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QUESTÃO SOCIAL, RESPONSABILIDADE SOCIAL E DESENVOLVIMENTO

SUSTENTAVEL: UMA NOVA ABORDAGEM

1
Heric Santos Hossoé

Resumo

O presente estudo se propõe a compreender as relações explícitas e


implícitas entre o Estado neoliberal, o Terceiro Setor, e a sociedade
civil, no enfrentamento da questão social, tendo como objeto central
de estudo a mediação dos conceitos de responsabilidade social e
desenvolvimento sustentável, bem como sua função na conjuntura
social atual. A pertinência e a relevância da difusão do conceito de
responsabilidade social é, portanto, estudada com base na
comparação entre os pressupostos formadores do seu conceito e as
consequências reais resultantes da sua aplicação no corpo social
para o enfrentamento da questão social.

Palavras-chave: Questão Social; Desenvolvimento Sustentável;


Responsabilidade Social; Terceiro Setor; Estado;

Abstract

This study intends to understand the explicit and implicit relations


between the neoliberal State, the Third Sector, and civil society, in the
face of the social question, having as central object of study the
mediation of the concepts of social responsibility and sustainable
development, as well as As its function in the current social context.
The pertinence and relevance of the diffusion of the concept of social
responsibility is therefore studied based on the comparison between
the presuppositions forming its concept and the real consequences
resulting from its application in the social body to face the social
question.

Keywords: Social issues; Sustainable development; Social


responsability; Third sector; State;

1
Doutorando em Políticas Públicas pela UFMA, trabalha na Universidade Federal do Maranhão (UFMA),
Email: hhossoe@gmail.com
1 – INTRODUÇÃO

Diante do agravamento da questão social impressa na crescente degradação do


valor econômico-social do trabalho, duramente comprovada pela proliferação do
subemprego, do mercado de trabalho informal e do exército industrial de reserva, a
solidariedade é apontada por muitos, tanto nos meios acadêmicos, como principalmente fora
deles, como a solução emergencial mais adequada.
O modelo capitalista, nesse contexto, seria o alvo principal se aplicada a lógica
formal à previsão da reação popular mais acertada. Curiosamente, a reação popular mais
proeminente é uma ilógica apatia, e uma consequente reprodução do aprofundamento da
questão social. Em lugar da condenação da opinião pública ao capital, surge, fortemente
difundido nos meios de comunicação de massa, um termo que parece condensar a tão
esperada solidariedade como solução emergencial: A responsabilidade social. O termo traz
em sua essência uma convocação aos capitalistas, mas que inclui também os trabalhadores
e seus aspirantes, a se unirem para a formação de uma frente de solidariedade para o
combate dos problemas sociais e para o preenchimento do espaço deixado pelo Estado na
esteira de sua reestruturação em direção a sua redução ao mínimo. Com a difusão do
conceito no mercado consumidor a responsabilidade social ganha então status de fator de
decisão para a preferência de uma marca em detrimento de outra.
Nesse cenário, a responsabilidade social vem se consolidando como uma
eficiente ferramenta na ampliação da participação da iniciativa privada em atividades
relacionadas ao terceiro setor. No entanto, essa participação parece não conter apenas o
componente solidariedade, existe muito mais substância capitalista do que a aparência, com
efeitos diversos sobre a reprodução da questão social no Brasil. Esse estudo se propõe a
fazer emergir todos os novos e difusos laços entre o público, o privado, o terceiro setor, a
questão social, e os conceitos de responsabilidade social, este como eixo principal da
análise, apontando a relevância do seu papel de mediador dos interesses do capital.

