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Pa iy : © <3 UDOS NACIONAIS As redes sociais e a liberdade informa- tiva na internet propiciaram o retorno de uma pratica comum nos primeiros jornais: a busca desenfreada por aten- ¢40 do leitor mediante titulos impac- tantes que muitas vezes distorcem ou invertem a realidade. E essa é a princi- pal critica feita pelo establishment midiatico a internet. Chamada antiga- mente de “penny press’, ou jornalismo de centavos, os jornais sensacionalis- tas buscavam ganhar na venda de cada exemplar a cada cidadao com apelo essencialmente popular. O modelo que veio a seguir foi inaugura- do pelo The New York Times, e preten- dia vender credibilidade por assinatu- ra. Um modelo de jornalismo respon- sdvel e que nao precisava vender a capa ao leitor, pois 0 tinha na lista de assinantes, acabou trocando o patrao popular pelo patrao empresarial € governamental, rendendo-se as gran- des agendas funcionalistas da transfor- macao social. Mas a liberdade na internet esta trazendo o fim do modelo de jornalis- mo por assinatura, dos grandes grupos que demandam credibilidade prévia. A descrenga nas empresas de midia acabou gerando uma reagdo desesperada por parte dela contra as vozes do homem comum na internete ‘em todo meio que escape dos filtros midiaticos. ‘A nova midia das redes sociais repete em alguma medida as condig6es daquela problematica, mas libertadora ligagdo com as vozes populares. FAKE NEWS QUANDO OS JORNAIS FINGEM FAZER JORNALISMO ma FAKE NEW cu Me rt © ESTU! IDOS NACIONAIS Fake news: Quando os jornaisfingem fazer jornalismo Cristian Derosa 1 edigao - janeiro de 2019 - Estudos Nacionais Os direitos desta publicagao pertencem a: Editora Estudos Nacionais R, Joao Mota Espezim, 1339 CEP 88045-400 - Florianépolis - SC Telefone: (48) 3024,0804 website: www.estudosnacionais.com Editor Marlon Derosa Revisao ortogréfica Fausto Machado Tiemann Capa e diagramagio Cristian Derosa Preficio Fabio Goncalves FICHA CATALOGRAFICA Derosa, Cristian. Fake News: fingindo fazer jornalismo Estudos Nacionais, 2019 ISBN: 9788594261045, 1. Jornalismo, 2, ciéncias da comunicagio. I. Autor. Il. Titulo. Editora Estudos Nacionais www.estudosnacionais.com ‘Todos os direitos reservados desta obra. Proibida toda e qualquer reproducao desta edigdo por qualquer meio sem permissio expressa do editor. Dedico este livro as minhas duas filhas, Catharina e Cristina SUMARIO 1. Acobertura eleitoral e a relagao entre verdadee politica. 2. Jornalismo sensacionalista e jornalismo integrador .. 3. A grande mudanga dos jornais - das empresas para as ONG... 4, Era da informagao - um delirio?. 5. O caso do bebé-diabo e as noticias populares. 6. Ciéncia jornalistica e os falsos deuses damodernidade.. 7. O caso da relacdo entre virus zika e a microcefalia. 8. Palavras que matam: 0 glossdrio do politicamente correto. Referéncias bibliograficas... Prefacio “Sao grandes empresas, propriedade de venturosos donos desti- nadas a Ihes dar 0 minimo sobre as massas, em cuja linguagem falam, e a cuja inferioridade mental vao ao encontro, conduzindo (05 governos, os caracteres para os seus desejos inferiores... Nao 6 facil a um individuo qualquer, pobre, cheio de grandes ideias, fundar um que os combata... Ha necessidade de dinheiro; sao preciosos, portanto, capitalistas que saibam bem o que se deve fazer num jornal... Vocés vejam: antigamente, entre nds, o jornal era de Ferreira de Aratijo, de José do Patrocinio, de Fulano, de Beltrano... Hoje de quem sao? A Gazeta é do Gaffrée, 0 Pais é do Visconde de Morais e assim por diante. E por detras dela estdo os estrangeiros, inimigos nossos naturalmente, indiferentes as nossas aspiragées..” (Lima Barreto) Johann Gutemberg, em meados do século XV, desenvolveu uma das tecnologias mais revolucionarias da histéria: a prensa, um tipo movel que possibilitava a impressao de caracteres no papel em lar- ga escala. Criava-se, desse modo, as bases da industria do livro e, por consequéncia, a popularizagao do saber. Ej primeiro grande feito da nova engenhoca, para mostrar a que veio, foi a “Biblia de Gutemberg’, marcando como que uma ruptura simbdlica com 0 monopélio que o clero detinha sobre 0 livro sacro, mudanga de relevo semelhante ao que se teve com a publicagao das leis na praca FAKE NEWS | QUANDO OS JORNAIS FINGEM FAZER JORNALISMO publica da Grécia antiga, fato que rompeu concretamente com 0 exclusivismo do poder das aristocracias tradicionais'. Parecia mes- mo que raiava, enfim e de vez, 0 sol da liberdade as classes baixas contra 0 arbitrio dos poderosos. Ainda na segunda metade desse século XV, a maquina jé se fa- zia conhecida por toda a Europa e um estudante da Basiléia podia escrever em carta: “Neste momento um vagio inteiro carregado de classicos, das melhores edicdes aldinas, chegou de Veneza. Quer algum? ”.? Podemos ter uma imagem do entusiasmo que o invento causou aos homens da época na seguinte passagem de Will Durant: Descrever todos os seus efeitos seria fazer a cronica de metade da histéria do espirito moderno. Erasmo, na euforia de suas ven- das, chamou a imprensa a maior de todas as descobertas... A im- prensa substituiu os manuscritos secretos por textos econdmicos rapidamente multiplicados em cépias mais exatas e legiveis do que antes, e tao uniformes que os estudantes em paises diferentes po- diam trabalhar um com o outro com referéncia a paginas espect- ficas de edigdes especificas... A imprensa publicou - isto é tornou acessivel ao publico - manuais pouco dispendiosos do ensino de religiao, literatura, histdria e ciéncia; tornou-se a maior e mais ba- rata de todas as universidades, aberta a todos. * E séculos mais tarde, j4 no XIX, um liberal como Castro Alves, em homenagem aos livros, podia ainda nos ditar esses versos: Por uma fatalidade Dessas que descem de além, O sec'lo, que viu Colombo, Viu Gutemberg também. Quando no tosco estaleiro 1.Vernant, Jean Pierre. As Origens do Pensamento Grego. Rio de Janeiro: Di- fel, 2013. p. 53-72. 