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Crise Hídrica: “Biquinha”, lágrimas de águas

subterrâneas (Uruaçu-Goiás)*
Gercinair Silvério Gandara1

Crise! Há um número infinito de crises. A crise refere-se aos mais


diferentes tipos de situações que podem comprometer e/ou comprometem
o desenvolvimento ou a continuidade de um processo histórico. Trata-se de
processos de mudanças que podem ameaçar seriamente uma estrutura por
desequilíbrio, escassez, decadência, decrescimento, recessão, estagnação,
tensão, miséria, conflagração, acometimento, ausência, inópia. Destarte,
não é fácil conceituar e/ou quantificar com precisão a dimensão de uma
crise. Mas há diversos conceitos de crise que são utilizados entre as mais
diversas áreas do conhecimento.
Dentre a infinidade de crises está contida a fatalidade de nosso tem-
po, a crise socioambiental. No conjunto desta, a crise hídrica é a que me/
nos conduz a certa concentração mental, pois está associada aos impactos
das ações humanas sobre os ambientes de água doce, objeto de nossos estu-
dos A água doce subterrânea e/ou superficial (rios, lagos, ribeirões, córre-
Não gos) é um desses processos históricos de mudanças que ameaçam a nature-
consta! za. Donald Woster em “A natureza e a Desordem da História” nos adverte
que um dos efeitos dessa história de mudança é o de colocar em xeque
quaisquer pressuposições ingênuas ou românticas sobre um mundo estáti-
co, dotado de uma natureza sem perturbações. Nos adverte, também, que
não há um conhecimento autêntico sobre o ambiente histórico, ou um em-

*Os resultados aqui apresentados são frutos do trabalho de pesquisa em desenvolvimento, co-
ordenado pela Profa. Dra. Gercinair Silvério Gandara na Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-
Graduação da Universidade Estadual de Goiás, com o projeto intitulado Estudos Socioambien-
tais dos Rios e Cidades-Beira do/no Norte Goiano: Uruaçu e cidades circunvizinhas. Financiado pela
PrP-UEG.
1
Doutora em História Social pela Universidade de Brasília (2008); Docente da Universidade
Estadual de Goiás (UEG), Campus Uruaçu. Coordenadora Geral do LHEMA (Laboratório de
História e Estudos Multidisciplinares em Ambientes), Líder do Grupo de Pesquisa História
Ambiental: territórios, sociedades e representações e do Grupo de Pesquisa Rios e Cidades na
História do Brasil.

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A História sob olhar crítico: reflexões sobre teoria, religiosidade e crise

basamento cuidadoso dos valores envolvidos nas possibilidades históricas.


Por fim, atribui ao historiador um papel importante a ser desempenhado,
“o de ajudar as pessoas a tornar as questões mais claras”. Enfatiza que os
“historiadores investigam todas essas questões e ajudam a criar um contex-
to intelectual para a sociedade em que eles vivem, desafiando o pensamen-
só há
to simplista ou as expectativas irreais” (WOSTER, 2012, p. 367-368).
1991!
A História Ambiental é uma das novas abordagens/áreas surgidas
por volta dos anos setenta quando as temáticas se estilhaçaram em inúme-
ros microtemas com novas abordagens e novos problemas. Ela busca colo-
car a natureza na história e estudar o papel da natureza na vida humana
como diz Marcos Lobato Martins (2007). De fato, em História Ambiental
há a preocupação dos historiadores em perceber as relações entre o ser hu-
mano e seu ambiente. Para nós, sobre esta abordagem, Fernand Braudel foi
quem contribuiu e continua influenciando os historiadores dessa nova mo-
dalidade da História. Sua reflexão sobre História é também uma reflexão
sobre a relação humana com o meio. Ele mesmo disse ao tratar da sua obra
sobre o Mediterrâneo que, “a primeira parte trata de uma história quase
imóvel, que é a do homem nas suas relações com o meio que o rodeia, uma
história lenta...” (BRAUDEL, 1983, p. 25). A História Socioambiental como
a Geo-História preocupam-se em estudar os vínculos ser humano-nature-
za, pensada na forma de uma ação e uma reação ao longo do tempo.
A abundância, a distribuição, a temporalidade e a localização das
águas tanto subterrâneas quanto superficiais representam fontes inexorá-
veis para os estudos socioambientais. No Brasil há ricos estudos sobre as
relações com as águas, os rios, os biomas, flora, fauna... dentre outros. Re-
bouças (2006) definiu as águas subterrâneas como aquelas que se encon-
tram sob a superfície da terra, nos espaços entre partículas sedimentares e
nas fendas das rochas mais sólidas, formando os lençóis freáticos. Salienta
que é de importância essencial para a humanidade, pois representa a maior
reserva de água potável nas regiões habitadas por seres humanos. Explica,
também que elas podem surgir na superfície espontaneamente ou serem
extraídas mediante poços. Aldo da C. Rebouças nos explica, ainda, que,
[...] a água subterrânea da zona de saturação do subsolo circula lentamente
sob a ação do gradiente hidráulico. Uma parcela desses fluxos deságua na
superfície dos terrenos, formando as fontes, olhos de água, abastece os po-
ços e outras obras de captação. Outra parcela dos fluxos subterrâneos da
zona saturada desagua nos rios...[...] no Brasil, a captação de água subterrâ-
nea para abastecimentos das populações vem sendo realizada desde os pri-
mórdios dos tempos coloniais, conforme atestam os “cacimbões” existentes

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nas fontes militares, convênios, igrejas e outras construções dessa época”


(REBOUÇAS, 2006, p. 111-113).