2 – A REESTRUTURAÇÃO DO CAPITAL, A AUSÊNCIA ESTATAL E A AFIRMAÇÃO DO


TERCEIRO SETOR

A questão social, enquanto efeito do antagonismo inerente à relação capital x


trabalho, sofre diretamente todos os reflexos proporcionados pela reestruturação do capital.
As condições históricas que ao mesmo tempo propiciam o desenvolvimento do Terceiro
Setor, propiciam também o agravamento da questão social e uma curiosa “inversão social”
onde a sociedade civil ocupa a lacuna social estatal, representada pela partilha dos
problemas sociais entre os setores o que pode-se entender por responsabilidade social. A
reformulação dessas relações entre os setores e a questão social reside no processo de
globalização, mais precisamente na discrepância representada pela “globalização” dos
problemas e não das riquezas.
Apenas um aprofundamento na observação da nova condição história
estruturante do capital pode ser capaz de fornecer a real posição de cada setor no
enfrentamento da questão social e a função essencial de cada ferramenta conceitual no
contexto da reestruturação capitalista. Cada categoria identificada no estudo deixará
transparecer certamente sua particularidade e sua multiplicidade encerradas na complexa
inter-relação entre todas inerente a todas essas categorias. Mas antes de qualquer análise é
necessário, em primeiro lugar, fixar as particularidades atuais que delimitam os conceitos
referentes às categorias a serem trabalhadas, a começar por uma breve contextualização do
Estado atual.

2.1 - O Estado, o neoliberalismo e a legitimação do Terceiro Setor

Após o ápice do modelo de bem-estar social no final dos anos 60, alcançado
pelos países de capitalismo avançado, entendido também pelo conceito de “estado
máximo”, iniciou-se um recuo da participação do Estado na economia com o objetivo de
abrir mercado para a expansão do capitalismo, diminuir o déficit público, e
consequentemente uma diminuição da cobertura social nas garantias dos direitos adquiridos
pelos trabalhadores. Essa expansão do capital, condensada no termo globalização, passou
a impor uma certa postura padronizada aos países envolvidos em seu processo. A essa
postura pode-se atribuir uma série de pressupostos conhecidos como neoliberais, que
tornaram-se publicamente integrados às agendas nacionais de todos os países, como
preceitua Carlos Montaño (2002):

Em novembro de 1989 realizou-se uma reunião entre os organismos de


financiamento internacional de Bretton Woods (FMI, BID, Banco Mundial),
funcionários do governo americano e economistas latino-americanos, para avaliar as
reformas econômicas da América Latina, o que ficou conhecido como Consenso de
Washington. As recomendações desta reunião abarcaram dez áreas: disciplina
fiscal, priorização dos gastos públicos, reforma tributária, liberalização financeira,
regime cambial, liberalização comercial, investimento direto estrangeiro,
privatização, desregulação e propriedade intelectual. (Montaño, São Paulo, 2002,
29).
As diretrizes expostas no Consenso de Washington passaram a ser
imediatamente incorporadas às ações da maioria dos Estados capitalistas constituindo uma
verdadeira reforma do Estado que de acordo com Carlos Montaño (1999, p. 29):

Está articulada com o projeto de liberar, desimpedir e desregulamentar a


acumulação do capital, retirando a legitimação sistêmica e o controle social da
“lógica democrática” e passando para a “lógica da concorrência” do mercado (cf.
Montaño, 1999). Sendo assim, concebe-se como parte da reforma (“flexibilização” e
precarização) das bases de regulação das relações sociais – políticas e econômicas
-, portanto, articulada à reestruturação produtiva e ao combate ao trabalho, no seio
da reestruturação do capital. É, assim, uma verdadeira contra-reforma, operada pela
hegemonia neoliberal, que procura reverter as reformas desenvolvidas
historicamente por pressão e lutas sociais e dos trabalhadores.

