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, SEGUNDA PARTE

o DESENVOlV1MENTO
A ESPERANÇA DO IMPOssíVEL

"Sem esperança ninguém consegue o inesperado.


De fato, é muito difícil ir ao encalço de algo e alcançá-Ia. n

(Heráclito, Fragmento B 18.)


CAPíTULO I

,
O INESPERADO E O INIMAGINAVEl

H oje em dia, quando todas as energias do ser humano estão voltadas para
que ele se aproprie do reino concreto do factível, parece paradoxal esta-
belecer uma relação entre a dimensão do inimaginável e o sentido concreto da
sperança. De fato, a esperança nasce de uma expectativa que tem um rumo,
que caminha para a realização de um valor esperado. O repentino é uma ruptu-
ra desse movimento, pois, de súbito, passa do limitado para o pleno, da petição
para o atendimento desse algo. Para a fé cristã, o querigma da ressurreição de
Jesus crucificado instituiu, por meio do inesperado que ele proclama, uma rela-
ção nova e original com a esperança: surgiu uma perspectiva toda particular,
paradoxal e, em certo sentido, anômala em relação à perspectiva do senso co-
mum. Ela sugere, em verdade, que o inesperado, o inimaginável oferecido na
ressurreição valha mais do que qualquer bem esperado. Essa perspectiva apre-
senta-se como se fosse o coração daquele movimento que faz reconhecer Deus,
o outro e o mundo exclusivamente como dons. Nesse sentido, uma esperança
lida em primeira linha na ótica de um Deus absoluto (livre) põe essa experiência
numa situação de ruptura, de surpresa em relação à simples lógica de continui-
dade entre a espera e a realização do desejo. Na perspectiva do inesperado,
Deus permanece ele mesmo, mostra-se como é, livremente. Sobretudo quando,
como o próprio Evangelho comprova, ele se manifesta no coração da história, com
seu caráter enigmático e sua contingência, como uma presença paradoxal ao ex-
tremo: é a manifestação insuspeitável e inesperada de um Deus presente na cruz
de Jesus Cristo. É a presença atípica de um Deus que jamais poderá ser sintetizado
por uma ciência, mesmo que se chame teológica; um Deus que exige ser anuncia-
do e confessado como uma epifania misteriosa no autêntico coração da história, no
coração da marginalidade e no coração dos últimos.

De qualquer forma, a evidente pobreza de recursos que caracteriza essa


condição específica não deve induzir ninguém a renunciar ou abandonar esse

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estreito caminho. Pelo contrário, ela exige uma mudança de atitud e d pr r' 11110 'I quiridos. p r nç p ra reconhecer o sentido e o significado daqui-
pectiva tais, a ponto de promover uma forma nova de linguagem que contran.i I
1'11' procura descobrir sobre a justiça que se quer ver posta em prática,
linguagem usual da esperança humana. Por causa disso e da sua absolut I
111 C(U ssa hipótese fique reduzida a sonhos vazios e agitações inúteis. Uma
unicidade, é preciso que se saiba manter viva a experiência pela qual se pas " 1" r nça que se torne de fato justiça concreta e se transforme num compro-
recuperando a importância do fazer memória, não apenas porque na memórui 1111 11m nto real e sofrido com a história, por meio de uma fidelidade total, com a
se reativa um tipo de relação que se pode chamar de presença-ausência, m I11 " possa contar em extremo. Uma esperança do impossível, que tem a
sobretudo, porque ela faz a pessoa de fé reconhecer uma presença que funda '111', i ncia quixotesca do caráter paradoxal que assume a ação diante da evi-
doa um novo e inusitado sentido da vida. Essa perspectiva significa "[, ..] viv r I, 1I1( insolubilidade dos problemas e dificuldades que devem ser enfrentados.
em sintonia com o tempo presente, para que sejamos capazes de passar do Ilc I',t ncia, enfim, para fazer a pessoa ficar pronta e disposta a rejeitar a injus-
passado para o futuro. [...] Isso parece ser factível quando o tempo, o presente, I .t, os excessos e as perversões, tão comuns nas motivações do homem."
é vivido como meio para a individuação da nossa identidade de seres humano Esta é uma condição que deve ser testada e procurada a todo instante,
e para conservar, aprofundar e dilatar a identidade do mundo vital dos grupos 111111 condição pela qual o homem é chamado a assumir uma atitude de espera
grandes e pequenos aos quais pertencemos".' Olhar o futuro, portanto, olhar , 1111 ai e de total disponibilidade, que chegue até o inverossímil, até o contradi-
para aquilo que podemos vir a ser exige de nós uma memória do que éramos e 1'1110, até o irracional. De fato, se não se esperar o inimaginável, ele nunca será
do que somos. Nisso está nossa possibilidade de futuro, ou memoria innovans. , ncontrado. O inesperado é difícil de ser achado, é quase inacessível. Já por
Além disso, exatamente por causa dessa revelação de sentido, a memória pro- 1111 10 da frase de Heráclito, J.-L. Chrétien via descritos o essencial e o fulcro
põe uma nova autenticação da pessoa, no seu fundamento de liberdade-verda- ,I, ssa abertura tão diferente, nada fácil, para esse sentido novo da esperança.'
de, pois ela não permite que se fique distante dessa revelação de sentido por crise de tantas esperas faz que se duvide ainda mais de uma imagem da
falta de espírito crítico. Pelo contrário, nessa memória, a pessoa se modifica e ", erança, cujos contornos são demasiadamente definidos, e que se caracteri-
com ela compromete-se radicalmente, sem temor de enfrentar o risco do fracas- 'd por sinais de uma plenitude límpida e sempre vencedora. O recurso ao ines-
so. A memória da cruz, como manifestação da esperança, provoca uma crise IH rado é necessário. Nele está em jogo o homem e seu relacionamento com a
em todas as estradas da sabedoria: ela não pode ser reduzida apenas à denún- n.mscendência, exatamente porque o inesperado não diz respeito a uma me-
cia dos desmandos da hybris, mas deve evidenciar o sentido do limite e do finito mória humano-acessível, senão a uma não-memória inacessível, na qual o no-
que se torna evidente em qualquer pessoa, na sua condição de responsável rn m reencontra sua casa, volta às suas origens e dispõe-se para o futuro, para
pelo outro. o sentido autêntico da esperança. No ponto em que, mediante a revelação, a
Neste nosso tempo de mudanças, marcado pela rarefação dos chama- simples expectativa torna-se um ato de esperança e de confiança em Deus,
dos à memória e pela fragmentação na visualização do hoje e de cada instante, Iransforma-se em abandono à sua promessa; nesse ponto, o inesperado adqui-
torna-se ainda mais urgente e decisivo reatar vínculos com a experiência dos r um novo sentido e, de modo inimaginável, oferece-se como possibilidade
temas históricos que possuem espaço para a memória, o dinamismo da oncreta. Contudo, é fundamental que se pergunte: que papel e que lugar assu-
esperança e a força da resistência. Memória para a pessoa não flutuar sem me o inimaginável em uma fé que vive da esperança? Não será o inimaginável a
rumo na superfície das coisas, longe do coração da vida, para não esquecer e linguagem própria dessa esperança que nasce de Deus, que absorve o ser
banalizar o trágico da história e para reativar a urgência de experiências de humano por inteiro?
base que possam de fato, e com autenticidade, abalar as normalidades e os

? CI. TRACY, D. La désignation du présent. In: Concilium, 227, 80, 1990.


1 KERN, W. La matrice antropologica dei processo della tradizione ecclesiale. In: NEUFELO, K. H., org. Problemi e prospettive
3 CI. CHR8"EN,J.-L. L'inoubliable et /'inspéré. Paris, 1991.
di teologia dogmatica. Brescia, 1983. p. 83.

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A bem da verdade, é preciso reconhecer que o inesperado é uma cat I li li' no confrontos d r nç daquele que foi crucificado e sepultado.
ria pouco praticada, rara no que tange à esperança, porque esta exige respo AIIlJil que não é mais esperado, que não é mais possível esperar, na condição
tas lógicas, que correspondam às esperas. Se a esperança, de fato, não pod I Ii um dom inesperado e concedido apenas em virtude da graça, reacende a
ser reduzida a um jogo infra-histórico, apenas humano, baseado na lógica d I ',p rança e dá-lhe um novo e definitivo fundamento.
continuidade entre espera e realização, então é preciso convir que somente o
A oração que é ouvida, nesse caso, concretiza-se por intermédio de uma
inesperado, como dom livre e proposta de atendimento por parte de Deus, mas
novidade-surpresa que revela a própria autenticidade e veracidade do atendi-
proposta inacessível e inimaginável pelo homem, pode transformar-se na pers-
111/nto, o que não significa uma ratificação rigorosa e elementar das expectati-
pectiva em função da qual se pode aceder ao modo específico e original com
v.: . Essa novidade não é marginal. Ela é central. O inesperado assume, no
que Deus ouve os pedidos. O cumprimento prometido por Deus projeta-se e
I 111
o, o caráter do imprevisto. A morte não prevê a vida, mas o aniquilamento.
manifesta-se como horizonte no qual se entrevêem os traços do inesperado: é a AI m dessa novidade-surpresa, o inesperado assume o caráter de unicidade:
própria essência da esperança cristã. É possível haver uma esperança autênti- n.ida pode ser imaginado e previsto que seja tão grande. Não há outros mode-
ca sem que se creia que ela vai cumprir-se? O oposto pareceria um jogo não lo' ou referências em relação à cruz e à ressurreição de Cristo. Se o cumprimen-
natural, muito cruel e trágico. E que esperança não se definiria em razão do seu lu da promessa é um acontecimento que se passou com o Único, com Jesus
cumprimento? Ou ainda, que cumprimento poderia ser chamado de verdadeiro Cristo morto e ressuscitado, qualquer representação que nasça do pensamento
senão por meio de uma resposta dada a uma esperança que se concretizou? I das aspirações do homem torna-se total e radicalmente insuficiente. O evento
Além do mais, poderia haver condição melhor para esse cumprimento, para que ti' páscoa é, pois, a resposta a uma esperança que aceita o inadequado dos
seja possível avaliar tantas respostas de atendimento das esperanças, do que a modelos nos quais ela foi constituída, para abrir-se ao inesperado e ao
resposta dada por Deus, definitiva e inesperada, a resposta ao impossível? A unprevislvel. De fato, nunca mais será possível imaginar ou levantar hipóteses
Carta de são Paulo aos Hebreus afirma, nessa perspectiva, que as repetidas »obre outra coisa que possa dar cumprimento total à esperança, senão Deus,
súplicas de Jesus para ser libertado da morte foram ouvidas pelo Pai: "Durante que a atende inteiramente, na sua liberdade e no seu amor. Além disso, a reali-
a sua vida na terra, Cristo fez orações e súplicas a Deus, em alta voz e com / ção (a glória) permite que se descubra, nos acontecimentos aos quais faz
lágrimas, ao Deus que o podia salvar da morte. E Deus o escutou, porque ele foi f ferência (a cruz e a sepultura), o inesperado que neles está contido (a presen-
submisso" (Heb 5, 7). Será que é nessa lógica que se encaixa o atendimento a de Deus), ou seja, aquilo que em verdade se esperava, embora não se co-
divino à esperança de Jesus? nhecesse o modo pelo qual poderia estar presente, nem sequer se tivesse a
Morte e ressurreição, querigma primitivo e narrativa da páscoa são os possibilidade de entrever como seria.
sinais de uma esperança atendida que, em razão de seu caráter paradoxal, não O inesperado é a soleira do mistério. É a presença oculta no coração da
pode ser entendida com facilidade e de imediato. A compreensão requer o acesso sperança. Oculta a ela mesma e a quem corre atrás dela com todas as suas
a um horizonte relacional no qual o humano e o divino percorrem estradas dife- nergias. No exato momento em que ela se realiza, a esperança fica dilacerada,
rentes e complexas. Os acontecimentos parecem estar em nítida contradição urpresa, e vai em busca de uma nova interpretação de si mesma. Ela não pode,
com a idéia; eles parecem caminhar em sentido oposto ao que tinha sido pro- pois, ser reduzida a uma simples aceitação daquilo que virá, daquilo que advém,
metido: a cruz põe em xeque a esperança. A ressurreição aconteceu quando mas ela fica sob tensão por causa do que não vem, por causa do imprevisível e
todas as possibilidades de vida estavam definitivamente esgotadas, quando a do que não pode ser intuído, mas que ela, apesar de tudo, continua esperando
esperança tão esperada, de fato, tinha ficado sem resposta. A ressurreição não com ardor. Não se trata, porém, de uma espera passiva do imprevisto e da sur-
foi o efeito natural do Gólqota. Pelo contrário, ela irrompeu no túmulo, na morte presa. É como se a esperança possuísse uma mola interior e fosse sempre se
declarada e definitiva, como uma realidade totalmente inesperada, repentina e renovando por um impulso próprio. Pelo fato de não poder prever nenhum re-
inimaginável, como uma resposta livre e como a última palavra pronunciada por sultado, pois tudo é inesperado, ela se prepara para um estado de contínua