As águas, tanto subterrâneas quanto superficiais, em boa medida, con-


dicionam o aspecto da paisagem e possuem consideráveis valores estéticos
constituindo-se formosas lâminas d´águas. São de filetes de água brotando
da terra que nasceram infinitos rios e ribeirões brasileiros. Em seus percur-
sos, os rios transpõem cachoeiras, lagos, lagoas, corredeiras. Suas águas
carregam histórias, esperanças das gentes beiradeiras. Suas águas alimen-
tam vida, alma e refletem fé. Nas relações dadas para com os rios, amor e
medo. Na mistura de afluentes e confluentes misturam-se culturas e senti-
mentos dos povos beiradeiros. As águas doces que se perdem na imensidão
do vasto território brasileiro são cantadas em versos e prosas. Águas que
vão separando territórios/estados, mas que também unem, integram, mis-
turam culturas e povos. Águas que seguem de rio em rio, unindo em seu
leito águas de afluentes e confluentes que vão suprindo e alimentando ou-
tras águas. Revelam em seu percurso riquezas da flora e da fauna, mas tam-
bém aquelas que se desgastaram das várzeas e/ou de montanhas como paus,
minérios (prata, ouro...) pedras e morros. Ao chegar no fim do caminho,
depois de se alimentarem um ao outro, se entregam, entranhados ao abra-
ço inevitável das águas salgadas.
Nos últimos trinta anos, as águas subterrâneas brasileiras evoluíram
da sua condição tradicional de “bem livre” para um recurso de reconhecido
valor social e econômico em nível internacional. Rebouças (2006) reco-
menda que as águas subterrâneas, “notável patrimônio nacional sejam pro-
tegidas jurídica e institucionalmente, nos níveis federais, estaduais e muni-
cipais”. Sua outra recomendação destina-se ao poder público para que “passe
a investir seriamente no conhecimento das águas subterrâneas do território
brasileiro, única forma de exercer direito de outorga de forma responsável”
(REBOUÇAS: 2006, p. 141).
Certo é que há no Brasil uma situação de crise hídrica que já levou o
Não país ao cenário de escassez de água. Contudo, José Galizia Tundisi (2008,
consta! p. 186) enfatiza que “a crise da água não é só da escassez, mas seguramente
é uma crise de gestão”. Assim pensado, “a problemática ambiental conver-
te-se numa questão eminentemente política”, como bem disse Enrique Leff
(2015, p. 45). Para este autor, a gestão local deve partir do saber ambiental
das comunidades, “onde se funde a consciência do seu meio, o saber sobre
as propriedades e as formas de manejo sustentável de seus recursos, com
suas formações simbólicas e o sentido de suas práticas sociais, onde se inte-

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gram diversos processos no intercâmbio dos saberes sobre o ambiente”


(LEFF, 2015, p. 153)
No estado de Goiás, as águas subterrâneas e os cursos de águas, ou
seja, suas bacias hidrográficas representam fontes de riquezas importantes
no/do Cerrado. É nele que estão os olhos d‘água e os cursos formadores
das importantes bacias hidrográficas dos rios Tocantins, Araguaia, Paraná,
São Francisco e Amazonas. Para Horieste Gomes (2008, p. 8) o Cerrado
“possui características botânicas, morfológicas e mecanismos fisiológicos
próprios, diferentes dos demais biomas nacionais”. As águas doces do cer-
rado goiano se nos apresentam como a razão da adaptação humana nessas
plagas para dar respostas às necessidades materiais e vida às representa-
ções. Elas, também, se prestaram ao desenvolvimento de inúmeros proces-
sos em que se ancora a sociedade.
Contudo, pretendo acantonar-me no interior da sociedade uruaçuen-
se fazendo uma circulação social das emoções para descrever prazeres, com-
portamentos, sentimentos em relação as águas que jorrou/jorra incessante-
mente da “Biquinha”, velha conhecida das inúmeras gerações uruaçuen-
ses. Em verdade, aludir-me-ei sobre a capacidade de suporte e resiliência da
própria natureza. Afinal, a mina d’água, conhecida por “Biquinha da Rua
Goiás”, jorra incessantemente – desperdício das suas águas – por quase um
século. O desafio maior, para nós, será conseguir esclarecer que a situação
atual da “biquinha da rua Goiás” poderá ser mudada e que a responsabili-
dade é de todo nós. Independente de visões, área de conhecimento, credos
e/ou do poderio econômico e político, e/ou das diferenças sociais e cultu-
rais, precisamos ser cientes de que a natureza se nos oferece recursos e con-
dições para que da terra tenhamos o sustento, as bases físicas do habitar e o
conforto ambiental, tendo inclusive a proteção contra intempéries desde
que preservadas e utilizadas responsavelmente. Eis, portanto, razões evi-
dentes para uma gestão participativa das águas que influenciará o futuro
socioeconômico e o equilíbrio ambiental da/na cidade de Uruaçu.

Das entranhas da terra afloraram as águas da Biquinha


na organização do espaço-cidade Uruaçu
O terreno que perfaz o município e a cidade de Uruaçu era uma vasti-
dão de cerrado, um “sertão intransponível” localizado no Estado de Goiás –
Brasil no antigo médio norte, hoje norte de Goiás. Sua região é bastante
acidentada, sendo numerosos os morros e as serras. A vegetação dominan-

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te é o cerrado (72%) e as matas (20%) que se apresentam de forma diversi-


ficada em consequência das condições do solo e da topografia. Ao longo
dos córregos e rios, a formação vegetal compacta assinala a presença da
floresta tropical, com suas mata-galerias. A área do município é banhada
por dois importantes rios, o Maranhão e o Tocantins e, ainda, é cortada por
uma infinidade de cursos d’água, córregos e ribeirões. A cidade é circunda-
da pelo rio Passa Três e cortada ao meio pelo ribeirão Machambombo em
cujas margens surgiu o núcleo inicial. No espaço citadino há inúmeros olhos
e minas d´água que afloram do seu solo. Estas minas são utilizadas para
abastecer piscinas domésticas, jorram águas no chão batido de algumas ruas
e avenidas importantes da cidade. Outras são soterradas, mas há aquelas
que mesmo soterradas emergem suas águas encharcando o espaço em seu
entorno. Mas há um exemplar dessas minas que possui um grau de impor-
tância singular na história da cidade. Ela povoa o imaginário e a memória
da sociedade uruaçuense, é a mina da “Biquinha da Rua Goiás”. Ela se
entranha em meio à história da cidade e das suas gentes. A mina da “Biqui-
nha da Rua Goiás” tem história!
Foi no começo do ano de 1910 que Gaspar Fernandes de Carvalho
adquiriu por compra a fazenda denominada Passa Três, ou Machambom-
bo, ou Santana, conforme discriminada no seu registro imobiliário locali-
zada à margem direita do Rio Maranhão, entre os ribeirões Taquaral e Pas-
sa Três, e pela Estrada Real. E mais uma parte de um imóvel adjacente
denominado “Curralinho”. Ao todo o “latifúndio” perfazia quatorze mil
alqueires.2 Como o lugar mais apropriado dentro da extensa área para fixa-
rem residência, a família Fernandes de Carvalho escolheu o local às mar-
gens do ribeirão de águas claras, local em que já existia a sede da fazenda
dos Mendes. A razão dessa escolha justificou-se devido a sua proximidade
ao ribeirão Machambombo, justamente quase no pontal com o rio Passa
Três, e logo defronte à Estrada Real. Neste local foi construída, posterior-
mente, no ano de 1913, a primeira casa de telhas para residência do Coro-
nel Gaspar. A área central, na margem direita do ribeirão, reservou-se à
família fundadora, formando o Largo dos Fernandes que perfaz todo o
contorno da praça onde foi edificada a capela de Santana. Todos da primei-

2
Cf. Escritura Pública do Registro de Imóveis da Comarca de Jaraguá, sob n. 1680, fls.214 do
Livro 3B, em 02.08.1926. A transação do imóvel se concretizara no dia 21 de abril de 1910,
figurando como vendedores os irmãos Mendes e Silva e como compradores os filhos do Coro-
nel Gaspar.

