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ROLAND BARTHES

Quem foi, afinal, Roland Barthes? Um teórico da literatura? Um crítico literário,


teatral, cultural? Um semiólogo, analista das imagens e da moda? Um teórico da
fotografia? Um filósofo? Um conselheiro sentimental? Em que corrente intelectual
situá-lo? Foi um marxista? Um estruturalista? Um subjetivista? A que gênero pertencem
seus escritos? Jornalístico, ensaístico, romanesco, didático? A que período: clássico,
moderno, pós-moderno? Barthes foi tudo isso, sucessiva ou concomitantemente, e
acima de tudo um notável escritor que continua a fascinar os mais variados leitores, por
sua inteligência e seu poder de sedução.
Barthes nasceu em Cherbourg, na França, em 1915. Sua carreira intelectual foi atípica.
Tendo sofrido de tuberculose com várias recaídas, começou sua carreira como professor
no estrangeiro e passou parte do tempo da Segunda Guerra em sanatórios. Somente nos
anos de 1950 começou a ser notado como ensaísta literário originalíssimo (O grau zero
da escrita), crítico de teatro e autor de crônicas ferinas em que analisava os mitos da
sociedade francesa contemporânea (Mitologias). Nos anos de 1960, tornou-se orientador
de pesquisas na École Pratique des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, onde
se notabilizou como um dos representantes mais famosos do estruturalismo (Elementos
de semiologia, Crítica e verdade, Sistema da moda).
Na década de 1970, com O prazer do texto, Roland Barthes por Roland Barthes e S/Z,
abandonou o projeto semiológico e iniciou uma fase de escrita vincadamente pessoal,
caracterizada pela aliança da inteligência crítica com a sensualidade verbal. Fragmentos
de um discurso amoroso, em 1977, surpreendeu como um inesperado best-seller. No
mesmo ano, Roland Barthes ingressou no Collège de France, honraria raramente
concedida a um autor “impuro” (como ele mesmo se qualificou), que não ilustrava
nenhuma ciência ou gênero literário preciso e nunca concluíra sua tese de doutorado
(cuja preparação resultou, mais tarde, no livro Sistema da moda). No Collège de
France, ministrou quatro cursos anuais (Como viver junto, O neutro e A preparação do
romance 1 e 2). Sua aula inaugural (Aula), defendendo e ilustrando “o saber com sabor”
fora concebida como um novo projeto de vida, mas foi, na verdade, seu testamento
intelectual. No auge da fama, Barthes foi atropelado por uma caminhonete, na frente do
Collège de France, e faleceu em março de 1980. Seu último livro, A câmara clara
(ensaio sobre a fotografia) foi publicado postumamente, naquele mesmo ano.
A publicação de suas Obras completas, primeiramente em três volumes luxuosos (Paris,
Seuil, 1993) e depois em uma edição corrente em cinco volumes (Paris, Seuil, 2002),
revelou uma grande quantidade de textos inéditos. São textos que se encontravam
dispersos em revistas, jornais, enciclopédias e publicações estrangeiras de difícil acesso.
Esses inéditos não mudam a visão que tínhamos dele, mas acrescentam e iluminam
muitos pontos de sua obra. Os inéditos revelam tanto as mutações de Barthes ao longo
dos anos (seus “deslocamentos”, como ele preferia dizer) quanto seus temas
permanentes e recorrentes. Alguns já preocupavam o jovem autor das Mitologias e
do Grau zero da escrita, nos anos de 1950, e continuaram sendo objeto de suas
reflexões, até serem sintetizados na Aula, e desenvolvidos em seus quatro últimos
cursos, de 1977 a 1980.
Os primeiros textos, datados de 1947 a 1959, revelam um Barthes fortemente politizado,
ancorado na sociologia. Em meados dos anos de 1950, Barthes assinalava o
aparecimento de novos tipos de crítica literária, representados por Gaston Bachelard,
Lucien Goldmann, o Sartre de Baudelaire, Poulet e J. P. Richard. Elogiava a crítica
praticada por L. Goldmann, “crítica histórica” que define “de modo rigorosamente
materialista” o elo que une a História à consciência corporal do escritor, e propunha
uma conciliação desta com a crítica psicológica, pois a crítica histórica coloca o autor
entre parênteses e a crítica psicanalítica nada diz da significação histórica. A tarefa da
crítica, segundo ele, seria reconciliar essas tendências. A partir dessa data, evidencia-se
em sua própria crítica uma informação psicanalítica, acrescentada à base teórica
