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UNIDADE II – SOBRE O PENSAMENTO POLÍTICO E O

ESTADO NA MODERNIDADE
INTRODUÇÃO: O PROJETO DA MODERNIDADE E OS DIREITOS
FUNDAMENTAIS

A revolução intelectual pela qual passa a Europa desde o Renascimento –


sobretudo a partir dos séculos XVI e XVII – chega ao apogeu, no século XVIII,
com o Iluminismo. Seus efeitos, potencializados pela prosperidade resultante da
expansão dos negócios durante a Revolução Comercial se fazem sentir sobre os
costumes sociais e os hábitos individuais. Constrói-se uma nova visão das
relações sociais, ao se abandonarem velhos preconceitos, substituindo-os por
valores que têm por base a filosofia humanista e o racionalismo que se
desenvolvem no “século das luzes” principalmente na França. As propostas
implícitas nessa nova visão de mundo correspondem ao chamado projeto da
modernidade, que se apoiará sobre dois eixos principais: a idéia da regulação
social e a da emancipação social. O sentido da ordem e o sonho da liberdade
humana encontram-se, pois, no cerne desse projeto ou paradigma da
modernidade.
No bojo do pensamento e das práticas sociais que a partir de então se
desenvolvem, é possível distinguir alguns fenômenos importantes, como o
processo de secularização que atinge não somente o Estado (autonomizado
objetivamente em relação à Igreja romana e à sua preceituação ética) – já que a
religião perde relevância como elemento de coesão social e poder de decisão –
mas também as relações sociais em geral, a economia, as ciências. O mundo se
emancipa da esfera do sagrado, levando os homens a se sentirem responsáveis
pelos problemas e soluções de sua vida terrena.
Desenvolve-se a mentalidade técnico-científica, a partir da valorização da
razão humana, que se desdobra na vontade emancipatória do sujeito1. Essa
vontade busca libertar o homem de sua menoridade intelectual, instigando-o a
ousar conhecer, isto é, a buscar utilizar a própria inteligência, sem ajuda e guia de
outro. A subjetividade é, pois, um outro valor da modernidade que, levando à fé
na vitória sobre a ignorância e a escravidão, por meio da ciência, cria grandes
utopias sociais, marcadas pelo otimismo na capacidade do homem de
estabelecer novas regras, mais justas, de convívio humano.
É do século XVIII, por exemplo, a reforma dos códigos penais, combatendo a
severidade desproporcional na condenação de pequenos delitos e o tratamento
vergonhoso dispensado aos falidos e presos por dívidas. O jurista italiano Cesare
Beccaria, de Milão, insiste, em seu tratado Dos Delitos e das Penas em que o
objetivo dessas não deve ser a vingança, mas a prevenção do crime e a
recuperação dos delinqüentes. Na mesma obra, que tem grande repercussão em

1
Sujeito: do ponto de vista da teoria do conhecimento, o sujeito é a consciência, atividade sensível e intelectual dotada
do poder de análise, síntese e representação. O sujeito se reconhece como diferente dos objetos; cria e descobre
significações, institui sentidos, elabora conceitos, idéias, juízos e teorias. É dotado da capacidade de conhecer-se a si
mesmo no ato do conhecimento, ou seja, é capaz de reflexão. É o entendimento propriamente dito.
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muitos países, advoga a abolição da tortura e condena a pena capital –


largamente aplicada na época – impossível de ser revogada em caso de erro.
Os males da escravidão e da guerra são também denunciados por
pensadores imbuídos do humanismo iluminista, que exalta os direitos
fundamentais do homem como direitos naturais e consagra maior atenção aos
infortúnios dos despossuídos, protestando contra todas as formas de sofrimento e
opressão.
Norberto Bobbio – em seu livro A Era dos Direitos - Ed. Campus, 1990 –
defende a idéia de que os assim chamados direitos naturais seriam, na realidade,
direitos históricos, variáveis, portanto, conforme as circunstâncias de tempo e
lugar, e localiza o seu nascimento no início da era moderna, juntamente com a
concepção individualista da sociedade, para concluir que tais direitos se tornaram
um dos principais indicadores do grau de progresso alcançado pelas diferentes
culturas.
O espírito capitalista-burguês, caracterizado pela mentalidade calculista,
incentiva o individualismo, aspecto negativo da conquista da individualidade, ou
seja, da consciência pessoal. No século XVIII, o fato de que a burguesia em
ascensão ambicionava destronar a aristocracia que lhe impunha limites penosos e
necessitava, para tal, do apoio dos camponeses e dos trabalhadores urbanos,
explicaria para alguns analistas, o surgimento, entre pensadores influentes, da
tendência de esposar a causa do homem comum, disseminando-se o desprezo
pelos aristocratas. Na França, o marquês de Condorcet e Rousseau, por exemplo,
defenderam a igualdade e a liberdade para todos os homens. Mesmo sem
chegar às propostas do socialismo, Mably e de novo Condorcet concluíram que
esse objetivo só poderia ser atingido através da redistribuição da riqueza. Assim,
propuseram a divisão da propriedade da terra em partes iguais para prevenir a
exploração do pobre pelo rico.
Já antes do século XVIII, porém, pontos de vista divergentes sobre tais
temas já produziam na Inglaterra discussões teóricas relevantes. E no século XIX,
quando a Revolução Industrial já tinha sido capaz de alterar substancialmente as
relações sociais nas nações onde se instalara e a burguesia já se tinha tornado
classe dominante, assumindo o poder nos Estado liberais, desenvolvem-se teorias
críticas ao pensamento burguês, cujas propostas radicalizam as concepções dos
direitos humanos e ampliam as sugestões de mudanças sociais. Trata-se das
teorias socialistas que, juntamente com o liberalismo e o pensamento democrata
burguês, compõem diferentes faces do paradigma da modernidade e integrarão os
temas-objeto de nossos estudos nesta Unidade II.
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UNIDADE II - TEXTO 1: JUSNATURALISMO – NOÇÕES DE LIBERDADE,


PROPRIEDADE E IGUALDADE NO PENSAMENTO MODERNO

Entende-se por jus-naturalismo a doutrina segundo a qual existe e pode ser


reconhecido um direito natural (ius naturale), ou seja, um sistema de normas de
conduta intersubjetiva que difere do sistema constituído pelas normas fixadas pelo
Estado (direito positivo). Embora as primeiras manifestações das teorias do direito
natural tenham ocorrido na Grécia antiga, sendo desenvolvidas na Idade Média,
sobretudo por São Tomás de Aquino, o termo costuma referir-se principalmente às
teses que se constituíram entre os séculos XVII e XVIII e que têm origem no
pensamento desenvolvido pelo holandês Hugo Grotius (1583-1645) em seu livro
Das leis de Guerra e Paz. Nele, o autor entende o direito natural, ou seja, não-
sobrenatural, como fundamento de um direito capaz de ser reconhecido como
válido por todos os povos – idéia que veio a constituir os fundamentos do direito
internacional.
Afirmando que a lei natural está na base dos direitos naturais, Grotius escreveu
que os cidadãos chamam de „direito‟ uma faculdade possuída por todos os
homens... Esse direito inclui o poder que temos sobre nós mesmos, que se chama
liberdade... Assim como também inclui a propriedade... Em tal sentido, considera
ele ser “injusto aquilo que é repugnante à natureza da sociedade estabelecida
entre criaturas racionais. Desse modo, tomar de alguém algo que lhe pertence, por
exemplo, em mero benefício de si mesmo, é repugnante à lei da natureza”.
Os direitos naturais seriam ditados pela razão, sendo independentes não só da
vontade de Deus como de sua própria existência. Segundo afirma Grotius, a “lei
natural é tão inalterável que não pode ser mudada nem mesmo pelo próprio Deus,
pois, embora o poder de Deus seja infinito, existem certas coisas às quais ele não
se estende”. Afirmações como essas, surgidas num ambiente de grandes
mudanças culturais, são precursoras da postura laica e antiteológica que se
desenvolverá com o pensamento moderno.
A concepção jus-naturalista resultou de mudanças econômicas e sociais que
exigiram alterações na concepção do poder do Estado.
Antes que se firmasse na modernidade a concepção jus-naturalista, isto é, até a
metade do século XVII, a filosofia política tinha sido regida, no que se refere à
origem e fundamento da sociedade civil, pelo chamado modelo organicista. Em
tal modelo, desenvolvido por Aristóteles, o Estado é considerado como um natural
prolongamento da estrutura familiar. A passagem do estado pré-político para o
Estado ocorre como efeito de causas naturais, tais como o aumento do território, o
crescimento da população, a necessidade de defesa, a exigência de assegurar os
meios necessários à subsistência, etc., ou seja, a legitimação se dá pela
necessidade. Nesse modelo, os seres humanos não gozam de determinados
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direitos anteriores à formação do Estado (e justificadores dessa formação); os


direitos nascem no e com o Estado. Aliás, mais do que de seus direitos, a tradição
política fala dos deveres de cada um, entre os quais ressalta, como principal, o
de obedecer às leis. A partir do século XVII, essa perspectiva tradicional vai sendo
substituída pela visão individualista que marca a corrente do jus-naturalismo,
segundo a qual o indivíduo antecede ao Estado, gozando de determinados
direitos tidos como naturais, válidos indiferentemente da vontade do poder
soberano. Tais direitos, de valor universal, assim devem ser reconhecidos, pois
provêem da razão. Dentre eles, além dos já mencionados direitos à vida e à
liberdade, o direito à igualdade e, para alguns, à propriedade.
Em relação às mudanças históricas que determinam o surgimento das novas
concepções, o declínio do feudalismo e a ascensão econômica da burguesia são
aspectos fundamentais. O Estado passou então a ser entendido como instituição
criada pelo consentimento dos indivíduos, através do contrato social. Isso
porque, em oposição aos privilégios da nobreza, a burguesia não podia invocar o
sangue e a família para justificar os seus próprios. Ao tratar do poder do Estado,
sua preocupação é em estabelecer uma explicação lógica justificadora da ordem
social que propõe.
Os teóricos que seguem a orientação jus-naturalista consideram que o Estado
politicamente organizado, dotado de autoridade, surge com a superação do
estado de natureza, que é entendido de maneiras diferentes pelos vários autores.
O ponto comum entre os teóricos no que se refere a esse conceito é que todos o
descrevem como uma situação carente de organização política. O Estado civil se
torna legítimo se garante os direitos naturais, função essencial que foi delegada ao
soberano pelos cidadãos, através de um pacto social. Como afirma o estudioso
italiano Guido Fassò, direitos inatos, estado de natureza e contrato social,
mesmo descritos diversamente pelos escritores, são conceitos característicos do
jusnaturalismo moderno.
Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704), e Jean Jacques Rousseau
(1712-1778) desenvolveram – cada um à sua maneira – idéias referentes tanto ao
estado natural e à origem do Estado civil a partir do contrato social, quanto às
noções de liberdade e de soberania nacional, além das referentes à
propriedade, importantes para a contribuição da vertente do pensamento burguês
ao projeto da modernidade.
Na obra política principal de Hobbes – O Leviatã – pode-se encontrar o esboço de
que seja uma teoria individualista sobre a origem e fundamento da sociedade e do
Estado, na medida em que o autor atribui direitos naturais ao indivíduo,
considerado singularmente, em uma situação anterior à formação do Estado,
justamente o chamado estado de natureza.
Descrevendo esse estado natural como sendo caracterizado pela violência própria
das situações de anarquia, em que o homem, lobo do homem, sem as restrições
da lei, vive o medo da morte violenta, Hobbes desenvolve a idéia de um contrato,
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feito apenas entre os governados para estabelecer o Estado civil. O governante