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A ESPERANÇA ~ ~~ ~INI 1'1~ 1 1 O INIMAGINÁVll

espera e vigilância. O inesperado, cuja experiência se faz no mistério pascal, I ln t nde, na realid d ,1 P r nç indica o dinamismo de um caminho de
faz desabrochar, no próprio local em que a esperança foi destruída e tornada pl nitude que a supera, porque é expressão e dote daquele que a ofereceu.
vã, uma novidade única. Então, ela ergue os olhos e prepara um novo caminho, C uando um bem se torna dom, ele deixa de ser um simples bem e passa a
que constitui a senda por onde toda verdadeira esperança deve passar: a pro- c nstituir um vínculo e a ser sinal de uma presença. Ele dá abertura para a
messa que a suscita, a prova que a caracteriza - por causa da distância inevi- p rticipação de um Outro. Aquele que se faz dom é o verdadeiro coração da
tável entre a promessa e o seu cumprimento - e o memorial que a mantém ao I perança: é o inesperado. É uma presença que desmascara as falsas espe-
longo do caminho. I, nças, ou seja, aquelas cujo fundamento são as próprias expectativas e as
A promessa nasce do inesperado, isto é, ela surge quando nada mais pretensões de atendimento. A provação, que radicaliza o sentido da esperan-
pode ser esperado, quando já desapareceram todas as razões humanas para ç ,deixa bem claro que não pode haver outra espera senão a do inesperado.
se continuar esperando. Mais do que resposta a uma espera, ela é uma iniciati- ( ua confiança está totalmente depositada naquele que, inimaginável e ines-
va totalmente livre e imprevista. Com efeito, não foi Abraão que pediu, mas foi peradamente, reconstitui a própria razão da esperança. Fica clara a passa-
Deus quem ofereceu. Isso acontece mesmo quando se sabe que a oferta cor- qem da memoria sui à memoria Dei. A relação com Deus, realizada e inscrita
responde, em última análise, às mais íntimas e essenciais aspirações do ser nessa memória, sobrepuja os bens esperados e conduz à meta verdadeira e
humano. Fazendo florescer a esperança, a promessa coloca em seu horizonte, i finitiva: a plenitude da comunhão íntima e pessoal.
além de outros bens, uma Palavra, uma Pessoa, que transformam aqueles bens Privar a esperança do inesperado é, portanto, ligar Deus ao mero desejo
esperados em dons prometidos. Por isso, e exatamente porque é dom prometido, ele possuir bens ou à simples satisfação das próprias necessidades. Do contra-
do qual se exclui qualquer pretensão, a esperança remete a incertezas. Tudo Iio, sobretudo no ponto em que a esperança se esconde nos elementos de uma
suspenso em um pode ser, em um pode acontecer, típico da promessa. Tudo é possível desilusão, volta à tona, com toda a energia, seu coração e sua raiz: o
possível, mas pode serque nada aconteça." Nesse pode ser, a esperança fami- Inesperado. É preciso levar sempre em consideração o sujeito da esperança,
liariza-se com a provação. Em um crescendo cada vez mais dramático, ela mis- Isto é, Aquele que cumpre o que promete. Embora a esperança esteja habitual-
tura-se primeiro com o que pode ser, depois com o que não pode ser, com o que mente ligada a bens materiais, a presença daquele que os promete é muito mais
não é mais possível, e, enfim, com o nada, o que faz que a esperança retorne às decisiva do que esses mesmos bens. Com efeito, a esperança nos faz descobrir
suas verdadeiras raízes: o total abandono, sem qualquer pretensão. Uma espe- um Outro, mas que não é um concorrente nem um antagonista. Como poderia
rança desse feitio tem sua figura mais extrema na morte do Filho de Deus, morte ser concorrente ou antagonista quem, sem nenhuma imposição, por simples
na cruz. gratuidade, distribui seus dons? Nem sequer podem ser as mesmas provações
A memória desse evento conforma a esperança - embora desprovida dificuldades que, quase despedaçando a resistência humana e deixando-a
dos sinais nostálgicos de uma era dourada - Àquele que cumprirá a promes- em condições precárias, parecem requerer, como única resposta e único refú-
sa, e que já deu provas de que mantém a sua palavra na páscoa de Cristo. A gio para o ser humano, uma esperança e uma confiança isentas de resistência.
prova da esperança encontra sua sustentação no memorial, traz para a atuali- Para poder esperar, o homem não pode estar exausto. Não se trata aqui da
dade do contexto aquela fidelidade do Deus que ouve os que estão privados procura de uma fonte qualquer de revitalização, mas, sim, de uma escolha, de
dos bens prometidos e que ativa para o sentido de responsabilidade os que já um encontro e de um diálogo, por vezes carregados de sofrimentos e de dores,
possuem esses bens. A esperança assim entendida não se reduz a uma sim- com Aquele que, a seu modo, estende a mão. A esperança requer a ativação de
ples espera do cumprimento prometido. Apontando para os bens aos quais todas as possibilidades humanas, pois exige um comprometimento total e uma
modificação real da própria condição. Entra-se num contexto totalmente novo
em relação ao ambiente usual, a ponto de que o impossível e o imprevisível
4 "Iout est possib/e, mais peut-être, rien ne se réa/isera." NEHER, A. L'Exi/ de te Paro/e. Paris, 1970. p. 256. assumem a forma do cotidiano.

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___________ A ESPERANÇA

Esse horizonte do inesperado, contudo, não pode ser assimilado ou redu-


CAPíTULO"
zido ao misterioso, ao indizível, ou àquilo que não pode ser conhecido. De fato,
mais do que mostrar as barreiras, ele assinala as tensões e as surpresas. Ele
não se caracteriza pela ausência de relações, mas por sua absoluta novidade e
imprevisibilidade. Surpresa e estupor reforçam-se e somam-se ulteriormente. A UMA ESPERANÇA RESPONSÁVEL
esperança no inesperado sobrepuja a diferença entre o já e o ainda não e con-
centra a atenção na pura gratuidade. Ela leva à redescoberta da originalidade
da esperança como relação, como reciprocidade que se entrelaça com o dom
da alteridade. Ela faz compreender, enfim, que o desespero e a dúvida, na rea-
lidade, não passam de sinais de separação,
o eventual atendimento das necessidades
de uma distância que nem sequer
conseguiria compensar. O único e
A esperança do inesperado, que nasce do coração do mistério pascal, é um
espaço novo de relação e de encontro entre a história e a transcendência,
verdadeiro atendimento de nossos pedidos, a conquista daquilo que a esperan- entre o divino e o humano. É uma realidade que traduz o inefável na história do
ça espera, é o amor, a partilha da vida e a íntima participação no interesse alheio." mundo, assinalando trajetos de inesperadas e sempre novas possibilidades de
Os bens esperados não podem ser senão o fruto dessa intimidade unitiva. Es- futuro, e deixa emergir, na linha de seu horizonte, uma evidente e persistente ten-
perar o inesperado, pedagogia de uma abertura e de uma relação irrenunciá- são: a busca de uma incidência efetiva da esperança na história e para a história.
veis, é fruto de uma disponibilidade que aprende a olhar além das esperanças Ela se volta para uma transcendência radical, fruto de uma revelação pessoal de
destruídas e das desilusões evidentes que, tantas e tantas vezes, provocaram salvação que, oriunda do eterno, toma parte no tempo. Nesse movimento pendular,
na história fugas tão fáceis quanto inúteis. É uma condição que exige opções parece não ser nada fácil solucionar eventuais descontinuidades entre essas duas
que põem em jogo a liberdade e a verdade da pessoa e faz sentir como própria, vertentes, mas, de qualquer forma, existe a possibilidade de identificar um primei-
até o extremo, a responsabilidade de que se tem com o próximo e com o mundo. ro e importante âmbito, no qual os dois extremos se cruzam e se harmonizam.

A esperança, por seu próprio estatuto, determina e assinala uma atitude


existencial toda particular e uma conotação específica das escolhas que serão
operadas. O homem é chamado, necessariamente, a decidir, a tomar posição.
Ele deve colocar-se num horizonte cuja meta última pode ser reconhecida como
um bem absoluto, como uma plenitude e uma satisfação geral. É exatamente
esse horizonte, como uma atitude orientada segundo a moral, que caracteriza a
esperança cristã e dá consistência definitiva, bem como saída para as instân-
cias descritas nas páginas precedentes, quando se tratou do panorama cultural
de nosso tempo. O desejo de realização, de harmonia, de quietude, enfim, a
exigência de felicidade, que é conatural a toda esperança, deve encontrar sua
real atuação não nos caminhos que levam à fuga das condições que parecem
negar essa felicidade, nem na tentativa de criar para si um mundo e uma vida
paralela àquela que é difícil de ser aceita e tolerada, mas, sim, na aceitação
plena e responsável da realidade. Trata-se, pois, de uma realidade que é preci-
so e obrigatório assumir. A esperança não pode ser, de modo algum, uma eva-
5 CI. ROBERT,
S. Dieu inaltendu el inspéré: objecl de I'ésperance chrélienne. In: Lumiére et Vie, 219, 1994. pp. 63-75.
são, um escape, uma fuga para outro lugar. Ao contrário, a esperança deve ser

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A SP RANÇA UMA 1111'1RANÇA R[SPONSÁVH
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sinônimo de penetração, de imersão plena, decidida e paciente, na própria veia Essa inserção determinante em uma nova perspectiva não pode ser fruto
da existência. Ela não pode identificar-se e diluir-se em um desejo de normaliza- da mera vontade humana, tantas vezes frustrada pela própria realidade, mas
ção da existência, considerando cada esforço para organizar uma vida na qual requer uma disponibilidade efetiva em relação a tudo aquilo que é oferecido
se procurasse excluir qualquer realidade que pudesse modificar uma estrutura como dom e a tudo quanto o amor eticamente espera. Estas são condições que,
já codificada e tida por todos como desejável. Essa é uma tentativa que, com antes mesmo de darem abertura para a inesperada experiência de uma revela-
muita variedade e sob diversas formas, aparece a todo instante, com resultados ção, introduzem a esperança no coração da história por meio de uma ação
desastrosos. Cada vez mais encontra-se o caso, tantas vezes já citado, das solidária, mediante o chamado para a ulterioridade e a advertência para uma
madeleines do livro Em busca do tempo perdido, 1
no qual o mundo passa de responsabilidade real pelo bem que se deseja alcançar.
repente por uma grande mudança, e a normalidade é comprometida por algo A tensão moral que a esperança provoca na sua reciprocidade relacional
espantosamente diferente. Uma esperança assim, buscando a normalização da leva a um terreno bem diferente ao do terreno das esperas simples e do mero
vida, é frustrante, pois, inesperadamente, e apesar de todos os esforços e pre- atendimento a um pedido: entra-se agora no terreno do transcendental, do en-
tensões, pode chegar o momento de se enfrentar condições que não são mais contro entre história e eternidade, do espaço e do sentido de uma relação encar-
normais: a desorientação e as situações imprevistas, circunstâncias que nas- nada entre Deus e o homem. Assina-se um pacto, faz-se uma aliança, dá-se
cem da experiência da finitude, do mal, da dor e da morte. uma palavra de honra que deve ser respeitada e reciprocamente mantida. A
A esperança cristã, pelo contrário, faz um convite para se colocar nos esperança, por essa forma, articula-se como código relacional (cf. GS, 19) que
ombros o peso da vida, em todas as suas manifestações, até nos seus aspectos brota desse particular encontro: "O momento inicial não é a nulidade do homem
mais dolorosos e problemáticos. Ela ensina a caminhar rumo à mais profunda diante do ser e do todo divino. O momento inicial não é a consciência infeliz,
raiz da vida, sobretudo quando há condições difíceis e intoleráveis que poderiam mas o Pecto? pelo qual "o mandamento é uma modalidade de presença, isto é,
levar à busca de outros caminhos ou de lugares e condições mais gratificantes. uma expressão da vontade santa".' Instaura-se assim um modo particular de
Nada na vida, mesmo na mais lúgubre dor, é estranho à esperança. Ela permite presença transcendental, expressão de uma vontade salvífica que, exatamente
que se assuma, na sua plenitude, toda a bagagem da existência, até que se por ser fruto de uma outra liberdade e de uma outra vontade, nem sempre cor-
consiga ratificar a sensação de que nada está à margem, tudo pertence ao responde à maneira como o homem a espera. A esperança, por isso mesmo,
homem, até - e sobretudo - aquelas dimensões das quais, pelo mero uso da apela para uma fidelidade disponível, para o respeito obediente daquela vonta-
razão, poder-se-á fugir. A esperança ensina a avaliar com espírito crítico as con- de salvífica que tem um próprio modo de se manifestar, às vezes desconcertante
dições do presente em uma perspectiva de conclusão e de cumprimento, de e mesmo paradoxal, mas que não deixa de evidenciar, apesar de todas as apa-
modo inesperado e inimaginável. Ela insere o homem em uma perspectiva tal rentes contradições e situações críticas, a intenção fiel de cumprir a promessa.
que o impede de ficar prisioneiro do instante passageiro, quer seja ele um ins- Nesse sentido, a esperança percorre a estrada da obediência. Ela ouve
tante fácil, quer seja difícil, ao mesmo tempo que seu interesse particular é cen- um pedido e torna-se um ato de confiança que entrevê o futuro onde ele parece
tralizado no panorama de uma globalidade que lhe abre novas possibilidades estar sendo negado pela evidência dos fatos. Ela se concretiza como abertura
de avaliação e lhe permite reencontrar um caminho certo e efetivo em meio às para um amanhã que se mostra opaco, mas que, pelo contrário, se oferece ao
desordens da vida. "Se a esperança rompe com a espera passiva do fluir do homem em toda a sua grandeza e extensão: ela se torna memória de futuro. Ela
tempo, isso acontece apenas porque ela cria uma ruptura, ela destrói os limites recompõe a articulação do tempo no seu real significado e no seu sentido, en-
e insere o indivíduo num horizonte aberto." caixando cada momento em seu próprio horizonte, inserindo o fato dentro do