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A História sob olhar crítico: reflexões sobre teoria, religiosidade e crise

ra geração do coronel buscaram instalar suas moradas em terrenos amplos,


arborizados bem próximo ao ribeirão quando não às suas margens. Em
exceção a essa disposição nos apresentaram um único exemplar construído
na margem esquerda do córrego Machambombo pertencente a um dos fi-
lhos do Coronel Gaspar. Na parte de cima do largo da Igreja dedicada a
Nossa Senhora Santana formando o quadro de terras destinado a fixação
da família Fernandes, encontrava-se o olho d´água que ficou conhecido
como “Biquinha da rua Goiás”. Trata-se de um local em que a água subter-
rânea se encontra quase na polpa da terra. Vale ressaltar que Uruaçu é uma
cidade de rios, ribeirões, riachos e minas/olhos d´água. O estabelecimento
de regras para o futuro “traçado urbano” obedeceu à consolidação das fron-
teiras políticas.3
Vale enfatizar que o lugar ou ambiente da cidade Uruaçu é, para nós,
um veículo de acontecimentos emocionalmente fortes. É percebido como
um símbolo da emoção humana onde as recordações do objeto e o senti-
mento são muitas vezes inseparáveis. O fato da cidade de Uruaçu ser pro-
dutora de imagens extraídas do seu próprio ambiente nos fornece estímulo
aos sentimentos que dá forma às nossas alegrias e tristezas, saudades e lem-
branças, todas com ligação emocional ao lugar. Em verdade, os estímulos
emocionais são potencialmente infinitos quando se trata daquilo que vi-
venciamos e, como que num retorno ao tempo, prestamos atenção, valori-
zamos ou amamos como propósitos das forças culturais que atuaram em
determinada época de nossas vidas. A cidade de Uruaçu é o nosso canto do
mundo. É nosso ponto de partida. É a nossa referência. É casa. A “nossa
casa”. A casa pode ser o lar, mas também o espaço intimamente vivido,
imbuído de significância moral, social e cultural. Esta cidade é cosmos. Ela
reflete um propósito humano. Mas, também representa um ideal histórico
socioambiental. Na medida em que a verbalizamos e tornamos conhecida,
ela se nos apresenta como respostas sofisticadas sobre o ambiente em que
se originou.

3
Ver Gandara, Gercinair Silvério. Cadinho do Brasil. Uruaçu... cidade-beira... cidade-fronteira
nos caminhos do sertão de Goiás 91910-1960) Goiânia: Ed. Espaço Acadêmico, 2016.

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“Êta” fonte d’águas límpidas que encharca o chão da Rua Goiás

Foto de janeiro de 2015. Cedida por Jota Marcelo, Jornal Opção, Uruaçu-GO.

De fato, a história conta muitas histórias. A “biquinha da rua Goiás”


tem muitas histórias. Ela é uma daquelas marcas que une a um só tempo as
dimensões cultural, social e ambiental. Ela está ali exposta ao tempo em
todos os tempos desde quando o lugar se constituía a sede da fazenda Ma-
chambombo. Nos tempos de agora tem suas águas expostas constantemen-
te numa das ruas importantes da cidade. Olho ou mina d’água subterrânea,
a “biquinha” jorra incessantemente desde o surgimento da cidade, sem o
aproveitamento das suas águas. Sua imagem varia do efêmero prazer que
se tem de uma vista até à sensação de beleza mais intensa que conseguimos
revelar no deleite ao sentir suas água em nós mesmos. Poderia revelar aqui
uma beleza basicamente estética, pois mais permanentes e mais dificieis de
expressar são os sentimentos que temos para com o lugar, por ser o nosso
lar, o lócus de reminiscências. As imagens que guardamos na memória são
derivadas da realidade do ambiente cidade. É como uma fantasia que so-
brevive aos desafios da experiência. Sem preocupações, negligente do tem-
po, livre de hábitos e leituras enraizadas, estávamos abertos para viver e
vivíamos a maior parte do tempo o espaço em sua totalidade. Vivíamos/
vivemos o espaço em suas diferentes dimensões, nas sutilezas das cores e na
harmonia das linhas e dos volumes. Víamos/vemos a paisagem com seus
elementos como um segmento artisticamente arranjado, mas também como
uma força, uma presença envolvente e penetrante. A lembrança ficou viva

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em nós. Ela nos permite ver a “ biquinha” não como um objeto de estudo,
mas como resposta dos sentidos e das atividades de folguedos propositais
que foram claramente registrados enquanto outros retrocederam para a som-
bra. Aquelas águas surgem/ressurgem em meio as facetas do ambiente cons-
truído, previamente negligenciados, mas que aqui são/serão vistos com toda
claridade.
Dr. Mariano Peres, numa matéria publicada no Jornal Cidade (16 a
28/02 de 2015) intitulada “Biquinha da Rua Goiás”, tece deliciosa prosa
histórica da biquinha:
[...] antes ainda dos anos quarenta Tineco era prefeito e queria Santana como
outras cidades com boa água potável jorrando no chafariz”. [...] Fixou o
lugar onde seria o chafariz. [...] contratou um cisterneiro [...] E cavou uma
cisterna em um ponto mais elevado onde já sabia ser a água rasa quase na
flor da terra. A água jorrou bonito a um metro e pouco de fundura. E em
bicas de aroeira foi levada agua ao chafariz [...] Um muro de tijolos com três
metros de extensão por um e meio de altura, no centro uma bica saindo de
dentro do muro despejando continuamente numa pedra chata o precioso
líquido cristalino e puro. A bica passava por dentro da prefeitura e dali para
frente era coberta de tábuas e aterrada. Assim dava impressão que a água
nascia do muro. Um dia a chuva derrubou o muro, mas a bica ficou lá cum-
prindo sua missão.