2. Durant, Will. A Reforma. Rio de Janeiro: Editora Record, 1957. p. 135. 3. Ibid. 10 CRISTIAN DEROSA Da Alemanha o velho obreiro A ave da imprensa gerou... O Genovés salta os mares... Busca um ninho entre os palmares E.a patria da imprensa achou...4 Porém, diferentemente do que alardeia quem esteja comprome- tido com certos dogmas progressistas, como em alguma medida 0 estava nosso poeta, e por isso acredite que o amanha é sempre melhor que 0 ontem e que tudo que se cria serve, inevitavelmente, a mercé da raga humana, ¢ interessante notar que qualquer avango tecnolégico pode obedecer a propésitos bons e maus, e isso de- pende, quase que exclusivamente, das intengdes, veladas ou expli- citas, dos donos da ferramenta inventada. Ciente dessa dialética, 0 mesmo Durant finaliza assim a descrigao empolgada da criagao da imprensa: “[...] forneceu o instrumento mais rapido para a disse- minagao da insensatez que 0 mundo jamais conheceu até a nossa época’. § E inocéncia de primeira infancia acreditar que um novo invento, ou seja, um novo instrumento de a¢ao sobre o mundo e sobre os outros seres humanos seja desde logo moeda comum, coisa de dominio publico. Pelo contrario, quem decide, em ultima anilise, sobre os usos desse novo recurso é quem tem meios de financia- lo, de manté-lo, de ampliar suas operagdes e de propiciar seu desenvolvimento.’ A tecnologia é sempre posse de uma minoria poderosa que, a bem da verdade, usufrui daquilo que lhe pertence do modo que lhe apraz. Aquilo que chamamos de imprensa ou, mais recentemente, mi- dia de massa sao produtos histéricos diretamente ligados aos avan- 4. Alves, Castro. O Livro e a América. In: Espumas Flutuantes. 5. Ibid. 136 6. Mesmo Gutemberg teve que hipotecar sua maquina ao magnata Johann Fust em troca de empréstimo para tocar 0 projeto e, nao podendo saldar a divida, entregou-a em paga a seu fiador. 11 FAKE NEWS | QUANDO OS JORNAIS FINGEM FAZER JORNALISMO cos das técnicas de impressio desenvolvidas no Velho Continen- te renascentista. Nao obstante, se, por um lado, o invento ensejou grandes avangos no que diz respeito a uma ampliagao formidavel nas possibilidades de divulgacao de ideias para um niimero cada vez maior de pessoas - 0 que é indispensavel para um povo que, enquanto virtual participante dos negécios do Estado, precisa estar minimamente informado sobre o que se desenrola no mundo para além de sua vila - por outro lado, sempre foi um instrumento de manipulagao de opinides e consciéncias segundo os fins desejados por uma elite intelectual, politica ou econémica que, circunstan- cialmente, tivesse a posse desses mesmos meios tecnoldgicos difu- sores de informagao. No contexto do inicio da Idade Moderna ocidental, por exem- plo, a Igreja Catélica jé tinha sua “agéncia de propaganda’ para a evangelizagio do Novo Mundo, a Propaganda Fide, e as encania- das lutas entre protestantes e catélicos, na Inglaterra de Cromwell, eram animadas por todo um aparato de panfletagem propagandis- tica, sobretudo pelo lado puritano’. Ja havia, portanto, guerra de narrativas, e a bancava quem possuia os meios para tal. Por consequéncia, no toque do aperfeigoamento da técnica nos séculos seguintes, melhorou igualmente o poder de penetragao da imprensa no seio social ¢, como corolirio, o poder de uma minoria organizada influir sobre a maioria que a cada geragio depositava mais e mais crédito aos ecos da classe falante - que ja rivalizava em autoridade com os parocos ¢ os velhos do lugar. Ja no século ilumi- nista 0 conceito de opiniao publica era moeda corrente e realidade consolidada. Naquele século XVIII, que vai consolidar a ascensio ao poder da casta burguesa embebida do individualismo, do huma- nismo e do racionalismo dos séculos que lhe serviram de prdlogo, a 7. er: Cull, Nicholas John. Propaganda and mass persuasion: A Historical Encyclopedia,1500 to the Present, Oxford: ABC CLIO, 2013. p. xiv; Briggs, ‘Asa, Burke, Peter. Uma Histéria Social da Midia: de Gutemberg a Internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2016. 12 CRISTIAN DEROSA imprensa se apresentava como um quarto poder® — ainda que Mon- tesquieu, na célebre obra, nao Ihe contemplasse com 0 justo titulo. Vale acrescentar, ainda na baila do siécle des lumiéres, que a propria Revolu¢ao Francesa de 1789, que Michelet havia compre- endido como um verdadeiro levante popular, de acordo com 0s es- tudos posteriores, como o de Augustin Cochin’, provou-se ser uma urdidura tramada por uma elite de fildsofos, homens de Estado e ricagos em reuniGes secretas e discretas em clubes ¢ sales cujas deliberag6es chegava ao povo, através da imprensa cada vez melhor equipada, como propaganda politica jé adequadamente amoldada ao interlocutor que se queria conquistar as fileiras revoltosas. Nessa esteira histérica, a rela¢ao entre elite, imprensa e povo, passou a ser, do século XIX em diante, um aspecto essencial para se compreender os rumos das democracias ocidentais. O Estado tipico do ocidente contemporaneo € 0 da sociedade de massas composta pelos homens-massa segundo os dizeres de Jose Ortega y Gasset". Essa sociedade e esses homens tém como pecu- liaridade o atomismo do individuo que, nao se vendo mais apegado anada nem nos céus nem na terra e sendo comandado desde uma sede de Poder tao distante como era o cume do Olimpo para os gregos, acabam se convertendo nessa massa confusa, inorganica e desestruturada que habita as grandes megaldpoles do globo. A relacao entre 0 Poder ea sociedade, nas raizes do mundo oci- dental, tinha, porém, uma outra dinamica. O povo detinha uma ligagao com sua terra, com sua histéria local, com costumes mais proximos, com sua paréquia e com uma memiédria social ainda nao caduca. Decorre disso que o tipo de representagao politica - ou seja, relagao entre governo e povo ~ na transicao do feudalismo para os Estados Nacionais se dava nao entre um povo insubstancial 8. Briggs, Asa, Burke, Peter. Op. Cit. Augustin. Lo spirito del giacobinismo le societa di pensiero e la democrazia: una interpretazione socioldgica. Milo: RCI Libri, 1981. 