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Biologia y

Semelhança enganosa
entre as

espécies
Seres com aspecto similar nem sempre
têm uma história evolutiva próxima

O
Carlos Fioravanti

botânico Fábio Pinheiro capazes de cruzar e gerar descendentes


apresenta duas orquí- férteis”, diz Pinheiro.
deas bastante diferen- Sua equipe identificou diferenças gené-
tes entre si mantidas no ticas entre as plantas: a variedade da serra
jardim experimental do Instituto de Bio- tem 56 cromossomos e a da Caatinga 82.
logia da Universidade Estadual de Campi- “Mas talvez a incompatibilidade reprodu-
nas (IB-Unicamp). As duas exibem cachos tiva entre elas não tenha se completado e
de flores rosa e são classificadas como ainda não possam ser consideradas espé-
Epidendrum secundum, espécie que cresce cies distintas.” As duas orquídeas formam
em uma longa faixa de terra entre a Bahia o que os biólogos denominam complexo
e o Rio Grande do Sul, na cordilheira dos de espécies. O conceito abriga um grupo
Andes e no Caribe. Uma delas, coletada de espécies relacionadas do ponto de vista
no alto de uma serra de Minas Gerais, genealógico, que podem ser muito pare-
tem cerca de 20 centímetros de altura cidas ou até mesmo bastante distintas na
e três ramos. A outra, trazida das terras aparência. Sua classificação como uma ou
Léo Ramos Chaves

tórridas da Paraíba, tem quase o triplo da várias espécies desafia os conhecimentos


altura e o dobro de ramos. “Não sabemos dos especialistas. Organismos com varia-
se ainda são da mesma espécie ou se já ção da aparência externa (morfologia)
se diferenciaram tanto que não são mais tendem a ser classificados como sendo

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Orquídeas do gênero
Epidendrum. Quando a
espécie amarela cruza com
a rosa, a flor resultante é
um híbrido alaranjado

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O estudo de borboletas
marrons do gênero
Praepedaliodes, que era
composto inicialmente por
quatro espécies (acima),
levou à identificação de
seis outras (ao lado)

várias espécies, embora também possam fológicas dos seres vivos, foi usada em
ser classificados como apenas uma. O in- 36% dos artigos examinados, e as análi-
verso também ocorre: seres vistos como ses citogenéticas, como a contagem do
membros de uma só espécie podem, na O emprego número de cromossomos nas plantas,
verdade, esconder várias. em 22% dos trabalhos. Dados sobre a
Espécies com formas muito diversas conjunto de mais ecologia, a anatomia e a reprodução das
podem apresentar relações de parentes- plantas figuraram em cerca de 10% dos
co desnorteantes, como indicado por ou-
de um método trabalhos.
tras orquídeas do herbário. E. secundum de análise Menos da metade dos estudos exa-
é geneticamente mais próxima de uma minados (43%) se valeu de mais de uma
espécie com flores amarelas, E. xanthi- aumenta a abordagem para estudar os complexos de
num, do que de outra com flores rosa, espécies, índice considerado baixo pelos
E. denticulatum. “A cor é muito volúvel probabilidade pesquisadores.“Precisamos ser mais mul-
e enganadora para ser usada como ca- tidisciplinares”, sugere Pinheiro. O em-
racterística identificadora de espécies”,
de novos prego de marcadores moleculares ocorreu
comenta a bióloga molecular Clarisse achados com maior frequência ao lado do uso de
Palma da Silva, também professora do dados de morfometria e menos intensa-
IB-Unicamp. mente com análises taxonômicas e eco-
lógicas. Essas três metodologias de aná-
integração de áreas lise, por sua vez, foram pouco utilizadas
As incertezas sobre a classificação exata conjuntamente com técnicas de anatomia,
de um organismo poderiam ser reduzi- de citogenética e de biologia reprodutiva,
das se houvesse maior integração en- sar e diferenciar complexos de espécies que também poderiam ser úteis para en-
tre diferentes áreas de conhecimento e pertencentes a 44 famílias e 84 gêneros tender os limites de cada espécie e iden-
emprego simultâneo de vários métodos de plantas. Segundo o estudo, o uso de tificar os possíveis mecanismos de dife-
de classificação das espécies, argumen- marcadores moleculares – trechos de renciação de espécies. “Nenhum método
tam Pinheiro, Clarisse e Marcos Vinicius DNA – foi o método mais utilizado pa- sozinho resolve com precisão todos os
Dantas-Queiroz, aluno de doutorado na ra tentar distinguir as espécies de um problemas”, enfatiza Clarisse.
Universidade Estadual Paulista (Unesp), complexo. Essa abordagem foi adotada
campus de Rio Claro, em um artigo pu- em quase metade (43%) dos artigos. Em híbridos férteis
blicado em maio de 2018 na revista cien- segundo lugar, apareceu a morfometria, Em seu doutorado, concluído em 2016
tífica Critical Reviews in Plant Sciences. técnica que emprega a coleta e a compa- sob orientação da botânica Tânia Wendt,
O trio de botânicos examinou 129 ar- ração das medidas de partes das plantas, do programa de Pós-graduação em Botâ-
tigos publicados entre 1900 e junho de que foi empregada em 38% dos estudos. nica do Museu Nacional da Universidade
2016 na América do Sul que menciona- A taxonomia tradicional, que se apoia Federal do Rio de Janeiro (MN-UFRJ),
vam as abordagens adotadas para anali- na descrição das características mor- e de Clarisse, Jordana Neri examinou a

