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Novembro

2010
668
Problemas Nacionais
Conferências pronunciadas nas reuniões
semanais do Conselho Técnico da
Confederação Nacional do Comércio
de Bens, Serviços e Turismo

Sumário
Inovações na educação média brasileira .................... 3
Arnaldo Niskier
Brasil: democracia e progresso ................................ 26
José Celso de Macedo Soares
A reforma bancária internacional e a
estrutura do sistema bancário brasileiro . ................. 47
Antonio Chagas Meirelles
Síntese da Conjuntura
A expansão demográfica .......................................... 80
Ernane Galvêas

São de responsabilidade de seus autores os conceitos emitidos


nas conferências aqui publicadas.
Solicita-se aos assinantes comunicarem qualquer alteração de endereço.
As matérias podem ser livremente reproduzidas integral ou parcialmente,
desde que citada a fonte.

A íntegra das duas últimas edições desta publicação estão disponíveis no endereço
www. portaldocomercio. org. br, no link Produtos e Serviços – Publicações – Periódicos.

Confederação Nacional do Comércio


de Bens, Serviços e Turismo

Novembro 2010, n. 668

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Publicação Mensal
Editor-Responsável: Gilberto Paim
Projeto Gráfico:
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Impressão: Gráfica Ultraset

Carta Mensal |Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e


Turismo – v. 1, n. 1 (1955) – Rio de Janeiro: CNC, 1955-
100 p.
Mensal
ISSN 0101-4315

1. Problemas Brasileiros – Periódicos. I. Confederação Nacional do Co-


mércio de Bens, Serviços e Turismo. Conselho Técnico.
Inovações na educação
média brasileira

Arnaldo Niskier
Presidente do Conselho de Administração do CIEE/RJ
e membro da Academia Brasileira de Letras

“O homem apenas se educa pela visão?


Na Idade Média, a pessoa instruía-se ouvindo,
e a palavra era de ouro.”
Pernoud, 1981

N o caso, não se pode acusar o MEC de inércia. Propõe uma série


de modificações substanciais para a implantação de um novo
modelo de ensino médio. O sistema cansou de tentativas inúteis,
como as que marcaram o período FHC. Nunca foi tão oportuna a
lembrança do comentário do educador Anísio Teixeira: “No Brasil,
o ensino médio é órfão.”

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Hoje, as ideias são mais claras. Deseja-se uma espécie de ensino
médio nacional – e para isso o Governo criou a Lei no 11.892, de
29 de dezembro do ano 2008. Instituiu a Rede Federal de Educação
Profissional, Científica e Tecnológica, com os Institutos Federais de
Educação, Ciência e Tecnologia (são 38 deles, com 311 campi no País).

Atuarão no ensino médio integrado ao técnico (50% das vagas), li-


cenciaturas (20%) e cursos superiores de tecnologia ou bacharelados
tecnológicos (30%), podendo ainda disponibilizar especializações,
mestrados e doutorados profissionais. A ascensão ao nível superior
tornou-se mais natural.

À primeira vista, o observador fica meio confuso, sem saber exata-


mente o que é ensino médio ou o que pertencerá ao 3o grau, mas
entendemos que se trata de uma questão de tempo, para a adaptação
devida. Há dois aspectos a se considerar, de imediato: em primeiro
lugar, a autonomia estadual dos currículos de EM, que é um dispo-
sitivo de lei; em segundo lugar, o que é mais complicado, como se
fará a distribuição de recursos. O próprio Ministro Fernando Haddad
calculou que o modelo só funcionaria com a média de gasto por alu-
no superior a dois mil reais (hoje, a média é de R$1,4 mil). De onde
sairia a diferença?

Deseja-se mudar o modelo federativo, o que exigiria mexidas cons-


titucionais, mas estariam os estados dispostos a assumir mais esses
encargos? O MEC teria condições de suprir os estados de acordo
com as suas necessidades financeiras? É bonito pensar em regime de
cooperação, mas isso não pode representar uma utopia inexequível.
Seria mais um sonho frustrante.

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É admirável o intuito de quebrar a barreira entre o ensino geral e o
ensino técnico, para aproximá-los do mercado de trabalho. Mas isso
requer tempo e recursos. De toda forma, fazer com que os Institu-
tos Federais de Educação Tecnológica (Ifets), centros de excelência
profissionalizante, sejam o modelo a ser expandido é uma boa ideia,
para começar a ser implementada ainda no próximo ano. Sendo ins-
tituições de educação superior, básica e profissional, pluricurriculares
e multicampi, especializadas na oferta de educação profissional e
tecnológica, nas diferentes modalidades de ensino, equiparadas por
lei às 58 universidades federais, poderão representar uma revolução,
na condução dos destinos da educação brasileira. Esse hipotético
“ensino médio nacional” deverá se basear numa grande mudança
curricular, o que seria essencial para que o MEC e os governos
estaduais operassem em perfeita harmonia, sem a mesquinharia da
interferência político--partidária. O modelo, que se encaixará no
Plano Nacional de Educação, deverá representar uma considerável
expansão de matrículas (o que é muito necessário, hoje), além de
tornar a educação média mais atraente e de qualidade para os jovens
brasileiros. Há 2 milhões deles fora do ciclo escolar, muitos talvez
por absoluta desmotivação.

Cresce a educação profissional

O ano será de fortes emoções. Não adianta desqualificar a crise eco-


nômica, considerando-a “marolinha”. O noticiário diário é um exce-
lente remédio para ativar dores de cabeça. O Ministério do Trabalho
anuncia milhares de desempregados. Empresas poderosas dão férias
coletivas. Investimentos antes anunciados são adiados para melhores
dias. Onde isso tudo vai parar, só Deus sabe.

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No meio dessas preocupações, com o PIB murchando de forma la-
mentável, existem os problemas estruturais de sempre, como é o caso
da educação. A rede pública de ensino básico perdeu meio milhão
de matrículas em 2008, como se pudéssemos nos dar a esse luxo. O
setor privado ganhou 715 mil alunos (aumento de 11%), mas isso
não serve de consolo, pois no total há uma tendência à redução de
matrículas, especialmente nas redes estaduais e municipais.

O fato revela que o País, ainda com imensos vazios territoriais, perde
substância demográfica na sua população dos 7 aos 14 anos de idade.
Há uma diminuição clara nas taxas de natalidade. O ministro Fernan-
do Haddad garante que a nossa população até 17 anos vai encolher
em 7 milhões de habitantes, nos próximos dez anos, caindo de 58
milhões para 51 milhões. É um fator estratégico de grande relevo
para os que projetam o futuro da educação brasileira. Precisamos de
mais escolas e/ou mais e melhores professores? Ainda não se sabe
o papel desempenhado pelo Bolsa Família, nesse processo. Será a
razão do crescimento do setor privado?

Nisso tudo, há um elemento positivo a se considerar, com dados


extraídos do Censo Escolar 2008: houve um aumento de 14,7% na
educação profissional, ou seja, mais de 101 mil estudantes, que hoje
totalizam 795.459 matrículas. Pode-se estimar que ocorra um cres-
cimento em progressão geométrica, com as novas escolas federais
criadas pelo Governo Lula, o que indica um caminho positivo – e
inédito – em nossa Pedagogia. É o segmento com maiores possi-
bilidades de atendimento à demanda, contrariando uma tendência
histórica de desprezo pela educação profissional. Vale lembrar que
ela nasceu no Governo Nilo Peçanha, no início do século XX, para
“crianças desvalidas” e alcançou a Constituição outorgada de 1937

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com a triste percepção de que “o ensino técnico-profissional seria
destinado às classes menos favorecidas”. Hoje, há um sentimento
exatamente oposto, que precisará ser mais e mais prestigiado, apesar
das ameaças da crise econômica mundial.

A contribuição de estados e municípios é importante, verificando-se


resultados apreciáveis, na oferta de vagas, especialmente em Brasília,
Rio de Janeiro, Acre e Amazonas. São dados irrefutáveis, criando
uma nova dinâmica no quadro de matrículas, aliás, uma reversão
extremamente importante: os maiores crescimentos têm se revelado
nas creches implantadas (10,9% de 2007 para 2008), na educação
infantil (3,2%) e na educação profissional, que ficou em 1o lugar com
a expansão de 14,7%. No geral, o ensino médio cresceu 2%.

Para os estrategistas, convém pesquisar sobre os dados anunciados.


Localizar as novas escolas em regiões de demanda certa – e com a
garantia de uma adequada formação de professores e especialistas
de qualidade. Desse quadro pode-se extrair a convicção de que há
quase uma revolução, na oferta pragmática de vagas para os jovens
que assegurarão ao País o desenvolvimento autossustentado. Não é
o que se deseja?

Na Filosofia não há certezas, mas dúvidas, geradoras do pensamento


crítico e até transformador. O grande conceito de educação pode
ser enunciado a partir da expressão de Hegel: “Educação é fazer
com que se quebre no educando tudo aquilo que é da natureza, para
que então apareça o espírito.” É assim que se consegue trabalhar a
inteligência, aperfeiçoá-la, para que o indivíduo se torne um cidadão
útil a si e à sociedade.

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Uma das razões relevantes da situação que ora vivenciamos é a
indefinição da identidade social do ensino médio brasileiro. O fi-
nanciamento obrigatório sempre foi para o ensino fundamental. A
partir da década de 70, precisamente após a Lei no 5.692/71, ainda
nos voltamos para o debate sobre o verdadeiro objetivo da última
etapa da educação básica, hoje obrigatória. Houve um ensaio de
obrigatoriedade do ensino profissionalizante, mas a falta de estrutura
do sistema levou à derrocada.

Precisamos de um projeto de educação básica, com enfoque principal


no ensino médio, que vá ao encontro das mudanças ocorridas no
meio social, político e econômico e seja coerente com os interesses
dos trabalhadores.

Há uma falha essencial: os professores são mal preparados e pessi-


mamente remunerados. Qual o milagre que se espera? Discute-se
tanta teoria, seminários e conferências oficiais, mas sem chegar ao
verdadeiro nó da questão.

Para tal, seria imprescindível sensibilizar professores, empresários,


estudantes e entidades de classe quanto à importância dos novos
rumos que se tem de dar ao sistema educacional brasileiro.

A LDB tem sido sistematicamente alterada, como ocorreu recen-


temente pela Lei no 11.741, de 16/7/2008. Diz a ementa: “...para
redimensionar, institucionalizar e integrar as ações da educação
profissional técnica de nível médio, da educação de jovens e adultos
e da educação profissional e tecnológica.”

Vale a pena frisar as alterações havidas:

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Parágrafo único do art. 36-A:

“A preparação geral para o trabalho e, facultativamente, a habilitação


profissional poderão ser desenvolvidas nos próprios estabelecimentos
de ensino médio ou em cooperação com instituições especializadas
em educação profissional.”

“Art. 36-B: A educação profissional técnica de nível médio será de-


senvolvida nas seguintes formas:

I – articulada com o ensino médio;

II – subsequente, em cursos destinados a quem já tenha concluído


o ensino médio.

Parágrafo único: A educação profissional técnica de nível médio


deverá observar:

I – os objetivos e definições contidos nas diretrizes curriculares na-


cionais estabelecidas pelo Conselho Nacional de Educação;

II – as normas complementares dos respectivos sistemas de ensino;

III – as exigências de cada instituição de ensino, nos termos de seu


projeto pedagógico.”

“Art. 36-C:

A educação profissional técnica de nível médio articulada, prevista no


inciso I do caput do art. 36-B desta lei, será desenvolvida de forma:

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I – integrada, oferecida somente a quem já tenha concluído o ensino
fundamental, sendo o curso planejado de modo a conduzir o aluno à
habilitação profissional técnica de nível médio, na mesma instituição
de ensino, efetuando-se matrícula única para cada aluno;

II – concomitante, oferecida a quem ingresse no ensino médio ou já


o curse, efetuando-se matrículas distintas para cada curso, e podendo
ocorrer:

a) na mesma instituição de ensino, aproveitando-se as oportunidades


educacionais disponíveis;

b) em instituições de ensino distintas, aproveitando-se as oportuni-


dades disponíveis;

c) em instituições de ensino distintas, mediante convênios de inter-


complementaridade, visando ao planejamento e ao desenvolvimento
de projeto pedagógico unificado.”

O Ministro da Educação defende publicamente “a imediata extensão


do ensino profissionalizante a 1,5 milhão de alunos do ensino médio
em todo o País, onde há cerca de 3,5 milhões de jovens com mais de
18 anos, no ensino médio regular. Eles ficam desmotivados porque
não veem aplicabilidade no conteúdo. A evasão é muito grave e o
Brasil desperdiça muito dinheiro e os estudantes perdem tempo.”

Dados do Ministério da Educação comprovam que a evasão em


turmas de cursos técnicos e profissionalizantes é muito inferior entre
os estudantes com mais de 18 anos. “A evasão é menor porque os
alunos encontram na educação profissionalizante uma opção para
suas vidas”.

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As metas divulgadas pelo MEC são audaciosas, como a construção
de 214 escolas técnicas em 8 anos. Os recursos? Acreditamos que as
soluções anunciadas, depois de tantos desajustes, cheguem ao destino,
sem quebra de continuidade.

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) está elaborando um


tipo de cartilha: “Caminhos a serem seguidos por governos e empre-
sas na busca de soluções para o desemprego juvenil”. Os resultados
serão baseados em microdados da Pesquisa Nacional de Domicílio
(PNAD/2006) – o perfil dos jovens de 15 a 24 anos.

No Ministério do Trabalho, dados demonstram que o “desemprego


atinge mais os jovens”. Em 14,7 milhões de empregos surgidos no
período de 1986 a 2006, os jovens receberam apenas 7,8%. A maior
causa desse baixo percentual? A precariedade do sistema educacional,
revelou a pesquisa.

Há um empenho generalizado na busca soluções para os desafios


da educação brasileira. Todos concordam que a sua qualidade deixa
muito a desejar e, nos grandes centros urbanos, é dramática a visão de
jovens que perambulam pelas ruas, à procura de trocados ou “ganhos”
nem sempre defensáveis. Outro dia assisti a uma cena incrível: um
garoto que não devia ter mais de 15 anos aproximou-se furtivamente
de uma loja, feericamente iluminada, e roubou a embalagem de uma
dúzia de cervejas em lata. Quem viu, fingiu que não viu. Ainda foi
possível ouvir o rapazinho comentar: “Isso vai dar uma boa grana
lá no morro.”

Por essas e outras é que se deve abençoar a existência do programa


“Aprendiz Legal”, que nasceu com a finalidade de preparar jovens de

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14 a 24 anos incompletos para a iniciação profissional, auxiliando as
empresas brasileiras na sua política de recursos humanos. Trata-se de
um curso voltado para a educação técnico-profissional, em paralelo
com a jornada de trabalho na empresa.

