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Andrés Guevara e a reformulação gráfica da revista A Maçã

Andrés Guevara and the new design project of the magazine A Maçã (The Apple)

Aline Haluch

Guevara, A Maçã, reformulação, pioneiro, design

Este artigo revela a influência de Andrés Guevara como reformulador gráfico da imprensa no Rio de Janeiro nos anos
1920/1940, sobretudo na reformulação gráfica da revista A Maçã. Serão utilizados exemplos resultantes da análise
gráfica da revista citada, bem como o registro histórico resultante de pesquisa em fontes secundárias sobre Andrés
Guevara. Será explicitado como o conhecimento de atuações profissionais nas artes gráficas do início do século XX
são importantes ferramentas para a construção da história do design brasileiro reforçando a importância da pesquisa
histórica em design. Através das descobertas feitas durante a pesquisa é possível entender melhor a postura do
profissional que atuava como designer nos periódicos e jornais brasileiros, o desenvolvimento da linguagem do design
gráfico no Brasil e as influências históricas e estéticas vindas do exterior. Pode-se afirmar que haviam profissionais
trabalhando com planejamento gráfico, desenvolvendo marcas, impressos e periódicos com talento, tecnologias
disponíveis na época e com linguagem artística aplicada.

This article reveals the influence of Andrés Guevara as the graphic reformer of the press in Rio de Janeiroaround the
years 1920/ 1940, specially on the new graphic project of the A Maçã magazine. Examples used in this article were
taken from the graphic analysis of that magazine, and the historical facts were found on the research of secondary fonts
about Andrés Guevara. It is shown that the knowledge of how graphic professionals used to work on the beggining of
the XXth Century is an important tool on the building of Brazilian design history, reinforcing the importance of Historical
research in design. Through the discoveries along this research, it is possible to understand how the professionals who
worked as designers for the brazilian magazines and newspapers behaved, the development of a graphic design
language in Brazl and the historical and aesthetical influences from abroad. It is possible to say that there were
professionals acting on graphic planning, developing logotypes and creating printed media with talent, the only available
technology of that time, and also with applied artisitc language..

