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Marx e o balanço histórico

do século 20
Domenico Losurdo
Marx e o balanço histórico do século 20

Diotima
Questões de filosofia e política

Em colaboração com o Instituto Italiano para Estudos Filosóficos

Nova edição revista e ampliada

Copyright ©2012
Domenico Losurdo
Domenico Losurdo

Marx e o balanço histórico


do século 20

Tradução:
Bernardo Joffily e Maria Lucília Ruy

São Paulo

Edição 1 (2015)
Primeira reimpressão (2020)
Título original: Marx e il bilancio storico del Novecento
Copyright: Domenico Losurdo

Todos os direitos em língua portuguesa, para o Brasil, reservados à Fundação Maurício Grabois

Produção: Fundação Maurício Grabois

Coordenação de Edição: Augusto C. Buonicore, João Quartim de Moraes e Osvaldo Bertolino

Tradução: Bernardo Joffily e Maria Lucília Ruy

Revisão: Maria Lucília Ruy

Revisão Técnica: João Quartim de Moraes

Projeto gráfico, diagramação e capa: Cláudio Gonzalez

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

Losurdo, Domenico, 1941-


L881m Marx e o balanço histórico do século 20. / Domenico
Losurdo; [tradução Bernardo Joffily e Maria Lucília Ruy]—
1.ed.—
São Paulo : Fundação Maurício Grabois : Anita Garibaldi,
2015.
312 p.

Título original: Marx e il bilancio storico del Novecento.


ISBN 978-85-7277-161-0

1. Marxismo. 2. Liberalismo. 3. Sistema marxista.


I. Joffily, Bernardo (trad.). II. Ruy, Maria Lucília (trad.).
III. Título.

CDD 335.4
Catalogação na Publicação: Eliane M. S. Jovanovich CRB 9/1250

EDITORA E LIVRARIA ANITA LTDA. FUNDAÇÃO MAURÍCIO GRABOIS


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Fábio Palácio de Azevedo Fernando Garcia de Faria João Quartim de Moraes
Júlio Vellozo Manuela D’Ávila Mariana de Rossi Venturini Nereide Saviani
Nilson Araújo Osvaldo Bertolino
Sumário
9 Apresentação
O Comunismo e a construção da humanidade, do século 20 ao 21
João Quartim de Moraes

15 Fontes e agradecimentos

18 Advertência

PRIMEIRA PARTE
19
Tradição liberal e “bárbara discriminação entre as criaturas humanas”
21 I. Marx, a democracia e a construção histórica do conceito universal de homem
44 II. Tradição liberal, liberdade e lógica excludente

SEGUNDA PARTE
63 “‘Bárbara’ discriminação entre as criaturas humanas” e a Primeira Guerra do Golfo
65 III. Do intervencionismo colonial ao “intervencionismo democrático”.
102 IV. Tradição liberal, colonialismo e batismo de fogo da esquerda “reformista”

TERCEIRA PARTE
115 Marx e a história do século 20
117 V. Marx e a história do totalitarismo
138 VI. Democracia socialista ou extinção do Estado? O dilema da Revolução de Outubro
164 VII. Marx, a questão nacional e colonial e o “socialismo real”
188 VIII. Depois do dilúvio: o mítico retorno a Marx
216 IX. Filosofia da história contramoral?

QUARTA PARTE
241
Globalização e marxismo
243 X. Globalização, conflito social e conflitos geopolíticos
259 XI. Marxismo e populismo na leitura do processo de globalização

281 Notas
Apresentação

O COMUNISMO E A CONSTRUÇÃO DA HUMANIDADE,


DO SÉCULO 20 AO 21
João Quartim de Moraes *

C
om reconhecida maestria dialética, Domenico Losurdo põe em
evidência, nos onze ensaios aqui reunidos, os limites que o libe-
ralismo impôs à construção histórica do conceito universal de
homem, mostrando com irretorquível argumentação, sempre
baseada na análise escrupulosa dos textos e dos fatos, quem são os verda-
deiros e quem são os falsos amigos da humanidade. Com efeito, ninguém
melhor do que ele desmistifica a pretensão do bloco liberal-imperialista en-
couraçado na Otan de falar em nome da “comunidade internacional”, da
“democracia” e dos “direitos humanos”.
Nem por isso deixa de ser importante analisar a doutrina liberal, a
começar de seu princípio original: a inviolabilidade da esfera privada, ga-
rantida pela limitação do poder que a sociedade e o Estado exercem sobre
o indivíduo. As liberdades que essa doutrina sustenta e preconiza são pois
essencialmente negativas: declaram o que não pode ser feito contra as leis
e contra os indivíduos. Elas são também chamadas “formais”, porque não
levam em conta o conteúdo concreto das condições sociais de existência.

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MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

É esse conteúdo apenas negativo da liberdade que a esquerda


costuma criticar com fundadas razões: para quem está na miséria, poder
fazer o que a lei permite é no mais das vezes uma amarga ironia: consiste
em ser livre para dormir na calçada ou para morar num barraco malsão.
Nem por isso, entretanto, as formas jurídicas que garantem os direitos dos
indivíduos perante as coerções ilegais a que eles possam ser submetidos
são inócuas ou intrinsecamente mistificadoras. A mistificação está em que,
desde a origem, o pensamento liberal excluía da esfera de aplicação de seus
preceitos a maior parte da humanidade: os escravos e os proletários de seus
países respectivos e os povos das colônias.
Com efeito, nos textos fundadores do liberalismo, a começar dos dois
tratados sobre o governo civil, publicados por John Locke em 1689, o despo-
tismo monárquico, que reduz o homem a uma “condição vil e desprezível”,
é assimilado à escravidão. Longe, porém de ser universal, essa condenação
do despotismo não vale para os homens “sujeitos pela lei da natureza ao
absoluto domínio e incondicional poder de seus senhores”. Quase dois sé-
culos depois, John Stuart Mill, outro autor canônico do liberalismo, mante-
ve a mesma exclusão dos “bárbaros” e das “raças menores de idade”, para
as quais valem as modalidades mais duras e cruéis de servidão. Até mesmo
a infame Guerra do ópio movida pelos capitalistas do Ocidente liberal é
justificada por Mill em nome da liberdade de comércio: “A proibição de
importar ópio para a China” viola a “liberdade (...) do comprador” antes
ainda que a “do produtor ou vendedor”. Vale lembrar que a liberdade fun-
damental de produzir, vender e estimular o consumo desta droga que cor-
rompia e intoxicava o povo chinês era garantida pela Marinha de Guerra de
Sua Majestade britânica. Essa “guerra civilizadora” obrigou a China a abrir
seus portos às mercadorias provenientes de Londres e, em primeiro lugar,
ao livre comércio do ópio, proveniente da “cultura forçada” dessa droga
introduzida na Índia pelos colonizadores ingleses.
A grande impostura da ideologia liberal consiste bem menos em pri-
vilegiar os direitos jurídico-formais do que em só reconhecer efetivamen-

10
Apresentação

te sua validade para as classes dominantes dos países dominantes. Salvo


quando se trata de liberdades proveitosas aos capitalistas britânicos, como
a de garantir ao consumidor chinês o direito de consumir ópio. Nas colô-
nias e semicolônias vale tudo. Polemizando com Bobbio, o grande dirigente
comunista italiano Palmiro Togliatti denunciou essa impostura numa frase
lapidar: “a doutrina liberal (...) baseia-se numa bárbara discriminação en-
tre as criaturas humanas”, e perguntou: “quando e em qual medida foram
aplicados aos povos coloniais aqueles princípios liberais sobre os quais se
diz fundado o Estado inglês do século 19 [...]?”. O que não o impediu de
reconhecer, com espírito dialético, que ao se opor à máquina do Estado
empenhada nas guerras devoradoras de seus cidadãos, “o liberalismo foi
também uma grande coisa”.
Não foi porém essa lúcida compreensão das contradições do libera-
lismo que prevaleceu entre os comunistas. Seguindo o exemplo que vinha
da URSS, a maioria empenhou-se em justificar os recorrentes desrespeitos
à legalidade socialista com o argumento de que o importante é a democra-
cia substancial, a garantia das condições materiais de existência. Além de
falaciosa no plano dos princípios, por contrapor abstratamente os direitos
individuais e os direitos sociais, essa justificação deixa em segundo plano a
explicação histórica verdadeira da restrição às liberdades no campo socia-
lista: a resposta revolucionária à cruzada imperialista que tentou esmagar
no nascedouro a República dos Sovietes levou seus dirigentes a adotarem
crescentes medidas de exceção que reduziram a pouca coisa os direitos in-
dividuais.
Os politólogos liberal-imperialistas, notadamente os profissionais do
anticomunismo, têm outra explicação. A ênfase de Marx, Engels, Lênin e
epígonos na violência revolucionária e na destruição da máquina do Estado
burguês já anunciaria a mentalidade “totalitária” e a mão pesada do regi-
me soviético. Não foram porém os fundadores e dirigentes do movimento
comunista e sim os Estados imperialistas que desencadearam o dilúvio de
chumbo, aço e fogo em que, de 1914 a1918, a classe operária e a juventude,

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MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

tratadas como carne para canhão, “se atolaram no pântano europeu, lama-
cento e sangrento” (a frase é de Lênin) dos campos de batalha da Europa e
do Médio Oriente. Cerca de 9 milhões de mortos e de 30 milhões de feridos
pagaram o preço da luta entre as grandes potências europeias pela hege-
monia econômica e militar.
Um dos episódios mais atrozes dessa chacina em escala continental
foi a “batalha imunda” do Chemin des Dames, perto de Craonne (a expres-
são é de Gilles Lapouge, correspondente na França do jornal O Estado de
São Paulo):
“O Chemin des Dames foi duas vezes infame. Em primeiro lugar,
por causa da demência vaidosa do general Nivelle, que lançou ondas de
soldados contra as implacáveis posições alemãs, provocando em 15 dias de
60 mil a 70 mil mortes. Inutilmente. Esses soldados, esgotados por três anos
de guerra, doentes, vivendo como ratos na lama das trincheiras, feridos,
desprezados por seus chefes, revoltaram-se (...) Segunda ignomínia: (...) O
general Pétain pôs então ordem nas fileiras do Exército e acabou com os
motins. Como? Mandando fuzilar 49 soldados»1.
Há ainda uma terceira infâmia que Losurdo já havia assinalado em
outro livro seu: o uso não somente de seus próprios povos, mas também
das populações coloniais africanas e asiáticas como carne para canhão. Infâ-
mia na infâmia, em vez de manifestar gratidão a esses homens arrancados
de suas terras natais para serem alvos da metralha, da artilharia e dos gases
tóxicos, o filósofo liberal Benedetto Croce lamentou que a França tivesse
festejado “selvagens bárbaros, senegaleses e gurkas indianos que pisavam
sua doce terra”2.
John Locke, o grande patriarca do liberalismo, teria porém dado ra-
zão a Croce e consortes. Com efeito, como também lembra Losurdo, o pen-
sador inglês sustenta que “a conservação do exército e, com ele, do Estado

1 LAPOUGE, G. “Jospin arrasa hipocrisia francesa de 80 anos”. In: O Estado de S. Paulo de 8-11-1998, p. A29.
Vale lembrar que, em 1940, o mesmo Pétain capitulou diante da Alemanha e se tornou chefe de um governo
fantoche a serviço do III Reich hitleriano.
2 Ver LOSURDO, D. O liberalismo entre civilização e barbárie. São Paulo: Anita Garibaldi, 2006, p. 33, que re-
mete a CROCE, B. Frammenti di etica (1922). In: Etica e politica (1930), reedição: Bari, Laterza, 1967, p.143.

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Apresentação

no seu conjunto, exige obediência absoluta às ordens de qualquer oficial


superior, e desobedecer ou discutir mesmo as mais irracionais delas signi-
fica justamente a morte”.
Foi desmistificando essa boa consciência dos ideólogos dos impérios
liberais e discernindo, em plena carnificina, as linhas de ação que permiti-
riam travar a guerra de classes contra a guerra imperialista que a estatura
histórica e intelectual de Lênin assumiu toda sua grandeza. Seu vitorioso
apelo à guerra contra a guerra apontou ao povo russo o caminho da paz, da
terra e da liberdade. Graças à Revolução de Outubro de 1917, a carnificina
no Leste terminou um ano antes do que no oeste.
Reincidiríamos, porém, num erro tenaz se nos escudássemos atrás
dos crimes contra a humanidade cometidos pelo imperialismo liberal para
não encarar os que foram cometidos pelo movimento comunista do século
20. Sintetizando um argumento desenvolvido no livro, o Estado de exceção
que vigorou na Rússia Soviética, necessário para salvar a revolução e de-
pois para enfrentar o assalto nazista, acabou cristalizando-se por inércia bu-
rocrática. Rejeitando a explicação fácil que erige a burocracia em princípio
auto explicativo, Losurdo indaga com a autoridade intelectual e moral que
lhe conferem sua obra e suas posições políticas, em que medida a própria
teoria marxista da extinção do Estado ao longo da transição para o comu-
nismo conteria elementos que favoreceram a esta inércia. O centro da ques-
tão está no elemento de utopia anarquista que essa doutrina comporta: su-
por que, abolida a exploração capitalista, iria se tornar supérflua a garantia
dos direitos do homem e do cidadão; já que o poder estatal estava fadado
a desaparecer, desapareceria também toda norma ou constrição jurídica e
até mesmo a política enquanto tal e com elas a necessidade da limitação do
poder, ponto forte da tradição liberal e democrática. Engels tinha razão ao
observar que “falar do princípio de autoridade como absolutamente ruim e
do princípio de autonomia como absolutamente bom” significa se colocar
na impossibilidade de fazer funcionar o mundo da produção e o aparato es-
tatal, mesmo aquele mais livre e reduzido a uma simples “administração”.

13
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

No entanto, ao calor da Revolução de Outubro, vimos dirigentes re-


volucionários proclamar que “a ideia de uma Constituição é uma ideia bur-
guesa”3. Sobre tal base, pondera Losurdo, não só é fácil justificar qualquer
medida terrorista com base no Estado de exceção, mas sobretudo torna-se
sumamente problemático ou impossível passar do Estado de exceção para
uma normalidade constitucional, já por antecipação tachada de “burgue-
sa”. Acrescentamos que a tal ponto esta ideia colou na ideologia do Estado
soviético que a tentativa de ultrapassá-la, canhestra e irresponsavelmente
conduzida por Gorbachov e consortes, levou a um desastre histórico de
proporções catastróficas que abriu caminho para o novo ciclo de guerras
genocidas de recolonização planetária empreendidas pelos Estados Unidos
e seus sócios da Otan.
Para compreender o significado histórico desse colossal desastre é
indispensável, mas não basta, desmistificar os ideólogos da máquina de
propaganda bélica liberal-imperialista. É preciso, além disso, reafirmar,
contra as “belas almas” daquela esquerda que a derrocada soviética deixou
perplexa, desanimada e ideologicamente desarmada, a dinâmica revolu-
cionária internacional ativada em Outubro de 1917. Cumprir esse objetivo
exige não somente uma ampla e sólida análise crítica das ideias e dos fatos
que marcaram a história do século 20, mas também um inflexível compro-
misso com a busca integral da verdade, que não deixe de lado as contradi-
ções teóricas e práticas da própria Revolução. Evidentemente, esse grande
esforço de compreensão não se exaure em seu aspecto teórico. É inscreven-
do-se na continuação dos grandes combates emancipadores do século 20
que Losurdo nos oferece mais uma contribuição decisiva para o avanço do
comunismo no século 21.

*JOÃO QUARTIM DE MORAES é professor colaborador do Departamento


de Filosofia da Unicamp e presidente da seção paulista da Fundação
Maurício Grabois

3 Losurdo cita aqui CARR, E. H. A History of Soviet Russia. The Bolshevik Revolution 1917-1923, tradução
italiana, p. 128.

14
Fontes e agradecimentos

Este livro resulta em larga medida do reposicionamento, reelaboração e,


em certos casos, reformulação de ensaios, intervenções e artigos já publica-
dos em volumes de coletâneas, revistas e jornais.
O ensaio que constitui o primeiro capítulo foi publicado, em italiano, com
o título Il concetto di uomo tra Marx e il liberalismo (O conceito de homem em
Marx e o liberalismo), em Mondo Operaio (agosto-setembro de 1989); em
francês em Actuel Marx (1989), nº 5; em alemão em LOSURDO, D. (org.).
Zukunft des Marxismus (O futuro do marxismo), Dinter, Colônia (1995); em
português do Brasil em Educação & Sociedade (1996), nº 57; e em Lutas So-
ciais (2005), nº 13-14; em espanhol (de Cuba) em Marx Ahora (2001), nº 12,
p. 7-21; e em uma edição resumida, em espanhol (da Argentina), em Her-
ramienta (2004), nº 27.
O ensaio que constitui o segundo capítulo foi publicado sob o título Libe-
ralismo, comunismo e storia della libertà (Liberalismo, comunismo e história da
liberdade), em Crítica marxista (1992), nova série, nº 3-4; e em alemão em
Z., Zeitschrift Marxistische Erneuerung (Z., Revista de Renovação Marxista), de-
zembro de 1998, nº 36.
O terceiro capítulo resulta, no que concerne aos parágrafos subsequentes
ao primeiro, de intervenções e artigos publicados em L’Unità, Il Manifesto
e Liberazione: aqui estão publicados na versão original, sem os cortes e os
ajustes eventualmente considerados redatorialmente necessários por ra-
zões técnicas, repropondo inclusive a resposta de Norberto Bobbio a uma
carta aberta que lhe enviei das páginas de Liberazione.
O quarto capítulo é o reposicionamento de um ensaio com o título Il battesi-
mo del fuoco della sinistra «riformista» (O batismo de fogo da esquerda “reformis-
ta”), publicado em Marx centouno (1991), nº 5.

15
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

O ensaio que constitui o quinto capítulo já foi publicado, sob o mesmo


título, em francês, em BIDET, J. & TEXIER, J. (org.). Fin du communisme?
Actualité du marxisme? (Fim do comunismo? Atualidade do marxismo?), PUF,
Paris 1991, Actuel Marx Confrontation; em italiano em BURGIO, A.; CAZ-
ZANIGA, G. M.(org.). Massa, folla, individuo (Massa, multidão, indivíduo),
Quattro Venti, Instituto Italiano para Estudos Filosóficos, Urbino, 1992; em
alemão em Topos. Internationale Beiträge zur dialektischen Philosophie (Con-
tribuições Internacionais para a Filosofia dialética), Colônia (1993), nº 1.
Uma versão resumida em francês, publicada em TRAVERSO, E. (org.). Le
totalitarisme. Le 20e siècle en débat (O totalitarismo. O século 20 em debate),
Seuil, Paris (2001).
O sexto capítulo é a reprodução de um ensaio com o título Gramsci, il mar-
xismo e lo Stato (Gramsci, o marxismo e o Estado), publicado em Marx centouno
(1992), nº 8.
O ensaio que constitui o sétimo capítulo foi publicado com o título Mo-
vimento comunista, «socialismo reale» e questione nazionale (Movimento co-
munista, “socialismo real” e questão nacional), em Marx centouno, (junho de
1993), nº 13 (Radici e frontiere. Ricerche su razzismi e nazionalismi (Raízes e
fronteiras, investigações sobre racismos e nacionalismos), organizado por A.
Burgio). Uma versão alemã foi publicada em Marxistische Blätter (Páginas
Marxistas), 1997, nº 2.
O oitavo capítulo foi publicado sob o título Il «nostro Marx», il nostro «co-
munismo critico» (O “nosso Marx”, o nosso “comunismo crítico”), em Marxismo
oggi (1993), nova série, nº 1; e sucessivamente republicado em GARRONI,
S. (org.). Engels cento anni dopo (Engels, cem anos depois), La Città del Sole,
Instituto Italiano para Estudos Filosóficos, Nápoles, 1995. Uma tradução
para o alemão foi publicada em Topos. Internationale Beiträge zur dialektischen
Philosophie (1995), nº 5.
O ensaio que constitui o nono capítulo foi publicado em italiano na Rivista
di storia della filosofia (1997), nº 2; e republicado em DE SIMONE, A. (org.).

16
Fontes e agradecimentos

Diritto, giustizia e logiche del dominio (Direito, justiça e lógicas de domínio),


Morlacchi, Perugia, 2007. Uma tradução para o francês foi publicada em
Actuel Marx (1998), nº 24; e outra para o alemão em LOSURDO, D. (org.).
Geschichtsphilosophie und Ethik (Filosofia da história e ética), Lang, Frankfurt
a. M., 1998.
O décimo capítulo reapresenta um ensaio publicado em italiano sob o título
Marxismo, globalizzazione e bilancio storico del socialismo (Marxismo, globaliza-
ção e balanço histórico do socialismo), em Marxismo oggi (2001), nº 1; e mais
tarde retomado em MUSTO, M. (org.). Sulle tracce di un fantasma. L’opera di
Karl Marx tra filologia e filosofia(No rastro de um fantasma. A obra de Marx entre
filologia e filosofia), Manifestolibri, Roma, 2005. Uma versão alemã foi publi-
cada em Topos. Internationale Beiträge zur dialektischen Philosophie (2000), nº
16; e outra, inglesa, em NST Nature, Society and Thought. A Journal of Dialecti-
cal and Historical Materialism (Natureza, sociedade e pensamento. Um registro do
materialismo dialético e histórico), 2000, Universidade de Minnesota.
O ensaio que constitui o último capítulo foi publicado com o título Dinan-
zi al processo di globalizzazione: marxismo o populismo? (Frente ao processo de
globalização: marxismo ou populismo?), em Ernesto. Revista comunista (janeiro-
-fevereiro de 2002), nº 4; e em seguida, em MANES, S. (org.). Il mondo dopo
Manhattan (O mundo depois de Manhattan). La Città del Sole, Nápoles, 2002.
Esta segunda edição foi ampliada em relação à anterior (Bibliotheca, Gae-
ta, 1993), na qual, na verdade, estão presentes apenas os oito primeiros
capítulos.
Agradeço aos editores, diretores e organizadores dos jornais, revistas e co-
letâneas por terem autorizado a republicação dos diversos artigos, inter-
venções e ensaios.
Por fim, faço um agradecimento especial, por ter revisado atentamente os
textos aqui reunidos, a Emanuela Susca; sem sua colaboração este livro não
teria vindo à luz.

17
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

Advertência
Relação das siglas usadas no texto:

MEW = K. Marx-F. Engels, Werke (Obras), Dietz, Berlim, 1955 segs. No que
toca à tradução italiana, empregamos livremente aquela da edição das
Opere complete (Obras Completas) de Marx e Engels, em vias de publicação
pela Editori Riuniti, e também a de K. Marx-F. Engels, India Cina Russia.
Le premesse per tre rivoluzioni (Índia, China, Rússia. As premissas de três re-
voluções), organizada por B. Maffi, Il Saggiatore, Milão, 1976; quanto aos
artigos sobre a questão colonial publicados em inglês, tivemos presente o
texto original de AVINERI, S. Avineri (org.). Karl Marx on Colonialism and
Modernization (Karl Marx sobre colonialismo e modernização), Doubleday,
Nova Iorque, 1968.
Q = A. Gramsci, Quaderni del carcere (Cadernos do cárcere), edição crítica or-
ganizada por V. Gerratana, Einaudi, Turim, 1975; NM = A. Gramsci, Il nos-
tro Marx 1918-1919 (O nosso Marx, 1918-1919), organizada por S. Caprio-
glio, Einaudi, Turim, 1984; ON = A. Gramsci, L’Ordine Nuovo 1919-1920
(A Nova Ordem), organizado por V. Gerratana e A. A. Santucci, Einaudi,
Turim, 1987.
Loc = V. I. Lenin, Opere complete (Obras completas), Editori Riuniti, Roma,
1955 segs.
L = V. I. Lenin, Opere scelte (Obras escolhidas), Editori Riuniti, Roma, 1968.
StA = N. Bakunin, Stato e anarchia e altri scritti (Estado e anarquia e outros
escritos), Feltrinelli, Milão, 1968; B = Staatlichkeit und Anarchie und andere
Schriften (Estado e anarquia e outros escritos), organizado por H. Stuke, Ul-
lstein, Frankfurt, Main-Berlim-Viena, 1981.
Em todos os textos citados, o itálico foi livremente mantido, excluído ou
modificado conforme as exigências de grifo decorrentes da exposição.
Não se assinalaram as mudanças eventualmente introduzidas nessas tra-
duções para o italiano que foram utilizadas.

18
Primeira parte

Tradição liberal e “bárbara


discriminação entre as
criaturas humanas”

19
Primeira parte - Tradição liberal e “bárbara discriminação entre as criaturas humanas”

I
Marx, a democracia e a construção histórica
do conceito universal de homem

1. “Direitos sociais e econômicos” e Revolução de Outubro

Ao criticar a teorização da “liberdade de querer”, feita por Franklin


Delano Roosevelt e inserindo-a em uma linha de continuidade com a teo-
rização dos “direitos sociais e econômicos”, que encontra sua expressão
na Declaração Universal dos Direitos do Homem adotada pela ONU em 1948,
Friedrich Hayek observa: “Este documento é abertamente uma tentativa
de fundir os direitos da tradição liberal ocidental com a concepção comple-
tamente diversa da revolução marxista russa”1. A afirmação pode parecer
paradoxal, mas para apurar sua validade convém examinar a crítica funda-
mental que Marx dirige à sociedade de seu tempo. O que se encontra em
discussão é, como se observou, a relação liberdade-igualdade. Para além
de um certo limite, a desigualdade nas condições econômico-sociais finda
por frustrar a liberdade ainda que solenemente garantida e consagrada no
nível jurídico-formal. Por trás de Marx está a lição de Hegel, e já a este se
deve uma configuração clara e persuasiva do problema que examinamos:
aquele que sofre uma fome desesperada, a ponto de correr o risco de mor-
rer de inanição, está em uma condição de “completa ausência de direitos”,
ou seja, em uma condição que, em última análise, não difere essencialmente
daquela do escravo2.
A consciência de tal fato parece às vezes emergir da própria tradição
liberal, mas emerge enquanto confissão involuntária. Por que o trabalhador
assalariado deve ser excluído, conforme Benjamin Constant, dos direitos
políticos? Mas está claro: “Os proprietários são senhores de sua existência,
pois podem negar-lhe trabalho”3. No decorrer de sua viagem à Inglaterra
em 1833, diante do espetáculo de uma espantosa miséria em massa, em

21
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

estridente contraste com a opulência de poucos, Alexis de Tocqueville dei-


xa escapar uma espécie de exclamação: “Aqui o escravo, ali o proprietário;
ali a riqueza de alguns, aqui a miséria da maioria”4. Existe, portanto, uma
relação entre igualdade e liberdade, ou melhor, entre desigualdade mate-
rial levada ao extremo e substancial servidão. Porém a tese implícita na
exclamação fugaz em um impulso de arrebatamento, é depois rejeitada e
sistematicamente refutada pelo teórico liberal, o qual contrapõe liberdade
e igualdade, a ponto de acusar o movimento socialista (e a própria Revolu-
ção Francesa) de sacrificar a primeira no altar da segunda: “Quem busca na
liberdade qualquer outra coisa que não seja essa é feito para a servidão”5. A
“liberdade de querer” teorizada por Roosevelt resulta para Tocqueville não
menos intolerável que para Hayek, e ela com efeito remete a uma distinta
tradição política, a autores vistos com suspeição ou hostilidade pela tradi-
ção liberal (na França, conduz a Rousseau e ao jacobinismo; na Alemanha,
a Hegel que primeiro falou de “direitos materiais”6, e sobretudo a Marx,
que reúne e unifica em si a herança da filosofia clássica alemã e a do filão
rousseauniano-jacobino).
E hoje? Quem fala de modo mais ou menos explícito em “direitos so-
ciais e econômicos” não é apenas a ONU que, por certo, com um pouco
de boa vontade e para grande satisfação de Hayek, poder-se-ia tratar de
expurgar do Ocidente “autêntico”. E seria igualmente possível expressar
suspeitas sobre a autenticidade ocidental mesmo em relação à Constituição
da República italiana (nascida com a decisiva contribuição de socialistas e
comunistas), que institui ela própria uma relação entre liberdade e remoção
dos “obstáculos de ordem econômica e social” que a frustram ou ameaçam
frustrar. Deixemos de lado a ONU e a Itália e façamos referência exclusiva-
mente ao mundo anglo-saxão. Tomemos um autor como John Rawls. Sim,
exatamente o teórico estadunidense que exige a subordinação da igualda-
de à liberdade submete a uma importante cláusula limitativa o princípio
por ele formulado, por isso considerado válido apenas “para além de um
nível mínimo de renda”7 – e portanto na verdade destituído de validade

22
Primeira parte - Tradição liberal e “bárbara discriminação entre as criaturas humanas”

ao menos no que diz respeito ao Terceiro Mundo (a maior parte da huma-


nidade). Ou melhor, se quisermos levar ao pé da letra a cláusula limitativa
de Rawls, a prioridade da liberdade em relação à igualdade ficaria avariada
nos próprios países capitalistas avançados, e em particular nos EUA, onde
se assiste ao “aumento do percentual de pobres”8 e à extensão dos bolsões
de miséria e até de desnutrição9.
Pessoalmente, continuo a considerar mais persuasiva a formulação
para o problema em pauta dada por Marx (e até Hegel): abaixo de “um
nível mínimo de renda” não é tanto que a prioridade da liberdade vacile
em relação à igualdade ou mostre rachaduras, é que a liberdade não existe
na sua concretude. Isto é, a construção da liberdade é indissociável da cons-
trução de um mínimo de igualdade: neste sentido, Roosevelt associa a “li-
berdade de querer” às outras liberdades civis e políticas fundamentais. E,
contudo, apesar da formulação distinta e menos rigorosa, também a cláu-
sula limitativa do princípio formulado por Rawls traz à tona claramente
que a realização da liberdade em sua concretude não advém em um espaço
asséptico, sem relação com as condições materiais de vida, com o “nível
mínimo de renda”. Eis que agora reemerge aquele princípio da “liberdade
de querer”, no qual Hayek tem razão em sentir um cheiro de socialismo, de
marxismo e até da nefasta influência da Revolução de Outubro!

2. A crítica marxiana da sociedade liberal-burguesa


e sua eficácia histórica

Porém, Hayek, com inegável rigor e coerência, encara com mal disfar-
çada desconfiança um autor como Rawls10. Nem os Estados Unidos estão
imunes àquela contaminação socialista do Ocidente que o teórico neolibe-
ral não se cansa de denunciar. Ou melhor, mesmo naquele país manifes-
tou-se o funesto hábito, mais tarde difundido também na Europa, de usar
o termo “liberal” para designar “aspirações de natureza essencialmente so-
cialista”11. Convém aqui dar a palavra a um autor que, em contraste, Hayek

23
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

cita sem restrições em sua apologia da “grande sociedade”, como ele a de-
nomina, ou “sociedade aberta”, para retomar a expressão de Karl Popper12.
Pois bem, mesmo neste último autor podemos ler:
“Ainda que o Estado proteja os seus cidadãos de serem asse-
diados pela violência física (como ocorre, em princípio, sob um ca-
pitalismo desenfreado), ele pode frustrar os nossos intentos se não
consegue protegê-los do abuso do poder econômico. Em um Esta-
do de tal gênero, o economicamente forte está livre para assediar
outro que seja economicamente fraco e privá-lo de sua liberdade.
Em tais circunstâncias, a liberdade econômica sem limites pode
ser autodestrutiva da mesma forma que a liberdade física sem li-
mites, e o poder econômico pode ser quase tão perigoso como a
violência física; pois aqueles que possuem um excedente de ali-
mentos podem, sem usar a violência, forçar aqueles que estejam
na penúria a uma servidão ‘livremente’ aceita”13.
Pouco importa que Popper classifique Marx entre os “falsos profetas”.
Nesta passagem, ele termina por deduzir a crítica de fundo do liberalismo:
não existe apenas uma coação física, há também uma coação econômica; o
domínio econômico e o monopólio ou o controle dos “recursos” permite
que se “assediem” aqueles que são privados de tais recursos e vivem em
condições de absoluta precariedade econômica; estes últimos podem ser
juridicamente livres, mas no entanto acham-se essencialmente privados
de liberdade e reduzidos à “servidão”. Mesmo no plano terminológico as
consonâncias são evidentes: a “servidão” de que fala Popper faz pensar na
“escravidão assalariada” que Marx menciona a propósito da condição ope-
rária de seu tempo. Como está claro, as opções políticas dos dois autores
são muito diversas; e, no entanto, na configuração do nexo entre economia
e política, o denunciador do “falso profeta” continua em débito com este
último. Repassemos àquela que pode ser considerada a crítica fundamen-
tal de Marx à sociedade burguesa originada da Revolução Francesa. Esta
“completou a transformação das classes políticas em sociais, ou seja, fez das

24
Primeira parte - Tradição liberal e “bárbara discriminação entre as criaturas humanas”

diferenças de classe da sociedade civil simples diferenças sociais, diferenças da


vida privada despidas de significado na vida política” (MEW, I, 248). Mes-
mo em sua forma mais desenvolvida, mesmo ali onde anula as restrições
censitárias do direito eleitoral, o Estado burguês limita-se na realidade a
“fechar os olhos e declarar que essas oposições reais não possuem caráter
político, que essas não lhe causam incômodo (MEW, II, 101).
Que a polarização mesmo extremada entre miséria e riqueza seja um
fato pertencente apenas à esfera privada é ainda a convicção do liberalismo
de Hayek; mas tal convicção já foi abandonada, sob diversas formas, por
Roosevelt, pela ONU, pela Constituição da República Italiana, por Rawls
e pelo próprio Popper no trecho citado acima. Se, para Hayek, a tirania
começa ali onde o Estado deixa de considerar como meramente privadas
as desigualdades que subsistem no nível econômico-social, mesmo quando
extremas, para o Popper aqui examinado é justamente a ausência da in-
tervenção estatal contra tais desigualdades extremas que tolera e consagra
uma relação objetiva de tirania com servidão.
De resto, o teórico da sociedade aberta reconhece a dívida que as “demo-
cracias modernas” têm para com o marxismo, pois demonstra a irremediável
obsolescência deste último, com base no fato de que as democracias modernas
teriam posto em prática “a maior parte” das reivindicações programáticas do
Manifesto do Partido Comunista, a começar pela “determinação de um imposto
de renda fortemente progressivo ou proporcional”14. Sumamente imprecisa e
singular é a formulação aqui usada, que iguala e unifica dois tipos de taxação
bastante diferentes! Contudo, visto que Popper se refere ao Manifesto do Par-
tido Comunista, presume-se que ele se refira na verdade ao “starke Progressi-
vsteuer” o “imposto fortemente progressivo” precisamente reivindicado por
Marx e Engels (MEW, IV, 481). Segundo o teórico da sociedade aberta, tal
reivindicação seria hoje obsoleta pelo fato de já ter sido amplamente “aplica-
da” nas “democracias modernas”. Na realidade, ainda em nossos dias con-
tinua a se travar uma batalha cultural e política sobre tal questão: Hayek faz
referência precisamente à “taxação fiscal progressiva como meio para obter

25
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

uma redistribuição da renda em favor das classes mais pobres” para denun-
ciar a crise do liberalismo e a intolerável contaminação socialista sofrida pela
mesma sociedade ocidental15. Por outro lado, a acentuação do nexo entre
liberdade e condições materiais de vida é um ponto isolado em Popper, e
uma admissão involuntária da vitalidade do ensinamento de Marx: se tivesse
levado esse nexo realmente a sério, o teórico da sociedade aberta não teria
procedido a uma leitura tão maniqueísta da história do século 20 e não teria
investido com tanta violência contra os intelectuais que, esquecidos de que
“tudo andava bem no Ocidente”, se entregaram a um “grande estardalhaço”
e a “imprecações” totalmente fora de lugar no âmbito da “nossa sociedade”,
da “nossa civilização”, do “nosso belo mundo”16.
Hayek mostra-se mais rigoroso que Popper: para ele, não é fácil conci-
liar a denúncia de Marx como “inimigo” da “sociedade aberta” com o reco-
nhecimento explícito de um débito contraído pela mesmíssima “sociedade
aberta” em relação ao Manifesto do Partido Comunista! Contudo, Hayek in-
clui, na conta do socialismo e do “abandono dos princípios liberais” inclu-
sive “a decisão de tornar monopólio estatal toda a esfera da seguridade so-
cial”17, para não falar, enfim, do papel dos sindicatos, que para ele solapam
pela raiz o sistema liberal, ao eliminarem a “determinação concorrencial
dos preços” da força de trabalho e destruírem aquela parcela fundamental
da “economia de mercado” que é o “mercado de trabalho concorrencial”18.
Pode-se até defender, como Ralf Dahrendorf, um “novo liberalismo”: a
passagem do “velho” ao “novo” nada teve de indolor, pelo contrário, pres-
supõe gigantescas lutas político-sociais e a assimilação, não espontânea,
mas imposta pelos fatos, de elementos centrais do ensinamento de Marx e
de outros autores malditos pela tradição liberal. Quando o sociólogo anglo-
-alemão fala de “direitos sociais”, já retoma uma categoria por Hayek rotu-
lada de contaminada pelo socialismo e o marxismo. E quando Dahrendorf
denuncia no desemprego e na miséria uma ameaça e até uma supressão
dos “direitos civis”19, é claro que tira proveito do ensinamento marxiano,
por vezes até no plano da terminologia:

26
Primeira parte - Tradição liberal e “bárbara discriminação entre as criaturas humanas”

“A igualdade perante a lei pouco significado tem se não exis-


te sufrágio universal e outras chances de participação política. As
chances de participação permanecem uma promessa vã quando as
pessoas não dispõem da posição social e econômica que lhes dê
condições de gozar daquilo que as leis e constituições lhes prome-
tem. Pouco a pouco, a ideia de cidadania foi dotada de substância.
Passou de uma quantidade formal de direitos a um status que in-
clui, além do direito eleitoral, uma renda condigna e o direito de
possuir vida civil, mesmo quando se é enfermo, velho ou desem-
pregado20.
Eis que reemerge a crítica do direito “formal” tão cara a Marx; porém se
liberdade e igualdade permanecem formais sem a “substância” da “renda
condigna”, daí deriva que a democracia ainda está inconclusa, nos próprios
países industriais avançados, para não dizer que continua a ser uma ilusão
naqueles países do Terceiro Mundo que no entanto se se perfilam com o
Ocidente e o “mundo livre”.

3. Liberalismo e “teodiceia da felicidade”

Estava muito mais próximo do liberalismo o Dahrendorf dos anos 1950


e 1960, que denunciava os “traços iliberais” contidos na crítica de Lassalle
à teoria do Estado como simples guardião da propriedade, indiferente ao
drama da miséria e à questão social21; era muito mais liberal o Dahrendorf
que formulava a tese segundo a qual “a posição social de um indivíduo
(depende portanto) do nível de escolaridade que conseguiu alcançar”22.
Sim, a referência era aos anos do “milagre econômico” ideologicamente
transfigurado; e ainda assim Dahrendorf terminava por compreender um
motivo clássico da tradição liberal: Ludwig von Mises considera que, “sob
o capitalismo” enquanto tal, “a posição social de cada um depende de sua
própria ação”, de modo que num eventual “fracasso” o indivíduo não tem
mais espaço para “desculpas” e só pode culpar a si próprio23. Por certo se

27
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

trata de uma tese que, para ser formulada, não esperou a formação de uma
sociedade capitalista desenvolvida. “A felicidade à qual o homem está des-
tinado não é senão aquela proporcionada por sua própria força”, ou seja,
sua capacidade – assim se exprimia Wilhelm Von Humboldt24, já no fim do
século 18, em uma Alemanha ainda fundamentalmente aquém do capitalis-
mo. É um pouco a “teodiceia da felicidade” de que fala Max Weber:
“Os dominadores, os possuidores, os vencedores, os sãos”,
em síntese, “o homem feliz raramente se contenta pelo simples
fato de possuir a própria felicidade. Ele necessita também ter direi-
to a tal felicidade. Quer ser convencido de ‘merecê-la’ e sobretudo
de merecê-la em relação aos outros. E quer portanto ser também
autorizado a crer que os menos afortunados, que não possuem
semelhante sorte, receberam equitativamente apenas aquilo que
lhes cabe. A felicidade quer ser ‘legítima’”25.
Deste ponto de vista, um elemento implícita ou declaradamente social-
darwinista atravessa a tradição liberal: dado que a miséria não coloca pro-
priamente em causa a ordem social existente, os pobres são os fracassados,
aqueles que, por sua preguiça ou incapacidade, sofreram um revés ou der-
rota no âmbito daquela imparcial “luta pela existência”, da qual fala o libe-
ral Herbert Spencer (cf. mais adiante, cap. VI, 8), antes mesmo de Darwin.
Acha-se em Hayek uma versão mais adocicada da teodiceia da felici-
dade. É verdade que este último considera inaceitável qualquer ideia de
justiça baseada em “uma proporção entre recompensa e mérito moral”. En-
cara a ideologia meritocrática menos como consagração das relações sociais
existentes e mais como um possível elemento de desorientação e distúrbio. 
Longe disso, dado que o mérito não é objetivamente mensurável e seria
arbitrário ou despótico pretender retribuí-lo com base na opinião subjetiva
que se tenha sobre o mérito próprio e alheio, só resta a Hayek substituir a
categoria de mérito pela de valor (econômico): “É bom que os indivíduos
usufruam de vantagens proporcionais aos benefícios que seus semelhan-
tes obtêm de suas atividades”26. Porém esse ajustamento de categorias não

28
Primeira parte - Tradição liberal e “bárbara discriminação entre as criaturas humanas”

modifica essencialmente a teodiceia da felicidade, cujo lugar de realização


passa a ser o mercado. De qualquer modo, permanece estabelecido que
“uma sociedade livre só poderá funcionar e conservar-se caso seus mem-
bros considerem justo que cada indivíduo ocupe o lugar correspondente à
sua própria ação e o aceite como tal”27. Se a teodiceia da felicidade, tal como
Weber a define, tem por função a produção da consciência tranquila para
aqueles que gozam de riqueza ou do poder, ou, em resumo, da felicida-
de, na versão de Hayek ela alcança seu objetivo com particular elegância:
não há incoerência ou contradição alguma entreposição econômico-social
e valor objetivamente medido pelo mercado. Tanto isso é verdadeiro que
qualquer manifestação de descontentamento face a tal teodiceia realizada
pelo mercado pode ser atribuída exclusivamente ao sentimento de “inveja”
e à fuga à “responsabilidade individual”28.
Em qualquer caso, ainda que com variantes ideológicas às vezes rele-
vantes, na tradição liberal a miséria tem a ver com o demérito individual,
o infortúnio e o acaso, a ordem natural e mesmo providencial das coisas,
porém de forma alguma questiona as relações econômico-sociais e as insti-
tuições políticas. Por que, segundo Tocqueville, a revolução de 1848, já em
fevereiro, é essencialmente socialista, antiburguesa (e antiliberal)?29 Porque
nela estão fortemente presentes “as teorias econômicas e políticas” que pre-
tendem “fazer crer que as misérias humanas sejam obra de leis e não da
Providência, e que seria possível suprimir a pobreza mudando a ordem
social”30. Para o liberal francês, até a regulamentação legislativa e a conse-
quente redução da jornada de trabalho (a “jornada de 12 horas”) entram no
rol das “doutrinas socialistas” e portanto são condenadas sem apelação31.
Contra a pretensão de se colocar “a prudência e sabedoria do Estado no
lugar da prudência e sabedoria individuais”, Tocqueville retruca que “não
existe nada que autorize o Estado a se intrometer na indústria”: é o célebre
discurso de 12 de setembro de 184832, pronunciado para que a Assembleia
Constituinte rejeitasse a reivindicação do “direito ao trabalho”, que já havia
sido sanguinariamente rejeitada nas jornadas de junho, mas que, no entan-

29
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

to, por vias tortuosas, abriu seu caminho, por exemplo, na Constituição da
República Italiana.
Por certo, não se verificou no Ocidente a radical socialização dos meios
de produção prevista e desejada por Marx; pelo contrário, um processo de
reprivatização está em curso na Europa Oriental, enquanto dúvidas e relu-
tâncias, inclusive profundas, se manifestam nos próprios países que, de um
ou outro modo, ainda continuam perfilados ao “socialismo”. Resta o fato
de que a relação entre economia e política, a própria concepção da liberda-
de, revela-se profundamente transformada, inclusive no Ocidente – pelo
ensinamento de Marx.

4. Trabalhadores assalariados, instrumentos de trabalho


e “máquinas bípedes”

Portanto, Hayek tem razão ao denunciar que ocorreu uma contamina-


ção socialista e marxista da sociedade ocidental. Ou melhor, tem bem mais
razão do que suspeita. Seu erro, na verdade, é proceder a uma reconstrução
decididamente estereotipada da tradição liberal. Não é apresentada nenhu-
ma prova da tese segundo a qual “a luta contra todas as discriminações
com base em origem social, em nacionalidade, em raça, em credo, em sexo
etc. permanece uma das características mais destacadas da tradição libe-
ral”33. Na realidade, para nos limitarmos a um exemplo macroeconômico,
em um país clássico da tradição liberal (os EUA), o instituto da escravatura
subsistiu até 1865, e a sua abolição formal depois daquela data certamente
não significou o imediato desaparecimento de toda discriminação contra os
negros, os quais por longo tempo se viram excluídos, por causa da dor da
pele, de direitos políticos e às vezes inclusive civis; a legislação de alguns
estados do Sul continuou a proibir os casamentos inter-raciais até quase os
nossos dias (cf. mais adiante, cap. II, 1 e 4).
Porém, Hayek insiste em sua hagiografia: “O liberalismo clássico havia
apoiado as reivindicações de ‘liberdade de associação’”34. Na verdade, a po-

30
Primeira parte - Tradição liberal e “bárbara discriminação entre as criaturas humanas”

lêmica antissindical, ora mais explícita e virulenta, ora em surdina e quase


imperceptível, acompanha constantemente a história do pensamento libe-
ral. Por outro lado, para desmentir o patriarca do neoliberalismo basta citar
os seus autores prediletos, como veremos. Bernard Mandeville descreve,
surpreso e indignado, as primeiras tentativas dos miseráveis de seu tempo
de se organizarem de modo a melhorar suas condições:
“Estou informado, por pessoas dignas de fé, de que alguns
desses lacaios levaram a insolência a tal ponto para se reunirem
em sociedade, e fizeram leis segundo as quais se obrigam a não
prestar serviço por uma soma inferior àquela que estabeleceram
entre eles, a não carregarem bagagens, embrulhos ou pacotes que
ultrapassem certo peso, fixado em duas ou três libras, e se impuse-
ram uma série de outras regras diretamente opostas aos interesses
daqueles a quem prestam serviço, e ao mesmo tempo contrárias à
finalidade para a qual foram contratados”35.
Por sua vez, Edmund Burke vê a liberdade de contratação posta em
perigo ou anulada por qualquer acordo ou vínculo associativo entre os ope-
rários, por qualquer “combination or collusion” (“associação ou coligação”)36.
No que diz respeito à França, vale notar que a Lei Le Chapelier, que proibia
as associações operárias, foi revogada somente em 188737. Por trás da re-
vogação estão as gigantescas lutas do movimento operário e socialista que
culminaram na Comuna de Paris: estamos portanto depois de 1870, a data
que, após os primeiros e ruinosos primórdios de 1848, segundo Hayek assi-
nala o “declínio da doutrina liberal”, declínio que coincide com a irrupção
na cena política de um movimento operário e socialista organizado. E no
que diz respeito à superação da discriminação censitária dos direitos polí-
ticos, aliás considerada legítima por Hayek38, é ainda mais recente e remete
às convulsões ocorridas com a Primeira Guerra Mundial e a Revolução de
Outubro39.
A democracia moderna não pode ser compreendida sem as ideias e
lutas da tradição democrático-socialista, sendo que a última tem um mérito

31
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

ainda mais elevado – o de ter contribuído de modo decisivo na elabora-


ção do conceito universal de homem, estranho, até então, à tradição liberal.
John Locke fala como de um fato óbvio sobre os “plantadores das Índias
Ocidentais”, que possuem escravos e cavalos com base nos direitos adqui-
ridos com a regulamentar compra e venda40. Ainda em pleno século 19,
John Stuart Mill inclui aquelas que define como raças “menores de idade”
apenas um pouco acima das espécies animais superiores41.
Porém, a plena dignidade humana não é negada apenas às populações
coloniais. Se Locke desumaniza o escravo negro equiparando-o ao cavalo,
um século mais tarde Edmund Burke (o “grande whig” inglês, tão caro,
seja a Dahrendorf, seja a Hayek que, por sua vez, o define como “grande
e perspicaz”)42, classifica o trabalhador braçal ou assalariado na categoria
de instrumentum vocale (instrumento que fala) e, portanto, seguindo uma
repartição clássica, coloca-o entre os instrumentos de trabalho, junto com o
boi (o instrumentum semivocale) e o arado (o instrumentum mutum, “instru-
mento mudo”)43. Até o autor do talvez mais célebre manifesto da Revolução
Francesa, isto é Emmanuel Joseph Sieyès, fala da “maior parte dos homens
como máquinas de trabalho”, ou “instrumentos humanos da produção”,
ou ainda “instrumentos bípedes”. Chega inclusive a uma negação suficien-
temente explícita da qualificação de homem:
“Os infelizes voltados aos trabalhos penosos, produtores dos
gozos de outrem, e recebendo apenas algo para sustentar os seus
corpos sofredores e necessitados de tudo, essa multidão imensa de
instrumentos bípedes, sem liberdade, sem moralidade, sem facul-
dades intelectuais, nada possuindo a não ser as mãos que pouco
ganham e uma mente absorvida por mil preocupações que só ser-
vem ao seu sofrimento (...), são estes que vós chamais de homens?
Diz-se que são civilizados (policés), mas haveria desses apenas um
que fosse capaz de entrar para a sociedade?44
Convém notar que é justamente esse nominalismo antropológico (a ne-
gação do conceito universal de homem) que constitui o fundamento teórico

32
Primeira parte - Tradição liberal e “bárbara discriminação entre as criaturas humanas”

da negação de direitos políticos aos não proprietários: Benjamin Constant


os equipara a “crianças” que, constrangidas a trabalhar dia e noite, per-
manecem em uma situação de “eterna dependência”45; de certo modo são
humanos, mas com a singular característica de que não chegam, e não po-
derão nunca chegar, à maioridade. Constant não está longe de Sieyès; tam-
bém este, quando não fala de “instrumentos humanos”, ou melhor, “bípe-
des”, refere-se a “multidão sempre criança”46. É uma visão que continua
de algum modo atuante em nossos dias, em um autor como Hayek, o qual
declara explicitamente que uma sociedade livre poderia muitíssimo bem
recusar-se a conceder o direito de voto às massas: o direito ao sufrágio é
negado também às “pessoas demasiado jovens”47!

5. Marx crítico do holismo liberal

Só se pode entender a insistência de Marx no “homem” enquanto “ente


genérico” à luz da luta pela construção do conceito universal de homem.
Já em Hegel é possível encontrar a afirmação de que, em última análise, a
qualidade de homem é negada não só ao escravo, que o senhor trata como
um instrumento de trabalho, mas também ao pobre, reduzido pela fome à
condição substancial de escravidão 48. Por sua insistência no homem como
“ente genérico”, Marx foi com frequência acusado de holismo. Não é o caso
de nos determos aqui na ambiguidade e inadequação dessa categoria. No
entanto, vale a pena observar que, sob muitos aspectos, O capital se apre-
senta como uma denúncia do holismo que atravessa a economia política
e a tradição liberal. Vejamos algumas das teses criticadas por Marx: “Para
tornar a sociedade feliz” – escreve Bernard Mandeville – “é necessário que
a grande maioria permaneça tão ignorante quanto pobre”. Ou: “A rique-
za mais segura consiste em uma massa de pobres trabalhadores” (MEW,
XXIII, 647).
Não é tão importante o fato de que o autor, entre todos, mais caro a
Hayek49, considere a miséria e a ignorância dos trabalhadores assalariados

33
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

como um fato natural, inevitável e ao mesmo tempo benéfico. Importa mais


examinar a estrutura epistemológica do discurso de Mandeville: quem exi-
ge o sacrifício de uma inumerável massa de indivíduos é a “sociedade”,
ou a “riqueza”, um coletivo monstruoso que devora a enorme maioria da
população. Ou tome-se então Destutt de Tracy, também ele alvo da crítica
de Marx:
“As nações pobres são aquelas em que o povo vive no confor-
to, enquanto as nações ricas são aquelas onde o povo é geralmente
pobre”, (MEW, XXIII, 677).
A “riqueza das nações” – para usar a expressão cara a Adam Smith – é o
novo nome desse Moloch devorador, que poderia até se chamar “liberdade”:
a carga antiestatista e liberal de Mandeville é fortemente evidenciada e ce-
lebrada por Hayek, o qual contudo sobrevoa desenvoltamente a outra face
da medalha, the working slaving people (o trabalhador escravo), “a parte mais
fraca e pobre da nação”, que, segundo Mandeville, trabalha, e é justo e inevi-
tável que trabalhe, exatamente como os escravos. E tal como antes a “riqueza
das nações” exigia a miséria da maioria da população, também agora aquela
que podemos chamar de “liberdade das nações” exige a substancial escravi-
dão sempre da maioria da população.
Mas é necessário nos determos ainda um pouco mais na estrutura do
discurso criticado pelo Capital: a felicidade, ou a riqueza, ou a liberdade da
“sociedade” ou da “nação” exigem a infelicidade, a miséria, a escravização
da maioria de seus membros. Por que essa proposição não é vista como lo-
gicamente contraditória? É claro: porque os trabalhadores assalariados não
são incluídos propriamente, ou plenamente, na categoria de “sociedade”,
ou de “nação”, um coletivo que só apela a eles para que desempenhem o
papel de vítimas a sacrificar.
A necessidade de proceder a uma drástica limitação dos direitos ci-
vis dos grupos sociais ou étnicos considerados perigosos e subversivos é,
às vezes, explicitamente teorizada. Eis com que termos Lord Palmerston
(Henry John Temple), o campeão da Inglaterra liberal, rejeita a concessão

34
Primeira parte - Tradição liberal e “bárbara discriminação entre as criaturas humanas”

da liberdade de religião aos católicos irlandeses: “A legislação de um país


tem o direito de condenar uma parte da comunidade àquela privação de
direitos políticos, caso a considere necessária para a segurança e o bem-es-
tar do conjunto (...). Isso faz parte dos princípios fundamentais nos quais se
apoia um governo civilizado.” Emerge aqui a palavra de ordem-chave do
holismo (segurança e bem-estar do conjunto); e esta emerge na boca de um
expoente de primeiro plano do liberalismo, não de Marx que, ao contrário,
polemizando com a afirmação de Lord Palmerston, condena a total subor-
dinação, teorizada por este, da “massa do povo” a tal universal ilusório e
mistificador como a “legislação”, “ou, em outras palavras, a classe domi-
nante” (MEW, IX, 361).
Fica evidente que, não poucas vezes, o liberalismo priva a “multi-
dão sempre infantil” não apenas de direitos políticos; priva-a inclusive de
direitos civis. Mandeville chega ao ponto de querer regulamentar coer-
citivamente o tempo livre dos trabalhadores assalariados, que deveriam
ser mantidos à distância de divertimentos desregrados para em vez disso
assistir a cerimônias religiosas de modo a estimular seu empenho no tra-
balho e reforçar o seu senso de disciplina. Ainda no século 19 os liberais
alemães Karl von Rotteck e Theodor Welcker, a fim de prevenir “já na fon-
te” qualquer ataque ao direito de propriedade, exigiam que os mendigos
e pessoas desprovidas de meios de subsistência fossem recolhidos, mes-
mo com uma simples “medida autônoma das autoridades da polícia”,
em “casas de trabalhos forçados”, e por tempo indeterminado, para que
sejam submetidos a uma disciplina severa, quase impiedosa (cfr. Infra,
cap.II, 1 e V,1).
Já se falou aqui da contribuição decisiva do movimento democráti-
co e socialista para a construção do conceito universal de homem (ou de
pessoa, ou de indivíduo). Nietzsche mostra boa sagacidade quando atri-
bui ao “socialismo” a “igualdade da pessoa”. A “igualdade da pessoa”
aqui contestada é a afirmação de que todo membro do gênero humano
deve ser reconhecido como pessoa. Em vez disso, em furibunda polê-

35
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

mica precisamente contra o socialismo, Nietzsche afirma que “a maioria


não é pessoa alguma”; “os indivíduos são muito poucos”. E, como Burke,
que com os olhos na agricultura definia o trabalhador assalariado como
instrumentum mutum, também Nietzsche, fitando a indústria, qualifica-o
como “instrumento de transmissão”, com a função de transmitir o movi-
mento aos teares e aos meios de produção propriamente ditos. Tal como
Sieyès falara dos assalariados como “máquinas de trabalho”, Nietzsche
refere-se a eles como “máquinas inteligentes”. E, assim como Mandevil-
le considerava oportuno que se negasse instrução à “parte mais fraca e
pobre da nação”, de modo a não provocar nenhum tipo de obstáculo ao
processo de reprodução do working slaving people, Nietzsche julga a ins-
trução popular absolutamente incompatível com a escravidão substancial
que é o trabalho assalariado, e que ela constitui o pressuposto de qualquer
civilização50. Os primeiros trabalhos de Nietzsche se situam no período
em que Hayek coloca “o declínio da doutrina liberal”, na sequência do de-
senvolvimento do movimento democrático-socialista. Em polêmica com
este movimento, e na desesperada tentativa de retroceder mais aquém da
construção do conceito universal de homem, Nietzsche objetivamente ter-
mina por retomar temas e desígnios típicos do liberalismo, ou pelo menos
do primeiro liberalismo.

6. As “crianças”, os “bárbaros” e a tradição liberal

Na Inglaterra que vai da metade do século 17 à metade do século 18, a


atitude dominante em relação ao “novo proletariado industrial” é tão dura
– sublinha o grande sociólogo e trabalhista inglês R. H. Tawney – “que não
encontra paralelo em nossos tempos exceto no comportamento dos mais
abjetos colonialistas brancos para com os trabalhadores de cor”51. Na reali-
dade, como tentei demonstrar, tal comportamento vai bem além da Ingla-
terra e do limite temporal aqui indicado. Vimos primeiro Sieyès e depois
Constant falarem dos trabalhadores assalariados como eternas crianças.

36
Primeira parte - Tradição liberal e “bárbara discriminação entre as criaturas humanas”

Assiste-se mais tarde a um interessante deslocamento dessa metáfora. Ain-


da que no âmbito de um discurso conjugado no futuro, Mill opina que os
mesmos trabalhadores assalariados deveriam gozar de direitos políticos,
ainda que a discriminação censitária que sai pela porta ameace retornar
pela janela da proposta, segundo a qual as pessoas dotadas de mais in-
teligência deveriam dispor de um voto múltiplo de modo a exercer uma
influência maior52.
Parece que os assalariados não são mais eternas crianças; porém tal ima-
gem só desaparece da Europa para reaparecer nas colônias, próximo das
“comunidades atrasadas em que a própria raça pode ser considerada menor
de idade”. Como se portar em tais casos? Deixemos a palavra com Mill:
“As dificuldades que inicialmente se opõem ao progresso es-
pontâneo são tão grandes que raramente há escolha quanto aos
meios para superá-las: e a um governante cheio de intenções pro-
gressistas é justificado o uso de quaisquer expedientes que lhe permi-
tam alcançar um fim inatingível de outro modo. O despotismo é um
modo legítimo de governo quando se lida com bárbaros (pg. 19), desde
que o fim seja o seu progresso, e os meios ficam justificados para
efetivamente lograr tal fim. A liberdade, enquanto princípio, não
tem aplicação em alguma situação anterior ao momento em que
os homens se tornem capazes de melhorar por meio da discussão
livre e entre iguais. Até então, aí nada existe para eles a não ser a
obediência absoluta a um Akbar ou um Carlos Magno, se tiverem
a sorte de encontrá-lo.
Está claro: a liberdade “vale apenas para seres humanos na maturidade
de suas faculdades”53. Tal como antes a imagem das crianças incapazes de
entender e de querer constituía a maioria da população da Europa, agora,
deslocada para as colônias, a mesma imagem continua sempre a constituir
a maioria da humanidade. É verdade que não se trata mais de uma condi-
ção a ser considerada eterna; e no entanto não só a obtenção de maturidade
é colocada em um futuro bastante remoto, mas sobretudo a verificação da

37
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

maturidade alcançada compete, por definição e exclusivamente, àqueles


que desde já são, ou se autoproclamam, capazes de entender e de querer.
Mill é tão isento de dúvidas sobre essa autoproclamação, sobre o fato de
que os países e povos tratados a ferro e fogo pelo Ocidente representam não
só a menoridade, mas também a barbárie, para justificar indiretamente até
a infame Guerra do Ópio, e para justificá-la mais em nome dos princípios
liberais: “A proibição de importar ópio para a China” viola a “liberdade (...)
do comprador” antes ainda que a “do produtor ou vendedor”54.
Estamos no período da segunda guerra do Ópio. No início da primeira,
Tocqueville exprime-se em até em termos líricos:
“Eis, portanto, enfim que a mobilidade da Europa enfrenta a
imobilidade chinesa! É um grande acontecimento, especialmente
quando se pensa que ele não é mais que a sequência, a última etapa
de uma grande quantidade de eventos da mesma natureza, todos
impulsionando gradualmente a raça europeia para fora de seus
confins, e submetendo sucessivamente ao seu império ou à sua
influência todas as outras raças; (...) é o subjugamento das quatro
partes do mundo pela quinta. É bom, portanto, não ser muito ma-
ledicentes em relação ao nosso século e a nós mesmos. Os homens
são pequenos, mas os acontecimentos são grandes”55.
Como observador atento e lúcido que é, Tocqueville termina por se
aperceber aqui e ali da realidade do colonialismo que, longe de civilizar
a Argélia, agrava seu fardo não só de dor, mas também de desordem, ig-
norância e barbárie56; o colonialismo arrisca mesmo a provocar genocídios
análogos àquele verificado com a “conquista da América”57. Sim, “é não só
cruel mas absurdo e impraticável querer sufocar ou exterminar os indíge-
nas”; e, no entanto, na Argélia “dizimamos a população”, que por outro
lado continua a ser reduzida pela fome provocada pela guerra de conquista
(“neste momento Abdel-Kader morre literalmente de fome”); e, no entanto,
para os oficiais e soldados do exército francês “a morte de alguns destes
(árabes) parece ser um bem”58. Contudo, apesar desses tons realistas, Toc-

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Primeira parte - Tradição liberal e “bárbara discriminação entre as criaturas humanas”

queville considera impensável e desaconselhável a retirada da França e da


Europa das colônias. Para o liberal francês, a Europa continua a ser até o
fim sinônimo de civilização e as populações coloniais de barbárie. Em 1857,
quando toda a Índia parece rebelar-se contra a dominação inglesa, inclusi-
ve as tropas armadas e adestradas pela Inglaterra, Tocqueville escreve ao
amigo inglês Reeve, com quem celebrara 17 anos antes o início da Guerra
do Ópio, recorre dessa vez a tons angustiantes: a recaída da Índia na “bar-
bárie” “seria desastrosa para o futuro da civilização e para o progresso da
humanidade”. Pode-se porém esperar uma repressão eficaz: “Em nossos
dias não há quase nada impossível para a nação inglesa, desde que esta
empregue todos os seus recursos e toda a sua vontade”59.
Neste ponto seria fácil contrapor a Mill e Tocqueville o quadro pavo-
roso da dominação inglesa na China e na Índia, que emerge de algumas
páginas de Marx, ainda que nem mesmo ele se libere completamente da
leitura em perspectiva civilizadora do expansionismo colonial, própria da
cultura liberal da época (cf. mais adiante, cap. VII, 3). Não falta, porém,
ironia sobre a “guerra civilizadora” das potências coloniais: na Guerra do
Ópio, enquanto a China, “o semibárbaro tinha fé nos princípios da lei mo-
ral, o civilizado propunha-lhe o princípio do Eu”60, isto é, da liberdade de
comércio e da civilização liberal, princípio tão eloquentemente defendido
por Mill. Mas onde está a civilização e onde está a barbárie? A Europa en-
tretanto pode conservar sua certeza de representar a civilização, na medida
em que ainda está do lado do conceito universal de homem. Eis por que ela
ferve de indignação com a crueldade e os “horrores”– como os define Toc-
queville61 – dos insurretos na Índia e na China, mas continua a manter sua
consciência tranquila não obstante todos os crimes que ela comete nas colô-
nias. Para usar as palavras de Marx, “a crueldade, como todas as coisas des-
te mundo, tem suas modas que variam conforme o tempo e o lugar. César,
o refinado homem de cultura, narra candidamente ter ordenado que fosse
cortada a mão direita de alguns milhares de guerreiros gauleses” (MEW,
XII, 288). Mas a Gália era então sinônimo de barbárie, enquanto nos tempos

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MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

de Mill e Tocqueville a França era sinônimo de civilização. É Tocqueville


quem registra como os brancos na América liberal e democrática recusam-
-se a reconhecer nos negros “os traços gerais da humanidade”, assim como
se recusam em essência a reconhecê-los nos índios62; é Tocqueville quem
observa como “os árabes são como bestas maléficas”63 aos olhos dos oficiais
franceses na Argélia. Tocqueville ainda assim se recusa explicitamente a
aplicar o princípio da égalité (igualdade) aos “povos semicivilizados”. E é
sempre o liberal francês, o qual mesmo que aqui e ali termina por reconhe-
cer quanto de bárbaro existe no comportamento da França na Argélia, para
justificar de qualquer modo o braço de ferro do domínio colonial, quando
declara que “magnanimidade e indulgência” são virtudes incompreensí-
veis para os “povos semicivilizados”, capazes de compreender unicamen-
te o discurso da “justiça exata, mas rigorosa”. Em todo caso, nem por um
instante os árabes devem ter a ilusão de que a França (e a Europa) possa
abandonar sua “posição dominante”: isso significaria provocar“ estupor e
confusão em seus espíritos, enchê-los de noções errôneas e perigosas”64.
Já vimos Mill falar com indiferença de “bárbaros” ou de “raças” para
conceber o que chama de menores”. Mesmo na diversidade de suas confi-
gurações e seus deslocamentos geográficos, a imagem da multidão infantil
acompanha constantemente, como uma sombra, o pensamento liberal, e
daí define a demarcação de fundo: existem homens (e às vezes neles só têm
de humano a aparência) para os quais a liberdade resulta ser um joguete ao
mesmo tempo supérfluo e perigoso. Nas palavras de Sieyès: “Dê um brin-
quedo a um menino e ele o quebrará para ver como é feito. (...) Agora o me-
canismo social também é um brinquedo para a multidão sempre criança”65.
Porém, como os bárbaros, ou “semicivilizados”, são as crianças, igual-
mente as crianças que vivem na metrópole também se transformam facil-
mente em bárbaros ou demônios. Já ao se referir ao processo de radicali-
zação da Revolução Francesa, quando as massas populares irrompem na
cena política, Mallet du Pan lança o grito de alarme: “Os hunos (...) estão
entre nós”. Quatro décadas mais tarde, em seguida à revolta dos tecelões de

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Primeira parte - Tradição liberal e “bárbara discriminação entre as criaturas humanas”

Lion, Saint-Marc Girardin denuncia a “nova invasão dos bárbaros”66. De-


pois da sublevação operária de junho de 1848, o mesmo Tocqueville, ainda
que descrevendo as emoções coletivas daqueles dias, termina por evocar
também ele o espectro “dos vândalos e dos godos”67.
A sociedade burguês-liberal tende a ler os próprios conflitos de classe
em termos naturalistas e de raça. É por isso que os mesmos trabalhadores
da metrópole, quando se rebelam, são denunciados como bárbaros, por-
tadores da ameaça da barbárie no interior do próprio mundo civilizado, o
qual já precisa se resguardar dos bárbaros externos. Assim se explicam as
recorrentes propostas de esterilização em massa dos vagabundos, desocu-
pados e criminosos, dos bárbaros verdadeiramente incapazes de alcançar
o patamar da civilização: é uma ideia que joga um papel importante na
cultura estadunidense dos séculos 19 e 2068, mas que está presente ainda
em Winston Churchill69.

7. Neoliberalismo e nova direita

Se hoje, quando se fala de direitos humanos, entende-se, ao menos da


parte da cultura política mais avançada, o homem na sua universalidade, o
homem enquanto tal, não se pode ignorar a grande contribuição que para
a obtenção desse resultado deu a tradição política que vai de Maximilien
de Robespierre (o primeiro a contestar as limitações censitárias ao direito
de voto e a abolir a escravidão nas colônias) a Vladimir Lênin (a Revolução
de Outubro deu um impulso decisivo ao processo de descolonização e re-
conhecimento do direito de autodeterminação inclusive dos povos antes
considerados bárbaros).
Obviamente, a constatação desse fato histórico não deve servir de obs-
táculo a um balanço crítico, isento de indulgências, em relação à tradição
revolucionária aqui em questão. No que diz respeito mais especificamente
ao marxismo, a ilusão, que o atravessa em profundidade, da brevidade da
fase de transição a um comunismo utopicamente transfigurado, produziu

41
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

consequências certamente nefastas: é essa ilusão que levou a negligenciar,


ou pior, a considerar puramente “formal”, o problema das garantias demo-
cráticas, ou, caso se queira, o velho problema liberal dos limites de poder,
qualquer que seja ele.
Contudo, seria errado pensar que esse tema esteja de todo ausente em
Marx e Engels. Há aí inclusive uma apaixonada celebração da tradição li-
beral anglo-saxã: o “direito inglês” – escreve Engels em 1892 – é “o único
que conservou intata, e transmitiu à América e às colônias, a melhor parte
daquela liberdade pessoal, daquela autonomia local e daquela indepen-
dência face a toda intervenção forânea, com exceção daquele da justiça”:
tudo aquilo que, ao contrário, se perdeu na Europa Continental com a mo-
narquia absoluta, e jamais foi plenamente reconquistado (MEW, XXII, 304).
A distinção que cumpre assinalar, entre Marx e Engels, de um lado, e
a tradição liberal, de outro, não é o tema da liberdade do indivíduo, é, ao
contrário, o reconhecimento da dignidade de indivíduo e de homem a todo
ser humano, assim com a consciência de que sem a “liberdade do querer”
corre-se o risco de tornar formais as liberdades civil e política, e o próprio
reconhecimento da dignidade humana. Por certo, as profundas transfor-
mações políticas e sociais se desenvolveram de formas bem diversas em
relação àquelas que Marx e Engels previram e sugeriram. E, no entanto,
Hayek tem razão quando identifica a influência do movimento democrá-
tico-socialista e do marxismo em Roosevelt e nos documentos da ONU, na
configuração da sociedade “liberal-democrática”.
É importante traçar um balanço histórico correto do mundo em que
vivemos para compreender os termos reais do atual debate político. O que
se assiste hoje é a tentativa de proceder a uma gigantesca depuração, da so-
ciedade “liberal-democrática”, excluindo dos elementos (ou da maior quan-
tidade possível de elementos) de democracia aquilo que neles foi inserido
pelas prolongadas lutas do movimento democrático-socialista. Com razão
Dahrendorf distingue no neoconservadorismo a tentativa de proceder um
retrocesso em relação à “ideia dos direitos civis e sociais”, a tentativa de

42
Primeira parte - Tradição liberal e “bárbara discriminação entre as criaturas humanas”

retirar a ideia de direito daquela “substância social”, que é o resultado da


“resposta da sociedade aberta aos desafios da luta de classe”70.
E, então, não obstante todas as diferenças, o neoconservadorismo ou
neoliberalismo termina inevitavelmente por se encontrar com a direita, a ve-
lha e a nova, na liquidação não só do movimento socialista, mas desde logo
da herança da Revolução Francesa e da ideia de égalité, do “Estado-provi-
dência”71 etc. Às vezes a Nova Direita reivindica explicitamente a tradição
liberal, para contrapô-la à massificação do mundo moderno. Tocqueville
– escreve Alain de Benoist – foi “um dos primeiros a descobrir a contradi-
ção oculta no slogan que, a partir de 1789, associa igualdade a liberdade”72. É
certo que o anti-igualitarismo dos neoliberais não parece suficientemente
radical para a Nova Direita73. No entanto, existe um tema de fundo que une
as duas correntes. Benoist não se cansa de denunciar no conceito universal
de homem uma versão superficialmente laicizada do monoteísmo judai-
co-cristão, que constituiria a gênese do “totalitarismo igualitário”74. Com
referência à já mencionada Declaração universal dos direitos do homem, Hayek,
por seu turno, ironiza o “conceito de ‘direito universal’ que assegura ao
camponês, ao esquimó e talvez até ao abominável homem das neves ‘fé-
rias periódicas remuneradas’”75. A liquidação da herança do movimento
democrático-socialista não pode deixar de confrontar-se com o conceito de
homem e de direito do homem enquanto tal, e é apenas neste quadro que
se pode compreender a tese avançada por Hayek sobre o problema da fome
do Terceiro Mundo: “Contra a superpopulação só existe um freio, ou seja,
que se mantenham e cresçam apenas aqueles povos que sejam capazes de
se alimentarem sozinhos”76.
É natural que o retorno à concepção liberal clássica, vista e conservada
em sua “pureza” e “autenticidade”, comporte, inclusive no plano
internacional, a recusa de qualquer redistribuição de recursos que não
derive da caridade individual. Mesmo quando assume dimensões trágicas,
a ponto de matar milhões de pessoas, a fome continua a ser um fato priva-
do daqueles que a sofrem, ou dos eventuais caridosos beneméritos. Assim,

43
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

os povos aprenderão a “se alimentar sozinhos”. É verdade que milhões


de crianças não terão sequer tempo para aprender. Mas a resposta a essa
eventual objeção já se encontra em um clássico da tradição liberal. Segundo
Thomas Malthus, “no governo moral deste coletivo, que os pecados dos
pais sejam expiados por seus filhos”; “pelas leis da natureza uma criança é
confiada direta e exclusivamente aos cuidados de seus genitores” e não tem
qualquer direito a reivindicar em relação à sociedade77.
E desta desconfiança em relação à categoria dos direitos universais do
homem, e desta indiferença no que se refere à sorte de milhões de indiví-
duos concretos, emerge mais uma vez o caráter ideológico e mistificador
da profissão de fé que o liberalismo clássico e o neoliberalismo fazem do
“individualismo”.

II
Tradição liberal, liberdade e lógica excludente

1. “Liberdade negativa” e tradição liberal

Caso se entenda por individualismo o reconhecimento dos direitos de


qualquer indivíduo, independentemente da raça, do sexo, do grupo social
a que pertence, então torna-se insustentável, como vimos, a tese dos que
desejariam fazer coincidir o desenvolvimento do individualismo com o da
tradição liberal. Por razões análogas, não faz sentido descrever esta última
como a história da progressiva afirmação da “liberdade negativa”. Convém
submeter a uma verificação a credibilidade da pretensão da tradição liberal
de se deixar guiar e inspirar constantemente pelo princípio da inviolabili-
dade da esfera privada do indivíduo, aquela que autores como Isaiah Berlin
definem e celebram como a “liberdade negativa”.

44
Primeira parte - Tradição liberal e “bárbara discriminação entre as criaturas humanas”

Trata-se de uma autorrepresentação ideológica em estridente contra-


dição com o desenvolvimento histórico. Já vimos como Locke procede a
uma tranquila teorização da escravidão nas colônias (cf. mais acima, cap. I,
4). O grande teórico da limitação do poder estatal desejaria ver sancionado
na Constituição de uma colônia inglesa na América o princípio pelo qual
“todo homem livre da Carolina deve ter absoluto poder e autoridade sobre
seus escravos negros, qualquer que seja a sua opinião e religião” (cf. mais
abaixo, cap. II, 6).
Não estamos diante da tomada de posição de um autor isolado. Vale
recordar que um dos mais relevantes atos de política internacional da In-
glaterra liberal resultante da Glorious Revolution consiste em arrancar da
Espanha, por meio da paz de Ultrecht, o Asiento – isto é, o monopólio do
tráfico de negros. Tal comércio, no qual Locke está pessoalmente interes-
sado, dado que investiu nele uma parte do seu dinheiro, remete, por um
outro lado, a outro lugar clássico da tradição liberal, isto é, os Estados Uni-
dos, onde o instituto da escravidão (e em sua forma mais dura, a chattel
slavery) gozasse de grande vitalidade até a Guerra de Secessão, e onde, su-
cessivamente, os negros recém-emancipados fossem submetidos a relações
de trabalho semisservil que continuaram a subsistir ainda no século 2078.
Na figura do escravo ou do semiescravo é negada radicalmente justamente
aquela liberdade negativa da qual a tradição liberal se institui como intér-
prete privilegiado ou exclusivo.
Mas não apenas os negros são privados da liberdade negativa. Na vés-
pera da Guerra de Secessão, um texto até hoje celebrado como um clássico da
tradição liberal não hesita em teorizar o despotismo pelas colônias, ali onde a
“raça” em seu conjunto é considerada “menor de idade” e é, portanto, obri-
gada a dar prova de “obediência absoluta” ao “despotismo” de seus tutores,
os quais estão autorizados a empregar “quaisquer expedientes que lhes per-
mitam alcançar um fim inatingível de outro modo” (cf. mais acima, cap. I, 6).
Uma constante aflora: de Locke a Mill, nos clássicos do liberalismo,
a teorização da liberdade negativa aparece paripassu com o enunciado de

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MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

cláusulas de exclusão. Tal exclusão diz respeito apenas aos estrangeiros


em sentido restrito, às populações não europeias e de origem colonial? Na
realidade, desconsiderando a escravidão negra, mesmo na América pós-
-revolucionária, também inúmeros trabalhadores brancos, os chamados
“indentureds servants”, são submetidos a relações de trabalho servil ou se-
misservil: na prática trata-se de “semiescravos” – observa um historiador
estadunidense –, ao menos durante a duração de seu “contrato” (aliás com
frequência arbitrariamente prolongado por seus patrões, sob diversos pre-
textos), que, na verdade, são vendidos e comprados em um mercado re-
gular, inclusive com anúncios na imprensa local, e aos quais se dá caça em
caso de fuga ou afastamento indevido do posto de trabalho. Ainda no fim
do século 18, Sieyès encara a “escravidão legal”, ou regulada pela lei, como
um modelo que deseja ver inclusive introduzido na França79.
No que diz respeito à Inglaterra liberal, observemos ainda que os pró-
prios trabalhadores da mãe pátria em larga medida são excluídos do usu-
fruto da liberdade negativa. Pensemos nas “casas de trabalho” (workhouses)
e “casas de correção” (onde são encerrados, frequentemente mediante uma
simples disposição da polícia, desocupados e miseráveis, todos aqueles
considerados ou suspeitos de serem “vagabundos ociosos”), as quais, são,
significativamente, definidas, por Lucio Colletti – que ainda não havia mu-
dado radicalmente de ideia – como “os campos de concentração da ‘bur-
guesia iluminada’”80.
Mesmo quando conseguem evitar a sina do internamento nessas ins-
tituições totais que são as casas de trabalho, as classes populares têm sua
liberdade negativa seriamente reduzida e mutilada. Hayek se apraz em ce-
lebrar Mandeville como aquele para o qual “o exercício arbitrário do poder
por parte do governo seria reduzido ao mínimo”81; na realidade, o respei-
tável expoente do primeiro liberalismo inglês, defensor de uma moral des-
preconceituosamente laica, exige porém que a frequência dominical à igreja
e o doutrinamento religioso se tornem “uma obrigação para os pobres e os
iletrados”, aos quais, em todo caso, aos domingos, “se deveria impedir (...)