Pesquisadores ouviram sociólogos, educadores, economistas, empre-


sários e estudiosos, por que não dizer também futurólogos e aponta-
ram as áreas que foram consideradas as mais prováveis: Tecnologia,
Agronegócio e Meio Ambiente, Qualidade de Vida, Educação e
Entretenimento e os setores de maior demanda de profissionais de
RH: Serviços, Infraestrutura e Bens de Capital, Mineração, Siderurgia
e Construção. Outro aspecto relevante e que fará a diferença será a
preferência e valorização do profissional mais generalista, isto é, que
não tenha um conhecimento estanque e sim combine duas forma-
ções ou mais. Já existe, principalmente em empresas multinacionais,
a tendência a valorar mais a produção do que os horários fixos, que
segundo alguns estudiosos tornar-se-ão ficção. A competição cada vez
será maior, os espaços físicos das empresas, dependendo do objeto
de produção, tenderão a ser cada vez menores. Há, aqui no Brasil,
funcionando, dizem que com sucesso, o sistema home office.

A consecução do perfil ideal para aqueles profissionais de recursos


humanos mais requisitados pelo mercado exige dos candidatos:

• Capacidade de interação com as pessoas e com o ambiente.

• Percepção aguçada para antecipar crises e conflitos.

• Visão estratégica da empresa e do mercado em que atua.

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• Interação com outras empresas para alinhar as políticas de
remuneração.

• Domínio de Inglês e Espanhol.

• Formação em negócios.

• Experiência multicultural.

• Expertise em gerenciar talentos.

A competição entre o livro e o computador

Como afirmamos, existe a figura do aprendiz legal, abrangendo


jovens dos 14 aos 24 anos de idade (incompletos), que têm seguras
oportunidades de trabalho, sem as distorções de um regime livre
e descosturado. O Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE),
com a tradição de mais de 45 anos de fecunda existência, comanda
esse processo de forma competente, sem visar ao lucro, pois é uma
entidade de finalidades filantrópicas.

O nome aprendizes provém da Idade Média. Eles realizavam o


seu aprendizado junto a um artesão experiente, que era o mestre,
ouvindo seus ensinamentos (considerava-se a palavra de ouro, na
época) e executando tarefas que o habilitariam futuramente a tam-
bém tornar-se artesão. O mestre tinha o compromisso de ensinar,
abrigar e sustentar o aprendiz – e até de tratá-lo como se fosse um
filho. Ao aprendiz, cujo pai pagava os estudos, cabia dedicar-se com

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devoção ao trabalho, para que um dia se tornasse mestre, dotado de
capacidade técnica e moral.

Vivemos outros tempos, mas os fundamentos permanecem os mes-


mos. A revolução escolar é uma utopia sempre buscada, como se
viu no debate promovido pela Academia Brasileira de Educação, no
Rio, com a Secretária Municipal de Educação, Cláudia Costin. Con-
cluíram os presentes, entre os quais o acadêmico Eduardo Portella,
que a educação é uma política de Estado e não de Governo, visando
à aprendizagem qualitativamente aperfeiçoada.

Como o Rio é uma cidade de leitores, sugeriu-se que cada escola


tenha o seu projeto de salas de leitura, mas há um fator negativo
que impede esse processo de evoluir com a rapidez devida: 60% dos
professores da rede municipal não têm o gosto pela utilização de
livros. A pergunta que ficou no ar foi clara: como levar essa paixão
aos alunos, de um modo geral?

Lembrei-me do que vi no Japão, numa visita às suas principais bi-


bliotecas públicas: os pais acompanham o interesse dos filhos pela
leitura, que se tornou um hábito diário, não apenas na escola, mas
também em casa, sobretudo antes de dormir, de forma sistemática.
Se gostam de determinada história, solicitam a sua repetição, até que
aquilo se fixe no cérebro de cada jovem. No dia seguinte, na escola,
o trabalho da professora é grandemente facilitado.

Entre nós, vivemos a falsa prevalência do computador. Pais e algumas


autoridades não ligam para os livros, que são elementos insubstituí-
veis de cultura. Muitos pensam que a adesão das crianças ao fascínio
da telinha é suficiente para lhes assegurar o futuro. Computador na

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escola, computador em casa. A relação binomial de pais e filhos é
esgarçada, o que pode perfeitamente provocar o que o ex-ministro
Eduardo Portella chamou apropriadamente de “anorexia cultural”.
Quando determinados sistemas educacionais compram 58 milhões
de reais de computadores e nenhum livro, durante um ano inteiro,
isso é revelador de uma incúria que não pode dar bons resultados.
Deve existir uma perfeita harmonia entre educação e cultura, para
que se alcance a qualidade desejada no ensino.

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Palestra pronunciada em 10 de março de 2009

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Brasil: democracia e progresso

José Celso de Macedo Soares


Almirante, Engenheiro Naval, Empresário e Historiador

F rancisco Iglesias, dos nossos mais importantes historiadores


declarou, em entrevista à imprensa: “Democracia, para nós, é
ainda figura de retórica, que é muito usada pelos políticos”. Será? Será
que vivemos em uma democracia? O que vem a ser democracia? A
palavra democracia vem do grego demokratía, governo do povo. Mas
como os gregos a praticavam? Nas suas agoras, ou praças, reuniam-se
as assembleias do povo para discutirem as leis do país, aprovando-
as ou rejeitando-as. Com o tempo, com o aumento populacional,
este tipo de decisão foi se tornando impraticável, nascendo então a
democracia representativa na qual os cidadãos elegiam seus repre-
sentantes para que, em seu nome, discutissem e editassem as leis da
governança do seu país. É o sistema atualmente praticado na maioria
dos países chamados democratas. Lincoln, em seu memorável discur-
so de Gettysburg, deu-nos uma definição deste sistema de governo,

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adequado aos tempos atuais. Referindo-se às lutas em curso na guerra
civil americana, dizia: that the governament of the people, by the people,for
the people, shall not perish from the earth (Que o governo do povo, pelo
povo, para o povo não desapareça da face da Terra).

Não é minha intenção, neste trabalho, discutir as várias transforma-


ções pelas quais a ideia da democracia foi sendo aplicada, nos diversos
países, desde sua criação pelos gregos. Isto é matéria para cientistas
políticos. O que desejo é discutir como, ao longo do tempo, desde
nossa descoberta, esta forma de governo vem sendo aplicada no
Brasil e, suas consequências no progresso do País.

Evidentemente, durante a colonização ela não seria aplicável. Ao


contrário das colônias da América do Norte, que sempre tiveram
noção bem clara de autogoverno (self-government), a colônia Brasil
nunca teve qualquer poder de decisão a respeito de qualquer assunto,
principalmente na esfera dos direitos comuns do cidadão, ou seja,
instrução, decisão das comunidades, igualdade de direitos etc., bem
como na escolha de oportunidades para melhorar suas relações e
convivência com os demais países. Nunca houve, pois, como era
lógico, à época, qualquer noção de democracia em nosso país, neste
período que durou 322 anos, desde a descoberta até a independência.

Com a independência e a instauração da monarquia, presumia-se


que seria instaurado no país os princípios que regem uma nação de-
mocrática. O início foi auspicioso, com a instalação da Assembleia
Constituinte para formular o projeto da primeira Constituição do
Brasil independente. Porém, nem bem ela iniciava seus trabalhos, o
voluntarioso monarca Pedro I dissolveu a Assembleia e proclamou
sua própria Constituição, submetida, nominalmente, à aprovação

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das Câmaras Municipais do Reino, que a aprovaram, com exceção
de Ceará e Pernambuco. Entrava em vigor, então, a 25 de março de
1824, nossa primeira Constituição. Os estudiosos de matéria consti-
tucional declaram ter sido esta a melhor Constituição brasileira. Pelo
menos foi a que mais tempo durou. Não era, entretanto, Constituição
de país democrático na acepção correta do termo. Os poderes quase
absolutos dados ao Imperador, que fazia e desfazia ministérios a seu
bel-prazer, ignorando a eleição popular, são só um exemplo de como
tudo dependia do Imperador. As próprias eleições não passavam
de farsas. A Constituição, no seu artigo 92 § 5o, declarava que eram
excluídos de votar:

Os que não tiverem de renda líquida anual 100$000 por bens de raiz,
indústria, comércio ou emprego.

E mais esta pérola no artigo 43o quando tratava da eleição dos


senadores:

Art. 43 – As eleições serão feitas da mesma maneira que a dos de-


putados, mas em lista tríplice sobre as quais o Imperador escolherá
o terço na totalidade da lista.

Senadores vitalícios escolhidos a dedo pelo monarca. Além disto,


para os que acreditam ter havido parlamentarismo no Brasil, neste
período, basta ler o artigo 102 da mesma Constituição:

Art. 102 – O Imperador é o Chefe do Poder Executivo, e o exerce


pelos seus Ministros de Estado.

Certo é que, com o envelhecimento do monarca, o Poder Executivo

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foi cada vez mais exercido pelo Presidente do Conselho de Ministros,
cargo criado em 1847, quando Manoel Alves Branco tornou-se o
primeiro Presidente do Conselho de Ministros.

Fazendo, também, da religião católica a religião do Estado brasileiro,


atrelando o governo e, de certa maneira, a sociedade aos princípios
e dogmas de uma religião, destruiu um dos princípios mais caros à
liberdade dos cidadãos: o direito de não ser discriminado em virtude
de seu credo religioso, princípio este tão sabiamente defendido por
Thomas Jefferson quando das discussões da elaboração da Constitui-
ção dos Estados Unidos da América. Nessa Constituição lê-se na sua
Primeira Emenda: Congress shall make no law respecting na establishment
of religion, or prohibiting the free exercice thereof (O Congresso não deverá
emitir leis concernentes ao estabelecimento de qualquer religião ou
que proíbam seu livre exercício). Aí está, lembrando-nos que isto foi
estabelecido em 1787, antes da Revolução Francesa e bem antes da
nossa Constituição de Império.

Na realidade, o que queremos demonstrar é que durante a monar-


quia nunca imperou democracia no Brasil, lato sensu, embora grandes
progressos tenham sido feitos neste sentido, graças à extraordinária
elite dirigente, então existente no País.

Chegamos a República. No período chamado de “República Velha”,


que vai de 1889 a 1930, pouca coisa se modificou. As eleições a “bico
de pena”, em que os eleitos eram adrede escolhidos por chefões po-
líticos provinciais, as atas falsas e, principalmente, a ausência do voto
secreto, mantinham quase inalterada a situação vigente na Monarquia:
apenas o Presidente da República substituindo o Imperador. Foi a
época em que imperavam os grandes caciques políticos, em que a

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figura de Pinheiro Machado, Senador pelo Rio Grande de Sul se so-
bressai como o grande fazedor de presidentes, até sua morte em 1915.

O primeiro grande movimento em direção à democracia foi dado pela


Constituição de 1934, que institui o voto secreto e a justiça eleitoral.
Temos, entretanto, o período de 1930 a 1934, em que Getúlio Vargas
governou o País com poderes ditatoriais como “Chefe do Governo
Provisório”.

Não durou muito a pequena experiência democrática instaurada em


1934. Vargas, em 1937, com seu Estado Novo, instala a ditadura no
Brasil, que só terminaria em 1945, com sua deposição. Inicia-se, então,
no Brasil, com a Constituição de 1946, longa experiência democrática.
Digo experiência porque, como veremos mais adiante, democracia,
na verdadeira acepção do termo, nunca imperou no Brasil. As suces-
sivas intervenções militares, abertamente ou nos bastidores, nunca
permitiram que houvesse verdadeira democracia. Basta lembrar os
episódios de 1954 (suicídio de Getulio Vargas), o golpe ou contragolpe
de 1955 (o retorno aos quadros constitucionais vigentes do Marechal
Lott), a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, com a adoção forçada
do parlamentarismo, e a instauração do regime militar em 1964 que,
terminado em 1985 (vinte anos), trouxe graves consequências ao
amadurecimento político da nação brasileira.

Assim, cremos ter demonstrado que, com os breve interregnos de


1934 a 1937 e de 1946 a 1964, em 188 anos de vida independente
(1822-2010) tivemos apenas 46 anos de vivência democrática, anos
estes, entretanto, também marcados por estados de exceção, quarte-
ladas, votos comprados etc.

30 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 668, p. 26-46, nov. 2010


Mas meu objetivo é tratar do momento atual, mais particularmente
do período a partir da promulgação da Constituição de 1988. Não
me deterei na discussão desta Constituição, com seus erros e imper-
feições, assunto este já longamente debatido por juristas de escol.
Apontarei apenas alguns de seus aspectos que afrontam, claramente,
o fundamento da democracia, basicamente os que atingem a sepa-
ração dos poderes.

Em primeiro lugar, é a Constituição de regime presidencialista. Parla-


mentarista convicto, não acredito que o regime presidencialista possa
conduzir à prática de verdadeira democracia política, que deve ter,
como pilares, partidos políticos fortes. Os Estados Unidos da Amé-
rica, pátria de origem do presidencialismo, não devem ser tomados
como modelo. Os americanos, como típicos ingleses, queriam, na
sua independência, um monarca, um rei. Mas, ao mesmo tempo, não
queriam imitar a nação da qual acabavam de se libertar. Daí a figura
do Presidente, monarca sem cetro. Herdaram, porém, dos ingleses, os
grandes documentos constitucionais que são a base das democracias
atuais. Senão vejamos. Já em 1215, mais de sete séculos atrás, o rei
inglês João Sem Terra era obrigado a outorgar aos barões e à burgue-
sia a Magna Carta, base das liberdades inglesas. É interessante citar
algumas de suas provisões: nenhuma contribuição podia ser lançada
sem o consentimento do Conselho do Reino; a liberdade do comércio
era garantida e foram tomadas medidas para assentar a justiça em
bases mais perfeitas, para proteger a vida, a liberdade e a proprieda-
de de cada um contra as espoliações arbitrárias. Foi a Magna Carta,
praticamente, a criadora do Parlamento moderno, quando investiu
25 barões de grande autoridade para fazerem respeitar a Carta, que
era lida, solenemente, duas vezes por ano em cada catedral do Reino.

Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 668, p. 26-46, nov. 2010 31


Nela se estabelecia, definitivamente, a ideia de relações determinadas
e escritas entre senhores e vassalos, entre os reis e os súditos. Outro
documento importante é a Petição de Direitos, de 1628, imposta
pelas Comunas a Carlos I, obrigando-o a reconhecer as liberdades
nacionais. Tão arraigado o sentimento de liberdade entre os ingle-
ses que este Rei foi decapitado por desrespeitá-la. Vem em seguida
um dos mais importantes documentos das liberdades individuais: o
Habeas-Corpus, pelo qual ninguém pode ser preso sem culpa formada,
instrumento este regulado pelo Harbeas-Corpus Act, imposto a Carlos
II, em 1679. Segue-se a Declaração de Direitos, que Guilherme II,
de Orange, teve de assinar em 1689, e que estipulava entre outras
coisas a reunião periódica do Parlamento, a votação dos impostos e
das leis, o direito de petição e, a votação do júri. Finalmente o Act of
Settlement, de 1701 que exigia o consentimento prévio do Parlamento
para declarar guerra e, mais importante, impedia a destituição dos
magistrados pelo rei.

Atentem os leitores para as datas de emissão destes documentos.


O mais moderno tem mais de dois séculos de existência. Estaria, à
época, a Inglaterra livre de injustiças sociais? Teria sido eliminada a
pobreza? Ao contrário, foi justamente o fortalecimento dos cidadãos
perante o arbítrio dos governantes que permitiu criar na Inglaterra
uma sociedade próspera, democrática e, indubitavelmente, uma so-
ciedade em que florescem, sem restrições, as liberdades essenciais
ao ser humano.

Pode parecer aos leitores que estou fugindo ao tema principal deste
capítulo: discutir a democracia no Brasil. Nem de longe. É necessário
estabelecer certos parâmetros para comparação. Se atentarmos para

32 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 668, p. 26-46, nov. 2010


os documentos citados – os quais considero básicos para que haja em
funcionamento uma democracia – vemos que, de certa maneira, eles
estão em vigor no Brasil de hoje. Com efeito, respiramos hoje ar de
plena liberdade, o estado de direito funcionando em toda plenitude,
o judiciário julgando independentemente, a imprensa livre – tão livre
quanto o permitem os donos dos jornais –, enfim, aparentemente,
estão funcionando os conceitos básicos de liberdade no que concerne
ao dia a dia do cidadão.

Nem tanto. A Constituição de 1988 criou as chamadas “Medidas


Provisórias”, instrumento que dá ao Chefe do Poder Executivo
poderes discricionários mais graves que os decretos-lei da ditadura.
Estes só entravam em vigor depois de aprovados pelo Congresso
ou por decurso de prazo. As medidas provisórias, ao contrário, en-
tram em vigor imediatamente, criam fatos consumados e podem ser
reeditadas indefinidamente. A Medida Provisória é instrumento típico
do regime parlamentarista, usado pelo Primeiro Ministro em casos
excepcionais pois, corre o risco de, não obtendo sua aprovação, cair
o governo. Usado no regime presidencialista, destrói o princípio
básico em que se assenta este regime: a independência dos poderes,
a chamada balance of power (equilíbrio dos poderes), tão cara aos fun-
dadores deste regime.

O presidente brasileiro, armado deste instrumento, é, pois, um ditador


constitucional, podendo, de uma hora para outra, privar os brasi-
leiros de direitos, modificar o sistema tributário etc., sem consultar
o Congresso. Enfim, usurpa a função precípua do Congresso, que
é legislar. Está, pois, destruído um dos pilares em que se assenta o
estado democrático.

Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 668, p. 26-46, nov. 2010 33


Verdade seja dita, que dada a inoperância do Poder Legislativo, como
veremos a seguir, o atual Presidente da República e os que o ante-
cederam foram obrigados a utilizar este instrumento para manter o
mínimo de governabilidade no País.

Mas onde no Brasil evidencia-se claramente o desrespeito ao cida-


dão é no domínio econômico. Tomemos, por exemplo, o chamado
Conselho Monetário Nacional. Este conselho, outrora com uma
representação ampla da sociedade, foi reduzido ao arbítrio de três
homens: Ministro da Fazenda, Ministro do Planejamento e Presidente
do Banco Central. Simples resoluções desse Conselho, reunindo-se
até por telefone, podem mudar completamente o rumo dos negócios,
afetando diretamente a vida dos cidadãos. Lembremo-nos que após
o Plano Cruzado, houve, uma euforia nas bolsas, passando muitos
cidadãos a aplicar nelas suas economias, ou diretamente, ou através
de fundos de ações. Foi quanto bastou para que a burocrata da área
econômica saísse em campo para declarar que se precisava acabar com
a especulação. O então Conselho Monetário baixou Resolução que,
interferindo diretamente na constituição desses fundos – estritamente
privados – obrigou-os a comprar títulos do governo, o que causou
queda acentuada no valor das cotas destes fundos. Grande número
de aplicadores teve prejuízo com esta arbitrariedade.

Aqui se nota outro vezo do governo brasileiro: o de querer tutelar


o cidadão. O governo arroga-se o direito de dizer ao cidadão como
aplicar suas economias, estabelecendo regras para suas poupanças,
como planejar sua aposentadoria. Tem de ser obrigatoriamente no
fundo de pensão governamental, o falido INSS. Não seria melhor
darmos uma carta de alforria ao contribuinte para que ele mesmo

34 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 668, p. 26-46, nov. 2010


escolhesse como poupar para sua aposentadoria? Não. Somos todos
incapazes. O governo sabe melhor. A extinção dos Institutos de
aposentadoria das categorias como dos bancários, comerciários, etc.,
no meu entender foi um erro. Sigo a orientação de Tom Peters, em
seu Circle of Innovation: “Para progredir é preciso inovar. Para inovar
é preciso descentralizar.” Juntando todas as aposentadorias no falido
INSS fomos no sentido contrário à inovação.

Assusta-me o poder que tem o governo de elevar ou baixar tarifas


de importação de acordo com as conveniências do momento. Já
imaginaram quantos cidadãos que honestamente estabeleceram seus
negócios, confiando no preço deste ou daquele insumo ou equipa-
mento importado, são levados, de repente, à bancarrota pela elevação
dos preços destes importados? E o que pode haver de favorecimento
de grupos com este poder de arbítrio do Presidente da República?

Mas a maior tirania é a estatização do câmbio. Não vamos entrar na


discussão desta matéria tão particular. O que nos interessa é o seu
efeito sobre os direitos dos cidadãos, sua consequência sobre a prática
da democracia. A moeda, para um país, é tão importante quanto sua
língua. Divirjo, também, quando ouço falar que o Real é uma moe­da
forte. Moeda forte é aquela que é plenamente conversível, que tem
livre curso internacional, que é vendida e comprada livremente em
qualquer instituição financeira, no mundo inteiro. A estatização do
câmbio faz com que o Brasil, paradoxalmente, tenha de se preocupar
com o excesso de suas divisas. E por quê? Porque com a estatização
do câmbio, todas as divisas obtidas com a exportação são obrigato-
riamente vendidas ao governo que, não tendo recursos para tanto,
emite dinheiro. Já imaginaram se o Japão, a Alemanha, detentoras de

Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 668, p. 26-46, nov. 2010 35


poderosas divisas estrangeiras, seguissem este caminho? Qual seria sua
inflação? Não seria melhor que o exportador brasileiro retivesse suas
divisas e as vendesse ao importador? Um bom controle das tarifas de
importação eliminaria o supérfluo. Mas isto não seria possível, pois
seria democrático, seria eliminar a tutela do governante brasileiro
sobre o cidadão, coisa das mais caras ao pensamento burocrático
brasileiro. Esta tutela do cidadão é das muitas heranças ibéricas de que
até hoje não nos livramos. O Presidente da República Brasileira é o
sucessor do Rei de Portugal. Brasília, simplesmente, substitui Lisboa.

Apreciemos um pouco mais o Brasil do presidencialismo. Neste re-


gime, o Executivo executa, o Legislativo legisla e o Judiciário julga.
Será que isto se verifica no Brasil de hoje? Vejamos.

No presidencialismo, os principais executivos são o Presidente e seus


Ministros, basicamente estes últimos. Para ser Ministro não basta
ser de partido amigo, ser portador de títulos acadêmicos. Tem de
ter mostrado, no passado, capacidade de execução. Não adiantam
brilhantes enunciados, bonitas cerimônias de lançamentos de progra-
mas, belas entrevistas à imprensa, se depois nada for concretizado.
Leis, decretos, portarias são o primeiro passo. O difícil é passar do
enunciado à execução.

Máquina administrativa ágil, capaz de resolver os problemas que vão


aparecendo durante a execução, é fundamental. Vejamos o que diz a
respeito do Poder Executivo este notável estadista que foi o Visconde
do Uruguai, Paulino José Soares de Sousa:

“Como governo, o Poder Executivo aplica por si só e diretamente


as leis da ordem política. Como tal, é o promulgador e o executor

36 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 668, p. 26-46, nov. 2010


das leis, por meio de regulamentos e providências gerais; é o depo-
sitário do pensamento político e da direção moral dos interesses da
nação e das suas relações com as outras. Como administrador do
Poder Executivo não aplica, não lhe é possível aplicar, por si só e
diretamente, as leis de ordem administrativa, mas sim por meio de
um complexo de agentes de ordens diversas, disseminados pelas
diferentes circunscrições territoriais. O Poder político (o governo)
é a cabeça; a administração, o braço. O Poder Executivo aplica por
si só e diretamente as leis de ordem política, constituindo a ação de
ordem governamental. Quase nunca, exceto quando nomeia, se ocupa
de indivíduos, e procede regulamentando e decidindo generalidades.
Provê, por medidas gerais, a segurança interna e externa do País e
as execuções das leis, completando-as, quando isto é indispensável
para lhes dar vida e execução, por meio de regulamentos e medidas
gerais, com caráter muitas vezes permanentes. Dá impulso geral
aos melhoramentos morais e materiais que convém introduzir nos
negócios públicos, nomeia os diversos cargos, demite, aposenta e
exerce certa disciplina sobre seus agentes. Exerce certas delegações
que lhe dá o Poder Legislativo. Agora, o poder administrativo aplica
o interesse geral a casos especiais, pondo-se em contato com o cida-
dão individualmente (Visconde do Uruguai – 1862:17, 18, 72 e 76).”

Também o Conselheiro Antônio Joaquim Ribas nos indica claramente


a diferença entre Governo e Administração:

“Ao governo, como poder governamental ou político, compete indicar


a direção, inspirar o pensamento geral e imprimir o impulso a todo
funcionalismo administrativo, tanto nas relações internacionais como
nas internas. A missão da administração, pelo contrário, é por assim
todo material ou mecânica; compete-lhe organizar os meios práticos

Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 668, p. 26-46, nov. 2010 37


e pô-los em ação para a realização do pensamento governamental
(Ribas – 1866: 59-60).”

Ao fazer esta distinção, quero chamar atenção para um dos maiores


testes de um Chefe de Governo: fazer com que a administração obe-
deça às diretrizes do governo, siga sua política. Muitas vezes vemos
governos anunciarem seus planos, suas diretrizes e eles se perderem
na hora da execução. Para que se possa executar um programa go-
vernamental é preciso, antes de mais nada, que o Presidente seja
cercado de Ministros com personalidade, enérgicos e independentes.
Enérgicos bastantes para fazerem com que a administração cumpra e
aceite a política presidencial, e independentes bastantes para trazerem
ao próprio gabinete presidencial sua discordância honesta, mesmo
em questões atinentes a outros ministérios. Nesta mesma linha de
pensamento, expressava-se Joaquim Nabuco, referindo-se ao Mar-
quês de Olinda, notável estadista, regente e quatro vezes Primeiro
Ministro do Império:

“Até o fim ele (Olinda) se mostra fiel às boas tradições: é assim que
os ministérios são todos compostos de homens feitos, de primeira
ordem, independentes, influentes; não procura cercar-se de indivíduos
secundários que não o ofusquem ou se mostrem obedientes por lhes
deverem a promoção; governa com os chefes de partido, com todos
os que querem servir; não é por culpa sua se algum dos mais notáveis
fica de fora, mal encobrindo o desejo de substituí-lo mais tarde; todos
os que estão na primeira linha ele os convida (Nabuco – 1975:119).”

Concordo inteiramente com estas opiniões. Um Ministério composto


de homens sem personalidade, sem energia e sem o domínio de suas

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pastas jamais propiciará ao Presidente um instrumento eficaz de go-
verno. O Presidente que se cercar de tais homens jamais controlará
os componentes do seu próprio governo, a máquina administrativa
do País.

Outra obrigação inerente ao Executivo, seja Federal ou estadual, é


fazer cumprir as leis em vigor no País e as decisões do Poder Judi-
ciário. Lembremo-nos o chamamento de nossa bandeira: Ordem e
Progresso, baseado no lema positivista, o amor por princípio, a ordem
por base e o progresso por fim. Quantas vezes nos últimos tempos
este lema foi posto de lado? Quando vemos desordeiros invadindo
gabinetes ministeriais, colocando galináceos em sua mesa de traba-
lho, e a autoridade policial – o próprio Secretário de Segurança de
Brasília – achando que isto era uma demonstração de democracia,
perguntamos: onde está a ordem como base para o progresso?

Baderneiros estivadores, em flagrante desrespeito a lei, invadiram


navios particulares em terminal portuário privado – Cosipa –,
impedindo-os de descarregar o navio com pessoal próprio, como
lhes assegurava a lei. Ordem judicial manda que se retirem. O então
governador do Estado, São Paulo, Mario Covas, fiel ao seu passado
político de proteção a estes mesmos estivadores, impede a força po-
licial de cumprir a ordem judicial. E nada aconteceu. A firma privada
foi coagida a ceder aos estivadores.

É impossível governar, impossível administrar, sem que o respeito


às leis, à manutenção do princípio da autoridade, seja observado. O
direito da manifestação livre do pensamento não vai a ponto de se
estabelecer a desordem, a licença, o desrespeito ao estado de direito.

Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 668, p. 26-46, nov. 2010 39


O próprio cidadão brasileiro, em geral, ainda está longe de compreen-
der seus direitos. Curva-se à prepotência do burocrata. Pede, não exige
dos seus empregados públicos. Distribui propinas para conseguir o
que tem direito graciosamente ou que já pagou com seus impostos.

Vejamos agora o Poder Legislativo. Podemos dizer, e demonstrar


facilmente, que nosso legislativo federal não é muito adepto do
trabalho árduo. Os senhores congressistas se arrogam o direito de
trabalhar com afinco apenas um dia por semana: às quartas-feiras.
Chegam a Brasília às terças-feiras e, às quintas-feiras, a maioria já
está retornando a seus Estados. Simples cálculo matemático prova
esta ociosidade. Descontados sábados (1/2 dia), domingos, férias de
trinta dias, feriados, carnaval, semana santa etc., temos no Brasil, para
cada trabalhador comum, 241 dias úteis de trabalho, no ano. Com
três meses de férias por ano e um só dia de trabalho por semana, os
senhores congressistas exercem sua penosa tarefa em apenas 36 dias
completos, por ano. Isto significa apenas 15% dos dias úteis à sua
disposição para trabalhar. Qual a lei, estatuto, que dá a este cidadão
o privilégio de trabalhar apenas 15% do tempo útil à sua disposição
enquanto o resto dos mortais é obrigado a trabalhar 100% do tempo?
A diferença, é de 85%. É ou não ociosidade? Onde estão as refor-
mas tributárias, previdenciárias, tão necessárias? Esperando que os
parlamentares se dignem a estudá-las.

