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Nos excertos em destaque dos três romances machadianos Iaiá

Garcia, Memorias Póstumas de Brás Cubas, e Esaú e Jacó, percebe-se


uma composição atravessada pela lógica senhorial e de uma certa
volubilidade, conceitos estes que faziam parte da própria estrutura
brasileira.
Para tanto, o esquema machadiano centra-se em constituir um
espetáculo histórico-social, de modo que as relações sociais próprias
de seu tempo são mimetizadas em forma literária (SCHWARZ, 2000).
Assim sendo, com uma mira ‘desmistificadora’, Machado circunda as
a organização das estruturas paternalistas, e, de modo interessado,
em seus escritos, aborda “um estranho fio social” (CANDIDO, 1977).
Dito de outro modo, a forma como o fazer literário machadiano põe-
se a homologar uma realidade história, precisamente a brasileira, faz
com que as suas obras operam simultaneamente entre matéria social
e forma literária. Assim, mediante as contradições postas pela
matéria local e a forma burguesa, Machado tentará dar conta de uma
política de domínio, assim, efetuando uma análise pormenorizada
Com efeito, a fim de investigar a forma como o paternalismo,
enquanto matéria social, é dramatizado por Machado a partir de um
dispositivo literário, iremos colocar os olhos sob o trecho de Iaiá
Garcia. De modo geral, o livro debruça-se sobre as dinâmicas sociais
de agregados e proprietários no século XIX, no qual aqueles que
viviam no limiar da ordem social, indivíduos pobres livres, precisavam
se juntar com os donos de grande terra tanto para sobreviverem,
quanto para atestaram, por assim dizer, a sua condição de não-
escravizado. Enquanto isso, do outro lado da dinâmica, as elites
visavam reiterar a sua própria supremacia com base em desmandos e
arbitrariedades. Assim, a partir disso, enquanto a vontade senhorial é
inviolável e absoluta, os dependentes podem apenas se colocar à
mercê da vontade do soberano. Dessa forma, diante dessa lógica
paternalista, os antagonismos nunca são postos de forma
significativa, criando, assim uma relação vertical de classes, de
concessões e favores.
Com isso, o romance se debruça sobre Dona Valéria e seu
circulo familiar, composto pelo seu filho, Jorge, e seus dependentes:
Estela e Luís Garcia. As relações se dão por diferentes vias; a
princípio, a relação de mãe e filho, em que a primeira tenta de todas
maneiras suplementar os desejos do segundo; em seguida, antes
mãe, agora, protetora, ela movimenta o que estiver a seu dispor para
administrar a vida de seus dependentes, Estela, a sua “afilhada’’, e
Luís Garcia, seu ‘faz tudo’; e, terceiro, o amor proibido, a relação
nunca concluída entre Jorge e a afilhada de sua mãe. A última é Iaiá
Garcia, personagem-título, sabiamente encaixada nesse quadro geral
das relações de classe. Isto posto, traduzindo a ideologia senhorial, a
estrutura composicional do romance se vale do não-conflito entre as
personagens das diferentes classes, em que a vontade da sra. Valéria
organiza e dá sentido às relações que a circundam, visto que “a
família, de preferência abastada, é a intocável depositária da ordem e
do sentido da vida” (SCHWARZ, 2000). Dito de outro modo, os
conflitos embora armados, nunca se concretizam ou chegam as vias
de fato. Assim, por um lado, o senhor-proprietário age como se tudo
fosse extensão de sua vontade, orquestrando a realidade como
deseja; por outro, os agregados, em sua condição desprivilegiada,
não podem ser sujeitos, apenas a confirmação do domínio de quem
faz o que deseja.
Dessa forma, o trecho pode ser visto como um momento-chave
que descreve essa dinâmica histórica do chefe da família e de seus
subordinados. Momentos após o assédio de Jorge para com Estela e a
ida do mesmo ao Paraguai, Dona Valéria, com toda sua bondade,
encomendou a Estela um obséquio, um dote. Diferentemente de seu
pai, Sr. Antunes, Estela não demonstrou semelhante felicidade, muito
pelo contrário, ao sentir que a sua busca por individuação foi
interrompida, sentiu nada alegre. Contextualizada a cena, pode-se
perceber, primeiramente, uma dimensão de acanhamento e
