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A narrativa literária e histórica na obra Os subterrâneos da liberdade, de

Jorge Amado

La narrativa literária y histórica en la obra Os subterrâneos da liberdade, de


Jorge Amado

Adriana de Jesus Souza

Centro de comunicação de Letras – Universidade Presbiteriana Mackenzie


Rua Piauí, 143 – 01241-001 – São Paulo – SP
adrianajsouza@ig.com.br

Resumo

Jorge Amado, em seu romance Os subterrâneos da liberdade (1954), conta


a história “não oficial” da época da ditadura Vargas. A transposição dos
elementos históricos para a narrativa ficcional mostra as semelhanças e
diferenças entre o discurso literário e o histórico. Os fatos históricos são
vivenciados por diferentes personagens de núcleos sociais distintos. A
profusão de vozes dessas personagens, no entanto, não traz uma pluralidade
de pontos de vista, mas a voz unívoca do próprio autor, que busca difundir
as idéias do Partido Comunista Brasileiro. No desenvolvimento do romance
percebe-se uma esquematização maniqueísta expressa na construção das
personagens e na própria construção da narrativa. Jorge Amado apresenta a
História da ditadura varguista, acrescentando elementos ficcionais e sua
perspectiva a respeito dos fatos históricos, que está marcada pela
intencionalidade ideológica do Partido e, assim, não escapa, em muitos
momentos, da propaganda partidária.
Palavras-chave: Romance histórico. Literatura brasileira. Jorge Amado.

Resumen

Jorge Amado en su novela Os subterrâneos da liberdade (1954) cuenta la


história 'no oficial' de la época de la dictadura Vargas. La transposición de
los elementos históricos para la narrativa ficcional juega con las semejanzas
y diferencias entre el discurso literario y el histórico. Los hechos históricos
son “vividos” por diferentes personajes de núcleos sociales distintos. La
profusión de voces de esos personajes, sin embargo, no conduce a una
pluralidad de puntos de vista, sino a la voz unívoca del propio autor, que
busca difundir las ideas del Partido Comunista Brasileño. En el desarrollo
de la novela se percibe un mecanismo maniqueo expreso en la construcción
de los personajes y en la propia construcción de la narrativa. Jorge Amado
presenta la Historia de la dictadura varguista, añadiendo elementos
ficcionales, su perspectiva a respecto de los hechos históricos está marcada
por la intencionalidad ideológica del Partido y, así, no escapa, en muchos
momentos, de la propaganda partidária.
Palabras claves: Novela histórica. Literatura brasileña. Jorge Amado.
A narrativa literária e histórica na obra Os subterrâneos da liberdade, de
Jorge Amado
O presente trabalho analisa a construção da narrativa literária e da narrativa
histórica configuradas no romance Os subterrâneos da liberdade, de Jorge Amado, o
qual foi publicado no ano de 1954, em três tomos com os seguintes subtítulos: Ásperos
tempos, Agonia da noite e A luz no túnel, sendo todos os volumes publicados pela
editora Livraria Martins.

As fusões existentes no romance dos elementos ficcionais e dos elementos


históricos são recorrentes durante toda a narrativa. Dada a importância das diferenças e
semelhanças das formas de narrar do discurso histórico e do literário, fez-se necessária
uma análise dos fatos históricos apresentados na obra, bem como de sua construção na
narrativa ficcional. No desenvolvimento do romance percebe-se que o escritor faz uma
nova escritura da História do Brasil da época da ditadura Vargas, e também narra “o
processo de crescimento político das massas no confronto com os donos do poder.”
(DUARTE, 1996, p.209). Dessa forma, verifica-se que a construção narrativa se baseia
na escritura ficcional da História do Brasil centrada nos aspectos políticos e econômicos
da época de 1937 a 1940, período em que o romance se desenvolve.

