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EIN HEISSER SCHREI

Por Klown e Anon

Dia II

O rapaz de cabelos pretos já se alimentou de sua caça. Não pôde


cozinhá-la direito, mas satisfez a fome voraz que fez as suas entranhas
gritarem no dia anterior. Refeição terminada, tomou o cuidado de desfazer a
fogueira antes que a noite raiasse, e tudo ficou bem.
No momento procura pelo abrigo no qual passará a noite. Não tem
certeza de quanto tempo durará vivo, andando por aquelas regiões geladas a
esmo, a procura de sua terra natal, antes que os inimigos finalmente o
alcancem. Não havia cometido um crime excepcional, mas o rapaz realmente
não sabe se a fuga que realizou seria o suficiente para ter pessoas atrás dele.
Só uma morte, só uma morte. Ninguém vai se importar com aquela
morte, talvez ele nem fosse tão importante. Devia ter escondido o corpo, mas
agora é tarde, as luzes estavam brilhando em seus olhos e não conseguia se
concentrar
(ah a luz aquela luz e então boom ele estava morto)
(e sim foi com um tiro no ombro no pescoço lembra bem da cara dele)
em mais nada. Atirou.
E ele morreu. Mas será que sabem que foi ele?
Está esperançoso de que conseguirá sair impune. Ele não é importante
o suficiente para ser caçado.
Não, por enquanto.
A pequena vila na qual o russo se encontra é bonita, apesar de estar
escura. A iluminação é escassa, provavelmente porque há muito não habitam
aquele local. As pequenas construções que pipocam à vista do rapaz parecem
a beira do desabamento, castigadas pelo tempo e desprovidas de alguém que
as cuidasse. Passa a mão na madeira esverdeada, e sente o vento batendo em
suas costas. Estremece. A madeira apodrecendo range, perigosa, em resposta
ao castigo que lhes trazem os ventos. Não, aqueles que lá moraram há muito
foram embora. Talvez para a própria Rússia, talvez para as redondezas mais
próximas. Lugares frios.
No gelo.
O pequeno caçador caminha com o rifle em mãos pela neve fofa, com as
botas mal-cuidadas que havia roubado de seu antigo algoz. Os calçados
deixam uma marca sutil na neve, não perceptível a longa distância. Não é
muito cuidadoso. Eles não estão o rastreando, não devem estar, ok? É só
andar e seguir. Sempre em frente, para descansar.
Está a salvo.
Olha de um pobre casebre para outro, procurando algo que não fosse
desabar pela próxima semana. Não gosta da idéia de ser esmagado pela
madeira podre enquanto dorme pacificamente abraçado em seu rifle e coberto
pelo seu poncho.
Seu querido poncho, seu melhor amigo e companheiro de longa data.
Suspira, e o hálito se condensa no ar, formando uma pequena nuvem de
vapor. Engraçado, sempre adora aquele efeito.
Aquela casa na esquina parece interessante. Não está tão apodrecida
quanto as outras. Estado razoável. O russo cogita ficar lá pelos próximos dois,
três dias,
(quem sabe por uma semana)
alimentando-se de veados até decidir seguir em frente em sua epopéia
pela Mãe Pátria. O jovem, o caçador, sente-se mais confortável enquanto
aproxima-se do casebre. Deve funcionar.
Prestando atenção no caçador juvenil, o oficial esconde-se no topo da
torre próxima. Talvez tivesse sido usada para vigia contra ataques exteriores
antigamente, mas no momento não passa de um bando de madeira e pedra
projetando-se contra o céu com o tamanho suficiente para permitir um
esconderijo. O alemão está trajando roupas pesadas, porém discretas contra a
superfície branca da neve que cai pela superfície de todas as construções. Um
