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Vestígios da Segunda Guerra

Mundial nas Praias Sergipanas:


Reflexões Arqueológicas*
Remains Of Second World War on Sergipe’s beaches: archaeological
reflections
Roberta da Silva Rosa
Doutoranda em Arqueologia pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Sergipe
(PROARQ/UFS). Integra o Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET/UFS) e o Laboratório de Arqueo-
logia de Ambientes Aquáticos (LAAA/UFS).

Gilson Rambelli
Doutor em Arqueologia pelo MAE-USP (2003). Professor do Departamento de Arqueologia (Darq) e do
Programa de Pós-Graduação em Arqueologia (Proarq) da Universidade Federal de Sergipe. Bolsista de
Produtividade do CNPq. Co-coordenador do Laboratório de Arqueologia de Ambientes Aquáticos/UFS.

RESUMO ABSTRACT
Em agosto de 1942, embarcações mercantes In August 1942, Brazilian merchant ships were
brasileiras foram torpedeadas pelo Submarino torpedoed by the German submarine U-boat 507,
alemão U-boat 507, no litoral sergipano, off the coast of Sergipe, causing more than 500 (five
provocando mais de 500 (quinhentas) mortes hundred) deaths that justified Brazil’s participation
e concebendo um dos estopins que levaram in the Second World War. This article intends to
o Brasil a participar efetivamente da Segunda take a look at Archeology, even if indirectly in some
Guerra Mundial. O presente artigo pretende cases, on the material culture remaining from
lançar um olhar da Arqueologia, mesmo que these episodes, such as the Cemeteries of the
indiretamente em alguns casos, sobre a cultura Castaways, the iconographic sources of the State of
material remanescente destes episódios, como Sergipe Public Archive, and the local newspapers.
os Cemitérios dos Náufragos, as fotografias
do Arquivo Público do Estado de Sergipe e os
jornais locais.

PALAVRAS-CHAVE: Arqueologia; Segunda KEYWORDS: Archeology; Second World War;


Guerra Mundial; Sergipe Sergipe

INTRODUÇÃO

Para o senso comum a Arqueologia é a ciência que estuda os objetos de um passado


distante, por meio de escavações. Todavia, cabe ressaltar que esta área do conhecimento
não é um sinônimo de escavações e tampouco aborda somente temas antigos. A Arque-
ologia também trata de questões cada vez mais atuais, voltadas para os mais complexos
temas do passado recente. Logo, o objetivo dela não é escavar coisas para colocá-las
em exposições de museus, como uma mera técnica ilustrativa da História (RAMBELLI,
*Artigo recebido em 2 de agosto de 2020 e aprovado para publicação em 16 de outubro de 2020.
Navigator: subsídios para a história marítima do Brasil. Rio de Janeiro, V. 16, no 32, p. 137-151 – 2020.
Roberta da Silva Rosa, Gilson Rambelli

2016). Ela busca, em sua análise e refle- O uso social das praias marítimas para
xão, compreender por meio do “estudo da o lazer sofreu, certamente, as repercus-
cultura material [...] as relações sociais e sões desses episódios bélicos, que deixa-
as transformações ocorridas na socieda- ram marcas no inconsciente coletivo da
de” (FUNARI, 2006, p. 15). população local, que já não tinha muita
Incluir a reflexão arqueológica nos afinidade com o mar. Pois, este território
estudos deste período histórico recente, continuou a ser por muitos anos pós-guer-
relativo à II Grande Guerra, nos leva a lan- ra um lugar pertencente às comunidades
çar um olhar sobre a cultura material re- do mar. A ocupação urbana de Aracaju
manescente desta época e, a partir dela, confirma bem isto. Mas este tema merece
tentar conhecer um pouco mais sobre as um outro capítulo.
histórias esquecidas e ignoradas das pes-
soas que, muitas vezes, não foram con- “A NOVIDADE VEIO DAR À PRAIA”
templadas pela História Oficial.
Dessa forma, o presente artigo preten- Diferente da bela canção “A Novidade”,
de lançar um olhar arqueológico sobre a de autoria de Gilberto Gil, Bi Ribeiro, Her-
cultura material relacionada aos torpe- bert Vianna e João Barone, esta novidade
deamentos realizados pelo Submarino que veio dar à praia em Sergipe não trou-
alemão U-boat 507 contra os navios mer- xe nenhuma sereia, e sim a informação
cantes brasileiros, Baependi, Araraquara que algo havia acontecido em alto-mar.
e Aníbal Benévolo, em agosto de 1942. A De acordo com as fontes documentais da
materialização desses episódios bélicos, época, as primeiras notícias sobre a tra-
no litoral sergipano, inclui os navios afun- gédia naval foram trazidas pelos pilotos
dados e seus destroços, que ainda não fo- do Aeroclube de Sergipe, que cooperaram
ram localizados, alguns corpos e objetos com a missão de busca do navio Aníbal
das vítimas e dois cemitérios. Benévolo a pedido da Capitania dos Por-
tos de Sergipe. Os pilotos voaram pelo
Antes de começarmos a desenvolver
litoral sul do estado, a 60 quilômetros da
nossa análise, cabe ressaltar que a capital
costa, e representaram, simbolicamente,
sergipana nunca foi uma cidade marítima,
a cidade de Aracaju em busca do “navio
propriamente dita, como outras capitais
sergipano”, como era conhecido o Aníbal
nordestinas. Aracaju passou a ser a nova
Benévolo (CRUZ, 2012).
sede da capital em 1855, e se caracterizou
historicamente, em sua consolidação, por Durante as buscas, os aviadores per-
agregar populações oriundas do interior ceberam que havia ocorrido algum nau-
sergipano. Ou seja, por moradores que frágio, devido às “esquisitas manchas”
estavam muito mais familiarizados com no mar e a imensa quantidade de destro-
o ambiente fluvial, bastante presente na ços espalhados com pessoas nadando ao
cidade que é banhada por diferentes rios, redor deles (CRUZ, 2012, p. 78). Eram os
do que com o ambiente marítimo. Logo, sobreviventes que ainda estavam em alto-
as praias da capital, assim como todo li- -mar, agarrados aos materiais flutuantes.
toral sergipano, que foram receptores dos Enquanto outros, estranhamente, eram
vestígios da guerra, eram lugares ermos avistados já na praia, como mostra a Fi-
que permitiriam, certamente, a presença gura 1, onde vemos um grupo de pessoas
visível dos inimigos – os U-boats –, sem junto a um bote de sobrevivência usado
causarem grandes alardes às pequenas nos navios da época, caracterizado como
comunidades de pescadores. uma embarcação do tipo baleeira.