3 RICOEUR,
P. Finitude e colpa. Bologna, 1970. p. 299.
, CI. PROUST,
M. Em busca do tempo perdido. Rio de Janeiro, Ediouro, 2002.
• Id., ibid., p. 301.
2 BACCARINI,
E. 11tempo e illuogo della speranza. In: La Nottola, 4, 64, 1982.

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A ESPlRANÇA =~ ~=~ liMA I "1 AANÇA RI PONSÁV l

1
acontecimento, escrevendo a história dentro da eternidade. Nesse esforço qu Relação (pacto), r sponsabilidade (obediência) e testemunho (decisão)
é todo feito de confiança, de obediência a um desejo eticamente justificável, a I I, 10 podem, contudo, por sua própria natureza, fechar-se em si mesmos. É natu-
esperança não pode ser descrita como a superação otimista das situações '.lI que eles se predisponham para uma tensão ainda mais significativa: a tensão
limite e extremas de impotência humana. Ela remete para um futuro que, por rio diálogo. Instaura-se, além do pacto e do preceito, uma nova dimensão de
meio dos esforços feitos no dia-a-dia, recupera as energias de velhas e 'I I, cionamento e de comunhão que desmascara as observâncias anônimas e
destroçadas esperanças. Ela se transforma em uma linfa vital para o presente e, I', obediências formais-inevitáveis. Essa dimensão exige um comprometimento
recebendo uma nova vitalidade da confiança posta num futuro que, pela graça, I li soa I que ultrapassa a simples observância para se tornar reconhecimento e
é prometido na sua plenitude, reencontra forças para não se resignar diante do 'I peito, pois ela atua não só na vontade, mas também na esfera íntima e pessoal
mal, assumindo por inteiro as responsabilidades que o presente impõe. Ela rea- rio outro. Essa condição de diálogo interpessoal abre condutos que ultrapas-
ta, nesse ato de obediência disponível e solidária, o elo entre o presente - que ',1m e extravasam a própria dimensão ética. Portanto, o diálogo gerado numa
aspira por um futuro de plenitude, sentido como algo distante ou pelo menos que Ir I ção de testemunho, como primeiro efeito, põe a nu uma falsa visão comuni-
não pode ser obtido de imediato - e um futuro que, embora carregado de realiza- l'lria e socializante muito difundida no meio pós-moderno, na qual se acentua a
ções, não resolve as tensões e os problemas do hoje. Colocando sobre os ombros pluralização do homem. Ele torna pobre e vazia aquela passagem do eu para o
o peso do presente, em um ato de responsabilidade que foi amadurecido na me- I1ÓS, tão gasta, tão barata e desprovida de implicações. Ou seja, uma ratificação
mória de um encontro, ela desenha uma ontologia nova da temporalidade e da II ita sem nenhum esforço, para a qual não é preciso pagar nenhum preço.
história que, ao ser centralizada na dimensão do cumprimento definitivo e final, Por outro lado, o diálogo abre para uma semântica do pertencer," que
mostra todo o seu valor e todo o seu sentido. "Dificilmente poderá existir um ato de I stabelece um tipo especial de compromisso, desperta a reciprocidade das
amor ao futuro que nasça de uma repulsa total do presente e do passado." De r.onsciências e enriquece com uma nova força, o amor. Ele arranca as últimas
fato, para esperar o futuro, é fundamental ter sempre um pouco de amor que, com r nergias do homem para que ele se supere com um esforço extremo, pois só
responsabilidade e cuidado, antecipa e insere o futuro nas dobras do presente. I sim será possível haver uma recíproca, autêntica e real promoção. De fato, se
Perfila-se assim uma condição que, decerto, é muito importante no pro- I urgente a necessidade de se sair da alienação produzida pela multidão solitá-
cesso dentro do qual a esperança ativa eticamente o presente. Em verdade, lia, característica da nossa época, é ainda mais verdadeiro que deve ser des-
quando o hoje é vivido com responsabilidade, na ótica de um futuro que exclui a rnascarado o engano sutil do refúgio dos sonhos, livre de responsabilidades,
banalidade de cumprimentos pré-constituídos, e é aceito na sua surpreendente que é o refúgio do nós da pluralização do homem. Heidegger já descreveu essa
IlJga hipotética na inautenticidade do "sim-público", e Ortega y Gasset já havia
alteridade e novidade, ele se torna um lugar de particular relevo e significado:
denunciado, no impessoal "faça-se", uma vida falsamente comunitária e social,
faz-se kairós e lugar de testemunho. Passa a "aludir a um valor ou a um significa-
mdicatlva de uma fictícia co-responsabilidade para com o próximo. Esse tipo de
do que ainda não se realizou na concretitude do fenômeno, mas que já constitui
ocialização é massificante, nele não há diálogo. É uma comunhão entre desco-
a novidade simbólica do ato moral, a sua capacidade de comunicação, o seu
nhecidos, um eu-plural sem qualificação e prisioneiro da dúvida." Uma conside-
objetivo. A ação de testemunhar é uma antecipação do futuro, é o lugar da sua
r ção bem diferente sobre a pluralização do eu, da dimensão do diálogo e da
expressão"." Nesse ponto, já se pode entrever o ato significativo de testemunho
comunhão, encontra-se na expressão de Marcel: "Eu espero em você, para nós",?
dado por Jesus crucificado, como experiência e como kairós no qual o futuro da
que trata de um esforço pessoal que abraça a humanidade inteira e preocupa-
salvação, prometido por Deus, encontrou a sua particular, inimaginável e, por
e com qualquer um que lhe esteja próximo.
tantos aspectos, incompreensível expressão.

CI. BOUTANG,P. Ontologie du secreto Paris, 1973. p. 321.


5 ALlCI, Verso un'etica ..., cit., p. 56. , Ct. BEAGER,Una gloria remota, cit., 1994.
6 RIGOBELLO,A. 11futuro della libertà. Roma, 1978. p. 60. I MARCEL,Homo ..., cit., p. 72.

68 69
____________ A lSPlRANÇA

Nessa responsabilidade, que brota do ser que mantém uma relação de ri da fé, e a virtud n ontrt n p' coa de Cristo. É um terreno de encontro que
diálogo interpessoal, radicaliza-se aquela forma de solidariedade que nasce da propõe novas atitudes berturas, que exige uma disponibilidade radical e uma
cruz de Cristo, que "espera antes de tudo pelos mortos sem esperança e depois confiança total para lançar âncoras em um horizonte que configura, de forma
por si mesma".'? Entretanto, exatamente porque ela se inscreve na ótica da totalmente nova, o sentido e as condições da própria ética. A esperança, etica-
responsabilidade, que é o primeiro lugar do encontro e do confronto entre a mente qualificada, é uma voz que proclama o desejo do definitivo como parte
esperança humana e a esperança transcendental, sua natureza não se esgota e constitutiva sua e, para não ficar prisioneira de suas próprias tensões, é chama-
nem sequer pode ser totalmente assimilada pela natureza. Ela não cede à tenta- d a ir além de sua virtude natural, além da dimensão ética, para encontrar-se
ção de privatizar a esperança num qualquer desejo intimista e inefável, aceitan- numa situação extraordinária que nasce da realidade da fé e de uma confiança
do, pelo contrário, o risco de se comprometer como juiz, evidenciando muitas e toda feita de obediência.
inúteis pretensões inconclusas. "Também o homem contemporâneo, mesmo Essa esperança não é apenas uma possibilidade ou uma hipótese, mas
quando não aceita passar sua existência dentro do círculo das crises de nosso uma experiência concreta, que a história repete nos seus episódios mais signifi-
tempo, mesmo não querendo considerar de frente as saídas religiosas, é cha- ativos: ela é o evento de Jesus de Nazaré, o Cristo. Esse evento dá à esperan-
mado a assumir a responsabilidade de libertar a esperança de todas as formas ça uma nova perspectiva, na qual se conjugam, não sem conflitos, tempo e
de segregação e admitir seus germes proféticos no círculo vivo da in- eternidade, presente e futuro, desejos do homem e esperanças de Deus. Tudo
tersubjetividade."" A esperança torna-se condição, experiência viva de teste- i so com uma dinâmica que, para a história e para o homem, oferece um trajeto
munho entre pessoas dispostas a transformar suas existências em um percurso uma saída. Essa é a perspectiva típica da esperança cristã, que se revela e se
- sem dúvida difícil e arriscado - de escuta-atenção-amor, de proximidade e define na vida e na páscoa de Cristo. É, portanto, a pessoa, a obra e a vida de
de comunhão. O fim desse túnel, no interior do qual não faltam curvas e coli- Cristo que constituem o recurso decisivo pelo qual se podem identificar o senti-
sões, traduz o amor em misericórdia e a justiça em reconciliação e em perdão. É do e a natureza dessa possibilidade específica sugerida pela esperança cristã.
o horizonte no qual a transcendência fundamenta a experiência ética da espe-
rança. É o terreno no qual se abrem novas espirais e onde o próprio éthos é
chamado a dar um passo ulterior que o leva ao seu ponto extremo, mesmo que
lhe custe encontrar Deus. Nesse andar rumo ao limite, vê-se desmascarada até
a pretensão ética contemporânea na sua matriz iluminlstica."

É possível evitar o risco decorrente do surgimento de esperanças ambí-


guas, que propugnam resultados fáceis, fruíveis, não tanto por meio de um es-
forço feito de medidas éticas e sapienciais, mas mediante um valor ético conju-
gado com a condição comunitária e encarnada da pessoa humana. A dimensão
ética atinge seu limite quando chamada a ler a si mesma no espaço da partilha
e da comunhão, quando a virtude encontra a consistência do comprometimen-
to, a paixão pelo dividir, a soleira difícil da reconciliação e do perdão. Estar junto
com o outro sempre custa algo. Nesse trajeto, o empenho ético encontra a histó-

10 BALTHASAR,
H. U. von. Gloria, VII: Nuovo Patto. Milano, 1977. p. 455.
11 ALlCI, Verso un'etica ..., cit., p. 58.

12 Cf. MAcINTYRE,A. Dopo Ia virtu; saggio di teoria morale. Milano; 1988.

70 71
CAPíTULO 11I

DA ESPERANÇA DE À ESPERANÇA EM

o s sinais que, de modo geral, acompanham


presentes na história estão substancialmente
qurança e auto-suficiência. São aspectos
os diversos tipos de esperança
ligados a exigências de se-
que, pelo menos do ponto de vista
lormal, marcam uma linha de separação em relação àquilo que a esperança
( ristã de fato propõe. No entanto, a busca de garantias e de seguranças não é
ínlallvel nem sequer no contexto das ciências humanas, que perderam o funda-
111 nto monolítico e vivem numa dimensão que, sem dúvida alguma, é fragmen-
I. ria. Criou-se uma condição setorial e parcelada do saber científico pela qual é
possível avaliar apenas segmentos muito reduzidos da realidade. O sentido de
limitação, de não-infinito, que os homens procuram ludibriar por meio da ilusão
ri terem nas mãos um poder ilimitado, não somente é estranho a essas ciên-
(I s, como também as define.' Desse modo, as esperanças que promanam de
tantas delas se apresentam, em seus aspectos existenciais, com esse caráter
próprio: elas propõem metas e objetivos particulares e pressupõem o finito do
I> m esperado. O horizonte de sentido dessa esperança pode ser representa-
(10, na linguagem cotidiana, com a fórmula espero que. Uma expressão que
il mologa uma esperança concentrada em algo que se espera com confiança,
mas voltada para metas e resultados particulares e imediatos.

