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Para minha mãe, Eileen Armstrong

SUMÁRIO

Agradecimentos
Apresentação

1. Sião
2. Israel
3. A cidade de Davi
4. A cidade de Judá
5. Exílio e retorno
6. Antioquia da Judeia
7. Destruição
8. Aelia Capitolina
9. A Nova Jerusalém
10. A Cidade Santa dos cristãos
11. Bayt al-Maqdis
12. Al-Quds
13. As Cruzadas
14. Jihād
15. A cidade otomana
16. Revivescência
17. Israel
18. Sião?

Notas
Bibliografia
Relação de mapas e plantas
Sobre a autora
AGRADECIMENTOS

Escrever é uma atividade solitária, mas não exclui contribuições de outras pessoas. Assim, gostaria de
agradecer a meus agentes, Felicity Bryan, Peter Ginsberg e Andrew Nurnberg, bem como a meus editores,
Jane Garrett e Stuart Proffitt, que me apoiaram e incentivaram. Sou igualmente grata a Roger Boase, Claire
Bradley, Juliet Brightmore, Katherine Hourigan, Ted Johnson, Anthea Lingeman, Jonathan Magonet, Toby
Mundy e Melvin Rosenthal, que me ajudaram com seus conhecimentos, sua paciência e seus conselhos. Por
fim, agradeço a Joelle Delbourgo, minha editora na Ballantine, que foi a primeira pessoa a sugerir-me a
elaboração deste livro e sempre me honrou com seu entusiasmo e seu estímulo.
APRESENTAÇÃO

EM JERUSALÉM, mais que em qualquer outro lugar que conheço, a História constitui uma dimensão do
presente. Talvez isso ocorra em qualquer território sob disputa, porém fiquei profundamente impressionada
quando fui trabalhar em Jerusalém pela primeira vez, em 1983. A força de minha reação à cidade me
surpreendeu. Era estranho caminhar por um lugar que fazia parte de meu imaginário desde a infância,
quando ouvi histórias do rei Davi e de Jesus. Mais tarde, no convento, ensinaram-me a iniciar minha
meditação matinal visualizando a passagem bíblica sobre a qual devia refletir; assim criei minhas próprias
imagens do Getsêmani, do monte das Oliveiras, da Via Dolorosa. Circulando por esses locais, descobri que a
cidade real era muito mais tumultuada e confusa. Tinha de admitir, por exemplo, que Jerusalém era muito
importante também para os judeus e os muçulmanos. Os judeus de túnica ou de farda que beijavam as
pedras do Muro das Lamentações, as multidões de famílias muçulmanas que, trajando suas melhores roupas,
se dirigiam ao Haram al-Sharif para fazer suas orações às sextas-feiras mostraram-me, pela primeira vez, o
desafio do pluralismo religioso. As pessoas conseguiam ver o mesmo símbolo de maneiras totalmente diversas.
Sem dúvida veneravam sua cidade santa, porém sempre estiveram ausentes de minha Jerusalém. E, no entanto,
a cidade continuava sendo minha: as velhas imagens de cenas bíblicas que eu visualizara no passado muitas
vezes se contrapunham a minha experiência direta da Jerusalém do século XX. Relacionada com alguns dos
fatos mais importantes de minha vida, Jerusalém era parte inseparável de minha própria identidade.
Como cidadã britânica, eu não tinha nenhuma pretensão política em relação a Jerusalém, ao contrário de
meus novos colegas e amigos. Enquanto israelenses e palestinos me expunham seus argumentos, eu me
surpreendia com a presença vívida de fatos do passado. Todos falavam, às vezes com minúcias, dos
acontecimentos que levaram à criação do Estado de Israel, em 1948, ou à Guerra dos Seis Dias, em 1967.
Percebi que esses retratos do passado com frequência giravam em torno da mesma pergunta: quem fez o que
primeiro? Quem recorreu primeiro à violência: os sionistas ou os árabes? Quem percebeu primeiro o
potencial da Palestina e tratou de desenvolver o país? Quem viveu primeiro em Jerusalém: os judeus ou os
palestinos? Ao discutir o presente conturbado, israelenses e palestinos instintivamente se voltavam para o
passado, e sua polêmica estendia-se da Idade do Bronze ao século XX. E, quando orgulhosamente me
mostravam sua cidade, os próprios monumentos passavam a fazer parte do conflito.
Em meu primeiro dia em Jerusalém meus colegas israelenses me ensinaram a identificar as pedras utilizadas
pelo rei Herodes, com seus característicos bordos chanfrados. Elas pareciam onipresentes, lembrando
eternamente um compromisso dos judeus com Jerusalém que (neste caso) remonta ao século I a.C. — e,
portanto, é muito anterior ao surgimento do Islã. Sempre que passávamos por um canteiro de obras, na
Cidade Velha, contavam-me que Jerusalém havia se estagnado completamente durante a dominação otomana
e só voltara à vida no século XIX, em boa parte graças a investimentos de judeus — bastava ver o moinho
construído por Sir Moses Montefiore e os hospitais fundados pela família Rothschild. Graças a Israel a
cidade prosperava como nunca.
Meus amigos palestinos me mostravam uma Jerusalém muito diferente. Para eles, o esplendor do H. aram
al-Sharif e as primorosas mada-ris — escolas muçulmanas —, construídas pelos mamelucos em suas bordas,
evidenciavam o compromisso dos maometanos com a cidade. Eles me levaram ao santuário de Nebī-Mūsā,
erguido nos arredores de Jericó para defender Jerusalém dos cristãos, e aos extraordinários palácios que a
dinastia dos Omíadas edificara nas proximidades. Uma vez, quando passávamos por Belém, meu anfitrião
parou o carro na beira da estrada, junto à tumba de Raquel, para informar-me de modo passional que os
palestinos cuidaram desse santuário judaico durante séculos, tendo sido muito mal recompensados por sua
piedosa dedicação.
Uma palavra reaparecia com frequência. Até os israelenses e palestinos mais céticos salientavam que
Jerusalém era “santa” para seu povo. Os palestinos a chamavam de al-Quds, “a Santa” — designação que os
israelenses refutavam com desdém, argumentando que a cidade foi considerada santa primeiro pelos judeus e
que para os muçulmanos ela nunca teve a mesma importância de Meca e Medina. Mas o que a palavra santa
significa nesse contexto? Como pode ser sagrada uma cidade igual a qualquer outra, cheia de seres humanos
falíveis e de atividades profanas? Por que judeus que se declaram ateus se importam com a cidade santa e se
mostram tão possessivos em relação ao Muro das Lamentações? Por que um árabe incrédulo se comove até
as lágrimas ao entrar pela primeira vez na mesquita de al-Aqsā? Eu entendia por que Jerusalém é santa para
os cristãos: a cidade presenciou a morte e a ressurreição de Jesus, testemunhou o nascimento da fé. No
entanto, os fatos que plasmaram o judaísmo e o islamismo ocorreram muito longe dali, na península do
Sinai ou na região árabe do Hedjaz. Por que um dos locais sagrados do judaísmo é o monte Sião, em
Jerusalém, e não o monte Sinai, onde Deus entregou as Tábuas da Lei a Moisés e selou seu pacto com
Israel? Evidentemente eu me enganara ao supor que a santidade de um local depende de suas associações
com os fatos da história da salvação, o relato mítico da intervenção divina nos assuntos humanos. Foi para
descobrir o que é uma cidade santa que decidi escrever este livro.
Constatei que, em se tratando de Jerusalém, apesar de a palavra santa ser utilizada a torto e a direito,
como se possuísse um significado claríssimo, ela é na verdade muito complexa. Cada uma das três religiões
monoteístas desenvolveu tradições bem semelhantes a respeito da cidade. Ademais, a devoção a um lugar
santo ou a uma cidade santa é um fenômeno praticamente universal. Os historiadores das religiões acreditam
que constitui uma das primeiras manifestações da fé em todas as culturas. As pessoas criaram uma geografia
sagrada que nada tem a ver com o mapa científico do mundo, mas que se refere a sua vida interior. Cidades
terrenas, bosques e montanhas passaram a simbolizar essa espiritualidade tão onipresente que parece atender a
uma profunda necessidade humana, independentemente de nossas crenças em relação a “Deus” ou ao
sobrenatural. Por vários motivos Jerusalém tornou-se fundamental na geografia sagrada dos judeus, dos
cristãos e dos muçulmanos, que por isso mesmo têm dificuldade em vê-la objetivamente, pois ela se tornou
inseparável da concepção de si mesmos e da realidade suprema — “Deus” ou o sagrado — que confere
significado e valor a nossa vida na terra.
Três conceitos interligados aparecem com frequência nestas páginas. Primeiro, a noção de Deus ou do
sagrado. No mundo ocidental tendemos a uma visão antropomórfica e personalizada de Deus, de modo que
muitas vezes toda a noção do divino parece incoerente e incrível. Como a palavra Deus perdeu seu crédito
para muitos, por causa das tolices inaceitáveis que têm sido ditas e feitas em “Seu” nome, talvez seja melhor
substituí-la pelo termo sagrado. Ao refletir sobre o mundo, os seres humanos sempre experimentam no âmago
da existência uma transcendência, um mistério. Sentem que essa transcendência está profundamente
relacionada com eles e com o mundo natural, mas que também os ultrapassa. Ela constitui um fato da vida
humana, não importa o nome que lhe damos — Deus, Brahma, Nirvana. Não importa quais sejam nossas
opiniões teológicas, todos experimentamos algo semelhante quando ouvimos uma grande peça musical ou
lemos um belo poema, e nos sentimos tocados por dentro, guindados acima de nós mesmos. Tendemos a
procurar essa experiência e, se não a encontramos em determinado local — numa igreja, por exemplo, ou
numa sinagoga —, buscamos em outro. Vivenciado de muitas formas, o sagrado inspira medo, admiração,
entusiasmo, paz, terror, atos edificantes. Representa uma existência mais plena, mais elevada, que nos
completará. Não o vemos apenas como uma força “externa”, mas o sentimos também nas profundezas de
nosso ser. Precisamos, entretanto, cultivar a percepção do sagrado, como fazemos com qualquer experiência
estética. Em nossa sociedade moderna, secular, nem sempre tal percepção é prioritária e, assim, como
qualquer aptidão não utilizada, ela tende a embotar-se. Em sociedades mais tradicionais, a capacidade de
apreender o sagrado reveste-se de extrema importância. Na verdade, muitas vezes achamos que sem a
percepção do divino a vida não vale a pena.
Isso se deve, em parte, a nossa visão do mundo como um vale de lágrimas. Somos vítimas de desastres
naturais, mortalidade, extinção, injustiça, crueldade. A busca religiosa geralmente começa com a constatação
de que alguma coisa deu errado, de que, como disse Buda, “a existência é errônea”. Além dos choques que
todos experimentamos no plano físico, enfrentamos sofrimentos pessoais que transformam contrariedades
aparentemente insignificantes em derrotas quase insuportáveis. Uma sensação de abandono faz com que
experiências como luto, divórcio, rupturas ou até mesmo a perda de um objeto querido pareçam às vezes
parte de um mal básico e universal. Com frequência esse desconforto interior se caracteriza por um
sentimento de separação. Parece que nos falta alguma coisa, que nossa existência é fragmentada e incompleta,
que a vida não devia ser assim e que perdemos algo essencial a nosso bem-estar — ainda que tenhamos
dificuldade para explicar isso racionalmente. Essa sensação de perda já foi expressa de muitas maneiras.
Evidencia-se na imagem platônica da alma gêmea da qual fomos separados ao nascer e no mito universal do
paraíso perdido. Em séculos passados, homens e mulheres voltaram-se para a religião a fim de mitigar essa
dor, encontrando remédio na experiência do sagrado. No Ocidente moderno, recorre-se eventualmente à
psicanálise, que expressa num idioma mais científico essa consciência de uma separação primordial,
relacionando-a com lembranças do ventre materno e com o trauma do nascimento. Seja como for, essa ideia
de separação e o desejo de algum tipo de reconciliação estão na própria essência da devoção a um local
sagrado.
O segundo conceito que precisamos discutir é o de mito. Quando o homem tentou falar sobre o sagrado
ou sobre a dor da condição humana, não conseguiu expressar sua experiência em termos lógicos, discursivos,
e recorreu à mitologia. Mesmo Freud e Jung, que foram os primeiros a mapear a chamada busca científica
da alma, empregaram os mitos da Antiguidade clássica ou da religião ao tentar descrever esses eventos
interiores e elaboraram também alguns mitos próprios. Hoje a palavra mito tem sido um tanto aviltada em
nossa cultura, que em geral a utiliza para designar algo que não é verdadeiro. Fatos que são “apenas” mitos
não merecem consideração. É o que ocorre no debate acerca de Jerusalém. Os palestinos argumentam que
não existe nenhuma evidência arqueológica do reino judeu fundado por Davi e que nunca se encontrou um
único vestígio do Templo de Salomão. Com exceção da Bíblia, nenhum texto contemporâneo menciona o
reino de Israel — o qual, portanto, provavelmente não passa de “mito”. Os israelenses consideram absurda e
não demonstrável a história de que o profeta Maomé subiu ao céu a partir do H. aram al-Sharif de
Jerusalém — um mito que está no próprio cerne da devoção dos muçulmanos a al-Quds. Concluí que isso
denota ignorância. A mitologia surgiu não para descrever fatos historicamente verificáveis, e sim para tentar
expressar seu significado interior ou ressaltar realidades por demais elusivas para serem discutidas de maneira
coerente. Porque aborda dimensões internas do eu — tão misteriosas e ao mesmo tempo tão fascinantes para
nós —, ela é bem definida como uma forma antiga de psicologia. Assim, os mitos da “geografia sagrada”
expressam verdades a respeito da vida interior. Tocando nas fontes obscuras da dor e do desejo humano,
podem desencadear emoções intensas. Não se devem descartar certas histórias de Jerusalém porque “não
passam de mitos”: sua importância se deve justamente ao fato de serem mitos.
A questão de Jerusalém é explosiva porque a cidade adquiriu status de mito. Ambos os lados do atual
conflito e a comunidade internacional muitas vezes reclamam um debate racional acerca de direitos e de
soberania, um debate livre de toda ficção emocional. Seria ótimo, se fosse possível. Mas nunca podemos dizer
que transcendemos nossa necessidade de mitologia. No passado tentou-se muitas vezes extirpar o mito da
religião. No antigo Israel, por exemplo, profetas e reformadores se empenharam em separar sua fé da
mitologia dos nativos cananeus, porém não conseguiram. As velhas histórias e lendas ressurgiram com pleno
vigor no misticismo da Cabala, um processo que já foi descrito como o triunfo do mito sobre as formas
mais racionais de religião. Na história de Jerusalém encontraremos a recorrência instintiva ao mito sempre
que as dificuldades da vida aumentam e não se consegue encontrar consolo numa ideologia mais racional.
Por vezes, fatos exteriores pareciam expressar tão bem uma realidade interior que imediatamente ganhavam
status de mito e inspiravam uma explosão de entusiasmo. Um desses fatos foi a descoberta da tumba de
Cristo, no século IV; outro, a conquista de Jerusalém por Israel em 1967. Em ambos os casos as pessoas
envolvidas acharam que haviam deixado para trás esse modo primitivo de pensar, mas o curso dos
acontecimentos teve um custo alto demais para elas. As catástrofes que em nosso século se abateram sobre
judeus e palestinos adquiriram tal magnitude que o mito mais uma vez passou a ocupar lugar de destaque.
Portanto, é essencial considerar a mitologia de Jerusalém, ao menos para elucidar os desejos e o
comportamento dos indivíduos afetados por esse tipo de espiritualidade.
O último conceito que temos de analisar antes de embarcar na história de Jerusalém é o de simbolismo.
Em nossa sociedade norteada pela ciência já não pensamos naturalmente em termos de imagens e símbolos.
Desenvolvemos um modo de pensar mais lógico e discursivo. Em vez de observar os fenômenos físicos com
olhos imaginativos, despojamos um objeto de todas as suas associações emocionais e nos atemos à coisa em
si. No Ocidente isso modificou a experiência religiosa de muita gente — um processo que, como veremos,
começou no século XVI. Tendemos a dizer que determinada coisa é “apenas” um símbolo, essencialmente
separado da realidade mais misteriosa que representa. O mundo pré-moderno, entretanto, não compartilhava
essa concepção. Um símbolo fazia parte da realidade a que se referia; um símbolo religioso tinha, por
conseguinte, o poder de introduzir os devotos no reino do sagrado. Ao longo da história a experiência do
sagrado nunca foi direta — exceto, talvez, para alguns indivíduos extraordinários —, mas sempre ocorreu
através de outra coisa. Assim, a experiência do divino se dá por intermédio de uma criatura humana —
homem ou mulher — que se torna um avatar ou encarnação do sagrado, bem como de um texto sacro, um
código legal ou uma doutrina. Um de seus símbolos mais antigos e onipresentes é um lugar. As pessoas
percebem o sagrado nas montanhas, nos bosques, nas cidades e nos templos, onde se sentem entrando numa
dimensão diferente, separada do mundo físico que habitam normalmente, porém compatível com ele. Para
judeus, cristãos e muçulmanos, Jerusalém é esse símbolo do divino.
Isso não acontece automaticamente. Depois que um lugar passa a ser visto como sagrado, como capaz de
dar acesso ao divino, os devotos acionam sua energia criativa para ajudar os demais a cultivar esse senso de
transcendência. Veremos que a arquitetura de templos, igrejas e mesquitas é simbolicamente importante,
muitas vezes mapeando o roteiro interior que um peregrino deve percorrer para chegar a Deus. A liturgia
também intensifica essa percepção do espaço sagrado. O Ocidente protestante tem como hábito desconfiar do
cerimonial religioso, vendo-o como pura mistificação. No entanto, é provavelmente mais exato ver a liturgia
como uma forma de teatro, capaz de proporcionar uma forte experiência do transcendente mesmo num
contexto secular. O teatro ocidental teve origem na religião: nos festivais sacros da Grécia antiga e nas
celebrações pascais das igrejas e catedrais da Europa medieval. Também surgiram mitos para expressar o
significado oculto de Jerusalém e seus diversos santuários.
Um desses mitos é o que Mircea Eliade, falecido estudioso romeno radicado nos Estados Unidos,
encontrou em quase todas as culturas, e chamou de mito do eterno retorno. Nessa linha de pensamento,
todos os objetos que vemos aqui na terra têm sua contrapartida na esfera divina. Podemos entender esse
mito como uma tentativa de expressar a sensação de que nossa vida aqui embaixo é incompleta e dissociada
de uma existência mais plena e mais satisfatória alhures. Todas as atividades e aptidões humanas também
possuem um protótipo divino: mimetizando as ações dos deuses, os homens podem participar de sua vida
divina. Ainda hoje se observa essa imitatio dei. Os fiéis continuam repousando no Sabá ou comendo pão e
tomando vinho na igreja — atos que por si mesmos são insignificantes —, pois acreditam que um dia Deus
praticou essas ações. Os rituais num lugar sagrado constituem outra maneira simbólica de imitar a divindade
e participar de sua existência mais plena. O mesmo mito também é crucial para o culto da cidade santa,
que pode ser vista como uma réplica da morada dos deuses no céu. Um templo reproduz o palácio celestial
de uma divindade específica; copiando o mais minuciosamente possível seu arquétipo celeste, ele poderia
abrigar essa divindade aqui na terra.
À luz da modernidade racional tais mitos parecem ridículos. Essas ideias, no entanto, não tiveram uma
origem separada para depois serem atribuídas a determinado lugar “santo”. Elas constituem uma tentativa de
explicar uma experiência. Na religião a experiência sempre antecede a explicação teológica. As pessoas
primeiro sentem que apreenderam o sagrado num bosque ou no cume de uma montanha. Os artifícios
estéticos da arquitetura, da música e da liturgia às vezes as ajudam, fazendo-as transcender a si mesmas.
Depois elas procuram explicar essa experiência na linguagem poética da mitologia ou nos símbolos da
geografia sagrada. Jerusalém revelou-se um desses lugares que “funcionam” para judeus, cristãos e muçulmanos
porque parece introduzi-los na esfera do divino.
Um último comentário precisa ser feito. As práticas religiosas assemelham-se muito às artísticas. Arte e
religião tentam entender um mundo imperfeito e trágico. Contudo, a religião difere da arte porque precisa
ter uma dimensão ética. Talvez se possa defini-la como uma estética moral. Não basta experimentar o divino
ou o transcendente; é preciso que a experiência se incorpore a nossa conduta em relação aos outros. Todas
as grandes religiões frisam que a prova da verdadeira espiritualidade é a prática da compaixão. Buda disse
certa vez que, tendo alcançado a sabedoria, o indivíduo deve deixar o cume da montanha e voltar ao
mercado, para ali praticar a compaixão com todos os seres vivos. Isso se aplica também à espiritualidade de
um local santo. Crucial para o culto de Jerusalém, desde o início, é a importância da caridade concreta e da
justiça social. A cidade só pode ser santa se for também justa e compassiva com os fracos e os indefesos.
Infelizmente, porém, esse imperativo moral muitas vezes cai no esquecimento. Algumas das piores atrocidades
ocorreram quando a pureza de Jerusalém e o desejo de conquistar sua grande santidade precederam a busca
da justiça e da caridade.
Todas essas correntes tiveram seu papel na longa e turbulenta história da cidade. Este livro não tentará
ditar regras sobre o futuro de Jerusalém. Seria presunção. Apenas procurará descobrir o que judeus, cristãos e
muçulmanos querem dizer quando declaram que a cidade é “santa” para eles, e apontar algumas das
implicações da santidade de Jerusalém em cada tradição. Isso parece tão importante quanto decidir quem
esteve lá primeiro e quem, portanto, pode reivindicar a posse da cidade, sobretudo porque as origens de
Jerusalém estão envoltas na obscuridade.
JERUSALÉM
O antigo Oriente Próximo
1. SIÃO

NADA SABEMOS SOBRE os primeiros habitantes das colinas e vales que acabariam se tornando a cidade de
Jerusalém. Em tumbas do monte Ofel, ao sul das atuais muralhas da Cidade Velha, foram encontradas
vasilhas de cerâmica datadas de 3200 a.C. Foi nessa época que começaram a surgir cidades em outros pontos
de Canaã, o Israel moderno; em Meguido, Jericó, Hai, Laquis e Betsan, por exemplo, os arqueólogos
descobriram templos, casas, oficinas, ruas e condutos de água. No entanto, ainda não há uma prova
conclusiva de que a vida urbana de Jerusalém teve início nesse período. Ironicamente, a cidade que mais
tarde seria reverenciada como o centro do mundo por milhões de judeus, cristãos e muçulmanos não era
preeminente em Canaã. Situada nas terras altas, de difícil povoamento, estava fora do eixo de atividades do
país. No início da Idade do Bronze, o progresso se restringiu basicamente à planície costeira, ao fértil vale
de Jezrael e ao Negueb, onde os egípcios estabeleceram entrepostos comerciais. Canaã era uma terra
potencialmente rica; seus habitantes exportavam vinho, azeite, mel, betume e cereais. Era também
estrategicamente importante, pois constituía um elo entre a Ásia e a África, uma ponte entre as civilizações
egípcia, síria, fenícia e mesopotâmica. Contudo, embora as fontes existentes ao redor do monte Ofel sempre
atraíssem caçadores, agricultores e habitantes temporários — fragmentos datados da Era Paleolítica foram
encontrados na região —, Jerusalém não teve nenhuma participação nesse florescimento inicial.
No mundo antigo, a civilização sempre foi uma conquista precária. Por volta de 2300 a.C., praticamente
não havia outras cidades em Canaã. Mudanças climáticas, invasões estrangeiras e guerras internas acarretaram
o desaparecimento da vida urbana, numa época de turbulência e instabilidade em todo o Oriente Próximo.
No Egito, o período conhecido como Antigo Império (c. 2613-2160 a.C.) havia chegado ao fim. A dinastia
acadiana da Mesopotâmia fora derrubada pelos amoritas, povo semítico do oeste que tinha estabelecido sua
capital na Babilônia. Vários centros urbanos de toda a Ásia Menor caíram no abandono; Ugarit e Biblos, na
costa fenícia, foram destruídas. Por motivos que não compreendemos, a Síria se manteve incólume, e cidades
próximas, como Meguido e Betsan, no norte de Canaã, sobreviveram por mais tempo que suas vizinhas do
sul. Apesar disso, os esforços para criar um ambiente organizado, em que se pudesse levar uma vida mais
segura e completa, prosseguiram em todas essas regiões. Surgiram novas cidades e novas dinastias, antigos
povoados foram restaurados. No início do segundo milênio, as velhas cidades de Canaã eram novamente
habitadas.
Pouco sabemos sobre a vida em Canaã nesse período. Não havia um governo central. Cada cidade era
autônoma, tendo seu próprio governante e exercendo seu domínio sobre os campos adjacentes — mais ou
menos como na Mesopotâmia, onde nasceu a civilização. Canaã era um país basicamente regional. Não
existiam comércio e indústria em larga escala, as diferenças de terreno e clima eram tais que as várias
regiões tendiam a manter-se distintas e separadas entre si. Pouca gente habitava as terras altas, as estepes da
Judeia ou o vale do Jordão, onde o rio não era navegável e não levava a parte alguma. A comunicação era
difícil, e não se viajava muito de um país a outro. A principal estrada que ligava o Egito a Damasco subia a
costa de Gaza até Jafa e depois, para evitar os pântanos que rodeavam o monte Carmelo, enveredava pelo
interior, passando por Meguido, pelo vale de Jezrael e pelo mar da Galileia. Essas regiões apresentavam
maior densidade demográfica e, por conseguinte, atraíram o interesse dos faraós da XII dinastia, que
começaram a estender sua influência para o norte, rumo à Síria, nos séculos XX e XIX a.C. Canaã, a que os
egípcios chamavam de “Retinu”, não era realmente uma província do Egito, mas estava sob o domínio
político e econômico dos faraós. Sesóstris III, por exemplo, não hesitou em marchar pela estrada costeira a
fim de submeter os governantes locais, que estavam se tornando muito poderosos e independentes. Outras
áreas de Canaã tinham um interesse relativamente menor para os soberanos egípcios, e a generalização da
dominação exercida por estes não impediu que Meguido, Hasor e Aco se convertessem em cidades-estados
fortificadas. No final do século XIX a.C. teve início o povoamento da região montanhosa; dentre as cidades
ali fundadas, Siquém tornou-se a mais poderosa, com uma área de aproximadamente quinze hectares e o
controle sobre uma parte considerável dos campos vizinhos. Hebron e Jerusalém também se desenvolveram
nas montanhas meridionais.
A Jerusalém antiga
Esse é o momento em que Jerusalém entrou para a história. Em 1961, a arqueóloga inglesa Kathleen
Kenyon descobriu uma muralha com cerca de dois metros de espessura que se estendia ao longo da vertente
oriental do monte Ofel, tendo uma grande porta perto da fonte de Gion. Ela concluiu que a muralha
contornava a extremidade sul do monte e acompanhava também a encosta ocidental, desaparecendo ao norte
sob um muro construído posteriormente. Entre a muralha e o monte, a arqueóloga encontrou ainda restos
de cerâmica datados de cerca de 1800 a.C. A cidade era mais vulnerável no lado norte, onde mais tarde foi
erguida a cidadela de Sião e onde no século XVIII a.C. pode ter existido uma fortaleza. As muralhas eram
bem baixas na vertente oriental, possivelmente para permitir o acesso à fonte de Gion.1 Já em 1867 o
engenheiro inglês Charles Warren havia descoberto esse túnel, que começava numa abertura da rocha, dentro
da cidade, descia numa linha oblíqua e por fim mergulhava verticalmente até se encontrar com a fonte, cuja
água era transportada por um túnel horizontal. Durante um cerco os habitantes podiam abastecer-se
lançando seus cântaros por essa abertura. Sistemas semelhantes foram encontrados em Meguido, Gazer e
Gabaon. Kenyon acreditava que o poço já era utilizado na Idade do Bronze, mas sua teoria tem sido
discutida: alguns duvidam que nesse estágio houvesse tecnologia desenvolvida o suficiente para construir um
sistema como esse. Descobertas geológicas recentes indicam, no entanto, que o “poço de Warren”, como se
tornou conhecido, não resulta apenas do trabalho humano; trata-se de um escoadouro natural que se formou
ao longo de uma junta do calcário e que os antigos jerosolimitas podem ter modificado e ampliado.2
O povoamento do monte Ofel ocorreu provavelmente por causa de sua localização, nas proximidades da
fonte de Gion. Além disso, existiam vantagens estratégicas, por se localizar no ponto em que o contraforte
das montanhas dá lugar ao deserto da Judeia. O Ofel não podia abrigar uma população numerosa — a
cidade ocupava uma área pouco superior a 3,6 hectares; porém, três vales íngremes proporcionavam uma
proteção extraordinária: o Cedron, a leste, o Hinom (ou Geena), ao sul, e o Central, a oeste; este último,
que hoje está em grande parte coberto de detritos, recebeu do historiador judeu Flávio José o nome de
Tiropeon.3 Embora a cidade não estivesse entre as mais importantes de Canaã, ela parece ter atraído a
atenção dos egípcios. Em 1925, foram comprados em Lúxor fragmentos que, uma vez reunidos, resultaram
em cerca de oitenta pratos e vasos com inscrições na antiga escrita hierática. Decifrada essa escrita,
constatou-se que os textos continham os nomes de países, cidades e governantes considerados inimigos do
Egito. Os vasos deviam ser despedaçados num rito de magia simpática que visava provocar a ruína dos
vassalos recalcitrantes. Remontam ao reinado do faraó Sesóstris III (1878-42 a.C.) e mencionam dezenove
cidades cananeias, entre as quais “Rushalimum”. Trata-se da primeira menção a essa cidade, governada,
segundo as inscrições, por dois príncipes: Yq’rm e Shashan. Em outro dos chamados Textos de Execração,
cuja inscrição é estimada em um século depois, “Rushalimum” novamente é amaldiçoada, mas ao que tudo
indica dessa vez um só homem a governa. A partir desse pequeno indício alguns estudiosos inferiram que
durante o século XVIII a.C. Jerusalém, bem como o restante de Canaã, deixou de ser uma sociedade tribal,
com vários chefes, para tornar-se um núcleo urbano, sob o comando de um único rei.4
Aqui cabe fazer uma pausa para examinar o nome da cidade. Ela parece ter incorporado o nome do deus
sírio Shalem, identificado com o sol poente ou a estrela vespertina. Canaã podia estar sob o domínio
político do Egito, mas em termos de cultura e religião achava-se basicamente sob a influência da Síria.
Templos desse período encontrados em Hasor, Meguido e Siquém seguem claramente um modelo sírio.
Foram construídos segundo o mesmo plano básico do palácio real, enfatizando a crença de que todo
domínio provém dos deuses. Os leigos não podiam entrar no Hekhal, ou sala do culto, e tampouco tinham
acesso à presença do rei. Do pátio, através das portas abertas do Hekhal, podiam vislumbrar a efígie do
deus, colocada num nicho no fundo da sala. Em Jerusalém não foi descoberto nenhum templo da Idade do
Bronze, entretanto o nome da cidade mostra que os habitantes também estavam abertos à religião síria. Os
nomes dos príncipes de Jerusalém nos Textos de Execração indicam que, como os sírios, os jerosolimitas
eram de origem semita e partilhavam a mesma visão de mundo.
Rushalimum provavelmente significa “Shalem fundou”.5 No mundo antigo do Oriente Próximo e do
Mediterrâneo, povoamento e urbanismo constituíam feitos divinos. O monte Ofel pode ter atraído seus
primeiros habitantes por causa da água em abundância e de vantagens estratégicas; porém, o nome da cidade
mostra que a iniciativa partiu do deus. Nessa época, todas as cidades eram tidas como locais santos — um
conceito estranho para nós, ocidentais modernos, que muitas vezes as vemos como lugares esquecidos por
Deus, nos quais a religião desempenha um papel cada vez mais secundário. Contudo, muito antes de iniciar
o mapeamento científico de seu mundo, o homem desenvolveu pouco a pouco uma geografia sagrada para
definir emocional e espiritualmente seu lugar no universo. Mircea Eliade, pioneiro no estudo do espaço
sagrado, assinala que a reverência a um local santo precedeu qualquer especulação a respeito da natureza do
mundo.6 Presente em todas as culturas, constituía uma convicção religiosa primordial. A crença de que
alguns lugares eram sagrados e, portanto, adequados à habitação humana não se baseava numa investigação
intelectual ou em conjecturas metafísicas sobre a natureza do cosmo. Ao contrário, quando contemplavam o
mundo a seu redor, homens e mulheres sentiam irresistível atração por algumas localidades, que eram
percebidas como radicalmente diferentes de todas as outras. Tal percepção, crucial para sua visão de mundo,
ultrapassava a esfera cerebral da mente. Nosso racionalismo científico não conseguiu até hoje substituir
inteiramente a velha geografia sagrada. Conforme veremos, antigas concepções de uma topografia santa ainda
afetam a história de Jerusalém e têm sido abraçadas por pessoas que normalmente não se considerariam
religiosas. Ao longo dos séculos, homens e mulheres têm formulado de várias maneiras essa percepção do
espaço sagrado, mas na discussão do status especial de uma cidade como Jerusalém determinados temas
tendem a repetir-se, indicando que se referem a alguma necessidade humana fundamental. 7 Até mesmo quem
não se interessa por nenhuma das cidades tradicionalmente santas e não acredita no sobrenatural gosta de
visitar lugares especiais. Tais lugares são “sagrados” para nós porque estão inextricavelmente associados à
concepção que compartilhamos a respeito de nós mesmos; relacionam-se com uma experiência profunda que
transformou nossas vidas, com lembranças da mais tenra infância, com uma pessoa que era importante para
nós. Ao visitá-los, esperamos poder reviver a experiência de uma vida melhor que ali tivemos um dia e que
naquele momento nos convenceu de que nossa existência mundana, apesar de sua natureza em grande parte
penosa e arbitrária, possui um significado e um valor supremos, ainda que tenhamos dificuldade em expressar
essa convicção em termos racionais.
No mundo antigo, assim como nas sociedades tradicionais de nossos dias, as pessoas tentavam explicar sua
geografia sagrada afirmando que o mundo fora criado pelos deuses. Não era, portanto, território neutro: a
paisagem tinha alguma coisa a dizer à humanidade. Ao contemplar o cosmo, homens e mulheres discerniram
um nível de existência que transcende as fraquezas e limitações de suas vidas, uma dimensão mais completa,
uma realidade ao mesmo tempo distinta e profundamente familiar. Para expressar seu senso de afinidade com
o reino do sagrado, muitas vezes o personificaram, concebendo-o como deuses e deusas com personalidades
semelhantes às suas. Porque sentiam esse elemento divino no mundo natural, associaram tais divindades
também com o sol, o vento ou a chuva que dá vida. Contavam histórias sobre elas, não para relatar fatos
que realmente aconteceram, mas para tentar expressar o mistério que percebiam no mundo. Acima de tudo,
queriam viver o mais perto possível dessa realidade transcendente. Dizer que buscavam o significado da vida
pode ser enganoso, pois sugere uma fórmula clara que resume a condição humana. O objetivo da procura
religiosa sempre foi, na verdade, uma experiência, não uma mensagem. Queremos nos sentir verdadeiramente
vivos e realizar o potencial de nossa humanidade, vivendo de modo a estar em sintonia com as correntes
mais profundas da existência. Essa procura de uma vida superabundante — simbolizada por deuses poderosos
e imortais — inspirou todas as grandes religiões: as pessoas desejavam ultrapassar a mortalidade e a
insignificância da experiência terrena para encontrar uma realidade que complementasse sua natureza humana.
No mundo antigo, elas achavam que, sem a possibilidade de viver em contato com esse elemento divino, a
vida era insuportável.8
Portanto, como Eliade mostrou, elas só se estabeleciam em lugares onde o sagrado tivesse se manifestado,
derrubando a barreira entre deuses e homens. Talvez Shalem tivesse se revelado no monte Ofel, apoderando-
se, assim, desse local. As pessoas que se deslocavam para lá sabiam que era possível estabelecer contato com
o deus na cidade que ele escolhera para si. Mas o sagrado não se manifestava no mundo terreno somente
com aparições e epifanias. Qualquer coisa que se destacasse de seu ambiente e contrariasse a ordem natural
podia ser uma hierofania, uma revelação do divino. Um monte ou um vale particularmente belos ou
majestosos podiam indicar a presença do sagrado porque destoavam de seus arredores. Sua própria aparência
denotava outra coisa.9 Aos olhos das sociedades arcaicas, o desconhecido, o estranho ou mesmo o perfeito
pareciam apontar algo diferente. As montanhas simbolizavam a transcendência com uma força especial; os
devotos que as escalavam até o cume se sentiam guindados a um plano distinto, intermediário entre o céu e
a terra. Os zigurates, grandes templos em forma de torre da Mesopotâmia, foram concebidos para
assemelhar-se a colinas; os sete níveis dessas imensas escadas de pedra representavam os sete céus. Os
peregrinos imaginavam-se, pois, escalando o cosmo, em cujo topo esperavam encontrar seus deuses.10 Na
Síria, região mais montanhosa, não havia necessidade de criar colinas artificiais, pois os montes verdadeiros
atuavam como locais sagrados. Um deles seria muito importante na história de Jerusalém: o Zaphon, atual
Jebel al-Aqra, 32 quilômetros ao norte de Ugarit, na embocadura do Orontes.11 Em Canaã reverenciavam-se
também o Hermon, o Carmelo e o Tabor. O monte Sião, ao norte do Ofel, em Jerusalém, era igualmente
um local sagrado, como nos mostram os Salmos. Não podemos discernir seu contorno natural, escondido
pela vasta esplanada que o rei Herodes construiu no século I a.C. para abrigar o templo judaico. Sem ela o
monte Sião decerto se destacava tão espetacularmente das colinas vizinhas que parecia encarnar o “outro”
sagrado e demarcar o lugar como “santo”.
Todo local visto como sagrado era radicalmente separado de seus arredores profanos. Tornava-se o centro
da terra, já que o divino ali se revelara. Esse entendimento nada tinha de literal, de exato. Aos habitantes de
Jerusalém não importava que a vizinha Hebron também fosse tida como “centro” sagrado. Tampouco os
salmistas e rabinos, que mais tarde proclamaram o monte Sião o ponto culminante do mundo, se abalaram
com o fato de a Colina ocidental ser evidentemente mais alta. Interessava-lhes não a geografia física, e sim o
lugar da cidade em seu mapa espiritual. Como qualquer outro monte sagrado onde o divino se revelara, o
Sião devia ser exaltado, pois ali as pessoas se sentiam mais perto do céu. Pela mesma razão consideravam-no
o centro de seu mundo, um dos locais onde podiam estabelecer o contato com o divino que conferia
realidade e propósito a suas vidas.
Nas sociedades arcaicas, o povoamento ocorria nos lugares que tornavam possível esse contato. Eliade
observou que a tribo australiana dos Achilpa ficou totalmente desorientada quando o mastro sagrado que a
acompanhava em suas viagens, e que representava seus vínculos com o divino, se quebrou. A partir desse
momento nada mais lhe restava senão morrer. 12 Estamos sempre em busca de significados e, se perdemos o
que nos serve de orientação, não sabemos viver ou situar-nos no mundo. É por isso que os antigos
construíram suas cidades em torno de santuários e templos que abrigavam a divina Presença. O sagrado era
a realidade mais sólida, que dava substância à existência humana, mais fragmentada. Podia apresentar-se como
assustador e “outro”. Às vezes podia inspirar medo e horror, como o historiador alemão Rudolph Otto
explica em A ideia do sagrado. Contudo, era também fascinans, exercendo uma atração irresistível por ser
reconhecido como profundamente familiar e como algo essencial à humanidade. Só a associação com essa
realidade mais poderosa podia assegurar aos seres humanos a sobrevivência de suas sociedades. A civilização
era frágil: cidades inteiras podiam desaparecer praticamente da noite para o dia, como ocorreu na Palestina
no início da Idade do Bronze. Sua única esperança de continuidade consistia em partilhar, em algum grau, a
vida mais potente e efetiva dos deuses.
Essa busca do sagrado e o culto de um local santo por vezes se relacionavam com a nostalgia do paraíso.
Quase todas as culturas possuem o mito de uma Idade do Ouro no começo dos tempos, quando a
comunicação com os deuses era fácil e íntima. O divino parecia não uma força distante e violenta, mas um
fato do dia a dia. A humanidade desfrutava poderes superiores; não havia morte, nem doença, nem discórdia.
As pessoas ansiavam por retornar a esse estado de beatitude e harmonia primordial, acreditando que a vida
devia ser assim, se não tivesse ocorrido uma queda original.13 Hoje talvez não acreditemos mais num paraíso
terrestre, num Jardim do Éden, porém ansiamos por algo diferente de nosso presente imperfeito. Existe em
nós uma convicção inata de que a vida não deveria ser assim: almejamos o que poderia ter sido, lamentamos
a natureza transitória da existência terrena e nos indignamos com a morte. Vivemos obcecados pela ideia de
relacionamentos mais perfeitos e imaginamos um mundo de harmonia e plenitude, onde nos sentiríamos em
absoluta sintonia com o meio, em vez de viver para combatê-lo. Esse desejo de um paraíso inacessível e
irremediavelmente perdido expressa-se hoje em canções populares, em obras de ficção e nas fantasias utópicas
de filósofos, políticos e publicitários. Os psicanalistas associam essa nostalgia à dor da separação que
experimentamos ao nascer, quando somos expulsos, violenta e definitivamente, do corpo da mãe. Muitos
buscam essa harmonia paradisíaca na arte, nas drogas ou no sexo; nossos ancestrais a buscavam num lugar
onde acreditavam que podiam recuperar a plenitude perdida.
O país de Canaã
Não dispomos, contudo, de informações precisas sobre a vida religiosa de Jerusalém no século XVIII a.C.
Na verdade, depois dos Textos de Execração, o silêncio envolveu Jerusalém durante algum tempo. Um
tempo de prosperidade para Canaã. No decorrer do século XVII os faraós estavam envolvidos demais nos
assuntos internos para se ocupar de “Retinu”, e o país prosperou. Sem as campanhas agressivas dos egípcios,
a cultura local floresceu. Alguns centros urbanos se tornaram autênticas cidades-estados: os arqueólogos
encontraram peças de arquitetura, mobiliário, cerâmica e ourivesaria em Meguido, Hasor e Siquém. Todavia,
não descobriram em Jerusalém nenhum fragmento de cerâmica que remontasse ao período dos séculos
XVII -XV a.C. Pelo que sabemos, a cidade talvez tenha até desaparecido nessa época.
Podemos afirmar com certeza que ela só voltou a ser habitada no século XIV a.C. Assegurada sua presença
em Canaã, os faraós agora lutavam contra o novo império hitita, na Anatólia, e contra o reino hurrita de
Mitani, na Alta Mesopotâmia. Precisavam manter sob controle o importante corredor representado por
Canaã. No ano de 1486 a.C., Tutmósis III reprimiu uma rebelião de príncipes cananeus e sírios em
Meguido, e reduziu “Retinu” a um mero domínio egípcio. O país foi dividido em quatro distritos
administrativos, e os príncipes das cidades-estados de Canaã se tornaram vassalos do faraó, ao qual estavam
ligados por um juramento pessoal, sendo obrigados a pagar onerosos tributos. Ao que tudo indica, esperavam
receber em troca mais ajuda e apoio do que o faraó estava realmente disposto a lhes dar. Contudo, ainda
gozavam de certa independência, já que o Egito não tinha meios de controlar o país completamente. Assim,
podiam reunir exércitos, lutar entre si e anexar novos territórios a seus domínios. Mas outras grandes
potências começavam a voltar suas atenções para Canaã. Os hurritas do reino de Mitani passaram a
estabelecer-se no país no início do século XV. É o povo que figura na Bíblia como hivitas, heveus ou
horitas. Ao contrário da população local, eram de raça ariana e, embora no início não fossem conquistadores,
exerceram uma influência tão poderosa que os egípcios começaram a chamar Canaã de “Huru” ou “Terra
dos Hurritas”. Muitas vezes os hurritas galgaram posições de poder nas cidades-estados; conviviam com os
autóctones e ensinaram-lhes sua língua acadiana, que se tornou o idioma diplomático oficial, e sua escrita
cuneiforme.
Sua influência foi marcante em Jerusalém,14 que no século XIV a.C. se torna uma das cidades-estados de
Canaã — embora menos importante que Hasor ou Meguido. Seu território estendia-se até as terras de
Siquém e Gazer, e seu governante tinha um nome hurrita: Abdi-Hepa. O que sabemos sobre Jerusalém nessa
época provém das tabuinhas com inscrições cuneiformes que foram descobertas em Tel el-Amarna, no Egito,
no ano 1887 de nossa era, e que possivelmente faziam parte dos arquivos de Amenófis III (1386-49 a.C.) e
seu filho Akhenaton (1350-34 a.C.). São cerca de 350 cartas enviadas pelos príncipes de Canaã ao faraó, seu
senhor, e mostram que o país estava conturbado. As cidades-estados lutavam entre si: o príncipe Lab’ayu, de
Siquém, por exemplo, adotara uma política de expansionismo implacável, que o levara a estender seu
território até o mar da Galileia, ao norte, e Gaza, a oeste. Os remetentes também se queixavam de inimigos
internos e imploravam ajuda ao soberano egípcio. Ocupado em combater os hititas, o faraó aparentemente
não lhes ofereceu grande apoio. Ademais, devia ver com bons olhos a inquietação reinante em Canaã, sinal
de que as cidades-estados eram incapazes de unir-se para lutar contra sua hegemonia.
Abdi-Hepa, que, ao que tudo indica, não foi um dos melhores governantes de Canaã, escreveu seis das
cartas de Amarna. Após desmanchar-se em declarações de lealdade ao faraó, pediu-lhe inutilmente que o
auxiliasse na luta contra seus inimigos. Sem poder avançar contra Siquém, acabou perdendo todos os seus
aliados. Apesar dos levantes na própria cidade que governava, não queria soldados egípcios em Jerusalém. Já
havia sofrido bastante nas mãos desses homens mal treinados e mal equipados que, queixou-se, tinham
invadido seu palácio e tentado matá-lo. Queria, sim, que o faraó mandasse reforços para Gazer, Laquis ou
Ascalon. Sem a ajuda egípcia, a terra de Jerusalém certamente cairia nas mãos de seus inimigos.15
É quase certo que nunca recebeu o auxílio solicitado. Nessa época as terras altas estavam se
desmilitarizando rapidamente.16 A cidade fortificada de Silo, por exemplo, foi abandonada, e 80% dos
núcleos menores da região haviam desaparecido no início do século XIII a.C. Alguns estudiosos acreditam que
o povo que a Bíblia chama de jebuseus se estabeleceu em Jerusalém nessa época. Outros se baseiam em
evidências literárias para afirmar que os jebuseus, parentes próximos dos hititas, só chegaram à região por
volta de 1200 a.C., ou seja, após a queda do império hitita, correspondente ao que é hoje o norte da
Turquia.17 Não sabemos quem está correto. Até agora as investigações arqueológicas não indicam mudanças
na população de Jerusalém na Idade do Bronze recente (1550-1200 a.C.). Já se disse também que os jebuseus
eram apenas uma família aristocrática que vivia na cidadela, afastada do povo.18 Nesse caso, podem ter
reparado as velhas fortificações do Ofel e construído um novo bairro na encosta oriental, entre a muralha e
o topo da colina. Kathleen Kenyon encontrou uma série de terraços cheios de pedra que, a seu ver,
tornaram habitável esse terreno escarpado e substituíram as antigas casas dispersas e as ruas íngremes. As
obras estenderam-se por muito tempo; Kenyon calcula que tenham começado em meados do século XIV e só
foram concluídas no início do século seguinte. Algumas muralhas tinham quase cem metros de altura, e
desastres naturais, como terremotos e erosão do solo, interromperam os trabalhos com bastante frequência.19
Além de fornecer acomodação, essa nova estrutura provavelmente fazia parte do sistema defensivo da cidade.
Na visão de Kenyon, talvez se trate do “Melo” mencionado pelos autores bíblicos:20 como alguns dos
últimos reis de Judá se empenharam em repará-lo, é provável que o Melo tivesse uma função militar. Podia
ser parte da fortaleza situada na crista do Ofel. Já se observou que o nome Sião não se referia a toda
Jerusalém, mas originalmente designava a fortaleza que a protegia no lado setentrional, mais vulnerável.
Durante o período Amarna, a cidade parece ter se mantido fiel a Shalem, seu deus-fundador. Em suas
cartas ao faraó, Abdi-Hepa fala da “capital da terra de Jerusalém, cujo nome é Beit-Shulmani [Casa de
Shalem]”.21 Os estudiosos acreditam, no entanto, que os hurritas ali instituíram o culto a Baal, o deus da
tempestade, venerado pelo povo de Ugarit, no litoral da Síria.22 Tabuinhas com inscrições cuneiformes
descobertas em 1928 em Ras Shamra (cidade que fica atualmente no local da antiga Ugarit) nos mostram
que seus habitantes cultuavam Baal. Devemos fazer uma breve pausa para considerar esse culto, que teria
grande impacto sobre a espiritualidade de Jerusalém.
Baal não era o principal deus do panteão sírio. El, seu pai, que também figura no Velho Testamento,
habitava uma tenda-santuário na montanha próxima à confluência de dois grandes rios, fonte da fertilidade
mundial. Todos os anos os deuses ali se reuniam, compondo o Divino Concílio, para estabelecer as leis do
universo. El era, pois, a fonte da lei, da ordem e da fecundidade, sem as quais nenhuma civilização poderia
sobreviver. Com o tempo, entretanto, tornou-se uma figura distante, e muita gente se sentiu atraída por seu
filho Baal, um deus mais dinâmico, que cavalgava as nuvens do céu e lançava relâmpagos para despejar sobre
o solo ressequido a chuva vivificante.
Baal, porém, teve de lutar muito para assegurar a fertilidade da terra. No Oriente Próximo, a vida era
quase sempre uma batalha desesperada contra as forças do caos, da escuridão, da mortalidade. Era preciso
superar grandes obstáculos para conquistar a civilização, a ordem, a criatividade. Dizia-se que no começo dos
tempos os deuses travaram violentos combates para arrancar a luz da escuridão e a ordem do caos, bem
como para manter dentro dos devidos limites os elementos anárquicos do cosmo. Na Babilônia, por exemplo,
a liturgia comemorava a façanha do jovem deus-guerreiro Marduc, que matou Tiamat, o monstro do mar,
partiu-o ao meio e criou o mundo. A respeito de Baal circulavam histórias semelhantes. Numa delas o deus
enfrenta Lotan, o monstro marinho que a Bíblia chama de “Leviatã”. O dragão ou o monstro simbolizam
em quase todas as culturas o informe e o indiferenciado. Ao matar Lotan, Baal sustou a deterioração,
remetendo-a de novo ao caos primordial, do qual se originara toda vida — humana e divina. O mito reflete
o medo da extinção, da aniquilação, que, naqueles primórdios da civilização, era uma possibilidade constante.
O mesmo pavor se exprime em outras histórias de Baal, referentes a seus combates contra o mar e o
deserto — duas forças naturais que ameaçavam as primeiras cidades do Oriente Próximo. O mar representava
tudo o que o mundo civilizado não era e tudo o que a civilização temia. Não tinha limites nem forma. Era
vasto, aberto, amorfo. Ao mesmo tempo, as estepes estéreis estavam constantemente prestes a invadir as terras
férteis, as únicas adequadas à morada humana. Os mitos de Ugarit contavam a história da luta desesperada
de Baal contra Yam-Nahar, o deus dos mares e dos rios, e Mot, o deus da morte, da esterilidade e da
aridez. Imaginava-se este último como uma força voraz, insaciável, ávida de carne e sangue humanos. Baal
teve muita dificuldade para derrotar esses dois inimigos: ao defrontar-se com Mot, teria caído prisioneiro,
sendo confinado nos domínios de seu adversário — o mundo subterrâneo, o “abismo” do temível nada.
Enquanto ficou preso, a terra secou, convertendo-se em deserto. Baal enfim venceu, porém sua vitória nunca
foi completa. Yam e Mot sobreviveram: o poder assustador do Caos era uma perene ameaça, e a Morte, a
mais inelutável das certezas. Deuses e homens tinham de unir forças e combatê-los sem trégua.
Disposto a celebrar seu triunfo, Baal pediu permissão a El para construir seu próprio palácio. Isso era
muito comum nos mitos antigos. Depois que Marduc criou o mundo, deuses e homens trabalharam juntos
na construção da cidade de Babilônia. Em Bab-ilani [O portal dos deuses], as divindades podiam se reunir
anualmente para compor o Divino Concílio: aquela era sua morada no mundo terreno, onde se tornavam
acessíveis aos mortais. No centro da cidade ergueram o grande templo de Esagila, o palácio em que Marduc
morou e onde impôs a ordem divina por intermédio de seu representante, o rei. Considerava-se a arquitetura
um exercício de inspiração divina. As grandes cidades, os templos e os zigurates de pedra eram tão
extraordinários em sua feitura que os homens que os edificaram pareciam ter transcendido a si mesmos.
Constituíam um lembrete constante da vitória humana e divina sobre a informidade e a desordem.
Baal também não podia governar sem ter um palácio. Depois que se instalou em sua mansão celeste de
ouro e lápis-lazúli, no topo do monte Zaphon, tornou-se realmente o “Senhor”, como seu nome indica, o
único soberano dos deuses e dos homens. Ele próprio declarou:
[Pois] só eu sou aquele que reinará sobre os deuses,
[que] de fato alimenta deuses e homens,
que satisfaz as multidões da terra.23
Em seu templo, Baal e sua consorte, Anat, celebravam suas grandes vitórias, que restituíram a ordem ao
mundo:
Não destruí Yam, o querido de El [...]
O dragão não foi preso e subjugado?
Destruí a serpente coleante,
o tirano de sete cabeças.24
Os habitantes de Ugarit, cidade que distava apenas trinta quilômetros da morada do deus, achavam que, por
viver no território de Baal, tinham parte em seu triunfo. Nos hinos ugaríticos, Baal chama o Zaphon de
“lugar santo, a montanha de minha herança [...] o local escolhido [...] o monte da vitória”. O Zaphon era o
centro de seu mundo, uma “montanha santa”, “bela”, a “alegria de toda a terra”.25 Porque o habitava, Baal
o convertera num paraíso terrestre de paz, fertilidade e harmonia. A partir dali iria “remover a guerra da
face do mundo, despejar a paz nas profundezas da terra”. “O amor se intensificaria nas profundezas dos
campos.”26 Para desfrutar essa fertilidade e essa paz divinas, os habitantes de Ugarit construíram um templo
que era uma réplica do palácio de Baal no monte Zaphon. Copiaram até o último detalhe do que lhes fora
revelado, de modo que, segundo o princípio da imitatio dei, Baal também moraria com eles. Assim, o céu
viria à terra em sua cidade e eles criariam um oásis de vida no meio de um mundo perigoso.
A presença de Baal tornou possível a vida humana em Ugarit. Ao entrar no templo, os devotos sentiam-se
ingressando em outra dimensão da existência e mais uma vez comungavam com os ritmos de vida naturais e
divinos, que normalmente estavam ocultos para eles. Podiam ouvir
a voz da madeira e o sussurro das pedras,
a conversa do céu com a terra,
das profundezas com as estrelas.
[...] relâmpago que os céus não conhecem,
Fala que os homens não conhecem
E as multidões da terra não compreendem.27
No mundo antigo, as pessoas muitas vezes percebiam o templo como um lugar da visão, onde aprendiam a
ver mais longe e de outra forma, desdobrando-se para enxergar por dentro a vida das coisas. A liturgia e a
arquitetura do templo faziam parte desse esforço para imaginar uma forma de existência mais plena e mais
intensa. No entanto, o ritual era também um plano de ação. Num drama sacro, os habitantes de Ugarit
reviviam as batalhas de Baal e sua entronização no monte Zaphon. Esse festival de outono assinalava o início
do Ano-Novo: as vitórias de Baal eram encenadas para que a chuva vivificante caísse novamente e a cidade
ficasse imune às forças desenfreadas da destruição. Graças a essa cerimônia de entronização, Ugarit se tornava
parte da “herança eterna” de Baal,28 um porto de paz e fartura — era isso o que se esperava.
Uma figura crucial da liturgia era o rei, que, sentado em seu trono, a cabeça reluzindo com o óleo da
vitória, representava Baal. Como outros soberanos do Oriente Próximo, atuava como delegado do deus e
tinha deveres claramente definidos. Seus súditos não acalentavam nessa época grandes esperanças com respeito
à religião. “Salvação” não significava imortalidade, que era uma prerrogativa dos deuses. Os devotos visavam
a um objetivo mais modesto: ajudar os deuses a sustentar na terra uma vida decente e organizada, mantendo
à distância as forças hostis. A guerra era um dos deveres reais: muitas vezes os inimigos de uma cidade eram
identificados com as forças do caos, porque podiam ser tão destrutivos quanto elas. Contudo, guerreava-se
em nome da paz. Em sua coroação, o rei comumente jurava construir templos para os deuses de sua cidade
e conservá-los em bom estado, a fim de manter intacta a linha vital de comunicação com o mundo divino.
Mas também tinha o dever de construir canais e nunca descuidar das fortificações. Nenhuma cidade merecia
tal nome se não podia oferecer segurança a seus habitantes. No começo e no fim da epopeia babilônica de
Gilgamesh, o povo de Uruc é exortado a admirar a solidez das muralhas da cidade e a maestria com que
foram edificadas:
Inspecionai os alicerces e examinai a construção.
[Vede] se a alvenaria não é de tijolos queimados
e se os sete [sábios] não lançaram suas fundações.29
O rei Gilgamesh tentou transcender a condição humana, partindo em busca da imortalidade. Não a
encontrou, mas, diz o poeta, conseguiu assegurar a proteção de sua cidade e deitou raízes em Uruc, o único
lugar do planeta onde deveria estar.
No Oriente Próximo, o soberano tinha mais uma missão: impor a lei, considerada uma criação divina que
os deuses revelaram aos reis. Numa estela famosa, Hamurabi, o grande monarca babilônio do século XVIII
a.C., figura em pé diante do trono do deus Shamash, que lhe transmite as leis. Em seu código ele afirma
que os deuses o escolheram para
fazer a justiça prevalecer na terra,
destruir os corruptos e os maus,
para que os fortes não oprimam os fracos.30
Além de manter a unidade física da cidade, o rei devia preservar a ordem social. Não adiantava construir
fortificações contra inimigos externos, se a exploração, a pobreza e o descontentamento internos ameaçavam
causar instabilidade. O rei apresentava-se, portanto, como o pastor de seus súditos, conforme Hamurabi
explica no epílogo de seu código:
Fiz o povo descansar em acolhedoras habitações;
Não deixei que ninguém o aterrorizasse [...]
Assim me tornei o beneficente pastor cujo cetro é justo;
Minha sombra benigna estendeu-se por sobre a cidade.
Em meu peito carreguei o povo da Suméria e de Acad,
Que prosperou sob minha proteção;
Governei-o em paz;
Abriguei-o em minha força.31
Em Ugarit cabia ainda ao soberano cuidar das viúvas e dos órfãos:32 garantindo o predomínio da justiça e
da civilidade — essenciais à ordem divina —, assegurava também que a fome e a sede se manteriam ausentes
e que a terra permaneceria fértil. Uma cidade só podia ser pacífica e fecunda se o bem-estar da população
fosse prioridade máxima.33 Em todo o Oriente Próximo esse ideal de justiça social era decisivo para as
noções de realeza sagrada e de cidade santa. Sabia-se muito bem que apenas uma elite privilegiada conseguia
desfrutar os benefícios da civilização. Camponeses furiosos podiam facilmente derrubar uma ordem frágil.
Portanto, a luta pela justiça social era imprescindível para o ideal da cidade de paz.
Exemplo disso é a história de Ugarit, onde os cerca de 25 mil camponeses que habitavam os arredores da
cidade sustentavam cerca de 7 mil citadinos, a maioria dependentes do palácio. Essa refinada civilização
construiu-se à custa dos pobres — o que talvez se reflita nas histórias das batalhas de Baal, nas quais a
dominação de um outro determina a criatividade e a ordem. Por fim, o sistema se revelou inviável, e no
século XIII a.C. a economia entrou em colapso, as aldeias foram abandonadas e as cidades-estados da região
não conseguiram deter os invasores, “povos do mar” procedentes das ilhas do Egeu e da Anatólia. A busca
de maior equidade social não era apenas uma fantasia piedosa. Era e continuaria sendo essencial à boa
administração da cidade santa. Veremos na história de Jerusalém que às vezes os regimes opressivos semeiam
a própria ruína.
Não temos informações diretas sobre a vida religiosa de Jerusalém na Idade do Bronze. Os arqueólogos
não encontraram vestígios de algum templo jebuseu, nem textos semelhantes aos que desenterraram em
Ugarit. Existem, no entanto, estranhas analogias entre os textos ugaríticos e alguns salmos utilizados no culto
israelita. Frases dos hinos de Ugarit figuram nos salmos que celebram a entronização do Deus de Israel no
monte Sião. Enaltecem sua vitória sobre “Leviatã” e o dragão no dia da criação. O monte Sião é também
chamado de cidade da paz, montanha santa e herança eterna de seu deus. No Velho Testamento, algumas
vezes até recebe o nome de Zaphon. Sabemos que os hurritas também contavam histórias sobre Baal e seu
templo em Zaphon, e os estudiosos concluíram que eles levaram o culto desse deus para Jerusalém, o que
acabaria por introduzir entre os israelitas do monte Sião a noção ugarítica de cidade santa da paz.34
Os antigos povos do Oriente Próximo desejavam segurança, e Jerusalém parecia poder fornecê-la a seus
habitantes. A cidade conseguiu sobreviver às inquietações do século XIII a.C., quando muitos povoados das
montanhas foram abandonados. A Bíblia indica que a cidadela dos jebuseus no monte Sião era considerada
inexpugnável. No século XII, novas ameaças e novos inimigos surgiram. O Egito mais uma vez começou a
perder hegemonia sobre Canaã; o império hitita foi destruído; a peste e a fome devastaram a Mesopotâmia.
Novamente as conquistas da civilização se mostraram frágeis e falhas. Ocorreram migrações maciças, em
busca de um novo porto seguro. Com o declínio das grandes potências, outros povos emergiram para
substituí-las. É o caso dos filisteus, possivelmente um dos “povos do mar” que invadiram o Egito, que foram
repelidos e transformados em vassalos do faraó. Talvez Ramsés III os tenha instalado na costa meridional de
Canaã para que governassem o país em seu lugar. Em seu novo território, os filisteus se adaptaram à religião
local e se organizaram em cinco cidades-estados: Ascalon, Azoto, Acaron, Gat e Gaza. Com o progressivo
enfraquecimento dos egípcios, tornaram-se praticamente independentes e talvez tenham assumido o governo
de fato de Canaã. No século XI, entretanto, os habitantes de Canaã se defrontaram com uma nova potência.
Na região montanhosa, um reino maior e totalmente diverso de qualquer instituição conhecida no país se
formava. Por fim, a Sião dos jebuseus se viu inteiramente cercada por uma nova e agressiva potência: o
reino de Israel, que mudaria seu destino para sempre.
2. ISRAEL

QUEM ERAM OS ISRAELITAS? A Bíblia diz que provinham da Mesopotâmia. Durante algum tempo habitaram
Canaã, mas por volta de 1750 a.C. as doze tribos de Israel emigraram para o Egito, tangidas pela fome. A
princípio prosperaram, porém entraram em decadência e se viram reduzidas à escravidão. Enfim, por volta de
1250 a.C., fugiram do Egito sob a liderança de Moisés e viveram como nômades na península do Sinai. No
entanto, não consideravam essa situação como definitiva, pois estavam certas de que seu deus, Javé, lhes
prometera a terra fértil de Canaã. Moisés morreu antes de os israelitas chegarem à Terra Prometida, mas
seu sucessor, Josué, conduziu-os a Canaã, tomando o país em nome de Javé, numa luta em geral datada
pelos historiadores em aproximadamente 1200 a.C. A Bíblia fala de terríveis massacres. Diz que Josué
subjugou “as terras altas, o Negueb, as planícies, as encostas e todos os reis ali existentes. Não deixou um só
homem vivo”.1 Cada tribo recebeu uma parte de Canaã, contudo, entre o território das tribos de Judá e
Benjamim, uma cidade resistiu: “Os filhos de Judá não conseguiram expulsar os jebuseus que habitavam
Jerusalém”, admite o autor bíblico. “Os jebuseus viveram em Jerusalém lado a lado com os filhos de
Benjamim, como vivem até hoje.”2 Embora acabasse se tornando fundamental para a religião de Israel,
Jerusalém figura como território inimigo na primeira menção inequívoca que a Bíblia faz a ela.
Nos últimos tempos, os estudiosos vêm se mostrando céticos quanto ao relato bíblico. Arqueólogos
encontraram indícios de destruição em alguns sítios cananeus, mas nenhum que pudesse ser relacionado
definitivamente com Israel. Não há sinal de invasão estrangeira nas terras altas, que se tornaram o centro do
território dos israelitas.3 Até os autores bíblicos admitem que a conquista de Josué não foi total: ele não
conseguiu derrotar as cidades-estados de Canaã, nem avançar contra os filisteus.4 Uma análise minuciosa dos
primeiros doze capítulos do Livro de Josué mostra que a luta se restringiu basicamente a uma pequena área
do território de Benjamim.5 Na verdade, a Bíblia nos deixa com a nítida impressão de que a conquista de
Josué foi uma espécie de anticlímax. Há ainda estudiosos — sobretudo em Israel e nos Estados Unidos —
partidários da opinião de que os israelitas conquistaram o país dessa forma, porém outros estão chegando à
conclusão de que, em vez de irromper em Canaã, Israel surgiu pacífica e gradativamente no interior da
sociedade cananeia.
Não há dúvida de que os israelitas chegaram a Canaã no final do século XIII a.C. Numa estela
comemorativa da vitoriosa campanha do faraó Meneptá, em 1207 a.C., encontramos, em meio a outras
conquistas, esta informação: “Israel foi destruído, sua semente não existe [mais]”. Trata-se, todavia, da única
referência não bíblica a Israel nessa época. Pensava-se que os hapiru ou apiru mencionados em várias
inscrições e documentos do século XIV a.C. fossem precursores das tribos “hebreias” de Josué. No entanto,
tudo indica que não se trata de um grupo étnico, e sim de uma classe da sociedade cananeia, indivíduos que
foram marginalizados e banidos das cidades-estados por motivos econômicos ou políticos. Ora aderindo ao
banditismo, ora prestando serviços na condição de mercenários,6 certamente eram vistos como uma força
destrutiva: o próprio Abdi-Hepa estava muito preocupado com eles. Durante seu cativeiro no Egito, os
israelitas receberam o nome de “hebreus”, porém não eram os únicos hapiru da região.
Atualmente os estudiosos tendem a associar o surgimento de Israel com uma nova onda de povoamento nas
montanhas centrais de Canaã. Arqueólogos descobriram, nas terras altas ao norte de Jerusalém, as ruínas de
cerca de cem novas aldeias não fortificadas que datam de aproximadamente 1200 a.C. Até então esse solo
estéril não se prestava à agricultura, entretanto os progressos tecnológicos de épocas recentes possibilitaram o
povoamento. Os novos habitantes levavam uma vida precária, criando ovelhas, cabras e bois. Não há indícios
de que fossem estrangeiros: a cultura material dessas aldeias é substancialmente a mesma da planície costeira.
Os arqueólogos concluíram que os colonos deviam ter nascido em Canaã.7 Esse foi um período de grande
intranquilidade, sobretudo nas cidades-estados. Alguns indivíduos decerto preferiram instalar-se nas colinas,
onde tinham de enfrentar muitas dificuldades, mas estavam livres das guerras e da exploração econômica que
então caracterizava a existência nas cidades decadentes do litoral. Entre os povoadores, provavelmente havia
hapiru e também nômades, que nessa época conturbada se viram obrigados a mudar seu estilo de vida. A
migração a partir das cidades cananeias em desintegração teria constituído o núcleo de Israel? Sem dúvida
esse é o local em que surgiria o Reino de Israel no século XI a.C. Se essa teoria está correta, os “israelitas”
eram cananeus natos que se instalaram nas colinas e pouco a pouco criaram uma identidade distinta. De
quando em quando, inevitavelmente entravam em choque com as outras cidades, e as histórias dessas
escaramuças formam a base das narrativas encontradas em Josué e Juízes.
Mas, se os israelitas eram cananeus, por que a Bíblia insiste em identificá-los com forasteiros? A crença em
sua origem estrangeira desempenhou um papel fundamental na formação da identidade israelita. A busca da
pátria por parte do povo de Israel constitui um tema dominante no Pentateuco, o conjunto dos cinco
primeiros livros bíblicos. É inconcebível que toda a história do Êxodo seja apenas uma invenção. Talvez
alguns hapiru tenham de fato fugido da corveia (trabalhos forçados) do faraó, reunindo-se mais tarde aos
colonos cananeus das terras altas. A própria Bíblia sugere que não foi todo o povo de Israel que participou
do Êxodo.8 Por fim, a religião e a mitologia desses recém-chegados do Egito converteram-se na principal
ideologia de Israel. As histórias de uma libertação da escravidão por obra divina e da proteção especial do
deus Javé podem ter seduzido os cananeus, que haviam escapado de regimes opressivos e corruptos e se
deram conta de que estavam participando de uma nova e empolgante experiência em seus povoados
montanhosos.
Os israelitas só começaram a escrever sua própria história depois que se tornaram a maior potência da
região. Os estudiosos tradicionalmente atribuem ao Pentateuco quatro fontes. Os dois autores mais antigos
são conhecidos como “J” e “E”, por preferirem referir-se ao Deus de Israel como, respectivamente, “Javé” e
“Elohim”. Podem ter escrito no século X a.C., embora haja quem os situe no século XI a.C. O
deuteronomista (“D”) e os autores presbiterais (“P”) atuaram no século VI, durante e após o exílio dos
israelitas na Babilônia. Recentemente essa crítica das fontes tornou-se insatisfatória para alguns estudiosos, e
surgiram teorias mais radicais que afirmam, por exemplo, que um só autor escreveu todo o Pentateuco, no
final do século VI a.C. Atualmente, no entanto, costuma-se abordar os cinco primeiros textos bíblicos tendo
em mente a teoria das quatro fontes. Os livros que focalizam a história posterior de Israel e Judá — Josué,
Juízes, Samuel e Reis — foram escritos durante o exílio por historiadores da escola deuteronomista (“D”),
cujos ideais discutiremos no capítulo 4. Trabalharam quase sempre com fontes e crônicas mais antigas,
utilizando-as para promover sua própria interpretação teológica. O Cronista, que provavelmente escreveu em
meados do século IV a.C., é ainda mais arrogante em relação a suas fontes. Portanto, nenhum de nossos
autores elaborou uma história capaz de satisfazer nossos padrões de objetividade. O que eles mostram é
como o povo de seu tempo via o passado.
Isso é particularmente verdadeiro nas histórias de Abraão, Isaac e Jacó, os três patriarcas de Israel. Talvez
tenham sido escritas quase mil anos depois que ocorreram. São lendas, não relatos históricos no sentido
moderno. Os autores bíblicos nada sabiam sobre a vida em Canaã nos séculos XIX e XVIII a.C. — não
mencionam, por exemplo, a forte presença egípcia no país. Apesar disso, os relatos dos patriarcas são
importantes, porque mostram como os israelitas começaram a moldar sua identidade distinta na época em
que J e E escreveram. Os israelitas acreditavam então que todos descendiam de um ancestral comum, Jacó, o
qual recebera o novo nome de Israel (“Deus, mostre sua força!”, ou, alternadamente, “O que luta por Deus”)
como sinal de sua especial relação com a divindade. Jacó/Israel teve doze filhos, e cada um se tornou
ancestral de cada uma das tribos. Depois os israelitas lembraram o avô de Jacó, Abraão, escolhido por Deus
para fundar a nova nação. Tinham tamanha convicção de não pertencer originalmente à raça cananeia que
fizeram sua ancestralidade remontar à Mesopotâmia. Por volta de 1850 a.C., acreditavam que Deus aparecera
a Abraão em Harã e lhe dissera: “Deixa teu país, tua família e a casa de teu pai e vai para a terra que te
indicarei”.9 Essa terra era Canaã. Abraão obedeceu e deixou a Mesopotâmia, vivendo em Canaã como
migrante. Não possuía terras até comprar um túmulo para sua esposa na caverna de Macpela, em Hebron.
A busca de uma pátria é crucial para as narrativas patriarcais. Abraão, Isaac e Jacó têm absoluta
consciência de sua condição de estrangeiros em Canaã.10 Após descrever a chegada de Abraão, J faz questão
de lembrar o leitor: “Os cananeus estavam então naquela terra”.11 Esse é um dado importante. Ao longo da
história, judeus, cristãos e muçulmanos, ao chegar a Jerusalém e à Terra Santa, encontraram-nas em poder
de outros povos e tiveram de admitir que, antes deles, a cidade e o país eram sagrados para esses povos. A
integridade de sua posse dependeria em grande parte do modo como tratassem seus predecessores.
A consciência de que o Povo Eleito não foi o primeiro a estabelecer-se em Canaã reflete-se, talvez, na
persistente escolha, por parte de Deus, do filho mais novo, ao invés do primogênito. Abraão tinha dois
filhos. O mais velho era Ismael, concebido por sua concubina, Agar. No entanto, quando Sara, sua velha
esposa estéril, miraculosamente deu à luz Isaac, Abraão recebeu a ordem divina de expulsar o primogênito.
Ismael também se tornaria o pai de uma grande nação, mas o nome de Abraão se perpetuaria através de
Isaac. Consequentemente, o patriarca despachou Agar e Ismael para o deserto, a leste de Canaã, onde decerto
eles teriam morrido, se Deus não os protegesse. Depois disso, os autores bíblicos mostraram pouco interesse
por eles; porém, como veremos no capítulo 11, séculos mais tarde chegaria a Jerusalém um povo que se
dizia descendente de Ismael. Na geração seguinte, Deus também preferiu o caçula. Rebeca, mulher de Isaac,
sentiu seus gêmeos brigando ainda no útero, e Deus lhe disse que duas nações guerreavam em seu ventre.
Esaú foi o primeiro a nascer; seu irmão veio ao mundo agarrando o seu calcanhar e, assim, recebeu o nome
de Ya’aquob: “O que segura o calcanhar”, ou “O que suplanta”. 12 Quando já eram crescidos, Jacó usou um
estratagema para receber de seu velho pai a bênção que por direito cabia ao primogênito. E Esaú também
foi enviado para as terras do leste. Contudo, nem J nem E desconsideram os direitos dos primogênitos
rejeitados. A história de Agar e Ismael é realmente patética, e o leitor é levado a compadecer-se do
sofrimento de Esaú. Na época em que esses autores escreveram, os israelitas não viam a apropriação da
Terra Prometida como motivo de chauvinismo: seu estabelecimento como nação em sua própria terra foi um
processo doloroso para outros e moralmente desconcertante.
Ainda não há nada parecido ao zelo combativo de Josué, a quem Deus ordenou que destruísse os altares e
os símbolos religiosos dos primeiros habitantes de Canaã. Esse ideal israelita é mais tardio. De acordo com J
e E, de modo geral os patriarcas respeitaram os cananeus e suas tradições religiosas; não tentaram impor-lhes
o Deus que veneravam e tampouco investiram contra seus altares. Abraão aparentemente adorou El, a
principal divindade do país. Só mais tarde El se fundiu com Javé, como o próprio Deus declarou a Moisés
na sarça ardente: “Apareci a Abraão, a Isaac e a Jacó como El Shaddai; a eles não me dei a conhecer com
meu nome de Javé”.13 A terra de Canaã teria, no entanto, de revelar sua santidade aos patriarcas, que
esperavam que El aparecesse a eles nos lugares habituais.
Assim, Jacó deparou inesperadamente com a santidade de Betel. Deitou-se para dormir num local que
parecia comum, repousando a cabeça numa pedra. Encontrava-se, porém, num maqom [lugar], palavra com
conotações cultuais. Naquela noite sonhou com uma escada que se erguia desde o chão até o céu — uma
visão clássica, que nos lembra os zigurates da Mesopotâmia. No alto da escada estava o Deus de Abraão,
assegurando-lhe proteção e favor. Ao despertar, Jacó sentiu o medo que em geral caracteriza o encontro com
o sagrado: “Na verdade Deus está neste lugar, e eu não sabia!”, disse, apavorado. O que parecia um local
comum se revelou um centro espiritual que proporcionava aos seres humanos acesso ao mundo divino. “Que
terrível é este lugar! É nada menos que uma casa de Deus [beth-el]; esta é a porta do céu!”14 Antes de
partir, Jacó ergueu a pedra em que se deitara e a consagrou com uma libação de óleo para estabelecer uma
distinção radical entre aquele ponto e seus arredores.
Os israelitas condenariam com rigor as matzevot, ou pedras eretas, usadas pelos cananeus como símbolo do
divino. J e E, porém, nada viram de estranho no ato piedoso de Jacó. Nessa época os israelitas não eram
monoteístas no sentido moderno. Adoravam Javé, o Deus de Moisés e, embora alguns achassem que só a Ele
deviam cultuar, acreditavam também na existência de outras divindades, que, segundo nos informam os textos
dos profetas e historiadores, muitos continuaram venerando. Parecia-lhes absurdo abandonar os deuses que
durante muito tempo garantiram a fertilidade de Canaã e que podiam ser encontrados em seus “lugares”
sagrados [bamoth]. Sabemos que em Jerusalém os israelitas reverenciaram outras divindades até a destruição da
cidade por Nabucodonosor, em 586 a.C. Veremos que no Templo de Jerusalém cultuavam Asera, a deusa da
fecundidade, a esposa de El, bem como uma miríade de divindades astrais sírias; e ainda participavam dos
ritos de fertilidade de Baal. Foi apenas durante seu exílio na Babilônia (597-39 a.C.) que concluíram,
finalmente, que Javé era o único Deus e que não existia nenhuma outra divindade. Depois disso, tornaram-se
hostis a toda adoração “pagã”. Mas, na imaginação de J e E, os primeiros autores bíblicos, não havia na
religião de seus antepassados nada de ofensivo na noção de que Jacó vira seu Deus num local de culto pagão
e assinalara essa teofania com uma matzevah.
Assim, as gerações posteriores considerariam um tanto dúbias certas experiências religiosas dos patriarcas,
sobretudo as que J descreve. Os judeus passaram a acreditar que a representação de seu Deus com aspecto
humano era uma blasfêmia, embora J descreva a aparição de Deus a Abraão na forma de homem. O
patriarca está sentado diante de sua tenda em Mambré, perto de Hebron, quando três estranhos se
aproximam. De acordo com a cortesia típica do Oriente Próximo, convida-os a sentar-se e providencia-lhes
uma refeição. Depois os quatro homens se põem a comer juntos, e ao longo da conversa evidencia-se muito
naturalmente que os três visitantes são na verdade o Deus de Abraão e dois de seus anjos.15 Os judeus,
contudo, gostavam dessa história, que se tornou muito importante também para os cristãos, para quem se
tratava da primeira manifestação de Deus como a Trindade. Essa epifania de Mambré é importante porque,
entre outras coisas, expressa uma verdade essencial do monoteísmo. O sagrado não se manifesta apenas nos
lugares santos. Podemos encontrá-lo igualmente em outros seres humanos. É fundamental, portanto, que
tratemos com absoluto respeito todos os homens e mulheres com que deparamos — ainda que não os
conheçamos —, pois eles também encerram o mistério divino. Foi isso que Abraão descobriu quando recebeu
os três visitantes e fez questão de oferecer-lhes todo o alimento e todo o conforto que podia lhes dar. Esse
ato de compaixão e cortesia o levou ao encontro de Deus.
Justiça social e consideração pelos pobres e indefesos eram cruciais para o conceito de santidade no
Oriente Próximo, como vimos. E essenciais para o ideal de uma cidade santa e pacífica. Constatamos, logo
no início da tradição israelita, uma consciência ainda mais profunda do caráter sagrado da humanidade.
Talvez possamos percebê-la na terrível história da tentação a que Deus submeteu Abraão. Deus ordenou-lhe
que levasse Isaac — “Teu filho, teu único filho, a quem amas” — à “terra de Moriá” e o oferecesse a Ele
em sacrifício.16 Como acabara de perder Ismael, seu primogênito, o patriarca poderia pensar que tal ordem
significava o fim da promessa divina de torná-lo o pai de uma grande nação, representando o escarnecimento
diante de sua vida de fé e confiança. Apesar disso, obedeceu e conduziu Isaac ao cume do monte que havia
sido designado por Deus. No entanto, quando estava prestes a cravar a faca no peito de Isaac, um anjo do
Senhor ordenou-lhe que parasse. Em vez do filho, Abraão sacrificou um carneiro que estava preso pelos
chifres numa moita. O texto não menciona Jerusalém, mas depois, no século IV a.C., associou-se a “terra de
Moriá” ao monte Sião.17 Acreditava-se que o Templo judaico fora construído no local onde Abraão atara
Isaac para imolá-lo; a Cúpula do Rochedo, templo muçulmano, também celebra o sacrifício do filho. Havia
um motivo simbólico para essa identificação, pois na ocasião Javé deixara claro que seu culto devia incluir
apenas o sacrifício de animais, não de seres humanos — proibição que não era universal no mundo antigo.
Hoje nos repugna a ideia de sacrificar animais, porém devemos entender que tal prática, fundamental para a
religião na Antiguidade, não denotava desrespeito pelos animais. Ao contrário, sublinhava o fato doloroso de
que a vida humana dependia da morte de outras criaturas — uma ideia que também está no centro dos
mitos de combate de Marduc e Baal. A humanidade carnívora aniquilava animais e plantas para sobreviver, e
os animais sacrificados dessa forma infundiam nos seres humanos um misto de sentimentos — culpa,
gratidão, reverência — que pode ter inspirado as pinturas pré-históricas das cavernas de Lascaux. Hoje
procuramos esquecer que as peças de carne que compramos no açougue provêm de outros seres que
morreram por nós, mas no mundo antigo isso não ocorria. Todavia, também é significativo que se date o
culto de Jerusalém no momento em que se descobriu que o caráter sagrado da humanidade não admite o
sacrifício de vidas humanas — por mais exaltada que seja a motivação.
Depois de sua provação, Abraão chamou o local onde atara Isaac de “o Senhor provê”, e E explica que
por isso “até hoje se diz: na montanha do Senhor se proverá”.18 No monte sagrado, a meio caminho entre a
terra e o céu, os seres humanos podiam ver seus deuses e ser vistos por eles. Era um local de visão, onde as
pessoas aprendiam a olhar de maneira diferente. Podiam abrir os olhos da imaginação para enxergar além
das circunstâncias terrenas e avistar o eterno mistério que está no âmago da existência. O monte Sião
tornou-se um local de visão para o povo de Israel, embora não fosse o único lugar santo nos primórdios de
sua história.
Jerusalém não teve participação nos eventos de formação em que a nova nação de Israel encontraria sua
alma. Já dissemos que, mesmo na época em que os livros de Josué e Juízes foram elaborados, alguns
israelitas a consideravam uma cidade essencialmente estrangeira, onde predominavam os jebuseus. Os
patriarcas estavam associados com Betel, Hebron, Siquém e Bersabeia, mas em suas viagens tudo indica que
não perceberam a existência de Jerusalém. No entanto, ao retornar de uma expedição militar, Abraão
conheceu Melquisedec, rei e sacerdote de “Salém”, que lhe ofereceu pão e vinho e o abençoou em nome de
El-Elyon, o deus de Salém.19 A tradição judaica identificou “Salém” com Jerusalém — identificação sobre a
qual pairam dúvidas —20 e situou o encontro junto à fonte de En-Roguel (atual Bir Ayyub, Poço de Jó) na
conjunção dos vales do Cedron e de Hinom.21 En-Roguel era com certeza um local de culto na antiga
Jerusalém, e estava aparentemente associado com a coroação dos reis da cidade. Estes últimos eram tidos
como descendentes de Melquisedec, que, segundo uma lenda, fundara Jerusalém.22 Mais tarde, como vemos
nos Salmos, os reis davídicos de Judá ouviam esta frase em sua coroação: “Tu és sacerdote eternamente,
segundo a ordem de Melquisedec”.23 Portanto, herdaram esse título antigo, junto com muitas outras
tradições jebuseias acerca do monte Sião. A história do encontro de Melquisedec com Abraão pode ter
surgido na época da conquista da cidade pelo rei Davi para legitimar seu título: mostra seu ancestral
trocando homenagens com o fundador de Jerusalém.24 Contudo, nela Abraão também oferece a Melquisedec
o dízimo de seu butim e aceita a bênção de um deus estrangeiro. Mais uma demonstração de respeito pelos
antigos habitantes de Jerusalém e por suas tradições.
O deus de Melquisedec chamava-se El-Elyon, “Deus Altíssimo”, como mais tarde, quando se tornou o deus
supremo de Jerusalém, se intitularia Javé. El-Elyon era também um dos títulos de Baal no monte Zaphon.25
Os antigos muitas vezes mesclavam divindades, o que não era visto como traição ou concessão. Viam os
deuses não como indivíduos independentes, com personalidades distintas e inalienáveis, e sim como símbolos
do sagrado. Os novos habitantes de um lugar muitas vezes incorporavam seu deus com a divindade que ali
encontravam, atribuindo-lhe algumas das características e funções desta última. Vimos que, na imaginação de
Israel, Javé, o Deus de Moisés, fundiu-se com El-Shaddai, o Deus de Abraão. Quando chegaram a Jerusalém,
os israelitas identificaram Javé com Baal El-Elyon, que muito provavelmente era venerado no monte Sião.
Jerusalém não figura nas histórias do Êxodo, que se tornariam cruciais para a fé israelita. O relato bíblico
mitificou esses acontecimentos, ressaltando seu significado espiritual e eterno; não os reproduziu de um modo
que satisfizesse o historiador moderno. Trata-se essencialmente de uma história de libertação e de volta à
pátria, que confortou os judeus em muitos dos momentos mais sombrios de sua longa e trágica história; a
mensagem do Êxodo também inspira os cristãos que se defrontam com a injustiça e a opressão. Embora
Jerusalém não esteja presente na história, as tradições do Êxodo adquiririam expressividade na espiritualidade
dos israelitas do monte Sião. Também podemos interpretar os incidentes como versões dos mitos de criação
e combate do Oriente Próximo, com a ressalva de que, em vez de ter lugar num tempo primordial, ocorrem
no mundo terreno e dão origem não a um cosmo, e sim a um povo.26 Ao final dos mitos de combate de
Baal e Marduc, uma cidade e um templo eram construídos; ao término do mito do Êxodo, há a construção
de uma pátria. Durante esses anos Israel passou de um estado de caos e inexistência ao de uma realidade
divinamente estabelecida. Diferentemente de Marduc, que partira ao meio um monstro marinho para criar o
mundo, Javé abriu o mar Vermelho para que seu povo escapasse à perseguição do faraó. Em vez de
massacrar as hordas demoníacas, como Marduc, Javé afogou os egípcios. A nova criação dependeu, como
sempre, da destruição de outros — tema recorrente na futura história de Jerusalém. Finalmente, o povo de
Israel atravessou o mar dividido e alcançou a segurança e a liberdade. Em todas as culturas a imersão
significava um retorno às águas primordiais, o elemento original, uma ab-rogação do passado e um
renascimento.27 A água tinha, pois, o poder de restaurar — ainda que temporariamente — a prístina pureza
da origem. A passagem do mar Vermelho fez de Israel a nova criação de Javé.
Depois os israelitas rumaram para o santo monte Sinai, e Moisés subiu ao cume para encontrar seu Deus,
Javé, que desceu dos céus em meio a uma violenta tempestade e uma erupção vulcânica. O povo se manteve
à distância, conforme a ordem que recebera: o sagrado podia ser perigoso para os não iniciados, e, pelo
menos na tradição israelita, só uma elite cuidadosamente instruída tinha acesso a ele. No monte Sinai, Javé
fez de Israel seu próprio povo e, para selar essa aliança, entregou a Moisés a Torá, ou Lei, que inclui os
Dez Mandamentos, a qual, como veremos, só depois do exílio na Babilônia se tornaria fundamental para a
vida religiosa de Israel.
Por fim, antes de entrar na Terra Prometida, os israelitas tiveram de viver quarenta anos no deserto. Esse
não foi um interlúdio romântico. A Bíblia deixa claro que o povo constantemente se queixava; revoltavam-se
contra Javé e lamentavam ter deixado o Egito, onde haviam tido uma vida que agora consideravam mais
cômoda. No Oriente Próximo, o deserto estava associado com a morte e o caos primordial. Vimos que Mot,
o deus sírio do deserto, era também o deus voraz do Abismo, o vácuo escuro da morte e da mortalidade. O
deserto era, pois, uma área sagrada que tomou o rumo errado, por assim dizer, e se tornou demoníaca.28 Na
imaginação dos israelitas, continuou a ser um lugar de extrema desolação: eles não sentiam saudade dos anos
que ali viveram durante o Êxodo, como alguns críticos da Bíblia imaginaram. Ao contrário, os profetas e
autores bíblicos lembram que Deus escolhera Israel como seu povo “na terrível vastidão do deserto”;29 o
deserto era “uma terra não semeada”, “uma terra sem habitantes”, onde “não mora mortal”, onde “não
haverá rei”.30 Constantemente ameaçava invadir as terras povoadas e reduzi-las ao nada primordial. Quando
imaginavam a destruição de uma cidade, os israelitas a viam convertendo-se em deserto e tornando-se mais
uma vez “o fio de prumo do vazio”, a guarida de pelicanos, ouriços e sátiros, onde “não havia homens”.31
Durante quarenta anos — um número escolhido apenas para denotar um longo período —, eles sofreram
para atravessar esse inferno, num estado de extinção simbólica que perduraria até que Deus os conduzisse à
sua pátria.
Deus, no entanto, não os havia abandonado no deserto. Como outros povos nômades, os israelitas
carregavam consigo um símbolo de seu elo com o reino divino, que lhes dava forças para prosseguir. Assim
como os aborígines australianos levavam consigo um mastro sagrado, o povo de Israel carregava a Arca da
Aliança, um sacrário que lhe seria muito importante em Jerusalém. A maioria das descrições bíblicas da Arca
provém de fontes posteriores, de modo que é difícil imaginá-la em seu estado original. Tratava-se, ao que
tudo indica, de um cofre, contendo as Tábuas da Lei e encimado por dois querubins de ouro, cujas asas
abertas formavam o encosto de um trono para Javé.32 Sabemos que o trono vazio geralmente simbolizava o
divino, pois convidava o deus a sentar-se entre seus devotos. Assim, o Trono se tornaria um símbolo da
divina Presença na tradição judaica. A Arca era, portanto, um sinal exterior da presença de Javé. Carregavam-
na membros da tribo de Levi, que formavam a casta sacerdotal de Israel. Aarão, irmão de Moisés, era o
sumo sacerdote. Parece que originalmente a Arca era um paládio militar, já que seu poder sagrado — que
chegava a ser letal — protegia Israel contra os inimigos. J nos conta que, quando os israelitas iniciavam seu
dia de marcha, a nuvem representando a presença de Javé descia sobre a Arca e Moisés dizia: “Levanta-te,
Senhor, sejam dispersos teus inimigos!”. À noite, quando armavam as tendas, ele exclamava: “Volta, Javé, para
a multidão do exército de Israel!”.33 A Arca os encerrava numa cápsula de segurança, por assim dizer;
tornava habitável o Abismo do deserto porque os mantinha em contato com a realidade sagrada.
Pouco sabemos sobre a vida dos israelitas quando chegaram a Canaã. P acredita que, depois de se instalar
nas montanhas, eles ergueram em Silo uma tenda para a Arca, seguindo as instruções precisas que Javé dera
a Moisés no monte Sinai. Se de fato a Arca ficava numa tenda, Javé se assemelhava muito a El, que também
vivia numa tenda-santuário, era a fonte da lei e, quando se mostrou como El Sabaot [El dos Exércitos], foi
entronizado sobre querubins. No entanto, segundo o Livro de Samuel, a Arca estava guardada no Hekhal (ou
sala do culto) de um templo mais convencional, em Silo.34 Mas os israelitas a veneravam, ao que tudo
indica, em vários templos, situados em Dan, Betel, Masfa, Efra e Gabaon, assim como nos bamoth ao ar
livre. Alguns adoravam outros deuses, assim como Javé, que para eles era uma divindade estrangeira, ainda
não instalada adequadamente em Canaã. Associavam-no também com Faran e Seir, regiões situadas ao sul do
Sinai. Imaginavam-no deixando esse território e cavalgando as nuvens para ajudar seu povo em perigo —
assim ele figura em algumas das passagens bíblicas mais antigas.35 Os israelitas podem ter desenvolvido uma
liturgia que representava a teofania do monte Sinai, com as trombetas reproduzindo os trovões e o incenso
recriando a nuvem espessa que descera sobre o monte. Mais tarde esses elementos também estariam no culto
de Jerusalém. A cerimônia revivia, pois, a decisiva aparição de Javé no Sinai, dando a sensação de que Deus
estava mais uma vez presente entre seu povo.36 Portanto, ao contrário da maioria dos deuses cultuados no
Oriente Próximo, Javé foi visto a princípio como uma divindade móvel, sem ligação com nenhum santuário
fixo. Mas os israelitas também comemoravam sua libertação do Egito. Durante anos o velho festival da
primavera lembrou-lhes sua última refeição no Egito, quando o Anjo da Morte passou por eles e matou
todos os primogênitos dos egípcios. E por fim esse banquete familiar recebeu o nome de Páscoa [Pesah].
Por volta de 1030 a.C., as noções de parentesco e de solidariedade estavam profundamente arraigadas na
população da região montanhosa setentrional. Considerava-se um povo distinto com um ancestral comum.
Governado até então por uma série de “juízes” ou chefes, desejava nessa época instituir uma monarquia,
como outros povos da região. Os autores bíblicos mostram-se divididos acerca dessa mudança. Segundo os
relatos, Samuel, o último dos juízes, era contrário à ideia, prevenindo o povo da opressão e crueldade que
um rei lhe infligiria.37 Na verdade, porém, a criação do Reino de Israel foi o resultado natural e talvez
inevitável de um processo.38 Nessa época, as grandes potências — Assíria, Mesopotâmia e Egito — estavam
em declínio, e outros estados menores — Amon, Moab, Edom — haviam ocupado o vazio deixado por elas.
Os israelitas viram-se cercados de rivais agressivos, que cobiçavam as terras altas de Canaã. Os amonitas e os
moabitas infiltraram-se em seu território, vindos do leste, e os filisteus os devastavam a partir do oeste.
Numa ocasião os filisteus saquearam e destruíram a cidade de Silo, levando como butim a Arca da Aliança.
Mas logo a devolveram, pois sentiram o poder letal dessa salvaguarda. Não contando mais com a proteção
de um santuário ou de um templo, os israelitas também achavam assustadora a santidade da Arca e trataram
de alojá-la numa casa particular em Cariat-Iarim, na fronteira de seu país.39 Toda essa turbulência política
provavelmente os convenceu de que precisavam da liderança forte de um rei, e, relutante, Samuel ungiu Saul,
da tribo de Benjamim, o primeiro rei de Israel.
O reino de Saul
Saul governou um território maior que o de qualquer soberano cananeu que o antecedera. Tal território
incluía toda a região montanhosa central, situada em ambos os lados do Jordão e ao norte da cidade-estado
de Jerusalém, que ainda se encontrava em poder dos jebuseus (ver mapa na p. 60). A Bíblia apresenta Saul
como uma figura trágica: abandonado por Deus porque ousou tomar a iniciativa em matéria de culto, sujeito
a terríveis crises de depressão e vendo seu poder declinar lentamente. Essa narrativa crítica não esconde,
contudo, que foi o responsável por consideráveis conquistas. Sediado em Gabaon, que abrigava o templo
javista mais importante de Israel, ampliou seu território e granjeou a adesão voluntária do povo das
montanhas. Defendeu seu reino contra os inimigos durante cerca de vinte anos, até que os filisteus o
matassem, juntamente com seu filho Jônatas, na batalha de monte Gelboé, por volta de 1010 a.C. Depois de
sua morte, foi louvado num dos trechos mais poéticos e comoventes da Bíblia:
Saul e Jônatas, amados e amáveis,
nem em vida, nem na morte se apartaram.
Mais velozes que as águias eles eram,
eram mais fortes que os leões.40
Quem entoa esse lamento não é um leal seguidor de Saul, mas um rebelde que fugira de sua corte. Davi,
amigo íntimo de Jônatas, guerreiro privilegiado, a quem Micol, filha de Saul, fora dada em casamento, era o
único que conseguia confortar o rei em suas crises de depressão, aliviando seu desespero com canções e
poemas. No entanto, diz o historiador bíblico, a popularidade e o prestígio de Davi despertaram a inveja de
Saul, e Davi, da tribo de Judá, teve de fugir para não morrer. Primeiro viveu com um bando de hapiru nas
colinas desertas ao sul de Jerusalém. Por fim aliou-se com os filisteus, inimigos mortais de Israel. Quando
soube da morte de Saul, estava em Siclag, cidade do Negueb que ganhara de seu novo senhor, Aquis, rei de
Gat.41 Davi é uma das figuras mais complexas da Bíblia. Poeta, músico, guerreiro, rebelde, traidor, adúltero,
terrorista, certamente não constituía um paradigma, apesar de — mais tarde — vir a ser reverenciado como
o rei ideal de Israel. Após a morte de Saul, seu filho Isboset assumiu o governo, enquanto Davi se
estabeleceu nas pouco habitadas colinas meridionais e fixou a capital em Hebron. Os filisteus provavelmente
o encorajaram, pensando que com seu vassalo teriam uma base nas terras altas. Davi, porém, fazia um jogo
duplo e acalentava ambições maiores.
Assim, os jebuseus de Jerusalém se viram desconfortavelmente cercados por dois reinos rivais: o de Israel,
governado por Isboset, no norte, e o de Judá, governado por Davi, no sul. Mas Isboset revelou-se um
soberano fraco: além de possuir um território provavelmente menor que o de seu pai, hostilizou seu
principal comandante, que se uniu a Davi. Sete anos e meio depois da coroação de Davi em Hebron, Isboset
foi assassinado, e seus assassinos refugiaram-se na corte rival. Chegara a hora de Davi. Ele cuidadosamente se
dissociou da morte de Isboset, mandando executar os responsáveis por ela. Como marido de Micol, a filha
de Saul, de certo modo tinha direito ao trono de Israel. Representantes das tribos do reino setentrional logo
o procuraram, fizeram com ele uma aliança no Templo de Javé, em Hebron, e o ungiram rei de Israel.
Davi agora governava o Reino Unido de Israel e Judá. Mas cravada no meio de seu território encontrava-se
a cidade-estado jebuseia de Jerusalém, que ele pretendia transformar em capital.
3. A CIDADE DE DAVI

OS JEBUSEUS ESTAVAM CERTOS de que Davi jamais conseguiria tomar Jerusalém. Sua cidade podia não ser a
mais venerável ou poderosa de Canaã, mas, comparada com o novo reino, era consideravelmente antiga e
bem fortificada, e ao longo dos anos havia conquistado a reputação de inexpugnável. Quando Davi chegou
com suas tropas ao sopé do Ofel, os jebuseus disseram-lhe, em tom de troça: “Não entrarás aqui. Os cegos e
os coxos hão de rechaçar-te”. 1 Talvez tenham até feito os cegos e os coxos desfilarem sobre os muros, como
o exército hitita costumava fazer, para advertir de sua ruína qualquer soldado que ousasse penetrar o
baluarte.2 Longe de intimidar-se, Davi prometeu que nomearia comandante de seu exército o primeiro
homem que abatesse um jebuseu. Seu velho companheiro Joab, filho de Sarvia, aceitou e venceu o desafio,
possivelmente escalando o “poço de Warren”, o canal que levava água da fonte de Gion para a cidade. 3 Não
se sabe exatamente como Davi conquistou Jerusalém: o texto bíblico é incompleto e obscuro. No entanto,
essa conquista foi um divisor de águas, e seus efeitos repercutem ainda hoje. Uma cidade que até então
tivera importância secundária em Canaã entrou para o âmbito da tradição que por fim resultaria no
monoteísmo histórico. Com isso, ela se tornaria um dos lugares mais sagrados — e, portanto, um dos mais
disputados — do mundo.
Davi não poderia prever tais consequências. Quando tomou Jerusalém, por volta do ano 1000 a.C., deve ter
se sentido duplamente aliviado, pois capturou esse enclave jebuseu situado no centro de seu Reino Unido e
encontrou uma capital mais adequada. A união de Israel e Judá era frágil. O reino do norte ainda se
considerava uma entidade distinta, e a submissão a Davi, o antigo traidor, certamente despertava sentimentos
confusos na população. Manter a sede do governo em Hebron seria imprudência, pois indicaria de modo
inequívoco a ligação do soberano com o reino meridional. Já a velha Jerusalém era um território neutro:
não pertencia nem a Israel, nem a Judá, tampouco tinha relação com qualquer uma das vetustas tradições
tribais. Como Davi a conquistara com suas tropas, a cidade se tornou sua propriedade pessoal, de acordo
com o costume da região, e ele a chamou de ’Ir David: Cidade de Davi.4 Com isso Jerusalém manteria sua
neutralidade, sem vínculos com Judá ou Israel, e, junto com seus arredores, constituiria o domínio real do
monarca. Além disso, oferecia vantagens estratégicas. Bem fortificada, mais central que Hebron e situada no
alto da região montanhosa, estava protegida de ataques inesperados dos filisteus, das tribos do Sinai e do
Negueb ou dos amonitas e moabitas instalados na margem oriental do rio Jordão. Em sua nova capital, Davi
era agora o rei inconteste de uma faixa de terra contínua, do maior Estado unificado que já existira em
Canaã.
Como era a capital? Para os padrões modernos, a cidade era pequena, ocupando uma área de cerca de seis
hectares; como outras cidades da região, resumia-se a uma cidadela, a um palácio e às casas dos funcionários
militares e civis. Não poderia abrigar muito mais que duas mil pessoas. A Bíblia, no entanto, não nos diz
que Davi conquistou a cidade: nossos autores enfatizam que ele capturou “a fortaleza de Sião” e foi morar na
“cidadela”.5 Uma passagem do Livro de Josué designa Jerusalém como “o flanco dos jebuseus”, sugerindo que
a cidade talvez se distinguisse da “fortaleza de Sião”.6 Pode ser, portanto, que Davi tenha simplesmente
assumido o controle da cidadela jebuseia por meio de um golpe de estado militar. A Bíblia não menciona
nenhum massacre da população, como os que encontramos no Livro de Josué. Tampouco há algum indício
de que os jebuseus tenham sido expulsos para dar lugar aos javistas. Assim, não é impossível que a conquista
tenha sido apenas um “golpe palaciano”, graças ao qual Davi e alguns de seus colaboradores mais próximos
substituíram o rei vencido e seus cortesãos, mantendo intactas a cidade e a população jebuseias. A esse
respeito, tudo o que temos são conjecturas, embora, como vimos, o autor bíblico, em sua primeira menção a
Jerusalém, nos diga que os jebuseus e os “filhos de Judá” ainda viviam ali, lado a lado.
Dessa forma, é bem possível que Davi, que era famoso pela matança dos filisteus e edomitas que
comandara, tenha sido em Jerusalém um conquistador justo e misericordioso. Não só tratou com respeito os
habitantes que ali encontrou, como os admitiu em sua administração. Josué teria destruído os altares dos
jebuseus e tripudiado sobre seus símbolos sagrados. No entanto, não há registro de nenhuma interferência de
Davi no culto local. Ao contrário, as ideias religiosas e o fervor dos jebuseus acabaram sendo incorporados
ao culto jerosolimita de Javé. J vê Davi como o novo Abraão: acredita que seu reino cumpriu as antigas
promessas, pois os descendentes do patriarca se tornaram de fato uma nação poderosa e herdaram a Terra
de Canaã.7 Mas Davi também se assemelhava a Abraão no respeito às crenças da população local.
Na ’Ir David, houve, portanto, uma interação criativa de tradições jebuseias e israelitas. Areuna, que talvez
tenha sido o último soberano jebuseu, recebeu permissão para conservar sua propriedade, que se situava além
dos muros, na crista do monte Sião. A antiga administração local também se manteve. As cidades-estados de
Canaã haviam desenvolvido ao longo dos séculos uma burocracia política e fiscal, enquanto os povos de
Israel e de Judá não tinham nem experiência nem aptidão para administrar uma cidade-estado. A maioria
provavelmente era analfabeta. Assim, Davi sensatamente preservou os quadros jebuseus, capazes de ajudá-lo a
manter a cidade em funcionamento e a conservar uma boa relação com os novos súditos. Sua conduta indica
que os israelitas ainda não consideravam um dever sagrado distanciar-se da população local — o que se
tornaria norma após o exílio na Babilônia. Quando os egípcios controlavam Canaã, provavelmente ensinaram
ao povo seus métodos administrativos: vemos na Bíblia que a corte de Davi e a de Salomão eram idênticas à
do faraó. Tinham um grão-vizir, um secretário de Relações Exteriores, um arquivista para assuntos internos e
um “amigo do rei”. Assim, o sistema existente no período Amarna foi conservado durante o reinado de
Salomão. Alguns funcionários deste último tinham nomes não semíticos,8 e é quase certo que Davi assumiu o
comando do exército permanente dos jebuseus — os kereti e peleti (“cretenses” e “filisteus”) da Bíblia,
mercenários que formavam sua guarda pessoal. Portanto, pouca coisa mudou na cidade conquistada, que
preservou seu caráter jebuseu. Seu novo nome — ’Ir David — nunca se popularizou, prevalecendo as antigas
denominações Jerusalém e Sião.
A família real talvez tivesse sangue jebuseu, pois não é impossível que Davi tenha se casado com uma
jebuseia. Mais tarde leis severas proibiriam a união entre israelitas e estrangeiros; Davi e Salomão, no
entanto, não demonstraram muitos escrúpulos com relação a isso. Davi seduziu Betsabeia, a mulher de
“Urias, o Hitita”, um dos oficiais jebuseus de seu exército. (Cabe lembrar que os jebuseus tinham parentesco
com os hititas.) Para poder esposá-la, premeditou a morte de Urias, colocando-o numa posição
particularmente perigosa durante uma batalha contra os amonitas. Betsabeia talvez se chamasse originalmente
“Filha dos Sete Deuses” (sibbiti, na escrita cuneiforme, e sheva, “sete”, em hebraico).9 Assim, seu filho com
Davi era meio jebuseu. Recebeu o nome israelita de Jededias [Amado de Javé], como sinal de que fora
escolhido como herdeiro do trono, mas seus pais decidiram chamá-lo de Salomão, nome que pode ter
relação com Shalem, a antiga divindade de Jerusalém, embora o Cronista o associe ao hebraico shalom. Ao
contrário do pai, Salomão seria um homem “de paz”.10
É possível que outros jerosolimitas famosos, que se tornariam muito importantes na tradição judaica,
também fossem jebuseus. O profeta Natan, por exemplo.11 A Bíblia nos informa as origens de quase todos os
profetas, porém nos apresenta Natan sem ao menos acrescentar um patronímico. Talvez ele fosse o
conselheiro do soberano jebuseu; nesse caso, atuaria como um valioso mediador entre Davi e seus súditos
jebuseus. Assim, teria censurado o rei pela morte de Urias não porque estivesse imbuído da moralidade
mosaica, e sim porque qualquer monarca do Oriente Próximo que houvesse jurado estabelecer a justiça em
seu reino seria repreendido por um abuso tão flagrante de poder. O assassinato de Urias pode ter
prejudicado seriamente as relações de Davi com a população jebuseia. Sadoc, o sumo sacerdote de Jerusalém,
talvez fosse igualmente jebuseu — possibilidade muito discutida no passado.12 Mais tarde, como veremos,
todos os sacerdotes de Israel teriam de provar que descendiam de Sadoc, que se tornou um símbolo da
autenticidade judaica. Seu nome, contudo, é jebuseu. O Cronista atribuiu-lhe posteriormente uma genealogia
impecável, que remonta a Aarão; inclui, no entanto, cinco gerações além das que teriam existido entre Davi
e Aarão,13 talvez por incorporar também a linhagem jebuseia de Sadoc. Destituir o sumo sacerdote de El-
Elyon certamente desagradaria a população local. Para satisfazer os israelitas, Davi designou Abiatar,
descendente do velho clero de Silo, para servir junto com Sadoc. Como Abiatar não sobreviveu por muito
tempo à morte de Davi, foi Sadoc que se tornou o sumo sacerdote de Jerusalém. Entretanto, a coexistência
de um sacerdote israelita e um jebuseu era emblemática da coexistência que Davi queria estabelecer em
Jerusalém. Ele precisava de símbolos capazes de unir seu reino cada vez mais heterogêneo e de manter a
coesão desses elementos diversos. Ao dar a um de seus filhos o nome de Baalida, mostrou que estava aberto
às tradições locais, e muitas das antigas práticas cultuais dos jebuseus no monte Sião se mesclaram
frutiferamente com as tradições israelitas de Javé em Jerusalém.
A Jerusalém de Davi e Salomão
Uma de suas primeiras providências consistiu em levar para sua nova capital a Arca da Aliança, que ainda
se encontrava em Cariat-Iarim, na fronteira ocidental de seu reino. Foi uma decisão inspirada, embora
perigosa. A população do reino setentrional, que ainda estava apreensiva com relação a Davi, se comoveria
com a presença da Arca, que representava suas mais sagradas tradições. Ela legitimaria o governo do novo
rei e converteria em lugar santo uma cidade que para os javistas ainda não tinha importância religiosa.
Porém, a primeira tentativa de transferi-la terminou em tragédia. A santidade de um local tinha de ser
revelada, e não estabelecida por iniciativa humana. No passado, Javé quase sempre era visto como um deus
móvel, mas não podia ser deslocado por causa do simples capricho de um soberano. Um objeto sagrado é
potencialmente perigoso e só pode ser tocado por alguém que tenha tomado as devidas precauções. Foi isso
o que se comprovou durante a primeira viagem da Arca, quando esta, correndo o risco de cair, foi tocada
por Oza, um dos condutores do carro, que estendeu a mão para segurá-la e morreu instantaneamente. A
Arca simbolizava a presença de Javé, e o incidente demonstrou que Davi estava tentando levar para a cidade
uma força poderosa e imprevisível, não uma simples lembrança religiosa. Somente Javé podia decidir se iria
ou não morar em Sião.
Três meses depois, houve uma nova tentativa. Javé dessa vez permitiu que a Arca entrasse no território de
Jerusalém sem nenhum incidente. Vestindo apenas um traje de linho, próprio dos sacerdotes, Davi dançava e
rodopiava diante da Arca; de tempos em tempos mandava o cortejo parar e sacrificava um carneiro e uma
cabra. Por fim, com grande cerimônia e júbilo, a Arca foi levada até o tabernáculo que havia sido preparado
para ela junto à fonte de Gion.14 Dignando-se a morar na Cidade de Davi, Javé demonstrou de maneira
inequívoca que escolhera Davi para ser rei de Israel. A partir desse momento, a escolha de Sião como seu
lar definitivo foi inextricavelmente vinculada à sua escolha da Casa de Davi. Isso ficou claro quando o rei
decidiu construir um templo para Javé em Jerusalém. Ao tomar conhecimento do projeto, Natan
entusiasmou-se. No Oriente Próximo era dever do monarca construir uma casa para o deus do qual
dependia seu governo. Javé, todavia, tinha outros planos: disse a Natan que sempre levara uma vida errante,
instalado numa tenda, e não queria uma casa para si mesmo; porém, construiria uma casa para Davi, uma
dinastia que perduraria para sempre.15
Natan talvez achasse que era cedo demais para Davi destronar El-Elyon construindo um templo dedicado a
um deus estrangeiro na Jerusalém dos jebuseus. Davi pode ter escolhido o local da fonte de Gion, fora das
muralhas, em sinal de respeito por seus súditos jebuseus. É possível, ainda, que as tribos de Israel e Judá
desaprovassem a ideia: afeitas à imagem nômade de Javé, relutariam em vê-lo confinado num santuário
específico, como os outros deuses de Canaã. Talvez o povo temesse o poder que o templo conferiria a Davi.
Os autores bíblicos podem ter incluído a história da recusa do templo por parte de Javé porque era difícil
para eles admitir que seu rei ideal deixara de construir um templo para seu Deus. Para o Cronista, Davi
não mereceu tão grande honra porque derramara sangue demais, e Salomão conquistou esse privilégio porque
era um homem de paz.16 Vimos que nas cidades do mundo antigo o ato de construir possuía conotação
religiosa. Davi havia realizado em Jerusalém outras obras, dignas de um rei. Edificara um palácio com cedro
trazido do Líbano; havia reparado o “Melo”, uma palavra que parece confundir os autores bíblicos, mas que
provavelmente se referia aos velhos terraços do Ofel; e construíra a Torre de Davi, uma nova cidadela. A
fim de acomodar um número cada vez maior de funcionários públicos, artesãos e soldados, exigidos por seu
império em expansão, ampliou a cidade, e para isso derrubou um trecho das muralhas. No entanto, assim
como Moisés, que conduzira o povo para fora do Egito, havia morrido no limiar da Terra Prometida, Davi
conduziu o povo de Javé a Jerusalém, mas não pôde construir o templo que um dia faria da cidade jebuseia
o lugar mais santo do mundo judaico.
Ao menos conseguiu preparar o terreno, comprando de Areuna, possivelmente o último rei jebuseu, o
espaço onde se ergueria no futuro o Templo de Salomão. Nossos autores nos informam que Davi pecou ao
ordenar um recenseamento. Essa medida sempre fora impopular, pois costumava anteceder as cobranças de
impostos e os trabalhos forçados. Assim, Deus enviou ao reino uma peste que em três dias matou setenta
mil pessoas. Davi viu então o “anjo” do Senhor no monte Sião, junto à eira de Areuna, com o braço
estendido na direção da cidade. Um profeta da corte disse a Davi que ele só conseguiria afastar a peste
construindo um altar para Javé no local dessa teofania. Os autores bíblicos mostram Davi e Areuna unidos
em harmonia durante essa crise. O episódio lembra a compra da Caverna de Macpela por Abraão. Como
Efron, o Hitita, Areuna se dispôs a ceder o terreno sem cobrar um siclo, mas Davi, que podia simplesmente
ter anexado o local, agiu com admirável cortesia e respeito para com seu predecessor e insistiu em pagar-lhe
o preço justo.17 Atualmente muitos estudiosos acreditam que se tratava de um dos lugares santos da
Jerusalém jebuseia: em Canaã, as assembleias populares, as profecias, as adivinhações e os rituais de fertilidade
dedicados a Baal costumavam ocorrer nas eiras, e a de Areuna, situada num lugar alto e exposto, na entrada
da cidade, seria adequada para abrigar o culto.18 Os autores bíblicos não mencionam esse detalhe, talvez por
não lhes agradar a possibilidade de seu Templo ter sido construído num bamah [lugar de culto] pagão, mas
essa continuidade era comum no mundo antigo. Areuna não se mostrou irritado; ao contrário, ficou contente
em dividir esse espaço sagrado com Davi e até ofereceu os animais para o primeiro sacrifício no novo altar.
Os homens não podiam possuir a santidade nem sentir-se possessivos com relação a ela. A teofania mostrara
que o lugar pertencia aos deuses, e na geração seguinte os filhos de Davi e os de Areuna rezariam juntos no
monte Sião.
Nossos autores também nos dizem que Davi reuniu o material para construir o novo templo,
encomendando cedro e zimbro a seu aliado Hiram, rei do Tiro. Incapaz de admitir que Davi não participou
da construção do Templo, o Cronista nos informa que Javé lhe revelara com todos os detalhes o plano do
futuro santuário e que o rei transmitiu as instruções divinas a seu filho Salomão.19 Assim, foi possível
construir o Templo “em conformidade com o que Javé escreveu com sua própria mão, a fim de esclarecer
toda a obra para a qual forneceu os planos”.20 O local onde o templo se ergueria não era o que o rei
escolhera, mas o que fora revelado como um dos “centros” do mundo. É por isso que com frequência os
reis escolhiam lugares que já haviam abrigado templos e, portanto, eram uma garantia de acesso ao divino.
Da mesma forma, não se esperava originalidade do arquiteto encarregado de projetar o novo templo, o qual
devia ser um símbolo. Em grego, a palavra significa a união de duas coisas, e o mundo pré-moderno levava a
sério essa ideia, que constituía a base da religião antiga. O templo deveria reproduzir o lar sublime do deus,
pois essa semelhança estabelecia a ligação entre o arquétipo celestial e a réplica terrestre, tornando-os em
certo sentido uma só coisa. Graças a essa semelhança, a divindade podia residir tanto em seu santuário
terreno como em seu palácio celeste. Assim, a planta de um templo tinha de ser revelada, como ocorrera
com Davi, para que os construtores reproduzissem fielmente aqui na terra as dimensões e o conteúdo da
casa do deus nas alturas.
Havia em tudo isso, porém, uma forte conotação política. Ao transferir a Arca para Jerusalém, Davi pouco
a pouco apropriava-se da cidade. Primeiro levou o objeto mais sagrado de seu povo para o sopé do monte
Ofel, e depois, ao comprar a eira de Areuna, preparou o caminho para a entronização final de Javé em seu
próprio templo, no monte Sião. No reinado de Salomão, Javé se tornaria o El-Elyon de Jerusalém, o
Altíssimo. Da mesma maneira, Davi gradualmente construía um pequeno império para si mesmo. Primeiro
subjugou os filisteus; na verdade, deve tê-los derrotado antes de tomar a cidade, no vale dos Refaítas, a
sudoeste de Jerusalém. Em algum momento deve ter anexado a seu império as outras cidades-estados de
Canaã, que possivelmente aceitaram a vassalagem, embora a Bíblia nada nos informe a respeito. Por fim,
submeteu os reinos vizinhos de Moab e Edom, bem como uma parte considerável da Síria (ver mapa na p.
73). Os israelitas não esqueceram o Reino de Davi: nunca mais seriam tão fortes politicamente. Contudo,
nenhum outro texto do Oriente Próximo datado desse período o menciona, o que levou alguns a considerá-
lo uma fantasia sem embasamento histórico, como as narrativas acerca dos patriarcas. Entre os estudiosos,
entretanto, o consenso geral é de que o Reino Unido de Israel e Judá efetivamente existiu. Os detalhes de
natureza política, econômica e comercial presentes no texto bíblico — em consonância com o que se sabe
sobre a sociedade do Oriente Próximo nessa época — são numerosos demais para que o império de Davi
seja mera ficção. A Mesopotâmia e o Egito estavam em decadência, preocupados com seus próprios
problemas, e é possível que não tenham tido contato com o Estado davídico. Ademais, a Bíblia não idealiza
o reino. Apresenta-nos uma nação esplêndida, mas também dividida internamente, esgotando os próprios
recursos e caminhando para uma crise.
O reino de Davi
Se depois de morto Davi se converteu em herói, em vida nem todos o estimavam. Seu filho Absalão
liderou uma revolta contra ele, erguendo um monumento em homenagem a si mesmo na fonte de En-
Roguel, local de culto associado com a monarquia jebuseia, e em Hebron se fez aclamar rei de Israel e Judá.
A situação era tão grave que Davi teve de deixar Jerusalém e só conseguiu sufocar a rebelião, que contava
com o apoio popular, graças a sua superioridade militar. A união entre os dois reinos era frágil, pois Davi
aparentemente favorecia Judá. Após a revolta de Absalão, Israel inteiro se separou do Reino Unido, e mais
uma vez Davi precisou recorrer à força para reafirmar seu poder. No fim da vida enfrentou uma cisão entre
os jebuseus e os israelitas de Jerusalém. Encontrava-se em seu leito de morte quando Adonias, o mais velho
de seus filhos sobreviventes, coroou-se rei em En-Roguel, com o apoio da velha guarda de Hebron, inclusive
de Joab, o comandante, e de Abiatar, o sacerdote. O que se poderia chamar, talvez, de facção jebuseia obteve
o apoio de Davi para um contragolpe. Natan, Sadoc e Betsabeia, acompanhados pelo velho exército jebuseu
de kereti e peleti, levaram Salomão para o santuário de Javé, junto à fonte de Gion, e ali o coroaram com
grande alarde. Adonias rendeu-se imediatamente e, junto com Joab, acabou sendo executado, enquanto o
sacerdote Abiatar partia para o exílio. Pode-se dizer que, quando Davi morreu, o partido jebuseu triunfara
sobre os novos habitantes de Jerusalém.
Jerusalém deixou de ser, durante o reinado de Davi, uma cidade-estado secundária e tornou-se a capital de
um império. No reinado de Salomão, que se iniciou por volta de 970 a.C., adquiriu status regional e
duplicou de tamanho. Salomão possuía um imenso harém de princesas, filhas de reis aliados ou subjugados.
Também conquistou o raro privilégio de esposar uma filha do faraó. O reino contava então com um
formidável exército equipado com bigas — a última palavra em tecnologia militar — e uma frota
estacionada em Ezion Geber, no golfo de Ácaba. Salomão tornou-se negociante de armas, estabelecendo com
o Egito e a Cilícia um comércio de bigas e cavalos. A Bíblia nos diz que a rainha de Sabá (no atual Iêmen)
foi visitá-lo, atraída por sua fama de sábio. O episódio talvez reflita a importância de seu reino, pois, se
começou a negociar no mar Vermelho, pode ter afetado a economia de Sabá. Salomão adquiriu a aura de
personagem legendária; consta que sua riqueza era imensa, e que possuía uma sabedoria prodigiosa; e, como
convinha a um rei bem-sucedido, empenhou-se em obras monumentais, restaurando as velhas praças-fortes de
Hasor, Meguido e Arad.
Jerusalém tornou-se uma cidade cosmopolita e abrigou as obras mais ambiciosas de Salomão. Estendendo-a
para o norte, ele construiu uma acrópole real no local da antiga propriedade de Areuna, no monte Sião: a
planta, pelo que sabemos a partir das fontes bíblicas, assemelhava-se à de outras acrópoles do século X a.C.
encontradas em vários sítios arqueológicos da Síria e do noroeste da Mesopotâmia. Além do Templo de Javé,
compunham o conjunto um palácio real, cuja construção exigiu quase o dobro do tempo dedicado às obras
do esplêndido santuário;21 a Casa do Bosque do Líbano, com colunas de cedro, cuja função não conhecemos
bem; um tesouro; o tribunal, contendo um magnífico trono de marfim; e um palácio especial para a filha do
faraó, a mais ilustre esposa de Salomão.