Mariano em sua prosa historicizou, a seu modo, a biquinha e as trans-


formações dadas urbanisticamente em Uruaçu. Diz ele que,
o prefeito Feliciano mudou a prefeitura para o prédio por ele feito na Praça
da Bandeira. E a velha prefeitura foi demolida para dar passagem a rua
Goiás. Mas a biquinha de aroeira continuou cumprindo sua missão. Levan-
do água para quem quisesse. Até que veio o prefeito Roberto abrindo vala
para passar esgoto. Sentou o trator na bica. E ela se acabou. Virou entulho.
E a água “secou”., entranhou-se na terra e sumiu. Zezé Spindola que tam-
bém foi prefeito e foi contemporâneo de Tineco conhecia muito bem a histó-
ria da biquinha. Pois que era dela vizinho. Acompanhara Tineco na constru-
ção do chafariz. Nos dias de calor muitos lavradores que vinham à cidade
ali lavavam os pés e calçavam as suas botinas que traziam numa capanga. A
biquinha era o refrigério dos acalorados. Pessoas daqui da rua quando ali
passavam lavavam as mãos e molhavam o rosto desfrutando o frescor da-
quela água. Por tudo isso que Zezé Spindola sentiu-se no dever de recuperar
a biquinha e continuar a tradição. [...] Então por sua conta fez a necessária
escavação e em lugar da bica de aroeira colocou tubo de PVC voltando a
água a correr no mesmo caminho. Restabelecendo a tradição.

Por fim lamentou que tanto “Zezé como Tineco viajou para o outro
mundo. Mas a biquinha ali continua seca e verde jorrando água sempre
cristalina faça chuva ou faça sol”. E desabafou dizendo que “a cidade cres-
ceu..., mas a biquinha resistindo ao tempo e às perversidades do progresso

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continua ali na rua Goiás em frente ao correio eternizando a sua missão e


testemunhando o esforço de uma família para o soerguimento de uma cida-
de [...]”.
O Sr. Alair Martins Spindola, conhecido por Nego Spindola4, tam-
bém nos deu sua versão da história da biquinha. Colhemos seu depoimento
livremente deixando fluir sua memória, contudo perguntamos a ele sobre a
biquinha e sobre a questão de uma cisterna ter sido furada por Tineco, pois
Mariano Peres contou a história de uma cisterna. Nos respondera que “não,
não é cisterna não. Ali é uma mina. Essa mina é antiga”. E nos explicou,
essa mina ali embaixo, perto da igrejinha, nós chamávamos de chafariz.
Isso eu era menino, mas eu me lembro, na década de 30 ou 40 mais ou
menos! Então ali tinha um lugar chamado chafariz. Era um quadrado de
cimento, tipo um tanque! A água descia ali e caia naquele tanque e o pessoal
se servia dela. Aí a prefeitura era no meio da atual rua Goiás. Ali onde tinha
um prédio que era do Santo e do Nazaré. E descia água lá... Na gestão do
prefeito Dr. Cristóvão, mandato de dois anos, ele colocou esgoto pluvial,
colocou manilhas, era até o Abdoral que estava fazendo o serviço. Aí essa
biquinha fluiu, essa mina fluiu. E quando ela fluiu papai colocou ela, fez um
tanque no meio da rua debaixo na manilha, virando a boca, pegando a Goiás
trazendo para o lado esquerdo, onde ela pega ali e desce, isso na gestão do
Dr. Cristóvão. Isso eu cálculo que foi na década de 70 por aí, que meu pai
fez ressurgir essa biquinha. Aí com o passar dos tempos o pessoal estava
quebrando muito e tal, papai já de idade fechou a mina sabe, fechou tudo.
Tirou o cano, etc.. Até no tempo que ele tava vivo eu falei que iria reativar,
ele falou que não, aí eu pensei que era melhor não contrariá-lo. Aí quando
ele faleceu, depois, a uns sete anos atrás, eu reativei ela. [...] Papai desativou
por causa da depredação, ele arrumava, o pessoal quebrava, o pessoal descia
de noite e quebrava o cano. Arrumava, quebrava! Não sei o que era, quebra-
va, ele se contrariou e fechou a bica. Depois que ele faleceu eu reativei a
mina.

Nego Spindola reafirmou que se tratava de uma mina e que inicial-


mente foi levada em forma de rego até o Largo da Igrejinha, caindo num
tanque que se conhecia como chafariz.
Exatamente ali para cima na casa da dona Ditosa, do pessoal dos Fernan-
des... papai contava que tinha até pé de coco, coqueiro, buriti. Aí é pura
mina você sabe? Aí era meio brejo. Aí essa mina e antiguíssima, quando eu
entendi por gente existia esse chafariz que falamos. O chafariz é dessa mina.
Era um rego! aí é uma nascente, não é uma cisterna! Ela caia lá no tanque
da igrejinha. Era lá em baixo perto da casa do Kidão mais ou menos. Era
uma caixa feita de cimento, quadrada, feita de tijolo e cimento. Eu lembro

4
Alair Martins Spindola, conhecido por Nego Spindola, filho de Zezé Spindola, hoje com 75
anos. Entrevistamos via telefone.

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A História sob olhar crítico: reflexões sobre teoria, religiosidade e crise

dela eu era menino, ela existia desde quando eu entendi por gente. Eu co-
nhecia essa biquinha, eu chamava de chafariz, ela enchia e derramava num
tanque, o pessoal falava lá de “vasilha”. Era uma mina mesmo.

Quanto a sua localização, nos relatou,


sabe aquela casa velha, tem ela ainda é do Kid. Do lado tem uma porta, não
sei se tem ainda. [...] tem uma porta aí certo, tem uma porta de lateral, tem
uma janela, essa janela é da cozinha... Na esquina da cozinha. Mais ou me-
nos aí. Ela é no meio da rua, aí papai puxou ela para esquerda, puxou para
colocar na cisterna da casa, mas não deu certo. É água potável.

A descreveu dizendo que é bem funda e ficou embaixo das manilhas:


Papai fez uma caixa, e colocou o cano pra descer, quando vem e desce ali
assim e vem pra esquerda e, depois, ele fez outra caixa cá em baixo, custei
achar um cara pra furar lá, pra achar a mina. Você sabe o rumo dela né? Eu
fui achando os lugares, devagarinho, até encontrar o lugar que eu precisava.
Aí eu reativei ela, tem uns cinco anos... uns sete anos 2006 ou 2007. Ali os
meninos passavam e tomavam água. Molhavam a cabeça. Brincavam na
água. Saciavam a sede.