Guevara, A Maçã (The Apple), reformulation, precursor, design

A imprensa no Rio de Janeiro na virada do século XX

A modernização na imprensa e a presença das revistas ilustradas no cotidiano


Em meados do século XIX há no Brasil um nítido processo de declínio do Império, devido a
vários fatores que culminam num sentimento de atraso em relação às nações desenvolvidas
que nos serviam de modelo como Inglaterra, França e Estados Unidos. O fim da escravidão, a
Guerra do Paraguai e o movimento republicano brasileiro fundamentado pelo pensamento
positivista resultaram num Brasil que entraria no século XX, progressista e republicano. Esse
panorama social em que a imprensa está inserida possibilita, principalmente a partir de 1880, o
surgimento de uma série de revistas ilustradas com posturas diversas e bem definidas.
O horizonte técnico que serviria de pano de fundo para a produção literária desse período
se define no Brasil principalmente a partir do final da década de 1880. O Rio de Janeiro, então
capital federal, é o palco das principais inovações tecnológicas, como a popularização da
eletricidade, o automóvel e o crescente comércio. A introdução da Linotipo em 1886, que
utilizava o método de fundição de tipos compondo linhas inteiras, completou o longo processo
de mecanização da indústria gráfica e as diversas técnicas de impressão fotográfica, criadas
nas décadas seguintes, abriram novas possibilidades de relacionar imagens e textos. (Denis,
2000:42)
Do ponto de vista técnico, a grande transformação pela qual passa a imprensa brasileira na
virada do século XX é o início do emprego de processos fotoquímicos de reprodução. Isto se
dá de fato, a partir de 1º de maio de 1900 quando começa a circular a Revista Ilustrada de
Álvaro de Teffé. Até então os processos de reprodução mais comuns eram a litografia, onde se
desenhava diretamente sobre pesadas pedras e de forma invertida, ou a gravura em metal
(cobre ou zinco). (Lima, 1963:138)
O início do século XX surgia num país que se mostrava disposto a investir na modernização
da imprensa e que na capital federal acompanhava as reformas urbanísticas do prefeito Pereira
Passos. Para isso contribuiu o lançamento e renovação dos grandes jornais políticos, entre
eles o Jornal do Brasil, O País, O Correio da Manhã e a Gazeta de Notícias, e revistas
ilustradas como a Revista da Semana, O Malho, Kosmos, Fon-Fon e a Careta. (Lima,
1963:141)
A Gazeta de Notícias teve papel fundamental no desenvolvimento da indústria gráfica. Ela
iniciou na imprensa o serviço de zincografia. Na Gazeta de Notícias deu-se o aparecimento de
três artistas que iriam dominar por quase meio século a sátira gráfica: Raul Pederneiras, Calixto
Cordeiro (K.lixto) e J. Carlos.
Com as transformações técnicas e de comportamento no início do século XX há uma
significativa alteração na percepção desse novo cotidiano. Há também uma aproximação entre
a literatura e a mídia. Com isso acontece a profissionalização dos homens-de-letras —
escritores e poetas passam a não apenas escrever versos e romances, mas também anúncios,
panfletos e slogans. Alguns nomes como Olavo Bilac, Bastos Tigre, Emílio de Menezes,
Humberto de Campos tiveram uma grande atuação tanto no jornalismo como na criação de
textos publicitários. O famoso slogan ‘Se é Bayer é bom’, de Bastos Tigre é um bom exemplo.
(Süssekind, 1986:58) Esse novo papel desempenhado pelos homens-de-letras nestas
profissões emergentes demonstra sua adequação às novas formas de comunicação que
pretendiam atingir um público com um grau de exigência maior em relação ao apelo dos
produtos. As marcas se fortalecem e a comunicação passa a ser mais sedutora. Da mesma
forma que criam campanhas e slogans, pode-se lançar a hipótese que este momento tenha
sido propício também para a formação de um profissional cuja atividade se aproxima do design
— planejamento gráfico, projetos de identidade visual, embalagens, diagramação de textos e
imagens, etc.
As revistas ilustradas surgidas no Rio de Janeiro no início do século XX foram fundamentais
para a formação da sociedade de consumo emergente. A inserção da imagem no universo da
imprensa teve importância vital na sustentação e representação de valores sociais,
principalmente numa sociedade com altos índices de analfabetismo. No momento em que as
revistas passam a modificar hábitos, influenciar a maneira de se vestir, se relacionar e
consumir verificamos que seu argumento visual passa a ser bem mais elaborado. Valoriza-se
tanto o texto como sua apresentação.
O momento compreendido entre a virada do século e a década de 1920 testemunhou um
amadurecimento da imprensa que resultou numa profissionalização em diversos níveis —
literatura, artes gráficas, design, publicidade e propaganda, administração, etc. As novas
possibilidades de reprodução de imagens em grande escala através da fotomecanização,
permitiram que revistas e jornais transcendessem as barreiras sociais criando uma maior
democratização da cultura visual e uma popularização da literatura, o que em países como a
Inglaterra já vinha acontecendo desde meados do século XIX. (Jobling & Crowley, 1996:12)

Humberto de Campos e A Maçã


Terça-feira, 4 de fevereiro (1930)
O amor ideal é como esses balões dirigíveis que vêm fazendo a travessia dos mares e dos
continentes: vive no ar, entre as nuvens e as estrelas, nas proximidades do céu mas, ao fim de cada
vôo, lançam a âncora, fixando-a na terra.
A paixão mais pura precisa, de quando em quando, para viver, de um pensamento imundo.
Humberto de Campos, Diário Secreto

Humberto de Campos Veras nasceu em Miritiba, atual Humberto de Campos, Maranhão em


