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“Por nossos filhos assassinados: Memória, Verdade e

Justiça!” - A luta das mães vítimas da violência do Estado


Franciele Campos e Valentina Carranza Weihmüller1

De acordo com estatísticas oficiais, no estado do Rio de Janeiro, entre 2007 e 2017,
mais de nove mil assassinatos ocorreram durante operações policiais, sendo que
94% dos casos aconteceram na capital e sua área metropolitana (Baixada
Fluminense e Grande Niterói). O relatório "Você matou meu filho" (Anistia
Internacional - Rio de Janeiro, 2015) resume o lado mais repressivo das "forças de
segurança" cariocas: "O número de pessoas mortas pela polícia representa uma
parcela significativa do total de homicídios. Em 2014, por exemplo, os homicídios
cometidos por policiais em serviço corresponderam a 15,6% do total de homicídios
na cidade do Rio de Janeiro".

Segundo as "versões
oficiais", muitas destas
mortes ocorrem em
"situações de confronto"
onde "circunstâncias
imprevistas" (“balas
perdidas") ou "condutas
erradas" ("resistência à
autoridade") classificam
de "eventos aleatórios"
ou meros "acidentes" os
efeitos mais cruéis da
desigualdade social e a
constante criminalização
da pobreza.
Foto: Pedro Prado/Ponte Jornalismo

No atual contexto de intervenção militar - realidade que nas favelas brasileiras se


implementa e vive há anos - as mortes de civis são camufladas por meio de um
discurso cínico e preconceituoso. O objetivo é garantir e legitimar a ação necro-
repressiva de uma ordem social racista e elitista que sustenta privilégios a partir de
múltiplas opressões das populações empobrecidas, pretas, faveladas, daqueles
grupos humanos que têm um enorme peso demográfico na composição urbana,
ainda que sub-representados nos espaços de poder.

A situação é ainda mais urgente quando se estabelece o recorte etário. Como


assinala Marinho (2018), com base na pesquisa "Índice de Homicídios Adolescentes
(IHA) 2014" (Governo do Brasil e UNICEF, 2014) cada mil adolescentes que
completam doze anos, mais de três são mortos antes de chegar os dezenove. Se

1
Franciele é moradora da favela de Manguinhos, RJ. Integrante do coletivo Fórum Social
de Manguinhos e Cartel Adélias, coletivo de mulheres produtoras de audiovisual. Artista
plástica e militante contra o genocídio do povo negro. Valentina é argentina, moradora da
cidade do Rio de Janeiro desde 2016. Comunicadora, educadora, pesquisadora de temas
relacionados às juventudes, educação e cultura (NUTES, UFRJ).
este jovem é negro, a probabilidade de ser vítima de homicídio triplica.

A CPI dos "autos de resistência"

Diante de tal quadro de impunidade e racismo, várias iniciativas sociopolíticas


organizaram-se em diferentes frentes. Em outubro de 2015 foi estabelecida no nível
legislativo estadual a Comissão de Inquérito Parlamentar (CPI) para "os autos de
resistência e as mortes decorrentes de ações policiais". Esta entidade multissetorial
- que contou com a participação de organizações de mães e famílias, de direitos
humanos, acadêmicos e representantes políticos - foi responsável por investigar,
debater e propor medidas para enfrentar a violência letal decorrentes de
intervenções das forças públicas. A CPI identificou que em 2015, os "autos de
resistência" - mortes pela polícia em supostos tiroteios e alegações de "resistência à
autoridade" - cresceram mais de 30% em relação ao ano anterior. Assim, em 2015,
227 civis foram mortos durante as "operações policiais" realizadas em áreas
empobrecidas.

Em 2016, foi publicado o relatório final da CPI, apresentando resultados alarmantes.


Segundo o relator, o deputado Marcelo Freixo (PSOL), a investigação permitiu
confirmar que, a partir de 2014, a letalidade policial entra em alta, atingindo - em
2016 - quase dois casos por dia. Assim, de acordo com informações oficiais
(geralmente sub-registradas), entre 2010 e 2015 no estado do Rio de Janeiro, foram
mais de 3.000 os casos de homicídio rotulados como "autos de resistência". Outra
questão demonstrada pela investigação foi o complexo sistema criminal e judicial
que garante a impunidade das ações letais da polícia. Como Freixo indicou, há
precariedade nas investigações da Polícia Civil, no trabalho pericial, além das
deficiências nas ações do Ministério Público e dos próprios juízes.

Mães: "do luto à luta"

O desenvolvimento da CPI no Rio de Janeiro não teria sido possível sem o


movimento social dos grupos de mães e familiares vítimas de violência do Estado.
No Brasil, as vítimas começaram a se organizar em 2006, em São Paulo, após os
"crimes de maio", quando mais de 500 pessoas foram assassinadas. Essas mortes
desencadearam uma onda de violência que levou a várias chacinas em diferentes
regiões e prisões do
país. Nos anos
seguintes, quando o
controle militar
territorial e a ação
racista e repressiva
das forças de
"segurança pública" se
agravaram, surgiram
outros grupos de mães
em outros estados (Rio
de Janeiro, Bahia,
Ceará etc).

