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Contribuições da Clínica da Atividade para o campo

Maria Elizabeth Antunes Lima1 da segurança no trabalho


Clinic of Activity contributions to safety at work

1
Universidade Federal de Minas Resumo
Gerais, Brasil.
A partir da análise de um estudo realizado no setor petroleiro, em 1996, o
artigo expõe os fundamentos da Clínica da Atividade (Clinique de l’Activité)
- método de análise e compreensão do trabalho desenvolvido por Yves Clot,
na França -, trazendo uma reflexão sobre suas possíveis contribuições para o
campo da segurança no trabalho. A autora conclui que os conceitos de gênero
de atividade e estilo (genre et style professionel), propostos por Yves Clot, são
essenciais para a compreensão dos acidentes e suas causas.
Palavras-chaves: clínica da atividade, segurança no trabalho, acidentes
industriais.

Abstract
Based on the analysis of a study held at the oil sector in 1996, the article
presents the principles of the Clinic of Activity (Clinique de l’Activité) – a method
for analyzing and understanding work developed by Yves Clot in France –,
reflecting on its possible contribution to the field of safety at work. The author
concludes that the concepts of professional framework and style (genre et style
professionels) proposed by Yves Clot are essential for the comprehension of work
related accidents and its causes.
Keywords: clinic of activity, safety at work, industrial accidents.

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Introdução

Inicialmente, cabe esclarecer que Clíni- sentam, no nosso entender, as contribui-


ca da Atividade é a denominação escolhida ções mais relevantes de Clot para o campo
por Yves Clot para o método desenvolvi- da segurança no trabalho.
do por ele e sua equipe no Conservatoire
Gênero e estilo de atividade5
National des Arts et Métiers (CNAM), em
Paris, onde é professor e responsável pelo Para Clot, gênero de atividade é um
Laboratório de Psicologia do Trabalho2. Por sistema de instrumentos, coletivamente
ser um teórico ainda pouco conhecido no construído e que se encontra no interior da
Brasil, tentaremos expor brevemente sua atividade individual. É uma gama de ativi-
trajetória e os conceitos centrais que com- dades encorajadas, proibidas ou interditas.
põem seu campo de atuação. Um repertório disponível que pré-organiza
2
Sobre as questões teórico-meto- Clot teve uma formação inicial em Fi- a atividade. Ou seja, trata-se de técnicas,
dológicas em torno da Clínica da losofia, formando-se em Psicologia após formas de fazer estabelecidas, uma reor-
Atividade, recomendamos a leitura seu doutoramento. Uma de suas maiores ganização do métier pelo coletivo e, dessa
de CLOT, Y. A função psicológica do fontes de inspiração foi o trabalho de I. forma, pode ser compreendido como a par-
trabalho. Petrópolis: Vozes, 2006. te subentendida da atividade, um estoque
Oddonne, na Itália, na década de 1970,
mas a base de suas reflexões tem sido as de possibilidades conhecido somente por
3
Para o leitor interessado em
contribuições da chamada Psicologia Só- aqueles que participam da mesma situa-
conhecer melhor sobre a trajetória
de Yves Clot e suas fontes de ins- cio-Histórica de Vygotski, Leontiev e Lu- ção. Trata-se, portanto, de um instrumento
piração, recomendamos a leitura ria, além daquelas advindas dos estudos coletivo da atividade individual.
de Le travail sans l´homme - pour une do lingüista russo M. Bakhtin em torno da Ele ressalta a necessidade constante de
psychologie des mileux de travail et análise do discurso. Entre seus antecesso-
de vie. Paris: La Découverte, 1995, se recriar nos contextos de trabalho, dizen-
res, na França, apóia-se, sobretudo, em H. do que essa recriação é sempre única e que
e o posfácio “Un autre regard
sur les usines”. In: ODDONE, I.; Wallon, I. Meyerson e L. Le Guillant.3 o gênero auxilia nesse processo. Mas aos
RE, A.; BRIANTE, G. Rédécouvrir Ele faz uma rica apropriação das obras que identificam gênero e cultura, esclarece
l´expérience ouvrière. Paris, Editions que não está se referindo à cultura como
desses teóricos, propondo uma abordagem
Sociales, 1981.
original e, ao mesmo tempo, eficaz da ativi- idéia, pois esta seria uma visão instrumen-
4
Cf. A função psicológica do trabalho dade. Dessa abordagem, extraiu elementos tal do gênero. Trata-se, segundo ele, da cul-
(op. cit.), na qual Clot constata, de importância fundamental para compre- tura como prática, isto é, de um instrumen-
inclusive, um aumento da fadiga endermos o lugar da subjetividade na análi- to genérico da ação individual.
do trabalhador em função da se do trabalho, propondo alguns conceitos
intensidade do esforço que este O gênero seria, portanto, uma espécie
importantes, dos quais três serão tratados
tem de fazer para conter seus atos, de senha para se saber o que é possível ou
aqui: o real da atividade, o gênero de ativi-
isto é, para deixar de realizar suas não esperar de uma situação. Aquilo que é
dade e o estilo da ação. O primeiro se refere
atividades da forma que julga mais permitido ou que é proibido em um métier.
adequada. Ou seja, segundo ele, à atividade do indivíduo sobre si mesmo,
Trata-se de uma memória que não se refe-
a fadiga não decorre tanto do que uma vez que, para nosso autor, a atividade
re apenas ao passado, mas que serve para
se faz, mas do esforço para não se do trabalhador não é jamais uma mera rea-
fazer o que deveria ser feito, para
prever o futuro, para antecipar, permitindo
ção. Ela é uma espécie de filtro subjetivo
recalcar a atividade. evitar possíveis erros no exercício da ativi-
que proporciona um sentido para a vida do
dade, ou seja, é um:
sujeito bem diverso daquele que lhe depo-
5
Todo esse item é baseado na obra
sitam as atividades de concepção. Assim, (...) sistema aberto de regras impessoais,
de Y. Clot, A função psicológica do
às atividades prescrita e real, já previstas não escritas, que definem num meio dado,
trabalho, já citada no início deste
na Análise Ergonômica do Trabalho, ele o uso dos objetos e o intercâmbio entre as
artigo. Assim, serão citadas apenas
acrescenta o real da atividade, que consiste pessoas; uma forma de rascunho social
as páginas dessa obra da qual
que esboça as relações dos homens entre
foram extraídas as citações. naquilo que pode ser feito, mas não se faz:
si para agir sobre o mundo. (p. 50)
as atividades suspensas, contrariadas, sem
possibilidades de realização. Ele distingue, Em suma, pode-se definir gênero:
dessa forma, a atividade realizada do real (...) como um sistema flexível de variantes
da atividade: a primeira é o que se faz e o normativas e de descrições que compor-
segundo consiste no que não se pode fazer, tam vários cenários e um jogo de indeter-
no que se gostaria de fazer, no que poderia minação que nos diz de que modo agem
ter sido feito e mesmo no que se faz para aqueles com quem trabalhamos, como
não fazer aquilo que deve ser feito.4 agir ou deixar de agir em situações preci-
sas; como bem realizar as transações entre
Mas é sobre as noções de gênero e de colegas de trabalho requeridas pela vida
estilo que pretendemos nos deter um pou- em comum, organizada em torno de obje-
co mais neste artigo, uma vez que repre- tivos da ação. (p. 50)