1886. Autodidata, escreveu quarenta volumes que abrangem poesia, contos, crônicas,
memórias, crítica literária e artigos para jornais e revistas. Suas principais obras são: Poeira
(1911), Da seara de Booz (1918), Vale de Josafá (1919), O Tonel de Diógenes (1920), O
Mealheiro de Agripa (1920),Carvalhos e Roseiras (1923), e Memórias (1933). Escritor bastante
atuante também na imprensa, Humberto de Campos iniciou sua carreira no Rio de Janeiro em
1912 no jornal O Imparcial. Fascinado por estar na capital federal entre os escritores que tanto
admirava, colaborava com versos e crônicas para diversos periódicos de grande circulação. Em
1919, com apenas 33 anos ingressou na Academia Brasileira de Letras. Nesse momento
Humberto de Campos já era considerado um grande jornalista. De 1918 a 1927 produziu uma
série de contos satíricos sob o pseudônimo de Conselheiro XX (xis, xis) e em 1922, já com um
público cativo, fundou a revista A Maçã. (Picanço, 1935:180)
A Maçã foi lançada no dia 11 de fevereiro de 1922 no Rio de Janeiro e rapidamente se
tornou um sucesso de público, esgotando seu primeiro número. Publicação galante, trazia
como âncora o espírito satírico que Humberto de Campos cultivava nos contos do Conselheiro
XX desde 1917. Os onze volumes publicados com este pseudônimo foram um sucesso e
transformaram Humberto de Campos em um verdadeiro autor de best-sellers. O pseudônimo
era um recurso utilizado tanto pelos cronistas e poetas como pelos ilustradores. No ano de
1922 A Maçã causou um certo incômodo por ser uma revista “galante” e foi duramente criticada
ao mesmo tempo em que se tornou esse grande sucesso de público.
A Maçã tratava de assuntos como os relacionamentos extraconjugais não só dos homens
com as cocottes, mas também de suas esposas. Mesmo em trechos publicados de obras de
escritores como Eça de Queiroz, Aluísio de Azevedo e do próprio Humberto de Campos, são
privilegiados os que tenham em seu pano de fundo o desejo e a traição. Sucesso de vendas,
chegou a ser o semanário de maior circulação na capital. Além disso, ela era vendida através
de assinaturas para outros estados e no exterior. Uma das principais fases acontece em 1925,
quando a revista conta com a edição de alguns números especiais de até 100 páginas, com
reproduções em até 3 cores em papel couché. Tratava com muita ironia assuntos tabus na
sociedade da época como a ascensão das prostitutas de luxo na sociedade carioca, a
mudança de comportamento da mulher e os deslizes dos imortais da Academia Brasileira de
Letras, que Humberto de Campos adorava relatar.

Da leveza do desenho de Ivan à ruptura gráfica de Guevara

O traço Art Nouveau migrou para o moderno Art Déco

Ao realizar a análise gráfica d’A Maçã é inevitável enumerar algumas questões:


1. Quem fazia o desenho da página, o planejamento da diagramação do texto e
ilustrações?
2. Qual o papel do ilustrador na linguagem da revista. Será que ilustrador e diagramador
trabalhavam juntos? Será que era uma mesma pessoa que fazia o design completo da
página?
3. Será que o cronista/ contista dava seus palpites como autor?
4. As mudanças na linguagem gráfica utilizada na revista foram planejadas com
antecedência? Quais as influências sofridas em seu projeto?
5. Pode-se alegar que não há projeto?

O argumento adotado para a análise gráfica do objeto de estudo era de que existia a atividade
profissional relacionada ao design desde meados do século XIX no Brasil. A revista A Maçã é
um exemplo escolhido para sustentar este argumento, pois é nítida a existência de um projeto
gráfico em suas páginas. Observa-se já nos primeiros números um projeto gráfico ousado e
inovador, com recursos de diagramação incomuns para a época. Com grande destaque para o
uso de ilustrações teve em suas melhores fases capas e páginas centrais impressas em até
três cores utilizadas com extremo cuidado pelos ilustradores.
Na fase que vai do seu lançamento em 1922 até o final de 1923 tem projeto gráfico e
ilustrações de Ivan, pseudônimo de Manlius Mello. Dono de um traço com forte influência art
nouveau, desenho levíssimo e com boa proporção, denota uma sistematização do desenho
com o uso de diversas texturas combinadas, elaboração de ambientes e delicadas figuras
femininas.

