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Resumo:
Este artigo empenha-se em realizar uma leitura minuciosa do filme Anticristo (Antichrist, 2009) buscando,
a partir da compreensão do conteúdo da obra, uma resposta para polêmica gerada pela mesma. Como
material para a elaboração deste documento utilizei a própria filmografia de Lars von Trier, diretor do
filme, e entrevistas sobre o tema, tanto do cineasta quanto de membros da equipe. Anticristo revelou-se
uma obra complexa e corajosa. Construído sobre um rico acervo simbólico, preparado de maneira
didática pelo diretor, que pretendia compartilhar pensamentos derivativos da sua própria depressão com
o público, o filme é elaborado para desafiar setores conservadores e liberais da sociedade
contemporânea. Devido o alto grau de violência, tanto em seu discurso quanto em seu fator gráfico,
Anticristo acabou sendo rechaçado pela crítica contemporânea, que nem se quer chegou a submetê-lo a
análise simbólica que seu formato demanda. Esta negligência denuncia uma sujeição sistemática do
mérito artístico aos valores contemporâneos.
Abstract:
This article is engaged on make a thorough reading about the movie Antichrist (2009) searching, from the
comprehension of the content of the art, an answer for the polemic made on this movie. I used as
material for prepare this document the Lars von Trier filmography itself, the director of the movie, and also
some interviews about the theme, of the film-maker and his team members. Antichrist showed a complex
and brave art. The movie is made with a large symbolic repertoire, and it’s shown in a really didactic way
by the director who intended to share his on depressive thoughts to the public, the movie is made to
challenge the traditionalist and progressive contemporary society. Because of the high level of violence,
the speech and the graphic factor made Antichrist a highlight target for the contemporary criticizes which
didn’t even analyze in a symbolic way the movie, which require this kind of analyze. This attitude
denounces the systematic artistic subjection merit on the contemporary values.
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1. Introdução
Após entrar em cartaz no mundo todo, e até mesmo hoje, com acesso restrito
somente as telinhas, o filme replica reações similares aquelas manifestas em sua
estreia no Festival de Cannes. Desta forma Anticristo, exibição após exibição, tornou-se
um dos filmes mais controversos da história do cinema.
2. Metodologia
É impossível dar continuidade a este artigo sem deixar claro os métodos que utilizei
para responder as questões levantadas no tópico anterior. Na verdade, neste caso, a
postura diante do método torna-se necessária até mesmo para esclarecer a natureza
das perguntas que originaram esta pesquisa. Digo isso porque, segundo a escola pós-
estruturalista de hermenêutica, esta que vem fortalecendo-se dentro das universidades
através do ensaio de Barthes (1967), tentar estabelecer a leitura de uma obra através
da intenção de seu autor, como sugeri com as questões fundantes deste estudo, são,
na realidade, um esforço vão. Sendo assim, estabelecer uma posição diante dos
escritos de Barthes, especificamente sobre o mais popular dentre eles: A Morte do
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Autor (BARTHES, 1967), ocupa posição central dentro deste tópico.
É importante deixar claro que o problema levantado por Barthes e também por
outros pensadores da metade do século XX, como Foucault e Derrida, a respeito da
intencionalidade autoral como foco da análise hermenêutica (BURKE, 2010), está longe
de ser um delírio. Pelo contrário, esta inquietação percorre todo meio acadêmico,
ganhando uma importância especial dentro do estudo das humanidades. No direito por
exemplo, as questões hermenêuticas são fundamentais, afinal, sem a compreensão
que a hermenêutica é uma ciência, ou seja, tem como centro do seu estudo algo
objetivo e não subjetivo como propõe Barthes (1967), os sistemas legislativos
baseados em documentos textuais, como a Constituição Brasileira, seriam
completamente inviáveis. Justamente por isso a leitura hermenêutica através da
intencionalidade autoral, sendo ela a única capaz de fornecer a hermenêutica um
objeto de estudo externo ao indivíduo, é uma veia muito forte dentro do direito. Juristas
como Emilio Betti, na Itália, e Pontes de Miranda, no Brasil, são exemplos de figuras
que dedicaram-se a defender a intenção do autor como fator determinante para a
leitura de um objeto (GOMES, ARANTES; 2006).
