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o Passarinho Engaiolado
o Passarinho Engaiolado
Rubem Alves
Papirus
Capa. Rapaz de pé com a mão no bolso e com a cabeça dentro da gaiola olhando para o
passarinho.
O PASSARINHO ENGAIOLADO
Rubem Alves
Ilustração Marília Cotomacci
Papirus
Ilustração: Marília Cotomacci
Capa: Fernando Cornacchia
Foto: Rennato Testo
Revisão: Lúcia Helena Lahoz Morelli
ISBN 85-308-0484-8
97-4865 CDD-028.5
Uma gaiola com uma antena parabólica; dentro dela estão um rapaz, uma moça e um galo.
Dentro da gaiola não há muito o que fazer, seja ela feita com arames de ferro ou
com deveres. Os sonhos de aventuras selvagens aparecem, mas, logo que vêem
os arames, morrem.
Alguns, malvados, furam os olhos dos pássaros engaiolados. Dizem que pássaro
de olho furado canta mais bonito. Talvez, cegos, eles se esqueçam de que estão
presos numa gaiola. Mas, mesmo que não estivessem, de que lhes adiantaria ter
asas para voar se não têm olhos para ver? Sua cegueira é a sua gaiola.
Há muitas pessoas assim: parecem ter olhos normais, parecem ver tudo.
Na verdade nada vêem, a não ser o seu mundinho. Sua cegueira é a sua gaiola.
Um rapaz fura com uma vara os olhos de um passarinho dentro de uma
gaiola.O nosso amigo, passarinho engaiolado, bem se lembrava do dia em que,
enganado pelo alpiste, tentador, saboroso, entrou no alçapão.
Alçapões são assim: têm sempre uma coisa apetitosa dentro. Mas basta que a
coisa apetitosa seja bicada para que a porta se feche para sempre, até que a
morte a abra...
Na porta da gaiola estava escrita uma frase famosa, de um poeta famoso, Dante
Alighieri: “Deixai toda a esperança vós que entrais...”
Passarinho sentado no chão da gaiola com um livro apoiado nas pernas;
atrás dele, vários pedaços de frutas; em seu bico, uma minhoca; e um sinal
de interrogação acima de sua cabeça.Mas passarinho não entende nem escrita
nem linguagem de gente.
Há um poema famoso, de Guerra Junqueiro, sobre o melro, pássaro que canta
risadas de cristal. Um padre velho e ranzinza tinha raiva do melro. Ele comia as
sementes que o padre semeava. Um dia, o padre encontra o ninho do melro num
arbusto. Estava cheio de filhotinhos.
O padre, para se vingar da mãe, engaiola os filhotinhos. A mãe, vendo seus filhos
engaiolados, e sem forças para abrir a portinhola de ferro, traz no seu bico um
galho de veneno.
"Meus filhos, a existência é boa só quando é livre",
ela disse.
"A liberdade é a lei. Prende-se a asa, mas a alma voa...
Ó filhos, voemos pelo azul!... Comei!"
Um padre barrigudo de batina marron tem a seus pés um passarinho
comendo sementes. É certo que a mãe do nosso passarinho nunca lera o poema
de Guerra Junqueiro porque, ao ver seu filho engaiolado, lhe disse:
"Finalmente minhas orações foram respondidas. Você está seguro, pelo resto de
sua vida.
O passarinho está agarrado num galho de árvore onde andam joaninhas e lagartas; no ar,
voam insetos e borboletas; no chão, aparecem casas, pessoas e vários carros.
Olhou para baixo. Puxa! Como era alto! Sentiu um pouco de tontura.
Estava acostumado com o chão da gaiola, bem pertinho. Teve medo de cair.
Agachou-se no galho, para ter mais firmeza.
Viu uma outra árvore mais distante. Teve vontade de ir até lá.
Perguntou-se se suas asas aguentariam. Elas não estavam acostumadas.
O melhor seria não abusar, logo no primeiro dia.
Agarrou-se mais firmemente ainda.
Nesse momento um insetinho passou voando bem na frente do seu bico. Chegara
a hora. Esticou o pescoço o mais que pôde, mas o insetinho não era bobo.
Sumiu mostrando a língua.
Rapaz de pé com a mão no bolso e com a cabeça dentro da gaiola junto do passarinho.