Figura 1: exemplos de páginas do Editorial d’A Maçã dos anos de 1922 e 1923.
A trajetória do projeto gráfico da revista mostra o caminho que vai do uso da linguagem Art
Nouveau, no editorial de 1922, impresso em apenas uma cor, do editorial ainda com o mesmo
design mas impresso em duas cores e a ruptura no design de Guevara em dezembro de 1923:
a geometrização, o traço Art Déco, o uso de acabamentos tipográficos para criar desenhos e a
aplicação definitiva das duas cores.
Além disso, um problema freqüente era manter o texto do editorial apenas na primeira
página, o texto sempre invadia a página seguinte que era destinada aos créditos. Este
problema só foi resolvido a partir do novo projeto gráfico. Conclui-se que não foi apenas um
redesign preocupado com questões visual-estéticas, mas também disposto a resolver
problemas de projeto e diagramação.
Outra grande solução de projeto foi o uso do overprint na segunda cor (mais escura) para
solucionar o problema da falta de registro, recurso utilizado até hoje em produção gráfica.

Figura 2: o uso do overprint como solução gráfica em 1923!

Esta grande mudança em seu projeto gráfico acontece no último número editado no ano de
1923, lançado em 29 de dezembro. A capa que até então trazia o tradicional logotipo a
ilustração licenciosa com as espirituosas legendas sofre uma drástica mudança. O novo projeto
de capa desenhado por Andrés Guevara não possui mais o cabeçalho com o logotipo
centralizado utilizado até então e a partir daí não há mais um padrão, o logotipo da revista
passou a fazer parte da ilustração e acompanhava o estilo de cada capa, desenhada por
diferentes ilustradores.

Figura 3: Capa editada em 1922: cabeçalho que mostra a serpente circulando o logotipo da revista e ao lado a ruptura
de Guevara, logotipo gráfico com forte traço Art Déco e o portrait-charge inconfundível

O que significou essa mudança no projeto gráfico d’A Maçã?


Pois bem, em 1923, aos 19 anos, o desenhista paraguaio Andrés Guevara desembarca no
Rio de Janeiro a caminho da Europa, após ter ganhado um prêmio do governo argentino por
sua obra. Resolveu passar um tempo maior no Brasil e logo começou a colaborar para diversos
jornais e revistas. ‘O único paraguaio que venceu o Brasil’ foi como Humberto de Campos o
designou e foi por insistência sua que Guevara ficou no Rio e n’A Maçã, colaborando
principalmente com seus portrait-charges. Até 1930 foi um dos responsáveis pela presença
cada vez maior da caricatura e da charge na imprensa carioca, publicando em quase todos os
jornais e revistas como O Paiz, A Manhã, O Globo, A Maçã, O Malho, Crítica, Para Todos...,
Ilustração Brasileira, O Cruzeiro. Na ilustração seu traço leve e geometrizado que se identifica
com o cubismo, chegou a influenciar nomes como J. Carlos e uma série de desenhistas da
época como Théo, Alvarus, Nássara, Mendez e Augusto Rodrigues. (CORRÊA DO LAGO,
1999:116) De acordo com Cássio Loredano, alguns aspectos são fundamentais na ilustração
de Guevara:
1. Guevara dominava a idéia de projeto e ampliou as possibilidades gráficas das
redações e oficinas brasileiras.
2. Puramente desenhístico: trabalho de ilustração independente do contexto.
3. O repertório de soluções de representação para resolver problemas fisionômicos.
(LOREDANO, 1988)
Em A Manhã e Crítica, diários de Mário Rodrigues, Guevara publicou entre 1926 e 1930
alguns dos desenhos e ilustrações mais violentos da história da imprensa brasileira. Depois do
empastelamento das oficinas da Crítica, resolveu deixar o Brasil em 1930. Guevara fica
ausente do Brasil por aproximadamente 14 anos, fixando-se em Buenos Aires. Na sua segunda
estada no Brasil, a partir de 1943/44 o desenhista Guevara se afirma como o grande
reformador da imprensa brasileira. Tendo feito um curso de artes gráficas nos Estados Unidos
introduziu no Brasil a diagramação das páginas do jornal, que até então era feita, segundo
Nássara, sem sistematização, de forma artesanal e lenta. Guevara trouxe o cálculo, a tabela de
correspondência entre lauda datilografada (com um número preestabelecido de linhas e
toques) e a composição nos variados corpos tipográficos e larguras. Introduziu ainda a folha
milimetrada que permitia a produção de “espelhos” das páginas. Além disso, em sua segunda
fase carioca, criou o layout-base do Diário da Noite, da Folha Carioca e principalmente da
Última Hora, cujos diagramadores foram chamados por ele, da Argentina. (LOREDANO, 1988)
Esse histórico do trabalho de Guevara e sua presença na revista A Maçã é o que nos leva a
concluir que ele foi o criador do segundo projeto gráfico da revista. É exatamente quando
Guevara começa a colaborar com A Maçã que acontece a primeira reestruturação gráfica e
percebe-se uma nítida relação do seu traço nas caricaturas, ilustrações e logotipos das várias
seções da revista.

