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DEBATES &

PERSPECTIVAS

CARLOS NELSON COUTINHO

D ESTRUTURRLISMD
E R MISÉRIA DR RRZÃD
Uma análise humanista de nossa época coloca a nu a mutilação
da práxis pela manipulação, a necessária irracionalidade de uma
vida voltada para o consumo supérfluo e humanamente insensa-
to. Uma visão concretamente historicista revela as possibilidades
de mudança e transformação latentes, embora dissimuladas pelas
aparências fetichizadas que se pretendem imutáveis. A dialética,
finalmente, denunciaria a contradição entre um mundo aparen-
temente "organizado" (com os meios de uma razão burocrática)
e a irracionalidade objetiva do conjunto da sociedade, superan-
do assim os limites de uma "razão" que se concentra nas regras,
nos meios, enquanto abandona como incognoscível o conteúdo
e a finalidade da vida e da sociedade.

Carlos Nelson Coutinho

9 788577 431526
Carlos Nelson Coutinho é um
dos mais conhecidos e credibili-
zados pensadores marxistas bra-
sileiros - e não se trata de um
"intelectual acadêmico" (embora
seja livre-docente e professor ti-
tular da Universidade Federal do
Rio de Janeiro): ao longo de sua
vida, sempre vinculou a reflexão
teórica (a crítica filosófica e lite-
rária) e a análise histórico-polí-
tica (especialmente da formação
social brasileira) às lutas sociais
do povo brasileiro, militando em
partidos de esquerda. Sua obra, O ESTRUTURALISMO
que repercute na América La-
E A MISÉRIA DA RAZÃO
tina e na Europa, está marcada
por duas influências essenciais: o
pensamento filosófico de Gyorgy
Lukács e as concepções teórico-
políticas de Antônio Gramsci.

Nunca se recusando ao enfrenta-


mento das principais polêmicas
contemporâneas, Coutinho, nos
anos de 1970, foi um dos primei-
ros teóricos brasileiros a polemi-
zar com um movimento que, à
época, tornou-se uma espécie de
paradigma para a maioria dos
inrdectuais - o estruturalismo:
1111111 gesto de coragem e ousadia,
p11hlicou, em 1972, O estrutura-
li11110 <' 11 miséria da razão. Nessa
olir;1 i11ov;1dora e solidamente
l1111d.1111L·111;1d;1, ( :011ri11ho disse-
' .1 .1s < ondi~ocs liis1úrico-sociais
Carlos Nelson Coutinho

O ESTRUTURALISMO
E A MISÉRIA DA RAZÃO

Posfácio de José Paulo Netto

2ª EDIÇÃO

EDITORA
EXPRESSÃO POPULAR

SÃO PAULO - 2010


Copyright © 1972, by Carlos Nelson Coutinho
Copyright desta edição© 2010, by Editora Expressão Popular

Revisão: Ana Cristina Teixeira


Projeto gráfico, capa e diagramação: ZAP Design
Arte da capa: montagem sobre ilustração de Basquiat
Impressão e acabamento: Cromosete

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicacão ICIPl


Coutinho, Carlos Nelson, 1943-
C871e O estruturalismo e a miséria da razão_/ Carlos Nelson
Coutinho ; posfácio de José Paulo Netto_ --2.ed_ -- São Paulo
Expressão Popular, 201 O_
288p_

Indexado em GeoDados - http://www_geodados_uem_br


ISBN 978-85-7743-152-6

1. Estruturalismo_ L Paulo Netto, José_ li.Título_

CDD 149_96
Catalogação na Publicação: Eliane M_ S_ Jovanov1ch CRB 9/1250

Todos os direitos reservados.


Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada
ou reproduzida sem a autorização da editora.

1ª edição: Paz e Terra, 1972


2ª edição: Expressão Popular, 201 O

EDITORA EXPRESSAO POPULAR


Rua Abolição, 197 - Bela Vista
CEP O1319-01 O - São Paulo-SP À memória de Gyürgy Lukács,
Fone/Fax: (11) 3105-9500 meu mestre.
vendas@expressaopopular.com.br
www.expressaopopular.com.br
E para Leandro Konder,
meu amigo.
SUMÁRIO

NOTA À 2ª EDIÇÃO .......................................................... 9

PREFÁCIO.. . ......... . ....... .... ............................... 15

1 - O PROBLEMA DA RAZÃO NA FILOSOFIA BURGUESA ................ 21


1. O rompimento com a tradição progressista ................ . .................. 23
2. A economia e as categorias filosóficas ........................ . ···················· 31
3. O irracionalismo e a "miséria da razão" .............................. . ....... 44

li - AS CONDIÇÕES HISTÓRICAS DO ESTRUTURALISMO.. .... 61


1. Angústia e segurança...................................... . .... ... ... ... .... ... ... .... .... .. ... 61
2. A ideologia do mundo manipulado ................. ................................ 67

Ili - OS LIMITES DA "RAZÃO" ESTRUTURALISTA ..... 77


1. Linguagem, práxis e razão ........................................................ . .... 80
2. Do neopositivismo ao estruturalismo .......................................... . .... 99

IV - A EVOLUÇÃO DO ESTRUTURALISMO COMO


"CONCEPÇÃO DO MUNDO"................................... . ... .............. 109
1. Lévi-Strauss contra a dialética............................. ..................... 11 O
2. Estruturalismo e literatura: Roland Barthes .............................................. 141
3. O anti-humanismo de Michel Foucault .............. . ························ .. 154

V - AS CONTRADIÇÕES DE LOUIS ALTHUSSER .................... . ........... 175


1. Althusser e o marxismo contemporâneo ................ . ........ 176
2. O esvaziamento de Marx na "leitura" althusseriana ....... . ..... 195

POSFÁCIO ............ . .... ·············· ............ 233


José Paulo Netto
NOTA À 2ª EDIÇÃO

A PRIMEIRA EDIÇÃO DESTE LIVRO foi publicada em 1972, em pleno


contexto do chamado "vazio cultural", consolidado pela radicaliza-
ção da ditadura que se seguiu à promulgação do Al-5. Porém, em
vez de "vazio cultural" - afinal, como não poderia deixar de ser,
continuou-se a produzir cultura em nosso país -, seria mais justo
dizer que vivíamos então num período de cultura esvaziada: esva-
ziada de espírito crítico, de efetiva preocupação com as questões
sociais e políticas. Foi neste contexto que o estruturalismo chegou
ao Brasil, difundindo-se com rapidez entre muitos intelectuais,
sobretudo aqueles ligados à Universidade.
Com sua habitual lucidez, Otto Maria Carpeaux rapidamente
percebeu o papel que essa moda intelectual iria desempenhar na
cultura brasileira da época: no título de um seu brilhante artigo
panfletário de 1967, ele não hesitava em dizer, premonitoriamente,
que "o estruturalismo [era] o ópio dos literatos". A função social
do estruturalismo - uma função que, deve-se ressaltar, independia
em muitos casos da intenção consciente de seus defensores - estava
assim bem definida: consistia em desviar a atenção dos intelectuais
dos temas que haviam marcado a cultura brasileira dos primeiros
dois terços dos anos 1960, quando ainda se podia constatar nela
uma relativa hegemonia da esquerda.
Mas faltava, em nosso país, uma análise crítica da específica
formulação teórica do estruturalismo. Estimulado por uma carta
que Lukács me escreveu em 26 de fevereiro de 1968 - na qual
dizia explicitamente que o estruturalismo era, naquele momento,
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"o maior obstáculo a um desenvolvimento do marxismo" -, resolvi em consequência, passei a dedicar a Gramsci uma atenção maior
redigir um texto teórico de combate ao estruturalismo, baseado do que aquela que lhe havia dedicado até então, quando Lukács
metodologicamente nas indicações ontológicas que o último era a minha grande (e quase única) referência teórica.
Lukács fizera em algumas entrevistas (sua Ontologia do ser social Por tudo isso, passei décadas sem reler meu velho livro. No en-
era ainda inédita na época). Decidi, desde o início, não incluir em tanto, ele sempre me era lembrado pelo querido amigo José Paulo
minha análise crítica os muitos seguidores brasileiros do estrutu- Netto, velho companheiro de batalhas políticas e ideológicas, que
ralismo, mas concentrar-me no exame das ideias dos seus mestres o recomendava com generosa ênfase aos seus muitos alunos. Fui
franceses. Seguia, assim, uma recomendação de Gramsci: na bata- assim frequentemente pressionado (são muitos os nossos alunos
lha das ideias, diz o autor dos Cadernos do cárcere, se queremos ser em comum!). a reeditar o livro; meu velho exemplar foi muitas
eficazes, devemos combater não os representantes débeis de uma vezes emprestado para que se fizessem fotocópias. Apesar disso,
corrente, mas sim os seus principais expoentes. hesitei durante muito tempo em reeditá-lo, não porque tenha
Concluído em 1971, o livro encontrou dificuldades para ser abandonado as ideias centrais que nele defendo, ou porque tenha
editado. Foi recusado, na época, por duas importantes editoras, trocado Lukács por Gramsci (sempre achei que os dois marxistas se
talvez as principais difusoras do estruturalismo no Brasil, às quais complementam!), mas porque considerava o velho livro superado,
eu ingenuamente havia submetido os originais. Finalmente, já em função não só do desaparecimento do estruturalismo como
depois que fora acertada uma edição mexicana (publicada em corrente viva na batalha das ideias, mas sobretudo por causa da
1973), O estruturalismo e a miséria da razão foi editado pela Paz mudança de posição dos autores que nele critico.
e Terra, então dirigida pelos saudosos Ênio Silveira e Moacyr Com efeito, depois da publicação de O estruturalismo, Roland
Félix. O livro não teve muita repercussão. Eram pouquíssimos os Banhes, Michel Foucault e Louis Althusser alteraram bastante
veículos que, na época, abrigavam o debate de ideias no Brasil. suas formulações teóricas. Em vez do formalismo esquemático de
Recebeu algumas críticas (nem sempre vindas de estruturalistas) suas análises críticas da época estruturalista, calcadas num radi-
e uns poucos elogios. cal reducionismo linguístico, Banhes - em suas produções mais
Com a eclosão do Maio de 68 na França, o estruturalismo - tardias - passou a nos chamar a atenção para o "prazer do texto"
expressão ideológica de um mundo aparentemente "seguro" e não ou a nos brindar com "fragmentos de um discurso amoroso". Fou-
contraditório - sofreu um duro golpe. Foi sendo progressivamente cault, por sua vez, desviou seus esforços analíticos da aborrecida
abandonado, inclusive pelos seus principais representantes (a "arqueologia do saber" para propor interessantes reflexões sobre a
grande exceção foi Lévi-Strauss, que se manteve fiel a suas velhas "genealogia do poder", as quais - ainda que também problemáti-
ideias até sua recente morte), cedendo lugar - numa época em cas (não me parece possível elaborar uma "microfísica do poder"
que o prefixo "pós" designa as principais expressões da filosofia desvinculada de uma teoria do Estado) - certamente o situam para
burguesa - aos chamados pós-estruturalistas e pós-modernistas. além dos limites do estruturalismo; de resto, o último Foucault
Quanto a mim, obrigado a buscar o exílio em 1976, senti-me libe- abandonou a antiga e declarada "paixão pelo sistema", tanto que
rado para me ocupar cada vez mais de questões de teoria política; se empenhou ativamente na defesa de algumas boas causas polí-
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ticas. Já Althusser, mesmo antes da tragédia em que se envolveu, estruturalistas, certamente perderam atualidade; mas, além de
publicou várias autocríticas, tentando desvincular seu nome da apresentarem digressões sobre a filosofia marxista que ainda me
corrente estruturalista e buscando intervir nas lutas internas do parecem válidas, podem ser considerados - com boa vontade! -
seu Partido; nos últimos anos de vida, além de escrever uma bela como modestas contribuições à história das ideias no século 20.
e sofrida autobiografia, empenhou-se em defender e justificar Coloquei uma condição para autorizar a reedição de O estrutu-
um "materialismo aleatório'', o qual - embora tão problemático ralismo: que José Paulo Netto, que tanto insistiu para essa reedição,
quanto suas posições dos anos 1960 - já não tinha muito a ver escrevesse para ela um posfácio no qual, além de situar o livro em
com o estruturalismo. Isso fez com que, felizmente, não se cum- seu tempo, estendesse até nossos dias o combate lukacsiano nele
prissem as sombrias previsões que eu fizera no meu livro - ainda proposto contra as tendências complementares do irracionalismo e
que apresentadas cautelosamente como meras possibilidades -, ou do racionalismo formal. Como José Paulo aceitou generosamente
seja, a de que Foucault poderia vir a ser o profeta de um mundo meu convite, senti-me desobrigado de fazer qualquer alteração
inteiramente manipulado, ou que Althusser corria o risco de se no velho livro: ele é aqui reproduzido tal como foi publicado em
converter no teórico do neoestalinismo. 1972, com mínimas mudanças de estilo e correções dos poucos
Por tudo isso, supus durante muito tempo que, para autorizar erros de revisão. Espero que José Paulo esteja certo ao supor - e
uma reedição de O estruturalismo, eu teria de reescrever quase convencer disso tantos dos seus (e dos meus) alunos! - que esta
todo o livro, sobretudo seus capítulos IV e V. E essa tarefa não reedição vale a pena.
me atraía, não só porque estava empenhado no exame de outros
temas, mas sobretudo porque dessa eventual reescrita surgiria não C. N. C.
uma reedição atualizada, mas um novo livro, que não estava dis- Rio de Janeiro, outubro de 2009
posto a escrever. José Paulo e meus alunos, porém, tanto insistiram
que, num momento proustiano de busca do tempo perdido, resolvi
reler o livro, escrito há quase quarenta anos. Minha impressão -
devo confessar sem falsa modéstia! - foi positiva.
É evidente que não escreveria hoje um livro similar. Tampouco
me senti estimulado pela ideia de reescrevê-lo. Mas a releitura de O
estruturalismo levou-me a reavaliar a oportunidade de republicá-lo
sem nenhuma alteração. Em seus três primeiros capítulos, ele me
pareceu conservar atualidade em sua crítica às duas principais cor-
rentes da filosofia burguesa pós-hegeliana, ou seja, a "destruição"
e a "miséria" da razão, as quais - embora sob novas formas - con-
tinuam presentes no cenário político-ideológico de hoje. Os dois
últimos capítulos, que tratam das posições de específicos autores
PREFÁCIO

NESTES ÚLTIMOS ANOS - DESDE QUE entrou "em moda" - o


estruturalismo tornou-se um dos temas dominantes da cultura
moderna. Propondo-se como um método rigorosamente "cien-
tífico", capaz de superar o irracionalismo existencialista e a vazia
abstratividade de um "humanismo" pseudomarxista, a "nova"
filosofia rapidamente conquistou adeptos entusiastas em várias
partes do mundo ocidental, penetrando e influenciando círculos
bastante heterogêneos. No Brasil (por motivos que aqui não pode-
mos analisar), essa penetração ocorreu de um modo talvez ainda
mais intenso; o estruturalismo, em suas várias versões, conquistou
- sobretudo a partir de 1968 - não apenas setores substanciais
da nova geração intelectual, mas inclusive alguns significativos
representantes da geração anterior. Assim, independentemente de
concordarmos ou não com suas formulações teóricas, devemos
admitir que o estruturalismo transformou-se numa corrente viva,
atuante e significativa da cultura ocidental de nossos dias.
Por outro lado, quase contemporaneamente às suas primeiras
formulações, o estruturalismo encontrou vigorosos opositores.
Entretanto, a verdadeira natureza histórica e sistemática dessa
corrente nem sempre foi corretamente avaliada, mesmo por aqueles
que intuíram com sagacidade o seu caráter altamente problemá-
tico. Em grande parte, tais opositores (inclusive os brasileiros)
pertenciam precisamente às duas correntes denunciadas - com re-
lativa justeza - pelo estruturalismo, ou seja, ao irracionalismo e ao
pseudo-humanismo marxistizante. A polêmica, assim, convertia-se
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frequentemente num debate estéril: às unilateralidades estrutura- dialética. Renunciando a esses instrumentos categoriais, caracteri-
listas, contrapunham-se unilateralidades similares, embora de sinal zados por sua dimensão crítica, o pensamento "modernista" - em
contrário. Com isso, o debate terminava por reforçar as posições suas duas faces - capitula diante da positividade fetichizada do
adversárias, pois - na medida em que cada um dos opositores mundo contemporâneo.
denunciava as unilateralidades alheias - justificava com isso suas A ponte entre o irracionalismo e o "racionalismo" formal
próprias unilateralidades. Em vez da "cientificidade" estruturalista, é constituída pelo agnosticismo. Confundindo a razão com o
propunha-se um humanismo ideológico, subjetivista e retórico; intelecto, a apropriação humana da objetividade com a manipu-
contra um "racionalismo" formalista, limitado e objetivamente lação técnica ou burocrática de "dados", as correntes formalistas
agnóstico, defendia-se uma "imaginação" intuitiva, irracionalista desembocam.num agnosticismo mais ou menos radical. Esferas
e anticientífica; à negação da história como dimensão objetiva do fundamentais da realidade objetiva - exatamente as denotadas
real, opunha-se um historicismo abstrato, igualmente irracionalista pelas categorias de dialética, história e humanismo - são decla-
e subjetivista. radas incognoscíveis, "falsos problemas'', e, consequentemente,
O presente livro pretende analisar o estruturalismo à luz de lançadas no terreno da irrazão e do irracionalismo. Os limites
uma posição mais universal, mais dialética, capaz de superar si- do racionalismo formal, portanto, são o ponto de partida para a
multaneamente as unilateralidades estruturalistas e irracionalistas arbitrariedade irracionalista.
(ou parairracionalistas). Embora aparentemente opostas, essas Essa corrente agnóstica, decerto, é bem mais ampla e mais
posições unilaterais são complementares. Tanto o irracionalismo antiga que o estruturalismo. Suas primeiras manifestações po-
quanto o "racionalismo" formalista (do qual o estruturalismo é dem ser vistas no positivismo "clássico" de Comte, na economia
apenas uma manifestação) são expressões necessárias do pensa- vulgar, na sociologia formalista de Durkheim e nas várias versões
mento ideológico da burguesia contemporânea, incapaz de aceitar do neokantismo cientificista. Manifesta-se, depois, nas pesquisas
a razão dialética, a dimensão histórica da objetividade, a riqueza epistemológicas que desembocaram no neopositivismo lógico,
humanista da práxis. O predomínio de uma ou outra posição - onde o agnosticismo assume dimensões extremadas; combinada
como tentaremos indicar - depende de causas históricas. Quando com elementos irracionalistas, domina também no pragmatismo
atravessa momentos de crise, a burguesia acentua ideologicamente norte-americano. Finalmente, reaparece em nosso tempo sob
o momento irracionalista, subjetivista; quando enfrenta períodos várias formas, entre as quais o estruturalismo destaca-se por ser
de estabilidade, de "segurança", prestigia as orientações fundadas a mais significativa, universal e "sistemática". Mas não é a única:
num "racionalismo" formal. Do ponto de vista filosófico, essa o formalismo agnóstico manifesta-se, por exemplo, na redução
unidade essencial das duas posições aparentemente opostas reflete- da economia a uma manipulação pragmática de dados; no quan-
se no fato de ambas abandonarem os três núcleos categoriais que titativismo puramente estatístico da sociologia norte-americana
o marxismo herdou da filosofia clássica - elaborada pela própria (desmistificada brilhantemente por Wright Mills, em A imaginação
burguesia em sua fase ascendente - e que são, precisamente, o sociológica); nas teorias da comunicação ligadas às "pesquisas" de
historicismo concreto, a concepção do mundo humanista e a razão Marshall McLuhan; nas várias orientações semântico-linguísticas
18 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO
, CARLOS NELSON COUTINHO • 19

ou "informáticas" da estética e da crítica contemporâneas etc. Em seja, no quadro do marxismo contemporâneo, fomos obrigados a
nosso livro, sugerimos como designação geral dessa corrente a ex- tratá-la num capítulo à parte; mas isso, se serve para sublinhar a
pressão "miséria da razão", baseada numa analogia com a célebre diversidade da gênese histórica e da problemática de Althusser, não
fórmula - "destruição da razão" - usada por Lukács para designar deve obscurecer - esperamos - a similaridade essencial entre as
o irracionalismo. Com "miséria da razão'', queremos significar o respostas teóricas althusserianas e as do movimento estruturalista
radical empobrecimento agnóstico das categorias racionais, redu- em seu conjunto.)
zidas às simples regras formais intelectivas que operam na práxis Finalmente, gostaria de ressaltar que o ponto de vista que
manipulatória. adoto neste livro - como em meus demais trabalhos - é aquele
Embora este livro apresente um breve esboço histórico da "mi- explicitado nas obras da maturidade de Gyõrgy Lukács. (Isso sig-
séria da razão" e indique algumas de suas características teóricas nifica, portanto, que minha crítica ao estruturalismo nada tem em
gerais, não tem a menor pretensão de esgotar - nem histórica nem comum com a de Roger Garaudy e só parcialmente se identifica
sistematicamente - os problemas levantados por essa corrente. com as de Lucien Goldmann, Jean-Paul Sartre e Henri Lefeb-
Nossa análise crítica visa somente a alguns dos seus representan- vre.) São precisamente as posições lukacsianas que contraponho,
tes contemporâneos, precisamente os estruturalistas franceses, enquanto justo tertium datur, às unilateralidades estruturalistas
que - graças à universalidade e à "sistematicidade" de suas con- ou irracionalistas (e, em geral, "historicistas" ou "humanistas"
cepções - ocupam um lugar privilegiado no seio da corrente. Por abstratas). Dentro de minhas limitações, pretendo contribuir para
outro lado, ao tratarmos, em conjunto, de pensadores certamente desenvolver e atualizar a crítica lukacsiana da cultura burguesa,
diversos entre si, como Lévi-Strauss, Foucault ou Althusser, não crítica que atingiu um nível de generalização histórico-universal na
pretendemos de nenhum modo minimizar essa diversidade, cujas notável e sempre atual A destruição da razão. Em suas últimas en-
causas e efeitos histórico-sistemáticos analisaremos no curso de trevistas e ensaios, Lukács tentou completar sua magistral análise
nossa exposição. Mas tais diversidades - como também procura- do irracionalismo com uma crítica das variadas versões da corrente
remos demonstrar - manifestam-se no interior de uma unidade agnóstica, ou seja, daquele empobrecimento da razão que integra,
essencial, assegurada inicialmente pela "miséria da razão" que complementa e reforça os mitos irracionalistas. (Essa denúncia
todos praticam, mas também pelo modo essencialmente similar já aparece, se bem que de modo ainda vacilante e insatisfatório,
por meio do qual transformam as regras formais intelectivas como reconheceria o próprio Lukács em seu último período, no
(confundidas com a racionalidade em geral) em realidade objetiva "Epílogo" de A destruição da razão.)
existente acima dos homens concretos. Nesse sentido, acreditamos O presente livro tem assim como objetivo concretizar essa
que a peculiaridade do estruturalismo no seio da orientação ag- crítica, esclarecendo teoricamente os limites e as contradições da
nóstica resida na substituição do idealismo subjetivo, próprio dos versão up to date da "miséria da razão". Mas é preciso lembrar
neopositivistas lógicos, por uma nova modalidade de idealismo que essa crítica lukacsiana da cultura burguesa articula-se orga-
objetivo. (Dado que a problemática de Althusser coloca-se num nicamente - e exatamente disso decorre sua grandeza - com a
contexto histórico-teórico diverso dos demais estruturalistas, ou explicitação e sistematização de uma ontologia autenticamente
20 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA OA RAZÃO

materialista e dialética, capaz de responder adequadamente aos 1· O PROBLEMA DA RAZÃO


impasses filosófico-teóricos de hoje. A obra de Lukács, infeliz-
NA FILOSOFIA BURGUESA
mente, ainda não se tornou um patrimônio comum de todos os
socialistas. Por isso, se o presente livro contribuir não apenas para
indicar os limites do estruturalismo, mas também para ressaltar
a universalidade e a atualidade das posições de Lukács, terá então
cumprido plenamente a tarefa a que se propõe.
NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA BURGUESA, é possível discernir - com
C.N.C. relativa nitidez - duas etapas principais. A primeira, que vai dos
Rio de Janeiro, julho de 1971 pensadores renascentistas a Hegel, caracteriza-se por um movi-
mento progressista, ascendente, orientado no sentido da elaboração
de uma racionalidade humanista e dialética. A segunda - que se
segue a uma radical ruptura, ocorrida por volta de 1830-1848 - é
assinalada por uma progressiva decadência, pelo abandono mais
ou menos completo das conquistas do período anterior, algumas
definitivas para a humanidade, como é o caso das categorias do
humanismo, do historicismo e da razão dialética. Essa desconti-
nuidade da evolução filosófica corresponde naturalmente à própria
descontinuidade objetiva do desenvolvimento capitalista. O an-
tagonismo entre progresso e reação, que marca desde as origens a
evolução da sociedade burguesa, apresenta, a partir de 1848, um

l novo aspecto: as tendências progressistas, antes decisivas, passam


a subordinar-se a um movimento que inverte todos os fatores de
progresso (que certamente continuam a existir) ao transformá-los
em fonte do aumento cada vez maior da alienação humana. Do
ponto de vista imediatamente social e político, essa inversão tem
sua gênese no surgimento de uma contradição antagônica entre as
classes que outrora formavam o Terceiro Estado. Enquanto numa

l
primeira etapa de seu desenvolvimento a burguesia representava
objetivamente os interesses da totalidade do povo, no combate à
reação absolutista-feudal, agora o proletariado surge na história
como classe autônoma, em-si e para-si, capaz de resolver em

l
22 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 23

sentido progressista as novas contradições geradas pelo próprio 1. O ROMPIMENTO COM A TRADIÇÃO PROGRESSISTA
capitalismo triunfante. Assim, se a tarefa ideológica da burguesia revolucionária fora
Na época em que a burguesia era o porta-voz do progresso a conquista da realidade por uma razão explicitada em todas as
social, seus representantes ideológicos podiam considerar a reali- suas determinações, essa tarefa - na época da decadência - con-
dade como um todo racional, cujo conhecimento e consequente siste precisamente em negar ou em limitar o papel da razão no
domínio eram uma possibilidade aberta à razão humana. Desde a conhecimento e na práxis dos homens. A dissolução da filosofia
teoria de Galileu de que "a natureza é um livro escrito em lingua- de Hegel, na qual a identidade do real e do racional encontra a sua
gem matemática" até o princípio hegeliano da "razão na história", mais radical expressão nos quadros do pensamento burguês, segue
estende-se uma linha que - apesar de suas sinuosidades - afirma duas orientaç.óes, uma "de esquerda" e outra "de direita". Pode
claramente a subordinação da realidade a um sistema de leis ra- manifestar-se como desenvolvimento superior do "núcleo racional"
cionais, capazes de serem integralmente apreendidas pelo nosso do pensamento hegeliano, ou então implicar um abandono que
pensamento. Ao tornar-se uma classe conservadora, interessada representa objetivamente uma regressão. O primeiro movimento,
na perpetuação e na justificação teórica do existente, a burguesia efetivado pelo marxismo, é a expressão filosófica do processo pelo
estreita cada vez mais a margem para uma apreensão objetiva e qual o proletariado recolhe a bandeira abandonada pela burgue-
global da realidade; a razão é encarada com um ceticismo cada vez sia, supera seus limites e contradições, elevando a racionalidade
maior, ou renegada como instrumento do conhecimento ou limi- dialética a um nível superior, materialista. A crítica "direitista" de
tada a esferas progressivamente menores ou menos significativas Hegel, ao contrário, abandona como "inadequadas" as conquistas
da realidade. Referindo-se à revolução europeia de 1848, na qual a fundamentais do período anterior; conserva apenas, desse período,
burguesia traiu definitivamente a causa do progresso social, Marx os momentos regressivos, marginais àquele movimento racionalista
indica as raízes reais dessa ruptura no seio da evolução cultural que culminaria na dialética, no humanismo e no historicismo.
burguesa: Antes de prosseguir, trata-se de dissipar um possível mal-
A burguesia tinha uma exata noção do fato de que todas as armas que entendido. A ruptura que estamos analisando não se processa
forjara contra o feudalismo voltavam seu gume contra ela, que todos os com a totalidade do pensamento anterior, mas sim com a tradi-
meios de cultura que criara rebelavam-se contra sua própria civilização, ção progressista que constitui a essência desse pensamento. Em
que os deuses que inventara a tinham abandonado. 1 muitos pontos, decerto, verifica-se uma relação de continuidade
Entre o que a burguesia agora apressava-se a abandonar estava, entre a filosofia da decadência e a filosofia burguesa da época re-
talvez em primeiro lugar, a categoria da razão. volucionária. Absolutizando tais pontos, isolando-os do contexto
histórico global, a historiografia filosófica vulgar (pseudomarxista
ou burguesa) estabelece inúmeras falsas identificações: entre o
positivismo de Comte e o materialismo iluminista do século 18,
entre Descartes e o existencialismo, entre Kant e os neokantianos
Karl Marx, O 18 brumário de Luis Bonaparte. ln: K. Marx e F. Engels, Obras
escolhidas. Rio de Janeiro, Vitória, 1956, v. l, p. 261. etc. Uma análise mais profunda, porém, revela uma ruptura por
24 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA OA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 25

trás da aparente continuidade. E isto porque não se pode falar de uma relação desse tipo, a análise atenta demonstra que o filósofo
continuidade real em face de casos nos quais se verifica uma assi- assimilado não pertencia à tradição progressista, ou seja, desem-
milação unilateral (e deformada) de meros fragmentos de doutri- penhava já em seu tempo um papel reacionário diante da corrente
nas anteriores, os quais - desligados da totalidade do pensamento dominante (Berkeley diante do materialismo inglês, Pascal diante
originário e da evolução filosófica na qual esse pensamento, mesmo de Descartes). O fato de que seja assimilado, na maioria dos casos,
em suas limitações, aparecia como uma etapa necessária - revelam exatamente o aspecto mais reacionário do pensador em questão (o
frequentemente um caráter não apenas diverso, mas até mesmo irracionalismo de Pascal, o agnosticismo de Hume) é mais uma
contrário ao que possuíam originariamente. confirmação do que afirmamos.
Analisaremos posteriormente, nesse sentido, a relação dos Mas como poderíamos definir, em suas linhas mais gerais,
estruturalistas com Kant. Por enquanto, basta-nos lembrar um essa tradição progressista? O capitalismo, em dado momento,
exemplo concreto de distorção; enquanto o cogito cartesiano é um representou - não só no plano econômico-social, mas também no
instrumento desantropomorfizador, a preparação da subjetividade cultural - uma extraordinária revolução na história da humani-
para um contato despido de preconceitos com a realidade objeti- dade. Seu nascimento e explicitação implicavam a atualização de
va, o cogito existencialista ou fenomenológico é, ao contrário, um possibilidades apenas latentes na economia feudal desenvolvida,
fechamento diante dessa realidade, o ponto de partida para uma atualização que dependia, por sua vez, da dissolução e desintegra-
radical confusão antropomorfizadora e irracionalista entre sub- ção das relações feudais de produção, de suas formas de divisão do
jetividade e objetividade. 2 Diante de tais casos, portanto, vemos trabalho. Esse caráter objetivamente progressista do capitalismo
precisamente um rompimento com a tradição progressista; não se permitia aos pensadores que se colocavam do ângulo do novo a
trata de uma real continuidade, mas antes do fato de que as filo- compreensão do real como síntese de possibilidade e realidade,
sofias da decadência "tiram vantagem de onde podem" (Moliere), como totalidade concreta em constante evolução. Sem compro-
ou seja, utilizam elementos filosóficos fetichizados num sentido missos com a realidade imediata, os pensadores burgueses não
oposto ao originário. limitavam a razão à classificação do existente, mas afirmavam seu
Em outros casos, porém, pode-se falar efetivamente de uma ilimitado poder de apreensão do mundo em permanente devir.
continuidade real. Penso aqui na relação orgânica que existe, De Bruno a Hegel, passando por Spinoza e Vico, observamos
por exemplo, entre Berkeley ou Hume e o neopositivismo empi- no pensamento da época o nascimento de uma nova dialética
riocriticista, entre Pascal e os existencialistas etc. Mas tais casos racional, que apresentava - em relação à dialética primitiva dos
não alteram a justeza de nossa periodização; quando se estabelece gregos - o inegável mérito de se basear sobre o reflexo de um ser
social bem mais complexo e articulado. À conquista da natureza
"Em todas as tendências epigonais que querem navegar, com a ajuda do prefixo pela racionalidade matemática, responsável pelo extraordinário
'neo', sob a bandeira de uma escola considerada clássica, converteu-se em norma florescimento das ciências físicas, alia-se - nos mais destacados
a fixação no retrógrado de tal escola, ao mesmo tempo em que se eliminam com
grande facilidade todos os sinais de verdadeira grandeza." (Adam Schaff, Lenguaje pensadores da época - uma explícita afirmação do caráter racional
y conocimiento. México, Grijalbo, 1967, p. 21). dos processos histórico-sociais; à dialética cósmica de Bruno ou
CARLOS NELSON COUTINHO • 27
26 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO

1
de Spinoza, vem juntar-se a específica dialética histórica de Vico, frase, ao lado do princípio humanista, pode-se perceber ainda a
Herder e Hegel. A compreensão do real como totalidade submeti- afirmação de uma racionalidade objetiva, de um sistema de leis
da a leis e a afirmação da historicidade dos processos objetivos são que - embora decorra da ação humana - é superior ao arbítrio
momentos determinantes da nova racionalidade em elaboração. dos sujeitos individuais. De acordo com a época, esse humanismo
Ademais, num outro setor do pensamento da época clássica, e essa racionalidade ainda são formulados em termos idealistas.
na economia política inglesa, desenvolve a teoria da relação orgâ- Somente os homens - diz Vico - fizeram esse mundo; e esse é o primeiro
nica entre realidade social e atividade humana, que assume - no e indiscutível princípio desta [nova] ciência. Mas tal mundo surgiu, sem

plano da práxis econômica - a forma da relação entre trabalho e dúvida, de um espírito quase sempre diverso, às vezes inteiramente contrá-
mercadoria. Deve-se observar que o papel ativo da ação humana rio e sempr.: superior às finalidades particulares que os homens se haviam

na formação da objetividade social já fora percebido pela filosofia proposto; essas finalidades restritas, transformadas em meios para servir
burguesa progressista; assim, no iluminismo francês, a passagem a finalidades mais amplas, foram sempre utilizadas [por aquele espírito]
do reino da irrazão (do absolutismo feudal) para o da razão (o do para conservar a geração humana nesta terra. 4
capitalismo liberal) aparecia como a tarefa dos próprios homens. Hegel concretizaria essa ontologia dialética do ser social em sua
Contudo, nos iluministas, a ação humana ainda era concebida de teoria da "astúcia da Razão", ao ligar a ação humana e a legalidade
um modo abstrato, individualista e idealista, ou seja, como uma objetiva que dela decorre às suas raízes econômicas.
ação pedagógico-espiritual de "esclarecimento". Já nos economis- As ações dos homens - afirma Hegel - derivam de suas necessidades, de
tas clássicos ingleses (Smith, Ricardo), essa ação é determinada a suas paixões, de seus interesses, de seu caráter e de seus talentos, de modo
partir de sua base real, o trabalho econômico; mas inexiste em tais que, nesse espetáculo de atividade, são apenas tais necessidades, paixões,
economistas a generalização filosófica capaz de deduzir da teoria interesses, que aparecem como as instâncias e intervêm como o fator
do valor-trabalho todas as suas consequências para uma ontologia principal (... ). Mas, na história universal, resulta das ações dos homens
dialética do homem e da história. Uma grandiosa síntese (embora em geral uma coisa diversa daquilo que eles projetam e atingem, daquilo
ainda idealista) da dialética racional e da economia seria tentada
por Hegel; ela lhe permitiria chegar à fundamental teoria humanis-
ta de que o homem é o produto de sua própria atividade histórica
e coletiva, bem como à tese racionalista de que essa autoprodução
é um processo submetido a leis objetivas e dialéticas. 3
I que eles sabem e querem imediatamente. 5
E é precisamente em Hegel - ponto terminal e culminação dessa
trajetória ascendente - que podemos indicar, em toda a sua riqueza
de determinações, as categorias essenciais daquilo que chamamos de
tradição progressista, categorias que constituem o legado imperecível
Esse movimento de construção de uma nova razão é admi-
ravelmente resumido numa frase do italiano Giambattista Vico,
1 dessa grande época da humanidade para o conhecimento do real. O
mérito essencial de Hegel reside nessa sua capacidade de sintetizar
um dos maiores representantes da tradição progressista. Nessa e elevar a um nível superior todos os momentos progressistas do

Para a relação entre economia e dialética em Hegel, cf. G. Lukács, Il giovane Hegel G. Vico, La scienza nuova [1744]. Milão: Rizzoli, 1963, v. 2, p. 590.
e i problemi delta società capitalistica. Turim, Einaudi, 1961, passim. G. W. F. Hegel, Leçons sur la philosophie de l'histoire. Paris, Vrin, 1963, p. 29 e 33.

1
28 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 29

pensamento burguês revolucionário. Podemos resumi-los, esquema- senta não apenas uma ruptura no interior da filosofia burguesa, o
ticamente, em três núcleos: o humanismo, a teoria de que o homem abandono daquela trajetória, mas também a necessária decadência
é um produto de sua própria atividade, de sua história coletiva; o e empobrecimento daqueles pensadores que, depois de Hegel, dei-
historicismo concreto, ou seja, a afirmação do caráter ontologicamente xam de lado mais ou menos inteiramente o seu conceito de razão.
histórico da realidade, com a consequente defesa do progresso e do É ainda pelo mesmo motivo que o desenvolvimento crítico da
melhoramento da espécie humana; e, finalmente, a razão dialéti- tradição progressista, efetivado pelo marxismo, parte diretamente
ca, em seu duplo aspecto, isto é, o de uma racionalidade objetiva de Hegel e não de outro qualquer de seus predecessores ou suces-
imanente ao desenvolvimento da realidade (que se apresenta sob a sores.7 Assim, não é arbitrário afirmar que o rompimento com a
forma da unidade dos contrários), e aquele das categorias capazes tradição progressista pode ser considerado, imediatamente, como
de apreender subjetivamente essa racionalidade objetiva, categorias um rompimento com o pensamento de Hegel.
estas que englobam, superando, as provenientes do "saber imediato" Esse rompimento apresenta uma peculiaridade relevante. A
(intuição) e do "entendimento" (intelecto analítico) filosofia da época clássica era uma forma de conhecimento aberta
Decerto, esses três núcleos categoriais não se encontram, em para a elaboração de um saber verdadeiro, desantropomorfizador,
sua totalidade sintética, em cada um dos filósofos progressistas científico, ainda que não estivesse inteiramente liberta de deforma-
considerado individualmente. Mas, em maior ou menor pro- ções ideológicas. Embora fosse na época uma classe progressista,
porção, cada um deles contribuiu para a síntese hegeliana, como a burguesia funda objetivamente um regime de exploração e é
o próprio Hegel reconheceu em suas Lições sobre a história da limitada pelas formas de divisão do trabalho que esse regime intro-
filosofia. Seria um imenso erro, por exemplo, contrapor, de modo duz na vida social. Por isso, ao mesmo tempo em que elabora um
absoluto, a linha "racionalista" concentrada na compreensão da conhecimento objetivo de aspectos essenciais da realidade, tende
natureza à linha que poderíamos chamar de "histórico-dialética". a deformar ideologicamente várias categorias desse processo. O
A trajetória que vai de Vico a Herder - observa Lukács - é uma trajetória idealismo objetivo do próprio Hegel é um exemplo evidente; sua
de desenvolvimento, enriquecimento e aperfeiçoamento da razão, do teoria do "fim da história'', a mística afirmação de uma absoluta
mesmo modo como a que parte de Descartes ou Bacon. Por certo, surgem identidade entre sujeito e objeto, são posições ideológicas a serviço
aqui divergências muito importantes, até mesmo oposições, mas são todos da justificação da positividade capitalista.
eles contrastes no interior do mesmo campo, no qual assistimos à luta por Estamos aqui, como em geral durante o período ascendente
uma filosofia baseada na racionalidade do mundo. 6 da burguesia, diante da permanência de momentos ideológicos no
Hegel, como dissemos, é o principal depositário dessa trajetó- interior de uma posição essencialmente voltada para a representa-
ria. Exatamente por isso, a dissolução do seu pensamento repre- ção científica do mundo; na filosofia da decadência, ao contrário,
vemos um abandono mais ou menos integral do terreno científico.

G. Lukács, El asalto a la razón. México, Fondo <le Cultura Económica, 1959, p.


103. Cabe lembrar que, no original alemão, este livro se intitula Die Zerstorung Essa constatação está longe de ser pacífica entre os marxistas. Lenin foi o primeiro,
der Vernunft, ou seja, A destruição da razão. após Marx e Engels, a afirmá-la categoricamente.
30 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 31

Nas questões decisivas da concepção do mundo e da teoria do fundado na intuição arbitrária, ou um profundo agnosticismo
real, ou seja, na ética e na ontologia, a filosofia da decadência é decorrente da limitação da racionalidade às suas formas puramente
inteiramente ideológica. Os momentos de um saber verdadeiro, intelectivas.
quando continuam a se manifestar, limitam-se cada vez mais às
ciências particulares; no domínio filosófico, apenas os setores 2. A ECONOMIA E AS CATEGORIAS FILOSÓFICAS
menos explosivos, corno a lógica formal, podem apresentar um O fator fundamental dessa crescente ideologização não reside,
desenvolvimento efetivo. Adernais, mediante um intenso processo decerto, numa direta intencionalidade de classe; embora sirvam à
de especialização, consegue-se neutralizar as descobertas parciais conservação do existente, o irracionalismo e o agnosticismo nem
e impedir que tenham repercussão na ética e na ontologia. Essas sempre são conscientemente elaborados a partir dos interesses ime-
duas disciplinas filosóficas básicas são, em geral, afastadas do âm- diatos da burguesia. Seu caráter conservador deve ser buscado na
bito da ciência e declaradas irracionais. sujeição de ambos aos limites impostos, na superfície da realidade,
As categorias do humanismo, do historicismo e da razão dialé- pela divisão capitalista do trabalho e por suas consequências sociais
tica são os únicos instrumentos capazes de fundar cientificamente a e culturais. O critério para avaliar a cientificidade de urna filosofia
ética e a ontologia. Por isso, a tendência ideologizante da decadên- do social reside no modo pelo qual ela apreende (ou ignora, ou
cia começa exatamente por romper com tais categorias. Importa mistifica) as categorias econômicas, que constituem a modalidade
pouco saber corno se opera esse rompimento, se por meio de urna fundamental da objetividade humana.
polêmica aberta contra a filosofia clássica (reação de Kierkegaard Essa forma indireta de determinação social do pensamento
a Hegel etc.) ou se mediante urna "correção" ou "interpretação" foi claramente explicitada por Marx, numa passagem em que,
do conteúdo real de referidas categorias (Hegel transformado em referindo-se às controvérsias ideológicas da Revolução de 1848,
irracionalista pelos neo-hegelianos, Kant num positivista vulgar generaliza suas observações:
pelos neokantianos etc.). O que realmente interessa é assinalar o Não se deve formar a concepção estreita de que a pequena burguesia, por
caráter nitidamente ideológico das novas categorias "corrigidas" princípio, visa impor um interesse de classe egoísta. Ela acredita, ao con-
que ocupam agora o primeiro plano. Em lugar do humanismo, trário, que as condições especiais para sua emancipação são as condições
surge ou um individualismo exacerbado que nega a sociabilidade gerais sem as quais a sociedade moderna não pode ser salva nem evitada
do homem, ou a afirmação de que o homem é urna "coisa", ambas a luta de classes. Não se deve imaginar, tampouco, que os representantes
as posições levando a urna negação do momento (relativamente) democráticos sejam na realidade todos shopkeepers (lojistas) ou defensores
criador da práxis humana; em lugar do historicismo, surge urna entusiastas desses últimos. Segundo sua formação e posição individual,
pseudo-historicidade subjetivista e abstrata, ou urna apologia da podem estar tão longe deles como o céu da terra. O que os torna repre-
positividade, ambas transformando a história real (o processo de sentantes da pequena burguesia é o fato de que sua mentalidade não
surgimento do novo) em algo "superficial" ou irracional; em lu- ultrapassa os limites que essa classe não ultrapassa na vida, de que são
gar da razão dialética, que afirma a cognoscibilidade da essência consequentemente impelidos, teoricamente, para os mesmos problemas e
contraditória do real, vemos o nascimento de um irracionalismo soluções para os quais os interesses materiais e a posição social impelem,
32 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO
CARLOS NELSON COUTINHO • 33

na prática, a pequena burguesia. Essa é, em geral, a relação que existe


mação do servo da gleba em trabalhador "livre", o que representa
entre os representantes políticos e literários de uma classe e a classe que
objetivamente uma ampliação da liberdade humana, da unificação
representam. 8
do gênero humano, com a dissolução da subordinação do indiví-
Nesse trecho marxiano, é fundamental a indicação de que
duo aos limites previamente traçados pelo estamento feudal. Em
a ideologia decorre não apenas da capitulação à espontaneidade segundo lugar, o desenvolvimento da indústria - mesmo em sua
imediata da vida, ao aparecer fenomênico da economia, mas tam-
fase manufatureira - traz consigo uma intensa generalização da
bém da confusão - ligada àquela capitulação - entre o especial e
socialização do trabalho; em vez do trabalho individual, artesanal
o geral, o particular e o universal.
e autárquico, a nova organização laborativa requer uma coopera-
A indicação de Marx coloca-nos assim uma tarefa: indagar
ção não apenas no interior da fábrica singular, mas também uma
quais são esses limites objetivos impostos pela vida imediata, pela
integração orgânica dos vários ramos da produção; com isso,
divisão capitalista do trabalho, ao pensamento da decadência.
torna-se muito mais evidente a natureza da sociedade como tota-
Como estamos tratando de um rompimento, julgamos necessá-
lidade orgânica. Essa crescente socialização encontra outro apoio
rio esboçar o modo pelo qual a filosofia clássica enfrentava esse
na criação pelo capitalismo de um mercado mundial, sobre cuja
problema. Decerto, os pensadores dessa época sofriam também
base erige-se agora uma cultura universal. Surge, pela primeira vez,
limitações impostas pela divisão do trabalho, responsáveis pelos
a possibilidade de compreender o real a partir da perspectiva de
traços ideológicos aos quais já nos referimos. Dentre elas, a mais
uma humanidade objetivamente unificada, ou, como diria Kant,
importante é a separação que o capitalismo estabelece entre tra-
de tratar "a história universal de um ponto de vista cosmopolita".
balho manual e trabalho intelectual, que impediu a elaboração
A nova objetividade capitalista, desse modo, permite elevar a
de uma noção materialista da práxis e chegou a transformar a
conceito aquilo que antes só existia como virtualidade, ou seja, a
síntese hegeliana - a mais elevada resposta burguesa ao problema
realidade da humanidade como totalidade concreta de complexos
- numa solução idealista, que reduzia a atividade humana a algo
teleológicos (fundados no trabalho e em suas objetivações), cujo
puramente espiritual. Mas, em sua primeira época, as formas in-
movimento depende de leis racionais.
troduzidas pelo capitalismo na objetividade social apresentavam
Esse processo tem imensas consequências filosóficas. Com a
características revolucionárias, e os pensadores clássicos - com-
liberação do trabalho, com a dissolução do estamento feudal, a
prometidos com o progresso - puderam apreendê-las de modo
categoria da subsunção do individual (ou particular) sob o uni-
amplo e profundo.
versal deixa de ter validade na esfera do social; é substituída pela
Podemos concentrar essas novas formas de objetividade em
inerência do gênero humano em cada indivíduo singular. Os
torno de dois núcleos. Em primeiro lugar, o capitalismo destruiu
pensadores começam a ver na ação individual a realização de leis
a divisão feudal do trabalho, pondo fim à separação entre homens
universais. Essa nova concepção aparece claramente na ética de
livres e servos da gleba; a nova divisão do trabalho exige a transfor-
Kant, na problemática do "imperativo categórico'', mas adquire
grande concretude (graças precisamente à sua base diretamente
K. Marx, O 18 brumário, op. cit., p. 250. econômica) na teoria hegeliana da "astúcia da razão". Em liga-
CARLOS NELSON COUTINHO • 35
34 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA OA RAZÃO

ção com isso, flexibiliza-se a relação categorial de necessidade e penetra em toda a filosofia clássica, não só levando-a a renovar
possibilidade, ou ato e potência, entre as quais se coloca - como as categorias da razão, como em Hegel, mas também impondo
mediação dialética - a categoria da casualidade. A mediação recí- antinomias e limites aos que persistem no uso das velhas cate-
proca de universalidade e singularidade pode alcançar uma nova gorias do intelecto, como Kant. A divisão capitalista do trabalho
síntese teórica, que supera a falsa antinomia medieval de realismo é essencialmente contraditória. Assim, ao lado da contradição
e nominalismo, graças à elaboração da categoria da particularida- entre liberação do trabalho e transformação do trabalhador em
de; o indivíduo relaciona-se com o gênero humano por meio de mercadoria, desenvolve-se também a contradição - essencial ao
inúmeras mediações particulares, como o trabalho socializado, a modo de produção capitalista - entre socialização do trabalho e
classe, a nação etc. Ainda mais importante, para a ontologia do apropriação individual dos seus produtos. Essas contradições - que
ser social, é a nova relação dialética assumida pelas categorias de representavam um estímulo ao progresso teórico na fase ascenden-
causalidade e teleologia; uma atenta observação da natureza do te do pensamento burguês - passam, no período da decadência,
trabalho, realizada por meio do estudo da obra de Adam Smith, a constituírem um limite intransponível à apreensão da verdade
leva Hegel a superar a antinomia entre os dois conceitos - ainda objetiva.
existente em Kant - e a ver na relação de ambos a base da obje- De modo geral, podemos situar em 1848 o momento do defi-
tividade social. nitivo rompimento da burguesia com o progresso.
O desenvolvimento dessas novas categorias, com a consequente As revoluções de 1830 e mais ainda as de 1848 - observa Lukács - atestam

alteração de toda a sistemática conceitua!, não poderia ocorrer que a burguesia perdeu seu lugar à frente do progresso social. Em 1830,

sem um exame atento da nova objetividade social posta pela começa o processo de decomposição da filosofia burguesa clássica, que

economia capitalista. 9 Esse processo econômico está na base dos termina com a revolução de 1848. 1º

impulsos que levam à dialética, à renovação e ao enriquecimento A partir de então, as contradições capitalistas tornam-se ex-
da racionalidade humana. (Como veremos posteriormente, Lévi- plosivas; encarnação e produto dessas contradições, o proletariado
Strauss nega essa relação entre modificação histórica e modifica- surge na história como força social autônoma, capaz de resolver
ção categorial-sistemática, afirmando que as categorias são fixas, em sentido progressista os limites e antinomias do sistema capita-
imutáveis e apriorísticas.) lista. Indicar a realidade como algo essencialmente contraditório
Nessa época, os grandes pensadores não hesitavam - na aná- significa, doravante, fornecer armas teóricas ao movimento anti-
lise da nova objetividade - em apontar o seu caráter intimamente capitalista da classe operária. De crítica da realidade em nome do
contraditório. Hegel não é o único a fundar a nova razão na progresso, do futuro, das possibilidades reprimidas, o pensamento
"identidade da identidade e da não identidade'', isto é, no caráter burguês transforma-se numa justificação teórica do existente. Em
essencialmente contraditório da realidade social. Essa contradição proporções cada vez maiores, a história e a economia perdem sua
anterior importância filosófico-ontológica, deixando de desempe-

G. Lukács, Introdução a uma estética marxista. Sobre a particularidade como cate- 10


goria da estética. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1970, p. 5-112. G. Lukács, Existencialismo ou marxismo?. São Paulo, Senzala, 1967, p. 32.
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nhar um papel significativo na elaboração da concepção do mun- burguesa começam progressivamente a assumir o primeiro plano.
do. E, com isso, perde-se a possibilidade de apreender a essência Em tais condições, a práxis humana tende a se objetivar contra os
da realidade humana: a filosofia da decadência torna-se, cada vez próprios homens, tende a se tornar uma objetividade alienada. Marx
mais, um pensamento imediatista, centrado nas aparências feti- analisou o processo ao tratar do "fetichismo da mercadoria'', mas é
chizadas da realidade. inegável que o movimento de fetichização (de alienação) estende-
Decerto, essa determinação histórica da inversão do pensa- se a todas as esferas da vida humana. Não vamos aqui resumir os
mento burguês só tem valor operatório quando vista sob o ân- fundamentos da teoria marxista da alienação, 11 mas apenas relem-
gulo universal. Não só o capitalismo pode ainda desempenhar, brar alguns elementos principais do processo. Um traço essencial
em certos países periféricos, um papel progressista, como pode do capitalismo consiste em impor a completa sujeição da produção
também - ou melhor, segundo suas necessidades, é obrigado - a às leis anárquicas do mercado. Essa mercantilização da práxis tem
promover um espetacular progresso técnico no plano mundial. uma dara consequência sobre a consciência dos homens: a ativida-
Assim, mesmo depois de 1848, podem surgir - em países que de deles tende a se ocultar à sua própria consciência, a converter-se
ainda não realizaram suas revoluções democrático-burguesas - na essência oculta e dissimulada de uma aparência inteiramente
importantes pensadores não marxistas que elaboram concepções reificada. Todas as relações sociais entre os homens aparecem sob
do mundo progressistas e não contaminadas pela decadência. (O a forma de relações entre coisas, sob a aparência de realidades
exemplo mais significativo é o de Tchernichevski e Dobroliubov, "naturais" estranhas e independentes da sua ação. Os produtos da
democratas revolucionários russos da segunda metade do século atividade do homem social, desde a esfera da economia àquela da
19.) Trata-se, todavia, de possibilidades cada vez mais limita- cultura, revelam-se aos indivíduos como algo inteiramente alheio à
das pela própria evolução social e que, de qualquer modo, não sua essência; opera-se uma cisão entre a essência (a práxis criadora)
têm mais nenhuma expressividade do ponto de vista histórico- e a existência (a vida social) dos homens. Essa vida social converte-se
universal. Por outro lado, ligadas àquele progresso técnico que o num objeto "coisificado", inumano, que não pode mais comportar
capitalismo é obrigado a promover, surgem nos países altamente nenhuma subjetividade autêntica; essa subjetividade, por sua vez,
capitalistas novas e originais investigações científicas, levando desligada de suas objetivações concretas, nas quais e por meio das
inclusive ao nascimento de novas ciências (a cibernética etc.); mas quais se constitui e ganha conteúdo, transforma-se igualmente num
tais investigações limitam-se a domínios particulares, cuidadosa- fetiche vazio. Essa fetichização simultânea do sujeito e do objeto,
mente delimitados, sem desempenharem o menor papel positivo paralela à ruptura dos laços imediatos entre indivíduo e comunida-
na construção de uma concepção do mundo (de uma ética e de de, é a mais evidente consequência social da divisão capitalista do
uma ontologia) científica. trabalho em sua fase madura.
O que determina essa incapacidade do pensamento burguês de-
cadente de penetrar na essência da realidade não é, como vimos, tão
li
Uma ampla e acessível exposição desta teoria se encontra em Leandro Konder,
somente uma direta intencionalidade de classe. Nas condições do
Marxismo e alienação. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965 (reeditado pela
capitalismo evoluído, os traços regressivos da formação econômica Editora Expressão Popular, 2009).
38 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA OA RAZÃO
CARLOS NELSON COUTINHO • 39

Entra aqui em jogo uma complicada dialética de essência e A incapacidade de atingir a essência surge espontaneamente
aparência, cujas consequências cognoscitivas são da maior impor- em todos os indivíduos que vivem no capitalismo evoluído. Ao
tância para o processo que pretendemos descrever. Aparência e es- submeter-se a esse espontaneísmo, a filosofia da decadência cai
sência são momentos constitutivos da realidade objetiva. Todavia, na mesma incapacidade: termina por converter em antinomias
entre esses dois níveis do real pode sempre existir, em maior ou algumas contradições dialéticas e por elevar a fetiches coagulados
menor intensidade, uma contradição ou mesmo um antagonismo. momentos isolados de uma totalidade contraditória. Esse traço
Uma representação científica da realidade, bem como uma práxis essencial do pensamento decadente - o de ser um pensamento
ampla e eficaz, demandam o estabelecimento de uma mediação fetichizador - manifesta-se em todas as suas orientações, "raciona-
dialética entre os mesmos, na qual a aparência seja dissolvida na listas" ou irracionalistas, "objetivistas" ou subjetivistas, positivistas
totalidade que revela a essência. Como sempre, Marx coloca o ou existencialistas. Nenhuma delas transcende a mera descrição da
problema com grande clareza: imediaticidade. E, para definir corretamente a "imediaticidade"
Todas as ciências, exceto a Economia Política, reconhecem que as coisas
que aqui evocamos, recorremos a Lukács:
apresentam frequentemente uma aparência oposta à sua essência (...).À
O termo imediaticidade não designa (... ) uma atitude psicológica cujo
forma aparente "valor e preço do trabalho" ou "salário", em contraste com
oposto, ou cujo desenvolvimento, seria a consciência; designa, ao contrário,
a relação essencial que ela dissimula, ou seja, o valor e o preço da força de
um certo nível de recepção do conteúdo do mundo exterior, independente-
trabalho, podemos aplicar o que é válido para todas as formas aparentes
mente da circunstância de que essa recepção ocorra com maior ou menor
e seu fundo oculto. As primeiras aparecem direta e espontaneamente como
consciência. Lembro os exemplos econômicos que adotei (...). Se alguém
formas correntes de pensamento; o segundo só é descoberto pela ciência.
enxerga a essência do capitalismo na circulação do dinheiro, o nível de suas
A economia política clássica avizinhou-se da essência do problema, sem,
concepções é imediato, mesmo que, depois de dez anos de grandes esforços
entretanto, formulá-lo conscientemente. E isso não lhe é possível enquanto
intelectuais, exponha-as em um douto volume de duas mil páginas. Ao
não se despojar de sua pele burguesa. 12
contrário, se um operário captou instintivamente o problema da mais-valia,
Em suma, quando o pensamento não tem condições de supe- ultrapassou já essa imediaticidade dos fatos econômicos. 13
rar o imediatismo e o espontaneísmo, não pode superar a descrição (É sempre nesse sentido lukacsiano que utilizo o conceito de
da forma aparente e alcançar a reprodução da essência. Converte imediaticidade.)
então essa forma aparente em fetiche, ao conceder-lhe uma auto- É exatamente por se limitar à apreensão imediata da realidade,
nomia e universalidade que não possui. (Que se recorde, ademais, em vez de elaborar as categorias a partir de sua essência econômica,
a observação já citada de Marx a respeito da confusão entre especial que o pensamento da decadência serve ideologicamente aos inte-
e geral como base do pensamento ideológico.) resses da burguesia. Pois, ao assim proceder, aceita a positividade
capitalista, sujeitando-se aos limites espontaneamente impostos

12
K. Marx, O capital. Crítica da Economia Política. Rio de Janeiro, Civilização
u G. Lukács, "Correspondencia entre Anna Seghers e Georg Lukács". ln: G. Lukács.
Brasileira, 1968, Livro 1, v. 2, p. 620 e 625.
Problemas del realismo. México, Fondo de Cultura Económica, 1966, p. 329.
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40 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA OA RAZÃO

pela economia de mercado, que fetichiza as relações humanas. homem com a realidade, substituindo a apropriação humana do
Essa sujeição revela-se, em primeiro lugar, na aceitação acrítica objeto por uma manipulação vazia de "dados", segundo esquemas
da alienação entre vida pública e vida privada, entre subjetividade formais preestabelecidos.
A práxis se burocratiza - observa argutamente Adolfo Sánchez Vázquez
individual e objetividade social, gerada pela economia de mercado;
- onde quer que o formalismo ou o formulismo dominem, ou, mais exata-
com isso, os dois momentos (que são unidos, embora contradito-
mente, quando o formal se converte em seu próprio conteúdo. Na prática
riamente, na essência das coisas) são transformados em fetiches fal-
burocrática, o conteúdo se sacrifica à forma, o real ao ideal, o particular
samente autonomizados. E, em segundo lugar, a referida sujeição
concreto ao universal abstrato. 14
aparece na aceitação igualmente acrítica da rígida especialização
das atividades humanas exigida pela divisão capitalista do traba- A burocratização, assim, aparece como um momento da
lho. Essa especialização atinge os próprios fundamentos subjetivos alienação, na medida em que fetichiza determinados elementos
da práxis, operando no interior do homem uma falsa fragmentação da ação humana, transformando-os em "regras" formais pseudo-
entre supostas faculdades antagônicas, como a sensibilidade e o objetivas. E sua generalização serve diretamente à perpetuação do
intelecto. Em vez de momentos mutuamente fecundantes da ação capitalismo, pois reproduz incessantemente a espontaneidade da
humana, tais supostas "faculdades" ordenam-se agora segundo economia de mercado, desligando-se da totalidade (do conteúdo
relações de exclusão, de hierarquia etc. Aceitando essa imediati- social, das possibilidades de renovação, da finalidade humana
cidade, os existencialistas fazem da sensibilidade hipostasiada (da do todo social) e submetendo todas as contradições reais a uma
intuição) o órganon supremo de apreensão do real, enquanto os homogeneização formalista.
estruturalistas transformam o intelecto (formalizado) na infraes- O sociólogo burguês Max Weber foi um dos primeiros a
trutura de todas as atividades subjetivas e objetivas do homem. tentar uma descrição completa do fenômeno da burocratização,
Na gênese do pensamento fetichizado, particularmente das ligando-o à economia capitalista.
Em geral, a burocracia - observa ele - segrega a atividade oficial como
correntes ligadas ao que designamos como "miséria da razão",
algo distinto da esfera da vida privada (...). É peculiar ao empresário
situa-se ainda um outro fenômeno da maior importância. Pensa-
moderno comportar-se como 'primeiro funcionário' de sua empresa, da
mos na tendência da economia capitalista no sentido de burocra-
mesma forma como o governante de um Estado moderno, especificamente
tizar todas as atividades humanas, desde as econômicas e políticas
burocrático, considera-se como o 'primeiro servidor' do Estado. 15
até as mais refinadamente "espirituais". A burocratização ocorre
quando determinados procedimentos práticos são coagulados, O que logo salta à vista, nessa descrição, é a fetichização das
formalizados e repetidos mecanicamente; com isso, empobrece-se relações humanas com complexas (empresas ou Estados), que se
tornam não uma objetivação e um instrumento dos homens, mas
a ação humana, que é assim desligada de sua relação tanto com a
realidade (transformada na práxis burocrática em simples objeto
de manipulação) quanto com suas finalidades (cuja racionalidade 14
A. S. Vázquez, Filosofia da práxis. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1968, p. 261.
ou irracionalidade a práxis burocrática não questiona). Esse caráter 15 M. Weber, "Burocracia". ln: M. Weber, Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro, Zahar,
repetitivo da ação burocratizada bloqueia o contato criador do s/d., p. 230-231.
42 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO
CARLOS NELSON COUTINHO • 43

sim "entidades naturais" ou "coisas" das quais os homens passam irracional quando se tem da razão um conceito limitado, um con-
a ser instrumentos, servidores ou funcionários, e cujas finalidades ceito que a reduza às simples regras do intelecto, ou - para usar a
e conteúdos não são questionados. Weber pode ainda indicar no expressão com que Weber caracteriza essa atividade burocrática - à
desenvolvimento da economia monetária o pressuposto básico da mera "racionalidade formal". (O próprio Weber, desconhecendo
burocracia moderna: a razão dialética, caiu nessa falsa antinomia.) As filosofias ime-
Hoje, é principalmente a economia mercantil capitalista que exige que diatistas - que tomam a práxis burocrática como modelo da vida
os negócios oficiais da administração sejam feitos com precisão, sem am-
humana, sem dissolvê-la na totalidade essencial e explicitada da
biguidades, continuamente, e com a maior velocidade possível. Decerto,
objetividade econômico-social - assumem também esse tipo de
as empresas capitalistas, muito grandes, são em si mesmas modelos sem
racionalidade como único parâmetro. E, com isso, empobrecem
igual de organização burocrática rigorosa. 16
decisivamente as várias esferas da vida. A práxis aparece agora
(O processo não faria senão se acentuar após a morte de Weber, como uma mera atividade técnica de manipulação; a objetividade
no capitalismo cada vez mais monopolista e tecnocrático.) se fragmenta numa coleção de "dados" a serem homogeneizados;
Ademais, Weber indica a relação entre a divisão capitalista do e, finalmente, a razão reduz-se a um conjunto de regras formais
trabalho e o tipo de racionalidade burocrática (que vai se tornar o subjetivas, desligadas do conteúdo objetivo daquilo a que se apli-
modelo de certas correntes filosóficas): cam. Essa "miséria da razão" transforma em algo irracional todos
O cumprimento "objetivo" das tarefas significa, primordialmente, um
os momentos significativos da vida humana.
cumprimento das tarefas segundo regras calculáveis e "sem relação
Tanto a "destruição" quanto a "miséria" da razão, tanto o ir-
com pessoas". 'Sem relação com pessoas' é também a palavra de ordem
racionalismo quanto o agnosticismo positivista ou estruturalista,
no mercado e, em geral, de todos os empreendimentos onde há apenas
ligam-se a esse predomínio inconteste da espontaneidade burocrá-
interesses econômicos (...). A peculiaridade da cultura moderna, e espe-
tica. Comentando Lenin, Lukács afirma que "o burocratismo é um
cificamente de sua base técnica e econômica, exige essa "calculabilidade"
fenômeno fundamental da sociedade capitalista". E completa: "O
dos resultados (...). Sua natureza específica [da burocracia], bem recebida
burocratismo se liga à espontaneidade. Fala-se de espontaneidade
pelo capitalismo, desenvolve-se mais perfeitamente na medida em que a
sempre que o objeto do interesse e da atividade é imediato e apenas
burocracia é "desumanizada", na medida em que consegue eliminar dos
imediato". 18 Tanta o "intelecto" que se fixa nas formas coaguladas
negócios oficiais o amor, o ódio, e todos os elementos pessoais, irracionais
da ação humana ou nos "dados" homogeneizados, sem transcendê-
e emocionais que fogem ao cálculo. 17
los em busca da totalidade concreta, quanto a intuição hiposta-
Ora, o que foge ao cálculo, às manipulações homogeneizadoras siada que se fixa na imediaticidade da "vivência", abandonando
de uma racionalidade reduzida a regras formais, é precisamente as mediações sociais como "inautênticas", tanto o positivismo
a totalidade do objeto, da vida humana. E essa totalidade só é agnóstico quanto o irracionalismo existencialista capitulam diante