Segundo Eduardo de Assis Duarte, em sua obra Jorge Amado: romance em


tempo de utopia (1996), essa escritura ficcional “constitui o ponto extremo do
engajamento amadiano” (p.209), pois, como verificar-se-á neste estudo, o autor busca
elevar os valores partidários do Partido Comunista Brasileiro, denegrindo o sistema
capitalista vigente.

Partindo do conceito de engajamento de Jean Roche (1995), a obra Os


subterrâneos da liberdade (1954) apresenta um realismo socialista, o qual segue os
modelos indicados pelo partido, e mostra de forma maniqueísta os integrantes do
partido comunista, criando personagens “do bem”, que são representados na obra pelos
comunistas, que lutam contra o “mal”, representado pelos banqueiros, latifundiários e
pelas tradicionais famílias paulistanas que representavam a política do café com leite.

Devido a essa ideologia partidária muito explícita, o romance é considerado por


vários críticos brasileiros como “literatura de cunho panfletário”1, portanto não é uma
das obras do autor que possui um grande impacto junto ao público, e pode ser
considerada como a representação de um segundo momento do autor, que após esse
romance passou a escrever romances mais populares, como Gabriela, Cravo e Canela
(1958), que apresenta personagens do nordeste de forma pitoresca e sensual. Essa fase
do autor é a mais conhecida e referenciada, sendo que algumas dessas obras foram
adaptadas para a televisão e para o cinema.

Diferentemente das obras pós-1954, as personagens construídas no romance em


estudo são descritas por meio de seus ideais políticos e sociais. Isso revela os conceitos
principais que constituem a obra, um momento histórico de repressão política, realizada
pela ditadura Vargas, e os ideais políticos que o autor defendia.

1
Esse termo é utilizado por Alfredo Bosi, em História concisa da literatura brasileira (1975), para
designar os romances que professam uma ideologia partidária.
Neste trabalho, portanto, são estudados aspectos pouco conhecidos dos leitores,
isto é, uma fase em que o autor narra a história e a política da época de 1937 a 1940 por
meio da ficção; trazendo, assim, uma escritura da história “não-oficial” (DUARTE,
1996, p.211).

No desenvolvimento da narrativa verifica-se que os elementos ficcionais e


históricos estão intrinsecamente ligados. Essa fusão do ficcional e da história revela
uma fronteira entre o imaginado e o supostamente “real” que permeia toda a obra. Esse
elo entre o discurso histórico e o ficcional traz à tona uma problemática entre a narrativa
histórica e a literária. A fim de compreender essa fronteira entre os elementos ficcionais
e os elementos históricos que permeiam a obra, ou seja, as relações que se estabelecem
entre Literatura e História, buscou-se a compreensão dos estudos de Hayden White e
Walter Mignolo.

Hayden White em seu ensaio de 2001, “O texto histórico como artefato


literário”, define a narrativa histórica como
ficções verbais cujos conteúdos são tanto inventados quanto descobertos e
cujas formas têm mais em comum com os seus equivalentes na literatura do
que com os seus correspondentes nas ciências (p.98).

Essa definição de White traz à tona um dos principais eixos das relações entre
História e Literatura. White, inicialmente, apresenta em seu ensaio a reflexão de
Northrop Frye, que parte do entendimento de que o historiador trabalha indutivamente e
busca os fatos por meio de pesquisas e relatos da vida real, diferentemente do literato,
que narra a partir da sua imaginação. White complementa essa reflexão de Frye dizendo
que, mesmo com essa busca de fatos em lugares opostos, a estrutura da narrativa
histórica se assemelha à narrativa literária, pois ambas são concebidas a partir de uma
ordenação dos fatos e de uma seleção do tipo de enredo para que se tornem
compreensíveis ao leitor.

