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Giulia Lanciani, "Sophia de Mello Breyner Andresen : o labirinto da palavra", Colóquio/Letras, n.º
176, Jan. 2011, p. 9-14.
EDIÇÃO E PROPRIEDADE
Sophia de Mello Breyner Andresen:
o labirinto da palavra
Giulia Lanciani
Eis aqui o país da imanência sem mácula
O reino que te reúne
Sob o rumor de folhagem que há nos deuses3
10
Brasília
Desenhada por Lúcio Costa Niemeyer e Pitágoras
Lógica e lírica
Grega e brasileira
Ecuménica
Propondo aos homens de todas as raças
A essência universal das formas justas7
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«Persona», uma dualidade sem solução. A partir daqui, obstinada, invoca o
instante impossível no qual o divino Pessoa, liberto das máscaras, alcançasse o
porto de verdade e harmonia e pudesse contemplar‑se no seu autêntico rosto.
Da certeza na verdade da própria condição deriva o irrealizável auspício:
É nesta ausência feita eutopia que o olhar aberto à realidade intui a conti-
nuidade indivisa, além das formas contingentes, e revela a sua essência divina;
a súbita iluminação escande uma teofania inédita:
***
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atormentado desejo, as paisagens da infância são interiorizadas e evocadas
num processo de helenização. É, se quisermos, o mesmo tormento que anima
a nostalgia do mundo grego como civilização ideal e que se encontra, por
exemplo, em Schiller e Hölderlin.
E todavia, para Sophia, em todo o seu longo percurso criativo, embora
mudando conteúdo e forma, a poesia permanece o único lugar onde a palavra
pode ainda atingir um valor absoluto e sagrado, capaz de salvar da destruição
o mundo, as coisas. Ela constrói uma imagem do poeta que se coloca no ponto
de encontro de duas direcções da experiência: a vida individual da consciência
e a colectiva da História. Graças a esta síntese, Sophia investe de um signifi-
cado exemplar a representação da própria vivência pessoal, e a sua experiência
de mulher e de escritora assume-se como categoria válida para compreender a
realidade histórica da sociedade portuguesa.
A progressiva formação de uma consciência política é nela inspirada
por uma ideologia humanístico‑cristã, felizmente associada à lição grega. A
civilização helénica é para Sophia um modelo axiológico, no qual busca um
conjunto de valores perdidos, como a totalidade, a harmonia, a justiça, a ver-
dade. A sua voz nobre é uma arma contra o que ofende a dignidade do homem,
elevando‑se num trágico canto para dizer o desvario dos que habitam aquela
dimensão de trevas, o sofrer um exílio comum na própria pátria («Quando a
pátria que temos não a temos / Perdida por silêncio e por renúncia / Até a voz
do mar se torna exílio / E a luz que nos rodeia é como grades»13).
A aguda e lúcida percepção dessa soturnidade mortal traduz‑se constan-
temente na sua poesia no imperativo de transformar aquele espaço de obscuri-
dade maligna no próprio espaço da sua libertação. Não, portanto, evasão de tal
espaço, mas procura no seu interior dos fluxos vitais que o horror do presente
parecia ter ocultado, forçando‑os a alimentarem o seu delírio de potência. Para
descobri‑los, é necessário aventurar‑se naqueles territórios, despojando‑se no
entanto do olhar habitual e adquirindo uma segunda vista, que permita ver o
que está ocultado, recuperar os signos de um universo ainda não precipitado
no inferno.
Em Creta
Onde o Minotauro reina
Banhei-me no mar
[…]
E o mar de Creta por dentro é todo azul
Oferenda incrível de primordial alegria
Onde o sombrio Minotauro navega
[…]
Em Creta onde o Minotauro reina atravessei a vaga
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De olhos abertos inteiramente acordada
Sem drogas e sem filtro
Só vinho bebido em frente da solenidade das coisas —
Porque pertenço à raça daqueles que percorrem o labirinto
Sem jamais perderem o fio de linho da palavra14
NOTAS
1 Sophia de Mello Breyner Andresen, «Arte Poética III», texto publicado anteriormente como
«Posfácio» à 2.ª ed. de Livro Sexto [1964], in Obra Poética, ed. Carlos Mendes de Sousa,
Lisboa, Editorial Caminho, 2010, p. 841.
2 Idem, «Os Gregos», Dual [1972], ibid., p. 585.
3 Idem, «Eis aqui o país da imanência sem mácula», ibid., p. 575.
4 Idem, «O Poeta Trágico», ibid., p. 580.
5 Idem, «A Forma Justa», O Nome das Coisas [1977], ibid., p. 660.
6 Idem, «Cidade», Poesia [1944], ibid., p. 26.
7 Idem, «Brasília», Geografia [1967], ibid., p. 516.
8 Idem, «Em Hydra, Evocando Fernando Pessoa», Dual [1972], ibid., p. 577.
9 Idem, «Os Dias de Verão», ibid., p. 570.
10 Idem, «Santa Clara de Assis», No Tempo Dividido [1954], ibid., p. 296.
11 Idem, «Cíclades», O Nome das Coisas [1977], ibid., p. 603.
12 Idem, ibid., p. 602.
13 Idem, «Exílio», Livro Sexto [1962], ibid., p. 432.
14 Idem, «O Minotauro», Dual [1972], ibid., p. 578-9.
15 Idem, «25 de Abril», O Nome das Coisas [1977], ibid., p. 618.
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