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Pesquisa (auto)biográfica em análise: entre diálogos epistemológicos e teórico-metodológicos

Pesquisa (auto)biográfica em análise:


entre diálogos epistemológicos e teórico-
metodológicos

Apresentação
A pesquisa (auto)biográfica no campo educa- gerando os novos contornos que o domínio
cional brasileiro vincula-se a uma rede de coo- dos estudos (auto)biográficos tem conquista-
peração acadêmico-científica e internacional, do no campo educacional.
contando, notadamente, com Laboratórios e Mapeamentos já realizados sobre a pesqui-
Grupos de Pesquisa de países latino-ameri- sa (auto)biográfica no Brasil (BUENO et al, 2006;
canos e europeus, que têm contribuído para SOUZA et al, 2008; STEPANHOU, 2008; SOUZA;
significativos avanços no âmbito dos estudos MIGNOT, 2015)1 atestam o rastreamento, desde
(auto)biográficos. As diversas perspectivas de o ano de 1985 até 2015, dos diferentes contor-
pesquisa e os modos próprios como os pes- nos e formas que a pesquisa (auto)biográfica
quisadores, situados histórico e espaço-tem- vem assumido, bem como de suas contribui-
poralmente, a partir das apropriações episte- ções para a formação de professores, para os
mológicas e teórico-metodológicas do método estudos sobre a história da profissão docen-
(auto)biográfico, fazem emergir formas impli- te, das instituições escolares, as histórias de
cadas de produzir conhecimento. Trata-se de educadores(as), as histórias institucionais e
um movimento de pesquisa-ação-formação, individuais, face à produção e socialização de
que tem como centralidade os sujeitos, suas conhecimentos possibilitados pela memória,
histórias individuais, coletivas, institucionais, por experiências e narrativas.
de formação, de inserção social, de empode- O presente dossiê foi organizado com vis-
ramento, através das formas como acessam tas a contribuir com outras possibilidades de
suas memórias, mediadas por experiências e análise da pesquisa (auto)biográfica e seus
narrativas sobre a vida, em suas múltiplas di- 1 Para mais informações, consultar: BUENO, Belmira
mensões. Oliveira; CHAMLIAN, Helena Coharik; SOUSA, Cynthia
Pereira de; CATANI, Denice Barbara. Histórias de vida
No conjunto dos estudos já realizados e em e autobiografias na formação de professores e profis-
são docente (Brasil, 1985-2003). Educação e Pesquisa,
desenvolvimento, especialmente a vinculação
São Paulo, v. 32, n. 2, p. 385-410, 2006. SOUZA, Elizeu
às práticas de formação configuraram-se como Clementino de; SOUSA, Cynthia Pereira de.; CATANI,
Denice Barbara. A pesquisa (auto)biográfica e a in-
uma entrada fecunda e fértil para a consoli- venção de si no Brasil. Revista da FAEEBA – Educação
dação do movimento biográfico no Brasil, que e Contemporaneidade, Salvador, v. 17, n. 29, p. 31-42,
jan./jun., 2008. STEPHANOU, Maria. Jogos de memó-
teve, como marco inicial, o começo dos anos rias nas esquinas dos tempos: territórios e práticas
de 1990, abrindo-se, posteriormente, para uma da pesquisa (auto)biográfica na pós-graduação em
Educação no Brasil. In: SOUZA, Elizeu Clementino de.;
multiplicidade de práticas de pesquisa, em di- PASSEGGI, Maria da Conceição. (Orgs.). Pesquisa (auto)
ferentes Programas de Pós-graduação da área, biográfica: cotidiano, imaginário e memória. São Pau-
lo: PAULUS; Natal: EDUFRN, 2008. p. 19-53. MIGNOT, Ana
mas também, em um diálogo interdisciplinar, Chrystina; SOUZA, Elizeu Clementino de. Modos de
com a sociologia, a antropologia, a antropolo- viver, narrar e guardar: diálogos cruzados sobre pes-
quisa (auto)biográfica. Revista Linhas. Florianópolis,
gia filosófica, a história, a literatura e as artes, v. 16, n. 32, p. 10-33, set./dez. 2015.