Planta hipotética do Templo de Salomão


1. Devir (Santo dos Santos) 7. A Arca
2. Hekhal (sala de culto) 8. Os querubins
3. Ulam (vestíbulo) 9. Mesas para candelabros
4. Aposentos laterais 10. Altar dos perfumes
5. Colunas Jaquim e Booz 11. Mesa para os pães da proposição
6. Escada de caracol

Nada disso chegou aos nossos dias. O conhecimento que temos do Templo, a mais importante dessas
construções, provém inteiramente dos autores bíblicos, que o descreveram em detalhes, às vezes muito depois
da destruição do edifício. Dedicado a Javé, ele fora concebido para abrigar a Arca da Aliança. Ao contrário
da maioria dos templos do Oriente Próximo, não continha nenhuma efígie da divindade para simbolizar sua
presença, pois, desde o momento em que se revelara a Moisés na sarça ardente, Javé se recusara a ser
definido ou representado na iconografia humana. Mas sob todos os outros aspectos o Templo se conformava
ao modelo habitual de cananeus e sírios. Edificado e provavelmente projetado por artesãos de Tiro, ao que
tudo indica era um exemplo típico da arquitetura imperial da Síria.22 Os fiéis comuns não tinham acesso a
seu interior, e os sacrifícios realizavam-se no pátio externo. O santuário em si era bem pequeno e composto
de três partes: o vestíbulo [Ulam], na extremidade oriental; a sala do culto [Hekhal]; e, no alto de uma
pequena escada, o Santo dos Santos [Devir], que abrigava a Arca e era fechado por uma cortina de linho
azul, carmesim e púrpura23 (ver a planta). O mobiliário mostra como o culto jerosolimita de Javé se
adaptara à paisagem espiritual do Oriente Próximo. Com exceção da Arca, não incluía símbolos evidentes do
Êxodo. A Bíblia nos diz que havia no Hekhal dois grandes candelabros de ouro, uma mesa de ouro para os
pães da proposição e um altar de cedro dourado para os perfumes. Havia também uma serpente de bronze,
mais tarde identificada com a que Moisés fabricou para livrar o povo da praga, porém relacionada
provavelmente com o velho culto jebuseu.24 Na entrada do Ulam erguiam-se duas colunas, enigmaticamente
chamadas “Jaquim” e “Booz”, e fora,25 no pátio aberto, localizavam-se o imponente altar dos sacrifícios e um
tanque de bronze maciço, sustentado por doze bois também de bronze, representando Yam, o mar
primordial. Figuras esculpidas de querubins, palmeiras e flores revestiam as paredes internas e externas do
Templo.26 A influência síria é evidente. O mar de bronze lembrava a luta de Baal com Yam-Nahar, os bois
eram símbolos comuns de divindade e fertilidade, enquanto as colunas Jaquim e Booz talvez correspondessem
às pedras eretas [matzevot] dos cananeus. Ao descrever a construção do Templo, os autores bíblicos utilizam
o calendário cananeu, e não o hebraico; assim, a cerimônia de dedicação do edifício no mês de “Etanim”
[setembro/outubro] possivelmente coincidiu com o festival de outono que comemorava a vitória de Baal
sobre Mot e sua entronização no monte Zaphon. Na tradição israelita, essa celebração agrícola recebeu o
nome de Sucot [Festa dos Tabernáculos] e por fim, como veremos, seria reinterpretada e relacionada com o
Êxodo.
Apesar de suas imagens aparentemente “pagãs”, o Templo se tornou a instituição mais cara a Israel. Alguns
profetas e reformadores descontentes incitaram o povo a retomar a religião mais pura do Êxodo; no entanto,
quando Nabucodonosor destruiu o Templo de Salomão, os israelitas em geral acharam que seu mundo
chegara ao fim. Talvez não deva nos surpreender o fato de a maioria dos fiéis considerar esses símbolos de
mitos cananeus e sírios compatíveis com a religião da Arca e do Êxodo. Vimos que as lendas do Êxodo
incorporaram os velhos mitos de Baal e Marduc. Se consideramos o Êxodo um acontecimento histórico
“verdadeiro”, então a luta de Baal com Yam não passa de uma fantasia “falsa”. Mas, se, ao contrário,
procuramos o significado oculto dos fatos do Êxodo e o acatamos como uma verdade eterna, concluímos que
o mar de bronze no pátio do Templo de Salomão não estava inteiramente deslocado. Ambos falam da
infindável batalha com os poderes das trevas e de um rito de passagem. Assim como os judeus lembram a si
mesmos que cada geração deve se considerar fugitiva do cativeiro no Egito, a presença de Yam lembrava que
a vitória sobre as forças do caos nunca era absoluta. Colocado no umbral do Templo, que abrigava a divina
Presença, ele rememorava a ousadia e o esforço que a criatividade inspirada pelo sagrado parece, por sua vez,
inspirar e requerer.
Os salmos relacionados com o culto jerosolimita de Javé nos mostram que o Templo estava
imaginativamente associado com o monte Sião. Depois que a Arca se instalou ali, os israelitas passaram a ver
o local como um “centro” que unia céu e terra e também tinha raízes no mundo subterrâneo, representado
pelo mar primordial. Como a Montanha Sagrada, o Templo simbolizava a realidade que sustenta a vida do
cosmo. Como a escada de Jacó, representava uma ponte para a origem do ser, sem a qual o frágil mundo
terreno não subsistiria. Porque foi construído num lugar onde o sagrado outrora se revelara, o Templo
infundia nos fiéis a esperança de estabelecerem contato com o poder divino. Ao entrar no recinto sagrado, os
devotos ingressavam em outra dimensão, cuja existência, acreditavam, era contemporânea ao mundo terreno e
o mantinha vivo. Portanto, o monte Sião se tornara radicalmente distinto do território que o rodeava: em
hebraico o equivalente a santo [kaddosh] significa “outro”, “diferenciado”. O próprio plano do edifício, com
seus três níveis de santidade, culminando no Devir [o Santo dos Santos], simbolizava a transcendência do
sagrado. Vedado a todos, exceto aos sacerdotes, o Devir permanecia silencioso, vazio e inacessível. Contudo,
como encerrava a Arca e a Presença, atestava tacitamente que o sagrado podia entrar no mundo dos
humanos: era ao mesmo tempo imanente e transcendente.
Construído no cume da montanha sagrada de Sião, o Templo também representava o Jardim de Javé,
como J o descreve nos capítulos 2 e 3 do Gênesis.27 Os grandes candelabros se assemelhavam a árvores
floridas e carregadas de amêndoas; as palmeiras e as flores nas portas e nas paredes do Hekhal também
lembravam o jardim onde os querubins caminharam no começo dos tempos; e não faltava uma serpente. J
pode ter escrito durante o reinado de Salomão; porém, mesmo que tenha vivido numa época posterior, foi
claramente influenciado pela espiritualidade do Templo. Quando criou o mundo, Marduc construiu um
templo, mas Javé, conta-nos J, depois que completou a criação, plantou um jardim, onde passeava no frescor
da noite e com naturalidade conversava com os primeiros seres humanos.
Na história do Éden vemos o que o divino significava para os fiéis israelitas no Templo de Salomão.
Como em todos os mitos do paraíso perdido, o Éden era um local onde o acesso ao mundo celeste era
fácil. Na verdade, constituía por si só uma experiência do sagrado. J diz que era a fonte da fertilidade
terrestre. Banhava-o um rio que, ao deixá-lo, se dividia em quatro braços e fecundava o resto da terra: um
desses braços era o Gion. No Templo havia dois grandes candelabros; no Éden havia duas árvores, que, com
sua capacidade de regenerar-se a cada ano, comumente simbolizavam o divino. O Éden era uma experiência
daquela plenitude primordial que os homens do mundo inteiro buscavam em seus locais santos. Deus e a
humanidade não estavam separados, mas podiam viver no mesmo lugar; o homem e a mulher não sabiam
que eram diferentes um do outro; não havia distinção entre o bem e o mal. Portanto, Adão e Eva situavam-
se num plano que transcende todos os contrários e todas as divisões: uma unidade que ultrapassa nossa
experiência e é inconcebível em nossa existência fragmentada, exceto nos raros momentos de êxtase ou
intuição. Era uma descrição mítica da harmonia que todas as culturas desejavam para a humanidade. Adão e
Eva a perderam quando “caíram” e foram excluídos da presença divina e expulsos do Éden. Todavia, quando
os devotos entravam no Templo de Salomão, as imagens e os objetos ali presentes podiam ajudá-los, em seu
imaginário, a retornar ao Jardim de Javé e recuperar — ainda que por alguns momentos — o paraíso que
tinham perdido. Aliviavam seu sentimento de separação, que, como vimos, está na própria base da busca
religiosa. A liturgia e a arquitetura contribuíam para essa viagem espiritual à unidade inseparável da realidade
que chamamos de “Deus” ou de “sagrado”.
Tais ideias também estão implícitas na história da Torre de Babel, em que J descreve a criação de um
local santo e ao mesmo tempo perverso. Em vez de esperar pela revelação do local sagrado, os homens
tomam a iniciativa. “Vinde, construamos para nós uma cidade e uma torre, cujo topo alcance o céu.” Essa
tentativa de escalar o céu constitui um ato de orgulho e autoengrandecimento: “Tornemos célebres nosso
nome”, dizem. O resultado é a discórdia e a fragmentação, não a unidade. Para puni-los por sua presunção,
Deus “os dispersou por toda a face da terra” e confundiu sua linguagem, de modo que eles já não se
entendiam. O lugar recebeu o nome de Babel, “porque ali Deus confundiu [bll] a linguagem de toda a
terra”.28 A narrativa de J revela uma profunda hostilidade com a Babilônia e seus imponentes zigurates. Em
vez de ser um “portal dos deuses” [bab-ilani], ela era a fonte da inimizade, da desarmonia, da desunião que
caracteriza a existência terrena no que ela tem de pior. Muito diferente era a experiência dos devotos em
Sião, a cidade da paz [shalom] e da reconciliação. Ali o povo de Israel podia congregar-se no monte santo
que o próprio Deus designara como sua herança, não numa montanha sagrada artificialmente construída e
embasada na ambição humana e na sede de poder.
O Templo edificado por Salomão no monte Sião proporcionou a peregrinos e devotos uma experiência de
Deus. No capítulo seguinte veremos que muitos esperavam avistar Javé ali. Ao contrário dos construtores de
Babel, que vagaram à deriva pelo mundo, muitos deles sentiam-se voltando para casa ao entrar no Templo
de Javé. Como símbolo do sagrado, o Templo era também a fonte da fertilidade e da ordem. 29 Mas, como
nos outros países do Oriente Próximo, sua grande santidade era inseparável da busca do que hoje
chamaríamos de “justiça social”. Esse aspecto é importante. Agora que contava com uma monarquia própria,
o povo de Israel e Judá naturalmente adotou o ideal local de realeza sagrada. O rei era o mashiach de Javé,
seu “ungido”. No dia de sua coroação no Sião, o “monte santo do Senhor”, Deus o adotou como filho.30
Seu palácio erguia-se próximo ao Templo, e seu trono de juiz situava-se ao lado do trono de Javé no Devir.
Sua missão consistia em impor a lei divina e cuidar para que a justiça de Deus prevalecesse na terra. Os
Salmos dizem-nos que cabia ao rei “defender os mais pobres, salvar os filhos dos necessitados e esmagar seus
opressores”.31 Prevalecendo essa justiça, haveria no reino paz, harmonia e fertilidade.32 Javé lhes daria a
segurança que o mundo antigo continuamente procurava com tanto afã: porque agora Sião era a herança de
Javé, estava “para sempre sob a proteção divina”.33 No entanto, não podia haver segurança nem shalom se
não houvesse justiça em Sião.
Três palavras que se repetem constantemente nos salmos de Jerusalém expressam esse ideal: mishpat, tzedek e
shalom.34 Mishpat é um termo legal e significa “julgamento” ou “veredicto”, mas também denota o
harmonioso governo de Javé no monte Sião. Quando a Arca da Aliança foi levada para o Devir, realizou-se
a entronização de Javé em sua montanha sagrada; portanto, ele era o verdadeiro rei de Jerusalém, sendo o
rei terreno seu mero representante humano. A tarefa do rei terreno consistia em impor tzedek [justiça,
retidão], que, em Canaã, era um atributo do deus do Sol, o qual esclarecia crimes encobertos, corrigia os
males causados a inocentes e vigiava o mundo como um juiz. Depois que Javé foi entronizado em Sião,
tzedek tornou-se seu atributo: Javé cuidaria para que houvesse justiça em seu reino, para que os pobres e
indefesos fossem protegidos e para que os fortes não oprimissem os fracos. Só assim Sião se tornaria uma
cidade de shalom, palavra geralmente traduzida como “paz”, mas cuja raiz significa “totalidade”, “plenitude”
— aquela sensação de plenitude e totalidade que as pessoas buscavam em seus lugares santos. Portanto,
shalom inclui todo tipo de bem-estar: fertilidade, harmonia, sucesso nas guerras. Usufruir shalom equivalia a
negar a anomia e a hostilidade que constituem a causa de tanto sofrimento humano. Equivalia também,
como vimos, a experimentar a paz que é Deus. Contudo, Jerusalém não podia ser uma cidade santa de
shalom se não houvesse no país tzedek ou “retidão”. Os israelitas esqueciam-se disso com muita frequência.
Concentravam-se na santidade e na integridade de Jerusalém e lutavam por sua pureza. Mas, como os
profetas sempre os lembravam, se deixassem de lado a busca da justiça, inevitavelmente perderiam shalom.
Ao construir o Templo e entronizar Javé em Sião, Salomão estava, segundo os termos cananeus, se
apossando formalmente da terra em nome da dinastia davídica. Javé era agora o governante de Jerusalém, e o
país se tornou propriedade do povo de Israel, que era o povo do Senhor. O palácio de Baal no monte
Zaphon tornara inalienável o território circundante; agora Sião pertencia a Javé, era sua herança eterna. O
Templo e a entronização de Javé permitiram, pois, que Salomão reivindicasse Jerusalém como a herança
eterna da Casa de Davi. A construção do Templo foi um ato de conquista, um meio de ocupar a Terra
Prometida com respaldo divino. O edifício proclamava que a vida errante de Israel terminara; o povo do
Reino Unido finalmente encontrara sua pátria e estabelecera-se num lugar onde poderia viver em estreita
intimidade com o divino.
No entanto, Salomão se revelou uma decepção. O historiador deuteronomista, que escreveu no século VI
a.C., viu-o como idólatra. Salomão construiu santuários para os deuses de todas as suas esposas estrangeiras;
também adorou as divindades de seus vizinhos: Astarte, de Sidônia; Moloc, de Amon; Camos, de Moab.
Altares dedicados a Moloc e a Camos erguiam-se nas colinas a leste de Jerusalém.35 D acreditava que foi por
causa dessa infidelidade que o Reino Unido de Israel e Judá se desintegrou após a morte de Salomão.
Porém, D escrevia a partir de uma perspectiva inteiramente diversa. No século VI a.C., os israelitas estavam
se tornando monoteístas autênticos; começavam a acreditar que Javé era o único deus e que todas as outras
divindades eram falsas. Salomão e seus súditos ainda não partilhavam tal crença. Assim como ninguém
estranhou a presença de imagens pagãs no Templo, todos deviam ver os outros santuários de Jerusalém como
uma gentileza do soberano para com suas mulheres. Esses santuários não afetavam a posição de Javé. Ele
continuava sendo o rei de Sião e reinava sobre os deuses menores em seus estabelecimentos menores, como
os salmistas o descreveram em seu reinado sobre os outros deuses no Divino Concílio.
Se Salomão falhou, provavelmente foi porque não buscou tzedek. A economia política de seu Estado era
frágil. Os impérios caem quando seus recursos se esgotam, e, apesar da suposta riqueza de Salomão, a nação
passara dos limites. Salomão comprou materiais caros de Hiram, rei de Tiro, e não conseguiu saldar a
dívida. Assim, teve de ceder a Tiro vinte cidades, provavelmente da Galileia ocidental. Apesar de seu
poderoso exército, não conseguiu preservar o território que herdara de Davi. Primeiro Edom e depois
Damasco recuperaram a independência. Ainda mais graves, porém, eram a insatisfação e o mal-estar internos.
Davi favorecera Judá e por causa disso quase perdera a lealdade de Israel. Salomão não aprendeu a lição.
Tudo indica que explorou Israel, tratando-o como território conquistado, e não como parceiro em pé de
igualdade. Dividiu o norte do país em doze unidades administrativas, e todos os anos cada uma delas era
obrigada a sustentar a corte por um mês e a fornecer homens para a corveia. Não existe menção de nada
semelhante no reino de Judá.36 Ademais, a população se ressentia da corveia. Trabalho forçado fazia parte da
vida no mundo antigo: Davi também havia recorrido à conscrição e ninguém reclamara. Salomão, no
entanto, precisou de muita mão de obra para levar a cabo seus projetos. Isso prejudicou a economia, pois as
construções não eram produtivas e a corveia tirou os homens dos campos e das cidades que de fato geravam
a riqueza do país. Pior ainda era a injustiça flagrante. O texto bíblico nos informa que trinta mil homens de
Israel foram forçados à corveia, contudo não menciona um único homem de Judá.37 O povo de Israel
indignava-se com a situação, e parte dele sonhava separar-se de Jerusalém.
Vimos que o culto da justiça no mundo antigo não era um sonho piedoso, mas estava arraigado no bom-
senso político. Reinos caíram por causa da inquietação social. Ugarit, por exemplo, foi destruída no século
XIII a.C. porque impôs aos camponeses um fardo pesado demais. O reino de Salomão também se
desintegraria porque o soberano não tratou seus súditos com equidade — essa foi uma lição salutar para seus
sucessores. Salomão sabia que seus domínios corriam perigo. Nos últimos anos de sua vida, Jeroboão, um dos
intendentes israelitas da corveia, rebelou-se contra ele. Um profeta do norte predissera que o reino se
dividiria em dois e que Jeroboão governaria dez das doze tribos de Israel.38 Parece provável, portanto, que
Jeroboão planejasse uma insurreição. Salomão tentou eliminá-lo, mas ele partiu para o Egito, refugiando-se
na corte do faraó Sesac. Não teve de permanecer no exílio por muito tempo. Logo depois, por volta de 930
a.C., Salomão morreu, após um reinado de quarenta anos, e foi enterrado com seu pai na ’Ir David. Seu
filho Roboão assumiu o trono, e imediatamente o desastre que Salomão temia se abateu sobre o Reino
Unido de Israel e Judá.
4. A CIDADE DE JUDÁ

ROBOÃO HERDOU UM REINO empobrecido e dividido. Judá aceitou seu governo. Israel se exaurira com as
ambiciosas obras de Salomão, que pouco lhe renderam e ainda desviaram trabalhadores produtivos de grandes
áreas do país. Assim, quando Roboão foi ter com os anciãos de Israel em Siquém, para que ratificassem seu
governo, eles lhe disseram que só fariam isso se ele reduzisse os impostos e a conscrição. Era uma decisão
difícil: acatar a exigência equivalia a renunciar para sempre ao sonho imperial de seu avô, Davi, e aceitar um
padrão de vida mais modesto para sua corte. Poucos governantes fariam tal escolha, e não surpreende que
Roboão tenha rejeitado o parecer de seus conselheiros mais velhos e mais experientes, adotando a política
intransigente de seus auxiliares mais jovens, os quais estavam cientes de que a redução dos tributos
acarretaria um drástico declínio em seu próprio estilo de vida. Ao reencontrar os anciãos de Israel, o
soberano respondeu-lhes de maneira desdenhosa: “Meu pai vos espancou com chicotes; eu vos espancarei com
pesados azorragues”.1 Imediatamente os anciãos declararam-se independentes do Reino Unido, o supervisor da
corveia foi morto a pedradas e Roboão teve de voltar correndo para Jerusalém.
Os reinos de Israel e Judá
A partir de então os dois reinos seguiram caminhos distintos. Jeroboão tornou-se rei de Israel,
estabelecendo sua capital em Tersa e transformando em templos reais os velhos santuários de Betel e Dan.
Amri (885-74 a.C.), um de seus sucessores, mais tarde construiu uma nova capital, Samaria, que se tornou a
cidade mais elegante e luxuosa da região. Israel era muito mais extenso e rico que Judá: tinha acesso às
principais estradas e encerrava a maior parte do território pertencente às mais prósperas das antigas cidades-
estados. Isolado e desprovido de recursos, Judá ocupava uma área que praticamente se resumia a estepes e
montanhas difíceis de cultivar. Seus soberanos naturalmente lamentavam a perda do reino setentrional, que
acusavam de apostasia, embora o que acontecera fosse apenas a restauração do status quo anterior à união
efetuada por Davi. Após a separação, os dois reinos guerrearam entre si por cerca de cinquenta anos, e Judá,
o mais fraco deles, era particularmente vulnerável. Roboão só conseguiu salvar Jerusalém de um ataque do
faraó Sesac, que tentava marcar sua presença em Canaã, entregando-lhe uma parte considerável do tesouro do
Templo. No governo de Asa (911-870 a.C.), os exércitos de Israel chegaram até Ramá, oito quilômetros ao
norte de Jerusalém. Dessa vez o monarca precisou da ajuda do reino arameu de Damasco, que atacou o
inimigo pela retaguarda, para salvar a cidade. A partir daí Israel se envolveu numa série de guerras
territoriais com Damasco e não importunou mais Judá.
Cercado de adversários poderosos, que procuravam destruir seu reino, o povo de Judá voltou-se cada vez
mais para Javé. Sabemos que, como com outros povos do antigo Oriente Próximo, os inimigos — Israel,
Egito e, depois, Damasco — tendiam a ser identificados com as forças primitivas do caos. Assim como o
mar e o deserto, esses inimigos terrenos podiam facilmente aniquilar a frágil segurança do Estado e reduzir
seu pequeno mundo ao ermo que devia ter existido antes de os deuses criarem a terra habitável. Essa ideia
talvez seja fantasiosa, mas ainda hoje utilizamos termos semelhantes quando dizemos que nossos adversários
representam um “império do mal”, capaz de reduzir “nosso mundo” ao caos. Ainda tendemos a ver a vida
como uma luta entre as forças da luz e das trevas, e tememos o retorno do “barbarismo” que poderia
destruir tudo o que “nós” criamos. Temos nossos próprios rituais — comemorações, deposições de coroas
funerárias, procissões —, concebidos para evocar uma reação emocional e trazer para o presente batalhas
passadas. Recordamos vividamente a época em que parecíamos enfrentar sozinhos um mundo hostil. Cheios
de esperança e de orgulho, renovamos o compromisso de continuar a luta. Os habitantes da antiga Jerusalém
tinham estratagemas parecidos, baseados na antiga mitologia cananeia que adotaram como sua.
Em vez de relembrar suas próprias batalhas, recordavam a luta de Javé contra as forças do caos no começo
dos tempos. Anualmente as batalhas de deuses como Marduc e Baal eram comemoradas no Oriente Próximo
em cerimônias complexas, que constituíam ao mesmo tempo uma exultante celebração da vitória divina e
uma tentativa de transpor esse poder para o presente, pois se acreditava que só um guerreiro celestial
conseguiria estabelecer a paz e a segurança de que a cidade precisava. Os rituais do mundo antigo iam além
da simples recordação: reproduziam as histórias míticas de modo que elas pareciam se repetir, e os devotos
sentiam-se participando da eterna luta invisível no âmago da existência e da vitória divina sobre os monstros
do caos primordial. Mais uma vez, como na construção de um templo, semelhança equivalia a identidade. A
representação dessas batalhas divinas em dramas simbólicos transferia a ação para o presente, ou, mais
propriamente, projetava os devotos no mundo atemporal do mito. Os rituais revelavam a dura realidade da
existência, que sempre parecia ligada à dor e à morte, mas também deixava claro que a luta sempre teria
um desfecho criador. Depois de emergir vitorioso de seus embates mortais com Yam e Mot, Baal fora
entronizado no monte Zaphon, onde passou a residir para sempre. A partir de sua morada ele instituiu a
paz, a fertilidade e a ordem que seus inimigos tentaram destruir. Quando essa vitória era comemorada em
Ugarit, o rei assumia o lugar de Baal, ungido como seu protótipo celeste para a missão de estabelecer a paz,
a fecundidade e a justiça em seus domínios. A entronização de Baal era celebrada no outono, no mês de
Etanim, atraindo para Ugarit, por mais um ano, as energias divinas desencadeadas nos combates primais do
alvorecer dos tempos.
Antes de Salomão construir o Templo, Javé aparentemente despertava pouco ou nenhum interesse como
deus criador. Os mitos do Êxodo mostravam-no criando um povo, não o cosmo. No entanto, depois de sua
entronização ritual no Devir do monte Sião, seu culto incorporou muitas das características do culto de Baal
El-Elyon, que o precedera. Possivelmente sob a influência de Sadoc, ideias dos jebuseus se fundiram com a
velha mitologia dos israelitas. Passou-se a proclamar que, como Baal, Javé lutara com o monstro marinho
Lotan, que em hebraico se tornou “Leviatã”.2 Ele domou as águas do caos primordial, que teriam inundado
a terra, encerrou-as “em limites que não deveriam transpor” e lhes impôs “ferrolhos e portas”.3 Como
Marduc, partiu ao meio outro monstro marinho — Raab — quando lançou as bases do mundo.4 Esses mitos
de uma criação violenta mais tarde cederam lugar ao pacífico estabelecimento da ordem primordial descrito
por P no primeiro capítulo do Gênesis. Contudo, a Bíblia mostra que o povo de Judá também tinha
histórias mais conformes à espiritualidade de seus vizinhos e que em épocas de crises recorria a essa
mitologia “pagã”. O mito do combate era reconfortante porque proclamava que, por mais poderosas que
fossem as forças da destruição, a ordem sempre prevaleceria. Isso, entretanto, não ocorreria automaticamente.
Os sacerdotes e os reis tinham o dever de a cada ano renovar em seu templo essa vitória primordial a fim
de infundir o poder divino na cidade fortificada. Sua missão consistia em fazer seu povo estabelecer contato
com o grande mistério que sustentava o mundo, enfrentar o inevitável terror da existência e aprender a ver
o lado positivo do que parecia assustador e mortal. A vida e a ordem triunfariam sobre a violência e a
morte, a fertilidade seguiria um período de seca e esterilidade, e a ameaça de extinção seria afastada graças à
presença do poder divino.
Os salmos mais antigos mostram que o povo de Judá absorveu essa espiritualidade. Às vezes simplesmente
reafirmam os velhos mitos de Ugarit:
Javé é grande e muito deve ser louvado:
na cidade de nosso Deus
está seu monte santo, cujo cume se ergue
para a alegria do mundo inteiro.
*
O monte Sião é o coração de Zaphon,
a cidade do Grande Rei;
aqui, entre seus palácios,
Deus provou ser sua fortaleza.5
Javé lutaria por Jerusalém, assim como Baal lutara por sua herança em Ugarit: sua presença tornou a cidade
inviolável aos inimigos que a rondavam. Os jerosolimitas deviam admirar as fortificações de Sião — “Contai
suas torres, admirai seus muros, examinai seus palácios” —, assim como o povo de Uruc havia admirado os
baluartes construídos por Gilgamesh. Depois disso concluiriam que “Deus está aqui!”.6 No começo dos
tempos, Javé estabeleceu fronteiras para manter tudo em seu lugar: os muros e as medidas de segurança
possuíam um valor religioso semelhante, por afastar a ameaça de extinção e o caos. A cidade jamais cairia:
Javé era sua fortaleza, e ele quebraria o arco e despedaçaria a lança de seus inimigos.7 Ainda que toda a
ordem do cosmo soçobrasse, que as montanhas mergulhassem no mar, que as águas rugissem e se
encapelassem, o povo de Judá nada temeria, pois Deus era seu refúgio e sua força.8 Javé instalara em sua
cidade um porto de shalom: plenitude, harmonia, segurança. Na liturgia de Jerusalém os devotos viam os
velhos mitos do Êxodo no contexto da criação do mundo por Javé. Ele se tornara o rei de toda a terra ao
derrotar Leviatã e Raab; e, ao libertar seu povo do Egito, revelou seus planos para toda a humanidade.9
Alguns críticos tentaram reconstituir a liturgia a partir dos Salmos, chegando a minúcias provavelmente
absurdas. Sabemos bem pouco sobre o culto de Jerusalém nesse período. No entanto, ao que tudo indica,
girava em torno da presença da realeza de Javé no monte Sião. É possível que a festa de Sucot celebrasse
sua entronização na montanha sagrada durante a dedicação do Templo pelo rei Salomão. Assim como, após
a derrota de Mot, Baal devolveu a fertilidade à terra quando retornou a seu palácio no Zaphon, Javé
assegurou a fertilidade de Sião e seus arredores, o que também se comemorava nessa antiga festa agrícola.
Em meio a música, aplausos e aclamações, o Senhor subiu a seu trono no Devir, acompanhado pelo clangor
das trombetas.10 Talvez os instrumentos estridentes, o brado cultual e as nuvens de incenso que se
espalhavam pelo Templo reproduzissem a teofania no monte Sinai, quando Javé apareceu para seu povo em
meio a uma erupção vulcânica.11 Talvez se realizasse uma procissão de Gion ao Templo, reconstituindo sua
primeira viagem ao monte Sião. Nessa liturgia Javé era uma força tão grande que reinava não apenas sobre
Sião, mas sobre o mundo inteiro.12 Estava adquirindo preeminência sobre outras divindades,
pois tu és Javé,
Elyon sobre o mundo,
transcendente a todos os outros deuses.13
Muito antes de os israelitas desenvolverem a doutrina formal do monoteísmo, os rituais e as cerimônias no
monte Sião começaram a ensinar ao povo de Judá — num nível emocional, se não nocional — que Javé era
o único deus que contava.
Mas o culto de Sião não se resumia a uma celebração ruidosa. Os primeiros salmos de peregrinação
mostram que esse culto podia inspirar uma espiritualidade intensamente pessoal. Visitar o Templo equivalia a
uma ascensão [aliyah]. Ao deixar o vale de Hinom para escalar as íngremes encostas de Jerusalém rumo ao
topo do Sião, os fiéis se preparavam para uma visão de Javé.14 Tratava-se não apenas de uma subida
concreta, e sim de uma “ascensão para dentro”, para o local onde o mundo interior encontra o exterior.
Experimentava-se uma sensação de volta ao lar:
O pardal finalmente encontrou sua casa,
a andorinha, um ninho para seus filhotes —
teus altares, Javé Sabaot.15
As imagens de repouso e do estabelecimento de uma morada definitiva perpassavam o discurso referente ao
Templo desde que Davi sugerira construir uma casa para Javé em Jerusalém. 16 O culto do Templo
contribuiu para que o povo de Judá se fixasse à terra. Os mitos da criação afirmavam que cada uma das
coisas existentes no universo tem um lugar determinado. Javé delimitara os mares para que não invadissem a
terra firme. Agora que estava em seu lugar especial, em Sião, era ali que os filhos de Judá tinham um lar
seguro. Eles também, como povo santo, estavam no local que lhes fora especialmente designado. Além dos
muros da cidade encontravam-se os inimigos destrutivos, capazes de restaurar o caos informe; dentro desse
enclave, porém, eles podiam criar seu próprio mundo. A alegria e a certeza de não ser estrangeiro, suscitadas
pelo Templo, expressavam sua satisfação de estar, emocional e fisicamente, no lugar certo. Frequentar o
Templo não era um dever enfadonho. O salmista “suspira e anseia” pelos pátios de Javé; todo o seu ser ali
canta de alegria.17 Os peregrinos, tendo encontrado uma orientação, sentiam-se fortes, livres do fluxo
interminável da relatividade e da falta de sentido. Sua mitologia falava dos longos anos de perambulação pelo
deserto, onde não podia haver esperança de vida para os seres humanos. Agora, no Templo, o ponto imóvel
do mundo em movimento, os peregrinos podiam sentir-se inteiramente vivos, experimentando a existência em
seu grau mais intenso: um só dia nos pátios do Templo era melhor que mil alhures.18
Isso não significa, porém, que em Jerusalém se venerava unicamente a Javé. O historiador deuteronomista
julga os reis de Israel e Judá segundo um único critério: são bons os que promovem apenas a devoção a Javé
e destroem os santuários, lugares sagrados [bamoth] e matzevot [pedras eretas] das divindades rivais; são maus
os que incentivam esses cultos estrangeiros. Por conseguinte, pouco sabemos acerca dos fatos ocorridos nessa
época em Jerusalém: a longa narrativa de D é praticamente omissa no tocante às outras atividades dos reis.
E, mesmo quando focaliza os monarcas fiéis a Javé, não consegue esconder que também sob esses governantes
outros cultos continuaram florescendo na cidade. Assim, enaltece Josafá (870-48 a.C.) por sua fidelidade a
Javé, embora admita que os bamoth de outros deuses permaneciam ativos. Aliás, Josafá não teve nenhum
problema em casar seu filho Jorão com a princesa Atalia, filha de Acab e Jezabel, soberanos de Israel.
Devota de Baal, Atalia levou seu culto fenício para Jerusalém e construiu na cidade um templo dedicado a
esse deus e presidido pelo sacerdote sidônio Matan.
Esse casamento pode ter selado um acordo pelo qual Judá se tornou vassalo de Israel: a partir de então
Josafá e Jorão lutaram ao lado do reino setentrional em suas campanhas contra Damasco. Nos séculos IX e
VIII a.C., o Oriente Próximo conheceu uma nova prosperidade. Até a estrela de Judá brilhou, pois Josafá
obteve vitórias notáveis sobre Moab, Amon e Seir. Entretanto, surgia um novo perigo. A partir de Nínive,
sua capital (no atual Iraque), os reis da Assíria estavam construindo um império de um poderio sem
precedentes. Tinham como principal ambição expandir-se em direção ao oeste, ao litoral mediterrâneo, e, na
tentativa de deter seu avanço, Israel e Damasco pararam de lutar entre si e formaram uma coalizão que
incluía ainda outros pequenos estados da Anatólia e das estepes. Acabaram derrotados em 863 a.C. na batalha
de Carcar, às margens do rio Orontes, e tornaram-se vassalos da Assíria. Insignificante demais para interessar
aos vencedores, o Reino de Judá manteve sua independência.
Contudo, Jerusalém não viveu em paz durante esses anos. Quando se tornou regente, após a morte de seu
filho, em 841 a.C., a rainha Atalia tentou eliminar a dinastia davídica, matando os herdeiros legítimos do
trono. Cerca de seis anos depois os sacerdotes do Templo e a aristocracia rural organizaram um golpe e
coroaram Joás — neto de Atalia, que escapara do massacre. Depois executaram a rainha e destruíram o
templo de Baal. Inimigos externos também ameaçavam a cidade: Joás teve de entregar parte do tesouro do
Templo ao rei de Damasco, para impedi-lo de atacar Jerusalém; posteriormente, no governo de Amasias
(796-81 a.C.), o exército de Israel saqueou o palácio real e o Templo e demoliu parte das muralhas da
cidade antes de retornar a Samaria. Nada disso abalou a confiança da população na inexpugnabilidade de
Sião. Sob Osias (781-40 a.C.),19 a cidade se fortaleceu, apesar da lepra que acometeu o monarca. Os muros
que os israelitas destruíram foram restaurados, e uma nova fortaleza, Ofel, substituiu a velha cidadela de
Melo entre a cidade e o Templo. Jerusalém tornou-se um centro industrial e teve sua população aumentada:
parece que começou a expandir-se para além das muralhas até o vale do Tiropeon e a Colina Ocidental, em
frente ao monte Sião. A essa altura a Assíria passava por uma crise e se viu obrigada a retirar-se da região,
de modo que o Reino de Israel também desfrutou um período de riqueza e independência.
A prosperidade, no entanto, acarretou distúrbios sociais: os cidadãos mais sensíveis percebiam o abismo
inaceitável existente entre os ricos e os pobres, e em ambos os reinos surgiram profetas que denunciavam a
injustiça e a opressão. Ao ser coroados, os reis do Oriente Próximo juravam proteger os pobres e os
indefesos, mas parece que perdiam de vista esse ideal. Desde que Abraão recebera seu deus em Mambré, o
javismo mostrou que o sagrado podia manifestar-se não só nos templos e nos locais santos, mas também nos
seres humanos. As novas religiões que começavam a desenvolver-se em todo o mundo civilizado desse período
(que os historiadores chamam de Era Axial) afirmavam que a verdadeira fé devia caracterizar-se pela prática
da compaixão. A religião de Javé também começava a mudar para adaptar-se às novas circunstâncias. Os
profetas hebreus passaram a insistir na extrema importância da justiça social: um símbolo religioso como o
Templo podia facilmente tornar-se um fetiche, um fim em si mesmo, um motivo de falsa segurança e de
fatuidade.
Nenhum profeta da Era Axial se devotou tanto ao Templo de Jerusalém quanto Isaías, cuja vocação
profética se revelou em 740 a.C., ano da morte do rei Osias. Membro da família real, Isaías provavelmente
era sacerdote, pois estava no Hekhal, observando as nuvens de incenso que enchiam a sala e ouvindo o
grande brado cultual, quando de repente viu além das imagens do Templo e enxergou a terrível realidade.
Javé estava em seu trono celeste, simbolizado pela Arca, rodeado de serafins. O Templo era um lugar de
visão, e agora, mais que nunca, Isaías teve plena consciência de que a santidade irradiava do Devir para o
resto do mundo: “Santo, santo, santo é Javé Sabaot”, exclamaram os serafins; “sua glória enche o mundo
inteiro”.20
O Templo, portanto, foi crucial para a visão de Isaías. A montanha santa de Sião era o centro da terra,
porque ali a realidade sagrada irrompeu no mundo dos homens, trazendo-lhes a salvação. O culto de Sião
celebrara a realeza universal de Javé, e agora Isaías ansiava pelo dia em que “todas as nações” afluiriam à
“montanha do Templo do Senhor”, exortando-se mutuamente a realizar a aliyah a Jerusalém: “Vinde,
subamos ao Templo do Deus de Jacó”. 21 Seria um retorno universal ao Jardim do Éden, onde todas as
criaturas viveriam em harmonia, o lobo com o cordeiro, o leopardo com o cabrito, o novilho com o filhote
do leão.22 O monte santo de Jerusalém presenciaria a criação de uma nova ordem no mundo e a
recuperação daquela plenitude perdida pela qual a humanidade anseia. Nunca esqueceu a visão da Nova
Jerusalém de Isaías. Sua esperança de um rei ungido, um Messias, para inaugurar essa era de paz lançou as
bases da esperança messiânica que inspiraria os monoteístas nas três religiões de Abraão. Para judeus, cristãos
e muçulmanos, Jerusalém seria o palco da intervenção final de Deus na história humana. Haveria um grande
julgamento, uma última batalha no fim dos tempos e uma procissão de descrentes arrependidos, dirigindo-se
a Jerusalém para submeter-se à vontade divina. Essas visões continuam afetando a política de Jerusalém até os
dias de hoje.
No entanto, a profecia templocêntrica de Isaías tem início com um oráculo que parece condenar todo o
culto de Sião.
O que são para mim vossos intermináveis sacrifícios?,
diz Javé.
Estou farto de holocaustos de carneiros
e da gordura de bezerros [...]
quem vos mandou pisar em meus átrios? 23
A complexa liturgia só tinha sentido se acompanhada de uma compaixão que busca a justiça acima de tudo e
socorre os oprimidos, os órfãos, as viúvas.24 Os estudiosos acreditam que essa profecia não é obra de Isaías,
mas que os editores a acrescentaram a seus oráculos. Ela reflete, contudo, uma posição partilhada por outros
profetas. No reino setentrional, Amós também disse que os rituais do Templo não faziam parte da religião
original do Êxodo. Como Isaías, Amós viu Javé no Templo de Betel, rejeitando, porém, um culto que se
tornou um fim em si mesmo. “Trouxestes-me sacrifícios e oblações durante os quarenta anos que passastes
no deserto?”, Deus pergunta. Em vez de cânticos e harpas, ele quer justiça, fluindo como água, e
integridade, jorrando numa torrente sem fim.25 Amós o imaginou bradando em seu santuário de Jerusalém
por causa da injustiça que viu em todas as terras vizinhas e que aviltava seu culto.26 Com a mudança de sua
religião na Era Axial, a justiça e a compaixão se tornaram virtudes essenciais, sem as quais a devoção ao
espaço sagrado era inútil. O culto de Jerusalém prezava esse valor, proclamando que Javé estava preocupado
sobretudo com os pobres e os indefesos. Sião devia ser um refúgio para os pobres, e, como veremos, os
judeus que se consideravam seus verdadeiros filhos se chamariam de Evionim, os Pobres. No entanto, parece
que em Jerusalém “pobreza” não significava apenas privação material — o antônimo de “pobre” era
“orgulhoso”, não “rico”. Devia-se confiar não na força humana, nas alianças com estrangeiros, na
superioridade militar, mas em Javé, a única fortaleza, o único baluarte de Sião. A arrogante confiança nos
exércitos e fortificações dos homens constituía idolatria.27
Naquela época, como hoje, havia pessoas que preferiam dedicar suas energias religiosas ao espaço sagrado, e
não ao dever — mais difícil — da compaixão. A longa carreira do profeta Isaías mostra alguns dos perigos
que a ideologia de Jerusalém podia suscitar. Quando os assírios, governados por Teglat-Falasar III,
reapareceram no Oriente Próximo, os reis de Damasco e Israel formaram uma nova coalizão para evitar que
dominassem a região. Como Acaz, soberano de Judá (736-16 a.C.), se recusou a fazer parte dessa
confederação, os aliados marcharam sobre Jerusalém e a sitiaram. Isaías recomendou ao monarca que
resistisse: o filho que a rainha estava prestes a pôr no mundo restauraria o reino de Davi; chamar-se-ia
Emanu-El [Deus está conosco], porque inauguraria o reino de paz no qual homens e mulheres mais uma vez
viveriam em harmonia com o divino. Antes que essa criança atingisse a idade da razão, Damasco e Israel
seriam destruídos; não havia motivo para pânico ou para alianças com príncipes estrangeiros.28 Acaz devia
confiar unicamente em Javé.
Para desgosto do profeta, o rei de Judá não quis correr o risco de seguir seu conselho: decidiu submeter-
se a Teglat-Falasar e tornar-se vassalo da Assíria, que prontamente invadiu os territórios de Damasco e Israel
e deportou grande número de seus habitantes. Por volta de 733 a.C., Israel estava reduzido a uma pequena
cidade-estado da Samaria e tinha no trono um rei-fantoche. Os assírios não costumavam impor sua religião a
seus vassalos, mas parece que Acaz quis agradá-los com um gesto cultual. Um altar no estilo dos
dominadores substituiu o velho altar dos sacrifícios situado no pátio do Templo, e a partir de então haveria
em Judá um novo entusiasmo pelos cultos que envolviam o sol, a lua, as constelações e que nessa época
surgiam em outros pontos do Oriente Próximo.
Isaías não perdeu muito tempo com Acaz, apesar de o rei pelo menos ter salvado o país. Não se pode
dizer a mesma coisa a respeito da criança que o profeta celebrara com o nome de Emanu-El: Ezequias
sucedeu o pai por volta de 716 a.C. e, segundo nos conta D, dedicou-se unicamente a Javé. Fechou todos os
bamoth dedicados a outros deuses, derrubou as matzevot e destruiu a serpente de bronze do Hekhal de
Jerusalém. O Cronista nos diz que os sacerdotes desempenharam um papel crucial nesse movimento
reformador e eliminaram toda a parafernália dos cultos estrangeiros que se introduzira no Templo. Diz
também que Ezequias ordenou à população de Israel e Judá que se reunisse no Templo de Salomão para
celebrar a Páscoa, festa até então restrita ao âmbito domiciliar. 29 Isso é improvável, pois só no final do
século VI a.C. a Páscoa passou a ser festejada no Templo; possivelmente o Cronista estava projetando as
práticas religiosas de sua época no tempo de Ezequias, pelo qual demonstra grande entusiasmo. Na verdade
não sabemos exatamente o que Ezequias pretendia com essa reforma, cujo efeito parece não ter sido
duradouro. Talvez quisesse dissociar-se da política sincretista de seu pai e dar os primeiros passos no sentido
de romper a hegemonia assíria. A história de sua convocação do povo de Israel a Jerusalém pode sugerir que
sonhava restaurar o Reino Unido, como Isaías previra. Israel já não constituía uma ameaça, e decerto Judá
exultava com o fim de seu antigo adversário. Pela primeira vez desde a cisão, Judá era mais forte, e, ao
chamar os israelitas restantes para a cidade de Davi, Ezequias podia estar alimentando a visão messiânica de
Isaías.
Se de fato existiam, tais esperanças se esvaeceram definitivamente em 722 a.C., quando, após uma revolta
frustrada contra seus dominadores, Samaria foi derrotada e destruída por Salmanasar V. O Reino de Israel
tornou-se a província assíria de Samerina. Os vencedores deportaram para a Assíria cerca de 27 mil israelitas,
que simplesmente desapareceram, e os substituíram por gente de Babilônia, Cuta, Ava, Emat e Sefarvaim, que
passou a adorar Javé, o deus de seu novo país, sem renunciar a suas próprias divindades. A partir de então,
o nome Israel já não designava uma região geográfica e sobreviveu em Judá como um termo puramente
cultual. Nem todos os israelitas, no entanto, foram deportados. Alguns permaneceram em suas velhas cidades
e aldeias e, com a ajuda dos novos colonos, tentaram reconstruir sua terra devastada. Outros provavelmente
se refugiaram em Judá, estabelecendo-se em Jerusalém e em seus arredores. Levaram com eles ideias que
durante algum tempo devem ter sido populares no norte e que influenciariam significativamente a ideologia
de Jerusalém.
Jerusalém na época do primeiro templo
1000-586 a.C.

Foi, talvez, em função de tamanho influxo do antigo Israel que Jerusalém se expandiu, triplicando ou
quadruplicando de tamanho no final do século VIII a.C. Surgiram dois novos bairros: um na Colina
Ocidental, fronteira ao Templo, que recebeu o nome de Mishneh — Segunda Cidade —; e o outro no vale
do Tiropeon, que se chamou Makhtesh — a Depressão. Sargão II, o novo soberano assírio, adotou em
relação a seus vassalos uma política mais liberal, que conferiu a Jerusalém privilégios especiais e vantagens
econômicas. No entanto, em vez de aprender alguma coisa com o destino do reino setentrional, Ezequias
aparentemente deixou a prosperidade subir-lhe à cabeça. Quando Sargão morreu, em 705 a.C., Jerusalém
estava no centro de uma nova coalizão de vassalos descontentes que esperavam derrubar o jugo dos assírios:
os reis de Tiro e Ascalon uniram-se a Ezequias, e o faraó prometeu sua ajuda. Outra coalizão de rebeldes se
formou na Mesopotâmia, sob a liderança de Merodac-Baladan, rei da Babilônia, que mandou seus emissários
a Jerusalém com a incumbência de inspecionar os depósitos e fortificações da cidade. Ezequias preparou-se
para a guerra cuidadosamente. Aprimorou o abastecimento de água, escavando na rocha um túnel com 510
metros de comprimento, que ia desde a fonte de Gion até a piscina de Siloé. Também construiu uma nova
muralha para proteger esse tanque e, talvez, o Mishneh. Sua capacidade bélica inspirou-lhe um orgulho que
estava muito longe do espírito de “pobreza”.
Ezequias logo percebeu a loucura de sua arrogância. Jerusalém não tinha condições de resistir ao poderio
assírio. Depois de reprimir as revoltas na Babilônia e em outras partes da Mesopotâmia, Senaquerib, o novo
soberano da Assíria, dirigiu-se para o oeste. O Egito não enviou tropas, a Transjordânia e a Fenícia caíram
como pedras de dominó, e por fim os soldados inimigos sitiaram Jerusalém. Tentando evitar o desastre,
Ezequias enviou presentes e tributos a Senaquerib. O profeta Miqueias, discípulo de Isaías, previu que em
breve Jerusalém se reduziria a um monte de escombros e Sião se assemelharia a um campo lavrado.30 Isaías,
porém, repetia que nem tudo estava perdido: Javé, a fortaleza de Sião, protegeria a cidade. A diplomacia e
os preparativos militares realmente se revelaram inúteis, mas a presença de Javé rechaçaria o inimigo.31 E,
contrariando todas as possibilidades, as predições de Isaías se cumpriram. Não se sabe ao certo o que
aconteceu. O Cronista apenas diz que Javé enviou seu “anjo” para destruir o exército assírio e Senaquerib se
viu obrigado a bater em retirada.32 A explicação mais razoável é que uma peste dizimou os adversários,
entretanto os fatos prosaicos não interessavam aos jerosolimitas, que naturalmente viram sua salvação como
um milagre. Javé realmente se revelou um guerreiro poderoso, que salvou seu povo, como o culto sempre
proclamara.
Jerusalém e Judá
depois de 722 a.C.

Esse acontecimento extraordinário teve um efeito fatal sobre a política de Jerusalém. No passado, reis
como Roboão e Asa recorreram à diplomacia natural para afastar os inimigos. Não acreditavam que o culto
de Javé lhes permitisse renunciar à cautela; ao contrário, tinham o dever de lutar com todas as armas a seu
alcance, unindo seus esforços à força titânica do Senhor. As gerações posteriores, todavia, confiavam na
inexpugnabilidade de Jerusalém e na salvação miraculosa — uma forma de religiosidade que reduz a
espiritualidade à magia. Ezequias foi saudado como herói após a retirada de Senaquerib, mas sua
imprudência levara o país à beira da ruína. Nos anais assírios consta que Senaquerib saqueou 46 cidades
fortificadas e inúmeras aldeias de Judá; grande parte da população foi deportada, e Ezequias perdeu quase
todo o seu território. Mais uma vez, Jerusalém se reduziu a uma pequena cidade-estado. Um espinhoso
legado para Manassés, que subiu ao trono em 698 a.C., ainda menino, e reinou durante 55 anos. Os autores
bíblicos o consideram o pior monarca que Jerusalém já teve. Para distanciar-se de Ezequias, ele adotou a
política religiosa oposta à do pai, procurando maior integração de Judá na região e abandonando um
particularismo perigoso. Erigiu altares a Baal e restabeleceu os bamoth no campo. Instituiu a prática do
sacrifício humano no vale de Hinom, marcando o local com o estigma do horror. No Templo,
possivelmente no próprio Devir, instalou uma efígie de Asera e construiu no pátio casas para as prostitutas
sagradas. Agora Sião cultuava a fertilidade de Asera, mas também tinha altares dedicados a outras divindades
astrais.33 Tais medidas, aceitáveis para alguns, naturalmente escandalizaram os javistas mais fervorosos. O
profeta Oseias nos informa que o culto da fertilidade de Baal se difundira no reino setentrional antes de 722
a.C. Contudo, fazia mais de 270 anos que Javé era o Elyon de Jerusalém, e, para os profetas que prediziam
punições terríveis, sua destronização constituía flagrante apostasia e grosseira ingratidão pela salvação de 701
a.C. Manassés provavelmente considerava essencial apaziguar a Assíria e abjurar o chauvinismo javista de seu
pai. Seu longo reinado deu a Judá tempo de recuperar-se e reaver parte do território que Ezequias havia
perdido.
Seus críticos mais severos foram provavelmente os reformadores deuteronomistas, que durante seu reinado
desenvolveram uma nova modalidade de javismo e viam com desconfiança o culto de Sião. É bem possível
que provinham do reino setentrional e partiram para Jerusalém após a catástrofe de 722 a.C.; que
testemunharam a destruição dos velhos templos de Israel pelos assírios e já não acreditavam que um
santuário erguido pelo homem conseguisse estabelecer uma ligação entre o céu e a terra e salvar o povo de
seus inimigos. Na Era Axial, o sagrado constituía, para muita gente, uma realidade cada vez mais distante:
um novo abismo se abrira entre o céu e a terra. Os deuteronomistas achavam inconcebível que Deus
habitasse um edifício humano. Ao descrever a dedicação do Templo por Salomão, D colocou nos lábios do
rei palavras que abalavam a própria base do culto de Sião. “Todavia Deus realmente morará com os homens
na terra?”, Salomão pergunta, incrédulo. “Ora, se os céus e seus próprios céus não te podem conter, muito
menos esta casa que edifiquei!”34 Deus morava no céu, e apenas seu “nome” — uma sombra dele mesmo —
estava presente em nosso mundo. Os deuteronomistas consideravam o culto de Sião muito preso à mitologia
cananeia. Queriam uma religião fundamentada na história, não em narrativas simbolistas sem base em fatos.
Sob muitos aspectos estão mais próximos de nós, ocidentais modernos. Acreditavam, por exemplo, que Israel
tinha direito à terra de Canaã não porque Javé estava entronizado no monte Sião, e sim porque Josué a
conquistara com a ajuda de Deus e a força das armas. Enfatizavam que a festa de Sucot celebrava apenas a
colheita, não a entronização de Javé no monte Sião.35
Principalmente queriam que os israelitas adorassem apenas Javé e rejeitassem todos os outros deuses. Os
profetas do norte, como Elias e Oseias, pregaram essa mensagem, mas desde a época de Salomão existia em
Jerusalém uma tradição de sincretismo. Para os deuteronomistas, a política de Manassés foi a gota d’água.
Eles acreditavam que na época do Êxodo os israelitas se comprometeram a cultuar apenas Javé e no capítulo
24 do Livro de Josué mostram que ratificaram formalmente essa escolha, abandonando todas as divindades
estrangeiras. Sem embargo, os deuteronomistas ainda não eram monoteístas: acreditavam na existência de
outros deuses, porém achavam que Israel fora chamado a venerar unicamente Javé.36
Vimos que a liturgia do Templo de Jerusalém já levara algumas pessoas a esse estágio, pois proclamava
que só Javé era rei e superior a outras divindades. Os deuteronomistas, no entanto, consideravam falho e
falso o culto de Sião. Não pretendiam abolir os templos, fundamentais para a religião no mundo antigo —
até então devia ser impossível imaginar a vida sem eles. Apenas propunham um santuário único, que pudesse
ser fiscalizado de perto para evitar que elementos estrangeiros se imiscuíssem no culto. A princípio talvez
tivessem em mente Siquém ou Betel, mas a partir de 722 a.C. o Templo de Jerusalém era o único capaz de
tornar-se o santuário central, de modo que tiveram de conformar-se. Mesmo assim, quando descreveram
Moisés determinando a construção desse santuário na Terra Prometida, tomaram o cuidado de evitar a
menção de “Sião” ou “Jerusalém” e o fizeram referir-se vagamente “ao lugar que Javé, vosso deus, escolher
para colocar seu nome”.37
Não havia possibilidade de seu ideal concretizar-se sob Manassés, mas sua oportunidade surgiu
inesperadamente no reinado de Josias (640-09 a.C.). O momento era propício. Em todo o Oriente Próximo
percebia-se vagamente que a velha ordem chegava ao fim. A experiência de viver nos gigantescos impérios da
Assíria e de sua rival, a Babilônia, dera às pessoas uma perspectiva global mais ampla que nunca, e o avanço
tecnológico lhes proporcionara maior controle sobre seu ambiente. A visão de mundo já não podia ser a
mesma do passado, e inevitavelmente as ideias religiosas também mudaram. Em outras partes do planeta
também se tornou necessário reformar o paganismo. Durante a Era Axial, o taoísmo, o confucionismo, o
hinduísmo, o budismo e finalmente o racionalismo grego substituíram antigos credos, e um movimento
semelhante ocorreu em Judá. Entretanto, uma nostalgia de fin de siècle fazia as populações suspirarem, do
Egito à Mesopotâmia, por um passado idealizado. Nesse contexto os deuteronomistas veem como a “Idade de
Ouro” de Israel o Êxodo e a época dos Juízes — um passado em grande parte fictício, porém mais atraente
que as confusões de seu presente.
Ainda nesse contexto, Josias decidiu restaurar o Templo de Salomão, que precisava muito de uma reforma,
depois de trezentos anos. Durante as obras, o sumo sacerdote Helcias encontrou um pergaminho que talvez
fosse parte do texto que conhecemos como o Livro do Deuteronômio. Quando ouviu a leitura do
pergaminho, Josias horrorizou-se ao descobrir que Deus não favoreceria Israel incondicionalmente em função
de sua escolha eterna da Casa de Davi; seu favor dependia da observância da Lei mosaica.38 Já não bastava a
presença de Javé em seu Templo. A reação de Josias a essa nova teologia mostra que a vida religiosa de
Judá não girava em torno da Lei. O culto e o governo do rei, o Messias de Javé, constituíram até então a
base do Estado de Judá: agora a Torá, a Lei de Moisés, devia tornar-se a lei do país.
Assim, Josias deu início a sua reforma, que, como todas as outras, consistiu em mais uma tentativa de
recriar o passado. Primeiro, chamou ao Templo os anciãos de Judá para a renovação da antiga aliança e fez
o povo jurar que renunciava aos deuses estrangeiros para devotar-se unicamente a Javé. Depois, tratou de
expurgar os cultos, e a narrativa de D mostra a ubiquidade desses cultos “pagãos” em Jerusalém. Todos os
objetos utilizados na adoração de Baal, de Asera e das divindades astrais foram removidos da cidade e
queimados no vale do Cedron. As matzevot e as casas das prostitutas sagradas, dedicadas a Asera, também
desapareceram:
Desconsagrou a fornalha do vale do Hinom, para que ninguém pudesse fazer seu filho ou sua filha passar
pelo fogo em honra a Moloc. Retirou os cavalos que os reis de Judá dedicaram ao sol na entrada do
Templo [...] Destruiu também os altares que os reis de Judá construíram no telhado, bem como os que
Manassés erigiu nos dois átrios do Templo [...] Desconsagrou os bamoth que havia defronte Jerusalém, ao
sul do monte das Oliveiras, os quais Salomão, rei de Israel, erguera para Astarte, a abominação dos
sidônios, para Camos, a abominação dos moabitas, e para Moloc, a abominação dos amonitas. Também
destruiu as colunas sagradas, derrubou os mastros sagrados e cobriu com ossos humanos os locais onde
haviam estado.39
É alarmante a violência contida nesse catálogo de destruição. Ela assinala o momento em que Israel começou
a abominar a “idolatria”, que tanto desgostava e enfurecia profetas, sábios e salmistas. Talvez se deva ao fato
de os israelitas sentirem por esses velhos símbolos religiosos uma atração tão forte que não conseguiram
abandoná-los pacificamente, como ocorreria na Índia, com a reforma do velho paganismo empreendida por
Buda. No entanto, a “idolatria” faz parte da busca religiosa, porque o sagrado nunca se manifesta à
humanidade diretamente, mas sempre através de mitos, objetos, edifícios, pessoas, ideias e doutrinas humanas.
Todos esses símbolos do divino são inadequados, porque apontam uma realidade inefável e maior do que os
seres humanos conseguem imaginar. A história da religião mostra, contudo, que, quando as circunstâncias de
um povo mudam, as velhas hierofanias deixam de funcionar. Já não revelam o divino. Podem até converter-se
em obstáculos para a experiência religiosa. Pode ocorrer também que os devotos confundam o símbolo — a
pedra, a árvore, a doutrina — com a realidade sagrada.
Judá viveu essa transição religiosa na época de Josias. Durante trezentos anos os outros símbolos religiosos
de Canaã proporcionaram amparo espiritual aos jerosolimitas, mas agora lhes pareciam tão imperfeitos que
chegavam a ser pecaminosos. Em vez de enxergar além das matzevot a misteriosa realidade que elas
simbolizavam, Josias e Helcias viam apenas uma obscenidade. A mesma tendência se evidenciaria nas tradições
monoteístas posteriores. Essa rejeição expressou-se com especial ferocidade nos territórios setentrionais, que
no passado formavam o Reino de Israel. A Assíria agora estava em decadência e já não controlava sua
província de Samerina. A campanha de Josias nessa região provavelmente fazia parte de um projeto de
reconquista, de mais uma tentativa de restaurar o Reino Unido de Davi. Aqui, porém, sua reforma se tornou
selvagem e brutal. Josias demoliu o antigo altar de Betel, que o “apóstata” Jeroboão transformara no
santuário real de Israel. Depois de despedaçar suas pedras e reduzi-las a pó, o soberano de Judá profanou os
bamoth exumando corpos de um cemitério próximo e queimando os ossos no lugar do altar. Repetiu esse ato
em todos os antigos sítios cultuais de Israel e eliminou seus sacerdotes, cujos ossos também foram queimados
em seus próprios altares. Essa crueldade, essa intolerância, esse fanatismo estão muito longe da cortesia de
Abraão para com outras tradições religiosas. Tampouco há sinal daquele respeito absoluto pelos direitos
sagrados dos outros, que para os profetas constituía a prova de fogo da verdadeira religiosidade. Esse é o
espírito que os historiadores deuteronomistas enalteceram em Josué, quando em nome de Deus massacrou —
assim dizem — os predecessores dos israelitas em Canaã. Infelizmente esse espírito passaria a integrar a
atmosfera espiritual de Jerusalém.
Pois a reforma de Josias foi também uma campanha em prol de Sião. Ele tentava concretizar o ideal
deuteronômico, transformando Jerusalém no único templo de Javé em Israel e Judá. Para preservar essa
santidade central, destruiu e profanou todos os outros lugares santos. Sua especial veemência em Betel deveu-
se, em parte, ao fato de esse templo real ter tido a ousadia de desafiar Jerusalém. Os sacerdotes do norte
foram eliminados, mas os do sul tiveram simplesmente de deixar seus bamoth destruídos e instalar-se em
Jerusalém, onde assumiram os escalões mais baixos da hierarquia sacerdotal. A exaltação de Jerusalém inspirou
destruição, morte, profanação e desapropriação. Enquanto os profetas insistiam em que a misericórdia era um
complemento essencial do culto, a reforma de Josias priorizou a honra e a integridade da cidade santa.
A reforma em si não perdurou, mas seu espírito permaneceu. Em 609 a.C., Josias tentou conquistar plena
independência política, atacando o faraó Necao II, que procurava impor a presença egípcia no país. Os dois
exércitos se defrontaram em Meguido, e no primeiro embate o rei de Judá caiu morto. Necao imediatamente
reforçou seu domínio, depondo Joacaz, filho de Josias, escolhido pela aristocracia local em detrimento de seu
irmão Joaquim. No entanto, os egípcios não conseguiram manter seu controle sobre Jerusalém. Em 605 a.C.,
Nabucodonosor, rei da Babilônia, derrotou a Assíria e o Egito, e seu reino se tornou a maior potência do
Oriente Próximo. Como os outros estados da região, Judá converteu-se em vassalo da Babilônia, e a
princípio parecia que poderia prosperar sob esse novo império. Joaquim estava tão confiante que construiu
um palácio esplêndido no bairro de Mishneh. Não demorou, contudo, para um fatal chauvinismo retornar a
Jerusalém. O rei transferiu sua lealdade para os egípcios, que tentavam recuperar terreno, e, assim, desafiou o
poderio babilônio. Os profetas garantiram ao povo que a presença de Javé em Sião protegeria Jerusalém
contra Nabucodonosor, assim como a protegera contra Senaquerib. Coube a Jeremias, filho de Helcias,
liderar os que se opunham a essa tendência suicida. Ele proclamou que Javé destruiria Jerusalém, assim como
destruíra Silo, e essa blasfêmia lhe valeu a condenação à morte. Absolvido, continuou percorrendo as ruas da
cidade, anunciando a catástrofe iminente. Dizia que os jerosolimitas viam Sião como um fetiche e repetiam o
refrão “É este o Templo de Javé!” como se fosse uma fórmula mágica. 40 Javé os protegeria se renunciassem
aos deuses estrangeiros, observassem as leis da compaixão, fossem justos uns com os outros e se recusassem a
explorar o forasteiro, o órfão, a viúva.
Antes que Nabucodonosor chegasse para punir o vassalo rebelde, Joaquim morreu, e seu filho Joaquin
subiu ao trono. Logo o exército babilônio cercou Jerusalém, que se rendeu três meses depois, em 597 a.C. A
rendição evitou execuções em massa e destruição. Nabucodonosor contentou-se com saquear o Templo e
deportar os líderes locais. O deuteronomista nos conta que só a população mais pobre permaneceu na
cidade. O rei e seus burocratas foram levados para a Babilônia, juntamente com dez mil membros da
aristocracia e do exército, com todos os ferreiros e metalurgistas.41 Os antigos impérios costumavam agir
dessa forma para evitar futuras rebeliões e impedir a fabricação de armas. No entanto, os jerosolimitas ainda
não haviam aprendido a lição. Nabucodonosor colocou no trono Sedecias, filho de Josias e, portanto, tio de
Joaquin. Oito anos mais tarde, Sedecias se insurgiu contra a Babilônia, que dessa vez não teve dó nem
piedade. Suas tropas sitiaram Jerusalém durante dezoito meses e em agosto de 586 a.C. transpuseram os
muros da cidade. O rei e seu exército tentaram escapar, mas caíram prisioneiros nas proximidades de Jericó.
Depois de assistir compulsoriamente à execução de seus filhos, Sedecias seguiu para a Babilônia, vendado e
acorrentado. Então o comandante inimigo deu início à destruição sistemática da cidade, queimando o
Templo de Salomão, o palácio real e todas as casas. Os vencedores levaram para sua terra todos os preciosos
pertences do Templo, porém não há menção da Arca da Aliança, que desapareceu para sempre; mais tarde
surgiriam muitas conjecturas acerca de seu paradeiro.42 No mundo antigo a destruição de um templo real
equivalia à destruição do Estado, que não conseguia sobreviver sem seu “centro” de ligação com o céu.
Marduc derrotara Javé, e o Reino de Judá cessou de existir. Outras 823 pessoas foram deportadas em três
etapas, ficando para trás apenas os operários, os aldeões e os lavradores.
Jeremias não estava entre os deportados, talvez por causa de sua posição pró-babilônios. Profeta da
destruição, tornou-se o consolador de seu povo. Era perfeitamente possível servir a Javé em solo estrangeiro,
escreveu aos exilados: deviam estabelecer-se num lugar, plantar hortas, construir casas e contribuir para a vida
de sua nova terra.43 E não lamentar a perda da Arca, que “não lhes virá ao pensamento, nem se lembrarão
dela, nem será visitada, nem se fará outra”.44 Um dia os exilados voltariam a comprar terras “nos arredores
de Jerusalém, nas cidades de Judá, nas colinas, nas planícies e no Negueb”.45
A destruição do Templo teria significado o fim de Javé. Ele não conseguira proteger sua cidade; ele não
era a fortaleza segura de Sião. Jerusalém se reduzira a um deserto. As forças do caos triunfaram, e a
promessa do culto de Sião não passara de ilusão. Contudo, mesmo em ruínas, Jerusalém se revelou um
símbolo religioso capaz de gerar esperança para o futuro.
5. EXÍLIO E RETORNO

A DESTRUIÇÃO DE JERUSALÉM e seu Templo foi o fim do mundo. Javé abandonou sua cidade, e Jerusalém
se tornou um deserto, como o caos informe que precedera a criação. A destruição constituiu um ato de
descriação, como o Dilúvio que devastara o mundo na época de Noé. Conforme a predição de Jeremias, a
paisagem desolada, da qual até as aves se retiraram, parecia anunciar a falência da ordem cósmica: o Sol e a
Lua não emitiam luz, as montanhas tremiam e na terra não havia ninguém.1 Os poetas evocavam com
horror a lembrança das hostes babilônias invadindo os pátios do Templo e o fragor de seus machados
arrebentando as portas de cedro.2 Tinham sede de vingança e ansiavam por ver as crianças babilônias
despedaçadas contra as pedras.3 O povo de Judá se tornara objeto de escárnio, e os gentios perguntavam, em
tom de troça: “Onde está seu deus?”.4 Sem templo, não havia possibilidade de estabelecer contato com o
sagrado. Javé desaparecera, Jerusalém se reduzira a um monte de escombros e o povo de Deus estava
disperso em território estrangeiro.
Após a devastação de uma cidade, no Oriente Próximo, os sobreviventes costumavam sentar-se entre as
ruínas para entoar nênias semelhantes às que eram cantadas no funeral de um ente querido. Parece que em
Judá e Israel pranteavam Jerusalém duas vezes por ano: no nono dia do mês de Av, aniversário da destruição,
e na solenidade de Sucot, aniversário da dedicação do Templo. Sabe-se que numa ocasião oitenta peregrinos
de cabeça raspada e vestes rotas partiram de Siquém, Silo e Samaria para a cidade aniquilada.5 Algumas
dessas nênias, que os anciãos entoavam sentados no chão, na postura habitual do luto, vestidos de serapilheira
e com a cabeça coberta de cinzas, encontram-se, talvez, no Livro das Lamentações. Os poemas nos fornecem
um quadro lúgubre: praças desertas, muros destruídos, portas arrasadas, rondadas por chacais. Entretanto, as
Lamentações também evocam os efeitos psicológicos da catástrofe, que podem tornar os sobreviventes
abomináveis para si mesmos. Os que morreram em 586 a.C. tiveram sorte: agora, pessoas criadas no luxo
buscavam comida nos montes de lixo; mulheres compassivas matavam e cozinhavam os próprios filhos; e
belos rapazes vagavam pelas ruas com o rosto enegrecido e o corpo esquelético.6 Acima de tudo, havia um
terrível sentimento de vergonha. Jerusalém, a cidade santa, tornara-se impura. Os que antes a admiravam
agora a olhavam com desprezo, “enquanto ela mesma geme e desvia o rosto”, as vestes empapadas de
mênstruo.7 Tamanho desespero não se deve só aos babilônios; os autores das Lamentações sabiam que Javé
destruíra a cidade por causa dos pecados do povo de Israel.
Jerusalém não era mais habitável, e a região situada ao sul sofrera tanta devastação que não se prestava ao
povoamento. Os edomitas, que lançaram as bases do futuro Reino de Idumeia, dominavam o extremo sul do
antigo Reino de Judá. A maioria dos sobreviventes de 586 a.C. migrou para Samerina ou se estabeleceu em
Masfa, Gabaon e Betel. Os babilônios entregaram o governo da região a Godolias, neto do secretário do rei
Josias, que, instalado em Masfa, procurou restabelecer a normalidade. Na tentativa de reconstruir o país, os
babilônios deram as terras dos deportados aos remanescentes, que antes faziam parte da população mais
pobre e mais explorada de Judá. Não conquistaram, porém, a lealdade dos vencidos. Em 582 a.C., alguns
oficiais do exército de Judá que haviam fugido para a Transjordânia retornaram, e seu líder, Ismael, da Casa
de Davi, matou Godolias e muitos dos que o seguiam. No entanto, o golpe fracassou, pois não contava com
o apoio popular, e Ismael refugiou-se em Amon. Grande parte dos homens politicamente mais ativos
também emigraram para o Egito, escapando à fúria dos babilônios. Não se sabe o que ocorreu em Jerusalém
e Judá nos cinquenta anos seguintes.
Apesar de estar longe da pátria, os deportados tiveram mais sorte. Não sofriam perseguições, e o rei
Joaquin vivia na corte, mantendo seu título real.8 Estabelecidos em alguns dos bairros mais aprazíveis e
importantes da Babilônia e de seus arredores, perto do “grande canal” de Cobar, que transportava água do
Eufrates para a cidade, provavelmente traduziram para o hebraico topônimos babilônios: alguns, por exemplo,
moravam num bairro chamado Tel Aviv, Colina da Primavera. Seguindo o conselho de Jeremias, os exilados
integraram-se bem na sociedade local. Podiam reunir-se livremente, comprar terras e estabelecer-se como
negociantes. Muitos logo se tornaram mercadores prósperos e respeitados; alguns receberam cargos na corte.
Possivelmente havia entre eles descendentes dos israelitas que foram transferidos para a Babilônia em 722
a.C., pois muitos dos deportados que a Bíblia menciona pertenciam às dez tribos do norte.9
A Babilônia constituiu um choque e um desafio: mais sofisticada e cosmopolita que qualquer cidade de
Canaã, possuía 55 templos e abrigava um universo religioso muito mais complexo que o velho paganismo
cananeu. Alguns de seus mitos, no entanto, não eram estranhos aos exilados. Marduc derrotara Javé, e, agora
que viviam no território do deus vitorioso, muitos israelitas adotaram a crença local. Outros provavelmente
veneravam ao mesmo tempo Javé e divindades babilônias e deram aos filhos nomes como Shameshledin [[O
deus] Shamesh julgará!] e Beliadach [Bel proteja!].10 Outros, contudo, mantiveram-se fiéis a suas antigas
tradições.
Os deuteronomistas deviam sentir-se vingados pela tragédia de 586 a.C.: estavam certos desde o início. A
velha mitologia cananeia que incentivara os filhos de Judá a acreditar na inexpugnabilidade de Sião não
passara de ilusão. Já os deuteronomistas exortavam seus compatriotas a concentrar-se na Lei de Moisés e na
aliança que Javé fizera com o povo de Israel antes de se ouvir falar em Jerusalém. A Lei evitou que muitos
exilados perdessem sua identidade no cadinho da Babilônia. Nesse período eles codificaram regras e práticas
que os diferenciavam de seus vizinhos pagãos. Circuncidaram seus filhos varões, abstiveram-se de trabalhar no
sábado e adotaram leis alimentares especiais que os caracterizavam como o povo da aliança. Tinham de ser
um povo “santo”, tão distinto como seu Deus.
Outros, porém, encontraram consolo na velha mitologia, os antigos símbolos e lendas de Sião parecendo-
lhes mais relacionados com sua situação. A história das religiões mostra que em épocas de crise e de
convulsão social as pessoas se voltam mais prontamente para o mito que para as formas mais racionais da fé.
Como uma espécie de psicologia, o mito consegue penetrar mais fundo que o discurso cerebral e tocar a
causa obscura do sofrimento nas esferas mais íntimas de nosso ser. Mesmo hoje vemos que o exílio vai muito
além da simples mudança de endereço. É também um deslocamento espiritual. Tendo perdido seu lugar no
mundo, os exilados podem sentir-se à deriva num universo que de repente se tornou estranho. Sem o ponto
fixo da “pátria”, uma desorientação fundamental faz tudo parecer relativo e sem sentido. Separadas de sua
cultura e de sua identidade, as pessoas podem ter a impressão de que estão de certo modo murchando e
tornando-se insubstanciais. Assim, o antropólogo francês R. P. Trilles registra que, tendo sido obrigados a
deixar sua terra ancestral, os pigmeus do Gabão achavam que todo o cosmo se tumultuara. Seu criador
estava zangado com eles, o mundo se tornara um lugar escuro — “noite após noite” — e seu exílio também
banira os espíritos de seus ancestrais, que agora vagavam, perdidos para sempre, em reinos distantes,
inacessíveis.
Estão lá embaixo, os espíritos? Estão lá?
Veem as oferendas que lhes entregamos?
O amanhã é desolação e vazio.
Pois o Criador já não se encontra entre nós,
Já não é o anfitrião sentado conosco ao pé do fogo.11
A perda da pátria equivalia à ruptura do elo com o céu, o qual tornava a vida suportável. No século VI
a.C., os exilados de Judá expressaram essa ideia dizendo que seu mundo acabara.
Os que desejavam manter-se fiéis ao javismo e às tradições de seus ancestrais depararam com um problema
sério. Quando perguntavam: “Como entoaremos os cânticos de Javé em solo estrangeiro?”,12 os exilados
estavam não só expressando sua saudade da pátria, mas também enfrentando um dilema teológico. Hoje em
dia os religiosos acreditam que podem estabelecer contato com seu Deus em qualquer lugar do mundo: no
campo, no supermercado, na igreja. Para os antigos, todavia, a oração tal como a entendemos estava longe
de ser comum. No exílio os judeus adotaram o costume de erguer as mãos, voltando-se na direção de
Jerusalém, e pronunciar palavras de louvor ou de súplica em substituição ao sacrifício, que era a maneira
normal de endereçar-se à divindade. 13 Esse tipo de prece constituía, porém, uma novidade que não deve ter
ocorrido aos primeiros deportados. O desterro ensinou aos judeus a espiritualidade mais interior da Era
Axial. Quando chegaram à Babilônia, em 597 a.C., os primeiros deportados provavelmente se sentiram
afastados da presença de Javé. Não podiam construir um templo para ele na Babilônia, como nós
construímos uma igreja, uma sinagoga ou uma mesquita, porque, de acordo com o ideal deuteronomista, o
único santuário legítimo situava-se em Jerusalém. Como os pigmeus do Gabão, deviam se perguntar se seu
Criador estava de fato com eles na cidade estrangeira. Até então reuniam-se para o culto somente em locais
associados com uma revelação de seu Deus ou com outro tipo de hierofania. Não sabemos, todavia, de
nenhuma teofania de Javé ocorrida na Babilônia.
E de repente Javé apareceu em Tel Aviv. Entre os exilados de 597 a.C. estava o sacerdote Ezequiel, que
durante os cinco primeiros anos na Babilônia viveu sozinho em sua casa, sem falar com ninguém. No fim
desse período, foi literalmente derrubado por uma visão que o deixou zonzo por uma semana inteira. Uma
nuvem de luz, procedente do norte, envolvia um carro enorme, conduzido por quatro querubins, estranhos
animais semelhantes aos karibu esculpidos nas portas do palácio babilônio. Ao tentar descrever essa aparição,
Ezequiel se esforçou para mostrar que ela ultrapassava as palavras e os conceitos normais. O que viu foi
“ u m a semelhança de trono”, sobre a qual havia “uma semelhança de homem”. Na densa confusão de
tempestade, fogo e fragor, sabia que viu “a semelhança da glória [kavod] de Javé”.14 Como Isaías, Ezequiel
vislumbrou a Realidade extraordinária que está por trás dos símbolos do Templo. A Arca da Aliança — o
trono terrestre de Javé — ainda estava no Templo de Jerusalém, mas sua “glória” chegara à Babilônia. Era
de fato uma “revelação”, um desvelamento: a grande cortina que separava o Hekhal do Devir representava o
limite extremo da percepção humana. Agora esse véu fora afastado, embora Ezequiel tivesse o cuidado de
distinguir entre o próprio Javé e sua “glória”, uma manifestação de sua Presença que tornava a inefável
realidade do sagrado apreensível aos seres humanos. A visão constituiu uma surpreendente reformulação de
uma teologia mais antiga. No início, Deus era móvel; aparecera a seu povo descendo do Sinai a Canaã nas
asas dos querubins. Agora, os querubins o levaram a seu povo no exílio. Ele não estava confinado nem ao
Templo, nem à Terra Prometida, como muitos deuses pagãos indissoluvelmente associados a um território
específico.
Ademais, Javé escolheu ficar com os deportados, não com os judeus que ainda habitavam Jerusalém.
Ezequiel teve sua visão por volta de 592 a.C., cerca de seis anos antes da destruição da cidade por
Nabucodonosor; contudo, numa visão posterior constatou que Jerusalém estava condenada porque, apesar do
desastre iminente, seus habitantes ainda adoravam outras divindades e esqueciam os termos da aliança com
Javé. Um dia, Ezequiel se encontrava sentado à porta de sua casa, em Tel Aviv, com os anciãos exilados de
Judá, quando “a mão do Senhor” o agarrou e o levou, em espírito, a Jerusalém. Lá fez uma visita guiada ao
Templo e horrorizou-se ao presenciar a veneração a deuses estrangeiros no recinto sagrado. Essas
“iniquidades” afastaram Javé de sua casa, disseram-lhe, e Ezequiel viu os querubins abrirem as asas e as rodas
do grande carro-trono começarem a mover-se, transportando a “glória do Senhor” para fora, desaparecendo
por sobre o monte das Oliveiras, a leste da cidade. Ele decidira partir para a comunidade dos exilados e,
agora que não vivia mais em Sião, a destruição de Jerusalém era apenas uma questão de tempo.15
No entanto, Javé também prometeu ao profeta que um dia voltaria para sua cidade, refazendo o mesmo
trajeto, por sobre o monte das Oliveiras, e restabeleceria sua morada no monte Sião. Haveria um novo
êxodo, quando os exilados esparsos regressariam à pátria, e uma nova criação, quando a terra deserta e
desolada se tornaria “como o Jardim do Éden”. Essa seria uma época de cura e integração: Judá e Israel se
reuniriam sob um rei davídico e, como no Éden, Javé viveria entre seu povo.16 A separação, a hostilidade, a
anomia acabariam, e os homens recuperariam aquela plenitude original que tanto desejavam. Jerusalém era
fundamental para essa visão. Fazia cerca de catorze anos que fora destruída por Nabucodonosor, quando
Ezequiel ou um de seus discípulos viu “numa montanha muito alta” uma cidade chamada Yahweh Sham:
“Javé está lá”.17 Tratava-se de um paraíso terrestre, um lugar de paz e fertilidade no velho sentido. Assim
como a torrente que jorrou no meio do Jardim do Éden e desceu a montanha sagrada para fecundar o resto
do mundo, um rio brotou sob o Templo, deixou o recinto sagrado e levou vida e saúde para o território
circundante. Ao longo de suas margens cresceram árvores “com folhas que jamais caem e frutos que nunca
faltam”, estes servindo “de sustento” e aquelas, “de remédio”.18 Sofrendo a dor da separação e do
deslocamento, os exilados voltaram-se para os antigos mitos a fim de imaginar um retorno ao lugar onde
deveriam estar.
Ezequiel não estava, porém, simplesmente se apegando ao passado, e sim elaborando uma nova visão para
o futuro. Ao contemplar a cidade de Yahweh Sham, criou uma nova geografia sagrada. O Templo no meio
da cidade constituía uma réplica do Templo de Salomão, então em ruínas. O vestíbulo [Ulam], a sala do
culto [Hekhal] e o Santo dos Santos [Devir] representavam as gradações da santidade: cada área mais sagrada
que a anterior. 19 Como no passado, havia estágios a percorrer para chegar ao sagrado e nem todos podiam
entrar nos círculos interiores da santidade. Esse conceito seria essencial à visão de Ezequiel e constituiria a
base de seu novo mapa do mundo ideal. O Templo diferia daquele de Salomão em dois aspectos
importantes: não se situava próximo ao palácio real e era cercado por dois pátios murados.20 Era preciso
maior cuidado ao separar do mundo profano a santidade de Javé, que estava se tornando uma realidade mais
transcendente, mais radicalmente afastada [kaddosh] do resto da existência terrena. J, o primeiro autor bíblico,
imaginara Javé sentado e falando com Abraão como um amigo; já Ezequiel, um homem da Era Axial, via o
sagrado como um mistério grandioso demais para a humanidade. No entanto, apesar de sua “alteridade”
essencial, a realidade divina ainda era o centro do mundo humano, a fonte da vida e da potência,
simbolizada na visão do profeta pelo rio paradisíaco. Agora Ezequiel descreve a Terra Prometida em termos
que não têm nenhuma relação com sua geografia física. Ao contrário de Jerusalém, por exemplo, Yahweh
Sham situa-se no próprio centro do país, que é muito maior que os reinos de Israel e Judá, estendendo-se
ao norte até Palmira e a oeste até a Torrente do Egito. 21 Interessa-lhe não fazer uma descrição literal de
sua pátria, e sim criar uma imagem de uma realidade espiritual. O poder divino se irradia a partir da cidade
de Yahweh Sham para a terra e o povo de Israel numa série de círculos concêntricos, cada zona diluindo
essa santidade à medida que se afasta da fonte. O Templo é o núcleo da realidade do mundo; a zona
seguinte é a cidade que o circunda. Em torno de ambos existe uma área especial, restrita ao rei, aos
sacerdotes e aos levitas e mais santa que o restante desse território sagrado, onde habitam os demais
indivíduos das doze tribos de Israel. Por fim, fora do âmbito dessa santidade, há o resto do mundo, ocupado
pelas outras nações [Goim].22 Assim como Deus se destaca radicalmente de todos os outros seres, também o
povo santo de Israel, agrupado a seu redor, deve participar de sua santa segregação e isolar-se do mundo
pagão. Esse era o tipo de vida que alguns exilados tentavam levar na Babilônia.
Não se sabe se para Ezequiel essa visão correspondia a uma planta da Jerusalém terrestre — o que,
evidentemente, seria uma utopia: nessa época a cidade, o Templo e grande parte da terra estavam em ruínas
e parecia não haver esperança de reconstrução. O modelo do profeta talvez fosse um mandala, um objeto de
contemplação. Quando lhe mostra esse novo templo, seu misterioso guia não lhe diz que o próximo Templo
deveria ser construído de tal forma. A visão tem outra função, muito diferente:
Filho do homem, descreve este Templo à Casa de Israel, para que se envergonhe de suas iniquidades.
Manda que elaborem a planta e, se estão envergonhados de tudo o que fizeram, mostra-lhes o desenho e o
plano do Templo, suas saídas e entradas, seu formato, seu arranjo, o projeto inteiro e todos os seus
princípios.23
Se queriam viver no exílio como em Jerusalém, com Javé entre eles, os judeus tinham de formar, por assim
dizer, uma zona sagrada. Não deviam confraternizar-se com os Goim, nem adorar Marduc e outros falsos
deuses. Tinham de constituir-se numa casa para o Deus que escolhera morar entre eles. Meditando sobre
esse mapa cultual idealizado, onde toda pessoa e todo objeto tinham seu lugar, entenderiam a natureza e o
significado da santidade. Precisavam encontrar um centro para suas vidas e uma nova orientação. Sentindo-se
frequentemente marginalizados na Babilônia, decerto se confortavam ao constatar que estavam mais próximos
do centro da realidade que seus vizinhos pagãos, que nem sequer figuravam no mapa. Para um povo
desterrado, essa nova descrição de sua verdadeira localização devia ser extremamente benéfica.
Podemos ver um pouco mais claramente o que esse estilo de vida santo envolvia examinando os textos
presbiterais (“P”), que também começaram a ser escritos no exílio. Eles figuram em todo o Pentateuco, mas
são particularmente evidentes nos livros de Levítico e Números. P reescreveu a história de Israel a partir da
perspectiva sacerdotal e tem muito em comum com Ezequiel, que, cabe lembrar, também era sacerdote. Ao
descrever os israelitas no deserto e ao codificar as leis que Deus lhes dera no monte Sinai, P imaginou uma
hierarquia de zonas de santidade. No centro do acampamento israelita estava o Tabernáculo, a tenda-
santuário que abrigava a Arca da Aliança e a “glória” de Javé. Essa era a parte mais santa, onde só Aarão, o
sumo sacerdote, podia entrar. Contudo, o acampamento também era santo e não podia conter nenhuma
impureza, por causa da Presença em seu meio. Além de seus limites estendia-se o deserto ateu. Para P, assim
como para Ezequiel, Javé era um deus móvel, que, em seu santuário portátil, estava continuamente se
deslocando com seu povo. P nunca menciona Jerusalém. Em parte porque encerra sua narrativa antes de os
israelitas entrarem na Terra Prometida e muito antes de o rei Davi capturar a cidade. Ao contrário dos
deuteronomistas, porém, parece que não imaginou um “lugar” especial onde Javé pudesse colocar seu nome,
não lhe atribuiu uma morada fixa: sua “glória” vai e vem, e seu “lugar” é na comunidade. Para P, os
israelitas se tornaram um povo quando Javé decidiu habitar entre eles. A Presença divina era tão importante
quanto a Lei: Javé transmitiu a Moisés as instruções para a construção do Tabernáculo ao mesmo tempo
que revelou a Torá. Essa visão era igualmente consoladora: garantia aos exilados que Deus estava sempre
com seu povo, mesmo no caos do exílio. Já não se deslocara com eles no ermo do Sinai?
Os sacerdotes de Jerusalém provavelmente sempre tiveram sua própria lei esotérica: a crônica de P
constituiu uma tentativa de popularizá-la e transmiti-la aos leigos. Porque Nabucodonosor destruíra seu velho
mundo, os exilados tinham de construir um mundo novo. A criação era fundamental na visão de P, mas ele
rejeitou os antigos mitos de combate, intimamente relacionados com templos e lugares santos fixos, e
concentrou-se na essência dessas histórias: organizar o caos para criar um cosmo. Em seu relato da criação,
no primeiro capítulo do Gênesis, Javé cria o mundo sem travar nenhuma batalha mortal com Leviatã, o
monstro do mar. Pacificamente separa os elementos do tohu vohu primordial: a noite do dia, a luz da
escuridão, o mar da terra firme. Estabelece fronteiras e confere um lugar específico a cada componente do
cosmo. A mesma separação e a mesma organização criadora estão presentes na Torá descrita por P. Ao
cumprir a ordem de separar o leite da carne em sua alimentação ou o Sabá do resto da semana, os israelitas
estavam imitando os atos criadores de Javé no começo dos tempos. Esse novo tipo de ritual e de imitatio dei
não exigia um templo ou uma liturgia complexa, mas podia ser realizado por homens e mulheres em seu dia
a dia. Através dessa repetição ritual da criação divina eles estavam construindo um mundo novo e
organizando suas vidas transtornadas pelo exílio.
Muitos mandamentos [mitzvoth] se referem a colocar as coisas nos devidos lugares. A antropóloga Mary
Douglas mostrou que os seres e objetos considerados “impuros” no código presbiterial deixaram sua categoria
própria e invadiram outros campos. “Sujo” é algo que está no lugar errado — um deus estrangeiro no
templo de Javé, o mofo nas roupas —, algo que deixou o mundo da natureza e entrou no domínio da
cultura humana. A morte é a maior de todas as impurezas, o lembrete mais dramático da fragilidade da
cultura e de nossa incapacidade de controlar e ordenar o mundo.24 Vivendo num cosmo organizado, os
israelitas construiriam o tipo de mundo que Ezequiel imaginou, centrado em Deus. Em Jerusalém o Templo
lhes dava acesso ao sagrado. Agora os mitzvoth restaurariam a intimidade que Adão e Eva desfrutaram com
Javé quando ele caminhou a seu lado no Éden e permitiriam aos judeus exilados criar um novo lugar santo
que afastaria a confusão e a anomalia do caos. No entanto, P não estava simplesmente preocupado com a
pureza ritual: cruciais para seu Código de Santidade eram os mitzvoth relacionados com a maneira de tratar
as outras pessoas. Junto com as leis sobre devoção e agricultura na Terra Santa, há mandamentos severos
como estes:
Não deveis furtar, mentir ou enganar vosso semelhante [...]
Não deveis pronunciar veredictos injustos. Não sejais parciais para com o pobre, nem vos intimideis
diante do poderoso [...]
Não deveis caluniar vosso povo, nem colocar em perigo a vida de vosso semelhante.
Não odieis vosso irmão em vosso coração [...]
Não deveis exigir vingança, nem ter ressentimento contra os filhos de vosso povo. Deveis amar vosso
semelhante como a vós mesmos.25
Se um estrangeiro vive convosco, em vossa terra, não o molesteis [...] Considerai-o um de vossos
compatriotas e amai-o como a vós mesmos — pois também fostes estrangeiros no Egito.26
A justiça social sempre foi concomitante da devoção a um lugar santo e ao ritual do templo, nos mitos
cananeus, no culto de Sião e nos oráculos dos profetas. P vai além: deve haver não só justiça, como também
amor, e essa compaixão deve estender-se igualmente às pessoas que não pertencem à Casa de Israel. Embora
não figurem no mapa da santidade descrito por Ezequiel, os Goim têm de ser incluídos no âmbito do amor
e da preocupação social de Israel.
Com a lembrança do Templo idealizada no exílio, os sacerdotes adquiriram novo prestígio. Tanto P como
Ezequiel enfatizam seu papel na comunidade. A princípio, não constituíam uma casta em Israel; Davi e
Salomão desempenharam funções sacerdotais. Pouco a pouco, todavia, o culto do Templo e a interpretação
da Lei foram confiados à tribo de Levi, que teria carregado a Arca no deserto. Em Ezequiel, esse quadro se
restringe. Como toleraram a idolatria no Templo, os levitas são rebaixados. No futuro desempenhariam
apenas tarefas servis, como preparar os animais para o sacrifício, cantar em coro e vigiar as portas do
Templo. Só os sacerdotes que eram descendentes diretos de Sadoc poderiam entrar no recinto do Templo e
realizar a liturgia.27 Essa injunção provocaria muita luta em Jerusalém, e ironicamente as tradições autênticas
de Israel seriam cultuadas na Casa de Sadoc, o jebuseu. A natureza mais exclusiva do sacerdócio refletia a
crescente transcendência de Deus, cuja santidade era mais perigosa que nunca para os não iniciados e os
imprudentes. P e Ezequiel deram instruções detalhadas sobre a conduta dos sacerdotes no Templo. Ao entrar
no Hekhal, por exemplo, deviam trocar de roupa, pois estavam ingressando num reino de santidade que
requeria um padrão de pureza mais alto. Só o sumo sacerdote podia entrar no Devir e apenas uma vez por
ano.28 Com as novas regras, os israelitas passaram a ter um conceito mais elevado da santidade de Javé, um
ente completamente separado de todos os outros seres e que não podia ser abordado da mesma forma.
É surpreendente que essas descrições do santuário, da liturgia e do sacerdócio tenham surgido numa época
em que não havia esperança de concretizá-las. O Templo estava em ruínas, porém os exilados mais criativos
o imaginavam em plena atividade e conceberam uma legislação complexa para regulamentá-lo. No capítulo 8
veremos que os rabinos fizeram a mesma coisa. Assim, os textos judaicos mais minuciosos a respeito do
espaço sagrado e da santidade de Jerusalém descrevem uma situação inexistente na ocasião em que foram
escritos. “Jerusalém” se tornara um valor interiorizado para os judeus exilados: era a imagem de uma salvação
alcançável mesmo muito longe da cidade concreta situada no território desolado de Judá. Mais ou menos na
mesma época Siddartha Gautama, também conhecido como Buda, descobriu, na Índia, que se podia chegar à
realidade suprema através da meditação e da compaixão; não era mais essencial entrar num templo ou em
qualquer outra área sagrada para alcançar essa dimensão transcendente. Na espiritualidade da Era Axial
podiam-se às vezes deixar de lado os símbolos e experimentar o sagrado nas profundezas do eu. Não se sabe
como seus contemporâneos entenderam os escritos de Ezequiel e P. Sem dúvida esperavam que um dia o
Templo fosse reconstruído e Jerusalém lhes fosse devolvida. Contudo, quando finalmente tiveram a
oportunidade de regressar, a maioria dos exilados preferiu ficar na Babilônia. Não achavam necessário estar
fisicamente presentes em Jerusalém, pois aprenderam a ver os valores de Sião sob uma nova luz. A religião
que conhecemos como judaísmo se originou não na Judeia, mas na Diáspora e seria transmitida à Terra
Santa por emissários da Babilônia como Neemias, Esdras e Hillel.
Ezequiel e P conseguiram enxergar a realidade eterna que os símbolos terrestres de sua fé apontavam. Em
sua visão do futuro não mencionam diretamente Jerusalém, e P concluiu sua narrativa na fronteira da Terra
Prometida. A visão de ambos era essencialmente utópica, e talvez não esperassem viver o bastante para vê-la
concretizar-se. Sua atitude em relação a Jerusalém possivelmente era semelhante à que se expressa hoje na
refeição cerimonial da Páscoa, em que as palavras “No ano que vem em Jerusalém!” se referem à época
messiânica futura e não à cidade material. Quando imaginou o retorno a Sião, Ezequiel ansiava por uma
transformação espiritual: Javé daria a seu povo “um novo coração” e “um novo espírito”. Da mesma forma,
Jeremias predisse que um dia a Lei não seria mais inscrita em tábuas de pedra, mas no coração das
pessoas.29 Se realmente ansiavam por uma redenção, os arquitetos do novo judaísmo não acreditavam que um
programa político bastaria para realizá-la. Entendiam que a salvação significava mais que um novo templo e
uma nova cidade: estes só podiam ser símbolos de uma libertação mais profunda.
De repente, porém, a redenção política parecia estar próxima. Os exilados poderiam efetivamente regressar
à pátria de seus pais e reconstruir Jerusalém. Na Babilônia, os que se desiludiam cada vez mais com o
governo do rei Nabônides, sucessor de Nabucodonosor, acompanhavam com muito interesse a carreira de
Ciro II, o jovem soberano da Pérsia. Desde 550 a.C., quando conquistou o país dos medos, Ciro vinha
construindo um vasto império, que em 541 a.C. circundava inteiramente a Babilônia. Os sacerdotes de
Marduc estavam particularmente animados com sua propaganda, pois achavam que Nabônides negligenciara o
culto, enquanto Ciro prometia restaurar os templos do império e honrar os deuses, além de reedificar as
cidades devastadas e restabelecer em seus domínios a paz universal. Essa mensagem também seduziu o profeta
anônimo geralmente designado como Segundo Isaías, que saudou Ciro como o Messias, ungido por Javé para
a missão especial de reconstruir Jerusalém e seu Templo. O Segundo Isaías voltou-se instintivamente para os
velhos mitos e a antiga liturgia de Sião. Por meio de seu instrumento, Ciro, Javé iniciaria uma nova criação
e um novo êxodo. Derrotaria os atuais inimigos de Israel como outrora vencera Leviatã e Raab, e os judeus
exilados retornariam a Sião através do deserto, que perdera seu poder demoníaco.30
Esse retorno teria implicações para toda a humanidade: os repatriados seriam os pioneiros de uma nova
ordem mundial. Depois de restabelecer-se em Jerusalém, reergueriam o Templo, e a “glória” de Javé voltaria
a seu monte santo. Mais uma vez ele seria entronizado em sua cidade “aos olhos de todas as nações”.31 A
liturgia de Jerusalém proclamara que Javé era o rei não só de Israel, mas do mundo inteiro. Agora, graças a
Ciro, tal proclamação estava para tornar-se uma realidade demonstrável. Os outros deuses se apavoravam: Bel
e Nebo — importantes divindades babilônias — encolhiam-se de medo; bestas de carga transportavam suas
efígies.32 Aqueles deuses estrangeiros que pareciam mandar em Javé se tornaram redundantes. Todas as nações
do mundo — Egito, Cuch, Sabá — teriam de submeter-se a Israel; acorrentadas, se arrastariam até Jerusalém
e seriam obrigadas a admitir:
Só em ti está Deus, e ele não tem rival:
não existe outro deus.33
A liturgia de Sião sempre afirmara que Javé era o único deus importante; com o Segundo Isaías essa
afirmação se transformou em inequívoco monoteísmo. Palco desse triunfo universal, Jerusalém seria mais
gloriosa que nunca. Resplandeceria com pedras preciosas: rubis nas ameias, cristal nas portas, gemas
incrustadas nas muralhas — um esplendor que demonstraria cabalmente sua integridade e sua santidade.34
Tais esperanças se aproximaram um pouco mais da concretização no outono de 539 a.C., quando o
exército persa derrotou os babilônios em Opis, junto ao rio Tigre. Um mês depois Ciro entrou na Babilônia
e foi entronizado como representante de Marduc no Templo de Esagila. Imediatamente cumpriu suas
promessas: entre setembro e agosto de 538 a.C., todas as efígies dos deuses assírios que haviam sido
capturadas pelos babilônios retornaram a suas cidades de origem e seus templos foram reerguidos. Ao mesmo
tempo, Ciro decretou a reconstrução do Templo de Jerusalém com todos os seus pertences. Para governar
seus domínios, adotou uma linha totalmente diversa da dos imperadores assírios e babilônios. Concedeu certa
autonomia a seus súditos, porque era mais barato e mais eficiente: haveria menos ressentimento e menos
rebelião. Reconstruir os templos dos deuses era um dos principais deveres de todo rei, e Ciro provavelmente
acreditava que com isso ganharia não só a gratidão de seus súditos, como também o favor divino.
Assim, meses após sua coroação na Babilônia, entregou a Sassabassar, “príncipe” [nasi] de Judá, os vasos de
ouro e prata que Nabucodonosor roubara do Templo de Jerusalém. Junto com seus criados, duzentos
cantores e 42 360 judeus, Sassabassar partiu.35 Se, ao deixar a Babilônia, os repatriados tinham em mente as
profecias do Segundo Isaías, quando chegaram a Judá logo pararam de sonhar. A maioria nascera no exílio e
crescera em meio ao esplendor e à sofisticação da Babilônia. Decerto Judá lhes pareceu um lugar sombrio e
estranho. A construção imediata de um novo templo estava fora de cogitação. Primeiro era preciso criar uma
comunidade viável naquela desolação. Poucos realmente ficaram em Jerusalém, que ainda estava em ruínas, e
a maioria se estabeleceu em lugares mais confortáveis de Judá e Samerina. Alguns dos que ficaram talvez
tenham se instalado na parte velha, enquanto outros se fixaram ao sul da cidade, nos campos que
permaneceram desabitados desde 586 a.C.
Jerusalém e a província
de Yehud no período persa

Não há mais informações sobre a Golah, a comunidade dos repatriados, até 520 a.C., o segundo ano do
reinado de Dario, soberano da Pérsia. Nessa época Sassabassar não estava mais no comando da Golah de
Judá e não sabemos o que aconteceu com ele. Os trabalhos de construção pararam, porém o entusiasmo
reavivou-se quando, pouco depois da ascensão de Dario, Zorobabel, neto do rei Joaquin, saiu da Babilônia,
juntamente com Josué, neto do último sumo sacerdote que oficiou no antigo Templo, e chegou a Jerusalém.
Fora nomeado governador [ peha] da província de Judá. Representava o governo persa, mas pertencia à Casa
de Davi, e isso deu alma nova à Golah. Todos os repatriados se reuniram em torno de Jerusalém para
erguer um novo altar no lugar do velho e, concluída a obra, passaram a oferecer sacrifícios e observar as
festas tradicionais. Depois disso, as construções pararam novamente. A vida ainda era dura em Jerusalém:
colheitas ruins e uma economia deplorável esfriavam qualquer entusiasmo que um templo pudesse gerar.
Entretanto, em agosto de 520 a.C. o profeta Ageu disse aos repatriados que suas prioridades estavam erradas.
As colheitas só melhorariam após a construção do templo: a Casa de Javé sempre fora a fonte da fertilidade
da Terra Prometida. Como podiam edificar casas para si mesmos e deixar a morada de Javé em ruínas? 36
Devidamente castigada, a Golah voltou a trabalhar.
Os alicerces do Segundo Templo foram finalmente assentados no outono de 520 a.C. e rededicados na
festa de Sucot, durante uma cerimônia especial. Os sacerdotes entraram na área sagrada, seguidos pelos
levitas, que entoavam salmos e tocavam címbalos. Alguns deles tinham idade bastante para lembrar-se do
magnífico Templo de Salomão e, quando viram o local modesto do novo santuário, desmancharam-se em
lágrimas.37 Desde o início o Segundo Templo foi uma decepção, um anticlímax, para muita gente. Ageu
tentou elevar o moral do povo, garantindo que o novo edifício seria mais grandioso que o anterior. Logo
Javé reinaria sobre o mundo, conforme predissera o Segundo Isaías. Zorobabel seria o Messias, governando
todas as nações em nome de Javé.38 Zacarias, colega de Ageu, também ansiava pelo dia em que Javé voltaria
a habitar em Sião e estabelecer seu reinado através dos dois messias: Zorobabel, o rei, e Josué, o sacerdote.
Era importante não reconstruir as muralhas de Jerusalém, para que a cidade pudesse abrigar as multidões
que em breve correriam para morar ali.39
Nem todos, porém, concordavam com essa concepção de cidade aberta. Ao saber que as obras do novo
templo estavam em andamento, os habitantes de Samerina, no Reino de Israel, foram oferecer seus préstimos
a Zorobabel. O Cronista nos diz que descendiam dos estrangeiros que os assírios haviam instalado no país
em 722 a.C. Alguns eram israelitas, membros das dez tribos setentrionais, e outros eram naturais de Judá,
filhos dos que ali permaneceram em 586 a.C. Naturalmente esses javistas queriam ajudar na reconstrução de
Sião. Contudo, Zorobabel rispidamente os recusou.40 Só a Golah constituía o “verdadeiro” Israel; só ela
recebera de Ciro a incumbência de edificar o Templo. A partir de então os outros javistas passaram a ser
vistos não como irmãos, e sim como “inimigos”, designados coletivamente como Am Ha-Aretz, o “povo da
terra”. Na Babilônia, Ezequiel e P consideraram todas as doze tribos membros de Israel e dignas de
santidade, excluindo da área sagrada apenas os Goim, as nações gentias. Os repatriados, no entanto, tinham
uma concepção ainda mais estreita. Viam os Am Ha-Aretz como “estrangeiros”, porém não estavam dispostos
a recebê-los em sua cidade conforme prescrevia o Código de Santidade. Consequentemente, em vez de levar
a paz para o país, a nova Jerusalém se tornou um novo pomo de discórdia na Terra Santa. Os autores
bíblicos nos dizem que a partir daí os Am Ha-Aretz “passaram a desencorajar e amedrontar o povo de Judá
para deter a construção”.41 Procuraram obter o apoio de funcionários persas, e, por volta de 486 a.C., o
governador de Samerina escreveu ao rei Xerxes para avisar-lhe que os judeus estavam edificando os muros de
Jerusalém sem permissão. O mundo antigo geralmente via isso como um ato de rebeldia contra o poder
imperial, e as obras foram embargadas até que se encontrou o decreto de Ciro no arquivo real de Ecbátana.
A construção do Segundo Templo prosseguia em ritmo lento. Zorobabel não é mais mencionado depois
que rejeitou a colaboração dos Am Ha-Aretz. Talvez as esperanças messiânicas de Ageu e Zacarias tivessem
assustado o governo persa e levado Dario a destituir Zorobabel por ocasião de sua visita ao país, em 519
a.C. Depois disso, nenhum membro da Casa de Davi se tornou peha da subprovíncia de Judá. No entanto,
apesar do malogro desse sonho messiânico, os repatriados conseguiram concluir seu templo em 23 de Adar
[março] de 515 a.C. O novo edifício naturalmente se erguia no mesmo local do antigo, para dar
continuidade a suas sagradas tradições. Também reproduzia o velho plano tripartido de Ulam, Hekhal e
Devir. Um muro de pedra separava-o da cidade e uma porta dupla levava a um pátio externo, cercado de
gabinetes, depósitos e aposentos para os sacerdotes. Outro muro protegia um pátio interno, onde se erguia o
altar dos sacrifícios, feito de pedra branca e não trabalhada. Dessa vez, porém, a acrópole de Sion não
abrigava um palácio real, pois Judá não tinha mais rei. Outra diferença crucial era que o Devir agora estava
vazio, pois a Arca da Aliança desaparecera sem deixar vestígio. O vazio simbolizava a transcendência de Javé,
que não podia ser representado por nenhuma imagem humana, mas para alguns refletia sua ausência deste
novo templo. As absurdas esperanças do Segundo Isaías não se concretizaram. Se a “glória” de Javé realmente
se instalou no Devir, ninguém soube. As nações gentias não receberam nenhuma revelação dramática e
tampouco entraram acorrentadas em Jerusalém. Havia uma nova consciência da enorme distância entre Deus
e o mundo, e nesses primeiros anos do Segundo Templo a própria ideia de que a Divindade transcendente
pudesse habitar uma casa parecia cada vez mais absurda:
Eis o que diz Javé:
Sendo o céu meu trono
e a terra o escabelo de meus pés,
que casa poderíeis construir para mim?
Que lugar poderíeis criar para meu descanso?42
Tudo o que se podia fazer era esperar inutilmente que Javé se dignasse a descer para encontrar seu povo.
Agora o que atraía Javé não era um templo magnífico, como no passado, mas o “espírito humilde e
contrito”.43 Ao culto ruidoso, alegre e tumultuado do Primeiro Templo seguiu-se a adoração silenciosa e
sóbria do Segundo. No exílio a Golah compreendera que seus pecados causaram a destruição de Jerusalém, e
o culto refletia seu “coração partido e apertado”. Isso se evidenciava particularmente na nova festa do Yom
Kippur, o Dia da Expiação, quando o sumo sacerdote simbolicamente colocava os pecados do povo num
bode, que depois era enxotado para o deserto. Isso também permitiu a Israel aproximar-se mais uma vez do
sagrado. O Yom Kippur era o único dia do ano em que o sumo sacerdote entrava no Devir como
representante do povo. A expiação evidenciava-se ainda nos sacrifícios oferecidos diariamente no pátio do
Templo. Os fiéis levavam novilhos, carneiros, bodes ou pombos, conforme seus recursos, como oferendas de
“culpa” ou de “pecado”. Pousavam as mãos na cabeça do animal, simbolizando sua entrega a Javé.
Consumado o sacrifício, recebiam partes do animal e as comiam com a família e os amigos. O banquete da
comunhão na terra refletia a harmonia restabelecida com o divino.
Javé nunca retornou a Sião na maneira predita pelo Segundo Isaías, mas seus devotos continuaram
sonhando com o dia em que ele haveria de criar em Jerusalém “um novo céu e uma nova terra”. As velhas
esperanças não morreram, e Jerusalém se converteu num símbolo da salvação final: integração, harmonia,
intimidade com Deus e um regresso ao paraíso. A Nova Jerusalém seria diferente de todas as outras cidades:
os que nela morassem teriam vida longa e feliz e cada qual habitaria sua própria casa. Ali não haveria
lágrimas, e os sofrimentos do passado seriam esquecidos. Os gentios admirariam a cidade da paz, que faria
da vida o que ela deveria ser. 44 Alguns, porém, estavam mais desiludidos. Em Sião havia problemas sociais,
diziam certos profetas, e seus habitantes ainda perdiam tempo com o velho paganismo.45 A nova atitude
exclusivista da Golah suscitava preocupação: a Cidade de Deus não deveria estar aberta a todos, como
Zacarias sugerira? Talvez Jerusalém devesse abrir suas portas aos estrangeiros, aos proscritos, aos eunucos —
gente que os sacerdotes consideravam “impura”. Javé proclamara: “Minha casa será uma casa de oração para
todos os povos”. Um dia ele conduziria esses forasteiros para a cidade e os deixaria oferecer-lhe sacrifícios
no monte Sião.46
No século V a.C., contudo, Jerusalém dificilmente se tornaria um centro de culto, tanto para judeus como
para gentios. Ainda estava em ruínas e subpovoada. Talvez tenha até sofrido mais danos em 458 a.C.,
durante os tumultos que ocorreram em todo o império persa, quando o rei Xerxes subiu ao trono. Por volta
de 445 a.C., a notícia de sua situação calamitosa chegou a Susa, a capital persa, e chocou a comunidade
judaica que lá vivia. Um dos líderes dessa comunidade era Neemias, escanção do rei Artaxerxes I. Ao saber
da humilhação da Golah em Jerusalém, cujos muros estavam destruídos, Neemias chorou durante vários dias,
em penitência pelos pecados que seu povo e sua família cometeram e que foram a causa de todo aquele
sofrimento. Depois suplicou ao rei que o deixasse partir para Judá e reconstruir a cidade de seus ancestrais.
Artaxerxes não só atendeu a sua súplica, como o nomeou peha de Judá, deu-lhe cartas de recomendação para
outros governadores da região e permissão para usar madeira e outros materiais de construção existentes no
parque real.47 Provavelmente esperava que Neemias conseguisse levar estabilidade a Judá: com um baluarte de
confiança tão próximo do Egito, a segurança de seu império estaria garantida.
Jerusalém na época de Neemias

Os livros de Esdras e Neemias consistem numa série de documentos desconexos, que um editor procurou
organizar. Achando que os dois autores fossem contemporâneos, esse editor faz Esdras chegar a Jerusalém
antes de Neemias. No entanto, há bons motivos para situar a missão de Esdras numa data bem posterior,
em 398 a.C., sob o reinado de Artaxerxes II.48 Assim, Neemias partiu de Susa provavelmente por volta de
445 a.C. Devia ver seu cargo como um desafio religioso, pois no Oriente Próximo a construção de
fortificações constituía um dever sagrado. Chegando a Jerusalém, permaneceu incógnito por três dias; uma
noite saiu a cavalo para circundar as muralhas e constatou que as velhas fortificações estavam derrocadas,
“com as portas consumidas pelo fogo”. Em determinado ponto não encontrou “lugar por onde pudesse
passar o cavalo”.49 No dia seguinte, apresentou-se aos anciãos e disse-lhes que era preciso acabar com aquela
vergonha, com aquela indignidade. Toda a população uniu esforços, sacerdotes e leigos trabalhando lado a
lado, e no prazo de 52 dias construiu novas muralhas. Era uma tarefa perigosa. Nessa época, as relações com
os Am Ha-Aretz haviam se deteriorado muito, e Neemias constantemente se defrontava com as maquinações
de alguns poderosos locais: Sanabalat, governador de Samerina; Tobias, um de seus assistentes; e Gossem,
governador de Edom. A tensão era tão grande que os construtores estavam sempre esperando um ataque:
“Cada qual trabalhava com uma das mãos e com a outra segurava sua arma, pois cada um dos que
construíam tinha sua espada à cinta”.50 Não se tentou fortificar o Mishneh, o velho bairro situado na Colina
Ocidental. A cidade de Neemias compreendia apenas a antiga ’Ir David e o Ofel. O texto bíblico nos
permite entender sua organização. Os mercados se enfileiravam ao longo da muralha ocidental; os sacerdotes
e seus serviçais moravam junto ao Templo, no lugar da velha fortaleza de Ofel. Os artesãos habitavam os
bairros do sudeste, enquanto os militares se concentravam no distrito setentrional, onde a cidade era mais
vulnerável. Neemias construiu também uma cidadela, provavelmente a nordeste do Templo, no local onde se
ergueriam mais tarde as fortalezas dos Asmoneus e de Herodes. No dia 25 do mês de Elul [começo de
setembro] de 445 a.C., dedicaram-se as novas muralhas: os levitas e os cantores das aldeias vizinhas formaram
dois grandes coros e, caminhando em direções opostas, circundaram os muros, entoando salmos; depois
entraram nos pátios do Templo. A música e os gritos de júbilo podiam ser ouvidos a quilômetros de
distância.
Neemias infundiu nova esperança a Jerusalém, que no entanto ainda era uma cidade medíocre. Não
abrigava novas famílias e tampouco atraía outros habitantes. Sob a constante ameaça de um ataque por parte
dos Am Ha-Aretz, os cidadãos se revezavam para vigiar as portas. Neemias conseguiu aumentar a população
para cerca de dez mil pessoas, organizando uma loteria segundo a qual cada décimo homem tinha de
mudar-se para a cidade. 51 Essa mudança “voluntária” era tida como um ato piedoso. Ao longo de doze anos
Jerusalém pouco a pouco superou Masfa como a capital da província, abrigando a residência que Neemias
construiu para o peha, e tornou-se o centro da vida da Golah em Judá. Em seu interior, contudo, travava-se
uma luta pelo poder: alguns sacerdotes tinham estreitos vínculos com os Am Ha-Aretz; entre eles estava
Sanabalat, aparentemente um dos mais perigosos opositores de Neemias. Havia ainda a cobiça de alguns
cidadãos ricos, que se apoderavam dos filhos, dos vinhedos e dos campos dos pobres incapazes de pagar seus
empréstimos com juros. Com um considerável apoio popular, Neemias obrigou os nobres e os oficiais a jurar
solenemente que não cobrariam mais juros.52 Essa tentativa de transformar Jerusalém novamente num refúgio
para os pobres suscitou o antagonismo das classes altas, que tendiam a voltar-se cada vez mais para seus
aliados no território vizinho. Parece que a tensão no país era grande. Sanabalat, Tobias e Gossem entendiam
muito bem que a fortificação da cidade constituía uma tentativa de conquistar o controle político.
Em seu segundo mandato, iniciado por volta de 432 a.C., Neemias elaborou novas leis para impedir que
os membros da Golah se casassem com pessoas da população local. Expulsou o sumo sacerdote Eliasib, que
era casado com a filha de Sanabalat e que se transferiu para Samaria, onde provavelmente foram morar
outros descontentes da casta sacerdotal. A questão do casamento misto se tornou cada vez mais controversa
em Jerusalém. A legislação de Neemias não visava preservar a pureza da raça na concepção do século XX,
mas expressar em termos sociais a nova geografia sagrada que profetas como Ezequiel haviam criado no
exílio: a Golah devia viver separada dos Goim, conforme convinha ao povo santo de Deus. Na Babilônia os
deportados se esforçaram para conservar uma identidade judia distinta, centrada na presença de Javé em
Israel. A mesma força centrípeta também se evidenciava na vida social. A Torá proibia o casamento entre
membros da unidade familiar básica, porém achava-se melhor a união de parentes tão próximos quanto
legalmente possível. As pessoas da família eram cônjuges aceitáveis, enquanto as outras eram indesejáveis. Essa
série de círculos concêntricos se detinha na fronteira de Israel: os Goim estavam fora do mapa da santidade
e fora de cogitação.53 Casar-se com um deles equivalia a deixar o enclave sagrado e sair para o deserto
impio, como o bode expiatório enxotado no Yom Kippur. Assim tentava-se fazer de Israel um povo “santo”
e separado e definir sua identidade excluindo os “forasteiros”. Em Judá, contudo, a Golah devia rejeitar
pessoas que outrora pertenceram à família israelita, mas agora eram tidas como estrangeiras e inimigas.
No século V a.C., os exilados na Babilônia se empenharam numa extraordinária reforma religiosa, que
resultou no judaísmo. A questão da identidade ainda era crucial: os deportados pararam de dar nomes
babilônios a seus filhos, preferindo chamá-los por nomes que, como Shabbetai, refletiam seus novos símbolos
religiosos. A Torá assumira o lugar do Templo e desempenhava agora um papel fundamental em sua vida
religiosa. Observando os mitzvoth, os judeus da Babilônia conseguiram formar uma comunidade sagrada, que
abrigava a Presença divina e estabelecia a ordem de Deus na terra. Já os judeus comuns tinham de aprender
a Torá com a ajuda de especialistas como Esdras, que “se dedicara a estudar e praticar a Lei de Javé, e a
ensinar a Israel suas leis e seus costumes”.54 Esdras possivelmente atuou também como ministro de assuntos
judaicos na corte persa. Em 398 a.C., partiu para Judá com uma quádrupla missão, que lhe foi confiada por
Artaxerxes II: acompanhar um grupo de judeus que queria voltar para a pátria; levar presentes da comunidade
judaica na Babilônia para o Templo; “investigar a situação de Judá e Jerusalém segundo a lei de [seu] deus”;
e instruir nessa lei os judeus do Levante.55 A legislação de outros povos submetidos passava então por uma
revisão. Artaxerxes apoiava o culto do Templo, fundamental para a vida da província de Judá, e precisava ter
certeza de que era compatível com os interesses e a segurança do império. Como especialista em leis na
Babilônia, Esdras pode ter concebido um modus vivendi satisfatório entre a Torá e o sistema legal dos persas,
e Artaxerxes tinha de assegurar-se de que essa lei vigorava também em Judá. Esdras promulgaria a Torá em
Jerusalém e faria dela a lei oficial do país.56
O autor bíblico vê sua missão como um ponto decisivo na história de seu povo. Descreve sua viagem
como um novo êxodo e o exalta como um novo Moisés. Esdras, o legislador, entrou triunfalmente em
Jerusalém, mas horrorizou-se com o que encontrou: sacerdotes e levitas ainda conspiravam com os Am Ha-
Aretz e se casavam com estrangeiras. Diante disso, arrancou os cabelos e passou um dia inteiro sentado na
rua, na postura de luto. Depois convocou todos os membros da Golah para uma reunião em Jerusalém:
quem não comparecesse seria expulso da comunidade e teria seus bens confiscados. No dia de Ano-Novo
[setembro/outubro] Esdras levou a Torá para a praça em frente à Porta das Águas e, de pé sobre um
estrado de madeira, rodeado pelos cidadãos mais importantes, leu e explicou a Lei para a multidão.57 Não
temos a menor ideia do que ele realmente leu: o Pentateuco inteiro? o Deuteronômio? o Código de
Santidade? Qualquer que fosse o conteúdo, sua Lei causou comoção, pois o povo, que evidentemente a
desconhecia, chorou. Esdras precisou lembrar-lhe que aquele era um dia de festa e leu a passagem da Torá
que ordenava aos israelitas habitarem tendas especiais no mês de Sucot, em memória dos quarenta anos que
seus ancestrais viveram no deserto. Então ordenou a seus ouvintes que fossem para as colinas colher ramos
de murta, oliveira, pinheiro e palma, e logo Jerusalém se transformou com os abrigos de folhagens que
surgiram em toda parte. A nova festa substituíra os antigos ritos jebuseus de Sucot; agora uma nova
interpretação relacionava-a com as tradições do Êxodo. Durante sete dias, um clima festivo tomou conta da
cidade, e toda noite o povo se reunia para ouvir Esdras expor a Lei.
A assembleia seguinte foi mais sombria.58 Ocorreu na praça diante do Templo, e a multidão tremia sob as
torrenciais chuvas de inverno que alagavam a cidade. Esdras mandou o povo expulsar as esposas estrangeiras,
e criaram-se comissões especiais para examinar casos individuais. Mulheres e crianças foram retiradas da
Golah e enviadas aos Am Ha-Aretz. Agora só pertenciam a Israel os descendentes dos exilados na Babilônia e
os indivíduos dispostos a submeter-se à Torá, que se tornara a lei oficial de Jerusalém. O Livro de Isaías
talvez tenha preservado o lamento dos proscritos:
Pois Abraão não nos conhece
e Israel não nos reconhece;
mas tu, Javé, tu és nosso pai [...]
Durante muito tempo fomos como aqueles que não governaste,
aqueles que não portam teu nome.59
A partir de então, a tendência implacável de excluir outras pessoas se tornaria uma característica da história
de Jerusalém, embora contrariasse algumas das mais importantes tradições de Israel. Como seria de se
esperar, muitos se opuseram a essa nova tendência. Além de não querer cortar relações com o povo de
Samerina e das regiões vizinhas, temiam que Jerusalém se tornasse provinciana e introvertida e sofresse
economicamente. Outros, porém, reagiram com entusiasmo à nova legislação. Sabe-se muito pouco sobre
Jerusalém depois de Esdras, mas nas oito gerações seguintes a Lei se tornara tão fundamental quanto o
Templo para a espiritualidade de Judá. Quando esses dois valores sagrados correram perigo, Jerusalém viveu
uma crise que quase resultou na perda de sua nova identidade judaica.
6. ANTIOQUIA DA JUDEIA