coloca-se, por isso, acima dos contratantes, não tendo em relação a eles senão a
obrigação de oferecer-lhes condições para garantir sua vida, direito fundamental.
Por outro lado, ainda ao tratar do estado de natureza, Hobbes não está falando de
uma condição hipotética ou de uma situação pré-histórica da humanidade, mas
pensando em um quadro de guerra civil, momento em que o poder central se
dissolve e a ordem e a paz desaparecem. Ou seja, tratando a natureza humana
como atemporal, o filósofo parte do que vê na sociedade inglesa do século XVII. A
guerra civil corresponderia a um retorno ao estado de natureza e é com o intuito
de contribuir para a construção da paz e da ordem em seu país e na Europa que
escreve sua obra.
No estado natural, cada um tem a liberdade de usar todos os meios – inclusive a
força – para preservar-se e satisfazer os próprios desejos. Como os seres
humanos são naturalmente violentos e egoístas, se não é aberta, a situação de
guerra é ao menos latente. É por isso que, para assegurar a paz e a segurança,
os indivíduos devem concordar conjuntamente em renunciar ao uso individual e
privado da força em função de um soberano criado através do contrato social. O
soberano concentra a força à qual renunciaram todos os homens. Esses se
tornam seus súditos e lhe devem obediência.
No pensamento hobbesiano, a soberania é, portanto, prerrogativa do Estado.
Assim, será livre e soberana a nação na qual o(s) governante(s) for(em)
livre(s).
Ainda em relação à questão da soberania, é interessante observar que, para
Hobbes, a noção do justo e do injusto depende do soberano. Desse modo, os reis
legítimos tornam uma ação justa pelo simples fato de tê-la ordenado; e injusta,
porque a proibiram. Em sua opinião, cabe ao súdito obedecer. Há muitos analistas
que compreendem essa visão legalista de justiça – que justifica o absolutismo –
como precursora da concepção do positivismo jurídico, que se desenvolveria no
século XIX. Só que, por outro lado, ao teorizar sobre leis fundamentais, Hobbes as
considera como “leis naturais”. É o caso do direito à vida e à paz. Todos os
demais direitos decorreriam dessa premissa, que constitui o próprio fundamento
do Estado. Por isso, é compreensível que se interprete sua obra como uma
contribuição que mescla lei natural e lei civil, isto é, tradição jus-naturalista e
antecipação da visão positivista.
Apesar de entender a liberdade, à maneira burguesa, pelo viés individualista,
Hobbes não a enfatiza em seus escritos, quando se refere aos súditos. Em
posição antagônica às teses democráticas dos republicanos ingleses do século
XVII, que valorizam a liberdade coletiva, defendendo a Regra da Maioria e a livre
expressão, Hobbes considera mais importante a preocupação com a manutenção
de um regime no qual os indivíduos padeçam menos do que com um no qual se
expressem com liberdade. Para ele tal regime é o monárquico, já que os súditos
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não se expõem aos adversários, pois não são chamados a expressar as próprias
opiniões. Na democracia, o risco da perseguição é grande, pelo motivo inverso.
Ao tratar, por outro lado, do tema da propriedade, o filósofo a considera direito
civil e não natural, porque no estado de natureza, no qual prevalece a lei do mais
forte, não há como preservá-la. O que existe é apenas posse temporária, precária,
que só se mantém enquanto o indivíduo tem forças para tal. Apenas a existência
do Estado e da lei civis garantirá a propriedade de modo permanente.
O jus-naturalismo moderno incorpora-se igualmente às doutrinas de tendência
individualista e liberal, ao enfatizar a necessidade de respeito por parte das
autoridades aos direitos naturais, que são declarados direitos inatos do indivíduo.
John Locke pensador fundamental do liberalismo, preocupado com os sérios
conflitos políticos e religiosos que marcam a história inglesa de seu tempo, busca
responder a uma questão central: como conciliar teoricamente a liberdade dos
cidadãos com a manutenção da ordem política?
Do mesmo modo como Hobbes, Locke considera o estado natural não apenas
como construção teórica. Em sua teoria, ele existiu e continua existindo. No
entanto, ao discorrer sobre esse estado, Locke não o considera uma situação de
violência, já que nele as pessoas são submetidas à lei da natureza, que é a
razão. Quem agride outro está indo contra as leis naturais, renunciando à razão e
dando aos outros o direito de castigá-lo. A luta, quando existe, não é de todos
contra todos, mas a dos seguidores da natureza contra os seus transgressores. O
problema é que, no estado natural, cada um é juiz em causa própria, o que
constitui motivo para desestabilizar as relações entre os homens. Tal
arbitrariedade individual é um dos motivos principais de as pessoas optarem pela
instituição de um Estado civil. Antes disso, sem restrições legais, o indivíduo é
livre no estado natural, ou seja, a liberdade individual é, para ele, direito
natural.
O ponto central sua tese contrária ao absolutismo está na forma como desenvolve
sua teoria de contrato social que, em seu entendimento, semelhante ao de
Hobbes, é o que cria e legitima o poder do Estado civil, mas que, diferentemente
da perspectiva do absolutista, é feito entre governados e governante(s), que se
constituem como partes do contrato. O governante não está, assim, acima do
acordo. Locke considera ainda que os direitos naturais dos homens não
desaparecem, quando esses consentem em instituir o corpo político. Ao contrário,
subsistem para limitar o poder confiado ao soberano, o que dá aos governados o
direito de se rebelarem quando os atos do governante não visarem o bem público.
O poder político tem origem parlamentar. Está baseado nas instituições políticas e
não na vontade arbitrária do governante. O legislativo é, portanto, o poder
supremo.
Um traço característico de seu pensamento é o que o estudioso canadense C. B.
Macpherson denominou “individualismo possessivo”, idéia segundo a qual “a
essência humana é ser livre da dependência das vontades alheias e a liberdade
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existe como exercício de posse”. Seu conceito de propriedade, aliás, é muito


amplo. Corresponde a tudo o que pertence a cada um: todo homem é proprietário
de si mesmo e de suas capacidades; é proprietário da própria vida, de seu corpo e
seu trabalho. É através do trabalho que o homem faz jus ao direito de propriedade
em sentido estrito (bens materiais). Para Locke, a propriedade é direito natural,
já que o mundo, obra divina, foi dado ao homem para que nele reinasse. Ao
expulsá-lo do paraíso, Deus não lhe retirou tal direito, mas o condicionou à prática
do trabalho. Ao considerar o trabalho como fundamento originário da propriedade,
o contrato social constitui a resposta para a sua preservação. Ou seja, em seu
pensamento, é a necessidade de superar as possíveis ameaças contra a
propriedade (vida, liberdade e bens) que faz com que os homens se unam e
estabeleçam livremente entre si o contrato social, que realiza a passagem do
estado de natureza para a sociedade política ou civil. Desse modo, um papel
essencial do Estado é garantir a propriedade. Mas por não ser responsável por
sua instituição, não tem o poder para nela interferir, assim como na vida
econômica em geral.
Representante da corrente democrática do pensamento burguês, Rousseau,
partindo do princípio de que houve um estado de natureza, no qual os homens,
vivendo de modo solitário, eram livres e felizes, também considera a liberdade
como direito natural. No estado de natureza, aqui, sim, entendido de modo
peculiar pelo filósofo, como um estágio primitivo de desenvolvimento, os seres
humanos não tinham a necessidade de se relacionar, o que significa a virtual
ausência de grupamentos. Nesse momento, marcado pelo isolamento quase
completo dos indivíduos, rompido apenas para efeito de procriação, não havia
desigualdade.
Em sua concepção, portanto, o estado de natureza não era nem o caos
hobbesiano, nem uma situação de total liberdade, em que as posses e as pessoas
se regulavam de acordo a conveniência dos limites da lei da natureza, como
queria Locke. Rousseau considera que, no estado natural, que corresponderia a
uma etapa passada da história humana, não tendo entre si nenhuma espécie de
relação moral nem de deveres conhecidos, o homem não tinha vícios ou virtudes.
O ambiente natural, abundante e acolhedor, satisfazia plenamente suas
necessidades de subsistência, que eram mínimas. Assim, não tinha motivos para
competir com seus semelhantes. Auto-suficientes, sem necessidade do outro, sem
casas ou propriedade de qualquer tipo, os indivíduos se uniam acidentalmente
para se isolar em seguida. Até os filhos, assim que adquiriam forças para buscar o
próprio alimento, separavam-se das mães. O isolamento elimina desejos de glória
ou poder. As motivações para a guerra, como as descreve Hobbes, não existem,
portanto, em sua concepção. Os selvagens não são maus justamente por não
saberem o que é serem bons, pois é a calma das paixões e a ignorância dos
vícios que os impedem de proceder mal. Por isso se tratava da situação mais
propícia à paz e a mais conveniente ao gênero humano.
Só que, no estado de natureza, algumas potencialidades existentes no homem
primitivo o impeliam para um afastamento cada vez maior do reino animal,
estimulando nele o desenvolvimento da sociabilidade, que marcaria
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definitivamente a fronteira entre homens e animais. Tais potencialidades levaram-


no à busca da perfectibilidade, característica que permite seu progresso e
desenvolvimento em um contexto comunitário. Gradualmente e de forma instintiva,
usando sua inteligência, os homens passam a aproveitar cada vez mais o que a
natureza lhes oferece, buscando melhores condições de proteção e bem-estar.
Aperfeiçoam a fabricação de armas e utensílios; desenvolvem certas técnicas que
lhes possibilita permanecer mais tempo no mesmo local; iniciam a construção de
habitações rústicas, caminhando no sentido de abandonar a vida nômade. O
convívio mais permanente entre homem e mulher permite o aumento das
populações e a formação de famílias, que constituem pequenas sociedades. A
divisão natural do trabalho estabelece diferenças cruciais no modo de viver dos
dois sexos. Ao buscar mais conforto, o homem cria novas necessidades, que o
tornam dependente de outros. A partir de então, ao perceber a utilidade de um só
ter provisões para dois, introduz-se a propriedade e desaparece a igualdade. A
vida em grupo implica, portanto, mudanças que pervertem o comportamento
humano para adequá-lo ao novo contexto marcado pela desigualdade, pelo
egocentrismo, pela competição que freqüentemente é o germe da violência, enfim,
por um virtual estado de guerra generalizada, que exige soluções.

A humanidade entra assim no que Rousseau denomina estado de sociedade,


conceito não encontrado em outras teorias. É, portanto, nesse estágio –
comparável com a descrição hobbesiana do estado natural – vivendo em conjunto
com outros, que têm início os conflitos. As relações sociais necessariamente
despertam paixões que acabam alterando o comportamento humano.

Desse modo, foi o progresso da civilização, com a divisão do trabalho e da


propriedade, que criou ricos e pobres, poderosos e fracos. A sociedade política
(civil) surge como um mal necessário, para manter a ordem e evitar o
recrudescimento das desigualdades. Ao criar o Estado, mediante um contrato
social, o indivíduo cede parte de seus direitos naturais para que seja criada uma
entidade superior a todos, detentora de uma vontade geral. Ou seja, o contrato
social tem como objetivo formar um poder comum a todos e, em vez de destruir a
igualdade natural, o pacto, ao contrário, substitui toda desigualdade que passara
a marcar as relações sociais por uma igualdade moral e legítima. Ao participar
das decisões tomadas pelo Estado, o indivíduo recupera a parcela de soberania
que lhe transferiu por força do contrato social que formou a sociedade política.
Desse modo, para Rousseau, o titular do poder de Estado é o povo, que se
constitui como tal por uma decisão unânime, que transforma seu interesse não em
soma de interesses individuais, mas em interesse coletivo e sua vontade, não em
soma de vontades individuais, mas na vontade geral.

Segundo Rousseau, o contrato social tem por objetivo encontrar uma forma de
associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com
toda a força comum, através da qual cada um, unindo-se a todos, só obedece a si
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mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes.2 Afirma ele que liberdade é
“a obediência à lei que nos prescrevemos”, querendo significar que, no âmbito
do Estado, os cidadãos, coletivamente, devem formular as leis. É dessa forma que
o filósofo, adota a perspectiva democrática de liberdade, entendida como
liberdade coletiva, o que permite concluir que, para ele, será livre e soberana a
nação na qual a coletividade for soberana, isto é, naquela em que prevalecer
a vontade geral.

Em relação à questão da propriedade, está claro que Rousseau não lhe atribui a
categoria de direito natural, tal como o direito à liberdade e à igualdade. A
tentativa de seu estabelecimento ocorre como um ato unilateral do primeiro
ocupante ao estabelecer a posse de determinada área de terra. Segundo afirma, o
primeiro que, tendo cercado um terreno, se lembrou de dizer „Isto é meu‟ e
encontrou pessoas bastante simples para acreditar nele, teria sido o verdadeiro
fundador da sociedade civil. Rousseau lamenta que não tivesse surgido outro
indivíduo para desmascarar o impostor, gritando a seus semelhantes que os frutos
são de todos e a terra é de ninguém. Se tal tivesse ocorrido, o gênero humano
teria sido poupado de um sem número de crimes, guerras, assassínios, misérias e
horrores. Refletindo sobre sua origem, Rousseau considera, assim, a propriedade
como degeneração do gênero humano ou do homem natural. Isso não significa,
contudo, que negue sua legitimidade, pois, como afirma, o contrato social e o
estabelecimento das leis tornam o direito de propriedade estável e legítimo.
Inexistente no estado de natureza, a propriedade é entendida por ele como
direito civil, só assegurado pela existência do Estado e da lei.

2
ROUSSEAU, Jean Jacques. Do Contrato Social – Livro Primeiro – Cap. VI- São Paulo: Nova Cultural,
1987.
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UNIDADE II – TEXTO 2: LIBERALISMO E FIM DO ANTIGO REGIME


A estruturação das idéias políticas liberais tem como pano de fundo a luta contra as
monarquias absolutas por direito divino dos reis, derivadas da concepção teocrática do
poder. O liberalismo consolida-se com os acontecimentos de 1789, na França, isto é, a
Revolução Francesa, que derrubou o Antigo Regime.
Antigo, em primeiro lugar, porque politicamente teocrático e absolutista. Antigo, em
segundo lugar, porque socialmente fundado na idéia de hierarquia divina, natural e social
e na organização feudal, baseada no pacto de submissão dos vassalos ou súditos ao
senhor.
Com as idéias de direito natural dos indivíduos e de sociedade civil (relações entre
indivíduos livres e iguais por natureza), quebra-se a idéia de hierarquia. Com a idéia de
contrato social (passagem da idéia de pacto de submissão à de pacto social entre
indivíduos livres e iguais) quebra-se a idéia de origem divina do poder e da justiça
fundada nas virtudes do bom governante.
O término do Antigo Regime se consuma quando a teoria política consagra a
propriedade privada como direito natural dos indivíduos, desfazendo a imagem do rei
como senhor dos bens e riquezas do reino, decidindo segundo sua vontade e seu
capricho quanto a impostos, tributos e taxas. A propriedade ou é individual e privada ou
estatal e pública. Jamais patrimônio pessoal do monarca. O poder tem a forma de um
Estado republicano impessoal, porque a decisão sobre impostos, tributos e taxas é
tomada por um parlamento – o poder legislativo –, constituído pelos representantes dos
proprietários privados.
As teorias políticas liberais afirmam, portanto, que o indivíduo é a origem e o
destinatário do poder político, nascido de um contrato social voluntário, no qual os
contratantes cedem seus poderes, mas não cedem os direitos (à vida, liberdade e
propriedade). O indivíduo é o cidadão.
Afirmam também a existência de uma esfera de relações sociais separadas da vida
privada e da vida política, a sociedade civil organizada, onde proprietários privados e
trabalhadores criam suas organizações de classes, realizam contratos, disputam
interesses e posições, sem que o Estado possa aí intervir, a não ser que uma das partes
lhe peça para arbitrar os conflitos ou que uma das partes aja de modo que pareça
perigoso para a manutenção da própria sociedade.
Afirmam o caráter republicano do poder, isto é, o Estado é o poder público e nele os
interesses dos proprietários devem estar representados por meio do parlamento e do
poder judiciário, devendo os representantes ser eleitos por seus pares.
Os teóricos liberais, inicialmente com Locke, depois com os responsáveis pela
independência americana e pela Revolução Francesa e, no século XX, com pensadores
com Max Weber, entendem a função do Estado como sendo tríplice, cabendo-lhe:
 Garantir o direito natural de propriedade, por meio das leis e do uso legal
da violência (exército e polícia), sem interferir na vida econômica, isto é
respeitando a liberdade econômica dos proprietários privados;
 Arbitrar, por meio das leis e do uso da força, os conflitos da sociedade
civil, que definem como sendo a esfera social entre o indivíduo e o
Estado;
 Garantir a liberdade de consciência ou de pensamento dos governados, só
podendo exercer censura no caso de emissão de opiniões sediciosas, que
ponham em risco o próprio Estado.
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O Estado, através da lei e da força, tem o poder para dominar – exigir obediência –
e para reprimir – punir o que a lei defina como crime. Seu papel é a garantia da ordem
pública, tal como definida pelos proprietários privados e seus representantes.
Quanto ao poder executivo, em caso de monarquia, pode ser hereditário, mas o rei
está submetido às leis como os demais súditos. Em caso de democracia, será eleito por
voto censitário, isto é, são eleitores ou cidadãos plenos apenas os que possuem certo
nível de renda ou riqueza.