A orientação neoliberal é justificada, pelos seus criadores, como um mal


necessário para enfrentar uma inevitável globalização da economia, e que, portanto, é a
chave para que os países possam ingressar no mercado globalizado e participar do
processo de mundialização do capital em franca expansão. No entanto, é um ponto
interessante que o modelo neoliberal, é sim implantado por todos os países capitalistas, em
especial os ocidentais, mas com intensidades diferentes. Os países de capitalismo
avançado incorporaram alguns pressupostos e outros não, e quando o fizeram foi com
certas reservas para não prejudicar demasiadamente os direitos e garantias sociais
conquistadas pela sua classe trabalhadora. Já nos países em desenvolvimento, como é o
caso do Brasil, os pressupostos ditados pelo Consenso de Washington foram admitidos
rapidamente e praticamente sem reservas, agravando e aprofundando, dessa forma, a
questão social.
E como expõe Carlos Montaño, “na verdade, a função das “parcerias” entre o
Estado e as ONGs não é a de “compensar”, mas a de encobrir, a de gerar a aceitação da
população a um processo que, como vimos, tem clara participação na estratégia atual de
reestruturação do capital. É uma função ideológica”.
Essa ideia é legitimada através do instrumento representado pelo conceito de
responsabilidade social, que deve ser compartilhada por todos os setores da sociedade,
designando que todos são vítima do mesmo problema e que a união dos setores para o
enfrentamento do problema é a mais adequada postura na conjuntura histórica atual.
A sociedade civil é, dessa forma, levada a se responsabilizar pelas deficiências
do Estado, eximindo este, do papel de implementador de políticas de solidariedade, e então
há nesse momento, uma troca da solidariedade universal pela solidariedade individual. Essa
troca fetichizada pelo incentivo dado ao Terceiro Setor pelo Estado, e isso é uma
característica marcante das diretrizes neoliberais, para o eufemismo do agravamento da
condição social enfrentada pelas populações afetadas por essas determinações.
Um outro “benefício” agregado à expansão do Terceiro Setor, defendido pelas
doutrinas neoliberais, é o da geração de emprego. Com a profissionalização do Terceiro
Setor, o crescimento da demanda cada vez maior, tanto de profissionais especializados
quanto não especializados para atuarem nesse setor, abriu um espaço inegável de
oportunidades aos desempregados, com a geração de um considerável número de postos
de trabalho. Isso é, certamente, extremamente positivo dentro da conjuntura econômica
atual com altos níveis de desemprego, e é, portanto, um forte argumento neoliberal
largamente difundido. Por outro lado, o efeito negativo, ocultado pelo argumento neoliberal,
é que esses postos de trabalho gerados pelo Terceiro Setor são ainda mais suscetíveis às
penalidades residuais do modelo neoliberal do que os postos de trabalho convencionais na
iniciativa privada, dada a instabilidade financeira e sazonalidade de atuação das
organizações do Terceiro Setor.
Dessa forma, os postos de trabalho gerados por essas organizações são, em
geral, de baixa remuneração, sazonais, e instáveis, reproduzindo, desse modo, a debilidade
do emprego que é uma das principais causas do agravamento da questão social, a qual o
Terceiro Setor conceitualmente se destina a enfrentar.
Conforme leciona Carlos Montaño (1999):

Efetivamente, afirma-se que o “terceiro setor” emprega grande volume de


trabalhadores. Com isso, as ONGs, as Oscips, mais do que organizações de ajuda à
comunidade, Têm se transformado em organização de “auto-ajuda”, por quanto tem
uma utilidade fundamental voltada para seus membros: ser uma fonte de emprego.”
Esclarecendo o efeito oculto na geração desse volume de postos de trabalho,
continua Montaño: “O efeito direto disso é a diminuição dos impactos do
desemprego operado particularmente na indústria. Mais ainda, o encobrimento das
reais dimensões desse processo de demissão em cascata, o que tenderia a
conformar maior convivência com estes índices de desemprego, relativizados pela
absorção de trabalho no “terceiro setor” como estratégia de sobrevivência do
trabalhador desempregado, apenas que este fato é instrumentalizado pelo capital
para aplainar e apaziguar os ânimos, diminuir insatisfações, reduzir a conflitividade.
Coincidentemente, para Antunes, ‘o “Terceiro Setor” não é uma alternativa efetiva e
duradoura ao mercado de trabalho capitalista, mas cumpre um papel de
funcionalidade ao incorporar parcelas de trabalhadores desempregados pelo capital.
(Montaño, São Paulo, 1999, 113).

Dessa forma, fica explícita a motivação que move as atenções do capitalismo


em direção ao fomento do “Terceiro Setor”, seja pelo Estado, seja pela iniciativa privada,
sendo a sociedade civil, nesse contexto, inoculada pela difusão da nova postura de
responsabilidade social do capital e permeada pela concepção de orientação neoliberal
dessa postura, reajustando a conformidade da população frente ao agravamento da questão
social.
Para um entendimento mais concreto dessa motivação é indispensável uma
contextualização mais relacional entre o Terceiro Setor e os dois outros Setores, bem como
a explicitação da dualidade de sua essência.
2.2 - Terceiro Setor: desenvolvimentos e envolvimentos históricos