(Foto: Ponte Jornalismo)


Assim foi que maio, mês que coincide com a comemoração do mês das mães no
Brasil, também se tornou o ícone das lutas pela memória, verdade e justiça dos
assassinatos cometidos pelo Estado na democracia. Este ano, a Semana na
Memória das Vítimas da Violência de Estado foi realizada entre 12 e 19 deste mês.
Sendo uma iniciativa legalmente conquistada pelo movimento das mães, o evento
mais importante ocorreu na cidade de Salvador (BA): "III Encontro Internacional de
Mães vítimas da Violência do Estado: por Justiça, Reparações e Revolução", com a
presença de mães, familiares e militantes, tanto do Brasil como de outros países.

(Foto: A Nova Democracia)

A partir dessa união que transcende fronteiras, o movimento das mães vítimas está
se fortalecendo, ganhando legitimidade. Nesses encontros compartilha dores, amor,
sua resistência incansável e seu grito de justiça. As organizações de apoio são
diversas: grupos sociais e comunitários, organizações internacionais, imprensa
independente, organizações de direitos humanos, acadêmicos e outras figuras
públicas que se somam à luta das mães, reconhecendo o importante trabalho para a
defesa dos direitos humanos de milhares de jovens. Em palavras das mães: fazer
de "cada luto uma luta".

Alguns dos coletivos de mães vítimas da violência de


Estado no Brasil:

Mães de Maio - São Paulo


Mães Vítimas da Chacina da Baixada - Rio de Janeiro
Rede de Mães e Familiares da Baixada Fluminense - RJ
Núcleo de Mães Vítimas de Violencia - Rio de Janeiro
Cada Luto, Uma Luta
Os Mortos tem Voz
Mães de Manguinhos
Mães clamando por justiça
Mães em Luto da Zona leste
Transformei Meu Luto Em Luta. Mães Do Curio
Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência

A luta em Manguinhos (RJ)

Na favela de Manguinhos, zona norte da cidade do Rio de Janeiro, a luta para dizer
a verdade e exigir justiça diante dos crimes do Estado é cotidiana. Organizações de
mães e familiares das vítimas, movimentos sociais, grupos culturais, artistas,
vizinhos, comunidade, colegas se reuniram o sábado 11 de maio - prévio ao Dia das
Mães - no contexto da primeira edição carioca da Semana em Memória das vítimas
da violência do Estado. O evento foi organizado pelo Fórum Social de Manguinhos
em parceria com o grupo de Mães de Manguinhos. No evento participaram MCs
locais (Magoo Campos, Leonicio, Bigorna Surtado), a cantora e compositora Rachel
Barros, do grupo musical Som de Preta, e representantes dos diferentes coletivos de
Mães e Familiares de
Vítimas de Violência do
Estado e realizadores do
documentário "Auto de
Resistência " (2018), filme
de Natasha Neri e Lula
Carvalho que também foi
exibido.

A reunião foi dedicada a


todas as vítimas da violência
do Estado, mas
especialmente a Johnatha
de Oliveira, Matheus Melo,
Marielle Franco e Vera
Santos.
(Foto: ABr)

Johnatha e Matheus eram dois jovens crias de Manguinhos, assassinados pela


polícia militar que ocupa territorialmente essa área urbana. Em 14 de maio de 2014,
Johnatha, de 19 anos, estava voltando para sua casa, depois de acompanhar sua
namorada, quando um tiro atingiu suas costas. Ana Paula de Oliveira, sua mãe,
permanece em pé, sendo uma das principais representantes do movimento de
vítimas de mães em nível nacional. Matheus foi morto recentemente, há dois meses,
quando saia de atividades na Igreja. Foram também balas oficiais as que tiraram sua
vida.

Já Vera formava parte do movimento das Mães Vítimas de Maio, movimento


pioneiro do estado de São Paulo. De acordo com o depoimento de pessoas
próximas a ela, Vera morreu no dia 3 de maio passado, quando sua luta constante
não conseguiu suportar mais a dor do assassinato de sua filha Ana Paula, grávida
de nove meses de sua neta, Bianca. Seu genro, Eddie Joey, também foi morto em
um trágico maio, há 12 anos atrás. Como Johnatha e Matheus, os assassinos
carregavam armas oficiais.

Marielle Franco foi (e continua sendo) uma liderança nas lutas das mulheres negras,
pobres e faveladas. A vereadora foi brutalmente assassinada - crime claramente
encomendado - no 14 de março de 2018. Importante lembrar que sua morte foi
sentenciada um dia depois de ela divulgar, em redes sociais, a morte de Matheus:
“Mais um homicídio de um jovem que pode estar entrando na conta da PM. Matheus
Melo estava saindo da igreja. Quantos mais precisarão morrer para que esta guerra
acabe?”.

Durante o evento em Manguinhos, mães, pais, avós, irmãos, primos, amigos,


colegas estavam arrasados, mas em pé, com a firmeza e a convicção de que a
única maneira possível de superar a dor, a injustiça e a impunidade é permanecendo
juntos. É assim que constroem uma luta que se apresenta difícil, mas nunca
impossível.

Memória, Verdade e Justiça por Jhonatha, Matheus, Marielle e Vera! Por todas as
vítimas da violência de Estado, em todos os tempos e lugares. Por todas as pessoas
condenadas ao racismo e ao genocídio classista e estatizado. Que permaneçamos
na luta reciprocamente apoiados, fazendo da injustiça e da morte, energia, vida e
esperança.

O documentário “Auto de Resistência” (Neri, Carvalho, 2018)


Trailer - Facebook oficial - Web Site oficial

Alguns dos coletivos culturais que apoiam a luta das Mães


de Manguinhos (RJ)

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