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regras, apelidadas pelos seus autores como “votos de castidade”, que limitavam o uso
de certos métodos de filmagem e edição, sendo a última delas a exigência que o nome
do diretor não figurasse entre os creditados no filme (< http://www.dogme95.dk/the-
vow-of-chastity/ > 29/04/2015). Esta postura harmoniza-se com a constatação pós-
estruturalista que o conhecimento a respeito do autor é irrelevante para leitura de uma
obra. Contudo, Lars von Trier produziu apenas um filme dentro dos moldes propostos
pelo Dogma, a saber, Os Idiotas (Idioterne, 1998), o segundo filme da Trilogia Coração
de Ouro. Dois anos depois, Trier lançava o terceiro filme da trilogia, Dançando no
Escuro (Dancer in the Dark, 2000), obra que rompia com todas as regras do Dogma,
inclusive com a que censurava a creditação do diretor.
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Uma vez esclarecida a legitimidade das perguntas que orientaram esta pesquisa,
estabelece-se o elo entre Lars von Trier e Anticristo como ponto central para o
desenvolvimento deste estudo. Há também que se destacar o uso de elementos de
caráter menos lúdico, como declarações do diretor a respeito do filme, diálogos dos
personagens e decisões de edição, como fontes primarias para a leitura de elementos
dramáticos de significado mais nebuloso.
3. Influências
Logo após o lançamento de O Grande Chefe (Direktøren for Det Hele, 2006), Lars
Von Trier mergulhou em uma grande crise depressiva. Sua situação era agravada pelos
vícios adquiridos durante a filmagem do Ondas do Destino (Breaking the Waves, 1996),
onde começou a desenvolver alcoolismo e a utilizar drogas. No auge da sua angustia,
Trier chegou a duvidar da possibilidade de voltar a escrever um filme. Desesperado,
iniciou o processo de escrita de um roteiro que posteriormente ganhou o título de
Anticristo (THORSEN, 2014).
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Anticristo. Revoltado, Bamigboye chegou a declarar que, por conta do filme, teria de
lavar o próprio cérebro. Trier, mantendo o bom humor, afirmou que não sentia a
necessidade de se justificar e, como resposta as ofensas do jornalista, autodeclarou-se
o melhor diretor do mundo (BAMIGBOYE, 2009; HERNANDEZ, 2009).
É verdade que von Trier conhecia e admirava tanto o homem quanto o artista
Strindberg. Sua admiração era tanta que chegou a citá-lo em um diálogo do O Grande
Chefe (Direktøren for Det Hele, 2006), onde, na mesma cena, comentava um boato a
respeito de uma tentativa de assassinato cometida pelo escritor contra sua mulher e,
logo em seguida, elogiava a sua genialidade. Sendo O Grande Chefe (Direktøren for
Det Hele, 2006) a sua última obra antes do início da crise depressiva e Strindberg
aquele citado como sua grande influência para criação do Anticristo, é possível afirmar
que os pensamentos do cineasta estavam especialmente voltados para o escritor
durante a sua crise, e não só para o aspecto artístico, mas também para sua face
misógina. Pode-se questionar portanto, se os paralelos estabelecidos entre a Inferno
crisis de Strindberg, e o período depressivo de Lars von Trier, chamado por ele mesmo
durante a coletiva de “sua própria Inferno crisis”, encontram similaridades por obra do
acaso, ou por um comportamento mimetizante do cineasta.
Outra influência confessa de von Trier foi Andrei Tarkovsky. O impacto das obras do
cineasta russo pode ser percebido desde a escolha do cenário principal, uma pequena
casa no campo, muito similar a casa utilizada nas filmagens de O Espelho (ЗЕРКАЛО,
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1975), até ao uso de figuras fantásticas para ilustração da trama realista. Trier chegou
a recomendar a Willem Dafoe e Charlotte Gainsbourg, atores protagonistas de
Anticristo, uma das obras de Andrei Tarkovsky como parte do seu estudo de
personagem (BO, 2009). A influência de Tarkovsky tornou-se tão ampla sobre
Anticristo, que Trier acabou por dedicá-lo as memórias do cineasta russo, falecido em
1986.