Entrevistamos, também, o Sr. Valdeci5 Francisco de Morais que pos-


sui um escritório de contabilidade edificado no terreno em frente ao local
da mina. Ele nos mostrou o local exato da mina e explicou o encanamento
feito por Zezé Spindola. Explicou que ele trouxe o tubo para daí descer até
o lote em frente a sua antiga casa na esquina com os correios. O Sr Valdeci
nos mostrou com exatidão o local da biquinha e para onde foi puxada a
encanação de PVC.
Na verdade, a biquinha nasce na frente aí. Quando eu furei aquí para colo-
car os pilares para fazer a construção deu água em todos os pilares. Aconte-
ce que aqui a água está muito em cima para todo lado aqui se vc furar dá
água em menos de metro... meu escritório era ali na frente, na esquina! Ai
nessa época o seu Nego Spindola reativou ela... foi um ano depois eu com-
prei aqui esse lote, aí construí. O pessoal perguntou o que eu ia fazer com a
bica, ai eu falei não vou fazer nada, vou deixar do jeitinho que tá lá. Vou
passar cimento por cima da mangueira, e deixa quietinho. Ai, trouxe a má-
quina para mexer aqui e começou a destampar ela aqui e nós vimos a pujan-
ça dela. É uma riqueza, a história de Uruaçu.

Descreveu como o Zezé Spindola fez a obra para preservar a mina e


continuar jorrando sua água na biquinha. Também explicou como fez para
preservá-la com a sua construção.

5
Entrevista realizada em 21/03/2017 com o Contador Valdeci Francisco de Morais. Escritório
de Contabilidade Padrão. Rua Goiás, – Q 23 LT 6 – Central – Uruaçu, GO – CEP 76400-000.

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GANDARA, G. S. • Crise Hídrica: “Biquinha”, lágrimas de águas subterrâneas (Uruaçu-Goiás)

Então o seu Zezé Spindola quando fez o asfalto aqui na Goiás canalizou ela.
Fez uma caixa, só porque nessa caixa que ele fez, ele colocou um tampão
para não ficar vazando, igual tá vazando agora né? Então tem mais ou me-
nos uns cinco anos creio eu mais ou menos assim, que o Nego Spindola
abriu de novo a bica e começou a esgotar ela novamente lá em baixo, deixou
ela cair. Ela nasce aqui na frente do meu lote. [...] Então assim tá aí na porta.
Na minha construção eu organizei tudinho para não pegar nela, eu preser-
vei bem ela. A Mangueira passa na frente da minha construção aqui. Na
frente do escritótio. Ela nasce aqui mais ou menos. Esse local aqui meu, ela
tá tudo arrumadinho, isso aqui não precisa mexer, não acaba nunca se não
mexer, nunca mais acaba. Só a questão dela ir para baixo porque aqui aonde
tá a mina não acaba mais, nada mexe aqui com ela mais né. [...] E ela é
potável. O pessoal fez análise dela uma vez. Ai sabe aquela época que faltou
agua na cidade, o pessoal enchia ai, o tempo todo o pessoal enchendo os
galão, balde. [...] o Kid puxou uma mangueira e deixou ela cair. Eu usava a
água dela para pôr no aquário, que é uma agua muito boa. Potável! Todo
mundo conhece isso aqui.

Ele lamentou que hoje as águas da biquinha “está indo para o Ma-
chombombo novamente, está caindo aí e depois cai lá dentro do córrego”.
De fato, ela corre para o córrego Machambombo, seguindo nas manilhas,
pois o recipiente não comporta a quantidade de água que transborda indo
para a rede pluvial.
O Vereador Alacir Freitas Carvalho (Cil), presidente da Câmara dos
Vereadores6 depôs suas lembranças de infância da/na biquinha no tempo e
no espaço com emoção e entusiasmo.
Nossa! Essa biquinha, vou ser sincero pra você é dos nossos primórdios.
Antes de mim já existia essa biquinha. Ela nasce no centro da rua Goiás,
pertinho da casa da tia Nenzinha... Ali é uma mina, dali até no meio, indo
pro lado, descendo, indo pro lado da rua Porangatu, pro lado direito tudo
era brejo! Era brejo, na casa de “seu Nuca”, na casa do “ tio João”, na casa
da “dona Ditosa” tá! Hoje, onde era a casa do juiz também, hoje onde é o
SVO, é a mesma coisa, era brejo. [...] na época de recessão de água aqui todo
mundo chegava com suas vasilhas e pegava agua ali, quando faltava agua na
cidade... Então aquela água corria, aquilo ali era a salvação nossa dentro de
Uruaçu. Então, era o pessoal da rua baiana, a Gercinair deve saber de quem
que eu to falando da rua baiana, hoje se chama Avenida Transbrasiliana.

Ele falou sobre a potencialidade e a quantidade de água que jorra


dela hoje. Diz ele, “hoje se você puder passar lá, você vai ver o tanto de
água que está correndo daquela mangueira, é da mina mesmo aquela água.
Ela nunca parou de jorrar”. Ressalta “meu irmão fez aquela construção lá

6
Entrevista realizada pela equipe LHEMA no dia 14 de março de 2017.

184
A História sob olhar crítico: reflexões sobre teoria, religiosidade e crise

com a água dela. Ele não gastou nenhuma água de fora, nadinha, tudo era
da água da biquinha, lá é dia e noite”. Enfatizou que “tem gente que vai lá,
“com galão de água para encher todos os dias. Garrafa d’água e galão”.
Enfatizou, “aquela água foi provada pela Saneago. Ela é puríssima. Purís-
sima, puríssima”. Conta que tanto ele quanto os remanescentes da Família
Fernandes utilizam-se das suas águas.
Aqui eu tô fazendo a mesma coisa, eu não compro água mais né, de galão, eu
vou lá e encho a minha lá, eu e o pessoal de perto ali os Fernandes de Carva-
lho, quase todo mundo faz isso. É a tradição nossa ali, graças a Deus ali é uma
água pura. [,,.] passa lá hoje pra você ver o tanto que a mangueirinha acho que
é de vinte que está là, Vai lá e olha o tanto de água que sai lá. Mas é muita
água, está saindo muita água. É o trem mais bonito do mundo...

E mencionou uma senhora que frequenta a biquinha.