Dessa forma, White mostra que o conjunto de acontecimentos históricos


registrados e colhidos pelo historiador não podem, isoladamente, constituir uma
narrativa histórica, pois são apenas elementos da história. Segundo White (2001), esses
acontecimentos serão

[...] convertidos em estória pela supressão ou subordinação de alguns deles e


pelo realce de outros, por caracterização, repetição do motivo, variação do
tom e do ponto de vista, estratégias descritivas alternativas e assim por diante
– em suma, por todas as técnicas que normalmente se espera encontrar na
urdidura do enredo de um romance ou de uma peça [...] (p.100)

A estrutura narrativa histórica, portanto, é composta não só de acontecimentos


“reais”, mas também pela ordenação desses acontecimentos, ou seja, o mesmo conjunto
de eventos poderá servir como componente de uma história trágica ou romântica; isso
dependerá da escolha da estrutura de enredo que parecer melhor ao historiador para
ordenar tais eventos, como explana White (2001):
[...] a maioria das seqüências históricas pode ser contada de inúmeras
maneiras diferentes, de modo a fornecer interpretações diferentes daqueles
eventos e a dotá-los de sentidos diferentes [...] (p.101)
A partir desse conceito desenvolvido por White, este estudo analisa a construção
da História do Brasil da ditadura Vargas, de 1937 a 1940, na obra de Jorge Amado, na
qual o autor destaca na ficcionalidade do seu romance datas históricas e nomes reais,
relacionando, dessa forma, fatos históricos e fatos ficcionais.

A partir dessas definições de White, pode-se dizer que Jorge Amado não muda
os fatos históricos, porém constrói uma narrativa escolhendo os fatos, ordenando-os,
destacando e ocultando outros, ou seja, cria uma história dentro de uma convenção
ficcional. Como mostra White (2001):
[...] toda narrativa não é simplesmente um registro do que aconteceu na
transição de um estado de coisas para outro, mas uma redescrição progressiva
de conjuntos de eventos de maneira a desmantelar uma estrutura codificada
num modo verbal no começo, a fim de justificar uma recodificação dele num
outro modo final. Nisto consiste o “ponto médio” de todas as narrativas
(p.115).

Dessa forma, entende-se que há uma convenção ao longo dos anos que deu um
status à narrativa histórica de representação do “real”, portanto de caráter verídico,
enquanto a narrativa literária assumiu seu estado de representação do imaginado, do
ficcional. Essa convenção é muito bem exposta por Walter Mignolo em seu ensaio de
1993, Lógica das diferenças e política das semelhanças da Literatura que parece
História ou Antropologia, e vice-versa, no qual o autor busca uma definição de
normas historiográficas e literárias. A linguagem é empregada de acordo com
as normas historiográficas (NH), ou literárias (NL), sempre que todo membro
de uma comunidade especializada (científica ou artística) CmE, ao realizar
uma ação lingüística, espera que os outros membros de CmE, assim como
também todo membro da comunidade lingüística Cm que conhece a língua e
as normas, reaja de acordo com a NL ou a NH e aceite: que o escritor ou
historiador opera dentro do contexto x de historiografia, ou y de literatura, ou
se opõe a eles de uma maneira que é incompreensível, porque ao opor-se,
invoca-as (p.124).

Mignolo, portanto, relaciona a História e a Literatura, sendo que a linguagem


literária enquadra-se na convenção de ficcionalidade; entretanto, ao deparar com o
ensaio e a autobiografia, esse conceito de ficcionalidade dependerá da posição do
escritor, ou seja, se o escritor for um poeta, sua autobiografia estará comprometida no
mundo literário, enquanto uma autobiografia de um historiador ou de grandes políticos
se compromete naturalmente nas normas historiográficas; dessa forma, Mignolo analisa
que é preciso contemplar a heterogeneidade e a mobilidade dos níveis de conhecimento
e a variação que ocorre entre as convenções e as normas. Mignolo (1993) mostra:

[...] A convenção de ficcionalidade não é, ao que parece, uma condição


necessária da literatura, ao passo que a adequação à convenção de
veracidade, ao que parece, é condição necessária para o discurso
historiográfico (p.125).