constrangimento na cena, em que suspenso o conflito, as reais
intenções não se configuram devidamente. Por parte da d. Valéria, a
sua doação tem nada de espontânea, mas sim de concessão, de
submeter Estela à sua vontade inviolável, e todo esse subtexto é
acompanhado de uma dimensão libidinosa, na qual há um gozo por
parte do paternalismo nas humilhações, ao atar pés e mãos dos
dependentes (SCHWARZ, 2000). Da parte de Estela, enquanto
subordinada, jamais pode se opor ou deixar o seu ressentimento e
tristezas claras, sem que isso acarrete em retaliação. Nesse sentido,
apesar de não conter propriamente neste trecho, a seguir Estela
entre no que podemos chamar de “território do diálogo’’, em que em
vistas da impossibilidade de abrir o jogo quanto às suas vontades, e,
assim, lutar por seus objetivos, os dependentes precisam achar
meios tácitos e indiretos de manter a sua autonomia, sem que isso
ponha em cheque a própria sobrevivência do dependente
(CHALHOUB, 2003). Esses meios, dentro da esfera doméstica, se
fazem nas trocas cotidianas entre proprietários de subalternos, como,
por exemplo, o caso em que Estela tenta desdizer Dona Valéria, sem
que isso leve para um confronto direito.
Com isso, toda essa hesitação por parte do dependente e a
satisfação do proprietário, que juntas estão dentro da lógica
senhorial, são traduzidas formalmente no texto. E esta formalização
de uma experiência histórica é reiterada ao longo de todo o texto. No
caso, a fatalidade da posição social de Estela, pobre e dependente, se
contrapõe ao sucesso de d. Valéria. Além disso, há uma dupla
lembrança dessa posição, pois ao trazer Jorge ao texto, ocorre uma
reiteração quase dupla de sua fatalidade. Uma por ter sido beijada à
força, sendo colocada contra a parede por Jorge; a segunda, o
benevolente desmando de sua senhora para forçadamente aceitar
uma doação. Sendo assim, o trecho traduz a inviolabilidade da
vontade do senhor, enquanto põe luz, de forma central, a pobre
subordinada.
Como dito, dentro da política de domínio, a vontade do senhor
é incontestável e sobra para o subordinado achar meios de preservar
a sua autonomia e sobreviver. Com isso, igual as personagens de Iaiá
Garcia como Estela e outros como Luís Garcia e Sr. Antunes, Dona
Plácida procura alternativas para conseguir o que almeja, neste caso,
fazendo-se uso do “território diálogo’’ e todas as suas variedades.
Primeiramente, debruçando sobre o texto de Memórias, percebe
um certo despropósito, um vai-e-vem na narrativa, em que o
narrador-personagem reata e desata a narração e a história como
bem quiser, desta forma, a transcrição literária da sua vontade pode
se observar com essa volubilidade, em que o registro pode mudar de
um momento para outro, a desmando ou não de quem nos fala.
Começa o capítulo dizendo como a sua narração “ébria’’ é tal como o
jantar com Vigília, assim, tanto o modo de narrar e o que é narrado
está sob seu poder. A narração interessante e propositada, na
verdade, segue o seu ritmo desejado, assim como o jantar pode ter
conversas, monólogos, troca de carícias. Assim, a narração reflete
sobre si mesma, ao passo em que descreve o dia a dia das duas
personagens. Além disso, em uma vez que a essa alternância no
narrar da trama, com este desatar e atar, a inconstância impossibilita
a continuidade dos próprios conflitos, os quais se perdem e
desvanecem ao longo do livro. O que converge e diverge
simultaneamente com Iaiá Garcia, visto que há igualmente uma
suspenção do conflito entre classes, contudo, enquanto aqui se dá
pela transcrição formal da vontade de superioridade do narrador; lá,
as tensões são suspensas
Desse modo, esta volubilidade, a alternância de contrastes,
como libidinagem característica das atitudes de Valéria, em Iaiá
Garcia, possui uma dimensão de desrespeito, se complementando
com uma satisfação de amor próprio de Brás (SCHWARZ, 2000).
Enquanto senhor-proprietário, a vontade de Brás perpassa qualquer
autonomia do outro de classe, não se detém a nada, implicando
sempre em abusos, desmandos e arbítrios. Com isso, esses caprichos
servem à superioridade do narrador-protagonista que se desobriga de