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É o gênero, enfim, que: viver de forma plurivocal. É quando ele
mobiliza a variabilidade e faz circular as
(...) organiza a reciprocidade dos lugares e
funções ao definir as atividades indepen- variantes. Portanto:
dentemente das propriedades subjetivas (...) situa-se sempre no âmbito do gênero,
dos indivíduos que as realizam num mo- ou, para ser mais precisos, no ponto de co-
mento específico. (p. 50) lisão entre as variantes do gênero, às quais
recorre, alternativamente, de variadas ma-
Portanto, ele:
neiras, a depender do momento. (p. 50)
(...) não regula diretamente as relações en-
tre as pessoas, mas antes as relações entre Dessa forma, o estilo se concretiza
profissionais, ao fixar o ‘espírito’ dos lu- quando se cria a possibilidade de colocar
gares como instrumento de ação: diz, sem em xeque o espírito categórico, sempre
o dizer, o que deve fazer em tal ou qual espreitado pela seriedade, pois, segundo
situação o suposto desconhecido que ja- Clot, esta passa a ser perigosa quando en-
mais iríamos conhecer. (p. 50) carcera o gênero numa verdade, ou seja,
Mas, adverte Clot, não é o gênero que quando impede o desenvolvimento do mé-
explica a atividade e sim esta que explica tier. Em outras palavras, um dos perigos
o gênero. Além disso, ele não pode ser “en- que se apresentam é quanto ao excessivo
sinado”, pois é na atividade, ao lidar com estreitamento do gênero em relação à ri-
os obstáculos, que o gênero é transmitido. queza da atividade, pois quando ele se en-
Sua transmissão, portanto, é sempre indi- rijece, a atividade necrosa. É por isso que
reta e ela se dá pelo exercício das ativida- se deve sempre evitar que ele se torne um
des e pelo enfrentamento das dificuldades. clichê e que não possa transitar para um
outro gênero, pois é nesse trânsito que os
Isso significa que é, muitas vezes, no fra-
diferentes gêneros se contaminam e ocor-
casso que se mostra como fazer e o que as
re a estilização. E o que é mais importante
pessoas aprendem.
para o tema central deste artigo: quando há
Nesse sentido, o gênero é fundamen- degenerescência do gênero, há degeneres-
tal e estruturalmente inacabado. Por isso, cência da atividade, o que pode favorecer o
nosso autor alerta também para o perigo de desenvolvimento de patologias e também a
que seja percebido como um molde, dizen- ocorrência de acidentes no trabalho.
do que, assim, ele pode necrosar.6 O fecha-
Gênero de atividade e segurança no tra- 6
Ele ilustra como isso se dá nos
mento do gênero, portanto, é percebido por
balho contextos de trabalho, citando
ele como algo perigoso, pois impede que
uma situação bastante comum
seja utilizado não apenas pelos novatos que Após o que foi dito a respeito de gêne- nas empresas que consiste em
chegam ao local de trabalho, mas também ro e estilo, não é difícil perceber a relação se dizer: “aqui se faz assim e não
pelos antigos, pois, para continuar a ser um entre essas noções propostas por Clot e a se discute”, ao invés de se dizer:
instrumento, deve variar, permanecer vivo. segurança nos contextos de trabalho. Ou “aqui se faz assim, mas podemos
Além disso, ao debater o gênero, os indi- seja, fica claro que se o gênero degenera, discutir para ver se estamos no
víduos o recriam e, se ele é um sistema de o desenvolvimento da atividade fica blo- melhor caminho”.
variantes, quanto mais choques ocorrerem queado, configurando uma situação de
entre as variantes, mais flexibilidade ele risco, pois a atividade passa a ser, sobretu-
terá e menos ingênuo será o sujeito. do, uma fonte de sofrimento. Além disso,
com a degenerescência do gênero, deixa de
Ainda de acordo com Clot:
existir um coletivo para amparar o sujeito
O gênero social, ao definir as fronteiras e relançar esse desenvolvimento. O sujeito
móveis do aceitável e do inaceitável no tende, então, a ficar isolado, impossibilita-
trabalho, ao organizar o encontro do do de mobilizar o recurso genérico e sem o
sujeito com seus limites, requer o estilo suporte do coletivo.
pessoal. (p. 49)
O coletivo serve para interpor as for-
Este, seria, então:
mas de fazer estabilizadas entre o sujeito
(...) a transformação dos gêneros, por um e ele mesmo. Ou seja, ele não é meramente
sujeito, em recursos para agir em suas ati- uma soma ou uma “coleção” de indivíduos.
vidades reais. Em outros termos, é o mo- É, acima de tudo, a fonte de uma história 7
Segundo Clot, quando o trabalha-
vimento mediante o qual esse sujeito se comum partilhada, momentaneamente es- dor diz: “a gente faz assim”, o que
liberta do curso das atividades esperadas,
tabilizada e que protege o indivíduo de si está em jogo não é apenas a tarefa
não as negando. (p. 50)
mesmo. Assim, cada trabalhador apela ao e sim toda a história da fábrica e,
Mas desenvolvendo-as. coletivo para tomar decisões.7 de certa forma, do métier.