QUANDO ALEXANDRE DA MACEDÔNIA derrotou Dario III, rei da Pérsia, às margens do rio Issos, em outubro
de 333 a.C., os judeus de Jerusalém ficaram estarrecidos, pois durante mais de duzentos anos haviam sido
vassalos leais da Pérsia. Flávio Josefo, o historiador judeu do século I d.C., conta que a princípio o sumo
sacerdote recusou-se a submeter-se a Alexandre, porque jurara permanecer fiel ao último soberano persa, mas
depois, em função de um sonho, capitulou, quando o imperador macedônio assegurou que os judeus
continuariam sendo governados de acordo com sua própria lei.1 Na verdade é muito improvável que
Alexandre tenha visitado Jerusalém. A princípio sua conquista pouco influiu na vida de Judá. A Torá não
deixou de ser a lei oficial da província, e a administração que atuara sob os persas possivelmente se manteve.
Contudo, a lenda das negociações do conquistador com o sumo sacerdote é significativa, pois ilustra a
complexidade da reação dos judeus ao helenismo. Alguns rejeitaram instintivamente a cultura grega e
ativeram-se à antiga ordem; outros acataram o helenismo, achando-o compatível com suas próprias tradições.
A luta entre essas facções opostas dominaria a história de Jerusalém por quase trezentos anos.
Décadas antes do triunfo de Alexandre, o helenismo já vinha penetrando paulatinamente no Oriente
Próximo. As antigas culturas da região começavam a esfacelar-se, e o espírito grego as afetaria de modo
indelével. Todavia, os judeus de Jerusalém provavelmente tiveram pouco contato direto com os gregos e em
geral absorveram elementos da cultura helenística através das cidades costeiras da Fenícia, que os traduziam
para um idioma mais conhecido. Jerusalém se isolara novamente e se tornara provinciana. Não estava em
nenhuma das principais rotas de comércio. Pobre, sem matérias-primas para criar indústrias, não atraía as
caravanas que se detinham em Petra e Gaza. Introvertida, com sua vida girando em torno do Templo e da
Torá, pouco se interessava por política internacional e parecia mais sintonizada com o passado que com a
modernidade que se irradiava do Ocidente para a região.
Esse quadro mudou quando Alexandre Magno morreu na Babilônia, em 13 de junho de 323 a.C. O único
herdeiro possível era seu filho, menor de idade, e logo seus principais generais passaram a lutar entre si pelo
controle do império. Ao longo das duas décadas seguintes esses seis diadochoi [sucessores] convulsionaram com
suas batalhas os territórios conquistados por Alexandre. Sendo uma importante região de trânsito, a Judeia se
viu continuamente invadida pelos exércitos que marchavam da Ásia Menor ou da Síria para o Egito, levando
bagagem, equipamento, famílias e escravos. Nessa época, Jerusalém foi conquistada pelo menos seis vezes, e
seus habitantes dolorosamente constataram que a longa fase de isolamento pacífico chegara ao fim. Para eles
o helenismo significava destruição, violência e militarismo. Os diadochoi macedônios irromperam no país como
conquistadores arrogantes que só se dignavam a dar atenção à população local quando esta podia ser útil a
seus próprios interesses. A arte, a filosofia, a democracia, a literatura gregas, que desempenharam um papel
tão importante no desenvolvimento da cultura ocidental, não impressionaram os jerosolimitas nesses anos de
terror. Provavelmente eles concordariam com o autor sânscrito que descreveu os gregos como “poderosos e
maus”.
Em 301 a.C., as forças de Ptolomeu I Soter, o “sucessor” que acabava de estabelecer sua base no Egito,
tomaram a Judeia, a Samerina, a Fenícia e toda a planície litorânea. Nos cem anos seguintes Jerusalém
permaneceu sob o controle dos Ptolomeu, que precisavam da província da Síria para proteger-se de um
ataque procedente do norte.
Como a maioria dos governantes antigos, os Ptolomeu não se intrometeram muito em assuntos locais,
embora implantassem um tipo de administração mais moderno, eficiente e flexível o bastante para lhes
permitir tratar de modo diferente as diversas regiões de seu império. Algumas partes da província eram terras
da Coroa, governadas diretamente por funcionários reais; nessa categoria estavam os portos criados pelos
Ptolomeu em Jope e Torre de Estratão e as novas colônias militares em Betsan, Filotera e Pela. O resto do
país tinha mais liberdade para cuidar de seus interesses. As cidades fenícias de Tiro, Sidônia, Trípoli e
Biblos gozavam de liberdades e privilégios significativos. Os colonos gregos chegaram à Síria e em cidades
como Gaza, Siquém, Marissa e Amã estabeleceram poleis, nos moldes de suas repúblicas democráticas, que
virtualmente se autogovernavam. Soldados, mercadores e empresários gregos acorreram a elas, ansiosos para
aproveitar as novas oportunidades criadas no Oriente. Os habitantes locais que aprenderam a falar e escrever
grego tornaram-se “helenos” e tiveram permissão para ingressar nos escalões mais baixos do exército e da
administração.
A polis era estranha a muitas das mais arraigadas tradições da região. A cultura helenística era secular,
devia-se a uma intelligentsia independente do palácio e do templo. O governo da polis nada tinha a ver com
religião: quem o exercia não era um indivíduo designado pelo poder divino nem uma elite sacerdotal. Nessas
novas cidades gregas também surgiram gymnasia, onde os jovens recebiam ensinamentos condizentes com o
ideal helenístico; estudavam literatura grega e passavam por um rigoroso treinamento físico e militar,
desenvolvendo ao mesmo tempo o cérebro e o corpo. O gymnasion era a instituição que unia os gregos em
seu extenso império. Tinha seu próprio etos religioso. Como os Jogos Olímpicos, as competições de
atletismo constituíam celebrações religiosas em homenagem a Hermes e Héracles, os patronos dos gymnasia.
Geralmente os naturais da terra não podiam ingressar no gymnasion, um privilégio reservado aos gregos.
Entretanto, os Ptolomeu permitiram a admissão de estrangeiros. Foi assim que os judeus de Alexandria
frequentaram seu gymnasion e realizaram uma extraordinária fusão das culturas grega e judaica. Os gregos
eram materialistas e às vezes chocantes, mas essa nova cultura seduziu muitos habitantes locais, sendo tão
irresistível para alguns quanto a cultura ocidental é hoje para grande parte das populações dos países
emergentes. Atraía e repugnava; quebrava tabus, e por esse mesmo motivo muitos a consideravam
profundamente libertadora.
A princípio, as novas ideias não afetaram Jerusalém, que, não sendo uma polis, não possuía um gymnasion. A
maioria dos jerosolimitas se horrorizaria com a ideia de ver Hermes sendo venerado na cidade de Javé e os
jovens exercitando-se nus. A Judeia não interessava muito aos Ptolomeu. Os judeus constituíam um ethnos
[nação] distinto, governado pela gerousia, o conselho de anciãos sediado em Jerusalém. A Torá continuava
sendo a lei oficial do ethnos, que por sua vez continuava sendo o que fora na época dos persas: um Estado
religioso, administrado por seus sacerdotes. Os Ptolomeu possivelmente designaram um agente [oikonomos]
para acompanhar de perto as questões locais e, pelo menos em época de guerra, instalaram uma guarnição
na cidade. Na maior parte do tempo, contudo, os judeus estavam entregues a sua própria sorte. Seu
principal elo com o governo egípcio consistia no tributo de vinte talentos que tinham de pagar anualmente.
Mas era inevitável que Jerusalém acabasse tragada pelo mundo grego, que estava transformando o resto do
país. No reinado de Ptolomeu II (282-46 a.C.), um jerosolimita chamado José conseguiu o cargo de coletor
de impostos de toda a província da Síria. Durante mais de vinte anos foi um dos homens mais poderosos do
país. Pertencia ao clã dos Tobíadas e talvez descendesse do mesmo Tobias que havia criado tantos problemas
para Neemias. Esse clã não queria que a Torá delimitasse sua vida, ainda gostava de estabelecer contatos
com estrangeiros e não se submetia ao etos mais exclusivo do establishment jerosolimita. Sua propriedade em
Amantis, na Transjordânia, tornara-se uma das colônias militares dos Ptolomeu. José evidentemente estava à
vontade no mundo grego e conseguiu introduzir as altas finanças dos helenos em Jerusalém, tornando-se o
primeiro banqueiro judeu. Muitos de seus correligionários orgulhavam-se de seu sucesso: uma novela que
conta a história de sua carreira, citada por Flávio Josefo, enaltece claramente sua esperteza, suas tramoias e
sua habilidade de empresário.2 O autor o elogia por resgatar seu povo da pobreza e capacitá-lo a partilhar a
prosperidade econômica que os Ptolomeu levaram para a região.
Os Tobíadas se tornaram os pioneiros do helenismo em Jerusalém. Queriam que sua cidade abandonasse as
velhas tradições, a seu ver inibidoras e provincianas. Quanto a isso, não eram os únicos. No império grego
muita gente acalentava um desejo semelhante de abolir costumes ancestrais que de repente pareciam
opressivos. Essa gente buscava horizontes mais amplos e não via seu mundo como um enclave, com limites e
fronteiras que deviam estar claramente definidos. A polis era um universo fechado, porém agora muitos gregos
se consideravam cosmopolitas, cidadãos do cosmo. Em vez de ver sua pátria como seu valor mais sagrado,
pois ela lhes conferia seu lugar único na face da terra, tornaram-se colonialistas e viajantes internacionais. As
conquistas de Alexandre ampliaram o mundo e fizeram a polis parecer pequena e inadequada. A própria
ausência de limites, que para seus ancestrais era caótica e ameaçadora, agora se tornara excitante e
libertadora. Muitos judeus também queriam ser cidadãos da humanidade, e não integrantes de um povo
eleito, tolhido por uma lei que se convertera num empecilho. No final do século III a.C., alguns deles
começaram a aprender os rudimentos da cultura helênica e a chamar seus filhos com nomes gregos.
Outros viam em tudo isso uma grande ameaça e se apegavam às velhas tradições, centralizadas no Templo.
Sobretudo as classes mais pobres, que não partilhavam a nova prosperidade, tendiam a voltar-se mais
fervorosamente que nunca para a Lei, segundo a qual cada coisa tinha seu lugar e a ordem só poderia
prevalecer na sociedade se pessoas e objetos se confinassem à categoria a que pertenciam. Os conservadores
naturalmente gravitavam em torno dos sacerdotes, guardiães da Torá e do Templo. Seus líderes eram os
Oníadas, descendentes de Sadoc que durante algum tempo foram os sumos sacerdotes de Jerusalém. Apesar
de sua atração pelo ideal grego e dos nomes helênicos de alguns deles, estavam decididos a preservar as
velhas leis e tradições das quais dependiam seu poder e seus privilégios.
No final do século, os Ptolomeu corriam o risco de perder a Síria para a dinastia Selêucida, que
governava o reino grego da Mesopotâmia. Em 219 a.C., o jovem e ambicioso Antíoco III invadiu a Samaria
e o litoral fenício e conseguiu manter esses territórios sob seu poder durante quatro anos. Acabou sendo
expulso por Ptolomeu IV Filopátor, mas parecia disposto a retornar. Como os Tobíadas haviam estado
intimamente ligados aos Ptolomeu desde que José se tornara seu principal coletor de impostos, os
jerosolimitas mais conservadores apoiaram os selêucidas, torcendo por sua vitória. Enquanto os Tobíadas se
engalfinhavam numa disputa interna do clã, o enérgico sumo sacerdote Simão II, da família dos Oníadas,
conquistou considerável influência na cidade e apoiou a causa selêucida. Depois que Antíoco invadiu o país
novamente, em 203 a.C., seus partidários judeus o ajudaram a capturar a cidadela de Jerusalém em 201 a.C.,
mas no ano seguinte os Ptolomeu expulsaram suas tropas. Jerusalém sofreu em 200 a.C. um longo cerco e
grandes perdas, até que Antíoco conseguiu retomá-la.
Nessa época os selêucidas haviam conquistado todo o país, que chamaram de província de Celessíria e
Fenícia. Mais uma vez criaram-se diferentes organizações administrativas para as várias unidades políticas: as
cidades gregas e fenícias, as colônias militares e as terras da coroa. Com a ajuda de escribas judeus, Antíoco
elaborou um estatuto especial para o ethnos da Judeia e recompensou seus partidários em Jerusalém. Simão II
tornou-se chefe do ethnos, o que significou a ascendência do partido sacerdotal conservador sobre os
helenizantes Tobíadas. A Torá se manteve como a lei do país, e o senado judaico [ gerousia] continuou sendo
o organismo governamental. O estatuto estabeleceu para o Templo normas especiais que refletiam a geografia
sagrada dos judeus, porém introduziam medidas ainda mais exclusivistas que as de Neemias e Esdras. A fim
de preservar a pureza do santuário, a cidade devia livrar-se de toda impureza. Agora uma proclamação fixada
em suas portas proibia a criação ou a matança de animais “impuros” dentro de seus limites. Os homens
judeus só teriam acesso ao pátio interno do Templo, onde se realizavam os sacrifícios, se passassem pelas
mesmas abluções rituais dos sacerdotes. Os gentios estavam proibidos de entrar ali. Essa inovação não se
baseava na Torá, todavia refletia a hostilidade dos jerosolimitas mais conservadores em relação aos gentios. E
devia impressionar os gregos que visitavam a cidade. Para eles era natural que os leigos estivessem excluídos
do recinto sagrado, onde praticamente em todos os templos da Antiguidade só os sacerdotes podiam entrar.
Na Grécia, entretanto, todos tinham acesso aos pátios do templo, desde que se submetessem aos rituais de
purificação. Agora os gregos que iam a Jerusalém tinham de ficar no pátio externo, junto com as mulheres e
os judeus que se encontravam num estado de impureza ritual. Como não observavam a Torá, os estrangeiros
eram declarados “impuros” e não podiam transpor o limite da santidade.
Entretanto, para os judeus incluídos no âmbito do sagrado o culto do Templo podia propiciar uma
experiência do divino que lhes permitia ver sob nova luz a riqueza da vida. Ben Sirac, escriba ativo em
Jerusalém no início do período dos selêucidas, nos dá uma ideia do impacto da liturgia do Templo sobre os
fiéis quando descreve Simão oficiando as cerimônias do Yom Kippur. Esse era o único dia do ano em que o
sumo sacerdote podia entrar no Devir, representando os fiéis. Ao sair, ele levava para o povo a grande
santidade do recinto sagrado. O autor compara a aura que o envolvia ao sol que reluzia na cúpula dourada
do Templo, a um arco-íris em meio a nuvens brilhantes, a uma oliveira carregada de frutos e a um cipreste
elevando-se para os céus.3 A realidade se enaltecia e se fazia sentir com maior intensidade: o sagrado revelava
todo o seu potencial. Na época de Simão, o sumo sacerdote gozava de um prestígio completamente novo.
Tornou-se um símbolo da integridade do judaísmo e desempenhava um papel de crescente importância na
política de Jerusalém. De acordo com Ben Sirac, só ele tinha autoridade para apresentar uma interpretação
definitiva da Torá. 4 Ele simbolizava a continuidade: a realeza da Casa de Davi durara apenas algumas
gerações, mas o sacerdócio de Aarão existiria para sempre.5 Nessa época, os devotos viam Javé como um ser
tão sublime e transcendente que temiam pronunciar seu nome. Assim, substituíram as consoantes hebraicas
YHWH, presentes no texto da Torá, por sinônimos como “Adonai” [Senhor] e “El-Elyon” [Altíssimo]. Só o
sumo sacerdote podia pronunciar o nome divino e apenas uma vez por ano, no Yom Kippur. Ben Sirac
também louvou Simão pelas obras que construiu em Jerusalém: ele restaurou as muralhas da cidade e os
pórticos do Templo, arruinados no cerco de 200 a.C.; também escavou o imenso reservatório — “vasto
como o mar” — ao norte do monte do Templo, que se tornou conhecido como piscina de Betesda (em
aramaico, “Casa de Misericórdia”). Construir cabia tradicionalmente ao rei, porém Antíoco não concordara
em financiar essas obras, e Simão assumiu a tarefa, atuando, por assim dizer, como rei e sacerdote.6
Ben Sirac era conservador. Lamentava o materialismo que penetrara na cidade depois que o espírito
mercenário dos gregos contagiara tanta gente. Os gregos acusavam os levantinos de venais, mas na verdade
foram eles mesmos que introduziram a venalidade na região. Antigamente, de acordo com o culto de Sião,
Jerusalém devia ser um refúgio para os pobres; agora os jerosolimitas consideravam a pobreza uma desgraça
e, na corrida pela riqueza, atropelavam os pobres impiedosamente.7 E no entanto, por mais que desconfiasse
dos judeus que se deixavam seduzir pela cultura grega, Ben Sirac não era imune aos atrativos do helenismo.
Por que os jovens judeus de Jerusalém não estudavam a obra de Moisés como os jovens gregos estudavam
nos gymnasia a obra de Homero? Sugestão revolucionária. Até então, os leigos podiam decorar trechos da
Torá, mas não se esperava que a lessem: os sacerdotes lhes expunham a Lei. Ben Sirac não era sacerdote, era
um intelectual convicto de que a Torá podia converter-se na base de uma educação liberal para todos os
homens judeus. Cinquenta anos depois, seu neto, que traduziu seu livro para o grego, pressupôs esse tipo de
estudo.8 Em todo o Oriente Próximo, o contato com o mundo grego estava sutilmente transformando as
velhas religiões que se defrontavam com o desafio helenístico. O judaísmo não constituía exceção. Judeus
como Ben Sirac já haviam começado a adaptar o ideal educacional dos gregos a suas próprias tradições,
lançando as bases do judaísmo rabínico. Até a disciplina da pergunta e resposta, mais tarde desenvolvida
pelos rabinos, mostraria a influência do método socrático.
Outros judeus, porém, queriam ir mais longe: esperavam receber uma educação inteiramente grega e não a
julgavam incompatível com o judaísmo. O primeiro sinal da ruptura surgiu por volta de 180 a.C., quando o
sumo sacerdote Onias III, filho de Simão II, foi acusado de guardar grandes somas de dinheiro no tesouro do
Templo. O rei Seleuco IV imediatamente enviou seu vizir Heliodoro para Jerusalém a fim de recuperar o
dinheiro, que, acreditava, pertencia a seu império. Nessa época o entusiasmo pelos selêucidas declinara na
cidade. Em 192 a.C., Antíoco III sofrera uma derrota humilhante diante do exército romano, que anexara a
Grécia e grande parte da Anatólia. Só conseguiu manter-se no trono sob a condição de pagar uma pesada
indenização e um tributo anual. Assim, seus sucessores viviam às voltas com uma falta de dinheiro crônica.
Seleuco IV provavelmente achou que, como o estatuto o obrigava a pagar todas as despesas do culto de
Jerusalém com seus próprios recursos, tinha o direito de controlar as finanças do Templo. Não contava com
os sentimentos dos judeus em relação ao Templo, que afloraram então pela primeira vez. Quando Heliodoro
chegou a Jerusalém, decidido a confiscar o dinheiro, o povo horrorizou-se. Onias empalideceu e se pôs a
tremer convulsivamente; as mulheres correram pelas ruas, vestidas de serapilheira; as moças saíram às janelas,
pedindo ajuda ao céu. Um milagre salvou a integridade do Templo. Ao aproximar-se do tesouro, Heliodoro
caiu por terra, paralisado. Depois declarou que vira com seus próprios olhos o deus de Israel.
O episódio foi um marco: a partir de então, qualquer ataque ao Templo provocaria tumulto. Ao longo
dos anos, o Templo acabara por expressar a essência do judaísmo; situava-se no centro do mapa emocional
dos judeus, constituindo o âmago de sua identidade ameaçada. Era a alma da nação, a fonte de sua vida, de
sua criatividade e de sua sobrevivência. Ainda exercia uma força centrípeta sobre os judeus que cumpriam os
preceitos da Torá. Mesmo na Diáspora, eles rezavam voltados para Jerusalém e realizavam a longa
peregrinação à cidade santa para celebrar as grandes festas no Templo, que os salmos, as preces e os textos
sagrados os levavam a ver como o paraíso sobre a terra, um objetivo correlativo de Deus. Lutando para
preservar sua identidade distinta em meio a um mundo que insistia em incorporá-los, consideravam o
Templo e sua cidade um enclave fortificado. Os gentios não podiam aproximar-se do recinto sagrado, e
qualquer tentativa de violação desse santo isolamento equivalia a um estupro. Tal posição nada tinha de
racional: era uma reação visceral, instintiva e imediata.
A crise de 180 a.C. não terminou quando Heliodoro caiu por terra. Ante as insinuações de que era
responsável pelo mal do vizir, Onias sentiu-se na obrigação de ir à corte dos selêucidas a fim de limpar seu
nome. Com isso favoreceu seus inimigos. Enquanto estava em Antioquia, seu ambicioso irmão, Josué — ou
Jasão, como preferia ser chamado —, ofereceu a Seleuco um bom dinheiro em troca do sumo sacerdócio. O
rei aceitou a oferta, e Onias teve de fugir da corte, sendo mais tarde assassinado. O sumo sacerdote Jasão
não era conservador como seu irmão; não via sentido na Torá e desejava que seu povo desfrutasse as
liberdades de um mundo mais amplo, adotando o estilo de vida dos gregos. Quando Seleuco foi assassinado
por seu irmão, Antíoco Epífanes, Jasão ofereceu dinheiro ao novo soberano para que revogasse o velho
estatuto de 200 a.C. Não queria que Judá continuasse sendo um Estado religioso antiquado, baseado na
Torá, e pretendia fazer de Jerusalém uma polis com o nome de Antioquia, em homenagem a seu real senhor.
Sempre precisando de dinheiro, Antíoco aceitou a oferta e concordou com o programa de Jasão, que,
esperava, consolidaria sua autoridade em Judá.
No entanto, a metamorfose de Jerusalém em polis não poderia ocorrer da noite para o dia. Um número
significativo de cidadãos tinha de ser suficientemente versado na cultura grega para tornar-se heleno e acatar
o ideal democrático. Como medida provisória, Jasão provavelmente teve permissão para criar uma sociedade
de “antioquenos”, comprometidos com o projeto de helenização. Fundou um gymnasion nas proximidades do
Templo, onde os jovens judeus estudavam Homero, bem como filosofia e música gregas, e competiam
despidos nos eventos esportivos. Mas, enquanto não se operava a conversão da cidade em polis, a Torá
continuava sendo a lei do país, e, portanto, é improvável que os jerosolimitas venerassem Hermes e Héracles.
Em sua primeira fase, os planos de Jasão contaram com um bom apoio popular. As fontes bíblicas não
mencionam nenhuma oposição ao gymnasion. Assim que soava o gongo, marcando o início dos exercícios
atléticos, os sacerdotes desciam do monte do Templo para participar. Sacerdotes, proprietários, mercadores,
artesãos, todos se deixaram atrair pelo helenismo e provavelmente esperavam que uma sociedade mais aberta
impulsionasse a economia local. A política segregacionista de Neemias e Esdras sempre tivera opositores, e
muitos jerosolimitas abraçaram o ideal cosmopolita dos gregos. Não achavam o judaísmo necessariamente
incompatível com a cultura helênica. Moisés seria comparável a um legislador como Licurgo? A Torá não
constituía obrigatoriamente um valor sacrossanto: Abraão, por exemplo, não observara os mitzvoth. Ele não
comera carne com leite, quando recebeu Javé em Mambré? Os judeus não precisavam separar-se tão
fanaticamente dos Goim. Fazendo amizade com seus vizinhos e estabelecendo com eles um intercâmbio
cultural e econômico, podiam restaurar a unidade primordial que prevalecera antes de a construção da Torre
de Babel provocar o fracionamento da raça humana em diferentes tribos e religiões. Ao visitar Jerusalém, em
173 a.C., o rei Antíoco Epífanes teve uma recepção entusiástica. Jasão conduziu o povo pelas ruas, numa
procissão à luz de tochas, para homenagear seu novo senhor. Pode ter sido nessa ocasião que Jerusalém
formalmente se tornou polis — sob os aplausos da maior parte da população.
Os helenizadores, entretanto, foram longe demais. Em 172 a.C., Jasão encarregou um sacerdote chamado
Menelau de ir a Antioquia para entregar a Antíoco o dinheiro prometido. Menelau, porém, traiu sua
confiança e subornou o rei para obter o sumo sacerdócio. Quando voltou para Jerusalém, Jasão foi deposto e
teve de fugir para não morrer, indo abrigar-se na propriedade dos Tobíadas, perto de Amã, no outro lado
do Jordão. O povo, contudo, não podia aceitar seu sucessor: embora pertencesse a uma família sacerdotal,
Menelau não descendia de Sadoc e, portanto, era inelegível para o cargo. Ademais, pilhou o tesouro do
Templo a fim de conseguir a soma que prometera pagar a Antíoco. A maioria dos jerosolimitas se desiludiu
e abandonou a sociedade dos “antioquenos”, que se tornou um pequeno grupo minoritário, totalmente
dependente do rei selêucida.
Os helenizadores recorreram a algumas táticas duvidosas, mas nem por isso eram cínicos que simplesmente
queriam desfrutar a boa vida da Grécia. A maioria provavelmente desejava de fato um judaísmo menos
exclusivista. Em nosso tempo os judeus que tentaram reformar suas tradições para abraçar a modernidade
atraíram muitos adeptos. Um dos principais erros dos reformadores helenizantes consistiu em não manter
Antíoco plenamente informado a respeito da mudança de opinião que ocorrera em Jerusalém; assim, o rei
talvez não soubesse que seu projeto se tornara muito impopular. Menelau prosseguiu com a tarefa de
converter a cidade em polis. Rebatizou-a com o nome de “Antioquia da Judeia” e continuou incentivando o
gymnasion, a efebia (organização que proporcionava aos jovens treinamento militar e atlético, além de
atividades culturais) e os jogos helenísticos. Mas a reforma sofreu um grave revés em 170 a.C., quando correu
a notícia de que Antíoco fora morto num combate com os romanos no Egito. Jasão tentou um golpe;
marchou sobre Jerusalém e obrigou Menelau e outros antioquenos a abrigar-se na cidadela. Logo teve de
fugir novamente, pois Antíoco, que não morrera, investiu contra a cidade, furioso. Entendendo o golpe como
uma rebelião contra sua autoridade, o rei saqueou o tesouro do Templo, invadiu o recinto sagrado e tomou
para si o altar de ouro, o candelabro, o Véu do Devir e todos os vasos e incensórios em que pôde pôr as
mãos. Por causa dessa violação, que nunca foi esquecida, seria visto no futuro como o inimigo arquetípico
do povo judeu. De polis em formação, Jerusalém passou a simples colônia militar, governada por Menelau
com o suporte de uma guarnição síria. Todavia isso não bastou para assegurar a lei e a ordem. No ano
seguinte, Antíoco teve de mandar outro regimento, que invadiu a cidade no Sabá e derrubou parte de suas
muralhas. Os sírios construíram então uma nova fortaleza, sobranceira ao Templo, que recebeu o nome de
Akra e se tornou o quartel dos selêucidas em Jerusalém. Na verdade Akra se converteu num bairro à parte,
habitado por tropas pagãs e judeus helenistas que veneravam os deuses gregos.
Porém, isso não foi tudo. Possivelmente pressionado por Menelau e seus antioquenos, Antíoco expediu um
edito que marcou para sempre o espírito dos judeus e impossibilitou para muitos a conciliação com o
mundo gentio. Tal edito revogou o estatuto de 200 a.C. e proscreveu a prática do judaísmo, proibindo a
liturgia do Templo, o descanso do Sabá, a circuncisão e a observância das leis da pureza. Foi a primeira
perseguição religiosa da história. A morte constituía o castigo de quem desobedecesse à nova ordem.
Mulheres que circuncidaram seus filhos tiveram de percorrer toda a cidade para acabar sendo jogadas das
muralhas com seus bebês. Uma mãe viu seus sete filhos morrerem e em seu zelo pela Lei exortou cada um
deles a enfrentar a morte; por fim também foi executada. Um homem de noventa anos, chamado Eliezar,
preferiu morrer a comer carne de porco. Com tantos sacrifícios realizados em seu nome, a Torá revestiu-se
de um caráter sagrado inteiramente novo.
Em função do edito, o monte do Templo se transformou. Antíoco derrubou as portas e os muros que
separavam esse espaço santo do resto da cidade e, desafiando deliberadamente as proscrições da Torá, plantou
árvores que converteram o santuário num bosque sagrado ao estilo grego. Os edifícios do Templo, que ele
saqueara dois anos antes, permaneceram vazios e desolados. Em 25 de Kislev [dezembro] de 167 a.C., os
judeus conservadores se estarreceram ao saber que uma “abominação” — provavelmente uma matzevah, ou
pedra ereta — fora colocada junto ao altar dos sacrifícios. Com suas árvores e seu altar a céu aberto, o
santuário agora parecia um velho bamah, como outros que ainda havia em Mambré e no monte Carmelo. O
Templo era agora dedicado a Zeus Olímpio, o que não significava necessariamente que os judeus tivessem de
adorar a divindade grega. Nessa época, “Olímpio” correspondia a “celeste”, assim, a área fora devotada ao
Deus Celeste, designação que podia aplicar-se a Javé e a qualquer outra divindade importante.9
Os helenizadores provavelmente acreditavam que estavam retomando a religião mais simples de Abraão,
que, antes de Moisés introduzir as complexidades da Torá, venerara seu deus em santuários semelhantes. 10
Mais adiante veremos que outros monoteístas planejavam restaurar essa religião primordial em Jerusalém. Ao
cultuar o Deus Celeste, aparentemente tentavam criar um culto racionalizado que atraísse todos os homens
de boa vontade — tanto os gregos de Akra como os judeus antioquenos. Seu programa não diferia muito do
deísmo dos philosophes franceses do Século das Luzes. Tais ideias, porém, horrorizavam a maioria dos judeus.
Incorporou-se então ao judaísmo a convicção apocalíptica de que o justo seria vitorioso no fim dos tempos.
Posteriormente essa convicção estaria presente nas três tradições monoteísticas sempre que um estilo de vida
benquisto fosse atacado, como ocorreu em Jerusalém sob Antíoco Epífanes. Em vez de adotar o etos
racionalizado e secular dos gregos, os autores apocalípticos reafirmaram os valores da velha mitologia.
Quando o presente parecia desesperador, muitos judeus encontravam conforto nas visões de um futuro
triunfante. Para legitimar tais “revelações”, costumavam atribuí-las a augustas personagens do passado, como o
profeta Daniel ou o patriarca Henoc, que no fim da vida foi levado para o céu.
Ao descrever o fim dos tempos, esses videntes seguiram um padrão semelhante. Deus reuniria em Jerusalém
as doze tribos de Israel dispersas pelo planeta e as conduziria à vitória em batalhas terríveis, rememorativas
das lutas divinas no começo dos tempos: o povo de Israel eliminaria todos os seus inimigos, que encarnavam
os males do caos e da destruição, e criaria um mundo melhor. Alguns, porém, ansiavam pela conversão dos
Goim à religião de Javé. O palco desse ato final de redenção era invariavelmente Jerusalém. Agora que
pagãos e judeus renegados haviam profanado o monte Sião, os autores apocalípticos dos livros de Daniel, dos
Jubileus e de Henoc esperavam um futuro em que a cidade se purificaria e Deus construiria um novo
templo. Numa época em que não havia reis autóctones no império grego, imaginava-se um Messias judeu
que levaria o povo ao triunfo final. Tais visões constituíam uma provocadora afirmação da identidade judaica
num momento em que ela parecia particularmente ameaçada. Constituíam uma tentativa de manter a fé em
circunstâncias desesperadoras e não se limitavam a uma pequena minoria. A convicção apocalíptica permeou a
maioria dos movimentos religiosos durante os séculos II e I a.C. e inspirou tanto intelectuais sóbrios —
como Ben Sirac — quanto revolucionários. O fervor visionário não era exclusivo dos judeus. Os gregos se
impressionaram profundamente com os feitos místicos dos sacerdotes egípcios, dos magos persas e dos
brâmanes indianos, que pareciam muito mais espirituais que seus sábios. Isso infundiu nos povos dominados
do Oriente uma boa dose de autoestima. Os gregos podiam ser muito inteligentes, contudo seu discurso
empolado era apenas “arrogante” e “estéril”. Sabiam criar “conceitos vazios” e tinham facilidade para
conduzir brilhantes discussões, afirmava um texto hermético da época, “mas na realidade sua filosofia não
passa de palavras”. Essa afirmação das próprias tradições constituiu uma tentativa de colocar os sofisticados
conquistadores em seu devido lugar.11
Alguns desses visionários imaginavam-se voando pelos ares até o mais alto céu. A ideia de Deus morando
num templo começava a perder a força em muitas regiões do Oriente Próximo. No Egito e na Pérsia dos
séculos II e I a.C., os visionários deixavam de lado o símbolo terreno e viajavam diretamente para o mundo
celestial dos deuses. Essas viagens místicas refletiam o desarraigamento da época: a espiritualidade já não
estava num lugar específico da terra. Algumas pessoas — não todas, porém — buscavam uma liberdade que
não era deste mundo e uma forma diferente de expressão espiritual. Os místicos judeus também começavam
a realizar esses voos imaginários. A palavra apocalipse significa “desvelamento”: como os profetas, esses místicos
afirmavam ter visto o que havia por trás do Véu do Devir. Como a de Amós, Isaías e Ezequiel, sua visão de
Deus era profundamente condicionada pelo culto de Jerusalém. O Devir abrigara a Arca, o Trono de Deus
na terra. Agora, no século II a.C., os visionários se imaginavam subindo para o palácio de Deus no céu e
aproximando-se de seu Trono celeste. O Primeiro Livro de Henoc (cerca de 150 a.C.) relata uma dessas
visões. Em vez de procurá-la no Templo, o autor se imagina subindo pelos ares, impelido pelos ventos, até
a grande casa de mármore situada no céu, rodeada de “línguas de fogo” e “querubins flamejantes”. Não se
trata de pura fantasia. Mais tarde, lemos que os místicos judeus se preparavam para essa ascensão através de
disciplinas especiais, semelhantes às desenvolvidas pelos iogues e contemplativos de todo o mundo. Jejuavam,
colocavam a cabeça entre os joelhos e murmuravam louvores a Deus como se recitassem um mantra. Em
função desses exercícios espirituais, viam “os mais recônditos recessos do coração e as sete salas [do Palácio
divino] com seus próprios olhos, movendo-se de uma sala a outra”.12 Como toda meditação verdadeira, essa
era uma “ascensão para dentro”.
Embora o visionário achasse possível deixar de lado a réplica terrena do palácio divino, o Templo ainda
determinava a maneira como ele se aproximava de Deus. Sua arquitetura constituía uma realidade espiritual,
materializava o mundo interior dos devotos e continuaria representando-o muito tempo depois que o
Templo de Jerusalém deixou de existir. Em Jerusalém, o fiel podia aproximar-se de Deus percorrendo as
zonas de santidade; no mundo celeste, Henoc devia aproximar-se de Deus percorrendo estágios gradativos.
Primeiro tinha de deixar o mundo profano e entrar na esfera divina, como o peregrino que entrava nos
pátios do Templo. A maioria tinha de parar ali, mas Henoc se imaginou como um sumo sacerdote
espiritual. Inicialmente foi conduzido a uma casa cheia de querubins, como o Hekhal, e por fim a um
palácio maior, o equivalente celeste do Devir, onde viu o Trono e a “Grande Glória nele sentada”, entre
chamas vivas.13 Ali recebeu uma mensagem para os judeus e, como o sumo sacerdote no Yom Kippur, voltou
para seu povo, levando-lhe a santidade da Sala do Trono. Esse tipo de misticismo continuaria inspirando os
contemplativos judeus até a Idade Média, quando se incorporou nas disciplinas da Cabala.
Alguns judeus defrontavam os gregos com visões, outros recorriam às armas. Depois que as tropas dos
selêucidas se estabeleceram em Akra e profanaram o monte do Templo, viver em Jerusalém tornou-se
impossível para muitos devotos. Entre eles estavam os Asmoneus, o velho sacerdote Matatias e seus cinco
filhos, que fixaram residência na aldeia de Modin. Quando os oficiais do rei chegaram para impor o novo
culto racionalizado do Deus Celeste, Matatias e seus filhos fugiram para as colinas. Outros judeus piedosos
os seguiram, deixando para trás todos os seus bens, e ali “viveram entre as feras e comiam apenas plantas
silvestres para não se macular”.14 Também moveram uma campanha contra os judeus que se submeteram ao
edito de Antíoco, derrubando os novos altares gregos e circuncidando à força os meninos. Quando Matatias
morreu, em 166 a.C., seu filho Judas, apelidado de Macabeu [Martelo], assumiu a liderança do movimento e
passou a comandar ataques contra as tropas gregas e sírias. Estando os selêucidas muito ocupados na
Mesopotâmia, onde os partos tentavam expulsá-los de seu território, a campanha de Judas alcançou
inesperado sucesso.15 Em 164 a.C., Antíoco se viu forçado a revogar o edito infame e Judas obteve o
controle de Jerusalém, se bem que não conseguisse expulsar de Akra os gregos e os judeus antioquenos.
Ao ver as portas do Templo queimadas e o bosque sagrado no monte Sião, Judas e seus companheiros
rasgaram as roupas e prostraram-se de dor. Depois se empenharam em purificar o local, restaurar o Templo
e, por fim, acender as lâmpadas no candelabro de sete braços do Hekhal. Em 25 de Kislev, o dia em que os
selêucidas profanaram o santuário, três anos antes, realizou-se a rededicação do Templo. 16 Os devotos
percorreram os pátios em procissão, portando palmas e ramos verdes, como na festa de Sucot. E decretaram
que todo o povo judeu celebrasse anualmente essa festa de Hanucá [Dedicação].
A rebelião dos macabeus teve êxito por causa das lutas internas dos selêucidas. Jogando os pretendentes do
trono um contra o outro, Judas e seus sucessores consolidaram sua posição. Em 161 a.C., Judas aliou-se a
Roma, o que sem dúvida o fortaleceu.17 Enfim, por volta de 152 a.C., o movimento dos Asmoneus recebeu
o reconhecimento oficial, quando um dos pretendentes ao trono dos selêucidas confiou o governo do ethnos a
Jônatas, irmão e sucessor de Judas, a quem seu rival nomeou sumo sacerdote. Na festa de Sucot de 152 a.C.,
Jônatas vestiu pela primeira vez o traje sacerdotal, e o povo impressionou-se muito com essa espantosa
reviravolta.18 Jônatas continuou sua luta até 143 a.C., quando um terceiro pretendente ao trono dos
selêucidas o raptou e o matou. Seu irmão Simão conseguiu reafirmar a ascendência dos Asmoneus, e
Demétrio II, o novo soberano selêucida, designou-o governador do ethnos e sumo sacerdote. Judá se tornou
independente do império grego, e pela primeira vez ao longo de séculos seu povo se viu livre do jugo
pagão. No ano seguinte, os gregos e os judeus antioquenos que ainda ocupavam Akra se renderam a Simão,
e a cidadela foi destruída — tarefa que, segundo Josefo, demandou três anos. O aniversário dessa conquista
era comemorado como festa nacional.19
O reino dos Asmoneus

A revolução dos Asmoneus se iniciou como uma rebelião popular contra a cultura grega do poder
imperial. Mas o Estado que se constituiu sob Simão e seus sucessores logo apresentou muitas das
características que tanto indignavam os rebeldes. Quando Menelau recebeu o sumo sacerdócio, os devotos se
escandalizaram porque ele não descendia de Sadoc. Agora os novos governantes se tornaram sumos sacerdotes,
embora não pertencessem a uma família sacerdotal e tampouco fossem descendentes de Sadoc. Parece que
havia pouca diferença entre esse regime judaico e as dinastias pagãs. Os Asmoneus eram bons soldados e
hábeis diplomatas, porém não constituíam nenhum paradigma de perfeição — Simão foi assassinado pelos
próprios filhos. No entanto, depois de séculos de obscuridade e humilhação, a maioria dos judeus se
orgulhava muito de suas realizações. Quando João Hircano (134-04 a.C.), filho de Simão, começou a
conquistar parte do território vizinho, parecia que a época gloriosa do rei Davi havia retornado. Por volta
de 125 a.C., os selêucidas estavam tão enfraquecidos em virtude de suas lutas internas e de suas guerras
contra os partos que Hircano não teve dificuldade em se apoderar da Samaria. Seu primeiro gesto consistiu
em destruir o templo que os samaritanos construíram para YHWH no monte Garizim, perto de Siquém. João
também estendeu suas fronteiras para o sul, até a Idumeia, obrigando os habitantes a converter-se ao
judaísmo e aceitar a circuncisão. Como em tantas revoluções, o regime rebelde se tornara praticamente
idêntico ao que o precedera. Como os selêucidas, os Asmoneus se revelaram imperialistas insensíveis às
tradições religiosas de seus súditos.
Ademais, o ethnos estava se convertendo ironicamente num Estado helenizado. Sob João Hircano, Jerusalém
se expandiu novamente até a Colina Ocidental, sobranceira ao monte do Templo. Ali as ricas famílias
aristocráticas e sacerdotais fixaram residência, desfrutando brisas mais frescas e um ar mais saudável que os
da velha ’Ir David, onde moravam os pobres. Esse bairro ocidental assemelhava-se cada vez mais a uma
cidade grega. Encontraram-se lá poucos remanescentes do período dos Asmoneus, porém é quase certo que
em seu ponto mais alto abrigava um mercado [agora], rodeado de colunas. O gymnasion de Jasão fora
fechado, naturalmente, mas na parte ocidental da cidade havia um xystos, uma praça que numa polis normal
era usada para competições atléticas e em Jerusalém provavelmente funcionava como um ponto de encontro
público. Um dos monumentos dessa época que sobreviveram é a tumba da família sacerdotal de Bene Hezir,
no vale do Cedron, que mostra uma interessante fusão de estilos grego e oriental. Por fim, na vertente leste
da Colina Ocidental, os Asmoneus construíram um palácio, que lhes proporcionava uma esplêndida vista do
Templo20 e era ligado à cidade velha e ao monte do Templo por uma ponte sobre o vale do Tiropeon.
Apesar dessas características helenísticas, o Templo ainda dominava a cidade física, política e
espiritualmente. Causou particular impressão sobre Aristeas, autor de um romance ambientado na época do
rei Ptolomeu II e escrito nos primeiros anos dos Asmoneus. Aristeas descreveu o santuário no cume do
monte Sião, com as casas e ruas amontoadas mais abaixo, como as fileiras de um anfiteatro. Encantou-se
com a imensa cortina na entrada do Hekhal, “semelhante a uma porta sob todos os aspectos”, exceto pelo
fato de que “estava sempre em movimento e ondulava de alto a baixo com o ar que percorria o pavimento
inferior”.21 Também admirou o complexo sistema de cisternas subterrâneas, que fornecia a água usada para
lavar o sangue dos sacrifícios. Garantiu que, colando a orelha ao chão, pôde ouvir o murmúrio da água no
subsolo. Acima de tudo, impressionou-se com a aparência e a habilidade dos sacerdotes, que trabalhavam sem
cessar, sacrificando com total concentração um animal após outro. Precisavam de “extraordinária força
física”22 para erguer os corpos das vítimas e lançar seus membros bem alto, apanhando-os com uma das
mãos. A maior parte de suas tarefas era muito desagradável, mas não havia necessidade de ordenar a ninguém
que retomasse o trabalho depois do descanso regulamentar. Tudo ocorria num silêncio absoluto, quase
sobrenatural, “tão grande por toda parte que se pensaria não haver ninguém no local [...] conquanto sejam
setecentos os sacerdotes e muitos os que levam as vítimas para o Templo; sem embargo tudo é feito com
reverência por sua grande santidade”.23
Tal admiração não era universal entre os judeus. Sem dúvida, todos tinham paixão pelo Templo, mas um
número significativo achava que os Asmoneus haviam danificado sua integridade. Esses anos difíceis levaram
ao surgimento de três seitas na Judeia, que, embora envolvessem uma pequena parcela da população,
exerceriam enorme influência. Suas posições divergentes tornariam quase impossível a união dos judeus contra
um inimigo externo, a menos que, como veremos no capítulo seguinte, surgisse qualquer ameaça à santidade
do Templo. Os saduceus eram os principais partidários dos Asmoneus. Os membros dessa seita provinham
das ricas classes sacerdotais que habitavam a Cidade Alta, na Colina Ocidental. Haviam se helenizado e
queriam manter boas relações com seus vizinhos pagãos, mas também eram leais a velhos símbolos de sua
nação, como o rei, o Templo e a liturgia. À semelhança de outros movimentos nacionalistas que surgiram
então no Oriente Próximo, seu judaísmo tendia para o arcaico: a fidelidade a um passado idealizado
constituía uma forma de enraizar em suas tradições seu entusiasmo pela Grécia. Os saduceus não admitiam
nenhuma adaptação da Torá. Acreditavam que os Asmoneus eram como o rei Davi, que também conjugara o
sacerdócio com a monarquia. Outros judeus, no entanto, horrorizaram-se a tal ponto com os Asmoneus que
abandonaram sua sociedade e empreenderam um novo êxodo no deserto. Seu líder, conhecido como o
Mestre da Retidão, talvez fosse o sumo sacerdote cujo posto Jônatas usurpou — maculando a santidade do
Templo, já que não descendia de Sadoc e, portanto, não poderia ocupar esse cargo. Alguns de seus
seguidores, os essênios, viviam numa comunidade de estilo monástico em Qumran, junto ao mar Morto.
Outros eram menos radicais: moravam nas cidades e continuavam frequentando o Templo, embora o
considerassem irremediavelmente contaminado. Os essênios acalentavam sonhos apocalípticos de um ajuste de
contas final que ocorreria quando Deus redimisse a Cidade Santa e reconstruísse seu Templo. Durante o
reinado de João Hircano, seu número aumentou para cerca de quatro mil, e eles fundaram uma comunidade
em Jerusalém.
A mais popular e influente dessas três seitas, no entanto, foi a dos fariseus, que professavam a observância
minuciosa da Torá. Também achavam que os Asmoneus não deviam exercer o sumo sacerdócio e
acreditavam que o povo viveria melhor sob o jugo de estrangeiros que governado por maus judeus. Talvez
estivessem por trás da rebelião que eclodiu em Jerusalém no começo do reinado de João Hircano e foi
impiedosamente sufocada.24 Opuseram-se a Alexandre Janeu (105-76 a.C.), filho e sucessor de Hircano, e
possivelmente estiveram entre os revoltosos que o atacaram no Templo, quando ele oficiava as cerimônias de
Sucot, arremessando-lhe as frutas que haviam levado em procissão. Logo depois, Alexandre ordenou a
execução de seis mil pessoas.25 Por ocasião de outra revolta, mandou crucificar oitocentos rebeldes e matar
diante de seus olhos suas mulheres e filhos, enquanto observava e se divertia com as concubinas.26 Muitos
viram em tal atitude a prova de que a monarquia, inspiradora de grandes esperanças, não passava de mais
um despotismo helênico.
Alexandre deu continuidade à conquista de novos territórios, de modo que seu reino se estendia em ambos
os lados do Jordão. Aos gentios dos territórios conquistados, ofereceu duas opções: a conversão ao judaísmo
ou a expulsão do país. Sabia que seu governo não gozava de uma popularidade universal e em seu leito de
morte aconselhou sua esposa e sucessora, Salomé, a dar poder aos fariseus, esperando que essa seita tão
influente “pudesse dispor a nação favoravelmente a ela”.27 Salomé seguiu seu conselho, mas não salvou a
dinastia. Depois de sua morte, em 67 a.C., seus dois filhos — Hircano II e Aristóbulo II — engalfinharam-se
numa luta sangrenta, disputando o trono e o sumo sacerdócio, com a ajuda de vários governantes
estrangeiros. O mais importante desses aliados era Antípatro, o idumeu que governou a região sob Alexandre
e agora apoiava Hircano. Os dois irmãos recorreram a Pompeu, o general romano que chegou a Antioquia
em 64 a.C. e depôs o último dos reis selêucidas. Os fariseus também enviaram uma delegação a Pompeu,
pedindo-lhe que abolisse a monarquia em seu país, pois o regime era estranho a suas tradições religiosas.
Jerusalém sob os Asmoneus

A luta entre essas facções teve lugar em Jerusalém. Aristóbulo II e seus partidários refugiaram-se no
Templo e queimaram a ponte sobre o vale do Tiropeon. Hircano II e Antípatro detinham a posse da
Cidade Alta e procuraram o apoio dos romanos, que instalaram uma guarnição no palácio dos Asmoneus.
Pompeu montou seu acampamento ao norte do monte do Templo, no ponto mais vulnerável da cidade.
Aristóbulo resistiu por três meses. Josefo nos conta que o general romano se surpreendeu com a devoção dos
sacerdotes, que continuaram realizando seus sacrifícios, como se não percebessem os projéteis que choviam
nos pátios do Templo. Os sacerdotes não suspenderam suas atividades nem mesmo quando as tropas romanas
finalmente romperam as defesas e invadiram os pátios do santuário, em setembro de 63 a.C., seguidas pelas
tropas de Hircano.28 Doze mil judeus foram mortos, e, para horror de toda a nação judaica, Pompeu entrou
no Templo, atravessou o Hekhal e contemplou a escura santidade do Devir. Ansioso para apaziguar o povo,
ele se retirou instantaneamente e ordenou a purificação do recinto sagrado. Mas o fato é que a ocupação
romana do país que chamavam de Palestina29 começara com uma violação do Templo, e os judeus vigiavam
cautelosamente seus novos senhores para que o sacrilégio não se repetisse.
7. DESTRUIÇÃO

DEPOIS DE SUA VITÓRIA, Pompeu impôs medidas duras ao reino derrotado. Os judeus poderiam governar a
Judeia, a Idumeia, a Pereia e a Galileia, e no futuro os javistas da Samaria e os gentios da planície costeira,
das cidades gregas, do litoral da Fenícia e da Decápole cuidariam de seus próprios interesses. Quem se
recusara a converter-se ao judaísmo e fora expulso do país podia retornar. Aristóbulo II foi preso e levado
para Roma, porém Pompeu recompensou seus aliados. Antípatro recebeu o comando do exército e o governo
da Judeia, mas devia obediência ao legado romano em Damasco. Hircano II foi designado sumo sacerdote, o
que agradou aos partidários dos Asmoneus. Jerusalém, no entanto, havia perdido grande parte de seu
prestígio político: com suas muralhas destruídas por Pompeu, era apenas a capital de uma subprovíncia sem
acesso ao mar, e separava-a da Galileia um território controlado por samaritanos e gentios que não tinham
motivo nenhum para ser amistosos com os judeus.
Os Asmoneus tentaram reafirmar seu poder. Aristóbulo fugiu da prisão e voltou para Jerusalém, onde
começou a reconstruir as muralhas. Em 57 a.C., Gabínio, o legado sírio, sufocou sua insurreição e enviou-o
para Roma, juntamente com seu filho Alexandre. A Palestina tinha, contudo, importância estratégica para os
romanos, que não queriam hostilizar gratuitamente seus súditos judeus. Assim, os outros filhos de Aristóbulo
permaneceram no país, Hircano se manteve no posto de sumo sacerdote e a presença dos Asmoneus
continuou sendo poderosa. Antípatro, entretanto, ainda detinha mais poder que os outros. Era um governante
esperto e respeitado pelos judeus, embora pertencesse a uma família de idumeus recém-convertidos ao
judaísmo e vistos como etnicamente distintos. Sem esquecer que deviam sua posição a Roma, ele e sua prole
acompanhavam com atenção a política turbulenta do império, mudando habilmente de lado sempre que um
de seus protetores caía em desgraça. Quando Júlio César derrotou Pompeu, em 49 a.C., Antípatro apoiou o
vencedor, que o recompensou designando-o prefeito da Judeia e permitindo-lhe reconstruir as muralhas de
Jerusalém. Os judeus recuperaram o porto de Jope e o vale de Jezrael, e Herodes e Fasael, filhos de
Antípatro, tornaram-se tetrarcas respectivamente da Galileia e da Judeia. Ambos herdaram a astúcia do pai,
muito necessária naqueles anos conturbados. Em 15 de março de 44 a.C., uma conspiração de senadores
liderada por Marco Bruto e Caio Cássio eliminou Júlio César em Roma. No mesmo ano, Antípatro foi
assassinado por um velho inimigo da família. Herodes e Fasael tornaram-se protegidos de Cássio, mas
continuaram observando com muito cuidado a evolução dos acontecimentos. Assim, estavam prontos para
mudar de partido novamente, se necessário fosse, quando Otávio, sobrinho-neto e filho adotivo de César, e
Marco Antônio declararam guerra a Bruto e Cássio e os derrotaram na batalha de Filipos, em 42 a.C.
Herodes e Fasael trataram de conquistar as boas graças de Marco Antônio, que agora controlava as
províncias orientais do Império Romano. Uma nova era de paz e prosperidade estava prestes a iniciar-se, e
os filhos de Antípatro desfrutavam a proteção de Roma.
Em 40 a.C., porém, os romanos perderam o controle da Palestina, quando os partos da Mesopotâmia
romperam suas linhas defensivas, invadiram o país e instalaram no poder o príncipe asmoneu Antígono.
Fasael caiu prisioneiro e acabou sendo obrigado a suicidar-se no cativeiro. Herodes, todavia, conseguiu fugir
para Roma, onde convenceu os senadores de que era muito capaz de governar a Palestina em nome do
império e deles obteve o título de rei dos judeus. Em 39 a.C., voltou para seu país, conquistou a Galileia
com a ajuda de Marco Antônio e em 37 a.C. sitiou Jerusalém durante quatro meses, tomando a cidade após
um terrível massacre. Milhares de judeus foram mortos nas ruas estreitas e nos pátios do Templo onde se
refugiaram. A pedido de Herodes, Marco Antônio executou Antígono, o Asmoneu, sendo essa a primeira vez
em que os romanos infligiram a pena capital a um rei subjugado.
Instalado em Jerusalém, Herodes governou com plenos poderes, pois os romanos se retiraram, certos de
que a província estaria segura em suas mãos. A brutalidade com que capturara a cidade não o impediu de
ter partidários entre os judeus. Os fariseus, que ainda se opunham aos Asmoneus, ofereceram-lhe seu apoio.
Por outro lado, o casamento com a princesa Mariamne, a Asmoneia, conferiu-lhe certa legitimidade perante
os seguidores dessa dinastia. Em 36 a.C., Herodes cometeu um erro, confiando o sumo sacerdócio a Jônatas,
irmão caçula de Mariamne. Ao ver o jovem trajando a veste sagrada na festa de Sucot, a população chorou
de emoção e o aclamou pelas ruas. Imediatamente o rei mandou matá-lo e o substituiu por um homem de
sua confiança. Ao longo da vida, Herodes nunca hesitou em eliminar implacavelmente quem quer que
desafiasse sua autoridade. Apesar disso, foi um soberano habilidoso, capaz de impor a paz em seu reino
potencialmente instável, onde não ocorreram rebeliões até o fim de seu governo.
Prova de seu poder era a facilidade com que designava e depunha sumos sacerdotes a seu bel-prazer, sem
provocar revoluções. Sabe-se que esse cargo despertava violentas paixões e até então era vitalício; agora
adquiria conotações políticas, sem no entanto perder o brilho, pois ninguém via seus detentores como
simples títeres. Herodes achou necessário guardar as vestes cerimoniais do sumo sacerdote na cidadela e
liberar seu uso apenas nas grandes festas: elas conferiam a seu portador uma aura celestial e o capacitavam a
aproximar-se de YHWH em nome dos fiéis. Sua guarda constituía prioridade em Jerusalém, e só o imperador
poderia autorizar sua entrega definitiva à casta sacerdotal. O homem que as trajava assumia o manto do
poder divino e se tornava capaz de ameaçar o trono.
Embora a seu modo fosse bastante devoto, Herodes de bom grado admitiu outras religiões na Palestina e
nos territórios vizinhos. Ao contrário dos Asmoneus, não interferiu na vida religiosa de seus súditos e
considerava politicamente inábil forçar a conversão ao judaísmo. Dentro e fora de seu reino, edificou, em
cidades gentias, santuários que dedicou a deuses gregos e romanos e, quando o imperador Otávio se declarou
divino, foi um dos primeiros a erguer-lhe um templo em Samaria, que rebatizou com o nome de Sebaste, o
equivalente grego de Augusto, o novo título imperial. Nessa época, mudara de partido mais uma vez, depois
que seu protetor Marco Antônio fora derrotado por Otávio na batalha de Actium. Ainda em homenagem a
Augusto, em 22 a.C. começou a construir no local do velho porto de Torre de Estratão a cidade de
Cesareia, com templos de divindades romanas, um anfiteatro e um porto que rivalizava com o Pireu.
Tratava-se de um presente para seus súditos pagãos, entre os quais gozava de imenso respeito. Uma das
últimas honrarias que o mundo greco-romano lhe concedeu foi a presidência dos Jogos Olímpicos.
Igualmente cauteloso em não ofender os judeus, Herodes jamais sonharia erguer um templo pagão em
Jerusalém. Seu ambicioso programa de edificações — o maior já realizado por um governante secundário —
incluiu a transformação da Cidade Santa numa das mais importantes metropoleis do Oriente. Sempre
preocupado com segurança, começou, em 35 a.C., por erguer uma maciça fortaleza no ponto mais vulnerável
da cidade, ao norte do monte do Templo, onde se situava a cidadela construída por Neemias. Em
homenagem a Marco Antônio, com quem ainda mantinha boas relações, chamou a nova fortaleza de Antônia.
O local escolhido era o topo de uma rocha escarpada, de 22 metros de altura, cuja encosta íngreme recebeu
um revestimento de pedras lisas para impossibilitar a escalada. O edifício, com forma retangular e 18 metros
de altura, tinha quatro torres, uma em cada canto, e podia abrigar uma guarnição numerosa. Contudo,
apesar de sua formidável aparência militar, era tão luxuoso quanto um palácio. Um fosso profundo, chamado
Struthion, rodeava a fortaleza, separando-a do novo bairro de Bezetha, que se desenvolvia no norte. Ali,
Herodes provavelmente construiu o duplo reservatório que podemos ver ainda hoje perto da piscina de
Betesda, escavada por Simão, o Justo.
A verdadeira transformação de Jerusalém só teve início por volta de 23 a.C., depois que Herodes
conquistou o respeito de seus súditos, abastecendo-os de alimentos durante a fome de 25-24 a.C. Muitos
jerosolimitas arruinados encontraram emprego nos canteiros de obras, o primeiro dos quais foi o do palácio
real, construído na Colina Ocidental da Cidade Alta e fortificado por três torres, que Herodes batizou com
os nomes de seu irmão Fasael, de sua querida esposa Mariamne, a Asmoneia, e de seu amigo Hípico. Todas
tinham bases sólidas, com cerca de 15 metros de altura; uma dessas bases, provavelmente a da torre Hípico,
ainda se encontra na cidadela de Jerusalém, sendo conhecida hoje como a Torre de Davi. O palácio se
compunha de dois grandes edifícios, um dos quais foi chamado de Caesareum em homenagem a Otávio;
uniam-nos belos jardins aquáticos, com cisternas e profundos canais margeados por estátuas de bronze e
fontes. Herodes, ao que tudo indica, também redesenhou as ruas da Cidade Alta num sistema de grade que
facilitou o tráfego e o planejamento urbano. A Cidade Alta abrigava ainda um teatro e um hipódromo, cuja
localização exata desconhecemos. A cada cinco anos, os jogos realizados em homenagem a Augusto atraíam
para Jerusalém numerosos atletas de prestígio.
No reinado de Herodes, Jerusalém se tornou uma cidade imponente e ilustre, que abrigava cerca de 120
mil habitantes permanentes. Suas muralhas foram reconstruídas, mas até hoje os estudiosos discutem sobre o
curso que seguiam. Josefo nos diz que a Primeira Muralha cercava a Cidade Alta e a Baixa no local da
antiga ’Ir David, e a Segunda rodeava o novo bairro comercial que se estendia da Antônia à antiga muralha
setentrional construída pelos Asmoneus.1 Na Cidade Baixa havia outros palácios, mais modestos, dentre os
quais se destacava o dos Adiabênios, família real da Mesopotâmia que se convertera ao judaísmo. Eles
também edificaram, extramuros, o grande mausoléu conhecido atualmente como Túmulo dos Reis. Outras
sepulturas, semelhantes a cavernas e geralmente protegidas por uma pedra, começaram a surgir nas colinas e
vales próximos às muralhas, para que os cadáveres não contaminassem a Cidade Santa. O mais famoso desses
túmulos herodianos ainda pode ser visto no vale do Cedron, perto do mausoléu da família Bene Hezir.
Consiste em uma coluna comemorativa e um sepulcro que mais tarde os peregrinos chamariam,
respectivamente, de Coluna de Absalão e Tumba de Josafá.
A Jerusalém de Herodes
4 a.C.-70 d.C.

Por volta de 19 a.C., Herodes decidiu reconstruir o Templo. A população naturalmente ficou preocupada:
e se o rei demolisse os edifícios existentes e depois não tivesse dinheiro para dar continuidade à obra? Será
que ele observaria as prescrições da Torá? Suas construções costumavam ser extraordinariamente inovadoras,
mas a planta do Templo fora revelada por Deus a Moisés e a Davi e não deixava margem à originalidade.
Herodes tratou de afastar esses receios. Só deu início aos trabalhos depois que reuniu todo o material
necessário e reproduziu meticulosamente a planta e as dimensões dos velhos prédios. Para que os leigos não
violassem as áreas proibidas, fez mil sacerdotes aprenderem os ofícios de pedreiro e carpinteiro e confiou-lhes
a construção do Hekhal e do Devir. Ele mesmo nunca entrou no edifício que sempre seria lembrado como
sua obra-prima. As obras se estenderam por dezoito meses, mas foram planejadas de tal modo que não
interromperam os sacrifícios nem por um único dia. Graças a essa continuidade do culto, o santuário de
Herodes tornou-se conhecido como o Segundo Templo, embora fosse na verdade o Terceiro.
Se não podia alterar o tamanho ou a forma do Templo, Herodes podia, no entanto, fazê-lo mais bonito.
Revestiu as paredes de mármore branco, com veios avermelhados e azuis, “como as ondas do mar”.2 Cobriu
de ouro as portas do Hekhal, decorou-as com “vinhas douradas, das quais pendiam cachos da altura de um
homem”,3 e guarneceu-as com uma inestimável cortina de linho escarlate, azul e púrpura, com bordados que
representavam o sol, a lua e os planetas.
Já que tinha de observar as proporções modestas dos edifícios, tratou de satisfazer seu desejo de imensidão
ampliando a esplanada. Essa obra gigantesca demandou cerca de oitenta anos — Herodes não a viu concluída
— e dezoito mil trabalhadores. Depois de pronta, ocupava uma área de aproximadamente catorze hectares,
muitas vezes maior que a original. Como agora se estendia para além do cume do monte Sião, precisava de
uma maciça subestrutura de abóbadas e pilares. Os novos muros de sustentação eram “os maiores de que já
se ouviu falar”, informa Josefo:4 algumas pedras pesavam de duas a cinco toneladas. O velho muro oriental,
que coincidia com a muralha da cidade, permaneceu onde estava, pois Herodes não quis estender a esplanada
para o leste. A partir de então, esse lado ficou associado com Salomão, o primeiro construtor do monte
Sião. O muro ocidental era o mais longo, medindo cerca de 477 metros desde a Antônia até a extremidade
meridional. Em sua base situava-se o Mercado Baixo, que pertencia aos sacerdotes e gozava de grande
popularidade entre os turistas e os peregrinos. Junto a ele surgiram lojas, cobrindo as três primeiras fiadas de
pedras. Os edifícios do conselho municipal e do arquivo nacional também se localizavam ao pé do muro
ocidental. Na esplanada do Templo, os muros de sustentação eram encimados em três lados por pórticos
com colunas, no estilo grego, mais ou menos como os do atual H. aram al-Sharif. Toda a extremidade sul
da esplanada consistia numa vasta área coberta, guarnecida de colunas, semelhante à basílica do fórum
romano; ali as pessoas se protegiam da chuva e, no verão, refrescavam-se na sombra. Esse Pórtico Real tinha
aproximadamente o tamanho da catedral de Salisbury, com 180 metros de comprimento e 30 no ponto mais
alto. Erguendo-se acima do muro de sustentação meridional, revestido de um reluzente mármore branco,
inspirava admiração e temor. Visto de longe, o monte do Templo resplandecia. O ouro do santuário
“refletia um clarão tão intenso que os que tentavam contemplá-lo tinham de desviar os olhos”, lembra
Josefo. “À distância parecia uma montanha coberta de neve, pois todas as partes que não apresentavam
revestimento dourado eram de um branco ofuscante.”5 Não surpreende que muito tempo depois de sua
destruição os rabinos dissessem: “Quem não conheceu o Templo de Herodes nunca na vida viu um belo
edifício”.6
Para entrar nos pátios do santuário, os peregrinos podiam escolher entre dois caminhos: subir a imponente
escadaria que levava ao Pórtico Real, ou cruzar as duas pontes que se estendiam acima da rua, junto à base
do muro de sustentação ocidental. Chegando à esplanada, os visitantes descobriam que um intricado sistema
de pátios, cada qual mais santo que o anterior, conduzia à santidade central do Devir (ver a planta). O
primeiro era o Pátio dos Gentios, que uma elegante balaustrada separava do Pátio dos Israelitas (exclusivo
dos homens judeus que se encontravam no estado de pureza ritual). Placas informavam aos estrangeiros que
deviam parar ali, sob pena de morte. Além da barreira, encontrava-se o Pátio das Mulheres, que se
instalavam numa galeria elevada para assistir aos sacrifícios realizados no pátio do altar. Seguiam-se o Pátio
dos Levitas e por fim o dos Sacerdotes, que abrigava o grande altar dos sacrifícios.
Essa aproximação gradativa do santuário lembrava aos fiéis que estavam realizando uma aliyah [ascensão] a
uma ordem do ser totalmente diversa. Tinham de preparar-se para isso mediante vários ritos de purificação
que intensificavam sua sensação de subida, afastando-os de sua vida normal. Estavam prestes a entrar na
esfera de seu santo Deus e durante toda a sua visita deviam manter-se no mesmo estado de pureza ritual dos
sacerdotes. Deviam purificar-se principalmente de qualquer contato com a morte, a maior de todas as
impurezas, que era impossível evitar no cotidiano: podia-se pisar no local de uma velha tumba sem perceber.
As grandes mudanças da vida, como o parto, também eram impuras, não porque fossem consideradas sujas
ou pecaminosas, mas porque Deus se situava acima de toda alteração e os fiéis tinham de partilhar
simbolicamente essa imutabilidade se queriam estar onde ele estava. Os peregrinos que chegavam a Jerusalém
sem ter sido purificados pelos sacerdotes de sua terra precisavam esperar sete dias para subir o monte do
Templo. Nesse período, deviam abster-se de sexo e nos terceiro e sétimo dias passavam pelo ritual da
aspersão com água, do polvilhamento com cinzas e do banho. Essa espera forçada permitia-lhes preparar-se e
examinar-se espiritualmente. Lembrava-lhes a viagem interior que precisavam empreender ao “ascender” à
realidade suprema e ingressar numa dimensão totalmente diversa.
Quando finalmente chegavam à esplanada, levando os animais que pretendiam oferecer em sacrifício no
Pátio do Altar, sentiam que haviam entrado num modo de existência mais intenso. A realidade se condensava
nesse espaço exclusivo. Tudo indica que nessa época havia se modificado o simbolismo do Templo, visto
agora como um microcosmo do universo. Josefo, que atuara como sacerdote, explica suas imagens cósmicas.
O Pátio dos Gentios ainda estava associado a Yam, o mar primordial, que, opondo-se ao mundo organizado
do sagrado, constituía um desafio perpétuo, que se devia ter em mente e superar. O Hekhal, ao contrário,
expressava o conjunto do mundo criado; sua cortina simbolizava os quatro elementos e “toda a visão dos
céus”; as lâmpadas do grande candelabro representavam os sete planetas; e os doze pães da proposição
lembravam os signos do zodíaco e os doze meses do ano. O altar dos perfumes, com suas treze especiarias
“do mar e da terra (habitada e desabitada), significava que todas as coisas vieram de Deus e para Deus”.7
Fílon de Alexandria (c. 30 a.C.-c. 41 d.C.), que esteve em Jerusalém como peregrino, também conhecia esse
simbolismo.8 Platônico, observou que o mobiliário do Hekhal representava os arquétipos celestes e tornava
inteligíveis e visíveis ideias que transcendem nossa experiência.9 O traçado do monte do Templo reproduzia
o caminho que levava a Deus. O devoto passava do mundo terreno comum ao reino marginal do caos, do
mar primordial, e os Goim ao mundo organizado que Deus criara, mas sua visão era diferente. Agora o
mundo revelado inexoravelmente conduzia a Deus; através da vida na terra, chegava-se ao divino, assim
como, através do Hekhal, o sumo sacerdote chegava à realidade suprema, transcendental, que dava sentido ao
todo. Simbolizava-a, naturalmente, o Devir, separado do Hekhal e do mundo visível por mais um véu. O
Devir estava vazio porque representava algo que ultrapassava nossos sentidos e conceitos: “Ali não havia
absolutamente nada”, diz Josefo; “era inacessível, inviolável e invisível a todos”.10
Os arredores do templo de Herodes
Segundo E. P. Sanders
Os pátios internos e o santuário
Segundo E. P. Sanders

1. A fortaleza Antônia 13. Pátio dos Gentios 22. Pórticos internos


14. Entrada para a
praça, ligada por um 23. Muro separando
2. Muro de sustentação
túnel homens e mulheres
a (10)
3. Rua junto ao muro 15. Saída da praça, ligada 24. Segunda porta leste
de sustentação ocidental por um túnel a (9) para varões
4. “Arco de Wilson”, sobre 16. Balaustrada e escada
25. Altar dos holocaustos
o vale do Tiropeon proibidas aos gentios
5. “Arco de Robinson”,
17. Esplanada e escada
dando para a rua mais 26. Pátio dos Israelitas
internas
abaixo
27. Parapeito separando
6. Lojas 18. Muro interno
sacerdotes e leigos
19. Porta leste para
7. Pórticos 28. Pátio dos Sacerdotes
varões
8. Pórtico Real 20. Portas sul e norte para mulheres 29. Entrada do santuário
9. Porta de saída 21. Pátio das mulheres 30. Hekhal
10. Porta de entrada 31. Devir
11. Pórtico de Salomão 32. Andares superiores
12. Monte das Oliveiras

Reforçava o distanciamento do Deus santo o fato de que só os sacerdotes podiam se aproximar do centro
da santidade. Josefo explica que as vestes do sumo sacerdote também tinham um significado cósmico: a
túnica simbolizava o céu e a terra, e o restante do traje, os quatro elementos. Fazia sentido, pois o sumo
sacerdote oficiava no Hekhal como representante não só de “toda a raça humana, mas também das partes da
natureza — terra, água, ar e fogo”.11 Quando entrava no Devir, porém, no dia do Yom Kippur, usava uma
vestimenta de linho branco, a roupa dos anjos, que eram igualmente mediadores entre as esferas celeste e
terrena. O espaço sagrado ainda podia proporcionar uma forte experiência de uma presença que transcendia
toda expressão antropomórfica. Os rituais de preparação, a escalada do monte e a gradativa santidade dos
pátios e dos edifícios do Templo contribuíam para fazer o devoto sentir que havia entrado em outra
dimensão, coexistente com a vida normal e totalmente distinta. Os graus de santidade se assemelhavam aos
patamares do zigurate mesopotâmico; transformavam a superfície plana do monte do Templo numa simbólica
montanha sagrada que levava ao reino divino no “cume” do Devir. As imagens do Templo proporcionavam
aos fiéis uma paisagem que ressaltava o verdadeiro significado do mundo terreno, presente no centro da
existência. O conjunto da vida — inclusive as forças destrutivas de Yam — podia dar acesso à santidade
oculta do Devir.
Na época de Herodes, Jerusalém atraiu mais peregrinos que nunca: entre trezentos mil e quinhentos mil,
procedentes do restante da Palestina e da Diáspora, devem ter se reunido ali nas grandes festas da Páscoa,
das Semanas, ou Pentecostes, e de Sucot.12 Apesar da ênfase na purificação, essas ocasiões nada tinham de
triste ou solene. As peregrinações ensejavam férias familiares. Durante a longa viagem os peregrinos comiam
juntos, tomavam vinho, brincavam, riam e entoavam canções populares. Quando chegavam a Jerusalém,
tinham início as festividades. Alguns se alojavam na cidade, em casas particulares ou na sinagoga; outros
preferiam acampar nas colinas e nos vales. Todos deviam levar um dízimo especial, que não tinham de usar
necessariamente para fins religiosos. Podiam comprar carne, vinho ou o que mais lhes aprouvesse. Nessa
atmosfera descontraída, surgiam novas amizades, e os peregrinos voltavam para casa com uma ideia mais
elevada da solidariedade judaica: os elos da caridade se reforçavam, bem como o elo cultual com Deus.13
A alegria reinava também nas festas propriamente ditas. Havia um clima de feriado durante os oito dias de
Sucot, quando as pessoas acampavam em suas cabanas de folhagens, espalhadas por toda a cidade. A Páscoa
era uma celebração particularmente popular. Cada grupo familiar sacrificava no Templo um cordeiro pascal
e o comia à noite numa ceia que lembrava a libertação de seu povo do Egito. A vibrante Festa da Tiragem
da Água unia simbolicamente o mundo superior e o inferior. Nessa época, a cosmologia israelita concebia a
Terra como uma cápsula cercada de água: as águas superiores — masculinas — e as perigosas águas
subterrâneas — femininas, como Tiamat — precisavam unir-se. Situando-se no centro do mundo, Jerusalém
era o local onde todos os níveis de existência podiam se encontrar. Uma vez por ano tiravam-se
simbolicamente os “tampões” do mundo subterrâneo e as águas superiores e inferiores se misturavam,
enquanto os fiéis exultavam. Mais tarde os rabinos diriam que quem não participara dessa festa não sabia o
que vinha a ser alegria.14 A celebração reconhecia o poder do caos primordial, que precisava invadir o
mundo para assegurar a vitalidade, a criatividade e a fecundidade ao longo do ano seguinte.
O Templo continuou sendo o eixo da espiritualidade judaica no reinado de Herodes, mas vários judeus
começavam a procurar outros caminhos que levassem a Deus. Vimos que alguns passaram a prescindir do
Templo ao empreender o voo místico rumo à realidade que ele simbolizava, sobretudo na Diáspora. Os
judeus também se reuniam em sinagogas e outros pontos de encontro, onde estudavam a Torá e entravam
no reino espiritual sem viajar para Jerusalém.15 Mesmo na Palestina havia os que já viviam a experiência de
Deus na comunidade dos fiéis. Os fariseus continuavam devotados ao Templo. Na época de Herodes, a
escola de Shammai os incitava a separar-se do mundo pagão mais rigorosamente que nunca: não podiam
comer com Goim, falar grego ou aceitar presentes de gentios. Assim contribuiriam para reforçar a pureza do
Templo, que durante muito tempo dependera do apoio de governantes pagãos. No entanto, a comunidade
imaginada por Shammai também refletia a antiga geografia sagrada, que excluíra os gentios do âmbito da
santidade.
Hillel, rival de Shammai, preocupava-se igualmente com pureza e distanciamento, mas também ressaltava a
importância da caridade. Ao que tudo indica, no período dos Asmoneus o ideal da compaixão desapareceu.
Após o trauma de Antíoco Epífanes, passou-se a enfatizar a pureza de Jerusalém e seu Templo, não a
preocupação social que sempre constituíra um complemento essencial do culto de Sião. Agora os fariseus de
Hillel viam as obras de caridade e bondade como os mitzvoth mais importantes da Torá: podiam ser uma
expiação tão eficaz quanto o sacrifício realizado no Templo. 16 Alguns fariseus formavam confrarias especiais,
cujos membros [haberim] juravam viver sempre no estado de pureza ritual necessário ao culto do Templo.
Era um modo simbólico, talvez, de assegurar a presença de Deus em suas próprias casas e tornar suas mesas
tão sagradas quanto o grande altar do Pátio dos Sacerdotes. As refeições coletivas dos haberim eram sagradas,
como as dos sacerdotes que comiam as vítimas dos sacrifícios.17 Esse tipo de piedade fazia de cada casa um
templo e levava a realidade sagrada de Jerusalém à mais humilde choupana.
Da mesma forma, no final do reinado de Herodes, a seita de Qumran também via sua comunidade de
verdadeiros israelitas como um novo templo espiritual. Seus membros não queriam ter nenhuma relação com
o Templo contaminado, porém em seu exílio voluntário entravam na sala de refeições como se entrassem
num santuário sagrado. Antes de comer, banhavam-se com água fria e vestiam uma tanga de linho, como os
sacerdotes do Templo faziam ao ingerir a carne dos sacrifícios. Entretanto, substituíam os sacrifícios por
orações e consideravam tudo isso um arranjo provisório. Ansiavam pelo dia em que, conduzidos por dois
messias — um sacerdote e um leigo —, combateriam as forças das trevas numa guerra final para libertar
Jerusalém. Então restaurariam a Cidade Santa e Deus reconstruiria o Templo. Os sectários de Qumran se
chamavam de Evionim, os Pobres. Só eles eram os verdadeiros habitantes de Sião, o porto seguro dos pobres
e dos humildes. Quando rezavam por essa Nova Jerusalém, usavam termos que geralmente se aplicavam a
Deus:
Eu me lembrarei de ti, ó Sião, como uma bênção;
com todas as minhas forças eu te amo;
tua lembrança para sempre é bendita.18
A Torá mandava os judeus amarem apenas a YHWH com todas as suas forças; ele era a única fonte de
bênção, e só sua lembrança seria bendita para sempre. O uso dessas palavras no hino de Qumran nada tinha
de acidental: os sectários eram monoteístas zelosos. Mas o divino nunca se revelou diretamente à
humanidade, e durante séculos Jerusalém fora um dos símbolos primários que facultaram aos judeus a
experiência do Deus inacessível. Para os sectários de Qumran, Sião era inseparável da paz, da bênção e da
salvação essenciais à experiência de Deus e, apesar do triste estado da cidade terrena sob Herodes, ainda
constituía um valor religioso dos mais sagrados.
No entanto, Qumran expressava as formas de judaísmo mais militantes que estavam surgindo na Palestina.
Em todo o mundo greco-romano, nostálgicos sonhos de nacionalismo começavam a ser acalentados.
Restauravam-se templos e mitos, sobretudo os relacionados com o tema da “resistência”. Assim, as visões
apocalípticas de Qumran reavivavam os antigos mitos de combate que levaram à fundação de um templo, à
construção de uma cidade e à criação de uma ordem adequada. Os judeus comuns viam as grandes festas
como uma celebração da natureza sagrada da nação e da pátria. A Páscoa comemorava a libertação nacional;
a festa das Semanas [Shavuoth] lembrava-lhes que a terra pertencia unicamente a YHWH — não a Roma.
Sucot, que recordava os anos vividos no deserto, era também o aniversário da dedicação do Templo. Quando
se reuniam em grande número diante de seu Deus, no santuário nacional, seus sentimentos se exaltavam, mas
os devotos só ousaram expressá-los em 4 a.C., quando souberam que o poderoso Herodes estava à morte.
A ocasião era significativa. Herodes acintosamente acabara de erigir sobre a Porta do Templo uma águia
de ouro, símbolo de Júpiter e da Roma imperial. Ao tomar conhecimento de que o governante agonizava,
Judas e Matias, dois mestres respeitados, sugeriram a seus discípulos que ali estava uma esplêndida
oportunidade de derrubar a águia. Tratava-se de um gesto perigoso, mas que glória seria morrer pela Torá
dos antepassados! Pensando assim, os jovens subiram no alto do Pórtico Real e, seguros por fortes cordas,
despedaçaram a águia a machadadas. Agiram prematuramente. Fortalecido pela raiva, Herodes deixou o leito,
adiou o próprio fim e condenou à morte os discípulos e os mestres. Quando morreu, dias depois, comentou-
se que sua agonia constituiu o castigo pela execução desses santos “mártires”.19 Convém assinalar que se
tratou de um gesto isolado. Nunca houve uma tentativa — e possivelmente nem o desejo — de assassinar
Herodes ou libertar-se da hegemonia romana. A poluição do Templo motivou um ato que visara unicamente
reparar a profanação. Sempre seria assim. Desde que um governante não se intrometesse no Templo, os
judeus o toleravam, mas qualquer ameaça ao recinto sagrado podia desencadear violência, derramamento de
sangue e terríveis represálias.
Herodes matara sua querida esposa, Mariamne, em 29 a.C., e pouco antes de morrer eliminara três de seus
filhos, pois acreditava — com razão — que tramavam contra ele. Quanto a seus outros filhos — Arquelau,
Filipe e Antipas —, manteve-os a rédea tão curta que não sabia qual deles poderia substituí-lo. Ao morrer,
deixou dois testamentos, de modo que coube a Augusto decidir o destino de seu reino. O imperador
chamou os três herdeiros a Roma, porém na véspera de sua partida Jerusalém recebeu grande número de
peregrinos, que para lá se dirigiram a fim de celebrar a Páscoa, e a morte dos santos mártires ainda
suscitava grande comoção. Os jerosolimitas organizaram uma manifestação de luto, enchendo a cidade de
lamentos. A atmosfera de raiva, medo e dor não tardou a contagiar os peregrinos. Por fim, julgando-se
incapaz de controlar a turba, Arquelau mandou suas tropas ocuparem os pátios do Templo logo após o
sacrifício dos primeiros cordeiros pascais. Três mil pessoas perderam a vida. O santuário foi novamente
profanado, dessa vez não por um símbolo pagão, mas por soldados judeus que derramaram sangue judeu.
Cinco semanas depois, estando Arquelau em Roma, um novo tumulto ocorreu em Jerusalém durante a festa
de Pentecostes, e Sabino, prefeito da Síria, teve de enviar uma legião para a Judeia. Dezenas de milhares de
jerosolimitas e peregrinos ergueram barricadas nas ruas e atacaram os soldados romanos. Sabino só conseguiu
conter a violência da multidão ateando fogo aos pórticos do monte do Templo. Depois os romanos
crucificaram dois mil rebeldes.20
Houve distúrbios em vários pontos da Palestina, o que deve ter convencido o Senado de que Herodes era
insubstituível como rei dos judeus. Antipas e Filipe tornaram-se tetrarcas da Galileia, da Pereia e das outras
regiões setentrionais; governaram com sucesso e mantiveram suas posições por muitos anos. Arquelau
retornou à Judeia como simples etnarca e adotou com relação a judeus e samaritanos uma política tão
implacável que em 6 d.C. acabou sendo deposto e banido. Desse momento em diante, a Judeia passou a ser
governada por prefeitos romanos, que transferiram a capital para a nova cidade de Cesareia, a segura e
respeitável distância da turbulenta santidade de Jerusalém. Nos primeiros tempos da ocupação romana, houve
agitações na Galileia, contudo seria errôneo imaginar que toda a Palestina se opunha a Roma. Isso nunca
ocorreria. Após a morte de Herodes, alguns judeus enviaram uma delegação a Augusto, pedindo-lhe
especificamente que mandasse um governador romano para o país; os fariseus em particular ainda combatiam
qualquer forma de monarquia judaica. A ocupação romana não era a ideal, mas certamente era muito melhor
que a dos outros impérios que governaram os judeus no passado. Com poucas e tristes exceções, as
autoridades romanas fizeram o possível para não ferir as suscetibilidades religiosas dos judeus e tentaram
cooperar com os sumos sacerdotes. Desejosos de preservar a paz, os sumos sacerdotes vigiavam atentamente
os possíveis agitadores, não porque fossem colaboracionistas e bajuladores, e sim porque queriam impedir
sacrifícios inúteis como os que ocorreram nos tumultos subsequentes à morte de Herodes. Não precisavam
ter grandes qualidades; em 18 d.C., Caifás assumiu o cargo e se tornou o sumo sacerdote mais competente
do período romano.
No entanto, nem mesmo Caifás pôde controlar a turba furiosa quando o Templo sofreu mais uma
profanação em 26 d.C. Numa atitude de franca provocação, o novo prefeito, Pôncio Pilatos, mandou suas
tropas entrarem em Jerusalém na calada da noite e pendurarem estandartes exibindo o retrato de César no
alto da Antônia, a curta distância do Devir. Quando os judeus viram essa abominação, na manhã seguinte,
velhos medos que remontavam à época de Antíoco Epífanes emergiram, e uma multidão enfurecida marchou
até Cesareia e acampou diante da residência do prefeito. Em geral as cisões existentes na Judeia não
permitiam que os judeus formassem uma frente compacta, mas uma ameaça ao Templo imediatamente os
incitava à união. Dessa vez, porém, não houve violência. Talvez por terem aprendido uma dura lição em 4
a.C., os manifestantes recorreram à resistência pacífica. Durante cinco dias permaneceram acampados, até que
Pilatos os chamou ao anfiteatro de Cesareia, dizendo que agora estava pronto para lhes dar uma resposta.
Todavia, assim que os viu reunidos, fez um sinal para suas tropas, que surgiram em todos os lados, de
espada em punho. Se pensara que com isso amedrontaria a multidão, enganou-se redondamente. Como se
fossem uma só pessoa, os judeus se prostraram no chão e, descobrindo a nuca, gritaram que preferiam
morrer a infringir suas leis. Pilatos, perplexo, compreendeu que teria de ceder. 21 Mandou retirar os
estandartes da Antônia e, assim, restabeleceu a paz. O incidente, contudo, tornou os fiéis da Judeia ainda
mais temerosos em relação à segurança do Templo.
A Palestina romana

Quatro anos depois, o santuário sofreu nova ameaça. Tendo à frente um homem montado num jumento,
uma pequena procissão desceu o monte das Oliveiras, atravessou o vale do Cedron e entrou em Jerusalém,
aos brados de “Hosana!” e “Salva-nos, Filho de Davi!”. Algumas pessoas cortavam ramos das árvores e outras
brandiam palmas. O homem era Jesus, um profeta de Nazaré da Galileia. Dizem que chorou ao aproximar-
se da cidade: Jerusalém não o aceitaria e no futuro bem próximo sofreria terrível castigo. Depois de sitiá-la,
seus inimigos a arrasariam, não deixando pedra sobre pedra, e haveriam de massacrar seus habitantes. Então,
como que para reforçar suas palavras, Jesus entrou na cidade e rumou diretamente para o Templo. Com
alguns pedaços de corda, fez um chicote e usou-o para expulsar do Pátio dos Gentios os cambistas e os
vendedores de pombos. “Não está escrito que minha casa será chamada casa de oração?”, perguntou. “Vós a
transformastes num covil de ladrões.”22 Isso ocorreu na semana anterior à Páscoa, e Jesus passou muito
tempo pregando nos pátios do santuário. Profetizou que o magnífico Templo de Herodes em breve seria
devastado. “Vedes esses grandes edifícios?”, perguntou aos discípulos. “Não restará pedra sobre pedra: tudo
será destruído.”23 Marcos, autor do mais antigo dos quatro Evangelhos que narram a vida de Jesus, conta-nos
que, tão logo souberam do que ocorria no Pátio dos Gentios, os sumos sacerdotes decidiram livrar-se do
Nazareno. Qualquer ameaça ao Templo, sobretudo durante a concorrida e emocionante celebração da Páscoa,
provavelmente levaria à violência, que por sua vez resultaria em medonhas represálias. Jesus constituía um
risco que os judeus não podiam correr.
O que Jesus pretendia com sua provocadora explosão? Só nos resta conjecturar, já que os Evangelhos não
nos fornecem muitas informações. Nas pequenas cidades e aldeias da Galileia, onde realizara curas e
exorcismos, Jesus havia conquistado seguidores. O povo o chamava de profeta. Não sabemos se ele declarou
ser o Messias — nossas fontes são ambíguas —, mas certamente não tentou formar um exército para expulsar
os romanos da Palestina, como outros pretensos messias fizeram em várias regiões do país após a morte de
Herodes. Zacarias predissera que o Messias seria um rei humilde e surgiria montado num jumento. Talvez a
procissão que entrou na cidade pretendesse mostrar ao povo que no Reino de Deus Jerusalém seria
governada pelos pobres, não por um soberano militarista como Herodes. Jesus obviamente acreditava que o
dia de YHWH estava próximo. Como outros videntes apocalípticos, previu o retorno das doze tribos a Israel e
declarou que doze de seus discípulos as governariam.24 Pensava-se geralmente que depois de sua vitória final,
YHWH construiria um novo templo em Jerusalém, onde todas as nações o adorariam. Ao expulsar os
cambistas e os vendedores de pombos, Jesus não estava protestando contra o abuso comercial do espaço
sagrado — essa gente era essencial para as atividades de qualquer templo antigo e não provocava indignação
—, mas provavelmente estava realizando outro gesto profético para demonstrar o Fim iminente, quando o
belo Templo de Herodes cederia lugar a um santuário que não seria construído por mãos humanas. Seus
pronunciamentos nada tinham de original, porém, durante a festa de libertação nacional, as autoridades
decerto temiam que inspirassem uma manifestação contrária a Roma.
Caifás devia estar tão familiarizado com as implicações apocalípticas dos gestos de Jesus quanto qualquer
judeu. No entanto, não podia admitir nenhuma provocação relativa ao Templo, pois fazia pouco tempo que
a tentativa de violação empreendida por Pilatos levara a nação à beira da catástrofe. No primeiro dia da
festa mandou prender Jesus, mas nada fez contra seus discípulos — sinal de que não o via como uma grande
ameaça política. No julgamento, as testemunhas não chegaram a um acordo quanto à acusação de querer
destruir o Templo, e Caifás a substituiu pela de blasfêmia, obtendo a condenação. Como os judeus não
tinham autoridade para infligir a pena capital, coube ao prefeito pronunciar a sentença. Depois de flagelar o
réu, Pilatos condenou-o à morte e o obrigou a carregar a cruz pelas ruas de Jerusalém, desde o Pretório até
o local da crucifixão: um monte, fora das muralhas, chamado Gólgota, ou “Lugar da Caveira” (Calvarius, em
latim). Ali Jesus foi executado, junto com dois bandidos, e morreu logo, apesar de que a agonia na cruz
podia durar horas. Como se aproximava o Sabá, seus amigos estavam ansiosos para enterrá-lo antes do pôr
do sol; assim, José de Arimateia, que pertencia ao Sinédrio (o conselho governamental judaico), obteve a
permissão de Pilatos para inumar o corpo em seu próprio túmulo, um dos novos jazigos semelhantes a
cavernas, cavados na encosta da colina e convenientemente próximos do Gólgota. Jesus foi sepultado às
pressas, e seus amigos resolveram voltar depois do Sabá para ungir o corpo adequadamente.
Esse deveria ser o final da história, porém logo surgiram rumores de que Jesus ressuscitara. Dizia-se que as
mulheres encontraram o túmulo vazio, quando chegaram lá, na manhã de domingo. Alguns discípulos e
parentes do Crucificado o viram caminhando, falando e comendo como se estivesse vivo. Muita gente
acreditava que o justo ressuscitaria no Dia do Senhor. Então Jesus ressuscitara antes desse acontecimento
iminente? Era o Messias, o precursor da redenção que estava por vir? Finalmente, durante a festa das
Semanas, os discípulos rezavam numa sala de Jerusalém, quando se sentiram possuídos pelo espírito de YHWH
e se convenceram de que estava começando a nova era, predita pelos profetas, em que a presença de Deus se
faria sentir mais imediatamente que nunca. Os seguidores de Jesus pareciam demonstrar essa Presença:
realizavam milagres de cura, falavam em línguas estranhas, profetizavam e tinham visões. A ideia de que um
homem que sofrera a morte infame na cruz era o Messias causou perplexidade, mas a seita logo atraiu novos
conversos, e o Sinédrio, por injunção do respeitado fariseu Gamaliel, acabou a aceitando como um autêntico
movimento judaico.25 Certamente os discípulos de Jesus não pensavam que haviam fundado uma nova
religião; continuavam vivendo como judeus praticantes e todos os dias iam juntos rezar no Templo. Como
os sectários de Qumran, denominavam-se Evionim, os Pobres: desfizeram-se de seus bens e passaram a levar
uma vida comunitária, confiando em que Deus lhes proveria a subsistência, como fazia com as aves do céu e
os lírios do campo.26 Sua devoção era atraente e conquistou a admiração de muitos judeus. Em breve,
acreditavam eles, Jesus retornaria, glorioso, e todos saberiam, sem sombra de dúvida, que o Reino de Deus
finalmente chegara.
O movimento se difundiu pelas cidades e aldeias vizinhas. Havia uma grande assembleia, ou igreja, em
Jerusalém e outras em Lida, Jope, Cesareia, Galileia, Damasco. Pedro, Tiago e João, discípulos de Jesus
considerados as “Colunas”,27 presidiam a Igreja de Jerusalém. Tiago, o Tzaddik, ou o Justo, chamado
também de “irmão de Jesus”, aderira à nova doutrina depois da crucifixão, tendo sido um dos primeiros a
ver o Ressuscitado; acabaria por assumir posição de destaque na Igreja, da qual se tornou dirigente por volta
de 50 a.C. Altamente prestigiado em Jerusalém, levava uma vida de extrema austeridade e era tão escrupuloso
com relação à pureza ritual que, dizia-se, recebeu permissão para usar as vestes sacerdotais e orar no Pátio
dos Sacerdotes. Também mantinha boas relações com os fariseus e era respeitado pela comunidade de
Qumran. Sua postura mostra como a seita de Jesus se integrara à vida religiosa dos judeus jerosolimitas.
Longe de abandonar a Torá, Tiago e a Igreja de Jerusalém observavam todos os mitzvoth, sem desprezar
uma única sílaba. Os seguidores de Jesus tinham de ir além das prescrições da Lei e buscar a perfeição; se a
Torá dizia “Não matarás”, eles não deviam sequer se enraivecer; se a Torá proibia o adultério, eles não
deviam sequer olhar cobiçosamente para uma mulher. 28 Sua obrigação era viver como judeus exemplares,
frequentando o Templo diariamente até o retorno de Jesus.
No entanto, por volta de 36 d.C., alguns deles entraram em choque com o sistema religioso tradicional. A
comunidade de Jerusalém incluía helenistas, judeus de língua grega nascidos na Diáspora, que se sentiam em
desvantagem entre seus correligionários da Judeia.29 Liderava-os Estêvão, um orador carismático cuja pregação
escandalizava a cidade. Como Jesus, ele foi levado perante o Sinédrio e acusado de falar contra a Torá e o
Templo. O discurso que Lucas, a quem se atribuem os Atos dos Apóstolos, colocou em seus lábios
provavelmente não é histórico, porém reflete, talvez, uma tendência que se iniciou nesse conflito e mais tarde
se tornaria comum nas igrejas da Diáspora. Lucas o faz demorar-se no número de vezes que Deus se
revelara a seu povo fora de Jerusalém: na Mesopotâmia, em Harã, no Egito, em Madian e no Sinai. Até
Salomão entendera que Deus não poderia morar num edifício construído pelos homens.30 Estêvão enfureceu
de tal modo o Sinédrio que foi expulso da cidade e morto a pedradas. Depois, diz Lucas, o Sinédrio voltou
sua raiva contra o resto da Igreja. Mas não, aparentemente, contra as “Colunas” e os palestinos que seguiam
Jesus desde o início.31 Possivelmente só os helenistas tiveram de deixar a cidade, refugiando-se primeiro no
campo e depois partindo para a Fenícia, Chipre e Antioquia, onde fundaram igrejas.
Foi em Antioquia que os seguidores de Jesus receberam pela primeira vez o nome de “cristãos”, porque
afirmavam que seu Mestre era o Christos, o Ungido, o Messias.32 Por volta de 40 d.C., juntou-se a eles
outro judeu da Diáspora que os combatera fanaticamente até o dia em que, dirigindo-se a Damasco para
perseguir a Igreja local, teve uma avassaladora visão de Jesus e se converteu. Paulo de Tarso logo se tornou
um dos líderes cristãos de Antioquia. Sua concepção do cristianismo diferia totalmente da apresentada pelas
Colunas de Jerusalém. No capítulo anterior, vimos que nesse período muitos habitantes do mundo grego
começavam a achar inibidoras suas tradições ancestrais. Pouco sabemos sobre a juventude de Paulo, mas tudo
indica que ele também procurava algo novo. Pertenceu à seita farisaica e, sob a orientação de Gamaliel,
estudou a Torá, que no entanto acabou vendo como um fardo nocivo a sua liberdade pessoal, incapaz de
proporcionar-lhe a salvação, a paz e a união com Deus. 33 Depois de sua visão na estrada de Damasco,
passou a acreditar que Jesus substituíra a Torá como revelação primária de Deus ao mundo. A morte e a
ressurreição de Jesus inauguraram uma nova fase na história da salvação. Agora judeus e gentios podiam
entrar no Novo Israel por meio do rito iniciatório do batismo, que os incorporava misticamente em Cristo.
Portanto, os cristãos não precisavam observar as leis alimentares, nem manter-se afastados dos Goim e
tampouco praticar a circuncisão, porque essas eram as marcas da antiga aliança, agora suplantada. Todos os
que viviam “em Cristo” eram filhos de Deus e de Abraão, independentemente de sua origem étnica.
A impressionante interpretação revisionista dos Evangelhos feita por Paulo ganhou adeptos na Diáspora não
porque se pudesse prová-la racionalmente, ou porque fosse coerente com os fatos históricos da vida e morte
de Jesus, mas, sim, porque estava em profunda sintonia com outras mudanças religiosas que ocorriam no
mundo greco-romano. Conforme explica o estudioso americano Jonathan Z. Smith, na baixa Antiguidade
houve uma evolução espiritual que começou a transformar o velho culto do Templo, dando ao cosmo uma
forma humana:
Não será uma muralha que protegerá os homens de forças externas hostis, mas um grupo humano, uma
associação religiosa ou uma sociedade secreta. O perigo não estará no retorno ao caos ou na ameaça de
descriação, mas nos outros homens ou nos demônios, na ameaça do mal ou da morte. O novo centro, o
principal meio de acesso à divindade, não será um local sagrado, mas um homem divino [...]34
Smith assinala tais mudanças no Egito na história de Tessalos, o Mágico, que anseia pelo culto do santo na
Síria dos séculos IV e V d.C. Contudo, também vimos que essa tendência já aparecera no judaísmo da
Palestina: os fariseus e a seita de Qumran consideravam sua associação religiosa um novo templo. Agora os
cristãos começavam a realizar a transição do Templo para o homem divino. No lugar dos velhos rituais da
peregrinação e da purificação, estabeleciam novos ritos de passagem: a conversão, a iniciação e a identificação
com o homem Jesus, que se tornara divino quando Deus o ressuscitou dentre os mortos.35 Paulo ensinava
aos cristãos que Jesus era a fonte da salvação, que os livraria não do caos primordial, e sim das forças
demoníacas do pecado e da morte.
Para muitos judeus, para as Colunas e seus seguidores, tal afirmação seria blasfema. Eles não admitiam que
o divino pudesse manifestar-se num simples homem. No entanto, como vimos, o sagrado sempre se manifesta
em outra coisa que não ele mesmo. Considerados objetivamente, uma cidade ou um templo constituíam um
veículo do divino tão impróprio quanto um ser humano. Qualquer símbolo do sagrado — um edifício, uma
cidade, um texto literário, um código de leis, um homem — é inevitavelmente inadequado. O paradoxo
essencial da busca religiosa consiste em que o sagrado se manifesta no profano, o absoluto no relativo, o
eterno no temporal. Como certas formas de misticismo indiano, o cristianismo acharia redentor o choque
dessa contradição: o divino demonstra seu amor e também sua soberana liberdade adaptando-se a um modo
inferior de existência.36 O verdadeiro mistério é que o sagrado pode manifestar-se afinal. A dramática
experiência de Paulo na estrada de Damasco ilustra o que a conversão significaria para os primeiros cristãos:
uma reviravolta dos antigos valores sagrados, que muita gente começava a achar libertadora.
A partir de então, o cristianismo não se fixaria num lugar específico. Seu novo herói não era Tiago, o
Justo, radicado no Templo de Jerusalém, mas Paulo, o viajante, que não morava em nenhuma cidade deste
mundo e vivia em constante movimento. Separar-se de Jerusalém foi, contudo, doloroso. Paulo e a Igreja-
Mãe entraram em choque quando Tiago descobriu que os cristãos de Antioquia não comiam alimentos kosher
e se misturavam livremente com os Goim. O meio-termo que encontraram consistiu em confiar a catequese
dos gentios a Paulo. Os profetas sempre sonharam com o dia da era messiânica em que as nações gentias
renderiam homenagem a YHWH em Jerusalém. Agora, Paulo podia mostrar às Colunas que os Goim
começavam a chegar a suas igrejas. Eles manifestamente possuíam o Espírito, tal como os judeus cristãos;
assim, era justo que Tiago os rechaçasse com exigências absurdas de circuncisão e observância da Torá? Em
troca de autonomia em sua missão, Paulo prometeu que seus convertidos ajudariam os Evionim, os Pobres
de Jerusalém, e deu prioridade máxima a essa coleta, que constituía um importante símbolo de continuidade,
um modo de os conversos expressarem sua dívida espiritual para com o judaísmo e um cumprimento da
antiga profecia.37 Os gentios realmente levavam donativos a Jerusalém, de modo que a redenção final devia
mesmo estar próxima.
Todavia, quando Paulo chegou à cidade, com o dinheiro arrecadado, na festa das Semanas de 58 d.C., sua
presença no Templo causou tumulto e os romanos decretaram sua prisão. Os judeus o acusaram de ter
levado um de seus convertidos gentios ao Pátio dos Israelitas.38 É muito improvável que Paulo tivesse
infringido a Lei dessa forma, pois um de seus princípios básicos consistia em ser “todas as coisas para todos
os homens” e atender às sensibilidades religiosas das pessoas. Contudo, ele acreditava que as velhas barreiras
haviam caído e que os gentios já não eram estrangeiros no Reino de Deus. A ressurreição de Cristo revogara
a Torá e também a velha geografia sagrada que relegara os Goim às margens da santidade. Como Paulo
explicou aos efésios, Jesus “derrubou a barreira que separava [judeus e gentios]” e, portanto, “não sois mais
forasteiros ou visitantes; sois cidadãos, como todos os santos, e membros da família”. Na verdade, os cristãos
agora compunham um templo espiritual e estavam “sendo edificados para morada de Deus”.39 Assim como
os sectários de Qumran, acreditavam que Deus morava na terra, na comunidade dos fiéis. E, como outras
pessoas no final da Antiguidade, começavam a negligenciar o Templo terreno, achando que já haviam
entrado na realidade espiritual — a “Jerusalém celeste” — que ele simbolizava.40 No entanto, para os judeus
que ainda acreditavam que o Templo no monte Sião constituía o modo mais seguro de chegar a Deus, isso
era blasfêmia. A própria presença de Paulo no Templo, em 58 d. C, constituía uma ameaça, porque colocava
em risco a santidade de Sião, e custou-lhe primeiro a liberdade, depois a vida, como ocorrera com Jesus e
com Estêvão. Lucas nos diz nos Atos dos Apóstolos que Paulo seguiu para Roma como prisioneiro, pois
alegara que, sendo cidadão romano, tinha o direito de ser julgado pelo próprio César. O homem sem raízes
queria ser cidadão do mundo, como os reformadores judeus da época de Antíoco Epífanes, e não filho de
Jerusalém. Desconhecemos o que lhe aconteceu depois disso. Segundo a lenda, Paulo morreu durante a
perseguição de Nero, em 64 d. C, porém, muito depois de sua morte, as igrejas que ele fundara na Diáspora
continuaram fiéis a sua visão cristã, e um dia, ironicamente, esses gentios cristãos reivindicariam Jerusalém
para si.
Desde a época de Pilatos, o zelo dos judeus em relação ao Templo redobrara, pois mais uma vez a
santidade do edifício fora seriamente ameaçada. Em 41 d. C, o imperador Caio Calígula dera ordens para
que se erigisse sua estátua no santuário de Jerusalém. Quando Petrônio, o legado da Síria, chegou ao porto
de Ptolemaida para cumprir essa difícil missão, deparou com “dezenas de milhares de judeus” que, com suas
mulheres e filhos, se aglomeravam na planície fronteira à cidade. Nas negociações que se seguiram, eles se
recusaram a ceder, apesar de Calígula declarar que prenderia a população inteira, se continuassem resistindo.
Novamente os judeus recorreram à tática da não violência e deixaram de realizar suas colheitas, sem as quais
os romanos não receberiam o tributo anual. Alguns acreditavam que a intervenção divina os salvaria e
aparentemente estavam certos, visto que o imperador foi assassinado em Roma antes de cumprir suas
ameaças.41
Cláudio, sucessor de Calígula, tratou de apaziguar os judeus, designando Agripa, neto de Herodes, como rei
da Palestina judaica, e sob seu breve governo Jerusalém floresceu. Agripa expandiu os Mercados Alto e Baixo
no vale do Tiropeon e projetou uma terceira muralha para o distrito setentrional de Bezetha. Sua morte, em
44 d.C., foi um duro golpe. Como seu filho Agripa II não tinha idade para assumir o poder, Cláudio enviou
para a Judeia um novo governador romano, dessa vez investindo-o no cargo mais modesto de procurador. O
jovem rei Agripa II manteve uma posição importante no governo. Havia sinais de inquietação na Palestina.
Um profeta chamado Teudas convenceu cerca de quatrocentas pessoas a acompanhá-lo até o deserto, onde
Deus libertaria os judeus de Roma. Outro profeta surgiu na época do procurador Félix (52-9 d.C.),
prometendo expulsar os romanos de Jerusalém. Nenhum deles atraiu muitos seguidores e foram eliminados
sem grande dificuldade. Os ânimos ainda pareciam prestes a explodir nas festas nacionais. Por ocasião da
Páscoa, durante a procuradoria de Cumano (48-52 d.C.), milhares de judeus morreram pisoteados nos pátios
do Templo, quando um soldado que montava guarda no alto do pórtico se despiu e fez gestos obscenos
para as multidões de peregrinos. Apesar dos contratempos, Jerusalém continuava prosperando. Alguns
extremistas recorreram ao terrorismo para tentar derrubar a hegemonia romana, mas parece que nessa época
já se estabelecera um modus vivendi com Roma. Em 59 d.C., o rei Agripa II recebeu permissão para instalar-
se no velho palácio dos Asmoneus — agora o palácio de Herodes era a residência do procurador em
Jerusalém. O Templo foi finalmente concluído, e dezoito mil trabalhadores pavimentaram as ruas da cidade.
Jerusalém tinha certa autonomia: Agripa e o sumo sacerdote a governavam juntos e colaboravam
amistosamente com o procurador, instalado em Cesareia.
Em 60 d.C., porém, Roma passou a designar homens de menor competência para administrar a Judeia.
Consta que Albino (60-2 d.C.) cobrava tributo dos bandidos judeus que aterrorizavam todos os que
cooperavam com Roma, e Géssio Floro (64-6 d.C.) manteve essa prática. Quando ocorreram tumultos entre
os judeus e os sírios residentes em Cesareia, Floro precisou de dinheiro e teve a infeliz ideia de confiscar o
tesouro do Templo. Imediatamente a violência explodiu na cidade, judeus e romanos engalfinhando-se pelas
ruas. Sem conseguir restabelecer a ordem, Floro pediu ajuda a Céstio Galo, governador da Síria. Galo
chegou à Palestina em meados de novembro, preparado para uma guerra. Acampou no monte Scopus e
avançou sobre o bairro setentrional de Bezetha, mas então, não se sabe por quê, retirou-se para Emaús,
perseguido por guerrilheiros judeus, que derrotaram sua legião e mataram mais de cinco mil soldados
romanos.
Durante essa crise, os judeus se digladiavam em conflitos internos. Os rebeldes não contavam com apoio
absoluto. Muitos aristocratas rurais e moradores de cidades como Séforis e Tiberíades opunham-se à guerra
contra Roma. Realistas demais para imaginar que seu povo pudesse vencer o poderio romano, os saduceus
renunciaram a seu sonho de independência. Muitos fariseus estavam mais preocupados com religião que com
política e percebiam que uma revolta contra Roma representava sério risco para os judeus da Diáspora. O
rei Agripa tentou persuadir os revoltosos a depor as armas: julgavam-se mais fortes que os gauleses, os
germanos, os gregos, que se viram obrigados a submeter-se ao Império Romano? O próprio Josefo se passara
para o lado de Roma, convencido de que os rebeldes haviam abraçado uma causa suicida. Mas então
surgiram os zelotes, radicais que se opunham aos moderados. Acreditavam que Roma estava em declínio e
que os judeus tinham boa probabilidade de sucesso. Os macabeus não derrubaram o governo estrangeiro e
estabeleceram um reino judaico independente? Os zelotes consideravam traidores os judeus que desejavam a
paz e não lhes permitiam participar da liturgia do Templo. No entanto, apenas uma pequena parcela de seus
conterrâneos os apoiava e havia dissensões em seu próprio meio. Alguns se retiraram para a fortaleza de
Massada, junto ao mar Morto, e não lutaram mais pela cidade. Os que permaneceram em Jerusalém ainda
brigavam entre si depois da derrota de Céstio Galo, quando estava claro que a guerra com Roma era
inevitável.
Foi provavelmente nesse momento que os judeus cristãos decidiram deixar Jerusalém. A tensão entre sua
Igreja e o establishment judaico se evidenciara em algumas ocasiões. Tiago, a Coluna, fora executado. Em 62
d.C., o sumo sacerdote condenara à morte outro Tiago, o Tzaddik, por “infringir a lei”; oitenta fariseus
protestaram e acabaram morrendo com ele. A direção da Igreja jerosolimita cabia agora a Simeão, primo de
Jesus, que conduziu a comunidade até Pela, na Transjordânia. Os cristãos sabiam que Jerusalém estava
condenada, pois Jesus profetizara sua destruição. Outros judeus estavam decididos a lutar e vencer. Enquanto
esperavam que Roma vingasse a derrota de Galo, os jerosolimitas apressadamente construíram em torno de
Bezetha a Terceira Muralha, planejada por Agripa I.
A desgraça dos rebeldes foi que Roma destacou seu general mais competente para reprimi-los. Em 67 d.C.,
Vespasiano chegou à Palestina e começou a destruir sistematicamente os bolsões de resistência na Galileia.
Em 70 d.C., porém, tornou-se imperador e retornou a Roma, deixando seu filho Tito encarregado da guerra
judaica. Em fevereiro do mesmo ano, Tito deu início ao cerco de Jerusalém. Transpôs em maio a nova
muralha setentrional e uma semana depois demoliu a Segunda Muralha, que rodeava os mercados. A luta
concentrou-se em torno do Templo. Em fins de julho, os romanos capturaram a Antônia e passaram a
bombardear os pátios do Templo. O último sacrifício foi oferecido em 6 de agosto. Mas os judeus ainda
não pensavam em depor as armas. Muitos zelotes continuavam acreditando que, por abrigar a morada de
Deus, a cidade não cairia. Um profeta afirmou que na última hora Deus interviria miraculosamente para
salvar seu povo e seu santuário.42
E assim, quando finalmente invadiram os pátios internos do Templo, em 28 de agosto, os romanos
encontraram seis mil zelotes esperando-os para combater até a morte. O historiador grego Díon Cássio (m.
230) diz que os judeus se defenderam com extraordinária coragem, considerando uma honra morrer em
defesa de seu Templo. Observaram até o fim as leis da pureza, cada qual lutando em seu devido lugar e,
apesar do perigo, recusando-se a entrar em áreas proibidas: “Os plebeus combatiam no pátio de entrada e os
nobres nos pátios internos, enquanto os sacerdotes defendiam o santuário propriamente dito”.43 Por fim,
viram o edifício incendiar-se e soltaram um terrível grito de horror. 44 Alguns se lançaram sobre as espadas
dos romanos, outros se jogaram nas chamas. Destruído o Templo, os judeus se renderam. Não mostraram
interesse em defender a Cidade Alta, nem em continuar lutando nas fortalezas vizinhas. Alguns resolveram
instalar-se no deserto, esperando que seu novo êxodo levasse a uma nova libertação nacional. Os demais
viram, impotentes, os oficiais de Tito demolir o que restara do Templo. Dizem, porém, que o muro
ocidental do Devir permaneceu de pé. Como aquele era o local que abrigara a Presença divina, os judeus
encontraram nisso algum consolo.45 Mas não lhes bastava. Durante séculos o Templo estivera no centro de
seu mundo e de sua religião. Novamente fora destruído e dessa vez para sempre.
8. AELIA CAPITOLINA

O MONTE DO TEMPLO se reduzira a ruínas. Restaram apenas o muro ocidental do Devir e os que
sustentavam a esplanada. Depois que acabaram com o Templo, os soldados de Tito passaram a destruir as
elegantes mansões da Cidade Alta e o belo palácio de Herodes. Os arqueólogos revelaram que as tropas
romanas realizaram sua tarefa de maneira cabal e implacável. Casas caíram e ficaram soterradas sob montes
de escombros que nunca foram retirados. Os entulhos cobriram o Tiropeon, somando-se aos detritos ali
depositados pelas torrentes que desciam as encostas durante as chuvas de inverno. As muralhas de Jerusalém
foram totalmente demolidas, com exceção da parte situada a oeste da Cidade Alta, que agora protegia o
Acampamento da Décima Legião Fretensis, instalado no local do palácio de Herodes. Os visitantes custavam
a crer que um dia Jerusalém fora habitada. Os imperadores se empenhavam em prevenir qualquer tentativa
de rebelião. Durante anos, a partir de 70, cunharam moedas que exibiam a figura de uma judia de mãos
atadas, sentada desoladamente sob uma palmeira, com a legenda JUDAEA DEVICTA ou JUDAEA CAPTA. Os
imperadores Vespasiano (70-9), Tito (79-81), Domiciano (81-96) e Trajano (98-117) ordenaram à Décima
Legião que perseguisse e executasse todo judeu que se declarasse descendente do rei Davi. No entanto, os
romanos tentaram ser justos. Agora toda a Palestina era de fato uma província do império, mas o rei Agripa
II , que tentara preservar a paz, recebeu permissão para manter seu título e governar a Galileia, a qual
reverteria a Roma após sua morte. Todas as terras pertencentes aos judeus foram confiscadas e teoricamente
se tornaram propriedade do imperador; na prática, porém, a maior parte de seus antigos donos continuou
detendo sua posse, pois os romanos reconheciam que quase todos os proprietários sobreviventes se opuseram
à revolta.
Apesar dessas medidas sensatas, a vitória de Roma constituía uma fonte de dor e humilhação para os
judeus, sempre lembrada de muitas maneiras penosas. O tributo de meio siclo que os judeus adultos pagavam
ao Templo ia agora para o santuário de Júpiter, no Capitólio. Em 81, erigiu-se em Roma um magnífico
arco do triunfo, celebrando a vitória de Tito com imagens dos objetos sagrados do Templo, que, um século
depois, ainda eram orgulhosamente exibidos na capital imperial. O rabino Eleazar disse que viu o Véu do
Templo, ainda manchado com o sangue das vítimas dos sacrifícios, e a faixa que cingia a cabeça do sumo
sacerdote, na qual se liam as palavras: “Consagrado a YHWH”.1 Em Jerusalém, os soldados da Décima Legião
ostentavam livremente as águias imperiais e ofereciam sacrifícios a seus próprios deuses nas ruas devastadas.
Talvez tivessem construído perto da piscina de Betesda um santuário dedicado a Serápis-Asclépio, o deus da
medicina.2
Jerusalém, o centro do mundo judaico, era agora pouco mais que uma base do exército romano. A Décima
Legião deixou raros vestígios de sua longa estada na cidade, pois seus integrantes provavelmente viviam em
cabanas e tendas erguidas junto às três grandes torres de Herodes — Hípico, Fasael e Mariamne —, que
Tito preservara. Soldados romanos, civis sírios e gregos, bem como alguns judeus, habitavam a cidade
desolada. Poucas casas se mantinham de pé na colina ao sul do acampamento romano, que Josefo
erroneamente chamou de monte Sião. Em sua época, o povo já esquecera que a ’Ir David original se situara
no monte Ofel; pensava que Davi morara na Cidade Alta, onde seus próprios reis e aristocratas residiam. Até
hoje essa colina ocidental é chamada de monte Sião — denominação que usaremos doravante, especificando o
monte Sião original, quando a ele nos referirmos. Foi ali que, tão logo se estabeleceu um pouco de calma,
um pequeno número de judeus se instalou e construiu sete sinagogas, pois já não podia orar no monte do
Templo, que fora totalmente profanado. Nossas fontes são os historiadores cristãos Eusébio de Cesareia (264-
340) e Epifânio de Chipre (c. 315-403), que tiveram acesso às tradições locais e nos contam que, após a
destruição de Jerusalém, os judeus cristãos retornaram de Pela e se fixaram no monte Sião, sob a liderança
de Simeão. Reuniam-se numa das casas que sobreviveram ao desastre e que mais tarde foi identificada como
a “Sala Superior”, ou Cenáculo, onde os discípulos viram o Ressuscitado e receberam o Espírito Santo.
Epifânio nos diz que, ao voltar de Pela, os judeus cristãos se estabeleceram nas redondezas da Sala Superior,
“na parte da cidade chamada Sião, que não sofreu destruição”.3 Eusébio deixa claro que a Igreja de
Jerusalém continuou sendo inteiramente judia, administrada por “bispos” judeus,4 que partilhavam muitos dos
ideais de seus vizinhos no monte Sião. Ao contrário dos conversos de Paulo, não acreditavam na divindade
de Jesus: afinal, alguns o conheceram ainda criança e não conseguiam vê-lo como um deus. Eles o viam
apenas como um homem considerado digno de ser o Messias. Provavelmente veneravam os locais de
Jerusalém relacionados com Jesus, sobretudo o Gólgota e o sepulcro onde ocorrera a Ressurreição. Muitos
judeus gostavam de visitar os túmulos de seus mestres, e o de Jesus não constituiria exceção. Alguns se
dedicaram a especulações místicas sobre o Gólgota, o Lugar da Caveira. Segundo uma lenda judaica, Adão
fora enterrado no monte Moriá, o local do Templo de Salomão; no século II os judeus cristãos diziam que
ele havia sido sepultado no Gólgota, o lugar da caveira de Adão.5 Começavam a desenvolver sua própria
mitologia acerca de Jerusalém, e essa noção expressava sua crença de que Jesus era o novo Adão, o que
proporcionara à humanidade um novo começo. Durante esse período trágico, muitos judeus ingressaram na
Igreja dos cristãos: a ideia de um Messias crucificado e ressuscitado talvez os animasse a esperar pela
revivescência de seu velho culto.
Outros se voltaram para o ascetismo. Os textos rabínicos nos falam de judeus que desejavam proibir a
carne e o vinho, já que não se podiam oferecê-los a Deus no Templo. Era impossível continuar vivendo
como antes: a mudança devia expressar-se em rituais de luto e abstinência. A perda do Templo constituiu
um profundo choque. Trinta anos depois da destruição o autor do Livro de Baruc diz que toda a natureza
devia cobrir-se de luto: agora que o Templo não existia mais, a terra não precisava dar frutos e tampouco a
videira tinha de produzir uvas; melhor seria os céus recolherem seu orvalho e o sol apagar seus raios:
Por que a luz haveria de ressurgir
Onde se extinguiu a luz de Sião? 6
O Templo representara a essência do significado do mundo, o âmago da fé. Agora a vida não tinha valor
nem sentido, e parece que nessa época sombria muitos judeus perderam a fé. Não é verdade, como se
afirmou com frequência, que eles esqueceram o Templo. Mesmo os que passaram a desenvolver outras
formas de experimentar o divino acreditavam que Jerusalém e seu santuário eram fundamentais para sua
religião. Precisavam de toda a sua criatividade para sobreviver a essa perda devastadora.
Durante o cerco de Jerusalém, o ilustre rabino fariseu Yohanan ben Zakkai foi retirado da cidade dentro
de um caixão. Como muitos fariseus, opusera-se totalmente ao extremismo revolucionário dos zelotes.
Repugnou-o o suicídio maciço dos zelotes de Massada, que em 73 preferiram morrer a aceitar o jugo de
Roma. Graças a sua moderação, ele e seus companheiros eram os únicos líderes judeus que ainda tinham
credibilidade depois da destruição do Templo. O rabino Yohanan pediu permissão ao imperador Vespasiano
para fundar uma escola onde os judeus pudessem estudar e orar: um centro espiritual, explicou, não um foco
de fervor revolucionário. Obteve autorização para instalar a academia de Yavneh no litoral e ali, juntamente
com seus colegas — muitos dos quais haviam sido sacerdotes do Templo —, começou a construir um novo
judaísmo. Quando perderam seu grande santuário, em 586 a.C., os judeus encontraram consolo no estudo da
Torá. Agora, em Yavneh e outras academias semelhantes que surgiram na Palestina e na Babilônia, os
rabinos conhecidos como Tanaim passaram a codificar as leis orais que se desenvolveram ao longo dos
séculos. Por fim, esse novo código, denominado Mishnah, tornou-se uma nova Jerusalém simbólica, onde os
judeus podiam sentir a Presença divina em qualquer lugar que estivessem. Os rabinos ensinavam que, sempre
que se reunissem para estudar a Torá, a Shekhinah, a Presença de Deus sobre a terra, estaria entre eles. 7
Muitas leis referiam-se ao ritual do Templo, e até hoje, quando estudam essa legislação, os judeus se
dedicam a uma reconstrução imaginária do Templo perdido e recuperam a experiência do divino. Depois
que os Tanaim concluíram seu trabalho, os rabinos das gerações posteriores, conhecidos como Amoraim,
dedicaram-se a comentar sua exegese. O Talmude encerra essas discussões, que se desenrolaram ao longo dos
séculos — e continuam até hoje —, superando as barreiras de lugar e de época. Os sucessivos comentários e
interpretações formaram, por assim dizer, as paredes de um Templo simbólico, envolvendo a Presença que os
judeus podiam vislumbrar durante seus estudos.
Os rabinos diziam também que agora a caridade e a compaixão podiam substituir os antigos sacrifícios de
animais.
Certa vez, quando o rabino Yohanan ben Zakkai saía de Jerusalém, o rabino Joshua o seguiu e,
contemplando as ruínas do Templo, exclamou:
“Ai de nós! O lugar onde se expiavam as iniquidades de Israel está devastado!”
“Não te lamentes, meu filho”, respondeu o rabino Yohanan. “Temos outra expiação tão eficaz quanto
esta. Do que se trata? Dos atos de compaixão, como foi dito: ‘Pois desejo misericórdia e não sacrifício’.”8
Fazia muito tempo que a prática da compaixão era um complemento essencial do culto de Sião: agora a
expiação dos pecados de Israel dependia unicamente das obras de caridade. Tratava-se de uma ideia
revolucionária, pois no mundo antigo era praticamente inimaginável uma religião sem algum tipo de
sacrifício. Agora que não havia mais o Templo, os rabinos ensinavam os discípulos a verem Deus em seus
semelhantes. Alguns explicavam que o mitzvah “Ama a teu próximo como a ti mesmo” era “o grande
princípio da Torá”. 9 As ofensas contra o semelhante equivaliam à negação de Deus, que fez os homens e as
mulheres a sua imagem. O assassinato era, portanto, não só um crime, como um sacrilégio.10 Deus criou um
único homem no começo dos tempos para ensinar-nos que quem destruísse uma única vida humana seria
punido como se tivesse destruído o mundo inteiro; da mesma forma, salvar uma vida significava redimir o
mundo todo.11 Humilhar uma pessoa, mesmo que fosse um gentio ou um escravo, equivalia a destruir a
imagem de Deus.12 Os judeus precisavam compreender que suas relações com os outros eram sagradas. Agora
que não podiam mais experimentar o divino num espaço sagrado, deviam procurá-lo em seus semelhantes. Os
fariseus sempre enfatizaram a importância da caridade, e a perda do Templo os ajudou a realizar aquela
transição para uma concepção mais humana do sagrado que assinalamos no capítulo anterior.
Os rabinos acreditavam que um dia o Templo seria reconstruído, como o fora no passado, porém achavam
mais prudente e seguro deixar que Deus se incumbisse da tarefa. Entretanto, os judeus não deviam esquecer
Jerusalém. Os rabinos criaram leis para desestimular a emigração e ordenaram que as Dezoito Bênçãos
fossem recitadas três vezes por dia, em lugar dos sacrifícios matinal e vespertino. Os judeus deviam dizer
essas preces onde quer que se encontrassem: se estivessem viajando, deviam apear-se e voltar o rosto na
direção de Jerusalém, ou pelo menos voltar o coração para o Devir em ruínas.13 As Bênçãos mostram que,
apesar de tudo, Jerusalém ainda era tida como a morada de Deus:
Olha, Senhor nosso Deus, em tua grande misericórdia, para Israel, teu povo, e para Jerusalém, tua cidade,
e para Sião, a morada de tua Glória, e para o Templo, e para tua habitação, e para o Reino da Casa de
David, o justo, teu ungido. Bendito sejas, Senhor nosso Deus, construtor de Jerusalém.14
Certos rabinos acreditavam que a Shekhinah (a Presença divina personificada) ainda estava junto ao muro
ocidental do Devir, que providencialmente sobrevivera à destruição. 15 Outros a viam deixando Jerusalém
relutante e gradativamente: durante três anos ela “permanecera no monte das Oliveiras e chorava três vezes
por dia”.16 Alguns judeus lembravam que Ezequiel teve uma visão da Glória de YHWH voltando a Jerusalém
pelo monte das Oliveiras e, assim, gostavam de reunir-se ali para proclamar sua fé no retorno final de Deus
à Cidade Santa.
Outros buscavam consolo no misticismo. Essa era uma forma de espiritualidade que os rabinos às vezes
olhavam com desconfiança, mas os místicos não viam nenhuma incompatibilidade entre seus voos ao Trono
celeste de Deus e o judaísmo rabínico e frequentemente atribuíam suas visões a ilustres mestres das
academias. Depois da perda do Templo, o misticismo do Trono adquiriu uma relevância totalmente nova. A
réplica terrestre infelizmente fora destruída, mas o arquétipo celestial era indestrutível, e os judeus ainda
podiam alcançá-lo em sua aliyah imaginária rumo ao reino divino. Assim, o autor de II Baruc, que escreveu
cerca de trinta anos depois da destruição do Templo, dizia que a Jerusalém celeste era eterna. Estivera “com
Deus” antes do começo dos tempos e “já estava pronta no momento em que decidi criar o Paraíso”.
Encontrava-se gravada para sempre nas palmas das mãos divinas e um dia desceria mais uma vez à terra,17
materializando-se novamente no velho local sagrado, e Deus moraria no mundo entre seu povo. Mais ou
menos na mesma época, o autor de IV Henoc teve uma visão semelhante da encarnação da Jerusalém celeste.
A Sião terrena sofrera e morrera, porém sua contrapartida celestial ainda estava com Deus. Um dia, “a
cidade que agora é invisível aparecerá”.18 Essa nova Jerusalém seria o paraíso terrestre; seus habitantes
desfrutariam perfeita intimidade com Deus, e não haveria pecado nem morte.19 A angústia da separação, da
perda e do deslocamento, que se abatera sobre o mundo judaico em 70 d.C., se esvaeceria e a harmonia
primordial do Éden voltaria a reinar.
Os judeus cristãos também tinham visões do Trono. No reinado de Domiciano, quando as autoridades
romanas perseguiam os cristãos, um pregador itinerante chamado João viu o templo celestial, no qual os
mártires eram os novos sacerdotes, vestidos de branco, a serviço do trono. Imaginou a liturgia celestial de
Sucot, porém com uma diferença crucial em relação ao culto antigo. Sempre houve um espaço vazio no
centro do Segundo Templo: depois que a Arca desapareceu, o Devir nada continha. Mas João viu Cristo,
misteriosamente identificado com o próprio Deus, sentado no trono celestial. Ele era, portanto, o
cumprimento do velho culto de Sião. Todavia, esses cristãos ainda partilhavam as esperanças dos judeus e
ansiavam pelo dia da restauração definitiva, quando a Jerusalém celeste desceria à terra. Uma visão final
mostrou a João “a cidade santa, descendo do céu, de junto de Deus. Tinha toda a glória radiante de
Deus”.20 Nessa Nova Jerusalém não havia Templo, porque Cristo ocupara seu lugar. O homem divino era
agora o centro da “glória”. No entanto, Jerusalém ainda era um símbolo tão poderoso para um judeu cristão
que João não conseguiu imaginar o apocalipse final de Deus sem ela. A cidade celeste teria de materializar-
se na terra para o Reino completar-se. Por fim, o paraíso terrestre seria restaurado e o rio da vida jorraria
de sob o trono de Deus para trazer cura ao mundo inteiro.21
Judeus e cristãos estavam vendo Deus de maneiras muito semelhantes. Consideravam respectivamente
Jerusalém e Jesus símbolos do sagrado. Os cristãos começavam a conceber Jesus da mesma forma como
alguns místicos do Trono imaginavam Jerusalém: a encarnação de uma realidade divina que estivera com
Deus desde sempre e que salvaria a humanidade do pecado, da morte e do desespero. Apesar das
semelhanças, contudo, havia entre eles sentimentos de hostilidade e desconfiança mútuas. Pelo que sabemos,
os gentios cristãos não habitaram o monte Sião, nem as ruínas da cidade. Estavam interessados na Jerusalém
celeste que o pregador João descreveu, não na cidade terrestre. Os Evangelhos de Mateus, Lucas e João,
escritos nas décadas de 80 e 90, mostram como os cristãos seguidores de Paulo começavam a ver Jerusalém e
os judeus.
Curiosamente, é Lucas, o gentio cristão, que apresenta a concepção mais positiva da fé ancestral. Seu
Evangelho começa e termina em Jerusalém: inicia-se com a visão de Zacarias, pai de João Batista, no Hekhal
e encerra-se com os discípulos voltando para a cidade depois de presenciar a ascensão de Jesus no monte das
Oliveiras. Eles “retornaram a Jerusalém cheios de alegria; e estavam continuamente no Templo, louvando a
Deus”.22 A continuidade é muito importante para Lucas, como para a maioria das pessoas no final da
Antiguidade. Desconfiados de inovações, avessos a novidades, os devotos precisavam ter a certeza de que sua
fé estava profundamente arraigada nas santidades do passado. Assim, Lucas, como Paulo, não quis cortar
todos os laços com Jerusalém e o judaísmo. Jesus ordena aos discípulos que comecem a pregar na Cidade
Santa, que ainda é o centro do mundo e o lugar onde todo profeta deve encontrar seu destino. Nos Atos
dos Apóstolos, Lucas apresenta seu herói, Paulo, respeitando a Igreja jerosolimita e tratando Tiago, o
Tzaddik, com deferência. Pinta um quadro altamente idealizado dessa cooperação inicial e tenta esconder o
azedume que parece ter caracterizado as relações dos dois líderes. Mostra Paulo sentindo-se, como Jesus,
obrigado a realizar a viagem a Jerusalém, apesar de arriscar a própria vida. Mas também deixa claro que os
cristãos não podem ficar em Jerusalém, pois precisam levar o Evangelho para “toda a Judeia e a Samaria e
depois para os confins da terra”.23 Sua expressão predileta para designar o cristianismo é “o Caminho”: os
seguidores de Jesus são viajantes, sem residência fixa neste mundo.
Mateus e João, no entanto, têm uma visão muito menos positiva de Jerusalém e dos judeus. Ambos eram
judeus convertidos à Igreja de Paulo, e sua obra talvez reflita alguns dos acalorados debates entre judeus e
cristãos sobre temas como a natureza de Cristo e o status de Jerusalém. Mateus não tem dúvidas sobre a
Sião terrestre: outrora um lugar sagrado — ele é o único evangelista que a chama de Cidade Santa —, ela
rejeitou e matou Jesus, que, prevendo isso, profetizara sua destruição. Jerusalém tornara-se a Cidade Culpada.
Quando apresenta Jesus descrevendo a catástrofe que se abaterá sobre Jerusalém, em 70, Mateus a relaciona
com os cataclismos que ocorrerão no fim dos tempos. A destruição da cidade é, para ele, um fato
escatológico que anunciará a volta gloriosa de Cristo.24 Quando Jesus morre no monte Gólgota, o Véu que
separava o Hekhal do Devir rasga-se ao meio; o culto do velho Templo cai por terra, e agora todos — não
só a antiga casta sacerdotal dos judeus — podem ter acesso ao divino na pessoa de Cristo. João enfatiza isso
ainda mais. Como outros contemporâneos, afirma que se deve procurar Deus num homem divino, não num
templo. No Prólogo de seu Evangelho, declara que Jesus é o Logos, o “Verbo”, que estava “com Deus”
desde antes do começo dos tempos e que Deus pronunciou ao criar o mundo. Essa realidade celeste desceu
à terra, encarnou-se e revelou a “glória” de Deus para a raça humana.25 João escreveu em grego. Nessa
língua não havia equivalente para o termo hebraico “Shekhinah”, que os judeus tinham o cuidado de
distinguir da realidade transcendente de Deus. Além de ver Jesus como o “Verbo” encarnado e a “glória” de
Deus, João talvez o visse também como a Shekhinah em forma humana.26
Como Mateus, porém, João é extremamente hostil aos judeus e várias vezes os mostra rejeitando Cristo.
Assim, os dois evangelistas prepararam o terreno para o antagonismo em relação ao povo judeu que
provocaria alguns dos mais lamentáveis incidentes da história do cristianismo. Cada vez mais, como veremos,
os cristãos achavam impossível tolerar seus predecessores espirituais e desde uma data muito antiga
condicionavam a integridade de sua fé à derrota do judaísmo. Assim, João indica que Jesus começou por
rejeitar o culto do Templo: conta que ele foi a Jerusalém e expulsou os cambistas do Pátio dos Gentios no
início de sua missão, não no fim. “Destruí este templo e eu o reedificarei em três dias”, Jesus diz aos
judeus. João esclarece que ele “falava do templo de seu corpo”.27 A partir daí os fiéis encontrariam a
Presença divina no corpo ressuscitado do Logos. Desde o começo, portanto, Jesus se confronta com a
instituição mais sagrada do judaísmo, e os dias do Templo estão contados. Jesus deixa claro que lugares
santos como Jerusalém, o monte Garizim e Betel foram suplantados.28 A Shekhinah se retirou do Templo, 29
e os judeus, rejeitando essa revelação, aliaram-se com as forças das trevas.
Os cristãos devem ter visto a mão de Deus no que ocorreu a seguir em Jerusalém. Em 118, o general
romano Públio Aelio Adriano se tornou imperador, revelando-se um dos homens mais competentes que
assumiram tal posto. Em vez de estender o Império, seu desejo consistia em consolidá-lo, construir um
Estado forte e unido, uma comunidade em que todos os cidadãos, independentemente de raça ou
nacionalidade, se sentissem em casa. Para tentar divulgar e concretizar esse ideal, Adriano passou quase a
metade de seu reinado viajando pelos domínios imperiais com um séquito imenso e magnífico, que devia dar
aos espectadores a impressão de uma capital inteira em marcha. Em cada cidade ouvia petições e distribuía
presentes entre a população, esperando deixar atrás de si a imagem de um governante benevolente e
poderoso. Para que sua visita fosse sempre lembrada, gostava particularmente de erguer alguma construção —
um templo para Zeus em Atenas, aquedutos na mesma Atenas e também em Antioquia, Corinto e Cesareia
— que estabelecesse um elo físico com Roma e expressasse a benevolência do imperador para com seu povo.
Quando chegou a Jerusalém, em 130, Adriano decidiu presentear a Judeia com uma nova cidade. No lugar
da feia e desolada base militar de Jerusalém, construiria uma metrópole moderna, que levaria seu nome e
homenagearia os deuses do Capitólio, sob cuja proteção floresceria: Aelia Capitolina.
O povo da Judeia horrorizou-se com o projeto. Um templo dedicado a Júpiter se ergueria no local do
Templo sagrado de YHWH. Santuários para outras divindades também surgiriam por toda a cidade. Ao longo
dos séculos, os nomes Jerusalém e Sião se tornaram fundamentais para a identidade dos judeus em todo o
mundo: eram inseparáveis do nome de seu Deus. Agora seriam substituídos pelos nomes de um imperador
pagão e seus ídolos. A Jerusalém judaica, que estava em ruínas fazia sessenta anos, seria sepultada por ordem
do poder imperial e nunca mais ressurgiria. Sião desapareceria para sempre da face da terra, com tudo o
que representava. Os jerosolimitas sabiam muito bem o que era guerra e destruição: em duas ocasiões viram
um exército vencedor arrasar sua cidade e várias vezes presenciaram a profanação do Templo e a demolição
de seus muros. Agora, porém, defrontavam-se com um projeto de construção que consideravam um ato
hostil. Para eles, construir sempre fora uma atividade religiosa, capaz de afastar a ameaça de caos e
aniquilação. Agora se tornara uma arma nas mãos do império vitorioso. Aelia Capitolina destruiria a
Jerusalém judaica, cujo santuário simbolizara a realidade e a alma de seu povo. Tudo isso desapareceria sob
a cidade romana. O programa de edificações imperial constituiria um ato de descriação: o retorno do caos.
Não seria a última vez na história de Jerusalém que um povo derrotado veria sua cidade santa e seus marcos
amados se esvaecerem sob as ruas, monumentos e símbolos de um poder hostil e sentiria que sua própria
essência fora obliterada.
Provavelmente Adriano não previra tal reação. Quem não preferiria uma cidade moderna e bonita a um
lamentável monte de escombros? As obras gerariam empregos, e a nova metrópole tornaria rica a região. As
ruínas de Jerusalém eram um mórbido lembrete de ódios passados, que cabia superar para o bem da
fraternidade e da amizade. Judeus e romanos precisavam esquecer o passado e trabalhar juntos pela paz e
pela prosperidade. Adriano não gostava do judaísmo, que considerava uma religião primitiva. A obstinada
meticulosidade dos judeus opunha-se ao ideal de um império culturalmente unificado: era preciso introduzi-
los no mundo moderno, ainda que à força. Adriano não seria o primeiro governante a destruir, em nome do
progresso e da modernidade, tradições inextricavelmente ligadas a um senso de identidade nacional. Em 131,
ele expediu uma série de editos concebidos para fazer os judeus abandonarem seus costumes peculiares e
adaptarem-se ao mundo greco-romano. Assim, proscreveu a circuncisão — uma prática bárbara, em sua
opinião —, a ordenação dos rabinos, o ensino da Torá e as reuniões públicas. Foi mais um golpe para a
sobrevivência do judaísmo. Promulgados os editos, até os rabinos mais moderados perceberam que outra
guerra com Roma era inevitável.
Dessa vez os judeus não se deixaram pegar de surpresa. Planejaram sua nova campanha minuciosamente e
não travaram combate nenhum até finalizar os preparativos. O comando da revolta coube a Simon Bar
Koseba, um soldado realista e prático que conduziu suas tropas numa luta de guerrilhas, evitando
cuidadosamente a batalha campal, e ocupou Jerusalém depois que a Décima Legião se viu obrigada a deixar
a cidade para enfrentar os judeus no campo. Com a ajuda de seu tio, o sacerdote Eleazar, Bar Koseba
forçou todos os gentios remanescentes a partir e provavelmente tentou restaurar o culto sacrifical no monte
do Templo. O grande rabino Akiva, um dos maiores estudiosos e místicos de sua época, saudou-o como o
Messias e gostava de chamá-lo Bar Kokhba, “Filho da Estrela”. Não sabemos se Bar Koseba tinha tal
conceito de si mesmo: devia estar ocupado demais no planejamento de sua campanha para se dedicar à
escatologia. No entanto, moedas cunhadas em Jerusalém portavam as inscrições SIMÃO, O PRÍNCIPE e ELEAZAR,
O SACERDOTE, indicando, talvez, que ambos se consideravam os messias monárquico e sacerdotal que desde os
tempos de Zorobabel eram vistos como os redentores da cidade. Outras moedas traziam as palavras PELA
LIBERTAÇÃO DE JERUSALÉM . Mas foi uma luta inglória. Bar Koseba e seus homens conseguiram manter a
rebelião por três anos, até Adriano enviar para a Judeia um de seus melhores generais, Sexto Júlio. O
exército judeu era pequeno demais para resistir indefinidamente ao poderio de Roma, e Jerusalém — ainda
sem muralhas e fortificações — era indefensável. Os romanos sistematicamente aniquilaram todos os fortes da
Judeia e da Galileia. Díon Cássio nos diz que tomaram cinquenta fortalezas, devastaram 985 aldeias e
mataram 580 mil combatentes judeus: “Quanto aos que morreram de fome, pestilência ou incêndio, ninguém
conseguiu contá-los. Assim, quase toda a Judeia ficou despovoada”.30 Por fim, em 135, Bar Koseba foi
expulso de Jerusalém e morto em sua última cidadela, em Bethar. Mas os judeus também conseguiram
infligir aos romanos baixas tão pesadas que, quando relatou a vitória ao Senado, Adriano não pôde usar a
fórmula costumeira “Estou bem e o exército está bem”.31 Os judeus deixaram de ser vistos como uma raça
miserável e derrotada. Sua conduta na segunda guerra conquistara o respeito relutante de Roma.
Aelia Capitolina
135-326