Mignolo, portanto, problematiza a questão da separação entre a veracidade e a


ficção, ao perceber que em uma narrativa literária poderão existir dois tipos de
enunciados: o literário e o histórico. Neste estudo sobre a obra de Jorge Amado, é
possível verificar essa inserção dos elementos “reais” - históricos e geográficos - na
narrativa ficcional. Para solucionar esse problema, Mignolo apresenta a abordagem de
Parson (1980), que distinguiu a inserção de elementos históricos dentro da narrativa
literária da seguinte forma: “[...] entidades nativas e entidades imigrantes”. Mignolo
segue explicando que a entidade imigrante, segundo Parson (1980), seria uma entidade
já existente, cuja existência já era aceita antes que o romance fosse escrito, transportada
para um mundo ficcional, no qual ela será aceita, ao mesmo tempo, como uma
personagem de ficção e uma pessoa histórica. A entidade nativa, portanto, é aquela que
terá sua “existência” somente no âmbito da narrativa literária, ou seja, aquela que o
autor criou.

A partir dessas definições, percebe-se que Jorge Amado trabalhou essa


transposição de personagens reais para seu romance, transformando-os em entidades
imigrantes, segundo Parson (1980), e que passam a ter identidade histórica e ficcional.
Mignolo (1993) explana em seu ensaio, sobre essa composição do ficcional e do
histórico, da seguinte forma:
[...] A relação, portanto, entre o ficcional e a verdade não se estabelece
necessariamente pela negativa (porque o ficcional não implica a mentira),
mas pela própria natureza das convenções. O enquadramento na convenção
de ficcionalidade apresenta as regras do jogo de forma aberta e, portanto,
isenta das condições impostas pela convenção da veracidade. No entanto,
quando no romance (que implica a convenção da ficcionalidade) imita-se o
discurso antropológico ou historiográfico (que implica a convenção da
veracidade), estamos diante de um duplo discurso: o ficcionalmente
verdadeiro do autor (porque, ao enquadrar-se na convenção de ficcionalidade,
não mente) e o verdadeiramente ficcional do discurso historiográfico ou
antropológico imitado (porque, ao invocar a convenção de veracidade, está
exposto ao erro e há a possibilidade de mentira) [...] (p.132-133)

Mignolo, dessa forma, mostra que a questão da “verdade” na ficção é


apresentada quando se imita um discurso que está enquadrado na convenção de
veracidade e que as linhas que separam a História e a Literatura estão muito próximas,
sendo que, em alguns momentos, chegam a coincidir, como nesta obra de Jorge Amado.

A fim de demonstrar brevemente como a perspectiva teórica, descrita até então,


aparece nas páginas de Os subterrâneos da liberdade (1954), destacam-se a seguir
alguns exemplos da construção narrativa.

O primeiro tomo apresenta uma narração que se desenvolve nos anos de 1937 e
nos primeiros meses de 1938. São narrados os acontecimentos anteriores e posteriores
ao golpe de Estado de Getúlio Vargas. No segundo tomo prossegue a seqüência dos
fatos políticos, tais como o golpe dos políticos armandistas e integralistas contra o
governo de Getúlio e a prisão dos comunistas, abrangendo, dessa forma, os anos de
1938 e 39. No último tomo são narradas as torturas e prisões dos comunistas, bem como
dos julgamentos destes e de Luis Carlos Prestes, sendo esses momentos decorridos nos
anos de 1939 e 40. Nos três tomos aparece a seguinte epígrafe camoniana

Metida tenho a mão na consciência,


e não falo senão verdades puras
que me ensinou a viva experiência
Segundo Duarte (1996), Jorge Amado narra os fatos ocorridos na ditadura
varguista buscando em seu romance desmoralizar o governo de Getúlio, que persegue o
Partido Comunista, prende Prestes e tortura os oposicionistas, sendo o próprio escritor
vítima da ditadura de Vargas. Devido a esses fatores, o romance apresenta um aspecto
de testemunho histórico e a epígrafe camoniana enfatiza essa característica ao se
relacionar com o falar “verdades puras” que foram ensinadas pela “viva experiência”.