Uma esclarecedora dica de como o tema foi trabalhado pelo autor ao decorrer de
sua obra, está na já citada frase de apresentação do filme feita por Trier em Cannes. O
diretor convida os expectadores a adentrarem no mundo sombrio da sua imaginação,
sobre a natureza do seu medo, sobre a natureza do anticristo (WALSH, 2009). A
associação da natureza com medo e anticristo é uma generosa sugestão de Trier dos
melhores ângulos para apreciação de sua obra.
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Esta busca levou o casal a pequena casa de campo, sugestivamente chamada
Éden, onde a personagem de Gainsbourg passou o último verão em companhia de seu
filho. Sozinhos, cercados apenas por um bosque, terapeuta e paciente aproximam-se
cada vez mais da real origem do medo pesquisado.
Inicialmente o medo aparece como uma figura dispersa, sendo representado pelo
diretor através de imagens de plantas e galhos entrelaçados, porém, ao decorrer do
tratamento, a angustia passa por um processo de gradual objetivação, atingindo seu
ponto máximo em uma definição da própria paciente. Após um período de abatimento
provocado pelo contato com o bosque, objeto listado como um dos possíveis
provocadores da sua aflição, a mulher conclui a descoberta de um outro aspecto do
Éden: por trás de toda a beleza que salta a vista haveria uma face cruel da floresta, a
morte que lhe garante a vida, morte esta que a personagem agora julga-se capaz de
escutar. Diante desta análise a paciente conclui: “a natureza é a igreja de Satã.”
A denúncia do ser humano como uma criatura aterrorizante, ganha força após a
descoberta do marido a respeito dos maus tratos praticados pela sua mulher contra seu
filho. Analisando fotografias, o personagem masculino descobre que sua esposa
costumava inverter os sapatos do garoto, a inversão era tão constante que chegou a
gerar deformações nos pés do menino. O diretor confirma o desprendimento da mãe
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em relação a criança alguns minutos mais tarde, onde revela que ela, a personagem
feminina, assistiu o acidente que veio a causar a morte de seu filho, mas, por estar
entretida transando com o seu marido, decidiu não intervir. O fato parece ser tratado
pelo roteiro e pelo personagem não como uma ação maligna consciente, mas uma
ação inconsciente, sendo a personagem apenas uma vítima do seu próprio instinto.
Outro fragmento que torna-se mais claro é angustiante cena de mutilação genital
praticada pela personagem feminina. Diante desta definição podemos entender o ato
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como uma tentativa de redenção da personagem, que através do corte de seu próprio
clitóris, buscava atentar contra a natureza maligna que dominava a sua face
inconsciente. Esclarece-se também a frase de apresentação da obra, pois em um
primeiro instante o diretor parece tratar em sua declaração de duas naturezas, uma
natureza do medo e outra natureza do anticristo, porém, diante da conclusão do
terapeuta, notamos que a frase do diretor trata-se de um pleonasmo.
5. Misoginia
A relação do diretor com o sexo oposto, tanto a nível pessoal quanto em ambiente
profissional, trata-se de um tema delicado. Sua mãe, Inger Trier, que chegou a ser líder
do movimento feminista da Dinamarca por um certo período, confessou em seu leito de
morte que Ulf Trier, homem que criou Lars von Trier como filho, não era seu pai
biológico, mas sim Fritz Michael Hartmann, seu antigo patrão. Este evento teve
profundo impacto sobre o cineasta. A influência deste evento sobre a arte de von Trier é
confessa, em entrevista ao New York Times, ele admitiu que muitos filmes seus tratam-
se de uma espécie de provocação póstuma dirigida a Inger (KEHR, 2009; MACNAB,
2011; O'HAGAN, 2009).