Não é recente a participação de empresas e capitalistas nos problemas sociais,


afinal a filantropia, como uma forma inicial de atuação social, existe desde que o mundo
passou a conhecer o capitalismo como modo de produção, recente, pode ser considerada, a
profissionalização dessa participação. Surgida na primeira metade do século XX, nos
Estados Unidos, a definição do que hoje se conhece como Terceiro Setor, passou a ser
atribuída às organizações privadas, sem fins lucrativos, voltadas ao atendimento de
demandas sociais, através da produção de bens e serviços com caráter público, e que
diferencia-se do primeiro setor, o Estado, por ser privado, e do segundo setor, Empresas
Privadas, por não ter fins lucrativos. Mas o termo terceiro setor só veio a ser difundido a
partir dos anos 70 com o início da reestruturação capitalista para o modelo neoliberal.
Segundo Carlos Montaño (2002) “Tão incerto quanto a origem é sua evolução
conceitual. Se o termo foi cunhado nos EUA na transição dos anos 70 para os anos 80, ele
vem diretamente ligado a outro conceito: a filantropia” Ainda segundo Carlos Montaño aput
(Acotto e Manzur, 2000) “definiram-se, como organizações do “terceiro setor”, aquelas que
são: provadas, não-governamentais, sem fins lucrativos, autogovernadas, de associação
voluntária.”
Acrescenta-se a origem do termo a concepção de Leilah Landim “ele tem
nacionalidade clara. É de procedência norte-americana, contexto onde associativismo e
voluntariado fazem parte de uma cultura política e cívica baseada no individualismo liberal”
(Landim, 1999)
Marcado por uma relativa importância no início do século XX, causada
principalmente pelo modelo liberal do estado vigente, onde a instituição do “Estado Mínimo”
fornecia espaço para o crescimento, o Terceiro Setor, passou a ser um apoio necessário às
ausências do Estado em demandas sociais. Já com a mudança para o modelo do Welfare
State, ou estado de bem-estar social, a partir dos anos 30, o Terceiro Setor ficou afastado
da mídia, sendo retomado com força máxima a partir do final dos anos 70, com a
implementação do neoliberalismo, onde ganhou não só espaço nos compêndios
acadêmicos, mas também na mídia de massa.
Já a profissionalização do Terceiro Setor, observada a partir do final dos anos 70
é consequência de toda uma conjuntura histórica onde a reorientação dada ao capitalismo
pelas doutrinas neoliberais, instituiu a diminuição da participação do estado e uma
consequente necessidade de uma justificativa social para tanto, com a finalidade de
amortecer o impacto social negativo que inevitavelmente sofreriam o capitalismo e o Estado.
E essa justificativa veio na forma do Terceiro Setor, incentivado pelo Estado, através de
benefícios tributários para as organizações caracterizadas como tal e as empresas que as
apoiam, e incentivado pela iniciativa privada que, pelos benefícios tributários e publicitários
resultantes da associação com organizações do Terceiro Setor, passaram a canalizar parte
considerável de seus recursos para o apoio a essas organizações. Mas a diferença, dessa
vez, que impulsionou de fato a iniciativa privada a apoiar sistematicamente o Terceiro Setor,
fica por conta de um detalhe sutil, mas de envergadura global: a incorporação do conceito
de responsabilidade social como vanguarda da gestão empresarial.
Esse conceito passou a ser implantado por diversas empresas e começou a
ganhar espaço na mídia de forma a estabelecer uma dicotomia entre as empresas, entre as
que possuem e as que não possuem a responsabilidade social na pauta de seus
planejamentos estratégicos.

