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COLÓQUIO/Letras

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Sophia de Mello Breyner Andresen : o labirinto da palavra


Giulia Lanciani

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Giulia Lanciani, "Sophia de Mello Breyner Andresen : o labirinto da palavra", Colóquio/Letras, n.º
176, Jan. 2011, p. 9-14.

EDIÇÃO E PROPRIEDADE
Sophia de Mello Breyner Andresen:
o labirinto da palavra
Giulia Lanciani

«A coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar


dentro do qual estava, poisada em cima duma mesa, uma maçã enorme e
vermelha. Do brilho do mar e do vermelho da maçã erguia­‑se uma felicidade
irrecusável, nua e inteira.»1 O quarto como metáfora de um espaço­‑origem da
força da imaginação poética, no qual é possível definir uma realidade outra,
essencial e exacta, primeva, total. Uma dimensão em que o acto da criação
literária pode ser cumprido reactivando os traços mnésicos de algo que se
perdeu e recompondo­‑o numa harmonia multiforme.
Na poesia de Sophia de Mello Breyner urge de facto, explícita ou aludida,
a necessidade de reconstituir o intervalo entre universo mítico e universo real,
irrenunciável cesura que salvaguarda o espaço do imaginário tanto na invenção
quanto na fruição do produto artístico. A abolição desta cesura, da pausa entre
os dois universos, mistura com efeito espaços e tempos antitéticos, valências
simbólicas e valências empíricas: cria, em suma, uma confusão em que gesto
e signo, arrastados pelo fluxo do real, perdem a dinâmica dialógica que abre
para a verdade das coisas e para a possibilidade de as dizer. Uma distância
obrigatória, portanto, que alimenta o projecto de «viver a condição divina»,
segundo um cerimonial de mimese edificante e iniciatória:

Aos deuses supúnhamos uma existência cintilante


Consubstancial ao mar à nuvem ao arvoredo à luz
[…]
Esta existência desejávamos para nós próprios homens
Por isso repetíamos os gestos rituais que restabelecem
O estar-ser-inteiro inicial das coisas —2

mas também com a consciência de uma acrescentada e irreversível unidade ou


de absoluto, sem limitações metonímicas:


Eis aqui o país da imanência sem mácula
O reino que te reúne
Sob o rumor de folhagem que há nos deuses3

Se a realidade é um percurso inelutável — o itinerário labiríntico do


viver —, não prende, contudo, nem devora quem tem a certeza de um espaço
vital no exterior:

No princípio era o labirinto


O secreto palácio do terror calado
Ele trouxe para o exterior o medo
Disse-o na lisura dos pátios no quadrado
De sol de nudez e de confronto
Expôs o medo como um toiro debelado4

É o «fio de linho» da palavra poética que ajuda a recriar o vazio entre


deuses e homens, uma ausência como pura abstracção; um não­‑lugar, no qual
se recompõe a original idealidade real numa lúcida unidade que transcende
e anula antinomias e dissociações. Neste espaço intacto, passado e futuro
— entendidos como pólos de um processo — dissolvem­‑se no êxtase de um
presente absoluto, tempo indiviso, no qual memória e presságio mantêm con-
tudo íntegra a sua essencialidade. É nesta transparência de vazio que pode ser
realizado o projecto poético de construção da «forma justa / De uma cidade
humana que fosse / Fiel à perfeição do universo»5: portanto, um projecto que
não nega o real, mas o sublima e redime do que nele há de sujo e hostil.
De um lado a perversidade ameaçadora da cidade enquanto produto da
História:

Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas,


Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta,
Saber que existe o mar e as praias nuas,
Montanhas sem nome e planícies mais vastas
Que o mais vasto desejo,
E eu estou em ti fechada e apenas vejo
Os muros e as paredes, e não vejo
Nem o crescer do mar, nem o mudar das luas.6

Do outro o carácter positivo da cidade que nasce da vontade do homem em


sintonia com o universo:

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Brasília
Desenhada por Lúcio Costa Niemeyer e Pitágoras
Lógica e lírica
Grega e brasileira
Ecuménica
Propondo aos homens de todas as raças
A essência universal das formas justas7