A Cidadania Liberal

O Estado liberal se apresenta como república representativa constituída de três


poderes: o executivo (encarregado da administração dos negócios e serviços públicos); o
legislativo (parlamento encarregado de instituir as leis) e o judiciário (magistraturas de
profissionais do direito, encarregados de aplicar as leis). Possui um corpo de militares
profissionais que formam as forças armadas – exército e polícia –, encarregadas da
ordem interna e da defesa (ou ataque) externo. Possui também um corpo de servidores
ou funcionários públicos, que formam a burocracia, encarregada de cumprir as decisões
dos três poderes perante os cidadãos.
Inicialmente, os donos do poder no Estado liberal julgavam inconcebível que um não
proprietário pudesse ocupar um cargo de representante num dos três poderes. Ao afirmar
que os cidadãos eram os homens livres e independentes, queriam dizer com isso que
eram dependentes e não livres os que não possuíssem propriedade privada. Estavam
excluídos do poder político, portanto, os trabalhadores e as mulheres, isto é, a maioria da
sociedade.
Lutas populares intensas, desde o século XVIII até nossos dias, forçaram o Estado
liberal a tornar-se uma democracia representativa, ampliando a cidadania política. Com
exceção dos Estados Unidos, onde ao menos os trabalhadores brancos foram
considerados cidadãos desde o século XVIII, nos demais países a cidadania plena e o
sufrágio universal só vieram a existir completamente no século XX, como conclusão de
um longo processo em que a cidadania foi sendo concedida por etapas.
Não menos espantoso é o fato de que em duas das maiores potências mundiais –
Inglaterra e França – as mulheres só alcançaram plena cidadania em 1946, após a
Segunda Guerra Mundial. Pode-se avaliar como foi dura, penosa e lenta essa conquista
popular, considerando-se que, por exemplo, os negros do sul dos Estados Unidos só se
tornaram cidadãos nos anos 60 de nosso século. Também é importante lembrar que, em
países da América Latina, sob a democracia liberal, os índios ficaram excluídos da
cidadania e que os negros da África do Sul votaram pela primeira vez em 1994. (A vitória
de Mandela resulta de longa e sangrenta luta contra o apartheid, isto é, a segregação e
exclusão impostas pelos brancos colonizadores aos negros.) As lutas indígenas, em
nosso continente, e as africanas continuam até nossos dias.
Podemos observar, portanto, que a idéia de contrato social, pelo qual os indivíduos
isolados se transformam em multidão ou em “povo” e esse em corpo político de cidadãos,
não previa o direito à cidadania para todos, mas delimitava o contrato ou o pacto a uma
classe social, a dos proprietários privados ou burguesia.

Texto resumido / adaptado de Convite à Filosofia de Marilena Chauí


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Disciplina: Fundamentos de Ciências Políticas – Professora: Odila Valle de Carvalho Oliveira

UNIDADE II – TEXTO 3: A CRÍTICA AO PENSAMENTO BURGUÊS:


SOCIALISMO E A QUESTÃO DA IGUALDADE

O pensamento político moderno, desenvolvido a partir do Renascimento e


expresso inicialmente pelas teorias burguesas, tem também sua face crítica.
Trata-se do socialismo, desenvolvido, sobretudo, no século XIX. Além de teoria
sócio-econômica, o socialismo constituiu-se também como prática política. Seu
objetivo era abolir o conflito social – criado ou aprofundado pela Revolução
Industrial iniciada na segunda metade do século XVIII – entre a burguesia,
proprietária dos meios de produção, e o proletariado, os operários que vivem de
“vender sua força de trabalho”. Pela Revolução Francesa, a burguesia conquistou,
primeiro na França, e depois em outros países, o poder político, consolidando seu
poder econômico. Estabeleceu-se a liberdade (conforme a concepção liberal),
mas sem a igualdade. As diferentes teorias socialistas pretendem por fim a essa
situação, através da transferência da propriedade dos meios de produção à
comunidade.
Conseqüências dessa transferência seriam a abolição do trabalho
assalariado e a modificação total da constituição econômica da sociedade, que
não mais seria dividida em classes. Essas modificações sócio-econômicas não
podem ser, evidentemente, implantadas sem radicais alterações políticas. O uso
da força revolucionária para esse fim não é, porém, uma regra geral de todas as
formas de socialismo, que são diferentes também pelos vários pressupostos
filosóficos e sociológicos em que os socialistas baseiam suas reivindicações e
esperanças.
É difícil falar-se de socialismo antes de fins do século XVIII, a não ser de
forma muito vaga, uma vez que foi com a Revolução Industrial e com a Revolução
Francesa que o conflito entre a burguesia e o proletariado se tornou agudo.
Costuma-se identificar como precursor do socialismo o revolucionário francês
François-Émile Babeuf, que preparou uma conspiração contra o governo do
Diretório e acabou suicidando-se, antes de ser levado à guilhotina.
Foram diversas as questões sociais decorrentes da consolidação da ordem
capitalista, industrial e burguesa, que produziu profundas transformações no
mundo do trabalho. As precárias condições de vida dos trabalhadores, as longas
jornadas de trabalho, a exploração em larga escala do trabalho feminino e infantil,
os baixíssimos salários, o surgimento de bairros operários, edificados sem
qualquer preocupação com conforto ou higiene, eram apenas algumas das
contradições geradas pela nova sociedade.
Nas primeiras décadas do século XIX, a necessidade de modificações
radicais que tal situação parecia exigir foi expressa pelos chamados socialistas
utópicos. Suas idéias – de inspiração humanitária ou religiosa – se distinguiram
por propor, de modo geral, mudanças desejáveis, visando a alcançar uma
sociedade mais justa, igualitária e fraterna, sem, no entanto, apresentar de modo
concreto os meios para alcançá-la, pois seus teóricos não chegaram a fazer uma
análise crítica da evolução da própria sociedade capitalista. Em síntese, o
socialismo utópico pode ser definido como um conjunto de idéias que se
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caracterizaram pela crítica ao capitalismo, muitas vezes ingênua e inconsistente,


buscando, ao mesmo tempo, a igualdade entre os indivíduos. Em linhas gerais,
combate-se a propriedade privada dos meios de produção como única alternativa
para se atingir tal fim. Seus princípios podem ser resumidos em: crítica ao
liberalismo econômico, sobretudo à livre concorrência; a formação de
comunidades auto-suficientes, nas quais os homens, através da livre cooperação,
teriam suas necessidades satisfeitas; organização, em escala nacional, de um
sistema de cooperativas de trabalhadores que negociariam, entre si, a troca de
bens e serviços; atuação do Estado, que evitaria os abusos típicos do capitalismo,
através da centralização da economia. A ausência de fundamentação científica é o
traço dominante dessas idéias. Pode-se dizer que seus autores, preocupados
com os problemas de justiça social e igualdade, deixavam-se levar por sonhos.
Não por acaso, Karl Marx, o teórico do chamado socialismo científico, denominou
os socialistas utópicos de “românticos”.
Dentre os pensadores dessa corrente, destacaram-se: o conde de Saint-
Simon (1760-1825), François Fourrier (1772-1837), Louis Blanc (1811-1882) e
Pierre Joseph Proudhom (1809-1865), na França; Robert Owen (1771-1858), na
Inglaterra; Wilhelm Weitling (1808-18710), na Alemanha.
Reconhecendo a insuficiência das bases filosóficas de um socialismo
humanitário, religioso ou utópico, Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-
1895) desenvolveram a teoria socialista, partindo da análise crítica do próprio
capitalismo. Ao contrário dos utópicos, Marx e Engels não se preocuparam em
pensar como seria a sociedade ideal. Procuraram antes compreender a dinâmica
do capitalismo, estudando a fundo suas origens, a acumulação prévia do capital, a
consolidação da produção capitalista e, mais importante, suas contradições.
Concluíram que o capitalismo seria inevitavelmente superado e destruído, na
medida em que, em sua dinâmica evolutiva, geraria, necessariamente, os
elementos que o decomporiam e determinariam sua superação. Em sua
concepção, a classe trabalhadora, já inteiramente expropriada dos meios de
subsistência, desenvolvendo sua consciência histórica e entendendo-se como
uma classe revolucionária, teria um papel decisivo na superação da ordem
capitalista e burguesa.
Marx e Engels afirmaram também que o Socialismo seria apenas uma
etapa intermediária, embora necessária, para se alcançar a sociedade comunista,
que representaria o momento máximo da evolução histórica do homem, quando a
sociedade já não mais estaria dividida em classes, não haveria propriedade
privada, nem Estado, compreendido esse como um instrumento da classe
dominante, uma vez que, no comunismo, não existiriam classes sociais. Chegar-
se-ia, portanto à mais completa igualdade entre os homens. Para eles, não se
tratava de sonho, mas de realidade concreta e inevitável, sendo o primeiro passo
para atingi-la a organização da classe trabalhadora.
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UNIDADE II – TEXTO 4: O SOCIALISMO


As Revoluções Sociais*
As revoluções modernas possuem duas faces: a face burguesa liberal (nesse caso, a
revolução é política, visando à tomada de poder e à instituição do Estado como república e órgão
separado da sociedade civil) e a face popular (a revolução é política e social, visando à criação de
direitos e à instituição do poder democrático, que garanta uma nova sociedade justa e feliz.)
(...) Nessas revoluções, a face popular é sufocada pela face liberal, embora essa última seja
obrigada a introduzir e garantir alguns direitos políticos e sociais para o povo, de modo a conseguir
manter a ordem e evitar a explosão contínua de revoltas populares. Mas a face popular vencida
não desaparece. Ressurge periodicamente em lutas isoladas por melhores condições de vida, de
trabalho, de salários e com reivindicações isoladas de participação política. Essa face popular
tende a crescer e a manifestar-se em novas revoluções (derrotadas) durante todo o século XIX, na
medida em que se desenvolve o capitalismo industrial e as classes populares se tornam uma
classe social de perfil muito definido: os proletários ou trabalhadores assalariados industriais.
Correspondendo à emergência e à definição da classe trabalhadora proletária e à sua ação
política em revoluções populares de caráter político-social, surgem novas teorias políticas (que
correspondem à face crítica do pensamento moderno): as várias teorias socialistas.
As teorias socialistas tomam o proletariado como sujeito político e histórico e procuram
figurar uma nova sociedade e uma nova política na qual a exploração dos trabalhadores – a
dominação política a que estão submetidos e as exclusões sociais e culturais a que são forçados –
deixem de existir. Porque consideram os trabalhadores como seu sujeito político, essas teorias
tendem a pensar a sociedade futura como igualitária, feita de abundância, justiça e felicidade.
Como percebem a cumplicidade entre o Estado (capitalista) e a classe economicamente
dominante, julgam que a existência do primeiro se deve apenas às necessidades econômicas da
burguesia e por isso afirmam que, na sociedade futura, quando não haverá divisão social de
classes nem desigualdades, a política não dependerá do Estado. São, portanto, teorias anti-
estatais, que apostam na capacidade de auto-governo ou de auto-gestão da sociedade.
As teorias socialista modernas são herdeiras da tradição libertária, isto é, das lutas sociais
e políticas populares por liberdade e justiça contra a opressão dos poderosos. (...)

A) AS TEORIAS SOCIALISTAS
(...) São três as principais correntes socialistas modernas: o socialismo utópico; o
anarquismo e o comunismo ou socialismo científico.

SOCIALISMO UTÓPICO
Essa corrente socialista vê a classe trabalhadora como despossuída, oprimida e geradora da
riqueza social, sem dela desfrutar. Para ela, os teóricos imaginam uma nova sociedade onde não
existam a propriedade privada, o lucro dos capitalistas, a exploração do trabalho e a desigualdade
econômica, social e política. Imaginam novas cidades, organizadas em grandes cooperativas
geridas pelos trabalhadores e nas quais haja escola para todos, liberdade de pensamento e de
expressão, igualdade de direitos sociais (moradia, alimentação, transporte, saúde), abundância e
felicidade.
As cidades são comunidades de pessoas livres e iguais que se autogovernam. Por serem
cidades perfeitas, que não existem em parte alguma, mas que serão criadas pela vontade livre dos
despossuídos, diz-se que são cidades utópicas e as teorias que as criaram são chamadas de
utopias. Os principais socialistas utópicos foram os franceses Saint-Simon, Fourier, Proudhon,
Louis Blanc e Blanqui, e o inglês Owen.