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os naufrágios tinham ocorrido de manei-


ra acidental. No entanto, à medida que o
tempo foi passando, outros sobreviventes
foram sendo encontrados, não só os do
navio Aníbal Benévolo, mas também do
Baependi e do Araraquara. Foram, inclusi-
ve, os depoimentos dos náufragos desta
última embarcação que informaram sobre
Figura 1 – Náufragos do navio Baependi chegando à o torpedeamento, afirmando que a agres-
praia em baleeira. Fonte: Agressão - Documentário são ocorreu diante do “clarão de Aracaju”
dos fatos que levaram o Brasil à Guerra. Rio de Ja- (CRUZ, 2012, p. 81).
neiro: Imprensa Nacional, 1943
Foi no retorno dos pilotos do Aeroclu-
A respeito das baleeiras é importante be a Aracaju que eles avistaram vários
ressaltar que, de acordo com os depoi- corpos e destroços chegando às praias.
mentos de algumas vítimas publicados Segundo Cruz (2012, p. 78), a imagem era
no jornal Correio de Aracaju, nos dias 18 e assustadora como “um quadro dantesco
21 de agosto de 1942, tanto os tripulantes e de horripilante dramaticidade”. Em ca-
como os passageiros do navio Baependi ráter de urgência, eles levaram as notícias
tiveram dificuldades em soltar os barcos alarmantes para as autoridades sergipa-
salva-vidas (MAYNARD, 2019). Segundo nas (CRUZ, 2012). A dimensão da tragédia
Monteiro (2013), tal dificuldade ocorreu ocorrida pode ser percebida por meio dos
devido à recém-pintura que praticamente registros iconográficos disponibilizados
colou os nós dos botes, deixando-os pre- no Arquivo Público do Estado de Sergipe.
sos ao navio, o qual afundou em minutos Conforme Cruz (2012, p. 146), o mate-
no meio da noite. De acordo com Gama e rial advindo dos navios torpedeados que
Martins (1985), o pânico e o desespero to- chegaram ao litoral sergipano foi chama-
maram conta das pessoas diante daquela do de “salvados” ou “malafogados”, isto é,
situação, dificultando, assim, o trabalho “aquilo que não se afogou completamen-
de salvamento por parte da tripulação. te”, como, por exemplo, objetos pessoais
Os ataques ocorreram no momento das vítimas, caixotes, mercadorias avaria-
em que a maioria já estava dormindo. Por das, destroços dos navios, entre outros, os
isso, muitos passageiros e tripulantes não quais foram, inclusive, apropriados pela
tiveram tempo de lutar pela própria vida, população local e até comercializados por
em minutos, foram arrastados juntamen- pescadores da região.
te com as embarcações para o fundo do Todavia, tais atitudes de parte da po-
mar. Os poucos que conseguiram sair dos pulação contrariavam as normas impos-
navios nadaram sem cessar à procura tas pelas autoridades da época. Afinal,
de algo que flutuasse, para se apoiarem. de acordo com a publicação do Edital de
Nessa tentativa de salvarem-se, alguns Normas da Capitania dos Portos de Ser-
se abrigaram nas poucas baleeiras exis- gipe, do dia 6 de outubro de 1942, todo o
tentes, enquanto outros se agarraram material advindo da tragédia deveria, por
aos restos das embarcações (CRUZ, 2012, determinação, ser recolhido e encaminha-
2017; PORTO, 2013; MONTEIRO, 2013; do à Capitania dos Portos ou ao 28º Bata-
ROSA, 2015, MAYNARD, 2019). lhão dos Caçadores (CRUZ; ARAS, 2012).
Com base nos depoimentos dos so- Contudo, segundo Cruz (2012), as
breviventes, inicialmente, pensou-se que ações de apropriações dos “malafogados”

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Roberta da Silva Rosa, Gilson Rambelli