marxista anterior. Seu livro Sobre Racine, em 1963, provocará a ira de um catedrático
da Sorbonne e ocasionará a polêmica da “nova crítica”, da qual ele seria o maior
representante. A “nova crítica” era aquela que se apoiava nas ciências humanas,
abandonando o biografismo positivista e a “explicação de texto” acadêmica.
Uma questão que perpassa por toda a obra barthesiana é a do “realismo”, isto é, da
possibilidade e das condições da representação da realidade na arte, sobretudo na arte
verbal, a literatura. Já em 1956, Barthes publicara um artigo intitulado “Novos
problemas do realismo”. Dizia ele, aí, que “o realismo é uma ideia moral”, na medida
em que é uma escolha do escritor quanto ao modo de representar o real. Sua preferência
se encaminhava, desde então, para aqueles escritores que se recusam a espelhar a
sociedade como ela deseja se ver, que “desarranjam” essa imagem, rompendo o contrato
com o público burguês: Baudelaire, Flaubert, Zolà. Não por acaso, dizia ele, esses três
escritores sofreram processos judiciais. Na mesma década de 1950, a descoberta do
teatro de Bertold Brecht (1898-1956), e de sua teoria do “distanciamento”, foi decisiva
para sua rejeição de todo “naturalismo”. Finalmente, diria ele mais tarde, encontrara um
marxista sensível aos signos.
Nessa ótica, Barthes rejeitava o “realismo socialista”, porque a ideia de “justeza
política” contém o perigo do moralismo, e porque esse tipo de realismo é “progressista
na intenção e hiperburguês na forma, ao mesmo tempo realista e acadêmica”. O
contraponto do romance socialista seria o romance do “absurdo” e o nouveau roman.
Haveria, pois, naquele momento, dois segmentos de realismo: um realismo socialista na
estrutura, e burguês na forma, contraposto a um realismo de superfície, livre na forma,
mas apolítico, portanto burguês na estrutura. Barthes propunha a união desses dois
segmentos para chegar a um “realismo total”. O realismo seria, assim, um “mito
provisório e necessário para despertar o escritor para uma literatura socialista total”.
Mais tarde, em 1976, ele dirá que a linguagem nunca é realista, porque entre o signo e o
referente há a significação. Essas considerações sobre o realismo literário encontrariam
sua melhor formulação na Aula inaugural do Collège de France, no ano seguinte. Diz
ele, aí: “O real não é representável, e é porque os homens querem constantemente
representá-lo por palavras que há uma história da literatura.”
Em meados dos anos de 1960, Barthes entra numa nova fase, a fase semiológica.
Naquela década, a linguística foi promovida a “ciência piloto” das ciências humanas.
Seus companheiros de reflexão serão, então, os integrantes do grupo Tel Quel,
igualmente fascinados pela descoberta da linguística de Saussure, pela semiótica russa e
tcheca, pelo estruturalismo que seria um desenvolvimento daquelas propostas. Barthes
escreve, nesse período, artigos que tratam de Lévi-Strauss, Roman Jakobson (1896-
1982) e Mikhail Bakhtin (1895-1975), seus novos inspiradores teóricos.
Ao mesmo tempo em que vemos, nos textos teóricos dos anos de 1960, o entusiasmo de
Barthes pela contribuição da linguística aos estudos literários, encontramos também aí
as ressalvas e as precauções que anunciam o abandono do estruturalismo por ele, na
década de 1970. Já então ele dizia que não se devia ser incondicionalmente fiel à
linguística, nem praticar uma “interdisciplinaridade” convencional, porque, ao praticar
essas duas disciplinas, o importante seria subverter a imagem que temos da linguística e
da literatura. Numa “Conversa” de 1966, ele manifestava o receio de que a ciência se
“fetichizasse”. O estruturalismo, dizia ele, quer “desfetichizar” os saberes antigos. Mas
se ele “pegar”, se “fetichizará”. Como foi o que realmente aconteceu, Barthes deslocou-
se do estruturalismo e da semiologia para a fase seguinte.
É o surgimento da “teoria do texto” ou “teoria da escritura”, que ocuparia intensamente
Barthes e o grupo Tel Quel no início dos anos de 1970. O “texto escritural” de
vanguarda substituiria a velha “literatura”. Importante, nesse período, foi a contribuição
de Jacques Derrida (1930-2004) aos debates, na medida em que o filósofo, também
próximo de Tel Quel naquele momento, jogou água fria nos entusiasmos linguísticos e
semiológicos, mostrando o idealismo do signo saussuriano e das práticas decorrentes.