Assim, o estilo emerge quando o tra- No entanto, nem toda equipe funciona
balhador pode falar do métier, fazê-lo como um coletivo e, sobretudo, nos dias

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atuais, o risco de degradação dos gêneros mo, que, infelizmente, ainda está presente
é bem maior, pois as empresas começam a nas análises sobre o assunto.
comprometer sua história através das de-
No Brasil, tudo indica que o problema
missões em massa, dos Planos de Demissão
da terceirização é mais grave, dadas as
Voluntária (PDVs) ou das formas contem-
características ainda mais perversas as-
porâneas de gerenciamento, muitas vezes
sumidas pelos processos de terceirização.
acompanhadas do enxugamento dos qua-
É sabido que, entre nós, esse recurso tem
dros (Programas de Reengenharia) ou da
sido adotado pelas empresas como um ar-
intensificação dos processos de terceiriza-
tifício para redução de custos com a mão-
ção e subcontratação (Programas de Qua-
de-obra. Dessa forma, elas se concentram
lidade Total). Em todas essas situações, os
apenas nas suas atividades-fim, transfe-
trabalhadores se vêem vítimas daquilo que
rindo para as subcontratadas a execução
Clot chama de “amputação de sua história
das outras atividades (consideradas menos
coletiva” (CLOT, 2006, p. 50).
importantes), além da responsabilidade
Além disso, nosso autor constata que com a saúde e a segurança de um número
a atividade contrariada está no âmago da crescente de empregados. Estes, por sua
organização do trabalho contemporâneo, já vez, são obrigados a aceitar salários redu-
que a responsabilidade é convocada e, ao zidos, contratos temporários, condições de
mesmo tempo, posta de lado. São grandes risco, jornadas dilatadas e perda de bene-
8
Curso sobre Clínica da Ativida- os conflitos em torno do que é qualidade, fícios importantes.11
de, ministrado por Yves Clot, na por exemplo, ao se impor autoritariamente
Assim, diversas pesquisas apontam
Unicamp, em maio de 2006. os programas e desconsiderar a perspecti-
para uma estreita relação entre terceiriza-
va do trabalhador sobre o tema. E, o mais
9
Idem. ção e aumento de acidentes de trabalho,
importante, em decorrência dessas novas
trazendo evidências contundentes de que
estratégias gerenciais, os coletivos se desfa-
10
Idem. os trabalhadores terceirizados se aciden-
zem e não têm sido recompostos, o que re-
tam mais e com maior gravidade do que
presenta um risco considerável, pois, como
11
Em alguns casos, a empresa aqueles que possuem formas estáveis de
já foi dito, eles têm, dentre outras funções,
chega a demitir seus empregados, contratação (SAMPAIO, 2000; FERREI-
aquela de auxiliar os indivíduos na sua to-
recontratando-os, em seguida, RA & IGUTI, 1996). No entanto, ao tentar
nesses novos termos. Ou seja,
mada de decisões.8
explicar esse dado, os pesquisadores, em
aquele empregado que, ontem, Mas devemos ressaltar também que, se geral, não conseguem ir além da constata-
fazia parte do núcleo de contrata- o coletivo permite que o indivíduo se de- ção de que as empresas não oferecem aos
dos estáveis, amanhã poderá fazer
senvolva, ele lhe impõe, ao mesmo tempo, terceirizados as mesmas condições ofere-
parte do grupo dos terceirizados,
submetido a contratos precá- certos limites, pois, como diz Clot, o tra- cidas ao pessoal diretamente contratado
rios e salários bem mais baixos, balho comporta imensas possibilidades de por elas. Suas análises não esclarecem o
embora executando basicamente engano e trabalhar é sempre correr o ris- verdadeiro motivo dessa estatística que
as mesmas tarefas. Sobre esses co de errar.9 Nesse sentido, o coletivo atua se repete com regularidade. É exatamen-
aspectos perversos da terceiriza- também como protetor e é por isso que, se te nesse aspecto que a contribuição de Y.
ção no Brasil, veja Sampaio (2000) ele degenera, os “erros” tornam-se mais Clot nos parece relevante. Ele consegue
e Hazan (2001) tocar, no nosso entender, em um ponto
freqüentes. As portas tornam-se abertas
para os acidentes, conforme atesta o autor crucial: a degradação dos gêneros de ati-
ao falar do aumento recente de acidentes vidade, provocada por essas novas formas
entre trabalhadores da construção civil na de organização da produção, pode ser a
França, ocorrendo, paralelamente, ao in- chave para a compreensão do problema.
cremento da terceirização no setor.10
Análise de uma situação à luz das contri-
É claro que, ao falar dessa possibilidade buições da Clínica da Atividade
de erro, Clot não está se situando na mes-
A título de ilustração, gostaríamos de
ma perspectiva dos autores que aderem às
trazer aqui um estudo que nos parece par-
teses simplistas baseadas no “fator huma-
ticularmente revelador dessa relação esta-
no” e na sua antinomia em relação ao “fa-
belecida por Y. Clot entre coletivo, gênero
tor técnico”, cujo pressuposto maior é o da
de atividade e acidentes no trabalho. Ele
execução isolada da tarefa, além da crença
foi realizado na Petrobrás (nos terminais
na confiabilidade do último e na não con-
de São Sebastião e de Alemoa/Santos e na
fiabilidade consubstancial do primeiro (cf.
Refinaria de Cubatão), entre abril de 1993
MANDEL, 1999). Basta ler a análise de um
e maio de 1994, sob a coordenação de Leda
acidente que ele realiza no primeiro capítu-
Leal Ferreira (FERREIRA & IGUTI, 1996).
lo do seu livro (CLOT, 2006) para constatar
que sua perspectiva não pode ser absoluta- Nesse estudo, os pesquisadores desta-
mente associada a esse tipo de reducionis- caram dois aspectos que diferenciavam a