par de binóculos enfeita seu rosto, segurado pelas suas mãos, enquanto
observa o russo entrar no pequeno casebre, para dormir.
Ótimo, ele entrou. Está esperando aquele momento. Finalmente a caça
está à mão.
Hora de divertir-se.
Em contraste, um alemão condenado alimenta-se em sua cela. Está na
solitária, o que considera muito mais prático do que ter de dividir a cela com
algum retardado qualquer. É escuro, e Hermann gosta do escuro. Não
identifica bem as formas, só fica deitado na sua cama rústica, que lhe pinica as
costas e lhe distorce a coluna. Não se importa, a companhia – ninguém – é
boa.
Colocaram-no ali porque matara seu último parceiro, o tal Schneider,
que digamos de passagem era um cara insuportável. Achava-se poderoso.
Acha que pode mandar em Hermann. Ha. Que tentasse mandar no buraco
aberto entre os olhos, agora. Hermann Wahnsinn está muito mais feliz em sua
(não tão) aconchegante solitária, apesar de que logo sairá de lá. Para sua
sessão.
Hermann não gosta do tratamento.
Não está mais interessado na liberdade. Não, aos setenta e dois anos,
não acha que vai sobreviver o suficiente para sequer aproveitar uma golfada de
ar puro. Mais provável que morra antes que o tratamento acabe. Ou, quando
acabar, sua capacidade física estará tão enfraquecida que não poderá
aproveitar o mundo como gostaria.
Então que se foda o tratamento. Trabalho demais para pouca
recompensa. Vamos ficar na cadeia, que tal? Também não. Chato demais, não
quer morrer como dezenas de pessoas morrem todos os dias, desconhecido e
anônimo, sem pessoas para chorarem ao seu túmulo.
(vamos morrer. Mas vamos levar gente conosco)
(muita gente)
(e vão queimar, vão queimar no fogo lindo que esquenta suas almas enquanto
apodrecem no outro lado - o fogo o fogo o fogo)
Mal repara quando o segurança bate a sua porta. Toc, toc, som de
metal, berro do lado de fora. “Vamos, seu monstro.” O quê? Mas já é hora de
jogar com a psiquiatra outra vez?
(a puta)
Não gosta da Dra Letunov. Ela é detestável, arrogante. Merece a morte
mais do que muitos encarcerados naquele presídio, deve deixar crescer um
pouco de caráter antes de tentar julgar a mente alheia. Mas Hermann não pode
negar que acabou divertindo-se na última sessão, da semana anterior. É
engraçado assistir as reações dela às suas fábulas, e a consulta se tornará
imensamente interessante agora que se lembra de um pequeno detalhe.
(ah mas ela vai gostar de saber?)
Um pequeno detalhe que lembrou-se ao ver a pequena plaqueta na
mesa dela.
“Doutora Letunov”
Imagina a reação da psiquiatra se ele por acaso contar um pouco mais
de seus dias, mas acrescentando aquele pequeno detalhe em especial.
(não ela não vai gostar – é claro que não!)
Então, vamos lá. Levanta-se e coloca o corpo de frente a porta. O
guarda a abre e o algema com rapidez. O oficial não tem feições amigáveis,
mas um rosto severo, e Hermann lembra-se daquele cara em especial. Não
gosta dele. O segurança em questão é um oficial particularmente cruel com os
ex-nazistas.
(marcou as costas, marcou minhas costas com a cruz)
O segurança o ladeia para fora da cela, e começa a guiá-lo para o
mesmo corredor da semana passada. Vamos ter mais uma hora de chatice e
diversão com a doutora Gertruda Letunov.
E lá está ela, com sua eterna expressão arrogante de que irá pisar na
cabeça de alguém, sentada em sua poltrona de costa alta e lendo seus
arquivos. O consultório está o mesmo da semana passada, com seu branco