não foram interpretadas como ilegais pelo ignominiosa afronta lançada contra a so-
jornal Correio de Aracaju1, mas sim como berania nacional”.2
uma maneira de amenizar a situação de Cabe destacar, que este acontecimento
pobreza de parte da população. Diante só teve toda esta repercussão e destaque
disso, Cruz (2012, p. 159) considera que devido ao fato do responsável por este ato
“no meio social [...] os rastros navais con- criminoso ser uma pessoa conhecida na
tinuaram a flutuar de mão em mão, aju- sociedade aracajuana e, principalmente,
dando a compor os lares locais” e sendo por ter furtado os anéis do corpo da espo-
“ressignificados pela população local”. sa de um alto funcionário do governo fe-
Entretanto, há outra história que se deral. O advogado de Nelson Rubina não
sobressai nestas apropriações dos “ma- conseguindo “[...] encontrar espaço para
lafogados”, e que virou caso de justiça, rejeitar os fatos, admitiu a ação, porém
que é a de Horácio Nelson Bittencourt, trabalhou em sua interpretação afirman-
mais conhecido como Nelson de Rubina, do não se tratar de roubo e vilipêndio, mas
filho do proprietário do antigo Hotel Rubi- tão somente apropriação indébita. Admi-
na, localizado no centro de Aracaju. Que tiu o crime, mas buscou amenizar seus
aponta para outros segmentos sociais efeitos” (BELARMINO, 2012, p. 92).
se aproveitando daquela situação nas Segundo Cruz (2012), perante a cultura
praias. De acordo com Belarmino (2012), dos “malafogados” e também dos furtos
Nelson fazia parte da alta sociedade ser- aos objetos dos corpos, criou-se uma ten-
gipana e conforme o documento oficial de são entre as autoridades militares e os ci-
apelação criminal, no dia 18 de agosto de vis, que acabou transformando as praias
1942, ele fretou um automóvel de praça, sergipanas em uma Zona de Segurança
junto com alguns amigos, para visualizar Nacional, ficando proibida temporaria-
de perto a tragédia. No entanto, o motivo mente para a livre circulação.
da ida deles até a praia não foi a curiosi-
Diante disso, podemos afirmar que a
dade ou a compaixão, mas sim a intenção
presença dos corpos, destroços e “mala-
de furtarem objetos pessoais de valor que
fogados” resultantes dos atos belicosos,
ainda estavam junto aos corpos das víti-
em território nacional, representaram as
mas (BELARMINO, 2012).
evidências materiais concretas de que o
Segundo o documento oficial, Nelson conflito internacional havia chegado ao
de Rubina se apoderou de “[...] dois anéis Brasil. E as praias de Sergipe se tornaram
de brilhante e uma aliança, retirados do o cenário desta Grande Guerra.
cadáver de uma senhora [...]” (BELARMI-
NO, 2012, p. 65). Posteriormente, a vítima
QUE FIM LEVARAM OS NAVIOS
foi identificada como D. Virgília Auto de
TORPEDEADOS?
Andrade, passageira do navio Araraquara
e esposa do Procurador do Tribunal de Esses torpedeamentos ocorridos no
Segurança Nacional. De acordo com a litoral sergipano chegaram a ser compa-
apelação criminal, Nelson foi preso por rados, na época, com o caso do navio de
ter furtado e vendido as joias, sendo seu guerra da Marinha dos Estados Unidos: o
ato considerado como um grave desvio de USS Arizona (BB-39), afundado em 7 de
conduta ao praticar esse crime “[...] ‘bizar- dezembro de 1941, em Pearl Harbor, no
ro’ [...] a um cadáver que deveria honrar e Havaí, durante os ataques das forças ja-
respeitar, [...] sinal de educação e de acer- ponesas à base naval norte-americana, no
tado patriotismo [...] diante da mais torpe Pacífico. Pois, ambos os acontecimentos

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oficializaram, em momentos diferentes, a como um monumento que exalta a me-


entrada dos dois países na Segunda Guer- mória dos oficiais e tripulantes que per-
ra Mundial. O jornal Correio de Aracaju, deram suas vidas durante os ataques a
em 1o de setembro de 1942, fez a seguinte Pearl Harbor. Ele é considerado um sítio
afirmação: “A guerra chegou, material- arqueológico submerso inviolável, pois a
mente, ao Brasil [...]. Não nos iludamos, entrada de mergulhadores em seu interior
pois o nosso ‘Pearl Harbor’ aí está, com é proibida. Logo, se conhece pouco sobre
todas as suas consequências” (1942, p. 2). o seu interior. Os esforços dos arqueólo-
E como o USS Arizona, em que “mais de gos e conservadores do Centro de Pesqui-
900 corpos das vítimas permanecem jun- sas Submersas do National Park Service
tos aos restos do navio, que é considerado buscam garantir a preservação do sítio de
o túmulo [...] para as suas vítimas” (POR- naufrágio, monumento para as gerações
TO, 2013, p. 104). Os navios torpedeados futuras.
em Sergipe também afundaram com pas- Até o presente momento, os sítios ar-
sageiros e tripulantes a bordo, ainda pre- queológicos formados pelos restos dos
sos em seus compartimentos. Logo, eles navios torpedeados no litoral sergipano
deixam de ser compreendidos como sítios não foram oficialmente encontrados. Des-
arqueológicos formados por restos de em- conhecemos as informações de que já
barcações naufragadas: sítios de naufrá- tenham sido pilhados por mergulhadores
gios (RAMBELLI, 2002) passam a ser con- aventureiros. Por falta de financiamentos
siderados como sepulturas de guerra. Os específicos para a realização de tais levan-
vestígios das embarcações se oficializam tamentos, o Laboratório de Arqueologia de
como os locais do descanso final para as Ambientes Aquáticos da Universidade Fe-
vítimas. Segundo Porto (2013, p. 92), esses deral de Sergipe (LAAA-UFS) espera pela
sítios arqueológicos referentes à guerra: oportunidade em que as autoridades bra-
sileiras se interessem pelas possibilidades
representam sepulturas de ir- desses sítios serem estudados sistemati-
mãos de armas, amigos, pais,
camente pela Arqueologia Subaquática.
avós e ficarão para sempre guar-
dados nas memórias dos que Por ora, as possíveis localizações desses
perderam entes queridos, sendo vestígios foram feitas por estimativas em
este um fator muito importante cartas náuticas, tomando como base a do-
para a Arqueologia como forma cumentação textual e as fontes orais.
de preservação dos patrimônios
culturais da humanidade que es- Conforme os dados obtidos por Porto
tes sítios representam. (2013), os restos do navio Aníbal Benévolo
estão possivelmente a uma profundidade
Os destroços do Encouraçado USS Ari- média de 20 metros, enquanto os do navio
zona foram transformados em um Memo- Araraquara estão entre 30 e 40 metros. Ou
rial dedicado aos tripulantes mortos du- seja, são sítios arqueológicos acessíveis
rante os bombardeamentos. Este local de para a realização de estudos sistemáti-
homenagem às vítimas é frequentado, na cos in situ por arqueólogos mergulhado-
atualidade, por milhares de pessoas inte- res. Já o sítio arqueológico do naufrágio
ressadas em conhecer melhor o inciden- do Baependi pode estar localizado a mais
te que arrastou os Estados Unidos para o de 2.000 metros de profundidade. O que
grande conflito mundial. impossibilita a presença física dos arque-
O USS Arizona Memorial foi constru- ólogos. Seu estudo estaria associado ao
ído sobre o próprio sítio arqueológico, emprego de alta tecnologia.

