Você está na página 1de 4

A coragem de Antonio Risério sobre

o Brasil

Mario Sabino

11.10.21 11:22
Na entrevista à Crusoé, o antropólogo baiana critica o identitarismo, diz que Bolsonaro
e Lula são cínicos e afirma que a maioria do eleitorado nordestino, empobrecida, não é
de esquerda ou direita, "é subornável"

Uma das melhores entrevistas que li nos últimos tempos foi


a do antropólogo Antonio Risério ao jornalista Duda
Teixeira, da Crusoé. Baiano, ex-integrante de
uma organização esquerdista durante o regime militar,
ativista da contracultura, colaborador de três
campanhas presidenciais do PT, hoje crítico do
populismo tanto de esquerda quanto de direita, Antonio
Risério (foto no destaque) esteve no centro de uma daquelas
intermináveis polémicas da Folha de S. Paulo, porque o
jornal publicou uma resenha favorável ao seu novo livro, As
Sinhás Pretas da Bahia, que relata o comportamento
de mulheres negras alforriadas que, uma vez
ricas, comportavam-se como mulheres brancas de classe
social alta, inclusive servindo-se de escravos. Assinada
por Leandro Narloch, a resenha favorável, como não poderia
deixar de ser, causou a fúria de militantes antirracistas e
vizinhanças ideológicas.
Antonio Risério tem credenciais suficientes para não ser
tachado de racista ou de fascista, esses dois adjetivos que
passaram a frequentar com espantosa facilidade as conversas
de surdos de nossos concidadãos. Ele não nega os horrores
do racismo, a escala industrial que essa ignomínia adquiriu
na América e as demonstrações racistas que ainda ferem o
nosso cotidiano — ninguém em sã consciência o faria –, mas
também não falsifica a miscigenação e os paradoxos
nacionais que o identitarismo de esquerda, importado de
outras latitudes, tenta cancelar da história brasileira.
“A esquerda nacional importou o padrão racial americano,
quer fazer de conta que a mestiçagem não existe. Isso é
uma tolice. A mestiçagem é uma realidade biológica, um
dado inelutável da história genética do povo brasileiro.
Pouco importa que Camila Pitanga queira ser negra. O fato,
do ponto de vista da biologia e da antropologia física, é que
ela é uma mestiça, uma bonita mulata dos
trópicos. Cruzamento genético é um dado, não é questão de
gosto, nem de opinião”, diz o antropólogo baiano.
A biografia e o estofo cultural de Antonio Risério lhe
permitem fazer afirmações fortes com tranquilidade, sem
medo das patrulhas ideológicas. Na entrevista à Crusoé, ele
lamenta que o identitarismo esteja nos transformando
em prisioneiros da nossa anatomia, da nossa cor de pele,
moldando a história, paralisando a nossa percepção e
levando a que as novas gerações nasçam com uma espécie de
pecado original, a depender das suas características físicas.
Diz Antonio Risério: “A ideologia hoje dominante congela a
história da Humanidade em seus inícios, definindo grandes
arquétipos ou caricaturas. (…) A criação desses arquétipos é
o que se chama de identitarismo, o qual condena recém-
nascidos ao confinamento num passado às vezes pré-
histórico. O revolucionário negro Frantz Fanon dizia que
não
iria desperdiçar sua vida tentando vingar os negros do séc
ulo XVIII. Claro. Mas é essa a postura identitária. O homem
negro, portanto, é prisioneiro de sua anatomia. Com o
homem branco é a mesma coisa. Um garotinho
branco recém-nascido hoje, num bairro de classe média de
Recife, por exemplo, é acusado de crimes
cometidos por senhores escravistas do sul do Estados
Unidos, ao longo do século XVIII. É uma
coisa absolutamente caricatural. E paralisadora. Além
disso, o branco é sempre a encarnação do privilégio e da
opressão, mesmo que seja motorista de táxi ou pedreiro e que
não tenha dinheiro para comprar a cesta básica.”
Na entrevista, o antropólogo baiano também alerta para o fato
de que o populismo de Jair Bolsonaro pode reconduzir o
Brasil ao populismo de Lula e diz como ambos, “cínicos o
suficiente para dizer que são as almas mais honestas desse
país“, exploram a pobreza da população nordestina: “O
fracasso do populismo de esquerda levou ao populismo de
direita. Moralismo rastaquera à parte, Bolsonaro foi eleito
prometendo redenção econômica, segurança pública e o fim
da corrupção. Não fez nada disso. Ele teve e continua tendo
uma conduta criminosa na pandemia do coronavírus.
Bolsonaro foi o grande aliado da peste. Agora, o  fracasso
do populismo de direita  pode nos reconduzir ao  populismo
de esquerda. Mas a verdade é que tudo tem muito pouco de
ideologia. O Bolsa Família tinha colocado a população
nordestina no colo de Lula. Quando veio o auxílio
emergencial da Covid, essa população migrou para o colo
de Bolsonaro. Então, viu-se que era bobagem tratar as coisas
ideologicamente. A maioria do eleitorado nordestino não é
de direita, nem de esquerda — é subornável“.
Por fim, Antonio Risério lamenta que o bicentenário da
independência do Brasil, em 2022, provavelmente terá
uma comemoração negativa. “O que está sendo organizado
para essa data é o apogeu da desconstrução nacional
pregada pelo identitarismo multicultural, agora com total
apoio da elite midiática. É o apogeu da paixão mórbida pela
comemoração negativa, como diz o sociólogo
canadense Mathieu Bock-Côté. Penso que temos de rever de
forma radicalmente crítica nossa experiência nacional, mas
em um horizonte aberto e profundo. Não podemos fazer isso
na base do maniqueísmo rasteiro, na base da luta do bem
contra o mal (…) Pelo que estou vendo, a comemoração dos
200 anos do Brasil independente será o avesso do que
aconteceu em nosso primeiro centenário. Em 1922, apesar
das diferenças políticas e ideológicas, todos se concentraram
na necessidade de uma afirmação moderna do Brasil como
nação. Em 2022, o papo vai ser outro. O que se tem em vista
não é nenhuma afirmação, mas a negação da nação. A
desconstrução nacional sonhada pela esquerda
identitária“, afirma o antropólogo baiano.
A entrevista de Antonio Risério à Crusoé, que você pode ler
na íntegra aqui (aberta para não assinantes), é um abrigo
de inteligência, em meio ao bombardeio de estupidez que
sofremos nas redes sociais e no noticiário. Se queremos que
o Brasil seja uma nação, não uma criação fantasiosa nascida
da cachola de importadores de ideias fora do lugar, é
fundamental saber o que pessoas como ele têm a dizer.

Você também pode gostar