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política de pessoal e a gestão da mão-de- Você fica treinando pessoas da empreitei-
obra adotadas pela empresa na época e no ra (...) O pessoal que você treinou, no pró-
passado: a terceirização dos serviços e a ximo contrato, não está mais lá. (...) (id.,
p. 123-124)12
diminuição do efetivo operacional, sendo 12
Estes e todos os grifos subse-
que esses dois fenômenos aconteciam si- É interessante ver os depoimentos da- qüentes são meus.
multaneamente. Ou seja, ao mesmo tempo queles que conheceram o sistema anterior,
em que a empresa diminuía seus efetivos, isto é, quando a equipe de manutenção era
aumentava a contratação das empreiteiras. especializada e pertencia à Petrobrás. Em
De modo que, na Refinaria de Cubatão, ha- um deles, o trabalhador fala das “paradas”
via, naquela ocasião, quase dois emprega- da refinaria antes e depois da transferência
dos de empreiteiras para cada funcionário para as empreiteiras:
da Petrobrás, sendo que nos terminais essa
(...) No primeiro momento, havia duas
proporção era ainda maior.
equipes de manutenção própria da re-
Embora a presença das empreiteiras finaria e é lógico que esse pessoal tinha
fosse um fenômeno antigo na Petrobrás, um carinho maior de lidar com as coisas,
mesmo porque era a mão dele que estava
o que se constatava naquele momento era
sendo colocada. Quem arrumou essa bom-
sua intensificação, além de uma mudança
ba? Foi o Queixada, foi o seu Pedro, foi o
no perfil dos trabalhadores terceirizados. Maurício Negão, foi o Mineiro. Era a mão
Ou seja, eles apareceram, segundo um dele que estava ali. Ele tinha um carinho e
dos entrevistados: fazia questão de saber: ‘olha, onde eu pus
a mão ficou bom’. Não tem rateio, era um
primeiro, dentro do serviço de pátio; de-
negócio pessoal mesmo, de amor-próprio...
pois, dentro do serviço de restaurante....
A empreiteira vem e ela não tem compro-
depois, foram ocupando espaços dentro
misso nenhum com aquilo. O compro-
da manutenção propriamente dita e ocu-
misso dela é cumprir o contrato. O cara
pando de tal maneira que já tem até uma
chega lá, pega uma junta velha mesmo,
empreitópolis lá dentro, já tem uma cida-
não a junta daquela espessura, coloca ali
de de empreiteiras, de escritórios de em-
no lugar; então, é esse relaxamento que,
preiteiras, de vestiários. (id., p. 122)
muitas vezes, ocasionou acidentes sérios
Assim, a maioria dos serviços de manu- lá dentro. (id., p. 124-125)
tenção foi transferida para as empreiteiras
Tudo indica que a falta de continuida-
onde trabalhavam cerca de três mil pessoas
de das equipes impossibilitava o acúmu-
na Refinaria de Cubatão e mais de mil nos
lo de conhecimento ou, na perspectiva
terminais de São Sebastião e de Alemoa.
de Clot, impedia o desenvolvimento e a
O aumento das aposentadorias, soma- consolidação do gênero de atividade. Isso
do à proibição da contratação de pessoal, aumentava as chances de ocorrência de
explica, em grande medida, o problema. acidentes, sobretudo se levarmos em conta
Ou seja, as empreiteiras apareceram como que estamos lidando com um processo de
a única alternativa para assegurar a conti- trabalho complexo, envolvendo enormes
nuidade dos trabalhos. No entanto, os pes- riscos e que, por isso mesmo, exige muita
quisadores constatam que tudo isso se deu experiência acumulada para se alcançar
de forma precária, ressaltando algumas certo domínio:
conseqüências nefastas dessa prática: o Quando o quadro de manutenção é da
aumento das desigualdades, a maior expo- refinaria, ele é especializado. Trabalham
sição aos riscos e, em decorrência do cará- com aqueles equipamentos dez, quinze,
ter temporário dos contratos, o surgimento vinte anos, conhecem a manha do equipa-
de certas barreiras, impedindo o acúmu- mento. (id., p. 125)
lo de conhecimentos e a consolidação de Na empreiteira, o que acontece? Um dia,
compromissos entre os membros das equi- vem um e conserta. Não fica bom. Passa
pes. Alguns depoimentos são reveladores uns tempos, vem outro. Então, embora a
a esse respeito: gente oriente, eles não têm a mesma capa-
cidade. Porque não pode ter a mesma ca-
O serviço é temporário. Fazem e vão em-
pacidade aquele que trabalha com aquela
bora. Deu problema, quem vai responder?
máquina um ano e um que trabalha vinte
(...) (id., p. 123)
anos. Essa é a diferença. (id., p. 125)
A Petrobrás tem preocupação de dar cur-
sos para você ter cada vez mais segurança Além disso, como já foi dito, ao mesmo
e ficar aperfeiçoado. Agora, eu pergunto: tempo em que era intensificado o processo
qual é a empreiteira que vai dar curso para de terceirização, ocorria a redução dos efe-
o cara trabalhar lá? (id., p. 123-124) tivos operacionais da empresa, afetando ne-