10. Gasset, Jose Ortega Y. La Rebelion de las Massas. In: Obras Completas, Tomo IV, Madrid: Revista de Occidente, 1966. 13 FAKE NEWS | QUANDO OS JORNAIS FINGEM FAZER JORNALISMO e abstrato com um Poder longinquo e etéreo, mas entre um Po- der concretamente estabelecido e representantes intermediarios do povo que iam diante do monarca com demandas reais daquela par- cela real da populagao em nome de quem falavam. Ademais, havia a representacio entre as classes e corporacées, cada qual reivindi- cando 0 que lhe era de interesse factual e que, sendo assim, cons- trangia 0 governante a cavar a solu¢ao. Em suma, era sempre uma relagao entre um Poder real e um corpo social igualmente real”. Por sua vez, na pista da democracia rousseauniana’’ adornada pelos apelos apaixonados do abade Joseph Sieyés'’, esses interme- didrios, representantes dos anseios verdadeiros, haviam de desapa- recer em nome dos interesses da Nagao ~ entidade ideal concebida na mente de um punhado de philosophes que faziam fama nas ta- vernas, nas lojas magénicas e nos palacios. Cada citoyen, segundo essa maneira de enxergar as coisas, havia de ser tanto um indivi- duo, no sentido do mais puro e cruel individualismo moderno, quanto uma encarnagao da vontade geral, coisa vaga e absurda. E é dessa concep¢ao distorcida que se inspira a democracia moderna, a democracia das massas, que ¢ exatamente a prevista na nossa Carta de 1988. Ocorre que esse vacuo deixado pelos antigos poderes interme- diarios & preenchido, a partir do século XIX, pelos partidos politi- cos" e pelos supostos interlocutores entre o Estado, os partidos e os populares: a imprensa. Soma-se a isso o fato de que as disputas entre os partidos poli- ticos no cenario ocidental dos séculos XIX e XX, tanto antes quan- to depois das Grandes Guerras, mais que disputas normais pelo 11. Sousa, José Pedro Galvao de. Da Representagao Politica. Sao Paulo: Edi- tora Saraiva, 1971, 12. Rouseau, Jean-Jacques. O Contrato Social. Sao Paulo: Martins Fontes, 1996, 13. Sieyés, Joseph. A Constituinte Burguesa: 0 Que é 0 Terceiro Estado?. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. 14, Sousa, Op. Cit. 14 CRISTIAN DEROSA dominio da maquina publica por grupos que entendem fornecer os melhores rumos as suas na¢Ges, é aquilo que Eric Voegelin cha- ma de dogmatoquia ou guerra dos dogmas, uma disputa que se desfraldou desde as guerras religiosas do século XVI e que ainda persiste sem previsio de fim até que uma das muitas cosmovisoes que disputam a alma do homem do ocidente ~ a liberal-burguesa, a marxista-revolucionaria, a crista, a islamica etc. - tenha logrado suplantar todas as demais'*. Por conseguinte, a midia de massas se consolida, no século XX, como o principal instrumento de poder politico e cultural’ - talvez o maior poder jamais visto em toda a historia humana, corrobo- rando a tese de Bertrand de Jouvenel segundo a qual uma inegavel constante na modernidade é 0 crescimento irrefreavel do Poder”. Goebbels, a KGB, a CIA, e mais meio mundo de grandes empre- sirios, organismo internacionais, ONGs, fundagées filantrépicas com pretensdes dominadoras etc. compreenderam que quem ob- tivesse o dominio abrangente dos meios de comunicagao é quem teria as massas a seu dispor e, doravante, teria maiores chances de impor, desde cima, a agenda politico-cultural de sua preferéncia'’. E mesmo 0s partidos politicos, que surgiram com pretensdes honestas, sao agambarcados por essa investida do poder econdmi- co em conjuga¢ao com os donos da voz publica e passam a se ver como instrumentos, conscientes ou nao, da elite dominante. Sendo assim, os interessados em gerir a vida humana puseram-se em mar- cha apressada rumo a conquista das redacdes de jornais e revistas, dos estiidios de radio e TV, das filmagens de Hollywood e da Broa- 15. Voegelin, Eric: Modernity Without Restraint. Louisiana: Louisiana State University Press, 1995; The Drama of Humanity and Other Miscellaneous Papers. Columbia: University of Missouri Press, 2004; A Nova Ciéncia da Po- litica. Brasilia: Editora UnB, 1982; Ordem e Historia: A Era Ecuménica. So Paulo: Edigdes Loyola, 2010. 16. Ibid. 17. Jouvenel, Bertrand. O Poder: hist6ria natural de seu crescimento. SAo Paulo: Editora Peixoto Neto, 2010. 