3 – RESPONSABILIDADE SOCIAL: A INDIVIDUALIZAÇÃO DA QUESTÃO SOCIAL

A popularização da incorporação do conceito de responsabilidade social no topo


da pauta dos planejamentos estratégicos da vanguarda da gestão empresarial é relacionada
com a difusão do conceito e o incentivo estatal e privado dado à profissionalização do
Terceiro Setor. À primeira vista essa relação entre os sujeitos envolvidos se apresenta como
casual, dada a independência entre os sujeitos tal como são tratados nos meios de
comunicação de massa, o que denota uma percepção de que o surgimento desse conceito
é fruto de uma consciência social maior por parte das empresas e da sociedade civil,
atribuindo um caráter extremamente favorável e enaltecedor da imagem de todos aqueles
que de alguma forma estejam engajados às causas sociais sob a bandeira da
responsabilidade social.
Está subtendido, nesse novo contexto, que as empresas privadas aliadas ao
indivíduo tem que fazer a sua parte para o enfrentamento da questão social, e para isso,
longe de uma determinação em torno da medida realmente necessária da participação de
cada um para a solução total do problema, há uma concepção difusa em que para participar
basta estar associado e contribuir com alguma organização do Terceiro Setor ou mesmo
desenvolver alguma ação de solidariedade para se desonerar do encargo social demandado
pelo conceito de responsabilidade social. Mas essa complexa relação bem como as reais
causas e consequências da massificação do conceito de responsabilidade social e
desenvolvimento sustentável não se encerram nessa afirmação, há um conjunto muito
específico de relações e motivações que irão emergir da exploração mais profunda de tais
conceitos.
3.1 - Responsabilidade Social e Desenvolvimento Sustentável: essência ou aparência?

Seguindo um padrão capitalista de auto ajuste às expectativas e às tendências


de consumo do mercado, as empresas redirecionam sua estratégia de atuação no mercado
a cada nova possibilidade mercadológica que possa ampliar a aceitação de seus produtos.
E a indicação de um novo fator de decisão de compra, o da ‘responsabilidade
social”, fica claro quando, segundo os resultados da pesquisa “Responsabilidade social e
ética da administração” (Robbins e Coulter, 1998), realizada com aproximadamente 2 mil
consumidores norte-americanos, mais de 65% dos entrevistados (dois terços) “(...)
afirmaram que trocariam de marca para um fabricante que apoiasse uma causa em que
acreditassem, enquanto um terço [cerca de 35%] era mais influenciado pelo ativismo social
de uma empresa do que por seus anúncios”. A grande importância atribuída à
responsabilidade social e ao desenvolvimento sustentável na vanguarda estratégica da
gestão empresarial não é, portanto, fruto apenas de uma suposta conscientização social e
ambiental, mas sim da impossibilidade de expansão mercadológica diante da não
adequação da estrutura das empresas à esses novos conceitos. O retorno social é, dessa
forma, o grande prêmio mercadológico impulsionador da nova postura social adotada pelas
empresas.
Com a explicitação do retorno social obtido pelas empresas, fica claro que o
benefício publicitário de uma imagem empresarial fortemente aliada à responsabilidade
social é o objetivo central de toda a estratégia das gestões orientadas pelos conceitos do
marketing social. A valorização da imagem perante os concorrentes é o benefício obtido que
tem o propósito eficaz de gerar o aumento das vendas e do faturamento, que dessa forma, é
a grande força motivacional que impõe a nova postura social das empresas, e não apenas o
compromisso social como aparenta. Não que essas empresas não realizem ações sociais
ou não beneficiem a sociedade, o que de fato acontece, mas sim que a postura da
responsabilidade social é antes mais um instrumento capitalista do que pura participação
voluntária nos problemas sociais.
Há, portanto, uma dualidade na essência do envolvimento das empresas com
problemas sociais que determina por um lado, o da aparência, a “participação social”, e pelo
outro o da essência, a “promoção social”. Ainda associado à difusão do conceito de
responsabilidade social encontra-se não só a participação da iniciativa privada, como
também a sugestão da participação da sociedade civil na composição conjunta de um “front”
de ajuda ao Estado no enfrentamento dos problemas sociais. Nesse aspecto podemos
identificar um efeito resultante da aliança entre os setores, na qual sua elevada importância
emana do seu desconhecimento por parte da maioria da população, que é a “atenuação
aparente” da contradição capital x trabalho presente na questão social. Vale reforçar que
essa “atenuação aparente” da questão social se dá pelo desvio da atenção da população do
foco causador dos problemas sociais ao partilhar a responsabilidade social entre todos os
setores da sociedade, tornando tanto a causa quanto a solução dos problemas sociais
difusos no corpo social.
Para melhor discutir esse efeito faz-se necessário a definição das balizas da
questão social que, conceitualmente é tão complexa quanto sua essência no corpo social.

3.2 - Questão Social: questão de Marketing?