Dessa forma, nota-se que ao retomar a epígrafe camoniana e o tempo histórico


em seu romance, conforme disserta Duarte (1996), Jorge Amado tenta deixar clara sua
intenção de construir um panorama histórico dos primeiros anos do Estado Novo, em
que destaca a interferência do imperialismo na política e na economia do país, o
autoritarismo de Vargas e a luta do proletariado. Deve-se ressaltar, portanto, que essa
escritura da História, apesar de ficcional possui um aspecto de denúncia e, conforme
Duarte (1996), de uma visão partidária e panfletária do autor.

Para que se compreenda a estrutura narrativa, pode-se dizer que o romance é


constituído de duas partes: um macrocosmo histórico que revela uma perspectiva
histórica e um microcosmo ficcional que possui referentes extratextuais, porém de uma
forma mais metafórica. Esse microcosmo ficcional é criado a partir da memória do
autor e de sua imaginação, que cria personagens a partir do imaginário de pessoas que
viviam na época.

A narrativa ficcional se apresenta a partir dos diálogos das personagens e de suas


recordações, as quais remetem ao momento histórico de 1937. O leitor é inserido,
primeiramente, no microcosmo literário, no qual o autor tem o compromisso de tornar o
momento narrado coincidente aos acontecimentos que serão apresentados
posteriormente, que são os fatos históricos; assim, o narrador cria uma linha imaginária
que segue uma seqüência de fatos, sendo que o microcosmo literário dialoga
constantemente com a história. Esse desenvolvimento da narrativa gera em alguns
momentos uma fusão entre os elementos ficcionais e os históricos. Essa junção entre as
narrativas traz ao leitor mais desprovido de conhecimentos históricos, uma dificuldade
em separar o imaginado do “real”.

Pode-se dizer que o cenário da narração ficcional é a História, bem como alguns
fatos que envolvem as personagens. O ficcional se desenvolve na construção das
personagens, nas ações e diálogos das mesmas, sendo alguns fatos também imaginados.
A partir dessa criação, percebem-se as estruturas narrativas criadas, que buscam
produzir um efeito de sentido de “verdade”.

No desenvolvimento da narrativa nota-se a construção de três núcleos distintos


de personagens: o núcleo dos capitalistas, representado pelos políticos armandistas e
integralistas, pelos banqueiros, latifundiários e empresários; o núcleo dos comunistas,
personagens que aceitam o ideário do Partido Comunista e militantes e, por fim, o
núcleo das personagens que representam os a-partidários, que não possuem
conscientização política, os imigrantes, os operários, os camponeses e os caboclos.

A partir dessa divisão das personagens em três núcleos distintos, que


representam classes sociais e políticas, percebe-se que a construção histórica faz-se por
meio das escolhas do autor, o qual cria o enredo da narrativa por meio de um esquema.
Essa esquematização apresenta-se na descrição constante dos três núcleos vivendo o
mesmo momento histórico, mas em posições sociais e políticas diferentes, portanto
tendo visões e reações distintas em relação aos acontecimentos. Dessa forma, o autor
constrói o fato histórico pelo discurso literário, sendo que essas diferentes perspectivas
podem revelar que nenhum discurso apresenta uma verdade factual, mas apenas um
ponto de vista em relação ao fato ocorrido, como nessa explicitação da professora Ana
Lúcia Trevisan Pelegrino em sua tese de doutorado O espelho fragmentado de Terra
Nostra: Literatura e História na narrativa de Carlos Fuentes (2004), que mostra como a
realidade depende da perspectiva de quem a percebe e da maneira que a constrói
discursivamente:
(...) Temos uma mesma história interpretada dezenas de vezes. É uma
realidade vista, vivida e apresentada de forma plural. A afirmação de que a
realidade não é linear pode justificar-se quando percebemos a realidade de
forma fragmentada, ou seja, através das possibilidades de percepção dos
diferentes sujeitos e seus discursos correspondentes, elaborados distintamente
e traduzindo realidades paralelas. O real seria, para cada um, algo distinto do
que para é o outro; não apenas como interpretação mas também como
experiência concreta em si mesma. (p.86-87)