Tudo isto aumenta o chamado “Custo Brasil”. Custo Brasil, significa


somação do conjunto dos custos que entravam o desenvolvimento
do País, como custos da burocracia, da infraestrutura, da inseguran-
ça jurídica, entre outros. A Federação do Comércio de São Paulo
publicou interessante estudo dando exemplos do Custo Brasil. Vou
reproduzi-los:

40 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 668, p. 26-46, nov. 2010


“1) Carga tributária excessiva. 2) Legislação fiscal complexa, dando
margem a subterfúgios que tornam as operações desnecessariamente
complexas e arriscadas. 3) Legislação ambiental restritiva e inibidora
do desenvolvimento. 4) Burocracia excessiva para criação de uma em-
presa. 5) Manutenção de taxas de juros reais elevadas e spread bancário
exagerado (dos maiores do mundo). 6) Corrupção administrativa ele-
vada. 7) Monopólios estatais na economia, eliminando a concorrência.
8) Déficit público elevado. 9) Constituição e leis cerceadoras da livre
iniciativa. 10) Impossibilidade e dificuldades de entrada de capitais
externos em diversos setores. 11) Sistema educacional deficiente.
12) Baixa eficiência portuária, com taxas elevadas e tempos de carga
e descarga excessivos. 13) Burocracia excessiva para importação e
exportação, dificultando o comércio exterior. 14) Custos trabalhistas
excessivos, devido a uma legislação trabalhista obsoleta. 15) Altos
custos do sistema previdenciário.” A lista é impressionante.

Todos que labutam no meio empresarial, sabem que estes itens são
absolutamente verdadeiros. Devo ressaltar o caótico sistema tributário.
Exemplo: tributos arrecadados sobre transações comerciais: ICMS,
IPI, ISS, PIS/Pasep, e Cofins, que incidem sobre bens e serviços.
Imposto de Renda da Pessoa Jurídica e Contribuição Social sobre
Lucro Líquido, incidentes sobre a renda. São tributos que se sobre-
põem, ocultando o efeito final sobre preços e serviços e, demasiado
ônus tributário imposto às empresas. Também, a obsoleta legislação
trabalhista, dificulta a demissão sem incentivar a admissão. É outro
entrave ao crescimento. No Brasil o peso da legislação trabalhista nas
despesas de contratação de empregados tem levado ao crescimento
da informalidade. Com graves repercussões na receita previdenciária.
Outro exemplo de subdesenvolvimento é a restrição à entrada do

Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 668, p. 26-46, nov. 2010 41


capital estrangeiro no capital de empresas, em certos setores. Isto é,
repito, subdesenvolvimento. Não devemos nos preocupar onde mora
o acionista e sim onde fica a fábrica. Ela é que gera os empregos.

Mas, o item mais importante é o de número 11: Sistema educacional


deficiente. Nação alguma pode pensar em se tornar líder mundial
sem ter eficiente sistema educacional. Infelizmente os últimos nú-
meros publicados não são encorajadores. Se melhoramos no ensino
fundamental, pioramos no médio. O problema parece ser de gestão,
no que concerne às escolas públicas, e não de recursos. Escolas no
Piauí apresentam melhores rendimentos que as do Rio de Janeiro,
Estado bem mais rico.

Além disto, a ética parlamentar, os bons costumes, o nível cultural


dos atuais parlamentares – com as exceções de praxe – desceram a
níveis jamais atingidos em todas as legislaturas brasileiras. As leis, as
providências legislativas, não se arrastam apenas por causa do escasso
tempo que os congressistas dedicam às suas atividades. Arrastam-se,
também, porque não têm nossos atuais representantes, em sua quase
maioria, capacidade para discutir os problemas da nacionalidade, nem
sequer de elaborar projetos. A isto se acrescenta a falta de vinculação
com o eleitorado mercê deste sistema proporcional de eleição em que
os futuros mandatários vão amealhando votos em diferentes regiões
de seus estados, conseguidos, muitos, a poder de pesadas contribui-
ções financeiras. E, depois de eleitos, só pensam nas suas reeleições.
Não falo da defesa dos interesses corporativistas, da sujeição aos
lobbies, do nepotismo, da legislação em causa própria, porque isto,
infelizmente, existe em quase todos os parlamentos do mundo. O que
se deseja, no Brasil, é um pouco mais de seriedade, de labuta, porque

42 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 668, p. 26-46, nov. 2010


este é o poder dos poderes. Sem leis justas, claras e práticas um País
não se governa. Mas apesar disto, temos de lutar pela consolidação
deste poder, pela sua permanência como fulcro da democracia. E,
acima de tudo, lembramo-nos que a pior Câmara é sempre melhor
que a antecâmara de um ditador.

Chegamos ao Judiciário. Este é o Poder mais controverso e, por vezes,


o mais injustiçado. O juiz só pode e deve julgar de acordo com as
leis, os códigos de processo, enfim, de acordo com o ordenamento
jurídico que os legisladores lhes oferecem. Não cabe ao juiz elaborar
leis. Cabe cumpri-las e interpretá-las. Se os processos se arrastam,
apenas uma minoria é causada pela ação de juízes inoperantes e in-
capazes. Porque os há, como os integrantes dos outros poderes. Os
brasileiros, com razão, se exasperam pela delonga nos processos, o
formalismo de nossa justiça. Esquecem-se, entretanto, que esta jus-
tiça, barroca, cara e morosa, é calcada nas Ordenações do reino de
Portugal, Manuelinas, Filipinas e Afonsinas. Muito pouco temos feito
para modificá-las, atentar para os tempos modernos, afastarmo-nos
dos cartórios e dos reconhecimentos de firmas... Mas isto não cabe
aos juizes alterar. Cabe aos legisladores..

Certo é que não conseguimos afastar de certos juízes os laivos ideo­


lógicos que trazem de sua formação, como vimos recentemente
no espetáculo das famosas liminares concernentes ao processo da
privatização da economia. Mas estes não são juízes. Escolheram mal
a profissão.

Enquanto nos países mais adiantados, caminha-se para a resolução


das causas por arbitragens, para acordos rápidos em juizados especiais,

Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 668, p. 26-46, nov. 2010 43


ainda resistimos em aperfeiçoar este sistema. Será que os advogados
querem a justiça complicada para tornarem-se imprescindíveis no
dia a dia do cidadão? Não creio. Os bons advogados querem uma
justiça rápida e eficiente, para se desobrigarem da penosa tarefa de
convencer juízes incompetentes.

Por todas estas razões, a tarefa de julgar está, hoje, no nosso País,
bastante comprometida.

Então, perguntamos: no Brasil atual, o Executivo executa, o Legislati-


vo legisla, o Judiciário julga? Se não o fazem, onde está a democracia?

Respondendo, faço minhas as palavras de Aprígio Guimarães, quando,


do alto de sua tribuna de deputado federal por Pernambuco, ainda
no Império, em 1872, assim se pronunciava sobre o exercício da
democracia:

“Desde que, por incúria ou por ignorância, o cidadão não sabe fazer
valer os seus direitos perante o poder público, e neste abdica em
ordem a constituí-lo tutor absoluto da gerência social, desde que o
poder público favorecido pela incúria e pela ignorância dos cidadãos,
vai eliminando no Estado toda ação individual, pode-se dizer que a
escravidão política está perto: porque a ação coletiva do governo,
em tudo, é a absorção da individualidade do cidadão; e na sociedade
política em que o indivíduo desaparece, o despotismo é certo. O
cidadão inspeciona o poder; o poder vigia o cidadão. É da combina-
ção da ação coletiva com a individual que surgirá a liberdade. A ação
individual só, seria a licença; a ação coletiva só, seria o despotismo. A
verdade, isto é, a liberdade, está no centro (Guimarães – 1872:52).”

44 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 668, p. 26-46, nov. 2010


Roberto Campos exprime muito bem a realidade brasileira. Diz ele:

“São três as raízes de nossa cultura:

1) A cultura ibérica que é a cultura do privilégio.

2) A cultura africana que é a cultura da magia.

3) A cultura indígena que é a cultura da indolência.”

Enquanto nossos legisladores, nosso executivo e nosso judiciário


procurarem sempre o privilégio não haverá democracia no Brasil.

É na procura constante da liberdade, palavra muito bem definida


por Voltaire: “A liberdade consiste em não se depender senão das
leis, que se constitui a essência da democracia e, como consequência
o progresso.”

Meditando sobre estes fatos da realidade brasileira de hoje, verifica-se


que o Brasil ainda está longe de ser uma democracia, na acepção do
termo. Temos feito progressos. Mas ainda temos um longo caminho
a percorrer. Mas a luta deve continuar. Democracia não se ganha,
conquista-se.

Bibliografia

GUIMARÃES, Aprígio. Discursos e Diversos Escritos. Recife: Tipografia


Mercantil, 1872.

Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 668, p. 26-46, nov. 2010 45


NABUCO, Joaquim. Um estadista do Império. Rio de Janeiro: Ed. Nova
Aguilar, 1975.

RIBAS, Conselheiro Antônio Joaquim. Direito administrativo Bra-


sileiro. In: A Democracia Coroada”. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1964.

URUGUAI, Visconde do. Paulino José Soares de Souza. Ensaio sobre


o Direito Administrativo. Rio de Janeiro, 1862.

46 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 668, p. 26-46, nov. 2010


A reforma bancária
internacional e a estrutura
do sistema bancário brasileiro

Antonio Chagas Meirelles


Economista

Introdução

C omo rescaldo da grande crise financeira, iniciada em 2007, e a


atual recidiva europeia de 2010, surgiu nos diferentes fóruns
internacionais uma enxurrada de propostas de supervisão, regula-
mentação, organização, gestão e tributação de Bancos Globais com
o objetivo de evitar que problemas por eles ocasionados não mais
se repitam.

O ano de 2010 está sendo decisivo para a aprovação e implementa-


ção dessas medidas que vão impactar por um longo período não só
a rentabilidade dos bancos, mas a disponibilidade de crédito e o seu
custo, a liquidez do sistema financeiro e, por conseguinte, o ritmo de
crescimento da atividade econômica mundial.

Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 668, p. 47-79, nov. 2010 47


Propostas de reforma

Os Estados Unidos, onde a crise começou com o escândalo das


hipotecas sub-prime, partiu na frente aprovando, inicialmente na Câ-
mara e depois no Senado, projetos de regulamentação do seu sistema
financeiro.

As divergências entre as duas casas foram conciliadas por um Comitê


(Conference Committee) constituído por membros seniors da Câmara
e do Senado e a versão final obteve a aprovação do presidente Obama
e foi sancionada em 21 de julho 2010.

A nova lei (2.323 páginas) passou a ser conhecida como “Dodd-Frank


Wall Street Reform and Consumer Protection Act”. Sua efetiva im-
plantação depende ainda da regulamentação de 243 medidas, tarefa
que, mesmo em regime de urgência, deverá levar pelo menos dois
anos para ser concluída.

Resumidamente podemos grupar as inúmeras medidas, em 4 prin-


cipais tópicos:

1) Supervisão

2) Regulamentação

3) Modificações Estruturais

4) Tributação

1. Supervisão

1.1. Criação do “Conselho Supervisor da Estabilidade Financeira”

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(Financial Stability Oversight Council) – FSOC com o objetivo de
identificar, acompanhar e propor soluções para situações de risco
sistêmico causadas por grandes e complexas instituições financeiras,
bem como por produtos e atividades que possam colocar em risco
o setor financeiro e o mercado de capitais.

O Conselho terá 10 membros votantes e será presidido pelo Secretário


do Tesouro. Os outros 9 conselheiros serão:

– Chairman, Board of Governors do FED

– Controller of the Currency (OCC)

– Chairman, Security Exchange Commission (SEC)

– Chairperson do Federal Deposit Insurance Corporation (FDIC)

– Chairman Federal Housing Financial Agency (FHFA)

– Chairman Commodity Futures Trading Commission (CFT)

– Director, Bureau of Consumer Financial Protection (BCFP)


(a ser criado)

– Chairman do National Credit Union Administration Board

– Conselheiro independente especialista em seguros, indicado pelo


Presidente com aprovação pelo Senado.

O Conselho Supervisor (FSOC) poderá determinar, por 2/3 dos


votos, a intervenção e liquidação de instituições financeiras. Na

Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 668, p. 47-79, nov. 2010 49


nova legislação o FSOC estende ao FED poderes de supervisão e
fiscalização de grandes bancos (ativos superiores a U$ 50 bilhões) e
de instituições financeiras não bancárias designadas pelo FSOC por
2/3 dos votos.

1.2. O FED terá o seu poder de supervisão aumentado com a criação


de uma Vice-Presidência de Supervisão.

Existem segmentos do mercado sem fiscalização claramente definidas


como as gigantes do mercado hipotecário Fannie Mae e Freddie Mac,
empresas privadas com garantia oficial (hoje federalizadas), grandes
empacotadoras de hipotecas sub-prime e derivativos negociados no
mercado de balcão (OTC) que somam mais de US$ 600 trilhões e as
Special Purpose Entity (SPEs) sociedades com propósitos específicos
cuja finalidade é intermediar a negociação de recebíveis dos bancos.

Fannie Mae e Freddie Mac compraram ou garantiram US$ 1,6 trilhão


de hipotecas sub-prime. O custo para o contribuinte do socorro a essas
instituições já chega a US$ 160 bilhões.

2. Regulamentação

2.1. Maior exigência de capitalização, liquidez e transparência.

Quando da eclosão da crise do sub-prime os princípios de Basileia II


(2004) acabavam de ser adotados nos EUA. O projeto de lei exige o
enquadramento, até 2012, das instituições financeiras aos princípios
do Acordo de Basileia III que contempla maiores exigências de ca-
pital, liquidez e transparência (padronização de balanços, relatórios

50 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 668, p. 47-79, nov. 2010


e uma maior periodicidade na sua publicação). As regras do Basileia
III, devem ser estabelecidas na próxima reunião do G-20 em novem-
bro/2010 em Seul. O novo índice vai depender de quão restritiva
for a definição do “Core Capital” – patrimônio de referência das
instituições financeiras.