Lá tem uma senhora que cinco horas da manhã ela chega lá pra lavar roupa,
ela toma banho e lava sua roupa lá mesmo na biquinha. Ou, é interessante a
gente fica com dó dela, tem hora a que a gente pede os policiais, para não
deixar ninguém chegar, porque ela se despe toda sabe. As vezes a gente fica
com vergonha dela, porque ela é meio fraca da cabeça, tem hora que a gente
ajuda ela, dá as coisas pra ela. Ouh, essa senhora fala assim, “que a água
benta a água santa ta aqui, e o pessoal que não sabe, essa que é a agua santa da
cidade”. Por que corria perto da igrejinha de Nossa Senhora de Santana”.

Motta Filho em notícia veiculada no site Giro Geral de 19.11.2012


intitulada “Se virando como pode” noticiou sobre esta senhora e publi-
cou uma foto dela lavando roupas. Diz Motta “sabe-se que tem faltado
água na maioria das residências de Uruaçu nos últimos meses... dias.

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GANDARA, G. S. • Crise Hídrica: “Biquinha”, lágrimas de águas subterrâneas (Uruaçu-Goiás)

Contudo, na tradicional ‘Mina de Santana’ na Avenida Goiás, próximo à


Agência dos Correios, nunca faltou o produto. Inclusive, a ‘Biquinha’ im-
provisada serve de fonte para muita gente saciar as suas necessidades. O
site do Motta fez registro de uma senhora (vide foto), que lavou roupas e
fez usos diversos da água aparentemente cristalina. Detalhe: Sem conta à
pagar no final do mês”.
Posteriormente, colhemos um depoimento conjunto com os dois ir-
mãos, Cil e Kidão.7 Este depoimento foi um momento de recordações entre
nós que somos contemporâneos na cidade de Uruaçu. Ele se constituiu
num bate papo em que as recordações afloravam. Kid recordou que,
quando tio Cristóvão foi Prefeito e tava fazendo a rede fluvial, essa Rua
Goiás virou um buraco só... Os peões da prefeitura, ele tinha contratado
para fazer a rede fluvial. Eu lembro assim como criança, como garoto tio
Zezé canalizando ela para o lado da Goiás descendo ela pro lado esquerdo
vindo do lado direito. Eu lembro que depois demorou muito fazendo a rede
fluvial. Ela já estava feita pelo Zezé que deixou ela cair naquele lote lá de
esquina na Rua Goiás e ele fez um minipoço assim na época caberia de
estatura pequena uns cinco ou sete meninos. A gente brigava por espaço
porque a água era boa demais. Hoje o lote é meu não sei que circunstâncias,
mas Deus quis assim. Muita gente passa lá para cobrar água da Biquinha.

Logo em seguida, enfatizou: “Aqui teve aquela seca terrível. Neli e a


tia Ditosa me ligou de noite que as bombas da SANEAGO veio a falhar e
foi feito uma romaria na biquinha”. Lembrou que sua prima Léia “ligou e
falou que se eu tivesse cobrando R$ 10,00 pelo balde de água eu ia ficar
rico, pois tá todo mundo na Biquinha buscando água”. Refletiu, “hoje eu
estou aqui já com essa obra há sete meses e até hoje o pessoal no finalzinho
da tarde vem buscar água eu creio que é para beber porque para banhar não
precisa, a SANEAGO está abastecendo bem a cidade”. Ele nos informou
que fez toda sua obra com água da biquinha e que ela jorra em torno de 800
litros d’água por hora. Também nos relatou que “tem muita gente que vem
para o TRT aqui, e vem, fica andando para lá e para cá, e o pessoal vem e
tenta dar nó na mangueira preocupados com a gastança da água”. Kid nos
informou, ainda, que mesmo com o asfalto pronto quando chovia muito e
ela não conseguia escoar toda pela mangueira, ela borbulhava e o asfalto
amolecia muito. Daí quando passavam as chuvas, a prefeitura vinha e arru-
mava tudo. Lamentou que “agora recente a última prefeita passou uma
camada de asfalto quente aí, agora ela não está borbulhando mais, ela só

7
Antônio de Freitas Carvalho (Kid, Kidão) 20/03/2017 Uruaçu-GO.

186
A História sob olhar crítico: reflexões sobre teoria, religiosidade e crise

está saindo pela mangueira”. Explicou que a água “está saindo magrinha
daquele jeito porque ela está reduzida, mas quando eu tirar a redução ela
vai voltar a jorrar muito, pode ir lá ver que ela sai uma tora d’água”.
Estes depoimentos somados às nossas lembranças e convivência para
com a biquinha da mina da rua Goiás foram deveras esclarecedores e fantás-
ticos. Com os depoimentos do Nego Spindola, do contador Valdeci que pre-
servou a mina quando da edificação do seu escritório, a do Kid e do Alacyr
Freitas e outras inúmeras pessoas que falam das suas memórias para com a
biquinha ficamos convencidos da necessidade em se fazer um projeto de tom-
bamento, preservação e dinamização das águas da mina da Biquinha. Aque-
la mina d´água jorra incansavelmente por quase um século encharcando o
chão da rua Goiás. Ela reclama por sua história, por sua preservação, revita-
lização, dinamização e o aproveitamento das suas águas para outros fins.

“Biquinha”: lágrimas de águas subterrâneas


À medida que prosseguimos nesse estudo, a abundância desnorteado-
ra de perspectivas tanto individuais quanto coletivas tornam-se cada vez mais
evidente. Nós uruaçuenses de todas as gerações compartilhamos das mes-
mas percepções em relação as águas da biquinha, tidas como um bem co-
mum vinculado à história da cidade. Evidencia-se sua importância nas várias
formas de manifestação. A exemplo do que nos relatou o contador Valdeci:
“Sempre vejo postagens no facebook sobre isso aí... é comentário de todo can-
to do Brasil [...] do povo pedindo para fazer alguma coisa. Isso é a história da
cidade. E hoje a questão da água escassa, é necessário a preservação das águas”.
Na Exposição Fotográfica “Uruaçu 60 anos, 60 Ângulos”, realizada
em 1991 pelo então Centro Cultural Cazuza, presidido por Jota Marcelo,
foram apresentadas imagens da Biquinha em forma de apelo para sua ma-
nutenção. Há também matérias jornalísticas que abordam a situação de
desperdício das águas da biquinha em meio à crise dos recursos hídricos no
Brasil. A título de exemplo, temos a matéria veiculada no Jornal Opção. O
primeiro impacto ambiental sofrido pela mina da biquinha foi a abertura
da rua sem o devido cuidado de preservação da água que emergia das en-
tranhas da terra. Daí para frente, os demais impactos foram consequências.
A cidade foi estruturada de tal forma que a mina ficou no centro da rua.
Não fora planejado. Destarte, a forma de distribuição do terreno fez com
que a mina ficasse num dos quintais. Mais tarde, com a abertura e alinha-
mento das ruas, a mina ficou contida em meio à rua Goiás. A ação mais