Mas isso não lhes deu grande consolo. Depois da guerra, foram banidos de Jerusalém e de toda a Judeia.
Os poucos habitantes do monte Sião debandaram, e nos arredores da cidade não sobrou nenhuma
comunidade judaica. Os judeus da Palestina concentravam-se agora na Galileia: Tiberíades e Séforis se
tornaram suas principais cidades. Lá receberam a triste notícia da destruição final de Jerusalém e da criação
da Aelia Capitolina. O trabalho coube ao legado Rufo Timeu. Primeiro foi preciso arar a cidade e as ruínas,
seguindo um antigo rito romano para a fundação de um novo povoado.32 Os judeus viram nisso um
cumprimento da profecia de Miqueias: “Sião será lavrada como um campo”.33 Depois Adriano converteu o
local desolado numa moderna cidade helênica, com templos, um teatro, banhos públicos, uma piscina
dedicada às ninfas (que talvez se acreditasse possuir propriedades terapêuticas) e dois mercados. Havia um
fórum no leste, perto da atual Porta de Estêvão, e outro na Colina Ocidental, onde é hoje a praça
Muristan. O acampamento da Décima Legião se manteve no local do palácio de Herodes, no ponto mais
alto da cidade. Em vez de novas muralhas, Adriano construiu uma série de arcos monumentais: um deles, ao
norte, tinha cerca de quatrocentos metros e celebrava a vitória sobre Bar Koseba; outro assinalava a principal
entrada de Aelia, no lugar da atual Porta de Damasco; dois outros erguiam-se em cada fórum. O arco do
fórum oriental é conhecido hoje como Ecce Homo, porque os cristãos acreditavam que ali Pilatos apresentou
Jesus ao povo, dizendo: “Eis o homem!”.34 A entrada principal, no norte, levava a uma praça onde uma
coluna sustentava uma estátua do imperador. Dali partiam as duas ruas principais (chamadas cardines, ou
“gonzos”, da cidade): uma seguia o trajeto da atual rua do Vale [Tariq al-Wad], e a outra, denominada
Cardo Maximus, acompanhava a crista da Colina Ocidental. Adriano também construiu uma rede viária que
ainda constitui, grosso modo, a base das artérias atuais.
Muito mais tristes para os judeus eram os símbolos religiosos que apareceram triunfalmente na Cidade
Santa de YHWH. Aelia foi dedicada aos três deuses capitolinos — Júpiter, Juno e Minerva —, mas, depois da
Guerra Judaica, parece que Adriano desistiu de erguer o santuário de Júpiter no velho monte do Templo.
Nenhum visitante conta ter visto um santuário pagão na esplanada de Herodes, porém todos registram que
ali havia duas estátuas: uma de Adriano e a outra de seu sucessor, Antonino Pio. O templo de Júpiter
possivelmente se localizava perto do fórum principal, na Colina Ocidental. Um santuário de Vênus erguia-se
no Gólgota, e mais tarde os cristãos acusariam Adriano de profanar deliberadamente esse local sagrado,
entretanto é muito improvável que o imperador tenha notado a existência de sua obscura Igreja. São
Jerônimo (c. 342-420) acreditava que esse templo era dedicado a Júpiter e que o cume do Gólgota se
projetava sobre a esplanada do santuário encimado por uma estátua de Vênus, mas não explicou como uma
escultura tão proeminente da deusa teria ido parar ali. Nessa parte da cidade o terreno era tão irregular que
os arquitetos precisaram fazer aterros e construir muros de sustentação, mais ou menos como Herodes fizera
no monte do Templo, embora numa escala menor. Aelia era agora uma cidade totalmente pagã, gentia,
idêntica a qualquer outra colônia romana. No século III estendera-se para o leste e novos edifícios surgiram
na extremidade meridional do monte do Templo. Quando a Décima Legião partiu, em 289, os romanos
ergueram uma nova muralha. A ocupação judaica da cidade parecia coisa do passado.
As relações dos judeus com Roma, no entanto, surpreendentemente melhoraram ao longo desses anos. O
imperador Antonino Pio (138-61) atenuou a legislação antijudaica de Adriano, e a prática do judaísmo voltou
a ser legal. A guerra de Bar Kokhba mostrara a Roma que era importante enviar para a Judeia homens
hábeis, que conhecessem bem a região. Os rabinos evidentemente apreciaram a nova medida, pois muitas
vezes elogiaram a conduta dos legados romanos.35 Na Galileia eles puderam desenvolver um novo tipo de
liderança: em 140, o rabino Simão, descendente de Hillel, foi proclamado patriarca. Pouco a pouco assumiu
poderes monárquicos e acabou se impondo como chefe de todos os judeus do Império Romano. Tido como
descendente do rei Davi, reuniu em si a autoridade rabínica antiga e a moderna. O patriarcado
proporcionou aos judeus um novo foco político que compensou em pequeno grau sua perda de Jerusalém;
alcançou o apogeu sob o filho de Simão, Judá I (200-20), conhecido como “o Príncipe”, que viveu em meio
a régio esplendor. Dizia-se que era amigo pessoal do imperador Marco Aurélio Antonino (206-17), que, não
tendo ascendência romana, não desprezava os estrangeiros e nutria particular interesse pelo judaísmo.
Como a maior parte dos rabinos, os patriarcas consideravam essencial aceitar a situação política. Havia
alguns radicais, como o rabino Simeon ben Yohai, que viveu fugindo das autoridades romanas até morrer,
em 165. A maioria, porém, estava convencida de que os sonhos de reconquistar Jerusalém e reconstruir o
Templo eram perigosos. Os judeus deviam esperar que Deus tomasse a iniciativa. “Se as crianças vos dizem
para construir o Templo, não lhes deis ouvidos”, aconselhava o rabino Simeon ben Eliezer. 36 Tal tarefa
cabia ao Messias. Os rabinos transformaram outros locais em centros da vida espiritual. Desenvolvendo uma
concepção dos fariseus, ensinavam que de certo modo o lar substituíra o Templo e o chamavam de mikdash
m’at [pequeno santuário]: a mesa da família fazia as vezes do altar, e a refeição familiar constituía uma
réplica do culto sacrifical. Da mesma forma, a sinagoga também lembrava o Templo. O próprio edifício
encerrava sua parcela de santidade, e havia uma hierarquia de locais sagrados em que apenas determinadas
pessoas podiam entrar. As mulheres tinham seu setor; a sala onde se realizava o sacrifício era mais santa;
seguiam-se a bimah [mesa de leitura] e por fim a Arca contendo a Torá, o novo Santo dos Santos. Assim, a
aproximação dos fiéis ainda se processava passo a passo. A bimah geralmente era colocada num nível mais
alto, de modo que simbolizava uma montanha sagrada: o membro da congregação chamado para ler a Torá
ainda tinha de realizar uma ascensão [aliyah]. Sob os rabinos, o Sabá também adquiriu nova importância:
observá-lo equivalia a prelibar o mundo que estava por vir, entrando-se, uma vez por semana, em outra
dimensão da existência. O Sabá passou a ser um templo temporal, onde os judeus podiam encontrar seu
Deus num dia consagrado, em vez de num espaço sagrado.
Agora que Jerusalém se tornara inacessível e o Templo desaparecera, os rabinos tiveram de rever sua
concepção da Presença divina. Se Deus morava num edifício construído pelo homem, então não estava
presente em nenhum outro lugar? Os rabinos comparavam a Presença no Devir com o mar, capaz de encher
inteiramente uma caverna sem reduzir sua quantidade de água. Diziam que Deus era o Lugar do mundo,
mas o mundo não era seu lugar. 37 O mundo físico não podia conter sua imensidão; ao contrário, Deus
continha a terra. Alguns chegaram a afirmar que a perda do Templo libertara a Shekhinah de Jerusalém. Os
exilados na Babilônia acreditavam que YHWH deixara o Templo para juntar-se a eles. 38 Agora os rabinos
proclamavam que em toda a história judaica a Shekhinah nunca abandonara Israel, mas o seguira por toda
parte: no Egito, na Babilônia e no retorno a Jerusalém, em 539 a.C.39 Agora se exilara mais uma vez com
seu povo. Revelava-se sempre que os judeus se reuniam para estudar a Torá; passava de uma sinagoga a
outra e postava-se na porta daquela em que se rezava a Shemá.40 Assim fez do povo de Israel um templo
para o resto do mundo. O Templo de YHWH em Sião havia sido a fonte da fertilidade e da ordem
mundiais. Agora essa função cabia aos judeus: “Não fora a [Presença de Deus em Israel], não haveria chuva e
tampouco o sol brilharia”, diziam os rabinos.41 A ênfase, porém, recaía sempre na comunidade. A Presença
divina estava condicionada à união e à caridade do povo. Fazia-se sentir quando dois ou três israelitas
estudavam juntos a Torá; para a prece ter valor era preciso que dez homens se reunissem para compor um
minyan; se rezassem “com devoção, com uma só voz, uma só mente e um só tom”, a Shekhinah estaria entre
eles; se não, subia aos céus para escutar a harmoniosa devoção dos anjos.42
No entanto, assim como os exilados na Babilônia desenvolveram uma geografia sagrada quando não havia
possibilidade de retornar a sua terra santa, os rabinos continuaram enaltecendo a santidade de Jerusalém
muito tempo depois que a cidade fora profanada e o Templo destruído. Para eles, Sião e o Devir ainda
figuravam no centro do mapa do mundo:
Existem dez graus de santidade: a terra de Israel é mais santa que as outras. [...] As cidades muradas da
terra de Israel são ainda mais santas [...] o interior das muralhas de Jerusalém é ainda mais santo. [...] O
monte do Templo é ainda mais santo [...] o Pátio das Mulheres é ainda mais santo [...] o Pátio dos
Israelitas é ainda mais santo [...] o Pátio dos Sacerdotes é ainda mais santo [...] o espaço que circunda o
Altar é ainda mais santo [...] o Hekhal é ainda mais santo [...] o Devir é ainda mais santo, pois ali
ninguém pode entrar, salvo o sumo sacerdote no Yom Kippur.43
Os rabinos falavam de Jerusalém no presente, apesar de a cidade material não existir mais: a realidade que
ela simbolizava — a Presença de Deus na terra — era eterna e merecedora de contemplação. Cada nível de
santidade era mais sagrado que o anterior, e, à medida que se realizava a gradativa ascensão até o Santo dos
Santos, o número de pessoas que podiam entrar se reduzia progressivamente. Como no exílio, essa geografia
espiritual não tinha importância prática: era um mandala, um objeto de contemplação. Os rabinos diziam
agora que todos os fatos cruciais da salvação ocorreram no monte Sião original: o confinamento das águas
primordiais no dia da criação; a criação de Adão a partir do pó; a oferenda de sacrifícios por Caim e Abel,
bem como por Noé depois do Dilúvio. No monte do Templo, Abraão foi circuncidado, atou Isaac e
encontrou Melquisedec. Por fim, o Messias ali proclamaria os Novos Tempos e redimiria o mundo. 44 Os
rabinos não estavam interessados em historicidade. Não queriam saber se a Arca de Noé parou no monte
Ararat, e não no Sião original; tampouco lhes importava que outra tradição antiga localizasse o encontro de
Abraão com Melquisedec em En-Roguel. Jerusalém simbolizava a Presença redentora de Deus no mundo, e
nesse sentido todos os fatos da salvação ocorreram ali. Agora que era uma cidade proibida, simbolizava a
transcendência com maior eficácia que nunca. Qualquer que fosse o estado físico de Aelia, a realidade
espiritual que o Templo e a cidade reproduziam era eterna. Veremos que os judeus continuaram meditando
sobre os dez níveis de santidade durante séculos, quando Jerusalém ainda estava fechada para eles e o monte
do Templo se encontrava em mãos estrangeiras. Tratava-se de um modelo que os ajudava a imaginar como
Deus podia estabelecer contato com a humanidade e também de um mapa de seu mundo interior.
No início do século III, porém, alguns judeus voltaram a ter contato com a Jerusalém terrestre. O
banimento ainda constava do estatuto, mas sob o compassivo imperador Marco Aurélio Antonino não
vigorava com o antigo rigor. Primeiro alguns judeus de posição mais humilde começaram a cruzar as
fronteiras romanas. O tropeiro Simão de Kamtra explicou aos rabinos que muitas vezes seu trabalho o levava
a passar pelo monte do Templo: tinha mesmo de rasgar as roupas sempre que avistava as ruínas? 45 Depois o
rabino Meir recebeu permissão para viver em Aelia com cinco ou seis de seus alunos, embora essa pequena
comunidade fosse efêmera.46 Certamente após a morte do patriarca Judá I, em 220, não houve em Jerusalém
uma população fixa de judeus. Contudo, em meados do século III os judeus foram autorizados a chorar pelo
Templo no monte das Oliveiras. Mais tarde — não sabemos exatamente quando — consentiu-se que
visitassem o monte do Templo no nono dia do mês de Av, o aniversário da destruição de seu santuário.
Segundo um documento encontrado na Guenizá do Cairo, os peregrinos primeiramente se postavam,
descalços, no monte das Oliveiras e contemplavam as ruínas, enquanto rasgavam as roupas e lamentavam: “O
santuário está destruído!”. Depois entravam em Aelia, dirigiam-se à esplanada herodiana e choravam “pelo
Templo e pelo povo e pela Casa de Israel”. Esses ritos tristes eram muito diferentes das alegres
peregrinações do passado, pois a Presença cedera lugar à desolação e ao vazio. Entretanto, a cerimônia anual
no mês de Av ajudava os participantes a suportar sua dor. Encerrava-se com orações de agradecimentos, após
as quais os peregrinos “circundavam todas as portas da cidade e todos os seus ângulos, faziam um circuito e
contavam suas torres”, como fizeram os que os precederam quando o Templo ainda existia.47 Não os detinha
o fato de que os romanos construíram essas portas: tratava-se de um rito simbólico de passagem do
desespero à esperança. Contornando a cidade como se ela ainda lhes pertencesse, os peregrinos esperavam a
libertação messiânica definitiva: “No ano que vem em Jerusalém!”.
Após a guerra de Bar Kokhba, os judeus cristãos também foram expulsos de Aelia, uma vez que o
banimento se aplicava a todos os circuncidados, independentemente de sua convicção religiosa. Todavia,
alguns dos colonos gregos e sírios importados por Adriano provavelmente eram cristãos, pois havia em Aelia
uma igreja gentia.48 Esses cristãos não judeus ocuparam a “Sala Superior” do monte Sião, que ficava fora de
Aelia propriamente dita e, assim, escapara aos empreiteiros de Adriano. Tratava-se de uma casa comum: o
cristianismo ainda não era uma das religiões permitidas no Império Romano, e muitas vezes as autoridades
perseguiam seus adeptos. Os cristãos não podiam construir seus próprios locais de devoção. Mas gostavam de
chamar a casa da Sala Superior de “Mãe das igrejas”, pois foi ali que o cristianismo surgiu. Também
possuíam um trono que, acreditavam, pertencera a Tiago, o Tzaddik, o primeiro “bispo” de Jerusalém. Não
tinham, porém, muitos outros “lugares santos” em Aelia. A cidade que Jesus conhecera fora suplantada pela
de Adriano. Sobre o Gólgota, por exemplo, erguia-se agora o templo de Vênus, e os cristãos não queriam
rezar nesse local, que sem embargo, Eusébio nos conta, era “apontado” aos visitantes.49 Melitão, bispo de
Sardes, viu-o quando esteve na Palestina, em 160, e, de volta à pátria, disse a seu rebanho que o Gólgota se
situava agora no meio da cidade.50 Na época de Jesus, naturalmente, o Gólgota ficava além das muralhas,
mas agora estava perto do principal fórum de Aelia.
A Palestina não recebeu muitos peregrinos cristãos. Eusébio diz que “multidões” procedentes “do mundo
inteiro” visitaram Jerusalém,51 todavia só conseguiu citar quatro peregrinos, um dos quais era Melitão, que
não tinha o mínimo interesse por Aelia: a cidade “nada vale, por causa da Jerusalém que está acima dela”.52
Melitão viajou à Palestina em função de seus estudos, e não de sua devoção — esperava aprofundar seus
conhecimentos bíblicos pesquisando a topologia do país. Os gentios cristãos estavam voltados basicamente
para a Jerusalém celeste, tal como João a descreve no Livro do Apocalipse — que no século II foi mais
citado que qualquer outro texto cristão. Eles esperavam a Nova Jerusalém que desceria à terra no fim dos
tempos e transformaria sua réplica terrena.53 Mas ninguém fazia questão de visitar Aelia. Eusébio escreveu
apologeticamente: queria a legalização do cristianismo e decerto exagerou o número de peregrinos para
demonstrar a atração universal de sua fé. Nada indica que nos séculos II e III Jerusalém fosse um grande
centro de peregrinação cristã. Na verdade, tendendo a concordar com os Evangelhos de Mateus e João, os
gentios cristãos a viam agora como a Cidade Culpada, pois rejeitara Cristo. Jesus dissera que no futuro as
pessoas não se reuniriam em lugares santos como Jerusalém, mas o adorariam em espírito e verdade. A
devoção a santuários e montanhas santas era característica do paganismo e do judaísmo, que os cristãos
desejavam transcender.
Jerusalém não tinha, pois, nenhuma posição especial no mapa dos cristãos. O principal prelado da Palestina
era o bispo de Cesareia, não o de Aelia. Quando se instalou no país, em 234, Orígenes, o ilustre erudito
cristão, decidiu fundar sua academia e sua biblioteca em Cesareia. Ao viajar pela Palestina, voltou-se
basicamente para a topologia bíblica, como Melitão. Certamente não esperava viver uma experiência espiritual
em meras localidades geográficas, por mais veneráveis que fossem suas implicações. Só os pagãos, pensava,
procuravam Deus num santuário e acreditavam que as divindades moravam “num lugar específico”.54 Era
interessante visitar um lugar como Belém, onde Jesus nasceu, e ver a manjedoura (que aparentemente se
preservara), pois assim se comprovava a exatidão dos Evangelhos. Mas Orígenes era platônico. Achava que os
cristãos deviam libertar-se do mundo físico e buscar o Deus inteiramente espiritual. Em vez de apegar-se a
locais terrenos, deviam “buscar a cidade celestial” neles existente.55
Embora não houvesse um grande culto a Jerusalém, parece que os cristãos de Aelia gostavam de visitar os
arredores da cidade relacionados com Jesus. Eusébio nos diz que frequentavam o monte das Oliveiras, onde
ocorreu a Ascensão; o Jardim do Getsêmani, no vale do Cedron, onde Jesus orou antes de ser aprisionado; e
o rio Jordão, onde João Batista o batizou.56 No mundo greco-romano, as grutas possuíam uma aura de
sobrenaturalidade, e duas delas os cristãos de Aelia costumavam visitar, uma em Belém, onde Jesus nasceu; e
a outra no monte das Oliveiras, onde o Ressuscitado apareceu para João.57 Sua importância estava não no
homem Jesus, cuja vida na terra não suscitava grande curiosidade, e sim no fato de terem presenciado uma
teofania: em ambas o Logos encarnado se revelara ao mundo.
A gruta do monte das Oliveiras era ainda mais importante, pois ali Jesus descreveu aos discípulos a futura
destruição de Jerusalém e o fim dos tempos.58 Os cristãos aparentemente se empolgavam ao ver os judeus
chorando a perda de seu santuário no monte das Oliveiras. Embora achasse tais cerimônias patéticas e
equivocadas, Orígenes observou que a aflição dos judeus constituía mais uma prova da veracidade dos
Evangelhos. A baixa Antiguidade valorizava muito as profecias e os oráculos inspirados, de modo que o fato
de Jesus ter previsto com exatidão a destruição do Templo judaico devia impressionar os adversários pagãos
de Orígenes. Desde que os judeus rejeitaram Jesus, ele assinalou, “foram aniquiladas todas as instituições das
quais tanto se orgulhavam, ou seja, as que se relacionavam com o Templo e o Altar dos Sacrifícios, os ritos
e as vestes dos sumos sacerdotes”.59 Isso era muito gratificante. Parece que os cristãos de Aelia criaram sua
própria contracerimônia no monte das Oliveiras. Eusébio diz que gostavam de subir até a gruta “para
instruir-se sobre a tomada e a devastação da cidade”. 60 Olhando para a desolada esplanada do Templo, com
as estátuas dos imperadores vitoriosos, contemplavam a derrota do judaísmo e a sobrevivência de sua própria
fé, que nessa época talvez não estivesse ganhando muitos adeptos na Palestina, mas certamente fazia grandes
progressos no resto do Império. A Aelia romana, construída sobre as ruínas da Cidade Culpada, constituía
para eles uma prova visível da verdade de sua religião. Em tudo isso, porém, havia algo de inquietante.
Como os rabinos, Jesus e Paulo enfatizaram a suprema importância da caridade e do amor. Jesus até chegou
a dizer que os cristãos deviam amar seus inimigos. Sem embargo, tudo indica que esses cristãos do século III
sentiam um prazer nada santo ao contemplar o destino dos judeus que os precederam em Jerusalém. Os
monoteístas sempre tiveram de conformar-se com o fato de que os ocupantes anteriores de Jerusalém a
veneravam como cidade santa, e a plenitude de sua própria posse muitas vezes depende de sua reação a esse
fato. Tudo indica que a experiência de viver na cidade onde Cristo morreu e ressuscitou não inspirou os
cristãos de Aelia a viver segundo seus mais nobres ideais.
Eusébio tornou-se bispo de Cesareia em 313, uma data de grande importância para os cristãos do Império
Romano. Como Orígenes, Eusébio era platônico e não se interessava por santuários ou espaços sagrados. O
cristianismo, a seu ver, superara esses entusiasmos primitivos. A Palestina não tinha nada de especial: “Ela de
modo nenhum excede o resto [da terra]”.61 Aelia era simplesmente a Cidade Culpada: indigna de veneração e
útil aos cristãos apenas na medida em que simbolizava a morte do judaísmo. Nessa época pouca gente nem
sequer lembrava o nome original da cidade; o próprio Eusébio sempre a chamou de Aelia. Para ele — como
para a maioria dos cristãos gentios —, “Jerusalém” significava a Sião celeste, uma realidade inteiramente fora
deste mundo. Mas, em 312, Constantino derrotou seu rival imperial, Maxêncio, na batalha da ponte Mílvio e
atribuiu sua vitória ao Deus dos cristãos. Em 313, ano da acessão de Eusébio, declarou que o cristianismo
era uma das religiões oficiais do Império Romano. Antes perseguido, marginalizado, sem lugar neste mundo,
sem poder político e sem cidades santas, o cristianismo começava agora a adquirir uma dimensão mundana,
o que mudaria radicalmente a maneira como os cristãos viam “Aelia”.
9. A NOVA JERUSALÉM

CONSTANTINO TORNOU-SE IMPERADOR do Ocidente após sua vitória na ponte Mílvio. Em 323, derrotou
Licínio, imperador das províncias orientais, e passou a ser o único governante do mundo romano. Sempre
atribuiu sua espantosa ascensão ao Deus dos cristãos e, embora entendesse bem pouco de teologia e tenha
adiado seu batismo até o momento em que se encontrava em seu leito de morte, manteve-se leal à Igreja.
Esperava também que, uma vez legalizado, o cristianismo atuasse como uma força de coesão em seus vastos
domínios. Na Palestina, apenas uma pequena minoria da população era cristã, mas durante o século III o
cristianismo emergira como uma das religiões mais importantes do Império e uma das maiores em número
de adeptos. Em 235, os cristãos podiam gabar-se de possuir uma “Grande Igreja” com uma única regra de
fé. Essa religião originalmente semítica atraía homens muito inteligentes, capazes de interpretá-la de forma
que o imenso mundo greco-romano pudesse entender. Nos anos de perseguição, a Igreja desenvolvera uma
eficiente administração, que constituía um microcosmo do Império: multicultural, católica, internacional,
ecumênica e gerenciada por burocratas competentes. Agora que se tornara religio licita, seus adeptos podiam
deixar a clandestinidade e dar à vida pública uma contribuição diferenciada, e Constantino esperava canalizar
para o imperium seu poder e sua capacidade.
Contudo, não promoveria o cristianismo à custa de outras crenças. Era realista e sabia que não podia se
dar ao luxo de hostilizar seus súditos pagãos. Manteve o título de pontifex maximus, e o velho culto sacrifical
do Império continuou inalterado. Constantino encontrou um modo de começar a expressar sua concepção da
nova Roma cristã: construindo em larga escala. Em Roma edificou santuários nas tumbas dos mártires
cristãos e um martyrium, ou mausoléu, dedicado a são Pedro Apóstolo, semelhante aos que celebravam os
imperadores romanos. Tais edifícios em nada se pareciam com os antigos templos: não foram concebidos
como símbolos cósmicos, e a Igreja recém-emancipada ainda não havia desenvolvido publicamente uma
liturgia. Essas basílicas, porém, surgiram ao lado de símbolos pagãos e mostravam que o cristianismo
começara a ocupar seu lugar no mundo. Em Roma, todavia, os locais centrais já abrigavam edifícios pagãos,
e os martyria de Constantino tinham de limitar-se à periferia da cidade. Tais restrições não se aplicavam à
nova capital imperial que ele construiu para si no Bósforo, no local da antiga cidade grega de Bizâncio.
Inteiramente cristã, Constantinopla podia exibir a cruz com orgulho e adornar suas praças com estátuas de
heróis bíblicos. Entretanto, não tinha história: o imperador, que acreditava piamente no poder dos símbolos,
sabia que, para expressar aquela continuidade tão crucial na baixa Antiguidade, seu império cristão precisava
ter raízes num passado venerável.
Um de seus defensores mais ardorosos nos primeiros anos de seu reinado foi Eusébio, bispo de Cesareia.
Depois da ponte Mílvio, Eusébio saudou o imperador como o novo Moisés, que derrotou Maxêncio, assim
como o antigo vencera os egípcios.1 Chamou-o também de segundo Abraão, pois considerava-o capaz de
restaurar o monoteísmo puro dos patriarcas.2 Observou que Abraão, Isaac e Jacó não tinham templo e
tampouco elaboraram uma Torá, mas simplesmente adoraram Deus em espírito e verdade, onde quer que
estivessem.3 Como os outros cristãos da região, Eusébio também esteve no monte das Oliveiras,
contemplando as ruínas do templo, cujas pedras, comentou, ironicamente acabaram sendo utilizadas na
construção de santuários pagãos e teatros.4 A seu ver, o destino do Templo constituía uma prova evidente de
que Deus não queria mais aquele ostentoso ritual de sacrifícios. Ele queria que seguissem a religião espiritual
pregada por Jesus, que prescindia de templos e de lugares santos. Como Orígenes, Eusébio não tinha
interesse por geografia sagrada. Deus estava com as “almas purificadas e preparadas, lúcidas e racionais”, não
com os que o buscavam “na matéria sem vida e nas cavernas escuras”.5 A Lei de Moisés exigia que os
crentes acorressem a um único lugar santo, porém Eusébio imaginou Cristo dizendo:
Eu, dando liberdade a todos, ensino aos homens que não procurem Deus num canto da terra, nas
montanhas ou nos templos feitos com as mãos, mas que o venerem e o adorem em suas próprias casas.6
Ele viera ensinar aos homens a religião primordial de Abraão, despojada de mitologias irracionais e de
imagens materiais.
Com grande satisfação Eusébio visitou o bairro do monte Sião, imaginando, como todos os seus
contemporâneos, que ali se situara a Sião bíblica. Em vez de um centro de estudo e conhecimento, o local
era agora uma simples “fazenda romana, como o resto do país. De fato, vi com meus próprios olhos touros
arando a terra e sementes cobrindo o lugar santo”.7 A Sião atual, devastada e deserta, provava que Deus
realmente a abandonara. Eusébio, contudo, nunca lembra que o monte Sião era também o centro cristão de
Aelia. No início do século IV, os cristãos locais argumentavam que, como a “Mãe das igrejas”, Aelia devia ter
um status eclesiástico mais elevado que o de Cesareia, onde não havia associações sagradas. Além de exibir o
trono de Tiago, o Tzaddik, também começaram a identificar algumas ruínas do monte Sião como
importantes marcos bíblicos: uma velha casa era a residência de Caifás; outra, o palácio do rei Davi. Havia
uma coluna que relacionavam com a flagelação de Jesus. Eusébio, entretanto, ignora esses fatos. No
Onomasticon, seu guia de topônimos bíblicos, assinala que a geografia da Palestina “comprova” a exatidão dos
Evangelhos: as cidades e aldeias estão precisamente onde os evangelistas disseram. Nunca, porém, cita os
locais do monte Sião como provas ou testemunhos da vida de Cristo. Talvez desconfiasse de sua
autenticidade, já que era historiador. Talvez soubesse que Macário, bispo de Aelia, utilizava esses lugares na
campanha que fazia para transformar sua cidade na sé metropolitana da Palestina, em detrimento de
Cesareia.
O conflito entre as duas cidades eclodiu em 318, quando Eusébio e Macário se viram em lados opostos de
uma controvérsia doutrinal que ameaçou dividir a Igreja. Fundamentando-se num número impressionante de
textos bíblicos, Ário, um carismático presbítero de Alexandria, formulara a tese de que Jesus, o Logos
encarnado, não era divino da mesma forma que Deus Pai: fora criado por Deus antes do começo dos
tempos.8 Ário não negava a divindade de Cristo — a quem chamava de “Deus forte” e “Deus verdadeiro”
—, mas não o considerava divino por sua própria natureza. Deus Pai lhe conferira a divindade como um
prêmio por sua perfeita obediência.9 O próprio Jesus dissera que seu Pai era maior que ele. As ideias de
Ário não eram novas, nem claramente heréticas nessa época. O grande Orígenes tinha uma concepção
semelhante de Jesus. Os cristãos acreditaram durante muito tempo que Jesus era Deus, mas até então não
haviam chegado a um consenso sobre o que isso realmente significava. Se Jesus era divino, não havia de fato
dois deuses? Adorar um homem não constituía idolatria? Ário talvez tenha expressado sua teologia de
maneira mais clara e convincente que seus predecessores, porém muitos bispos tinham ideias parecidas, e no
início da disputa ninguém sabia por que — ou mesmo se — ele estava errado.
Alexandre, bispo de Alexandria, e Atanásio, seu jovem e brilhante assistente, opuseram-se à tese de Ário,
argumentando que o Logos era Deus da mesma forma que Deus Pai. Partilhava a mesma natureza de Deus
Pai e não fora nem gerado, nem criado. Se fosse uma simples criatura, tirada pelo Pai de um nada
primordial e abissal, não conseguiria salvar a humanidade da morte e da extinção. Somente Aquele que criou
o mundo podia salvá-lo; portanto, Jesus, o Verbo feito carne, partilhava a divindade essencial do Pai. Sua
morte e ressurreição redimiram a humanidade do pecado e da mortalidade, e agora, incorporando-se em
Cristo, o deus-homem, os seres humanos também podiam tornar-se divinos.
O conflito se acirrou, e os bispos se viram obrigados a tomar partido. Na Palestina, Macário alinhou-se
com Atanásio, e Eusébio com Ário, cuja teologia se assemelhava à sua. Cabe lembrar que, ao assumir essa
posição, Eusébio não estava se opondo frontalmente à doutrina oficial da Igreja. Até então não havia
preceitos ortodoxos sobre a pessoa e a natureza de Cristo. Eusébio era um dos principais intelectuais cristãos
de sua geração e sustentava opiniões semelhantes às de vários teólogos que o precederam. Atanásio
considerava a vinda de Cristo um acontecimento único, enquanto Eusébio enfatizava a continuidade do
cristianismo em relação ao passado. Atanásio via a Encarnação do Logos como um fato sem paralelo na
história do mundo: o divino se manifestara na esfera terrena de modo inteiramente inédito. Jesus era,
portanto, a única revelação de Deus. Eusébio não acreditava nisso. A seu ver, Deus se revelara à humanidade
anteriormente. O Logos aparecera para Abraão em Mambré sob forma humana;10 Moisés e Josué
testemunharam epifanias similares. Assim, o Logos simplesmente retornara à terra na pessoa de Jesus de
Nazaré.11 A Encarnação não foi um acontecimento ímpar, mas a aclaração de teofanias do passado. A
revelação de Deus à humanidade processava-se ininterruptamente.
Atanásio considerava a salvação do mundo a obra mais importante de Jesus. Eusébio não tinha o mesmo
parecer; sem dúvida Jesus nos salvou, porém sua principal missão consistiu em revelar Deus ao mundo. Jesus
foi uma teofania: vendo-o, os homens podiam fazer uma ideia do Deus invisível e indescritível. Um dos
principais objetivos de Jesus era lembrar aos cristãos a natureza essencialmente espiritual da religião. Ao
longo dos séculos, os seres humanos esqueceram a pura espiritualidade de Abraão e macularam sua fé com
emblemas materiais como a Torá e o Templo. Jesus veio para nos lembrar essa antiga pureza. Assim, não
devemos nos concentrar na humanidade de Cristo. Eusébio escreveu uma carta severa a Constância, irmã do
imperador, que tolamente lhe pedira um retrato de Jesus. Os cristãos precisavam ver através da carne a
essência divina do Logos celeste. Depois de sua passagem pela terra, o Logos retornou ao reino espiritual, e
os cristãos deviam segui-lo até lá. A atribuição de um valor permanente à humanidade de Jesus era tão
perversa e irracional quanto o apego dos judeus a uma cidade terrena. Os cristãos estavam empenhados numa
constante katharsis, ou purificação. Tinham de aprender a ler as Escrituras de modo mais espiritual, buscando
no fato histórico a verdade eterna. Portanto, a ressurreição de Jesus não foi o acontecimento espetacular que
Atanásio imaginava, mas simplesmente revelou a imortalidade natural à condição humana.
Tais questões evidentemente eram imponderáveis, improváveis. No entanto, o debate ameaçava dividir a
Igreja. Constantino enfureceu-se: não entendia nada de teologia, mas não pretendia permitir que esse jogo de
palavras cindisse a instituição que devia ser coesa e unitiva. No início de 325 declarou seu apoio ao partido
de Atanásio e, enquanto se decretava a excomunhão dos líderes “arianos”, convocou um concílio para resolver
o assunto de uma vez por todas. Quando chegou a Niceia, em maio, para participar da assembleia, Eusébio,
que estava então com 65 anos e era um dos bispos mais eminentes, descobriu que havia sido excomungado.
Contudo, seu rival Macário, que pertencia ao lado vitorioso, encontrava-se numa posição bastante forte:
certamente seus colegas entenderiam que o bispo de Aélia, a Mãe das igrejas, não podia subordinar-se ao
bispo herético de Cesareia.
O Concílio de Niceia formulou um credo oficial que expressava as ideias de Atanásio, mas não conseguiu
pacificar a Igreja. A maioria dos bispos assumiu posições intermediárias entre as de Atanásio e as de Ário e
provavelmente os viu como radicais e excêntricos. No entanto, pressionados pelo imperador, todos eles, à
exceção de dois arianos corajosos, firmaram o credo em nome da paz; depois continuaram ensinando o que
achavam correto e nem por isso cometeram heresia. O Concílio de Niceia foi o primeiro concílio ecumênico
da Igreja, e até então não havia uma tradição que afirmasse a “infalibilidade” de seus decretos. Os bispos
compreensivelmente achavam que suas opiniões também deviam ser ouvidas, e por conseguinte a controvérsia
ariana se arrastou por mais sessenta anos. Eusébio foi um dos prelados que assinaram o credo, mas
imediatamente após o concílio promoveu uma campanha contra a “ortodoxia” de Atanásio. No tratado
Teofania, expôs sua concepção de Jesus e, como sempre apoiou Constantino, conseguiu ganhar a atenção do
imperador. Em 327, seu partido moderado preponderou e revogou-se a proscrição de Ário.
Se em termos práticos pouco influiu na política teológica, o Concílio de Niceia teria imensas repercussões
sobre a história de Jerusalém. Primeiro, Macário fizera valer seu trunfo: o sétimo cânon do concílio afirmava
que, de acordo com o “costume e a tradição”, o bispo de Aelia devia manter uma posição de prestígio
dentro da Igreja, embora continuasse subordinado ao bispo metropolitano de Cesareia. Macário não obteve
tudo o que queria, porém foi provavelmente em Niceia que apresentou um projeto muito mais importante
para o status de Aelia que qualquer determinação expressa do concílio e muito mais decisivo para a vitória
final da teologia de Atanásio que o credo assinado pelos bispos relutantes. Macário pediu permissão ao
imperador para demolir o templo de Vênus e expor a Tumba de Cristo, que estaria sob o santuário da
deusa.
Constantino, que no fundo era pagão e não partilhava o desdém de Eusébio por lugares santos, gostou da
ideia. Prontificou-se a visitar pessoalmente a Palestina, para onde já se dirigia sua sogra, Eutrópia. Sabia que
seu império cristão precisava de símbolos e monumentos que lhe conferissem ressonância histórica. O
extraordinário projeto de Macário também envolvia sérios riscos. A vasta maioria da população de Aelia era
pagã e não aceitaria de bom grado a demolição de um de seus principais santuários. As escavações teriam o
apoio imperial, mas fazia quase duzentos anos que os empreiteiros de Adriano haviam construído o templo
de Vênus. Como os cristãos podiam ter certeza de que o Gólgota e a tumba realmente estavam sob o
santuário? Os pagãos de Aelia ficariam furiosos se perdessem seu templo por nada. Imperador e Igreja
passariam por um terrível constrangimento, sem falar que, se as escavações malograssem, o cristianismo
imperial se veria com uma preocupante lacuna.
Apesar dos riscos, Constantino deu sua permissão, e os trabalhos se iniciaram logo após o concílio, sob a
supervisão de Macário, processando-se simultaneamente em dois lugares. Primeiro, o imperador ordenou que
se construísse uma casa de oração perto do Cardo Maximus, a rua principal de Aelia, alguns metros a leste
do suposto local do Gólgota. Sendo relativamente simples, as obras evoluíram com rapidez e sem
transtornos. O segundo projeto não só era muito mais difícil — tratava-se de demolir o templo de Vênus
até a base e nivelar o terreno —, como ainda possuía dupla dimensão religiosa. Primeiro, os cristãos estavam
buscando no subsolo da cidade pagã as raízes históricas de sua fé. Durante as perseguições, o ódio mortal do
establishment pagão os levara a acreditar que o mundo estava contra eles; certos de que não tinham onde
viver na terra, desenvolveram então uma teologia do além. Desde a sucessão de Constantino, todavia,
passaram por uma espetacular reviravolta e começavam a achar que tinham, afinal, um lugar neste mundo.
Esse ato de arqueologia santa exporia as raízes concretas de sua fé e os capacitaria a construir literalmente
sobre as antigas fundações. Uma nova identidade cristã também estava em processo de elaboração. O segundo
aspecto do projeto era menos positivo. A criação do novo cristianismo envolvia o desmantelamento do
paganismo, eloquentemente simbolizado pela destruição do templo de Vênus. A demolição adquiriu o caráter
de uma purificação ritual. O paganismo era “sujo”: precisava-se eliminar todo vestígio do templo, lançar fora
da cidade todos os seus materiais e transportar para um “local muito distante” até mesmo o solo que o
sustentava, pois “fora poluído pelas impurezas da adoração pagã”.12 O renascimento do cristianismo envolvia
a erradicação do paganismo e a remoção de seu próprio chão.
Enquanto se processavam as escavações, Macário e seus colegas devem ter passado maus momentos: sabiam
que tinham de encontrar alguma coisa. No entanto, a grande descoberta só ocorreu dois anos depois. Sob a
base do velho templo achou-se um túmulo que imediatamente foi identificado como o sepulcro de Cristo.
Nem mesmo Eusébio, que tinha razões de sobra para ser cético, questionou a autenticidade dessa relíquia.
Embora aguardassem com ansiedade tal descoberta, os cristãos se surpreenderam. Eusébio descreveu o
acontecimento como “contrário a toda expectativa”, e até Constantino o considerou “mais que espantoso”.13
Um dos motivos de tamanha perplexidade era, provavelmente, o fato de a descoberta harmonizar-se tão bem
com a dimensão interior do que parecia estar ocorrendo que se revestia de uma aura mítica. Trezentos anos
antes Jesus ressuscitara naquela tumba. Agora a própria tumba ressuscitara, por assim dizer, e os cristãos
testemunhavam um inesperado ressurgimento de sua fé.
Encontrou-se o túmulo numa antiga pedreira destruída pelos empreiteiros de Adriano. Era preciso separá-
lo da encosta, sem remover a rocha que o envolvia, e abrir a seu redor um espaço com cerca de 34 metros
de diâmetro para o martyrium circular encomendado pelo imperador. Isso significava transformar
aproximadamente 49 500 metros cúbicos de rocha em blocos de pedra que pudessem ser usados na
construção do monumento. Era uma tarefa gigantesca, e esse santuário redondo — que receberia o nome de
Anástasis, ou Ressurreição — só se concluiu muito depois da morte de Constantino. Durante anos o túmulo
permaneceu ao ar livre, enquanto se preparava o terreno. Os trabalhadores descobriram então o que
identificaram como o outeiro do Gólgota. O que resta dessa rocha está hoje quase totalmente encerrado na
capela do Gólgota, na igreja do Santo Sepulcro, de modo que é difícil imaginar seu aspecto original.
Escavações realizadas em 1961 indicam que o “Gólgota” era um bloco de pedra vertical, com cerca de dez
metros de altura, que provavelmente se erguia no canto da pedreira. Em sua base havia uma caverna, que
pode ter sido um túmulo muito antes da época de Jesus. Essa coluna de rocha teria sido uma pedra
comemorativa, semelhante às que foram encontradas no vale do Cedron? Quando Jesus foi crucificado, a
terra que se acumulara ao redor do bloco havia formado um outeiro, do qual a rocha se destacava como
uma caveira, inspirando o nome “Gólgota”, o Lugar da Caveira.
Assim, as escavações revelaram dois locais santos, em vez de um: a colina onde ocorreu a crucifixão e o
túmulo de Jesus. A construção da basílica, que Constantino queria que fosse a mais bela do mundo, chegava
ao final. Contribuições de todos os governadores das províncias orientais financiaram a obra, na qual não se
pouparam despesas. O espaço, todavia, era limitado, de modo que a igreja não devia ter mais que 40 por 27
metros. Possuía cinco naves, uma delas abrigando a Rocha do Gólgota, e uma abside semicircular na
extremidade ocidental, mais próxima do sepulcro. Para Eusébio, o único autor contemporâneo que registrou
suas impressões, a construção era de uma beleza extraordinária. Mármore variegado e pedra polida revestiam-
na por dentro e por fora. Painéis entalhados adornavam-lhe o interior “e, como um grande mar, cobriam-na
toda com sua ondulação sem fim, enquanto o ouro brilhante que os revestia fazia o templo inteiro
reluzir”.14 Martyrium era o termo com que geralmente se designava a basílica de são Constantino,
“testemunha” da ressurreição e monumento à memória de Cristo.

A Anástasis
Reconstituição da planta do século IV
1. Patriarcado 5. Calvário
2. Rotunda da Anástasis 6. Basílica/Martyrium
3. Edícula da Tumba 7. Átrio
4. Átrio: o “Jardim Santo”

Como no antigo Templo judaico, o devoto tinha de percorrer, passo a passo, um local complexo para
chegar ao túmulo, ao novo Santo dos Santos (ver planta na p. 230). A entrada do Martyrium situava-se no
Cardo Maximus, no centro da Aelia pagã. Suas três portas estavam sempre semiabertas, de modo que os
transeuntes podiam vislumbrar os esplendores da igreja e animar-se a entrar. Para chegar à basílica — apenas
mais uma etapa do trajeto —, tinham de atravessar um átrio. Todas as portas ocidentais da igreja davam
para um pátio amplo, situado diante do sepulcro e concebido para abrigar multidões de peregrinos. Ali se
plantou um jardim, em memória daquele onde as mulheres viram o Cristo ressuscitado. Constantino
apossara-se do ponto central da Aelia romana e transformou-o num lugar santo do cristianismo. Construiu
uma Nova Jerusalém ao lado do fórum. Até então Aelia esteve excluída do mapa espiritual da maioria dos
gentios cristãos, e na própria cidade a Igreja fora marginalizada — estabelecera-se além das muralhas, no
bairro pouco habitado de monte Sião. Agora Constantino demonstrara a centralidade da nova fé para seu
Império, e seu gesto imediatamente cativou a imaginação dos cristãos. Tão logo se descobriu o sepulcro e
concluiu-se a construção da basílica, os cristãos começaram a desenvolver sua própria mitologia a respeito do
lugar, situando-o no centro de sua espiritualidade. Lembraram a antiga tradição judaico-cristã de que Adão
fora sepultado no Gólgota. Não demoraram muito para acreditar que ali Abraão atara Isaac para o sacrifício.
Esse novo local santo de sua fé começou a inspirar o mesmo tipo de crença e de lenda que o antigo
Templo judaico suscitara. Tornou-se um “centro” simbólico, onde o poder divino tocara de forma única o
frágil mundo humano. Representou um recomeço para a humanidade, um cumprimento da religião de
Abraão e uma nova era na história do cristianismo.
Não obstante, os cristãos se consideravam superiores a esse tipo de devoção. Diziam com orgulho que sua
fé era puramente espiritual e não dependia de santuários e lugares santos. Sua surpreendente reação à
descoberta do sepulcro mostra que os mitos da geografia sagrada estão profundamente arraigados na psique
humana. Um choque repentino ou um inesperado reencontro com um dos símbolos palpáveis de nossa fé e
de nossa cultura pode redespertar esse entusiasmo por um espaço sagrado, sobretudo após um período de
perseguição, em que as pessoas sofreram com especial intensidade a ameaça de aniquilação. Nunca podemos
dizer com certeza que superamos esses mitos primordiais: mesmo no mundo secular e científico do século XX
não somos imunes a sua atração, como nos demonstra Jerusalém. Ao ver o sepulcro do Ressuscitado, os
cristãos sentiam o choque do reconhecimento e, pela primeira vez, eram impelidos a arraigar-se num local
físico, a construir sua morada no mundo profano, a apropriar-se dessa área sagrada. Esse benéfico elo com o
passado permitiu que se instalassem no centro da Aelia romana, abandonando sua posição marginal e
assumindo um lugar totalmente novo no mundo.
Ninguém poderia opor-se mais à noção de espaço sagrado que Eusébio, e no entanto tudo indica que a
descoberta da tumba o tocou profundamente, obrigando-o a rever algumas de suas antigas convicções. Agora
que reconquistara as boas graças de Constantino, recebeu a incumbência de interpretar esses fatos espantosos.
Ao tentar explicar o impacto dessa descoberta arqueológica, constatou que não tinha outra saída senão
recorrer ao tipo de linguagem mitológica que até então repudiara. Não poderia demonstrar sua importância
em termos racionais, mas só de acordo com as velhas imagens que descreviam as mais profundas atividades
da mente e do coração. O sepulcro era uma teofania: uma aparição, sob forma palpável, de algo até então
oculto e inacessível. Reproduzia o milagre da ressurreição de Cristo dentre os mortos, que agora Eusébio
considerava uma vitória sobre os poderes das trevas, semelhante às vitórias presentes nos antigos mitos de
combate. “A santíssima caverna recebeu o que era um emblema exato de seu ressurgimento”, ele escreveu em
Vida de Constantino; “pois, tendo mergulhado na escuridão, voltou à luz e proporcionou aos que a visitaram
uma clara percepção da história dos prodígios que ali ocorreram.”15 A destruição do templo da deusa
constituíra um triunfo sobre as forças do mal, pois o edifício era “o antro de um demônio impuro chamado
Vênus, um sombrio santuário de ídolos sem vida”. Ali se cometeram abominações, “sórdidas oblações em
altares profanos e amaldiçoados”. Todavia, o Deus da luz, que ilumina os corações humanos, inspirara
Constantino a ordenar uma katharsis dessa imundície. “Assim que ele deu suas ordens, lançaram-se por terra
as artimanhas da falácia, e as moradas de erros, imagens e demônios foram derrubadas e finalmente
destruídas.”16 O sepulcro reproduzira toda a experiência cristã, pois sua descoberta constituíra ao mesmo
tempo uma revelação, uma ressurreição e uma vitória das forças da luz. Até então Eusébio tinha uma visão
muito mais serena da Ressurreição; agora começava a conferir-lhe um pouco da dramaticidade que possuía na
teologia de Anastásio.
A Rocha do Gólgota, ao que tudo indica, não lhe despertava maior interesse, pois ele nunca a menciona.
Contudo, ao ver a caverna, recém-separada da encosta, Eusébio se emocionou profundamente. Impressionou-
se com sua solidão — “erguia-se ereta e solitária numa terra plana” — e com o fato de que ela nunca
abrigara outro corpo.17 A caverna emblemava a unicidade da vitória de Cristo. Diante dela Eusébio sentiu
que os acontecimentos da vida de Jesus ganhavam uma intensidade totalmente nova. Quando vemos um lugar
onde ocorreu alguma coisa importante para nós, desaparece a lacuna entre o passado e o presente, que as
simples informações verbais não conseguem eliminar. Para Eusébio, a contemplação da tumba “falou mais
alto que todas as palavras”.18 Para outros cristãos, elucidava a teologia da Encarnação formulada por
Atanásio. Eles não procuravam enxergar a divindade através da figura humana de Cristo, como Eusébio
aconselhara, mas queriam ver e tocar os lugares associados com sua humanidade e descobrir que o homem
Jesus era um símbolo poderoso da ligação de Deus com o mundo.
Eusébio, no entanto, não modificou inteiramente suas opiniões. Continuou chamando a cidade de Aelia: a
metrópole pagã nada tinha de santa, e imaginar que tivesse era “não só vil, como impio”, “prova de um
pensamento excessivamente torpe e mesquinho”.19 O nome Jerusalém referia-se apenas ao sepulcro e aos
edifícios construídos por Constantino na Colina Ocidental. O restante da cidade era profano e culpado,
como sempre. Eusébio denominou o conjunto constantiniano Nova Jerusalém, precisamente porque se erguia
“sobre e contra a antiga”.20 Diferia inteiramente da velha cidade judaica que Cristo amaldiçoara. E
proporcionou aos cristãos mais uma posição privilegiada para contemplar a derrota do judaísmo. Situado
num dos pontos culminantes da Colina Ocidental, o Martyrium elevava-se acima do profanado monte do
Templo. Ilustrava vividamente o ressurgimento da nova fé, que agora contava com o apoio imperial,
enquanto o judaísmo fora excluído do mapa de Aelia. Nessa medida a Nova Jerusalém reforçou as convicções
de Eusébio. O cristianismo conseguira sair da clandestinidade e lançar raízes no mundo temporal; agora
podia assumir seu lugar ao lado das outras instituições do Império e estava adquirindo uma identidade
totalmente nova. A Nova Jerusalém era uma parte importante desse processo. Entretanto, o novo ego cristão
baseava-se numa rejeição destrutiva das tradições religiosas mais antigas, e isso se evidenciou em Aelia. A
construção da Nova Jerusalém, “sobre e contra” sua predecessora, acarretara uma violenta extirpação da
religião pagã, uma satanização de tradições mais antigas e uma desdenhosa afirmação de superioridade sobre
o judaísmo. Os cristãos tratariam de impedir que os judeus vivessem em Jerusalém enquanto eles detivessem
o poder. A velha proscrição permaneceu no estatuto imperial. Os cristãos se libertaram da opressão, mas se
mantinham prontos para lutar, numa atitude de defesa e de resoluta e destrutiva oposição a seus rivais. A
perseguição nem sempre torna suas vítimas compassivas. Desde o começo, a Nova Jerusalém envolveu a
exclusão e a infamação de outras pessoas, contrariando a ética compassiva de Jesus.
Eusébio, portanto, continuou considerando Aelia irremediavelmente contaminada pelo judaísmo e pelo
paganismo. Continuou ignorando os novos “lugares santos” do monte Sião e talvez tenha usado de seu
prestígio junto a Constantino para impedir que esses locais recebessem subsídios imperiais. Para seu rival,
Macário, eles eram muito importantes: o bispo de Aelia lavrara um tento ao planejar a descoberta da tumba,
porém nos anos seguintes Eusébio conseguiu fazer sua teologia refletir-se também na cristianização da
Palestina. Assim, é quase certo que, na condição de bispo metropolitano, Eusébio tenha tido a honra de
atuar como cicerone de Eutrópia, quando a sogra de Constantino visitou o país. Em Mambré, perto de
Hebron, chamou a atenção da viajante para o culto duvidoso que se realizava no mesmo lugar onde Abraão
recebera sua teofania. Dada a importância que atribuía a Abraão, devia horrorizar-se com a festa em que
judeus, cristãos e pagãos celebravam o patriarca no local de seu carvalho sagrado. Todos os anos, pessoas
provenientes dos vários distritos da Palestina, da Fenícia e da Arábia realizavam uma feira e um esplêndido
festim, em que rezavam a Deus ou a Zeus Olímpico, o deus de todos; invocavam os anjos, faziam libações
de vinho e queimavam incenso; os pagãos sacrificavam um boi ou um carneiro. Era uma ocasião decorosa: os
participantes usavam suas melhores roupas, e não havia desregramento. Eusébio não aprovava essa reunião
ecumênica, que lhe parecia um consórcio pecaminoso com a falsa religião. Assim, tratou de persuadir
Eutrópia a informar o genro sobre a festa de tal modo que colocasse Macário numa posição difícil. Como
Mambré se situava na diocese de Macário, Constantino escreveu-lhe uma carta ríspida, criticando-o por
permitir tais “depravações”. A carta mostra que a teologia de Eusébio já começara a influenciar o imperador.
Mambré era o lugar onde surgira a religião do Logos; “ali se iniciou a observância da santa lei; ali o
Salvador, acompanhado de dois anjos, concedeu a Abraão a manifestação de sua presença”. 21 Junto ao altar,
ao poço e ao carvalho do patriarca o imperador que Eusébio saudara como o segundo Abraão construiu
uma nova basílica.
Constantino pretendia visitar a Palestina, mas, ocupado em sua capital com as contínuas disputas relativas
ao arianismo, enviou sua mãe, a imperatriz Helena Augusta, em 326. Essa “peregrinação” à Terra Santa
figura na lenda cristã como um ato de devoção pessoal, porém na verdade tratou-se de uma viagem imperial
pelas províncias orientais, que terminou com grande pompa em Jerusalém. Como Adriano, Constantino usou
a viagem para divulgar sua concepção particular do Império Romano: a figura de sua velha mãe rezando nos
locais sagrados do cristianismo, à frente de um enorme séquito, constituía um símbolo poderoso de sua
Roma cristã. Adriano construíra templos, estádios e aquedutos durante sua viagem: Aelia Capitolina fora seu
presente ao povo da Palestina. Agora, Helena doava novas igrejas. Ela chegara durante o planejamento do
Martyrium e as escavações da tumba, cuja descoberta, em 327, talvez tenha presenciado. Mais uma vez,
Eusébio provavelmente recebeu a incumbência de escoltá-la pela Palestina e pode ter sugerido a localização
das duas novas igrejas encomendadas pela imperatriz. Sempre fora entusiasta pelas duas cavernas — a de
Belém, onde Cristo nasceu, e a do monte das Oliveiras — em que ocorreram teofanias do Logos encarnado
e que expressavam sua visão da natureza reveladora da missão de Jesus. Helena era simpatizante do arianismo
e talvez fosse sensível às doutrinas de Eusébio. De qualquer modo, ordenou a construção de duas novas
basílicas para consagrar as cavernas. Eusébio deve ter gostado de ver um local santo estabelecido em Belém:
a nova basílica da Natividade desviaria a atenção dos cristãos de Aelia e da Nova Jerusalém. A basílica no
monte das Oliveiras, conhecida como Eleona, elevava-se setenta metros do topo, proporcionando um
magnífico panorama da cidade. Como no conjunto de edifícios de Constantino, ambas estavam separadas do
“local santo”. No monte das Oliveiras, escadarias levavam à caverna sagrada, sob a Eleona, de modo que os
peregrinos podiam visitar o lugar sem perturbar a liturgia. Novamente a arquitetura fazia os devotos
aproximarem-se do Santo dos Santos passo a passo, dispondo de tempo para preparar a mente e o coração.
A visita de Helena logo se envolveu em lendas. Em meados do século V, os cristãos tendiam a acreditar
que ela supervisionara as escavações no Gólgota. Atribuíam-lhe também a descoberta da cruz na qual Jesus
morreu, mas Eusébio não menciona tal fato em seu relato da viagem de Helena à Palestina. Não temos
nenhuma descrição contemporânea desse achado arqueológico, porém em 390 a cruz estava presente em
Jerusalém e partes da relíquia haviam sido distribuídas por todo o mundo cristão. Deve ter sido encontrada
durante as escavações de 325-7, e não é impossível que Helena estivesse envolvida na descoberta. No início
do século IV, os cristãos viam a crucifixão não como um fato isolado, mas como um acontecimento
inextricavelmente ligado à Ressurreição. Para eles, a morte e a ressurreição de Cristo constituíam dois
aspectos de um único mistério. No entanto, com a experiência do culto em Jerusalém aprenderam a
considerar a crucifixão em si, como veremos no capítulo seguinte, e a priorizar em sua imaginação a morte
dolorosa de Cristo. A descoberta do sepulcro acabaria se tornando menos lembrada e menos famosa que a
da Verdadeira Cruz, realizada, segundo a lenda, por Helena.
Antes das escavações do Gólgota não houve peregrinações a Jerusalém, mas depois que se encontrou a
tumba a cidade passou a receber peregrinos vindos de todos os cantos do Império Romano, até do distante
Ocidente. O primeiro a deixar um relato de suas viagens saiu de Bordeaux em 333 e teve seu longo trajeto
ligeiramente facilitado pelas estradas militares que agora ligavam a Europa à capital imperial de
Constantinopla. A peregrinação devia ser uma experiência extraordinária, porém o lacônico itinerarium do
bordelês não deixa margem a sentimentos: trata-se meramente de um catálogo dos locais bíblicos e dos fatos
com eles relacionados. Tendo em mente um único propósito — conhecer os lugares mencionados na Bíblia
—, o Peregrino não parou para contemplar os grandes monumentos da Antiguidade clássica. Possivelmente
utilizou guias judeus, pois muitos dos locais que visitou diziam respeito ao que os cristãos agora chamavam
de “Velho Testamento” e parte de suas informações pertence à tradição judaica. A peregrinação ainda era
uma novidade para os cristãos, que provavelmente dependiam dos judeus da Palestina para realizar suas
excursões. O bordelês não se mostra muito interessado nos primeiros anos da vida de Jesus: decerto passou
pela Galileia, mas não se deu ao trabalho de visitar Nazaré ou Cafarnaum. Foi direto para Jerusalém, onde
rumou primeiramente para o Templo, detendo-se apenas para observar o culto pagão de cura que ainda se
realizava na piscina de Betesda.
Seu texto contém a primeira descrição do monte do Templo desde 70. No decorrer dos anos o monte se
tornara um lugar sinistro, fantasmagórico. Abrigava uma cripta, conta-nos o Peregrino, onde o rei Salomão
teria torturado demônios, e no lugar do Templo havia manchas do sangue do profeta Zacarias, morto
durante a perseguição do rei Joás.22 A esplanada deserta estava associada na mente dos cristãos com a
violência e a apostasia do povo judeu. O bordelês descreve os rituais de luto que ali se realizavam no nono
dia do mês de Av. A breve distância das duas estátuas de Adriano, diz ele, “há uma pedra perfurada [ lapis
perfusus], a qual os judeus visitam todos os anos e ungem; lamentam-se, rasgam as vestes e se vão”.23 O
Peregrino é a única pessoa que menciona essa pedra. Referia-se à rocha que ressaltava da esplanada de
Herodes e que hoje está na Cúpula do Rochedo muçulmana? Será que se começava a associar essa rocha —
que não se encontra na Bíblia — com a Pedra Fundamental [Even Shetiyah] do Devir, mencionada pelos
rabinos? Ou essa pedra simplesmente fazia parte dos escombros, dos quais se destacava? Não é impossível
que o Peregrino, que aparentemente não presenciou as cerimônias descritas, estivesse apenas mal informado.
Mas os cristãos começavam a colonizar o local imaginariamente. O bordelês registrou a existência de uma
torre no canto sudeste da esplanada e identificou-a como o “pináculo do Templo”, onde Satanás tentou
Jesus.24 A torre abrigava uma sala onde Salomão teria escrito o Livro da Sabedoria e mais tarde se
relacionaria com o martírio de Tiago, o Tzaddik. Do monte do Templo, o Peregrino rumou para as áreas
cristãs de Aelia, passando pela piscina de Siloé. No monte Sião viu a casa de Caifás, a coluna onde Jesus
fora açoitado, o “palácio de Davi” e uma “sinagoga”, que podia ser tanto uma ruína da época em que os
judeus habitaram esse bairro quanto a casa da Sala Superior.25 Depois de entrar na cidade propriamente dita,
avistou no vale do Tiropeon uma ruína que acreditou tratar-se do Pretório, onde Pilatos julgou Jesus. No
Gólgota, encontrou a basílica de Constantino ainda em fase de construção: o “outeiro do Gólgota, onde o
Senhor foi crucificado”, e a tumba [crypta] ainda estavam a descoberto.26 O Peregrino não demonstra
nenhuma emoção diante da Nova Jerusalém — apesar de seu enorme esforço para chegar à Terra Santa, que
começava a constituir-se num magneto capaz de atrair cristãos do outro lado do mundo conhecido.
Em setembro de 335, finalmente se concluiu a basílica de Constantino, e os bispos de todas as dioceses das
províncias orientais, bem como altos funcionários do Império, foram convidados para a dedicação, às expensas
do Estado. Foi uma ocasião momentosa. Em 17 de setembro, Constantino celebraria o trigésimo aniversário
de sua ascensão à dignidade de César consagrando a Nova Jerusalém. Pela primeira vez o Martyrium e seus
pátios encheram-se de peregrinos ilustres. Os cristãos possivelmente constituíam uma pequena minoria em
Aelia; a Nova Jerusalém não passava de um enclave numa cidade pagã, e todos os outros novos lugares
santos se localizavam fora das muralhas; mas anunciou-se a dedicação como um acontecimento imperial, e
era claro que o cristianismo se tornaria a religião de Roma.
Um dos muitos bispos que pregaram nesse dia, Eusébio aproveitou a ocasião para promover sua própria
teologia. Muito habilmente garantiu ao imperador ausente que o fato de nunca ter ido a Aelia não tornava
incompleta sua experiência cristã. O Logos podia visitá-lo tanto em Constantinopla quanto na Nova
Jerusalém. O Logos descera à terra para desvencilhar a humanidade do mundo material, afirmou. Atanásio
acabara de ser deposto e exilado, e Eusébio acreditava que seu partido moderado triunfara. O sepulcro era
sem dúvida um lugar santo e tinha imenso poder emocional, porém os cristãos não podiam transformá-lo
num fetiche, nem idolatrá-lo. Deviam sempre ver através dos símbolos terrenos a realidade espiritual.
Mas Eusébio estava velho. Impusera sua concepção do cristianismo e de Jerusalém quando se tornou bispo
de Cesareia, em 313, contudo desde essa data a vida da cristandade se transformara por completo. Uma
geração inteira crescera num mundo em que os cristãos não sofriam perseguições e tampouco esperavam
ansiosamente a Segunda Vinda de Jesus. Sentiam-se seguros no Império Romano e em função disso
modificaram inevitavelmente suas percepções religiosas. Queriam encontrar Deus aqui na terra, em vez de
lutar sem cessar pelas coisas do alto, e achavam a teologia da Encarnação, formulada por Atanásio, mais
interessante que a doutrina inteiramente espiritual de Eusébio. Alguns ainda preferiam o cristianismo de Ário
e Eusébio, no entanto as doutrinas de Niceia prevaleciam. Quando Eusébio morreu, em 340, um ariano
fervoroso assumiu o bispado de Cesareia; já em Aelia a diocese de Macário passou para Máximo, fiel
seguidor de Atanásio. Um dos primeiros atos de Máximo consistiu em construir uma igreja no monte Sião
para abrigar a Sala Superior. Não recebendo nenhuma ajuda imperial, teve de custear as obras com seus
próprios recursos; assim, a nova basílica era bem modesta, em comparação com os esplêndidos edifícios de
Constantino, mas revestiu-se de crescente importância. Acreditava-se que ali Jesus tomou a Última Ceia com
seus discípulos, instituiu a Eucaristia e apareceu depois de sua Ressurreição. Acreditava-se principalmente que
ali o Espírito Santo desceu sobre os apóstolos, de modo que a Sala Superior era o berço da Igreja e a Mãe
de todas as outras igrejas.
Tal era a convicção de Cirilo, que em 349 se tornou bispo de Aelia. Sua devoção a Jerusalém está
eloquentemente presente em seus sermões. A descida do Espírito, na festa de Pentecostes, “nesta cidade de
Jerusalém”, afirmou, conferiu à Igreja local “a preeminência em todas as coisas”.27 Os bispos de Aelia
continuariam lutando pela primazia da Igreja na Palestina. Cirilo pertencia à nova geração de cristãos. Tinha
cinco anos de idade quando se descobriu o sepulcro e não via nada de estranho em chamar Jerusalém de
“cidade santa”. Cristo desceu à terra e encarnou em Belém; redimiu o mundo no Gólgota; subiu aos céus no
monte das Oliveiras; e enviou o Espírito aos discípulos na Sala Superior. Como não seria santa a cidade que
testemunhara a salvação do mundo? A crucifixão não a tornou culpada: a Cruz não constituía a vergonha e
a desgraça de Jerusalém, mas era sua “glória”, sua “coroa”.28 Eusébio não lhe dera maior atenção, porém
Cirilo considerava a morte humana de Jesus um fato crucial em si mesmo. A cruz era a base da salvação, o
fundamento de nossa fé, o fim do pecado. Deus rejeitou o Templo, não a cidade; condenou os judeus, não
Jerusalém. Essa nova teologia positiva ainda continha a velha rejeição, a antiga recusa, e torceu-as de um
modo perturbador. Para Cirilo, Jerusalém não era a Cidade Culpada: ele simplesmente retirou-lhe o fardo da
culpa e colocou-o nos ombros dos judeus.
Ao contrário de Eusébio, Cirilo acreditava que a humanidade de Cristo possuía um valor religioso
intrínseco. Não havia por que ignorá-la e buscar a essência espiritual do Logos. Ao assumir um corpo, Deus
se aliara, voluntariamente e para sempre, à raça humana. A imagem do homem Jesus revelou a eterna
disposição de Deus para conosco. Não havia por que rejeitar o mundo físico, que se podia utilizar para
procurar Deus. Cirilo acreditava, pois, que os lugares santos de Jerusalém — nunca chamou a cidade de
Aelia — podiam colocar os cristãos em contato com o divino. Eram os lugares onde Deus tocara nosso
mundo e, assim, possuíam poder espiritual. Proporcionavam aos cristãos uma experiência de Deus derrubando
a barreira do espaço — se não a do tempo — entre eles e a vida de Jesus. Cirilo gostava de frisar que os
eventos salvadores ocorreram “na mesma cidade em que nos encontramos agora”.29 A descida do Espírito no
Pentecostes acontecera mais de trezentos anos antes, entretanto em outro sentido acontecera “entre nós”, em
Jerusalém.30 Ao entrar em contato com objetos que Jesus tocara — a cruz, o túmulo, o próprio chão —, os
cristãos podiam alcançar o Cristo ausente no tempo. “Outros apenas ouvem, mas nós vemos e tocamos”,
dizia Cirilo.31 Seguindo literalmente as pegadas de Jesus, caminhando por onde ele caminhou, os peregrinos
convertiam em realidade presente os fatos distantes da vida do Mestre. Evidentemente Cristo não estava
confinado a uma localidade; os cristãos podiam experimentar sua presença em qualquer parte do mundo. Mas
uma visita aos lugares santos os situava num espaço ainda pleno da divina Presença.
A Nova Jerusalém evidentemente desgostava os judeus. Um pequeno grupo de zelotes talvez tenha tentado
impedir esse empreendimento dos cristãos na Terra Santa. 32 Parecia inacreditável que o cristianismo, uma
forma bastarda e apóstata do judaísmo, tivesse agora o apoio imperial. No passado os judeus se dispuseram a
lutar até a morte para impedir a construção de Aelia Capitolina, mas depois fizeram amizade com alguns
dos imperadores, e até a ascensão de Constantino não achavam impossível que um dia os romanos lhes
permitissem reconstruir o Templo. No entanto, esses novos edifícios cristãos davam origem a fatos que no
futuro dificultariam muito — ou até inviabilizariam — a restituição de Jerusalém ao povo judeu.
Constantino havia mesmo iniciado um programa de edificações na Galileia, onde os judeus constituíam a
maioria, e uma ofensiva missionária fora desencadeada em Séforis, Tiberíades, Cafarnaum e Nazaré. Alguns
judeus se desesperavam; outros procuravam o Messias.33 A maioria dos rabinos, contudo, continuava pregando
a moderação. Lembrava as catástrofes que se abateram sobre a nação quando tentara rebelar-se contra Roma.
Essa curiosa preferência do Império pelo cristianismo podia ser apenas um entusiasmo passageiro.
Entretanto, a posição dos judeus seguiu deteriorando-se sob os imperadores cristãos. Constantino não
tomara medidas opressivas contra eles, porém depois de sua morte, em 337, seus sucessores criaram uma
nova legislação, segundo a qual os judeus não podiam casar-se com cristãos e tampouco possuir escravos —
assim ficariam isolados e não teriam condições de desenvolver uma indústria. Em 351, eclodiram revoltas em
Séforis, Tiberíades e Lida, mas os romanos as reprimiram sem violência. Em 353, Constâncio II promulgou
novas leis, proibindo os cristãos de converter-se ao judaísmo e acrescentando aos estatutos oficiais do Império
uma descrição dos judeus como “selvagens”, “abomináveis” e “blasfemos”.34 Jesus pregou uma religião de
amor e perdão, mas agora que chegaram ao poder os cristãos começavam a estigmatizar os judeus como
inimigos da sociedade, a marginalizá-los, a torná-los proscritos como eles próprios haviam sido.
A situação dos judeus parecia irremediável. Os cristãos se apropriaram de suas Escrituras,
autodenominavam-se o novo Israel e agora se empenhavam em anexar sua Cidade Santa através de um
programa de edificações subsidiado pelos cofres imperiais. “Por que tomam o que é nosso e o tornam seu?”,
um judeu perguntou durante uma discussão com cristãos.35 E então, de repente, a salvação parecia próxima.
Em 361, Constâncio II morreu e sucedeu-o seu sobrinho, Juliano.
Educado no cristianismo, Juliano acabou por detestar a nova fé, que considerava inimiga das mais sagradas
tradições romanas. Opondo-se vigorosamente à concepção do cristianismo como força capaz de promover a
coesão do Império, aderiu com fervor à antiga religião pagã. Não era o único. O paganismo ainda estava
bem vivo e continuaria florescendo em todo o Império até o século V. Para as muitas pessoas que ainda
adoravam os velhos deuses e gostavam dos antigos ritos, o cristianismo representava, como para Juliano, um
repúdio flagrantemente impio de tradições consagradas. Os pagãos temiam que ocorresse uma terrível
catástrofe, se os velhos deuses não recebessem o que lhes era devido; tinham de observar os sacrifícios e as
santidades do passado. Ademais, sentiam-se profundamente ofendidos com a crença dos cristãos na divindade
de Jesus — um homem que sofrera uma morte desonrosa —, pois contradizia todas as suas concepções do
sagrado. Assim, quando declarou sua intenção de restaurar a antiga fé de seus antepassados, devolvendo-lhe o
devido lugar no mundo romano, o novo imperador pôde contar com o apoio entusiástico de grande parte
de seus súditos.
Por seu turno, os judeus decerto acharam, a princípio, que pouco teriam a ganhar com esse governante
pagão. Logo, porém, perceberam que Juliano tinha um plano revolucionário para Jerusalém.
10. A CIDADE SANTA DOS CRISTÃOS

EM 19 DE JULHO DE 362, delegados da Síria e da Ásia Menor — mas não do patriarcado de Tiberíades,
segundo parece — chegaram a Antioquia para uma reunião com o imperador Juliano. Sua convocação fazia
parte do grande plano concebido para o Império. Juliano desejava substituir a nova religião de Cristo por
sacrifícios oferecidos em todos os seus domínios ao Deus Único, ao Ser Supremo, adorado sob muitos
nomes: Zeus, Hélio, ou Deus Altíssimo, como às vezes o chamavam as Escrituras judaicas. Na condição de
pontifex maximus de Roma, o imperador já havia designado sacerdotes pagãos que em cada região se oporiam
aos bispos cristãos; concedeu privilégios especiais às cidades que nunca adotaram o cristianismo e pouco a
pouco removia os cristãos dos cargos públicos. Embora desaprovasse alguns aspectos do judaísmo, admirava a
fidelidade dos judeus a sua antiga fé. Seu mestre, Iambilicus, ensinara-lhe que, para chegar a Deus, toda
oração devia ser acompanhada de sacrifício. No entanto, os judeus não podiam mais celebrar seus cultos
ancestrais. Isso só poderia ser prejudicial aos interesses do Império, cujo bem-estar dependia da ajuda divina.
Assim, quando os anciãos judeus se reuniram em sua presença, Juliano lhes perguntou por que não
ofereciam mais sacrifícios a Deus, de acordo com a Lei de Moisés. Sabia muito bem por quê, mas estava
deliberadamente preparando o terreno para os judeus requisitarem a reabilitação de seu culto. Os anciãos
responderam: “Nossa Lei não nos permite sacrificar fora da Cidade Santa. Como faremos agora? Devolve-nos
a cidade, reconstrói o Templo e o altar, e ofereceremos sacrifícios como no passado”. Era exatamente o que
o imperador queria fazer, sobretudo porque com isso desfecharia um rude golpe no argumento de que a
derrota do judaísmo comprovava a verdade das Escrituras cristãs. “Hei de empenhar-me com extremo zelo
para edificar o Templo do Altíssimo”, declarou. 1 E logo após o encontro escreveu ao patriarca Hillel II,
bem como a todos os judeus do Império, prometendo restituir-lhes Jerusalém: “Reconstruirei a cidade santa
de Jerusalém com meus próprios recursos e a povoarei, como vindes desejando ao longo de tantos anos”.2
As comunidades judaicas se empolgaram. O chofar soou nas ruas, e parecia que o Messias estava prestes a
chegar. Muitos judeus se puseram a hostilizar violentamente os cristãos, que os dominaram durante tanto
tempo.3 Outros começaram a chegar a Jerusalém em grandes números, lotando suas ruas pela primeira vez
em mais de duzentos anos. Outros ainda mandaram donativos para o novo templo. Ergueu-se uma sinagoga
provisória num dos pórticos arruinados do monte do Templo, e possivelmente Juliano até intimou os
habitantes cristãos a devolverem a propriedade que por direito pertencia ao povo judeu. O imperador
confiou a supervisão das obras do Templo a seu amigo, o erudito Alípio, e começou a providenciar o
material necessário. Fabricaram-se ferramentas especiais de prata, já que não se podia utilizar ferro na
construção do altar. Em 5 de março de 363, Juliano partiu com seu exército para a Pérsia, onde esperava
que o sucesso de sua campanha demonstrasse a verdade de sua convicção pagã. Prometeu que, ao retornar,
dedicar-se-ia ao templo pessoalmente, para celebrar a vitória. Depois de sua partida os operários judeus
começaram a retirar os montes de escombros que cobriam os alicerces do velho santuário e nisso
trabalharam durante os meses de abril e maio. Contudo, os patriarcas e os rabinos da Galileia estavam
apreensivos, pois agora acreditavam que só o Messias poderia reerguer o Templo. 4 Ademais, como Deus iria
abençoar um santuário construído por um idólatra? E o que aconteceria se Juliano não voltasse da Pérsia?
Chegara a vez de os cristãos contemplarem um programa de edificações imperial que não levava em conta
seus direitos sobre a Cidade Santa. Durante cinquenta anos, a Igreja aparentemente se fortalecera mais e
mais, porém a apostasia de Juliano mostrara o quanto era vulnerável. O velho paganismo ainda florescia, e
ao longo dos anos a Igreja suscitara muita hostilidade. Em Paneas e Sebaste, os pagãos efetivamente se
voltaram contra os cristãos quando os editos de Juliano foram publicados. Seu plano de restaurar a antiga
religião não era um sonho inviável, e os cristãos sabiam disso. No dia em que tiveram início os trabalhos no
monte do templo, os cristãos de Jerusalém se reuniram no Martyrium e imploraram a Deus que evitasse o
desastre. Depois foram em procissão até o monte das Oliveiras, cantando os salmos judaicos dos quais se
apropriaram. No mesmo local onde gerações de seus correligionários meditaram sobre a derrota do judaísmo,
contemplaram, horrorizados, as atividades que se desenrolavam na esplanada do templo: parecia que elas
destruíam o próprio tecido de sua fé, tão habituados estavam a associar o declínio do judaísmo com a
ascensão de sua Igreja. O bispo Cirilo, no entanto, pediu-lhes que não perdessem a esperança, pois tinha
certeza de que as obras do novo templo jamais se concluiriam.
No dia 27 de maio, sua certeza aparentemente se confirmou. Um terremoto sacudiu a cidade inteira, o
que os cristãos interpretaram como uma demonstração da ira divina. A subestrutura da esplanada incendiou-
se, e os gases retidos nas câmaras subterrâneas explodiram, destruindo o material de construção ali
armazenado. De acordo com o relatório oficial de Alípio, imensas “bolas de fogo” [globi flammarum]
ergueram-se do solo, atingindo vários trabalhadores.5 A essa altura Juliano já havia cruzado o Tigre e não
tinha como voltar atrás. Sem poder comunicar-se com ele, Alípio provavelmente decidiu aguardar novas
notícias do fronte. Poucas semanas depois, Juliano tombou na batalha, e o cristão Joviano foi proclamado
imperador.
Os cristãos não fizeram o mínimo esforço para esconder seu contentamento com esse “milagre”. Dizia-se
que uma cruz gigantesca surgira no céu, estendendo-se desde o monte das Oliveiras até o Gólgota. Dizia-se
também que outras cruzes apareceram misteriosamente nas roupas de muitos pagãos e judeus de Jerusalém.
Tais reviravoltas só podiam intensificar a hostilidade entre os seguidores das duas religiões monoteístas.
Joviano baniu os judeus de Jerusalém e seus arredores, e no nono dia do mês de Av, quando eles se reuniam
para chorar pelo Templo, os rituais se revestiram de nova tristeza. “Chegam em silêncio e em silêncio se
vão; chegam chorando e chorando se afastam”, escreveu o rabino Berakiah.6 As cerimônias já não se
encerravam com ações de graças e procissões ao redor da cidade. Os cristãos as viam com nova crueldade.
Ao deparar com essa “ralé dos miseráveis”, Jerônimo, o estudioso da Bíblia, concluiu que seus corpos frágeis
e suas roupas rasgadas eram sinais visíveis de que Deus os rejeitara. Os judeus “não são dignos de
compaixão”,7 declarou, com uma insensibilidade que demonstrava bem pouca consideração pelos ensinamentos
de Jesus e Paulo, que fizeram da caridade o supremo dever religioso. Para fúria de Jerônimo, no final do
século IV os judeus pareciam ter recobrado a coragem. Ainda proclamavam que as antigas profecias se
cumpririam. Apontavam para Jerusalém e vaticinavam, confiantes: “Lá será reconstruído o santuário do
Senhor”.8 No fim dos tempos o Messias viria e reconstruiria a cidade com ouro e pedras preciosas.
Não esquecendo que quase perderam sua cidade santa, os cristãos resolveram marcar sua presença na
Palestina e particularmente em Jerusalém, de tal modo que nunca mais se pudessem desalojá-los. À medida
que se tornavam maioria, foram modificando o caráter da cidade, que em 390 estava repleta de monges,
freiras e visitantes estrangeiros.9 Alguns desses visitantes voltavam para casa com histórias da Cidade Santa e
entusiásticas descrições de sua impressionante liturgia. Outros decidiam morar em Jerusalém para sempre.
Jerônimo estava entre os novos residentes que no final do século IV deixaram o Ocidente na condição de
peregrinos ou de refugiados — os germanos e os hunos começavam a derrubar o Império Romano na
Europa. Esse influxo de ocidentais aumentou a partir de 379, quando o espanhol Teodósio I, um cristão
fervoroso, se tornou imperador. Em 24 de novembro de 380 Teodósio chegou a Constantinopla com um
séquito de compatriotas piedosos aos quais confiou a tarefa de implementar sua agressiva ortodoxia. Em 381
pôs fim à longa controvérsia ariana, declarando o cristianismo niceno o credo oficial do Império Romano.
Dez anos depois proscreveu todo sacrifício pagão e fechou os templos antigos. Algumas damas da corte,
como a imperatriz Aelia Flacilla, já haviam se distinguido em Roma por atacar santuários pagãos e construir
esplêndidas igrejas dedicadas aos mártires. Agora levavam para o Oriente esse cristianismo militante.
Em Jerusalém o principal foco do cristianismo teodosiano era a hospedaria fundada no monte das Oliveiras
em 379, ano da ascensão do novo imperador, por dois cristãos ocidentais: Rufino, um velho amigo de
Jerônimo, e Melânia, uma dama aristocrática de ascendência espanhola que abraçara a vida ascética depois da
morte do marido e se tornara uma grande estudiosa do cristianismo. Assim que seus filhos alcançaram idade
suficiente para cuidar de si mesmos, Melânia deixou a Europa e percorreu os novos mosteiros do Egito e do
Levante, antes de ir para Jerusalém e ali fundar seu próprio convento. No monte das Oliveiras, homens e
mulheres podiam levar uma vida de oração e penitência, ensinamento e estudo, além de oferecer abrigo e
hospitalidade aos peregrinos. Melânia e Rufino envolveram-se com a vida da cidade, e seus monges e freiras
tomavam parte ativa na liturgia, atuando como intérpretes para os fiéis vindos do Ocidente que não
entendiam o grego usado nos cultos, nem o aramaico dos tradutores locais. Adeptos fervorosos do
cristianismo niceno, ambos mantiveram estreitas relações com a corte de Constantinopla e com o movimento
monástico no exterior.
Jerônimo e sua amiga Paula ficaram na hospedaria de Melânia durante sua peregrinação a Jerusalém, em
385, e adotaram-na como modelo da comunidade que criariam em Belém. A princípio Jerônimo se
desmanchou em elogios a Melânia, mas, sendo um homem irascível que, como vimos, não era dado à prática
da caridade cristã, logo rompeu com ela em função de uma desavença teológica e nunca mais disse nada de
bom sobre o estabelecimento do monte das Oliveiras. Zombou de seu confortável estilo de vida, que lhe
lembrava a riqueza de Creso.10 Condenou sua mundanalidade, sua atmosfera cosmopolita, suas ligações com a
corte. A “solidão” de Belém era muito mais compatível com a vida monástica que o alvoroço pagão de
Jerusalém, onde se apinhavam “soldados, prostitutas, atores, bufões e tudo o que geralmente se encontra nas
cidades”.11 A comunidade de Belém era mais coesa e introvertida, composta basicamente por admiradores de
Jerônimo. Durante anos ele promoveu uma dura campanha contra Melânia, cuja reputação se difundira pelo
Ocidente e cujo exemplo continuou inspirando os peregrinos.
Entre estes se encontrava Poemenia, uma dama da família real, que antes de ir para Jerusalém, em 390,
visitou os mosteiros do Alto Egito. Para assinalar o local onde ocorreu a Ascensão de Cristo, construiu no
cume do monte das Oliveiras uma igreja circular, que não sobreviveu ao tempo. Uma cruz imensa e
reluzente encimava o edifício, que abrigava uma pedra na qual os peregrinos acreditavam ver a pegada de
Cristo. Numa extremidade do vale do Cedron, no local da tumba da Virgem Maria, também se erigiu uma
igreja; na outra extremidade encontrava-se o túmulo de Bene Hezir, que alguns monges identificaram como a
sepultura de Tiago, o Tzaddik, e converteram em mais um santuário. Por volta de 390 foi a vez de o local
do Jardim do Getsêmani ganhar uma igreja refinada. O cristianismo teodosiano enfatizava muito os
santuários, e agora os pagãos de Jerusalém tinham de conviver com uma presença cristã que se tornava mais
e mais maciça, à medida que surgiam novas igrejas e se anexavam novos lugares dentro e fora das muralhas.
Os cristãos também tomavam conta da cidade nos dias de suas principais festas, quando multidões imensas
ganhavam as ruas e os arredores de Jerusalém. Sua religião deixara de ser clandestina: eles não precisavam
mais encontrar-se às escondidas nas casas de uns e outros para celebrar sua Eucaristia. Podiam desenvolver
sua própria liturgia publicamente. Em Roma costumavam reunir-se junto aos túmulos dos mártires, chorando
e gritando ao ouvir o relato de sua paixão e morte. Desfilavam com seu bispo pelas ruas, de uma igreja a
outra, impondo pouco a pouco sua própria topografia sagrada à velha capital pagã. Em Jerusalém, um
processo semelhante começava a transformar a Aelia pagã numa cidade santa cristã. Vemos isso nos textos de
Egéria, uma peregrina espanhola que chegou a Constantinopla em 381, quando os bispos estavam reunidos
no concílio que oficializaria a doutrina da Encarnação formulada por Atanásio.12 Egéria partilhava
inteiramente o entusiasmo teodosiano por santuários. Utilizando a Bíblia como uma espécie de guia turístico,
realizou uma longa excursão pelo Oriente Próximo e aventurou-se até a Mesopotâmia. Sempre que
identificavam um local sagrado, ela e seu grupo liam a passagem bíblica correspondente “ali mesmo” [in ipso
loco], expressão que figura com frequência em seu relato. Egéria foi muito mais efusiva que o taciturno
Peregrino bordelês: empolgou-se ao ver os lugares que a maioria dos cristãos só podia imaginar. A Bíblia
ganhava vida diante de seus olhos. Como dizia Cirilo, a proximidade do local onde ocorrera um milagre ou
uma teofania trazia esses acontecimentos distantes para perto do devoto e a leitura da Bíblia se tornava uma
representação sacramental que fazia do passado uma realidade presente. A única diferença entre o novo ritual
cristão e os antigos cultos do Templo era que estes comemoravam eventos míticos de uma época primordial,
enquanto os episódios do Novo Testamento ocorreram num passado relativamente recente.
A Jerusalém bizantina
326-638

Contudo, depois que Egéria chegou a Jerusalém, esse turismo santificado cedeu lugar a uma participação
litúrgica formal nos fatos sagrados da vida, morte e ressurreição de Jesus. Toda a comunidade cristã tomava
parte nas procissões minuciosamente organizadas aos locais santos. Egéria fala de imensas multidões
apinhando os pátios do Gólgota e as ruas. Em 14 de setembro, monges e freiras da Mesopotâmia, da Síria e
do Egito lotaram a cidade durante os oito dias da festa das Encênias, que celebrava a dedicação da Nova
Jerusalém de Constantino e a descoberta da Verdadeira Cruz realizada por Helena. As Encênias praticamente
coincidiam com Sucot, o aniversário da dedicação do Templo judaico por Salomão, que os cristãos viam
como um prenúncio do fato, mais glorioso, por eles festejado. Os peregrinos tinham de estar em boa forma
física: a celebração litúrgica em Jerusalém envolvia mais que cantar hinos e ouvir sermões. Os participantes
caminhavam dias e noites, indo de um lugar santo a outro. Comemoravam a semana do Natal, iniciada em
6 de janeiro, com uma solene procissão noturna que ia de Belém a Jerusalém. Só ao amanhecer chegavam ao
sepulcro, agora encerrado na recém-construída Rotunda da Anástasis, e então descansavam um pouco antes de
assistir a um ritual de quatro horas. Na tarde do Domingo de Ramos multidões se aglomeravam na Eleona,
a basílica do monte das Oliveiras, e após a cerimônia desciam a encosta, atravessavam o vale do Cedron e
voltavam para a cidade. O bispo Cirilo as seguia montado num jumento, como Jesus fizera quando entrou
em Jerusalém; as crianças acenavam com palmas e ramos de oliveira e os fiéis entoavam hinos, repetindo o
refrão: “Bendito o que vem em nome do Senhor”. Egéria nos conta que os devotos andavam bem devagar e
só tarde da noite chegavam a Anástasis. O Pentecostes era particularmente cansativo. Depois da Eucaristia
dominical, Cirilo conduzia uma procissão até a basílica de Sião para celebrar a descida do Espírito in ipso
loco, mas, não contente com isso, as multidões passavam a tarde subindo o monte das Oliveiras, em memória
da Ascensão. Ao retornar à cidade, em lenta caminhada, paravam na Eleona para as vésperas, no Martyrium
de Constantino para o culto vespertino e por fim na basílica de Santa Sião para as orações da meia-noite.
Essas celebrações inevitavelmente modificaram a experiência cristã. Até então havia pouco interesse pelos
fatos individuais da trajetória terrena de Jesus. Sua morte e ressurreição constituíam uma única revelação, um
mysterium que abrira o caminho pelo qual os cristãos retornariam a Deus, através do Logos. Agora, porém,
os monges, freiras, clérigos, leigos e peregrinos de Jerusalém eram incentivados a concentrar-se em incidentes
específicos por um tempo considerável. Na semana anterior à Páscoa, por exemplo, seguiam os passos de
Jesus, lendo nos locais correspondentes o relato evangélico da traição de Judas, da Última Ceia e da prisão.
Era uma experiência extraordinariamente emocional. Egéria nos conta que, ao ouvir a história da prisão de
Jesus, os fiéis apinhados na igreja do Getsêmani choravam e gemiam de tal modo “que seus lamentos se
faziam ouvir em quase toda a cidade”.13 O homem Jesus despertava nova simpatia; os devotos estavam
aprendendo a vivenciar a experiência de seu sofrimento, dia a dia, e a avaliar melhor o que esse sofrimento
significou para ele. Eusébio lhes dissera que não se fixassem na forma física que o Logos assumira durante
sua breve estada na terra, mas a liturgia de Jerusalém estava modificando tudo isso. Agora os cristãos se
concentravam na natureza humana de Cristo. Desde que Constantino criara a Nova Jerusalém, a rocha do
Gólgota permanecia perto do sepulcro: todos os dias rezava-se separadamente junto à pedra e na Rotunda da
Anástasis, de maneira que os fiéis se habituaram a pensar na crucifixão como um fato distinto. Na Sexta-
Feira Santa enfileiravam-se para beijar a relíquia da Verdadeira Cruz na pequena capela atrás da rocha.
Eusébio nunca demonstrou grande interesse pela crucifixão, mas agora essas celebrações plenas de emoção
estavam obrigando os cristãos a considerar as implicações humanas da morte de Cristo e a meditar sobre o
significado da morte para o Logos encarnado.
Não deviam desprezar a matéria, pois descobriram que ela podia levá-los ao sagrado. Os peregrinos
desenvolviam uma espiritualidade táctil. Queriam tocar, beijar, lamber as pedras que um dia estiveram em
contato com Jesus. Quando visitou o sepulcro, Paula, a discípula de Jerônimo, primeiro beijou a pedra que
fora afastada da caverna na manhã do domingo de Páscoa. Depois, “como um homem sedento que
finalmente encontra água, lambeu o local onde ele jazera”.14 Paulino de Nola, seu contemporâneo, explicou:
“O que atrai as pessoas a Jerusalém é acima de tudo o desejo de ver e tocar os locais onde Cristo está
fisicamente presente”.15 Em outras partes do mundo os cristãos experimentavam o poder divino quando
tocavam os ossos dos mártires, que incorporavam sua santidade. O grande teólogo capadócio Gregório de
Nissa (338-95) assinalou que “eles acionam olho, boca, ouvido e todos os sentidos”.16 Porque Deus encarnou
em forma humana, os cristãos agora começaram a considerar o físico sagrado e capaz de transmitir eulogia
[bênção]. Gregório visitara a Palestina e, embora tivesse dúvidas sobre a nova voga de peregrinação, admitiu
que os lugares santos de Jerusalém eram diferentes. Tinham “recebido as pegadas da própria Vida”. 17 Deus
deixara um vestígio de si mesmo na Palestina, assim como um perfume que paira numa sala após a saída de
quem o estava usando. Os peregrinos agora levavam consigo pedras, terra ou óleo das lâmpadas dos lugares
santos; um deles, particularmente fervoroso, arrancou com os dentes um naco da Verdadeira Cruz quando a
beijou na Sexta-Feira Santa. Todos queriam ter a santidade de Jerusalém presente e atuante em suas cidades.
A arqueologia cristã se iniciara espetacularmente no Gólgota. Agora novas escavações desenterravam em
outros locais da Palestina os restos mortais de santos e heróis bíblicos. O que se acreditava ser o corpo do
patriarca José foi exumado em Siquém, atual Nablus, e trasladado para Constantinopla. Jerônimo descreveu as
multidões que lotaram as estradas quando os ossos de Samuel foram levados da Palestina para a capital
imperial — sentiam-se como se o profeta estivesse presente.18 Essas expropriações de despojos santos
constituíam uma tentativa não só de estabelecer um vínculo entre a nova cidade cristã de Constantinopla e o
passado sagrado, como de apoderar-se da história judaica: se a Igreja era o novo Israel, como afirmava, os
santos da Antiga Aliança deviam repousar em território cristão, e não em cidades frequentadas pelos pérfidos
judeus. Em 415, o imperador do Oriente Teodósio II repreendeu publicamente o patriarca judeu Gamaliel II
e destituiu-o do cargo de praefectus praetorio. Assim, deu início a um processo que levaria à extinção do
patriarcado, em 429 — fato que, acreditavam os líderes eclesiásticos, apressaria a morte inevitável do
judaísmo.19
Em dezembro de 415, um pároco fez outra descoberta arqueológica que parecia relacionada com a
humilhação do patriarca judeu. Luciano, presbítero da aldeia de Kfar Gamala, na planície costeira, sonhou
com o rabino Gamaliel I, mestre de são Paulo; o grande fariseu lhe disse que se convertera ao cristianismo,
porém guardara segredo porque temia os judeus. Quando Estêvão, o primeiro mártir cristão, foi morto fora
das muralhas de Jerusalém por atacar a Torá e o Templo, Gamaliel enterrara o corpo em sua propriedade,
ali em Gamala; mais tarde foi sepultado ao lado do mártir, juntamente com Nicodemos, o jovem judeu que
certa noite se avistara às escondidas com Jesus. No dia seguinte Luciano tratou de investigar e exumou três
túmulos com inscrições hebraicas, como o rabino lhe dissera no sonho. Imediatamente informou a
maravilhosa descoberta a seu bispo.
Acontece que o bispo João de Jerusalém se encontrava em Lida, agora denominada Dióspolis, presidindo
um concílio no qual decidiria o destino do monge britânico Pelágio, que escandalizara os cristãos ocidentais
em Jerusalém ao negar a doutrina do pecado original. O próprio João não via grande perigo nessa teologia,
mas, assim que recebeu a notícia de Luciano, partiu às pressas para Kfar Gamala, acompanhado pelos bispos
de Sebaste e Jericó. Quando se abriu o túmulo de Estêvão, espalhou-se pelo ar um perfume tão doce que
“acreditamos estar no Paraíso”, conta Luciano.20 Tratava-se de uma experiência comum nas sepulturas dos
mártires. O corpo do santo que agora se encontrava no céu criava um elo entre este mundo e o outro. O
local tornava-se, assim, um novo “centro” de santidade, que permitia aos devotos entrar no reino do sagrado
e experimentar o poder e a presença restauradora de Deus. Na Europa os fiéis eram curados nessas tumbas
pela aura tangível de santidade que se instalava no recinto quando se lia em voz alta a história da paixão do
mártir: uma suave fragrância perfumava o ambiente, e as pessoas gritavam ao sentir o impacto divino.21
Agora, cristãos de toda a Palestina passaram a visitar Kfar Gamala, e 73 doentes se curaram.
João não pretendia deixar que Kfar Gamala se tornasse um centro de peregrinação, mas estava decidido a
usar essa miraculosa descoberta em benefício próprio. Queria promover a sé de Jerusalém, como seus
predecessores, e acabara de construir a basílica do monte Sião, a mãe de todas as igrejas. Resolveu que
Estêvão devia ser enterrado nessa nova basílica, no local da igreja em que servira como diácono, e em 26 de
dezembro trasladaram-se os ossos para o monte Sião. No entanto, essa descoberta, que levava cura e
santidade aos cristãos, era inerentemente adversa ao judaísmo. Estêvão morrera por atacar a Torá e o
Templo; fora vítima dos judeus. A revelação de que o grande rabino Gamaliel, ancestral e homônimo do
atual patriarca, abraçara secretamente a fé cristã abalou a integridade do patriarcado judaico. Ademais,
entendia-se que o desenvolvimento do cristianismo implicava a rejeição da fé ancestral.
A paixão pelo ascetismo consumia a corte de Teodósio II, que parecia um claustro. Pulquéria, a irmã do
imperador, ali vivia como uma virgem consagrada. Nessa época o monasticismo inevitavelmente ressurgiu em
Jerusalém e em seus arredores. A hostilidade de Jerônimo indispusera de tal modo a Cidade Santa contra
Melânia e Rufino que em 399 eles retornaram à Europa. Melânia partiu não só por isso, mas também por
questões familiares. Em 417, sua neta, conhecida como Melânia, a Jovem, chegou a Jerusalém com o marido,
Piniano. Juntos, fundaram no monte das Oliveiras um convento misto para cerca de 180 monges e freiras.
Melânia também construiu um martyrium, um santuário para relíquias, perto da igreja de Poemenia. Vinte
anos depois, Pedro, um príncipe do reino de Ibéria,22 que vivia na corte imperial de Constantinopla, partiu
para Jerusalém a fim de instalar um monastério na chamada Torre de Davi, que na verdade fazia parte da
torre Hípico de Herodes. Na bagagem levou relíquias para o martyrium de Melânia no monte das Oliveiras.
Atraídos pela santidade de Jerusalém, monges de todas as partes do mundo cristão começavam a chegar ao
deserto da Judeia para colonizar essa bela região desolada. Um deles foi o armênio Eutímio (m. 478), que
fundou cerca de quinze mosteiros em locais espetaculares entre Massada e Belém. Seus contemporâneos o
viam como um segundo Adão: achavam que sua trajetória inaugurara uma nova era para a humanidade.23
Em suas comunidades os monges cultivavam jardins, hortas e pomares, fazendo o deserto florescer e
recuperando para Deus esse território demoníaco. Cada mosteiro era, pois, um novo Éden, um novo começo.
Ali os religiosos podiam levar uma vida paradisíaca de intimidade com Deus, como o primeiro Adão. Surgiu,
assim, um novo tipo de lugar santo, parte de uma ofensiva cristã contra as forças das trevas, onde as pessoas
chamadas à vida monástica podiam retornar à harmonia primordial e à plenitude pela qual os seres humanos
continuavam ansiando. Latinos, persas, indianos, etíopes e armênios logo acorreram aos monastérios da
Judeia. Um dos discípulos mais influentes de Eutímio foi o capadócio Sabas (439-531), que decidira instalar-
se na Judeia para estar mais próximo dos lugares santos. Como ocorria com todo espaço sagrado autêntico,
o local de seu mosteiro lhe fora revelado por Deus numa visão, e durante cinco anos Sabas viveu sozinho
no alto de um rochedo sobranceiro ao riacho Cedron, a 14 quilômetros de Jerusalém. Pouco a pouco os
discípulos começaram a chegar, cada qual habitando uma caverna, até que essa área desértica se transformou
numa cidade monástica. Vivendo na solidão, negando suas necessidades naturais de sexo, sono, alimento e
convívio social, os monges acreditavam que descobririam em si mesmos os poderes humanos que Deus
conferira ao primeiro Adão; assim reverteriam os efeitos da Queda e participariam da própria santidade
divina. Contudo, Sabas tinha outro objetivo. “Precisava colonizar [o deserto] para cumprir as profecias do
sublime Isaías”, explicou seu biógrafo.24 O Segundo Isaías prometera que o deserto floresceria e se tornaria
um novo Éden; agora Sabas e seus monges acreditavam que esses estabelecimentos santos tornariam mais
próxima a redenção final anunciada pelos profetas, com a diferença de que os beneficiários não seriam os
judeus, e sim os cristãos.
Como a maioria das instituições da Jerusalém cristã, o novo movimento monástico era inerentemente hostil
aos judeus. Isso se evidenciou de maneira trágica em 438, durante a peregrinação da imperatriz Eudóxia,
mulher de Teodósio II. Culta e inteligente, filha de um ilustre filósofo ateniense, Eudóxia se convertera ao
cristianismo, mas parece que não partilhava a aversão dos cristãos ao judaísmo. Assim, concedera permissão
aos judeus para orarem no monte do Templo em todos os seus dias santos, e não só no nono dia do mês
de Av. Com isso deve ter escandalizado muitos cristãos, porém sua elevada posição impossibilitava os
protestos. O surpreendente edito deu a alguns judeus a esperança de redenção iminente: dizia-se que uma
carta circulara pelas comunidades da Diáspora instando seus membros a irem celebrar a festa de Sucot em
Jerusalém, para que o Reino pudesse estabelecer-se ali. 25 A festa coincidiu com a visita da imperatriz à
Palestina. No primeiro dia das celebrações, enquanto Eudóxia estava em Belém, os judeus começaram a
reunir-se em grande número no monte do Templo.
Não eram os únicos. O monge sírio Bar Sauma, famoso por sua violência contra as comunidades judaicas,
também se encontrava em Jerusalém. Tivera o cuidado de alojar-se inocentemente num mosteiro, mas outros
monges espreitavam a esplanada do Templo, onde os judeus em procissão percorriam os pátios arruinados,
acenando com suas palmas pela primeira vez em séculos. De repente, conta-nos o biógrafo de Bar Sauma, o
céu despejou sobre eles uma chuva de pedras. Muitos morreram ali mesmo; outros tombaram ao tentar
escapar, e seus cadáveres juncaram ruas e pátios. Os sobreviventes, contudo, agiram com rapidez: capturaram
dezoito discípulos de Bar Sauma e os levaram para Belém, ainda empunhando suas palmas, para mostrar a
prova a Eudóxia. A imperatriz se viu em grande perigo. Monges saíram de seus mosteiros no deserto e
lotaram as ruas de Jerusalém e Belém, deixando bem claro que, se Eudóxia condenasse os prisioneiros, eles a
queimariam viva. Seis dias depois, o legado imperial procedente de Cesareia teve medo de entrar em
Jerusalém e só pôde interrogar os prisioneiros na presença de Bar Sauma. Chegou-se a um acordo quando os
investigadores do governador apareceram com a notícia de que os judeus massacrados na noite fatal haviam
morrido de causas naturais. Um arauto enviado por Bar Sauma percorreu a cidade, proclamando: “A cruz
triunfou!”. A multidão repetiu o brado em coro, e numa procissão jubilosa carregou Bar Sauma até o monte
Sião, onde ele celebrou na basílica uma missa pela vitória.
A visita de Eudóxia se encerrou num clima mais positivo. Em 15 de maio de 439, ela dedicou um
pequeno santuário construído em honra a Estêvão no próprio local onde se acreditava que ocorrera sua
execução, junto à porta setentrional da cidade. No dia seguinte, antes de voltar para Constantinopla, a
imperatriz levou uma relíquia do santo para o martyrium de Melânia, no monte das Oliveiras. Apesar dos
percalços, fora feliz na Palestina, e em 444, quando teve uma desavença com a família imperial,
particularmente com a piedosa Pulquéria, o imperador exilou-a em Jerusalém. Por causa de sua privilegiada
condição, tornou-se governadora da Palestina e construiu em Jerusalém e arredores muitos asilos e igrejas:
uma, na piscina de Siloé, onde Jesus curou um cego; outra, em homenagem a são Pedro, no local da
suposta residência de Caifás no monte Sião; e outra, em honra à Santa Sabedoria, no vale do Tiropeon, a
oeste do monte do Templo, no lugar identificado erroneamente como o do Pretório de Pilatos. No sudeste
do monte do Templo, abaixo do “Pináculo”, edificou seu palácio, mais tarde transformado num convento
para seiscentas freiras. Dizem que construiu ainda uma nova muralha, estendendo os limites da cidade para o
sul a fim de incluir a velha ’Ir David, no Ofel, e o monte Sião.26
Durante seu governo Eudóxia se envolveu na disputa doutrinal a respeito da pessoa e da natureza de
Cristo. Em 431, o Concílio de Éfeso condenara a doutrina de Nestório, patriarca de Constantinopla, segundo
a qual Jesus tinha duas naturezas, humana e divina; Maria não era, pois, Theotokos, a Portadora de Deus, mas
apenas a mãe do homem Jesus. Depois do concílio, os partidários de Nestório na Síria setentrional fundaram
sua própria igreja. Outros cristãos estavam descontentes com a ortodoxia oficial de Niceia por motivos
diversos. Eutiques, um velho abade de um mosteiro próximo a Constantinopla, seguiu o caminho contrário,
afirmando que Jesus tinha apenas uma natureza [mone physis]: era o Logos divino que nascera da Virgem
Maria e morrera na cruz. Os ortodoxos se indignaram, pois os chamados “monofisistas” diziam que a
divindade de Cristo evidentemente absorvera sua humanidade. Muitos bispos e monges da Síria, da Palestina
e do Egito abraçaram o monofisismo como uma declaração de independência em relação a Constantinopla:
também constituíram igrejas separatistas, representadas atualmente em Jerusalém pelos coptas, etíopes,
armênios e jacobitas sírios. Não estavam simplesmente apoiando a independência nacional, e sim levantando a
crucial questão religiosa: como a divindade transcendente podia criar um elo com o mundo dos seres
humanos? Antigamente se acreditava que os templos estabeleciam esse vínculo com o sagrado. Os cristãos, no
entanto, chegaram à surpreendente conclusão de que Deus se aliara para sempre à humanidade na pessoa de
Jesus, o deus-homem. As várias formulações cristológicas constituíam canhestras tentativas de entender como
isso podia ter ocorrido.
Em parte por causa de sua desavença com Pulquéria e a família imperial, Eudóxia apoiou os monofisistas
de Jerusalém. Juvenal, o bispo da cidade, também os apoiou, mas recebeu uma repreensão do papa Leão, o
Grande, bispo de Roma. Era lamentável, declarou o pontífice, que o guardião dos lugares santos ensinasse
uma doutrina que virtualmente negava a humanidade de Cristo. Como sucessor de são Pedro, o principal
discípulo de Jesus, o bispo de Roma geralmente era considerado o principal prelado da igreja. Agora Leão
usava o peso de sua autoridade para defender a doutrina da Encarnação: num “tomo” oficial argumentou que
os Evangelhos constantemente enfatizam a coexistência de humanidade e divindade em Jesus. Os lugares
santos de Jerusalém constituíam “provas irrefutáveis” de que Deus se incorporou ao mundo material. Ao
longo de mais de cem anos a experiência dos cristãos nesses locais sagrados fornecera evidências incontestáveis
de que os objetos concretos com que o Logos encarnado tivera contato possuíam o poder de aproximar as
pessoas do sagrado. Lembravam eloquentemente a realidade palpável da humanidade de Jesus. O Tomo de
Leão forneceu o texto usado no novo concílio ecumênico da Igreja que, por convocação de Pulquéria,
realizou-se em Calcedônia, na Ásia Menor, em 451. Nesse concílio o bispo Juvenal alinhou-se com os
ortodoxos e como prêmio recebeu o que seus antecessores desejavam desde a época de Macário: a sé de
Jerusalém se tornou um patriarcado, com precedência sobre as dioceses de Cesareia, Betsan e Petra.
Quando souberam da deserção de Juvenal, Eudóxia e os cristãos jerosolimitas naturalmente se sentiram
traídos e designaram como seu novo bispo o monofisista Teodósio. Multidões de monges furiosos,
procedentes dos mosteiros da Judeia, tomaram as ruas de Jerusalém e, tão logo Juvenal entrou na cidade,
acompanhado de sua guarda, precipitaram-se sobre ele. O patriarca fugiu para o deserto, onde viveu
escondido em Rubra, a oeste de Qumran. O bispo Teodósio morreu em 457, e Eudóxia, aflita com a
confusão da Igreja, pediu conselhos a Simeão Estilita. O famoso asceta sírio mandou-a consultar Eutímio, o
líder monástico armênio, cujos ensinamentos a impressionaram de tal modo que a fizeram submeter-se à
doutrina ortodoxa. Anastásio, o patriarca ortodoxo nomeado para substituir Juvenal, instalou-se no palácio
que Eudóxia construiu para ele perto da Anástasis. O último projeto da ex-imperatriz consistiu na construção
de uma igreja e um mosteiro para santo Estêvão no local do modesto santuário que ela dedicara em 439.
Para lá se trasladaram os restos mortais do mártir em 15 de junho de 460; quatro meses depois Eudóxia
morreu e foi enterrada nessa igreja.
Jerusalém era agora o centro da ortodoxia nicena, porém o conflito doutrinal persistia em outras igrejas.
Muitos cristãos orientais não acataram as determinações de Calcedônia e tampouco viam com bons olhos o
controle doutrinal exercido pela corte. Temendo uma cisão no Império, soberanos como Zenão (474-91) e
Anastásio (491-518) tentaram apaziguar os dissidentes. Outros grupos também estavam agastados com
Bizâncio. Em 485, os samaritanos declararam-se independentes de Constantinopla e coroaram seu próprio rei.
Zenão reprimiu sua revolta sem dó nem piedade e profanou seu local de sacrifícios no monte Garizim, onde
construiu uma igreja em homenagem a Maria Theotokos para celebrar a vitória.
As medidas opressivas tomadas pelos imperadores cristãos começavam a desagradar cada vez mais seus
súditos, o que acabaria prejudicando o Império. Justiniano (527-65), por exemplo, era fiel à ortodoxia de
Calcedônia. Graças a seus esforços para eliminar o monofisismo em algumas províncias orientais, inimizou-se
com setores inteiros da população. Também inviabilizou o apoio dos judeus. Graças a sua ortodoxia, que
considerava obrigatória a destruição do judaísmo, publicou editos que virtualmente destituíram a fé judaica
da condição de religio licita nos domínios imperiais. Os judeus não podiam ocupar cargos públicos ou
militares nem mesmo em cidades como Tiberíades e Séforis, onde constituíam maioria. Proibiu-se o uso do
hebraico nas sinagogas, e a Páscoa judaica, se antecedia a cristã, tinha de ser festejada em outra data. Os
judeus resistiram. A sinagoga Bet-Alfa, na Galileia, possivelmente construída nessa época, refletia, talvez, sua
esperança de recuperar Jerusalém. O mosaico do piso focaliza Isaac sendo atado para o sacrifício — uma
tradição relacionada com o monte do Templo — e os objetos cultuais utilizados no Templo, inclusive o
menorá, as palmas e as frutas cítricas de Sucot, festa que alguns judeus acabaram associando com o Messias.
A ofensiva de Justiniano contra os grupos dissidentes compreendia um programa de edificações em
Jerusalém e arredores. O imperador restaurou a igreja que Zenão edificara no monte Garizim e reconstruiu
a basílica da Natividade, em Belém, que fora seriamente danificada durante a revolta dos samaritanos. Em
Jerusalém, na encosta sul da Colina Ocidental, ergueu sua obra mais imponente: a igreja de Maria
Theotokos, que o monge Sabas e o patriarca Elias haviam concebido como um monumento à ortodoxia
durante o reinado do imperador monofisista Anastásio. O Nea, como o complexo era chamado pela
população, constituiu uma verdadeira façanha da engenharia. Justiniano dera instruções bem claras sobre o
tamanho e as proporções, e, como não havia espaço suficiente na colina, os arquitetos tiveram de construir
abóbadas imensas para sustentar a igreja, o mosteiro e o hospital de três mil leitos. O Nea era algo único
em Jerusalém, pois comemorava uma doutrina, e não um fato da vida de Cristo ou da Igreja primitiva.
Nunca conquistou a estima dos cristãos locais, que nada fizeram para restaurá-lo depois de sua destruição no
terremoto de 746. Contudo, figura num mapa em forma de mosaico elaborado sob Justiniano e descoberto
em 1884 numa igreja de Mádaba, na atual Jordânia.
O mapa de Mádaba mostra os dois cardines com suas colunas e o muro de sustentação ocidental da cidade,
bem como a basílica de Santa Sião e a igreja da Santa Sabedoria,27 construída por Eudóxia no lugar onde
supostamente se situara o Pretório de Pilatos. Reflete a geografia sagrada do mundo cristão que se
desenvolvera desde os tempos de Constantino. Apresenta a Palestina como a Terra Santa: assinala não só os
locais bíblicos, como também os novos edifícios, monumentos e mosteiros com os quais os cristãos
transformaram o país num espaço sagrado. A “Cidade Santa de Jerusalém”, assim identificada na legenda,
ocupa o centro do mapa, já que agora estava no centro do mundo cristão. Antes da descoberta do sepulcro
os cristãos aprenderam que deviam ignorar a cidade terrena e concentrar-se na Jerusalém celeste. No final do
século IV as duas se fundiram em sua imaginação, como podemos ver no mosaico da igreja de Santa
Pudenziana, em Roma, que focaliza Cristo ensinando aos discípulos no céu: atrás dele são bem visíveis os
novos edifícios de Constantino no Gólgota. Jerusalém se tornara, pois, uma cidade santa cristã, embora nem
sempre uma cidade caridosa. Com muita frequência a revelação de seu caráter sagrado se fez acompanhar de
brigas internas, jogos de poder e supressão de crenças rivais.
Sempre que queriam enfatizar o poder da ortodoxia cristã, Justiniano e Zenão construíam igrejas em
homenagem a Maria Theotokos. A imagem da Mãe de Deus segurando o Menino Jesus tornou-se uma
espécie de estandarte dos ortodoxos, por exprimir o paradoxo central da Encarnação: mostrava que o Logos
aceitou a extrema vulnerabilidade da infância por amor ao mundo. A ternura da relação entre Maria e seu
filho expressava o amor quase sensual de Deus pela raça humana:
Estendeste o braço direito, ó Theotokos, tomaste-o e o fizeste deitar-se em teu braço esquerdo. Inclinaste
a cabeça e deixaste teus cabelos caírem sobre ele. [...] Ele estendeu a mão, tomou teu seio e, colocando-o
na boca, sugou o leite mais doce que maná.28
De modo semelhante, os peregrinos cristãos acariciavam e beijavam as pedras e as madeiras que o Logos
encarnado tocara. Esse tipo de espiritualidade táctil mostra como a Encarnação e o culto de Jerusalém
poderiam ter habilitado os cristãos a verem no amor sexual um meio de chegar à transcendência — o que
infelizmente nunca ocorreu em sua tradição. Também infelizmente essa visão pungente da ternura divina não
conseguiu inspirar-lhes mais amor e compaixão por seus semelhantes. Parece que o patos da vulnerabilidade
do Logos não tem ajudado alguns cristãos de Jerusalém a deixar de lado seu desejo egoístico de poder e
domínio.
1. Os edifícios do Gólgota 7. Cardo (atual Tariq al-Wad)
2. Basílica de Santa Sião 8. Cardo Maximus (atual Tariq Khan al-Zeit)
3. A igreja do “Nea” 9. Torres herodianas na atual Porta de Jafa
10. O muro Ocidental, sustentação da esplanada do Templo de
4. Igreja da Santa Sabedoria
Herodes
5. Basílica da Natividade de Maria em Betesda 11. Atual Porta do Leão
6. Bab al-Amud (Porta da Coluna). O atual nome árabe da Porta de Damasco lembra a coluna que Adriano
12. Palácio da imperatriz Eudóxia
construiu no local.

No entanto, a abordagem física do espiritual proporcionou a muitos peregrinos uma profunda experiência
religiosa. Também fez de Jerusalém um centro natural da ortodoxia nicena, apesar de seu fascínio inicial
pelo monofisismo. Em 511, quando o imperador Anastásio tentou impor à Igreja de Jerusalém um patriarca
monofisista, o monge Sabas procurou explicar que a experiência de viver na cidade santa não permitia que
os devotos desconsiderassem a natureza humana de Cristo: “Nós, os habitantes de Jerusalém, por assim dizer,
tocamos diariamente a verdade com nossas mãos através desses lugares santos em que ocorreu o mistério de
nosso grande Deus e Salvador”.29 Acreditava-se que alguns lugares santos guardavam vestígios palpáveis de
Jesus: ele literalmente deixara nas pedras a marca indelével de sua presença. Suas pegadas eram visíveis na
rocha da igreja da Ascensão e numa pedra da igreja da Santa Sabedoria, onde, dizia-se, ele estivera diante de
Pilatos.30 Teodósio, um peregrino do Ocidente que visitou Jerusalém por volta de 530, viu a marca do
corpo de Cristo na coluna do monte Sião, onde ele se
agarrara ao ser flagelado, ali afundando as mãos, os braços e os dedos, como se [aquela superfície] fosse de
cera, e as marcas permanecem até hoje. Assim como suas santas feições — o queixo, o nariz, os olhos —
ali estão estampadas.31
Agarrando-se à pedra, em seu extremo sofrimento, Jesus deixou uma impressão permanente do eterno abraço
de Deus na humanidade e do mundo material presente em sua pessoa. Os atos que realizou na cidade
terrena de Jerusalém a imbuíram do poder divino. Até o orvalho possuía propriedades terapêuticas, segundo
Antonino, um peregrino de Piacenza que visitou Jerusalém por volta de 570. Os cristãos se banhavam nas
piscinas de Siloé e Betesda, onde antes se celebrava o culto de Asclépio e agora se erguia uma igreja
dedicada à Virgem Maria. Muitas curas se operaram nessas águas.32
Os lugares santos eram como os ícones, que também podiam estabelecer vínculos com o mundo celeste,
conforme se começava a acreditar. O ícone não pretendia ser um retrato fiel de Jesus ou dos santos. Como
qualquer símbolo religioso, identificava-se misteriosamente com o ser celeste que representava na terra.
Segundo observou Teodoro Estudita, monge do século VIII: “Toda imagem artificial [...] exibe em si mesma,
através da imitação, a forma de seu modelo. [...] o modelo [é] a imagem, [estando] um na outra”.33 Mais ou
menos da mesma forma os peregrinos que “imitavam” Cristo, seguindo suas pegadas durante as grandes
procissões pela cidade, tornaram-se “ícones vivos”, momentaneamente identificados com o Logos. Assim
também os lugares santos não só lembravam o divino, como o reproduziam no âmbito terreno. A âmbula de
um peregrino dessa época mostra o Gólgota encimado por uma cruz cravejada de pedras preciosas, doação
de Teodósio II, e os quatro rios do Paraíso jorrando da rocha. Agora mostrava-se aos peregrinos que
visitavam o Gólgota o local onde Deus criou Adão no começo dos tempos. O monte abrigara o Jardim do
Éden, acreditava-se, e se tornara um símbolo que proporcionava aos peregrinos a experiência do retorno ao
Paraíso, que, como vimos, era um motivo importante na busca religiosa. Os viajantes não visitavam o
Gólgota e a tumba como os turistas modernos visitam um local histórico: essas relíquias da vida de Cristo
na terra apresentavam-lhes uma transcendência, aliviando por algum tempo a sensação de separação e perda
que está na raiz de tanto sofrimento humano e sugerindo uma integridade e uma plenitude que julgavam
fazer parte de sua “verdadeira” condição.
A criação da Jerusalém cristã deslocou o centro sagrado da cidade, que antes se situava no monte Sião
original e no monte do Templo. Foi nesses lugares que o Peregrino bordelês iniciou sua excursão por
Jerusalém, e não nos santuários cristãos. No século VI os cristãos mal se dignavam a lançar um olhar para a
esplanada do Templo. Tudo o que antes se pensava ter ocorrido no monte Sião original agora se transferira
para o Gólgota, a Nova Jerusalém. O bordelês situara o assassinato de Zacarias no monte do Templo, em
cujo piso vira as manchas de sangue. Agora se mostrava aos peregrinos o altar onde Zacarias fora morto no
Martyrium de Constantino. O altar em que Abraão atou Isaac e Melquisedec ofereceu sacrifício — fatos
associados antigamente com o Sião original —, o chifre que contivera o óleo com o qual se ungiram Davi e
Salomão e o anel com sinete que pertencera a este último rei também eram exibidos perto do Gólgota.34
Conquanto representasse mais uma apropriação de tradições judaicas por parte dos cristãos, essa transição
demonstrava que a santidade da Nova Jerusalém era tão poderosa que atraía para sua órbita as tradições da
Jerusalém antiga.
O poder da cidade santa não conseguiu, porém, afastar seus inimigos terrenos. O Império Bizantino estava
fraco e dividido internamente, e seus súditos se malquistavam com Constantinopla. Em 610 o rei Cosroés II
da Pérsia achou que havia chegado o momento de invadir o território bizantino e começou a desmembrar o
Império. Antioquia caiu em 611, Damasco dois anos depois, e na primavera de 614 o general Shahrbaraz
invadiu a Palestina, saqueando o interior e queimando as igrejas. Os judeus locais, que tinham lembranças
mais amenas do domínio persa que do jugo romano, decidiram ajudar os invasores. Em 15 de abril de 614 o
exército inimigo chegou aos muros de Jerusalém. O patriarca Zacarias se prontificou a entregar a cidade,
porém um grupo de jovens cristãos se opôs à rendição, convencido de que Deus operaria um milagre. O
cerco durou quase três semanas, enquanto os persas destruíam sistematicamente todos os santuários dos
arredores, inclusive a basílica de Eleona e as igrejas de santo Estêvão e da Ascensão. No final de maio
Jerusalém caiu em meio a cenas de terrível barbárie. Testemunha ocular dos acontecimentos, o monge
Antíoco Strategos diz que os invasores irromperam na cidade como javalis ferozes, rugindo, sibilando e
matando quem quer que avistassem, inclusive mulheres e crianças. Segundo sua estimativa, 66555 cristãos
perderam a vida. Todas as igrejas de Jerusalém, inclusive o Martyrium, foram incendiadas. O exílio foi o
quinhão que coube aos trabalhadores especializados e às altas personalidades que, como o patriarca Zacarias,
sobreviveram ao massacre.
Quando galgaram o monte das Oliveiras e lá do alto viram sua cidade ardendo em chamas, os deportados
se puseram a chorar, a bater no peito e a despejar terra na cabeça, como os judeus cujos rituais de luto eles
tanto desprezavam. Tentando acalmá-los, Zacarias pronunciou um lamento pela Cidade Santa dos cristãos,
que se tornara inseparável da ideia e da experiência de Deus:
Não esqueças teu servo, ó Sião, e que teu Criador não te esqueça. Pois, se eu te esquecer, ó Jerusalém,
que minha mão direita seque. Que minha língua se prenda ao palato, se eu não me lembrar de ti. [...] Eu
te adoro, Sião, e adoro aquele que em ti morava.35
Os cristãos haviam estabelecido uma nítida diferença entre sua experiência de Jerusalém e a dos judeus.
Agora que chegara sua vez de seguir para o exílio, repetiam naturalmente os gestos e os salmos de seus
predecessores na Cidade Santa e, como eles, falavam de Deus e de Sião ao mesmo tempo. Para o exílio
levaram a relíquia da Verdadeira Cruz e outros objetos da Paixão de Cristo que estavam guardados no
Martyrium: a lança que lhe perfurara o lado, a esponja e a taça de ônix que ele teria utilizado na Última
Ceia. Tais objetos passaram a pertencer a Meryam, rainha da Pérsia, que era cristã nestoriana.
Ao partir para dar prosseguimento a sua campanha, os persas confiaram Jerusalém aos judeus, seus aliados
na Palestina. As esperanças messiânicas se intensificaram: os visionários aguardavam com ansiedade a
purificação iminente do país pelo Messias e a reconstrução do Templo. Alguns contemporâneos até indicam
que nessa época se voltou a realizar sacrifícios no monte, a armar barracas na festa de Sucot e a rezar nas
portas destruídas.36 Todavia em 616 os persas retornaram à Palestina e reassumiram o controle da cidade.
Haviam compreendido que, para pacificar o país, tinham de fazer algumas concessões à maioria cristã. A
retirada de seu apoio acabou com qualquer esperança realística de a nação judaica recuperar Jerusalém.
O imperador bizantino Heráclio retomou em 622 a ofensiva contra os invasores e durante seis anos lutou
em território persa, até que chegou aos arredores de Ctesifonte, onde Cosroés II foi assassinado num golpe
palaciano. As duas potências fizeram as pazes e desocuparam os territórios, mas estavam exauridas pela guerra
e nunca se recobrariam realmente. Os cristãos de Jerusalém, contudo, exultaram. Em 21 de março de 629,
Heráclio entrou na cidade à frente de um esplêndido cortejo, carregando a relíquia da Verdadeira Cruz. A
“Porta Dourada” do muro de sustentação oriental do monte do Templo pode ter sido construída para
celebrar sua entrada triunfal. O imperador percorreu as ruas até a Anástasis e repôs a cruz em seu devido
lugar. O Martyrium e a Rotunda haviam sofrido danos em 614, contudo ainda estavam de pé. Modesto, um
monge do deserto da Judeia, encarregara-se dos reparos e, como recompensa por seus serviços, foi nomeado
patriarca de Jerusalém, sucedendo Zacarias, que morrera no exílio. Heráclio perdoou oficialmente os que
haviam colaborado com os persas, no entanto logo constatou que precisava apaziguar os cristãos e, assim,
baniu os judeus de Jerusalém. Alguns deles foram executados, sob a acusação de matar cristãos ou incendiar
igrejas durante a dominação inimiga; outros fugiram para a Pérsia, o Egito ou o deserto. Aqueles que
ficaram na Galileia foram proibidos de recitar a Shemá em público e realizar o culto na sinagoga mais que
uma vez por semana. Em 634, Heráclio ordenou que todos os judeus de seu império recebessem o batismo.
Novamente um soberano cristão se inimizava com seus súditos judeus, cujo apoio seria impossível de
conquistar três anos depois, quando Bizâncio mais uma vez se encontrou em perigo mortal.
Os cristãos exultaram. Como ocorrera após o reinado do apóstata Juliano, recuperaram sua Cidade Santa.
Agora não a perderiam mais. O fervoroso monge ortodoxo Sofrônio, que se tornou patriarca de Jerusalém
em 633, expressou em dois poemas seu amor pela cidade. Imaginou-se correndo de um lugar a outro,
beijando as pedras e chorando nos locais da Paixão. Para ele, o sepulcro representava o paraíso terrestre:
Ó Tumba luminosa, és o mar da vida eterna e o verdadeiro rio do Esquecimento. Prostrado, beijo esta
pedra, o centro sagrado do mundo, onde se fixou a árvore que afastou a maldição da árvore [de Adão] [...]
Salve, Sião, esplêndido sol do mundo, por quem anseio e padeço dia e noite.37
A experiência de viver em Jerusalém levara os cristãos a desenvolver uma geografia sagrada com base no tipo
de mitologia que antes desprezavam. Agora viam Jerusalém como o centro do mundo, a fonte da vida, da
fertilidade, da salvação e da luz. Agora que morreram em tão grande número por sua cidade, amavam-na
como nunca. A restituição de Jerusalém ao imperador cristão parecia um ato divino. Mas em 632, antes de
Sofrônio se tornar patriarca, um profeta que acompanhara os acontecimentos com interesse morreu no
povoado árabe de Yathrib. Cinco anos depois um exército de seus amigos e seguidores chegou aos muros de
Jerusalém.
11. BAYT AL-MAQDIS