tudo, não se detém e não pode, de modo algum, sair por baixo.
Isto posto, com a veleidade e volubilidade de Brás Cubas
formalmente transcrito, a Dona Plácida precisa achar seu modo
indireto e tácito de garantir sua sobrevivência, e, quem sabe, sua
autodeterminação. Sempre sendo convidada para sentar-se com Brás
Cubas e Virgília, contudo, como narrado “Dona Plácida não aceitava
nunca”, e ao ser questionada se essa desfaçatez se daria por não
gostar mais de Virgília, Plácida se desfaz em lágrimas, jurando que
não haveria como amar mais alguém do que a sua senhora, tudo
isso, enquanto Brás Cubas deixa algumas moedas para a
dependente. Ao primeiro olhar, Dona Plácida, aqui, estaria ponto em
cheque justamente esta vontade do senhor virtualmente inviolável,
ao negar-se sentar à mesa, preservando a sua vontade enquanto
indivíduo autodeterminado. A aparente violação cai por terra, porém,
quando, de modo brincalhão e provocativo, Virgília questiona as
motivações de sua subordinada.
Esta cena, semelhante à da Estela e Valéria, expõe a dinâmica
vertical das classes que, em sua condição, não podem antagonizar
seus mestres, assim, fazendo-se uso de um “território do diálogo”.
Junto ao diálogo, Dona Plácida apela com as suas lágrimas ao pátos
de sua senhora, como uma forma de frear um conflito não
necessariamente posto, mas que a própria possibilidade é perigosa.
Sendo assim, usando de seus meios, a personagem apela para uma
suposta bondade e benevolência de Virgília, enquanto mantém a sua
integridade e autonomia intactas. Assim, a personagem reconhece a
lógica senhorial, adentrando-a e desvendando as atitudes de seus
antagonistas. Do outro lado da relação antagônica, Cubas e Virgília
parecem se comprazer tanto da humilhação dos dependentes, quanto
de suas superioridades serem reiteradas e fortificadas nessas
situações.
Em seguida, o último trecho de Esaú e Jacó. Como feito
anteriormente com os outros romances, é pertinente investigar a
redução estrutural do trecho. Retomando a dinâmica da volubilidade
expressa anteriormente em Memórias, o início do trecho já expõe
esse processo de sim e não; de dizer e desdizer do romance.
Contradizendo o início do capítulo, o narrador se corrige e diz que
Flora não estava entediada, como antes, mas que havia passado bem
a noite, sorrindo e partilhando felicidades com outrem. Como tudo no
romance, porém, o narrador se contradiz e não. Sim, pois, de fato,
Flora estava aproveitando a última festa da monarquia brasileira ao
lado de Pedro. Contudo, sim, visto que ela não poderia partilhar
felicidade com o outro gêmeo, Paulo, que é republicano. Assim sendo,
inconstância da narração se junta com a da própria personagem, que
se vê na situação de amar, igualmente, os dois irmãos, porém,
naquele momento, estar com apenas um deles presente.
Além disso, esta última festa do monarquismo se contrapõe a
uma outra festa, a realizada após a Proclamação da República.
Obviamente contando com a ausência do monarquista Pedro, Flora
também se viu pela metade ao estar ao lado apenas de um dos
irmãos. Assim sendo, uma vez que a Flora é atravessada também
pela lei geral do romance, a inconstância, como também a
incapacidade de conciliar prováveis extremos em sua vida, Pedro e
Paulo, Flora inveja a princesa imperial. Essa tentativa de conciliação e
inconstância traduz uma própria realidade história, em que há essa
dinâmica entre monarquia e república, sem que haja entre elas uma
real diferença.

Isto posto, ao invejar Isabel, a personagem demonstra a sua


condição, por assim dizer, limitada à vontade de seu pai, por
exemplo, já que ao logo do romance, ela se afasta dos dois por causa
de uma viagem.

BIBLIOGRAFIA
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e
processo social nos inícios do romance brasileiro. Editora 34, 2000.
CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis, historiador. São Paulo:
Companhia das letras, 2003.
SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado
de Assis. Editora 34, 2000.
CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo: Livraria Duas Cidades,
1970.

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