
como “espaço liso”: espaço de apresenta- que se refere. A historiografia produz assim
ção, representação, insurgência, ou de uma o próprio tecido daquilo que expõe; tece,
“dança” que, nesse caso, é coletiva. portanto, o próprio campo e articula-se li-
vremente com o Arquivo. Torna-se inter-
Na elaboração da segunda epitese, propo- venção e ruptura, tempo não de começo,
nho incitar novas historiografias, tendo a di- mas em começo.
nâmica de uma “integração”32 como elemen-
to de investigação possível. A “integração” Cristina Ribas é artista visual e atua em projetos coletivos
elaborada com base em Michel Foucault re- organizando residência artísticas, e mestre em Processos
fere-se a uma “atualização” que estabiliza as
Artísticos Contemporâneos, UERJ, 2008. Integra a Red
Conceptualismos del Sur, rede de investigadores sobre arte
relações de força, que as estratifica. Refere- e arquivos latino-americanos de 1970 até o presente.
se a “concatenar as singularidades, alinhá-las,
homogeneizá-las, colocá-las em séries e fazê- Notas
las convergir”. A assegurada “impossibilida- 1 Negri, Antonio. Cinco lições sobre Império. Rio de Janeiro:
de” da normatização do fato artístico DP&A, 2003: 149, grifo meu.

reconstruído pela história é esquecida, dado 2 “Epiteses” não corresponde ao termo “epítese” (inserção
seu nascimento já morto como tese equivo- de um fonema ao final de uma palavra); mas à criação
cada em relação à historiografia (a gravação de uma palavra que se articula com a noção de “apari-
não/nunca totaliza o evento). A proposição
ção”, em contraposição à ideia de “centro”, como em
“epicentro”.
do Arquivo nas articulações campo e even-
to aprende das intervenções ao modo de 3 Estendo o conceito referindo-me à esfera pública caracte-
um “plano de imanência”..., o que modifica a rizada por Paolo Virno: esfera da publicização de assun-
forma de acontecimento precisando uma
tos comuns para fins de liberdade, não estatal, formada
pela interatuação entre a singularidade, a unicidade, a
tática tópica (visto que também se trata de individuação e a dimensão pré-individual do intelecto, o
lugares) e uma incisão laminar: duplamente general intellect. Virno, Paolo. Virtuosismo e revolução.
divergir e afirmar a atuação em um campo, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008:45.
muito do que caracteriza as produções ar- 4 Ericson Pires refere-se ao Rio de Janeiro como um epicentro
tísticas atuantes na crítica das estruturas das ações coletivas urbanas no Brasil em meados de
reificantes do campo das artes, e na afirma- 2000-2002. O termo me parece apropriado para pen-
ção mesma que insistem em carimbar, que, sar a emergência de ações similares também em outras
pode-se dizer, resume-se em uma constitui- cidades, atestando da mesma forma relações intensas
ção duplamente crítica e restitutiva do acon- com características dos espaços urbanos e não haven-
tecimento artístico. O Arquivo, por sua vez,
do, como afirma o autor,”relações de causalidade” en-
parece dessa forma liberar-se da
tre as regiões, por mais que se consensuem coopera-

categorização “dentro e fora”, conectando-


ções, atravessamentos, contaminações. Pires, Ericson.
Cidade ocupada. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2007:22.
se mais diretamente às articulações amplas
já mencionadas, ou seja, incorporando-se às 5 O Arquivo de emergência é organizado desde 2005 pela A
instâncias discursivas que multiplicam as vo-
Arquivista com meu apoio. Agrupa cerca de 400 documen-
tos produzidos por artistas e grupos de artistas, críticos, his-
zes de uma esfera pública. toriadores, entre outros; contém hemeroteca (artigos de