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Roberta da Silva Rosa, Gilson Rambelli

Somente após a localização desses características físicas (sexo, idade, denti-


sítios e a realização de uma análise sis- ção, unhas, cor da pele e cor do cabelo) e
temática dos mesmos que poderemos dos objetos pessoais (vestimentas, ador-
planejar o futuro desses naufrágios. Até nos, documentação), tendo assim seus
mesmo para categorizá-los enquanto mo- nomes revelados nas listas de passagei-
numentos aos mortos de guerra. Como ros e tripulantes, como no caso das joias
desconhecemos o estado de conservação relatadas anteriormente. Todavia, parte
em que se encontram, fica difícil qualquer das vítimas não foi reconhecida devido
argumentação sobre os procedimentos a à ausência de vestígios materiais que as
serem adotados. Pois, diferente do USS identificassem ou devido ao grau de pu-
Arizona, os contextos dos afundamentos trefação de seus corpos.
foram distintos e, provavelmente, a con- Dentre as fontes iconográficas utiliza-
servação dos mesmos também. das, selecionamos três fotografias do Ar-
quivo3 para serem interpretadas, que não
CORPOS DAS VÍTIMAS À BEIRA-MAR: apresentaremos aqui por entendermos
A ARQUEOLOGIA E OS BIOFATOS serem desnecessárias tais exposições. Na
Para a Arqueologia, os restos mortais primeira foto foi possível identificar “um
ou vestígios humanos também são im- indivíduo do sexo masculino, cor bran-
portantes. Muitas séries atuais de TVs ca, vestindo calça e paletó azul-marinho,
ilustram este tipo de estudos realizados, camisa de fantasia de quadro, sobre um
sobretudo, pela perícia científica em ce- pullover marrom com fecho-éclair, des-
nas onde aconteceram mortes acidentais, calço, cabelos corredios pretos, dentadu-
que carecem de um esclarecimento sobre ra suposta em parte, portador de faturas
o fato ocorrido. Esta abordagem é conhe- comerciais, recibos e um cartão de visita”
cida como Antropologia Forense. Para os (DOC. 55. Nº 4º. CAIXA Nº 02, 1943). O
arqueólogos que atuam com estas evidên- corpo da vítima estava em bom estado de
cias, denominadas de biofatos, este tipo conservação e preservava as vestimentas,
de estudos permitem, quando realizados que aparentava ser de um homem de ne-
sistematicamente, a obtenção de possí- gócios. Mas, o que facilitou a sua identi-
veis informações sobre a história dos cor- ficação foi o cartão de visita, encontrado
pos daquelas pessoas, independentemen- junto a outros documentos, que revelava o
te da questão temporal. seu nome: “Renato Cardoso de Mesquita,
E, assim como os sítios de naufrágios, corretor comercial, com escritório à Rua
por não termos atuado diretamente com do Livramento nº 72 – 1º andar- Recife”.
os biofatos, a abordagem apresentada foi Na segunda fotografia, a vítima foi
feita de maneira indireta, por meio da aná- identificada como sendo “um indivíduo
lise dos registros iconográficos e dos re- de cor branca, estatura mediana, robusto,
latórios da perícia da época. Ressaltando cabelos pretos ligeiramente encanecidos,
que esses estudos foram realizados com o vestindo um pijama de zefir, alvadio e ten-
objetivo de lançar um olhar da Arqueolo- do ao peito um salva-vidas, boa dentadu-
gia sobre essas fontes. ra, sólida, dentes iguais” (DOC. 55. Nº 9º.
De acordo com as informações pre- CAIXA Nº 02, 1943). Pela descrição nota-
sentes nos relatórios oficiais da perícia, -se que, no momento dos ataques navais,
disponibilizados no Arquivo Público do ele já estava com a roupa de dormir, o que
Estado de Sergipe, algumas vítimas con- confirma as informações sobre a ocorrên-
seguiram ser identificadas por meio das cia dos ataques entre o período da noite

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e madrugada. Mesmo a vítima conseguin- identificadas com cruzes toscas e im-