16
Jbid., p. 250.
17
18 G. Lukács, "Tribuno do povo ou burocrata?". ln: G. Lukács, Marxismo e teoria
Ibid., p. 250-251.
da literatura. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968, p. 116-117.
44 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISERIA OA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 45

do imediato, são incapazes de recompor no pensamento a essên- Por isso, pôde se verificar entre as duas orientações uma coexis-
cia dialética da objetividade. Em suma, aceitam como "condição tência sincrónica, sem grandes choques, cada uma delas ocupando
humana" o dilaceramento histórico (historicamente condicionado) - ou pretendendo ocupar - uma esfera fetichizada da realidade.
que a alienação capitalista - por meio da burocratização da práxis (Basta recordar aqui a longa coexistência de existencialismo e
- introduz na vida humana. neopositivismo.)
Compreenderemos melhor essa duplicidade de orientações se
3. O IRRACIONALISMO E A "MISÉRIA DA RAZÃO" observarmos inicialmente as formas que ela adquiriu no período
Incapaz de recompor sinteticamente a totalidade, o pensa- imediatamente posterior à Revolução Francesa, quando a relação
mento fetichizado cinde-se em duas correntes, que correspondem de ambas com o real ainda era direta (recusa ou aceitação das no-
precisamente às falsas antinomias que ele não consegue superar. vas formas econômicas capitalistas), sem tender - como ocorreria
Essa duplicidade, contudo, faz lembrar a cabeça de Janus: a bi- posteriormente - a se sublimar em questões éticas ou epistemológi-
partição das faces não anula a unidade do corpo, pois ambas as cas. Pensamos aqui na oposição entre o anticapitalismo romântico
correntes rompem com as categorias do humanismo, do histori- e a apologia direta do progresso capitalista. Por um lado, a crítica
cismo e da dialética: ambas são encarnações de um pensamento romântica do capitalismo via nas novas formas econômicas tão so-
imediatista, incapaz de atingir a essência do objeto. Essa unidade mente a causa de uma profunda dissolução da pretensa "plenitude
explica, por outro lado, a comum atitude de ambas as orientações natural" do homem, ou seja, via na radical socialização do traba-
diante do problema da razão: irracionalistas e agnósticos negam lho e da vida uma ameaça mortal para a subjetividade espiritual
explicitamente que a totalidade do real possa ser objeto de uma dos indivíduos. Por outro, a vulgar apologética burguesa negava o
apreensão racional. Quando se reconhece o valor da "razão", este caráter contraditório da objetividade econômica do capitalismo (no
é sempre limitado a algumas esferas da realidade; a totalidade do que rompia decisivamente com a tradição progressista), afirmando
mundo - o objeto da ontologia - aparece como dominado por sua homogeneidade, sua tendência ao equilíbrio e ao progresso
uma ineliminável irracionalidade. Irracionalismo e "miséria da linear. Com a acentuação das contradições capitalistas, essa se-
razão" se completam. Lukács observou: gunda tendência orienta-se para o agnosticismo, refugiando-se
Wittgenstein, que fundou as teses neopositivistas de um modo autenti- num formalismo vazio e convertendo-se em positivismo, ou seja,
camente filosófico, viu muito claramente que nos seus limites, se assim passa a estabelecer "limites" à compreensão racional da realidade.
posso expressar-me, há o deserto do irracionalismo, algo que não pode ser Trata-se de uma antinomia, essa, que o pensamento decaden-
expresso com os instrumentos da racionalidade neopositivista (...).Assim, te não consegue superar. Em um belo trecho, Marx indica não
nos limites de sua filosofia, creio que existe - e não se trata de uma ob- apenas os lineamentos de uma justa solução do problema, como
servação minha, pois muitos a fizeram - um campo de irracionalidade. 19 revela ainda os fundamentos objetivos e a necessidade social dessas
soluções unilaterais na consciência burguesa. Diz ele:
19
Os indivíduos universalmente desenvolvidos, cujas relações sociais (en-
W. Abendroth, H. H. Holz e L. Kofler, Conversando com Lukács. Rio de Janeiro,
Paz e Terra, 1969, p. 46. quanto relações que lhes são próprias e comuns) são igualmente subme-
CARLOS NELSON COUTINHO • 47
46 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO

tidas ao seu próprio controle comum, não são um produto da natureza, tênticos, desprezadas concretamente todas as mediações sociais,
mas sim da história. O grau e a universalidade do desenvolvimento das denunciadas como o reino da alienação. Mas essa subjetividade
faculdades humanas, que tornam possível essa individualidade, pressu- inteiramente vazia, convertida em mera negação abstrata do real,
põem precisamente a produção baseada sobre os valores de troca, pois procura desesperadamente encontrar um Absoluto pleno de sen-
apenas ela produz não só a alienação do indivíduo em face de si mesmo tido. Nessa busca, as filosofias da subjetividade revelam um traço
e dos outros, mas igualmente a universalidade e a onilateralidade de suas profundamente religioso (ainda que se trate de uma religiosidade
relações e capacidades. Em épocas mais antigas de seu desenvolvimento, ateia) e, desse modo, uma vinculação espiritual com formas de
o indivíduo revelava-se mais completo justamente porque ainda não as vida pré-capitalistas. Com o passar do tempo, o combate à vida
contrapõe a si mesmo como potências e relações sociais independentes pública conv~rte-se numa luta contra a democracia e numa defesa
dele. Mas, se é ridículo alimentar nostalgias por aquela plenitude originá- de posições "aristocráticas" no plano ético e mesmo no político.
ria, é igualmente ridículo crer que seja necessário manter o homem nesse O completo fechamento na subjetividade, contudo, tem como
completo esvaziamento. A concepção burguesa jamais conseguiu superar consequência a dissolução subjetivista de todos os Absolutos busca-
a simples antítese daquela concepção romântica; por isso, essa concepção dos como "pátria do sentido". Kierkegaard, em sua reação a Hegel,
romântica a acompanhará como legítima antítese até que soe sua hora. 20 elabora já as linhas gerais desse "ateísmo religioso" (Lukács), dessa
Assim, exatamente em sua antítese, positivismo e irracionalis- pesquisa impotente de uma abertura para o objeto. Kierkegaard
mo são complementares. recusa todas as possibilidades de uma vida plena vivida na realida-
As filosofias ligadas à "destruição da razão", de Kierkegaard ao de objetiva, denunciando-as como inautênticas; tanto a forma de
primeiro Sartre, jamais superaram esse fundamento objetivamente vida "estética" (ligada à fruição imediata da sensibilidade) quanto a
reacionário; todas podem ser definidas, como o faz Lukács em suas "ética" (realização do universal pelo indivíduo) aparecem-lhe como
obras, como manifestações de anticapitalismo romântico. A buro- etapas que devem ser superadas no sentido da "vida religiosa", na
cratização da vida social, sempre crescente no capitalismo, retira qual o indivíduo descobre a presença da divindade em si mesmo.
à subjetividade qualquer fundamento racional objetivo, qualquer A determinação dessa divindade não pode ser feita por vias racio-
relação ética com valores objetivos, sejam religiosos (no sentido nais; a razão implica a mediação e Kierkegaard nega precisamente
medieval) ou humanistas. A esfera subjetiva da vida privada, não a validade das mediações (sociais). O encontro com a divindade é
diretamente envolvida pelas leis do mercado, é abandonada ao um encontro imediato, uma imediata relação subjetiva e intuitiva.
irracional. A experiência vivida básica dos indivíduos margina- Assim, tão somente a sensibilidade e a vivência subjetivas, na forma
lizados, dos que recusam burocratizar também sua vida privada, da intuição, podem revelar ao homem um "real" autêntico.
é a de uma intensa solidão, aliada à insegurança e à angústia. A A intuição como meio do conhecimento já fora exaltada por
subjetividade erige-se idealmente na única fonte de valores au- Schelling, que, na primeira etapa de sua filosofia, fazia parte da
tradição progressista. Para ele, o Absoluto (síntese do sujeito e do
objeto) era uma realidade acima de qualquer determinação - uma
°
2
K. Marx, Fondements de la critique de l'Économie Politique (Gründrisse). Paris,
"noite na qual todas as vacas são pardas" (Hegel) - e só podia ser
Anthropos, 1967, v. 1, p. 87.
48 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISERIA OA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 49

captado diretamente, sem mediações conceituais, por meio de uma ou menos completo. Em Nietzsche, a embriaguez dionisíaca - em
intuição que teria sua máxima expressão na arte. Mas Schelling contraste com a "contenção" apolínea - aparece como o necessário
era um idealista objetivo, que compreendia o Absoluto como uma estado subjetivo do super-homem, que é colocado acima de todas as
realidade objetiva e independente da subjetividade dos indivíduos; "limitações" éticas e lógicas da razão. Na fenomenologia, esse méto-
sua filosofia, por isso, embora invertendo e deformando relações do irracionalista - que liga a verdade à intuição e converte o objeto
reais, era uma etapa no sentido da dialética hegeliana, isto é, numa vivência do sujeito - encontraria uma formulação sistemática;
de uma superação da intuição e do intelecto na razão dialética. colocar o mundo "entre parênteses'', ou seja, dissolver as mediações
Em Kierkegaard, todavia, a identidade entre sujeito e Absoluto reais e objetivas do "dado", aparece como condição básica para a
é puramente subjetiva; a intuição - contraposta não apenas ao apreensão da :'essência" (identificada com o seu modo de aparecer).
intelecto, mas à racionalidade em geral - é agora um instrumento Heidegger, finalmente, partindo da fenomenologia, criaria
inteiramente antropomorfizador, ou seja, uma simples projeção a "ontologia" adequada a esse sentimento do mundo. Segundo
na realidade exterior (concebida como um caos) de vivências e ele, o indivíduo e o mundo não formam uma síntese orgânica,
experiências subjetivas. O objeto (e, com ele, sua racionalidade mas são entidades antagônicas; o homem está "lançado" numa
imanente) é dissolvido nas experiências subjetivas dessa vivência cotidianidade que deve superar se não quer viver no reino da
imediata. É interessante assinalar, de passagem, que Kierkegaard inautenticidade, que é para ele o mundo da comunidade social. É
refere-se a uma "dialética" puramente qualitativa para descrever as interessante observar que as categorias atribuídas por Heidegger
passagens das etapas estética, ética e religiosa entre si. Já os estru- ao mundo da cotidianidade - a "preocupação" (Sorge), a "ins-
turalistas, particularmente Lévi-Strauss, como veremos, acreditam trumentalidade" etc. - refletem precisamente o modo pelo qual
numa evolução puramente quantitativa, sem alterações de quali- o pequeno burguês vive espontaneamente (e de modo imediato)
dade (ou seja, sem modificações categoriais). Ambas as posições as categorias econômicas. 21 É precisamente por limitar o mundo
são falsas, na medida em que desconhecem uma das leis básicas da econômico-social a essa imediaticidade cotidiana que Heidegger
razão dialética, ou seja, a unidade e integração das modificações considera-o inautêntico, ontologicamente "alienado". A "pátria do
qualitativas e quantitativas. A transformação da qualidade sem sentido" é assim posta num Ser mítico, que assume cada vez mais
a mediação da quantidade é tão irracional e absurda quanto um em Heidegger traços claramente religiosos. Também nele a ligação
crescimento quantitativo sem alterações de qualidade. entre subjetividade e sentido repudia qualquer mediação do social
Essa destruição da razão em nome da intuição domina todo o ou do histórico, da racionalidade objetiva (confundida por ele com
pensamento subjetivista da decadência. Em Dilthey, assume a forma a dominação técnica), implicando antes a defesa de instrumentos
da contraposição entre "compreensão" (do sentido) e "explicação" cognoscitivos claramente antirracionais.
(causal), reduzida a validade dessa última apenas às ciências naturais;
nas "ciências do espírito" de inspiração diltheyana, essa contrapo-
21
Uma brilhante análise da relação entre a categoria da "preocupação" heideggeriana
sição seria a base da ruptura metodológica entre ciências naturais e
e o mundo da manipulação capitalista pode ser encontrada em K. Kosik, Dialética
sociais, abrindo-se as portas das segundas a um irracionalismo mais do concreto. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1969, p. 59-68.
50 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO
CARLOS NELSON COUTINHO • 51

Podemos observar, em todos esses exemplos sumariamente (isto é, recusando cidadania filosófica à ontologia e à ética), propõe-
esboçados, uma sublimação filosófica da crítica romântica do se como tarefa limitar a validade da razão àqueles domínios do
capitalismo; denuncia-se a realidade social, considerada fonte de real que possam ser homogeneizados, formalizados, manipulados,
dissolução da subjetividade e de desumanização, ao mesmo tempo sem consideração pela sua natureza objetivamente contraditória. A
em que se rejeita a razão, confundida com as regras formais que um "objeto" depurado de contradições, vem juntar-se uma "razão"
predominam nas práxis técnica e burocrática. Em ambos os casos, que considera todos os momentos ontológicos da realidade como
vemos um processo fetichizador: determinadas formas particulares incognoscíveis ou irracionais. A "miséria da razão" - seu empobre-
do mundo capitalista, tomadas em sua imediaticidade, são con- cimento e extrema formalização - desemboca num agnosticismo
vertidas - com tonus emocionalmente positivo ou negativo - em que oculta a essência do real. Enquanto o racionalismo da época
"condição eterna do homem". E, com isso, o protesto subjetivo clássica propunha-se conquistar terrenos cada vez mais amplos para
converte-se em conformismo real; o "nada" existencialista não é, e por meio da razão humana, o miserável racionalismo da deca-
como a negação determinada de Hegel, um momento imanente dência preocupa-se principalmente em estabelecer "limites" para o
da transformação do real, mas simplesmente a recusa subjetiva e conhecimento; enquanto a filosofia clássica era preponderantemente
abstrata de uma positividade igualmente abstrata, a base filosófica ontológica, preocupada com o conteúdo objetivo do mundo, o
para uma teoria da liberdade concebida como fuga ou evasão. Não agnosticismo decadente pretende-se simples epistemologia, simples
é casual, pois, que as filosofias da subjetividade terminem por cair análise formal dos "limites do conhecimento". A razão, em suma,
no mais profundo pessimismo, numa conformista sensação de deixa de ser a imagem da legalidade objetiva da totalidade real,
impotência: o homem é apenas "um ser para a morte" (Heideg- passando a confundir-se com as regras formais que manipulam
ger), a vida é uma "paixão inútil" (Sartre), um "trabalho de Sísifo" "dados" arbitrariamente extraídos daquela totalidade objetiva. O
(Camus) etc. A destruição da razão, o abandono da ontologia paralelismo entre esse empobrecimento da razão e o esvaziamento
humanista e da concepção dialética da história, não poderiam da práxis na atividade burocrática não é casual. A "miséria da ra-
conduzir a outro resultado. zão" é a expressão teórica - deformada e deformante - do mundo
A antítese burguesa do irracionalismo, o positivismo agnóstico, burocratizado do capitalismo.
desenvolve a tendência dos primeiros apologetas diretos do capi- A distinção entre essas diversas formas de conceber a razão foi
talismo. Sublimada em questões metodológicas, a característica assim estabelecida por Max Horkheimer:
essencial dessa orientação consiste em afastar da realidade (e, conse- Na rota da sociedade europeia, destacam-se um contra o outro dois concei-
quentemente, das categorias racionais que a refletem) os problemas tos de razão. Um deles foi próprio dos grandes sistemas filosóficos, a partir
conteudísticos, os problemas da contradição. A sociologia positivista de Platão; nele, a filosofia concebe a si mesma como imagem da essência
e a economia vulgar, por um lado, desligando-se da história e for- racional do mundo, algo assim como a linguagem ou o eco da essência
malizando ao extremo seu objeto, afastam de suas preocupações eterna das coisas; a percepção da verdade pelos homens era uma única e
qualquer referência à objetividade das contradições no capitalismo; mesma coisa que a manifestação da própria verdade, e a capacidade para tal
a filosofia, por outro lado, transformando-se em pura epistemologia percepção incluía todas as operações do pensar. Com o aperfeiçoamento de
52 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISERIA OA RAZÃO
CARLOS NELSON COUTINHO • 53

uma lógica própria, com a autonomização do sujeito e seu distanciamento


Auguste Comte, o primeiro grande representante desse em-
do mundo, considerado como mero material, surge - em contradição com pobrecimento da razão, admite e exalta a natureza espontânea
aquela razão compreensiva, apropriada igualmente ao objeto e ao sujeito - a - e, portanto, imediatista - do positivismo que defende: "Essa
ratio formal, autonomizada, certa de si mesma; ela resiste à mescla com o
íntima solidariedade entre o gênio próprio da verdadeira filosofia
ser e o remete, enquanto mera natureza, a uma região própria, à qual ela
e o simples bom senso universal revela a origem espontânea do
mesma não estaria submetida (...). Este conceito de razão - cujo predomínio
espírito positivo". 23 A racionalidade é limitada àquilo que o sujeito
não é absolutamente destacável da sociedade burguesa e que caracteriza
(fragmentado e empobrecido pela práxis burocrática) considera
particularmente o presente - não se preocupa com a questão de um em-si,
racional. Essa limitação já transparece claramente na indicação
de algo objetivamente racional, mas tem ante os olhos exclusivamente o que
metodológic:I de Comte, segundo a qual deve-se abandonar o
é racional para aquele que pensa, para o sujeito; pode assim ser chamado
exame da gênese dos fenômenos em troca da descrição de suas leis
de conceito da razão subjetiva. Essa última se refere, sobretudo, à relação
invariáveis de manifestação; um mesmo princípio, como veremos,
entre finalidades e meios, à adequação dos modos de comportamento às
aparece também no estruturalismo. Concretamente, isso significa
finalidades, que, enquanto tais, são mais ou menos aceitas, sem que sejam
substituir a pesquisa da essência ontológica do real (inacessível à
submetidas, por sua vez, a uma justificação racional. 22
racionalidade burocrática) pela reprodução imediata da aparên-
Já nos referimos ao fato de que esse segundo conceito de racio- cia. Desse modo, tudo o que é objeto da razão dialética - e que
nalidade, próprio das correntes relacionadas à "miséria da razão", nela, e só nela, pode ser elevado à consciência - é declarado como
liga-se estreitamente à burocratização da práxis sob o capitalismo. "metafísica'', "falso problema", "resíduo irracional"; a destruição e
Como Weber assinalou, a "racionalidade" burocrática caracteriza- a miséria da razão desembocam no mesmo ponto.
se por tratar de modo formal - segundo regras abstratas que não A realidade humana - observa corretamente Karel Kosik - divide-se,
levam em conta nem o conteúdo nem a finalidade humana dos prática e teoricamente, no campo da "ratio'', isto é, no mundo da racio-
meios utilizados - tudo aquilo com que entra em contato. Esse nalização, dos meios, da técnica, da eficácia, e no campo dos valores e das
tipo de racionalidade, como veremos posteriormente, desempenha significações humanas, os quais, de modo paradoxal, tornam-se domínio
um destacado papel na práxis técnica, na dominação da natureza. do irracionalismo. 24
O capitalismo, todavia, por meio inicialmente das leis do mercado Assim, quando Comte combate o "espírito metafísico" (do
e posteriormente da manipulação das consciências, tende a aplicar qual recusa explicitamente o caráter crítico e negativo), ou quando
essa racionalidade parcial, formalista, também à vida social. Trata- Lévi-Strauss defende a "razão analítica" como a única científica
se de uma tendência espontânea, paralela à fetichização de todas (desprezando a dialética), eles não estão apenas defendendo uma
as relações humanas no quadro da sociedade burguesa. forma inferior e limitada de racionalidade contra a razão dialéti-
ca, onicompreensiva; estão também contribuindo para reforçar
22
M. Horkheimer, "Sobre e! concepto de razón". ln: M. Horkheimer e Th. W.
Adorno, Sociologica. Madri, Taurus, 1966, p. 257-258. Para um aprofundamento
da distinção entre razão objetiva e razão subjetiva, cf. também M. Horkheimer, 23
A. Comte, Cours de philosophie positive. Paris, Garnier, s.d., v. 2, p. 107-108.
Eclissi della ragione. Milão, Sugar, 1962, p. 11-72. 24
K. Kosik, Dialética do concreto, op. cit., p. 94.
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54 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA OA RAZÃO

nessa questão é uma sequência de mudanças entre as quais não existe laço
o irracionalismo, para condenar à arbitrariedade subjetivista os
causal. O estado antecedente não produz o consequente, mas a relação
momentos essenciais da vida humana.
entre eles é exclusivamente cronológica. Assim, nessas condições, toda
O primeiro campo da objetividade vetado a essa razão limitada
previsão científica é impossível - do que decorre a inevitável conclusão
é o da contradição como modo de ser primário dos processos reais.
agnóstica - (...) Essa é a razão pela qual o número das relações causais
Do mesmo modo como ocorre na atividade burocrática, busca-
estabelecidas pelos sociólogos é tão restrito. 28
se reduzir qualquer diversidade a simples manifestação aparente
Não só a gênese histórica aparece como irracional; também
de "leis constantes e invariáveis", suprimindo-se a contradição
as questões colocadas pela finalidade social dos atos humanos
numa homogeneidade formalista. Segundo Comte, o objetivo
são vedadas à. razão. "Todas essas questões de intenção" - diz
profundo do conhecimento é "reencontrar a constância no meio
Durkheim - "são muito subjetivas para poderem ser tratadas
da variedade"; 25 e Émile Durkheim considera "sintomas de ob- . ºfi camente "29
c1ent1 . p or outro lado, em vez de considerar a objeti-
jetividade" a "constância e a regularidade". 26 Lévi-Strauss (que
vidade social como uma totalidade concreta em devir, Durkheim
homenageia Comte citando-o na epígrafe de um de seus livros) vai
- assumindo a concepção do objeto que é própria da práxis bu-
ainda mais longe: "Quando uma contradição aparece, isso é prova
rocrática - considera-a como uma combinatória de "dados", de
de que a análise não foi levada suficientemente longe e que certas
elementos justapostos:
características distintivas passaram desapercebidas". 27 Ora, o preço
Sabemos, efetivamente, que as sociedades são compostas de partes ajunta-
dessa redução do diverso ao idêntico, do variável ao constante, do
das umas às outras (...). A natureza de todo produto depende necessaria-
contraditório ao homogêneo, é exatamente a extrema formalização
mente da natureza, do número e do modo de combinação dos elementos
do real e da racionalidade, o abandono à irratio dos problemas
componentes. 30
conteudísticos, ou seja, da gênese histórica e do sentido humano
A própria atividade humana, a práxis social em todas as suas
dos processos analisados.
determinações, vai sendo progressivamente afastada do domínio
Não é apenas no estruturalismo que, como veremos, a história
da racionalidade. É assim que Comte, deturpando e fetichizando
aparece como algo "superficial" e incognoscível. Já em Durkheim,
um problema real (a primazia ontológica da sociedade sobre o in-
cuja sociologia formalista antecipa muitos pontos da "antropologia
divíduo), afirma que, para o espírito positivista, "o homem propria-
estrutural", essa exclusão da história do domínio da racionalidade
mente dito não existe, não pode existir senão a Humanidade".3'
aparece claramente. Não se pode aplicar à sucessão histórica, diz
Durkheim, por sua vez, ao afirmar que os fatos sociais são simila-
ele, a categoria da causalidade:
res às "coisas" da natureza, despoja-os - do mesmo modo como 0
As etapas que a humanidade percorre sucessivamente não se engendram
faz a burocracia - de tudo aquilo que lhes confere especificidade
umas às outras (...). Portanto, tudo o que atingimos experimentalmente

28
E. Durkheim, As regras ... , op. cit., p. 108-109.
29
lbid., p. 89.
25
A. Comte, Cours... , op. cit., p. 581.
lbid., p. 75.
26 E. Durkheim, As regras do método sociológico. São Paulo, Nacional, 1968, p. 26. li
A. Comte, Cours ... , op. cit., p. 191.
27 C. Lévi-Strauss, Le cru et le cuit. Paris, Plon, 1964, p. 170.
56 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO
CARLOS NELSON COUTINHO • 57

(o momento criador da práxis, a teleologia como forma superior Para tais filósofos, não apenas a ontologia, mas a teoria do
de causalidade) e os equipara a objetos naturais manipuláveis. As conhecimento, a ética e todas as disciplinas filosóficas que tratam
modernas versões da "miséria da Razão", como o estruturalismo, da realidade devem ser consideradas "metafísicas"; consequente-
vão ainda mais longe nesse processo. Lévi-Strauss, por exemplo, mente, os seus objetos próprios devem ser lançados no domínio
admitindo sua pretensão de tratar os homens "como se fossem do irracional. A "eliminação radical da metafísica'', proposta pro-
formigas", revela a crença de que "o fim último das ciências hu- gramaticamente por Rudolf Carnap, significa precisamente afastar
manas não é constituir o homem, mas sim dissolvê-lo". 32 E Michel da racionalidade - limitada à mera "análise lógica da linguagem"
Foucault, considerando o exame do "discurso" (das regras formais - todos os campos da realidade objetiva. A racionalidade limita-se
do conhecimento) como o único objeto de um saber verdadeiro, a estabelecer ás regras formais, ou sintaxe lógica, que organizam
chega a prever "a morte do homem". Assim, todos os conteúdos o discurso, constatando assim se determinada proposição possui
ontológicos da realidade vão sendo paulatinamente subtraídos ao ou não "validade". A validade é determinada pela relação da
domínio da razão. proposição com o sistema formal da linguagem, abandonando-se
Paulatinamente, já que o processo tende a se acentuar com explicitamente o conceito de verdade, isto é, a correspondência
a evolução do capitalismo. Decerto, há uma tendência agnósti- entre a proposição ou o "sistema" e a realidade exterior. (A busca
ca comum aos vários pensadores ligados à "miséria da razão": dessa correspondência é considerada "metafísica'' e irracional.) O
todos abandonam ao irracionalismo - ou, na linguagem deles, conhecimento - a razão - reduz-se a uma pura forma:
à "metafísica", à "opinião" subjetivista - as esferas do real e da Todo conhecimento - observa Moritz Schlick, no "manifesto" da escola
vida humana às quais não se possam aplicar as regras formais neopositivista - só é tal em virtude de sua forma. É através de sua forma
do intelecto burocratizado. Mas a determinação dessas esferas que representa as situações conhecidas. Mas, por sua vez, a própria forma
(graças a um condicionamento histórico que analisaremos não pode ser representada. Somente ela é importante para o conhecimen-
posteriormente) varia de pensador para pensador. Assim, em to: tudo o mais é material inessencial e acidental da expressão, similar,
Comte e em Durkheim, essas esferas vetadas ainda se limitavam, .
d1gamos, a' unta
. com a qua1escrevemos um enuncia
. do. 33
praticamente, às questões ontológicas da gênese e da essência da A analogia com a racionalidade burocrática, como podemos
realidade; Comte denunciava no "espírito metafísico" (ou seja, na observar, salta à vista.
filosofia clássica) sua tendência ontológica, a tentativa de fundar Ludwig Wittgenstein, talvez o mais consequente e brilhante
uma teoria da totalidade do ser. Mas ambos ainda consideram de todos os pensadores ligados à "miséria da razão", coloca com
como objetos científicos, racionais, os "fenômenos sociais", ou completa coerência os postulados neopositivistas. O objetivo de
seja, os "dados" imediatos da realidade. Já entre os logicistas, que sua obra, afirma, é "estabelecer um limite ao pensar(...). O limite
viriam a se agrupar no movimento neopositivista, esse agnosti- (...) será traçado unicamente no interior da língua; tudo o que fica
cismo atinge a quase totalidade do real.

" M. Schlick, "El viraje de la filosofía". ln: A. J. Ayer (org.), El positivismo lógico.
32 C. Lévi-Strauss, O pensamento selvagem. São Paulo, Nacional, 1970, p. 282.
México, Fondo de Cultura Económica, 1965, p. 61.
CARLOS NELSON COUTINHO • 59
58 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO

admitida pelos intelectuais burgueses era a do intelecto formalista


além dele será simplesmente absurdo". 34 Depois de subordinar a
e homogeneizador. Por isso, o período caracteriza-se pela grande
linguagem à sintaxe lógica (3.325) e de afirmar que as proposições
expansão do irracionalismo, não apenas na ética e nas "ciências do
da lógica são tautologias (6.1), Wittgenstein afirma: ''A investi-
espírito", mas até mesmo na ontologia da natureza (livre-arbítrio
gação da lógica denota a investigação de toda a legalidade. Fora
dos elétrons etc.). O neopositivismo desempenhou assim, pelo me-
dela tudo é acidente" (6.3). Limitando-se assim à lógica, a razão
nos na Europa Ocidental, então centro dominante do capitalismo,
limita-se a formular tautologias. Toda a esfera do conteúdo, da-
um papel bastante restrito na formação da consciência ideológica
quilo que transcende a forma lógica, é puro acidente: algo absurdo
burguesa; até mesmo seus pensadores mais significativos, como
e irracional, sobre o qual nada se pode dizer. "O que não se pode
Wittgenstein, .são envolvidos por um pessimismo derrotista cla-
falar [ou seja, o que não pode ser reduzido às regras formais da
ramente tingido de irracionalismo.
linguagem, à pura tautologia] deve-se calar" (7), diz taxativamente
Contudo, tão logo se anuncia um novo período de estabilidade
Wittgenstein. Não é de surpreender que um tão radical agnosti-
capitalista, assinalado (como veremos a seguir) por importantes
cismo, que chega mesmo a afirmar explicitamente uma posição
transformações na estrutura do sistema, as correntes "racionalistas"
solipsista (5.62), conclua numa desconsolada resignação:
voltam a ocupar - como já ocorrera na segunda metade do século
A verdade dos pensamentos comunicados aqui [no Tractatus] me parece
19 - um papel preponderante. Sem renunciarem ao agnosticismo,
intocável e definitiva, de modo que penso ter resolvido os problemas
alimentam novamente a pretensão de submeterem amplas esferas
no que é essencial. Se não me engano, o segundo valor deste trabalho é
da realidade aos esquemas de sua racionalidade formalista. Nessa
mostrar quão pouco se consegue quando se resolvem tais problemas. 35
nova etapa da "miséria da Razão", surgiria o estruturalismo como
Em Wittgenstein, pelo menos na primeira fase de seu pensa-
uma das correntes dominantes da ideologia burguesa. 36
mento, o processo de amesquinhamento da razão, levado às últi-
mas consequências, desemboca explicitamente no irracionalismo.
Essa radical intensificação do agnosticismo encontra sua causa
nas contradições históricas da época. O período do florescimento
do neopositivismo lógico é assinalado por intensos abalos sociais
\(,
Falamos antes de Europa Ocidental porque, mesmo no período dos abalos sociais,
(guerras imperialistas, revoluções socialistas), que destroem enor- no primeiro e no segundo anteguerras, desenvolveu-se nos Estados Unidos uma
memente - no intelectual pequeno-burguês - a crença na possi- filosofia ligada estreitamente ao neopositivismo e ao neokantismo, que pretendeu
estender-se a amplos domínios da realidade. Isso se deve a determinadas pecu-
bilidade de uma compreensão racional da realidade; um período liaridades do desenvolvimento capitalista norte-americano e, particularmente,
assinalado por tantas contradições era inteligível somente por meio à antecipação pelos Estados Unidos do tipo de capitalismo (tecnocrático e de
consumo) que se generalizaria posteriormente à Europa e cujas características
de uma análise dialética; e, como vimos, a única racionalidade exporemos no capítulo seguinte. Gostaríamos apenas de lembrar aqui que Lévi-
Strauss - durante o período do amadurecimento de suas concepções - residiu
34 e trabalhou nos Estados Unidos. Sem evocar influencias diretas, é interessante
L. Wittgenstein, Tractatus logico-philosophicus. São Paulo, Nacional, 1968, p.
observar a grande similaridade entre a antropologia de Lévi-Strauss e a "filosofia
53. As cifras entre parênteses, nas citações a seguir, referem-se à numeração das
das formas simbólicas" do neokantiano Ernst Cassirer, que, na época, residia
proposições do Tractatus.
35
também nos Estados Unidos.
Jbid., p. 54.
li· AS CONDIÇÕES HISTÓRICAS
DO ESTRUTURALISMO

ANTES DE PROSSEGUIRMOS NA análise interna do estruturalismo,


tentaremos determinar mais amplamente o quadro histórico que
condicionou, no interior da "miséria da razão", o surgimento de
uma nova variante agnóstico-formalista, cuja peculiaridade reside
na substituição do idealismo subjetivo pelo idealismo objetivo.
Essa determinação histórica nos permitirá compreender as razões
pelas quais se verifica, a depender da época, o predomínio relativo
- como filosofia burguesa dominante - de uma das orientações,
irracionalista ou agnóstica, que anteriormente analisamos de um
ponto de vista preponderantemente sistemático. Um estudo real-
mente exaustivo dessa questão deveria levar em conta, decerto,
as várias formas nacionais assumidas pelo desenvolvimento capi-
talista, como insinuamos, no final do capítulo anterior, ao falar
da "antecipação" norte-americana de certas orientações análogas
ao estruturalismo. Aqui, todavia, devemos nos resignar a propor
uma periodização menos concreta, ligada ao nível mais geral do
processo histórico-universal em seu conjunto. Apesar de sua abs-
tratividade, acreditamos que essa periodização histórico-universal
possa contribuir para uma compreensão dialética das contradições
filosóficas da atualidade.

1. ANGÚSTIA E SEGURANÇA
Como vimos, a duplicidade de orientações que marca a filo-
sofia da decadência encontra seus fundamentos nas características
distintivas da economia capitalista, na capitulação espontânea do
62 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA OA RAZÃO
CARLOS NELSON COUTINHO • 63

pensamento imediatista às formas fenomênicas assumidas pelo modalidades de romantismo, surgidas como reação ao período
ser social do capitalismo. Reside também aqui a gênese da relati- "explosivo" da Revolução Francesa e das guerras napoleônicas. No
va supremacia que, em determinada época, cabe a uma ou outra plano teórico, o romantismo apresentava-se como crítica ao racio-
dessas orientações. Ao analisar o ciclo da acumulação capitalista, nalismo iluminista, ideologia própria do movimento democrático-
Marx demonstrou a necessidade da alternativa entre períodos de revolucionário da burguesia. No plano ético, o anticapitalismo
expansão e períodos de crise, entre uma estabilidade relativa e épo- romântico concentrava-se na denúncia do "prosaísmo burguês", do
cas "explosivas". Também diante desse processo dialético, a cons- vulgar tipo médio que, segundo eles, era o produto necessário da
ciência burguesa tende a operar de modo unilateral, fetichizando sociedade burguesa: o filisteu. Ora, o traço mais marcante desse
e autonomizando momentos parciais de um processo sintético. filisteu pequeno-burguês era seu apego doentio à "segurança", à
Conforme coagule o momento da estabilidade ou o momento "ex- estabilidade, seu conformismo diante da cotidianidade capitalista.
plosivo" como a "essência" da realidade, a consciência imediatista Os românticos contrapunham a essa atitude realmente mesquinha
elabora um diverso "sentimento do mundo", sobre o qual constrói (objetivamente existente, decerto, mas falsamente transformada
expressões ideológicas sistemáticas (ou pseudossistemáticas). O pelo romantismo em sinônimo de qualquer comportamento ético
"sentimento do mundo" diverge de uma autêntica "concepção do fundado na razão e na vida social) um outro tipo de comporta-
mundo" precisamente por seu caráter imediatista: enquanto a se- mento, considerado como "humanamente superior": o de uma
gunda representa a relação entre a totalidade da realidade objetiva vida vivida em angústia, em desespero, no absoluto desprezo pela
e a totalidade do gênero humano, o primeiro conserva-se como cotidianidade "vulgar". Comportamento humanamente superior, a
puro "sentimento", isto é, como reação espontânea e sentimental angústia aguçaria a sensibilidade, permitindo assim - em contraste
diante da aparência dos processos reais. O "sentimento do mundo", com a "vulgaridade" da razão - a apreensão da essência "espiri-
por isso, confunde-se com a experiência vivida, subjetiva, dos es- tual" da realidade. Nas filosofias posteriores, particularmente no
tratos intelectuais, funcionando como mais um limite espontâneo existencialismo, essa contraposição seria transformada numa po-
à correta apreensão da objetividade. laridade ontológica entre homens superiores e homens cotidianos,
Verifica-se assim, no que toca a esses "sentimentos do mundo", abrindo-se caminho para concepções aristocráticas e, inclusive,
a mesma duplicidade que antes constatamos no plano puramente em alguns pensadores mais recentes, a posições fascistas ou pré-
filosófico. De acordo com o período histórico, os intekctuais po- fascistas (Nietzsche, Spengler, Ortega y Gasset etc.). Há uma clara
dem experimentar, diante do real, uma sensação de "angústia" ou ligação entre a "angústia" como reação emocional à realidade e a
uma sensação de "segurança"; e, de acordo com isso, elaborarão transformação da intuição irracional em instrumento privilegiado
posições filosóficas preponderantemente irracionalistas ou pseu- do conhecimento.
dorracionalistas. Uma ética autenticamente humanista não pode se submeter a
Tornando essa polaridade como fio condutor, veremos que a essa fetichizada antinomia entre a universalidade abstrata da me-
primeira forma assumida pela ideologia da decadência caracteri- diania pequeno-burguesa e a singularidade hipostasiada de uma
zava-se pela "angústia" e pelo irracionalismo. Pensamos nas várias "individualidade superior". Deve encontrar- como recomendava
64 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 65

Aristóteles - um justo termo médio, um correto particular dia- A filosofia dominante da época [meados do século 19] é uma filosofia

lético entre a evasão irracionalista da "angústia" e o filisteismo de professores (...). Torna-se ciência especializada. Renuncia à sua antiga

"racionalista" da "segurança". Portanto, não é menor o equívoco missão social: cessa de ser expressão, no plano do pensamento, dos grandes

das ideologias que se organizam em torno dessa "segurança", fun- interesses históricos da burguesia e abandona o exame de todo problema

dando o seu aparato teórico na estabilidade e na eficácia formal. ideológico. Aceita encarregar-se da função de "guarda-fronteira'', função

O conceito de "segurança", tal como é formulado na cultura da indispensável à burguesia da época (...). É assim que, em perfeita confor-

decadência, liga-se estreitamente à limitação imposta pela economia midade com a divisão do trabalho, própria do capitalismo evoluído, essa

capitalista à plena expansão da personalidade humana. Somente camada de intelectuais burocratizados que formam parte do aparelho de

submetendo-se às "normas" e regras socialmente impostas, tornan- Estado (...) t_orna-se depositária da filosofia nova 38 •

do-se um conformista, pode o indivíduo experimentar uma sensação O temor de Comte ao "progresso anárquico" (às revoluções),
de seguranca e de estabilidade num mundo objetivamente assolado com a consequente defesa da primazia da "ordem"; a afirmação de
por contradições. Portanto, percebe-se facilmente a relação direta Durkheim segundo a qual o "espírito de disciplina" é a condição
entre burocracia e "segurança", ou seja, o modo pelo qual uma vida básica da vida social; a subordinação do progresso a "estruturas"
"segura" submete-se aos princípios do formalismo pseudorracional imutáveis na obra de Lévi-Strauss: temos aqui três elaborações
e aos valores burocráticos da eficácia "profissional"; a "segurança'', ideológicas, em épocas diversas, do mesmo sentimento pequeno-
assim, conforma-se à identificação entre personalidade individual e burguês da "segurança" manipulada como valor supremo da vida.
função desempenhada na divisão do trabalho, identificação própria Enquanto na primeira época da decadência predominou o
da cultura capitalista. A relação entre "segurança" e conformismo irracionalismo, a partir de 1848 - com a estabilização do capitalis-
foi observada por Max Weber: "O ingresso num cargo, inclusive mo, expressa no grande progresso material e técnico da sociedade
na economia privada, é considerado como a aceitação de uma obri- burguesa e no refluxo da onda revolucionária - as formas vitais
gação específica de administração fiel em troca de uma existência ligadas à "segurança" começam a dominar a intelectualidade,
. "Raciona
segura "37 . l", portanto, passa a ser a praxis
, moral fundada impondo transformações ideológicas. Em termos filosóficos, essa
no conformismo e na aceitação de "regras" formais. sensação de segurança expressa-se na substituição da "metafísica
É bastante sintomático, pois, que a filosofia agnóstica ligada negativista" (própria da filosofia clássica alemã) pelo "espírito po-
ao movimento da "miséria da razão", do positivismo ao estrutu- sitivo" radicalmente agnóstico de Comte. Na literatura, o novo pe-
ralismo, seja uma filosofia universitária, isto é, uma filosofia de ríodo é assinalado pela recusa da arte em figurar comportamentos
funcionários do Estado. O agnosticismo serve precisamente para típicos, superiores à média cotidiana; o naturalismo (equiparando
despojar essa filosofia de qualquer aspecto crítico, afastando da arbitrariamente romantismo e realismo autêntico) limita-se ades-
discussão teórica as questões "explosivas" da vida social. Referindo- crever de modo "positivo" e pseudocientífico a superfície alienada
se ao positivismo, observa Lukács: da vida. (Que se recorde o combate de Taine e Zola contra o

37
M. Weber, Ensaios de sociologia, op. cit., p. 232. G. Lukács, Existencialismo ou marxismo?, op. cit., p. 34-35.
66 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO
CARLOS NELSON COUTINHO • 67

pretenso romantismo de Balzac e Stendhal.) Durante essa época, como ideologia burguesa dominante, às concepções da história que
o irracionalismo torna-se marginal; a filosofia oficial converte-se indicam como inapelável a "decadência do Ocidente" (Spengler).
quase inteiramente ao positivismo, ou no sentido comteano ou O irracionalismo renasce em grande estilo no existencialismo
naquele neokantiano. alemão (Heidegger, Jaspers). Na literatura e na arte dita de "van-
Com a virada do século, com o tempestuoso ingresso do guarda'', domina igualmente - contra o anterior objetivismo na-
mundo na era imperialista, a estabilidade capitalista revela suas turalista - uma tendência subjetivista, comum ao expressionismo,
bases precárias. A esse período "explosivo", marcado por guerras ao surrealismo etc. Essa intensificação da "angústia" atingiria seu
e revoluções, corresponde o renascimento de um individualismo cume no período que vai da Primeira Guerra Mundial à derrota
profundamente antissocial; a angústia torna-se novamente o modo do nazismo, em 1945; mas prosseguiria ainda, no segundo pós-
imediato de reação à realidade conturbada. Pensadores e artistas guerra, por causa da ameaça de destruição da humanidade posta
sinceros começam a denunciar abertamente a falsa segurança, a pelo aguçamento da guerra fria. (Nesse período, como vimos, a
desumanidade objetiva da vida burguesa. Em alguns casos, essa corrente agnóstica torna-se altamente "especializada" e, salvo nos
denúncia parte da mobilização intelectual dos mais autênticos Estados Unidos, abandona os terrenos da ética e da ontologia ao
valores da tradição progressista, do grande humanismo clássico, irracionalismo existencialista.)
que se revela assim uma ponte entre a consciência democrática e
a consciência socialista. 39 2. A IDEOLOGIA DO MUNDO MANIPULADO
Contudo, na maioria dos casos, vemos o renascimento do No processo de reconstrução do capitalismo europeu, promo-
anticapitalismo romântico, de uma crítica irracionalista de fundo vido pelos Estados Unidos, ganha dimensões universais uma das
pessimista. Ao lado da criação de novas filosofias "existencialistas", mais substanciais transformações sofridas pelo capitalismo em sua
assistimos ao renascimento - ou redescoberta - das "profundas" já longa história. Essa transformação começara a se processar desde
visões niilistas de Kierkegaard e Nietzsche, que parecem oferecer a década de 1930, sobretudo na Alemanha nazista e nos Estados
uma resposta válida aos novos problemas colocados pela crise. Unidos do New Deal (sob formas políticas radicalmente diversas),
Um pessimismo radical envolve a filosofia do homem e a teoria mas só se torna realmente dominante e universal no período do
da história. O otimismo vulgar de Comte e Spencer cede lugar, pós-guerra. É ela responsável, acreditamos, pela crescente eficácia
ideológica do estruturalismo, por meio do qual o positivismo
'" Esse movimento humanista é diretamente responsável pelo nascimento de exce- novamente pretende fundar uma "visão do mundo'', bem como
lentes obras de arte realistas (Romain Rolland, Roger Martin du Gard, Bernard
Shaw, Heinrich e Thomas Mann, Theodore Dreiser etc.). No plano conceituai, pelo momentâneo recuo da grande onda existencialista. (Os dois
todavia, ele é mais limitado. Produziu belíssimos estudos sobre o humanismo movimentos são complementares.)
clássico (tais como os de Werner Jaeger sobre a Grécia, ou os de Thomas Mann
sobre Goethe), mas revelou-se estéril no campo específico da filosofia. Nesse As duas principais características dessa transformação econô-
terreno, mesmo seus mais lúcidos representantes, revelavam-se desarmados mica foram indicadas por Gyõrgy Lukács.
diante da filosofia da decadência; basta lembrar aqui a tentativa - equivocada e
arbitrária - de Heinrich e de Thomas Mann no sentido de transformar Nietzsche "Em primeiro lugar", diz Lukács, observa-se que, "nos oitenta
e Schopenhauer em filósofos humanistas. anos seguintes [à morte de Marx], todo o terreno do consumo foi
68 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISERIA OA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 69

dominado pelo processo capitalista'', ao passo que, no período an- século 19, é o período clássico da chamada "livre concorrência". Os
terior, esse processo dominava apenas a produção; Lukács declara agentes econômicos orientam-se por uma ética puritana, ou seja,
ainda estar convencido de que "todo o sistema da manipulação organizam suas vidas em função da poupança e não do consumo.
surgiu dessa necessidade (econômica) e estendeu-se posteriormente O mecanismo capitalista requeria essa poupança como condição
também à sociedade e à política". 40 Em segundo lugar, nessa nova prévia da acumulação. Mas o desenvolvimento capitalista assim
fase do capitalismo, orientado desembocaria numa contradição insolúvel; ao mesmo
a exploração da classe operária volta-se cada vez mais intensamente da tempo em que expande a massa de produtos que lança no merca-
exploração mediante a mais-valia absoluta para uma exploração operada do, o sistema - para obter lucros - deve constantemente alterar a
através da mais-valia relativa; isso significa que é possível, simultanea- taxa da composição orgânica do capital, ou seja, deve diminuir o
mente, um aumento da exploração e um aumento do nível de vida do volume dos salários no conjunto das despesas; isso significa que o
trabalhador. 41 aumento da produção se faz ao preço de uma diminuição relativa
Essas duas características são intimamente relacionadas, pois (ou mesmo absoluta) do consumo, seguindo-se inevitavelmente
só com a possibilidade de um progresso no padrão de vida das clas- crises de superprodução. Cria-se, assim, um imenso excedente
ses assalariadas (sem redução da taxa de mais-valia) é possível um econômico, que deve ser novamente investido a fim de evitar o
aumento da produção sem o perigo de crises de superprodução. colapso do sistema.
Por outro lado, o aumento da mais-valia relativa liga-se ao aumen- A realização lucrativa desse excedente implica a ampliação da
to da produtividade do trabalho; isso significa que o capitalismo é esfera do consumo. Já foi bastante analisado o papel que o imperia-
obrigado a promover um novo e espetacular florescimento técnico, lismo e a militarização da economia desempenham nesse processo
o que explica o grande prestígio desfrutado pela racionalidade tec- de ampliação. Todavia, há um outro fator fundamental, precisa-
nológica entre determinados setores intelectuais. Nessas condições, mente aquele que nos interessa mais diretamente: o aumento do
o novo capitalismo apresenta-se como "científico'', como capaz de consumo privado, por meio da criação de necessidades artificiais.
resolver as "irracionalidades" que hoje reconhece inerentes à sua Essa solução só pode ser levada à prática quando satisfeitas duas
época anterior. condições: primeiro, o desenvolvimento tecnológico que permite
Nesse período "primitivo'', o capitalismo caracterizava-se pela passar da exploração do trabalho por meio da mais-valia absoluta
concentração massiva dos recursos na esfera da produção, o que àquela por meio da mais-valia relativa, com o que se garante, ao
implicava a burocratização dos aparatos produtivos. A esfera do mesmo tempo, um aumento do lucro e um aumento da possibili-
consumo era inteiramente abandonada a leis espontâneas e cegas dade de consumir; e, segundo, o desenvolvimento de um aparato
do mercado, irracionais ou incognoscíveis tanto para o produtor que manipule os desejos do consumidor, tornando efetiva aquela
quanto para o consumidor. Esse período, que se estende até fins do possibilidade de consumir mesmo diante de produtos que o in-
divíduo não necessita de um ponto de vista racional. Com isso, a
40
Conversando com Lukács, op. cit., p. 51-52.
esfera do consumo - outrora abandonada às leis cegas do mercado,
41
Ibid., p. 52. ao capricho subjetivo e "irracional" de milhões de consumidores
70 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA OA RAZÃO
CARLOS NELSON COUTINHO • 71

contra a poupança e em favor do consumo. E o principal meio de realizar


individuais - passa a ser igualmente submetida à burocratização
tal tarefa é provocar modificações na moda, criar novas necessidades, fixar
e à homogeneização capitalistas.
novos padrões de status, impor novas normas de propriedade. 43
Ora, essa esfera do consumo é exatamente a esfera do "tempo
livre", daquele setor da vida que se coloca para além do trabalho Elemento indispensável do neocapitalismo, a manipulação
produtivo e em cuja ampliação Marx situava a base do "reino tem como objetivo destruir a especificidade dos indivíduos,
da liberdade". Com a ampliação da produtividade tecnológica, homogeneizando seu comportamento ao transformá-lo em algo
tornou-se uma possibilidade concreta a diminuição da jornada "calculável" e previsível; tão somente essa homogeneização e pre-
de trabalho, a liberação do homem para uma atividade criadora e visibilidade garantem a segurança econômica da produção através
autônoma. Mas essa possibilidade, bloqueada pelos mecanismos de "padrões" estáveis de consumo. O homem, para a manipulação,
do capitalismo de consumo, não pode converter-se em realidade, converte-se num simples "dado", em uma coisa passiva. Desse
pois o objetivo real da manipulação consiste em transformar esse modo, a manipulação da vida privada não passa de uma ampliação
"tempo livre", esse lazer ampliado, em "tempo de consumo". Com a novas esferas daquilo que chamamos de racionalidade burocráti-
isso, o "tempo livre" (que, apesar de sua exiguidade, pertencia ou- ca, a qual, como vimos, é a "racionalidade" espontânea no quadro
trora ao indivíduo) transforma-se em um "tempo manipulado". O da alienação capitalista.
O resultado da manipulação - observam ainda Baran e Sweezy - é um
capitalismo da livre concorrência transformou o homem produtivo
produto humano padronizado, racionalizado, sistematicamente controla-
num autômato passivo; o capitalismo monopolista de consumo
do por meio de levantamentos estatísticos (...).As reações desse "produto"
generaliza essa passividade também à esfera do lazer.
tornam-se cada vez mais automáticas e previsíveis. 44
Nessas condições - observa Horkheimer - é a vida de cada indivíduo (aqui
compreendidos seus impulsos mais secretos, que outrora representavam
A eliminação da "irracionalidade", a que se propõe a manipu-
um seu domínio privado) que deve levar em conta as exigências da racio-
lação, consiste precisamente nessa eliminação da especificidade
nalização e da planificação. 42
da ação humana.
Essa manipulação da vida privada não é um fato acidental, Embora necessário (no sentido de produzido e reproduzido
mas algo que decorre necessariamente da nova estrutura do pela economia neocapitalista), o fenômeno da manipulação não
capitalismo. Os marxistas norte-americanos Paul Baran e Paul é onipotente. Observamos diariamente, nos mais variados níveis,
Sweezy, num dos melhores livros a respeito do capitalismo de manifestações reais de protesto - consciente ou inconsciente - con-
hoje, observam: tra a manipulação. Todavia, o sistema cria cada vez mais canais de
A publicidade se transformou num instrumento indispensável a um enor-
me setor do mundo das grandes empresas (...). A função da publicidade, 4\
P. A. Baran e P. M. Sweezy, Capitalismo monopolista. Rio de Janeiro, Zahar, 1966,
talvez a sua função dominante hoje, tornou-se a de travar, em nome dos p. 124 e 132.
44
produtores e vendedores de bens de consumo, uma guerra incessante Ibid., p. 345. Um destacado economista burguês reconhece também a importância
desse "controle da procura" para o novo sistema econômico ocidental; cf. J. K.
Galbraith, O novo Estado industrial. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968,
42
M. Horkheimer, Eclissi della ragione, op. cit., p. 117. p. 217 ss.
72 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZl\o CARLOS NELSON COUTINHO • 73

escape para essa insatisfação, impedindo que ela desemboque - ao vantagem para todos os grupos e interesses sociais, em tal medida que toda
superar a imediaticidade - numa real contestação das estruturas contradição parece irracional e toda ação contrária impossível. 46
econômicas. Um dos mais importantes desses canais é exatamente A eliminação da contraditoriedade do real continua a ser a
o caminho irracionalista. Alimentando a falsa polaridade entre tarefa básica da nova ideologia burguesa.
"racionalismo" formal e irracionalismo, entre objetivismo pseu- As consequências filosófico-culturais do processo não pas-
docientífico e subjetivismo anárquico, a ideologia da manipulação saram desapercebidas. Lucien Goldmann, por exemplo, observa
conduz muitas das manifestações de protesto ao beco sem saída com argúcia:
dos comportamentos irracionais. Em vez de um caminho auten- Atualmente, uma filosofia está em vias de nascer: ela se chama estrutura-
ticamente revolucionário, vemos renascer uma forma primitiva lismo. Um dia, Lévi-Strauss será mais importante do que Kierkegaard, não
de anticapitalismo romântico, facilmente isolável - e até mesmo em si, mas porque a inquietação e a angústia desaparecem, formando-se a
comercializável - pela ideologia neocapitalista. Reproduz-se assim, sociedade do consumidor (...). O perigo da tecnocracia existe hoje numa
numa nova etapa, a mesma duplicidade que, como vimos, carac- sociedade que se expressa, entre outras coisas, no fato de que temos, no
teriza todo o pensamento imediatista da decadência. nouveau roman, os romances de Kafka menos a angústia e, ao contrário,
O capitalismo do "bem-estar" manipulado, baseado no con- com a aceitação. 47
sumo insensato e anti-humano, traz consigo uma falsa sensação Essa nova "ideologia da segurança'', contudo, embora esti-
de "segurança". (Não é casual que o sociólogo Vance Packard, mulada pelo ser social do período, enfrenta obstáculos para seu
descrevendo o aparato norte-americano da manipulação, inclua completo triunfo. Deve, antes de mais nada, eliminar de sua esfera
entre os "padrões" de comportamento impostos ao consumidor teórica - ou seja, afastar do domínio da racionalidade - todas as
a "segurança emocional". 45 ) Enquanto a antiga "liberdade" do questões colocadas pela ética humanista, pela ontologia materialis-
mercado - liberdade aparente, mas experimentada como real - era ta e pelo historicismo concreto. Essa tarefa, paradoxalmente, lhe é
vivida em épocas de crise como algo "terrível'', incontrolável, cau- facilitada pelo seu aparente inimigo, o "velho" irracionalismo, que
sador de angústia, a nova racionalização homogeneizadora ganha apresenta para aquelas questões tão somente respostas subjetivistas,
na ideologia um sinal positivo, ou seja, aparece como fonte de carentes de verdade. O verdadeiro inimigo da nova "miséria da
"segurança" e de estabilidade. Surge a ilusão generalizada de que razão", portanto, continua a ser aquela concepção do mundo que
a manipulação, eliminando a "irracionalidade" das crises, trans- herda e desenvolve os conceitos básicos da tradição progressista,
formou a sociedade em algo "racional", ou seja, não contraditório. os do humanismo, do historicismo e da dialética.
Descrevendo o processo, Herbert Marcuse observou corretamente: À luz de um conceito amplo, objetivo e dialético da razão, dis-
Em presença de um nível de vida cada vez mais elevado, a não conformidade solvem-se as aparências "racionais" da nova ideologia da segurança.
ao sistema parece ser algo socialmente inútil (...). Na época contemporânea,
os controles tecnológicos parecem ser a própria encarnação da razão, com
46 H. Marcuse, L'uomo a una dimensione. Turim, Einaudi, 1967, p. 22 e 29.
47 L. Goldmann. ln: Vários autores, Kierkegaard vivant. Paris, Gallimard, 1966, p.
45
V. Packard, A nova técnica de convencer. São Paulo, Ibasa, 1965, p. 67. 294.
CARLOS NELSON COUTINHO • 75
74 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA OA RAZÃO

Uma análise humanista de nossa época colocaria a nu a mutilação - em apologia do neocapitalismo. O estruturalismo é o reflexo
da práxis pela manipulação, a necessária irracionalidade de uma ideológico do mundo manipulado.
vida voltada para o consumo supérfluo e humanamente insensato. Esse caráter ideológico decorre da capitulação do estrutura-
Uma visão concretamente historicista revelaria as possibilidades lismo à aparência imediata da sociedade atual. Na manipulação,
de mudança e transformação latentes, embora dissimuladas pelas como vimos, a burocratização da práxis penetra na vida privada,
aparências fetichizadas que se pretendem imutáveis. A dialética, produzindo a ilusão ideológica de uma completa subordinação
finalmente, denunciaria a contradição entre um mundo aparen- da vida humana a regras formais. Nessas condições, a corrente
temente "organizado" (com os meios de uma razão burocrática) agnóstica, sem renunciar ao seu agnosticismo, pode abandonar o
e a irracionalidade objetiva do conjunto da sociedade, superando limitado círcµlo dos problemas da lógica formal e proclamar-se -
assim os limites de uma "razão" que se concentra nas regras, nos no estruturalismo - uma nova "concepção do mundo". Torna-se
meios, enquanto abandona como incognoscível o conteúdo e a agora mais fácil, embora nunca mais verdadeiro, afirmar que todas
finalidade da vida e da sociedade. as atividades humanas (dos mitos culinários à composição musical,
É precisamente contra um tal tipo de análise que se volta a das relações de parentesco à estrutura econômica, do "sistema" da
nova encarnação da "miséria da razão", o estruturalismo. Como moda às grandes obras literárias) subordinam-se a regras formais,
o positivismo "clássico" e o neopositivismo, o estruturalismo são produtos de um "intelecto" mistificado, convertido - sob o
combate a razão dialética. Assume a racionalidade burocrática nome de "episteme" ou de "estrutura inconsciente" - num fetiche
(própria da manipulação) e as devastações humanas que ela im- pseudo-objetivo. O "homem estrutural" de Roland Banhes não é
põe ao seu objeto como premissas de seu sistema teórico. Afirma mais do que a transfiguração do tecnoburocrata do nosso tempo,
que o homem é um puro "dado" passivo de estruturas apriorís- assim como o super-homem de Nietzsche era a hipóstase do inte-
ticas, que a liberdade é apenas uma "ilusão'', que o humanismo lectual filisteu parasitário. Quando Banhes afirma que "a técnica
(os problemas da construção do homem por si mesmo) são um é o próprio ser de toda criação", 48 ou quando Michel Foucault
"falso problema'', uma mera "doxologia". Ao proclamar a "morte observa que "o mundo técnico é nosso mundo real'', 49 deixam
da ideologia", pretende precisamente decretar como irracionais, escapar a natureza do estruturalismo como ideologia do mundo
como problemas alheios à ciência e à razão, as questões do manipulado. Uma ideologia que generaliza na teoria aquilo que
sentido da vida, da luta por uma nova sociedade, da liberdade as novas formas do capitalismo tentam generalizar na prática: a
humana real. Essa identificação da razão com a "racionalidade" completa subordinação do todo social à manipulação tecnológica.
imperante nos fenômenos imediatos da sociedade capitalista
contribui, ainda que não seja essa a intenção dos seus realiza-
dores, para reforçar nas consciências a convicção de que a atual
manipulação dos homens, com todas as suas consequências, 48 R. Banhes, Essais critiques. Paris, Seuil, 1964, p. 216.
é um dado ontológico eterno e imutável. O positivismo dos 49 M. Foucault, "Entrevista a Quinzaine Littéraire". ln: E. P. Coelho (org.), Estru-
estruturalistas converte-se - voluntária ou involuntariamente turalismo. Antologia de textos teóricos. Lisboa, Portugália, 1968, p. 35.
Ili· OS LIMITES DA "RAZÃO" ESTRUTURALISTA

Nos CAPÍTULOS ANTERIORES, ANALISAMOS a gênese histórico-


filosófica do estruturalismo, indicando a sua ligação, por um lado,
com o agnosticismo da corrente a que chamamos de "miséria da
razão", e, por outro, com as condições históricas estabelecidas
pelo surgimento do capitalismo manipulatório. Todavia, se essa
determinação genética é condição necessária de uma completa
avaliação do estruturalismo, está longe de ser condição suficiente.
Tão somente por meio de uma análise imanente - sistemática -
poderemos indicar amplamente as contradições em que se envolve
essa filosofia ao pretender concretizar o seu programa. A integração
dos dois métodos, o histórico-genético e o sistemático, consiste
precisamente num dos principais legados da tradição progressista,
particularmente da filosofia de Hegel, ao pensamento dialético
contemporâneo.
O programa estruturalista consiste, essencialmente, na afir-
mação de que - sendo a realidade social um conjunto de sistemas
simbólicos ou de formas de comunicação - o método capaz de
torná-la inteligível é aquele próprio da linguística moderna; as
ciências humanas, ou aquilo que deve substituí-las, tornam-se
disciplinas particulares no interior de uma semiologia geral.
Podemos observar, desde logo, dois núcleos de problemas. Em
primeiro lugar, a pretensão estruturalista de fundar, em contraste
com o subjetivismo irracionalista dominante nos últimos anos,
um método objetivo e científico, racionalista, de análise da reali-
dade social. E, em segundo, opondo-se ao neopositivismo lógico,
78 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO
CARLOS NELSON COUTINHO • 79

sua intenção de fundar uma concepção global da realidade, algo tendendo necessariamente a estabelecer "limites" para o conhe-
próximo daquilo que a filosofia clássica chamava de ontologia. cimento.
Nossa crítica imanente tentará provar duas coisas. Primeiro, que a Todavia, nenhuma filosofia pode afastar inteiramente os pro-
tendência basicamente agnóstica do estruturalismo, ao considerar blemas ontológicos. As proposições epistemológicas subordinam-se
"irracionais" os momentos essenciais da realidade humana, contri- sempre a uma afirmação sobre o caráter da realidade objetiva. Ao
bui para reforçar - e não para superar - o irracionalismo "clássico". recusar explicitamente a ontologia, por exemplo, o neopositivismo
Segundo, que a "ontologia" estruturalista não passa, na realidade, está indiretamente afirmando que a realidade objetiva, não poden-
de uma arbitrária projeção no objeto de determinadas posições do ser compreendida à luz da racionalidade formalista consagrada
epistemológicas, estabelecidas ademais de modo unilateral. pela epistemologia neopositivista, não passa de um amontoado
Dado que já analisamos anteriormente o primeiro núcleo de de elementos caóticos, não submetidos a qualquer sistema de leis.
problemas, detenhamo-nos brevemente na questão da "ontologia". (Que se recorde a identificação supracitada de Wittgenstein entre
De imediato, o programa estruturalista apresenta-se como sendo lógica e legalidade.) Podemos dizer o mesmo, mutatís mutandís,
de natureza epistemológica, ou seja, como um novo e "revolucioná- do estruturalismo. Se o método estruturalista é adequado à análise
rio" método capaz de assegurar, pela primeira vez, a inteligibilidade da vida social, isso ocorre porque essa última possui determinada
científico-racional dos fatos sociais. Lucien Sebag, por exemplo, configuração ontológica - como, no caso, a de ser um conjunto
que tem o grande mérito de não fazer concessões verbais, coloca de sistemas simbólicos - conceituável tão somente por meio da
o problema com muita clareza ao explicar sua não aceitação do racionalidade estabelecida por aquele método. Lévi-Strauss é bas-
marxismo: tante claro a respeito:
Malgrado sua busca de um certo tipo de legitimação, é de imediato sobre A antropologia não faz mais do que tornar evidente uma homologia de
o plano ontológico que Marx se situa (...). Impõe-se transportar o debate estrutura entre o pensamento humano em exercício e o objeto humano
do plano ontológico, que continua a ser o da metafísica, para o plano ao qual se aplica. A integração metodológica de fundo e forma reflete, a
epistemológico, que é o da ciência. 50 seu modo, uma integração mais essencial: a do método e da realidade. 52
Estamos aqui diante de uma continuação direta do programa A nossa crítica, aqui, visa tão somente à questão da prioridade:
neopositivista. "Falando de um modo geral" - observa Lukács enquanto, na realidade, os problemas epistemológicos são apenas
- "trata-se substancialmente [no neopositivismo] da tentativa de um momento subordinado das questões ontológicas (ou, em outras
eliminar toda ontologia, todo aspecto ontológico da práxis do palavras, a racionalidade subjetiva é um reflexo aproximativo do
homem". 51 Em outras palavras, em vez de uma análise do objeto sistema de leis imanentes à objetividade do ser), no estruturalismo
(que dele depreenda sua racionalidade imanente), o epistemolo- a relação se inverte, pois sua "ontologia" não é mais do que uma
gismo concentra-se na descrição formal dos processos racionais, projeção no objeto das configurações formais descobertas na aná-
lise - unilateral e fetichizada - do intelecto subjetivo.
50
L. Sebag, Marxisme et structuralisme. Paris, Plon, 1967, p. 94.
51
Conversando com Lukács, op. cit., p. 151. 52 C. Lévi-Strauss, Le totémisme aujourd'hui. Paris, PUF, 1962, p. 131.
80 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISERIA OA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 81

Nessas condições, o estruturalismo tende a transferir para a um método positivo e a conhecer a natureza dos fatos submetidos à sua
própria realidade os "limites" que sua epistemologia formalista análise. 53
(essencialmente análoga à do neopositivismo) julga descobrir no Esse valor exemplar da linguística, por outro lado, não se limi-
conhecimento racional. Na "antropologia estrutural", somente ta ao plano epistemológico, pois refere-se - supõe Lévi-Strauss - à
merecerão a qualificação de "objetivas" aquelas configurações própria natureza ontológica da vida social. Diz ele:
ontológicas às quais se possam aplicar as leis do intelecto formal; A linguagem aparece como condição de cultura, na medida em que essa
isso provoca, como veremos, um profundo empobrecimento da última possui uma arquitetura similar à da linguagem. Ambas se edificam
realidade, na medida em que são declaradas "subjetivas" (e, portan- por meio de oposições e correlações, isto é, de relações lógicas. 54
to, irracionais) as questões essenciais da sociedade: as da história, Lévi-Strauss confessa ainda estar disposto a "estimular essa
do humanismo, da dialética. À "miséria da razão'', vem juntar-se 'revolução copernicana' que consistirá em interpretar a sociedade,
assim uma "miséria do objeto". A categoria que serve de ponte no seu todo, em função de uma teoria da comunicação". 55 Roman
para essa sub-reptícia e injustificada passagem da epistemologia à Jakobson tem a mesma opinião: "O sistema semiótico mais impor-
ontologia é precisamente a de "estrutura". Tentaremos, portanto, tante, a base de todo o restante, é a linguagem: a linguagem é de
esclarecer a natureza específica deste conceito de "estrutura" e fato o próprio fundamento da cultura".56 Enquanto para Marx e os
discutir a validade ou não de sua aplicação à análise ontológica marxistas a economia aparece como a ciência fundamental, aquela
da vida social. Mas era preciso deixar bem claro - o que justifica na qual se esclarecem os fundamentos últimos da objetividade
essa digressão inicial - de que não estamos diante de um conceito social, para o estruturalismo essa ciência básica é a linguística:
apenas epistemológico, mas sim de uma categoria com pretensões o modo de ser da realidade social seria semelhante ao da língua.
igualmente ontológicas. A compreensão do significado real dessa extrapolação linguísti-
ca requer que esbocemos, em suas linhas mais gerais, os problemas
1. LINGUAGEM, PRÁXIS E RAZÃO filosóficos relativos à linguagem. Um dever básico de honestidade
Já nos referimos ao fato de que, para o estruturalismo, a ciência intelectual me obriga a advertir o leitor de que sou um leigo no ter-
linguística fornece o modelo supremo de inteligibilidade dos fatos reno da linguística. Não pretendo aqui discutir as questões inter-
sociais. Em outras palavras, o conceito de estrutura que se tenta nas dessa ciência; estou inclusive disposto a admitir como válidas
generalizar à totalidade da vida social é aquele elaborado pela as descobertas da linguística estrutural, fundada por Ferdinand de
moderna linguística estrutural. A afirmação do "valor exemplar Saussure, na medida em que se mantenham nos limites puramente
do método linguístico'', feita por Lévi-Strauss, baseia-se na sua formais estabelecidos pelo próprio Saussure. O problema que aqui
convicção de que
a linguística ocupa, no conjunto das ciências sociais, um lugar excep- 53
C. Lévi-Strauss, Antropologia estrutural. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1968,
cional: ela não é uma ciência social como as outras, mas aquela que, de p. 45.
54
Ibid., p. 86.
há muito, realizou os maiores progressos: a única, sem dúvida, que pode 55
lbid., p. 106.
reivindicar o nome de ciência e que chegou, ao mesmo tempo, a formular 56
R. Jakobson, Linguística e comunicação. São Paulo, Cultrix, 1970, p. 18.
82 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 83

me interessa - o da inserção da práxis linguística no conjunto da mente parcial), são ainda mais justificados na linguística, pois na
atividade humana - não é um problema estritamente linguístico, linguagem - graças ao seu caráter inconsciente e à sua "neutra-
mas um problema ontológico e gnosiológico, ou seja, uma ques- lidade" diante das contradições sociais - verifica-se um relativo
tão de filosofia. De resto, quando impelido por essa problemática predomínio da permanência sobre a mudança, do sistemático
filosófica for obrigado a formular opiniões relativas à ciência da sobre o histórico.
língua, posso arguir em meu favor o princípio estabelecido por Todavia, não se justifica que essa abstração seja tomada como
Lukács na relação entre ciência e filosofia: o "limite" insuperável da racionalidade na esfera da linguagem. É
A filosofia pode exercer uma crítica ontológica sobre determinadas hipó- esta, porém, a posição de Saussure. A linguagem como um todo,
teses ou teorias científicas e demonstrar assim que essas se encontram em para ele, seria ~lgo irracional: "Seria ilusório reunir, sob o mesmo
contradição com a estrutura efetiva da realidade.57 ponto de vista, a língua e a fala. O conjunto global da linguagem
Se lermos Saussure com alguma atenção, observaremos em sua é incognoscível, já que não é homogêneo". 58 Observa-se aqui um
obra um conjunto de procedimentos abstrativos inteiramente jus- evidente processo de projeção do epistemológico (a abstração de um
tificados, mas que surgem lado a lado com limitações arbitrárias, elemento) no ontológico (a arbitrária transformação desse elemento
decorrentes, a meu ver, de uma íntima adesão do linguista suíço ao abstraído em uma entidade fetichizada). Por outro lado, é dara
agnosticismo peculiar à "miséria da razão". De um ponto de vista aqui a sujeição de Saussure à "miséria da razão"; para ele, somente
epistemológico, parece-me inteiramente justificada a separação que o homogêneo, isto é, o não contraditório, é passível de apreensão
ele estabelece entre língua (langue) e fala (parole), ou seja, a abstra- racional. Nesse ponto, o conceito saussuriano da razão é diretamente
ção metodológica de um elemento parcial (a língua) destacado da derivado de Comte. E ainda de Comte (ou de Durkheim) decorre
totalidade da linguagem; essa abstração permite-lhe determinar sua preferência pelo estático diante do dinâmico, sua concepção de
importantes leis formais, num nível em que as variações históricas que não existe lei racional na história, já que os processos evolutivos
ou particulares praticamente não interferem. Do mesmo modo, são arbitrários: "Não se pode aplicar a noção de lei aos fatos evolu-
justifica-se - como momento preliminar da análise - a divisão tivos; não se fala de lei senão quando um conjunto de fatos obedece
do todo linguístico em seus momentos sincrônico e diacrônico, à mesma regra; e, malgrado certas aparências contrárias, os aconte-
com a consequente fundação de duas diferentes ciências linguís- cimentos diacrônicos têm sempre caráter acidental e particular".59
ticas. Esses processos abstrativos permitem-lhe superar o caráter De acordo com isso, Saussure - iniciando uma tendência que seria
puramente descritivo do historicismo vulgar que predominou na comum a toda a linguística contemporânea60 - afasta do terreno da
linguística do século 19 e estabelecer com maior precisão o sistema ciência a análise da gênese histórico-social da linguagem:
de leis formais que opera no que ele chamou de "língua". Embora
tais abstrações se justifiquem em qualquer ciência (sempre que se 58
F. de Saussure, Curso de linguística geral. São Paulo, Cultrix, 1969, p. 28.
59
mantenham nos limites de uma análise preliminar ou declarada- Ibid., p. 109.
60
Georges Mounin, um discípulo de Saussure, afirma que toda a linguística moder-
na aceita a tese de que o problema da origem da linguagem não é um problema
57
Conversando com Lukács, op. cit., p. 22. de linguística (G. Mounin, Histoire de la lingüistique. Paris, PUF, 1967, p. 17).
11

84 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA OA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 85