O Basileia III deverá exigir que os bancos mantenham ativos líquidos


em montante suficiente para que sobrevivam por 30 dias em con-
dições críticas de stress. O item liquidez ganhou importância com a
recente crise da divida dos países europeus cujos títulos eram, até
então considerados de alta liquidez.

O Parlamento Europeu aprovou em Julho/2010 novas regras que


limitam os bônus, em espécie, dos executivos bancários. A partir de
2011 os executivos só poderão receber 30% dos bônus anuais em
dinheiro, os outros 70% ficarão retidos para posterior pagamento
com base nos resultados da instituição.

2.2. Derivativos e Ativos Securitizados:

A maior parte das operações deverá ser realizada em Bolsa e não mais
no mercado de balcão (OTC) e contar com garantia de um clearing
independente.

2.3. Empresas de Avaliação de Risco de Crédito:

Deverá ser criado, no âmbito da SEC, um departamento com fim


específico de fiscalizar as empresas de avaliação de risco. O novo
departamento estabelecerá regras mais rígidas de controle interno, in-

Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 668, p. 47-79, nov. 2010 51


dependência, transparência e terá poderes para multar e descredenciar
a empresa de rating que sistematicamente falhar em suas avaliações.

Falhas operacionais, pouca ou nenhuma fiscalização, conflitos de


interesse, ausência de transparência permitiram que ratings máximos
(AAA) fossem concedidos para derivativos de alto risco, lastreados
em hipotecas sub-prime, permitindo o aumento da bolha hipotecária
e amplificando o impacto do seu estouro.

3. Estrutura

3.1. Proibição dos bancos de aplicarem recursos próprios nas áreas


de mercado de capitais e investimento.

A ideia central é retirar dos bancos comerciais o controle, participa-


ção e/ou administração de fundos de derivativos, fundos de ações e
outras aplicações por conta própria (proprietary trading) no mercado
de capitais e investimento (Volcker’s Rule). A busca de lucro em ope-
rações especulativas coloca em risco os recursos dos depositantes e o
patrimônio da instituição. Os enormes prejuízos com essas atividades
precipitaram a crise financeira de 2007/2008 e a gigantesca operação
de socorro, com o aporte de recursos públicos de centenas de bilhões
de dólares.

3.2. Limitar o tamanho dos bancos.

O objetivo da regulamentação é evitar que os gigantes do sistema


financeiro americano, que se tornaram ainda maiores com as incor-
porações ocorridas em 2008, continuem a usar o seu tamanho como

52 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 668, p. 47-79, nov. 2010


blindagem contra a decretação de sua falência por parte do Governo
(too big to fail).

O projeto inicial da Câmara estabelecia um teto para o tamanho dos


bancos em função do total de seus ativos. Nenhum banco poderia
ter ativos superiores a um percentual dos ativos totais do sistema
bancário.

A proposta do Senado, que acabou prevalecendo, substituiu a limita-


ção no tamanho das instituições financeiras por uma supervisão mais
rígida para os grandes bancos – ativos superiores a US$ 50 bilhões.

Maior capitalização, menor alavancagem, maior liquidez além de em


caso de ameaça de falência poderem sofrer um processo de inter-
venção e posterior liquidação, sem utilização de recursos do Tesouro.

Os Quadros I e II quantificam o total de ativos dos 25 maiores Ban-


cos Globais nos anos de 2008 e 1990 (Fonte: J. P. Morgan “Global
Banks-Too Big to Fail” 17/02/2010).

Uma análise dos dois quadros permite concluir:

a) Que entre os 25 maiores bancos de 1990 (Quadro II) 16 eram japo-


neses. Juros extremamente baixos, elevada alavancagem dos bancos,
alto endividamento das empresas e investimentos mal-sucedidos no
país e em subsidiárias no exterior geraram uma crise financeira no final
da década de 90. Muitos bancos quebraram e outros foram saneados
pelo governo. Impulsionados pela necessidade de globalização e li-
berados das restrições do Glass-Steagall Act e das barreiras regionais
os bancos americanos cresceram internamente e externamente. Na

Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 668, p. 47-79, nov. 2010 53


Europa, a globalização e a queda das barreiras entre os países da zona
do euro criaram condições para um acelerado processo de expansão
e consolidação das instituições financeiras.

b) Que somente 6 bancos que figuravam em 2008 continuam na lista


de 2009.

c) E, o que é mais importante, nenhum dos bancos da lista de 1990


possuía ativos totais maiores que o PIB de seu país-sede. Atualmente
7 dos megabancos apresentam ativos superiores ao PIB do seu país!!!
Em 1990 somente o UBS possuía ativos superiores a 50% do PIB do
país-sede. Em 2008 mais da metade ultrapassavam esse valor.

d) Que os ativos totais dos 25 megabancos cresceram substancial-


mente no período 1990-2008. De US$ 6,4 trilhões em 1990 para
US$ 44,7 trilhões em 2008!! (557%).

Os ativos totais dos Bancos Globais são a melhor medida do seu ta-
manho, pois incorporam o crescimento explosivo, na última década,
dos derivativos responsáveis por grande parte da expansão indicada
nos Quadros I, II e III.

Os ativos totais são também um excelente indicador da globalização


e internacionalização dos megabancos. Eles contabilizam ainda o
risco potencial de perdas que o sistema bancário pode sofrer. Os
atuais elevados valores da relação Ativos Totais/PIB são causa de
justificável preocupação, pois grandes perdas de um Banco Global
ou de um grupo de grandes bancos de um mesmo país podem abalar
seriamente as finanças públicas daquela nação.

Não podemos esquecer que os Bancos Globais exerceram nas últimas

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décadas relevante papel na economia mundial como agenciadores do
processo de crescimento dos países desenvolvidos e dos emergentes
financiando empresas e nações.

Uma reclassificação da relação Ativos/PIB separando os Ativos de


cada banco, sob jurisdição do país de domicílio do banco (Home As-
sets), dos ativos alocados em outros países (Host Assets) (ex: o HSBC
com sede na Inglaterra e regulado pelas autoridades inglesas possui
43% de seus ativos naquele país e 57% em outros), torna a relação
menos dramática (Quadro IV) no sentido de que nenhum banco
possui ativos domésticos superiores ao valor do seu PIB!!

Existe uma diferença contábil entre os valores dos ativos totais dos
bancos americanos e dos bancos europeus. As normas contábeis
americanas permitem que seus bancos façam um netting no valor de
seus derivativos o que resulta em uma menor alavancagem para os
bancos dos EUA.

Se somarmos aos ativos dos bancos americanos o valor bruto de


seus derivativos, o que é feito no Quadro V, teremos uma mudança
significativa no tamanho dos bancos fazendo com que o J. P. Morgan
com US$ 4,6 trilhões ultrapasse o RBS US$ 3,5 trilhões e se torne o
maior banco na comparação com os outros europeus e americanos
da lista. O ativo total do J. P. Morgan seria 2,8 vezes maior que o PIB
brasileiro de 2008 (US$ 1,6 trilhões).

4. Tributação

O G-20 estuda a criação de uma taxa sobre empréstimos bancários


(tipo IOF ou Tobin Tax) que serviria para alimentar um fundo de

Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 668, p. 47-79, nov. 2010 55


emergência. Os recursos do fundo seriam usados para ajudar insti-
tuições financeiras com dificuldade de liquidez ou para promover a
sua falência ordenada.

A última reunião do G-20, em Toronto, reconheceu a dificuldade de


um acordo global para a fixação do imposto, o que não impediu que
vários países partissem na frente criando taxas sobre os ativos de suas
instituições financeiras: Suécia e Alemanha 0,04%, Inglaterra 0,04%
para 2011 e 0,07% a partir de 2012.

Estudo de um grande banco americano estima que o impacto da


adoção cumulativa das propostas de aumento de capital, liquidez,
impostos, tamanho e separação de atividades reduziria a rentabilidade
dos 25 maiores Bancos Globais em 59% em 2011(o RoE cairia de
13,3% para 5,4%).

Com rentabilidade tão baixa será difícil atrair capital privado para
permitir o crescimento dos bancos, o que só se tornaria possível com
o aumento no preço de seus produtos.

O mesmo banco estima que o preço de todos os produtos bancários


teriam de subir cerca de 33% para manter o nível de rentabilidade
original.

Mesmo admitindo-se que as previsões acima estejam exageradas e


que o impacto do conjunto das medidas seja muito menor do que o
calculado pelo megabanco dos EUA, não há como evitar uma subs-
tancial redução na disponibilidade de crédito e um aumento do seu
custo prejudicando o processo de recuperação dos países mais atingi-
dos pela crise e desacelerando o crescimento das nações emergentes.

56 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 668, p. 47-79, nov. 2010


Como pretendemos mostrar na segunda parte do presente trabalho
em que abordamos a estrutura do sistema bancário brasileiro, su-
pervisão e regulamentação são instrumentos muito mais adequados
na superação de crises financeiras do que alterações na estrutura do
sistema.

As forças do mercado fizeram os bancos crescerem e se concentrarem


acompanhando o processo de globalização da economia mundial, a
expansão do comércio internacional, o extraordinário aumento das
empresas nacionais e multinacionais com fusões e aquisições em todos
os setores na busca de um maior nível de eficiência.

Mudanças abruptas que imponham limitações ao tamanho dos


bancos, a diversificação de suas atividades e que comprometam a
sua criatividade podem desmontar a rede internacional de crédito,
retardando a recuperação das economias mais atingidas pela crise e
o ritmo de crescimento dos países emergentes.

O sistema financeiro brasileiro

1) Presente e Futuro

O sistema financeiro brasileiro, depois de um longo período de tur-


bulência, parece ter finalmente encontrado o caminho do equilíbrio
e da estabilidade. A atual estrutura do sistema financeiro é a mais
eficiente e assente das últimas décadas.

A tendência histórica de concentração, induzida pela busca de eco-


nomias de escala e de escopo, prossegue em linha com o que vem

Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 668, p. 47-79, nov. 2010 57


ocorrendo na atividade econômica global. As instituições líderes vêm
ampliando a sua fatia de mercado através da aquisição de bancos de
menor porte, enquanto no outro estremo surgem novas instituições
nacionais e estrangeiras atraídas pela rentabilidade do setor e pelo
potencial de expansão de crédito da economia brasileira (baixa relação:
empréstimos/PIB = 45% em 2009).

O que se tem observado nos últimos anos é um processo de concen-


tração sem os traumatismos de intervenções e liquidações por parte do
Banco Central, que caracterizaram as últimas décadas e que acabavam
por onerar a sociedade como um todo através da elevação da dívida
líquida do governo. Os índices de concentração, embora crescentes,
estão em níveis baixos em termos absolutos e relativamente aos de
outros países, o que, aliado à acirrada concorrência entre instituições
privadas nacionais e estrangeiras e instituições oficiais e à ausência
de barreiras à entrada de novas instituições, é forte indicativo da
inexistência de práticas oligopolísticas no sistema bancário.

A estrutura atual do sistema financeiro, além de estável, vem am-


pliando a sua área de atuação através da criação de novas instituições
e parcerias com empresas não financeiras, com o objetivo de per-
mitir que pessoas e empresas, que pelo seu nível de renda, porte ou
localização geográfica não tenham acesso ao crédito e/ou serviços
bancários, tenham atendidas suas necessidades emergenciais e/ou
possam alavancar os seus projetos empresariais.

O sistema financeiro preenche hoje quase todo o território nacional


distribuindo seus produtos e serviços através de vários canais: agên-
cias bancárias (20.046 em 12/2009); postos de atendimento bancário
PABs (6.663 sendo 121 em municípios sem agência bancária); postos

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de atendimento bancário eletrônico (34.303 crescimento de 137%
em 9 anos).

Merece destaque o acelerado crescimento no número de pontos de


correspondentes (correio, lotéricas, supermercados, farmácias etc.) de
13.731 em 2000 para 84.332 em 2007. Estas parcerias com institui-
ções não financeiras vêm permitindo o acesso ao sistema financeiro
de milhões de pessoas por todo o território nacional (Quadro VI).

A ação normativa e fiscalizadora do Banco Central, no exercício de


sua atribuição legal de zelar pela liquidez e solvência das instituições
financeiras e de propiciar o aperfeiçoamento das instituições e dos
instrumentos financeiros, com vistas à maior eficiência do sistema de
pagamentos e da mobilização de recursos, foi decisiva na montagem
da atual estrutura financeira.

Podemos dizer que a atual estrutura do sistema apresenta instituições


saneadas, adequadamente capitalizadas e assumindo menores riscos,
o que a torna mais preparada para financiar o desenvolvimento do
País e sobreviver a eventuais crises externas e internas, como ocorreu
na recente crise dos sub-prime que encontrou o País com um sistema
financeiro “sobrerregulado” em que as instituições operavam “suba-
lavancadas” e no qual a crise aportou em meio ao ciclo econômico
com claros sinais de superaquecimento (reservas internacionais
adequadas, compulsórios e taxas de juros elevados) que municiaram
as autoridades monetárias com ferramentas eficazes no combate à
contração da oferta de crédito que se seguiu à crise:

a) Redução das alíquotas do compulsório;

Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 668, p. 47-79, nov. 2010 59


b) Liberação de compulsório sobre depósitos a prazo para a compra
de carteiras de crédito.

c) Autorização formal para que o Banco Central possa fazer operações


de redesconto com garantias reais ou fidejussórias.

d) Autorização para BB e CEF adquirirem ações de instituições


financeiras.

e) O Fundo Garantidor de Crédito (FGC) passou a poder adquirir


carteira de crédito e certificados de depósitos bancários. Além disso,
foi criado o Depósito a Prazo com Garantia Especial do FGC, com
prazo mínimo de 6 meses e valor de até R$ 20 milhões.

Acreditamos que o processo de concentração prossiga, embora em


ritmo mais lento, nos próximos anos. A solidez e rentabilidade das
instituições que compõem o topo da escala de tamanho encarecem
e inviabilizam a compra de um pelo outro e reduzem o atrativo de
uma eventual compra por um banco estrangeiro.

A compra de instituições de menor porte, com nichos específicos,


continua atraente. O cenário mais provável é o do crescimento orgâni-
co através da melhor utilização da capacidade instalada, da ampliação
das operações via canais alternativos de distribuição de seus produtos
e serviços (internet, ATMs, telefones celulares), do remanejamento de
agências para polos de crescimento acelerado e de novas modalidades
de parcerias com empresas não financeiras.

No segmento dos pequenos bancos continuaremos a assistir um fluxo


de entrada de novas instituições nacionais e estrangeiras, atraídas pela

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rentabilidade do setor e pelo potencial de crescimento da economia
brasileira.