do usar um salva-vidas, não sobreviveu provisadas, destinadas ao enterramento
ao naufrágio. O corpo foi encontrado em principalmente das pessoas que não fo-
bom estado de conservação, mas o que ram identificadas devido ao grau de de-
facilitou a sua identificação foi a descri- terioração dos corpos (CRUZ, 2012). De
ção encontrada em sua vestimenta que acordo com a publicação do Diário Oficial
informava se tratar do “sub-tte. Antônio do Estado de Sergipe, a Chefatura de Po-
Lins Cavalcante”. lícia ordenou que as sepulturas tivessem
Na terceira fotografia, identificamos o a seguinte inscrição: ‘vítima do Nazismo’5.
corpo de uma vítima “do sexo feminino, Segundo Cruz, “pela primeira vez, cente-
cor morena, cabelos castanhos corredios, nas de brasileiros foram mortos em uma
vestindo blusa de fantasia com listas ver- ação militar empreendida pela Alemanha
ticais verdes e vermelhas, saia de lã roxa; Nazista na América do Sul” (2012, p. 131).
dentadura boa e bem tratada, unhas ma- De acordo com o jornal O Globo, de
nicuradas e pintadas, idade presumível 20 19426, a paisagem cemiterial deveria ser
a 25 anos. Usava combinação de seda cor entendida como um local de memória,
rosa” (DOC. 55. Nº 11º. CAIXA Nº 02, 1943.). que representaria um importante episódio
Por meio dessas características, podemos histórico, neste caso, a agressão Eixista
deduzir que esta mulher se destacava para contra o Brasil.
os padrões econômicos da época, suposta- Neste contexto, surgem alguns ques-
mente vaidosa, pois cuidava bem de suas tionamentos com relação ao sepultamen-
unhas e tinha sua dentição bem tratada. to das vítimas que não ficaram presas às
Mesmo a vítima tendo o seu corpo em bom estruturas dos navios e que foram dar às
estado de conservação e preservado suas praias. E, para responder a essas ques-
vestimentas, não teve o seu nome identifi- tões, tomamos por base as informações
cado na lista de passageiros. disponíveis nos trabalhos de Mello e Cer-
A respeito das histórias e vivências des- queira (2011, 2012). Pois, segundo estes
tes brasileiros e brasileiras que perderam autores, devido à grande quantidade de
suas vidas em decorrência da guerra, não mortos, não havia espaço suficiente nos
conhecemos suas trajetórias em vida, so- cemitérios locais da capital para abrir tan-
mente o fim que elas tiveram. Foram mais tas covas e realizar os sepultamentos. Por
de 500 pessoas que perderam suas vidas isso, apenas os corpos que conseguiram
no litoral sergipano em decorrência dos ser identificados foram transportados
torpedeamentos provocados pelo U-boat para os cemitérios de Aracaju, como o
507, durante a Segunda Guerra Mundial. Santa Izabel e o da Cruz Vermelha, este
Vários corpos foram encontrados jun- último chamado, na época, de Cemitério
to aos destroços espalhados pelas praias dos Cambuís. Já os corpos mais deterio-
de Atalaia, Mosqueiro, Caueira, e Saco4. rados – dilacerados pelos animais ma-
Eram tantos mortos, que muitos tiveram rinhos e mutilados pelas explosões das
que ser enterrados na praia mesmo, bem embarcações – eram enterrados na beira
próximos da beira do mar, em um local da praia mesmo, em um local chamado
que posteriormente passou a ser chama- posteriormente de Cemitério dos Náufra-
do de Cemitério dos Náufragos (CRUZ, gos (MELLO; CERQUEIRA, 2011, 2012).
2012; PORTO, 2013, ROSA, 2015). De acordo com Porto (2013), o cemité-
Na época, foram abertas inúmeras rio que mais recebeu vítimas foi o da Cruz
covas, tanto individuais, como coletivas, Vermelha. Nele foram abertas inúmeras

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Roberta da Silva Rosa, Gilson Rambelli

valas coletivas ao redor do muro por causa realizadas nos dois Cemitérios dos Náu-
da falta de tempo para fazer covas indivi- fragos em 2015, durante a elaboração da
duais, afinal, chegavam vários caminhões dissertação de mestrado da autora, com
da prefeitura carregados de cadáveres. Os orientação do coautor, intitulada: “Sergi-
jornais locais da época noticiavam com pe no Contexto da Segunda Guerra Mun-
frequência a respeito dos cadáveres que dial (1942): uma abordagem da Arqueo-
eram encontrados nas praias, como a Fo- logia de Ambientes Aquáticos” (ROSA,
lha da Manhã que, no dia 19 de agosto de 2015), gostaríamos de discutir como a Ar-
1942, lançou a seguinte nota: “Pairam so- queologia aborda os cemitérios enquanto
bre as praias de Sergipe vários cadáveres objeto de estudo, e como eles podem ser
das vítimas inditosas dos navios torpede- compreendidos pela sua materialidade.
ados. Até agora foram recolhidos 14 ca- Considerados como sendo fundamentais
dáveres, sendo 13 de adultos e 1 de uma nas sociedades, os cemitérios as refletem
criança. Estes cadáveres depois de passa- em sua cultura material como um simbo-
rem pelo serviço de identificação foram lismo da própria morte.
sepultados” (1942, p. 1). Independente da pluralidade de abor-
Era fato. Não seria possível enterrar dagens, os diferentes equipamentos ce-
aquela quantidade de mortos recolhidos miteriais congregam em si expressões
pelas praias sergipanas nos cemitérios materiais de conduta, tecnologias e valo-
da capital. Eles não conseguiriam atender res das variadas sociedades que o cons-
à grande demanda. Por isso, foi necessá- truíram. Nesse sentido, uma abordagem
rio improvisar um cemitério na região da da Arqueologia da Morte possibilita trazer
praia mesmo, bem em frente ao mar, de não apenas informações sobre as condi-
onde os corpos não paravam de chegar. ções de vida das pessoas antes da morte
Ainda conforme Mello e Cerqueira (2011, ou durante a morte, mas também sobre os
2012), baseados em fontes orais, este “ce- cuidados que os grupos sociais têm com
mitério improvisado” já existia antes mes- seus mortos. Sendo assim, nota-se que os
mo dos torpedeamentos acontecerem, ou costumes relacionados à morte podem se
seja, as autoridades apenas se aproveita- modificar com o tempo, de acordo com o
ram do local. Ele era conhecido pela co- contexto cultural e histórico de cada so-
munidade de pescadores como Cemitério ciedade (ROSA, 2015).
dos “Manguinhos” ou “Campinhos”. E O objetivo principal da pesquisa de
depois da tragédia ficou conhecido como mestrado, realizada em 2015, foi fazer
“Cemitério dos Náufragos”. Inclusive, a comparações entre os equipamentos ce-
rodovia construída posteriormente, para- miteriais, buscando identificar diferenças
lela à praia de Atalaia, recebeu o nome de e semelhanças em relação às estruturas
“Rodovia dos Náufragos” em homenagem materiais, bem como entender os signifi-
aos brasileiros e brasileiras vítimas da cados simbólicos e a representatividade
guerra. Vale destacar, que esta rodovia é a deles para a sociedade. Por fim, foi feita
mesma que dá acesso ao segundo Cemi- uma avaliação do tratamento oferecido
tério dos Náufragos que veremos a seguir. pelas autoridades e o reconhecimento
concedido pela população.
ABORDAGENS ARQUEOLÓGICAS SO- O primeiro cemitério de vítimas da
BRE A MORTE E SUA MATERIALIDADE Guerra “construído” (entre aspas, pois
Antes de apresentar alguns dos resul- foi um aproveitamento de um cemitério
tados obtidos com as pesquisas de campo já existente) em território nacional foi o