MAOMÉ IBN ABDALA, o novo profeta de Meca, no Hedjaz, não pensou que estava prestes a fundar uma
nova religião mundial quando recebeu sua primeira revelação, em 610, o mesmo ano em que o rei Cosroés
II invadiu o território bizantino. Mercador famoso por sua integridade, Maomé se preocupava muito com o
mal-estar espiritual que percebia na cidade. Materialmente Meca prosperava como nunca, mas alguns dos
antigos valores tribais vinham sendo solapados em função dessa prosperidade. Em vez de cuidar dos membros
mais fracos da sociedade, como no passado, as pessoas se empenhavam em construir suas fortunas
particulares. Algumas sentiam-se vagamente insatisfeitas com o antigo paganismo, que lhes parecia obsoleto,
agora que começavam a ingressar no mundo moderno. Muitas acreditavam que Alá, a principal divindade do
panteão arábico — cujo nome significa simplesmente “Deus” —, era de fato o Altíssimo adorado por judeus
e cristãos. No entanto, aqueles judeus e cristãos com os quais tinham contato geralmente zombavam dos
árabes porque Deus não lhes fizera nenhuma revelação e tampouco lhes enviara um profeta próprio.
Tudo isso mudou para sempre no mês de Ramadã de 610 d.C., quando Maomé se sentiu avassalado por
uma aterrorizante presença divina e as palavras de uma escritura divinamente inspirada jorraram-lhe dos
lábios. Nos 22 anos seguintes continuou recebendo novas revelações de Alá, que seus seguidores mais tarde
reuniram na escritura arábica conhecida como o Alcorão, a Recitação. Por fim Deus falara aos árabes em sua
própria língua e os levara para a comunidade dos verdadeiros crentes. Assim, Maomé não considerava
novidade o que fora revelado através de sua pessoa: tratava-se simplesmente da antiga religião do Deus único
que judeus e cristãos veneravam. A palavra divina exortava os habitantes de Meca a uma entrega espiritual
[isla-m] de sua vida inteira a Deus. Se vivessem da maneira que Alá desejava e construíssem uma sociedade
justa e decente, prosperariam e se harmonizariam com as leis divinas fundamentais para a existência.
Isla-m, portanto, não significava submissão a algo estranho. Era um ato profundamente natural, segundo a
perspectiva do Alcorão. Deus enviara profetas e mensageiros a todos os povos da terra para lhes dizer como
deviam viver. O potencial humano só poderia se desenvolver mediante a obediência ao imperativo divino. A
rebelião [kufr] contra Deus era inatural, molesta e perversa, porque equivalia à negação da realidade.
Acarretava apenas desordem e ruptura na vida dos indivíduos e das sociedades. Já um muslīm, uma pessoa
que se entregou a Alá, constatava que há na vida harmonia, propósito e direção, porque finalmente se afinara
com a maneira como as coisas deviam ser; os muçulmanos estavam, pois, retornando à perfeição original que
Deus concebera para os seres humanos quando criou o mundo.
Assim, podemos ver o isla-m como uma busca da plenitude, uma volta ao paraíso perdido. O Alcorão e
seu profeta, entretanto, nada tinham de fantasioso ou de escapista. Além de ser um gênio espiritual, Maomé
possuía excelentes dotes políticos. No Alcorão Alá dá ordens muito claras e concretas. É errado fazer fortuna
individual e certo partilhar a riqueza com equidade; o primeiro dever religioso consiste em criar uma
sociedade na qual os pobres e os fracos sejam tratados com respeito. Como os profetas hebreus, Maomé
enfatizou a obrigação básica da compaixão posta em prática: cuidar dos pobres, dos órfãos, das viúvas e dos
oprimidos era a principal responsabilidade do muçulmano. O Alcorão não impõe uma submissão intelectual a
um complexo conjunto de doutrinas religiosas — na verdade despreza a especulação teológica a respeito de
assuntos que ninguém pode provar. Como no judaísmo, encontrava-se Deus num imperativo moral mais que
numa ortodoxia.
A mensagem do Alcorão aplicava-se de imediato a Meca, que, conforme vimos, enfrentava uma revolução
capitalista, a busca de riquezas excluindo os membros mais vulneráveis da tribo dos coraixitas (a mesma de
Maomé). Entre os primeiros que acataram o Alcorão havia muitos escravos, mulheres e outros indivíduos em
posição de desvantagem, pertencentes em geral às camadas mais pobres. Entretanto, os donos do poder não
queriam mudanças. Horrorizaram-se quando Maomé lhes ordenou que deixassem de venerar os deuses
tradicionais e cultuassem apenas Alá; viram nisso um ato de impiedade contra as tradições de seus ancestrais
e uma apostasia das antigas coisas sagradas da Arábia. A aristocracia de Meca perseguiu a pequena
comunidade islâmica, e em 622 Maomé teve de deixar a cidade; acompanhado por cerca de setenta famílias
de adeptos, partiu para o povoado de Yathrib, quatrocentos quilômetros ao norte. Esta hijrah [migração]
assinala o início da era muçulmana, porque foi então que Maomé conseguiu concretizar seus ideais e fundar
a primeira comunidade [ummah] que, por seu sistema social e sua espiritualidade, incorporava os
ensinamentos do Alcorão.
Os dez anos seguintes foram perigosos e assustadores para os maometanos, e a crescente ummah vivia
ameaçada de extermínio. A hijrah fora um ato chocante e até blasfemo. Ao abandonar sua tribo, os
muçulmanos violaram um dos valores mais sacrossantos da Arábia: os laços de sangue. Afastaram-se de seu
verdadeiro lugar na terra e se lançaram num mundo extremamente hostil, onde o indivíduo em geral não
conseguia sobreviver sem o apoio do grupo tribal. A ummah estava exposta à constante ameaça de guerra
com a poderosa Meca. Tinha ainda de enfrentar o antagonismo de alguns judeus e pagãos de Yathrib, que
rejeitavam essa sociedade revolucionária baseada em ideologia e não em parentesco. Entre eles havia os que
planejavam assassinar Maomé e os que pretendiam denunciar a ummah às autoridades competentes. O sucesso
de tais projetos certamente teria acarretado a eliminação de todos os islamitas numa horrenda vendeta por
parte de Meca. Na verdade ocorreram matanças. Em batalhas desesperadas contra a poderosa cidade muitos
muçulmanos perderam a vida, e, em sua luta pela sobrevivência, três das mais importantes tribos judaicas de
Yathrib foram expulsas ou massacradas. O Profeta, porém, acabou estabelecendo a paz na Arábia, que até
então se debatia num círculo vicioso de violência tribal e vendeta. Uma tribo após outra aderiu à
comunidade de Maomé, e por fim, em 630, até a orgulhosa Meca abriu as portas para o exército
muçulmano e o Profeta ocupou sua cidade natal sem derramar sangue.
O surgimento do islamismo foi violento, mas o Alcorão propunha harmonia e unidade. A própria palavra
isla-m deriva da mesma raiz de sala-m [paz]. Tawhīd, “união”, era o grande ideal do Alcorão. Cabia a cada
devoto organizar sua vida de tal modo que sua suprema prioridade fosse Alá: quando alcançasse essa
integração pessoal, experimentaria interiormente a unidade que era Deus. Toda a sociedade humana tinha de
chegar a essa unidade e a esse equilíbrio e situar suas atividades sob a égide do sagrado. Os muçulmanos
estavam, portanto, engajados numa luta sem trégua [ jiha-d] para reconduzir todas as coisas, no mundo
humano e natural, à perfeição primordial concebida por Deus. Consequentemente, não podia haver na
religião sectarismo ou dissensão. A princípio Maomé acreditava que judeus e cristãos abraçavam a mesma fé.
Ficou chocado ao descobrir que eles não se entendiam a respeito de questões doutrinais que ninguém podia
provar. E sofreu muito quando a maioria dos judeus de Yathrib se recusou a aceitá-lo como verdadeiro
profeta e fechou as portas para os islamitas. O Alcorão, portanto, exortava os muçulmanos a retomarem a
religião pura e original de Abraão, que, sendo anterior à Torá e ao Evangelho, não era judeu nem cristão:
era apenas um muslīm, um indivíduo que entregara toda a sua vida a Deus.1 Com os judeus mais tolerantes
de Yathrib Maomé aprendeu que os árabes eram tidos como descendentes de Ismael, filho de Abraão, e, da
mesma forma que judeus e cristãos, podiam denominar-se filhos de Abraão.
Maomé, porém, tinha certeza de que nem todos os judeus e cristãos concordavam com esse sectarismo
exclusivista e, apesar de sua luta desesperada com os judeus, exortou seus seguidores a respeitarem os ahl al-
kita-b, os que acatavam uma revelação mais antiga:
Não discutais com os seguidores de uma revelação anterior, a menos que o façais da maneira mais gentil.
[...] Dizei-lhes: “Acreditamos no que nos foi concedido do alto, bem como no que foi concedido a vós:
pois nosso Deus e vosso Deus são um só e o mesmo, e é a ele que todos nos entregamos”.2
Várias vezes o Alcorão afirma que a revelação feita a Maomé não anula os ensinamentos dos profetas que o
precederam: Adão, Noé, Abraão, Isaac, Ismael, Jó, Moisés, Davi, Salomão e Jesus.3 Ela apenas ratifica e
relembra a única mensagem que Deus enviou a todos os povos. Constitui idolatria preferir um credo ou
uma instituição a Deus, que transcende todos os sistemas humanos. Retornando à religião original de Abraão,
os muçulmanos fariam de Deus o objetivo de sua vida, e não um sistema religioso.
Essa visão da unidade essencial da busca religiosa afetaria profundamente a política islâmica em Jerusalém.
Os muçulmanos tinham uma geografia sagrada diferente da de seus predecessores. Já que tudo vinha de
Deus, todas as coisas eram boas e, portanto, não existia uma dicotomia essencial entre o “sagrado” e o
“profano”, como no judaísmo. O objetivo da ummah consistia em alcançar tal integração e tal equilíbrio
entre o divino e o humano, o mundo interior e o exterior, que essa distinção se tornaria irrelevante. Não
havia “mal” intrínseco, nem reino “demoníaco” opondo-se ao “bem”. No fim dos tempos até Satã seria
perdoado. Tudo era santo e tinha de concretizar seu potencial sagrado. Assim, todo espaço era sagrado e não
existia lugar mais santo que outro. O islamismo é, porém, uma religião realista, e Maomé sabia que os seres
humanos precisam de símbolos. Por conseguinte, desde o início seus seguidores aprenderam a considerar três
locais como centros sagrados do mundo.
O primeiro era Meca. No centro da cidade havia um antigo santuário de granito, em forma de cubo,
conhecido como Caaba e tido como o local mais santo da Arábia. Anualmente tribos procedentes de toda a
península se reuniam ali para participar dos árduos e complexos ritos da peregrinação [h. ajj], árabes cristãos
ao lado de pagãos. Na época de Maomé a Caaba era dedicada a Hubal, divindade nabateia, e rodeada de
efígies do panteão arábico, mas originalmente pode ter sido o santuário de Alá, o deus supremo. Acreditava-
se que, como espaço sacratíssimo, a Caaba se situava no centro do mundo: a porta do céu estava acima dela,
de modo que aquele era um lugar onde o mundo divino se tornara acessível ao terreno. Engastada na
parede da Caaba encontrava-se a Pedra Negra, um meteorito que, ao cair, unira céu e terra. Como o
Templo de Herodes em Jerusalém, o santuário de Meca [ H. aram] representava toda a realidade, e a Caaba
representava o próprio ser. O santuário em forma de caixa também simbolizava a terra, os quatro cantos
irradiando-se de um ponto central. A passo rápido e cadenciado, como o pas gymnastique, os devotos
circulavam ao redor do edifício no ritual do t. awa-f, dando sete voltas na direção do Sol. Assim se afinavam
simbolicamente com os ritmos e movimentos do cosmo — tomando o rumo certo e o caminho correto. Em
quase todas as culturas o círculo simboliza a perfeição e a eternidade. Mediante suas voltas os árabes como
que deixavam a realidade terrena e experimentavam uma sensação de plenitude transcendente. O t. awa-f era
um exercício de meditação: circundando o pequeno ponto imóvel do universo em rotação, os peregrinos
aprendiam a orientar-se, a encontrar seu próprio centro e suas prioridades. Até hoje os peregrinos que
participam do t. awa-f dizem que os entraves de seu ego desaparecem enquanto se unem a outros devotos.
Uma área sagrada, com um raio de 32 quilômetros, protegia a santidade da Caaba. Ali toda violência era
proibida e se encontrava um refúgio contra a incessante guerra tribal. A Caaba foi responsável pelo sucesso
comercial de Meca, proporcionando aos árabes um ambiente calmo e seguro em que podiam negociar sem
medo de ataques inimigos.
Fascinado pela Caaba, Maomé gostava de orar no H. aram, onde recitava o Alcorão, e de participar do t.
awa-f. Acreditava na lenda, provavelmente muito difundida na Arábia pré-islâmica, de que o primeiro
homem, Adão, construíra nesse local sagrado o primeiro templo do mundo dedicado a Deus. O H. aram de
Meca situava-se no lugar do Jardim do Éden, onde Adão fora criado, dera nome aos animais e recebera
homenagens de todos os anjos.4 Meca representava, pois, o paraíso perdido, que o fiel podia recuperar
momentaneamente, realizando os ritos tradicionais desse espaço sagrado. Mais tarde o santuário foi
reconstruído por Set, filho de Adão; por Noé após o Dilúvio; por Abraão e Ismael;5 e, enfim, por Qusayy
Ibn Qilāb, o ancestral dos coraixitas. A Caaba unia o passado e o presente, o humano e o divino, o mundo
interior e o exterior.
Todavia, quando ensinou seus primeiros discípulos a prostrarem-se diante de Alá para demonstrar o isla-m
interior, Maomé lhes ordenou que dessem as costas à Caaba e virassem o rosto na direção de Jerusalém. A
Caaba estava então poluída de ídolos, e os muçulmanos precisavam voltar-se para o centro espiritual dos
judeus e dos cristãos, que adoravam unicamente Alá. Essa qiblah [direção da prece] assinalava sua nova
orientação: o afastamento de sua tribo rumo à fé primordial de toda a humanidade. Também expressava a
solidariedade de Maomé e seu senso de continuidade em relação aos ahl al-kita-b. E então, em janeiro de
624, quando se tornou evidente que a maioria dos judeus de Yathrib nunca aceitariam Maomé, a ummah se
declarou independente das tradições mais antigas. O Profeta fez os fiéis rezarem com o rosto voltado para
Meca. Considera-se essa mudança de qiblah um de seus gestos mais criativos, que assinalou um retorno dos
muçulmanos à fé primordial de Abraão, anterior à cisão criada por judeus e cristãos, e constituiu uma
tentativa de encontrar uma unidade perdida, representada pelo primitivo santuário que Abraão, o verdadeiro
muslīm, reconstruíra. Como a Caaba não tinha relação com os judeus ou os cristãos, os muçulmanos estavam
tacitamente declarando que não se curvariam a nenhuma das religiões instituídas, mas apenas a Deus:
Quanto aos que romperam a unidade de sua fé e criaram seitas, não vos interessam. [...]
Dizei: “Vede, meu Sustentante me guiou a um caminho reto através de uma fé verdadeira — ao
caminho de Abraão, que se afastou de tudo que é falso e não era um daqueles que veneram algo além
d’Ele”.
Dizei: “Vede, minha prece e [todos] os meus atos de adoração, minha vida e minha morte são para Deus
somente”.6
A mudança de qiblah também serviu de consolo aos muçulmanos de Meca que migraram para Yathrib e
agora viviam no exílio. Ela os livrou da sensação de deslocamento e simbolicamente os direcionou para as
sagradas associações de sua terra natal.
Em 630, quando entrou triunfalmente em Meca, Maomé tratou de purificar a Caaba, quebrando os ídolos
e retirando a efígie de Hubal. Dois anos mais tarde, pouco antes de morrer, realizou os velhos ritos pagãos
da h. ajj conferindo-lhes uma interpretação monoteísta. Assim, eles passaram a constituir uma representação
simbólica da experiência de Agar e Ismael no deserto, abandonados por Abraão. Meca continuaria sendo o
lugar mais santo do mundo muçulmano, e o H. aram se tornaria uma expressão simbólica da experiência
religiosa do islamismo. O Alcorão constantemente lembra aos fiéis que só podem falar de Deus em termos
de “signos” e “símbolos” (aya-t). Cada um de seus versículos é chamado de a-yah [similitude], e imagens
como o Paraíso e o Juízo Final também constituem símbolos, pois só figurativamente o homem pode
expressar Deus e seus feitos. Os muçulmanos, portanto, estão habituados a pensar simbolicamente e
conseguem ver a santidade de Meca, o espaço sagrado primordial, refletindo toda a dinâmica da visão
islamítica. Assim como há apenas um Deus e uma religião que se manifestam de muitas formas, também há
somente um espaço sagrado — Meca — que se revela de várias maneiras. Todos os lugares santos que
surgiram posteriormente no mundo islâmico devem sua santidade a Meca e podem ser considerados como
extensões dessa santidade central. Assim também o cosmo é uma a-yah de Deus e revela sua presença nos
fenômenos. Meca seria o modelo de todos os outros santuários muçulmanos, o símbolo arquetípico do
sagrado: uma expressão da tawh. īd, sacralização e unificação do universo.
Um dos lugares mais santos, depois de Meca, era Jerusalém. Os maometanos nunca esqueceriam que a
cidade santa dos ahl al-kita-b fora sua primeira qiblah. Fora um símbolo que os ajudou a construir uma
identidade islâmica diferenciada, a abandonar as tradições pagãs de seus ancestrais e a buscar uma nova
família religiosa. Decisiva em seu doloroso processo de ruptura, Jerusalém sempre ocuparia um lugar especial
em sua paisagem espiritual. Continuava simbolizando seu senso de continuidade e parentesco com os ahl al-
kita-b, independentemente do reconhecimento de judeus e cristãos. Os muçulmanos a chamavam de madinat
bayt al-maqdis, a Cidade do Templo. Durante muito tempo ela foi um centro espiritual de seus predecessores
monoteístas. Ali rezaram e reinaram os grandes profetas Davi e Salomão — o qual construiu uma mesquita
sagrada. A cidade estava associada a alguns dos profetas mais santos, inclusive a Jesus, que os islamitas
prezavam muito, embora não o vissem como Deus.
Mais tarde diriam que Maomé também visitou Jerusalém, transportado miraculosamente por Alá:
Ilimitado em Sua glória é Aquele que, à noite, retirou Seu servo da Inviolável Casa de Adoração [al-masjid
al-h. aram] e o levou à Remota Casa de Adoração[al-masjid al-aqsa] — cujos arredores bendissemos — para
que pudéssemos mostrar-lhe alguns de Nossos símbolos [aya-t].7
A “Inviolável Casa de Adoração” era certamente a Caaba, porém no Alcorão não existe nada que relacione a
“Remota Casa de Adoração” com Jerusalém. Mais tarde, entretanto, provavelmente algumas gerações depois
de Maomé, os muçulmanos fizeram essa identificação. Disseram que certa noite, por volta de 620, antes da
hijrah, Maomé estava orando junto à Caaba e o anjo Gabriel o transportou para Jerusalém no dorso de
Burāq, um cavalo alado. Os dois pousaram no monte do Templo, sendo recebidos por uma multidão de
profetas, predecessores de Maomé. Depois galgaram os sete céus, subindo uma escada [al-mi‘ra-j] que os levou
até o divino Trono. Cada uma das esferas celestes era presidida por um profeta — Adão, Jesus, João Batista,
José, Henoc, Aarão, Moisés —, e Abraão postava-se no limiar do reino divino. Lá no alto Maomé recebeu a
revelação final, que o fez ultrapassar os limites da percepção humana. Sua ascensão ao céu supremo foi o ato
decisivo do isla-m, o retorno à unidade da qual deriva todo ser. A história de sua Viagem Noturna [al-isra-’]
e de sua Ascensão [al-mi‘ra-j] remete claramente às Visões do Trono dos místicos judeus. O mais importante
é que simbolizava a convicção dos muçulmanos acerca da continuidade e da solidariedade com as religiões
mais antigas. O voo de seu Profeta, desde a Caaba até o monte do Templo, revelava também a transferência
da santidade de Meca para Jerusalém [al-masjid al-aqsa-]. Havia entre as duas cidades uma conexão
divinamente estabelecida.
No entanto, Jerusalém ocupava o terceiro lugar na hierarquia de santidade do mundo islâmico. O segundo
pertencia a Yathrib, que abrigara a primeira ummah e que os maometanos chamavam de al-madinah, “a
Cidade”. Ao levar seu pequeno grupo de conversos para Medina, Maomé levou também a santidade de Meca,
o espaço sagrado primordial. Depois de sua morte foi reverenciado pelos muçulmanos como o Homem
Perfeito: não era divino — incansavelmente advertira seus seguidores para que não o deificassem como os
cristãos fizeram com Jesus —, porém com sua fé, sua virtude, sua entrega a Deus forjara em sua pessoa um
elo vivo [qutb] entre o céu e a terra. Assim, os islamitas conjugaram o antigo simbolismo do espaço sagrado
com o culto mais recente do homem santo. As pessoas, como os lugares, podiam estabelecer a ligação entre
o celeste e o terreno. Tendo abrigado o Profeta, Medina se tornou um local em que o céu tocava a terra,
sobretudo no túmulo de Maomé, onde sua presença estava mais concentrada. Medina era santa também
porque assistira ao surgimento da ummah. Pelo mesmo princípio da tawh. īd, todas as cidades e estados
islâmicos posteriores participariam da santidade primordial de Medina, que se convertera num símbolo da
tentativa de levar todos os seres humanos a viver sob a lei de Deus.
Da mesma forma todas as mesquitas futuras teriam por modelo a que Maomé ergueu em Medina — um
edifício humilde e tosco que expressava a austeridade e a simplicidade do primitivo ideal islâmico. Três
troncos sustentavam o teto, uma pedra assinalava a qiblah, a direção da prece, e o Profeta subia num banco
para falar aos fiéis. Nas mesquitas posteriores, esses elementos estariam representados pelas colunas que
sustentam o teto, pelo mihra-b, um nicho que indica a orientação para Meca, e pelo púlpito [minbar] do
pregador. Tais mesquitas possuiriam ainda um pátio, como o de Medina, que desempenhou um papel
fundamental na vida da primeira ummah. Maomé e suas esposas habitavam pequenos apartamentos ou cabanas
situadas ao redor desse pátio. Ali os pobres da cidade podiam reunir-se para receber esmolas, alimentos e
cuidados. Ali se realizavam também reuniões públicas, em que se discutiam questões sociais, políticas,
militares e religiosas. Até hoje a mesquita permanece como um centro de todo tipo de atividade, não sendo
usada exclusivamente para funções religiosas.
Judeus e cristãos geralmente se surpreendem — e até se escandalizam — com isso, pois veem uma
separação essencial entre a santidade e o mundo profano. Imaginam que os muçulmanos não podem
realmente considerar as mesquitas sagradas, se ali conversam com os amigos ou “exploram” sua santidade
realizando reuniões políticas. Demonstram, assim, não entender o conceito islâmico do sagrado, que não é
algo separado (kaddosh, no judaísmo), mas está presente em todos os setores da vida. Ao instalar-se com suas
esposas no pátio da mesquita, Maomé demonstrou que era possível — necessário, na verdade — integrar o
sexual, o sagrado e o doméstico. Da mesma forma devia-se situar no âmbito da santidade a política, o bem-
estar e a organização da vida social e submetê-las à lei de Deus. O islamismo, portanto, via a santidade
como inclusiva, e não exclusiva: os cristãos de Medina podiam rezar na mesquita, o que expressava a
continuidade entre a tradição islâmica e os Evangelhos. A multifacetada função da mesquita constituía, pois,
uma expressão da tawh. īd, a sacralização de todo o espectro da vida humana.8 Ademais, como todo espaço é
inerentemente sagrado, não cabia isolar a mesquita de seus arredores. Consta que o Profeta declarou: “Não
vilipendieis o mundo, pois o mundo é Deus”. E o Alcorão constantemente incita os muçulmanos a verem a
beleza e a ordem da terra como aya-t. Assim, a presença de árvores, proibida no monte do Templo, é
incentivada no santuário muçulmano, que deve ter fontes no pátio e muita luz em seu interior. Os pássaros
podem voar entre suas paredes durante as preces de sexta-feira. O mundo é convidado a entrar na mesquita,
e não deixado de fora. Os princípios de Medina também se tornariam evidentes em Jerusalém, o terceiro
lugar mais santo do mundo islâmico.
Quando morreu, em 6 de junho de 632, Maomé havia unificado quase toda a Arábia sob sua liderança. As
guerras tribais, no entanto, eram endêmicas à península, de modo que, após sua morte, a ummah corria o
risco de desintegrar-se. Muitas das tribos que se aliaram a Medina eram mais apegadas ao Profeta que a sua
religião e, assim, não se sentiam na obrigação de obedecer a seu sucessor [khalīfah], Abu Bakr, nem de pagar
o tributo religioso [zakat] ao tesouro islâmico. Tentando rivalizar com Maomé, alguns “profetas” romperam
com a ummah; Abu Bakr teve de empreender uma campanha implacável contra as tribos rebeldes de Asad,
Tamim, Ghatafan e Han īfah. Depois de esmagar a rebelião, talvez tenha decidido aliviar as tensões internas,
voltando contra inimigos externos as energias incontroláveis da ummah. De qualquer modo, em 633 os
exércitos muçulmanos deram início a uma nova série de campanhas na Pérsia, na Síria e no Iraque. Quando
Abu Bakr morreu, em 634, uma parte de suas tropas havia expulsado os persas de Barein e outra entrara na
Palestina e conquistara Gaza.
É quase certo que essas guerras não se deveram a motivos religiosos: nada no Alcorão levava seus adeptos
a pensar que tinham de conquistar o mundo para o Islã. Todavia, há indícios de que no fim da vida
Maomé planejava arrebanhar mais árabes para a ummah: em 630, comandou expedições militares às regiões
setentrionais da península Arábica. Nesse momento, porém, o Islã ainda não era uma religião missionária
como o cristianismo. Maomé não pretendia impor sua fé a judeus e cristãos, pois acreditava que eles
também haviam recebido revelações válidas. O islamismo era para seus devotos a religião dos árabes, filhos
de Ismael, assim como o judaísmo era a religião dos filhos de Jacó. Os historiadores modernos destruíram
por completo a velha tese de que os beduínos convertidos ao Islã partiram de arma em punho para forçar
um mundo relutante a aceitar sua nova crença. A maioria dos generais islâmicos provavelmente tinha motivos
mais prosaicos. Durante séculos os nômades das áridas estepes arábicas procuraram deixar a península para
buscar terras mais férteis e melhores pastagens. Até então os detiveram os exércitos de duas grandes potências
— Bizâncio e Pérsia. Mas em 633, quando os muçulmanos iniciaram suas campanhas externas, havia um
vazio de poder. Tendo lutado entre si durante muitos anos, os impérios Persa e Bizantino estavam exaustos.
Alguns dos soldados que empregaram para repelir as forças muçulmanas eram árabes que se sentiam
etnicamente ligados aos invasores. A tribo fronteiriça de Gassan, por exemplo, permanecera por muito tempo
sob a égide de Constantinopla com a missão de manter à distância os nômades árabes. No entanto, quando
Bizâncio cortou seus subsídios, prontificou-se a engrossar as fileiras da ummah, não por motivos religiosos, e
sim por um vago sentimento de solidariedade. Na Síria e no Iraque os elementos aramaicos e semíticos
reagiram à invasão árabe com indiferença ou com entusiasmo. Vimos que no Império Bizantino a política
opressiva dos governantes cristãos inimizara os “hereges” monofisistas e a vasta população judaica. Essa gente
não estava disposta a apoiá-los, e sobretudo os judeus acolheram de bom grado as tropas muçulmanas que
invadiram a Palestina. Por essas complexas razões os exércitos do Islã conseguiram conquistar com relativa
facilidade um território considerável no interior dos velhos impérios.
Após a morte de Abu Bakr, o califa Omar, um dos mais austeros e fervorosos Companheiros do Profeta,
deu continuidade às campanhas militares na Pérsia e em Bizâncio. Os muçulmanos começavam a enriquecer,
porém Omar levava a mesma vida simples de Maomé. Usava sempre uma túnica de lã velha e remendada;
carregava sua própria bagagem, como qualquer soldado, e exortava seus oficiais a imitá-lo. Assim, o
islamismo chegou à Palestina como uma fé vigorosa, preservando todo o ardor de seu entusiasmo inicial. Já
o imperador bizantino Heráclio se malquistara com muitos de seus súditos e, deprimido, debatendo-se numa
crise espiritual, temia que a invasão islâmica fosse um sinal da desaprovação divina. As forças árabes
avançavam pela Palestina. Em 20 de agosto de 636, derrotaram as tropas de Bizâncio na batalha de Jarmuc.
No meio do combate a tribo de Gassan desertou das fileiras imperiais e se uniu a seus compatriotas, que,
com o apoio dos judeus, começaram a subjugar o restante do país. Heráclio fugiu, detendo-se rapidamente
em Jerusalém para apanhar a Verdadeira Cruz. Em julho de 637, o exército do Islã acampou junto às
muralhas da Cidade Santa.
O patriarca Sofrônio valentemente organizou a defesa de Jerusalém com a ajuda de sua guarnição bizantina,
mas em fevereiro de 6389 os cristãos tiveram de render-se. Segundo a tradição, o patriarca declarou que só
entregaria a cidade a Omar. Uma das fontes muçulmanas mais antigas informa que o califa não estava
presente nessa ocasião e só algum tempo depois visitou Jerusalém. Não obstante, a maioria dos estudiosos
ainda acredita que ele viajou desde a Síria, onde se encontrava, para presidir a momentosa ocasião — o que
é bem possível, considerando o prestígio de Jerusalém no islamismo primitivo. Reza ainda a tradição que
Sofrônio foi recebê-lo na estrada e o escoltou até a cidade. Montado num camelo branco, usando seus
farrapos habituais, que não tirou nem para a cerimônia, o califa devia destoar dos bizantinos ricamente
vestidos que o acompanhavam. Alguns observadores cristãos tacharam-no de hipócrita: provavelmente
perceberam que o líder muçulmano abraçava o ideal cristão de pobreza santa com maior convicção que seus
próprios correligionários.
Omar também foi mais fiel ao ideal monoteísta da compaixão que qualquer outro conquistador de
Jerusalém — à exceção, talvez, do rei Davi. Presidiu a conquista mais pacífica e menos sangrenta que a
cidade sofreu em sua longa e trágica história. Depois que os cristãos se renderam, não houve matança,
destruição de propriedades, queima de símbolos religiosos, expulsão, expropriação ou tentativa de impor o
islamismo. Se o respeito pelos vencidos indica a integridade de uma potência monoteísta, o Islã começou
muito bem sua longa ocupação de Jerusalém.
Quando o califa expressou seu desejo de conhecer os lugares santos, Sofrônio levou-o primeiramente à
Anástasis. O fato de esse magnífico complexo comemorar a morte e ressurreição de Cristo não deve ter
agradado Omar. O Alcorão reverencia Jesus como um dos maiores profetas, porém não acredita em sua
crucifixão. Ao contrário de Cristo, Maomé conheceu estrondoso sucesso ainda em vida, e para o islamismo
era inconcebível que Deus deixasse um profeta morrer em tamanha desgraça. Parece que os árabes adotaram
a ideia docetista e maniqueísta, presente em muitas regiões do Oriente Próximo, de que Jesus na verdade
não morreu, mas, como Henoc e Elias, ascendeu triunfalmente aos céus no fim de sua vida — a figura na
cruz era apenas um fantasma, um simulacro. Mais tarde expressariam seu desprezo pela crença cristã
chamando a Anástasis de al-quma-mah [Monturo], em vez de al-qiya-mah [Ressurreição]. Omar, porém, não
demonstrou tal chauvinismo nem mesmo na empolgação de uma importante vitória militar. Estando junto ao
túmulo na hora da prece islamítica, delicadamente recusou o convite de Sofrônio para rezar ali mesmo.
Tampouco aceitou fazê-lo no Martyrium de Constantino, mas deixou o local e orou na escada, em meio à
agitação do Cardo Maximus. Explicou ao patriarca que, se rezasse no interior de um santuário cristão, os
muçulmanos o converteriam em templo islâmico para comemorar a prece de seu califa na bayt al-maqdis.
Imediatamente Omar baixou um decreto, proibindo seus correligionários de orar na escada do Martyrium e
de erguer uma mesquita no local.10 Mais tarde rezou no Nea e, novamente, teve o cuidado de assegurar que
o complexo continuaria pertencendo aos cristãos.
Os maometanos precisavam, no entanto, de um lugar para construir uma mesquita sem confiscar
propriedades dos cristãos. Também estavam ansiosos para conhecer o famoso Templo de Salomão. De
acordo com o tradicionalista al-Wal īd Ibn Mūslim, Sofrônio tentou apresentar o Martyrium e a basílica da
Santa Sião como a “mesquita de Davi”, porém acabou levando Omar e seu séquito ao monte do Templo.
Desde a ocupação persa, quando os judeus retomaram o culto na esplanada, os cristãos utilizavam o local
como a grande lixeira da cidade. Conta o historiador muçulmano Mujīr al-Din que, ali chegando, Omar se
horrorizou com a sujeira, “que se espalhava então por todo o santuário, acumulara-se nos degraus das portas
de tal modo que ganhava as ruas e quase alcançava o teto do umbral”.11 Somente engatinhando podia-se
alcançar a esplanada. Sofrônio tomou a iniciativa, e os muçulmanos o seguiram com muita dificuldade. Deve
ter sido um choque para eles ver aquela desolada vastidão coberta de entulho e de lixo. Nunca superaram o
impacto desse triste encontro com o lugar santo cuja fama chegara à remota Arábia: dizem que chamaram a
Anástasis de al-quma-mah, “Monturo”, em retaliação contra o comportamento impio dos cristãos no monte
do Templo.
Parece que nessa ocasião Omar não se dedicou a examinar a rocha que mais tarde desempenharia
importante papel na devoção islâmica. Depois de avaliar a situação, recolheu alguns punhados de lixo no
manto e jogou-os no vale de Hinom, sendo imediatamente imitado por seus acompanhantes.12 Esse gesto de
purificação não diferiu das escavações realizadas no Gólgota sob Constantino. Mais uma vez uma religião
triunfante procurava firmar-se em Jerusalém esmiuçando a impiedade de seus moradores para estabelecer um
contato físico com as bases da fé.
A chegada dos muçulmanos a Jerusalém teve extrema importância. Na hijrah os primeiros conversos de
Meca dolorosamente abandonaram sua terra e suas tradições mais sagradas. Agora os exércitos islâmicos
penetravam num mundo que, pela sofisticação e pela cultura, não tinha paralelo na Arábia, até então situada
aquém dos limites da civilização. Confrontavam-se com mitologias e tradições religiosas e políticas que
constituíam um desafio para sua nova fé. Viviam deslocando-se de um lado a outro, longe de suas raízes,
mas agora se apoderaram da bayt al-maqdis, berço de alguns dos maiores profetas e sua primeira qiblah. Foi
uma espécie de volta à pátria, um “retorno” material à cidade de seus ancestrais religiosos. Agora o Islã
podia enxertar-se fisicamente nessas tradições antigas de um modo que simbolizava a continuidade e a
unidade da visão do Alcorão. Sua missão de sacralizar o mundo incluía o dever de reconsagrar um lugar que
havia sido tão horrivelmente profanado.
Tendo limpado a esplanada, Omar chamou Ka‘b IbnAh . bar, um judeu que se convertera ao islamismo e
era especialista em isra-’īliya-t, ou, como diríamos, “estudos judaicos”. A ideia de consultar os judeus sobre a
disposição do lugar sagrado de seus ancestrais ocorreu naturalmente aos maometanos. Fontes das duas crenças
deixam claro que os judeus participaram dessa restauração do monte. Dizem também que Omar viajara a
Jerusalém com um grupo de rabinos de Tiberíades. De acordo com Abu Jafar at-T . abarī, ilustre historiador
do século X, ao encontrar-se com Ka‘b, Omar recitou os suras 17 e 18 do Alcorão, que contam a história
de Davi, de Salomão e do Templo. Depois lhe perguntou qual era a parte do monte mais adequada à
oração. Ka‘b recomendou um local ao norte da rocha, onde acreditava que no passado se situava o Devir —
e quanto a isso é quase certo que se equivocou. Rezando ali, os muçulmanos podiam voltar-se ao mesmo
tempo para Meca e para o Santo dos Santos.13 Provavelmente essa história não passa de lenda, pois só
cinquenta anos depois os islamitas se interessariam pela rocha, porém mostra que eles se mantinham fiéis ao
princípio da independência de sua crença em relação às religiões mais antigas. Omar recusou a sugestão de
Ka‘b e decidiu construir sua mesquita na extremidade meridional da esplanada, onde outrora se erguia o
Pórtico Real de Herodes e hoje se encontra a mesquita de al-Aqsā. Ali os muçulmanos podiam orar voltados
unicamente para Meca. Os trabalhos resultaram numa singela construção de madeira, compatível com o
austero ideal do islamismo primitivo. A primeira pessoa que a descreveu foi Arculf, peregrino cristão que
visitou Jerusalém em torno de 670 e se impressionou com o contraste entre o novo santuário e o magnífico
Templo que o precedera: “Agora os sarracenos frequentam uma casa de oração quadrangular e tosca, que
edificaram erguendo tábuas e grandes vigas sobre parte das ruínas”.14 A “casa de oração”, no entanto, era
bem ampla, capaz de abrigar 3 mil devotos. Nessa época as tribos árabes da região haviam se convertido ao
maometismo e às sextas-feiras iam rezar na mesquita de Omar.
Nenhum habitante cristão foi obrigado a abraçar o Alcorão. Na verdade, só no século VIII os árabes
passaram a estimular a conversão. T. abarī cita um suposto acordo firmado entre Omar e os cristãos de
Jerusalém. O documento provavelmente não é autêntico, porém expressa com exatidão a política do Islã em
relação aos povos que conquistara.
[Omar] garante segurança a todo indivíduo e a sua propriedade: a suas igrejas, a suas cruzes, aos doentes e
aos sãos, a todas as pessoas de sua religião. Não colocaremos soldados muçulmanos em suas igrejas. Não
destruiremos suas igrejas nem danificaremos seu conteúdo, seus bens, suas cruzes ou qualquer coisa que lhes
pertença. Não obrigaremos o povo de Jerusalém a abandonar suas crenças e não lhes faremos nenhum
mal.15
Como os outros súditos do Império Islâmico, os judeus e os cristãos da Palestina se tornaram “minorias
protegidas” [dhimmis]: tinham de renunciar a todos os seus meios de autodefesa e não podiam portar armas.
Em contrapartida, os muçulmanos lhes ofereciam proteção militar mediante o pagamento de uma capitação [
jizyah]. Parece que em Jerusalém o tributo anual de cada família era de um dinar. Os peregrinos cristãos que
não residiam no Império tinham de pagar um dinar para entrar na cidade e tornar-se dhimmi durante sua
estada.16 O sistema não era perfeito e mais tarde evoluiu para uma legislação humilhante: os membros das
dhimmis precisavam de permissão para construir; não podiam ter lugares de culto mais altos que a mesquita;
deviam curvar-se ao entregar a jizyah; estavam proibidos de cavalgar e obrigados a usar roupas que os
distinguiam. Geralmente, porém, não havia rigor no cumprimento dessas normas. O sistema assegurava a
liberdade religiosa, mas não a igualdade das dhimmis, que estavam sujeitas aos muçulmanos e tinham de
aceitar sua supremacia. No entanto, pessoas de diferentes crenças podiam conviver em relativa harmonia e de
modo geral eram tratadas com decência e legalidade — o que certamente constituía uma grande melhoria
com relação à lei bizantina, cada vez mais hostil a minorias como os monofisistas, os samaritanos e os
judeus.
Não surpreende, pois, que os cristãos nestorianos e monofisistas recebessem os muçulmanos de braços
abertos e preferissem o Islã a Bizâncio. “Eles não questionam profissão de fé, nem perseguem quem quer que
seja por causa de crença, como fizeram os gregos, um povo herege e perverso”, escreveu Miguel, o Sírio,
historiador do século XII.17 Para os cristãos ortodoxos a adaptação evidentemente foi mais difícil. Sofrônio
chorou ao ver Omar no monte do Templo e lembrou a “abominação da desolação” predita pelo profeta
Daniel. Dizem que morreu profundamente infeliz poucas semanas depois. Alguns cristãos acalentavam
fantasias apocalípticas acerca de um imperador grego que libertaria Jerusalém e prepararia o caminho para a
Segunda Vinda de Cristo. 18 Os cristãos jerosolimitas se viram esquecidos por Constantinopla, que apenas em
691 nomeou um patriarca para substituir Sofrônio. Tiveram de assistir à transformação do monte do
Templo, cuja profanação fora tão importante para eles. Muitos provavelmente recorreram ao expediente
psicológico da negação: peregrinos como Arculf apenas registram a presença de muçulmanos em sua Cidade
Santa. Talvez acreditassem subconscientemente que, se ignorassem os “sarracenos”, estes deixariam de existir. 19
Quanto a isso não tiveram dificuldade. Ainda constituíam a maioria da população local, e até os muçulmanos
reconheciam que Jerusalém era basicamente uma cidade de dhimmis. Quase todos os seus lugares santos se
concentravam na Colina Ocidental, que continuou sendo uma área inteiramente cristã. Os conquistadores não
se estabeleceram nessa parte da cidade, apesar de ser mais fresca e mais salubre que o sopé de seu H. aram,
onde se instalaram. Estavam proibidos de entrar nos santuários do monte das Oliveiras e do vale do Cedron,
principalmente na igreja da Ascensão e na Tumba da Virgem — que comemoravam locais e fatos
reverenciados também por eles. Os cristãos podiam construir e restaurar livremente seus santuários, que
proliferaram na Síria e na Palestina durante os séculos VII e VIII. Podiam ainda realizar procissões e cultos.
O único local em que os muçulmanos se reuniam em grande número era o H. aram,20 o velho monte do
Templo, que nunca desempenhou papel algum na liturgia cristã.
Imediatamente após a conquista, Omar concordou com Sofrônio: os judeus não deviam ter permissão para
residir em Jerusalém. Ao tomar uma cidade, o califa geralmente reforçava a situação que ali encontrava, e
fazia muito tempo que os judeus haviam sido banidos de Jerusalém e seus arredores. Mais tarde, porém, não
encontrando bons motivos para negar-lhes o direito de viver na Cidade de Davi, Omar revogou o acordo e
convidou setenta famílias judias de Tiberíades a se instalarem no bairro localizado a sudoeste do H . aram, a
breve distância da piscina de Siloé. Devastado na época da conquista persa, em 614, o bairro ainda se
resumia a um monte de ruínas. Os judeus removeram o entulho e com as velhas pedras ergueram suas novas
casas. Também tiveram licença de construir uma sinagoga — conhecida como “a Caverna” — perto do muro
de sustentação ocidental, possivelmente nos subterrâneos da esplanada.21 Segundo algumas fontes, podiam
rezar na esplanada, assim como os cristãos na mesquita de Medina. Alguns membros das dhimmis judaica e
cristã trabalhavam como guardas e serventes do H. aram — privilégio que os eximia de pagar a jizyah.22 Os
judeus provavelmente assumiram tais encargos de bom grado, pois a conquista islâmica lhes infundira novas
esperanças. Os imperadores bizantinos haviam proscrito sua religião, e Heráclio chegara a ponto de ordenar
seu batismo. Agora eles prestavam aos árabes o mesmo apoio que deram aos persas, até porque essa nova
forma de monoteísmo estava mais próxima de sua crença que o cristianismo. Alguns acreditavam, talvez, que
o islamismo era apenas um estágio na conversão de seus adeptos à verdadeira fé. Os maometanos não só os
libertaram da opressão bizantina, como lhes concederam o direito de residir permanentemente em sua Cidade
Santa. Não admira que essa reviravolta inspirasse sonhos apocalípticos, sobretudo depois que os muçulmanos
tentaram purificar o monte do Templo. Estariam preparando o terreno para o Messias construir o Templo
definitivo? Um poema hebraico de fins do século VII enaltece os árabes como precursores do Messias e
expressa a esperança na futura reunião dos judeus exilados e na restauração do Templo. 23 O Messias não
chegou, porém os judeus continuaram aprovando a dominação islâmica. Numa carta escrita no século XI os
rabinos de Jerusalém lembram a “misericórdia” que Deus tivera com seu povo quando permitiu que o
“Reino de Ismael” conquistasse a Palestina. Com alegria recordam que, quando os maometanos chegaram a
Jerusalém, “havia em seu meio filhos de Israel; mostraram-lhes o local do Templo e conviveram com eles até
esta data”.24
A tomada da Palestina não acarretou uma repentina invasão de árabes do Hedjaz. Etnicamente a população
permaneceu mista, como sempre fora. Os conquistadores não tinham permissão de instalar-se em seus novos
territórios. Constituíam uma pequena casta militar que vivia à parte, num enclave especial. Alguns generais
podiam ter propriedades nos territórios não ocupados. Em Jerusalém, como vimos, os islamitas não tentaram
estabelecer-se na região mais salubre, porém fixaram-se na base de seu H . aram, perto do Bairro Judaico.
Jerusalém continuou sendo uma cidade predominantemente cristã, com uma área sagrada muçulmana. Maomé
dissera que quem falava árabe era árabe, assim como quem falava grego recebia o nome de heleno. Ao longo
dos anos os jerosolimitas adotaram o árabe como sua língua principal, e hoje chamamos seus descendentes —
maometanos e cristãos — de árabes.
Ao organizar sua administração na Palestina — “Filast. īn” em sua língua —, os islamitas adotaram o
velho sistema bizantino que dividira o país em três secções. Agora Jerusalém fazia parte da Jund Filast. īn,
que incluía a planície costeira e as terras altas da Judeia e da Samaria. A Jund Urdunn compreendia a
Galileia e a região ocidental da Pereia, enquanto a Jund Dimashq englobava Moab e Edom. Os árabes
continuavam chamando Jerusalém de bayt al-maqdis ou de “Ilya” [Aelia]. Sua estima pela cidade se evidencia
no calibre dos homens designados para governá-la. Mu‘āwiyah Ibn Abī Sufyān, futuro califa, tornou-se
governador de toda a Síria e da Palestina (al-Sham para os árabes). Uwaymir Ibn Sa‘d, um dos mais
importantes oficiais muçulmanos, recebeu o comando da Jund Filast. īn e se celebrizou pela maneira decente
como tratava as dhimmis. ‘Ubādah Ibn al-Samīt, um dos cinco principais especialistas no Alcorão, tornou-se o
primeiro cádi de Jerusalém. Outros eminentes Companheiros do Profeta, como Fairuz at-Dailami e Shaddad
Ibn Aws, também se fixaram em Jerusalém, atraídos por sua santidade.
Depois de um início tão auspicioso, o Império Islâmico aparentemente correu o risco de esfacelar-se
quando um prisioneiro de guerra persa assassinou Omar, em 644. Uma das tragédias das religiões é que nem
sempre atuam em conformidade com seus mais caros ideais. Assim, o cristianismo, a religião do amor,
muitas vezes se expressou em Jerusalém através do ódio e do desprezo. Agora o islamismo, o credo da
unidade e da integração, parecia sucumbir à ruptura e ao sectarismo. Desde a morte do Profeta a liderança
da ummah provocava tensão entre os califas e a família de Maomé — conflito que acabaria levando à cisão
sunitas/xiitas. O sucessor de Omar foi Otman Ibn‘Affān, um dos primeiros Companheiros do Profeta e
membro do aristocrático clã dos Omíadas. Em Jerusalém seu maior gesto consistiu em criar na piscina de
Siloé um vasto jardim público para os pobres locais. Otman foi um líder piedoso, porém incompetente. Um
grupo de oficiais o matou em 656 e proclamou quarto califa ‘Alī Ibn Abī Tālib, o parente mais próximo de
Maomé. Imediatamente eclodiu a guerra civil entre ‘Alī e Mu‘āwiyah, governador de al-Shām e agora chefe
do clã dos Omíadas, que insistia em punir os assassinos de Otman. O conflito se arrastou até 661, quando
um seguidor de uma nova seita fanática apunhalou ‘Alī. Seis meses depois Mu‘āwiyah se tornou o primeiro
califa da dinastia dos Omíadas, que reinaria sobre o mundo islâmico por quase um século.
Tão logo assumiu o califado, Mu‘āwiyah tratou de transferir a capital do Império para Damasco. Com isso
não pretendia abandonar o velho ideal religioso, como às vezes se sugere. Os muçulmanos controlavam agora
um território que ia de Khorassan, no leste, ao que hoje é a Líbia, no norte da África. Quando os Omíadas
estavam prestes a deixar o poder, o Império Islâmico se estendia de Gibraltar ao Himalaia. Era preciso que
a capital fosse mais central e que os maometanos se integrassem plenamente nos territórios que haviam
conquistado. Também fazia parte de sua missão sacralizar o mundo: tinham de ultrapassar suas fronteiras e
levar a santidade de Deus para além de seus domínios, em vez de manter-se presos a seus locais sagrados. A
transferência da capital para Damasco favoreceu a Palestina, que agora estava próxima à sede do poder e
prosperou cultural e economicamente. Mu‘āwiyah governou al-Shām durante quase vinte anos e aprendeu a
amar Jerusalém: fazia questão de visitá-la sempre que ia à Palestina, apesar de ter sofrido um atentado ali.
Seus louvores a bayt al-maqdis, coligidos pelos muçulmanos, mostram que as dhimmis lhes ensinaram muitas
coisas sobre Jerusalém. A cidade era “o local onde o povo há de reunir-se e elevar-se no Dia do Juízo”; um
lugar que santificava seus habitantes; e al-Shām era “a terra escolhida por Alá, à qual ele conduzirá os
melhores de seus servos”. Certa vez, orando no H. aram, o califa declarou: “Deus ama o espaço entre as
paredes desta mesquita mais que qualquer outro no mundo”.25 Os maometanos que ali o adoravam podiam
experimentar a santidade da distante Meca no H. aram de Jerusalém.
Houve mais dissensões no Império após a morte de Mu‘āwiyah, já que alguns de seus súditos islamitas não
aceitaram o califado de seu filho Yaz īd. Em 680 al-H. ussain, filho de ‘Alī e neto do Profeta, liderou uma
insurreição contra os Omíadas e foi cruelmente eliminado em Karbala, no Iraque, junto com seu pequeno
grupo de adeptos. A partir de então Karbala se tornou uma cidade santa para os xiitas, que acreditavam que
um descendente direto de Maomé governaria a ummah, porém ainda reverenciavam seus imames, que
descendiam do Profeta e de ‘Alī. Consideravam cada imame como o qutb de sua geração: o que
proporcionava aos muçulmanos acesso direto ao céu, pois partilhava a santidade de Maomé, o Homem
Perfeito.
Outra rebelião contra os Omíadas ocorreu em 683, quando Yaz īd caiu mortalmente enfermo. ‘Abdallah Ibn
al-Zubayr proclamou-se califa e apossou-se da cidade santa de Meca. Manteve-se no poder até 692, porém
não conquistou o apoio unânime da ummah. Após a morte de Yaz īd, Marwān I (684-5) e seu filho ‘Abd al-
Malik (685-705) conseguiram restabelecer o domínio dos Omíadas primeiramente na Síria, na Palestina e no
Egito, e depois no restante do Império. Dotado de especial competência, ‘Abd al-Malik iniciou o processo
de substituição dos velhos sistemas bizantino e persa por uma nova administração árabe: uma monarquia
centralizada, com base no ideal teocrático.
Tendo devolvido ao Império um pouco de paz e segurança, o califa voltou sua atenção para Jerusalém, à
qual, como todos os Omíadas, dedicava grande apreço. Restaurou as muralhas e portas, danificadas nos
distúrbios recentes, e construiu, nos arredores do H. aram a Dar Imama, a residência do governador de Ilya.
No entanto, sua maior contribuição à cidade foi, sem dúvida, a Cúpula do Rochedo, que começou a
construir em 688. Os maometanos tinham seus lugares santos, bem como uma escritura de força e beleza
extraordinárias, mas não possuíam grandes monumentos e sentiam-se diminuídos em Jerusalém, cidade repleta
de igrejas magníficas. Decerto queriam mostrar aos cristãos — para os quais sua humilde mesquita no H.
aram era objeto de zombaria, a julgar pela reação de Arculf — que também tinham uma visão formidável
para expressar. No século X, o historiador jerosolimita Muqaddasī registrou que todas as igrejas de al-Sham
eram “encantadoramente belas” e a “Cúpula de Qumāmah” era tão grande e esplêndida que ‘Abd al-Malik
temia que “ofuscasse a mente dos muçulmanos”. Eles desejavam erguer monumentos “incomparáveis, que
maravilhassem o mundo”.26 Assim, seu novo santuário deveria rivalizar com a Cúpula da Anástasis, na Colina
Ocidental, e com a extraordinária igreja da Ascensão, no monte das Oliveiras, que, iluminada, à noite,
resplandecia de tal modo que proporcionava um dos grandes espetáculos de Jerusalém.27 Para que não fosse
menos reluzente, ‘Abd al-Malik contratou artesãos e arquitetos de Bizâncio, e dos três mestres encarregados
da construção, dois talvez fossem cristãos.28 Apesar dessa contribuição das dhimmis, o primeiro grande templo
maometano transmitia uma mensagem inequivocamente islâmica.
O califa decidiu erguê-lo em torno da rocha que ressaltava do pavimento herodiano, no lado norte da
esplanada. Por que resolveu homenagear essa pedra, que nem a Bíblia, nem o Alcorão mencionam?
Posteriormente os muçulmanos acreditariam que dali Maomé subiu ao céu, depois de sua Viagem Noturna, e
que rezou na pequena caverna localizada abaixo da Rocha. Em 688, porém, não relacionavam tal fato com
Jerusalém: se ‘Abd al-Malik pretendia comemorar a mi‘ra-j do Profeta, certamente teria inscrito em algum
lugar do santuário os versículos do Alcorão apropriados. E não o fez. Não sabemos como surgiu a devoção à
Rocha. O Peregrino de Bordeaux viu os judeus ungindo uma “pedra perfurada” no monte do Templo, mas
não sabemos se era a mesma. No século II a Mishnah fala de uma “Pedra Fundamental” [Even Shetiyah] que
fora colocada junto à Arca na época de Davi e Salomão, porém os rabinos não nos dizem se ela ainda se
encontrava no Templo de Herodes, nem a identificam com a Rocha do monte devastado. É provável que
judeus e maometanos pensassem que a Rocha indicava o local do Santo dos Santos — o que não
corresponde à realidade, segundo o consenso dos estudiosos modernos.29 Se de fato pensavam assim,
naturalmente a viam como o “centro da terra”, um lugar que sempre dera acesso ao céu. Concluída a
Cúpula do Rochedo, criaram lendas a respeito da Rocha, o santuário islâmico estimulando, talvez, a
imaginação judaica. Para as duas religiões a Rocha seria a base do Templo, o centro do mundo, a entrada
do Jardim do Éden e da fonte da fertilidade — todas as imagens habitualmente associadas com um lugar
santo de uma crença monoteísta. Os muçulmanos achavam, desde o início, que uma visita a seu novo
santuário os levaria de volta à harmonia primordial do paraíso.
Recentemente, alguns estudiosos inferiram que a escolha do local não partiu de ‘Abd al-Malik. De acordo
com sua teoria, durante a ocupação persa os judeus começaram a reconstruir o Templo, e, quando
reconquistou a cidade, Heráclio decidiu erguer uma igreja para celebrar o triunfo dos cristãos sobre a Pérsia
e o judaísmo. Assentaram-se os alicerces, porém abandonou-se o projeto quando os árabes invadiram a
Palestina. ‘Abd al-Malik teria utilizado esses alicerces bizantinos para construir a Cúpula do Rochedo em
688.30 Trata-se de uma teoria controvertida para explicar um edifício que, sob certos aspectos, é único no
mundo islâmico. A Cúpula do Rochedo não é uma mesquita. Não tem uma parede de qiblah para indicar a
direção de Meca, nem um espaço amplo para orações — a Rocha ocupa a posição central, cercada por duas
passagens circulares e quarenta colunas. É um santuário, um relicário. Não seria, contudo, incomum em
Jerusalém. Em suas proximidades erguiam-se igrejas famosas que abrigavam pedras e cavernas: a Rotunda da
Anástasis, com a caverna-sepulcro; o Martyrium, com a Rocha do Gólgota; a basílica da Natividade, sobre a
gruta onde Cristo nasceu; a igreja da Ascensão, circundando a pedra com a pegada de Jesus. Todos esses
santuários celebravam a Encarnação. Agora o magnífico edifício de ‘Abd al-Malik os desafiava.
A Jerusalém muçulmana
638-1099

Na arcada interior da Cúpula há uma inscrição, composta basicamente dos versículos do Alcorão que
negam a ideia chocante de que Deus gerara um filho. Dirige-se aos “Seguidores do Evangelho” e os exorta a
evitarem afirmações inexatas e perigosas a respeito de Deus:
O Cristo Jesus, filho de Maria, era apenas apóstolo de Deus — [o cumprimento de] Sua promessa através
de Maria — e uma alma criada por Ele. Acreditai, pois, em Deus e em Seu apóstolo e não digais “[Deus]
é uma trindade”. Abandonai tal assertiva para vosso próprio bem. Deus é Único: jamais lhe ocorreu, em
sua glória, ter um filho.31
Os muçulmanos eram minoria em Jerusalém; a maioria cristã provavelmente os desprezava, vendo-os como
bárbaros primitivos. Sem embargo, a Cúpula do Rochedo, erguendo-se, majestosa, no mais antigo lugar santo
da cidade, constituía uma dramática afirmação de que o islamismo ali chegara para ficar. Conclamava os
cristãos a rever suas crenças e a retornar ao monoteísmo puro de Abraão.32
Os judeus certamente aprovaram a inscrição. Nem todos se horrorizaram com a presença desse edifício
muçulmano no monte de seu Templo. Escrevendo por volta de 750, o autor de Os mistérios do rabino Simeon
ben Yohai considera a Cúpula um prelúdio da era messiânica. Enaltece o califa como um “amante de Israel”,
que “reparou as fendas de Sião e as fendas do Templo”, que “escava o monte Moriá e o aplaina e ali
constrói uma mesquita na rocha do Templo [Even Shetiyah]”. 33 Mas a Cúpula do Rochedo tinha uma
mensagem também para os judeus. Ocupava o espaço de seu Templo, que fora construído no local onde
Abraão sacrificaria Isaac. Agora os filhos de Ismael se estabeleceram nesse lugar sagrado. Os judeus não eram
os únicos filhos de Abraão e deviam lembrar que ele não era judeu, nem cristão, e sim um muslīm.
O santuário de ‘Abd al-Malik provavelmente constituía uma afirmação da identidade maometana, e não
uma forma de desviar os peregrinos de Meca, que ainda se encontrava em poder de Ibn al-Zubayr. No
século IX, o historiador iraquiano Ya ‘qūbī argumentou que as passagens circulares da Cúpula se destinavam
ao tawa-f: “Os devotos se punham a caminhar em torno [da Rocha] como o fazem ao redor da Caaba”.34
Isso é altamente improvável, já que em tais deambulatórios não há espaço para o complexo ritual do tawa-f,
e, se o califa tinha por objetivo substituir Meca, seria mais simples reproduzir a Caaba que construir a
Cúpula. Nenhum historiador contemporâneo menciona esse projeto blasfemo, que teria escandalizado o
mundo islâmico, e ‘Abd al-Malik sempre demonstrou profunda devoção a Meca e à Caaba. Os Omíadas se
opuseram com vigor a Ya‘qūbī, cuja teoria possivelmente não passava de propaganda.
Se a Cúpula do Rochedo se resumisse a uma manobra política destinada a humilhar as dhimmis, nunca
teria conquistado o coração dos muçulmanos. Na verdade ela se tornou o arquétipo de todos os santuários
que o Islã viria a construir. Para os peregrinos e devotos que a visitavam simbolizava perfeitamente o
caminho que todos deviam trilhar para chegar a Deus.35 Pode ser que a inspiração do projeto se devesse à
nova metafísica dos sufis, os místicos islâmicos que viviam em Jerusalém desde uma data muito antiga. Já
vimos a importância do simbolismo na religião de Maomé. Deus sendo incomparável, os muçulmanos
acabaram por banir de seus templos toda arte figurativa, mas permitiam desenhos e formas geométricas,
porque refletiam o mundo ideal da imaginação, apontavam a estrutura fundamental da existência com a qual
os fiéis deviam sintonizar-se a fim de encontrar a harmonia, a paz e a unidade de Deus. No H . aram de
Meca o quadrado da Caaba levou ao círculo do tawa-f, refletindo a viagem da terra à eternidade. No
santuário de Jerusalém há uma configuração semelhante. A Rocha e sua caverna simbolizam a terra, a origem
e o ponto de partida da procura. O octógono que a cerca corresponde, no pensamento muçulmano, ao
primeiro passo no afastamento da fixidez do quadrado. Assim, marca o início da subida em direção à
plenitude, à perfeição e à eternidade, representadas pelo círculo impecável da Cúpula.
Expoente da arquitetura islâmica, a Cúpula é um símbolo poderoso da ascensão ao céu. Mas também
reflete o perfeito equilíbrio da tawh. īd: seu exterior, que se ergue para o infinito, é uma réplica perfeita de
sua dimensão interior. Ilustra a maneira como o divino e o humano, os mundos interior e exterior se
ajustam e se complementam, como as duas metades de um todo. As próprias cores do santuário contêm uma
mensagem. Na arte islâmica o azul, cor do céu, sugere infinidade, enquanto o dourado é a cor do
conhecimento, que no Alcorão permite apreender Deus.
O local onde se construiu a Cúpula do Rochedo era o mesmo da primeira qiblah, conhecido como um
“centro” espiritual. Na caverna sob a Rocha os muçulmanos indicavam os lugares onde Abraão, Davi,
Salomão e Elias oraram. Alguns conseguiam ver a pegada de Henoc, acreditando que ali ocorrera sua
ascensão. Esse era um dos lugares em que céu e terra se encontravam; ajudara os islamitas a iniciar sua
viagem rumo a Deus, e o simbolismo do santuário de ‘Abd al-Malik delineava o processo daquele retorno à
realidade suprema, uma subida que, como os sufis estavam descobrindo, era também uma descida interior.
Vimos que a arquitetura do Templo continuou moldando o espírito judaico por muito tempo depois da
destruição do edifício. Agora a Cúpula do Rochedo, a primeira grande obra da arquitetura islâmica, tornara-
se um mapa espiritual para os muçulmanos.
Nesse sentido o plano básico do santuário — que por seu turno reproduzia o simbolismo básico de Meca
— seria usado muitas vezes no mausoléu de uma pessoa — homem ou mulher — reverenciada como qutb,
elo entre o céu e a terra. Temos quase certeza de que Ya ‘qūbī errou ao afirmar que a Cúpula fora
concebida para substituir Meca; sua teoria revela, entretanto, o parentesco que os muçulmanos viam entre
ambas. No próprio início de sua história a primeira qiblah substituíra a Caaba por um breve período. Os
dois lugares eram vistos como o Jardim do Éden, o centro da terra, e estavam associados com Adão e com
Abraão e o sacrifício de seu filho. Essa reprodução da santidade central de Meca no mito e na arquitetura
de outros santuários não era pura imitação servil. Constituía um símbolo da luta pela unidade, o desejo de
restituir todas as coisas à perfeição original, relacionando-as com a Fonte.
Isso está claro nas tradições sobre a santidade de Jerusalém que no final do século VII começaram a
circular no mundo islâmico — algumas evidentemente influenciadas pelos israīliya-t. Os judeus sempre
imaginaram o Templo como a fonte da fertilidade do mundo, e agora os muçulmanos proclamavam: “Toda
água doce provém das profundezas da Rocha”. Em Jerusalém ocorreria o Juízo Final, Deus derrotaria Gog e
Magog, os mortos ressuscitariam. Morrer na Cidade Santa era uma bênção especial: “Aquele que escolheu
morrer em Jerusalém, morreu como se estivesse no céu”. Todos os profetas desejavam ser enterrados ali,
onde o próprio “Adão ordenou que o inumassem”. Dizia-se que os amigos de Maomé quiseram sepultá-lo
em Jerusalém, o lugar de repouso dos profetas, o lugar da Ressurreição. Jerusalém era o fim natural de
todos os homens e objetos santos: no dia do Juízo Final a própria Caaba seria levada para lá — um mito
recorrente que mostra sua profunda fusão na imaginação dos muçulmanos.36
O califa al-Wal īd I, que em 705 sucedeu ‘Abd al-Malik, continuou aprimorando a santidade e a majestade
do H. aram. Ordenou em 709 a construção de uma nova mesquita para substituir o tosco santuário de
Omar, que se erguia no lugar da atual al-Aqsā. Ao contrário da Cúpula do Rochedo, essa mesquita foi várias
vezes destruída, reerguida e alterada. O edifício de al-Wal īd logo sucumbiu a um terremoto sem deixar
muitos vestígios. Sabemos que tinha piso e colunas de mármore e era demasiadamente comprido e estreito.
O califa também reparou e elevou os muros de sustentação de Herodes, embora não dispusesse de pedras tão
enormes. Ao redor da esplanada ergueu uma série de colunas, algumas das quais sobrevivem até hoje.
Ordenou a demolição dos velhos bairros residenciais vizinhos ao H. aram, que cederam lugar a magníficos
edifícios imperiais. Reconstruiu as portas da extremidade sul da esplanada e ergueu um conjunto de prédios
públicos, o mais espetacular dos quais era um vasto palácio de dois andares, com os aposentos dispostos em
torno de um pátio central e uma ponte unindo o piso superior ao H. aram e ao interior da nova mesquita.
Uma fileira de edifícios com colunas estendia-se para o oeste e para o norte, acompanhando o muro de
sustentação ocidental. O califa construiu ainda uma hospedaria para peregrinos, uma casa de banhos, um
quartel e outros edifícios públicos. E por fim restaurou a ponte herodiana entre a Rua da Corrente (Tar īq
al-Silsila) e o H. aram. Este é o maior complexo arquitetônico que os Omíadas deixaram: al-Walīd pretendia
transformar Jerusalém na capital do Império Islâmico?37
Seu filho Solimão (715-7) certamente amava a cidade e, de acordo com Mūjīr al-Dīn, “planejava morar em
Jerusalém, convertê-la em sua capital e atrair para lá grande riqueza e considerável população”.38 Proclamado
califa na bayt al-maqdis, ali recebeu as delegações que foram jurar-lhe lealdade. Como seu homônimo,
Salomão, gostava de receber as pessoas no monte do Templo; instalava-se então perto da Cúpula do
Rochedo, num prédio abobadado, provido de tapetes, almofadas e divãs. Não concretizou, no entanto, seu
projeto de transformar Jerusalém em sua capital. Admitindo que sua localização não convinha ao centro de
um vasto império, construiu nas proximidades de Lida a nova cidade de Ramleh, que se tornou a capital
administrativa do Jund Filast. īn e desviou para o litoral grande parte do poder e da prosperidade de
Jerusalém. Provavelmente os Omíadas não conseguiram converter em sede de seu governo uma cidade que
tinha uma maioria cristã tão esmagadora. Mas isso não quer dizer que desvalorizavam Jerusalém, como às
vezes se afirmou. Desde o início os muçulmanos tenderam a manter sua capital longe dos locais mais santos
da região: Maomé não a transferiu de Medina para Meca quando conquistou a cidade, embora deixasse bem
claro para seus seguidores que Meca era o lugar mais sagrado. Os primeiros califas conservaram sua capital
em Medina, e uma postura semelhante determinou a escolha de Ramleh. Até mesmo os judeus, que não
tinham dúvida sobre a santidade de Jerusalém, preferiam morar em Ramleh, onde sua comunidade sempre foi
muito maior que na Cidade Santa.
Em meados do século VIII o Império estava conturbado. Em 744, o califa al-Wal īd II foi assassinado e as
tribos do Jund Filast. īn e do Jund Urdunn se rebelaram contra seu filho Yaz īd, cuja atitude de tolerância
em relação às dhimmis continuaram combatendo mesmo depois de derrotados. A rebelião prosseguiu em al-
Shām contra Marwān II, sucessor de Yaz īd, que por medida de precaução destruiu os muros de Jerusalém,
Hims, Damasco e outras cidades. Jerusalém sofreu mais estragos em 11 de setembro de 747, quando um
terremoto a arrasou. Os lados leste e oeste da Cúpula do Rochedo desabaram, bem como a mesquita de al-
Walīd, o palácio dos Omíadas e o Nea de Justiniano. Muitos muçulmanos que moravam perto do H. aram
morreram, e, temendo novos tremores, os sobreviventes se refugiaram nas colinas durante quase seis semanas.
O terremoto antecedeu o colapso político dos Omíadas, que desde muito se defrontavam com os
descendentes de ‘Abbas, o tio de Maomé, sediados em Humayma, na Transjordânia. Em 749, estes se aliaram
a Abu Muslīm, de Khorassan, que conseguira reunir num só partido todos os opositores do califado. Em
janeiro Marwān II sofreu sua derrota final no grande rio Za‘b, a leste do Tigre, e pouco depois os Omíadas
restantes foram massacrados em Antipátrida, na Palestina. Abu al-‘Abbas al-Saffah tornou-se o primeiro califa
dos Abássidas, que transferiram sua capital para a nova cidade de Bagdá, com graves consequências para
Jerusalém.
12. AL-QUDS

OS ISLAMITAS HAVIAM CRIADO um sistema que permitiu, pela primeira vez, a convivência de judeus, cristãos
e muçulmanos em Jerusalém. Desde que os judeus retornaram do exílio na Babilônia, os monoteístas
passaram a vincular a santidade da cidade à exclusão de estrangeiros. Os maometanos, porém, tinham uma
ideia mais abrangente do sagrado: a coexistência das três religiões de Abraão, cada qual ocupando um espaço
próprio e realizando o culto em templos próprios, refletia sua visão da continuidade e da harmonia de toda
religião corretamente orientada, que só podia derivar de um único Deus. A coabitação numa cidade sagrada
para as três crenças podia promover um melhor entendimento entre os monoteístas. Infelizmente essa
possibilidade não se concretizou. Havia na situação uma tensão inerente. Durante mais de seiscentos anos
judeus e cristãos se digladiaram, sobretudo no tocante a Jerusalém. Cada qual acreditava que o outro estava
errado, e a convivência na Cidade Santa não acalmou os ânimos. Alguns muçulmanos começavam a
abandonar a visão universal do Alcorão e a proclamar que apenas sua fé era verdadeira. Sufis e filósofos,
cada qual a seu modo, tentavam reafirmar o velho ideal, porém um número crescente de maometanos
acreditava que o islamismo havia suplantado as tradições mais antigas. Quando o monoteísmo assume essas
posturas exclusivistas, a coexistência se torna muito difícil. Se cada crença assume que ela — e só ela — está
certa, a presença de outras religiões declarando a mesma coisa constitui um desafio implícito que não é fácil
suportar. Como cada uma das três religiões tentava afirmar uma identidade distinta e uma superioridade
inerente, a tensão aumentou na bayt al-maqdis durante o governo dos Abássidas.
Um dos motivos foi a decisão de transferir o califado para Bagdá, que em 762 se tornou a nova capital do
Império Islâmico. Os Abássidas continuavam atribuindo a Jerusalém uma importância simbólica, mas, ao
contrário de seus predecessores, não desejavam dedicar muito dinheiro nem muita atenção a al-Shām e à bayt
al-maqdis, que sob vários aspectos estava associada à dinastia anterior. Os Omíadas visitaram com frequência a
Cidade Santa, onde eram pessoas bem conhecidas; já os Abássidas eram celebridades distantes, e suas visitas,
que a princípio ainda lhes pareciam necessárias como símbolo de sua legitimidade, constituíam grandes
acontecimentos. Tão logo assumiu o poder, em 757, o califa al-Mansur passou por Jerusalém ao voltar de
sua peregrinação a Meca. A cidade se encontrava num estado lamentável. O H. aram e o palácio dos
Omíadas, destruídos pelo terremoto de 747, continuavam em ruínas. Quando os muçulmanos lhe pediram
que restaurasse a mesquita de al-Wal īd, o soberano respondeu simplesmente que não tinha dinheiro, mas
sugeriu fundir o ouro e a prata que revestiam a Cúpula do Rochedo para pagar a reforma. Os Abássidas não
abandonaram o H. aram, porém não o adornaram com tanto esplendor como os Omíadas fizeram.
Restaurada a mesquita, um terremoto a derrubou em 771. Quando subiu ao trono, o califa al-Mahdi (775-
85) ordenou sua reconstrução e mandou a conta para os governadores provinciais e os comandantes das
guarnições locais. A nova mesquita, que ainda estava de pé quando Muqaddasī elaborou sua descrição de
Jerusalém, em 785, tinha uma bela cúpula e era muito maior que a anterior: o que restara do edifício dos
Omíadas erguia-se “em meio a ela como um monumento de rara beleza”.1
A al-masjid al-aqsa-, Remota Mesquita, como passou a ser chamada, identificou-se definitivamente com a
Viagem Noturna de Maomé, que o Alcorão apenas menciona.2 O biógrafo Muh. ammad Ibn Ish. āq (m. 767)
oferece-nos o primeiro relato completo dessa visionária experiência do Profeta em Jerusalém: miraculosamente
transportado de Meca ao monte do Templo por Gabriel, o anjo da Revelação, Maomé galgou os sete céus
até se encontrar diante do divino Trono. Alguns maometanos interpretam a história literalmente e acreditam
que a viagem e a ascensão ocorreram no plano físico. Outros, como ‘Ā’ishah, a esposa favorita do Profeta,
sempre frisaram que se tratou de uma experiência puramente espiritual. A associação desse voo para Deus
com Jerusalém ocorreu naturalmente aos islamitas. Desde que se concluiu a Cúpula do Rochedo, em 691, o
H. aram constituía uma poderosa imagem da arquetípica ascensão espiritual. A bayt al-maqdis exercia
irresistível atração sobre os sufis. Quando se restaurava a mesquita de al-Aqsā, a célebre mística Rabi ‘a al-
Adawiyya morreu na cidade e foi enterrada no monte das Oliveiras, à vista da Cúpula. Abu Ish. āq Ibrāhīm
ibn Adham, um dos fundadores do sufismo, também saiu de Khorassan para morar em Jerusalém. Os sufis
estavam ensinando os muçulmanos a explorarem a dimensão interior da espiritualidade islâmica: o tema do
retorno à Unidade primordial é fundamental em sua concepção de busca mística, e a Viagem Noturna e a
mi‘ra-j de Maomé se tornaram o paradigma de sua própria existência espiritual. Imaginavam Maomé
extasiado diante do divino Trono. Mas essa aniquilação [ fana-’] foi apenas o prelúdio de sua plena
recuperação [baqa-’] de uma humanidade aprimorada e completa.
Os sufis começaram a aglomerar-se em torno do H . aram: alguns até passaram a morar nos pórticos que
circundavam a esplanada para poder contemplar o simbolismo da Cúpula e da Rocha onde se iniciara a
ascensão de Maomé. Sua presença talvez tenha exercido uma influência benéfica em Jerusalém, pois
reconheciam o valor de outros credos. Enquanto os juristas e os sacerdotes (ulemás) que criavam a lei
islâmica tendiam a enfatizar unicamente os interesses do Islã, os sufis permaneciam fiéis ao universalismo do
Alcorão. O místico sufista costumava gritar em êxtase que não era nem judeu, nem cristão, nem muçulmano
e se sentia à vontade tanto na mesquita quanto na sinagoga ou na igreja, porque, tendo perdido o ego na
fana-’, transcendera essas diferenças estabelecidas pelo homem. O sufismo não conseguiu levar todos os
maometanos a essas altitudes místicas, mas sobre eles exerceu profunda influência; em algumas regiões do
Império se converteria na principal seita islâmica, embora a princípio fosse considerado marginal e dúbio.
Tendo recebido a visita de Maomé, como se acreditava, Jerusalém tornou-se duplamente santa. Sempre fora
reverenciada como a Cidade do Templo, um centro espiritual da terra, mas agora estava associada também
com o Profeta, o Homem Perfeito, cujo voo místico [al-isra-’] reforçara a ligação entre dois lugares santos:
em sua pessoa Maomé transportara, por assim dizer, a santidade primordial de Meca para a Remota
Mesquita de Jerusalém. A presença do Homem arquetípico, que fornecera um novo elo entre o céu e a
terra, fez crescer a santidade de Jerusalém, como fizera com a de Meca e Medina. A história da mi‘ra-j de
Maomé deixou isso bem claro. Nessa época os muçulmanos começavam a ver a vida do Profeta como uma
teofania. Ele não era divino, naturalmente, porém sua trajetória constituía um a-yah, um símbolo da
atividade de Deus no mundo e da total entrega humana a Alá. Durante os séculos VIII e IX os estudiosos
passaram a compilar as coletâneas de máximas [ah. a-dīth] e práticas (suna) de Maomé — base da Lei
Islâmica [shar‘ah] e da vida cotidiana dos fiéis. A suna os ensinava a imitar a maneira como o Profeta falava,
comia, banhava-se, amava e adorava a Deus para que nos mínimos detalhes de sua existência pudessem
participar do isla-m perfeito. A repetição simbólica os unia ao protótipo eterno: Maomé, representante da
humanidade desejada por Deus.
Poucas histórias da vida de Maomé demonstravam tão eloquentemente sua entrega a Deus como a mi‘ra-j
do H. aram ao céu supremo. Para os devotos ela era uma imagem arquetípica do retorno à fonte da
existência que todos os seres humanos deviam realizar. Assim, os islamitas que iam orar em Jerusalém
desenvolveram uma forma de reproduzir simbolicamente as circunstâncias exteriores da isra-’ e da mi‘ra-j para
participar do voo místico do Profeta. Esperavam desse modo imitar em algum grau sua disposição interior
de entregar-se totalmente. Sua nova prática não diferia muito das procissões rituais dos cristãos, que seguiam
os passos de Jesus por Jerusalém. Nos séculos VIII e IX — não sabemos exatamente quando — começaram a
surgir pequenos santuários e oratórios no H. aram (ver mapa na p. 307). Ao norte da Cúpula do Rochedo
situavam-se a Cúpula do Profeta e a Estação de Gabriel.3 Esses pequenos templos assinalavam os lugares
onde Maomé e o anjo rezaram com os outros profetas antes de a escada de ouro [al-mi‘ra-j] erguer-se diante
deles. Perto dali ficava a Cúpula da Mi‘rāj, onde Maomé iniciou sua ascensão ao divino Trono. Os
muçulmanos gostavam também de rezar na porta sul do H. aram, a atual Porta do Profeta, pela qual
Gabriel e Maomé teriam entrado na cidade, o anjo dissipando a escuridão com uma luz intensa como o sol.
Depois se dirigiam ao ângulo sudoeste do H. aram, onde Burāq, o corcel celestial, fora amarrado ao chegar
de Meca.
O nobre santuário
Al-Ḥaram Al-Sharif

1. Cúpula do Rochedo 7. “Cátedra” ou “Escabelo” de Salomão 17. Local onde Gabriel amarrou al-Buraq
1a. Porta do Paraíso 8. Porta do Profeta 18. Oratório de Zacarias (mencionado pela primeira vez no século XI)
1b. Porta do Anjo Israfil 9. Porta do Arrependimento 19. Oratório de Davi (mencionado pela primeira vez no século XI)
1c. Porta do Anjo Gabriel 10. Oratório de Maria e Berço de Jesus 20. Kanisat Mariam (Igreja de Maria)
1d. Porta da Mesquita de
11. Porta da Misericórdia (“Porta Dourada”)
Al-Aqsa
1e. Piso de pedra negra 12. Porta das Tribos
1f. A Caverna 13. Porta da Divina Presença
2. Mesquita de Al-Aqsa 14. Porta de Davi
3. Cúpula da Corrente 15. Porta da Remissão
4. O Tesouro 16. Oratório de Zacarias (mencionado no século IX)
5. Cúpula do Profeta
6. Cúpula da Ascensão do Profeta

Outros santuários construídos no H. aram lembravam a presença de outros profetas, e nisso também
podemos ver a influência dos sufis. Os peregrinos muçulmanos aprenderam a honrar os homens e mulheres
santos que viveram, oraram e sofreram em Jerusalém. A Cúpula da Corrente, a leste da Cúpula do Rochedo,
era tida como o local onde o rei Davi julgara os Filhos de Israel, utilizando uma corrente de luz que
possuía o poder de desmascarar os mentirosos. Na extremidade norte da esplanada situava-se a Cátedra de
Salomão, onde o soberano rezara depois de concluir a construção do Templo. Algumas portas do H . aram
também estavam relacionadas com a história judaica: os israelitas transpuseram a Porta da Divina Presciência
[Bab al-S. akina] ao carregar a Arca e no Yom Kippur oraram, pedindo perdão, junto à Porta do
Arrependimento [Bab Hitta]. Entretanto, Jerusalém era também a cidade de Jesus, e o Alcorão contém várias
histórias sobre seu nascimento e sua infância. Conta que, quando Maria estava grávida, Zacarias, o pai de
João Batista, cuidou dela e o alimento lhes foi dado miraculosamente. Que, ainda no berço, Jesus falou
prodigiosamente — um primeiro a-yah de sua condição de profeta.4 Agora os maometanos que visitavam o
H. aram rezavam no Oráculo de Zakariyya, no ângulo nordeste da esplanada, e nos dois santuários
subterrâneos: o Oratório de Maria [Mih. rāb Mariam] e o Berço de Jesus [Mahd Isa]. Por fim contemplavam
o vale do Hinom [Wādi Jahannum] e o monte das Oliveiras, onde ocorreriam o Juízo Final e a
Ressurreição. Chamavam a “Porta Dourada”, no muro oriental do H. aram, de Porta da Misericórdia [Bab
al-Rahma]. Essa seria a linha divisória entre os abençoados e os malditos, mencionada no Alcorão:5 após o
Juízo o H. aram seria o paraíso, e o vale do Hinom, o inferno. Nas salas situadas sobre a porta os sufis
instalaram um convento e uma mesquita, onde podiam meditar sobre o fim que se aproximava.
O califa Hārūn al-Rashīd (786-809) foi o primeiro governante Abássida que não se sentiu compelido a
visitar Jerusalém, embora passasse várias vezes pela Síria ao retornar de sua peregrinação a Meca. Os
Abássidas começavam a libertar-se da cidade que fora tão importante para os odiados Omíadas. A corte de
Hārūn em Bagdá tornou-se legendária por seu esplendor e abrigou uma grande florescência cultural. Mas na
verdade já se iniciara o declínio do califado: al-Rashīd não conseguiu impor plenamente sua autoridade fora
do Iraque, e alguns chefes locais passaram a estabelecer dinastias em outros pontos do Império. Geralmente
governavam em nome do califa, porém de fato eram independentes. Nessa época a decadência do governo
central afetou a economia da Palestina, que prosperara sob os Omíadas e agora via os Abássidas exaurirem
suas riquezas e seus recursos. Como se não bastasse, boa parte de sua população sucumbiu, vítima de uma
peste, e os beduínos viviam saqueando suas cidades e aldeias e travando guerras tribais em seu território. No
tempo dos Omíadas os beduínos haviam lutado pelo califado; agora se tornavam, cada vez mais, o flagelo do
país. Nesse clima de intranquilidade evidenciou-se pela primeira vez a tensão entre os islamitas e os cristãos
de Jerusalém. Os beduínos atacavam os mosteiros da Judeia, e os cristãos da Colina Ocidental perceberam
que sua riqueza começava a incomodar os maometanos pobres. Suas igrejas denotavam opulência, e em
tempos de penúria os muçulmanos se enfureciam com as histórias de seus tesouros.
Figura distante e impopular para os jerosolimitas, para os cristãos da Europa Ocidental Hārūn al-Rashīd
era uma personagem benigna que reconhecera o valor de seu imperador. No Natal de 800, o papa Leão III
passou a Carlos, rei dos francos, a coroa do Sacro Império Romano. Os monges de Jerusalém compareceram
à cerimônia de coroação. Os bizantinos, apavorados com a ideia de um bárbaro analfabeto assumir a púrpura
imperial, recusaram-se a reconhecer a elevação de Carlos, que teve de procurar aliados mais longe e, como
seu pai, aproximou-se de Bagdá. Os ocidentais exultaram por mais uma vez ter um imperador: parecia que
as trevas que desceram sobre a Europa após a derrocada de Roma finalmente começavam a se dissipar.
Chamaram o soberano de Carlos Magno e o viam como o rei de um novo Povo Eleito. Sua capital, em
Aachen, seria uma Nova Jerusalém, e seu trono reproduziria o de Salomão. Procurando uma nova identidade
ocidental, os europeus instintivamente se voltaram para a Cidade Santa, que desde a descoberta da Tumba
de Cristo estimulava-os a realizar uma longa e penosa peregrinação. Carlos Magno já havia trocado presentes
com al-Rashīd, e o patriarca de Jerusalém o brindara com relíquias e as chaves da Anástasis. Provavelmente
o califa estava feliz com seu novo aliado estrangeiro, pois lhe permitiu construir um hospital diante da
Anástasis, bem como uma igreja e uma esplêndida biblioteca. No vale do Cedron o imperador resolveu
erguer um edifício contendo doze quartos para peregrinos e cercado de campos, vinhedos e hortas. Podia-se
dizer que seu império estava arraigado no centro do mundo, já que tinha uma base em Jerusalém.
Na verdade seu império não sobreviveu a ele, porém os europeus nunca esqueceram a breve renascença que
conheceram sob seu governo, nem seus laços com Jerusalém. Segundo alguns historiadores e cronistas, o
califa se impressionou de tal modo com Carlos Magno que se dispôs a entregar-lhe toda a Terra Santa; 6
segundo outros, confiou-lhe os cristãos de Jerusalém. De qualquer modo, os ocidentais acreditavam que, se
não conseguira dar a Palestina a seu imperador, al-Rashīd o tornara proprietário da Anástasis, e, portanto,
esse lugar sagrado lhes pertencia por direito.7 Essa convicção emergiria perniciosamente trezentos anos depois,
na época das Cruzadas, quando a Europa conheceu um renascimento mais duradouro. Contudo, talvez
expressem alguns desses sonhos imperiais os monges, padres e freiras que partiram para Jerusalém a fim de
administrar os novos estabelecimentos de Carlos Magno. Em 807, gregos e latinos se engalfinharam na
basílica da Natividade. Ao longo do tempo os cristãos do Oriente e os do Ocidente desenvolveram
interpretações muito diversas de sua religião, e sua instintiva aversão recíproca gerou tal explosão de violência
num dos lugares mais santos da cristandade, assinalando o início de um longo e vergonhoso antagonismo em
Jerusalém.
Para os muçulmanos os novos edifícios latinos na Colina Ocidental apenas enfatizavam o poderio e a
riqueza crescentes dos cristãos de Jerusalém. Seu califa não parecia interessado na Cidade Santa, ao passo que
os reis cristãos não poupavam despesas para ter ali uma base sólida. Os jacobitas, membros de uma seita
monofisista síria, também construíram, bem ao norte do H. aram, um mosteiro dedicado a Maria Madalena.
A Palestina vivia anos sombrios. Uma guerra civil entre os dois filhos de al-Rashīd que disputavam a
sucessão estendeu-se de 809 a 813. Quando terminou, com a ascensão de al-Mamun ao califado, Jerusalém
sofreu os efeitos de mais um terremoto, que danificou seriamente a Rotunda da Anástasis, e seus habitantes
passaram fome em função de uma praga de gafanhotos que devastou os campos vizinhos. Os maometanos,
que residiam na parte mais insalubre da cidade, tiveram de abandonar suas casas por algumas semanas. Ao
retornar, constataram que o patriarca Tomás aproveitara a oportunidade para restaurar a Rotunda da
Anástasis, que agora era quase tão grande quanto a Cúpula do Rochedo. Furiosos, queixaram-se ao
comandante imperial, alegando que os cristãos infringiram a lei islâmica, segundo a qual nenhum santuário
das dhimmis podia superar em altura ou tamanho qualquer mesquita ou outro prédio sagrado da ummah.
Tratava-se de mais uma situação delicada, o tipo de problema que se repetiria com frequência em
Jerusalém. Fazia muito tempo que a cidade usava a construção como uma arma ideológica, que desde a
época de Adriano constituía um meio de apagar a lembrança de ocupantes anteriores. Agora as comunidades
locais recorriam a ela para expressar sua hostilidade recíproca. Os muçulmanos sempre se irritaram com as
igrejas magníficas que os cristãos ergueram na bayt al-maqdis, mas suportaram melhor essa ostentação na
época dos Omíadas, quando os califas despejavam dinheiro na Jerusalém islâmica e no país como um todo.
Agora que estavam empobrecidos e se sentiam abandonados pelos califas, as proporções da Anástasis lhes
pareciam inadmissíveis. O Islã entrara na Palestina como um credo confiante, mas sua atual insegurança
transformava seus edifícios religiosos, que antes representavam a transcendência, em símbolos de sua
identidade ameaçada. É bem possível que, ao ampliar a Rotunda, os cristãos quisessem afirmar agressivamente
seu poder e sua posição na cidade. Ainda que conquistados pelo Islã, não pretendiam manter-se por muito
tempo numa situação de dependência e inferioridade.
As duas partes chegaram por fim a um acordo. O patriarca conseguiu evitar uma derrota, desafiando seus
acusadores a provarem que a antiga Rotunda era menor que a nova. Um muçulmano lhe sugeriu essa
artimanha, garantindo para sua família uma pensão que o patriarcado agradecido pagaria durante cinquenta
anos. O califa al-Mamūn acalmou seus súditos com novas obras no H. aram: construiu as portas leste e
norte da esplanada e reformou a Cúpula do Rochedo. Também aproveitou a ocasião para retirar da inscrição
principal o nome do Omíada ‘Abd al-Malik e substituí-lo pelo seu, mas não lhe ocorreu alterar a data. Em
832, o califa cunhou novas moedas com os termos “al-Quds”, “a Santa”, nome que os muçulmanos agora
davam a Jerusalém.
Os cristãos, porém, continuavam utilizando seus símbolos religiosos para espicaçar os islamitas. Um texto
datado de inícios do século IX contém a primeira descrição da cerimônia do Fogo Santo, que se realizava
anualmente na Anástasis na véspera do domingo de Páscoa. As multidões de fiéis se reuniam na Rotunda e
no Martyrium em meio à mais completa escuridão. Postado atrás da tumba, o patriarca recitava as preces
vespertinas habituais. Depois uma chama branca iluminava de repente o santuário, como se tivesse brotado
do céu. Os devotos, que até esse momento aguardavam num silêncio carregado de tensão e expectativa,
promoviam uma ruidosa explosão de júbilo. Declamavam textos sacros a plenos pulmões, brandiam seus
crucifixos e gritavam de alegria. O patriarca entregava a chama primeiramente ao governador muçulmano,
que sempre comparecia à solenidade, e em seguida aos fiéis, para que acendessem suas velas. Por fim a
multidão voltava para suas casas, carregando o fogo santo e bradando pelas ruas: “Correi para a religião da
Cruz!”. Parece que incomodavam muito os maometanos, nossa principal fonte de informação sobre a
cerimônia nesse estágio. Todos os anos o governador tinha de enviar um relatório ao califa, e em 947 as
autoridades de Bagdá tentaram acabar com o que chamaram de “ritual de magia”, reprovando o patriarca e
afirmando que “enchestes a Síria inteira com vossa religião cristã e destruístes nossos costumes”.8 Os islamitas
diziam que o aparente “milagre” não passava de um truque sórdido, e cada qual tinha uma teoria sobre a
maneira como se produzia, mas não conseguiam convencer a si mesmos. Apavoravam-se com a alegria
incontida da multidão, cujas “abominações provocam arrepios de horror”, segundo relata Mūjīr ad-Dīn.9
Nada se comparava ao sóbrio culto islâmico, e naquelas poucas horas tumultuosas a cerimônia como que
bania de Jerusalém a presença dos muçulmanos de tal modo que alimentava seu temor. Todos os anos os
cristãos pareciam provar a superioridade de sua fé, e os maometanos não conseguiam ignorar essa
demonstração.
Com o declínio dos Abássidas as autoridades imperiais encontravam mais e mais dificuldades para manter a
ordem na Palestina. Uma revolta de camponeses liderados por Tamim Abu Harb pôs em fuga, em 841,
todos os habitantes de Jerusalém — judeus, cristãos e muçulmanos. Os rebeldes, que pretendiam restaurar o
governo dos Omíadas, saquearam a cidade, atacaram mesquitas e igrejas e só não destruíram totalmente a
Anástasis porque receberam uma generosa propina do patriarca. Foi, portanto, um alívio quando o
comandante turco Ah. mad Ibn Tul ūn assumiu o poder no Egito, em 868, e ali instaurou um Estado
independente, que controlava também a Síria e a Palestina. Restabelecidas a lei e a ordem, a economia
cresceu e os negócios prosperaram. Ibn Tul ūn foi particularmente bondoso com as dhimmis. Designou um
governador cristão para Jerusalém e reformou as igrejas arruinadas. Também permitiu que uma nova seita
judaica se instalasse na Cidade Santa.
Por volta de 880, Daniel al-Qumusi emigrou de Khorassan para Jerusalém, levando consigo um pequeno
grupo. Eram membros da obscura seita dos caraítas, judeus que rejeitavam o Talmude e baseavam sua vida
unicamente na Bíblia. Contudo, chegando a seu destino, Daniel conferiu ao caraísmo uma dimensão
messiânica inteiramente nova. Na Palestina encontrou documentos pertencentes à seita de Qumran e recém-
desenterrados pelo cão de um beduíno. Esses manuscritos do mar Morto, datados do século IX, convenceram-
no de que o exílio dos judeus logo terminaria. Se deixassem suas casas confortáveis na Diáspora e se
instalassem em Jerusalém, eles apressariam a vinda do Messias. Cristãos e muçulmanos de todas as partes do
mundo dirigiam-se para a Cidade Santa. Por que os judeus não faziam a mesma coisa? Cada comunidade da
Diáspora devia mandar ao menos cinco de seus membros para reforçar a presença judaica em Jerusalém. Sahl
Ibn Masliah, discípulo de Daniel, pintou um retrato pungente da cidade ansiando por seus verdadeiros filhos.
Disse que negligenciá-la equivalia praticamente a abandonar o próprio Deus: “Rumai para a Cidade Santa e
reuni-vos com vossos irmãos”, pediu em seus textos e cartas, “pois no momento sois uma nação que não
almeja o Pai que está nos céus”.10
A propaganda de Daniel e Sahl funcionou. Os caraítas começaram a chegar a Jerusalém e receberam de
Ibn Tulūn permissão para criar um bairro exclusivo, na encosta oriental do Ofel. Já que não observavam os
preceitos talmúdicos referentes a alimentação e pureza, não podiam conviver com os “rabinistas”, como
chamavam a maioria dos judeus que aceitavam a autoridade dos rabinos. Praticando um ascetismo incomum
em sua religião, vestiam-se de serapilheira e abstinham-se de carne. No monte das Oliveiras construíram uma
fábrica de queijo. Durante séculos os judeus choraram por seu Templo arruinado no nono dia do mês de
Av, mas os caraítas fizeram dessa lamentação um estilo de vida. Organizavam turnos para orar continuamente
junto às portas da cidade, lamentando a “desolação” de Jerusalém em hebraico, persa e árabe. Acreditavam
que as preces dos Pranteadores de Sião, como eram chamados, obrigariam Deus a enviar o Messias e
reconstruir sua Cidade Santa só para os judeus. Os rabinistas desaprovavam esses rituais. Desconfiavam muito
de todas as formas de messianismo, que várias vezes causaram tragédia e morte em seu meio. Acreditavam
que Deus mandaria a Redenção quando bem lhe aprouvesse e que tentar apressá-la constituía blasfêmia.
Alguns rabinos chegaram a proibi-los de realizar a aliyah a Jerusalém na esperança de trazer o Messias.
O governo dos Tulúnidas chegou ao fim em 904, quando os Abássidas recuperaram o controle da
Palestina. Não conseguiram mantê-lo por muito tempo, contudo: em 935, Muh. ammad Ibn Tugh, um turco
da Ásia central, apoderou-se do Egito, da Síria e da Palestina, governando teoricamente em nome do califa
de Bagdá, mas atuando na prática com total autonomia. Tugh e seus sucessores assumiram o título asiático
de realeza ikhshid. Outras dinastias ascenderam ao poder em outras partes do Império e em suas lutas
incessantes muitas vezes transformaram a Palestina em campo de batalha. Para piorar a situação os
imperadores gregos de Bizâncio aproveitaram a manifesta desordem nos domínios maometanos para declarar
guerra santa ao Islã. Os bizantinos recobraram, no decorrer do século X, territórios na Cilícia, em Tarso e
em Chipre, visando claramente reconquistar Jerusalém para a verdadeira fé.
Suas vitórias contribuíram inevitavelmente para deteriorar ainda mais as relações entre jerosolimitas
muçulmanos e cristãos. Os muçulmanos geralmente aceitavam a maioria cristã em al-Quds. Apesar de
eventuais confrontos e do constante mal-estar provocado por questões como a cerimônia do Fogo Santo,
reconheciam que os cristãos tinham direito à cidade e sempre estariam ali presentes. No auge da guerra com
Bizâncio o ikhshid escreveu ao imperador lembrando-lhe que Jerusalém era santa para as duas crenças.
É a terra sagrada, na qual se encontram a mesquita de al-Aqsā e o patriarca cristão. É o centro de
peregrinação de judeus e cristãos; é o lugar onde nasceram o Messias e sua mãe, e onde estão os Sepulcros
de ambos.11
Os maometanos participavam secularmente de festas cristãs. Nas Encênias, celebravam o início da vindima;
no dia de são Jorge lançavam novas sementes e no de santa Bárbara festejavam o começo da estação chuvosa.
Sabiam que os cristãos estavam ali para ficar e aceitavam esse fato. Quando os gregos declararam sua guerra
santa e se passou a falar da libertação de Jerusalém em termos belicosos, contudo, a tensão se tornou
insuportável. Os cristãos foram atacados em 938 durante a procissão do Domingo de Ramos e os islamitas
incendiaram as portas do Martyrium. A Anástasis e a capela do Gólgota sofreram graves danos. Em 966,
depois de uma nova série de vitórias bizantinas, o patriarca João IV pediu ao imperador que apressasse a
reconquista de Jerusalém. Imediatamente muçulmanos e judeus atacaram a Anástasis, atearam fogo ao teto do
Martyrium e saquearam a basílica da Santa Sião. O patriarca foi arrancado do barril de óleo onde se
escondera durante o tumulto e queimado na fogueira.
Na tentativa de evitar essas hostilidades, o ikhshid enviara tropas do Cairo para proteger João, tão logo
soube de seu insensato apelo ao soberano bizantino. Depois pediu desculpas ao imperador pelos estragos
feitos nas igrejas e ofereceu-se para reconstruí-las a suas próprias custas. O monarca recusou a oferta:
reergueria a Cidade Santa sozinho — com a espada. Criara-se um círculo vicioso: as vitórias gregas
provocavam represálias contra os cristãos, e essa “perseguição” intensificava o esforço de guerra dos
bizantinos.12 Os maometanos naturalmente adotaram uma atitude defensiva com relação a al-Quds: não
imaginavam que, no caso de uma vitória grega, os cristãos fossem tão magnânimos com seus habitantes
quanto Omar. Pela primeira vez começaram a enxergar além do H . aram e construíram uma nova mesquita
na Colina Ocidental, dedicando-a ao califa Omar. Esse foi seu primeiro edifício na Jerusalém cristã. Situado
provocadoramente perto da Anástasis, lembrava aos cristãos quem eram os verdadeiros governantes de
Jerusalém e talvez fizesse os muçulmanos recordarem o comportamento cortês de Omar na Anástasis —
muito distinto do que vinham tendo em anos recentes.
O s ikhshids foram expulsos da Palestina primeiramente pela seita xiita dos carmatas e depois pelos xiitas
Fatímidas da Tunísia, que conquistaram Ramleh em maio de 970. Nos treze anos seguintes Fatímidas,
carmatas, beduínos e Abássidas devastaram o interior da Palestina numa série de campanhas pelo controle da
região. Por fim, em 983, os Fatímidas conseguiram impor seu califado, transferindo sua capital de Kairouan
para o Cairo. Uma paz conturbada estabeleceu-se no país. As tribos árabes rebelavam-se com frequência,
porém os judeus apoiaram incondicionalmente a nova dinastia. O califa firmou uma trégua com Bizâncio, e
começou-se a providenciar a restauração da Anástasis e do Martyrium, que desde 966 permanecia descoberto.
Essa trégua fortaleceu a posição dos cristãos, e a tensão diminuiu na cidade.
Todavia o mal-estar continuava latente. Quando elaborou sua descrição de Jerusalém, em 985, o geógrafo
Muqaddasī registrou o poder das dhimmis: “Em toda parte prevalecem os judeus e os cristãos”.13 Mais ricos
que os judeus e mais instruídos que os muçulmanos, os cristãos eram os mais privilegiados. Muqaddasī se
orgulhava muito de sua cidade, que abrigava a Cúpula do Rochedo, o edifício mais esplêndido do mundo
islâmico, e tinha um clima perfeito, mercados limpos e bem organizados, uvas enormes, habitantes que eram
paradigmas de virtude. Em al-Quds não havia um único bordel e tampouco ocorriam bebedeiras. O geógrafo
não pintou, porém, um quadro inteiramente luminoso. Os banhos públicos eram sujos, os alimentos caros, os
impostos escorchantes e os cristãos rudes. Preocupava-o sobretudo a decadência do estímulo intelectual. Até
então grandes estudiosos maometanos, como al-Shafi’i, fundador de uma das quatro escolas de jurisprudência
islâmica, visitavam a cidade com frequência, atraídos por sua santidade. Agora que os Fatímidas estavam no
poder, o número dos visitantes sunitas diminuíra compreensivelmente. Os novos califas criaram um centro de
estudo [da-r al-‘ilm] para propagar seus ideais xiitas: sonhavam conquistar todo o mundo islâmico e
provavelmente cerceavam o ensino público da suna. Ademais, lamenta Muqaddasī, colocaram guardas em cada
porta e impuseram restrições ao comércio. O pior de tudo, porém, era a falta de debate intelectual. Havia
poucos ulemás em Jerusalém: “Ninguém consulta os juristas [ fuqaha-’], e os eruditos não gozam de renome.
Tampouco as escolas são frequentadas, pois não há aulas”. 14 Na verdade a erudição não desaparecera
totalmente: os leitores do Alcorão possuíam seus círculos, a escola de lei Hanīfah mantinha um grupo de
estudo na mesquita de al-Aqsā e os sufistas se reuniam em suas hospedarias [khawa-niq]. Esses estudiosos, no
entanto, tendiam a ser conservadores e defensivos, adotando a interpretação mais literal do Alcorão,
possivelmente para reagir contra o que o geógrafo chama de “costumes bizarros” dos xiitas.15 Muqaddasī
viajava muito e em sua cidade sentia falta da troca de ideias que constituía a norma em outras partes do
mundo islâmico.
Em outubro de 996, o califa al-‘Aziz morreu no Cairo, e o poder passou a seu filho al-Hākim. Piedoso e
devoto, apaixonadamente dedicado ao ideal xiita de justiça social, o novo governante era, porém, um homem
perturbado, sujeito a acessos de furioso fanatismo e crueldade. Sua mãe era cristã, e provavelmente muitos de
seus problemas se deviam a um conflito de identidade. A princípio sua evidente simpatia pelos cristãos
pareceu muito promissora. Al-Hākim designou seu tio Orestes patriarca de Jerusalém e mostrou-se desejoso
de estabelecer laços pessoais com a comunidade local. Em 1001 concluiu mais uma trégua com o imperador
de Bizâncio, Basílio II, causando profunda impressão em seus contemporâneos. O Islã e a cristandade
pareciam prestes a inaugurar uma nova era de amizade e paz.
De repente, porém, o califa ordenou em 1003 a demolição da igreja de São Marcos, em Fustat, que,
alegou, fora construída sem autorização, infringindo claramente a lei islâmica. Em seu lugar ergueu a
mesquita de al-Rashida, ampliando-a de tal forma durante as obras que acabou por estendê-la aos cemitérios
judaico e cristão. Seguiram-se o confisco de propriedades de cristãos no Egito, a queima de cruzes e a
construção de pequenas mesquitas sobre antigas igrejas. Notícias alarmantes, procedentes da Palestina, davam
conta de que os cristãos e os bizantinos estavam por trás de recentes ataques realizados pelos beduínos e que
havia o risco de revolução total. A situação culminou na Páscoa, quando al-Hākim viu um grupo de coptas
partindo para Jerusalém “com grande e ofensiva ostentação”. Pareciam h. ajjs a caminho de Meca. O califa
perguntou a Qutekin al-Adudi, propagandista xiita, o que estava acontecendo; soube então que a Anástasis
possuía imensa riqueza e que na Páscoa recebia numerosos cristãos da mais alta posição. Até os imperadores
bizantinos visitavam Jerusalém, incógnitos: “Levam consigo enormes quantidades de prata, vestes, tecidos e
tapeçarias [...] e ao longo de muito tempo formou-se uma considerável coleção de objetos extremamente
valiosos”.16 O episódio revela a inveja reprimida, o medo dos poderosos contatos dos cristãos no exterior e a
preocupação com o desafio que representavam para a fé islâmica. E o pior, al-Adudi explicou, era a
cerimônia do Fogo Santo, um embuste “que impressiona profundamente os espíritos [dos muçulmanos] e
lança confusão em seus corações”.17
O relato certamente lançou pânico no já confuso coração de al-Hākim. Em setembro de 1009, o califa
ordenou a destruição total da Anástasis e do Martyrium de Constantino. Nem mesmo os alicerces das igrejas
e capelas deveriam permanecer. Yarukh, o governador Fatímida de Ramleh, executou a ordem com terrível
precisão. Todos os edifícios do Gólgota desapareceram, restando apenas algumas partes da Rotunda, “cuja
demolição se revelou demasiado difícil”, conforme explica o historiador cristão Yahya Ibn Sa‘īd.18 Essas
partes sobreviveram e foram incorporadas à atual construção. Golpes de picareta e martelo despedaçaram a
tumba, seu santuário e a Rocha do Gólgota. O solo foi aplainado e todas as pedras carregadas para fora da
cidade, à exceção de um pequeno fragmento do sepulcro, afirma Yahya. Esse gesto, totalmente
incaracterístico de um governante muçulmano, constrangeu até mesmo os correligionários do califa. Seguiu-se
uma nova legislação contendo medidas concebidas para separar as dhimmis da ummah e forçar sua conversão
ao islamismo. Os cristãos tinham de usar pesadas cruzes penduradas no pescoço, e os judeus um grande
bloco de madeira. Em 1011, os judeus de Fustat que acompanhavam um cortejo fúnebre foram apedrejados.
Em Jerusalém profanou-se a sinagoga e queimaram-se seus pergaminhos. Muitas dhimmis foram coagidas a
aceitar o Alcorão; outras resistiram firmemente, embora alguns cristãos optassem por cruzar a fronteira e
refugiar-se em Bizâncio.
As próximas vítimas da demência do califa foram os maometanos. Em 1016, al-Hākim declarou-se
encarnação da divindade; afirmou que viera ao mundo para trazer uma nova revelação à raça humana e
substituiu o nome de Deus pelo seu nas orações da sexta-feira. Com isso naturalmente apavorou toda a
comunidade islâmica. Houve tumultos no Cairo, e, como inevitavelmente se enfureceram com essa blasfêmia
mais que os cristãos, os muçulmanos atraíram a cólera do califa. Em 1017, al-Hākim revogou os decretos
contra judeus e cristãos e restituiu a estes últimos os bens confiscados. Em contrapartida proibiu a h. ajj e o
jejum do Ramadã, estabelecendo terríveis torturas para punir os infratores. Parecia deslizar por entre esses
fatos violentos como num sonho: durante os tumultos vagava pelas ruas do Cairo, sem que a multidão
enfurecida o molestasse ou sequer percebesse sua presença. Uma noite, em 1021, simplesmente deixou a
cidade, ganhou o deserto e desapareceu para sempre.
Sua loucura arruinou a Jerusalém dos cristãos. Era preciso construir um novo santuário sobre os restos da
tumba e da Rocha do Gólgota. Em 1023, Sitt al-Mulk, a irmã de al-Hākim, confiou ao patriarca de
Jerusalém, Nicéforo, a missão de ir a Constantinopla relatar os fatos. No ano seguinte, porém, os beduínos
da tribo Jarrah se rebelaram novamente contra os Fatímidas; assumiram o controle das estradas e
sistematicamente devastaram os campos da Palestina. Jerusalém enfrentava dificuldades tão sérias que não
permitiam sequer pensar em construir alguma coisa. Particularmente desesperadora era a situação da
comunidade judaica, que registrara ligeiro crescimento durante o século X, quando, fugindo dos tumultos que
na década de 940 eclodiram em Bagdá e no norte da África, muitos judeus se instalaram na Palestina. A
maioria, porém, preferiu estabelecer-se em Ramleh e Tiberíades, pois Jerusalém, escreveu um deles, é uma
cidade “maldita”, “suas provisões vêm de longe e seus meios de sobrevivência são limitados. Muitos chegam
ali ricos e acabam na miséria, deprimidos”.19 Os cristãos exerciam as profissões mais rentáveis e prestigiosas,
enquanto os judeus atuavam como banqueiros, tintureiros e curtidores,20 encontrando pouco trabalho. Não
obstante todos esses problemas, ao longo do século X os judeus transferiram seu corpo governamental de
Tiberíades para Jerusalém, que, assim, se tornou mais uma vez a capital administrativa de sua comunidade na
Palestina. Também continuaram apoiando fielmente os Fatímidas, apesar dos sofrimentos que al-H ākim lhes
infligira. Todavia, a única recompensa que receberam por sua lealdade durante a rebelião dos beduínos, em
1024, foi uma tributação impiedosa. Muitos foram presos porque não conseguiam pagar suas dívidas. Muitos
morreram de fome, na mais completa miséria. Muitos andavam “famintos, nus, tristes, pobres”, escreveu
Solomon Ha-Kohn, o gaon, ou líder, do conselho governamental. “Em casa nada tinham, nem mesmo uma
peça de roupa ou um utensílio doméstico.”21 O sofrimento parecia não ter fim. Beduínos procedentes do
norte invadiram a Palestina, e só em 1029 o califa al-Zahīr conseguiu recuperar o controle do país. Para
fortalecer sua posição, firmou um novo tratado com Bizâncio, prometendo que deixaria os cristãos
reconstruírem a Anástasis. O primeiro ano de paz que a Palestina conheceu ao longo de quase um século foi
o de 1030, quando al-Dizbiri, o governador turco, começou a restabelecer a ordem no país despedaçado.
Os muçulmanos também tinham o que reconstruir em Jerusalém. A Cúpula do Rochedo ruíra em 1017, e,
talvez para ajudar a coletar fundos, o erudito al-Wasiti publicou a primeira antologia de Tradições de
Louvor a Jerusalém [ fada-’il al-quds], reunindo num único volume as várias máximas [ah. a-dth] atribuídas ao
Profeta, a califas e sábios que circulavam pelo mundo muçulmano desde a época dos Omíadas. A Cidade
Santa vivera uma fase de grande tensão, e a recente perseguição de al-Hākim colocara as três religiões na
defensiva, porém a coletânea de al-Wasiti era fiel ao velho ideal islâmico de integração. Muitas das máximas
citadas provinham dos isra-’īliya-t; outras lembravam a presença do profeta Jesus em al-Quds, que continuava
sendo sagrada para todos os filhos de Abraão e que, na imaginação dos autores, se fundira indissoluvelmente
com Meca e Medina, como demonstra esta h. adīth atribuída ao Profeta:

Meca é a cidade que Alá exaltou e santificou e criou e rodeou de anjos mil anos antes de criar qualquer
outra coisa na terra. Depois ele lhe acrescentou Medina e uniu Medina a Jerusalém e só mil anos depois
criou [o resto do mundo] num único gesto.22
No dia do Juízo Final o paraíso se estabeleceria em Jerusalém, e a Caaba e a Pedra Negra se deslocariam
de Meca para al-Quds, que era o destino de toda a humanidade.23 Na verdade, Meca e Jerusalém já estavam
materialmente ligadas no imaginário local. Dizia-se que durante o mês da h. ajj, na noite em que os
peregrinos a Meca faziam vigília na planície de ‘Arafat, a água do poço santo de Zamzam, perto da Caaba,
corria subterraneamente para a piscina de Siloé, onde os muçulmanos de Jerusalém realizavam uma festa
especial. A lenda expressa de forma pitoresca a convicção de que a santidade de Jerusalém derivava da
santidade primordial de Meca, a qual, no fim dos tempos, se transferiria para al-Quds por toda a eternidade.
Uma vez consumada essa integração, a terra seria um paraíso.
Os habitantes locais decerto achavam que as duas cidades partilhavam a mesma santidade. Foi
provavelmente no início do século XI que os maometanos impossibilitados de peregrinar a Meca se reuniam
em Jerusalém na época da h. ajj. Enquanto ocorria a vigília na planície de ‘Arafat, multidões de jerosolimitas
e de devotos procedentes do interior do país se reuniam na esplanada do H. aram e na mesquita de al-Aqsā
e, voltados para Meca, passavam a noite rezando em altas vozes como se estivessem com os peregrinos. No
Eid al-Adha, último dia da h. ajj, realizavam no H. aram o sacrifício habitual — também como se estivessem
em Meca. Havia h. ajjis que gostavam de incluir em seu roteiro uma piedosa visita [ziya-rah] a Jerusalém,
onde entravam trajando suas tradicionais vestes brancas e observando o requisito da pureza ritual. Essa
inovação contrariava alguns muçulmanos, pois, de acordo com determinadas tradições, o Profeta aconselhara
seus discípulos a não fazerem tal visita. No entanto, embora certos círculos desaprovassem algumas das mais
exuberantes expressões de devoção a al-Quds, geralmente se considerava Jerusalém uma das três cidades santas
do Islã. Maomé diz em sua h. adīth mais famosa: “Irás a três mesquitas apenas: à do H. aram [em Meca], à
minha [em Medina] e à de al-Aqsā”.
Pressionado pelo califa al-Zahīr, que tinha especial interesse no H . aram, o governador al-Dizbiri iniciou
imediatamente a restauração da Cúpula do Rochedo. As vigas de madeira colocadas nessa época para
sustentar a Cúpula estão lá até hoje. Infelizmente, porém, sobreveio um novo desastre. Em 3 de dezembro
de 1033, um terremoto de extrema violência sacudiu a Palestina. Por sorte ocorreu antes do pôr do sol, de
modo que muitas pessoas ainda não haviam se recolhido. Durante vários dias os jerosolimitas acamparam nas
colinas ao redor da cidade, com medo de entrar em suas casas. Tornou-se necessário elaborar um novo
programa de edificações. Era preciso reparar os muros de sustentação do H. aram, e al-Zahīr ordenou que
se começasse por erguer uma nova muralha, cujas obras se estenderam por mais de uma geração. O
terremoto causara muitos danos na mesquita de al-Aqsā, arrasando todas as quinze galerias ao norte da
cúpula. A reconstrução teve início imediato, e a nova mesquita estava pronta quando o viajante persa Nasir-
i-Khusraw visitou Jerusalém em 1047. Era agora bem mais estreita: uma espécie de nave com sete arcos
substituía as galerias arruinadas. Nasir descreveu com admiração os belos tapetes, o piso de mármore, as 280
colunas igualmente de mármore e o esplêndido trabalho em esmalte da cúpula.
Em meados do século XI, Jerusalém parecia ter renascido. O viajante persa estima que ali viviam cerca de
20 mil famílias, perfazendo uma população total de aproximadamente 100 mil almas. Impressionaram-no
muito os excelentes mercados e os prédios altos da cidade, que contava com artesãos exímios e oferecia
produtos abundantes e baratos. Cada profissão tinha seu próprio sūq. Nasir registrou ainda a existência de
um grande hospital, generosamente dotado, onde se ensinava medicina, e de duas hospedarias sufistas [khawa-
niq], além da mesquita onde esses místicos viviam e rezavam. No claustro vizinho ao muro norte do H.
aram, uma congregação de sufis construíra um oratório. Nasir, pensativo, percorreu os santuários e oratórios
da esplanada, indo de uma “estação” a outra, lembrando as preces e as lutas dos profetas. Imaginou Maomé
rezando antes de sua mi‘ra-j, levantando a mão sobre a Rocha, que se ergueu para ir a seu encontro e,
assim, originou a caverna. Visualizou também o rei Davi, pedindo perdão na Porta do Arrependimento.
Prostrou-se diante do Berço de Jesus e orou. Como nos lugares santos dos cristãos, os profetas deixaram
vestígios palpáveis por onde passaram. O viajante persa contemplou as marcas de Maria nas colunas de
mármore onde ela se agarrou durante seu trabalho de parto e — com certa cautela — anotou que a Rocha
guardava as pegadas de Abraão e Isaac.
Nasir teve a oportunidade de visitar a nova Anástasis, que fora concluída em 1048 com recursos doados
por Constantino IX Monômaco. Achou-a belíssima; não estando acostumado a ver arte figurativa em seus
próprios santuários, encantou-se principalmente com as pinturas e mosaicos que retratavam Jesus, os profetas
e o Juízo Final. O novo conjunto era muito diferente do que Constantino construíra. No lugar do
Martyrium havia apenas um terreno coberto de pedras, colunas quebradas e entulho. Aproveitando o que
restara da Rotunda demolida por al-Hākim, Monômaco ergueu a igreja ao redor da tumba e acrescentou-lhe
um andar superior e uma abside, unida à Rotunda por um grande arco (ver planta na p. 325). Ampliou o
átrio, que sempre existiu diante da Anástasis, para fazê-lo abranger os restos do Gólgota, no ângulo sudeste
da subterrânea Capela de Adão. Na parte do antigo batistério construiu capelas dedicadas a são João, à
Trindade e a são Tiago. E no lado do Gólgota ergueu capelas relacionadas com vários episódios da Paixão.
A Anástasis restaurada
Reconstruída pelo imperador Constantino IX, 1048

1. Patriarcado 8. Capela da Coroa de Espinhos


2. Rotunda da Anástasis 9. Capela da Partilha das Vestes
3. Edícula da Tumba 10. Cripta de Santa Helena
4. Átrio: o “Jardim Santo” 11. Calvário
5. Omphalos 12. Capela de Santa Maria
6. Santa Prisão 13. Batistério
7. Capela da Flagelação

Nasir não registrou nenhuma tensão por ocasião de sua visita. Entrou tranquilamente no santuário e
decerto se sentiu à vontade contemplando os retratos de profetas conhecidos, como Abraão, Isaac, Jacó e
Jesus. Os cristãos, no entanto, não haviam esquecido as agruras e as destruições que sofreram no decorrer do
século anterior e ainda se sentiam vulneráveis. Quando as novas muralhas da cidade foram construídas, em
1055, o governador lhes disse que teriam de financiar as obras na parte onde moravam. Como não tinham
dinheiro para isso, eles recorreram a Constantino IX, que rapidamente aproveitou a oportunidade de interferir
na vida da Cidade Santa. Depois de negociações com o califa, ficou acertado que o imperador providenciaria
o dinheiro para a nova muralha sob condição de que apenas os cristãos residissem naquela área. Assim, em
1063 os cristãos de Jerusalém tinham seu bairro exclusivo, limitado externamente pela muralha que se
estendia da Cidadela, na porta ocidental, até a porta setentrional. Internamente a fronteira acompanhava o
Cardo Maximus até a intersecção que reconduzia à Cidadela. Graças a Constantino IX, eles agora “não
tinham outro juiz ou senhor além do Patriarca”.24 Os bizantinos conseguiram conquistar uma espécie de
protetorado, um enclave cristão separado da cidade muçulmana e apoiado por uma potência estrangeira. Um
dos edifícios construídos no que agora se chamava “bairro do Patriarca” foi o hospital de São João, o
Esmoler, que nessa época os italianos de Amalfi ergueram no lugar do velho hospital de Carlos Magno. A
Europa ocidental tentava mais uma vez recuperar-se do caos da Idade das Trevas. Mercadores italianos
começaram a negociar com o Leste, e, como vieram a desempenhar um papel crucial no comércio dos
Fatímidas, os amalfitanos facilmente obtiveram permissão do califa para edificar um mosteiro beneditino com
acomodações para peregrinos de sua cidade.
Os armênios também acabavam de chegar a Jerusalém. Como os europeus, desde o século IV visitavam a
Cidade Santa, onde muitos deles se fixaram como monges e ascetas. Na década de 1030 o monge georgiano
Prochore construíra a nova igreja do monte Sião, ao mesmo tempo que erguia o mosteiro da Cruz, fora dos
muros da cidade. Cerca de quarenta anos depois os armênios adquiriram a igreja e a transformaram em sua
catedral. Dedicada a são Tiago (“Surp Hagop”, na Armênia), abrigava em seu principal santuário, o
Kilkhatter, a cabeça de Tiago, a “Coluna”, o apóstolo de Jesus que fora decapitado em Jerusalém por volta
do ano 42. Sob o altar-mor estava a tumba de Tiago, o Tzaddik, o primeiro “bispo” de Jerusalém, desde
longa data venerado no monte Sião pelos cristãos. Depois que se instalaram, os monges armênios
construíram pouco a pouco um convento para seu patriarca e a irmandade de São Tiago, que incluía padres,
bispos e diáconos. Ao longo dos séculos seus patriarcas pacientemente compraram terras e casas vizinhas aos
edifícios do convento e, assim, acabaram se tornando proprietários de uma área extensa e ininterrupta no
sudoeste da cidade. Seus compatriotas que peregrinavam a Jerusalém e ali decidiam estabelecer-se recebiam
uma casa no crescente bairro armênio, incorporando-se a uma comunidade leiga e permanente que sustentava
a irmandade. Passavam a ser chamados de kaghakatsi, habitantes de Jerusalém, e adotavam a cidade como sua.
Sua igreja paroquial era a capela dos Santos Arcanjos [Hristagabed], construída perto do centro do convento,
no local onde, acreditava-se, situara-se a casa de Anás, o sacerdote que ajudara Caifás a condenar Jesus à
morte. No átrio havia uma velha oliveira, à qual se imaginava que ataram Jesus. Paulatinamente os kaghakatsi
acabaram formando uma considerável comunidade independente. Os armênios eram monofisistas, mas, ao
contrário dos gregos ortodoxos e dos católicos latinos, não recebiam conversos, de modo que se mantiveram
etnicamente distintos. No final do século XIX existiam cerca de mil kaghakatsi, e seu bairro compreendia um
décimo de toda a Cidade Santa.
Mais e mais peregrinos chegaram a Jerusalém no decorrer do século XI. Provinham sobretudo da Europa
ocidental, onde os monges reformadores da abadia de Cluny, na Borgonha, promoviam a peregrinação como
uma forma de instruir os leigos nos verdadeiros valores cristãos. Segundo o cronista borgonhês Raoul Glaber,
no ano 1000 uma “incomensurável multidão” ganhou a estrada, tomando o rumo de Jerusalém: eram nobres
e plebeus procedentes da Itália, da Gália, da Hungria, da Alemanha e inspirados principalmente por ideias
apocalípticas.25 Antigas profecias formuladas no final do período romano diziam que um imperador do
Ocidente seria coroado em Jerusalém e ali enfrentaria o Anticristo antes do fim dos tempos. De acordo com
o Livro do Apocalipse essa batalha final ocorreria mil anos após a vitória de Cristo sobre Satanás;26 portanto
no ano 1000 os peregrinos se reuniram em Jerusalém para testemunhar a Segunda Vinda. Como os caraítas,
provavelmente acreditavam que sua presença na Cidade Santa obrigaria Deus a estabelecer na terra a Nova
Jerusalém e uma ordem melhor. O mundo não acabou, e os fiéis começaram a se perguntar se 1033, o
milésimo aniversário da crucifixão, não seria uma data mais adequada; naquele ano houve muita fome na
Europa, e, Glaber nos informa, muita gente imaginava que tal catástrofe anunciava o fim dos tempos.
Primeiro os camponeses, depois os membros das classes intermediárias da sociedade e finalmente os nobres
ricos começaram a “afluir para a Tumba do Salvador em Jerusalém”. Glaber estava convencido de que a
Cidade Santa nunca recebera tanta gente, e os peregrinos tinham a certeza de que tamanho afluxo
“pressagiava a vinda do miserável Anticristo, que indicaria o fim eminente do mundo”.27 Desesperados, os
cristãos da Europa ocidental lutavam para sair do longo período de barbárie e desordem e partir para
Jerusalém, um símbolo de salvação.
A grande peregrinação ocidental de 1064 foi muito diferente. Conduzidas por Arnold, bispo de Bamberg,
essas multidões de fiéis não viajaram em santa pobreza. A vida na Europa melhorara, e os poderosos alemães
ostentavam sua pompa e riqueza com orgulho — e imprudência. Os beduínos viviam à espreita, cientes de
que podiam encontrar moedas de ouro escondidas até mesmo nos mantos mais humildes. O esplendor da
peregrinação alemã equivalia a um convite: as tribos atacaram seus participantes, que morreram aos magotes
nas cercanias da Cidade Santa. A cada trinta anos, aproximadamente, realizava-se uma grande romaria de
europeus. Em 1099, ocorreu mais uma dessas expedições, cujos membros, porém, chegaram a Jerusalém
empunhando a espada, preparados não só para defender-se, como para lutar e matar.
Os judeus também faziam a aliyah à Cidade Santa e, como os cristãos, muitas vezes eram impelidos por
catástrofes em seu lugar de origem. Quando os nômades berberes invadiram Kairouan, na década de 1050,
judeus e muçulmanos partiram para a Palestina, fugindo à devastação; outros imigrantes deixaram para trás a
penúria e a fome que assolavam a Espanha. Alguns desses judeus ocidentais — ou “do Magreb”, como se
dizia — estabeleceram-se na Cidade Santa, porém as duras condições que ali encontraram os faziam sentir
saudade de sua terra, na outra extremidade do mundo islâmico. Em Jerusalém eram “devorados pelos
insolentes [...], destituídos, espoliados”, informa Joseph ha-Kohn. Como se não bastasse, ainda tinham de
suportar a presença de cristãos e muçulmanos, ouvir “o alarido da turba [cristã] de Edom” em suas
peregrinações e “a voz cinco vezes mendaz [do muezim] que nunca silencia”.28 Dependiam inteiramente das
esmolas de Fustat e Ramleh e passavam fome se nessas localidades ocorria qualquer praga ou seca.
Apesar de tantas agruras, os judeus não deixavam de peregrinar a Jerusalém, sobretudo no mês de Tishri,
quando celebravam a festa de Sucot, alguns vindo de lugares tão distantes como Khorassan. Haviam criado
rituais próprios para essa festa messiânica. Primeiramente peregrinos e residentes locais circundavam as
muralhas da cidade, orando nas portas do H. aram como nos velhos tempos. Depois escalavam o monte das
Oliveiras, entoando salmos, e lá no alto postavam-se “de frente para o Templo de Deus, o lugar da divina
Presença, sua força e o escabelo de seus pés”, escreveu o gaon Solomon ben Judah.29 Tais encontros eram
alegres, apesar de ocorrerem diante do monte do Templo, melancolicamente coberto de santuários islâmicos.
Os judeus se cumprimentavam calorosamente e abraçavam-se com emoção. Gostavam de reunir-se em torno
de uma grande pedra que, acreditavam, assinalava o lugar onde a Shekhinah repousara ao deixar a Cidade
Santa. Ali o gaon de Jerusalém pregava seu sermão anual. Infelizmente uma hostilidade sectária envenenava o
clima amistoso desse encontro: desenrolando a Torá, o gaon excomungava os caraítas, instalados na montanha
oposta à dos “rabinistas”. Quase sempre a cerimônia provocava discussões e até mesmo brigas, e o pacato
Solomon ben Judah resolveu aboli-la. As autoridades muçulmanas também insistiam no fim das excomunhões,
argumentando que “rabinistas” e caraítas tinham todo o direito de praticar sua fé como bem lhes aprouvesse.
O domínio dos Fatímidas foi uma faca de dois gumes para Jerusalém, cujos habitantes logo tiveram de
enfrentar um novo inimigo, procedente do norte. Por volta de 1055, tribos turcas recém-convertidas ao
islamismo sunita conquistaram o norte da Síria em nome do califa Abássida e da suna. Seus chefes
revelaram-se administradores competentes e ótimos soldados. Como a família Seldjúcida desempenhou um
papel fundamental em suas campanhas, esses turcomanos [Nobres Turcos] muitas vezes são chamados de
Seldjúcidas, embora nem todos pertencessem à mesma família. Em 1071, seu líder Alp Aslan rompeu as
linhas defensivas dos bizantinos em Manzikert, na Armênia, e logo os turcos ocuparam a maior parte da Ásia
Menor. Nesse meio-tempo, conduzindo a guerra santa contra os xiitas, Atsiz Ibn Abaq invadiu a Palestina,
conquistou Ramleh e sitiou Jerusalém. A cidade rendeu-se em junho de 1073, e a população se surpreendeu
com a moderação dos vencedores. Atsiz anistiou todos os habitantes locais e ordenou a seus homens que não
tocassem em nada. Temendo saques, designou guardas para protegerem as igrejas e mesquitas. Os turcos que
integravam a guarnição dos Fatímidas aderiram aos Seldjúcidas, enquanto seus colegas sudaneses e berberes
permaneceram em Jerusalém na condição de cidadãos comuns.
A ocupação turca representou o retorno à esfera sunita. Os estudiosos começaram a voltar para Jerusalém,
promovendo um renascimento da vida intelectual, reprimida sob os Fatímidas. A cidade prosperou. Em 1089
uma nova mesquita foi construída, e duas das quatro escolas de jurisprudência islâmica, a Shafi’i e a Hanafi,
fundaram estabelecimentos em Jerusalém. Os turcos reconstruíram a velha igreja que comemorava o
nascimento da Virgem Maria, junto à piscina de Betesda, e transformaram-na numa madrasah Shafi’i, sob a
liderança do xeique Nasr al-Maqdisī. Os estudos de h. adīth e fiqh (jurisprudência) voltaram a florescer: Mūjīr
ad-Dīn elaborou uma lista dos eminentes intelectuais que lecionaram e escreveram em al-Quds, incluindo
entre eles Abu al-Fath Nasr e al-Tartushi, o grande jurista de al-Andalus. Em 1095, o ilustre sunita Abu
Hamid al-Ghazzālī foi orar e meditar em Jerusalém; instalou-se no pequeno convento sobre a Porta da
Misericórdia, onde praticou exercícios sufistas e escreveu A revivescência das ciências religiosas, um tratado que
se tornaria essencial para a suna reformada, como veremos no capítulo 14. Mais ou menos na mesma época,
o espanhol Abu Bakr Ibn al-‘Arabi visitou al-Quds e achou-a tão estimulante que resolveu estender sua
estada por três anos. Impressionaram-no as duas escolas de jurisprudência, onde eruditos eminentes realizavam
palestras e seminários, utilizando métodos de debate desconhecidos em al-Andalus. Impressionaram-no
também os diálogos entre intelectuais islâmicos e as dhimmis, nos quais judeus, cristãos e muçulmanos
debatiam juntos muitos temas religiosos e espirituais.
Em 1077, os partidários dos Fatímidas rebelaram-se contra os turcos, enquanto Atsiz lutava no Egito. O
cádi prendeu na Cidadela todas as mulheres e crianças dos conquistadores e confiscou suas propriedades. Ao
retornar, Atsiz não teve piedade. Quando a cidade se rendeu, seus soldados massacraram cerca de 3 mil
habitantes, poupando apenas os que se refugiaram no H. aram. Os cristãos estavam seguros no bairro do
Patriarca. Os judeus, que sempre apoiaram os Fatímidas e talvez não contassem com a mesma proteção dos
Tulúnidas, definem o domínio turcomano como uma época catastrófica, em que ocorreram devastação e
ruína, queima de colheitas, destruição de plantações, saques e terrorismo. Nesse período, a Yeshiva de
Jerusalém se transferiu para Tiro, e importantes muçulmanos partidários dos Fatímidas também se viram
forçados a deixar o país. A maioria da população, no entanto, aparentemente se habituou a conviver com os
distúrbios. Ibn al-‘Arabi surpreendeu-se ao ver os jerosolimitas cuidarem de seus afazeres por ocasião de um
pequeno motim. Um rebelde se entrincheirou na Cidadela e, enquanto os arqueiros do governador o
alvejavam, os soldados, divididos em duas facções, puseram-se a lutar entre si. Se uma coisa dessa acontecesse
em al-Andalus, o caos se instalaria em toda a cidade, obrigando os comerciantes a fecharem as portas e
suspendendo a normalidade. Já na relativamente pequena al-Quds a vida continuou como sempre, para
espanto de Ibn al-‘Arabi:
Nenhum mercado fechou por causa desses distúrbios, nenhum cidadão participou da violência, nenhum
asceta deixou seu lugar na mesquita de al-Aqsā e nenhuma discussão se interrompeu.30
Nos dois séculos anteriores os jerosolimitas haviam passado por tantas desgraças que aprenderam a ver com
soberana indiferença as pequenas vicissitudes.
Apesar desses tumultos ocasionais, a cidade prosperou sob os turcomanos, tornando-se a mais importante da
Palestina. Ramleh nunca se recuperou inteiramente do terremoto de 1033, mas Jerusalém tinha agora novas
muralhas, edifícios esplendidamente restaurados e uma intensa vida cultural; além disso recebia todos os anos
milhares de peregrinos provenientes dos quatro cantos do mundo. Sem embargo, no momento em que Ibn
al-‘Arabi desfrutava suas amenidades, configurava-se uma catástrofe que nem mesmo os jerosolimitas
conseguiriam encarar com sua fleuma habitual. Os Fatímidas não haviam abandonado a Palestina, e com seu
apoio o califa xiita al-Afdal conquistou Jerusalém, em agosto de 1098, após um cerco de seis meses. Em
junho do ano seguinte, contudo, os cruzados europeus chegaram às colinas que rodeavam al-Quds. Ao ver a
dourada Cúpula do Rochedo dominando majestosamente a paisagem de sua Cidade Santa, choraram e
gritaram, divididos entre a alegria e a raiva. Depois acamparam junto às muralhas e, exultantes, segundo
informa o anônimo autor das Gesta Francorum, sitiaram Jerusalém.
13. AS CRUZADAS