18. Cull, Nicholas. Op. Cit. 15 FAKE NEWS | QUANDO OS JORNAIS FINGEM FAZER JORNALISMO dway e das vozes talentosas da incipiente musica popular. Que esse processo de fagocitose do poder politico e, sobretudo, econdmico sobre a midia tenha ocorrido nos regimes totalitarios é fato patente. Contudo, mesmo sob o véu das liberdades democra- tico-burguesas e sob todas as garantias jurfdicas do Estado de Di- reito, é fato que a midia nos paises ditos livres do ocidente segue 0 mesmo passo das tiranias que juram rivalizar. Vai tudo rumo a uma centralizaco, a uma uniformizacao do contetido, a um exercicio deliberado da mentira, da fraude e do engodo," Em sintese, pres- tam servi¢o obediente nao a verdade, masa quem deve o patronato. Edward Louis Bernays, o “pai das relagdes publicas”, diz 0 se- guinte: “A manipulacdo consciente e inteligente dos habitos ¢ ideias da massa é um aspecto importante do funcionamento de uma so- ciedade democratica’” Isso sintetiza bem o que dissemos até aqui. Ocorre, entretanto, no inicio do século XXI, 0 fenémeno da in- ternet. A criagao dos canais de pesquisa, das bibliotecas digitais e, sobretudo, das redes sociais e dos aplicativos de mensagens sio os primeiros produtos do engenho humano, posterior a maquina de Gutemberg, a surgirem como contraponto popular eficiente a ab- sorvente e sufocante influéncia da imprensa oficial e da midia de massas. Por causa disso, todos temos assistido, nos uiltimos anos, uma forma completamente nova de se fazer politica e de se posicionar culturalmente e esse novo modelo, para descontento dos podero- 19. Ver: Solzhenitisyn, Aleksandr. Um Mundo Dividido em Pedazos. Dis- curso para os calouros de Havard em 1978. Disponivel em: http://www.uni- vforum.org/sites/default/files/684_Solzhenitsyn_Harvard_ESPpdf. Acesso: 10/02/2018; SOUSA, José Pedro Galvao de. O Jornalismo e a Verdade Nacio- nal, Discurso de Paraninfo dos formandos de Jornalismo da Casper Libero de 1958. Sao Paulo, 1959. ‘ 20. Traduzido de: “La manipolazione consapevole ¢ inteligente delle abitudini ¢ delle idee delle masse é un aspetto importante del funzionamento di una societa democratica’, BERNAYS, Edward. Propaganda: Della manipolazione delfopinione pubblica in democrazia. Bolonha: Logo Fausto Lupetti Editore, 2008. p. 17. 16 CRISTIAN DEROSA sos, prescinde humilhantemente dos favores dos grandes canais de comunicagao. S6 no Brasil, os movimentos contestatérios de mas- sa iniciados na internet lograram colocar milhares de pessoas nas ruas em 2013; organizar um movimento popular descentralizado e quase anarquico que derrubou, em 2016, o partido mais poderoso do pais; e, por fim, contra toda a corrente do establishment, eleger Jair Bolsonaro presidente da Republica em 2018. F claro, porém, que aquela tensao descrita no inicio ainda existe. Se, por um lado, a internet assoma-se como a terra da liberdade desde longa data prometida as democracias ocidentais, por outro lado € 0 locus excelente do controle social, do fichamento genera- lizado, de monitoramento indiscreto de cada um de nossos passos, do controle sutil das nossas suscetibilidades. Por ali, também, a cul- tura massificada penetra com mais forga que nunca e qualquer jo- vem do mais distante rincao tribal do mundo pode estar por dentro da mais nova excrescéncia da musica pop, das recentes excentrici- dades da moda, do dia-a-dia da celebridade volatil do momento, das tendéncias hed6nicas da nossa geracao and so on. Nesse senti- do, a elite que instrumentaliza a midia segue vitoriosa. Tanto é verdade que, percebendo, talvez tardiamente, que as ré- deas se afrouxaram demais no que diz respeito aos abalos politicos que pequenos grupos de cidadaos comuns podem ocasionar se dei- xados a livre no pasto cibernético, as grandes empresas que forne- cem e gerem os canais de livre troca de informacées na internet tém cuidado de limitar as possibilidades, de perseguir os mais hos- tis, de favorecer seus apadrinhados e de engrossar o coro das agen- das que lhes favorecem. Foi 0 que se deu nos emblematicos casos das eleigdes americanas que levaram Trump a Casa Branca e ao jé mencionado pleito que levou Bolsonaro ao Palacio da Alvorada”', 21. Sobre a perseguicao de paginas de personalidades declaradamente direi- tistas, liberais ou conservadores, no contexto de ambas eleigdes ver as ma- térias; No The Guardian: https://www.theguardian.com/technology/2016/ may/09/facebook-newsfeed-censor-conservative-news; no El Pais: https:// brasil.elpais.com/brasil/2016/05/10/tecnologia/1462874046_524079.html. A 17 FAKE NEWS | QUANDO OS JORNAIS FINGEM FAZER JORNALISMO Em ambos casos, a rixa entre 0 povo e a elite politico-econdmica que controla os rumos da midia deixou de ser timida e velada para ser franca, obstinada e agressiva. Besse 0 cenario de fundo da era das fake news, tema central da presente obra. O autor, cioso dos rumos que essa guerra tem toma- do, faz uma anilise cuidadosa das agdes da nossa midia nos ultimos anos ~ com um enfoque bastante minucioso na ultima corrida elei- toral -, e deslinda as ligagdes espurias, as tendéncias insofismaveis e todo o universo de farsa que se tornou a nossa imprensa. Eis por que o subtitulo seja: fingindo fazer jornalismo. No Brasil atual, essa contenda entre a massa popular e a elite midiatica tem gerado prejuizos astrondmicos aos proprietarios dos canais informativos tradicionais. Os jornais e revistas, impressos ou digitais, ligados as empresas da grande midia, tem sido subs- tituido sistematicamente por sites, blogs, paginas e correntes em aplicativos de troca de mensagens. Na medida em que o véu que encobria o viés da midia se rasgou por ocasiao dos iiltimos aconte- cimentos politicos, 0 povo escolheu seu lado e decretou, diante da midia mainstream, imitando a célebre frase do presidente norte- -americano diante de um repérter da CNN: you're fake News. Como reagao, a midia criou todo um vocabulario e uma estru- tura de acao para taxar 0 povo como o real produtor das noticias falsas, pois carentes da técnica profissional, da lisura do jornalista de carreira e da argiicia que, segundo eles, sé quem esta na redagao oficial pode possuir. Criaram entdo as natimortas