Há uma certa indefinição devido à pluralidade de conceitos para o termo questão


social, bem como redefinições acerca do que seria uma nova questão social, no entanto, a
enumeração da totalidade dessas definições excederia o propósito do presente trabalho.
Dessa forma torna-se mais adequada a exposição de uma concepção mais genérica e
difundida que pode assim ser representada por Raul Carvalho e Marilda Iamamoto (1983):

A questão social não é senão as expressões do processo de formação e


desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da
sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e
do Estado. É a manifestação, no cotidiano da vida social, da contradição entre o
proletariado e a burguesia, a qual passa a exigir outros tipos de intervenção mais
além da caridade e repressão. (Carvalho e Iamamoto, São Paulo, 1983, p. 77).

Já para Robert Castel (1997), a questão social é assim caracterizada:

Como uma aporia fundamental, na qual uma sociedade experimenta o enigma da


sua coesão e trata de conjurar o risco de sua fratura. É um desafio que interroga,
põe de novo em questão a capacidade de uma sociedade (o que em termos políticos
se denomina uma nação) para existir como um conjunto vinculado por relações de
interdependência”. Assim, por exemplo, a questão social na primeira metade do
século XIX na Europa emanava da pobreza da classe trabalhadora, “populações
flutuantes, miseráveis, não socializadas, cortadas de seus vínculos rurais e que
ameaçam a ordem social, seja pela violência revolucionária, seja como uma
gangrena. (Castel, São Paulo, 1997, p. 165).

Definindo, portanto, que a falta de coesão social era o espaço preenchido pela
questão social presente na contradição da relação entre capital e trabalho, oriunda da
expansão do capitalismo. Entretanto, no contexto atual, a perca da centralidade do trabalho
no eixo da questão social faz surgir uma nova corrente teórica que coloca que essa
reconfiguração social representaria uma nova questão social, conforme afirma Robert Castel
(1997):

A nova questão social hoje parece ser o questionamento desta função integradora
do trabalho na sociedade”. Uma desmontagem desse sistema de proteção e
garantias que foram vinculadas ao emprego e uma desestabilização,
primordialmente na ordem do trabalho, que repercute como uma espécie de
choques em diferentes setores da vida social para além do mundo do trabalho
propriamente dito. (Castel, São Paulo, 1997, p. 165-166).

A origem desse processo é a flexibilização do trabalho, que em decorrência da


abertura dos mercados nacionais e a expansão do processo de mundialização do capital,
vem determinando o caráter volátil do emprego, que é alocado pelo capital na região do
mundo onde representa menor custo, e maior precarização do trabalho. Isso acarreta na
redução da oferta de emprego, da remuneração e das organizações sindicais, gerando uma
inevitável perda de garantias e direitos sociais lentamente conquistados pelos trabalhadores
nas décadas precedentes. Dessa forma, o emprego da maneira como é conhecido, com
estabilidade e proteções sociais, está desaparecendo em detrimento da flexibilidade do
mercado de trabalho.
É certo que isso é um fenômeno global, decorrente da mundialização do capital,
mas é importante observar que o processo de flexibilização do trabalho e suas
consequências socialmente degradantes podem ser observadas gravemente incorporadas
ao contexto social mais rapidamente e com maior intensidade em países em
desenvolvimento, a exemplo do Brasil, por não terem ainda uma solidificação das garantias
sociais conquistadas pelos trabalhadores e uma economia mais vulnerável.
A questão social pode assim ser entendida como uma categoria que encerra em
si a contradição inerente ao capitalismo presente na distribuição social desigual entre a
produção e a apropriação da riqueza gerada, condensando no antagonismo interno à
relação capital x trabalho a essência reprodutora dos problemas sociais característica do
modo capitalista de produção. Tendo a questão social acompanhado a dinâmica das
transformações do capitalismo, podemos notar que perde força a luta de classes uma vez
que nem o mínimo da estabilidade do emprego pode ser garantida no contexto atual onde a
luta pelas garantias sociais perde espaço para a luta pela manutenção do posto no mercado
de trabalho. Por isso a perda da centralidade do trabalho na atual questão social é
resultante da reestruturação do capital em busca de maior produtividade e lucratividade, o
que por si só deveria motivar uma forte reação contrária da sociedade civil em direção à
iniciativa privada e ao Estado que, por sua vez, reforça a situação incorporando os
pressupostos neoliberais.
Como explicar, dessa forma, a falta de expressão de movimentos contrários a
essa nova ordem e a apatia da sociedade civil exemplificada pela individualização
representada pelo conformismo da luta apenas pela manutenção do emprego? Como
explicar a já citada “atenuação aparente” da questão social? A resposta para esses
questionamentos encontra-se na difusão, pelos meios de comunicação de massa, da ideia
de que a crise do capitalismo atual, bem como todas as suas consequências, a exemplo da
precarização do trabalho, não é culpa do capitalismo e sim de um novo e inevitável contexto
histórico, e que, portanto, o capital de culpado pela origem do problema passa a ser vítima.
Essa ideia é também legitimada pelo Estado que passa a reduzir seu campo de
atuação social, atendendo ao conceito de “estado mínimo”, e incentiva abertamente a
instituição e o crescimento do Terceiro Setor e da participação da iniciativa privada através
de incentivos tributários. A essa postura do Estado cabe observa-se a essência de alguns
pressupostos neoliberais adotados que servem de guia para praticamente todos os Estados
capitalistas envolvidos no processo de globalização da economia.