A esperança cristã é alheia a esse horizonte. Embora ela não o exclua de


lodo, ela propõe uma espera de plenitude e de salvação definitiva. Ela assume
cl aspirações do cotidiano e as insere numa perspectiva que não só procura
L ntralizar o sentido principal da espera, como também indica a modalidade de
li alização. Uma modalidade que se desenvolve com toda a liberdade e, deitan-
do raízes na ótica do Absoluto, permite que se passe da esperança de, cujo

CI. NEPI. P.Finitezza e speranza. In: SANTINELLO. G., org. Progetto scientifico e speranza religiosa. Padova, 1985. pp. 197-
205.

73
A SPlRANÇA DA ESPERANÇA DE À ESPERANÇA EM

centro são objetos e âmbitos particulares, para a esperança em, que é a mani- J a presença encarnada de Deus, a única esperança do homem e do mundo.
festação de um contexto novo, pessoal e relacional. As duas características não le é Aquele que a história espera (cf. GS, 45), e não aquela coisa que nos falta.
se excluem, como se poderia supor, mas implicam-se, mesclam-se. A esperan- ortanto, a esperança, recuperada na sua dimensão pessoal e relacional, assu-
ça em jamais poderia realizar-se sem sua dimensão humana e histórica, sem a me uma perspectiva essencialmente cristolóqica."
verificação de seus efeitos concretos. Portanto, a esperança em, mais do que
Dando um passo para trás, o Velho Testamento descreve o fundamento
estabelecer distâncias em relação às esperas humanas, sugere-Ihes um novo e
específico da esperança na sua referência a Deus, lendo-a como se fosse um
insuspeito caminho. Por sua vez, a esperança de, sem qualquer referência à
de seus títulos." Deus, ele mesmo, a sua pessoa, é a verdadeira esperança,
esperança em, ficará circunscrita à pontualidade histórica das coisas deseja-
presente e operante na história. Só é ouvido e salvo aquele que, abrindo-se para
das, transformando-se em prisioneira do mecanismo desejo-cumprimento que a
a disponível presença de Deus, pode dizer: "Tu és o meu refúgio" (SI 142,6). A
gera. Como se vê, nessa estrutural complementaridade, não se quer assinalar
relação pessoal toma cores de significado soteriológico. Deus é esperança por-
uma zona de privilégio, mas efetivar a escolha de uma antecipação oportuna da
que é fonte de salvação, de vida, a fonte de todo bem. Ao homem que espera
esperança em, que faz uma nova leitura e qualifica a esperança de. De fato, a
(esperança subjetiva) corresponde o Deus que salva (esperança objetiva). Como
esperança que jorra do mistério pascal (a esperança em) não elimina as esperas
salvador, Deus elimina o mal e a morte (aspecto negativo) e comunica o bem e a
do homem (a esperança de). Pelo contrário, até mesmo as solicita e as radicaliza.
vida (aspecto positivo). A esperança é um título relacional e deixa transparecer
I

Quando se antecipa a esperança em, em relação à esperança de, deter- o relacionamento de Deus com o homem nas suas situações de necessidade e
mina-se não só uma escolha preferencial da pessoa no tocante aos bens espe- de desejo. Por um lado, ela tem as características da espera, próxima ou remo-
rados, mas também se torna real o abandono da visão individualística e subjeti- ta. Por outro, as características da certeza, que nasce unicamente da fidelidade
va, que se caracteriza e é determinada pelo valor egocêntrico ligado às coisas de Deus às suas promessas. Na prática, é o título divino que exprime a sua
esperadas. Passamos então a buscar uma realidade feita de diálogo e de relacio- relação salvífica com o homem.
namento, intersubjetiva e criativa, que focaliza a atenção em qualquer pessoa
Com respeito a essa avaliação, o Novo Testamento revela que a dimensão
que se encontra e, sucessivamente, nos efeitos que esse encontro possa deter-
salvífica se manifesta, em termos de plenitude, apenas em Jesus Cristo, que
minar. O efeito dessa visão é a descentralização da esperança, que escapa do
morreu e ressuscitou.' Esperar em Deus significa, portanto, esperar em Jesus
eu e ruma para a aceitação de tudo quanto o próximo é capaz de dar, com toda
Cristo. O Deus-esperança revela-se para nós no Cristo-esperança. Em apoio a
a liberdade que ele tem. Constitui-se um novo terreno de encontro do qual nas-
essa afirmação está a fé em Jesus Cristo, o Deus encarnado, o Senhor e Salva-
ce uma situação imprevisível, que marca o deslocamento do estado de pura
dor do mundo. A tradição veterotestamentária da esperança, toda voltada para
espera, mais ou menos serena, ao estado da confiança, ao abandono cheio de
a vinda do Messias (cf. Gn 49,10), expectatio gentium, codifica-se explicitamen-
fé e ao reencontro recíproco. Ora, visto que toda esperança humana contém, no
te como esperança (cf. Is 11,10; 42.4) em Cristo, "a nossa esperança" (1Tm 1,1;
mais profundo de suas intenções, a promessa de algo do qual não há garantias
cf. CI1,27). São referências que deixam entrever seu caráter trinitário, soteriológico
imediatas, visto que ela se constrói a partir de uma tensão fundamental entre o
e escatológico, bem como apresentam a esperança como realidade que, abar-
desejo gerado por aquilo que falta e a promessa de que esse desejo será ouvi-
cando toda a história, diz: "Eis que venho em breve" (Ap 22,12). A vinda contí-
do, esse deslocamento das coisas esperadas (éschata) para Alguém (éschatos)
em quem esperar modifica, na sua raiz, o sentido e o coração da própria espera
(éschaton). É a transposição de uma condição objetivada nas coisas esperadas 2 CI. o estudo histórico e sistemático do termo "pessoa" em chave teológica leito por A. MILANO,Persona in teologia
(Roma, 1996, pp. 401-411, sobretudo).
para uma outra em que reina a novidade relacional de um diálogo todo pessoal,
3 CI. Jr 17,7; SI 13,6; 20,10; 40, 5; 69, 4; 70, 5; 91,9; 142,6; Eclo 34, 14; Jt 9,11; mas também no judaísmo: Sal. di Salomoni
feito de reciprocidades. Essa condição se adquire plenamente com a fé na pessoa 5,11; 15,1; 17,34; Odi di Salomone 5, 1 e 29,1; Sifra Ahoré 9, 13: "Eu sou o Senhor, eu sou a tua esperança".

e na vida de Jesus Cristo. Todo o Novo Testamento fala dele, que é a revelação 4 RAvASI,G. L'attesa di Abramo e Ia speranza dei popolo ebraico, il Cristo sperato. In: Communio, 148, 13-23, 1996.

74 75
___________ A SPLRANÇA DA ESPERANÇA DE À ESPERANÇA EM

nua de Cristo, até o momento da parusia, não é outra coisa senão o crescer da 11 nhum de vós aconteça a desgraça de se afastar"." A esperança, como virtu-
esperança como participação em seu mistério pascal. O pensamento de Paulo d do cristão (esperança subjetiva), implica necessariamente o abandono a Cristo
aprofunda a tal ponto a identificação entre a esperança e a pessoa de Cristo, que om toda a confiança (esperança objetiva), sem que, com isso, excluamos todo
ele chega a sustentar que quem não tem Cristo não tem esperança (cf. Ef 1,12; o peso e o fardo das limitações e das contradições humanas. A comunhão ínti-
2,12; 4,4). ma gerada pela esperança amadurece ao longo de um real comprometimento,
Essa transposição cristológica da esperança consolidar-se-á ulteriormen- I essoal e responsável, na ação de Cristo, o qual é reconhecido como exemplo
te na teologia dos Padres da IgrejaS Entre os títulos dados a Cristo, brilha de de esperança. "Demos, pois, nossa adesão ilimitada à esperança [...] que é
modo particular o de "esperança". Sobretudo nos primeiros séculos, como um risto Jesus, Ele que carregou nossos pecados com o próprio corpo pregado
testemunho do frescor e do entusiasmo das origens, o Mestre era considerado 110 lenho, Ele que [...] suportou tudo por nós, para que nós vivêssemos nele.
como a esperança divina encarnada e operante no mundo, sempre pronta para ejamos, pois, imitadores da sua paciência e, quando tivermos de sofrer por
intervir a favor do homem. Até mesmo alguns textos apócrifos, ligados ao con- u nome, que nós o glorifiquemos. Esse é o exemplo que ele mesmo nos deu,
texto do martírio, propõem como prioritária a configuração da esperança em, I no qual cremos."10 Somente Jesus Cristo, o Mediador, é a salvação que pro-
em uma referência a Jesus. "Meu Senhor e meu Deus (Jo 20,28), tu que cami- v m de Deus, e somente nele se pode esperar herdar os bens prometidos. Éa
nhas com os teus servos, que és guia e mestre de quem crê em ti, que és refúgio ( sperança que brota do Cristo crucificado, que é dada na sua plenitude a todos
e paz dos aflitos, que és esperança dos pobres e sustentação dos fracos, [ ...] tu ( s homens pelo Pai, por intermédio da cruz e da humanidade imolada do Filho.
que dás a vida ao mundo e que salvas todas as criaturas, tu que conheces o Na teologia desses Padres, a esperança está, pois, ligada a Jesus crucifica-
futuro e, usando-nos como instrumento, realizas este futuro." E ainda mais: "[ ...]Tu dO,11e a cruz é o terreno em que ela fincou raízes na história. "A cruz é a espe-
és o aliado dos fracos, és a esperança e a confiança dos humildes, és o refúgio rança dos cristãos, a salvadora dos desesperados, o porto dos náufragos, o
rnédico dos enfermos [...]."12
e o asilo dos desesperados, [...] asilo e porto daqueles que viajam nas regiões
tenebrosas, és o médico que se deixou crucificar gratuitamente pelos homens, Muitos testemunhos dados por mártires, invocando a Cristo como espe-
por amor de muitos entre eles [ ... )".7 No Cristo-esperança, sugerido pelos r. nça dos desesperados, reforçam a importância de um texto do Antigo Testa-
apócrifos, reconhece-se, de um lado, a condição de Deus-filho, que salva pela mento tirado do livro de Judite (cf. Jt 9, 11). Os mártires, na comunhão e na
encarnação e pelo mistério pascal, e, de outro, a de Deus-homem, que continua P' rticipação com Cristo, encontraram o segredo e a força do próprio martírio. O
nos salvando porque vive no meio de nós e dentro de nós. .( ntido da comunhão-participação, como fundamento da esperança, conduz à
A patrística grega, apesar de muitas variantes, propõe como ponto cen- comunhão-imitação, como sugere Gregório de Nissa. O Deus-homem, vivendo
tral essa visão personalística da esperança, como esperança em Cristo Sal- ( m nós pela fé, vai-nos transformando pouco a pouco, não tanto por meio de
vador. Inácio de Antioquia recorda que se deve ter "[ ...] uma única esperança lima ação exterior e mecânica, mas em razão e na medida da nossa decisão de
(Ef 4,4) na caridade, na alegria irrepreensível: pois assim é Jesus Cristo, a me- nnitá-Io." A esperança só é possível, pois, por meio da comunhão com Deus:
lhor de todas as coisas"." Nessa esperança, sente-se a grande importância his- 'Nós temos a Deus como salvador e a Cristo como esperança. Nós sofremos
tórica da encarnação, da morte e da ressurreição de Jesus Cristo, "do qual, a muito, mas temos grandes esperanças [...], e nenhum perigo, por pior que seja,

5 Cf. CiGNELLI.L. La trasposizione cristologica della "speranza" nell'esegesi patristica. In: GIORDANIB., org. La speranza, 2. Id., ibid., 11.
Brescia. 1984. pp. 133-167. POLlCARPODE ESMIRNA.Fi/adelfesi 11,2.
6 Atti di Tommaso 10. In: ERBETTA.M. (trad. italiana.) GIi apocrifi dei N. T lorino, 1969. 11,p. 316. Cf PSEUDO-BARNAB~.Ep. 8, 5 - 11. 8 - 12. 2. que relaciona a esperança com a cruz.
7 Atti di Tommaso 156. cf. ibid .• p. 370. I ANDREADI CRETA.Ora tio X.
8 INAclO DEANrIOOUIA. Magnesii 7. 1. Cf GREGóRIOOENISSA. De pert. Christiani forma.