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Cemitério dos Náufragos, em Sergipe, em A Figura 2, publicada no livro Agres-


1942, devido à urgência da situação trá- são, em 1943, pela Imprensa Nacional,
gica mencionada anteriormente, em que demonstra um pouco a dimensão da tra-
centenas de corpos foram encontrados gédia. Vários corpos depositados direta-
nas praias sergipanas. mente na areia, sem nenhum tipo de tra-
tamento ou cuidado especial, exceto pelo
tipo de cova que demonstra ao menos a
individualidade. Ou seja, não há caixões,
roupas e flores. Nada que represente al-
gum ritual cerimonial. Observamos ape-
nas a pressa para enterrá-los, dado a
magnitude do acontecimento. No entan-
to, vale destacar que esta imagem repre-
Figura 2 – Sepultamento dos náufragos na praia de senta apenas uma parte do todo. Pois, de
Aracaju - SE. Fonte: Agressão - Documentário dos acordo com as fontes escritas, muitos cor-
fatos que levaram o Brasil à Guerra. Rio de Janeiro:
pos foram sepultados em covas coletivas.
Imprensa Nacional, 1943

Figuras 3 a 5 – Cemitério dos Náufragos da Aruana, Aracaju – SE. Sepultamento e placa que se referem a um
ex-combatente. Fonte: Roberta Rosa, 2015

9
Roberta da Silva Rosa, Gilson Rambelli

Ao compararmos a dimensão cemi- Após a análise das sepulturas existen-


terial física, resultante dos trabalhos de tes, percebemos que nenhuma delas fazia
campo apresentados na dissertação da referência aos enterramentos dos náufra-
autora, com orientação do coautor, em gos. A maioria possuía datação posterior
2015, com as informações da década de à década de 1940, sendo muitas recentes.
1940, percebemos que hoje ele está con- Contudo, convém destacar uma delas
sideravelmente menor. O cemitério sofreu que, apesar de registrar um falecimento
alterações devido à construção da rodovia recente, se refere possivelmente ao enter-
na década de 1950, a qual teria atravessa- ramento de um ex-combatente da Segun-
do em parte seu interior, implicando assim da Guerra Mundial, como mostra a Figura
sua modificação estrutural e dimensional 4, “NAS. 16/11/1912, ANANIAS J. DOS
e, consequentemente, na suposta retira- STOS, FAL. 21/01/2006, EX COM”. É impor-
da dos restos mortais das vítimas (ROSA, tante dar ênfase a este enterramento por-
2015). Ação que hoje não se repetiria, pois que ele é o único que condiz com a placa
graças à Legislação para o Licenciamento que está pregada numa grande cruz, loca-
Ambiental, dos anos 1980, seria exigida lizada na parte central do cemitério, logo
uma intervenção arqueológica sistemáti- na entrada, e que possui a seguinte ins-
ca no local, para a liberação da área. crição: “Os ex-combatentes da 2ª Guerra
Os resultados obtidos, por meio das Mundial que lutaram na Itália em 1942 a 8
análises neste cemitério, evidenciaram dois de julho de 1948. Que as autoridades não
tipos de enterramentos: a cova rasa e a se- esqueçam dos heróis que lutaram pela
pultura em monumento.7 A primeira, a mais nossa pátria”, como mostra a Figura 5.
frequente, demonstrou intencionalidade de Todavia, ao refletirmos sobre as in-
enterramentos individuais. Já a segunda formações presentes nesta única placa,
revelou intencionalidade de enterramento percebemos que ela foi colocada de ma-
coletivo de membros de uma mesma famí- neira equivocada neste cemitério, pois o
lia. A respeito da preservação de tais sepul- mesmo não serviu para enterrar os mili-
tamentos, identificamos que alguns jazigos tares brasileiros que foram combater na
já estavam em estado de degradação, tanto Itália. Além do equívoco na data, porque
pela ação do tempo, como pelo vandalismo. a guerra acabou em 1945 e não em 1948.
Acerca dos ornamentos funerários, Não considera o fato de este cemitério ter
identificamos que eles variavam no tama- servido para enterrar as primeiras vítimas
nho, cor e matéria-prima. As cruzes, por civis e militares em águas brasileiras du-
exemplo, feitas em madeira, concreto e rante a Segunda Grande Guerra. Ou seja,
mármore, muitas já estavam parcialmen- além da inexistência das evidências ma-
te destruídas. Foi constatada também a teriais que deveriam atestar a presença
ausência de um padrão nas identificações de sepulturas datadas de 1942, que possi-
das sepulturas. Além disso, percebemos velmente foram afetadas pela construção
a presença de materiais, como flores e da estrada, a placa oficializa a falta de cui-
velas, de usos bastante recentes. Tais evi- dado com o significado daquele espaço
dências comprovaram a continuidade dos fúnebre por parte das autoridades locais
enterramentos no cemitério que, apesar e nacionais, que deveriam zelar pela sal-
de ser dedicado aos náufragos, continuou vaguarda da memória coletiva referente
a manter sua função que antecede o inci- ao impacto daqueles episódios, conside-
dente de 1942, como um lugar onde a co- rados como estopins para a entrada do
munidade local enterra seus mortos. Brasil no conflito mundial.

