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Gustavo Oliveira do Nascimento – 10263441

Uma análise de Pica-pau à luz da teoria winnicottiana

Pica Pau (The Woody Woodpecker) é um personagem criado por Walter Lantz em 1940.
Originalmente presente como personagem secundário na animação Andy Panda, Pica-pau
conquistou sua série independente, The Woody Woodpecker Show, em 1957. O desenho foi
exibido no Brasil pela primeira vez em 1950 e, de lá para cá, se manteve como um grande
sucesso entre adultos e crianças.
Pica pau é normalmente representado como um personagem insano, ambíguo, caótico,
ora tolo, ora astuto. Sua personalidade está associada à imagem do trickster e do anti-herói,
que agem transgredindo as leis, se aproveitando dos demais e pregando peças para o seu
próprio benefício, mas podendo, por vezes, ainda que por vias questionáveis, agir
positivamente a favor de uma boa causa.
Assim como outras produções culturais destinadas ao público infantil, como os
desenhos clássicos da Disney e as animações japonesas, pode-se dizer que Pica-pau, inserido
nesta nova cultura promovida pela ascensão das mídias televisa e digital, adquire uma
representatividade psíquica para as crianças, ocupada em outros tempos pelos contos de fadas
e histórias transmitidas oralmente de geração em geração, sendo, portanto, uma peça a se
considerar no desenvolvimento infantil.
Tal desenho possui diversos elementos importantes que dialogam com os sofrimentos,
desejos e angústias das crianças, possibilitando-lhes um primeiro contato com assuntos
ligados à morte, ao envelhecimento, ao conflito, enfim, às inúmeras questões inerentes ao
desenvolvimento humano.
Estas questões estão muito ligadas, por outro lado, à situação sociocultural em que o
desenho começou a ser produzido. Nesse sentido, não é incomum encontrar passagens
xenófobas, estereótipos preconceituosos, falas racistas e momentos de violência explícita em
Pica-pau, o que tem gerado uma discussão sobre sua adequabilidade ou não ao público
infantil. Bettelheim (2008) analisando o valor psicológico dos contos de fadas, argumenta que
sua potência reside justamente na possibilidade de trazer à tona conflitos para a formação
psicológica da criança, o que vem se perdendo à medida que tais histórias são adaptadas para
se tornarem seguras ao seu público, sem a presença de assuntos-problema. Da mesma forma, é
possível pensar que os desenhos animados também possuem esta dinâmica e um valor
simbólico para o público infantil, que o vê mais como uma representação dos seus conflitos
psíquicos do que como um exemplo a ser seguido.
O desenho animado é uma experiência lúdica para a criança, uma brincadeira. E
enquanto brincar, na relação com o desenho, a criança age criativamente em direção à
mobilização e construção da sua personalidade. Este ver-brincar lhe apresenta, em Pica-pau,
um personagem de personalidade ambivalente, construtiva e destrutiva, boa e má, heroica e
vil, que pode lhe servir como um espelho de seu próprio eu e de seus desejos, que também são
ambivalentes, sobretudo nos estágios iniciais do desenvolvimento.
Todavia, ao contrário da criança, o Pica-pau tudo pode e, embora seja muitas vezes
“mau”, é comum que ele se safe na maioria dos episódios, o que possibilita à criança um
escape simbólico na fantasia para desse desejo irrealizável no mundo real. E quando Pica-pau
não consegue escapar das punições ocasionadas pelos seus atos, isso também mostra às
crianças a sua não onipotência. O desenho aborda tal assunto, por exemplo, no episódio “Os
trabalhadores da floresta”, que reproduz justamente a moral de uma fábula tradicional: O grilo
e a cigarra.
Em outros episódios, como em “O barbeiro de Sevilha”, Pica-pau, ao entrar em uma
barbearia e encontrá-la totalmente vazia, decide se passar por barbeiro, agindo, porém, de
maneira muito agressiva com os clientes que o procuram – um operário e imigrante italiano,
um leão e um indígena americano. Além do claro simbolismo sociocultural atrelado à
opressão das minorias americanas na década de 50’s, o episódio nos permite pensar, a nível
psíquico, em como, no brincar, ao assistir ao desenho, a criança pode ter uma experiência
agressiva com estes que lhe são estranhos, ruins, diferentes, isto é, pessoas outras ou
elementos da sua própria personalidade em conflito no momento, que são alvos das suas
pulsões destrutivas, e como este brincar pode ser um instrumento para a elaboração psíquica
de seus sofrimentos.