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gativamente a rotina. Um operador de pro- observar que esse “quadro mínimo” dimi-
cesso expôs assim sua visão do problema: nuía progressivamente:
Minha maior apreensão dentro da refina- Esse quadro mínimo foi diminuído dras-
ria é o seguinte: com a redução do quadro ticamente. Nós começamos com onze,
mínimo, cai a qualidade da rotina. A ro- quando saí de lá nós éramos oito. Depois
tina é uma coisa importantíssima, porque disso, eles foram cortando, chegou a seis
durante as rotinas feitas todos os dias, e eles estavam querendo colocar cinco ou
você vai detectando problemas futuros e quatro. Veja bem: eles começaram a com-
agravamento de problemas. (id., p. 131) parar a UGAV com a unidade que tinha
lá nos EUA. Só que lá o computador faz
Ou seja, como parte da “modernização” tudo, os nossos equipamentos aqui não
da empresa, ocorria, na época, uma redu- são iguais àqueles (....) (id., p. 133)
ção importante dos efetivos, sendo que, na
Refinaria de Cubatão, por exemplo, eles Portanto, a qualidade dos equipamen-
haviam passado de 2.270, em 1987, para tos disponíveis não correspondia aos no-
1.608, em junho de 1993. A razão disso, vos padrões adotados para calcular os
de acordo com os autores da pesquisa, é o efetivos, conforme fica claro no seguinte
fato de que a empresa não estava contra- depoimento:
tando funcionários para repor aqueles que Lógico que não dá para manter o efetivo
se aposentavam, mas, ao contrário, incen- reduzido como fizeram... Essa questão
tivava a aposentadoria. Tudo indica que da automação e tecnologia moderna que
ela pretendia adotar um efetivo operacio- importaram, colocaram painéis computa-
nal tão reduzido quanto o de algumas refi- dorizados para olhar caldeira, mas a cal-
deira está velha, obsoleta... Então, tem um
narias de países mais desenvolvidos, mas
painel, computador e tal, bonitinho, mas
sem apresentar as mesmas condições tec-
a caldeira está caindo aos pedaços, meu
nológicas e organizacionais. Havia também Deus!... (id., p.133)
uma “orientação de corte de gastos” (id., p.
132) a fim de se alcançar o padrão de efi- O problema da redução dos efetivos foi
ciência vigente, como se pode perceber no percebido pelos pesquisadores sob dois
seguinte depoimento: ângulos fundamentais para o tema tratado
neste artigo: o do desgaste pessoal e o da
Como a Petrobrás está com uma orien-
segurança, que é garantida, sobretudo, pela
tação de corte de gastos por causa da tal
idéia de eficiência, ela corta tudo. Só que rotina. O depoimento a seguir integra bem
para cortar em matéria-prima, não dá e a esses dois ângulos:
matéria-prima é a grande parte do custo É lógico que o que vai agravando o nervo-
da empresa. Para cortar em contrato de sismo, me deixando mais apreensivo, é o
empreiteira, é uma coisa que eles não me- corte de pessoal de operação e manuten-
xem. Cortar em peças e em equipamentos, ção. Mais da operação porque, na minha
eles zeraram praticamente o almoxarifa- opinião, o que determina que a unidade
do... Agora, o que eles têm para cortar? É tenha uma continuidade operacional é
só mão-de-obra. (id., p. 132) uma rotina perfeita. E uma rotina exige
De acordo com os pesquisadores, essa número suficiente de operadores, para
que eles tenham disponibilidade de perder
diminuição dos efetivos operacionais era
tempo com a rotina. (id., p. 134)
um dos maiores problemas relatados pe-
los trabalhadores, surgindo em pratica- Vale a pena ver a maneira como alguns
mente todas as reuniões. Foi criada, in- trabalhadores interpretam essa medida
clusive, a terminologia “quadro mínimo” adotada pela empresa:
para indicar:
A tarefa do operador é mais de observação
o menor número de elementos por grupo do que física, a não ser em determinados
de turno efetivamente necessário para a momentos. Eles consideram que você está
execução de tarefas sistematizadas que a toa. Só que você não está a toa. Primeiro,
leve certa unidade a uma condição segura você está pensando no que está acontecen-
em caso de emergência. (id., p 132) do. Não dá pra chegar lá e simplesmente
desligar como se nada estivesse aconte-
A adoção desse sistema gerou, dentre cendo. Segundo, sua tarefa é de observa-
outras coisas, uma sobrecarga de trabalho, ção, se variar... variou, você tem que atu-
uma vez que cada equipe de turno só pode- ar. Mas eles – a chefia, o corpo gerencial
ria trabalhar se tivesse seu quadro mínimo da empresa – trabalham muito com essa
completo. Isso significa que um trabalha- idéia de que você está a toa. (id., p. 135)
dor do turno anterior poderia ser obrigado Quando a empresa reduz o efetivo, no ra-
a substituir o colega que faltou, devendo, ciocínio dela passa o seguinte: ‘bom, eu
portanto, “dobrar” o turno. É interessante tenho a probabilidade de, vamos supor,