fact-checking, ou, agéncias checadoras, para passar o pente fino pretensamen- te qualificado no que circula nas redes; decretar, no grito, o que é verdade ou nao; e, por fim, censurar aqueles desobedientes que insistissem em dar uma visdo dos fatos que nao combinasse com a forjada nos escritérios dos grandes grupos como 0 Globo ea Abril ~ nitida aco desesperada de quem vé todo seu prestigio e poder polémica levou 0 CEO da rede social, Mark Zuckerberg, ao Senado America- no: https://www.youtube.com/watch?v=BylLTXO05jSY. 18 de influéncia minguando da noite para o dia. A grande midia vive, como os magnatas da Wall Street em 1929, sua Black Tuesday. O tema central da obra, portanto, sio as fake news. O autor, grande estudioso da area de comunicagao social, em esforco tipico do cientista busca descrever o fendmeno desde seus principios, in- vestiga suas causas e analisa como esse termo chave ~ as fake news - se articula nessa contemporanea guerra de narrativas que se da entre 0 povo ea grande midia. Mas 0 assunto nao se esgota nesse ponto. Desde esse eixo-mo- tivador, o autor analisa também: as diferentes maneiras de se fazer jornalismo; as técnicas de contextualizacao e como elas podem ser- vir de instrumento a manipulacio do publico; a utopia da “era das informagées” na crise do mundo ocidental; 0 drama da espiral do siléncio; as relagGes entre o ambiente social e a criagao de noticias; ‘os usos da autoridade cientifica para fins escusos no jornalismo atual; e as palavras-gatilho usadas pelos jornalistas tendenciosas para inibir nao s6 nossas ages, como nossos sentimentos e até pensamentos. Trata-se, enfim, de uma empreitada importante na busca de compreender com maior clareza 0 quadro histérico-social no qual nos inserimos e, por acréscimo, serve como guiamento valioso para nos ensinar como devemos nos comportar diante dessa estru- tura de poder que, no contexto atual, tem o claro objetivo de fechar, quiga de uma vez para sempre, a fresta de liberdade que a internet, malgrado suas ferramentas de controle, tem nos proporcionado. Fabio Goncalves ; a i Ht ee ‘ Co Heeeeeestece erste cee ea aga tae c a pieces ae - a qe tg wet ce ee Beep eo Stig og et Pearce renee Perper Gere e-eeRrEorartete ‘ease ac PPCM roe tse eT aCe tay sO er coder pee — ete aba ae bab i a aaa Introdu¢ao Por volta de 2004, acompanhei o deslumbre de alguns profes- sores e pesquisadores de comunicacao com a possibilidade es- timulante da “TV digital’, cuja interatividade com o publico iria finalmente promover uma emancipacao jamais vista e sepultar a passividade do radio e da TV para criar modelos totalmente inova- dores. Programas de pesquisa investiram dinheiro governamental em estudos, doutorados e especializagées, empenhados na reflexao aprofundada sobre formatos e meios de ampliar a tal interativida- de. Dez anos depois, 0 Youtube substituiu a TV e as redes sociais criaram um ambiente de debates nunca antes visto. Mas aonde fo- ram parar aqueles pesquisadores deslumbrados com a interativida- de agora que ela finalmente chegou? Estao fechados nas redages e centros académicos maldizendo os avancos que antes celebravam. A festejada interatividade chegou, mas trazendo uma voz popular diferente da esperada pelos intelectuais, que passaram a classificd- -la como “ameaga 4 democracia’” O artigo The Science of Fake News, publicado na revista Science, em maio de 2018, tenta dar conta do fendmeno que considera uma preocupacao e um problema global. Segundo o artigo, de autoria de David Lazer e outros, as noticias falsificadas sempre existiram, mas nos tltimos anos as fake news ganharam sua “versao politica- mente orientada’. O que os autores querem dizer é que grande par- FAKE NEWS | QUANDO OS JORNAIS FINGEM FAZER JORNALISMO te do contetido do que eles chamam de fake news é simplesmente contetido conservador ou de direita. Ao que parece, a hegemonia da esquerda em todo o aparato midiatico nao tolera vozes discor- dantes e tao logo surjam sao imediatamente catalogadas como um problema global a ser resolvido. Em maio de 2018, pouco antes do inicio das campanhas para a eleicao presidencial, Jair Bolsonaro ja aparecia como lider nas pes- quisas, impulsionado por multidées organizadas nas redes sociais, A época, 0 editor-chefe da revista Piauf, Fernando de Barros e Silva, declarou em um podcast, que a postura editorial do jornal Folha de S. Paulo seria a de “tentar pegar Bolsonaro de qualquer jeito, na li- nha: ‘como posso prejudicar Bolsonaro fingindo fazer jornalismo”. Sao palavras dele. O subtitulo deste livro é, portanto, uma homena- gem aqueles jornalistas que se perderam pelo caminho, desiludidos com a verdade, com 0 jornalismo e com a democracia. Como 0 proprio editor esclareceu na sequéncia, “a frase foi dita de maneira irénica”. O uso irdnico neste caso se refere quele tipo de brincadeira que se faz para ser constrangedoramente sincero, algo somente permitido em tom de piada, mais ou menos como quem diz: “E como se fosse assim, mas nao devemos dizé-lo”. Ou seja, 0 editor gostaria que houvesse uma forma mais elegante de di- zer 0 que queria. Mas nao havia. Porque o préprio contetido do que pretendia expressar é imoral, e a impossibilidade de parecer ético ao recomendar a mentira esta no centro de sua piada de mau gosto. Uma piada que revela a verdadeira face do que se tornou o jorna- lismo brasileiro: uma atividade voltada a construgao de enredos, a producao de ambientes e & falsificagao de situagoes. Diversos fatores concorreram para que 0 jornalismo e as clas- ses intelectuais migrassem para uma bolha de ideologia que os dis- tanciou do publico e da sociedade. Alheios aos valores e modos de pensar do povo, jornalistas, editores e colunistas seguiram seus professores académicos nas utopias revolucionarias e acabaram se tornando os piores inimigos da liberdade popular. 