Os novos bancos, mais eficientes, tendem a aproveitar da melhor


maneira as oportunidades existentes, tornam-se mais lucrativos e, com
o passar do tempo, ganham fatias do mercado. Os menos eficientes
têm prejuízo, tendem a perder fatia de mercado e são absorvidos por
outros maiores ou encerram suas atividades.

Em um sistema dinâmico e de concorrência acirrada, interna e


externa, como o financeiro, não existe fatia de mercado ideal ou
estável, o crescimento sustentado tem de fazer parte obrigatória do
planejamento estratégico, a instituição que parar de crescer muito
provavelmente será ultrapassada pelos concorrentes mais próximos.

Os bancos líderes continuam com o planejamento estratégico agressi-


vo do tipo “the bigger the better” que dá prioridade à conquista de fatias
crescentes de mercado visando a uma maior rentabilidade futura,
enquanto que outros postulam se aproximar da liderança como es-
tratégia para manter a sua independência (“too big to fail”).

2) Histórico

A busca por parte da autoridade controladora de um sistema finan-


ceiro mais eficiente, composto de unidades maiores que pudessem se
beneficiar de economias de escala e de escopo, via incentivos fiscais a
fusão e aquisição de bancos, resultou, a partir da segunda metade da
década de 1960, no surgimento de alguns grandes bancos comerciais
que logo a seguir tornaram-se cabeça de conglomerados atuando em
todos os seguimentos da atividade financeira.

Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 668, p. 47-79, nov. 2010 61


Optava-se assim por adotar um modelo de sistema financeiro seme-
lhante ao dos conglomerados japoneses, a quem se atribuía na época
importante papel no financiamento de grandes empresas industriais
e no crescimento acelerado do Japão. O outro modelo de sistema
financeiro discutido na época era o dos Estados Unidos, com ins-
tituições independentes especializadas nos diversos seguimentos da
atividade financeira: bancos comerciais (crédito de curto e médio
prazos), bancos de investimento (financiamentos de longo prazo e
operações de mercado de capitais), financeiras (crédito ao consumi-
dor), corretoras e distribuidoras (intermediação).

A escolha do modelo de conglomerados financeiros, posteriormen-


te transformados em bancos múltiplos, foi acertada no sentido de
que a estrutura americana especializada só sobrevivia em função da
existência de barreiras institucionais (Glass-Steagall Act) e geográfi-
cas. No início da década de 1990 o processo de desregulamentação
da atividade bancária americana, fez com que as forças de mercado
impulsionadas por economias de escala e de escopo, avanços tecno-
lógicos e na governança de empresas, no processamento de dados,
na tecnologia de informação, aliados à globalização das atividades
econômicas provocassem acelerada concentração nos bancos co-
merciais na medida em que se libertavam das barreiras institucionais,
tecnológicas e geográficas.

A retirada das barreiras geográficas que impediam a expansão dos


bancos dentro de um mesmo estado e entre diferentes estados e o
cancelamento das restrições, que impediam que os bancos comerciais
atuassem em atividades antes restritas a bancos de investimento,
corretoras e seguradoras, provocaram um acelerado processo de con-
centração: bancos comerciais comprando bancos comerciais, bancos

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de investimento, seguradoras e corretoras; seguradoras comprando
bancos comerciais e de investimento, etc., todos em busca de uma
maior fatia do mercado. No período 1990/99, o número de bancos
americanos diminuiu em 30%, caindo de 12.370 para 8.698. A fatia
de mercado dos 10 maiores bancos subiu de 25,6% para 44,8% do
total de ativos.

Ainda na década de 1960 o processo de concentração bancária,


no Brasil, se acelera com a interação simultânea de diversas forças
econômico-regulatórias, como: (a) controle de juros nas operações
ativas dos bancos; (b) suspensão da emissão de “cartas-patentes” para
funcionamento de novos bancos e restrições à abertura de novas agên-
cias e ao remanejamento das existentes (medidas que viriam a gerar
um “fundo de comércio” para a venda de bancos e agência, abrindo
uma porta de saída para instituições mal-sucedidas); e (c) vigorosa
concorrência por parte dos bancos oficiais, federais e estaduais.

O crescimento das atividades industrial e comercial do País e a sua


expansão geográfica por todo o território nacional passaram a exi-
gir atendimento bancário nas diversas regiões, fazendo com que os
bancos regionais, de menor porte, não resistissem à concorrência
dos bancos de rede nacional, acelerando o processo de concentração.

A partir da década de 1970, a aceleração do processo inflacionário e a


ocorrência de sucessivos e efêmeros planos para controlá-la provoca-
ram oscilações bruscas na rentabilidade do setor financeiro, levando
os bancos a enxugar custos administrativos e adotar tecnologia de
ponta num esforço de adequar seus custos de maneira a permitir a
sua sobrevivência em um cenário em que a inflação fosse finalmente
debelada.

Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 668, p. 47-79, nov. 2010 63


Em 1987 a rede bancária privada nacional estava reduzida a 56 ban-
cos, o menor número de matrizes nas últimas quatro décadas. O
contínuo processo de concentração eliminou 248 dos 304 bancos
que funcionavam em 1964 (Quadro VII).

No final da década de 1980, a autoridade controladora preocupada


com o fato de que a enorme redução no número de bancos, ocorrida
nas duas décadas anteriores, pudesse afetar o grau de concorrência do
sistema, com reflexos negativos sobre a política de preços praticada
pelos bancos, revogou o regime de “cartas-patentes” permitindo, na
prática, a criação de novos bancos. Para os estrangeiros, no entanto,
foi mantido por dispositivo constitucional a proibição de entrada
de novos bancos e a expansão da rede de agência daqueles que já
operavam no País.

É interessante observar que a decisão do Banco Central foi fortemente


influenciada por Missão do Banco Mundial, que aqui esteve em 1989,
e que em relatório (“Brazil: Selected Issues of the Financial Sector”,
World Bank, junho de 1989) endossava a necessidade de criação de
novos bancos com o objetivo de tornar o sistema bancário mais
competitivo. O estudo do Banco Mundial alertava, no entanto, que
a expansão no número de bancos devia ser precedida de profunda
reformulação nas áreas de regulamentação e fiscalização da autori-
dade controladora. Uma súbita elevação no número de participantes
poderia, pelo acirramento da concorrência, reduzir a margem de lucro
do sistema, o que viria a inviabilizar a sobrevivência de bancos com
graves problemas de portfólio. Para evitar surpresas, o Banco Mun-
dial sugeria, já naquela época, que fosse criada uma central de riscos,
ampliada a exigência de provisão para crédito de difícil liquidação e

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estabelecidos limites de capital mínimo vinculados à qualidade dos
ativos bancários.

Infelizmente a abertura do sistema evoluiu em um ritmo mais acele-


rado que as normas de regulamentação e fiscalização.

Como resultado da derrubada das barreiras à criação de novos bancos,


houve uma explosão no número de pequenos bancos que ingressaram
no sistema. A rede privada nacional, que em 1987 estava reduzida a
56 bancos, cresceu para 178 bancos em 1993!!! (Quadro VII).

A grande maioria das novas instituições bancárias resultou da trans-


formação de corretoras e distribuidoras de valores que operavam
com títulos públicos no mercado interbancário.

Estes novos bancos criados em uma conjuntura altamente inflacio-


nária que permitia, através de uma verdadeira ciranda financeira, a
realização de elevados ganhos, não dispunham de condições mínimas
de operação como banco, sobretudo em um ambiente de política
monetária restritiva, como o que se seguiu à implantação do Plano
Real. Como o seu principal funding vinha do mercado interbancário,
toda vez que este se tornava seletivo, aqueles bancos enfrentavam
uma situação de iliquidez, dada a baixa qualidade dos seus ativos, o
que em última análise determinava a sua insolvência.

Vários outros bancos surgiram apenas para administrar os ganhos


financeiros de seus controladores, grandes empresas nacionais e
multinacionais, e atuar na área de crédito ao consumidor de seus
vários produtos.

Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 668, p. 47-79, nov. 2010 65


O advento do Plano Real no segundo semestre de 1994 afetou sig-
nificativamente o sistema financeiro nacional. Em nenhum período
nas últimas décadas, em espaço tão curto, ocorreram mudanças tão
grandes no número de instituições, na sua distribuição por tamanho
e na composição do seu controle acionário.

A perda da receita inflacionária e a política monetária restritiva que


se seguiram à implantação do Plano Real atingiram todo o sistema
bancário em extensão e profundidade que até então não se tinha
observado. Os bancos mais eficientes, que já vinham em processo
de enxugamento de sua estrutura de custos, cuja qualidade dos ativos
permitiu a manutenção de adequada liquidez, mesmo nos momen-
tos de maior inadimplência de empresas e pessoas físicas, puderam
compensar a perda dos ganhos de tesouraria com um maior volume
de crédito e receitas de prestação de serviços.

Por outro lado, os bancos com ativos de reduzida liquidez ou com


atuação quase exclusiva no mercado interbancário não conseguiram
resistir às condições adversas do mercado que se seguiram ao Plano
Real. Sofreram processos de liquidação/intervenção e posteriormente
foram absorvidos por outros bancos.

Como os problemas bancários passaram a atingir grandes instituições


privadas, a apreensão quanto à saúde financeira dos demais bancos
elevou-se, verificando-se um processo de concentração de liquidez
junto aos maiores bancos.

As pequenas e médias instituições perderam depósitos tornando-se


concreta a possibilidade de uma crise bancária sistêmica no País.

66 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 668, p. 47-79, nov. 2010


Diante deste quadro, em novembro de 1995, o governo adotou um
conjunto de medidas voltadas à reestruturação e ao fortalecimento
do sistema financeiro nacional:

• PROER – Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortaleci-


mento do Sistema Financeiro Nacional.

• PROES – Programa de Incentivo à Redução do Setor Público


Estadual na Atividade Bancária.

• FGC – Fundo Garantidor de Crédito.

Também foi elevado o poder de fiscalização do Banco Central e foi


permitida a volta do capital externo para o setor bancário brasileiro
com o objetivo de aumentar a eficiência dos serviços bancários através
de uma maior concorrência.

O PROER promoveu o saneamento de instituições problemáticas


de grande porte por meio de sua divisão em um “banco saudável”
e outro não. A instituição saudável, constituída pelos ativos de boa
qualidade e por todos os depósitos recebidos pela instituição origi-
nal, deveria ser assumida por outro controlador. Os ativos podres e
demais passivos permaneceriam no banco original sob regime espe-
cial e posterior liquidação. As instituições que adquiriram os bancos
saudáveis tiveram acesso a uma linha de crédito especial para cobrir
os dispêndios com a reestruturação, reorganização e modernização.

O PROER possibilitou o saneamento de sete instituições (Banco


Econômico, Nacional, Mercantil de Pernambuco, Banorte e Bame-

Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 668, p. 47-79, nov. 2010 67


rindus), evitando o risco de contágio às demais instituições do sistema
e prejuízo a milhões de depositantes.

O PROES buscou resolver os problemas cíclicos de liquidez e má


gestão que historicamente caracterizavam a atuação dos bancos
estaduais. Para os estados que optaram por ingressar no PROES
foram disponibilizadas linhas de crédito equivalentes às necessidades
decorrentes do desequilíbrio patrimonial do banco controlado. Quase
todos os estados aderiram ao programa.

Nove bancos sofreram liquidação ordinária:

Banacre (AC), Banap (AP), Bandern (RN), BDRN (RN), BEMAT


(MT), Beron (RO), Caixego (GO), Minas Caixa (MG) e Produban
(AL).

Oito foram privatizados:

Bandepe (PE), Baneb (BA), Banerj (RJ), Banestado (PR), BEMG


(MG), Banestes (ES), Banpará (PA), Banrisul (RS).

A nova estrutura do sistema financeiro privado, modelada pelos


efeitos da política monetária restritiva do Plano Real, pela política
de saneamento e privatização dos bancos oficiais e pela abertura
do sistema financeiro para os bancos estrangeiros, passou a exibir o
seguinte formato:

a) Consolidação:

Em dezembro de 1993, dos 245 bancos em funcionamento, 30 eram


oficiais, 178 eram privados nacionais e 37 eram estrangeiros. Em

68 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 668, p. 47-79, nov. 2010


junho de 2009, a rede bancária estava reduzida 159 bancos, sendo
11 oficiais, 85 privados nacionais e 63 estrangeiros (Quadro VII).

b) Concentração:

As inúmeras incorporações de bancos menores por bancos maiores


nacionais ou estrangeiros, nos últimos anos, aceleraram a tendência
de concentração do sistema financeiro privado. Os 5 maiores bancos
privados, que em 2000 detinham 48% dos ativos totais da rede priva-
da, passaram a acumular 76% em dezembro de 2009 (Quadro VIII).

c) Mudança no controle acionário:

A privatização de vários bancos estaduais e federais, aliada à liquida-


ção ordinária de outros, reduziu o número de instituições oficiais de
32 em 1992 para 11 em junho de 2009. A experiência histórica dos
bancos estaduais não foi boa no Brasil. Injunções políticas levaram
esses bancos a fazer má alocação de recursos, gerando elevados
prejuízos à sociedade. A privatização e saneamento das instituições
oficiais (PROES) melhoraram a eficiência e tornaram o sistema mais
estável (Quadro VII).

A acentuada redução no número de bancos oficiais não impediu que


o volume de crédito dessas instituições aumentasse em relação ao
crédito concedido pelos bancos privados nacionais e estrangeiros. Os
bancos privados que detinham 44% do crédito total em 2007 tiveram
sua participação reduzida para 40% em 2009. Os oficiais, no mesmo
período, ampliaram sua fatia de 34% para 42% e os estrangeiros tive-
ram a sua participação reduzida de 22% para 18%. Parte do aumento
da participação dos bancos oficiais deve ser explicada pela atuação
anticrise do Banco do Brasil, CEF e BNDES.

Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 668, p. 47-79, nov. 2010 69


A abertura do sistema financeiro para o capital externo incentivou
o ingresso de novos bancos e a expansão dos bancos estrangeiros
que já operavam no País. O número de bancos estrangeiros cresceu
de 37 em dezembro de 1993 para 63 em junho de 2009, passando a
responder por 42% das instituições privadas e a deter uma fatia de
32% do total de empréstimos da rede privada bancária (Quadro VII).

d) Governança

Inúmeras medidas de aprimoramento nas áreas de normas, fiscali-


zação e supervisão bancária do Banco Central resultaram em maior
solidez e transparência na atividade bancária. Merecem destaque as
adaptações das instituições brasileiras às normas do Acordo de Ba-
sileia que resultaram em substancial elevação dos valores mínimos
de capital exigido, criação de uma central de risco e a vinculação do
capital mínimo à qualidade dos ativos bancários.