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Navigator 32 Vestígios da Segunda Guerra Mundial nas praias sergipanas: reflexões arqueológicas

A respeito do significado simbólico bamento do cemitério “original” feito pelo


deste cemitério, pudemos constatar que Departamento de Cultura e Patrimônio
a maioria das pessoas o desconhece. Até Histórico. Entretanto, o órgão foi informa-
mesmo aquelas que tomam seus banhos do que, na época, os corpos das vítimas já
de mar de frente a ele, reforçando a tese não se encontravam mais no local, tendo
de que este é um espaço representativo sido deslocados para um monumento no
da memória histórica, mas que acabou Mosqueiro, durante o governo de Leandro
sendo esquecido. Talvez, esse desconhe- Maciel (1955-1959), porém não foi encon-
cimento seja pelo simples fato de não trada nenhuma documentação que com-
haver uma tradição de culto à memória provasse tal traslado.
dos mortos que foram vítimas de guerra Em 1972, este segundo cemitério/mo-
(PIOVEZAN, 2014). Para Bellomo, “a as- numento recebeu a atenção por parte
sociação de vivos e mortos raramente ul- das autoridades, sendo restaurado com
trapassa a terceira geração ascendente. O recursos do Ministério da Marinha e do
tempo enfraquece a memória, e a relação Governo Estadual – SUDOPE, e devido à
entre o antepassado e seus descendentes sua importância e representatividade foi
vai aos poucos desaparecendo. Poucos “elevado a Monumento Histórico através
brasileiros sabem onde está o túmulo do Decreto Estadual de n° 2.571, em 20 de
dos seus ascendentes além dos bisavós” maio de 1973” (PORTO, 2013, p. 53).
(2008, p. 51). Por esta razão, a responsa- Ele está situado na Rodovia dos Náu-
bilidade recai sobre as autoridades, as fragos, no Bairro Mosqueiro, em Aracaju -
quais devem manter a memória viva, por SE. No entanto, o local não é de fácil aces-
mais dolorosa que possa ser. Lembrar-se so, pois se situa em uma rua sem saída,
de uma tragédia de guerra incentiva a paz. além de não ter placa indicativa sobre a
Já o segundo cemitério, nomeado de sua localização. Ele é composto por uma
“Monumento dos Náufragos”, pode ser estrutura monumental de mármore, lo-
considerado como uma espécie de exten- calizada na parte central, que possui dez
são do primeiro, pois a sua construção na gavetas. Mas, de acordo com Cruz (2012),
década de 1950 teve como finalidade abri- elas estão vazias. Segundo este autor tra-
gar os restos mortais que foram retirados ta-se apenas de um túmulo/monumento
do cemitério “original” devido à constru- simbólico. Ademais, observamos que,
ção da rodovia já citada, a qual atraves- além da construção em mármore, há tam-
sou, em parte, o interior do cemitério, im- bém um mastro para hastear a Bandeira
plicando na retirada dos restos mortais de Nacional, uma âncora e uma cruz, símbo-
parte das vítimas (ROSA, 2015). los que representam, respectivamente, a
De acordo com Porto (2013), no ano presença do Estado, da Marinha do Brasil
de 1971, houve uma solicitação de tom- e da morte.

Figuras 6 e 7 – Cemitério dos Náufragos localizado no Mosqueiro, Aracaju – SE. Placa referente aos náufragos.
Fonte: Roberta Rosa, 2015

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Roberta da Silva Rosa, Gilson Rambelli

A estrutura deste equipamento cemite- Ao comparar a questão da preservação


rial é organizada e se difere da estrutura de ambos, notamos que o cemitério mo-
do outro cemitério, onde, de fato, enter- numental está em boas condições, mas a
raram muitas vítimas. Ele possui muros preservação do cemitério “original” é la-
altos, como mostra a Figura 6, um portão mentável. Ele está esquecido pelas autori-
de ferro e um jardim ao redor da estrutura dades e é destruído a cada dia, tanto pela
central, sendo o seu estilo, monumental. ação do tempo quanto pela ação humana.
Segundo Ariès (1989), quando “os túmu- Urge ações que permitam uma retomada
los transformam-se em monumentos; os a esta memória coletiva que vem desa-
monumentos são forçados a serem túmu- parecendo paulatinamente. Pois mesmo
los” (1989, p. 598). não representado por cruzes e placas que
Junto às gavetas há uma placa com a identifiquem essas sepulturas, aquele es-
seguinte inscrição: “Cemitério dos Náu- paço localizado na beira do mar abriga
fragos dos navios mercantes Baependi, em seu solo os restos mortais de homens,
Araraquara e Aníbal Benévolo. ‘Aí está mulheres e crianças que morreram em de-
o golpe mais traiçoeiro e terrível vibrado corrência de uma ação de guerra.
contra o coração da nacionalidade’”, apre- Recentemente fomos informados de
sentada na Figura 7, que reforça o discur- que existe um projeto sendo desenvolvi-
so da Historiografia Oficial da época dos do pela Secretaria de Turismo do Estado
torpedeamentos, reproduzido pelas auto- de Sergipe com o objetivo de criar um
ridades do governo militar de 1970, época memorial para homenagear as vítimas
em que o monumento foi restaurado. dos torpedeamentos, todavia, a obra não
Embora a materialidade deste segun- envolverá o cemitério, pois será construí-
do cemitério condiga com a noção de um da no sentido contrário, rumo ao mar, em
“Memorial”, construído para homenagear uma extensão de 14 quilômetros por meio
a memória dos que perderam a vida naque- de onze etapas.8 Em vista desta situação,
le episódio de guerra, mesmo sem estarem os moradores da região se reuniram em
em combates. A ausência dos nomes das assembleia em janeiro de 2020, e confor-
vítimas (mortas ou desaparecidas) cha- me José Firmo, presidente da Associação
mou a nossa atenção, afinal, já que elas Desportiva, Cultural e Ambiental do Ro-
são supostamente a razão de ser deste balo (ADCAR), o objetivo da reunião foi
Monumento, deveriam ser homenageadas encontrar soluções para que o cemitério
tendo os seus nomes identificados. seja preservado. Contudo, os moradores
apresentaram uma crítica ao governo por
Esta observação pode utilizar como
elaborar o projeto sem a participação da
exemplos o Monumento Nacional aos
comunidade local, que têm seus entes
Mortos da Segunda Guerra Mundial, edifi-
queridos enterrados no cemitério.9
cado na cidade do Rio de Janeiro, e o Mo-
numento Votivo Militar Brasileiro cons- CONSIDERAÇÕES FINAIS
truído na cidade de Pistoia, na Itália, para
sepultar os brasileiros mortos durante o Longe de termos a pretensão
conflito mundial. Ambos os monumentos de esgotarmos as probabilidades
são representações materiais e simbóli- arqueológicas sobre o assunto, buscamos
cas da guerra, os quais homenageiam as apenas lançar um olhar da Arqueologia
vítimas, identificando os seus nomes, ou sobre os remanescentes da cultura
seja, destacando a morte individual em material referente a estes episódios,
detrimento da morte coletiva. para sinalizar as várias possibilidades