ANARQUISMO
O principal teórico dessa corrente foi o russo Mikhail Bakunin, inspirado nas idéias
socialistas de Proudhon. Seu ponto de partida é a crítica do individualismo burguês e do Estado
liberal, considerado autoritário e antinatural. Como Rousseau, os anarquistas acreditam na
liberdade natural e na bondade natural dos seres humanos e em sua capacidade para viverem
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felizes em comunidades, atribuindo a origem da sociedade (os indivíduos isolados e em luta) à


propriedade privada e à exploração do trabalho, e a origem do Estado ao poder dos mais fortes (os
proprietários privados) sobre os mais fracos (os trabalhadores).
Contra o artificialismo da sociedade e do Estado, propõem o retorno à vida em comunidades
autogovernadas, sem a menor hierarquia e sem nenhuma autoridade com poder de mando e
direção. Afirmam dois grandes valores: a liberdade e a responsabilidade, em cujo nome propõem a
descentralização social e política, a participação direta de todos nas decisões da comunidade, a
formação de organizações de bairros, de fábrica, de educação, moradia, saúde, transporte, etc.
Propõem também que essas organizações comunitárias participativas formem federações
nacionais e internacionais para a tomada de decisões globais, evitando, porém, a forma
parlamentar de representação e garantindo a democracia direta.
As comunidades e as organizações comunitárias enviam delegados às federações. Os
delegados são eleitos para um mandato referente exclusivamente ao assunto que será tratado pela
assembléia da federação; terminada a assembléia, o mandato também termina, de sorte que não
há representantes permanentes. Visto que o delegado possui um mandato para expor e defender
perante a federação as opiniões e decisões de sua comunidade, se não cumprir o que lhe foi
delegado, seu mandato será revogado e um outro delegado, eleito.
Como se observa, os anarquistas procuram impedir o surgimento de aparelhos de poder que
conduzam à formação do Estado. Recusam, por isso, a existência de exércitos profissionais e
defendem a tese do povo armado ou das milícias populares, que se formam numa emergência e
se dissolvem tão logo o problema tenha sido resolvido. Consideram o Estado nacional obra do
autoritarismo e da opressão capitalista e, por isso, contra ele, defendem o internacionalismo sem
fronteiras, pois “só o capital tem pátria” e os trabalhadores são “cidadãos do mundo”.
Os anarquistas são conhecidos como libertários, pois lutam contra todas as formas de
autoridade e de autoritarismo. Além de Bakunin, outros importantes anarquistas foram: Piotr
Kropotkin e Leon Tolstói.(...).

COMUNISMO OU SOCIALISMO CIENTÍFICO**


Teoria que critica não só o Estado liberal, mas também o socialismo utópico e o anarquismo,
o socialismo científico encontra-se desenvolvido nas obras de Karl Marx (1818-1883) e Friedrich
Engels (1820-1895).
Para se acompanhar melhor as respostas de Marx a algumas indagações básicas contidas
em seu trabalho teórico, convém lembrar um conjunto de fatos e idéias existentes quando ele o
iniciou.
Em relação aos fatos, vivia-se na era do desenvolvimento do capitalismo industrial, com a
ampliação da capacidade tecnológica de domínio da natureza pelo trabalho e pela técnica. Essa
ampliação aumenta também o campo de ação do capital, que passa a absorver contingentes cada
vez maiores de pessoas no mercado da mão-de-obra e do consumo, rumando para o mercado
capitalista mundial.
A burguesia se organiza através do Estado liberal, enquanto os trabalhadores industriais ou
proletários se organizam em associações profissionais e sindicatos para as lutas econômicas
(salários, jornada de trabalho), sociais (condições de vida) e políticas (reivindicação de cidadania).
Greves, revoltas e revoluções eclodem em toda parte, as mais importantes vindo a ocorrer na
França em 1830, 1848 e 1871. No Brasil, em 1858, acontece a primeira greve dos trabalhadores e,
em 1878, a primeira greve dos trabalhadores do campo, em Amparo (estado de São Paulo).
Simultaneamente, consolida-se (em alguns países) ou inicia-se (em outros países) o Estado
nacional unificado e centralizado, definido pela unidade territorial e pela identidade de língua,
religião, raça e costumes. O capital precisa de suportes territoriais e por isso leva à constituição de
nações, forçando, pelas guerras e pelo direito internacional, a delimitação e a garantia de fronteiras
e, pelo aparato jurídico, policial e escolar, a unidade de língua, religião e costumes. Em suma,
inventa-se a pátria ou nação, sob a forma de Estado nacional, com um mercado específico. Como
se observa, esse Estado nacional não é, nem natural, nem existe desde sempre, mas foi inventado
pelo capitalismo e consolidado no século XIX.
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Do ponto de vista das idéias, o panorama é efervescente: além das teorias liberais e
socialistas e da economia política (burguesa) – o teórico idealista alemão Georg Wilhelm
Friedrich Hegel (1770/1831) havia proposto uma filosofia política, a filosofia do direito. (...)
(...) Liberalismo político, liberalismo econômico e idealismo político hegeliano formam
o pano de fundo do pensamento de Marx, voltado para a compreensão do capitalismo e das lutas
proletárias.
Contra o liberalismo político, Marx mostrará que a propriedade privada não é um direito
natural e o Estado não é resultado de um contrato social. Contra a economia política (burguesa,
clássica), mostrará que a economia não é expressão de uma ordem natural racional. Contra Hegel,
mostrará que o Estado não é a idéia ou o espírito encarnados na realidade e que a história não é o
movimento da consciência e de suas idéias.

(Em síntese, o pensamento de Marx se desenvolverá a partir de sua crítica às grandes


teorias de seu tempo: a economia clássica inglesa e o liberalismo político; a filosofia idealista
alemã (de Hegel) e o socialismo utópico francês.)

(...) Marx e Engels observaram que, a cada modo de produção, a consciência dos seres
humanos se transforma. Descobriram que essas transformações constituem a maneira como, em
cada época, a consciência interpreta, compreende e representa para si mesma o que se passa nas
condições materiais de produção e reprodução da existência. Por esse motivo, afirmaram que, ao
contrário do que se pensa, não são as idéias que movem a história, mas são as condições
históricas que produzem as idéias.

Na obra Contribuição à Crítica da Economia Política, Marx escreve:


O conjunto das relações de produção (que corresponde ao grau de
desenvolvimento das forças produtivas materiais) constitui a estrutura econômica da
sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e
política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo
de reprodução de vida material determina o desenvolvimento da vida social, política
e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é
o seu ser social que, inversamente, determina sua consciência.
É por afirmar que a sociedade se constitui a partir de condições materiais de produção e da
divisão social do trabalho, que as mudanças históricas são determinadas pelas modificações
naquelas condições materiais e naquela divisão do trabalho, e que a consciência humana é
determinada a pensar as idéias que pensa por causa das condições materiais instituídas pela
sociedade, que o pensamento de Marx e Engels é chamado de materialismo histórico.
Materialismo, porque somos o que as condições materiais (as relações de produção) nos
determinam a ser e a pensar. Histórico porque a sociedade e a política não surgem de decretos
divinos, nem nascem da ordem natural, mas dependem da ação concreta dos seres no tempo e no
espaço.
A história não é um processo linear e contínuo, uma seqüência de causas e efeitos, mas um
processo de transformações sociais determinadas pelas contradições entre os meios de produção
(a forma da propriedade) e as forças produtivas (o trabalho, seus instrumentos, as técnicas). A luta
de classes exprime tais contradições e é o motor da história. Por afirmar que o processo histórico
é movido por contradições sociais, o materialismo histórico é dialético.
Perguntando-se sobre o que constitui o modo de produção capitalista, Marx responde: que é
a produção de mercadorias, isto é, de produtos cujo valor não é determinado por seu uso, mas
por seu valor de troca. Esse é determinado pelo custo total para produzir uma mercadoria (custo da
matéria-prima, dos instrumentos de trabalho, dos conhecimentos técnicos e dos salários), custo
calculado a partir do tempo realmente necessário para produzi-la (horas de trabalho, horas de
transporte, horas de descanso para a reposição das forças, horas necessárias para a extração da
matéria-prima e seu transporte, horas necessárias para a fabricação das máquinas e outros
instrumentos de trabalho, etc.
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Quem produz as mercadorias? Os trabalhadores assalariados, que vendem sua força de


trabalho aos proprietários privados dos meios de produção. Como as vendem? Como uma
mercadoria entre outras. Qual o procedimento que regula a compra e venda da força de trabalho?
O contrato de trabalho, que, sendo um contrato, pressupõe que as partes contratantes são livres e
iguais, e, portanto, que é por livre e espontânea vontade que o trabalhador vende sua força de
trabalho pelo salário. O que é o salário? O que é pago ao trabalhador para garantir sua
subsistência e a reprodução de sua força de trabalho (alimentação, moradia, vestuário e condições
para procriar). Quanto vale a mercadoria-trabalhador, isto é, quanto vale o salário?
(...) Marx explica que para produzir uma determinada mercadoria, um trabalhador precisa de
um certo número de horas (suponhamos, por exemplo, quatro horas) e os seu salário será
calculado a partir desse tempo; entretanto, o trabalhador trabalha durante muito mais tempo
(suponhamos, por exemplo, oito horas) e, conseqüentemente, produz muito mais mercadorias;
essas, porém, não são computadas para o cálculo do salário, de modo que há um trabalho
excedente não pago, isto é, não coberto pelo salário. Esse procedimento ocorre em toda a
indústria, na agricultura e no comércio, de maneira que a massa social dos salários de todos os
assalariados corresponde apenas a uma parte do tempo socialmente necessário para a produção
de mercadorias. A outra parte permanece não paga, formando uma gigantesca massa social de
mais-valia (o valor do trabalho excedente não pago). É a mais-valia que forma o lucro que será
investido para aumentar o capital. (...) Assim, o capital se acumula e se reproduz, se amplia e se
estende mundo afora porque se funda na exploração social da massa dos assalariados.
Se os trabalhadores puderem descobrir, pela compreensão do processo de trabalho, que
formam uma classe social oposta à dos senhores do capital; que esses retiram o lucro da
exploração do trabalho; que sem o trabalho não pago não haveria capital e que a ideologia e o
Estado capitalistas existem para impedi-los de tal percepção; se puderem compreender isso, sua
consciência será conhecimento verdadeiro da práxis social. Eles terão ciência de sua práxis.
Se tiverem essa ciência, se conseguirem unir-se e organizar-se para transformar a
sociedade e criar outra sem a divisão e a luta de classes, passarão à práxis política.
Visto que a burguesia dispõe de todos os recursos materiais, intelectuais, jurídicos, políticos
e militares para conservar o poderio econômico e estatal, buscará impedir a práxis política dos
trabalhadores e esses não terão outra saída senão aquela que sempre foi usada pelas classes
populares insubmissas e radicais: a revolução.
A teoria marxista da revolução não se confunde, portanto, com as teorias utópicas e
libertárias, porque não se baseia na miséria, na infelicidade e na injustiça a que estão submetidos
os trabalhadores, mas se fundamenta na análise científica da sociedade capitalista (nas “leis” do
capital, ou da economia política burguesa) e nela encontra os modos pelos quais os trabalhadores
realizam sua própria emancipação. Por isso, Marx e Engels disseram que a emancipação dos
trabalhadores terá de ser obra histórica dos próprios trabalhadores. A sociedade comunista, sem
propriedade privada dos meios de produção, sem classes sociais, sem exploração do trabalho,
sem poder estatal, livre e igualitária, resulta, portanto, da práxis revolucionária da classe
trabalhadora.
(...) Julgava Marx que essa seria a última revolução popular. Por que a última? Porque
aboliria a causa de todas as revoluções que as anteriores não haviam conseguido abolir: a
propriedade privada dos meios de produção. Só assim o trabalho poderia ser verdadeiramente
práxis humana criadora.

*CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia, Ed. Ática, São Paulo, 1995 – 3ª ed. (pp. 408-9)
** Idem (Texto selecionado, com algumas adaptações - pp. 409-422)
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UNIDADE II – TEXTO 5: As democracias: Liberal, Social e Socialista*


Há confusões em torno do sentido de democracia. Isso ocorre mais em torno das
reflexões que se fazem sobre o que é democracia do que em relação à marcha histórica dos
regimes democráticos. É o que explica C.B. MacPherson, acrescentando que tais confusões
se devem, sobretudo, ao fato de que o termo mudou de significado mais de uma vez e em
mais de uma direção.

Tradicionalmente, a democracia, como regime político, não era bem avaliada nem
pelos teóricos e filósofos, nem pelos homens “bem nascidos”, que consideravam perigoso o
governo do povo. Essa perspectiva se manteve até quase o final do século XIX. De fato, ainda
nessa época, os pensadores liberais – porta-vozes da visão de mundo da classe burguesa
dominante e formadores de opinião – continuavam a encarar esse regime com restrições, por
entenderem a democracia como prejudicial às liberdades individuais.

A partir, contudo, do último quarto do século XIX, por influência dos movimentos
sociais, que demonstravam o avanço das lutas dos trabalhadores, parte dos pensadores
burgueses introduz ideais democráticos em suas propostas, mostrando, de algum modo,
preocupação com o destino das massas oprimidas. (É o caso, por exemplo, do inglês John
Stuart Mill.) Além dos teóricos, também políticos acabarão aceitando a idéia de incorporar
reivindicações democráticas no Estado liberal.

No início do século XX, quando a democracia – bem adaptada às regras do jogo


político do Estado liberal – já adquiriu significado positivo, passando a ser considerada como o
melhor regime possível, não há Estado que não queira ser identificado como democrático.
(Na primeira guerra mundial, por exemplo, os aliados vencedores do conflito afirmavam estar
lutando “pela democracia”). A partir de então, democracia passou a ter sentido ambíguo,
podendo indicar regimes bastante diferenciados, de conteúdo inclusive oposto.