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Primeira parte - Tradição liberal e “bárbara discriminação entre as criaturas humanas”

o acesso a qualquer tipo de divertimento fora da igreja”82. Estamos diante


da pretensão de exercer um rígido controle de cima para baixo não só da
atividade de trabalho, mas também do tempo livre dos assalariados. Na-
turalmente, como já vimos, aquela que hoje definiríamos como atividade
sindical revela-se objeto de proibições ainda mais rigorosas, contra a qual
inúmeros expoentes da tradição liberal, a partir de Mandeville, se pronun-
ciam, ou trovejam.
A este ponto, deveria estar claro que não corresponde à realidade a tese
que identifica tradição liberal com liberdade negativa. A respeito das “casas
de trabalho”, C. B. Macpherson observou que Locke não tem nenhuma dú-
vida de que desocupados e vagabundos devem ser “totalmente sujeitados
ao Estado”. Na segunda metade do século 19, Mill afirma com ênfase que
“não se excluem dos poderes legítimos do Estado” as leis que “proíbem
o casamento” aos pobres. Compreende-se então a ironia de Pierre-Joseph
Proudhon a propósito da escola liberal:
“Ela que em qualquer circunstância e em qualquer lugar pro-
fessa o laissez faire, laissez passer, que reprova os socialistas por
substituírem as leis da natureza por suas convicções, que protesta
contra toda intervenção do Estado, e exige à direita e à esquerda a
liberdade, nada além de liberdade, não hesita, quando se trata da
fecundidade conjugal, de bradar aos esposos: Alto lá! Que demô-
nio os atiça?!”
No contraste entre liberais e socialistas verificou-se claramente uma
inversão de posições no que diz respeito ao laissez faire do indivíduo e à
sua liberdade negativa83. E, uma vez que tratamos do tema da legislação
matrimonial, convém ter presente um fato: apenas em 1967 (mil novecentos
e sessenta e sete) a Corte Suprema estadunidense declara definitivamente
inconstitucionais as leis que, em alguns estados do Sul, ainda proibiam os
casamentos inter-raciais, violando gravemente a liberdade negativa não só
dos negros mas dos próprios brancos84.

47
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

2. Liberdade negativa e positiva: política e economia

A tradição liberal não só recusou explicitamente a liberdade formal-


-negativa a determinados grupos sociais e étnicos, mas, em certos mo-
mentos, sequer ocultou o fato de que determinadas condições e relações
materiais de vida e de produção podem frustrar totalmente a própria
liberdade formal-negativa. Segundo Benjamin Constant, o trabalhador
assalariado não tem real controle sobre a própria “existência”, cujos “pro-
prietários” são os “patrões” que, a qualquer momento, “podem negar-lhes
o trabalho”. E, dado que o trabalhador assalariado não é propriamente li-
vre, não faz sentido reconhecer-lhe direitos políticos, os quais correspon-
dem apenas a “quem possui a renda necessária para viver independente
de qualquer vontade de outrem”, a quem já seja materialmente livre85.
Por sua vez, Sieyès define explicitamente como “forçado” o trabalho da
“massa sem instrução”, que portanto acha-se “privada de liberdade”86;
neste autor podemos até ler a admissão de que os pobres são na realidade
sujeitados à “escravidão da necessidade”, a qual só se pode curar instau-
rando a escravidão regulamentada pela lei, segundo o já citado modelo
norte-americano.
Passemos da França à Inglaterra: Locke não tem dificuldades em re-
conhecer que “a maior parte da humanidade” é “escravizada” (enslaved)
por suas condições materiais de vida87; por sua vez, Mandeville define “a
parte mais fraca e pobre da nação” como the working slaving people, desti-
nado para sempre a um “trabalho imundo e similar àquele do escravo”
(dirty slavish Work): obviamente, não faz sentido conceder a esses escravos
ou semiescravos não só os direitos políticos, mas tampouco a instrução88.
Isto é, os autores liberais aqui citados reconhecem que as condições
materiais de vida dos trabalhadores de seu tempo, mesmo aqueles não
encerrados em casas de trabalho, são a negação da liberdade; admitem
que tais condições materiais estão em gritante contradição com o status
jurídico-formal de homens livres, pertencendo em teoria aos assalariados,

48
Primeira parte - Tradição liberal e “bárbara discriminação entre as criaturas humanas”

mas tendem a resolver a contradição adequando a esfera jurídico-política


à econômico-material, negando os direitos políticos àqueles indivíduos
que, seja como for, não são senhores da própria existência, ou mesmo
limitando os direitos civis dos escravos da necessidade, daqueles que são
constrangidos a trabalhar como escravos.
A distinção entre liberdade negativa e positiva remete a uma fase
posterior de desenvolvimento da tradição liberal, quando se trata de blo-
quear o processo de emancipação das classes populares, às quais é preciso
também conceder alguma liberdade. Poder-se-ia dizer que, no momento
em que refletem sobre sua própria liberdade e podem considerar a não-li-
berdade da “multidão” óbvia e pacífica, as classes proprietárias não pros-
seguem com aquela restrição da liberdade na esfera meramente negati-
vo-formal, sublinhada com força, no entanto, quando se trata de definir e
limitar a liberdade que estas são forçadas a conceder de algum modo às
classes populares. É a partir desse momento que a tradição liberal con-
dena como sinônimo de despotismo as doutrinas políticas que destacam
o conteúdo positivo e o condicionamento material da liberdade. É assim
que Roosevelt, que teoriza e considera essencial inclusive a “liberdade
de querer” (isto é, a libertação daquela “escravidão da necessidade” da
qual falava também o liberal Sieyès), é acusado por Hayek de estar sob a
nefasta influência da “revolução marxista russa”.
Porém, para nos darmos conta de como a distinção entre liberdade
negativa e positiva termina por ser colocada em crise pelos próprios neo-
liberais, basta refletirmos sobre o argumento com que estes, ainda hoje,
rejeitam qualquer hipótese de planificação e programação, comunista ou
trabalhista que seja: “O controle da produção da riqueza” – afirma Hayek,
citando Hillaire Belloc – “é o controle da vida humana enquanto tal”89. É
uma tese que poderia ser aprovada inclusive por Marx, mas que os neo-
liberais se recusam a fazer valer para as relações capitalistas de produção
e de poder.

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MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

3. Marx, Engels e a liberdade negativa

Mas qual a atitude de Marx e Engels em relação à liberdade liberal?


O capital ironiza sobre os “idílicos processos”, a começar pela “caça aos de
pele negra” – talvez uma alusão ao massacre dos pele-vermelha que prece-
deu o tráfico dos escravos negros –, que caracterizam a “acumulação primi-
tiva” e acompanham “a aurora da era da produção capitalista”. E O capital
registra também que formas de trabalho servil ou semisservil continuaram
a subsistir na Inglaterra em pleno século 19 (MEW, XXIII, 799 e 763). No
que concerne às casas de trabalho – em referência sempre ao país clássico
do liberalismo –, o jovem Engels denuncia seu caráter de instituição arbi-
trária e total: “Os paupers (pobres) usam o uniforme da casa e estão sujeitos
ao arbítrio do diretor, sem a mínima proteção”: na prática, os internos são
declarados e tratados como “objetos de repulsa e horror, postos fora da lei
da comunidade humana” (MEW, II, 496-498).
As casas de trabalho nos remetem à realidade da fábrica capitalista da
época que, como surge da descrição que dela faz um autor como Jeremy
Bentham, não difere substancialmente de uma casa de correção ou de uma
prisão: mas o “despotismo” sofrido pelos operários “militarmente organi-
zados” é condenado e denunciado no Manifesto do Partido Comunista e não
na propaganda liberal (cf. mais adiante, cap. V, 1).
Marx e Engels de fato reivindicam a liberdade negativa espezinhada
pela sociedade liberal não só em referência aos escravos negros, os desocu-
pados e “vagabundos ociosos” encerrados nas casas de trabalho, mas tam-
bém em relação aos operários. No que se refere ao trabalho assalariado em
particular, emerge de novo a contradição entre esfera econômico-social e
esfera jurídico-política, com a diferença de que Marx e Engels entendem su-
perar a contradição adequando não a segunda à primeira, como pretendia
o protoliberalismo, mas, ao contrário, por meio de radicais transformações
das relações de trabalho e das condições materiais de vida.

50
Primeira parte - Tradição liberal e “bárbara discriminação entre as criaturas humanas”

4. A lógica da exclusão

A esta altura, é possível configurar o contraste entre tradição liberal


e tradição marxista em termos distintos daqueles caros a autores como
Isaiah Berlin e Norberto Bobbio. Ou seja, é possível configurar o contraste
a partir não dos conteúdos, mas, em primeiro lugar, do sujeito da liber-
dade. O escravo, para Locke, é excluído do usufruto da liberdade porque
não é sequer incluído propriamente na categoria de homem. Os povos co-
loniais ou de origem colonial são excluídos em primeiro lugar da tradição
liberal para o gozo da liberdade. Mas mesmo os trabalhadores da metró-
pole – aos quais às vezes nega a própria liberdade negativa – a tradição
liberal tem dificuldades em incorporar plenamente ao conceito de homem
(cf. mais acima, cap. I, 4): suas consciências – sublinha Locke – não vão e
não podem ir, “pelo natural e inalterável estado de coisas neste mundo”,
além daquelas de “cavalo de carga”90.
A tradição marxista compreendeu bem que o sujeito da liberdade libe-
ral, ou da própria liberdade “democrático-burguesa”, não é o homem en-
quanto tal, o homem na sua universalidade: basta pensar no fato de que o
país celebrado como a democracia por excelência, por um grande contem-
porâneo de Marx, isto é, Tocqueville, é o país que deporta e varre da face
da terra os índios e que mantém em condições de escravidão os negros, é
o país onde a secessão escravista é chefiada por um partido “democrata”.
Marx é um admirador de Abraham Lincoln, mas ignora que o presidente
estadunidense que emancipa os escravos negros acaricia por algum tempo
a ideia de deportá-los para a Libéria ou a América Latina91, retomando
assim um velho projeto, que já era caro para Thomas Jefferson.
Palmiro Togliatti tinha razão em ao menos um ponto ao polemizar
com Bobbio: “Quando e em qual medida foram aplicados aos povos co-
loniais aqueles princípios liberais sobre os quais se diz fundado o Estado
inglês do século 19, modelo, acredito, de regime liberal perfeito para aque-
les que raciocinam como Bobbio?”. A verdade é que “a doutrina liberal (...)

51
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

baseia-se em uma bárbara discriminação entre as criaturas humanas”92. E,


com efeito, em Locke, um dos textos clássicos do liberalismo (que condena
com palavras inflamadas o despotismo monárquico como uma forma de
“escravidão” e uma condição “vil e desprezível”, aparentemente para o
“homem” em geral, mas, na verdade, sobretudo para o Englishman e de
um modo especial para o gentleman), encontramos igualmente a afirmação
de que existem homens “pela lei da natureza sujeitos ao absoluto domínio
e incondicional poder de seus senhores”, encontramos a justificativa da
escravidão em sua forma mais dura e desumana93. E, à distância de quase
dois séculos, nos deparamos outra vez com essa “bárbara discriminação”
em um autor bastante caro a Bobbio94, John Stuart Mill, que continua a va-
lidá-la sempre com relação aos “bárbaros” e às “raças menores de idade”
das colônias. Segundo Rudyard Kipling, as populações coloniais devem
ser consideradas metade crianças e metade demônios: necessitam da tute-
la das grandes potências; tão logo a rejeitam, ou a colocam em discussão,
demonstram seu caráter demoníaco. E esta é fundamentalmente também
a opinião de Popper, que, por um lado, exclui as ex-colônias da comuni-
dade do “mundo civilizado” e, por outro, equipara-as a um “asilo infan-
til” – que as grandes potências de modo muito simples e desembaraçado
abandonaram à própria sorte95.
Pode-se contrapor a essas discriminações a atitude de Marx e Engels,
que, além de se baterem pelos direitos civis e políticos das classes subal-
ternas na metrópole capitalista, formularam a tese de que não pode ser
verdadeiramente livre um povo que oprime a outro; sobretudo, pode-se
contrapor, no que se refere à questão colonial, a tese de Lênin de que a
democracia e a liberdade não podem ser devidamente pensadas sem a de-
mocratização das relações internacionais e, portanto, sem a liquidação da
pretensão das grandes potências coloniais, plenamente legítima segundo
Mill, de exercer seu despotismo sobre os bárbaros.

5. Aparato militar, Estado de exceção e ditadura

52
Primeira parte - Tradição liberal e “bárbara discriminação entre as criaturas humanas”

Porém há um outro ponto decisivo em que nossa atenção deve se con-


centrar. Raramente foi dada a adequada atenção ao fato de que a história
da democracia representativa moderna se inicia com a restrição da esfera
eleitoral. No período de máxima radicalização da Revolução Francesa são
eletivos até os cargos do exército e dos regimentos armados. Mas a partir
do Thermidor subtrai-se do baixo aparato militar qualquer controle demo-
crático, cujo funcionamento concreto já havia sido descrito com precisão
por Locke: “A conservação do exército e, com ele, do Estado no seu conjun-
to, exige obediência absoluta às ordens de qualquer oficial superior, e deso-
bedecer ou discutir mesmo as mais irracionais delas significa justamente a
morte”. Na prática, o oficial superior dispõe de um “poder absoluto, de vida e
de morte” sobre seus subordinados (cf. mais adiante, cap. V, 1).
Mesmo no regime representativo moderno continua a haver uma esfe-
ra de poder absoluto, em que não há lugar nem para a liberdade democráti-
ca (o direito de participação nas escolhas e no poder), nem para a liberdade
negativa: tenha-se presente que as expressões por mim grafadas em itálico
são aquelas de que Locke se serve também para definir a natureza do insti-
tuto da escravidão.
Aquilo que não é um problema para o liberal inglês constitui porém um
problema central para Marx, que observa como resulta fácil transformar o
regime representativo em ditadura militar a partir daquela instituição (o
exército), na qual a regra continua a ser, conforme a declaração explícita de
Locke, a “obediência absoluta”.
É assim que a Primeira e a Segunda Repúblicas francesas se convertem
em regime bonapartista, respectivamente o de Napoleão I e o de Napoleão III.
É assim que, na Inglaterra liberal, a classe dominante pode facilmente cance-
lar, quando o considera oportuno, as liberdades constitucionais de que tanto
se orgulha: nos períodos de crise – observa Marx – “foi amordaçada a impren-
sa, suspensa a liberdade de reunião, desarmada toda a nação, foram suspen-
sas as liberdades individuais, e junto com elas os tribunais ordinários, o país
inteiro foi governado como se estivesse em Estado de Sítio” (MEW, IX, 358).

53
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

A análise de Marx neste ponto é de maneira nenhuma envelhecida. No


início do século 20, um ilustre constitucionalista inglês e liberal assinalou
que, nos momentos de crise na Grã-Bretanha o Executivo é “hoje quase
colocado na posição dos últimos Tudor e dos primeiros Stuart”, ou seja,
dispõe dos poderes de um monarca absoluto96. No que toca aos EUA, bas-
ta refletir sobre a história mais recente: Woodrow Wilson é “investido de
poderes quase ditatoriais”97, ou ditatoriais no pleno sentido do termo, não
só para combater a Alemanha, mas também para reprimir o movimento
de oposição à guerra e, sobretudo depois da eclosão da Revolução de Ou-
tubro, o movimento operário e comunista. Neste sentido, contrariamente
à versão corrente, a história do século 20 deu plena razão a Marx em um
ponto importante: a partir de um aparato militar e estatal, mantido sempre
a salvo de qualquer controle democrático, fica fácil instaurar uma ditadura
militar; no período da Segunda Guerra dos Trinta Anos, mesmo os países
de tradição liberal e democrática mais consolidada terminaram por recorrer
à instituição típica do regime totalitário, ao universo concentracionário98.
São portanto múltiplas as razões (a “liberdade negativa” ou a liber-
dade política entendida como privilégio baseado numa “bárbara discrimi-
nação entre as criaturas humanas”; a limitação da esfera da liberdade ao
âmbito puramente jurídico e consequente afirmação da inviolabilidade da-
quela esfera econômico-material onde, conforme reconhecem os próprios
expoentes do protoliberalismo, estão fincadas as raízes da escravidão real
da “multidão”; a possibilidade da burguesia de decidir, nos momentos de
crise, pelo Estado de exceção) que induziram a tradição marxista a avaliar
como meramente formal a liberdade liberal ou “democrático-burguesa”,
à qual contrapôs, mais ainda que a liberdade “essencial”, o mito da extin-
ção do Estado. Trata-se de uma resposta equivocada para um problema
real e dramático, de uma resposta que, no entanto, dificultou fortemente o
processo de desenvolvimento democrático da sociedade nascida da Revo-
lução de Outubro: a ilusão da deterioração e do desaparecimento do po-
der contribuiu para que se perdesse de vista a necessidade da limitação do

54
Primeira parte - Tradição liberal e “bárbara discriminação entre as criaturas humanas”

poder; neste sentido o anarquismo impediu a aquisição dos pontos fortes


da tradição liberal e democrática, favorecendo as tendências totalitárias (cf.
mais adiante, cap. VI, 7). No entanto, deve ser considerada vulgarmente
ideológica e maniqueísta a visão que pretende descrever a história contem-
porânea, e não apenas contemporânea, como o confronto entre liberdade e
totalitarismo, ou entre “a sociedade aberta e os seus inimigos”.
Se, como afirma Salvatore Veca, na esteira de Bobbio, a indiscutível
“prioridade das formas” (dado que “a forma é o conteúdo”), a absoluta
inviolabilidade da liberdade negativa deveria realmente definir a essência
dos regimes liberais99, e então deveríamos concluir que não se viu ainda na
história um único regime liberal. No sentido de que também as socieda-
des que fizeram profissão de liberalismo não hesitaram em recorrer, nos
momentos de crise, ao punho de ferro e à ditadura, frequentemente com o
consenso dos mais autorizados expoentes liberais de seu tempo. A história
dos golpes de Estado, de Napoleão I a Mussolini, está aí para demonstrá-lo.
Na realidade, até para querer dispensar o desenvolvimento histórico real,
uma teoria da ditadura temporária, chamada a enfrentar uma situação de
emergência, pode ser encontrada em Locke, Montesquieu, J. S. Mill, nos
federalistas estadunidenses (cf. mais adiante, cap. VIII, 2).
Por outro lado, a confissão de que não existe direito inviolável, não há
liberdade negativa que a classe dominante de um Estado liberal não se ar-
rogue o direito de cancelar, até para a minoria privilegiada, a esta confissão
Marx surpreende e critica, da boca do estadista inglês Lord Palmerston,
que justifica sua desconfiança ou hostilidade em relação à reivindicação de
emancipação progressiva feita pelos católicos irlandeses com o argumento
de que a coletividade tem o direito de impor as limitações dos direitos civis
e políticos por ela consideradas necessárias “para a segurança e o bem-estar
do conjunto” (cf. mais acima, cap. I, 5). E, para fazer referência à história
mais recente, o presidente Wilson exprime a opinião de que o estado de
guerra (ou de crise aguda) é incompatível com as liberdades constitucionais
e o controle democrático do poder100.

55
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

6. O conflito das liberdades

Ao subestimar ou eliminar como meramente formais a liberdade ne-


gativa e a liberdade “democrático-burguesa”, a tradição marxista em certo
sentido compreendeu mal a si própria, dado o empenho com que ela cri-
ticou a tradição liberal e a “tradição democrático-burguesa” pela lógica
de exclusão que caracteriza a ambas. Assim como não existe equivalência
entre tradição liberal e liberdade negativa, também não há equivalência
entre tradição democrática e liberdade política (para todos). Como situar
um autor como James S. Calhoun que, no Sul escravocrata dos EUA, invo-
cando até o exemplo da Grécia antiga para condenar qualquer forma de
prepotência estatal, enaltece a liberdade, a democracia e ao mesmo tempo
o instituto da escravidão enquanto pressuposto indispensável da demo-
cracia? Mesmo deixando de lado a escravidão, deve-se ter presente que,
contrariamente aos mitos correntes, as restrições censitárias (para não falar
das discriminações raciais) mostraram-se particularmente tenazes justa-
mente nos dois países (Inglaterra e EUA) com uma mais consolidada tra-
dição liberal atrás de si101.
Uma pergunta se impõe: é possível conceber a ampliação da liberdade
política sem a pressão da Revolução de Outubro e do movimento comunis-
ta? Quando Lênin denuncia a “democracia capitalista” como “democracia
para os ricos”, refere-se não apenas ao monopólio burguês dos meios de
comunicação e aos “obstáculos de fato” à participação democrática, mas
também aos “‘pequenos’ (e pretensamente pequenos) pormenores da le-
gislação eleitoral (prazo de residência, exclusão das mulheres etc.)”, que,
por exemplo, preservavam, na Inglaterra imediatamente anterior à Revo-
lução de Outubro e oficialmente praticando a democracia, a exclusão dos
direitos políticos do “estrato inferior propriamente proletário” (L, 918-9
e 653). Das críticas à lógica da exclusão por parte da tradição liberal e de-
mocrática emerge objetivamente um alto apreço pela liberdade negativa e
política.

56
Primeira parte - Tradição liberal e “bárbara discriminação entre as criaturas humanas”

É preciso ter presente por outro lado que o processo de superação da


“bárbara discriminação entre os seres humanos” e de realização da liberdade
em termos universais contém conflitos entre liberdades às vezes distintas e
contrastantes. Para esclarecer este ponto convém seguir as pegadas de Adam
Smith. Este observa que a escravidão pode ser suprimida mais facilmente sob
um “governo despótico” que sob um “governo liberal”, no âmbito do qual
“toda lei é feita por seus (dos escravos) senhores, que jamais deixarão passar
uma medida prejudicial a eles”. Com os olhos voltados para as colônias in-
glesas da América, onde há uma espécie de autogoverno local exercido pe-
los colonos brancos, frequentemente proprietários de escravos, e nas quais o
próprio liberal Locke deseja ver consagrado inclusive no plano constitucional
o princípio do “absoluto poder e autoridade” de “todo homem livre” “sobre
seus escravos negros”102, com o olhar posto nessa realidade, Smith observa:
“A liberdade do homem livre é a causa da grande opressão dos escravos. E
como eles são a parte mais numerosa da população, nenhuma pessoa dotada
de humanidade desejará a liberdade em um país onde tenha sido estabeleci-
da essa instituição”103. Que escândalo, aos olhos da moderna apologética li-
beral, essa preferência de Smith, aqui indiretamente expressa, pelo “governo
despótico”, único em condições de eliminar a instituição da escravatura! No
caso em questão, não se trata de escolher entre liberdade formal ou essen-
cial, entre liberdade liberal ou socialista, mas sim entre a liberdade negativa
dos negros reduzidos à condição de escravos e aquela dos seus proprietá-
rios. Com efeito, várias décadas mais tarde a escravidão é abolida no Sul dos
Estados Unidos somente após uma sangrenta guerra e a sucessiva ditadura
militar imposta pela União aos Estados secessionistas e escravistas. Basta ler
qualquer pamphlet “democrata” – isto é, escravista ou filoescravista – da épo-
ca para se ter um quadro dos métodos jacobinos de Lincoln, acusado de ter
imposto “governos militares” e “tribunais militares” e de ter interpretado
“a palavra ‘lei’” como “a vontade do presidente” e o habeas corpus como “o
poder do presidente de aprisionar qualquer um pelo tempo que lhe agra-
de”104. Quando a União renuncia ao punho de ferro, os brancos voltam a ter

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MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

reconhecidos o habeas corpus e o autogoverno local, mas os negros são não só


privados de direitos políticos, mas também submetidos a um regime que im-
plica apartheid, relações de trabalho semisservis e linchamentos, a um regime
que, na prática, continua a consentir que os ex-escravos sejam excluídos da
liberdade negativa.
Não são apenas as liberdades negativas de diferentes sujeitos que es-
tão entrando em choque. Às vezes o conflito se verifica entre liberdade
negativa e liberdade positiva. Esse é um conflito que termina por emergir
até da leitura de Rawls, que exige sim o primado da liberdade sobre a
igualdade, ou, em outras palavras, da liberdade negativa sobre a positiva,
mas acrescenta que esse primado vale somente “para além de um nível
mínimo de renda” (cf. mais acima, cap. I, 1). Isto é, no Terceiro Mundo
a necessidade de se assegurar a sobrevivência às classes mais pobres (o
que constitui um aspecto essencial, “positivo”, da liberdade) permanece
o objetivo primário, mesmo quando tivesse de entrar em contradição com
outros aspectos, “negativos” – mas ainda essenciais –, da liberdade.
Às vezes, aspectos negativos e positivos da liberdade se emaranham
inextrincavelmente no conflito. A história do associacionismo sindical re-
sulta instrutiva a tal propósito: inicialmente ele é proibido em nome do
liberalismo e da liberdade negativa do trabalhador individual de estabele-
cer livremente o próprio contrato de trabalho sem pressões externas; esse
veto, porém, incluiu a feroz perseguição dos membros das associações
operárias, privados por sua vez da liberdade negativa, e até deportados
da Inglaterra liberal para o outro lado do oceano. Mais tarde, um liberal
influenciado pelo movimento socialista como Leonard Hobhouse faz o se-
guinte raciocínio: é verdade, “o sindicalismo implica coação e, nessa me-
dida, viola a liberdade do indivíduo” (pensem nos piquetes operários em
uma greve); e entretanto “a liberdade que o sindicalismo sacrifica é menos
importante que a liberdade que ele assegura”, pois serve com eficácia para
contrapor a “desigualdade” das correlações de força entre patrões e operá-
rios, com a consequente “não-liberdade” destes últimos105.

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Primeira parte - Tradição liberal e “bárbara discriminação entre as criaturas humanas”

Agora é possível tentar reler a trajetória histórica iniciada com a Re-


volução de Outubro. Voltemos por um instante a Adam Smith: o gran-
de economista aplica a observação já mencionada sobre o instituto da
escravidão, desta vez com os olhos postos na Europa Oriental, também
sobre a servidão da gleba, cuja supressão parece pressupor um regime
mais ou menos “despótico” e o cancelamento do autogoverno nobiliár-
quico que, em um país como a Polônia, bloqueava qualquer projeto de
emancipação dos camponeses. A esta altura, encontramo-nos na imedia-
ta vizinhança, não apenas geográfica, dos países do “socialismo real”. E
se é justo admoestar Marx pela subestimação e à vulgata marxista pelo
desenvolto cancelamento do problema da liberdade formal, no entan-
to, não faz sentido ignorar o dramático conflito das liberdades (torna-
do ainda mais agudo e inextricável pela intervenção militar e pelo blo-
queio econômico que a contrarrevolução impõe) que pesou no processo
concreto de desenvolvimento dos países do Leste Europeu e que ainda
se faz sentir mais ou menos dramaticamente, em detrimento de países
como Cuba ou a República Popular da China. Por sua vez, a derrocada
do “socialismo real” no Leste Europeu, ainda que tenha significado o
fim de odiosos regimes despóticos, não coincide com o triunfo da li-
berdade tout-court. Por outro lado, deu sérios passos atrás a “liberdade
de querer”, enquanto foi ampliada a “escravidão do querer”. No que
se refere à própria liberdade negativa, aqui é possível indagar se ela se
fortaleceu univocamente e em todos os aspectos: é de se duvidar disso, a
julgar ao menos pelo caso daquelas trabalhadoras da ex-RDA que foram
forçadas a se esterilizar para poderem trabalhar na indústria capitalis-
ta, onde evidentemente ainda sobrevive alguma coisa do despotismo
patronal já denunciado no Manifesto do Partido Comunista. E por fim há
que se perguntar o que as mutações no Leste significaram no nível in-
ternacional, no que concerne à igualdade e à democracia no intercâmbio
entre os Estados, aos termos de troca entre o Norte e o Sul, à liberdade
negativa e positiva dos povos do Terceiro Mundo.

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MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

É verdade que a visão aqui delineada torna mais problemático e incerto


o limite entre liberdade e opressão, e é presumível então que essa visão faça
com que gritem escandalizados os liberais (ignorantes da lição de Adam
Smith) e seja encarada com suspeita mesmo à esquerda, por parte daqueles
que, por medo de serem acusados de “justificacionismo”, terminam por
admitir o balanço histórico e as categorias de seus adversários. Porém, refli-
tamos sobre um fato: o golpe de Estado que anulou o resultado das eleições
na Argélia e impôs a ditadura militar foi tolerado ou saudado no Ocidente,
inclusive com o argumento de que assim se impediria a instauração de um
regime islâmico, o qual iria impor o fim de toda liberdade de consciência
e a perda da própria liberdade negativa pelas mulheres. Termina, assim,
por reemergir o tema das diferentes liberdades em conflito, mas sem cons-
ciência crítica e com função instrumental (convém apenas registrar que o
Ocidente liberal não usou para o Afeganistão pró-soviético o mesmo argu-
mento empregado para a Argélia).
O conflito das liberdades (entendido como um choque não entre diversas
visões ideológicas mas, em primeiro lugar, entre diferentes sujeitos sociais)
é um critério indispensável para uma leitura da história que não seja banal-
mente ideológica. Em seu contexto, é possível reinterpretar radicalmente a
distinção, aliás cara à tradição marxista, entre liberdade formal e essencial.
A semiditadura jacobina de Lincoln representava de certo modo a liberdade
essencial, não porque pretendesse menosprezar ou liquidar a liberdade for-
mal, mas, ao contrário, porque tencionava realizá-la para todos. Na medida
em que a vulgata marxista considera irrelevante um dos possíveis termos do
conflito (a liberdade formal), termina por negar, ela mesma, o conflito, em
um comportamento transparente em relação àquele assumido pela tradição
liberal. A tomada de consciência da possibilidade de conflito é a tomada de
consciência do caráter essencial e irrenunciável das diversas liberdades ou
dos diversos aspectos da liberdade; é ater-se firmemente a essa essencialida-
de e irrenunciabilidade através dos altos e baixos de um processo histórico
complexo, que pode comportar inclusive escolhas dolorosas e dramáticas.

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Primeira parte - Tradição liberal e “bárbara discriminação entre as criaturas humanas”

A leitura ideológica e maniqueísta do século 20, hoje dominante, não


pode anular os fatos macroscópicos que confirmam a validade do ensina-
mento de Marx. Basta pensar na trágica realidade da massa incontável de
mortos pela fome, e na ampliação dos bolsões de miséria no âmbito dos
próprios países capitalistas desenvolvidos. Sobretudo a reapresentação ou
o aguçamento da “bárbara discriminação entre as criaturas humanas” for-
necem a confirmação da validade das críticas à tradição liberal, como de-
monstram, de um lado, as tentativas de recolonização do Terceiro Mundo,
às vezes mais ou menos explicitamente teorizadas, e, de outro, a explosão
do racismo nas próprias metrópoles capitalistas; os dois fenômenos estão
estreitamente conectados: os skinheads no fundo radicalizam o discurso caro
ao teórico da sociedade aberta que fala das ex-colônias como “asilo infan-
til”, ou, pior, como mixórdia de bárbaros excluídos do “mundo civilizado”.
Neste ponto, a linha de pensamento que conduz de Marx a Lênin re-
vela-se nitidamente superior em relação ao pensamento liberal, inclusive o
de nossos dias. Não vale a pena insistir aqui sobre um autor como Popper,
ainda que ele seja tão estimado pelo vice-diretor de l’Unitá, Giancarlo Bose-
tti, que lhe dedicou um livro-entrevista acriticamente elogioso106. Porém a
adesão de Bobbio à Guerra do Golfo, e seu silêncio por ocasião da agressão
à Nicarágua, da invasão do Panamá, ou a arrogante proclamação de Geor-
ge Bush sobre os direitos dos Estados Unidos de “libertar” Cuba demons-
tram o quanto é difícil, mesmo para os autores mais avançados da tradição
liberal, superar aquela “bárbara discriminação entre as criaturas humanas”
que Togliatti recriminava nessa tradição107.

61
Segunda parte

“‘Bárbara’ discriminação
entre as criaturas humanas”
e a Primeira Guerra do Golfo

63
Segunda parte - “‘Bárbara’ discriminação entre as criaturas humanas” e a Primeira Guerra do Golfo

III
Do intervencionismo colonial ao
“intervencionismo democrático”

1. Um silêncio revelador

Mais ainda do que no momento de sua eclosão, a Segunda Guerra do


Golfo tem sido reveladora sobretudo depois de seu término. Mesmo “res-
peitáveis” órgãos de imprensa, em seu tempo alinhados na linha de fren-
te da propaganda da cruzada iraquiana, continuamente admitiram que a
questão real colocada em jogo era o petróleo e que a guerra fora conduzida
com uma brutalidade que não se deteve sequer diante do massacre a san-
gue frio e em larga escala de soldados já indefesos e em fuga. Há mais:
as sucessivas escaladas e os repetidos bombardeios montados e ordenados
por Bush pai, primeiro no verão de 1992 e depois no início de 1993, sempre
segundo estes mesmos órgãos de imprensa colocados a serviço do ex-presi-
dente dos EUA, ocorreram para dar a volta por cima eleitoralmente, ou, se
isso falhasse, aposentar-se da Casa Branca, de modo espetacular, depois de
ter aplicado uma sonora lição ao Iraque e a Saddam Hussein.
Quando desapareceu o pretexto da “libertação” do Kuwait, desmoro-
nou em larga medida a cobertura jurídica da ONU, cujas resoluções sobre
Israel foram, e têm sido, eludidas ou frustradas por esta mesma superpo-
tência que ainda hoje se porta como fiadora da lei internacional e como
polícia da nova ordem mundial.
Todavia, como se não bastasse o embargo vitimando a população civil,
os EUA se arrogavam o direito de retomar a cada momento o tiro ao alvo
contra o Iraque. As incursões aéreas chegaram até a se tornar um entrete-
nimento dominical para os espectadores dos EUA e de todo o mundo, que
podiam tranquilamente escolher entre o basebol (ou o futebol) e o bombar-

65
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

deio de Bagdá, minuto a minuto; nem Hitler lograra transformar a morte


em um espetáculo de massa e numa série de TV!
Aqui então se poderia esperar um gesto de repulsa e de indignação, se
não dos homens de Estado atentos às razões da Realpolitik e à cotação do
petróleo, ao menos daqueles intelectuais e filósofos que em seu tempo ha-
viam apoiado a expedição punitiva contra o Iraque em nome da Moral e do
Direito Internacional. Mas, pelo contrário, Popper continuou a emitir decla-
rações de um belicismo delirante, que parecia achar conveniente augurar
não uma mas cem guerras do Golfo: o teórico da sociedade aberta já havia
se tornado um adepto cultural do Estado-Maior “ocidental”! Outros pres-
tigiosos intelectuais, ao contrário, preferiram silenciar-se. Porém, o seu si-
lêncio foi mais revelador do que qualquer discurso, sobretudo confrontado
com os posicionamentos precedentes, que desejo recordar aqui, enquanto
reporto algumas das minhas intervenções à época, sobre a Primeira Guerra
do Golfo e suas repercussões nos planos interno e internacional.

2. Ocidente liberal, Cruzada e petróleo

a) “Estranhos esses cavaleiros do Ideal que entraram em cena contra Saddam”

O aspecto mais singular da grave crise internacional daqueles dias é a


união dos febris preparativos de guerra com o desenvolvimento de um rito
solene purificatório. O Ocidente inteiro celebra sua unidade e a sua elevada
consciência: se apresta sim a submergir o Iraque numa tempestade de fogo,
mas por motivos desinteressados e até altamente ideais. Os Cavaleiros do
Ideal, que destemidamente embarcam em seus navios e aviões de guerra
são acompanhados com temerosa atenção “Vale a pena enfrentar esse desa-
fio, os sacrifícios e os riscos que comporta? Mas é certo: trata-se em primeiro
lugar de salvar “o grande projeto que mal acabava de nascer, de uma nova
ordem internacional baseada no direito e na renúncia à força” (Arrigo Levi,
no Corriere della Sera de 8 de agosto). É lamentável que esse rito purificatório

66
Segunda parte - “‘Bárbara’ discriminação entre as criaturas humanas” e a Primeira Guerra do Golfo

apresente alguma dissonância, dado que ocorre em uma região onde “Is-
rael anexou de fato a Cisjordânia, a faixa de Gaza, um pedaço da Síria e um
pedaço do Líbano”, observa um jornalista (Bertrando Valli, em La Repubbli-
ca, de 5-6 de agosto de 1990) que nem por isso pretende renunciar a dar sua
corajosa contribuição ao desenvolvimento do rito purificatório em questão.
Este último ocorre sob a direção de um país que só recentemente re-
nunciou à invasão do Panamá e à longa e sangrenta guerra não declarada
contra a Nicarágua sandinista; de um país que se apresta a dar uma salutar
lição ao regime de Saddam Hussein tirando partido das experiências acu-
muladas em guerras “de baixa intensidade” como as travadas “na Libéria,
Panamá, Granada” (Luigi Caligaris no Corriere della Sera de 8 de agosto) e,
para além disso, recorrendo aos terríveis “B52, os bombardeiros que per-
maneceram inativos desde as guerras na Indochina” (Bernardo Valli, em La
Repubblica, 7 de agosto). Mas, pelo que parece, trata-se de particularidades
desprezíveis, e ninguém parece querer colocar seriamente em discussão o
direito de Bush de vestir as roupas de “um Deus armado, um Deus vinga-
dor” (Ennio Caretto, em La Repubblica, 9 de agosto).
No entanto, apesar da cortina de fumaça que sai desse rito purificató-
rio, o que realmente está em jogo acaba emergindo nas correspondências
e nos editoriais dos mesmos jornalistas e órgãos de imprensa bajuladores:
trata-se de uma oil war, de uma guerra pelo petróleo, de um confronto Nor-
te-Sul: “Bush só pretende parar quando Saddam Hussein tenha sido elimi-
nado, e quando o controle do petróleo esteja novamente nas mãos da frente
filo-ocidental” (Ennio Caretto, em La Repubblica, 9 de agosto). Não se trata
apenas disso, mas também de impedir uma alta do preço dessa matéria pri-
ma fundamental, o petróleo, e de bloquear qualquer mudança nos termos
de intercâmbio em favor do Sul. Como então se admirar se as massas deser-
dadas, os palestinos, a OLP, olham para o Iraque com interesse e simpatia,
embora sem se identificarem com o regime atualmente no poder?
É um fato que deveria fornecer material para reflexão inclusive à es-
querda no Ocidente. Por mais duro que possa ser o julgamento sobre Sa-

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MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

ddam Hussein e sua política internacional, não se pode passar por cima
do contexto objetivo da atual crise. Em um livro recente, René Dumont,
ao denunciar a constante “degradação dos termos de troca” em prejuízo
do Sul, recordou uma avaliação feita a tal propósito pela FAO: “O baratea-
mento mais prolongado e mais forte dos produtos básicos, há 30 anos nessa
região, iniciou-se em novembro de 1980. Em 1982 estes preços, em valores
reais, estavam no nível mais baixo desde 1945.”
A verdade é que na Inglaterra o Partido Trabalhista passou a concor-
rer com o governo conservador em belicosidade, a ponto de desbancar a
senhora Margaret Thatcher. Teria feito melhor em calar-se, ao menos para
evitar que reaflorasse a lembrança da postura do primeiro governo traba-
lhista da história da Inglaterra que, em 1924, após proclamar-se “orgulhoso
e cioso zelador do império”, vangloriou-se também de seu suposto espírito
humanitário por ter recorrido, na repressão à revolta das tribos iraquianas,
não a tropas terrestres, mas a bombardeios aéreos, que no entanto eram
anunciados previamente, não se sabe bem se para alertar uma população
em grande parte analfabeta ou se para melhor aterrorizá-la (R. Miliband, Il
laburismo (O trabalhismo), Roma, Editori Riuniti, 1968, p. 126-7).
Fariam bem, então, em abandonar suas ingênuas transfigurações aque-
les que veem na adesão à Internacional Socialista uma espécie de retorno
do pecador e do herege ao seio da Santa Madre Igreja, fora da qual nulla
salus (não há salvação).
Uma reflexão autocrítica sobre sua história é necessária para todas as
forças da esquerda. E isto vale igualmente para a socialdemocracia, se pre-
tende se libertar do componente menos nobre da sua tradição, do apoio
“patriótico” ao massacre imperialista da Primeira Guerra Mundial, ao pe-
sado engajamento na aventura colonial de Suez, enfim, ao desconcertante
comportamento assumido pelo Partido Trabalhista inglês atualmente. O
mínimo que se pode dizer é que, na atual crise internacional, uma esquerda
digna deste nome não deve se deixar contaminar pela vaga do chauvinismo
“ocidental”, que está subindo atualmente.

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Segunda parte - “‘Bárbara’ discriminação entre as criaturas humanas” e a Primeira Guerra do Golfo

Na verdade é disto que se trata. Quando lemos Francesco Alberoni


(Corriere della Sera de 6 de agosto) descrever a poderosa expedição militar
que está sendo preparada como uma missão por meio da qual o Ocidente
ensinará a cultura da paz aos árabes e a um Terceiro Mundo retardatário e
obstinado, não podemos deixar de recordar que em nome de missões civi-
lizadoras ou análogas foram conduzidas as mais infames guerras coloniais.
(L’Unità, 11 de agosto de 1990)

b) “Aquelas estranhas palavras de ordem da esquerda que se alinha com o ‘in-


tervencionismo democrático’”

Não se trata propriamente de guerra, mas de uma simples ação de po-


lícia internacional: esta a tese sustentada por George Bush e, na Itália, por
Giulio Andreotti; eles asseguram que estão empenhados unicamente em
fazer que sejam respeitadas as decisões da ONU, para finalmente começar
a traduzir na prática das relações internacionais o grande objetivo do go-
verno mundial.
Não é a primeira vez que conflitos desastrosos são deflagrados com
palavras de ordem tão alentadoras. Pouco depois de estourar a Primeira
Guerra Mundial, Gaetano Salvemini perfila-se a favor da intervenção da
Itália com um argumento que merece reflexão: “Uma grande liga de na-
ções, da qual participem a Inglaterra, a França, a Rússia, a Itália e todas ou
quase todas as nações menores, será um grande experimento prático da fe-
deração dos povos: a prática cotidiana da sociedade jurídica entre as nações
substituirá irresistivelmente o princípio das alianças ofensivas ou defensi-
vas.” O governo mundial e a paz que este garantiria pareciam ao alcance da
mão: “É preciso que esta guerra mate a guerra”. O artigo de Salvemini, não
por acaso, tem como título “A guerra pela paz”.
Hoje sabemos, ao contrário, que, bem longe de significar uma etapa
de aproximação do objetivo da regulamentação jurídica das relações inter-
nacionais, o primeiro conflito mundial lançou as premissas para um ain-

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MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

da maior asselvajamento. Entretanto, por esses dias vimos até ambientes


e expoentes da esquerda darem crédito de algum modo àquele “interven-
cionismo democrático” que, à sua época, contribuiu para atirar a Itália na
fornalha e na catástrofe da Primeira Guerra Mundial.
Até Norberto Bobbio parece desejar repetir hoje os argumentos que,
por volta de oito décadas atrás, alimentaram a trágica ilusão de Salvemini.
Em uma entrevista ao Corriere della Sera de 17 de janeiro, o filósofo torinense
justificou a decisão estadunidense de atear fogo em rastilho de pólvora com
o argumento de que se trata de pôr fim a “uma violação do direito interna-
cional”, aplicando uma resolução da ONU “que até prova em contrário foi
instituída justamente para evitar as guerras”. Como se vê, é a reedição pre-
cisa do slogan de 1914: “É preciso que esta guerra mate a guerra”; a “guerra
pela paz” é justa e necessária, e quem sabe santa.
É sabido de todos que Israel viola sistematicamente as resoluções da
ONU. Porém os intervencionistas “democráticos” de nossos dias apazi-
guam facilmente sua alma declarando-se favoráveis também eles ao reesta-
belecimento da legalidade internacional não só no Kuwait, mas também na
Palestina ou alhures. Só que omitem uma particularidade nada desprezível:
em um caso, o reestabelecimento da legalidade internacional é conjugado
no indicativo, ou no imperativo, com a sustentação moral de fato fornecida
por selvagens bombardeios aéreos; nos outros casos, é conjugado em um
condicional bastante vago, e situado em um futuro um tanto remoto e as-
saz problemático. É uma tal disparidade de comportamento que, no plano
jurídico, constitui a negação da objetividade das normas do direito interna-
cional; e no plano moral certamente não está isenta de alguma hipocrisia.
É um dado de fato que as esperanças de paz naufragaram definitiva­
mente após a recusa estadunidense defazer qualquer concessão sobre a
questão palestina. À administração dos EUA revelaram-se inconvenientes
e inaceitáveis mesmo as tentativas de composição diplomática do confli-
to na última hora: tratava-se apenas de prometer levar em conta no futu-
ro, também para os palestinos, aqueles direitos nacionais que o Iraque era

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Segunda parte - “‘Bárbara’ discriminação entre as criaturas humanas” e a Primeira Guerra do Golfo

imperiosamente chamado a respeitar imediatamente no Kuwait. A recusa


em estabelecer uma ligação entre as diversas resoluções da ONU sobre o
Oriente Médio, ainda que assimétrica, possui um significado inequívoco: a
lei, o direito internacional, não é igual para todos.
De resto, o significado real da guerra foi desvendado pelo recente ape-
lo de um grupo de personalidades e intelectuais aberta e orgulhosamente
intervencionistas (Randolfo Pacciardi, Salvatore Valitutti, Domenico Fisi-
chella etc.), que chama os italianos a se alinharem “do lado da Europa e do
Ocidente”. Sem dúvida um “governo mundial”! Trata-se de uma das tantas
cruzadas que pontilham as páginas mais tenebrosas da história do Ociden-
te, uma das tantas operações de polícia internacional contra os “bárbaros”
das colônias, tornadas mais ferozes graças à boa consciência das grandes
potências de representarem a civilização ou o direito internacional. Como
operação policial foi difundida também a expedição coletiva do Ocidente
(com a participação também da Itália) que, em 1900, sufocou em sangue,
e em massacres inomináveis, a Revolta dos Boxers que eclodira na China
contra o domínio colonial europeu.
É no âmbito dessa nada nobre tradição que se coloca também a cruzada
moderna. Poucos dias antes de vencer o ultimato, lia-se em um artigo com
a assinatura a. t., publicado em La Repubblica de 10 de janeiro: “Será pior,
muito pior que em Tóquio ou Hiroshima, prometem os generais do Pen-
tágono (...); muitos iraquianos sobreviventes invejarão os seus mortos”; o
Iraque seria “‘asfaltado’, para usar a gíria militar dos bombardeamentos”,
seria reduzido a uma “paisagem lunar”. Os bombardeamentos recentes são
portanto apenas um ensaio, mas já é possível ouvir aqui e ali os gritinhos
de admiração pelo extraordinário poder de fogo da aviação estadunidense,
gloriosa protagonista do “mais violento bombardeamento da história”.
Participam da linha de frente da cruzada em curso, além dos sequazes
de Bettino Craxi (na época o chefe do Partido Socialista Italiano), também
os socialistas franceses e boa parte dos trabalhistas ingleses. Detenhamo-
-nos em particular nestes dois últimos partidos: são os herdeiros dos pro-

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MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

tagonistas da aventura colonial de Suez em 1956. No que diz respeito a


François Mitterrand, não podem ser esquecidas as suas declarações, feitas
em 1954, logo depois do início da sublevação do povo argelino em luta pela
independência:
“A Argélia é a França; de Flandres até o Congo, uma só lei,
uma só nação, um só Parlamento. Esta é a Constituição, esta é a
nossa vontade. Uma única negociação (é possível): a guerra (cf.
CAHEN, J. e POUTEAU, M. Una resistenza incompiuta. La guerra
d’Algeria e glianticolonialisti francesi (Uma resistência inacabada. A
Guerra da Argélia e os anticolonialistas franceses), 1954-1962, Milão, Il
Saggiatore, 1964, vol. I, p. 47).
No que se refere aos trabalhistas ingleses, é preciso ter presente que
foi justamente o primeiro governo por eles dirigido que chefiou em 1924 a
repressão à revolta da população iraquiana. E, assim como hoje os america-
nos tentam enganar a opinião pública com o discurso dos bombardeios “ci-
rúrgicos”, também os trabalhistas ingleses de então ostentavam seu supos-
to espírito humanitário pelo fato de recorrerem não às tropas terrestres mas
aos bombardeios aéreos, que, no entanto, eram anunciados previamente,
não se sabe bem se para alertar uma população em grande parte analfabeta
ou se para melhor aterrorizá-la. Por trás de tudo isso está naturalmente a
adesão dos partidos da Segunda Internacional em geral à guerra imperia-
lista de 1914-1918.
É um fato que merece reflexão: as palavras de ordem do interven­cio­
nismo, “patriótico” ou “democrático” que seja, continuam a ceifar vidas
ainda hoje e a impossibilitar o advento de uma ordem internacional ver-
dadeiramente democrática fundada no reconhecimento da igualdade e da
mesma dignidade entre nações grandes e pequenas, situadas no Ocidente
ou em algum canto perdido do sul do planeta.
(L’Unitá, 19 de janeiro de 1991)

c) “O triunfo do intervencionismo, de J.S. Mill a George Bush”

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Segunda parte - “‘Bárbara’ discriminação entre as criaturas humanas” e a Primeira Guerra do Golfo

Muammar al-Gaddafi e Saddam Hussein, “candidatos” respectiva-


mente a 29% e 71% do “próximo bombardeio” estadunidense: eis o tema de
uma recente, cáustica caricatura de Massimo Bucchi dedicada às “eleições
nos EUA”. Porém Bush já declarou que que se trata de operações policiais
sancionadas pela ONU e conduzidas em nome da Nova Ordem Internacio-
nal. Agora é esta a ideologia chamada a legitimar as guerras e expedições
punitivas das grandes potências.
Convém então passar os olhos pela história que está por trás desta pa-
lavra de ordem. Sigamos as pegadas de John Stuart Mill que, em meados
do século 19, celebra o Império inglês como “um passo rumo à paz univer-
sal e à geral cooperação e compreensão entre os povos”. Não obstante as
suas boas intenções, a ideologia do liberal inglês logo se revela como um
instrumento de guerra: dado que “um despotismo vigoroso” é o único mé-
todo capaz de elevar a um nível superior os povos atrasados, ou mesmo os
“bárbaros”, as conquistas coloniais servem ao interesse da civilização e da
paz, as quais devem ser estendidas até abarcarem todo o globo; o “despo-
tismo exercido pelos povos que progrediram ”sobre os povos atrasados, já
é “a condição ordinária”, mas ela deve se tornar “geral”.
Além da civilização e da paz, o Ocidente é também o fiador até da li-
berdade, e em nome da “liberdade (...) do comprador”, antes mesmo que
“do produtor ou vendedor”, Mill justifica inclusive a Guerra do Ópio. Es-
tamos diante de uma das primeiras formulações da moderna ideologia do
“intervencionismo democrático” e da Nova Ordem Internacional: a guerra
se justifica apenas na medida em que promove a causa da “liberdade” e da
“paz universal” e uma vez que impulsiona tão nobre causa é na realidade
uma louvável operação de polícia internacional.
Naturalmente, há sim unidade, mas também concorrência, entre as
grandes potências no exercício das funções de polícia. E eis que Mill subli-
nha que aquela “federação” gigantesca, embora “desigual”, que é o impé-
rio inglês, “possui a vantagem verdadeiramente preciosa, na época atual,
de reforçar moral e concretamente no campo internacional o país que me-

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MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

lhor garante a liberdade e que se elevou, quaisquer que possam ter sido os
seus erros no passado, a um grau de consciência e moralidade internacional
que nenhum outro grande povo pode conceber e alcançar”. As populações
atrasadas têm interesse em começar a fazer parte do império inglês inclu-
sive para evitar que “sejam absorvidas por um Estado estrangeiro e que
constituam uma nova fonte de força agressiva nas mãos de qualquer potên-
cia rival”. Dissipam-se as névoas da ideologia da “paz universal”, da “geral
cooperação e compreensão entre os povos”; começa a emergir a realidade
não só das guerras coloniais, mas também da rivalidade entre as grandes
potências imperialistas que, dentro de algumas décadas levaria à hecatom-
be do primeiro conflito mundial.
Nessa época, além dos exércitos, confrontam-se também duas ideologias
da guerra opostas: se a Alemanha justifica ou celebra a guerra como uma es-
pécie de exercício espiritual que, graças à vizinhança da morte, permite que
se atinja a autêntica dimensão da existência, para lá da dispersão e massifica-
ção próprias da banalidade cotidiana, a Entente (da qual entretanto faz parte
a Rússia czarista) justifica o imenso sacrifício em nome do “intervencionismo
democrático” e pacificador. Depois de ter sido formulada em vista da rela-
ção entre o Ocidente civilizado e cristão, de um lado, e os povos coloniais e
bárbaros, de outro, a ideologia da Nova Ordem Internacional é aplicada tam-
bém às relações e aos desencontros entre as grandes potências. Neste qua-
dro, Émile Boutroux denuncia os alemães como “descendentes dos hunos
e dos vândalos”, que não foram plenamente “convertidos à doutrina cristã
do Deus do amor e da bondade”. E, portanto, também em relação a eles, a
guerra, ou melhor, a “cruzada”– a expressão é do filósofo francês – tem uma
útil ou necessária função pedagógica. A vitória da Entente é também a vitória
desta nova ideologia da guerra: a Sociedade das Nações é fundada com o fito
de estabelecer relações de igualdade e de respeito mútuo entre os vários Es-
tados, banindo a guerra de uma vez por todas. Mas nos Estatutos do novo ór-
gão chamado a fundar a Nova Ordem Internacional há um revelador Artigo
22, que atribui às potências vencedoras o “mandato” ou mesmo a “sagrada

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Segunda parte - “‘Bárbara’ discriminação entre as criaturas humanas” e a Primeira Guerra do Golfo

tarefa” de guiar os povos que ainda não estão à altura da “civilização moder-
na”. Fica implícito que, se esses discípulos devessem se revelar relutantes ou
turbulentos, as grandes potências chamadas a exercer o pátrio poder têm o
direito e o dever de recorrer a métodos corretivos, inclusive bastante enérgi-
cos, como aqueles colocados em prática em 1924 pela Inglaterra, país-guia da
Sociedade das Nações, para reprimir a revolta do povo iraquiano.
Mais tarde, a própria Alemanha nazista – que justifica sua expansão
na Europa Central em nome da Nova Ordem Europeia (no âmbito da
qual, segundo Carl Schmitt, os povos incapazes de dotar-se de um Estado
devem ser confiados ao cuidado ou mandato do Reich alemão), ou em
nome de uma versão europeia da Doutrina Monroe, doutrina que alguns
anos antes a Sociedade das Nações declarara não estar em contradição
com seus Estatutos e finalidades – é constrangida de certo modo a levar
em conta a vitoriosa ideologia da guerra. E é apenas o caso de agregar que
a guerra contra a URSS foi mais tarde apresentada por Hitler como uma
espécie de mandato implicitamente confiado pelo Ocidente à Alemanha,
visando a afastar o perigo representado pela barbárie asiática.
Naturalmente, os países destinados a se erigirem exitosamente em
campeões da Nova ordem Internacional eram aqueles com uma consoli-
dada tradição de guerras conduzidas em nome da liberdade, países como
a Inglaterra e os Estados Unidos que, segundo Mill, desde o século 19
forneciam “motivos de consoladora esperança de progresso geral à hu-
manidade”. Depois de ter vencido a Guerra Fria contra o Império do Mal
e reduzido a ONU ao papel que tinha sido então da Sociedade das Na-
ções, hoje são sobretudo os EUA que podem reivindicar aquela missão ou
mandato de fiadores da “paz universal”, que o liberal inglês atribuía ao
império guiado por seu país. Tampouco faltam hoje as rivalidades entre
pretendentes ao papel de intérprete privilegiado da Nova Ordem Inter-
nacional. A agência “Kyodo” difundiu a notícia de que o Pentágono se
prepararia para apontar uma parte de seus mísseis nucleares contra a Ale-
manha e o Japão (cf. La Repubblica de 26-27 de janeiro).

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MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

Nada de novo sob o sol? Na realidade, hoje mesmo a Alemanha cur-


vou-se às razões do intervencionismo “democrático” e “pacifista”, como
mostra a recente campanha publicitária da Bundeswehr: “Há muitas coisas
a defender: liberdade e direitos civis, autodeterminação e independência
de pressões externas. E a paz...”.
Talvez o aspecto mais inquietante da situação atual esteja justamente no
triunfo do “intervencionismo democrático”, que em nossos dias influencia
amplamente mesmo personalidades de algum modo de “esquerda”, que
se arriscam a se tornar expoentes e mesmo campeões da nova ideologia da
guerra, de aspecto tão atraentemente democrático e pacifista. É verdade,
porém, que tampouco era de direita John Stuart Mill, expoente (e mesmo
fundador) do liberal-socialismo e, ao mesmo tempo, do intervencionismo
“democrático” e “pacifista”.
(Il manifesto de 7 de março de 1992)

d) “Crise líbia, ou filosofias da nova guerra ocidental”

O embargo contra a Líbia coincidiu com duas reveladoras entrevistas


de Karl Popper a Der Spiegel (23 de março de 1992) e a La Stampa (9 de
abril). O filósofo-patriarca do liberalismo é de uma clareza exemplar: “Não
devemos ter medo de conduzir guerras pela paz. Nas atuais circunstâncias,
é inevitável. É triste, mas devemos fazê-lo se queremos salvar o mundo. A
resolução tem aqui importância decisiva.” A “salvação” da humanidade
é um objetivo que justifica plenamente o recurso à violência e à guerra: a
postura tradicionalmente atribuída à filosofia da história marxista e comu-
nista, condenada como intrinsicamente intolerante e totalitária, tal atitu-
de de “falso profeta” é agora assumida explicitamente por Popper. Assim
prossegue ele: não são poucos os “inimigos mortais” a liquidar ou reduzir
à impotência; não se trata apenas de Saddam e dos “Estados terroristas”, há
ainda “a China comunista, para nós impenetrável”. E portanto a Cruzada
pela paz e a democracia se anuncia como uma série ininterrupta de guerras
que, dado o seu caráter ideológico, tendem a se configurar como totais.

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Segunda parte - “‘Bárbara’ discriminação entre as criaturas humanas” e a Primeira Guerra do Golfo

Mas quem é o “nós” a de que fala Popper? Também neste caso, pode-se
acusá-lo de tudo exceto de falta de clareza. A Cruzada se anuncia não em
nome da ONU – nunca citada e sequer levada em consideração –, mas sim
dos “Estados civilizados”, ou dos “Estados do mundo civilizado”. E quem
são estes últimos? Mas é claro, trata-se do “Ocidente”, cujos limites geo-
gráficos e políticos nunca são especificados, mas que mesmo assim decide
soberanamente quem é e quem não é “civilizado”. Apesar de suas contra-
dições com os EUA, “os japoneses são na verdade civilizados”. Popper é
menos generoso em relação à Rússia de Boris Iéltsin: para que ela possa
receber ajudas, deve dispor-se a “colaborar conosco com os Estados civi-
lizados”; caso mostre relutância, em vez de ajuda correria o risco de atrair
o rude tratamento previsto para os Estados excluídos da comunhão com a
Civilização.
O Ocidente é portanto convocado a realizar a “pax civilitatis” através
de uma série de guerras. Mas não é essa a ideologia que tradicionalmente
acompanhou o expansionismo colonial e imperial? Mais uma vez Popper
não se esquiva; faz a releitura da história com a mesma impavidez com que
exige o recurso às armas. Aos seus olhos, o colonialismo representou clara-
mente um progresso. E as devastações e os massacres que acompanharam
as conquistas coloniais? E o “extermínio das raças ‘inferiores’”, denunciado
no início do século XX por um liberal (embora de esquerda) como John A.
Hobson? Tudo isso é irrelevante e inexistente para o moderno filósofo libe-
ral, que não hesita em elevar a dose: “Libertamos esses Estados (as ex-co-
lônias) demasiado depressa e de um modo demasiado simplista”; é como
“abandonar a si próprio um asilo infantil”. Como é sabido, os povos objeto
das conquistas coloniais são considerados como crianças por seus agresso-
res; como também os proletários eram considerados incapazes de consciên-
cia e vontade, na época de ouro do liberalismo, pelos proprietários que os
excluíam dos direitos políticos. Mas inclusive ao enfrentar este último tema
(a democracia no interior dos “Estados civilizados”), Popper revela o seu
radicalismo: só devem governar aqueles que demonstram “a capacidade de

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MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

discernimento e autodisciplina ética”. Dir-se-ia que o próprio sufrágio uni-


versal é encarado com desconfiança (tal desconfiança é declarada em um
autor como Hayek, ligado a Popper por tantos laços). Uma condição decor-
rente, para poder fazer parte da classe dos governantes, segundo Popper,
é “o hábito de aprender com os próprios erros”. Mas quem decide sobre a
existência ou não desse requisito? De todo modo, parecem excluídos aque-
les que professam o marxismo, por definição “impermeável às críticas, aos
questionamentos”. Mesmo no interior do “mundo civilizado”, nem todos
são admitidos na comunhão com a Civilização.
Emerge das duas entrevistas uma plataforma de recolonização do Ter-
ceiro Mundo e de restrição da democracia mesmo no Ocidente. Não faltam
nela conexões com a moderna tendência de liquidar em bloco a caminhada
histórica aberta com a Revolução de Outubro. É esse acontecimento que
hoje se desejaria demonizar por ter inaugurado o processo de descoloni-
zação e provocado uma aceleração na democratização no Ocidente (basta
pensar na persistência, em todo caso antes de 1917, das discriminações dos
direitos políticos, com base na renda ou na raça, em países como a Grã-Bre-
tanha e os EUA). Assim se explica a parábola de uma personalidade como
Popper, hoje promovido a filósofo oficial do Ocidente, que, em nossos dias,
apregoa, já sem inibições, a Cruzada e a guerra santa em nome da paz, da
civilização e sobretudo do Ocidente.
(Il manifesto de 16 de abril de 1992)

3. Os excluídos dos bons sentimentos e das regras do jogo do Ocidente

a) “Os reféns dos ‘bárbaros’”

Apesar da promessa de libertar as mulheres e crianças, o destino dos


ocidentais (sobretudo estadunidenses e ingleses), surpreendidos no Kuwait
e no Iraque pela precipitação da crise, continua com razão a preocupar e
comover a opinião pública internacional. Mas, antes de bradar contra a bar-

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Segunda parte - “‘Bárbara’ discriminação entre as criaturas humanas” e a Primeira Guerra do Golfo

bárie e lançar anátemas unilaterais, convém refletir sobre um capítulo da


história que foi esquecido e talvez removido.
Deixemos de lado, então, o Terceiro Reich e interroguemo-nos sobre a
sorte dos japoneses e alemães surpreendidos pela deflagração da Segunda
Guerra Mundial em países convertidos em irredutíveis inimigos. Os Esta-
dos Unidos aplicam medidas de um radicalismo impressionante: aprisio-
nam não só os japoneses propriamente ditos, mas também os cidadãos es-
tadunidenses de origem nipônica em “campos de internamento”. E se trata,
para além disso, de uma medida que não comporta exceções para mulheres
e crianças. Já a Inglaterra limita-se a exportar para o Canadá boa parte dos
imigrantes alemães, ainda que a maioria tivesse deixado a Alemanha por
causa de sua oposição ao nazismo. Extraímos essas duas notícias, a primei-
ra do livro de Ernst Nolte sobre a “guerra civil europeia” e a segunda do
livro de Raul Hilberg dedicado à destruição dos judeus na Europa.
Convém agora agregar às contribuições desses dois historiadores, tão
diferentes entre si, uma terceira desta vez referindo-se à França. Citemos
seu artigo recentemente publicado em uma revista alemã respeitável e de
tendência liberal:
“Em 3 de setembro de 1939 a França declarou guerra ao Reich
alemão. Os imigrantes foram apanhados de modo mais ou menos
indiscriminado, encarcerados durante dias e depois deportados
para um dos cerca de cem campos de internamento construídos às
pressas. Em 7 de setembro apareceram em todo o país manifestos
que obrigavam os ‘estrangeiros inimigos entre 17 e 50 anos’ a se
apresentarem em uma determinada localidade do departamento
com um cobertor de lã, roupas de baixo e alimentos para dois dias.
Duas semanas mais tarde, o limite de idade foi elevado para 55
anos.”
Inicialmente a medida atingia apenas os homens; mais tarde viria a
vez das mulheres e por fim das crianças. O mais trágico nesse evento é que
os atingidos eram antifascistas e judeus que, fugindo da barbárie nazista,

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MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

tinham buscado abrigo no país da Revolução Francesa e dos direitos do


homem (daí o título do artigo citado, Prisioneiros na segunda pátria, de K. P.
Schmid, no Die Zeit de 25 de maio de 1990).
Entre os internados mais ilustres recordemos Walter Benjamin, Lion
Feuchtwanger, Franz Hessel, G. Mann, o pintor Max Ernst, o Prêmio Nobel
de medicina Otto Meyerof, em suma, a “nata” da intelectualidade alemã
que fugia de Hitler. Seria interessante examinar neste contexto a história
dos antifascistas e comunistas italianos emigrados para a França, mas não
é possível. E nem é o caso de se deter nas terríveis condições de vida e na
elevada taxa de mortalidade nesses campos de concentração. Limitemo-nos
à conclusão perspicaz do articulista alemão: Auschwitz e os campos de ex-
termínio da Alemanha nazista são outra coisa!
Antes de passar a outro ponto, convém brevemente mencionar os ter-
ríveis pogroms que eclodem na Polônia contra a minoria alemã no início
da invasão hitleriana e incluem o massacre de alguns milhares de cidadãos
poloneses de origem alemã, no “domingo de sangue” de Bromberg.
A conclusão é clara. No decorrer da Segunda Guerra Mundial, mesmo
nos países democráticos, como nos aliados das democracias ocidentais, foi
terrível a sina da população civil proveniente dos países inimigos, ou mes-
mo apenas ligada a eles por vínculos étnicos ou culturais.
Afortunadamente ainda não chegamos a este ponto no Iraque. É ver-
dade, no plano formal não houve nenhuma declaração de guerra, mas, do
ponto de vista do direito internacional, o bloqueio naval equivale a um ato
de guerra, e até a um modo particularmente impiedoso de guerrear. Já Max
Weber, em seu tempo, acusara o “bloqueio inglês”, considerado “abertamen-
te ilegal” por seu caráter bélico indiscriminado, de ter provocado a morte de
cerca de 750 mil pessoas entre a população civil na Alemanha. Em seguida,
já antes da Segunda Guerra Mundial, o tema foi retomado por Carl Schmitt,
que viu na prática do bloqueio naval uma forma de guerra total que anula
as diferenças entre combatentes e não combatentes, e golpeia “sem distinção
toda a população da zona bloqueada”. Naturalmente, as denúncias dessa

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Segunda parte - “‘Bárbara’ discriminação entre as criaturas humanas” e a Primeira Guerra do Golfo

publicidade estão longe de desinteressadas, mas isto não é motivo suficiente


para que não se levem em conta os argumentos que ele apresenta.
Mas, então, como explicar as acusações de “barbárie” dirigidas atual-
mente ao Iraque e apenas ao Iraque? O próprio Carl Schmitt – que condena,
sim, a transformação total da guerra, mas apenas em relação às nações eu-
ropeias e ocidentais – pode fornecer a resposta: as regras de certa maneira
cavalheirescas da conduta da guerra não se aplicavam aos países coloniais
ou de algum modo alheios à civilização ocidental. E é por isso que em 1936,
enquanto lamenta o crepúsculo do Jus publicum europaeum (Direito público
europeu) e o advento da guerra total, o ilustre jurista Schmitt declara que a
Itália fascista tinha toda razão em rejeitar o reconhecimento de uma “homo-
geneidade no plano civilizacional” à Abissínia (um país naquele momento
objeto de uma guerra de agressão com amplo emprego de gases asfixiantes
proibidos pela Convenção de Genebra).
Vale agregar ainda que, para Carl Schmitt, também a União Soviética
era de todo estranha à “comunidade” civilizada europeia e ocidental. Não
por acaso, a guerra do Terceiro Reich na Frente Leste, mais tarde, terá desde
o início características de ferocidade e barbárie ausentes nas campanhas a
Oeste, no âmbito das quais o Jus publicum europaeum continuará a subsistir
em certa medida.
Tornemos agora à crise do Golfo e reflitamos sobre um fato: tudo aquilo
que o regime de Saddam Hussein possa ter cometido de atroz, cometeu-o
no curso da guerra contra o Irã (uso de armas químicas, ataques aéreos e
uso de mísseis contra a população civil etc.). Mas nessas ocasiões não se viu
no Ocidente nenhuma onda de indignação moral; pelo contrário, o Iraque
foi sustentado no plano diplomático, econômico e até militar por aqueles
países que hoje se arvoram em professores de direito internacional e gri-
tam contra a barbárie pelo fato de que Saddam Hussein trata os cidadãos
dos países inimigos com medidas não mais drásticas do que as tradicional-
mente usadas pelo Ocidente em circunstâncias análogas. É evidente que se
usam dois pesos e duas medidas. As regras que valem no Oeste não valem

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MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

no Leste, ou no Sul. Como então não dar razão àqueles intelectuais e polí-
ticos jordanianos, frequentemente formados no Ocidente, e que no entanto
o acusam de hipocrisia por só ser capaz de comover-se e indignar-se ape-
nas com a sorte dos ocidentais, enquanto se recusa, ou reluta, a reconhecer
também os árabes como “seres humanos” dotados da mesma dignidade?
Lemos estas acusações em um artigo de Lucia Annunziata em La Re-
pubblica de 26-27 de agosto. Em outra página do mesmíssimo jornal, outro
artigo, este de Vittorio Zucconi, diz que talvez “já seja tarde demais” para
soluções diplomáticas, uma vez que a Casa Branca pode ter “decidido que
quer a cabeça de Saddam Hussein”.
Eis novamente que a guerra total furtivamente volta à luta contra os
“bárbaros”. Com efeito, desde o início se disse que os Estados Unidos pre-
tendiam se desembaraçar definitivamente de seus inimigos, seja fomen-
tando um golpe de Estado, seja com bombardeios potentes e precisos o
bastante para poder significar a sentença de morte dos atuais dirigentes ira-
quianos. Gaddafi não acusou os norte-americanos de terem tentado assas-
siná-lo desse modo, por ocasião de uma crise anterior no Oriente Médio?
E hoje quem confirma tais acusações e suspeitas é nada menos que o Wall
Street Journal, ao insistir no fato de que os EUA consideram insatisfatória
qualquer solução que não compreenda “pelo menos” a morte de Saddam
Hussein (cf. Ginzberg, Siegmund, em l’Unità de 30 de agosto).
Não sei quantos, mesmo na esquerda, tomaram plena consciência do
dramático asselvajamento das relações internacionais inserido numa visão
que confere explicitamente a um chefe de Estado de um país mais pode-
roso o direito de vida e de morte sobre o chefe de Estado de um país mais
fraco. Confirmando como as aspirações e ambições de guerra total regular-
mente emergem toda vez que se lida com “bárbaros”, eis a proposta de um
general israelense de empregar preventivamente bombas atômicas táticas.
Sequer a ameaça de uma guerra atômica preventiva provocou a onda de
indignação moral que seria lícito esperar, a julgar pelos bons sentimentos
que transbordam com ímpeto dos corações sensíveis dos comandantes da

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Segunda parte - “‘Bárbara’ discriminação entre as criaturas humanas” e a Primeira Guerra do Golfo

Cruzada. Hoje fala-se muito de “governo mundial”, mas se não estiver


em grau de responder de modo convincente às já referidas acusações de
intelectuais e políticos jordanianos e de boa parte do mundo árabe, este
“governo” se assemelhará perigosamente ao tradicional domínio mundial
das grandes potências coloniais.
(L’Unitá, 2 de setembro de 1990)

b) “Compaixão de classe

“Bush, quantos meninos iraquianos por um barril de petróleo?”: é


talvez o mais significativo dos slogans das manifestações antiamericanas
em curso nestes dias em Amã e em outras cidades do mundo árabe. Ele
evidencia um angustiante problema moral: é lícito travar uma guerra de
modo a golpear e reduzir à fome indiscriminadamente a população civil,
incluindo até crianças? Segundo o chefe do Estado-Maior da força aérea
estadunidense, a população civil do Iraque deve ser golpeada não só indi-
retamente, mas também com bombardeios maciços visando a destruir sua
“resistência moral” e a convencê-la de que “o regime de Saddam Hussein
não é capaz de protegê-la” (cf. artigo de Gianni Riotta no Corriere della Sera
de 17 de setembro). É portanto toda a população civil (inclusive mais uma
vez as crianças) que é tomada como refém e um refém cuja vida pode ser
tranquilamente sacrificada com fins por assim dizer pedagógicos. Não se-
ria necessário, mas Michael Dugan (este é o nome do impávido general)
especificou que pretende tirar proveito das lições dos bombardeios em sua
época infligidos contra o Vietnã.
Todavia, ao menos a julgar pelos grandes meios de comunicação, não
parece que tudo isso perturbe particularmente a consciência do Ocidente.
Sim, falou-se muito de crianças nos últimos dias e semanas, mas é interes-
sante ver de que modo. Quando Saddam Hussein levou ao ar o programa
de TV que o mostrava acariciando os filhinhos dos ocidentais constrangi-
dos a agir como “convidados”, o grito de indignação foi geral: nem as crian-

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MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

ças eram poupadas daquele que o sociólogo Sabino Acquaviva, no Corriere


della Sera de 24 de agosto, definiu como “o novo Herodes”. O eco, de nossa
parte apenas perceptível, do slogan que ressoa no entanto com força nas
ruas de Amã, nos coloca frente à outra face da lua. Mas por que essa face
permanece oculta, inclusive para o intelectual que acredita, e disso se rego-
zija, ser fiador e intérprete dos valores morais universais? Por que ela resul-
ta impenetrável mesmo para o sociólogo que, até por definição, deveria ser
capaz de enxergar para além dos limites estreitos do seu próprio ambiente
e da sua própria tradição cultural?
Para nossa sorte, um dos pais fundadores da sociologia já deu uma
resposta a essas interrogações. Em um capítulo de extraordinário interes-
se da Democracia na América, Tocqueville parte de uma revolta popular na
Bretanha do século 17, reprimida com “atrocidade sem igual”. E a seguir se
detém no modo sereno e quase divertido com que a menciona uma aristo-
crática senhora, madame de Sévigné:
“Meu Deus, caríssima filha, como é agradável vossa carta de
Aix (...) Desejais conhecer as novidades de Rennes? Impuseram
uma taxação de cem mil escudos e se a soma não for encontrada
em vinte e quatro horas será duplicada e recolhida pelos soldados.
Foi rastreado e expulso um bairro inteiro e proibida a ajuda a seus
moradores, sob pena de morte; assim se viam todos esses miserá-
veis, mulheres grávidas, velhos, crianças, a errar chorando pelas
portas da cidade, sem saber para onde ir, sem alimento nem abri-
go. Ontem foi executado o imbecil que tinha iniciado o tumulto e
o roubo de papel selado; foi esquartejado e seus quartos expostos
pelos quatro cantos da cidade. Uns sessenta foram presos e ama-
nhã começarão a enforcá-los. Esta província será um belo exem-
plo para as outras.” E em outra carta: “Falais-me de modo muito
ameno de nossas misérias; agora não somos tão polidos; apenas
um em oito dias para fazer a Justiça funcionar. É verdade que o
enforcamento me parece agora em retomada...”