Eis porque a questão da origem da linguagem não tem a importância expressão com outras expressões, não pressupõem a presença das coisas
que geralmente se lhe atribui. Tampouco se trata de uma questão a ser (...). Em todos esses casos [de determinação do significado], substituímos
proposta; o único objetivo real da linguística é a vida normal e regular de signo por signo. O que resta, então, de uma relação direta entre a palavra
61
um idioma já constituído. e a coisa?63
Que não se trate aqui de uma idiossincrasia pessoal de Saussu- O marxista Henri Lefebvre - cujos méritos na crítica ao
re, mas sim de uma posição comum a toda a linguística estrutu- estruturalismo são inegáveis - denunciou essa injustificada limi-
ral, é algo que podemos observar analisando a obra de um outro tação formalista, que esvazia a língua de todos os seus elementos
linguista da mesma orientação, Roman Jakobson. Jakobson não histórico-sociais e conteudísticos:
é um simples discípulo de Saussure; rejeita decididamente sua Na escola de. Jakobson, a redução abusiva é ainda mais visível, mais
teoria da arbitrariedade do signo, recoloca o exame da semân- evidentemente exagerada (...). Reduz-se o sentido à significação, depois
tica no quadro da ciência da língua e considera ultrapassada a o significativo ao não significativo e, por conseguinte, a linguística à fo-
concepção saussuriana da divisão entre linguística sincrônica e nologia. As reduções se sucedem: a ciência social à ciência da linguagem,
diacrônica. Mas, a uma análise atenta, observamos que a pretensa a não combinatória à combinatória, a diacronia à sincronia. 64
reintrodução da diacronia e da semântica no quadro da ciência da Mas não é apenas de um ângulo dialético e historicista que
língua em nada altera o agnosticismo e o formalismo existentes se pode criticar esse empobrecimento do objeto praticado pelo
em Saussure. Jakobson continua a afirmar que não existem leis ra- estruturalismo linguístico. Embora suas posições "ontológicas"
cionais na história: "Embora existam leis universais que governam e epistemológicas sejam bastante similares às do neopositivismo,
os sistemas fonológicos e gramaticais, dificilmente encontraremos o norte-americano Noam Chomsky - de um ponto de vista es-
leis gerais de mudança linguística". E, generalizando a afirmação, tritamente linguístico - considera as posições de Saussure e do
conclui: "Essa maior validade das leis estáticas em contraposição estruturalismo como fruto de uma "concepção empobrecida e
às dinâmicas não se confina à linguística". 62 Quanto à semântica, totalmente inadequada da linguagem"; e, ainda que reconheça os
Jakobson afirma claramente que a significação das palavras nada méritos descritivos da linguística estrutural, lamenta que não se
tem a ver com as coisas, isto é, que a linguagem (e o pensamento tenha ainda chegado a "um claro reconhecimento de seus limites
que ela expressa) não são um reflexo da realidade objetiva. A in- essenciais e de sua inadequação final". 65
corporação das significações linguísticas à ciência da linguagem, Esses limites, contudo, não alteram o fato de que Saussure e
por ele proposta, resulta assim numa formalização ainda mais seus discípulos descreveram com bastante exatidão o sistema de leis
ampla dos problemas: formais que opera na "língua". Uma descoberta básica da linguís-
A lógica simbólica não tem deixado de lembrar-nos que as "significações tica saussuriana consiste em sua teoria da arbitrariedade do signo
linguísticas", constituídas pelo sistema das relações analíticas de uma

63
Ibid., p. 32-33.
64
61 F. de Saussure, Curso ... , op. cit., p. 86. H. Lefebvre, Le langage et la societé. Paris, Gallimard, 1966, p. 193.
65
62 R. Jakobson, Linguística e comunicação, op. cit., p. 28. N. Chomsky, Le langage et la pensée. Paris, Plon, 1969, pp. 38 e 40.
86 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISERIA OA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 87

linguístico. Nesse, segundo Saussure, coexistem dois momentos, gorias que lhe são próprias não se confundem absolutamente com
o do significante (ou "imagem acústica" da palavra) e o do signi- a totalidade das categorias racionais que operam numa apreensão
ficado (conteúdo conceitua!). A relação entre esses dois níveis seria global da realidade. Em sua totalidade objetiva, a linguagem
sempre arbitrária, ou seja, não existiria nenhuma ligação interna, não pode ser destacada do pensamento (constituindo sua forma
ontológica ou gnosiológica, entre a natureza do som da palavra material), nem da realidade objetiva (que expressa através da
"pedra", por exemplo, e o conceito de "pedra". O que faz desse som mediação do pensamento). A linguagem é o instrumento criado
específico o estímulo desencadeador da ideia de "pedra" é o local pelos homens com a finalidade de garantir e aprofundar o reflexo
que ele ocupa no sistema de oposições e articulações que constitui do real pelo pensamento e, ao mesmo tempo, a comunicação
a estrutura formal da "língua". É como se esse sistema "escolhesse", inter-humana. -Como diz o marxista polonês Adam Schaff, "a
na infinita gama de sons possíveis, determinados sons específicos e linguagem é uma práxis condensada", 67 ou seja, uma objetivação
finitos, cuja única característica requerida para a escolha fosse a de humana - uma "substância" - que capta, fixa e expressa a práxis
poderem ser contrapostos entre si - diferenciados em "unidades" global dos homens. Tão somente nesse amplo quadro ontológico
elementares - e assim "combinados" na cadeia linguística. Em (e a partir dele) é possível compreender corretamente, em sua
termos técnicos, isso significa que as "unidades" devem manter dimensão histórico-dialética, a gênese e a verdadeira natureza
entre si relações de "oposição pertinente", de modo que ninguém daquele sistema formal descrito por Saussure. Para isso, decerto,
possa confundir o significado de "bola" com o de "cola", indepen- é necessário superar os falsos "limites" estabelecidos por uma ra-
dentemente do fato de que, em si, o som "b" ou o som "c" nada cionalidade empobrecida e recolocar a "língua" e a linguagem na
terem a ver, respectivamente, com a ideia de uma coisa redonda totalidade concreta da objetividade social.
ou de uma coisa adesiva. As posteriores discussões a respeito da Com a vida social, introduziu-se no ser dos processos uma
motivação ou não do signo linguístico (por exemplo, em Jakobson) realidade nova, uma nova categoria ontológica: o ato teleológico.
não alteram o que há de essencial na teoria saussuriana da arbi- Enquanto na realidade natural ocorre apenas causalidade, na so-
trariedade, ou seja, a tese de que os elementos formais da língua ciedade a causalidade relaciona-se estreita e organicamente com
não são determinados pelas relações objetivas da matéria sonora. a teleologia. O ato teleológico primário, sobre o qual se organiza
Essa matéria, empobrecida, aparece como simples instrumento de uma rede de complexos teleológicos de nível superior, verdadeiras
significação. Nesse nível, portanto, Saussure tem razão ao afirmar objetividades teleológicas, é o trabalho econômico. 68 Analisando
que "a /'mgua e' uma fiorma e nao- uma su bs.,+a'nc;a" 66
• . o trabalho, vemos que o homem pode realizá-lo tão somente se
Essa descrição é justificada, mas tão somente na condição de colocar em movimento uma determinação causal (físico-química,
se fazer imediatamente uma ressalva (precisamente aquela que os orgânica ou social); em outras palavras, a realização teleológica
estruturalistas "esqueceram" de fazer): esse nível formal está longe
de esgotar a totalidade da linguagem; e, mais do que isso, as cate-
67
A. Schaff, Lenguaje y conocimiento, op. cit., p. 252.
68
Para os princípios ontológicos resumidos aqui e em seguida, cf. Conversando com
66 F. de Saussure, Curso ... , op. cit., p. 141. Lukács, op. cit., particularmente p. 11-38.
88 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 89

não anula, mas antes implica, a sujeição da realidade a leis causais gem aparece claramente. A gênese da linguagem, como a de todo
imanentes e independentes do sujeito. Sem o conhecimento das leis ato teleológico, reside no trabalho:
da termodinâmica, por exemplo, é impossível a posição teleológica O desenvolvimento do trabalho - observa Engels - contribuiu necessa-
que utiliza tais leis a serviço da construção da máquina a vapor; riamente para estreitar os laços entre os membros da sociedade, multipli-
sem o conhecimento das leis econômicas do capitalismo, não se cando os casos de assistência mútua, de cooperação comum, tornando
pode projetar eficazmente o ato revolucionário de transformar a mais clara em cada indivíduo a consciência da utilidade dessa cooperação.
realidade, colocando tais leis a serviço do homem; sem conhecer Em suma, os homens em formação chegaram ao ponto em que tinham
as possibilidades objetivas e subjetivas, nenhum homem pode reciprocamente algo a se dizer. 69
projetar um comportamento ético eficaz, que o realize e explicite Nessa determinação genética, podemos observar ao mesmo
como ser humano. tempo o telos originário da linguagem, sua função social como
Partindo do ato teleológico primário, o trabalho econômico meio de fixação e de comunicação do pensamento (do "algo" que o
(que liga o homem social à natureza), podemos assim determinar trabalho fazia nascer nos homens). A linguagem, em suma, é uma
uma tipologia rica e explicitada dos complexos e comportamentos práxis objetivada. Ocorre nela, como em toda práxis que visa à do-
teleológicos; a depender de sua função e estrutura, tais comporta- minação da natureza, a junção de dois complexos causais com um
mentos dividem-se em econômicos, técnicos, cognoscitivos, polí- complexo teleológico: o complexo causal dos fatos naturais (que
ticos, éticos etc. Podemos ainda observar que todo ato teleológico determina a diversidade dos sons) é utilizado por um complexo
- e tanto mais quanto mais amplo e eficaz tiver a pretensão de ser teleológico proveniente da vida social (necessidade de comunicação
- requer um conhecimento objetivo dos movimentos causais, das e de fixação do pensamento), o qual, por sua vez, origina-se de
leis da realidade que deverá colocar em operação. O conhecimento um complexo causal de tipo econômico-social (universalização e
é precisamente a resposta a essa necessidade primária da práxis. socialização do trabalho).
A autonomia das formas superiores de reflexo (arte e ciência) Somente agora, depois de uma análise histórico-ontológica,
com relação à práxis imediata e cotidiana dos homens é apenas poderemos avaliar corretamente o tipo de relações formais ou
a garantia de um conhecimento mais verdadeiro da realidade e, "estruturais" que se verifica na "língua". A função social da lin-
consequentemente, de uma prática (ou ato teleológico) mais ampla, guagem requer a resolução de um problema concreto: o da relação
compreensiva e eficaz. Assim, a profundidade com que se capta a entre o significado em formação (o "algo" que decorre da realidade
essência da realidade depende da amplitude e da universalidade e do trabalho socializado) e sua forma material exterior (imagem
dos objetivos propostos pela práxis em questão. Reflexo (conheci- acústica, gesto etc.). É precisamente a solução desse problema
mento) e projeto (práxis) são momentos de um mesmo processo que, abstraído da totalidade do objeto, o estruturalismo chama
ontológico, aspectos complementares da construção do homem de "língua". Parece-me que os homens primitivos resolveram esse
por si mesmo. problema (de um modo inconsciente) mediante uma mimese
Nesse rico e complexo quadro estabelecido pela ontologia
marxista-lukacsiana do ser social, o estatuto ontológico da lingua- 69
F. Engels, Dialectique de la nature. Paris, Editions Sociales, 1952, p. 174.
90 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 91

analógica com os processos que usavam para dominar a natureza, observado a possibilidade de reter dessa camada sonora que po-
reproduzindo alguns procedimentos próprios do trabalho em seus diam emitir apenas algumas "unidades", combinando-as em vista
estágios menos evoluídos. Um dos primeiros níveis da relação do de expressarem o "algo" que surgia em outra esfera de fatos, isto é,
homem com o objeto é o da simples manipulação. Grande parte no trabalho e na vida social. Embora fundada num radical empo-
do trabalho do homem primitivo, contemporâneo do surgimento brecimento do objeto, essa manipulação do nível fônico revelou-se
da linguagem articulada, reduzia-se certamente à manipulação inteiramente satisfatória diante das necessidades propostas. Ao ser
da natureza; esse tipo de trabalho é dominante na época da eco- constantemente repetida, pôde converter-se em algo inconsciente,
nomia puramente coletora. Em suas linhas mais gerais, podemos capaz de ser transmitido pelo hábito e de fixar-se em regras espon-
definir a manipulação como a práxis em que o homem, ignorando taneamente assimiladas por todos. A exigência de uma linguagem
(consciente ou inconscientemente) as determinações essenciais do estável (condição de permanência da intercomunicação social)
objeto, decompõe-no em "unidades" simples imediatamente utili- contribuiu para fixar tais regras de modo durável, para coagulá-
záveis e combina tais elementos isolados em função de uma finali- las num sistema relativamente permanente. A necessidade de ex-
dade assumida heteronomamente, ou seja, sem o questionamento pressar novos objetos, que a práxis cada vez mais ampla impunha
do seu valor racional e de suas implicações humanas. Ocorre na ao pensamento, podia ser satisfeita por meio de modificações
manipulação, certamente, um reflexo do real; mas um reflexo lexicais, conservando-se todavia o mesmo sistema estrutural de
superficial, fixado nas aparências, inteiramente alheio às conexões tipo manipulatório.
íntimas do todo objetivo. O caráter limitado da finalidade propos- Nossa hipótese, como vemos, não necessita refutar nenhuma
ta nesse tipo de práxis não exige uma representação mais rica da das descobertas estruturalistas em linguística, mas tão somente
realidade. Ademais, a manipulação pode ser codificada, reduzida reintegrá-las no amplo quadro histórico onde têm sua gênese e
a um conjunto de regras aplicáveis indiferentemente aos objetos significação. Abandonando como irracional esse quadro histórico,
mais variados; a constante repetição, por sua vez, transforma tais Saussure é obrigado a recorrer a uma mística "faculdade de asso-
regras num "hábito", em algo "inconsciente". ciação e combinação" 70 para explicar o motivo pelo qual a língua
A hipótese que aqui formulamos, a de que esse conjunto de se estrutura em sistema. Em nossa opinião, esse motivo reside na
regras inconscientes foi aplicado pelo homem primitivo à relação relação genética entre língua e trabalho. Essa relação não é apenas
entre significado e significante (para usarmos a terminologia histórico-genética, mas também estrutural-genética: a estrutura
de Saussure), parece-nos bastante plausível. Segundo a própria formal da língua é análoga à de um tipo primitivo de práxis.
descrição estruturalista, a real natureza do som não tem a menor No processo de socialização cada vez mais amplo da hu-
importância na língua; o que dele se retém é apenas sua "imagem manidade, surgiram historicamente formas novas, mais ricas e
acústica". Ocorre assim um reflexo, mas limitado, fixado apenas explicitadas, de práxis. Isso não significa, contudo, que o tipo
na possibilidade de estabelecer "oposições pertinentes"; a estrutura manipulatório tenha desaparecido. A manipulação conservou-se
física do som é abandonada, por não ter nenhuma importância
para a finalidade proposta. Os homens primitivos, assim, teriam 70
F. de Saussure, Curso ... , op. cit., p. 21.
92 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA OA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 93

não apenas como o tipo dominante de práxis na vida cotidiana etc.). O mesmo poderia ser dito, mutatis mutandis, de inúmeras
(onde a relação com o objeto é imediata e espontânea), mas igual- outras modalidades de práxis.
mente em formas mais complexas da atividade humana. A práxis É evidente, assim, que a manipulação não constitui um mal
torna-se manipulatória nos casos em que é possível uma execução em si mesma; em todas as atividades que se proponham um domí-
eficaz do ato teleológico sem que seja necessário levar em conta a nio imediato da natureza e não uma apropriação humana da objeti-
objetividade da coisa em si, ou em que se possa deixar de lado o vidade (natural ou social), a possibilidade de converter a práxis em
esclarecimento racional da finalidade proposta. Assim, tende a se simples manipulação revela-se eficaz e até mesmo progressista. O
converter em manipulatória a práxis cotidiana, repetitiva, habitual, progresso técnico é, em grande parte, a realização dessa tendência;
tornada inconsciente. Em nossa vida cotidiana, realizamos inú- ocorre aqui não apenas uma formalização da atividade humana,
meras atividades espontaneamente, sem que levemos em conta o mas inclusive a transferência de certas "regras" originariamente
objeto ou a finalidade da ação; aprendemos um conjunto de regras humanas para objetos inanimados. (Essa transferência pode atin-
que "abreviam" a ação, poupando-nos o esforço de refazer por nós gir inclusive certas regras formais do intelecto, como no caso dos
mesmos a experiência socialmente adquirida. Embora num nível computadores.) Mas ela se converte indiscutivelmente em um
bem mais complexo, um processo análogo ocorre na técnica; um limite real, em obstáculo à verdadeira realização humana (que se
programador de computadores, por exemplo, manipula dados e confunde com a crescente apropriação da objetividade), quando
obtém resultados de modo eficaz, sem necessariamente conhecer o tende a se tornar o tipo dominante da práxis. Nesses casos, ocorre
conteúdo dos dados, o funcionamento cibernético do computador um bloqueio do contato criador do homem com o real; a mani-
ou o objetivo social a que se destina seu trabalho. pulação impede não apenas uma apreensão rica e explicitada da
Naturalmente, em ambos os casos, para que a manipulação objetividade, mas também uma correta consciência do significado
seja possível, foi necessária uma práxis preliminar mais ampla, humano e social da práxis. 71 Diante de objetos sociais, por exem-
na qual processou-se um reflexo do real, o estabelecimento plo, a manipulação tende a reproduzir a alienação; tais objetos, que
consciente dos objetivos etc. (Essa práxis mais ampla pode ou são frutos da atividade do homem social, não podem mais ser rea-
não ter sido realizada pelo mesmo indivíduo que agora realiza propriados pelo homem, pois lhe aparecem como simples "dados"
a manipulação.) Podemos observar, desde logo, que nem todas similares às coisas naturais. Quando o homem reduz a realidade
as atividades humanas podem se tornar "habituais" e, assim, a simples objeto de manipulação, empobrece simultaneamente
relacionarem-se com o objeto de modo manipulador; embora na sua própria essência, convertendo-se assim, por sua vez, em outro
ciência e na arte, por exemplo, seja possível automatizar determi- objeto manipulável. Nos capítulos anteriores, observamos como
nados procedimentos (precisamente os relativos à técnica), não essa generalização da manipulação enquanto forma dominante do
se pode fazer o mesmo com a essência de tais atividades, ou seja,
a recepção criadora da realidade. Quando isso ocorre, verifica-se 71
Já Hegel observara que a aparente "familiaridade" com o objeto (própria da ma-
nipulação) obstaculiza um verdadeiro conhecimento: "O que é notório a todos,
um abastardamento ou uma limitação da atividade científica ou
precisamente por ser notório, não é conhecido" (G. W. F. Hegel, La phénoméno-
artística (simples compilação, dissolução do estilo na maneira logie de l'Esprit. Paris, Aubier, 1939, v. l, p. 28).
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CARLOS NELSON COUTINHO • 95

relacionamento social (tanto inter-humano quanto do homem com pelo neopositivismo, que, como vimos, exclui da racionalidade as
as coisas) é uma tendência espontânea do sistema capitalista, que questões ontológicas.
se manifesta inicialmente na burocratização e reforça-se depois no Pode ocorrer - observa o mestre húngaro - que o trabalho se fixe facil-

capitalismo de consumo. mente na pura e simples manipulação, deixando de lado (espontânea ou

A distinção entre práxis apropriadora e práxis manipulatória im- conscientemente) a solução do problema da coisa em si, ou então igno-

plica, por sua vez, a distinção entre diferentes níveis de racionalida- rando-o inteira ou parcialmente. A história nos revela casos de uma ação

de. A maior ou menor apreensão racional do objeto pelo pensamento praticamente correta com base em teorias inteiramente falsas, que não

relaciona-se com a amplitude dos objetivos propostos na práxis. contêm uma captação do em si (...). O neopositivismo moderno pretende

Assim, quanto mais ampla for a práxis, quanto mais profunda e afastar da ciêpcia qualquer problema da realidade, do em si, recusando-o

organicamente se vincular ao objeto, tanto mais rico deverá ser o como "não científico'', mas reconhecendo todos os resultados da tecnologia

sistema de categorias racionais que ela colocará em operação. Hegel, e da ciência natural. Portanto, para que a práxis possa exercer a função que

na Fenomenologia do espírito, foi o primeiro - ainda que de forma corretamente Engels requer dela [ou seja, a de transformar o em si num

idealista - a estabelecer essa relação orgânica entre a amplitude da para nós], deve elevar-se - conservando-se ainda como práxis, ou melhor,

experiência do objeto e o nível da racionalidade; com a ampliação transformando-se numa práxis mais ampla - acima dessa imediaticidade

da experiência, amplia-se cada vez mais a faixa de objetividade [da manipulação]. 73

apropriada pela razão (que explicita diante dessa ampliação novas e Para dizê-lo brevemente: o problema que aqui se coloca é o
cada vez mais ricas categorias), até o ponto em que "a substância se da passagem do intelecto à razão. Deixando de lado as questões
transforma em sujeito"; ou - numa linguagem materialista - verifica- ontológicas do em-si, a práxis manipulatória pode operar eficaz-
se um processo constante e sempre aproximativo de apropriação da mente com as categorias do intelecto; como vimos, ocorre nela um
objetividade (social e natural) pela razão humana. Ocorre assim uma processo no qual divide-se o real em um certo número de "dados"
dialética - esclarecida por Lenin72 - de verdade absoluta e verdade ou elementos finitos, posteriormente combinados segundo regras for-
relativa, na qual o momento do absoluto corresponde ao reflexo da mais. (Os termos sublinhados constituem precisamente categorias
objetividade independentemente da consciência, enquanto o mo- intelectivas: divisão, finitude, combinatória, formalização.) Ora,
mento relativo vincula-se ao nível da práxis (e consequentemente da os procedimentos intelectivos, fixados em regras independentes do
objetividade) alcançado em cada oportunidade concreta. conteúdo, constituem aquilo que Horkheimer chamou de "razão
Também Lukács, num texto recente, observou essa relação subjetivà' (em contraste com a "objetiva"). Embora provenham de
entre a universalidade da práxis e o enriquecimento da raciona- uma abstração realizada no objeto, a característica essencial delas
lidade. A importância desse texto é ainda maior porque, nele, não é a de constituírem reflexos da realidade, mas a de serem pro-
Lukács polemiza explicitamente com a "miséria da razão" realizada
7J
G. Lukács, Historia y consciencia de clase. México, Grijalbo, 1969, pp. xx-xxi. O
72
V. I. Lenin, Materialismo y empiriocriticismo. Montevidéu, Pueblos Unidos, 1959, texto é extraído do prefácio que Lukács escreveu em 1967 para a reedição do seu
p. 126-144. livro juvenil.
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CARLOS NELSON COUTINHO • 97

cedimentos subjetivos que, formalizados e generalizados, possam limites pode ser para o pensamento humano, se vê neles um problema que
tratar o objeto como um mero material de manipulação; em outras deva resolver - e, como acertadamente diz Hegel, "o começo e a marca da
palavras, essas categorias ou regras refletem a própria atividade do racionalidade", isto é, de um conhecimento superior-, o ponto de partida
sujeito no ato da práxis manipulatória. Por isso, não podem esta- para o ulterior desenvolvimento da razão, para a dialética. Ao contrário,
belecer a verdade ou falsidade do pensamento; seu único critério o irracionalismo detém-se exatamente nesse ponto, transforma o proble-
é a "eficácia". Ao contrário, as categorias da razão (ou da "razão ma em algo absoluto, converte os limites do conhecimento intelectivo,
objetiva" de Horkheimer) são um reflexo da configuração ontoló- petrificando-os, em limites do conhecimento em geral, chegando mesmo
gica da objetividade, uma tentativa de apreendê-la em sua verdade a mistificar o problema, ao transformá-lo artificialmente em insolúvel ou
objetiva. Enquanto o intelecto empobrece o real (ao dividi-lo, ao dar-lhe uma solução suprarracional.74
formalizá-lo e reduzi-lo à pura finitude), a razão tenta apreendê-lo Vemos aqui, mais uma vez, a relação de dependência e de com-
em sua totalidade: como unidade na diversidade, como síntese de plementaridade que existe entre a "destruição" e a "miséria" da razão.
conteúdo e forma, como dialética do finito e do infinito. A razão, Também sobre esse problema, o da justa relação entre o
assim, corresponde àquele nível da práxis que definimos como intelecto e a razão, Hegel foi o primeiro a indicar uma solução
apropriação humana da objetividade. dialética (ainda que idealista). Hegel não nega a existência do
O uso do intelecto, como o da manipulação, não constitui intelecto ou entendimento (Verstand) enquanto etapa do conhe-
um mal em si mesmo; trata-se da racionalidade dominante não cimento; em sua terminologia, trata-se da "figura da consciência"
apenas em grande parte da vida cotidiana, mas também na ati- na qual essa se descobre como autônoma diante do mundo e trata
vidade técnica de dominação da natureza. Decorre de um anti- esse como objeto exterior. Hegel lembra ainda que "a atividade
capitalismo romântico de tendência irracionalista, que se volta de dividir é a força e o trabalho do intelecto". 75 Mas, em seu sis-
contra a técnica em si, o combate indiscriminado ao intelecto, tema, a verdade dessa figura da consciência é a razão (Vernunft);
à racionalidade da dominação. (Em nosso tempo, essa posição em outras palavras, o intelecto deve ser superado - conservado e
equivocada - típica dos existencialistas - reaparece até mesmo em elevado a nível superior - na razão, cuja categoria central não é o
um pensador sensível e inteligente como Herbert Marcuse.) O que desmembramento mas a totalização. Por outro lado, observa ainda
deve ser legitimamente combatido é a limitação da racionalidade Hegel, "o intelecto faz somente a experiência de si mesmo", 76 ou
às categorias intelectivas, limitação que caracteriza as orientações seja, é uma razão puramente formal, subjetiva, que - como diria
ligadas à "miséria da razão". Considerando "incognoscíveis" as Wittgenstein - estabelece apenas tautologias. Quanto à Vernunft,
configurações ontológicas que são objeto da razão, essa posição ela "é a verdade que existe em si e para si, é a simples identidade
limitadora e agnóstica contribui para reforçar o aberto irracionalis- da subjetividade da noção com a sua objetividade e universalidade
mo. Analisando a gênese da "destruição da razão", observa Lukács:
Os problemas aos quais o irracionalismo sempre se ligou, do ponto de
74
vista filosófico, são precisamente os problemas que derivam dos limites e G. Lukács, El asalto a la razón, op. cit., p. 77.
75
G. W. F. Hegel, La phénoménologie de l'Esprit, op. cit., vol. 1, p. 29.
das contradições do pensamento puramente intelectivo. Tropeçar nesses 76
Ibid., p. 140.
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CARLOS NELSON COUTINHO • 99

(...). A razão não é apenas a substância absoluta, mas também a dos estruturalistas converte-se numa involuntária apologia do ca-
verdade enquanto saber". 77 O idealismo objetivo de Hegel não al- pitalismo da manipulação. Diante desse novo fetichismo, devemos
tera a justeza da colocação essencial. Traduzindo Hegel para uma realizar o mesmo movimento que Marx efetuou ante o "fetichismo
linguagem materialista, podemos dizer que a razão é o reflexo na da mercadoria": devemos dissolver a aparente "coisidade" dessas es-
consciência ("saber") das determinações ontológicas ("objetivas" e truturas pseudo-onipotentes nas relações inter-humanas, na práxis
"universais") da realidade ("substância absoluta"). Por essa razão, social onde têm sua gênese concreta.
verifica-se na dialética hegeliana uma clara subordinação da lógica
(e da epistemologia) à ontologia. Em seu interessante livro sobre 2. DO NEOPOSITIVISMO AO ESTRUTURALISMO
Hegel, observa Marcuse: O conceito de "estrutura" é a ponte através da qual passa-se
Os conceitos fundamentais do sistema hegeliano (...) jamais são meros do epistemologismo neopositivista à "ontologia" estruturalista.
conceitos de lógica formal, mas indicam formas e modos de ser compreen- Isso implica, desde logo, a conversão do idealismo subjetivo dos
didos pelo pensamento (...). O seu "panlogicismo" quase coincide com o primeiros em uma nova e abstrusa forma de idealismo objetivo.
seu oposto: poder-se-ia dizer que Hegel extrai os princípios e as formas do Como vimos, no neopositivismo, a racionalidade e o significado
pensamento dos princípios e das formas da realidade, de modo que as leis dependem exclusivamente da sintaxe lógica da língua. Além disso,
lógicas reproduzem aquelas que governam o movimento da realidade. 78 para eles, o estabelecimento dessa sintaxe é um fato "convencio-
Estamos agora em condições de concretizar no plano sistemático nal'', arbitrário, que depende de uma decisão puramente subjetiva;
aquilo que, no capítulo anterior, estabelecemos no nível da gênese ao escolher a sintaxe convencional, escolhemos ao mesmo tempo a
histórica: as "estruturas inconscientes" às quais o estruturalismo, racionalidade e os significados, determinando quais as proposições
aparentemente baseado na linguística, pretende subordinar a vida que podemos considerar como "válidas". Esse "convencionalismo",
dos homens são apenas a fetichização (ou reificação) das regras for- claramente idealista subjetivo, desembocaria em Wittgenstein
mais intelectivas que operam na práxis manipulatória. No mesmo numa explícita defesa do solipsismo:
processo em que a razão é reduzida ao intelecto, a práxis humana O que o solipsismo nomeadamente acha é inteiramente correto, mas isto
aparece coagulada no nível imediato da pura manipulação. E essa se mostra em vez de deixar-se dizer. Que o mundo é o meu mundo, isto
"miséria" da razão e da objetividade desempenha, seja ou não essa a se mostra porque os limites da linguagem (da linguagem que somente eu
intenção de seus realizadores, uma função reacionária: a de impedir compreendo) denotam os limites de meu mund 0 .7 9
que os homens rompam com a atual manipulação, com a esponta- Já analisamos, num contexto anterior, a situação histórica que
neidade "inconsciente" da alienação, redescobrindo o sentido criador condicionou essa tendência subjetivista, extremadamente agnósti-
e dialético de uma práxis apropriadora e universal. O positivismo ca. O intelecto, incapaz de compreender a realidade contraditória
do início do século, refugia-se nos exíguos limites da "linguagem
77
G. W. F. Hegel, Précis de l'encíclopédie des sciences philosophiques. Paris, Vrin, 1952, subjetiva", convertendo o mundo no "mundo" do indivíduo isolado.
p. 244.
78
H. Marcuse, Ragione e rivoluzione. Hegel e il sorgere delta "teoria sociale''. Bolonha,
79
II Mulino, 1968, p. 43. L. Wittgenstein, Tractatus logico-philosophicus, op. cít., 5.62, p. 111.
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A relativa estabilização do capitalismo contemporâneo, a genera- para todos, e para todas as matérias às quais se aplica, mas elas são pouco
lização social dos processos manipulatórios, alimenta a ilusão de numerosas. 82
que a contraditoriedade foi eliminada do real (ou pode ser tratada O "inconsciente" é o fetiche das regras intelectivas que são
como simples "resíduo"). Nessas condições, a corrente positivista próprias da práxis manipulatória. Se o leitor se recorda de nossa
volta a apresentar pretensões "ontológicas": o conjunto de regras definição da manipulação, poderá observar claramente esse fato
formais que os neopositivistas lógicos situavam no sujeito aparece ao ver o modo pelo qual Lucien Sebag descreve as relações entre
agora, no estruturalismo, como uma "coisa" autônoma, superior o "intelecto" e a realidade:
e independente dos homens. Eis como Lévi-Strauss formula esse Ele [o intelecto] encontra na realidade que lhe é exterior a matéria a partir

"novo" idealismo objetivo: da qual se construirá; submete essa matéria a um conjunto de esquemas,
Duvido mesmo que possamos apreender teoricamente, no devir, um que supõem a diferenciação em unidades constitutivas (...), sua colocação
momento em que o homem tenha começado a pensar; e eu estaria mais em sistema (...) e o enunciado de um certo número de regras que permitem
80 sua combinação. [Efetua-se] uma combinatória entre as "partes" do real
inclinado a admitir que o pensamento começa antes dos homens.
A categoria que serve para fundar essa pseudo-objetividade assim isoladas. Quer se trate do mito, da filosofia, da lógica ou da ciência,
idealista é a do "inconsciente". Lévi-Strauss acredita que os fatos são sempre essas mesmas operações fundamentais que são postas em ação. 83
conscientes são apenas fenômenos superficiais, em contraste com a Identificando razão e intelecto, o estruturalismo - ao pretender
"essência" ("estrutura"), constituída pelos fatos "inconscientes". ''A abarcar "cientificamente" a realidade social - não pode deixar de
passagem do consciente para o inconsciente - diz ele - é acompa- reduzir a totalidade da atividade humana à pura manipulação.
nhada por um progresso do especial para o geral". 81 E, ao definir Por meio de uma análise do conceito de "inconsciente", po-
esse "inconsciente" coisificado, transformado em estrutura mental deremos observar com clareza essa arbitrária redução. É indiscu-
subjacente às várias instituições humanas, Lévi-Strauss apresenta-o tível que os fatos sociais são frequentemente inconscientes, isto é,
com a face da "sintaxe lógica" dos neopositivistas: processam-se sem que a consciência os apreenda em todas as suas
A atividade inconsciente do espírito consiste em impor formas a um determinações. Mas qual é a natureza real dessa "inconsciência"? É
conteúdo (...); as formas são fundamentalmente as mesmas para todos os bastante significativo que, na tentativa de elucidá-la, Lukács tome
espíritos, antigos e modernos, primitivos e civilizados - como o estudo da como ponto de partida precisamente a evolução da linguagem, que
função simbólica, tal como se exprime na linguagem, o mostra de maneira ele considera algo inconsciente. Mas imediatamente nos adverte
tão notável (...). O inconsciente está sempre vazio (...): limita-se a impor contra a fetichização desse conceito:
leis estruturais, que esgotam sua realidade, a elementos inarticulados que O que hoje muito frequentemente é chamado de inconsciente costuma
provêm de outra parte (... ). Essas estruturas não são somente as mesmas desenvolver-se, visto psicologicamente, de um modo consciente, ainda que
com falsa consciência, isto é, de tal modo que - à consciência subjetiva do

80 C. Lévi-Strauss, "Respostas a algumas questões". ln: Vários autores, O estrutura-


82
lismo de Lévi-Strauss. Petrópolis, Vozes, 1968, p. 213. Ibid., p. 37 e 234-235.
83
81 C. Lévi-Strauss, Antropologia estrutural. op. cit., p. 37. L. Sebag, Marxisme et structuralisme, op. cit., p. 166.
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processo imediato - corresponde uma consciência objetivamente falsa do linguísticos, das regras do intelecto e, em geral, de todas as formas
84
fato real, do verdadeiro alcance do imediara e praticamente realizado. de manipulação. Ao explicar a gênese da categoria intelectiva do
Quando, por exemplo, um operário vende sua força de traba- silogismo, Lenin observou: ''A prática humana repetida milhões de
lho, realiza essa operação de modo consciente, mas não tem neces- vezes se imprime na consciência como figuras lógicas". 86 Desconhe-
sariamente uma justa consciência do alcance do processo, ou seja, cendo a gênese histórico-ontológica dos processos, Lévi-Strauss con-
da exploração a que será submetido. A causa desse fato não reside verte essas regras fixadas pelo hábito e tornadas inconscientes num a
em nenhum "inconsciente coletivo", mas sim na natureza ontoló- priori idealista. Nesse ponto, mais uma vez, sua posição positivista
gico-social da práxis humana. Sendo essa uma atividade coletiva, converte-se numa apologia das formas superficiais e espontâneas da
o resultado global das várias ações individuais conscientes aparece práxis social, já que eleva a manipulação capitalista - que só é eficaz
sempre como algo diverso da intenção subjetiva dos indivíduos. A quando aplicada a homens "inconscientes" - a algo inato e eterno. A
fetichização capitalista interfere aqui, impedindo que o indivíduo fetichização do inconsciente aparece como um obstáculo à tomada
eleve à consciência essa totalidade objetiva que se reproduz espon- de consciência da alienação pelo homem dos nossos dias.
taneamente. Mas não se trata de um limite ontológico: se superar No conceito de "estrutura", portanto, observamos não apenas
a imediaticidade do fetichismo, o operário do nosso exemplo pode uma redução da razão ao intelecto formal, mas igualmente uma
tomar consciência da exploração a que está sendo submetido. O subordinação idealista da práxis humana - da realidade social - às
"inconsciente", portanto, é sempre uma falsa consciência, uma regras "espirituais" do intelecto manipulatório. Sebag, que sempre
ausência de consciência verdadeira, jamais uma entidade objetiva, explicita suas posições em clara polêmica com o marxismo, afirma:
uma positividade em si, como supõe Lévi-Strauss. Entre incons- Essa práxis constitutiva que Marx situava na origem do mundo humano,
ciência e consciência há um processo dialético, uma permanente lugar real em função do qual dissolver-se-iam a ambiguidade e a heteroge-
passagem, não uma barreira eterna e intransponível. neidade da ação e da linguagem, recebe ela mesma, agora, sua significação
Por outro lado, uma práxis constantemente repetida, ainda que última de um "alhures" do qual ela jamais poderá ser o correlato (...). Uma
originariamente consciente, pode paulatinamente converter-se em tal perspectiva ilumina as categorias intelectivas que são colocadas em
algo inconsciente. atuação pelas sociedades e que regulam tanto a organização dos diferentes
Esse tipo de inconsciente a que ch amamos "costume" ou "h'b'
a no " - o b - "discursos" quanto aquela do próprio real. 87
serva ainda Lukács - não é de modo algum uma coisa inata, mas produto De acordo com essa concepção, Lévi-Strauss dissolve idealisti-
85
de uma práxis social ampla e, no mais das vezes, sistemática. camente instituições sociais reais, como o totemismo, numa lógica
Como vimos, é precisamente um tal hábito - fixado através de mistificada que tudo abarca. A sociologia, em sua opinião, deve
reflexos condicionados - que explica a inconsciência dos fenômenos ser substituída por uma "sócio-lógica". E, negando claramente a
origem histórico-prática dessa lógica, afirma:

84 G. Lukács, Estética J· La peculiaridad de lo estético. Barcelona-México, Grijalbo,


86
1966, V. 1, P· 95. V. I. Lenin, Cahiers philosophiques. Paris, Editions Sociales, 1955, p. 178.
87
85 Ibid., p. 96. L. Sebag, Marxisme et structuralisme, op. cit., p. 121 e 133. Grifo meu.
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Não aceitamos a tese da origem social do pensamento lógico. Ainda que certamente honra a consciência moral de Lévi-Strauss - é todavia
exista indubitavelmente uma relação dialética entre a estrutura social e o um puro desejo verbal, sem nenhuma repercussão em sua concep-
sistema de categorias, o segundo não é um efeito ou resultado da primeira. 88 ção do mundo. No próximo capítulo, teremos ocasião de analisar
Lévi-Strauss "esquece-se" de dizer aqui o que entende por amplamente o caráter puramente marginal desse "humanismo"
"relação dialética"; seria justo, isso sim, falar numa relação de lévi-straussiano. Mas, desde já, podemos antecipar um exemplo;
manipulação, na qual a "estrutura social" aparece como matéria- diante do problema do progresso humano, questão basilar do hu-
prima a ser manipulada pelo "sistema de categorias". manismo, Lévi-Strauss assume uma posição claramente agnóstica,
A partir desses postulados teóricos, o estruturalismo rapida- positivista, objetivamente anti-humanista. ''Afinal, me é inteira-
mente desembocaria numa posição explicitamente anti-humanista. mente indiferente" - diz ele - "o fato de que o espírito humano
Também aqui estamos diante de uma inovação com relação ao melhore ou não. O que me interessa é saber como funciona, eis
neopositivismo lógico; afastando do domínio da ciência qualquer tudo".90 Sempre que vem à tona uma questão desse gênero, Lévi-
problema ontológico, o neopositivismo considerava a questão do Strauss reage com um positivismo similar.
humanismo um "pseudoproblema'', uma incognoscível questão Nos estruturalistas posteriores (que quase sempre rejeitam
"metafísica"; mas, com base nesse agnosticismo - abstinha-se de sua inclusão nessa corrente), tais escrúpulos são inteiramente
qualquer resposta, positiva ou negativa, às questões propostas pelo afastados. A morte do homem (Foucault) e o anti-humanismo
humanismo. Indiretamente, assim, abandonava tais questões ao teórico (Althusser) aparecem como elementos orgânicos da nova
irracionalismo, que as dissolvia numa mística subjetivista. A pre- "concepção do mundo". E, ao afirmarem seu anti-humanismo,
tensão estruturalista de fundar uma "concepção do mundo" (ou, autores como Foucault ou Derrida fazem questão de sublinhar
em termos filosóficos, suas pretensões "ontológicas") obriga-o a que estão apenas levando às últimas instâncias os ensinamentos de
tomar posição diante dos problemas do humanismo. Nesse ponto, Lévi-Strauss. Jacques Derrida, por exemplo, partindo da afirmação
ocorre aparentemente uma divergência entre os seguidores dessa lévi-straussiana de que a "estrutura não tem centro" (ou seja, não
orientação filosófica. Lévi-Strauss, por exemplo, assume uma po- pode ser explicada a partir do telos ou da práxis humana), afirma
sição ambígua, detendo-se frequentemente ante as consequências a supremacia do "jogo" (dos signos formais) sobre o significado (o
últimas de seu próprio pensamento. Embora suas posições teóricas conteúdo). E continua:
conduzam claramente à dissolução do humanismo (ao negarem Ora, se Lévi-Strauss, melhor do que ninguém, pôs em evidência o jogo
o papel criador da ação humana em troca de uma primazia das da repetição e a repetição do jogo, não se deixa de perceber nele uma
"estruturas"), Lévi-Strauss acredita que a antropologia estrutural espécie de ética da presença, da nostalgia da origem, da inocência arcaica
seja a "inspiradora de um novo humanismo". 89 Essa crença - que e natural. (... ) Essa é a face triste, negativa, nostálgica, do pensamento do
jogo, cuja face positiva seria a afirmação nietzschiana: afirmação de um
mundo de signos sem culpa, sem verdade, sem origem. (...) Essa posição,
88
C. Lévi-Strauss, O pensamento selvagem, op. cit., p. 247.
89
C. Lévi-Strauss, "Introdução à obra de Marcel Mauss''. ln: Estruturalismo. Anto-
90
logia de textos teóricos, op. cit., p. 167. C. Lévi-Strauss, "Respostas a algumas questões", op. cit., p. 215.
'
106 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA OA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 107

que já não está voltada para a origem, afirma o jogo e tenta passar para além Consequente com essa "ontologia" da manipulação, exclui
do homem e do humanismo; e o nome do homem é o nome desse ser que, decididamente do âmbito da razão e da ciência todas as questões
através da história da metafísica ou da ontoteologia, quer dizer, de toda a do humanismo:
sua história [sic!] sonhou a presença plena, o fundamento tranquilizador, O humanismo finge resolver problemas que não pode formular (...) os
a origem e o fim do jogo. 91 problemas das relações entre o homem e o mundo, o problema da reali-
Assim, a longa luta do homem para superar a alienação, para se dade, o problema da criação artística, da felicidade, todas essas obsessões
reapropriar da objetividade social, afirmando-se teórica e pratica- que não merecem absolutamente ser problemas teóricos (...). Nosso sistema
mente como o "centro" e fundamento de suas objetivações, aparece não se ocupa disso de modo algum. 93
na versão de Derrida como um "sonho" insensato; a história da Mas ainda não chegamos ao pior: "Nossa tarefa atual - diz
humanidade identifica-se com a "história da metafísica", ou seja, Foucault - é libertarmo-nos definitivamente do humanismo; nesse
converte-se na trajetória de um completo equívoco. A realidade, sentido, nosso trabalho é um trabalho político". 94 Foucault não in-
para Derrida, reduz-se a um "jogo" permanente, absurdo e irra- dica o modo pelo qual deva ser realizada essa liquidação política do
cional, do qual podemos compreender apenas as regras mas não humanismo. Mas a frase evidencia com clareza - e, nesse sentido,
a origem e a finalidade. O homem é tão somente uma peça desse é uma advertência para todos os intelectuais responsáveis - que
jogo absurdo. E não é casual que Nietzsche seja invocado por a posição "anti-humanista" do estruturalismo não é uma simples
Derrida: a "miséria da razão" em que se apoia sua abstrusa teoria questão especulativa.
converte-se facilmente num aberto irracionalismo, num claro Em suma, como podemos observar, a passagem do neopo-
anti-humanismo. sitivismo ao estruturalismo - da epistemologia pura à ontologia
Michel Foucault - cujas posições analisaremos mais detalha- epistemologizada - não representa uma aquisição de novos campos
damente num outro capítulo - radicaliza ainda mais, se isso é para a razão humana. Todos os elementos ontológicos da realida-
possível, a afirmação positiva do anti-humanismo. Como Lévi- de considerados pelo neopositivismo como incognoscíveis, como
Strauss, Foucault reduz a vida humana a um objeto manipulado pseudoproblemas metafísicos, continuam excluídos da "razão"
por "estruturas" inconscientes: estruturalista. Ao explícito agnosticismo dos primeiros, substitui-se
Em todas as épocas, a maneira como as pessoas refletem, escrevem, jul- agora um "agnosticismo envergonhado", que oculta sua face por
gam, falam, até mesmo na rua, as conversas e escritos mais cotidianos, trás de uma falaciosa ideologia cientificista. À "miséria da razão",
inclusive a maneira como as pessoas experimentam as coisas, como sua que marca o movimento neopositivista, vem juntar-se uma "mi-
sensibilidade reage, todo o seu comportamento é dirigido por uma estru- séria do objeto", um empobrecimento radical do pensamento e da
tura teórica, por um sistema. 92 vida humana. Os limites da "razão" estruturalista são os limites
da consciência fetichizada de nosso tempo.

91
]. Derrida, "A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas". ln:
Estruturalismo. Antologia de textos teóricos, op. cit., p. 121-122. 93
lbid., p. 33.
92
M. Foucault, "Entrevista à Quinzaine Littéraire", op. cit., p. 31-32. 91
!bid.
IV · A EVOLUÇÃO DO ESTRUTURALISMO
COMO "CONCEPÇÃO DO MUNDO"

Os AUTORES QUE ANALISAREMOS nos capítulos IV e V, principais


responsáveis pelo que chamaremos por comodidade de "concep-
ção do mundo" estruturalista, não são idênticos entre si. Além de
algumas diversidades teóricas, verifica-se entre os primeiros e os
últimos representantes da "escola" um processo de "radicalização'',
o qual - a partir da "miséria da razão" praticada por Lévi-Strauss
- desemboca no anti-humanismo de Foucault e de Althusser. Mas
essas diversidades, quando encaradas em sua verdadeira dimensão
filosófica, não alteram a unidade essencial do estruturalismo como
corrente de pensamento. Diferenças desse tipo podem encontrar-
se, por exemplo, entre os neopositivistas lógicos ou entre os
existencialistas, sem impedirem a caracterização de tais correntes
como movimentos filosóficos homogêneos.
Ao recusarem a dialética e o historicismo concreto, todos os es-
truturalistas - mesmo os que não se consideram tais - incluem-se
no movimento que caracterizamos como "miséria da razão", com
sua consequente "miséria do objeto". A "episteme" de Foucault ou
o "modo de produção do pensamento" de Althusser, da mesma for-
ma que a "estrutura inconsciente" de Lévi-Strauss ou o "intelecto"
de Sebag, não passam de pseudo-objetivações fetichistas das regras
formais intelectivas que operam na práxis manipulatória. Isso leva
todos eles a afastarem do terreno da razão e da ciência - como
resíduos subjetivos (Lévi-Strauss), como "doxologia" (Foucault) ou
como "ideologia" (Althusser) - as questões concretas da realidade
objetiva, as questões do humanismo, do historicismo e da dialé-
110 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO

tica. Sem negligenciarmos essas diversidades, tentaremos traçar


nos capítulos seguintes a linha de continuidade - decorrente da
'
~
!
CARLOS NELSON COUTINHO

Nenhuma questão de princípio (mas apenas uma distância tran-


sitória) leva Lévi-Strauss a supor que o intelecto seja teoricamente
• 111

unidade de princípios - que se estabelece no interior da evolução incapaz, por sua própria natureza, de apreender a realidade obje-
que leva da "miséria da razão" à "morte do homem". tiva. Confirmando esse papel puramente "auxiliar" da dialética,
Lévi-Strauss afirma a supremacia objetiva da razão analítica:
1. LÉVI-STRAUSS CONTRA A DIALÉTICA [A razão analírica] deve explicar também a razão dialética. Essa exigência

No capítulo final de La pensée sauvage - intitulado "História e permanente obriga incessantemente a razão analítica a ampliar seu progra-

dialéticà', mas cujo verdadeiro título deveria ser "Contra a história e ma e transformar sua axiomática. Mas a razão dialética não pode explicar

contra a dialéticà' -, Lévi-Strauss, em polêmica com Sartre, explicita nem a si me.sma, nem à razão analítica. 96

suas posições diante do problema da racionalidade científica. Ele tem Assim, quando Lévi-Strauss afirma que a distinção entre os
dara consciência de que trabalha com a razão analítica (com as regras dois tipos de razão vai converter-se num trabalho sem objeto,
do intelecto) e não com as categorias da razão dialética. Diz ele: podemos "ler" sua frase no sentido de que, nesse momento, a
Para nós, a razão dialética é sempre constituinte: é a passarela incessan- "dialética" cederá inteiramente seu lugar ao intelecto analítico.
temente prolongada e melhorada que a razão analítica lança por cima Essa preferência pelo intelecto não é casual. Segundo Lévi-
de um abismo do qual não percebe o outro lado, ainda que saiba de sua Strauss, "o esforço propriamente científico consiste em decompor
existência (... ). O termo "razão dialética", assim, compreende os esforços e, depois, em recompor de acordo com outro plano".97 Desse modo,
perpétuos que a razão analítica deve fazer para se reformar, se verdadeira- a representação científica do mundo confunde-se com as regras
mente pretende levar em conta a linguagem, a sociedade, o pensamento; e próprias da manipulação. Não se trata, na ciência, de refletir o
a distinção entre as duas razões está fundada tão somente, a nosso ver, no real, de traduzir em conceitos sua legalidade imanente, mas sim de
afastamento transitório que separa a razão analítica do entendimento da "combinar" elementos discretos, decompostos, segundo regras que
vida(... ). A razão dialética se nos aparece como a razão analítica em mar- provêm de "outro plano", ou seja, do plano subjetivo. Essa operação,
cha; a distinção entre as duas converter-se-á num trabalho sem objeto. 95 como vimos, é precisamente a que se efetiva na práxis manipulatória,
Ora, apesar da ambiguidade da frase, torna-se claro que, para bem como em suas formas superiores, a burocracia e a dominação
Lévi-Strauss, a razão dialética é tão somente o resultado de uma técnica. A redução da ciência à "razão analítica" revela sua verda-
deficiência passageira da razão analítica. A dialética aparece como deira face: Lévi-Strauss empobrece a racionalidade, limitando-a às
algo subjetivo, como uma "hipótese auxiliar" que deve desapa- regras formais, manipulatórias, de "decomposição" e "combinação".
recer no exato momento em que a razão analítica superar o seu Essa "miséria da razão" leva-o a confundir a científicidade com a
afastamento transitório do entendimento da vida. Na frase acima, prática de constantes reduções no objeto; paulatinamente, serão
afirma-se claramente que a vida pode ser inteiramente apreendida, abandonados à irrazão, considerados como incognoscíveis, todos
ou entendida, à luz das categorias da razão analítica (do intelecto).
Ibid., p. 289.
97
C. Lévi-Strauss, O pensamento selvagem, op. cit., p. 281. O grifo é meu. Ibid., p. 286.
112 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 113

os momentos fundamentais e determinantes da objetividade. E tais que, em sua essência íntima, essa realidade é irracional; a "razão"
reduções não são, como na dialética, abstrações provisórias, etapas a é algo puramente subjetivo. Os limites do intelecto impedem
serem superadas no processo da reconstituição mental da totalidade Lévi-Strauss de compreender o mundo como uma unidade de
concreta, que - como diria Marx - "é concreta porque é a síntese contrários. Essa unidade, assim, é "radicalmente eliminada" da
de múltiplas determinações, ou seja, unidade na diversidade". 98 O inteligibilidade científica.
intelecto dos estruturalistas coagula-se em tais abstrações; incapaz Em suma, a ilusão de inteligibilidade proporcionada pela
de recompor a síntese objetiva, deve "depurar" o real de tudo o que "razão analítica" (pelo intelecto) decorre de uma completa
transcenda a forma, ou - conforme a relação que estabelecemos formalização do real, de uma "radical eliminação" de suas de-
entre intelecto e práxis manipulatória - de tudo o que não possa ser terminações ootológicas e dialéticas. Uma das regras básicas do
objeto de manipulação. método estrutural, segundo Lucien Sebag, reside na necessidade
Vejamos, por exemplo, como o estruturalismo enfrenta a ques- de "submeter [o real] a um trabalho prévio de formalização, que
tão do contínuo e do descontínuo, da identidade e da não identida- faz desaparecer uma certa diversidade do real, da qual se ali-
de. A relação dos dois momentos, como se sabe, foi estabelecida pela menta a existência empírica". Essa formalização, segundo Sebag,
dialética, em sua luta pela superação dos limites da lógica formal deve ser suficiente
aristotélica. Constitui uma das principais leis dialéticas a afirmação para que a heterogeneidade primeira dos conteúdos não seja mais tomada
de uma unidade objetiva dos dois momentos, a qual - inicialmente em consideração (... ). Submeto várias mitologias a um tal tratamento
formulada por Nicolau de Cusa e Giordano Bruno como "unidade que o peso do impacto exterior não se faz mais sentir(...). Nada é aban-
dos contrários" - encontraria em Hegel uma conceituação mais donado, mas nenhum dos predicados do que é conservado é tomado em
ampla enquanto "identidade da identidade e da não identidade". Por consideração. 100
se limitar ao intelecto, a "razão" de Lévi-Strauss desconhece o cará- Ou seja, "nada" é abandonado, com exceção do conteúdo obje-
ter objetivo dessa unidade. Para ele, a realidade é algo inteiramente tivo e contraditório da realidade analisada. A "unidade" obtida por
contínuo, sendo a descontinuidade introduzida pelo pensamento: meio dessa formalização não é mais a unidade dos processos reais
É indispensável introduzir a descontinuidade a fim de poder conceitualizá- - a unidade dialética dos contrários -, mas uma caricatura teó-
los [os fatos da realidade]. Em cada caso, tal descontinuidade é obtida rica da unidade homogeneizadora e manipuladora dos burocratas.
pela eliminação radical de certas frações do contínuo (...). Em qualquer E Lévi-Strauss explicita:
domínio, tão somente a partir de quantidades discretas podemos construir A única justificativa da análise estrutural reside na codificação, ao mesmo
99 tempo única e mais econômica, à qual ela sabe reduzir mensagens cuja
um sistema de significações.
Ora, se a realidade é originariamente contínua e a inteligi- complexidade era muito intensa e que, antes de sua intervenção, pareciam
bilidade implica a descontinuidade, segue-se necessariamente de decifração impossível. 1º1

98
K. Marx, Fondements ... , op. cit., vol. 1, p. 30. '"" L. Sebag, Marxisme et structuralisme, op. cit., p. 134.
99 C. Lévi-Strauss, Le cru et !e cuit, op. cit., p. 60. Os grifos são meus. º
1 1
C. Lévi-Strauss, Le cru et !e cuit, op. cit., p. 155. O grifo é meu.
114 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO

Essa explícita redução do complexo ao simples, justificada


'
1

não há nenhuma diferença "pertinente" do ponto de vista estru-


CARLOS NELSON COUTINHO • 115

por motivos de "economia", poderia ser inteiramente subscrita tural. Pouco importa constatar a ampla universalidade humana
por um burocrata interessado em melhor codificar os arquivos expressa pelos primeiros, em contraste com a patética pobreza dos
de sua repartição. De resto, o complexo só é "indecifrável" por segundos: todos eles podem ser reduzidos à mesma equação mate-
quem se recusa a admitir a lei dialética da unidade dos contrários;
ora, Lévi-Strauss recusa explicitamente essa lei, ao afirmar que,
( mática, cuja obtenção é a meta da "econômica" análise estrutural
dos mitos. O que se perde, nessa busca de "economia", é precisa-
"quando uma contradição aparece, isso é prova de que a análise mente o conteúdo social e humano dos mitos. Ao concluir a leitura
não foi aprofundada". 1º2 À luz do intelecto formalizador, desapa- de Le cru et le cuit, por exemplo, vemos que a "redução" se operou
recem a contradição e o movimento, do mesmo modo como, para
os antigos eleatas, desapareciam as diferenças "aparentes" no seio J até mesmo sobi"e uma realidade objetivamente "reduzida" e pobre:
ignoramos inteiramente qual seja a organização econômico-social
da unidade abstrata do Ser. Henri Lefebvre tem toda razão ao dos índios brasileiros, o tipo de vida e de práxis social expressos
' . strauss como "um novo e1eat1smo
qualificar a filoso fi a d e Lev1- . ".103 ideologicamente por seus mitos. E tão somente essa determinação
A análise dos mitos é o principal objeto da investigação an- genética poderia nos levar a compreender objetivamente o signi-
tropológica de Lévi-Strauss. Podemos ver que, em vez de analisar ficado humano, em suas grandezas e misérias, tanto da mitologia
o motivo das diferenças, a causa genética e o sentido humano das quanto das próprias civilizações indígenas brasileiras.
variações entre os mitos, o autor de Mithologiques prefere homoge- Num texto que se refere ao estalinismo, mas que se aplica
neizá-los até descobrir-lhes a "lei estrutural'', idêntica para todos, igualmente ao estruturalismo, por tratar da relação entre forma-
que pode ser expressa numa equação matemática, numa "relação lismo e burocracia, afirma Jean-Paul Sartre:
canônica à qual todo mito (considerado como o conjunto de suas O formalismo marxista é uma empresa de eliminação. Seu método se
variantes) é redutível". 104 O termo "redução' e seus derivados, como
vemos, retornam obsessivamente em toda a obra de Lévi-Strauss.
1 identifica com o Terror em sua inflexível recusa de diferenciar; seu objetivo
é a assimilação ao preço do mínimo esforço. Não se trata de realizar a
De redução em redução, vão paulatinamente desaparecendo to- integração do diverso enquanto tal, mas de suprimi-lo: assim, o perpétuo
dos os contornos concretos da realidade, todas as determinações movimento no sentido da identificação reflete a prática unificadora dos
histórico-dialéticas da objetividade.
Para tomarmos um exemplo na própria análise dos mitos: entre
a mitologia grega e a mitologia dos indígenas brasileiros, entre con-
figurações ideológicas que marcaram a evolução da humanidade e
simples documentos de uma civilização marginal e particularista,
' burocratas. 105
Sabemos muito bem em que consiste o Terror estalinista, a
brutal manipulação que identifica qualquer diferença com uma
traição que deve ser eliminada. Ora, o Terror que o estrutura-
lismo mimetiza é aquele do capitalismo de consumo; ainda que
mais sutil, ele decorre igualmente de uma manipulação que tenta
102
eliminar a humanidade do homem, sua racionalidade crítica, em
Ibid., p. 170.
º·'
1

io4
H. Lefebvre, Position: contre les technocrats. Paris, Gonthier, 1967, p. 59 ss.
C. Lévi-Strauss, Antropologia estrutural, op. cit., p. 263.
J 101
J.-P. Sartre, Critique de la raison dialectique. Paris, Gallimard, 1960, v. 1, p. 40.
116 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA OA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 117

nome da formação de uma massa de consumidores (de utilidades, relativa, terminava por cair num "sociologismo" ou num "histori-
de ideias, de modos de vida) amorfa e manipulável. Não é por cismo" relativistas. Em tais pensadores, a análise marxista julgava
acaso que as tribos indígenas brasileiras são o objeto preferencial, esgotar sua tarefa quando indicava a gênese social do pensamento,
modelar, das análises estruturais de Lévi-Strauss. Como nossas sem estudá-lo em sua dimensão sistemática, imanente, ou seja, sem
sociedades, graças à manipulação tecnológica, assumem a aparên- determinar-lhe a verdade ou falsidade objetivas.
cia de grandes aldeias ou tribos (como prazerosamente observa o E, em segundo lugar, reduzindo os problemas ontológicos a
mistificador Marshall McLuhan), pode surgir a ilusão de que a questões simplesmente antropológicas, tais marxistas não apenas
humanidade continua sujeita às mesmas "leis estruturais", que a negavam a dialética da natureza, como também deformavam - em
pobreza humana das tribos primitivas é similar à daquelas imensas sentido subjetivista - a legalidade específica da historicidade hu-
tribos em que o capitalismo de consumo pretende transformar as mana. Esse subjetivismo aparece, em primeira instância, no modo
atuais sociedades do mundo ocidental. pelo qual abordam a categoria central da ontologia marxista do
No caminho da formalização, da substituição da razão pelo ser social, ou seja, a práxis. Em vez de fundar a práxis no trabalho
intelecto, o estruturalismo encontraria na história - na histori- econômico (isto é, na relação ontologicamente primária entre o
cidade objetiva dos processos - um primeiro obstáculo. A tarefa homem e a natureza, na qual revela-se claramente o laço entre
imediatamente proposta, a de negar a racionalidade dessa histo- causalidade e teleologia, que constitui a determinação objetiva
ricidade objetiva, foi-lhe grandemente facilitada pela ausência de da práxis humana em geral), os referidos marxistas fundavam-na
um conceito autenticamente marxista da história entre significativa unilateralmente no projeto subjetivo, no momento teleológico,
parcela dos marxistas contemporâneos. Pensadores tão diversos terminando assim por enfraquecer ou dissolver inteiramente a cau-
entre si como Plekhanov e Gramsci, Ernst Bloch e Lucien Gold- salidade e a racionalidade próprias da vida social. (Esse projeto é
mann, o jovem Lukács e o velho Sartre, tiveram a comum tendên- subjetivo mesmo quando, como no jovem Lukács, trata-se de uma
cia, em suas tentativas de assimilar o marxismo, de reduzi-lo ao subjetividade de classe.) Disso decorria, em suma, uma concepção
materialismo histórico, sem levar em consideração (ou ignorando fortemente subjetivista da história.
ou rejeitando conscientemente) o materialismo dialético, ou seja, Diante dessas limitações, pôde o estruturalismo - ainda que
a teoria do conhecimento e a ontologia marxistas. Com isso, a equivocadamente, pois caía no extremo oposto - apresentar-se
própria concepção da história desses autores sofreu limitações e como a "complementação" ou "revisão" de duas pretensas lacunas
deformações. Em primeiro lugar, com a negação da gnosiologia marxistas: o abandono da análise imanente ou "estrutural" e o
dialético-materialista, da teoria do reflexo, todo o pensamento "antropologismo" subjetivista na concepção da sociedade. (Em
humano passou a ser encarado como "ideologia", como expressão alguns estruturalistas, como Althusser e o último Foucault, essa
não da objetividade real, mas de uma "subjetividade de classe" revisão é apresentada como uma redescoberta do "autêntico"
(psicologia social em Plekhanov, "visão do mundo" em Goldmann Marx). Essa lacuna real de alguns marxistas serviu de máscara
etc.). Essa corrente, negando a objetividade do pensamento, que para a introdução de uma epistemologia formalista e idealista,
se expressa na dialética leniniana de verdade absoluta e verdade no lugar da teoria materialista do reflexo; e de uma ontologia
118 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA OA RAZÃO
CARLOS NELSON COUTINHO • 119

anti-historicista e anti-humanista, no lugar da autêntica ontologia pode ser compreendida a partir de um projeto subjetivo. A própria
marxista do ser social. Assim, não é casual que os adversários esco- sociedade, considerada como um todo, não é redutível a um pro-
lhidos pelos estruturalistas, em suas polêmicas, sejam precisamente jeto teleológico, embora tenha sido produzida (e incessantemente
marxistas dessa tendência historicista-subjetivista: Lévi-Strauss reproduzida) pela complexa articulação de infinitos atos práticos
combate Sartre, Sebag identifica Marx com o jovem Lukács, en- da humanidade. O ponto de vista "antropológico", portanto, não
quanto Althusser utiliza as antinomias do historicismo de Gramsci é suficiente para descrever corretamente a história humana.
para tentar provar (abusivamente) que "o marxismo não é um A substituição da antropologia pela ontologia, contudo, não
historicisino". Precisamente por isso, é indispensável contrapor leva Lukács - como não levara Marx ou Lenin - a nenhum anti-
ao estruturalismo não essas versões lacunosas e empobrecidas do humanismo. Em primeiro lugar, as leis objetivas na história não
marxismo, mas a imagem do verdadeiro Marx e de seus herdeiros se processam de modo fatalista, mas colocam sempre alternativas,
modernos. (É essa a razão dos limites da crítica ao estruturalismo no interior das quais o homem pode exercer a sua liberdade. (Po-
feita por Goldmann, por Sartre e, particularmente, por Garaudy.) dem, por exemplo, optar por uma das alternativas, utilizando a
Nenhum estruturalista discute, com seriedade, aquela que é, legalidade objetiva em vista de uma mais ampla explicitação das
depois da de Lenin, a mais autêntica contribuição para uma reto- potencialidades humanas.) A correta relação entre causalidade e
mada integral da problemática marxiana: a obra da maturidade de teleologia permite, assim, o estabelecimento de uma justa dialética
Gyõrgy Lukács. Assumindo a teoria marxista-leninista do reflexo entre liberdade e necessidade.
e enriquecendo-a criadoramente (graças à distinção entre reflexo Em segundo lugar, embora se processem objetivamente, as leis
antropomorfizador e reflexo desantropomorfizador), Lukács desen- históricas decorrem da atividade humana. Entre a objetividade his-
volveu um método autenticamente histórico-sistemático, capaz de tórica e a objetividade natural, há aquela diferença assinalada por
ligar organicamente a análise genética com a investigação sistemá- Marx: "Como diz Vico, a história humana se distingue da história
tica (teórica ou estética), sem fixar-se unilateralmente em nenhu- natural por termos feito uma e não termos feito a outra". 1º6 O que
ma delas. Esse método permite-lhe compreender o momento da não significa, observa ainda Marx, num outro contexto, que essa
relativa autonomia das objetivações humanas, evitando dissolvê-las criação ocorra dentro de uma absoluta liberdade:
em sua gênese histórico-subjetiva. Lukács chegou a isso porque, Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem;
analisando os problemas filosóficos colocados pela dialética do não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que
trabalho, reconstruiu os princípios básicos da ontologia marxista se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. 1º7
do ser social (a orgânica integração de causalidade e teleologia Marx estabelece aqui uma correta relação entre a práxis huma-
como modo específico da legalidade e da racionalidade históricas). na e a legalidade objetiva da história. E esse historicismo concreto
Como síntese das posições teleológicas primários, constituem-se liga-se organicamente a um humanismo igualmente concreto:
complexos objetivos que não dependem da vontade ou da cons-
ciência dos homens; a lei da queda tendencial da taxa de lucro, por 106
K. Marx, O capital, op. cit., Livro 1, v. 1, p. 425.
exemplo, embora resulte da ação teleológica dos indivíduos, não w- K. Marx, O 18 brumário de Luls Bonaparte, op. cit., p. 224.
120 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISERIA OA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 121

O humanismo de Marx - observa Lukács - encontra expressão teórica que não altera a realidade "profunda", "inconsciente", das estru-
em suas análises fundamentais da relação entre homem e sociedade; e não turas mentais falsamente objetivadas. A alguns ingênuos, como
apenas nos escritos juvenis, mas sobretudo na parte de O capital que trata Garaudy, essa posição pôde parecer correta, capaz de dar seus
da fetichização. Essas análises mostram que, por trás da superfície das direitos à história, sem renunciar à objetividade científica; mas essa
formações econômicas, com sua aparência fetichista, estão sempre - como ilusão só se estabelece quando, num movimento duplamente falso,
realidade autêntica - relações entre homens; que o homem, o homem real, admite-se como justa a concepção subjetivista da história e como
socializado, é em última instância (ainda que seu poder não seja de modo indiscutível a confusão "estrutural" entre objetividade científica e
algum ilimitado) o sujeito do devir social. 108 intelecto manipulatório.
E, em terceiro lugar, o autêntico marxismo não afirma a exis- Vejamos rnmo Lévi-Strauss explicita sua posição duplamente
tência de resíduos irracionais, mas tão somente de realidades ainda equivocada:
não conhecidas: a objetividade ontológica dos processos históricos Não pretendo rechaçar a noção de processo, nem contestar a importância
submete-se a leis, mas essas leis podem ser apreendidas (quando das interpretações dinâmicas. Parece-me apenas que a pretensão de con-
superada a fetichização) por uma racionalidade amplamente ex- duzir conjuntamente o estudo dos processos e das estruturas deriva, pelo
plicitada, ou seja, pela razão dialética. Historicismo, humanismo menos em antropologia, de uma filosofia ingênua, que não leva em conta
e dialética - organicamente integrados - são partes inelimináveis as condições particulares em que operamos (... ). As estruturas revelam-se
da concepção marxista do mundo. tão somente a uma observação exercida a partir de fora. Essa, inversamen-
Essa longa digressão tornou-se necessária para melhor com- te, não pode captar os processos, que não são objetos analíticos, mas sim
preender a posição dos estruturalistas diante da história. (Sua o modo peculiar no qual uma temporalidade é vivida por um sujeito. Isso
importância tornar-se-á também evidente quando analisarmos, no quer dizer, por um lado, que só existe processo num sujeito empenhado
próximo capítulo, o "marxismo" estruturalizado de Althusser.) O em seu devir histórico, ou, mais exatamente, naquele do grupo do qual
conteúdo dessa posição é o seguinte: a crítica estruturalista indica é membro; e, por outro lado, que num dado grupo os sujeitos são tão
frequentemente as antinomias do historicismo subjetivista, mas - numerosos - e diversos entre si - que existem subgrupos de identificação:
julgando "completá-las" ou "corrigi-las" - elimina inteiramente a para um aristocrata e para um sans-cullote, a revolução de 1789 não é
própria história, negando sua racionalidade e objetividade. Isso se o mesmo processo; e não existem "metaprocessos", integradores dessas
revela claramente na conhecida polêmica de Lévi-Strauss contra experiências irredutíveis. 109
Sartre. Para ambos, a história é algo puramente subjetivo, que se O anti-historicismo é aqui claramente afirmado. Se Lévi-Strauss
esgota na vivência dos sujeitos individuais. Mas Lévi-Strauss "com- admite a existência de processos (afinal, trata-se de um neoeleatismo,
pleta" essa teoria equivocada com outro equívoco, ou seja, o de não de um eleatismo puro), é para logo após negar a possibilidade de
conceber a história como um domínio fenomênico, "consciente", estudá-los em relação com as estruturas, de modo que se introduz