Para se começar a entender, portanto, as questões relacionadas à democracia, é


importante observar certos fatos básicos, mas que costumam ser facilmente esquecidos. Em
primeiro lugar o de que a democracia não deve ser entendida apenas como a democracia
liberal ocidental, considerando que regimes claramente não-liberais, surgidos no século XX,
como os instalados no bloco liderado pela ex-União Soviética e em países subdesenvolvidos
da Ásia e África, adquiriram o direito histórico de serem denominados “democráticos”. Depois,
há que precisar outros aspectos, que dizem respeito especificamente à democracia liberal.

A democracia liberal e as outras democracias


Sobre a democracia liberal, um fato importante a destacar é o de que nossa
democracia liberal é um sistema de poder, ou melhor, um duplo sistema de poder. Trata-se de
um sistema no qual o povo é governado, ou seja, é obrigado a fazer muitas vezes o que
espontaneamente não faria e deixar de fazer o que faria em circunstâncias diferentes. Dizendo
em outras palavras, a democracia como regime de governo que é, constitui-se num sistema
através do qual o poder é exercido pelo Estado sobre os indivíduos e grupos sociais que o
compõem. Mas não apenas isso, já que, de outro lado, um governo democrático, como
qualquer outro, tem por objetivo manter certa ordem social, um determinado conjunto de
relações entre os indivíduos, que se estabelecem diretamente ou através de seus direitos de
propriedade. Tais relações, que o Estado garante, são também relações de poder, pois dão a
alguns indivíduos um certo poder sobre os demais.
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Outro fato muito enfatizado por alguns e totalmente ignorado por outros é que a
democracia liberal e o capitalismo marcham juntos. A democracia liberal só existe em países
cujo sistema econômico é total ou predominantemente o da empresa capitalista e, com
poucas – e temporárias exceções – todos os países capitalistas contam com um regime de
governo liberal democrático. Como essa correspondência entre democracia liberal e
capitalismo não parece coincidência, é importante examiná-la mais profundamente.

Nas sociedades ocidentais, as conquistas democráticas só foram implantadas


depois da solidificação da sociedade e do Estado liberais. As democracias liberais foram
liberais primeiro e democráticas depois. A democracia chegou como complemento, tendo de
se acomodar às bases da sociedade mercantil, competitiva e individualista e às ações do
Estado, implantado e mantido através de um sistema de livre concorrência, mas inicialmente
sem partidos democráticos. Nesse processo, o Estado liberal se democratizou e a democracia
foi liberalizada, ou seja, houve um processo de adaptação mútua entre propostas liberais e
democráticas.

Já nas nações lideradas pela União Soviética e nos países subdesenvolvidos que se
tornaram independentes no pós-segunda guerra, a democracia foi introduzida através de
revoluções contra a sociedade capitalista e o Estado liberal. Os movimentos políticos que
alcançaram o poder nesses países consideravam-se democráticos, recuperando o sentido
original da democracia de governo pelo e para o povo. Povo aqui entendido como as classes
até então oprimidas. Esse sentido foi posteriormente modificado, seguindo uma direção
diferente da verificada no ocidente. É que, enquanto esses movimentos democráticos estavam
no poder, a produtividade característica da tecnologia moderna aumentou de tal maneira que
passou a ser possível imaginar um futuro de abundância para todos. Assim a idéia de
democracia evoluiu, deixando o seu sentido de governo em favor das classes mais
desfavorecidas, para ganhar o significado de governo do povo como um todo,
desconsiderando toda idéia de classe.

Afirmar que a democracia liberal foi introduzida no ocidente não em oposição à


sociedade e ao Estado liberais significa que não houve nesse processo, por parte dos
dominados, tentativa de derrotar a economia de mercado e o Estado capitalista. O que
aconteceu foi que as classes populares buscaram ampliar seu espaço de atuação dentro das
instituições e do sistema social existente, fazendo uso da liberdade que o sistema previa, para
obter serviços sociais nas áreas de educação, saúde e segurança social e regulamentações
no mercado para obter proteção contra os efeitos da competição desigual. Pode-se afirmar
que o efeito mais importante da adição da democracia ao Estado liberal foi a criação de canais
constitucionais para aliviar as pressões populares.

Nesse tipo de regime, democracia é definida como “regime da lei e da ordem para a
garantia das liberdades individuais”, compreendendo-se a liberdade como sinônimo de
competição. Convém frisar que se trata de competição em dois sentidos: tanto a econômica,
relacionada à livre iniciativa, quanto a competição política entre partidos que disputam
eleições. A lei é identificada à potência jurídica para limitar o poder político e defender a
sociedade contra a tirania, garantindo governos escolhidos pela maioria. E a ordem é
identificada à potência do executivo e do judiciário para conter e limitar os conflitos sociais. Em
tal concepção, democracia é reduzida a “regime político eficaz, baseado na idéia de cidadania
organizada em partidos políticos, manifestando-se em processos eleitorais de escolha de
representantes; na rotatividade de governantes e em soluções técnicas – e não políticas –
para as questões sociais.” O problema é que tais soluções implicam a idéia de que quem
possui conhecimento está naturalmente dotado de poder de mando. Em função disso, a
política passa a ser considerada uma atividade reservada para administradores políticos e não
uma ação coletiva de todos os cidadãos que não conseguem vê-la senão como algo distante.
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“A democracia é, pois, formal, e não concreta”. (M. Chauí) Isto quer dizer, em outras palavras
que a democracia é aqui entendida apenas um de seus dois sentidos básicos. Abandona-se o
ideal em que um governo democrático deveria inspirar-se, que é o da igualdade, atendo-se,
sobretudo, à observância de regras para que o poder político seja distribuído entre a maior
parte dos cidadãos, ou seja, às regras do jogo.

Welfare State ou Estado de bem-estar


O liberalismo clássico, em sua defesa intransigente das liberdades individuais, lutou
pelo ideal do Estado não intervencionista, que deixava o mercado livre, acreditando na idéia
de sua auto-regulação. Mas as profundas desigualdades do sistema capitalista que se
desenvolvia levaram vários teóricos, desde o século XIX a propor a introdução de algum tipo
de controle sobre as atividades econômicas, para garantir alguma oportunidade aos que delas
estavam excluídos.

Mudanças concretas ocorreram, contudo, sobretudo no século XX e mais por razões


econômicas do que pelo interesse de estender à população em geral direitos democráticos.
De fato, a crise que alcançou o sistema levou a Inglaterra, ainda nos anos 20, e os Estados
Unidos, na década seguinte, a desenvolver políticas de intervenção clara na produção e
distribuição de bens, numa crítica implícita ao princípio liberal do “laissez-faire”, e a implantar
medidas assistenciais, com o objetivo maior de recuperar os níveis de consumo, condição
necessária à expansão da produção. Além da motivação econômica, essencial, esse tipo de
política, que deu origem ao chamado welfare State ou Estado de bem-estar teve também
intenções políticas. Inicialmente, tratava-se da defesa, pelas nações do ocidente, do sistema
capitalista contra a alternativa socialista. No pós-Segunda Guerra Mundial, além da
preocupação com o avanço do socialismo, que adquirira prestígio inclusive pelo papel crucial
da URSS na vitória contra o Eixo, o mundo capitalista pretendia prevenir-se igualmente contra
a possibilidade de retorno do nazi-fascismo, que se expandira com o apoio das massas na
Itália e na Alemanha, em grande medida em função da crise econômica do período inter-
guerras.
As democracias socialistas
O Socialismo real
Se a democracia liberal pode ser identificada com o ideal da liberdade, a democracia
socialista tem como guia o ideal igualitário. A intenção de seus adeptos é, através da reforma
da propriedade – isto é, através da transferência da propriedade privada dos meios de
produção ao conjunto da sociedade – acabar com o fator que determina as diferenças sociais.
Dito de outro modo, o que se pretende é chegar à igualdade social por meio da transformação
socialista da sociedade capitalista.
Ultrapassando os limites da democracia liberal, o socialismo pretende estabelecer
um regime fundamentado na democracia direta de todo o povo (e de seus delegados), no
qual, em vez de limitar-se a permitir a participação formal na política, através da concessão do
direito universal de voto, como no sistema capitalista, será possibilitada a participação de
todos nas decisões econômicas. Tais decisões, na sociedade capitalista são tomadas pelos
“donos do poder”. Em síntese, no socialismo, a intenção é que o direito de voto seja
acompanhado de distribuição mais igualitária de poder econômico, transformando o poder
formal de participação em poder substancial.
A prática política socialista, contudo, acabou por distanciar-se desse ideal. Apesar
das conquistas óbvias do sistema – que transformou a URSS em potência industrializada,
conseguiu de fato distribuir renda e resolver problemas sociais tradicionais relativos a saúde,
educação e moradia – suas falhas logo se evidenciaram. A primeira nação a passar pela
experiência do “socialismo real” enfrentou dificuldades e impasses, começando por sua
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negação de princípios da democracia formal. O cerceamento à liberdade individual, visível nas


restrições aos direitos de circulação, de expressão e difusão de informações, tornou
impossível a contestação. O estabelecimento do partido único resultou na centralização do
poder, desmentindo na prática a proposta inicial dos revolucionários que defendiam “todo
poder aos sovietes” (assembléias locais), e criando ambiente favorável aos privilégios e à
corrupção.
A crise, já perceptível desde o início da gestão de Brejnev (1964-1982) e
intensificada desde os anos 70, mostrava o descompasso entre o desenvolvimento da
industria de base e dos setores espacial e de armamentos, por um lado, e a produção
insuficiente de bens de consumo, por outro. Os problemas levaram à estagnação econômica e
à queda nos padrões de vida da população nesse período.
As reformas conduzidas pelo último governante da URSS, Mikhail Gorbatchev, não
conseguiram manter de pé o regime. A “Perestroika”, política de reestruturação da economia,
que rompia com a rigidez do planejamento estatal, através da introdução de elementos de
regulação de mercado, foi acompanhada da “Glasnost” (“abertura” ou “transparência”),
reforma nas instituições políticas, com o objetivo de renovar os quadros da autoritária e
burocrática elite dirigente. O clima de maior liberdade que se criou acabou por acelerar os
desejos de mudança e a impaciência de esperar pelo resultado das reformas econômicas.
A queda do muro de Berlim, símbolo da separação de dois mundos, em novembro
de 1989, determinou o início da derrocada da experiência socialista no leste europeu,
mudando profundamente as relações políticas no mundo na última década do século XX.
A Social-democracia e outras expressões (teóricas e práticas) do socialismo
De inspiração marxista, como a que deu origem ao socialismo real, a social-
democracia designou, inicialmente, todas as correntes socialistas, excetuando o anarquismo.
A partir de 1889, com uma postura menos internacionalista, que favoreceu o crescimento de
partidos nacionais, deixando de lado a tese da revolução e propondo uma atuação adaptada
aos limites do Estado liberal, os social-democratas alemães, liderados por pensadores como
Karl Kautsky e Eduard Bernstein, defendem a caminhada pacífica para o socialismo. A idéia é
aproveitar as brechas das instituições liberal-democráticas para obter concessões crescentes
para os trabalhadores, radicalizando a democracia.
De qualquer modo, nem mesmo na Alemanha, os teóricos e ativistas políticos
ligados ao socialismo se mantiveram coesos. Contrários ao apoio dado pela linha moderada à
participação da Alemanha na Primeira Guerra Mundial e retomando a idéia da revolução como
o caminho para ultrapassar o capitalismo, Rosa Luxemburgo (que rejeita também a proposta
de sistema de partido único) e Karl Liebknecht representam a corrente mais radical da social-
democracia alemã.
A partir da Revolução Russa de 1917, os social-democratas se colocam numa
posição intermediária, entre os revolucionários e os reformistas burgueses, Com o tempo,
entretanto, os partidários dessa linha política vão caminhar de fato no sentido do reformismo.
Em termos teóricos, destacaram-se ainda, no século XX, grandes pensadores, como
o italiano Antonio Gramsci, os alemães da Escola de Frankfurt e os responsáveis pela
proposta do eurocomunismo – o francês Roger Garaudy e o italiano Emilio Togliatti.
No Terceiro Mundo, governos instituídos a partir de lutas contra nações imperialistas
do ocidente liberal constituem outros tipos de experiência de regimes socialistas do século
anterior.
*(Texto adaptado e resumido de: MACPHERSON, C. B. La Realidad Democrática:
Barcelona Ed. Fontanella, 1968; ARRUDA ARANHA, M.L. e PIRES MARTINS, M.H.
Filosofando- Introdução à Filosofia: 3ªed. rev. e atual.,S. Paulo, Ed. Moderna, 1993;
CHAUÍ, M. Convite à Filosofia: 3ªed. São Paulo, Ed. Ática, 1995. BOBBIO, Norberto.
Liberalismo e Democracia: Ed. UNESP-Brasiliense,1988.)
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UNIDADE II - TEXTO ANEXO 1:AS CONCEPÇÕES BURGUESAS DE LIBERDADE


