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Resumo
No mundo secularizado diferentes formas de explicação da vida competem com a religião,
que, por causa disso, não conta mais com a submissão obrigatória de seus fiéis, que devem ser
conquistados (BERGER, 1985). Para atraí-los, a religião se submete a lógica do mercado,
permitindo que seus elementos sacros, como a música, sejam apropriados como objeto de
consumo e entretenimento. Nesse processo de hibridação, a religião se aproxima de instancias
profanas vulgarizando o que outrora era sacro, ao mesmo tempo em que reconfigura para o
contexto religioso elementos da cultura popular. Neste trabalho, propomos discutir as
hibridações contidas na participação dos artistas evangélicos no programa Esquenta!, da TV
Globo.
1. Introdução
Campeonato carioca de futebol, março de 2012. Numa partida contra o Vasco
da Gama, o jogador Fellype Gabriel marca os três gols do Botafogo que consagraram
a vitória do time sobre o gigante da colina. No final da partida, o jornalista de um
famoso programa de televisão pergunta ao jogador qual música ele gostaria que
tocasse no quadro especial em que exibem as músicas escolhidas pelos jogadores que
fazem três gols numa única partida. Fellype então escolhe a música “Rendido Estou”,
interpretada por Fernandinho e Aline Barros, dois grandes nomes da indústria
fonográfica gospel.
Mas a escolha de Fellype não foi uma novidade. Além dele, muitos outros
jogadores brasileiros que marcaram três gols numa única partida já pediram alguma
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Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Comunicação, Consumo e Subjetividade, do 4º Encontro
de GTs- Comunicon, realizado nos dias 08, 09 e 10 de outubro de 2014.
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Graduada em Comunicação Social (Jornalismo e Relações Públicas pela UFMG. Mestranda do
Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Metodista de São Paulo,
financiada pela Capes.
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música evangélica neste mesmo quadro do programa, até mesmo o craque Neymar,
que em mais de uma oportunidade, pediu uma música gospel. Isso demonstra a
dimensão que a música evangélica, antes restrita a situações de caráter religioso,
adquiriu no cotidiano dos brasileiros a partir da inserção da religião na mídia e do
crescimento do número de evangélicos no país.
Estima-se que o número de evangélicos no Brasil tenha crescido 61,45% nos
últimos 10 anos, passando de 15,4% da população em 2000 para 22,2% em 2010.
Segundo relatório do ultimo censo, este crescimento vem se estabelecendo desde
1950, quando o número de católicos, religião predominante no país, começou a
diminuir. Foi também a partir dessa mesma época que as denominações de orientação
pentecostal, as principais responsáveis pelo crescimento no número de evangélicos
segundo o censo, começaram a ganhar força no Brasil.
Os pentecostais, adeptos da teologia da prosperidade, desde o início de sua
chegada no país utilizam a mídia como forma de interagir com os fiéis. Já nos anos 50
existiam emissoras radiofônicas evangélicas com mensagens religiosas em tempo
integral, e nas décadas seguintes surgiram os primeiros televangelistas, como R.R.
Soares, da Igreja Internacional da Graça de Deus e Edir Macedo, da Igreja Universal
do Reino de Deus (CUNHA, 2007, p. 60). Partindo desses dados, é possível inferir
que a aproximação entre os campos religioso e midiático pode ser vista como uma
possível explicação para a modificação do cenário religioso do Brasil, que vem se
firmando desde meados do século passado.
O crescimento do número de evangélicos no país produziu impactos na
economia, sendo o mercado fonográfico um bom indicativo dessa ascensão. Segundo
relatório da Associação Brasileira dos Produtores de Discos, dos 20 CDs mais
vendidos em 2011, dois eram de artistas evangélicos. Esse sucesso nas vendas fez
com que grandes gravadoras, como a Sony Music e a Universal Music criassem selos
específicos para o lançamento dos artistas da chamada música gospel. Essa presença
da religião na mídia e a ascensão do mercado fonográfico gospel provocou o
surgimento de personalidades religiosas, principalmente relacionadas à música, que
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http://forbesbrasil.br.msn.com/blog/post-redacao.aspx?post=daaec777-6984-41d0-b444-
2f2d194d4ed5
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autores. Pelo contrário, ele pode ser percebido como uma espécie de vitrine para
observá-las. A religião, sobretudo o Cristianismo, que na Idade Média se instituía
como a principal organizadora da sociedade, estabelecendo os valores morais, a
organização política e as verdades que explicavam o funcionamento do universo, vem
perdendo sua influência ao longo dos anos devido ao surgimento de novas ideologias
e da racionalização do pensamento. Com isso, embora ainda seja uma esfera de
importância considerável da vida cotidiana e ainda influenciar as demais, a religião
precisa se colocar a venda para conquistar os seus fiéis, como observou Berger:
Resulta daí que a tradição religiosa que antigamente podia ser imposta pela
autoridade, agora tem que ser colocada no mercado. Ela tem que ser
“vendida” para uma clientela que não está mais obrigada a “comprar”. A
situação pluralista é, acima de tudo, uma situação de mercado. Nela, as
instituições religiosas tornam-se agências de mercado e as tradições religiosas
tornam-se comodidades de consumo. E, de qualquer forma, grande parte da
atividade religiosa nessa situação vem a ser dominada pela lógica da
economia de mercado” (BERGER, 1985, p. 149)
A ascensão do mercado fonográfico gospel e a constante inserção da religião
na mídia podem ser vistos como um esforço nesse sentido apontado por Berger, de
tornar a religião mais “agradável” para os fiéis a partir da aproximação desta com
outras esferas da vida cotidiana, principalmente com o consumo. Esta relação entre
religião, consumo e entretenimento no contexto evangélico já havia sido abordada por
Cunha (2007) a partir do conceito de cultura gospel criado pela autora. A partir dele
ela analisa as hibridações provocadas pelo encontro entre mídia, religião e mercado,
que tem na música gospel o seu principal produto. Este conceito e suas implicações
serão trabalhados no tópico a seguir.