Ofício sacral do poeta é preencher a página branca de signos e cifras,


fragmentos de uma realidade eterna que vão a pouco a pouco combinando­‑se
na imagem reconstruída do mundo.
Uma ausência, um não­‑lugar, que na poesia de Sophia de Mello Breyner se
faz mar — respiração azul que alimenta cada coisa: mesmo o sol é dito azul —,
e ilha, praia inicial da vida, onde tudo se torna «impessoal e livre / Onde tudo
é divino como convém ao real»8. Reapropriação do jardim possível e perdido,
alternativa ao espaço informe e alucinado do viver quotidiano, que nutre o
silêncio interior em que é suspenso o milagre das coisas perdidas mas recu-
peráveis. É aqui que Sophia­‑Eurídice, em perene busca de Orfeu — o «rosto
verdadeiro» da Poesia —, pode enfim celebrar o encontro com as coisas na sua
verdade absoluta, identificar­‑se imemorialmente com o coração do mundo:
isto não significa alienação nem renúncia a si própria, mas antes harmonia
entre o objecto (as coisas, a palavra poética, que recuperou a força mágica da
linguagem) e o sujeito (o poeta), que agora se possui na sua inteireza:

Tempo é de repouso e festa


O instante é completo como um fruto
Irmão do universo é nosso corpo9

Ausência como centro agregante, que vence a fragmentação do ser e


revela a cada um o próprio rosto secreto: pungente é o pesar de Sophia de
Mello Breyner por Fernando Pessoa, companheiro ideal de viagem na dispo-
nibilidade transparente e nua à procura de um estatuto ontológico unitário.
O apelo constante a Pessoa («irmão», «deus de quatro rostos», «dividido»,
«a ausência feita voz») resulta de uma sua total adesão às dramáticas vicis-
situdes daquele que não conseguiu dominar, na ausência, as lacerações do eu
poético, reconstruir­‑se como presença positiva e unitária. Para ela, que soube
adivinhar nas coisas a unidade prometida: «Coração atento ao rosto das ima-
gens, / […] / Vontade transparente / Inteira onde os outros se dividem»10, a
viagem através do arquipélago de uma Grécia irreal termina com o desembar-
que na Ilha. Pessoa, pelo contrário, extraviou­‑se nas múltiplas navegações pela
própria ausência sem alcançar o porto nostalgicamente perseguido: Odisseu e

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«Persona», uma dualidade sem solução. A partir daqui, obstinada, invoca o
instante impossível no qual o divino Pessoa, liberto das máscaras, alcançasse o
porto de verdade e harmonia e pudesse contemplar­‑se no seu autêntico rosto.
Da certeza na verdade da própria condição deriva o irrealizável auspício:

Pudesse o instante da festa romper o teu luto


Ó viúvo de ti mesmo
E que ser e estar coincidissem
No um da boda11

É nesta ausência feita eutopia que o olhar aberto à realidade intui a conti-
nuidade indivisa, além das formas contingentes, e revela a sua essência divina;
a súbita iluminação escande uma teofania inédita:

Este é o país onde a carne das estátuas como choupos estremece


Atravessada pelo respirar leve da luz12

***

O mundo, a humanidade, a vida surgem e florescem apenas quando


nomeadas pela palavra poética; a palavra é a flor, a essência do real, súbita cla-
reza, límpida maravilha que nasce da insondável profundidade, dos territórios
secretos do ser e os «diz». Uma poética do objecto, a de Sophia, em que ele se
torna o equivalente de uma emoção, de um estado de espírito. A descrição do
real é cumprida com extrema precisão, contudo não se trata de uma descrição
realista. O objecto adquire, de facto, quase naturalmente um valor alegórico,
trasforma­‑se em promessa de uma riqueza de valores, prelúdio à suspensão do
real e à revelação da verdade.
Daqui procede uma dinâmica de busca, uma tensão ético­‑cognitiva que
se exprime no «olhar» que perscruta em redor, na actividade da mente que
indaga, que tenta criar ligações entre as coisas, uma abordagem final à síntese
com a superação dos opostos. Nem sempre o milagre se cumpre e as presenças
divinas, que as sombras humanas evocam, frequentemente parecem afastar­‑se
sem nada conceder.
Esta busca subentende uma epicidade mítica, uma contemplação da reali-
dade como mistério, que é linha ininterrupta e diversamente modulada do seu
caminho artístico. Um sonho de sensações e sentimentos muitas vezes ligados
aos mitos mediterrânicos, uma exigência interior de regressar aos primórdios
da infância homérica e de encontrar os sinais da própria identidade. Nela o
mito grego despe­‑se de qualquer componente antiquária e arqueológica, faz­‑se
depositário de conteúdos eternos do espírito humano aos quais se aspira com