O design como diferencial n’A Maçã


A Maçã reflete modelos, propostas gráficas, estilo, moda, literatura e linguagem artística de
uma década de grandes mudanças de comportamento e de pensamento. O conflito existente
nas ruas do Rio de Janeiro, capital irradiante do país, entre o desejo de civilização
representada pelo “ser europeu” e o desejo de ser brasileiro, na malícia, no calor, no Carnaval,
no sexo, no samba. Esse conflito caracteriza de forma particular o ingresso do Rio de Janeiro
no Brasil moderno. Um ingresso diferente e que escapa às definições de Modernismo e
Modernidade encontrados comumente nos livros. Esse ingresso na Modernidade se fez no
cotidiano, no caminhar de mulheres e homens, brancos e negros, políticos e críticos da pena e
do lápis, atrizes, prostitutas. No caminhar da gente comum.
A análise gráfica das páginas da revista A Maçã possibilitou a reflexão a respeito de vários
assuntos que vão muito além do design em si, mas que são determinantes para sua
configuração, já que o design faz parte da cultura como um todo e espelha as condições
culturais da sociedade na qual está inserido.
A complexidade social contida nas páginas d’A Maçã — em sua linguagem visual:
ilustrações, caricaturas; e verbal: contos satíricos, anúncios — requer uma abordagem mais
ampla e para isso foi necessário buscar alguns conceitos sob a perspectiva dos Estudos
Culturais, como identidade e diferença.
Para uma melhor compreensão do conflito entre o desejo de civilização representado pelo
comportamento europeu e a condição de ser brasileiro — ou melhor, carioca — foi necessário
estudar algumas formas de construção desta curiosa identidade: o carioca. A projeção da
identidade cultural da capital do país, o cosmopolitismo carioca que contrastava com o
provincianismo de São Paulo, a miscigenação, a mistura e o confronto entre as camadas
sociais, a conversa entre a arte erudita e a arte popular, são fatores que tornaram o ingresso do
Rio de Janeiro na modernidade tão distinto e que construíram formas de expressão que só
podem ser encontradas no Rio. O maxixe, o samba, o Carnaval, a literatura acadêmica, o
folhetim — em algum momento isso tudo se mistura num grande caldeirão, ajudando a definir
os contornos, tão fluidos, da sociedade carioca.
Outro tema essencial que emerge após a análise d’A Maçã, é o lugar da mulher e suas
representações. Para isso foi importante buscar as origens dos movimentos de luta pelos
direitos civis das primeiras mulheres que ingressaram no mercado de trabalho, na Inglaterra do
século XIX e aqui no Brasil no início do século XX. Nessa época as mulheres eram
representadas como frágeis, naturalmente com vocação para as tarefas domésticas e
relacionadas à natureza — apesar de serem força essencial para a indústria, principalmente
por receberem salários muito inferiores aos dos homens, simplesmente por serem mulheres. A
forma como a mulher é representada nas páginas d’A Maçã se confronta com a idéia da mulher
frágil e desqualificada intelectualmente. A mulher d’A Maçã é uma mulher poderosa, que não
perde a oportunidade de humilhar e usar os homens; é também a mulher bela, vaidosa e
amorosa.