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Segunda parte - “‘Bárbara’ discriminação entre as criaturas humanas” e a Primeira Guerra do Golfo

Devemos então julgar madame de Sévigné, “uma criatura horrível e


bárbara”, como o quer Tocqueville? Não se trata disso. O fato é que a nobre
senhora “não tinha uma ideia clara do que fosse sofrer; quando não se era
fidalgo”; em uma sociedade rigidamente hierárquica, nem os sentimentos
logravam superar as barreiras de classe ou de casta. É apenas em uma so-
ciedade democrática, onde já domine a ideia de igualdade, que começa a
emergir “uma compaixão geral por todos os membros da espécie humana”.
É o que acontece ou deveria acontecer nos EUA democráticos. Mas na rea-
lidade assiste-se aqui não ao desaparecimento mas sim a um diferente des-
locamento das barreiras que caracterizam a sociedade do Antigo Regime.
De fato, “os escravos ainda experimentam espantosos sofrimentos e são
constantemente expostos a crudelíssimas punições”, sem que isto perturbe
a serenidade e a consciência tranquila de seus senhores, os quais, portan-
to, cultivaram sim um sentimento de “compaixão geral”, porém apenas no
que diz respeito aos brancos.
É uma análise fascinante, ainda que se deva acrescentar que o To-
cqueville político raramente está à altura do sociólogo. Quando eclode a
revolta operária de junho de 1848 ele bem sabe que o povo de Paris morre
literalmente de fome e mesmo assim, depois de ter apoiado as medidas
terroristas de repressão, continua a condenar qualquer anistia e ainda em
suas Recordações, com uma notável distância de tempo, fala em relação aos
revoltosos de junho com inextinguível rancor e animosidade. Seu biógrafo,
André Jardin, observa que a este propósito seria vão procurar em Tocque-
ville “traços de piedade”. A aspereza da luta política contra o “direito ao
trabalho” e o “socialismo” não bastam para explicar adequadamente tal
fato; talvez, em relação aos sofrimentos dos miseráveis o altivo aristocrata
conserve algo da atitude que, como sociólogo, analisa com tanta fineza em
madame de Sévigné.
Confirma-o a postura assumida no que se refere aos povos coloniais.
Tocqueville, que se entusiasma com a expansão colonial do Ocidente e lou-
va em termos líricos até a Guerra do Ópio, brada contra o perigo da “bar-

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MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

bárie” por ocasião da revolta de 1857 na Índia e ferve de indignação com


os “horrores” cometidos pelos insurgentes. Mas parece não se dar conta
dos crimes assustadores com que a Inglaterra conquistadora se enlameia e
que Marx assim descreve com referência à Guerra do Ópio: “O estupro, o
massacre de crianças ao fio da espada, a queima de aldeias foram então di-
vertimentos gratuitos...”. É verdade que, ao se defrontar com a realidade do
colonialismo, após uma viagem à Argélia, Tocqueville assume uma posição
mais equilibrada, e é constrangido a fazer um balanço nada lisonjeiro para
a França: “Tornamos a sociedade muçulmana bem mais miserável, mais
desordenada, mais ignorante e mais bárbara do que fora antes de conhecer-
-nos”. Registra o fato de que aos olhos dos oficiais franceses “os árabes são
como bestas maléficas”. Dá-se conta de que a brutalidade dos conquistado-
res chega às raias do genocídio: há o perigo de que se repita “a história da
conquista da América”.
Contudo, apesar de tudo isso, Tocqueville rejeita qualquer ideia de “to-
lerância e indulgência”, e sobretudo adverte a França por fazer surgir nos
árabes a ilusão de que possam ser tratados “como se fossem nossos con-
cidadãos e nossos iguais”. Ao analisar a postura de madame de Sévigné,
A democracia na América observara que ali, onde falta a ideia de igualdade
entre os homens, não há espaço para a “compaixão geral por todos os mem-
bros da espécie humana”; agora, ao se recusar a estender a ideia da igual-
dade aos “povos semicivilizados”, Tocqueville de algum modo cria limites
intransponíveis para sua compaixão em relação aos árabes, e é por isso que
pode continuar a defender e louvar a “posição dominante” da França e da
Europa, apesar dos assombrosos custos humanos que ela comporta.
Também Marx parece se dar conta dessa implicação da ideia de igual-
dade; na Sagrada família, ele deixa de lado as críticas e dúvidas expressas em
outras ocasiões e declara que l’egalité (a igualdade) derivada da Revolução
Francesa “indica a unidade essencial dos homens” e a consciência da uni-
dade do gênero humano. A sanguinária realidade do colonialismo estava
ali para demonstrar que ainda seria preciso fazer um longo trecho de es-

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Segunda parte - “‘Bárbara’ discriminação entre as criaturas humanas” e a Primeira Guerra do Golfo

trada antes que “a consciência genérica” e “o comportamento genérico” do


homem se efetivassem. O velho Engels retorna mais tarde a este tema em
uma carta enviada a um geólogo em 1893:
“A natureza precisou de milhões de anos para produzir seres
vivos conscientes e, por sua vez, esses seres conscientes precisam
de milhares de anos para agirem em conjunto de modo consciente,
com uma consciência não só de suas ações enquanto indivíduos,
mas das suas ações enquanto massa, agindo juntos e juntos perse-
guindo um fim antecipada e conjuntamente desejado.”
Talvez a unidade da espécie seja pensada de um modo excessivamente
compacto, sem levar adequadamente em conta o fato de que é uma unida-
de que não exclui a diferença e a contradição. Resta o fato de que para eles
essa unidade é um elemento essencial do “comunismo”, e igualmente resta
notar o singular otimismo desta carta de Engels, que, com efeito, assim con-
clui seu raciocínio: “Hoje quase chegamos a este ponto”.
Ele claramente se enganava. Os acontecimentos de nossos dias o de-
monstram mais do que nunca: os grandes meios de comunicação conti-
nuam a circular nos mostrando sempre e apenas uma única face da reali-
dade, aquela dos problemas, das angústias e dos interesses do Ocidente.
Os slogans de Amã não têm qualquer eco em nossa parte do mundo. Não é
de se espantar. Tocqueville o explicou bem: não pode se desenvolver “uma
compaixão geral por todos os membros da espécie humana” ali onde há
desigualdade. E isto vale – observa ainda o grande sociólogo – seja para as
relações entre os indivíduos, seja para aquelas entre povos e nações. Não há
dúvida: não há ainda igualdade entre o Ocidente e o Terceiro Mundo, entre
o Norte e o Sul (e, antes mesmo de Lênin, autores liberais como Hobson
chamavam esta desigualdade de “imperialismo”).
(L’Unitá, 18 de setembro de 1990)

4. Tradição liberal, regras do jogo e lógica da exclusão: uma polêmica


com Bobbio

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MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

a) “O Golfo, os EUA, os crimes de guerra”

Caro Bobbio,
Por estes dias folheei com mais atenção que de costume a imprensa na-
cional, na esperança de ler uma autorizada tomada de posição sua sobre a
“nova ordem internacional”. Transcorreu um ano desde o início da Guerra
do Golfo, e é legítimo perguntar se você ainda continua a sustentar as ra-
zões que o levaram a manifestar o seu assentimento, problemático e sofrido
que seja, àquela que se autopropagandeava como uma ascética e cirúrgica
operação de “polícia internacional”. Entretanto, em grande parte dissipou-
-se a cortina de fumaça de mentiras que sempre acompanha as guerras,
mas que nos dias da cruzada anti-iraquiana apresentou-se mais espessa e
impenetrável que de costume. Os próprios órgãos de imprensa que tinham
se destacado pelo furor belicista hoje deixam escapar alguns fragmentos de
verdade: eis Giorgio Bocca a admitir que os EUA não hesitaram em “ex-
terminar os iraquianos já em fuga e desarmados” (La Repubblica de 6 de
fevereiro); e eis o Corriere della Sera (de 24 de fevereiro) a reconhecer que as
assim chamadas “bombas inteligentes” constituíram apenas 10% do total e
que os bombardeios atacaram em primeiro lugar a rede elétrica iraquiana.
Um objetivo talvez militar, mas em todo caso de primária importância ci-
vil. As destruições realizadas deram um golpe mortal no abastecimento de
água da população e no funcionamento dos hospitais, tornando na prática
impossível qualquer operação em socorro às vítimas dos bombardeios. É
um dos crimes de guerra denunciados pelo norte-americano Clark. Inútil
esperar uma reflexão autocrítica da parte dos citados órgãos de imprensa,
que continuam impávidos no apoio a um embargo que também dissemina
tragédias entre a população civil; mas de uma personalidade como Norber-
to Bobbio seria lícito esperar algo mais do que o silêncio!
Dissipando-se a cortina de fumaça de mentiras – construídas com um
despudor, uma sapiência e um controle autoritário dos meios de comuni-
cação que não podem não fazer pensar em Goebbels –, começam a vir à

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Segunda parte - “‘Bárbara’ discriminação entre as criaturas humanas” e a Primeira Guerra do Golfo

luz até os reais objetivos da guerra: quem decidiu “castigar severamente


Saddam Hussein” foram “todas as potências industriais”, firmemente de-
cididas a manter baixo o preço do petróleo, “afastando a hipótese de uma
outra crise petrolífera que teria freado o ímpeto expansivo do capitalismo
ocidental” (E. Scalfari em La Repubblica de 26-27 de janeiro de 1992). Agora
sabemos de que lágrimas derramadas e de que sangue valeu-se o “capita-
lismo ocidental”, cujo “ímpeto”, aliás, parece não ter beneficiado tanto as
massas populares, dado que continua a crescer nos EUA e alhures o núme-
ro dos que vivem abaixo da linha de pobreza.
Porém deixemos de lado o petróleo e o massacre que foi necessário
para manter o seu preço baixo; e nos indaguemos se ao menos a causa da
legalidade internacional realizou algum progresso. Na realidade, desde an-
tes da cruzada proclamada em nome desta, os fatos falavam com clareza:
quando, em 27 de junho de 1986, o Tribunal de Haia condenou os atos de
agressão contra a Nicarágua sandinista perpetrados pelos Estados Unidos,
estes reagiram retirando-se da Corte (à qual porém se dirigiam em outras
ocasiões) e negando-lhe qualquer competência.
Há que se admitir que é singular essa nova ordem internacional que,
antes mesmo da Guerra do Golfo, teve seu batismo de fogo na destruição
dos portos nicaraguenses e na liquidação do órgão jurídico supremo da
ONU, por decisão unilateral da superpotência protagonista daquela ativi-
dade criminosa! E é igualmente inusitado que a esta instituição, chamada
a legitimar a cruzada anti-iraquiana, depois tenha sido negado qualquer
papel na negociação médio-oriental; ao contrário, para invadir o Líbano, Is-
rael não hesitou em atropelar precisamente as tropas da ONU. Para justifi-
car a arrogância de seu país, o ministro da Defesa israelense, Moshe Arens,
comentou que “os Estados Unidos, quando se sentiram em perigo, nunca
hesitaram em agir, inclusive com métodos contrários às leis internacionais”
(reportado por Lucia Annunziata no La Repubblica de 5-6 de janeiro). E com
efeito é justamente destes dias a notícia de que o Pentágono se prepara para
novos cenários de guerra praticamente em qualquer canto do planeta, a co-

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MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

meçar pela América Latina, em homenagem à imperial Doutrina Monroe,


mas a despeito de qualquer legalidade internacional; e, sempre em nossos
dias, os grandes órgãos de imprensa revelam sem corar, como se fosse a
coisa mais normal deste mundo, que Bush está planejando um novo mas-
sacre no Iraque na tentativa de relançar suas declinantes ações eleitorais.
Neste ponto fica claro que a nova ordem internacional ressuscita os
acontecimentos mais sanguinários da época de ouro do colonialismo. E
neste ponto a ninguém é lícito que se cale. Dirijo-me a você, caro Bobbio,
também pelo fato de que você foi protagonista, nos longínquos anos 1950,
de uma polêmica com Galvano della Volpe e Palmiro Togliatti, na qual
sustentou que um regime socialista se queria ter fé em suas promessas de
emancipação, não podia descurar da liberdade “formal”. Você estava com
a razão, ainda que, convenhamos, não eram apenas os comunistas que es-
tavam prontos a violar as “regras do jogo”, vide o Caso Gladio e as declara-
ções de nosso presidente da República, pelo que parece pronto a abrir fogo
sobre seus adversários se estes tivessem a desventura de vencer as eleições.
Por outro lado, por ocasião da Guerra do Golfo, Giuliano Ferrara res-
pondeu, a quem fazia notar que os EUA não tinham nenhuma condição
de dar lições de direito internacional, que a invasão do Panamá fora uma
“operação de polícia tropical”. Dir-se-ia que certos neófitos do Ocidente jo-
garam fora o menino do comunismo junto com a água suja do banho. Mas
você não pode partilhar desse solene desprezo pelas “regras do jogo” e pe-
las “formas” que deveriam regular as relações entre os Estados, nem como
democrata, nem como filósofo que crê no valor da coerência intelectual e
moral. Então por que continua a se calar?
Uma última observação: sempre na época da Guerra do Golfo, você re-
futou a crítica que lhe fiz, de ter embarcado nas posições daquele interven-
cionismo dito “democrático” que, por ocasião do primeiro conflito mundial,
constituiu a ideologia da guerra da Entente (da qual fazia parte a Rússia
czarista) e serviu para arremessar também o nosso país na imensa forna-
lha. Desejaria, porém, fazer-lhe notar que você é conselheiro de redação

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Segunda parte - “‘Bárbara’ discriminação entre as criaturas humanas” e a Primeira Guerra do Golfo

da Micromega, uma revista que é o órgão declarado do “intervencionismo


democrático”, que reivindica explicitamente essa funesta ideologia e está
pronta a justificar em seu nome novas cruzadas contra o Iraque e contra
Cuba, uma revista que fulmina com palavras de fogo os pacifistas, rispida-
mente equiparando-os a “fundamentalistas” e “papistas” (linguagem que
igualmente remete ao primeiro conflito mundial, quando intervencionistas
particularmente exaltados quiseram enforcar o papa Bento XV).
Enquanto novos massacres se anunciam no horizonte, para lá da já
mortífera “administração ordinária” deste ou daquele embargo, uma toma-
da de posição sua, caro Bobbio, é um dever. Proponho-lhe que continue o
diálogo com os comunistas sobre as “regras do jogo”, a começar por aque-
las que deveriam regulamentar as relações internacionais. Trata-se do tema
da paz, cuja importância justifica, creio eu, este meu recurso ao instrumento
da carta aberta, em continuidade e aprofundamento do confronto entre as
nossas posições.
À espera de ler seus textos, saúdo-o cordialmente.
(Liberazione, 29 de fevereiro de 1992)

b. “Procurai atenuar vossos pecados”

Caro Losurdo,
O que quer que eu lhe diga? Para um comunista convicto como você,
que continua a se chamar comunista mesmo depois da catástrofe dos re-
gimes do Leste, trazer à baila as “regras do jogo” parece-me apenas um
pretexto para fazer esquecer a total ausência de regras do jogo no universo
soviético, reconhecer que nós tínhamos, sim, razão, mas para indagar em
seguida: “Mas vocês respeitam essas tão decantadas regras?”.
Assim posto o problema, não vejo o que poderia haver para discutir.
Falta, como se diz, a razão da contenda. Que as regras devam ser respeita-
das por todos é óbvio. Contudo, desperta em mim certa suspeita o fato de
que vocês agora tentem atenuar seus pecados recriminando os nossos. Há,

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MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

contudo, sempre uma bela diferença entre um regime democrático, como o


italiano, que entretanto faz água por todos os lados, e um regime despótico.
Houve entre nós, é verdade, o terrorismo de grupos subversivos de direita
e de esquerda. Mas não houve, espero que você o admita, terrorismo de
Estado. Desejamos perguntar: quantos foram os representantes e “servido-
res” do Estado vítimas do terrorismo dos grupos, em comparação com as
vítimas do Estado democrático no mesmo período?
Sobretudo não compreendo por que você dirige essas perguntas a mim.
Para maior clareza, distingamos as regras do jogo no interior do Estado e
nas relações internacionais. As suas perguntas dizem respeito a ambas.
Quanto às primeiras, grande parte dos artigos que venho escrevendo
há anos nos jornais são uma denúncia dos vícios de nossas instituições.
Falei muitas vezes do “poder invisível” como da maior das “promessas
não mantidas” da nossa democracia. E disse de uma vez por todas que foi
com o Massacre da Piazza Fontana que começou a degeneração do nosso
sistema político. Por ocasião das últimas eleições escrevi que em algumas
regiões de nosso país, em meio a manobras agora cada vez mais frequentes
e mais imponentes, de um lado, e ameaças a eleitores e candidatos, de ou-
tro, a democracia não existe mais.
No que diz respeito às relações internacionais, as coisas são entretanto
um pouco mais complicadas. Onde a força do direito está quase ausen-
te, termina por prevalecer o direito da força. Escrevi várias vezes que, em
um universo não democraticamente regulado e composto por uma grande
maioria de Estados não democráticos, é mais difícil, se não impossível, para
um Estado democrático comportar-se democraticamente. Em outras pala-
vras, é muito mais difícil manter a fé nas regras da democracia em um uni-
verso com regras do jogo muito fracas e com parceiros que não as respeitam
sequer em seu interior. Quando Ronald Reagan fez bombardear Trípoli,
como retaliação por uma bomba explodida em Berlim e atribuída a Gad-
dafi, escrevi: “Julgam-se as ações políticas pelos seus resultados”. Como o
fito de Reagan era reprimir o terrorismo internacional, dizia eu, a sua ação

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Segunda parte - “‘Bárbara’ discriminação entre as criaturas humanas” e a Primeira Guerra do Golfo

será julgada unicamente com base em seu êxito. “Se houver um recrudes-
cimento do terrorismo, dir-se-á que ele estava errado. Se aquele atenuar-se
ou cessar de todo, dir-se-á que teve razão.”
No caso da Guerra do Golfo, parecia-me que se fosse uma daquelas ra-
ras situações em que não podia haver nenhuma dúvida sobre quem fosse
o agressor (tal como quando Hitler invadiu a Polônia), e que havia se ini-
ciado pela primeira vez um processo de coalizão de Estados “autorizada”
pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas para rechaçar a agressão.
Sustentei que dificilmente poderia haver uma guerra mais justificada do que
esta. Aqueles que então pensavam diversamente e continuam a assim pensar
mesmo agora, como você, têm a obrigação de nos dizer se havia outros meios
de frear a vontade de domínio do ditador iraquiano, ou então declarar hones-
tamente, como fez um dos meus interlocutores de então, que Saddam Hus-
sein tinha razão. Hoje que, apesar da derrota, Saddam permanece ainda em
seu posto e mais uma vez desafia ameaçadoramente seus vencedores, não
chego a compreender como você pretende retomar a acusação e exigir de nós
que façamos um exame de consciência, que vocês se obstinam em não fazer.
O que não me agradou na sua carta, e provoca esta minha reação res-
sentida, não o nego, é aquele tipo de intimidação que emana de todo o seu
discurso, apesar dos vários “caro Bobbio” que recobrem seu “Radames, jus-
tifique-se”. Você recrimina meu silêncio, porém por trás da pergunta “por
que se calou?” há outra muito diversa: “O que você espera para dizer que
tínhamos razão?”. Imagine por um momento se eu tivesse usado o mesmo
método para afrontar a controvérsia com os velhos comunistas: “Primeiro
purifiquem-se, façam uma bela autocrítica, e depois podemos começar a
discutir”. Sempre concedi ao adversário o direito de equivocar-se e a boa
fé no erro. E, como você se refere ao meu diálogo de muitos anos atrás com
Togliatti, como um modelo de discussão, asseguro-lhe que, se o tom dos
nossos discursos tivesse sido o da sua carta, o diálogo nunca teria começado.
E, depois, tenha paciência, hoje um comunista não pode mais encarar
os adversários de cima para baixo, como quando vocês estavam convenci-

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MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

dos de que o comunismo trouxera a felicidade aos povos oprimidos pelo


capitalismo, enquanto vemos a cada dia, na Albânia e também alhures, po-
bres diabos que se matam na disputa por um pedaço de pão.
Calei-me porque não costumo falar inadvertidamentee a situação atual
do Oriente Médio é de tal ordem que não permite – inclusive por falta de
uma informação completa, o que não aflige apenas a mim – que se saia com
um peremptório “sim, sim, não, não”. E também porque, confesso a você,
fiquei petrificado diante da tragédia de um povo dominado por um tira-
no sem escrúpulos, que o está conduzindo, naturalmente com a ajuda de
Deus, depois do massacre da última guerra – porque houve, sim, massacre,
mas ele, o tirano, e todos os seus acólitos se salvaram –, em direção a uma
nova guerra.
Quando dei, então, a primeira entrevista, em que coloquei claramente
o problema, distinguindo a justificativa para a guerra da sua eficácia, eu es-
tava convencido de que o conflito não se daria, pois era razoável supor que
Saddam Houssein iria recuar diante do ultimato das Nações Unidas. Agora,
infelizmente, estou menos seguro disso. Por isso assisto horrorizado à even-
tualidade de uma nova tragédia. Mas me pergunto, como o fiz então, outra
vez: “De quem é a culpa?” Porque apenas eu, como diz você ao final, teria o
dever de guardar distância das Nações Unidas, manipuladas pelos Estados
Unidos? E vocês, quando vão guardar distância de Saddam Houssein?
Faz tempo que me interrogo sobre o fascínio que os grandes déspotas
exercem sobre a esquerda extremista antidemocrática. Vocês perderam os
ditadores e tiranetes do Leste Europeu. Mas logo encontraram um outro.
Boa sorte.
(Liberazione, 7 de março de 1992)

b) “Intervencionismo ‘democrático’”

Caro Bobbio,
Não sei qual de nós dois tem mais razões de estar “ressentido”, se você

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Segunda parte - “‘Bárbara’ discriminação entre as criaturas humanas” e a Primeira Guerra do Golfo

com minha carta aberta ou eu com a sua resposta. Mas frequentemente o


ressentimento provoca quedas no tom e no estilo, e de algum modo desvia
a atenção do problema em discussão. Tentarei em vez disso concentrar-me
nele, que pode ser assim formulado: o que se deve entender por democra-
cia e respeito às regras do jogo no nível das relações internacionais?
É sabida a resposta do intervencionismo que se autodefine como
“democrático” pelo fato de que se arroga o direito de recorrer às armas para
exportar aos quatro cantos do mundo a democracia tal como ele inapelavel-
mente a entende. Tal violência é enaltecida como o único instrumento capaz
de assegurar o triunfo definitivo das regras do jogo e da paz perpétua. Esta
funesta ideologia que, durante o primeiro conflito mundial, animou a En-
tente, longe de promover a paz, estimulou guerras e destruições sem fim.
Ainda hoje Bush mostra-se movido por esta mesma funesta ideologia,
quando, por exemplo, promete “libertar Cuba de Castro”. Na realidade, o
“intervencionismo democrático” é uma ideologia da Cruzada e da guerra
santa total. A Convenção de Genebra não vale mais: não é apenas Giorgio
Bocca que o admite, como observei em minha carta aberta, que os EUA
não hesitaram em “exterminar os iraquianos já em fuga e desarmados”. Já
o Corriere della Sera de 9 de maio de 1991 estampava este título: “Depois do
cessar-fogo, massacres de soldados iraquianos”. Entretanto, o Iraque não só
abandonou o Kuwait como também aceitou a destruição de equipamentos
militares e sistemas de armas, ainda que deles tenham posse países vizi-
nhos a ele; e mesmo assim o embargo continua a golpear inexoravelmente
a população civil.
É o caso de sublinhar a extrema arbitrariedade de que dão prova os
intervencionistas “democráticos”: no decorrer do primeiro conflito mun-
dial, a Entente proclama a Cruzada pela democracia, mas vangloria-se de
abrigar em seu seio a Rússia czarista. Em nossos dias, Noriega é um cam-
peão da liberdade (e, como tal, financiado pela CIA) enquanto espiona Cas-
tro, mas se torna um ditador quando desvirtua o controle dos EUA sobre
o Canal do Panamá. Um destino análogo tocou a Saddam Hussein (entre

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MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

parênteses: a sua vibrante denúncia dos crimes do ditador iraquiano teria


sido mais convincente, no plano político e no humanitário, se tivesse sido
pronunciada no momento em que ele, armado e apoiado pelo Ocidente,
agredia o Irã e recorria até às armas químicas, e não quando aqueles que o
criaram e acalentaram procedem a uma guerra total contra o conjunto do
povo iraquiano). E as grandes potências se esquivam de dizer se e quando
a Síria, decaindo de sua condição de membro da coalizão “democrática”,
converter-se-á no novo alvo do intervencionismo “democrático”. Este últi-
mo é claramente o herdeiro do intervencionismo “civilizador” das grandes
potências coloniais, que pretendem hoje exportar a “democracia” assim
como outrora exportavam a “civilização”. Por outro lado, os exaltadores
do imperialismo (como Cecil Rhodes) amiúde celebraram as expedições e
as conquistas coloniais como uma contribuição à causa da “paz”, também
da “civilização”.
Existe, além disso, um segundo modelo de organização das relações in-
ternacionais, tão arbitrário como o primeiro. É o modelo pelo qual se deve
considerar conforme às regras do jogo toda ação autorizada pela ONU. Ele
não se preocupa em indagar as formas concretas com as quais opera o Con-
selho de Segurança, com cinco países que dispõem do direito de veto e com
algumas grandes potências industriais que ameaçam estrangular economi-
camente os países que relutam em se curvar a sua vontade (“A China se opôs
às sanções contra a Líbia e as três potências ocidentais a ameaçaram com re-
presálias comerciais”, escreve La Repubblica em 29-30 de março; “O Conselho
de Segurança se torna um tribunal político onde o humor da única superpo-
tência existente tem um peso decisivo”, observa B. Valle em La Repubblica de
4 de abril). Tampouco há a preocupação de ver se as regras do jogo vindas da
ONU valem para todos; não, essa organização pode tranquilamente deixar
passar em silêncio a invasão do Panamá e autorizar bombardeios e massa-
cres em resposta à invasão do Kuwait; pode fechar os olhos para os atos de
terrorismo cometidos pelos EUA (e verificado e condenado por um órgão
judiciário independente como o Tribunal de Haia) com a destruição dos por-

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Segunda parte - “‘Bárbara’ discriminação entre as criaturas humanas” e a Primeira Guerra do Golfo

tos nicaraguenses e entretanto decidir o embargo contra a Líbia por suspeita


de cumplicidade em atos terroristas unilateralmente levantada por algumas
grandes potências ocidentais, as quais, sem atentar para as dúvidas expres-
sas pela imprensa internacional (ver por exemplo o artigo de Igor Man no La
Stampa de 3 de abril), nem sequer se julgam no dever de esperar a sentença da
Corte de Haia, à qual Gaddafi apelou. A ONU pode decidir que algumas de
suas resoluções (aquelas contra Israel) não têm valor algum, mas que outras
devem ser aplicadas imediatamente e a qualquer custo; poderia até condenar
um povo ao genocídio. Segundo os entusiastas da “nova ordem mundial”,
bastaria a cobertura da ONU (ou por seu Conselho de Segurança) para se
tratar de uma decisão legítima e inapelável.
Se isso é um “governo mundial”, é necessário logo dizer que ele é fe-
rozmente autoritário (Hannah Arendt sublinhou que a essência do totalita-
rismo reside justamente na ausência de regras objetivas). Cabe acrescentar
que esse presumido “governo mundial” está na realidade desmantelando
a reduzida organização jurídica internacional que existe de fato. Prossegue
o La Repubblica de 29-30 de março: “Os Estados Unidos decidiram ignorar
a sentença do Tribunal Internacional de Haia e produzir uma escalada no
confronto com a Líbia”. Os EUA deram provas do mesmo soberano des-
prezo pelo tribunal instituído pela ONU quando foram condenados pela
destruição dos portos nicaraguenses.
Há um único meio de se evitar que as relações internacionais sejam
reguladas pela lei da selva: as regras do jogo precisam democraticamente
vincular países grandes e países pequenos. Pode-se insultar os comunistas
como lacaios de Saddam, mas nem por isso se tornará mais democrático
um ordenamento no âmbito do qual uma das partes em causa, desde que
armada até os dentes e com os bolsos cheios, pode tranquilamente ignorar
o tribunal cujas sentenças não lhe agradam! E de nada serve remeter os
comunistas à Albânia.
O balanço histórico do movimento comunista que você traçou na po-
lêmica com Togliatti era bem mais equilibrado. Ainda que insistisse, e com

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MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

razão, sobre a indispensabilidade da liberdade “formal”, você reconhecia


então que a União Soviética e outros Estados socialistas “efetivamente ini-
ciaram uma nova fase de progresso civilizatório em países politicamente
atrasados, introduzindo institutos tradicionalmente democráticos, de de-
mocracia formal, como o voto universal e a eletividade dos cargos, e de
democracia essencial como a coletivização dos instrumentos de produção”.
Você chegou ao ponto de dizer que o seu objetivo era apenas o de “der-
ramar uma gota de óleo na máquina da revolução já concluída”, ou trans-
ferir as garantias formais e as regras do jogo “para o Estado socialista”. Por
certo você tem o direito de fazer hoje um balanço completamente diverso,
mas não o direito de fazer com que o debate sobre regras do jogo fique de-
pendente da sincronização que o seu interlocutor é instado implicitamente
por você a fazer da evolução dele segundo os tempos e os modos da sua.
Mais ainda quando foi também com você que aprendi a encarar com res-
peito e equilíbrio crítico os acontecimentos iniciados com a Revolução de
Outubro; e não sinto a menor necessidade de subir no carro dos vencedo-
res, e de vencedores tão brutais que, desinibidamente, submetem a ferro e
fogo as colônias perdidas a partir daquela revolução, cujos resultados dese-
jariam agora anular definitivamente.
Você pergunta-me ao final por que fui questionar logo Norberto Bobbio.
O fato é que, embora havendo criticado desde o início o seu aval à expedição
punitiva de um ano atrás, eu julgava que, diante das atuais revelações sobre
as reais motivações e dimensões do massacre colonial e dos desdobramentos
na situação médio-oriental, você não quisesse se enquadrar nas posições do
intervencionismo “democrático” ou do totalitarismo planetário.
Enganei-me? A julgar pela sua resposta, temo que sim. E, no entanto,
parece-me difícil entender como um filósofo que a vida inteira insistiu so-
bre a importância das regras do jogo não diga uma palavra sobre a liquida-
ção do Tribunal de Haia, sobre a violação da Convenção de Genebra, sobre
um asselvajamento das relações internacionais que chega ao ponto de que
a grande imprensa parece considerar normal que o presidente dos EUA de-

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Segunda parte - “‘Bárbara’ discriminação entre as criaturas humanas” e a Primeira Guerra do Golfo

sencadeie uma guerra para melhorar suas chances eleitorais. É ainda esse
seu silêncio que me faz pensar que o balanço de ontem, sobre o processo
aberto pela Revolução de Outubro, esteja mais próximo da realidade que o
atual, com base no qual você parece negar que um “comunista convicto” –
que sou, neste ponto você tem inteira razão – tenha o direito de discutir as
regras do jogo, de pôr em dúvida a coerência dos seus enunciados teóricos
e de criticá-lo pela defasagem (ao meu ver evidente e preocupante) que
subsiste entre as teorias que você enunciou e as tomadas de posição política
que concretamente assumiu.
(Liberazione, 11 de abril de 1992)

c. “A esquerda do neocolonialismo”

Depois da Somália, o Iraque. Seja ele republicano ou democrata, o che-


fe do “governo mundial”com sede em Washington não cessa de posar de
anjo exterminador. Como relatam os órgãos de comunicação, “o Ocidente
aprova”. Porém deixemos por um instante a crônica dos fatos. Em uma
recente edição da revista Limes, um professor da Universidade Livre de Es-
tudos Sociais (Luiss), que também é general do corpo militar dos Alpini,
estabelece uma conexão entre a “nova ordem internacional” e a tendência
em curso de “recolonização”: “De fato essa tendência só é limitada pela
inconveniência, para o Ocidente, de envolver-se em uma crise cuja gestão
seria demasiado custosa sem trazer-lhe nenhum benefício concreto.”
A recolonização compreende a relegitimação da guerra. O professor-
-general tem o mérito de exprimir-se com franqueza militar: “A operação de
polícia internacional, ou de peace-keeping, peace-makinge de peace-enforcing”
é o novo nome da guerra. Tal observação, bem longe de possuir qualquer
significado crítico, fundamenta a demanda por uma mudança na Consti-
tuição que permita ao nosso país participar ativamente das cada vez mais
frequentes “operações de polícia internacional, que de fato são guerras não
declaradas” e cujo objetivo é, como sabemos hoje, redistribuir as colônias.

99
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

Dado que se fala muito atualmente em unidade da esquerda, convém


verificar como esta reage a esses alarmantes desdobramentos da situação
internacional. Já se disse que mesmo os últimos bombardeios estaduniden-
ses puderam se beneficiar da aprovação do Ocidente, na qual evidentemen-
te inclui a França governada pelo “socialista” Francois Mitterrand.
Passemos à Itália. E deixemos de lado aqueles que são autênticos ideó-
logos da guerra (da “guerra justa” democrática, e na realidade colonial),
como Guido Bolaffi, Flores d’Arcais etc., e em vez disso vejamos o jornal
L’Unità, órgão do PDS (Partido Democrático da Esquerda, de 1991 a 1998).
No L’Unità de 28 de junho, Massimo L. Salvadori abre seu editorial
com esta solene declaração: “Combater o terrorismo interno e internacional
não é apenas um direito, mas um dever”. O texto só exprime reservas sobre
os tempos e modos da represália estadunidense que, então, como esclarece
o título do artigo, representa uma “resposta equivocada ao terrorismo”.
É preciso dizer logo que, apesar das aparentes críticas, tal análise é su-
balterna à política dos EUA. Agentes iraquianos teriam tentado assassinar
Bush no decorrer de sua visita ao Kuwait; mas todos sabem que a aviação
estadunidense tentou repetidamente assassinar Saddam Hussein e não
hesitou em semear a morte até alcançar esse objetivo, oficialmente declara-
do e que hoje constitui até o tema de romances de grande sucesso. E a admi-
nistração de Washington portou-se de modo análogo em relação a Gaddafi,
chegando, de qualquer modo, a matar sua filha adotiva.
Dado que estamos polemizando com um ilustre historiador, nos per-
mitamos sugerir a Salvadori, sobre o tema do Oriente Médio, a leitura do
recente livro de um autor estadunidense, certamente não comunista (S. Z.
Freiberger, Dawn over Suez. The Rise of American Power in the Middle East
1953-1957 (Amanhece sobre Suez. A ascensão do poder estadunidense no
Oriente Médio, 1953-1957), Chicago, Dee, 1992), que revela os planos de
Dwight D. Eisenhower para eliminar” fisicamente Gamal Nasser em 1956.
Aliás, não poucos meios de comunicação expressaram a opinião de que os
bombardeios contra a Somália e o Iraque, assim como aqueles ordenados

100
Segunda parte - “‘Bárbara’ discriminação entre as criaturas humanas” e a Primeira Guerra do Golfo

por Bush pai na última fase de seu mandato, respondem a razões de polí-
tica interna: não se trata portanto apenas de terrorismo, mas de terrorismo
particularmente abjeto, que não hesita em sacrificar vidas humanas no altar
da imagem e da carreira política de um presidente inescrupuloso.
Entretanto, Salvadori não tem dúvidas. Para ele, o terrorismo está so-
mente de um lado: o dos bárbaros estranhos ao Ocidente. O presidente dos
EUA é assim confirmado no papel, que lhe é caro, de professor do gênero
humano a quem, no máximo, se podem censurar alguns safanões em exces-
so. É uma visão de mundo tipicamente neocolonial.
Seria inútil procurar no L’Unità uma denúncia da “recolonização”, ape-
sar de que o governo italiano reivindica agora explicitamente um “man-
dato” e algum direito de tutela sobre a Somália. A análise de Salvadori e
do PDS é nitidamente mais atrasada em relação àquela do supracitado ge-
neral-professor. Atrasada inclusive no que se refere à recente tomada de
posição de Norberto Bobbio que, depois de ter avalizado a Guerra do Golfo
em nome do intervencionismo “democrático”, agora, embora sem proceder
a uma reflexão autocrítica, não só condena o presidente da Casa Branca
como também ironiza sua proclamada intenção de combater o terrorismo:
“Quem for isento de pecado...”.
Tendo chegado à presidência acompanhado por comentários entu-
siasmados de amplos setores da esquerda italiana, o democrata Bill Clin-
ton, enquanto internamente não manteve suas promessas de reforma, ou
se revelou impotente para promovê-las, confirmou plenamente a política
externa de seu antecessor republicano. É um fato que nos EUA o sistema
político funciona com base no que em algum lugar se definiu como “uni-
partidarismo competitivo”. A concorrência entre os candidatos à presidên-
cia não exclui golpes; mas o duelo, gerenciado e decidido pelos grandes
meios de comunicação e pelos lobbies industriais e financeiros, não põe em
discussão o essencial, e menos ainda a política imperial, no âmbito da qual
se considera legítimo o tiro ao alvo periódico contra os “bárbaros”, como
instrumento para incrementar a popularidade do presidente em exercício.

101
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

O bombardeio terrorista como spot publicitário: a sorte de tal invenção,


que teria entusiasmado a Goebbels, foi, ao contrário, reservada àquela que,
apesar de tudo, Bobbio continua a celebrar como a “grande democracia”
estadunidense e que, às vezes, parece constituir o novo modelo do partido
[PDS] de Achille Occhetto e Walter Ventroni!
Voltemos então ao problema da unidade da esquerda. Esta palavra de
ordem corresponde a uma exigência amplamente sentida. E no entanto ela
se tornaria mistificadora se prescindisse da luta contra o processo atual de
recolonização do Terceiro Mundo. Uma autêntica unidade da esquerda im-
plica não só a condenação preliminar e inequívoca do “democrata” Clinton
e do “socialista” Mitterrand, mas também uma nítida linha de demarcação
com aqueles que se mostram subalternos e até cúmplices no que se refere
à política de banditismo imperialista com a qual as grandes potências do
Ocidente atuam hoje já sem nenhum pudor.
(Liberazione, 9 de julho de 1993)

IV
Tradição liberal, colonialismo e batismo
de fogo da esquerda “reformista”

1. Reformismo e intervencionismo democrático

Vimos o caráter autoapologético da representação com a qual a tra-


dição liberal se arvora em intérprete privilegiada da liberdade negativa e
da dignidade individual. A linha de demarcação em relação à tradição de
pensamento que segue as pegadas de Marx não reside nem mesmo na pos-
tura em relação à violência. E é absurdo querer partir daí para explicar o
contraste entre reformismo e comunismo. A Guerra do Golfo deveria ter
refrescado a memória daqueles que esqueceram a lição do primeiro conflito
mundial que vê os partidos da II Internacional em grande parte apoiarem a

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Segunda parte - “‘Bárbara’ discriminação entre as criaturas humanas” e a Primeira Guerra do Golfo

razão das armas. Na Itália, a expedição anti-iraquiana coincidiu com a fun-


dação do Partido Democrárico da Esquerda e a entrada no seu seio de uma
aguerrida ala “reformista”, que logo se distinguiu por uma nítida tomada
de distância da agitação pacifista, rapidamente rotulada de demagógica e
sem senso de responsabilidade para com a nação e seus compromissos de
política internacional.
Giorgio Napolitano e seus ideólogos colocaram-se assim no sulco de
uma tradição que teve seu momento culminante ao longo do primeiro
conflito mundial108. Naquela ocasião, a crítica reformista da revolução e da
violência desemboca na adesão patriótica, ou na colaboração explícita ou
mais ou menos direta, com uma guerra de violência sem precedentes e um
massacre de proporções colossais.
Há um momento em que Filippo Turati parece se dar conta do caráter
intimamentre contraditório dessa postura. Respondendo à impaciências
dos que exigem uma intervenção imediata da Itália no conflito europeu, em
uma carta de 12 de março de 1915 a Ana Kuliscioff, o dirigente do Partido
Socialista Italiano observa: “Por que deveríamos aplicar à política externa
critérios tão diversos daqueles que adotamos na política interna, a propósi-
to da revolução e das revoltas?”109.
Contudo, o problema aqui levantado parece ter sido completamente
ignorado por outros expoentes de primeiro plano do reformismo socialis-
ta. Ainda em junho de 1914, Gaetano Salvemini condena as violências que
acompanharam uma greve geral e propõe para os responsáveis por ela “al-
guns meses ou quem sabe um aninho de prisão”110. Mas eis que, dois meses
depois, ele exige a intervenção da Itália na guerra, apelando até à força das
armas para impor, aliás, designadamente, “o fim do imperialismo germâni-
co, ou seja, a liquidação dos Hohenzollern e dos Asburgo, de suas clientelas
feudais e a democratização da Áustria e da Alemanha”111. Neste sentido,
“assistimos, mais que a uma guerra entre nações, a uma guerra civil mun-
dial”112. Pelo menos no que se refere ao plano das relações internacionais,
a transformação violenta da ordem existente parece plenamente legítima.

103
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

Salvemini fala sim de “direito à violência” em geral113, mas concretamente


pensa apenas na guerra, que se configura como uma autêntica revolução:
“Queremos que o princípio democrático saia vitorioso desta árdua prova:
quebrar no império alemão aquele núcleo de forças conservadoras contra o
qual mostraram-se até agora ineficazes os esforços do partido socialista”114.
Os exércitos da Entente são chamados a realizar a obra que o movimento
operário alemão não chegou a efetivar.
Há até um momento em que a guerra parece afigurar-se para Salve-
mini não só como uma revolução democrática, mas até como uma luta de
classe em nível mundial. Ao menos é o que está no balanço histórico da
aliança da Itália com a Alemanha, traçado em 1915:
“A paz de que a Europa gozou de 1882 até hoje foi bem útil
aos alemães, que, por meio da Tríplice Aliança, viram descarre-
gada sobre nós boa parte daqueles gastos militares que eles de-
veriam ter pago para se defenderem contra a França. Por longos
anos fizemos o papel de sicários da Alemanha contra a França; e
desempenhamos esse papel por nossa conta. E enquanto a rique-
za da Alemanha crescia, inclusive graças a nossa ajuda e a nossos
sacrifícios, e os trabalhadores alemães dividiam com a burguesia
alemã os proventos de sua maravilhosa prosperidade nacional, o
progresso econômico da Itália era travado e paralizado pelas ex-
cessivas despesas militares.
Quantos trabalhadores foram mortos em revoltas por causa
da fome desde 1883 até hoje? Quantos trabalhadores italianos,
constrangidos pela miséria a emigrar, espalharam seus ossos pe-
los quatro cantos do mundo? Quantos trabalhadores italianos
morreram na pátria por enfermidades incubadas pela indigência?
Quantas terras permaneceram incultas, embora podendo tornar-
-se produtivas se os gastos úteis à Alemanha não tivessem des-
truído uma parte tão grande do nosso capital? Quantas fábricas
deixaram de nascer? E se em 1882 uma guerra fosse possível e ti-

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Segunda parte - “‘Bárbara’ discriminação entre as criaturas humanas” e a Primeira Guerra do Golfo

véssemos sido poupados de tantos danos e tantas vergonhas, esta


guerra não teria sido preferível à paz?”115
Não é o caso de nos determos no singular raciocínio que coloca, como
alternativa às despesas improdutivas do militarismo, estimulado pela Trípli-
ce Aliança, na subsequente e decidida escalada do orçamento militar que
seria a inevitável consequência da intervenção ao lado da Entente! É mais
importante outro aspecto da argumentação de Salvemini: a guerra contra a
Alemanha que ele invoca não tem aqui como alvo apenas o militarismo e o
imperialismo das classes dominantes e dos estratos governantes, mas o povo
alemão no seu conjunto, beneficiário do desenvolvimento econômico realiza-
do à custa da Itália. Quanto a esta última, não se indica às classes esfaimadas
um inimigo interno, mas apenas externo. A luta de classe se desenvolve em
nível internacional e vê alinhado povo contra povo. Neste sentido, Salvemini
parece situar-se na vizinhança imediata de Enrico Corradini.
A partir desse ponto de vista, Salvemini recusa-se a “confundir socia-
lismo e pacifismo” e condena aqueles socialistas que “minam a resistência
moral do país”e procedem “a uma genuína sabotagem da guerra, por exem-
plo ao promover os tumultos de Turim em agosto de 1917 e contribuir tanto
quanto puderam (...) para o desastre da Batalha de Caporetto”116. As afirma-
ções são de um artigo de polêmica com Antonio Gramsci, o qual chamara
os socialistas a se aterem aos “aos princípios gerais de convivência interna-
cional pacífica” e portanto a não se deixarem contagiar pelo clima belicista
e chauvinista (NM, 39-40). Partindo da denúncia da “tática exclusivamente
crítica e negativa” do movimento operário e socialista117, Salvemini chega a
pregar a adesão à guerra como comportamento construtivo e responsável:
“Os dirigentes do socialismo italiano (...), insuperáveis enquanto deviam
criticar e demolir”, deixam-se levar em excesso por “massas”atrasadas, que
“se movimentam por instintos negativos e não por doutrinas positivas” e
são portanto levadas a evitar “o sofrimento e a dor” da guerra118. É a van-
guarda reformista que deve ensinar-lhes a aceitação positiva da intervenção
na guerra. Eis que emerge aqui um reformismo intrinsicamente belicoso, a

105
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

ponto de tachar os inseguros e hesitantes de traidores da pátria e da causa


da democracia internacional: “Com a vossa abstenção, mais ou menos co-
rajosamente sabotadora,à guerra italiana, haveis indubitavelmente ajudado
a guerra da Alemanha”119.
Mas a Alemanha, considerada terra de missão pelos intervencionistas
democráticos da Itália e da Entente, não quer ficar para trás nessa nobre
competição pela democratização da Europa e do mundo. Eis, então, que
seus jornais socialdemocratas louvam a guerra contra a Rússia czarista
como uma grande contribuição à causa da “vitória da liberdade” e da li-
bertação dos povos oprimidos, de modo que – como comenta ironicamente
Rosa Luxemburgo, que deixou uma significativa antologia dessa imprensa
–, “Hindenburg (o general no comando das tropas alemãs) tornou-se o exe-
cutor do testamento de Marx e Engels”120.
E, no entanto, o motivo da “democracia intervencionista” – para usar
uma expressão de Salvemini121 –, que, de armas em punho, abate os obstácu-
los em sua marcha, celebra seus triunfos nos países da Entente e, sobretudo
depois da Revolução de Fevereiro na Rússia, os reformistas aproveitam a
queda do czarismo para relançar a guerra como uma “revolução democrá-
tica internacional” chamada a acabar com o baluarte residual do autorita-
rismo, constituído pelos impérios centrais122. Os custos humanos dessa em-
presa não são sequer levados em consideração, de modo que transformam
em objeto de zombaria e desprezo não só os comunistas e socialistas de
esquerda mas também os “tolstoianos” e todos os “pacifistas que se põem
a balir”. O autor de uma dessas proclamações é George Plekhanov, que o
publica inclusive em Il Popolo d’Italia, dirigido por Benito Mussolini!123
Neste ponto fica evidente a contradição que Turati havia assinalado
em março de 1915. Dirigindo-se, porém, depois da intervenção da Itália na
guerra, à bancada governista, ele continua sim a declarar que não tem “a fé
na violência e na guerra que vocês possuem”, mas para acrescentar em se-
guida que tal “dissenso de método” não representa de modo algum “uma
zombaria, um desafio, quase uma provocação à revolta”124.

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Segunda parte - “‘Bárbara’ discriminação entre as criaturas humanas” e a Primeira Guerra do Golfo

Também nesse caso, o reformismo lança-se sobre a leal colaboração


com o massacre da guerra imperialista. Como é confirmado em uma inter-
venção posterior na Câmara, onde Turati, exprimindo uma já total adesão à
sagrada união patrioteira, denuncia a inutilidade e o caráter quixotesco da
oposição à guerra: “Gotejante de sangue e lágrimas, sobrecarregada mes-
mo, se expõe e passa à história!”; e ainda: “Quando falam os fatos, quando
o sangue corre aos borbotões nas veias abertas de uma nação, de uma estir-
pe” é sinal de que “um grande ‘julgamento de Deus’ se instala, bem maior
que os nossos humanos julgamentos que tão amiúde erram”125. O imenso
rito sacrifical justificado pelo reformista Turati em nome da “história” e
do “fato” é porém condenado pela revolucionária Rosa Luxemburgo como
“um assassinato metódico, organizado, gigantesco”, ou melhor, como um
“genocídio”126.

2. O reformismo e a guerra líbia

Ao concluir a segunda intervenção aqui citada, Turati é abraçado pelo


ministro Leonida Bissolati, reformista e intervencionista de primeira hora,
que vários anos atrás já chamava de “sagrada” a guerra que propugna-
va contra a Áustria127 e que apesar de seu reformismo dera demonstrações
concretas de lealdade patriótica em relação à expedição colonial italiana na
Líbia. Nessa ocasião, Bissolati dissera ter se inspirado na “preocupação com
os supremos interesses da Itália” e não querer, portanto, “levar o Partido
Socialista e as classes trabalhadoras a se isolarem, em uma atitude hostil a
todo o resto da nação”. Não fazia sentido colocar em discussão “um fato
que agora está em vias de se completar”, lançando uma sombra sobre “a
valorização que a Itália teve com a demonstração de sacrifício e heroísmo
que seu povo assumiu nos campos de batalha”. Em todo caso, a missão se
justificava devido ao perigo de que a Líbia fosse ocupada por outra potên-
cia: “Em hipótese alguma a Itália poderia suportar pacificamente um tal
evento”128.

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MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

Uma constante parece delinear-se aqui: o reformismo encontra sua


consagração no batismo de fogo da guerra. E igualmente na indulgên-
cia em relação às aventuras coloniais. É certo que raramente tal posição
filocolonialista se manifesta de modo tão aberto como no caso daqueles
deputados reformistas bissolatianos que celebram o colonialismo como
“um fator indispensável à evolução econômica dos países industriais”, e
como um instrumento para realizar “a coincidência de interesses do prole-
tariado e da burguesia”129.
Salvemini, ao contrário, opõe-se à aventura na Líbia, mas apenas ini-
cialmente e, seja como for, por razões de oportunidade econômica, polí-
tica, militar, nunca por uma questão de princípio. Explicam-se assim seu
posterior convite a “abandonar o protesto estéril e vão contra uma guerra
da qual agora não temos mais como sair”, o auspício do “sucesso, que
auguramos completo, dessa empresa” e o elogio da “belíssima prova de
seriedade nacional” fornecida pela Itália ao longo do conflito. Salvemini
não hesita sequer em declarar-se de acordo com Giustino Fortunato sobre
o fato de que “através de tantos anos e perigos a guerra ‘revelou alguma
coisa de novo, de belo e promissor na nova Itália’”130. Considerações aná-
logas podem ser feitas no que se refere a Turati que, é verdade, critica sem
hesitações a aventura na Líbia e que, no entanto, ao recusar-se a proceder a
uma condenação do colonialismo enquanto tal, pretende até invocar Marx:
“Podemos ser marxistas o bastante (...) para reconhecer na conquista das
colônias uma odiosa porém fatal necessidade do desenvolvimento do ca-
pitalismo, desenvolvimento que é o pressuposto do advento do socialis-
mo”131. Como se vê, a visão gradualista do desenvolvimento histórico não
apenas não é a antítese como também aqui aparece exatamente como a
justificativa ideológica da conquista e da violência colonialista. Esta últi-
ma pode ser contestada por razões contingentes, mas não refutada por
princípio: “A Itália não é ainda um país que possa se permitir luxos desse
gênero”; no momento oportuno se tratará de escolher com justeza, já que
existem “colônias e colônias”132.

108
Segunda parte - “‘Bárbara’ discriminação entre as criaturas humanas” e a Primeira Guerra do Golfo

Ao reivindicar a intervenção da Itália quando eclodiu a Primeira


Guerra Mundial, Salvemini adverte que não será “uma parada militar de
líbia memória”133. Os horrores da guerra colonial são aqui removidos. Po-
rém, o mesmo Salvemini em 1912 dera o seguinte conselho ao exército de
ocupação: “Deixar que as tribos internas se cansem de virem a ser massa-
cradas em nossas trincheiras”134. Na verdade, antes mesmo do início das
operações militares, um lúcido liberal-conservador como Gaetano Mosca
descrevera aquelas que teriam sido as particularidades da expedição co-
lonial na Líbia:
“Portanto será preciso devastar impiedosamente o seu terri-
tório e o incêndio das colheitas, o corte das árvores frutíferas e
especialmente das palmeiras, a captura e extermíniodos rebanhos
serão os meios repugnantes, mas necessários para induzi-lo (o
povo líbio) a solicitar o aman, ou seja, o perdão e a paz.”
E a paz ou a trégua só seriam concedidas aos vencidos se estes entre-
gassem como garantia os “reféns”; mas isso não evitaria novas rebeliões
“que serão cada vez mais inexoravelmente reprimidas”135.
Mas Salvemini nunca leva os árabes em consideração, a não ser devido
às muitas “dezenas de milhões anuais” que a Itália deveria gastar “devi-
do à ocupação militar e à guerrilha, que deveremos combater longamente
contra aquela população indígena”. Para o resto, claro que “na ocupação
militar devemos nos deixar guiar exclusivamente pelos critérios de retor-
no econômico”. Portanto, veta qualquer “obra pública (...) talvez útil aos
bérberes da colônia”, porém “não rentável” do ponto de vista da potência
ocupante. E Salvemini assim conclui:
“O nosso sentimento de solidariedade nacional não ultrapassa os
confins da nossa pátria e as necessidades da nossa estirpe. Pensamos em
deixar aos nacionalistas toda a estúpida alegria de amar mais os bérberes
de Trípoli que seus irmãos da Itália”136.
O reformismo transborda aqui com a acusação dirigida aos nacionalis-
tas de serem demasiado brandos com a população indígena!

109
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

Podemos, então, tentar fazer um balanço de conjunto do filão refor-


mista: sua rejeição da violência não só não se aplica à guerra como também
exclui desde o início os bárbaros das colônias. Nisso o reformismo herda
o que existe de pior na tradição liberal, incapaz de elevar-se a uma visão
universal do homem e dos direitos do homem, e que, mesmo em seus ex-
poentes mais avançados (Tocqueville e John Stuart Mill), não hesita em jus-
tificar e louvar, em nome do Ocidente e da liberdade de comércio, a infame
Guerra do Ópio (cf. mais acima, cap. I, 6).

3. O reformismo e a Primeira Guerra do Golfo

Se Salvemini falava de “parada militar de líbia memória”, a Guerra do


Golfo foi propagandeada como uma operação cirúrgica. Na realidade, cus-
tou mais de 100 mil mortes aos iraquianos, atirou um país inteiro, segundo
testemunhos da ONU, na “era pré-industrial” e continua ainda a ser con-
duzida, mesmo depois do cessar-fogo, com um rigor autoritário que não se
importa com as perdas e os sofrimentos infligidos à população civil. A si-
tuação é “apocalíptica”, mas os EUA anunciam que não tencionam renun-
ciar à “arma alimentar”137 para perseguir novos objetivos políticos. E, no
entanto, esta guerra serviu também como batismo de fogo para aquela ala
do PDS e da esquerda italiana que se autopropagandeia como reformismo
moderno. Durante a guerra líbia Bissolati aderiu, na condição de dirigente,
à campanha de assinaturas em favor das famílias dos italianos tombados na
campanha138. É um método oblíquo e tortuoso para estender o consenso e
cumplicidade à expedição militar; método análogo foi usado por ocasião da
Guerra do Golfo com a aprovação de moções de solidariedade aos soldados
italianos no Iraque (assinadas também por Occhetto).
Mais interessantes ainda são os posicionamentos daqueles que cons-
tituíam então os ideólogos da ala reformista do PDS. Segundo Giacomo
Marramao (L’Unità de 25 de janeiro de 1991), “jamais aconteceu na história
que um Estado democrático guerreasse com outro Estado democrático”.

110
Segunda parte - “‘Bárbara’ discriminação entre as criaturas humanas” e a Primeira Guerra do Golfo

Na realidade, se empregarmos a “definição mínima” de democracia cara


a Bobbio, é difícil contestar a natureza fundamentalmente democrática da
Alemanha de 1914, caracterizada pelo pluripartidarismo e por uma viva
dialética sindical e onde ao menos o Reichstag era eleito por um eleito-
rado mais amplo (sufrágio “universal” masculino) do que a Câmara dos
Comuns na Inglaterra ou o Congresso estadunidense, sobre cuja eleição
continuava a se fazer sentir o peso da discriminação de renda ou racial. De
resto, afora o primeiro conflito mundial, basta folhear qualquer manual de
história para se dar conta de que em 1812 verificou-se uma guerra que teve
como únicos adversários exatamente “os países de tradição anglo-saxã” ce-
lebrados e transfigurados por Marramao: os EUA e a Inglaterra.
Insustentável no plano histórico, essa tese é entretanto facilmente expli-
cável pela tradição que leva em seus ombros: ela remete ao primeiro con-
flito mundial e à pretensão dos inimigos ocidentais dos impérios centrais,
mas aliados ao império czarista, de se apresentarem como campeões da
causa da democracia. Este motivo de fundo da ideologia da guerra da En-
tente é agora levado ao extremo: dir-se-ia que em um conflito que envolva
um país democrático este não pode jamais ser considerado o agressor ou
o culpado. Neste ponto já não há espaço para dúvidas: a intervenção na
Indochina, primeiro francesa e depois estadunidense; a aventura de 1956
em Suez promovida por França (sob a direção do socialista reformista Guy
Mollet), Inglaterra e Israel; e, retrocedendo, as Guerras do Ópio e incon-
táveis outras infames aventuras coloniais – tudo isso é posto na conta dos
países bárbaros e despóticos, que tais expedições ou operações de polícia
internacional provocaram, já em virtude de seu atroz subdesenvolvimen-
to, e não certamente na conta dos países liberal-democráticos do Ocidente.
Não por acaso, a triunfal guerra contra o Iraque e a ideologia que a acom-
panhou curaram os EUA da síndrome do Vietnã e o Ocidente e de todo
complexo de culpa pelo seu passado colonial. Na França, é perseguido um
professor, Georges Boudarel, culpado de à sua época ter se oposto à guerra
francesa na Indochina; seus perseguidores, entre os quais um ex-ministro

111
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

de Giscard d’Estaing, ficam muito mais entusiasmados porque – segundo


declaram – “a opinião pública redescobre hoje o papel civilizador” do exér-
cito francês139.
Polemizando com os novos cruzados nas páginas do L’Unità, denun-
ciei a reapresentação de formas de intervencionismo mais ou menos de-
mocrático parecidas com as usadas ao longo do primeiro conflito mundial
(cf. mais acima, cap. III, 1 b). Flores d’Arcais, na época membro da direção
do PDS, prontamente replicou, sempre nas colunas do l’Unità: “O anátema
lançado contra o intervencionismo democrático foi refutado por Bobbio,
por (Renzo) Foa, por (Antonio) Giolitti”140. A continuidade de 1914 parece
aqui ter sido tranquilamente aceita.
Emerge assim a real linha de fronteira entre “reformistas” e “revolu-
cionários”: não é a atitude em relação à violência e nem a teorização so-
bre o papel da vanguarda (vimos o próprio Salvemini enaltecer o papel da
vanguarda democrático-intervencionista). Não é tampouco, como pretende
Bobbio141, a subordinação da moral à história, que ele recrimina nos leninis-
tas. Já vimos Turati conclamar a que se curvassem diante da “história” e do
“fato”, que inexoravelmente prosseguiram com seu enorme cortejo de ca-
dáveres; o mesmo Salvemini atribui à guerra a missão de aniquilar “os dois
Estados mais antinacionais (Rússia e Turquia) que ainda hoje atravancam o
terreno da história”142. Embora com entonações diversas, tanto Turati como
Salvemini justificam a violência e o massacre sem precedentes da Primeira
Guerra Mundial, em nome precisamente da necessidade histórica. Quan-
to à moral, para demonstrar a habilidade dos reformistas de adaptá-la às
suas exigências políticas concretas basta citar Salvemini que, embora ainda
não fosse dos piores, e, para o qual, no entanto, “a conquista de Trípoli,
ainda que injusta do ponto de vista da moral absoluta (...) devemos todos,
no final, considerá-la do ponto de vista moral como um grande benefício
ao nosso país”143. Na realidade, a tradição “reformista” caracteriza-se em
primeiro lugar pelo comportamento que assumiu em relação à guerra im-
perialista e à questão colonial.

112
Segunda parte - “‘Bárbara’ discriminação entre as criaturas humanas” e a Primeira Guerra do Golfo

O intervencionismo “democrático” e “pacifista” é hoje o núcleo central


da ideologia da guerra. É particularmente significativa a recente campa-
nha publicitária da Bundeswehr: “Há muitas coisas a defender: liberdade e
direitos civis, autodeterminação e independência de pressões externas. E
a paz...”144. A mesma cantilena é entoada na Itália para exigir o reforço e a
profissionalização do exército.
Também as próximas expedições contra o Sul serão conduzidas como
operações de polícia internacional. A esquerda “reformista” deu e continua
a dar uma contribuição de primeira importância à atual ideologia da guer-
ra145. Ela crê ter descoberto algo de novo. Mas faria bem em reler o velho
e desprezado Lênin, que já em 1917 denunciava o hábito dos europeus de
desconsiderarem as guerras que travavam fora da Europa – e que entretan-
to compreendiam o extermínio de povos indefesos ou de qualquer forma
em condições de clara inferioridade militar (Loc, XXIV, 412).

113
Terceira parte

Marx e a história
do século 20

115
Terceira parte - Marx e a história do século 20

V
Marx e a história do totalitarismo

1. Tradição liberal e instituições totais

A ideologia dominante trata de remover os dramáticos e não resolvi-


dos problemas do mundo contemporâneo e a persistente trágica atuali-
dade da “bárbara discriminação entre as criaturas humanas” evidenciada
pela Guerra do Golfo através da liquidação sumária da jornada iniciada
pela Revolução de Outubro e mediante um balanço maniqueísta não só
do século 20, mas do conjunto dos dois últimos séculos. Sob essa ótica, a
história do destino de Marx e Engels deve ser identificada com a história do
totalitarismo; de modo que o único uso possível dos autores do Manifesto
do Partido Comunista, hoje, seria o de procurar pacientemente suas pegadas
na história para poder apagá-las de uma vez por todas. Trata-se de uma
operação fatigante, mas considerada necessária, mas não suficiente pela
propaganda neoliberal (ou neoliberalista) , a qual, para localizar a gênese
do totalitarismo remonta a bem antes de Marx. Do ponto de vista de Hayek,
um ajuste de contas definitivo deveria proceder ao retorno ao liberalismo
clássico.
Mas será verdade que este último está completamente imune à mácula
do totalitarismo? Na realidade existe uma Instituição total, objeto da dura
crítica de Marx e Engels, que acompanha como uma sombra toda a história
da Europa liberal. Refiro-me às “casas de trabalho” (workhouses), ou “casas
de correção”,onde eram aprisionados, amiúde mediante uma simples deci-
são da polícia, os desocupados e todos aqueles considerados como “vaga-
bundos ociosos”. Para explicar seu funcionamento, podemos nos valer da
embevecida descrição que dele faz um texto clássico do liberalismo alemão
na primeira metade do século 19.

117
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

Entretanto, quem deve ser aprisionado nessa instituição? Mas claro,


todos os que, carecendo de meios de subsistência, poderiam ser tentados a
violar o direito de propriedade; o Estado deve, com efeito, debelar o furto
“já na sua fonte” – esclarece o texto em questão. No interior da workhouse,
“uma severa vigilância e disciplina” deve controlar a “permanente e pon-
tual execução” do trabalho obrigatório. Sobretudo, para que a instituição
exerça plenamente sua função pedagógica sobre o vadio internado, “todas
as suas inclinações sensíveis devem permanecer inatendidas”. É difícil di-
zer aqui onde termina a preocupação pedagógica e começa o verdadeiro e
próprio sadismo. Em todo caso, se, apesar de tudo, não aparecem os ade-
quados sinais de melhoria, a instituição possui à disposição outros instru-
mentos para dobrar a “obstinação” do ocioso, por exemplo recolhendo-o a
uma cela de isolamento, no escuro, reduzindo sua ração de alimentos etc.,
de modo a finalmente educá-lo para o “amor ao esforço”146.
É verdade que estamos na Alemanha, e poder-se-ia tentar despejar
tudo isso na conta da tradição alemã. As coisas apresentam-se de maneira
diferente. No entanto, a entusiástica descrição das casas de trabalho remete
aos ambientes liberais elogiados por Hayek147. Além do que se trata de uma
instituição que tinha o seu centro na Inglaterra. Referindo-se justamente ao
país clássico do liberalismo, o jovem Engels nos revela uma série de porme-
nores ainda mais impressionantes: “Os paupers (pobres) vestem o uniforme
da casa e não têm a menor proteção contra o arbítrio do diretor”; para que
“os pais ‘moralmente degradados’ não possam influenciar seus filhos, as
famílias são separadas; o homem é enviado a uma ala, a mulher a outra,
os filhos a uma terceira”. A unidade familiar é quebrada, mas quanto ao
resto são todos amontoados às vezes em número de 12 ou 16 em um único
cômodo e todos sofrem toda sorte de violência, sem poupar nem os velhos
e crianças, e que requer particular atenção às mulheres. Na prática – conclui
Engels –, os internados nas casas de trabalho são considerados e tratados
como “objetos de repulsa e horror, postos fora da lei e da comunidade hu-
mana” (MEW, II, 496-8). Poderíamos acrescentar, hoje, que se trata de uma

118
Terceira parte - Marx e a história do século 20

instituição sobre a qual poderia ter sobressaído dignamente a inscrição Ar-


beit macht frei, o trabalho liberta!
No entanto não faltam aqueles que consideram insuficiente a severa
disciplina vigente em tal instituição. No fim do século 17, na Inglaterra libe-
ral saída da Revolução Gloriosa, propõe-se um subsequente endurecimento
de regras: “Qualquer um que falsificar um passaporte (saindo sem permis-
são) será punido com o corte da orelha na primeira vez, e na segunda de-
portado para as plantações como um criminoso”, ficando assim reduzido
na prática à condição de escravo. Mas há uma solução ainda mais simples,
ao menos para aqueles que têm a desdita de serem pilhados pedindo esmo-
las fora de sua paróquia e perto de um porto de mar: que sejam embarcados
à força na marinha de guerra; “se depois vierem a desembarcar em terra
sem permissão, ou a se afastar, ou permanecer em terra além do permitido,
serão punidos como desertores”, isto é, com a pena de morte. Mas quem é
o autor dessas propostas? É John Locke148, o pai do liberalismo. Mais uma
vez, é do próprio seio da Europa liberal que emerge o universo concentra-
cionário, mais ainda porque a caça aos “ociosos vagabundos” parece contar
com a participação unânime do resto da população, pois são chamados a
capturá-los os próprios habitantes da casa em cuja porta os mendicantes
tiveram a desfaçatez de bater. Estamos realmente diante de uma “legisla-
ção sanguinária contra os vagabundos”; o julgamento é de Marx, o qual
também denuncia no Capital o fato de relações de trabalho essencialmente
escravistas terem sobrevivido na Inglaterra até meados do século 19 (MEW,
XXIII, 761-5).
Porém voltemos à proposta de Locke sobre o alistamento forçado dos
vadios na marinha militar. Aqui nos deparamos com mais uma instituição
total. Em um parágrafo do segundo Tratado sobre o governo, dedicado a de-
monstrar a absoluta inviolabilidade da propriedade privada, eis em que
termos o mesmo Locke descreve a disciplina vigente no exército:
“A conservação do exército e, com ele, do Estado no seu con-
junto, exige obediência absoluta às ordens de qualquer oficial su-

119
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

perior; e desobedecer ou discutir mesmo as mais irracionais signi-


fica justamente a morte. Contudo, vemos que nem o sargento que
pode ordenar que um soldado marche para a boca do canhão, ou
permaneça em uma pedra onde é quase certo que morra, pode
mandar que aquele soldado lhe dê um tiquinho de seu dinheiro.
Nem o general, que pode condená-lo à morte por desertar de seu
posto, ou por não ter seguido as ordens mais insanas, pode, ape-
sar de todo o seu absoluto poder de vida e de morte, dispor de
um centésimo de propriedade do soldado, ou se apoderar de uma
migalha dos seus bens, ainda que possa ordenar qualquer coisa e
enforcá-lo pela mínima desobediência149.
Ou seja, a propriedade é em qualquer circunstância inviolável, mas a
“conservação (...) do Estado” baseado na propriedade exige que no exérci-
to os oficiais disponham de “absoluto poder de vida ou morte”. Convém
refletir sobre esta última expressão, usada em outro trecho para definir a
natureza do instituto da escravidão verdadeira e adequada, que Locke con-
sidera óbvia e pacífica nas colônias (cf. mais acima, cap. I, 4), onde o univer-
so concentracionário do trabalho forçado alcança a perfeição, e para onde
como sabemos são ou devem ser deportados aqueles que não souberam se
adaptar à disciplina das casas de trabalho.
Marx é um crítico radical dessas instituições totais, estreitamente im-
bricadas entre si. É preciso situar neste âmbito inclusive a própria análise
da fábrica capitalista. Ao teorizar o seu Panóptico, este edifício voltado para
uma vigilância sem escapatória, Jeremy Bentham frisa que ele pode servir
indiferentemente como penitenciária, casa de trabalho ou até como fábri-
ca150. Não parece haver diferenças relevantes entre essas instituições; todas
se caracterizam por uma disciplina que tem por modelo o exército. À luz
de tal fato, pode-se compreender melhor a denúncia que faz o Manifesto do
Partido Comunista sobre o “despotismo” vigente nas fábricas, onde os ope-
rários são “organizados militarmente” e, “como simples soldados da in-
dústria, (...) submetidos à supervisão de toda uma hierarquia de suboficiais

120
Terceira parte - Marx e a história do século 20

e oficiais” (MEW, IV, 469). A construção da liberdade comporta portanto,


em seu estágio final, o modelo daquela instituição total por excelência que
é o exército.
No Sieyès de 1789, empenhado na luta contra o antigo regime e preocu-
pado com um possível golpe de Estado monárquico, Marx talvez tenha po-
dido ler que sempre que o exército intervém dentro de seu próprio país, em
função da ordem pública, a liberdade é destruída151. Por ironia da história,
dez anos mais tarde é o próprio Sieyès que organiza o golpe de Napoleão
Bonaparte, que, no início, obtém o caloroso apoio de Constant, de Madame
de Staël e dos círculos liberais152.
Se Marx aprende sobre esse golpe nos livros de história, o golpe se-
guinte, o de Luís Bonaparte, ele pode experimentar e analisar de perto. São
conhecidas as conclusões que dele extrai: o regime representativo está sem-
pre pronto a se transformar em ditadura militar, e isto com base em uma
lógica cujo controle na maioria das vezes termina por escapar à própria
classe dominante. O aparato militar desenvolvido pela burguesia com fun-
ção antioperária termina por devorar a sociedade no seu conjunto e a pró-
pria burguesia. Ao reprimir a revolta operária de junho de 1848, o general
Cavaignac (caro à burguesia liberal) exerce “a ditadura da burguesia por
meio da espada”, que contudo termina por se transformar na “ditadura
da espada sobre a sociedade civil” (MEW, VII, 40). É esta a essência do bo-
napartismo, que pode se desenvolver seja em relação à luta de classe dentro
de um único país, seja em relação a conflitos internacionais. Demonstra-o
o exemplo do bonapartismo prussiano e alemão encarnado em Bismark.

2. Mobilização total, totalismo, totalitarismo

Com a deflagração da Primeira Guerra Mundial a arregimentação da


sociedade alcança um nível sem precedentes. Com o serviço militar obri-
gatório imposto inclusive na Inglaterra, é toda a população masculina em
condições de portar armas que é submetida, para usar as já citadas palavras

121
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

de Locke, a um “poder absoluto de vida e morte”: ali estão para demonstrá-


-lo os tribunais militares, os pelotões de fuzilamento, a prática dos massa-
cres. A legislação de emergência ou o Estado de sítio cuidam de comprimir
em um torniquete de aço a própria população civil. Weber observa em 1917
que “atribui-se hoje (ao Estado) um poder ‘legítimo’ sobre a vida, a morte e
a liberdade”153. E isso não vale apenas para a Alemanha, mas também para
os países de mais antigas tradições liberais. Por toda parte vige a mesmíssi-
ma consigna: “mobilização total”, “guerra total”, política total”154. É preci-
samente daqui que é necessário partir para explicar a gênese do termo e da
realidade do “totalismo”155 ou totalitarismo propriamente dito.
Apenas o movimento revolucionário que se vale de Marx se lança na
oposição a essa mobilização total. Poder-se-ia dizer que a Revolução de Ou-
tubro representa o pleno desenvolvimento da lição antitotalitária presente
em Marx e ao mesmo tempo a abertura de um novo capítulo na história do
totalitarismo.
Vejamos, antes de mais nada, o primeiro aspecto. Não apenas os nacio-
nalistas declarados dão prova de holismo, de organicismo, de totalitarismo,
mas também os liberais; todos partilham da convicção de que é preciso
sacrificar milhões e milhões de indivíduos no altar da salvação do Estado
ou da pátria. Quem recusa esse gigantesco rito sacrificatório e contesta o
“absoluto poder de vida e morte” do Estado são em primeiro lugar os se-
guidores de Marx e Lênin. Na Itália acontece um interessante debate a res-
peito. O liberal Benedetto Croce, depois de reiterar a distinção entre moral
e política, polemiza com os “moralistas políticos” – em primeiro lugar os
bolcheviques –, que “se dedicaram a pronunciar julgamentos morais sobre
os Estados”, e pretenderiam, “em nome da moralidade”, condenar a guerra
por esses Estados proclamada156. Togliatti acusa Croce de desejar remover
“o Estado da consciência dos indivíduos”, criando “entre eles um abismo.
(...) O Estado volta a ser uma abstração, pois dele é tirada a sustentação
concreta da vontade moral dos indivíduos”. “É um resíduo da antiga trans-
cendência, uma sombra do velho Deus”.

122
Terceira parte - Marx e a história do século 20

Assim, o Estado que, segundo Croce, tinha o direito de se engajar livre-


mente na guerra, seguindo seu instinto vital e de potência e sacrificando em
massa os seus cidadãos, aos olhos de Togliatti parece nada mais do que a
superficial secularização do velho Moloch, devorador de homens. A Revo-
lução de Outubro teria sido feita contra esse glutão Estado-Deus e sua pre-
tensão totalitária de dispor de “absoluto poder de vida e morte” sobre seus
cidadãos. Essa revolução representa o rechaço consequente de toda “con-
cepção política que atribua ao Estado uma vontade supraindividual”157.
Como se vê, quem sustenta as razões do indivíduo nesse momento é
Togliatti; e o faz celebrando a Revolução de Outubro e invocando Marx. Já
Croce, antes mesmo da intervenção da Itália no conflito, encarava com ad-
miração o exemplo de organização e de unidade maciça da Alemanha em
guerra e sustentara a tese de que o “socialismo à la Marx” estava destinado
a ser superado pelo “socialismo de Estado e de nação”158.
Convém deter-se um instante nesta última expressão. No fim do sécu-
lo 19 Engels denunciara o caráter reacionário do “socialismo prussiano de
Estado” (preußischer Staatssozialismus) e – o que é ainda mais significativo –
vinculara aos preparativos de guerra de Bismark o desenvolvimento desse
“falso socialismo” ou “pretenso socialismo” (MEW, XX, 259 e nota; XXV,
170)159. Ao passo que agora a categoria e a expressão “socialismo de Estado”
adquirem uma significação univocamente positiva.
Já dois anos antes da eclosão da guerra, Croce acusara os socialistas
de terem destruído a “consciência da unidade social” e lamentara a “de-
cadência geral do sentimento de disciplina social: os indivíduos não se sen-
tem mais ligados a uma grande totalidade, submetidos a ela, cooperando
com ela, atentos a seus valores de trabalho que constituem a totalidade”160.
Dois anos mais tarde, Croce localiza a realização da cobiçada “grande to-
talidade” no “socialismo de Estado e de nação”, em prática no socialismo
de guerra e de organização e militarização total da classe operária e da po-
pulação. Dir-se-ia que o socialismo ou “comunismo de caserna” outrora
condenado por Marx e Engels (MEW, VIII, 322) torna-se agora o ideal dos

123
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

diversos Estados burgueses engajados no conflito e da própria burguesia li-


beral. Se o Manifesto do Partido Comunista denunciara a fábrica capitalista in-
clusive por suas implicações militaristas, agora a guerra e a mobilização to-
tal são enaltecidas “como instrumento para abolir a estrutura de classe”161.
Ao apontar o ideal do “socialismo de Estado ou de nação”, Croce invoca
ainda o último Antonio Labriola, “socialista e patriota, e por fim imperia-
lista, fautor da guerra, fautor das conquistas coloniais”162. O filósofo liberal
parece valorizar a estreita ligação entre férrea disciplina militar no interior
do país e política internacional de submissão dos povos coloniais. Três anos
depois, junto com a guerra e o exército, a Revolução de Outubro coloca em
discussão também o que define como escravidão colonial, ou seja, a outra
instituição total, o universo concentracionário do trabalho forçado que a
Europa liberal e a Belle Époque tinham mantido em pé nas colônias.

3. Revolução de Outubro e “complô” judaico-bolchevique

Dada a mobilização total em curso, bem se compreende que os bol-


cheviques, empenhados em exigir a paz imediata, sejam acusados por
Alexandre Kerensky, chefe do governo provisório russo, de cumplicidade
com o inimigo delito que comporta a pena de morte. É uma acusação que
logo encontra grande eco nos países da Entente; ou melhor, trata-se de uma
acusação que se baseia em documentos elaborados pela contraespionagem
francesa163. A Revolução de Outubro torna-se, pois, a prova dos nove do
complô alemão. Em Londres, Churchill declara na Câmara dos Comuns em
5 de novembro de 1919: “Lênin foi enviado à Rússia pelos alemães como
se tivesse sido derramada uma ampola com uma cultura de tifo ou cólera
no reservatório de água de uma grande cidade”164. Isto é, tratava-se de um
episódio da guerra total, até bacteriológica por assim dizer desencadeada
pelos alemães, os quais, depois de empregarem gás asfixiante, haviam re-
corrido à agitação bolchevique. Se de uma visão holista e tendencialmente
totalitária da sociedade faz parte integrante a eliminação do conflito que

124
Terceira parte - Marx e a história do século 20

aparece como resultado não de contradições objetivas internas, mas da


agressão de agentes patogênicos externos, em prejuízo de um organismo
fundamentalmente sadio e unitário –, é necessário então dizer que incli-
nações holistas e tendencialmente totalitárias se difundem no Ocidente a
partir do clima de mobilização total, o qual, entretanto, vai até bem depois
do primeiro conflito mundial.
A teoria do complô se enriquece com um motivo fatal que responsa-
biliza até, e sobretudo os judeus. Para Churchill, Lênin é “o grande mestre
e chefe” de “uma seita formidável, a mais formidável do mundo”. E, para
que não paire a menor sombra de dúvida, ei-lo que intervém, dias mais
tarde, com mais uma especificação: “Querem destruir toda a fé religiosa,
que consola e inspira a alma humana. Acreditam nos Sovietes internacio-
nais dos judeus russos e poloneses. Nós continuamos a acreditar no Impé-
rio Britânico”165.
Engels escrevera em 1851: “Faz tempo que passou a época daque-
la superstição que remetia a revolução às más intenções de um punhado
de agitadores” (MEW, VIII, 5). Engels estava profundamente enganado.
A luta contra a Revolução de Outubro inaugura a época em que a teoria
do complô celebra seu triunfo. Ela se difunde por toda parte, penetra até
na Itália e aqui encontra entre os seus defensores Benito Mussolini, que já
rompeu os laços com o socialismo e com Marx e se prepara para se tornar
o duce do fascismo. Ei-lo portanto empenhado em deflagrar uma violenta
campanha contra o bolchevismo “judaico-alemão”: transcorreram poucos
dias da tomada do poder sob a liderança de Lênin. Logo depois do fim da
guerra, e da derrota da Alemanha, o bolchevismo é atribuído unicamente à
internacional judaica166.
Voltemos à Inglaterra. A tese do complô está tão enraizada que não se
contenta com meias medidas; remonta até a Revolução Francesa e também
aqui se descobre ou redescobre uma trama secreta e sinistra da conspira-
ção judaica. Trata-se, como é notório, de uma velha tese, sobre a qual se
exercitava metaforicamente a ironia já vista de Engels, mas que, no perío-

125
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

do em exame, é novamente polida e ajustada por um autor inglês, rapida-


mente citada elogiosamente por Churchill167. Talvez faltasse um elo à tese
da continuidade do complô judaico desde a Revolução Francesa até a de
Outubro. A lacuna é logo preenchida: os “tipógrafos oficiais de Sua Majes-
tade” providenciam a edição inglesa dos Protocolos dos sábios do Sião, pouco
tempo depois mencionada com grande destaque pelo Times como prova ou
indício da ameaçadora trama secreta que envolvia o Ocidente168. É tama-
nho o terror despertado pela Revolução de Outubro que a tese do complô
“judaico-bolchevique” atravessa o Atlântico e alcança um país onde até en-
tão o fenômeno do antissemitismo era quase desconhecido, até porque o
bode expiatório tradicional era formado por um grupo étnico diverso. Sim,
o mito ariano e da “superioridade do ariano” já estava bem presente nos
EUA, mas até então havia sido empregado contra os negros: eram estes que
encarnavam “a ameaça nacional assustadora, sinistra” que pesava sobre a
civilização estadunidense; e eram esses que, segundo os racistas mais extre-
mados, precisavam ser “mortos e varridos da face da terra”169.
Com a guerra primeiro e a Revolução de Outubro a seguir, a situação
muda: a cruzada contra o perigo judaico-bolchevique adquire tal vigor que
pode se jactar de ter em sua linha de frente até Henry Ford, o magnata da
indústria automobilística, que funda com este fim uma revista de grande
tiragem, The Dearborn Independent; os artigos ali publicados são reunidos
em 1920 em um volume, O judeu internacional, que logo se torna um ponto
de referência do antissemitismo internacional, a ponto de ser considera-
do “sem dúvida o livro que mais contribuiu para a fama dos Protocolos no
mundo”170. Aludindo à teoria do complô, Engels falara de “superstição”,
quase como se fosse um resíduo de um mundo pré-moderno e pré-indus-
trial, mais eis que, inversamente, assistimos ao encontro dessa teoria com o
mundo da indústria e da tecnologia moderna, ou, antes, com um represen-
tante de vanguarda das técnicas mais avançadas de produção industrial.
É verdade que depois de algum tempo Ford foi obrigado a abandonar
sua campanha, porém foi traduzido na Alemanha e conheceu grande

126
Terceira parte - Marx e a história do século 20

sucesso. Hierarcas nazistas de primeiro escalão como Baldur von Schirach


e até Heinrich Himmler dirão mais tarde que se inspiraram nele ou foram
por ele marcados171. O segundo, em especial, relata só ter compreendido “a
periculosidade do judaísmo” a partir da leitura de um livro de Ford: “Para
os nacional-socialistas foi uma revelação”, diz. Ele seguiu pois na leitura
dos Protocolos dos sábios de Sião: “Estes dois livros nos indicaram o cami-
nho a percorrer para libertar a humanidade atormentada por seu maior
inimigo de todos os tempos, o judeu internacional”172; como seria de es-
perar, Himmler usa uma fórmula que repete o título do livro de Henry
Ford. Poderiam ser depoimentos de parte interessada e instrumentais. É
um dado de fato porém que nas conversas de Adolf Hitler com Dietrich
Eckart, a personalidade que mais o influenciou, o antissemita Henry Ford
é um dos autores mais frequente e positivamente citados173. Por outro lado,
segundo Himmler, o livro de Ford, mais os Protocolos, teriam desempenha-
do um papel “decisivo” (ausschlaggebend) tanto em sua formação como na
do Führer174.
O certo é que O judeu internacional continuou a ser publicado com gran-
des honras no Terceiro Reich, com prefácios que sublinham o mérito his-
tórico decisivo do autor e industrial estadunidense (por ter trazido à luz a
“questão judaica”), evidenciando uma espécie de linha de continuidade de
Henry Ford até Adolf Hitler!175
Neste ponto torna-se evidente a insustentabilidade da tese recentemen-
te formulada por Ernst Nolte, de que o genocídio em que desembocará o
totalitarismo nazista, deveria fundamentalmente levar em conta a “barbá-
rie asiática”, imitada por Hitler com os olhos na Revolução de Outubro
e nos métodos com que na URSS era conduzida a “luta de classe”176. O
Nolte de 1987 é refutado pelo Nolte de vinte anos antes, que a propósito
da importância da identificação entre bolchevismo e judaísmo na formação
ideológica e política de Hitler, observa: “A eficácia explosiva, no âmbito
político, dessa identificação de judaísmo e bolchevismo é palmar (...). Esta
certamente não foi uma descoberta de Hitler, mas sim o patrimônio comum

127
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

de toda uma literatura que ia de Henry Ford a Otto Hauser (poder-se-ia até
dizer que Hitler foi inventado por ela)”177.
Na realidade a sombra da solução final em prejuízo dos judeus come-
ça a se projetar já no curso da Primeira Guerra Mundial. Em outubro de
1917, um escritor católico inglês, Gilbert Keith Chesterton (que mais tarde,
em 1921, encontrará Henry Ford, que lhe deixará uma impressão muito
entusiástica, dada a comunhão de ideias sobre a questão judaica), faz uma
ameaçadora advertência:
“Queria acrescentar uma palavra sobre os judeus... Se eles conti-
nuam a se alongar em estúpidos discursos sobre pacifismo, acirran-
do os ânimos contra os soldados ingleses e suas esposas ou viúvas,
aprenderão pela primeira vez o que quer dizer ‘antissemitismo’”178.
Até aqui o antissemitismo é diretamente ligado às exigências de mobili-
zação total própria da guerra. Não só na Inglaterra, mas também nos países
em guerra com ela, adensa-se a sombra das suspeitas sobre um grupo étni-
co com fortes ligações internacionais e portanto com perigosas tendências
cosmopolitas e neutralistas, e, para além disso, obstinadamente acometido
de uma irredutível diversidade cultural que o impede de se fundir sem dei-
xar resíduos na celebrada comunidade patriótica e de guerra. Mas o aviso
de Chesterton sobre os judeus vai adiante: “Procuram doutrinar Londres
tal como o fizeram com Petersburgo, despertando algo que os conturbará
e os aterrorizará muito mais que uma simples guerra”179. Reflita-se sobre
o fato de que nesse momento ainda não havia se verificado a conquista do
poder pelos bolcheviques.
É portanto da Primeira Guerra Mundial que se deve partir para com-
preender a história do totalitarismo no século 20. A mobilização total põe
em movimento aquilo que já foi chamado um processo de “brutalização da
política”, que se prolonga para bem além do conflito e, se atinge o seu apo-
geu na Alemanha, certamente, não poupa sequer os países de mais arraiga-
das tradições liberais, a começar pela Inglaterra que, durante certo período,
esteve inclusive à frente na denúncia do perigo judaico-bolchevique.