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Navigator 32 Vestígios da Segunda Guerra Mundial nas praias sergipanas: reflexões arqueológicas

de futuras pesquisas. É claro que se pudéssemos ter acesso aos restos dos navios
naufragados, e mesmo aos biofatos presentes nos cemitérios, ou retirados durante
a construção da rodovia, ou mesmo aos “malafogados”, poderíamos dissertar com
afirmações mais significativas.
Mesmo assim, os pressupostos metodológicos da Arqueologia possibilitaram fazer
uma análise documental, utilizando jornais, relatórios da perícia e fotografias da época
bélica para posteriormente confrontar com os dados obtidos durante as realizações das
pesquisas de campo, por meio das quais foi possível observar e comparar as estruturas
dos dois Cemitérios dos Náufragos, com o intuito de identificar semelhanças e diferenças,
bem como entender os significados simbólicos e a representatividade deles para a
sociedade. Além disso, foi feita uma avaliação do tratamento que tem sido oferecido
pelas autoridades e o reconhecimento concedido pela população.
A justificativa desse tipo de estudo arqueológico está relacionada ao grande potencial
da cultura material em produzir conhecimento e se transformar em instrumento de
informação e aprendizado sobre este período bélico tão marcante para a História local
e nacional. Sendo assim, os resultados da pesquisa podem contribuir para diminuir
as lacunas históricas, além de servir como meio de informação para a população que
desconhece o real envolvimento do país na Segunda Guerra Mundial, que teve seus
reflexos chegados ao Brasil por meio do litoral sergipano, o qual serviu como uma
espécie de “porta de entrada” para o conflito europeu.
Dessa maneira, os estudos arqueológicos dos episódios trágico-navais podem
contribuir para a divulgação em busca de reconhecimento desse passado histórico
recente, que não deve ser esquecido, principalmente, em respeito às centenas de civis
e militares que perderam suas vidas como vítimas de guerra. Posto isto, é necessário
evidenciar o papel importante dos(as) arqueólogos(as) como agentes sociais que devem
agir no sentido de diminuir as distâncias entre as pessoas e o patrimônio arqueológico,
sua ressignificação e a construção de memórias coletivas, pois, o estudo de Arqueologia
deve ser público.

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Navigator 32 Vestígios da Segunda Guerra Mundial nas praias sergipanas: reflexões arqueológicas

NOTAS

1
Correio de Aracaju. Aracaju-SE, 27 de novembro de 1943, p. 4.

2
Apelação Criminal, nº 4/1943, cx., fls. 3,18 de agosto de 1942.

3
Arquivo Público do Estado de Sergipe. Doc. 55. Cadáveres no 29, 31 e 28. Relatório de
cadáveres dos torpedeamentos, agosto, 1942.

4
Luiz Antônio Barreto. A guerra e o amor ao mar de Sergipe. In: Pesquisa de Sergipe/Info-
net. 2011. Disponível em: http://www.infonet.com.br/luisantoniobarreto/ler.asp?id=119242.
Acesso em: 23 mar. 2020.

5
Publicação do Diário Oficial do Estado de Sergipe, Aracaju-SE, 16 de setembro de 1942. s/p.

6
Jornal O Globo. Rio de Janeiro, 22 de agosto de 1942, p.1.

7
Conceito retirado da obra O homem diante da morte, de Philippe Ariès (1989).

8
Moradores reivindicam, mas prefeitura não erguerá cemitério no Robalo. 17/01/2020. In:
Pesquise-Pesquisa de Sergipe/Infonet. Disponível em: https://infonet.com.br/noticias/cida-
de/moradores-reivindicam-mas-prefeitura-nao-erguera-cemiterio-no-robalo/. Acesso em: 5
abri. 2020.

9
Jornal do Dia. 17/1/2020. Moradores preocupados com destino do Cemitério dos Náufra-
gos. In:Pesquisa de Sergipe/Jornaldodiase. Aracaju – SE, 2020. Disponível em:ht-
tp://www.jornaldodiase.com.br/noticias_ler.php?id=45305&t=moradores-preocupados-
-com-destino-do-cemiterio-dos-naufragos. Acesso em: 5 abr. 2020.

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