O Acordo de Basileia II de 2004, em vigor no Brasil desde 2007,


introduziu modificações no Acordo de Basileia I, assinado em 1988
e em vigor aqui desde 2001, com o objetivo de fortalecer a estrutura
de capital das instituições, promover a estabilidade financeira, favo-
recer a adoção das melhores práticas da gestão de riscos e estimular
maior transparência e disciplina de mercado. O Basileia II possui 3
grandes pilares:

• Pilar I – Capital regulamentar para cobertura de riscos

Define o tratamento a ser dado para fins de determinação da exigência


de capital frente aos riscos incorridos nas atividades desenvolvidas
pelas instituições financeiras. Envolve o risco de crédito, risco de

70 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 668, p. 47-79, nov. 2010


mercado e risco operacional. O risco de crédito e o de mercado já
faziam parte do Basileia I, já o risco operacional foi incorporado pelo
novo acordo. Representa a possibilidade de ocorrência de perdas
resultantes de falha, deficiência ou inadequação de processos inter-
nos, pessoas e sistemas, ou de eventos externos incluindo risco legal
associado à inadequação ou deficiência em contratos firmados com
a instituição bem como a sanções em razão de descumprimento de
dispositivos legais e a indenização por danos a terceiros decorrentes
de suas atividades.

• Pilar II – Governança e processo de supervisão

O Pilar II está relacionado ao processo de fiscalização bancária. Exige


que o Banco Central assegure que cada instituição tenha processos
internos sólidos para avaliar a adequação de seu capital e uma análise
completa de seus riscos. Segundo as diretrizes do Pilar II, caberá ao
órgão supervisão, em última instância: avaliar, julgar e anuir (ou não)
para com as estratégias de risco, de administração, de controle e quan-
to à metodologia de cálculo dos riscos, bem como os instrumentos
de hedging dos bancos.

• Pilar III – Disciplina de mercado e transparência

O terceiro pilar diz respeito à disciplina de mercado que deve ser ob-
tida por meio da transparência das informações. O acordo estabelece
recomendações e requisitos de divulgação em várias áreas, incluindo
a forma com que a instituição calcula e divulga sua adequação de
capital e métodos de avaliação de riscos. Estabelece a uniformização
dos dados contábeis publicados, tornando-os mais consistentes e
compreensíveis.

Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 668, p. 47-79, nov. 2010 71


O Índice de Basileia (Índice de Adequação de Capital), conceito
internacional definido pelo Comitê de Basileia, recomenda a relação
mínima de 8% entre o Patrimônio de Referência (PR) e o Patrimônio
de Referência Exigido (PRE), que representa o patrimônio líquido
das instituições financeiras ponderado pelo risco incorrido em suas
atividades operacionais.

No Brasil, a relação mínima exigida é dada pelo “Fator F”: 11% para
instituições financeiras e as demais instituições autorizadas a funcio-
nar pelo Banco Central (exceto cooperativas de crédito não filiadas
a cooperativas centrais de crédito cujo índice é de 15%).

O cálculo do índice é efetuado de acordo com a fórmula:

PR x 100 / (PRE / Fator F)

A instituição ou conglomerado financeiro que detiver PR inferior ao


PRE está desenquadrada em relação ao Índice de Basileia, ou seja,
seu patrimônio é insuficiente para cobrir os riscos existentes em suas
operações ativas, passivas e registradas em conta de compensação.

Em março de 2010 os principais bancos brasileiros apresentavam


índices bem acima do mínimo exigido de 11%:

• Banco do Brasil: 14,1%

• Itaú: 17,4%

• Bradesco: 16,8%

• BNDES: 17,8%

72 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 668, p. 47-79, nov. 2010


• Santander: 32%

• CEF: 18,1%

• HSBC: 14,2%

• Votorantim: 14,7%

• Safra: 14,6%

A partir do ano 2000, os bancos passaram obrigatoriamente a


classificar o risco de seus empréstimos e também a estabelecer
correspondentes provisões para perdas sob critérios mais amplos e
conservadores. Antes os parâmetros diziam respeito ao atraso nos
pagamentos e à existência ou não de garantias. Agora há 9 níveis de
risco, desde AA e A, com requisitos de provisionamento respectiva-
mente de 0% e 0,5% do valor da operação, até H no qual 100% de
provisões são exigidos.

A qualidade dos devedores, o tipo, a destinação e também o valor


do empréstimo entram como critérios para classificação de riscos. O
escrutínio deve ser feito mesmo na ausência do atraso nos pagamen-
tos. As novas regras implicam uma provisão maior e mais ajustada
de reservas em relação às efetivas condições de risco de crédito nas
carteiras dos bancos.

Conclusão

A reforma financeira americana transformada em lei pelo presidente


Obama, em 21 de julho de 2010, que passou a ser conhecida como

Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 668, p. 47-79, nov. 2010 73


“Dodd-Frank Wall Sreet Reform and Consumer Protection Act”
resultou muito mais branda do que se previa inicialmente.

Os primeiros projetos, ainda sob o impacto do clamor público con-


tra a aplicação de vultosas somas de recursos públicos para resgatar
instituições financeiras falidas e inspirados nas ideias de Paul Volcker,
ex-presidente do FED e atual assessor econômico do presidente Oba-
ma, propunham profundas reformas no sistema financeiro americano.

Os pontos centrais eram limitar a atuação dos bancos comerciais


nas áreas de investimento e mercado de capitais (proprietary trade) e o
estabelecimento de um teto (cap) limitando o crescimento das grandes
instituições financeiras (too big to fail). Ambas as medidas com impacto
sobre a estrutura do sistema financeiro, ou seja, sobre o número de
instituições e sua distribuição por tamanho.

Com a eliminação do “proprietary trade” as holdings bancárias ficariam


proibidas de comprar, com recursos próprios e em seu nome, títulos
e ações, possuir ou administrar fundos de ações ou de derivativos em
que tivessem participação, especular nos mercados de commodities, de
juros, de câmbio etc. A proposição inicial representava, na prática, a
separação das funções de banco de investimento das de banco co-
mercial provocando um substancial aumento de custos, em ambas as
instituições, pela perda das economias de escala e de escopo.

O estabelecimento de um teto no tamanho das instituições finan-


ceiras, com o objetivo de evitar a ocorrência de risco sistêmico e a
garantia de ajuda em caso de ameaça de falência (too big to fail), vinha
contra a tendência histórica de concentração do sistema financeiro
e ameaçava reduzir a fatia de mercado americana no financiamento
da atividade econômica mundial.

74 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 668, p. 47-79, nov. 2010


Os debates na Câmara e no Senado diminuíram o alcance das restri-
ções ao “proprietary trade” evitando os custos de uma completa sepa-
ração nas holdings bancárias das funções de banco de investimento
e banco comercial. Da mesma maneira a imposição de um teto no
tamanho das instituições financeiras foi substituída pela adoção de
normas mais rígidas de supervisão, capitalização e liquidez para os
megabancos. Em caso de ameaça de falência o Conselho Supervisor
(FSOC) poderá determinar a transferência do controle acionário, a
intervenção e a liquidação ordenada, sem recursos públicos, da ins-
tituição com problemas.

A proposta de criação de um imposto sobre os grandes bancos, co-


nhecida como “Obama Tax”, com o objetivo de constituir um fundo
para cobrir eventuais resíduos do Programa de Aquisição de Capital
do Tesouro – TARP que autorizou o tesouro americano a adquirir
ações preferenciais de instituições financeiras também ficou fora da
lei aprovada pela câmara e senado.

O grande impacto do “Dodd-Frank Act” foi nas áreas de governança,


regulamentação e fiscalização.

A supervisão geral de instituições, mercados e produtos financeiros


ficou sob a responsabilidade do Conselho Supervisor da Estabilidade
Financeira – FSOC.

O FED, a SEC e o CFT( Commodity Futures Trading Commission)


tiveram seus poderes de fiscalização aumentados com a responsa-
bilidade de passar a atuar em instituições, mercados e produtos que
não estavam subordinados especificamente a nenhuma agencia su-
pervisora como por exemplo: a megasseguradora AIG, as gigantes

Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 668, p. 47-79, nov. 2010 75


do crédito hipotecário Fannie Mae e Fredie Mac, as SPEs (Special
Purpose Entities), o mercado de hipotecas sub-prime e os CDS (Credit
Default Swaps) negociados no mercado de balcão (OTC).

Foi criada uma nova agencia federal “Bureau of Consumer Financial


Protection – BCFP” para proteger os consumidores de serviços fi-
nanceiros de golpes e armadilhas, com ênfase, no crédito hipotecário
e no uso de cartões de crédito.

Deverá ser criado, no âmbito da SEC, um departamento com o fim


específico de fiscalizar empresas de rating.

O tema central da reforma financeira mundial: exigência de regras


mais rígidas de capitalização e liquidez permeia o Dodd-Frank Act
que determina o enquadramento, até 2012, das instituições financeiras
americanas aos princípios do Acordo de Basileia III, que contempla
maiores exigências de capital, liquidez e transparência. Os novos
índices devem ser estabelecidos na próxima reunião do G-20, em
novembro de 2010, em Seul.

A União Europeia estuda a criação de uma taxa sobre empréstimos


bancários, tipo nosso IOF ou a “Tobin Tax”, que serviria para alimen-
tar um fundo de emergência. Os recursos do fundo só poderiam ser
utilizados para socorrer instituições com dificuldade de liquidez ou
para promover a sua falência ordenada. Os legisladores americanos,
como vimos anteriormente, abandonaram a proposta com o mesmo
objetivo substituindo-a pela exigência de um nível maior de capita-
lização para instituições que por seu tamanho ou risco pudessem
apresentar problemas.

76 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 668, p. 47-79, nov. 2010


A recidiva da crise financeira na Europa fez com que alguns países
(Suécia, Inglaterra e Alemanha) partissem na frente estabelecendo
impostos sobre os ativos financeiros de suas instituições. A pressa
da Comunidade Europeia pode estar ligada ao gigantismo dos ativos
de seus bancos em termos absolutos e principalmente quando com-
parados com o PIB do seu país-sede.

A reunião do G-20, em Toronto, reconheceu a dificuldade de um


acordo global para a fixação do imposto, adiando a discussão do tema
para a reunião de Seul, em novembro de 2010.

No Brasil inúmeras medidas de aprimoramento nas áreas de normas,


fiscalização e supervisão do Banco Central resultaram em maior
solidez e estabilidade de nosso sistema financeiro. Merece destaque
o enquadramento das instituições brasileiras às normas do Acordo
de Basileia I de 1988, em vigor no Brasil desde 2001, e do Acordo
de Basileia II de 2004, em vigor aqui desde 2007, que resultaram em
substancial elevação dos valores mínimos do capital de referência, na
criação de uma central de risco e na vinculação do capital mínimo a
qualidade dos ativos financeiros.

O Índice de Basileia, índice de adequação do capital, recomenda a


relação mínima de 8% entre o Patrimônio de Referência (PR) e o
Patrimônio de Referencia Exigido (PRE).

No Brasil, o Banco Central exige um índice mínimo de 11%.

Atualmente (2010) as instituições financeiras brasileiras apresentam


índices médios de 14%, bem acima do mínimo de 11% determina-

Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 668, p. 47-79, nov. 2010 77


do pelo Banco Central e muito acima dos 8% exigidos por Basileia.
Acredita-se que mesmo com as novas restrições, a serem incorpo-
radas pelo Basileia III, ainda não aprovadas, os bancos brasileiros
continuarão enquadrados.

Embora os bancos brasileiros, em função de sua obediência aos pre-


ceitos de Basileia, tenham se mantido fora do epicentro da recente
crise financeira mundial torna-se necessário reforçar em algumas
áreas a disciplina e a segurança do sistema.

Ernane Galvêas, ex-ministro da Fazenda e ex-presidente do Banco


Central, resume com muita clareza o que ainda precisa ser feito:

“Agora, com o sentido de reforçar a disciplina e a segurança do


sistema, é preciso implantar e reforçar os mecanismos que impõem
limites operacionais, principalmente, em relação às empresas de capital
aberto, de um lado, e às operações a termo (futuro e derivativos). Cabe
a CVM policiar, rigorosamente, as pseudos operações de hedge das
empresas de capital aberto e impor limites técnicos a essas operações.
Do mesmo modo, é preciso conhecer em detalhes as operações de
derivativos, principalmente nos mercados de balcão, impondo limites
rígidos às vendas a descoberto, pagamento de bônus antecipados,
contratos de juros futuros, geralmente realizados por bancos e outras
instituições financeiras, com um caráter meramente especulativo, que
transformaram esse mercado numa mesa de apostas. Não se discute
que é da maior importância prestigiar as legítimas operações de hedge
no mercado de commodities, especialmente agrícolas, pois são parte
integrante dos mecanismos de financiamento.

78 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 668, p. 47-79, nov. 2010


O que precisa ser rigidamente regulado, com imposição de limites
técnicos, são as operações meramente especulativas, que fazem das
Bolsas verdadeiros cassinos, alimentados por empresas de rating, a
serviço dos agentes de mercado. Sociedades de capital aberto têm
de ter autorização prévia e limitada para tais operações, que devem
figurar claramente em seus balanços, para conhecimento público.
Assim como fazem as companhias de seguro.

Ademais, é absolutamente imprescindível cobrar inteira responsabili-


dade das empresas de auditoria pelos desvios e fraudes nas empresas
sob sua vigilância técnica, punindo severamente seus administradores
e até mesmo cassando sua licença para funcionar” (Ernane Galvêas,
“A crise e a Regulação Necessária”, CNC 2010).

Palestra pronunvciada em 13 de julho de 2010

Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 668, p. 47-79, nov. 2010 79


Síntese da Conjuntura
A expansão demográfica

Ernane Galvêas
Ex-Ministro da Fazenda

E m reportagem publicada em 21 de agosto, O GLOBO destacou


o fato de que, nos últimos seis anos, “não mudou a calamidade
do saneamento”, acrescentando que, no Brasil, 2.495 Municípios,
com 56% dos domicílios, não têm redes de esgoto e há 5.636 crianças
entre os 70 mil catadores de lixo.

A notícia, um quadro comum nos países subdesenvolvidos, revelou


um fato contundente: o retrato de uma família típica da periferia
urbana, com a mulher, acompanhada de seus onze filhos. ONZE
filhos! Esse simples detalhe revela toda a natureza e profundidade
da pobreza nacional, onde ela é mais ostensiva, o mesmo quadro da
pobreza mundial, ou seja, a explosão demográfica, o excesso de filhos,
a falta de um planejamento familiar ou da paternidade responsável.