O PENSAMENTO DEMOCRÁTICO E A REGRA DA MAIORIA
Em seu livro Liberdade antes do Liberalismo, o historiador inglês Quentin Skinner analisa
o pensamento democrático desenvolvido por republicanos ingleses do século XVII, que ele
prefere chamar de neo-romano, em razão de sua origem – uma vez que seus defensores se
inspiram na teoria romana do Estado livre. No entendimento desses pensadores, que participaram
da guerra civil e dentre os quais se destacam James Harrington e o poeta John Milton, “só é livre o
indivíduo que vive num Estado livre”, o que exclui, ao menos em princípio, as monarquias. Para
eles, seria livre (soberano) o Estado no qual valesse a vontade da maioria.
É esse o núcleo da tese republicana inglesa, como era denominada no século XVII, ou tese
democrática, a se seguirem as sugestões mais recentes de estudiosos do tema, que pode ser
resumida na idéia de que a liberdade individual se funda na liberdade coletiva. Tal concepção
se contrapõe à versão liberal de liberdade, que irá desafiá-la e vencê-la, como lembra Skinner.
Em linhas gerais, a tese democrática ou neo-romana dos republicanos discute como a
liberdade se fundamenta na sociedade, enquanto a visão liberal se volta para preservar a liberdade
do indivíduo. [Cabe lembrar a distinção feita por Isaiah Berlin, que diferencia – baseado em
Hobbes e Benjamin Constant – a liberdade positiva (liberdade to, isto é para) da liberdade
negativa (liberdade from, isto é, em face de ou contra algo ou alguém)]. A primeira é a liberdade
coletiva, dos antigos (romana) – enorme para a sociedade, quase nula para os indivíduos. A
segunda é a liberdade propriamente moderna – ou seja, o direito do indivíduo não se curvar a
poderes externos, sobretudo o do Estado.
Ao tratar do tema, Skinner comenta o aspecto relativo da liberdade negativa ou liberal. (Isto
é: o indivíduo é livre em relação a ou em face de...) Considera também, no entanto, que, na
modernidade, o projeto capitalista é exatamente esse: o da liberdade negativa dos liberais, que
protege a iniciativa individual contra o Estado e a coletividade. Esse projeto segue a matriz anglo-
saxônica – isto é, a que termina por se tornar vitoriosa na Inglaterra e que conhece um desenrolar
mais evolutivo e gradual – na qual o capitalismo é um franco sucesso, enquanto que as revoluções
modernas de teor social (desde a francesa) e os movimentos de esquerda retomam a liberdade
positiva, “antiga” ou romana.
A tese republicana se opõe até mesmo ao título de obra fundamental do direito divino dos
reis – A Verdadeira Lei das Monarquias Livres –, que o futuro rei Jaime I tinha escrito em 1598.
Seria livre a monarquia, afirmava Jaime, quando o rei fosse livre, ou seja, absoluto. Em outras
palavras, seria soberano o Estado, cujo rei pudesse atuar com liberdade. Já para os neo-romanos,
a liberdade que importava era a dos súditos. E uma monarquia livre era uma contradição. Em sua
concepção, não há maior diferença entre monarquia – regime legítimo, no qual vigora a lei, ainda
que não votada, mas decretada pela vontade de um só – e a tirania, regime ilegítimo, no qual tudo
depende dos caprichos de um único homem. Para cada indivíduo (e nesse ponto Locke deve algo
aos neo-romanos, mesmo que trate do tema em tom mais moderado), depender da vontade alheia
é o mesmo que depender do capricho de um tirano ou déspota. A autonomia de cada pessoa,
segundo os democratas, tem a ver com sua própria vontade: não há liberdade, se essa não tiver
voz (não puder expressar-se).
Daí que um tema chave nos escritos dos republicanos se torne o da dependência, contra a
qual lutam. Para eles, a ameaça à liberdade não vem só da coerção ou da força efetiva. Basta a
sua possibilidade, ainda que remota. O cerne dessa ameaça está na dependência de alguém em
relação a outra pessoa. Tal teoria permite incluir elementos sociais no âmago da política – ao
contrário do que fará a doutrina liberal – porque a dependência é, mais que tudo, uma relação
social. A crítica à dependência ultrapassa assim uma abordagem só jurídica ou constitucional dos
regimes políticos, englobando neles o que modernamente se chamará a questão social. Constata-
se, portanto, que, já na Inglaterra do século XVII, discutia-se o social no político, não sendo essa
temática um aporte recente, como muitos escritos parecem sugerir.
Uma questão que parece constituir o eixo da contestação liberal à teoria neo-romana ou
democrática é a seguinte: dentro de que limites, vale, mesmo, a regra da maioria?
O pressuposto dos republicanos ingleses era que só quando a sociedade é livre há liberdade
do indivíduo. Ora, isso significa que a vontade da maioria constitui a melhor garantia para a
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liberdade de cada um – garantia nitidamente superior à vontade de outro indivíduo, erigido em rei.
É interessante aqui verificar a objeção do absolutista Hobbes a essa idéia.
Sem atribuir importância maior ao tema da liberdade, Hobbes o discute pelo ângulo do
indivíduo. Isso significa que, quando ele compara a liberdade de cada um num Estado democrático
e num monárquico, não está perguntando tanto como se expressa a voz dessa pessoa. (Essa é
uma preocupação democrática, republicana, neo-romana, que não chega a interessá-lo.) Importa-
lhe mais saber como a pessoa é afetada pelas decisões (e/ou perseguições) do soberano. Em
outras palavras: Hobbes dá pouquíssima atenção à preocupação central dos republicanos que
consiste em “eu, cidadão, influir nos assuntos públicos, através de minha voz na Assembléia”. Ele
descrê disso, porque desqualifica a discussão pública, que acontece em sua opinião por meio da
retórica, fonte de equívocos e manipulação.
Suponhamos que, por princípio, eu seja sempre aquele que sofre o peso do poder. Isso
ocorre, ou porque sou súdito de um rei que não me consulta, ou porque, numa assembléia (que,
por definição, comporta pelo menos três membros), eu, sendo um só, sou sempre minoria. A
pergunta de Hobbes é: em que regime padeço menos? (Ele não pergunta: em que regime me
expresso mais.) Padeço menos na monarquia, responde o filósofo. Porque nela, desde que eu leve
uma “retired life”, uma vida retraída ou em retiro, o rei nem pensará em mim, ao passo que, na
democracia, que convida os indivíduos a se manifestarem, posso ser facilmente perseguido pelo
partido vencedor (ao qual “de jure” nunca pertenço, porque, em princípio, sou sempre minoria).
O interessante, nesse jogo desconfiado, é o desprezo pela regra da maioria. É claro que
Hobbes a admite para a democracia, mas nega as bases pelas quais os democratas a exaltam.
A regra da maioria, tal como a conhecemos, vem dos colegiados clericais da Idade Média
que, para decidir em assuntos controversos, faziam prevalecer a vontade da “parte maior e mais
sadia” (‘sanior’) . Não bastava, pois, prevalecer a quantidade: era preciso alegar que ela tivesse
qualidade superior. Mas é daí que se vai acabar chegando à idéia de que a maioria represente o
todo, inclusive os derrotados, ou minoria.
O arremate desse processo está na “vontade geral” de Rousseau, descrita no livro 2º do
Contrato Social, como uma simples regra da maioria, mas que depois, no Livro 4º, é condicionada
por procedimentos (a inexistência de facções e a redução do papel enganador da oratória) que a
convertem quase em revelação da verdade. Deve-se observar que é exatamente essa relação
entre maioria e indivíduo – da ordem de representação ou, no caso de Rousseau, de revelação – o
que Hobbes nega.
Eis o ponto em que o absolutista Hobbes, tão associado ao autoritarismo em função de seu
Estado forte, fornece base ao liberalismo. Para ele existem fatores irredutíveis ao poder comum
(coletivo). No campo democrático, os radicais exigirão que o poder coletivo decida tudo, porque –
representando a maioria – representaria a todos.
A advertência hobbesiana é que, diante do risco de um poder controlar tudo, o decisivo é
uma postura defensiva do indivíduo. E essa, em sua opinião, funciona melhor na monarquia que na
democracia. Por extensão, melhor no conservadorismo do que nas democracias radicais ou
socialistas.
O que, para concluir, permite sugerir que – se a liberdade neo-romana lida com a construção
do social (com todos os riscos que tal construção comporta) – a liberdade dos liberais, como
aparece em Hobbes (seu precursor), talvez tenha mais a ver com a segurança do indivíduo do que
com sua livre iniciativa.
(Texto retirado – e adaptado – de resenha de Renato Janine Ribeiro sobre o livro citado de Quentin Skinner)
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UNIDADE II - TEXTO ANEXO 2 – O ESTADO CAPITALISTA: TRIUNFO DO


LIBERALISMO E PROCESSOS DE DEMOCRATIZAÇÃO
TIPOS DE ESTADO: Globalização e Exclusão
JOSÉ LUIZ QUADROS DE MAGALHÃES*

Este final de século XX apresenta sérios desafios para a humanidade. As questões


mais do que nunca colocam-se em nível global, e a solução dos graves problemas que
ameaçam a estabilidade do planeta necessitam da construção de um novo modelo de
Estado, de sociedade e de economia.
O mundo, no fim do século, assistiu à queda do “socialismo real”, nos seus
modelos europeus, finalizando uma cruel guerra econômica, na qual os Estados
ocidentais aparecem como vencedores momentâneos, com a falsa declaração do fim das
ideologias e com a expansão do modelo neoliberal, trazendo desemprego e promovendo
uma acumulação e movimentação de capital jamais vista.
A década de noventa assiste o início do fim do projeto neoliberal, com um retorno
esmagador da proposta socialista democrática na Europa, que diz não a uma economia
que não tenha finalidade social.
Fenômenos interessantes, que promoveram uma revolução pacífica em nome da
liberdade, percebem que essa também não existe do outro lado do muro. Recentes
publicações na Alemanha unificada ressaltam aspectos impensáveis na época da guerra
ideológica de informações entre leste e oeste europeus.
Um livro de Daniela Dahn (Em frente, em direção oeste, sem esquecer) traz para
o debate algumas questões. A autora firma que o principal capital dos alemães do leste é
“justamente o papel secundário do dinheiro”, sendo que, no seu entendimento, a antiga
Alemanha Oriental (socialista, ou por alguns chamada de comunista), “desapareceu
quando começávamos a gostar dela”. O livro denuncia o tratamento desigual estabelecido
pela lei e pela própria Constituição, entre os alemães do oeste e do leste. Em relação à
aposentadoria, por exemplo, um soldado da Wehrmacht, mesmo tendo pertencido à SS
nazista, tem o direito a uma aposentadoria normal, enquanto os funcionários da antiga
RDA têm seus proventos reduzidos. As conclusões do livro são compartilhadas por
grande parte dos alemães orientais. Setenta e cinco por cento dos OSSIS (alemães do
leste), afirmam que os cidadãos na Alemanha unificada não são iguais perante a lei.
Apenas 30% dos OSSIS acham que a democracia no modelo atual é o melhor regime.
Para comemorar o sétimo aniversário da unificação alemã, a Volksbuhne de
Berlim preparou um espetáculo intitulado “A liberdade provoca pobreza” (Freiheit macht
Arm). Sobre o espetáculo explica Frank Castorf: “Eu acredito que estávamos finalmente
mais livres no sistema do totalitarismo coletivo que na sociedade atual, onde a única coisa
que se percebe é um individualismo que condena tudo o que parece de perto ou de longe
ao coletivo. Hoje eu diria que nos sentimos supérfluos e não livres”.
(...)
Para melhor compreensão da atual realidade, torna-se necessário entendermos
alguns fenômenos contemporâneos, como a crise do Estado social, o neoliberalismo e a
globalização.
O ESTADO CONSTITUCIONAL
O Estado Constitucional moderno compreende um processo evolutivo que pode
ser dividido em seis fases distintas e três tipos de Estado. Representando esses tipos, o
Estado Liberal; o Estado Social e o Estado socialista que, entretanto, apresentam, cada
um, uma enorme variante, segundo o lugar e a época.
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Importante observar que, ao dividirmos as fases evolutivas dos Estados


constitucionais, procuramos demonstrar essa evolução de maneira teórica e não histórica.
Dessa forma, embora cronologicamente essas fases evolutivas tenham-se sucedido na
história, cada Estado vivenciará essa experiência de maneira diversa, em épocas por
vezes diferentes, com intensidade diferente, sendo que nem todos experimentarão todas
as fases e, principalmente, haverá grande diferença na realização dos modelos
constitucionais correspondentes a cada tipo de estado, segundo o grau de
desenvolvimento econômico de cada país, além de sua realidade cultural
Isso posto, podemos iniciar nossa evolução do Estado Constitucional moderno
com a Revolução norte-americana em 1776, a constituição da Federação norte-americana
de 1787 e o processo da Revolução Francesa de 1789. Neste momento, afirma-se o
Estado Liberal, primeiro tipo de Estado constitucional. Em linhas gerais, esse Estado
caracteriza-se pela omissão perante os problemas sociais e econômicos, não
consagrando em seu texto direitos nessas áreas, além da regra básica de não
intervenção no domínio econômico. As Constituições liberais garantem ainda, os direitos
individuais, protegendo-os a contra o Estado, sendo o limite desses direitos o direito do
outro, e os direitos políticos. O conteúdo desses direitos será variável de Estado para
Estado, assim como o tratamento que esses direitos receberão será diverso no tempo e
no espaço.
A primeira fase do Estado Liberal caracteriza-se pela vitória da proposta
econômica liberal, aparecendo teoricamente os direitos individuais como grupo de direitos
que se fundamenta na propriedade privada dos meios de produção. O alicerce teórico da
liberdade será a propriedade, e os cidadãos serão aqueles que participarem da ordem
econômica de forma produtiva. Os direitos políticos em sentido restrito, entendidos como
direitos de participar no poder do Estado, votando e sendo votado, serão apenas dos
proprietários que tenham acima de renda anual muitas vezes constitucionalmente
prevista. Assim, o cidadão será apenas o proprietário.
Numa segunda fase, ocorre uma evolução do conceito de cidadania, resgatando-
se a idéia da igualdade jurídica, e não mais a propriedade privada, como o alicerce dos
direitos fundamentais. Fruto de lutas sociais e parlamentares, que terão em cada país
pesos diferentes, conquista-se o direito ao voto secreto, periódico e universal.
Desaparece assim a diferenciação em razão do poder econômico para se ter acesso ao
voto, permanecendo, entretanto, em vários países, a diferenciação em razão de sexo, que
desaparecerá em alguns casos apenas no século XX. Outras limitações permanecerão –
como as que ainda hoje existem, relacionadas à idade e à escolaridade – por razões
claras.
As regras do liberalismo, embora bem simples, não levam ao que fora prometido
por seus teóricos. O descumprimento das regras pelos competidores levava a economia
do século XIX, ao mesmo tempo, a um processo de crescimento jamais visto até então e
a uma acumulação e concentração de riquezas também incomuns. A concentração de
riqueza leva à eliminação da livre concorrência e da livre iniciativa, idéias basilares do
liberalismo, ao mesmo tempo que acentuava a limites alarmantes a miséria e outras
formas emergentes de exclusão social. A resposta inicial do Estado liberal será a de
combater a crescente marginalidade, a criminalidade e as revoltas sociais de
trabalhadores com a força policial e as reformas urbanas, que permitissem o seu controle
mais fácil pela polícia. Entretanto, a organização internacional dos trabalhadores e a
existência na segunda metade do século XIX de uma proposta científica como alternativa
ao Estado liberal, fazem com que a elite que se afirmou com o modelo econômico
construído nesse século, percebesse a necessidade de gradativamente incorporar
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reivindicações de trabalhadores e propostas dos socialistas, numa tentativa de atenuar as