Nota-se, portanto, que o autor busca em sua narrativa mostrar diversos olhares
sobre um mesmo fato histórico, porém, essas diferentes perspectivas passam
primeiramente pelo olhar do autor, o qual busca reafirmar na obra os ideais do Partido
Comunista Brasileiro.

No momento em que busca apresentar uma visão exterior dos acontecimentos, o


narrador mostra cada personagem diante do mesmo fato como se possuísse uma câmera
cinematográfica que focaliza cada ação em um mesmo instante. A partir dessa técnica, o
leitor é levado aos diversos espaços, aos momentos históricos e aos imaginados, que
seguem uma mesma linha temporal, a histórica. Dessa forma, o panorama histórico
aparenta ser construído por uma pluralidade de vozes; no entanto, essa estruturação
esquematizada da narrativa revela um paradoxo dentro da obra. Ao apresentar as
diferentes visões de cada núcleo durante o momento histórico, o autor repete a estrutura
e as ações das personagens, que seguem a seguinte forma: o núcleo capitalista aparece
manipulando o governo e a polícia, perseguindo o Partido Comunista e oprimindo os
operários; o núcleo comunista combate esses, sofrendo privações econômicas e sendo
torturados. Ao mesmo tempo, busca conscientizar o núcleo a-partidário de seus direitos.
Dessa forma, percebe-se que as visões não se diferenciam, seguem um esquema de bons
e maus, trazendo, portanto, uma univocidade na narração, que apresenta uma forte
inclinação ideológica e demonstra o engajamento do autor. A narrativa, assim, mostra
que Jorge Amado teve a intenção de narrar a História “pelo avesso”, mostrando os
bastidores e contando a história não-oficial, mas ao mesmo tempo fez da narrativa um
meio de difundir a mensagem comunista (DUARTE, 1996). Essa escolha do escritor, no
entanto, transformou a pluralidade de vozes das personagens em uma única, a do
partido.

O romance, portanto, constrói a História de 1930 a 1940 por meio de uma


perspectiva política e ideológica, que revela um panorama político e social da época, o
que nem sempre é uma prioridade do discurso histórico.
Observando atentamente a não linearidade da “verdade”, percebe-se que em um
mesmo fato existem várias “verdades” ou, simplesmente, não há “verdades” e sim
perspectivas diferentes, que durante a narração em um discurso histórico ou literário
podem revelar ou obscurecer alguns fatos.

História e Literatura, em Os subterrâneos da liberdade (1954) , atravessam os


limites das convenções, explicitadas por Mignolo, revelando as semelhanças entre a
ficção e a história, pois ambas necessitam das escolhas para narrarem os fatos. Essa
junção não diminui ou empobrece esses dois discursos, ao contrário, colaboram para
que o leitor possa obter várias “versões” de um mesmo fato histórico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMADO, Jorge. Os subterrâneos da liberdade: os ásperos tempos. Tomo I. São Paulo:


Livraria Martins, 1954.

_____________. Os subterrâneos da liberdade: agonia da noite. Tomo II. São Paulo:


Livraria Martins, 1954.

____________. Os subterrâneos da liberdade: a luz no túnel. Tomo III. São Paulo:


Livraria Martins, 1954.

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Jorge Amado: romance em tempo de utopia. Rio de Janeiro: Record, 1996. p.209-248.

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parece história ou antropologia e vice-versa. In: Chiappini, L.; Aguiar, F. (org.).
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do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. Tradução de Alípio Correia de Franca
Neto. 2.ed. São Paulo: Edusp, 2001. p. 97-116.

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