109
1os G. Lukács, "Sul dibattito fra Cina e Unione Sovietica". ln: G. Lukács, Marxismo C. Lévi-Strauss, "I limiti dei concerto di struttura in etnologia". ln: R. Bastide
e politica cultura/e. Turim, Einaudi, 1968, p. 147. (org.), Usi e significati de! termine struttura. Milão, Bompiani, 1966, p. 42.
122 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA OA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 123

uma cisão radical na unidade objetiva da vida social. E essa impossi- objetivas são vivenciadas pelos indivíduos de forma diversa, mas
bilidade decorre, prossegue Lévi-Strauss, do fato de que os processos isso não anula nem a sua objetividade nem a possibilidade de
não são objetivos, mas simples vivências subjetivas da temporalidade, serem corretamente compreendidas. Um aristocrata, imerso na
algo puramente relativo; por isso, não podem ser estudados anali- particularidade dos seus interesses de classe, tinha desse processo
ticamente, "de fora", ou seja, não são objetos científicos. (Como uma falsa consciência, considerando a Revolução um "apocalipse"
vimos, há em Lévi-Strauss uma identificação entre ciência e intelecto etc.; mas os representantes burgueses do progresso, os iluministas
analítico.) O raciocínio é simples: tudo o que escapa à forma - e já e os economistas clássicos, souberam avaliar corretamente - ao
vimos que, para o estruturalismo, as "estruturas" são simples for- assumirem um ponto de vista universal - a sua significação obje-
mas - escapa também a qualquer apreensão racional. A história, os tiva para a humanidade. Os historiadores franceses da época da
processos, cuja racionalidade imanente é objeto da razão dialética, Restauração, por exemplo, que descobriram a lei da luta de classes
convertem-se em mero "resíduo subjetivo" condenado à irrazão. A ao analisarem os processos da Revolução Francesa, não tinham a
"miséria da razão" revela claramente os seus limites. menor dúvida de que esses processos históricos eram objetivos e
O contraste com o marxismo é aqui evidente. Em primeiro podiam ser cientificamente compreendidos.
lugar, como vimos, o método autenticamente marxista funda-se A negação da história enquanto realidade ontológica não
numa síntese histórico-sistemática, ou seja, acredita não apenas na pode ser compensada pelo papel que Lévi-Strauss lhe reserva em
possibilidade, mas na necessidade - se se quer atingir a essência sua epistemologia. Na frase que a seguir citaremos, a dissolução
da realidade - de "conduzir conjuntamente o estudo dos proces- da história aparece ainda mais radicalmente, pois ela deixa de ser
sos e das estruturas". Em segundo lugar, como vimos também, o um fato objetivo para converter-se num simples método auxiliar
marxismo afirma a existência de processos históricos objetivos, de coleta de material.
independentes da consciência e da vontade dos homens, processos A história - diz Lévi-Strauss - não está ligada ao homem, nem a ne-
resultantes da objetivação de complexos teleológicos. Precisamente nhum objeto particular. Ela consiste inteiramente em seu método, que a
por serem objetivos, por constituírem elementos ontológicos da experiência prova ser indispensável para inventariar a integralidade dos
vida social, tais processos podem ser corretamente refletidos pela elementos de uma estrutura qualquer, humana ou não humana. Assim, ao
razão humana, de um modo cada vez mais aproximativo, contanto invés da busca da inteligibilidade culminar na história como em seu ponto
que fatores de turbação ideológica (fetichização, intencionalidade de chegada, é a história [ou seja, o inventário dos elementos da estrutura]
de classe etc.) não venham a obstaculizar essa justa consciência. que serve de ponto de partida para toda busca da inteligibilidade. Como
A Revolução de 1789, para ficarmos no exemplo de Lévi- se diz de algumas estradas, a história leva a tudo, mas na condição de se
Strauss, é a culminação de um processo objetivo de desenvol- sair dela.11°
vimento econômico; como todo fato histórico, está submetido E, para que não restem dúvidas quanto ao seu agnosticismo
a leis que independem da vontade dos homens (contradição em relação à história, completa Lévi-Strauss: "Basta, pois, que a
explosiva entre forças produtivas e relações de produção, luta de
classes, substituição de classes no poder político etc.). Essas leis 110
C. Lévi-Strauss, O pensamento selvagem, op. cit., p. 299.
124 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA OA RAZÃO CARLOS NELSON Cour1NHO • 125

história se afaste de nós na duração, ou que dela nos afastemos aspectos: por um lado, ocorre frequentemente que uma sociedade
pelo pensamento, para que deixe de poder ser interiorizada e perca menos desenvolvida no plano econômico, por exemplo, apresente
sua inteligibilidade."'" Reduzida a simples vivência subjetiva ou a um desenvolvimento superior no plano artístico; por outro, a
puro método preliminar de "coleta de material", a história - de- linha evolutiva que marca a história da humanidade como um
clarada "ininteligível" - desaparece da "concepção do mundo" de todo está sujeita a retrocessos, a quebras temporárias. Enquanto
Lévi-Strauss. Enquanto a dialética marxista afirma a prioridade durar a sociedade de classes, antagônica, o progresso num campo
ontológica dos processos, os estruturalistas - como os antigos (o técnico-econômico) pode ser acompanhado pela perda de deter-
eleatas - defendem a primazia do estático e consideram-no o minados valores humanos, éticos ou sociais.
único objeto da razão. Com isso, revelam sua fixação fetichista Mas esse caráter contraditório do progresso não anula a sua
na imediaticidade, no simples fenômeno: "A real forma ontológica existência objetiva. O critério para avaliá-lo, no marxismo, é o
da existência" - afirma Lukács - "é o processo, não os estados (... ). nível de explicitação objetiva da essência humana, que se expressa
A característica básica do fenômeno é que, nele, desapareceu o não apenas na maior dominação da natureza (progresso técnico),
processo". 112 mas igualmente na constituição concreta de uma comunidade hu-
Consequente com sua negação da história, Lévi-Strauss nega mana universal, capaz de se apropriar coletivamente da objetivida-
também o progresso humano enquanto processo constante de de social (desalienação). Ao contrário de Lévi-Strauss - para quem
aperfeiçoamento da espécie. (Que se recorde sua observação "não há e não pode haver uma civilização mundial no sentido
agnóstico-positivista sobre o progresso, anteriormente citada.) absoluto que se dá a esse termo, pois a civilização implica a coexis-
Como sempre, ele inicia com uma formulação epistemológica, tência de culturas oferecendo entre si o máximo de diversidade" 114
para logo após desembocar numa deformação de problemas -, o marxismo acredita que o movimento objetivo da história,
ontológicos. Como a história, a seu ver, é o reino da subjetivi- com base numa socialização cada vez maior do trabalho, tende
dade, não lhe parece possível um critério objetivo para medir o objetivamente para a formação de uma civilização mundial, de
progresso humano universal: "Uma escolha ilimitada de critérios uma comunidade humana universal. Trata-se de um processo
permitiria constituir um número ilimitado de séries [evolutivas], objetivo, empiricamente constatável: basta evocar a evolução que
todas diferentes". 113 Decerto, o relativismo de Lévi-Strauss aponta vai dos clãs primitivos aos atuais sistemas capitalista e socialista,
muitas das limitações do evolucionismo vulgar, com sua noção de que englobam bilhões de seres humanos. Embora possa ser e efe-
progresso linear e não contraditório. Mas esse relativismo opõe-se tivamente seja elevada à consciência, essa integração processa-se
igualmente à noção dialético-materialista do progresso. Para o independentemente dessa consciência.
marxismo, o desenvolvimento da humanidade é desigual, sob dois É precisamente essa humanidade unitária in júri que possibili-
ta aos homens a profunda vivência de continuidade e de universa-
lização experimentada, por exemplo, diante de certas obras de arte
111
Jbid., p. 291.
112
Conversando com Lukács, op. cit., p. 144.
114
ll.l C. Lévi-Strauss, Antropologia estrutural, op. cit., p. 16. C. Lévi-Strauss, Race et histoire. Paris, Gomhier, 1967, p. 77.
126 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 127

ou de certos mitos. É bastante significativo que, em sua tentativa A negação lévi-straussiana do progresso desemboca, frequen-
de explicar dialeticamente a indiscutível permanência do valor temente, num anticapitalismo de fundo romântico. Por contraste
estético (e não apenas documental) da arte clássica grega, tenha às sociedades primitivas, as contemporâneas não mais possuiriam
Marx recorrido à seguinte metáfora: níveis de autenticidade, por causa de uma deterioração da relação
Um homem não pode se tornar criança sem cair na puerilidade. Mas é entre o homem e a natureza, provocada pela complexidade das
insensível à ingenuidade da criança? Não deve esforçar-se, num nível mais mediações. 117 Essa "nostalgia das origens", ironizada por Derrida, 118
elevado, para reproduzir-lhe a verdade? Na natureza da criança, cada época está na base do proclamado rousseaunianismo de Lévi-Strauss. A
não revive seu próprio caráter em sua verdade natural? Por que a infância relação entre Rousseau e o antropólogo francês, todavia, é apenas
histórica da humanidade, no momento de seu pleno florescimento, não aparente. Em Rousseau, a crítica da cultura é uma crítica voltada
exerceria o encanto do instante que jamais voltará? Há crianças mal- para o futuro, para a formação de uma nova comunidade humana
educadas e crianças precocemente envelhecidas: é o caso de muitos povos democrática; o seu conceito de "natureza", tipicamente iluminista,
da Antiguidade. Os gregos eram crianças normais. O encanto que nos nada tem de romântico ou de anti-histórico, mas se confunde com
é inspirado por suas obras não se ressente do fraco desenvolvimento da o de razão, ou seja, uma sociedade "natural" não é mais do que
sociedade que as fez florescer; ao contrário, são seu produto, algo insepa- uma sociedade racional, liberta de convenções e repressões inúteis e
rável das condições de imaturidade em que essa arte nasceu, tão somente desumanas. Em Lévi-Strauss, ao contrário, o conceito de "natureza"
nas quais podia nascer e que não voltarão jamais.11 5 é expressão de sua desconfiança diante da história, de sua preferência
Essa bela imagem marxiana capta simultaneamente os dois - quase diríamos: epistemológica - pelas sociedades aparentemente
aspectos do problema: a inevitável necessidade do progresso (ain- sem história, nas quais a relação entre homem e natureza se faz de
da que desigual) e a continuidade estabelecida no seu interior. modo quase direto. Quanto mais pobre uma sociedade tanto mais
A ela se opõe, no espírito e na letra, a seguinte afirmação de fácil parece ser sua "análise estrutural". É o que o próprio Lévi-
Lévi-Strauss: "Na verdade, não existem povos crianças; todos são Strauss nos confessa: ''A situação eminentemente favorável em que
adultos, mesmo que não possuam o diário de sua infância e de nos encontramos, no que concerne às sociedades exóticas, é que
sua adolescência". " 6 Em sua essência, a negação lévi-straussiana precisamente quase nada sabemos, e que essa pobreza faz, de algum
da história universal não difere das formulações do irracionalista modo, nossa força". 119 José Arthur Giannotti, analisando o suposto
Oswald Spengler, segundo as quais as culturas particulares forma- rousseaunianismo de Lévi-Strauss em sua relação com a posição de
riam ciclos fechados e impenetráveis. Mas Spengler ainda acredi- Marx, esclarece corretamente o problema:
tava numa evolução interior a cada cultura, enquanto Lévi-Strauss Em resumo, Lévi-Strauss se recusa a unir indissoluvelmente homem e
pensa que tanto a União Soviética quanto uma tribo indígena história, enquanto Marx pretende, ao contrário, entender essa indissolu-
brasileira são igualmente "adultas".
117 Cf., por exemplo, C. Lévi-Strauss, Antropologia estrutural, op. cit., p. 407 e ss.; e
C. Lévi-Strauss, Tristes tropiques. Paris, Plon, 1955, passim.
115
K. Marx, Fondements ... , op. cit., v. 1, p. 42. 118
Cf., supra, nota 91 do cap. III.
116
C. Lévi-Srrauss, Race et histoire, op. cit., p. 32. 119
C. Lévi-Strauss, "Respostas a algumas questões", op. cit., p. 211.
128 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 129

bilidade, o movimento contínuo de autocriação, inclusive das formas mais um episódio sem significação decisiva na "concepção do mundo"
elementares do comportamento. 120 estruturalista em geral.
Embora negue o progresso como fenômeno global, Lévi- Facilmente se perceberá que, como causa e efeito de todas essas
Strauss não nega, todavia, a possibilidade de um progresso parcial reduções, está a eliminação de uma categoria básica da razão dia-
e específico: o progresso técnico. Diz ele: lética: a categoria da totalidade. Em lugar da totalidade concreta,
Talvez venhamos um dia a descobrir que a mesma lógica se produz no os estruturalistas colocam uma caricatura abstrata e formal, pura-
pensamento mítico e no pensamento científico e que o homem sempre mente intelectiva, da totalidade. Chegam mesmo a afirmar, como
pensou do mesmo modo. O progresso - se é que então se possa aplicar o um dos pontos primeiros do método estrutural, que nenhuma
termo - não teria tido a consciência por palco, mas o mundo, no qual uma parte de um "sistema simbólico" tem sentido quando desligada
humanidade dotada de faculdades constantes ter-se-ia encontrado, no de- de sua relação com a "estrutura" que a organiza. Observada mais
correr de sua longa história, continuamente às voltas com novos objetos. 121 atentamente, contudo, essa afirmação revela sua verdadeira nature-
A imagem dessa humanidade dotada de faculdades constan- za antidialética: afirma-se com isso, simplesmente, que o conteúdo
tes, para a qual mito e ciência (falsa consciência e pensamento depende da forma que o manipula. A noção de totalidade por eles
verdadeiro) são a mesma coisa, mas que é capaz de ampliar seu veiculada - como vimos ao definir a real natureza da "estrutura"
domínio técnico sobre novos objetos, tal imagem - esteja ou - é a de uma totalidade puramente formal. A totalidade dialética
não Lévi-Strauss consciente disso - corresponde, no plano ideo- é uma complexa unidade de contrários, ao passo que a totalidade
lógico, àquilo que o capitalismo manipulatório pretende fazer estruturalista é uma forma homogênea e vazia. Karel Kosik, ex-
praticamente do homem. Entre essa imagem e a lamentação pressando corretamente o ponto de vista marxista, observa:
"rousseauniana", portanto, existe uma contradição objetiva, que A totalidade sem contradições é vazia e inerte, as contradições fora da
Derrida e Foucault resolveriam eliminando o segundo termo e totalidade são formais e arbitrárias. A relação dialética entre contradições
afirmando sem vacilações uma posição tecnicista e anti-huma- e totalidade, as contradições na totalidade e a totalidade das contradições,
nista. O anticapitalismo romântico de Lévi-Strauss, portanto, é a concretude da totalidade determinada pelas contradições e a lei própria
das contradições na totalidade, constituem um dos limites que separam
12
º ]. A. Giannotti,Origens da dialética do trabalho. São Paulo. Difel, 1966, p 130. a concepção materialista da totalidade da concepção estruturalista. 122
121
C. Lévi-Strauss, Antropologia estrutural, op. cit., p. 265. Em La pensée sauvage,
como vimos, essa identidade entre a lógica presente no mito e na ciência já é Essa negação da totalidade dialética articula-se com a negação
afirmada como algo estabelecido. Vejamos, ao contrário, a autêntica posição mar- da causalidade dialética na história (que opera por meio de uma
xista: "A própria realidade é histórica segundo sua essência objetiva[...]. Mas uma
autêntica historicidade não pode consistir numa simples alteração de conteúdos subordinação das partes ao todo). O que se recusa, em suma, é
em formas imutáveis, com categorias igualmente inalteráveis. Precisamente a mo- a possibilidade de dissolver dialeticamente as totalidades parciais
dificação dos conteúdos tem de influir necessariamente nas formas, modificando-
as; tem de acarretar certas alterações de função no sistema categorial e, a partir ("estruturas") no seio do processo global de totalização que é a
de certo nível, inclusive transformações propriamente ditas: a desaparição das história. Lucien Sebag expressa isso muito claramente:
velhas categorias e o aparecimento de outras novas. A historicidade da realidade
objetiva tem como consequência uma determinada historicidade da doutrina das
categorias" (G. Lukács, Estética, op. cit., v. l, p. 23). 122
K. Kosik, Dialética do concreto, op. cit., p. 51.
130 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 131

Cada "conjunto" é caracterizado por um léxico e uma sintaxe que lhe são Nessa frase, vemos como a noção formalista da totalidade, a
peculiares (...). O conjunto '~'jamais está em relação metonímica com o das "linguagens", é usada contra a categoria dialética da totalida-
conjunto "B" (...).A relação pode ser apenas de ordem metafórica, estabe- de concreta real. Com isso, inverte-se a relação causal entre base
lecendo a equivalência, a antiteticidade ou complementaridade semântica e superestrutura: em vez de base e superestrutura constituírem
e sintática dos dois domínios vistos como totalidades. 123 um "bloco" no interior do qual a primeira ocupa uma função
(Por metonímia, Sebag entende a relação da parte com o Todo, primordial no plano causal, afirma-se que a base - a realidade - é
ou seja, a subordinação de uma totalidade parcial à totalização um simples "material" utilizado (ou manipulado) pelas ideologias.
global; por metáfora, a relação entre duas totalidades parciais, Essa negação idealista do conceito dialético de causa liga-se es-
relação que - para ele - exclui inteiramente a determinação causal treitamente à negação da importância epistemológica do método
de uma pela outra.) Assim, o real é fragmentado em inúmeras "to- genético. Como vimos, o autêntico marxismo jamais limitou a
talidades" parciais formalizadas, homólogas ou não entre si, mas investigação da vida social à pura análise genética; em seus me-
destituídas de qualquer relação com uma totalidade mais ampla: lhores representantes, essa análise sempre esteve em estreita ligação
a história global em devir. com a investigação sistemática, imanente. Mas, se é equivocado
Em consequência dessa posição, Sebag nega a teoria histórico- fetichizar um momento, não é menor o equívoco que consiste em
materialista da relação entre infraestrutura e superestrutura, ou fetichizar o outro. Lukács observa:
seja, o laço causal (ainda que se trate de uma causalidade dialética A verdadeira estrutura categorial de cada fenômeno está vinculada do
e não mecânica) entre a economia e as objetivações ideológicas. modo mais Íntimo com a sua gênese; só é possível revelar a estrutura ca-
Nada pode marcar melhor a heterogeneidade do real e do simbólico, a tegorial, de um modo completo e em sua correta proporcionalidade, se se
insuficiência do primeiro para fundar a ordem que é trazida pelo segundo; vincular organicamente a análise temática com o esclarecimento genético;
a práxis dos indivíduos ou dos grupos sociais se refrata necessariamente a dedução do valor no início de O capital de Marx é o exemplo modelar
por meio de uma linguagem que só é significante quanto articulada à desse método histórico-sistemático. 12 5
totalidade das linguagens engendradas por essa sociedade tomada como A posição estruturalista é radicalmente diversa. Em primeiro
um todo. Analisando o mito, caracterizamo-lo como discurso que utiliza lugar, como consequência da formalização, nega-se inteiramente a
como unidades significantes um material já significativo em si; mas é toda historicidade ontológica das estruturas; assim, é impossível aplicar
relação entre realidade e ideologias, entre "base" e "superestruturas" que o método genético a uma realidade que, como diz Lévi-Strauss,
pode ser tratada do mesmo modo. 124 não tem sua gênese na vida social, sendo apriorística e imutável.
Em segundo lugar, como vimos acima, o próprio Lévi-Strauss nega
m L. Sebag, Marxisme et structuralisme, op. cit., p. 162-163. a possibilidade de "estudar conjuntamente processos e estruturas",
124
Ibid., p. 77. Essa negação da totalidade, de resto, tem uma implicação política, já que ou seja, recusa o método histórico-sistemático de Marx e Lukács.
leva Sebag a manifestar uma atitude cética diante do sucesso das revoluções: "[A revo-
lução] tende a abolir tudo o que não emana de sua vontade e a fazer da soci~dade uma Sebag, sempre muito explícito, afirma: "A gênese absoluta [sic!]
totalidade verdadeira, inteiramente baseada numa intencionalidade única. E isso o que
explica o seu fracasso parcial sempre necessário e o fato de que ela geralmente só se con-
125
clua após a eliminação física ou moral dos que a fizeram triunfar" (ibid., p. 182). G. Lukács, Estética, op. cit., v. 1, p. 24.
132 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO
CARLOS NELSON COUTINHO • 133

visada por Marx não tem significação histórica real; no nível es- ção e posterior aceitação da verdadeira filosofia científica de nossos
. d d ,, 126 dias, o materialismo histórico e dialético. (Essa confusão é ainda
trutural, os prob1emas d e ongem ten em a esaparecer .
À destruição da dialética, o estruturalismo acrescenta uma mais intensificada pelo fato de muitos estruturalistas apresentarem
completa dissolução do materialismo. Os dois movimentos são suas formulações como "complementação" ou "redescoberta" do
complementares: identificando a racionalidade com o intelecto, marxismo.) Propondo-se como uma filosofia objetivista e "racio-
substituindo a razão objetiva pelas regras formais subjetivas, nalista", o estruturalismo empolgou parcelas consideráveis de uma
termina-se por afirmar que a realidade exterior à consciência é geração disposta a abandonar um subjetivismo vazio, desejosa de
um caos, cuja organização e sentido provêm de algumas regras uma abertura para a objetividade, mas, ao mesmo tempo, bastante
mentais. Ainda Sebag observa: cética diante .do marxismo que então lhe ofereciam: um marxis-
A distinção entre infraestrutura e superestrutura se desfaz, pois as relações mo dividido pela falsa alternativa do dogmatismo estalinista e do
econômicas, sociais e políticas, tanto quanto as teorias que delas dão conta no pseudo-humanismo retórico e abstrato. O que se lhes preparava,
127
seio de uma determinada sociedade, são igualmente produtos do espírito. porém, era uma grande armadilha: tratava-se precisamente de
Essa concepção idealista apoia-se na recusa da teoria do reflexo. conservar, numa versão adequada às novas formas e exigências do
Diz Sebag: "É na medida em que o pensamento não é o simples capitalismo, a mesma prisão no imediato, no fetichismo, na falsa
reflexo do que lhe é exterior que nenhum valor absoluto pode consciência.
ser concedido a um certo tipo de fenômeno social com relação Analisemos mais de perto - agora que já conhecemos a es-
a outro". 128 Aqui são diretamente visadas - e Sebag tem dara sência do seu pensamento - as proposições de princípio de Lévi-
consciência disso - duas teses capitais do materialismo marxista: a Strauss. Eis como ele traça sua biografia intelectual:
teoria do reflexo, no plano gnosiológico, e o primado da economia, Em todos os casos, coloca-se [à análise estrutural) o mesmo problema: o

no plano ontológico-histórico. das relações entre o sensível e o racional. O objetivo visado é o mesmo:
Como observamos anteriormente, o idealismo estruturalista - uma espécie de superracionalismo visando integrar o primeiro no segun-
em contraste com o do existencialismo e do neopositivismo lógico do, sem nada sacrificar de suas propriedades. Mostrava-me, portanto,
- não é subjetivo, mas objetivo. Esse fato pode e tem efetivamente rebelde às novas tendências da reflexão metafísica, tal como começavam
motivado uma certa confusão, até mesmo entre marxistas ingê- a se esboçar. A fenomenologia me chocava, na medida em que postulava
nuos como Roger Garaudy. Mas essa confusão (ainda que invo- uma continuidade entre o vivido e o real (... ). Para atingir o real, é preci-
luntariamente) cumpre uma função social precisa: encaminhar os so inicialmente repudiar o vivido, para depois reintegrá-lo numa síntese
desiludidos com o subjetivismo irracionalista para uma nova forma objetiva despojada de qualquer sentimentalidade. Quanto ao movimento
de idealismo, aparentemente científica, evitando assim a aproxima- de pensamento que iria florescer no existencialismo, parecia-me ser o
contrário de uma reflexão válida por causa da complacência que manifesta
diante das ilusões da subjetividade. 129
126 L. Sebag, Marxisme et structuralisme, op. cit., p. 157.
127 /bid., p. 193.
12
128
Jbid., p. 173. ') C. Lévi-Strauss, Tristes tropiques, op. cit., p. 44-45.
134 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 135

Não é difícil indicar as contradições entre o que pretende Lévi- "fenômenos" e incognoscível à luz das categorias do intelecto (ou
Strauss e o que realmente pratica, entre o "programa" estruturalista entendimento). Kant, assim, vê muito bem os limites e antinomias
e sua realização objetiva. O "superracionalismo" que ele defende, do intelecto; em suas obras tardias, surge uma investigação - preci-
em oposição ao irracionalismo existencialista, não passa na reali- samente aquela aberta para o futuro - orientada para as formas de
dade de um profundo agnosticismo fundado numa fetichização do racionalidade capazes de apreender essa "coisa em si'', essa essência
intelecto manipulador. Também já vimos em que consiste arejei- objetiva do real. Em suma: Kant não escreveu apenas a Crítica da
ção estruturalista das "ilusões da subjetividade"; como subjetivos, razão pura, mas também a Crítica da razão prática e, sobretudo,
foram afastados da esfera da racionalidade os momentos essenciais a Crítica da faculdade de julgar. Nessas duas últimas críticas, ele
do conteúdo objetivo dos processos reais. Foram afastadas do busca indicarus caminhos para a superação das antinomias do in-
âmbito da ciência as "ilusões" do humanismo, da historicidade, telecto, cujos limites já apontara na própria Crítica da razão pura.
da dialética. A "síntese objetiva" proposta por Lévi-Strauss como Essa busca é contraditória; Kant aponta corretamente os principais
finalidade do método estrutural nada mais é que uma caricatura problemas de uma dialética objetiva do ser social (relação entre
formalista da totalidade, obtida às custas de constantes "reduções" determinismo e liberdade, entre causalidade e teleologia etc.), mas
no objeto. Sob a máscara de um "superracionalismo'', portanto, os resolve num sentido não isento de irracionalismo, ao propor
temos diante de nós uma nova encarnação da "miséria da razão". a possibilidade de um intelecto não discursivo, isto é, intuitivo.
Que o cientificismo de Lévi-Strauss seja apenas uma nova ver- Essa contradição pode ser observada na fortuna da obra tardia de
são do idealismo objetivo, é algo que ele próprio nos revela quando Kant: enquanto Schelling desenvolvia o aspecto intuitivo da co-
aceita a classificação do método estrutural, feita por Paul Ricoeur, locação kantiana, chegando até o irracionalismo, Goethe aceitava
como "um kantismo . . . transcendenta l" .13 º Ana lº1semos,
sem suJetto os problemas dialéticos e contribuía assim para o surgimento de
inicialmente, a justeza ou não dessa pretensa continuidade entre uma nova razão (que seria sistematizada por Hegel). Lukács viu
Kant e o estruturalismo. Em Kant, como se sabe, o conhecimento corretamente esse problema quando afirmou: "Lenin apontou as
humano era o resultado do encontro de um sujeito transcendental oscilações de Kant entre o materialismo e o idealismo. Do mesmo
(não empírico) com os fenômenos objetivos; as categorias do inte- modo, podem ser observadas nele oscilações entre o pensamento
lecto, formais e apriorísticas, emprestariam organização e sentido metafísico e o dialético". 131
aos fenômenos. Estamos aqui, sem dúvida, diante de uma analo- Ora, tais oscilações não existem em Lévi-Strauss: ele não só é
gia com o estruturalismo. Mas as diferenças também são daras um completo idealista (ao afirmar que a vida social é produto de
e não se limitam àquela apontada por Lévi-Strauss (ausência do regras mentais), mas seu pensamento identifica completamente
sujeito transcendental). Antes de mais nada, Kant afirma clara- razão e intelecto, negando a dialética. O abandono das oscilações
mente a existência de uma "coisa em si", situada para além dos kantianas evidencia-se, ademais, na própria recusa do "sujeito
transcendental". Com ela, o intelecto deixa de ser algo subjetivo,

13° Cf. C. Lévi-Strauss, Le cru et le cuit, op. cit. p. 19; e Id., "Respostas a algumas
11
questões", op. cit., p. 198 ' G. Lukács, Introdução a uma estética marxista, op. cit., p. 8.
136 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA OA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 137

limitado, para converter-se numa pseudo-objetividade mística. E que esse "pensamento objetivado" não seja mais do que um
Diz Lévi-Strauss: fetiche do intelecto manipulador é algo que Lévi-Strauss evidencia
Essa restrição [ausência do sujeito transcendental], longe de assinalar quando discute o "significado" dos seus produtos ou o modo pelo
uma lacuna, parece-nos ser a consequência inevitável, no plano filosófi- qual ele se relaciona com o real. Diz ele:
co, da escolha que fizemos de uma perspectiva etnográfica, já que - ao Se se interroga a que significado último enviam essas significações que se
nos colocarmos em busca das condições nas quais sistemas de verdade significam umas às outras, mas que, no fim das contas, devem conjun-
tornam-se mutuamente conversíveis, podendo assim ser admitidos por tamente referir-se a algo, a única resposta sugerida por esse livro é que
vários sujeitos - o conjunto dessas condições adquire o caráter de objeto os mitos significam o espírito que os elabora por meio do mundo do qual
dotado de uma realidade própria e independente de todo sujeito. [Trata-se ele mesmo faz parte. Assim, podem ser engendrados, ao mesmo tempo,
de um} pensamento objetivado. 132 os próprios mitos pelo espírito que os causa, e, pelos mitos, uma imagem
Vemos aqui como o idealismo subjetivo (momento realmente do mundo já inscrita na arquitetura do espírito. Retirando sua matéria da
existente em Kant) converte-se num idealismo objetivo; em Lévi- natureza, o pensamento mítico procede como a linguagem, que escolhe
Strauss, as condições subjetivas do conhecimento transformam-se - os fonemas entre os sons naturais cujo balbucio fornece-lhe uma gama
injustificadamente - numa realidade objetiva de natureza mental. A praticamente ilimitada (. .. ).A matéria é o instrumento, não o objeto da sig-
"coisa em si" kantiana, o que existiria fora da consciência subjetiva, nificação. Para que ela se preste a esse papel, é antes preciso empobrecê-la:
não é mais a realidade concreta (o que abriria campo para o mate- não reter dela senão um pequeno número de elementos próprios a expressar
rialismo) e, sim, um "pensamento objetivado". O fetichismo conduz contrastes e a formar partes de oposições. 135
Lévi-Strauss a uma quase deificação desse "pensamento objetivado": Esse "pensamento objetivado", por outro lado, não conhece
"Não pretendemos mostrar como os homens pensam nos mitos, mas progresso; diferentemente do "Espírito" hegeliano (que se constitui
como os mitos se pensam nos homens e apesar deles. (...) De certo num permanente processo de autocriação e autossuperação, ou
modo, os mitos se pensam entre si". 133 Coerente com o idealismo seja, dialeticamente, historicamente), o "Espírito" lévi-straussiano
objetivo, o estruturalismo substituirá ainda a teoria materialista do coagula-se no estático. Diz Lévi-Strauss:
reflexo pela mística identidade sujeito-objeto: O que se denomina progresso do espírito humano - e, em qualquer caso,
As categorias que me servem para pensar as sociedades - observa Sebag o progresso do conhecimento científico - consiste apenas, e somente pode
- são as mesmas que presidiram a constituição delas; a identidade do consistir, em retificar delimitações, proceder a reagrupamentos, definir
sujeito e do objeto, assim, não é mais o ideal limitado para o qual tende o dependências e descobrir recursos novos, no seio de uma totalidade fechada
desenvolvimento do conhecimento [como afirmaria o materialismo], mas e complementar a si mesma. 136
uma afirmação primeira de ordem ontológica. 134 Surge diante de nós, em toda a sua clareza, a "concepção do
mundo" estruturalista: ao longo da sua história, no passado mas

m C. Lévi-Strauss, Le cru et le cuit, op. cit., p. 19. Os grifos são meus.


133
Ibid., p. 20. 1.1' C. Lévi-Strauss, Le cru et le cuit, op. cit., p. 346-347.
134
L. Sebag, Marxisme et structuralisme, op. cit., p. 219. U(i e. Lévi-Strauss, "Introdução à obra de Marcel Mauss", op. cit., P· 186.
138 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISERIA DA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 139

também no futuro, os homens não farão mais do que ser instru- existencialista e a "tautologia" estruturalista identificam-se em sua
mentos de um "pensamento objetivado'', que os usa para significar rejeição da razão dialética, em sua comum afirmação da irraciona-
a si mesmo, do que repetir as regras eternas da "arquitetura do lidade e falta de sentido da práxis e da história dos homens. Como
espírito" a que estão submetidos. Tal como a sintaxe lógica dos já elucidamos anteriormente as razões dessa complementaridade
neopositivistas, o pensamento objetivado de Lévi-Strauss produz (decorrente em última análise do agnosticismo básico da corrente
apenas tautologias (significa a si mesmo). Mas, com a passagem positivista), limitar-nos-emos agora a alguns exemplos concretos
do idealismo subjetivo dos primeiros para o idealismo objetivo do de transição entre a "miséria" e a "destruição" da razão.
segundo, a tese da tautologia sofre uma generalização grotesca. Tomemos, inicialmente, o caso do alemão Ernst Cassirer.
Confundindo razão e intelecto, o neopositivismo lógico limitava Partindo de posições neokantianas, Cassirer - em sua proposta
a filosofia ao estabelecimento de tautologias capazes de determinar de uma "filosofia das formas simbólicas" - antecipou uma "on-
a "validade" das proposições protocolares; qualquer afirmação tologia" bastante similar à dos estruturalistas franceses. Para ele,
sobre a essência da realidade e da vida social constituíam "falsos como para Lévi-Strauss, "a cultura deriva seu caráter específico e
problemas", pois essa essência era incognoscível. O estruturalismo, seu valor intelectual e moral não do material que a compõe, mas
como vimos, sem renunciar àquela identificação de racionalidade de sua forma, de sua estrutura arquitetônica, podendo essa forma
e intelecto, converte este - com o nome de "estrutura" - numa ser expressa com qualquer material sensível". 137 Mas, ao contrário
realidade objetiva que determina a totalidade da vida humana. E, da "estrutura" inconsciente de Lévi-Strauss, a "forma simbólica"
desse modo, a própria práxis histórica da humanidade converte-se de Cassirer não se identifica inteiramente com o intelecto mani-
numa tautologia; ela explicita uma "significação" que, indepen- pulador, já que nela penetram motivos claramente irracionalistas.
dentemente dela, já estaria implícita no "espírito". Formalizando Diz Cassirer:
e empobrecendo seu objeto, o "superracionalismo" não pôde É impossível caracterizar a estrutura do mito como algo racional. A lin-
escapar a essa melancólica conclusão final. Consciente ou incons- guagem foi frequentemente identificada com a razão ou com a verdadeira
cientemente, Lévi-Strauss - tão cauteloso em suas generalizações, fonte da razão, sem que se visse que essa definição não cobre rodo o campo
tão preocupado em afirmar-se "humanista" - chega aos mesmos (... ). Ao lado da linguagem conceituai, temos uma linguagem emotiva; ao
resultados que Derrida: a vida humana é um "jogo" absurdo, sem lado da linguagem lógica e científica, temos a linguagem poética (...). A
causa e sem finalidade, cujo significado último consiste em "sig- razão é um termo verdadeiramente inadequado para abarcar as formas da
nificar" um "espírito" que nada significa, pois se esgota - como vida cultural humana em roda a sua riqueza e diversidade, mas rodas essas
ele próprio afirma - em umas poucas regras formais e vazias. Na formas são formas simbólicas. Por isso, ao invés de definir o homem como
"arquitetura do espírito" inscreveu-se sub-repticiamente o ideal do um animal racional, preferimos defini-lo como um animal simbólico.13 8
neocapitalismo: a completa transformação do homem num passivo
objeto de manipulação.
17
' E. Cassirer, Antropología filosófica, México, Fondo de Cultura Económica, 1965,
Os resultados finais da "miséria da razão", assim, aproximam-
p. 63.
se decisivamente das "velhas" posições irracionalistas: o "nada" 1 18
Jbid., p. 48-49.
140 • Q ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA OA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 141

Cassirer parte também do modelo linguístico, mas percebe por afirmar uma posição irracionalista, a qual - fetichizando
matizes e diferenciações que escapam a Lévi-Strauss. Em vez de o singular, isto é, o homem individual ou os eventos históricos
identificar simbolismo (linguístico) com razão formal, como os irrepetíveis - nega a sua apreensão racional, científica; o singular
estruturalistas, o filósofo alemão prefere falar do simbolismo como torna-se objeto de uma intuição não conceituai.
algo que transcende a racionalidade. Ou seja: desconhecendo a Tanto é assim que vemos Sebag repetir a velha dicotomia
razão dialética, Cassirer aceita a falsa antinomia entre razão formal desenvolvida pelo irracionalismo das "ciências do espírito": "No
e irracionalismo e termina por falar numa inadequação da razão próprio coração das ciências do homem, encontra-se inscrita essa
(sem adjetivos) para apreender a totalidade da vida humana. Com dicotomia entre ciências nomológicas e ciências descritivas, à qual
isso, abre as portas de sua "antropologia" para o irracionalismo. corresponde a·oposíção entre análise estrutural e história". 141 Volta
Tomemos outro exemplo, ainda mais significativo. Enquanto assim a ser reafirmada a velha divisão do trabalho entre irracio-
o irracionalismo de Lévi-Strauss é essencialmente negativo, ou nalismo e positivismo; na "filosofia da vida" (em Dilthey, Rickert,
seja, aparece como um radical agnosticismo decorrente de uma Windelband), essa divisão do trabalho se dava entre "ciências
concepção limitada e empobrecida da racionalidade, em Lucien do espírito" (compreensivo-intuitivas) e "ciências da natureza"
Sebag - talvez seu mais fiel discípulo - tal irracionalismo já apa- (explicativo-racionais). Em Sebag, ela se estabelece no próprio
rece de modo positivo. Sebag, por exemplo, fala da "existência seio das ciências humanas: enquanto a "razão" se ocupa das for-
de uma margem irredutível de irracionalidade social"; 139 aceita, mas sociais, o conteúdo da vida (revoluções, guerras, problemas
ademais, a tese formalista de que somente o universal (o que nele do indivíduo etc.) é abandonado ao irracionalismo "descritivo".
se confunde com aquilo que, repetindo-se, pode ser formalizado) E, por mais que Sebag se defenda da acusação de irracionalismo,
pode ser objeto da ciência. E acrescenta: não é outra a que podemos lhe fazer quando, no final do seu bri-
Uma transformação social, uma revolução tecnológica, uma guerra, a lhante livro póstumo (que pode ser acusado de tudo, menos de
evolução de uma neurose, supõem - quaisquer que sejam as recorrên- não ser rigorosamente coerente com seus postulados), ao perceber
cias que possam ser constatadas - uma conjunção única de elementos nitidamente as "limitações do intelecto", indica numa abstrusa
diversificados que, por definição, possui um importante coeficiente de "meditação" 142 - e não numa racionalidade dialética superior - o
imprevisibilidade. 140 meio de superar tais limitações.
Limitando a razão ao intelecto, Sebag destrói a dialética de
universal, particular e singular, que permite apreender a legalida- 2. ESTRUTURALISMO E LITERATURA: ROLAND BARTHES
de universal que se manifesta por meio de inúmeras casualidades Antes de prosseguirmos na análise da "concepção do mundo"
singulares. (Que se recorde a tese hegeliano-marxista da casuali- estruturalista, estudando a versão que dela nos apresenta Michel
dade como modo de aparecer da necessidade.) Termina, assim, Foucault, vamos nos deter brevemente no exame da concepção

141
139 L. Sebag, Marxisme et structuralisme, op. cit., p. 155. Ibid., p. 251.
140
Ibid., p. 250. 1
'u lbid., p. 264.
,,

142 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO


1 CARLOS NELSON COUTINHO • 143

Essa popularidade espalhafatosa, infelizmente, é acompanhada por uma


estrutural da literatura, tal como aparece na obra de Roland Bar-
constante distorção do saussurianismo. Banhes confunde coisas distin-
thes. Barthes não possui, no interior do movimento estruturalista,
tas (...).Já que, em sua interpretação, tudo se torna signo, tudo torna-se
nenhuma originalidade filosófica. Não vemos nele qualquer traço
automaticamente língua. 145
do esforço de pesquisa revelado nas análises de Lévi-Strauss, ne-
Em suma: Banhes, como os demais estruturalistas, parte de
nhuma capacidade de generalização teórica tal como podemos
uma arbitrária extrapolação linguística, mas sem as cautelas e
constatar em Sebag, Foucault ou Althusser. A principal obra
tentativas de mediação (ainda que falsas) que vemos nas obras de
"teórica" de Banhes, Élements de sémiologie, não passa de uma
Lévi-Strauss e, particularmente, em Foucault.
catalogação esquemática dos conceitos básicos da linguística es-
Essa qued~ de nível teórico, porém, não deve ser atribuída ape-
trutural, ao lado da afirmação inteiramente dogmática (pois sem
nas a uma possível indigência intelectual de Banhes. Ela decorre,
nenhuma fundamentação concreta) de que eles constituem a base
a meu ver, precisamente da sua intenção de aplicar o estruturalis-
de uma teoria geral dos signos sociais. Enquanto Saussure afirmava
mo à análise de fatos sociais contemporâneos, ou seja, de fazê-lo
explicitamente que a linguística é uma parte da semiologia (cujos
descer das altitudes especulativas da teoria pura ou das remotas
princípios gerais, segundo ele, ainda cabia estabelecer), 143 Banhes -
regiões dos povos primitivos para a vida concreta de todos os dias.
cômoda e apressadamente - inverte a afirmação: ''A linguística não
Ora, se naqueles níveis as reduções formalistas podiam aparecer
é uma parte, ainda que privilegiada, da ciência geral dos signos; é
mascaradas por pseudomediações especulativas, ou aparentemente
a semiologia que é uma parte da linguística". 144
justificadas pela pobreza objetiva da vida selvagem, tendem aqui
Seus demais livros, ainda que bastante famosos, não são mais
- diante da atualidade concreta - a converter-se num jornalismo
do que coletâneas de ensaios jornalísticos (ou algo similar), nos
superficial, ou, mais precisamente, num cândido positivismo que
quais um jargão de "especialista" não é suficiente para encobrir
se limita a descrever unilateralmente certos fenômenos da "cultura
a superficialidade. Isso é particularmente verdadeiro no que toca
de massa" nas sociedades ocidentais, sem jamais pôr em discussão
às suas análises literárias. Um discípulo de Saussure, o linguista
o sentido humano (ou anti-humano) de tais fenômenos. O mes-
Georges Mounin, traça muito sugestivamente a fisionomia inte-
mo esquema empobrecedor é indiferentemente aplicado à moda,
lectual de Roland Banhes:
aos faits divers, à literatura; o variado conteúdo humano de tais
Banhes é o verdadeiro - e muito eficaz e brilhante - agente de publi-
objetivações desaparece diante da homogeneização que consiste
cidade do pensamento saussuriano no domínio das ciências humanas.
em indicar - com espírito registrador - o que neles é língua ou
As referências a Saussure, à toda terminologia saussuriana, (...) pululam
fala, cadeia sintagmática ou paradigmática, léxico ou sintaxe etc.
literalmente, lançam todo o vocabulário saussuriano, de um só golpe,
Na medida em que os dois mais importantes estruturalistas, Lévi-
no mercado intelectual, ao nível das páginas culturais dos semanários.
Strauss e Althusser, jamais se deram ao trabalho de demonstrar o

143
F. de Saussure, Curso de linguística geral, op. cit., p. 24. 145
144
R. Barthes, Le degré zéro de l'écriture. Eléments de sémiologie. Paris, Gonthier,
G. Mounin, Saussure ou !e structuraliste sans !e savoir. Paris, Seghers, 1968, p.
80-81.
1965, p. 81.
li

144 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA OA RAZÃO

' CARLOS NELSON COUTINHO • 145

caráter operatório de seu método aplicando-o à realidade contem- forma imperfeita ou preliminar do conhecimento científico; não é
porânea, a tentativa de Barthes - pelo menos por enquanto - pode casual, assim, que as mais brilhantes teorizações da estética antes
funcionar como uma advertência: talvez que, quando aplicado aos do marxismo apareçam precisamente nos dois maiores filósofos
fenômenos contemporâneos em nível concreto, o estruturalismo dialéticos pré-marxistas, Aristóteles e Hegel.)
tenda a converter-se necessariamente num jornalismo superficial Por causa dessa irredutibilidade da arte ao intelecto, os forma-
fundado em analogias inteiramente vazias. (Sobre essa necessária lismos anteriores - como, por exemplo, o da crítica estilística de
queda de nível, poderíamos lembrar ainda - além de Barthes - os Leo Spitzer ou Emil Staiger - tinham como base explícita uma
resultados catastróficos a que conduziu esse jogo analógico, que intuição irracionalista, originária em ambos de posições filosóficas
despreza a especificidade histórica dos processos, nas teorizações heideggeriana,.s. 146 Assim, a tentativa de aplicar o estruturalismo a
políticas do althusseriano Régis Debray.) formações estéticas - ou seja, de aplicar as regras do intelecto ma-
Essa superficialidade aparece nitidamente no campo que aqui nipulador a tipos de reflexo que não se caracterizam pela abstração
nos interessa, ou seja, na aplicação por Barthes do estruturalismo conceituai - deveria forçosamente conduzir Barthes a uma intensi-
à literatura. O resultado dessa aplicação, como veremos detalha- ficação do esquematismo empobrecedor e agnóstico já revelado nas
damente a seguir, é uma versão up to date do velho formalismo análises "antropológicas" de Lévi-Strauss. Na literatura, aparecem
tecnicista, daquela pretensa "crítica imanente" que esvazia a arte ainda mais nitidamente - se isso é possível- os limites da "razão"
e a literatura de qualquer conteúdo histórico-social concreto. A estruturalista na apreensão da totalidade do seu objeto. 147
novidade consiste em que, diferentemente dos formalismos an- Reduzida em Barthes a um "sistema de significação", de nature-
teriores, o de Barthes não se apoia no irracionalismo, mas numa za similar à língua, a literatura aparece como manifestação de uma
aplicação ao campo estético do intelecto manipulador. Trata-se de suposta "faculdade de literatura", que seria constituída por "regras
uma novidade, ademais, porque - ao que me conste - nenhuma depositadas bem além do autor; não são imagens, ideias ou versos
corrente anterior ligada à "miséria da razão" pretendeu englobar o que a voz mística da Musa sopra ao escritor, mas a grande lógica dos
domínio estético no campo do intelecto. Precisamente por serem símbolos, as grandes formas vazias que permitem falar e operar". 148
objetivações não conceituais, as obras de arte revelam-se inteira-
mente incompatíveis com as formalizações abstratas do intelecto
i-ic, O irracionalismo da crítica estilística é bem evidente na seguinte afirmação de
analítico. Tão somente uma racionalidade dialética, capaz de dar Leo Spitzer: "Para cada poema, o crítico necessita de uma inspiração determinada,
conta das leis imanentes às modalidades não conceituais da cons- de uma luz especial que vem do alto" (L. Spitzer, Linguistica e historia !iteraria.
Madri, Credos, 1961, p. 51). Sobre o irracionalismo heideggeriano de Spitzer e
ciência humana, pode superar o irracionalismo ou agnosticismo Staiger, cf. o lukacsiano Cesare Cases, "Leo Spitzer e la critica stilistica". ln: ld.,
estéticos, fundando um conceito racional da arte que não a des- Saggi e note di letteratura tedesca. Turim, Einaudi, 1963, pp. 267-329.
117
O próprio Lévi-Strauss, ainda que não negue a possibilidade teórica de uma crítica
poje daquilo que constitui a sua especificidade: o caráter sensível- estruturalista, é bastante cético a respeito do que chama de "crítica literária com
evocador, não diretamente conceituai, da representação estética pretensões estruturalistas" (C. Lévi-Strauss, "Estruturalismo e crítica". ln: Estrutu-
ralismo: antologia de textos teóricos, op. cit., p. 393-396). Infelizmente, as "reservas"
do real. (É interessante observar como, nos sistemas racionalistas de Lévi-Strauss continuam ignoradas pelos seus discípulos mais recentes.
não dialéticos, a arte, quando tem um lugar, é considerada simples '"' R. Banhes, Critique et verité. Paris, Seuil, 1966, p. 58-59.
146 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA OA RAZÃO , CARIOS NELSON COUTINHO • 147

Estamos aqui diante de uma nova versão ad hoc da "estrutura in- irrealista(... ). A obra mais "realista" não é a que "pinta" a realidade, mas a
consciente" de Lévi-Strauss. Em outras palavras, essa "faculdade que, servindo-se do mundo como conteúdo, explorará o mais profunda-
de literatura" é definida igualmente em termos linguísticos, ou, mente possível a realidade irreal da linguagem. 151
mais precisamente, como vimos no capítulo anterior, em termos Aqui não se combate apenas o naturalismo, a "cópia" da reali-
de intelecto manipulador. A atividade do escritor resume-se a "uma dade, mas simplesmente se afasta a possibilidade da existência de
atividade de variação e combinação", 149 ou seja, a uma manipulação
de "materiais" destituídos de significação imanente. Esses materiais,
1 uma literatura realista, na medida em que se afastou, previamente,
a existência de uma realidade objetiva, independentemente das
por outro lado, para Banhes, não seriam nem mesmo provenientes "inferências" do sujeito; na concepção estruturalista da arte, a rea-
da realidade objetiva, mas sim da linguagem cotidiana. Enquanto
"metalinguagem", discurso sobre um discurso, a literatura perde
qualquer ligação com aquilo que lhe é absolutamente essencial: a
J lidade torna-se o simples material que a "faculdade de literatura"
manipula arbitrariamente.
A redução formalista de Banhes, por outro lado, não elimina
realidade efetiva dos homens. A função da literatura não é mais a apenas o conteúdo objetivo da arte, mas também - paradoxal-
de refletir (de acordo com sua peculiar natureza antropomorfiza- mente - a própria forma estética. Diferentemente da científica, a
dora, sensível-evocativa) o sentido imanente à realidade, mas sim- forma estética não apresenta nenhuma margem de autonomia com
plesmente a de "combinar" materiais arbitrariamente selecionados relação ao conteúdo, pois é sempre a forma concreta de um conteú-
na linguagem cotidiana. Em vez de conhecimento da realidade, a do concreto. Essa diferença é substancial; enquanto na ciência é
literatura converte-se em técnica burocrática. possível estabelecer regras formais válidas para qualquer discurso
O ser da literatura - diz Barthes - não é mais do que sua técnica. Em (ou seja, é possível estabelecer cientificamente, por exemplo, uma
suma, se se transcreve essa verdade em termos semânticos, isso significa lógica formal), na arte - fato que se tornou conhecido desde as
que a especificidade da obra não reside nos significados que contém épocas mais remotas - isso é inteiramente impossível, pois regras
(adeus à crítica das "fontes" e das "ideias"), mas tão somente na forma desse tipo destruiriam a própria esteticidade, dissolvendo o estilo
das significações. 150 na maneira. Shakespeare, por exemplo, não "aplicou" a conteú-
Consequente com o agnosticismo estruturalista, Banhes eli-
mina ainda a racionalidade objetiva do real (que aparece reduzido
a um amontoado de materiais caóticos) e, com ela, a categoria
estética do realismo.
1 dos acidentais uma forma eterna e vazia, um conjunto de regras
similar ao utilizado pelos trágicos gregos; ele recriou, a partir da
especificidade de seu conteúdo concreto (histórica e humanamente
concreto), a forma trágica que estava implícita em tal conteúdo,
O real nunca é mais do que uma inferência; quando se declara copiar o do mesmo modo como Ésquilo ou Sófocles haviam feito em sua
real, isso significa que se escolheu essa e não aquela inferência (...). Com re- época. A unidade que podemos estabelecer a posteriori - e que
lação aos próprios objetos, a literatura é fundamental e constitutivamente permite falar numa forma trágica universal, comum aos gregos e a
Shakespeare - decorre da unidade do conteúdo, ou seja, da conti-
149 R. Banhes, Essais critiques. Paris, Seuil, 1964, p. 14.
15° Ibíd., p. 140. Grifos meus. 1 1
' Ibid., p. 164.
li

148 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA OA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 149

nuidade essencial que, em meio às mudanças, se mantém ao longo estrutura da objetivação estética; mas dissolve também, em estreita
da evolução histórica. Por outro lado, as transformações formais vinculação com a "miséria da razão" que pratica, o laço essencial
que se verificam na história da arte (as que ocorrem, por exemplo, da literatura com a história, com sua gênese e função sociais.
entre a forma trágica do próprio Shakespeare e a dos gregos, ou, A literatura - diz Banhes - é apenas um meio, desprovido de causa e de
ainda mais radicalmente, as que levam da epopeia clássica ao ro- finalidade: é precisamente isso, sem dúvida, o que a define (...). O ato
mance moderno no interior da forma épica), essas transformações de escrever não pode ser limitado nem por um porquê nem por um para
são igualmente determinadas pelas modificações dos conteúdos. quê (... ). O ato literário é sem causa e sem finalidade porque é privado de
Essa dialética histórica de continuidade e descontinuidade - que, qualquer sanção: propõe-se ao mundo sem que nenhuma práxis venha
como vimos, é negada pela "razão" estruturalista - é a base ob- fundá-lo ou·justificá-lo: é um ato absolutamente intransitivo, que não
jetiva daquela unidade na diversidade que caracteriza a evolução modifica nada. 153
das formas estéticas. Banhes propõe ainda a distinção entre "escritor" e "escre-
Tal dialética é inteiramente desconhecida por Banhes. Para vente'', incluindo na segunda categoria - ironizada a partir da
ele, a forma estética- identificada com a "faculdade de literatura" própria definição - aqueles que pretendem expressar um conteúdo
e, consequentemente, com o intelecto manipulador - é algo que humano verdadeiro em suas obras; 154 ou, mais precisamente, os
se coloca "para além" do escritor, sendo constituída por formas artistas que - acreditando na racionalidade do real - acreditam na
"vazias" que utilizam o conteúdo como mero material. O artista possibilidade que tem a arte de conhecer o homem e a realidade
não recria a forma diante de cada novo conteúdo, mas aplica e de contribuir para a sua modificação. O autêntico "escritor", ao
"inconscientemente" regras formais sempre idênticas e imutáveis. contrário, seria aquele que não usa a palavra como "instrumento"
Banhes evidencia ainda essa sua recusa da autêntica forma estética de expressão, isto é, aquele que faz da "linguagem" e da técnica
quando abandona a problemática essencial dos gêneros literá- formal a finalidade última de sua atividade. Simples meio sem cau-
rios: "Não mais existem poetas ou romancistas: há apenas uma sa e sem finalidade, simples técnica a serviço do nada, a literatura
escrita". 152 É interessante constatar que essa dissolução da forma converte-se para Banhes num exemplo de práxis manipuladora ou
artística objetiva (que se expressa nos gêneros literários) já fora burocrática: "O escritor é como um artesão que fabricaria seria-
igualmente realizada pela estética irracionalista. Mas, enquanto no mente um objeto complicado sem saber segundo qual modelo ou
irracionalismo (em Croce, por exemplo), isso era feito em nome de para que uso". 155 Quando Banhes, finalmente, exige do escritor
uma intuição subjetivista, que reduzia a arte à "expressão lírica'', uma "responsabilidade para com as formas", deixa transparecer
em Banhes a dissolução da objetividade formal se faz em nome o objetivo ideológico de sua teoria estruturalista da literatura:
da "escrita", isto é, das regras técnicas de "variação e combinação". desviando a atenção para a técnica, ela visa afastar o escritor de
A concepção estruturalista da literatura, portanto, dissolve a
forma e o conteúdo da arte, ou seja, paradoxalmente, a própria
'·' R. Barthes, Essais critiques, op. cit., p. 139.
lbid., p. 147-154.
152
R. Barthes, Critique et verité, op. cit., p. 46. lbid., p. 139.
CARLOS NELSON COUTINHO • 151
150 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZAO

"nada": seu ser está na significação, não nos significados - o escritor, além
sua responsabilidade concreta perante o destino da humanidade,
disso, fica sabendo que - (...) acabar uma obra pode querer dizer apenas
perante as tarefas históricas que a vida incessantemente propõe à
suspendê-la no momento em que vai significar algo. 1ó7
literatura enquanto insubstituível modalidade da autoconsciência
Em sua brilhante análise da vanguarda literária, Gyõrgy
dos homens. Ao crítico e ao leitor, por sua vez, a "análise estrutu-
Lukács indicara-lhe o caráter alegórico, decorrente da recusa em
ral" propõe uma "leitura" que deixa de lado, como resíduos irra-
aceitar um sentido imanente à realidade objetiva; afirmara, ainda,
cionais, todos os momentos conteudísticos essenciais da literatura.
que o conteúdo transcendente evocado por essa alegoria consiste
A dissolução dos instrumentos críticos de apreensão da realida-
precisamente no "nada", na vacuidade subjetiva do indivíduo
de - que vimos se configurar, no plano filosófico, como dissolução
alienado. Adetnais, relacionara essa vacuidade, essa "nadificação"
das categorias da razão dialética - aparece agora como dissolução
do real, com a sensação da angústia, com a insegurança diante de
do caráter realista e crítico-humanista da literatura. Em ambos os
um mundo contraditório que o escritor não consegue apreender
casos, o objetivo é bastante claro: recusando a teoria do reflexo,
racionalmente. 158 Com a relativa superação da angústia e sua subs-
a objetividade das categorias racionais, a "miséria da razão" não
tituição pela "segurança" manipulada como sentimento dominante
mais pode distinguir entre ciência e ideologia, entre realismo e
do mundo, o "nada" vanguardista adquiriria uma nova forma,
antirrealismo, entre verdadeira e falsa consciência. Todas as ob-
mas não se modificaria essencialmente. (Seguindo uma indicação
jetivações humanas identificam-se enquanto realização "incons-
de Theodor W. Adorno, Lukács já assinalara essa desaparição da
ciente" de regras formais idênticas, vazias e eternas. No caso de
angústia enquanto base vivencial da nova vanguarda em 1956,
Barthes, isso se revela na sua aplicação à literatura de um conceito
quando redigiu Realismo crítico hoje.) Assim como a tautologia
fundamental do neopositivismo: o da tautologia do pensamento.
neopositivista era o equivalente formal-intelectivo do "nada" subje-
''A literatura" - diz ele - "é no fundo uma atividade tautológica
tivo-irracional dos existencialistas, também a "significação contra o
(...); o escritor é um homem que absorve radicalmente o porquê
sentido" da nova vanguarda (teorizada por Barthes) continua, sob
do mundo em um como escrever". 156 A verdade estética, assim, é
novas formas, a tradição da alegoria niilista da vanguarda anterior.
substituída pela "validade", isto é, por uma coerência "estrutural"
Parece indiscutível que o modelo literário sobre o qual Barthes
interna puramente formalista. Com isso, a função da literatura
teoriza é constituído sobretudo pelo chamado nouveau roman, ou
passa a ser, explicitamente, a de não significar nada:
seja, por uma literatura puramente "descritiva" (no sentido lukác-
Moda e literatura [a analogia é mais uma prova da "seriedade" de Banhes]
siano de antinarrativa), que resulta de uma capitulação à aparência
são talvez o que eu chamo de sistemas homeostáticos, isto é, sistemas cuja
coisificada da realidade contemporânea. A alegoria era a aparência
função não é comunicar um significado objetivo, exterior e preexistente
estética encontrada por um subjetivismo radical, que dissolvia de
ao sistema, mas simplesmente a de criar um equilíbrio de funcionamento
modo irracionalista a racionalidade imanente (e contraditória)
(...). O texto literário funciona como o significante de um sentido vazio.
A moda e a literatura significam fortemente, sutilmente, mas significam
Ibid., p. 156.
''·' G. Lukács, Realismo crítico hoje. Brasília, Coordenada,1969, p. 33-75.
"" lbid., p. 148-149.
152 • Q ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 153

do real; a pura descrição documental de um mundo fetichizado, realidade que, em filosofia, designamos com o termo dialética.
apesar de seu pseudo-objetivismo, realiza uma função similar, na Em outro local, observei:
medida em que converte a realidade numa matéria amorfa, caótica A figuração do homem como tipo concreto, de múltiplas determinações,
e insensata. (Basta pensar em autores como Alain Robbe-Grillet, como homem total, é uma exigência básica do reflexo estético do mundo;
Jean-Luc Godard ou o último Julio Cortázar.) Essa substituição já que a sociedade alienante do capitalismo tende objetivamente a destruir
da alegoria pelo neonaturalismo corresponde, mutatis mutandis, essa unidade nuclear do homem - razão pela qual ela é, ainda mais do
à passagem filosófica do irracionalismo ao positivismo agnóstico. que qualquer outra sociedade de classes, uma realidade tendencialmente
Consequentemente, ela expressa uma substituição da sensação de antiartística -, na tentativa de figurar artisticamente a essência do real
angústia por uma atitude resignada, conformista e passiva, diante o artista honesto é levado necessariamente, em sua práxis criadora, a se
da insensatez da vida capitalista. A novíssima vanguarda já não opor à alienação fetichista e ao próprio capitalismo, ou seja, é obrigado
conhece sequer o abstrato protesto subjetivo-romântico de um a descobrir e a dar forma às tendências que se opõem à fragmentação do
Beckett ou de um Camus. E, com isso, assistimos a uma queda homem, à perda do seu núcleo, e que apontam para a possibilidade de
radical do valor estético e humano. Embora refira-se à música, a sua reunificação. 160
observação de Adorno vale igualmente para a literatura: É essa literatura realista, voltada não para a "morte do homem"
As sonoridades usadas [por Schõmberg e seus epígonos] são as mesmas, mas para sua permanente afirmação e defesa, que o estruturalismo
mas o fato da angústia - que dera vida aos seus primeiros instantes - foi - em Barthes - pretende eliminar. A literatura sempre foi, em seus
removido (...). Se a arte aceita inconscientemente a eliminação da angústia melhores representantes, a descoberta e expressão dos atributos
e reduz-se a puro jogo, porque se tornou muito débil para ser o oposto, humanos e históricos do homem; o estruturalismo, porém, pensa
159
ela desiste da verdade, perdendo assim o seu único direito à existência. o inverso: "Toda escrita que não mente designa não os atributos
É à defesa dessa arte reduzida a puro jogo técnico que se dirige, interiores do sujeito, mas a sua ausência". 161
em Barthes, a concepção estruturalista da literatura. Mas, como o homem resiste à manipulação que o esvazia (e
Como na antiga vanguarda subjetivista, também agora o que é mimetizada pelo estruturalismo), a literatura autenticamente
que se pretende afastar é o realismo crítico, englobado naquela realista de nossos dias - sob inúmeras formas - continua a con-
tradição humanista do século 19 - ou, como demagogicamente tar a história e as possibilidades de sua resistência. Em William
diria Barthes, no "mundo burguês" - que se pretende eliminar Styron, Jorge Semprun, Elsa Morante, J. D. Salinger, Alexander
radicalmente. Do ponto de vista estruturalista, tal pretensão Soljenitzin e muitos outros, podemos ler não "significados sem
é bastante coerente, já que o realismo (no autêntico sentido sentido", mas a denúncia crítica e realista, humanista e historicista,
lukacsiano) é a forma artística do humanismo e do historicismo da manipulação do homem contemporâneo. O realismo artístico,
concretos, ou seja, o equivalente estético daquela apreensão da

"'" C. N. Coutinho, "O realismo como categoria central da crítica marxista". ln: ld.,
t59 Th. W. Adorno, "Invecchiamento della musica moderna". ln: ld., Dissonanze. Literatura e humanismo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967, p. 116.
Milão, Feltrinelli, 1959, p. 160. "" R. Barthes, Critique et verité, op. cit., p. 70.
" 154 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÀO CARLOS NELSON COUTINHO • 155

assim, aparece como um dos principais aliados dos que pretendem do homem, como Lévi-Strauss ou Sebag, Foucault julga que o
desmistificar a "morte do homem" como um conceito ideológico a próprio homem deve ser eliminado do terreno da racionalidade,
serviço da manipulação e, desse modo, conservar a integridade do substituído - enquanto objeto da verdadeira ciência - pelo exame
potencial criador da racionalidade e da práxis humanas. Tornou- das regras formais do "discurso" ou "sistema". O anti-humanismo,
se, por isso, o principal alvo da teoria literária de Roland Banhes; ademais, não aparece em sua filosofia como fruto de uma escolha
juntamente com o historicismo, o humanismo e a dialética, foi pessoal, mas sob a máscara de uma inelutável necessidade imposta
eliminado da "concepção do mundo" estruturalista. pelas novas formas do saber. Para essa corrente mais tardia do
Para concluir, gostaríamos de citar um desses realistas, o es- estruturalismo, portanto, Lévi-Strauss aparece como uma eta-
panhol Jorge Semprun, cujas afirmações contra um dos principais pa preliminar -certamente necessária, mas ainda "conciliadora",
representantes da nova vanguarda são substancialmente similares cujas vacilações devem ser superadas para que se possa chegar a
às que expusemos mais acima. Diz Semprun: uma completa formalização do pensamento. Esse "radicalismo"
Robbe Grillet chegou a uma conclusão insustentável, segundo a qual o corresponde, decerto, a uma intensificação dos mecanismos da
artista só pode criar para nada. Acantona-se assim na posição, aventurosa manipulação no capitalismo mais recente, com o consequente
mas confortável, da "gratuidade" da arte. E aceita, para justificá-la e aumento do sentimento vital da "segurança''. (Sentimento que, em
emprestar-lhe um estatuto teórico, essa cisão do homem e do cidadão, Lévi-Strauss, ainda é abalado pelas lamentações românticas sobre
do íntimo e do comum, do público e do privado, que é uma das fontes a "autenticidade" perdida, ou seja, ainda vemos nele concessões
da alienação. 162 ao clima espiritual existencialista, dominante na França dos anos
1950.) Essa completa substituição da angústia pela "segurança'',
3. O ANTI-HUMANISMO DE MICHEL FOUCAULT que forma a base vital do novo estruturalismo, é expressa do se-
A característica essencial de Foucault, no quadro do estrutu- guinte modo pelo próprio Foucault:
ralismo, consiste na formulação de uma "concepção do mundo" A geração de Sartre era, decerto, uma geração corajosa e generosa, que ti-
abertamente anti-humanista. Como vimos, a "antropologia estru- nha a paixão pela vida, pela política, pela existência. Mas nós descobrimos
tural" de Lévi-Strauss, em seus fundamentos ontológicos, contém uma outra coisa, uma outra paixão: a paixão pelo conceito e pelo que eu
implícito o anti-humanismo, na medida em que destrói a teoria chamaria de "sistema". 163
hegeliano-marxista do homem como produto de si mesmo, de sua Por eliminarem essas "vacilações" de Lévi-Strauss, os novos
práxis socializada. Foucault, todavia, radicalizou essa concepção cstruturalistas (Foucault, Derrida, mas também Althusser e seu
anti-humanista, a ponto de fazer dela a base e o objetivo explí- grupo) julgam subtrair-se à própria corrente filosófica que aquele
citos de sua pesquisa filosófica; já nos referimos ao fato de que, iniciou e sistematizou. Essa posição é equivocada. Em vez de
para Foucault, o anti-humanismo assume inclusive um caráter ruptura, estamos diante de uma continuidade, que se expressa
político. Em vez de tentar "aplicar" o estruturalismo à análise precisamente na forma de uma radicalização dos princípios es-