94
jornal, revista) e catálogos de arte, e demais materiais produ- 14 Recordo-me da conversa com Eduardo Verderame que
zidos pelos próprios autores dos eventos. Parte dos textos integra o coletivo E.I.A. Para Edu o problema do Arqui-
críticos escritos pelas organizadoras e outros arquivistas es- vo de Emergência é chamar-se “arquivo”.
tão em http://arquivodeemergencia.wordpress.com
15 Lambier, Joshua. Encyclopedics, Archiviolithics and
O Arquivo de emergência em sua dimensão material viaja por insti- Technologies of Theory. Skandalon, v.1. n.1, 2005.
tuições do Brasil, para saber sua localização atual acesse o site.
16 Krauss, Rosalind. “A escultura no campo ampliado”. In
6 A formação desse arquivo e dessa pesquisa desenvolvem-se no Gávea, n.1. Rio de Janeiro, 1981:87-93.
curso de minha trajetória artística e do cruzamento com
mobilizações sociais às quais me vinculei. É importante sali- 17 “Plano de imanência” e “acontecimento” são conceitos
entar dois fatos pontuais: a sensação de “insuficiência” por deleuzianos, explorados em Zourabichvili, François. O vo-
parte de uma instituição pública de registrar um ano de cabulário de Deleuze. Rio de Janeiro, 2004. Disponível em
vivência artística do qual fiz parte, e o desejo de encontrar, http://www.scribd.com/doc/7253476/Zourabichvili-
no curso das “coletivações” artísticas, mobilizações políticas Vocabulario-GD. P. 17.
que afetem as políticas cooperativas e produzam forças não
subordinadas a regras às quais um não se identifica. 18 Oiticica, Hélio. Programa ambiental. Publicado original-
7 Virno, op. cit.:101. mente em Aspiro ao grande labirinto, Rio de Janeiro:
8 Foucault, Michel. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Rocco, 1986 e reproduzido em Hélio Oiticica. Paris:
Universitária, 2005:213. Galerie Nationale du Jeu de Paume. Projeto H.O. (Rio
de Janeiro), Witte de With (Rotterdam), 1992:103.
9 A participação do Arquivo de emergência no projeto Arte e esfe-
ra pública organizado por Graziela Kunsch e Vitor Cesar foi 19 Oiticica, Hélio. Situação da vanguarda no Brasil (Propos-
essencial para elaborar essas assertivas. Consulte o site: http:// tas 66). In Ferreira, Glória (org.). Crítica de arte no Bra-
arte-esferapublica.org; e também a organização de Arquivos sil: temáticas contemporâneas. Rio de Janeiro: Funarte,
do Presente realizado no Museu da Maré no Rio de Janeiro. 2006:148.
Textos e imagens: http://arquivosdopresente.wordpress.com.
10 Ricardo Rosas organizou grande parte do acervo de tex- 20 Brito foi um dos importantes articuladores críticos da arte
tos no site atualmente inexistente Rizoma.net. O boom brasileira no surgimento das práticas artísticas
do pensamento dos situacionistas e manifestações polí- neoconcretas. Publicou em Opinião (1972-1977), orga-
ticas urbanas em diversas cidades do mundo veio tam- nizou com outros artistas e críticos as revistas Malasartes
bém através de livros. Considero relevantes Paola (a partir de 1975) e A parte do fogo.
Berenstein Jacques: Estética da ginga: a arquitetura das 21 Brito, Ronaldo. Análise do circuito (1975). In Ferreira, op.
favelas através da obra de Hélio Oiticica (2001) e Apo- cit. : 266-267.
logia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade/
Internacional Situacionista (2003); e toda a Coleção 22 Brito, Ronaldo; Resende, José. Mamãe Belas Artes. In
Baderna, da editora Conrad, grande parte editada por Ferreira, op. cit.:274.
Giseli Vasconcelos. Entre eles Z.A.T. zonas autônomas 23 Idem.
temporárias, de Hakim Bey, Critical Art ensemble, Gre-
24 Do texto de Brito e Resende complemento a citação, visto
ve da arte e assalto à cultura: utopia subversão guerrilha
que o ritmo que se atravessa é o de uma dança, que se
na (anti)arte do século XX, de Stewart Home. apenas dançada “não vai fazer chover”. “Deve-se atravessá-
11 Pasquinelli, 2008. Guerra Civil Imaterial: Protótipos de la.”
Conflito dentro do Capitalismo Cognitivo. Lugar Co- 25 Deleuze, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988:76-78.
mum - Estudos de Midia, Cultura e Democracia. Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro. Laboratório Ter- 26 Id., ibid.:79.
ritório e Comunicação. LABTeC/ESS/UFRJ - Vol 1, n. 27 Id., ibid.:84-85.
1, (1997) - Rio de Janeiro: UFRJ, n.25 - 26. mai-dez
28 Lazzarato, Maurizio. As revoluções do capitalismo. Rio de
2008. Tradução de Alexandre Mendes e Gilvan Vilarim.
Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
12 Aponto especialmente o artigo escrito por Gavin Adams, 29 Fraser, Andréa. In Artforum. Nova York, setembro 2005:276-
sobre a relação entre grupos de artistas, o movimento 783.
dos sem teto e os moradores da ocupação Prestes Maia
em São Paulo. Adams, Gavin. Coletivos de arte e a 30 Negri, 2003, op. cit.:147.
ocupação Prestes Maia em São Paulo. In Documenta 31 Deleuze, Gillez e Guattari, Felix. Mil platôs: capitalismo e
Magazines/Rizoma. http://magazines.documenta, consulta esquizofrenia. V.5. São Paulo: Ed. 34, 1997: 47.
em 20.02.2008.
32 Deleuze, op. cit.: 83.
13 Derrida, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001:11. 33 Foucault, op. cit.: 213.

C O LAB O RAÇ Õ E S • CRISTINA RIBAS 95

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