Em outra reportagem, no jornal Valor, de 20 de agosto, outra mulher,

80 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 668, p. 80-90, nov. 2010


com 67 anos, queixa-se do transporte das comunidades ribeirinhas
para as escolas da região amazônica. O problema dela é educar seus
14 filhos. QUATORZE filhos!

A população mundial de hoje – 6,5 bilhões de habitantes – caminha


para chegar a 9,2 bilhões, em 2050. Aí, dizem os ambientalistas, vai
se constatar o perigoso esgotamento dos recursos naturais da Terra:
ar limpo, água potável, terras agricultáveis, rios, florestas, alimentos.

Os países ricos (G-8) e as grandes organizações mundiais, a começar


pela ONU, debatem esses problemas constantemente, condenando a
pobreza e a miséria e discutindo a mobilização de recursos para matar
a fome dos miseráveis. Mas ninguém pensa em levar realmente a sério
o controle da natalidade e da explosão demográfica, responsáveis pelo
atraso da África, pela expansão do mundo árabe, pelas desigualdades
sociais na Índia, pelo racismo na França e em muitos outros países.
A culpa? A culpa não é só dos governantes. Provem, principalmente
da inflexibilidade religiosa e do fanatismo com que algumas religiões
impõem os seus dogmas e mandamentos.

Não se trata, apenas, de ser contra ou não o aborto, mas de aperfei-


çoar o sistema educacional. É importante introduzir, nos currículos
do ensino médio, para os jovens do sexo masculino e feminino, te-
mas de educação sexual, de modo a orientá-los quanto a problemas
que podem prejudicar ou beneficiar suas vidas, antes ou depois do
casamento.

Desfrutar uma boa qualidade de vida e alcançar a felicidade no lar


é um objetivo sadio nos dias de hoje, como sempre foi no passado.
Todavia, as condições de vida mudaram. Habitação, transporte, saúde

Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 668, p. 80-90, nov. 2010 81


e, principalmente, educação, tornaram-se mais difíceis nos grandes
centros urbanos, nos quais vive, hoje, a maior parte da população,
inviabilizando a existência de famílias numerosas, com uma desejável
qualidade de vida.

A necessidade imperiosa de preparar e qualificar jovens para o merca-


do de trabalho é uma decorrência não só do processo de industriali-
zação, como, mais recentemente, da globalização. A concorrência e a
competição se processam, hoje, também em relação aos trabalhadores
e profissionais de outros países, cujos produtos disputam acirrada-
mente os mercados internacionais. Por essas razões, é necessário dar
aos nossos filhos a melhor educação básica e uma sólida qualificação
profissional.

Famílias com onze ou quatorze filhos dificilmente conseguirão al-


cançar um padrão de vida capaz de permitir um nível adequado de
educação. A educação é fundamental, para que as nossas crianças
possam se preparar adequadamente para ingressar no mercado de
trabalho.

Economia política

Inegavelmente, 2010 apresentou todos os sinais de que será um ano


excepcional para a economia brasileira, com um crescimento possí-
vel do PIB da ordem de 7%. A agricultura vai bem, com uma safra
recorde de 148 milhões de tons. de grãos; a indústria recuperou-se
da crise de 2008/09 e deverá crescer 11,4%; o comércio de bens e
serviços, que não teve crise, está crescendo cerca de 10,1% acima
do ano passado; o turismo cresce fortemente; as exportações, após

82 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 668, p. 80-90, nov. 2010


caírem -22,7% em 2009, deverão crescer 30% em 2010; as importa-
ções crescem 46%, mais do que na China. O desemprego caiu e o
emprego aumentou, assim como a massa salarial. Evidentemente, essa
prosperidade econômica resulta das condições externas, comandadas
pela China, que impulsionaram a expansão das nossas exportações
desde 2002 e enriqueceu a economia nacional pela elevação dos preços
das nossas commodities de exportação. Uma força expansionista de
origem externa. O mesmo está acontecendo com a Argentina, cujo
PIB cresceu 11,8%, no 2º trimestre/2010. O problema mais sério
é a falta de ética na política, que está degradando a administração
pública e a democracia. Os escândalos políticos podem acabar com-
prometendo a segurança jurídica e, daí, a estabilidade econômica e
social. Esse desgaste, como dizia Roberto Campos, não é importado,
é “made in Brazil”.

Atividades econômicas

Indústria

A produção industrial caiu em nove das 14 regiões pesquisadas pelo


IBGE em agosto, em relação a julho. As principais quedas foram
apuradas nas regiões de Goiás (-4,8%) e Rio Grande do Sul (-4,3%),
enquanto o maior crescimento ficou com o Pará (2,4%).

No acumulado do ano., houve destaque para Espírito Santo (31,7%),


Amazonas (23,8%) e Minas Gerais (19,2%). A indústria paulista acu-
mula crescimento de 13,5% e em 12 meses de 9%.

Após quatro meses de crescimento, o Índice Nacional de Expecta-

Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 668, p. 80-90, nov. 2010 83


tiva do Consumidor (Inec) caiu 0,8% em setembro, na comparação
com o mês anterior, de acordo com a CNI. O Nível de Utilização da
Capacidade Instalada (Nuci) recuou pelo quarto mês consecutivo,
ficando em 82,3% ante 82,5% no mês anterior. O emprego industrial
cresceu 0,8% em agosto/julho e 7,4% e relação a agosto/09.

O dado mais significativo em setembro foi a queda de -9,1% na


produção da indústria automobilística, com redução de -1.8% no
licenciamento, acumulando no ano +17,3% e 18,7%, respectivamente,
enquanto a produção de máquinas agrícolas acumula +41,8% e as ex-
portações +57,5%, em valor. Em outro setor emblemático, do papelão
ondulado, a produção aumentou 4,8%, em relação a setembro/09 e
0,89% sobre agosto. No acumulado do ano, o aumento foi de 15,6%.

A produtividade industrial, de janeiro a agosto, aumentou 9,5% e o


salário real +2,9%.

Atenção: devido à seca, provocada pelo El Niña, o nível dos reser-


vatórios das regiões Sudeste e Centro-Oeste chegou a 47,2% (ONS).
No Nordeste, a situação é mais crítica, com 43,6%, e no Sul, mais
tranquila, com 60,5%.

Em 2001, o ano do apagão, os reservatórios do Sudeste chegaram


a 20,6%.

Comércio

Em agosto, as vendas do comércio varejista tiveram alta de 1,6%


e de 2,0% no volume de vendas, sobre o mês anterior, segundo o
IBGE. No acumulado do ano, a alta no volume foi de 11,3% e, nos

84 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, n. 668, p. 80-90, nov. 2010


últimos 12 meses, de 10,1%. Sobre agosto do ano passado, a alta é
de 10,4%. Essa é a quarta alta mensal seguida. Em julho, a atividade
do varejo havia crescido apenas 0,4%. No Rio, de janeiro a agosto,
a alta foi de 8,6%.

Segundo a Serasa, a expansão do comércio de janeiro a setembro foi


de 10%. Os segmentos de material de construção e de móveis, ele-
troeletrônicos e informática lideram a expansão, com alta de 16,8%
e 15,9%, respectivamente. Veículos, motos e peças tiveram acréscimo
de 14,6%. Considerando apenas setembro, a atividade do comércio
ficou estável em relação ao mês anterior.

A atividade varejista voltou a se acelerar no terceiro trimestre, depois


de um segundo trimestre mais fraco. O desempenho foi puxado
pela alta de 1% no movimento dos supermercados, hipermercados,
alimentos e bebidas e pelo avanço de 0,6% no segmento de móveis,
eletroeletrônicos e informática, impulsionados pelas condições de
crédito favoráveis.

Ainda segundo a Serasa, a inadimplência do consumidor teve cres-


cimento de 1,6% em setembro/agosto. Para a Equifax, o volume
de cheques sem fundos teve queda de 5,1%, em setembro/agosto.

Agricultura

A Conab confirmou que a safra 2010/11 poderá chegar a 147,9


milhões de toneladas de grãos, mas o IBGE revela estatísticas com
148,9 milhões, com destaque para a soja (68,7 milhões de tons.). A
safra de milho poderá cair até 8%.

Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 668, p. 80-90, nov. 2010 85


O clima seco provocado pelo “La Niña” poderá afetar os resultados da
safra. Nas caatingas do Nordeste, a seca de hoje é igual à de 1998/99,
o que ocorre há mais de 100 anos, em meio aos desvios de verbas
no DNOCS. As cotações dos produtos agrícolas poderão ter alta,
caso se confirme a queda na safra 2010/2011, nos Estados Unidos.

A produção de carne de frango registrou aumento de 7,5%, nos


últimos 12 meses. A renda dos produtores de café teve alta de 24%,
em relação à safra 2009.

Mercado de Trabalho

Em agosto, foram criados 299.415 empregos com carteira assinada,


acumulando no ano 1.954.531, segundo a Caged. Destacam-se o co-
mércio, com 65.083 empregos, os serviços com 128.232 e a indústria
de transformação com 70.393. Na agropecuária, houve redução de
11.259. No Rio, foram criados 24.921 empregos.

Na indústria brasileira, em agosto, o emprego aumentou 0,1%, em


relação a julho, segundo o IBGE.

É importante registrar que, em agosto, segundo a Caged, a participa-


ção dos trabalhadores com carteira assinada chegou a 52,4%.

Setor financeiro

Na área financeira, o destaque neste ano é o elevado montante de


desembolsos alcançados pelo BNDES, da ordem de R$ 134,9 bilhões
em 2009.

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A expansão geral do crédito continua: em agosto, atingiu 46,2% do
PIB, contra 27,3% em 2000, com destaque para os bancos oficiais
(BNDES, Banco do Brasil, CEF, Bancos da Amazônia e do Nordeste),
que registram expansão anual de 25%, neste ano.

No mercado de capitais, o número de IPOs no Brasil ficou limitado


a um único caso, entre julho e setembro, devido à ofuscante capita-
lização da Petrobras.

É importante salientar que as emissões asiáticas representaram, no


3º trimestre, 83% do volume total em dólares, sendo 76% da China.

Inflação

Em setembro, a inflação deu um salto, em relação ao período junho/


agosto, voltando praticamente ao nível médio do 1º trimestre, devido
à alta nas cotações das commodities no exterior.

O IPCA/IBGE saiu de praticamente zero, nos três meses anteriores,


junho/agosto, passando de 0,04% em agosto para 0,45% em setembro
(4,7% no ano) O IPCA acumulado de 3,60% de janeiro a setembro
está sob pressão de alta, originária dos colégios, (+6,64% no ano),
emprego doméstico (8,24%), ônibus urbano (7,16%), refeição fora
de casa (6,11%), carnes (10,71%), plano de saúde (5,01%) e aluguel
residencial (4,67%).

Também o IGP-DI e o IGP-M/FGV subiram para 1,10% e 1,15%,


respectivamente, muito embora a taxa de câmbio tenha apresentado
forte valorização de 3,52%, em setembro. Na 1ª prévia de outubro,

Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 668, p. 80-90, nov. 2010 87


o IGP-M caiu para 0,99% (8,7% no ano).O IPC da FIPE subiu de
0,17% em agosto para 0,53% em setembro.

Nos últimos 12 meses, o valor da cesta básica teve um comportamento


favorável, com deflação no Rio (-2,9%), Brasília (-1,0%), Porto Alegre
(-0,8%), Vitória (-0,3%) e Florianópolis (-0,2%).

Setor Público

Difícil fazer análise das contas públicas, face aos artifícios que vêm
sendo usados pela engenharia fiscal, comprometendo a credibilidade
contábil.

A pesada taxa Selic fixada pelo Banco Central continua sobrecarre-


gando o déficit fiscal, atraindo capitais ociosos e especulativos que
obrigam o BC a comprar dólares e acumular reservas cambiais caras
e desnecessárias, mediante a contrapartida da venda de títulos do
Governo e expansão da dívida pública.

Faltam recursos para projetos de infraestrutura, o que compromete


a sustentação do crescimento econômico.

Setor externo

O “tsunami” da crise mundial de 2008 abalou o comércio exterior


do Brasil em 2009, com queda de 22,7% nas exportações e de 26,2%
nas importações. Em 2010, ocorreu uma espetacular recuperação: até
setembro, as exportações cresceram 29,6% e as importações 45,8%,
com destaque para o setor agropecuário, cujas exportações, em se-

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tembro, atingiram US$ 7,36 bilhões, acumulando US$ 72,36 bilhões
em 12 meses. Em contrapartida, a balança comercial dos produtos
manufaturados será de US$ 60 bilhões neste ano, dos quais 40% no
comércio com a China. Neste ano, o Brasil está importando 700 mil
carros e exportando 500 mil, com resultado negativo de US$ 5,7
bilhões.

Depois de vários anos de superávit, o intercâmbio com os Estados


Unidos foi deficitário em 2009 (déficit de US$ 3,4 bilhões) e 2010
(déficit de US$ 7,2 bilhões). O Brasil está caminhando para ter déficit
na balança comercial em 2011.

A taxa de câmbio abaixo de R$ 1,70/US$ está gerando um clima de


incertezas e comprometendo o equilíbrio do balanço de pagamen-
tos. Para salvar os bancos em dificuldades, os Estados Unidos e a
Europa inundaram de liquidez o mercado financeiro internacional,
acrescido das enormes reservas ociosas, em dólares, acumulados pela
China, Japão, Rússia, Coréia do Sul, Brasil e vários outros países. Essa
“derrama” de dólares, a custo pouco acima de zero, está desaguando
em operações especulativas no Brasil, atraídos por uma taxa de juros
incrivelmente elevada. A elevação do IOF ainda não havia produzido
resultados, ate meados de outubro, obrigando o Ministério da Fazenda
a elevar a alíquota de 4% para 6%. Em setembro, registrou-se entrada
de US$ 16,7 bilhões nas contas financeiras. O Brasil se transformou
em um “cassino cambial”.

Na área internacional, continuam as incertezas. Os Estados Unidos


estão reduzindo, lentamente, o déficit fiscal e o déficit comercial, mas
o desemprego continua alto e a economia desmotivada. O presidente

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do FED está anunciando uma compra maciça de títulos do Tesouro,
que se encontram nas carteiras dos bancos, o que, certamente, vai
aumentar ainda mais a excessiva liquidez, provocando maior desva-
lorização do dólar, embora sem afetar a inflação interna. O poder
aquisitivo do dólar no mercado interno americano permanece prati-
camente estável e a desvalorização só ocorre no mercado de moedas,
menos na China, onde o Yuan acompanha o dólar, sistematicamente.

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Saudade

Pe. Fernando Bastos de Ávila S.J.


Membro do Conselho Técnico da Confederação Nacional do Comércio
de Bens, Serviços e Turismo
1959-2010

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