1 1
162
J. Semprún. ln: Vários autores, Que peut la littérature? Paris, 10/18, 1965, p. 32-33. '' M. Foucault, "Entrevista a Quinzaine Littéraire", op. cit., p. 29-30.
156 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA OA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 157

sendais de Lévi-Strauss, despojados de algumas "incoerências". um certo ponto de vista, não sejam estranhos ao que se designa como
Se quisermos usar uma analogia (cujo valor é sempre relativo), análise estrutural. 164
poderíamos dizer que Foucault está para Lévi-Strauss assim (Em seguida, teremos ainda ocasião de indicar outras decla-
como, no interior da filosofia da vida, Oswald Spengler estava rações de Foucault falando de sua dívida para com Lévi-Strauss.)
para Wilhelm Dilthey. Em ambos os casos, o preço da coerência Vejamos, por exemplo, algumas identidades substanciais entre
(ou da pseudocoerência) é a eliminação de algumas "reservas" os dois métodos. Tanto Lévi-Strauss quanto Foucault afirmam a
mentais, que atestavam nos iniciadores uma certa preocupação existência de um nível mental mais profundo, "inconsciente" ou
com os procedimentos científicos. Assim como em Spengler "arqueológico", ao qual estaria submetida a realidade empírica, ou
a filosofia da vida aparecia como um aberto irracionalismo seja, o pensan:iento e a vida social dos homens concretos. Ambos
analógico, criador de mitologias, o estruturalismo aparece em são agnósticos diante da história: enquanto Lévi-Strauss considera-a
Foucault como um explícito anti-humanismo; mas, apesar de algo "subjetivo", um método sem objeto, Foucault considera sim-
suas "reservas" e cautelas, Dilthey e Lévi-Strauss criaram os ples "doxologia" - simples opinião subjetiva - qualquer afirma-
fundamentos metodológicos respectivos que permitiram essas ção relativa história à real dos homens. (Voltaremos a falar, mais
posteriores "radicalizações". adiante, de seu conceito formalista de história.) A similaridade
Essa continuidade essencial, todavia, não anula o surgimento prossegue ainda na definição da natureza daquele nível "profundo"
de algumas diversidades, condicionadas precisamente, em ambos que Foucault chama de "episteme", "discurso", "sistema" ou ainda
os casos, pela necessidade de "radicalização" e de "coerência". Em "a priori histórico". Tanto a "estrutura" de Lévi-Strauss quanto a
suas obras, sobretudo as mais recentes, Foucault sublinha tais "episteme" de Foucault são objetivações fetichistas do intelecto
divergências, mas o faz - segundo sua própria metodologia, que formal, ou seja, de esquemas e regras mentais que manipulam
coloca a "descontinuidade" como categoria fundamental - de um conteúdos (inclusive, segundo eles, a vida humana) destituídos de
modo evidentemente exagerado. Pois parece-me inegável que a significação imanente.
semelhança entre o "método estrutural" e o "método arqueológi- É verdade que, assim como Althusser, Foucault define tais re-
co" predomina sobre as diferenças, circunstanciais e secundárias. gras de um modo mais rico (ou menos pobre) do que Lévi-Strauss,
O próprio Foucault, aliás, não nega a possibilidade de tal seme- para quem elas se identificam inteiramente com as leis da linguísti-
lhança. Afirma, tão somente, que suas pesquisas têm um caráter ca saussuriana. Desse modo, quando Foucault afirma que, em sua
original, independente, não sendo simples "aplicações" do método definição da "episteme", não parte de uma simples extrapolação
de Lévi-Strauss: do modelo linguístico, sua afirmação possui uma relativa justeza.
Não se trata de transferir para o domínio da história (. ..) um método Com efeito, seu "discurso" apresenta uma articulação categorial
estruturalista que provou sua validade em outros campos de análise. mais rica do que aquela que se manifesta na linguagem cotidiana.
Trata-se de explicitar os princípios e consequências de uma transfor- Mas isso não anula a questão essencial: embora mais complexa e
mação autóctone que está em vias de se realizar no domínio do saber
histórico (... ). É bem possível que os resultados dessa transformação, de "'' M. Foucault, L'archéologie du savoir. Paris, Gallimard, 1969, p. 25.
158 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA OA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 159

variada, a "episteme" de Foucault constrói-se igualmente a partir as condições nas quais se pode pronunciar sobre as coisas um discurso
de uma fetichização do intelecto manipulador e de suas regras tido como verdadeiro. 166
formais subjetivas. Em certo sentido, poderíamos dizer que, en- Assim, a "episteme" - tal como a manipulação que ela mi-
quanto Lévi-Strauss retém as regras que operam na linguagem metiza - bloqueia o contato criador do homem com a realidade.
universal, Foucault agrupa em seu "sistema" as que são próprias do Longe de decorrerem de uma representação cada vez mais rica da
"discurso" que codifica o ato técnico. A unidade essencial, porém, objetividade, no interior de uma práxis que se amplia e enriquece,
reside no fato de que língua e técnica - como vimos no capítulo as categorias mentais - no sistema de Foucault - coagulam-se num
anterior - têm como base uma práxis de tipo manipulatório. Ao "a priori" místico que aprisiona o pensamento e a práxis dentro de
definir o "sistema", Foucault indica nitidamente que parte de uma limites fetichieados, precisamente aqueles exigidos pela "eficácia"
extrapolação do esquema manipulatório-intelectivo: "Por sistema, da manipulação. Apesar das diversidades assinaladas, que apenas
deve-se entender um conjunto de relações que se mantêm, que acentuam o agnosticismo, essa "miséria da razão" - com sua con-
se transformam, independentemente das coisas ligadas por tais sequente "miséria do objeto" - parte diretamente de Lévi-Strauss.
relações". 165 É o que nos diz o próprio Foucault:
Como Lévi-Strauss, Foucault identifica integralmente a racio- O ponto de partida situa-se no dia em que Lévi-Strauss e Lacan (...) mos-
nalidade com essas regras intelectivas coaguladas. Todavia, vai ain- traram que o "sentido" não era, provavelmente, mais do que um efeito
da mais longe do que seu antecessor, pois afirma que o âmbito da de superfície, uma reverberação, uma espuma, e o que nos atravessava
realidade que se torna inteligível (ou racional) já é determinado no profundamente, o que estava antes de nós, o que nos sustentava no tempo
nível do "a priori" epistemológico, não decorrendo apenas - como e no espaço era o sistema. 167
em Lévi-Strauss - de uma seleção metodológica entre "objetivo" e Sempre no âmbito da unidade essencial, podemos ainda ob-
"subjetivo". Com isso, acentua-se ainda mais a transformação do servar outra diferença talvez a mais significativa, pois por meio
homem num objeto manipulado, ao mesmo tempo em que se tenta dela é que se processará a "radicalização" entre as posições de
disfarçar o agnosticismo sob um véu de "necessidade" inapelável. Lévi-Strauss e de Foucault. Enquanto a "estrutura" do primeiro
Diz Foucault: é eterna e imutável, a "episteme" do segundo transforma-se no
Os códigos fundamentais de uma cultura - os que regem sua linguagem, tempo. Do ponto de vista imediato, essa diversidade origina-se
seus esquemas perceptivos, suas trocas, suas técnicas, seus valores, a também do conceito mais amplo do intelecto que podemos ob-
hierarquia de suas práticas - fixam previamente, para cada homem, as servar na obra de Foucault. Com efeito, embora sempre se limite
ordens empíricas com as quais entrará em contato e nas quais se reen- a codificar e formalizar as regras que operam na manipulação,
contrará (... ). Esse a priori é o que, numa dada época, recorta na expe- o intelecto apresenta uma certa evolução categorial no curso da
riência um campo de saber possível, define o modo de ser dos objetos história; essa evolução corresponde à complexificação da própria
que nele aparecem, arma o olhar cotidiano de poderes teóricos e define

1
"" M. Foucault, Les mots et les choses. Paris, Gallimard, 1966, p. 11 e 171.
165 M. Foucau!t, "Entrevista a Quinzaine littéraire", op. cit., p. 30. "'
7
M. Foucault, "Entrevista a Quinzaine littéraire", op. cit., p. 30.
160 • Q ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZAO
CARLOS NELSON COUTINHO • 161

práxis manipulatória; basta aqui pensar, por exemplo, na evolução virada do século, sofrendo uma irreparável alteração, foi o próprio
da técnica desde a época da economia coletora até os computadores saber como modo de ser preliminar e indiviso entre o sujeito que co-
modernos. A evolução das regras formais do intelecto pode ser nhece e o objeto do espírito". 169 A história é eliminada não apenas no
imediatamente constatada se compararmos a lógica formal aristo- plano da gênese real, como também no plano sistemático. Rejeitando
télica com a sofisticada lógica simbólica dos neopositivistas. Mas a razão dialética - por exemplo, a lei da transformação da quantidade
tal complexificação, tanto da manipulação quanto do intelecto, em qualidade - Foucault não pode teorizar corretamente as variações
não anula o fato de que sempre se conservam os limites ontológicos que observou entre os diversos estágios do intelecto. Ao contrário do
de ambos. As regras codificadas, das mais simples às mais comple- que diz Lévi-Strauss, só a razão dialética pode explicar racionalmente
xas, deixam sempre de lado a legalidade imanente dos processos, a "razão analítica"; isso significa que a evolução do intelecto, vista à
a racionalidade objetiva da "coisa em si". Basta aqui pensar, por luz do próprio intelecto, é algo incognoscível. Foucault, portanto,
exemplo, no "princípio de identidade" (ou do terceiro excluído), limita-se a registrar de modo positivista as várias etapas da "episteme",
que aparece como elemento determinante do sistema categorial de colocando-as umas após as outras, sem nenhuma relação histórica
qualquer formação intelectiva; esse princípio não leva em conta ou sistemática entre si. E, como consequência do agnosticismo posi-
(ou considera irracional) a unidade dos contrários, que é um modo tivista, aflora nele o irracionalismo; a transformação das "epistemes"
ontológico essencial da objetividade e, consequentemente, uma no tempo aparece-lhe, no final das contas, como algo "um pouco
categoria básica da racionalidade dialética. enigmático". 170
Essa concepção menos pobre do intelecto poderia motivar confu- Em seu livro mais recente, L'archéologie du savoir, Foucault
sões, levando a supor que Foucault - diferentemente de Lévi-Strauss revela seu anti-historicismo precisamente no momento em que
- atribua à historicidade objetiva do real um papel determinante em pretende incorporar a história à sua versão particular da "miséria
sua "concepção do mundo". Isso não ocorre: essas transformações da da razão", ao seu "método arqueológico". (É interessante constatar,
"episteme" (do intelecto fetichizado) não têm nele a menor relação de passagem, que Foucault, nesse livro, assimila quase literalmente
com a história real, ou mesmo com a história ideal do pensamento, a "teoria da história" de Althusser.) No lugar da concepção da his-
pois são bruscas e inexplicadas reviravoltas que ocorrem no plano "ar- tória como história global, como totalização, como síntese dialética
queológico". Analisar um pensamento, por exemplo, relacionando-o de contínuo e descontínuo, surge a imagem - althusseriana - de
às classes sociais, à práxis histórica dos homens, seria algo puramente uma "história" fragmentada em séries dotadas de temporalidade
"doxológico", não científico.168 Mas explicar o surgimento da filosofia, própria, na qual domina a categoria da descontinuidade. À to-
da biologia e da economia política - da nova "episteme" do século talidade concreta da dialética, Foucault opõe aquela "atividade
19 - como desenvolvimentos do pensamento científico anterior seria de dividir" que - segundo Hegel - é a característica essencial do
igualmente equivocado, pois tais ciências "não surgiram de sua pré- intelecto. Diz Foucault:
história por meio da autoanálise da própria razão; o que mudou na
lbid., p. 274.
168
M. Foucault, Les mots et les choses, op. cit., p. 213, 214 etc. Jbid., p. 251.
162 • Q ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZAO
CARLOS NELSON COUTINHO • 163

Ela [a "nova" concepção da história] dissociou a longa série construída pelo o progresso, a continuidade, a totalização; que não decorre da
progresso da consciência, ou pela teleologia da razão, ou pela evolução práxis humana; que tem como categorias dominantes o "corte" e
do pensamento humano; pôs em questão os temas da convergência e da a "descontinuidade" etc. Analisando a pretensa historicidade de
culminação; colocou em dúvida as possibilidades de totalização. Levou Foucault, Sartre encontrou uma sugestiva metáfora:
à individualização de séries diferentes, que se justapõem, se sucedem, se É certo que sua perspectiva permanece histórica. Ele distingue épocas,
cruzam, sem que se possa reduzi-las a um esquema linear. Assim, em lu- um antes e um depois. Mas substitui o cinema pela lanterna mágica, 0
gar dessa cronologia contínua da razão, aparecem escalas às vezes breves, movimento por uma sucessão de imobilidades.173
distintas entre si, rebeldes a uma lei única (...), irredutíveis ao modelo geral A introdução dessa pseudo-historicidade, contudo, desempe-
de uma consciência que conquista, progride e recorda (...). A noção de nha uma importante função no processo de "radicalização" que
descontinuidade assume um lugar nas disciplinas históricas. 171 assinalamos: é através do modo pelo qual ordena essa sucessão de
E, após destruir a continuidade, a totalização, a universali- "epistemes", em Les mots et les choses, que Foucault prepara para
zação e o progresso, Foucault pretende ainda separar a sua "nova sua ideologia anti-humanista a aparência mistificada de uma ne-
história'' da práxis humana: "Fazer da análise histórica o discurso cessidade histórica, de uma inquestionável positividade científica.
do contínuo e fazer da consciência humana o sujeito originário de Antes de mais nada, podemos observar que essa sucessão pseudo-
todo devir e de toda prática são duas faces de um mesmo sistema histórica é obtida à custa de homogeneizações insustentáveis.
de pensamento". 172 (Também aqui, é clara a continuidade com Lévi-Strauss; que
Como Althusser, Foucault aparentemente opõe suas concep- se recordem nossas observações sobre a "análise estrutural" dos
ções "científicas" a uma teoria idealista-dialética da história, a mitos.) Dado que, segundo Foucault, cada época só pode com-
um Hegel trivializado e empobrecido. Mas, às supostas unilate- portar uma "episteme" - ou seja, não há integração do contínuo
ralidades desse Hegel desvirtuado (concepção linear e puramente e do descontínuo, mas bruscos e radicais "cortes" introduzindo
continua, ação humana reduzida à simples consciência etc.), Fou- descontinuidades absolutas -, vê-se ele obrigado a sofisticados
cault contrapõe teses igualmente unilaterais: a completa descon- malabarismos para equiparar a economia marxista à economia
tinuidade e a negação do laço essencial entre história e práxis. O clássica inglesa (evitando, naturalmente, falar no conceito de mais-
que ele combate, assim, é qualquer concepção dialética da história valia); para mostrar como "variações" de uma mesma "episteme"
- inclusive a autêntica concepção materialista de Marx - que veja o historicismo marxista (considerado como uma escatologia), 0
a historicidade como síntese de contínuo e descontínuo, como positivismo de Comte e a fenomenologia de Husserl; ou ainda,
produto da práxis humana objetiva (ou seja, submetida a leis que na tentativa de assegurar a unidade da "episteme" da época clás-
escapam à consciência) etc. Não é casual, portanto, que apareça sica, é obrigado a "esquecer" completamente a obra de Vico, o
como algo "um pouco enigmático" essa história que não conhece qual - em 1744, ou seja, em pleno coração de uma época que,

1 1
7 M. Foucault, L'archéologie du savoir, op. cit., p. 16. ' ' l-P. Sarcre, "Entrevista a L'Arc". ln: Estruturalismo: antologia de textos teóricos, op.
172
Jbid., p. 22. czt., p 126.
CARLOS NELSON COUTINHO • 165
164 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA OA RAZÃO

segundo Foucault, desconheceria completamente o historicismo primeiro momento". 176 Essa radical alteração na avaliação de Marx,
e o humanismo - lançou as bases da dialética histórica e da teoria todavia, não alterou nem uma linha da concepção geral de Fou-
humanista do homem como produto de sua própria ação. cault: sem Marx ou com Marx, o "método arqueológico" chega aos
Todavia, o mais nítido exemplo da "seriedade" intelectual mesmíssimos resultados agnósticos e anti-humanistas. O motivo
de Foucault pode ser visto na variação de suas atitudes diante da drástica alteração, portanto, deve ter - e estamos conscientes da
de Marx e do marxismo. Em Les mots et le choses, publicado em gravidade desta formulação - um caráter puramente demagógico:
1966, Foucault ironizava o marxismo, considerando-o pura e foucault julgou útil eliminar a única divergência essencial que o
simplesmente como uma filosofia anacrônica do século 19. Em separava de Althusser, o qual, já na época de Les mots et le choses,
suas próprias palavras: era considerado um aliado na luta contra o humanismo. Com isso,
No nível profundo do saber ocidental, o marxismo não introduziu ne- tem por objetivo facilitar a penetração de suas teorias em áreas que
nhum corte real; alojou-se sem dificuldades, como uma figura plena, sua anterior posição em face de Marx tornava refratárias.
tranquila, confortável e até mesmo satisfatória para um tempo, o seu, no Mas voltemos à questão da sucessão de "epistemes", ao modo
interior de uma disposição epistemológica que o acolheu favoravelmente pelo qual - em função desta sucessão - Foucault define os pro-
(...) e que, em troca, ele não tinha a menor intenção de abalar, nem sobre- blemas de nossa época. Analisando as sociedades ocidentais, ele
tudo 0
poder de alterar, sequer uma polegada, porque repousava inteira- descobre três "solos arqueológicos" e, a partir deles, julga recons-
mente sobre ela. O marxismo está no pensamento do século 19 como um peixe truir três "epistemes". A primeira, própria da época renascentista,
. d . 174
fundava o saber na semelhança entre palavras e coisas; afirmaria
n'água; isso significa que, em qua lquer outra parte, ele deixa e respirar.
Quanto às contradições entre a economia política clássica e a que a linguagem estava no mundo e que deveríamos interpretá-la
economia marxista, diz logo após Foucault: "Os debates entre as por meio dos signos que este mundo nos indica. A segunda, da
duas certamente provocaram algumas vagas e desenharam fissuras ~poca clássica (séculos 17 e 18), tem como objeto privilegiado a
', "175
representação, classificável por meio da elaboração de uma taxo-
na superfície, mas não passam d e tempestad es em copo d agua .
Apenas três anos depois, em 1969, no seu L'archéologie du nomia geral; a unidade do saber seria então assegurada pelo Dis-
savoir, surge - enigmaticamente ... - uma nova imagem de Marx. curso, pela linguagem, que representaria a representação. Quanto
Este não mais seria um "humanista" ou "historicista" do século à terceira, diz-nos Foucault:
19, mas precisamente o iniciador da nova "episteme" do século Essa configuração [da época clássica] muda inteiramente a partir do século

20, o responsável - juntamente com Nietzsche! - pela nova con- 19; a teoria da representação desaparece como fundamento geral de todas

cepção anti-humanista da história. Diz Foucault: "Essa mutação as ordens possíveis; por sua vez, desvanece-se a linguagem como quadro

epistemológica da história ainda não se concluiu; contudo, ela não espontâneo e classificação primeira das coisas, como etapa indispensável

data de hoje, pois pode-se indubitavelmente reportar a Marx o seu entre a representação e os seres; uma profunda historicidade penetra no
coração das coisas (... ). A linguagem perde o seu lugar privilegiado e

174 M. Foucault, Les mots et les choses, op. cit., p. 274. Os grifos são meus.
175
' '' M. Foucault, L'archéologie du savoir, op. cit., p. 21.
Ibid.
166 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA OA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 167

torna-se, por sua vez, uma figura da história coerente com a espessura do seguinte forma: a realidade social passou a ser considerada como
seu passado (... ) Mas, na medida em que as coisas passam a requerer o produto da práxis humana, como síntese objetiva de subjetividade
princípio de sua inteligibilidade tão somente do seu devir, abandonando e objetividade, capaz de ser apreendida por uma nova racionalidade.
0 espaço da representação, o homem entra pela primeira vez no campo do f: evidente que não se trata de uma súbita aparição do "homem"; o
saber ocidental. Estranhamente, o homem - cujo conhecimento passa, a tJUe ocorreu, na realidade, foi a elaboração - primeiro na economia
olhos ingênuos, pela mais velha pesquisa desde Sócrates - não é indubita- clássica e em Hegel, depois (num nível materialista consequente)
. 177
velmente nada mais do que uma certa rachad ura na or d em d as c01sas. cm Marx - de uma ontologia do ser social que via no trabalho, na
Decerto, a teoria da cultura subjacente a essa periodização é relação de causalidade e teleologia, a base da objetividade históri-
falsa, sobretudo no que toca ao suposto anti-historicismo da época ca. E essa elaboração - que eleva em nível superior tendências já
clássica ou iluminista. 178 Mas é bastante interessante a relação que latentes na época iluminista (Vico, Herder, Rousseau etc.) - não
Foucault estabelece, ao definir a "episteme" do século 19, entre his- é fruto de uma "demiurgia do saber", como diria Foucault, mas a
toricismo e humanismo, entre a inteligibilidade do devir (raciona- resposta teórica aos novos problemas sociais e humanos colocados
lidade dialética) e a descoberta da práxis humana como coração da pela Revolução Francesa e pelo surgimento do movimento operário.
objetividade social. Não é preciso muito esforço para perceber que, O "método arqueológico", ao contrário, é inteiramente idea-
nessa forma inicial da "episteme" do século 19, Foucault enxerga, lista. Foucault afirma, por exemplo, que o conceito de "produção"
apesar das deformações praticadas pelo "método arqueológico", a - central na economia clássica inglesa e no marxismo - nada tem a
sistematização hegeliana e posteriormente marxista da dialética, ver com o fato de ter surgido, na vida real, um sistema econômico,
do humanismo e do historicismo. o capitalista, que tem na produção o seu objetivo central; trata-se
Em suma, já que o Discurso se dissolveu, que a linguagem foi apenas do resultado de uma mudança de "episteme". Dentro do
relacionada à história, o homem surgiu como seu sucedâneo, ocu- mesmo princípio idealista, também o homem aparece-lhe como
pando uma "posição ambígua de objeto para um saber e de sujeito produto de uma "demiurgia do saber": ''Antes do fim do século
que conhece". 179 Se traduzirmos essa linguagem "arqueológica" à 18, o homem não existia. Tampouco a potência da vida, a fecundi-
linguagem da razão dialética, podemos descrever o processo da dade do trabalho ou a espessura histórica da linguagem. Trata-se
<le uma criatura recentíssima, que a demiurgia do saber fabricou
com suas mãos há menos de duzentos anos". 180 Nessa frase, não
m M. Foucault, Les mots et les choses, op. cit., p. 14-15.
17s Vejamos como Lukács define a relação da filosofia iluminista com a histó,ria: "O está apenas expresso um idealismo objetivo abstruso, que chega
anti-historicismo dos filósofos do iluminismo, a que tantas vezes se alude, e decer- a dotar metaforicamente de mãos as regras formais fetichizadas.
to uma lenda reacionária; mas é exato que, segundo a concepção desses filósofos,
a razão una e imutável se afirma através das vicissitudes da história. Hegel, ao Na metáfora utilizada, Foucault trai ainda a origem real de sua
contrário, mostra a evolução, a realização, a tomada de consciência e ~ afir~~ção ideologia deformadora, ao afirmar que o homem - sua consciência
da razão na história e através da história" (G. Lukács, "Concepção anstocrauca e
concepção democrática do mundo". ln: Vários autores, O espírito europ_eu. ~is.boa, e sua práxis - são o produto de uma manipulação.
Europa-América, 1962, p. 189-190). Esse progresso no interior do h1stonc1smo
escapa inteiramente a Foucault, que trabalha com descontinuidades absolutas.
179 M. Foucault, Les mots et les choses, op. cit., P· 323. ""' lbid., p. 284. Grifos meus.
168 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 169

A luta concreta dos homens contra a alienação, seu esforço transformação de processos históricos concretos em fetiches imutá-
para reapropriar-se praticamente de suas objetivações mentais e veis. A manipulação converte-se em algo irresisdvel, "ontológico".
reais, não tem lugar no pensamento de Foucault; em vez dela, Vejamos o modo pelo qual Foucault empresta aparência "cien-
ocorreria uma "incompatibilidade entre a existência do Discurso tífica" a essa sua glorificação do mundo manipulado. Descrevendo
(...) e a existência do homem". 181 Fruto da dispersão da linguagem, "arqueologicamente" a evolução do pensamento contemporâneo
torna-se claro que o homem não pode coexistir com a reunificação (ou seja, através de homogeneizações arbitrárias), chega à conclusão
dela; e Foucault julga descobrir em nosso tempo os sinais dessa de que as "ciências humanas" - psicologia, sociologia e análise
reunificação. das expressões mentais - fundam-se a partir da transferência de
Uma análise do modo de ser do homem - diz ele - só se tornou possí- métodos alh<:;ios, tomados de empréstimo às verdadeiras ciências,
vel quando se dissociou, transformou e inverteu a análise do discurso que seriam a biologia, a economia e a linguística. Considera ain-
representativo. Por isso, percebe-se que ameaça faz pairar sobre o ser do da que essas últimas não são verdadeiras ciências humanas, pois
homem, assim definido e posto [isto é, nos termos do humanismo e do não tratariam do homem; por sua vez, as "ciências humanas"
historicismo], a reaparição atual da linguagem no enigma de sua unidade propriamente ditas, embora dependam da "episteme", não seriam
e de seu ser. 182 verdadeiras ciências. Ambas as afirmações são dogmáticas, pois
Em termos histórico-concretos, certamente rejeitados por não se baseiam em nenhuma fundamentação teórica; explicam-se
Foucault enquanto "doxológicos", assim poderíamos traduzir o apenas a partir da tomada de posição anti-humanista de Foucault,
problema real aqui evocado: o gigantesco aumento dos meca- ou seja, de um fato "doxológico", de uma mera opinião. Mas, a
nismos de manipulação na sociedade contemporânea ameaça a partir de tais afirmações, chega ele a uma curiosa conclusão: "A
humanidade do homem, destrói sua racionalidade crítica e tende cultura ocidental constitui, sob o nome de homem, um ser que,
a convertê-lo numa "coisa" sem vida. Entre o homem e a mani- por um só e mesmo jogo de razões, deve ser domínio positivo do
pulação existe certamente uma radical incompatibilidade. Mas saber e não pode ser objeto de ciência". 183 Em suma, nem sequer
Foucault trabalha num nível "profundo" - na realidade, no nível no século 19 a "episteme" permita um conhecimento científico do
superficial de um positivismo de formas - e descreve o processo homem; em nenhuma época, portanto, o homem foi objeto de
de modo inteiramente diverso: o reaparecimento do "discurso" e uma conceituação racional. É precisamente essa impossibilidade
a consequente "morte do homem" são o resultado de um novo ar- de fundar uma ciência do homem que explica a transferência de
ranjo que se verifica na "episteme", sendo assim um processo fatal métodos anteriormente referida.
e irresisdvel, enigmático em suas origens e causas, sobre o qual os Essa transferência operar-se-ia, particularmente, através das
homens podem "pensar" mas não agir. A "miséria da razão", que categorias de função-norma (que passam da biologia à psicologia),
se expressa no positivismo de Foucault, conduz ao fatalismo, à de conflito-regra (da economia à sociologia) e de significação-
sistema (da linguística à análise das expressões mentais). Mas, no
181
Ibid., p. 349.
182
Ibid. IHI lbid., P• 378.
' 170 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 171

interior das pretensas "ciências humanas" (psicologia, sociologia, geral da episteme". 186 A etnologia e a psicanálise, assim, ocupam
análise das expressões mentais), opera-se com o passar dos tem- um lugar privilegiado em nosso saber contemporâneo, porque "não
pos um deslizamento "que faz recuar o primeiro termo de cada interrogam o próprio homem, tal como esse aparece nas ciências
um dos pares constituintes (função, conflito, significação) e faz humanas, mas a região que torna possível, em geral, um saber so-
surgir com maior intensidade a importância do segundo (norma, bre o homem". 187 Segundo ele, vale para ambas o que Lévi-Strauss
regra, sistema)". 184 Como Foucault não conhece nem o método diz ser a finalidade da etnologia: dissolver o homem. Em suma,
histórico-sistemático nem a teoria do reflexo, não pode explicar na psicanálise e na etnologia - que, embora ligadas à "episteme"
esse processo através da intensificação do fetichismo sobre a teo- moderna, já estão em seus limites - anuncia-se aquela reaparição
ria, que determina uma orientação do pensamento no sentido da linguagem, da unidade do discurso, que seria incompatível com
do agnosticismo e da formalização; tampouco pode denunciá-lo a existência do homem. Por outro lado, acima da psicanálise e da
como fato ideológico, como falsa consciência, como algo que etnologia, mas a elas ligada, surge uma linguística "que, tal como
empobrece e deforma a representação do real. Pode apenas, como a psicanálise e a etnologia, não fala mais do homem". 188
bom positivista, registrar essa evolução no sentido de um crescente Foucault não diz explicitamente, mas é óbvio que entende por
formalismo, emprestando-lhe um caráter enigmático e fatal. E psicanálise a "leitura" estruturalista de Freud realizada por Jacques
mais: ao fazer dessa suposta necessidade uma virtude, termina por Lacan; etnologia, para ele, é sinônimo da "antropologia estru-
defender o formalismo. Diz ele: tural" de Lévi-Strauss; e, finalmente, a linguística confunde-se
Seria falso ver nesse traço geral de nossa experiência que se pode chamar com a linguística estrutural de Saussure, Jakobson etc. O método
de "formalismo" o signo de um ressecamento, de uma rarefação do pen- arqueológico promove aqui reduções arbitrárias, inteiramente
samento, incapaz de apreender a plenitude dos conteúdos. 185 incompatíveis com o rigor científico a que se propõe verbalmen-
Contrapor-se ao formalismo, denunciá-lo como manifestação te; essas reduções da psicanálise, da etnologia e da linguística às
de uma "miséria da razão", não seria apenas um "anacronismo", suas versões estruturalistas não são mais que o produto de um
mas sim um quixotismo votado ao fracasso. Como esse forma- parti-pris subjetivista. Sem discutir aqui a justeza ou não da in-
lismo é a expressão teórica da manipulação, o positivismo de terpretação marxistizante de Freud, que dizer do fato de que, em
Foucault - como o do estruturalismo em geral - revela aqui o seu Wilhelm Reich ou em Herbert Marcuse, encontramo-nos diante
caráter objetivamente apologético. de uma interpretação humanista e historicista da psicanálise? E
Mas Foucault prossegue; com esse necessário deslizamento por que supor que Lévi-Strauss representa a etnologia em geral,
para o formalismo, aceito prazerosamente, manifesta-se que "o deixando-se inteiramente de lado uma orientação etnológica que -
peculiar das ciências humanas não é esse objeto privilegiado e como em Raoul e Laura Makarius, para citar apenas um exemplo
singularmente intrincado que é o homem (...), mas a disposição

IK(, Ibid., P· 367.


184
Ibid., p. 371. IS? fbid., p. 389.
185
Ibid., p. 386. IKH Ibid., P· 393.
172 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 173

francês - funda-se no historicismo dialético marxista? Com que o homem é agora um resíduo irracional, inexistente e incognos-
direito, finalmente, afastar-se do terreno da linguística todas as cível, algo "que vai desvanecer como um rosto de areia à beira do
concepções não estruturalistas, como as de Marcel Cohen, Adam mar". 191 A insuficiência de Lévi-Strauss, segundo Foucault, não
Schaff, Henri Lefebvre ou tantos outros? Além disso, é bastante residiria em seu formalismo radical, na "miséria da razão" que pra-
estranho que Foucault deixe de lado várias outras ciências sociais, tica e proclama, mas sim em sua recusa de levar esse formalismo
nas quais a corrente estruturalista não obteve um predomínio tão e essa "miséria" às últimas instâncias. No novo estruturalismo, o
maciço como naquelas que ele arbitrariamente escolheu. Em vez homem não é mais um "dado" insignificante, mas pura e simples-
de movimentos necessários e superobjetivos da "episteme'', estamos mente um "não-ser"; ou, como diriam os neopositivistas lógicos,
aqui diante de simples preferências pessoais de Foucault: trata-se um pseudoproblema metafísico. Eliminando o homem, Foucault
de manifestações de uma "doxologia" que oculta o seu rosto. julga eliminar definitivamente esse último e incômodo obstáculo
Disfarçando-a sob o véu da constatação de "positividades", à completa vitória da manipulação.
o que vemos é a dara aceitação do estruturalismo por parte de Anunciando o fim do homem e do humanismo, combatendo
Foucault. Mas, como vimos, essa aceitação é assinalada nele por a história concreta, fazendo da dialética uma "doxologia", Fou-
um "radicalismo" que leva a conclusões extremadas, latentes mas cault revela claramente a função social de sua abstrusa ideologia:
verbalmente contornadas ou atenuadas em Lévi-Strauss. Conse- a destruição das tradições do século 19 e, com elas, do legado
quente com o seu formalismo agnóstico, o estruturalismo deve cultural capaz de permitir ao homem contemporâneo uma justa
afirmar sem vacilações a "morte do homem". Diz Foucault: consciência da insensatez de sua vida no mundo manipulado de
O faro de que a questão da linguagem se coloque, na literatura 189 como hoje. Referindo-se à falsa alternativa entre irracionalismo e neopo-
na reflexão formal, prova indubitavelmente que o homem está em vias sitivismo, que domina o pensamento moderno, observou Lukács:
de desaparecer (...) Já que o homem constituiu-se quando a linguagem se Em todos os casos, esse "pensamento moderno" deixa livre de qualquer
dispersou, não vai ele ser dispersado agora que a linguagem se reunifica? responsabilidade e elimina simplesmente rodos os problemas que realmen-
E, se isso é verdade, não seria um erro - um erro profundo, pois escon- te importam: os problemas da contraditória conexão entre a personali-
deria o que agora é preciso pensar - interpretar a experiência atual como dade, a sociedade e a humanidade (... ). Compreende-se que, a partir de
uma aplicação das formas da linguagem à ordem do humano? Não seria tais posições, deva-se recusar o século 19, o século de Goethe e de Heine,
preciso, ao contrário, pensar de mais perto essa desaparição do homem( ...) de Hegel e de Marx, de Gottfried Keller e de Thomas Mann; o século
190
em sua correlação com nossa preocupação com a linguagem? cuja filosofia e cuja arte queriam ver em conexão unitária o indivíduo, a
Assim, não mais se trataria de fazer do homem um simples sociedade e a história, o destino da humanidade, e cujas formas poéticas
"elemento" ou "material" das estruturas, como o faz Lévi-Strauss; e métodos filosóficos buscavam esclarecer e conceituar essa conexão (... ).
Também é muito fácil de compreender o fato de que rodos os beneficiá-
189
Parece claro que Foucault pensa aqui na nova vanguarda, teorizada também por rios da restauração e da manipulação - tanto os conscientes quanto os
Banhes, que, como vimos, consiste num neonaturalismo empenhado em não
"significar nada".
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190
M. Foucault, Les mots et les choses, op. cit., p. 397. lbid., p. 398.
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176 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA OA RAZAO CARLOS NELSON COUTINHO • 177

quando pretende separar-se do estruturalismo. Mas as intenções operário - bem como na ideologia marxista que, há cerca de um
não fazem a realidade: ao tentar distinguir o autêntico marxismo século, tornou-se a sua expressão consciente - certos fenômenos
de suas inúmeras contrafações modernas, Althusser termina por análogos àquilo que, em outro contexto, designamos como sen-
esvaziá-lo inteiramente, por colocar no lugar da riqueza do pen- timentos vitais de "angústia" ou "segurança". Se não é iluminado
samento de Marx uma nova versão do estruturalismo. por uma justa consciência teórica - que, como diria Lenin, vem
sempre "de fora", ou seja, do exterior da práxis espontânea - o
1. ALTHUSSER E O MARXISMO CONTEMPORÂNEO movimento operário assimila espontaneamente constelações
Antes de examinar a natureza estruturalista dos conceitos fun- ideológicas marcadas, respectivamente, pelo irracionalismo ou
damentais de Althusser, acreditamos necessário situar sua posição pelo positivis!Jlo.
no interior do marxismo, ou, mais precisamente, definir - em suas Como não podemos aqui nos alongar sobre essa questão,
linhas mais gerais - as razões históricas e teóricas que tornaram limitar-nos-emos a citar dois exemplos ilustrativos opostos e bas-
possível a irrupção do estruturalismo no próprio seio da pesquisa tante típicos. No final do século 19, no período assinalado por
marxista. Quem conhece a história do pensamento marxista sabe uma relativa estabilização capitalista, vemos surgir a primeira
que não é essa a primeira vez que, sob o pretexto de uma "redes- tentativa explícita de "revisão" do marxismo, aquela ligada so-
coberta" do verdadeiro Marx, pratica-se uma destruição objetiva bretudo ao nome de Eduard Bernstein; mas os conteúdos dessa
da essência da herança marxista e sua substituição - consciente ou "revisão" atuam também, inconscientemente, sobre alguns adver-
inconsciente - por uma filosofia burguesa da moda. sários "ortodoxos" de Bernstein, como Karl Kautsky ou Gueorgui
Ao contrário do que supõe a sociologia vulgar, as classes so- Plekhanov. Bernstein - sob o pretexto explícito de eliminar o
ciais não são universos fechados: apesar dos seus antagonismos, que em Marx havia de Hegel - substituiu a dialética histórico-
elas vivem e experimentam problemas análogos, postos pela materialista por uma versão aguada do positivismo neokantiano,
sociedade como um todo. Assim, também a classe operária - ou seja, por uma expressão ideológica da "segurança" burguesa.
tanto em sua vida cotidiana quanto no nível de sua organização Kautsky e Plekhanov, por sua vez, embora acreditando-se rigoro-
política - enfrenta os problemas colocados pela alternância cí- samente "ortodoxos", contrapunham ao revisionismo declarado de
clica, no capitalismo, de períodos "explosivos" e de períodos de Bernstein uma sociologia vulgar de origem igualmente positivista.
relativa estabilidade. Por outro lado, a consciência operária - se Assim, ao reformismo espontaneísta e oportunista do movimento
se mantém no nível da espontaneidade - reproduz os conteúdos operário de então, determinado em última instância pela capitu-
imediatistas e fetichistas que são próprios da ideologia burguesa, lação à aparente estabilidade e "segurança" capitalistas da época,
das "soluções" burguesas aos problemas colocados em cada pe- corresponde a substituição do autêntico marxismo por ideologias
ríodo concreto. 194 Desse modo, vemos ressurgir no movimento substancialmente positivistas e agnósticas.
Vejamos agora um exemplo do "outro lado" da questão. No
período da Primeira Guerra Mundial, quando ruiu inteiramente
19 4 V. 1. Lenin, Que hacer?. ln: !d., Obras escogidas. Moscou, Progreso, 1966, v. l, p.
140 ss. o mito da "segurança" e abriu-se uma época revolucionária, o
178 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÁO CARLOS NELSON COUTINHO • 179

"esquerdismo" espontaneísta que se seguiu deu lugar - no plano rn 195 aos períodos de estabilidade capitalista. Podemos observar,
ideológico - a um ativismo subjetivista de traços marcadamente ainda, que essas formas declaradas ou inconscientes de "revisio-
irracionalistas. Assim, vários ideólogos socialistas - em nome agora 11 ismo" apresentam-se frequentemente como uma "interpretação"

da eliminação do pretenso materialismo vulgar de Engels ou mes- de Marx. Numa ou noutra época, de crise ou de estabilidade,
mo de Lenin - orientaram-se para um historicismo subjetivista, destacam-se do pensamento global de Marx elementos isolados,
bastante influenciado pela "filosofia da vida" e, posteriormente, que possam servir a uma ou outra interpretação; subordinados
pelo existencialismo. Em lugar da dialética objetiva e materialista ;, ideologia burguesa em questão, subjetivista ou positivista, tais
de Marx, surgia uma "dialética" paraidealista, que superestimava elementos fetichizados passam a se apresentar como o "autêntico"
0 papel do "projeto subjetivo" em detrimento da legalidade obje- marxismo. É.bastante conhecida, por exemplo, a equivocada po-
tiva da história. Apesar de inúmeras variedades internas, ligam-se lêmica que contrapõe o jovem Marx ao Marx da maturidade, o
a essa corrente pensadores como Karl Korsch, o jovem Lukács, "humanista" ao "cientista'', optando-se por um dos dois; as tendên-
Ernst Bloch e - de um modo bastante mediatizado - Antonio cias "ativistas" fetichizam o jovem, enquanto as positivistas retêm
Gramsci. Lenin foi o único pensador da época que, superando o "cientista" da maturidade etc. (Naturalmente, pode ocorrer que,
simultaneamente o positivismo e o "ativismo" subjetivista, soube mesmo em épocas nas quais predomine a estabilidade, certos ideó-
encontrar a correta mediação dialética entre o papel da práxis logos continuem subjetivamente ligados às soluções ativistas de
e os "direitos" da objetividade; uma justa consciência política uma época "explosiva" já superada, ou vice-versa; tais casos, muito
permitiu-lhe, assim, reencontrar e desenvolver a autêntica filosofia frequentes, não anulam a justeza da lei genética que estabelecemos,
marxista. A extraordinária singularidade teórica de Lenin pode ser cuja validade é histórico-universal e não mecânico-singular.)
vista no fato de que até mesmo pensadores que compreenderam Na época estalinista, essas divergências no interior do marxis-
a importância de suas posições políticas não fizeram o mesmo mo - embora continuassem a se manifestar - foram reprimidas ou
com relação à justeza de suas colocações filosóficas. Gramsci, por hipocritamente ocultadas por uma ideologia homogeneizadora e
exemplo, chegou a desenvolver com grande brilhantismo a teoria burocrático-manipulatória. Mas a duplicidade, inclusive, manifesta-
política de Lenin; em filosofia, contudo, permaneceu ligado a va-se no interior do próprio estalinismo; reagindo aos eventos de um
um historicismo subjetivista, "ativista'', cujas raízes remontam a modo quase sempre taticista ou oportunista, o estalinismo oscilava
Benedetto Croce. entre um voluntarismo subjetivista e um positivismo mecanicista.
Embora não devamos procurar correspondências mecânicas, 1)o ponto de vista histórico-universal, contudo, o estalinismo -
é possível estabelecer - a partir desses exemplos - uma tendência criando e fomentando uma concepção burocrática do socialismo -
geral: quando não é iluminado por uma justa consciência teórica, incentivou fortemente a conversão do marxismo numa variante das
quando capitula espontaneamente à realidade imediata, o movi-
mento de inspiração marxista tende a assimilar ideologias burgue- Agnosticismo que pode ser visto, por exemplo, na recusa de Bernstein em enfrentar
sas, ou, mais precisamente, a responder de modo irracionalista ou teoricamente o problema dos "objetivos finais" do socialismo; ou na afirmativa de
Althusser de que as questões do humanismo marxista são um "falso problema"
"ativista" aos períodos de crise e de modo positivista e agnósti- teórico.
' CARLOS NELSON COUTINHO • 181
180 • Q ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZAD

"ideologias da segurançà', ou seja, numa sociologia vulgar positivista li m reflexo verdadeiro (aproximativamente verdadeiro) das leis
de tipo manipulatório. mais gerais da realidade natural e social, ou é apenas uma "ideo-
Com a denúncia do "culto à personalidade'', com a quebra do logia'', um humus cultural do qual diferentes filosofias podem se
monolitismo estalinista, aquela duplicidade pôde novamente surgir alimentar, como foi o caso do iluminismo no século 18? A única
à luz do dia. Assim, sob o pretexto de combater o estalinismo, tan- resposta integralmente verdadeira, adequada tanto à letra dos tex-
to em suas formas "clássicas" quanto nas versões "modernizadas", tos de Marx quanto às exigências culturais de hoje, é a seguinte:
inúmeros marxistas sinceros - inclusive politicamente ortodoxos rrata-se de uma filosofia sistemática, de uma ontologia da natureza
- terminaram por combater a própria herança de Marx, colocando e do ser social, mas a partir da qual se eleva uma concepção do
em seu lugar as mais triviais e passageiras "modas" do pensamento mundo, uma '~ideologia'', uma nova ética humanista e materialista.
da decadência. Ao lado de um estalinismo levemente melhorado Ora, essa concepção do mundo - as exigências éticas colocadas
(mas ainda essencialmente positivista), apresentam-se agora es- pelo marxismo, pelo socialismo em geral - podem influenciar pen-
tranhas simbioses de marxismo com cibernética, com Teilhard sadores, artistas ou homens de ação que não aceitam, consciente ou
de Chardin, com Freud, com Heidegger etc. Conforme o seu inconscientemente, os postulados essenciais da filosofia de Marx,
espontaneísmo seja "de direita" ou "de esquerda", esses marxistas ou seja, do materialismo dialético. Mas também pode ocorrer, ao
"modernistas" assimilam ideologias ligadas, respectivamente, à contrário, que determinados princípios científicos do marxismo
miséria ou à destruição da Razão. Diante desse quadro confuso, influenciem pensadores ou políticos inteiramente alheios às suas
Lukács observou: perspectivas éticas humanistas. Como exemplos do primeiro caso,
Vejo duas tendências errôneas e somente uma terceira (tertium datur) pode poderíamos citar filósofos como Sartre, Ernst Bloch ou Marcuse;
indicar o caminho justo. Por um lado, existem os que pretendem manter do segundo, alguns pensadores soviéticos que rejeitam a herança
o marxismo na forma que esse adquiriu sob Stalin; com isso, perdem humanista de Marx e consideram o marxismo como uma simples
qualquer capacidade, ou pelo menos em grande parte, de compreender récnica de manipulação social ou econômica. (Como estamos
as exigências de hoje (...). Por outro, determinados intelectuais - respeitá- descrevendo tendências, podemos nos contentar com esses casos
veis e convictos - acreditam que o marxismo deva se renovar mediante a l'squemáticos; na prática, os problemas da assimilação parcial do
aceitação das concepções ideológicas ocidentais. Eles dizem que o marxis- marxismo, como veremos a seguir, são bem mais complexos.)
mo, para se manter numa forma correspondente à epoca moderna, deve Assim, como teoria e como prática, independentemente do fato
absorver a lógica matemática, a semântica, o estruturalismo e deus sabe de continuar a ser uma filosofia sistemática, o marxismo produziu
o que mais. Considero isso um absurdo.
196 na cultura do século 20 um caldo de cultura similar ao produzido
Diante dessa atual variedade de "marxismos", poderíamos co- pelo iluminismo em seu tempo. Pode-se hoje falar, portanto, de
locar a seguinte questão: o marxismo é uma filosofia sistemática, 11rn "marxismo" em sentido amplo - onde se situam autores como
,'-;artre, Bloch ou Marcuse - e de um marxismo em sentido estrito
(que não deve ser confundido com estreito). Essa constatação, im-
196 G. Lukács, "Tutti i dogmatici sono disfattisti". ln: Rinascita. Roma, nº 13, 29
1lOSta pela vida, não nos deve levar porém a nenhum relativismo,
marzo 1968, p. 10.
,,
182 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZAO
CARLOS NELSON COUTINHO • 183

embora nos deva prevenir contra o sectarismo. As várias interpre- da ontologia e da gnosiologia). No primeiro caso, o marxismo
tações "amplas" ou "estreitas" do marxismo (ou seja, que assimilam é reduzido a uma sociologia vulgar e mecanicista, de inspiração
elementos da ideologia burguesa) têm certamente causas histórico- neokantiana ou comteana; no segundo, a um historicismo subjeti-
sociais, como vimos; mas essas causas explicam o fenômeno, sem vista, influenciado pelo irracionalismo "vitalista" ou existencialista.
absolutamente justificá-lo. A luta contra a estreiteza estalinista não Reduções desse tipo, naturalmente, continuam a se manifestar
pode desembocar nesse marxismo "sem fronteiras", mas deve se ainda hoje.
encaminhar - se quer ser capaz de enfrentar os problemas con- Todavia, ao lado desse puro e simples abandono das questões
temporâneos num nível histórico-universal e não apenas no plano do materialismo dialético, a insuficiente assimilação do marxismo
imediato da tática política - no sentido de uma reconquista da pode ainda dar lugar - sempre em relação com as causas históricas
integralidade do autêntico método marxista. apontadas - a duas outras problemáticas. Vejamos, inicialmente, 0
A possibilidade dessas assimilações parciais do marxismo, caso do estalinismo. Como se pretendiam continuadores de Lenin,
estreitas ou "amplas'', possui - além das causas históricas antes os estalinistas não puderam afastar inteiramente os problemas co-
assinaladas - também causas sistemáticas e teóricas determinadas. locados pelo materialismo dialético; mas introduziram entre ele e 0
Com lucidez, Lukács indica a principal delas: materialismo histórico um abismo intransponível. O materialismo
Antes de Lenin, o marxismo - mesmo em seus melhores representantes dialético - seu sistema de categorias ontológicas - foi identificado
teóricos, como Plekhanov ou Mehring - limitou-se quase exclusivamente com a dialética da natureza, ao passo que o materialismo históri-
aos problemas do materialismo histórico. Tão somente a partir de Lenin co degenerava numa sociologia vulgar que tudo reduzia à gênese
é que o materialismo dialético voltou a se colocar no foco de interesse. 197 imediatamente política dos fatos analisados; os problemas especí-
Essa incapacidade de integrar os dois momentos do método ficos de uma ontologia do ser social - esclarecimento filosófico da
marxista, apesar da "revolução" leniniana, prosseguiu até hoje. práxis, relação entre causalidade e teleologia etc. - desapareceram
Ora, é precisamente nessa integração do materialismo dialético do horizonte teórico do estalinismo. E, em consequência dessa
com o materialismo histórico - ou seja, no tratamento conjunto falsa identificação entre materialismo dialético e dialética da na-
dos problemas ontológicos, gnosiológicos e histórico-sociais - que tureza, a teoria materialista do conhecimento involuiu para formas
reside a essência do método histórico-sistemático do marxismo. esquemáticas e mecanicistas, sem que se esclarecesse corretamente
Seu abandono, consequentemente, provoca um empobrecimento a ligação entre conhecimento e práxis.
ou uma unilateralização desse método. É interessante constatar O segundo caso, verificado sobretudo entre marxistas oci-
que, nos dois casos acima citados - tanto na versão positivista dentais, é mais sofisticado: aceita-se a necessidade de tratar dos
quanto na "ativista" do marxismo-, verifica-se uma concentração problemas ontológicos ou epistemológicos colocados pelo mate-
quase exclusiva nos problemas do materialismo histórico, com o rialismo dialético, reconhecendo-se a impossibilidade de reduzir
abandono das questões do materialismo dialético (as questões o marxismo a uma simples teoria da história; mas substitui-se
a correta resposta marxista a estes problemas por uma filosofia
197
G. Lukács, Estética, op. cit., vol. 1, p. 15. hurguesa então em voga. Tomemos dois exemplos opostos, mas
184 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA OA RAZÀO CARLOS NELSON COUTINHO • 185

análogos. Embora recuse claramente o materialismo dialético e minação (econômica, política etc.), com inteiro abandono dos seus
aceite apenas o materialismo histórico, o último Sartre crê que a aspectos humanistas (democratização, construção do homem novo
filosofia deva enfrentar também os problemas ontológicos; mas, etc.). Com isso, converte-se numa tendência restauradora, que
em vez da ontologia marxista, surge no último Sartre uma es- pretende - sob o véu de um "modernismo" científico - recolocar
tranha simbiose do materialismo histórico com uma "ontologia em circulação determinados conteúdos próprios do estalinismo,
existencial" com fortes traços heideggerianos. 198 Althusser, por de uma concepção tecnicista e manipulatória do socialismo. Não
sua vez, partindo da justa concepção de que o marxismo não é me parece assim casual que as posições de Althusser venham sendo
uma simples antropologia historicista, pretende enfrentar tam- paulatinamente rejeitadas pelo "esquerdismo" contemporâneo.
bém as questões do materialismo dialético; mas, por um lado, Num primeire momento, a profunda "novidade" aparente dessas
reduz tais questões ao plano puramente epistemológico (com posições pôde influenciar setores da juventude inconformados
desprezo do ontológico), e, por outro, substitui a autêntica episte- com o oportunismo prático e teórico do marxismo "oficial"; mas
mologia materialista por uma versão up to date da epistemologia também é verdade que o romantismo esquerdista, desde o primeiro
formalista do neopositivismo. momento, ligou-se muito mais ao "ativismo" de Marcuse do que
Antes de entrarmos na análise das concepções teóricas de Al- ao "rigor científico" de Althusser. Passada a primeira impressão
thusser, o que faremos no item seguinte deste capítulo, podemos de "novidade", o marxismo estruturalizado revelou-se claramente
colocar um problema preliminar: como é possível caracterizar, no uma tendência conservadora; até mesmo alguns discípulos "esquer-
plano histórico-social, as posições de Althusser? Parece-nos não ha- distas" de Althusser - como Roger Establet e Jacques Ranciere,
ver dúvidas de que o seu marxismo estruturalizado é uma resposta colaboradores da primeira edição de Lire le capital - afastaram-se
espontaneísta a um período de estabilização e de "segurança" capi- do mestre denunciando-lhe as posições políticas de direita. Diante
talistas; corresponde a uma tendência burocrática do movimento da invasão da Tchecoslováquia, dos rumorosos debates que culmi-
operário e, por isso, assimila um tipo de racionalidade que, como naram na expulsão de Garaudy do PCF, Althusser manteve um
vimos, é própria da práxis burocrática e manipulatória. Assim, no prudente silêncio: um silêncio conformista e conservador. As notí-
essencial, não seria equivocado afirmar que Althusser representa cias de sua crescente penetração na União Soviética, sua conversão
- no marxismo contemporâneo - uma posição conservadora ou no único filósofo marxista francês "oficial", são sintomas de que o
de direita. Recusando o historicismo, o papel criador da práxis, caráter direitista ou conservador do pensamento de Althusser - já
0 humanismo como concepção do mundo, o althusserianismo evidente no plano especificamente teórico - poderá rapidamente
contribui - consciente ou inconscientemente - para reforçar uma se converter também numa realidade prática e política.
concepção burocrática e conservadora do socialismo. Na versão de Mas cabem desde já, para evitar qualquer mal-entendido, duas
Althusser, o marxismo tende a converter-se numa técnica de do- ressalvas. Em primeiro lugar, não afirmamos absolutamente que
o caráter conservador (ou mesmo restaurador) das concepções de
Althusser resulte de uma intenção consciente; acreditamos que
19s Cf. C. N. Coutinho, "A trajetória de Sartre". ln: !d., Literatura e Humanismo, op.
cit., p. 67-84. Althusser esteja sinceramente convencido de que sua interpretação
186 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 187

representa uma correta tentativa de depurar Marx da "ganga" an- mente uma tendência geral, tornou-se o problema somente de uns poucos,

tropologista e retórica em que os vários Garaudys o envolveram. mas que, embora isolados durante as décadas do dogmatismo, fazem

Mas, objetivamente, ela capitula ao espontaneísmo burocrático e parte de um grande movimento que tentam desenvolver e salvaguardar.

imobilista de um vasto setor do movimento socialista contemporâ- Entre esses raros indivíduos, foi Lukács quem, graças a seus talentos e a

neo e termina por reapresentar - com novas formas "modernistas" seu excepcional caráter, revelou-se capaz de transmitir, renovando inces-

- categorias típicas do agnosticismo burocrático do estalinismo. Em santemente seu pensamento, a bandeira desse renascimento às gerações

segundo lugar, embora possamos classificá-lo no plano universal subsequentes (... ). Permanecendo um fiel e inquebrantável guardião do

como uma posição de direita, o dogmatismo burocrático - graças renascimento do marxismo, Lukács tornou-se capaz de reconquistar o

ao seu oportunismo constitutivo, ao seu taticismo espontaneís- universo dos .conceitos marxistas, empobrecidos e colocados em suspeição

ta - apresenta oscilações permanentes entre o aventureirismo e pelo dogmatismo. 199

o capitulacionismo, entre um "esquerdismo" irresponsável e um Esse universo de conceitos organiza-se em torno da questão
reformismo conservador. (Essas oscilações podem ser observadas da ontologia. É interessante observar que tanto Sartre quanto
ao longo de toda a história do estalinismo.) Em vista disso, não se Althusser - tão diversos sob outros aspectos - apoiam suas "in-
exclui a possibilidade de que Althusser ou seus seguidores assumam, terpretações" do marxismo numa rejeição da natureza ontológica
diante de problemas ou épocas concretas, uma posição "esquerdista'' dessa filosofia. Vejamos como Lukács, num texto autocrítico de
e aventureira. Mas isso não anula o fato de que, no plano geral, a 1967, coloca esse problema:
"miséria da razão" praticada por Althusser e seus discípulos repre- Antes de mais nada, chama a atenção o fato de que História e consciência de

senta objetivamente um apoio ideológico ao dogmatismo. Por um classe - naturalmente em discordância com as intenções subjetivas do autor

lado, Althusser continua o positivismo da época da Segunda Inter- - represente objetivamente uma tendência no interior da história do mar-

nacional, capitulando à estabilidade e "segurança" do capitalismo xismo, a qual, mesmo revelando diferenças notáveis na fundamentação

atual; por outro, conserva os conteúdos burocrático-manipulatórios filosófica e nas consequências políticas, dirige-se contra os fundamentos

do socialismo em sua versão estalinista ou neoestalinista. da ontologia do marxismo. Penso aqui naquela tendência a interpretar o

Para que se tornem claros os limites e as unilateralidades dessas marxismo exclusivamente como teoria da sociedade, como filosofia do

assimilações parciais do marxismo (não só a de Althusser, mas social, ignorando-se ou recusando-se a posição que contém a respeito da

também as "esquerdistas" e subjetivistas), vamos expor - ainda natureza (... ). Em nossos dias, essa tendência se encontra - provavelmente

que brevemente - as linhas gerais das posições contidas na obra não sem certa influência de História e e consciência de classe - sobretudo no

da maturidade de Gyorgy Lukács. Essa obra é a máxima expres- existencialismo francês e em seu âmbito espiritual (...). Torna-se claro, por

são contemporânea de um autêntico renascimento do marxismo. um lado, que precisamente a concepção materialista da natureza implica

Agnes Heller, uma discípula de Lukács, caracterizou muito bem uma separação realmente radical entre as concepções do mundo burguesa

o papel do mestre húngaro na história do marxismo:


A partir dos anos [19]30, a obra de Lukács é, em seu conjunto, a expressão 1
'''' A. Heller, "L'esthétique de Gyürgy Lukács". ln: L'homme et la société. nº 9, Paris,
de um renascimento do marxismo, de um renascimento que, sendo inicial- 1968, p. 231.
188 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZAD CARLOS NELSON COUTINHO • 189

e socialista; evitar esse núcleo age sobre tais contraposições no sentido de social, particularmente as de trabalho, práxis, ideologia, reprodu-
atenuá-las, impedindo, por exemplo, uma decisiva elaboração do conceito ção social, causalidade e teleologia etc. Para Lukács, tão somente
marxista de práxis. Por outro lado, essa aparente superioridade das catego- a partir dessas categorias ontológicas é que se pode estabelecer os
rias sociais repercute desfavoravelmente sobre as suas autênticas funções problemas da epistemologia; o próprio ato teleológico do conheci-
cognoscitivas; também seu caráter peculiar especificamente marxista é mento, por exemplo, é definido a partir e em função da dialética
atenuado (...).Analisando os fenômenos econômicos, História e consciência do trabalho. A epistemologia materialista - a teoria do reflexo -
de classe não busca o ponto de partida no trabalho, mas tão somente nas aparece como uma consequência da afirmação da primazia das
estruturas mais complexas da economia mercantil desenvolvida. Com isso, determinações ontológicas sobre as demais formas de manifestação
torna-se desde o início sem perspectivas o enfoque filosófico de problemas do ser. Num t~xto em que antecipa certos resultados de sua ainda
decisivos, como o da relação entre teoria e práxis, entre sujeito e objeto. 200 inédita Ontologia do ser social, observa Lukács:
No mesmo sentido, quando Leo Kofler - numa recente Os reais problemas da vida não são resolvidos no plano da teoria do co-
entrevista - perguntou a Lukács se ele, falando em "ontologia'', nhecimento, nem no da lógica (...). Sou muito cético a respeito da impor-
não pretendia dizer realmente "antropologia'', o mestre húngaro tância das formulações da teoria do conhecimento. Temo que as questões
respondeu categoricamente: "Não, porque penso que certas cons- da teoria do conhecimento, se não são consideradas como momento das
telações ontológicas existem com inteira independência do fato de formulações ontológicas, deformem o problema e coloquem uniformidade
que exista o homem". 201 onde há diferença e diferença onde há uniformidade. 202
Portanto, o que Lukács rejeita explicitamente é a transforma- Por outro lado, deve-se recordar que tão somente a partir de
ção do marxismo numa simples antropologia (que, desligada da uma ontologia materialista (e não de uma disciplina científica ou
relação com a natureza, tende necessariamente ao subjetivismo), filosófica particular) é possível desenvolver em termos objetivos as
ou seja, a redução dele ao materialismo histórico abstratamente questões de uma concepção do mundo e de uma ética marxistas e
considerado. Sua intenção é redescobrir no marxismo, particular- humanistas. (Não é casual, pois, que a Ontologia lukacsiana fosse
mente através do estudo das relações entre economia e dialética, originariamente concebida como uma introdução à sua Ética.)
as categorias constitutivas de uma ontologia do ser social. Para isso, Vemos assim que o marxismo "estrito" de Lukács está longe de se
torna-se necessária uma permanente integração dos métodos e limitar a uma ciência filosófica particular: a ontologia, como ponto
problemas do materialismo dialético e do materialismo histórico. de Arquimedes, permite-lhe explicitar o marxismo em direção a
Assim, devemos sublinhar enfaticamente que, às limitações de um todos os problemas da vida e do pensamento humanos.
antropologismo, Lukács não opõe a unilateralidade análoga de Esse rápido esboço da concepção central de Lukács é suficien-
uma epistemologia pura, mas sim a constituição de uma ontologia, te para contrastar sua problemática não apenas com as tentativas
o estudo genético-ontológico das categorias determinantes do de antropologizar o pensamento de Marx, mas sobretudo com a
tentativa althusseriana de reduzi-lo a uma epistemologia formalis-
200
G. Lukács, Historia y conscíencia de clase, op. cit., pp. xvii-xviii.
112
201
Conversando com Lukács, op. cit., p. 75. ' Ibid., p. 22 e 73.
190 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA OA RAZÁO
CARLOS NELSON COUTINHO • 191

ta (e, ademais, tomada de empréstimo ao estruturalismo). E essa rialismo dialético. A diferença entre ambos é uma diferença apenas
contraposição é ainda mais importante porque também Althusser, de ângulo; a partir desta unidade essencial, a análise concreta - a
de modo explícito e radical, parte de uma rejeição das tentativas depender dos objetivos visados - pode concentrar-se em maior ou
antropologizantes, na crítica das quais está o melhor de sua obra; ele menor proporção nas concatenações históricas ou nas sistemáticas.
constata a necessidade de evitar a redução do marxismo ao materia- Mas, assim como nenhuma análise histórica pode deixar de lado
lismo histórico ou a confusão entre esse e o materialismo dialético. o fundo sistemático, tampouco uma análise sistemática pode pres-
(Althusser acredita que essa confusão esteja na base das formulações cindir inteiramente do quadro histórico. Estamos diante, portanto,
filosóficas de Gramsci e, nesse ponto concreto, não podemos deixar não de duas disciplinas distintas, mas sim de dois momentos ou
de concordar parcialmente com ele.) Althusser é bastante explícito: aspectos de um mesmo método, de uma mesma racionalidade, que
A doutrina científica marxista apresenta a seguinte particularidade: ser é simultaneamente histórica e sistemática, ou genética e ontológica.
constituída por duas disciplinas científicas, unidas uma à outra por razões de É nessa integração do materialismo histórico com o materialismo
princípio, mas efetivamente distintas uma da outra, já que seus objetos são dialético que Lenin pensava quando, ao comentar Hegel afirma que
distintos: o materialismo histórico e o materialismo dialético (...). Ao fundar são "uma só e mesma coisa'' a dialética (a objetividade contraditória
essa ciência da história [materialismo histórico], Marx fundou no mesmo do real), a lógica (as categorias que a apreendem) e a teoria do conhe-
ato outra disciplina científica: o materialismo dialético ou filosofia marxista. 203 cimento (a análise da formação dessas categorias). 204 Essa integração,
O que desde já nos separa de Althusser, nessa formulação, não por outro lado, permite estabelecer uma correta hierarquia entre a
é sua concepção do caráter científico da filosofia marxista; mas, ao ontologia e a epistemologia, ao subordinar os problemas da segunda
contrário, sua tentativa de distinguir radicalmente os dois momentos às categorias objetivas da primeira.
do método marxista, transformando-os não apenas em disciplinas A radical distinção praticada por Althusser rompe com essa
diversas, mas inclusive dotadas de objeto próprio. (Parece-nos equi- integração e, consequentemente, inverte a ordem hierárquica
vocada, também, como veremos em seguida, a própria concepção entre a ontologia (a análise do ser) e a epistemologia (a análise
althusseriana da natureza da filosofia marxista ou materialismo do conhecimento). Já nessa inversão revela-se um traço idealista,
dialético.) A crítica de Lukács ao antropologismo, como vimos, uma posição antimaterialista. Althusser, desse modo, orienta-se
orienta-se num sentido inteiramente diverso; decorre de sua con- paradoxalmente num sentido similar ao do antropologismo que
vicção de que Marx nos legou, notadamente em suas análises eco- tanto combate: no sentido de esvaziar o marxismo de sua dimen-
nômicas, uma ontologia do ser social. Consequentemente, Lukács são ontológica. Para ele, o materialismo dialético reduz-se à pura
parte de uma unidade do objeto da filosofia marxista, unidade da teoria do conhecimento, à epistemologia:
qual decorrerá necessariamente - no plano epistemológico - uma O objeto do materialismo dialético é constituído pelo que Engels chama
integração do método do materialismo histórico com o do mate- "a história do pensamento", ou pelo que Lenin chama a história "da
passagem da ignorância ao conhecimento'', ou por aquilo que podemos
203
L. Althusser, "Marxismo, ciência e ideologia". ln: Marxismo segundo Althusser. São
Paulo, Sinal, 1967, p. 13 e 15. 'º 4 V. I. Lenin, Cahiers philosophiques, op. cit., p. 201.
,,
192 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 193

chamar de história da produção dos conhecimentos, ou ainda a diferença de conhecimentos. A atividade mediante a qual se descobre ou determina
histórica entre ciência e ideologia, ou a diferença específica da cientifici- o sentido dos enunciados: isso é a filosofia. 208
dade, problemas todos que abrangem grosso modo o domínio chamado na Em ambos os casos, a conversão da filosofia em uma "prática"
filosofia clássica de teoria do conhecimento (...).A "teoria do conhecimento", ou em uma "atividade" tem o mesmo objetivo: afastar do terreno
entendida dessa maneira, constitui o coração da filosofia marxista. 205 da razão as afirmações acerca da realidade, ou seja, negar o caráter
Em outro local, adverte ainda que "a questão epistemológica ontológico da investigação filosófica.
(...) é o próprio objeto da filosofia marxista". 206 Mas a similaridade entre Althusser e a epistemologia neopo-
Todavia, ainda mais grave do que essa redução parece-nos ser sitivista não para aqui. Já nos referimos ao fato de que, para o
a definição althusseriana da natureza dessa epistemologia. Antes neopositivism_o, a filosofia consiste em estabelecer tautologias, a
de mais nada, Althusser - como teremos ainda oportunidade de partir das quais seja possível determinar a "validade" ou não de
examinar detalhadamente - rejeita a teoria materialista dialética uma proposição científica singular. Embora com uma termino-
do reflexo, base da autêntica epistemologia marxista. Em seu lu- logia marxista, o conteúdo das posições althusserianas é rigoro-
gar, aparece uma concepção epistemológica de fundo claramente samente similar. Ao afirmar que a filosofia não tem objeto, que é
neopositivista. Deixemos provisoriamente de lado o fato de que "um caminho que não conduz a nenhuma parte'', 209 embora seu
Althusser apresente sua concepção neopositivista a partir de uma percurso seja algo necessário, Althusser recoloca em circulação a
"leitura" de Lenin; vejamos, ao contrário, a sua definição de filo- tese da tautologia. Esse "caminho para o nada", essa tautologia,
sofia. Como os neopositivistas em seu tempo, Althusser acredita tem uma função:
que a filosofia não tem objeto (ou seja, não diz nada sobre o real, Essa função consiste em "traçar uma linha de demarcação'', no interior

não é uma ontologia), consistindo apenas em uma "prática". do domínio teórico, entre ideias declaradas verdadeiras e ideias declaradas
A filosofia - diz ele - não tem objeto, no sentido em que a ciência tem um falsas, entre o científico e o ideológico (...). É a filosofia materialista que
objeto (... ). O que o marxismo introduz de novo na filosofia é uma nova traça essa linha de demarcação, a fim de preservar a prática científica dos
prática da filosofia. O marxismo não é uma (nova) filosofia da práxis, mas assaltos da filosofia idealista, e o científico dos assaltos da ideologia. 21 º

uma prática (nova) da filosofia. 207 Como veremos posteriormente, Althusser - embora use os
Já nessa definição, Althusser revela-se um continuador dos conceitos de verdadeiro e falso - não define tais conceitos em
neopositivistas. Vejamos como Moritz Schlick, no manifesto de função de sua relação de adequação ou inadequação à realidade
constituição da "escola'', define a filosofia: objetiva; a verdade ou a falsidade estabelecem-se a partir de uma
A característica positiva da reviravolta do presente encontra-se no fato de análise imanente, da coerência formal, ou seja, do mesmo modo
reconhecermos a filosofia como um sistema de atos e não como um sistema como o faz o neopositivismo, onde se fala em validade e não em