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um para cem de acontecer um acidente teriormente, mas que vale a pena retomar
no momento em que o pessoal está ocu- sinteticamente:
pado com outra tarefa’. Então, para eles,
vale mais a pena contar com essa proba- - a atividade do petroleiro é bastante
bilidade de um para cem, esperando que complexa e perigosa, exigindo dele
em cem vezes vai acontecer isso, do que se um alto grau de competência e res-
precaver, prevenir essa única vez. Só que ponsabilidade;
para a gente que está lá.... Se a gente espe-
rar essa única vez.... Essa é que é a grande - a segurança da refinaria decorre, fun-
verdade. (id., p. 135-136) damentalmente, dessa competência e
dessa responsabilidade, pois são elas
Independentemente dos verdadeiros mo-
que se contrapõem “ao perigo que está
tivos que levaram a empresa a adotar essa
em toda parte” (id., p. 142);
medida, o que realmente importa é a con-
clusão dos pesquisadores de que “o número - o trabalho do petroleiro é, basica-
de funcionários ‘dobrando’ turno” era mui- mente, um trabalho de equipe;
to grande, sendo esta “uma prova objetiva
de que o número de efetivos” estava “mal - o coletivo de trabalho tem um papel
dimensionado”, repercutindo gravemente fundamental, isto é, um coletivo bem
“na segurança e na saúde dos trabalhado- constituído “(...) é a melhor garantia
res” (id., p.136). Isso fica claro nos seguin- para o bom funcionamento e a segu-
tes depoimentos: rança de complexos industriais” (id.,
p. 143).
Quando dobra... não dá pra explicar. Che-
ga um ponto em que o cara vira um zumbi. Ou seja, o estudo deixou claro que a
Começa a falar nada com nada. Fica doi- política adotada pela empresa, ao privi-
do. E pior: ele traz aquele problema para legiar a terceirização e a redução dos
dentro de casa também. Ele briga com a efetivos, estava colocando em perigo seu
mulher, briga com os colegas, é uma bar- próprio funcionamento e potenciali zando
ra! (id., p. 136)
os riscos, já que afetava direta mente
São Sebastião é abençoado. Porque pelo todos os aspectos considerados pelos
número de funcionários que já se apo- pesquisadores como sendo a chave para
sentou e não colocaram outros para tra- a reali zação do trabalho em condições de
balhar.... esse terminal hoje em dia é uma
segurança. Em outras palavras, pela sua
bomba. (...) (id., p. 136-137)
riqueza e pela pertinência dos seus acha-
Nas conclusões do estudo, seus autores dos, ele acabou representando um alerta
reforçaram alguns pontos já tratados an- para aquilo que estava por vir.