128
Terceira parte - Marx e a história do século 20

Na Inglaterra do entreguerras, “um dos maiores sucessos editoriais”


é constituído por romances cujos protagonistas “brutalizam alegremente
inimigos apresentados como desequilibrados e porcos (na maioria das ve-
zes judeus ou bolcheviques)”, ou torturam e assassinam “os inimigos da
Inglaterra, sem remorso nem piedade”180. É importante a equiparação su-
gerida por esses romances entre “inimigos da Inglaterra”, “judeus” e “bol-
cheviques”: parece esvanecer a diferença entre a guerra internacional e a
luta política interna. Poder-se-ia objetar que esses livros não criam na In-
glaterra uma realidade sanguinária, e no entanto seria errado pensar que a
“brutalização da política” neste país se limite exclusivamente ao plano da
imaginação.
A revolução provoca na Rússia uma escalada da agitação antissemita,
expressa em pogroms sangrentos que se entrelaçam com a guerra civil e in-
ternacional contra o novo poder soviético. Este se empenha fortemente em
combater tal agitação que às vezes ultrapassa o movimento contrarrevolu-
cionário propriamente dito. Não apenas são geradas leis severíssimas como
também Lênin pronuncia um discurso, gravado em disco de modo a atingir
também os milhões de analfabetos (Loc, XXIX, 229-30)181. Na vertente opos-
ta, as tropas britânicas desembarcadas no norte da Rússia promovem no
verão de 1918 uma difusão maciça de panfletos antissemitas, atirando-os de
aviões182. Alguns meses depois ocorrem pogroms de grandes proporções
onde cerca de 60 mil judeus perdem a vida: “Diz-se que os Aliados, então
empenhados na sua invasão da Rússia, tinham secretamente apoiado os
pogroms”. Quem registra essa notícia é o historiador George Lachmann
Mosse, que comenta: “Os pogroms pós-bélicos podem servir para ilustrar
uma nova impiedade contra os inimigos rotulados como tais com base em
meros estereótipos (judeus = bolcheviques); um fenômeno (...) que alcançou
uma intensidade sem precedentes no período entre as guerras”183.
Já se observou que os crimes nazistas relegaram a segundo plano os
massacres das gerações anteriores, de modo que poucos têm conhecimento
do prelúdio que se desenvolveu na Rússia entre 1918 e 1920184. Outros estu-

129
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

diosos foram ainda mais longe, observando que a política nazista “tem com
efeito suas fontes espirituais na Rússia do czar, no ambiente dos Cem Ne-
gros e dos russos ‘puros’”185. Na sequência da revolução, os emigrados rus-
sos tiveram um papel importante na difusão do antissemitismo. O próprio
León Poliakov acaba por reconhecê-lo, sem nada ter de benévolo para com
o Estado nascido da Revolução de Outubro: “Todos os países burgueses es-
tavam expostos à propaganda dos brancos, que em última análise se reduzia
à equação bolchevismo = judaísmo”186. Ou melhor, o nascente movimento
nazista teria obtido da emigração russa e antibolchevique não só as ideias,
mas também os meios financeiros, assim como militantes e quadros, em
proporções não negligenciáveis187.
Portanto a linha de continuidade que termina por aflorar aqui é frontal-
mente oposta àquela sugerida ou enunciada pelo último Nolte; é uma linha
de continuidade que conduz dos pogroms tradicionais da Rússia, passando
pelos massacres em grande escala perpetrados pelos brancos, ou seja, pelas
tropas antibolcheviques, apoiadas pela Entente, e através também da psicose
do complô judaico-bolchevique, que se espalha inclusive no Ocidente, até o
nazismo e a solução final. Ainda no decorrer da Segunda Guerra Mundial,
nas regiões da Europa Oriental ocupada pelo Terceiro Reich, pogroms locais,
instigados ou encorajados pelas autoridades nazistas188, foram chamados a
flanquear ou estimular aquela que então se projeta como a “solução final”.

4. Segunda Guerra dos Trinta Anos e totalitarismo

Mas se a pretensão do último Nolte, e não só dele, de considerar a Re-


volução de Outubro corresponsável de algum modo pela barbárie nazista,
é absurda e só pode se explicar por preconceito ideológico, isto não signifi-
ca que a União Soviética fosse imune ao clima geral daqueles anos. Ainda
que com intensidade diferente de país para país, a atmosfera de mobiliza-
ção total se prolonga até bem depois do fim da Primeira Guerra Mundial.
Isto, naturalmente, vale até, e com maior razão, para a União Soviética não

130
Terceira parte - Marx e a história do século 20

só às voltas com furiosas lutas civis, mas alvo de uma “guerra não declara-
da” que assinala o asselvajamento das relações internacionais. Ademais é
uma guerra inspirada não por objetivos territoriais limitados mas por um
objetivo político total: “Depois do verão de 1918 não se podia alimentar
qualquer dúvida séria sobre a decisão aliada de destruir o regime e ajudar
qualquer um que tentasse fazê-lo”189.
São os anos em que o Times escreve que “não há presumidamente lugar
no mundo para abrigar a um só tempo o bolchevismo e a civilização”. E, na
vertente oposta, George Zinoviev declara: “Nós e eles não podemos viver
em um mesmo planeta”190.
Apesar das convulsões verificadas em relação a 1914-18, a guerra não
acabou e sua configuração total tornou-se ainda mais nítida. É significativa
a consigna lançada por Zinoviev: “Necessitamos de um militarismo socia-
lista para derrotar nossos inimigos”191. Não se trata mais agora de combater
o militarismo enquanto tal, mas de contrapor militarismo a militarismo.
O clima de complô se enraíza profundamente também na URSS. Ke-
rensky e seus aliados tinham colocado a Revolução de Outubro no cômpu-
to do complô alemão e judaico; o novo poder soviético acaba por proceder
analogamente, recusando-se a reconhecer a objetividade e a gênese primor-
dialmente interna das contradições provocadas pelo processo de constru-
ção da nova sociedade. Esse comportamento obviamente nada tem a ver
com Marx e Engels. Todavia, seria um erro passar por cima dos limites de
sua teoria que podem ter favorecido o processo de degeneração na União
Soviética. A expectativa da extinção do Estado após um período breve de
transição socialista dificultou ou impediu a elaboração de uma teoria do
Estado e do Estado de direito. Para além disso, tal fase de transição, que de-
veria conduzir em curtos períodos ao advento do comunismo, foi pensada
a partir do modelo da guerra que grassava naquele momento. O clima de
mobilização total prolongou-se durante todo o período que ficou conhecido
como Segunda Guerra dos Trinta Anos, abarcando os anos de uma guerra
fria que ameaçava a qualquer momento converter-se em guerra quente.

131
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

Com a guerra total, com o “militarismo socialista” pensado como res-


posta ao burguês e com a psicologia do complô, também o universo con-
centracionário aflorou em grande escala na URSS. Porém mais uma vez
seria errôneo querer deduzir de Marx, ou mesmo apenas da Revolução de
Outubro, essa instituição total por excelência, esquecendo a longa história
que leva sobre seus ombros.
Já vimos alguns momentos dessa história. Mas pode ser útil mencio-
nar aqui o escândalo que atinge no início deste século a própria Inglaterra
liberal, que aprisiona os bôeres rebeldes, ou suspeitos, inclusive mulheres
e crianças, em campos de concentração onde a mortalidade alcança uma
taxa elevadíssima devido às terríveis condições de vida e à consequente
disseminação de doenças e epidemias192. A indignação fica muito mais for-
te porque a população vitimada é de origem europeia e não os indígenas
africanos contra os quais sempre tombou o punho de ferro das potências
coloniais. A Alemanha, que se revoltava com o comportamento da Ingla-
terra na África do Sul, ouvira e lera sem especial comoção o discurso de
seu imperador, Guilherme II, que, ao falar às tropas enviadas à China para
sufocar a revolta dos Boxers, fizera um chamamento para abrir “caminho à
civilização de uma vez por todas”, recorrendo a métodos adequados: “Não
haverá clemência ali e não se fará prisioneiros. Quem quer que caia nas vos-
sas mãos tomba sob a vossa espada!”193. Por outro lado, nem a Inglaterra,
nem a Alemanha, e nem a Europa em geral tinham se comovido com a sina
que os bôeres destinavam aos indígenas. O tratamento reservado a estes úl-
timos foi assim descrito e justificado por um autor que mais tarde se tornou
conhecido e, além disso, ascendeu ao cargo de autoridade no Terceiro Rei-
ch: “Os bôeres cristãos” – observara Ludwig Gumplowicz – “consideram
‘os homens da floresta e os hotentotes’ não como ‘homens’ mas como ‘seres’
(Geschöpfe) que é lícito exterminar ‘como caça na floresta’”194.
Resta o fato de que foi a partir da Guerra Anglo-Bôer que “entrou em
uso a expressão ‘campo de concentração’”195. E resta igualmente o fato de
que no decorrer da Segunda Guerra dos Trinta Anos o recurso aos campos

132
Terceira parte - Marx e a história do século 20

de concentração terminou por se tornar progressivamente “normal”, inclu-


sive no que toca às relações internas no Ocidente e aos países de mais con-
solidadas tradições liberais. Em seguida ao ataque japonês de Pearl Har-
bour, uma “ordem” do presidente dos EUA, F. D. Roosevelt, dá permissão
às autoridades militares para que deportem e aprisionem em campos es-
peciais 112 mil japoneses (dos quais dois terços cidadãos estadunidenses)
como suspeitos de escassa lealdade196. E a mesmíssima sorte tiveram os an-
tifascistas alemães que buscaram refúgio na França ou na Inglaterra (nesta
última foram mesmo deportados para outro continente, isto é, para o Ca-
nadá)197.
É certo que, por mais horríveis que sejam, esses campos de concentra-
ção são uma realidade bem diversa dos campos de extermínio do Terceiro
Reich; contudo, eles nos fornecem uma ideia do clima geral da Segunda
Guerra dos Trinta Anos e é essa atmosfera que é preciso levar em conta
para compreender também o episódio histórico do Estado nascido da Re-
volução de Outubro.
Já foi dito que o discurso sobre as circunstâncias objetivas não deve
implicar renúncia a ajustar as contas com as debilidades internas da teoria
de Marx e da história do marxismo. Retornemos por um instante à Itália.
Ao polemizar contra a tese cara a Croce sobre o direito do Estado de sacri-
ficar em massa seus cidadãos na guerra, para dar livre curso a um estímulo
vital de potência não sujeito a juízo moral, Togliatti invoca o liberalismo e
elogia-o apaixonadamente: “O liberalismo foi também uma grande coisa”.
Ao Moloch do Estado empenhado na guerra e devorador dos seus cida-
dãos, ele contrapõe “o princípio individualista e revolucionário que abre a
história das Idades Modernas”. Neste sentido, “o princípio liberal (...) hoje
não pode ser rejeitado por ninguém que se diga e queira ser um homem
moderno”. Ou melhor, Marx e os socialistas que se preparam para formar
o partido comunista “são os únicos que dão continuidade ao pensamento e
à ação do liberalismo”198, enquanto o partido liberal de então é acusado de
ser conservador, no máximo “liberal-conservador”199.

133
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

De fato, pouco tempo mais tarde os liberais Benedetto Croce e Giovan-


ni Gentile, depois de louvarem a “grande totalidade” que foi o Estado em-
penhado na guerra, passam a justificar as ações liberticidas dos esquadrões
fascistas, e as justificam em nome do liberalismo. Gentile, em especial, es-
creve a Mussolini depois da Marcha Sobre Roma: “Um liberal autêntico,
que despreze os equívocos e ame assumir o seu posto, deve alistar-se ao
lado do Soberano”200. Deste modo, o filósofo do atualismo revela-se um
tardio discípulo de Sieyès, o liberal que foi o organizador e ideólogo do
golpe de Estado de Napoleão Bonaparte – figura que o Duce do fascismo
procura em vão imitar. Croce, por seu turno, mantém distância, mas já é
tarde demais. A análise de Marx sobre o bonapartismo vale de certa forma
também para o fascismo: o aparato repressivo posto em cena com função
antipopular termina por devorar a própria burguesia liberal.
No Togliatti que se engaja na já vista polêmica com Croce, fica clara a
consciência da necessidade de herdar os pontos fortes e mais altos da histó-
ria do liberalismo. Tal consciência, presente também em Gramsci, se ofusca
continuamente inclusive na Itália e talvez não tenha nunca emergido com
suficiente clareza no movimento operário de um país como a Rússia, abso-
lutamente desprovido de tradições liberais.
Mesmo neste caso devemos nos indagar se o próprio Marx não seja
corresponsável por essa consciência insuficiente ou ausente. Mas é inte-
ressante notar que nos anos imediatamente anteriores à Primeira Guerra
Mundial é a própria burguesia liberal que se empenha em cancelar a heran-
ça democrática e mesmo liberal-democrática da teoria de Marx. O Croce
que engajado na polêmica antidemocrática invoca Marx, a quem atribui o
mérito de tê-lo tornado insensível às mentirosas “cativantes seduções (...)
da deusa Justiça e da deusa Humanidade”. Não teria Marx desmascarado
o caráter ideológico das palavras de ordem da Revolução Francesa? Ou
melhor, segundo Croce, Marx contrapusera “o princípio da força, da luta,
do poderio” às “monotonias jusnaturalistas, anti-históricas e democráticas,
aos assim chamados ideais de 1789”201.

134
Terceira parte - Marx e a história do século 20

Quem responde a Croce é o Gramsci dos Cadernos do cárcere, o qual, em


relação aos ideais emanados da Revolução Francesa, distingue “um sarcas-
mo apaixonadamente ‘positivo’, criador, progressista”, que questiona nes-
ses ideais apenas a “forma imediata, vinculada a um determinado mundo
‘destinado a perecer”, do “sarcasmo de ‘direita’, que é raramente apaixona-
do mas sempre ‘negativo’, cético e destruidor não só da forma contingente
mas do conteúdo humano daqueles sentimentos e crenças” (Q, 2.300). Em
seu tempo, o jovem Marx diferenciara uma crítica da ideologia que destrói
as flores ilusórias para despedaçar os reais grilhões e uma crítica da ideo-
logia que, ao contrário, destrói as flores apenas para reforçar os grilhões.
O jovem Marx cita a propósito aqueles autores que denunciam a natureza
essencialmente escravista do trabalho assalariado não para questionar tam-
bém a este, mas para afirmar a legitimidade da escravidão sans phrase (pura
e simples) (MEW, I, 79-81)202.
Em relação ao trinômio liberté-égalité-fraternité são possíveis dois tipos
de crítica da ideologia, frontalmente contrapostos. Aqui se pode questio-
nar se Marx teria se empenhado em distingui-los com a necessária clare-
za. Resta o fato de que, no âmbito da tradição comunista a confusão foi
muitas vezes total; a crítica da liberdade como simples ideologia, em vez
de abrir caminho à ampliação e enriquecimento dos conteúdos concretos
da liberdade, terminou por legitimar a ditadura inclusive em sua forma
mais brutal. É neste sentido que, como eu dizia, a Revolução de Outubro,
se por um lado é um grande episódio da eficácia antitotalitária que emana
da teoria de Marx, por outro lado abriu um novo capítulo da história do
totalitarismo.

5. Totalitarismo e “democracia ‘social’ ou totalitária”

É um capítulo que hoje se conclui, mas cuja conclusão, demasiado


postergada, ocorre em um momento caracterizado no plano cultural e
ideológico por uma ofensiva generalizada do neoliberalismo. Antes mesmo

135
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

de Marx, a denúncia do totalitarismo acomete já Jean-Jacques Rousseau,


considerado o pai da “democracia totalitária”. Segundo Hayek, a história
da Europa moderna e contemporânea é dominada pelo “conflito entre a
democracia liberal e a democracia ‘social’ ou ‘totalitária’”. Esta última, de-
pois da chama jacobina, teria começado a se impor consistentemente na
Europa, a partir da Revolução de 1848 e da segunda metade do século 19203.
Portanto, a época de ouro da democracia liberal seria aquela anterior ao
advento do sufrágio universal: a história do totalitarismo termina assim por
coincidir com a história da democracia de massas. E é acusado não somente
Marx, mas toda a tradição revolucionária. Estamos claramente em presença
de um balanço histórico que, na realidade, pretende liquidar, junto com o
“socialismo real”, também a “democracia real”.
Vimos que, ao traçar seu balanço da história do totalitarismo, o último
Ernst Nolte atribui tudo à barbárie “asiática” que faz seu primeiro experi-
mento na União Soviética e mais tarde no Terceiro Reich. Não poucos auto-
res liberais procedem a operações com significado análogo. Para eles, não é
tanto o nazismo a ser visto como um apêndice asiático, mas é a Alemanha
em seu conjunto que fica excluída do Ocidente, pelo menos daquele “au-
têntico”. É esta explicitamente a posição de Hayek. Ele explica a catástrofe
do mundo contemporâneo assim:
“Por mais de duzentos anos as ideias inglesas se difundiram
em direção ao Leste. O reino da liberdade, já realizado na Inglater-
ra, parecia destinado a se difundir por todo o mundo. Porém em
torno de 1870 o predomínio dessas ideias havia talvez atingido sua
máxima extensão. A partir daquele momento começou a retirada; e
um tipo diverso de ideias, não realmente novo, até bastante velho,
começou a avançar a partir do Leste. A Inglaterra perdeu sua lide-
rança intelectual no campo político e social, tornou-se uma impor-
tadora de ideias. Nos sessenta anos que se seguiram, a Alemanha
torna-se o centro a partir do qual se expandiam, a Leste e a Oeste, as
ideias destinadas a governar o mundo no vigésimo século”.

136
Terceira parte - Marx e a história do século 20

Fazem parte dessas ruinosas importações provenientes do Oriente as


ideias de Hegel, Marx, List, Schmoller e até Mannheim, e em geral o fascis-
mo e o socialismo sob quaisquer de suas formas204.
Desse modo, ainda que esse caminho seja distinto daquele sugerido por
Nolte, o Ocidente pode recuperar sua pureza e a sua consciência tranquila.
Pelo contrário, ao enaltecer o “homem ocidental”, que teria suas origens na
Grécia205, Hayek, o economista de origem austríaca, e depois finalmente an-
glo-saxão e “ocidental” para todos os efeitos, exprime-se com uma ênfase e
uma ingenuidade talvez ausentes no historiador alemão, bom conhecedor
do papel que o páthos da Grécia e do Ocidente desempenhou no Nazis-
mo206. Cumpre acrescentar que o esquema de Hayek é decididamente mais
desgastante, pois a busca retrospectiva da pureza originária do Ocidente
parece às vezes excluir deste último não só a Alemanha, mas também boa
parte da tradição política francesa, da qual é tão devedora a odiada “demo-
cracia social ou ‘totalitária’”207.
Balanços da história do totalitarismo como estes não só têm o grande
defeito de transfigurar apologeticamente a história do Ocidente, com suas
instituições totais e seus massacres coloniais, como também ignoram desen-
voltamente o fato de que o nazismo, para justificar sua política de opressão
e extermínio, invocou algumas vezes em sua defesa até ao mundo anglo-
-saxão. Quando as leis de Nuremberg estabelecem uma espécie de apartheid
para os judeus, eis que os hierarcas nazistas se referem ao exemplo dos
EUA208; no decorrer da guerra é o próprio Hitler que compara sua política
para com os “indígenas” da Europa Oriental com a “guerra dos Indianos”,
com a luta “movida contra os indígenas da América do Norte. Será a raça
mais forte que triunfará”209.
Também neste caso, não se trata de fazer equiparações apressadas: o
nazismo deve sua eficácia à capacidade de herdar e unificar os conteúdos
reacionários das mais diferentes tradições; e deve a sua barbárie toda par-
ticular também à pretensão de fazer a história da humanidade retroceder
por séculos, destruindo o laboriosamente conquistado conceito universal

137
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

de homem210. Todavia, é certo que é de considerar um esforço frustrado


qualquer balanço da história do totalitarismo que não comporte um ele-
mento de autocrítica da história do Ocidente. E tal autocrítica significa um
encontro obrigatório com Marx que, apesar de suas debilidades e limita-
ções, foi um crítico lúcido e previdente das instituições totais do Ocidente
(incluindo o Ocidente liberal).

VI
Democracia socialista ou extinção do Estado?
O dilema da Revolução de Outubro

1. Anarquismo, mecanicismo e totalitarismo

Em seus momentos mais elevados, o movimento comunista expressou,


como vimos, a consciência da necessidade de herdar os pontos fortes da
tradição emancipadora e revolucionária que o precedia. No entanto, longe
de ter sido adequadamente cumprida, a tarefa em questão falhou clamoro-
samente. Mesmo tendo sido considerável, o peso da situação objetiva por
certo não basta para explicar tal fracasso. É preciso interrogar-se sobre as
razões e as debilidades teóricas de fundo.
Já vimos uma: a tendência mecanicista de tratar como “burguesa”, ou
não proletária, toda a história precedente; uma crítica da ideologia que,
para usar as palavras de Gramsci, não soube distinguir, nas consignas agi-
tadas pela tradição liberal e nos ideais emanados da Revolução Francesa, a
“forma imediata, vinculada a um determinado mundo ‘destinado a pere-
cer’”,dos elementos que são uma aquisição permanente da humanidade no
seu conjunto (cf. mais acima,cap. V, 4). Desta forma, ocorreu que o Estado
nascido da Revolução de Outubro, longe de desenvolver a enorme carga
de liberdade e emancipação que havia norteado sua gênese, sofreu uma
assustadora degeneração.

138
Terceira parte - Marx e a história do século 20

Para compreender adequadamente esse processo é preciso prelimi-


narmente libertar-se de uma representação hoje muito difundida, segun-
do a qual a trajetória da URSS e do “socialismo real” teria demonstrado a
validade da advertência de Mikhail Bakunin contra os perigos inerentes
à teorização da ditadura do proletariado, confirmando ademais a funda-
mentação da irredutível hostilidade anárquica em relação ao Estado en-
quanto tal. Na realidade as coisas são um tanto diversas. Antes de mais
nada porque uma teoria da ditadura temporária pode ser lida inclusive nos
clássicos da tradição liberal (cf. mais abaixo, cap. VIII, 2), e portanto não é
adequada ou suficiente para explicar a degeneração verificada na União
Soviética. E principalmente uma teoria do gênero está presente no próprio
Bakunin, que não exclui completamente o recurso ao “terrorismo” e a me-
didas ainda mais impiedosas, convertidas, entretanto, em “sagradas”, pelo
fim da revolução ou da “santa causa do aniquilamento do mal” (B, 104-5).
O dirigente anarquista propunha explicitamente uma “ditadura invisível”
porém “mais possante” que qualquer outra justamente por não exibir si-
nais exteriores de reconhecimento, “sem títulos e sem direito oficial” (B,
744-5). Hannah Arendt observou com justeza que “a política totalitária não
substitui um corpo de leis por outro, não instaura um próprio consensus ju-
ris, não cria com uma revolução uma nova forma de legalidade”; de modo
que a peculiaridade do totalitarismo não é tanto a “estrutura monolítica” e
sim a “ausência de estrutura”211. Se as coisas são assim, é evidente o papel
nefasto que a persistente influência anarquista desempenhou nos desdo-
bramentos, ou na falta deles, do regime nascido da Revolução de Outubro.
Por outro lado, os próprios Marx e Engels, embora teorizando sobre a ex-
tinção do Estado, observam que, levado ao extremo, o antiautoritarismo,
ao tornar impossível qualquer decisão seguindo regras gerais e baseado
em um consenso e o controle democrático, termina por favorecer de fato o
exercício de um poder arbitrário por uma pequena minoria: o autoprocla-
mado “antiautoritarismo” desemboca assim no “comunismo de caserna”
(MEW, XVIII, 425).

139
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

Neste ponto convém observar alguns termos recorrentes do programa


de Bakunin: “supressão do pessoal judiciário, da justiça oficial e da polí-
cia” etc., mas também “anulação do direito jurídico legal e sua substituição
em toda parte através do fato revolucionário”; é preciso abolir e atirar às
chamas “todos os títulos de posse, atos de herança, vendas, doações, todos
os atos processuais, em uma palavra todo o aparato dos registros. Em toda
parte e constantemente vige o fato revolucionário no lugar do direito cria-
do e garantido pelo Estado” (B, 73 e 86). Segundo o dirigente anarquista,
não se trata de substituir uma norma por outra, o que resultaria, como
veremos melhor a seguir, em sufocar e aniquilar a “vida”; trata-se, ao con-
trário, de “alimentar, despertar, desencadear todas as paixões” (B, 744),
de dar livre curso àquilo que o jovem Bakunin celebra como “o prazer da
destruição”212.
Por outro lado, pode ser interessante examinar uma das principais
acusações formuladas pelo dirigente anarquista contra Marx: este último
teria exercido uma influência nefasta sobre o movimento operário alemão
ao convencê-lo, direta ou indiretamente, de inserir em seu programa a tese
de que “a conquista dos direitos políticos (sufrágio universal, liberdade de
imprensa, liberdade de associação e de reunião pública etc.) seria condição
preliminar e indispensável à emancipação econômica dos trabalhadores”.
Hoje devemos censurar o regime nascido da Revolução de Outubro
por ter perdido de vista o vínculo entre emancipação econômica e polí-
tica, mas para Bakunin o erro de Marx e dos marxistas é, ao contrário,
terem esquecido de que os “direitos políticos” nada mais são do que lixo
“burguês” e o instrumento através do qual a burguesia submete o povo
“a um novo poder, uma nova exploração” (StA, 197-8). O anarquismo se
acopla estreitamente com o materialismo mecanicista. Depois da Revolu-
ção de Outubro, vemos expoentes socialistas revolucionários proclama-
rem que “a ideia de uma Constituição é uma ideia burguesa”213: sobre tal
fundamento não só é fácil justificar qualquer medida terrorista com base
no Estado de exceção mas sobretudo torna-se sumamente problemático ou

140
Terceira parte - Marx e a história do século 20

impossível passar do Estado de exceção para uma normalidade constitu-


cional, já por antecipação tachada de “burguesa”.
Mesmo escrito no momento em que é mais áspera – e não pode deixar
de ser – a denúncia dos regimes representativos liberais, ou liberal-demo-
cráticos, corresponsáveis pela carnificina da Primeira Guerra Mundial, O
Estado e a revolução sublinha que mesmo a mais avançada democracia não
pode prescindir de “instituições representativas” (L, 887); e, com efeito, na
medida em que no Estado nascido da Revolução de Outubro se desenvolve
a democracia, ela requer a difusão de organismos conselhistas, de Sovietes,
baseados eles próprios no princípio da representação e que às vezes re-
correm inclusive à representação de segundo grau. Porém para Bakunin a
ideia de representação faz pensar em Saturno, o deus que “representava os
próprios filhos na medida em que os devorava” (StA, 397). As persistentes
tendências anárquicas por certo não favoreceram nem o desenvolvimento
dos Sovietes nem o avanço democrático do regime soviético.
Na medida em que retoma certos termos dos anarquistas, tampouco
Lênin consegue evitar o materialismo mecanicista: não só o Estado pare-
ce-lhe como o puro e simples reflexo da luta de classe, mas, para retomar
uma formulação de 1920, a própria “ideia de igualdade (jurídico-formal) é
um reflexo das relações de produção mercantil” (L, 1.476). É verdade que
formulações similares podem ser lidas também em Marx, porém ao lado de
outras que vão em direção distinta e contraposta214; de qualquer modo, com
efeito, sobre a base do materialismo mecanicista não é possível construir
uma teoria (e menos ainda uma teoria socialista) dos direitos do homem.

2. Gramsci e a crítica da tese da extinção do Estado

Gramsci, em vez disso, coloca com particular ênfase o problema da he-


rança dos pontos altos da tradição liberal e sobretudo da Revolução Fran-
cesa, sublinhando vigorosamente a necessidade da ruptura com qualquer
forma de materialismo mecanicista; em praticamente todo o percurso de

141
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

sua evolução ele põe em dúvida, redimensiona de modo mais ou menos


radical ou refuta explicitamente a tese da extinção do Estado.
Já na Ordine Nuovo (Nova Ordem) o socialismo é visto não como o início
do processo de extinção, mas sim como a construção do “Estado social do
trabalho e da solidariedade”. É especialmente interessante um texto poste-
rior, no número 7 da mesma revista, de junho de 1919, onde se lê que “não
existe sociedade se não em um Estado, que é a fonte e o fim de todo direito
e de todo dever, que é garantia de permanência e sucesso de toda atividade
social” (ON, 57). Trata-se de um artigo que provoca a reação polêmica de
um anarquista, que acusa Gramsci de estadolatria, mas este não parece se
deixar impressionar: se é que faz uma concessão que seja ao interlocutor
é com uma vaga referência ao movimento histórico tendente a “suprimir
o Estado na Internacional”, porém Gramsci refuta a essência das posições
enunciadas: “Na Internacional comunista serão eliminados os Estados na-
cionais”, ou melhor, os “Estados nacionais capitalistas”, mas “não haverá
supressão do Estado compreendido como ‘forma’ concreta da sociedade
humana. A sociedade enquanto tal é uma pura abstração; no âmbito da In-
ternacional comunista (...) qualquer Estado, qualquer instituição, qualquer
indivíduo encontrará sua plenitude de vida e de liberdade” (ON, 115-6).
Esta última intervenção é do início do verão de 1919. Alguns meses
antes, mais precisamente em 6 de março daquele ano, na conclusão do
congresso de fundação da III Internacional, Lênin via na fundação desse
organismo “a véspera da república soviética internacional, da vitória in-
ternacional do comunismo” (L, 1.215). Na nova situação, que o dirigente
bolchevique acredita já poder vislumbrar, se é que ainda se pode falar de
Estado, isso aconteceria apenas no âmbito de um discurso declinado no sin-
gular. Gramsci, por sua vez, parece partir do pressuposto da permanência,
mesmo na fase de desenvolvimento comunista da sociedade, não só do Es-
tado mas de uma pluralidade de Estados, ainda que pacífica e solidamente
organizados na Internacional.

142
Terceira parte - Marx e a história do século 20

3. Marx, Engels e o Estado

Porém, para captar em profundidade a originalidade das posições de


Gramsci, convém passar os olhos pela tradição marxista precedente. Antes
de mais nada é necessário dizer que em Marx e Engels a teoria do Estado é
mais problemática e complexa do que parece a partir da fórmula – à qual
frequentemente é reduzida – da final extinção do Estado na sociedade co-
munista. Segundo A ideologia alemã, a tarefa do Estado não se esgota unica-
mente no controle e na repressão das classes subalternas. No entanto, faz-se
notar que o poder e o interesse da classe dominante não se exprimem de
modo imediato, mas através da “forma geral” que estes imprimem à orga-
nização estatal (MEW, III, 62).
Naturalmente, a forma não é o conteúdo, mas também não é uma nu-
lidade. Marx era um leitor demasiado atento e participante da Lógica he-
geliana para não conhecer e não compartilhar de algum modo a tese aqui
expressa, de que até a simples “aparência” exprime um nível, ainda que
mínimo, de realidade (uma tese que também obtém a concordância do Lê-
nin dos Cadernos filosóficos)215. Portanto, a forma e mesmo a aparência da
generalidade ou universalidade constitui sempre algum limite ao exercício
do poder da classe dominante.
Por outro lado, sempre conforme A ideologia alemã, o Estado é a “for-
ma de organização” através da qual os indivíduos da classe dominante
efetivam “a garantia recíproca da sua propriedade e dos seus interesses”
(MEW, III, 62). Engels, em um texto de 1850, define analogamente o Estado
burguês como “a garantia recíproca da classe burguesa em relação a cada
um dos seus membros, assim como em relação à classe explorada” (MEW,
VII, 288). Aqui, a função de certo modo garantidora para os indivíduos da
classe dominante é indicada até antes da função de manutenção da opres-
são ou do controle social sobre as classes subalternas. E não se compreende
por que, uma vez desaparecidas as classes e a luta de classes, deveria se
tornar supérflua a “garantia” ou a “preservação” a ser oferecida a cada um
dos membros da comunidade unificada.

143
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

É este o momento de se voltar os olhos para a tormentosa evolução


de Marx e Engels sobre o tema do Estado. Ao descrever A situação da classe
trabalhadora na Inglaterra, este último observa em 1845: “A livre concorrência
não quer limites, não quer controles estatais, todo Estado é para ela um
peso, ela encontraria o grau máximo de perfeição em uma sistemática total-
mente livre de Estado, onde cada um pudesse ao seu bel-prazer explorar os
outros, como por exemplo na ‘Associação’ do amigo Max Stirner” (MEW,
II, 488). Estamos aqui na presença de uma espécie de crítica antecipada das
posições de Robert Nozick, que amam flertar com o anarquismo para con-
ferir respeitabilidade libertária a um liberalismo ferozmente antipopular. É
na ligação entre liberalismo, anarquismo e uma espécie de social-darwinis-
mo antelitteram (antecipado) que Engels insiste vigorosamente. A Londres
da época oferece um espetáculo repugnante da “brutal indiferença”, do
“impiedoso isolamento de cada um em seu interesse pessoal”, da “decom-
posição da humanidade em mônadas” e, em última análise, da “guerra de
todos contra todos”: “Do mesmo modo que o amigo Stirner, os homens
consideram os demais apenas como objetos utilizáveis; cada um explora o
outro, e daí resulta que o mais forte pisoteia o mais fraco, e que os poucos
fortes, ou seja, os capitalistas, se apossam de tudo, enquanto aos muito fra-
cos, aos pobres, a custo resta a vida nua e crua” (MEW, II, 257).
É verdade que se trata de um texto juvenil; mas mesmo O capital é
constrangido a registrar o fato de que, para se obter a regulamentação da
jornada de trabalho na fábrica, é preciso recorrer à intervenção do Estado,
de modo a evitar que a “livre concorrência” e as “leis imanentes à produ-
ção capitalista” provoquem a irreparável ruína da “saúde e da expectativa
de vida do operário” (MEW, XXIII, 285-6 e nota 114). Ao passo que os
liberais e burgueses denunciam como “estatista” o movimento operário
e socialista, este último, sobretudo o de inspiração marxista, se vê numa
situação em vários aspectos embaraçosa: se para um futuro mais ou menos
remoto agita a palavra de ordem da “extinção do Estado”, sintonizando-se
neste ponto com o anarquismo, no que toca à agitação concreta e cotidiana

144
Terceira parte - Marx e a história do século 20

é porém, constrangido a reivindicar a intervenção do poder político na


esfera econômica, defrontando-se com as consignas semianárquicas dos
interesses constituídos, os quais, em nome da “liberdade de contrato” e
da iniciativa individual, reivindicam o “Estado mínimo”. Mais fácil é a
situação dos anarquistas que, coerentemente com seu programa de ani-
quilamento do Estado sob qualquer forma, pregam desde agora o absten-
cionismo político.
Voltemos ao texto de 1850 de Engels: fala-se aqui de “abolição (Abscha-
ffung) do Estado” como “resultado necessário da abolição das classes, com
as quais vem a cair por si só a necessidade da força organizada de uma clas-
se para a repressão de outra” (MEW, VII, 288). É evidente o salto lógico: o
desaparecimento do Estado é deduzido da conversão em supérflua de uma
das duas funções a ele atribuída; ignora-se o fato de que permanece ainda
de pé a tarefa de “preservação” ou “garantia” para os indivíduos da classe
dominante, ou, nas condições modificadas, de uma sociedade sem classes.
Mas importa sobretudo sublinhar a ambiguidade da palavra de ordem
aqui lançada por Engels, o qual, significativamente, distingue “abolição do
Estado” no sentido comunista, no sentido feudal ou no sentido burguês.
Examinemos este último significado:
“Nos países burgueses a abolição do Estado significa a redu-
ção do poder estatal ao nível da América do Norte. Aqui os con-
flitos de classe se desenvolveram apenas de modo incompleto; os
choques de classe são periodicamente camuflados através da mi-
gração da superpopulação proletária rumo ao Oeste. A interven-
ção do poder estatal, reduzido a um mínimo no Leste, inexiste de
fato no Oeste” (MEW, VII, 288).
Estamos diante de um texto singular que, de certa maneira reflete a ima-
gem estereotipada do país de além-Atlântico fornecida pela propaganda libe-
ral. Poucos anos atrás terminara a guerra em que os Estados Unidos haviam
tomado do México um imenso território; ainda antes, o jovem Estado se en-
gajara em um conflito com a Inglaterra; e não é preciso falar das expedições

145
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

militares contra os índios: a máquina de guerra, setor importante e decisivo


do aparato estatal, já se achava bem desenvolvida na república estaduniden-
se! Aqui Engels parece prescindir claramente da política internacional.
E não se trata do único silêncio. Não há menção alguma ao instituto da
escravidão, cuja manutenção compreende obrigações estatais ou públicas
para os próprios senhores brancos, que têm de integrar uma milícia chama-
da a defender a lei e a ordem face à ameaça potencialmente representada
pela população negra, ou seja, pela força de trabalho servil216. Portanto, a
afirmação de que nos EUA o Estado está reduzido ao mínimo ou total-
mente abolido só pode significar que, naquele país, apesar da presença da
milícia, não se desenvolveram aqueles corpos militares separados, como
a Guarda Nacional, as Guardas Móveis etc., que a aguda luta de classes
produziu e se tornaram necessários na França. Não há aquele “exército de
meio milhão de empregados ao lado de um outro exército de meio milhão
de soldados” de que fala Marx a propósito da França bonapartista (MEW,
VII, 196). Quanto ao resto, também do outro lado do Atlântico o Estado
funciona como monopólio da violência legítima, e funciona de modo emi-
nente e impiedoso. Tocqueville observou a persistência de uma legislação
que jogava os pobres na prisão inclusive por débitos absolutamente insig-
nificantes: podia-se calcular que, na Pensilvânia, o número de indivíduos
presos anualmente por débitos subia a 7 mil; quando se agregava a essa
cifra aquela dos condenados por delitos mais graves, resultava que em cada
144 habitantes havia um que ia parar na prisão a cada ano217. No que diz
respeito ao Far West, é verdade que o monopólio da violência legítima não
está bem consolidado, mas isso não significa de modo nenhum um desapa-
recimento ou mesmo uma simples redução da violência!

4. Poder político e administração

No texto que acabamos de examinar, a inexatidão do quadro histórico


dos EUA se dilui com as ambiguidades da palavra de ordem da abolição

146
Terceira parte - Marx e a história do século 20

ou extinção do Estado, ou, como especifica Marx em 1875, do “Estado no


atual sentido político” (MEW, XVIII, 634). Já antes, na Miséria da filosofia, ele
escrevera que, com o desaparecimento do “antagonismo” de classe, “não
haverá mais poder político propriamente dito (MEW, IV, 182). Mais tarde,
Marx e Engels especificarão este ponto com a tese de que, no comunismo,
desaparece o poder ou a violência de Estado e “as funções de governo se
transformam em simples funções administrativas” (MEW, XVIII, 50); ou
ainda, para usar a linguagem do AntiDühring, “no lugar do governo sobre
as pessoas aparece a administração das coisas e a direção dos processos
produtivos” (MEW, XX, 262).
Nem por isso as coisas se tornaram mais claras. Aqui é possível até co-
locar o problema de se as críticas de Marx e Engels ao anarquismo não ter-
minam por atingir ao menos algumas formulações que eles próprios usa-
ram. O erro de Bakunin, escrevem, é ter em perspectiva o “conceito abstrato
de Estado”, ou bem “o Estado abstrato, o Estado enquanto tal, o Estado
que não existe em parte alguma”, o que só pode encontrar um lugar “nas
nuvens” (MEW, XVIII, 342-3). Essa objeção não termina por questionar a
própria teoria da extinção do Estado?
Ao zombar dos anarquistas e “antiautoritários”, e refutando sua
“cruzada” contra o “princípio da autoridade” enquanto tal, Engels dá o
exemplo de um navio sob risco de naufrágio e cuja salvação depende da
“obediência instantânea e absoluta de todos à vontade de um só”. O arti-
go Sobre a autoridade, que aqui estou citando, prossegue assim: “Quando
submeti argumentos desta ordem aos mais furiosos antiautoritários, estes
não souberam me responder, exceto ‘Ah, isso é verdade, mas aqui não se
trata de uma autoridade que entregamos a delegados, mas sim de um en-
cargo!’ Estes senhores acreditam ter mudado as coisas por terem trocado
seus nomes.”
Porém, uma simples mudança de nome faz pensar também na passa-
gem (na qual consiste a almejada extinção do Estado) do poder político para
funções puramente administrativas; tanto mais quando o próprio Engels

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MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

observa que há uma autoridade, e até um “despotismo independente de


qualquer organização social”, como demonstra, além do exemplo da nave,
a realidade concreta do funcionamento da grande indústria e dos serviços
públicos do Estado moderno (MEW, XVIII, 305-7).
É evidente a influência que o anarquismo exerceu sobre a Crítica do
programa de Gotha e a tese, ali formulada com particular radicalismo, sobre
a extinção do Estado. Mesmo Marx e Engels o reconhecem de certa maneira
(MEW, XXXIV, 137 e 128), em cartas imediatamente anteriores à publicação
desse texto, que evidenciam a difícil situação em que se achavam, após as
acusações de Bakunin, o qual não hesitava em atribuir ao “estatismo” deles
até mesmo a colaboração de Lassalle com Bismark.
Mais do que as influências ideológicas, o que explica a tormentosa re-
flexão de Marx e Engels sobre o Estado é obviamente a experiência histórica
real, isto é, a experiência da rápida transformação de um regime represen-
tativo em uma ditadura militar, a partir do aparato estatal existente e às
vezes com a sustentação e a aprovação daqueles mesmos círculos liberais
que entretanto não se cansam de proclamar a inviolabilidade das regras
do jogo. Em particular, Marx e Engels testemunharam como, na França,
antes mesmo do advento do bonapartismo, a Segunda República nascida
da revolução democrática de fevereiro e do sufrágio universal masculino,
visando a liquidar a agitação e a revolta dos operários esfaimados, procla-
ma, em junho de 1848, o Estado de sítio em Paris e concede plenos poderes
ao general Cavaignac, prossegue na política do punho de ferro mesmo de-
pois da “ordem” ser restabelecida e chega até a excluir vastas camadas po-
pulares do voto universal masculino que no entanto fora sancionado pela
Constituição. Compreendemos portanto as conclusões a que chegam os
dois grandes revolucionários: mesmo o Estado mais democrático admite a
presença de um aparato de repressão pronto a entrar em cena nos momen-
tos de crise e a exercer uma impiedosa violência contra aqueles que amea-
çam a classe dominante; trata-se então de agir de modo que, através de um
longo processo histórico, o aparato repressivo se extinga sem que por isso

148
Terceira parte - Marx e a história do século 20

seja minada a necessária função de administração da sociedade. Mas, se é


assim, a palavra de ordem chamada a sintetizar tal experiência e reflexão
histórica é mais o sintoma de um problema real e dramático do que sua
solução, conforme demonstram as oscilações na sua formulação: “extinção
do Estado” enquanto tal? ou do “Estado no sentido político atual”?

5. Lênin, a denúncia do imperialismo e a construção do socialismo

Trata-se de uma palavra de ordem destinada a sofrer uma subsequente


radicalização na época do imperialismo. Demonstra-o de modo flagrante
O Estado e a revolução. A coisa bem se compreende: a experiência traumá-
tica da Primeira Guerra Mundial, então em pleno desenvolvimento, com
os diferentes Estados em luta, inclusive aqueles liberais ou democráticos,
que se apresentam efetivamente como sanguinários Molochs decididos a
sacrificar milhões e milhões de homens no altar da defesa da pátria, e na
realidade da competição imperialista pela hegemonia mundial, não podia
não reforçar as tendências anarquistas. À gigantesca carnificina em curso
o opúsculo de 1917 faz referência desde suas primeiras tomadas de posi-
ção: “a guerra imperialista” demonstra de modo evidente que “a opressão
monstruosa da parte do Estado sobre as massas trabalhadoras (...) adquire
proporções sempre mais monstruosas. Os países mais avançados se trans-
formam – nos referimos às suas “retaguardas” – em casas de reclusão mili-
tares para os operários. Os assombrosos horrores e flagelos de uma guerra
da qual não se vê o final tornam insustentável a situação das massas, au-
mentam a sua indignação”. Eis então que o problema da “atitude contra
o Estado assume um significado prático” e mesmo imediato; a luta contra
os preconceitos oportunistas sobre o “Estado” (L, 849-50), contra aqueles
preconceitos que “levaram o socialismo à espantosa vergonha de justificar
e de embelezar a guerra, aplicando-lhe o conceito de “defesa da pátria” (L,
872). Nesse contexto histórico, e em tal situação comovente, o necessário
ajuste de contas com o social-chauvinismo termina por fazer o marxismo se

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MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

equiparar ao anarquismo e Lênin, com efeito, declara que é comum a am-


bos a visão do Estado como um puro e simples “organismo parasitário” (L,
872). Não há mais lugar, então, para a função garantista, seja exclusivamen-
te no interior da classe dominante, atribuída ao Estado por Marx e Engels,
e não há nem mesmo lugar para a “forma geral” que o sistema jurídico e
estatal confere à própria violência da classe dominante, legalizando-a e le-
gitimando-a, por certo, mas ao mesmo tempo de algum modo limitando-a.
Por fim a distinção entre poder e administração das coisas parece se esvair.
“Não somos utópicos. Não ‘sonhamos’ em dispensar, de hoje para amanhã,
qualquer administração, qualquer subordinação; quem pensa assim são os
anarquistas” (L 887). Pelo menos a julgar por essa afirmação, pareceria que,
embora por meio de um processo mais trabalhoso do que o imaginado pe-
los anarquistas, também a administração das coisas esteja destinada a se
tornar supérflua em uma sociedade sem classes!
Um pequeno, mas significativo, detalhe pode servir como prova da
subsequente radicalização que a tese da extinção do Estado sofre, em O Es-
tado e a revolução. Na Origem da família, da propriedade privada e do Estado, En-
gels escreve: “Basta olhar a nossa Europa de hoje, onde a luta de classe e a
concorrência nas conquistas levaram o poder público a uma grandeza com
a qual ele ameaça engolir a sociedade inteira e por fim o Estado” (MEW,
XXI, 166). Porém a afirmação de que o processo de militarização acabaria
por devorar até o Estado devia parecer inaceitável ou incompreensível para
Lênin, que, de fato, depois de ter referido o trecho em questão, faz a seguin-
te paráfrase ou emenda: “um poder estatal voraz ‘ameaça engolir’ todas as
forças da sociedade” (L, 857).
Compreende-se, então, a insistência sobre a plena convergência que
aí haveria entre anarquismo e marxismo no que diz respeito à “abolição
do Estado como fim” (L, 897). Apesar de tudo as divergências terminam
por emergir inclusive do Estado e a revolução, que reconhece que mesmo a
democracia mais desenvolvida não pode passar sem “instituições repre-
sentativas” (L. 887). Mas, como sabemos, para Bakunin Saturno é o símbo-

150
Terceira parte - Marx e a história do século 20

lo da representação (cf. mais acima, cap. VI, 1). Até por razões por assim
dizer epistemológicas, trata-se de uma categoria absolutamente inaceitável
do ponto de vista do discurso anarquista, constantemente empenhado em
enaltecer o “instinto” (B, 73) e a “vida” em contraposição ao “pensamento”
e à sua pretensão de “prescrever regras para a vida” (St. A, 143-4; B, 560-1).
Pode-se então falar de convergência de marxismo e anarquismo, no
que diz respeito ao “fim”, apenas sob a condição de ter presente que no
comunismo as “instituições representativas” estão também destinadas a se
tornarem supérfluas. Se a posição de Lênin a respeito não está clara, Marx
dificilmente poderia concordar com uma tese desse tipo – pelo menos o
Marx teórico da extinção do Estado apenas no “sentido político atual”.
E, seja como for, dados os pressupostos teóricos já vistos aqui, bem se
compreende o drama que começa a se desenvolver logo depois de Outubro.
“O proletariado se servirá de seu poder político para (…) concentrar todos
os instrumentos de produção nas mãos do Estado” – assinala o Manifesto do
Partido Comunista (MEW, IV, 481); “o proletariado se apodera do poder do
Estado e transforma todos os meios de produção em propriedade do Estado”
– reitera Engels no AntiDüring (MEW, XX, 261). Ao citar e concordar com
essas duas teses (L, 867 e 861), na véspera da Revolução de Outubro, Lênin se
propõe uma tarefa dificilmente conciliável com o que emerge da afirmação,
sempre contida em Estado e Revolução, de que o proletariado vitorioso “tem
necessidade unicamente de um Estado em vias de extinção” (L, 867).
À medida que procede à construção da nova sociedade, Lênin é, toda-
via, constrangido, esteja ou não consciente disso, a manter cada vez mais
distância do anarquismo. Para nos darmos conta disso, basta passar os
olhos pelo importante texto Melhor menos, mas melhor, publicado no Pra-
vda de 4 de março de 1923, cuja palavra de ordem, insistente, é “melhorar
nosso aparelho estatal” (L, 1.818), empenhar-se seriamente na “edificação
do Estado” (L, 1.820), “construir um aparato verdadeiramente novo, que
mereça de fato o nome de socialista, de soviético”. Trata-se de uma tarefa
de longo fôlego, que requer “muitos, muitíssimos anos” (L, 1.816) e cujo

151
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

aprendizado deve ser estimulado através de concursos “para dois ou mais


manuais sobre a organização do trabalho em geral e do trabalho adminis-
trativo em particular” (L, 1.820). Não se deve hesitar em aprender com os
“melhores modelos da Europa Ocidental” (L, 1.815), enviando “algumas
pessoas preparadas e conscienciosas” à Alemanha, ou à Inglaterra, ou aos
Estados Unidos ou ao Canadá “para recolher as publicações existentes e
estudar este problema” (L, 1.820).
As diferenças parecem radicais em relação a Estado e Revolução, que
afirma, como vimos, que o proletariado vitorioso “tem necessidade unica-
mente de um Estado em vias de extinção”. Agora, não só a meta da extinção
é omitida ou postergada para um futuro bastante remoto; mas se encara de
certo modo a consciência de que descuidar da tarefa de edificar um novo
Estado significa em última análise perpetuar ou prolongar a sobrevivência
do velho aparato estatal czarista: “Devemos eliminar todo traço daquilo
que a Rússia czarista e seu aparato burocrático e capitalista deixaram em
tão grande medida como herança ao nosso aparato” (L, 1.827). Todavia,
trata-se de uma reconsideração que fica a meio caminho, pelo fato de que
permanecem invariáveis os pressupostos teóricos de fundo. Assim, Lênin
rejeita a separação dos aparatos do Estado e do partido, polemizando con-
tra aqueles que exigem tal distinção ou afastamento (L, 1.822).
Para o historiador contemporâneo, devia hoje estar claro que a tarefa
de desenvolver no sentido democrático o poder nascido de Outubro tor-
nou-se problemática ou impossível não somente devido às circunstâncias
objetivas (guerra civil e agressão imperialista), mas também por causa da
tese da extinção do Estado, da qual decorre também a extinção da democra-
cia – como sublinha O Estado e a revolução (L, 862).

6. “Estado ético”, “sociedade regulada” e comunismo

Agora podemos aquilatar melhor a originalidade da posição de Grams-


ci, retornando aos artigos da Ordine Nuovo (Nova Ordem). Gramsci reco-

152
Terceira parte - Marx e a história do século 20

nhece que a situação provocada pela guerra estimulou um clima espiritual


favorável à difusão de posicionamentos anarquistas: “O mito antissocia-
lista do Estado-caserna tornou-se uma terrível e asfixiante realidade bur-
guesa” (ON, 48); “multiplicou-se” assim o número dos aderentes à “ideia
libertária”. Todavia – logo agrega polemicamente Gramsci –, “não cremos
que isto seja uma ideia gloriosa”; trata-se, longe disso, de um “fenômeno
de regressão” (ON, 116).
Neste contexto é significativo que os dirigentes bolcheviques sejam
festejados como “uma aristocracia de estadistas” e Lênin como “o maior
estadista da Europa contemporânea”, por ter sabido dar “forma estatal às
experiências históricas e sociais do proletariado russo”, empenhando-se em
pôr fim ao “tenebroso abismo de miséria, de barbárie, de anarquia, de dis-
solução de uma guerra longa e desastrosa” (ON, 56-67).
A instauração do Estado proletário não parece ser vista aqui como o
início da extinção de toda forma estatal. Ou melhor, Nova Ordem desenvol-
ve uma polêmica explícita e dura a esse respeito: “Construiu-se um esque-
ma pré-estabelecido, segundo o qual o socialismo seria uma ‘passagem’
à anarquia; e este é um preconceito estúpido, uma arbitrária hipoteca do
futuro” (ON, 116). Gramsci não parece dar qualquer crédito à tese do “fim”
idêntico (uma sociedade sem Estado), perseguido por anarquistas e comu-
nistas, segundo Estado e Revolução.
O problema sobre o qual se estafaram Marx, Engels e Lênin é depois
retomado nos Cadernos do cárcere: trata-se de encontrar uma forma de or-
ganização da sociedade que, ao superar todo antagonismo de classe, saiba
eliminar o aparato de repressão construído com vistas à guerra de classe
internamente e ao confronto armado com outras classes exploradoras con-
correntes no nível internacional. Porém essa forma de organização da so-
ciedade comunista é ela própria uma forma de Estado. Ou pelo menos as-
sim parece pensar Gramsci: “Pode-se imaginar o elemento Estado-coerção
exaurindo-se à medida que se afirmam elementos cada vez mais conspí-
cuos de sociedade regulada (ou Estado ético, ou sociedade civil)” (Q, 764).

153
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

Naturalmente não faltam declarações que vão em direção diversa e


contrastante, e que vislumbram a “desaparição” do Estado e a “reabsor-
ção da sociedade política pela sociedade civil” (Q, 662). Todavia, vale ter
presente que para Gramsci a “sociedade civil (…) é também ela ‘Estado’,
ou melhor, é o próprio Estado” (Q, 2302) e portanto fica por se verificar até
que ponto a “reabsorção da sociedade política pela sociedade civil” com-
porta o advento de uma sociedade sem Estado.
É possível, então, abordar mais adequadamente o problema expos-
to no já citado texto de Engels de 1850: não é exato dizer que os Estados
Unidos daquele tempo se caracterizassem, no Oeste ou no Leste, por um
Estado extinto ou reduzido ao mínimo; o império mesmo explicitamente
violento da classe dominante se manifestava e organizava desde o nível da
sociedade civil, que é ela própria em alguma medida Estado.
Também é interessante a configuração em Gramsci do comunismo
como “sociedade regulada”, que muito dificilmente pode ser equiparada
à anarquia. Para se compreender o sentido de tal configuração é preciso
na realidade partir de Hegel, que vê na sociedade burguesa de sua época,
caracterizada pela polarização entre riqueza e pobreza, um “resíduo do
estado de natureza”, ou seja, de uma condição feita de violência e opres-
são218. Marx e Engels identificam a superação de tal condição – que de-
finem como a pré-história da humanidade – no comunismo – que, por-
tanto, representa o início da história da humanidade conciliada. Porém
para Gramsci tal ciclo histórico novo é não o advento da anarquia, com a
caducidade de toda norma, mas sim de uma sociedade que é “regulada”
justamente porque supera o “estado de natureza”, a anarquia e a opressão
próprias de uma sociedade baseada na dominação de classe. Os Cadernos
do cárcere parecem reconhecer seu débito em relação a Hegel, quando re-
ferem “essa ‘imagem’ de Estado sem Estado” ou de “Estado ético”, que
assume o lugar do Estado enquanto organização da violência de classe, e
no qual consiste o comunismo, “aos maiores estudiosos da política e do
direito” (Q, 764) e mesmo explicitamente a Hegel (Q, 2.302). O comunismo

154
Terceira parte - Marx e a história do século 20

é visto então como a realização daquela “imagem” que, no autor da Filo-


sofia do direito permanece no nível da “pura utopia”, dado que despreza
colossais perturbações materiais que são as únicas capazes de lhe conferir
concretude (Q, 764).
Por fim, é digno de registro que no mesmo período em que Croce con-
dena a URSS enquanto expressão de “extremo estatismo”219, Gramsci se
recusa a conferir a este substantivo um significado expressamente nega-
tivo, e toma, ao contrário, claramente distância apenas daquele “estatista
dogmático e não dialético” que é Lassalle (Q, 764).

7. Anarquismo e subalternidade ao liberalismo

Porém há outro aspecto digno de nota na polêmica do Nova Ordem


contra o anarquismo. A afirmação crítica de que “toda a tradição liberal
é contra o Estado” e “a concorrência é inimiga acérrima do Estado” (ON,
117) parece ecoar a tese, já vista no Engels de 1845, segundo a qual “a livre
concorrência” e a burguesia exploradora é que não querem “limitações” e
“controles estatais”, possivelmente nem sequer o Estado enquanto tal.
Neste sentido, segundo Gramsci, “na dialética das ideias a anarquia
dá continuidade ao liberalismo, não ao socialismo” (ON, 116). De fato,
as ideias políticas de Bakunin sob muitos aspectos se apresentam como
a radicalização do liberalismo pós-1848. Tome-se a leitura da história da
França, caracterizada por uma férrea continuidade da bandeira do “des-
potismo de Estado”, que conduz ao bonapartismo a partir do jacobinismo
(B, 724) ou talvez desde antes, a partir do Antigo Regime (B, 10). Estamos
claramente diante de uma leitura à la Tocqueville; e a influência direta ou
indireta dessa leitura também conduz o dirigente anarquista a clamar con-
tra os “socialistas de Estado” que teriam organizado a revolta operária de
junho de 1848 (B, 67-8). Nesse quadro, compreende-se melhor a acusação
feita aos jacobinos, não só de estatismo (B, 86), mas também de terem sa-
crificado a liberdade à igualdade (B, 334).

155
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

Em correspondência com essa condenação do jacobinismo, Bakunin


tem uma visão essencialmente estereotipada da Inglaterra que, segundo o
líder anarquista “nunca foi, a rigor, um Estado na acepção estrita e nova da
palavra, isto é, no sentido da centralização militar e policialesca” (StA, 36-
7). Marx observa com razão que desta maneira Bakunin termina por pou-
par “o Estado propriamente capitalista”, aquele que constitui “a ponta de
lança da sociedade burguesa na Europa” (MEW, XVIII, 610 e 608), com uma
visão que remete mais uma vez à literatura liberal. O país que, no entanto,
nos momentos de crise não hesitara, como veremos no próximo parágrafo,
em fazer uso impiedoso de seu aparato repressivo, e que se distinguira,
conforme o julgamento de Marx, por sua “legislação sanguinária contra os
expropriados” e os “vagabundos” (cf. mais acima, cap. V, 1), que punia ou
havia punido com a forca ou a deportação para a Austrália até furtos no va-
lor de uns poucos xelins, o país que detinha o maior império colonial; e eis
que, em Estado e anarquia, a Inglaterra enfim se converte quase na prefigu-
ração do desaparecimento do Estado ou pelo menos em uma sua redução
ao mínimo.
Porém uma tendência análoga se manifesta, em relação aos Estados
Unidos, no texto de Engels de 1850 e continua a se fazer advertir ainda na
Origem da família, onde os EUA são indicados como o país onde pelo menos
em certos períodos de sua história em determinadas partes de seu territó-
rio, o aparato político e militar separado da sociedade tende a se reduzir
a zero (MEW, XXI, 166). Estamos em 1884: nesse momento os negros não
apenas estão privados dos direitos políticos conquistados imediatamente
depois da Guerra de Secessão, como também se acham constrangidos a um
regime de apartheid e submetidos a uma violência que alcança até as formas
mais ferozes de linchamentos. No Sul dos EUA talvez o Estado fosse fraco,
mas era muito mais forte a Ku Klux-Klan, por certo uma expressão da so-
ciedade civil, porém a qual, segundo Gramsci, pode ser ela própria o lugar
do exercício do poder, um poder igualmente brutal. Justo no ano anterior
à publicação do livro de Engels, a Corte Suprema estadunidense declarara

156
Terceira parte - Marx e a história do século 20

inconstitucional uma lei federal que tencionava proibir a segregação dos


negros nos locais de trabalho ou seus serviços (ferrovias) geridos por em-
presas privadas, por definição livres de qualquer interferência estatal.
Deveriam ser claros os resultados perversos aos quais se chega quando
se parte de um antiestatismo indiscriminado que, ao identificar a esfera
estatal e a esfera da coação termina inevitavelmente por se colocar a rebo-
que da ideologia liberal ou liberal-conservadora. Para se compreender a
falácia dessa identificação, basta refletir sobre o fato de que ela constituía o
pressuposto teórico sobre a base do qual os capitalistas ingleses refutavam
qualquer regulamentação legislativa da jornada de trabalho, e os escravis-
tas americanos vetavam qualquer interferência estatal em sua propriedade
de rebanhos e escravos, ou, depois de 1865, qualquer interferência favore-
cendo os ex-escravos negros.
Mas retornemos a Bakunin: mesmo no plano político imediato se re-
vela a sua subalternidade com relação ao liberalismo, como emerge de sua
declaração de que os anarquistas são “inimigos do Estado e de toda estati-
zação” (StA, 146). E, portanto, por um lado, com a recusa de qualquer ideia
de representação e com a sua liquidação enquanto velharia “burguesa”, da
própria ideia de direitos políticos juridicamente sancionados e garantidos,
o anarquismo impede que se herdem os pontos fortes da tradição liberal e
da Revolução Francesa; e, por outro lado, com sua denúncia indiferenciada
do estatismo, isso proporciona uma leitura, subordinada à da burguesia
liberal, do jacobinismo e, em última análise, da Revolução Francesa. A per-
sistente influência anarquista, se no Leste entravou ou impediu o desen-
volvimento democrático do regime soviético, no Ocidente por certo não
favorece uma resposta adequada à ofensiva neoliberal.

8. Uma série de balanços errados e desvirtuados

Tocqueville descreve a França, depois do golpe de Estado de Luís Bo-


naparte, como sendo devorada por uma enfermidade devastadora (o es-

157
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

tatismo) que caracterizaria em todos os meandros da sua história, desde o


Antigo Regime, passando pelo jacobinismo e o socialismo, até justamen-
te o bonapartismo. Trata assim em tons sombrios um quadro do país que
conhecera o maior desenvolvimento do radicalismo plebeu: independen-
temente de qualquer análise concreta da situação objetiva na qual ele se
desenvolveu, o Terror jacobino é atribuído a uma ideologia que, com seu
caráter violento, faz contraponto com o esplendor da ideia liberal (mais
precisamente anglo-saxã). Naturalmente, se omite o fato de que a Ingla-
terra liberal resultante da Revolução Gloriosa de 1688-89 não hesitara em
recorrer também ao terror, procedendo, em relação à Irlanda por exemplo,
a uma “reconquista racial e religiosa das mais brutais”220. Para não mencio-
nar que, nos anos da Revolução Francesa, aos primeiros vagos acenos de
agitação popular o governo inglês imediatamente suspendera as liberda-
des constitucionais.
Sobretudo, mediante um semelhante balanço Tocqueville absolve a si
mesmo e a seus companheiros de partido e de classe de qualquer respon-
sabilidade pela queda da Segunda República. Entretanto, como vimos, fora
a burguesia liberal que proclamara o Estado de sítio em junho de 1848 e,
ainda em 1850, encenara o que foi definido como um “golpe de Estado par-
lamentar”, com a supressão do sufrágio universal sancionado pela Cons-
tituição221. Segundo a análise de Marx, Luís Napoleão é o herdeiro e o be-
neficiário do terror instaurado pela burguesia liberal, que, em tal situação,
quando não é cúmplice, ao menos cumpre o papel de aprendiz de feiticeiro:
“A ditadura da burguesia pela espada” (os poderes especiais confiados ao
general Cavaignac para reprimir a revolta operária de junho) finda por se
transformar na “ditadura pela espada sobre a sociedade civil” (Napoleão
III) (cf. mais acima, cap. V, 1).
Porém, mesmo sem se levar em conta o discurso relativo às responsabi-
lidades políticas, por que deveríamos considerar estatistas os operários pari-
sienses que rejeitavam o desmantelamento dos ateliers nationaux (oficinas na-
cionais, em francês no original), mas antiestatistas e amantes da liberdade os

158
Terceira parte - Marx e a história do século 20

expoentes da burguesia que sugeriam como alternativa o alistamento dos de-


socupados no exército? Ou ainda: por que deveríamos considerar o recurso
aos ateliers nationaux mais estatista do que o remédio para a miséria sugerido
por Tocqueville, de regularizar por via legislativa a migração rural? Todavia,
por meio da categoria do estatismo Tocqueville pode não apenas identificar
a tradição jacobino-socialista com a ditadura bonapartista – que entretanto a
reprimia impiedosamente –; pode até condenar como antiliberal, despótica
e afetada pelo culto supersticioso do Estado a reivindicação operária de uma
intervenção legislativa para limitar em 12 horas a jornada de trabalho nas
fábricas!222 Mais uma vez vem à luz o caráter instrumental das categorias do
autor liberal: por que a eliminação do direito dos cidadãos privados à livre
circulação pelo território nacional deveria ser uma medida menos despótica
e menos estatista do que a regulamentação da jornada de trabalho?
O balanço de Tocqueville é o modelo dos sucessivos balanços que ve-
remos, todos visando, em última análise, a liquidar o movimento socialista
no seu conjunto como a simples história de uma ruinosa alucinação ideoló-
gica. Mas é interessante notar como o balanço do liberal exerceu seu peso
inclusive sobre a história do movimento operário. Através de Pierre-Joseph
Proudhon, que Bakunin invoca entusiasticamente (B, 726), ele age sobre o
movimento anarquista e a seguir faz sentir sua influência fortemente sobre
Georges Sorel, o qual, com uma explícita referência a Tocqueville, acusa os
jacobinos de se deixarem guiar por um “culto supersticioso do Estado”, ou
melhor, do “Deus-Estado” e de retomarem com isso a tradição do Antigo
Regime223. Pode-se até indagar se, através do anarquismo, o balanço em
exame não tenha terminado por agir inclusive sobre Marx e Engels: nessa
perspectiva, a teoria da extinção do Estado, embora desenvolvendo moti-
vos já presentes desde antes, representaria, na sua formulação mais radical,
uma tentativa de fugir da implacável acusação de estatismo, proveniente
tanto dos liberais como também dos anarquistas.
Através de Sorel, a leitura que Tocqueville faz da história da França
age por fim também sobre Gramsci, que, no entanto, deixando para trás o

159
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

antijacobinismo juvenil, rompe com os estereótipos derivados em última


análise da burguesia liberal e, por meio dessa ruptura, consegue se colocar
com um despreconceito totalmente novo o problema do Estado e do “esta-
tismo”.
Agora podemos compreender melhor o real significado político do ba-
lanço usualmente traçado em nossos dias, do nazismo e do fascismo por
um lado e do “socialismo real” por outro: Hayek os aproxima sem cerimô-
nia, como formas distintas e concorrentes de ideologia do planejamento e
do estatismo. Detenhamo-nos porém no nazi-fascismo. O recurso à catego-
ria do estatismo anula as cumplicidades e as barganhas da burguesia liberal
com Mussolini e Hitler. Com certeza não é uma categoria adequada para se
compreender um movimento como o nazista, que, com sua explícita ade-
são ao social-darwinismo e concepção de vida “aristocrática” e “heroica”,
com seu culto a um chefe carismático não submetido a norma alguma, só
pode enxergar no Estado (enquanto conjunto de regras objetivas e válidas
para todos) um inaceitável fator de nivelamento e de massificação. É o caso
de indagar se o social-darwinismo não constituiria em alguns aspectos a
radicalização extremada de certos temas já presentes no liberalismo, fre-
quentemente inclinado a enxergar no mercado uma espécie de julgamento
divino, que premia os melhores e abandona à sua sina os incapazes e fali-
dos da vida (cf. mais acima, cap. I, 3).
Não esqueçamos que existe um social-darwinismo liberal: basta ver
Herbert Spencer que, antes mesmo de Darwin, fala de “luta pela existên-
cia” e “sobrevivência dos mais aptos”224, e condena qualquer interferência
estatal na economia, com o argumento de que não é necessário criar obstá-
culos para a lei cósmica que exige a eliminação dos incapazes e falidos da
vida: “Todo o esforço da natureza visa a desembaraçar-se deles, limpando
o mundo de sua presença e abrindo espaço para os melhores.” Todos os ho-
mens estão como que submetidos a um julgamento de Deus: “Se estão real-
mente em condições de viver, eles vivem, e é justo que vivam. Se não estão
realmente em condições de viver, eles morrem, e é justo que morram”225.

160
Terceira parte - Marx e a história do século 20

Outro autor, W. G. Sumner, norte-americano, liberal e social-darwinista,


condena o socialismo por este pretender “salvar os indivíduos das dificul-
dades ou durezas da luta pela existência e da competição pela vida através
da intervenção do ‘Estado’”226.
Poder-se-ia objetar que a categoria do estatismo revela-se válida pelo
menos para se compreender o fenômeno do fascismo italiano. Mas seria
esquecer de que Mussolini assume o poder reivindicando sim o “reforço
do Estado” enquanto aparato policial e repressivo, mas também exigindo,
ao mesmo tempo, a “gradual desmobilização do Estado econômico” e o
retorno ao “Estado manchesteriano”, com o desmantelamento da interven-
ção estatal na economia e a extinção do Ministério do Trabalho, não apenas
coma redução dos impostos diretos, mas também com a elevação dos indi-
retos: “Tudo isso é liberalismo clássico” – comenta satisfeito Luigi Einaudi
no Corriere della Sera, logo depois da Marcha sobre Roma227. O ministro das
finanças do novo governo é Alberto De Stefani, “um rígido individualista
do laissez faire”, como o define o historiador Alfred Cobban e observa que,
com o advento do fascismo, “a Itália parecia converter-se no paraíso da eco-
nomia clássica”228. É possível considerar “estatista” o Mussolini apreciador
do fervoroso liberal Vilfredo Pareto, que, ao proceder sua interpelação con-
tra o “mito” do Estado invoca repetidamente um clássico da tradição liberal
anglo-saxã como Herbert Spencer?229 E o duce do fascismo alimenta, pois,
uma admiração incondicional por Gustave Le Bon, implacável acusador
do socialismo e de sua pretensão de “regular as condições de emprego e
salário” (com a consequente violação das “leis” econômicas do livre merca-
do) e que, referindo-se desdenhosamente (quase à moda de Tocqueville) a
propósito da “fé supersticiosa no Estado providencial”, cita repetidamente,
também ele, além de Tocqueville, autores clássicos da tradição liberal an-
glo-saxã como Spencer, Macaulay etc.230.
Enfim, também o “socialismo real” é denunciado como “extremo esta-
tismo” por autores como Croce e Hayek. São evidentes as motivações ideo-
lógicas e políticas que movem esse subsequente balanço. Quando se faz o

161
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

totalitarismo descender de um ideológico pecado original, não só se liquida


in totoo movimento político que seguiu as pegadas de Marx, mas ao mesmo
tempo se contrabandeia uma visão estereotipada do capitalismo real: omi-
te-se o fato de que, no decorrer do século 20, o universo concentracionário
e totalitário fez sua aparição mesmo em um país como os EUA, que nem
mesmo se encontrava nas dramáticas condições da jovem União Soviética.
E se negligencia igualmente a pesada contribuição dos países liberais, com
sua política agressiva, ao processo de petrificação antidemocrática e de de-
generação totalitária do Estado nascido na onda da Revolução de Outubro.
Ao menos Hannah Arendt reconhece que a passagem do “poder supremo”
dos Sovietes para a “burocracia de partido” ocorre “com a eclosão da guer-
ra civil”231, mesmo se ela esquece de acrescentar que esta se entrelaça com
a agressão proveniente do exterior, e, para usar as palavras de Gramsci,
com uma “guerra não declarada” e, portanto, “violentando os direitos das
pessoas” (ON, 59).
Em nossos dias, setores consistentes da esquerda também agitam suas
palavras de ordem banal e indiscriminadamente antiestatistas; mas com
isso correm o perigo da subalternidade em relação ao balanço ou aos balan-
ços históricos da burguesia liberal. Não só a trajetória histórica do “socialis-
mo real” arrisca-se a aparecer como a simples expressão de uma enfermi-
dade ou extravagância ideológica (o estatismo), mas sobretudo a adesão a
certas palavras de ordem dificulta a resposta à ofensiva neoliberal tendente
a suprimir qualquer traço de Estado social, no Oeste como no Leste.
Em vez disso é necessário distinguir, como Gramsci, entre estatismo e
estatismo. Não se trata em absoluto de renunciar à denúncia do significado
intrinsecamente antidemocrático e antipopular dos Estados mesmo os mais
liberais, com seu aparato militar sempre pronto a recorrer às mais impiedo-
sas formas de violência, no plano interno e no internacional. Neste sentido,
a história da República Italiana, marcada por repetidas manobras golpistas
e pela ocorrência periódica de massacres (com razão chamados massacres
de Estado), pela ineficiência e corrupção de vastos setores de seu aparato

162
Terceira parte - Marx e a história do século 20

e até por sua cumplicidade com a Máfia e o crime organizado, e por fim
caracterizada por sua subalternidade a uma superpotência estrangeira e
pela servil participação nas chacinas coloniais do imperialismo (Guerra do
Golfo) – esta história constitui uma dramática confirmação da permanente
validade da pars destruens de O Estado e a revolução. Toda vez que se es-
queceu esse ensinamento de Lênin, considerando a natureza de um Estado
exclusivamente a partir de suas instituições parlamentares, e, ao contrário,
descurando de seus aparatos de coerção e violência de classe, a esquerda
marchou de encontro à derrota e ao desastre.
Ao mesmo tempo, contudo, a derrocada do “socialismo real” no Leste
Europeu deveria constituir uma advertência que não deve deixar de ser ou-
vida: se, por um lado, deve-se indagar criticamente sobre a oportunidade
do recurso, na esteira do programa indicado por Marx e Engels, a formas
tão radicais e indiscriminadas de estatização da economia; por outro lado
deveria agora estar claro que, sem uma teoria do Estado, e abandonando-se
à expectativa escatológica, própria do anarquismo, do desaparecimento de
toda norma ou constrição jurídica, e até mesmo política enquanto tal (B,
362), se permanece fechado no estágio de tendência subversiva impotente,
não se está em grau de construir uma sociedade e um Estado pós-capitalis-
tas. Engels tinha razão ao observar que “falar do princípio de autoridade
como absolutamente ruim e do princípio de autonomia como absolutamen-
te bom” (MEW, XVIII, 307) significa se colocar na impossibilidade de fazer
funcionar o mundo da produção e o aparato estatal, mesmo aquele mais li-
vre e reduzido a uma simples “administração”. Deriva daí um vazio que só
pode ser preenchido pela violência, aliás, impotente para assegurar aquele
desenvolvimento das forças produtivas que só a vitória estratégica do so-
cialismo pode garantir.
Do fracasso verificado no Leste Europeu emerge um desafio para a es-
querda, de ajustar definitivamente as contas com o anarquismo e com o
materialismo mecanicista a este indissoluvelmente conectado.