205
L. Althussesr, "Marxismo, ciência e ideologia", op. cit., p. 16.
208
206
L. Althusser, ''L'objet du capital". ln: L. Althusser, E. Balibar e R. Establet, Lire M. Schlick, "El viraje de la filosofía", op. cit., p. 62.
209
le capital. Paris, Maspero, 1967, v. 2, p. 9. L. Althusser, Lénine et la philosophie, op. cit., p. 43.
210
207
L. Althusser, Lénine et la philosophie. Paris, Maspero, 1969, p. 44 e 57. Ibid., p. 49-50.
194 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISERIA OA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 195

verdade. Por outro lado, como igualmente veremos, "ideológico" O materialismo dialético, por sua vez, não passa de uma epis-
confunde-se em Althusser com tudo aquilo que transcende o pu- temologia sem objeto, de "um caminho que não conduz a parte
ramente epistemológico, isto é, com qualquer afirmação ontológica alguma"; sua única função é impedir que a "ciência" trate de temas
acerca da realidade objetiva. ideológicos, ou seja, que conquiste para a razão os problemas da
A função da filosofia, portanto, vai se reduzir - ainda aqui em ontologia. Em seus últimos textos, Althusser penitencia-se por ter
plena concordância com o neopositivismo - ao estabelecimento limitado a filosofia (o materialismo dialético) à sua relação com a
dos "limites do conhecimento", com a rejeição dos "pseudoproble- ciência (à epistemologia) e fala também numa relação com a polí-
mas metafísicos", ou, na linguagem althusseriana, dos "conceitos tica; mas isso não significa que os temas políticos tornem-se objetos
ideológicos". Ao assimilar uma epistemologia neopositivista, Al- de um saber .filosófico. O político na filosofia, para Althusser,
thusser torna-se - consciente ou inconscientemente - um defensor consiste na tomada de partido que estabelece o que é científico e
"marxista" do agnosticismo próprio da "miséria da razão". Pura o que é "ideológico", ou seja, desempenha uma função igualmente
epistemologia, a filosofia - o materialismo dialético - não pode epistemológica. A "leitura" althusseriana de Marx conduz assim
desempenhar nele a sua verdadeira função: a de elaborar, a par- ao radical empobrecimento do método marxista, ao abandono da
tir de uma universalização histórica e sistemática dos resultados racionalidade dialética e materialista de Marx.
particulares das ciências, uma ontologia e uma ética, ou, mais
concretamente, uma concepção do mundo racional e científica. 2. O ESVAZIAMENTO DE MARX NA "LEITURA''
Rejeitados como "ideológicos", os problemas da concepção do ALTHUSSERIANA
mundo são excluídos do terreno da razão. A partir desses pressupostos metodológicos - que reduzem o ma-
Assim, apesar de suas declarações nesse sentido, não vemos em terialismo dialético a uma epistemologia neopositivista -, tem lugar
Althusser - como vemos em Lukács - uma reconquista plena do um completo esvaziamento do marxismo na "leitura" althusseriana.
universo dos conceitos marxistas, uma retomada integral da síntese Esse esvaziamento assume, inicialmente, um sentido literal. Ao recu-
marxiana entre materialismo histórico e materialismo dialético. O sar a ontologia, Althusser elimina não apenas a herança da filosofia
materialismo histórico converte-se nele numa simples ciência par- clássica alemã (particularmente a de Hegel) e da economia política
ticular, sem nenhuma dimensão filosófica (epistemológica ou onto- inglesa, mas também a maioria esmagadora dos textos de Marx,
lógica). O próprio termo "materialismo", que evidencia claramente de Engeis, de Lenin e dos marxistas contemporâneos. 212 Quanto à
esse sentido filosófico, é por ele interpretado num sentido limitado: eliminação de Hegel, torna-se bastante claro que o objetivo visado é
Decerto, ela é materialista, mas como toda ciência; por isso, sua teoria afastar o conceito hegeliano de Vernunft, de razão dialética, ou seja,
geral tem o nome de "materialismo histórico". O materialismo, então, é
pura e simplesmente a atitude estrita do sábio diante da realidade de seu
''·' A extraordinária obra do Lukács da maturidade, por exemplo, é descartada em
objeto (...). Materialismo histórico quer dizer então: ciência da história. 211 duas ou três linhas como expressão de um "hegelianismo envergonhado" (L.
Althusser, Pour Marx. Paris, Maspero, 1966, p. 144). Já os trabalhos "teóricos"
de Mao Tsé-tung, ao contrário, são frequentemente elogiados, apresentados como
211
Ibid., p. 26. "modelos" de aplicação da dialética (ibid., p. 184, 204, 212).
196 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA OA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 197

a tese segundo a qual a realidade objetiva submete-se a leis racionais, Os textos em que ele supõe estar implícita a "verdadeira" filosofia
que as sínteses concretas e as conexões universais são produzidas pela de Marx reduzem-se, na prática, a dois: O capital e a "Introdução"
própria realidade e não pelas regras formais do intelecto. Althusser (de 1857) aos Fundamentos da crítica da Economia Política (os Grün-
considera essa posição hegeliana como "empirista" (e, portanto, drisse). Para evitar mal-entendidos, gostaríamos de sublinhar desde
como "ideológica"), denunciando ainda a concepção hegeliana da logo que não nos opomos à pretensão althusseriana de redescobrir
dialética, que ele distingue radicalmente - de modo injustifica- a autêntica filosofia marxista a partir dos trabalhos econômicos da
do - da concepção marxiana. (Será uma simples casualidade que maturidade. Embora acreditemos que os textos juvenis contêm em
Bernstein e Althusser partam igualmente de uma completa recusa germe a filosofia marxista, não temos dúvida de que essa filosofia
da herança hegeliana?) Também é bastante notória a aversão de só adquiriu amplitude e concretude realmente científicas nos textos
Althusser pelos textos juvenis de Marx; entre o autor dos Manus- da maturidade. 214 Uma pesquisa que situasse O capital na evolução
critos de 1844 e o autor de O capital não haveria uma continuidade global do pensamento marxiano alcançaria certamente uma visão
dialética, um enriquecimento e concretização de algumas intuições mais universal e mais rica do conteúdo filosófico da obra-prima de
geniais, mas uma ruptura radical, um "corte" que Althusser - sin- Marx, sobretudo se levasse em conta as fundamentais investigações
tomaticamente - chama de "epistemológico". Mas, segundo ele, reunidas nos Grundrisse, que são os trabalhos preparatórios de O
também os textos filosóficos de Engels e de Lenin (o Anti-Duhring, mpital. (Desses trabalhos, Althusser só aproveita a referida "In-
o Feuerbach, o Empiriocriticismo e os Cadernos filosóficos) devem ser trodução".) Essa nossa posição, porém, não se confunde com a de
lidos com cautela, pois - na medida em que travam uma polêmica certos marxistas que, como Ernst Fischer, veem em O capital uma
no terreno "ideológico" dos adversários - usariam conceitos infiéis descrição positiva da ciência econômica, sem nenhuma dimensão
ao espírito da "ciência'' marxista. 213 Ora, já nos deveria levar a um hlosófica. 215 Em suma, concordamos com Althusser em que o essen-
profundo ceticismo, em princípio, um "marxismo" que iniciasse o cial da filosofia marxista está nas obras econômicas da maturidade;
seu trabalho de exegese afastando e rejeitando a quase totalidade dos mas discordamos "apenas" - um "apenas" que é quase tudo - na
textos dos clássicos do marxismo, inclusive do próprio Marx. Mas determinação do caráter dessa filosofia: O capital, sim, mas como
suspendamos provisoriamente nosso juízo e continuemos a expor a ontologia, não como epistemologia formalista. Dessa ontologia,
argumentação de Althusser. por outro lado, deve resultar a verdadeira natureza humanista da
concepção do mundo marxista.

m L. Althusser, "Du 'Capital' à la philosophie de Marx". ln: L. Althusser, J. Ranciere


11
e P. Macherey, Lire le capital, op. cit., v. 1, p. 39. Em Lénine et la philosophie, op. ' No plano específico das categorias econômicas, poderíamos citar como exemplo
cit., Althusser cria inclusive uma engenhosa teoria, segundo a qual a filosofia o excelente livro de Ernest Mandei, La formation de la pensée économique de Karl
necessariamente atrasa com relação à ciência; por isso, ter-se-ia estabelecido um Marx de 1843 jusqu'à la rédaction du "Capital". Paris, Maspero, 1967.
"vazio filosófico" na história do marxismo. Sem nenhuma justificação, afirma "Acredito que o fato de Marx, cada vez mais absorvido pela crítica da economia
ainda que só em nosso tempo foram criadas as condições para a revelação dessa política, não ter tido o tempo - no final de sua vida - de recolher e explicitar as
filosofia; com isso, justifica simultaneamente sua rejeição de todos os marxistas ideias filosóficas de seus escritos juvenis, a filosofia da práxis e do homem, permitiu
pós-Marx e apresenta sua própria pesquisa como a primeira manifestação da uma ampla 'coisificação' do marxismo" (E. Fischer, Arte y coexistencia. Barcelona,
"verdadeira" filosofia marxista. Península, 1968, p. 150).
198 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 199

Numa carta a Engels, Marx chamava O capital de um "todo dominar os fatos econômicos ou políticos); nela Marx superaria,
artístico". 216 E não fazia com isso uma simples metáfora: procurava para felicidade de uns e infelicidade de outros, suas veleidades
expressar aquela profunda unidade sistemática de conceitos que "filosóficas" da juventude. É um indiscutível mérito de Althusser
reproduz, no plano do pensamento, a unidade do próprio real na e de sua escola terem rompido com essa posição equivocada e
riqueza explicitada e concreta de todas as suas determinações. De afirmado claramente a importância filosófica de O capital. Mas
categoria em categoria, observamos ao longo de toda a obra esse esse mérito, infelizmente, é anulado na medida em que o aspecto
processo de explicitação da própria realidade, em suas concate- ontológico desta obra é abandonado em favor de um completo
nações mais íntimas e necessárias; não se trata, portanto, de uma privilégio do aspecto epistemológico, o que transforma a filosofia
soma de conceitos subjetivos e, sim, de um reflexo dialético do marxista numa teoria formalista da ciência. Com isso, não se sai da
próprio real. Mas a "odisseia'' do capital que Marx nos apresenta, posição antidialética: há apenas uma substituição do positivismo
por meio de um itinerário marcado pela produção e reprodução pelo neopositivismo. Em ambos os casos, o humanismo concreto
incessantes de suas várias determinações, é a "odisseia" da pró- de Marx - que decorre organicamente da científicidade dialética
pria humanidade. Capital, mais-valia, renda fundiária, trabalho de suas análises - é abandonado.
excedente, reprodução simples e ampliada etc., todos os conceitos Uma "leitura" correta de O capital, portanto, deve resultar na
econômicos marxianos são determinações objetivas que expressam apreensão e explicitação dessa ontologia materialista. Mas não se
o itinerário dos próprios homens, suas relações histórico-concretas, deve entendê-la como algo situado "para além" da análise econô-
o modo pelo qual dominam a natureza e criam sua história efetiva mica, como um fundo "filosófico" mais ou menos independente
de acordo com leis necessárias. Por isso, O capital não é apenas da pesquisa científico-positiva, mas sim como a universalidade que
uma análise positiva da realidade econômica capitalista, mas tam- decorre necessariamente do aprofundamento teórico do próprio
bém o fundamento de uma ontologia materialista e dialética do ser material empírico. Essa ontologia resulta de uma integração da
social, a base de uma teoria filosófica capaz de indicar as categorias economia e da dialética, ou seja, de um movimento no qual as
mais universais da realidade. categorias filosóficas aparecem como reflexo teórico do modo de
Esse momento ontológico de O capital, de importância decisiva ser fundamental da realidade humana, no qual o homem se faz
para a elaboração da concepção marxista do mundo, nem sempre - homem, isto é, da práxis econômica e de suas objetivações. Quan-
como vimos - foi reconhecido pelos marxistas posteriores a Marx. do Marx propõe uma "crítica da economia política", não pretende
Desde Kautsky, O capital foi quase sempre considerado - por rzpenas desmistificar os limites ideológicos da burguesia em nome
"sociologistas" ou por "ativistas" - como uma obra estritamente da ciência. Pretende também redescobrir aquela dimensão ontoló-
científica (no sentido que o positivismo dá a esse termo, ou seja, gica, sem a qual a ciência econômica - mesmo quando eficaz em
no sentido de um conjunto de regras capazes de manipular ou função de objetivos limitados, como é o caso da economia burgue-
sa contemporânea - torna-se uma simples manipulação pragmática
das aparências imediatas e fetichizadas da realidade econômica. A
216 K. Marx a F. Engels, 31 de julho de 1865. ln: Carteggio Marx-Engels. Roma,
Rinascita, 1951, v. 4, p. 347.
ontologia marxista, ao contrário, prepara as bases para uma práxis
200 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA OA RAZA!l CARLOS NELSON COUTINHO • 201

apropriadora, revolucionária, capaz de revelar essas aparências de O capital só é possível como a aplicação do próprio objeto de
fetichizadas como o produto da ação dos próprios homens. nossa pesquisa, a filosofia de Marx'', 218 isto é, daquilo que Althusser
Essa digressão permite-nos melhor compreender as limitações acredita ser a filosofia de Marx. Caímos assim no seguinte círculo
essenciais da "leitura" althusseriana (análogas, em sua unilatera- vicioso: a transformação de Marx num neopositivista ou num
lidade, às interpretações "antropologizantes"). Além de recusar estruturalista só pode ser obtida se a priori, independentemente
a quase totalidade dos textos marxianos, Althusser interpreta de de qualquer texto, afirma-se que a filosofia marxista é similar a
modo arbitrário os próprios textos em que considera estar implí- essas duas correntes. A "leitura sintoma!", portanto, tem a única
cita a filosofia marxista. O seu método de "leitura" - chamado função real de exemplificar essa similaridade prévia e arbitraria-
de "sintoma!" e cujas relações com a "arqueologia" de Foucault mente estabelecida.
teremos ocasião de indicar mais detalhadamente - representa Tomemos, como exemplo, uma das "leituras" de Althusser,
objetivamente uma deformação e uma manipulação dos textos escolhida na medida em que a deformação que lhe é subjacente
marxianos. O conceito que, segundo Althusser, seria a chave de está na base da dissolução althusseriana da ontologia e, conse-
O capital e da teoria marxista da história é aquele da "eficácia quentemente, de seu antimaterialismo. Althusser pretende provar
da estrutura sobre seus efeitos". 217 Em sua opinião, esse conceito que, em Marx, existe uma rejeição da "confusão hegeliana que
- propriamente "científico" - superaria as noções "ideológicas" identifica o objeto real e o objeto do conhecimento, o processo
(ou "empíricas") de totalidade concreta, do real como síntese de real e o processo do conhecimento". 219 Com essa rejeição, Marx
múltiplas determinações etc. Estabeleceria, ao contrário, que o abandonaria qualquer atitude "empirista", o que em Althusser se
real é constituído por um conjunto de "dados" ou "elementos" confunde não apenas com a objetividade da razão (a realidade
combinados por uma estrutura invisível, que só se manifesta em submetida a um conjunto de leis racionais), mas até mesmo com
seus efeitos. (Essa estrutura, de resto, como veremos a seguir, é a teoria materialista segundo a qual o conhecimento é um reflexo
um produto do pensamento, não um fato ontológico real.) Mas dessa legalidade ontológica. A frase de Marx citada por Althusser
tal conceito não aparece, como seria de esperar, em O capital. Em cm defesa de sua "leitura" é a seguinte:
seu lugar, vemos Marx usar precisamente os conceitos e categorias Hegel caiu na ilusão de conceber o real (das Reale) como o resultado do
"hegelianos", os de totalidade concreta, de unidade dos contrários pensamento, envolvendo-se em si mesmo, aprofundando-se em si mesmo,
etc. Esse fato, contudo, não embaraça Althusser: por meio da "lei- colocando-se em movimento por si mesmo, quando o método que permite
tura sintoma!", ele estabelece que o "hegelianismo" é uma simples a elevação do abstrato ao concreto não é nada mais do que o modo (die
"linguagem'', sem relação com a essência da "prática teórica" de Art) através do qual o pensamento se apropria do concreto e o reproduz
Marx. Mas como seria possível estabelecer que essa "linguagem" (reproduzieren) sob a forma de um concreto espiritual (geistig Konkret). 220
explícita (e não o suposto conceito oculto) é o inessencial? A res-
18
posta de Althusser é bastante "sintomática": "Uma leitura filosófica ' Jbid., p. 40. O grifo é meu.
'l'J fbid., p. 49.
'·'
11
!bid. O texto de Marx, retirado da "Introdução" de 1857, está em Fondements de
217
L. Althusser, Lire le capital, op. cit., v. 1, p. 33. la critique de l 'économie politique, op. cit., v. 1, p. 30.
CARLOS NELSON COUTINHO • 203
202 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÀO

A partir desse trecho marxiano, conclui Althusser: O universal, portanto, é um produto da própria realidade e
Marx defende a distinção entre o objeto real (o concreto-real, a totalida- não, como supõe Althusser, um resultado do sujeito, uma criação
de real) (...) e o objeto do conhecimento, produto do pensamento, que do pensamento científico. Essa posição de Althusser corresponde,
o produz em si mesmo como concreto do pensamento, como totalidade decerto, à tese estruturalista geral, segundo a qual a realidade
de pensamento, isto é, como um objeto do pensamento, absolutamente compõe-se de "dados" singulares, ao passo que a universalidade
distinto do objeto-real, do concreto-real. 221 surge apenas no nível da "estrutura", ou seja, do sistema de regras
A "interpretação" althusseriana, paradoxalmente, substitui a mentais formalizadas. José Arthur Giannotti - em seu excelente
crítica materialista de Marx por uma nova versão do idealismo ensaio sobre Althusser e comentando precisamente a interpretação
criticado. No texto em questão, Marx não põe em discussão a tese althusseriana. do trecho em discussão - observa:
hegeliana da objetividade da razão, mas sim a sua "ilusão de conce- Contra Althusser, sustentamos que tal espelhamento [ou reprodução]

ber o real como produto do pensamento", ou, em outras palavras, a só se torna possível porque ocorre na própria realidade um processo de

identificação idealista que Hegel pratica entre a realidade e a ideia. constituição categorial, contraposto ao vir a ser do fenômeno, processo

A essa ilusão idealista, Marx contrapõe - limpidamente - a concep- que configura a essência de um modo de produção determinado e, por

ção materialista do reflexo: o pensamento reproduz uma realidade conseguinte, de uma forma de sociabilidade. A essência faz parte de cada

cuja existência e cujas leis independem desse mesmo pensamento. momento do concreto, sem contudo esgotar-lhe todas as dimensões, de

É interessante sublinhar a totalidade da frase anterior, ou seja, o sorte que o discurso somente se tornaria científico quando reproduzisse a

fato de que o pensamento reproduz o sistema de leis ontológicas, exte- ordem dessa constituição ontológica (...). Ao percorrer o caminho do abstrato

riores ao pensamento; tais leis não são, como pensa Althusser, uma ao concreto, estamos formulando um discurso que reproduz uma síntese

criação do sujeito, da "prática teórica" ou do "modo de produção essencial que se dá além da prática teórica. 223

do pensamento". Pois Marx fala numa "apropriação do concreto" Tomemos um exemplo concreto. Analisando a mercadoria,
e sabemos que, para ele (como para Hegel), "o concreto é concreto Marx mostra - em O capital - que no mundo antigo ou no feuda-
porque é a síntese de múltiplas determinações, ou seja, unidade na lismo ocorreu produção de mercadorias, mas como fatos singulares
diversidade". 222 Ora, quem diz "síntese" ou "unidade na diversida- ou particulares; tão somente no interior do capitalismo a produção
de" diz também totalidade, ou dialética de universal, particular e de mercadorias torna-se o objetivo universal do sistema econômico.
singular; e quem diz "determinação" diz igualmente sistema de leis O pensamento, assim, deve reproduzir essa universalização que
e de conexões, racionalidade objetiva etc. Assim, segundo Marx, ocorre na própria realidade, independentemente da ciência que a
o pensamento reproduz a própria rede das categorias ontológicas reproduz.
imanentes ao real, reproduz a essência (a universalidade) que existe Portanto, nas palavras citadas de Marx, bem como em todo o
no próprio real, independentemente do pensamento. seu pensamento, não há de modo algum a afirmação - extraída
por Althusser - de uma "distinção absoluta" entre o objeto real e
221
L. A!thusser, Lire le capital, op. cit., v. 1, pp. 49-50.
122
K. Marx, Fondements, op. cit., p. 30. ''
1
J. A. Giannotti, "Contra A!thusser". ln: Teoria e Prática. N° 3, São Paulo, 1968, p. 70.
204 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 205

o objeto do conhecimento. Contra o idealismo, Marx certamente sua prioridade ontológica e epistemológica, convertendo-se numa
afirma a distinção relativa entre pensamento e ser; mas trata-se simples matéria-prima a ser manipulada por um pensamento for-
de uma distinção permanentemente eliminada pela práxis, a qual malizado. Ou, mais precisamente, desaparece até mesmo como
estabelece uma crescente unidade (que jamais se transforma em matéria-prima, já que - segundo Althusser - os "dados" do conhe-
identidade) entre os dois momentos, precisamente na medida em cimento seriam constituídos por conceitos derivados de uma outra
que se verifica a reprodução (ou apropriação) do ser pelo pensamen- "prática teórica", ou do terreno ideológico etc. O conhecimento
to. Portanto, nem identidade absoluta, como supunha Hegel, nem não iria do real ao conceito, mas de Generalidades 1 (ou seja, de
distinção igualmente absoluta, como supõe Althusser, mas unida- conceitos "ideológicos") a Generalidades III (conceitos científicos),
de na diversidade: um processo dialético e histórico de crescente por meio da.aplicação de Generalidades II (regras formais ou
apropriação do real pelo pensamento e pela práxis dos homens. O método). 224 Vejamos como Althusser expõe essa sua clara rejeição
objeto do pensamento, portanto, é o próprio objeto real: essa, de da ontologia e do materialismo:
resto, é uma tese básica do materialismo. O conhecimento, trabalhando sobre seu "objeto", não trabalha sobre o
Somente quando, por meio de uma abstração, eliminamos a objeto real, mas sobre sua própria matéria-prima, que constitui, no sentido
dimensão ontológica da racionalidade - ou seja, quando operamos rigoroso do termo, o seu "objeto" (de conhecimento), o qual, desde as formas
com o intelecto e não com a razão - é que podemos falar numa mais rudimentares do conhecimento, é distinto do objeto real. 225
"suspensão" do real como objeto do pensamento. É o caso, por E ainda mais radicalmente: "É perfeitamente legítimo dizer que
exemplo, na lógica formal, quando o pensamento toma como objeto a produção do conhecimento, que é o específico da prática teórica,
suas próprias regras imanentes; precisamente por isso a lógica formal constitui um processo que se passa inteiramente no pensamento". 226 A
é tautológica, ou seja, nada afirma sobre a estrutura ontológica da realidade objetiva é assim descartada como "pseudoproblema meta-
realidade. Trata-se, assim, de uma abstração, de um procedimento físico"; qualquer tentativa de expressá-la conceitualmente converte-se
parcial e unilateral, que deve ser reconduzido à totalidade concreta em "empirismo", ou seja, num procedimento ideológico que deve
da racionalidade objetiva, subordinando-se à ontologia. Transformar ser rejeitado. Com Althusser, assim, a "miséria da razão" penetrou
essa abstração num fetiche, limitar a racionalidade à aplicação dessas no interior do marxismo contemporâneo.
regras lógico-formais (ao intelecto), é exatamente o ponto de partida As categorias de Althusser, por outro lado, vão paulatina-
do profundo agnosticismo da "miséria da razão". Transformação e mente revelando sua natureza estruturalista. Ao definir o "modo
limitação que são absolutamente estranhas ao pensamento profun- de produção do pensamento", Althusser deixa claro que - como
damente ontológico e dialético-racionalista de Marx. Lévi-Strauss ou Foucault - parte de uma fetichização do intelecto
Assim, a arbitrária "leitura" de Althusser esconde um sério manipulador.
contrabando ideológico: ele substitui a ontologia e a gnosiologia
materialistas do marxismo por uma nova versão da epistemologia 24
' L. Althusser, Pour Marx, op. cit., p. 187 ss.
neopositivista-estruturalista, colocando no lugar da razão dialética '
2
s L. Althusser, Líre !e capital, op. cit., v. 1, p. 53. Grifos meus.
um fetiche do intelecto manipulador. A realidade objetiva perde a ..
26
Ibid., p. 51. Grifo meu.
206 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA OA RAZAO CARLOS NELSON COUTINHO • 207

Ele [o modo de produção do pensamento] é constituído por uma estrutura em algo objetivo, Althusser - como Lévi-Strauss ou Foucault -
que combina o tipo do objeto (matéria-prima) sobre o qual trabalha, os realiza ainda aquele movimento que designamos anteriormente
meios de produção teórica de que dispõe (...) e as relações históricas (...). como passagem do epistemologismo neopositivista ao pseudo-
Esse sistema de produção teórica, sistema material [?] tanto quanto "espi- ontologismo do estruturalismo.
ritual", cuja prática é fundada e articulada sobre as práticas econômicas, E, paradoxalmente, Althusser não terá condições de estabelecer
políticas e ideológicas existentes - que lhe fornecem direta ou indireta- um critério objetivo, materialista e dialético, para distinguir entre
mente o essencial de sua "matéria-prima" - possui uma realidade objetiva ciência e ideologia, entre verdadeira e falsa consciência. (Dizemos
determinada. É essa realidade determinada que define os papéis e as paradoxalmente porque, como vimos, essa distinção é essencial no
funções do "pensamento" dos indivíduos singulares, que podem "pensar" programa altÇ.usseriano.) O estabelecimento desse critério é uma
somente os "problemas" já colocados ou que possam ser colocados; que tarefa fundamental do autêntico marxismo, que, como igualmente
coloca em operação, portanto, tal como a estrutura de um modo de pro- vimos, não se limita a estabelecer a gênese social de um pensamen-
dução econômica coloca em produção a força de trabalho dos produtores to, mas também determina sua objetividade. O erro de Althusser,
imediatos, mas de um modo que lhe é próprio, sua "força de pensamento" portanto, não consiste em insistir na distinção, dissolvida no his-
(...). O "pensamento" é um sistema real próprio. 227 toricismo subjetivista, mas na base teórica sobre a qual a coloca.
A realidade objetiva (econômica e política) como "matéria- Para o materialismo dialético, cuja gnosiologia se apoia na teoria
prima"; o pensamento como "estrutura" que combina dados segun- do reflexo, o critério de distinção reside na relação do pensamento
do regras formais ("meios de produção teórica"); a transformação com a realidade: o conhecimento humano é tanto mais científico
dessa estrutura mental em algo objetivo, material, não apenas quanto mais se aproxima de uma reprodução ampla e exata da
superior aos homens mas capaz de determinar aquilo que eles "coisa em si", de um modo desantropomorfizador, isto é, sem
podem "pensar": todos esses conceitos não foram encontrados "acréscimos estranhos" do sujeito no objeto a conhecer (Engels).
por Althusser em Marx, mas em Lévi-Strauss e, particularmente, Ora, ao distinguir de modo absoluto conhecimento e realidade,
em Foucault. Esse novo fetiche do intelecto manipulador não ao transferir a racionalidade do ser objetivo para as "combinações
deixa de ser a expressão de um mito filosófico tão somente porque estruturais" do "modo de produção do pensamento'', Althusser
Althusser - através de abstratas analogias verbais - define seus não pode aceitar esse critério materialista básico.
elementos com os nomes utilizados por Marx em suas análises Por outro lado, sua concepção do real como simples matéria-
econômicas. As "estruturas inconscientes", a "episteme" e o "modo prima do pensamento, como conjunto de "dados" singulares
de produção do pensamento" são três nomes diversos para definir que recebem sua universalidade conceitua! da prática científica,
um mesmo objeto, resultante de um similar empobrecimento da impede-lhe uma correta determinação das categorias ontológicas
razão, da equivocada identificação entre intelecto manipulador e que a ciência deve reproduzir. Com efeito, o real - longe de se
racionalidade científica. Ao transformar esse intelecto fetichizado confundir com uma coleção de "dados" singulares - apresenta-se
como uma totalidade hierárquica, objetiva e dialética, de níveis e
227
Ibid., p. 50-51. Grifo meu. momentos. Se não se resume à pura manipulação, o conhecimento
208 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA OA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 209

científico deve apreender essa hierarquia, ou seja, deve atingir a Como sempre, conserva a terminologia marxista, mas substitui
essência que se oculta por trás do fenômeno. Essa concepção rica e o conteúdo marxista por posições claramente neopositivistas ou
explicitada do real é um dos muitos legados da dialética hegeliana cstruturalistas. Diz ele:
à filosofia marxista. Lukács observa: Falar do critério da prática em matéria de teoria recebe então o seu pleno
O estabelecimento dessa gradação do ser (Sein, Dasein, Wesen, Existenz, sentido: pois a prática teórica é em si mesma seu próprio critério, contém
Realitiit, Wirklichkeit) representa uma das maiores descobertas da lógica nela mesma protocolos definidos de validação da qualidade do seu produ-
hegeliana. Sublinhemos, entretanto, que não se trata de uma hierarquia to, isto é, os critérios de cientificidade dos produtos da prática científica
fria e rígida, como a dos neoplatônicos, mas de uma unidade dialética, (...). A "verdade" de seu teorema é fornecida ao matemático, em 100%,
isto é, contraditória, que relativiza o ser e o não-ser. A essência é dotada de por critérios.puramente interiores à prática de demonstração matemática,
uma existência mais profunda do que o fenômeno imediato, que é apenas pelo critério da prática matemática, isto é, pelas formas requeridas pela
um dos seus elementos constitutivos, enquanto a essência é precisamente cientificidade matemática existente. Podemos dizer o mesmo dos resulta-
228
a síntese, a unidade desses elementos. dos de qualquer ciência (...). Podemos dizer o mesmo da ciência que mais
Se o pensamento respeita a objetividade dessa hierarquia, suas nos interessa: o materialismo histórico. 229
proporções e sua dialética concreta, estamos diante da ciência; A identificação entre matemática e ciência em geral, inclu-
se a deforma, se toma o imediato pela essência, a possibilidade sive ciência da história, é bastante sintomática. A matemática
abstrata pela concreta etc., temos a ideologia. Althusser, como é uma variedade - altamente complexa - da lógica formal, ou
se sabe, recusa essa concepção hegeliano-marxista da objeti- seja, é um conjunto de axiomas puramente formais, tautológi-
vidade, designando-a como "empirismo", como manifestação cos. Quando digo 2 mais 2, já estou implicitamente dizendo
"ideológica". 4. Por isso, torna-se possível utilizar na matemática o critério
Assim, no lugar do conceito materialista de verdade objetiva imanente da validade, da coerência interior. Todavia, o mes-
(em sua dialética de absoluto e relativo), Althusser coloca a noção mo já não acontece em relação à física matemática, isto é, em
neopositivista de "validade". Com isso, abandona a adequação relação à aplicação das categorias matemáticas à análise da rea-
dialética entre "coisa em si" e conceito, em favor de uma coerên- l idade física objetiva; nesse caso, ressurge o critério da verdade
cia "imanente" de natureza formalista. O marxismo, ademais, - correspondência entre o real e o conceito - estabelecido por
acredita que a possibilidade de verificar aquela adequação é dada meio de um "experimento", ou seja, de uma prática exterior ao
pela prática; não temos aqui nenhum "pragmatismo", como supõe sistema conceituai da ciência. (Esse método materialista, não
Althusser, pois não se afirma que o pensamento é verdadeiro por- empirista, foi aplicado à física matemática a partir de Galileu.)
que útil, mas sim que é útil por ser verdadeiro. Todavia, recusando Ao realizar aquela identificação, portanto, Althusser evidencia
como "ideológico" mais esse conceito marxista, Althusser substitui que seu conceito de "ciência" é integralmente formalista: a ciên-
o critério da prática real por uma "prática" puramente imanente. cia não reproduziria a racionalidade objetiva, mas sistematizaria

228
G. Lukács, Existencialismo ou marxismo?, op. cit., p. 230-231. · .. , L. Alchusser, Lire le capital, op. cit., v. 1, p. 75.
210 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 211

regras formais capazes de manipular "dados" fetichizados. Em sentido - torna-se suspeita. É substituída pela separação. Acentuam-se
outras palavras, Althusser identifica ciência com intelecto, as descontinuidades até se obterem cesuras, epistemológicas e teóricas. z3o
abandonando inteiramente as categorias e os métodos da razão O intelecto manipulador, assim, substitui a dialética de
dialética. Para parodiarmos Lenin, poderíamos dizer que, entre continuidade e descontinuidade (e suas mediações) por uma su-
a epistemologia de Althusser e a epistemologia neopositivista e cessão metafísica de sínteses formalistas e pseudo-homogêneas.
estruturalista, existe a mesma diferença que há entre um diabo Se o conhecimento não é uma reprodução da realidade objetiva,
vermelho e um diabo amarelo. num processo de crescente aproximação, mas o produto de uma
Por outro lado, a rígida aplicação formalista da distinção entre estrutura combinatória fetichizada, não se pode escapar a um
ciência e ideologia, em Althusser, faz com que tal distinção perca empobrecime!lto: a substituição do cinema pela lanterna mágica.
qualquer flexibilidade dialética e converta-se num metafísico "tudo Também aqui, portanto, Althusser e Foucault assumem posições
ou nada". Também aqui estamos diante de um procedimento inte- rigorosamente idênticas. O método althusseriano, que opera por
lectivo, não de um procedimento dialético-racional; a categoria da meio de cortes, não pode compreender, por exemplo, a evolução
descontinuidade absoluta (com sua necessária consequência, a ho- do pensamento marxiano como uma explicitação e concretiza-
mogeneidade também absoluta) substitui as mediações dialéticas, ção de verdades inicialmente formuladas num nível abstrato; as
isto é, a unidade dos contrários, a transformação da quantidade "problemáticas" do jovem e do velho Marx seriam absolutamente
em qualidade etc. Em Althusser, como em Foucault, tertíum non distintas, cada uma formando uma unidade homogênea, a pri-
datur: A é igual a A e B é igual a B, com a necessária consequência meira inteiramente ideológica e a segunda inteiramente científica.
de que A é radicalmente distinto de B. Henri Lefebvre percebeu O mesmo esquema aplica-se à crítica marxiana da filosofia e da
muito corretamente essa substituição althusseriana da razão dia- economia burguesa. Marx não teria aprofundado o conhecimento
lética pelo intelecto formal: do real contido nelas, isto é, eliminado alguns elementos ideoló-
O funcionamento de um tal pensamento se traduz por um dilema perpé- gicos implícitos nas categorias clássicas e se aproximado ainda
tuo, por um incessante "tudo ou nada". O jovem Marx já é rodo o Marx? mais da essência da realidade; teria, ao contrário, operado uma
Seguramente que não. Então ele não é nada (... ). A excessiva fluidez das ruptura radical, uma "revolução teórica", introduzindo ex níhilo
transições mal analisadas e das mediações mal apreendidas - que se eli- uma problemática e um objeto inteiramente novos. Essa posição
minam por hipótese - é substituída por perguntas pedindo respostas com não é apenas irracionalista, na medida em que deixa fora da ciên-
um sim ou com um não. Procedimento conhecido, que decorre de uma cia o problema das transições e das passagens; é ainda bastante
ideologia, aquela que reduz os "objetos" do conhecimento a um número próxima das concepções estalinistas-zdhanovistas, que viam no
finito de funções, de unidades discretas, de combinações ... [O rigor al- marxismo algo "radicalmente novo". Portanto, não é casual que
thusseriano] reproduz assim a produção do objeto técnico: desmontável Althusser considere um "progresso teórico" a eliminação praticada
e remontável, dependendo de uma dupla análise (funcional e estrutural),
'w H. Lefebvre, "Sobre uma interpretação do marxismo: Louis Althusser". ln: H.
mas de um único tipo de inteligibilidade: o sistema. A transição - que
Lefebvre, L. Goldmann e R. e L. Makarius, Debate sobre o estruturalismo. São
era considerada outrora como detentora do conteúdo mais rico e do Paulo, Documentos, 1968, p. 90-91.
212 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISERIA DA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 213

por Stalin - em seu tristemente célebre Sobre o materialismo his- às outras?" 233 Vejamos como Althusser "lê" esse texto marxiano:
tórico e o materialismo dialético da categoria hegeliana e dialética "Tudo está aí: essa coexistência, essa articulação dos membros
da "negaçao - da negaçao- "231
. do 'sistema social', a fundamentação mútua das relações entre si,
Também rigorosamente semelhantes são as posições de Althus- não pode ser pensada na 'lógica do movimento', da sucessão, do
ser e de Foucault diante da história. Sob o pretexto de combater tempo". 234 Aparentemente, estamos diante de uma transcrição
o historicismo abstrato, Althusser eliminará como "ideológicas" literal; mas Althusser, simplesmente, suprimiu a palavra ''apenas",
as teorias da história de Hegel e dos marxistas; polemizando que era fundamental no texto analisado. O que Marx afirma,
com Gramsci, chega mesmo a afirmar que "o marxismo não é portanto, é que apenas o método histórico é insuficiente, sendo
um historicismo". Não há dúvida de que Althusser parte de uma necessária a sua complementação pelo método mais temático; não
crítica relativamente justa do geneticismo abstrato, que dissolve existe de modo algum, no texto citado, uma eliminação completa
no projeto subjetivo todas as objetivações humanas; mas termina do método histórico, como busca afirmar Althusser.
por cair numa unilateralidade similar, ao fetichizar o momento É interessante constatar que Engels, numa resenha lida e aceita
sistemático, negando qualquer relação entre ele e a historicidade pelo próprio Marx, indica claramente a natureza histórico-siste-
objetiva. Ao historicismo abstrato, assim, não oporá o autêntico mática - ou seja, fundada na relação entre a gênese histórica e a
método histórico-sistemático de Marx, mas um dogmatismo articulação sistemática das categorias - do método empregado por
do "sistema". Para Althusser, a relação entre a ordem da gênese Marx em suas análises econômicas. Nela, Engels afirmava ainda
histórico-real e a ordem sistemática das categorias seria um falso que esse método é um legado da dialética hegeliana ao marxismo.
problema, "um problema imaginário". 232 Essa recusa da relação A extraordinária significação metodológica do texto, bem como
entre a gênese histórica e a ordem sistemática decorre - como sua dara contraposição às concepções de Althusser, justificam a
Althusser o diz explicitamente - da sua posição antimaterialista extensão da citação que fazemos agora:
anteriormente criticada, a saber, da rígida distinção entre objeto O que punha o modo do pensamento de Hegel acima do de todos os
do pensamento e objeto real. demais filósofos era o formidável sentido histórico que o animava (... ).
Para tentar fazer passar como marxista essa sua recusa do mé- Foi ele o primeiro a tentar pôr em relevo na história um processo de
todo histórico-sistemático, Althusser mais uma vez recorre à detur- desenvolvimento, uma conexão interna (...). Marx era o único que podia
pação de um texto de Marx. Na Miséria da filosofia, Marx afirma empreender o trabalho de retirar da lógica hegeliana o núcleo que encerra
claramente os limites do historicismo abstrato: "Como é possível as verdadeiras descobertas de Hegel nesse campo e de procurar restaurar
que apenas a fórmula lógica do movimento, da sucessão, do tem- o método dialético, despojado de sua roupagem idealista, na simples
po, possa explicar o corpo da sociedade, no qual todas as relações nudez em que aparece como a única forma exata do desenvolvimento do
econômicas coexistem simultaneamente e se fundamentam umas

'" Citado por Althusser, ibid., vol. 2, p. 44. O original está em K. Marx, Misere de
2-' 1 L. Althusser, Pour Marx, op. cít., p. 205. la philosophie. Paris, Editions Sociales, 1948, p. 120.
23 2 L. Althusser, Lire le capital, op. cít., v. 1. p. 58. ''' L. Althusser, Lire le capital, op. cit., v. 2, p. 44.
214 · Ü ESTRUTURALISMO E A MISERIA OA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 215

pensamento. A elaboração do método que forma a base da crítica de Marx Devemos considerar seriamente o fato de que a teoria da história, em sen-
à economia política é, a nosso ver, um resultado que pouco fica a dever à tido forte, não existe, ou mal existe, que os conceitos de história existentes
própria concepção materialista fundamental (...). A crítica da economia são, no mais das vezes, conceitos "empíricos" (...), isto é, fortemente mar-
política podia ser empreendida de dois modos: o histórico e o lógico (...). cados por uma ideologia que se dissimula sob suas evidências. 236
O único método indicado era o lógico. Mas este não é, na realidade, Como "empiristas", Althusser considera as categorias dialéti-
senão o método histórico, apenas despojado de sua forma histórica e cas do autêntico historicismo de Marx, ou seja, a história como
das contingências perturbadoras. Ali onde começa a história deve começar totalidade concreta, como síntese de contínuo e descontínuo etc.
também a cadeia de pensamento; e o desenvolvimento ulterior desta não será No lugar desse pretenso "vazio teórico", surge, todavia, a pleni-
mais do que a imagem reflexa, em forma abstrata e teoricamente consequente, tude estruturalista. Já vimos como, em Sebag e em Foucault,
da trajetória histórica. Uma imagem reflexa corrigida, mas corrigida de dissolve-se a noção de história como totalidade, surgindo em seu
acordo com as leis fornecidas pela própria trajetória histórica; e, assim, lugar uma justaposição ou "combinação" de totalidades parciais,
cada fator pode ser estudado no ponto de desenvolvimento de sua plena descontínuas e formalizadas. É essa concepção da "história" que
maturidade, na sua forma clássica. 235 Althusser nos apresenta como o resultado de uma "leitura" de
E essa concepção histórico-sistemática leva Engels, logo após, Marx:
a uma correta determinação da ontologia do ser social subjacente Não é mais possível pensar no mesmo tempo histórico o processo de desen-
à economia marxiana: "A economia não trata de coisas, mas de volvimento dos diferentes níveis do todo. O tipo de existência desses
relações entre pessoas e, em última instância, entre classes, embora diferentes níveis não é o mesmo. A cada nível, devemos atribuir um tempo
essas relações estejam sempre ligadas a coisas e apareçam como coisas". próprio, relativamente autônomo (...). Esse princípio funda a possibilidade
Assim, para Engels, a essência do método marxista é precisamen- e a necessidade de diferentes histórias, correspondendo respectivamente a
te aquilo que Althusser considera um "problema imaginário": a cada um dos níveis. 237
síntese do lógico (ou sistemático) e do histórico. Portanto, tertium Criticar essa concepção de Althusser seria apenas repetir o
non datur: trata-se de escolher entre a interpretação de Marx por que já dissemos, no capítulo anterior, sobre a "teoria da história"
Engels ou por Althusser. de Foucault. Não nos interessa, aqui, discutir quem influenciou
Todavia, a partir desse empobrecimento do método, Althusser quem, ou seja, se Althusser assimilou a concepção de Foucault
encaminha-se no sentido de uma deturpação dos problemas onto- ou vice-versa. O que importa é insistir no fato de que ambas as
lógicos da história. Para apresentar suas concepções estruturalistas concepções são inteiramente estranhas ao universo dos conceitos
como autenticamente marxistas, Althusser começará por negar aqui- marxianos.
lo que, até hoje, nenhum marxista colocou em discussão: a existência Mas a completa dissolução do sentido ontológico da filosofia
em Marx de uma teoria da história explicitada e coerente. Diz ele: marxista aparece ainda mais claramente, se isso é possível, na

1
235 F. Engels, "A Contribuição à crítica da Economia Política' de Karl Marx". ln: K. ' ') L. Althusser, Lire le capilal, op. cit., v. 2, p. 60.
Marx e F. Engels, Obras escolhidas, op. cit., v. !, p. 344-345. '\/ Ibid,, p. 46-47.
216 • Q ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO
CARLOS NELSON COUTINHO • 217

concepção althusseriana da economia e, mais particularmente, por uma "problemática teórica", ideológica ou científica, mas
do trabalho e da práxis. Segundo Althusser - de acordo com sua porque reproduziram conceitualmente - apesar de seus limites
posição de que a ciência "produz" seu objeto - a economia mar- ideológicos de classe - determinadas categorias de uma realidade
xiana não seria uma reprodução das relações econômicas reais, que era independente deles; ao transformar o trabalho concreto
mas sim a construção de "um conceito verdadeiro do objeto", por em trabalho abstrato, socializado, o capitalismo permitiu aquela
meio da qual se demonstraria que a própria economia política e generalização teórica que está na base, por exemplo, da teoria
os problemas que ela aborda não passariam de "uma pretensão clássica do valor-trabalho. Marx, assim, não modificou o objeto
imaginária". 238 Ao criticar os fundamentos supostamente antro- da economia clássica, nem tampouco criou um objeto novo: o
pologistas da economia clássica, ele termina por dissolver com- objeto de O capital - assim como o da Riqueza das nações ou o dos
pletamente as próprias relações econômicas reais; também essas, Princípios da economia política - continua a ser o sistema capitalista
ao modo do neopositivismo, convertem-se num "falso problema" em sua objetividade. O que Marx fez, em sua "crítica da economia
metafísico, cuja análise resulta de "uma pretensão imaginária". política'', foi superar os limites ideológicos de Smith e Ricardo,
Tomando em um dicionário econômico corrente a definição de aprofundando e concretizando - num sentido ontológico e históri-
economia própria do que Marx chamou de "economia vulgar", co - as categorias econômicas reproduzidas pelos dois economistas.
Althusser a atribui - equivocadamente - à ciência econômica em Esse aprofundamento lhe permitiu, entre outras coisas, descobrir
geral. Diz ele: a lei essencial da mais-valia, que é uma lei objetiva inerente à
A estrutura teórica própria da Economia Política se apoia no relaciona- sociedade capitalista e não, como parece supô-lo Althusser, 240 o
mento imediato e direto de um espaço homogêneo de fenômenos dados produto conceitua! de uma nova "problemática teórica".
com uma antropologia ideológica, fundando no homem sujeito das neces- Mas, independentemente do fato da "antropologia ingênua"
sidades (o dado do homo oeconomicus) o caráter econômico dos fenômenos existir ou não na economia clássica inglesa, é justificada - pelo
do seu espaço. 239 menos relativamente - a crítica de Althusser às tendências sub-
Se Althusser se refere aqui à economia clássica inglesa, sua jetivistas em economia, as quais reaparecem frequentemente no
observação é equivocada: entre os fatos econômicos (produção, quadro do próprio marxismo. A economia não se apoia simples-
circulação etc.) e as necessidades humanas não existe - nem em mente em projetos e desejos subjetivos, mas num sistema de leis
Smith nem em Ricardo - uma relação imediata e direta, mas uma objetivas. Se ela não é apenas uma antropologia, mas também uma
relação mediatizada pelo trabalho. Os fenômenos econômicos ontologia, isso se deve precisamente ao fato de que ela reproduz
não são por eles fundados no "homem sujeito das necessidades'', conceitualmente esse sistema de leis independentes da vontade e
mas sim no homem-produtor, ou seja, no trabalhador que produz da consciência dos homens. Essa legalidade objetiva processa-se em
valor. Smith e Ricardo não chegaram a essa teoria condicionados dois níveis, "abaixo" e "acima" dos projetos e desejos individuais.
"Abaixo" está a legalidade natural, que se subdivide, por seu
238 !bid., p. 129.
239
'ili lbid., p. 158.
Ibid., p. 133.
218 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA OA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 219

turno, em dois momentos: por um lado, o momento interior ao mana. Althusser discorda radicalmente dessas posições; ironiza,
homem, expresso como impulso biológico de conservação, o qual, considerando-a "humanismo abstrato", simples "ideologia", a tese
embora se torne consciente no desejo, opera independentemente hegeliana - assimilada e desenvolvida em sentido materialista por
da consciência e da vontade do indivíduo; por outro, o momento Marx e Engels - do trabalho como essência do homem. 242 E isso
exterior ao homem, ou seja, o conjunto dos complexos causais ocorre porque, em sua "leitura", Althusser empobrece a concepção
físico-químicos que o homem deve mobilizar no ato do trabalho, marxista do trabalho, despojando-a de qualquer especificidade
na dominação da natureza. ''Acima" do desejo subjetivo, está a especificamente humana. Com isso, sua crítica relativamente jus-
legalidade social específica, decorrente da universalização do tra- tificada à concepção antropologista e subjetivista do trabalho (que
balho em objevações relativamente autônomas, as quais também faz desse uma rura criação, um mero projeto subjetivo) converte-
não dependem da vontade e da consciência dos indivíduos. Marx se num equivocado "objetivismo" anti-humano e antidialético.
definiu o objeto da economia como o "metabolismo entre socie- Em sua "leitura", o trabalho aparece como simples manipulação
dade e natureza", isto é, como o ponto de confluência e integração técnica da natureza.
dessas duas ordens de leis. Esse objeto é similar àquele que, em No processo do trabalho - diz ele - intervém um gasto da força de tra-
um texto juvenil, Marx e Engels indicaram como sendo próprio balho dos homens, que, utilizando segundo regras (técnicas) adequadas
da história: "Toda historiografia tem necessariamente que partir determinados instrumentos de trabalho, transforma o objeto do trabalho
desses fundamentos naturais e da modificação que experimentam, num produto útil (... ). Essa determinação do processo de trabalho pelas
no curso da história, pela ação dos homens". 241 É essa rica con- condições materiais impede qualquer concepção "humanista" do trabalho
cepção ontológica que, juntamente com a antropologia, Althusser como pura criação. 243
abandona inteiramente. Sua crítica relativamente justa, portanto, Althusser opera aqui com falsos extremos fetichizados e deixa
converte-se num completo equívoco. de lado o autêntico tertium datur marxista; além do objeto e dos
A categoria central da ontologia marxista - o núcleo daquele meios do trabalho, Marx destaca-lhe ainda um outro elemento,
"metabolismo" - é o trabalho. O trabalho, desde suas formas pri- precisamente o seu caráter teleológico, ou seja, o fato de que nele
márias e imediatas até às mais complexas, é a chave da legalidade o homem projeta conscientemente a execução de uma ideia.
objetiva que se manifesta na história. Ocorre no trabalho não Pressupomos o trabalho - observa Marx - sob forma exclusivamente
apenas o laço essencial entre homem e natureza, mas também, humana. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a
e sobretudo, o tipo de determinação teleológica que é próprio da abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colmeia. Mas o que
vida social, enquanto formação ontológica mais complexa que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua
a natureza. No trabalho, portanto, manifesta-se o "ser homem construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo de
do homem", o modo ontológico peculiar da especificidade hu- trabalho, aparece um resultado que já existia antes idealmente na cabeça

2
24 1 K. Marx e F. Engels, La ideología a/emana. Momevidéu, Pueblos Unidos, 1959, .>1i L. Althusser, Lire le capital, op. cit., v. 2, p. 146.
p. 19. .'·H Ibid., P· 144.
220 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 221

do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera; pura manipulação. Ao contrário, a autêntica ontologia marxiana
imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o do trabalho revela-o como núcleo de uma integração orgânica
qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de - e objetiva, na medida em que independe da vontade dos ho-
subordinar sua vontade. mens singulares - de causalidade e teleologia, de objetividade e
E, logo em seguida, Marx resume sua concepção do trabalho: subjetividade. O conhecimento humano, a teoria, tem sua fonte
Os elementos componentes do processo de trabalho são: 1) a atividade genético-ontológica precisamente nessa característica do trabalho:
adequada a um fim [zweckmdssige Tdtigkeit], isto é, o próprio trabalho; 2) a realização do projeto teleológico requer o conhecimento dos
a matéria a que se aplica o trabalho, o objeto de trabalho; 3) os meios de nexos causais que ele vai colocar em operação.
trabalho, o instrumental de trabalho. 244 Desse modg, a verdadeira posição marxiana aparece como um
A posição de Marx colide diretamente com a "interpretação" justo tertium datur entre a antropologia subjetivista - na qual desa-
de Althusser. Marx indica que, além das leis naturais, opera no parecem as determinações objetivas, naturais e materiais, da práxis
trabalho - como lei determinante e objetiva, pois a ela o trabalha- - e um objetivismo esquemático que reduz o trabalho (despojado de
dor deve subordinar sua vontade - o projeto teleológico. Retendo sua especificidade humana) a uma simples técnica de manipulação.
os dois itens finais da definição marxiana, Althusser "esquece" Embora refiram-se a Hegel - que foi o primeiro a apreender (ainda
o primeiro, precisamente aquilo que Marx considera "o próprio que de modo idealista) a real natureza do trabalho - a observação
trabalho", ou seja, o ato teleológico. Para apresentar essa defini- seguinte de Lukács coloca corretamente o problema:
ção restritiva, Althusser procede a uma nova deturpação. Ele cita A análise concreta da dialética do trabalho humano supera, em Hegel, a
igualmente o resumo marxiano, com seus três itens, mas traduz antinomia de causalidade e teleologia, revelando o lugar concreto que a
o primeiro deles - que, no original alemão, aparece como "die finalidade humana consciente ocupa no interior do contexto causal em
zweckmassige Tatigkeit oder die Arbeit selbst" - do seguinte modo: sua totalidade, sem quebrar esse contexto, sem ser obrigado a sair dele e
"L'activité personelle de l'homme, ou travai! proprement dit" ("a apelar a um princípio transcendente qualquer, mas igualmente (...) sem
atividade pessoal do homem ou trabalho propriamente dito"). 245 perder de vista as determinações específicas da finalidade no trabalho. 246
Ao rejeitar a teleologia, "a atividade adequada a um fim", Althus- Também nesse ponto, portanto, a dialética marxista é um
ser elimina a especificidade humana do trabalho, reduzindo-o à prolongamento - crítico e materialista - da dialética hegeliana.
Torna-se assim possível - em nome de Marx e contra Althusser
244 K. Marx, O capital, op. cit., Livro J, v. l, p. 202. - restabelecer o papel do homem na constituição ontológica do ser
245 L. Althusser, Lire !e capital, op. cit., v. 2, p. 146. Na verdade, a deficiente tradução social, afirmando a natureza criadora - relativamente criadora - do
do texto já se encontra na edição francesa, a cargo de J. Roy, a qual - como se
sabe - foi "despojada", pelo próprio Marx, de várias expressões filosóficas. Al- trabalho e da práxis. Combatendo uma afirmação "antropologis-
thusser, todavia, faz-se responsável pela tradução, na medida em que nos adverte ta" de Adam Smith, mas sem cair no anti-humanismo, observa o
que "frequentemente retificamos as traduções francesas de referência, inclusive a
tradução do Livro 1 do Capital por Roy, para captar mais de perto o texto alemão, próprio Marx:
em certas passagens particularmente densas ou carregadas de sentido teórico"
(L. Althusser, Lire !e capital, op. cit., v. 1, p 92). Será que a afirmação do caráter
246
teleológico do trabalho carece de sentido teórico? G. Lukács, II giovane Hegel, op. cit., p. 481.
222 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA OA RAZÍÍO
CARLOS NELSON COUTINHO • 223

Adam Smith considera o trabalho de um ponto de vista psicológico, em ta; o princípio básico desse humanismo é a tese da autocriação do
função do prazer e do desprazer que proporciona ao indivíduo. Todavia, homem, a afirmação de que o homem é o produto de sua própria
além dessa relação afetiva em face do trabalho, há ainda outra coisa: ati- atividade enquanto ser social.
vidade produtiva e criadora. 247 Podemos agora compreender porque Althusser, recusando o
Em outro texto da maturidade, no chamado IV livro de O caráter ontológico do marxismo, recusa igualmente seu caráter
capital, diz ainda Marx: humanista, ou seja, a categoria central do marxismo enquanto
O próprio homem é base de sua produção material, bem como de qual- concepção do mundo. Para melhor realizar esse novo esvaziamen-
quer outra produção que realize. Portanto, todas as circunstâncias que to, Althusser joga com a ambiguidade que, ao longo da história do
influem sobre o homem, sujeito da produção, modificam mais ou menos marxismo, envolve o conceito de "ideologia". (Essa ambiguidade
todas as suas funções e atividades enquanto criador da riqueza material, terminológica não aparece apenas nos discípulos, mas também
das mercadorias. 248 em Marx, Engels e Lenin.) Por um lado, "ideologia" designa a
Como vimos, essa criatividade está longe de ser absoluta: é de- falsa consciência, ou seja, o pensamento que - limitado ou con-
terminada ou limitada por fatores não apenas materiais (natureza dicionado por particulares interesses de classe - apresenta uma
do objeto sobre o qual se aplica o trabalho), mas igualmente sociais reprodução deformada da objetividade real. Por outro, designa a
(tipo de divisão do trabalho, nível de consciência e de produtivi- concepção do mundo, isto é, o conjunto de conceitos - verdadei-
dade técnica alcançado etc.). Mas, apesar disso, é inteiramente ros ou falsos - por meio do qual os homens não apenas formam
válido afirmar que a natureza das categorias objetivas que formam uma imagem global da realidade, mas igualmente sistematizam
a sociedade, tão logo seja afastado o véu fetichista que as transfor- ou estabelecem um modo de reagir a essa realidade. Esse segundo
ma em algo similares a "coisas", revela-se como um conjunto de sentido de "ideologia" decorre do princípio básico do materialis-
relações inter-humanas das quais o homem social - ainda que não mo histórico, segundo o qual o pensamento jamais se desliga da
de modo absoluto - é o sujeito real. (Que se recorde a definição vida social; o conhecimento é sempre uma resposta aos problemas
de Engels anteriormente citada, segundo a qual a economia não colocados pela realidade e, na vida social, essas respostas envolvem
trata de "coisas'', mas de relações inter-humanas mediatizadas pelas sempre a questão do valor ou desvalor humano da realidade à qual
coisas.) A ontologia marxista, portanto, é concretamente humanis- se responde.
Tomemos um exemplo concreto. O fato de que ocorra, na
247 K. Marx, Fondements, op. cit., v. 2, p. 117. De passagem, podemos observar que objetividade natural, uma desintegração do núcleo atômico é em
a frase de Marx refuta não apenas as posições de Althusser, mas também as "an- si um fato eticamente indiferente; mas que essa desintegração, no
tropologistas" de Herbert Marcuse. Com efeito, Marcuse analisa o trabalho não
como práxis criadora e objetiva, mas como instituição do "princípio de realidade" interior da práxis social, seja utilizada para construir uma usina ou
que se opõe aos instintos, ao "princípio do prazer"; a realização do homem, assim, uma bomba atômica, é algo que coloca um problema de valor ou
é colocada para além do trabalho real, numa utopia lúdica (conversão do trabalho
em jogo), e não em um trabalho efetivamente criador, não alienado. (Cf., particu- desvalor. Na práxis concreta do homem, vista em sua totalidade,
larmente, H. Marcuse, Eros e civilização. Rio de Janeiro, Zahar, 1968, p. 41-65, articulam-se organicamente juízos de fato e juízos de valor. Esse
150.153, etc.; e !d., Psicanalisi e politica. Bári, Laterza, 1968, p. 12-57).
248 K. Marx, Teorie dei plusvalore, Roma, Riuniti, 1961, v. 1, p. 449. duplo aspecto da concepção do mundo - reprodução objetiva da
224 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA OA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 225

realidade e tomada de posição diante dela - foi muito bem ressal- citando assim os homens a exercerem uma crítica do real em nome
tado por Lukács: das próprias possibilidades reais momentaneamente reprimidas.
Pode-se definir a concepção do mundo, em geral, como esse campo de Deve-se observar, por outro lado, que as questões da concepção do
força psíquico entre a reprodução da realidade e a reação a ela (...).A função mundo surgem na própria vida; a práxis humana - quando não se
da concepção do mundo consiste em decidir sobre as alternativas da vida, limita à simples manipulação do real imediato - contém em si uma
em particular sobre aquelas que dizem respeito à aceitação ou à recusa do necessária tomada de posição diante da vida social. O marxismo
mundo social em que o homem vive. 249 - enquanto ciência - eleva a conceito essa característica da práxis,
Althusser, muito corretamente, afirma que o marxismo não é esclarecendo-a teoricamente; mas, evidentemente, trabalha sobre um
uma ideologia no primeiro sentido do termo, ou seja, não é uma fato real que existe independentemente de sua formulação teórica.
simples "expressão" de interesses de classe, mas uma reprodução Desse modo, ao abandonar o esclarecimento racional-científico des-
objetiva, científica, da realidade. Nesse ponto, supera qualquer so- sas questões, as filosofias ligadas à "miséria da razão" - entre as quais
ciologismo vulgar, qualquer "historicismo" relativista, incapazes de a de Althusser - condenam à irrazão, à arbitrariedade subjetiva, um
compreender esse caráter objetivo do pensamento científico, inclusive terreno essencial e determinante da vida humana.
do marxismo. Mas, equivocadamente, confunde os dois sentidos Já se torna agora mais nítida - no sentido positivo e no ne-
de ideologia; com isso, recusa também os problemas decorrentes gativo - a relação que estabelecemos entre ontologia e concepção
do necessário condicionamento histórico-social do pensamento, do mundo. Como vimos, quanto mais amplo é o objetivo visado
afastando da racionalidade científica o esclarecimento teórico dos pela práxis, tanto mais rica deverá ser a objetividade a reproduzir
problemas da concepção do mundo, ou seja, da relação entre juízos conceitualmente. (Ou, em outras palavras: quanto mais universal
de fato e juízos de valor, entre ciência e tomada de posição. é o projeto teleológico, tanto mais amplas deverão ser as conexões
Vejamos mais de perto essa problemática. As questões colocadas causais apreendidas pelo pensamento.) Na autêntica concepção
pela concepção do mundo podem receber uma resposta ideológica do mundo, o objetivo visado é a totalidade do real; o humanismo
(no primeiro sentido do termo) ou científica (fundando-se numa marxista, por exemplo, ao projetar o fim da alienação, propõe uma
representação objetiva do real). A concepção do mundo será tanto práxis capaz de reapropriar para o homem a totalidade da objeti-
mais científica quanto mais os seus juízos de valor se apoiarem numa vidade social, ou seja, capaz de revelar essa objetividade - que, à
ampla concepção ontológica, capaz de esclarecer conceitualmente a praxis manipulada, aparece como um conjunto de "coisas" exte-
integralidade das alternativas e das potencialidades do ser humano. riores ao homem - como o produto da ação coletiva dos próprios
Nesse caso, a tomada de posição contida na concepção do mundo homens. Ora, uma práxis desse tipo, que relaciona a totalidade do
não desemboca num simples moralismo subjetivista e quixotesco; objeto com a totalidade do gênero humano, demanda um nível
ocorre no interior de uma representação objetiva da realidade, capa- máximo de conhecimento possível: precisamente um conheci-
mento ontológico do real, capaz de superar não apenas todos os
limites e unilateralidades próprios do pensamento imediatista da
24 9 G. Lukács, "Problemi della cocsistcnza culrurale". ln: !d., Marxismo e politica
cultura/e, op. cit., p. 169. vida cotidiana, mas igualmente aqueles impostos no quadro da
226 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA DA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 227

especialização científica. Um conhecimento, em suma, dirigido à contra Althusser, é preciso lembrar que essa desantropomorfização
totalidade intensiva do real. Compreende-se facilmente, ao con- diz respeito apenas ao sujeito e não ao objeto. Quando afirmamos
trário, que uma práxis coagulada na manipulação, na dominação que o conhecimento deve ser o mais objetivo possível, que deve
imediata do objeto, sem visar à sua apropriação humana, deva evitar qualquer projeção do sujeito que conhece na objetividade
afastar inteiramente de sua esfera cognoscitiva não apenas os pro- cm si, não afirmamos absolutamente que o homem seja uma sim-
blemas ontológicos, os problemas da "coisa em si", mas também os ples "coisa'', que a realidade social objetiva não seja uma síntese
relativos ao valor ou desvalor humano da vida social, os relativos à de sujeito e objeto. Devemos estudar objetivamente, de modo
concepção do mundo. (Isso ocorre, diga-se de passagem, tanto na desantropomorfizador, o modo pelo qual o homem - enquanto
manipulação cotidiana quanto na manipulação técnico-científica.) sujeito - partkipa na construção da objetividade social, por meio
A práxis manipulatória - precisamente por assumir o momento te- de projetos teleológicos e de tomadas de posição. Em suma, esta-
leológico como algo "inconsciente'', habitual, heterônomo - deixa mos aqui diante de dois planos, o epistemológico e o ontológico,
de lado a questão do valor; a "ética" da manipulação (se se pode que não podem ser confundidos. Cabe observar que os historicistas
falar aqui em ética) é a simples eficácia. Não é assim casual que subjetivos praticam uma confusão similar à de Althusser, embora
Althusser, identificando práxis com manipulação e racionalidade com sinal invertido: partindo dessa unidade objetiva do sujeito e
com intelecto formal, considere os temas da concepção do mundo do objeto na vida social, negam a possibilidade de se alcançar um
como "falsos problemas", como algo condenado à irrazão. conhecimento objetivo da práxis humana. Althusser, afirmando
Concentrando-se nos problemas epistemológicos, afastando corretamente essa possibilidade, nega todavia aquela unidade
da ciência qualquer elucidação teórica de questões ontológicas ontológica. Nessa falsa alternativa, perde-se precisamente a justa
(falsamente confundidas com um antropologismo subjetivista), solução marxista do problema.
a "leitura" althusseriana elimina mais um elemento componente Ora, se vista no conjunto da ontologia do ser social, essa
do universo das categorias marxistas. Como vimos, ele confunde peculiaridade epistemológica encontra uma plena explicação
os dois conceitos de "ideologia". Por um lado, vê corretamente o racional, sem alterar - mas antes reforçando - o caráter huma-
caráter desantropomorfizador da ciência, ou seja, o fato de que nista da concepção do mundo marxista: a desantropomorfização
- na representação científica do real - devem desaparecer os ele- científica aparece como um projeto teleológico do homem, como
mentos próprios do sujeito, os "acréscimos estranhos" de que falava um instrumento de sua realização especificamente humana. Se o
Engels. Mas confunde essa desantropomorfização epistemológica homem, na ciência, suspende a sua relação avaliativa diante do
com uma eliminação ontológica do papel do homem na construção real, tentando compreendê-lo do modo mais objetivo possível, isso
e na avaliação da vida social. Com efeito, diz ele: "Não se pode ocorre precisamente porque essa "suspensão" aparece como um
conhecer nada a respeito dos homens senão na condição absoluta momento particular e necessário de uma tomada de posição mais
de reduzir a cinzas o mito filosófico (teórico) do homem". 250 Ora, ampla e mais eficaz. Diz Lukács:
A produção de uma condição na qual as forças naturais possam agir sem
250
L. Althusser, Pour Marx, op. cit., p. 236. Mas cf. também p. 227-258. serem disturbadas pelos momentos obstaculizadores do mundo objetivo
228 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISÉRIA OA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 229

e pelos erros de observação do sujeito é, tal como o trabalho, uma posição posições de Harich de acordo com o resumo que delas faz Cesare
teleológica, naturalmente de tipo particular; e assim, em sua essência, é Cases.)253 Harich considera dois conceitos centrais de liberdade: o
também uma práxis. 251 definido por Engels na fórmula "conhecimento da necessidade";
E, em outro local, Lukács indica a relação entre ciência e to- e aquele da liberdade de querer, do livre-arbítrio, que não se reduz
mada de posição, entre a desantropomorfização e o humanismo: imediatamente ao conceito engelsiano e que coloca as questões de
Deve-se sublinhar que, desde a Antiguidade grega, desde a primeira apari- responsabilidade e irresponsabilidade. Cases resume e comenta do
ção consciente do princípio desantropomodizador, desenvolveu-se ininter- seguinte modo as posições de Harich:
ruptamente, sucessivamente, ainda que com contramarchas, com frequen- Responsável é quem pode igualmente decidir de outro modo, mesmo ten-
tes inconsequências e numa linha quebrada, uma ética correspondente do conhecimento de causa. Irresponsável, ao contrário, é quem está sub-
àquele princípio, nascida dele, não certamente desantropomorfizadora, já metido a um instinto irresistível que o priva do livre-arbítrio. O homem
que é um modo de comportamento humano, mas (...) que faz do princípio normal distingue-se do animal e do selvagem precisamente porque não
científico o ponto de apoio arquimédico no qual baseia uma concepção está submetido à imediaticidade dos instintos, mas elaborou uma especial
verdadeiramente humanista, adequada ao homem e à sua dignidade. Uma "estrutura de impulsos" que permite-lhe escolher em "um vasto campo
tal ética começa no homem e culmina nele, mas - precisamente por isso - de motivos apenas possíveis, nenhum dos quais exerce uma coação abso-
pressupõe um mundo exterior considerado desantropomorficamente (...). luta", sem que por isso estejam fora de qualquer complexo causal, como
Há uma relação entre o descobrimento e elaboração, metodologicamente afirmava a ética kantiana. Essa estrutura especial é explicada por meio do
claros, do reflexo desantropomorfizador, por um lado, e, por outro, o trabalho, dado que esse implica "uma suspensão das necessidades ime-
humanismo, a defesa da liberdade e da integridade do homem. 252 diatas e, portanto, na contínua superação de um comportamento escravo
Para que se torne bastante clara a contraposição entre a pobreza dos instintos e dos impulsos animais". No trabalho, portanto, encontram
das posições althusserianas e a riqueza do universo das categorias seu ponto de referência os dois conceitos de liberdade: por meio dele o
lukacsianas, apresentaremos aqui um exemplo concreto. Uma das homem modifica a natureza e cria a sua história, graças ao "conhecimento
questões essenciais da ética e da concepção do mundo marxistas da necessidade'', mas ao mesmo tempo modifica a si mesmo, sua própria
- de grande importância no mundo atual - é a da liberdade e da estrutura, adquirindo a liberdade do querer. 254
responsabilidade. Na obra da Althusser, não há a menor referência Essa longa citação permite-nos ver o modo por meio do qual
a esses conceitos; presume-se que sejam considerados "proble- uma ampla concepção ontológica da práxis esclarece teoricamen-
mas imaginários", conceitos "ideológicos". Mas vejamos como o te - de modo racional e científico - as questões do humanismo
lukacsiano Wolfgang Harich, partindo de uma rica concepção
do trabalho, articula-os com a ontologia marxista do homem,
ou seja, submete-os a um exame científico e racional. (Cito as '" C. Cases, "Alcune vicende e problemi della cultura nella RDT". ln: !d., Saggi
e note di letteratura tedesca, op. cit., p. 131-133. O ensaio de Wolfgang Harich,
comentado por Cases, foi publicado originalmente na coletânea Das Problem der
Freiheit im lichte des wissenschaftlischen Sozialismus. Berlim, Dietz, 1956.
2 1
5 G. Lukács, Historia y consciencia de clase, op. cit., p. xxi. ·•
1
C. Cases, "Alcune vicende", op. cit., p. 132. Os trechos entre aspas simples são
252 G. Lukács, Estética, op. cit., v. l, p. 186 e 189. citações de Harich.
230 • Ü ESTRUTURALISMO E A MISERIA OA RAZÃO CARLOS NELSON COUTINHO • 231

enquanto concepção do mundo marxista. Como herdeiro do socialismo. Silenciando sobre as questões da democracia socialis-
agnosticismo da "miséria da razão", Althusser deve deixar de lado ta, sobre os problemas da luta humanista contra a manipulação
todos esses problemas decisivos da vida humana. A rígida distin- burocrática das consciências, Althusser corre o risco de tornar-se
ção que ele estabelece entre ciência e ideologia, portanto, vai lhe o ideólogo de uma tendência conservadora, que não se limita a
servir para afastar do domínio da cientificidade e da razão tudo declarar que o humanismo é um "falso problema" teórico, mas
aquilo que escapa aos limites epistemológicos e formalistas em que se empenha em eliminar pela violência dos tanques as possi-
que pretende aprisionar o marxismo. Estreitando o âmbito dessas bilidades de um concreto humanismo socialista. Essa conversão
categorias, Althusser as emprega com o objetivo de mascarar uma de Althusser no ideólogo do neoestalinismo, naturalmente, é uma
atitude neopositivista e agnóstica, que vimos se reproduzir, mutatis possibilidade -ainda puramente teórica. Mas, ao estabelecer hoje
mutandis, em todos os estruturalistas: a de declarar como "falsos suas relações com Althusser, nenhum intelectual sério e responsá-
problemas" - resíduos subjetivos em Lévi-Strauss, "doxologia" vel pode recusar-se a avaliar essa possibilidade, pelo menos como
em Foucault, "ideologia" em Althusser - todos os momentos da uma advertência.
realidade que transcendem o formalismo do intelecto e as regras da
manipulação. O aparente "rigor científico" esconde assim o radical
agnosticismo de Althusser. O terreno abandonado à "ideologia",
à arbitrariedade irracionalista, tem dimensões bastante amplas; é
o terreno da dialética objetiva, da história real, das determinações
ontológicas do social, do aspecto crítico da razão, dos problemas da
ética e do humanismo, da responsabilidade do indivíduo perante a
comunidade, da luta contra a alienação e a manipulação etc. etc.
Em consequência desse agnosticismo, Althusser não pode
responder às questões essenciais de nosso tempo. Seus conceitos
pobres e esquemáticos não são capazes de iluminar uma práxis
apropriadora, capaz de quebrar a maciça preponderância da ma-
nipulação no capitalismo de consumo e no socialismo burocrático
de hoje. Mais que isso: voluntária ou involuntariamente, esses
conceitos reforçam uma concepção pseudocientificista da realidade
que, no Ocidente e no Oriente, afirma ser possível resolver todos
os problemas do homem por meio de uma eficaz manipulação
tecnológica. Longe de contribuir para um autêntico renascimento
do marxismo, portanto, Althusser contribui para conservar - com
vestes "modernistas" - uma concepção inteiramente deformada do
POSFÁCIO*
José Paulo Netto