76 77
____________ A lSPlRANÇA

poderá intimidar-nos. Nem sequer a esperança chega a nós confusa, pois nos "IOU quilo que tu s bl t f I b r aquilo que tu não sabias. Por isso ele se
sa esperança é Cristo" .14 tornou a nossa esperança nas tribulações e nas tentações. [...] Ele mesmo se
tornou nossa esperança, e agora nós já estamos no caminho rumo à esperan-
Na vertente latina, os Padres da Igreja também tornam evidente essa es
c.,;, ."17 Essa referência diz respeito, de forma explícita, não só à linha da comu-
perança em Cristo, mas ressaltam o valor do mistério pascal. Jesus, o Deus
nhão-participação, mas também àquela da comunhão-seguimento. A esperan-
homem, com a sua paixão, livrou-nos do mal (aspecto negativo) e, com a ressur-
'1 desfecha no seguimento de Cristo. Ele exige confiança, obediência, abandono
reição, deu-nos uma vida nova (aspecto positivo). No que se refere ao mistério
total, porque a "paixão [ ...] não ajuda senão aqueles que seguem seus passos"."
pascal, eles valorizam a importância da cooperação humana na ação salvífica
de Deus. Comunhão de vida e conformação a Cristo definem, no sinal da comu- A transposição cristológica da esperança é, pois, uma realidade viva e
nhão e da participação, o caráter pessoal da esperança e o aspecto de luta e I conhecida no tecido eclesial dos primeiros séculos." Para o cristão, é mais do
esforço do homem para conseguir realizar sua esperança. Tertuliano recorda que evidente que o fundamento da esperança é, na sua essência, transcenden-
que o Senhor fez-se nossa esperança nas humilhações da carne, a qual ele quis I . É verdade que ela existe na terra, mas provém do céu, pois Jesus Cristo é
assumir, e no mistério pascal: "Ele é a salvação do corpo e a vida perene dos I eus. Esse fundamento é autêntico e veraz, como uma realidade viva e cheia de
membros. Ele fez-se carne, ele morreu por nós, ele foi o primeiro a ressuscitar, Implicações, na humanidade de Cristo. Além do mais, essa esperança recorda
ele é a única esperança de salvação. [ ...] Ele deve ser esperado como nossa que a salvação, que nele ~e realiza, ainda está na condição de espera, em vista
ajuda, como a nossa única esperança de vida" .15Nesse mesmo sentido, Marcião de um cumprimento. Nela se instaura um tipo único de relacionamento, que
adverte com dureza: "Poupe a única esperança do mundo inteiro!"16 No entan- vincula, nos laços de uma estreita comunhão, o homem que invoca (necessida-
to, foi na teologia de Agostinho que esse pensamento chegou a seu ápice. Com de-desejo), a Deus que, em Cristo, responde (remédio-atendimento). Ele é, para
a encarnação de Cristo, a humanidade conseguiu passar, em definitivo, do de- o homem que espera, uma salvação constantemente aguardada, que está che-
sespero para a esperança. Na encarnação, ficou claríssima a via escolhida por ando a cada instante. À essa espera contínua da humanidade implorante cor-
Deus para se tornar nossa esperança. O ponto mais significativo das considera- responde a sua vinda contínua. E vindo continuamente, ela leva para a frente a
ções sobre o tema é o comentário de Agostinho ao Salmo 60, no qual, com salvação escatológica, até o momento conclusivo da parusia. A esperança cris-
clareza, identifica a verdadeira esperança com a pessoa de Jesus Cristo, Filho tã é, pois, Cristo que vem continuamente para libertar o homem e o mundo do
de Deus. A sua ação, paixão, morte e ressurreição dão fundamento à sua moti- desespero, do abismo niilista e da morte. Ela renova e aperfeiçoa o homem na
vação como esperança do homem e salvação do mundo. "Como foi que ele se continuidade e na descontinuidade da história, a ponto de conformá-Io, median-
tornou a nossa esperança? Vocês já bem ouviram. Isso aconteceu porque ele foi te a morte e a ressurreição, à plenitude de Cristo e à sua glória. Este é um pro-
tentado, porque padeceu, porque ressuscitou. Por isso ele se tornou a nossa cesso que se tornou definitivo com a encarnação do Filho, ato de radical sujei-
esperança. [ ...] Nele tu podes ver o teu sofrimento e a tua recompensa: o ção e obediência, para se tornar a verdadeira e a última esperança do homem e
teu sofrimento na paixão e a tua recompensa na ressurreição. [...] Com os seus do cosmo. Esse evento assume uma conotação teândrica, e a salvação torna-
sofrimentos, com as suas tentações, com as suas dores, com a sua morte, Cristo se obra de Deus. Porém, só se tornará efetiva por meio da ação do homem.
faz com que tu possas ver a vida onde tu estás. Com a ressurreição ele faz com Teandrismo e sinergia da ação são sinais fundamentais e específicos do sentido
que tu vejas a vida onde tu vais estar. Nós sabemos que o homem nasce e cristão da esperança em. Em Cristo, Deus-homem, teve início a transfiguração
morre, mas não sabíamos que o homem ressuscita e vive eternamente. Ele to-

17 AGOSTINHO. Commento ai Salmi 60. 4. n. 44.


14 JOÃO CRISÓSTOMO. In 1Tim. hom. 1, 1. 18 Id. Ser. 304, 2. 2.
15 TERTUlIANO. Carm. adv. Marc. 3, 237-239.
19 Cf. uma visão aprofundada do tema na "Introdução", com textos selecionados, do livro de G. Visonà (orç.), La speranza
16 Id., De carne Christi 5,3. nei Padri. Milano, 1993. pp. 9-73.

78 79
A SPERANÇA

definitiva do mundo, e a esperança cristã, cuja raiz é transcendente, não pode CAPíTULO IV
operar senão por intermédio do comprometimento pessoal e da ação concreta
dos homens."

Essa cooperação exprime-se em toda a sua grandeza e em toda a sua


força existencial, sobretudo por meio da fiel obediência de Jesus, na condição
A ESPERANÇA DE JESUS CRISTO
de crucificado. Ela exige, com efeito, uma colaboração livre e decidida até os
limites extremos das próprias energias. Por isso a esperança, que nasce da
cruz, não pode ser reduzida a uma simples forma ideal, a uma doutrina pura-

N
mente teórica. Pelo contrário, ela é uma realidade pessoal e histórica, encarna- a história - nesta história do homem e do cosmo -, aconteceu um fato
da no espaço e no tempo. Graças a essa radical incidência no tecido do mundo, único, que deu a ela um sentido novo e último, revelador de uma perspec-
nós podemos dizer, parafraseando Péguy, que a esperança nasceu na noite de tiva provocante e decisiva. "No âmago do cristianismo encontramos a história
Natal. Ou ainda, e dessa vez com Garaudy, que a esperança é a carne de Deus. do homem de Nazaré. Ele anunciou a proximidade quase imediata do reino de
É uma esperança-pessoa, teândrica, histórica e humanizada. Como tal, ela vive Deus para os pobres, para os abandonados e para os discriminados, por meio
no seio da história, e o homem pode constantemente aceder a ela. Sem essa do perdão dos pecados, 90S prodígios e dos sinais libertadores. Ele caminhou
fundamental comunhão-conformação, a esperança desvanece, esconde-se ou pela estreita senda do sofrimento e foi pregado na cruz como blasfemador, re-
perece entre tantas outras formas de espera. Se ela não chegar até Cristo, se belde e homem abandonado por Deus. Mas o mesmo Deus o ressuscitou, con-
não for ao encontro de sua pessoa e de sua vida, transformar-se-á em uma forme sabemos pelo testemunho da Páscoa. Nele, o futuro de Deus e da liberda-
utopia. Ela será apenas mais uma entre tantas outras esperanças, transforman- de fez-se carne. É por isso que podemos distinguir, no cerne do cristianismo, a
do-se num "sonho de gente acordada", como definiu Píndaro. Ilusão para a pró- história de um Deus que humilhou a si mesmo, que tomou sobre si o sofrimento
pria pessoa e desilusão apaixonadamente amarga para os outros. Sua natureza de tudo aquilo que é desumano e morreu no abandono da cruz."
e eficácia dependem inteiramente do vínculo com Cristo, do estar incorporado à
Esse evento é o fundamento originário e último da esperança cristã. Isso
sua pessoa e vida. Em sua efetiva qualidade e eficácia, a esperança em torna-se
porque, a partir do que aconteceu na encarnação e na Páscoa, foi criado e
experiência, partilha, participação, imitação e seguimento de uma pessoa, Cris-
Instaurado um vínculo único e irreversível entre Deus e o homem. É dessa pers-
to, o qual, com a própria vida e com o mistério de sua paixão, morte e ressurrei-
pectiva que se deve ler a novidade da esperança cristã, que não indica apenas
ção, deu novo sentido e nova forma a tantas esperanças que têm sua raiz no
o processo e a dinâmica com a qual ela age na história, mas aponta, sobretudo,
coração do homem e do cosmo.
para o seu destino final. A perspectiva da esperança faz referência a um aconte-
cimento, que se inclui depois na fé como um evento, e traz ainda intacta toda a
ua misteriosa profundidade. O passado cristológico revela-se, para o homem e
para o mundo, como um futuro definitivo e, portanto, escatológico. A Páscoa é e
erá, para sempre, uma fonte de fecundidade para a esperança cristã. Naquele
contecimento, parafraseando Lessing, a esperança "é como a flor que, planta-
da no terreno do mistério que se realizou, desabrocha, mas ao mesmo tempo
pressupõe esse terreno como um receptáculo mtsteríoso"." É preciso que nunca
20 Cf. as notas sugeridas por FORTE,
B. Itinerari per Ia cristologia. In: IAMMARONE,
G. La ctístotoqie contemporanea. Padova
1991. pp. 409-418. Nelas esta dupla via é qualificada por meio de uma cristologia revelativa-trinitária e da dinâmica MOLTMANN,
J. 11Dio crocifisso e l'uorno apatico. In: --o L'esperimento speranza. Brescia, 1976. p. 90.
bfblico-eclesial da consciéncie histórica. DoNAoIO,F. Critica de//'oggetivazione e ragione storica. Napoli, 1992. p. 28.