163
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

VII
Marx, a questão nacional e colonial e o “socialismo real”

“Nós, socialistas, cometemos


um erro ao subestimarmos
a força do nacionalismo e da
religião.” Fidel Castro232

1. Questão nacional e revolução

Há uma contradição de fundo que atravessa a história do movimento


comunista internacional. A sua formação é marcada pela atenção voltada
para a questão nacional e colonial e pela dura polêmica contra as posições
social-chauvinistas, acusadas de trair ou de não apoiar os movimentos de
libertação nacional que o imperialismo termina por provocar nos países e
entre os povos que domina.
Na reivindicação da autodeterminação para as nações oprimidas, Lênin
discerne um momento essencial da luta pela democracia e a sua universa-
lização, reconhecendo-se também aos “bárbaros” aqueles direitos políticos
que a burguesia liberal e os social-chauvinistas pretendem limitar à metró-
pole capitalista. Apenas sobre esta base é possível compreender a vitória
da Revolução de Outubro. Os bolcheviques chegam ao poder também por-
que sabem interpretar as exigências de resgate das nações oprimidas pela
autocracia czarista e grã-russa. A compreensão da “enorme importância da
questão nacional” (Loc, XXI, 90) exerce um papel tão relevante que influiu na
composição do grupo dirigente bolchevique. Na véspera da derrubada dos
Romanov, Lênin observa que, justamente por serem vítimas privilegiadas do
“ódio do czarismo”, os judeus fornecem “uma elevada porcentagem de diri-
gentes ao movimento revolucionário (em comparação com o total da popu-

164
Terceira parte - Marx e a história do século 20

lação judaica)” e, sobretudo, “têm o mérito de produzir, em relação às outras


nacionalidades, um porcentual maior de internacionalistas” (Loc, XXIII, 250).
Neste contexto se colocam as próprias mutações conhecidas pela teoria
da revolução, cuja eclosão é então prevista nos elos fracos da cadeia do
imperialismo, isto é, nas situações em que atua um entrelaçamento de con-
tradições, entre as quais se encontra, frequentemente em posição de relevo,
a nacional. O momento mais elevado de expansão do movimento comu-
nista coincide com sua capacidade de se colocar à frente dos movimentos
de libertação nacional: a página mais épica talvez seja a Longa Marcha dos
comunistas chineses, que percorrem milhares de quilômetros em condi-
ções dramáticas para combaterem os invasores japoneses; porém pensamos
também na “Grande Guerra Patriótica” contra o exército hitlerista (empe-
nhado em construir no Leste o império colonial do Terceiro Reich), a qual
permitiu a Stálin remendar, ao menos por certo tempo, os dilaceramentos
e feridas provocados pela política de terror por ele desenvolvida inclusive
em relação às minorias nacionais. A questão nacional faz com que o seu
peso seja sentido nos próprios países capitalistas desenvolvidos. Ao reiterar
o caráter imperialista do primeiro conflito mundial, em 1916, Lênin obser-
vara todavia que, caso este terminasse com “vitórias do tipo napoleônico e
com a submissão de toda uma série de Estados nacionais capazes de vida
autônoma (...), então seria possível uma grande guerra nacional na Europa”
(Loc, XXII, 308). A situação aqui evocada termina por se concretizar cerca
de vinte e cinco anos mais tarde e o fortíssimo enraizamento popular dos
comunistas em países como a França e a Itália não pode ser explicado sem
sua capacidade de interpretar e desenvolver a Resistência guerrilheira tam-
bém como um movimento de libertação nacional.

2. A tentação de exportar a revolução

Chegando ao poder no vórtice de uma revolução que teve a contribui-


ção decisiva das nacionalidades oprimidas pelo império czarista, os bol-

165
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

cheviques lançam um chamamento aos “escravos das colônias” (às nações


oprimidas pelo Ocidente) para que rompam os grilhões com os quais foram
aprisionados pelas grandes potências capitalistas, de modo a alcançarem
a independência. Deste ponto de vista, os bolcheviques continuam muito
conscientes da centralidade da questão nacional.
Porém, por outro lado, começam a vir à tona tendências divergentes e
contrastantes, que parecem esquecer as lições do Outubro. Em um momen-
to em que “a fundação da república soviética internacional”233 parece ao
alcance das mãos aos olhos do próprio Lênin (em geral tão sereno e realis-
ta), as fronteiras estatais e nacionais tendem a perder qualquer significado.
Não faltam personalidades e ambientes nos quais perpassa de algum modo
a tentação de exportar a revolução.
Embora mostrando oscilações234, Marx depositara as esperanças de re-
volução socialista em primeiro lugar nos países capitalistas mais avança-
dos; porém, mesmo após o Outubro, esta tardava a acontecer; não se pode-
ria talvez acelerá-la com uma decidida ajuda “internacionalista”?
Ao usar da palavra por ocasião do 1º Congresso da Internacional Co-
munista, Leon Trotsky, depois de ter afirmado que o Exército Vermelho
é visto ou considerado pelos seus melhores soldados, “não apenas como
um exército de proteção da república socialista russa, mas também como o
Exército Vermelho da Terceira internacional, assim prossegue”
“E, se hoje nem sequer sonhamos em invadir a Prússia Orien-
tal – longe disso, ficaríamos felizes se os senhores (Friedrich) Ebert
e (Philipp) Scheidemann nos deixassem em paz –, também é exato
que, quando chegar o momento em que os irmãos do Ocidente
invocarem nosso socorro, responderemos: ‘Aqui estamos! Duran-
te este período aprendemos a manejar as armas, agora estamos
prontos para lutar e morrer pela causa da revolução mundial!’”235.
Durante a abertura do 2º Congresso da IC, o Exército Vermelho avança
sobre Varsóvia, no decorrer de um confronto militar certamente provocado
pelo governo reacionário de Josef Pilsudski, mas que do lado soviético pa-

166
Terceira parte - Marx e a história do século 20

rece estar se transformando, de guerra de defesa nacional em guerra pela


exportação da revolução para a Polônia. Deixemos a palavra com Zinoviev:
“No salão do Congresso fora pendurado um grande mapa
onde estavam assinalados a cada dia os movimentos dos nossos
exércitos. E a cada manhã os delegados ficavam parados diante
dele com um interesse de tirar o fôlego.”
Uma das resoluções aprovadas no 2º Congresso afirma:
“A Internacional Comunista proclama a causa da Rússia so-
viética como sua própria causa. O proletariado internacional não
embainhará a espada até que a Rússia soviética se torne um elo de
uma federação de repúblicas soviéticas de todo o mundo.”
Aqui o sujeito da luta é único, e consequentemente parecem dissol-
ver-se os limites entre Estado e Estado, nação e nação, e mais ainda entre
partido e partido. Na véspera do Congresso, o comandante do Exército
Vermelho, Mikhail Tukhachevsky, escreve uma carta a Zinoviev onde, em
consideração “à inevitabilidade da guerra civil mundial em um futuro pró-
ximo”, pede que se proceda à criação de um Estado-Maior geral. Trata-se
de uma tendência que significativamente se manifesta mesmo em persona-
lidades que ainda não aderiram propriamente ao movimento comunista:
eis, então, que o maximalista italiano Giacinto Serrati, na trilha da proposta
já citada de Tukhachevsky, considera próximo o dia em que “o Exército
Vermelho proletário será composto não apenas por proletários russos, mas
por proletários de todo o mundo”236. À centralização política dos diferentes
partidos na Internacional propõe-se corresponder uma centralização tam-
bém militar, sempre em nível mundial, independentemente das fronteiras
nacionais e estatais.
Não estamos diante apenas de uma forma de aventureirismo político,
mas também de um retrocesso teórico: parece ter sido relegada a teoria da
revolução que triunfa no elo mais fraco da cadeia do imperialismo, e por-
tanto sempre em uma situação peculiar e nacionalmente determinada.

167
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

3. Marx, Engels e a teoria burguesa da exportação da revolução

O movimento comunista não inventa a teoria da exportação da revo-


lução, na verdade a herda. O precedente mais imediato e significativo é o
das tendências que afloram por motivo da Revolução Francesa, quando
se desenvolve uma dialética análoga àquela que ocorre após o Outubro.
Embora com modalidades diversas, em um e outro caso, a partir da
denúncia da agressão por parte das potências contrarrevolucionária se
da sua natureza intrinsecamente belicista e da proclamação do ideal da
paz perpétua, a ser realizada por meio do aniquilamento da ordem po-
lítico-social (no primeiro caso, o Antigo Regime; no segundo o sistema
capitalista), considerada a raiz do flagelo da guerra, a partir de tudo isso
manifesta-se em certos ambientes a tendência a proclamar uma espécie de
cruzada pela “libertação”, embora a seu contragosto, dos outros povos e
da humanidade como um todo237. Por outro lado, no âmbito da tradição
burguesa a teoria da exportação da revolução se apresenta de uma forma
diversa. Referimo-nos à justificativa que foi dada durante séculos para a
expansão colonial, celebrada como um contributo à expansão da civili-
zação e, de algum modo, de relações político-sociais mais avançadas em
todas as partes do mundo, mesmo junto àqueles bárbaros que relutavam
em acolher os missionários do Ocidente e do capitalismo238.
É possível surpreender em Marx uma postura não isenta de oscilações
em relação a essa tradição. Ele denuncia, sim, com palavras inflamadas
os horrores das guerras e do domínio coloniais: “os oficiais e funcioná-
rios ingleses” não apenas se arrogam e exercem sem parcimônia “po-
deres ilimitados, de vida e de morte”, mas também às vezes recorrem a
chacinas, sadismos e “folguedos gratuitos” à custa da própria população
civil (MEW, XII, 285). Marx parece mesmo proceder a uma crítica do eu-
rocentrismo, quando, dada a largada para os unilaterais gritos de horror
lançados pelos europeus pela “crueldade” dos “bárbaros” por eles avas-
salados, enfatiza ironicamente que crueldade e a consequente indignação

168
Terceira parte - Marx e a história do século 20

moral “variam conforme o tempo e o lugar”, tal como a moda (cf. mais
acima, cap. I, 6).
Por outro lado, Marx e Engels atribuem ao capitalismo o mérito de
arrastar “para a civilização todas as nações, mesmo as mais bárbaras”
(MEW, IV, 466), de impulsionar na Índia “a mais grandiosa e, para dizer
a verdade, a única revolução social que a Ásia jamais conheceu” (MEW,
IX, 132). À burguesia das metrópoles, ao contrário, é atribuída uma ver-
dadeira e própria “missão”, que consiste na criação do mercado mundial
(MEW, IX, 221 e XXIX, 360).
Mesmo no âmbito europeu Marx e Engels encaram às vezes com indul-
gência a exportação da revolução. Basta refletir sobre a opinião expressa na
Sagrada família a respeito de Napoleão, visto como o último representante
do “terrorismo revolucionário” (MEW, II, 130), e ao qual também A ideolo-
gia alemã parece atribuir o mérito exclusivo do aniquilamento do feudalis-
mo e da introdução da modernidade na Alemanha (MEW, III, 179). Mais
tarde, ao contrário, Engels registra a revolução burguesa na Alemanha a
partir da luta e da guerra de libertação justamente contra a ocupação napo-
leônica (MEW, VII, 539). Nesse contexto, é sobretudo importante o apoio
de Marx e Engels ao movimento de libertação nacional da Irlanda, em luta
contra um país econômica e politicamente mais desenvolvido que pretende
representar a causa da civilização em uma província atrasada e selvagem,
considerada e tratada como uma colônia. Nesse caso, longe de atribuir ao
domínio inglês a tarefa de exportar relações econômico-sociais mais avan-
çadas, e portanto a “revolução social”, Marx e Engels apontam o apoio da
classe operária inglesa à luta de libertação nacional do povo irlandês como
um pressuposto da vitória da revolução social na própria Inglaterra (MEW,
XXXII, 667-9). Deve-se levar em conta, por fim, uma carta onde Engels pa-
rece condenar a exportação da revolução, por obra não só da burguesia
mas igualmente do proletariado: “O proletariado vitorioso não pode impor
nenhuma felicidade a qualquer povo estrangeiro sem com isso solapar seu
próprio triunfo” (MEW, XXXV, 358).

169
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

4. Lênin e as guerras de libertação nacional contra o socialismo

A partir da análise do imperialismo, Lênin sublinha a importância da


questão nacional inclusive para além da Europa e do Ocidente: o movi-
mento de libertação dos povos coloniais é parte integrante do processo re-
volucionário mundial pela democracia e o socialismo. A radicalidade da
negativa da teoria da exportação da revolução, sob todas as formas, aflora
com especial clareza da avaliação sobre a França pós-termidoriana e napo-
leônica: com o novo regime que se afirmava naquela época, “o tempo das
guerras revolucionárias da França cede lugar ao das guerras de conquista
imperialista”, e esta por sua vez abre caminho a guerras de libertação na-
cional por parte dos povos e países (frequentemente em condições semi-
feudais) agredidos e invadidos por uma grande potência, ainda carregada
das glórias da grande revolução e que pretende de qualquer modo repre-
sentar uma forma superior de sociedade e civilização. Significativamente,
por ocasião da Paz de Brest-Litovsk, Lênin compara a luta da jovem Rússia
soviética contra a agressão imperialista alemã ao combate que, outrora, a
Prússia conduzira contra a invasão e ocupação napoleônica, dirigida pelos
Hohenzollern, enquanto define Napoleão, por sua vez, como “um pirata
semelhante àqueles que são hoje os Hohenzollern”, tal como Guilherme II,
empenhado em invadir a Rússia soviética (Loc, XXVII, 165-6 e 90-1).
Ainda mais significativo é o fato de que, antes mesmo do Outubro, o
dirigente bolchevique faça uma advertência contra a ilusão de que a con-
quista do poder por parte do proletariado acarretaria automaticamente o
desaparecimento da questão nacional. Ao referir-se à atitude assumida por
Engels, contida na carta já mencionada, Lênin comenta: “O proletariado
não se tornará infalível e precavido contra erros e debilidades pelo simples
fato de ter feito a revolução social. Porém, os possíveis erros (e cúpidos
interesses, a tentativa de montar nos ombros dos outros) o conduzirão ine-
vitavelmente à consciência desta verdade.” E, contudo, até que essa lição
não seja plenamente assimilada, e, ainda, até que o proletariado vitorioso

170
Terceira parte - Marx e a história do século 20

continue a expressar tendências chauvinistas ou hegemonistas, “são possí-


veis tanto revoluções – contra o Estado socialista –, quanto guerras” (Loc,
XXII, 350).
Estamos diante de uma página de extraordinária lucidez, e não só pelo
peso que ela continua a atribuir à questão nacional na mesma fase poste-
rior à liquidação do poder político da burguesia, mas também e sobretudo
pelo raciocínio seguinte: o quadro que traça do período de transição pós-
-capitalista é tão realista e laico que não exclui a possibilidade ou o risco de
guerras justas de libertação nacional dirigidas contra um Estado socialista.

5. Trotsky, Stálin, Brejnev

No momento em que eclode a Revolução de Outubro, a teoria burgue-


sa da exportação da revolução parece celebrar os seus triunfos. A guerra
é propagada, especialmente por parte da Entente, como um contributo à
difusão da democracia em todo o mundo e, antes de mais nada, nos impé-
rios centrais denunciados como o baluarte da autocracia e do militarismo.
Os mencheviques russos se exprimem nos mesmos termos, sentindo de-
pois da Revolução de fevereiro e da queda do czarismo, que se confirmam
mais do que nunca no seu papel de cruzados da causa da democracia e
do progresso em todos os confins do planeta. De outro lado, sobretudo a
socialdemocracia empenha-se na Alemanha em uma operação ideológica
semelhante, invocando até Marx e Engels na tentativa de transformar a
guerra contra a Rússia czarista em uma grande contribuição à causa da
“vitória da liberdade” e da libertação dos povos oprimidos (cf. mais acima,
cap. IV, 1). É esclarecedor o livro de um deputado socialdemocrata que, já
no título, apresenta o gigantesco conflito em curso como uma revolução,
cujo protagonista é a Alemanha, enveredada pelo caminho do socialismo e
por isso empenhada numa luta mortal contra a coalizão capitalista e “plu-
tocrática”239. Nesse momento, a Weltrevolution, a “revolução mundial”, é
simplesmente a guerra!

171
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

Já antes do Outubro encontram-se presentes todos os elementos cons-


titutivos da teoria da exportação da revolução e inclusive da exportação
do socialismo. É provável que isso tenha de algum modo influenciado
Trotsky, que aderiu mais tarde ao bolchevismo e, justamente por ser mais
ocidentalista, mais sensível a certos fundamentos ideológicos amplamen-
te veiculados no Ocidente, em relação aos quais Stálin, que viveu em um
ambiente mais “provincial”, parece mais refratário. A afirmação da possi-
bilidade do socialismo mesmo em um só país conecta-se com uma visão
da questão nacional, por certo já inferida por Lênin. Convém que nos de-
brucemos por um instante sobre ela:
“O caráter revolucionário do movimento nacional, nas con-
dições da opressão imperialista, de fato não pressupõe, forço-
samente, a existência de elementos proletários no movimento,
a existência de um programa revolucionário ou republicano no
movimento, a existência de uma base democrática do movimen-
to. A luta que o emir do Afeganistão trava pela independência é
uma luta objetivamente revolucionária, apesar do caráter monár-
quico das concepções do emir e dos seus correligionários (...).
A luta dos comerciantes e intelectuais burgueses egípcios pela
independência do Egito é, pelas mesmas razões, uma luta objeti-
vamente revolucionária apesar da origem burguesa e da condição
burguesa dos líderes do movimento nacional egípcio e apesar de
os chefes do movimento nacional egípcio serem burgueses por
origem e dependência social e apesar de serem contrários ao so-
cialismo; em compensação, a luta do governo trabalhista inglês
para manter a situação de dependência no Egito é, pelas mesmas
razões, uma luta reacionária, apesar de os membros desse gover-
no serem proletários por origem e dependência social, e apesar
de serem ‘partidários’ do socialismo”240.
Assim, os conflitos entre países em um diferente estágio de desenvol-
vimento político-social devem ser avaliados não se fazendo referência ao

172
Terceira parte - Marx e a história do século 20

caráter mais ou menos avançado do regime vigente em cada um deles,


mas sim a partir da natureza objetiva da contradição que entre eles se
desenvolve: eis por que, mesmo que guiados por classes feudais, países
e povos atrasados podem ser protagonistas de uma justa luta ou guerra
de libertação nacional, cujo objetivo é eventualmente constituído por um
governo “operário” e trabalhista!
Este princípio vale inclusive quando o poder esteja nas mãos de um
partido comunista e autenticamente operário? Conhecemos a resposta
claramente positiva de Lênin. Stálin, no entanto, não se pronuncia e é um
dado de fato que, a partir do pacto Molotov-Ribbentrop, ele tende a ver o
processo de expansão do socialismo como um alargamento das fronteiras
da URSS ou da sua zona de influência. É uma tendência que se fortalece
à medida que ocorre a vitoriosa contraofensiva e o avanço do Exército
Vermelho pelo Leste Europeu. Certamente não se deve perder de vista
a situação objetiva caracterizada pela guerra ou pelos perigos de guerra:
em 1939-40 e nos anos imediatamente posteriores ao aniquilamento do
Terceiro Reich, Stálin trata de antepor o mais vasto espaço possível entre
a URSS e os seus agressores, ou presumíveis agressores. Mas, lamentavel-
mente, a esse comportamento político corresponde um empobrecimen-
to ou achatamento da teoria, de modo que a exportação do socialismo
no rastro do avanço do Exército Vermelho termina por ser teorizado de
modo mais ou menos explícito. Em todo caso, a União Soviética assumiu
em relação aos novos países de “democracia popular” uma postura des-
caradamente hegemônica, que nem sequer foi posta em discussão nem
por Nikita Kruschev nem muito menos por Leonid Brejnev, ao qual se
devem palavras de ordem, como a da “ditadura internacional do prole-
tariado”, que, enterrando totalmente o ensinamento leniniano, visam a
legitimar a “soberania limitada” dos países mais fracos. Trata-se de uma
postura bem mais grave pelo fato de já não haver sequer a justificativa ou
o atenuante do perigo de guerra.

173
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

6. Exportação da revolução e industrialização forçada

Para Marx e Engels (e para a tradição que têm sobre os ombros), a “mis-
são” que compete à burguesia, de expandir o mercado e exportar a civiliza-
ção, não possui uma dimensão apenas internacional; também no interior de
cada país capitalista o processo de industrialização é de certo modo o aces-
so à civilização por parte da “massa imensa” de “camponeses pequenos
proprietários”, cujo “campo de produção” caracteriza-se não só pelo atra-
so tecnológico e pelo malogrado surgimento da divisão de trabalho, mas
também por “nenhuma variedade de desenvolvimento, nenhuma diver-
sificação de talentos, nenhum enriquecimento de relações sociais” (MEW,
VIII, 198). Como a expansão colonial representa, para usarmos as já citadas
palavras de Marx, a “revolução social” na Ásia ou em outros continentes,
também nas próprias zonas rurais europeias a industrialização introduz a
“revolução social”.
No âmbito do império czarista, a relação entre cidade e campo é ao
mesmo tempo uma relação entre metrópole e colônias. Também no plano
interno da União Soviética a Revolução de Outubro compreende um gigan-
tesco processo de emancipação nacional, do qual são beneficiárias naciona-
lidades antes oprimidas e privadas de sua identidade. E, todavia, também
em sua segunda versão, que acabamos de analisar, a teoria da exportação
da revolução exerce influência negativa no interior do grupo dirigente bol-
chevique: “A barbárie social e política da Rússia tem as suas conexões nos
campos”; assim se expressa Trotsky, e, referindo-se aos Urais e às zonas
mais atrasadas da Rússia pré-revolucionária, observa: “É apenas nestes
últimos anos que o capital inglês começou a extirpar a barbárie e os ve-
lhos costumes desse território”241. Na Rússia estão presentes a “Europa” e a
“Ásia”, “todas as épocas da cultura humana”, inclusive o “estado selvagem
e primitivo”, em relação ao qual a expansão do “capital europeu” exerce
uma função civilizadora, tendo o mérito de solapar “as bases mais profun-
das da autonomia moscovita e asiática”242; a eliminação da barbárie rural

174
Terceira parte - Marx e a história do século 20

depois de uma iniciativa externa já se iniciou com o capitalismo e será leva-


da a termo com o socialismo. Ao teorizar sobre a “ditadura da cidade sobre
as aldeias”, ou a “autoridade despótica da cidade capitalista”, primeiro, e
socialista, depois, o dirigente bolchevique se refere ao jacobinismo243, mas
na realidade sente-se em tal teoria, através de Marx, a influência também, e
talvez especialmente, de uma diferente tradição de pensamento, com base
na qual o liberal inglês John Stuart Mill proclamara que “o despotismo é
uma forma de governo legítima quando se lida com bárbaros” (cf. mais
acima, cap. I, 6).
E ainda mais porque continua a atuar no grupo dirigente bolchevique
a visão da revolução exportada a partir da metrópole para o campo e as
colônias (inclusive para aquelas internas), pelo fato de que isso não chega a
romper completamente com a tese marxiana da revolução que eclode nos
pontos mais altos do desenvolvimento industrial: refutada pela própria ir-
rupção do Outubro, e pelo atraso da ansiada revolução no Ocidente, tal tese
é chamada de certo modo a adquirir uma validade a posteriori, por meio da
industrialização forçada da URSS. E, não por acaso, os círculos mais sensí-
veis à tentação de exportar a revolução em sua primeira variante (aquela
mais propriamente internacional) são os mesmos na segunda. Há um texto
particularmente esclarecedor de Trotsky, de 1922, que, após reforçar que
em um país como a Rússia as tarefas de transformações democrático-bur-
guesas não podem ser assumidas pela burguesia, mas apenas pelo prole-
tariado vitorioso, explica assim o significado da “revolução permanente”,
por ele teorizada vários anos antes:
“A vanguarda proletária deveria, desde os primeiros dias de
seu poder, penetrar profundamente nos domínios proibidos da
propriedade tanto feudal como burguesa. Nessas condições, ela
deveria se chocar com demonstrações hostis da parte de grupos
burgueses que a tivessem sustentado no começo da sua luta revo-
lucionária, e também da parte das massas camponesas, cujo apoio
a teria propelido em direção ao poder. Os interesses contrastantes

175
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

que dominavam a situação de um governo operário em um país no qual a


enorme maioria da população era constituída por camponeses, poderiam
encontrar uma solução unicamente no plano internacional, na arena de
uma revolução proletária mundial. Quando, em virtude da necessida-
de histórica, a revolução russa tivesse infringido os estreitos limi-
tes a ela fixados pela democracia burguesa, o proletariado vitorioso
também se veria obrigado a superar os limites da nacionalidade, isto é,
deveria ter que envidar esforços de modo que a revolução russa se
transformasse no prólogo da revolução mundial”244.
Bem vistas as coisas, o dirigente bolchevique teoriza aqui o entrelaça-
mento de ao menos dois processos de exportação da revolução: o primeiro,
no interior da Rússia soviética, da cidade para o campo (onde se concen-
tram as minorias nacionais e onde impera a “barbárie” asiática); o segundo,
da URSS (a cidade já socialista, ou o país guiado pela cidade socialista) para
a cidade ainda capitalista; implicitamente, fica aqui pressuposto um tercei-
ro, da cidade unificada sob o signo do socialismo para as regiões do enorme
campo do atraso colonial e semicolonial: apenas nesse caso se pode falar de
fato em revolução autenticamente “mundial”.
Logo depois da Revolução de Outubro, Máximo Gorki, aliás coloca-
do naquele momento em posições críticas ao bolchevismo, fala com des-
prezo dos camponeses do seu imenso país, como “nômades não russos”.
Já se disse até que o grande escritor “odiava os camponeses russos, que
aos seus olhos encarnavam a herança biológica mongol-asiática, à qual
atribuía a maior responsabilidade pela ruína (e o atraso) da Rússia”245. Se
também se trata de um exagero, resta o fato de que na cultura da época, a
europeia, antes ainda do que a russa, já estavam contidos todos os pres-
supostos para que a relação entre a cidade e o campo no interior daquele
imenso país se configurasse como uma relação entre a Europa e a Ásia e
entre civilização e barbárie (a civilização, tradicionalmente coincidindo
com a cidade capitalista é identificada, depois do Outubro, com a cidade
socialista).

176
Terceira parte - Marx e a história do século 20

Antes mesmo de ser levada à prática, a industrialização forçada do


campo é comparada ao processo de acumulação primitiva do capitalismo
por obra de um economista próximo à posição trotskista, Ievguêni Preobra-
jenski. Este parece mesmo indicar, como condição para o desenvolvimento
industrial socialista, a “exploração” de uma espécie de “colônia” dentro da
URSS, formada pela agricultura e os setores onde predominam “as formas
econômicas pré-socialistas”.
Nikolai Bukharin, ao advertir contra a tentação ou o perigo de “uma
‘Noite se São Bartolomeu’ massacrando os camponeses ricos”, observa com
razão que, na vaga categoria de “colônia” é incluído objetivamente, “com
exceção da Grande Rússia, um enorme número de camponeses” e – seria
possível agregar, o conjunto das minorias nacionais. Efetivamente, a ques-
tão agrária se entrelaça estreitamente com a nacional e a religiosa, pois jus-
tamente no campo se concentram as minorias nacionais não russas, e mais
forte se torna o apego à religião, a qual, por sua vez, amiúde constitui um
elemento de expressão e defesa da identidade nacional.
Compreende-se, então, que a coletivização e a industrialização do cam-
po terminem sendo conduzidas de modo tão brutal, mais ainda quando
Stálin se dispõe a reconhecer o caráter objetivamente progressivo de um
movimento como expressão de uma nação oprimida, quando ela está em
confronto com um governo trabalhista, mas não quando os comunistas te-
nham chegado ao poder. Por outro lado, os métodos antidemocráticos de
direção não podem não se fazer sentir mesmo no campo das relações entre
as diversas nacionalidades (é com esse propósito que Lênin desenvolve sua
última e desafortunada batalha)246.
Naturalmente, tampouco neste caso se podem perder de vista os dados
da situação objetiva, e no plano interno, a emergência de um duro conflito
social no campo (até independentemente da ação do Partido Bolchevique e
do governo soviético) e, no plano internacional, o agravamento dos perigos
de guerra, que tornam a industrialização do campo algo urgente, como reco-
nhecem até historiadores ferozmente anticomunistas247. E, no entanto, dados

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MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

os pressupostos culturais que acabamos de ver, no curso do processo de co-


letivização forçada da agricultura, as resistências dos camponeses, das na-
cionalidades não russas e dos crentes terminam por ser interpretadas como
diferentes manifestações de uma gigantesca Vendeia retrógrada, obscuran-
tista e bárbara, a ser aniquilada sem hesitações ou distinções internas. Tarde
demais, e provavelmente movido pela intenção de descarregar sobre outros
a responsabilidade pelo ocorrido, Stálin denunciará a violência contra inclu-
sive os “camponeses médios” (na realidade, indiscriminada) e ironizará a
“ação revolucionária” de remover os sinos dos campanários das aldeias248. É
nesse período que se verifica a primeira aparição maciça dos elementos cons-
titutivos do universo concentracionário (o gulag, a deportação, o trabalho
forçado), os quais, exibidos na própria Europa durante o processo de acumu-
lação primitiva capitalista, mais tarde marcaram constantemente a expansão
do Ocidente nas colônias (cf. mais acima,cap. V, 1). Poder-se-ia dizer que o
quadro dos métodos da acumulação capitalista primitiva (no âmbito da qual
se incluem “a espoliação dos nativos sob a forma de impostos, a apropriação
de seus bens, gado, terras e estoques de metais preciosos, a escravização da
população e os infinitos variados sistemas de rapina pela violência”)249, traça-
do por Preobrazenskij em 1924, em certa medida termina por valer também
para os métodos a que recorre a acumulação primitiva socialista que ele teori-
zou. Não se trata aqui de assimilar processos, muito diferentes entre si; já me
referi à emancipação (política, cultural e até econômica) das nacionalidades
tradicionalmente oprimidas pelo czarismo. No entanto, um fato permanece:
aplicada em plena Segunda Guerra dos Trinta Anos; ou seja, no período en-
tre a primeira (da Entente) e a segunda (do Terceiro Reich) agressões à URSS
e desenvolvida em última análise como uma revolução de cima para baixo
e de fora para dentro, a coletivização forçada do campo (pressuposto de sua
industrialização) termina sofrendo a influência da ideologia típica das em-
presas coloniais; a resultante é o gulag.
Enquanto ainda resiste à ideia da coletivização rápida e, na prática, for-
çada, Stálin acusa Zinoviev de querer declarar “guerra à cultura nacional”

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Terceira parte - Marx e a história do século 20

e ser portanto “um seguidor da política de colonização”250; nos anos que


se seguem, feita a coletivização, desenvolve-se na URSS stalinista e pós-s-
talinista uma progressiva e mal camuflada reabilitação da política colonial
do regime czarista. Graças às suas conquistas – se começa a sustentar já
em meados dos anos 1930 – os povos não russos não perderam o encon-
tro marcado com a Revolução de Outubro. Assim se exprime um dirigen-
te comunista local cerca de duas décadas mais tarde: “Sem minimamente
subestimar o caráter reacionário da política colonial czarista, não se deve
esquecer (...) que a anexação dos povos operada pela Rússia constituía a
única solução para eles, e a Rússia exerceu uma influência exclusivamente
positiva sobre seu destino futuro”251.

7. Esquecimento da questão nacional e derrota do socialismo

Passemos os olhos rapidamente pelos mais graves momentos de crise


e descrédito do “socialismo real”: 1948 (ruptura da URSS com a Iugoslá-
via); 1956 (invasão da Hungria); 1968 (invasão da Tchecoslováquia); 1981
(lei marcial na Polônia para prevenir uma possível intervenção “fraterna”
da URSS e frear um movimento de oposição que encontra amplo apoio, in-
clusive por invocar a identidade nacional espezinhada pelo Grande Irmão).
Essas crises têm em comum a centralidade da questão nacional.
Não por acaso a dissolução do campo socialista se iniciou na periferia
do império, nos países inconformados com a soberania limitada que lhes
era imposta; mesmo no interior da URSS, antes mesmo do obscuro “golpe”
de agosto de 1991, o estímulo decisivo para a derrocada final veio da agita-
ção dos países bálticos, para onde o socialismo fora “exportado” em 1939-
40: em um certo sentido, a questão nacional que favorecera poderosamente
a vitória da Revolução de Outubro, assinalou também o desfecho do ciclo
histórico que esta abrira. De resto, desde vários anos antes, observadores
atentos tinham previsto que o “império” desmoronaria sob o impacto da
“revolta das nações”252.

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MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

A maior vitalidade da República Popular da China (qualquer que


seja a avaliação sobre suas atuais orientações políticas) explica-se também
pelo fato de que, aprendendo com a experiência histórica, Mao Tsetung
soubera criticar os graves erros verificados na URSS na relação tanto com
os camponeses como com as minorias nacionais253. Ao menos em certos
momentos de sua história, os comunistas chineses souberam colocar-se
à altura daquela página de Lênin de 1916 que sublinha a persistência da
questão nacional mesmo depois da conquista do poder por partidos co-
munistas e operários.
Uma tomada de posição do PCCh em 1956 sublinha que, dentro
do campo socialista, “são necessários esforços constantes para superar
a tendência ao chauvinismo de grande nação”, tendência que, longe de
desaparecer imediatamente junto com o regime burguês ou semifeudal
derrotado, pode inclusive encontrar ulterior alimento no “sentimento de
superioridade” despertado pela vitória da revolução. Estamos diante de
“um fenômeno que não é peculiar a este ou aquele país. O país B, por
exemplo, pode ser pequeno e atrasado em comparação com o país A, mas
grande e desenvolvido em relação ao país C. Pode ocorrer portanto que
o país B, enquanto se lamenta devido ao chauvinismo da grande nação
do país A, assuma amiúde tais posturas de grande nação na relação ao
país C”254. O discurso é aqui mantido em princípios gerais, mas não é
difícil compreender que por trás de B está a Iugoslávia, que, se, por um
lado, lamentava com razão o chauvinismo e a prepotência da URSS (A),
por outro, revelava ambições hegemônicas em relação à Albânia (C). Mais
tarde, porém, os comunistas chineses denunciarão a URSS como um país
socialista em palavras e imperialista nos fatos, recorrendo a uma catego-
ria (“social-imperialismo”) que, se por um lado rotula eficazmente atos
como a invasão da Tchecoslováquia, por outro, tem o defeito de remover
outra vez da realidade do mundo socialista as contradições nacionais e as
tendências chauvinistas e hegemônicas, sofrendo portanto uma recaída
numa visão utópica de socialismo.

180
Terceira parte - Marx e a história do século 20

8. Balanço crítico e autocrítico ou retorno à utopia?

Neste ponto convém ajustar as contas com uma tendência hoje bastante
difundida, que desejaria percorrer no sentido inverso o caminho descrito
por Engels, em sua época, como “a evolução do socialismo de utopia a ciên-
cia”. Como veremos (cf. mais abaixo, cap. VIII, 4-5), essa tendência tem al-
gumas vezes paixão pela palavra de ordem do retorno a Marx – lido porém
sob uma ótica essencialmente utopista, enquanto globalmente contraposta
à sua eficácia histórica.
Por certo, a uma atitude como essa se reconhece o mérito de configu-
rar-se como uma, ainda que aproximativa, trincheira de resistência à desen-
freada ofensiva reacionária, a qual, junto com o “socialismo real” desejaria
criminalizar também a Marx (e Engels). Porém a outra face da medalha é a
participação subalterna dos que se posicionam pela liquidação da jornada
histórica iniciada com a Revolução de Outubro e, em última análise, dessa
mesma revolução e do partido e da tradição político-cultural que estão so-
bre seus ombros.
Ainda que subjetivamente não desejasse ser liquidacionista, a palavra
de ordem do retorno à utopia e a Marx impossibilita um balanço sério da
história do movimento comunista. Na prática, ela faz os comunistas de hoje
regredirem ao nível de consciência dos protagonistas da grande tragédia
revolucionária, os quais, sobretudo em seus piores momentos, em vez de
refletirem sobre os novos problemas que gradualmente vinham à tona no
curso do desenvolvimento histórico, e constituindo a base objetiva das con-
tradições que os dividiam, limitavam-se a se excomungarem uns aos outros
em nome da ortodoxia marxista ou marxista-leninista.
Compreensivelmente, os protagonistas do Outubro eram talvez capa-
zes de aplicar a dialética à Revolução Francesa, mas não àquela que estavam
realizando e na qual estavam submersos demais para poderem conservar
um mínimo de objetividade crítica. Porém é precisamente esta última ope-
ração que hoje são chamados a cumprir aqueles que pretendem realmen-

181
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

te aprender com os ensinamentos de Marx, cujas elaborações teóricas elas


próprias não podem ser compreendidas sem se considerar o vínculo com
a história.
Transformar Marx em uma espécie de tribunal implica, ao contrário,
consequências perversas: indagar hoje quem teria sido “mais marxista”,
Trotsky ou Stálin, ou Lênin, ou Bukharin é tão inútil e inócuo quanto que-
rer condenar a todos como “antimarxistas”, de modo a entrar em contato
imediato com a autêntica “doutrina”. Esse comportamento é ainda mais
inócuo pelo fato de que parece pressupor que a verdadeira ou presumida
conformidade com o sagrado texto de Marx seja por si só sinônimo de uma
correta orientação ideológica e política.
Deste ponto de vista, a palavra de ordem do retorno a Marx (e à utopia)
é uma cômoda rota de fuga da necessária reflexão autocrítica. O balanço
da questão nacional, aqui traçado sumariamente, também chama em cau-
sa pesadamente o assim chamado marxismo “ocidental”, que raramente
compreendeu sua importância (à parte, obviamente, a gloriosa exceção de
Gramsci). É um dado de fato: à medida em que a URSS desenvolve suas
tendências hegemônicas, a cultura marxista, inclusive aquela “ocidental”,
esquece a lição leniniana sobre a importância da questão nacional e sua
persistência mesmo depois da revolução socialista, por todo um período
histórico. É o período em que mesmo György Lukács e Ernst Bloch, derru-
bando a citada opinião de Lênin, às vezes se revelam inclinados a enaltecer
em Napoleão o protagonista de uma espécie de exportação da revolução e
a condenar as guerras de libertação nacional antinapoleônica255.
Mas há coisa pior. Em não poucas ocasiões, o marxismo “ocidental”
pretendeu criticar em Togliatti, a partir de posições “puristas”, o fato de
que tinha sabido desenvolver a Resistência também como uma guerra de
libertação nacional, o que na verdade constitui um grande motivo de mé-
rito do secretário do PCI. Nos conturbados anos da “contestação global”,
foi objeto de zombaria e escárnio em particular o apelo lançado por Stálin
em 1952 aos partidos comunistas da Europa ocidental, para que reergues-

182
Terceira parte - Marx e a história do século 20

sem e levassem adiante “a bandeira da independência nacional e da so-


berania nacional”, abandonada pela burguesia256. Em vez de denunciar o
absoluto caráter instrumental de tal apelo, dado que proveniente de quem
condenava e enforcava como “titistas” os comunistas desejosos de defen-
der um mínimo de soberania nacional nos países do Leste Europeu, não
poucos marxistas “ocidentais” preferiram exibir seu niilismo nacional. Por
isso, não tinham condições de captar a natureza real das contradições que
emergiam e explodiam no Leste: mesmo quando condenaram, por exem-
plo, a invasão da Checoslováquia, limitaram-se a contrapor a plataforma
de Alexander Dubcek como mais democrática ou avançada que aquela de
Brejnev, mas sem compreender realmente o significado da questão nacio-
nal dentro do “campo socialista”. Por essas razões o marxismo “ocidental”
deve ser considerado corresponsável pela degeneração e derrocada verifi-
cadas no Leste.
Para concluir, mesmo quando veste as sedutoras roupagens do regres-
so a Marx, o retorno à utopia é por um lado sinônimo de fuga da realidade
e de impotência política, e por outro não imuniza contra novas catástrofes
análogas às já verificadas. É certo que, em períodos de imaturidade histó-
rica, a utopia desempenha uma função positiva, à medida que constitui o
lugar da elaboração preliminar, ainda que vaga e confusa, dos projetos ou
desejos de transformação social derivados da objetividade própria das con-
tradições existentes. Mas é preciso distinguir nitidamente entre um pen-
samento que se exprime de forma utópica por carecer de uma experiência
histórica real de transformação, a qual porém ele está disposto a compreen-
der e um utopismo que se recusa teimosamente a proceder a um balanço
histórico e que portanto é sinônimo de dogmatismo e subjetivismo. Anu-
lar décadas de história real (de tentativas de construção de uma sociedade
pós-capitalista) para retornar à utopia significa achatar o caráter complexo
e contraditório do processo de transformação socialista. E a negação ou a
suavização arbitrária na fantasia das contradições reais (a utopia) é a outra
face do terror.

183
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

No que se refere ao tema que é mais propriamente aqui objeto de inves-


tigação, vale notar que depois da época de Stálin de suas terríveis medidas
de guerra, a opressão nacional na URSS se foi agravando paripassu à procla-
mação do iminente advento do comunismo que, ao realizar a plena fusão
das nações e relegar ao museu do passado toda forma de preconceito na-
cional, teria tornado supérfluas e obsoletas a política leniniana e a garantia
formal dos direitos das nacionalidades não russas257. Libertar o movimento
revolucionário desse utopismo potencialmente repressivo implica ajustar
contas, em primeiro lugar, com o anarquismo, que, junto com o mito da
extinção do Estado, cultivou o niilismo nacional e justamente por isso incli-
na-se também para a intolerância religiosa.

9. Questão nacional e internacionalismo

A insistência na questão nacional implica o abandono do internaciona-


lismo? Na realidade o Marx autenticamente internacionalista não é o teóri-
co da “revolução social” na Índia na esteira da conquista colonial inglesa, e
nem o admirador de Napoleão enquanto representante do “terrorismo re-
volucionário”, mas sim aquele que, rejeitando a pretensão dos colonialistas
ingleses de exportar para a Irlanda a civilização e relações econômico-so-
ciais superiores, sabe captar a questão nacional e apoiar a luta de emanci-
pação de um povo oprimido.
Por outro lado, já vimos os ruinosos prejuízos produzidos pelas tentati-
vas de exportar a revolução. Há um exemplo particularmente esclarecedor:
além de desacreditar a causa do socialismo em nível mundial, a invasão
soviética do Afeganistão reforçou subsequentemente a base social de massa
da reação afegã, que pôde se erigir em campeã da luta pela independência
nacional. Se há um momento naquele país em que a revolução teve chances
concretas de sucesso, foi na fase imediatamente após a retirada das tropas
soviéticas, nos breves meses em que o regime no poder em Cabul pôde
dotar-se de uma base ou uma credibilidade nacional, antes que a derrocada

184
Terceira parte - Marx e a história do século 20

da URSS o arrastasse consigo. Portanto Lênin tinha razão ao subscrever


plenamente e definir como “absolutamente internacionalista” o princípio
engelsiano já citado, que veta a imposição da “felicidade” vinda de fora
(Loc, XXII, 350).
A atenção para com a questão nacional está longe de entrar em contra-
dição com o empenho internacionalista: os comunistas italianos, que con-
duziram a Resistência também como guerra de libertação nacional, alguns
anos antes haviam combatido como voluntários em defesa da independên-
cia da Etiópia (então governada por Negus) face à agressão da Itália fas-
cista. Porém ao fazê-lo, longe de exprimirem qualquer forma de niilismo
nacional, os comunistas denunciavam o regime mussoliniano pelo fato de
que com sua política chauvinista conduzia a Itália rumo à catástrofe da Se-
gunda Guerra Mundial.
A rejeição ao niilismo nacional não é inteiramente sinônimo de renún-
cia à luta, justa e necessária, contra o culto supersticioso às raízes e ao tor-
rão natal, contra a fragmentação étnica e o tribalismo, contra tudo o que,
minando as bases da convivência civil, favorece a interferência das gran-
des potências e torna impossível a solução da questão nacional. Tampouco
a atenção para o tema significa agarrar-se ao provincianismo ou perder a
consciência do fato de que a nação não é uma realidade natural e eterna,
mas que se formata historicamente.
Neste sentido, não é correto assumir uma atitude niilista tampouco em
relação às aspirações que se dirigem rumo a uma unidade mais ampla e
uma nacionalidade europeia, ainda que neste momento se trate de uma pala-
vra de ordem amplamente hegemonizada por uma burguesia monopolista
empenhada em uma concorrência mundial cada vez mais dura, de uma
palavra de ordem, portanto, em função de um projeto imperialista pronto
a espezinhar os direitos nacionais dos povos do Terceiro Mundo que ele
gostaria de recolonizar.
Para concluir, a rejeição ao niilismo nacional não implica o abando-
no do ideal internacionalista de uma comunidade humana unificada, mas

185
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

unificada com base na igualdade, no consenso democrático, no respeito à


identidade de seus componentes. Tal internacionalismo pressupõe, ao con-
trário, a nítida e radical rejeição ao “internacionalismo” que caracteriza a
história do capitalismo e do imperialismo e que, ainda hoje, pretende ditar
lei ao planeta em nome da Nova Ordem Mundial.

10. Novos aspectos da questão nacional

Em nossos dias a questão nacional se apresenta talvez ainda mais com-


plexa do que na época de Lênin. Por um lado, a permanente arrogância
imperialista e também o intento hoje declarado de recolonizar o Terceiro
Mundo só podem voltar a acirrar a questão naquelas áreas do planeta: des-
graçadamente, a crise do movimento comunista faz sim com que os movi-
mentos de libertação ou de resistência nacional se expressem cada vez mais
em formas religiosas e mesmo de fundamentalismo religioso. Por outro
lado, na Europa, ou em suas franjas, ao lado de movimentos concretizados
por povos com séculos de opressão sobre os ombros (pensamos na Irlanda),
emergem outros com características novas e preocupantes: a dissolução no
Leste Europeu do “socialismo real”, a falta de movimento dos países não
alinhados e de qualquer projeto de aliança e solidariedade entre os países
de desenvolvimento mais fraco, ao lado da crescente força de atração exer-
cida por gigantescos blocos econômicos (que concorrem entre si) da me-
trópole capitalista, tudo isso provoca a crise ou a dissolução de não poucas
unidades estatais e nacionais, mais ainda quando essa crise ou dissolução
é estimulada, às vezes até ativamente, pela iniciativa (e pela rivalidade) das
grandes potências imperialistas.
Compreende-se, então, que, no momento da secessão, os dirigentes da
Eslovênia e da Croácia tenham declarado que preferiam ser os últimos da
Europa em vez de os primeiros da Iugoslávia. Além das tendências de “tipo
irlandês”, outras de “tipo croata-esloveno” devem ter agido na época da
dissolução da URSS. Pelo menos a partir do fim da Segunda Guerra Mun-

186
Terceira parte - Marx e a história do século 20

dial, Stálin começa a enaltecer o povo russo como aquele que, por seus mé-
ritos revolucionários e patrióticos, constitui “a nação mais eminente entre
todas as nações que conformam a União Soviética”, a “força dirigente”, o
“povo dirigente” da URSS (inclusive por ser dotado de “uma inteligência
clara, um caráter firme e paciente”)258.
Em 1976, por ocasião do 25º Congresso do PCUS, esse conceito foi re-
petido por um personagem destinado depois a se tornar famoso: “Com-
panheiros, a Geórgia é chamada o país do sol. Mas para nós o verdadeiro
sol não se levanta no Oriente e sim no Norte, na Rússia; é o sol das ideias
de Lênin”259. Quem se pronuncia com tamanha estridência é Eduard She-
vardnadze; após ter recorrido ao mito do povo primogênito da revolução
e titular de uma espécie de direito de tutela sobre nações politicamente re-
tardatárias, o chauvinismo grão-russo termina por se exprimir na ambi-
ção de se juntar com os povos mais “civilizados” e mais desenvolvidos do
Ocidente, libertando-se do lastro dos povos bárbaros e semibárbaros ou
reordenando-os em uma função explicitamente subalterna. E a evolução de
Shevardnadze é emblemática dessa parábola do setor político que dirigiu a
transição pós-soviética, ainda que depois, por ironia da história, o próprio
Shevardnadze tenha sido propelido à liderança da Geórgia, que antes ele
havia convidado a submeter-se à Rússia como ao irmão maior.
No caso da Croácia e da Eslovênia e das tendências de tipo “croata-
-esloveno”, trata-se de processos que se assemelham menos a guerras de
libertação de nações oprimidas e mais a secessões de minorias privilegiadas
que sentem seus interesses ameaçados pela presença de um poder central;
pensemos na rebelião dos estados escravistas do Sul dos EUA em 1861 e
nas secessões ou tentativas secessionistas que acompanharam o processo
de descolonização, desde a Argélia até a Rodésia.
Uma ameaça de secessão pesa agora também sobre nosso país, e não
por acaso provém de movimentos que se afirmaram nas regiões mais de-
senvolvidas, bradando contra o escândalo da redistribuição de renda, real
ou suposta, em favor das regiões mais pobres, e tencionando talvez seguir

187
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

o exemplo da Eslovênia e da Croácia. O triunfo do neoliberalismo (com a


derrota de qualquer projeto de solidariedade) e a nova constelação inter-
nacional tendem a recolocar na ordem do dia a questão nacional inclusive
em países que pareciam tê-la resolvido definitivamente desde há muito.
E está na hora de começar a prestar maior atenção aos rumores cada vez
mais insistentes que sugerem ou indicam a presença do setor financeiro
anglo-americano por trás da Liga Norte e das manobras que, em nome do
evangelho neoliberal, exigem a privatização da indústria pública em nosso
país. Tais manobras se valem da cumplicidade de setores importantes do
capital italiano ou da Confindustria [Confederazione Generale dell’Indus-
tria Italiana, Confederação Nacional da Indústria Italiana] no seu conjunto;
esta, em todo caso, ao sair em campo maciçamente em favor do voto unino-
minal, revelou-se pronta a entregar a Itália do Norte a um agrupamento po-
lítico que agita a ameaça de secessão260. Não seria a primeira vez que, para
perseguir os próprios interesses, inclusive os mais míopes, a burguesia con-
duziria o nosso país a uma catástrofe. Hoje, como no passado, o movimento
revolucionário se desenvolverá na medida em que saiba dar uma resposta
real aos problemas do presente. Entre as teses que agora caducaram com
as implacáveis conturbações mundiais, com certeza não se encontra a tese
leniniana da “enorme importância da questão nacional”.

VIII
Depois do dilúvio: o mítico retorno a Marx

1. O sofisma de Talmon

A derrocada ocorrida no Leste acentuou, inclusive na esquerda e até


entre as fileiras daqueles que continuam a se referenciar em Marx, a ten-
dência de liquidar sumariamente a jornada histórica iniciada com a Re-

188
Terceira parte - Marx e a história do século 20

volução de Outubro. Já o anarquismo, com sua denúncia do “estatismo”


jacobino e de 1848, oferecia uma leitura subalterna à da burguesia liberal
a respeito da história do século 19 ou desenvolvida a partir da Revolução
Francesa (cf. mais acima, cap. VII, 7). Agora a subalternidade corre o risco
de se acentuar ainda mais: está em jogo o balanço dos últimos dois séculos,
do mundo contemporâneo no seu conjunto; a esquerda barraria a si mesma
qualquer futuro caso se revelasse incapaz de desenvolver uma leitura dife-
rente do passado, e alternativa em relação àquela sugerida ou imposta pela
burguesia liberal e pela ideologia dominante.
Já nos referimos aos conteúdos político-sociais desta última leitura; jun-
to com a jornada histórica iniciada com o Outubro, a qual pretende liquidar
a própria tradição democrática revolucionária, demonizando o jacobinismo
e a Revolução de 1848, acusados de ponto de partida do totalitarismo.
Convém agora que nos detenhamos nos problemas lógico-históricos
levantados pela contraposição em cores contrastantes das duas tradições
políticas, a liberal (e anglo-saxã), baseada – como se assegura – no amor à
liberdade; e a jacobino-bolchevique, totalmente atravessada, pelo que pare-
ce, pelo culto ao terror.
É preciso dizer desde já que o confronto entre as duas tradições vem
sendo conduzido com um método no mínimo singular. Para se condenar a
Revolução Francesa como sanguinária, leva-se em consideração o seu mo-
mento de crise mais agudo, representado pela rebelião de Vendeia e pela
intervenção das potências contrarrevolucionárias; para celebrar como pací-
fica a tradição política inglesa, contudo, omite-se descaradamente a primei-
ra revolução e, mesmo no que toca à revolução liberal propriamente dita,
a de 1688, se põe de lado a lei marcial, que os novos governantes ingleses
impõem e mantêm por longo tempo na Irlanda, ou o punho de ferro que
empregam sucessivamente para dominar as situações de crise. Ou então,
se contrapõe a tradição política francesa à estadunidense, da qual, no en-
tanto, são eliminadas mais uma vez as páginas mais dramáticas, a começar
pela terrível guerra civil e pelas medidas jacobinas de Lincoln, necessárias

189
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

para abolir o instituto da escravidão, por longas décadas apenas no plano


formal.
A esta altura fica claro que a contraposição em cores contrastantes entre
a tradição liberal e a tradição democrático-revolucionária e jacobina baseia-
-se em um sofisma, consistente em relação a duas grandezas absolutamente
heterogêneas – de um lado, os períodos de desenvolvimento pacífico, ou
relativamente pacífico, dos regimes liberais, de outro, os períodos de crise
aguda e de guerra; de um lado, a norma, de outro, o Estado de exceção.
É um procedimento que poderíamos denominar de sofisma de Talmon,
em homenagem a Jacob Leib Talmon, um dos autores que, no segundo pós-
-guerra, mais se empenharam em elaborá-lo. Robespierre é sinônimo de di-
tadura e Benjamin Constant de amor à liberdade? Na verdade este último,
depois de ter prenunciado nos anos do Terror um “descansar armas sob a
ditadura” (obviamente com sinal invertido em relação à então existente),
encara depois com simpatia ou com entusiasmo, ao menos inicialmente,
o afundamento da República e o golpe de Estado de Napoleão Bonaparte.
De outro lado, a reprimenda que o liberal francês desenvolve contra
os jacobinos e expoentes do radicalismo plebeu, tachados de “vândalos e
godos”, ou então “anarquistas e ateus” e até “antropófagos”, e, seja como
for, pertencentes a uma “raça detestável”, à qual só se pode desejar “a ex-
tirpação”, é bem suscetível de justificar até a mais terrorista das ditaduras.
Por sua vez, Tocqueville, tão eloquente na denúncia do Terror jacobi-
no, pronuncia-se, em junho de 1848, pelo fuzilamento sumário de qualquer
operário parisiense surpreendido com armas nas mãos, defendendo deses-
peradamente o seu direito à vida! Evidencia-se mais uma vez o sofisma de
Talmon, que, para poder estereotipar o liberalismo e demonizar o jacobinis-
mo, é constrangido a comparar de um lado as boas intenções e os autorre-
tratos apologéticos dos liberais e de outro a prática concreta de governo em
momentos de crise aguda.
É esse sofisma, parte integrante da ideologia dominante, que preside
também a liquidação da jornada histórica iniciada com o Outubro. A URSS

190
Terceira parte - Marx e a história do século 20

(dilacerada pela guerra civil e pela intervenção dos exércitos primeiro da


Alemanha imperial de Guilherme II, depois da Entente liberal e por fim do
Terceiro Reich), denunciada como a própria encarnação do totalitarismo,
é comparada a um bosquejo idílico da Itália, da Inglaterra e dos EUA ou
de outros países regidos pelas regras do jogo liberal. Porém o que é feito
dessas regras, nesses países, no curso por exemplo do primeiro conflito
mundial, quando intervêm as leis de emergência desde o Estado de sítio,
os tribunais militares, os pelotões de fuzilamento e os massacres? É até
difícil imaginar uma prática mais totalitária que esta última, que liquida
incontáveis vidas humanas ao acaso, sem se apoiar sequer em uma vaga
suspeita mas apenas na exigência de restabelecer a disciplina mais infle-
xível entre os escravos-soldados destinados ao sacrifício e à morte. São
os anos em que nos Estados Unidos, apesar de estarem em segurança do
outro lado do Atlântico, pode acontecer de alguém ser condenado até “a
vinte anos de cárcere” por ter se expressado ‘de modo desleal, irreverente,
vulgar ou abusivo’ sobre qualquer aspecto do governo ou de seu esforço
de guerra”261. Embora o país não tenha jamais sofrido risco de invasão ini-
miga ou revolução social, a luta contra o perigo vermelho e a Revolução de
Outubro faz emergir nos EUA inclusive a instituição considerada mais tí-
pica do totalitarismo: “O senador McKeller, do Tenessee, propõe a criação
de uma colônia penal para presos político, na Ilha de Guam”. O univer-
so concentracionário torna-se realidade mais tarde, no curso da Segunda
Guerra Mundial, quando Roosevelt deporta “para campos de concentra-
ção os cidadãos estadunidenses de origem japonesa” (inclusive mulheres
e crianças), e não em consequência de um delito, mas simplesmente na
qualidade de suspeitos devido ao grupo étnico que integram. Ainda em
1950 é aprovado o “McCarran Act, para a construção de seis campos de
concentração em várias áreas do país, destinados a abrigar prisioneiros
políticos”. Entre os promotores dessa lei há alguns deputados destinados
a se celebrizarem como presidentes dos Estados Unidos: John Kennedy,
Richard Nixon e Lyndon Johnson!262

191
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

São os tempos em que os governantes do nosso país, enquanto não se


cansam de esbravejar contra o totalitarismo comunista, se empenham até o
fim, no âmbito da “Operação Gladio” e com a colaboração e supervisão do
Grande Irmão de além-Atlântico, para preparar um dispositivo com a mis-
são de assegurar a liquidação física ou o isolamento em campos de concen-
tração dos dirigentes comunistas e operários, caso tais medidas de emer-
gência se tornassem necessárias para a imperativo da salvação do capital.

2. Marx diante o tribunal especial da burguesia liberal

Porém é inútil buscar a história real em meio aos teoremas e sofismas


da ideologia dominante que, uma vez instituída a plena equivalência entre
movimento comunista e totalitarismo, pretende deduzir a priori os horrores
do gulag a partir das páginas de Marx e Engels, arrastados desta forma às
barras de uma espécie de tribunal especial e submetidos a um processo cujo
caráter arbitrário e farsesco não é difícil verificar. Uma vez procedida a con-
figuração maniqueísta do confronto político verificado no século 19, com
base no sofisma de Talmon, se trata agora de aos juízes estabelecer uma
precisa correspondência e uma férrea linha de continuidade entre as teses
dos dois pensadores revolucionários e os traços, invariavelmente pintados
em cores soturnas e horripilantes, da sociedade resultante da Revolução de
Outubro.
É uma sociedade caracterizada em primeiro lugar pela ditadura
totalitária: pois bem, os autores do Manifesto do Partido Comunista não
teorizaram a “ditadura do proletariado”? Mas, apenas o esquematismo de
juízes de um tribunal especial pode levar a crer que a tradição liberal tenha
teorizado a absoluta inviolabilidade das regras do jogo. Para Locke, por
exemplo, não se discute que uma situação de crise pode ou deve ser enfren-
tada por um poder não submetido a uma “regra”, ou seja, ao respeito pelas
normas do jogo. Montesquieu, admirador da Inglaterra liberal, não tem a
menor dúvida de que volta ao “costume dos povos mais livres que já existi-

192
Terceira parte - Marx e a história do século 20

ram sobre a terra” a prática de “colocar, por um momento, um véu sobre a


liberdade, assim como se ocultam as estátuas dos deuses”. Muitas décadas
mais tarde, John Stuart Mill declara por sua vez que é plenamente legítimo
“que se assuma um poder absoluto sob a forma de uma ditadura tempo-
rária”, em casos de “necessidade extrema” ou mesmo de “enfermidade do
corpo político que não possa ser curada com métodos menos violentos”.
Do outro lado do Atlântico, Alexander Hamilton aventura-se ao ponto de
frisar a necessidade, nas situações de emergência, de um poder “sem limi-
tes” e “sem vínculos constitucionais”. Não é certamente a teorização, em
determinadas circunstâncias, da ditadura que constitui o diferencial entre
de um lado a tradição liberal e de outro Marx e Engels – os quais por acaso
têm bem presente e condenam o apoio dos círculos liberais franceses ao
golpe de Estado de Napoleão I e a “pressa indecorosa” – a expressão é de
Marx (MEW, XVII, 278) – com a qual justamente a Inglaterra liberal saúda
Napoleão III e o advento do regime bonapartista. E convém agregar que,
por ocasião do primeiro conflito mundial, os liberais europeus e estaduni-
denses nada têm a objetar contra a instauração de uma ditadura mais ou
menos explícita e a legislação de emergência com que os países beligerantes
suspendem as regras do jogo, de modo a poderem desenvolver sem emba-
raços aquela mobilização e aquela guerra total – contra as quais, por seu
turno, se insurgem a Revolução de Outubro e o movimento revolucionário
de inspiração marxista.
E no entanto a reprimenda do tribunal especial prossegue implacável:
para explicar o enorme poder da Nomenklatura soviética é preciso remontar
à teoria da vanguarda revolucionária (apta, graças a seu saber superior, a
impor sua própria vontade às massas “atrasadas”), já implícita na distinção
formulada por Marx entre classe em si e classe para si, e mais tarde ampla-
mente elaborada por Lênin. Ocorre que também esse subsequente ponto de
acusação tem o defeito de proceder a uma sub-reptícia transfiguração da
tradição liberal, no âmbito da qual está profundamente enraizada uma bem
mais preocupante teoria da vanguarda, ou melhor, da elite constituída de

193
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

proprietários, que teriam a missão de conduzir pela mão as eternas “crian-


ças” que são os trabalhadores assalariados. Ainda na segunda metade do
século 19, Stuart Mill se bate para que essa teoria da elite seja sancionada
inclusive também no plano do direito eleitoral, garantindo um voto plural
aos mais inteligentes (empreendedores e acadêmicos); e é significativo que
na Inglaterra a prática do voto plural tenha sobrevivido até depois do fim
da Segunda Guerra Mundial.
Pode-se dizer ainda que a tradição liberal desenvolveu uma dupla teo-
ria da elite, na esfera interna e na internacional. No que toca a esta última,
já sabemos que para John Stuart Mill “o despotismo é um modo legítimo
de governo quando tem que tratar com bárbaros”. Para além disso, a elite
aqui explicitamente teorizada faz pensar às vezes, mais ainda que na rela-
ção professor-aluno, na relação dono-animal doméstico, dado que para o
liberal inglês alguns povos mal se situam acima das espécies animais supe-
riores. Já Benjamin Constant julga um fato natural e inevitável que os pro-
prietários se constituam em guia superior dos proletários-crianças: a teoria
da elite apresenta-se aqui de uma forma pesadamente naturalista.
Se a vanguarda revolucionária, cara a Lênin, fixa seu objetivo numa
obra que tende a tornar supérflua a si própria, graças à superação do atra-
so das massas, histórica e socialmente determinado, a elite teorizada por
Constant encontra sua razão de ser na contemplação satisfeita do suposto
abismo que a separa da massa ou da multidão, considerada antropológica
ou ontologicamente incapaz de elevar-se para além de sua incurável mes-
quinhez intelectual e moral.
Em particular no que se refere à Itália, a teoria da vanguarda revolucio-
nária representa em Gramsci a resposta à teoria da elite, que celebra seus
sanguinários fatos memoráveis precisamente no decurso da Primeira Guer-
ra Mundial. É então que liberais como Guido Dorso reivindicam a “uma
minoria audaz e genial”, a dos intervencionistas, o direito de precipitar a
Itália na guerra, “arrastando pelo pescoço aquela multidão de asnos e ve-
lhacos”, a vil multidão que se obstina em nutrir sentimentos pacifistas263.

194
Terceira parte - Marx e a história do século 20

Para Gramsci, a vanguarda revolucionária é chamada a lutar para evitar


que se repita uma tal tragédia: trata-se de fazer sim com que o “povo traba-
lhador” não permaneça na condição “de presa à mercê de todos” e simples
“material humano” à disposição das elites, “material bruto para a história
das classes privilegiadas”.
Na sociedade nascida do Outubro – prossegue a reprimenda do tribu-
nal especial – não há espaço para a liberdade e dignidade do indivíduo; e
ainda uma vez vem à baila a responsabilidade de Marx e Engels, que pre-
tendem substituir o mercado e a livre iniciativa pelo planejamento estatal e
um modelo de sociedade “organicista” e holístico.
No entanto, já Hegel acusa os teóricos do laissez faire de não considera-
rem os “indivíduos” na sua concretude, com suas necessidades, como um
“fim” em si, mas de sacrificá-los no altar da “segurança” da propriedade e
da ordem jurídica existente, o altar do mercado, que cedo ou tarde termina-
ria por reencontrar seu equilíbrio, mesmo que nesse intervalo uma massa
considerável de indivíduos concretos perca seus meios de subsistência e
talvez sua própria vida. Por sua vez, Marx, ao polemizar contra os que em
nome do liberalismo rejeitam qualquer regulamentação legislativa do tra-
balho na fábrica, compara o “cego domínio da lei da oferta e da demanda
que conforma a economia política” da burguesia com o “misterioso ritual
da religião de Moloch”, que exige o “infanticídio” e mais tarde, nos tempos
modernos, apresenta uma “especial preferência pelos filhos dos pobres”.
Não se trata de um momento isolado. Já vimos a crítica cerrada do Capital
ao organicismo ou holismo liberal que teoriza tranquilamente sobre o ca-
ráter benéfico e necessário do sacrifício da grande maioria da população
no altar da “riqueza” ou da “felicidade” da “sociedade” ou da “nação” (cf.
mais acima, cap. I, 5).
O Moloch devorador de homens parece se tornar realidade durante a
Primeira Guerra Mundial. Na Itália como na Inglaterra e nos EUA, quem
exige o sacrifício de milhões e milhões de indivíduos no altar da defesa da
pátria são os próprios liberais, que amam se autovangloriar como os únicos

195
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

defensores da dignidade e do valor autônomo do indivíduo, ao passo que a


se opor a esse imenso rito sacrificial estão os bolcheviques, aqueles que os es-
tereótipos dominantes desejariam liquidar como “holistas” e “organicistas”.
Vejamos por fim o principal ponto de acusação contra Marx e Engels:
subestimar a moral e sacrificá-la no altar da história, hegelianamente con-
cebida como um processo teleológica e necessariamente orientado para
um fim último. Porém, uma tal filosofia da história encontra sobretudo sua
expressão mais significativa justamente no âmbito da tradição liberal. O
colonialismo expandiu-se sob o estandarte do Manifest Destiny (Destino Ma-
nifesto) da raça branca, do fardo e da missão imposta pela história ou pelo
bom Deus ao homem branco, de exportar pelo mundo inteiro a civilização
(e as relações de produção capitalistas). É essa ideologia que acompanhou
e marcou a “epopeia” do Far West, a eliminação dos peles vermelhas da
face da terra, e também o extermínio ou dizimação de incontáveis popu-
lações coloniais. Também na Itália o liberal Giolitti justifica a expedição à
Líbia, com os massacres que ela comportou, em nome da necessária ex-
portação da civilização e da “fatalidade histórica”. Ao longo do primeiro
conflito mundial, essa filosofia da história passa a fazer parte da ideologia
da Entente; esta, sem recuar diante de custos humanos tão assombrosos
que fazem Lênin e a Luxemburgo bradarem contra o “genocídio”, tencio-
na civilizar (e democratizar) os “descendentes dos hunos e dos vândalos”,
isto é, a Alemanha de Guilherme II, a qual por sua vez pretende civilizar
e democratizar a Rússia czarista, aliada da França e da Inglaterra liberais!
Não há então motivos para se espantar com o fato de que quando Turati,
alinhando-se com a burguesia liberal, converte-se plenamente às razões da
guerra e da sagrada união patrioteira, justifica sua conduta com a neces-
sidade de se curvar diante do “grande ‘julgamento de Deus’” ou da “his-
tória” (ou do “fato”), que avança irresistivelmente, “gotejante de sangue
e lágrimas”. Continuam se opondo ao massacre consumado em nome do
“fato”, da “história” e do julgamento de Deus apenas os bolcheviques e os
marxistas revolucionários, os quais, por conseguinte, devido a sua obstina-

196
Terceira parte - Marx e a história do século 20

ção em querer julgar e condenar a guerra “em nome da moralidade”, são


acusados pelo liberal Croce de serem uns pedantes “moralistas políticos”
(cf. mais acima, cap. IV, 1 e V, 2).
É hora de encerrar este ponto: O processo histórico ao qual a ideologia
dominante pretende sujeitar Marx e Engels é uma tamanha farsa que os
juízes poderiam muitíssimo bem estarem sentados no banco dos réus, não
fosse pelo fato de que os primeiros gozam do poder e da autoridade prove-
nientes do sentar-se no carro dos vencedores.

3. O autoengano de Narciso

Nos últimos anos tornou-se espantosa a multidão que quer subir em


tal carro ou ao menos, para conseguir agarrar-se a ele de algum jeito. Afor-
tunadamente, nem todos estão atordoados por esse afã. Mas de que modo
é possível opor-se ou resistir à ideologia dominante? Os erros, os crimes,
os desastres verificados no Leste são inegáveis; e então a atitude mais sim-
ples e ao mesmo tempo mais radical parece ser a de se considerar absoluta-
mente distantes daquela jornada histórica, mas continuando a declarar-se
comunistas e marxistas. E tanto mais necessário afirmar e reiterar esse dis-
tanciamento, quanto mais for possível contrapor à fisionomia desfigurada
ou odiosa do “socialismo real” uma outra imagem de sociedade totalmente
diversa, em que o socialismo se conjuga perfeitamente com a democracia, a
eficiência do sistema com a plena liberdade de indivíduos e grupos e o de-
senvolvimento das forças produtivas com a realização de relações sociais e
humanas as mais ricas e desalienantes. Naturalmente, quanto mais alguém
se afeiçoa a essa sedutora imagem, tanto mais lhe parece esquálida e repug-
nante para além de qualquer limite e, mesmo privada de qualquer sentido,
a jornada histórica iniciada com o Outubro. Entretanto, mesmo esse con-
fronto ocorre entre grandezas completamente heterogêneas: de um lado
o processo histórico real, com suas asperezas e tortuosidades, suas contra-
dições e seus conflitos, e de outro lado os ideais e as boas intenções que se

197
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

movimentam em um espaço absolutamente imaginário e livre de atritos,


resistências e conflitos. Quem se satisfaz com essa confrontação é a bela
alma que já Hegel acusa de hipocrisia justamente por pretender celebrar
sua própria imaculada pureza e superioridade em relação à ação política,
por meio de uma comparação fácil e desleal entre as próprias intenções de
um lado e a ação concreta de transformação da realidade de outro.
A futilidade desse comportamento é demonstrada pelo fato de que,
partindo-se do ideal “puro” do socialismo construído em um espaço com-
pletamente imaginário, o “socialismo real” passa a ser alvo de críticas ab-
solutamente contraditórias. Alguém torce o nariz, desgostoso com a me-
diocridade do socialismo num só país, mas ao mesmo tempo condena a
invasão da Hungria e da Tchecoslováquia, como se o assujeitamento do
Leste Europeu não tivesse sido conduzido sob a insígnia das palavras de
ordem da “comunidade socialista internacional” e de um projeto revolucio-
nário mundial que por certo não devia se preocupar com as peculiaridades
e os direitos nacionais de cada povo isoladamente. Aponta-se o dedo acu-
sador contra a falta de radicalidade na introdução de relações de produ-
ção autenticamente socialistas, e, contemporaneamente, contra o terror na
repressão dos kulaks (camponeses ricos da Rússia) e dos camponeses ape-
gados à propriedade privada da terra. Denuncia-se a política essencialmen-
te autárquica, a estagnação cultural e econômica provocada por esta e, ao
mesmo tempo, a política de compromisso com os países capitalistas. Estig-
matiza-se com palavras inflamadas o apoio escasso ou nulo aos movimen-
tos revolucionários e de libertação e, simultaneamente, o empenho numa
política de rearmamento e desenvolvimento da indústria militar. Critica-se
no “socialismo real” a ética do trabalho e produtivista, mas também o atra-
so das forças produtivas em relação ao Ocidente capitalista avançado; ou
recrimina-se a ética do trabalho e ao mesmo tempo a falta de democracia,
esquecendo que sem o aumento do bem-estar, inclusive em seus aspectos
materiais mais aparentes, e, portanto, sem os esforços para realizá-lo não
é possível convencer democraticamente a aceitação do socialismo, como

198
Terceira parte - Marx e a história do século 20

mostra a irrefreável fuga da República Democrática Alemã (apesar da efi-


ciência massiva de seus serviços sociais e os amenos ritmos de trabalho
de suas indústrias) em busca de videocassetes ou de carros mais velozes
e vistosos. Por fim, denuncia-se no “socialismo real” o pouco empenho na
promoção de uma consciência socialista e comunista de massa, e simulta-
neamente a opressiva onipresença do aparato ideológico do regime.
Pode-se, naturalmente, confirmar o desejo do socialismo no mundo in-
teiro, mas sem a sua exportação graças aos tanques; a revolucionarização
radical das relações de produção no sentido socialista, mas sem a violência
contra kulaks ou quem quer que seja; e assim por diante. Porém, caso não se
esclareça de que modo seria possível concretamente fazer tudo isso, agindo
em um contexto histórico e político bem determinado, escreve-se apenas
um livro de sonhos e nada mais. Pode-se aí obstinar-se e se iludir com a
representação de uma sociedade socialista que despreza a ética do trabalho
e ao mesmo tempo desenvolve impetuosamente as forças produtivas e o
consenso de massas, em última análise, se assume a postura justamente
daquele autor humorístico francês que, depois de enumerar as vantagens
opostas da cidade e do campo, suspira: por que, afinal, não se decide de
uma vez por todas construir cidades no campo?
Bem examinada, a atitude da bela alma nos coloca diante de uma
reedição, apenas sob forma distinta, do sofisma de Talmon. É análoga a
comparação de grandezas radicalmente heterogêneas e análogo é o resul-
tado consistente numa contraposição em branco e negro; só que com a sim-
ples diferença de que a apologética do liberalismo pinta em tons soturnos
a história das tentativas de construção do socialismo, e contrapõe-lhe um
regime político-social concretamente existente, embora ideologicamente
transfigurado, ao passo que a bela alma, em última análise, limita-se a con-
trapor àquela história as suas boas intenções; ela crê poder divisar a possi-
bilidade de uma história diferente daquela real, mas, na realidade, aquelas
intenções as remetem só a sua imagem transfigurada, na qual a bela alma
não para, porém, de se contemplar satisfeita.

199
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

Uma satisfação totalmente injustificada, pois a bela alma de fato não é


tão imaculada como pretende. Reflita-se sobre o modo como o imperialis-
mo norte-americano conseguiu abocanhar a Nicarágua. Submeteu-a a um
bloqueio econômico e militar, ao debilitamento dos portos, a uma guerra
não declarada mas sangrenta, suja e violando o direito internacional. Dian-
te de tudo isso, o governo sandinista via-se constrangido a tomar medidas
limitadas de defesa contra a agressão externa e a reação interna. E eis que
o governo estadunidense se erigia em defensor dos direitos democráticos
pisoteados pelo “totalitarismo” sandinista; os dirigentes dos EUA asseme-
lham-se ao carrasco que, após proceder à execução, se escandaliza com a
palidez cadavérica de sua vítima. Uma postura grotesca; e no entanto não
têm faltado belas almas que se associam ao clamor do carrasco e à condena-
ção das medidas “liberticidas” de Daniel Ortega, cuja margem de manobra
diante da agressão fora progressivamente reduzida e anulada. O resultado:
eleições em que o povo nicaraguense, já exangue e exausto, com a faca mais
do que nunca no pescoço, decidiu “livremente” ceder aos seus agressores.
O imperialismo norte-americano segue hoje uma tática análoga em relação
a Cuba, e também neste caso não faltam nem faltarão belas almas.
A grandeza de Hegel reside em ter evidenciado a inevitabilidade da
“culpa” em situações dramáticas de conflito e em ter desmascarado a hipo-
crisia, intelectual e moral, da bela alma preocupada antes de mais nada em
proclamar sua própria excelência, que na realidade é apenas sinônimo de
covardia pusilânime, e até de capitulação diante da lei do mais forte.
Convém contrapor a essa postura aquela do jovem Lukács que, à luz
da trágica experiência do primeiro conflito mundial, adere ao comunismo
com base em um raciocínio simples, mas impecável: há culpa na violência
inerente à Revolução de Outubro, mas haveria uma culpa bem maior em
tolerar o massacre imperialista, a guerra pela partilha das colônias, vítimas
permanentes da mortífera violência de seus senhores. Mesmo na maturida-
de, Togliatti gostava de recordar que quando jovem empenhou-se em tra-
duzir a Fenomenologia do espírito de Hegel, não por acaso a obra que contém

200
Terceira parte - Marx e a história do século 20

a crítica da bela alma. Tal crítica é parte integrante da consciência revolu-


cionária e compreende-se então por que os Popper, os Hayek e até, por fim,
em tempos recentes, os Bobbio, apontam suas baterias não somente contra
grandes figuras do movimento revolucionário, mas também contra Hegel:
trata-se do filósofo que, ao analisar a figura da bela alma, desmascarou a
hipocrisia inerente à condenação sumária do Terror jacobino, do filósofo
que de certa forma refutou antecipadamente o sofisma de Talmon.

4. A bela alma e o profeta

Às vezes, a bela alma toma a atitude de consciência crítica que, liquidan-


do a história real do socialismo e do movimento operário considerada uma
interpretação radicalmente errônea da teoria de Marx, bem como um vulgar
equívoco do qual é preciso finalmente se livrar, declara que deseja retornar
a Marx, ao “autêntico Marx”. É difícil imaginar um comportamento mais
frontalmente antípoda da teoria do autor que se pretende restaurar em sua
pureza e que, no entanto, em sua época ridicularizou aqueles que, polemi-
zando com Hegel, pretendiam refazer em sentido contrário o caminho filo-
sófico da Alemanha, para retornar a Kant, ou mesmo a Aristóteles. Ao ana-
lisar a dinâmica do processo revolucionário, Marx denunciou a ilusão dos
jacobinos franceses, que julgavam trazer de volta à vida a polis antiga, ou dos
puritanos ingleses que invocavam o profeta Habacuque e a Bíblia para cons-
truir seu modelo de sociedade! Sobretudo, o grande pensador revolucioná-
rio insistiu constantemente em que a teoria revolucionária se desenvolve
pelo confronto com o movimento histórico real, e não hesitou em reconhecer
a dívida inclusive teórica que contraíra em relação à experiência, ainda que
efêmera, da Comuna de Paris. Agora, entretanto, décadas e décadas de um
período histórico particularmente intenso, incluindo a Revolução de Outu-
bro, a Chinesa, a Cubana etc., deveriam ser declaradas insignificantes e ir-
relevantes no que toca à “autêntica” teoria revolucionária, já consignada, de
uma vez por todas, em textos que bastaria redescobrir e reexaminar!

201
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

Pode-se contrapor a essa postura, que pretende transformar Marx em


uma espécie de profeta, o ensinamento do Manifesto do Partido Comunista:
“As posições teóricas dos comunistas não se baseiam de modo algum em
ideias e princípios inventados e descobertos por este ou aquele reformador
do mundo. Elas não são mais do que expressões gerais das condições reais
de uma luta de classes já existente, de um movimento histórico que se de-
senvolve diante dos nossos olhos.” (MEW, IV, 474-5).
Trata-se claramente de uma nítida tomada de distância em relação
ao utopismo, cuja presença no interior da esquerda está hoje fortemente
reanimada, como reação compreensível, e no entanto acrítica à derrocada
do Leste. Pode ser útil recordar aqui a análise de Engels sobre a tendência
de fundo do socialismo utópico: este parece encarnar-se, em última análi-
se, na figura do profeta que enuncia e até prega verdades fora do tempo,
com base nas quais pretende redimir a comum humanidade dos erros, das
contradições, das lutas e dores em que está imersa. Nessa perspectiva, o
desenvolvimento histórico real aparece como o fruto de um equívoco, da
ignorância da verdade salvadora, proclamada precisamente pelo profeta;
de forma que se este tivesse aparecido alguns séculos antes a humanidade
– conclui Engels com ironia – teria, com isso mesmo, poupado séculos de
erros e sofrimentos (MEW, XIX, 191-2).
Ainda hoje se assiste a prédicas análogas. Os pregadores são os inte-
lectuais neoutópicos, que, ao fazerem o balanço do período decorrente da
Revolução de Outubro, asseveram que ele poderia e deveria ter se desen-
volvido de um modo totalmente diferente, e com uma pureza impoluta,
bastando para isso que o ensinamento de Marx tivesse sido compreendido
na sua autenticidade, finalmente compreendida e revelada à comum hu-
manidade por obra precisamente desses intelectuais neoutópicos. Assim,
uma teoria que se define como materialista e histórica fica reduzida a uma
sábia verdade fora do tempo, a ser protegida contra qualquer contamina-
ção mundana e material.
Rejeitar a história real como um simples equívoco, em nome da inter-

202
Terceira parte - Marx e a história do século 20

pretação autêntica de textos mais ou menos sagrados, significa não só as-


sumir uma atitude de profeta, em gritante contradição com o ensinamento
de Marx (e Engels), mas também assumir uma postura subalterna em rela-
ção à ideologia dominante. Esta costuma fulminar a história iniciada com
a Revolução de Outubro fazendo-a coincidir com a do gulag, o universo
concentracionário e contrapondo-a de modo mais ou menos maniqueísta
à história transfigurada do Ocidente liberal. Não é uma alternativa real a
tal leitura e ao sofisma que a embasa, o adendo que lhe agrega a bela alma,
segundo a qual a história iniciada no Outubro é apenas um mal-entendido,
ou uma traição, de uma teoria que agora deveria ser recuperada em sua
pureza e salva da incompreensão geral.