APÓS A BATALHA DE MANZIKERT, em 1071, os bizantinos perderam quase toda a Ásia Menor para os
Seldjúcidas e constataram que o Islã estava praticamente à sua porta. O poderio dos turcomanos, contudo,
declinava, e o imperador Aleixo I Comneno acreditava que algumas campanhas vigorosas os aniquilariam para
sempre. No início de 1095, o monarca bizantino pediu ajuda militar ao papa Urbano II, esperando receber
alguns destacamentos dos mercenários normandos que já haviam lutado para ele. O pontífice, porém, tinha
planos mais ambiciosos. Dirigindo-se aos clérigos, aos cavaleiros e aos pobres da Europa no Concílio de
Clermont, realizado em novembro daquele mesmo ano, pregou uma guerra santa de libertação. Disse aos
cavaleiros que, em vez de lutar entre si nas absurdas disputas feudais que estavam despedaçando a Europa,
deviam partir para a Anatólia a fim de ajudar seus irmãos cristãos, que por mais de duas décadas sofriam o
jugo dos turcos muçulmanos; depois deviam marchar sobre Jerusalém e libertar a Tumba de Cristo do
domínio dos infiéis. Assim a Paz de Deus reinaria na Europa, e a Guerra de Deus assolaria o Oriente. Não
temos nenhum registro contemporâneo de suas palavras textuais, mas provavelmente Urbano via essa
expedição — que depois recebeu o nome de Primeira Cruzada — como uma peregrinação armada,
semelhante às três grandes multidões de fiéis que se dirigiram à Cidade Santa no decorrer do século XI. Até
então os peregrinos estavam proibidos de portar armas; agora o papa lhes entregava uma espada. No final de
seu discurso Urbano recebeu uma clamorosa ovação, sua imensa plateia gritando a uma só voz: “Deus hoc
vult!” [Deus o quer!].
A reação foi extraordinária, generalizada e imediata. Pregadores famosos difundiram a ideia, e na primavera
de 1096 cinco exércitos de aproximadamente 60 mil soldados tomaram o rumo de Jerusalém, seguidos por
hordas de camponeses e peregrinos que levaram suas famílias. A maioria morreu na perigosa viagem pela
Europa oriental. No outono outros cinco exércitos de 100 mil homens e uma multidão de sacerdotes
partiram para a Cidade Santa. Quando os primeiros destacamentos se aproximavam de Constantinopla, a
princesa Ana Comnena teve a impressão de que “todo o Ocidente, toda a terra que se estende do mar
Adriático até as Colunas de Hércules, mudou de lugar e irrompeu na Ásia como uma massa compacta com
todos os seus haveres”.1 O imperador havia pedido uma ajuda militar convencional e descobriu que acabara
inspirando o que parecia uma invasão dos bárbaros. Primeiro empreendimento conjunto do Ocidente que
emergia da Idade das Trevas, a Cruzada compreendia representantes de todas as classes sociais: padres e
prelados, nobres e camponeses. Animava-os a paixão por Jerusalém, e não apenas a busca de terra e riqueza:
a Cruzada era uma aventura assustadora, perigosa e cara. A maioria dos participantes perdia tudo que tinha
e precisava de muito idealismo para sobreviver. Não é fácil definir seu ideal, já que esses peregrinos tinham
concepções muito diferentes de sua expedição. O alto clero provavelmente partilhava o ideal de Urbano: uma
guerra santa de libertação que aumentasse o poderio e o prestígio da Igreja ocidental. Muitos cavaleiros se
sentiam na obrigação de lutar pela Cidade Santa, pelo patrimônio de Jesus, assim como lutavam pelos
direitos de seu senhor feudal. Os cruzados mais pobres pareciam inspirados pelo sonho apocalíptico de uma
Nova Jerusalém. A chave era sempre Jerusalém. Provavelmente Urbano não provocaria a mesma reação se
não mencionasse a tumba de Cristo.
Esse idealismo tinha, porém, um lado sombrio. Logo se evidenciou que a vitória de Cristo significaria
morte e destruição para outras crenças. Na primavera de 1096, um bando de cruzados alemães massacrou as
comunidades judaicas de Speyer, Worms e Mainz, situadas às margens do Reno. Certamente não era essa a
intenção do papa, mas os cruzados deviam achar absurdo marchar milhares de quilômetros para combater os
muçulmanos — dos quais pouco ou nada sabiam —, quando os verdadeiros assassinos de Cristo (assim
pensavam eles) estavam bem ao alcance de sua mão. Esses foram os primeiros grandes pogroms da Europa,
que se repetiriam a cada anúncio de uma nova Cruzada. O fascínio da Jerusalém cristã contribuiu, portanto,
para fazer do antissemitismo europeu uma doença incurável.
Mais ordeiros que seus predecessores, os cruzados que partiram no outono de 1096 não desviaram de seu
caminho para matar judeus. A maioria chegou a Constantinopla em paz e ali jurou restituir territórios
anteriormente pertencentes a Bizâncio — juramento que alguns deles não tinham a intenção de cumprir. As
circunstâncias favoreciam um ataque aos Seldjúcidas, pois sua solidariedade inicial cedera lugar a lutas de
facções e os emires se engalfinhavam entre si. Os cruzados começaram bem, infligindo derrotas aos infiéis em
Niceia e Dorileia. No entanto, a viagem era longa e a comida escassa, e os turcos adotaram a tática da terra
arrasada, que consistia em devastar uma região antes de abandoná-la ao inimigo. Foram necessários três anos
de agruras inimagináveis para os cruzados chegarem a Jerusalém. No terrível inverno de 1097-8, sitiaram a
bem fortificada Antioquia; durante o cerco um a cada sete homens morreu de fome e a metade do exército
desertou. Apesar de tudo obtiveram a vitória e, quando se viram diante dos muros da Cidade Santa, em
1099, haviam mudado o mapa do Oriente Próximo. Destruíram a base dos Seldjúcidas na Ásia Menor e
criaram dois principados governados por ocidentais: um em Antioquia, sob o normando Boemundo de
Tarentino, e o outro em Edessa, na Armênia, sob Balduíno de Bolonha. Foram vitórias suadas, porém. Uma
fama temível precedera esses implacáveis guerreiros. Comentava-se que em Antioquia ocorreram atos de
canibalismo, e afirmava-se que os bárbaros cristãos europeus eram impiedosos e fanáticos em seu zelo
religioso. Ao tomar conhecimento dessas histórias alarmantes, muitos gregos ortodoxos e monofisistas de
Jerusalém fugiram para o Egito. Os que permaneceram na cidade foram expulsos pelas autoridades
muçulmanas, que baniram também os cristãos latinos. Tidos como simpatizantes dos cruzados, estes últimos
de fato os ajudaram durante o cerco, fornecendo-lhes valiosas informações sobre a cidade.
Os comandantes dos cruzados espalharam suas tropas em torno das muralhas. Roberto da Normandia
posicionou-se perto da arruinada igreja de Santo Estêvão, no norte; Roberto de Flandres e Hugo de St. Poll
ficaram no sudoeste; Godofredo de Bouillon, Tancredo e Raimundo de St. Gilles acamparam em frente à
Cidadela, enquanto outro exército se colocou no monte das Oliveiras para prevenir um ataque vindo do
leste. Depois Raimundo deslocou seus provençais para defender os lugares santos fora dos muros do monte
Sião. A princípio os cruzados pouco progrediram. Ainda não estavam habituados a sitiar as cidades de pedra
do Oriente, muito maiores e mais imponentes que as suas, e não possuíam nem técnica nem material para
fabricar as máquinas necessárias. Com os mastros, cordas e ganchos de uma frota genovesa que aportou em
Jafa construíram duas torres móveis que podiam transportar sobre rodas até as muralhas — um engenho de
ataque que os muçulmanos desconheciam. Foi utilizando uma dessas torres que, em 15 de julho de 1099, um
soldado do exército de Godofredo conseguiu entrar em Jerusalém. Os demais cruzados o seguiram e, como
os anjos vingadores do Apocalipse, caíram sobre os maometanos e judeus que defendiam a cidade.
Durante três dias eliminaram sistematicamente cerca de 30 mil jerosolimitas. “Mataram todos os sarracenos
e os turcos que encontraram”, escreveu com aprovação o autor das Gesta Francorum, “mataram todos, homens
ou mulheres.”2 Massacraram 10 mil muçulmanos que se refugiaram no teto de al-Aqsā e passaram à espada
os judeus que reuniram na sinagoga, praticamente não deixando sobreviventes. Ao mesmo tempo, se
apoderaram friamente de bens locais, diz Fulcher de Chartres, um capelão do exército. “Quem primeiro
entrasse numa casa, fosse rico ou pobre, não era molestado por nenhum outro franco. Podia apossar-se da
casa ou do palácio, bem como do que ali encontrasse.”3 O sangue literalmente corria pelas ruas. “Cabeças,
mãos e pés se amontoavam”, informa o provençal Raymond de Aguiles, testemunha ocular da matança.
Longe de apiedar-se, ele interpretou a carnificina como um sinal do triunfo do cristianismo, sobretudo no
H. aram:

Se eu contar a verdade, não conseguireis acreditar. Basta, pois, dizer que no Templo e no Pórtico de
Salomão homens cavalgaram com sangue até os joelhos e as rédeas. Foi a esplêndida justiça de Deus que
fez o sangue dos descrentes inundar esse lugar, que durante muito tempo sofreu com suas blasfêmias.4
Os vencedores eliminaram muçulmanos e judeus da Cidade Santa como se a purgassem de vermes.
Por fim, quando não tinham mais a quem matar, lavaram-se e seguiram em procissão até a Anástasis,
entoando hinos entre lágrimas de alegria. Ao redor do Santo Sepulcro celebraram o Ofício da Ressurreição,
cuja liturgia parecia anunciar o alvorecer de uma nova era. Raymond assistiu à cena:
Este dia, afirmo, será famoso em todos os tempos futuros, pois converteu nossos esforços e nossos
sofrimentos em alegria e exultação. Este dia, afirmo, assinala a justificação de toda a cristandade, a
humilhação do paganismo, a renovação da fé. “Este é o dia que o Senhor preparou, regozijemo-nos com
ele”, pois neste dia o Senhor se revelou a seu povo e o abençoou.5
Tal visão dos fatos foi logo adotada pelos poderosos da Europa, que provavelmente se horrorizaram com as
primeiras notícias do massacre. Apesar de tudo, o sucesso da Cruzada foi tão retumbante que os levou a
acreditarem que desfrutavam uma bênção especial de Deus. No espaço de dez anos três religiosos eruditos —
Guibert de Nogent, Robert, o Monge, e Baldrick de Bourgueil — escreveram sobre a Primeira Cruzada,
endossando inteiramente a belicosa devoção de seus participantes. O Ocidente, que até então vira os
muçulmanos com relativa indiferença, passou a considerá-los uma “raça vil e abominável”, “absolutamente
estranha a Deus”, digna apenas do “extermínio”.6 A Cruzada fora um ato divino comparável ao Êxodo do
Egito; os francos eram agora o novo Povo Eleito, os que assumiram a vocação abandonada pelos judeus.7
Robert, o Monge, chegou a formular a espantosa afirmação de que a recente conquista da Cidade Santa
constituiu o maior acontecimento da história mundial desde a Crucifixão.8 Logo o Anticristo surgiria em
Jerusalém e teriam início as batalhas do fim dos tempos.9
Mas os cruzados eram essencialmente práticos e, antes desses triunfos apocalípticos, trataram de limpar a
cidade. Guilherme de Tiro diz que queimaram os corpos com grande eficiência, de modo que puderam
dirigir-se aos lugares santos “com maior segurança” 10 — provavelmente sem sofrer o inconveniente de
tropeçar em membros decepados. Na verdade, tratava-se de uma tarefa imensa, e cinco meses depois ainda
havia cadáveres espalhados pela cidade. Naquele ano, quando chegou a Jerusalém para celebrar o Natal,
Fulcher de Chartres ficou horrorizado:
Oh, que fetidez exalavam, dentro e fora das muralhas, os corpos putrefatos dos sarracenos que matamos
por ocasião da captura da cidade e que [ainda] jaziam no lugar onde os abatemos.11
Da noite para o dia, os cruzados transformaram a florescente e populosa Jerusalém num fétido ossário.
Corpos amontoados ainda apodreciam nas ruas três dias após o massacre, quando os cruzados organizaram
uma feira. Com grandes festividades eles venderam seus saques, indiferentes à carnificina que haviam realizado
e às hediondas evidências que jaziam a seus pés. Se o respeito pelos sagrados direitos dos predecessores
indica o grau de integridade dos monoteístas que conquistaram Jerusalém, os cruzados devem figurar no fim
da lista.
Não visavam a nada além da conquista e não definiram nenhuma forma de governo. Os clérigos desejavam
uma administração inspirada em princípios teocráticos e liderada por um patriarca; os cavaleiros queriam que
um de seus pares assumisse o poder; e os pobres, que exerciam considerável influência sobre os cruzados,
aguardavam a Nova Jerusalém e repudiavam todo e qualquer governo convencional. Por fim chegaram a um
acordo. Como durante o cerco os muçulmanos haviam expulsado o patriarca ortodoxo, os conquistadores
designaram para ocupar o cargo Arnulf de Rohes, o capelão de Roberto da Normandia, substituindo um
grego por um latino. Depois escolheram como seu líder Godofredo de Bouillon, jovem piedoso, dotado de
extrema coragem física e de mínima inteligência. Declarando que não podia usar uma coroa de ouro na
cidade em que seu Salvador usara uma coroa de espinhos, Godofredo assumiu o título de “Advogado do
Santo Sepulcro”. Daria proteção militar [advocatia] ao patriarca, que assumiria o governo. Poucos meses mais
tarde, Daimbert, arcebispo de Pisa, chegou a Jerusalém na condição de legado oficial do papa. Sumariamente
depôs Arnulf, apoderou-se do patriarcado e baniu da Anástasis e das outras igrejas jerosolimitas todos os
cristãos locais — gregos, jacobitas, nestorianos, georgianos e armênios. Urbano II encarregara os cruzados de
ajudarem os cristãos orientais, mas agora eles estendiam a seus próprios irmãos de fé a intolerância dos
dominadores que os precederam. Na Páscoa de 1100, Godofredo entregou a Daimbert “Jerusalém, com a
Torre de Davi e tudo que pertencia à cidade”, 12 sob a condição de utilizá-la enquanto conquistava mais
terras para o reino.
Essa era a tarefa mais urgente dos cruzados, pois a tomada de Jerusalém não significava a libertação de
toda a Palestina. Os Fatímidas ainda controlavam boa parte do país, inclusive os importantes centros urbanos
do litoral. Godofredo começou por atacar suas bases, com o apoio da frota pisana. Obteve em março de
1100 a rendição dos emires de Ascalon, Cesareia, Acre e Arsuf, que o aceitaram como seu suserano. Os
xeiques da Transjordânia os imitaram, enquanto Tancredo estabelecia um principado na Galileia. Contudo, a
situação era precária. O reino tinha agora fronteiras defensáveis, mas nos 25 anos seguintes precisaria lutar
pela própria sobrevivência, já que o rodeavam inimigos hostis.
O principal problema era o efetivo militar. A maioria dos soldados voltara para sua terra após a conquista
da Cidade Santa, de modo que o exército minguara consideravelmente. A desolação reinava em Jerusalém,
cuja população de aproximadamente 100 mil pessoas se reduzira a algumas centenas. “Nossos compatriotas
eram tão pouco numerosos e tão necessitados que mal enchiam uma rua”, anotou Guilherme de Tiro. 13
Procurando segurança, eles se apinhavam no bairro do Patriarca, em torno do Santo Sepulcro.14 O resto da
cidade estava desabitado, ladrões e beduínos rondando pelas ruas e arrombando as casas desertas. A defesa
adequada era impossível: quando Godofredo saía em missão com seus soldados, apenas alguns civis e
peregrinos ficavam incumbidos de enfrentar eventuais ataques. Cessadas as hostilidades, muçulmanos e judeus
começaram a voltar pouco a pouco para cidades como Beirute, Sidônia, Tiro e Acre, e os camponeses
islamitas permaneceram na zona rural. Os cruzados promulgaram uma lei banindo os judeus e muçulmanos
da Cidade Santa; expulsaram também os cristãos locais, suspeitando que fossem cúmplices do Islã. Para os
rudes ocidentais não havia diferença entre os árabes e esses cristãos palestinos, coptas e sírios. Poucos francos
queriam viver na santa Jerusalém, agora reduzida a uma sombra do que fora no passado. A maioria preferia
as cidades litorâneas, onde a vida era mais fácil e havia mais oportunidades para os negócios.
Imediatamente após a conquista, Godofredo instalou-se na mesquita de al-Aqsā, que se tornou a residência
real, e converteu a Cúpula do Rochedo numa igreja denominada “Templo do Senhor”, a qual Daimbert fez
sua residência oficial. O H. aram não despertara o interesse dos bizantinos, mas significava muito para os
cruzados, que se consideravam o novo Povo Eleito e, portanto, herdeiros desse lugar santo dos judeus. Desde
o início o H. aram desempenhou importante papel na vida espiritual da Jerusalém dos cruzados, como atesta
o fato de o patriarca e seu advogado decidirem morar nesse local solitário, distante dos principais
alojamentos de seus comandados, na Colina Ocidental. Seus vizinhos mais próximos eram os beneditinos que
Godofredo instalara na Tumba da Virgem Maria, no vale do Cedron.
Godofredo não reinou por muito tempo. Morreu de febre tifoide em julho de 1100 e foi enterrado na
Anástasis, que os cruzados preferiam chamar de igreja do Santo Sepulcro. Daimbert se preparou para assumir
o comando secular, além do espiritual, mas se viu suplantado por Balduíno, conde de Edessa, que seus
concidadãos fizeram vir da Lorena. Muito mais inteligente e cosmopolita que seu irmão Godofredo, Balduíno
recebeu na juventude formação eclesiástica; era mais culto que a maioria dos leigos, tinha uma tremenda
presença física e podia viabilizar o Reino de Jerusalém. Quando chegou à Cidade Santa, em 9 de novembro
de 1100, foi recebido com tumultuosa alegria não só por seus compatriotas, como pelos cristãos locais, que
o esperavam no exterior das muralhas. Balduíno percebeu que para sobreviver no Oriente Próximo os francos
precisavam de amigos, e, como os judeus e os muçulmanos estavam fora de cogitação, seus aliados naturais
eram os cristãos gregos, sírios, armênios e palestinos. Ele próprio era casado com uma armênia e conquistara
a confiança dos cristãos orientais, que Daimbert tratara com tanto desprezo.
Sua coroação ocorreu em 11 de novembro na igreja da Natividade, em Belém, cidade de Davi. Balduíno
não demonstrou o menor escrúpulo em usar uma coroa de ouro, nem em ser chamado de “rei dos latinos”.
Sob seu comando os cruzados conheceram uma série de triunfos. Em 1110, haviam conquistado Cesareia,
Haifa, Jafa, Trípoli, Sidônia e Beirute. Agora estabeleceram um quarto Estado: o condado de Trípoli. Nessas
cidades massacraram a população e destruíram as mesquitas, obrigando os sobreviventes a refugiarem-se em
território islâmico. Mais tarde teriam grande dificuldade em estabelecer relações normais com seus “súditos”,
que guardavam na memória a lembrança de sua carnificina e de suas desapropriações. Pareciam imbatíveis, se
bem que não encontrassem maior resistência por parte dos emires Seldjúcidas e dos dinastas locais, que,
sempre às voltas com suas disputas pessoais, achavam impossível compor uma frente única. Bagdá não tinha
como reagir. O califado estava irremediavelmente fraco e não podia arcar com essas guerras na distante
Palestina. Assim, os cruzados conseguiram fundar as primeiras colônias ocidentais no Oriente Próximo.
Balduíno precisava também resolver o problema de Jerusalém, que permanecia praticamente deserta. Os
francos continuavam preferindo as cidades mais afluentes do litoral. Eram na maioria camponeses e soldados,
não artesãos, e tinham dificuldade em ganhar o sustento numa cidade que vivia da indústria leve. Pela Lei
da Conquista, promulgada em 1099, todos os participantes da Cruzada estavam livres da hierarquia feudal
vigente na Europa e, portanto, podiam tornar-se proprietários. Alguns desses “burgueses”, como eram
chamados, agora possuíam imóveis em Jerusalém ou campos e vilas nos arredores. Para evitar que partissem
em época de crise, esperando retornar quando a situação melhorasse, Balduíno criou uma lei que concedia a
posse de uma casa a quem nela estivesse residindo durante o período de um ano e um dia. Os burgueses se
converteram na coluna dorsal da Jerusalém franca, onde atuavam como cozinheiros, açougueiros, lojistas e
ferreiros. Mas seu número era insuficiente.
Balduíno esperava reconduzir os cristãos da região às igrejas e aos mosteiros jerosolimitas, e em 1101 a
oportunidade caiu-lhe do céu. Na noite anterior à Páscoa, as multidões aguardavam, como sempre, o milagre
do Fogo Santo. Nada aconteceu: não se fez a luz divina. Provavelmente os gregos haviam levado o segredo
consigo e agora não queriam contá-lo aos latinos. O fracasso parecia um mau sinal: teriam os francos
desagradado a Deus de algum modo? Daimbert sugeriu enfim que os latinos o seguissem ao Templo do
Senhor, onde Deus havia atendido às preces de Salomão. Os cristãos locais foram convidados a rezar
também. Na manhã seguinte, anunciou-se que o fogo aparecera em duas das lâmpadas que ladeavam a
tumba. A mensagem do céu parecia clara. O historiador armênio Mateus de Edessa afirmou que Deus se
zangara quando “os francos expulsaram dos mosteiros os armênios, os gregos, os sírios e os georgianos” e só
se dignara a mandar o fogo porque os cristãos orientais lhe pediram.15 Os gregos recuperaram as chaves da
tumba, e outras congregações receberam permissão para retornar a seus santuários e monastérios.
A partir desse episódio, o rei de Jerusalém tornou-se protetor dos cristãos locais. O alto clero continuou
sendo latino, mas havia cônegos gregos na igreja do Santo Sepulcro. Quando voltaram do Egito, para onde
haviam fugido em 1099, os jacobitas recobraram o mosteiro de Maria Madalena. Através de seu casamento
Balduíno estabelecera um vínculo especial com os armênios, que foram particularmente favorecidos. A
comunidade e o convento de São Tiago prosperaram. Importantes personalidades armênias peregrinavam a
Jerusalém, levando ricos presentes: vestes bordadas, cruzes e cálices de ouro, crucifixos incrustados de pedras
preciosas — que ainda hoje são usados nos dias de grandes festas — e manuscritos com iluminuras para a
biblioteca do convento. Os armênios também obtiveram a custódia da capela de Santa Maria na igreja do
Santo Sepulcro.
Finalmente, em 1115, Balduíno conseguiu resolver o problema populacional, importando cristãos sírios da
Transjordânia, que em função das atrocidades cometidas pelos cruzados haviam se tornado personae non gratae
no mundo muçulmano. Para atraí-los prometeu-lhes privilégios especiais e alojou-os nas casas abandonadas do
noroeste de Jerusalém. Ademais, permitiu que construíssem e restaurassem igrejas para seu próprio uso: a de
Santo Abraão, perto da Porta de Santo Estêvão, e as de São Jorge, Santo Elias e São Jacó no bairro do
Patriarca.
A estratégia deve ter funcionado, pois Jerusalém se desenvolveu — chegou a abrigar cerca de 30 mil
pessoas — e não só voltou a ser capital, como se converteu na principal metrópole de todos os estados
francos, graças a sua importância religiosa. Com isso ganhou vida nova. Sob alguns aspectos apresentava a
organização de uma cidade ocidental. A sharī‘ah, corte de justiça muçulmana, cedeu lugar a três organismos
encarregados de causas civis e criminais: a Suprema Corte, para os nobres, a Corte dos Burgueses e a Corte
dos Sírios, administrada pelos cristãos locais e a eles destinada. Os cruzados se apossaram dos mercados que
haviam surgido no antigo fórum romano, ao lado do Santo Sepulcro, e ao longo do Cardo. Provavelmente
aprenderam a organização do sūq com os cristãos de Jerusalém, pois mantiveram o sistema oriental de
mercados distintos para aves, tecidos, especiarias e comida pronta. Francos e sírios trabalhavam juntos, mas
em lados opostos da rua. Jerusalém não poderia se converter num centro comercial, pois se situava muito
longe das principais rotas. Não atraía os mercadores italianos estabelecidos nas cidades costeiras, onde
desempenhavam importante papel. Continuou — como sempre — dependendo do turismo. Balduíno acabara
com a ideia de governá-la como uma teocracia. Depois que se livrou de Daimbert,16 tratou de escolher
patriarcas que se contentassem com uma posição de subserviência. A partir de 1112, o patriarca exercia
absoluta autoridade sobre o antigo bairro cristão, porém Balduíno administrava o restante da cidade. O reino
estava mais livre do controle eclesiástico que qualquer Estado europeu contemporâneo.
Tendo surgido em meio a fanática religiosidade, a Jerusalém dos cruzados ironicamente se secularizou.
Logo que se instalaram, os francos passaram a ocidentalizá-la, começando, em 1115, pela Cúpula do Rochedo
— mais um indício da importância que atribuíam a esse local. Não conheciam bem a história do edifício.
Sabiam que não era o Templo de Salomão, mas aparentemente achavam que Constantino ou Heráclio o
construíra e que os muçulmanos o converteram para seu próprio uso impio. Em 1115, trataram de
supostamente restaurá-lo a sua pureza original. Colocaram uma cruz no alto da Cúpula, revestiram a Rocha
de mármore, transformando-a em altar e coro, e cobriram as inscrições do Alcorão com textos latinos. Foi
um gesto típico, destinado a apagar a presença islâmica, como se ela nunca tivesse existido. Realizaram,
porém, um trabalho da mais alta qualidade: a grade com a qual rodearam a Rocha é uma das melhores
peças da metalurgia medieval que chegou até nós. Dedicaram-lhe anos: o “Templo do Senhor” só foi
oficialmente consagrado em 1142. Ao norte da nova igreja construíram claustros para os agostinianos e
converteram a Cúpula da Corrente numa capela dedicada a Tiago, o Tzaddik, que, segundo se acreditava,
fora martirizado no monte do Templo.
A Jerusalém dos cruzados
1099-1187

A princípio não tinham dinheiro para reformar a mesquita de al-Aqsā, que sofrera grandes danos e saques
durante a conquista. Balduíno até se viu obrigado a vender o chumbo do telhado. Depois, em 1118, um
pequeno grupo de cavaleiros que se autodenominavam Pobres Soldados de Jesus Cristo apresentou-se ao rei,
oferecendo-se para realizar obras de caridade. Podiam policiar as estradas da Terra Santa e proteger os
peregrinos contra os beduínos e outros facínoras muçulmanos. Eram exatamente o que o reino precisava, e
Balduíno os alojou numa parte de al-Aqsā. Por causa de sua proximidade com o Templo do Senhor, os
Pobres Soldados receberam o nome de templários.17 Até então os monges não podiam portar armas e lutar,
mas, ao reconhecer os templários como uma ordo oficial, a Igreja canonizou — até certo ponto — a
violência sagrada. Encarnando as duas grandes paixões da nova Europa — guerra e devoção —, esses monges-
soldados logo atraíram adeptos. Ajudaram a resolver o crônico problema de efetivo militar e, na década de
1120, tornaram-se um grupo de elite nos exércitos dos cruzados, abandonando o objetivo militar puramente
defensivo de suas origens.
Ironicamente os Pobres Soldados logo enriqueceram e se tornaram uma das ordens mais poderosas da
Igreja. Restauraram al-Aqsā, transformando-a numa base militar. Nos subterrâneos de Herodes instalaram os
chamados “estábulos de Salomão”, capazes de abrigar mais de mil animais e seus respectivos cavalariços. No
interior da mesquita ergueram paredes para criar cômodos separados: depósitos cheios de armas e provisões,
celeiros, banhos e latrinas. No telhado fizeram jardins, pavilhões e cisternas. A oeste da mesquita construíram
um claustro, um refeitório e adegas. Também assentaram os alicerces de uma esplêndida igreja, que nunca
concluíram. O trabalho, mais uma vez, é de alto nível. Sobretudo a escultura, com seu padrão característico
de “folha molhada”, mostra uma criativa mistura de estilos bizantino, islâmico e românico.
Os templários ilustravam, porém, a principal tendência da Jerusalém contemporânea. Participar de uma
cruzada constituía um ato de amor: o papa exortara os cavaleiros europeus a ajudarem seus irmãos cristãos
no mundo islâmico; milhares de homens morreram na tentativa de libertar do jugo dos infiéis o patrimônio
de Cristo. Participar de uma cruzada era ainda uma forma de os leigos viverem de acordo com o ideal
monástico.18 Esse “amor” se expressara, todavia, em violência e atrocidade. Na trajetória dos templários,
também a caridade e a preocupação com os pobres e oprimidos logo degeneraram em agressão militar. Antes
era proibido cometer no H. aram qualquer ato violento; agora al-Aqsā estava convertida em caserna e
arsenal. Logo as igrejas circulares dos templários, construídas à imitação da Anástasis, começaram a difundir-
se pelas cidades e aldeias da Europa, lembrando aos fiéis que a cristandade inteira estava mobilizada para a
guerra santa em defesa de Jerusalém.
Vemos a mesma tendência nos hospitalários, rivais dos templários, que estavam sediados no velho hospital
de São João, o Esmoler, no bairro do Patriarca. O abade Gérard assistira os cruzados durante o cerco de
Jerusalém e, após a conquista, reunira a sua volta um grupo de cavaleiros e peregrinos que se sentiam
chamados a cuidar dos pobres e dos necessitados. Até então os cavaleiros nunca pensaram em degradar-se
com tarefas humilhantes como tratar dos enfermos, porém sob a liderança de Gérard voluntariamente
partilhavam a vida simples dos pobres e dedicavam-se a obras de caridade. Como seus rivais, os hospitalários
encarnavam o ideal da santa pobreza, tão importante na Primeira Cruzada, e logo atraíram muitas vocações
na Palestina e na Europa. Em 1118, Gérard morreu e foi substituído por Raymond de Le Puy, que muito
fez para promover a ordem na Europa, mas, como os templários, os hospitalários estavam inteiramente
centrados em Jerusalém. Em seu regulamento, a palavra outremer [além-mar] referia-se à Europa. Em meados
do século XII, eles também se tornaram soldados e lutaram nos exércitos dos cruzados, a misericórdia
levando-os ao militarismo. Nunca abandonaram, contudo, suas obras de caridade. No imenso e magnífico
complexo que construíram ao sul do Santo Sepulcro, cuidavam de aproximadamente mil enfermos durante o
ano inteiro e distribuíam esmolas, roupas e alimentos para os pobres. Situado a pequena distância do Santo
Sepulcro, o hospital representava a face mais atraente dos cruzados.
E sempre causava grande impressão nos peregrinos, que começavam a descobrir uma Jerusalém muito
diferente. Os bizantinos nunca os levaram ao monte do Templo, por exemplo, que para eles apenas
simbolizava a derrota do judaísmo e não fazia parte de sua liturgia. Entretanto, já em 1102, quando visitou a
cidade, o peregrino britânico Saewulf provavelmente conheceu os santuários do H. aram, que logo
adquiriram um significado cristão. Agora a Porta da Misericórdia era tida como o local onde Joaquim e
Ana, os pais da Virgem Maria, se conheceram. Acreditava-se que na “Bela Porta” são Pedro e são João
curaram um paralítico. Reverenciava-se a Cúpula do Rochedo como o Templo onde Jesus pregara durante
toda a sua vida: a Rocha estampava sua pegada. O H. aram também desempenhava um papel crucial na
liturgia dos cruzados.19 Todas as suas grandes cerimônias incluíam uma procissão ao “Templo do Senhor”,
que agora era fundamental nas celebrações do Domingo de Ramos, por exemplo. Outra diferença importante
no âmbito da devoção era a transferência de muitos locais da Paixão, originalmente situados no monte Sião,
para o norte da cidade. Saewulf constatou, por exemplo, que a coluna onde Cristo fora flagelado estava
agora na igreja do Santo Sepulcro, e não no monte Sião. O Pretório, onde Pilatos condenara Jesus à morte,
não ficava no vale do Tiropeon, como antes, mas ao norte do monte do Templo, no lugar da fortaleza
Antônia. Essa mudança talvez se devesse aos templários, que desejavam ter o Pretório em sua jurisdição.
Balduíno I morreu em 1118. Sucedeu-lhe seu primo, Balduíno de Le Bourg, conde de Edessa, homem
piedoso e cordial, casado com uma armênia e pai de quatro filhas. Ao contrário de seu antecessor, o novo
rei recebeu a coroa na igreja do Santo Sepulcro, e não na basílica de Belém. Nas ruas por onde passou, os
terraços e os telhados estavam adornados com tapetes orientais. Diante da tumba de Cristo, na presença do
patriarca, dos bispos e dos padres latinos e locais, Balduíno jurou proteger a igreja, o clero, as viúvas e os
órfãos do reino de Jerusalém. Fez também um voto especial de lealdade ao patriarca. Após a cerimônia
dirigiu-se ao Templo do Senhor, onde depositou a coroa sobre o altar. Por fim, presidiu ao banquete que
os burgueses lhe serviram em al-Aqsā. Deixou a mesquita para os Templários em 1120 e instalou-se num
novo palácio, próximo da cidadela, onde ficou mais perto da Jerusalém dos cruzados.
No mesmo ano, assistiu ao Concílio de Nablus, que tentou refrear a tendência da nova geração de
assimilar a cultura local. Nos primórdios do reino, Fulcher de Chartres entusiasticamente anunciara aos
europeus: “Povo do Ocidente, nós nos tornamos orientais! Os italianos e os franceses de ontem se
transplantaram e hoje são homens da Galileia e da Palestina”.20 Certamente exagerara, mas no decorrer dos
anos os francos de fato mudaram. Toda uma geração crescera no Oriente, sem lembranças da Europa.
Tomava banho — coisa praticamente inédita no Ocidente —, vivia em casas — e não em barracões de
madeira —, vestia-se de tecido macio e cobria a cabeça com o keffiyeh. Suas mulheres usavam véu, como as
muçulmanas. Os francos da Palestina escandalizavam os peregrinos europeus: pareciam estar incorporando os
costumes locais e, como o mundo islâmico alcançara um padrão de vida muito superior ao da Europa,
viviam segundo um estilo que esses cristãos mais rudes consideravam decadente e improdutivo. Muitos
haviam percebido que sua sobrevivência demandava certo grau de assimilação. Afinal, tinham de negociar com
os muçulmanos e relacionar-se normalmente com eles. Balduíno II chegou a relaxar ligeiramente a lei que
banira de Jerusalém os judeus e os islamitas. Agora os muçulmanos podiam entrar na cidade com seus
produtos e ali demorar-se por prazos determinados. Em 1170, uma família de tintureiros judeus morava
perto do palácio real.
Essa assimilação era, contudo, superficial. Na década de 1120, os francos trataram de reformar antigas
fortalezas e construir novos castelos em torno de seu reino, cercando-se de baluartes contra o hostil mundo
islâmico. Uma série de igrejas e mosteiros fortificados também circundava Jerusalém em Ma’ale Adumin, na
estrada de Jericó, em Hebron, Betânia, Nabi Samwil, al-Birah e Ramallah. Em vez de derrubar a barreira de
ódio existente entre a cristandade ocidental e o Islã, os cruzados erguiam maciças muralhas de pedra para
afastar seus vizinhos. Criaram enclaves artificiais, permanentemente estrangeiros, agressivos, sempre prontos
para o combate. A imensa criatividade que se registrou na Europa do século XII não chegou a seus reinos.
Suas principais inovações foram as ordens militares e a arquitetura militar; sua principal paixão intelectual, as
leis ocidentais. Os francos não tentaram de fato conhecer a riqueza intelectual e cultural do Oriente
Próximo e, portanto, não deitaram raízes autênticas. Concentraram-se na própria sobrevivência, e a
preservação das sociedades que criaram era essencialmente artificial.
Tentaram, porém, ser criativos e deixar sua marca na terra que haviam conquistado. Em 1125, deram
início a um intenso programa de edificações, que superava até mesmo o de Herodes. Procuraram recriar a
Europa na Palestina, e, consequentemente, suas obras apresentam pouca influência bizantina ou islâmica, mas
tampouco acompanham a evolução da arquitetura europeia. Presos ao estilo românico e ignorando o gótico,
os cruzados ergueram igrejas semelhantes às que deixaram em sua terra. Primeiro cuidaram de reconstruir a
igreja do Santo Sepulcro para o quinquagésimo aniversário de sua conquista da cidade, em 1149. Depois,
junto à piscina de Betesda — local venerado desde o século VI como berço de Nossa Senhora —, ergueram
um esplêndido santuário dedicado a santa Ana, mãe da Virgem Maria. Apesar de sua crueldade, os francos
ainda tinham alguma noção de espiritualidade. Na igreja de Santa Ana, que hoje é um mosteiro beneditino,
as colunas da nave conduzem o olhar diretamente para o altar-mor; a simplicidade não dá margem a
distrações, e a luz, entrando em diferentes direções, cria sombras sutis e uma sensação de distância.
Os cruzados também restauraram as igrejas do vale do Cedron, do monte das Oliveiras e do Getsêmani,
assim como a Tumba da Virgem, onde edificaram um mosteiro e adornaram a cripta com afrescos e
mosaicos. A igreja da Ascensão, reconstruída e decorada com mármore de Paros, tornou-se parte de sua
máquina de guerra, refletindo sua devoção belicosa. O peregrino Teodorico nos diz que era “fortificada
contra os infiéis com torres, grandes e pequenas, muralhas e ameias e patrulhas noturnas”.21 No local da
Eleona, arrasada pelos persas em 614, os cruzados ergueram duas igrejas para comemorar a Oração do
Senhor, que Jesus ensinou aos discípulos, e o Credo dos Apóstolos. Desde a época de al-Hākim a basílica de
Santa Sião, “Mãe de todas as igrejas”, estava em ruínas; os cruzados a repararam, fazendo-a englobar muitos
santuários antigos: a capela de Santo Estêvão, onde o corpo do mártir repousara antes de ser transferido
para a igreja de Eudóxia; a “Sala Superior”, na qual se realizara a Última Ceia; e a capela de Pentecostes,
onde uma pintura representava a descida do Espírito. No andar de baixo estava a “capela galileia”, onde o
Ressuscitado apareceu aos apóstolos.22 Ao restaurá-la, os cruzados fizeram uma intrigante descoberta: uma
parede caiu, revelando uma caverna que continha uma coroa e um cetro de ouro — e que, segundo alguns
estudiosos modernos, poderia ser uma antiga sinagoga. Os operários apavorados correram para o patriarca,
que consultou um asceta caraíta. Teriam encontrado a tumba de Davi e dos reis de Judá? Durante séculos
confundiu-se o monte Sião com a ’Ir David original, no monte Ofel. Pensava-se que a cidadela ao lado da
porta ocidental era a fortaleza de Davi e geralmente se chamava a torre Hípico de Torre de Davi.
Provavelmente era inevitável que um dia alguém “descobrisse” a tumba de Davi no monte Sião. Não
podendo investigar a caverna, por causa do medo dos trabalhadores, o patriarca “ordenou que se fechasse e
escondesse o lugar, de modo que até hoje não foi possível identificar os túmulos de Davi e dos reis de
Judá”, informa Benjamim de Tudela, viajante judeu que visitou Jerusalém por volta de 1170. 23 Mais tarde,
porém, os cruzados descobriram a tumba de Davi e a incorporaram à basílica de Santa Sião — o que no
futuro causaria muitos problemas.
Balduíno II morreu em 1131, deixando o poder para sua filha mais velha, Melisende, e seu genro, Fulk,
conde de Anjou, um formidável guerreiro que decidira dedicar a vida à defesa de Jerusalém. O reino
precisava mostrar que possuía um governante forte, pois pela primeira vez em sua história viu surgir no
Oriente Próximo um poderoso líder muçulmano: Imad ad-Din Zangī, o comandante turco de Mossul e
Alepo. Decidido a restabelecer a paz na região esfacelada pelas guerras internas dos emires, Zangī começou
por submeter, lenta e sistematicamente, os chefes locais da Síria e do Iraque e depois, com a ajuda de
Bagdá, colocou-os sob sua autoridade. Concentrando suas energias no combate aos emires recalcitrantes, não
demonstrou especial interesse em recuperar os territórios ocupados pelos francos, que, no entanto, tinham
plena consciência de seu império crescente. Em 1137, Fulk fortificou ainda mais as fronteiras do reino,
enviando uma guarnição de hospitalários para o castelo de Beth-Gibrin. No mesmo ano aliou-se com Unur,
príncipe de Damasco, que não pretendia deixar sua cidade cair em poder de Zangī.
O príncipe sírio Usāmah ibn Mundiqh foi um dos diplomatas que negociaram essa aliança. Firmado o
acordo, ele percorreu a Palestina dos francos e registrou em suas memórias a maneira como os muçulmanos
viam os ocidentais que tão violentamente irromperam na região. Homem culto e afável, sentia-se confuso em
relação aos francos. Admirava sua coragem física, mas horrorizava-se com sua medicina primitiva, seu
desrespeito para com as mulheres e sua intolerância religiosa. Ficou terrivelmente embaraçado quando um
peregrino se prontificou a levar seu filho para a Europa a fim de lhe dar uma educação ocidental: antes vê-
lo na prisão que na terra dos francos. Todavia, constatou que os francos nascidos no Oriente eram melhores
que os recém-chegados da Europa, que ainda estavam cheios de preconceitos primitivos. Para ilustrar sua
constatação contou uma pequena história. Fizera amigos entre os templários de Jerusalém e sempre que os
visitava em al-Aqsā eles lhe ofereciam um pequeno oratório. Um dia, quando estava rezando na direção de
Meca, um franco entrou no recinto, ergueu-o no ar e o fez voltar-se para o leste: “É assim que se reza!”,
exclamou. Os templários correram e levaram o homem embora, mas, assim que viraram as costas, a cena se
repetiu. Mortificados, explicaram-lhe: “Trata-se de um estrangeiro que chegou hoje do norte e nunca viu
ninguém orando em outra direção além do leste”. Usāmah concluiu suas preces e saiu, “estupefato com o
fanático que ficou tão perturbado e furioso por ver alguém rezando voltado para a qiblah”.24
O conflito interno dos francos despedaçava mais e mais o reino de Jerusalém. De um lado estavam os que
nasceram na Palestina e que, como os templários dessa história, conseguiam entender o ponto de vista dos
muçulmanos e queriam relacionar-se normalmente com seus vizinhos. De outro estavam os recém-chegados
da Europa, que achavam impossível tolerar qualquer outra orientação religiosa. A dissensão intensificou-se
numa época em que os islamitas finalmente renunciavam a seu destrutivo partidarismo e se uniam sob a
liderança de um homem forte. Em 1144, os francos sofreram um golpe que lhes demonstrou o grau de sua
própria vulnerabilidade. Dando prosseguimento a sua campanha contra Damasco, em novembro daquele ano
Zangī conquistou Edessa, cidade dos cruzados, e destruiu o Estado franco. O mundo islâmico, exultante,
converteu-o em seu herói. Quando esse guerreiro implacável e beberrão morreu assassinado, dois anos depois,
sucedeu-o seu filho Mahmoud, mais conhecido como Nūr ad-Dīn [Luz da Fé]. Sunita devoto, Nūr ad-Dīn
estava decidido a empreender uma guerra santa contra os francos e os xiitas. Retomando o espírito de
Maomé, levava uma vida frugal e distribuía grandes somas de dinheiro entre os pobres. Também iniciou uma
eficaz propaganda em prol da jiha-d. O Alcorão condena a guerra, mas ensina que, infelizmente, às vezes é
necessário lutar contra a opressão e a perseguição para preservar valores dignos. Se há pessoas exterminadas
ou expulsas de suas casas, se seus santuários são destruídos, os maometanos têm o dever de empenhar-se
numa guerra justa de autodefesa.25 A injunção se aplicava perfeitamente aos cruzados, que mataram milhares
de islamitas, desalojaram outros tantos e queimaram suas mesquitas, além de profanar o H. aram de al-Quds.
Nūr ad-Dīn difundiu as antologias dos Louvores a Jerusalém [ fada-’il al-quds] e mandou construir um belo
púlpito que seria instalado em al-Aqsā assim que os muçulmanos libertassem Jerusalém do jugo dos francos.
A cruel agressão dos cruzados fez reviver a prática da jiha-d, que havia desaparecido do Oriente Próximo.
Seu arraigado preconceito os impediu, contudo, de organizar uma reação eficaz contra Nūr ad-Dīn. Em
1148, os exércitos da Segunda Cruzada finalmente chegaram à Palestina para libertar os francos sitiados, mas,
em vez de atacar o inimigo em Alepo, marcharam contra Unur de Damasco, seu único aliado no mundo
islâmico, obrigando-o a pedir ajuda a Nūr ad-Dīn. Para completar a demonstração de incompetência,
conduziram pessimamente o cerco de Damasco, que acabou em vergonhoso fracasso. Provaram, assim, que a
hostilidade dos francos em relação aos muçulmanos podia levá-los a empresas suicidas. Seu isolamento na
região indicou ainda que não entendiam o realismo político do Oriente Próximo.
O malogro da Segunda Cruzada deve ter empanado a dedicação da nova igreja do Santo Sepulcro, em 15
de julho de 1149, quinquagésimo aniversário da conquista de Jerusalém. Após a cerimônia os fiéis seguiram
em procissão até o Templo do Senhor e o vale do Cedron, onde visitaram as sepulturas dos cruzados
mortos na luta pela Cidade Santa. A procissão terminou junto à cruz da muralha setentrional, que assinalava
o local onde as tropas de Godofredo penetraram em Jerusalém, em 1099. O contraste com o recente fracasso
deve ter sido doloroso. A nova igreja, porém, era um triunfo: os cruzados reuniram num grande edifício
românico a Tumba de Cristo, a Rocha do Gólgota e a cripta onde Helena teria encontrado a Verdadeira
Cruz (ver planta na p. 355). Mantiveram a Rotunda que Constantino Monômaco construíra no século XI e
ligaram-na com um grande arco do triunfo ao santuário que ergueram no antigo átrio. A arquitetura
ocidental não destoava da bizantina, e ademais os cruzados procuraram harmonizar-se com o estilo local —
uma façanha que não conseguiram realizar na vida. Cobriram o resto da tumba com uma placa de mármore,
à qual se acrescentou posteriormente um revestimento de ouro. Mosaicos e mármores coloridos adornavam as
paredes com brilho e elegância, num esplendor que o sombrio edifício atual mal nos permite imaginar.
A igreja do Santo Sepulcro
Construída pelos cruzados em 1149

1. Edícula da Tumba 13. Ambulatório


2. Rotunda 14. Enfermaria para cônegos
3. Coro 15. Dormitórios para cônegos
4. Transepto norte 16. Casa do Capítulo
5. Transepto sul 17. Cozinha
6. Calvário 18. Despensa
7. Entrada principal 19. Refeitório
8. Átrio 20. Grande claustro
9. Capela da Santíssima Trindade 21. Cúpula da capela de Santa Helena
10. Capela de São João Batista 22. Lojas
11. Capela de São Tiago 23. Patriarcado [Salahiyya Khanaqah]
12. Campanário

A campanha de Nūr ad-Dīn prosseguiu. Seu plano consistia em cercar os francos com um império
muçulmano empenhado na jiha-d. As disputas internas no reino de Jerusalém também continuaram, como se
a agressividade, presente em todos os aspectos da vida, impelisse os francos a voltarem-se uns contra os
outros. Em 1152 o jovem rei Balduíno III insurgiu-se contra sua mãe, Melisende, que tratou de fortificar
Jerusalém para defender-se. Só não houve uma guerra civil porque os burgueses locais obrigaram Melisende a
render-se. Os templários e os hospitalários também viviam às turras e recusavam-se a acatar a autoridade do
rei e do patriarca. Numa atitude deliberadamente ofensiva e provocadora os hospitalários construíram em sua
sede uma torre mais alta que a igreja do Santo Sepulcro. Não satisfeitos, ainda sabotavam as cerimônias
realizadas no Santo Sepulcro. Guilherme de Tiro nos conta que, tão logo se iniciava a pregação, eles “se
punham a tocar seus grandes sinos, abafando com tamanho barulho a voz do patriarca”, cujos protestos só os
fizeram irromper no santuário e disparar uma chuva de flechas.26 Evidentemente a experiência de morar na
Cidade Santa não inspirou os cruzados a seguirem a ética cristã do amor e da humildade.
O reino de Jerusalém permaneceu desunido até o fim, os cristãos consumindo-se em suas lutas pelo poder.
Sua tentativa de impedir que o Egito dos Fatímidas caísse em poder de Nūr ad-Dīn fracassou, quando o
general curdo Shirkuh conquistou o país. Em 1170, com a morte de Shirkuh, seu sobrinho Yūsuf Ibn Ayyūb
sucedeu-lhe no cargo de wazīr e aboliu o califado xiita. Mais conhecido no Ocidente como Saladino, por
causa de seu título S. alāh ad-Dīn [a Retidão da Fé], Yūsuf dedicou-se à jiha-d com todo o fervor, porém
estava convencido de que a libertação de Jerusalém cabia a ele, não a Nūr ad-Dīn, e por isso entrou em
conflito com seu senhor. Quando Nūr ad-Dīn morreu de ataque cardíaco, em 1174, Saladino disputou com
seu filho o controle de seu império. Graças ao carisma, à benevolência e à piedade, conquistou o apoio dos
muçulmanos, e ao cabo de um decênio a maioria das principais cidades islâmicas da região o reconheceu
como seu líder. Os cruzados se viram cercados por um império coeso, sobre o qual reinava um sultão
devoto, carismático e empenhado em destruir seu reino.
Apesar dessa ameaça evidente, continuaram lutando entre si. Numa época em que era essencial ter um líder
forte, seu jovem rei, Balduíno IV, contraiu lepra. Na esperança de apaziguar Saladino e tentar estabelecer
boas relações com seus vizinhos maometanos, os barões do reino apoiaram o regente, Raimond, conde de
Trípoli. A eles, porém, opunha-se um grupo de recém-chegados que se aglutinavam em torno da família real
e adotavam uma política de provocação. O mais notório desses belicistas era Reynauld de Chatillon, que,
violando as tréguas negociadas entre Raimond e Saladino, atacava caravanas de islamitas e por duas vezes
tentou — sem sucesso — investir contra Meca e Medina. Para ele o ódio ao Islã e a oposição absoluta ao
mundo muçulmano constituíam um dever sagrado, o único patriotismo verdadeiro. O reino tampouco tinha
um líder espiritual. O patriarca Heráclio, outro recém-chegado, era um indivíduo ignorante e degenerado
que exibia sua amante abertamente. O “rei leproso” faleceu em março de 1185, e no ano seguinte seu filho,
Balduíno V, também morreu. A sucessão quase provocou uma guerra civil, enquanto Saladino se preparava
para invadir o país. Reynauld infringiu mais uma trégua, e os barões não tiveram outra alternativa senão
aceitar a coroação do fraco e incompetente Guy de Lusignan, cunhado do rei leproso. Mas ainda estavam
divididos. Não abandonaram suas rixas nem mesmo quando o exército inteiro marchou para a Galileia, em
julho de 1187, a fim de enfrentar Saladino. Os belicistas incitaram Guy a atacar os maometanos. Raimond
aconselhara-o a esperar, argumentando que, como a época da colheita se aproximava, o sultão não
conseguiria manter seu imenso exército em solo estrangeiro por muito mais tempo. Sem lhe dar ouvidos, o
rei ordenou o ataque. O resultado foi uma esmagadora vitória islâmica na batalha de Hattin, perto de
Tiberíades. O reino cristão de Jerusalém estava perdido.
Saladino e suas forças marcharam então pela Palestina, obtendo a submissão de uma cidade após outra. A
maioria dos cristãos sobreviventes refugiou-se em Tiro, porém alguns ainda fizeram uma desesperada tentativa
de salvar Jerusalém. Por fim os muçulmanos acamparam no monte das Oliveiras. Depois de contemplar os
santuários profanados no H. aram e a cruz na Cúpula do Rochedo, Saladino fez um sermão a seus oficiais,
lembrando-lhes os fad. a-’il al-quds: Jerusalém era a cidade do Templo, a cidade dos profetas, a cidade da
Viagem Noturna e da mi‘ra-j, a cidade do Juízo Final. Considerava seu dever vingar sem dó nem piedade o
massacre de 1099. Os cristãos estavam apavorados. Não tinham um cavaleiro capaz de organizar uma defesa
eficaz. Então, como em resposta a suas preces, o ilustre barão Balian de Ibelin entrou em Jerusalém, com a
permissão de Saladino, para reunir sua família e levá-la para Tiro. Jurou que passaria apenas uma noite ali,
mas, ao ver a aflição dos sitiados, procurou novamente o sultão e pediu-lhe que o liberasse de seu
juramento. Saladino, que o respeitava, não só o atendeu, como forneceu uma escolta para conduzir sua
família e seus bens para o litoral.
Balian fez o possível com seus parcos recursos, mas a situação era desesperadora. Em 26 de setembro de
1187, Saladino iniciou o ataque na porta ocidental, enquanto seus sapadores começavam a demolir a muralha
setentrional perto da Porta de Santo Estêvão. Três dias depois toda uma seção da muralha caiu — inclusive
a cruz de Godofredo —, mas os muçulmanos tinham ainda de enfrentar o muro interno. Balian, contudo,
decidiu pedir a paz. A princípio Saladino se mostrou impiedoso: “Trataremos vossa gente como tratastes a
nossa por ocasião da conquista [de Jerusalém]: massacrando, escravizando e cometendo outras selvagerias
semelhantes”.27 O barão lhe apresentou então um argumento decisivo: nada mais tendo a perder, os cristãos
matariam suas esposas e filhos, queimariam suas casas e bens e demoliriam a Cúpula do Rochedo e al-Aqsā;
depois sairiam para defrontar-se com o inimigo, e cada um deles daria cabo de um maometano antes de
morrer. Saladino consultou seus ulemás e concordou em tomar a cidade pacificamente. Os francos, porém, se
tornariam seus prisioneiros, embora pudessem recuperar a liberdade mediante um módico resgate.
Em 2 de outubro de 1187, dia em que os muçulmanos celebravam a Viagem Noturna e a mi‘ra-j do
Profeta, o sultão entrou em Jerusalém na condição de conquistador. E manteve sua palavra. Nem um só
cristão foi morto. Os barões podiam pagar o próprio resgate, mas os pobres caíram prisioneiros. Muitos, no
entanto, foram libertados, pois Saladino se comoveu até as lágrimas com o sofrimento das famílias que se
separavam ao partir para o cativeiro. Seu irmão Al-‘Ādil condoeu-se de tal modo que solicitou mil
prisioneiros para si mesmo e imediatamente os libertou. Todos os islamitas se escandalizaram ao ver os
cristãos ricos escaparem com sua fortuna sem fazer nenhuma tentativa de resgatar seus compatriotas. Quando
viu o patriarca Heráclio deixar a cidade com seus carros gemendo sob o peso de seu tesouro, o historiador
muçulmano ‘Imād ad-Dīn implorou a Saladino que confiscasse essa riqueza para redimir os cativos restantes.
O sultão recusou-se: juramentos e tratados existiam para ser cumpridos ao pé da letra. “Os cristãos de toda
parte lembrarão a bondade que tivemos para com eles.”28 Estava certo. O Ocidente tinha plena e incômoda
consciência de que esse governante maometano agira de modo muito mais “cristão” que os cruzados quando
conquistaram Jerusalém. Surgiram lendas que o transformaram numa espécie de cristão honorário, e algumas
até afirmavam que Saladino fora secretamente batizado.
A experiência dos cruzados em Jerusalém praticamente terminara. Os muçulmanos tentaram recriar o antigo
sistema de coexistência e integração em al-Quds, mas a violenta dominação dos cruzados prejudicara
fundamentalmente as relações entre o Islã e o Ocidente cristão. Essa foi sua primeira experiência do mundo
ocidental, que até hoje está viva em sua memória. Seus sofrimentos nas mãos dos cruzados afetaram também
sua maneira de ver a Cidade Santa, imprimindo um caráter defensivo a sua devoção a al-Quds, que se
tornaria mais agressivamente islâmica.
14. JIHAD

DEPOIS QUE OS FRANCOS PARTIRAM, os muçulmanos percorreram a cidade, maravilhando-se com o esplendor
da Jerusalém dos cruzados. Contudo, sob muitos aspectos pareciam estar voltando à pátria. Radiante de
prazer, segundo nos informa ‘Imād ad-Dīn, Saladino recebeu as congratulações de seus emires, sufis e ulemás
no hospital, bem no centro da Jerusalém dos cruzados. Poetas e recitadores do Alcorão declamaram versos
em sua homenagem, enquanto outros choravam de alegria e mal conseguiam falar. 1 Os maometanos sabiam,
entretanto, que a jiha-d por Jerusalém não terminara com a conquista da cidade. Essa palavra não significa
apenas “guerra santa”. O Alcorão a utiliza principalmente com seu sentido primário de “luta”. Os fiéis
devem “lutar no caminho de Deus”, dedicar suas vidas à implementação da vontade divina num mundo falho
e trágico. Numa famosa h. adīth, Maomé declara: “Estamos voltando da jiha-d menor para a jiha-d maior”, a
luta mais importante e mais difícil, cujo objetivo consiste em estabelecer a justiça na própria sociedade e a
integridade no próprio coração. Saladino conduziu sua jiha-d de acordo com o ideal do Alcorão: sempre
concedeu as tréguas que os cruzados solicitaram e em geral tratou seus prisioneiros com equidade e
benevolência. Na hora do triunfo foi piedoso — até demais, na opinião de alguns historiadores islâmicos.
Porque deixou os cristãos se reunirem em Tiro, permitiu-lhes manter uma base na Palestina, e o conflito
prosseguiu por mais de cem anos. Uma Terceira Cruzada, sob o comando dos reis Ricardo I, da Inglaterra,
e Filipe II, da França, não conseguiu reconquistar Jerusalém, mas instalou os francos num pequeno Estado
costeiro que se estendia de Jafa a Beirute. Embora sua capital fosse Acre, seu governante ainda se
autodenominava “rei de Jerusalém”. O sonho dos cruzados não terminara, e, enquanto os francos
permaneceram na Palestina, os muçulmanos se mantiveram atentos e defensivos.
A islamização de Jerusalém sob os Aiúbidas
1187-1250

Em 1187, suas esperanças eram grandes. Saladino sabia que agora tinha de empreender outro tipo de jiha-d
para que Jerusalém voltasse a ser uma cidade realmente islâmica. A primeira tarefa consistia em purificar o
H. aram. Era preciso remover de al-Aqsā as latrinas e os móveis dos templários e preparar a mesquita para
a oração da sexta-feira. A mih. ra-b, que indicava a direção de Meca, fora emparedada e tinha-se de
descobri-la. Tinha-se também de derrubar as paredes internas construídas pelos templários e cobrir o chão
com tapetes. O púlpito que Nūr ad-Dīn encomendara anos antes chegou de Damasco e foi devidamente
instalado. Na Cúpula do Rochedo, retiraram-se as pinturas e estátuas, bem como o mármore que revestia a
Rocha, e restauraram-se as inscrições do Alcorão. Dizem os cronistas maometanos que, assim como Omar,
Saladino trabalhava o dia inteiro ao lado de seus homens, lavando os pátios e pisos do H. aram com água
de rosas e distribuindo esmolas entre os pobres. Na sexta-feira, 4 de Shaban, os muçulmanos lotaram al-Aqsā
pela primeira vez desde 1099. Muitos choraram de emoção, quando Muhiy ad-Dīn al-Qurashi, o cádi de
Jerusalém, subiu ao novo púlpito.
Antes da Cruzada, a Jerusalém islâmica praticamente se resumia ao H. aram e seus arredores, porém a
nova jiha-d de Saladino exigia que instituições muçulmanas recobrissem a topografia dos cristãos. Mais uma
vez o ato de construir se tornou uma arma ideológica nas mãos dos vencedores. Em vez de ser uma cidade
predominantemente cristã com um importante santuário maometano, Jerusalém devia tornar-se uma cidade
evidentemente muçulmana. Havia uma nova hostilidade em relação à cristandade. Saladino confiscou a
residência do patriarca, junto ao Santo Sepulcro, e com recursos do Estado adquiriu o convento e a igreja
de Santa Ana, que não se limitou a transformar em mesquitas. Tanto ele como N ūr ad-Dīn incluíram em
sua cruzada contra os xiitas a dotação de conventos sufistas [khawa-niq] e escolas de jurisprudência [mada-ris]
em toda cidade que conquistavam. Essas eram as principais instituições da suna reformada, tal como a
concebeu al-Ghazzālī, o grande estudioso que, pouco antes da Primeira Cruzada, vivera no kha-na-qah sufista,
sobre a Porta da Misericórdia. Saladino converteu a igreja de Santa Ana em mesquita, o convento em
madrasah, e a residência do patriarca em kha-na-qah, dotou os dois últimos e lhes deu seu nome. Sempre
houve sufis em Jerusalém, mas, temendo que estivessem contaminados pelos xiitas, o sultão determinou que
em sua nova kha-na-qah só entrariam sufis procedentes da região central, onde prevaleciam os sunitas.
Sufis e eruditos foram viver nessas novas instituições, e ulemás passaram a servir no H. aram. Milhares de
maometanos voltaram a visitar al-Quds, que durante tanto tempo estivera em mãos inimigas. Saladino
continuou acampado no monte das Oliveiras até restabelecer a normalidade; depois de designar um
governador e instalar uma guarnição na Cidadela, retornou a Damasco e se pôs a planejar sua reação à
Terceira Cruzada. Os soldados e funcionários civis fixaram-se no antigo bairro do Patriarca. Muçulmanos do
Magreb, região do norte da África devastada por tribos berberes, também se transferiram para Jerusalém.
Alojaram-se no ângulo sudoeste do H. aram e, preservando suas tradições culturais e religiosas, receberam
permissão para transformar o antigo refeitório dos templários numa mesquita própria. O bairro do Magreb
destacava-se no cenário urbano. Mas Saladino não pretendia excluir inteiramente de al-Quds os cristãos e os
judeus: o velho ideal de integração e coexistência persistia. Atendeu ao pedido de alguns milhares de cristãos
sírios e armênios que desejavam permanecer em Jerusalém como dhimmis e confiou aos ortodoxos gregos a
custódia da igreja do Santo Sepulcro, que estava agora cercada de edifícios islâmicos. Afinal, não podia
culpar os cristãos locais pela cruzada europeia. Converteu grande parte da antiga sede dos hospitalários em
residência do governador, hospital e mesquita, dotados por seu filho al-Afd . al. Ergueu também uma nova
mesquita na Cidadela, dedicada ao profeta Davi. Os minaretes se multiplicavam por todo o lugar santo da
cristandade, e o chamado à prece ressoava pelas ruas do bairro do Patriarca. Alguns emires quiseram destruir
o Santo Sepulcro, porém Saladino acatou o parecer de seus assessores mais sábios: o que os cristãos
veneravam era o local, não a igreja. Após a Terceira Cruzada até mesmo os latinos da Europa teriam
permissão para peregrinar a Jerusalém.
Saladino também convidou os judeus a retornarem à cidade da qual haviam sido praticamente banidos, e
em troca todo o mundo judaico o aclamou como o novo Ciro. As Cruzadas não só inspiraram uma nova
jiha-d, como deram origem a uma forma de sionismo entre os judeus da Europa e do Império Islâmico. As
primeiras manifestações desse sionismo religioso ocorreram nos inícios do século XII. Vendo-se entre dois
fogos na luta dos cristãos pela reconquista da Espanha muçulmana, o médico toledano Judah Halevi
frequentemente se transferia de um território a outro. Essa experiência o convenceu de que os judeus deviam
voltar à pátria de seus ancestrais, que era seu verdadeiro lugar no mundo. Deviam reivindicar seus direitos
sobre a Terra Santa, que não pertencia nem aos cristãos, nem aos maometanos, que estavam então lutando
por ela. Jerusalém era o centro da terra, o local onde o mundo material se abria para o divino. Através da
Porta do Céu, situada onde antigamente se encontrava o Devir, subiam as orações e o poder divino se
despejava sobre o povo de Israel, conferindo-lhe dotes proféticos. Só na Palestina os judeus podiam manter
seu vínculo criador com o divino e preservar sua verdadeira identidade. Tinham o dever de realizar a aliyah
à Terra Santa e arriscar suas vidas por Sião. Então a Shekhinah voltaria para Jerusalém e se iniciaria a
Redenção. O próprio Halevi deixou a Espanha com essa intenção, mas é quase certo que não chegou a
concretizá-la: provavelmente morreu no Egito em 1141. Na época, poucos judeus se dispuseram a imitá-lo,
porém sua história é emblemática. Quando se sentem hostilizadas no meio em que vivem, física e
espiritualmente deslocadas no mundo, as pessoas tendem a buscar alívio em suas raízes.
Para os judeus, a conquista de Jerusalém por Saladino foi uma bênção e um transtorno. O sultão os
reconduziu a sua Terra Santa e permitiu que ali morassem em grande número. Os muçulmanos tomaram
Ascalon em setembro de 1187, e Jerusalém no mês seguinte. Não podendo defender as duas cidades,
destruíram Ascalon sistematicamente e conduziram seus habitantes a lugar seguro. Em 1190, estabeleceram os
judeus de Ascalon em Jerusalém, a oeste do novo bairro do Magreb — do qual os separava o residencial
bairro Sharaf —, e concederam-lhes permissão para construir uma sinagoga. Mais judeus procedentes do
norte da África começaram a chegar em 1198, e por volta de 1210 trezentas famílias judias partiram da
França, em dois grupos, e fizeram a aliyah. Esse empolgante retorno inspirou algumas esperanças messiânicas
de Redenção iminente. Contudo, a islamização de Jerusalém também foi extremamente penosa. Os judeus
ficaram perplexos ao ver cristãos e maometanos lutando pela cidade que consideravam sua. Quando o poeta
espanhol Yehuda al-Harizi peregrinou a Jerusalém, em 1217, os edifícios muçulmanos do H . aram o
transtornaram profundamente.
Que tormento ver nossos pátios santos convertidos num templo estrangeiro! Tentamos desviar os olhos
dessa grande e majestosa igreja que agora se ergue no local do antigo tabernáculo onde antigamente a
Providência fizera sua morada.2
Mais e mais judeus se convenciam de que a cidade aguardava a volta de seus verdadeiros habitantes. Como
dissera Halevi, nem os cristãos nem os muçulmanos podiam beneficiar-se de sua santidade.
A comoção afetou até o sóbrio Maimônides, o filósofo judeu que foi um dos médicos pessoais de Saladino.
Para ele Jerusalém continuava sendo o centro de gravidade de seu povo e um Estado judaico fundado em
outro lugar não seria válido. Um reino judaico e uma lei judaica tinham de basear-se no Templo. Mesmo
profanado pelos Goim, o monte do Templo ainda era um lugar santo, porque Salomão o consagrara para
sempre. Nunca se poderia banir dali a divina Presença. Assim, ao visitar o H. aram, os judeus deviam
comportar-se como se o Templo ainda existisse: não podiam entrar nas áreas proibidas, nem agir
irreverentemente quando se voltavam para o leste, onde ficava o Devir. O Templo desaparecera, porém a
santidade do local perduraria para sempre, simbolizando o constante amor de Deus por seu povo.
Saladino morreu de febre tifoide em 1194. Seu império esfacelou-se, e membros da família Ayyūb
instalaram-se no governo das várias cidades, cada qual com um exército e uma administração independentes.
A unidade pregada pelo sultão morreu com ele, e logo seus herdeiros se puseram a lutar entre si. Jerusalém
sofreu com esse conflito interno, mas não deixou de ser amada: os muçulmanos também haviam sofrido com
sua perda e agora que retornaram amavam-na como nunca e continuaram erguendo edifícios. Em 1193, Izz
ad-Dīn Jardick, o emir de Jerusalém, rededicou a pequena mesquita próxima ao Santo Sepulcro, que antes da
Primeira Cruzada fora dedicada a Omar; perto dessa mesquita fundou-se uma escola do Alcorão. Al-’Āfdal
dotou todo o bairro do Magreb, para que pudesse prestar ajuda e serviços aos peregrinos do Norte da África
e aos pobres; também construiu uma madrasah específica para o estudo da jurisprudência malequita e
concedeu-lhe uma dotação permanente.
Esse é um dos primeiros registros de waqf em Jerusalém, pela qual um doador renunciava à posse de uma
propriedade rentável, como uma loja, e dedicava os ganhos (depois de subtrair os custos operacionais) a uma
boa causa. Podia-se utilizar uma waqf para resgatar prisioneiros de guerra, alimentar os pobres ou construir
uma madrasah. Essa dotação constituía um gesto virtuoso, sobretudo em al-Quds, onde uma boa ação era
tida como especialmente meritória. Havia, porém, vantagens práticas. Alguns doadores usavam awqa-f para
prover a subsistência de seus descendentes, que podiam morar no edifício dotado ou tornar-se inspetores
assalariados da dotação. Eventualmente uma madrasah ou um khana-qa-h incluía um apartamento destinado ao
doador que desejasse viver em Jerusalém. A waqf era um ato de caridade prática: promovia o conhecimento
islâmico, oferecia bolsas a estudantes necessitados e sustentava os pobres. Assim garantia que o ideal de
justiça social, tão importante para o ensinamento do Alcorão, constituísse a base da jiha-d por Jerusalém.
Ademais, não só contribuía para o embelezamento da cidade, como ainda criava empregos. Qualquer
indivíduo em dificuldades financeiras podia trabalhar como guardião de uma madrasah ou ingressar numa
ordem sufista. Todo dinheiro excedente se destinava aos pobres, de modo que as pessoas que tinham de viver
da caridade alheia eram tratadas com dignidade e respeito. Justiça e compaixão sempre foram fundamentais
para a santidade de Jerusalém desde seus primórdios. Não tiveram maior evidência sob os cruzados, mas
preocupavam muito a Saladino. A distribuição de esmolas acompanhara a purificação do H. aram após a
partida dos cruzados, e agora a instituição da waqf fazia dos cuidados com os pobres e necessitados uma
parte essencial da islamização de Jerusalém empreendida pelos Aiúbidas.
Entretanto, os muçulmanos não poderiam descansar enquanto os cruzados permanecessem na Palestina. Os
francos que viviam no reino de Acre desejavam manter a paz — aprenderam uma preciosa lição na batalha
de Hattin. Já os cristãos do Ocidente eram mais belicosos e continuavam enviando expedições para libertar
Jerusalém. Al-Mu‘az. z. am Isa, filho de al-‘Ādil, tornou-se sultão de Damasco em 1200, mas gostava tanto
de al-Quds que fez da cidade sua principal residência. Dotou duas mada-ris: uma, ao norte do H. aram,
ocupava-se da lei hanafita e levava seu nome; a outra, sobre a Porta da Misericórdia, dedicava-se ao ensino
do árabe. Além disso reparou as colunatas nas bordas do H. aram. Em 1218, porém, os ocidentais
organizaram uma nova expedição.
Dessa vez os cruzados não seguiram diretamente para a Palestina, mas tentaram expulsar os maometanos do
Egito, onde esperavam estabelecer uma base para a reconquista de Jerusalém. Sua presença no Oriente
Próximo bastou para disseminar o medo por toda a região. Lembrando-se da carnificina de 1099, a
população temia novas atrocidades. Al-Mu‘az. z. am tinha certeza de que retomariam Jerusalém, massacrariam
seus habitantes e dominariam todo o mundo islâmico. Na verdade, eles pouco progrediram, após seu sucesso
inicial; os francos, porém, haviam deixado tal legado de terror que os muçulmanos não conseguiam ver a
situação objetivamente. Para impedir que os cruzados se instalassem em Jerusalém, Al-Mu‘az. z. am tomou
uma providência drástica: ordenou a demolição das muralhas da cidade. Os emires locais lhe garantiram que
conseguiriam evitar o ataque, mas ele ignorou suas objeções e insistiu em supervisionar pessoalmente a
demolição. A consternação foi geral. A raison d’être de qualquer cidade consistia em dar segurança a seus
habitantes, e, quando os engenheiros, pedreiros e sapadores do sultão chegaram e começaram a destruir as
muralhas, houve pânico. As pessoas mais vulneráveis — mulheres, moças e velhos — correram pelas ruas,
chorando e rasgando as vestes. Reuniram-se no H. aram e fugiram para Damasco, Cairo e Kerak, deixando
para trás famílias e bens. Por fim Jerusalém ficou sem fortificações, e sua guarnição se retirou. Apenas a
Torre de Davi permaneceu em pé.
Agora que al-Quds não tinha muralhas, os maometanos não ousavam morar ali enquanto os francos
estivessem no reino de Acre. A cidade se reduziu a pouco mais que uma aldeia, habitada por um punhado
de ascetas e juristas, que conseguiam manter em funcionamento as novas instituições dos Aiúbidas, bem como
por alguns funcionários públicos e soldados. A decisão de al-Mu‘az. z. am revelou-se precipitada, pois em
1221 os cruzados tiveram de voltar para a Europa. No entanto, causaram tamanho tumulto na região que
parecia impossível os muçulmanos contemplarem uma presença ocidental com alguma confiança ou
serenidade. Seu sentimento por Jerusalém adquiriu um caráter defensivo que podia ser destrutivo para a
cidade.
Segurança tornou-se prioridade máxima para os governantes islâmicos. Em 1229, al-Kāmil, sultão do Egito,
estava disposto a abrir mão de Jerusalém para não enfrentar mais uma invasão dos cruzados. Na Europa, o
papa pressionava Frederico II, do Sacro Império, a conduzir uma nova expedição à Terra Santa. Conhecido
por seus contemporâneos como Stupor Mundi, Maravilha do Mundo, Frederico zombava das expectativas
ocidentais. Crescera na cosmopolita Sicília e não partilhava a costumeira xenofobia da Europa. Não odiava o
Islã; ao contrário, falava árabe fluentemente e gostava de conversar e corresponder-se com estudiosos e
governantes muçulmanos. Considerava a cruzada uma perda de tempo, mas sabia que não podia continuar
ignorando a opinião pública e adiar a expedição indefinidamente. Com certo cinismo sugeriu a al-Kāmil que
simplesmente lhe entregasse Jerusalém, argumentando que a cidade sem muralhas não tinha serventia
econômica ou estratégica para o sultão. Nessa época al-Kāmil havia brigado com seu irmão al-Mu‘az. z. am,
sultão de Damasco, e sem uma frente unida não poderia enfrentar o exército ocidental. Achava que a
presença dos francos na Jerusalém desprovida de fortificações não haveria de representar nenhuma ameaça
militar e que devolver-lhes a cidade talvez minimizasse o perigo. Achava também que o imperador germânico
seria um aliado útil contra al-Mu‘az. z. am.
Por fim, depois de alguma hesitação de ambos os lados, Frederico e al-Kāmil firmaram em 29 de fevereiro
de 1229 o tratado de Jafa, segundo o qual haveria uma trégua de dez anos, os cristãos recuperariam
Jerusalém, Belém e Nazaré e as muralhas da Cidade Santa não seriam reconstruídas. Os judeus teriam de
deixar Jerusalém, porém os maometanos preservariam o H. aram, onde continuariam cumprindo suas
devoções e poderiam ostentar suas insígnias.
A notícia do tratado causou indignação geral. Os muçulmanos lotaram as ruas de Bagdá, Mossul e Alepo
em furiosas manifestações. Os imames cercaram o acampamento de al-Kāmil, em Tel al-Ajul, e tiveram de
ser afastados à força. Al-Mu‘az. z. am estava gravemente enfermo; porém, ao tomar conhecimento dos fatos,
insistiu em deixar o leito para supervisionar a destruição das últimas defesas de Jerusalém. As multidões
choraram e gemeram na Grande Mesquita de Damasco quando o xeique Sibt al-Jauzi denunciou al-Kāmil
como traidor do Islã. Procurando defender-se, al-Kāmil argumentou que não cedera seus santuários aos
cristãos — o H. aram ainda estava sob a jurisdição dos maometanos —, mas apenas abrira mão de “algumas
igrejas e casas em ruínas”, que não tinham nenhum valor. 3 Posteriormente recuperariam a cidade, garantiu.
Contudo, depois de tanta carnificina, Jerusalém se tornara um símbolo da integridade muçulmana, e não
seria fácil para nenhum governante islâmico fazer concessões a seu respeito.
Para os cristãos, igualmente indignados, a assinatura do tratado constituía quase uma blasfêmia, e a simples
ideia de permitir que os infiéis permanecessem no H. aram de uma cidade cristã era intolerável. O que mais
os escandalizou foi o comportamento de Frederico. Como o papa acabara de excomungá-lo, o imperador não
encontrou nenhum sacerdote disposto a coroá-lo rei de Jerusalém;4 assim, ao ver-se no altar-mor da igreja
do Santo Sepulcro, simplesmente colocou a coroa na própria cabeça. Depois caminhou até o H. aram,
conversou em árabe com os presentes, admirou a arquitetura e espancou um padre que ousou entrar em al-
Aqsā portando uma Bíblia. Quando soube que o cádi ordenara ao muezim que guardasse silêncio durante sua
estada, pediu que a hora das preces fosse anunciada como de costume. Não era assim que um cruzado devia
comportar-se! Os templários planejaram assassiná-lo, e o imperador deixou o país às pressas. Quando corria
para o navio, ao amanhecer, os açougueiros de Acre atiraram-lhe carniça e vísceras. No mundo cristão,
Jerusalém se tornara uma questão tão delicada que quem confraternizasse com os infiéis ou parecesse zombar
da Cidade Santa corria o risco de ser eliminado. Toda a história da extraordinária cruzada de Frederico
mostra que o Islã e o Ocidente achavam impossível chegar a um acordo: nem um nem outro desejava a
coexistência e a paz.
Entretanto, a trégua perdurou por dez anos, embora os muçulmanos de Hebron e Nablus atacassem
Jerusalém pouco após a partida de Frederico, e os peregrinos que se dirigiam à Cidade Santa pela estrada
costeira fossem importunados. Os cristãos não tinham recursos para defender Jerusalém, que era um enclave
isolado em meio a um território inimigo. Quando a trégua expirou, em 1239, al-Nasir Dā’ūd, governador de
Kerak, conseguiu expulsar os francos após um breve cerco. Mas, como os Aiúbidas continuavam lutando entre
si, logo devolveu a cidade aos cristãos, que ajudaram a combater o sultão do Egito. Dessa vez os
maometanos tiveram de deixar o H. aram e horrorizaram-se ao saber que os cristãos haviam pendurado sinos
em al-Aqsā e “colocado garrafas de vinho na Rocha” para a celebração da missa.5 Sua ocupação, porém, foi
efêmera. Em 1244, fugindo dos mongóis que invadiram sua terra, na Ásia central, um exército de turcos
corasmianos irrompeu na Palestina. Chamados pelo sultão do Egito para ajudá-lo em suas guerras na Síria,
esses turcos saquearam Damasco e devastaram Jerusalém, onde mataram cristãos e profanaram santuários,
inclusive a igreja do Santo Sepulcro. A cidade estava novamente em poder dos Aiúbidas, porém muitas de
suas casas e igrejas não passavam de ruínas fumarentas. Depois dessa catástrofe a maioria da população fugiu
para as cidades costeiras, relativamente seguras. E a antiga metrópole populosa reduziu-se a uma minguada
comunidade de cerca de 2 mil muçulmanos e cristãos.
Houve ainda uma sétima Cruzada, sob o comando de Luís IX, da França, mas ela não conseguiu
reconquistar Jerusalém. Na verdade, o exército inteiro ficou preso no Egito durante alguns meses, em 1250.
Um grupo de mamelucos derrotou nesse período os Aiúbidas do Egito e fundou seu próprio reino. Os
mama-līk eram originários das estepes eurasianas, situadas além das fronteiras do Império Islâmico. Ainda
crianças, foram escravizados pelos maometanos, que os converteram a sua religião e os alistaram em suas
tropas de elite. Como sua vida melhorou muito após a captura e a conversão, geralmente eram muçulmanos
dedicados, apesar de manter uma identidade étnica distinta e de sentir-se unidos por forte solidariedade.
Agora o regimento dos Baharitas que se apoderara do Egito criou um Estado mameluco que se tornaria
uma grande potência no Oriente Próximo.
A princípio a ascensão dos mamelucos não afetou Jerusalém, cuja posição continuou instável, enquanto no
resto do império de Saladino os Aiúbidas lhes opunham resistência. Em 1260, porém, o sultão mameluco al-
Zahīr Baybars (1260-76) derrotou os invasores mongóis na batalha de Ain Jalut, na Galileia. Foi uma façanha
gloriosa: os mongóis haviam deposto o califado dos Abássidas e saqueado e destruído grandes cidades
islâmicas, inclusive Bagdá. Tangendo-os para além do Eufrates, Baybars tornou-se não só um herói do Islã,
como o governante da Síria e da Palestina, já que os invasores tinham destituído também os sultões
Aiúbidas. Ainda enfrentou eventuais surtidas dos mongóis e decidiu expulsar os francos de seu Estado
costeiro, porém conseguiu restituir à região uma segurança e uma ordem que durante anos estiveram
ausentes.
Jerusalém não tinha importância estratégica para os mamelucos, que nunca se deram ao trabalho de
reconstruir suas muralhas, mas se impressionaram com sua santidade e contribuíram para aumentar seu
prestígio religioso. Quase todos os sultões fizeram questão de visitá-la e de dotar novos edifícios. Quando lá
esteve, em 1263, Baybars não só tratou de restaurar o H. aram, como encontrou uma engenhosa solução
para o problema da segurança. Ciente de que a Páscoa era uma época particularmente perigosa, pois os
cristãos lotavam a cidade, fundou nas vizinhanças dois santuários: um, perto de Jericó, dedicado ao profeta
Moisés [Nebī Mūsā]; o outro, em Ramleh, dedicado ao profeta árabe Salih. As festas dos profetas realizavam-
se na semana anterior à Páscoa, e nesse período vulnerável multidões de devotos se apinhavam ao redor de
Jerusalém. Nebī Mūsā adquiriu especial importância. Como os cristãos fizeram durante séculos, procissões de
peregrinos muçulmanos percorriam as ruas de al-Quds numa demonstração de que a cidade lhes pertencia.
Depois tomavam o rumo de Jericó, desfraldando um estandarte especial de Nebī Mūsā e literalmente
ostentando seu grande número. Acampados nos pátios do santuário e nas colinas vizinhas, passavam a semana
rezando, recitando o Alcorão, participando de exercícios sufistas e também se divertindo. Nesse tempo, os
peregrinos cristãos celebravam a Páscoa em Jerusalém, cientes de que ali perto havia multidões de islamitas
prontos para defender al-Quds. Era uma solução realmente engenhosa, mas as celebrações de Nebī Mūsā e as
outras festas que tinham lugar nos novos santuários dos arredores demonstravam o caráter defensivo da
devoção islâmica.
A paixão dos judeus por Jerusalém também se revestia de certa belicosidade. Em 1267 o rabino Moisés ben
Nachman, mais conhecido como Nachmanides, foi expulso da Espanha cristã e realizou a aliyah a Jerusalém.
Ao chegar, horrorizou-se com a desolação da cidade, onde encontrou apenas duas famílias judias; longe de
desanimar, fundou uma sinagoga numa casa desabitada do bairro judaico. A sinagoga Ramban (sigla formada
por Ra[bino] M[oisés] b[en] N[achman]), como passou a ser chamada, tornou-se o centro da vida judaica na
al-Quds dos mamelucos. Nachmanides era um talmudista ilustre, e sua fama atraiu estudantes desejosos de
frequentar sua yeshiva [escola]. Para consolar-se das penas do exílio ele estabelecia contato físico com
Jerusalém, “acariciando” suas pedras e chorando por suas ruínas.6 Era como se a cidade devastada substituísse
a família que tivera de deixar na Espanha. O douto rabino tinha plena convicção de que todos os judeus
deviam fixar-se na Palestina. Após três séculos de guerras intermitentes, a situação deplorável de Jerusalém e
seus arredores parecia demonstrar que o país nunca prosperaria sob cristãos ou maometanos, mas aguardava a
volta de seus verdadeiros donos. Nachmanides ensinou que a aliyah era um “preceito incontestável”, uma
obrigação que se impunha a todos os judeus. No entanto, a perseguição antissemita que sofrera na Espanha
endurecera seu coração e lhe inspirara antagonismo contra cristãos e muçulmanos, com os quais os judeus
conseguiram conviver proveitosamente quando al-Andalus estava em poder do Islã. As palavras que ele agora
dirigia a seus correligionários refletiam essa nova intransigência em relação aos rivais políticos e religiosos de
seu povo na Palestina:
Pois temos o dever de destruir aquelas nações, se nos guerreiam. Sem embargo, se desejam a paz,
negociaremos a paz com elas e as deixaremos ficar sob certas condições. Mas não entregaremos o país a
elas ou a qualquer outra nação em tempo algum!7
As Cruzadas no Oriente e a Reconquista na Espanha haviam aberto um abismo permanente entre as três
religiões de Abraão.
A Jerusalém dos mamelucos
1250-1517

Nachmanides era cabalista, praticava a forma esotérica de misticismo que se desenvolvera na Espanha do
século XIII. Embora poucos judeus tivessem a capacidade de assimilar inteiramente a Cabala, suas ideias e
seus mitos espirituais se tornariam normativos na devoção judaica. A Cabala representa na verdade o triunfo
da mitologia sobre as formas mais racionais do judaísmo nessa época. Considerando que o Deus da filosofia
estava muito distante de suas tribulações, os judeus espanhóis voltaram-se instintivamente para a velha
geografia sagrada, que interiorizaram e espiritualizaram ainda mais. Em vez do Deus inacessível irradiando
dez graus de santidade no Devir, imaginavam o incompreensível e misterioso Ser Supremo (que chamavam
de Ein Sof [Sem Fim]) estendendo-se na direção do mundo em dez sefiroth [numerações], cada uma das quais
representando um estágio da revelação divina, ou, por assim dizer, da adaptação do Ser Supremo à mente
limitada dos homens. Mas as dez sefiroth também representavam os estágios de consciência através dos quais
o místico realiza a aliyah a Deus. Tratava-se novamente de uma “ascensão para dentro”, para as profundezas
do eu. As imagens da Cabala, uma reafirmação da espiritualidade do Templo, simbolizavam a vida interior
de Deus e do homem. A Cabala enfatizava essa identidade entre as emanações do Ser Supremo e a
humanidade. A última sefirah era a Shekhinah, também chamada Malkhuth [Domínio]; representava a divina
Presença e o poder que une o povo de Israel e identificava-se com Sião, que, assim, elevava-se à esfera
divina sem perder sua realidade terrena. Num sentido profundo a Presença, Israel e Jerusalém permaneciam
inseparáveis.
A Cabala permitiu que os judeus da Diáspora realizassem a aliyah a Deus sem ir a Jerusalém, mas também
enfatizou que seu afastamento de Sião constituía uma vitória para as forças do mal.8 Durante o Êxodo os
israelitas foram obrigados a vagar pelo “deserto de horrores”, lutando com os poderes demoníacos dos ermos.
Assim que tomaram posse da terra e iniciaram a liturgia do monte Sião original, restabeleceu-se a ordem e
todas as coisas tomaram seus devidos lugares. A Shekhinah habitara o Devir, fonte do bem, da fertilidade e
da ordem para o mundo inteiro. No entanto, com a destruição do Templo e o exílio dos judeus, as forças
do caos triunfaram. Agora havia no centro de toda a existência um desequilíbrio que só se poderia retificar
quando os judeus voltassem a Sião e recuperassem seu devido lugar. Essa mitologia mostrava o quanto seu
deslocamento geográfico afetara sua alma: simbolizava uma separação mais profunda da fonte do ser. Agora
que começavam a ser expulsos da Espanha pelos cristãos, eles sentiam de novo sua alienação e sua anomia.
Os mitos da Cabala também expressavam a condição dos judeus que no restante da Europa sofriam com os
repetidos pogroms dos cruzados. Delineando seu mundo interior, tocavam-nos num nível mais profundo que
as doutrinas mais cerebrais de seus filósofos. Nesse estágio, a maioria dos judeus se contentava com um
retorno simbólico e espiritual a Sião. Na verdade, ainda acreditavam que não deviam tentar apressar a
Redenção realizando a aliyah à Palestina. Contudo, alguns cabalistas, como Nachmanides, sentiam-se impelidos
a buscar alívio no contato físico com Jerusalém.
Admitindo que provavelmente nunca recuperariam o controle da Cidade Santa, os cristãos do Ocidente
tratavam de conformar-se com a perda. Em 1291, o sultão mameluco Khalil finalmente destruiu o reino de
Acre e expulsou os francos de seu Estado costeiro. Pela primeira vez em quase duzentos anos toda a
Palestina estava em poder do Islã. A partir de então, Jerusalém começou a reflorescer. Na ausência dos
francos, os muçulmanos sentiam-se bastante seguros para voltar a viver em al-Quds, embora a cidade ainda
não tivesse fortificações adequadas. Mas os cristãos não haviam desistido. Durante séculos continuariam
planejando novas cruzadas e sonhando com a libertação da Cidade Santa. Parecia crucial preservar a presença
ocidental em Jerusalém. Pouco após a queda de Acre, o papa Nicolau IV pediu ao sultão que deixasse um
grupo de clérigos latinos servir no Santo Sepulcro. O sultão atendeu ao pedido, e o pontífice, sendo
franciscano, enviou alguns frades para darem continuidade à liturgia latina na Cidade Santa. Sem convento
nem renda, esses religiosos viviam numa hospedaria de peregrinos. Em 1300, suas dificuldades chamaram a
atenção de Roberto, rei da Sicília, que doou uma fortuna ao sultão e obteve sua permissão para que os
frades possuíssem a basílica do monte Sião, a capela de Maria na igreja do Santo Sepulcro e a gruta da
Natividade. Essa foi a primeira das muitas ocasiões em que uma potência ocidental usou sua influência para
promover a causa dos latinos em Jerusalém. A igreja do Sião passou a ser a sede dos franciscanos, e seu
superior tornou-se o custos, ou guardião, de todos os europeus radicados no Oriente, atuando como cônsul
em Jerusalém. Os franciscanos haviam desenvolvido uma política belicosa em relação ao Islã em outras partes
do mundo, e na Europa sua pregação muitas vezes inspirou pogroms, de modo que dificilmente exerceriam na
Cidade Santa uma influência benéfica.
Restabelecida a paz, afastada a ameaça dos mongóis e dos cruzados, a Palestina progrediu sob os
mamelucos. Jerusalém, que nunca chegou a ter grande importância política em seu império, era governada
por um emir de baixo escalão e usada basicamente para abrigar funcionários battal, ou indesejáveis. Esses
degredados não poderiam causar maiores males numa cidade sem fortificações, porém muitos participavam de
sua vida religiosa. Alguns ocuparam o prestigioso cargo de superintendente dos H. arams de Jerusalém e
Hebron, e muitos fizeram dotações. O programa de edificações prosseguiu, atraindo sufis, estudiosos,
palestrantes, juristas e peregrinos. Os mamelucos transformaram al-Quds.9 Somente os sultões podiam
construir no H. aram e em geral tiraram vantagem desse privilégio. Em 1317, o sultão al-Nasir Muh.
ammad ergueu novos pórticos ao longo das bordas setentrional e ocidental, restaurou a cúpula de al-Aqsā e
redourou a Cúpula do Rochedo. Também construiu um centro comercial no lugar de um antigo mercado
dos cruzados, assinalando a nova prosperidade que Jerusalém conheceu no início do século XIV. A cidade
produzia sabão, algodão e linho, e, conforme demonstram documentos do H. aram, recebia com frequência
negociantes estrangeiros do Oriente, sobretudo mercadores de tecidos. Faltam-nos, porém, informações
detalhadas sobre o volume dos negócios. O novo centro comercial, que recebeu o nome de Su q al-
Qattanin, Mercado dos Comerciantes de Algodão, contatava com o muro do H. aram, onde o sultão
construiu uma porta magnífica — Bab al-Qattanim — e uma escada de 27 degraus que conduziam à
esplanada.
O Ḥaram sob os mamelucos

1. Pórtico ocidental 19. Al-Jawhariyya 37. Al-Awhardiyya


2. Pórtico setentrional 20. Al-Wafa’iyya 38. Al-Karimiyya
3. Minarete Fakhriyya 21. Ribat al-Mansuri 39. Al-Ghadariyya
4. Madrasah Al-Fakhriyya 22. Al-Manjakiyya 40. Minarete Bab al-Asbat
5. Al-Tanzikiyya 23. Al-Hasaniyya 41. “Púlpito de Verão”
6. Al-Sa’diyya 24. Ribat de Ala al-Din 42. Poço de Ibrahim al-Rumi
7. Ribat al-Nisa 25. Minarete Ghawanima 43. Al-Hanbaliyya
8. Minarete Bab al-Silsila (Porta do Minarete da Corrente) 26. Al-Jawiliyya 44. Mesquita das mulheres
9. Al-Ashrafiyya 27. Al-Subaybiyya 45. Mesquita do Magreb
10. Fonte do Sultão Qaytbay 28. Al-Is’ ardiyya 46. Lugar do atual Muro Ocidental
11. Al-Baladiyya 29. Al-Almalikiyya 47. Piscina dos Filhos de Israel
12. Al-’Uthmaniyya 30. Al-Farisiyya 48. Porta da Corrente
13. Ribat al-Zamani 31. Al-Aminiyya 49. Porta do Inspetor
14. Suq al-Quattanim (Mercado dos Comerciantes de Algodão) 32. Al-Basitiyya 50. Porta da Misericórdia
15. Al-Khatuniyya 33. Al-Dawadariyya 51. Porta dos comerciantes de algodão
16. Al-Arghuniyya 34. Al-Salamiyya 52. Porta do Magreb
17. Al-Muzhiriyya 35. Minarete Mu’ azzamiyya
18. Ribat de Kurt al- Mansuri 36. Ribat al-Maridini

O desejo de estabelecer contato físico com o local santo muitas vezes caracterizara a devoção de judeus e
cristãos a Jerusalém. Na época dos mamelucos, esse desejo de tocar o H. aram evidenciou-se especialmente
nas novas mada-ris construídas ao redor da esplanada. Os arquitetos tinham de ser extremamente engenhosos,
pois em geral o espaço era exíguo (ver planta na p. 378). Só podiam construir nas bordas setentrional e
ocidental da esplanada, já que a leste e ao sul o terreno apresentava uma queda abrupta. Mas todos os
doadores queriam que sua madrasah tivesse vista para o H. aram ou tocasse o solo sagrado. Tanziq, vice-rei
da Síria, dotou em 1328 um dos primeiros edifícios novos, situado junto ao muro de sustentação ocidental, e
encheu-se de orgulho por estar construindo tão perto do terceiro local mais santo do Islã. Na mesquita da
Madrasah Tanziqiyya há uma inscrição que diz: “[Deus] permitiu que sua mesquita fosse vizinha de al-Aqs ā,
e é bom ter um vizinho puro”. Esplendidamente decorado, o edifício cruciforme possuía quatro salas para
palestras e preces comunitárias em torno de um pátio central. A Tanziqiyya não era, porém, apenas uma
escola de jurisprudência; incluía um convento [Kha-naqa-h] para onze sufis e uma escola para órfãos. Estudo,
oração e filantropia tinham lugar sob um mesmo teto. A planta mostrava o desejo de integração, que ainda
era crucial na concepção muçulmana de espaço sagrado. Mostrava também que a prática da caridade
continuava sendo fundamental na ininterrupta islamização de al-Quds. Entretanto, ao constatar que dispunha
de pouco espaço para agrupar todas as instituições, o arquiteto resolveu construir o convento sufista sobre o
novo pórtico do sultão, na borda ocidental do H. aram. Agora, quando faziam seus exercícios espirituais, os
sufis podiam contemplar a Cúpula do Rochedo, um paradigma de sua busca.
Outros doadores logo seguiram o exemplo de Tanziq. A Madrasah Aminiyya (1229-30) erguia-se
verticalmente num local muito estreito — apenas nove metros — entre o paredão oriental da rocha da
Antônia e a rua, o terceiro andar estendendo-se sobre o pórtico setentrional. A Madrasah Malikiyya adotou a
mesma solução, de modo que o andar principal da escola de jurisprudência situava-se acima do H. aram. A
Madrasah Manjakiyya (1361) foi construída inteiramente sobre os pórticos e a Porta do Inspetor [Bab al-
Nasir], uma das entradas mais movimentadas do H. aram na época dos mamelucos. A Madrasah Tuluniyya e
a Madrasah Faraniyya erguiam-se no alto do pórtico setentrional, ladeando o minarete da Porta das Tribos
[Bab al-Asbat], e dispunham de uma única entrada: a estreita escadaria do minarete.
Como no judaísmo, o estudo da lei era uma forma de elevar a mente e o coração até Deus, e não uma
árida disciplina acadêmica. Demonstra-o claramente o desejo de estudar contemplando a Cúpula do Rochedo,
o grande símbolo islâmico da ascensão espiritual. Mas a madrasah tinha adquirido uma importância
inteiramente nova desde as invasões dos mongóis. Tantas bibliotecas, manuscritos e objetos foram destruídos
que os muçulmanos sentiam uma urgência distinta em relação ao estudo de suas tradições. Recuperar o que
perderam tornou-se uma jiha-d, e um novo conservantismo introduziu-se, talvez inevitavelmente, em seu
pensamento. Podemos dizer que, ao construir essas mada-ris em torno do H. aram, eles tentaram erguer um
baluarte entre o local sagrado e um mundo hostil, expressando o caráter defensivo de seu sentimento por
Jerusalém. O mesmo intuito se revela nos austeros albergues [riba-ts] que se multiplicavam por toda a cidade.
Usado originalmente como fortaleza, o riba-t agora abrigava ascetas, pobres e peregrinos.
A esse conservadorismo opunha-se o movimento sufista, que cresceu muito após o flagelo mongol, quando
os maometanos se esforçavam para entender a catástrofe e o sofrimento. No século XIV, al-Quds atraiu mais
sufis que nunca, tendo alguns deles se instalado nos novos edifícios vizinhos do H. aram e outros em
comunidades menores, espalhadas pela cidade. Longe de ser uma disciplina para poucos eleitos, o sufismo era
um movimento popular, fortemente individualista, que incentivava os leigos a contestarem os ensinamentos
tradicionais dos ulemás — embora alguns xeiques sufistas lecionassem nas mada-ris — e que acabou por
introduzir no mundo islâmico um espírito de livre-pensador. Seus adeptos começaram a formar grandes
ordens, muitas das quais se estabeleceram em Jerusalém nessa época. Contudo, não aprendiam a afastar-se do
mundo, como os ascetas cristãos. A influente Qadariyya, sediada no antigo complexo do hospital, ensinava
que a justiça social era o supremo dever religioso. A jiha-d pela espiritualidade e a prece interior tinham de
conjugar-se — mais uma vez — com a prática da compaixão. A Bistamiyya, instalada no norte da cidade,
lecionava disciplinas iogues para ajudar seus membros a atentarem nas correntes mais profundas do
inconsciente que afloravam nos sonhos e visões. Ao mesmo tempo desenvolveu um programa denominado
sulh-e kull [conciliação universal], que visava promover o mútuo entendimento entre as diversas tradições
religiosas. Após séculos de ódio e guerra essa tentativa de reconciliação poderia ser muito valiosa na tensa al-
Quds.
O choque entre conservantismo e inovação evidencia-se na obra de Taqiyy ad-D īn Ibn Taymiyya,
reformador do século XIV, que se assustou com a intensidade da devoção a al-Quds, a seu ver incompatível
com a tradição islâmica. No tempo dos mamelucos, foram publicadas pelo menos trinta novas antologias de
fad. a-’il al-quds, louvando a santidade de Jerusalém e incentivando os muçulmanos a visitá-la. Ibn Taymiyya
desaprovava certas práticas que se introduziram no H. aram, como alguns rituais de peregrinação realizados
pelos maometanos para expressar sua convicção de que a santidade de al-Quds derivava de Meca. Assim, no
breve tratado Em defesa das visitas piedosas a Jerusalém, dizia que era importante separar a ziya-ra [visita] a al-
Quds da h. ajj a Meca; que não se devia circundar e beijar a Rocha, como se ela fosse a Caaba; que
santuários como o Berço de Jesus não passavam de invencionices, críveis apenas para os tolos. Ainda
acreditava que Jerusalém era a terceira cidade mais santa do mundo islâmico, porém queria deixar claro que
a ziya-ra só podia ser uma devoção particular e, ao contrário da h. ajj, não se impunha a todos os
muçulmanos. Seu esforço para preservar a tradição e impedir inovações [‘bida] era típico da época; sua
austera visão de Jerusalém nunca convenceu a maioria de seus correligionários, que ainda citam os fad. a-’il
al-quds e consideram o culto da cidade uma autêntica devoção islâmica.
Nem sempre era fácil cumprir tal devoção. Para alguns fad. a-’il, a ziya-ra era um ato piedoso que
demandava coragem e persistência. “Quem vive em Jerusalém é considerado um guerreiro da jiha-d”, teria
dito Maomé segundo uma das novas tradições. Para outros, visitar al-Quds envolvia “transtornos e
adversidades”.10 Na segunda metade do século XIV revelaram-se as primeiras fendas no sistema dos
mamelucos. Os novos sultões encontravam dificuldade para impor sua autoridade. Os beduínos, que no
tempo dos cruzados não se atreveram a invadir a Cidade Santa, retomaram suas incursões e em 1348
expulsaram a população. Em 1351-3, Jerusalém sofreu com a Peste Negra. Depois, a instabilidade política
levou a breves mandatos de governadores que nunca chegavam a inteirar-se realmente das condições locais.
No início do século XV registraram-se novos ataques por parte dos beduínos, e piratas cristãos investiram
contra as cidades costeiras da Palestina. A depressão econômica e a elevação dos tributos geraram tumultos
ocasionais que resultaram em mortes. A despeito de tantos problemas, o programa de edificações prosseguiu.
Os sultões al-Nasir Hasan (1347-51) e al-Salih Salih (1351-4) completaram uma grande reforma em al-Aqsā, e
novas mada-ris e riba-ts receberam dotações. O dinheiro destinado a essas fundações não contribuiu para
reanimar a economia da cidade, pois as mada-ris não geravam renda.
Como sempre os problemas econômicos e políticos dificultavam ainda mais a convivência pacífica de
cristãos e muçulmanos. Os judeus não sentiam tanta hostilidade contra o Islã, e no século XIV sua
comunidade prosperou em paz, segundo informam alguns visitantes. Nesses tempos difíceis, porém, a maioria
dos recém-chegados preferia instalar-se na Galileia, que lhes proporcionava maiores oportunidades e se
convertia numa terra santa rabínica. Os peregrinos agora rezavam no túmulo dos grandes talmudistas, como
os rabinos Yohanan ben Zakkai e Akiva. A proximidade da tumba do rabino Simeon ben Yohai, herói do
clássico cabalístico Zohar, fazia de Safed mais uma cidade santa, sobretudo para os devotos que possuíam
inclinações místicas. Os maometanos também veneravam essas sepulturas, e visitantes judeus observaram que
“sarracenos” e judeus zelavam pelos mesmos santuários no interior da Palestina. Os muçulmanos mantinham
boas relações com os cristãos e armênios locais, porém a tensão existente entre eles e os cristãos ocidentais
— um legado direto das Cruzadas — perturbava a paz de al-Quds.
Em 1365, por exemplo, quando os hospitalários sediados em Chipre atacaram Alexandria, os islamitas
prenderam toda a comunidade franciscana e fecharam o Santo Sepulcro. Os frades, no entanto, não eram
vítimas passivas e, como seus colegas em outras partes do mundo islâmico, eventualmente realizavam ataques
suicidas contra o establishment muçulmano de Jerusalém. Em 11 de novembro de 1391, organizaram uma
procissão a al-Aqsā e solicitaram uma audiência com o cádi. Tão logo se encontraram diante do juiz,
declararam que Maomé havia sido “um libertino, um homicida, um glutão, um espoliador que não via outro
propósito na vida humana além de comer, frequentar bordéis e vestir roupas caras”. 11 A notícia desse ataque
verbal se difundiu, e logo uma multidão enfurecida se aglomerou na porta do cádi. Insultar o Profeta
constituía crime grave, de modo que, antes de condenar os franciscanos à pena capital, o juiz lhes apresentou
a opção de converterem-se ao Alcorão. Não era outra a intenção dos frades: obrigando os maometanos a
transformá-los em mártires, pretendiam levar “morte e danação aos infiéis”.12 Um incidente semelhante
ocorreu em 1393, quando três franciscanos desafiaram os ulemás a um debate público e depois utilizaram os
termos mais grosseiros para denunciar Maomé como impostor. Tais atitudes só podiam azedar as relações
entre os seguidores das duas religiões; os muçulmanos sentiam-se explorados e ofendidos, e os ataques
revelavam uma aversão que impossibilitava a verdadeira coexistência.
Em função da crescente tensão, às vezes parecia que os islamitas concebiam seu programa de edificações
como uma invasão do espaço sagrado dos outros — que decerto assim o viam. No final do século XIV,
reconstruíram o minarete de uma mesquita contígua à sinagoga Ramban, e no futuro essa proximidade
causaria muitos problemas. Em 1417, o xeique do khana-qa-h Salihiyya provocativamente ergueu um minarete
mais alto que o Santo Sepulcro, levando os muçulmanos de Jerusalém a acreditarem que no Juízo Final seria
recompensado por isso. Todavia, esse choque de interesses se manifestou com maior agressividade na sede dos
franciscanos no monte Sião.
Quando adquiriram a basílica, em 1300, os frades se tornaram proprietários da chamada Tumba de Davi,
descoberta na época dos cruzados, mas não lhe deram grande atenção. Tinham pouco apreço pelas coisas
judaicas e, ao guiar os peregrinos pelas ruas de Jerusalém, preferiam enfatizar as relações da cidade com o
Novo Testamento. A basílica do monte Sião era sobretudo um monumento à Igreja primitiva: ali os
peregrinos conheciam a Sala Superior, o santuário de Pentecostes, o local onde são João celebrava a missa
para a Virgem Maria e o lugar onde Maria “adormeceu” no final de sua vida terrena. Ao descrever o monte
Sião, geralmente mencionavam os túmulos de Davi e dos reis de Judá só no final. Contudo, os judeus
jerosolimitas repentinamente se deram conta de que a sepultura de seu primeiro rei se encontrava num
recinto cristão e procuraram reavê-la. Foi um erro. Quando soube que a tumba do profeta Dā’ūd estava em
poder de inimigos declarados do Islã, o sultão Barsbay (1422-37) marchou para o monte Sião e fechou o
sepulcro, interditando o acesso dos franciscanos. Então destruiu tudo que os cristãos haviam posto ali e
transformou o local em mesquita. Por fim, trancou a Sala Superior, ou igreja do Cenáculo, porque se
encontrava logo acima da Tumba de Davi e não convinha que se realizassem procissões sobre a nova
mesquita.13 No tocante aos cristãos latinos, o velho ideal islâmico de coexistência e integração ruía
rapidamente.
O sultão al-Zahīr Jaqmaq (1438-53) deu continuidade à jiha-d, fazendo executar ao pé da letra a lei que
proibia as dhimmis de restaurar seus lugares santos sem permissão. Acabou de fechar a basílica do monte
Sião e exumou os restos dos frades enterrados no cemitério vizinho. Levou para al-Aqsā uma balaustrada de
madeira construída “ilegalmente” na igreja do Santo Sepulcro e demoliu novos edifícios em Belém. Confiscou
um convento sírio, embora dirigisse sua ofensiva basicamente contra os latinos. Expediu um edito especial,
proibindo que o emir de Jerusalém sobrecarregasse os armênios com tributos desnecessários, e inscreveu-o
numa placa que mandou colocar na entrada oeste do bairro armênio. Esses cristãos se envolveram com os
cruzados, mas não partilhavam seu ódio contra o Islã. Já haviam aprendido a não tomar partido e, assim,
eram a única comunidade que se manteve em seu próprio bairro ao longo de trezentos anos de tumultos.
Contudo, apesar da tensão, numerosos ocidentais continuavam visitando a cidade. Nem sempre se
instalavam confortavelmente, mas podiam ver o que desejavam e contavam com uma organização eficiente.
Depois de passar uma noite inteira na igreja do Santo Sepulcro, iniciavam sua excursão de madrugada para
não antagonizar os muçulmanos. Dirigiam-se primeiramente à porta oriental da cidade (atual Porta do Leão),
cruzavam o vale do Cedron até o Getsêmani e iam para a igreja da Ascensão, no monte das Oliveiras. Na
volta passavam pela piscina de Siloé e finalmente visitavam o monte Sião. Podiam também realizar uma
viagem de três dias a Belém e ao rio Jordão. Como os peregrinos cristãos que os antecederam, quase não
mencionam as mesquitas e mada-ris — os franciscanos contrapunham à islamização do H. aram a ênfase em
seu significado exclusivamente cristão. O “Templo do Senhor”, como ainda chamavam a Cúpula do Rochedo,
tinha grande importância para eles, porque ali a Virgem Maria fora apresentada a Deus, ali estudou e ali se
casou com são José. Agora os cristãos se sentiam donos de al-Aqsā, a qual denominavam “igreja de Nossa
Senhora”.
Os franciscanos tinham especial devoção à Paixão de Cristo e começavam a assinalar locais relacionados
com as últimas horas de Jesus. No que dizia respeito aos latinos, praticamente todos esses lugares se
situavam agora nos distritos setentrionais de Jerusalém. A transferência do monte Sião, iniciada na época dos
cruzados, estava quase completa. Assim, Tiago de Verona, que visitou Jerusalém em 1335, entrou na cidade
pela porta oriental (do Leão), perto da piscina de Betesda; passou pela igreja de Santa Ana (atual Madrasah
Salihiyya) e percorreu a rua que hoje se chama Via Dolorosa. Conheceu a casa de Anás (que atualmente é
uma mesquita), a de Herodes e a “Casa de Pilatos” (o arco “Ecce Homo” do fórum de Adriano), bem como
o local onde Maria desmaiou ao ver seu Filho carregando a cruz e as ruínas de uma porta pela qual Jesus
teria deixado a cidade. No Santo Sepulcro deteve-se em outras “estações”. Contemplou a pedra quebrada que
assinalava o lugar onde Jesus descansou antes de subir o Gólgota e a gruta onde ele ficara preso e fora
despojado de suas vestes, enquanto se preparava a cruz. Depois viu o Gólgota, a Pedra Negra da Unção,
onde se depositou o corpo de Jesus, e, finalmente, o túmulo. Alguns desses pontos mudariam: tal devoção
ainda não era a que conhecemos hoje como as Estações da Via-Sacra. Quando conduziam os peregrinos pela
Via Dolorosa à luz de tochas, os franciscanos os levavam na direção contrária. Mas o terreno havia sido
preparado. Agora que já não tinham muito espaço próprio na igreja do Santo Sepulcro, os cristãos latinos
estavam cultivando outros locais.
O dominicano alemão Felix Fabri, que visitou Jerusalém por volta de 1480, deixou-nos um relato vívido de
sua peregrinação. Tão logo desembarcou em Jafa, percebeu a tensão existente entre islamitas e latinos. As
autoridades muçulmanas agarraram brutalmente cada um dos recém-chegados, perguntaram-lhe o nome e
exigiram outras informações. Quanto a Felix, jogaram-no num “escuro porão arruinado [...] como se costuma
empurrar para o estábulo uma ovelha que se vai ordenhar”,14 e designaram-lhe seu dragomano, um guia que
seria seu único contato com o mundo islâmico durante sua estada. Então o custos franciscano fez um severo
sermão: disse aos peregrinos que não podiam circular sem o dragomano em hipótese alguma, nem inscrever
grafites nos muros, admirar as mulheres maometanas, tomar vinho em público (para não atiçar a inveja
criminosa dos infiéis) ou confraternizar-se com os islamitas. A tensão era tal que as autoridades não podiam
mais garantir a boa vontade da população local.
No entanto, essa lúgubre recepção não arrefeceu o ardor dos peregrinos. Felix nos conta que, tão logo
avistaram a Cidade Santa, eles saltaram de seus jumentos e desfizeram-se em lágrimas. Choraram novamente
ao ver o Santo Sepulcro pela primeira vez: “Quantos gemidos amargos e sinceros, doces lamentos, suspiros
profundos, tristeza, soluços vindos do fundo do coração, paz e deleitoso conforto!”.15 Alguns vagavam como
zumbis, batendo no peito desvairadamente, como possessos. Outros simplesmente caíam, jazendo no chão
iguais a mortos. As mulheres gritavam como se estivessem em trabalho de parto. Muitas vezes os visitantes se
emocionavam a tal ponto que tinham de ser hospitalizados. A devoção dos ocidentais a Jerusalém assumira
um caráter histérico, que impedia a “ascensão” disciplinada e a verdadeira transcendência. Esses peregrinos
pareciam atolados em suas próprias neuroses.
Outras mudanças, porém, ocorriam na devoção ocidental. Felix analisou suas próprias atitudes de uma
forma que não teria ocorrido a viajantes anteriores. Constatou que não era nada fácil marchar de um lugar a
outro sob o sol causticante, ajoelhar-se e prostrar-se no chão e, sobretudo, preocupar-se em reagir da
maneira adequada. “Dedicar-se simultaneamente à abstração mental e à caminhada incessante é muito
cansativo.”16 Felix também se preocupava com a autenticidade de alguns lugares. Até que ponto o sepulcro
original se preservara depois de tanto tempo? Por que se demorou tanto a descobrir a Tumba de Davi? 17 O
novo espírito crítico que começava a surgir impossibilitaria muitos ocidentais de realizarem a peregrinação
tradicional.
Mas talvez a peregrinação estivesse com os dias contados. Todos os principais credos afirmam que a
verdadeira experiência religiosa está na prática da compaixão. Essa é, por assim dizer, a prova decisiva da
espiritualidade autêntica. No passado, Jerusalém não ajudou os cristãos a serem caridosos uns com os outros
ou com os adeptos de outras crenças. As Cruzadas foram um arremedo de religião: uma idolatria que visava
basicamente à simples posse de um local santo. Agora, às vésperas da modernidade, Felix, com seu espírito
crítico, não consegue dizer uma palavra boa a respeito de qualquer habitante de Jerusalém. Os “sarracenos”,
“conspurcados pela escória de todas as heresias, [são] piores que idólatras, mais detestáveis que os judeus”;
“inúmeros erros obscurecem” a Igreja grega, outrora tão culta; os sírios são “filhos do demônio”, e os
armênios chafurdam em heresias diversas; os judeus atraíram, com razão, o ódio geral, pois seu intelecto está
embotado pela miséria e pelo desprezo que sofrem. Só os franciscanos levam uma vida virtuosa, sendo a
principal marca de sua piedade o ardente desejo de que uma nova Cruzada conquiste a Cidade Santa.18 A
sombria visão de Felix demonstra que, em vez de contribuir para libertá-lo de suas projeções e de seus
preconceitos, a peregrinação simplesmente o conduziu ao beco sem saída do ódio e do farisaísmo.
No reinado do sultão al-Ashraf Qaytbay (1468-96), teve início a fase final do império dos mamelucos. Os
exércitos otomanos começavam a invadir seu território; os ataques dos beduínos, que em 1461 mataram
sessenta pessoas nos arredores de Jerusalém, tornavam perigoso deixar a cidade. Além disso, os portugueses
prejudicavam seu comércio. O sultão, porém, não descuidou de al-Quds. Construiu junto ao muro ocidental
do H. aram a Madrasah Ashrafiyya, provavelmente o mais belo edifício dos mamelucos, que Mūjīr ad-Dīn
definiu como a terceira joia do H. aram. Erguida sobre a Madrasah Maladiyya e o pórtico, a Ashrafiyya
possuía um salão principal que se estendia pelo H. aram, como se os últimos mamelucos desejassem alcançar
a Rocha, apesar de estar perdendo Jerusalém. Reunindo ulemás das quatro escolas de jurisprudência e sessenta
sufis, a nova madrasah simbolizava, mais uma vez, a integração do Islã. O sultão também tentou aliviar as
tensões religiosas. Grato aos franciscanos que o ajudaram em sua juventude, quando fora banido para
Jerusalém, permitiu que voltassem para o monte Sião, onde se instalaram em bairros apinhados, sob a
vigilância de selvagens cães de guarda. Em 1489, os frades conseguiram, mediante suborno, recuperar a
Tumba de Davi e a capela do Cenáculo e deram início às obras de reconstrução. No ano seguinte, porém,
uma assembleia de ulemás decretou que, como o local havia sido outrora uma mesquita, era ilegal devolvê-lo
aos cristãos.
As relações entre muçulmanos e judeus também se deterioraram nesse período. Uma forte tempestade
derrubou em 1473 parte da sinagoga Ramban. Os judeus pediram permissão para reerguê-la, mas as
autoridades da mesquita contígua protestaram, reivindicando o direito de entrar em seu santuário sem ter de
passar pela sinagoga. Quando os judeus conseguiram manter a posse do local, oferecendo as propinas
adequadas, seus vizinhos se enfureceram de tal modo que invadiram seu templo na calada da noite e o
demoliram. Qaytbay, no entanto, ordenou a reconstrução da sinagoga. Agora a população judaica de
Jerusalém se resumia a cerca de setenta famílias, das quais a maioria era pobre e muitas viviam em casas
caindo aos pedaços. Contudo, não podiam culpar unicamente os islamitas, observou o viajante italiano
Obadiah da Bertinero, que visitou Jerusalém em 1487. Seu principal problema era a discórdia entre os
ashkenazim da Alemanha e os sefardins da Espanha e dos países maometanos. Os judeus agora se recusavam
a entrar no H. aram, informa-nos Obadiah, e, quando os muçulmanos os chamavam para fazer alguns
reparos ali, rejeitavam os serviços, pois não se encontravam no devido estado de pureza ritual. Essa é a
primeira menção da restrição que impunham a si mesmos e que alguns observam até hoje. Maimônides tinha
opiniões semelhantes, porém se sentiu apto a entrar no H. aram, quando visitou a cidade. Agora que estavam
ainda mais distanciados do monte do Templo, os judeus precisavam de um novo lugar santo. Todavia, ao
passar pelo muro de sustentação ocidental da esplanada, Obadiah não sentiu nenhuma emoção especial. O
muro “compunha-se de pedras enormes, que nunca vi numa construção antiga, fosse em Roma, fosse em
qualquer outra cidade”.19 O Muro Ocidental ainda não era santo para os judeus de Jerusalém. Mas isso logo
mudaria.
Escrevendo em 1496, o historiador Mūjīr ad-Dīn nos oferece uma preciosa descrição de al-Quds nos
últimos tempos dos mamelucos. Durante o longo reinado desses sultões a santidade de Jerusalém se tornara
mais crucial que nunca para a imaginação muçulmana. Todavia, a cidade continuava sem muralhas e
praticamente sem uma guarnição. Não havia mais a parada vespertina na Cidadela, e o governador vivia
como um cidadão comum. Apesar de toda a atenção que dispensaram ao H. aram, os mamelucos nunca se
deram ao trabalho de fortificar al-Quds, que agora não tinha nenhuma importância estratégica. Não
negligenciaram, porém, outros aspectos: Mūjīr nos conta que os edifícios eram sólidos, e os mercados, os
melhores do mundo. Sob sua influência o centro da vida urbana se transferira da Colina Ocidental, que
dominara Jerusalém desde o tempo de Constantino, para a área do H. aram. Quando conquistaram a cidade,
Saladino e seus emires estabeleceram residência nas proximidades do Santo Sepulcro. Na época de Mūjīr o
governador morava perto da borda setentrional do H. aram. Como a maioria das cidades orientais, Jerusalém
dividia-se em bairros. Seus habitantes tendiam a agrupar-se em função da crença religiosa e da origem étnica.
Os armênios, os naturais do Magreb e os maometanos procedentes do Irã, do Afeganistão e da Índia
habitavam a área próxima ao ângulo setentrional do H. aram. Mas não havia uma segregação estrita.
Muçulmanos conviviam com judeus no sul da cidade e com cristãos no bairro de Bezetha, a nordeste. A
divisão ainda não era total.
No reinado do sultão al-Ashraf Aqnouk al-Ghuri (1513-6), tornou-se claro que os mamelucos não
conseguiriam resistir aos otomanos indefinidamente. Em 1453, os turcos tomaram Constantinopla e
absorveram o antigo império cristão de Bizâncio. Parecia que conquistariam também a Europa, mas o
exército húngaro os rechaçou em Belgrado. O sultão otomano Selim I reiniciou em 1515 a ofensiva; dois
anos depois havia detido o avanço dos iranianos na batalha de Chaldiran e derrotado os mamelucos em
Merj-Dibik, ao norte de Alepo. Com mais uma batalha, nos arredores do Cairo, pôs fim ao império dos
mamelucos. Em 1o de dezembro de 1516, chegou aos muros de Jerusalém. Não encontrou oposição. Os
ulemás saíram para recebê-lo e presentearam-no com as chaves de al-Aqsā e da Cúpula do Rochedo. Selim
saltou do cavalo, prostrou-se em atitude de prece e gritou: “Graças a Deus! Possuo o santuário da primeira
qiblah!”.
15. A CIDADE OTOMANA