80 81
AI fll RAN A
------------------------- -----------------------
se esqueça desse caráter misterioso, mas de forma alguma sombrio, da p II slal (cf. G ,45), mbarxo, cnundo uma ponte entre a criação e a perfeição
rança, radicado na morte e na ressurreição de Jesus crucificado. A singulari J.t 1111.11 Com a sua compl xidad orgânica, ele evidencia a história como uma
de daquela morte, na dinâmica do mistério da salvação, e na commumcetto I (lIl mia que se vai desdobrando, que se apresentará, na total e última mani-
idiomatum da sua pessoa, abre uma fresta para a palavra decisiva sobre amor II ',I'IÇão soberana de Deus, com o dom da ressurreição final e da vida eterna,
te, quer seja pronunciada pelo homem, quer seja pronunciada por Deus. Es 'I u.uusta de Cristo. Nessa relação dinâmica entre história e cumprimento final,
palavra do Homem-Deus é uma amarra oferecida, um ponto de apoio insubstí I' 1(, não anula nem banaliza as várias implicações da história, inclusive as nega-
tuível para se descobrir o elo entre a radical idade da morte, com toda a sua IIvll ,o evento da Páscoa impõe, para a esperança, uma reconsideração de tipo
tragédia, com o fim de toda esperança, e a resposta última, porém, decisiva, da " tológico. A especificidade desta exigência, embora não emerja totalmente
vida de Deus. Na experiência pascal de Cristo, pode-se entender o aspecto I j, I densidade de seu mistério, traça, contudo, uma estrada de atuação que não
estrutural e prospectivo da esperança cristã, que atravessa todos os espaços I li rmite à pessoa ficar, nunca, distante do evento que a qualifica e absorve-a até
da existência e marca o sentido do cumprimento parusíaco. Esse é, pois, um II mais profundo do seu ser, evitando falsas neutralidades.
valor de grande importância, que deve ser lido à luz de algumas considerações
prévias sugeri das pelo conceito de perspectiva. Nesse sentido, a teologia recente encontrou novas sensibilidades para o
«ontroverso tema da esperança, solicitando uma crítica aguda ao modo com o
O termo "perspectiva", de fato, procura enfatizar a atitude de observação qual, durante muito tempo, o tema foi abordado. Ela recuperou a sua central ida-
assumida por determinada pessoa. Trata-se também de reconhecer um objeto ti e, por meio de referências bíblicas e cristológicas, superou sua exclusão da
preciso no horizonte de observação. Daí, uma tensão dinâmica entre quem obser- dimensão histórica, fazendo-a voltar às questões propriamente humanas. Para-
va e o objeto observado. Em outras palavras, uma perspectiva é determinada I Ia à esperança, cuja espera estava centrada num mundo longínquo e futuro,
como um processo relacional de intuição (intus-ire), que demanda comprometi- há agora uma esperança que, sob a luz do objeto de seu esperar (Cristo), está
mento e não apenas observação, e como um processo de definição, que exprime profundamente mergulhada no hoje. Esta é a dimensão sugeri da pela teologia
a capacidade de articular o objeto observado num quadro de referências mais da esperança, de J. Moltmann, que traçou uma linha de conduta já muito prati-
amplo, enfim, como um processo de conhecimento progressivo e dinâmico, que cada. Tornou-se essencial para o cristianismo o problema de um futuro que não
dá consciência das condições diacrônicas do conhecer, fruto da colocação histó- pode ser relegado apenas a uma vida supramundana, mas que, de fato - exa-
rica do homem.
tamente porque não pode ocultar sua última fase - oferece inevitáveis implica-
Esse conceito de perspectiva pode ser qualificado de cristão quando sua ções, é cheio de conseqüências práticas no aqui e no agora, no hoje do homem
leitura for feita, nos seus vários elementos constitutivos, por dois parâmetros e da história. Deitando luz sobre a relação e sobre as diferenças entre presente
típicos: a referência ao evento salvífico de Cristo, fruto da surpreendente e ines- e futuro, a esperança cristã introduz uma tal dinâmica na vida, que chega a
perada iniciativa de um Deus presente na processual idade da história, e a esco- impedir que se elimine do presente a sua forma futura, e do futuro a responsabi-
lha de um parâmetro dinâmico da fé como critério irredutível de avaliação da lidade do presente, que o pressupõe e o prepara. O impulso contínuo para uma
própria história. É necessário, portanto, considerar a unidade orgânica da vinda realização definitiva exige, porém, a referência a uma promessa. No Antigo Tes-
de Cristo na perspectiva global da historia salutis. É preciso assumir a sua expe- tamento, Deus manifestava-se sempre por meio de uma promessa; na nova Alian-
riência, em todo o decorrer de sua existência terrena, como o ponto zero, o ça, ele continua sendo fiel a ela. A promessa cumpre-se na história, sem nunca
ponto-base da perspectiva, a partir do qual se considera o sentido definitivo do ter deixado de ser por ela homologada: ela apresenta sempre um estatuto de
aperfeiçoamento do homem e do cosmo. Esse ponto de perspectiva enquadra a ulterioridade, tem raiz no hoje, mas exige uma superação.
história, dá-lhe novo centro, não só na visão do seu caráter último e definitivo, Na ressurreição de Jesus, coincidem fidelidade à promessa e vocação à
mas também na sua complexa articulação de vicissitudes cotidianas. Um ponto ulterioridade definitiva. A comunidade, nele, anuncia a todos o futuro de sua
zero que remete para a sua origem trinitária, no alto, e para a sua continuidade ressurreição. O mesmo Espírito que ressuscitou Jesus dos mortos ressuscitará

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também nossos corpos mortais (cf. Rm 8,11). É o futuro que nós esperamos, O mal, a dor, a morte s o os lugares de uma ausência declarada e artificial. Em
que exige a reconciliação daqueles que estão longe de Deus, juntamente com verdade, esse pensamento desmente-se totalmente com a revelação da face de
uma nova justiça para os homens. Imergindo na Páscoa de Cristo, revelada a Deus na cruz e no abandono do Filho feito homem. De um modo inesperado e
nós por intermédio da radical e paradoxal experiência do sofrimento e da morte, paradoxal, sobretudo na perspectiva das habituais vias percorridas pelas espe-
pode-se esperar, para todos e para sempre, a ressurreição e a vida. Em virtude ras humanas, tornou-se evidente o pathos de Deus. Em Jesus crucificado, Deus
disso, o futuro se apresenta de uma forma radicalmente nova, que não pode ser propôs ao homem um itinerário absolutamente novo, completamente diferente em
deduzida, é verdade, mas que não é mais um fardo. Ele surge como uma reali- relação aos demais trajetos visitados pelas esperas humanas, na tentativa de so-
dade que revela a eterna gratuidade de Deus ao dispor de uma vida que não lucionar as angústias, tanto as próprias como as do cosmo, provocadas pelo mal
tem limites nem fim, que agora espera, como uma resposta pessoal e livre, o e pela morte." A voz do pobre e de todos aqueles que sofrem com a violência,
empenho generoso do ser humano para conformar sempre mais, e sempre me- implorando a Deus uma libertação mais do que justa, leva a uma visão e a uma
lhor, a história ao futuro que foi prometido. É um laboratório de transformação do experiência do divino que não podem mais corresponder àquela visão metafísica,
mundo por meio de um novo modo de ser, segundo o estilo da esperança, que se absoluta e impassível, imóvel e distante, que enfrenta de modo apático os proble-
explicita na passagem de uma concepção individualista da vida (cf. GS, 12) para mas do mundo. O Deus que se revela na esperança do crucificado é um Deus
uma concepção comunitária e cósmica. Não se pode aceitar mais uma esperan- que se faz presente no sofrimento, que sofreu até onde foi possível sofrer.
ça voltada apenas para este ou aquele indivíduo, a qual atinge grupos e o mundo
Esta é a theologia ctucis do teólogo Jesus, que nada tem a ver com fáceis
somente à maneira de um reflexo. Pelo contrário, é a esperança da humanidade e
retóricas sobre um já garantido êxito, visto como uma consolação capaz de
do cosmo, revelada em Cristo, que valoriza o sentido e a diretriz de uma esperan-
aliviar o sofrimento ou a injustiça. Esta é uma versão de Deus que nos leva a
ça individual. O nós da esperança é a única esperança possível no hoje da histó-
reconsiderar a própria extensão do evento pascal e admirar sua riqueza. Cruz e
ria, colocando e julgando o hoje na perspectiva de seu destino. O nós faz a leitura
ressurreição "[ ...] são lugares e momentos de manifestação escatológica, últi-
do presente à luz de um futuro que não diz respeito apenas ao ser humano. É a
ma, segundo a ordem de Deus, e, portanto, radicais ou causadoras de rupturas.
luz de um futuro que engloba Deus e o mundo.
Tanto uma como a outra. Além disso, ambas constituem um complexo indivisí-
Na esperança de Cristo, dá-se uma realização (novos céus e nova terra) vel. Do ponto de vista cristão, a ressurreição não elimina a cruz. Esta não é um
que acelera a história: ela produz um dinamismo que, embora não exclua ten- momento desagradável pelo qual se deve passar, mas de fato é o momento da
sões e limites, mostra-se com toda a carga das suas progressivas e nem sempre revelação última, que conserva, portanto, sua plena pertinência ao longo do
harmônicas formas complexas. A esperança de Jesus Cristo abre um processo tempo"." A com-paixão de Deus no crucificado, com efeito, reconduz à própria
que, mesmo não podendo ou não querendo ser uma alternativa a outros proces- raiz da vida divina. É uma resposta ao mistério divino, que se exprime em Deus
sos, de fato se evidencia naquilo que tem de específico, isto é, não apenas em trino, que se manifesta nessa forma de relacionamento cujos traços são o dom
razão do horizonte e do modo como o considera, mas, sobretudo, em razão dos de si, a existência no outro e para o outro. Essa dimensão particular ajuda a
conteúdos e da sua correspondente visão do mundo. Fica bem claro que a es- entender melhor o modo pelo qual Deus dá-se ao homem e ao mundo como um
tratégia da razão, com seus modelos, e a estratégia da redenção, com seus dom, como um futuro de plenitude, por causa daquele amor que se faz kenosi,
paradoxos, nem sempre podem, ou conseguem, entrar em concordância. que se mostrou, desiludindo a tantos, como uma experiência de fracasso em
Apesar dessa extraordinária e inevitável situação, o homem, que com tanta relação às esperas e pretensões do homem." A esperança de Jesus crucificado
facilidade proclama e ratifica de vários modos a derrota de Deus, continua procu-
3 CI. KERN. W La croce di Gesú come rivelazione di Dio. In: KERN. W; POTIMEYER. H. J.; SECKLER, M. (ed.) Corso di teologia
rando resolver tudo com suas próprias forças. Ele lança mão de uma esperança fondamentale. 2. Trattato sulla rivelazione. Brescia, 1990. pp. 257-261.

própria e exclusiva, tentando solucionar os problemas pelo seu lado finito, para 4 GISEL, P. Ilimiti della cristologia o Ia tentazione di assolutezza. In: Concilium, 1, 112, 1997.
CI. as linhas de pensamento teológico que estão subentendidas na enclclica de JOÃo PAULO 11, Redemptor hominis.
eliminar as distâncias e suplantar a ausência ou a não-necessidade de um Deus. 5

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A ESPERAN DE IESUS CRISTO

faz que se reconheça o mistério trinitário como mistério de partilha, de fraterni-


perar com ardor, esperar com certeza, com confiança e com desejo. Todos es-
dade na dor, e permite ao homem encontrar espaços inesperados para viver
ses termos demonstram bem como a esperança e a confiança tinham uma co-
suas condições exasperantes, pois ele sente seus limites e sua marginalidade.
nexão profunda. Na maior parte dos casos, para os que tinham fé, o esperar,
Nessa fraternidade de Deus com aquele que sofre, realiza-se o poder de como ato específico, concretizava-se nos contextos da promessa e da consola-
transcendência da esperança. Se, de fato, constata-se, em tantos momentos da ção e o fato de esperar era, e sempre seria, uma declaração de confiança. As-
história, o poder do mal, o mesmo não pode ser dito sobre o seu efeito último e sim, esperar explicitava-se como: confiar, sentir-se seguro, gritar, ficar impacien-
definitivo. O fato de alienar-se de Deus na figura do crucificado e fazer-se um te, não desanimar na espera. Ou ainda: procurar refúgio, esconder-se, esperar
outro na dor chega à evidência máxima e paradoxal ao ser reconhecido como com nostalgia, ter certeza e confiança, crer. A tradição hebraica entendia, por-
maldição (cf. Dt 21,23), pecado e morte. Nessa situação alucinante, surge uma tanto, a esperança como uma espera cheia de confiança na qual o Senhor ga-
luz inédita, mas real, nascida do escândalo da dor humana e da dor universal. rantia o bem do povo, e era ele mesmo a meta final do caminho. Essa concep-
Deus, em Jesus crucificado, tomou partido, tomou posição. Leva à máxima evi- ção, para o israelita, ia além dos limites estreitos da vida individual. Ela procla-
dência e à consciência toda a carga de mal que está presente na vida humana mava e anunciava a vinda do Senhor na glória e a sua soberania na terra. Ela
e no universo. Todavia, exatamente porque ele não vive alheio ao mundo, ele proclamava a Aliança que fora instaurada com o perdão dos pecados. Para que
comprometeu-se com a história e sustenta hoje o homem sofredor, nas suas essa esperança fosse autêntica, tinha papel decisivo a luta dos profetas contra
dores e nas suas provações, conclamando-o a reconsiderar seu sofrimento na as falsas miragens de salvação que, de tantas partes, procuravam atingir o fiel,
esperança do Filho crucificado (cf. Heb 2,18). mediante propostas aparentemente eficazes e imediatas.