5. O impossível retorno a um autor crítico da filosofia dos retornos

Tentemos porém por um momento levar a sério a palavra de ordem


agitada pela bela alma em sua polêmica contra a história real. Surge, no
entanto, um problema preliminar: retorno a Marx somente ou também a
Engels? Não falta quem atribua a este último e à tendência à sistematização
escolástica a ele debitada, o ponto de partida da catástrofe depois desembo-
cada no “socialismo real”264.
Porém os dois autores trabalharam juntos e colaboraram entre si. O ex-
purgo de Engels implica na realidade também a dissecação de Marx, o que
já evidencia como é problemática a palavra de ordem do retorno à sua teo-
ria, em torno à interpretação da qual em muitas ocasiões foram desenvol-
vidas lutas inclusive muito ásperas. Para darmos apenas alguns exemplos,
houve intérpretes, inclusive com prestígio (como Antonio Labriola), que
louvaram a expansão colonial das grandes potências em nome de Marx,
atribuindo-lhes o mérito de exportar aos países atrasados relações sociais
e de produção mais avançadas. Também durante o primeiro conflito mun-
dial não faltaram autores e círculos para justificara guerra invocando este
ou aquele texto, esta ou aquela tese do grande revolucionário, a ponto de

203
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

Rosa Luxemburgo poder fazer ironias sobre o fato de que os jornais social-
democratas alemães, empenhados em enaltecer a guerra contra a Rússia
czarista como uma grande contribuição à causa da “vitória da liberdade” e
da emancipação dos povos oprimidos: “Hindenburg tornou-se o executor
do testamento de Marx e Engels”.
Se o retorno a Marx não deve ser algo puramente escolástico e acadê-
mico, ele deve servir para responder aos problemas do nosso tempo, então,
qual atitude é preciso assumir em relação à tendência a pôr em prática a
recolonização do Terceiro Mundo e a reabilitação da guerra em nome do
intervencionismo “democrático” e civilizador? Podemos, e devemos, res-
ponder que tudo isso não tem nada a ver com a radical carga emancipadora
da teoria de Marx e Engels; mas não podemos esconder que essa resposta
deve, em sua presteza e clareza, também aos ensinamentos em primeiro lu-
gar de Lênin, que desmontou a interpretação dos dois grandes pensadores
em perspectiva filocolonialista e filointervencionista. É igualmente por isso
que hoje vários expoentes da Internacional socialdemocrata, como os “me-
lhoristas” do PDS, ao aplaudirem a Cruzada anti-iraquiana e retomarem
os fundamentos ideológicos próprios do intervencionismo colonizador e
“democrático”, preferem referenciar-se diretamente em ... Bush, ou nos
democratas estadunidenses, em lugar de em Marx e Engels, nomes estes
atualmente, via Revolução de Outubro, Revolução Chinesa, Cubana etc.,
inseparavelmente vinculados à história das lutas de emancipação dos po-
vos coloniais. O Marx ao qual se deseja retornar é hoje um autor claramente
mediado por uma longa jornada histórica que, então expulsa pela porta,
termina voltando pela janela.
Ainda: de que modo Marx pode nos ser útil na avaliação da tentativa
levada adiante por Cuba de sair do subdesenvolvimento por uma via não
capitalista, em dramáticas condições de cerco e estrangulamento? Deve-
ríamos convencer Fidel Castro a capitular, agitando diante de seus olhos
O capital, que prevê a revolução socialista apenas nos pontos mais altos do
desenvolvimento capitalista? Devemos imitar Plekhanov (em seu tempo

204
Terceira parte - Marx e a história do século 20

uma autoridade no campo dos estudos marxistas), que, enquanto não tinha
dificuldades em justificar ou enaltecer o massacre da guerra imperialista,
condenava a Revolução de Outubro em nome de Marx? Ou devemos em
vez disso nos alinhar com Lênin e Gramsci, sendo que este último não
hesitou em exaltar “a revolução contra O capital”, contraponto ao Marx de
Plekhanov e Turati o “nosso Marx”, aquele libertado das “incrustações po-
sitivistas e naturalistas”?
Não faltam hoje nas hostes da esquerda os neomencheviques, que con-
denam e desautorizam o Outubro em nome do “marxismo”. Mas é difícil
conceber que eles cheguem ao ponto de colaborar com George Bush (ou
Bill Clinton) no estrangulamento da Revolução Cubana agitando O capital
de Marx, tal como o presidente dos EUA agita o evangelho da Doutrina
Monroe e do Sacro Império Americano. Pois bem: se isso tudo não acontece
é inclusive porque Lênin, Gramsci, o próprio Castro, mas sobretudo o pro-
cesso histórico real que vai da Revolução de Outubro à Cubana nos ensinou
a ler Marx de um modo distinto daquele caro a Plekhanov e Turati, ou, pelo
menos, nos ensinou a desconfiar de uma ortodoxia “marxista” tão descara-
damente conveniente aos interesses do capital e do império.
A inevitável mediação da história se faz sentir seja pelo modo positi-
vo, seja pelo negativo. É oportuno frisar que, ainda que fale em ditadura
do proletariado, a teoria de Marx nada tem a ver com a arregimentação
totalitária e a autocracia ou oligarquia da Nomenklatura. É justo e obrigató-
rio denunciar o caráter grotesco da pretensão da ideologia dominante de
deduzir a priori, do Manifesto do Partido Comunista e de outros textos do gê-
nero, o universo concentracionário que vimos emergir, na realidade, tam-
bém no Ocidente, e que chama em causa fatores históricos, de todo alheios
aos autores daqueles textos.
Resta o fato de que a própria ênfase que a teoria de Marx é alheia ao
gulag é fortemente encorajada pela experiência do horror daquela institui-
ção total, cuja sombra infamante com razão se pretende remover da ima-
gem do autor ao qual se diz querer retornar. E ainda neste caso, o Marx ao

205
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

qual se retorna é mediado por uma longa e dramática jornada histórica, a


mesma jornada histórica que os teóricos do retorno gostariam de expurgar
como se ela não fosse uma fonte de preciosos ensinamentos (pelo positivo
e pelo negativo) e portanto de desenvolvimentos da própria teoria revolu-
cionária e emancipadora que seguiu pela trilha de Marx.

6. Consciência crítica e dogmatismo

A palavra de ordem do retorno a Marx evidentemente não realiza a


promessa que faz. Mas, na medida em que chega a realizá-la, transforma o
grande pensador em um corpus sagrado de doutrinas subtraídas da história
e da ação do tempo. É difícil imaginar um comportamento mais dogmático
que esse: substitui décadas de história e a experiência histórica de milhões e
milhões de homens pela interpretação solitária de um autor, convertido em
um tribunal onde é condenado e liquidado em bloco, como um equívoco
sem qualquer ligação com o Marx “autêntico”, o movimento histórico real,
com suas revoluções, suas vitórias e derrotas, seus erros e seus horrores
mas também suas aquisições teóricas e práticas.
Na realidade, qualquer tentativa de apagar ou ignorar o capítulo da
história iniciado com a Revolução de Outubro é uma fuga, a fuga diante
de uma generalizada ofensiva ideológica da burguesia, que tenciona con-
denar o movimento comunista a uma damnatio memoriae (“condenação da
memória”) tão radical e definitiva que lhe impossibilite qualquer retomada.
Porém se não faz sentido contrapor à jornada histórica real os suspiros da
bela alma ou a presunção dos revolucionários (e mesmo dos ultrarrevolu-
cionários) de mesa de bar (que sequer se colocam o problema da coerência
interna de suas excelentes intenções, para não falar de sua efetiva exequibi-
lidade em um contexto histórico e político bem determinado), não se trata
tampouco de engolir a pretensão dos ideólogos do “socialismo real”, de
enquadrar totalmente o possível ao real, quase como se toda escolha tenha
sido sempre obrigatória. Portanto, as considerações desenvolvidas até aqui

206
Terceira parte - Marx e a história do século 20

não desejam, na verdade, evitar o problema da reflexão crítica sobre a histó-


ria do movimento comunista; ao contrário, visam a desenvolvê-la em pro-
fundidade, de modo a torná-la propriamente possível, pois uma reflexão
crítica séria dificilmente é compatível com uma liquidação sumária e aprio-
rística, parta ela da transfiguração da tradição liberal ou da mumificação de
Marx, reduzido, contra a sua vontade, a um texto sagrado e a um tribunal
da história. Ao invés de contrapor um pressuposto texto sagrado à história
real, é desta última que é preciso partir, inserindo no seu âmbito o próprio
pensamento de Marx e Engels. Seguindo os passos dos problemas históri-
cos do hoje e da necessidade de explicar primeiro a petrificação e mais tarde
a derrocada que se verificaram no Leste, devemos nos indagar não só sobre
os erros (e os crimes) dos dirigentes políticos da URSS ou de outros países,
mas também sobre os limites teóricos presentes em Marx, Engels, que pos-
sam ter favorecido o processo de degeneração de um regime nascido na
esteira de uma gigantesca revolução libertadora e de um grandioso projeto
de emancipação. Marx e Engels não são a solução do problema da história
real, mas são eles próprios parte constitutiva de tal história, a ser entendi-
da, obviamente, não como um processo uniforme e linear, mas como um
processo onde existem saltos, rupturas, avanços e regressões, algumas pa-
vorosas. Trata-se de uma história, no seio da qual, aliás, estão contidos os
elementos para um subsequente desenvolvimento da teoria e da prática do
movimento revolucionário.

7. Teratologia e balanço histórico

Seria possível dizer, retomando uma categoria cara a Labriola e a


Gramsci, que não pode ser definido como “crítico” o “comunismo” que
não se coloque com rigor o problema do balanço e da herança histórica do
passado e que, lançando a palavra de ordem do retorno a Marx, liquide su-
mariamente a história real da eficácia política decorrente de sua teoria. Para
uma avaliação adequada da história do movimento comunista, pode ser

207
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

útil o critério metodológico enunciado por Gramsci a propósito da leitura


do passado em geral, e empregado pelos Cadernos do cárcere já em relação
à passagem do capitalismo ao socialismo, em um momento, aliás, em que
a traumática experiência do abatedouro praticado ao longo da Primeira
Guerra Mundial, seguida pelo advento do fascismo, estimula no movimen-
to comunista uma atitude de liquidação da história da burguesia como um
amontoado de erros e horrores. Polemizando contra essa tendência, expres-
sa inclusive no Ensaio de Bukharin, Gramsci observa:
“Julgar todo o passado filosófico como um delírio e uma lou-
cura não é só um erro de anti-historicismo, porque contém a pre-
tensão anacronística de que no passado se deveria pensar como
hoje; mas é um verdadeiro e próprio resíduo de metafísica, porque
supõe um pensamento dogmático válido para todos os tempos e
países, da mesma maneira que se julga todo o passado. O anti-his-
toricismo metódico não passa de metafísica.”
Para Gramsci, renegar o passado “como irracional’ e ‘monstruoso’” sig-
nifica reduzir a história política e das ideias a uma grotesca alternância de
monstros, a um “tratado histórico de teratologia” (Q, 1.417).
Deve-se pois considerar ainda mais gravemente “metafísico” o atual
comportamento dos que, inclusive dentro da esquerda, desejariam reduzir
o período histórico inaugurado pela Revolução de Outubro a um novo capí-
tulo de teratologia, que é, pois, a outra face da tola e improvável hagiografia
com que a burguesia hoje triunfante pretende ascender à glória dos altares.
Deve-se acrescentar que o critério em questão foi empregado por
Gramsci também em relação à história das classes subalternas e dos par-
tidos e movimentos políticos por elas constituídos: em 1924, enquanto o
squadrismo fascista se enfurece e a vitória do fascismo já se delineia com
clareza, o dirigente comunista rejeita qualquer balanço liquidacionista da
história do movimento operário, refutando, já no título de um artigo do
Nova Ordem, a tese de que “o passado foi um erro completo”; sustenta que
também “no passado existe (...) o erro, a negatividade, a morte, nas existe

208
Terceira parte - Marx e a história do século 20

também a vida, o desenvolvimento da tradição sadia do movimento revo-


lucionário italiano; há também no passado uma parte positiva que continua
a se desenvolver hoje não obstante a reação e o terror branco”.
Gramsci critica Bukharin por querer renegar todo o passado e reduzi-
-lo a uma teratologia; porém o dirigente bolchevique ao menos contribuíra
para criar um mundo novo, de modo que sua liquidação do passado nascia
de uma ação histórica real e não da fuga pura e simples.
Em oposição a qualquer tendência neomenchevique, hoje é preciso su-
blinhar a extraordinária eficácia desenvolvida pela Revolução de Outubro
em nível mundial, que, em primeiro lugar imprimiu um poderoso impulso
ao movimento de emancipação das colônias. Mas o Terceiro Mundo não é
o único devedor do Outubro. Na realidade, assim como não se pode com-
preender a história da URSS negligenciando a cruzada contrarrevolucio-
nária das grandes potências capitalistas, também não é correto separar o
desenvolvimento dos regimes socialdemocratas no Ocidente do desafio re-
presentado pela revolução anticapitalista de 1917. A própria conquista do
sufrágio universal e proporcional sem distinção não é compreensível sem
levar em consideração tal desafio, que também agiu com força no que toca
aos conteúdos sociais da liberal-democracia – não por acaso atribuída por
Hayek à influência, para ele desastrosa, da Revolução de Outubro (cf. mais
acima, caps. II, 6 e I, 1).
Resta, naturalmente, o problema do balanço do regime político-social
que se tentou construir nos países onde os partidos comunistas chegaram
ao poder. Analisar a dinâmica complexa e contraditória verificada nesses
países é com certeza mais fatigante do que a postura pretenciosa e desla-
vadamente liquidacionista hoje largamente difundida mesmo nas fileiras
da esquerda, que com isso crê demonstrar seu amor à liberdade mas na
verdade termina mais recuando para o lado de cá dos pontos mais altos
da própria tradição liberal: pensamos em Rawls, que, em dramáticas con-
dições de pobreza, considera lícito ou obrigatório subordinar o objetivo da
liberdade ao de conseguir um mínimo de igualdade material. Não se tra-

209
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

ta apenas do possível conflito entre liberdade positiva e negativa; estamos


diante de um problema de caráter mais geral. Já Adam Smith observa que,
mesmo em um “país livre” e sob um “livre governo”, fica impossível obter
a emancipação aos escravos (cf. mais acima, cap. I, 1 e II, 6). Com efeito,
muitas décadas depois, a escravidão só é abolida no Sul dos Estados Uni-
dos na sequência de uma sangrenta guerra e da sucessiva ditadura militar
imposta pela União sobre os Estados secessionistas e escravistas. Quando
essa ditadura desaparece, junto com o autogoverno local retorna também
o predomínio branco, de modo que os negros são oprimidos em uma con-
dição de segregação racial e opressão que dura praticamente até nossos
dias. Com os olhos postos sobre a Europa Oriental, Adam Smith faz uma
observação análoga sobre a servidão da gleba; parece-lhe que também a
supressão desta pressupõe uma intervenção “despótica” do poder político
central, em prejuízo dos barões que amiúde agitam palavras de ordem li-
berais e, controlando os organismos representativos “livres”, conseguiam
bloquear qualquer projeto de emancipação dos camponeses. Tudo isso não
pode deixar de remeter à jornada histórica do “socialismo real”. Os proje-
tos de emancipação da mulher implementados pela jovem União Soviéti-
ca tiveram de enfrentar nas regiões asiáticas a selvagem violência de clãs
feudais decididos a perpetuar por qualquer meio a condição feminina de
tipo servil ou semisservil. Eis portanto que, naquela determinada e con-
creta situação histórica, a liberdade da mulher pressupõe o punho de ferro
sobre uma sociedade civil atrasada. Pode-se usar ainda outro exemplo: a
Revolução de Outubro provoca na Rússia um endurecimento da agitação
antissemita, que se expressa em sanguinários pogroms. Para combater essa
agitação, o novo poder soviético se empenha numa campanha capilar de
propaganda (Lênin pronuncia um discurso que é gravado em disco para
atingir os milhões de analfabetos), mas, ao mesmo tempo, promulga leis
severíssimas, terroristas até. Mais uma vez, ao menos nos primeiros anos
do novo regime, a liberdade e até a própria sobrevivência dos judeus é ga-
rantida com punho de ferro contra a sociedade civil.

210
Terceira parte - Marx e a história do século 20

Apenas alguns exemplos dos dramáticos conflitos (tornados mais agu-


çados e imbricados pela intervenção militar e o bloqueio econômico impos-
tos pelo Ocidente liberal e democrático, que, entretanto, para derrubar o
regime soviético não hesitava em apoiar a reação feudal e até a agitação an-
tissemita) (cf. mais acima, cap. V, 3) que pesaram sobre o processo concreto
de desenvolvimento dos países europeus orientais – e que ainda pesam
sobre países como Cuba ou a República Popular da China. É paradigmáti-
ca, desse ponto de vista, a jornada do Afeganistão revolucionário antes da
funesta ocupação militar brejneviana: tal como na jovem União Soviética,
as medidas governamentais propensas a desenvolver a escolaridade ou a
emancipação das mulheres enfrentaram uma violenta reação obscurantista
e feudal, o que colocava qualquer tentativa de modernização diante de um
dilema dramático que implicava escolher entre o uso do punho de ferro e o
sacrifício dos direitos da mulher.

8. O “justificacionismo”, a Revolução Francesa e a de Outubro

Os neoliberais simpatizantes do sofisma de Talmon gritam escandali-


zados diante desse balanço histórico problemático. Mas também as belas
almas de uma certa esquerda recuam horrorizadas diante do que lhes chei-
ra fortemente a “justificacionismo”: deste modo as belas almas terminam
por deixar claro de uma vez por todas que são movidas não pelo desejo de
compreender o processo histórico real, nem sequer pelo desejo de superar
concretamente os erros e horrores que o acompanharam, redescobrindo
alternativas reais injustamente menosprezadas ou liquidadas no passa-
do; não, a preocupação principal ou única das belas almas é proclamar a
pureza e a excelência de suas próprias intenções.
Pode ser interessante, então, ver a atitude assumida em relação à Revolu-
ção Francesa pelo autor ao qual declaram querer retornar. Dos textos de Marx
é possível extrair uma contra-história da Inglaterra liberal que o sofisma de
Talmon obstina-se ainda hoje em contrapor, em cores contrastantes, à França

211
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

revolucionária e jacobina. E no entanto, a Inglaterra é um país onde formas


de trabalho escravista subsistem em pleno século 19 (MEW, XXIII, 763) e cuja
classe governante liberal conduz na Irlanda uma política tão desumana e ter-
rorista que se revela “espantosa na Europa” e só encontra paralelo entre “os
mongóis” (MEW, XVI, 552). O próprio William Ewart Gladstone, orgulho da
Inglaterra liberal, protagoniza o “terrorismo policialesco” que golpeia a seção
irlandesa da Internacional (MEW, XVIII, 136).
Por outro lado, são bem conhecidas as páginas de Marx dedicadas a
esclarecer o quadro histórico concreto em que se situa o Terror jacobino
(Vendeia, intervenção dos exércitos contrarrevolucionários etc.). E seria su-
pérfluo recordar ainda o desprezo do grande pensador revolucionário, na
trilha de Hegel, pela bela alma.
Estamos, então, diante de uma postura “justificacionista”? O justifi-
cacionismo é a dedução mecânica e sem resíduos de um comportamen-
to político de um determinado contexto histórico (contradições objetivas,
brutalidade do adversário); é a negação do momento da escolha entre as
alternativas possíveis, e portanto a negação da responsabilidade subjetiva.
Depois de ter examinado o quadro histórico real, Marx enfatiza que o
Terror deriva também da incoerência entre o projeto político dos jacobinos
e a situação histórica. Perseguindo a utopia fantástica da recriação da anti-
ga polis, Robespierre e os demais se atiram numa empresa quixotesca, que
acredita poder eliminar pela violência tudo que não corresponda ao seu
modelo ou utopia e que, porém, termina inevitavelmente por reaflorar das
relações econômicas e sociais modernas, bem distintas daquelas próprias
da polis da Antiguidade à qual se dirigia sua apaixonada aspiração. Neste
sentido, no que se refere à situação objetiva, há um excesso de violência no
Terror, e é clara e nítida a postura crítica e condenatória de Marx, o qual
repetidamente sublinha as debilidades, ilusões, miragens da ideologia dos
jacobinos. Esta, por sua vez, não é o simples produto de uma loucura indi-
vidual, mas remete ela própria a um contexto histórico mais amplo. Preci-
samente por ter levado em conta o quadro objetivo, Marx soube discernir a

212
Terceira parte - Marx e a história do século 20

debilidade do projeto jacobino com uma exatidão e radicalidade ausentes


na explicação moralista – que se contenta em acusar Robespierre, ou Saint-
-Just, apenas de feras sedentas de sangue.
Contudo, na óbvia diversidade da situação histórica esta mesma apro-
ximação rende frutos também na análise da dialética desenvolvida a partir
da Revolução de Outubro. Não se trata, então, de evitar o momento da
escolha, mas de situá-lo não em um espaço livre de resistências, conflitos e
contradições, onde é possível oscilar docemente imaginando a “cidade do
campo”, ou melhor, tudo e o contrário de tudo, mas sim em um contexto
histórico concreto e dramaticamente concreto. E quando se incorre em es-
colhas erradas ou trágicas e que eliminaram alternativas reais, é necessário
interrogar-se sobre a ideologia que inspirou e condicionou tais opções. Há
portanto que se interrogar sobre as debilidades teóricas de fundo presentes
no projeto político dos dirigentes bolcheviques, que foram se agravando
pouco a pouco até a completa degeneração e a derrocada do regime. Só a
resposta a este problema pode evitar que se repitam os erros, os crimes, da
tragédia do passado. Pelo contrário, a proclamação que a bela alma faz de
sua própria virtude sem mancha, não nos faz avançar um passo sequer,
mesmo porque ninguém pode ter a pretensão de que deem crédito à sua
palavra e além disso, a sabedoria popular, para não falar da consciência
histórica, reza que há distância entre intenção e gesto.
A resposta exaustiva, articulada e persuasiva a tal problema constitui
uma tarefa de longo prazo. Pode-se aqui fazer uma indagação preliminar:
em que medida a ideia de uma rápida transição para uma sociedade sem
Estado, sem mercado, sem religião, sem fronteiras e identidade nacional,
emperrou e desviou um grande projeto de emancipação, ao mesmo tem-
po em que o sobrecarregava de violência em relação à sociedade civil? De
que modo o aguardo da iminente realização de uma sociedade sem mais
conflitos de gênero algum afastou a atenção da necessidade de regulamen-
tar juridicamente, por meio de normas e condições gerais, os conflitos que
continuavam a subsistir?

213
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

9. A necessária autocrítica do marxismo “oriental” e “ocidental”

Uma reflexão crítica não pode deixar de ser ao mesmo tempo autocri-
tica, mas não no sentido banal próprio da ideologia dominante, que im-
põe que se guarde uma distância ainda maior da jornada histórica iniciada
com o Outubro, e sim no sentido de que aqueles que ainda se referenciam
em Marx e no comunismo, e principalmente os que vangloriam-se de sua
lúcida sapiência diante da derrocada ocorrida no Leste, são chamados a
perguntar-se sobre a real contribuição teórica que ofereceram à solução dos
problemas da edificação de uma sociedade pós-capitalista, ou à superação
das dificuldades e dos pontos fracos já presentes na teoria marxiana.
Depois das revelações sobre a tragédia da era staliniana, o que fez con-
cretamente aquele que frequentemente gosta de se autovangloriar como
“marxismo ocidental” para elaborar, por exemplo, uma teoria do direito e
do Estado em uma sociedade pós-capitalista? Quem, no Ocidente, ergueu-
-se para esclarecer que, uma vez concluído o ciclo do comunismo de guer-
ra, com suas tragédias, mas também com suas entusiasmantes conquistas
(o prodigioso impulso ao processo de emancipação mundial), tratava-se
então de se engajar na construção de uma democracia socialista garantida
inclusive juridicamente, e portanto estatalmente, acabando com a espera
escatológica da extinção do Estado (o ponto mais fraco da teoria de Marx e
da tradição marxista)?
Não foi essa espera, compartilhada pelo marxismo “oriental” e “oci-
dental” que deslegitimou por antecipação qualquer esforço de construção
de um Estado socialista de direito, capaz de superar a fase de terror impos-
to pelo Estado de exceção (a guerra civil e a agressão imperialista aberta ou
latente)? (Cf. mais acima, cap. VI, 7). Alguma reflexão importante pode ser
lida em Togliatti, mas o restante é silêncio. E mais: depois da excomunhão
infligida à Iugoslávia pela URSS, depois da invasão da Hungria e da Tche-
coslováquia, quem no Ocidente, para além da condenação, empenhou-se
em repensar a questão nacional e sua permanência também no interior do

214
Terceira parte - Marx e a história do século 20

“campo socialista”, de modo a acabar com um suposto “internacionalis-


mo” que continuaria a encobrir o hegemonismo até por ocasião do episódio
afegão?
É demasiado fácil, para um marxista “ocidental”, declarar-se hoje
completamente alheio à jornada histórica do “socialismo real”, rejeitando-a
em bloco como um erro que nada tem a ver com sua superior sapiência
teórica. Fácil, mas totalmente contrário à verdade histórica e também um
tanto quanto imoral.
Agora podemos compreender melhor a dinâmica da derrocada do “so-
cialismo real” no Leste Europeu. O historiador e sociólogo inglês Lawrence
Stone observava em 1969 que o regime totalitário naqueles países estava
destinado a se exaurir devido à carga modernizante nele implícita e ao
grande impulso dado por este ao sistema de educação. Hoje todos podem
ver a sensatez dessa previsão, da qual, porém, emerge também a inocuida-
de da rejeição global e sumária do “socialismo real”, cujo desmoronamento
no Leste Europeu resultou não apenas de uma falência, mas também de
um sucesso. Ao abrir as portas da educação também às massas populares
antes excluídas, ao satisfazer em certa medida as necessidades básicas mais
imediatas, o regime totalitário foi corroído pelos fundamentos. Não tinha
como sobreviver a seu período heroico nem o socialismo de guerra (civil
ou imposta do exterior), nem a experiência de construção de um Estado
de orientação não capitalista desenvolvido em condições dramáticas e ex-
cepcionais, porém em dado momento chamado a ajustar as contas com a
democracia e suas garantias e suas regras, de modo a se elevar ao nível da
sociedade civil avançada que ele próprio ajudara a criar. Trata-se de uma
oportunidade histórica miseravelmente perdida. Em vez da democratiza-
ção houve um enrijecimento do regime, com sentido cada vez mais despó-
tico e oligárquico, até que camadas privilegiadas da pequena e média bur-
guesia, em sintonia com o capital internacional e com as grandes centrais
imperiais (sempre empenhadas no estrangulamento militar, político e eco-
nômico de tudo que cheire a socialismo) se aproveitaram disso para impor

215
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

a homogeneização em todos os níveis ao Ocidente, sem recuar diante dos


custos sociais altíssimos que esta cobrará e já está cobrando.
Entretanto, um ciclo histórico encerrou-se. Uma retomada do movi-
mento comunista pressupõe por certo uma profunda descontinuidade em
relação ao passado, mas ao mesmo tempo uma atitude que não trate déca-
das de história como um simples episódio de, como disse Gramsci, tera-
tologia, ou história dos monstros, que não renegue como um episódio de
alucinação coletiva os entusiasmos e esperanças de dezenas ou centenas
de milhões de pessoas, inclusive grandes, enormes intelectuais de nosso
tempo, provocados pelo Outubro e pelas tentativas de construir uma nova
sociedade.
Um balanço histórico de fôlego faz-se absolutamente necessário: A lei-
tura da história deve ocorrer paripassu com os esforços de aprofundamento
e elaboração da teoria – a qual por sua vez é chamada a lançar ainda mais
luz sobre o balanço histórico. O “nosso Marx” – para usarmos uma formu-
lação de Gramsci – não pode ser nem aquele de Plekhanov e Turati nem o
do Diamat (DialektitcheskiiMaterialism, Materialismo Dialético) e dos ideó-
logos de regimes que, privando um grande pensamento revolucionário de
seu enorme potencial crítico, tentaram reduzi-lo a uma espécie de teologia
de Estado. O “nosso Marx” não é o retorno a um mítico ponto zero da his-
tória do movimento comunista e emancipador, mas sim o fio condutor e ao
mesmo tempo o resultado do balanço crítico desta história.

IX
Filosofia da história contramoral?

1. Filosofia da história hegeliana e o Manifest Destiny

A catástrofe ou as catástrofes do século 20 são fruto do sacrifício da mo-


ral no altar da filosofia da história: este o balanço histórico compartilhado

216
Terceira parte - Marx e a história do século 20

por autores tão diferentes entre si como Hannah Arendt, Löwith, Berlin,
Bobbio265. E é um balanço que chama em causa pesadamente Marx e Engels.
Ao desqualificar a jornada histórica iniciada com a Revolução de
Outubro como uma simples sucessão de horrores e ao denunciar a con-
vergência desastrosa entre filosofia da história e Realpolitik, Bobbio es-
tabelece uma espécie de linha de continuidade que vai de Maquiavel a
Stálin, passando por Hegel: seu ponto em comum é “a máxima de que
os fins justificam os meios”. O autor das Lições de Filosofia da História é
recriminado particularmente pela tese das personalidades histórico-
mundiais tendentes à realização de um fim indicado como tão “irresis-
tível” pela filosofia da história tornando qualquer escrúpulo moral vão e
ridículo266.
Um eminente historiador norte-americano, Allan Bullock, argumenta
de modo análogo, reivindicando, em particular, a atenção a uma passa-
gem, aliás, famosíssima: “Em seu caminho, uma personalidade poderosa
pisa em mais de uma flor inocente, algo é mesmo obrigado a esmagar”267.
Pois bem, o “herói” hegeliano teria ao fim encontrado sua encarnação em
Hitler e Stálin!268
É chocante ingenuidade histórica dessas acusações, como se não fosse
fácil destacar citações bem mais comprometedoras em outras tradições de
pensamento. O filósofo e o historiador empenhados na reconstituição das
origens ideológicas dos massacres do nosso século poderiam tirar provei-
to da leitura de um contemporâneo estadunidense de Hegel. Em janeiro
de 1793, Thomas Jefferson, sem se deixar impressionar pelas correspon-
dências de Paris que falam de “ruas literalmente vermelhas de sangue”,
continua a defender com paixão a “causa” da Revolução Francesa: “Eu
preferiria ver metade da terra desolada a assistir ao seu fracasso. Mesmo
que só restassem um Adão e uma Eva em cada país, porém livres, seria
melhor do que é agora.” O fim da derrubada do “despotismo” parece
justificar custos humanos que vão bem além dos contabilizados pelas he-
gelianas Lições de Filosofia da História269.

217
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

Aqueles que pensam em agregar à crítica da filosofia da história um


antídoto contra a violência e uma base segura para a democracia fariam
bem em refletir sobre este fato. Um dos primeiros a arrastar para o banco
dos réus a filosofia da história hegeliana e bolchevique é Carl Schmitt, já
em 1921; mas isso não o impede de aderir ao nazismo uma dezena de anos
depois. Ou melhor, a trajetória de alinhamento com Hitler é marcada pela
denúncia do caráter agressivo das diferentes filosofias da história dos ini-
migos da Alemanha, a começar, antes mesmo da Rússia soviética, pelas
potências da Entente. Estas se sentiam investidas da missão de erradicar o
antigo regime que identificavam no Reich de Guilherme II; propunham-se
a acelerar a “marcha triunfal da democracia”, que parecia favorecida por
uma especial “disposição da Providência”270.
Por serem também os abolicionistas estadunidenses animados em seu
tempo, pela “indiscutível crença de que a história estava de seu lado”, esta-
vam seguros de que o instituto da escravidão se encontrava em seu “estágio
final”271. E era essa convicção que lhes conferia um fanático ímpeto mis-
sionário, elemento essencial da preparação ideológica de um conflito tão
sangrento como foi a Guerra de Secessão. Considerações análogas podem
ser feitas, e efetivamente o são, por renomados historiadores, a respeito da
agitação que precede a Revolução Puritana na Inglaterra272. Como disse o
Schmitt de 1921, partidos e movimentos que pretendem mover-se sintoni-
zados com o processo histórico tendem a se atribuir o “direito a qualquer
forma de violência” contra aquilo que é velho e moribundo: “A quem está
do lado do futuro é lícito dar um empurrão naquilo que está para cair”273.
A filosofia da história por certo não começa com Hegel, nem é sinôni-
mo de totalitarismo, assim como sua crítica não é sinônimo de democracia.
É a confirmação da ingenuidade histórica, antes mesmo que a ingenuidade
filosófica do balanço usual das catástrofes do século 20, um balanço que
poderia ser sintetizado parafraseando uma célebre máxima dos tempos da
Restauração francesa: “A culpa é de Hegel, a culpa é de Marx!”. Se os teó-
ricos da Restauração em 1814-30 esbravejavam contra a filosofia enquanto

218
Terceira parte - Marx e a história do século 20

tal, hoje eles se contentam em levar para o banco dos réus a filosofia da
história.
Contudo, não há dúvida: em algumas páginas, se não de Marx ao me-
nos de Engels, a filosofia da história se apresenta com contornos repugnan-
tes à consciência moral contemporânea. Refiro-me à teoria das “naçõezi-
nhas” (Natiönchen) eslavas que “nunca tiveram uma história” e agora estão
condenadas pelo processo histórico: elas só podem alcançar a “civilização”
graças a um “jugo estrangeiro”; que em caso de necessidade – quando se
enfurecem com a revolução e a democracia, como estava acontecendo em
1849 – devem ser combatidas com “mais decidido terrorismo” e mesmo
com “uma luta de aniquilamento e um terrorismo privado de escrúpulos”
(MEW, VI, 273-5 e 286).
Mas são estas declarações uma confirmação da justeza da tese da linha
de continuidade que vai de Hegel ao gulag? Examinemos a primeira das
figuras histórico-mundiais de que falam as Lições de Filosofia da História: em
marcha com a determinação de “levar a termo a antiga oposição e a antiga
luta entre Ocidente e Oriente, Alexandre vinga a Grécia pelos males que
a “Ásia” lhe infligiu, mas termina por aportar à Ásia “a maturidade e a
altivez da civilização” ocidental. Reside aqui o mérito imortal do grande
líder que “pela primeira vez abriu o mundo oriental aos europeus”. Face a
tamanho resultado, fariam bem em calar-se os historiadores “filisteus” que
julgam sem pensar em nome da “virtude ou moralidade”274. Assim, a me-
táfora das flores pisadas pelo herói termina por nos conduzir, antes que ao
gulag, à história da expansão colonial e da marcha irresistível do Ocidente.
Neste ponto convém até reler o texto de Engels. Este não se ocupa ape-
nas da Europa Central e Oriental. Salta aos olhos a celebração da conquista
do México pelos EUA, ocorrida alguns anos antes: graças também ao “va-
lor dos voluntários americanos”, “a magnífica Califórnia foi tomada dos
preguiçosos mexicanos que não sabiam o que fazer com ela”; usando bem
as gigantescas novas conquistas, “os enérgicos ianques” dão novo impul-
so à produção e circulação da riqueza, ao “comércio mundial”, à difusão

219
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

da “civilização” (Zivilisation). E Engels parece desejar atribuir à Alemanha,


na Europa Central, o papel que os EUA exercem no continente americano,
enquanto o lugar do país latino-americano parece estar tomado pelas “na-
çõezinhas” sem história do mundo eslavo. As objeções de caráter moral ou
jurídico são silenciadas mais que depressa: é certo que aquela devassa con-
tra o México é uma agressão, mas uma agressão que representa um “fato
histórico universal” de enorme e positivo alcance (MEW, VI, 273-5).
É o período em que se difunde grandemente nos Estados Unidos o
tema do Manifest Destiny, ou da missão providencial de que o país se sente
investido, e que o conduz a anexar extensos territórios e que, posteriormen-
te, o impele a controlar e civilizar o continente inteiro. O mesmo motivo
ideológico de fundo acompanha a expansão colonial do Ocidente em seu
conjunto. No início do século 20, ao polemizar com os profetas europeus e
norte-americanos do imperialismo, John Atkinson Hobson, um liberal in-
glês de esquerda, caracteriza-os ironicamente como “o partido do destino”
e da “missão civilizadora”275.
O tema do destino assume uma conotação explicitamente religiosa no
enaltecimento ao qual procede Tocqueville dos Estados Unidos e dos colo-
nos brancos que vão ocupar uma terra momentaneamente povoada pelos
peles vermelhas:
“Parece que a Providência, colocando essa gente entre as ri-
quezas do Novo Mundo, destas havia lhes dado apenas um rápi-
do usufruto; em certo sentido eles lá estavam apenas ‘esperando’.
Estas costas, tão bem preparadas para o comércio e a indústria,
estes rios profundos, este inesgotável vale do Mississipi, este con-
tinente inteiro, apareciam então como o berço vazio de uma gran-
de nação”276.
Dados estes pressupostos, não só as sucessivas deportações da popu-
lação nativa, mas também sua retirada final, parecem ressurgir nos desíg-
nios da Providência. O fato é que “a civilização tem pouco espólio” sobre o
indígena; este, “longe de querer curvar seus costumes aos nossos, se apega

220
Terceira parte - Marx e a história do século 20

à barbárie como a um sinal distintivo de sua raça e rejeita a civilização”.


Eis porque “esses selvagens não foram apenas desconsiderados; eles foram
destruídos”277.
A colaboração com os propósitos da Providência e da civilização pode
se exprimir por outros meios além da remoção dos índios. Em 1790 Benja-
min Franklin escreve:
“Caso ressurja nos desígnios da Providência extirpar esses
selvagens a fim de dar espaço aos cultivadores da terra, parece-me
provável que o rum seja o instrumento apropriado. Ele já aniqui-
lou todas as tribos que antes habitavam a costa”278.
O rum era uma espécie de eutanásia para uma raça condenada e já
moribunda. Por outro lado, não é insuperável o limite que separa o recurso
ao álcool da difusão intencional de doenças contagiosas e outras formas
ainda mais radicais de aceleração da marcha incontrolável da civilização.
“A quem está do lado do futuro é lícito dar um empurrão naquilo que já
está para cair”, poderíamos dizer, repetindo o Adam Smith crítico da filo-
sofia da história. Mas quem aponta a tragédia que se consuma na América é
uma filosofia da história que tem em suas costas o Antigo Testamento. Pelo
menos esta é a opinião de Arnold Toynbee:
“O ‘cristão bíblico’ de raça e origem europeia que se estabele-
ceu além-mar entre povos de raça não europeia terminou inevita-
velmente por se identificar com Israel, que obedece à vontade de
Javé e cumpre a obra do Senhor apossando-se da Terra Prometida,
enquanto por outro lado identificou os não europeus encontra-
dos em seu caminho com os cananeus que o Senhor pôs diante
do seu Povo Eleito para que este os destruísse ou subjugasse. Sob
esta sugestão, os colonos protestantes de língua inglesa no Novo
Mundo exterminaram os índios norte-americanos, tão bem como
os bisões, de uma a outra costa do continente”279.
Tocqueville enfatiza calorosamente o fervor religioso dos fundadores da
Nova Inglaterra, que se consideram descendentes da “estirpe de Abraão”:

221
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

nos escritos e documentos que estes deixaram, adverte-se ‘uma espécie de


perfume bíblico”. E é um perfume que termina por inebriar o próprio liberal
francês, que louva o “grande povo que Deus quis depositar com suas mãos
em uma terra predestinada” e que afronta impávido “um deserto hediondo
e desolado, cheio de animais e homens selvagens”, dos quais ignora “o grau
de ferocidade e o número”280. Está para começar uma jornada que se con-
clui com o genocídio dos “selvagens”; mas são rotulados, antecipadamente,
por sua “ferocidade” as vítimas, obstáculos à missão providencial do povo
eleito que o Ocidente afirma ser. Se os atuais críticos da filosofia da história
levassem sua crítica realmente a sério, deveriam lavrar uma acusação contra
a filosofia da história e a história do Ocidente em seu conjunto. Mas, em vez
disso, “A culpa é de Hegel, a culpa é de Marx!”.

2. Ética e filosofia da história: plural e singular

A filosofia da história com a qual Tocqueville lê a expansão colonial


da Europa do século 19 é exaltada dessa maneira. A preocupação com “o
futuro da civilização e o progresso da humanidade”281 leva-o até a celebrar
em termos líricos a Guerra do Ópio! Semelhante é a postura de John Stuart
Mill (cf. mais acima, cap. I, 6).
É verdade que a filosofia da história baseada no páthos do Ocidente está
bem presente também em Hegel, porém de forma mais problematizada
que na tradição liberal. Junto com as inocentes flores, os heróis pisoteiam
também “interesses sagrados”282. Emergem assim os conflitos de interesses
e de valores, os custos humanos e sociais do “progresso”, e não poderia ser
de modo diferente em um autor que desqualifica, como afetada pela “edi-
ficação” e “insipidez”, qualquer visão da história que ignore ou expurgue
“a dor, a seriedade do negativo”283. Uma seriedade que assume força ainda
maior nas páginas de Marx. A obra principal deste pode ser lida como uma
reflexão crítica sobre a filosofia da história burguesa e ocidental: depois
de enfatizar que “o capital nasce escorrendo sangue e lama por todos os

222
Terceira parte - Marx e a história do século 20

poros, da cabeça aos pés” e de deixar evidenciado que, entre os “idílicos


processos” característicos da “aurora da era da produção capitalista” estão
a transformação da África em uma “reserva de caça para os traficantes de
negros” e, na América, “o aniquilamento, escravização e sepultamento dos
indígenas nas minas”, o capítulo sobre a “acumulação primitiva” se conclui
parafraseando ironicamente o dístico com que Virgílio sintetiza a fundação
de uma cidade destinada pelos deuses a dominar o mundo: Tantae molis
erat...(Tão difícil era...) (MEW, XXIII, 788 e 779).
Não que esteja ausente em Marx o tema do “destino” (fate); este preside
a submissão da Índia pela Inglaterra, “instrumento inconsciente da histó-
ria”, realizando naquele imenso país “a única revolução social que a Ásia
jamais conheceu”284. Por isso, os crimes horrendos que maculam os con-
quistadores lançam uma sombra cada vez mais inquietante sobre o “pro-
gresso”:
“Quando uma grande revolução social tiver se apropriado das
conquistas da época burguesa – o mercado mundial e as moder-
nas forças da produção – e as tiver sujeitado ao controle comum
dos povos mais avançados, só então o progresso humano deixará
de se assemelhar àquele horrível ídolo pagão que não queria beber
o néctar senão no crânio das vítimas”285.
O “progresso” e a filosofia da história de Tocqueville e Mill começam
agora a se revelar tanto mais problemáticos pelo fato de que revela-se fugaz
o limite entre civilização e barbárie. O Manifesto do Partido Comunista especi-
fica que não é a “civilização”, enquanto tal, aquela imposta do “Ocidente”
ao “Oriente”, mas sim “a assim chamada civilização”, ou seja, as relações
“burguesas” (MEW, IV, 466).
Porém, a filosofia da história aqui em questão só é plenamente supe-
rada por Lênin. O programa político que ele formula exige “a completa
ruptura com a bárbara política da civilização burguesa” – que legitima e
enaltece o domínio de “umas poucas nações eleitas” sobre as colônias e
sobre o resto da humanidade (Loc, XXVI, 403).

223
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

Não é preciso dizer que Marx e Lênin criticam ou colocam radicalmen-


te em discussão uma filosofia da história, porém, ali inauguram outra. Po-
de-se aqui perguntar sobre a relação entre as duas. Pode-se aqui indagar se,
no curso da revolução de cima para baixo que foi a coletivização da agri-
cultura na URSS, não continuou a ter peso a filosofia da história burguesa e
ocidental, a visão de uma revolução exportada para as zonas rurais e para
a Ásia, entre as nações “privadas de história” e partindo da metrópole (não
mais capitalista e sim socialista).
Por isso, no conjunto, verificou-se uma radical mutação. Em Tocquevil-
le, na “raça europeia”, que submete ou hegemoniza “todas as outras raças”,
se encarna permanentemente a causa do “progresso” e a marcha da civili-
zação286. O Manifest Destiny consagra o povo norte-americano, os Estados
Unidos, que posam, às vezes explicitamente, de um novo Israel. O tema do
exceptionalism (condição de excepcionalidade), que atravessa em profundi-
dade a história estadunidense, não passa da retomada, numa visão superfi-
cialmente laicizada, do tema do povo eleito. É uma visão que até hoje conti-
nua a se revelar viva e viçosa: a América “deve continuar a guiar o mundo”
e “nossa missão não tem prazo”– proclama Bill Clinton no seu discurso de
posse. Já no caso de Marx, a “missão” não compete exclusivamente a um
povo eleito ou a um grupo de povos eleitos, e nem propriamente a uma
classe. A burguesia é portadora de uma “missão” (mission), no que diz res-
peito à criação de um mercado mundial287, momento essencial da constru-
ção da história universal, que “é um resultado”288. Segue-se a subsequente e
mais ambiciosa missão emancipadora própria do proletariado.
Com Marx, a filosofia da história reflete sobre o processo que está às
suas costas: ela pressupõe uma ideia de história universal, e, portanto, a
afirmação e a construção da unidade da espécie humana. E, tal como a his-
tória universal, a filosofia da história também aparece agora no singular, no
sentido de que a humanidade é o seu fim e o seu sujeito real. É “a huma-
nidade” que é chamada a “cumprir seu destino”289, usando como sujeitos
inconscientes uma multiplicidade de sujeitos particulares.

224
Terceira parte - Marx e a história do século 20

Isso significa que a fronteira entre progresso e reação é extremamente


móvel, não pode ser definida de uma vez por todas. Lênin particularmente
insiste neste ponto. O próprio proletariado não é necessariamente sinônimo
de progresso, nem mesmo em um Estado socialista o é. Em determinadas
circunstâncias, o proletariado vitorioso pode exprimir tendências chauvi-
nistas ou hegemônicas, pode cultivar a tentação de “subir nas costas dos
outros”; e então “são possíveis seja revoluções – contra o Estado socialista –,
seja guerras” (Loc, XXII, 350). Tendo agora o gênero humano como sujeito
e fim, a filosofia da história não só não exclui como exige uma análise con-
creta da situação concreta. Não existe mais, ou não deveria existir mais, um
sujeito particular que possa reivindicar permanentemente para si a legiti-
mação e a transfiguração universalista fornecidas pela filosofia da história.
Porém, a construção da unidade do gênero humano é o pressuposto
também da moral – pelo menos caso se entenda por moral um sistema de
normas que se dirigem e podem referenciar o homem enquanto tal. Para se
dar conta do caráter conturbado desse processo, leve-se em conta que, ain-
da para Sièyes, a maior parte dos homens são “máquinas de trabalho”: uma
“multidão imensa de instrumentos bípedes, sem vida moral e intelectual”
(instruments bipèdes, sans liberté, sans moralité, sans intellectualité). Simples
instrumentum vocale, aos olhos também de Burke, o trabalhador assalariado
é representado pela tradição liberal subsequente como uma eterna crian-
ça à qual está vedado para sempre conseguir a maioridade: deste modo,
continua a não ser considerado plenamente nem como sujeito político nem
como sujeito moral. Com razões acrescidas o mesmo vale para os escravos
das colônias ou do Sul dos EUA, ou para os componentes das “raças: que
Mill considera “menores de idade”290.
Para que a compaixão possa se configurar como “compaixão geral”, é
preciso – observa Tocqueville – a derrubada das barreiras de casta do Anti-
go Regime e das barreiras de raça que subsistem na América291. Marx, por
sua vez, denuncia os persistentes limites particularistas dos sentimentos
morais, justamente no decorrer da polêmica com a opinião pública liberal

225
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

da época – que ferve de indignação com as crueldades e “horrores” dos


insurretos na Índia e na China, mas continua a conservar a consciência tran-
quila apesar de todos os crimes que a Europa comete nas colônias292.
O fato de por muito tempo a moral continuar a ser enunciada no plu-
ral confirma a complexidade do processo de construção da universalidade
moral. Adam Smith distingue a “moral liberal” das classes dominantes e a
“moral austera” das classes subalternas e das mulheres, esta última é a úni-
ca caracterizada pela glorificação do trabalho e do sacrifício, pela descon-
fiança e hostilidade em relação ao luxo e à liberdade sexual e espiritual293.
Ou tomemos Mandeville, expoente de uma moral liberal ou libertina para
a classe dominante, mas que por outro lado pretende que os trabalhadores
assalariados sejam mantidos longe de divertimentos indecorosos, para as-
sistirem a funções religiosas dominicais capazes de lhes estimular a laborio-
sidade ou de lhes reforçar o sentido de disciplina294.
A construção da universalidade moral vive uma etapa decisiva com
as correntes mais radicais do iluminismo. Guillaume Raynal e Denis Di-
derot falam de “moral universal (morale universelle), baseada na identida-
de das necessidades, dos sofrimentos, dos prazeres”, na História das duas
Índias, que denuncia os conquistadores e evoca a figura de um Espártaco
negro295. Analogamente, em Nicolas de Condorcet a apaixonada condena-
ção da escravatura paripassu com a teorização de uma moral não confinada
à Europa e aos brancos (como aquela dos senhores de escravos), mas capaz
de olhar para a “Terra inteira” e os “infelizes” que a habitam296. É a época
em que amadurecem as conturbações que em 1794 levarão à abolição da
escravatura nas colônias.
Contrariamente ao que sugerem as condenações moralistas da Revolu-
ção Francesa, sem a contribuição dela e das correntes filosóficas que a pre-
param ideologicamente, a construção da universalidade moral não pode
ser concebida. Isso é bem compreensível. A reivindicação da igualdade na
norma jurídica vai paripassu ou entrelaça-se com a reivindicação da uni-
versalidade da norma moral. São os anos e décadas em que se assiste à

226
Terceira parte - Marx e a história do século 20

passagem das libertates da tradição medieval, cada uma delas correspon-


dente a uma classe distinta, à libertas cujo titular é o cidadão; são os tempos
em que o sentimento moral da compaixão começa a questionar as barreiras
de casta e de raça; é a época em que os excluídos começam a reivindicar,
junto com a dignidade de cidadão, aquela de sujeito moral.
Significativamente, Condorcet, protagonista na construção da figura
do citoyen, e que, em nome da “moral universal”, condena com paixão o
instituto da escravidão, é também um dos primeiros autores a se empenhar
na teorização de uma filosofia da história cujo sujeito é a humanidade
enquanto tal. Uma consideração semelhante vale para Kant: se por um lado
ele coloca a categoria da universalidade no centro da moral, por outro se
empenha em uma reflexão sobre o destino do gênero humano, sobre “a his-
tória universal de um ponto de vista cosmopolítico”. O período que vai do
iluminismo à filosofia clássica alemã é aquele em que se constrói a imagem
do homem enquanto tal, no plano moral e no político, e esta figura torna-se
o sujeito da história universal e da filosofia da história.
Também a desconstrução da “moral universal” prossegue paripassu ou
entrelaça-se com a desconstrução da história universal e da filosofia da his-
tória. É o que acontece em Nietzsche: eliminada a “assim chamada história
universal297 e a filosofia da história como um resíduo teológico, a moral
torna a ser enunciada no plural: moral dos servos e moral dos senhores.
Ficando estabelecidas todas as outras diferenças, o darwinismo social e
o nazismo herdam deste filósofo a desconstrução tanto da filosofia da histó-
ria como da moral. A polêmica contra a filosofia da história e tensão dirigi-
da contra o novo que a caracteriza é recorrente em Gumplowicz – que con-
trapõe a qualquer ideia de progresso “o eterno impulso para a exploração
e o domínio por parte do mais forte, do superior”, “a eterna luta racial”, “a
luta eterna sem progresso”298. Ao indicar um télos (finalidade) imaginário,
a hegeliana filosofia da história ignora ou remove a “eterna igualdade es-
sencial dos processos sociais”299, esquece que “não existe ali progresso nem
regresso, é sempre a mesmíssima realidade”300. Gumplowicz contrapõe à

227
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

filosofia da história a “sociologia”, a ciência capaz de ensinar as “verdades


amargas”301 caladas ou ignoradas por aqueles que esperam talvez alguma
novidade do processo histórico.
Junto com a tensão em relação ao novum, tomba também outro pressu-
posto essencial da filosofia da história, o sujeito unitário da história univer-
sal, que agora se dissolve na multiplicidade das raças, separadas entre si
por uma barreira intransponível. Mas desse modo dissolve-se igualmente
a comunidade moral universal: os bôeres exterminam os hotentotes como
“caça no bosque”, mas aos olhos de Gumplowicz isso é a confirmação de
que o conceito de homem enquanto tal é uma “abstração idealista”302.
Evocando Nietzsche, além de Ranke, e polemizando com Hegel, Alfred
Rosenberg por sua vez ironiza o “dogma de um suposto ‘desenvolvimento
geral da humanidade’”303; cada povo encarna um “valor peculiar” que não
pode ser dissolvido “na corrente de um suposto progresso”304; “‘humani-
dade’” é apenas um novo nome para o “velho Jeová”.305 Paradoxalmente,
o chefe provocador nazista contrapõe ao Hegel filósofo da história o Kant
teórico da moral. O mito do século 20 atribui a este último, profusamente
citado e com grande apreço, o mérito de ter refutado com seu criticismo a
superstição de uma razão universal e onipotente – e portanto de ter se colo-
cado em uma relação da “mais aguda antítese com todos os sistemas ‘abso-
lutos’ e ‘universalistas’ que, com base em uma suposta humanidade, mais
uma vez e para sempre exigem a unitariedade de todas as almas”306. Deste
modo, Kant teria encarnado “o espírito nórdico” e lançado as bases de uma
“cultura racial nórdica” (arteigene deutsche Kultur)307. Uma vez destruída a
unidade da comunidade moral (elemento decisivo da ética kantiana), uma
vez que a moral volta a ser enunciada no plural, com a consequente con-
traposição da moral germânica e nórdica às demais, Rosenberg não tem a
menor dificuldade em enaltecer “a ideia do dever” (Pflichtidee) e apontar
Kant como seu “mais sublime mestre”308.
O nazismo torna-se assim uma nítida antítese em relação, seja à moral
kantiana, seja à filosofia da história hegeliana: ambas pressupõem a catego-

228
Terceira parte - Marx e a história do século 20

ria da universalidade e unidade do gênero humano. Ainda por uma razão


subsequente não faz sentido querer subsumir aquele movimento político e
ideológico à categoria de filosofia da história. Os adjetivos mais recorren-
tes da propaganda nazista (e social-darwinista) são “natural” e “eterno”:
ambos implicam a total negação, seja da metafísica dos costumes (da moral
kantiana), seja da história universal e da filosofia da história. Revela-se in-
sustentável, e ditada apenas pelas exigências da Guerra Fria, a tese de Han-
nah Arendt que equipara comunismo e nazismo, ambos a seu ver culpados
pelo sacrifício, ainda que de modos diversos, da moral no altar da filosofia
e da história.

3. Ética, filosofia da história e violência

A investigação histórica revela igualmente o teor extremamente proble-


mático da tese que enxerga na moral o antídoto contra a violência legitima-
da pela filosofia da história. Esquece-se que a filosofia da história hegeliana
se desenvolveu também a partir do balanço crítico da Revolução Francesa.
Como explicar o Terror? É sabido que, aos olhos de Hegel, Robespierre peca
por moralismo, é em certo sentido um kantiano. O filósofo não é o único a
ter essa avaliação. No célebre drama de Georg Büchner dedicado à Morte de
Danton, Robespierre parece exprimir-se com a linguagem de Kant: na luta
de fundo contra “o vicioso, (...) o inimigo público da liberdade”, é preciso
precaver-se para não se deixar levar por uma “sensibilidade delicada e fal-
sa” (falsche Empfindsamkeit). O pensamento remete à Doutrina do Direito de
Kant, que acusa Cesare Beccaria, crítico da pena de morte, de “compassibi-
litas” ou mesmo de “sensibilidade delicada e compassível de uma huma-
nidade dilacerada (compassibilitas) (teilnehmende Empfindelei einer affektierten
Humanität)”309.
Mas, neste contexto, convém recordar especialmente a célebre compa-
ração de Heinrich Heine entre o desenvolvimento político na França e o de-
senvolvimento filosófico na Alemanha: a Robespierre corresponde Kant, a

229
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

Napoleão, Fitche, a Carlos X, Friedrich Schelling. A Luís Felipe – o rei bur-


guês que com seu sistema constitucional e sua política de juste milieu (‘justo
meio’) reconhece de certo modo parcial legitimidade às diversas partes em
luta – corresponde Hegel, “o Orleans da filosofia” (der Orleans der Philoso-
phie)310. Obviamente, não se pode pretender rigor histórico e filológico nesse
brilhante jogo de analogias e metáforas. É porém um fato que, para Heine,
a filosofia hegeliana, com seu robusto senso histórico, demonstra uma
superior capacidade de mediação e conciliação. Pode-se tranquilamente re-
jeitar o balanço de Heine, Büchner e Hegel; mas redirecioná-lo, sem tomar
consciência desse redirecionamento, é, mais uma vez, indício de superficia-
lidade histórica e filosófica. As atuais invectivas contra a filosofia da história
promovem desenvoltamente o páthos moral, em seu tempo levado a tribunal
pelo Terror jacobino, como remédio universal contra a violência.
Consideram supérfluo competir com a análise de Hegel. Convém ten-
tar aqui preencher essa lacuna. No plano filosófico e lógico-epistemológico,
a filosofia hegeliana exprime reconhecimentos e críticas fundamentalmen-
te semelhantes em relação a Robespierre e Kant. Em ambos a categoria da
universalidade joga um papel central; mas trata-se de uma universalidade
ainda não amadurecida, ainda não dotada de um conteúdo concreto; a “uni-
versalidade mais próxima” (nächste Allgemeinheit) é justamente a “morali-
dade”311. A “autocoerção da virtude kantiana” (Selbstzwang der Kantischen
Tugend), de que falam os escritos do jovem Hegel, parece encarnar-se em
Robespierre. Este leva “realmente a sério” a virtude, que com ele se torna “a
coisa mais elevada”312; vive-se um “tempo terrível”, por isso “é algo de mui-
to profundo que os homens tenham chegado a tais princípios”313; o dirigente
jacobino “realiza facta (feitos) universalmente admirados”314. Analogamente,
a despeito de sua grandeza, a “razão prática” kantiana “não pode produzir
senão um sistema da tirania e da dilaceração da ética e da beleza”315.
A universalidade é ao mesmo tempo grande e terrível. Ela implica a
“absoluta negação”316, a eliminação de “toda particularidade, toda determi-
nação”317. É essa universalidade fixada no momento da negação que pro-

230
Terceira parte - Marx e a história do século 20

duz o Terror, e não só no decorrer da Revolução Francesa, mas também d a


anabatista, embora esta agitasse palavras de ordem cristãs:
“Isso caracteriza o fanatismo, que este quer qualquer coisa de
universal e apenas na forma da universalidade (...). O universal é
o negativo face a toda particularidade (...). No fanatismo religioso,
todos os vínculos de ordem, de honra, de família, de proprieda-
de carecem de valor; eles contradizem a representação, a abstrata
unidade”318.
Mas é correta essa interpretação de Robespierre? Vejamos um célebre
discurso pronunciado pelo dirigente jacobino enquanto o Terror se exaspera:
“O vício e a virtude fazem os destinos da terra: são os dois
gênios opostos que a disputam. A fonte de um e do outro está nas
paixões do homem (...). O único fundamento da sociedade civil é
a moral. Todas as sociedades que aqui fazem a guerra baseiam-se
no crime: aos olhos da verdade não passam de hordas de selva-
gens incultos e de facínoras disciplinados.
A que se reduz então essa misteriosa ciência da política e da
legislação? A introduzir nas leis e na administração as verdades
morais relegadas nos livros dos filósofos e a aplicar à conduta dos
povos as noções elementares de probidade que cada um é forçado
a adotar para sua conduta privada (...). Com que impudor eles (“o
rei e seus cúmplices”) fazem leis contra o roubo, quando invadem
o tesouro público! Condena-se em seu nome os assassinos, e eles
assassinam milhões de homens com a guerra e a miséria”319.
É evidente a carga de violência implícita nessa visão que parece pronta a
criminalizar o mundo inteiro. O que a explica não é uma filosofia da história,
aqui de todo ausente (parece ser eterna a luta do bem contra o mal, que finca
suas raízes já na intimidade do sujeito). Menos ainda o maquiavelismo. Pelo
contrário, o “maquiavelismo” é explicitamente condenado por Robespierre,
juntamente com as razões de Estado e todo comportamento que se negue a
estender até o fim na vida política as normas morais da vida privada320.

231
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

O que explica a carga de violência é exatamente a indignação moral;


a consagração da moral como “único fundamento da sociedade civil”
caminha paripassu com a criminalização de tudo que é, ou parece, destoante
das normas éticas da vida privada. Ao interpretar o Terror, Hegel revela-se
infinitamente superior àqueles que, de modo um tanto filisteu, considera-
vam, e consideram, o dirigente jacobino como uma fera ou um Realpolitiker
sedento apenas de poder; já o filósofo alemão discerne com precisão a es-
treita relação entre indignação moral e violência, sublinha a enorme carga
negativa própria da moral.
Estamos em presença de uma universalidade abstrata que sob a catego-
ria da virtude ou honestidade moral é incapaz de subsumir o que quer que
seja, nem as relações sociais vigentes (“a miséria”), nem as relações interna-
cionais (“a guerra”); uns e outros são associados ao roubo e ao assassinato,
a uma violência despropositada que uma moral que despreza a hipocrisia
e a cautela da Realpolitik deve saber desmascarar e aniquilar. E apenas a
consciência histórica, aqui de todo ausente, pode permitir que se confira le-
gitimidade parcial a instituições e relações que a consciência e a indignação
moral terminam identificando com o vício enquanto tal.
Porém as consequências do páthos moral em Kant não parecem ser
muito diferentes. Para certos delitos a pena de morte é um imperativo ca-
tegórico que não admite escapatória: “Mesmo quando a sociedade civil se
dissolvesse com o consenso de todos os seus membros (...), o último as-
sassino que se encontrasse preso deveria primeiro ser justiçado”. Por um
momento a indignação moral parece colocar em crise até o princípio da
responsabilidade individual: “O último assassino” deve ser morto não só
“para que cada um receba a pena por sua conduta”, mas também para que
“o sangue derramado não recaia sobre o povo que não reclamou aquela
punição; porque então esse povo poderia ser considerado cúmplice dessa
violação pública da justiça”321.
A Doutrina do direito valida tais considerações “mesmo no caso em que
não se trate de um assassinato, mas de outro delito público”, como a “con-

232
Terceira parte - Marx e a história do século 20

juração”, que “só a morte pode expiar”322. Acrescenta um exemplo concreto


a tal propósito: o da revolta jacobita na Escócia em 1745. É bom que logo
se diga que a repressão inglesa certamente não foi menos impiedosa que
aquela de cerca de cinquenta anos depois, colocada em prática pelo poder
jacobino contra a Vendeia; alguns historiadores contemporâneos escoceses
chegam mesmo a acusar os governantes ingleses de terem acalentado por
algum tempo a ideia de uma “solução final”, a realizar-se mediante execu-
ções e deportações em grande escala323.
Obviamente não faria sentido responsabilizar Kant por singularida-
des e detalhes da repressão, que ele ignora. Por isso, convém retornar à
Doutrina do direito: se o número dos conjurados “é tão grande que o Estado
não pode se desfazer de todos os criminosos, pode correr o risco de bem
depressa ficar privado de súditos; e se, por outro lado, essa situação não
quiser dissipar-se, significa que vai recair em um estado de natureza bem
pior”; então, o soberano pode em alguns casos comutar a pena de mor-
te para a da deportação324. Novamente vem à tona a carga de violência
que pode ser liberada pela tensão moral. Expulsas pela moral a história
e qualquer consideração histórica, uma revolta é uma revolta e um delito
é um delito; a universalidade da virtude e da norma não pode levar em
conta a individualidade de um povo, suas tradições, sua cultura, os laços
de solidariedade que o congregam e o mantêm unido na luta contra um
poder considerado ilegítimo por ser imposto de fora. Assim, a revolta de
um povo inteiro pode ser subsumida à categoria de conjuração; um povo
em seu conjunto pode ser responsabilizado por um delito que mereça a
morte; e se a comutação dessa pena pela de deportação evita o genocí-
dio, não evita porém o etnocídio. A compassibilitas não pode se desviar da
punição do culpado: “A lei penal é um imperativo categórico”325. A execu-
ção não efetivada gera inclusive o risco de tornar sem sentido a existência
do gênero humano: “Se a justiça desaparece, não há mais valor algum em
que os homens vivam sobre a terra”326. Se Jefferson trabalha pelo menos
com a hipótese da sobrevivência de “um Adão e uma Eva”, agora parece

233
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

ressoar em sua radicalidade extremada o mote: Fiat justitia, pereat mundus!


(“Faça-se justiça, pereça o mundo!”).
A Doutrina do direito é de 1796. Alguns anos depois, em Jena, no seu
primeiro esboço de filosofia da história, Hegel faz um balanço do Terror
jacobino: “Na Revolução Francesa um poder terrível conservou o Estado,
íntegro em geral. Esse poder não é despotismo mas sim tirania, uma ge-
nuína senhoria cruel; mas esta é necessária e justa, na medida em que cons-
titui e conserva o Estado comum, este indivíduo real”327. Se Robespierre, ao
impulsionar o Terror, clama contra o “maquiavelismo”, Hegel o justifica,
invocando o Príncipe, sem hesitar em parafrasear as expressões mais duras
de Maquiavel: “Não vale nenhum conceito de bom e mau, de vergonhoso
e infame, de perfídia e engano; ele (o Estado) está acima de tudo isso, pois
nele o mal se reconcilia consigo mesmo”328. Por isso, com a superação do
Estado de exceção, a “tirania” torna-se “supérflua”; deve agora ceder lugar
à “senhoria da lei”. Robespierre não se dá conta disto e, que não só é der-
rubado como também demonizado: “Sua força o abandonou, porque o (ha-
via) abandonado a necessidade, e assim ele foi violentamente abatido. O que é
necessário acontece, mas cada parte da necessidade costuma ser atribuída
apenas aos indivíduos”329.
O Terror se autonomizou em relação à situação objetiva que no entanto
o provocara; a tirania de Robespierre não pode sobreviver longamente à
superação do Estado de exceção, que ela própria conseguiu. A derrubada
e a morte do dirigente jacobino põem fim ao processo de autonomização
da tirania, estimulado pelo moralismo e por uma “virtude” decidida a per-
seguir de qualquer modo o vício. Vem à mente Kant, segundo o qual a
absoluta obrigação moral de executar a condenação à morte do assassino
(ou do conjurado) subsistiria plenamente “mesmo que a sociedade civil se
dissolvesse pelo consenso de todos os seus membros”330.
Já em Hegel, a compreensão da necessidade histórica não elimina o
espaço próprio do julgamento moral: mas, paradoxalmente, é objeto de
condenação no plano moral o moralismo de Robespierre que, com seu fa-

234
Terceira parte - Marx e a história do século 20

natismo, produziu um excedente supérfluo ou gratuito de violência: esse


julgamento moral é ao mesmo tempo um julgamento histórico e político.
O julgamento moral que demoniza Robespierre é filisteu e esquecido
de um dos lados da “necessidade”; mas Hegel especifica também a gênese
histórica do surgimento do filistinismo: o desaparecimento, por um lado,
e a emergência, por outro, da necessidade. Colher a ambos os lados pode
apenas uma razão dialética, capaz de medir-se pela história, consciente do
fato de que, para ser autêntica, a universalidade precisa saber subsumir o
particular. Disso resultam incapazes a moral de Kant e a de Robespierre.
Mas as diversas filosofias da história também podem e devem ser subme-
tidas a esta mesma prova. A filosofia engelsiana da história se apresenta
superior à ideologia do Manifest Destiny, ao menos nas suas versões mais
vulgares. Ela alcançou plenamente o estágio da universalidade; mas é uma
universalidade que não sabe de modo algum subsumir a particularidade
das “naçõezinhas” eslavas “sem história”, assim como a universalidade
moral kantiana não sabe subsumir a particularidade do povo escocês em-
penhado em uma “conjuração”moralmente inadmissível.

4. Conflito e limitação do conflito

Por isso, Hegel terminou por justificar a violência revolucionária, em-


bora denunciando sua indevida dilatação e autonomização em relação à
necessidade histórica que a havia estimulado ou imposto. Não é esse um
comportamento reprovável? Não reside nisso a intrínseca imoralidade da
filosofia da história? A condenação da filosofia da história enquanto tal
parece alimentar a ilusão de poder solucionar ou regulamentar o con-
flito simplesmente mediante um suplemento de moralidade. A dicoto-
mia religião/filosofia, própria da época da Restauração, transformou-se
ou configura-se em nossos dias na dicotomia moral/filosofia da história.
Manteve-se firme a aproximação edificante. Ela não está nem em posição
de resolver, muito menos de compreender os conflitos reais. Para Bobbio,

235
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

são nítidas e claras as dicotomias Kant/Hegel, moral/filosofia da história,


democracias liberais/bolchevismo.
Ocorre que, justamente na Itália, na esteira do primeiro conflito mun-
dial e da Revolução de Outubro, desenvolve-se um debate que por si só bas-
taria para provocar uma crise nas tranquilas certezas do filósofo de Turim.
Para Gramsci, a intervenção de cima para baixo imposta é a confirmação de
que as classes subalternas são simples “material humano”331, “material bru-
to para a história das classes privilegiadas” (ON, 520). Em 1918, enquanto a
guerra ainda faz estragos, o liberal Benedetto Croce, depois de ter reforçado
a distinção entre moral e política, polemiza contra os “moralistas políticos”
– em primeiro lugar os bolcheviques – que “têm o costume de pronunciar
julgamentos morais sobre os Estados” e pretenderiam, “em nome da mo-
ralidade”, condenar a guerra proclamada pelos Estados332. Naquele mes-
mo período, Giovanni Gentile (então também ele com posições liberais) é
constrangido a polemizar com uma revista conservadora (Vozes do Tempo),
que formula um autaut (“ou um ou outro”) que parece demasiado rude
ao filósofo e poderia ser sintetizado como “ou Realpolitik ou leninismo”333!
Exatamente esse dilema, porém com o juízo de valores invertido, parece ter
sido feito justamente pelo jovem Lukács, que vê no “movimento histórico”
do “socialismo” um radical ajuste de contas com a “Realpolitik”334. Remon-
tando no tempo, pode ser interessante observar que já Burke rotulava os
revolucionários franceses de “políticos moralizantes” (moral politicians).335
Ao contrário de Bobbio, Croce e Gentile estavam bem conscientes
da carga moral (de horror pela colossal carnificina) que empurrava tan-
tos jovens para o bolchevismo. Por isso se preocupavam em fazer tantas
advertências contra a “moral abstrata”, a “moral de intenções”336; é uma
linguagem que traz à memória a de Weber: mesmo a sua teorização sobre a
“ética da responsabilidade” não pode ser entendida sem a polêmica contra
aqueles que, em nome da Gesinnungsethik (ética da convicção), exigiam a
paz a qualquer custo; e entre estes por certo não eram poucos os que sen-
tiam o fascínio das palavras de ordem comunistas.

236
Terceira parte - Marx e a história do século 20

Logo depois da Segunda Guerra Mundial, polemizando com a lógica


kantiana, Jean-Paul Sartre faz sobrevir os dilemas morais de um militante
da Resistência conhecido seu. A mãe, que já havia sofrido a perda de ou-
tro filho, o aconselha a não se aproximar também ele das fileiras desses
militantes:
“A moral kantiana diz: não trate jamais os outros como meio,
mas como fim. Perfeito: se permaneço ao lado de minha mãe, tra-
to-a como fim e não como meio, mas, exatamente por isso, corro
o risco de tratar como meio quem combate em torno a mim; por
outro lado, se vou juntar-me a quem combate, trato-o como fim,
mas me arrisco a tratar como meio minha mãe”337.
A realidade do conflito termina por aflorar das próprias páginas de
Kant. É conhecida a sua tese segundo a qual em nenhum caso é lícito pro-
nunciar uma mentira, mesmo que o respeito à verdade devesse facilitar
ou comportar o risco de facilitar a um assassino a execução de seu crime.
A situação aqui descrita evidencia um dilema: trata-se de escolher entre a
violação do valor da veracidade e a violação do valor da vida humana; a re-
moção a qualquer custo do conflito de valores explica a surpreendente res-
posta do grande filósofo moral. Já se falou a tal propósito de “uma espécie
de egoísmo moral”: em sua “vontade de pureza” e no “desejo exclusivo de
salvar a paz de alma no silêncio por meio da recusa de qualquer conflito”,
Kant preocupa-se sobretudo em “colocar-se a salvo de qualquer respon-
sabilidade na realidade e da realidade, e se refugia em uma consciência
tranquila que, para poder permanecer pura de qualquer imundície pos-
sível, deveria despir-se de qualquer conteúdo e abjurar qualquer contato
humano”338. Este severo julgamento moral é de Eric Weil, que retoma assim
a crítica hegeliana da bela alma.
Aliás, não é necessário recorrer a exemplos escolásticos. As grandes cri-
ses históricas sempre revelam dilemas morais análogos quando pensadas
em profundidade. A universalidade deve saber subsumir o particular, mas
é precisamente neste terreno que se desenvolve o conflito.

237
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

No fim do século 18, com o olhar posto nas colônias inglesas da Amé-
rica, onde havia uma espécie de autogoverno local exercido pelos colonos
brancos (habitualmente proprietários de escravos e zelosos guardiães de
sua propriedade), Adam Smith observa que a escravidão pode ser abo-
lida mais facilmente sob um “governo despótico” que sob um “governo
progressista”. A seguir agrega: “A liberdade do homem livre é a causa da
grande opressão dos escravos. E como eles são a parte mais numerosa da
população, nenhuma pessoa dotada de humanidade desejará a liberdade
em um país onde essa instituição tenha sido estabelecida”339.
A humanidade de que se fala aqui é sinônimo de moralidade; mas essa
universalidade deve subsumir abaixo de si a liberdade dos escravos ou
aquela dos seus proprietários? Adam Smith antecipou os dilemas morais
do povo dos Estados Unidos, no final da Guerra de Secessão. Deixemos po-
rém de lado os defensores declarados do instituto da escravidão. Aqueles
que advogam um processo lento e indolor de reforma aceitam, ainda que
momentaneamente, tratar como meios os escravos negros; os abolicionis-
tas mais radicais, que primeiro marcham no sentido do confronto e depois
apoiam por vários anos a ditadura militar exercida pela União no Sul, na
prática aceitam tratar como meios as vítimas do conflito e da subsequente
ditadura militar. O retorno dos Estados sulistas ao autogoverno comporta
o triunfo do regime de white supremacy, com uma nova imposição da servi-
dão ou de relações de semisservidão em prejuízo dos negros, sacrificados
no altar da concórdia reencontrada no interior da comunidade branca. Em
qualquer de seus estágios de desenvolvimento, o conflito real permite ape-
nas a escolha entre duas formas diferentes de violência. Assistimos já aqui à
confrontação não entre moral e filosofia da história, mas entre duas valori-
zações morais opostas, sustentadas por duas distintas filosofias da história.
A moral kantiana não parece resistir à prova dos reais conflitos históri-
cos. Na maré da Primeira Guerra Mundial e da indignação com a imensa car-
nificina, jovens e não tão jovens são atraídos pela via indicada pela Revolução
de Outubro. Mas o que os estimula nesse caminho não é tanto a filosofia da

238
Terceira parte - Marx e a história do século 20

história e sim a condenação, moralmente motivada, do “egoísmo moral” de


que fala Eric Weil. Segundo o filósofo francês, a preocupação obsessiva de
evitar qualquer “sujeira” e qualquer contaminação leva Kant a teorizar um
gênero de “vileza” e falta de “coragem moral” em relação ao assassino: o
culto da “pureza” acaba por justificar o sacrifício de uma vida concreta. Mas
é de modo análogo que argumenta, por exemplo, o jovem Lukács que – ao
afirmar a inevitabilidade da “culpa” por ter fé não já em uma filosofia da his-
tória, mas na “seriedade” (Ernst), na “consciência (Gewissen) e no “senso de
responsabilidade” (Verantwortungsbewußtsein) moral – exclama com Hebbel:
“E se Deus houvesse posto o pecado entre mim e a tarefa a mim designada,
quem sou eu para poder subtrair-me dessa escolha?”340.
Os conflitos e os dilemas morais conexos não cessam de surgir ainda
em nossos dias. E hoje, como ontem, o páthos moral está longe de ser um an-
tídoto seguro contra a violência. Tomemos um historiador contemporâneo,
o primeiro da fila na denúncia das horrorosas consequências da filosofia da
história, em especial daquela de Hegel, mais uma vez contraposto a Kant341.
Por isso, o autor em questão não tem muitas dúvidas “sobre a oportunida-
de ou a justeza moral” do uso da bomba atômica contra Hiroshima e Naga-
saki, afirmando que não usá-la “teria sido ilógico, deveras irresponsável”.
É certo que houve um massacre da população civil, mas a culpa recai sobre
o governo japonês e sobre sua “ideologia perversa, que liquidara não só os
valores morais absolutos mas a própria razão”342.
Por último deve-se colocar uma pergunta que, referindo-se a um período
mais próximo, envolve diretamente nossa responsabilidade moral. Foi justo
apoiar a Guerra do Golfo e o embargo ao Iraque?343 As consequências desta
última medida foram assim descritas em um artigo no Washington Post as-
sinado por Roger Normand, diretor do Center for Economic and Social Rights
(Centro de Direitos Econômicos e Sociais): “Conforme cálculos realizados
por organismos da ONU, mais de 500 mil crianças iraquianas morreram de
fome e doenças; quase o tributo resultante equivale às duas bombas atômicas
sobre o Japão, mais o flagelo recente da limpeza étnica”344. Pode-se responder

239
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

a essa denúncia, e com efeito se responde, alegando a necessidade de conti-


nuar a luta contra um regime ditatorial e criminoso, e acusando os críticos
da Guerra do Golfo e do embargo de se terem tornado e se revelado corres-
ponsáveis pelos malfeitos de Saddam Hussein. Mas eis a réplica do artigo já
citado: por pesadas que sejam as acusações contra os dirigentes iraquianos,
isso não pode justificar o recurso a uma terrível “punição coletiva”.
A “punição coletiva” é uma prática típica do autoritarismo. Devemos
incluir o embargo ao Iraque na conta da filosofia da história ou do fanatis-
mo moral? A Guerra do Golfo foi justificada ou enaltecida seja em nome da
necessidade da luta contra regimes que violaram o direito internacional e
assumiram a herança do Império do Mal, seja em nome da aceleração da ir-
resistível marcha da “democracia” no mundo. Recentemente, um expoente
da administração estadunidense justificou o subsequente endurecimento
do embargo contra Cuba com a necessidade de jogar finalmente na “lata de
lixo da história” um regime culpado por infinitos malfeitos. Páthos moral e
filosofia da história se imbricam fortemente quando se reivindica o recurso
à prática da “punição coletiva”. Um imbricamento similar verificou-se nos
anos de terror staliniano, o qual apela para a necessidade seja de avançar
rumo à meta indicada pela filosofia da história, seja de lutar contra os ku-
laks, que, conforme as acusações que o poder lhes fazia, comprovam um
comportamento moralmente odioso: açambarcam alimentos e desta forma
condenam a população urbana à fome345.
Os permanentes conflitos políticos não podem ser interpretados com
base na dicotomia ética/filosofia da história, nem essa dicotomia, com seu
apelo implícito a um suplemento de moralidade, pode ajudar realmente
na solução dos problemas morais. Isto não significa que se deva capitular
diante do conflito, e ao conflito em sua forma mais brutal. É evidente que as
teorias do conflito não se equivalem. Por exemplo, uma teoria que explique
o conflito com o antagonismo de raça impede sua limitação e reabsorção.
E uma moral e uma filosofia da história são julgadas até com base em sua
capacidade de limitar e reabsorver o conflito.