Considerações finais

O que torna o estudo relatado acima dentes com perdas materiais ocorridos nos
particularmente interessante é o fato de trinta anos anteriores em refinarias, petro-
seus resultados representarem uma espé- químicas, usinas de processamento de gás
cie de antevisão do que viria em seguida. e terminais, dizendo que apenas um acon-
Ou seja, ele se tornou um marco entre as teceu no Brasil. É claro que, entre 1989 e
investigações realizadas sobre a Petrobrás, 1997, que é o intervalo entre a divulgação
ao descrever um momento de transição en- da estatística acima e a publicação dos re-
tre uma empresa que conseguia controlar sultados do estudo, ocorreram acidentes
relativamente bem seus processos de tra- importantes na empresa, mas, ao que tudo
balho, apresentando um índice reduzido indica, houve uma aumento progressivo,
de acidentes graves, para uma empresa na em quantidade e gravidade dos mesmos
qual esse controle seria, em um curto pe- após esse período. Isso significa que, pou-
ríodo de tempo, posto em questão. Na con- co tempo após a divulgação dos resultados
clusão do estudo, os autores constataram desse estudo, a Petrobrás passou a viver
que, em comparação com o que ocorria em um difícil período de sua história durante
outras partes do mundo, a Petrobrás era o qual diversos acidentes graves ocorre-
ram, culminando no trágico afundamento
uma empresa na qual os grandes acidentes
da Plataforma P36, em 2001.
eram raros. Para melhor fundamentar essa
informação, citaram um levantamento, rea- Não é nossa intenção fazer um levan-
lizado em 1989, sobre os cem maiores aci- tamento minucioso de todos os acidentes

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ocorridos na Petrobrás desde 1997, ocasião a maior do mundo, em março de 2001. O
em que a pesquisa acima foi divulgada. Na mais grave acidente da história da empresa
verdade, o que interessa aqui é registrar o teve repercussão mundial e obrigou seus
aumento progressivo dos acidentes mais dirigentes a repensar suas políticas, inclu-
graves, sobretudo a partir de 18 de janei- sive aquela relativa à terceirização.14 Isso
ro de 2000, quando ocorreu o grande va- não impediu que, apenas um ano depois,
zamento na Baía da Guanabara. Logo em em 2002, ocorresse um incidente grave, fe-
seguida, ocorreram, sucessivamente, seis lizmente, sem vítimas: o adernamento da
vazamentos importantes: em Tramandaí Plataforma P34, na Bacia de Campos (RJ).
(Porto Alegre), em 11 de março de 2000; Novamente, as críticas recaíram sobre a
no Terminal Almirante Barroso, em São política de contratação intensiva de mão-
Sebastião (Norte de São Paulo), em 16 de de-obra terceirizada pela Petrobrás, que foi
março de 2000; novamente na Baía da acusada de contratar serviços de empresas
Guanabara, em 26 de junho de 2000; na que não adotavam os mesmos critérios de
Refinaria Getúlio Vargas, em Araucária, segurança. Ou seja, o problema persistia,
no Paraná, em 16 de julho de 2000; em embora fosse constantemente denunciado
13
http://www.ambientebrasil.com. pelos trabalhadores e seus representantes,
Paracambi, na Baixada Fluminense, em 31
br/composer.php3?base=./agua/
de julho de 2000; e no Rio Grande do Nor- pela mídia e por parlamentares.15
salgada/index.html&conteudo=./
agua/salgada/vazamentos.htm. te, em 11 de agosto de 2000.13 Acreditamos que as evidências expos-
Na realidade, desde 1997, já é possível tas acima são suficientes para ilustrar o que
14
O relatório da Agência Nacional
registrar acidentes importantes, como o pretendíamos, ou seja, que a dupla medida
de Petróleo (ANP) sobre esse aci-
dente concluiu que ele foi causado rompimento de um duto da Petrobrás que adotada pela Petrobrás (redução dos efeti-
por erros de projeto, manutenção liga a Refinaria de Duque de Caxias (RJ) ao vos e contratação de um número maior de
e operação. Algum tempo após, terminal DSTE-Ilha D’Água, provocando o empreiteiras) pode ter sido o fator prepon-
a direção da empresa admitiu a vazamento de 2,8 milhões de óleo combus- derante para explicar o aumento de aciden-
necessidade de reduzir o número tível em manguezais na Baía da Guanabara tes graves ocorridos na empresa. Na reali-
de empregados terceirizados, dade, isso já estava posto, pelo menos como
assumindo ser este um importante
(RJ), em 10 de março de 1997; o vazamento
de FLO (produto usado para a limpeza ou possibilidade, na análise feita pela equipe
fator na origem do grande número
selagem de equipamentos) no rio Cubatão de pesquisadores, em cujo relato nos inspi-
de acidentes que estava ocorrendo.
(SP), em 21 de julho de 1997; o vazamento ramos para levantar essa hipótese.
15
A Federação dos Petroleiros, por de 2 mil litros de óleo combustível, atin- Evidentemente, não é possível ir além
exemplo, denunciou, em reporta- gindo cinco praias na Ilha do Governador
gem da Revista Época de 17/10/2002, disso, ou seja, o máximo que podemos nos
(RJ), em 16 de agosto de 1997; o vazamento permitir é levantar uma hipótese sobre o
as péssimas condições de trabalho
a que eram expostos os trabalhado- de 1,5 milhão de litros de óleo combustí- papel dessas medidas na gênese dos aci-
res das empreiteiras, dizendo que, vel no rio Alambari, em 13 de Outubro de dentes ocorridos na Petrobrás, uma vez
entre 1998 e 2002, morreram 124 1998, provocado por uma rachadura de que não fizemos uma análise detalhada
petroleiros, sendo 94 terceiriza- cerca de um metro no trecho que liga a re- sobre os mesmos e nem tivemos acesso
dos. Em um boletim, datado de finaria de São José dos Campos ao Termi- aos relatórios completos sobre suas cau-
15/03/2006, ela abordou nova- nal de Guararema (ambos em São Paulo), sas. Além disso, não se pode negligenciar
mente o problema, qualificando-o,
sendo que o duto estava há cinco anos sem o fato de que os acidentes são fenômenos
acertadamente, como “tragédia
anunciada”. Um parlamentar que manutenção; vazamento de 3 mil litros de complexos para os quais muitos fatores
tem se pronunciado a esse respeito óleo no oleoduto da refinaria da Petrobrás concorrem, devendo, todos eles, ser consi-
é Fernando Gabeira, em entrevistas que abastece a Manaus Energia (Reman), derados ao nos debruçarmos sobre sua gê-
à imprensa e no seu site. atingindo o Igarapé do Cururu (AM) e o Rio nese. No entanto, nada disso afeta o peso
Negro, em 6 de agosto de 1999; vazamen- das evidências trazidas neste artigo, uma
to de 3 metros cúbicos de nafta de xisto, vez que a redução dos efetivos e a intensi-
produto que possui benzeno, na Repar (na ficação da terceirização têm sido os dois
grande Curitiba), em 24 de agosto de 1999; fatores mais apontados pelos analistas
menos de um mês após, em 29 de agosto (mas também pelos trabalhadores e seus
de 1999, ocorreu um novo vazamento de representantes) para explicar o aumento
óleo combustível na Reman, contaminan- dos acidentes graves nessa empresa. Fi-
do o Rio Negro (AM) com pelo menos mil nalmente, a própria direção da Petrobrás
litros de óleo; e, finalmente, em novembro parece ter reconhecido o problema ao to-
de 1999, em Carmópolis (SE), ocorreu um mar medidas que revelam claramente sua
vazamento de óleo e água sanitária no Rio decisão de mudar essas políticas.
Siriri (SE), sendo que a pesca no local aca-
Ao considerarmos as teses defendidas
bou após o acidente.
por Y. Clot, fica fácil compreender o peso
Tudo isso culminou, conforme já foi que possui qualquer medida suscetível de
dito, no afundamento da Plataforma P36, afetar o funcionamento de um coletivo de