22 CRISTIAN DEROSA Como prometido, a campanha eleitoral de 2018 foi marcada por uma das mais claras e contundentes batalhas midiaticas contra um candidato, com direito a noticias totalmente inventadas e distor- goes grosseiras, tanto de declaragdes suas como de seus aliados, difamagao de eleitores alinhados ao candidato, entre outras acro- bacias baseadas na rotulacao odiosa de todos os envolvidos. A cam- panha contraria ao futuro presidente, que foi seguida por outros yeiculos, merecera ser emoldurada no museu da bizarra historia do jornalismo militante brasileiro. Seguindo a cartilha de uma guer- ra cultural, enquanto mentia descaradamente, a Folha de $. Paulo foi sua protagonista. Enquanto disseminava veneno em manchetes, disparava contra as vozes discordantes o rétulo de fake news, a pa- lavra da moda. Ouso dessa expressdo marca 0 inicio do fim do jornalismo como o conhecemos. Suplantado aos poucos por centenas de sites que se nutrem de acessos oriundos das redes sociais, a velha imprensa se contorce e esperneia contra a marcha aparentemente inevitavel que aconduz.a irrelevancia social. Segundo um levantamento feito pelo Instituto Ipsos, 73% dos brasileiros desconfiam dos grandes jornais. A acusagao de fake news pode ser a chave para compreender- mos tanto a atual decadéncia da midia quanto algo de sua histérica missao de informar. Usada para acusar o adversdrio, a expresso norte-americana é nada mais que uma nova maneira de mentir, falsificar e destruir a credibilidade do inimigo. Mas, ao contrario do que dizem os analistas, esse fendmeno nao vem exatamente das redes sociais. Os boatos oriundos da internet sao apenas versdes aperfeigoadas de algo que sempre existiu. Os populares “hoax” s6 produzem efeitos de fato relevantes quando sao inseridas proposi- talmente por jornalistas ou profissionais de relagdes publicas, le- vantando a bola para a grande midia desmentir tao logo tenham cumprido sua funcao. O atual frenesi em torno do tema deve-se ao fato de que a grande midia nao dispde mais de credibilidade para desmentir coisa alguma. 23 FAKE NEWS | QUANDO OS JORNAIS FINGEM FAZER JORNALISMO Em 2017, 0 Greenpeace da Indonésia resolveu fazer uma cam- panha contra a proliferagio de lixo nas praias do pais, um problema grave e antigo por lé, Decidiram fazer, de plastico, uma baleia cheia de lixo dentroea depositaram na praia. A noticia de que uma baleia com seis quilos de lixo teria sido encontrada numa praia da Indo- nésia rodou o mundo e comoveu muita gente. A informagao circu- lou pelas redes sociais até ser publicada, em novembro de 2018, por sites como G1, Exame, Band, Yahoo Noticias, entre outros. O mais impressionante é que 0 texto da noticia nos sites nao mencionava © fato de ter sido uma campanha, mas tratou como verdade. Este € um dos resultados da relagao simbidtica entre ONGs e grandes empresas de midia. O surgimento do fact-checking, de certa forma, assume para 0 jornalismo uma novissima tarefa que antes era deixada para 0 pu- blico: a de investigar boatos. Mas esta deveria ser a propria ativi- dade jornalistica. A credibilidade que o jornalismo perdeu agora precisa ser afirmada por meio de argumentos de autoridade cada vez mais cinicos, mas nao sem um aumento substancial da descon- fianga publica, A declaracao do editor-chefe da Piaui, de que iriam literalmente “fingir fazer jornalismo”, vai muito além de uma mera fala isolada de quem promete fazer 0 que gostaria. Foi o premincio de uma campanha sérdida que levou o jornal Folha de S. Paulo a assumir uma fungao que ultrapassa 0 papel de mera oposigaio ao governo Bolsonaro: parafraseando o subtitulo de meu primeiro livro, 0 jor- nal se tornou uma verdadeira maquina de propaganda. f evidente que aquela declaracio, por si sé, nao traz nenhuma novidade. Tan- toa Folha quanto O Globo e outros jornais sempre fizeram isso que 0 editor apenas verbalizou agora. Como veremos, a historia publica da Folha de S. Paulo pode ser reveladora dos passos que deu ao longo de um caminho que o jornal vem ha tempos seguindo, conduzido por idedlogos da USP. Ao mesmo tempo, outros jornais trilharam caminhos semelhantes, 24 CRISTIAN DEROSA sem, no entanto, deixar-se cair no fosso moral em que reside hoje a empresa de Otavio Frias. A marca caracteristica que a acompanhou sempre foi a da midia engajada e responsavel, pautada na transfor- magao da realidade, e que se explica por sua filiagao a entidades internacionais e suas agendas. Como ficard claro ao leitor deste livro, a histéria do jornalismo contemporaneo ha tempos caminha para o retorno da imprensa marrom e do sensacionalismo mais pueril, um processo determi- nado pela repeticao das condigdes originarias dos primeiros jor- nais sensacionalistas. A internet, em sua avidez Por atengao e ime- diatismo, leva-nos de volta ao tempo dos jornais vendidos nas ruas, dos brados dos jornaleiros, em que o que conta é 0 impacto do titu- lo, pouco importando a veracidade dos fatos. Aqueles jornais eram chamados “penny press” (imprensa dos centavos). Hoje vivemos a faléncia da era das vendas por assinatura, quando o verdadeiro produto entregue é a credibilidade conquistada por meio de res- ponsabilidade e engajamento, um modelo mantido por governos e grandes empresas. A diferenca é que agora os bardes da comunica- Gao investem pesado na internet para boicotar a nova e ameacadora democracia direta das redes sociais, um espaco aberto pela propria