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Dislane Zerbinatti Moraes; Elizeu Clementino de Souza

desafios epistemológicos e teórico-metodo- Em seguida, podem ser lidos três exemplos


lógicos. As análises aqui reunidas originam-se da produção acadêmica, no âmbito da pesqui-
do desejo bem visível dos autores de dialogar sa (auto)biográfica, somando-se a outros que
com os diversos modos de investigação e te- já realizados que estabeleceram o “estado da
cer sobre eles considerações, distanciamen- arte” dos estudos (auto)biográficos no país.
tos e aproximações, de ordem metodológica e Inês de Souza Bragança e Maria Helena Menna
epistemológica. Com isso, esperam dar a ver Barreto Abrahão, no artigo Abordagens teóri-
aos leitores e ao campo de pesquisa alguns co-metodológicas da formação de professores
“nós” de investigação, encontros e desencon- em dois tempos: olhares sobre o CIPA I (2004)
tros, tendências já consolidadas e sugestões e o CIPA V (2012), vislumbram as mudanças e
vislumbradas, mas ainda pouco exploradas. tendências nos modos de produzir pesquisa,
Objetos instigantes de estudo estão aqui con- propor modelos de formação docente e perce-
templados, tais como as narrativas em oficinas ber linhas de investigação ainda não percorri-
“socioafetivas” e “videobiografias” de crianças das, na distância do espaço-temporal de dois
e adolescentes, em situação de vulnerabilida- Congressos Internacionais de Pesquisa (Auto)
de, e a presença pouco conhecida da figura biográfica (CIPA).
masculina na educação infantil. Três retoma- Sandra Novais Sousa, Jacira Helena do Valle
das da produção acadêmica oferecem indí- Pereira Assis e Eliane Greice Davanço Nogueira,
cios do movimento do campo de investigação em Questões teórico-metodológicas da abor-
(auto)biográfico no país. Dois textos iluminam dagem (auto)biográfica no VI CIPA, mapeiam
aspectos epistemológicos e hermenêuticos, perspectivas e direcionamentos epistemológi-
através de entrevistas (auto)biográficas e as cos dos autores que embasaram teoricamente
disposições de mediação e reflexividade bio- a produção científica divulgada na última edi-
gráfica que se articulam ao ato de narrar. Em ção do Congresso Internacional de Pesquisa
todos eles, há reflexões sobre a natureza do (Auto)Biográfica. Como resultados principais,
conhecimento educacional que é produzido apontaram a diversidade de conceitos e en-
no próprio processo de pesquisa (auto)biográ- tendimentos dos pesquisadores quanto ao
fica, assim como nos modos de apropriação (auto)biográfico, sugerindo uma pluralidade
de metodologias e sínteses teóricas, de outros de enfoques epistemológicos, que priorizam
espaços de saberes e de intervenções, que se ora os aspectos sociológicos, ora os históricos
entrecruzam a análises implicadas e distancia- ou psicológicos, no tratamento das narrativas
das de diferentes objetos biográficos e modos e histórias de vida, nas pesquisas em educa-
de narrar a vida e sua complexidade. ção. Observam, por outro lado, que um núme-
Em Relatos de experiencia, en busca de un ro, ainda reduzido, de pesquisadores se posi-
saber pedagógico, José Contreras Domingo in- cionam epistemologicamente, reivindicando
daga-se sobre a natureza do saber pedagógico um status de método para o (auto)biográfico.
que se expõe, ou que é produzido, no contexto Identidade e profissionalismo docente:
mesmo do registro narrativo de experiências contributos da investigação narrativa, anali-
educativas. Como educadores, necessitamos sa trabalhos de natureza empírica, realizados
aprofundar esta reflexão: tornar visíveis, iden- em Portugal e no Brasil, na área educacional,
tificar as possibilidades e prestar atenção às sobre identidade e profissionalismo docente,
questões educativas que são postas no ato ancorados na pesquisa (auto)biográfica. Cor-
narrativo, quando envolve a experiência vivida. roborando outros estudos, o mapeamento de-