distorções sociais e econômicas e acalmar a tensão social.
Desta forma, o Estado Liberal passa a admitir uma sensível mudança de postura
perante as questões sócio-econômicas, garantindo determinados direitos sociais como a
limitação da jornada de trabalho, a regulamentação do trabalho do menor e a social. A
Áustria elabora sua legislação previdenciária e, nos Estados Unidos, em 1890, temos a lei
Sherman, modelo de legislação anti-truste, visando a combate a concentração econômica
que provoca a eliminação da concorrência e da livre iniciativa.
Podemos caracterizar essa terceira fase como um momento de transição entre o
Estado Liberal e o Estado Social que nasceria com a Primeira Guerra Mundial. Embora no
final do século XIX e início do século XX, as Constituições liberais mantivessem ainda a
característica de ser essencialmente um texto político, sem a previsão de intervenção no
domínio econômico e nas questões sociais, a legislação infra-constitucional incorpora
essas mudanças, demonstrando a necessidade de urgente mudança de postura por parte
do Estado.
Entretanto, a mudança tardia de comportamento do Estado não é capaz de
solucionar a grave crise que resulta na primeira grande guerra (1914-18), marco divisor de
águas entre o Estado abstencionista e o novo Estado assistencialista. Em 1917, no
México, o mundo assiste a primeira Constituição Social, que mantendo o núcleo liberal de
direitos individuais e políticos, amplia o catálogo de direitos fundamentais, acrescentando
dois novos tipos de direitos: os direitos sociais relativos ao trabalho, saúde, educação,
previdência e os direitos econômicos que marcam a postura intervencionista do Estado
que passa a regular a economia e, em alguns casos, a exercer atividades econômicas.
Embora cronologicamente a Constituição mexicana de 1917 tenha sido a primeira,
a Constituição matriz do constitucionalismo social será a de Weimar, Alemanha, em 1919.
Importante notar que as mudanças sociais através de um processo de democracia
representativa não são capazes de oferecer respostas imediatas para o caos social e
econômico em boa parte da Europa, especialmente Alemanha e Itália. Ao mesmo tempo,
a revolução bolchevique na Rússia e a imediata expansão do recém-criado Estado
socialista ao vasto império czarista, formando a União Soviética, representavam uma
séria ameaça aos interesses do capital no restante da Europa. O Estado socialista que
surgiu em 1917, na Rússia, ao contrário do Estado Social-liberal no modelo alemão e
mexicano, representava uma ruptura com o modelo da economia e da sociedade
capitalistas e com os valores liberais.
Podemos dizer que o Estado Social-Liberal significou uma necessária mudança do
estado Liberal clássico para, de alguma forma, preservar a idéia de uma economia
capitalista livre, onde, a custa do não intervencionismo estatal se preservasse a
concorrência e a livre iniciativa. Em outras palavras, o liberalismo muda e o capitalismo
liberal passa a ter uma preocupação social para preservar uma importante parcela do
núcleo do pensamento liberal.
Não há uma justificativa geral aplicável a todos os Estados que passaram por esse
processo. Mas, em geral, a mudança de comportamento do Estado perante as questões
sociais e econômicas terá em menor ou maior grau, como motivação, a pressão dos
trabalhadores, dos movimentos sociais e das internacionais socialistas; a pressão dos
liberais pela necessidade de se preservar a concorrência comprometida pela
concentração econômica; a grave crise social e a ameaça socialista. O intervencionismo
estatal vem de certa forma evitar a continuidade do processo de concentração, mas, ao
mesmo tempo, preservar o modelo de repartição econômica de riquezas e, portanto,
privilégios econômicos, construídos durante o século XIX.
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Desta forma, o Estado socialista batendo às portas de boa parte dos Estados
europeus e com a incapacidade do modelo social-liberal de responder de maneira urgente
à crise social e econômica, o mundo assiste ao nascimento dos movimentos nacionalistas
na Europa, Ásia e América.
Não se pode dizer que o fascismo, assim como o nazismo, surge como uma forma
de se evitar o crescimento do socialismo na Europa, mas, sem dúvida, a sua ascensão
definitiva terá um fundamental empurrão do grande capital nacional na Itália, Alemanha e
outros países, evitando com isso que a revolução socialista se expandisse e
comprometesse os interesses deste capital. No livro de Leandro Konder, Introdução ao
Fascismo, o autor demonstra com clareza as razões pelas quais o grande capital alemão
e italiano percebem nos movimentos ultranacionalistas uma força capaz de comprometer
o movimento comunista nestes países e os financiam.
Os fascismos europeus assim como o nazismo tem em comum um discurso social,
a prática de uma economia dirigida voltada para a indústria bélica, a violência, sendo um
movimento anti-democrático, anti-socialista, anti-liberal, anti-comunista, anti-operariado,
ultra nacionalista e especialmente no caso alemão, anti-semita.
A capacidade do fascismo e do nazismo de reverter a penetração do movimento
socialista reside na sua forte base cultural na qual se funda o discurso nacionalista.
Resgatando elemento por sobre o qual se constrói o sentimento de pertinência a um
estado nacional, como o passado histórico comum, valores comuns, idioma comum e
projeto político comum, o fascismo nas suas variadas formas busca construir a unidade
nacional contra o estrangeiro que oprime, que é inferior, que impede o desenvolvimento
livre da nação, possibilitando com isso oferecer uma alternativa muito mais próxima da
realidade do povo, pois uma alternativa nacional, capaz de desmobilizar a proposta
internacionalista e nova luta de classes, presente no socialismo. Contra o
internacionalismo socialista construído a partir do objetivo comum de todos os
trabalhadores para eliminar o capital opressor, nada melhor que o discurso social
nacionalista contra o opressor estrangeiro. Note-se que a proposta fascista terá um forte
apelo na Europa, pois se funda em valores culturais fortemente enraizados, podendo
facilmente desmobilizar o internacionalismo que procura ainda construir uma
solidariedade e uma unidade em bases multinacionais.
Com força para barrar a expansão da revolução socialista, o fascismo (e o
nazismo) será a alternativa para o grande capital nacional, que financiará sua ascensão
ao poder em vários Estados europeus e, de maneira mais profunda, na Alemanha e Itália.
O Estado social fascista, produto dos interesses do grande capital nacional e da
crise que se abateu sobre alguns países europeus, será responsável pelo maior conflito
militar da história da humanidade e, após a segunda guerra mundial, com a derrota militar
da Alemanha, Itália e Japão, o mundo terá duas novas potências, sendo construído a
partir de então um mundo bipolar e a guerra-fria até 1989. Importante notar que entre
tantas derrotas, principalmente a da humanidade, os vencedores são aqueles que têm
suas reivindicações atendidas. Basta para isso lembrarmos que entre as sete grandes
economias do mundo encontram-se a Alemanha, a Itália e o Japão. O povo e os exércitos
desses países foram derrotados, mas o grande capital que financiou a alucinação fascista
foi vitorioso mais uma vez.
O período pós-guerra traz o renascimento do Estado Social, assim como a
expansão do Estado Socialista. O Estado Socialista representa um novo paradigma sem,
entretanto, existir uma ruptura com o capitalismo liberal. As Constituições socialistas
consagram uma economia socialista, garantindo a propriedade coletiva e estatal e
abolindo a propriedade privada dos meios de produção. Há uma clara ênfase nos direitos
econômicos e sociais e uma proposital limitação dos direitos individuais, pois o exercício
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desses direitos no Estado Socialista está condicionado à evolução do Estado e da


sociedade socialistas, que devem ser capazes de educar e preparar o cidadão a viver no
futuro em uma sociedade completamente livre, onde não haja Estado, poder ou
hierarquia: a sociedade comunista.
Por esta característica do Estado socialista, não podemos classificá-lo
simplesmente como uma espécie de Estado social. Sua evolução se destaca da linha
evolutiva que traçamos neste trabalho, pois rompe com a economia capitalista.
Retornando à nossa linha evolutiva que parte do Estado liberal, temos no pós-
guerra a retomada do que podemos chamar de uma quarta fase evolutiva e teórica do
Estado Constitucional. Esta quarta fase que tinha sido bruscamente interrompida com os
anos violentos do fascismo e do nazismo, retorna agora com muito mais força, sendo que
os Estados da Europa ocidental experimentam a implementação eficaz do Estado de
bem-estar social, o que, embora os Estados de economia periférica tenham adotado
constituições sociais, não ocorre de maneira completa na América latina, Ásia e África.
Este Estado Social-Liberal é marcado por um assistencialismo e clientelismo típico
deste novo liberalismo social. O Estado deixa a postura abstencionista, sem preocupação
social e econômica e passa a intervir no domínio econômico, regulando e, em alguns
casos, exercendo atividades econômicas, passando a assistir a clientela permanente do
Estado, ou seja, os excluídos do sistema social e econômico necessário à existência do
sistema capitalista. O pleno emprego é, neste estágio do desenvolvimento do capitalismo,
uma condição inexistente. O número menor de desempregados iria apontar a força dos
sindicatos e possibilidade de pressão sobre os interesses do capital. Quanto mais
emprego, mais fortes os sindicatos sob controle do capital e do Estado. Cria-se o
desemprego para enfraquecer os sindicatos assim como se aumenta a inflação para
reduzir salários, mantendo as reivindicações salariais em níveis não ameaçadores aos
lucros crescentes.
As Constituições sociais elevam os direitos sociais e econômicos ao nível de
norma fundamental, havendo uma ampliação do leque de direitos fundamentais,
somando-se esses ao núcleo liberal de direitos individuais e políticos. Entretanto, a leitura
oferecida a esses direitos é ainda numa perspectiva liberal. Os direitos individuais
continuam sendo vistos como direitos contra o Estado e a liberdade fundamental existe,
se o Estado não intervém no livre espaço de escolha individual. Os direitos individuais e
políticos são direitos de implementação imediata e os direitos sociais e econômicos
aparecem como normas programáticas, de implementação gradual e quando necessário.
Os grupos de direitos fundamentais são vistos de forma estanque. Isto faz com que a
democracia, por exemplo, seja vista apenas como simples exercício do direito de votar e
ser votado do cidadão.
A Europa pós-guerra encontra-se destruída e, para os interesses da economia
capitalista liberal, ameaçada pela expansão da influência soviética. Os Estados Unidos da
América, nova grande potência global, manterá nos países sob sua influência, os seus
interesses mantidos por métodos diferentes. Enquanto o terceiro mundo, de economia
periférica, recebe Constituições sociais, mas governos autoritários ou ditaduras militares,
que sejam capazes de manter o ideal comunista distante. A Europa ocidental, aliada dos
EUA, receberá apoio para reerguer sua economia e construir de forma efetiva o modelo
de Estado de bem-estar social.
Onde podemos afirmar que este modelo de Estado existiu ou ainda existe de
forma efetiva, será a Europa. Nas economias periféricas, o Estado Social funcionará de
forma imperfeita ou incompleta.
A implementação efetiva dos direitos sociais e econômicos em boa parte da
Europa ocidental traz consigo o germe da nova fase democrática do Estado Social e a
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superação da visão liberal dos grupos de direitos fundamentais. O oferecimento, neste


primeiro momento, de direitos sociais como saúde pública e educação pública oferecerá à
população os mecanismos para se formar, informar e daí se organizar, exigindo agora a
sua inclusão no sistema econômico e social, pressionando a efetivar políticas econômicas
que venham gerar empregos e salários justos. Esta combinação de fatores transformará o
Estado Social que, de uma perspectiva clientelista, de manutenção da exclusão social,
transforma-se em um Estado Social includente, pressionado pela população cada vez
mais organizada e informada.
Do ponto de vista teórico, isto representa a consagração da tese da indivisibilidade
dos direitos fundamentais nesta quinta fase evolutiva do Estado. Em outras palavras, a
liberdade não existe a partir da simples omissão do estado perante os direitos individuais,
mas existe a partir da atuação do Estado oferecendo os meios para que os indivíduos
sejam livres. Desta forma, a liberdade de expressão não existe apenas porque o Estado
não censura a palavra ou a imprensa, mas porque os indivíduos têm acesso à educação
que lhes oferece o meio para formar sua consciência filosófica, política e religiosa de
maneira livre, e expressá-la. O direito à vida deixa de ser um direito à manutenção do
organismo biológico funcionando porque o Estado não o extingue, mas sim o direito à
saúde, educação, meio-ambiente, trabalho, justa remuneração etc. Em outras palavras,
para que os direitos individuais existam, para que o indivíduo seja livre, ele tem que ter
acesso a direitos sociais como saúde, educação e direitos econômicos como trabalho e
justa remuneração A democracia não se resume no ato de votar, mas na possibilidade de
participação constante nos destinos do Estado, da sociedade e da economia de uma
população que é livre porque tem acesso aos direitos sociais e econômicos.
O cidadão não é mais o que vota, mas sim o que vota, que se informa, que se
educa, que come, que mora, que veste que trabalha, que tem dignidade.
Este Estado social europeu, includente, necessita de crescimento econômico que
lhe garanta também uma crescente arrecadação tributária para que possa arcar com os
serviços públicos de qualidade e políticas econômicas includentes, o que faz diminuir a
demanda social básica, pois diminui a exclusão, podendo então, cada vez mais sofisticar
a assistência à população e a inda poupar para promover a recuperação econômica nos
períodos de crises cíclicas e passageiras do capitalismo.
AS RAÍZES DA CRISE DO ESTADO SOCIAL
Enquanto há crescimento econômico e alta arrecadação tributária, o Estado social
pode sofisticar-se, com serviços públicos cada vez melhores. A educação é inteiramente
pública e gratuita, assim como a assistência médica de qualidade, em vários Estados
europeus. Entretanto a capacidade do Estado de resistir a crises tem limites de
intensidade e duração, e poucos contavam com a crise profunda da década de 70.
Com a crise econômica, há uma diminuição da arrecadação tributária. Para isto, o
Estado Social estava preparado, pis vinha trabalhando com a idéia de déficit
orçamentário. Poupar nos momentos de crescimento e investir para recuperar a economia
nos momentos de crise. Entretanto a crise profunda diminui a capacidade de o Estado
responder à crescente demanda social, estando mais frágil justamente no momento em
que é mais requisitado.
Este é o momento de penetração da proposta neoliberal já presente como uma
crítica ao Estado Social desde o pós-guerra. Os neoliberais apresentam uma solução para
a crise que o Estado Social naquele momento não era capaz de superar. Entretanto, para
superá-la, era necessário criar-se as condições para a acumulação e expansão do
capital, para posterior criação de riquezas e de empregos.
Para que o capital se expandisse, era necessário que o Estado criasse as
seguintes situações ideais:
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1- diminuição do Estado com processos de privatização, permitindo que o setor