decadéncia da velha imprensa e no qual acaba se praticando um jornalismo menos responsavel, mas mais livre. No tempo das assinaturas e do RSS, 0 leitor ou usuario estava no controle da informagao. A credibilidade era dada por ele, mas a formagao da opiniéo dependia de poucos canais. Hoje, ha infi- nitas fontes disponiveis, mas a maioria dos usudrios é composta de curiosos: chegam a um artigo especifico através de um link no Facebook ou numa busca rapida pelo Google, atraidos pela curio- sidade mérbida, para ver um meme engracadinho ou uma noticia bombastica que pode ser falsa. O usudrio busca por sensagées € os manipuladores de midia sabem disso. O caos é um ambiente propi- cio para a manipula¢ao. Por outro lado, o sistema anterior da credibilidade também tem 25. FAKE NEWS | QUANDO OS JORNAIS FINGEM FAZER JORNALISMO seus problemas na dependeéncia de grandes estruturas ¢ na ligagao com investidores e idedlogos que determinam os critérios do leitor, Mas como a grande midia tem resistido ao crescimento das redes e livre circulacao de informagao? A justificativa para essa resistén- cia esta no risco da propaga¢ao de noticias falsas, mas 0 verdadeiro isco, na verdade, é o da mudanga das narrativas consagradas. Como a divulgagao de fatos cria novos fatos, a reportagem en- gajada e contextualizada produz resultados bastante controlados, E 0s grandes jornais brasileiros, a exemplo de seus equivalentes no exterior, tem demonstrado sua preocupacao em dar um sentido es- pecial a histéria e ao cotidiano do mundo. Vém dai as ficgdes jor- nalisticas que sao 0 objeto de nossa reflexao. O que nos interessa saber é que a expressao fake news tem sido usada para classificar uma série difusa de fendmenos, gerando con- sideravel confusao na opiniao publica. Para o observador comum, a impressao € que se trata de uma onda de mentiras que se utiliza da tecnologia da informacao para, maliciosamente, difundir falsi- dades que interessam a grupos, circulando sempre 4 margem da grande midia. Em primeiro lugar, essa é a caricatura facil e simpléria de um problema bem mais amplo. Boatos e mentiras sé muito raramente circularam pela sociedade totalmente & margem dos grandes jor- nais. Muito pelo contrario. Como vamos mostrar neste livro, elas muitas vezes vieram montadas no dorso largo do establishment midiético, visando sobretudo influenciar a opinido piiblica em be- neficio de agendas muito especificas, seja pela omissao, seja pela criagao de fatos ou versées. Veremos como isso foi feito com uma maestria digna de admiracao em alguns casos, nao fosse essa prati- ca a propria subversio de todos os principios jornalisticos. Importa notar que as préprias condigées profissionais da ativi- dade jornalistica jé tém causado grande estrago na sua credibilida- de. Mudangas estruturais criaram um ambiente de profunda cor- rupsao, tanto financeira quanto ideoldgica. Mas a propria atividade 26 CRISTIAN DEROSA nas redagGes, como veremos, possui caracteristicas altamente pro- picias a disseminagao de inverdades, Uma informacao imprecisa, quando tratada como verdade ab- soluta, rende manchetes de capa e vende jornais. Sob o pretexto da agilidade informativa, os editores sempre souberam langé-las sem esperar as confirmagdes mais sdlidas, ou mesmo as informacdes mais decisivas, na justificativa da agilidade informativa. Depois, clarecidas as coisas, o fato verdadeiro j4 nao merece um destaque de capa, ficando na meméria do leitor aquele susto inicial, expo- nenciado por uma bela e colorida capa, em um ambiente de con- trole absoluto dos sentimentos. © fact-checking correspondia errata, que vinha em notinha quase imperceptivel no canto da pagina, Mas que acontece quando um jornalismo que nem mais se preocupa em fazer erratas assume 6 papel de imprensa oficial e porta-voz da opiniao piblica? A che- cagem serve agora apenas para acusar os concorrentes, lancando uma nuvem de fumaga com 0 objetivo de ocultar as proprias men- tiras. Imediatamente a eleico de Jair Bolsonaro, o presidente foi acu- sado de “ameacar a imprensa” com suas declaragées. Mas quais declaracies? Tratava-se do antincio do cumprimento de uma pro- messa de campanha: cortar as verbas governamentais destinadas aos grandes jornais, um financiamento ja tradicional no Brasil, mas que foi aumentado substancialmente nos governos petistas. Ou seja, 0 que Bolsonaro propunha era justamente o contrario do que disseram. Sem verba governamental, a liberdade e a independéncia do jornalismo nao estariam ainda mais asseguradas? Quando uma medida que visa a garantir a independéncia dos jornais é tratada como ameaga a liberdade da imprensa, temos ai uma nogao do que esses jornais querem dizer quando utilizam a expressio fake news. Isso também revela 0 estado a que a perda de credibilidade dos jornais os conduziu, ao ponto de s6 a verba estatal ser capaz de os sustentar. Mas, afinal, quanto receberam nos governos petistas a 2%, FAKE NEWS | QUANDO OS JORNAIS FINGEM FAZER JORNALISMO Folha de S. Paulo e a Rede Globo? Segundo informagées desses préprios veiculos, o Grupo UOL, dono da Folha de S. Paulo, recebeu R$ 225 milhdes ao longo dos oito anos de governo Lula, enquanto a Globo recebeu R$ 6,2 bi- Ihdes no mesmo periodo. Converter os maiores veiculos do pais em porta-vozes do governo mediante um tipo de “imprensalao” (mensalao da imprensa) nao lhes parece uma ameaca to séria, mas deveria ser um escindalo nacional. Parece dbvio que as afetagoes de horror e preocupagio que vemos nos jornais sobre as chamadas noticias falsas nao se devem exatamente ao amor a verdade, mas ao dinheiro. Nao foi a toa que as eleigdes de 