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GANDARA, G. S. • Crise Hídrica: “Biquinha”, lágrimas de águas subterrâneas (Uruaçu-Goiás)

Fonte: Jornal Opção Fevereiro de 2015. Cedida por Jota Marcelo do Jornal Cidade Urua-
çu-GO.

impactante dada a mina da biquinha ocorreu por volta da década de 70


com o processo de urbanização do núcleo urbano de Uruaçu, com o lança-
mento dos esgotos na rua Goiás e, mais tarde, com o asfalto. Nesta ocasião
o gestor municipal queria soterrar a mina d’agua fazendo-a escorrer direta-
mente nos tubos de esgoto. De fato, o soterramento das manilhas de escoa-

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A História sob olhar crítico: reflexões sobre teoria, religiosidade e crise

mento e, posteriormente, a malha asfáltica poderiam ter destruído a mina


da biquinha que jorrou/jorra incansavelmente sob os olhos da comunidade
desde a fundação da cidade. Sabemos que o sepultamento do ecossistema
natural com a criação de novos sistemas impermeabilizados impossibilita a
infiltração das águas que alimentam o lençol aquífero, dificultando a sobre-
vivência do subsistema. Em verdade, estas ações de urbanização provocam
o aterramento de canais, nascentes, olhos d´água e minas cristalinas. São
ações irreversíveis. É certo, pois, que por esta razão a urbanização é vista
como um dos problemas cruciais das cidades em nossa época.
Os problemas socioambientais são, fundamentalmente, problemas hu-
manos, econômicos, políticos e sociais que dependem da motivação e de
ações positivas que vertam energias para saná-los. Tal perspectiva se mos-
tra adequada à mudança de paradigma que se estabelece entre a cidade e o
ambiente. No caso de Uruaçu, tivemos a sensibilidade e a consciência do
Sr. José Martins Spindola, conhecido por Zezé Spindola que, nos processos
de urbanização e realinhamento das ruas da cidade, fez com que a mina da
biquinha permanecesse.
Importa-nos dizer que a cidade de Uruaçu em seu crescimento guar-
dou sinais e marcas que os indivíduos deixaram no seu espaço contando
uma história não verbal, mas que se nutre de saudades e lembranças do
passado. Se optamos ou não por aprender com o passado, se escolhemos
aprender ou ignorar é uma questão de particularidade, mas devemos sobre-
tudo entender que o passado é o nosso único instrutor. Desse passado em
constante mudança, e só dele, nós devemos de algum modo tirar, parafrase-
ando Worster (2012, p. 384), com a auxilio da razão imperfeita, o que nós Só há
valorizamos e devemos defender. É fato que as ditas ações/práticas moder- 1991!
nas não se atentaram que o espaço geográfico é social, cultural e produto
do processo histórico da sociedade em cada momento histórico, portanto
um patrimônio cultural e ambiental.
Sob a perspectiva imperiosa da sustentabilidade, o aproveitamento
responsável das águas requer o provimento de condições que facilitem à
natureza sua renovação permanente. Assim sendo, a adoção de técnicas de
gestão ambiental do ciclo das águas pode ser eficiente para Uruaçu, princi-
palmente, se considerar as condicionantes da paisagem. Neste sentido, as
condicionantes ambientais do território reconhecem que as águas subterrâ-
neas desempenham papéis fundamentais para a qualidade do ambiente ur-
bano sustentável. Destarte, tendo como referência o cenário de crise da
água no Brasil, incentivamos ações governamentais, pautadas pela adoção

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GANDARA, G. S. • Crise Hídrica: “Biquinha”, lágrimas de águas subterrâneas (Uruaçu-Goiás)

dos princípios de sustentabilidade ambiental, que dinamizem e conscienti-


zem da importância em se preservar a mina da “biquinha” e, fazer o apro-
veitamento daquelas lágrimas de águas subterrâneas que encharcaram/en-
charcam por quase um século, o chão da rua Goiás.
Como se vê, reivindicamos formas de conservar e garantir a susten-
tabilidade das águas subterrânea da mina que forma a “Biquinha da rua
Goiás”. Foi nesse intuito que apresentamos em Sessão Plenária à Câmara
Municipal de Uruaçu, em meados do ano de 2017, como forma de conscien-
tização, a pesquisa por nós efetuada na Universidade Estadual de Goiás.
Nessa pesquisa evidenciamos a historicidade e a necessidade tanto quanto
a possibilidade de dinamização, revitalização e preservação daquele exem-
plar socioambiental. Como disse Brandimarte (1999) “A conscientização é
a base para o exercício da cidadania... Só assim será possível alcançar um
uso mais sustentável da água, a fim de garantir esse recurso para as próxi-
mas gerações com a qualidade e a quantidade adequadas”. Contudo, até o
presente momento não presenciamos providências e/ou atitudes daquele
Legislativo em votar ou encaminhar uma ação/projeto que pudesse colo-
car em discussão o aproveitamento do fluxo das águas doces daquela mina
que deságua na superfície da rua Goiás há quase um século. Seria impor-
tante elaborar um projeto de tombamento, preservação e dinamização das
águas da mina da Biquinha. Contudo nossos esforços pareceram-me a um
todo gratuito!
Quando falamos de preservação das “águas da biquinha”, estamos
traduzindo para a memória citadina seu significado e suas representações,
mas é ela própria quem mantém uma sublimidade maior em relação ao
processo ordenado da natureza que ali permanece como um estado de espi-
rito. Quando reivindicamos solidariedades no sentido de dinamizar e pre-
servá-la, há urgência, pois, no estado em que se encontram suas águas, po-
derá, sem demora ficar somente na memória a lembrança da água subterrâ-
nea que aflora da terra encharcando o chão. A Biquinha não pode deixar
de existir fisicamente para as gerações do presente representadas por nós
mesmos e a nossa descendência atual e futura.
Que condições objetivas e/ou subjetivas pode-se ter de vivência ma-
terial e espiritual dessas águas que jorram incansavelmente por toda a vida
desta cidade, se suas águas deixarem de fluir e sua presença inexistir? E as
nossas memórias? Por que não se aproveitar estas águas cristalinas que tan-
to já serviram a comunidade uruaçuense em períodos de estiagem? E a sua
presença viva e monumental? A sua história de permanência vencendo as