FOI COM ALÍVIO que o povo de Jerusalém recebeu os otomanos. No declínio de seu império os mamelucos
negligenciaram a cidade: as dotações cessaram, a economia enfraquecera e os beduínos aterrorizavam os
viajantes. Os otomanos eram já experientes construtores de impérios e possuíam uma forte administração
centralizada. Como os mamelucos, eram uma potência predominantemente militar; no centro de seu exército
e de seu Estado encontravam-se os janízaros, um corpo de infantaria de elite, cuja grande força consistia em
sua disposição para utilizar armas de fogo. Em meados do século XVI, quando o Império estava no auge de
seu poderio, havia entre 12 mil e 15 mil janízaros. Os otomanos restabeleceram a lei e a ordem na
Palestina: reprimiram os beduínos, que pararam de devastar os campos e, assim, permitiram o
desenvolvimento da agricultura. No início foram generosos com as províncias árabes. Implantaram uma
administração eficiente, criando condições para que a economia prosperasse. Dividiram a Palestina em três
distritos [sanjaks] que, baseados em Jerusalém, Nablus e Gaza, faziam parte da província [ea-alet] de Damasco.
Não tentaram repovoar al-Quds com turcos. Limitaram-se a enviar um governador [paxá], funcionários civis
e uma pequena guarnição militar, que se instalou na Cidadela.
Jerusalém floresceu sob o sultão Solimão, o Magnífico (1520-66). Depois de guerrear na Europa e expandir
o Império para o oeste, Solimão concentrou-se no desenvolvimento interno de seus domínios. O Império
Otomano conheceu um renascimento cultural, e Jerusalém foi um dos principais beneficiários. As guerras
turcas naturalmente reacenderam o ódio da Europa pelo Islã. Surgiram rumores de uma nova Cruzada e
dizia-se que o sultão sonhara com o Profeta ordenando-lhe que organizasse a defesa de al-Quds. Verdade ou
não, em 1536 Solimão decidiu reerguer as muralhas de Jerusalém. Tratava-se de um projeto ambicioso, que
envolvia gastos imensos e muita habilidade. Em poucos lugares os otomanos construíram fortificações tão
primorosas. Com três quilômetros de extensão, cerca de doze metros de altura, 34 torres e sete portas, a
muralha contornava inteiramente a cidade — e sobrevive até hoje. Consta que, ao passar por lá, Sinan, o
grande arquiteto da corte, concebeu a Porta de Damasco, no norte de al-Quds. Quando se concluiu a obra,
em 1541, Jerusalém estava fortificada devidamente pela primeira vez em mais de trezentos anos.
Solimão também investiu muito dinheiro no sistema de abastecimento de água. Construiu seis belas fontes,
diversos canais e tanques; reformou a “piscina do Sultão”, no sudeste da cidade, e reparou seus aquedutos.
Para fortalecer ainda mais al-Quds, tentou convencer seus súditos a fixarem-se ali; interessavam-lhe
particularmente os judeus que, expulsos da Espanha cristã em 1492, haviam se refugiado em seus domínios.
Censos demográficos realizados pelos otomanos demonstram que a população quase triplicou em meados do
século XVI. Em 1553, Jerusalém tinha aproximadamente 13 384 habitantes. As comunidades judaica e cristã
contavam cerca de 1650 almas. A maioria dos muçulmanos eram sunitas árabes naturais da região, porém
havia os que chegaram do norte da África, do Egito, da Pérsia, do Iraque, da Bósnia, da Índia e da Ásia
central. Al-Quds conheceu uma nova prosperidade. Os mercados se desenvolveram e ampliaram-se; o preço
dos produtos aumentou, indicando uma melhoria no padrão de vida. Suas principais indústrias produziam
alimentos, têxteis, sabão, couro e artefatos de metal. Jerusalém exportava cereais para Rodes, Dubrovnik e
Egito, que comprava também seu sabão e lhe vendia tecidos e arroz. As importações incluíam ainda têxteis e
café de Damasco, tecidos e tapetes de Istambul, da China e do Hedjaz. As várias profissões organizavam-se
em cerca de quarenta guildas [taifa], cada qual com um xeique e seu representante. Até os cantores e
dançarinos tinham suas próprias taifa. O aumento da população e da renda, bem como o prestígio religioso
da cidade, valeram-lhe uma promoção administrativa na segunda metade do século XVI. Jerusalém tornou-se
uma mutasarriflik, uma unidade administrativa ampliada que incluía os sanjaks de Nablus e Gaza. O paxá que
a governava tinha o título de mutasarrif; o cádi local atuava numa área muito maior, que se estendia de
Gaza a Haifa; assim, ambos recebiam o mesmo salário.
Solimão não negligenciou o H. aram. Restaurou o mosaico na parte superior da parede externa da Cúpula
do Rochedo e revestiu de mármore a parte inferior. Recobriu a Cúpula da Corrente com bela faiança e no
pátio de al-Aqsā construiu uma esplêndida fonte para as abluções. Restabeleceu a waqf destinada ao H. aram
e algumas mada-ris. Com o dinheiro dos ingressos pagos pelos peregrinos — que por direito lhe pertencia —
financiou um ano de leitura do Alcorão na Cúpula do Rochedo. Restaurada e ampliada, a waqf gerou
empregos e doações de caridade. Em 1551, a esposa do sultão, a russa Roxelana, construiu o asilo Takiyya,
um vasto complexo que compreendia mesquita, riba-t, madrasah, hospedaria [kha-n] e cozinha, onde os
estudantes, os sufistas e os pobres recebiam refeições gratuitas. Graças a uma generosa waqf, que incluía
diversas aldeias e fazendas na área de Ramallah, o asilo tornou-se a mais importante instituição de caridade
da Palestina.
A estabilidade proporcionada pelos otomanos também melhorou a situação das dhimmis. Os judeus em
geral ainda preferiam fixar-se em Tiberíades ou Safed, porém o número dos que viviam em Jerusalém
cresceu no reinado de Solimão. Oficialmente não tinham um bairro específico, mas tendiam a instalar-se em
três distritos residenciais, situados no sul da cidade: Risha, Sharaf e Maslakh, onde conviviam com
muçulmanos. Desfrutavam uma liberdade surpreendente para seus correligionários europeus que visitaram
Jerusalém nessa época. O italiano David dei Rossi registrou, em 1535, que até ocupavam cargos no governo,
algo que seria inconcebível na Europa: “Aqui não estamos exilados, como em nosso país. Aqui [...] os
responsáveis pela aduana e pelo pedágio são judeus. Não existem tributos especiais para judeus”.1 Os
otomanos não aplicavam ao pé da letra a lei da sharī‘ah referente a ajustes fiscais para judeus. Nem todos os
judeus de Jerusalém tinham de pagar a jizyah, e o pagamento dos que estavam sujeitos a esse imposto
geralmente era feito pelas mínimas taxas oficiais. As cortes de justiça protegiam os judeus e aceitavam seu
testemunho; as autoridades otomanas incentivavam e defendiam a autonomia de sua comunidade.2
A melhoria de suas condições levou-os a usar de extrema cautela em relação a um estranho jovem que em
1523 se apresentou em Jerusalém como o Messias: temiam que as autoridades otomanas tachassem de
subversivas as atividades do forasteiro, colocando-os em perigo. David Reuveni disse que era um príncipe de
um reino longínquo, onde viviam as dez tribos perdidas de Israel. Logo essas tribos retornariam a Jerusalém,
mas antes ele precisava cumprir uma importante missão. No reinado de Salomão o rebelde Jeroboão colocara
no muro ocidental do monte do Templo uma pedra que pertencia a um santuário pagão. Enquanto ela
permanecesse ali, não ocorreria a Redenção. Os judeus jerosolimitas não lhe deram ouvidos: seu projeto era
muito perigoso e evidentemente infundado, pois o muro em questão não existia na época de Salomão.
Depois que Reuveni partiu para a Itália, um rabino de Jerusalém escreveu aos judeus italianos,
recomendando-lhes que tampouco acatassem sua ideia. Surgiram, contudo, rumores de um iminente êxodo de
Gaza, do Egito e de Salônica. Dizia-se que a população judaica desses locais estava vendendo todos os seus
bens e preparando-se para ir a Jerusalém saudar o Messias por ocasião da Páscoa. “Deus tenha piedade de
nós”, escreveu o rabino, aflito.3 As autoridades inquietariam-se com tamanho afluxo, e não haveria como
alojar e alimentar multidões tão imensas.
No fim a temida afluência não ocorreu. Na Itália, entretanto, David Reuveni atraiu considerável número de
adeptos, apresentando-se como o novo rei Davi. Contou uma história fantástica sobre sua estada em
Jerusalém: que as autoridades islâmicas o receberam com todas as honras e o conduziram ao H. aram, onde
passou cinco semanas alojado na caverna sob a Rocha. Esse período de oração e jejum no local do Devir
ocasionara um fato extraordinário. No primeiro dia de Shavuot o crescente que encimava a Cúpula do
Rochedo voltou-se para o leste e ninguém conseguiu endireitá-lo. David interpretou o fato como um sinal
de que chegara sua hora de partir para Roma.
Seu movimento messiânico esvaziou-se, porém foi sintomático da angústia que afligia a comunidade judaica
internacional. Sob o Islã os judeus viveram uma idade do ouro em al-Andalus. O mundo inteiro chorou sua
expulsão da Espanha, considerando-a a maior catástrofe que se abatera sobre Israel depois da destruição do
Templo. O século XV assistira também a uma escalada de antissemitismo na Europa, onde os judeus eram
expulsos de uma cidade após outra. Sentindo-se mais exilados que nunca, muitos sonhavam com o fim desse
doloroso afastamento de sua terra e de seu passado. A conquista de Jerusalém pelos otomanos, que se
mostraram amistosos com os exilados, empolgou por mais de um século todas as comunidades da Diáspora.
A missão de David Reuveni em Jerusalém referia-se ao muro de sustentação ocidental do H. aram, que
fora construído pelo rei Herodes e constituía praticamente o último vestígio do Templo perdido. Os
mamelucos ergueram mada-ris ao longo desse muro, exceto na parte que se estendia por cerca de 22 metros
entre a rua da Corrente (Tariq al-Silsila) e a Porta do Magreb. Os judeus nunca demonstraram nenhum
interesse especial por essa parte, que na época de Herodes pertencia a um mercado e não tinha importância
religiosa. Até agora eles oravam no monte das Oliveiras e nas portas do H. aram. Quando foram banidos da
cidade, no período dos cruzados, eventualmente rezavam junto ao muro oriental do monte do Templo. 4
Contudo, nos últimos anos dos mamelucos adotaram nova prática. Provavelmente em função das constantes
incursões dos beduínos deixaram de reunir-se no monte das Oliveiras, onde se sentiam inseguros, e voltaram-
se para a parte vaga do muro ocidental do H. aram, venerando-a como seu último vínculo com o passado.
Durante a construção das muralhas, possivelmente quando Sinan trabalhava na Porta de Damasco, Solimão
expediu um firmã (edito), autorizando os judeus a rezarem no local que escolheram. Consta que Sinan elevou
o Muro Ocidental, rebaixando o terreno, e construiu um muro paralelo para separar o oratório do bairro
do Magreb.5 O espaço muito estreito, com menos de três metros de largura, dava a impressão de que o
muro pendia sobre os devotos. O oratório logo se tornou o centro da vida religiosa dos judeus jerosolimitas,
que, embora ainda não tivessem devoções formais, gostavam de passar a tarde ali, lendo os Salmos e beijando
as pedras. Solimão, que provavelmente só esperava atrair mais judeus para Jerusalém, foi aclamado como
amigo e patrono de Israel. Segundo uma lenda judaica, participara pessoalmente da limpeza do local e lavara
as pedras com água de rosas para purificá-las, como Omar e Saladino fizeram quando reconsagraram o
monte do Templo.6
Ao Muro Ocidental, também conhecido como Muro das Lamentações, os judeus logo aplicaram muitos dos
mitos habitualmente relacionados com um lugar sagrado. Associaram-no com as tradições do Talmude sobre
o muro ocidental do Devir, que, de acordo com os rabinos, a Shekhinah abandonara e Deus prometera
preservar para sempre.7 Como acreditavam que a Presença morava ali, passaram a tirar os sapatos ao entrar
no recinto. Gostavam de escrever pedidos em pedaços de papel e colocá-los entre as pedras, para que
pudessem continuar sempre diante de Deus. Afirmavam que a Porta do Céu se situava bem acima do
oratório e que as preces ditas ali subiam diretamente para o Trono divino. Conforme o caraíta Moses
Yerushalmi escreveu em 1658, “uma grande santidade repousa no Muro Ocidental, a santidade original que o
impregnou então e para sempre”.8 Quando entravam no estreito recinto e contemplavam o muro que se
erguia a sua frente, majestoso e protetor, os fiéis sentiam-se diante do sagrado. O muro se tornara um
símbolo não só do divino, mas também do povo judeu. Apesar de toda a sua imponência, era uma ruína —
um emblema de destruição e derrota. “Do Templo restara apenas um muro”, assinalou Moses Yerushalmi, 9 e
ele evocava ausência e presença. Quando o tocavam e beijavam suas pedras, os judeus tinham a sensação de
estabelecer contato com gerações passadas e com uma glória extinta. Como eles, o muro era um
sobrevivente. Mas também lhes lembrava a profanação de seu Templo, que simbolizava as tragédias de Israel.
Chorando ali, os fiéis lamentavam catarticamente tudo que haviam perdido no passado e no presente. Como
o próprio Templo, o Muro Ocidental acabaria representando ao mesmo tempo Deus e a identidade judaica.
A vida dos judeus não era um mar de rosas na Jerusalém dos otomanos. Nas décadas de 1530 e 1540, as
autoridades da mesquita al-‘Umari tentaram por duas vezes fechar a sinagoga Ramban, mas o cádi
pronunciou decisões favoráveis aos judeus. Em 1556, a sinagoga recebia tantos devotos que seus vizinhos
fizeram mais uma tentativa de despejá-los. Alegaram que eles infringiam a lei por imitar os trajes
muçulmanos, cobrindo a cabeça com o xale de rezar como se fosse um keffiyeh. Acusaram-nos de rezar tão
ruidosamente que perturbavam a devoção na mesquita. A sinagoga fechou para sempre em 1587, em perfeita
ordem, no entanto.10 Os judeus receberam permissão para conservar os pergaminhos e rezar em suas próprias
casas. Problemas semelhantes ocorreram na tumba do profeta Samuel [Nebī Samwīl], situada catorze
quilômetros ao norte de Jerusalém e reverenciada por judeus e maometanos. Os judeus possuíam uma
sinagoga nesse lugar, ao qual peregrinavam com frequência. Os maometanos reclamaram que eles se
apoderaram do local e se comportavam ofensivamente em relação aos peregrinos que visitavam o santuário
islâmico. Dessa vez, porém, o cádi decidiu irrevogavelmente em favor dos judeus, que mantiveram sua
sinagoga.
A tensão revelava uma profunda insegurança. A proximidade de um culto rival no mesmo espaço sagrado
pode ser alarmante. Os muçulmanos sentiam-se ameaçados pelo grande número de judeus, cuja devoção
penetrava seu território pessoal. A convergência de duas comunidades no mesmo local, cada qual afirmando
possuir o monopólio da verdade, levantava perguntas difíceis de se responder. Qual das duas tinha razão? A
queixa relativa ao xale de rezar expressava um desejo de estabelecer uma identidade islâmica clara e distinta e
de separar o Islã dessa confusão. Muitos choques semelhantes têm ocorrido no mundo cada vez mais
pluralista do século XX, sobretudo quando há uma disputa política entre os grupos religiosos. O caso mais
famoso é o conflito entre maometanos e hindus em Ayodhya, na planície oriental do Ganges, que as duas
comunidades consideram um lugar santo. Os judeus passaram a sentir-se vulneráveis na Jerusalém dos
otomanos e começaram a deixá-la quando o reinado de Solimão chegava ao fim. Os que permaneceram na
cidade transferiram-se dos distritos de Risha e Maslakh, onde conviviam com islamitas, para o de Sharaf,
mais próximo do Muro Ocidental. Surgiu assim um novo enclave judaico. Ao terminar o século XVI, Sharaf
era visto como um bairro judeu, distinto e separado dos bairros maometanos.
Havia tensão também entre os muçulmanos e os cristãos ocidentais. As conquistas dos otomanos alteraram
consideravelmente o status relativo dos diferentes credos cristãos. Os ortodoxos gregos, os sírios e os
armênios eram súditos dos otomanos, membros de taifa religiosas reconhecidas. Já os franciscanos eram
simples residentes estrangeiros. Ainda viviam apinhados no monte Sião, e a igreja do Cenáculo — não,
porém, a Tumba de Davi — estava em seu poder. Nos últimos anos dos mamelucos, conseguiram alojar-se
na igreja do Santo Sepulcro, e agora oito frades e três irmãos leigos moravam num porão escuro e abafado,
padecendo constantes dores de cabeça e febre. De algum modo os franciscanos conseguiram controlar os
principais locais da igreja do Santo Sepulcro antes da chegada dos otomanos. Não temos registro dessa
transação, mas eles aprenderam que os documentos constituíam provas de propriedade e trataram de
colecionar escrituras e firmãs.
Contudo, em 1523 sua posição se deteriorou. Solimão, que ainda guerreava na Europa, mostrou-se
horrorizado ao saber que alguns “religiosos francos” ocuparam uma igreja situada sobre a tumba do profeta
Davi e no cumprimento de sua falsa devoção pisavam na sepultura.11 Mediante um firmã fechou a igreja do
Cenáculo, em cuja parede oriental ainda se pode ver uma inscrição afirmando que “Solimão, o imperador,
descendente de Osman, ordenou que este local fosse purificado e purgado de infiéis e convertido em
mesquita, na qual se venera o nome de Deus”. Os frades se mudaram para uma padaria no monte Sião.
Francisco I, rei da França, tentou em vão interceder por eles, mas o sultão lhe assegurou que todos os
outros lugares santos dos cristãos em Jerusalém estavam sãos e salvos.
O apoio das grandes potências europeias contrabalançava a vulnerabilidade dos franciscanos de Jerusalém.
Solimão firmou em 1535 um tratado com Francisco I contra o imperador Carlos V. Num gesto de boa
vontade em relação à França, o sultão, representando a potência mais forte, concluiu as Capitulações, que
proporcionaram aos mercadores franceses uma posição privilegiada em seu Império. Autorizaram Francisco a
designar um “bailio” ou “cônsul” para julgar causas civis e criminais entre mercadores e outros súditos
franceses em território otomano, sem interferência do sistema legal islâmico. Também confirmaram os
franciscanos na posição de principais guardiães dos lugares santos de Jerusalém.12 Na prática, porém, os
resultados foram poucos. Trezentos anos se passaram até que um cônsul ocidental conseguisse ter residência
permanente em Jerusalém. Solimão firmara as Capitulações num espírito de condescendência: o Império
Otomano encontrava-se então no auge de seu poderio. Posteriormente seus sucessores fizeram acordos
semelhantes com a França e outros países do Ocidente. Mas Solimão havia cometido um erro de cálculo.
Quando o Império Otomano declinou, esse tipo de arranjo permitiu que os ocidentais interferissem
impunemente em seus assuntos internos, violando a soberania turca.
O controle dos lugares santos gerou, é claro, tensão entre os franciscanos, que o detinham, e os ortodoxos
gregos, que desde a época das Cruzadas não viam com bons olhos a Igreja latina, pois perderam então a
posse do Santo Sepulcro. Ademais, em 1204 os exércitos da Quarta Cruzada saquearam Constantinopla num
dos episódios mais vergonhosos da história dessas expedições; alguns historiadores acreditam que Bizâncio
nunca se recuperou inteiramente de tal ataque. Não surpreende, portanto, que os gregos vissem os latinos
como seus inimigos. Contudo, ainda não haviam aprendido a manipular as autoridades otomanas, nem a
explorar o fato de que seu patriarca ecumênico vivia na capital do Império, Istambul (ex-Constantinopla).
Em 1541, o patriarca Germanus de Jerusalém instituiu a Confederação Helênica do Santo Sepulcro,
encarregada de custodiar oficialmente os lugares santos em nome da cristandade ortodoxa; ao mesmo tempo
os franciscanos formaram uma comunidade nacional para guardar os lugares santos em nome da cristandade
latina. Traçaram-se linhas de batalha e tiveram início as escaramuças preliminares da longa luta entre cristãos
gregos e ocidentais pelo controle da Tumba de Cristo. Em 1551, os franciscanos conseguiram mais uma
vitória. Os venezianos convenceram Solimão a conceder-lhes a posse de um pequeno convento situado a oeste
do Santo Sepulcro, onde viviam apenas algumas freiras georgianas. Os cristãos da Geórgia protestaram, houve
suborno e as freiras tiveram de partir. Em julho de 1559, os franciscanos se instalaram no convento, que,
rebatizado com o nome de São Salvador, logo se tornou seu quartel-general em Jerusalém. Graças à
aquisição de algumas das casas vizinhas, em 1600 São Salvador era um próspero complexo, que incluía uma
carpintaria e uma ferraria. Em 1665 abrigava também uma escola para meninos, um asilo, uma biblioteca e
uma enfermaria que oferecia o melhor tratamento médico da cidade.
Após a morte de Solimão, em 1566, o Império passou a mostrar sinais de fraqueza. O sistema feudal
deteriorava-se pouco a pouco. Encerradas as guerras de conquista, os sipa-hīs, proprietários feudais, tentaram
compensar a perda do butim explorando os camponeses em suas terras. A consequência foi uma queda
violenta na produção agrícola. Contribuíram também para a decadência do Império Otomano o golpe que a
abertura dos caminhos marítimos para a Índia desferiu em seu comércio, a desvalorização da moeda de prata
após a descoberta do Novo Mundo e a crescente insatisfação dos janízaros e dos camponeses na Turquia e
nas províncias. Com sua derrota na batalha de Lepanto em 1571, o Império perdeu também a supremacia
militar. A crise crescente refletiu-se na menor competência das autoridades otomanas em Jerusalém. Os paxás
começaram a oprimir islamitas e dhimmis: entre 1572 e 1584, judeus, cristãos e muçulmanos começaram a
deixar a cidade. A segurança pública piorou sensivelmente, sobretudo nas estradas, que os beduínos voltaram
a atacar. A partir do final do século XVI, eles constantemente assaltavam peregrinos que viajavam para
Hebron e Nebī Mūsā e impediam que os pregadores pronunciassem seus sermões nas mesquitas. Buscando
uma solução, o governo tomou reféns entre os beduínos, designou xeiques como vassalos e procurou
conquistar seu apoio confiando-lhes caravanas de peregrinos. Houve até mesmo uma tentativa de criar
assentamentos rurais para os beduínos. Surgiram fortalezas guarnecidas, como as que Murad IV construiu em
1630 nas proximidades de Belém e junto à piscina do Sultão. Mas tratava-se de uma causa perdida. Istambul
estava às voltas com guerras na Europa e na Rússia e não tinha homens suficientes para impor a lei e a
ordem nas províncias.
Os sultões, entretanto, não descuraram do H. aram. A Cúpula do Rochedo foi restaurada por Mehmet III
em 1597, Ah. mad I em 1603 e Mustafá I em 1617. Frequentemente eles expediam firmãs relativos aos
lugares santos. Os paxás deviam considerar como um de seus principais deveres manter a ordem no H. aram
e cuidar para que os santuários estivessem sempre limpos e bem conservados. A waqf destinava-se à
manutenção, mas o governo se dispunha a dividir as despesas, se necessário fosse.
Embora suas condições começassem a deteriorar-se ao longo do século XVII, Jerusalém ainda era uma
cidade imponente. Quando a visitou, em 1648, o viajante turco Evliye Chelebi encantou-se com a Cidadela e
o H. aram e até admirou a economia. Encontrou oitocentos imames e pregadores assalariados atuando no H.
aram e nas mada-ris locais, além de cinquenta muezins e numerosos recitadores do Alcorão. Os peregrinos
muçulmanos ainda percorriam o H. aram em procissão, rezando em suas várias “estações”. Chelebi
impressionou-se especialmente com a pequena Cúpula do Profeta, cuja pedra negra, disseram-lhe, era em sua
origem vermelho-rubi, porém se alterara em função do Dilúvio. O viajante turco orou na Cúpula da
Corrente, onde admirou os magníficos azulejos de Kashan, que tinham a cor de lápis-lazúli. O H. aram era
o centro de intensa espiritualidade. Multidões de dervixes procedentes da Índia, da Pérsia, do Curdistão e da
Ásia Menor lotavam os pórticos, onde passavam a noite recitando o Alcorão e repetindo os nomes de Deus
como um mantra, à luz bruxuleante das lâmpadas de óleo dispostas em toda a extensão da colunata. Após a
oração matinal realizavam mais uma reunião [dhikr] na mesquita do Magreb, no canto sudoeste do H. aram:
Chelebi achou-a barulhenta e confusa.
O paxá de Jerusalém, conta-nos o viajante, comandava quinhentos soldados, incumbidos, entre outras tarefas
importantes, de escoltar anualmente os peregrinos da província de Damasco que se dirigiam a Meca. O cádi
e o paxá recebiam o mesmo salário, e as peregrinações rendiam a cada um mais 50 mil piastras. Só na
Páscoa havia na cidade entre 5 mil e 10 mil peregrinos cristãos, que pagavam de dez a quinze piastras para
entrar no Santo Sepulcro. Os muçulmanos que visitavam Nebī Mūsā ou Hebron também compravam
proteção nas estradas. Com suas belas casas de pedra e suas imponentes muralhas, Jerusalém parecia uma
praça-forte; no entanto, diz Chelebi, possuía 43 mil vinhedos, que todos os jerosolimitas desfrutavam durante
cerca de três meses no ano, muitos jardins floridos e hortas. Olivais recobriam as montanhas vizinhas, o ar
era fresco e a água, doce. Consultando o arquivo oficial do muh. tasib (o supervisor do sūq), o visitante turco
constatou que Jerusalém possuía 2045 lojas, além de seis estalagens, seis casas de banho e diversos mercados.
Acima de tudo, porém, era uma cidade religiosa. Os armênios tinham duas igrejas, os gregos, três, e os
judeus, duas sinagogas:
Conquanto pareça pequena, a cidade abriga 240 mih. ra-bs, sete escolas para o ensinamento das h. adīth,
dez para o ensinamento do Alcorão, quarenta mada-ris e conventos para setenta ordens sufistas.13
Por motivos de segurança, as portas eram trancadas todas as noites e não havia casas além das muralhas,
exceto no monte Sião, que Chelebi chama de “o subúrbio de Davi”.14
A Jerusalém otomana
1517-1917

Jerusalém evidentemente impressionou o viajante, mas, depois do espetacular florescimento que conhecera
sob Solimão, começava a diminuir o ritmo de suas atividades. Dedicava-se mais a reformas que a novas
construções e, em função da crise imperial, tinha pouco contato direto com Istambul. Às vezes dignitários
árabes locais eram designados para governá-la, numa prática que se tornaria mais comum ao longo do século
XVIII . O cádi geralmente provinha de Istambul, porém os cargos religiosos inferiores cabiam a membros das
principais famílias jerosolimitas. Entre os Abu ’l Lutf, havia quatro muftis (consultores da sharī‘ah) e entre os
Dajani, um. As famílias também forneciam professores para os postos mais importantes, que se tornaram
hereditários, afetando inevitavelmente a qualidade do ensino. O viajante al-Khiyari anotou em 1670 que não
conseguiu encontrar em toda al-Quds um estudioso respeitável. No entanto, as mada-ris continuavam abertas:
Chelebi nos informa que das 56 fundadas pelos mamelucos, quarenta ainda funcionavam. As dificuldades,
porém, eram evidentes. O Estado ainda pagava o salário dos professores e dos funcionários, cujo número às
vezes superava o dos alunos no século XVII. Al-Aqsā se encontrava em más condições e tinha de abrigar nos
pórticos os dervixes residentes. O sistema da waqf começava a deteriorar-se: havia casos de negligência,
desonestidade e apropriação indébita.
O declínio do Império Otomano correspondeu à ascensão das potências europeias, que agora podiam impor
seus termos aos sultões. Com isso os franciscanos de Jerusalém continuavam reforçando sua posição. Quase
todo acordo militar ou comercial entre os otomanos e os ocidentais incluía uma cláusula relativa ao Santo
Sepulcro. Os reis da Europa, porém, ainda não podiam interferir nos assuntos de Jerusalém tanto quanto
gostariam. Em 1621, após um acordo comercial firmado entre a França e Mustafá I, M. Jean Lempereur
tornou-se o primeiro cônsul francês em Jerusalém, encarregado de zelar pelos direitos dos franciscanos e dos
peregrinos ocidentais. Conseguiu diminuir as extorsões excessivas cometidas contra os peregrinos sob forma de
taxas, multas e subornos, e em 1631 os paxás se irritaram. Viam-no como o simples início de seus
aborrecimentos: o porto de Jafa estava a apenas oito horas de viagem. Quantos outros “cônsules” ocidentais
se intrometeriam em suas práticas? Revogou-se o decreto, e Lempereur voltou para sua terra. Nenhum outro
cônsul foi admitido em Jerusalém, mas em 1661 os franceses exigiram que seu cônsul em Sidon ou Acre
assumisse a responsabilidade pelos latinos de Jerusalém, onde deveria estar na Páscoa a fim de proteger os
peregrinos e assegurar a realização das cerimônias.
Os ortodoxos gregos começavam a organizar-se com maior eficiência. O patriarca ecumênico em Istambul
estava bem posicionado para obter favores da corte e oferecer propinas aos sultões e vizires. Em 1634, o
patriarca Teófanes, de Jerusalém, apresentou ao sultão Murad IV uma carta que o califa Omar teria
entregado ao patriarca Sofrônio em 638, concedendo aos gregos o controle dos lugares santos. O embaixador
francês em Istambul imediatamente declarou que a carta era forjada, e Teófanes exibiu documentos otomanos
mais recentes, que afirmou serem de Selim I e Solimão, apoiando a causa dos gregos. Através de um firmã
Murad confiou aos gregos a igreja da Natividade em Belém e a maioria dos principais lugares da igreja do
Santo Sepulcro. Todavia, pressionado pelo papa, pela França e por Veneza, revogou o edito mediante o
pagamento de 26 mil piastras, e os franciscanos retomaram suas posições. Não por muito tempo, contudo.
Os otomanos acabavam de descobrir uma preciosa fonte de renda: doravante entregariam os lugares santos a
quem pagasse mais, e em 1637 os gregos recuperaram o controle graças a um novo firmã que lhes concedeu
a primazia no Santo Sepulcro.
Era indecoroso disputar a supremacia num lugar que, de acordo com a convicção cristã, o Deus-Homem
voluntariamente renunciara ao poder e aceitara a morte. Os franciscanos dedicavam especial apreço à Paixão
de Cristo, mas pareciam incapazes de viver em conformidade com suas lições. Sua mórbida campanha contra
o Islã prosseguiu: no século XVI, mais dois frades foram executados depois de irromper no H. aram
brandindo a cruz e amaldiçoando o Profeta Maomé. Procurar o martírio constituía sua maneira de seguir os
passos de Cristo rumo à morte — embora agissem inspirados pelo ódio, não pelo amor. Também se
identificavam com a morte de Jesus através da nova devoção da Via-Sacra, que agora fazia parte do cenário
jerosolimita. No início do século XVII, conduziam pela Via Dolorosa, toda sexta-feira à noite, uma procissão
de peregrinos descalços. Começando pela “Casa de Pilatos”, no arco “Ecce Homo”, paravam para rezar uma
Ave-Maria e um Pai-Nosso em cada uma das oito “estações” do roteiro, que incluía os locais onde Jesus
caiu sob o peso da cruz, onde encontrou a Mãe, onde foi ajudado por Simão de Cirene e onde profetizou a
destruição de Jerusalém às mulheres da cidade. Depois visitavam a “Prisão de Cristo”, na igreja do Santo
Sepulcro, e por fim rumavam para o Gólgota. Outros peregrinos percorriam roteiros diferentes e alguns
reproduziam os Passos da Via-Sacra nas igrejas de sua terra. Por fim estabeleceram-se catorze estações — seis
das quais foram acrescentadas no século XIX —, comemoradas na Europa em quadros que focalizavam os
vários incidentes do Caminho do Calvário. Essa devoção era tipicamente ocidental. Os ortodoxos gregos
sempre enfatizaram mais a Ressurreição que a Paixão, mas as estações eram uma tentativa de ajudar os fiéis
a superarem seus sofrimentos pessoais por meio da identificação com o patos divino.
Os judeus criavam rituais semelhantes, baseados simbolicamente em Jerusalém. Depois que foram expulsos
da Espanha muitos deles acabaram por instalar-se em Safed, onde, sob a influência do cabalista Isaac Luria,
desenvolveram um novo tipo de misticismo centralizado na experiência do exílio. Os mitos da Cabala
luriânica afirmavam que no início Deus se exilara de uma parte de si mesmo para dar espaço à criação do
mundo. Nessa época ocorreu uma catástrofe primordial, durante a qual a Shekhinah, a noiva de Deus,
separou-se do Ser Supremo; centelhas divinas estavam agora esparsas por terras estrangeiras e aprisionadas em
matéria vil. Ocorrera, portanto, um deslocamento no próprio âmago do Ser. Nada poderia estar em seu
devido lugar, e a expatriação dos judeus simbolizava o desterro cósmico que Deus e a humanidade sofreram.
No entanto, observando rigorosamente a Torá e rezando, os judeus poderiam acabar com o exílio da
Shekhinah. Esses mitos poéticos — recriação da antiga mitologia pagã — falavam diretamente a muitos
judeus, que mais uma vez passavam pela experiência do exílio. Afastados de suas raízes, eles viam o mundo
como um reino demoníaco e sua vida como uma luta contra as forças do mal. As imagens de Luria os
ajudavam a transcender as próprias penas, levando-os a visualizar um retorno definitivo à unidade primordial
que caracterizava a existência antes do começo dos tempos.
A partir de meados do século XVI, os cabalistas de Safed e Jerusalém celebravam a redenção da Shekhinah
num ritual que, de acordo com a crença tradicional, acreditavam ser capaz de repercutir na esfera divina.
Toda sexta-feira à tarde vestiam-se de branco e rumavam em procissão até os campos vizinhos para saudar a
Shekhinah, a noiva de Deus. Depois conduziam a Presença até suas próprias casas, onde haviam enfeitado a
sala com murta, como um pálio nupcial, e colocaram sobre a mesa pães, vinho e um castiçal numa
disposição que lembrava o Templo. Assim a Shekhinah simbolicamente voltava ao Devir e também se reunia
à Divindade no Santuário Celestial. Isaac Luria compôs um hino que sempre se entoava após a refeição do
Sabá:
Na direção do sul coloco
o candelabro místico,
no norte abro espaço
para a mesa dos pães. [...]
Que a Shekhinah seja rodeada
por seis pães do Sabá,
ligada por todos os lados
com o Santuário Celestial.
Enfraquecidos e rechaçados
os poderes impuros,
os demônios ameaçadores
estão agora agrilhoados.15

Cada casa se tornara uma réplica do Templo e, portanto, unira-se simbolicamente à Jerusalém celeste, a
morada de Deus. Durante uma noite o retorno ritual da Shekhinah semanalmente repunha todas as coisas
em seus devidos lugares e restabelecia o controle sobre os poderes demoníacos. Assim, o Sabá constituía um
santuário temporal, uma imagem da vida como deveria ser. O ritual da sexta-feira à noite expressava também
o anseio pelo retorno final à Fonte do ser — uma união sugerida pelas imagens sexuais da Cabala luriânica.
Em Safed, os antigos rituais de lamentação pelo Templo imbuíram-se de nova urgência. Abraham Halevi
Berukhim, discípulo de Luria, vira a Shekhinah chorando e vestida de preto, estampada no Muro Ocidental.
Diariamente ele se levantava à meia-noite e, soluçante, corria pelas ruas de Safed, gritando: “Acordai, em
nome de Deus, pois a Shekhinah está no exílio, a casa de nosso santuário incendiou-se, e grande é a dor de
Israel”.16 Num ritual mais complexo, o místico despertava à meia-noite e vestia-se para realizar o “rito de
Raquel”, um ato de imitatio Dei que lhe permitia participar imaginariamente do exílio da Presença, do
deslocamento cósmico. Chorando, como a própria Shekhinah, tirava os sapatos e esfregava o rosto no pó.
Mas Luria nunca deixou seus discípulos entregues ao sofrimento; ao contrário, frisava constantemente a
importância da alegria e da celebração. Ao pôr do sol o místico realizava o “rito de Lia”: ao mesmo tempo
que recitava uma descrição da redenção final da Shekhinah, meditava sobre sua união definitiva com o Ser
Supremo até sentir que cada órgão de seu corpo fazia parte do Trono-Carro. Toda noite, portanto, o
cabalista passava do desespero a uma alegre união com a Fonte do ser. Tornava-se o santuário humano da
divina Presença, uma Jerusalém encarnada e um Templo corporal.17
A Cabala luriânica constituía uma versão espiritualizada da antiga mitologia. Não havia necessidade de fazer
a aliyah a Jerusalém no plano material. Em sua própria casa, no fundo de seu próprio ser, os judeus podiam
encontrar a realidade que conferia valor à cidade. Luria não era sionista, como Nachmanides. Suas ideias se
difundiram rapidamente pela Europa, onde sua visão do exílio divino dizia muito aos judeus sofredores e
desterrados. Como a geografia sagrada do mundo antigo, esse tipo de misticismo era essencialmente um
exercício da imaginação. Dependia da capacidade de entender que os símbolos levavam à inefável realidade
existente atrás deles. Impregnava-os o mistério oculto que representavam imperfeitamente em termos
apreensíveis aos seres humanos, de modo que na experiência dos devotos os dois se tornavam um.
Interpretados ao pé da letra, os mitos da Cabala, por exemplo, ou eram patentemente absurdos, ou podiam
até acarretar uma catástrofe. Foi o que se evidenciou no caso de Shabbetai Zevi, um judeu perturbado que
hoje classificaríamos como maníaco-depressivo.18 Em suas fases “maníacas”, às quais se seguiam períodos de
profundo desespero, ele infringia as leis alimentares, pronunciava o proibido Nome de Deus e declarava que
a Torá fora revogada. Em suas andanças conheceu o jovem Nathan de Gaza, rabino cabalista que se
encantou com ele e o identificou como o Messias. Ao cair em depressão, Shabbetai invadira o reino
demoníaco para combater os poderes do mal; cabia-lhe erguer a Shekhinah do pó e dar fim ao exílio divino.
Suas fases “maníacas” pressagiavam o tempo messiânico posterior à Redenção, quando não haveria necessidade
de Torá e nada seria proibido.
Em 31 de maio de 1665, Shabbetai proclamou-se o Messias e anunciou que estava prestes a visitar
Jerusalém. Escolheu como seus discípulos doze jovens rabinos, um para cada tribo de Israel, e, com o
propósito de ir ao monte do Templo e restaurar os ritos sacrificais, designou Nathan como sumo sacerdote.
A notícia gerou pânico e consternação entre os judeus de Jerusalém. Já se encontravam numa posição
vulnerável, e, se Shabbetai violasse a santidade do H. aram, a vingança dos muçulmanos seria terrível. Assim,
pediram a Shabbetai que renunciasse a seu projeto. O “Messias” ficou desolado: a Redenção estava tão
próxima e teria de ser adiada novamente! Não obstante decidiu ir a Jerusalém, onde informou que a Torá
fora revogada e aclamou a si mesmo como rei de Israel. Os rabinos o entregaram ao cádi, que o declarou
inocente de traição, sem dúvida percebendo que o homem não estava em seu juízo perfeito. Shabbetai,
porém, interpretou o veredicto como prova de sua missão e percorreu as ruas da cidade a cavalo, envolto
num manto verde: foi mais uma provocação, pois as dhimmis estavam proibidas de cavalgar e verde era a cor
do Profeta.
Um frenético entusiasmo por esse estranho Messias místico contagiou as comunidades judaicas do Império
Otomano, bem como da Itália, da Holanda, da Alemanha, da Polônia e da Lituânia. Shabbetai já havia
deixado Jerusalém e em janeiro de 1666 chegou a Istambul, onde pediu ao sultão que o coroasse rei dos
judeus e lhe restituísse a Cidade Santa. Ante à assustadora perspectiva de uma revolta judaica, o sultão
ofereceu-lhe duas opções: a conversão ao Islã ou a morte. Shabbetai escolheu a primeira alternativa e até o
fim de seus dias, dez anos depois, viveu como um muçulmano aparentemente devoto. Conservou um número
surpreendente de seguidores, porém a maioria dos judeus, horrorizada com o escândalo de um Messias
apóstata, desiludiu-se com ele e com o misticismo luriânico que o tornara tão interessante. Contudo, a
mitologia luriânica estava voltada basicamente para a paisagem interior da alma. Luria não a concebera para
ser vivida literalmente no mundo político. Não incitara os judeus a trabalharem por um retorno físico a
Sião. Ao contrário, traçara para eles um caminho espiritual que conduzia da desintegração e do deslocamento
à Fonte do ser. A mitologia não fazia sentido ao ser transferida para o campo da realidade material.
Cada vez mais os europeus se davam conta de que os velhos mitos da geografia sagrada já não lhes
serviam. Haviam iniciado uma revolução científica que acabaria por transformar o mundo. Haviam plantado
as sementes de um racionalismo que induziria católicos e protestantes a examinarem as propriedades físicas
dos fenômenos, em vez de vê-los como símbolos do invisível. Precisavam excluir rigorosamente essas
associações improváveis e concentrar-se nos objetos para descobrir de que matéria eram feitos. Adotaram,
portanto, uma nova forma de ver a realidade. Suas descobertas os estavam levando a mapear o mundo
cientificamente, e a partir dessa perspectiva constituía evidente absurdo afirmar que Jerusalém era o centro da
terra. Com essa mudança de enfoque, os europeus passaram a procurar uma religião mais racional que
evitasse mitos, ficções e mistérios e se concentrasse nos chamados fatos de fé passíveis de demonstração
lógica. Não queriam uma religião da imaginação. Examinados criticamente, à luz fria da razão, os símbolos e
imagens tradicionais da fé perdiam pouco a pouco seu significado sobrenatural e tornavam-se apenas símbolos,
separados da realidade oculta que representavam. Os rituais se reduziam a meras cerimônias; os gestos
litúrgicos já não eram inseparáveis da dinâmica espiritual que expressavam. Os reformadores protestantes já
haviam divorciado o símbolo da realidade divina. Zwingli via o pão da Eucaristia como um mero símbolo,
muito distinto do corpo de Cristo. As complexas cerimônias da liturgia católica eram uma distração sem
sentido que desviava a atenção da verdade, não uma imitatio dei que trazia para o presente o mistério
atemporal. A vida, a morte e a ressurreição de Jesus eram fatos que aconteceram no passado, não uma
dimensão eterna da realidade.
Diante disso a velha geografia sagrada naturalmente perdeu o sentido. Os “lugares santos” não podiam
estabelecer um vínculo com o mundo celeste. Deus, sendo infinito, não caberia num simples espaço;
portanto, um local específico só era “sagrado” porque fora reservado para fins religiosos. O puritano John
Milton exprimiu seu desprezo pelos peregrinos
[...] que iam tão longe buscar
no Gólgota um morto que vive no Céu.19
Os católicos, entretanto, também estavam envolvidos na revolução científica da Europa e cada vez mais
descobriam nos santuários um significado diferente.
Felix Fabri já havia revelado o incipiente ceticismo da nova Europa. No século XVII começaram a chegar a
Jerusalém europeus que eram mais turistas que peregrinos. O viajante inglês John Sanderson não chorou nem
entrou em transe quando visitou o Santo Sepulcro em 1601. Simplesmente passeou pela igreja, observando
sem maior interesse o fervor de católicos e ortodoxos, que lhe pareceu divertido.20 Henry Maundrell, capelão
da Companhia Inglesa do Levante em Aleppo, esteve na Palestina em 1697 e expressou um desdém ainda
maior por aquela “bobagem” de “aparições vãs” que haviam feito seus ancestrais estremecerem. Interessava-se
pelos lugares bíblicos tanto quanto pelas antiguidades greco-romanas. Quando assistiu à cerimônia do Fogo
Santo, horrorizou-se com o êxtase das multidões, que considerou pura “loucura”, “o próprio hospício”.21
Repugnou sobretudo o antagonismo entre gregos e latinos na Tumba de Cristo, pois eles demonstravam a
fúria assassina e o fanatismo que os advogados da razão procuravam transcender. Após a vitória da Áustria,
da Polônia e de Veneza sobre os otomanos na batalha de Belgrado, em 1688, houve mais uma troca de
posições no Santo Sepulcro, que novamente passou às mãos dos franciscanos. Maundrell nos conta que os
frades e seus rivais ortodoxos
às vezes trocavam sopapos e insultos na porta mesma do Sepulcro, misturando seu próprio sangue ao dos
sacrifícios. Como prova de tal furor, o padre guardião [franciscano] mostrou-nos uma grande cicatriz que
tinha no braço, explicando-nos que um robusto sacerdote grego o ferira numa dessas guerras impias.22
Era inútil sonhar com uma nova Cruzada que libertasse os “lugares santos”, pois “para recuperá-los
certamente se teria de travar contendas deploráveis, já que em seu atual estado de cativeiro ocasionam cólera
e animosidade tão indignas de um cristão”.23
No século XVIII, o Império Otomano parecia irremediavelmente falido. Os sultões eram fracos e dedicavam-
se a seus prazeres pessoais, que financiavam com a venda de cargos públicos. Os governadores das províncias
e dos sanjaks já não eram escolhidos pela competência, mas pelo suborno que ofereciam para galgar o poder.
Quando descobriram que haviam perdido o controle sobre os paxás, os sultões passaram a substituí-los quase
que anualmente, o que teve graves consequências para as províncias. Os mandatários simplesmente não se
davam ao trabalho de restaurar edifícios ou reformar a administração local, pois sabiam que no ano seguinte
poderiam perder o posto. Sabiam também que suas propriedades corriam o risco de ser confiscadas no final
de seu mandato e, assim, geralmente procuravam arrancar de seu distrito todo o dinheiro possível,
recorrendo a tributação abusiva, exploração, confisco ilegal de terras e outras medidas desesperadas. Istambul
efetivamente abandonara seu império a funcionários inescrupulosos. Os camponeses começaram a deixar suas
aldeias para escapar de governantes gananciosos, que contribuíam para agravar o estado de abandono de um
país já prejudicado pelos ataques dos beduínos. O viajante francês L. d’Arrieux registrou em 1660 que o
campo ao redor de Belém estava quase inteiramente deserto, a população tendo fugido dos paxás de
Jerusalém.
Em 1703, os jerosolimitas se rebelaram contra a cruel tributação de Jurji Muh. ammad Pasha, o
governador local. Liderados por Muh. ammad Ibn Mustafa al-Husaini, atacaram a Cidadela, libertaram todos
os prisioneiros e puseram em fuga o paxá. Al-Husaini assumiu o poder, que os turcos só conseguiram
recuperar dois anos depois. Em novembro de 1705, Jurji Muh. ammad, agora váli de Damasco, marchou
sobre Jerusalém à frente de 2 mil janízaros. Para ocupar a cidade, contudo, precisou enfrentar durante horas
uma luta feroz e desesperada.
Os paxás enfraqueciam cada vez mais. Não conseguiam sequer recolher impostos: todo ano o váli de
Damasco precisava comparecer com seus soldados para obrigar a população recalcitrante a pagá-los. Mesmo
assim, nem sempre tinham sucesso. Os documentos otomanos do século XVIII praticamente não mencionam a
receita da cidade, talvez por ser tão desprezível que não valia a pena registrá-la.24 O paxá não podia
movimentar-se livremente em seu próprio sanjak sem subornar os beduínos. Diante disso Istambul recorreu
ao expediente de designar para o governo árabes da região, como os membros das famílias Turqan e Nimr,
de Nablus. ‘Umar al-Nimr (1717-31) foi particularmente eficiente e recebeu um segundo mandato em 1733:
cooperou com os notáveis de Jerusalém, livrou as estradas dos beduínos e até impôs limites razoáveis às rixas
dos cristãos. A maioria dos governadores, porém, continuava impotente. Eles encontravam imensa dificuldade
em manter a ordem no interior das muralhas, e às vezes os jerosolimitas se recusavam a admitir um
mandatário que não lhes agradasse.
A fraqueza dos governadores levou as principais famílias a preencherem o vazio de poder. Os H . usaini, os
Khalīdī e os Abu ’l Lut. f participavam cada vez mais da administração local. Com frequência eram o único
elo entre a população e o governo, e desde a revolução de 1703 faziam questão de manter um bom
relacionamento com pessoas influentes de Damasco e Istambul. Em troca recebiam grandes extensões de
terras e cargos importantes. No século XVIII a família Abu ’l Lut. f continuou fornecendo muftis, enquanto
os Husaini ocupavam a presidência da shari’ah. Musa al-Khalīdī (1767-1832), eminente autoridade em
jurisprudência islâmica, era muito respeitado em Istambul e tornou-se o principal cádi da Anatólia, um dos
três postos judiciais mais altos do Império.
Jerusalém ainda atraía sufis e estudiosos da Síria e do Egito. Na verdade abrigava mais ulemás que no
século XVII. Alguns deles criaram importantes bibliotecas particulares. As mada-ris, porém, declinavam
rapidamente. Em meados do século XVIII, eram apenas 35, e mais tarde praticamente desapareceriam. A crise
econômica, que se agravava mais e mais, e o empobrecimento da cidade e de seus habitantes levaram à
extinção de muitas awqa-f, à dissolução de outras e à alienação de bens. Os muçulmanos tentaram ressarcir
os prejuízos arrendando as propriedades dotadas e, posteriormente, vendendo-as a devotos de outras religiões.
A s dhimmis não se encontravam em melhor situação. A comunidade dos ashkenazim crescera tão
rapidamente que no começo do século XVIII subornou o paxá a fim de obter permissão para construir uma
sinagoga, uma yeshiva e quarenta moradias para os pobres no sul de Jerusalém. Pouco depois os ashkenazim
se endividaram e tiveram de pagar juros exorbitantes. De todo modo, tinham dificuldade para viver em
Jerusalém, pois não falavam árabe e não conseguiam adaptar-se a seu novo ambiente. Agora mal ousavam sair
de casa, com medo de que os credores os jogassem na prisão. Em 1720, atrasaram tanto seus pagamentos
que os turcos confiscaram suas propriedades e os forçaram a deixar a cidade: duzentas famílias partiram para
Hebron, Safed e Damasco, onde as condições de vida eram ligeiramente melhores.25 Só um século depois
sentiram-se capazes de voltar a estabelecer-se em Jerusalém. Agora as taifa judaicas da cidade compunham-se
inteiramente de sefardins, concentrados no bairro Sharaf, que se deteriorou muito à medida que o século
chegava ao fim e a crise dos otomanos se agravava. Possuíam quatro sinagogas interligadas, supostamente
construídas no local da yeshiva do rabino Yohanan ben Zakkai: a Ben Zakkai, a do profeta Elias, a Kehal
Zion e a Istanbuli. No final do século XVIII elas se encontravam em péssimo estado. Em todo bairro judaico
havia casas abandonadas e lixo nas ruas. Havia também muitas doenças e o índice de mortalidade era alto.
As sinagogas estavam caindo aos pedaços; quando chovia, a água jorrava pelos vãos do telhado e era preciso
concluir o culto rapidamente, antes que o edifício se alagasse. Com frequência os fiéis saíam chorando.
Sustentados por ricas comunidades do exterior, os cristãos latinos levavam uma vida mais confortável. Em
1720, quando os ashkenazim perderam suas propriedades, os franciscanos restauraram os mosaicos da igreja
do Santo Sepulcro e ampliaram seu convento subterrâneo. Mas, como os gregos, coptas e armênios, que
também possuíam apartamentos na igreja, tornaram-se virtualmente prisioneiros. Não se atreviam a deixar o
edifício, com medo de perder seu direito de posse, pois as autoridades turcas ficaram com as chaves.
Recebiam alimentos através de uma grande abertura na porta de entrada. Cada seita controlava diferentes
partes da igreja, e em 1720 os franciscanos ainda tinham os locais mais privilegiados. Em 1732, pressionado
pelos franceses, o sultão firmou novas e definitivas capitulações. Reconheceu os franceses como “protetores”
oficiais dos católicos latinos no Império Otomano e reconfirmou na custódia do Santo Sepulcro os
franciscanos, que em 1757 receberam também a Tumba da Virgem, no vale do Cedron.
Tudo isso enfureceu os ortodoxos gregos, que em 1757, na véspera do Domingo de Ramos, irromperam na
Rotunda e quebraram vasos e lâmpadas dos latinos. Houve derramamento de sangue, e várias pessoas
sofreram ferimentos graves. Os franciscanos refugiaram-se no convento de São Salvador, que os ortodoxos
gregos e árabes sitiaram, e o patriarca correu para a corte imperial, em Istambul. Como os franceses estavam
tão ocupados na Guerra dos Sete Anos que não podiam ajudar os turcos em sua guerra contra a Rússia, o
sultão se sentiu inteiramente à vontade para expedir um firmã favorável aos gregos. Esse documento de
extrema importância vigora até hoje, e os gregos ainda são os principais guardiães do Santo Sepulcro. Sua
posição reforçou-se em 1774, quando a Rússia se tornou “protetora” oficial dos cristãos ortodoxos no
Império Otomano.
No final do século XVIII, Jerusalém era uma cidade pobre. Visitando a Palestina em 1784, o viajante
francês Constantin Volney mal acreditou em seus olhos quando, dois dias depois que partiu de Nablus,
chegou
a uma cidade que [...] constitui um exemplo impressionante das vicissitudes humanas: ao contemplar suas
muralhas arrasadas, seus fossos aterrados e todos os seus edifícios atravancados com ruínas, custa-nos crer
que estamos diante da célebre metrópole que no passado resistiu aos esforços dos mais poderosos impérios
[...] numa palavra, é com dificuldade que reconhecemos Jerusalém.26
Volney era um dos novos europeus. Estava ali não como peregrino, e sim para conduzir o primeiro
levantamento científico da cidade. Munido de um questionário, pretendia estudar a geografia, o clima, a vida
social e a economia. A santidade de Jerusalém interessava-lhe apenas na medida em que afetava a economia.
Volney constatou que os turcos haviam lucrado muito com a estupidez dos cristãos. Gregos, coptas,
abissínios, armênios e francos continuamente pagavam grandes somas ao paxá “para obter algum privilégio ou
tirar alguma prerrogativa de seus rivais”:
Cada seita está sempre denunciando as irregularidades da outra. Uma igreja foi restaurada
clandestinamente? Uma procissão ultrapassou os limites de praxe? Um peregrino entrou por uma porta
diferente da habitual? Tudo isso é objeto de denúncias ao governo, que nunca deixa de lucrar com elas
mediante multas e extorsões.27
Na verdade, a luta infrutífera dos cristãos estava minando sua posição e erodindo seu prestígio na Cidade
Santa.
Volney observou que pouquíssimos peregrinos provinham da Europa — um fato que escandalizava as
outras comunidades locais. Seu sombrio retrato de Jerusalém deve ter desencorajado muitos viajantes. A
cidade enfrentava realmente um período difícil, mas não se encontrava numa situação tão desesperadora
quanto ele dizia. As muralhas, por exemplo, não estavam arrasadas, embora os fossos a sua volta estivessem
de fato obstruídos. Havia muito lixo nas ruas e nos arredores da cidade. Pedras, terra, cinzas, cacos de louça
e madeira podre amontoavam-se nos vales, elevando-se por vezes a doze metros de altura. Na verdade, boa
parte de Jerusalém havia sido construída sobre escombros que se acumularam ao longo dos séculos. Ao norte,
os refugos das fábricas de sabão formavam diversos montes.28 A cidade era insalubre: não tinha saneamento,
o abastecimento de água deixava muito a desejar e a pobreza era grande. Por outro lado, nove fábricas de
sabão estavam em pleno funcionamento, a cerâmica também se tornava uma indústria importante e os sūqs
geralmente eram bem providos. Evliye Chelebi se impressionara com a quantidade de vinhedos e jardins, que
ainda constituíam uma característica de Jerusalém, particularmente no pouco povoado distrito de Bezetha, no
nordeste da cidade. A waqfiyya do xeique Muh. ammad al-Khalīlī mostra que dentro e fora das muralhas
existiam muitos vinhedos, olivais, pomares produtores de figo, maçã, romã, amora, abricó. Algumas áreas
estavam em ruínas, sem dúvida, mas havia belas vilas e mansões pertencentes às principais famílias. O próprio
xeique construiu duas casas fora das muralhas e ressaltou a importância de manter os edifícios em boas
condições e não os deixar cair nas mãos de seguidores de outras crenças, que ainda olhavam para Jerusalém
com cobiça.29 Os jerosolimitas mais previdentes estavam apreensivos em relação aos novos “protetorados”
francês e russo; quando os franceses tentaram novamente instalar um cônsul em Jerusalém, os muçulmanos
cuidaram para que ele fosse expulso. Entretanto, Constantin Volney fora apenas o precursor de uma presença
ocidental mais maciça.
Em 1798, Napoleão partiu para o Egito levando numerosos orientalistas encarregados de realizar um
estudo científico da região com vistas à colonização. Pretendia instalar franceses no Oriente para desafiar os
ingleses, que se apoderaram da Índia, e estava disposto a usar a nova ciência do “orientalismo” para
promover suas ambições políticas. Em janeiro de 1799, rumou para a Palestina à frente de 13 mil soldados;
depois de derrotar o exército otomano em al-Arish e Gaza, dirigiu-se para Acre, a principal cidade do país.
Enquanto marchava pelo litoral, os cartógrafos e exploradores que o acompanhavam penetraram na região
montanhosa a fim de prosseguir com seu levantamento. Em Ramleh, Napoleão conclamou judeus, cristãos e
muçulmanos a derrubar o jugo otomano e aceitar a liberté da França revolucionária, porém não os
convenceu: eles sabiam que a prometida liberdade significaria apenas a submissão a essa potência europeia.
Houve em Jerusalém pânico e violência. Os islamitas atacaram o convento de São Salvador e tomaram alguns
franciscanos — protegidos dos franceses — como reféns. O sultão, porém, afirmou que suas igrejas e
propriedades estariam seguras enquanto eles pagassem a jizyah. O xeique Mūsā al-Khālidī, o cádi jerosolimita
da Anatólia, convidou o povo da Palestina a defender seu país contra os franceses, e o váli de Damasco
alistou no exército otomano todos os árabes aptos de Jerusalém.
Apesar da peste que atingiu seu exército, Napoleão prosseguiu rumo a Acre, onde foi repelido não só pela
armada inglesa, como pelas tropas de Ah. mad Jezzar Pasha, o váli de Sidon, que demonstrou coragem e
competência exemplares. Tendo fracassado em sua tentativa de conquistar um império oriental, Napoleão se
viu obrigado a voltar para a Europa. Mas então sua expedição já havia apresentado à Palestina a
modernidade e a ciência do Ocidente, que desde o começo estavam ligadas aos sonhos europeus de conquista
e imperialismo. Logo surgiriam outros colonialistas, que forçariam Jerusalém a ingressar na era moderna.
16. REVIVESCÊNCIA

EM JERUSALÉM, o século XIX começou mal, com pobreza e tensão. O sistema otomano ainda estava
desorganizado, e a população sofria por causa do mau governo. Nominalmente a cidade fazia parte da
província de Damasco, porém na prática quem a administrava nos primeiros anos do novo século era o váli
de Sidônia. Havia mais governadores árabes; um deles, Muh. ammad Abu Muraq, notabilizou-se por sua
tirania em relação a muçulmanos e dhimmis. Entre as diferentes comunidades também havia atritos. Em 1800
Jerusalém tinha cerca de 8750 habitantes: 4 mil islamitas, 2750 cristãos e 2 mil judeus. Todos partilhavam
u m sūq comum e viviam apinhados nas proximidades de seus principais santuários. Algumas relações
intercomunitárias eram amistosas. Os judeus, por exemplo, davam-se bem com os muçulmanos do bairro do
Magreb, por onde tinham de passar para ir ao Muro Ocidental. Todavia, não podiam entrar no Santo
Sepulcro e mantinham com os cristãos um relacionamento tão ruim que se conservavam afastados de seus
distritos. As diferentes seitas cristãs coexistiam num clima de venenosa animosidade, que à mínima provocação
explodia em violência física. No bairro judaico, a convivência entre os sefardins e os ashkenazim, que
retornaram a Jerusalém entre 1810 e 1820, era tensa. A cidade da paz fervia de frustração e ressentimento, e
o velho ideal de integração parecia um sonho desfeito. Essa fúria com frequência eclodia em tumultos e
revoltas.
Em 1808, ocorreu um incêndio na igreja do Santo Sepulcro. O fogo se iniciou na cripta de Santa Helena,
que estava sob a égide dos armênios, e propagou-se rapidamente, destruindo todo o interior da igreja e as
colunas que suportavam a cúpula. Imediatamente cada uma das diferentes comunidades atribuiu às outras a
culpa pela catástrofe. Assim, os armênios foram acusados de incendiar o santuário deliberadamente para
alterar a situação vigente. Mas dizia-se também que os padres gregos, embriagados, acidentalmente puseram
fogo em alguma peça de madeira e tentaram apagá-lo com aguardente. Como o ato de reconstruir assinalava
a posse legal do imóvel, a restauração gerou acirrada competição, cada seita tentando oferecer um lance
maior que as outras e pedindo ajuda a seus “protetores” estrangeiros. Os gregos compraram, enfim, o
privilégio, e as obras tiveram início em 1819. Mas em Jerusalém construir nunca foi uma atividade neutra, e
fazia muito tempo que a igreja do Santo Sepulcro aborrecia os muçulmanos, sobretudo em épocas de agruras
econômicas. Assim, eles cercaram a residência do governador, exigindo a paralisação das obras. Furiosos
porque outras tropas haviam sido destacadas para guarnecer a Cidadela, os janízaros locais aderiram à revolta,
que logo se propagou por toda a cidade. Os rebeldes atacaram o patriarcado ortodoxo, ocuparam a Cidadela
e expulsaram o governador. Só se restabeleceu a ordem quando o váli de Damasco enviou um destacamento
para sitiar a Cidadela. Quarenta e seis líderes da insurreição foram decapitados e suas cabeças despachadas
para Damasco.
A reconstrução do Santo Sepulcro prosseguiu, mas com o caráter de operação bélica. Os gregos
aproveitaram a oportunidade para apagar todos os vestígios da presença dos latinos no local. Substituíram a
edícula que os franciscanos ergueram sobre a tumba, no século XVIII, e eliminaram os túmulos de Godofredo
de Bouillon e Balduíno I. Agora controlavam o Sepulcro e o Gólgota; os franciscanos estavam restritos à
parte norte do edifício; os armênios, à cripta de Santa Helena; os coptas, a uma pequena capela a oeste da
tumba e os sírios, a uma capela na Rotunda. Os etíopes teriam de construir seu mosteiro e sua igreja no
telhado. Os cristãos não conseguiam conviver amistosamente em seu santuário mais sagrado: uma família
maometana recebeu as chaves da igreja e até hoje tem o privilégio de fechar e abrir suas portas a mando das
várias autoridades. Chegou-se a essa solução embaraçosa porque não se acreditava que qualquer uma das
seitas deixasse as outras entrarem. Elas se revezavam para realizar seu culto na tumba, mas com frequência
esse esquema levava a brigas e provocações. Um visitante inglês descreveu a seguinte cena:
Os coptas se encontram no santuário: muito antes de terminarem seu serviço de sessenta minutos, os
armênios já se reuniram em grande número ao redor do coro, não para acompanhá-los nas preces e
genuflexões, e sim para cantarolar temas profanos, vaiar os sacerdotes coptas, tagarelar, caçoar e arreganhar
os dentes.
Comumente os devotos se engalfinhavam, e os guardas turcos, que estavam sempre diante da igreja,
interferiam para acabar com a luta — “uma questão de velas, cajados e crucifixos”.1 Não havendo
derramamento de sangue, o culto prosseguia, mas os soldados permaneciam a postos, de arma em punho. Se
a caridade e a benevolência realmente caracterizam a fé, os cristãos sem dúvida falharam em Jerusalém.
Os muçulmanos realizaram outras manifestações contra os cristãos em 1821, quando os gregos do
Peloponeso se insurgiram contra os otomanos. Mais uma vez o patriarcado ortodoxo foi atacado, conquanto
o cádi e as principais famílias de Jerusalém, cumprindo ordens estritas de Istambul, fizessem o possível para
conter a violência. Em 1824, ocorreu um tumulto mais grave. Mustafa Pasha, o novo váli de Damasco,
decuplicou os impostos. Os camponeses das aldeias próximas a Jerusalém se revoltaram, e o paxá foi
pessoalmente reprimir o levante com 5 mil soldados. Dessa vez os notáveis de Jerusalém não apoiaram o
establishment otomano, mas se uniram aos camponeses e citadinos. Assim que o governante retornou a
Damasco, convencido de que sufocara a rebelião, os jerosolimitas invadiram a Cidadela, obrigando a
guarnição otomana a abandoná-la, e apropriaram-se das armas; depois expulsaram da cidade toda a população
que não era árabe. Essa foi, talvez, a primeira expressão de solidariedade árabe em Jerusalém. Os insurretos
não se renderam nem mesmo quando Abdallah Pasha, governador de Sidônia, instalou-se no monte das
Oliveiras com 2 mil homens e sete canhões e se pôs a bombardear a cidade continuamente. A luta se
estendeu por uma semana, até os turcos concordarem com as exigências dos rebeldes: redução dos impostos,
compromisso por parte do exército de não interferir na vida de Jerusalém e garantia de que no futuro todas
as autoridades locais seriam árabes.
Em 1831, porém, a cidade passou a ter um governo turco mais forte. Muh. ammad ‘Ali, comandante
otomano de origem albanesa, combatera Napoleão no Egito e, após a retirada dos franceses, conseguiu
tornar-se praticamente independente de Istambul. Sua ambição consistia em fazer do Egito um Estado
moderno, administrado segundo o estilo ocidental. Não haveria mais um governo central forte, e todos os
cidadãos seriam iguais perante a lei, qualquer que fosse sua raça ou religião. O exército modernizou-se e, em
novembro de 1831, invadiu a Palestina e a Síria, arrancando-as das mãos dos otomanos. Esse foi um
momento decisivo na história de Jerusalém. Muh. ammad ‘Ali controlou a Síria e a Palestina até 1840.
Durante esses nove anos colocou em prática suas ideias modernizantes e mudou para sempre o estilo de vida
jerosolimita. Seu filho, Ibrāhīm Pasha, conseguiu sujeitar os beduínos e ameaçou alistá-los no exército
egípcio. Também estabeleceu um sistema judiciário secularizado que efetivamente minou o poder da sharī‘ah.
A partir de então as dhimmis passariam a usufruir direitos iguais e garantias de segurança no tocante a vida
e propriedades pessoais; judeus e cristãos também estavam representados no majlis, organismo encarregado de
aconselhar o governador local. A secularização havia chegado a Jerusalém: executivo e judiciário atuavam
independentemente da religião.
Essas reformas naturalmente suscitaram oposição. As principais famílias da cidade e os dignitários locais
temiam perder a autonomia e os privilégios que adquiriram ao longo dos anos. Em 1834, a Palestina inteira
e uma parte da Transjordânia se insurgiram. Durante cinco dias os revoltosos dominaram Jerusalém,
percorrendo suas ruas, depredando e saqueando as lojas das dhimmis. Ibrāhīm Pasha precisou mobilizar todas
as suas tropas para reprimir a rebelião. Quando finalmente restabeleceu a paz, deu continuidade às reformas.
Construiu os dois primeiros moinhos de vento de Jerusalém, na esperança de introduzir métodos industriais
modernos. As dhimmis trataram de desfrutar sua recente liberdade: agora podiam construir e restaurar seus
santuários sem ter de recorrer a subornos e propinas.
Os cristãos imediatamente se valeram desse privilégio. Em 1834, um tremor de terra danificou muitos
mosteiros, e os monges puderam repará-los sem demora. Os franciscanos reformaram São Salvador, que fora
bombardeado por ocasião dos últimos distúrbios. Com o decorrer dos anos o convento se transformara num
vasto complexo. Agora os frades semanalmente distribuíam pão a cerca de oitocentos cristãos e muçulmanos.
Foram ainda os primeiros a oferecer instrução a árabes cristãos: alfabetizaram em árabe, italiano e latim 52
meninos de famílias que se converteram ao catolicismo — aos quais, porém, não ensinaram aritmética e
ciências naturais — e abriram uma escola de corte e costura para meninas árabes. Em 1839, expandiram-se
pela cidade, erguendo um convento no bairro maometano de Bezetha, que em grande parte permanecia
desabitado. Sua igreja da Flagelação foi um dos primeiros edifícios católicos construídos junto à Via
Dolorosa, que durante o século XIX pouco a pouco se tornou uma nova rua dos cristãos.
Os judeus também aproveitaram a oportunidade para construir. Muh . ammad ‘Ali expediu em 1834 um
firmã autorizando os sefardins a reerguerem a dilapidada sinagoga Ben Zakkai. Com o influxo de novos
imigrantes provenientes da Polônia, a comunidade dos ashkenazim crescera consideravelmente nos últimos
anos e precisava de um novo santuário. Em 1836, obteve permissão para edificar um conjunto de sinagoga,
yeshiva e mikveh no local que em 1720 tiveram de abandonar. Todos os seus membros participaram dos
trabalhos: rabinos, estudantes e até anciãos ajudaram a cavar os alicerces e retirar o entulho. Em 1837,
consagrou-se a primeira ala da nova sinagoga Hurva, que se constituiu num pomo da discórdia. O rabino
Bardaki de Minsk achava que deveriam ter construído ali moradias para os cerca de quinhentos imigrantes
judeus que viviam praticamente na indigência. Em sinal de protesto, ergueu, com a ajuda de seus seguidores,
a sinagoga Sukkoth Shalom, causando uma cisão permanente entre os ashkenazim. Essa foi a primeira de
muitas fendas. Ao longo do século XIX, a comunidade judaica continuou fragmentando-se: os sefardins se
opunham aos ashkenazim, os hassídeos combatiam os mitnaggedim, e várias seitas cresciam dentro desses
grupos maiores. O bairro judaico dividiu-se em kahals antagônicos, cada qual apinhando-se em torno de seu
próprio rabino e geralmente frequentando uma sinagoga diferente.
Quase todo fato novo que ocorria em Jerusalém tendia a intensificar o sectarismo e a rivalidade que agora
pareciam endêmicos. Interessado em obter o apoio do Ocidente, Muh. ammad ‘Ali incentivou os europeus a
instalarem-se na cidade. Foi assim que, pela primeira vez, uma potência ocidental conseguiu estabelecer um
consulado em Jerusalém — medida que a população local combatera durante muito tempo. Em 1839, o
diplomata inglês William Turner Young chegou a Jerusalém na condição de vice-cônsul britânico, e ao
longo dos quinze anos seguintes França, Prússia, Rússia e Áustria abriram consulados na Cidade Santa. Os
cônsules se tornaram uma presença de extrema importância, contribuindo para a modernização de Jerusalém
em termos de medicina, educação e tecnologia. Entretanto, cada qual tinha sua própria agenda política, e
isso muitas vezes gerava novos conflitos. A população local se viu envolvida nas disputas das potências
europeias. Dizia-se, por exemplo, que William Young tinha especial interesse pelos ashkenazim. A Inglaterra
gostaria de criar um “protetorado” em Jerusalém, como a França e a Rússia fizeram, mas não havia
protestantes para o cônsul abrigar sob sua asa. Os judeus europeus, contudo, não tinham defensor estrangeiro,
e Young constituiu-se seu patrono extraoficial. Inspirou-o a tanto um velho sonho milenarista. São Paulo
profetizara que todos os judeus se converteriam a Cristo antes da Segunda Vinda, e um número crescente de
cristãos ingleses sentia-se no dever de cumprir tal profecia e remover esse obstáculo à Redenção final. Em
setembro de 1839, por intermédio dos bons serviços de Young, a Sociedade Londrina para a Promoção do
Cristianismo entre os Judeus (também conhecida como “Sociedade Londrina dos Judeus”) obteve permissão
para atuar em Jerusalém, que estava recebendo os primeiros missionários protestantes. Mas eles esbarravam
nos devotos das duas religiões mais antigas e também nos judeus, que se ressentiram dessa iniciativa.
As ideias modernas já tinham começado a penetrar na Cidade Santa, e não havia como deter esse processo.
Depois que as potências europeias expulsaram os egípcios da Palestina, em 1840, e os otomanos recuperaram
o controle do país, não existia mais possibilidade de retomar o antigo sistema. Istambul também se curvou à
modernização, e o sultão Mahmud II tentava administrar um Estado mais centralizado com um exército
reformado. Suas tanz. īma-t [regulamentações] confirmaram os novos privilégios das dhimmis, que continuavam
tendo de pagar a jizyah para contar com a proteção militar, mas usufruíam maior liberdade religiosa e
podiam reformar e construir seus santuários sem que os muçulmanos lhes colocassem empecilhos. Agora os
otomanos demonstravam maior interesse por Jerusalém, em parte alertados pela preocupação dos ocidentais
com a Cidade Santa. Antes da invasão egípcia Acre era tida como a principal cidade da Palestina. Agora
Jerusalém estava ocupando seu lugar. Ainda era uma mutas. arriflik, situada entre província [eya-let] e distrito
[sanjak] na escala administrativa, mas englobava os sanjaks de Gaza, Jafa e (até 1858) Nablus. Durante um
breve período, em 1872, tornou-se independente: não estando mais subordinado ao váli de Sidônia ou
Damasco, o governador respondia diretamente a Istambul. Sua população também crescia extraordinariamente.
Em 1840 chegava a 10 750 pessoas, entre as quais havia 3 mil judeus e 3350 cristãos. Em 1850 os judeus
constituíam maioria, seu número tendo praticamente duplicado ao longo de dez anos. Essa tendência se
manteve, como nos mostra o seguinte quadro:
Ano Muçulmanos Cristãos Judeus Total
1850 5350 3650 6000 15 000
1860 6000 4000 8000 18 000
1870 6500 4500 11 000 22 000
1880 8000 6000 17 000 31 000
1890 9000 8000 25 000 42 000
1900 10 000 10 000 35 000 55 000
1910 12 000 13 000 45 000 70 000
1922 13 500 14 700 34 400 62 6002
A modernidade transformou uma cidade deserta e desesperadora numa florescente metrópole, e pela primeira
vez desde a destruição do Templo os judeus estavam novamente conquistando uma posição de ascendência.
As potências ocidentais faziam o possível para expandir sua influência em Jerusalém através de cônsules e
igrejas. A Prússia e a Inglaterra designaram conjuntamente o primeiro bispo protestante da cidade: Michael
Solomon, um judeu convertido, que assumiu seu posto em 21 de janeiro de 1842, anunciando que seu
primeiro dever consistia em conduzir a Cristo os judeus locais. A catedral protestante foi construída nas
proximidades da Porta de Jafa, junto ao consulado britânico, e recebeu o nome de Igreja Hebraica de Cristo.
Em 21 de maio de 1843, três judeus foram batizados na nova catedral; o cônsul Young assistiu à cerimônia,
oficiada em hebraico. A comunidade judaica, a princípio alarmada, indignou-se: sabia que os cristãos
costumavam sustentar os conversos que ela expulsava, mas esses protestantes tentavam ostensivamente atrair
seus membros mais pobres com a promessa de bem-estar e segurança. Em 1844, realizaram-se novos
batismos, e os judeus decidiram contrapor-se à ofensiva cristã.
A filantropia sempre foi fundamental para a santidade de Jerusalém, porém agora estava se tornando
agressiva e divisória. A Sociedade Londrina dos Judeus fundou em 1843 um hospital gratuito na fronteira do
bairro judaico. James Finn, o novo cônsul, empenhou-se na campanha da conversão e, a mando do consulado
em Beirute, ofereceu proteção a imigrantes judeus procedentes da Rússia. Em 1850, quando os otomanos
autorizaram os estrangeiros a comprarem terras no Império, Finn adquiriu uma propriedade a oeste do
monte Sião, além das muralhas, onde instalou a colônia Talbieh, dedicada a proporcionar treinamento
agrícola aos judeus. Quem mais contribuiu para tal projeto foi certa Miss Cook, de Cheltenham, cujo
dinheiro financiou outras duas fazendas: uma nos arredores de Belém e a outra no Vinhedo de Abraão, ao
norte da Porta de Jafa, que empregava seiscentos judeus. Finn estava convencido de que a sorte dos judeus
de Jerusalém melhoraria se eles conseguissem deixar seu bairro miserável e ganhar sua própria vida. A
maioria vivia de halakka, esmolas coletadas na Diáspora para manter na Cidade Santa uma comunidade onde
os judeus podiam estudar a Torá e o Talmude. Como os filantropos judeus esclarecidos, Finn acreditava que
era essencial acabar com essa dependência: se as halakka falhassem por qualquer motivo, seus destinatários se
tornariam ainda mais vulneráveis. A educação também era importante. Gobat, o novo bispo protestante, abriu
na encosta setentrional do monte Sião duas escolas — uma masculina e a outra feminina — para judeus
conversos e árabes cristãos. Os jovens judeus podiam estudar também nas proximidades da igreja de Cristo,
onde as diaconisas alemãs fundaram uma escola e a Sociedade Londrina instalou uma Casa da Indústria,
voltada para o ensino profissionalizante. Essas instituições inevitavelmente atraíam os pobres da comunidade
judaica, e a melhor forma de neutralizar tal ameaça consistia em criar estabelecimentos de bem-estar. Em
1843, o filantropo judeu Sir Moses Montefiore montou em Jerusalém uma clínica para seus correligionários,
e, em 1854, os Rothschild inauguraram o hospital Misgav Ladach na vertente sul do monte Sião, além de
criar um fundo para escolas e um esquema de empréstimos a juros baixos.
A atuação dos protestantes levou as comunidades cristãs mais antigas a envidarem novos esforços
filantrópicos. Os ortodoxos gregos abriram uma escola para meninos árabes com um currículo mais extenso
que o de São Salvador. A chegada do bispo protestante inspirou a Igreja Católica Romana a restaurar o
patriarcado latino, que desaparecera com o reino dos cruzados. O patriarca alojou-se num edifício novo,
situado nas proximidades da Porta de Jafa, que estava se tornando um enclave moderno em Jerusalém. Sua
presença causou mais uma dissensão: não só provocava claramente os gregos, como hostilizava os franciscanos
de São Salvador, que se sentiam diminuídos com essa nomeação. Com o patriarcado mais ordens religiosas se
instalaram na cidade. Logo as Irmãs de Sião — uma versão católica romana da Sociedade Londrina dos
Judeus — fundaram um convento perto do arco Ecce Homo, na Via Dolorosa, onde abriram uma escola
para meninas.
Jerusalém estava despertando para o mundo moderno. O arqueólogo americano Edward Robinson percebeu
a mudança em abril de 1852, tão logo chegou à cidade, que havia visitado em 1838, durante a ocupação
egípcia. Agora ficou impressionado com a igreja anglicana, o consulado, os cafés na Porta de Jafa. “Estava
em curso um processo de demolição de velhas moradias e substituição por novas residências que de certo
modo me lembrava Nova York”, escreveu. “Havia mais atividade nas ruas, mais pessoas em movimento, mais
azáfama e mais negócios.”3 Robinson viajara para pesquisar a Jerusalém antiga, adotando, porém, uma
perspectiva bem moderna. Queria provar a veracidade da Bíblia através de uma metodologia científica e
empírica. Estava convencido de que era possível mapear as viagens de Abraão, Moisés e Josué. Em 1838
percorrera o túnel construído por Ezequias. Sua obra Biblical researches in Palestine (1841) causara sensação ao
acenar com a possibilidade de demonstrar as verdades da religião e rebater algumas críticas inquietantes
formuladas por cientistas, geólogos e exegetas que começavam a questionar a confiabilidade histórica da
Bíblia. Essa nova “arqueologia bíblica” expressava a religião racionalizada do Ocidente moderno, baseada em
fatos e na razão, não em mitos e na fantasia. Entretanto, Jerusalém ainda exercia uma atração menos
cerebral, que atuava independentemente de qualquer convicção teológica. Quando lá esteve pela primeira vez,
Robinson não resistiu à emoção. Desde a infância tinha-a presente em sua imaginação, de modo que
experimentou a sensação de um “retorno” e de um encontro com seu eu criança. Os locais “pareciam-me
familiares, como se fossem a realização de um sonho antigo. Era como se eu estivesse de novo entre as cenas
queridas de minha meninice”.4
De volta a Jerusalém, em 1852, Robinson fez uma interessante descoberta. No ano anterior, o engenheiro
americano James Barclay tinha visitado a cidade a convite dos otomanos, que lhe pediram instruções
referentes à preservação das mada-ris dos mamelucos. No Muro das Lamentações, Barclay encontrou um
dintel de pedra pertencente a uma porta do Templo herodiano. Agora, Robinson se deparou com várias
pedras grandes que se destacavam da face sudoeste do Muro, no nível do solo. Desenterrou-as e concluiu
que deviam fazer parte de um dos arcos monumentais que se estendiam sobre o vale do Tiropeon, descritos
por Josefo. A “Porta de Barclay” e o “Arco de Robinson” constituíram achados preciosos, apesar das dúvidas
sobre sua verdadeira importância religiosa. A arqueologia podia alimentar, contudo, suas próprias guerras
santas, e os católicos se sentiram impelidos a contestar essas e outras descobertas dos protestantes. Em 1850,
Felicien de Saulcy, um soldado que não tinha conhecimento de antiguidades, afirmou que Salomão erguera
os muros herodianos do H. aram e que o “Túmulo dos Reis”, construído no século I pela rainha da
Adiabene, era a sepultura de Davi e dos reis de Judá. Sem apresentar nenhuma prova do que dizia, esperava
desacreditar os protestantes (Robinson pensava que a tumba de Davi se situava no monte Sião) e assim
lançar dúvidas sobre sua crença em geral.
Enquanto se desenrolavam essas disputas mais eruditas, a rixa dos cristãos jerosolimitas desencadeava uma
verdadeira guerra entre as grandes potências. Em 1847, ocorreu na basílica da Natividade uma briga
particularmente deplorável entre clérigos gregos e latinos. Houve derramamento de sangue e troca de
acusações sobre o desaparecimento de uma estrela de prata. O conflito levou a um embate entre França e
Rússia, “protetoras” das duas comunidades. A França aproveitou a oportunidade para reformular a questão
dos lugares santos, e a Rússia replicou que se devia manter a situação vigente, ou seja, a primazia dos
gregos. O incidente proporcionou o pretexto que a Inglaterra e a França procuravam para declarar guerra à
Rússia e deter seus eventuais avanços pelo território otomano. Em 1854, eclodiu a Guerra da Crimeia.
Apesar do novo secularismo, a questão de Jerusalém ainda podia inspirar um grande confronto entre as
potências cristãs.
Quando o conflito chegou ao fim, com a derrota da Rússia, em setembro de 1855, a Inglaterra e a França
estavam mais poderosas em Istambul. O H. aram foi aberto para os cristãos pela primeira vez em séculos. O
duque e a duquesa de Brabante foram os primeiros ocidentais que visitaram o recinto sagrado, em março de
1855, e poucos meses depois, em reconhecimento pela participação da Inglaterra no conflito, Sir Moses
Montefiore subiu à esplanada recitando o Salmo 121, carregado numa liteira para que seus pés não tocassem
inadvertidamente uma das áreas proibidas. Outros favores estavam por vir. O sultão devolveu a Napoleão III
a igreja de Santa Ana, que os cruzados construíram e Saladino convertera em madrasah. Paralelamente, os
ingleses reivindicaram permissão para os judeus ampliarem a sinagoga Hurva.
A modernização acelerou-se após a guerra. Todas as igrejas cristãs compraram máquinas de impressão, e
em 1862 havia duas imprensas judaicas, que um ano depois passaram a produzir dois jornais hebraicos. A
escola Laemel foi criada para dar uma educação moderna aos jovens judeus, que ali aprendiam árabe e
aritmética, além de estudar a Torá. Com isso intensificou-se o antagonismo no bairro judaico, pois seus
habitantes mais conservadores, sobretudo os ashkenazim, não queriam trato com o estabelecimento goyische.5
Surgiram mais prédios modernos. Em 1863, o governo austríaco construiu um albergue para peregrinos
católicos no cruzamento de uma das principais ruas do sūq. O consulado da Áustria instalou-se numa bela
casa de Bezetha, perto da Porta de Damasco, que também começava a converter-se num centro de
modernidade. Os consulados britânico e francês transferiram-se para o mesmo bairro, que se tornava um dos
mais salubres da cidade.
Muito mais notável, porém, foi o êxodo da parte amuralhada. Iniciou-se em 1857, quando Montefiore
obteve permissão para adquirir um terreno situado em frente ao monte Sião, algumas centenas de metros
mais próximo da cidade que a colônia Talbiyeh. A princípio, ele pretendia construir um hospital, mas
mudou de ideia e ergueu uma série de moradias para famílias pobres de sua religião. Queria a desocupação
do bairro judaico, superpovoado e insalubre; no alto da montanha sobranceira às novas residências construiu
o mais avançado moinho de vento da cidade. Como Finn, desejava que os judeus se tornassem independentes.
A ideia atraiu, entre outros, o russo David Yellin, que em 1860 comprou terras perto da aldeia de Kalonia,
oito quilômetros a oeste de Jerusalém. Em 1880, havia nove desses bairros, um dos quais era Mea Shearim
[Cem Portas], a colônia dos ashkenazim situada a oitocentos metros da Porta de Jafa e edificada estritamente
de acordo com as normas da Torá, com sinagoga, mercado e yeshivas próprias. Morar nesses bairros era
perigoso. As primeiras famílias que se mudaram para as casas de Montefiore tinham tanto medo de ladrão
que à noite voltavam para a cidade a fim de dormir em suas velhas choupanas. Ao sair para Mea Shearim,
os ashkenazim muitas vezes sofriam ataques. Apesar disso, os novos núcleos cresceram e prosperaram. Depois
que os judeus de Jerusalém deixaram seu antigo bairro, sua saúde melhorou sensivelmente, e esse foi um dos
fatores determinantes do grande aumento de sua comunidade ao longo do século XIX. Para sua expansão
contribuíram também as novas oportunidades de ganhar dinheiro. Do ponto de vista econômico, sua vida
sempre fora muito difícil em Jerusalém, razão pela qual muitos dos novos imigrantes preferiam instalar-se em
Safed ou Tiberíades. Agora que esse obstáculo fora removido, os judeus naturalmente queriam ir para sua
Cidade Santa e, quando ocorria um terremoto ou qualquer outro desastre em Safed, instintivamente se
estabeleciam em Jerusalém.

Comunidades fora das muralhas no século XIX

Os árabes também começaram a fixar-se além das muralhas, formando comunidades mistas de muçulmanos
e cristãos. Em 1874, tinham cinco bairros residenciais: Karim al-Sheikh e Bab al-Zahreb, ao norte; Muresa,
360 metros a noroeste da Porta de Damasco; Katamon, a 1,6 quilômetro da Porta de Jafa; e Abu Tor,
sobranceiro aos vales do Hinom e do Cedron. As comunidades cristãs passaram igualmente a transpor as
muralhas. Em 1880, a Irmandade Suíça Alemã construiu um orfanato para crianças árabes nas proximidades
da Porta de Jafa. As diaconisas alemãs fundaram a escola Talitha Cumi para meninas ao sul da estrada de
Jafa. Protestantes de Württemberg criaram em 1871, ao sul da cidade, a Colônia Alemã, com igreja, asilo,
escola e hospital. Em 1880, a família americana Spafford instalou ao norte da Porta de Damasco uma nova
missão protestante, que se tornaria a Colônia Americana. Pouco depois os russos construíram a oeste das
muralhas um grande albergue, capaz de abrigar mil peregrinos; suas cúpulas verdes eram a primeira coisa
que o viajante procedente de Jafa avistava. Na década de 1880, os católicos fundaram o colégio Schmidt,
diante da Porta de Damasco, e, no canto noroeste das muralhas, o mosteiro de São Vicente de Paulo,
Notre-Dame de France e o hospital São Luís.
A Jerusalém arábica também se desenvolvia. Em 1863, seu primeiro conselho municipal [baladiyya al-quds]
alojou-se em dois pequenos cômodos junto à Via Dolorosa. Provavelmente Jerusalém foi a primeira cidade
otomana, depois de Istambul, a ter esse organismo, que inicialmente se compunha de seis muçulmanos, dois
cristãos e um judeu — em 1908 passou a ter dois representantes da comunidade judaica. Apesar das tensões,
os devotos das três religiões conseguiam trabalhar juntos de maneira criativa. O conselho era eleito a cada
quadriênio por cidadãos otomanos do sexo masculino, maiores de 25 anos e proprietários de bens pelos quais
deviam pagar anualmente um imposto de no mínimo cinquenta libras turcas. O governador escolhia um dos
membros eleitos para ocupar a prefeitura. Até 1914, a maioria dos prefeitos saiu das famílias Khalidī, ‘Alami,
Husaini e Dajani, e a nomeação geralmente refletia o equilíbrio de forças entre os notáveis, sobretudo entre
os Khalidī e os Husaini. A municipalidade participou ativamente do desenvolvimento local. Desde o início
tentou aprimorar a infraestrutura urbana, pavimentando e desobstruindo as ruas, instalando um sistema de
esgotos e tomando providências para iluminar e limpar a cidade. Na década de 1890, instituiu a lavagem das
vias públicas e a coleta do lixo, arborizou as ruas e abriu um parque municipal na estrada de Jafa. Também
foi responsável pela criação de uma força policial, de um hospital municipal gratuito e, na virada do século,
do Museu de Antiguidades e de um teatro próximo à Porta de Jafa, onde as peças eram representadas em
turco, árabe e francês. Poucas cidades do Império otomano teve nessa época uma municipalidade tão ativa e
empenhada.
Um de seus membros mais ilustres era Yusuf al-Khalid ī, que ocupou a prefeitura durante nove anos.6
Khalidī representava o novo cidadão palestino, tendo sido um dos primeiros árabes de Jerusalém a receber
uma educação moderna e ocidental. Entretanto, não tinha aspirações nacionalistas. Era um súdito leal do
Império e em 1877-8 atuou como delegado de Jerusalém no efêmero parlamento otomano, onde denunciou
corajosamente a corrupção da administração e a conduta inconstitucional do sultão Abdulh. amid. Acreditava
que o Estado otomano reformado devia primar pela educação moderna, pela administração incorrupta, pela
tolerância religiosa, pelos direitos constitucionais e pela infraestrutura aprimorada. Khalidī se tornou um
herói local, mas em 1879 foi destituído do cargo pelo governador Rauf Pasha, que queria quebrantar o
poder das famílias jerosolimitas. Com isso chegou ao fim a ascendência política dos Khalidī, e os Husaini,
mais conservadores e intolerantes, tenderam a assumir a liderança — o que nem sempre seria bom nos
momentos de maior tensão.
Quando Rauf Pasha tentou substituir os Khalidī e outros notáveis árabes por funcionários turcos, houve
tumulto em Jerusalém. Sua atitude foi considerada antiárabe, o que constituiu uma novidade. Até então, a
religião havia sido um fator de identidade muito mais importante que a raça. Na revolta de 1825, os árabes
revelaram sua nova consciência, correspondente ao despertar de seu nacionalismo na Palestina. Destinados a
desempenhar um papel fundamental na luta que estava por vir, cada vez mais viam os turcos como
usurpadores. Essa afirmação de uma identidade distinta manifestou-se novamente em 1872, quando os árabes
ortodoxos deram início a uma veemente campanha por maior participação em sua Igreja. Sentiam-se
desprezados e marginalizados pela elite grega, que constituía minoria. A luta começou em Jerusalém, mas
espalhou-se pelo resto da Palestina, com o incentivo do cônsul russo, que tinha seus motivos para combater
a hegemonia dos gregos sobre os ortodoxos na Terra Santa. Em determinado momento os árabes passaram a
agir com tal violência que o cônsul britânico viu em sua atuação uma revolta incipiente. Por fim
restabeleceu-se a paz, porém não se acabou com o descontentamento dos cristãos árabes, que em 1882
fundaram a Sociedade Ortodoxa Palestina para lutar contra o controle estrangeiro de sua Igreja.
Os árabes tentavam elaborar seus próprios planos para o país, mas os europeus também viam a Palestina
com olhos possessivos. Tendiam a considerar sua parte na modernização de Jerusalém como uma “cruzada
pacífica”, termo que revelava o desejo de conquistar e dominar. 7 Os franceses sonhavam com uma cruzada
vitoriosa que submetesse Jerusalém e todo o Oriente ao império da cruz. Sua missão consistia em libertar
Jerusalém do sultão e sua nova arma seria o colonialismo. Os protestantes que fundaram a Colônia Alemã
chamavam-se de templários e instavam seu governo a completar a obra dos cruzados. Os ingleses adotaram
uma postura diferente. Desenvolveram uma forma de sionismo cristão. Sua leitura da Bíblia os convencera de
que a Palestina pertencia aos judeus, e já na década de 1870 alguns observadores ingleses ansiavam pelo
estabelecimento de uma pátria judaica na Palestina sob a proteção da Grã-Bretanha. Esse ponto de vista
permeava claramente a política dos cônsules britânicos. Na Inglaterra protestante, onde se lia a Bíblia
literalmente, muita gente acreditava que um dia os judeus retornariam a Sião e que os árabes eram
usurpadores temporários.8
Os europeus usavam a modernização de Jerusalém para apoderar-se do país. Em 1865, o capitão Charles
Wilson, da Real Engenharia Britânica, chegou à Palestina para estudar a hidrologia de Jerusalém e também
para preparar o primeiro levantamento militar da Cidade Santa, que, para os ocidentais, tenderia a superar a
velha geografia sagrada. Enquanto explorava as cisternas do H. aram, o capitão descobriu, paralelo ao “Arco
de Robinson”, um arco monumental, que recebeu seu nome e chamou a atenção do público britânico muito
mais que o novo sistema de abastecimento de água proposto. Seus relatórios levaram à criação, em 1865, do
Fundo para a Exploração da Palestina (FEP), voltado para a pesquisa arqueológica e histórica da Terra Santa.
A inerente possessividade dessa “cruzada pacífica” expressou-se no discurso que o arcebispo de York,
presidente da nova sociedade, pronunciou na cerimônia de inauguração. “A Palestina nos pertence, é
essencialmente nossa”, declarou. “É a terra que nos enviou a notícia de nossa Redenção. É a terra para a
qual nos voltamos para alicerçar todas as nossas esperanças. É a terra que nos inspira um patriotismo tão
sincero quanto o que votamos a esta querida e velha Inglaterra.”9 Sendo a Palestina uma província tão
importante da imaginação cristã, era difícil vê-la com a objetividade que as novas disciplinas científicas
exigiam. Ela de algum modo fazia parte da identidade cristã, o que tornava difícil entender que, num
sentido totalmente diferente, pertencia ao povo que de fato a habitava e a tinha como pátria.
O povo da Palestina logo tomou conhecimento dessa nova arqueologia com caráter de Cruzada. Em 1863
de Saulcy retornou a Jerusalém, para prosseguir com as escavações iniciadas no Túmulo dos Reis, e deparou-
se com moradores furiosos, que exigiam indenização financeira pela violação de sua terra e de seus bens. Os
judeus também o acusaram de profanar a sepultura de seus ancestrais. Os europeus pareciam considerar-se
donos do país que estavam explorando. Quando chegou a Jerusalém, em fevereiro de 1867, Charles Warren,
da Real Engenharia, esbarrou na má vontade e na desconfiança das autoridades, que não lhe permitiram
cavar o solo do H. aram: as ferramentas desses novos cruzados não podiam penetrar o lugar santo. Para
resolver o problema, Warren alugou terrenos de particulares junto à extremidade meridional do H . aram e
perfurou poços e passagens subterrâneas que levavam à base dos muros. Descobriu então que o Templo de
Herodes fora construído sobre montes de entulho que se acumularam ao longo do período bíblico e
aterraram o vale do Tiropeon. Enquanto escavava o Ofel, encontrou ainda o antigo canal dos jebuseus, que
se tornou conhecido como “poço de Warren”.
Cada vez mais ocidentais viajavam à Palestina em busca de fatos. Ao contrário dos antigos peregrinos,
pretendiam não explorar a geografia sagrada do espírito, e sim encontrar evidências históricas que
comprovassem a verdade de sua fé. O FEP abriu uma loja e uma sala de conferências na Porta de Jafa, e os
candidatos a guia deviam passar por um exame sobre a história de Jerusalém segundo as descobertas
realizadas pelos exploradores do Fundo. Tendo se iniciado como uma procura de certeza intelectual, a
“arqueologia bíblica” começava a descobrir uma realidade mais complexa que tornava difícil tal certeza. Não
era realmente possível formular afirmações simples sobre o passado de Jerusalém. Em Tel el-Hesy, cerca de
cinquenta quilômetros ao sul da Cidade Santa, o arqueólogo americano Frederick J. Bliss encontrou uma
tabuinha com caracteres cuneiformes semelhante às que haviam sido recém-descobertas em Tel el-Amarna, no
Egito. A história da “Terra Santa” evidentemente não se iniciou com a Bíblia. Bliss deparou-se em Jerusalém
com uma complexidade parecida. Embora não pudesse prová-lo, convenceu-se de que a Cidade de Davi se
situava originalmente no monte Ofel, e não no monte Sião, como se pensou durante séculos. Com isso a
luta pela chamada Tumba de Davi perdia o sentido? Quando se pôs a escavar o Ofel, todavia, Bliss se deu
conta de que não poderia simplesmente desenterrar a ’Ir David. Não era nada fácil datar muitas das
estruturas antigas que encontrou, porém estava claro que a colina fora habitada continuamente desde a Idade
do Bronze até o período bizantino. Os vários estratos se superpunham da maneira mais confusa, e os
arqueólogos demorariam anos para compor um quadro preciso do passado de Jerusalém. A tarefa era muito
mais difícil do que imaginavam os fiéis leitores da Bíblia.10
Em 1910, o arqueólogo dominicano Hughes Vincent concluiu as escavações de Bliss no Ofel e demonstrou
que a Jerusalém mais antiga se situara nesse monte, e não no Sião. Encontrou túmulos da Idade do Bronze,
sistemas de abastecimento de água e fortificações que provavam que a história da cidade se iniciara muito
antes de Davi.11 Assim, não se podia afirmar que Jerusalém pertencia aos judeus porque eles foram seus
primeiros habitantes. Na verdade, a Bíblia se empenha em mostrar que os israelitas tiraram a Palestina e
Jerusalém da população nativa. A arqueologia moderna podia, portanto, ameaçar algumas das simples certezas
da fé.
Para os muçulmanos de al-Quds, a arqueologia era uma atividade potencialmente blasfema que tentava
penetrar o mistério do sagrado utilizando métodos grosseiros e agressivos. O père Vincent trabalhou no
contexto da lamentável expedição de Montagu Brownlow Parker, filho do conde de Morley. Parker acreditava
que havia um tesouro enterrado nos subterrâneos do H. aram. Vincent concordou em ajudá-lo para impedir
que, em seu absoluto despreparo, ele destruísse evidências preciosas. Na noite de 17 de abril de 1910, Parker
conseguiu entrar no H. aram, mediante suborno, e se pôs a explorar a caverna situada sob a Rocha. Um
islamita que decidira dormir na esplanada ouviu o barulho e correu para a Cúpula do Rochedo, onde
encontrou Parker golpeando a pedra sagrada com uma picareta. Os muçulmanos de Jerusalém se
horrorizaram e durante dias promoveram tumultos. Parker ilustra um dos piores aspectos do secularismo
ocidental. Violou um santuário antigo e tentou — literalmente — minar a santidade do local, movido não
por uma nobre procura de conhecimento, e sim pelo desejo do ganho material.
Pouco a pouco a modernidade transformava a religião. Na Europa e nos Estados Unidos, já não se
pensava em termos de símbolos e imagens, mas desenvolvia-se um tipo de pensamento mais linear e
discursivo. Novas ideologias, como o socialismo e o nacionalismo, começavam a questionar as antigas
convicções religiosas. No entanto, a mitologia da geografia sagrada persistia. Vimos que os cristãos bizantinos,
que acreditavam ter superado esse tipo de religião, precisaram rever suas ideias quando suas circunstâncias se
alteraram. Logo após a descoberta da tumba de Cristo, eles rapidamente desenvolveram sua própria mitologia
do espaço sagrado. Na segunda metade do século XIX, alguns judeus trataram de reformular a velha ideologia
de Sião. Na Europa haviam passado por uma imensa reviravolta. Na França, na Alemanha e na Inglaterra,
foram emancipados e incentivados a ingressar na moderna sociedade secular. Alguns prosperaram ao deixar o
gueto, mas outros, curiosamente, se sentiram perdidos, separados de suas raízes, vagando sem rumo. O que
significava ser judeu no mundo moderno? O judaísmo era apenas um assunto particular e individual? Alguns
judeus desenvolveram uma fé desmitificada que excluía o messianismo e o desejo de reconstruir o Templo;
queriam separar a religião da política. Outros, porém, não se satisfizeram com essa solução. Ademais,
percebiam que a nova tolerância da Europa era superficial. O antissemitismo estava arraigado na mentalidade
cristã e não desapareceria facilmente. Na verdade, os europeus reinterpretariam à luz de seus novos
entusiasmos os velhos mitos sobre o povo eleito. Cada vez mais alguns judeus sentiam-se hostilizados e
indefesos no admirável mundo moderno. Sem ter um lugar verdadeiramente seu, voltaram-se instintivamente
para Sião.
Já em 1840, depois que os franciscanos fomentaram em Damasco os primeiros pogroms do mundo islâmico,
Yehuda Hai Alchelai, um rabino sefardita de Sarajevo, incitou os judeus a decidirem o próprio destino. Não
estavam tão seguros entre os muçulmanos quanto pensaram. De nada lhes adiantaria esperar sentados pelo
Messias: “A Redenção ocorrerá pelos esforços dos próprios judeus”, Alchelai escreveu em Minh. at Yehuda .12
Eles deviam organizar-se, escolher seus líderes e criar um fundo para comprar terras na Palestina. Em 1860,
o rabino ashkenazi Zvi Hirsch Kalischer transtornou-se ao ver na Polônia o novo nacionalismo de seus
vizinhos gentios. Aonde isso levaria os judeus, que não tinham pátria? Eles precisavam desenvolver seu
próprio nacionalismo. Kalischer os preveniu, mais uma vez, que de nada lhes adiantava esperar passivamente
pelo Messias. Cabia aos Montefiore e aos Rothschild fundar uma empresa para assentar os judeus na
Palestina e organizar sua migração maciça para um lugar que realmente poderiam chamar de seu. A maioria
dos rabinos ortodoxos — que, recusando-se a fazer quaisquer concessões à modernidade, continuava
observando rigorosamente as práticas tradicionais — não teria participação nesse novo sionismo, que via
como uma tentativa ímpia de apressar a Redenção. Alchelai e Kalischer, contudo, mostraram que, quando se
sentiam alienados num mundo hostil, os judeus naturalmente voltavam os olhos para Sião. O sionismo seria
um movimento secular, inspirado sobretudo pelos judeus que perderam a fé na religião, mas tinha um
potencial religioso, conforme demonstraram esses dois rabinos.
Entretanto, o homem tido como o pai do sionismo é Moses Hess, um discípulo de Marx e Engels que
reinterpretou a velha mitologia bíblica à luz dos revolucionários ideais do socialismo e do nacionalismo. Hess
foi um dos primeiros a perceber que um novo tipo de antissemitismo, baseado mais em raça que em
religião, estava surgindo na Alemanha nacionalista. Quanto mais se devotavam à pátria mãe, mais os alemães
odiavam e perseguiam os judeus, que não pertenciam à nação ariana e não tinham um país próprio. Na
época, poucos acreditaram em Hess — a Alemanha parecia disposta a permitir a integração dos judeus —,
mas ele havia detectado as correntes mais profundas que atuavam na sociedade. Em seu clássico sionista
Roma e Jerusalém (1860), defendeu a criação de uma sociedade socialista na Palestina. Assim como Mazzini
libertaria a cidade eterna do Tibre, os judeus deviam libertar a cidade eterna do monte Moriá. Socialismo e
judaísmo eram inteiramente compatíveis. Os profetas ensinaram a suprema importância da justiça e dos
cuidados para com os pobres. Uma vez estabelecida em Jerusalém uma comunidade socialista judaica, Sião
voltaria a irradiar sua luz e teria lugar “o Sabá da história”, a utopia profetizada por Marx e equiparada por
Hess ao reino messiânico.
Aos judeus que se sentiam marginalizados na Europa o historiador alemão Heinrich Graetz dizia que o
judaísmo era relevante para o mundo altamente politizado de seu tempo. Em sua monumental História dos
judeus desde os primórdios até o presente (1853-76), afirma que era inútil tentarem copiar os cristãos e separar
religião de política, como queriam os reformadores. O judaísmo era uma religião essencialmente política.
Desde a época do rei Davi, os judeus uniram política e religião numa síntese criativa. Mesmo depois que
perderam seu Templo, elaboraram o Talmude como substituto da Terra Santa. A Torá conseguia
“transformar numa Palestina precisamente definida toda casa judaica em qualquer lugar do mundo”.13 A
Terra Santa estava, portanto, no sangue dos judeus. “A Torá, a nação e a Terra Santa encontram-se,
poderíamos dizer, numa inter-relação mística, indissoluvelmente unidas por um elo invisível.” 14 Eram valores
sagrados, inseparáveis da identidade judaica. Ao contrário de Hess, cuja obra admirava, Graetz não pregou a
migração para a Palestina. Quando visitou Jerusalém, horrorizou-se com o atraso dos judeus e a sujeira de
seu bairro. Contribuiu para a causa sionista com sua História, que educou toda uma geração de judeus e
ensinou-os a rever suas tradições à luz da filosofia moderna.
Os anos de 1881-2 foram um marco na história da Palestina e de Jerusalém. Primeiro, os ingleses se
instalaram politicamente na região, conquistando o Egito, e desempenhariam um papel decisivo na luta que
estava por vir. Um dos heróis da campanha do Egito foi o general Charles “Chinês” Gordon, morto no
Sudão após a queda de Cartum. Sua principal contribuição para Jerusalém foi a descoberta da “Tumba do
Jardim”. Muitos europeus tomaram-se de aversão à igreja do Santo Sepulcro: achavam que esse edifício
obsoleto estava cheio de monges irritados e irritantes, inconciliáveis com os límpidos mistérios de sua fé. Ao
estudar o levantamento militar de Wilson, Gordon encontrou certa semelhança entre uma das curvas de nível
e um corpo de mulher, cuja “cabeça” era um outeiro ao norte da Porta de Damasco. Esse devia ser o
“Lugar da Caveira”. Quando descobriu no local um sepulcro de pedra aparentemente antigo, identificou o
outeiro como o Gólgota e o sepulcro como o de Cristo. Após sua morte, a Tumba do Jardim se tornou
um lugar santo dos protestantes. Trata-se de um monumento ao imperialismo britânico que mudaria para
sempre a história de Jerusalém.
Em 1882, após a explosão de pogroms na Rússia, as primeiras colônias sionistas estabeleceram-se na
Palestina — não em Jerusalém, mas no campo. Administradas em conformidade com os ideais socialistas, não
tiveram sucesso, porém graças a elas o novo entusiasmo judaico que transformaria a Palestina passou a ter
endereço e a figurar no mapa. O sionismo estava criando corpo na terra dos Patriarcas. Em 1899, quando
realizaram sua primeira convenção em Basileia, Suíça, os sionistas conquistaram uma plataforma internacional.
Embora houvesse entre eles numerosos secularistas, que já não comungavam das crenças teológicas do
judaísmo tradicional, deram a seu movimento um dos nomes mais antigos da Cidade Santa, que por muito
tempo simbolizara a salvação. Também expressaram seus ideais por meio de imagens judaicas convencionais.
Assim, emocionaram-se quando Theodor Herzl, que se tornara seu porta-voz, subiu ao pódio. Ele parecia
“um homem da Casa de Davi, que de repente se levantara da tumba em toda a sua legendária glória”,
lembrou Mordechai Ben-Ami, o delegado de Odessa. “Foi como se o sonho acalentado por nosso povo ao
longo de 2 mil anos enfim se realizasse, e o Messias, Filho de Davi, estivesse diante de nós.”15
Herzl não era um pensador original, conquanto seu Estado judeu (1896) tenha se convertido num clássico do
movimento. Tampouco era um homem religioso; abraçara o ideal da integração e chegara a cogitar na
possibilidade de converter-se ao cristianismo. No entanto, por ocasião do caso Dreyfus, que abalou a França,
percebeu claramente a vulnerabilidade de seu povo. Previu — com acerto — uma iminente catástrofe
antissemita e literalmente se matou de trabalhar na tentativa de encontrar um refúgio para os judeus. Ciente
da importância das relações públicas, procurou o sultão, o papa, o Kaiser e o secretário colonial britânico, e
assim chamou a atenção dos líderes políticos mundiais para o sionismo. No segundo congresso sionista
propôs que o novo Estado judeu se estabelecesse em Uganda — a seu ver não era necessário que se
instalasse na Palestina — e ficou chocado com a veemência da oposição a sua proposta. Mas abandonou a
ideia para não perder a liderança. Perante os delegados ergueu a mão direita e citou as palavras do salmista:
“Se eu te esquecer, ó Jerusalém, que minha destra seque!”.
Todavia, quando visitou a Cidade Santa, em 1898, não teve uma impressão favorável. Horrorizou-se com
“o ranço de 2 mil anos de desumanidade, intolerância e imundície” que se acumulara em suas “vielas
malcheirosas” e decidiu: se algum dia recuperassem Jerusalém, a primeira coisa que os sionistas deviam fazer
era limpá-la.
Eu eliminaria tudo que não é sagrado, construiria casas de trabalhadores fora da cidade, esvaziaria e
demoliria os pardieiros imundos, queimaria todas as ruínas profanas e transferiria os bazares para outra
parte. Então, preservando na medida do possível o antigo estilo arquitetônico, ergueria em torno dos
lugares santos uma cidade inteiramente nova, arejada, confortável e provida de uma rede de esgotos.16
Poucos dias depois, mudou de ideia: construiria a nova cidade secular fora das muralhas e deixaria os
santuários sagrados num enclave próprio. Era uma imagem perfeita do novo ideal secularista: a religião devia
ocupar uma esfera à parte. A santidade de Jerusalém desempenhou um papel pequeno no início do
movimento sionista, cujos luminares em geral preferiam deixar de lado a cidade e suas comunidades
religiosas. Para Herzl a salvação não cairia do céu: estava na admirável urbe nova que gostaria de edificar
fora das muralhas da antiga. O “vasto e verde cinturão de encostas em toda a volta” seria “o local de uma
gloriosa Nova Jerusalém”.17 As velhas tradições religiosas do judaísmo haviam sido superadas e abandonadas.
Consequentemente, a principal reação de Herzl ao visitar o Muro Ocidental foi de repulsa: a esqualidez, as
lamúrias e as atitudes covardes dos judeus que se agarravam a suas pedras simbolizavam tudo o que o
sionismo devia transcender.
Nem todos os sionistas reagiram dessa forma. Mordechai Ben Hillel chorou como uma criança quando viu
pela primeira vez o Muro das Lamentações: um sobrevivente, como o povo eleito, cuja força provinha não
de fatos concretos ou da razão, e sim da “lenda” que desencadeava imensa energia psíquica.18 O escritor A.
S. Hirschberg passou por uma experiência semelhante quando visitou Jerusalém em 1901. Caminhando pelo
bairro do Magreb, sentiu-se constrangido e deslocado. No entanto, assim que parou diante do Muro
Ocidental e pegou o livro de orações que o bedel sefardita lhe ofereceu, pôs-se a chorar incontrolavelmente,
em estado de choque, comovido até o âmago de seu ser: “Todos os meus problemas particulares se
misturaram com os infortúnios de nossa nação para formar uma torrente”.19 O Muro se tornara um símbolo
capaz de curar a sensação de desarraigamento e alienação que afligia os mais seculares dos judeus. Seu poder
os tomou de surpresa, fazendo-os questionar a si mesmos e alcançando áreas até então insuspeitadas de
corações e mentes.
Em 1902, uma nova leva de colonos sionistas procedentes da Rússia e da Europa oriental começou a
chegar a Israel. Eram revolucionários seculares, dedicados ao ideal socialista. Entre eles se encontrava o
jovem David Ben-Gurion. Essa “Segunda Aliyah”, como se passou a chamar a migração, seria decisiva na
história do movimento. Ben-Gurion não era religioso e via a Nova Jerusalém a partir da perspectiva
socialista. A sua esposa, Paula, escreveu: “Plangente e choroso chega-se à alta montanha da qual se avista um
mundo novo, brilhando à luz de um ideal eternamente jovem de felicidade suprema e existência gloriosa”.20
Sua fé secular infundia a esses colonos o tipo de exaltação que geralmente se associa com religião. Eles
deram a sua migração para a Palestina o nome de aliyah, sobretudo porque esse era o termo
tradicionalmente usado para designar o retorno à Terra de Israel, e também porque representava uma
ascensão a um nível de existência mais elevado. Para eles, porém, a santidade residia na terra, não no céu.
Alguns desses sionistas se instalaram em Jerusalém, porém muitos partilhavam a repulsa de Herzl. Em 1909,
fixaram-se nas proximidades do porto árabe de Jafa e começaram a construir Tel Aviv, que se tornou a
cidade-vitrine de seu novo judaísmo.
A maioria dos colonos eram tipos urbanos. No panteão sionista, contudo, nunca assumiram a importância
dos colonos dos kibbutzim. A primeira dessas fazendas coletivas surgiu em Degania, Galileia, em 1911. O
teórico sionista Nahum Sokolov observou: “O ponto de gravidade deslocou-se da Jerusalém das escolas
religiosas para as fazendas e as escolas de agricultura, os campos e os prados”.21 Assim como o antigo Israel
se iniciara fora de Jerusalém, o novo Israel se formaria nos kibbutzim da Galileia.
Sem embargo, a Cidade Santa ainda era um símbolo capaz de inspirar esses sionistas seculares que lutavam
para criar um mundo novo, mesmo que não lhes interessasse muito como realidade terrena. Yitzhak Ben-Zvi,
que se tornaria o segundo presidente do Estado de Israel, aderiu ao sionismo quando discursava num
comício de revolucionários, na Rússia. De repente se sentiu no lugar errado, afastado de seu meio. “Por que
estou aqui e não lá?”, perguntou-se. E “com os olhos da mente” avistou “a imagem viva de Jerusalém, a
cidade santa, com suas ruínas, deserta de seus filhos”. A partir de então desistiu de fazer revolução na Rússia
e passou a pensar tão somente em “nossa Jerusalém”. “Naquele exato momento cheguei à conclusão cabal de
que nosso lugar é a Terra de Israel, e que preciso ir para lá, dedicar minha vida a sua construção, assim
que for possível.”22 Descobrira sua verdadeira orientação e seu verdadeiro lugar no mundo.
O problema era que Jerusalém não estava “deserta de seus filhos”. Já tinha filhos, gente que a habitava
fazia séculos e que concebia seus próprios planos em relação a ela. Tampouco estava em ruínas, como Ben-
Zvi a imaginou. Catorze bairros novos surgiram desde a década de 1870. A cidade possuía uma galeria
comercial e um hotel na Porta de Jafa, bem como um parque novíssimo, onde a banda municipal tocava à
tarde, um museu, um teatro, um moderno serviço de correio e telégrafo. Uma rodovia ligava-a a Jafa, e uma
ferrovia atravessava o vale Baq’a, transportando os visitantes procedentes do litoral. Jerusalém agora tinha de
que se orgulhar. Seus habitantes árabes ressentiam-se da ocupação turca e temiam os colonos sionistas. Em
1891, alguns de seus cidadãos mais influentes solicitaram ao governo de Istambul que proibisse a imigração
de judeus e a venda de terras a sionistas. Ao que se sabe, o último ato político de Yusuf al-Khālidī consistiu
em escrever uma carta ao rabino Zadok Kahn, amigo de Herzl, suplicando-lhe que esquecesse a Palestina:
durante séculos, judeus, cristãos e muçulmanos conseguiram conviver em Jerusalém, e o projeto sionista daria
fim a essa coexistência. Após a Revolução dos Jovens Turcos, em 1908, os nacionalistas árabes da Palestina
passaram a sonhar com um Estado próprio, livre da dominação otomana. Em 1913, quando se realizou em
Paris o primeiro Congresso Árabe, 387 árabes do Oriente Próximo — dos quais 130 eram palestinos —
assinaram um telegrama de apoio. Em 1915, Ben-Gurion se deu conta dessas aspirações em relação ao país e
achou-as profundamente inquietantes. “Atingiram-me como uma bomba”, diria mais tarde. “Fiquei
absolutamente perplexo.”23 Entretanto, o escritor israelense Amos Elon nos conta que, apesar dessa bomba,
Ben-Gurion continuou ignorando a existência dos árabes palestinos. Dois anos depois, fez a surpreendente
declaração de que, “num sentido histórico e moral”, a Palestina era um país “sem habitantes”.24 Porque os
judeus se sentiam em casa ali, todos os demais habitantes eram apenas os descendentes étnicos de vários
conquistadores. Ben-Gurion não queria mal aos árabes como indivíduos, mas estava convencido de que não
tinham direito nenhum como nação. Havia muito tempo que Jerusalém e a Terra de Israel eram um estado
de espírito para os judeus. Ocupavam em seu mapa emocional uma posição sagrada, que até mesmo um ateu
convicto como Ben-Gurion considerava mais importante que os fatos demográficos e históricos. Contudo,
essa negação logo esbarraria em algumas realidades duras — em parte por sua causa, talvez, desenvolvia-se
um trágico choque de interesses entre judeus e árabes.
Em 1914, eclodiu a Primeira Guerra Mundial. A Turquia aliou-se à Alemanha contra a França e a
Inglaterra. Jerusalém tornou-se quartel-general do VIII Exército Turco. A tragédia que se desenrolou entre
1915 e 1918 foi o prelúdio de uma catástrofe que teria profundo impacto na história de Jerusalém.
Oficialmente a política otomana exigia o massacre dos armênios. Em Jerusalém, onde desde muito tempo
constituíam uma presença discreta, os kaghakatsi praticamente nada sofreram. Os que trabalhavam para o
governo perderam seus cargos, mas a vida em família continuou como sempre no bairro armênio, alterada
apenas pelo fato de que os jovens tiveram de servir no exército turco. Em outras partes do Império
Otomano, porém, os armênios foram impiedosamente exterminados. Como mais tarde na Alemanha nazista,
essa execução em massa recebeu o nome eufemístico de “deportação”. Os turcos conduziam para as margens
dos rios multidões de armênios e os jogavam na água, atirando naqueles que tentavam nadar para salvar a
própria vida. Também os levaram para o deserto, aos milhares, e ali os deixaram sem comida nem água.
Um milhão morreu dessa forma, e outro milhão partiu para o exílio. Alguns chegaram a Jerusalém e se
apinharam no bairro armênio, onde receberam permissão de residir no convento de São Tiago com a
irmandade — um privilégio geralmente vedado aos leigos. O primeiro genocídio do século XX os levara a
buscar refúgio na antiga santidade de Jerusalém.
Em 1916, os ingleses chegaram à conclusão de que uma vitória espetacular no Oriente Próximo acabaria
com o impasse da guerra de trincheira na França. A Força Expedicionária Anglo-Egípcia deslocou-se para a
península do Sinai, mas encontrou firme resistência turca em Gaza. O general Edward Allenby, a quem o
primeiro-ministro Lloyd George recomendara que conquistasse Jerusalém para oferecê-la ao povo britânico
como presente de Natal, substituiu o general Murray e tratou de estudar atentamente as publicações do FEP:
como na conquista de Napoleão, mais de um século antes, o estudo científico preludiou a ocupação militar.
Em outubro de 1917, Allenby tomou Gaza e deu início a seu avanço sobre Jerusalém. O governador Djemal
Pasha ordenou que os turcos desocupassem a cidade, onde a única autoridade presente em 9 de dezembro
era o prefeito Hussein Selim al-Husaini. À frente de um cortejo de meninos, al-Husaini deixou a Cidade
Velha pela Porta de Jafa e entregou Jerusalém a dois atônitos batedores ingleses. Quando Allenby chegou à
Porta de Jafa, em 11 de dezembro, todos os sinos repicaram para saudá-lo. Por respeito à santidade da
“Jerusalém Bendita”, o general apeou-se e seguiu a pé até a escadaria da Cidadela. Em nome do governo de
Sua Majestade garantiu aos habitantes locais que protegeria os lugares santos e preservaria a liberdade
religiosa das três crenças de Abraão. Havia completado a obra dos cruzados.
17. ISRAEL

NO DECORRER DE SUA LONGA HISTÓRIA, não raro trágica, Jerusalém foi muitas vezes arrasada e reconstruída.
Com a chegada dos ingleses passaria por mais um doloroso período de transformação. Durante quase treze
séculos, à parte o breve interlúdio dos cruzados, fora uma importante cidade islâmica. Agora, com a
conquista do Império Otomano, os árabes da região estavam prestes a tornar-se independentes. A princípio
ingleses e franceses estabeleceram mandatos e protetorados no Oriente Próximo, porém novos Estados e
reinos árabes começavam a surgir: Jordânia, Líbano, Síria, Egito, Iraque. Se outros fatores se mantivessem
inalterados, provavelmente a Palestina também se tornaria independente e sua capital seria Jerusalém. No
período do mandato britânico os sionistas puderam instalar-se no país e criar um Estado judeu. Jerusalém
continuou sendo cobiçada em função de sua importância religiosa e estratégica, e os judeus, os árabes e a
comunidade internacional disputavam sua posse. Por fim, graças a suas manobras militares e diplomáticas, os
judeus triunfaram, e em 1967 Jerusalém se tornou a capital do Estado de Israel. Atualmente seu caráter árabe
é apenas uma sombra do que era quando Allenby e suas tropas lá entraram.
A vitória dos sionistas representou uma extraordinária reviravolta. Em 1917, os árabes constituíam 90% da
população total da Palestina e pouco menos da metade da população de Jerusalém. Tanto eles como os
judeus pasmam ao recordar esse processo. Os sionistas consideram seu triunfo quase um milagre em face de
circunstâncias tão desfavoráveis; os árabes chamam sua derrota de al-nakhbah, palavra que denota uma
catástrofe de proporções quase cósmicas. Não surpreende encontrar em ambos os lados descrições da luta que
tendem a simplificar a questão, apresentando-a em termos de vilões e heróis, absolutamente certo e
totalmente errado, vontade de Deus e castigo divino. A realidade era mais complexa. Em grande parte o
resultado se deveu à habilidade e aos recursos dos líderes sionistas, que conseguiram influenciar primeiro o
governo britânico e depois o americano e mostraram uma visão clara do processo diplomático. Quase sempre
aceitavam o que as grandes potências lhes ofereciam, embora a oferta geralmente não bastasse para atender a
suas necessidades ou preencher suas exigências. No fim, conseguiram tudo, até mesmo superar as divisões
ideológicas no interior de seu movimento. Os árabes não tiveram tanta sorte. O colapso do Império
Otomano e a chegada dos ingleses constituíram um grande choque para seu movimento nacionalista na
Palestina, que, ademais, não tinha a coerência e o senso de realismo político necessários para lidar com os
europeus, de um lado, e os sionistas, do outro. Os árabes não lograram organizar uma resistência sistemática
e, não estando habituados com os métodos da diplomacia ocidental, constantemente diziam “não” quando
lhes propunham qualquer coisa. Esperavam que essa inflexível política de rejeição lhes garantisse o direito a
um Estado independente na terra que, demográfica e historicamente, parecia sua. A princípio acreditaram
ingenuamente nas boas intenções da Inglaterra a seu respeito. Em função de seu “não” constante nada
obtiveram, e com a criação do Estado de Israel, em 1948, o judeu errante, desarraigado e desapropriado
cedeu lugar ao palestino sem terra, sem raízes e sem bens.
A motivação e a política dos ingleses também eram confusas e dúbias. Ambos os lados achavam difícil
entender o que eles pretendiam. Durante a Grande Guerra o governo britânico fizera promessas aos árabes e
aos judeus. Em 1915, para encorajar os árabes do Hedjaz a rebelarem-se contra os turcos, Sir Henry
McMahon, alto comissário do Egito, prometera a H. usain Ibn ‘Āli, xerife de Meca, que a Inglaterra
reconheceria a futura independência dos países árabes e que os lugares santos permaneceriam sob o controle
de um “Estado islâmico soberano e independente”. Não mencionou explicitamente a Palestina e tampouco
Jerusalém, o terceiro lugar mais santo do Islã. Embora não fosse um tratado formalmente ratificado, o
Acordo McMahon teve a força de um tratado, sobretudo quando H. usain decidiu segui-lo ao pé da letra e,
com a ajuda de T. E. Lawrence, instigou os árabes à revolta em 1916. Enquanto McMahon negociava esse
compromisso, a Inglaterra e a França firmavam o secreto Acordo Sykes-Picot, que dividiu todo o mundo
árabe ao norte da península em zonas britânicas e francesas.
Em 2 de novembro de 1917, pouco mais de um mês antes de Allenby conquistar Jerusalém, o premiê
Lloyd George instruiu seu ministro do Exterior, Arthur Balfour, a escrever uma carta a Lord Rothschild
contendo esta importante declaração:
O governo de Sua Majestade considera favoravelmente a criação, na Palestina, de um lar nacional para o
povo judeu e envidará seus maiores esforços no sentido de facilitar a concretização de tal objetivo, estando
claramente entendido que nada se fará para prejudicar os direitos civis e religiosos das comunidades não
judaicas existentes na Palestina ou os direitos e a situação política dos judeus em qualquer outro país.1
Durante muito tempo a Inglaterra alimentara a fantasia do retorno dos judeus à Palestina. Em 1917, em
plena guerra mundial, possivelmente houve também considerações estratégicas. Um protetorado britânico de
judeus agradecidos poderia contrariar as ambições dos franceses na região. Entretanto, Balfour estava ciente
da contradição essencial das promessas feitas por seu governo. Num memorando de agosto de 1919 assinalou
que a Inglaterra e a França haviam prometido instalar no Oriente Próximo governos nacionais baseados na
livre escolha popular. Na Palestina, contudo, “não propomos sequer consultar os desejos dos atuais habitantes
do país”.
As quatro grandes potências estão comprometidas com o sionismo. E, certo ou errado, bom ou mau, o
sionismo tem raízes em vetustas tradições, em necessidades atuais e em futuras esperanças muito mais
importantes que os desejos e preconceitos dos 700 mil árabes que hoje habitam esse antigo país.
Com espantosa leviandade, Balfour concluiu que, “no tocante à Palestina, as potências não fizeram nenhuma
declaração de fato que não pudessem reconhecer como errada e nenhuma declaração de princípios que, ao
menos formalmente, não pretendessem violar”.2 Não é com essa matéria que se faz uma administração
transparente.
Entre 1917 e julho de 1920, a Palestina e Jerusalém estiveram sob o controle militar dos ingleses (a
Administração dos Territórios Inimigos Ocupados). À frente do governo encontrava-se o tenente-coronel
Ronald Storrs, que desempenhara um papel crucial na revolta árabe de 1916. Seu primeiro dever consistia
em reparar os estragos que a guerra causara na cidade. O sistema de esgotos falira, não havia água pura e as
estradas se tornaram intransitáveis. Os ingleses estavam muito ocupados com a gestão dos lugares santos, e
Storrs, um homem civilizado e culto que amava Jerusalém, fundou a Sociedade Pró-Jerusalém, composta
pelos líderes religiosos das três crenças e pelos notáveis locais e destinada a proteger os sítios históricos. A
Sociedade organizou os reparos e a reforma de edifícios públicos e monumentos e levantou dinheiro no
exterior para financiar projetos de planejamento urbano e preservação dos lugares antigos. Uma de suas
decisões mais importantes consistiu em impor o uso da pedra rosada local em todas as construções novas, o
que ainda se faz hoje em dia e ajudou a conservar a beleza de Jerusalém.
Havia tensões, porém. Os árabes não receberam nenhum comunicado oficial sobre a Declaração Balfour,
mas a notícia vazara, naturalmente gerando desconfiança e medo. Eles constataram que o hebraico começava
a figurar nas notas oficiais, ao lado do inglês e do árabe, e que os burocratas e tradutores judeus
trabalhavam na administração. Todavia, ainda esperavam que os ingleses reconhecessem a justiça de sua causa.
Ao menos mantinham certa hegemonia no conselho municipal, que Storrs restabelecera em janeiro de 1918.
O conselho se compunha de seis membros, dois de cada comunidade religiosa, porém o prefeito era
muçulmano. A primeira nomeação de Storrs para a prefeitura foi a de Musa Kasim al-Husaini: ele agora
tinha dois suplentes, um judeu e um cristão. Os judeus, que constituíam a metade da população, não
gostaram desse arranjo. Também se irritaram ao constatar que os prefeitos árabes estavam usando o cargo
como plataforma política para combater a Declaração Balfour.
Sinais de insatisfação chegavam também do exterior. O Vaticano expressou seu interesse em que Jerusalém,
agora conquistada pelos ingleses, permanecesse em poder dos cristãos. Seria trágico se “os mais sagrados
santuários da cristandade fossem confiados a não cristãos”.3 Em 1919, o Relatório King-Crane, encomendado
pela Liga das Nações, concluiu que não se devia implementar a Declaração Balfour. Devia-se, sim, reunir a
Palestina e a Síria num só Estado árabe, sob a égide de uma potência que receberia um mandato provisório.
O documento, porém, resultou em nada. Quando chegou a época de considerá-lo, as atenções do presidente
Wilson estavam voltadas para outra parte, e arquivou-se o relatório.
A tensão na cidade explodiu em 4 de abril de 1920, durante as celebrações de Nebī Mūsā, instituídas pelos
mamelucos quando os cruzados ameaçavam Jerusalém. Depois que Allenby chegara à cidade, os árabes da
Palestina começaram a pensar que al-Quds novamente corria perigo. Um novo interesse pelas Cruzadas estava
surgindo no mundo islâmico: Saladino, o curdo, tornou-se um herói árabe, e os sionistas eram vistos como
novos cruzados ou pelo menos como instrumentos dos ocidentais.4 Sempre se consideraram as procissões de
Nebī Mūsā como uma tomada de posse simbólica da Cidade Santa, mas nesse ano as multidões de
muçulmanos saíram de forma e invadiram o bairro judaico. A polícia árabe uniu-se aos desordeiros, os
soldados britânicos não se mexeram para reprimir a violência e os judeus foram proibidos de organizar a
própria defesa. A maioria das vítimas era judia: nove pessoas morreram e 244 ficaram feridas. Durante muitos
anos houve tensão entre as comunidades e ocasionalmente ocorrera violência, porém os distúrbios de 1920
mostraram que a situação se agravara. Também criaram uma cisão entre os judeus e os ingleses. Os sionistas
imediatamente responsabilizaram Storrs e a administração pelo pogrom: eles revelaram sua parcialidade a favor
dos árabes. A partir de então judeus e árabes acusariam os ingleses de favorecerem o “outro lado”.
Havia de fato uma contradição inerente na política britânica. Em abril de 1920, a Inglaterra tornou-se a
potência encarregada de administrar a Palestina. O artigo 22 do Pacto da Liga das Nações instava-a a
aplicar “o princípio de que o bem-estar e o desenvolvimento [do povo palestino] constituem um dever
sagrado da civilização”. Instava-a também a implementar a Declaração Balfour e preparar o caminho para o
estabelecimento de um Lar Nacional judaico na Palestina. Para isso seria criada uma Agência Judaica que
contribuiria igualmente para o desenvolvimento do país em geral (artigo 4). Caberia ainda à Agência facilitar
“a concessão da cidadania palestina aos judeus” (artigo 6) e “a imigração judaica em condições adequadas”
(artigo 7). Não havia o perigo de que tais medidas prejudicassem os direitos das “comunidades não judaicas”
da Palestina?
O primeiro alto comissário civil designado para a Palestina, em julho de 1920, foi Sir Herbert Samuel, um
judeu. Parecia um sinal promissor para os sionistas e nefasto para os árabes. Samuel estava comprometido
com a Declaração Balfour, mas durante seus cinco anos de mandato tentou tranquilizar os árabes. Disse-lhes
que nunca perderiam sua terra e que jamais os judeus governariam a maioria muçulmana e cristã da
Palestina: “Não é isso que pretende a Declaração Balfour”.5 Tais pronunciamentos não só não dissiparam os
temores dos árabes, como provocaram o antagonismo dos judeus. O Livro Branco de 1922, redigido por
Winston Churchill, secretário das colônias britânicas, apresentou um argumento semelhante: não se cogitava
em subjugar a maioria árabe. A Declaração Balfour propunha simplesmente criar um centro na Palestina
(mas não em todo o país) onde os judeus pudessem viver por direito e não por favor. Mais uma vez
nenhuma das partes ficou satisfeita; os árabes rejeitaram o Livro Branco, e os sionistas o acataram na
esperança de ganhos posteriores.
Sob alguns aspectos, todavia, Jerusalém prosperou nesse período. Pela primeira vez desde as Cruzadas, era a
capital da Palestina. Na década de 1920, foram criados em sua periferia bairros ajardinados, semelhantes aos
que surgiam na Inglaterra. Os bairros judaicos Talpiot, Rehavia, Bayit Vegan, Kiryat Moshe e Beit Hakerem
possuíam parques, espaços abertos e jardins individuais. Situavam-se a oeste da Cidade Velha, onde se
construiu também um centro comercial, num terreno comprado do patriarcado ortodoxo grego: sua rua
principal recebeu o nome de Eliezar Ben-Yehuda, o filólogo que restaurou o uso do hebraico como língua
viva. Um segundo centro comercial começava a surgir no mercado Mah. aneh Yehudah. Mas havia também
elegantes bairros árabes na parte ocidental — Talbieh, Katamon, Ba’ka — e ao norte — Xeique Jarrah,
Wādi al-Joz e a Colônia Americana. Um dia importante para Jerusalém foi o da inauguração da
Universidade Hebraica no monte Scopus. Lord Balfour presidiu a cerimônia em sua única visita à Palestina e
não tentou esconder as lágrimas. Contudo, parece não ter notado que na Jerusalém árabe as casas estavam
fechadas, as ruas silenciosas e o sūq coberto de bandeiras negras.6
Novos líderes despontaram na cidade. Uma das primeiras nomeações feitas por Samuel foi a de H. ajj
Amin al-H. usaini para o cargo de muftī. Os sionistas se apavoraram, pois H. usaini era um nacionalista
radical, que tivera papel de destaque nos tumultos de 1920. Samuel provavelmente esperava neutralizá-lo com
a nomeação, porém, como a maioria dos ingleses, estava de fato impressionado com ele. Cortês, discreto e
digno, o novo muftī não parecia um agitador. No ano seguinte se tornou presidente do Supremo Conselho
Muçulmano, órgão que fora recém-criado para supervisionar todas as instituições islâmicas da Palestina e que
H. ajj Amin converteu numa base da luta contra a Declaração Balfour. Com recursos levantados através de
propaganda maciça, deu início a um programa de obras e reformas no H. aram. Dizia que o sonho sionista
de reconstruir o Templo inevitavelmente ameaçaria os santuários muçulmanos do H . aram. O argumento era
fantasioso, rebatiam os líderes sionistas, a maioria dos quais não tinha o menor interesse pelo Templo e
tampouco se emocionava diante do Muro das Lamentações. Os receios do muftī, entretanto, não eram
totalmente infundados, como podemos ver hoje em dia.
A nomeação de H. usaini tendeu a dividir os árabes de Jerusalém em dois campos opostos. Os radicais
agruparam-se em torno do muftī, enquanto os moderados se alinharam com o novo prefeito, Raghib al-
Nashashibi, que se opunha ao sionismo, mas acreditava na cooperação com as autoridades, sempre que
possível. Samuel parecia disposto a reconhecer que Jerusalém era uma cidade predominantemente islâmica. O
conselho municipal crescera e agora se compunha de quatro muçulmanos, três cristãos e três judeus; o
prefeito continuava sendo muçulmano. O alto comissário também estendera o direito de voto a um número
maior de judeus. Tentando ser justo com ambos os lados, na verdade não satisfez a nenhum. Os planos dos
sionistas e dos árabes para a Palestina e Jerusalém se excluíam mutuamente, e o conflito era inevitável.
Naturalmente os sionistas tinham seus próprios heróis e seus luminares. Os palestinos não precisaram criar
uma nova mitologia e uma nova ideologia para alimentar sua luta. A Palestina era sua pátria. Durante
séculos viveram em al-Quds, celebrando sua santidade. Não tinham necessidade de escrever livros sobre seu
país e sua cidade: por acaso o marido se sente na obrigação de escrever poemas apaixonados para a esposa
que ele ama? Os sionistas, porém, precisavam estabelecer vínculos com a Palestina, para onde se dirigiram
levados pelo desejo de encontrar seu lugar num mundo estrangeiro e hostil. Contudo, a aliyah muitas vezes
foi uma experiência dolorosa. A maioria dos novos pioneiros deixou a Palestina na década de 1920: a vida
era dura e a terra estranha não parecia sua pátria. Para arraigar-se espiritualmente ali precisavam mais que
uma ideologia cerebral. Assim, seus ideólogos recorreram instintivamente à velha geografia espiritual da
Cabala. O movimento secular em sua origem adquiriu uma dimensão mística.
A personagem principal dessa Cabala sionista não morava em Jerusalém nem tinha seus pensamentos
voltados para a Cidade Santa. A. D. Gordon iniciou-se na Cabala em sua Rússia natal e realizou a aliyah na
avançada idade de 46 anos.7 Em seu kibbutz, em Degania, trabalhou nos campos com sua esvoaçante barba
branca ao lado dos jovens pioneiros. Sentia muita saudade da Rússia e não conseguia familiarizar-se com a
paisagem palestina. Entretanto, cultivando a terra, teve o que os antigos chamavam de revelação da
Shekhinah. A sensação de retornar à plenitude primordial que tantas vezes caracterizara a experiência de
Deus em Jerusalém ocorreu-lhe na Galileia. Em seus poemas e palestras, Gordon ensinou aos jovens
pioneiros que na Diáspora os judeus levaram uma vida miserável e desumana. Sem pátria e sem campo,
enclausuraram-se forçosamente na vida urbana do gueto. Porém, o mais importante, distanciaram-se de Deus
e de si mesmos. Como Judah Halevi, Gordon acreditava que a Terra de Israel [Eretz Yisrael] criara o
espírito incomparável dos judeus, revelara-lhes a luz, a infinitude, a luminosidade do divino, e assim moldara
sua identidade. Afastados dessa fonte do ser, eles se aviltaram e fragmentaram. Agora, imergindo na altíssima
santidade da terra, tinham o dever de recriar-se. “Cada um de nós é chamado a refazer-se”, escreveu
Gordon, “de modo que a pessoa inatural, falha, despedaçada que existe em seu interior se transforme num
ser humano natural, inteiro, fiel a si mesmo.”8 Em seu misticismo havia, contudo, uma pitada de
agressividade: os judeus precisavam reconquistar seu direito ao país através do que ele chamou de Conquista
da Labuta. O trabalho braçal os devolveria a si mesmos e restituiria a Palestina a seus verdadeiros donos, os
únicos que podiam corresponder a sua santidade.
No passado, os judeus procuraram em seu Templo um retorno semelhante a uma harmonia primordial.
Gordon, porém, ensinou aos sionistas que deviam buscar a Shekhinah nos campos e nas montanhas da
Galileia, não no monte Sião. O termo avodah, que antigamente designava o serviço no Templo, significava,
para Gordon, trabalho braçal. Todavia, um número menor de sionistas esperava o iminente regresso ao
monte do Templo. Marginalizados e ridicularizados pelos líderes seculares do Sionismo Trabalhista, os
sionistas religiosos formaram um grupo ao qual deram o nome de “Mizrachi”. Para eles, Jerusalém era o
centro do mundo num sentido mais convencional. Seu líder, Abraham Isaac Kook, tornou-se em 1921 o
grão-rabino dos ashkenazim de Jerusalém. Ao contrário dos judeus ortodoxos, que em geral se opunham ao
sionismo, Kook o apoiava. Tinha certeza de que os sionistas seculares estavam contribuindo para construir o
reino de Deus, embora não o percebessem. O retorno à pátria inevitavelmente os levaria a reencontrar a
Torá. Cabalista, Kook acreditava que o equilíbrio do mundo inteiro se alterara quando os judeus foram
arrancados da Palestina. A divindade se escondera nas sinagogas e yeshivas da Diáspora, que a impureza dos
gentios corrompera. Agora o universo se redimiria: “Todas as civilizações do mundo se renovarão com a
renascença de nosso espírito. Todas as disputas se resolverão, e nosso reviver iluminará a vida com a alegria
do nascimento”.9 Na verdade a Redenção já se iniciara. Kook já visualizava o Templo reconstruído, revelando
a divindade ao mundo:
Aqui se ergue o Templo sobre seus alicerces para honra e glória de todos os povos e reinos; aqui,
jubilosos, carregamos os feixes produzidos pelo solo de nossa delícia; [...] nossos lagares [estão] cheios [...],
nossos corações exultam com a bondade dessa terra de prazer; e aqui, diante de nós, aparecem os
sacerdotes, homens santos, servos do Templo do Senhor Deus de Israel.
Não se tratava de um sonho distante: “No futuro próximo novamente os avistaremos na montanha do
Senhor, e nossos corações explodirão [de alegria] ao ver esses sacerdotes do Senhor e esses levitas em seu
santo serviço [avodah] e [ao ouvir] seu canto maravilhoso”.10 Sua visão não haveria de proporcionar grande
satisfação aos palestinos muçulmanos de Jerusalém. Em sua época o rabino Kook geralmente era tido como
uma figura excêntrica: só hoje suas ideias receberam o justo reconhecimento.
Sob Lord Plumer, que sucedeu a Herbert Samuel em 1925, a paz aparentemente voltou a reinar na
Palestina. A comunidade judaica — Yishuv — dedicou-se à criação de um Estado paralelo, com exército
próprio [Haganah], parlamento formado por representantes dos kibbutzim e sindicatos [Histadruth], tributação,
instituições financeiras e organizações educacionais, culturais e caritativas. A Agência Judaica, sediada em
Rehavia, na Jerusalém ocidental, passou a representar oficialmente a Yishuv perante o governo britânico. Os
árabes eram menos organizados, e a tensão existente entre as facções H. usaini e Nashashibi os dividiu em
sua oposição ao sionismo. Em ambos os lados, porém, emergiam extremistas que se recusavam a continuar
aceitando a situação. Os sionistas radicais acatavam as ideias de Vladimir Jabotinsky, enquanto o muft ī
exortava seus seguidores a não cooperarem mais com os ingleses.
O conflito entrou numa nova — e trágica — fase em Jerusalém, cidade que simbolizava as mais profundas
aspirações dos dois povos. Desde a chegada dos ingleses, os árabes se preocupavam com a devoção dos judeus
no Muro Ocidental. Montefiore e Rothschild tentaram comprar o local no século XIX, e a partir de 1918 os
judeus passaram a levar cadeiras, bancos, biombos, mesas e pergaminhos para seu oratório, como se
pretendessem estabelecer ali uma sinagoga, alterando a situação vigente desde a época dos otomanos. O muftī
alertou seus adeptos para o suposto intento sionista de controlar o H. aram, considerando que os
acontecimentos junto ao Muro eram apenas o começo. A tensão culminou na véspera do Yom Kippur de
1928. O comissário distrital de Jerusalém, Edward Keith Roach, e o chefe de polícia, Douglas Duff,
percorriam a Cidade Velha e em dado momento resolveram entrar na sharī‘ah da Madrasah Tanziqiya. Dali
avistaram no oratório judaico uma divisória, destinada a separar homens e mulheres durante o culto. Os
sacerdotes muçulmanos presentes na sala expressaram grande indignação, e Roach concordou que aquilo era
irregular. No dia seguinte, a polícia recebeu a incumbência de remover a divisória e chegou no momento
mais solene da cerimônia, quando os devotos, imóveis, oravam em silêncio. Supondo que o culto terminara,
os policiais se dispuseram a cumprir sua missão. Os judeus horrorizaram-se com tamanho desrespeito e por
toda a Palestina acusaram os ingleses de blasfêmia.
O muftī deu início a uma campanha pela estrita observância do status quo. O Muro fazia parte do H.
aram, pertencia aos muçulmanos, era o local onde Maomé amarrara Burāq após a Viagem Noturna. Os
judeus estavam ali de favor e, portanto, não podiam tratar o lugar sagrado como sua propriedade, enchendo-
o de coisas e tocando o chofar de tal modo que perturbavam a devoção no H. aram. Ao mesmo tempo, o
muftī lançou uma ofensiva religiosa. Havia nas proximidades um convento sufista, e de repente as dhikrs se
tornaram muito ruidosas. O muezim fazia a hora das preces coincidir com as cerimônias junto ao Muro.
Por fim, o Supremo Conselho Muçulmano abriu o muro setentrional do oratório, que se tornou uma via
pública unindo o bairro do Magreb aos arredores do H. aram: os árabes passavam por ali com seus animais
durante o culto dos judeus e ostensivamente acendiam cigarro no local durante o Sabá. Naturalmente, os
membros da Yishuv, seculares e religiosos, enfureceram-se ainda mais, sobretudo quando os ingleses
endossaram de fato essas atitudes ultrajantes.
No verão de 1929, realizou-se em Zurique o 16o Congresso Sionista. No primeiro dia, Jabotinsky fez um
discurso inflamado, exigindo a criação de um Estado judeu — não uma “pátria” — em ambos os lados do
Jordão. Os sionistas mais moderados derrubaram sua proposta, porém os árabes continuavam assustados.
Então, no nono dia do mês de Av (15 de agosto), um grupo de jovens discípulos de Jabotinsky realizou uma
manifestação diante da sede do mandato, em Jerusalém, e depois se dirigiu ao Muro das Lamentações, onde,
desfraldando a bandeira nacional judaica, jurou defendê-lo até a morte. A tensão aumentou em ambas as
partes. No dia seguinte, quando os árabes começaram a reunir-se no H . aram para as orações da sexta-feira,
partidários do muftī invadiram o oratório dos judeus. Dessa vez a polícia reprimiu a desordem. Mais tarde,
porém, um incidente trágico provocou um confronto maior. Um menino judeu jogou uma bola no jardim
de um árabe e acabou sendo morto na briga que se seguiu. Os sionistas protestaram em seu funeral, e em
22 e 23 de agosto multidões de camponeses palestinos chegaram a Jerusalém munidos de paus e facas, alguns
portando até armas de fogo. O muftī nada fez para dissipar a fúria reprimida. Em seu sermão da sexta-feira,
não disse uma palavra que se pudesse considerar incitante, mas a multidão, tão logo deixou o H. aram, pôs-
se a atacar todo judeu que encontrou pela frente. Mais uma vez os ingleses proibiram que os agredidos
revidassem, e a polícia britânica, que se reduzira a Lord Plumer, não conseguiu debelar a crise. A violência
explodiu em toda a Palestina. No final de agosto havia 133 judeus mortos e 339 feridos. A polícia britânica
matara 110 árabes, e outros seis morreram num contra-ataque judaico perto de Tel Aviv.
Os tumultos inevitavelmente intensificaram a tensão em ambos os lados. Aparentemente os árabes ganharam
a batalha pelo Muro. A Comissão Shaw, designada para investigar o caso, confirmou as normas ditadas pelos
otomanos. Os judeus estavam autorizados a levar seus objetos de culto para o oratório, mas os pergaminhos,
menorás e arcas não podiam exceder determinado tamanho; o chofar e os cânticos foram banidos do local.
Quanto aos muçulmanos, não podiam mais realizar suas dhikrs ruidosas e tampouco atravessar a área com
seus animais durante o culto judaico. Foi uma vitória superficial. O sionismo se tornou uma luta mais
radical e desesperada quando Hitler subiu ao poder. Refugiados da Alemanha e da Polônia começaram a
chegar à Palestina em números maiores que nunca. A velha política gradativa dos sionistas já não parecia
adequada, e na Diáspora — não na Yishuv, porém — mais judeus aderiram ao revisionismo de Jabotinsky.
Os grupos radicais — alguns inspirados pela obra do rabino Kook — endureceram ainda mais e passaram a
formar organizações militantes. Os ideais socialistas de Ben-Gurion não lhes interessavam. Seus heróis eram
Josué e o rei Davi, que recorreram à força para instalar os judeus na Palestina. O mais importante desses
grupos de direita era o Irgun Zvei Leumi. Na Palestina, contudo, apenas uns 10 ou 15% da Yishuv tendiam
para a direita. Ben-Gurion continuou insistindo numa política de moderação, compreendendo que o fanático
antissemitismo de Hitler poderia ajudar a causa sionista.
Os árabes apavoraram-se com o aumento da imigração judaica na década de 1930. Acusaram os sionistas de
explorar o perigo alemão para promover sua causa. Perguntaram por que deviam perder seu país em função
dos crimes antissemitas cometidos na Europa. Era uma pergunta inteiramente válida e irreplicável. Seu medo
era compreensível. Em 1933, os judeus constituíam apenas 18,9% da população; em 1936, correspondiam a
27,7%. Os árabes também achavam necessárias medidas mais enérgicas. Partidos mais radicais — da Defesa,
da Reforma, Istiqlal Pan-Arabista — surgiam em seu meio, embora nesse estágio ainda fossem controlados
pelos notáveis. Organizações guerrilheiras combatiam os ingleses e os sionistas. Em novembro de 1935, a
guerrilha do xeique al-Qassam liderou uma revolta contra os ingleses perto de Jenin; o próprio xeique
morreu no combate, tornando-se um dos primeiros mártires da causa palestina. Em 1936, instalou-se em
Jerusalém o Superior Comitê Árabe, composto pelos líderes dos novos partidos e presidido pelo muftī.
Orientações mais extremistas começavam a prevalecer em ambos os lados, que se armavam para o confronto
final.
Apesar da crescente tensão, Jerusalém continuava prosperando e crescendo. Marcos famosos, como o hotel
Rei Davi, o imponente edifício da ACM, a agência dos correios e o Museu Rockefeller, despontavam além das
muralhas. A cidade rapidamente ultrapassava os limites da área metropolitana. Assim, os ingleses criaram um
extenso subdistrito de Jerusalém, o qual incluía os novos bairros judaicos e árabes que rodeavam a Cidade
Velha. Se os judeus que chegavam à Palestina eram mais numerosos, a população árabe de Jerusalém também
crescera. Os judeus eram maioria na municipalidade: 100 mil, enquanto muçulmanos e cristãos totalizavam 60
mil. No subdistrito, porém, os árabes correspondiam a mais da metade da população total e detinham 80%
das propriedades existentes. Seus bairros de classe média se expandiram, ao mesmo tempo que outros
surgiram: Katamon, Musrarah, Talbiyeh, Ba’ka Alto e Baixo, as colônias grega e alemã, Xeique Jarrah, Abu
Tor, Mamillah, Neb ī Dā‘ūd e Xeique Badr continham imóveis valiosos (ver mapa na p. 464). Muitos desses
bairros se situavam na Jerusalém ocidental, que hoje é predominantemente judaica.
Durante a greve geral de 1936, os árabes demonstraram seu descontentamento sob a forma de
desobediência civil. Seguiu-se sua rebelião contra os ingleses, que se estendeu de 1936 a 1938 e causou
grandes danos a Jerusalém. Suas manifestações eram violentas. A explosão de uma bomba numa escola
religiosa judaica provocou a morte de nove crianças, e 46 judeus morreram em outros ataques terroristas.
Em 1938, os revoltosos palestinos assumiram o controle da cidade. Os líderes sionistas continuavam pregando
a moderação, mas o Irgun organizou atentados que custaram a vida de 48 árabes. Durante a rebelião,
Jerusalém perdeu seu posto de líder da resistência ao sionismo. Exilado pelos ingleses, juntamente com os
componentes do Superior Comitê Árabe, o muftī aliou-se com Hitler, acarretando sérios prejuízos para a
causa palestina no exterior. Os xeiques rurais assumiram a liderança local, mostrando-se dispostos a utilizar
métodos mais brutais.
A escalada da violência forçou os ingleses a procurar uma solução para o país. A Comissão Peel
recomendou em 1937 a partilha da Palestina: a Galileia e a planície costeira formariam um Estado judeu, e
os árabes ficariam com o território restante, inclusive o Negueb. A Comissão decidiu ainda que a
municipalidade e o subdistrito de Jerusalém constituiriam um corpus separatum sob o controle permanente do
mandato britânico. A partir de então, a maioria dos planos concebidos pela comunidade internacional em
relação à Palestina tentou manter Jerusalém fora do conflito, para que todos tivessem acesso aos lugares
santos — “sagrados depositários da civilização”, como definiram os integrantes da Comissão.11 Após muita
discussão, os sionistas acataram o Plano Peel, porém apresentaram seu próprio esquema de partilha,
envolvendo a divisão de Jerusalém: os judeus se apropriariam dos novos bairros no setor ocidental, enquanto
a Cidade Velha e a parte oriental continuariam sendo administradas pelos ingleses.