240
Quarta parte

Globalização e marxismo

241
Quarta parte - Globalização e marxismo

X
Globalização, conflito social e conflitos geopolíticos

1. Revolução, esfera econômica e esfera política

A história do movimento comunista é atravessada por um problema de


fundo. A revolução não se verificou nos pontos altos do desenvolvimento
capitalista, os quais Marx tinha mais em vista para a passagem ao socialis-
mo. E então, que fazer? Descartada a “solução” socialdemocrata do retorno
do poder político à burguesia ou, pior ainda, às classes dominantes de tipo
semifeudal e semicolonial, a defasagem determinada pela não ocorrência
da revolução no Ocidente foi historicamente enfrentada de três diferentes
modos.
Os dois primeiros são suficientemente conhecidos. Pode-se utilizar
o país onde os comunistas conquistaram o poder sobretudo como uma
base para estender a revolução aos pontos altos do desenvolvimento ca-
pitalista; ou então, tendo tomado conhecimento das correlações de força
desfavoráveis em nível internacional, a tarefa principal pode ser definida
como a construção, no país onde se detém o poder, do novo sistema social
chamado a substituir o capitalismo. A primeira opção remete a Trotsky,
a segunda a Stálin. Porém existe uma terceira possibilidade: o país mais
ou menos atrasado onde os comunistas conquistaram o poder empenha-se
em primeiro lugar no desenvolvimento programado das forças produtivas
de modo a superar o atraso face aos países capitalistas avançados e então
seguir pela via da construção do socialismo. É o caminho escolhido pela
República Popular da China a partir de 1978 e pela viragem ligada ao nome
de Deng Xiaoping.
Segundo o Manifesto do Partido Comunista, uma vez obtida a vitória, “o
proletariado servir-se-á da sua supremacia política para arrancar pouco a
pouco da burguesia todo o capital, para centralizar todos os instrumentos

243
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

de produção nas mãos do Estado, isto é, do proletariado organizado como


classe dominante e para aumentar com a maior rapidez possível a quanti-
dade das forças produtivas”. Marx não vê contradição alguma entre essas
duas tarefas, pois tem em vista os pontos altos do desenvolvimento capita-
lista. Mas com o avanço do processo de “globalização” hegemonizada pe-
los Estados Unidos, essa contradição se manifesta com nitidez: um país em
vias de desenvolvimento que, através de uma nacionalização radical dos
meios de produção, se fechasse hermeticamente hoje ao mercado capita-
lista permaneceria marginalizado da tecnologia mais avançada e por certo
não estaria em condições de resolver o problema do desenvolvimento das
forças produtivas. O Manifesto também, depois de chamar a atenção para
as “indústrias novas”, que já não possuem uma “base nacional”, afirma que
sua “introdução se torna uma questão de vida ou de morte para todas as
nações civilizadas”. Portanto, nas condições dadas, tornam-se inevitáveis,
para um país encaminhado para o socialismo, concessões mais ou menos
amplas ao mundo de onde pretende importar tecnologia e alguns elemen-
tos essenciais do processo de modernização.
A política de abertura – embora necessária a um país socialista que
não, deseje autocondenar-se a um permanente atraso econômico (e impo-
tência militar) e que portanto queira superar definitivamente sua condição
anterior semifeudal e semicolonial – compreende a emergência de uma ca-
mada social burguesa que prospera enquanto setores não desprezíveis da
população continuam a sofrer condições de vida e de trabalho próprias do
Terceiro Mundo. Cria-se assim um fenômeno “jamais visto na história”. Na
Itália, Antônio Gramsci já havia observado isso a propósito da NEP (Nova
Política Econômica), em seu tempo introduzida na URSS: uma classe poli-
ticamente “dominante” “em seu conjunto” encontra-se “em condições de
vida inferiores a determinados elementos e camadas da classe dominada e
sujeitada”. As massas populares que continuam a sofrer uma vida de priva-
ções ficam desconcertadas com o espetáculo do “nepman vestindo pelica e
tendo todos os bens da terra à sua disposição”; e, no entanto, isso não deve

244
Quarta parte - Globalização e marxismo

ser motivo de escândalo ou repúdio, pois o proletariado, não pode conquis-


tar o poder, nem consegue mantê-lo se não é capaz de sacrificar interesses
particulares e imediatos aos “interesses gerais e permanentes da classe”346.
Ocorre porém que, diante desse fenômeno “jamais visto na história”,
uma certa “esquerda” acredita poder denunciar a reconquista do poder
pela burguesia. Na realidade, Mao Tsetung assim sintetizava em 1957 a
postura que o partido comunista devia assumir em relação à burguesia:
“Desembolsando um pouco de dinheiro compramos essa classe (...). Com-
prando essa classe, nós a privamos de seu capital político de modo que ela
nada tem a dizer”347.
Já para Lênin, o que caracteriza a NEP é a defasagem entre a esfera po-
lítica (com o rigoroso controle do poder pelo partido comunista) e a esfera
econômica (onde se fazem sentir a presença e a influência de uma camada
burguesa mais ou menos ampla e mais ou menos forte). A compreensível
ânsia de encerrar essa defasagem conduziu ao fim prematuro da NEP na
Rússia Soviética e da fase de “nova democracia” na China Popular. As con-
sequências foram indubitavelmente negativas no que toca ao desenvolvi-
mento econômico e social; por outro lado, a permanência ou a acentuação
dessa defasagem, devido a compromissos mesmo que necessários com a
burguesia interna e internacional, cria uma situação cheia de incógnitas e
perigos diante dos quais não é lícito fechar os olhos.
Não só não há uma coincidência imediata entre a esfera econômica e
a esfera política, como também, para tornar mais complexo o processo re-
volucionário, intervém aqui outro fenômeno – analisado com perspicácia
pela Ideologia alemã. Após chamar a atenção para a divisão de trabalho no
interior da burguesia, entre setores diretamente empenhados na atividade
econômica, de um lado, e “ramos de trabalho que pertencem diretamente
ao Estado” e “categorias ideológicas”, de outro, Marx enfatiza que em de-
terminadas circunstâncias essa divisão pode tornar-se “cisão” – e uma cisão
que se desenvolve “até criar uma certa oposição e uma certa hostilidade
entre as duas partes” (MEW, III, 47 e 53). É o que aconteceu na França com

245
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

a radicalização jacobina da revolução. Somente através de um processo


complexo e contraditório a burguesia conseguiu absorver “todos os setores
mais ou menos ideológicos”. Portanto, quem exerce o poder no período
de Robespierre e do Terror jacobino não é propriamente uma classe social,
mas um grupo de intelectuais, um setor ideológico e político que, por uma
série de circunstâncias (o entusiasmo e a mobilização de massas suscitados
pela revolução, o Estado de exceção provocado pela invasão das potências
contrarrevolucionárias e pela guerra civil), em certa medida tornou-se au-
tônomo em relação a sua classe social de origem.
Algo similar ocorreu no curso das revoluções do século 20: o partido
comunista tende a autonomizar-se em relação ao proletariado e às classes
populares, com os quais no entanto continua ligado por fios mais ou menos
sólidos ou mais ou menos tênues. Mas é precipitado inspirar-se nesse fato
para concluir que já ocorreu a tomada do poder por uma “nova classe”,
uma “nova burguesia”, ou uma “burocracia” orgânica e obstinadamente
antipopular. Esse discurso acredita ser fiel ao materialismo histórico, mas
na realidade é incapaz de desenvolver uma análise materialista das con-
sequências que o Estado de exceção permanente, no qual se encontravam
os países socialistas, produz sobre o processo de formação das classes di-
rigentes. Quem detém o poder, mais que uma classe social, é o partido co-
munista, um segmento intelectual e político, que, é certo, corre sempre o
risco de ser sugado pelas classes dominantes em nível internacional, como
aconteceu por exemplo na Rússia.

2. “Propaganda armada” e “guerra civilizadora” no processo de glo-


balização

Agora é para o quadro internacional que devemos voltar nossa aten-


ção. Como ler o processo de globalização em curso? Já no Manifesto do Par-
tido Comunista encontramos a observação de que “as mais velhas indústrias
nacionais foram e são cotidianamente destruídas”; para serem suplantadas

246
Quarta parte - Globalização e marxismo

por novas “indústrias que já não empregam matérias-primas locais, mas


matérias-primas vindas das mais longínquas regiões do mundo, e cujos
produtos se tornam objetos de consumo não só no próprio país, mas em
todas as partes do globo” (MEW, IV, 466). A história do capitalismo é a his-
tória do mercado mundial e da crescente globalização. É assim que Marx a
descreve. O Ocidente conquista sua hegemonia planetária transformando
a África em uma “reserva de caça para os traficantes de negros”, os quais
são a seguir obrigados a trabalhar, como escravos, a terra disponível, após o
“aniquilamento” ou a deportação e definhamento maciço dos peles verme-
lhas. Uma parte destes continua a sofrer “escravização e sepultamento” nas
minas (MEW, XXIII, 788 e 779), desempenhando um papel essencial para a
subsequente, e triunfal, arremetida do Ocidente.
“Sobretudo a partir do século 17 os europeus serviram-se do
dinheiro americano para adquirirem bens em uma parte da Ásia e
revendê-los em outras partes do mesmo continente, ou nas costas
orientais da África. Foi em grande medida graças a essa obra de
intermediação que os europeus puderam multiplicar seu capital
financeiro inicial.”
Este é a seguir empregado, seja para adquirir mercadorias, seja para
promover o desenvolvimento tecnológico como apoio para a Revolução In-
dustrial. Tais operações são entravadas pelo persistente déficit da balança
comercial inglesa na relação com a Índia e a China; mas eis que intervêm a
conquista de Bengala e as Guerras do Ópio para impor a reversão dos flu-
xos financeiros em benefício da Grã-Bretanha348.
Também no Ocidente as conturbações internas tornam-se entre si cada
vez mais entrelaçadas. A crise de superprodução que se manifesta na Ingla-
terra em 1847 provoca, no ano seguinte, o estouro da revolução que, a partir
da França, investe pela Europa continental (MEW, VII, 97)349. No princípio
dos anos 1860 a Guerra de Secessão nos EUA e o consequente bloqueio das
exportações de algodão proveniente dos Estados do Sul põem de joelhos
a indústria têxtil inglesa, que faz demissões em massa. Nem o Canal da

247
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

Mancha e nem o Atlântico são capazes de conter a propagação das crises e


dos conflitos de um país a outro. Não há motivos para surpresa. “Em vez
da antiga autossuficiência e do antigo isolamento locais e nacionais” – é
sempre o Manifesto que o sublinha –, quem assume é o “comércio mundial”
(MEW, IV, 466).
Quando lemos em Marx sobre a tragédia da Índia, acometida por um
processo que hoje chamaríamos de globalização, somos levados a pensar
na África de hoje. Sob a onda de um choque “do vapor e do livre câmbio
made in England”, mais ainda que dos “militares britânicos”, isto é, da vio-
lência militar direta, as tradicionais “comunidades familiares (...) baseadas
na indústria doméstica” e “autossuficientes” entram irremediavelmente
em crise: “miríades de laboriosas comunidades sociais, patriarcais e inofen-
sivas” são “atiradas num mar de luto, e cada um de seus membros privados
a um só tempo das formas de civilização tradicionais e dos meios heredi-
tários de existência” (MEW,IX,132). A marcha triunfal do livre câmbio é ao
mesmo tempo o cortejo fúnebre de uma sociedade que vê desabar “toda a
sua estrutura”. Povos inteiros são acometidos por uma tragédia sem prece-
dentes na sua história: é a “perda de seu mundo antigo sem a compensação
da conquista de um mundo novo” (MEW, IX, 129).
Ao traçar esse quadro tão cru da globalização, Marx adverte no entanto
contra a tendência a idealizar as sociedades subvertidas por esse processo:
estas se caracterizam por uma “vida sem dignidade, estagnada, vegetativa”
e, no caso da Índia, “contaminadas pela divisão em castas e pela escravi-
dão”; ao passo que a miséria e a sujeição das grandes massas parecem-lhe
“um destino natural inevitável” (MEW, IX, 132-133).
A internacionalização da economia é também um estímulo não só à
superação do atraso e da estagnação (econômica e social) mas também à
unificação do gênero humano. “O período histórico burguês criou as bases
materiais do mundo novo: de um lado, o intercâmbio de todos com todos,
baseado na mútua dependência dos homens, e os meios para esse inter-
câmbio; de outro, o desenvolvimento das forças produtivas humanas e a

248
Quarta parte - Globalização e marxismo

transformação da produção material em um domínio científico sobre os


fatores naturais”. Trata-se, então, de derrubar com “uma grande revolução
social”, ou, ao menos, de contestar e limitar com lutas incisivas o “domínio
absoluto do capital” nesse processo de globalização e desenvolvimento da
riqueza material (MEW, IX, 225-226).
Já vimos a dimensão econômica do processo de globalização, mas não
se deve negligenciar a dimensão militar. Presenciamos um processo – ob-
serva Marx – pontilhado e acelerado pelo recurso à “propaganda arma-
da” e à “guerra civilizadora”, como aquelas deflagradas pela Grã-Bretanha
para obrigar a China a abrir seus portos às mercadorias provenientes de
Londres, e, em primeiro lugar, ao livre comércio do ópio, proveniente da
“cultura forçada” dessa droga introduzida na Índia pelos colonizadores in-
gleses (MEW, XII, 549 e XIII, 516).
Mais tarde, Rosa Luxemburgo observará a respeito da formação do
mercado mundial capitalista: “pareceria que, ao menos aqui, a ‘paz’ e a
“igualdade’ se delineiam, o do ut des (dou-te para que me dês), a reciproci-
dade dos interesses, ‘a concorrência pacífica’, as ‘influências civis’ (...). Mas
o caráter pacífico dessas transformações é pura aparência”. Demonstram-
-no justamente as Guerras do Ópio e os decorrentes “progressos do comér-
cio internacional na China”: “Cada um dos mais de 40 treaty ports (portos
do tratado) foi pago com rios de sangue, estragos e ruínas”350.
Bem diferente é, ao contrário, o quadro traçado por John Stuart Mill.
Ao amargo sarcasmo de Marx sobre a “guerra civilizadora”, contrapõe-se a
total seriedade com que o liberal Mill louva as Guerras do Ópio como uma
cruzada visando a defender a liberdade do consumidor mais ainda que a
do produtor ou do comerciante351, portanto como uma contribuição à causa
da unificação do mundo sob a insígnia do livre mercado. A tese é repetida
já no século 20 por um patriarca do neoliberalismo como Mises: “Que do
ponto de vista dos liberais não seja lícito opor obstáculos nem mesmo ao
comércio de venenos, já que cada um é chamado a abster-se por sua livre
escolha dos prazeres danosos ao seu organismo, tudo isso não é tão infame

249
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

e vulgar como pretendem os autores socialistas e anglófobos”352. O trecho


citado é de 1922; três anos antes ocorrera o triunfo do proibicionismo justa-
mente nos EUA, particularmente caros ao profeta do neoliberalismo; este,
porém, não parece disposto a autorizar a China a invadir o país que se
opusesse ao livre comércio de bebidas alcoólicas. O texto de 1922, contudo,
não tem dúvidas de que o Ocidente liberal tem pleno direito de “varrer com
os governos que, recorrendo a proibições e restrições comerciais, tentam
excluir seus súditos das vantagens da participação no mercado mundial,
piorando assim o aprovisionamento de todos os homens”353.
Produzido na Índia por imposição da Grã-Bretanha, o ópio é exporta-
do para a China, a partir da qual começa a correr um rio de dinheiro que
engorda as finanças e começa e relança subsequentemente a produtividade
das indústrias inglesas. O “mercado mundial” toma forma, e uma forma
ainda mais radical do que escreviam Mill e Mises. Vindo do Oriente, tam-
bém o ópio irrompe em Londres e em outras cidades industriais; serve para
camuflar a fome das famílias operárias, acalmar o choro das crianças fa-
mintas, às vezes torna-se até o instrumento de um “infanticídio dissimula-
do”: os bebês encolhem como velhinhos em miniatura e se enrugam como
macaquinhos”. E Marx comenta esses detalhes macabros, retomados dos
próprios relatórios oficiais: “Eis a vingança da Índia e da China contra a
Inglaterra” (MEW, XXIII, 779 e 421).
Marx e Rosa Luxemburgo, por um lado, e Mill e Mises, por outro, nos
colocam diante de duas descrições sensivelmente diferentes do processo
de globalização. Uma esquerda digna deste nome deveria ficar bem atenta
para não se rebaixar à visão harmonística da tradição de pensamento libe-
ral e neoliberal.

3. Globalização e conflitos geopolíticos

Em nossos dias, os elementos de conflito presentes neste processo, lon-


ge de se atenuarem, resultam nitidamente mais acentuados. O Manifesto

250
Quarta parte - Globalização e marxismo

do Partido Comunista faz a sua análise num momento em que nenhum mo-
vimento emancipador desponta nas colônias: em tais condições, a globali-
zação é, ou parece ser, uma relação mais ou menos equânime entre países
com um grau de desenvolvimento mais ou menos homogêneo. Agora, ao
contrário, ocorre que a globalização é também um instrumento com que as
grandes potências tratam de recuperar o controle da economia dos países
que sacudiram o jugo colonial. Podemos ler na imprensa estadunidense
esta eloquente admissão: a globalização é um “programa agressivo” que
visa a “facilitar a absorção da agricultura e da indústria locais” por parte
dos colossos industriais e financeiros dos países capitalistas mais fortes354.
Para ser claro, o expansionismo não é só econômico. Já se observou que,
aos olhos da Otan, um dos crimes mais graves de Belgrado residia em sua
recusa em “adotar o modelo neoliberal imposto pela globalização”355. Tam-
bém na imprensa estadunidense publicou-se um convite para que Israel
não faça nenhuma concessão sobre as colinas de Golã “enquanto não veja a
Síria entrar no mundo”, e começar a “privatizar e desregulamentar”356. As
canhoneiras estimulam o processo de globalização mesmo quando perma-
necem nos bastidores. Como nos tempos de Marx, a “propaganda armada”
e a “guerra civilizadora”, ou “humanitária”, continuam a ser parte inte-
grante do processo de globalização.
Desde o momento em que eclodiu a Guerra Fria, os Estados Unidos vêm
desenvolvendo uma estratégia que merece reflexão. Exangue devido ao se-
gundo conflito mundial, em maio de 1947, a URSS, mesmo sendo até aquele
momento um país aliado dos EUA, recebe um recado com o Plano Marshall:
se não desejam renunciar aos créditos e aos câmbios comerciais dos quais
têm necessidade urgente, “os Sovietes (devem) abrir sua economia aos inves-
timentos ocidentais, seus mercados aos produtos ocidentais, suas cadernetas
de poupança aos administradores ocidentais”, devem “aceitar a penetração
econômica e mediática” dos países que se aprestam a constituir a Otan357.Não
por acaso – uma observação que sempre podemos ler na imprensa estaduni-
dense – o lançamento do Plano Marshall ocorre no mesmo período em que é

251
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

fundada a CIA e serve, também ele, para financiar “políticos anticomunistas”


e “a propaganda filoamericana camuflada no exterior como publicações e
transmissões de rádio independentes”, para financiar a “guerra psicológica”
mas também a “atividade encoberta” da agência de espionagem e suas “me-
didas no umbral da guerra” propriamente dita358.
Em outras palavras, a direção soviética é posta diante da seguinte alter-
nativa: ou integração subalterna no mercado mundial capitalista ou conde-
nação a uma política de apartheid tecnológico e de embargo mais ou menos
radical. Neste sentido, Truman fala do Plano Marshall – que dá um pode-
roso impulso à globalização entre os dois lados do Atlântico – como a ou-
tra face da medalha da política de “contenção”359. Ou então, para citar um
politicólogo e polemólogo estadunidense de nossos dias, “o móvel decisivo
para a liberalização dos comércios sempre foi de ordem política e estraté-
gica”; isto é, o Gatt, predecessor da atual Organização Mundial do Comér-
cio (OMC) foi “claramente concebido como o correspondente comercial da
estreita aliança estratégica de todo o Ocidente contra a União Soviética”360.
A derrota da União Soviética no curso da Guerra Fria (ou “Terceira
Guerra Mundial”) não pôs fim a essa política de Washington. O politicó-
logo e polemólogo estadunidense já citado, observou satisfeito que, com a
China até agora excluída da OMC, “os Estados Unidos ficam ainda mais li-
vres para assumirem medidas protecionistas em suas relações”: “Com uma
metáfora, se poderia afirmar que o bloqueio das importações chinesas é a
arma nuclear que os EUA têm apontada contra a China”361. E já está pronta
a política a seguir quando o grande país asiático for admitido na OMC:
“Para deslocar a China”, Washington deve saber combinar “canhoneiras,
comércio, investimentos na internet” e, claro, a palavra de ordem da “de-
mocratização”, econômica e política362.
Estamos portanto diante de uma estratégia com fórceps, com uma has-
te dedicada a exercer uma terrível pressão econômica, política (e, no fundo,
militar) e a outra usada para promover a infiltração e desestabilização do
país de quando em quando tomado como alvo.

252
Quarta parte - Globalização e marxismo

Conclusão: hoje, como ontem e anteontem, a globalização não é de


modo nenhum um processo isento de conflitos ou que cancele a importân-
cia da questão nacional. Ao sublinhar, já em 1848, a crescente “interdepen-
dência universal entre as nações”, (MEW, IV, 466), o Manifesto do Partido
Comunista advertia para o perigo da “guerra industrial de aniquilamento
entre as nações”. Com efeito, a “interdependência universal entre as na-
ções” não impediu nem os dois catastróficos conflitos mundiais, nem o gi-
gantesco processo de emancipação nacional dos povos oprimidos que atin-
giu todo o planeta. Ainda hoje, para citar desta vez uma revista próxima
do Departamento de Estado, “a crescente interdependência do mundo não
importa necessariamente em uma maior harmonia”363.

4. Três gêneros literários no discurso de Marx

Portanto, o processo de construção de uma sociedade socialista revela-


-se bem mais longo e tortuoso do que Marx e Engels previram inclusive por
razões de caráter internacional. Mas exatamente por isso, para evitar que a
orientação estratégica se perca, é bom ter presentes os seus ensinamentos.
Ocorre que deparamo-nos aqui com outra dificuldade. Para esclarecê-la,
tomemos três citações.
A primeira, retirada da Ideologia alemã, vê o comunismo como uma so-
ciedade onde desaparece qualquer constrangimento jurídico, toda forma
de divisão de trabalho e até mesmo o trabalho enquanto tal, de modo que
cada indivíduo poderia “fazer hoje uma coisa, amanhã outra, caçar de ma-
nhã, pescar à tarde, alimentar os animais à noite, fazer crítica depois da
refeição”, ao seu bel-prazer, “sem se tornar nem caçador, nem pescador,
nem pastor, nem crítico” (MEW, III, 33).
Vejamos agora o que ocorre, segundo o Manifesto do Partido Comunis-
ta, depois do capitalismo ser derrotado e superado em nível internacional:
“Em substituição da antiga sociedade burguesa, com as suas classes e os
seus antagonismos de classe, surgirá uma associação em que o livre desen-

253
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

volvimento de cada um será a condição para o livre desenvolvimento de


todos” (MEW, IV, 482).
Por fim, a citação da Crítica do Programa de Gotha, que prevê e defende,
após a derrubada do poder político da burguesia em um único país ou em
um grupo de países, um período de transição sob a insígnia da “ditadura
revolucionária do proletariado” (MEW, XIX, 28).
Poder-se-ia dizer que estamos diante de três gêneros literários. A cita-
ção retirada da Ideologia alemã nos faz pensar nos romances utópicos que
acompanham o desenvolvimento inicial do movimento socialista e dos
protestos dos grupos sociais oprimidos. As outras duas citações remetem
ao gênero histórico-político, mas com uma diferença essencial. A evocação
de uma grande revolução, capaz de transformar de uma vez por todas a
face do globo e emancipar radicalmente cada indivíduo e as relações entre
os indivíduos – este discurso faz referência à longa duração do desenvolvi-
mento da humanidade. Já a citação da Crítica do Programa de Gotha se preo-
cupa, distintamente, em indicar as medidas concretas e imediatas às quais
deve recorrer o proletariado que tenha conquistado o poder político em um
determinado país ou grupo de países.
Que podemos, e devemos, fazer hoje desses três gêneros literários dis-
tintos, presentes no discurso de Marx e Engels? O primeiro, o romance utó-
pico, expressa um protesto que ainda não tomou consciência de si mesmo;
se, na fase da luta contra o Antigo Regime, desempenha um papel positivo
de mobilização, na etapa consecutiva de construção do novo poder, no en-
tanto, pode resultar num obstáculo. Já os dois outros tipos de discurso são
irrenunciáveis, mas não se deve perder de vista o fato de que se referem a
tempos históricos diferentes. A atitude mais superficial consiste em con-
trapor a poesia da perspectiva de longo prazo à prosa das tarefas imedia-
tas. Pode-se, por exemplo, apelar para a tese do livre desenvolvimento de
cada indivíduo para condenar ou desacreditar o poder político derivado
da revolução, o qual deve naturalmente saber enfrentar as manobras do
imperialismo e os demais perigos que o ameacem. Uma vez contraposto às

254
Quarta parte - Globalização e marxismo

tarefas do presente, o longo prazo tende a ser reabsorvido pelo gênero do


romance utópico: a história concreta da nova sociedade pós-revolucionária,
que busca desenvolver-se em meio a contradições, tentativas, dificuldades
e erros de toda espécie, é então condenada em bloco como degeneração e
traição aos ideais revolucionários. Essa postura, que condena o movimento
real em nome das próprias fantasias e dos próprios sonhos, priva o marxis-
mo de toda carga emancipadora.
Esta carga só pode se expandir sob duas condições: a) precisa depurar
a utopia de seus elementos irrealistas, reabsorvendo-a no discurso de longo
prazo; b) este discurso deve por sua vez saber orientar a solução das tarefas
presentes, sem entravá-la ou torná-la impossível com expectativas e preten-
sões que não correspondam à situação objetiva; ao mesmo tempo, ela não
deve jamais perder de vista a perspectiva estratégica.
No campo propriamente político, não perder de vista o “livre desen-
volvimento” de cada indivíduo invocado no Manifesto significa também li-
quidar de uma vez por todas o argumento (caro tanto ao “socialismo real”
como à “revolução cultural”) segundo o qual, uma vez assegurado o poder
popular, as garantias formais de liberdade perderiam significado ou impor-
tância real. Mas reconhecer a importância do governo da lei e dos direitos
do homem não significa curvar-se acriticamente ao soberano de Washing-
ton. Pode-se contrapor à pretensão deste de impor ao mundo inteiro o mo-
delo político ocidental um autor liberal norte-americano, ou melhor, John
Rawls, que, ao exigir a subordinação da igualdade à liberdade, submete
o princípio por ele formulado a uma importante cláusula limitativa: ele é
para ser considerado válido unicamente “para além de um nível mínimo de
renda”364. Ou melhor, é lógico que os direitos econômico-sociais tenham a
prioridade em países ainda insuficientemente desenvolvidos.
Reflitamos sobre a catástrofe verificada na Rússia: hoje, conforme do-
cumentos oficiais de organismos da ONU, a expectativa média de vida é
de cerca de dez anos mais baixa que a da China; os círculos imperialistas,
empenhados em impor à China o mesmo destino da URSS, trabalham por

255
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

um sensível encurtamento da expectativa média de vida e pela condenação


de um quinto da população mundial à morte prematura. Seria uma catás-
trofe para os direitos econômicos e sociais, além dos direitos nacionais, do
povo chinês. Não há dúvidas: o “livre desenvolvimento” do indivíduo pas-
sa hoje pelo reforço do poder popular nos países socialistas.
Ainda no plano propriamente econômico, é preciso saber entrelaçar a
perspectiva de longo prazo e as tarefas imediatas. Vimos que, para desen-
volver as forças produtivas e romper o cerco imperialista, um país socialista
é obrigado a importar indústrias e tecnologias dos países capitalistas avan-
çados; por outro lado, ele é chamado a não perder de vista que, junto com
essas indústrias e tecnologias, penetram também as relações sociais e ideo-
lógicas características daquele mundo que ele pretende superar. Trata-se
portanto de relações sociais e ideologias que desde já devem ser contidas
e controladas. Ao longo de todo um período histórico, a análise marxiana
dos desequilíbrios regionais e da intensificação do trabalho e da exploração
produzidos pelo desenvolvimento capitalista será o espelho crítico não só
do capitalismo propriamente dito mas também daquilo que existe de capi-
talista em qualquer transição para uma sociedade diferente. Por isso, esse
precioso espelho crítico se tornaria um espelho deformador se, com base
nele, se pretendesse homologar em uma única sentença condenatória a rea-
lidade de um país capitalista e a de um país socialista em vias de desenvol-
vimento chamado a enfrentar tarefas contraditórias entre si.

5. Direitos humanos e “imperialismo dos direitos humanos”

Detive-me nos problemas da construção e da defesa do socialismo.


Mais quais desafios esperam o marxismo no Ocidente? Algum tempo atrás,
um sindicato estadunidense estimulou a administração de Washington a
bloquear por todos os meios a transferência para a China de “tecnologia
aeroespacial chave”, a pretexto de que esta transferência afetaria negativa-
mente os níveis de emprego nos EUA365. Aquela entidade é herdeira dos

256
Quarta parte - Globalização e marxismo

sindicatos amarelos, afetados pelo nativismo e a xenofobia, que entre os


dois últimos séculos preferiam lutar contra os imigrantes ao invés de en-
frentar o patronato. Trata-se de um sindicalismo e de uma esquerda que,
conforme denuncia Engels, são na verdade os expoentes acríticos de “uma
nação que explora o mundo inteiro” (MEW, XXIX, 358).
A advertência é feita também por Lênin (L, 654); mas no Ocidente mes-
mo aqueles que invocam o marxismo frequentemente se mostram surdos
a ela. Agitando a bandeira dos direitos humanos, as grandes potências
capitalistas conseguiram projetar uma imagem particularmente sedutora
das suas pretensões hegemônicas. A rigor, não se trata de um fenômeno
inteiramente novo. Veja-se a história do imperialismo britânico que, com
sua expansão, sentia-se empenhado em “tornar as guerras impossíveis e
promover os melhores interesses da humanidade”. Quem se exprime desse
modo é Cecil Rhodes, que assim sintetiza a filosofia do Império Britânico:
“filantropia + 5%”366; aqui, “filantropia” é sinônimo de “direitos humanos”
enquanto o porcentual de 5% indica os lucros que a burguesia capitalista
inglesa auferia ou tencionava auferir através das conquistas coloniais e agi-
tando a bandeira dos “direitos humanos”.
O discurso que preside hoje o expansionismo estadunidense não difere
muito do de Rhodes. Como seus ideólogos admitem explicitamente, trata-
-se de “defender os valores e os interesses dos EUA” em qualquer canto do
mundo367. Assiste-se assim a um paradoxo: durante muito tempo os Esta-
dos Unidos foram um dos países mais empenhados no protecionismo eco-
nômico e político-ideológico; na metade do século 19, para desenvolver sua
indústria nacional, não hesitaram em tirar proveito até do confronto com
os Estados do Sul na Guerra de Secessão; no plano ideológico-político, no
período que vai da Revolução Francesa ao macarthismo, todas as correntes
democráticas radicais e revolucionárias foram tachadas de “unamerican”
(“antiamericanas”) e seus seguidores perseguidos por serem propensos a
contaminar e infectar um país felizmente caracterizado pelo exceptionalism,
por um destino sagrado e exclusivo. Em nossos dias, entretanto, os Estados

257
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

Unidos intentam transformar o mundo inteiro em um “livre mercado” e


em uma “democracia”, entendida como “livre mercado político”, abertos
aos produtos, aos “valores” e à hegemonia made in USA.
Ao afirmar-se em nível planetário, o livre mercado político compreen-
de uma imperturbada expansão do soft power, definido – pela já citada re-
vista próxima ao Departamento de Estado – como “a capacidade de obter
os objetivos desejados no plano internacional” sem recorrer à força militar
(que no entanto permanece nos bastidores). Deste modo a administração
estadunidense poderá realizar suas ambições; mais ainda que o século 20,
o 21 será “o século norte-americano” por excelência, “o período do maior
predomínio dos EUA”.368
Há um estreito entrelaçamento entre o “imperialismo do livre mer-
cado”, que no século 19 justamente os teóricos do protecionismo estadu-
nidense censuravam em relação à Grã-Bretanha369, e o “imperialismo dos
direitos humanos”370. Que importa a Washington se tudo isso significa o
desmantelamento do Estado social e a liquidação dos direitos econômicos
e sociais sancionados pela Declaração universal dos direitos do homem, procla-
mada pela ONU em 1948 (artigos 22-26)? E que importa se tudo isso com-
preende também a liquidação do objetivo do “desenvolvimento de relações
amistosas entre as nações”, proclamado com particular solenidade já no
preâmbulo da Declaração?
Convém refletirmos sobre as modalidades dessa marcha do free-market
imperalism e do human rights imperialism. Um exemplo é a tragédia da Nica-
rágua sandinista. À época, os EUA impuseram-lhe um bloqueio econômico
e militar, a destruição dos portos e uma guerra não declarada, mas sangren-
ta, suja e contrária ao direito internacional. Diante disso tudo, o governo
sandinista via-se obrigado a tomar medidas limitadas de defesa contra a
agressão externa e a reação interna. E eis que Washington erigiu-se em de-
fensor dos direitos democráticos violados pelo “totalitarismo” sandinista.
Faz mesmo pensar no carrasco que, depois de ter procedido à execução, se
choca com a palidez cadavérica de sua vítima. Um comportamento grotes-

258
Quarta parte - Globalização e marxismo

co: e ainda assim não têm faltado belas almas da esquerda ocidental que se
associam ao clamor escandalizado do carrasco e à condenação das medidas
“liberticidas” dos dirigentes sandinistas, cuja margem de manobra dian-
te da agressão foi progressivamente reduzida até anular-se. O resultado:
eleições em que o povo nicaraguense, exangue e exausto, com a faca mais
do que nunca no pescoço, decidiu “livremente” ceder aos seus agressores.
Uma técnica similar foi usada contra a Iugoslávia. Chegará depois a vez de
Cuba e de outros países?
Infelizmente, assim como a Grã-Bretanha podia se beneficiar do apoio
de um “cristianismo imperial”371, que chegava ao ponto de aplaudir as
Guerras do Ópio, em nossos dias assistimos ao trabalho de uma espécie de
esquerda imperial, que às vezes tampouco hesita em reivindicar sanções
contra a China em nome dos “direitos humanos”! Aliás, o alvo privilegia-
do da batalha de Lênin é exatamente a esquerda imperial. Aqueles que no
Ocidente se identificam com o marxismo saberão levar em conta os ensina-
mentos do revolucionário russo? Ou a benéfica e obrigatória redescoberta
do valor também essencial da “liberdade formal” e do governo da lei com-
portará uma pavorosa regressão teórica e política?

XI
Marxismo e populismo na leitura do
processo de globalização

1. Marx e a globalização

Em nossos dias a retórica do novo vive sua apoteose. “Depois de Gêno-


va nada pode mais ser como antes!” Transcorreram apenas poucas sema-
nas desde as grandes manifestações contra as supostas sete ou oito grandes
potências da terra, e desde a brutal repressão policial que aí se seguiu, e
eis que, em seguida aos inauditos atentados terroristas nos EUA, ecoa um

259
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

novo brado e triunfa uma nova cronologia: “Depois de Manhattan nada


pode ser como antes!”
Um mês depois, o encontro entre os governantes dos países membros
da Apec (Asia-Pacific Economic Cooperation) em primeiro lugar, os da
China, dos EUA e da Rússia, foi uma oportunidade para um novo golpe de
cena. Em Xangai – relatam os jornais Liberazione e Il manifesto –, as grandes
potências se uniram em uma coalizão compacta e uníssona, em uma espé-
cie de Santa Aliança planetária, sem precedentes na história. Portanto – daí
se pode deduzir –, “Depois de Xangai, nada pode mais ser como antes!” As
transições de época alcançam agora um ritmo mensal. São os milagres da
globalização, a partir da qual – como certa esquerda não se cansa de afirmar
ou sugerir – as mutações ocorridas no capitalismo e na cena mundial são
tão radicais para tornarem totalmente obsoletos os ensinamentos de Marx.
Na realidade, a história do capitalismo é a história do processo de for-
mação do mercado mundial. É como Marx a descreve. E este é um aspecto
essencial da sua grandeza como sociólogo, economista, historiador e filó-
sofo. Ainda hoje permanecem brilhantes as páginas que Marx dedicou à
expansão do Ocidente na Ásia. Sob a onda do choque “do vapor e do livre
câmbio made in England”, mais ainda que dos “militares britânicos”, isto é,
da violência militar direta, as tradicionais “comunidades familiares (...) ba-
seadas na indústria doméstica” e “autossuficientes” entram irremediavel-
mente em crise: “miríades de laboriosas comunidades sociais, patriarcais e
inofensivas’, são “atiradas num mar de luto, e cada um de seus membros
privado a um só tempo das formas de civilização tradicionais e dos meios
hereditários de existência” (MEW,IX,132). Povos inteiros são acometidos
por uma tragédia sem precedentes na sua história: é a “perda de seu mun-
do antigo sem a compensação da conquista de um mundo novo” (MEW,
IX, 129).
Marx nos fornece aqui uma síntese fulminante do processo de globali-
zação capitalista.

260
Quarta parte - Globalização e marxismo

2. A primeira forma de populismo

Justamente porque, para os povos gradualmente engolfados pela glo-


balização, esta é a “perda de seu mundo antigo sem a compensação da
conquista de um mundo novo”, abre-se um amplo espaço para o lamento
nostálgico do mundo antigo e a sua transformação: pelo menos no passado
havia um “mundo” de laços comunitários e valores compartilhados, um
mundo ainda não atingido pela dilaceração e a crise, e portanto um mun-
do dotado de bom senso. É aqui que se aninha a tentação populista, que
emerge não só no mundo colonial ou semicolonial propriamente dito, mas
também no próprio coração do Ocidente e da metrópole capitalista, na me-
dida em que a grande indústria submete as áreas agrícolas ao seu controle
e arruína o artesanato e a indústria doméstica tradicional.
Tome-se uma personalidade como Jean de Sismondi. Sensível aos sofri-
mentos do povo, para evitá-los ou aplacá-los ele parece querer sugerir que
se ponha um freio ao desenvolvimento da produção, de modo a evitar o
surgimento de uma superprodução e de crise. A introdução de novas e mais
possantes maquinarias comporta sim um “incremento da produtividade”,
mas termina por destruir o equilíbrio anterior sem dele trazer alguma van-
tagem real e duradoura. É um quadro desolador: “Os velhos teares teriam
sido perdidos”372. Neste sentido, Sismondi, conforme observa Marx, “se
refugia frequentemente no passado, torna-se laudator temporis acti» (MEW,
XXVI, 3, 50), um saudosista dos bons velhos tempos. No seu “romantismo
econômico” – ataca, por sua vez, Lênin –, Sismondi aflige-se inconsolavel-
mente com a “destruição do paraíso da obtusidade e do embrutecimento
patriarcal da população rural” (Loc, II, 218). Ao se expressar desse modo,
o revolucionário russo tem claramente presente a lição de Marx, que, refe-
rindo-se desta vez à Índia, adverte contra a tendência a lamentar a perda e
idealizar uma “vida sem dignidade, estagnada, vegetativa”, uma sociedade
no âmbito da qual a miséria e a sujeição parecem às grandes massas como
“um destino natural imutável” e as “pequenas comunidades são contami-

261
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

nadas pela divisão de castas e a escravidão” (MEW, IX, 132-3).


Se o marxismo e o leninismo se desenvolveram no curso da luta contra
o populismo, hoje este último parece desfrutar de uma nova juventude. Eis
como o Liberazione reporta uma mostra sobre o “Tibete perdido”:
“‘A caça, a pesca, e até matar um inseto ou escavar a ‘mãe ter-
ra’ tornaram-se ações a evitar, enquanto os moinhos de orações
surgiam ao longo de todos os cursos d’água’. Quando se chega ao
Palazzo Magnani, em Reggio Emilia, para ver a esplêndida mostra
fotográfica de Fosco Maraini sobre o ‘Tibete perdido’, são essas as
palavras afixadas à parede que mais impactam o visitante. Elas
descrevem um povo único (...). Gente extraordinária, os tibetanos,
habituados a viver acima dos 4 mil metros de altitude, em um ce-
nário natural incrível, onde as doenças quase não existem porque
vírus e bactérias não sobrevivem naquelas alturas”373.
É um exemplo de manual do comportamento denunciado por Marx e
Lênin. Uma sociedade “contaminada pela divisão de castas e pela escravi-
dão”, que estabelecia uma barreira intransponível entre servos e senhores,
discriminando-os nitidamente do nascimento à morte, ou além (deixando
os corpos dos primeiros servir de pasto aos abutres e reservando apenas
para os segundos a dignidade da cremação ou da sepultura), esta socie-
dade conhece agora uma extraordinária e mitológica transfiguração. No
âmbito de tal regulamento, a miséria, a desnutrição, as doenças e a morte
precoce eram encaradas, para usar a expressão de Marx, como “um des-
tino natural imutável”; mas, para o jornalista ou poeta sob o encantamen-
to do populismo, é motivo de entusiasmo o fato de que os “moinhos de
orações” barrem o caminho para os aviltantes trabalhos empenhados em
violar e “escavar ‘a mãe terra’”, e para elevar a produção agrícola. Como
esclareceu Lênin, o populista sustenta que “a luz resplandece apenas no
Oriente místico, religioso” (Loc, XVIII, 154). Com efeito, em certos artigos
do Liberazione e do Il Manifesto o Dalai Lama tende exatamente a tomar o
lugar de Lênin (e de Marx).

262
Quarta parte - Globalização e marxismo

O populismo desempenha um papel importante na malevolência e na


hostilidade com que esses jornais e esses círculos políticos encaram a Chi-
na. O que os horroriza em primeiro lugar é a “obsessão do crescimento
quantitativo”374. Sim, Marx e Engels enfatizam que “o proletariado servir-
-se-á de sua supremacia política” e do controle dos meios de produção em
primeiro lugar “para aumentar, com a maior rapidez possível, a quantida-
de das forças produtivas”. Em condições difíceis, dados o atraso histórico
acumulado e o permanente semiembargo tecnológico imposto pelos EUA,
a China busca desenvolver as “indústrias novas”, que não possuem mais
uma base nacional e cuja “introdução” – quem sublinha é sempre o Mani-
festo do Partido Comunista – é “uma questão de vida ou de morte para todas
as nações civilizadas” (MEW, IV, 466).
Mas tudo isso apenas escandaliza o populista, que vê com indiferença
ou enfado o mundo profano da “quantidade”: “Uma criança nascida em
Xangai em 1995 tinha menos probabilidade de morrer no seu primeiro
ano de vida, mais probabilidade de aprender a ler e escrever e podia con-
tar com uma expectativa de vida dois anos maior (76 anos) do que uma
criança nascida em Nova Iorque”375. Agora o governo chinês aplicou uma
política de gigantescos investimentos para estender também ao interior
o prodigioso desenvolvimento conseguido nas regiões costeiras. Resulta-
dos importantes já estão bem visíveis a todos: o Tibete “registrou um cres-
cimento econômico três vezes mais veloz que o dos Estados Unidos nos
anos do boom entre o fim da administração Reagan e o início da adminis-
tração Bush”376. No entanto, desenvolvimento econômico-social, acesso à
instrução, advento da modernidade com sua carga emancipadora, prolon-
gamento da expectativa média de vida, tudo isso parece irrelevante para
o populista entristecido pela saudade dos “velhos teares” ou, pior, dos
“moinhos de orações”.
Compreende-se o rancor todo especial reservado à figura de Deng
Xiaoping. Deng teve o mérito de criticar o escorregão populista, que leva-
ra a Revolução Cultural a perseguir o ideal de “um ascetismo universal e

263
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

um grosseiro igualitarismo”, duramente criticado pelo Manifesto do Partido


Comunista (MEW, IV, 489). Entretanto – esclareceu Deng –, “não pode ha-
ver comunismo com pauperismo ou socialismo com pauperismo”; é uma
contradição em termos falar de “comunismo pobre”377. O socialismo e o
comunismo nada têm a ver com a igualdade na miséria e na austeridade,
e com simplicidade dos costumes; se mesmo o problema de uma distri-
buição até certo ponto justa da penúria continua presente por todo um
período, em primeiro lugar “socialismo significa eliminação da miséria”378.
O problema principal reside portanto no desenvolvimento o mais rá-
pido possível das forças produtivas. E, ao contrário, o populista lamenta
justamente nesse desenvolvimento a perda de, como diria Marx, uma mí-
tica “plenitude originária”379, ou denuncia, como notou Lênin, o triunfo da
vulgaridade e dos anti valores do “Ocidente materialista” (Loc, XVIII, 154).

3. Populismo e “cinismo de cretino”

Além de encontrar expressão na ingênua transfiguração dos velhos


bons tempos e das relações sociais rurais e atrasadas, o populismo pode
também se expressar sob formas mais “sofisticadas”. Tome-se Proudhon:
“A propriedade é um roubo” – é o fio condutor de seu livro mais célebre.
Uma fronteira única divide a humanidade inteira em proprietários e não
proprietários, ladrões e vítimas do roubo, ricos e desamparados. É a única
contradição realmente importante. Proudhon rotula de “pornocracia” o
movimento feminista em seus primórdios. Analogamente, ridiculariza e
condena as aspirações nacionais dos povos oprimidos como expressão do
apego obscurantista a preconceitos obsoletos. Na Polônia, a luta pela in-
dependência e o renascimento nacional vê a participação até de burgueses
e de nobres. Isso não causa espanto, já que a nação em seu conjunto sofre
a opressão. Mas é um motivo de escândalo para o populista inclinado a
pensar que a única contradição real seria aquela entre pobres e ricos, en-
tre o “povo” humilde e incorrupto, de um lado, e os grandes e poderosos

264
Quarta parte - Globalização e marxismo

(burgueses e nobres), de outro. Daí a postura zombeteira e sarcástica as-


sumida por Proudhon em relação aos movimentos nacionais, em especial,
ao polonês. Dura é a avaliação de Marx, que fala em “cinismo de cretino”,
ainda por cima a serviço ou a reboque do imperialismo czarista, ou, em
outros casos, do bonapartismo de Napoleão III (MEW, XVI, 31).
Somos conduzidos a pensar no populista francês quando lemos Toni
Negri a zombar “dos últimos chauvinistas da nacionalidade”: assim ele
rotula a quantos persistem em defender a independência e a soberania
nacionais contra a realidade de um império planetário, no âmbito do qual
a única contradição seria aquela entre “o poder soberano que governa o
mundo”, de um lado, e a “multidão revolucionária”, de outro.
Assistimos assim a um paradoxo. É fácil encontrar hoje, no que con-
cerne a autores burgueses, o reconhecimento do fato de estar em execução
no mundo um processo de “recolonização”: nestes termos exprime-se, por
exemplo, Carlo Jean, o já citado professor da Luiss e general dos Alpini.
Por seu turno, quem afirma explicitamente o caráter benéfico e necessário
da recolonização é o teórico oficial da “sociedade aberta”, ou melhor, sir
Karl Popper: “Libertamos esses Estados (as ex-colônias) com demasiada
pressa e demasiado simplismo”; é como “abandonar-se a si mesmo em
um orfanato”. Afortunadamente, pouco tempo atrás o New York Times, ao
dar a palavra ao historiador Paul Johnson, podia anunciar: “Finalmente o
colonialismo voltou; já era tempo”380.
Portanto, aqui não deveria haver dúvidas sobre a permanente atua-
lidade da questão nacional. Quer dizer, se observarmos bem, ela está se
aguçando. Basta olhar para as guerras que sucederam a partir da derroca-
da da União Soviética:
1991: A ONU autoriza formalmente a guerra contra o Iraque e a impo-
sição de um protetorado sobre um país de decisiva importância geoeconô-
mica e geopolítica.
1999: Essa autorização é considerada supérflua ao longo da guerra
contra a Iugoslávia; agora se teoriza sobre o direito soberano da Otan de

265
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

deflagrar “guerras humanitárias”, que, aliás, não se limitam a impor o pro-


tetorado, mas vão até o desmembramento do país agredido.
2001: Washington arroga-se, na verdade, o direito de intervir em qual-
quer parte do mundo, sem levar em conta nem a ONU nem a Otan, ao
declarar que o terrorismo está presente em outros 60 países, ao deliberar
soberanamente sobre quem é terrorista e ao anunciar que está pronto a gol-
pear quem que seja e qualquer que seja a sua qualificação que apoie o ter-
rorismo, ou seja condescendente, ou indulgente e neutro em relação a ele.
Se, além disso, temos presente que expoentes da administração estadu-
nidense fizeram vazar a possibilidade do recurso a armas nucleares, mais
ou menos táticas, então uma conclusão se impõe: os Estados Unidos ten-
dem a fazer pairar sobre todos os países do mundo uma ameaça econômica
(o embargo, em seus diversos níveis), militar e mesmo nuclear. Edificou-se
uma máquina bélica de implacável eficácia inclusive no que se refere ao
dispositivo político-ideológico: a administração dos EUA pode rotular de
terrorista a resistência palestina, ou algumas das suas correntes, e eis que se
tornam fora da lei Estados como a Síria, o Irã, o Iraque etc.; ou pode consa-
grar como “combatentes da liberdade” as forças secessionistas que ela pro-
cura alimentar nesse ou naquele país; e eis que uma repressão considerada
excessiva por Washington configura-se como um crime que abre as portas
a uma justa e severa intervenção “humanitária”.
Uma sangrenta luta entre a Índia e o Paquistão está em curso na Caxe-
mira. A guerrilha pode ser tachada de terrorista e então o Paquistão que a
apoia passa a ser um alvo legítimo; ou essa guerrilha pode ser alçada à dig-
nidade de luta de libertação, e então o alvo passa a ser a Índia que, ao repri-
mi-la duramente, se mancha com crimes contra a humanidade. Conscientes
do risco que correm, os dois possíveis alvos concorrem entre si para pleitear
os favores de Washington, os favores do aspirante a soberano planetário.
Há que repeti-lo com força: a questão nacional nunca foi tão aguda assim.
Mas o peso crescente das multinacionais não reduz a soberania estatal
a uma concha vazia? Em 1917, Lênin observa no Imperialismo, fase suprema

266
Quarta parte - Globalização e marxismo

do capitalismo: “O capital financeiro é uma força tão considerável, que se


pode dizer tão decisiva, em todas as relações econômicas e internacionais,
que é capaz de fazer se submeter mesmo os países que gozam de plena in-
dependência política” (Loc, XXII, 260). Isso porém não significa que a luta
contra a sujeição política tenha se tornado irrelevante. Os países que gozam
de independência política tratam de consolidá-la e concretizá-la por meio
da conquista da independência econômica e assim se confrontam com o
imperialismo, o qual, em situações de crise, está pronto a liquidar a própria
independência política para manter sua hegemonia. Apenas a influência do
populismo e do neoproudhonismo no âmbito do movimento antiglobaliza-
ção explica a tese do esvaimento da questão nacional.

4. Purismo populista e fuga da complexidade

Uma vez que continua subsistindo a centralidade da luta pela defesa e a


conquista da soberania estatal, de que modo ela se manifesta em nossos dias?
Nos anos 1960 ganhou certa força a tese de Lin Piao, que, ao apoiar as lutas de
libertação nacional em ação no Terceiro Mundo, auspiciava um progressivo
cerco da cidade capitalista por obra de um campo pobre e revolucionário.
Também nessa visão é evidente a presença do populismo. Era a generaliza-
ção arbitrária de um balanço histórico, aliás errôneo, da Revolução Chinesa.
O Partido Comunista chegara à vitória não já limitando-se a estimular e diri-
gir as lutas dos camponeses pobres, mas também sabendo se colocar à frente
da luta da nação chinesa no seu conjunto contra a invasão e ocupação militar
do Japão e construindo uma ampla frente unida da qual a burguesia nacional
era parte integrante e essencial. E mais ainda: o movimento de resistência e
de libertação nacional não hesitara em usar as rivalidades e os conflitos entre
as grandes potências imperialistas. Uma visão que, no plano internacional,
considere agir apenas a contradição entre países fracos e países fortes, entre
países pobres e países ricos, entre Terceiro Mundo e metrópole capitalista,
deve ser considerada uma reedição do populismo sob nova forma.

267
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

Entretanto, desponta no âmbito do Terceiro Mundo um país que está


saindo fora do subdesenvolvimento e, mesmo deixando de lado o fato de
que ele continua a ser dirigido por um partido comunista, já por suas di-
mensões e pela taxa espetacular do crescimento de sua economia é visto
como uma ameaça pelos EUA.
Mas deixemos de lado a China. Concentremos nossa atenção nos EUA,
Rússia, Japão, Alemanha, França, etc. e na União Europeia como um todo.
Todos são países capitalistas sem exceção, mas que não podem ser coloca-
dos no mesmo plano.
Isso fica imediatamente evidente no caso da Rússia. Em sua época, um
respeitado jornalista, e estudioso, não hesitou em definir Boris Iéltsin como
um Quisling, ou seja, o dirigente de um Estado apenas formalmente so-
berano, mas na verdade um fantoche a serviço de uma potência imperial
estrangeira381. É provável que haja algum exagero nessa definição. Resta o
fato de que a Rússia, cada vez mais acossada pela expansão da Otan para
o Leste, deve enfrentar tendências separatistas e secessionistas, frequente-
mente alimentadas de fora e que não por acaso se manifestam ao longo das
rotas estratégicas do petróleo.
Porém nem mesmo os países de tradição capitalista e imperialista mais
consolidada podem ser postos no mesmo plano. Contrariando a tendência
difundida até entre os comunistas, à condenação equânime e imparcial do
imperialismo estadunidense, japonês e europeu, convém recordar a con-
versa de Mao com uma jornalista norte-americana de orientação comunista
(Anne Louise Strong). Estamos em agosto de 1946; a eclosão da Guerra Fria
estimula uma visão bipolar do mundo, com base na qual ao campo socialis-
ta ferreamente unificado se contrapõe um campo capitalista de modo não
menos unido. Mas eis que o líder do Partido Comunista da China desenvol-
ve uma análise inteiramente diversa:
“Os Estados Unidos e a União Soviética estão separados por
uma área muito vasta que compreende numerosos países capita-
listas, coloniais e semicoloniais na Europa, Ásia e África. Enquanto

268
Quarta parte - Globalização e marxismo

os reacionários estadunidenses não tiverem subjugado esses paí-


ses, um ataque à União Soviética está fora de questão. (Os EUA)
controlam há muito tempo a América Central e a do Sul, e procu-
ram submeter a seu controle também todo o Império Britânico e a
Europa Ocidental. Sob vários pretextos, os Estados Unidos estão
promovendo preparativos militares em ampla escala e instalando
bases militares em vários países. (...) Presentemente (...) não é a
União Soviética, mas os países onde ficam essas bases que são os
primeiros a sofrer a agressão dos EUA”382.
Como se vê, Mao não hesita em utilizar a categoria “agressão” para
definir a relação que o imperialismo estadunidense institui com as grandes
potências capitalistas e até com o “Império Britânico”. Analogamente, al-
guns anos mais tarde Stálin chama os partidos comunistas da Europa Oci-
dental a “reerguerem” a “bandeira da independência nacional e da sobera-
nia nacional (...) abandonada” pelos governantes burgueses383. Ou seja, ele
os critica em primeiro lugar já não mais como imperialistas propriamente,
mas enquanto lacaios do imperialismo norte-americano.
Na base tanto de Mao como de Stálin talvez proceda o ensinamento
de Lênin. Este, ao reiterar em 1916, o caráter imperialista do conflito mun-
dial, na época em pleno desenvolvimento, observa contudo que, caso ele
terminasse “com vitórias do tipo napoleônico e com a submissão de toda
uma série de Estados nacionais capazes de vida autônoma (...), então seria
possível uma grande guerra nacional na Europa” (Loc, XXII, 308). A situa-
ção, aqui apenas evocada torna-se realidade no curso do segundo conflito
mundial: a vitória de tipo napoleônico inicialmente alcançada pelo Terceiro
Reich coloca na ordem do dia guerras de libertação nacional no próprio
coração da Europa. É sobre esta base que se desenvolve a Resistência, não
só na Iugoslávia, Albânia, Tchecoslováquia, mas também na França e mais
tarde na Itália.
Para se compreender adequadamente a atual situação internacional, é
preciso tomar nota de que em 1991 os EUA obtiveram uma vitória que se

269
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

assemelha às de tipo napoleônico. A derrota da União Soviética é tão grave


que ela sai da Guerra Fria desmembrada: partes integrantes de seu territó-
rio nacional não só se constituíram enquanto Estados independentes mas
também entraram ou se aprestam a entrar, no sistema de alianças dirigido
por Washington (é o caso dos Estados bálticos, da Geórgia etc.). Quanto à
União Europeia e ao Japão, a sua tecnologia militar está se atrasando cada
vez mais gravemente em relação àquela febrilmente desenvolvida pelos
EUA e incessantemente testada por meio de uma série de guerras “limita-
das”: está em execução aquela que os estrategistas do Pentágono orgulho-
samente definem como RMA, ou Revolution in Military Affairs (“Revolução
nas Questões Militares”).
Embora muito relevante, o aspecto militar fica em segundo plano em
relação a um outro talvez ainda mais crucial. Logo após a Segunda Guerra
Mundial, os Estados Unidos introduzem no Japão uma Constituição que
professa um antimilitarismo radical: o Artigo 9º proclama solenemente a
renúncia ao tradicional “direito soberano da nação” à guerra, ao uso da
força e à ameaça de uso da força. Agora é Washington quem sugere quando
esse artigo pode e deve ser considerado superado e descartável. Pode-se
fazer considerações análogas sobre a Alemanha. A relação dos EUA com
seus “aliados” caracteriza-se pela avassaladora superioridade que os pri-
meiros detêm não só no plano militar, mas também, e talvez ainda mais,
nos planos ideológico e político-diplomático; em última análise é a Casa
Branca que possui as chaves da legitimação do recurso à força por parte do
Japão e da Alemanha, quem decide se esse recurso à força expressa a nova
realidade “democrática” daqueles dois países ou se remete a uma malfada-
da tradição colocada sob acusação pelos tribunais internacionais de Tóquio
e Nuremberg. Ao obter a vitória ao longo da Segunda Guerra Mundial e da
Guerra Fria, os Estados Unidos alcançaram o poder de “excomungar” seus
inimigos antes mesmo de destruí-los.
Afora China e Cuba, também os próprios movimentos revolucionários,
engajados em lutas bastante difíceis recusam-se a colocar no mesmo plano

270
Quarta parte - Globalização e marxismo

os Estados imperialistas ou com potencial imperialista. Isto não vale apenas


para a resistência palestina. Veja-se a recente tomada de posição de um diri-
gente das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia):
“O comportamento europeu com respeito ao Plano ‘Gringo’
contra a Colômbia tem sido prudente. (...) Mas a Europa pode ter
um papel ainda mais decisivo, não participando nem aberta nem
camufladamente das políticas decididas por Washington. A ver-
dade é que a Europa pode e deve ter um maior protagonismo na
América Latina e Caribe384.
Na Itália os comunistas estão em uma situação particularmente favorá-
vel para compreender a dupla natureza do país onde vivem e lutam. Se, por
um lado, a Itália tem assumido poses mussolinianas e de grande potência
imperial, com Massimo D’Alema antes mesmo de Silvio Berlusconi, por
outro lado, foi devastada pela estratégia da tensão e pelas chacinas arquite-
tadas por Washington, e continua a sofrer uma situação de soberania limi-
tada, como foi confirmado pelo Caso de Cermis (isentados pela jurisdição
italiana, os militares estadunidenses envolvidos gozam na prática de imu-
nidade). Isto é, se, de um lado, a Itália participa em função subalterna de
infames agressões imperialistas, de outro, é ela própria alvo da “agressão”
do imperialismo estadunidense (para retomara análise e a categoria usadas
em 1946 por Mao Tsetung). Ainda que com as devidas cautelas, conside-
rações similares poderiam ser feitas quanto à União Europeia em seu con-
junto, que – não esqueçamos – continua a sofrer sem excessivos protestos
a espionagem econômica e militar implantada por Washington através da
rede Echelon.
Conclusão: como surge da leitura da história do movimento comunis-
ta internacional, das tomadas de posição dos movimentos revolucionários
e, em primeiro lugar, da análise concreta da situação concreta, colocar no
mesmo plano as grandes potências capitalistas não é, de fato, sinônimo de
rigor revolucionário e comunista. Convém, mais que isso, indagar-se se em
tal postura purista não haja um resíduo de populismo, que enxerga como

271
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

elemento de perturbação qualquer análise que fuja ao esquema da contra-


dição única (entre os humildes e os poderosos) e como elemento de conta-
minação qualquer relação que ultrapasse o mundo dos humildes. Se mes-
mo a contradição humildes/poderosos devesse agora assumir uma feição
estatal e se configurar como a contradição entre países pobres do Terceiro
Mundo e países ricos e imperialistas, continuar a considerá-la uma contra-
dição única será permanecer no âmbito do populismo.

5. O caráter invasivo do populismo

Estamos diante de uma corrente de pensamento, de uma tendência que


se manifesta nos mais diferentes âmbitos de problemas. Para verificar isso
retornemos a Lênin. O Que fazer? é mais ou menos contemporâneo da já
mencionada polêmica com o romantismo econômico, com o populismo.
Não por acaso, no Que fazer? desempenha função essencial a refutação da
tese de que, junto às classes subalternas e junto ao povo enquanto tal, esta-
ria depositada a consciência revolucionária, uma visão superior de mundo,
não contaminada por valores burgueses negativos. Já para Lênin, ao contrá-
rio, a consciência revolucionária é uma construção que implica a contribui-
ção decisiva dos “intelectuais burgueses” e a assunção de uma herança teó-
rica que, em grande parte, é o legado dos intelectuais burgueses (pensando
em Hegel). De outro lado, “pela sua posição social, os mesmos fundadores
do socialismo científico contemporâneo, Marx e Engels, eram intelectuais
burgueses” (Loc, V, 346). E, por sua vez, já Marx e Engels, enquanto, de
um lado, enfatizam o papel contrarrevolucionário, amiúde desempenhado
pelo subproletariado, pelos “esfarrapados”, de outro, chamam a atenção
para a contribuição dos trânsfugas da burguesia (em primeiro lugar, os
intelectuais) na formação da consciência e do movimento revolucionários.
Não há lugar aqui para o mito populista, com base no qual a consciência
revolucionária, a perspectiva de uma sociedade mais justa, seria um dom
natural e imediato do povo, dos humildes, dos oprimidos (ou mesmo da

272
Quarta parte - Globalização e marxismo

classe operária; o obreirismo é uma variante do populismo). O atual mal-


-estar em relação à forma-partido e a tendência a dissolver o partido comu-
nista no movimento do “povo de Seattle” são uma das formas com que se
manifesta o retorno do populismo.
Ao analisar o movimento populista estadunidense da segunda metade
do século 19, um proeminente historiador norte-americano observou que
tem também como característica “a concepção da história como uma cons-
piração”385. Dado que o povo é a encarnação natural e imediata dos mais
elevados valores humanos, o reino da justiça e da felicidade está ao alcance
das mãos: basta apenas neutralizar os poderosos e os traidores. Raramente
se observou o peso que essa visão de mundo possui ainda hoje no âmbito
da esquerda ocidental. Nos anos em torno de 1968 difundiu-se notavelmen-
te um livro de Renzo Del Carria que desde o título (Proletari senza rivoluzio-
ne, Proletários sem revolução) fornecia a chave de leitura da história de nosso
país, do Renascimento à Resistência. Por que a luta contra o fascismo não
se concluiu com o advento do socialismo? É claro: Stálin em Yalta e Togliatti
em Salerno o impediram. Respostas semelhantes já foram fornecidas para
a Semana Vermelha de 1914, para os motins de 1898 e para aqueles ainda
mais antigos. Tais respostas simplistas – em um livro, aliás, interessante e
rico – podem ser explicadas só pela influência do populismo: as massas,
sempre animadas pelo amor à justiça, terminavam regularmente abando-
nadas ou traídas, no momento decisivo, por dirigentes e burocratas.
Para nos darmos conta da influência ainda hoje exercida por essa ideo-
logia ou visão de mundo, tomemos agora um problema de caráter mais ge-
ral: por que o regime derivado do Outubro bolchevique frustrou, primeiro,
as esperanças de muitos, que no entanto haviam saudado com entusiasmo
seu nascimento e mais tarde terminou vencido no confronto com o mundo
capitalista? “Quem matou a revolução?” – foi um título formulado há algum
tempo pelo Rifondazione, órgão teórico da Refundação Comunista, publi-
cado como suplemento do jornal Liberazione. Era uma indagação retórica,
mas, para quem ainda alimentasse dúvidas, para dissipá-las o suplemento

273
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

estampou na primeira página uma foto de Stálin, que parecia zombar da


revolução, por ele assassinada com fria e consciente determinação. Ao for-
necer essa “explicação”, Rina Gagliardi sabia estar em sintonia com vastos
setores da esquerda italiana e ocidental. Com efeito, o populismo obteve tal
sucesso que se tornou lugar comum.
Como devem se comportar as relações políticas, econômicas e sociais
na “nova ordem” chamada a assumir o lugar do capitalismo? Através de
quais processos podem e devem ser realizadas? Quais as prioridades e de
que modo pode ser neutralizada e derrotada a formidável coalizão das
forças empenhadas em perpetuar ou restaurar o antigo regime? Seria pre-
ciso partir dessas indagações para se compreender as dúvidas, as opções,
as oscilações, as reconsiderações, as contradições, os conflitos, os erros e
crimes de um grupo dirigente ou, em seu interior, desta ou daquela perso-
nalidade. Mas os populistas não sentem a menor necessidade dessa análi-
se, eles se iludem com uma confortável certeza: o povo, as massas sabem
instintivamente qual é o reino da liberdade e da justiça e desejam-no com
todas as suas forças; se este não se realiza está claro que ocorreu uma trai-
ção, a traição de um indivíduo sequioso de poder, que não compartilha os
generosos ideais do mundo dos humildes. O “traidor” ou o “assassino” da
revolução na União Soviética é Stálin, e na China Deng. Em países como
a Iugoslávia ou o Vietnã a localização do malfeitor se apresenta mais pro-
blemática; mas nem por isso o populista se desencoraja e renuncia ao mito
da “conspiração”.
O estudioso estadunidense citado acima faz notar que “a utopia po-
pulista situa-se no passado, não no futuro”386. É um traço que também
podemos encontrar mesmo no populismo contemporâneo, presente em
movimentos e partidos que no entanto invocam o comunismo. É certo que
o projeto revolucionário deveria por definição remeter ao futuro; entre-
tanto, ao analisar as revoluções historicamente verificadas, os populistas
identificam o momento mágico sempre e unicamente no passado, em um
estágio que repentinamente se desvanece por obra de gente poderosa e pre-

274
Quarta parte - Globalização e marxismo

potente, de traidores alheios ao povo e aos ideais de liberdade e justiça


que invariavelmente o animam. Por outro lado, já vimos o Liberazione dar
às vezes a palavra ao populismo, bem mais radical, dos que escrevem ou
fazem poesias sob o encantamento do “Tibete perdido”, isto é, do Tibete
pré-revolucionário, feudal e escravista.
Os populistas de esquerda às vezes se identificam com a Revolução
Cultural. Amam agitar em especial uma palavra de ordem que, do ponto
de vista marxista, é particularmente discutível: “É justo revoltar-se!”. Como
se a história não estivesse pontilhada de rebeliões reacionárias, como a dos
proprietários de escravos do Sul dos EUA, e como se estas rebeliões não
fossem frequentemente marcadas por uma fraseologia libertária! Estamos
lidando, na realidade, com uma palavra de ordem que reconduz ao popu-
lismo. Renunciando a uma análise de classe, ela implica uma dicotomia
povo/governantes, ou humildes/poderosos, no seio da qual o poder repre-
senta sempre o momento negativo.
O “trotskismo” de nossos dias reduziu-se também a uma espécie de
populismo. Só assim pode-se explicar o fato de que ele busque desespera-
damente qualquer movimento de massas, mesmo com feição claramente
reacionária, rebatizando-o com ares revolucionários. À sua época, Boris
Iéltsin, por sua vez, comparado a Quisling por um respeitado jornalista e
estudioso da Rússia, foi celebrado como o protagonista de uma revolução
antiburocrática por parte de certos círculos “trotskistas”. E os movimentos
da Praça Tien An Men, em 1989, se triunfassem, teriam significado a che-
gada ao poder de um Iéltsin chinês – mas também neste caso não faltam
trotskistas que denunciam a revolução traída e reprimida! Uma revolução
cujos protagonistas teriam sido estudantes que levavam em triunfo a efígie
da Estátua da Liberdade, e que teria ocorrido no mesmo momento em que
o Ocidente capitalista e imperialista triunfava no Leste Europeu, enquanto
no mundo inteiro os partidos comunistas, um após outro, se apressavam a
mudar de nome. Só podem acreditar em tais milagres aqueles com índole
populista, ou seja, que renunciam à análise laica das classes e da luta de

275
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

classe substituindo-a pela fé mitológica no valor, de algum modo redentor


do “povo” e das “massas”.
Referi-me a “trotskistas” recorrendo constantemente às aspas, com o
objetivo de distinguir a caricatura burlesca do trágico original que esta pre-
tende representar. É verdade que o perigo de um escorregão populista está
bem presente no pensamento de Trotsky, com sua obsessão em explicar
com o nefasto papel de bem nutridos burocratas as dificuldades e retroces-
sos, verdadeiros ou supostos, de uma revolução impulsionada por massas
sempre dispostas a qualquer sacrifício, como se nunca tivessem ocorrido na
história situações onde o burocrata de partido ou de Estado mostra-se mais
avançado que o “povo”! Todavia, é enorme a diferença que separa Trotsky
dos seus autoproclamados seguidores atuais. Em um momento histórico
que parecia caracterizado pela irresistível arremetida da revolução, ele bem
podia esperar uma radicalização “antiburocrática” da Revolução Russa.
Porém jamais teria sonhado em legitimar como revolucionários Iéltsin ou
os dirigentes do UCK (Exército de Libertação do Kosovo), alimentados e
fardados pela Otan, assim como jamais cogitaria em definir como revolu-
cionárias as hordas vandeanas do cardeal Fabrizio Ruffo! Por outro lado,
Trotsky não hesitara em reprimir, e inclusive com particular brutalidade, a
julgar ao menos pelas acusações de seus adversários, uma revolta como a
de Kronstadt, embora esta tenha irrompido agitando a palavra de ordem
do retorno à democracia soviética original, espezinhada por um monopólio
do poder usurpado e mantido pelos burocratas bolcheviques.
Se, por um lado – por sua indulgência face ao discurso antiburocrático
–, Trotsky apresenta certo ponto de contato com o populismo, por outro,
ele é entre os dirigentes bolcheviques aquele que desenvolveu a crítica mais
lúcida e mais vigorosa contra a visão do socialismo como uma socialização
da miséria, ou melhor, contra um aspecto essencial do populismo “comu-
nista” de nossos dias.
A reconstrução de um ponto de vista marxista e comunista, neutrali-
zando as influências populistas, comporta portanto a superação das ve-

276
Quarta parte - Globalização e marxismo

lhas polêmicas entre stalinismo e trotskismo, assim como das igualmente


obsoletas polêmicas entre titismo e antititismo, ou entre maoísmo e anti-
maoísmo. É preciso saber compreender, enquanto momentos contradi-
tórios de uma mesma jornada revolucionária, grandiosa e tempestuosa,
Trotsky e Stálin ao lado de Lênin e Bukharin; Tito e as suas vítimas (os
militantes fiéis ao Cominform e à URSS); Mao junto a Liu Shaoqi e Deng
Xiaoping. Todos foram protagonistas de um grandioso processo de eman-
cipação e, ao mesmo tempo, de uma grande tragédia histórica. Obvia-
mente, não se trata de colocar no mesmo plano as diferentes personalida-
des e as diferentes posições teóricas e políticas que elas expressaram. Mas,
antes de proceder a uma diferenciação interna, trata-se de compreender
no seu conjunto o grande capítulo da história iniciado em outubro de
1917. Analogamente, pode-se e deve-se traçar o balanço da Revolução
Francesa situando em seu interior Danton, como também Robespierre e
os “arrabbiati” (enraivecidos), críticos de esquerda do líder jacobino, todos
protagonistas e vítimas de outro grandioso processo de emancipação e de
outra grande tragédia histórica.

6. O mito populista e “qualunquista” da “Nova Yalta”

Os populistas enxergaram nos desenvolvimentos da “Guerra contra o


Terrorismo”, e sobretudo no encontro de Xangai entre Jiang Zemin, Bush
e Putin, a plena confirmação de suas análises: definitivamente apagadas
as contradições e os conflitos entre as grandes potências, assistiríamos ao
advento de um mundo que situaria, de um lado, os poderosos do planeta,
hoje unidos em uma coalizão uníssona, sem rachaduras, e, de outro, os de-
serdados, os excluídos e os humildes. Apenas o “povo de Seattle” ergue-se
contra a “Nova Yalta”: eis a tese proclamada por certos artigos do Liberazio-
ne e de Il manifesto.
Porém, agora experimentemos folhear a grande imprensa informativa,
italiana e internacional. Referindo-se particularmente à Rússia, à Grã-Breta-

277
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

nha e à Alemanha, o International Herald Tribune observa, já na manchete de


fora a fora da página: “Os países-guia da Europa usam a crise afegã para re-
forçar seu papel mundial”387. Já o Corriere della Sera justifica assim e solicita
a participação da Itália na guerra: “Todo governo deve por certo calcular os
riscos e levar em conta os humores domésticos, mas com o surgimento das
‘coalizões flexíveis’ quem deseja obter voz no debate deve saber tomar a
iniciativa e ocupar seu lugar antes que se proceda à distribuição dos títulos
de mérito (...). O que devemos, ao contrário, reconhecer, gostemos ou não,
é que um conflito armado sempre desenha novas hierarquias mundiais de
poder e influência (...). Agora a Itália precisa correr atrás, não porque ame
a guerra, mas porque compreendeu o quanto pode custar não travá-la”388.
Como se vê, mesmo no que toca ao Ocidente o convicto engajamento na
expedição punitiva contra o Afeganistão não é de modo algum o fim da
rivalidade e da concorrência pela aquisição de esferas de influência e de
hegemonia.
Porém, hoje a contradição mais aguda obviamente é outra. Retome-
mos o International Herald Tribune; eis outra manchete de página inteira:
Virada política de Pequim desafia a influência de Washington na Ásia389. E quem
ainda não tenha entendido pode tirar proveito da leitura do semanário,
desta vez alemão, Die Zeit: “Sob muitos aspectos, a partir da guerra no Afe-
ganistão, um conflito entre grandes potências no velho estilo entre Pequim
e Washington tornou-se até mais provável que uma autêntica aproxima-
ção”390. Como se vê, não há sinal aqui do abraço sino-americano, sobre o
qual fantasiam os populistas.
A China, por um lado, observa com alívio que, ao menos por algum
tempo, Washington dificilmente poderá seguir a recomendação do “perito”
estadunidense William D. Shingleton, que convida o governo de seu país
a fazer uso da experiência do desmembramento da URSS para “enfrentar
de modo mais coerente a futura fragmentação da China”391. O grande país
asiático aproveita, portanto, o momento de crise para tentar aliviar a pres-
são militar e político-diplomática dos Estados Unidos (e em especial da ad-

278
Quarta parte - Globalização e marxismo

ministração Bush) e consolidar a independência política, seja neutralizando


interferências estadunidenses, seja impulsionando subsequentemente ain-
da mais o desenvolvimento econômico pelo esvaziamento do semiembar-
go tecnológico imposto pelos EUA.
Já Washington, por sua parte, se mesmo neste momento é constrangido
a concentrar-se sobre outros alvos, nem por isso renunciou ao objetivo de
contenção ou de agressão, em prejuízo do grande país asiático: pode-se ler
no La Stampa que Jiang Zemin deve “levar em conta que a batalha contra
os talibãs é conduzida em nome de princípios que um dia poderiam ser
aplicados” contra a própria China (assim como contra a Rússia)392. Uma
superpotência acelera sua corrida para conseguir o domínio ou a hegemo-
nia planetária; um país do Terceiro Mundo acelera a sua corrida para sair
do subdesenvolvimento e da situação de perigo, inclusive militar, que este
acarreta. Mas, para os populistas, os “poderosos” são todos iguais. O popu-
lismo é uma forma de “qualunquismo”393.
Uma última consideração: os devotos do mito populista e “qualunquis-
ta” da “Nova Yalta” esquecem que a Yalta histórica, de 1945, foi a véspera
imediata de uma terrível guerra fria! O fato é que, juntamente com o esque-
cimento das regras da gramática e da sintaxe do discurso político, o popu-
lismo comporta também a perda da memória histórica. Em tais condições,
torna-se sumamente problemática e perde, de algum modo, toda a eficácia
a luta pela paz e contra a política de guerra do imperialismo.
Karl Marx, apontado pela ideologia dominante como o principal res-
ponsável pelas degenerações totalitárias do século 20, à esquerda, é amiúde
defendido por gente que gostaria que ele fosse totalmente alheio à jorna-
da histórica iniciada em 1917. Deste modo, porém, pouco se compreende,
seja sobre a derrota do socialismo real no Leste, seja dos ensinamentos
do grande pensador revolucionário. Neste livro sugerimos um percurso
radicalmente distinto: a desmistificação das leituras ideológicas do sécu-
lo 20, uma investigação que reafirme a carga libertadora da Revolução de
Outubro sem calar sobre os limites, inclusive teóricos, manifestados nos

279
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

desdobramentos sucessivos, e a denúncia do caráter ainda mais agressivo


assumido hoje, com a globalização, pelo imperialismo estadunidense. Tudo
isso procede pari passu com uma releitura de Marx e Engels que depure sua
teoria dos elementos de utopismo abstrato, repropondo-a novamente como
estímulo para um movimento de emancipação à altura dos desafios atuais.

280
Notas

1 HAYEK, F. A. von. Law, Legislation and Liberty (Lei, legislação e liberdade) (1982; as três partes
que formam o volume são respectivamente de 1973, 1976 e 1979); tradução italiana, Legge,
legislazione e libertà. Milão: Il Saggiatore, 1986, p. 310.

2 Cf. LOSURDO, D. Hegel e la libertà dei moderni (Hegel e a liberdade dos modernos). Roma: Edi-
tori Riuniti, 1992, cap. VII.

3 CONSTANT, B. Principes de politique (Princípios de política) (1815); tradução italiana, Princìpi di


politica, organizada por U. Cerroni. Roma: Editori Riuniti, 19702, p. 102.