o recurso lúdico serviria como um treino, para o que se segue, ou seja, uma tentativa de
perceber o mundo através da vivência. Para eles, com as narrativas infantis acontece o
mesmo: “[...] história são brinquedos verbais, são peças de um sistema lógico que a
criança pode encaixar à sua maneira tanto para antecipar papéis que ela julga que irá
passar quanto para elaborar o que já passou”. (p. 46). (Gonçalves e Braga, 2015)

Além disso, o ambiente criado pelos desenhos animados se assemelha ao psiquismo das
crianças tanto por elementos já citados, como a ambivalência, o desejo onipotente, a
ludicidade, quanto também por outros, como a temporalidade. No caso de Pica-pau, todos os
episódios possuem um tempo próprio, à parte do tempo real, e este tempo se repete durante
toda a série, com os mesmos elementos e apenas um personagem central, o próprio pica-pau.
Tal temporalidade contribui para a integração da criança a si mesma e de seu devir
constitutivo, mas também repete uma sensação vivenciada por ela, de relativa incapacidade de
lidar com múltiplos personagens e uma cronologia adulta. Por isso, os episódios de Pica-pau
duram em torno de 10 minutos e são totalmente independentes, ou melhor, talvez elem façam
sucesso entre as crianças devido justamente a estas características, contribuindo para a
adaptação delas à realidade.
Em consonância com isso, pode-se dizer que os desenhos animados estão próximos do
psiquismo pela sua estrutura, que se assemelha ao funcionamento inconsciente, da associação,
do simbolismo, da condensação. Desse modo, assim como as manifestações clássicas do
inconsciente descritas por Freud, os desenhos podem adquirir para a criança a capacidade de
suscitar determinados conteúdos. Gonçalves e Braga (2015), pensando os contos de fadas e a
sua relação com a psicanálise, comentam que:

As histórias de fadas são descritas – com base em estudos psicanalíticos – como uma
forma de literatura onde se encontra um significado mais profundo da existência humana.
Entre vários aspectos, esses contos se distinguem por ajudar o sujeito a pensar sobre si
mesmo, sobre o mundo, bem como transmitirem mensagens importantes à mente infantil,
tanto quanto a de adultos, em qualquer nível que ela se encontre no momento: consciente,
pré-consciente e inconsciente (Gonçalves e Braga, 2015)

Com isso, percebe-se que, apesar de ser um desenho e não um conto de fadas – mas possuindo uma
estrutura semelhante – Pica-pau, possibilitando um espaço próprio para o brincar e a criatividade da
criança, pode contribuir para o seu processo de desenvolvimento e apresentar questões próprias ao seu
desenvolvimento infantil, contribuindo para o desenvolvimento de sua personalidade. Tais elementos,
em Pica-pau, estão normalmente associados à figura do anti-herói, que congrega em si mesmo as
ambivalências presentes no mundo infantil, ora positivas, ora destrutivas, ora boas, ora más, mas
sempre a favor da autorrealização do personagem, que serve para a criança como uma figura
identificatória de escape para a realização de seus desejos.
Referências

Bettelheim, B. A psicanálise dos contos de fadas. 21ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2008.

Gonçalves, M. G. F., Braga, A. A. N. M. (2015) ERA UMA VEZ... OS CONTOS DE FADAS


COMO RECURSO TERAPÊUTICO COM CRIANÇAS HOSPITALIZADAS. Revista
Psicologia, Diversidade e Saúde, Salvador; 4(1): 5-20

Winnicott, D. W., Da Pediatria à Psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago, 2000

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