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Apenas cores iguais
Orquídeas E. secundum e E. denticulatum têm flores rosa, mas não são consideradas
espécies irmãs. A primeira é mais próxima do ponto de vista genealógico da amarela
E. xanthinum e a segunda da alaranjada E. flammeus

espécies irmãs espécies irmãs

Epidendrum Epidendrum Epidendrum Epidendrum


secundum xanthinum denticulatum flammeus

morfologia, a genética e a biologia re- que ampliou o número de integrantes de cinco espécies de borboletas que, na
produtiva de duas espécies de bromé- do complexo de espécies de Praepeda- verdade, deve passar a ser considerada
lias, Vriesea simplex e V. scalaris. Uma liodes, borboletas marrons das serras do apenas uma. “Por enquanto, não encon-
das conclusões é que, quando as duas Sudeste e Sul do Brasil. As quatro espé- tramos evidências de que sejam mesmo
espécies vivem no mesmo ambiente, as cies inicialmente descritas foram des- espécies diferentes, mas apenas uma es-
serras do Espírito Santo e do Rio de Ja- membradas em 10. As seis novas espécies pécie com uma grande variação morfo-
neiro, podem formar híbridos férteis. foram diferenciadas das outras por meio lógica”, diz ele. n
Hoje o termo híbrido não define somente de estudos morfológicos, moleculares e
seres estéreis como a mula, resultado do ecológicos que constaram de um artigo
cruzamento de jumento com égua, mas publicado em abril de 2018 na Neotro- Projetos
também férteis, que podem originar no- pical Enthomology. Segundo Freitas, as 1. Filogeografia, genômica populacional e variação adap-
vas espécies.   agora 10 espécies vivem em diferentes tativa do complexo Pitcairnia lanuginosa (Bromeliaceae)
(nº 14/15588-6); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Re-
Com sua equipe, Clarisse está nova- altitudes, embora também possam divi- gular; Pesquisador responsável Clarisse Palma da Silva
mente combinando diferentes métodos dir o mesmo espaço. (Unicamp); Investimento R$ 312.631,44.
de análise para examinar um gênero de Não há estimativas sobre a ocorrência 2. O papel da seleção por hábitats distintos na manuten-
ção da integridade de espécies em zonas de hibridação
bromélias que inclui as chamadas espé- de complexos de espécies entre micror- natural (nº16/22785-8); Modalidade Auxílio à Pesqui-
cies crípticas – morfologicamente iguais, ganismos, animais e plantas. É possível sa – Regular; Programa Biota-FAPESP; Pesquisador
fotos 1 André Freitas 2 léo ramos chaves

mas geneticamente diferentes – ainda que a adoção de análises mais sofistica- responsável Fabio Pinheiro (Unicamp); Investimento
R$ 220.894,63.
vistas como uma única espécie. “Prin- das leve ao desmembramento de uma es-
cipalmente com as espécies crípticas, o pécie em várias e provoque um aumento Artigos científicos
emprego de apenas um método, como a no número de novas espécies descritas PINHEIRO, F.; DANTAS-QUEIROZ, M. V.; PALMA-SILVA,
taxonomia clássica, com base na morfo- na literatura científica. Mas, em certos C. Plant species complexes as models to understand
speciation and evolution: A review of South American
logia, ou as análises de DNA, não leva a casos, a revisão dos complexos de espé- studies. Critical Reviews in Plant Sciences. v. 37, n. 1, p.
conclusões consistentes”, comenta o bió- cies pode levar ao processo inverso. A 54-80. mai. 2018
logo André Freitas, também professor da equipe de Freitas, por exemplo, traba- Os demais artigos mencionados estão listados na versão
Unicamp. Ele participou de um estudo lha nas análises genéticas de um grupo on-line desta reportagem.

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