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trabalhadores, sobretudo quando se está li- para ser eficazes, elas são econômicas
dando com processos complexos e perigo- e, freqüentemente, não são nem mesmo
enunciadas. Elas entram no sangue dos
sos, como são os do setor petroquímico.
profissionais, pré-organizam suas opera-
Vale a pena trazer aqui algumas con- ções e sua conduta (...) (id., p.11)
siderações feitas pelo autor a respeito do E é exatamente por isso que “não re-
gênero de atividade e do seu papel em si- querem necessariamente formulações ver-
tuações incidentais. Ele inicia reafirman- bais”. Portanto, para Clot “o gênero como
do que gênero é: interposto social, é um corpo de avaliações
compartilhadas que organizam a atividade
a parte subentendida de atividade, aquilo
pessoal de forma tácita”, sendo por isso
que os trabalhadores de um dado meio co-
qualificada por ele como “a ‘alma social’ da
nhecem e vêem, esperam e reconhecem,
atividade” (id., p.11).
apreciam e temem; aquilo que é comum a
eles e que os reúne sob condições reais de Ora, as evidências acima reportadas,
vida; aquilo que sabem que devem fazer sobretudo aquelas advindas dos testemu-
graças à comunidade de avaliações pres- nhos dos próprios trabalhadores, seriam
supostas, sem que seja necessário especi- reveladoras de que a atividade do petro-
ficar novamente a tarefa a cada vez que leiro foi atingida na sua essência ou, para
ela se apresenta. (CLOT, 2006, p. 11) retomar a feliz expressão de Clot, na sua
Trata-se, portanto, de uma espécie de “alma social”? Se a resposta for positiva,
“senha” conhecida apenas “por aqueles então a hipótese de que esse problema es-
taria no cerne da compreensão dos graves
que pertencem ao mesmo horizonte so-
acidentes enfrentados pela empresa no
cial e profissional” (id., p.11). Em seguida,
decorrer dos últimos anos não nos parece
estabelece uma relação entre essa noção frágil. Ao contrário, ela deveria, no nosso
e a segurança no trabalho, ao dizer que entender, ser levada a sério e aprofundada
“essas avaliações comuns subentendidas pelos analistas e responsáveis diretos pela
assumem, nas situações incidentais, um segurança dessa e de outras empresas,
significado particularmente importante”, cujos processos são igualmente “comple-
uma vez que: xos”, “perigosos” e “coletivos”.

Referências

CLOT, Y. A função psicológica do trabalho. em saúde e segurança no trabalho. Belo


Petrópolis: Vozes, 2006. Horizonte: Instituto de Relações do
CLOT, Y.; FAÏTA, D. Genres et styles en Trabalho, Fundacentro e Segrac, 2001.
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FERREIRA, L. L.; IGUTI, A. M. O trabalho qualificação real e o perfil de
dos petroleiros: perigoso, complexo, acidentabilidade entre trabalhadores
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1996. pedreiros refrataristas de uma indústria
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