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Pesquisa (auto)biográfica em análise: entre diálogos epistemológicos e teórico-metodológicos

monstrou a grande diversidade de referenciais necessidade de uma “escuta que atente para a
teóricos, de apropriações e aproximações à riqueza humana e temporal dos trajetos des-
pesquisa (auto)biográfica, presentes nas pers- ses meninos e meninas”, observando-se “as
pectivas de investigadores de ambos os paí- táticas, resistências e valores por eles convo-
ses. Para o caso brasileiro, foi possível iden- cados na arte de viver a singularidade de suas
tificar um número maior de investigações de exclusões”.
caráter interventivo, com o uso de estratégias Notas sobre narrativa como instrumento de
metodológicas que apostam na construção da intervenção em contexto de saúde infanto-ju-
identidade dos sujeitos-professores e nas in- venil, de Ruzia Chaouchar dos Santos, Naiana
vestigações de pesquisa-formação. Marinho Gonçalves, Henrique Araujo Aragu-
Em Auto-hermenêutica em entrevistas au- suku e Daniela Barros da Silva Freire Andrade,
tobiográficas, Patrícia Claudia da Costa anali- acompanha o potencial da narrativa enquanto
sa o que denomina de “alguns efeitos colate- instrumento de intervenção psicológica em um
rais” provocados por entrevistas de natureza CAPSI, a partir da apresentação de um estudo
autobiográfica, tendo como base de dados 31 de caso individual. O estudo fundamentou-se
entrevistas, realizadas durante uma pesquisa na Teoria das Representações Sociais, em diá-
sobre a trajetória de docentes universitários, logo com a Teoria Histórico-Cultural e os Es-
sob a perspectiva inspiradora de Bourdieu. tudos sobre Narrativas. Em um primeiro mo-
Conclui que o ato de falar de si corresponde mento, a narrativa constituiu-se em um discur-
a uma oportunidade de produção de conhe- so defensivo, pautado pelo modelo do estado
cimentos de feição hermenêutica, à medida de bem-estar, saúde e felicidade. No segundo
que o entrevistado reconhece a capacidade de momento, observou-se a emergência de nar-
reelaborar alguns aspectos de sua trajetória, rativas espontâneas, liberadas das preocupa-
reordenando os rumos da narrativa com base ções relativas ao protocolo de tratamento e
na reflexão sobre as condições reconhecidas anunciando conteúdos e conflitos, por meio
no discurso produzido. de metáforas que deixam ver o processo de
Abordando uma questão sensível para os enfrentamento do desconhecido.
estudos educacionais, de vulnerabilidade e ris- Alexandra Coelho Pena, em Histórias de
co na infância e adolescência, em Videobiogra- vida de professores homens na educação in-
fias de exclusão na escuta de comportamentos fantil, chama a atenção para a necessidade de
desafiadores na escola, Cristóvão Pereira Sou- discutir a complexidade da presença mascu-
za e Maria da Conceição Passeggi discutem as lina na educação de crianças de zero a cinco
dificuldades de aprendizagem e inadaptação anos, em função do estranhamento por parte
escolar de crianças e adolescentes institucio- de professores, gestores e familiares, quanto
nalizados por medida protetiva de abrigo. Os à presença de docentes do sexo masculino
referenciais teórico-metodológicos da pesqui- nessa etapa da educação básica que, cultu-
sa (auto)biográfica e da antropologia (Manter ralmente, e historicamente, tem estreito laço
a letra maiúscula) visual apoiaram a produção com o feminino e o materno. Foram realizadas
de narrativas videobiográficas, roteirizadas entrevistas de história de vida de professores
pelas crianças e adolescentes, como autores, da Educação Infantil, em instituições privadas
em torno das experiências de vida, antes e du- e/ou públicas, com diferentes tempos de ex-
rante o acolhimento institucional. Os resulta- periência profissional nesse segmento. Mar-
dos sinalizam, como dizem os autores, para a tin Buber, Mikhail Bakhtin e Walter Benjamin

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apoiam, como referências teóricas, a análise as pesquisas e práticas de formação que têm
das histórias recolhidas. se desenvolvido cotidianamente nos nossos
As análises empreendidas pelos autores, espaços de pesquisa-formação, abrindo-se e
ao tomarem, como referência, os modos como comportando novos objetos de estudo, temas,
se apropriam do método (auto)biográfico, fontes e análises ancoradas na pesquisa (auto)
através de diálogos epistemológicos, teórico- biográfica.
metodológicos e de diferentes perspectivas de
análise, ampliam e marcam a diversidade de
reflexões dos fenômenos (auto)biográficos, a Dislane Zerbinatti Moraes
variedade de fontes e aprofundamentos que o Universidade de São Paulo
campo de pesquisa possibilita.
Esperamos que a socialização desse mate- Elizeu Clementino de Souza
rial favoreça outras reflexões, contribua para Universidade do Estado da Bahia.

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