ligeiramente cegante espalhado por todo o lugar e as cadeiras de sempre. Não
lhe agrada aos olhos. Acaba de sair de um quarto desprovido de luz.
Mas um homem ocupa a cadeira. Um homem anormalmente alto com
cabelos arruivados e longos. Familiar. Usa um par de óculos e tem o rosto
pálido como um fantasma, rosto este atravessado transversalmente por uma
cicatriz. Reconhece o homem como o marido da Dra Letunov. Está trajando um
terno branco que combina com a palidez de sua pele. E uma gravata azul.
Legalzinho.
O homem levanta-se ao notar a presença de Hermann, e o rosto denota
uma expressão tímida enquanto ele coloca-se ao lado de sua esposa que não
parece alterada pela chegada do paciente. Parece meio desconfortável, como
se não quisesse estar lá. Talvez não quisesse.
O alemão imagina o que ambos estariam discutindo antes de sua
chegada. Relacionamento? Ou seria uma sessão, para o caso do marido ainda
ser louco como quando eles se conheceram?
Não sabe, mas fica interessado. Sem cerimônias e sem palavras,
adianta-se manco e atado para a cadeira de seu lado da escrivaninha e senta-
se.
– Bom dia, senhor Wahnsinn – e assim começa mais uma hora ouvindo
este tom de voz estóico. Hngh.
– ‘Dia, doutora. Imagino que este – aponta para o homem agora
encostado no canto da sala – seja seu marido, é?
– Sim. Podemos começar?
– Claro. Antes, me conte o que o seu marido está fazendo por aqui? –
sorri, tentando parecer simpático e interessado.
– Se quiser, ele pode sair. Ele só parece não gostar de deixar um ex-
nazista condenado do seu feitio na mesma sala que eu, não é uma graça?
Hermann ri secamente. Está com medo de que ele vá machucá-la?
Bem, há fundamento. Vira o rosto para o homem com cara de hippie e
pergunta, encarando:
– Qual o seu nome, colega?
O homem franze as sobrancelhas, desconfortável. Parece assustado ao
ser dirigido a palavra. Ele ajeita os óculos e pigarreia. Sua mão está trêmula.
Responde em um tom firme, parecendo calculado.
– Victor. Rosenberg.
Hermann sorri. Divertido de se conversar, esse cara.
– Sofre do quê?
– Esquizofrenia. – responde no mesmo tom calculado
– Como conseguiu esse treco no rosto? – aponta para a cicatriz de
Rosenberg, ainda sorrindo.
– Um acidente. Envolveu um garfo e um garoto psicótico. – fala
abaixando o rosto e encarando o fundo da alma de Hermann. As sombras
fazem a cicatriz em seu rosto se pronunciar ainda mais claramente, dramático.
A psiquiatra dá um puxão em seu terno, como se dissesse para seu marido se
acalmar e parar de dramatizar.
– Entendo. Já matou alguém? – o alemão continua perguntando. Sente-
se O psiquiatra da situação. Victor parece demorar para responder.
– Já.
– O que achou da situação? – agora está interessado mesmo.
Rosenberg faz uma expressão de nojo, obviamente desconfortável com
as perguntas. Olha para sua esposa, que coloca-se a frente da situação,
recuperando o controle.
– Chega, senhor Wahnsinn – diz Gertruda, desconfortável – Vamos
partir para o que interessa aqui: a sua cura. Hoje farei mais uma série de
perguntas e conversaremos, para eu poder diagnosticar com precisão a sua
enfermidade.
Hermann acena com a cabeça, parando de sorrir. Acha que será
divertido lidar com Rosenberg caso cruzasse. Não tem muita fé de que
acontecerá, entretanto.
Não vai se demorar muito mais por ali.
– Sua esposa ainda está viva, senhor Wahnsinn?
Hm, ponto complicado.
– Sim, está. Não sei se ela gostaria de vir me ver.
– Por que não? – franze as sobrancelhas