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familiares. A primeira atriz que tornou pública a dificuldade do diretor com o gênero
feminino foi a cantora pop Björk Guðmundsdóttir, que na ocasião protagonizava o longa
ganhador da Palma de Ouro, Dançando no Escuro (Dancer in the Dark, 2000). Após
uma discussão com o diretor, Björk chegou a abandonar o set de filmagem durante
algum tempo, os problemas foram amenizados pela cantora durante o lançamento do
filme, porém, em 2009 em uma entrevista concedida ao The Sunday Times, a cantora
definiu Trier do seguinte modo:
Ele precisa de uma mulher para fornecer alma ao seu trabalho, e ele tem
inveja delas e odeia-as por isso. Então ele tem que destruí-las durante as
filmagens e depois esconder as provas. (APPLEYARD, 2009)
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Uma vez traçado o arquétipo, muitos povos continuaram a revisitar o conceito
acrescentando novas analogias, como por exemplo a relação entre a beleza feminina e
a beleza da natureza; a mudança de humor feminino, consequência do ciclo menstrual,
com as intemperes e estações; ou a inferência da fragilidade feminina sobre a
natureza. Isto ajudou a um estreitamento de relação conceitual da mulher com a
natureza. O relato bíblico pode ser entendido como um exemplo desta aproximação.
Enquanto Eva chegou a trocar palavras com a Serpente, mas não encontramos a
relatos de uma relação especial de Adão com natureza.
Trier evoca esta relação de forma muito clara em Anticristo quando inclui em seu
longa diversas cenas de sobreposição da personagem feminina sobre imagens da
floresta.
FIGURA 3 — Captura de Tela do Filme Anticristo (2009), Cena Onde a Mulher Funde-se a Relva
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serve de pilar para o olhar humano sobre o tema. Através deste processo de
revisitação a mulher é elencada como principal lente utilizada pela humanidade para
leitura da natureza, tornando-se por consequência, o alvo principal do diretor dentro da
sua desconstrução. Trier realiza seu trabalho de perversão do símbolo utilizando-se
justamente dos caminhos traçados para construção do mesmo. A maternidade, atributo
que serviu como ponte primaz para relação da mulher com a natureza, é reutilizado
pelo diretor como ponto central do seu projeto de perversão. Ao apresentar ao
espectador uma mãe negligente, capaz de abandonar seu filho em nome de um prazer
fugaz, como é o prazer sexual, ou ainda pior, uma mãe cruel, que submete seu próprio
filho a torturas físicas, o diretor coloca em xeque o arquétipo da mãe natureza como
generosa e altruísta, apresentando a proposta de uma mãe assassina e hedonista.
É claro que mesmo que a escolha da mulher como personagem central de uma
trama tão violenta encontre justificativas artísticas, certas decisões do diretor, como por
exemplo a de exibir integralmente a extirpação do clitóris da personagem, continuam
sendo mais fáceis de serem compreendidas através do seu problema com o gênero.
6. Os Três Mendigos
Durante todo longa Lars von Trier nos apresenta somente três personagens
humanos, o casal e seu filho Nick, mas além destes, outras três figuras acabam
chamando a atenção dos espectadores, Os Três Mendigos, animais carregados com
um forte conteúdo simbólico que aparecem ao personagem masculino. Os animais
escolhidos pelo diretor para integrarem Os Três Mendigos foram: o cervo, a raposa e o
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corvo. Durante o filme Trier associa cada animal com um atributo diferente do
sofrimento: o cervo com o luto, a raposa com a dor e o corvo com o desespero. Luto,
dor e desespero, servem também como título de três dos quatro capítulos do filme,
cada um destes capítulos são encerrados pela aparição do seu respectivo mendigo. O
quarto e último capítulo chama-se justamente “Os Três Mendigos” e só é encerrado
com o aparecimento das três criaturas.