(para Elaine e lvanete)

Este livrq, que agora sai em segunda edição quase quatro


décadas depois de seu lançamento, viu a luz, originalmente, no
primeiro semestre de 1972 e teve, ainda, uma versão publicada
no México 1 . Desaparecido das livrarias desde meados dos anos
1970 e com a tradução castelhana praticamente inacessível, por-
quanto também esgotada, O estruturalismo e a miséria da razão
tornou-se, para os brasileiros - especialmente para as gerações que
ingressaram na vida intelectual depois de 1980 -, uma daquelas
citações bibliográficas um pouco que rituais, que se fazem formal e
obrigatoriamente pela simples razão de o seu autor ter conquistado
merecida e indiscutível relevância no panorama cultural brasileiro
nos últimos 30 anos.
Cabe, pois, perguntar se a iniciativa - tomada a meu ver em
ótima hora pela Expressão Popular, há uma década imersa numa
meritória "batalha das ideias" - de reeditar este livro, passados 38
anos, possui algum sentido para além de uma remissão histórica
ou de um eventual preito de homenagem a seu autor. A resposta,

Por valer-se de um largo rol de fontes bibliográficas, em especial críticas, perti-


nentes às questões tratadas neste Posfacio, o autor recorreu exaustivamente a notas
que foram apostas ao final do texto. Para evitar que a consulta às notas perturbe
a leitura, aquelas que têm direta relevância documental ou significância de outra
natureza foram apresentadas com sua numeração precedida por um asterisco e são
poucas - é neste caso que o leitor deve interromper a leitura e consultar a nota;
quando a numeração é apresentada sem asterisco, a nota é de caráter bibliográfico
e sua consulta pode ser postergada sem prejuízo para a compreensão deste Posfacio.
234 • POSFÁCIO JOSÉ PAULO NETTO • 235

decerto, parece-me inequívoca: O estruturalismo e a miséria da Depois que seu ensaio "A democracia como valor univer-
razão é obra essencial, absolutamente indispensável para todos sal" - ecoando nitidamente os influxos do à época influente
os que não capitulam em face da regressão ídeo-teórica que hoje euro-comunismo - foi publicado em 19792 , a remissão a Carlos
impera nos círculos intelectuais da sociedade tardo-burguesa e Nelson converteu-se em uma quase obrigação para aqueles que
campeia, quase sem limites, nos meios acadêmicos brasileiros. E se movimentam no território da (mal) chamada Ciência Política
é como obra necessária que deve ser lida, posto que fundamental - afinal, com aquele ensaio polêmico, o autor abriu entre nós,
na batalha contemporânea das ideias; mas acrescento: é obra nomeadamente na esquerda marxista, uma discussão que ainda
também insuficiente. Penso que, sem ela, encontramo-nos como hoje repercute e reverbera em novas e expressivas contribuições e
que desarmados frente à avassaladora maré da cultura regressiva; em mal-entendidos não tão novos mas igualmente expressivos. De
porém, apenas com ela não nos será possível a crítica radical e as qualquer modo, trata-se de um texto cuja ressonância foi indis-
proposições superadoras. cutível: não por outro motivo, extratos dele foram coligidos pelo
As notações que se seguem têm um objetivo muito singelo: dar sempre atento Michael Lõwy, a partir da quarta edição, na sua
fundamento a esta resposta acerca da relevância da reedição e da antologia, divulgada em vários idiomas, O marxismo na América
leitura de O estruturalismo e a miséria da razão e sumariamente Latina3 •
indicar, prosseguindo no espírito deste livro, as linhas gerais do Ao longo da década de 1980, já tornado "cientista político"
que sinalizo como cultura regressiva. - rotulação inteiramente imprópria ao autor e que ele, gentil e
sabiamente, recusa - e ingressando na vida e na atividade acadê-
1 micas, que se desenvolvem paralelas à sua militância partidária
Observei, inicialmente, que as referências a O estruturalismo e (desvinculado do PCB em 1982, adere depois ao PT, do qual se
a miséria da razão certamente se devem mais ao reconhecimento desliga para integrar o P-Sol), Carlos Nelson prossegue em seu tra-
intelectual que se creditou a seu autor no decurso dos últimos balho ensaístico, de que outro exemplo é A dualidade de poderes5,
30 anos que ao próprio livro, desaparecido em parte pela própria ganha a cena pública como conferencista de nomeada em eventos
natureza do chamado mercado de bens simbólicos, em parte pelos acadêmicos e políticos nacionais e internacionais (de que resultam
escrúpulos de Carlos Nelson Coutinho, que hesitou por anos a fio intervenções publicadas em vários volumes coletivos 6 ) e tem tra-
em republicar a sua mais importante "obra juvenil". balhos divulgados na América Latina e na Europa. Conquista, em
Se, por um lado, tais escrúpulos nunca me pareceram funda- suma, ao fim da década de 1980 e na entrada dos anos 1990, no
dos e/ou pertinentes (e espero que o leitor dos dias atuais, depois panorama cultural brasileiro, uma visibilidade incontestável que,
de ter percorrido as páginas de O estruturalismo e a miséria da desde então, só veio em crescendo.
razão, também os considere da mesma forma), por outro lado é No processo em que Carlos Nelson se torna um intelectual
mais que compreensível que a referência meio que ritual ao livro de projeção, conta muito a sua relação com a obra de A. Gramsci,
venha condicionada pelo prestígio que os anos seguintes conferi- que, de fato, data ainda dos anos 1960, quando se incumbiu da
ram ao seu autor. tradução de Concepção dialética da história, Literatura e vida na-
236 • POSFÁCIO JOSÉ PAULO NETTO • 237

cional e Os intelectuais e a organização da cultura7• Muito antes do do seu país nos últimos decênios" 16 • Mas, já ames, o reconheci-
comunista sarda converter-se no butim de que se nutrem ilegítima mento nacional viera nas referências que a ele foram feitas, com
e alegremente serventuários das mais diversas repartições públi- respeito e admiração, entre tantos, por Nelson Werneck Sodré,
cas e oficinas ideológicas, Carlos Nelson dedicava a ele especial Octavio Ianni, Raymundo Faoro e Alfredo Bosi.
atenção; este cuidado analítico - aprofundado durante o período
em que, na condição de exilado político, viveu na Itália* 8 - ha- 2
veria de constituir, na ulterior evolução do nosso autor, não só A imagem de Carlos Nelson como "gramsciano" é adequada -
uma referência teórico-política privilegiada, mas sobretudo um aliás, não por acaso, ele é vice-presidente da International Gramsci
permanente objeto de pesquisa. O primeiro produto específico Society-, mas .tem contribuído para deixar na sombra, em boa me-
desta pesquisa foi o estudo introdutório à antologia gramsciana dida, a matriz teórica que embasou originalmente a sua formação
que Carlos Nelson publicou em 1980 9 ; tal estudo, já ampliado, marxista e, em escala também decisiva, a sua produção intelectual.
constituiria depois o livro Gramsci. Um estudo sobre seu pensamento Com efeito, já nos seus anos de formação em Filosofia, ain-
político10 - que, após quase uma década, voltaria a ser alvo de uma da na Bahia, Carlos Nelson lia o teórico que haveria de marcar
significativa extensão, em edição que serviria de base para a sua fundamente a sua relação com a obra de Marx: Gyõrgy Lukács.
tradução ao italiano11 • Sem deixar qualquer margem a dúvidas, é possível afirmar que a
Esta contínua reflexão sobre a obra gramsciana expressa-se apropriação e a utilização que Carlos Nelson vai realizar dos clássi-
praticamente em todas as intervenções de Carlos Nelson pós-1980, cos do marxismo e da tradição marxista mesma, de inícios dos anos
tanto naquelas especificamente dedicadas ao fundador do Partido 1960 à primeira metade da década de 1970, é toda ela vincada pela
Comunista !taliano 12 quanto em análises de conjunturas políticas e mediação do pensamento de Lukács.
culturais* 13 • Mas a culminação desta incansável pesquisa em torno De um ponto de vista histórico, parece inteiramente consen-
do legado gramsciano veio na abertura dos anos 2000: coube a sual que devemos a Leandro Konder e a Carlos Nelson o trabalho
Carlos Nelson a iniciativa e a responsabilidade da edição, em tra- sistemático, nos anos 1960, de trazer a referência lukacsiana à
duções suas 14 , e de Marco Aurélio Nogueira e Luiz S. Henriques, cultura brasileira17 - na verdade, é impossível estudar a recepção
de praticamente toda a obra de A. Gramsci: os seis volumes dos das ideias de Lukács em nosso país sem levar em conta o prota-
Cadernos do cárcere, os dois volumes dos Escritos políticos e também gonismo de Leandro Konder e Carlos Nelson 18 • No entanto, não
os dois volumes das Cartas do cárcere15 • tem a mesma evidência o trabalho crítico - literário e filosófico -
Tão notável empreendimento e o conjunto de análises sobre a realizado por Carlos Nelson, de meados dos anos 1960 à primeira
formação social e cultural brasileira que atravessa a sua produção metade da década de 1970, sob a direta influência de Lukács. De
ensaística valeram a Carlos Nelson o reconhecimento internacional algum modo, o seu deslocamento da crÍtica literária e filosófica
- seja como "o decano dos estudiosos brasileiros de Gramsci", seja para a dita Ciência Política, concomitante ao seu giro na direção
como aquele que "soube utilizar algumas das principais categorias do pensamento de Gramsci, tem obscurecido aquela dimensão do
teóricas gramscianas para interpretar a história política e cultural seu trabalho intelectual.
238 • POSFÁCIO
JOSÉ PAULO NETTO • 239

Decerto seria um equívoco sinalizar, na evolução teórico-política O primeiro deles 22 revelou ao país um crítico cuja estreia em
de Carlos Nelson, uma "fase lukacsiana" e uma "fase gramsciana". livro, aliás precoce (os ensaios que compõem o volume foram escri-
O próprio Carlos Nelson, reiteradas vezes, em conferências e de- tos antes do autor completar 23 anos), oxigenava a análise literária
bates, tem insistido - e não há nenhum motivo para questionar brasileira e trazia ao debate questões inovadoras. Ademais de um
esta insistência - em que, para ele, nunca se colocou a alternativa largo ensaio sobre a estética lukacsiana (tematizando o realismo
Lukács ou Gramsci; antes, ele terá escolhido a combinatória Lukács como a sua categoria central) e de uma aproximação bastante
e Gramsci: entende Carlos Nelson que, no que diz respeito à esfera peculiar ao pensamento de Sartre - nos quais a argúcia estética e
da política, o pensamento de Lukács contém limitações de que filosófica do jovem crítico se mostrava nitidamente -, dentre os
não enferma o pensamento de Gramsci; porém, entende ainda a textos de crítiça literária avultavam belos estudos sobre Dostoiévski
possibilidade de uma "integração dialética" de ambos 19 • Está claro e Semprun e, especialmente, um original e criativo trato da obra
que uma tal "integração dialética" não se processa (se, a meu juízo, romanesca de Graciliano Ramos. A contribuição de Carlos Nelson
se processar) sem problemas: não só há diferenças, mas verdadeiras a uma nova abordagem do universo do autor de São Bernardo -
colisões entre a ontologia social formulada por Lukács e o substrato na qual umas poucas cedências a sugestões de L. Goldmann não
filosófico das concepções de Gramsci - mas também está claro que ferem a substantividade da inspiração lukacsiana - acabou por
Carlos Nelson, com sua sensibilidade crítica, não minimiza tais se tornar um dos mais exitosos e acabados exemplos da crítica
20
problemas • E está igualmente claro que, quando retoma temáti- literária marxista no Brasil23: quem pretende um conhecimento
cas crítico-literárias, mesmo já tendo incorporado decisivamente o da estrutura do romance de Graciliano não pode passar por alto
legado gramsciano, Carlos Nelson conserva (igualmente de modo peça analítica de tal quilate 24 •
crítico) a sua inspiração lukacsiana - prova-o, nitidamente, o último Aliás, a excepcional qualificação de Carlos Nelson para a
livro que publicou sobre a temática 21 • Tudo isto me permite inferir, análise da estrutura romanesca, que veio reafirmada na sua ple-
creio que sem violentar o caráter unitário da evolução e da obra de na maturidade pelos estudos publicados no antes citado Lukács,
Carlos Nelson, que tal unidade quer se alimentar de uma diferen- Proust e Kafka. Literatura e sociedade no século XX, apareceu já
ciada remissão marxista: aos fundamentos teórico-filosóficos e à alta inteiramente consolidada na sua contribuição, na entrada dos
cultura caberia a matriz lukacsiana, à cultura em sentido largo e à anos 1970, ao volume coletivo Realismo e anti-realismo na litera-
esfera estritamente política caberia a referência gramsciana, ambas tura brasileira25 • Este contributo, um ensaio sobre Lima Barreto,
tomadas crítica e criadoramente. tornou-se, tanto quanto o tratamento oferecido a Graciliano,
Isto posto, insisto no fato de a atividade crítica (literária e material de consulta obrigatória para críticos e historiadores
filosófica) de Carlos Nelson anterior à sua intervenção no domí- literários - seja pela abordagem imanente da obra romanesca de
nio teórico-político estar injustamente obscurecida. Constituem Lima, em especial d'O triste fim de Policarpo Quaresma (na qual
as peças centrais desta atividade, exercitada sob direto influxo Carlos Nelson toma como criativa chave de análise a bizarria,
lukacsiano, dois livros: Literatura e humanismo e O estruturalismo tal como posta por Lukács), seja pela inovadora interpretação da
e a miséria da razão. peculiaridade histórica da inserção sociopolítica dos escritores
240 • POSFÁCIO Jost PAULO NETTO • 241

na nossa sociedade (a partir da também lukacsiana indicação do de Janeiro. Com perdas de tamanha profundidade, o que restou
intimismo à sombra do poder). de inteligência filosófica nas universidades ficou à espera de
No nível crítico-filosófico, a maior prova do talento de Carlos tempos melhores (para retomar a canção de Chico Buarque,
Nelson oferece-a O estruturalismo e a miséria da razão, livro que - tratou de guardar-se "para quando o carnaval chegar") e, sem
verdadeiro tour de force para um intelectual que ainda não chegara querê-lo, deixou em aberto um espaço significativo, que logo foi
aos 30 anos de idade (a primeira redação do texto é de 196911970, ocupado: se as primeiras expressões estruturalistas entre nós vêm
com a sua forma definitiva concluída em julho de 1971, ou seja: de 1966/1967 - quando Otto Maria Carpeaux já advertia que o
trata-se de livro escrito entre os 27 e os 28 anos) 26 - só agora co- estruturalismo é o ópio dos literatos28 - , nos anos imediatamente
nhece a sua segunda edição. seguintes registra-se uma maré-montante de correntes estrutu-
A conjuntura em que O estruturalismo e a miséria da razão foi ralistas de matizes diversos, que invadiram praticamente todos
redigido e publicado era asfixiante: o terrorismo estatal estava a os departamentos de Ciências Humanas e Sociais.
pleno vapor, a coberto da ignomínia do Ato Institucional nº 5, A adesão ao estruturalismo galvanizou a intelectualidade aca-
que mudou a natureza do regime instaurado pelo golpe de 1964. dêmica, envolvendo desde pesquisadores sérios aos oportunistas
Após cerca de quatro anos de paradoxal hegemonia cultural da de ocasião e de sempre - assim, não só a filosofia, mas a crítica
esquerda sob uma ditadura reacionária* 27, o fascistizado regime do literária, a linguística, as ciências sociais tornaram-se o couto de
1° de abril direcionou a sua grosseira ferocidade também para a caça da "estrutura", com o florescimento, inclusive, de uma espécie
intelectualidade que até então não capitulara frente ao arbítrio e ao de "marxismo legal-acadêmico" (ecoando, em especial, a contribui-
obscurantismo. A razzia nas instituições universitárias veio em fins ção althusseriana). Se se leva em conta a constituição, à época, de
de 1969 e foi melhor operacionalizada pelo ominoso Decreto-Lei um mercado nacional de bens simbólicos, colada ao erguimento
nº 477 - para descrever o quadro cultural vigente na entrada da de uma indústria cultural monopolizada e centralizada 29 , ambos
década de 1970, um intelectual delicado como Alceu de Amoroso integrando a intelectualidade acadêmica, torna-se compreensível
Lima não encontrou outro qualificativo senão o de vazio. que as correntes estruturalistas tenham se convertido, então, numa
No terreno específico da filosofia, refletia-se bem aquele espécie de senso comum do mundo letrado - e senso comum sem
estado de coisas deprimente porque, se desde o primeiro mo- oposição ou dissensão expressiva 30 .
mento do golpe, o Instituto Brasileiro de Filosofia o respaldara, Com efeito, a maré-montante estruturalista, no Brasil, mo-
na sequência do AI-5 os filósofos e professores de Filosofia mais veu-se com olímpico desprezo das críticas (Sartre, Goldmann e
qualificados e recém-ingressados na sua maturidade, dispostos e Lefebvre) que já eram bastante conhecidas a seus mais evidentes
habilitados a prosseguir na pesquisa crítica, foram simplesmente equívocos e a seus cacoetes mais grosseiros. E poucos, muito
alijados de seus postos acadêmicos pela sanha ditatorial - são poucos, tiveram condições e desassombro para enfrentá-la - entre
emblemáticas, aqui, as perseguições sofridas por pensadores os raros intelectuais que se dispuseram a remar contra a corrente,
como Gerd Bornheim, em Porto Alegre, José Arthur Giannotti recordem-se os nomes de José Arthur Giannotti e, da cadeia onde
e Ruy Fausto, em São Paulo, e José Américo Pessanha, no Rio pagava por um "crime político", Caio Prado Jr.* 31 • É precisamente
JOSÉ PAULO NETTO • 243
242 • POSFÁCIO

neste quadro que O estruturalismo e a miséria da razão sai à luz - o mensão ontológica na análise dos seus objetos; substantivamente,
que, por si só, diz da coragem intelectual de seu autor. a crítica de Carlos Nelson às matrizes estruturalistas incide na auto-
nomização que promovem da epistemologia em relação à ontologia,
3 conduzindo, no limite, à eliminação desta (com o que, decorrente-
O estruturalismo e a miséria da razão é tributário de funda- mente, se suprime a possibilidade de apreender concretamente a
mentais determinações teórico-metodológicas lukacsianas: é obra historicidade dos processos sociais). Exatamente aqui comparece o
de um discípulo (como, aliás, Carlos Nelson se reconhece na de- constitutivo central da elaboração de Carlos Nelson: desconhecen-
dicatória que abre o livro). Mas se trata mesmo de um discípulo, do as formulações da então inédita Ontologi-a do ser social, apoiado
não de um simples seguidor ou epígono - ou seja: é obra de um apenas em sumárias e episódicas indicações lukacsianas, ele foi
intelectual que, incorporando a perspectiva teórico-metodológica capaz de conduzir uma operação crítico-analítica inteiramente
explorada pelo "mestre" e suas conquistas analíticas, desenvolve a consequente com o espírito do último Lukács 33 •
partir delas uma crítica original sobre um complexo de problemas Mas esta operação crítico-analítica, sustentada no caráter on-
que, até então, estivera fora de uma consideração similar. Neste tológico que Lukács corretamente atribuiu à teoria social de Marx,
sentido, o trabalho do "discípulo" é criativo e inovador; mais: pode funda-se ainda noutro pilar: a categoria de decadência ideológica
ser tomado como autêntica e legítima continuação do trabalho do - tão pouco compreendida e desprezada inclusive por pensadores
"mestre". Se é verdade que sem este não haveria aquele, é igual- do porte de um Sartre -, que Lukács extraiu de Marx já nos anos
mente verdadeiro que o "discípulo" (tal como aqui se o entende) i 1 1930*34 e que está na base das concepções desenvolvidas pelo
'
oferece à tradição teórico-crítica em que se inscreve contributos filósofo húngaro em A destruição da razão. Nesta obra ciclópica
essenciais e inéditos. e polêmica, Lukács privilegia a contraposição entre razão e irra-
A filiação lukacsiana de O estruturalismo e a miséria da razão zão35 e demonstra que o moderno irracionalismo (cujos suportes
é expressamente assumida pelo seu autor, que se remete explici- são lançados por Schelling, mas cuja instauração cabe mesmo a
tamente aos núcleos teórico-críticos de A destruição da razão e às Nietzsche), terminando por abrir o caminho ideológico para o hor-
formulações do "último Lukács", nomeadamente às ideias que o ror nazista, fornece uma resposta evasionista em face da realidade
pensador húngaro adiantava, à época, acerca da ontologia do ser histórico-social - e a evasão diante dos dilemas histórico-sociais
social - e que Carlos Nelson só podia recolher esparsamente, em mais decisivos é um traço peculiar ao pensamento decadente.
depoimentos e entrevistas de Lukács, uma vez que a obra conclu- Estes são, expressamente, os débitos fundamentais de Carlos
32 Nelson para com seu "mestre" Lukács. Mas, a partir deles, sobre-
siva do itinerário lukacsiano ainda não fora publicada •
Este é um aspecto essencial de O estruturalismo e a miséria levam os desenvolvimentos formulados pelo "discípulo". A origina-
da razão, que singulariza o trato do estruturalismo operado por lidade de O estruturalismo e a miséria da razão é cristalina e pode
Carlos Nelson: é medular na sua crítica de fundo ao pensamento ser verificada em dois níveis claramente articulados: em primeiro
estruturalista a tese de que este (como, aliás, todas as versões do lugar, na crítica ao racionalismo formal, com a introdução da
pensamento neopositivista) tem por substrato a liquidação da di- categoria de miséria da razão; em segundo lugar, estabelecendo a
244 • POSFÁCIO JOSÉ PAULO NETTO • 245

relação entre a raZtio miserável e a ideologia da segurança (temáticas pelo capital: entre a "angústia" e a "segurança", operam como
específicas dos capítulos 1 e II deste livro). constelações ídeo-teóricas sobre as quais se erguem "concepções
A categoria de miséria da razão é uma elaboração pessoal de de mundo" conservadoras/estabilizadoras da ordem.
Carlos Nelson. Como se sabe, n~ destruição da raZtio, Lukács não O estruturalismo e a miséria da raZtio não se detém, todavia, no
opera suficientes discriminações ídeo-teóricas no campo da razão, que Carlos Nelson designou como a "análise da gênese histórico-
de modo que permanece sem tratamento uma importantíssima filosófica do estruturalismo". Se esta análise é imprescindível, a
vertente do pensamento ocidental moderno que, embora sendo exigência especificamente teórico-filosófica requer mais: requer
formalmente racionalista, de fato capitula em face da realidade, ainda o exame imanente e sistemático das elaborações estrutura-
aceitando a sua ímediaticidade (isto é, a sua aparência reificada) e listas (o exame interno do "discurso teórico-filosófico") - e este é
assumindo, como se fora implicação necessária do caráter relativo o objeto dos capítulos III, IV e V do livro que está nas mãos do
de todo conhecimento, um relativismo que redunda no agnosticis- leitor. Sem concessões ao sociologismo (ou a qualquer outro tipo
mo social: trata-se das correntes positivistas e neopositivistas - nas de reducionismo), a argumentação de Carlos Nelson avança para
quais o capitulacionismo em face da realidade quase sempre se apreender os nexos internos do pensamento estruturalista e suas
assegura à base do epistemologismo36 • As formulações de Carlos efetivas e mediadas conexões com a realidade histórico-social de
Nelson sobre a razão miserável, que, certamente, recuperam crí- que é constituinte e componente indescartável. O passo inicial
tica e seletivamente um largo legado intelectual - que arranca de deste percurso analítico compõe o capítulo III e se complementa
Hegel (com a notável distinção, apresentada no prefácio à primei- no item 1 do capítulo IV: vinculam-se dialeticamente o brilhante
ra edição da Ciência da lógica, entre Verstand e Vernunft), passa excurso sobre linguagem, práxis e razão, a esclarecedora análise
pelos problemáticos Lukács e Korsch de 1923 e vem desaguar em do trânsito do neopositivismo ao estruturalismo e a ousada crítica
alguns representantes da "escola de Frankfurt"*37 e em pensadores a Lévi-Strauss.
influenciados diretamente por Marx, como Lefebvre e Goldmann) Até esta altura, O estruturalismo e a miséria da razão revela
- tais formulações são inovadoras e criativas, esclarecendo sobre- a sua força e a sua atualidade - mais exatamente, os traços que
tudo a relação de complementaridade entre racionalismo formal e respondem pela sua consideração como livro a ser necessariamente
irracionalismo moderno na cultura própria ao capitalismo do sécu- compulsado nos dias correntes. Daí em diante, ou seja: os itens 2 e
lo 20 (ou, se se quiser, ao capitalismo dos monopólios em sua plena 3 do capítulo IV, bem como o capítulo V, fica dara a insuficiência
maturidade, que, para Carlos Nelson, configura o "capitalismo do texto.
manipulatório"), cultura que é expressão inequívoca da decadência Esclareçamos para evitar mal-entendidos: a meu juízo, o exa-
ideológica. Esta relação de complementaridade, Carlos Nelson me crítico a que Carlos Nelson submete o pensamento de Foucault
descobre-a na função ideológica que moderno irracionalismo (a e Althusser - e de um autor efetivamente menor, mas influente,
"destruição da razão") e racionalismo formal (a "razão miserável") como Banhes - não contém nenhum equívoco. As suas análises,
desempenham como constitutivos da cultura burguesa no marco todavia, estão limitadas porque o material sobre o qual operou a
das tensões, oscilações e contradições da sociedade comandada sua crítica é também limitado: Althusser e Foucault prossegui-
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ram em sua atividade intelectual num arco temporal mais amplo o inteiro percurso teórico-filosófico e ídeo-político de Althusser
e produziram textos que assinalaram inflexões em sua evolução e, especialmente, de Foucault. Ademais, há que lembrar que o
ídeo-política. Basta lembrar que Althusser (cuja vida intelectual interesse de Carlos Nelson em relação aos estruturalistas foi, ob-
foi brutalmente interrompida pela tragédia pessoal de que todos viamente, seletivo: sua abordagem incide sobre aqueles (Althusser e
temos notícia) 38 , ao tempo em que Carlos Nelson escrevia, ainda Foucault) que mais diretamente impactavam o campo da tradição
não dera à luz a Réponse à John Lewis (1972), Philosophie et philo- marxista e, nomeadamente, o "marxismo legal" que começava a se
sophie spontannée des savants (1973), Éléments d'autocritique (1974), constituir no Brasil - eis o que explica, penso, que ele não se tenha
bem como alguns textos de Positions (1976) 39 ; nestes materiais, em detido sobre autores cuja relevância tornou-se muito mais flagrante
maior ou menor medida, encontram-se elementos ausentes nos no decurso dos-anos 1970 (parece-me o caso específico de Lacan),
textos analisados por Carlos Nelson 40 • No que toca a Foucault, nem, ainda, sobre os rebatimentos do estruturalismo para além
a questão é ainda mais complicada, posto que ele tenha não só da França (em especial, nos Estados Unidos, onde, na transição
escrito e editado abundantemente depois de 1969 - ano da pu- dos anos 1960 aos 1970, figuras francesas de proeminência como
blicação d'Arqueologia do saber que, com As palavras e as coisas Derrida já desfrutavam de prestígio 42 ).
(1966), é objeto da crítica de Carlos Nelson - como, sobretudo, Tais limitações de O estruturalismo e a miséria da razão, que
que ele tenha incorporado ao seu universo intelectual, ampliando- hoje se revelam evidentes e mostram a sua insuficiência, não po-
º sensivelmente, autores e temas ausentes em sua produção até dem ocultar a sua força: nas páginas de Carlos Nelson que o leitor
fins dos anos 1960. Textos diferenciados e fundantes do que se acabou de percorrer, está realizada uma exemplar crítica ontológica
poderia designar como "foucaultianismo" - como Surveiller et que não fere apenas as bases do pensamento estruturalista - trata-
punir, Microphysique du pouvoir e os três volumes da Histoire de se de crítica sem a qual é impensável o tratamento rigorosamente
la sexualité, ademais dos Dits et écrits41 - obviamente não podiam marxista (e lukacsiano) de correntes teórico-filosóficas e ídeo-políticas
ser considerados por Carlos Nelson. Esta ampliação do universo que se desenvolveram depois do estruturalismo.
intelectual de Foucault foi necessariamente coetânea a indiscutíveis
giros na sua reflexão, que conformaram, a partir dos anos 1970, 4
um novo perfil deste pensador - que, é claro, não foi analisado Em obra fartamente documentada, François Dosse observa
por Carlos Nelson. que a explosão de maio de 1968 favoreceu decisivamente o pen-
Em resumo: a crítica a que, em O estruturalismo e a miséria samento estruturalista. Escreve ele: "Os estruturalistas eram, em
da razão, são submetidos os textos de Althusser e Foucault não dá sua maior parte, marginais até 1968. A contestação estudantil de
conta do conjunto da obra de ambos. Isto não significa que tal crítica maio, a modernização da universidade, a implosão da Sorbonne,
possa ser desconsiderada: ao contrário, deve ser necessariamente vão permitir-lhes realizar a desejada penetração num mundo
levada em conta se se quiser compreender a totalidade do pensa- universitário, no qual fazem a sua entrada maciça". E anota: "Se
mento dos dois autores - contudo, e também necessariamente, há existe ambiguidade sobre as consequências do evento-68, no plano
que sublinhar os seus limites: apenas com ela não se compreenderá teórico, não é esse o caso no plano institucional: o estruturalismo
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é o grande beneficiário do movimento de contestação"43 • Esta como movimento de natureza autocrítica 48 -, há algo de flagrante-
conclusão parece inteiramente legítima e nada mais emblemático mente novo na reflexão althusseriana: o esforço para abandonar o
dela que o ingresso do "marginal" Foucault no College de France teoricismo que marcou a sua produção anterior. Praticamente todos
(2112/1970) 44 • os analistas de sua obra ressaltam que esta tentativa (obviamente
De fato, nos anos imediatamente posteriores ao maio de 1968, marcada pela experiência de 1968, quando Althusser manteve
os estruturalistas dominaram a cena intelectual francesa. Pelo um distanciado e prudente silêncio em face da explosão de maio)
menos até meados da década seguinte, o pensamento estrutura- tem seu ponto de arranque no célebre ensaio sobre os aparelhos
lista, nos seus diversos matizes - mas, basicamente, nas vertentes ideológicos de Estado (que veio à luz em 197049 ), no qual reverbe-
althusseriana e foucaultiana, aliás compatíveis e complementares ram ecos gramscianos. Dosse chega mesmo a afirmar que, neste
-, hegemonizou a cultura acadêmica francesa e, no exterior da texto, definidor de "um vasto programa de pesquisa", Althusser
França, da cultura francófila e francófona 45 • Os dilaceramentos abre o passo a um deslocamento em que transita "de um ponto de
ídeo-políticos dentro do campo estruturalista (exemplificados, por vista puramente teórico, especulativo, para uma consideração da
exemplo, nos rumos da revista Tel Quel, de Philippe Sollers, que 'análise concreta de uma situação concreta"' 50 - mas este esforço
transita para o maoismo) não põem em questão esta hegemonia, não se expressou em nenhuma elaboração analítica do próprio
que, porém, será logo (a partir de meados dos anos 1970) erodida Althusser, revelando-se antes como uma petição de princípio;
por razões e motivos de outra natureza - não é por acaso, aliás, neste deslocamento, contudo, havia uma abertura de Althusser
que tal hegemonia acabará por configurar o que Dosse designa para muito mais que "práticas teóricas" - em especial, as práticas
como "o canto de cisne" do estruturalismo. institucionais (das quais aquelas próprias da instituição escolar
Estes anos de hegemonia estruturalista terão em Althusser e seriam amplamente destacadas 51 ).
Foucault seus "mestres pensadores". Na abertura da década de E o último trabalho significativo de Althusser, de 1978, é
1970, inicialmente o proscênio caberá a Althusser. O Althusser uma clara implicação de tal deslocamento: constitui uma in-
deste período não alterará substantivamente as suas concepções tervenção que destoa completamente do teoricismo anterior -
teórico-metodológicas - por isto, as críticas fundamentais que lhe trata-se da reunião, em um opúsculo intitulado Ce quine peut
são dirigidas em O estruturalismo e a miséria da razão permanecem plus durer dans le Parti Communiste 52 , de artigos publicados em
válidas: no seu pensamento, a dissolução das determinações onto- Le Monde (abril de 1978). Neste conjunto textual, Althusser,
lógicas em proveito do epistemologismo não sofrerá alterações; ao reafirmando a sua discreta crítica ao estalinismo (um "desvio"),
contrário, elas se consolidarão (rebatendo na produção de Domi- já esboçada na Resposta a John Lewis, enfrenta a problemática
nique Lecourt e Pierre Raymond46 ), simultaneamente ao espraia- efetiva do PCF, questionando não só a sua estrutura organizacio-
mento da influência althusseriana para o campo da antropologia nal mas, sobretudo, a sua natureza institucional e suas práticas
(Emmanuel Terray e, em especial, Marc Augé47) • excludentes em relação à militância. Nunca, até então, Althusser
No entanto, ademais de um discreto e formal distanciamento se manifestara tão nítida e expressamente sobre a prática política
das correntes estruturalistas - que alguns autores interpretarão concreta do seu partido 53 - e com incidências sobre o conjunto
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das suas ideias, já que me parece correto dizer que, "na medida Carlos Nelson, vazada em O estruturalismo e a miséria da razão,
em que suas reflexões sobre as questões de organização afetam o incide tão somente sobre o "primeiro Foucault'', não recobrindo
problema medular das relações entre teoria e prática, concluímos a essencialidade do trabalho do autor da História da loucura. E,
que, neste domínio, Althusser alcança um ponto de não retor- com efeito, fica fora do campo textual da crítica de Carlos Nelson
no em face de seu anterior teoricismo" 54 • Sua tragédia pessoal toda a reflexão que Foucault desenvolve a partir do seu ingresso no
impediu-o de dar (ou não) consequência a este giro; de qualquer College de France. Numa palavra: o leitor de O estruturalismo e a
forma, ele oferece elementos de problematização para a conclusão miséria da razão não encontra aqui nada que vá além do "momento
política a que Carlos Nelson chega em O estruturalismo e a misé- arqueológico" que Foucault encerraria em 1969.
ria da razão: "... sua conversão no único filosófo marxista francês Como já ii:idiquei sumariamente, há fontes que permitem ir
'oficial' [é] sintoma de que o caráter direitista ou conservador do bem adiante na crítica a Foucault (cf as notas 41 e 42). Entretanto,
pensamento de Althusser - já evidente no plano especificamente na bibliografia disponível, a linha analítica inaugurada por Carlos
teórico - poderá rapidamente converter-se também numa reali- Nelson não teve maiores desenvolvimentos, exceto no caso do
dade prática e política" 55 • Certamente que, se pudesse levar em trabalho de Mavi Rodrigues 58 • Pesquisadora rigorosa e disposta
conta Ce qui ne peut plus durer dans le Parti Communiste, Carlos à polêmica, Rodrigues dedicou ao conjunto da obra de Foucault
Nelson reconsideraria esta prospecção. uma crítica radical que, embasada explícita e justamente em O
Portanto, a meu juízo, a insuficiência de O estruturalismo e estruturalismo e a miséria da razão, procura dar conta do inteiro
a miséria da razão, no que toca à análise de Althusser, reside em Foucault, da História da loucura ao terceiro volume da História
não dar conta - explicavelmente, por razões que já se indicou - do da sexualidade. Formulando ideias que colidem com a maioria das
itinerário ídeo-político do Althusser posterior a 1970. Diversa é interpretações correntes, ela sustenta o caráter sistemático e unitário
a insuficiência no que diz respeito a Foucault - aqui, a questão é do pensamento foucaultiano - sem prejuízo das suas metamorfoses
mais complexa. - e conclui que Foucault, sempre na fronteira entre a destruição e
Um bom número de críticos qualificados distingue, no con- a miséria da razão, realizou uma operação ídeo-teórica específica,
junto da obra foucaultiana, diferentes momentos evolutivos 56 ; consistente em "celebrar o irracional por meio de uma desconstrução
apesar dos seus distintos quadros analíticos, há um consenso entre racionalista formal da Ratio Moderna" e, com isto, abriu o cami-
eles: A arqueologia do saber (1969) assinala o fim de um estágio nho à pós-modernidade* 59 .
no processo constitutivo do pensamento de Foucault, que ganha, Se a análise de Rodrigues for essencialmente correta - e a mim
especialmente após a "implosão da grade althusseriana" 57, uma me parece que é, à parte elementos adjetivos -, seu trabalho tem,
formidável influência sobre a cultura francesa (e não só). Ora, em relação a O estruturalismo e a miséria da razão, uma dupla
independentemente da apreciação que se faça sobre as clivagens significação: primeiro, demonstra a necessidade (a força e a atua-
encontráveis na obra de Foucault, o que é factual consiste em que lidade) da crítica de Carlos Nelson para a consideração totalizante
o mais ponderável - sob todos os aspectos - da produção fou- de Foucault; segundo, constitui uma contribuição indispensável
caultiana é posterior ao livro de 1969; isto significa que a crítica de para superar os limites (a insuficiência) daquela crítica.
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5 de configurar, no espaço público, entre outras mutações, o eclipse


Escapa aos limites deste posfácio a referência aos desdobramen- do intelectual universal, obscurecido pelo intelectual específico - de
tos e descolamentos ocorridos no interior do campo estruturalista que a ilustração mais emblemática é o ocaso da ressonância de
durante e após a sua hegemonia intelectual 60 • Importa, porém, Sartre em paralelo à ascendência da referencialidade de Foucault.
sublinhar com a máxima ênfase que a dominância estruturalista, Ao observador mais atento o que não escapa é que o refluxo
com suas características imanentes, contribuiu com força para do pensamento estruturalista representou, visto à distância que
infletir vetores nucleares que até então incidiam vigorosamente no permite uma perspectivação mais abrangente, um momento de
pensamento francês, operando com nítidos rebatimentos na con- transição no sentido da inflexão mencionada linhas acima, para
formação da cultura que a sucedeu. Tais características podem ser a qual ele, objetivamente, colaborou: a transição à emersão do
resumidas em três traços medulares do pensamento estruturalista, que viria a ser designado como pós-modernidade - e, nesta tran-
que se inscreveram determinantemente no pensamento francês sição, um giro extraordinário, surpreendente até mesmo para os
desde então: 1. o deslocamento de Hegel em favor de Nietzsche (e Hei- corifeus do estruturalismo: um violento giro à direita. Na cultura
degger); 2. a dissolução da ideia de verdade e 3. uma historicização francesa, a segunda metade dos anos 1970 assistirá ao fulgor dos
categorial que cancela toda referência ao universal''. Mais adiante novos filósofos - formuladores midiáticos de um pensamento níti-
nos encontraremos com esta herança estruturalista. da e expressamente restaurador que, à diferença do conservador
O refluxo do pensamento estruturalista, visível a partir da ilustrado (R. Aron), se propõem a ser o batalhão de choque da
segunda metade dos anos 1970, cedendo lugar ao mal chamado guerra ideológica contra todó o pensamento da esquerda, tal como
"pós-estruturalismo"62 , foi sem dúvidas um fenômeno marcante: o documentam duas obras típicas deste período: La cuisiniere et le
o pensamento francês posterior distingue-se radicalmente do que mangeur d'hommes (1975), de André Gluksmann 66 e La barbarie à
foi o espírito francês dos anos 1960 e autores que estiveram na visage humain (1977), de Bernard-Henri Lévy, ambos ex-maoistas,
base da dominância estruturalista são bastante críticos em rela- antes "campeões da adesão mística ao grande timoneiro ... [que]
ção ao que a sucedeu 63 . Com efeito, na abertura dos anos 1960, descobrem então o discreto charme do liberalismo"67 . Este giro à
tudo indicava que Sartre vocalizava um sentimento generalizado direita tem rafaes já no pré-68, como o mostra um aroniano como
na cultura francesa ao afirmar que "o marxismo, como quadro Winock68 ; porém é notável, nele, a presença de protagonistas que,
formal de todo pensamento filosófico de hoje, é insuperável" 64 . nos eventos de 1968, exibiam um extremado ,i;adicalismo esquer-
Mas o que Sartre não levava em conta, seu opositor Raymond dista*69 (ainda que, note-se, nem todos os novos filósofos disponham
Aron (que, precisamente, seria entronizado como grande pensador desse episódio no seu currículo). A novidade ídeo-política é aqui
na sequência do maio de 1968) perceberia com sensibilidade: ''A indiscutível: se mesmo entre os estruturalistas não-marxistas havia
intelligentzia dos anos 1960 tinha por deus não mais o Sartre do um denominador comum anticapitalista (talvez seja possível verifi-
pós-guerra, mas uma mistura de Lévi-Strauss, Foucault, Althus- car, neles, a reiteração daquela epistemologia "de direita" justaposta
ser e Lacan"65 - e esta não era uma diferença qualquer. Nos anos a uma .ética "de esquerda" de que falava Lukács), os novos filósofos
seguintes ao turbilhão de 1968, tal diferença viria à tona e haveria rompem expressamente com ele: agora, trata-se de prioritariamente
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defender a ordem burguesa em nome da "liberdade", inclusive saliência e que o giro à direita de historiadores franceses adquire
porque é ela que se mostra a mais adequada para o combate ao caráter emblemático com a evolução de um ex-estalinista, François
"totalitarismo" - leia-se: ao socialismo, não só identificado como Furet, convertido ao "credo democrático" nos anos 1960 e autor
a experiência soviética, mas como derivação necessária das ideias de vários estudos sobre a Revolução Francesa77 - estudos nos
de Marx70 • quais a interpretação da revolução se altera ao sabor das variações
Esta profunda viragem à direita, que não envolveu os princi- ideológicas do autor, que, arrancando de um Marx estalinizado,
pais corifeus do estruturalismo, agora nos castelos de prestigiados termina nos braços de Alexis de Tocqueville e Augustin Cochin78 •
nichos acadêmicos, foi frequentemente analisada como resultante Esta referência à franca direitização da cultura francesa, seja
do impacto causado na França pela divulgação d'O arquipélago no domínio da filosofia, seja no da história, deve ser tomada
Gulag, de Solzenitsyn71 - é evidente que se trata de explicação apenas como indicadora do novo espírito do tempo (Zeitgeist) que
falaciosa: as "revelações" de Solzenitsyn eram conhecidas de há emerge a partir de meados dos anos 1970 e que será responsável
muito e intelectuais de esquerda (como, por exemplo, marxistas pelo aviltamento e a degradação de boa parte da produção ídeo-
de inspiração trotskista) que as tomavam a sério operaram a críti- teórica e da publicística francesas das duas últimas décadas, que
ca ao estalinismo e sua continuidade sem, com isto, se tornarem tem canonizado, com especiais recursos midiáticos, verdadeiros
necessariamente trânsfugas ou renegados - não se puseram a casos de delinquência intelectuaF9 • Mas a sua referência necessária
questão de escolher entre Stalin e Joana d'Arc, como o fizeram não pode conduzir uma indevida generalização - de fato, se se
G. Lardreau e C. Jambet em seu L'Ange (desnecessário dizer da infletiu uma linha de força progressista que vinha da Libertação
opção pela santa) 72 • e se se abriu uma quadra histórica em que a decadência ideológica
Esta viragem envolveu, também na sequência dos eventos de iria alcançar uma profunda extensão, nem por isto a elaboração
maio de 1968, um outro território: o da história. O Foucault d';l filosófico-teórica francesa deixou de apresentar, em diferentes
arqueologia do saber impacta fortemente alguns autores ligados ao quadrantes ideológicos e políticos, vetores de continuidade com a
marco da tradição da revista Annales, criada em 1929 por Marc sua tradição anterior, progressista, humanista e de alto nível, seja
Bloch e Lucien Febvre e matrizadora da pesquisa histórica fran- com pensadores maduros (P. Ricoeur, P. Bourdieu), seja com in-
cesa mais significativa73 • Este impacto, especialmente visível nas telectuais mais jovens (P. Tort, D. Bensaid). Contudo, a tendência
formulações de Paul Veyne, mas também nas de Emmanuel Le dominante, desde meados dos anos 1970, não é esta.
Roy Ladurie (embora, no caso deste, seja marcante o influxo de E não só na cultura francesa: a decadência ideológica, subjacente
C. Lévi-Strauss)74, tem por resultado uma ruptura com as concep- ao novo espírito do tempo, não tem fronteiras nacionais e envolve o
ções fundantes de Bloch e Febvre (e também de F. Braudel); sob a conjunto do mundo ocidental; "a verdade é que nos cinco anos que
influência estruturalista, articula-se a "nova história", que haverá vão de 1974 a 1979, tudo mudou dramaticamente na Europa e nos
de apresentar-se como uma máquina de guerra contra o pensamento Estados Unidos, impondo-se um conservadorismo cada vez mais
dialético75 • É nesta atmosfera que um historiador assumidamente beligerante" - constata um analista latino-americano que, tratan-
reacionário, Phillippe Aries76 , até então pouco valorizado, ganha do a seguir a "década de 1980 como uma era de conservadorismo'',
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conclui: "eis aí o grande triunfo da burguesia imperialista"* 80 (e alcançado por Harvey8 6 • Consideradas na sua inclusividade, tais
esta conclusão, como se verá adiante, tem toda razão de ser). Esta mudanças operaram, sem quaisquer dúvidas, uma inteira recon-
apreciação está longe de ser um juízo isolado; vários estudiosos, figuração da ordem do capital, sem eliminar (antes, recolocando-as
a partir de perspectivas teóricas distintas, verificam e analisam em novos patamares e aprofundando-as) as suas contradições
a maré-montante conservadora e direitizante (quando não fran- elementares e a sua dinâmica essencialmente exploradora; a re-
camente de direita, abertamente regressiva) em que submerge a configuração então implementada e ainda em curso veio e vem
cultura dos últimos 30 anos em praticamente todo o mundo 81 . exponenciando, no nível econômico, a sua tendência a concentrar
polarizadamente riqueza e pauperismo, no nível social a barbarizar
6 a interação humana, no nível político a acentuar a antidemocracia
O novo espírito do tempo encontrará a sua formulação mais e, em relação ao meio ambiente, a sua destrutividade - característi-
conhecida precisamente num texto de 1979: A condição pós- cas do capitalismo contemporâneo, emergente a partir de meados
moderna, de J.-F. Lyotard82 - tendências epistemológicas gestadas dos anos 1970, que a retórica da "globalização" oculta e mistifica87•
há muito, resgates seletivos do neopositivismo e a herança do Estas transformações não sinalizam um processo evolutivo
estruturalismo confluem neste pequeno ensaio que, em especial "natural" da sociedade burguesa. Constituem, a partir de limites
graças à midiatização cultural própria da França pós-68 (e, em e possibilidades objetivos, uma resposta estratégica dos núcleos
seguida, de praticamente todo o mundo ocidental), para muitos dirigentes capitalistas à problematização da ordem do capital,
estratos intelectuais se tornou fundacional. Mas há que se ressaltar avolumada nos anos 1960 - da qual a explosão de maio de 1968
que as expressões do pensamento pós-moderno não nascem em foi apenas um indicador, ainda que grandemente expressivo - e
1979, como já o demonstrou uma acreditada documentação 83 ; adensada na entrada dos anos 1970. A recessão de 1974/1975, a
ademais, no seu eclético substrato comparecem autores e linhagens primeira "generalizada desde a Segunda Guerra Mundial, sendo
intelectuais que de longe antecedem o espírito do tempo que ela en- a única, até então, a golpear simultaneamente todas as grandes
carna84. É, porém, seguramente a partir do livrinho de Lyotard que potências imperialistas" 88 , acendeu a luz vermelha para aqueles
o pensamento pós-moderno assume o primeiro plano na cultura núcleos, que se puseram, articuladamente, numa ofensiva prático-
do Ocidente capitalista, irrompe nos domínios do saber, invade as política para a plena restauração do poder do capital. Conjugando
manifestações estéticas, contagia as práticas políticas e, nas duas intervenções repressivas (de que logo após a destruição do movi-
décadas seguintes, constituirá um campo teórico diferenciado e mento sindical mineiro inglês por Tatcher se tornaria exemplar)
desencadeará a produção de uma bibliografia enorme, muito mais e operações ideológicas de grande fôlego - das quais o marco
apologética que crítica85 . fulcral seria, na sequência dos anos 1980, a edificação do ideário
Os analistas mais críticos procuraram vincular o espírito do neoliberal89 - criaram as condições necessárias, contando com as
tempo expresso pelo pensamento pós-moderno às transformações rápidas absorção e conversão em novas tecnologias das conquistas
econômico-políticas e societárias operadas no mundo a partir dos da revolução científica que estava em curso desde os anos 1960
anos 1970 - num esforço de que o resultado mais conhecido foi o (agora tomando as cores da revolução informacional), para a sua
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empreitada, que teve como base material a "reestruturação produ- e igualmente, que o abandono da crítica da economia política
tiva"9º. A crise do movimento sindical, a falência do "socialismo específica da teoria social marxiana (frequentemente justificado
real" e o colapso da maioria dos partidos comunistas, assim como pelos pensadores pós-modernos como uma necessidade, no mar-
a mais completa autodomesticação dos partidos social-democratas co da "crise dos paradigmas"* 94) só pode conduzir, na análise da
- bem expressa, logo a seguir, na "terceira vià' - confluíram para contemporaneidade, a resultados na melhor das hipóteses mini-
o êxito da ofensiva capitalista91 . Por sobre as ilusões perdidas do malistas ou, na pior, a verdadeiras mistificações - como se pode
rescaldo das explosões de 1968 (absolutamente não exclusivas da verificar facilmente 95 • A segunda observação diz respeito ao êxito
França)* 92 , ergueu-se de fato um mundo em que se viu restaurado da empreitada burguesa na reconstrução do poder do (grande) ca-
o poder do (grande) capital. Nas suas análises, corroborando o pital: afirmar que ela foi conduzida com sucesso está longe de dizer
contundente juízo exarado por A. Cueva, citado linhas acima, a que ela não encontra significativas resistências 96 e; muito menos,
parte mais expressiva dos críticos do pensamento pós-moderno que o "núcleo duro" das massas trabalhadoras* 97, o proletariado
conclui pela sua identificação ao espírito deste tempo* 93 • urbano-industrial, está para sempre, no melhor dos casos, conde-
Duas observações são necessárias aqui, antes de prosseguir. A nado ao defensismo e, no pior, integrado à nova ordem. De fato,
primeira é pura decorrência do que se acabou de dizer: o capita- se não se visualiza imediatamente o protagonismo de um sujeito
lismo contemporâneo que rege tal mundo apresenta fenômenos revolucionário tal como se evidenciou dos finais do século 19 aos
e processos novos, que exigem instrumentos analíticos afinados e inícios do terceiro quartel do século 20, não há nenhuma razão
pesquisas de realidade cada vez mais apuradas. Ele não pode ser estrutural e sistémica para inferir daí o seu desaparecimento; antes,
tratado teoricamente tal como o foi até os anos 1970: novos proble- sua debilidade e/ou ausência conjunturais na vanguarda das lutas
mas, novas questões e novas alternativas se põem na sua realidade anticapitalistas são fenômenos compreensíveis como resultante
- é despiciendo, pois, insistir nos desafios teóricos e analíticos que imediata da vitória da ofensiva do capital, cuja reversibilidade é
o capitalismo contemporâneo coloca aos seus estudiosos. Mas é perfeitamente possível e viável com a emersão aberta das novas
necessário insistir enfaticamente em que ele é e continua sendo contradições e polarizações em curso no capitalismo contemporâ-
capitalismo - um modo de produzir/reproduzir relações sociais a neo (e com iniciativas político-organizacionais destinadas a pô-lo
partir da produção material das condições de vida social, produção em causa). Se se experimenta, dado o êxito daquela ofensiva, uma
fundada na exploração do trabalho, contendo contradições e limites nítida quadra histórica regressiva e contrarrevolucionária, nem por
imanentes à sua estrutura e dinâmica (de que a mais recente prova, isto há fundamento que permita supô-la perene.
e não certamente a última, foi a crise aberta pelo crash financeiro Como se sabe pelo menos desde Marx98 , paralelismos, com-
de 2008). Dadas estas duas considerações, isto significa que o parações e, em especial, analogias históricas quase sempre são
referencial analítico dominante no período da Segunda Interna- falaciosos - porém, se levadas em conta as concretas determinações
cional, depois redimensionado e sacralizado na era estalinista sob que particularizam os processos postos em tela, não deixam de
o rótulo de "marxismo-leninismo", pouco nos pode oferecer para ter a sua utilidade, ainda que ilustrativa. E é tentador estabelecer
o conhecimento do capitalismo contemporâneo; significa, todavia paralelos e similitudes entre 1848 e 1968 99 : movimentos de im-
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pacto mundial, dirigidos objetivamente contra a ordem capitalista, dações inter e intraclassistas, a ponderação das novas camadas
derrotados mas que fixaram marcas profundas nesta mesma ordem médias urbanas e seus nascentes movimentos específicos), direta-
e a que se sucederam substantivas mudanças econômico-políticas mente condicionadas por um aprofundamento da divisão social
e societárias que redesenharam a sociedade burguesa. Em espe- do trabalho, que vai afetar em especial os segmentos intelectuais.
cial, a tentação sobrevém quando se trata de pensar as clivagens Podemos, agora, retornar ao espírito do tempo a que deu ex-
ídeo-teóricas e culturais que os dois processos assinalaram - é pressão e divulgação o livrinho de Lyotard, de 1979: a pós-mo-
possível traçar paralelos entre ambos. 1848, como Lukács o de- dernidade. Reitere-se: a pós-modernidade (que envolve mais que
monstrou exaustivamente100 , assinala que a viragem conservadora o pós-modernismo) é movimento intelectual muito diferenciado
da burguesia instaura as condições e a necessidade de liquidar - não constitui um campo teórico e ídeo-político homogêneo. Do
com a tradição humanista-racionalista (fomentando o moderno ponto de vista ídeo-político, é mais ou menos fácil - e se tornou
irracionalismo, fundado pela crítica nietzscheana), de impedir a comum - distinguir entre os pós-modernos de "oposição", que se
elaboração de uma teoria social totalizante ancorada na análise da pretendem críticos da ordem do capital (por exemplo, Boaventura
produção material dos suportes da vida social (donde a negação da de S. Santos), e os pós-modernos de "celebração", aqueles que Ha-
economia política clássica e sua substituição pela economia vulgar bermas chegou a qualificar como neoconservadores, expressamente
e pelas ciências sociais especializadas), colocando na ordem do dia convencidos de que a sociedade burguesa constitui a paragem final
o combate aos movimentos anti-capitalistas - prioritariamente o da história (por exemplo, Lyotard) 1º2 •
movimento operário, alçado a novo patamar revolucionário pela No campo teórico, as distinções não são tão fáceis, posto que
superação do utopismo e pelo seu trânsito à condição de classe para não exista nem uma nem a teoria da pós-modernidade: há teorias
si e suporte da elaboração teórica de Marx, expressão de um pro- pós-modernas. Por mais diferentes que sejam (e, de fato, o são), tais
cesso de ruptura e continuidade com a herança clássica (a filosofia teorias apresentam um denominador comum, constituído pelos
clássica alemã e a economia política inglesa) 1º1• Ora, quando se seguintes traços que lhes são absolutamente pertinentes 1º3 :
analisam as consequências e implicações de 1968, nele se identi- a) aceitação da imediaticidade com que se apresentam os fe-
fica uma similar clivagem ídeo-teórica e cultural. Mas o paralelo nômenos socioculturais como expressão da sua inteira existência
não pode ocultar as profundas diferenças que distinguem os dois e do seu modo de ser; assim, de uma parte, tende-se a suprimir a
movimentos. No processo de 1968 e suas imediatas derivações, a distinção clássica entre aparência e essência e, sobretudo, a dissol-
ofensiva do capital não encontra pela frente uma classe revolucio- ver a especificidade das modalidades de conhecimento - donde,
nária ascendente, mas um proletariado que, maduro, paga o ônus por consequência, a supressão da diferença entre ciência e arte e
de direções sindicais burocratizadas e de um movimento político a equalização do conhecimento científico ao não científico* 10 4;
às vésperas de uma grande crise - no campo socialista, o vestíbulo b) a recusa da categoria de totalidade - uma dupla recusa: no
da rendição às concepções burguesas; no campo comunista, o peso plano filosófico, a recusa se deve à negação de sua efetividade; no
e as consequências da hipoteca estalinista. Sobretudo, incidem no plano teórico, recusa de seu valor heurístico, ora porque anacro-
processo as alterações ocorrentes na estrutura social (as diferen- nizada em face das transformações societárias contemporâneas,
262 • POSFÁCIO JOSÉ PAULO NETTO • 263

ora porque se lhe atribuem (ilegitimamente) conexões diretamente "promessas" da modernidade - o controle otimizado da natu-
políticas - ou pelas duas ordens de fatores*' 0 5; reza (que, de fato, revelar-se-ia como destruição e vesdbulo da
c) a semiologização da realidade social: o privilégio (quase catástrofe ambiental) e a interação humana emancipada (que,
monopólio) concedido às dimensões simbólicas na vida social com efeito, mostrar-se-ia como opressão e heteronomia). Para os
acaba por reduzi-la, no limite, ou à pura discursividade ("tudo é pós-modernos, na imanência da razão moderna, a dimensão ins-
discurso") ou ao domínio do signo e/ou à instauração abusiva de trumental estaria inevitavelmente vocacionada para "colonizar" a
hiper-realidades* 106 • dimensão emancipatória109 • É ao movimento da razão moderna
Também entre as diversas formulações do pensamento pós- que os pós-modernos creditam as realidades constitutivas da so-
moderno, há duas constantes generalizadas. A primeira refere-se ciedade urbano-industrial, com a sua coorte de sequelas deletérias
à entronização do ecletismo como cânon metodológico: posto que - nas elaborações pós-modernas, a realidade da ordem burguesa
"o conhecimento pós-moderno (...) é relativamente imetódico, contemporânea aparece como derivada do dinamismo interno da
[ele] constitui-se a partir de uma pluralidade metodológica" - o razão incondicionada, que tudo pode.
que abre a via à glorificação da "transgressão metodológica"*' 07• Obviamente que esse idealismo não é inocente: ao creditar à
A segunda relaciona-se ao relativismo (que é algo inteiramente razão moderna a realidade histórico-social contemporânea, o que
diverso da consciência do caráter relativo de todo conhecimento): fica na sombra é a ordem do capital, com a dominação de classe da
a completa dissolução da ideia clássica de verdade, que os pós- burguesia*110 ; se à grande burguesia a crítica aberta à propriedade
modernos levam ao limite, seja ao converter a ciência num jogo de privada dos meios fundamentais de produção, a referência direta à
linguagem, seja ao pensar o conhecimento como artefactualidade exploração, o apelo à luta de classes e ao socialismo permanecem
discursiva - uma tal dissolução acarreta sumariamente a supressão intoleráveis, não causam mossa as demandas de inclusão social,
de qualquer estatuto que não o lógico-retórico para a verificação/ de combate às desigualdades, de requisições de cidadania e de
avaliação do significado dos enunciados científicos* 108 • solidariedade e de apelo a uma sociedade alternativa. Não pode
Poder-se-ia alongar uma série de outros elementos comuns às surpreender, pois, que o discurso pós-moderno, tão virulento contra
várias vertentes pós-modernas - mas isto já foi suficientemente a ciência moderna, ocidental, capitalista e sexista*'" - em cuja base
tematizado no conjunto da documentação crítica que estamos está a razão moderna -, se revele inofensivo em face do capitalismo
citando ao longo deste posfácio. Porém, o que deve ser sublinhado contemporâneo, fomentando práticas políticas minimalistas ainda
como um dos traços que melhor caracteriza a ambiência cultural que midiaticamente mobilizadoras (e tanto mais inócuas em face do
pós-moderna reside numa concepção clara e grosseiramente idea- domínio do capital quanto mais radicalmente se apoiem nas defesas
lista do mundo social. A regressão teórica contida nessa recaída extremas do "multiculturalismo" e do "direito à diferençà'), práticas
idealista aparece especialmente na entificação da razão moderna que em geral envolvem os "novos movimentos sociais" e apelam à
pelos pós-modernos, entificação que a torna um demiurgo oni- "sociedade civil", ou derivando para o limbo das utopias112 •
potente de fazer inveja ao Espírito hegeliano: a razão moderna Uma das características mais marcantes do pensamento pós-
é a responsável pelas "falácias" que se revestiram do caráter das moderno é o seu desconhecimento - poder-se-ia dizer mesmo a sua
264 • POSFÁCIO JOSÉ PAULO NETTO • 265

ignorância - da economia política do capitalismo (contemporâneo "reificação" 117• Neste caso, reificação deve vir mesmo entre aspas,
ou não). Decorrência necessária dos seus traços constitutivos já porque o processo real de reificação, operante com uma intensivi-
mencionados, este desconhecimento faz com que suas eventuais dade e uma extensividade inéditas na sociedade tardo-capitalista,
referências à produção das condições materiais que garantem as precisamente a expressada na sua imediaticidade pelo pensamento
relações de produção/reprodução social se limitem a meras e vagas pós-moderno - tal processo, só radicalmente deslindável a partir
alusões a algo tomado como exterior e alheio aos níveis cultural- da crítica da economia política118 , escapa ao "olhar" pós-moderno
simbólicos (com a plena autonomia que conferem a tais níveis em que, como já se registrou, "suspeita da distinção entre aparência e
relação a este algo exterior); nos casos, poucos, em que se registra essência". Orientado por esta "suspeição", este "olhar" mantém-se
alguma remissão à produção material das condições necessárias no que um sábio do século 19 designava como a aparência enga-
à vida social, o que se verifica é a incorporação mais ou menos nadora das coisas.
mecânica de noções da economia vulgar, com suas apreciações
epidérmicas e superficiais - é o que se constata diante do resgate 7
de ideias como as de sociedade pós-industrial, sociedade de consumo Constituindo-se na intercorrência das derrotas sofridas pelos
e quejandos, ou, mais recentemente, suposto o fim do trabalho e vetores rebeldes e revolucionários de 1968 em diante com a ofen-
da sociedade salarial, a incorporação da imagem da sociedade do siva do capital, de que derivou uma série de profundas transforma-
conhecimento etc. 113 Se a desvinculação da análise da sociedade, ções societárias sob o comando do grande capital monopolista e
da história e da cultura da análise econômico-política já vinca mundializado, o pensamento pós-moderno - mesmo considerado
fortemente o pensamento burguês desde a viragem de 1848114 , o seu caráter heteróclito e compósito - ganhou hegemonia entre a
aprofundando-se ao longo de todo o século 20, é, porém, com o intelectualidade acadêmica mais sofisticada, hegemonia que, atra-
pensamento pós-moderno que ela alcança o seu ponto extremo vés de instrumentos midiáticos (controlados pelo grande capital),
- e, quanto a isto, a ponderação da divisão social e técnica do se espraiou para amplos segmentos sociais. Ele é como que um
trabalho constitui um elemento crucial: também ela aprofundada espelho em que se refletem os dados mais imediatos da sociabili-
ainda mais no tardo-capitalismo, praticamente oblitera todos os dade própria ao tardo-capitalismo e à sociedade tardo-burguesa: a
condutos que conectam a vida dos intelectuais à vida social (e, em atomização da vida social, o fragmentário e o efêmero das relações
especial, às efetividades materiais desta vida) 115 • A especialização humanas nas metrópoles, o intimismo e o particularismo a que
estreita e idiotizante, a reclusão no interior dos muros das institui- são compelidos os indivíduos na sua vida cotidiana manipulada, a
ções acadêmicas, os contatos quase sempre limitados aos seus pares inépcia das instituições sociopolíticas universalizadoras que acaba
- tudo isto contribui significativamente para que as novas gerações por compelir a ação política a intervenções moleculares, a descon-
dos intelectuais espedficos identifiquem as suas representações com textualização das experiências pessoais no marco das infovias, a
a realidade ou, mais exatamente, tratem as suas representações espetacularização dos acontecimentos119 , a avalanche simbólica que
como a realidade116 ; este procedimento, curiosamente, a velha satura os espaços sociais, a obsolescência programada do mundo
tradição de pesquisa social norte-americana caracterizava-o como das mercadorias e a compressão espaço-temporal1 20 experimenta-
266 • POSFÁCIO JOSÉ PAULO NETTO • 267

da por centenas de milhões de homens e mulheres. Dando por do capital na quadra histórica em que este se mundializa e tem
suposto que este quadro societário inaugura um novo período hipertrofiadas as suas dimensões especulativo-financeiras que,
histórico, cujo futuro não transcende a reiteração pleonástica do dado o marco institucional da sua dominação121 , apresentam-no
presente (malgrado um dinamismo ubíquo do já posto), credita imediatamente como fluido e volátil - atributos que se transferem
os desastres da relação entre sociedade e natureza e os deficits de ao complexo societário que ele matriza. Ao tomar acriticamente
autonomia e liberdade humanas aos parâmetros da razão em nome o espelhamento que opera deste complexo como a sua expressão,
da qual se concretizou o período histórico precedente - a moderni- fática e simbólica, o pós-modernismo se instaura - nolens volens -
dade. É à razão moderna, de extração ilustrada, que o pensamento como ideologia funcional à sociedade tardo-burguesa, com todas
pós-moderno atribui a hipoteca da destruição da natureza e da as consequências societárias aí implicadas.
servidão contemporânea dos homens e mulheres. Esta razão en- A ideologia pós-moderna, configurando o espírito do tempo do
fermou de falácias ou, então, mostrou-se incapaz de cumprir, por tardo-capitalismo, está longe de ser um resultado direto e imediato
seus próprios meios (especialmente os qualificados como produtos da sociabilidade tardo-burguesa. Na sua constituição intercorrem
da ciência), as promessas que condensou; isto é: ou sua dimensão e confluem diferentes linhas de força da cultura ocidental, em
emancipadora era uma ilusão (eis os pós-modernos "de celebra- desenvolvimento pelo menos desde a segunda metade do século
ção") ou foi "colonizada" por sua dimensão instrumental (eis os 19. Mas foi tão somente na sequência de 1968 que se criaram as
pós-modernos "de oposição"). Num caso ou noutro, impõe-se a condições teóricas e ídeo-políticas para o giro à direita ocorrente
construção de uma nova racionalidade, fundante de uma nova em meados dos anos 1970 (e a que fizemos referência no item 5)
epistemologia, de uma nova ciência e de uma nova ética. - donde, pois, a similitude de 1968 com 1848: ali se abre a curva
Espelho da sociabilidade tardo-burguesa, o pensamento descendente da cultura progressista e humanista, ali se limpa o
pós-moderno põe-se justamente como uma ideologia - não uma caminho para o derradeiro estágio da decadência ideológica, no
mentira, mas uma falsa consciência: falsa, na exata escala em que qual se inscreve o pensamento pós-moderno.
não pode reconhecer a sua própria historicidade (ou seja, o seu O exame rigoroso do pensamento pós-moderno revela alguns
condicionalismo histórico-social); mas igualmente consciência, na elementos axiais que constelam e articulam os seus traços perti-
precisa medida em que fornece um certo tipo de conhecimento que nentes, vários dos quais indicados parágrafos acima. O primeiro
permite aos homens e mulheres moverem-se na sua vida cotidiana. deles é o decidido abandono (quando não o repúdio mesmo) da
E é nesta condição de falsa consciência que ela opera seja como herança hegeliana: é Nietzsche (ou em alguns casos Heidegger,
orientador de comportamentos, seja como indicador de problemas, sob muitos aspectos seu continuador) que se torna o maítre à
tensões e contradições. Donde, aliás, a sua heterogeneidade e as penser dos filósofos e autores que colocariam de pé a ideologia
suas diferenças internas - todas adjetivas. pós-moderna 122 • O segundo, que já mencionamos, é a dissolução
Ideologia que é, o pós-modernismo funciona como ideologia: da ideia de verdade: convertida, como vimos, em artefactualidade
incide no comportamento e na vida práticos daqueles que a inter- discursiva, dela não resta a menor relação com a realidade que exis-
nalizam. Ela é uma (não a única) ideologia específica da ordem te independentemente da consciência dos homens e das mulheres
268 • POSFÁCIO Jost PAULO NETTO • 269