O redentor assumiu suas dores e, com o oferecimento de si mesmo, jul- A esperança, como atitude subjetiva cujo fundamento reside na confian-
gou e redimiu o mal, reconduzindo todas as criaturas e todo o universo àquela ça plena em Deus, é uma atitude concreta, tanto pessoal como social, que deita
condição na qual ainda é possível haver um futuro de plenitude e de justiça. A o olhar no futuro, não obstante o ainda-não-acontecido da realização da salva-
esperança revelada pela cruz, com toda a sua bagagem de problemas, não é ção. O Senhor conhece, promete, gera o futuro de seu povo. Por ísso a esperan-
apenas um ponto de partida no qual se podem apoiar os pés e caminhar na ça assume o caráter de uma certeza sólida e incomparável que não nasce de
vida, mas é também um ponto de chegada para o qual se deve tender. É como outra coisa senão da promessa feita por Deus, cuja primeira palavra, dirigida a
o fim de um itinerário que requer liberdade de escolha, fidelidade e empenho Abraão, foi a comunicação de uma ordem e a afirmação de uma promessa. Foi
até a obstinação, de modo que se possa não só intuir uma esperança, mas dada a ordem irrevogável de partir, de se pôr em marcha. A promessa dizia
também viver essa esperança. Ela possui uma lógica própria, que tira sua força respeito à meta, ao destino final deste êxodo. A fé de Abraão transformou a
da total e radical confiança naquele que nos convoca - no contexto de um esperança em certeza e, portanto, em confiança no futuro prometido por Deus.
projeto feito de liberdade - para cumprir sua promessa na história e, por meio Além do mais, aquilo que foi prometido correspondia, de fato, ao mais autêntico
da história, cumprir sua promessa com o homem e com o mundo. e íntimo desejo que pode nascer no coração do homem: o desejo da terra (cf.
Gn 12,1) e da descendência (cf. Gn 15,1-2). Era um desejo que, com o episódio
da revelação de Deus a Moisés, e a conseguinte convocação do povo, identifi-

1. Esperança e confiança cou-se com a promessa de Deus e caracterizou a esperança do povo de Israel
como a espera da libertação após o cativeiro (cf. Ex 19,4; 20,2; GS, 24 e 2-13),
expectativa de encontrar uma terra onde corresse leite e mel, a pátria da paz e
Na tradição do Antigo Testamento, o conceito de esperança estava unido,
da prosperidade (cf. Ex 13,7-10). Os traços que configuraram a Aliança do Sinai
de modo inseparável, ao conceito de fé. O elo entre esses conceitos era mani-
correspondiam, dessa forma, às características da revelação-promessa de Deus.
festado por uma grande multiplicidade de significados: estar tenso, ansiar, es-
A memória da libertação tornava-se evento e empenho na procura do próprio

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d rrotá Ia (cf. 2Mc 7, 11 1<1?3, 12,4345). Só no período final do Antigo Testa-


destino, embora esse destino estivesse num futuro distante para o povo. Entr
111 nto, pode-se assistir uma nova harmonização do conceito de esperança,
memória do passado (libertação) e promessa de futuro (a pátria), articulava-se
que corresponde melhor à sua dupla face, individual e coletiva. A fé messiânica
fé-esperança que, de modo concreto, tomava forma na obediência à lei nascid
( escatológica num futuro prometido por Deus tornou-se o coração da esperan-
do Pacto. Na oração dos Salmos e na reflexão do livro da Sabedoria, essa lei
a. Essa tradição, que era memória histórica do hebreu Jesus, apresentava muitas
tornou-se, na fé de Israel, o percurso real da esperança. Um caminho para o
articuladas características. A atitude de confiança, vivida na espera constante
qual a promessa de Deus reconduzia sempre, de maneira instigante e contínua,
da intervenção iminente de Deus na história para dar cumprimento à promessa,
quando o povo caía em alguma infidelidade, por ter sido seduzido pela dúvida.
dquiriu diversas conotações e criou diferentes modelos de avaliação. Há o
A palavra de Deus, por causa da dúvida do povo, transformou-se em modelo espiritual representado pelos Salmos, em que esperar significa abando-
julgamento e ameaça. Os profetas, que apresentavam e traduziam o sentido nar-se totalmente a Deus. Ou o modelo profético que valoriza, no sinal da Alian-
íntimo e profundo da Promessa na realidade da história, relembravam sem ces- ça, a relação entre presente e futuro. Há o tipo messiânico, no qual a espera
sar ao povo a sua fé, para prendê-Io assim à sua autêntica e verdadeira fonte. profética é personificada no Messias que trará a paz e a justiça. Ou o tipo apo-
Em razão de sua primordial função, o rei de Israel foi o destinatário mais privile- calíptico, como um prolongamento da espera profética e messiânica na invoca-
giado dessa lembrança feita pelos profetas, por vezes com muita dureza. A ção de um final trágico da história, marcado pelo mal. Enfim, o modelo sapiencial,
instituição monárquica (cf. 2Sm 7,1-17) nascera, de fato, para conduzir o povo que reage à desilusão existencial com a espera da justiça final.
segundo a memória do Pacto. Em muitas circunstâncias, porém, o rei havia en-
Sobre todas essas características, foi acrescentada a concepção de es-
trado em nítida contradição com ele. O rei, governando a serviço da lei de Deus,
perança segundo o Novo Testamento. Aqui ela se prende aos termos elpís e
deveria cumprir a Promessa no convívio humano e na justiça, na abundância e
elpízo, tirados do grego, mas adaptados à luz da fé pascal. O sentido grego de
na paz. A experiência histórica do povo israelita narra, contudo, que houve uma
esperança, que tendia a qualificá-Ia como a emancipação da ingerência dos
grande defasagem entre a monarquia histórica e aquele que deveria ser o rei da
deuses, nunca poderia coincidir com o sentido de esperança que a fé propõe.
esperança, a ponto de eles terem dado forma à própria esperança, traduzindo-a
Pelo contrário, a esperança cristã é sinônimo de uma total e confiante entrega
na espera de um rei escatológico, como invocação de um Messias. A contínua
do homem a Deus. O Novo Testamento dará a esse termo o significado de espe-
solicitação dessa figura, no contexto da história de Israel, constitui o paradigma
ra e de desejo de um futuro, bom em seus frutos, e isso exatamente porque tem
mais significativo e eficaz da evolução do próprio conceito de esperança. No
relação com a obra salvífica de Deus, em Jesus Cristo. Desse modo, a esperan-
período do exílio, contudo, num contexto de opressão e humilhação, as referên-
ça tornou-se uma característica estrutural da existência cristã. Entretanto, em-
cias a um rei-Messias são mais exíguas, ao passo que adquire maior relevo uma
bora os termos esperare esperança tenham sido utilizados tantas vezes, de fato
esperança de transformação interior do povo, por ação de Deus e de seu Espí-
eles não adquiriram grande importância. O verbo esperar, no significado de uma
rito (cf. Jr 31, 33ss.; Ez 36,25 ss.). O Dêutero-Isaías esperava com entusiasmo a
expectativa subjetiva, é empregado apenas cinco vezes em todo o Novo Testa-
chegada da realeza universal de Deus (cf. Is 52,7), e o profeta Daniel introduziu,
mente." O termo passou a integrar de modo decisivo a terminologia cristã so-
nessa disputa, a figura singular e significativa do Filho do Homem (cf. Dn 7,13-14).
mente com Paulo.' A "esperança de Israel" foi absorvida e interpretada como o
Aquilo que tinha perdido o brilho por causa de um rei conduziu, pouco a pouco,
esperar na ressurreição. Ela deixou de significar uma atitude meramente pessoal
sobretudo na literatura apocalíptica, a uma nova visão da esperança, mediante
o prisma da promessa última do fim dos tempos. Foi assim que a esperança
tornou-se uma atitude substancialmente individual e determinou uma separação
6 Uma vez em Mt 12, 21 e em Jo 5,45; três vezes em Lucas: 6,34; 23,8; 24,21.
entre o presente da história e o futuro de Deus. Nessa perspectiva, os proble- 7 O verbo é usado 31 vezes no NT, das quais 19 por Paulo. O substantivo chega a 36, num total de 53 vezes. Na Carta aos
mas que atraíam a atenção eram aqueles que falavam do sofrimento do justo e, Romanos, verbo e substantivo aparecem, respectivamente, quatro e treze vezes. Nos Atos também, respectivamente,
duas e oito vezes.
mais ainda, da morte e de uma possível esperança individual para superá-Ia e

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e passou a ser sinônimo da salvação para a qual todos deviam tender (cf. GI5,5; I , como a fé p ranç: .tamo m a caridade e a fé estão naturalmente unidas,
CI 1,5; Tt 2,13).8 A terminologia enriqueceu-se, assim, de outros significados: I ois o amor não é outra coisa ou outro senão aquele que "tudo espera" (1Cor 13,7).
permanecer, perseverar, exercitar a paciência, ser vigilante, ter os olhos aber-
Para Jesus, a esperança, isto é, o futuro e a mudança de vida para a qual
tos, ter uma expectativa ardente (cf. Rm 8,19 e FI 1,20). Ou ainda: tomar uma
o futuro chama, nunca poderá realizar-se contra ou sem Deus, mas somente de
decisão e caminhar, mas também esperar, tanto no sentido espiritual como no
acordo com ele, na Aliança. Jesus de Nazaré não é apenas o fundamento da
material (cf. At 17,16; Tg 5,7; Hb 10,13; 11,10; do mesmo modo, FI 3,20; Rm
nossa esperança. Ele também é o primeiro que, com toda a verdade e até o
8,19.23.24; G15, 5). E mais: tomar sobre si, assumir (cf. Mt 11,3-4; Lc2,25.38; At
xtremo, esperou em Deus na obscuridade da nossa história. Há muitas indica-
24,26; Jd 21; Tt 2,13). Entretanto, de um modo todo particular: esperar alguma
ções sobre as manifestações de esperança que ele deu em vida, Animado por
coisa ou alguém (cf. Mt 11,3; 24,50; Lc 3,15; 2Pd 3,13).
uma profunda confiança em Deus, "[ ...] foi atento, obediente e aberto a Deus
A relação entre confiança e esperança tornou-se um parâmetro importan- (Is 50,4; Rm 5,19; Jo 3,32; 5,30; 8,26.47; 15,15), percebeu o domínio de Deus sobre
te. Esperar passou a coincidir com crer e com a paciência gerada pela fé, para s criaturas (Mt 6,25-34; 5,45) e foi semelhante a Deus no amor pelas pessoas,
que se possa suportar a espera. A figura da esperança começou a variar em m particular pelos pequenos e pelos marginalizados (Mt 25,31-45). Todo ins-
razão do modelo de representação escatológica na qual se baseava. Por isso a tante e todo acontecimento falavam-lhe diretamente de Deus, porque ele vivia
esperança do Novo Testamento, em razão dos traços peculiares da revelação continuamente diante da sua presença. Essa confiança total abriu-lhe os espa-
em Cristo, veio a assumir uma fisionomia total e radicalmente nova. Com a vinda ços da alma, permitindo à' bondade divina entrar na sua existência (por ele e
de Cristo, a promessa chegou a seu ponto mais significativo. O dia da salvação pelos outros) e permitiu também à virtude e ao Espírito de Deus operarem nele
para o mundo é o dia da vinda do hoje de Deus. Aquilo que era o futuro tornou-se, (Lc 11,20). Permitiu que fosse cumprida a boa vontade de Deus (Mt 6,10; cf. Mc
em Cristo, presente na fé. O hoje da salvação (escatologia da presença) é o 14,36). Jesus deu testemunho em toda a sua existência"." Ao encontrar-se com
coração da esperança em Jesus. No contexto dessa situação inédita, esperar pessoas oprimidas e cansadas (cf. Mc 2,17; Mt 11,28-30), Jesus não ignorou o
passou a exprimir novos conteúdos e novas motivações. Ora, posto que o hoje peso da existência e as anomalias da vida, mas convidou todos para que não se
da salvação é reconhecível apenas na fé em Cristo, a esperança assumiu um deixassem derrotar nem cair no desespero (cf. Lc 7,36-50; 19,1-10; Mt 8,5-13;
duplo aspecto: aquilo que já se realizou e aquilo que ainda não se realizou ple- Mc 12,14). Muitas vezes desmascarou os vulgares ceticismos e esforçou-se em
namente (cf. 1Jo 3,2). A esperança, como espera segura e confiante da salva- dar sinais, curando os enfermos e mostrando-Ihes, com a saúde, um futuro novo
ção prometida por Deus, é um dom do Pai. Ela não pode ter fundamento apenas pelo qual era possível que se reintegrassem na vida social (cf. Mc 2,17). Ele
nas obras humanas, mas, sobretudo, na graça de Deus ofertada plenamente no voltou a dar confiança às pessoas combalidas, aniquiladas, desorientadas (cf.
Filho. É uma esperança cristocêntrica e teocêntrica, cujo ponto focal não é, em Mt 9,36; Lc 13,34). Ele incentivou todas as pessoas a terem confiança nas novi-
primeiro lugar, a felicidade de cada indivíduo, mas a universal glória de Deus, dades da vida, para superarem o próprio passado e tudo aquilo que pudesse
que será "tudo em todos" (1Cor 15,28). Ao mesmo tempo, sua importância fica ignificar um julgamento negativo sobre ele. Encontrou-se com pessoas cuja
ainda mais clara se for colocada - pois há uma necessária conjugação - entre reputação e honestidade eram das mais discutíveis (cf. Mt 9,10-13; Lc 19,1-10).
a fé (pístis) e o amor fraterno (agápe), que são traços fundamentais da vida Não desprezou as prostitutas (cf. Lc 7,36-50; Mt 21,31); não atirou pedras na
cristã (cf. 'l Ts 1,3; 1Cor 13,13). Nenhuma dessas realidades é capaz de existir mulher flagrada em adultério (cf. Jo 8,11); deixou bem evidente a dignidade da
sem as outras. Não pode haver esperança sem a fé em Cristo, porque só a fé mulher (cf. Jo 4,1-42; Lc 7,11-17; 8,2-3; 13,11; Mc 5,25; 10,2-12; Mt 5,32). Todos,
nos une a Ele. A fé sem esperança seria vazia e inútil (cf. 1Cor 15,14.17). sem exceção, foram aceitos por ele, sobretudo os estrangeiros que a opinião
pública, o racismo latente e as dificuldades políticas da época induziam ao des-
8 Quando o verbo ou o substantivo não são especificados, a esperança é entendida em seu sentido escatológico; cf. Rm
8,24; 12,12; 15,13; Ef 1,12. ij KESSLER, H. Cristologia. In: SCHNEIDER, T. (ed.) Nuovo Corso di dogmatica. Brescia, 1995. v. 1, p. 464.