190
A História sob olhar crítico: reflexões sobre teoria, religiosidade e crise

intempéries da urbanização? Seriam tantas interrogações e alertas à grave


situação em que se encontram as águas da mina da Biquinha que estão
totalmente ameaçadas e desperdiçadas, mas deixaremos evidente somente
que, a grave situação e a condição ambiental a que se chegou, a mina exige
de todos nós, sociedade civil e gestores municipais, estaduais e federais um
engajamento cívico efetivo em defesa ambiental das águas da mina e da sua
história. Pensamos ser este, talvez, o momento ideal do poder local institu-
cionalizar normas, principalmente práticas que preservem este Patrimônio
Cultural e Ambiental traduzindo em relações de respeito o aproveitamento
das suas águas cristalinas. Para tanto, faz-se necessário implantar uma po-
lítica socioambiental definida em termos de sustentabilidade para enqua-
drar as suas águas como bem coletivo do município, portanto como recurso
natural, cultural e social estratégico de permanência ambiental e vital à
existência da sociedade uruaçuense em sua memória histórica, social e am-
biental. Sabe-se, obviamente, que para preservar as águas da “mina da bi-
quinha” faz-se necessário um projeto de tombamento, preservação e dina-
mização das águas da mina. É preciso realizar um diagnóstico da situação
do território que inclua uma análise de seus componentes, uma identifica-
ção de sua estrutura e a elucidação do dinamismo ecológico que seja fun-
cional ao território. Há numerosos métodos de análises da qualidade da
água (físico, químico e biológico) para estimar cientificamente o grau de
potabilidade daquelas águas e sua capacidade para novos usos. O diagnósti-
co valorativo constituir-se-á no primeiro passo para sua continuação. Com
ele definir-se-ão os objetivos e as medidas mais adequadas para sua conserva-
ção e restauração dos valores e situações históricas no tempo e no espaço.
Sabe-se que as cidades são complexas. Elas podem ser identificadas
por uma simples imagem ou um monumento. É comum em muitas cidades
realizar gestos público para alcançar transcendentalidade. Aqui e acolá um
governante impõe certa regularidade geométrica para exibir seu senso de
grandeza. Podem ser novos arruamentos ou aberturas de artérias. Pode ser
um imponente paço municipal ou um monumento que capta a história e a
identidade da cidade, como uma fonte, uma praça ou uma grande avenida.
Comumente as águas subterrâneas que brotam nos solos citadinos se con-
verteram/convertem em fatores determinantes do atrativo territorial. Isso
representa aspectos a se ter em conta no diagnóstico prévio que condiciona
o uso das águas urbanas, pois poderão se converter em forma de fontes,
chafarizes e/ou outros recreios próprios ao uso público. A “Biquinha da
Rua Goiás” é um desses exemplares que reclama por sua monumentalida-

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GANDARA, G. S. • Crise Hídrica: “Biquinha”, lágrimas de águas subterrâneas (Uruaçu-Goiás)

de e pelo seu uso em projetos urbano-paisagístico. Estas são as chaves que


resumiriam o aspecto geral da base fundamental da conservação que adota-
ria componentes do espaço monumentalizado em tempos de crise das águas
no Brasil.

Considerações finais
A responsabilidade para nós de falarmos de um patrimônio tão im-
portante para toda sociedade uruaçuense conjugou-se ao prazer de traba-
lhar com águas e ecoar seu brado. O território das águas uruaçuenses, em-
bora, muitas vezes, incompreendido, maltratado e /ou inaproveitado con-
tam a história da cidade e de seu território. Trata-se de águas calmas, trans-
parentes e límpidas. Águas admiradas que perfilam a memória dos filhos
genuínos da cidade em toda sua exuberância e na dimensão da memória
daqueles que cresceram e/ou envelheceram. Elas têm, para todos nós, mui-
tos significados e muitas representações. Primamos pela preservação, dina-
mização e aproveitamento daquelas águas que jorram incessantemente desde
a formação do núcleo de Santana. Isso feito, será, para nós, num arrancar
da memória, o espaço vivido no tempo. A materialização deste espaço-
memória consignará lembranças e registrará testemunhos que se enraiza-
rão no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto. Será refúgio da
memória dentro da paisagem urbana e na história da cidade. Será, para
nós, o reencontrar da coerência dos sistemas de representação e apreciação.
Em termos sociais, sabe-se que a crise social tende, se aprofundar quando
os indivíduos perdem suas referências. Isso significa dizer que pensamos na
celeridade necessária para um novo uso das águas subterrâneas que jorram
da Biquinha, pois suas águas são referências de diversas gerações. Não se
trata de tomar medidas no futuro, mas, sim, para o futuro. Afinal, a crise da
água e a preservação da Biquinha diz respeito a todos uruaçuenses indistin-
tamente.

Referências
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A História sob olhar crítico: reflexões sobre teoria, religiosidade e crise

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Jornais
Jornal Opção Fevereiro de 2015. Cedido por Jota Marcelo do Jornal Cidade Uruaçu.
Jornal Cidade (16 a 28/02 de 2015)
Exposição Fotográfica Uruaçu 60 anos, 60 Ângulos,1991, Centro Cultural Cazuza,
presidido por Jota Marcelo – Jornal Cidade.

Sites
http://www.jotacidade.com/colunas/exibir.php?noticia_id=1670&noticia_link=
17&noticia_data=29-01-2015%2021:01:30
http://www.jotacidade.com/ktml2/files/uploads/pdf/cidade205.pdf
http://www.mottafilho.com.br/especiais/exibir.php?noticia_id=989&noticia_link=
30&noticia_data=19-11-2012%2010:11
http://www.jornalopcao.com.br/ultimas-noticias/em-uruacu-mina-dagua-potavel-
jorra-desde-1940-27751/

Depoimentos
Valdeci Francisco de Morais. Escritório de Contabilidade Padrão. 21.03.2017.
Uruaçu – GO.
Alacir Freitas Carvalho (Cil). Presidente da Câmara dos Vereadores. 14 e 20/03/
2017. Uruaçu – GO.
Alair Martins Spindola (Nego Spindola). 75 anos. Via Celular.
Antônio de Freitas Carvalho (Kid, Kidão). 20/03/2017. Uruaçu – GO.

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