– Ela cortou relações comigo depois de presenciar meu julgamento. –


diz, entediado.
– Bem, ela devia saber com que tipo estava se metendo quando casou
com um oficial nazista.
– Ela nunca soube o que eu fazia. Não misturo trabalho com família.
– Então escondeu dela? – a doutora indaga, interessada.
– Omiti.
– Escondeu. – constatou, anotando em sua prancheta.
– Se prefere por nesses termos – Hermann começa a irritar-se
novamente. Não gosta do tom autoritário pelo qual Letunov se dirige a ele. Tão
prepotente.
Ao menos nem todos os membros da família dela são assim.
– Vamos, doutora – diz Hermann, simulando um sorriso – Agora me
conte um pouco mais sobre você. Seus parentes, fora o rapaz aqui ao lado.
– Não há tempo para isso, senhor Wahnsinn. – ela não parece estar
divertindo-se. Como é chata.
– Por favor, quero que isso seja um diálogo. Nada mais justo, não?
A doutora suspira. Vamos, de uma vez.
– Eu tenho dois irmãos. Um está morto. Podemos continuar agora?
– Não, não! – Hermann é um senhor curioso, de fato, de fato – do que o
seu irmão morreu?
– Ele trabalhava para a aeronáutica durante a guerra fria. Cosmonauta.
Morreu em órbita.
Hermann ergue os olhos. Cosmonauta, interessante. Aqueles rapazes
que iam para o espaço pela União Soviética, é? Óbvio, eram russos,
sobrenome, Letunov. Duh.
– Divertido.
– Certo, senhor Wahnsinn. Agora voltamos ao principal, pode ser? Sua
cura.
– Ok. – diz o alemão, em um tom derrotado. Sente que está forçando
demais, e está feliz com os resultados. Esclarecedor.
– Acho que precisarei te encaminhar para um hospital psiquiátrico. –
continua a psiquiatra. Ao ouvir isso, Rosenberg faz uma careta de desgosto.
Medo? Hermann toma nota. – Mais uma vez, conte-me sobre a sua vida no
Reich. O que exatamente você fazia?
– Herman Van Sinn, oficial da Schutzstaffel, encarregado de tomar conta
de campos. Depois, enviado em missões para execução. – faz uma pausa. Até
que gosta de falar sobre isso. - minhas favoritas.
– Sua motivação era matar os outros, então? – ergue as sobrancelhas.
Maníaco.
– Não exatamente, doutora. Eu gosto de subir na hierarquia. Matar era o
meu meio. Entenda que minha... “dedicação” ao serviço me fez ser bem visto
entre o alto escalão.
– E o que acontecia?
– Pode me servir um café? – corta. Está ficando com sono novamente.
Ah, influências da idade.
Gertruda sente que está avançando. Não quer cortar o ritmo, então
coloca o café para o senhor. Não repitamos o erro da sessão anterior, senhor
Wahnsinn. Hermann toma um gole do café, sentindo-o passar escaldante pela
sua garganta.
Revigorante.
– Não era de uma posição muito alta, mas gozava de influência o
suficiente para poder escolher as missões para as quais seria designado.
Optava por execuções.
(Vamos acabar com isso logo, quero voltar para a minha solitária. Já
tenho do que preciso)
A doutora pensa por um momento, enquanto anota mais. A caneta faz
um barulho irritante a ser arranhada contra o papel, e Hermann fica entediado.
Olha para o teto, admirando as lâmpadas que pendem alegres. Rosenberg não
parece se incomodar, imerso em sua própria mente esquizofrênica.
– Alguma execução que se destaque, senhor Wahnsinn? – pergunta a
doutora. Vamos, deve ter algum motivo maior por trás dessa fome por morte.
Conte-me mais.
E ele está esperando por essa pergunta.
– Ah, sim. – sorri, após uma pausa – lembro-me de uma em especial.
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22/06/1985

Paciente: Hermann “Wahnsinn” Van Sinn

Idade: 72 anos

Crime: Crimes contra o Estado. Agressão; tortura; homicídio


de civis e prisioneiros de guerra; destruição de
propriedades sem justificativa militar ou necessidade
civil; deportação de prisioneiros e civis para campos de
concentração; nazismo. Crimes de guerra.

Motivo de requisição de tratamento: Homicídio brutal e


premeditado do companheiro de cela como possível
consequência de mente insana.

Familiares vivos de primeiro grau: Karolin Krause Wahnsinn


(cônjuge, 67 anos), Karl Wahnsinn (filho, 25 anos)

Resultados, parecer geral e recomendações:

O paciente prossegue com a mesma atitude arrogante e


incrédula do tratamento. Realmente não parece gostar da
possibilidade de ser curado, e rejeita essa ideia. Será
difícil lidar com ele. Não posso ajudar quem não quer ser
ajudado – O tratamento necessita principalmente de força de
vontade do próprio enfermo. Não creio, porém, que seja um
caso perdido. Vou insistir até ele ceder. Afinal, é a única
coisa que possa ser feita.

O paciente parece não se importar com a sua situação atual,


o que é preocupante. Ele já está velho, claro, viveu
bastante e creio que morrer ou não de velhice ou pela
cadeira elétrica não vai mudar muita coisa. Essa falta de
motivação de viver se traduz na falta de interesse por
melhorar. Chamar sua esposa e filho para conversar sobre o
paciente, talvez ache lá uma razão ou motivo que possa ser
usado como motivação para receber o tratamento.

É um paciente difícil e possivelmente perigoso, mas não


creio que ele seja capaz de fazer muita coisa no momento.

Nota: O paciente pareceu interessado por Victor Rosenberg,


perguntando sobre sua enfermidade e sobre detalhes pessoais
de sua vida, como sobre a cicatriz em seu rosto ou se já
foi violento com outra pessoa. Creio que o princípio é o
mesmo dos homicídios: O paciente gosta de se sentir no
poder sobre outras pessoas. O complexo de superioridade
está claro, mas não chega ao ponto do paciente ter
desilusões de grandiosidade o que é algo bom, não sei se
suportaria um ex-nazista metido bipolar.

Gertruda Mikhailovna Letunov

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