2018, tao marcadas por alega- ses de fake news, comegaram com a maior delas: a candidatura presidencial de Luiz Inacio Lula da Silva, preso pela Policia Fede- ral e condenado a doze anos de cadeia por lavagem de dinheiro. Mesmo encarcerado, Lula esteve presente na imensa maioria das sondagens de intengao de voto, e isso foi uma escolha deliberada dos préprios jornais. Esse blefe do PT, que contou com ampla ajuda da midia, nao foi nunca mencionado como uma noticia falsa. Mas 0 fato € que foi justamente essa mentira que garantiu grande parte dos votos conquistados pelo “candidato-poste” Fernando Haddad. A ampla votacao permitiu ao PT e & esquerda fortalecerem a narra- tiva de “pais dividido” Ao contrario, portanto, do que diz a narrativa oficial sobre o fe- némeno das noticias falsas, é no terreno do establishment midiatico que circulam as maiores e mais poderosas mentiras. A parte das redes sociais reflete apenas uma resisténcia contra as mentiras ofi- ciais ~ resisténcia esta que, quando alcanga uma publicidade maior, permite que os “checadores” reforcem suas narrativas de panico contra a temida liberdade na internet. Segundo 0 jornalista Ryan Holiday, a maioria dos grandes jor- nais americanos deve sua sobrevivéncia e sucesso 4 mentira e ao sensacionalismo. De matriz, norte-americana, 0 jornalismo brasi- 28 CRISTIAN DEROSA leiro também teve seu periodo dureo de sensacionalismo e daquilo que chamam de imprensa marrom, como sera visto adiante. A ma- neira contemporanea pela qual os jornais chamam a atengao, como mostra Holiday, é através da mentira, da omissio e da falsificagao de contextos, o que ironicamente a academia chama de “contextua- lizagao’, um conceito sobre o qual falaremos de maneira detalhada. Resumidamente, contextualizar é relacionar fatos isolados com o ambiente e as circunstancias em que ele se insere, suas causas e consequéncias. Quando, porém, tem-se uma narrativa pronta de antemao, que nao corresponde necessariamente com o contexto natural, a contextualizac¢ao esta dando lugar a uma complexa trama ficticia, para a qual sera preciso, no minimo, jogar uma parte dos fatos para baixo do tapete. A ocultacao, por mais de 20 anos, da organizacao politica Foro de Sao Paulo é um exemplo de trama baseada nao sé em noticias falsas, mas no siléncio absoluto a respeito do contexto em que se deram mudangas historicas da América Latina. Diante disso, é es- perado que quando as informagées teimem em aparecer, por meio de canais marginais como blogs ou sites, a grande midia se defenda com rétulos adequados aos seus interesses. E na onda da ocultacao e do siléncio seletivo que entram em cena as narrativas falsificadas, os contextos artificiais necessarios a justificagao de narrativas ideo- ldgicas. Sem os siléncios dos jornais nao haveria 0 alarde das redes. Com credibilidade decrescente ha décadas, os jornais tradicio- nais enfrentam um dilema histérico: ou insistem em suas narrati- vas, como se fossem vitimas de um subsistema terrorista de infor- magées marginais, ou adaptam-se a realidade das redes sociais e se integram a suas pautas. A primeira op¢ao cria 0 ridiculo de um vitimismo que parte de alguém que tem em maos todo o poder narrativo, como se grandes empresas estivessem - coitadas! — sen- do massacradas e torturadas por redes de cruéis adolescentes atras de laptops. Por outro lado, adaptar-se 4 forma dos blogs e redes sociais deixaria no ar certa submissao ao que os jornais preferem 29 FAKE NEWS | QUANDO OS JORNAIS FINGEM FAZER JORNALISMO considerar “um canal menor de informagao’, além de macular a imagem de credibilidade associada aos filtros informativos da ativi- dade da imprensa tradicional, prejudicando aquela confianga ven- dida por assinatura. A histéria recente esté mostrando que uma combinagao dessas duas alternativas esté sendo arranjada. Entre idas e vindas, os grandes veiculos buscam conciliar a adaptagao as novas tecnologias com a afirmagao de autoridade, apelando ao que restou de crenga na sua reputagao. Para isso, tem sido essencial 0 apelo a esteredtipos de discurso de ddio, violéncia e a mentiras — que, naturalmente, chegam do mundo externo para as redagdes e nunca 0 contrario. Em 2017, 0 Facebook mudou a forma de tornar visiveis os con- tetidos, limitando a visualizagio de links e noticias para focar na interacao social, com fotos e postagens de texto. Grandes jornais como a Folha de S. Paulo firmaram um acordo com grandes in- vestidores para criar uma forma de “saltar” sobre as redes sociais e acessar 0 piblico diretamente. As chamadas agéncias de checagem de fatos prometem fazer 0 que o jornalismo faz, mas com nome diferente, tamanho 0 descrédito das suas atividades tradicionais. Mas, como sera mostrado neste livro, essas agéncias represen- tam, por suas ligagdes financeiras, grandes grupos de midia, isto é, elites econdmicas que desejam domesticar a democracia em prol de seus projetos de sociedade. As utopias sociais de pessoas como Ge- orge Soros, por exemplo, sao o horizonte de consciéncia dentro do qual sao selecionados 0s fatos e escritos os editoriais dos grandes jornais do mundo, gragas aos tentéculos de uma rede de entidades e fundacoes. Todo esse contexto de manipulacao e submissao parece conver- gir para uma decepgao generalizada com a antes festejada era da informagao. Desde que intelectuais orginicos passaram a questio- nar 0 “livre fluxo de informagao’, acusando 0 que viam como vieses descontextualizantes para o terceiro mundo, fez-se um esforgo de contextualiza¢ao no intuito de unificar em coeréncia os discursos e 30.

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