Uma vez ciente da complexidade destas figuras, cabe aqui a citação de algumas
das suas possíveis leituras:
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específicas que, sem muito esforço, podemos relacionar com a percepção do
personagem masculino sobre a condição da sua esposa. O cervo, animal que aparece
ao término do capítulo “Luto”, por exemplo, é avistado pelo personagem masculino
entre as árvores do Éden e carrega preso ao seu corpo um feto abortado. A raposa é o
segundo mendigo apresentado ao público e ao personagem de Dafoe, ela está atrelada
ao segundo capítulo “Dor”, que carrega como subtitulo justamente a frase dita pelo
animal ao personagem humano, “Caos Reina”. Ela é flagrada em meio a arbustos
enquanto canibaliza-se, estabelecendo relação com o diagnostico de autopunição dado
pelo psicoterapeuta a sua mulher. O terceiro animal, o corvo, aparece no fundo de um
buraco enquanto o personagem masculino foge de sua companheira — neste momento
já surtada —, esta cena precede o fim do terceiro capítulo “Desespero”, subintitulado
“Feminicídio¹”. O corvo está dentro de um buraco e ao deparar-se com o personagem
masculino desespera-se. Da mesma forma a mulher, quando tem seus maus-tratos
descobertos pelo seu marido, acaba surtando e tornando-se agressiva.
FIGURA 4 — Captura de tela do filme Anticristo (2009), o cervo observa a queda de Nick
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associação de cada membro da Trindade com uma figura animal, o Pai com o leão, o
Filho com o cordeiro e o Espirito Santo com a pomba. Ao apresentar-nos um cervo com
sua cria abortada ainda presa ao seu corpo, uma raposa que comete que come suas
próprias vísceras, e um corvo que emerge do fundo da terra para denunciar o homem,
é muito provável que o diretor visasse parafrasear o atributo de cada membro da
Trindade; o Pai, protetor guerreiro do povo de Israel; o Filho, que entrega sua própria
vida para salvar a humanidade e deixa sua carne e seu sangue – a Santa Eucaristia –
como alimento para seu povo; e o Espirito Santo, que desce do alto para consolar os
membros da Igreja de Deus. Desta forma Trier dava a Igreja de Satã sua própria versão
do deus cristão.
Os Três Mendigos Como Releitura dos Três Reis Magos: a relação entre estas
criaturas e os reis do oriente que, segundo a tradição cristã, haviam visitado o Messias
após o seu nascimento, torna-se explicita no momento em que, no ultimo capitulo do
filme, o casal realiza o seguinte diálogo:
Uma vez conhecido o intuito perversor de Trier, manifesto diversas vezes durante o
longa, a associação por lógica espelhada entre Os Três Mendigos arautos da morte do
anticristo e os Três Reis Magos presenteadores do Cristo recém-nascido, trata-se de
uma leitura que possivelmente foi considerada por Lars von Trier durante o processo de
escrita e direção.
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7. O Pecado de Adão
Apesar do foco da degradação estar voltado para mulher, Lars von Trier não deixa
que o homem escape ileso de sua crítica. Enquanto sua esposa parece estar integrada
e conhecer, algumas vezes de maneira consciente outras de forma inconsciente, a face
real da natureza. O personagem de Dafoe acaba tropeçando sobre sua própria
racionalidade, portando-se como um completo desconhecedor do mundo concreto.
Recusando-se a ouvir o conselho de sua mulher para manter-se longe deste caso,
o arrogante psicoterapeuta tenta impor suas certezas científicas sobre a natureza,
elemento tratado por Trier em Anticristo como algo mistico e indomável. Esta postura
cega o personagem, que por diversas vezes durante o longa tem contato com
evidências da perversidade de sua mulher, mas, devido a uma visão determinada a
enxergar apenas o que quer, acaba negligenciando a realidade.
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FIGURA 5 — Captura de tela do filme Anticristo (2009), Mão do Homem Coberta Por Sementes
Na segunda sequência esta simbologia torna-se ainda mais clara, ela ocorre no
final do segundo capítulo: O personagem masculino lê pela primeira vez a necrópsia de
seu filho, olha para mulher que está dormindo e em seguida para câmera, a câmera
afasta-se, e Trier, valendo-se mais uma vez de uma metáfora, insere uma cena onde o
personagem masculino está debaixo de uma chuva de sementes de carvalho. A
referência estende-se até o início de outra sequência, onde, no dia seguinte, o
personagem masculino alisa sua mão, que parece ter sido ferida pelas sementes da
primeira cena.