Cunha (2007) propõe uma abordagem sobre o lugar das culturas da mídia e do
mercado na formação de uma nova expressão cultural religiosa, a qual denominou
“cultura gospel”. Essa cultura gospel teria como expressão a tríade música-consumo-
entretenimento: “Na lógica da cultura do mercado, consumir bens e serviços é ser
cidadão; na lógica da cultura gospel, consumir bens e serviços religiosos é ser cidadão
do Reino de Deus.” (CUNHA, 2007, p. 138).
A autora também coloca o sectarismo como uma das principais características
dessa cultura gospel, pois se por um lado a inserção desses valores profanos (consumo
e entretenimento) promove uma maior liberalização nos costumes ao permitir uma
maior integração dos evangélicos com a sociedade, paradoxalmente, por outro lado,
há um reforço das características do protestantismo brasileiro, como a divisão entre
sagrado/profano e a demonização das religiões afro-indígenas e do catolicismo. Para a
autora, o que a cultura gospel faz é reconfigurar, “com ares de modernidade as linhas
divisórias entre a igreja e o mundo, entre o sagrado e o profano estabelecidas pela
tradição pietista e puritana (...)” (CUNHA, 2007, p. 203).
Canclini (2011, p. XIX) chama de hibridação a “esses processos socioculturais
nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se
combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas.” Para ele, as diferentes
instâncias da vida moderna não se encontram em oposição abrupta, mas hibridadas.
Para ele, a hibridação pode ser um processo espontâneo, desencadeado pela
criatividade dos indivíduos em sua vida cotidiana. Então podemos entender que,
embora o mercado seja um importante motivador desse processo, este não se resume a
economia de mercado, já que adentra as dimensões simbólicas e culturais da vida dos
sujeitos, adquirindo outros sentidos nos novos usos proporcionados.
Faremos agora uma descrição da participação dos evangélicos no programa
Esquenta!, objeto de nossa análise para entender como essas hibridações aparecem no
contexto mídia-religião.
cantor Thalles Roberto e de uma disputa entre grupos de coreografia gospel; no dia 19
de maio, com a participação dos irmãos Jefferson e Suellen, que ficaram conhecidos
no país como os irmãos “Para nossa alegria”, após divulgarem na internet um vídeo
no qual aparecem cantando, de forma cômica, uma música conhecida entre os
evangélicos cuja dita expressão aparece no refrão; e no dia 23 de junho, programa
especial de São João, com a presença do cantor de funk gospel Tomzão.
No programa do dia 17 de março, que teve como inspiração temática a festa da
Páscoa, comemorada tanto por cristãos quanto por judeus, a religião foi um elemento
bastante presente. No entanto, ela não se restringiu a essas duas correntes, já que
também havia participantes que professavam religiões de matrizes africanas. Nesta
ocasião, a participação dos artistas gospel se deu em dois momentos. O primeiro deles
foi a presença do cantor Thalles Roberto, que permaneceu no palco durante todo o
programa, juntamente com os outros convidados que representavam as religiões
judaica e católica (um rabino e um padre) e os demais componentes do elenco fixo do
programa. O trecho transcrito a seguir retrata um pouco do cenário em questão:
Imagem/Descrição Áudio
No palco, além de Regina Casé e Padre Omar, Regina Casé: Padre Omar, fala a verdade, o
estão Arlindo Cruz e Carlinhos Brown, com senhor já sofreu preconceito por cantar samba?
adereços que remetem às religiões afro. Além Padre Omar: infelizmente existe um processo de
do elenco fixo, também está presente Thalles demonização do samba. E a gente às vezes não
Roberto, cantor gospel. Na platéia, dos garis do consegue desarticular esse preconceito.