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prezo (cf. Mt 5,1-20; 15,21-28; Lc 7,1-15; 10,25-37; Jo 4). Com esse comporta Invocação e esp r' luturo, r v I do e cumprido no Cristo da Páscoa, espera
mento, Jesus despertou o gosto e o desejo de uma nova vida em todos, em apenas a sua definitiv ultima realização (cf. ns 2,19; 5,2; 2Ts 1,7; 2,2; 1Cor
especial, nos marginalizados, nos pobres, nos desprezados, nos últimos. Toda 15,23; Rm 5,2; 1Cor 16,22; Ap 22,20). O tempo decorrido entre a Páscoa e o
a sua vida está permeada de gestos nos quais reluz uma paradoxal esperança, cumprimento último da história é, pois, sinal do caráter definitivo da escatologia
que foi sancionada e confirmada pelo contexto de sua morte. que, por um, deixa ver os sinais realizados pela presença ativa do reino de Deus
e, por outro, remete, mediante os esforços para a conversão, à exigência
Os escárnios ao pé da cruz (cf. Mt 27,42-44; Mc 15,29-32; Lc 23,35) e o
de corresponder, no cotidiano do mundo, à plenitude que Deus vai estabelecen-
grito que ele deu, já crucificado (cf. Mt 27,46-47; Mc 15,34), auxiliam na compreen-
do, a qual somente a parusia, no fim dos tempos, revelará e consignará de modo
são do sentido cristão da esperança. Eles indicam com perfeição a situação
definitivo para o homem e para o cosmo (cf. 2Cor 6,2; Rm 11,25; FI 3,9).
extrema na qual Jesus levou até o fim seu ato de esperança em Deus.'? O Mes-
sias, esperado na tradição judaica, deveria manifestar o poder de Deus sobre Muitas vezes, Jesus falou do fim dos tempos, mas sua pregação não des-
os inimigos de seu povo. O sinal desse messianismo deveria ser a força. No locou a esperança, de modo algum, para fora dos limites da história. Pelo con-
entanto, pelo contrário, o Messias Jesus escolheu e adotou métodos diferentes trário, Jesus deixou bem clara sua profunda incidência no presente. A proximi-
e, mais do que isso, contraditórios. A extrema fraqueza, a indigência, a renúncia dade do Reino convida a um estilo novo de vida que, intervindo no hoje da
a qualquer aparato de poder, tudo isso deu condição para ele se pôr à margem história, modifica perspectivas e possibilidades atuais em função do futuro. Fre-
das esperas humanas de Deus, a ponto de ter sido acusado de impostura. No qüentemente, o termo "esperança" alude e conduz àquela condição na qual a
entanto, nele, Deus realizou aquilo que tinha prometido, manifestando o seu poder salvação ainda não se realizou por inteiro e, portanto, deve ser esperada (cf. Rm
de um modo como ninguém poderia suspeitar e em um lugar onde ninguém 8,24-25). Contudo, ela assinala também uma salvação que já se realizou, que
imaginaria encontrar. Jesus tomou sobre si o risco de proclamar a vinda do Rei- espera apenas para se manifestar na sua plenitude (cf. Rm 5,5). Paralelamente
no a partir da fragilidade da cruz. Ele demonstrou que a via do poder humano a esses dois conceitos, é possível considerar a esperança cristã tanto do ponto
teria ocultado e desfigurado, de modo idolátrico, a fisionomia de Deus. Tinha de vista da correção do orgulho, feito de entusiasmos e otimismos falsos que
plena consciência disso, mas também sabia que os sinais previamente escolhi- induzem à crença de que já se tem a posse plena dos dons de Deus (cf. 1Cor
dos de um agir na fraqueza o exporiam a riscos, o sujeitariam a fáceis rejeições, 4,8-13; 2Cor 4,7-18), como do ponto de vista da certeza da salvação já realiza-
a dúvidas obstinadas da parte do homem. As escolhas de Jesus incidiram pro- da, apesar de que, pela espera, se torna evidente que o cumprimento definitivo
fundamente na sua vida e criaram freqüentes contrastes. À sua concepção do ainda está para acontecer (cf. Rm 5,1-11; 8,18-39). O esquema presente-futuro
Reino, cujo caráter é futuro, mas ao mesmo tempo iminente, salvífico, gratuito e deve ser integrado na relação visível-invisível (cf. Rm 8,25; 2Cor 4,18) que, de
certo, contrapunha uma grande quantidade de concepções expressas pela uma forma ainda melhor, caracteriza a estrada típica da esperança." Nessa
mentalidade religiosa de seus próprios discípulos. Seu modo de falar da espe- ótica de revelação, o nosso tempo, como tempo último em Cristo, deve ser visto
rança no Reino tinha muito a ver com a tradição judaica, mas não completamen- como o tempo escatológico do anúncio e da missão eclesial (cf. Lc 21,24). Eis a
te, pois, se é verdade que ele a assumiu, também é verdade que ele lhe deu esperança pregada e testemunhada: a salvação foi concedida para todos. A
novos contornos, oferecendo-lhe um objeto novo e, até então, impensado. Ele redenção, colocando a história no sinal da éschaton, redesenha o sentido do
mostrou a atualidade do Reino, mediante a manifestação da sua presença pes- presente a partir de sua realização plena em Jesus Cristo. Por isso, a esperança
soal no mundo. O evento pascal fez com que os discípulos entendessem que o desloca-se dos confins de um presente realizado, em Cristo, para o seu objetivo
Reino de Deus, com Jesus Cristo, foi inscrito no coração da história de modo parusíaco, último e esperado (cf. t'Is 4,13-18; 1Cor 15; Jo 5,28-29).
irreversível. Nele o futuro tornou-se presente e, ao mesmo tempo, definiu-se como

10 CI. Bossa. G. Gesú abbandonato nella Scrittura. In: Nuova Umanità, 14, 1992. pp. 11-40. 11 CI. Carta aos Hebreus, em particular 10,19 e 12,29.

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Esse processo é o início da transposição cristológica da esperança. A resse, a abnegação. Este é o espírito das bem-aventuranças. A raiz desse espe-
oposição dos fariseus e dos responsáveis religiosos do tempo a Jesus e ao rar de Cristo pode ser concretamente reconhecida na sua crucifixão e na aceitação
anúncio da boa nova tornou-se evidente como rejeição do "mundo" confrontado da lei evangélica do murchar e do florescer, do morrer e do renascer (cf. Jo 12,24).
com um futuro, o qual, desde o presente, julga-o e salva-o. A esperança no O morrer deve ser entendido como uma condição necessária para que a vida se
Reino, anunciada e realizada em Cristo, é uma aposta que desestabiliza qual- torne fecunda. Ao grito de Jesus, aquele clamor de solidão existencial que pror-
quer preconceito religioso e político e coloca em xeque-mate qualquer mentali- rompeu de seus lábios quando foi crucificado, quando chegou ao extremo limite
dade pré-constituída. Ela acentua a atualidade, no presente do homem e do de si mesmo, correspondeu, como última e radical etapa dessa mesma solidão,
mundo, do futuro que lhe é dado no mistério de Cristo (cf. Ef 2,4-6; CI 2,12; 3,1-4). a confiança que chegou à entrega. É o canto sofrido do justo que sente, no
Nossa esperança é Cristo (cf. 1Tm 1,1) e, nele, encontra-se a raiz da confiança momento de atravessar o vale escuro da morte, a presença e a proximidade do
e da percepção do futuro que tanto esperamos, mas que ainda não o possuímos Deus que liberta (cf. SI 22,20). Na cruz, deu-se, de uma forma inesperada e
por inteiro (cf. Rm 8,24; Hb 11,1). Esse futuro está representado naquelas ima- insuspeita, uma reviravolta total de conceitos: não foi o atendimento de um de-
gens que correspondem, com razão, a tantas esperas do homem: bem-estar sejo (cf. Heb 5,7), como libertação de algo, que deu esperança ao grito - que
social, paz, justiça, perdão, libertação da dor e da morte, convívio, um novo céu continha em si todas as súplicas da história - de Jesus crucificado, mas foi de
e uma nova terra. É a manifestação de uma condição esperada que, in mysterio fato a cruz, com todo o seu peso de aberrações inaceitáveis, que proporcionou
e in enigma te, é vivida pela humanidade em todos os tempos. A figura escatoló- uma nova leitura do sentido,exato do verdadeiro atendimento. A cruz transforma
gica da esperança de Jesus Cristo é considerada naquilo que ela exprime por a esperança. Ela deixa de ser apenas o desejo de sermos preservados do mal,
meio de seu particular e permanente relacionamento com Deus (cf. 1Cor 13,13), passando a ser uma experiência nova e misteriosa de esperança em Alguém.
na abertura progressiva do homem para Deus e no livre dom de sua intimidade.
Nessa esperança nascida com Jesus, desdobra-se para o homem um
Como se vê, a dimensão escatológica da esperança não conduz apenas modo novo de esperar, apesar de tudo. O homem deve continuar acreditando
à confiança com base na fidelidade de Deus, mas requer uma opção pelas na vida mesmo quando, e, sobretudo, está mergulhado no ocaso da sua exis-
escolhas que Cristo fez em seu caminho até a ressurreição. Jesus de Nazaré tência, reduzido a uma condição extrema, a ponto de perdê-Ia. Nisso se define
esperou com todas as suas forças aquilo que constituía o objeto da sua escolha a novidade paradoxal e absolutamente única da esperança cristã: é a liberdade
fundamental: o reino de Deus. "Eles (os chefes judeus) concebiam a Deus como de aceitar, por causa da confiança total em Deus e no seu mistério, aquelas
um déspota, como alguém que velava ciosamente pelo cerimonial de sua corte. condições que representam a perda de qualquer esperança possível e de den-
Ele (Jesus) respirava na presença de Deus. Eles viam Deus somente na sua lei, tro da qual se levanta, com força ainda maior, o grito desesperado do homem
a qual tinham reduzido a um labirinto de erros, cheio de emboscadas e de saí- oprimido, em busca de Deus. A morte de Jesus Cristo tornou-se o parâmetro de
das secretas. Ele via e sentia Deus em todos os lugares."12 A esperança de toda verdadeira e autêntica esperança enquanto, exatamente no lugar da au-
Jesus era tão difícil e árdua como tinha sido sua escolha. Além de qualquer sência de Deus, numa situação de separação e de distância, manifesta-se, de
possível substituição desse fim proposto (Reino), ele rejeitou também muitos modo inesperado, a fidelidade de Deus à sua promessa. A esperança de Jesus
outros modelos que lhe foram oferecidos, que se consolidaram em forma de Cristo foi uma prova cabal de que Deus em nada diminuiu sua fidelidade à Pala-
tentação: o poder, a riqueza, o prazer. Apesar da evidente situação paradoxal vra dada."
criada, ele reafirmou aquela esperança consistente, cujos traços nascem da sua
relação com Deus e com a história, a saber: a pobreza, a mansidão, o desinte-

12 AANACK, A. von. L'essenza deI crislianesimo. Brescia, 1980. p. 97. 13 Cf. PAlUMBIEAl, S. Dall'ideologia alia speranza per un umanesimo plenario. In: Aquinas, 36, 1993. pp. 363-396.

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