- a verdade se torna a resultante de um consenso intersubjetivo. O a partir da compreensão do trabalho como fundante do ser social.
terceiro, a que não tivemos oportunidade de aludir expressamente, O pensamento pós-moderno é radicalmente anti-ontológico e a
diz respeito à interdição do universal, que aparece na defesa pós- sua crítica, também para ser radical, deverá partir necessariamente
moderna da particularidade (em especial, mas não exclusivamente, de uma perspectiva teórica ontológica. E, para tanto, este livro
das particularidades culturais); aqui, basta-nos valer de um belo oferece elementos substanciais.
ensaio de Sérgio Paulo Rouanet, "A coruja e o sambódromo" 123, no Estou convencido, por tudo isto, que a nova edição do já mais
qual, defendendo o princípio da universalidade como constitutivo que balzaqueano O estruturalismo e a miséria da razão nos prova
fundamental do projeto iluminista, Rouanet elipticamente põe a que ele, para além daquelas características que resumi ao dizer
nu as consequências regressivas do seu cancelamento (também) de sua força ~ de sua insuficiência, tem mais uma: a de ser nosso
pelos pós-modernos. contemporâneo enquanto nos qualifica para enfrentar a nossa
Ora, se retornamos à herança do estruturalismo, tal como a contemporaneidade.
vimos na abertura do item 5, deparamo-nos exatamente com estes
três componentes. Isto não significa que o pensamento pós-mo- Recreio dos Bandeirantes,
derno é uma prossecução do estruturalismo; mas significa que o outono de 2010.
estruturalismo configurou uma importante preparação para a sua
emergência. A decadência ideológica portada pelo estruturalismo NOTAS
encontra seu desabrochar e seu ápice no pensamento pós-moderno.
O estruturalismo e a miséria da razão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972 e El estruc-
Por isto, e agora voltamos a O estruturalismo e a miséria da razão, turalismo y la miseria de la razón. México: Era, 1973.
o livro de Carlos Nelson que o leitor acabou de percorrer ganha O ensaio, originalmente dado a público na revista Encontros com a Civilização
Brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, vol. 9, 1979, fez parte do livro A
um novo significado: não é mais a reconstituição de um momento democracia como valor universal (S. Paulo: Ciências Humanas, 1980); posterior-
determinado da cultura ocidental - é a análise rigorosa do capítulo mente, foi ampliado e reeditado sob o título A democracia como valor universal
e outros ensaios. Rio de Janeiro: Salamandra, 1984. Logo que publicado em sua
que antecede e contribui para viabilizar uma ideologia que exerce primeira versão (março de 1979), o texto deflagrou uma polêmica que se prolonga
papel tão relevante e regressivo na contemporaneidade. até hoje, provocando réplicas de diversos matizes do pensamento marxista bra-
sileiro, especialmente sinalizadas em Adelmo Genro Filho, "A democracia como
A significação atual de O estruturalismo e a miséria da razão, valor operário e popular". Encontros com a Civilização Brasileira. Rio de Janeiro:
contudo, não se esgota aí. Ao fundar a sua crítica da razão miserá- Civilização Brasileira, 17, novembro de 1979; José Paulo Netto, "Notas sobre
democracia e transição socialista". Temas de ciências humanas. S. Paulo: Ciências
vel própria do estruturalismo e mostrar a sua complementaridade Humanas, 7, 1980 (recolhido depois em Democracia e transição socialista. Belo
em face do irracionalismo, Carlos Nelson expôs, como o leitor Horizonte: Oficina de Livros, 1990) e João Quartim de Moraes, "Contra a cano-
nização da democracia". Crítica marxista. S. Paulo: Boitempo, 12, 2001.
teve a oportunidade de constatar, alguns dos princípios basilares M. Lõwy (org.), O marxismo na América Latina. Uma antologia de 1909 aos dias
da ontologia social marxiana e marxista, tal como Lukács a resgata atuais. S. Paulo: Ed. Fund. Perseu Abramo, 1999.
De cujo "governo sombra", nos anos 1980, participou como "Ministro da Cultura".
e elabora. Pois bem: o traço geral do pensamento pós-moderno, S. Paulo: Brasiliense, 1985. Uma nova edição, com acréscimos expressivos, saiu
em todas as suas diferenciadas expressões, consiste na completa sob o título Marxismo e política. A dualidade de poderes e outros ensaios (S. Paulo:
Cortez, 1996).
recusa de uma verdadeira ontologia social, que só se pode sustentar
270 • POSFÁCIO JOSÉ PAULO NETTO • 271

A produção ensaística do autor esparsa cm volumes coletivos é numerosa e im- da obra coletiva organizada por E. J. Hobsbawm, História do marxismo (Rio de
possível de listar minimamente aqui - só algumas dessas peças serão citadas. Janeiro: Paz e Terra, 12 vols., 1980-1989).
15
Todos lançados pela Editora Civilização Brasileira, do Rio de Janeiro - o primeiro Todos publicados pela Editora Civilização Brasileira, do Rio de Janeiro, entre
em 1966 e os dois outros em 1968. 1999 e 2005.
t(,
Carlos Nelson nasceu em Itabuna (BA), a 28 de junho de 1943. Licenciado em G. Liguori, in Carlos Nelson Coutinho, II pensiero político di Gramsci, ed. cit., p.
Filosofia pela Universidade Federal da Bahia (1965), transferiu-se para o Rio de 10-11. Guido Liguori, membro da International Gramsci Society, é professor da
Janeiro e aí viveu como tradutor até inícios de 1976, quando a vaga repressiva que Universidade de Cosenza e redator-chefe da revista italiana Critica marxista.
atingiu o PCB obrigou-o ao exílio (na Itália e na França, com uma breve passa- 17
Já na primeira antologia de textos de Lukács publicada no Brasil, organizada
gem por Portugal). No período em que esteve na França, foi um dos principais por Leandro Konder, com quem haveria de formar uma parceria intelectual
colaboradores (com o pseudônimo de Josimar Teixeira) da Voz Operária, órgão do que perdura até hoje, Carlos Nelson contribui como um dos tradutores (cf. G.
Comitê Central do PCB então sob a responsabilidade de Armênio Guedes, editado Lukács, Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965). Nos
no exterior para circular clandestinamente no Brasil. Retornou ao país em finais anos imediatamente seguintes, ele organiza, traduz e/ou prepara introduções a
de 1978, voltou a fixar-se no Rio de Janeiro, frequentou disciplinas no IUPERJ antologias elof!: textos de Lukács: Marxismo e teoria da literatura (Rio de Janeiro:
e, a partir de 1983, iniciou suas atividades no magistério superior (Faculdades Civilização Brasileira, 1968), Introdução a uma estética marxista (idem), Realismo
Benett) e ingressou - por concurso de livre-docência, em 1986 - na Escola de crítico hoje (Brasília: Coordenada, 1969). Igualmente, há a colaboração de Carlos
Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente, além das Nelson, como tradutor, na edição brasileira das longas entrevistas que Lukács con-
suas tarefas docentes na pós-graduação, é diretor da Editora UFRJ e membro de cedeu a H. H. Holz, L. Kofler e W. Abendroth (Conversando com Lukács. Rio de
conselhos consultivos/editorais de periódicos da área de Ciências Sociais no Brasil Janeiro: Paz e Terra, 1969). Também se devem a ele as primeiras traduções de dois
e no exterior. capítulos da última grande obra de Lukács: Ontologia do ser social. A verdadeira e a
Gramsci. Porto Alegre: L&PM, coleção "Fontes do pensamento político", 1981. falsa ontologia de Hegel e Ontologia do ser social. Os princípios ontológicos fundamen-
O estudo que abre o livro foi traduzido ao castelhano: Introducción a Gramsci tais de Marx (ambos editados pela Ciências Humanas, de S. Paulo, 1979). Mais
(México: Era, 1986). recentemente, coube-lhe, em parceria, a organização, a introdução e a tradução de
10
Rio de Janeiro: Campus, 1989. três antologias lukacsianas: O jovem Marx e outros escritos de filosofia, Socialismo
11
Gramsci. Um estudo sobre seu pensamento político (Rio de Janeiro: Civilização e democratização. Escritos políticos. 1956-1971 e Arte e sociedade. Escritos estéticos.
Brasileira, 1999); edição italiana: II pensiero político di Gramsci (Milano: Unicopli, 1932-1967 (lançadas pela Editora UFRJ, do Rio de Janeiro, respectivamente em
2006). 2007, 2008 e 2009).
12 18
Algumas das quais estão disponíveis em Carlos Nelson Coutinho e Marco Aurélio Cf. a visão que sobre este aspecto têm os dois pensadores em M. O. Pinassi e S.
Nogueira, orgs., Gramsci e a América Latina (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988); Lessa (orgs.), Lukács e a atualidade do marxismo (S. Paulo: Boitempo, 2002).
Eric J. Hobsbawm et alii, Gramsci in Europa e in America (Roma-Bari: Laterza, l'J
Cf. a intervenção de Carlos Nelson reproduzida em R. Antunes e W. L. Rêgo,
1995); Carlos Nelson Coutinho e Andréa de Paula Teixeira, orgs., Ler Gramsci, orgs., Lukács. Um Galileu no século XX (S. Paulo: Boitempo, 1996).
entender a realidade (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003). 20
Cf. especialmente o item 5 (''As concepções filosóficas de Gramsci") do cap. IV de
13
Cf. Contra a corrente (S. Paulo: Cortez, 2000; 2ª ed. ampliada, 2008) e Intervenções Gramsci. Um estudo sobre seu pensamento político (ed. cit. de 1999, pp. 102-118).
.•t
(S. Paulo: Cortez, 2006). Também no livro Cultura e sociedade no Brasil (Belo Lukács, Proust e Kafka. Literatura e sociedade no século XX (Rio de Janeiro: Civi-
Horizonte: Oficina de Livros, 1990; 2ª ed. ampliada: Rio de Janeiro: DP&A, lização Brasileira, 2005).
2000) há fortes incidências da contínua remissão a Gramsci, ainda que nesta obra Lançado no segundo semestre de 1967 pela Editora Paz e Terra, do Rio de Janeiro.
se encontrem ensaios que remetem à outra fonte da formação intelectual do autor Com pequenas mudanças (que, aliás, expurgam as concessões a Goldmann), este
(cf. infra); neste livro, há um ensaio (precisamente o que dá titulo ao volume) para ensaio está hoje disponível em Cultura e sociedade no Brasil (ed. cit.).
o qual chamo a atenção do leitor, uma vez que, nele, Carlos Nelson apresenta a Atesta-o o fato de, numa coleção dirigida por Afrânio Coutinho, renomado crítico
chave heurística com que vem conduzindo concretamente a sua análise da relação cujas referências teóricas, estéticas e políticas eram antípodas às de Carlos Nelson,
cultura/sociedade no Brasil; igualmente, são preciosos os seus estudos sobre Caio o ensaio aparecer reproduzido - cf. o vol. 2 da série "Fortuna crítica", preparado
Prado Jr. e Florestan Fernandes. por S. Brayner e dedicado a Graciliano Ramos (Rio de Janeiro: Civilização Bra-
14
Cumpre observar que Carlos Nelson, de meados dos anos 1960 ao fim dos anos sileira, 1977).
1980, foi dos mais prolíficos tradutores profissionais. Por suas mãos passaram, Cf. C. N. Coutinho et alii, Realismo e anti-realismo na literatura brasileira. Rio
entre muitos, originais de G. Lukács, A. Gramsci, A. S. Vázquez, W. Benjamin, de Janeiro: Paz e Terra, 1972. A contribuição aqui referida foi, ulteriormente,
A. Heller, G. Markus, H. Lefebvre, Eric J. Hobsbawm, N. Bobbio, J. Habermas, também recolhida no já mencionado Cultura e sociedade no Brasil.
J. Scherrer, M. L. Salvadori, L. Gruppi, A. Walicki, V. Gerratana, G. De Paola, M. ... A publicação de O estruturalismo e a miséria da razão teve lances só dignos do
Telà, P. Grimal e T. H. Donghi. Nos anos 1980, foi um dos principais tradutores Brasil do AI-5: quando os originais já estavam na gráfica, segundo a informação
272 • POSFÁCIO JOSÉ PAULO NETTO • 273

do poeta Moacyr Félix, responsável pela edição, a polícia política, sempre muito italiana (Roma, Riuniti); a "Pequena Ontologia" (Prolegomena zur Ontologie des
ativa contra os empreendimentos de Enio Silveira (a editora e a livraria Civilização gesellschaftlischen Seins. Prinzipienfragen einer heute móglich gewordenen Onotologie
Brasileira e a editora Paz e Terra), apreendeu o livro e desapareceu com ele. Carlos [Prolegômenos à ontologia do ser social. Questões de princípio de uma ontologia hoje
Nelson tinha uma cópia, insistiu em revisá-la substancialmente e só depois ela tornada possível] somente mais tarde sairia à luz.
.l3
foi, então, novamente composta e impressa, desta vez sem a interveniência das Parece-me claro que não há nada de estranho nestas brilhantes antecipações de
"autoridades''. Enfim, no primeiro semestre de 1972, a obra chegou às livrarias. Carlos Nelson - sua base, a meu juízo, reside no profundo conhecimento que
27 A instauração da ditadura, em 1964, não foi imediatamente sucedida por ganhos ele detinha da Estética de Lukács, onde a impostação ontológica (mesmo não
ideológicos e culturais por parte da direita - ao contrário, até a imposição do qualificada como tal) é dominante.
34
Al-5, registrou-se uma hegemonia cultural da esquerda; sobre este paradoxo, cf. Náo é possível, nos limites deste posfácio, apresentar, mesmo esquematicamente,
o instigante trabalho que devemos a R. Schwarz, publicado ainda em 1970, na a concepção lukacsiana da decadência ideológica, que o leitor encontrará no
França (Les Temps Modernes. Paris: julho de 1970, nº 288), depois coligido em O ensaio "Marx e o problema da decadência ideológica", recolhido em G. Lukács,
pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978; também Carlos Marxismo e teoria da literatura (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968) e que
Nelson, numa publicação clandestina e sob a firma de Guilherme Marques (ou- tematizei, há )J1ais de trinta anos, num breve estudo (cf. J. P. Netto, Lukács e a
tro dos pseudônimos que foi obrigado a usar durante a ditadura), tematizou este crítica da filosofia burguesa. Lisboa: Seara Nova, 1978). Mas, dada a importância
paradoxo, mas explorando os seus desdobramentos para além do Al-5, no texto da categoria, é preciso dedicar-lhe umas poucas linhas.
"Cultura e política no Brasil contemporâneo". Rio de Janeiro, mímeo, 1972. Seguindo indicações de Marx, Lukács vê nas revoluções de 1848 uma inflexão
28 O. M. Carpeaux, "O estruturalismo é o ópio dos literatos''. Revista Civilização no processo de desenvolvimento do pensamento burguês: se, até entáo, ainda se
Brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, ano III, nº 14, julho de 1967; o conservavam nele as conquistas (especialmente a dialética) próprias do período
provocativo texto de Carpeaux foi imediatamente replicado por Carlos Henrique de ascensão revolucionária da burguesia em sua luta contra o Ancien Régime, a
Escobar, na revista que então se tornou um dos órgãos de divulgação do estru- resposta burguesa aos eventos revolucionários de 1848, revelando o esgotamento
turalismo no país (cf. "Resposta a Carpeaux: estruturalismo", in Revista Tempo de seu papel historicamente progressista e seu trânsito ao campo do conservado-
Brasileiro. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, nº 15/16, s.d.). Mas um debate mais rismo, mostra que ela, enquanto classe, já náo pode mais enfrentar teoricamente
amplo sobre o estruturalismo - que dominara de tal forma a crítica literária que os problemas decisivos da vida social. Um pensamento funcional aos interesses da
até o comedido Carlos Drummond de Andrade, em "Exorcismo", motejara da burguesia, a partir de então e à diferença do período anterior a 1848, deve resvalar
moda estruturalista - só teria lugar anos mais tarde, com intervenções de vários necessariamente para a apologia (direta e/ou indireta) da ordem estabelecida,
intelectuais (inclusive Carlos Nelson), em novembro/dezembro de 1975, no se- expressando-se nos marcos do racionalismo (James Mill) ou do irracionalismo
manário Opinião, do Rio de Janeiro, tribuna da frente democrática. (de que a ulterior obra de Nietzsche será emblemática). Esta direção teórico-
29 Sobre este ponto, cf. o ainda hoje sugestivo estudo de R. Ortiz, A moderna tradição filosófica expressa precisamente a decadência ideológica, consistente na ruptura
brasileira. S. Paulo: Brasiliense, 1988. com a herança cultural do período anterior, na negação do caráter contraditório
JO Não é esta a oportunidade para sequer tangenciar o legado da voga estruturalista e transitório da sociedade burguesa e no evasionismo em face das questões de-
no Brasil, mas é indiscutível que ele não se esgota nas dimensões meramente cisivas da vida social - centralmente, a exploração do trabalho pelo capital (por
episódicas de uma simples moda intelectual. isto, em primeiro lugar, a evicção da Economia Política clássica e as construções
Cf. J. A. Giannotti, "Contra Althusser". Teoria e prática. S. Paulo: nº 3, 1968 e ideológicas que conduziram à economia vulgar). Do ponto de vista da filosofia, a
Caio Prado Jr., Estruturalismo de Lévi-Strauss e marxismo de Althusser. S. Paulo: decadência ideológica se manifesta pela assunção do ecletismo, do relativismo e
Brasiliense, 1971; cumpre não esquecer, ainda, na entrada dos anos 1970, a crí- pela dissolução das elaborações sistemáticas. No domínio da estética, a decadência
tica ao estruturalismo althusseriano na teoria política feita pelo então sociólogo se evidencia na substituição do realismo pelo naturalismo como método de figu-
Fernando Henrique Cardoso (cf. O modelo político brasileiro. S. Paulo: DIFEL, ração artística. Lukács entende que a decadência ideológica não é uma condição,
1972). Não me parece que a posição de Carlos Nelson, substantivamente, seja mas um processo historicamente constituído - e, por isto, apresenta traços que
credora de Giannotti e/ou de Caio; quanto a Cardoso, a título de justiça histórica e variam conforme o evolver do capitalismo (no estágio imperialista, a decadência
curiosidade, cumpre recordar que desde os anos 1970 Carlos Nelson criticou (sem ideológica apresenta particularidades antes inexistentes). É imperioso ressaltar que
prejuízo do reconhecimento da sua importância) as concepções teórico-políticas as determinações da decadência dizem respeito à burguesia como classe - o que
do "príncipe da sociologia brasileira": veja-se o seu ensaio, firmado sob o pseu- significa que indivíduos desta classe podem romper com ela e lutar exitosamente
dônimo de Guilherme Marques, "Économie et politique au Brésil aujourd'hui", contra as trágicas limitações que ela lhes impõe.
publicado por revista mantida no exterior pelo PCB (Études brésiliennes. Leuven, Privilégio que, como se sabe, custou a Lukács duras críticas, provindas de setores
année 3, n. 4, 1977). representativos do dogmatismo stalinista, que o acusaram de subestimar, no
32 Como se sabe, a Ontologia do ser social (Zur Ontologie des gesellschaftlischen Seins, âmbito filosófico, a contraposição idealismo/materialismo. Como uma quase curio-
a "Grande Ontologia") só viria a público, integralmente, em 1976-1981, na edição sidade bibliográfica, vale lembrar que A destruição da razão, nunca traduzida ao
274 • PosFAc10
1 JOSÉ PAULO NETTO • 275

português, teve um "resumo" elaborado e publicado por Rodolfo Gomes Pessanha 2003. Para referências biobliográficas sobre o pensador francês, cf., entre outros,
na segunda parte de seu livro Navegando com o irracionalismo (Niterói: Clube de D. Eribon, Foucault. Uma biografia. S. Paulo: Cia. das Letras, 1990 e P. Veyne,
Literatura Cromos, 1995). Michel Foucault, sa pensée, sa personne. Paris: Albin Michel, 2008.
,,,
Ao que sei, a primeira reação crítica ao neopositivismo, a partir de uma posição Para a influência posterior de estruturalistas na cultura norte-americana, cf. F.
inspirada em Lukács, foi a polêmica levantada por Cesare C~ses na Itália (cf. o Cusset, French lheory. Paris: La Découverte, 2003.
43
seu ensaio Marxismo e neopositivismo. Torino, Einaudi, 1958). E fato que o último Cf. F. Dosse, História do estruturalismo. 2. O canto do cisne, de 1967 a nossos dias.
Lukács teve plena consciência da relevância, neste sentido, do positivismo e do S. Paulo/Campinas: Ensaio/UNICAMP, 1994, p. 161.
neopositivismo - capítulo seminal da Ontologia do ser social cuida precisamente
do neopositivismo.
t 44
Nas páginas imediatamente seguintes à da citação anterior, Dosse detalha o
ingresso dos estruturalistas na estrutura acadêmica parisiense.
37 41
Julgo haver algum débito de Carlos Nelson, em O estruturalismo e a miséria da Não é possível, aqui, esboçar sequer uma súmula do desenvolvimento e da abran-
razão, para com Horkheimer e Marcuse (especialmente o de O homem unidimen- gência do pensamento estruturalista no pós-68 - neste espaço, limitar-me-ei
sional) - mas é preciso sublinhar que ele altera essencialmente as sugestões que sumariamente ao que diz respeito, diretamente, ao conteúdo do livro de Carlos
deles recebe com a impostação ontológica das suas análises.

'
Nelson; para aproximar-se àquele desenvolvimento e abrangência, a obra já citada
38
Tragédia de que resultou um dos mais extraordinários documentos confessionais de Dosse continua sendo indispensável, mas a bibliografia pertinente é enorme;
do século 20, a meu ver ainda não devidamente avaliado: trata-se da dolorosa para algumas indicações interessantes, cf., entre outros, A. Giddens, "El estruc-
autobiografia de Althusser: O futuro dura muito tempo (S. Paulo: Cia. das Letras, turalismo, el post-estructuralismo y la producción de la cultura'', in A. Giddens et
1992). alii, La teoria social, hoy. Madrid: Alianza, 1990; Didier Eribon, Michel Foucault
39 Cf. L. Althusser, Resposta a John Lewis. Lisboa: Estampa, 1973; Filosofia e filosofia et ses contemporains. Paris: Fayard, 1994; J .-C. Milner, Le périple structural. Figures
espontânea dos cientistas. Lisboa: Presença, 1979; Elementos de autocrítica. Rio de et paradigmes. Paris: Seuil, 2002 e E. Roudinesco, Filósofas na tormenta. Rio de
Janeiro: Graal, 1978; Posições. 1-2. Rio de Janeiro: Graal, 1977-1980. Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
40 li6
Para críticas a Althusser posteriores à análise de Carlos Nelson, cf., entre outros, Cf. D. Lecourt, Pour une critique de l 'épistemologie. Paris: Maspero, 1972 (há
E. P. Thompson, A miséria da teoria ou um planetdrio de erros (uma crítica ao pen- edição portuguesa: Para uma crítica da epistemologia. Lisboa: Assírio & Alvim,
samento de Althusser). Rio de Janeiro: Zahar, 1981 (a edição original é de 1978); 1980) e Lyssenko. Histoire réelle d 'une "science prolétarienne". Paris: Maspero, 1976;
A. S. Vázquez, Ciência e revolução. O marxismo de Althusser. Rio de Janeiro: P. Raymond, Matérialisme dialectique et logique. Paris: Maspero, 1977.
47
Civilização Brasileira, 1980 (também é de 1978 a edição original); J. Ranciere, Cf. M. Augé, Symbole, Junction, histoire. Paris: Hachette, 1979.
18
La leçon d'Althusser. Paris, Gallimard, 1974; P. Fougeirollas, Contre Lévi-Strauss, Cf. Vázquez, Ciencia y revolución. Madrid: Alianza, 1978, esp. pp. 12 e 112; Dosse,
Lacan etAlthusser. Paris: Savelli, 1976; A. Callinicos,Althussers Marxism. London: História do estruturalismo, ed. e vai. cit., , p. 209 e ss.
4'J
Camelot Press, 1976; J. O'Neill, For Marx against Althusser. Washington: Uni- L. Athusser, Aparelhos ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Graal, 10• ed., 2007.
versity Press of America, 1982; G. Elliot, Althusser. lhe detour oftheory. London: "' Çf. Dosse, op. cit., p. 195.
Verso, 1987 e D. Avenas et alii, Contre Althusser pour Marx. Paris: La Passion, ; 1 " E clara a inspiração althusseriana em C. Baudelot e R. Establet, L 'école capitaliste
1999. Em defesa de A!thusser, cite-se o ensaio de S. Karsz, lhéorie et politique. en France. Paris: Maspero, 1971; Dosse (op. cit.,p. 196) aponta a mesma influência
Louis Althusser, Paris: Fayard, 1974 e a obra de Yann Moulier-Boutang, Louis em R. Balibar e D. Laporte, em Le français national (Paris: Hachette, 1973) e, de
Althusser. Une biographie. Paris: Librairie Générale Française, 1-2, 2002, que autoria da primeira, Les /rançais fictifs (idem).
'2
ainda não cobre o inteiro percurso humano e intelectual de Althusser, mas que é L. Althusser, Ce qui ne peut plus durer dans le Parti Com muniste, Paris: Maspero,
referência para o seu estudo. 1978 [há tradução portuguesa em Vv. Aa., Eurocomunismo x Leninismo. Belo Hori-
41
Cf. M. Foucau!t, Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1977; Microfísica do poder. zonte: Vega, 1978]. A intervenção de A!thusser seguiu-se quase imediatamente às
Rio de Janeiro: Graal, 1979; História da sexualidade. 1. A vontade de saber. Rio eleições francesas (março de 1978), nas quais o novo PS sobrepujou 0 PCF.
\l
de Janeiro: Graal, 15ª ed., 2003; 2. O uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 9ª Carlos Nelson lembra que, "diante da invasão da Tchecoslováquia, dos rumorosos
ed., 2001; 3. O cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 7ª ed., 2002; Ditos e escritos. debates que culminaram na expulsão de Garaudy do PCF, Althusser manteve um
1-5. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002-2006. Para críticas a textos prudente silêncio: um silêncio conformista e conservador" (cf., neste volume, a p. 185).
foucaultianos não estudados por Carlos Nelson, cf., entre outros: J. G. Merquior, A. S. Vázquez, op. cit., p. 205.
Michel Foucault ou o niilismo de cdtedra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985; Cf., neste volume, a p. 185.
J. Habermas, O discurso filosófico da modernidade. Lisboa: D. Quixote,1990; Vv. Merquior e Dosse, nas obras já citadas, e também Scott Lash, Sociology ofpostmo-
Aa., Inícios de partida. Coloquio sobre la obra de Michel Foucault. La Habana: dernism. London: Routledge, 1990, apontam dois momentos na obra de Foucault:
Centro de Investigación y Desarrollo de la Cultura Cubana Juan Marinello, Cá- ~' primei~o C'a,~queológico"), até A arqueologia do saber e, depois dele, um segundo
tedra Antonio Gramsci, 2000; T. Flynn, Sartre, Foucault and Historical Reason. ( genealog1co ). Em F. Ortega, Amizade e estética da existência em Foucault. Rio
2. A post-structuralism mapping of history. Chicago: Chicago University Press, de Janeiro: Graal, 1999 e em G. Castelo Branco e V. Portocarrero (orgs.), Retratos
JOSÉ PAULO NETTO • 277
276 • POSFÁCIO

de Foucault. Rio de Janeiro: Nau, 2002 encontra-se uma discriminação maior, Cf. o seu celebrado O século dos intelectuais. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000,
compreendendo um momento "arqueológico" (da História da loucura, 1961, a A p. 756 e ss.
arqueologia .. ., 1969), um "genealógico" (que compreende Vigi~;,e ?u~ir, 1975 e o O radicalismo esquerdista de 1968 não se metamorfoseou apenas na França:
primeiro volume da História da sexualidade, 1978) e, en~'.11' o euc~ ,~º seg~n~o não é por acaso que uma liderança à época destacadíssima, como Daniel Cohn-
e 0 terceiro volumes da História da sexualzdade). Sobre a arqueologia , cf. Serg10 Bendit- em maio de 1968, "Dani, o vermelho"-, tenha se convertido num "idiota
Paulo Rouanet et alii. O homem e o discurso. A arqueologia de Michel Foucault. Rio histórico da economia de mercado", exemplo de "medíocre democrata ecológico"
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1971. Vale, ainda, a leitura de G. Deleuze, Foucault. (Robert Kurz, Os últimos combates. Petrópolis, Vozes, 1997, p. 294). Conversões
deste gênero se multiplicaram, em todos os quadrantes, a partir de meados dos
S. Paulo: Brasiliense, 1988.
57 Acerca da "implosão" da grade althusseriana, que marca o início do ocaso da anos 1970.
70
São estreitas, obviamente, as vinculações entre os novos filósofas e a nova direita de
influência de Althusser, cf. Dosse (op. cit., p. 210 e ss).
58 Mavi Rodrigues, Michel Foucault sem espelhos: um pensador proto pós-moderno. Alain de Bénoist - tão estreitas que quase chegam a se confundir.
71
Rio de Janeiro: UFRJ/ESS, 2006, 259 p. Esta tese de do~tora~ento pode ser Winock (op. cit., esp. p. 772) parece compartilhar desta explicação. Mas é indis-
acessada por via eletrônica: http:/lteses.ufrj.br/ESS D/Mav1Rodngues:pdf. M~s cutível que a.obra repercutiu fortemente em termos de "opinião pública": lançado
há que recordar o oportuno opúsculo (1992) de João Emanuel Evangelista, Crise em junho de 1974, o seu primeiro volume em poucas semanas vendeu cerca de
do marxismo e irracionalismo pós-moderno. S. Paulo: Cortez, 3ª ed., 2002. . 700.000 exemplares.
72
59 É provável que Sérgio Paulo Rouanet problematize esta conclusão de Rodngu_es G. Lardreau e C. Jambet, L'Ange. Paris: Grasset, 1976.
73
(cf. 0 ensaio "Foucault e a modernidade", inserido em S. P. Rouane~, As razoes Sobre Annales e alguns de seus desdobramentos, inclusive a Nova História, cf.,
do iluminismo. S. Paulo: Cia. das Letras, 1987). Mas a complementaridade entre entre outros, F. Dosse, A história em migalhas. Dos Annales à Nova história. S.
miséria da razão e destruição da razão parece-me inconteste: a "desconstrução Paulo/Campinas: Ensaio/UNICAMP, 1992; Jacques Le Goff, História nova. S.
da Ratio moderna" é coetânea ao surgimento de um neo-irracionalismo que tem Paulo: Martins Fontes, 1990; Peter Burke, A escola francesa dos Annales. 1929-
como novidade ao contrário do irracionalismo "clássico", o fato de não vincular- 1989. S. Paulo: UNESP, 1992 eJosep Fontana, História: análise do passado e projeto
se politicament~ à direita, antes pretendendo-se de esquerda, "subversivo" (não é 74
social. Bauru: EDUSC, 1998.
casual que um Michel Maffesoli comece a visibilizar-se na segunda metade dos Cf. P. Veyne, Como se escreve a história/Foucault revoluciona a história. Brasília:
anos 1970). Para manifestações desse fenômeno no Brasil, cf. o mesmo Rouanet, UnB, 1998; E. Le Roy Ladurie, Territoire de l'histoire. Paris: Gallimard, 1, 1973.
75
A feliz expressão é de F. Dosse, A história em migalhas .. ., ed. cit., p. 232.
op. cit., pp. 124-146. . . , . 76
60 Para tais desdobramentos, a obra de Dosse, que venho citando, consutm referencia Segundo Dosse (A história em migalhas .. ., ed. cit., p. 219), Ariês assim se caracte-
riza: "Sou um homem de direita, um verdadeiro reacionário" (cf. Un historien du
obrigatória. . .
61 Cf. Luc Ferry e Alain Renaut, Pensamento 68. Ensaio sobre o anti-humanismo dimanche. Paris: Seuil, 1980, p. 202. Esta obra, editada por M. Winock, dispõe
de tradução: Um historiador diletante. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994).
contemporâneo. S. Paulo, Ensaio, 1988, p. 26 e ss. 77
61 É evidente que este rótulo - "pós-estruturalismo" - é um fácil recurso para ter- Dentre os vários títulos de Furet traduzidos ao português, destaque-se: Pensando a
giversar a análise e a crítica das várias correntes teóricas emergentes a partir de revolução francesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989; Marx e a revolução francesa.
meados dos anos 1970. Sem qualquer significado crítico, aqui é empregado por Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989; A revolução em debate. Bauru: EDUSC, 2001
e, em colaboração com Mona Ozouf, Dicionário crítico da revolução francesa. Rio
simples comodidade. , .
63 Em entrevista concedida a Paulo Moreira Leite, em 2003, Claude Lev1-Strauss de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. As concepções políticas "maduras" de Furet são
declarava: "Penso que existem períodos notáveis, do ponto d: vista da prod~çã~ facilmente perceptíveis com a leitura do seu O passado de uma ilusão. Ensaio sobre
intelectual, e períodos de vazio, e acredito que a fase atual e do segundo upo o ideário comunista do século XX. S. Paulo: Siciliano, 1995.
(Veja. S. Paulo, Abril, edição de 24 de setembro de 2003)'. . Um analista das interpretações "revisionistas" de Furet chega a identificar nelas
64 Carta a R. Garaudy, publicada por este em seu Perspectivas do homem (R10 de uma sequência de três etapas (cf. François Dosse, A história à prova do tempo. S.
Paulo: UNESP, 2001).
Janeiro: Civilização Brasileira, 1965, p. 113). "J
65 R. Aron, La révoluton introuvable. Paris, Fayard, 1968, p. 136. De que é exemplo Jacques Attali - para que se verifique do "nível" de sua elogia-
66 Há tradução ao português: A cozinheira e o canibal. S. Paulo: Paz e Terra, 1978. da produção, é paradigmático o seu Karl Marx ou O espírito do mundo. Rio de
67 Dosse, op. cit., p. 306-307. Se estas duas figuras são as mais conhecidas, não se,ro~e Janeiro: Record, 2007, que critiquei rapidamente em "Marx por Monsieur Attali:
esquecer, entre os novos filósofas, os nomes de G. Lardreau, C. Jambet, J.-M. Beno1st a incongruência intelectual como guia''. Em pauta. Teoria social e realidade con-
e A. Comte-Sponville. Sobre esta "nova filosofia", cf. F. Aubral e X. D~lc~urt, Contre temporânea. Rio de Janeiro: UERJ/Faculdade de Serviço Social, 21, 2008 (o título
la nouvelle philosophie. Paris: Gallimard, 1977; e sobre Bernard-H~nn ~evy, talvez a deste artigo, publicado originalmente pelo jornal Inverta. Rio de Janeiro, ed. 416,
estrela maior dos novos filósofas, cf. Daniel Bensaºid, Un nouveau theologzen : Bernard- de 20/09/2007, "Marx por Monsieur Attali: um caso de delinquência intelectual",
Henri Lévy. Fécamp: Nouvelles Éditions Lignes, 2008. foi modificado pelos editores da revista).
278 • POSFÁCIO
1 JOSÉ PAULO NETTO • 279

B. Hollanda, org., Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1992; F. Jame-


º
1
8 Cf. Agustín Cueva, org., Tempos conservadores. A direitização no Ocidente e na
son, Pós-modernismo. A lógica cultural do capitalismo tardio. S. Paulo: Ática, 1996 e
América Latina. S. Paulo: Hucitec, 1989, pp. 11 e 32. Mas se o fenômeno é mun-
Una modernidad singular. Ensayo sobre la ontología de! presente. Barcelona: Gedisa,
dial, "a França oferece um exemplo particularmente adequado a esse respeito. Nas
duas últimas décadas, em parte alguma a virada para a direita entre os intelectuais
2004; E. A. Kaplan, or~., O mal-estar no pós-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1993; H. S. Kanel, The Desesperate Politics of Postmodernism. Amherst:
foi mais dramática que na margem esquerda do rio Sena, em Paris" (I. Mészáros,
University Massachusetts Press, 1989; Norris, C., Teoría acrítica. Posmodernismo
O poder da ideologia. S. Paulo: Boitempo, 2004, p. 112; recorde-se que Mészáros
intelectuales y la Guerra De! Golfo. Madrid: Cátedra, 1997; S. Connor, Cultura pós~
escreve estas linhas em 1989).
mode~na. S'. Paulo, Loyola, 1993; J. Picá, comp., Modernidad y postmodernidad.
81 Cf., por exemplo, G. D. Green, The new right. The counter-revolution in Political
Madnd: Ahanza, 1992; Paolo Portoguesi, Le post-moderne. Paris/Milano: Electa
Economy and Social Thought. London: Harvester, 1988; R. Miliband et alii, E!
Moniteur, 1983; Pauline M. Rosenau, Post-modernism and the social sciences:
conservadurismo en Gran Bretaiia y Estados Unidos. Valencia: Alfons El Magnanim,
insights, inroads and intrusions. New Jersey: Princeton University Press, 1992;
1992; Helmut Dubiel, Que es neoconservadurismo?. Barcelona: Anthropos, 1993;
S. P. Rouanet, Mal-estar na modernidade. S. Paulo, Cia. das Letras, 1993; Boa-
R. Kurz, Os últimos combates, já citado; Mónica Verea C. e Sílvia Núftez G., orgs.,
ventura S. Santos, Introdução a uma ciência pós-moderna. Porto: Afrontamento,
E! conservadurismo em Estados Unidos y Canadá. México: UNAM, 1997; e, para
uma análise totalizante, I. Mészáros, a longa" introdução" a O poder da ideologia,
1989, Um discurso sobre as ciências. S. Paulo: Cortez, 2003, Pela mão de Alice. O
social e o político na pós-modernidade. S. Paulo: Cortez, 1995, A crítica da razão
já citado. indo~ente. Contra o desperdício da experiência. S. Paulo: Cortez, 2000 e org., Co-
82 J .-F. Lyotard, A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 5ª ed., 1988.
nhecimento prudente para uma vida decente. Porto: Afrontamento, 2003; S. Sim,
83 Da qual são citações obrigatórias: D. Harvey, Condição pós-moderna. S. Paulo:
org., The icon critica! dictionary ofpostmodern thought. Cambridge: Icon Books,
Loyola, 6• ed., 1996, parte l; P. Anderson, As origens da pós-modernidade. Rio de
19?8; B. Smart, A pós-modernidade. Lisboa: Europa-América, 1993; A. Sokal e J.
Janeiro: Jorge Zahar, 1999. B~1cmont, Ii:iposturas intelectuais. O abuso da ciência pelos filósofas pós-modernos.
84 Aqui, são particularmente importantes as notações de Mészáros, op. cit., PP· 68-
103. A crítica a que Mészáros, neste mesmo livro (pp. 152-192), submete a obra R10 de Janeiro: Reco~d, 1999; },· Touraine, Crítica da modernidade. Petrópolis:
Vozes, 1994; G. Vammo et alu, En torno a la posmodernidad. Barcelona/Santa
de Adorno permite encontrar conexões entre ela e vertentes pós-modernas, como,
aliás, sinaliza P. Dews, "Adorno, pós-estruturalismo e a crítica da identidade", in S. Fé de Bogotá: A.~thropos/Siglo ~el Hombre, 1994 e como autor solo, O fim da
modernidade. Nulzsmo e hermeneutica na cultura pós-moderna. S. Paulo: Martins
Zizek, Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996; para um posição
Fontes, 1996; E. M. Wood e J. B. Forster, orgs., Em defesa da história. Marxismo
distinta, cf. as últimas páginas de F. Jameson, O marxismo tardio. Adorno ou a
persistência da dialética. S. Paulo: UNESP/Boitempo, 1997 e ainda M. Menegat, e pós-mo~erni~":º· Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999; Teoria social pós-moderna.
Introduçao critica. Porto Alegre: Sulina, 2007.
Depois do fim do mundo. Rio de Janeiro: Relume-Dumará/FAPERJ, 2003 e O olho 86
Cf. D. Harvey, Condição pós-moderna, ed. cit.; concorre com ele, em termos de
da barbárie. S. Paulo: Expressão Popular, 2006. Problema igualmente complexo
divulgação, o contributo de Jameson em Pós-modernismo ... , ed. cit. Para estabele-
é o das conexões entre a obra de Habermas e o campo pós-moderno, malgrado
cer mediatamente aquelas vinculaçóes, há elementos substanciais embora muito
a sua explícita defesa da modernidade; sua perspectiva anti-ontológica - nítida
diferenciadm do ponto de vista teórico, em E. Mandei, O capit~lismo tardio. S.
na Teoria da ação comunicativa -, com todas as suas consequências, parece-me
Paulo: Abnl_ Cultural, 1982; François Chesnais, A mundialização do capital. S.
ser congruente com vários vetores do pensamento pós-moderno, ademais de suas
Paulo: Xama, 1996 e A mundialização financeira: gênese, custos e riscos. S. Paulo:
concepções sobre o capitalismo contemporâneo; acerca de toda esta problemática,
Xamá, 1986; François Chesnais et alii, Une nouvelle phase du capitalisme. Paris:
cf. Mészáros, op. cit.; Vv. Aa., Habermas y la postmodernidad. Madrid: Cátedra,
Syllepse, 2001; Sarnir Amin, Au-delà du capitalisme sénile. Paris: PUF, 2001;
1991; Ricardo Antunes, Os sentidos do trabalho. S. Paulo: Boitempo, 1999; Sérgio
J-,-C. Delaunay et alii, Le capitalisme contemporain. Questions de fand. Paris:
Lessa. O mundo dos homens. S. Paulo: Boitempo, 2002 e como org., Habermas e
L ~.armatt~n, 2001; M. Vakaloulis, Le capitalisme postmoderne. Élements pour une
Lukács. Método, trabalho e objetividade. Maceió: EDUFAL, 1996; J. H. Carvalho
critique soczologique. Paris: PUF, 2001; D. Harvey, O novo imperialismo. S. Paulo:
Organista, O debate sobre a centralidade do trabalho. S. Paulo: Expressão Popular,
Loyola, 2004; I. Mészáros, Para além do capital. S. Paulo/Campinas: Boitempo/
2006; Francisco Teixeira e Celso Frederico, Marx no século XXI. S. Paulo: Cortez,
UNICAMP, 2002 e O desafio e o fardo do tempo histórico. S. Paulo: Boitempo
2008. 2007 ,
85 Apenas a título de indicação, liste-se: J. Arac, ed., Postmodernism and politics.
Cf. R. A. Dreifuss, A época das perplexidades. Petrópolis: Vozes, 1996; I. Mészá-
Manchester: Manchester University Press, 1986; A. Callinicos, Against Postmod-
r,os, Produção destrutiva e Estado capitalista. S. Paulo: Ensaio, 1996; H.-P. e H.
ernism. Cambridge: Polity Press, 1989; N. Casullo, org., E! debate modernidadl
Schumann, A armadilha da globalização. O assalto à democracia e ao bem-estar
posmodernidad. Buenos Aires: El Cielo por Asalto, 1993; T. Eagleton, As ilusões
s~cial. Lisboa: Terramar, 1998; Michel Chossudovsky, A globalização da pobreza.
do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998 e Depois da teoria. Um olhar
S. Paulo: Mode~na, 19_99; L. Wa~quant, Punir os pobres: a nova gestão da pobreza
sobre os estudos culturais e o pós-modernismo. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
nos Estados Unidos. R10 de Janeiro: Revan/Instituto Carioca de Criminologia,
2005; A. Giddens, As consequências da modernidade. S. Paulo: UNESP, 1991; H.
JOSÉ PAULO NETTO • 281
280 • POSFÁCIO

2002; D. Losurdo, Democracia ou bonapartismo. Rio de Janeiro/S. Paulo: UFRJ/ Unidos da América, na segunda metade dos anos 1960, impulsionada pelo mo-
UNESP, 2004, cap. 8; O. Coggiola, "Crise ecológica, biotecnologia e impe- vimento contra a Guerra do Vietnã, a revolta dos gueros negros e o levante de
rialismo", acessível em http://www.insrolux.org/textos2006/coggiolaecologia; estudantes e os ecos dessa época sentidos em outras partes do mundo - como o
J. P. Netto, "Desigualdade, pobreza e Serviço Social", Em pauta. Teoria social cordobazo na Argentina, a explosão de trabalhadores e estudantes na Austrália e a
e realidade contemporânea. Rio de Janeiro: UERJ/Faculdade de Serviço Social, greve geral em Quebec em 1972" (Rodrigues, op. cit., p. 36). Poder-se-ia agregar
19, 2007; L. Vasapolo, Por uma política de classe. Uma interpretação marxista do ainda muito mais - por exemplo, no ocidente, o altuno caldo italiano e, no então
mundo globalizado. S. Paulo: Expressão Popular, 2007; E. Costa, A globalização e "campo socialista", a primavera de Praga.
o capitalismo contemporâneo. S. Paulo: Expressão Popular, 2008. Para um tratamento bastante diferenciado da explosão de 1968, cf. H. Lefebvre
88 E. Mandei, A crise do capital. Os Jatos e sua interpretação marxista. S. Paulo/Cam- et alii, A irrupção: a revolta dos jovens na sociedade industrial, causas e efeitos. São
pinas: Ensaio/UNESP, 1990, p. 9. Paulo: Documentos, 1968; E. Morin et alii, Maio 68. Inventário de uma rebelião.
89 Cf., entre outras abordagens críticas, Suzanne de Brunhoff, A hora do mercado. Lisboa: Moraes, 1969; C. Prévost, Os estudantes e o esquerdismo. Lisboa: Círculo
Crítica do liberalismo. S. Paulo: UNESP, 1991; J. A. Avelãs Nunes, O keynesianismo de Leitores, 1975; L. Jofrin, Mai 68. Histoire des événements. Paris: Seuil, 1988;
e a contra-revolução monetarista. Coimbra: Universidade de Coimbra, Separata A. QuatrocchLe T. Nair, O começo do fim: França, maio de 1968. Rio de Janeiro:
do Boletim de Ciências Econômicas, 1991; R. Villarreal, A contra-revolução mo- Record, 1998; L. Olzmann e E. S. Padrós, orgs., 1968: contestação e utopia. Porto
netarista. Teoria, política econômica e ideologia do neoliberalismo. Rio de Janeiro: Alegre: UFRGS, 2003; M. Kurlansky, 1968: o ano que abalou o mundo. Rio de
Record, 1994; E. Sader e P. Gentilli, orgs., Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e Janeiro: José Olympio, 2005; P. Rotman, Maio de 68. Paris. França. Lisboa:
o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995; V. Navarro, Neoliberalis- Guimarães, 2009.
93
mo y Estado dei bien-estar. Barcelona: Ariel, 1998 e D. Harvey, O neoliberalismo. Eis uma síntese crítica da pós-modernidade: "A despeito de certas manifestações e
História e implicações. S. Paulo: Loyola, 2008. intenções contestatárias e radicais da esquerda pós-moderna, o pós-modernismo
9o Cf., entre outros, E. F. Dias et alii, A ofensiva neoliberal, reestruturação produtiva e torna-se caudatário do movimento de consolidação da hegemonia do pensamento
luta de classes. Brasília: Sindicato dos Eletricitários, 1996; Francisco J. S. Teixeira conservador. (... ) A recusa de um projeto político universalista que tome o capi-
e Manfredo A. de Oliveira, orgs., Neoliberalismo e reestruturação produtiva. S. talismo como um sistema dotado de lógica e realização totalizantes é a pedra de
Paulo/Fortaleza: Cortez/UECE, 1998; Giovanni Alves, O novo (e precário) mundo toque do pensamento pós-moderno. (... ) A recusa genérica das metanarrativas
do trabalho. S. Paulo: Boitempo, 2000; Ruth Sosa, Globalización o recomposición esconde o real adversário dos pensadores pós-modernos. O alvo da crítica pós-
dei capital? Processos de trabajo y aparatos de hegemonia en la contemporaneidad. moderna é, em última análise, o marxismo e a esquerda socialista. (... ) Constata-se
Rosario: Universidad Nacional de Rosario, 2002. que o pós-modernismo é a forma social de consciência num período de reestrutu-
91 Cf., dentre muiros, R. Blackburn, org., Depois da queda. O fracasso do comunismo ração sistémica do capitalismo tardio e, ao mesmo tempo, a expressão necessária da
e o faturo do socialismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992; R. Kurz, O colapso da atmosfera intelectual contemporânea, marcada pela estagnação, pelo desencanto,
modernização. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992; A. Callinicos, A vingança da pela desesperança em relação ao devir histórico. O conservadorismo é o traço mais
história. O marxismo e as revoluções do leste europeu. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, saliente e dominante na vida política e intelectual atual" (J. E. Evangelista, Teoria
1992; B. Kagarlitsky, A desintegração do monolito. S. Paulo: UNESP, 1993; J. P. s<_Jcial pós-moderna, ed. cit., pp. 179, 181 e 184).
'J4
Netto, Crise do socialismo e ofensiva neoliberal. S. Paulo: Cortez, 1993; T. Vigevani E sempre útil recordar, quando se vulgariza ao limite a questão dos "paradigmas",
et alii, Liberalismo e socialismo. S. Paulo: UNESP, 1995; Celso Frederico, Crise a lição de um autor - já tão afastado do marxismo - caro a muitos pós-modernos,
do socialismo e movimento operário. S. Paulo: Cortez, 1995; D. Losurdo e R. Gia- numa nota de pé de página da sua opus magnum, comentando apontamentos à
comini, orgs., URSS: bilancio di un'experienza. Urbino: QuatroVenti, 1999; L. discussão que se pôs no debate levantado por Kuhn e outros acerca da história
Fernandes, O enigma do socialismo real. Rio de Janeiro: Mauad, 2000; R. Keeran da física moderna: "Não entro, aqui, na problemática do conceito de paradigma
e Thomas Kenny, O socialismo traído. Por trás do colapso da União Soviética. introduzido por Kuhn para as ciências da natureza, conceito que só se pode aplicar às
Lisboa: Avante!, 2008. Acerca da "terceira via", para expressar o aviltamenro da ciências sociais com certas reservas" (J. Habermas, Teoría de la acción comunicativa.
social-democracia, basta ler o seu mais conhecido teórico para aferir a que ponto Madrid: Taurus, 1988, I, p. 157; itálicos não originais).
chegou o abastardamento daquela tradição: A. Giddens, A terceira v!ª· Reflexões A insuficiência e a pobreza crítica de Empire, louvada produção de M. Hardt e
sobre o impasse político atual e o faturo da social-democracia e A terceira via e seus A. Negri (Mass.: Harvard University Press, 2000), foram rigorosamente postas
críticos, ambos editados no Rio de Janeiro pela Record, em 2001. à luz por A. Borón, Imperio & imperialismo (Buenos Aires: CLACSO, 2002). Al-
92 "Conforme acentua Callinicos, 1968 não significou apenas a barricada de estu- gumas das mistificações de A sociedade de consumo, do renomado J. Baudrillard
dantes franceses. Constiruíram-no também a onda de greves na Grã-Bretanha e (Lisboa: Ed. 70, 2007) foram sinalizadas por Celso Frederico (cf. Teixeira e
a derrubada do conservador Edward Heath do governo; a revolução porruguesa Frederico, Marx no século XXI, ed. cit.) e monumentais tolices do mesmo autor
em 1974 e 1975; os duros conflitos trabalhistas que acompanharam a agonia do em outros materiais receberam a crítica arguta de Norris (cf. Teoria acrítica ... ,
regime franquista em 1975 e 1976; a pior crise doméstica vivida pelos Estados ed. cit.).
282 • POSFÁCIO JOSÉ PAULO NETTO • 283

96
Documentadas e acompanhadas, por exemplo, por organizações - que a "grande longo de A Poetics of Postmodernism: History, Theory, Fiction (New York: Rou-
mídia" ignora ou, no melhor dos casos, desqualifica - como o CETRI/Centre tledge, 1988), que não há diferença entre história e ficção, o sociólogo português
Tricontinental, baseado na Bélgica. que estamos citando assegura que a ciência, "enquanto narrativa não ficcional",
97
Não cabe aqui, obviamente, fundamentar a consideração do proletariado urbano- apenas se diferencia da "ficção criativa" por "uma questão de grau" e, "nestas
industrial como "núcleo duro" das massas trabalhadoras e, menos ainda, o seu condições, está precludida qualquer possibilidade de demarcações rígidas entre
papel protagônico em processos de transformação social substantiva; mas vale disciplinas ou entre gêneros, entre ciências naturais, sociais e humanidades, entre
a pena recordar o que escrevia, há três lustros, um conhecido sociólogo pós- arte e literatura, entre ciência e ficção" (cf. Pela mão de Alice... , ed. cit., p. 332);
moderno: "Se tal transformação [nas palavras do próprio autor, a "transformação por seu turno, M. Maffesoli doutrina: "Já não se pode reduzir a arte apenas às
não capitalista" da "sociedade contemporânea" - ]PN] não pode ser feita só com grandes obras que geralmente se qualificam como culturais. Toda a vida cotidiana
o operariado, tão-pouco pode ser feita sem ele ou contra ele" (Boaventura de S. pode ser considerada como uma obra de arte" (in G. Vattimo et alii, Em torno a la
Santos, Pela mão de Alice... , ed. cit., p. 272). posmodernidad, ed. cit., p. 104; os itálicos são meus - JPN). E, enfim, de novo a
98
"Hegel observa algures que todos os grandes fatos e personagens da história palavra cabe ao sociólogo português: "Há muitas formas de conhecimento, tantas
universal aparecem, por assim dizer, duas vezes. Mas esqueceu-se de acrescentar: quantas as práticas sociais que as geram e as sustentam. Práticas sociais alternativas
a primeira vez como tragédia e a outra como farsa" ("O 18 brumário de Luís Bo- gerarão formas de conhecimento alternativas. (... ) Para dar um exemplo caseiro,
naparte", in K. Marx, A revolução antes da revolução. S. Paulo: Expressão Popular, o conhecimento dos camponeses portugueses não é menos desenvolvido que o dos enge-
2008, vol. II, p. 207). nheiros agrônomos do Ministério da Agricultura" (cf. Pela mão de Alice... , ed. cit.,
99
Acerca das revoluções de 1848, consulte-se, entre outros, G. Duveau, 1848. Paris: p. 330; os itálicos são meus - ]PN).
105
Gallimard, 1965; G. Efimov, As revoluções de 1848. Lisboa: Estampa, 1974; F. Cf. o capítulo 4 de J.-F. Lyotard, A condição pós-moderna, ed. cit. e as alegações
Claudín, Marx, Engels y la revolución de 1848. Madrid: Siglo XXI, 1985; J. Sing- de A. Touraine, em inúmeros passos da já citada Crítica da modernidade. No
mann, Las revoluciones românticas y democráticas de Europa. Madrid: Siglo XXI, específico domínio da história, o celebrado Roger Chartier, corifeu da "nova his-
1985; E. J. Hobsbawm, A era das revoluções. 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e tória cultural'', assinala o trânsito a uma história livre "de uma maior ou menor
Terra, 1988; P. Robertson, Revolutions of 1848: a social history. New York: Harper, fidelidade a Hegel": "na sua prática, os historiadores romperam decididamente
1990 (a primeira edição é de 1952); M. A. Bakunin, Textos anarquistas. Porto (... ) com um pensamento da totalidade" (R. Chartier, A história cultural. Entre
Alegre: L&PM, 1999. Para as posições e análises de Marx e de Engels, cf. - além práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, pp. 74-75). Quando
dos materiais publicados na Nova Gazeta Renana, disponíveis nos volumes 9 e admitem uma referência qualquer à totalidade, a alusão pós-moderna remete à
10 das Obras de Marx y Engels. Barcelona: Crítica/Grijalbo, 1978-1979 - os dois Física, remete à "totalidade universal de que fala Wigner ou à totalidade indivisa
volumes de Marx e Engels, A revolução antes da revolução (veja a nota anterior; de que fala Bohm" (B. S. Santos, Um discurso sobre as ciências, ed. cit., p. 76) -
o vol. I, com textos de Engels, foi igualmente editado pela Expressão Popular, sobre Wigner, cf. a contribuição de Olival Freire Jr. a Santos, org., Conhecimento
no mesmo ano); vale a pena comparar estas análises com as de A. de Tocqueville prudente para uma vida decente, ed. cit.; sobre Bohm, cf. Olival Freire Jr. et alii,
(Lembranças de 1848. As jornadas revolucionárias em Paris. S. Paulo: Cia. das "David Bohm, sua estada no Brasil e a teoria quântica", in: Estudos Avançados.
Letras, 1991), o liberal-conservador que certas correntes sociológicas recuperam S. Paulo: IEA/USP, vol. 8, nº 20, janeiro-abril de 1994. Eagleton, a propósito da
atualmente e tanto valorizam. recusa pós-moderna - que critica - da categoria, observa, com seu discreto humor
IDO
Quanto a isto, a obra fundamental de Lukács é El asalto a la razón. Grijalbo: britânico, que "não buscar a totalidade representa apenas um código para não se
Barcelona/México, 1968. considerar o capitalismo" (As ilusões do pós-modernismo, ed. cit., p. 20).
101 106
Em muitos textos, Lukács (por exemplo, no já citado Marxismo e teoria da litera- Para constatar até onde chega este processo de semiologização, cf. J. Baudrillard,
tura, pp. 76-111e165-197; _no capítulo III de Le Rpman historique. Paris: Payot, Simulacros e simulações. Lisboa: Relógio d'Água, 1991; tal processo, que Evan-
1965 e nas pp. 123-133 de Ecrits de Moscou. Paris: Ed. Sociales, 1974) extrai para gelista qualifica como uma" desmaterialização da realidade social" (Evangelista,
a arte e a literatura as implicações de 1848 - que, em suma, inaugura o período Teoria social moderna, ed. cit., p.78), é formulado paradigmaticamente por um
de decadência ideológica da burguesia. influente pós-moderno: "De fato, intensificar as possibilidades de informação
102
Cf. B. S. Santos, Pela mão de Alice... , ed. cit., p. 35. acerca da realidade em seus mais variados aspectos, torna sempre menos concebível
103
Retomo aqui algumas reflexões contidas em J. P. Netto, Marxismo impenitente. a própria ideia de uma realidade. No mundo dos meios de comunicação, talvez se
Contribuição à história das ideias marxistas. S. Paulo: Cortez, 2004, p. 154 e ss. efetive uma 'profecia' de Nietzsche: o mundo real, no fim das contas, converte-se
104
Se "a verdade é inerente ao visível" (A. Wilde, Horizons ofAssent: Modernism, em fábula. (... ) A realidade, para nós, é, sobretudo, o resultado do cruzamento
Postmodernism and the Ironic Imagination. Baltimore: John Hopkins University e da 'contaminação' (no sentido latino) das múltiplas imagens, interpretações,
Press, 1981, p. 108), B. S. Santos pode tranquilamente afirmar que o novo para- reconstruções divulgadas pelos meios de comunicação" (G. Vattimo, in Vattimo
digma da ciência pós-moderna "suspeita da distinção entre aparência e essência" et alii, ed. cit., p. 15). Não é preciso dizer que, com esta liquidação da realidade,
(cf. Pela mão de Alice... , ed. cit., p. 331). Enquanto Linda Hutcheon sustenta, ao liquida-se também a história - pouco antes (op. cit., p. 11), o mesmo pós-moderno
284 • POSFÁCIO
JOSÉ PAULO NETTO • 285

decreta que "não existe uma história única, existem imagens do passado propostas do pilar da emancipação pelo da regulação, fruto da gestão reconstrutiva dos défices
a partir de diferentes pontos de vista". A crítica à redução discursiva da realidade e dos excessos da modernidade confiada à ciência moderna e, em segundo lugar, ao
encontra-se suficientemente determinada, entre outras fontes, na intervenção direito moderno. A colonização gradual das diferentes racionalidades da eman-
de Callinicos recolhida em Picó, org., op. cit.; em Eagleton, As ilusões do pós- cipação moderna pela racionalidade cognitivo-instrumental da ciência levou à
modernismo, ed. cit. e no ensaio de David McNally coligido em Wood e Poster, concentração das energias e das potencialidades emancipatórias da modernidade
orgs., ed. cit. na ciência e na técnica (... ). A promessa da dominação da natureza (... ) conduziu
10 7 Eis como o pós-moderno a que tanto recorremos aqui argumenta: "Cada método a uma exploração excessiva e despreocupada dos recursos naturais, à catástrofe
é uma linguagem e a realidade responde na língua em que é perguntada. Só uma ecológica, à ameaça nuclear, à destruição da camada de oxônio e à emergência
constelação de métodos pode captar o silêncio que persiste entre cada língua que da biotecnologia, da engenharia genérica e da consequente conversão do corpo
pergunta. Numa fase de revolução científica como a que atravessamos, essa plurali- humano em mercadoria última. A promessa de uma paz perpétua (... ) levou ao
dade de métodos só é possível mediante a transgressão metodológica [suprimo aqui desenvolvimento tecnológico da guerra e ao aumento sem precedentes do seu
uma nota bibliográfica do autor- JPN]. Sendo certo que cada método só esclarece o poder destrutivo. A promessa de uma sociedade mais justa e livre, assente na
que lhe convém e quando esclarece fá-lo sem surpresas de maior, a inovação científica criação da riqueza tornada possível pela conversão da ciência em força produtiva,
consiste em inverter contextos persuasivos que conduzam à aplicação dos métodos conduziu à espoliação do chamado Terceiro Mundo e a um abismo cada vez
fora do seu habitat natural. Dado que a aproximação entre ciências naturais e maior entre o Norte e o Sul". A subordinação do "pilar da emancipação" ao "pi-
ciências sociais se fará no sentido destas últimas, caberá especular se é possível, por lar da regulação" explica-se porque "em vez de um desenvolvimento harmônico
exemplo, fazer a análise filológica de um traçado urbano, entrevistar um pássaro ou dos três princípios da regulação - Estado, mercado e comunidade -, assistimos
fazer observação participante entre computadores" (B. S. Santos, Um discurso sobre geralmente ao desenvolvimento excessivo do princípio do mercado em detrimento
as ciências, ed. cit., pp. 77-78; salvo em "fará", todos os itálicos são meus - JPN). do princípio do Estado e do princípio da comunidade"; em suma: "A redução da
As reiteradas referências que faço a este sociólogo português têm razão de ser: é, emancipação moderna à racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e a re-
atualmente, um dos intelectuais de maior prestígio internacional, inclusive com dução da regulação moderna ao princípio do mercado, incentivadas pela conversão
larga incidência na universidade brasileira; dedica-se exaustivamente, há mais de da ciência na principal força produtiva, constituem as condiçóes determinantes
um quarto de século, a fundamentar uma epistemologia pós-moderna (nas suas do processo histórico que levou a emancipação moderna a render-se à regulação
mais recentes palavras, uma "epistemologia insurreta"); é um erudito que exerce moderna" (B. de S. Santos, A crítica da razão indolente... , ed. cit., pp.55-56 e 57;
indiscutível liderança acadêmica e não se furta a compromissos políticos progres- itálicos meus - JPN).
Ili
sistas e, no conjunto de sua volumosa obra, ainda em curso, oferece importantes As adjetivaçóes são de B. de S. Santos, A crítica da razão indolente ... , ed. cit.,
pistas para pensar a vida social contemporânea. pp. 85-89. Em nota ao pé da p. 88, o autor observa corretamente que "a crítica
108 Para a ciência enquanto jogo de linguagem, cf. Lyotard, A condição pós-moderna, feminista à epistemologia moderna é hoje abundante"; deve-se lembrar ao leitor
ed. cit.; quanto à outra alternativa, leia-se: "As lutas de verdade são travadas com que, quando se trata desta crítica, é conveniente levar em conta as advertências
discurso argumentativo e a verdade é o efeito de convencimento dos vários discursos de contidas no pequeno artigo de João Bernardo, "Consideraçóes inoportunas e
verdade em presença e em conflito. A objetividade é a propriedade do conhecimento politicamente incorretas acerca de uma questão dos nossos dias" (Novos Rumos.
científico que obtém o consenso no auditório relevante dos cientistas" (B. S. Santos, S. Paulo: Instituto Astrogildo Pereira, ano 21, nº 45, 2006), que aponta para os
Introdução a uma ciência pós-moderna, ed. cit., p. 149; itálicos meus - JPN); ou riscos regressivos que ela contém.
112
ainda: "(... ) Produto de comunidades interpretativas (... ) o conhecimento emanci- A crítica ao minimalismo político do "multiculturalismo" e do "direito à diferen-
patório pós-moderno assume a sua artefactualidade discursiva. Para esta forma de ça" já foi feita por Eagleton (cf. As ilusões do pós-modernismo, ed. cit.) e, referindo-
conhecimento, a verdade é retórica, uma pausa mítica numa batalha argumentativa se à contemporânea apologia da "diversidade cultural", um analista não hesitou
contínua e interminável travada entre os vários discursos de verdade" (idem, A em considerá-la uma "fórmula aparentemente democrática sob a qual se escudam
crítica da razão indolente... , ed. cit., p. 96; itálicos meus - JPN). Numa e noutra atualmente as formas mais refinadas de racismo" (A. Cueva, in Cueva, org., ed.
alternativa, nada para além do jogo de linguagem ou da artefactualidade discur- cit., p. 21); quanto ao utopismo, recorde-se a heterotopia de B. de S. Santos (cf. Pela
siva - especialmente os referentes, em especial os referentes materiais; mas, como mão de Alice... , ed. cit., pp. 322-327 e A crítica da razão indolente... , ed. cit., p. 329
notou ironicamente Eagleton, "nem os financistas nem os semiólogos têm grandes e ss.); alusóes críticas aos apelos aos "novos movimentos sociais" e à "sociedade
simpatias pelos referentes materiais" (As ilusões do pós-modernismo, ed. cit., p. 38). civil" recolhem-se em Carlos Montano, Terceiro setor e questão social: crítica ao
109 Caberia analisar, quanto a isto, a influência exercida sobre os pós-modernos pela padrão emergente de intervenção social. S. Paulo: Cortez, 2002 e Ellen M. Wood,
Dialética do esclarecimento, de M. Horkheimer e T. W. Adorno (Rio de Janeiro: Democracia contra capitalismo. A renovação do materialismo histórico. S. Paulo:
Zahar, 1984). Boitempo, 2003.
IU
11 º "Em minha opinião, o que mais nitidamente caracteriza a condição sociocultural Boa parte dessas vulgaridades já foi pulverizada a partir da crítica da economia
deste fim de século [trata-se de texto escrito no ocaso do século 20] é a absorção política inspirada na tradição que tem Marx como ponto de partida; sobre a
286 • POSFÁCIO

"sociedade pós-industrial'', cf. E. Mandei, O capitalismo tardio, ed. cit., cap. 12


e as páginas iniciais do capítulo 16 e também Jean Lojkine, A revolução informa-
cional. S. Paulo: Cortez, 1995, terceira parte; quanto à "sociedade de consumo'',
releia-se a análise da "sociedade burocrática de consumo dirigido", que devemos
a H. Lefebvre, A vida quotidiana no mundo moderno. Lisboa: Ulisseia, 1969;
acerca do "fim do trabalho" e da "sociedade salarial", cf. R. Antunes, Os sentidos
do trabalho, ed. cit. e o polêmico livro de Sérgio Lessa, Trabalho e proletariado no
capitalismo contemporâneo. S. Paulo: Cortez, 2007; no que toca à "sociedade do
conhecimento", cf. P. Gentili, Poder económico, ideologia y educación. Buenos Aires:
Mino y Dávila, 1994, cap. II, item 2.2. Como a "sociedade do conhecimento" está
conectada à ideia da "sociedade da informação", vale a leitura de A. Mattelart,
História da sociedade da informação. S. Paulo: Loyola, 2002.
114
Cf. Lukács, El asalto a la razón, ed. cit., esp. cap. VI, I, mas ainda H. Marcuse,
Razão e revolução.Hegel e o advento da teoria social. Rio de Janeiro: Saga, 1969,
2ª. parte.
115
As implicações do aprofundamento da divisão social do trabalho, especialmente
no estágio monopolista do capitalismo, sobre os intelectuais são sintética mas
sugestivamente tratados no primeiro capítulo de G. Lukács, Marxismo ou exis-
tencialismo?. S. Paulo: Ciências Humanas, 1979.
116
Não falta razão a Callinicos ao caracterizar "o pós-marxismo de Lyotard [como]
um informe sobre o estado acuai do espírito de um setor da intelectualidade
ocidental traumatizada pelas decepções sofridas desde 1968" (J. Picó, in Picó,
comp., Modernidad y postmodernidad, ed. cit., p. 11).
117
O autor deste posfácio, formado ainda naquela tradição de pesquisa, jamais se
esqueceu da lição elementar: "(... ) Os conceitos são construções lógicas (... ). A
tendência a supor que na realidade os conceitos existem como fenômenos acarreta
muitos erros. O conceito não é o fenômeno (...). Não reconhecer isto se denomina
erro de reificação, isto é, considerar as abstrações como se fossem fenômenos reais" (W.
J. Goode e P. K. Hatt, Métodos em pesquisa social. S. Paulo: Nacional, 2ª ed., 1968,
p. 56).
118
Cf. G. Lukács, História e consciência de classe. S. Paulo: Martins Fontes, 2003; I.
Mészáros, A teoria da alienação em Marx. S. Paulo: Boitempo, 2006; J. P. Netto,
Capitalismo e reificação. S. Paulo: Ciências Humanas, 1981; A. Jappe, As aventuras
da mercadoria. Para uma nova crítica do valor. Lisboa: Antígona, 2006.
119
Ainda se revela útil, no quadro contemporâneo, a leitura de Guy Debord, A
scoeidade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
120
Cf. Harvey, Condição pós-moderna, ed. cit., parte III.
121
Recorde-se que este marco, mediante o mote tríplice - desregulamentação, flexibi-
lização e privatização - que dirigiu as orientações macro-econômicas dominantes
nos últimos trinta anos, foi exatamente construído para e pelo grande capital
especulativo-financeiro.
122
É impossível, neste espaço, avançar na verificação de que boa parte das críticas
postas à modernidade pelos pós-modernos já está contida na crítica antimoderna
de Nietzsche.
123
Trata-se do texto 2 de Rouanet, Mal-estar na modernidade, ed. cit., pp. 46-95.
em que surge o estruturalismo e se
dedica à análise rigorosa tanto das
suas bases (Lévi-Strauss) quanto de
alguns de seus maiores expoentes
(Althusser, Barthes e Foucault). E
essa intervenção crítica, ao mesmo
tempo em que explicita seus pres-
supostos - a teoria social de Marx,
a partir da perspectiva ontológica
de Lukács (que Coutinho foi o pri-
meiro a utilizar no Brasil) -, tam-
bém aponta as implicações políti-
cas do estruturalismo.

Muito citado desde então, O estru-


turalismo e a miséria da razão, já nos
anos de 1970, tornou-se uma rari-
dade bibliográfica, porque o autor
sempre se recusou a republicá-lo.
Mais de 30 anos depois de sua pri-
meira edição, Coutinho atendeu
ao convite da Expressão Popular e,
enfim, o livro torna-se acessível às
novas gerações. A razão que justifi-
ca esta segunda edição é fornecida
pelo posfácio de José Paulo Netto,
que, mesmo indicando os condi-
cionalismos cronológicos da argu-
mentação de Coutinho, demonstra
a sua extrema atualidade: o pen-
samento pós-moderno prolonga
traços da herança estruturalista e,
assim, a crítica aos pós-modernos
depende em larga medida da pers-
pectiva ontológica que Coutinho
explorou em sua "obra juvenil".

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