4 TOCQUEVILLE, A. de. Voyages en Angleterre, Irlande, Suisse et Algerie (Viagens pela Inglaterra,
Irlanda, Suíça e Argélia). Em: TOCQUEVILLE, A. de. Oeuvres complètes (Obras completas), orga-
nização de J. P. Mayer. Paris: Gallimard, 1951 seg., vol. V, 2, p. 81.

5 TOCQUEVILLE, A. de. L’Ancien Régime et la Révolution (O Antigo Regime e a Revolução), III, 3;


tradução italiana, L’antico regime e la rivoluzione. Milão: Rizzoli, 1981, p. 204.

6 Cf. LOSURDO, D. Hegel e la libertà dei moderni, cit., caps. V, 9 e VIII, 4.

7 RAWLS, J. A Theory of Justice (Uma teoria da Justiça). Oxford: Oxford University Press, 1971, p.
542; tradução italiana, Una teoria della giustizia. Milão: Feltrinelli, 1982, p. 441.

8 DAHRENDORF, R. Fragmente eines neuen Liberalismus (Fragmentos de um novo liberalismo)


(1987); tradução italiana, Per un nuovo liberalismo. Roma-Bari: Laterza,1988, p. 122.

9 “O professor Larry Brown, da Harward Public School of Public Health, presidente da taskforce
dos médicos sobre o problema da fome, denunciou que de 18 a 21 milhões norte-americanos
não comem o suficiente. Entre estes, 7 milhões são crianças. Ver GINZBERG, S. “Bimbi alla fame
negli USA” (“Meninos com fome nos EUA”), em L’Unitá, 19 de outubro de 1988, p. 8.

10 Cf. HAYEK, F. A. von. Law, Legislation and Liberty (Direito, legislação e liberdade), tradução ita-
liana, nota da p. 278.

11 HAYEK, F. A. von. New Studies in Philosophy, Politics and the History of Ideas (Novos estudos de
filosofia, política e história das ideias), (1978); tradução italiana, Nuovi studi di filosofia, politica,
economia e storia delle idee. Roma: Armando, 1988, p. 137 e p. 147.

281
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

12 É o próprio Hayek (New Studies in Philosophy, Politics and the History of Ideas, tradução italiana
citada, nota da p. 21) que estabelece uma equivalência entre as duas expressões.

13 POPPER, K. R. The Open Society and its Enemies (A sociedade aberta e seus inimigos) (1943);
tradução italiana, La società aperta e i suoi nemici. Roma: Armando, 1974, vol. II, p. 163.

14 POPPER, K. R. The Open Society. Tradução italiana cit., p. 186.

15 HAYEK, F. A. von. New Studies. Tradução italiana cit., p.158.

16 POPPER, K. La lezione di questo secolo (A lição deste século). Veneza: Marsilio, 1992, p. 92-94.

17 HAYEK, F. A. von. New Studies. Tradução italiana cit., p. 161.

18 Idem, p. 163; cf. também Law, Legislation and Liberty, tradução italiana cit., p. 516-517.

19 DAHRENDORF, R. Fragmente eines neuen Liberalismus (Fragmentos de um novo liberalismo),


tradução italiana cit., p. 122.

20 Idem, p. 124.

21 DAHRENDORF, R. Gesellschaft und Demokratie in Deutschland (Sociedade e democracia na Ale-


manha) (1965); tradução italiana, Sociologia della Germania contemporanea. Milão: Il Saggiato-
re, 1968, p. 226-227.

22 DAHRENDORF, R. Class and Class Conflict in Industrial Society (Classe e conflito de classe na
sociedade industrial) (1959); tradução italiana, Classi e conflitti di classi nella società industriale.
Bari: Laterza, 1963, p. 113.

23 MISES, Ludwig von. The Anti-Capitalistic Mentality (A mentalidade anrticapitalista) (1987); tra-
dução italiana, La mentalità anticapitalistica. Roma: Armando, 1988, p. 30.

24 HUMBOLDT, W. v. Ideen zu einem Versuch, die Gränzen der Wirksamkeit des Staats zu bestim-
men (Ensaio sobre os limites da ação do Estado). Em: Gesammelte Schriften (Escritos escolhi-
dos). Berlim: Academia de Ciências, 1903-36, vol. I, p. 11

25 Cf. WEBER, M. Die Wirtschfatsethik der Weltreligionen (A ética econômica das religiões do
mundo) (1915-1919); tradução italiana, L’etica economica delle religioni mondiali. In: Sociologia
della religione. Turim: Utet, 1976, vol. I, p. 331-332. Resta ver se elementos dessa “teodiceia da
felicidade” não estão presentes no próprio Max Weber quando ele afirma que, no âmbito do
capitalismo, quem perde “na luta econômica pela sobrevivência” e é “jogado à rua como de-
sempregado” é “o operário que não pode e não quer se adaptar” ao mercado e às “normas” da

282
Notas

economia (não há qualquer referência à objetidemdade da crise); cf. Die protestantische Ethik
und der Geist des Kapitalismus (A ética protestante e o espírito do capitalismo) (1904-1905);
tradução italiana, L’etica protestante e lo spirito del capitalismo. Florença: Sansoni, 1965, p. 87 e
p. 107.

26 HAYEK, F. A. von. The Constitution of Liberty (Os Fundamentos da Liberdade) (1960); tradução
italiana, La società libera. Florença: Vallecchi, 1969, p. 117-118.

27 Idem, p. 93.

28 Idem, p. 117 e p. 93.

29 TOCQUEVILLE, A. de. Souvenirs (Recordações) (1850-51); tradução italiana, Ricordi. In: Scritti
politici (Escritos políticos), organizador N. Matteucci. Turim: Utet, 1960, vol. I, p. 300 e p. 359-
360.

30 Idem, p. 352.

31 Carta a G. de Beaumont de 3 de setembro 1848, em Oeuvres complètes (Obras completas), cit.,


vol. VIII, 2, p. 38.

32 In: TOCQUEVILLE, A. de. Scritti politici (Escritos políticos), cit., vol. I, p. 281-294 (em particular,
p. 293-294).

33 HAYEK, F. A. von. New Studies, tradução italiana cit., p. 158.

34 Idem, p. 162-163.

35 MANDEVILLE, B. de. An Essay on Charity and Charity Schools (Ensaio sobre a caridade e as
escolas de caridade) (1723). In: em Id., The Fable of the Bees (A fábula das abelhas), Reimpres-
são. Indianápolis: Liberty-Classics, 1988, vol. I, p. 305-306; tadução italiana, Ricerca sulla natura
della società con il Saggio sulla carità e sulle Scuole di Carità, organizada por M. E. Scribano.
Roma-Bari: Laterza, 1974, p. 110.

36 BURKE, E. Thoughts and Details on Scarcity (Pensamentos e pormenores sobre a escassez)


(1795). In: The Works (Obras). Londres: Ridemngton, 1826, vol. VII, p. 380.

37 Cf. HIRSCHMAN, A. O. Shifting Involvements. Private Interest and Public Action (Mudando en-
volvimentos. Interesse privado e ação pública) (1982); tradução italiana, Felicità privata e felicità
pubblica. Bolonha: Il Mulino, 1983, p. 124.

38 HAYEK, F. A. von. New Studies, tradução italiana cit., p. 149.

283
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

39 Cf. LOSURDO, D. Democrazia o bonapartismo. Trionfo e decadenza del suffragio universale (De-
mocracia ou bonapartismo. Triunfo e decadência do sufrágio universal). Turim: Bollati Borin-
ghieri, 1993 (reimpressão 1997), caps. 1, § 13 e 7, § 5.

40 Cf. LOSURDO, D. Hegel e la libertà dei moderni (Hegel e a liberdade dos modernos), cit., cap. XII, 3.

41 MILL, J. S. Considerations on Representative Government (Considerações acerca do governo


representativo) (1861). In: Id., Utilitarianism, Liberty, Representative Government, organizador
H. B. Acton. Londres: Dent, 1972, p. 197.

42 DAHRENDORF, R. Reflections on the Revolution in Europe (Reflexões sobre a revolução na Euro-


pa) (1990); tradução italiana, 1989. Riflessioni sulla rivoluzione in Europa. Roma-Bari: Laterza,
1990, p. 26; HAYEK, F. A. von. Law, Legislation and Liberty, tradução italiana cit., p. 32.

43 BURKE, E. Thoughts and Details on Scarcity (Pensamentos e pormenores sobre aescassez), cit.,
p. 383.

44 SIEYÈS. E.-J. Ecrits politiques (Escritos políticos), organizador R. Zapperi. Paris: Editions des archi-
ves contemporaines, 1985, p. 236, p. 75 e p. 81.

45 CONSTANT, B. Principes de politique (Princípios de política), tradução italiana cit., p. 99-100.

46 SIEYÈS, E.-J. Ecrits politiques (Escritos políticos), cit., p. 80.

47 HAYEK, F. A. von. The Constitution of Liberty (Os Fundamentos da Liberdade), tradução italiana
cit., p. 31-32.

48 Cf. LOSURDO, D. Hegel e la libertà dei moderni, cit., cap. VII.

49 Cf. em particular HAYEK, F. A. von. New Studies, tradução italiana cit., p. 271-289.

50 Sobre o tema, remeto ao meu Nietzsche, il Moderno e la tradizione liberale (Nietzsche, o mo-
derno e a tradição liberal), em Metamorfosi del Moderno (Metamorfoses do moderno), organi-
zado por G. M. Cazzaniga, D. Losurdo, L. Sichirollo. Quattro Venti. Urbino: Instituto Italiano para
Estudos Filosóficos, 1988, p. 115-140.

51 TAWNEY, R. H. Religion and the Rise of Capitalism (A religião e a ascensão do capitalismo)


(1929); tradução italiana, La religione e la genesi del capitalismo. In: Opere (Obras), organizador
F. Ferrarotti. Turim: Utet, 1975, p. 513.

52 MILL, J. S. Considerations on Representative Government (Considerações acerca do governo


representativo), cit., p. 285-288.

284
Notas

53 MILL, J. S. On Liberty (A liberdade) (1858); tradução italiana, Saggio sulla libertà. Milão: Il Sag-
giatore, 1981, p. 33.

54 Idem, p. 130.

55 Carta a Reeve de 12 de abril de 1840. In: TOCQUEVILLE, A. de. Oeuvres complètes (Obras com-
pletas), cit., vol. IV, 1, p. 58.

56 TOCQUEVILLE, A. de. Ecrits et discours politiques (Escritos e discursos políticos). In: Oeuvres
complètes (Obras completas), cit., vol. III, 1, p. 323.

57 Idem, p. 329.

58 Carta a F. de Corcelle de 1º de dezembro de 1846, em Oeuvres complètes (Obras completas),


cit., vol. XV, 1, p. 224-225.

59 Carta de 2 agosto de 1857. In: TOCQUEVILLE, A. de. Oeuvres complètes (Obras completas), cit.,
vol. VI, 1, p. 230.

60 MARX, K. (Another Cidemlisation War, Outra guerra cidemlizadora), 10 de outubro de 1859, e


(The Opium Trade, O comércio do ópio), 20 de setembro de 1858. In: AVINERI, S. (organizador).
Karl Marx on Colonialism and Modernisation (Karl Marx sobre colonialismo e modernização).
Nova Iorque: Doubleday, 1968, p. 361 e p. 323; tradução italiana in: MARX, K. & ENGELS, F.
India Cina Russia. Le premesse per tre rivoluzioni (índia, China, Rússia, as premissas de três
revoluções) (1960), B. Maffi organizador. Milão: Il Saggiatore, 1976, p. 230 e p. 204; neste caso
não resulta muito confiável a tradução alemã contida em MEW, vol. XIII, p. 516 e vol. XII, p. 552.

61 Carta a Reeve de 30 de janeiro de 1858. In: TOCQUEVILLE, A. de. Oeuvres complètes (Obras
completas), cit., vol. VI, 1, p. 254.

62 TOCQUEVILLE, A. de. De la démocratie en Amerique (A democracia na América). In: Oeuvres


complètes (Obras completas), cit., vol. I, p. 357 e nota da p. 355.

63 Carta a F. de Corcelle, de 1º de dezembro de 1846. In: Oeuvres complètes (Obras completas),


cit., vol. XV, 1, p. 224.

64 TOCQUEVILLE, A. de. Ecrits et discours politiques (Escritos e discursos políticos). In: Oeuvres
complètes (Obras completas), cit., vol. III, 1, p. 324; cf. cap. III, 36.

65 SIEYÈS, E.-J. Ecrits politiques (Escritos políticos), cit., p. 80.

285
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

66 Cf. HUNECKE, V. “Tendenze anticapitalistiche nella rivoluzione francese” (“Tendências anticapi-


talistas na Revolução Francesa”). In: Società e storia (Sociedade e história), I (1978), nº 1, p. 164.

67 TOCQUEVILLE, A. de. Souvenirs (Recordações), tradução italilana cit., p. 360-361.

68 Cf. LOSURDO, D. “Pene capitali nell’America di razza” (“Penas capitais na América racial”). In: Il
manifesto, de 1º de maio de 1992.

69 PONTING, C. “Churchill’s plane for race purity” (“O plano de Churchill para a pureza de raça”).
In: The Guardian, 20-21 de junho de 1992.

70 DAHRENDORF, R. Fragmente eines neuen Liberalismus (Fragmentos de um novo liberalismo),


tradução italiana, p. 139 e p. 127.

71 Cf. FAYE, G. & BENOIST, A. de. “Contro lo Stato-Provvidenza” (“Contra o Estado-Providência”).


In: Trasgressioni, setembro-dezembro de 1987, p. 81-94.

72 BENOIST, A. de. Vu de droite (Visto da direita). Paris: Copernic, 1978, p. 259.

73 Cf. FAYE, G. “Il neo-conservatorismo americano. Un capitolo dell’ideologia egualitaria” (“O ne-
oconservadorismo americano. Um capítulo da ideologia igualitária”). In: Trasgressioni, maio-a-
gosto de 1986, p. 61-71.

74 BENOIST, A. de. Les idees à l’endroit (As ideias em seu lugar). Paris: Hallier-Libres, 1979, p. 31, p.
159 e p. 167 segs.

75 HAYEK, F. A. von. Law, Legislation and Liberty (Direito, legislação e liberdade), tradução italiana
cit., p. 311.

76 Declaração feita na Wirtschaftswoche de 6 de março de 1981.

77 MALTHUS, Th. R. An Essay on the Principles of Population (Um ensaio sobre princípios da popu-
lação) (1826); tradução italiana, Saggio sul principio di popolazione. Turim: Utet, 1965, p. 497.

78 A respeito disso, cf. LOSURDO, D. Hegel e la libertà dei moderni, cit., cap. XII, 3.

79 Ibidem.

80 COLLETTI, L. Ideologia e società (Ideologia e sociedade). Bari: Laterza, 1969, p. 280.

81 HAYEK, F. A. von. New Studies, tradução italiana cit., p. 280.


286
Notas

82 MANDEVILLE, B. de. An Essay on Charity and Charity Schools, cit., p. 307-308; tradução italiana
cit., p. 112.

83 Cf. LOSURDO, D. Hegel e la libertà dei moderni, cit., cap. IV, 2-3.

84 Cf. KERYAN, L. L’égalité aux Etats-Unis: mythes et réalité (Legalidade nos EUA: mitos e reali-
dade). Nancy: Presses Universitaires, 1991, p. 78-80.

85 CONSTANT, B. Principes de politique, tradução italiana cit., p. 102.

86 SIEYÈS, E.-J. Ecrits politiques, cit., p. 236 e p. 81.

87 LOCKE, J. An Essay Concerning Human Understanding (Ensaio Sobre o Entendimento Humano)


(1689), IV, XX, 2; tradução italiana, Saggio sull’intelletto umano, organizador M. e N. Abbagnano.
Turim: Utet, 1971, p. 804.

88 MANDEVILLE, B. de. The Fable of the Bees (A fábula das abelhas) (1705 e 1714). Reimpres-
são in Indianápolis: Liberty-Classics, 1988, vol. I, Remark (L.), p. 107-123; tradução italiana,
La favola delle api, organizador T. Magri. Roma-Bari: Laterza, 1987, Parte I, Nota L, p. 70-79;
Id., An Essay on Charity and Charity Schools, cit., p. 302 e p. 287-289; tradução italiana, p.
106 e p. 91-92.

89 HAYEK, F. A. von. The Road to Serfdom (O caminho da servidão) (1944). Londres: Ark Paper-
backs, 1986, p. 66.

90 LOCKE, J. An Essay Concerning Human Understanding, IV, XX, 2; tradução italiana cit., p. 805.

91 Cf. GOSSET, Th. F. Race. The History of an Idea in America (Raça. A história de uma ideia na
América). Nova Iorque: Schocken Books, 1965, p. 255.

92 TOGLIATTI, P. In tema di libertà (Sobre o tema da liberdade) (1954). In: Id., Opere (Obras), orga-
nizador L. Gruppi. Roma: Editori Riuniti, 1974-1984, vol. V, p. 866.

93 LOCKE, J. Two Treatises of Civil Government (Dois tratados sobre o governo civil) (1690), I, § 1 e
II, § 85 (para o Segundo Trattato foi usada a tradução italiana de L. Formigari, Trattato sul gover-
no. Roma: Editori Riuniti, 1974).

94 Ver em especial BOBBIO, N. “Stuart Mill liberale e socialista” (“Stuart Mill liberal e socialista”). In: La
lettera del venerdì (A Carta de Sexta-feira), suplemento do l’Unità, 31 de maio de 1991, p. 26-27.

95 Entrevista a Der Spiegel (23 de março de 1992) e La Stampa (9 de abril de 1992).

287
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

96 BRYCE, J. Studies in History and Jurisprudence (Estudos de história e jurisprudência). Nova


Iorque/ Oxford: University Press, 1901, p. 146.

97 Cf. CANFIELD, L. H. The Presidency of Woodrow Wilson (A presidência de Woodrow Wilson).


Rutherford (Nova Jersey): University Press,1966, p. 109.

98 Cf. LOSURDO, D. “Totalitario è il nostro secolo” (“Totalitário é o nosso século”). In: Ilmanifesto,
de 8 de janeiro de 1992.

99 VECA, S. La società giusta (A sociedade justa). Milão: Il Saggiatore, 1982, p. 35.

100 Cf. CANFIELD, L. H. The Presidency of Woodrow Wilson, cit., p. 97.

101 Cf. LOSURDO, D. Democrazia o bonapartismo. Trionfo e decadenza del suffragio universale (De-
mocracia ou bonapartismo. Triunfo e decadência do voto universal), cit., cap. I.

102 LOCKE, J. The Fundamental Constitutions of Carolina (As Constituições fundamentais da Caroli-
na) (1669), art. CX. In: Id., The Works, Londres, 1823, reprodução em facsímile, Scientia, Aalen,
1963, vol. X, p. 196.

103 SMITH, A. Lectures on Jurisprudence (Leituras de jurisprudência). Oxford: University Press,


1978, p. 452-453 e p. 182.

104 Cf. The Lincoln Catechism (O catecismo de Lincoln) (1864). In: SCHLESINGER JR., A. (organiza-
dor). History of United States Political Parties (História dos partidos políticos dos Estados Uni-
dos). Nova Iorque/ Londres: Chelsea House e Bawker, 1973, p. 915-921.

105 HOBHOUSE, L. T. Democracy and Reaction (Democracia e reação). Londres: Fisher Unwin,
1909, p. 219-220.

106 POPPER, K. La lezione di questo secolo (A lição deste século), cit.

107 (O ensaio aqui reproduzido, publicado em 1992, faz claramente referência à Primeira Guerra do
Golfo, de 1991, e ao então presidente dos EUA, George Bush pai. Sobre a posição de Norberto
Bobbio cf. Cap. III, 4).

108 (Em 1991, ano da primeira publicação do ensaio aqui reproduzido, o atual presidente da
república, Giorgio Napolitano, era expoente de primeira linha da ala reformista “melhorista”
do então recém-nascido PDS, ou do Partido Democrático da Esquerda, fundado depois da
dissolução do Partido Comunista Italiano).

288
Notas

109 In: TURATI, F. & KULISCHOV, Anna. Carteggio (Correspondência). Turim: Einaudi, 1977, vol. IV,
1, p. 62-63.

110 SALVEMINI, G. “Dopo lo sciopero generale” (“Depois da greve geral”) – nota em L’Unità de 26
de junho de 1914. In: Opere (Obras). Milão: Feltrinelli, 1964-1978, vol. VIII, p. 458-459.

111 SALVEMINI, G. “La guerra per la pace” (“A guerra pela paz”), em L’Unità de 28 de agosto de
1914. In: Opere, cit., vol. III, 1, p. 361.

112 SALVEMINI, G. “Non abbiamo niente da dire” (“Nada temos a dizer”), em L’Unità de 4 de setem-
bro de 1914. In: Opere, cit., vol. III, 1, p. 366.

113 SALVEMINI, G. “Guerra o neutralità?”(“Guerra ou neutralidade?”) (2 de janeiro de 1915). In:


Opere, cit., vol. III, 1, p. 473.

114 SALVEMINI, G. “Fra la grande Serbia ed una più grande Austria” (“Entre a Grande Sérvia e a
maior Áustria”), em L’Unità de 7 de agosto de 1914. In: Opere, cit., vol. III, 1, p. 349.

115 SALVEMINI, G. “Guerra o neutralità?”, cit., p. 473-474.

116 SALVEMINI, G. “Una strana affermazione” (“Uma estranha afirmação”), em L’Unità de 15 de


junho de 1918. In: Opere, cit., vol. VIII, p. 502.

117 SALVEMINI, G. “L’ostruzionismo” (“O obstrucionismo”), em L’Unità de 3 julho de 1914. In: Ope-
re, cit., vol. VIII, p. 461.

118 SALVEMINI, G. Nota em L’Unità de 15 de janeiro de 1915. In: Opere, cit., vol. III, 1, p. 448.

119 SALVEMINI, G. Una strana affermazione, cit., p. 503.

120 LUXEMBURGO, R. Die Krise der Sozialdemokratie (A crise da socialdemocracia) (1916). In: em
Politische Schriften (Escritos políticos), organizador O. K. Flechtheim. Frankfurt: Eüropäische Ver-
lagsanstalt, 1968, p. 86-89.

121 SALVEMINI, G. “La censura”. Em L’Unità, de 26 de abril de 1917. In: Opere, cit., vol. VIII, p. 482.

122 Ver os textos reportados em FERRO, M. L’Occident devant la révolution soviétique (O Ocidente
diante da Revolução Soviética). Bruxelas: Editions Complexe, 1980, p. 22-24.

123 Ibidem.

289
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

124 Intervenção na Câmara, em 23 de fevereiro de 1918. In: TURATI, F. Socialismo e riformismo nella
storia d’Italia (Socialismo e reformismo na história da Itália). Scritti politici (Escritos políticos),
1878-1932, organizador F. Livorsi. Milão: Feltrinelli, 1979, p. 326.

125 Intervenção na Câmara, em 12 de junho de 1918. In: TURATI, F. Op. cit., p. 328.

126 LUXEMBURGO, R. Op. cit., p. 33 e p. 31.

127 Cf. DEGLI’INNOCENTI, M. L’età del riformismo (A idade do reformismo) (1900-1911). In: SABBA-
TUCCI, G. (org.). Storia del socialismo italiano (História do socialismo italiano). Roma: Il Poligono,
1980, vol. II, p. 284.

128 Assim na intervenção na Câmara, em fevereiro de 1912, relatada em SABBATUCCI, G. (org.). Op.
cit., vol. II, p. 498-499.

129 Cf. DEGL’INNOCENTI, M. La crisi del riformismo e gli intransigenti (A crise do reformismo e os
intransigentes) (1911-1914). In: SABBATUCCI, G. (org.). Op. cit., vol. II, p. 360.

130 SALVEMINI, G. “Colonia e Madre Patria e I valori morali della guerra” (“Colônia, mãe pátria e os
valores morais da guerra”). Em: L’Unità de 13 de janeiro e 5 de outubro de 1912. In: Opere, cit.,
vol. III, 1, p. 152 e p. 240.

131 Discurso no Congresso de Modena em 17 de outubro de 1911. In: TURATI, F. Op. cit., p. 243.

132 Idem, p. 244.

133 SALVEMINI, G. “La peggiore ipotesi” (“A pior hipótese”). Em L’Unità de 26 de fevereiro de 1915.
In: Opere, cit., vol. III, 1, p. 483.

134 SALVEMINI, G. Colonia e Madre Patria, cit., p. 150.

135 Relatado em SETTEMBRINI, D. Storia dell’idea anti-borghese in Italia– 1860-1989 (História da


ideia antiburguesa na Itália –1860-1989). Roma-Bari: Laterza, 1991, p. 193-194.

136 SALVEMINI, G. Colonia e Madre Patria, cit., p. 149-150; o grifo é de Salvemini.

137 Ver correspondência de Nova Iorque, assinada como ar. zam. Em La Repubblica, 23 de março de
1991, p. 9.

138 Cf. DEGL’INNOCENTI, M. La crisi del riformismo e gli intransigenti (1911-1914), cit., p. 358.

139 Ver o artigo de MARSILI, G. em L’Unità, 23 de março de 1991, p. 12.

290
Notas

140 D’ARCAIS, P. Flores. Politica di pace, non l’assolutismo di certi pacifisti (Política de paz, o não
absolutismo de certos pacifistas). Em L’Unità, 22 de janeiro de 1991, p. 13.

141 Polemizei com ele sobre esse tema já em “È fallita la rivoluzione d’Ottobre?” (“Faliu a Revolu-
ção de Outubro?”). In: Marxismo oggi, janeiro de 1991, p. 31-38.

142 SALVEMINI, G. Le origini della guerra (As origens da guerra) (conferência em 16 de novembro
de 1914). In: Opere, cit., vol. III, 1, p. 394.

143 SALVEMINI, G. Colonia e Madre Patria, cit., p. 149.

144 Ver a respeito a polêmica de GRASS, G.,em Die Zeit,13-22 de março de 1991, p. 63.

145 Como é confirmado pelo apoio do PDS à intervenção na Somália, para a qual o governo italia-
no reivindica uma espécie de “mandato”. (A participação italiana na missão da ONU “Restore
Hope” (Restaurar a esperança) de 1992-1994 gozou de amplo consenso entre as forças políticas.
Mesmo depois da subsequente retirada da Itália de sua ex-colônia, a tragédia somaliana pros-
seguiu quase ininterruptamente até nossos dias e impôs imensos sofrimentos à população, e é
entre outras coisas também alvo de recentes e repetidos ataques aéreos por parte dos EUA).

146 Ver Arbeitshäuser (Casas de trabalho), organizado por MOHL, R. Staats-Lexikon oder Encyclo-
pädie der Staatswissenschaften, organizadores C. von Rotteck e C. Welcker, Altona, 1834, vol. I,
em particular p. 659-664; sobre o tema cf. LOSURDO, D. Tra Hegel e Bismarck. La rivoluzione del
1848 e la crisi della cultura tedesca (Entre Hegel e Bismarck. A Revolução de 1848 e a crise da
cultura alemã). Roma: Editori Riuniti, 1983, p. 144-148.

147 HAYEK, F. A. von. New Studies, tradução italiana cit., p. 143.

148 O texto de 1697 foi escrito por Locke, enquanto membro da Commission on Trade (Câmara de
Comércio), e é citado em BOURNE, H. R. F. The Life of John Locke (A vida de John Locke), Londres,
1876, reimpressão Aalen: Scientia, 1969, vol. II, p. 377-390.

149 LOCKE, J. Two Treatises of Civil Government, cit., II, § 139.

150 Cf. The Works of Jeremy Bentham (As obras de Jeremy Bentham), organizador J. Bowring.Edim-
burgo: Tait, 1863, vol. IV, p. 40.

151 SIEYÈS, E.-J. Ecrits politiques, cit., p. 197 e p. 203

152 Cf. GUILLEMIN, H. Benjamin Constant muscadin1795-1799. Paris: Gallimard, 1958, p. 275-279.

291
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

153 WEBER, M. Der Sinn der “Wertfreiheit” der soziologischen und ökonomischen Wissenschaften
(O sentido da “neutralidade axiológica” nas ciências sociológicas e econômicas), 1917. In: Me-
thodologische Schriften, Studienausgabe (Escritos metodológicos, edição de estudos). Frankfurt
am Main: Fischer, 1968, p. 276.

154 São palavras de ordem que depois encontraram sua consagração em duas obras publicadas na
Alemanha no entreguerras: JÜNGER, E. Die totale Mobilmachung (A mobilização total), 1930 e
LUDENDORFF, E. Der totale Krieg (A guerra total), Ludendorff, Munique, 1935, que fala repeti-
damente da “política total” como pressuposto da “guerra total” (cf. p. 35 e passim).

155 O termo “Totalismus” começa a aparecer imediatamente depois da guerra (cf. PAQUET, A. Im
Kommunistischen Rußland. Briefe aus Moskau (Na Rússia comunista. Cartas de Moscou). Jena:
Diederichs, 1919, p. 111, citado por NOLTE, E. Der europäische Bürgerkrieg 1917-1945. Natio-
nalsozialismus und Bolschewismus (A guerra civil europeia. Nacionalismo e bolchevismo). Frank-
furt am Main-Berlim: Ullstein, 1987, p. 563).

156 CROCE, B. “Soppravvivenze ideologiche” (“Sobrevivências ideológicas”) (1918), em L’Italia dal


1914 al 1918 (A Itália de 1914 a 1918). Pagine sulla guerra (Páginas sobre a guerra). Bari: Later-
za, 1950, p. 252-253.

157 TOGLIATTI, P. “Pagine sulla guerra”, di B. Croce (“Páginas sobre a guerra”, de B. Croce) (1919). In:
Opere, cit., vol. I, p. 40; sobre o tema cf. LOSURDO, D. Gramsci, Gentile, Marx e le filosofie della
prassi (Gramsci, Gentile, Marx e as filosofias da práxis), em Gramsci e il marxismo contempora-
neo (Gramsci e o marxismo contemporâneo), organizador B. Muscatello. Roma: Editori Riuniti,
1990, p. 102-108.

158 CROCE, B. “Cultura tedesca e politica italiana” (“Cultura alemã e política italiana”), 1914. In:
L’Italia dal 1914 al 1918, cit., p. 22.

159 Sobre o tema cf. LOSURDO, D. Tra Hegel e Bismarck, cit., p. 160, 332-335.

160 CROCE, B. Il partito come giudizio e come pregiudizio (O partido como conceito e como precon-
ceito) (1912) e Fede e programmi (Fé e programas) (1911). In: Cultura e vita morale (Cultura e
vida moral) (1914). Bari: Laterza, 1955, p. 195-196 e 162-163.

161 MOSSE, G. L. Le guerre mondiali dalla tragedia al mito dei caduti (As guerras mundiais da tra-
gédia ao mito dos tombados). Roma-Bari: Laterza, 1990, p. 73.

162 CROCE, B. “Tre socialismi” (“Três socialismos”) (1918). In: L’Italia dal 1914 al 1918, cit., p. 284.

163 POLIAKOV, L. L’histoire de l’antisémitisme. Tome IV, L’Europe suicidaire (A história do antissemi-
tismo. Tomo IV. A Europa suicida): 1870-1933. Paris: Calmann-Lévy, 1977, p. 200.

292
Notas

164 Idem, p. 228.

165 Idem, p. 228-229; cf. também NOLTE, E. Der europäische Bürgerkrieg, cit., p. 111.

166 MICHAELIS, M. Mussolini and the Jews: German-Italian Relations and the Jewish Question in
Italy 1922-1945 (Mussolini e os judeus: as relações germano-italianas e a questão judaica na
Itália 1922-1945) (1978); tradução italiana, Mussolini e la questione ebraica. Le relazioni ita-
lo-tedesche e la politica razziale in Italia. Milão:Comunità, 1982, p. 35.

167 Cf. POLIAKOV, L. L’histoire, cit., p. 229. Em relação à Revolução Francesa a tese do complô judai-
co já fora formulada por Edmund Burke: cf. LOSURDO, D. “Vincenzo Cuoco, la rivoluzione napo-
letana del 1799 e la comparatistica delle rivoluzioni” (“Vincenzo Cuoco, a revolução napolitana
de 1799 e os estudoscomparativos das revoluções”). In: Società e storia, 1990, n. 46, p. 907-908.

168 Cf. POLIAKOV, L. L’histoire, cit., p. 226 e p. 232-233.

169 WOODWARD, V. Origins of the New South 1877-1913 (Origens do Novo Sul 1877-1913) (1951);
tradução italiana, Le origini del nuovo Sud. Bolonha: Il Mulino, 1963, p. 332.

170 COHN, N. Warrant of Genocide (A garantia do genocídio) (1966); tradução francesa, Histoire
d’un mythe. La “Conspiration” juive et les “Protocoles des Sages de Sion”. Paris: Gallimard, 1967,
p. 157; cf. também POLIAKOV, L. L’histoire, cit., p. 271 sgs. e HEER, F. Gottes erste Liebe. Die Juden
im Spannungsfeld der Geschichte. Frankfurt am Main-Berlim: Ullstein, 1986, p. 193.

171 A respeito de von Schirach cf. SHIRER, W. L. The Rise and Fall of the Third Reich (Ascenção e
queda do Terceiro Reich) (1959); tradução italiana, Storia del Terzo Reich. Turim: Einaudi (1962),
1974, p. 230.

172 Ver o depoimento de Felix Kersten, massagista finlandês de Himmler, conservado no Centre de
documentation Juive et contemporaine (Das Buch von Henry Ford (O livro de Henry Ford), 22 de
dezembro de 1940, n. CCX-31). Poliakov (L’histoire, cit., p. 278) já havia chamado a atenção para
este testemunho, ao qual, porém, faz referência muito sumariamente.

173 Cf. ECKART, D. Der Bolschewismus von Moses bis Lenin (O bolchevismo de Moisés a Lênin).
Zwiegespräch zwischen Adolf Hitler und mir (Diálogo entre Adolf Hitkler e eu). Munique: Hohe-
neichen Verlag, 1924, p. 52, nota 30. Sobre o tema cf. NOLTE, E. Der Faschismus in seiner Epoche
(O fascismo em sua época) (1963); tradução italiana, I tre volti del fascismo. Milão: Mondadori,
1978, p. 690, nota 132.

174 Ver o já citado depoimento do massagista finlandês de Himmler.

293
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

175 Ver por exemplo o Vorwort (prefácio) da editora alemã, para a 29ª e a 30ª edições, que trazem a
data de junho e agosto de 1933: FORD, H. Der international Jude. Leipzig: Hemmer, 1933, p. 3-5.

176 Cf. NOLTE, E. Der europäische Bürgerkrieg, cit., e Id., “War nicht der Archipel Gulag ursprüngli-
cher als Auschwitz?” (“Não seria o Arquipélago Gulag o original de Auschwitz?”). In: Frankfurter
Allgemeine Zeitung, 06-06-1986.

177 NOLTE, E. Der Faschismus in seiner Epoche, tradução italiana cit., p. 465.

178 Cf. POLIAKOV, L. L’histoire, cit., p. 225.

179 Idem, p. 221.

180 MOSSE, G. L. Le guerre mondiali, cit., p. 191.

181 Sobre isso cf. CLAUSSEN, D. Vom Judenhaß zum Antisemitismus, Materialien einer verleugneten
Geschichte. Darmstadt-Neuwied: Luchterhand, 1987, p. 160-164.

182 Cf. POLIAKOV, L. L’histoire, cit., p. 225.


183 MOSSE, G. L. Le guerre mondiali, cit., p. 176.

184 COHN, N. Warrant of Genocide, tradução francesa cit., p. 128. A. J. Mayer exprime-se em ter-
mos análogos em Why Did the Heavens Not Darken?(Por que os céus não escurecem?) (1988);
tradução italiana, Soluzione finale. Lo sterminio degli Ebrei nella storia europea (Solução final. O
extermínio dos judeus na história europeia). Milão: Mondadori, 1990, p. 7.

185 HEIDEN, K. Les origines de Hitler et du nationalsocialisme (As origens de Hitler e do nacional-so-
cialismo), Paris, 1934, p. 44-45 e POLIAKOV, L. La causalité diabolique (A casualidade diabólica).
Paris: Calmann-Lévy, 1985, vol. II, p. 344.

186 POLIAKOV, L. La causalité diabolique, cit., vol. II, p. 377.

187 Ver as conclusões de POLIAKOV, L. L’histoire de l’anti-semitisme. Tome IV: L’Europe suicidaire,
cit., que remete a uma série de autores, em grande medida já aqui citados.

188 Cf. POLIAKOV, L. Bréviaire de la haine. Le III Reich et les Juifs (Breviário do ódio. O Terceiro Reich
e os judeus) (1951); tradução italiana, Il nazismo e lo sterminio degli Ebrei (O nazismo e o exter-
mínio dos judeus). Turim: Einaudi, 1955, p. 168-169. Cf. KRAUSNICK, H. Hitlers Einsatzgruppen.
Die Truppen des Weltanschauungskrieges 1938-1942 (Os Grupos de Hitler. As tropas da guerra
ideológica 1938-1942). Frankfurt am Maine: Fischer,1985, p. 184 e MAYER, A. J. Why Did the
Heavens Not Darken?(Por que os céus não escurecem?), tradução italiana cit., p. 14.

294
Notas

189 CARR, E. H. A History of Soviet Russia. The Bolshevik Revolution – 1917-1923 (Uma história da
Rússia soviética. A Revolução Bolchevique –1917-1923) (1950); tradução italiana, La rivoluzione
bolscevica. Turim: Einaudi, 1964, p. 882 e p. 880.

190 Relatado em NOLTE, E. Der europäische Bürgerkrieg, cit., p. 111 e nota 41 da p. 558.

191 Idem, p. 558-559, nota 41.

192 Cf. ARENDT, H. The Origins of Totalitarianism (As origens do totalitarismo), Nova Iorque (1966);
tradução italiana Le origini del totalitarismo. Milão: Comunità, 1989, p. 602; uma carta do jovem
Karl Jaspers a seus pais se refere à onda de indignação na Alemanha: cf. DE ROSA, R. Politische
Akzente im Leben eines Philosophen. Karl Jaspers in Heidelberg1901-1946 (Tendências políti-
cas na vida de um filósofo. Karl Jaspers em Heidelberg 1901-1946), Posfácio de K. Jaspers, Er-
neuerung der Universität. Reden und Schriften 1945-46 (A renovação da universidade. Discursos
e escritos 1945-1946). Heidelberg: Schneider, 1986, p. 302-305.

193 Relatado em BALFOUR, M. The Kaiser and his Time (O kaiser e seu tempo) (1964); tradução
italiana, Guglielmo II e i suoi tempi. Milão: Il Saggiatore, 1968, p. 297.

194 GUMPLOWICZ, L. Der Rassenkampf. Soziologische Untersuchungen (A luta de raças. Estudos


sociológicos). Innsbruck: Wagnerschen Univ. Buchhandlung, 1883, p. 249; sobre o tema cf. LO-
SURDO, D. La catastrofe della Germania e l’immagine di Hegel (A catástrofe da Alemanha e a
imagem de Hegel). Milão: Guerini, 1987, p. 139. (Ver ainda LOSURDO, D. Hegel e la Germania.
Filosofia e questione nazionale tra rivoluzione e reazione (Hegel e a Alemanha. Filosofia e ques-
tão nacional entre revolução e reação). Milão: Guerini, Instituto Italiano para Estudos Filosófi-
cos, 1997, p. 677).

195 FEUCHTWANGER, E. J. Democracy and Empire: Britain 1863-1914 (Democracia e império. A


Grã-Bretanha,1863-1914) (1985); tradução italiana, Democrazia e impero. L’Inghilterra fra il
1865 e il 1914. Bolonha: Il Mulino, 1989, p. 288. De fato, em 1901 Emily Hobhouse publicou
em Londres seu impressionante Report of a visit to the camps of women and children in the
Cape and Orange River (Relatório de uma visita aos campos de mulheres e crianças no Cabo e
Rio Orange); a tradução alemã (Zustände in den südafrikanischen Konzentrationslagern, Berlim,
1902) usa, já no título, a denominação mais vaga de camps, com Konzentrationslager (campos
de concentração), cf. DE ROSA, R. Politische Akzente (Acentos políticos), cit., p. 303 e nota 3.

196 Cf. NOLTE, E. Der europäische Bürgerkrieg, cit., p. 510; LOSURDO, D. Democrazia o bonaparti-
smo. Trionfo e decadenza del suffragio universale, cit., cap. V, § 2.

197 No que se refere aos antifascistas alemães na França, cf. SCHMID, K. P. “Gefangen in der zweiten
Heimat” (“Prisioneiros na segunda pátria”). In: Die Zeit, 22-25 de maio de 1990, p. 47-48; cf. cap.
III, 3a.

295
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

198 TOGLIATTI, P. Che cos’è il liberalismo?(O que é o liberalismo?) (1919). In: Opere, cit., vol. I, p.
63-64.

199 Idem, p. 65-67.

200 A carta de Gentile, de 31 de maio, é relatada em JACOBELLI, J. Croce, Gentile. Dal sodalizio al
dramma (Croce, Gentile. Da associação ao drama). Milão: Rizzoli, 1989, p. 141. Sobre a postura
de Croce de benévola indulgência em relação ao movimento fascista, cf. BOBBIO, N. “Benedetto
Croce e il liberalismo” (“Benedetto Croce e o liberalismo”), 1955, em Politica e cultura. Turim:
Einaudi (1955), 1977, em particular p. 217-221.

201 CROCE, B. Materialismo storico ed economia marxista (Materialismo histórico e economia mar-
xista), (Prefácio à 3ª ed., 1917). Bari: Laterza, 1973, p. XIII-XIV.

202 Sobre o tema cf. LOSURDO, D. “Le catene e i fiori. La critica dell’ideologia tra Marx e Nietzsche”
(“Os grilhões e as flores. A crítica da ideologia de Marx a Nietzsche”). In: Hermeneutica, Urbino,
1987, nº 6, p. 87-143.

203 HAYEK, F. A. von. The Constitution of Liberty, tradução italiana, cit., p. 76.

204 HAYEK, F. A. von. The Road to Serfdom, cit., p. 16.

205 HAYEK, F. A. von. The Constitution of Liberty, tradução italiana cit., p. 21 e p. 38.

206 Cf. LOSURDO, D. La comunità, la morte, l’Occidente. Heidegger e l’“ideologia della guerra” (A co-
munidade, a morte, o Ocidente. Heidegger e a “ideologia da guerra”). Turim: Bollati Boringhieri,
1991, cap. 3, § 7 e cap. 7.

207 A aproximação é de Hayek, que aprova também as teses de Jacob L. Talmon (The Origins of To-
talitarian Democracy (As origens da democracia totalitária), Secker and Warburg, London 1952)
sobre Rousseau pai da “democracia totalitária” (cf. HAYEK, F. A.von. The Constitution of Liberty,
tradução italiana cit., p. 76-77). É preciso portanto negar até a Rousseau o direito à cidadania de
“autêntico” ocidental? É uma consequência que não parece capaz de fazer Hayek recuar, o qual
não apenas condena a “tradição francesa” como termina por incluir nesta última os “entusiastas
da Revolução Francesa”, mesmo os ingleses ou norte-americanos, como Godwin, Priestley, Price,
Paine e o próprio Jefferson, pelo menos a partir de sua fatal “estadia na França” (idem, p. 77).

208 HILBERG, R. The Destruction of European Jews (A destruição dos judeus europeus) (1985); tra-
dução francesa, La destruction des Juifs d’Europe. Paris: Fayard, 1988, p. 39.

296
Notas

209 Assim nas suas conversas à mesa, de 30 de agosto e 8 de agosto de 1942: ver as Bormann-Ver-
merke (Anotações de Bormann) (transcrição das conversas à mesa de Hitler, organizada por
Martin Bormann); tradução italiana, A. Hitler, Idee sui destini del mondo. Pádua: Edizioni di Ar,
1980, p. 591 e p. 541.

210 Cf. LOSURDO, D. La catastrofe della Germania e l’immagine di Hegel, cit., p. 133-145. (Ver ainda
LOSURDO, D. Hegel e la Germania, cit., p. 673-681).

211 ARENDT, H. The Origins of Totalitarianism, tradução italiana cit., p. 633 e p. 543; sobre o antie-
statismo nazista, cf. LOSURDO, D. La catastrofe della Germania e l’immagine di Hegel, cit., cap.
III. (Ver ainda LOSURDO, D. Hegel e la Germania, cit., cap. XIV, §§ 18-25).

212 BAKUNIN, M. “Die Reaktion in Deutschland” (“A reação na Alemanha”) (1842). In: Id., Philo-
sophie der Tat (Filosofia da ação). Colônia: Hegner, 1968, p. 96.

213 CARR, E. H. A History of Soviet Russia.The Bolshevik Revolution 1917-1923, tradução italiana cit.,
p. 128.

214 Cf. LOSURDO, D. L’égalité e i suoi problemi (L’égalité e seus problemas), em BURGIO, A.; LO-
SURDO, D. & TEXIER, J. (org.). Egalité / inégalité. Urbino: Quattro Venti, Instituto Italiano para
Estudos Filosóficos, 1990, p. 139-149.

215 LÊNIN, V. I. Quaderni filosofici, organizador L. Colletti. Milão: Feltrinelli, 1969, p. 88-89.

216 Cf. JORDAN, W. D. White over Black. American Attitudes Towardthe Negro 1550-1812. Nova
Iorque: Norton & Company, 1968, p. 108-111.

217 TOCQUEVILLE, A. de. Ecrits sur le système pénitentiaire en France et à l’étranger (Escritos sobre o
sistema penitenciário na França e no estrangeiro). In: Oeuvres complètes, cit., vol. IV, 1, p. 323-324.

218 HEGEL, G. W. F. Grundlinien der Philosophie des Rechts, § 200 A. Cf. LOSURDO, D. Hegel e la
libertà dei moderni, cit., cap. VII, 10.

219 CROCE, B. “Cultura tedesca e cultura mondiale” (“Cultura alemã e cultura mundial”) (1930). In:
Conversazioni critiche. Quarta série. Bari: Laterza, 1951, p. 287.

220 Assim segundo o julgamento de um historiador liberal inglês (George M. Trevelyan): sobre o
tema cf. LOSURDO, D. “La révolution française a-t-elle échoué” (“A Revolução Francesa fracas-
sou”). In: La Pensée, janeiro-fevereiro de 1989, nº 267, p. 86.

221 PIERRE, V. Histoire de la République de 1848 (História da República de 1848). Paris: Plon, 1878,
vol. II, p. 322.

297
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

222 Sobre as ambiguidades da categoria de estatismo, cf. LOSURDO, D. Hegel e la libertà dei moder-
ni, cit., em particular os capítulos IV, 3 e VII, 6.

223 SOREL, G. Réfléxions sur la violence (Reflexões sobre a violência) (1908); tradução italiana, Ri-
flessioni sulla violenza, em Scritti politici (Escritos políticos). Turim: Utet, 1963, p. 195-198.

224 SPENCER, H. First Principles (Primeiros princípios), citado por GOSSET, Th. F. Race. The History of
an Idea in America (Raça. A história de uma ideia na América), cit., p. 146.

225 SPENCER, H. Social Statics (Estática social), citado por HOFSTADTER, R. Social Darwinism in
American Thought (O darwinismo social no pensamento norte-americano). Filadélfia: University
of Pennsylvania Press, 1944-1945, p. 27.

226 Citado por HOFSTADTER, R. Social Darwinism (Darwinismo social), cit., p. 48.

227 Cf. SALVATORELLI, L. & MIRA, G. Storia d’Italia nel periodo fascista (História da Itália no período
fascista). Milão: Mondadori, 1972, vol. I, p. 249; DE FELICE, R. Mussolini il fascista (Mussolini,
o fascista). I. La conquista del potere – 1921-1925 (A conquista do poder– 1921-1925). Turim:
Einaudi, 1966, p. 62 e p. 127.

228 COBBAN, A. Dictatorship. Its History and Theory (Ditadura. Sua história e teoria). Nova Iorque:
Haskell, 1971, p. 129.

229 Ver em especial PARETO, V. L’éclipse de la liberté (O eclipse da liberdade) (8 de junho de 1903).
In: Id., Mythes et idéologies (Mitos e ideologias). Genebra: Droz, 1966, p. 224-225.

230 LE BON, G. Psychologie des foules (Psicologia das massas) (1895); tradução italiana, Psicologia
delle folle. Milão: Longanesi, 1980, p. 125, p. 122 e p. 119.

231 ARENDT, H. The Origins of Totalitarianism, tradução italiana cit., p. 442.

232 De uma conversação relatada em SCHLESINGER JR., A. “Four Days with Fidel: A Havana Diary”
(“Quatro dias com Fidel: um diário de Havana”). In: The New York Review of Books, 26 de março
de 1992, p. 25.

233 Citado em AGOSTI, A. La Terza Internazionale. Storia documentaria (A Terceira Internacional.


História documental). Roma: Editori Riuniti, 1974 segs., vol. I, 1, p. 74.

234 Cf. LOSURDO, D. Antonio Gramsci dal liberalismo al “comunismo critico” (Antonio Gramsci do
liberalismo ao “comunismo crítico”). Roma: Gamberetti, 1997, cap. IV, em especial p. 137-162.

298
Notas

235 “I Congresso della Internazionale Comunista. Tesi, manifesti e risoluzioni” (“I Congresso da In-
ternacional Comunista. Teses, manifestos e resoluções”), La Nuova Sinistra. Roma:Samonà e
Savelli, 1970, p. 98.

236 CARR, E. H. A History of Soviet Russia. The Bolshevik Revolution 1917-1923, tradução italiana
cit., p. 973, p. 975 e p. 995.

237 Cf. LOSURDO, D. “La révolution, la nation et la paix” (“A revolução, a nação e a paz”). In : Procès.
Cahiers d’analyse politique et juridique, 1990, nº 19, p. 153-171.

238 Cf. LOSURDO, D.“La ‘pace perpetua’: grandezza e miseria dell’universalismo” (“A ‘paz perpétua’:
grandeza e miséria do universalismo”).In: Crítica Marxista, setembro-outubro de 2000, p. 57-61.

239 LENSCH, P. Drei Jahre Weltrevolution (Três anos de revolução mundial). Berlim: Fischer, 1917.

240 STALIN, J. “Principi del leninismo” (“Princípios do leninismo”) (1924). In: Id., Questioni del leni-
nismo (Questões do leninismo), tradução italiana, Roma: Edizioni Rinascita, 1952, p. 63.

241 TROTSKY, L. D. Millenovecentocinque (1905) (1908-9; 1922). Roma: Samonà e Savelli, 1969, p.
54 e p. 31.

242 Idem, p. 45 e p. 28.

243 Idem, p. 55 e p. 95.

244 TROTSKY, L. D. Millenovecentocinque (Prefácio à segunda edição russa), cit., p. 8; grifos de Lo-
surdo.

245 AGURSKY, M. The Third Rome.National Bolshevism in the USSR (A Terceira Roma. Nacional-bol-
chevismo na URSS) (1987); tradução italiana, La Terza Roma. Il nazionalbolscevismo in Unione
Sovietica. Bolonha: Il Mulino, 1989, p. 278.

246 Cf. LEWIN, M. Le dernier combat de Lénine (O último combate de Lênin) (1967); tradução italia-
na, L’ultima battaglia di Lenin. Bari: Laterza, 1969.

247 Cf. BULLOCK, A. Hitler and Stalin. Parallel Lives (Hitler e Stálin. Vidas paralelas). Nova Iorque:
Knopf, 1992, p. 279-280.

248 STALIN, J. Werke (Obras). Hamburgo: Roter Morgen, 1971, vol. XII, p. 174 (a edição em italiano
se interrompe no tomo X): a singular grafia do termo “revolucionária” já se encontra no texto.

299
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

249 Sobre a polêmica Bukharin-Preobrazenskii, cf. BUKHARIN, N. & PREOBRAZENSKII, E. L’accumu-


lazione socialista (A acumulação socialista), organizado por L. Foa. Roma: Editori Riuniti, 1969,
em particular p. 14-15, 50-51, 82-83 e nota, p. 169.

250 STALIN, J. Werke, cit., vol. X, p. 60-61.

251 Citado em D’ENCAUSSE, H. Carrère. L’empire éclaté. La révolte des nations en URSS (O império
em pedaços. A revolta das nações na URSS). Paris: Flammarion, 1978, p. 28-29 e p. 32.

252 Cf. D’ENCAUSSE, H. Carrère. L’empire éclaté, cit.

253 Ver TSETUNG, Mao. Sui dieci grandi rapporti (Sobre as dez grandes relações), 1956. In: Id., Rivo-
luzione e costruzione. Scritti e discorsi 1949-1957 (Revolução e construção. Escritos e discursos
1949-1957), organizado por M. A. Regis e F. Coccia.Turim: Einaudi, 1979, p. 365-366 e 372.

254 “Ancora a proposito dell’esperienza storica della dittatura del proletariato” (“Ainda a propósito
da experiência histórica da ditadura do proletariado”), 1956, artigo anônimo publicado no Ren-
min Ribao (Diário do Povo); ver em Sulla questione di Stalin (Sobre a questão de Stálin). Milão:
Edizioni Oriente, 1971, p. 37.

255 A respeito cf. LOSURDO, D. Fichte, la resistenza antinapoleonica e la filosofia classica tedesca
(Fichte, a resistência antinapoleônica e a filosofia clássica alemã), em Studi Storici, 1983, nº 1/2,
p. 189-216.

256 STALIN, J. Discorso al XIX congresso del Partito Comunista dell’Unione Sovietica (Discurso no XIX
Congresso do Partido Comunista da União Soviética) (1952). In: Id., Problemi della pace (Proble-
mas da paz). Roma: Edizioni di Cultura Sociale, 1953, p. 153-154.

257 Cf. D’ENCAUSSE, H. Carrère. L’empire éclaté, cit., p. 39-44.

258 STALIN, J. Brindisi al popolo russo (Brinde ao povo russo) (24 de maio de 1945). In: Id., Problemi
della pace, cit., p. 4.

259 Citado por D’ENCAUSSE, H. Carrère na epígrafe de seu livro.

260 Sobre a presença da finança anglo-americana, cf. MARLOWE, “Notaio londinese e buste roma-
ne” (“Notário londrino e bustos romanos”). Em Il manifesto, de 18 de maio de 1993, p. 7, no
qual, a tal propósito, reproduz um “longo documento confidencial que circula no âmbito das
Participações estatais”.

261 Neste capítulo, são muito frequentes as referências ao precedente tratado e a outros trabalhos
meus por citá-las minuciosamente nas notas. Ao limitar-me ao essencial, remeto, para uma

300
Notas

documentação mais ampla, aos meus capítulos, além dos precedentes: È fallita la rivoluzione
d’Ottobre?, cit., Hegel e la libertà dei moderni, cit., e Democrazia o bonapartismo. Trionfo e
decadenza del suffragio universale, cit.

262 CARROL, P. N. & NOBLE, D. W. The Free and the Unfree.A new History of the United States (Os
livres e os não livres. Uma nova história dos Estados Unidos) (1977); tradução italiana, Storia
sociale degli Stati Uniti (História social dos Estados Unidos). Roma: Editori Riuniti, 1991, p. 360 e
391-392.

263 Citado em FORCELLA, E. Prefácio in: FORCELLA, E. & MONTICONE, A. Plotone d’esecuzione. I
processi della prima guerra mondiale (Pelotão de fuzilamento. Os processos da Primeira Guerra
Mundial). Bari: Laterza, 1972, p. XII.

264 Ver, por exemplo, LABICA, G. Le marxisme-léninisme (Elements pour une critique) (O marxismo-
-leninismo (elementos para uma crítica)) (1984); tradução italiana, Dopo il marxismo-leninismo
(tra ieri e domani) (Depois do marxismo-leninismo (entre ontem e amanhã)). Roma: Edizioni
Associate, 1992, p. 155.

265 O texto aqui apresentado é o relatório introdutório ao Congresso da Internationale Gesellschaft


für dialektische Philosophie – Societas Hegeliana (Sociedade Internacional de filosofia dialética
– Sociedade Hegeliana), desenvolvido em Pavia em 11-14 de setembro de 1996. (O ensaio foi
recentemente reapresentado em DE SIMONE, A. (org.), Diritto, giustizia e logiche del dominio
(Direito, justiça e lógicas de dominio). Perugia: Morlacchi, 2007, p. 159-188.)

266 BOBBIO, N. I comunisti e l’Ungheria (Os comunistas e a Hungria) (1986). In: L’utopia capovolta
(A utopia subvertida). Turim: La Stampa, 1990, p. 113-116

267 HEGEL, G. W. F. Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte (Lições sobre a filosofia da
história). In: Werke in zwanzig Bänden (Obras em 20 tomos), organizadores E. Moldenhauer e K.
M. Michel. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1969-79, vol. XII, p. 49.

268 BULLOCK, A. Hitler and Stalin. Parallel Lives, cit., p. 347-348.

269 Citado em ELKINS, S. & MCKITRICK, E.The Age of Federalism.The Early American Republic, 1788-
1800 (A idade do federalismo. A república estadunidense inicial, 1788-1800). Nova Iorque/ Ox-
ford: University Press, 1993, p. 316-317.

270 SCHMITT, C. Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus (O lugar do parla-
mentarismo atual na história das ideias) (1926). Berlim: Duncker & Humblot, 1985, p. 30-31.

271 DAVIS, D. B. The Problem of Slavery in the Age of Revolution 1770-1823 (O problema da escra-
vidão na era da revolução 1770-1823). Ithaca/ Londres: Cornell University Press, 1975, p. 50.

301
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

272 Ver a respeito LOSURDO, D. Il revisionismo storico. Problemi e miti (O revisionismo histórico.
Problemas e mitos). Roma/ Bari: Laterza, 1996, cap. II, § 9.

273 SCHMITT, C. Die Diktatur. Von den Anfängen des modernen Souveränitätsgedankens bis zum
proletarischen Klassenkampf (A ditadura. Dos primórdios da moderna ideia de soberania à luta
de classe do proletariado). Munique/ Leipzig: Duncker & Humblot, 1921, p. VIII e p. 146-147.

274 HEGEL, G. W. F. Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, cit., p. 332-334.

275 HOBSON, J. A. Imperialism. A Study (O imperialismo. Um estudo) (1902; 1938); tradução italiana
de L. Meldolesi, L’imperialismo. Milão: Isedi, 1974, p. 69.

276 TOCQUEVILLE A. de. De la démocratie en Amérique (Da democracia na América) (1835-40). In:
Oeuvres complètes, cit., vol. I, 1, p. 25; tradução italiana em Scritti politici (Escritos políticos),
organizador N. Matteucci. Torino: Utet, 1968, vol. II, p. 42.

277 Idem, p. 334-337; tradução italiana cit., p. 376-379.

278 Citado em SLOTKIN, R. The Fatal Environment. The Myth of the Frontier in the Age of Industria-
lization 1800-1890 (O ambiente fatal.O mito da fronteira na era da industrialização 1800-1890)
(1985). Nova Iorque: Harper Perennial, 1994, p. 79.

279 TOYNBEE, A. A Study of History (Um estudo de história) (1934-1954); tradução italiana de G.
Cambon, Panorami della storia. Milão: Mondadori, 1954, vol. II, 1, p. 47-48.

280 TOCQUEVILLE, A. de. De la démocratie en Amérique, cit., p. 32-34; tradução italiana cit., p. 50-52.

281 Carta de 2 de agosto de 1857, em TOCQUEVILLE, A. de. Oeuvres complètes, cit., vol. VI, 1, p. 230.

282 HEGEL, G. W. F. Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, cit., p. 49.

283 HEGEL, G. W. F. “Phänomenologie des Geistes” (“Fenomenologia do Espírito”) (1807). In: Werke
in zwanzig Bänden (Obras em 20 tomos), cit., vol. III, p. 24.

284 MARX, K. The Future Result of British Rule in India (O futuro do domínio britânico na Índia) (8 de
agosto de 1853). In: MARX, K. & ENGELS, F. Gesamtausgabe (Obras completas) (Mega). Berlim:
Dietz, no prelo, vol. I, 12, p. 248 e 253 (cf. também a carta de Marx a Engels de 8 de outubro de
1858. In: MEW, vol. XXIX, p. 360) e MARX, K. The British Rule in India (25 de junho de 1853). In:
Mega, vol. I, 12, p. 172-173.

285 MARX, K. The Future Result of British Rule in India, cit., p. 253.

302
Notas

286 Carta a Reeve de 12 de abril de 1840. In: TOCQUEVILLE, A. de. Oeuvres complètes, cit., vol. IV, 1,
p. 58.

287 MARX, K. The Future Result of British Rule in India, cit., p. 248.

288 MARX, K. Grundrisse der Kritik der politischen Oekonomie (Elementos fundamentais para a crí-
tica da economia política). (Rohentwurf) 1857-1858. Berlim: Dietz, 1953, p. 30.

289 MARX, K. The British Rule in India, cit., p. 173.

290 LOSURDO, D. Marx, die liberale Tradition, cit., p. 17-19.

291 TOCQUEVILLE, A. de. De la démocratie en Amérique, vol. I, 2, p. 173-175; tradução italiana cit.,
p. 657-659.

292 MARX, K. The Indian Revolt (A revolta indiana) (16 de setembro de 1857). In: AVINERI, S. (org.).
Karl Marx on Colonialism and Modernisation, cit., p. 212-213; (cf. MEW, vol. XII, p. 288).

293 SMITH, A. An Inquiry into the Nature and the Causes of the Wealth of Nations (Uma investigação
sobre a natureza e as causas da riqueza das nações) (1775-1776; 1783).Indianápolis: Liberty
Classics, 1981 (= vol. II da ed. de Glasgow), p. 794; tradução italiana de F. Bartoli, C. Camporesi,
S. Caruso.Indagine sulla natura e le cause della ricchezza delle nazioni. Milão: Mondadori, 1977,
p. 782.

294 MANDEVILLE, B. de. An Essay on Charity and Charity Schools, cit., p. 307; tradução italiana cit.,
p. 112.

295 RAYNAL, G.-Th. Histoire philosophique et politique des Deux Indes (História filosófica e política
das duas Índias), organizador Y. Benot. Paris: Maspero, 1981, p. 368 e 354; sobre a evocação de
Espártaco, cf. p. 202.

296 CONDORCET. Réflexions sur l’esclavage des nègres (Reflexões sobre a escravidão dos negros)
(1781; 1788). In: Oeuvres (Obras). Stuttgart-Bad Cannstatt: Frommann-Holzboog, 1968, vol. VII,
p. 97 e 130.

297 NIETZSCHE, F. Die Geburt der Tragödie (O nascimento da tragédia) (1872). In: Sämtliche Werke.
Kritische Studienausgabe (Obras completas. Edição crítica de estudo), organizadores Colli e M.
Montinari. Munique: DTV, 1980, vol. I, p. 56 e 100.

298 GUMPLOWICZ, L. Der Rassenkampf. Sociologische Untersuchungen, cit., p. 218, 260 e 353.

299 Idem, p. 2 e passim e 172 segs.

303
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

300 Idem, p. 348-349.


301 Idem, p. 354.


302 Idem, p. 249 e nota da p. 247.

303 ROSENBERG, A. Der Mythus des 20. Jahrhunderts (O mito do século 20). Munique: Hohenei-
chen-Verlag, 1937, p. 40.

304 Idem, p. 690.

305 Idem, p. 127.

306 Idem, p. 136.


307 Idem, p. 134-135.

308 Idem, p. 630.

309 KANT, I. Die Metaphysik der Sitten (A metafísica dos costumes). Rechtslehre (1797). In: Gesam-
melte Schriften (Obras escolhidas). Berlim/ Leipzig: Reimer-W. de Gruyter (edição da Academia
das Ciências), 1902-1923, vol. VI, p. 334-335; tradução italiana de G. Solari e G. Vidari em Scritti
politici (Escritos políticos). Turi: Utet, 1965, p. 525.

310 HEINE, H. Einleitung zu: Kahldorf über den Adel (1831). In: Sämtliche Schriften, organizador K.
Briegleb. Munique: Sonderausgabe für die Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1969-1978, vol.
II, p. 656.

311 HEGEL, G. W. F. Vorlesungen über Rechtsphilosophie (Sobre a filosofia do Direito), organizador


K. H. Ilting. Stuttgart-Bad Cannstatt: Frommann-Holzboog, 1973 segs, vol. IV, p. 338.

312 HEGEL, G. W. F. Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte (Sobre a filosofia da
história do mundo), organizador J. Hoffmeister (reimpressão da 5ª ed. em 1955). Hamburgo:
Meiner, 1980, p. 930.

313 HEGEL, G. W. F. Vorlesungen über Rechtsphilosophie (Sobre a filosofia do Direito), cit., vol. IV, p. 657.

314 HEGEL, G. W. F. Die Philosophie des Rechts (A filosofia do Direito) (é o curso de 1817-1818,
transcrito por P. Wannenmann), organizador K. H. Ilting. Stuttgart: Klett-Cotta, 1983, § 133 A.

315 HEGEL, G. W. F. Glauben und Wissen (Conhecimento e crença) (1802). In: Werke in zwanzig
Bänden (Obras em 20 tomos), cit., vol. II, p. 383.

304
Notas

316 HEGEL, G. W. F. Vorlesungen über Rechtsphilosophie, cit., vol. III, p. 112-113.

317 Idem, vol. IV, p. 112.

318 Idem, p. 114-115.

319 Discurso do dia 18, floreal, do ano II (7 de maio de 1794). In: ROBESPIERRE, M. Oeuvres (Obras).
Paris: PUF, 1912-1967, vol. X, p. 446; tradução italiana in La rivoluzione giacobina (A revolução
jacobina), organizador U. Cerroni. Roma: Editori Riuniti, 1967, p. 186.

320 Idem, p. 447; tradução italiana cit., p. 187.

321 KANT, I. Metaphysik der Sitten. Rechtslehre, cit., p. 333; tradução italiana cit., p. 523.

322 Idem, p. 333; tradução italiana cit., p. 523-524.

323 Sobre o tema cf. LOSURDO, D. Il revisionismo storico. Problemi e miti, cit., cap. II, § 4.

324 KANT, I. Metaphysik der Sitten. Rechtslehre, cit., p. 334; tradução italiana cit., p. 524.

325 Idem, p. 331; tradução italiana cit., p. 521.


326 Idem, p. 332; tradução italiana cit., p. 521.


327 HEGEL, G. W. F. Jenaer Realphilosophie (Filosofia do espírito de Jena), organizador J. Hoffmei-


ster. Hamburgo: Meiner, 1969, p. 246; tradução italiana de G. Cantillo, Filosofia dello spirito
jenense. Bari: Laterza, 1971, p. 185.

328 Idem, p. 246; tradução italiana cit., p. 186.


329 Idem, p. 247-248; tradução italiana cit., p. 187.


330 KANT, I. Metaphysik der Sitten.Rechtslehre, cit., p. 333; tradução italilana cit., p. 523.

331 GRAMSCI, A. “Stregoneria” (“Bruxaria”) (1916). In: Cronache Torinesi 1913- 1917 (Crônicas turi-
nesas), oganizador S. Caprioglio. Torino: Einaudi, 1980, p. 175.

332 CROCE, B. “Sopravvivenze ideologiche” (“Sobrevivências ideológicas”) (1918). In: L’Italia dal
1914 al 1918. Pagine sulla guerra (A Itália de 1914 a 1918. Páginas sobre a guerra), cit., p.
252-253.

305
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

333 GENTILE, G. Tra Hegel e Lenin (Entre Hegel e Lênin) (maio de 1918). In: Guerra e fede (Guerra e
fé), organizador H. A. Cavallera (vol. XLIII das Obras). Florença: Le Lettere, 1989, p. 139-143.

334 LUKÁCS, G. Taktik und Ethik (Tática e ética) (ed. original húngara, 1919). In: Id., Schriften zur
Ideologie und Politik (Escritos sobre ideologia e política), organizador P. Ludz. Neuwied/ Berlim:
Luchterhand, 1967, p. 5.

335 BURKE, E. Reflections on the Revolution in France (Reflexões sobre a revoluçãona França)(1790).
In: The Works. A new Edition (As obras. Nova edição). Londres: Ridemngton, 1826, vol. V, p. 86.

336 GENTILE, G. Tra Hegel e Lenin, cit., p. 142.

337 SARTRE, J. P. L’existentialisme est un humanisme (O existencialismo é um humanismo) (1946);


tradução italiana de F. Fergnani, L’esistenzialismo è un umanismo. Milão: Mursia, 1978, p. 67-68.

338 WEIL, E. Philosophie morale (Filosofia moral) (1960). Paris: Vrin, 1987, p. 114-116.

339 SMITH, A. Lectures on Jurisprudence (1762-3 e 1766). Indianápolis: Liberty Classics (= vol. V da
ed. de Glasgow), 1982, p. 452-453 e 182.

340 LUKÁCS, G. Taktik und Ethik, cit., p. 6-11.

341 JOHNSON, P. The Birth of the Modern.World Society 1815-1830 (O nascimento do moderno. A
sociedade mundial, 1815-1830). Nova Iorque: Harper Collins, 1991, p. 71-72 e 811-814.

342 JOHNSON, P. A History of the Modern World from 1917 to the 1980s (História do mundo moder-
no de 1917 aos anos 1980) (1983); tradução italiana de E. Cornara Filocamo, Storia del mondo
moderno. Milão: Mondadori, 1989, p. 471 e 473-474, o grifo é meu.

343 (A referência aqui é claramente à Primeira Guerra do Golfo, concluída com a rendição, mas não
a deposição, de Saddam Hussein, e o prolongado embargo imposto ao Iraque).

344 NORMAND, R.“Deal Won’t End Iraqi Suffering” (“Acordo não acaba com sofrimento iraquiano”).
In: International Herald Tribune, 7 de junho de 1996.

345 Sobre o tema, cf. LOSURDO, D. Il revisionismo storico. Problemi e miti, cit., cap. II, § 8.

346 GRAMSCI, A. “Lettera dell’Ufficio politico del PCI al Comitato Centrale del Partito Comunista
Sovietico”. “Carta do Birô Político do PCI ao Comitê Central do Partido Comunista Soviético”
(1926). In: La costruzione del partito comunista ( A construção do partido comunista). Turim:
Einaudi, 1971, p. 129-130; cf. LOSURDO, D. Antonio Gramsci dal liberalismo al “comunismo criti-
co”, cit., p. 249-250.

306
Notas

347 TSETUNG, Mao. Discursos na conferência dos secretários dos comitês do partido nas provín-
cias, municípios e regiões autônomas (1957). In: Id., Rivoluzione e costruzione, cit., p. 475-476.

348 TORRI, M. Storia dell’India (História da Índia). Roma/ Bari: Laterza, 2000, p. 256-258.

349 Cf. LOSURDO, D. Antonio Gramsci dal liberalismo al “comunismo critico”, cit., p. 138-139.

350 LUXEMBURGO, R. Die Akkumulation des Kapitals (A acumulação do capital) (1912); tradução
italiana de B. Maffi, L’accumulazione del capitale (1960). Turim: Einaudi, 1968, cap. XXVIII, p. 383
e 392.

351 MILL, J. S. On Liberty (A liberdade) (1858). In: Id., Utilitarianism, Liberty, Representative Govern-
ment, cit., p. 151.

352 MISES, L. Von. Die Gemeinwirtschaft. Untersuchungen über den Sozialismus (A economia social.
Estudos sobre o socialismo). Jena: Fischer, 1922, p. 220-221, nota.

353 Idem, p. 221.

354 PFAFF, W. “The West’s Globalization Drive Is Proving a Massive Failure” (“A globalização ociden-
tal está se mostrando um maciço fracasso”). In: International Herald Tribune, 29 de setembro de
2000, p. 6.

355 RAMONET, I. “Le gâchis” (“O atoleiro”). In: Le Monde diplomatique, maio de 1999, p. 1 e 3.

356 FRIEDMAN, Th. L. “Wait for Syria to Join the World” (“Esperem que a Síria se junte ao mundo”).
In: International Herald Tribune, 6 de dezembro de 1999, p. 8.

357 AMBROSE, S. F. “When the Americans Came Back to Europe” (“Quando os americanos voltam
à Europa”). In: International Herald Tribune, 20 de maio de 1997, p. 10.

358 FITCHETT, J. “The Age of Cold Warriors (and Dirty Tricks) Is Born” (“A era dos guerreiros frios (e
seus truques sujos)”). In: International Herald Tribune,28 de maio de 1997, p. 13.

359 AMBROSE, S. F. When the Americans Came Back to Europe, cit., p. 10.

360 LUTTWAK, E. N. Turbo-Capitalism (1998); tradução italiana de A. Mazza, La dittatura del capita-
lismo. Dove ci porteranno il liberalismo selvaggio e gli eccessi della globalizzazione (A ditadura
do capitalismo. Aonde irão levar o liberalismo selvagem e os excessos da globalização). Milão:
Mondadori, 1999, p. 172. Cf. AZZARÀ, S. G. “Globalizzazione e antimperialismo” (“Globalização
e anti-imperialismo”). In: Aginform, setembro de 2000, nº 13, p. 2.

307
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

361 LUTTWAK, E. “USA-Giappone-Cina, la strana geometria” (“EUA-Japão-China, a estranha geome-


tria”). In: Limes, 1999, nº 1, p. 151. (O ensaio aqui apresentado foi publicado em 2001, eviden-
temente antes que a China ingressasse na OMC).

362 FRIEDMAN, Th. L. “On Key Foreign Policy Issues, The Differences Are Narrowing” (“Sobre ques-
tões-chave de política externa, as diferenças estão se estreitando”). In: International Herald
Tribune, 11-12 de março de 2000, p. 8.

363 NYE JR., J. S. & OWENS, W. A. “America’s Information Edge” (“O gume da informação dos EUA”).
In: Foreign Affairs, março/abril de 1996, p. 24.

364 RAWLS, J. A Theory of Justice (Uma teoria da justiça), cit., p. 542; tradução italiana cit., p. 441.

365 “US Investigates Shift of Jobs to China. Unions for Boeing and McDonnell Seeking Redress”
(“EUA investigam transferência de empregos para a China. Sindicatos da Boeing e McDonnell
buscam reparação”). In: International Herald Tribune, 23 de outubro de 1995 (não assinado).

366 WILLIAMS, B. Cecil Rhodes, Constable and Company Ltd. (Cecil Rhodes e Companhia Limitada),
Londres, 1921, p. 51-52.

367 HOAGLAND, J. “The UN, Iraq and China Are Second-Term Tests for Clinton” (“ONU, Iraque e
China são os testes do segundo mandato de Clinton”). In: International Herald Tribune, 25 de
novembro de 1996.

368 NYE JR., J. S. & OWENS, W. A. America’s Information Edge, cit., p. 20-21 e nota e p. 35.

369 STEEL, R. “Mr. Fix-It. Woodrow Wilson” (“Woodrow Wilson, o senhor conserta-coisas”). In: The
New York Review of Books, 5 de outubro de 2000, p. 21.

370 HUNTINGTON, S. P. The Clash of Cidemlisations and the Remaking of World Order (O choque
das cidemlizações e a recomposição da nova ordem) (1996); tradução italiana de S. Minucci, Lo
scontro delle cidemltà e il nuovo ordine mondiale. Milão: Garzanti, 1997, p. 284.

371 HOBSON, J. A. Imperialism, tradução italiana cit., p. 199.

372 DE SISMONDI, J. C. L. Simonde. Nouveau principes d’économie politique ou de la richesse dans


ses rapports avec la population (Novos princípios de economia política ou sobre a riqueza em
suas relações com a população) (1819; 1827); tradução italiana de P. Roggi (organizador P. Ba-
rucci), Nuovi principi di economia politica o della ricchezza nei suoi rapporti con la popolazione.
Milão: Isedi, 1975, p. 208-209.

373 BONANNI, V. “Tibet perduto” (“O Tibete perdido”). In: Liberazione, 16 de janeiro de 2001, p. 17.

308
Notas

374 GAGLIARDI, R. “Sognando un libretto rosso” (“Sonhando um livrinho vermelho”). In: Liberazio-
ne, 5 de outubro de 1999, “Especial”, p. II.

375 GRAY, J. False Dawn. The Delusion of Global Capitalism (A Ilusão do capitalismo global). Londres:
Granta Books, 1998, p. 118.

376 OVERHOLT, W. H. The Rise of China. How Economic Reform is Creating a New Superpower (A
ascensão da China. Como a reforma econômica está criando uma nova superpotência) (1993);
tradução italiana de G. Barile, Il risveglio della Cina. Milão: Il Saggiatore, 1994, p. 69.

377 XIAOPING, Deng. Selected Works (Obras escolhidas), vol. III (1982-1992). Pequim: Foreign Lan-
guages Press, 1994, p. 174.

378 Idem, p. 122.

379 MARX, K. Grundrisse der Kritik der politischen Oekonomie, cit., p. 80-82.

380 Cf. LOSURDO, D. “Il Nuovo Ordine Internazionale nella storia delle ideologie della guerra” (“A
nova ordem internacional na história das ideologias da guerra”). In: Giano. Ricerche per la pace
(Jano. Investigações pela paz), 1993, nº 14-15, § 3.

381 CHIESA, G. Russia addio. Come si colonizza un impero (Adeus Rússia. Como se coloniza um im-
pério). Roma: Editori Riuniti, 1997, p. 8.

382 TSETUNG, Mao. Opere scelte (Obras escolhidas). Pequim: Edições em Línguas Estrangeiras,
1975, vol. IV, p. 95-96.

383 STALIN, J. “Discorso al XIX congresso” (“Discurso no XIX Congresso”). In: Id., Problemi della pace,
cit., p. 153-154.

384 REYES, R. “Plan Colombia: ‘un piano di guerra’” (“Plano Colômbia: ‘um plano de guerra’”) (en-
trevista a A. Nocioni e M. Consolo). In: Liberazione, 26 de agosto de 2000, p. 20.

385 HOFSTADTER, R. The Age of Reform.From Bryan to F. D. Roosevelt (A Idade da Reforma. De


Bryan a F. D. Roosevelt) (1956); tradução italiana de P. Maranini, L’età delle riforme. Da Bryan a
F. D. Roosevelt. Bolonha: Il Mulino, 1962, p. 53 e 60 e segs.

386 Idem, p. 54.

387 VINOCUR, J. “Europe’s Leading Nations Use Afghan Crisis to Enhance World Role” (“Países lí-
deres da Europa usam a crise afegã para reforçar seu papel mundial”). In: International Herald
Tribune, 12 de outubro de 2001, p. 7.

309
MARX E O BALANÇO HISTÓRICO DO SÉCULO 20

388 VENTURINI, F. “Se l’Italia vuole avere una voce” (“Se a Itália quer ter voz”). In: Corriere della
Sera, 15 de outubro de 2001, p. 15.

389 POMFRET, J. “Beijing’s Policy Shift Challenges Washington’s Influence in Asia” (“Virada política
de Pequim desafia a influência de Washington na Ásia”). In: International Herald Tribune, 19 de
outubro de 2001, p. 5.

390 BLUME, G. & YAMAMOTO, C. “Elenfantenflirt in Shangai” (“Flerte gigante em Xangai”). In: Die
Zeit, 18 de outubro de 2001, p. 11.

391 In: MINI, F. “Xinjiang o Turkestan orientale?”(“Xinjiang ou Turquestão Oriental?”). In: Limes.
Revista italiana di geopolítica, 1999, nº 1, p. 92.

392 SPINELLI, B. “Vizi e virtù di un’alleanza” (“Virtudes e vícios de uma aliança”). In: La Stampa,25
de novembro de 2001, p. 1.

393 Na Itália, movimento do pós-guerra que prega ou justifica a apatia política (Nota do tradutor).

310
Miolo do livro composto
na fonte Palatino 11/16 e
impresso em papel Pólen Bold 80gr

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