privado pudesse atuar naqueles onde o Estado era concorrente ou único ator;
2- com a diminuição do Estado, inclusive em suas prestações sociais
fundamentais, é possível a diminuição ou eliminação dos tributos do capital,
deixando que a classe assalariada arque com o que subsiste dos serviços
públicos (os dados do período Reagan nos EUA ilustram essa afirmativa).
3- Enfraquecimento dos sindicatos para que não haja pressão eficiente sobre o
valor do trabalho ameaçando os lucros crescentes.
4- Para enfraquecer os sindicatos, são necessárias políticas econômicas de
geração do desemprego, com a substituição gradual do trabalho humano pela
automação (o capital tem investimento maciço em serviços e bens sofisticados
para ampliação dos lucros, aumentando o consumo sem aumentar os
consumidores, permitindo assim, também, a geração do desemprego, o que
pode parecer incompatível).
5- Com o enfraquecimento dos sindicatos, a diminuição dos salários em
determinada área de produção. (Os salários perdem seu valor real com uma
inflação controlada, que permita sua diminuição, sem afetar o setor produtivo –
em outras palavras, inflação existente, mas sob controle).
6- Com o enfraquecimento dos sindicatos, a diminuição dos direitos sociais,
especialmente os direitos constitucionais do trabalhador, o que significa um
retorno a características da terceira fase evolutiva do Estado.
Nas economias periféricas, onde o Estado Social é muito mais frágil, esse processo
ocorre com maior velocidade e profundidade, trazendo um novo e importante dado neste
processo: o capital globalizado começa a se deslocar com enorme facilidade a procura de
Estados que lhe ofereçam melhores condições para a expansão de seus lucros. Ao
contrário do Estado Social fascista, onde o grande capital se tornou nacional para
defender seus interesses, agora o grande capital é apátrida, não tendo nenhum
compromisso com o Estado nacional, que se enfraquece cada vez mais diante da
impossibilidade de controlar a economia e o poder econômico privado.
Este fato faz com que ocorra uma migração do investimento, principalmente da Europa,
onde o Estado, por exigência de uma população informada e organizada, é ainda grande
e caro, para Estados do terceiro mundo. Talvez seja este um golpe fatal no Estado Social.
Não podendo ignorar a globalização da economia, os governos europeus conservadores
e mesmo os de tendência social-democrata, procuram de certa forma estabelecer as
condições exigidas pelo capital.
Recentemente a população européia disse não ao neoliberalismo, quando colocou no
poder os socialistas e trabalhistas em grande parte dos Estados. Resta saber sobre a
possibilidade de se construir uma alternativa econômica capaz de manter a segurança
social com crescimento econômico e geração de empregos. Se isto não ocorrer, o que
vem a seguir já foi anunciado: com a crise do Estado Social e democrático de direito, a
inviabilidade de uma solução socialista, o fim do liberalismo e a farsa da solução
neoliberal, os europeus anunciam o neofascismo, força parlamentar importante hoje na
Noruega e Áustria e conquistando especo na Alemanha, França e em quase toda Europa
central e oriental
A GLOBALIZAÇÃO
O que é a globalização? Para responder esta pergunta vamos consultar os mais recentes
estudos sobre a questão.
Para Jean Luc Ferrandérry, a globalização é um conceito que apareceu no meio dos anos
1980 nas escolas de negócios norte-americanas e na imprensa anglo-saxônica. Esta
expressão designa um movimento complexo de abertura de fronteiras econômicas e de
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desregulamentação, que permite às atividades econômicas capitalistas estenderem seu


campo de ação ao conjunto do planeta. O aparecimento de instrumentos de
telecomunicação extremamente eficientes permitiu a viabilidade destes conceitos,
reduzindo as distâncias a nada. O fim do bloco soviético e o aparente triunfo planetário do
modelo neoliberal no início dos anos 1990 parecem dar a esta noção uma validade
histórica. Na França, foi escolhido o nome mundialização para substituir globalização, que
insiste, particularmente, sobre a dimensão geográfica e tentacular, sem esquecer o
sentido original.
Podemos então dizer que a globalização tem sua origem na literatura destinada às firmas
multinacionais, designando inicialmente um fenômeno limitado a uma mundialização de
demanda, que se enriquece com o tempo até o ponto de ser identificado atualmente a
uma nova fase da economia mundial.
Não há entretanto uniformidade na conceituação do termo, podendo-se encontrar quatro
significados distintos, mas semelhantes:
1- Théodore Levitt propõe este termo para designar a convergência de mercados
no mundo inteiro. Globalização e tecnologia serão os dois principais fatores
que fazem as relações internacionais. Em conseqüência, a sociedade global
opera com constância e resolução, com custos relativamente baixos, como se
o mundo inteiro (ou as principais regiões) constituíssem uma entidade única;
ela vende a mesma coisa, da mesma maneira em todos os lugares. (Levitt,
Théodore. “The globalization of Markets”, Harvard Business Review, Harvard,
Maio-Junho, 1983). Neste sentido, a globalização dos mercados se opõe à
visão anterior de um ciclo de produção que consistia na venda aos países
menos avançados dos produtos que ficavam obsoletos nos países mais ricos.
O termo se aplica mais à gestão das multinacionais e diz respeito
exclusivamente às trocas internacionais.
2- Em 1990, esta noção é estendida por Kenichi Ohmae ao conjunto da cadeia de
criação do valor – pesquisa-desenvolvimento (P-D); engenharia; produção;
mercado; serviços e finanças. Se num primeiro momento uma firma exporta a
partir de sua base nacional, ela estabelece em seguida serviços de vendas no
estrangeiro, depois produzidos na localidade e ulteriormente ainda estabelece
uma medida completa da cadeia de valor na sua filial. Este processo converge
em direção a uma quinta etapa: a integração global, uma vez que as firmas
que pertencem a um mesmo grupo conduzem o seu P-D, financiam seus
investimentos e recrutam pessoal em escala mundial. Desta forma
globalização designa ainda uma forma de gestão, totalmente integrada em
escala mundial da grande firma internacional.
3- Desde que estas multinacionais representam uma fração importante da
produção mundial, os diversos espaços nacionais se encontram obrigados a se
ajustarem às suas exigências pelo fato da extrema mobilidade de que elas se
beneficiam hoje (comércio, investimentos, finanças e P-D). Desta forma, a
globalização significa então o processo através do qual as empresas, as mais
internacionalizadas, tentam redefinir a seu proveito as regras do jogo antes
impostas pelos Estados-nação. Nesta conceituação deixamos o domínio da
gestão interna das firmas para abordarmos a questão da arquitetura do
sistema internacional. Passamos da micro para a macroeconomia, das regras
da boa gestão da economia privada para o estabelecimento de políticas
econômicas e a construção ou redefinição das instituições nacionais. Esta
noção evoca muito mais o processo em curso do que um estado final do
regime internacional que substituirá aquele de Bretton-Woods.
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Constantemente, alguns sublinham o caráter irreversível das tendências em


curso frente à impotência das políticas tradicionais dos governos diante das
estratégias das grandes firmas.
4- Finalmente, a globalização pode significar uma nova configuração que marca a
ruptura em relação às etapas precedentes da economia internacional, pois sua
evolução era determinada pela interação de processos operacionais
essencialmente no nível dos Estados-nação. No período contemporâneo
vemos emergir uma economia globalizada, na qual as economias nacionais
serão decompostas e posteriormente rearticuladas no seio de um sistema de
transações e de processos que operam diretamente no nível internacional.
Esta definição é a mais geral e sistemática. De uma parte, os Estados-nação e,
por conseqüência, os governos nacionais perdem toda a capacidade de
influenciar as evoluções econômicas nacionais, ao ponto que as instituições
centralizadas herdadas do pós-guerra devem ceder lugar a entidades regionais
ou urbanas, ponto de apoio necessário da rede tecida pelas multinacionais. De
outro lado, os territórios submetidos a este novo modelo ficam fortemente
interdependentes a ponto de manifestar evoluções sincronizadas, por vezes
idênticas, mas em todo caso em via de homogeneização. Adeus, portanto, ao
compromisso político nacional e à noção mesma de conjuntura local.
A ALTERNATIVA
Adeus ao compromisso nacional e à noção de conjuntura local?
Olivier Dolfus afirma: “A mundialização não suprimiu as atividades locais, de proximidade,
como aquelas do cabeleireiro ou da escola maternal. Alguns processos, locais, não têm
influência e seus efeitos sobre o lugar se apagam rápido (a fumaça de uma chaminé).
Mas adicionados na escala global, produzem fenômenos de uma natureza diversa que
intervém em níveis espaciais e temporais sem uma medida comum com os fluxos
modestos originais. Desta forma nada será mais falso que pensar que do local ao global,
os fenômenos se repetem um dentro do outro como as bonecas russas. Praticamente, a
cada nível, eles mudam de valor, senão de natureza ou de sentido: alguns se somam,
outros se multiplicam e outros se anulam.
Por tudo que estudamos até aqui, percebemos que permanece uma grande interrogação:
para onde ir. O neoliberalismo não é capaz de responder às necessidades do trabalho e
bem-estar social da população mundial; o socialismo real está ameaçado de
desaparecimento, assim como muito do liberalismo clássico morreu para não mais voltar;
e o Estado Social está em crise de difícil solução, pois se encontra mergulhado num
mundo globalizado. Para onde ir?
A resposta está na construção da sexta fase de evolução do Estado, uma
alternativa de uma democracia participativa que deve ser construída em nível local, na
cidade, espaço da cidadania, encontrando um novo papel para o Estado e para a
Constituição.
Todos os três tipos de Estados que estudamos aqui, nas suas variadas formas e
nas distintas fases de evolução, têm um ponto fundamental em comum: todos
estabelecem na Constituição um modelo de sociedade e de economia. Seja o modelo
liberal, cuja regra básica é a não intervenção no domínio econômico numa sociedade que
tem como valor principal o individualismo e a propriedade privada, seja no Estado
Socialista que tem fundamentos e valores coletivos, até o Estado Social, modelo de
constituição eclética na qual convivem lado a lado os princípios dos tipos de Estados
ortodoxos – socialista e liberal – invariavelmente as Constituições a partir do século XVII
estabelecem um modelo de Estado, sociedade e economia que deve ser obrigatoriamente
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seguido por todos os cidadãos. Os que não seguem o modelo posto são os excluídos, os
miseráveis, os loucos e os presos, marginais do sistema.
O papel do Direito, da Constituição é o de estabelecer as margens, os limites
desta sociedade e, embora estes limites sejam cada vez mais largos, eles continuam a
existir, como requisito e mesmo razão de ser do Estado.
Desta forma o Estado tem como finalidade importante a função de reagir e
conservar. Conservar o modelo de sociedade e reagir com sua força a qualquer tentativa
de mudança fora das permitidas pelo modelo posto. Mesmo com o atual enfraquecimento
do Estado nacional, este ainda é importante dentro do sistema globalizado para reagir a
qualquer tentativa de mudança fora dos limites estabelecidos, agora, pelo grande capital
transnacional globalizado, conservando desta forma o modelo existente e seus interesses
e sistema de privilégios.
No lugar deste Estado reacionário, nas suas formas liberal, socialista, social-
liberal, social-fascista e neoliberal devemos propor um Estado democrático onde a
Constituição nacional garanta os processos democráticos de constante mudança da
sociedade, com respeito aos direitos humanos universais não culturais, deixando que
cada município estabeleça na sua constituição de forma livre e democrática o seu próprio
modelo de sociedade, de economia, de repartição de riquezas e de convívio social, desde
que respeitados os processos democráticos da Constituição Nacional e que sejam
respeitados os princípios universais dos direitos humanos.
O caminho em direção ao novo poder das cidades, o poder local, hoje é sentido de
maneira inequívoca em todo o mundo. Os mecanismos, princípios, modificações
estruturais na administração municipal são estudados no nosso livro “Poder Municipal:
paradigmas para o Estado Constitucional brasileiro”, para o qual remetemos o leitor para
compreensão da alternativa democrática proposta.

(Texto publicado em O Sino do Samuel – da Fac. de Direito da UFMG – Jun/1998)


* Doutor em Direito Constitucional e Coordenador dos cursos
de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UFMG

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