Rio de Janeiro e jovens participantes da Jornada Thalles: Eu gravei um samba agora também.
Mundial da Juventude. Cenário e figurino do Samba é samba.
elenco são bastante coloridos, estampados com Regina Casé: Samba é de Deus.
motivos africanos. Thales: Samba é de Deus total.[grifo nosso]
cortes de cabelo modernos. Todos dançam músicas agitadas, com pegadas de rock e
ritmos eletrônicos. As coreografias são compostas de movimentos rápidos, inspirados
na dança de rua e em outras danças contemporâneas. Após uma votação feita por
meio da manifestação da platéia, o grupo “Peculiar Family”, de dança de rua, formado
apenas por meninos, é eleito o vencedor sob gritos de “É campeão!” entoados pela
platéia.
Após a premiação do grupo vencedor, Regina Casé convida Thalles Roberto
para cantar, e os integrantes do “Peculiar Family” se colocam atrás dele no palco,
improvisando uma coreografia. Os demais participantes do programa também vão
para o palco, cantar e dançar. O cantor de pagode Mumuzinho, do elenco fixo do
Esquenta!, segura um microfone e começa a cantar com Thalles, improvisando um
back vocal. Enquanto eles cantam, a plateia acompanha com palmas e é possível
perceber muitas pessoas cantando, o que demonstra que a música do cantor
evangélico é conhecida daquele público.
No programa do dia 19 de maio a música evangélica apareceu de modo muito
pontual, por meio da breve participação dos irmãos Jefferson e Suellen, que ficaram
conhecidos em todo país depois que um vídeo em que eles aparecem cantando, de
forma muito engraçada, uma música bastante conhecida do público evangélico, se
tornou viral nas redes sociais. Na ocasião, que teve o ciberespaço como temática
principal, vários temas relativos à internet, como webcelebridades, traição virtual,
relação entre artista e fã nas redes sociais, etc., foram discutidos. O cenário, bastante
colorido, era decorado com elementos gráficos que lembravam os jogos de videogame
e cores e texturas metalizadas compunham o figurino do elenco do programa.
Os irmãos foram convidados a entrar no palco quando as webcelebridades
eram o assunto em pauta. Antes deles, esteve presente a moça que ficou conhecida
como “Luiza do Canadá” por causa de outro viral. Quando adentraram o palco, os
irmãos, juntamente com a atriz Fernanda Paes Leme, fizeram uma encenação do
vídeo. Foi esse o único momento em que a música gospel apareceu, entoada pelos
irmãos, mas, como no vídeo, envolta por um contexto de humor.
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8a10 de outubro 2014)
Regina Casé e Mangabeira Unger conversam Regina Casé: Falando em religião, eu quero mostrar
sobre o livro lançado por ele, que fala sobre pra você. Já conhece funk gospel?
religião. Mangabeira: Já, já, já conheci.
Regina Casé: Porque hoje a gente...até o funk se
rendeu ao gospel, tamanha a força, ou vice-versa.
Os dançarinos do programa, vestidos com roupas
Mangabeira: Sim
estampadas com motivos juninos, descem a
Regina: e o funk gospel vem que vem que vem com
rampa do cenário dançando funk. Um outro
tudo querido DJ!
grupo de rapazes, vestidos de terno, vem
Arlindo cruz: Em nome de Jesus!
entrando logo atrás. A platéia aplaude.
[...]
Regina: Eu quero saber uma coisa, dá pra ir até o
chão com essa roupa?
Tomzão: Assim, a gente manda o passinho né, hoje a
Os dançarinos do programa caminham para o
gente não rebola porque a gente não usa mais a
centro do palco, onde Tomzão está com o seu
sensualidade, mas a gente manda o passinho, [...]
grupo de funk.
Regina: O passinho do abençoado!
Tomzão: Todo mundo de pé! Todo mundo com a
mãozinha pro alto! Quando você fizer esse movimento
Tomzão começa a cantar um funk que fala de
aqui que eu vou ensinar vai vir toda sorte de benção
Jesus e outros elementos da religião evangélica,
agora pra você. Levanta a mão bem alto, faz com a
ditando movimentos que são logo seguidos pelos
gente assim: [grifos nossos]
dançarinos do programa, que se encontram no
[começa a música]
palco, e toda platéia.
BERGER, Peter. O Dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica. São Paulo:
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BORELLI, Viviane (org.). Mídia e religião: Entre o mundo da fé e o do fiel. Rio de Janeiro:
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CARVALHO, Mário Vieira de. Sociologia da música: elementos para uma retrospectiva e
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<http://www.penelope.ics.ul.pt/indices/penelope_06/06_05_MCarvalho.pdf >. Acesso em: 29
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HELLER, Agnes. O cotidiano e a História. 6ª Ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.