FIGURA 6 — Captura de Tela do Filme Anticristo (2009), Chove Sementes Sobre o Homem
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Fonte: Anticristo (Antichrist, 2009)
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citado integralmente:
Homem: gostaria de fazer um exercício. Vamos interpretar. Meu papel será: todos
os pensamentos que provocam seu medo. O seu papel será o pensamento
racional. Eu sou a natureza, tudo que você entende como natureza.
Mulher: tudo bem, senhor natureza; o que você quer?
Homem: machucá-la quanto eu puder.
Mulher: como?
Homem: como você acha?
Mulher: me assustando.
Homem: … Matando-a.
Mulher: a natureza não pode me machucar, você só é o verde lá fora.
Homem: não, eu sou mais do que isso.
Mulher: não entendo…
Homem: estou lá fora, mas também estou… Estou dentro. Sou a natureza de
todos os seres humanos.
Mulher: ah, este tipo de natureza… O tipo de natureza que faz as pessoas
causarem mal às mulheres.
Homem: exatamente.
Mulher: esta natureza me interessou quando estive aqui, era o assunto da minha
tese. Mas não deveria subestimar o Éden.
Homem: o que o Éden fez?
Mulher: descobri mais do que imaginava. Se a natureza humana é má, isto
também é valido para natureza…
Homem: das mulheres? Natureza feminina.
Mulher: a natureza de todas as irmãs. As mulheres não controlam seu corpo, a
natureza é quem controla. Escrevi isso nos meus livros.
Homem: o material que usou em sua pesquisa era sobre crueldades cometidas
contra as mulheres, mas você entendeu como prova da malignidade feminina? Era
para ser critica perante esses textos, era sua tese! Em vez disso, abraçou a ideia.
Sabe o que está dizendo?
Mulher: esqueça… Não sei por que falei isso…
Homem: tenho que descansar…
Trier aborda o tema de maneira visceral no último arco do longa. Após ser
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descoberta a mulher surta e ataca o marido. Durante o ataque ocorre um evento
ilustrativo, onde, em uma confusão de sentimentos, a mulher masturba o personagem
masculino, e o homem, que teve seu pênis alvejado por uma série de ataques brutais
com uma tora de madeira, termina ejaculando sangue. Este evento estabelece relação
com o fato do prazer sexual ter sido motivador da omissão da personagem em relação
ao acidente de seu filho. Em seguida von Trier inicia um longo desenvolvimento da
violência através da personagem feminina, que faz as vezes de vilã de filme de horror
perseguindo e torturando o marido. O Homem só consegue livrar-se da sessão de
tortura com a ajuda do corvo, que o auxilia a encontrar a chave de fenda — ferramenta
necessária para livrar-se do peso preso pela mulher em sua perna.
Após descobrir o poder da natureza sobre si, vendo-se capaz de atos cruéis e
assassinos, o homem, descarregado da sua soberba, consegue enxergar a verdadeira
natureza, simbolizada pela irmandade feminina que caminha harmoniosamente sobre a
floresta.
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Sendo o personagem masculino o representante do público, ao fazer com que suas
certezas a respeito da natureza fossem superadas, Trier traça neste instante um
desafio aos seus espectadores, a natureza é de fato o que a filosofia moderna e pós-
moderna afirma ser? Desta forma Lars von Trier encerra seu longa, com um voraz
convite a revisão de dogmas sustentadores da sociedade contemporânea.
8. Conclusão
Em Anticristo Lars von Trier nos apresenta uma corajosa releitura da natureza. O
tema é trabalhado em diversas perspectivas, a natureza como um sinônimo de flora e
fauna, a natureza da humanidade, dos gêneros, e por fim, a natureza do sujeito. Trier
foge do senso comum e empenha-se em reconstruir o tema de maneira oposta a
abordagem idealizada que geralmente cerca o assunto.