Também fundamental foi a influência de Jacques Lacan, cuja teoria do inconsciente
como linguagem convinha à antiga reivindicação de uma crítica literária que não
ignorasse a psicologia.
A reflexão sobre o sujeito da nova escritura, sobre a intertextualidade (de Bakhtin a
Julia Kristeva), e a já antiga reivindicação do corpo do escritor na escrita,
desembocariam em O prazer do texto, de 1973, verdadeira ruptura de Barthes com o
projeto semiológico anterior, chamado por ele, mais tarde, de “delírio científico”. Da
mesma forma em S/Z, de 1970, ele rompera com a “análise estrutural das narrativas”,
defendida por ele mesmo em plena euforia semiológica, e propusera um novo tipo de
análise, mais fina e mais aberta à história cultural do que as análises mecânicas e
pretensamente universais da fase estruturalista.
Em sua última fase, Barthes manifestou um interesse crescente pelas culturas orientais.
De fato, além de ter escrito um livro magnífico sobre o Japão (O império dos signos,
1970), em 1979 ele ministrou um curso sobre o haicai japonês (A preparação do
romance 1), forma de anotação breve e concreta que via com admiração. Na época,
respondendo a um entrevistador, Barthes dizia: “O que consigo perceber do pensamento
oriental, por reflexos muito distantes, me permite respirar.” Porque o pensamento
oriental, que ele não pretendia conhecer em profundidade, fornecia-lhe “fantasias
pessoais de suavidade, repouso, paz, ausência de agressividade”. Este é o Barthes final,
que continuava tendo como inimigos o senso comum (a doxa), a arrogância intelectual,
o dogmatismo científico ou político e, como objetivos a alcançar, a “palavra calma”, a
prática do Neutro (tema de outro curso) e o prazer do texto.
O “texto” deixara então de ser, para ele, apenas o texto de vanguarda, experimental e
desestabilizador do sujeito, para englobar toda a grande literatura do passado, que ele
amava com paixão, no próprio momento em que a sentia ameaçada de desaparecimento.
A esse respeito, em uma de suas últimas aulas ele dizia: “A ameaça de definhamento ou
de extinção que pode pesar sobre a literatura soa como um extermínio de espécie, uma
forma de genocídio espiritual.” O mundo pós-moderno que começava a se evidenciar,
mercantil e brutal, provocava nesse Barthes maduro uma tendência melancólica muito
diversa do ânimo revolucionário de sua juventude. Em seus últimos cursos, ao mesmo
tempo em que sua inteligência sempre aguda o encaminha a temas que se tornarão
candentes nas décadas seguintes – como o “viver junto”, ou a (im)possibilidade do
grande romance contemporâneo –, multiplicam-se as confidências pessoais relativas ao
luto e à nostalgia de tempos mais propícios à cultura e à arte.
A teoria barthesiana é, portanto, uma teoria mutante, que evolui e se transforma ao
longo dos anos. Por isso é impróprio chamar Barthes de crítico marxista sociológico ou
de semiólogo, porque essas denominações corresponderiam apenas a determinadas fases
de sua carreira. Embora sempre em transformação, o teórico Barthes conservou as lições
das fases abandonadas. Mesmo sendo cada vez mais avesso ao dogmatismo marxista, a
fundamentação principal de sua teoria será sempre ética e politicamente de esquerda. E,
apesar de ter abandonado os esquemas rígidos do estruturalismo, suas análises
aproveitarão sempre, numa primeira abordagem dos textos, os princípios ordenadores da
análise estrutural. Presenças constantes em seus textos, dos primeiros até os últimos, são
as palavras “história” e “crítica”, que ele tentará, incansavelmente, aliar às palavras
“corpo”, “desejo” e “prazer”. Esta última palavra talvez explique a adesão de sucessivas
gerações de leitores a seus textos, para além das modas teóricas e ideológicas. Porque o
prazer do texto, em Barthes, nunca é mero diletantismo, mas a experiência cognitiva dos
mais diversos objetos culturais, corporificada numa linguagem sensível, marcada pelo
humor e pelo afeto.

Leyla Perrone-Moisés é professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e


Ciências Humanas da USP, ensaísta e tradutora de várias obras de Barthes. Publicou,
entre outros livros, Altas literaturas (Companhia das Letras, 1998) e Inútil poesia
(Companhia das Letras, 2000).

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