A Maçã: arte, técnica e design


Na última década do século XIX e primeira do século XX, o profundo ecletismo de fontes,
referências e formas utilizadas na arte em geral, na busca de um estilo novo para a
modernidade, resultou no primeiro estilo verdadeiramente moderno e internacional, e que ficou
conhecido como Art Nouveau. O surgimento e a popularização do Art Nouveau refletem todas
as contradições que caracterizam a arte moderna. Embora sendo um estilo reconhecido e
identificado como estilo, possuir características marcantes e uma nítida unidade formal, não era
produto de um determinado grupo, mas de um agrupamento, feito por críticos e pela opinião
pública de uma série de designers, artistas e arquitetos em muitos países, reunindo obras
muito variadas, desde cartazes, revistas, jóias, mobiliário, edifícios e obras urbanísticas.
(DENIS. 2000:87) Apesar de se manifestar como novo e atual por volta de 1900, a formação do
Art Nouveau pode ser traçada a inúmeras fontes no século XIX além da influência do Arts and
Crafts e de movimentos artísticos como o Simbolismo e Esteticismo. Posicionando-se como
estilo internacional e moderno, as diversas manifestações do Art Nouveau possuíam diferenças
regionais fundamentais. O Art Nouveau tornou-se o primeiro estilo divulgado em escala maciça,
possibilitando a reprodução industrial intensiva de suas formas em artigos de todas as
espécies. (DENIS. 2000:88)
Esse panorama da construção do Art Nouveau como estilo, considera o projeto ideológico
que envolvia o projeto artístico com o objetivo de regeneração do nacionalismo francês. Tal
projeto, ao se realizar, foi muito além das fronteiras francesas, chegando inclusive, ao Rio de
Janeiro do início do século. Com uma defasagem de tempo, é possível enxergar um paralelo
na trajetória das relações entre a ideologia do Estado francês (regeneração/ nacionalismo), os
novos caminhos da arte e do design e os movimentos sociais — entre eles o feminismo —, e o
estabelecimento do projeto de regeneração realizado no Rio de Janeiro do início do século.
Dessa forma, vê-se como foi eficaz, principalmente entre a elite, o projeto de civilização/
europeização realizado no Rio de Janeiro. A assimilação do ideário francês do final do século
XIX ocorreu em todos os níveis: na educação, no design, na arquitetura, na urbanização, na
moda, no pensamento e comportamento.
Tanto o Art Nouveau como o Art Déco são estilos decorativos e ornamentais, e possuem
uma trajetória que tem início com a produção restrita de artigos de luxo para mais tarde serem
popularizados em artigos de massa – nesse caso, apesar de trazerem as características
formais, já estavam alterados em relação ao seu sentido original. Enquanto o Art Nouveau está
associado ao período que vai do final do século XIX até a Primeira Guerra Mundial, período
chamado Belle Époque, o Art Déco está associado ao período imediatamente posterior, nas
décadas de 1920 e 1930. No Brasil, estes estilos funcionaram mais como uma afirmação da
modernidade, ambos chegaram aqui com alguma defasagem e foram apropriados avidamente
pelas elites locais. A proliferação dos dois estilos foi surpreendente, especialmente na
arquitetura e na área gráfica — onde as revistas ilustradas tiveram seus grandes momentos,
com belas capas e novos acabamentos. Foi no início do século que livros e periódicos passam
a receber maior atenção dos livreiros e editores em relação ao projeto gráfico e os movimentos
Art Nouveau e Art Déco sustentaram graficamente por algumas décadas a linguagem editorial
no Brasil. A Maçã, como projeto editorial carioca, estava em concordância com a linguagem
artística que florescia no início do século. Explorando graficamente o conceito geral da revista
— a sátira picante, as mulheres, o almofadinha, traição, desejo — utilizou de forma inovadora a
ilustração, a caricatura, a diagramação, logotipos, cores, fazendo delas uma fonte rica de
pesquisa no campo do design gráfico. É possível observar n’A Maçã a transformação do uso do
ornamento. Se no início predominavam os desenhos, ilustrações, caricaturas, a estes vão se
somando os acabamentos tipográficos, indicando uma tendência de ascensão do movimento
Art Déco com a geometrização e supressão gradativa da linha curva e ondulante do Art
Nouveau. O uso do vermelho e preto também é uma característica do Art Déco — combinação
bastante utilizada n’A Maçã; lembram os laqueados, o exotismo oriental, a riqueza da joalheria.
Essa passagem de um estilo para outro, porém, não foi feito de forma rígida, houve muito mais
uma soma e um trabalho constante de busca de novas linguagens gráficas do que apenas
aplicação de fórmulas prontas. A criação da revista, sua malha de diagramação, aplicação de
tipos, ilustrações, o conjunto que determinava a linha gráfica da revista foi desenvolvido com
liberdade e requinte.
Figura 4: liberdade projetual e inovação no design, na linguagem artística e no espaço da capa (1923, 1924, 1925 e 1926)