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atormentado desejo, as paisagens da infância são interiorizadas e evocadas
num processo de helenização. É, se quisermos, o mesmo tormento que anima
a nostalgia do mundo grego como civilização ideal e que se encontra, por
exemplo, em Schiller e Hölderlin.
E todavia, para Sophia, em todo o seu longo percurso criativo, embora
mudando conteúdo e forma, a poesia permanece o único lugar onde a palavra
pode ainda atingir um valor absoluto e sagrado, capaz de salvar da destruição
o mundo, as coisas. Ela constrói uma imagem do poeta que se coloca no ponto
de encontro de duas direcções da experiência: a vida individual da consciência
e a colectiva da História. Graças a esta síntese, Sophia investe de um signifi-
cado exemplar a representação da própria vivência pessoal, e a sua experiência
de mulher e de escritora assume-se como categoria válida para compreender a
realidade histórica da sociedade portuguesa.
A progressiva formação de uma consciência política é nela inspirada
por uma ideologia humanístico­‑cristã, felizmente associada à lição grega. A
civilização helénica é para Sophia um modelo axiológico, no qual busca um
conjunto de valores perdidos, como a totalidade, a harmonia, a justiça, a ver-
dade. A sua voz nobre é uma arma contra o que ofende a dignidade do homem,
elevando­‑se num trágico canto para dizer o desvario dos que habitam aquela
dimensão de trevas, o sofrer um exílio comum na própria pátria («Quando a
pátria que temos não a temos / Perdida por silêncio e por renúncia / Até a voz
do mar se torna exílio / E a luz que nos rodeia é como grades»13).
A aguda e lúcida percepção dessa soturnidade mortal traduz­‑se constan-
temente na sua poesia no imperativo de transformar aquele espaço de obscuri-
dade maligna no próprio espaço da sua libertação. Não, portanto, evasão de tal
espaço, mas procura no seu interior dos fluxos vitais que o horror do presente
parecia ter ocultado, forçando­‑os a alimentarem o seu delírio de potência. Para
descobri­‑los, é necessário aventurar­‑se naqueles territórios, despojando­‑se no
entanto do olhar habitual e adquirindo uma segunda vista, que permita ver o
que está ocultado, recuperar os signos de um universo ainda não precipitado
no inferno.

Em Creta
Onde o Minotauro reina
Banhei-me no mar
[…]
E o mar de Creta por dentro é todo azul
Oferenda incrível de primordial alegria
Onde o sombrio Minotauro navega
[…]
Em Creta onde o Minotauro reina atravessei a vaga

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De olhos abertos inteiramente acordada
Sem drogas e sem filtro
Só vinho bebido em frente da solenidade das coisas —
Porque pertenço à raça daqueles que percorrem o labirinto
Sem jamais perderem o fio de linho da palavra14

E esta sua persistente rebelião contra o cárcere existencial do Portugal


salazarista é que vai deixá-la pronta a cantar o banho lustral da Revolução de
Abril. Dia de festa que surge na sua poesia quase naturalmente, não só como
a madrugada tão esperada, mas sobretudo como a substância nodal dessa
completude livre e intacta sempre perseguida:

Esta é a madrugada que eu esperava


O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo15

NOTAS

1 Sophia de Mello Breyner Andresen, «Arte Poética III», texto publicado anteriormente como
«Posfácio» à 2.ª ed. de Livro Sexto [1964], in Obra Poética, ed. Carlos Mendes de Sousa,
Lisboa, Editorial Caminho, 2010, p. 841.
2 Idem, «Os Gregos», Dual [1972], ibid., p. 585.
3 Idem, «Eis aqui o país da imanência sem mácula», ibid., p. 575.
4 Idem, «O Poeta Trágico», ibid., p. 580.
5 Idem, «A Forma Justa», O Nome das Coisas [1977], ibid., p. 660.
6 Idem, «Cidade», Poesia [1944], ibid., p. 26.
7 Idem, «Brasília», Geografia [1967], ibid., p. 516.
8 Idem, «Em Hydra, Evocando Fernando Pessoa», Dual [1972], ibid., p. 577.
9 Idem, «Os Dias de Verão», ibid., p. 570.
10 Idem, «Santa Clara de Assis», No Tempo Dividido [1954], ibid., p. 296.
11 Idem, «Cíclades», O Nome das Coisas [1977], ibid., p. 603.
12 Idem, ibid., p. 602.
13 Idem, «Exílio», Livro Sexto [1962], ibid., p. 432.
14 Idem, «O Minotauro», Dual [1972], ibid., p. 578-9.
15 Idem, «25 de Abril», O Nome das Coisas [1977], ibid., p. 618.

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