4 - CONCLUSÃO

Essa breve análise das relações entre os setores e a questão social, bem como
seus novos mecanismos de reprodução, dentre eles a responsabilidade social e o
desenvolvimento sustentável, se propôs a expor as estruturas de uma conjuntura arriscada
que prenuncia momentos mais instáveis na coesão social. Há um encadeamento lógico,
mas atemporal, onde a crise do modo de produção capitalista encontra a saída neoliberal,
esta por sua vez determina a instituição do estado mínimo, este deixa uma ausência social
inaceitável como legado, e que para justificar e tornar menos inaceitável canaliza subsídios
para a criação de um Terceiro Setor, socialmente legitimado pela difusão do conceito de
responsabilidade social que acaba por pressionar, pelas vias mercadológicas, as empresas
a adotarem como diferencial de mercado, estabilizando dessa forma os ânimos da
sociedade civil e fornecendo combustível ao agravamento da questão social. O que parece
não ser levado em conta nesse encadeamento lógico, sugerido pelas doutrinas neoliberais é
que no fim de seu percurso, com o agravamento da questão social, o empobrecimento da
população gera inevitavelmente uma diminuição do mercado com indicações de uma
provável outra crise que já não poderá mais sugar da sociedade civil as forças para sua
superação, dado o grau de achatamento da mesma. É sob essa via de raciocínio que pode-
se inferir que a oscilação do foco da difusão do conceito de responsabilidade social perante
a opinião pública pode ser na verdade ajustado para gerar a estabilidade apenas necessária
à reprodução do estado neoliberal.
Portanto, a aparência de boa ação da responsabilidade social oculta a
fragmentação do enfrentamento da questão social. Dessa forma a união coletiva para a
formação de uma força de solidariedade acaba por proporcionar um efeito contraditório, já
que a solidariedade pregada pelo conceito de responsabilidade social é na verdade uma
afirmação do individualismo onde cada indivíduo ao ser solidário através desses meios
contribui com sua parte não se importando se está colaborando para uma solução parcial ou
total, e se sua contribuição já foi ofertada, nada mais tem a ver com esses problemas, sendo
a soma dessas contribuições, por serem fragmentadas e difusas, apenas formadoras de
uma parcialidade na solução dos problemas sociais, ficando a totalidade prejudicada e
encoberta pelo efeito social da “atenuação aparente” da questão social.
Diante do exposto, fica justificada toda a abertura ofertada pelas doutrinas
neoliberais ao Terceiro Setor e à difusão do conceito de responsabilidade social, bem como
a distinção da dualidade social a que se propõe essa abertura. Não que uma sociedade
permeada pelo conceito de responsabilidade social seja apenas uma sociedade fadada à
exploração neoliberal e a proliferação desse conceito seja apenas instrumental desta, há
certamente inegáveis benefícios inclusos no fato de que, de uma forma ou de outra, as
pessoas acabam por se sensibilizar mais com as questões sociais e que essa sensibilidade
pode aguçar mais o envolvimento social e a cobrança de soluções para os problemas
sociais. De um lado a responsabilidade social pode ser aproveitada pelo neoliberalismo para
seus propósitos, mas por outro lado o fosso entre as expectativas de solução dos problemas
sociais e a insuficiência real dessa solução pode apontar para uma pressão social,
potencializada pela já adquirida consciência social, para a luta por soluções menos parciais
e mais efetivas.

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