Os artistas, projetadores da revista, usaram os estilos Art Nouveau e Art Déco como
referência, criando uma identidade para a revista e a posicionando junto ao público e no
mercado editorial da época. Através da comparação com outras revistas da época observa-se
que havia muita preocupação com a qualidade gráfica da revista — desde o projeto até a
impressão e montagem —, com o planejamento do uso de cores e saturação de retículas, com
a qualidade do papel, com o acabamento dos clichês e principalmente com a unidade da
publicação.
A Maçã é um exemplo de projeto editorial cuidadoso, requintado, e é inegável seu valor
estético, literário, histórico e de conteúdo gráfico. Traz em seu corpo conceitos, recursos e
inovações gráficas que são surpreendentes ainda hoje, quando às vezes não são considerados
designers aqueles profissionais pioneiros que ajudaram a consolidar as bases do design
brasileiro.

Conclusão
Essa pesquisa, cujo envolvimento foi essencial para uma assimilação do espírito da revista, de
seus idealizadores, projetadores e do imaginário no qual o Rio de Janeiro estava enredado, foi
uma realização pessoal e profissional. A descoberta d’A Maçã gerou surpresa, alegria e
divertimento. Além disso, proporcionou uma confirmação de que as construções da linguagem
estética podem ser definidas e redefinidas a toda hora. Por outro lado, certificou que a história
é escrita e apresentada de maneiras diversas, privilegiando interesses muitas vezes diferentes
daqueles que sensibilizam o homem. Muitas vezes esse sentimento é atropelado pela massiva
propaganda e repetição — e se dilui.
Ao perguntar a uma pessoa de 90 anos, como era sua vida em 1928, a nostalgia que
aparece não é à toa. As pessoas pareciam estar participando desse questionamento social e
artístico e não apenas aceitando tudo como verdades absolutas. Em algum momento certas
ideologias se sobrepõem e se impõem a outras. É nesse momento que se esquece aos poucos
de que o caminhar para frente pede que se olhe um pouco para trás, para que a partir de novas
descobertas se reinvente o viver cotidiano de uma maneira mais humana e criativa.
Referências
CAMPOS, Humberto de (1954). Diário Secreto. Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro.
CORRÊA DO LAGO, Pedro (1999). Caricaturistas brasileiros. 1836-1999. Rio de Janeiro:
Sextante Artes.
DENIS, Rafael Cardoso (2000). Uma introdução à história do design. São Paulo, Editora
Edgard Blücher, 240p.
JOBLING, Paul; CROWLEY, David (1996). Graphic design: reproduction and representation
since 1800. Manchester, Manchester University Press, 296p.
LIMA, Herman (1963). História da caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio
Editora. 4 vol., 1797p.
LOREDANO, Cassio (1988). Guevara e Figueroa: caricatura no Brasil nos anos 20. Rio de
Janeiro: Instituto Nacional de Artes Gráficas. 131p.
PICANÇO, Macário de Lemos (1935). Humberto de Campos. Rio de Janeiro: Minerva.
SÜSSEKIND, Flora (1987). Cinematógrafo de letras: literatura, técnica e modernização no
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 170p.

Periódicos consultados
A Maçã (fevereiro a dezembro de 1922; janeiro a dezembro 1923; janeiro a julho de 1924;
janeiro a dezembro de 1925; janeiro a setembro de 1926; janeiro a dezembro de 1927; janeiro
a dezembro de 1928; janeiro a março de 1929) 240 exemplares analisados e 131 exemplares
documentados.

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