Para construir seu discurso subversivo von Trier valeu-se de um rico repertório
simbólico, do qual apropriou-se sem pudor. O maior símbolo, gerador de muita
controversa, que o diretor decidiu revisitar, foi o símbolo da mulher como representante
da natureza. A agressividade com a qual Lars von Trier lida com o feminino em sua
obra muitas vezes se confunde com seus problemas pessoais com o gênero. É
justamente esta questão que acabou provocando o repúdio de muitos críticos em
relação ao filme. Apesar da possibilidade de certas cenas contarem com um sadismo
desnecessário, o diretor encontra pleno amparo em seu tema e em sua trama para
tomar as decisões criativas que tomou.
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A aflição sentida pelos espectadores de Anticristo é provocada intencionalmente
pelo diretor, que além de utilizar a violência de forma explicita e descompensada,
desenvolveu o tema de tal maneira onde pilares básicos do mundo contemporâneo,
como a igualdade de gênero, a compreensão do mundo através da razão e a
valorização do ser humano, são completamente destroçados. Desta forma os
espectadores que não repudiam o filme por conta da violência exacerbada, acaba
rechaçando o longa como material prejudicial a sociedade.
Após uma análise minuciosa, podemos perceber que sim, de fato Anticristo é um
dos filmes mais violentos — tanto plasticamente quanto em discurso — do cinema do
século XXI, mas também é uma das obras mais complexas e corajosas de toda a
história do cinema. É inevitável que a mistura destes três adjetivos provoquem
polêmica, no entanto, o que nunca deve ser feito é a redução do seu mérito artístico em
nome de uma causa ideológica. Lars von Trier, auxiliado pela sua dedicada equipe, faz
através do Anticristo uma fervorosa e competente critica a ética moderna e pós-
moderna, tarefa que pouquíssimos artistas dispõem-se em realizar. Este compromisso
primordial com a arte é uma assinatura de Trier, o que garante a sociedade uma
oportunidade de rediscutir temas que muitas vezes já estão adormecidos no senso
comum. Misógino ou não, Anticristo trata-se de uma obra que simboliza a resistência
da arte sobre os interesses gerais, algo muito importante e incomum nos dias de hoje.
Sem artistas competentes e corajosos como Trier é inevitável que a sociedade
mergulhe em sua própria arrogância contemporânea, e termine esquecendo que as
certezas que nos guiam hoje são produto de diálogos filosóficos que a qualquer
momento podem ser retomados.
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Referências Bibliográficas:
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Brady Corbet; Cameron Spurr; Charlotte Rampling; Jesper Christensen; John Hurt; Stellan
Skarsgård; Udo Kier; Kiefer Sutherland. Roteiro: Lars von Trier. São Paulo: California
Filmes, c2011. 1 DVD (130 min), Color, 35 mm, Zentropa Productions.
Nymphomaniac (Ninfomaníaca). Direção: Lars von Trier. Produção: Marie Cecilie Gade;
Louise Vesth. Interpretes: Charlotte Gainsbourg; Stellan Skarsgård; Stacy Martin; Shia
LaBeouf; Christian Slater; Uma Thurman; Sophie Kennedy Clark; Connie Nielsen; Jamie
Bell; Willem Dafoe. Roteiro: Lars von Trier. São Paulo: California Filmes, c2014. 2 DVD's
(volume 1: 145 min; volume 2: 180 min), Color e Preto e Branco, 35 mm, Zentropa
Productions.
O'HAGAN, Sean. Interview: Lars von Trier. The Guardian, Londres, 12 jul. 2009.
Disponível em <http://www.theguardian.com/film/2009/jul/12/lars-von-trier-interview>.
Acesso em: 15 maio 2015.
THORSEN, Nils. Von Trier tørlagt, nøgen og på røven. Politiken, Copenhague, 29 nov.
2014. Disponível em: <http://politiken.dk/magasinet/interview/ECE2468804/von-trier-
toerlagt-noegen-og-paa-roeven/>. Acesso em: 15 maio 2015.
TRIER, Lars; VINTERBERG,Thomas. The Vow of Chastity. Dogma 95. Disponível em: <
http://www.dogme95.dk/the-vow-of-chastity/ > Acesso em: 29 abril 2015.
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