Áreas de povoamento
1947

Os árabes rejeitaram o Plano Peel, e em 1939 sua firmeza parecia ter triunfado. O governo britânico, às
vésperas da Segunda Guerra Mundial, cedeu à pressão de vários Estados árabes e decidiu atenuar seu
comprometimento com o sionismo. Um novo Livro Branco limitou drasticamente a imigração judaica para a
Palestina, revogou o Plano Peel de partilha e propôs a criação de um Estado independente, governado por
árabes e judeus. Assim desferiu um rude golpe nos sionistas, que nunca mais confiariam na Inglaterra,
embora tivessem de apoiá-la na guerra contra a Alemanha nazista. Os revisionistas, porém, passaram a
organizar ações terroristas antibritânicas. O grupo Lehi, de Abraham Stern, fundado em 1940, não via
diferença entre ingleses e nazistas. Anos depois, dois dos mais destacados terroristas judeus se tornariam
primeiros-ministros do Estado de Israel. Em 1940, quando o dirigente do grupo Lehi morreu, durante um
ataque, Yitzhak Shamir assumiu a liderança do “bando Stern”. Em 1942, Menachem Begin, fervoroso
admirador de Jabotinsky, entrou ilegalmente na Palestina e se tornou um dos cabeças do Irgun. Até o
moderado Ben-Gurion radicalizou em 1942, quando se divulgaram as primeiras notícias sobre os campos de
extermínio nazistas. A velha política gradativa da Yishuv caiu por terra. Não se falava mais em “pátria”. Os
sionistas tinham plena convicção de que só um Estado inteiramente judaico poderia proporcionar aos judeus
um refúgio seguro, ainda que isso acarretasse a expulsão dos árabes.12
O pós-guerra assistiu à escalada do terrorismo em ambas as partes. Rejeitando o pedido dos sionistas, os
ingleses negaram permissão para que 100 mil refugiados, sobreviventes dos campos de concentração, entrassem
na Palestina. Em represália, o Irgun explodiu uma ala do hotel Rei Davi, onde se situava um quartel
britânico: 91 pessoas morreram e 45 ficaram feridas. Parecia que os ingleses haviam perdido o controle nesses
últimos anos. O mandato se iniciara em meio à confusão, e em 1947 as autoridades britânicas na Palestina
estavam desmoralizadas, exasperadas e frustradas pela tentativa de implementar uma política impossível.
Tornaram-se prejudiciais ao país e tinham de partir. Em 11 de fevereiro de 1947, o ministro do Exterior
Ernest Bevin entregou o mandato à recém-criada Organização das Nações Unidas, que concebeu uma nova
partilha, dividindo a Palestina de modo mais vantajoso para os judeus que o Plano Peel. O Estado judaico
englobaria a Galileia oriental, o vale do alto Jordão, o Negueb e a planície costeira, enquanto o Estado
árabe compreenderia o resto do país. O corpus separatum de Jerusalém e Belém ficaria sob controle
internacional. Em 29 de novembro de 1947, a Assembleia Geral da ONU aprovou o plano, e criou-se um
comitê especial para elaborar um estatuto para a zona internacional de Jerusalém. Os árabes rejeitaram a
decisão das Nações Unidas, porém os sionistas, com seu pragmatismo habitual, acataram-na. No plano que
haviam apresentado à ONU em agosto de 1946, Jerusalém figurava novamente num corpus separatum. Nesse
estágio a posse da Cidade Santa não parecia fundamental para o novo Estado judeu.
Aprovada a resolução da ONU, a violência voltou a reinar na Palestina. Em 2 de dezembro, uma multidão
de árabes cruzou a Porta de Jafa e saqueou o centro comercial judaico na rua Ben Yehuda. O Irgun
revidou, atacando os bairros árabes de Katamon e Xeique Jarrah. Em março de 1948, antes mesmo de o
mandato britânico expirar oficialmente, os combates ao redor de Jerusalém haviam custado a vida de setenta
judeus e 230 árabes. Tropas sírias e iraquianas entraram no país e bloquearam as estradas que davam acesso
à Cidade Santa. O Haganah começou a executar o Plano Dalet, que acabou por criar um corredor de acesso
a Jerusalém, partindo da costa. Os ingleses não interferiram. Em fevereiro de 1948, os árabes sitiaram alguns
bairros judaicos na região ocidental da cidade, cuja comunicação com o resto do país só se restabeleceu
quando o Haganah liberou as estradas. Em 10 de abril, a guerra entrou numa nova fase, quando o Irgun
atacou o vilarejo árabe de Deir Yassin, menos de cinco quilômetros a oeste de Jerusalém, exterminou 250
homens, mulheres e crianças e mutilou os corpos. Em 13 de abril, os árabes investiram contra um comboio
que transportava terroristas do Irgun feridos em Deir Yassin para o hospital do monte Scopus; quarenta
médicos inocentes foram mortos.
Antes da partida dos ingleses, em 15 de maio de 1948, o Irgun atacou Jafa, e o espectro de Deir Yassin
pôs em fuga os 70 mil árabes que habitavam a cidade. Iniciou-se, assim, o êxodo dos palestinos. Parte dos
fugitivos procurou abrigo em Jerusalém. Em 26 de abril, o Haganah arremeteu contra os bairros árabes do
setor ocidental, cortando fios de telefone e da rede elétrica. Caminhonetes providas de alto-falantes
percorreram as ruas, transmitindo mensagens como: “Abandonem suas casas, ou seu fim será o mesmo de
Deir Yassin!”. No final de maio, os moradores deixaram seus lares, muitos deles refugiando-se na Cidade
Velha. No início do mês, representantes da ONU haviam chegado a Jerusalém para organizar a administração
internacional, mas nem os ingleses, nem as partes em luta lhes deram atenção. Em 14 de maio, Ben-Gurion
presidiu, no museu de Tel Aviv, a cerimônia que proclamou a criação do Estado de Israel. Quando os
ingleses finalmente partiram, no dia seguinte, as forças judaicas se prepararam para atacar a Cidade Velha,
porém no último instante a Legião Árabe Jordaniana chegou e instalou uma administração militar na área
amuralhada e na Jerusalém oriental.
Em julho de 1948, quando a ONU estabeleceu uma trégua, a cidade estava dividida entre Israel e a
Jordânia. Os dois setores se estendiam ao longo da muralha ocidental da Cidade Velha e de uma faixa de
território devastado e deserto, que se tornou Terra de Ninguém (ver mapa na p. 468). Os 2 mil habitantes
do bairro judaico foram despachados, através da nova fronteira, para a Jerusalém ocidental, que agora estava
sob o controle dos israelenses. Os 30 mil árabes que ali residiam perderam, portanto, suas casas para o
Estado de Israel. Refugiados de Jafa e Haifa, bem como dos subúrbios e aldeias próximas a Jerusalém,
apinhavam-se na Cidade Velha. Nem Israel, nem a Jordânia acataram a resolução 303 da Assembleia Geral
da ONU, que os intimara a desocupar a área para que se concretizasse o corpus separatum internacionalizado
constante do plano original. Em 15 de novembro, o rei ‘Abdallah da Jordânia foi coroado rei de Jerusalém
pelo bispo copta; a parte leste da cidade e a Margem Ocidental do Jordão foram declarados território
jordaniano, e em 13 de dezembro o parlamento da Jordânia aprovou a união de seu país com a Palestina. A
criação de um Estado palestino independente estava fora de cogitação — o rei concedeu cidadania jordaniana
aos habitantes da Jerusalém oriental e da Margem Ocidental. Os Estados árabes protestaram veementemente
contra essa ocupação, mas acabaram tendo de aceitá-la como um fato consumado. No lado israelense Ben-
Gurion anunciou, em 13 de dezembro, que o Knesset e todos os órgãos governamentais, à exceção dos
ministérios da defesa, polícia e assuntos exteriores, deveriam transferir-se para a Jerusalém ocidental. Em 16
de março de 1949, Israel e a Jordânia assinaram um acordo formal, aceitando as linhas do armistício como
as fronteiras legítimas entre seus Estados. A ONU continuou considerando ilegal a ocupação de Jerusalém
pelos dois países, mas a partir de abril de 1950 nada mais fez no tocante a essa questão.
Os limites da cidade
1948-67

Dividida internamente com frequência, Jerusalém agora se encontrava cortada por mais de dois quilômetros
de fronteira fortificada, cercas de arame farpado e maciças barreiras. Em ambos os lados atiradores de elite
disparavam contra o território adversário. Na Terra de Ninguém havia apenas ruas desertas e 150 edifícios
abandonados. Na Cidade Velha, as portas Nova, de Jafa e de Sião foram fechadas e reforçadas com paredes
de concreto. Altas barreiras e dezenas de milhares de minas colocadas por ambas as partes dividiam
Jerusalém. Só a chamada Porta Mandelbaum, próxima à casa de um senhor do mesmo nome, permitia a
passagem de uma zona a outra, mas apenas para clérigos, diplomatas, funcionários da ONU e alguns turistas
privilegiados. Para poder entrar na Jerusalém oriental os turistas procedentes de Israel geralmente tinham de
apresentar aos jordanianos suas certidões de batismo, para provar que não eram judeus. Depois deviam
retornar para seus países de origem sem passar novamente por Israel. A divisão incluía o abastecimento de
água, o serviço telefônico e o sistema rodoviário. O monte Scopus se tornou um enclave judeu na Jerusalém
jordaniana, e os edifícios do hospital Hadassah e da Universidade Hebraica foram cercados e colocados sob
proteção da ONU; um comboio israelense tinha autorização para cruzar as linhas a fim de abastecer a
pequena guarnição local. Em ambos os lados territórios e prédios que pertenciam ao inimigo antes de 1948
foram confiados a um guardião. A crueldade da partilha se fez sentir de modo especial na aldeia de Bayt
Safafa, dividida pela metade entre Israel e a Jordânia. Famílias e amigos se viram separados, apesar de que
eventualmente os moradores recebiam permissão para reunir-se na ferrovia da fronteira por ocasião de um
casamento e outras celebrações e trocavam informações e mexericos aos gritos na barreira.
O artigo 8 do Acordo de Armistício Israelense-Jordaniano facultava o acesso de judeus israelenses ao Muro
das Lamentações, porém a Jordânia se recusou a honrar a disposição, a menos que Israel se prontificasse a
devolver os bairros árabes da Jerusalém ocidental. Após anos de pressão, os cristãos árabes de Israel
conseguiram autorização para visitar o Santo Sepulcro e a basílica da Natividade no Natal e na Páscoa —
não devendo ultrapassar, contudo, um limite de 48 horas. Cada um dos lados acusava o outro de violar
lugares sagrados: os israelenses diziam que os jordanianos estavam profanando o cemitério judeu do monte
das Oliveiras e destruindo as sinagogas do bairro judaico, que agora abrigava refugiados palestinos; os árabes
alegavam que os israelenses estavam devastando seu histórico cemitério de Mamilla, onde se encontravam os
túmulos de muitos eruditos, místicos e guerreiros famosos.
Numerosos problemas afligiam a Jerusalém jordaniana.13 Depois da guerra de 1948, os israelenses possuíam
na Palestina um Estado consideravelmente maior que o concebido pela ONU. Dentre todos os países árabes
vizinhos só a Jordânia conseguira deter o avanço das tropas de Israel. Cerca de 750 mil árabes fugiram da
Palestina durante as hostilidades, apavorados com as notícias das atrocidades de Deir Yassin. Muitos deles se
abrigaram nos campos dos Estados árabes vizinhos; nenhum teve permissão de voltar para sua terra.
Numerosos palestinos acusavam os jordanianos de os privarem de sua independência: o muftī fundou no
Egito o Conselho Nacional Palestino, o governo no exílio. O rei ‘Abdallah tentava agradar às influentes
famílias árabes, que tradicionalmente se opunham ao muftī: muitas ocupavam cargos governamentais em Amã
e até no parlamento jordaniano. Com isso jerosolimitas importantes se instalaram na capital do reino,
alterando por completo o ambiente da cidade. A maioria dos palestinos que permaneceram em Jerusalém
estava indignada; eram mais cultos e evoluídos que a maior parte dos árabes da margem oriental e achavam
intolerável sua subserviência política à Jordânia. Quando o governo jordaniano enfrentava algum problema,
geralmente ocorriam agitações em Jerusalém, que se convertera num centro da resistência palestina ao reino
vizinho. Os árabes de al-Quds achavam que, tendo desafiado o mundo para conquistar a posse da Cidade
Santa, o rei ‘Abdallah agora estava decidido a arruiná-la.
A Jerusalém árabe padecia desde 1948. Sua aristocracia se fora, e, para garantir uma base de poder na
cidade, o rei incentivara os habitantes de Hebron — que apoiaram a Jordânia — a mudarem-se para al-
Quds. Os refugiados e os estragos causados pela guerra constituíam sérios problemas. No limite de seus
recursos, a Jordânia pouco podia fazer para aliviar o sofrimento dos milhares de palestinos desterrados que se
apinhavam em Jerusalém. As condições na Cidade Velha eram assustadoras. Contudo, ‘Abdallah relutava em
investir nesse centro do nacionalismo palestino e geralmente privilegiava Nablus e Hebron. Repartições
governamentais transferiram-se de Jerusalém para Amã. Em abril de 1951, agentes do muftī assassinaram o rei
na entrada de al-Aqsā.
Mas a Jerusalém jordaniana se recuperou. Em 1953, restaurou-se al-Aqsā e fundou-se a Sociedade Caritativa
Muçulmana para a Reconstrução de Jerusalém, voltada para a criação de escolas, hospitais e orfanatos. Na
década de 1950, foram construídas casas para os refugiados no monte Ofel e em Wādi Joz, Abu Tor e
Xeique Jarrah, embora ainda se seguisse à risca o plano geral concebido durante o mandato. Para preservar a
beleza da cidade nada se fez na encosta ocidental do monte Scopus e no vale do Cedron. Um novo distrito
comercial surgiu ao norte e a leste da Cidade Velha, e em 1958 teve início uma grande reforma do H .
aram. Pouco a pouco a economia melhorou. Jerusalém nunca foi um centro industrial, e os projetos de
construção de fábrica em seus arredores tendiam a desviar-se para Amã, por interferência do governo. O
turismo, no entanto, desenvolveu-se, respondendo por 85% da receita da Margem Ocidental. A Jerusalém
oriental possuía apenas um hotel moderno em 1948, mas em 1966 tinha setenta. Havia grande disparidade
entre ricos e pobres, mas na década de 1960 o setor árabe se recuperara da violenta partilha em grau
suficiente para se tornar um lugar agradável de se viver. As classes média e alta provavelmente desfrutavam
um padrão de vida mais elevado que no lado ocidental. Todavia, o processo de modernização não eliminou
a atmosfera histórica e tradicional de Jerusalém, que preservou um caráter nitidamente árabe.
O prestígio da cidade também cresceu. A despeito da comunidade internacional, os israelenses estavam
trabalhando para transformar o setor oeste em sua capital e para lá transferiram o Knesset. A Jordânia se viu
na obrigação de reagir. Em julho de 1953, Jerusalém sediou a primeira reunião do gabinete jordaniano e
pouco depois recebeu o parlamento inteiro. O governo local conquistou estabilidade quando o ascético Rauhi
al-Khatib se tornou prefeito da Jerusalém árabe, no início de 1957. Administrador excelente, ele conseguiu
resolver parte da tensão entre Amã e os nacionalistas palestinos. As relações com a Jordânia melhoraram, e
em 1959 Jerusalém passou de baladiyya [municipalidade] a ama-na [tutela], equiparando-se a Amã. O rei
Hussein proclamou-a a segunda capital da Jordânia e decidiu construir um palácio ao norte da cidade.
O setor ocidental enfrentava muitos problemas semelhantes. Em dezembro de 1949 Ben-Gurion havia
frisado a necessidade crucial de manter uma presença judaica em Jerusalém:
A Jerusalém judaica é uma parte orgânica e inseparável do Estado de Israel, como é uma parte inseparável
da história e da fé de Israel e da própria alma de nosso povo. Jerusalém é a essência do Estado de
Israel.14
A indiferença dos sionistas em relação à cidade desaparecera depois que os caprichos da guerra colocaram a
Jerusalém ocidental nas mãos dos israelenses. Na década de 1950, Israel tratara de convertê-la em sua capital,
ainda que não contasse com o reconhecimento da lei internacional. As Nações Unidas continuavam
afirmando que Jerusalém devia ser um corpus separatum, e os países católicos em particular se opunham a sua
divisão. Yitzhak Ben-Zvi tornou-se, em 1952, o segundo presidente de Israel e transferiu o governo de Tel
Aviv para Jerusalém, criando um problema para os embaixadores estrangeiros. Apresentar suas credenciais ao
presidente na Jerusalém ocidental equivalia a reconhecê-la tacitamente como capital de Israel. Não obstante,
alguns embaixadores começaram a deslocar-se para lá, e em 1954, quando os representantes dos governos
britânico e americano apresentaram suas credenciais a Ben-Zvi em Jerusalém, ficou claro que o boicote estava
perto do fim. A Inglaterra e os Estados Unidos declararam que ainda se atinham às resoluções da ONU, mas
os israelenses haviam vencido a primeira rodada, apesar desses repúdios oficiais. Depois que Moshe Sharett,
ministro do Exterior, transferiu seu escritório central para o setor oeste, os diplomatas estrangeiros pouco a
pouco se acostumaram a procurá-lo ali. Em 1967, quase 40% das representações diplomáticas em Israel
haviam se mudado de Tel Aviv para a Jerusalém ocidental.
O governo israelense desafiara o mundo para converter a Jerusalém ocidental em sua capital e agora tendia
a negligenciá-la. A maioria dos membros do Knesset era kibbutzniks sem grande interesse em cidades e sem
uma política urbana bem definida.15 A posição de capital não rendeu os devidos benefícios ao setor oeste,
cujo crescimento econômico era menor que o de Israel como um todo. Os principais empregadores eram o
governo e a Universidade Hebraica, instituições que não geravam riqueza. O turismo não floresceu, pois os
lugares mais interessantes situavam-se no outro lado da Terra de Ninguém. Havia pouca indústria leve e
tudo custava muito caro. Surgiram bairros miseráveis, cheios de refugiados judeus que foram expulsos dos
países árabes após a criação do Estado de Israel e do êxodo palestino de 1948. O establishment sionista,
ashkenazi, nunca aceitou inteiramente esses judeus orientais, sefarditas, que tiveram de instalar-se nas áreas
mais perigosas, perto da Terra de Ninguém, onde estavam ao alcance de atiradores árabes. Havia
desigualdade e ressentimento na cidade judaica.
As fronteiras do Estado de Israel
1949-67

A Jerusalém ocidental realmente parecia não ter coerência nem união. Consistia numa série de bairros, cada
qual habitado por um grupo étnico ou religioso distinto e autossuficiente. Enfrentava divisões internas:
sefardins contra ashkenazim, religiosos contra leigos. Os ortodoxos, que ainda se opunham ferozmente ao
Estado de Israel, postavam-se nas esquinas de seus bairros para atirar pedras nos carros de israelenses que
não observavam o descanso do Sabá. Sem a Cidade Velha, a Jerusalém ocidental não fazia sentido. Era um
beco sem saída, isolado do restante de Israel e cercado de território árabe em três de seus lados. Tornara-se
pouco mais que um terminal de estradas procedentes do litoral. Estava “no fim de um corredor estreito com
ruas que não levavam a lugar nenhum”, lembraria Teddy Kollek, seu futuro prefeito. “Dirigindo por uma de
suas vias, as pessoas logo se deparavam com uma placa que dizia PARE! PERIGO! FRONTEIRA À VISTA !”16 Em
seu romance My Michael, clássico ambientado nessa época, o escritor israelense Amos Oz apresenta-a como
uma cidade mortalmente ferida. Seus subúrbios eram fortalezas esparsas e solitárias, perdidas e dominadas
pela paisagem ameaçadora, onde uivavam os chacais. Com suas muralhas, ruínas, terrenos baldios, ela
continuava se fechando para seus habitantes judeus.17 “Será que alguém pode sentir-se à vontade em
Jerusalém, ainda que viva aqui por um século?”,18 pergunta Hannah, a heroína de Oz. A cidade talvez pareça
comum, mas basta dobrar a esquina para deparar-se com o vazio:
Voltando-se a cabeça, pode-se ver no meio de todo esse amontoado de edifícios um campo de pedras.
Oliveiras. Um deserto estéril. Vales cobertos de mato. Caminhos que se entrecruzam, pisados por miríades
de pés. Rebanhos pastando ao redor do recém-construído gabinete do primeiro-ministro.19
A cidade antiga fora edificada como um refúgio contra o reino demoníaco do deserto, onde não havia
possibilidade de vida. Agora os habitantes do setor ocidental se deparavam com o deserto a cada passo e
tinham de encarar a possibilidade de extinção nesse terreno perigoso. Na verdade, o deserto — o antigo
pesadelo — invadira a cidade. “Não existe Jerusalém”, diz Hannah.20
O Estado de Israel não conseguia fugir do vazio. Se Hitler não empreendesse sua cruzada contra os judeus,
talvez o projeto sionista não se concretizasse. A culpa, o choque, a indignação provocados pela descoberta
dos campos de concentração, depois da II Guerra Mundial, inspiraram uma onda de simpatia pelo povo
judeu que certamente ajudou a causa sionista. Mas como o povo judeu e o Estado de Israel conviveriam com
a catástrofe dos 6 milhões de mortos? Originalmente as cidades santas eram vistas como portos seguros, onde
seus habitantes estavam livres da destruição. Agora os judeus haviam enfrentado a extinção num embate quase
fatal com a imaginação demoníaca da Europa, atormentada durante séculos por fantasias terríveis sobre eles.
No mito do Êxodo, o povo do antigo Israel lembrava sua viagem através do nada do deserto rumo à
segurança da Terra Prometida. O moderno Estado de Israel era uma criação semelhante em face da terrível
aniquilação nos campos. Mas na Jerusalém ocidental ainda se podia encontrar o nada do deserto no meio da
cidade: não havia como escapar ao vazio deixado pelo Holocausto. Os líderes sionistas saíram sobretudo da
Polônia, da Rússia e da Europa oriental. Construíram seu Estado para os judeus, muitos dos quais agora
estavam mortos. Um dos principais santuários dessa nova Jerusalém judaica e secular era Yad Vashem, a
Memória do Holocausto, com seu Ohel Yizkor [Tabernáculo da Memória], onde estão inscritos os nomes de
22 dos maiores campos de extermínio. Pouco surpreende que a Nova Jerusalém criada pelos israelenses não
fizesse sentido. Como veremos no capítulo seguinte, alguns judeus acabariam encontrando consolo nos velhos
mitos e na espiritualidade do espaço sagrado.
Os palestinos também haviam sofrido. Perderam sua terra e foram varridos do mapa. Enfrentaram
igualmente uma forma de aniquilação. A partilha de Jerusalém foi um choque violento para os habitantes de
ambos os lados. Os palestinos tinham de conviver com sua catástrofe; os israelenses tinham de aceitar o fato
lamentável de que, em sua luta desesperada pela sobrevivência, eles, as vítimas da Europa, feriram de morte
outro povo. Ambos procuravam ignorar-se mutuamente. Nos mapas turísticos elaborados pelos árabes, a
Jerusalém ocidental figurava como um espaço em branco. Em Israel, a primeira-ministra Golda Meir fez a
famosa declaração: “Os palestinos não existem”. Nos dois setores da cidade o sistema educacional incentivava
essa negação recíproca. As crianças, israelenses e árabes, não recebiam informações suficientes sobre a história,
a língua e a cultura do “outro lado”.21 Os israelenses também se ressentiam da Jerusalém árabe; mais uma
vez se viam excluídos da cidade. Séculos antes os judeus choraram no monte das Oliveiras a perda de seu
Templo. Os israelenses não podiam imitá-los, pois agora o monte pertencia aos jordanianos. Nos dias de
festa rezavam no topo de um edifício alto do monte Sião, onde conseguiam vislumbrar o bairro judaico.
As duas metades da cidade estavam de fato afastando-se uma da outra.22 Apesar da tensão com o governo
jordaniano, a Jerusalém árabe voltava-se naturalmente para o leste, para Amã e para longe da realidade
inaceitável do setor ocidental. Na Jerusalém judia os israelenses inevitavelmente se afastavam dos perigos da
Terra de Ninguém, voltando-se para Tel Aviv e para o litoral. Junto à fronteira só havia bairros miseráveis,
habitados pelos sefardins. O centro comercial da rua Ben Yehuda, que agora estava ao alcance dos atiradores,
fora abandonado. Novos bairros surgiram nas colinas do oeste. O centro geográfico da Nova Jerusalém era
agora a Universidade Hebraica, em Givat Ram, bem mais a oeste da municipalidade anterior a 1948. Se tal
situação se mantivesse, Jerusalém realmente se desmembraria em duas cidades separadas pelo território ermo
e pelo arame farpado da Terra de Ninguém.
Em 1965, o corpulento e vigoroso Teddy Kollek, filiado ao novo Partido Trabalhista Rafi, de Ben-Gurion,
tornou-se prefeito do setor ocidental, revelando-se uma influência tão benéfica quanto Rauhi al-Khatib no
outro lado da fronteira. Sob sua administração a municipalidade israelense tornou-se mais estável que nunca.
Kollek tentou corrigir a orientação da cidade para a costa. Havia planos de transferir a sede da prefeitura,
situada na fronteira, para a parte oeste da nova Jerusalém, mas Kollek decidiu ficar onde estava: o prefeito e
seu conselho não deviam abandonar os judeus orientais em seus bairros miseráveis. Acima de tudo, porém,
“permanecendo na fronteira, estávamos expressando nossa fé na unificação final de Jerusalém”.23 Em meio à
divisão e à anomia do pós-guerra, os israelenses começavam a sonhar com plenitude e integração.
Em maio de 1967, Israel e os países árabes se depararam com a terrível perspectiva de mais uma guerra.
No dia 13, os soviéticos comunicaram aos sírios que os israelenses se preparavam para invadir seu território.
Provavelmente estavam mal informados, pois não havia nenhum plano de invasão. Entretanto, reagindo à
suposta ameaça contra seus aliados árabes, o presidente egípcio Gamal Abdel Nasser enviou 100 mil soldados
para a península do Sinai e fechou o golfo de Ácaba aos navios israelenses. No dia 30, o rei Hussein, da
Jordânia, assinou um acordo militar com o Egito, apesar de Israel suplicar-lhe que não se envolvesse no
conflito. As grandes potências se posicionaram, o assustador confronto se configurou. Ouvindo a inflamada
retórica de Nasser, que ameaçava jogá-los no mar, os israelenses inevitavelmente se prepararam para o pior
— temiam até um novo holocausto.
Contudo, três semanas antes de iniciar-se a guerra, a Jerusalém ocidental viveu um dia de glória, com as
comemorações da Independência. Foi um acontecimento especial: calculado de acordo com o calendário
hebraico, o aniversário raramente coincidia com a data civil de 14 de maio, como ocorreu em 1967. Não
haveria parada militar, pois a ONU não permitiria a presença de armas ou equipamento bélico em Jerusalém.
Kollek sugeriu que a municipalidade encomendasse uma canção à renomada letrista Naomi Shemer.
“Jerusalém de ouro” tornou-se um sucesso imediato. Era uma declaração de amor a uma cidade trágica “com
um muro no centro”, mas também uma revelação da cegueira dos israelenses:
As cisternas secaram,
O mercado está vazio,
Ninguém visita o monte do Templo na Cidade Velha.
Jerusalém dividida
1948-67

Na verdade nada sugeria tal abandono: o sūq repleto oferecia artigos de luxo inacessíveis aos israelenses do
setor ocidental e o H. aram vivia lotado de visitantes e devotos. A canção pressupunha — mais uma vez —
que os palestinos da cidade árabe não existiam. No outro lado da Jerusalém ocidental, o rabino Zvi Yehuda
Kook, filho do eminente grão-rabino de Jerusalém durante o mandato britânico, pregava na yeshiva Merkaz
Harav o sermão anual que celebrava o nascimento do Estado de Israel. De repente, elevou a voz serena,
como se estivesse possuído pelo espírito da profecia. Aos soluços, lembrou as partes arrancadas do corpo vivo
da Eretz Yisrael na Margem Ocidental: Jerusalém, o monte do Templo, Hebron, Siquém, Jericó — cidades e
lugares sagrados para o povo judeu. Era um pecado deixá-los nas mãos dos Goim.24 Três semanas depois,
enquanto era aclamado como um autêntico profeta de Israel, os tanques israelenses entraram em todas essas
cidades da Margem Ocidental e restabeleceram a união do povo judeu com a Velha Jerusalém.
18. SIÃO?

EVIDENTEMENTE, o holocausto que tantos israelenses temeram em 1967 não ocorreu. Em 5 de junho, as
forças de Israel desferiram um ataque preventivo contra a República Árabe Unida e aniquilaram em terra
quase toda a aviação egípcia. A ação inevitavelmente levou a Jordânia a entrar na guerra, apesar da defesa
inadequada de Jerusalém, que contava provavelmente cerca de 5 mil homens. Eles se empenharam ao máximo
— duzentos morreram —, mas na quarta-feira, 7 de junho, as Forças de Defesa de Israel (FDI) cercaram a
Cidade Velha e transpuseram a Porta do Leão. A maioria da população civil israelense ainda se encontrava
nos abrigos antiaéreos, porém a notícia correu de boca em boca, e uma multidão pasma se reuniu na Porta
Mandelbaum.
Os combatentes vitoriosos visavam a um único objetivo: alcançar o mais rápido possível o Muro das
Lamentações. Assim, precipitaram-se pelas ruas estreitas e sinuosas e subiram à esplanada do H. aram, mal
lançando um olhar para os santuários muçulmanos. Pouco depois, setecentos soldados de rosto enegrecido e
uniforme manchado de sangue se apinharam no pequeno enclave que estivera fechado para os judeus por
quase vinte anos. Às onze horas da manhã os generais começaram a chegar, acompanhando o general Shlomo
Goren, grão-rabino das FDI, que teve a honra de tocar o chofar junto ao Muro pela primeira vez desde
1929. O comandante de um pelotão enviou um jipe para conduzir ao local o rabino Zvi Yehuda Kook. Para
todos esses homens, independentemente de sua fé, o fato de estar diante do Muro constituiu uma profunda
— e até mesmo chocante — experiência religiosa. Apenas alguns dias antes eles contemplaram a possibilidade
de aniquilação e agora inesperadamente retomavam contato com o local que se tornara o mais sagrado do
mundo judaico. Jovens paraquedistas seculares agarraram-se às pedras e choraram, enquanto outros, em estado
de choque, não conseguiam se mover. Quando o rabino Goren tocou o chofar e se pôs a entoar os salmos,
oficiais ateus se abraçaram, e um jovem soldado sentiu vertigens e um ardor em todo o corpo. O dramático
e imprevisto retorno parecia uma repetição quase sobrenatural dos velhos mitos judaicos. Mais uma vez o
povo de Israel afastara a ameaça de extinção e voltava para sua pátria. O acontecimento evocou todas as
experiências usuais do espaço sagrado. O Muro era não só um lugar histórico, mas também um símbolo que
tocava a própria essência da identidade judaica de cada combatente. Era Outro — “algo enorme e terrível,
do outro mundo”1 — e no entanto profundamente familiar — “um velho amigo, impossível não reconhecê-
lo”.2 Era terrível e fascinante; era santo e ao mesmo tempo refletia o eu judaico. Representava a sobrevivência,
a continuidade e a promessa da reconciliação final pela qual a humanidade ansiava. Ao beijar as pedras,
Avraham Davdevani sentiu que passado, presente e futuro se uniam: “Não haverá mais destruição, e nunca
mais o Muro ficará abandonado”.3 O Muro anunciava o fim da violência, do desamparo, da separação.
Constituía o que outras gerações chamariam de retorno ao paraíso.
Os judeus religiosos, sobretudo os discípulos do rabino Kook, o Jovem, estavam certos de que a Redenção
se iniciara. Lembraram as palavras que ouviram algumas semanas antes e se convenceram de que seu rabino
as pronunciara por inspiração divina. No dia da conquista, postado diante do Muro, Kook declarou que “sob
o comando do céu” o povo judeu “acaba de regressar à pátria nos cumes da santidade, em nossa cidade
santa”.4 Um de seus discípulos, Israel “Ariel” Stitieglitz, afastou-se e, mesmo estando sujo e manchado de
sangue, ganhou a esplanada do H. aram, sem pensar em leis de pureza e áreas proibidas. “Parei no local em
que o sumo sacerdote entrava uma vez por ano, descalço, tendo mergulhado cinco vezes nos mikveh”,
lembrou depois. “Mas eu estava calçado, portava arma e capacete. E disse para mim mesmo: ‘Essa é a
aparência da geração vitoriosa’.”5 Travara-se a última batalha, e agora Israel era uma nação de sacerdotes;
todos os judeus podiam entrar no Santo dos Santos. Todo o exército israelense era santo, como o rabino
Kook constantemente repetia, e seus soldados podiam ir sem medo à Presença de Deus.6
Dos lábios judeus brotaram instantaneamente as palavras “Nunca mais!”, relacionadas com o Holocausto.
Essa tragédia fundira-se indissoluvelmente com a identidade do novo Estado, que para muitos judeus
constituía uma tentativa de vida nova em face da escuridão do passado. As lembranças do Holocausto
emergiram inevitavelmente nas semanas anteriores à Guerra dos Seis Dias, quando os israelenses ouviram a
retórica odienta de Nasser. Agora que retornaram ao Muro Ocidental, imediatamente pronunciaram: “Nunca
mais!”, nesse novo contexto. “Nunca sairemos daqui”,7 disse o rabino Kook horas depois da vitória. O
general Moshe Dayan, secularista declarado, postou-se diante do Muro e proclamou que as forças de Israel
“reuniram” a cidade dividida: “Regressamos a nossos lugares mais sagrados; regressamos e nunca os
deixaremos”.8 Então mandou abrir todas as portas de Jerusalém e remover o arame farpado e as minas da
Terra de Ninguém. Não se poderia voltar atrás.
Os direitos de Israel sobre a cidade eram duvidosos. Ao terminar a Guerra dos Seis Dias, os israelenses
haviam ocupado não só Jerusalém, como a Margem Ocidental, a Faixa de Gaza, a península do Sinai e as
colinas de Golã (ver mapa na p. 484). Nem as disposições de Haia, em 1907, nem as de Genebra, em 1949,
embasavam a reivindicação de Israel. O direito internacional não podia mais permitir a anexação definitiva de
territórios militarmente conquistados. Alguns israelenses, inclusive o primeiro-ministro Levi Eshkol,
dispunham-se a devolver esses territórios ocupados à Síria, ao Egito e à Jordânia em troca da paz com o
mundo árabe. Entretanto, ninguém falou em restituir a Cidade Velha de Jerusalém aos árabes. Com a
conquista do Muro Ocidental o discurso sionista, antes tão desafiadoramente secular, incorporou um
elemento transcendental. Até mesmo os ateus mais empedernidos viram sua Cidade Santa como “sagrada”.
Conforme disse Abba Eban, representante de Israel na ONU, Jerusalém “situa-se além e acima, antes e depois
de quaisquer considerações políticas e seculares”.9 Os israelenses não conseguiam examinar o assunto
objetivamente, pois no Muro encontraram a alma judaica.
Fronteiras, 1967

Na véspera da conquista, Levi Eshkol proclamou Jerusalém “a eterna capital de Israel”.10 A tomada da
cidade fora uma experiência tão profunda que para muitos judeus parecia essencialmente “justa”: uma
surpreendente evocação de mitos e lendas que ao longo de séculos acalentaram os judeus nas terras da
Diáspora. Como diriam os cabalistas, agora que Israel voltara a Sião, todas as coisas do mundo e do cosmo
retomaram seus devidos lugares. Os árabes de Jerusalém não poderiam ter a mesma opinião.11 A conquista
israelense não correspondeu a uma “reunificação” da cidade, mas a sua ocupação por um país hostil. Os
corpos de aproximadamente duzentos soldados da Legião Árabe jaziam nas ruas; civis árabes haviam sido
mortos. As unidades da reserva israelense vasculharam as casas em busca de armas e prenderam centenas de
palestinos cujos nomes se encontravam numa lista de procurados. Os homens, afastados de suas famílias,
partiram com a certeza de que estavam indo para a morte. Quando puderam retornar, naquela noite, foram
recebidos com lágrimas, como se tivessem escapado do Hades. Saqueadores seguiram-se aos soldados;
assaltaram mesquitas e retiraram do Museu Arqueológico da Palestina os manuscritos do mar Morto. Os
palestinos residentes na Jerusalém oriental trancaram-se em casa, apavorados, até que o prefeito Rauhi al-
Khatib percorreu as ruas com um oficial israelense, persuadindo-os a sair e abrir as lojas para que as pessoas
pudessem comprar alimentos. Na manhã de sexta-feira, 9 de junho, metade dos funcionários públicos
municipais árabes se apresentou ao trabalho e, sob a direção do prefeito e de seu representante, começou a
enterrar os mortos e a reparar os sistemas de abastecimento de água. Mais tarde, seus colegas israelenses se
juntaram a eles.
Essa cooperação, entretanto, não perdurou. No próprio dia da conquista, Teddy Kollek procurou Dayan e
prometeu supervisionar pessoalmente a limpeza da Terra de Ninguém, uma tarefa de alto risco e
complexidade. Como Dayan, ele percebeu a importância de “criar fatos” que estabelecessem na Cidade Santa
uma presença judaica permanente, para que não se cogitasse em deixá-la a pedido da comunidade
internacional. Na noite de sábado, 10 de junho, após a assinatura do armistício, os 619 habitantes do bairro
do Magreb receberam um prazo de três horas para desocupar suas casas. Então as máquinas de
terraplenagem apareceram e reduziram a ruínas esse bairro histórico. A operação, contrária às disposições de
Genebra, foi supervisionada por Kollek e tinha como objetivo a criação de uma praça suficientemente grande
para abrigar os milhares de peregrinos judeus que acorreriam ao Muro das Lamentações. Esse foi só o
primeiro ato de um longo e contínuo processo de “reforma urbana” — baseada na destruição da histórica
Jerusalém árabe — que transformaria por completo a aparência e o caráter da cidade.
Em 28 de junho, o Knesset anexou formalmente o setor oriental, declarando-o parte integrante do Estado
de Israel. A anexação infringia diretamente a Convenção de Haia, e os países árabes, a União Soviética e o
bloco comunista já haviam pedido a Israel que se retirasse dessa parte de Jerusalém. A Inglaterra dissera-lhe
que não considerasse permanente a conquista da cidade. Até os Estados Unidos, sempre favoráveis a Israel,
advertiram: o direito internacional não reconheceria qualquer legislação formal para mudar o status da
cidade. Em suas injunções legais e administrativas de 28 de junho, o Knesset cuidadosamente evitou usar o
termo anexação, preferindo uma palavra mais positiva: unificação. Ao mesmo tempo, ampliou as fronteiras do
município de Jerusalém, para que ocupasse uma área bem maior. Essas fronteiras ziguezagueavam
engenhosamente em torno de zonas que abrigavam vasto número de árabes e incluíam muitos terrenos
disponíveis para novos bairros israelenses (ver mapa na p. 487). Assim, a população votante continuaria sendo
predominantemente judia. Por fim, um dia depois da anexação, o prefeito al-Khatib e seu conselho foram
exonerados numa cerimônia ultrajante. A polícia militar os levou de suas casas para o hotel Glória, próximo
à sede da municipalidade, onde Yaakov Salman, o vice-governador militar, leu um documento que
sucintamente lhes comunicava o término de seus serviços. Quando o prefeito pediu uma cópia do
documento, David Farhi, secretário de Salman, rabiscou a tradução árabe num guardanapo de papel
pertencente ao hotel.12 A cerimônia fora concebida para que o vice-governador se despedisse formalmente de
al-Khatīb, que cooperara com os israelenses de modo tão generoso, e lhe explicasse pessoalmente a nova
situação legal de Jerusalém. Nada disso aconteceu. O ex-prefeito e seus conselheiros ficaram muito ressentidos
não por causa do desligamento, que sabiam ser inevitável, mas por causa da maneira humilhante e indigna
como foram exonerados. Alguns membros do governo israelense achavam que a municipalidade árabe devia
continuar trabalhando com a municipalidade do setor ocidental, ou sob suas ordens. Teddy Kollek não
concordava: os árabes “atrapalhariam meu trabalho”, disse. “Jerusalém é uma só cidade e terá uma só
prefeitura”, declarou à imprensa.13
Fronteiras municipais de Jerusalém
Definidas por Israel, 1967

Em 29 de junho, ao meio-dia, as barreiras que dividiam a cidade caíram por terra; árabes e israelenses
atravessaram a Terra de Ninguém e visitaram o “outro lado”. Os vencedores entraram, exultantes, na Cidade
Velha, compraram à vontade no sūq e se escandalizaram ao deparar-se com refinadas iguarias e produtos
importados inexistentes no setor ocidental. Os árabes mostraram-se mais hesitantes. Em Katamon e Bak’a,
alguns guardaram as chaves de suas casas, que pertenciam a suas famílias desde 1948, e contemplaram seus
antigos lares. Outros constrangeram alguns judeus, ao bater em suas portas e pedir-lhes delicadamente que os
deixassem olhar o interior de suas residências. Não houve violência, porém, e no fim do dia a maior parte
dos israelenses acreditava que os árabes começavam a conformar-se com a “reunificação”. Na verdade, como
os fatos mostrariam, estavam apenas chocados, não conformados. Al-Quds era um lugar santo para eles
também. Tendo sofrido a aniquilação em 1948, os palestinos começavam agora a ser igualmente eliminados
de Jerusalém. Seu ex-prefeito, Rauhi al-Khatib, calculou que em função das guerras com Israel cerca de 106
mil árabes jerosolimitas viviam no exílio em 1967.14 Agora, por causa das novas fronteiras, os árabes
representavam apenas 25% da população da cidade. Os palestinos exilados não podiam partilhar o sonho
cabalístico: para eles tudo estava no lugar errado. Essa experiência de deslocamento e perda tornaria
Jerusalém mais preciosa que nunca para os árabes.
A comunidade internacional também relutou em aceitar a anexação de Jerusalém. Em julho de 1967, a
ONU, por meio de duas resoluções, intimou Israel a rescindir a “unificação” e desistir de realizar qualquer
ato que alterasse o status de Jerusalém. Finalmente a guerra e suas consequências chamaram a atenção do
mundo para o drama dos refugiados palestinos que definhavam nos campos dos países vizinhos. Em 22 de
novembro de 1967, o Conselho de Segurança da ONU aprovou a Resolução 242: Israel devia retirar-se dos
territórios que ocupara durante a Guerra dos Seis Dias. A soberania, a integridade territorial e a
independência política de todos os Estados da região deviam ser respeitadas.
No ardor de sua nova paixão por espaços sagrados, a maioria dos israelenses e muitos judeus da Diáspora
não conseguiam reconhecer a validade dessas resoluções. Desde a destruição do Templo os judeus foram
pouco a pouco abandonando a ideia de ocupar Jerusalém fisicamente. Interiorizaram a geografia sagrada, e
muitos ortodoxos ainda consideravam o Estado de Israel uma impia criação humana. Os dramáticos
acontecimentos de 7 de junho, no entanto, começaram a modificar esse quadro. O processo foi semelhante
ao que transformou a visão cristã de Jerusalém na época de Constantino. Como os judeus, os cristãos do
século IV pensavam que haviam superado a devoção aos lugares santos, porém a inesperada descoberta da
Tumba de Cristo os levara, quase de imediato, a atribuir a Jerusalém o valor de símbolo sagrado. Como os
judeus, haviam sofrido violenta perseguição num passado recente e acabavam de adquirir uma posição política
inteiramente nova. A catástrofe nazista abrira uma ferida tão profunda que consolos mais racionais não
conseguiam curá-la. Os velhos mitos — uma forma antiga de psicologia — podiam alcançar um nível da
alma mais profundo e menos articulado racionalmente. Essa nova paixão dos judeus pela santidade de
Jerusalém era imune a disposições da ONU e a argumentos lógicos. Era forte não por ser legal ou razoável,
mas por ser um mito.
Foi durante uma das primeiras escavações arqueológicas registradas pela história que se descobriu a tumba
de Cristo, na época de Constantino. O processo de cavar o solo e chegar a uma santidade enterrada, então
inacessível, constituía em si mesmo um poderoso símbolo da busca de cura psíquica. Os cristãos do século
IV, não mais uma minoria perseguida e indefesa, viram-se na necessidade de reavaliar sua religião e encontrar
uma fonte de força enquanto lutavam — muitas vezes arduamente — para construir sua nova identidade.
Freud logo percebeu a relação entre arqueologia e psicanálise. Em Israel também, conforme demonstrou com
tanta argúcia o escritor israelense Amos Elon, a arqueologia se tornou uma paixão quase religiosa. Como a
agricultura, era uma forma de os colonos refamiliarizarem-se com a Terra. Encontradas no chão, as provas
materiais da presença judaica na Palestina em tempos passados reforçaram sua convicção de que tinham
direito ao país e ajudaram a dissipar suas dúvidas em relação a seus predecessores palestinos. Os israelenses
descobriram seus “valores religiosos” na arqueologia, como observou numa entrevista Moshe Dayan, o mais
famoso arqueólogo amador de Israel. “Aprenderam que seus ancestrais estavam neste país há 3 mil anos. Esse
é um valor. [...] Por isso lutam e por isso vivem.” 15 Nessa busca de arqueologia patriótica “é possível
observar, a partir da fé ou da análise freudiana, a conquista de um tipo de cura”, diz Elon; “os homens
superam suas dúvidas e medos e sentem-se rejuvenescidos através da exposição de origens reais ou
imaginárias, mas sempre ocultas”.16
O prédio construído em frente ao Knesset para abrigar os manuscritos do mar Morto, que foram
apreendidos durante a Guerra dos Seis Dias, mostra como os israelenses adaptaram os velhos símbolos da
geografia sagrada a suas próprias necessidades. A cúpula branca, um dos marcos mais famosos da Jerusalém
judaica, parece desafiar as cúpulas que cristãos e muçulmanos ergueram no passado para expressar seus
respectivos direitos sobre a Cidade Santa. Como Elon observa, os israelenses tendem a considerar os
manuscritos como títulos de propriedade dessa terra tão disputada. Sua descoberta, em 1947, quase
simultânea ao surgimento do Estado judeu, parecia perfeitamente programada para demonstrar a antiga
existência de Israel na Palestina. O edifício é conhecido como Santuário do Livro, nome que ressalta sua
importância religiosa. Um túnel escuro e estreito conduz a seu interior em forma de útero — um símbolo
poderoso do retorno à paz e à harmonia primordiais que a sociedade secular do século XX muitas vezes
associa com a experiência pré-natal. No centro, uma escultura fálica, semelhante a um bastão, demonstra a
vontade nacional de sobreviver — mas talvez represente também o acasalamento, que com frequência
caracteriza a vida no paraíso perdido. Há muito tempo se vê o lugar santo como fonte de fertilidade, e no
santuário, diz Elon, “arqueologia e nacionalismo se unem como num antigo e rejuvenescente rito da
fertilidade”.17
Contudo, como a austera teologia de Qumran, essa busca de cura e identidade nacional tinha um lado
agressivo. Desde o início, Moshe Dayan deixou claro que Israel respeitaria os direitos de cristãos e
muçulmanos cuidarem de seus próprios santuários. Os israelenses orgulhosamente comparavam sua postura
com a dos jordanianos, que vetaram o acesso dos judeus ao Muro das Lamentações. No dia seguinte à
conquista, o governador militar da Margem Ocidental convocou uma reunião para tranquilizar todas as seitas
cristãs de Jerusalém. Em 17 de junho, Dayan garantiu aos muçulmanos que continuariam controlando o H.
aram e ordenou ao rabino Goren que retirasse a Arca que havia colocado na extremidade sul da esplanada.
O governo israelense proibiu os judeus de orar ou realizar cultos no H. aram, local santo dos islamitas, e
nunca abandonou essa política, que mostra que os conquistadores sionistas não desrespeitavam inteiramente os
direitos sagrados de seus predecessores. No entanto, a decisão de Dayan enfureceu alguns israelenses. Um
grupo autodenominado Fiéis do Monte do Templo surgiu em Jerusalém. Seus integrantes não eram
particularmente religiosos. Gershon Solomon, um de seus líderes, pertencia ao Herut, o partido direitista de
Begin, e tinha aspirações mais nacionalistas que religiosas. Dizia que Dayan não tinha o direito de proibir os
judeus de rezar no monte do Templo, pois a Lei dos Locais Santos garantia liberdade de acesso a todos os
devotos. Afirmava que, ao contrário, como o monte do Templo fora o centro político e religioso do Israel
antigo, o Knesset, a residência presidencial e os órgãos do governo deviam transferir-se para o H . aram.18
Nas grandes festas judaicas o grupo continua orando no H. aram, de onde é constantemente expulso pela
polícia. Um mecanismo semelhante havia inspirado a demolição do bairro do Magreb: aos olhos de Israel o
retorno dos judeus a seu lugar santo envolvia a destruição da presença islâmica.
Foi o que ficou claro em agosto de 1967, quando Goren e alguns discípulos da yeshiva marcharam sobre o
H. aram, no nono dia do mês de Av, e, depois de engalfinhar-se com os guardas muçulmanos e os policiais
israelenses, realizaram um culto que terminou com o rabino tocando o chofar. A oração tornara-se uma
arma na guerra santa contra o Islã. Dayan tentou tranquilizar os maometanos e fechou os gabinetes rabínicos
que Goren instalara numa das mada-ris dos mamelucos. Entretanto, quando se restabelecia a calma, Zerah
Wahrhaftig, ministro de Assuntos Religiosos, declarou numa entrevista que o monte do Templo pertencia a
Israel desde quando Davi comprara a eira do jebuseu Areuna;19 portanto, Israel tinha o direito legal de
demolir a Cúpula do Rochedo e al-Aqsā. O ministro, porém, não recomendou tal procedimento, pois de
acordo com a lei judaica só o Messias poderia construir o Terceiro Templo. (Convém lembrar que um novo
santuário seria, a rigor, o Quarto Templo, mas, como o culto não sofreu interrupção durante a construção
do edifício de Herodes, este também era considerado o Segundo Templo.)
No dia da conquista, os soldados que se apinharam para beijar o Muro das Lamentações pensaram que
uma nova era de paz e harmonia se iniciara. Na verdade, porém, Sião, a cidade da paz, mais uma vez se
convertia em palco de ódio e discórdia. A restituição dos lugares santos aos judeus não só provocou um
novo conflito com o Islã, como expôs as profundas brechas existentes no interior da sociedade israelense. A
praça criada com a destruição do bairro do Magreb gerou mais uma querela entre os judeus. A atitude
precipitada de Kollek fora desumana e, além disso, pecara pela falta de senso estético. O espaço confinado
do velho oratório fazia o Muro Ocidental parecer maior do que de fato era; agora ele se elevava pouco
acima da vizinha Madrasah Tanziqiyya e da muralha de Solimão, que se tornaram perfeitamente visíveis.
“Era como se suas pedras gigantescas tivessem se encolhido, seu tamanho se reduzido”, comentou, no dia da
inauguração, um visitante desapontado. À primeira vista o Muro parecia “fundir-se com as pedras das casas à
esquerda”. A atmosfera intimista do oratório desaparecera. A nova praça não mais “permitia a afinidade
psíquica e o sentimento de união com o Criador”.20
A administração do local não tardou a provocar uma horrível disputa entre judeus religiosos e leigos.21 O
Muro era agora uma atração turística, e os visitantes não estavam ali só para rezar. Assim, o Ministério de
Assuntos Religiosos decidiu cercar uma área fronteira para convertê-la num espaço de oração. Os israelenses
seculares se enfureceram: como o pessoal do ministério se atrevia a barrar o acesso dos outros judeus ao
Muro? Aquela gente era tão ruim quanto os jordanianos! Logo os rabinos também se desentendiam a
propósito da extensão desse lugar santo. Alguns diziam que todo o Muro das Lamentações era sagrado, bem
como a praça à sua frente. Estavam escavando os subterrâneos da Madrasah Tanziqiyya para estabelecer uma
sinagoga e declaravam santo todo espaço que abriam. Os muçulmanos naturalmente receavam que essa
arqueologia religiosa abalasse — radical e literalmente — seu recinto sagrado. Mas os rabinos tentavam
libertar Jerusalém dos secularistas judeus, empurrando as fronteiras da santidade para o domínio impio da
municipalidade. A disputa se acirrou quando o arqueólogo israelense Benjamin Mazar passou a escavar a
extremidade meridional do H. aram. Os muçulmanos novamente se alarmaram, temendo que os trabalhos
danificassem as fundações de al-Aqsā. Os judeus religiosos também se indignaram com essa penetração
profana do espaço sagrado, sobretudo quando Mazar cercou a base do Muro e pouco a pouco abriu caminho
até o Arco de Robinson. Poucos meses depois da “unificação” ocorria uma nova partilha no Muro Ocidental.
A extremidade sul era agora uma área histórica e “secular”; o antigo espaço de oração pertencia aos
religiosos; e no meio havia uma zona neutra — mais uma Terra de Ninguém —, que abrigava as poucas
residências árabes restantes. Com a demolição dessas casas cada lado lançava olhares de cobiça para o espaço
intermediário. Por duas vezes, no verão de 1969, os devotos literalmente arremeteram contra a cerca de
arame farpado para conquistar essa área neutra e dedicá-la a Deus.
O governo israelense tentava manter a paz nos lugares santos, mas travava sua própria guerra pela posse de
Jerusalém, recorrendo à tradicional estratégia da construção.22 Para atrair mais judeus à Cidade Santa, tratou
de criar uma zona de segurança na Jerusalém oriental, com altos edifícios de apartamentos na Colina
Francesa, em Ramat Eshkol, Ramot, Talpiot Oriental, Neve Yakov e Gilo (ver mapa na p. 495). Alguns
quilômetros para o leste, nas colinas que desciam em direção ao vale do Jordão, ergueram um cinturão de
segurança em Ma’alot Adumin. As obras progrediam com grande rapidez, principalmente em terrenos
expropriados dos árabes. Estradas estratégicas uniam um bairro a outro. Disso resultou não só um desastre
estético — a feiura dos prédios arruinou o horizonte de Jerusalém —, como a destruição de velhos bairros
árabes. Calcula-se que nos dez anos seguintes à anexação o governo israelense confiscou 14 826 hectares dos
árabes num ato de conquista e destruição. Hoje, apenas 13,5% da Jerusalém oriental permanece em poder
dos árabes.23 A cidade realmente fora “unificada”, pois não havia mais uma distinção clara entre os setores
judaico e islâmico, porém não era a Sião unida que os profetas desejavam. Como observaram os geógrafos
israelenses Michael Romann e Alex Weingrod, a terminologia militarista dos planejadores — “absorção”,
“abertura de brechas”, “penetração”, “dominação territorial”, “controle” — revela suas intenções agressivas
para com a população muçulmana da cidade.24
Construções além da linha
do armistício posteriores a 1967

Empurrados para fora de al-Quds, os árabes tiveram de organizar sua defesa e, embora nada pudessem
fazer para conter a ofensiva arquitetônica, conseguiram arrancar do governo algumas concessões importantes.
Em julho de 1967, por exemplo, recusaram-se a observar a lei dos cádis imposta aos funcionários
maometanos de Israel. Os cádis de Jerusalém tampouco mudariam suas normas para adequá-las à lei
israelense em questões como casamento, divórcio, waqf, condição feminina. Em 24 de julho de 1967, os
ulemás anunciaram que iam restaurar o Supremo Conselho Muçulmano, pois a lei islâmica não permitia que
descrentes controlassem suas questões religiosas. O governo reagiu expulsando alguns de seus opositores
maometanos mais radicais, porém acabou tendo de reconhecer, ainda que tacitamente, a existência do
Supremo Conselho. Os árabes também empreenderam uma campanha eficaz contra a imposição do sistema
educacional israelense em Jerusalém, pois não fazia justiça a suas aspirações nacionais, sua língua e sua
história. Apenas trinta horas por ano eram dedicadas ao Alcorão, por exemplo, enquanto 156 eram reservadas
à Bíblia, à Mishnah e à Haggadah. Os estudantes graduados nessas escolas israelenses não poderiam estudar
em universidades árabes. Por fim, o governo cedeu, aceitando na cidade um currículo jordaniano paralelo.
Os israelenses estavam descobrindo que os árabes de Jerusalém não eram tão maleáveis quanto os de Israel.
Em agosto de 1967, deram início a um movimento de desobediência civil, convocando uma greve geral: no
dia 7, todas as lojas, escritórios e restaurantes fechariam as portas. Para piorar a situação extremistas do
Fatah de Yasser Arafat instalaram-se na cidade e lançaram uma campanha de terror. Em 8 de outubro,
tentaram explodir o cinema Zion. Em 22 de novembro de 1968, aniversário da Resolução 202 da ONU, um
carro-bomba explodiu no mercado Mahane Yehudah, matando doze pessoas e ferindo 54. Em fevereiro e
março de 1969, ocorreram outros atentados a bomba, um dos quais, na lanchonete da Biblioteca Nacional da
Universidade Hebraica, feriu 26 pessoas e causou muito estrago. A Jerusalém ocidental sofreu mais ataques
terroristas que qualquer outra cidade de Israel, o que, talvez inevitavelmente, provocou represálias por parte
dos judeus. Em 18 de agosto de 1968, quando se detonaram explosivos de demolição em vários pontos do
centro, centenas de jovens judeus invadiram os bairros árabes, quebraram vitrines e espancaram quem
encontravam pelas ruas.
Tanta perseguição escandalizou a população israelense, igualmente horrorizada com a intensidade do ódio
dos árabes e a suspeita que surgiu em 21 de agosto de 1969, quando um incêndio ocorreu em al-Aqsā,
destruindo o famoso púlpito de Nūr ad-Dīn e danificando as grandes vigas de madeira que sustentavam o
teto. Centenas de islamitas correram para a mesquita, aos prantos, e entraram no edifício em chamas,
insultando os bombeiros israelenses e acusando-os de jogar gasolina no fogo. Por toda a cidade os árabes
realizaram manifestações de protesto e entraram em choque com a polícia. Considerando o comportamento
inflamado de alguns israelenses no H. aram, não surpreende que os muçulmanos imediatamente atribuíssem o
incêndio a um sionista. Na verdade, fora um jovem e perturbado turista cristão, o australiano David Rohan,
quem pusera fogo na mesquita, esperando com isso antecipar a Segunda Vinda de Cristo. O governo
demorou meses para dirimir os receios dos maometanos e assegurar-lhes que Rohan era realmente cristão e
que os judeus não pretendiam destruir os santuários do H. aram.
Nos quatro anos seguintes, no entanto, uma calma sombria instalou-se em Jerusalém. Havia indícios de que
ambos os lados começavam a aprender a conviver. Após a morte de Nasser, em setembro de 1970, o governo
permitiu que os árabes de Jerusalém organizassem uma homenagem a esse inimigo do Estado de Israel. Na
quinta-feira, 1o de outubro, toda a população árabe da cidade reuniu-se em silêncio e marchou para o H.
aram na mais perfeita ordem. Como se combinara, não havia nas ruas um único policial israelense, nem
qualquer faixa ou cartaz anti-Israel. Nesses anos pacíficos, contudo, os palestinos não haviam desistido de
lutar, como alguns israelenses esperavam. Eles adotaram a política do sumud [perseverança], entendendo que
sua presença física na cidade era sua principal arma. Aproveitariam o bem-estar e os benefícios econômicos
que Israel lhes concedia; continuariam vivendo e tendo seus filhos em Jerusalém. “Não lhes daremos pretexto
para nos expulsar”, declarou um de seus líderes. “Pelo simples fato de estar aqui lhes lembraremos
diariamente que é preciso resolver o problema de Jerusalém.”25
Em outubro de 1973, no dia do Yom Kippur, o Egito e a Síria lançaram contra Israel um ataque-
surpresa, que alterou os humores de ambos os lados. Dessa vez os árabes se saíram muito melhor, e as FDI
levaram dias para repelir o ataque. Em Jerusalém, os palestinos, animados, passaram a acalentar a esperança
de que a anexação de al-Quds por Israel fosse apenas temporária. Os israelenses se alarmaram ao constatar
seu isolamento na região, e o susto gerou intransigência, sobretudo entre grupos religiosos. Pouco depois da
guerra, discípulos do rabino Kook fundaram o Gush Emunim [Bloco dos Fiéis].26 Seu caso de amor com o
establishment israelense chegara ao fim: em 1967, Deus oferecera a Israel uma esplêndida oportunidade, mas,
em vez de colonizar os territórios ocupados e desafiar a comunidade internacional, o governo apenas tentara
apaziguar os Goim. A Guerra do Yom Kippur constituíra o castigo divino e um lembrete salutar. O
sionismo secular estava morto: o Gush propunha um sionismo da Redenção e da Torá. Ao término do
conflito começou a implantar colônias nos territórios ocupados, convencido de que essa colonização santa
apressaria a vinda do Messias. Suas atividades, entretanto, concentravam-se em Hebron, e não em Jerusalém:
o rabino Moshe Levinger, um de seus fundadores, habilmente convencera o governo a construir uma nova
cidade em Kiryat Arba, nas proximidades de Hebron. Os colonos deram início a uma campanha por mais
tempo de permanência na caverna dos Patriarcas, onde os judeus só podiam fazer suas devoções em
determinadas horas. Levinger também pretendia criar uma base na própria Hebron e vingar o massacre de
judeus que ali ocorrera em 1929. O lugar onde Abraão avistara seu Deus revestido de forma humana logo se
tornaria a cidade israelense mais violenta e dominada pelo ódio.
Em 1977, o Likud, partido de Menachem Begin, assumiu o poder, substituindo os trabalhistas, e as
esperanças da direita renovaram-se, sobretudo quando o novo governo passou a estimular a colonização
maciça da Margem Ocidental. Mas então, para horror dos direitistas, Begin começou a fazer as pazes com o
mundo árabe. Em 20 de dezembro, Anuar al-Sadat, presidente do Egito, realizou sua histórica visita a
Jerusalém e, no ano seguinte, assinou com Begin os acordos de Camp David. O Egito reconheceu o Estado
de Israel, que em troca prometeu retirar-se da península do Sinai. Com isso, Begin teve de enfrentar os
colonos israelenses que haviam construído no Sinai a cidade judaica de Yamit e estavam dispostos a lutar até
o fim para tentar impedir sua destruição. Novos grupos de direita se formaram para combater os acordos e
o governo.
Em Jerusalém, as atividades da extrema direita concentravam-se mais e mais no monte do Templo. O
rabino Shlomo Aviner fundou em 1978 a yeshiva Ateret ha-Kohanim [Coroa dos Sacerdotes], um anexo da
Merkaz Harav de Kook. Um de seus objetivos era judaizar a Cidade Velha. Após a conquista de 1967, o
governo restaurou o antigo bairro judaico, que no período jordaniano havia sido um campo de refugiados.
Reformou as sinagogas profanadas, demoliu as velhas moradias danificadas e construiu novas casas, lojas e
galerias. Aos olhos da Ateret ha-Kohanim isso não bastava. Mantida em grande parte por judeus americanos,
a yeshiva passou a comprar propriedades de árabes no bairro islâmico e ao cabo de dez anos possuía mais de
setenta edifícios.27
Sua principal tarefa, entretanto, era estudar o significado religioso do Templo. 28 Aviner acreditava que os
judeus não deviam construir o Terceiro Templo, obra reservada ao Messias, mas seu assistente, o rabino
Menachem Fruman, queria preparar os discípulos para empreenderem a avodah do Templo quando o Messias
chegasse — o que deveria ocorrer no futuro próximo, acreditava. Fruman pesquisou as normas e técnicas de
sacrifício e transmitiu as informações a seus alunos. O rabino David Elboim tratou de tecer vestimentas
sacerdotais, seguindo as minuciosas — e geralmente obscuras — instruções da Torá.
Outros viam a necessidade de uma ação mais decisiva. Pouco após a visita de Sadat a Jerusalém, dois
membros do Gush — Yehuda Etzion e Menachem Livni — passaram a encontrar-se secretamente com o
cabalista Yehoshua Ben-Shoshan. Surgiu, assim, um movimento clandestino que tinha como principal objetivo
explodir a Cúpula do Rochedo. Isso certamente paralisaria o processo de paz e levaria os judeus do mundo
inteiro a uma avaliação de suas responsabilidades religiosas. Essa revolução espiritual, acreditavam, forçaria
Deus a enviar o Messias e a Redenção final. Especialista em explosivos, Livni calculava que seriam necessárias
28 bombas de precisão para arrasar a Cúpula do Rochedo sem danificar seus arredores. O grupo obteve
grandes quantidades de explosivos num acampamento militar das colinas de Golã, mas, quando chegou a
hora da decisão, em 1982, não encontrou nenhum rabino disposto a abençoar sua empreitada. Como só
Etzion e Ben-Shoshan se mostrassem dispostos a prosseguir mesmo sem a sanção de um rabino, abandonou-
se o projeto.
O espírito religioso que emergira em Israel fomentava o ódio, em vez de suscitar a compaixão. Em 1980,
o grupo de Etzion planejou mutilar cinco prefeitos árabes da Margem Ocidental para vingar o assassinato de
seis alunos de uma yeshiva de Hebron. Não obteve pleno êxito, pois aleijou horrivelmente apenas dois dos
prefeitos. O rabino Meir Kahane é a encarnação mais cabal desse novo judaísmo voltado para o ódio. Ele
iniciou sua carreira em Nova York, onde fundou a Liga de Defesa Judaica para revidar ataques de jovens
negros contra judeus. Quando chegou a Israel, organizou em Jerusalém manifestações de protesto contra as
atividades de missionários cristãos, fundamentando-se nos pronunciamentos de alguns rabinos sobre a presença
de Goim na Terra Santa. Por fim se transferiu para Kiryat Arba, em 1975, e mudou o nome de sua
organização para Kach (“Assim!” — ou seja, à força). Queria basicamente expulsar os árabes do Estado de
Israel. Em 1980 passou uma breve temporada na prisão por planejar destruir a Cúpula do Rochedo com um
míssil de longo alcance.
Os membros desses grupos de extrema direita não eram primitivos ou incultos. Yoel Lerner, preso em
1982 por colocar uma bomba em al-Aqsā, formou-se no Massachusetts Institute of Technology e lecionava
linguística. Depois de libertado, lançou uma campanha pelo restabelecimento do Sinédrio no monte do
Templo. Todas essas atividades tinham um efeito perigosamente cumulativo. Mais pessoas, algumas das quais
ocupavam cargos oficiais, envolviam-se em ações abomináveis. No final de março de 1983 o rabino Israel
“Ariel” e 38 alunos de uma yeshiva foram presos quando se dirigiam ao H. aram. Pretendiam celebrar a
Páscoa — e talvez fundar uma colônia subterrânea — nas ruínas do Primeiro Templo, sob a esplanada de
Herodes, aonde chegariam através de um túnel. Com isso acreditavam que obrigariam os muçulmanos a
autorizar a construção de uma sinagoga no H. aram. O rabino Meir Yehuda Getz, encarregado do Muro
Ocidental, também conduziu investigações secretas nos porões do H. aram e fez campanha para estabelecer-se
uma sinagoga na esplanada. Até 1984, quando se descobriu o plano concebido por Etzion para explodir a
Cúpula do Rochedo, a ideia de um Terceiro Templo constituíra um tabu. Tocar nesse assunto ou expor
projetos de reconstrução era tão perigoso quanto pronunciar o nome de Deus. Mas agora o tabu caíra por
terra e a ideia começou a parecer plausível. Em 1984, “Ariel” fundou o periódico Tzfia [Olhando para a
frente], com o propósito de debater publicamente o Terceiro Templo. Em 1986, abriu na Cidade Velha o
Museu do Templo, onde se encontram os vasos, instrumentos musicais e vestes sacerdotais que já foram
feitos. Muitos visitantes saem dali com a impressão de que os judeus só estão aguardando o momento de
entrar em cena. Assim que os santuários muçulmanos do H. aram desaparecerem, por meios lícitos ou não,
eles tomarão o monte Sião original e inaugurarão uma liturgia plenamente amadurecida. As implicações são
assustadoras. Estrategistas americanos calcularam que, nos termos da Guerra Fria, quando a Rússia apoiava os
árabes e os Estados Unidos apoiavam os israelenses, o êxito do plano de Etzion poderia ter desencadeado a
III Guerra Mundial.
Em 9 de dezembro de 1987, exatamente setenta anos depois que Allenby conquistara Jerusalém, eclodiu em
Gaza a rebelião popular palestina conhecida como intifada. Poucos dias depois o general linha-dura Ariel
Sharon se mudou para seu novo apartamento no bairro muçulmano da Cidade Velha — um gesto simbólico
que expressava a determinação da direita israelense de permanecer em al-Quds. Em meados de janeiro,
contudo, a intifada chegou ao setor oriental: tropas israelenses usaram bombas de gás lacrimogêneo para
dispersar manifestantes no H. aram. Houve distúrbios e greves, embora a rebelião fosse menos intensa em
Jerusalém que no restante dos territórios ocupados. Os israelenses tiveram de admitir que, vinte anos após a
anexação da cidade, os palestinos de al-Quds concordavam plenamente com os rebeldes dos territórios. Uma
consequência prática da intifada foi mais uma divisão de Jerusalém, dessa vez sem arame farpado nem terra
de ninguém entre os setores oriental e ocidental. Mas os israelenses constataram que já não poderiam entrar
impunemente na parte árabe. Ao cruzar a fronteira invisível, corriam o risco de ser apedrejados por jovens
palestinos e provocar um incidente. A Jerusalém oriental se transformara em território inimigo.
Internacionalmente a intifada também teve extraordinária repercussão. O público do mundo inteiro
percebeu a natureza agressiva da ocupação israelense ao ver soldados perseguindo crianças que atiravam
pedras, disparando contra elas ou quebrando-lhes as mãos. A rebelião surgira por iniciativa dos jovens
palestinos, que cresceram sob a ocupação de Israel e não acreditavam na política da Organização para a
Libertação da Palestina, cujo fracasso em obter resultados era notório. A intifada impressionou igualmente o
mundo árabe. Em 31 de julho de 1988, o rei H. ussein fez um dramático pronunciamento, renunciando à
pretensão da Jordânia relativa à Margem Ocidental e à Jerusalém oriental — território que agora reconhecia
como pertencente à nação palestina. Criou-se assim um vazio de poder que a OLP tratou de aproveitar. A
liderança da intifada instava a Organização a abandonar sua velha política irrealista: os palestinos gostando
ou não, Israel e Estados Unidos davam as cartas no conflito. A OLP devia deixar de lado seu rejeicionismo,
aceitar a Resolução 242 da ONU, reconhecer a existência do Estado de Israel e renunciar ao terrorismo. Em
15 de novembro de 1988, a OLP adotou tal postura. Também publicou a Declaração de Independência da
Palestina. Situado na Margem Ocidental, vizinho ao Estado de Israel, o Estado da Palestina teria como
capital Jerusalém [al-Quds al-Sharif].
A intifada fortaleceu ainda o movimento israelense pela paz. Demonstrou a obstinação dos palestinos em
conquistar a independência nacional e a autodeterminação com eloquência bastante para persuadir um
número crescente de israelenses. E, talvez o mais importante, influenciou o pensamento de alguns dos mais
intransigentes. Yitzhak Rabin, o ministro da Defesa, sempre adotara uma linha dura no tocante à questão
palestina, porém a intifada finalmente o convenceu de que Israel não podia continuar mantendo os territórios
ocupados sem se desumanizar. O exército israelense não podia usar a força indefinidamente para submeter as
mães e filhos que participavam da rebelião. Quando se tornou primeiro-ministro, em 1992, Rabin estava
disposto a negociar a paz com a OLP. No ano seguinte, Israel e a OLP firmaram o Acordo de Oslo, que
restituía à administração palestina a Faixa de Gaza e partes da Margem Ocidental (de imediato a área ao
redor de Jericó). Arafat e Rabin apertaram as mãos no gramado da Casa Branca em Washington, D. C.
O Acordo de Oslo suscitou muita oposição. Ambos os lados achavam que seus líderes haviam feito
demasiadas concessões. A discussão sobre o futuro de Jerusalém teria de esperar até maio de 1996 — a
delonga equivalendo ao reconhecimento tácito de que esse seria o obstáculo mais difícil de superar. O grau
de dificuldade evidenciou-se nas eleições municipais de 1993, quando Ehud Olmert, o candidato do
conservador Likud, derrotou o prefeito Teddy Kollek. Apesar de seu papel na destruição do bairro do
Magreb e da municipalidade árabe, em 1967, Kollek era tido como liberal. Dedicou bastante tempo aos
árabes de Jerusalém e às vezes até os apoiou, certo de que se devia fazer de tudo para preservar seu estilo
de vida. Entretanto, ainda insistia na “reunificação” da cidade. Inflamava plateias do mundo inteiro com sua
descrição de uma Jerusalém unida, temendo a “divisão” e as cercas de arame farpado.
Tal unidade, porém, não significava igualdade. Um levantamento recente mostra que, das 64 880 moradias
construídas em Jerusalém desde 1967, apenas 8800 se destinavam aos palestinos. Dos novecentos coletores de
lixo municipais, somente catorze atuavam no setor oriental. Não se construiu nenhuma estrada para unir os
bairros árabes mais antigos.29 Até mesmo um “liberal” benevolente fazia discriminação. Ademais, os métodos
legais de planejamento adotados pelo governo israelense impedem que os palestinos ocupem 86% do solo na
Jerusalém oriental. Um estudo recente, encomendado pela municipalidade, mostra que, em função disso, 21
mil famílias palestinas não têm teto ou estão precariamente instaladas. Com a falta de terrenos destinados a
moradias é quase impossível os palestinos obterem alvará de construção no setor oriental. Uma casa
construída sem permissão está sujeita a demolição. Dados levantados em 1994 indicam que desde meados de
1987 foram demolidas na Jerusalém oriental 222 casas de palestinos; contudo, o relatório anual da prefeitura
mostra que foram projetadas 31 413 residências para judeus nas partes norte, sul e leste da cidade.30 Os
palestinos vêm sendo progressivamente excluídos de al-Quds. Ao contrário de Teddy Kollek, o novo prefeito,
Ehud Olmert, não sente necessidade de apresentar-se como liberal. “Expandirei Jerusalém para o leste, não
para o oeste”, declarou. “Posso fazer as coisas acontecerem de tal modo que a cidade permaneça unida sob o
controle de Israel por toda a eternidade.”31 É uma atitude que não favorece a paz.
Olmert não precisa bajular os liberais israelenses. Chegou ao poder graças a sua aliança com os judeus
ultraortodoxos de Jerusalém, cujo número cresceu rapidamente nos últimos anos. Não mais confinados ao
gueto de Mea Shearim, eles se apoderaram da maioria dos bairros setentrionais. Em 1994, faziam parte de
suas famílias 52% dos judeus jerosolimitas com menos de dez anos de idade. O que lhes interessa não é
estabelecer a paz com os árabes, e sim fazer de Jerusalém uma cidade mais cumpridora da lei e manter os
judeus seculares na linha. Querem menos restaurantes não kosher, menos teatros e locais de diversão abertos
no Sabá. Os aliados de Olmert não acreditam em repartir soberania com os palestinos. Para os
ultraortodoxos, como para os grupos de extrema direita, repartir significa dividir, e uma Jerusalém dividida é
uma Jerusalém morta.
Os governantes de Israel têm afirmado repetidas vezes que Jerusalém é a capital eterna e indivisível do
Estado judeu e que é impensável repartir sua soberania. Os esforços para dissuadir os palestinos da ideia de
que sua capital será al-Quds continuam. Contudo, o tom está mudando. Desde a intifada, Jerusalém
realmente se dividiu: hoje existem poucos lugares em que árabes e judeus possam se encontrar em condições
normais. O maior bairro comercial do setor ocidental é quase todo judaico, e a Cidade velha é quase toda
árabe. O único ponto de contato é o agressivo cinturão de edifícios israelenses na Jerusalém oriental. Cada
vez mais israelenses estão aceitando essa situação como uma realidade imutável. Para que “controlar” uma
área onde não se pode entrar sem escolta armada?, perguntam alguns. Uma pesquisa de opinião realizada em
maio de 1995 para o Centro de Pesquisa e Informação Israel-Palestina revelou que 28% dos judeus
israelenses adultos admitem alguma forma de partilha de soberania na Cidade Santa, desde que Israel
mantenha seu controle sobre os bairros judaicos.
Em 13 de maio de 1995, Feisal Husseini, representante da OLP em Jerusalém, pronunciou um discurso
durante uma manifestação de protesto contra o confisco de terras pertencentes aos árabes. Ao pé dos muros
da Cidade Velha, no local que fora outrora a Terra de Ninguém, Husseini afirmou: “Sonho com o dia em
que um palestino dirá ‘Nossa Jerusalém’, referindo-se a palestinos e israelenses, e um israelense dirá ‘Nossa
Jerusalém’, referindo-se a israelenses e palestinos”.32 Seu discurso levou setecentos israelenses de destaque —
escritores, críticos, artistas, ex-parlamentares — a assinarem a seguinte declaração:
Jerusalém é nossa, dos israelenses e dos palestinos — muçulmanos, cristãos e judeus.
Nossa Jerusalém é um mosaico de todas as culturas, todas as religiões e todos os períodos que a
enriqueceram, desde a mais remota antiguidade até hoje — cananeus e jebuseus e israelitas, judeus e
helenos, romanos e bizantinos, cristãos e muçulmanos, árabes e mamelucos, otomanos e britânicos,
palestinos e israelenses. Eles e todos os outros que deram sua contribuição à cidade têm um lugar na
paisagem espiritual e física de Jerusalém.
Nossa Jerusalém deve ser unida, aberta a todos e pertencente a todos os seus habitantes, sem fronteiras
nem cercas de arame farpado dividindo-a ao meio.
Nossa Jerusalém deve ser a capital dos dois Estados que conviverão nesta terra — a Jerusalém ocidental,
capital do Estado de Israel; a Jerusalém oriental, capital do Estado da Palestina.
Nossa Jerusalém deve ser a Capital da Paz.33
Para que Sião seja realmente uma cidade da paz, e não da guerra, há que se estabelecer alguma forma de
condomínio. Várias soluções têm sido propostas. Jerusalém deveria ser um corpus separatum com um governo
internacional? Deveria haver soberania israelense com privilégios especiais para a autoridade palestina, uma
administração conjunta Israel-Palestina de uma cidade indivisa, duas municipalidades distintas ou uma com
dois organismos administrativos separados? A discussão prossegue, inflamada. No entanto, a menos que se
esclareçam os princípios básicos, todas essas soluções são utópicas.
O que a história de Jerusalém pode nos ensinar acerca do futuro? No outono de 1995 os israelenses deram
início aos festejos que durante um ano celebrariam o trimilênio da conquista da cidade pelo rei Davi. Os
palestinos protestaram, considerando as comemorações como propaganda a favor de uma Jerusalém
inteiramente judia. A história da conquista de Davi, não obstante, é, talvez, mais expressiva de sua causa do
que os israelenses mais conservadores imaginam. Vimos que todos os conquistadores monoteístas tiveram de
aceitar o fato de que Jerusalém era uma cidade santa para as populações que os antecederam. Como as três
religiões frisam os direitos absolutos e sagrados do indivíduo, o tratamento que os vencedores dispensam aos
vencidos deveria refletir a sinceridade de seus ideais. Nesse aspecto, pelo que nos permitem afirmar nossos
registros imperfeitos, o rei Davi se saiu bastante bem. Não tentou expulsar os funcionários jebuseus, nem
desapropriou seus locais sagrados. Sob seu governo Jerusalém continuou sendo uma cidade amplamente
jebuseia. O Estado de Israel não seguiu seu exemplo. Em 1948, 30 mil palestinos perderam suas casas na
Jerusalém ocidental, e desde a conquista de 1967 tem havido expropriação de terras aos árabes e cada vez
mais ataques ofensivos e perigosos contra o H. aram al-Sharif. Os israelenses não foram os piores
conquistadores de Jerusalém: não massacraram seus predecessores, como os cruzados fizeram, nem os baniram
para sempre, como os bizantinos fizeram com os judeus. Por outro lado, não alcançaram o elevado nível do
califa Omar. Refletindo sobre a triste situação atual, constatamos que ironicamente foi uma conquista
islâmica que em duas ocasiões possibilitou o retorno dos judeus a sua cidade santa: Omar e Saladino os
convidaram a instalar-se em Jerusalém quando substituíram os governantes cristãos.
A conquista de 1967 foi de fato uma ocorrência mítica, de um simbolismo irresistível. Por fim os judeus
efetivamente regressaram a Sião. Desde o início, contudo, Sião era não só uma entidade física, mas também
um ideal. Desde o período jebuseu era reverenciada como uma cidade da paz, um paraíso terrestre de
harmonia e integração. Os salmistas e os profetas de Israel desenvolveram essa concepção. Hoje, porém, a
Jerusalém sionista está muito longe da Jerusalém ideal. Desde as Cruzadas, que arruinaram para sempre as
relações entre as três crenças de Abraão, Jerusalém é uma cidade nervosa, defensiva e cada vez mais
contenciosa. Por sua causa, judeus, cristãos e muçulmanos não só lutaram e competiram entre si, como se
dividiram internamente em facções antagônicas. Quase todo o seu desenvolvimento no século XIX deveu-se ou
levou à crescente rivalidade entre as três principais comunidades. Hoje as seitas cristãs ainda se desentendem
a propósito do Santo Sepulcro, e pouco depois da emocionante conquista da cidade, na Guerra dos Seis
Dias, israelenses religiosos e leigos se defrontaram por causa do Muro Ocidental. Essa não é Sião, o refúgio
tranquilo estabelecido pelo rei Davi.
Israel insiste na suprema importância da segurança nacional. Enquanto os palestinos querem libertação, os
judeus israelenses querem fronteiras seguras. Não é de surpreender, tendo em vista as atrocidades que
marcaram a história judaica. Segurança era uma das primeiras coisas que a população exigia de uma cidade.
Um dos deveres mais importantes do rei antigo consistia em construir fortificações poderosas para
proporcionar aos súditos a segurança desejada. Desde seus primórdios Sião devia ser uma ilha de paz, apesar
dos inimigos, internos e externos, que a ameaçavam já na época de Abdi-Hepa. Hoje é novamente uma
praça-forte sitiada, suas fronteiras a leste marcadas pelos edifícios imensos que a rodeiam como as antigas
fortificações dos cruzados. Mas as muralhas de nada servem se abrigam desordens. Observadores pessimistas
opinam que, se não se encontrar uma solução justa, Jerusalém corre o risco de se tornar tão violenta e
perigosa para todos os seus habitantes quanto Hebron.
O ideal de justiça social sempre foi fundamental para a santidade de Sião. O governante antigo acreditava
que esse era um dos principais meios de impor a ordem divina e habilitar a cidade a desfrutar a paz e a
segurança dos deuses. O ideal de justiça social tinha extrema importância para o culto de Baal na Jerusalém
dos jebuseus. Os salmistas e profetas diziam que Sião devia ser um refúgio para os pobres: os profetas em
particular insistiam que a devoção ao espaço sagrado não teria sentido se os israelitas negligenciassem os
vulneráveis de sua sociedade. O Código de Santidade de P inclui a solicitude e o amor ao “forasteiro” que
os israelitas deviam receber em seu meio. A mensagem do Alcorão também encerra a justiça social, e na
época dos Aiúbidas e dos mamelucos a prática da compaixão constituía um componente essencial da
islamização de Jerusalém. Estava igualmente na base do sionismo socialista dos pioneiros veteranos. Mas
infelizmente a moderna Sião não recebeu os palestinos, nem mesmo na gestão do prefeito Teddy Kollek. Em
Jerusalém, eles são muito mais bem tratados que num país árabe, costumam dizer os israelenses. Talvez seja
verdade, porém os palestinos não estão se comparando com outros árabes, e sim com seus concidadãos
judeus. Afirmar que Jerusalém é santa e não pôr em prática a justiça inerente a sua santidade equivale a
enveredar por um caminho perigoso.
Podemos avaliar o perigo, talvez, revendo alguns regimes que enfatizaram a importância de possuir a
cidade, mas negligenciaram o dever da compaixão. Não havia muita caridade na época dos Asmoneus, que,
após uma acirrada luta para preservar a integridade da Jerusalém judaica, tornaram-se praticamente tão
despóticos quanto os cruéis tiranos helenísticos que haviam combatido. Com sua conduta inimizaram os
fariseus, que constantemente enfatizavam a primazia da caridade e da bondade. Em diferentes ocasiões os
fariseus pediram aos romanos para depor seus monarcas: o domínio estrangeiro seria preferível ao regime
desses maus judeus.
A Jerusalém cristã fornece um exemplo impressionante dos perigos que se corre ao deixar de lado a
compaixão e o respeito absoluto pelos direitos dos outros. O Novo Testamento é bem claro: sem a caridade
a fé nada vale. No entanto, os cristãos nunca incorporaram esse ideal a seu culto de Jerusalém, talvez porque
a devoção à cidade fosse tardia e quase os surpreendesse. A Jerusalém bizantina conseguiu proporcionar-lhes
uma intensa experiência do divino, mas era descaridosa. Os cristãos não só estavam se engalfinhando entre si,
como consideravam essenciais para a santidade e a integridade de sua Nova Jerusalém o desmantelamento e a
exclusão do paganismo e do judaísmo. Exultaram com a desgraça dos judeus; alguns dos monges mais
ascéticos que se instalaram no deserto da Judeia para estar perto da Cidade Santa eram violentamente
antissemitas. A intolerância dos imperadores cristãos acabou malquistando de tal modo judeus e “heréticos”
que os transformou em perigosos desafetos. Os judeus receberam com entusiasmo os persas e os muçulmanos
que invadiram a Palestina e lhes prestou ajuda concreta.
A Jerusalém dos cruzados evidentemente foi ainda mais cruel, baseada em matança e espoliação. Como os
israelenses modernos, os cruzados fundaram um enclave estrangeiro no Oriente Próximo, dependente da ajuda
ultramarina e cercado de nações hostis. Toda a história de seu reino se resume na luta pela sobrevivência.
Vimos que os cruzados, como os israelenses, eram obcecados por segurança — e tinham boas razões para
isso. Não poderia, portanto, haver grande criatividade em sua Jerusalém, pois a arte e a literatura não
floresceriam em tal clima de batalha. Alguns cruzados, como muitos israelenses, perceberam que seu reino
não sobreviveria como um gueto ocidental no Oriente. Deviam estabelecer relações normais com o mundo
muçulmano a sua volta. Contudo, sua religião de ódio era arraigada: certa vez eles atacaram seu único aliado
islâmico e também se engalfinharam entre si. A religião do ódio não funciona, torna-se facilmente destrutiva.
Os cruzados perderam seu reino. A esterilidade de uma fé que considera a posse de um lugar santo como
um fim em si mesmo, negligenciando o dever mais importante da caridade, revela-se dramaticamente na
disputa interminável que as seitas cristãs hoje travam no Santo Sepulcro.
À luz do monoteísmo constitui idolatria fazer de um santuário ou de uma cidade o objetivo supremo de
uma religião, pois, como vimos, estes não passam de símbolos que apontam para uma realidade maior.
Jerusalém e seus lugares sagrados foram divinizados. Apresentaram a divindade a milhões de judeus, cristãos e
muçulmanos. Consequentemente, para muitos monoteístas são inseparáveis da própria noção de Deus. E,
como o divino é não só uma realidade transcendente “exterior”, mas também algo que o devoto experimenta
no profundo de si mesmo, os lugares santos fazem parte de seu mundo interior. Às vezes, diante de um
santuário, judeus, cristãos e muçulmanos encontram seu próprio eu. Esse encontro, extraordinário e
emocionante, pode dificultar-lhes muito uma visão objetiva de Jerusalém e seus problemas. Grande parte das
dificuldades surge quando se encara a religião basicamente como uma busca de identidade. Uma das funções
da religião consiste em nos ajudar a desenvolver uma consciência do eu: a explicar de onde viemos e por
que nossas tradições são distintas e especiais. Mas esse não é seu único propósito. Todas as grandes religiões
do mundo insistem na importância de transcender o eu frágil e voraz, que, em seu anseio de segurança, com
tanta frequência denigre os outros. Deixá-lo para trás é não só um objetivo místico, como um requisito da
prática da compaixão, que nos impõe colocar os direitos dos outros acima de nossos desejos egoísticos.
Uma das mensagens inegáveis da história de Jerusalém é que, apesar dos mitos românticos em contrário,
sofrer não nos faz necessariamente melhores ou mais nobres. Com muita frequência ocorre exatamente o
oposto. Jerusalém se tornou pela primeira vez uma cidade exclusivista após o exílio na Babilônia, quando o
novo judaísmo estava ajudando os fiéis a estabelecer uma identidade distinta num mundo predominantemente
pagão. O Segundo Isaías proclamara que o retorno a Sião daria início a uma nova era de paz, mas a Golah
simplesmente transformou Jerusalém num pomo de discórdia quando excluiu os Am Ha-Aretz. A experiência
da perseguição na antiga Roma não tornou os cristãos mais solidários com o sofrimento alheio, e al-Quds
passou a ser muito mais agressivamente islâmica depois que os muçulmanos sofreram nas mãos dos cruzados.
Não surpreende, portanto, que o Estado de Israel, fundado pouco depois do Holocausto, nem sempre tenha
primado pela delicadeza. Vimos que o medo da destruição foi um dos principais motivos que levaram os
antigos a construírem cidades santas e templos. Em sua mitologia os israelitas contaram a história de sua
viagem pelo reino demoníaco do deserto — um vazio onde não havia ninguém, nada — para chegar ao
refúgio da Terra Prometida. O povo judeu enfrentara uma aniquilação sem precedentes nos campos de
extermínio. Não surpreende que seu retorno a Sião na Guerra dos Seis Dias os tocasse profundamente e
fizesse alguns acreditarem que ocorrera uma nova criação, um novo início.
Hoje, porém, cada vez mais israelenses começam a contemplar a possibilidade de partilhar a Cidade Santa.
Infelizmente, a maioria dos que trabalham pela paz são seculares. Em ambos os lados do conflito a religião
está se tornando cada vez mais belicosa. A apocalíptica espiritualidade dos extremistas que propõem atentados
suicidas, explodindo santuários alheios ou desalojando outras pessoas, seduz uma pequena minoria, mas
engendra ódio em maior escala. Ambos os lados endurecem após uma atrocidade, e a paz se torna uma
perspectiva mais distante. Os zelotes que se opuseram aos pacificadores em 66 d.C. foram os principais
responsáveis pela destruição de Jerusalém e do Templo. Reynauld de Chatillon, que considerava pecado a
trégua com os infiéis, arruinou o reino dos cruzados. A religião do ódio pode ter um efeito desproporcional
ao número de pessoas envolvidas. Hoje os extremistas religiosos de ambas as partes são responsáveis por
barbaridades cometidas em nome de “Deus”. Em 25 de fevereiro de 1994, Baruch Goldstein fuzilou pelo
menos 48 palestinos na caverna dos Patriarcas, em Hebron, e hoje a extrema direita o reverencia como
mártir. Outro mártir é a jovem suicida do grupo islâmico Hamaz, que em 25 de agosto de 1995 morreu na
explosão de um ônibus em Jerusalém, matando cinco pessoas e ferindo 107. Tais ações são uma paródia da
religião, mas têm sido frequentes na história de Jerusalém. Quando a posse de um país ou de uma cidade
passa a ser um fim em si mesmo, não há motivo para não matar. Quando se esquece o dever primordial de
respeitar a divindade presente em outros seres humanos, pode-se usar “Deus” para imprimir a nossos
preconceitos e desejos um selo divino de absoluta aprovação. A religião se torna então um campo fértil para
a violência e a crueldade.
Em 4 de novembro de 1995, o primeiro-ministro Yitzhak Rabin foi assassinado depois de discursar numa
manifestação pela paz, em Tel Aviv. Os israelenses horrorizaram-se ao saber que o assassino era um judeu.
Yigal Amir, o jovem estudante que disparou os tiros fatais, declarou que agira por orientação de Deus e que
era permitido matar qualquer um que se dispusesse a entregar ao inimigo a terra sagrada de Israel. A
religião do ódio parece ter uma dinâmica própria. A intransigência criminosa pode transformar-se em hábito
e voltar-se não só contra o adversário, mas também contra os correligionários. A Jerusalém dos cruzados, por
exemplo, dividiu-se contra si mesma, e os francos se viram à beira de uma guerra civil suicida num
momento em que Saladino se preparava para invadir seu território. Seu ódio recíproco e sua rixa crônica
contribuíram para sua derrota na batalha de Hattin.
Para muitos israelenses, o trágico assassinato de Rabin constituiu uma chocante revelação das profundas
brechas existentes em sua sociedade — e que até então eles tentavam ignorar. Os sionistas foram para a
Palestina a fim de estabelecer uma pátria onde os judeus estariam a salvo dos sanguinários Goim. Agora, os
judeus começavam a matar-se uns aos outros por causa dessa pátria. Em todo o mundo enfrentavam a
dolorosa constatação de que não eram apenas vítimas, mas podiam fazer o mal e cometer atrocidades. A
morte de Rabin também demonstrou claramente o abuso da religião. Desde os tempos de Abraão as mais
humanas tradições da religião de Israel asseguravam que a compaixão pelo semelhante podia levar ao
encontro com Deus. A humanidade era tão sagrada que nunca se autorizou o sacrifício de uma vida humana.
No entanto, Yigal Amir adotou a ética mais violenta do Livro de Josué. Só conseguia ver o divino na Terra
Santa. Seu crime constituiu uma assustadora demonstração dos perigos de tal idolatria.
O mito cabalista diz que, quando os judeus retornassem a Sião, todas as coisas do mundo voltariam a seus
devidos lugares. O assassinato de Rabin mostrou que o retorno dos judeus a Israel não correspondeu à
ordem no mundo. Mas essa mitologia não surgiu para ser interpretada ao pé da letra. Desde 1948 a volta
paulatina dos judeus a Sião desalojou milhares de palestinos. Sabemos pela história de Jerusalém que o exílio
é experimentado como o fim do mundo, como uma mutilação e um deslocamento espiritual. Tudo perde o
sentido sem um ponto fixo, sem a orientação da pátria. Arrancado do passado, o presente se torna um
deserto e o futuro inimaginável. Certamente os judeus viram o exílio como demoníaco e destrutivo. Agora, o
Estado de Israel transferiu esse fardo de sofrimento para os palestinos, quaisquer que fossem suas intenções
originais. Não admira que os palestinos nem sempre se comportem de maneira exemplar no decorrer de sua
própria luta pela sobrevivência. Alguns, porém, admitem que a conciliação pode ser necessária para
recuperarem ao menos uma parte de sua terra. Percorreram um caminho difícil para chegar aos Acordos de
Oslo — parecia impossível que tivessem de reconhecer oficialmente o Estado de Israel. Para os judeus no
exílio, Sião tornou-se uma imagem de salvação e reconciliação. Não surpreende que al-Quds se tornasse
ainda mais preciosa para os palestinos no exílio. Dois povos que sofreram várias formas de aniquilação agora
buscam conforto na mesma Cidade Santa.
A salvação — secular ou religiosa — deve significar mais que a simples posse de uma cidade. Deve ser
também uma medida de crescimento e libertação interior. Uma coisa que a história de Jerusalém nos ensina
é que nada é irreversível. Seus habitantes não só presenciaram sua destruição repetidas vezes, como a viram
reconstruída de modo que lhes pareceu abominável. Quando souberam que Adriano e depois Constantino
arrasaram sua Cidade Santa, os judeus provavelmente pensaram que nunca a recuperariam. Os muçulmanos
tiveram de assistir à profanação de seu amado H. aram pelos cruzados, que na época pareciam invencíveis.
Todos esses projetos de construção visavam criar fatos, mas tijolos e argamassa não bastavam. Os
muçulmanos recuperaram sua cidade porque os cruzados se perderam num pesadelo de ódio e intolerância.
Hoje, apesar de todas as dificuldades, os judeus voltaram a Sião e criaram seus próprios fatos nos edifícios
que rodeiam Jerusalém. Todavia, como demonstra a longa e trágica história de Jerusalém, nada é permanente
ou garantido. As sociedades que permaneceram por mais tempo na Cidade Santa foram, em geral, as que se
dispuseram a algum tipo de tolerância e convivência. Essa deve ser a forma de celebrar a santidade de
Jerusalém, não a luta estéril e mortal por soberania.
NOTAS

1. SIÃO

1. Kathleen Kenyon, Digging up Jerusalem (Londres, 1974), p. 78.


2. The New York Times, 8 de setembro de 1994.
3. Tem-se traduzido Tiropeon como “Queijeiros”: o nome original do vale pode ter se deturpado na época
de Josefo.
4. Benjamin Mazar, The mountain of the Lord (Nova York, 1975), pp. 45-6; Gosta W. Ahlström, The history
of ancient Palestine (Mineápolis, 1993), pp. 169-72.
5. Mazar, The mountain of the Lord, p. 11.
6. Mircea Eliade, The sacred and the profane, trad. Willard J. Trask (Nova York, 1959), p. 21.
7. Ibidem, passim. Também Mircea Eliade, Patterns in comparative religion, trad. Rosemary Sheed (Londres,
1958), pp. 1-37, 367-88; Mircea Eliade, Images and symbols: studies in religious symbolism, trad. Philip Mairet
(Princeton, 1991), pp. 37-56.
8. Eliade, Sacred and the profane, pp. 50-4, 64.
9. Eliade, Patterns in comparative religion, p. 19.
10. Ibidem, pp. 99-101; R. E. Clements, God and temple (Oxford, 1965), pp. 2-6; Richard J. Clifford, The
Cosmic Mountain in Canaan and the Old Testament (Cambridge, Mass., 1972), pp. 4-10.
11. Clifford, Cosmic Mountain, p. 4.
12. Eliade, Sacred and the profane, p. 33.
13. Eliade, Patterns in comparative religion, pp. 382-5.
14. Ahlström, History of ancient Palestine, pp. 248-50.
15. J. B. Pritchard (ed.), Ancient Near Eastern texts relating to the Old Testament (Princeton, 1969), pp. 483-90.
16. Ahlström, History of ancient Palestine, pp. 279-81.
17. Ronald de Vaux, The early history of Palestine, 2 vols., trad. David Smith (Londres, 1978), 1, pp. 6-7.
18. H. J. Franken, “Jerusalem in the Bronze Age: 3000-1000 bc”, em K. J. Asali (ed.), Jerusalem in history
(Nova York, 1990), p. 39.
19. Kenyon, Digging up Jerusalem, p. 95.
20. Ibidem, p. 100.
21. Pritchard, Ancient Near Eastern texts, p. 483.
22. Clifford, Cosmic Mountain, pp. 57-9.
23. John C. L. Gibson, Canaanite myths and legends (Edimburgo, 1978), p. 66.
24. Ibidem, p. 50.
25. Clifford, Cosmic Mountain, pp. 57-68; cf. Salmo 47.
26. Ibidem, p. 68.
27. Ibidem, p. 77.
28. Ibidem, p. 72.
29. Epopeia de Gilgamesh, 1, 15-8. Ver também Jonathan Z. Smith, “Wisdom’s place”, em John J. Collins
e Michael Fishbane (eds.), Death, ecstasy and other worldly journeys (Albany, 1995), pp. 3-13.
30. Pritchard, Ancient Near Eastern texts, p. 164.
31. Ibidem, p. 178.
32. Gibson, Canaanite myths, pp. 102-7.
33. John Gray, “Sacral Kingship in Ugarit”, Ugaritica, 6 (1969), pp. 295-8.
34. Clifford, Cosmic Mountain, passim; Clements, God and temple, p. 47; Ben C. Ollenburger, Zion, the city of
the great king: a theological symbol of the Jerusalem cult (Sheffield, 1987), pp. 14-6; Margaret Barker, The gate of
heaven: the history and symbolism of the Temple in Jerusalem (Londres, 1991), p. 64; Hans-Joachim Kraus,
Worship in Israel: a cultic history of the Old Testament (Oxford, 1966), pp. 201-4.
2. ISRAEL

1. Josué 10, 40.


2. Ibidem, 15, 63; cf. Juízes 1, 21.
3. Robin Lane Fox, The unauthorized version: truth and fiction in the Bible (Londres, 1991), pp. 225-33.
4. Josué 17, 11-8; Juízes 1, 27-36.
5. J. Alberto Soggin, A history of Israel from the beginnings to the Bar Kochba Revolt AD 135, trad. John
Bowden (Londres, 1984), pp. 141-3; Gosta W. Ahlström, The history of ancient Palestine (Mineápolis, 1993), pp.
347-8.
6. Ahlström, The history of Ancient Palestine, pp. 234-5, 247-8; Amnon Ben Tor (ed.), The archeology of ancient
Israel, trad. R. Greenberg (New Haven e Londres, 1992), p. 213.
7. G. E. Mendenhall, The tenth generation (Baltimore, 1973); N. P. Lemche, Early Israel: anthropological and
historical studies of the Israelite society before the monarchy (Leiden, 1985); D. C. Hopkins, The highlands of Canaan
(Sheffield, 1985); R. B. Coote e K. W. Whitelam, The emergence of early Israel in historical perspective (Sheffield,
1987); James D. Martin, “Israel as a tribal society”, em R. E. Clements (ed.), The world of ancient Israel:
sociological, anthropological and political perspectives (Cambridge, 1989), pp. 94-114; H. G. M. Williamson, em
Clements, World of ancient Israel, pp. 141-2.
8. Isso explica a tradicional distinção entre as tribos de “Raquel” e as de “Lia”.
9. Gênesis 12, 1.
10. Ver Gênesis 23, 4.
11. Gênesis 12, 6.
12. Na etimologia popular o nome deriva de ‘aqeb [calcanhar], mas em Gênesis 27, 36, significa
“suplantado” [‘aqab]. Yaakov provavelmente significava “Deus proteja!”.
13. Êxodo 6, 3, da fonte presbiterial (P).
14. Gênesis 28, 11-7.
15. Gênesis 18, 1-15.
16. Gênesis 22, 2.
17. II Crônicas 3, 1.
18. Gênesis 22, 14.
19. Gênesis 17, 20.
20. Harold H. Rowley, Worship in ancient Israel: its forms and meaning (Londres, 1967), pp. 17-9, resume os
argumentos principais. Outros locais sugeridos são Siquém, monte Tabor e monte Garizim.
21. Benjamin Mazar, The mountain of the Lord (Nova York, 1975), p. 157.
22. Flávio Josefo, Antiguidades judaicas, 1: 40.
23. Salmo 110, 4.
24. R. E. Clements, God and temple (Oxford, 1965), p. 43.
25. Ibidem, pp. 44-7.
26. Jonathan Z. Smith, “Earth and gods”, em Map is not territory: studies in the history of religions (Leiden,
1978), p. 110.
27. Mircea Eliade, Patterns in comparative religion, trad. Rosemary Sheed (Londres, 1958), pp. 118-226.
28. Smith, “Earth and gods”, p. 109.
29. Deuteronômio 32, 10.
30. Jeremias 2, 2; Jó 38, 26; Isaías 34, 12.
31. Isaías 34, 11; Jeremias 4, 25.
32. Deuteronômio 10, 1-8; Êxodo 25, 10-22.
33. Números 10, 35-6.
34. I Samuel 3, 3.
35. Juízes 5, 4-5; Deuteronômio 33, 2; Salmo 68, 8-11. Ver Richard J. Clifford, The Cosmic Mountain in
Canaan and the Old Testament (Cambridge, Mass., 1972), pp. 114-23.
36. Clements, God and temple, pp. 25-8.
37. I Samuel 7, 2-8, 22; 10, 11-27; 12.
38. Keith W. Whitelam, “Israelite kingship: the royal ideology and its opponents”, em Clements (ed.),
World of ancient Israel, pp. 119-26.
39. I Samuel 4, 1-11; 5; 6, 1-7, 1.
40. II Samuel 1, 23.
41. A localização de Siclag é obscura: alguns a identificam com Tell as-Sahara, a 48 quilômetros de
Bersabeia.
3. A CIDADE DE DAVI

1. II Samuel 5, 6.
2. É o que sugere o arqueólogo israelense Yigal Yadin; a história pretende explicar por que os cegos e
coxos seriam proibidos, mais tarde, de entrar no Templo.
3. A palavra tsinur poderia significar “cano”, mas não temos certeza. II Samuel 5, 8; I Crônicas 11, 4-7.
4. II Samuel 5, 9. A tradução talvez seja “a Fortaleza de Davi”.
5. II Samuel 5, 8; I Crônicas 11, 5.
6. Josué 15, 8.
7. Ver R. E. Clements, Abraham and David (Londres, 1967).
8. I Reis 4, 3.
9. G. E. Mendenhall, “Jerusalem from 1000-63 a.C.”, em K. J. Asali (ed.), Jerusalem in History (Nova York,
1990), p. 45.
10. I Crônicas 22, 9. Cf. Gosta W. Ahlström, The history of ancient Palestine (Mineápolis, 1993), pp. 504-5.
11. Gosta W. Ahlström, “Der Prophet Nathan und der Tempelban”, Vetus Testamentum 11 (1961); R. E.
Clements, God and temple (Oxford, 1965), p. 58.
12. Harold H. Rowley, Worship in ancient Israel; its forms and meaning (Londres, 1967), p. 73; Clements, God
and temple, pp. 42-3; cf. Roland de Vaux, Ancient Israel: its life and institutions, trad. John McHugh (Nova York
e Londres, 1961), pp. 114, 311.
13. I Crônicas 6.
14. II Samuel 6.
15. II Samuel 7, 6-16.
16. I Crônicas 28, 11-9.
17. II Samuel 24.
18. Benjamin Mazar, The mountain of the Lord (Nova York, 1975), p. 52; Clements, God and temple, pp. 61-2;
Ahlström, History of ancient Palestine, p. 471; Hans-Joachim Kraus, Worship in Israel: a cultic history of the Old
Testament (Oxford, 1966), p. 186.
19. I Crônicas 28, 11-9.
20. I Crônicas 28, 19.
21. A construção do Templo demorou oito anos; a do palácio, treze anos.
22. David Ussishkin, “King Solomon’s palaces”, Biblical Archeologist, 36 (1973).
23. I Reis 6, 1-14; II Crônicas 3, 1-7.
24. Números 21, 8-9; II Reis 18, 4.
25. O significado desses nomes é obscuro. Talvez sejam o início de duas bênçãos referentes à dinastia
davídica: Yakhin YHWH et kisei David l’olam va’ed [O Senhor estabelecerá para sempre o trono de Davi] e
Boaz Yahweh [Pelo poder de YHWH]. Booz é também o ancestral meio mítico do rei Davi no Livro de Rute.
Também poderiam ser colunas cósmicas formando uma passagem para a luz do sol entrar no Templo ao
amanhecer.
26. I Reis 6, 15-38; II Crônicas 3, 8-13.
27. Margaret Barker, The gate of heaven: the history and symbolism of the Temple in Jerusalem (Londres, 1991),
pp. 26-9; Clements, God and temple, p. 65.
28. Gênesis 11, 4-9.
29. Clements, God and temple, pp. 64, 69-72; Norman Cohn, Cosmos, chaos and the world to come: the ancient
roots of apocaliptic faith (New Haven e Londres, 1993), p. 138; Richard J. Clifford, The Cosmic Mountain in
Canaan and the Old Testament (Cambridge, Mass., 1972), pp. 177-8.
30. Salmo 2, 6-12.
31. Salmo 72, 4.
32. Salmo 9, 10, 16.
33. Salmo 48, 8.
34. Cohn, Cosmos, chaos and the world to come, p. 139.
35. I Reis 11, 4-8.
36. I Reis 4, 18-9.
37. I Reis 8, 15-24.
38. I Reis 11, 26-40.
4. A CIDADE DE JUD

1. I Reis 12, 11.


2. Isaías 27, 1; Jó 3, 12; 26, 13; Salmo 74, 14.
3. Jó 38, 10.
4. Salmo 89, 10.
5. Salmo 48, 1-3. Essa tradução é de Jonathan Z. Smith, “Earth and gods”, em Map is not territory: studies
in the history of religions (Leiden, 1978), p. 112. Muitos preferem traduzir tspn por “norte”, mas o monte Sião
se encontra no sul da Palestina, e não “no extremo norte”, como diz a Bíblia de Jerusalém.
6. Salmo 48, 12-4.
7. Salmo 46, 5-9.
8. Salmo 46, 1.
9. Salmo 99.
10. Salmo 47, 5-6.
11. Salmo 97, 2-6; Isaías 6, 4.
12. Salmos 47, 2; 99, 1-4.
13. Salmo 97, 9.
14. Salmo 84, 5-7.
15. Salmo 84, 3.
16. II Samuel 7, 10-2.
17. Salmo 84, 1-2.
18. Salmo 84, 11.
19. As datas de Ozias, como de vários outros reis, diferem no Deuteronomista e no Cronista. Este caso é
particularmente complicado, porque, quando Ozias adoeceu, seu filho Joatão assumiu a regência.
20. Isaías 6, 3.
21. Isaías 2, 2-3.
22. Isaías 11, 6-9.
23. Isaías 1, 11-2.
24. Isaías 1, 16-7.
25. Amós 5, 25-7.
26. Amós 1, 2.
27. Salmos 9, 10-3; 10. Ben C. Ollenburger, Zion, the city of the great king: a theological symbol of the
Jerusalem cult (Sheffield, 1987), pp. 58-69.
28. Isaías 7, 14-7.
29. II Crônicas 29, 30.
30. Miqueias 3, 12.
31. II Reis 19, 34.
32. II Crônicas 32, 21.
33. II Reis 21, 1-18; II Crônicas 33, 1-10.
34. I Reis 8, 27.
35. Deuteronômio 16, 13-5.
36. Esse ideal está contido na Shemá, a profissão de fé judaica: “Ouve, ó Israel, Javé é nosso elohim; apenas
Javé!” (Deuteronômio 6, 4).
37. Deuteronômio 12, 1-4. Harold H. Rowley, Worship in ancient Israel; its forms and meaning (Londres,
1967), pp. 106-7; E. Nielsen, Shechem (Londres, 1955), pp. 45, 85.
38. II Reis 22, 2; II Crônicas 34, 8-28.
39. II Reis 23, 10-4.
40. Jeremias 7, 3-7.
41. Os diferentes relatos discordam quanto ao número de deportados. Jeremias diz que só 3023 pessoas
seguiram para a Babilônia. Mas os exilados podem ter partido de Judá em três grupos.
42. II Macabeus 2, 4-5; B. Yoma 52B, Horayot 12A; J. Shekalim 6, 1.
43. Jeremias 29, 5-10.
44. Jeremias 3, 16.
45. Jeremias 32, 44.
5. EXÍLIO E RETORNO

1. Jeremias 4, 23-6.
2. Salmo 74, 3-7.
3. Salmo 137, 9.
4. Salmo 79, 4.
5. Jeremias 41, 4-6.
6. Lamentações 4, 5-10.
7. Lamentações 1, 8-9.
8. II Reis 25, 27-30.
9. Esdras 2.
10. Elias J. Bickermann, The Jews in the Greek age (Cambridge, Mass., e Londres, 1988), pp. 47-8.
11. Citado em Jonathan Z. Smith, “Earth and gods”, em Map is not territory: studies in the history of religions
(Leiden, 1978), p. 119.
12. Salmo 137, 4.
13. Bickermann, The Jews in the Greek age, pp. 241-2.
14. Ezequiel 1, 26-8.
15. Ezequiel 43, 1-6.
16. Ezequiel 36, 34-6.
17. Ezequiel 40, 2; 48, 35.
18. Ezequiel 47, 11-2.
19. Ezequiel 40, 48 a 41, 4.
20. Ezequiel 40, 17-9, 28-31.
21. Ezequiel 47, 13-23.
22. Ezequiel 48, 9-29.
23. Ezequiel 43, 10-1.
24. Mary Douglas, Purity and danger (Londres, 1966).
25. Levítico 19, 11-8.
26. Levítico 19, 33-4.
27. Ezequiel 44, 11-6.
28. Ezequiel 44, 16-31.
29. Jeremias 31, 31-4; Ezequiel 36, 26-7.
30. Isaías 40, 3-4; 41, 19-20; 44, 20.
31. Isaías 52, 10.
32. Isaías 46, 1.
33. Isaías 45, 14.
34. Isaías 54, 13-5.
35. Esdras 2, 64.
36. Ageu 2, 6-9.
37. Esdras 3, 12-3.
38. Ageu 2, 6-9, 21-4.
39. Zacarias 2, 9; 4, 14; 8, 3.
40. Esdras 4, 1-3.
41. Esdras 4, 4.
42. Isaías 66, 1.
43. Isaías 66, 2.
44. Isaías 65, 16-25.
45. Isaías 56, 9-12; 65, 1-10.
46. Isaías 56, 7.
47. Neemias 1, 3-2, 8.
48. Neemias, por exemplo, reprova todos os governantes anteriores de Jerusalém, e é impensável que
incluísse Esdras nessa crítica; ademais, quando Esdras chega, a cidade é populosa e próspera — situação que
só desfrutou depois da atuação de Neemias.
49. Neemias 2, 13.
50. Neemias 4, 17-8.
51. Neemias 11, 1.
52. Neemias 5.
53. Seth Kunin, “Judaism”, em Jean Holm e John Bowker (eds.), Sacred place (Londres 1994), pp. 121-2.
54. Esdras 7, 6.
55. Esdras 7, 14.
56. Esdras 7, 21-6; Bickerman, Jews in the Greek age, p. 154.
57. Neemias 8.
58. Esdras 10.
59. Isaías 63, 16-9.
6. ANTIOQUIA DA JUDEIA

1. Josefo, Antiguidades judaicas 11: 7.


2. Ibidem, 12, 175-85.
3. Eclesiástico 50, 5-12.
4. Eclesiástico 45, 21.
5. Eclesiástico 45, 7.
6. Eclesiástico 50, 1-4.
7. Eclesiástico 13, 20-7.
8. Eclesiástico, Introdução, v. 12.
9. Todos os termos que o Livro de Daniel utiliza para referir-se à “abominação” são distorções de Baal
[Senhor] e Shemesh [Sol].
10. Martin Hengel, Judaism and hellenism, studies in their encounter in Palestine during the early Hellenistic period
(2 vols., trad. John Bowden, Londres, 1974), 1, pp. 294-300; Elias J. Bickermann, From Ezra to the last of the
Maccabees (Nova York, 1962), pp. 286-9; The Jews in the Greek age (Cambridge, Mass., e Londres, 1988), pp.
294-6.
11. Corpus Hermeticum 16, 2, em A. J. Festugière, La révélation d’Hermès Trismégiste (4 vols., Paris, 1950-4),
1, p. 26.
12. Hai Gaon (939-1038), em Louis Jacobs (trad. e ed.), The Jewish mystics (Jerusalém, 1076, Londres, 1990),
p. 23.
13. I Henoc 4.
14. II Macabeus 5, 27.
15. I Macabeus 2, 44-8.
16. I Macabeus 4, 36-61.
17. I Macabeus 8, 17-32.
18. I Macabeus 10, 17-21.
19. I Macabeus 13, 49-53.
20. Josefo, Antiguidades judaicas 2: 190.
21. Historia de legis Divinae translatione, 5, em Extracts from Aristeas Hecataeus and Origen and other early
writers (trad. Aubrey Stewart, Londres, 1895, Nova York, 1971).
22. Ibidem, p. 3.
23. Ibidem, p. 4.
24. Josefo, A guerra judaica 1: 67-9.
25. Josefo, Antiguidades 13: 372.
26. Josefo, Antiguidades 13: 38; Guerra judaica 1: 97.
27. Josefo, Antiguidades 13: 401.
28. Josefo, A guerra judaica 1: 148.
29. Latinização de “Filístia”.
7. DESTRUIÇÃO

1. Josefo, A guerra judaica 5: 146.


2. Sukkot 51B.
3. Josefo, A guerra judaica 5: 210.
4. Josefo, Antiguidades judaicas 15: 396.
5. Josefo, Guerra judaica 5: 224-5.
6. B. Batria 3B.
7. Josefo, Guerra judaica 5: 211-7.
8. Fílon, As leis especiais 1: 66.
9. Fílon, Questões sobre o Êxodo 2: 95.
10. Josefo, Guerra judaica 5: 19.
11. Fílon, Leis especiais 1: 96-7.
12. E. P. Sanders, Judaism: practice and belief, 63 BCE to 66 CE (Londres e Filadélfia, 1992), p. 128.
13. Josefo, Antiguidades 4: 205; Fílon, Leis especiais 1: 70.
14. Raphael Patai, Man and temple in ancient Jewish myth and ritual (Londres, 1967), cap. 3.
15. As origens da sinagoga são obscuras e controvertidas. A sinagoga surgiu na Diáspora, mas não sabemos
quando. Era uma instituição religiosa única no mundo antigo, pois parecia mais uma escola de filosofia que
um santuário e abrigava mais estudo e oração que liturgia sacrifical. No século I a.C. havia muitas sinagogas
em Jerusalém, algumas fundadas por certas comunidades da Diáspora.
16. Ver, por exemplo, Avot 1, 12-3; Sifra 109B; B. Batria 9A, B; Avot de Rabba Nathan 7, 17A, B;
Tanhuma Noah 16A.
17. Sanders, Judaism: practice and belief, p. 441.
18. II QPS 22, traduzido em Geza Vermes, The Dead Sea Scrolls in English (Londres, 1987), p. 212.
19. Josefo, Guerra judaica 1: 650-2.
20. Josefo, Antiguidades 17: 206-18.
21. Ibidem, 8: 3.
22. Marcos 11, 15-8; cf. Isaías 56, 7; Jeremias 7, 11.
23. Marcos 13, 1-2.
24. Lucas 22, 28-30.
25. Atos 5, 34-40.
26. Atos 2, 44-7; Mateus 6, 25-34. Mateus aprovava os ideais dos judeus cristãos e é uma fonte para suas
posições; os judeus cristãos usavam uma versão de seu Evangelho.
27. Gálatas 2, 6.
28. Mateus 5, 17-42.
29. Atos 6, 1.
30. Atos 7, 1-49.
31. Atos 8, 1.
32. Atos 11, 26.
33. Romanos 7, 14-20; Gálatas 3, 10-22.
34. Jonathan Z. Smith, “The temple and the magician”, em Map is not territory: studies in the history of
religions (Leiden, 1978).
35. Filipenses 2, 5-11.
36. Mircea Eliade, Patterns in comparative religion, trad. Rosemary Sheed (Londres, 1958), pp. 26-8.
37. Gálatas 2, 10; Romanos 15, 25-7.
38. Atos 21, 26-40.
39. Efésios 2, 14-21.
40. Hebreus 12, 22-3.
41. Josefo, Antiguidades 18: 261-72.
42. Josefo, Guerra judaica 6: 98.
43. Dion Cássio, História, 66: 6.
44. Josefo, Guerra judaica 6: 98.
45. Lamentações Rabbah 1, 50.
8. AELIA CAPITOLINA

1. Benjamin Mazar, The mountain of the Lord (Nova York, 1975), p. 113.
2. Antoine Duprez, Jésus et les dieux guérisseurs à la propos de Jean V (Paris, 1970).
3. Citado em F. E. Peters, Jerusalem: the holy city in the eyes of chroniclers, visitors, pilgrims and prophets from
the days of Abraham to the beginnings of Modern times (Princeton, 1985), p. 125.
4. Eusébio, História eclesiástica 4: 5.
5. Orígenes registra essa lenda no Sermão em honra de Mateus, 12B.
6. II Baruc, 10.
7. Yalkut Cântico dos Cânticos 1, 2.
8. Avot do rabino Nathan 6.
9. Sifre sobre Levítico 19, 18.
10. Mekhilta sobre Êxodo 21, 73.
11. Sinédrio 4, 5.
12. Baba Metzia 58B.
13. M. Berakoth 4, 5.
14. Décima Quarta Bênção.
15. Yalkut sobre I Reis 8.
16. Pesikta do Rabino Kahana 103A.
17. II Baruc 4.
18. IV Henoc 7, 26.
19. IV Henoc 8, 5, 2-3.
20. Apocalipse 21, 10.
21. Apocalipse 22, 1-2.
22. Lucas 24, 52-3.
23. Atos dos Apóstolos 1, 8.
24. Mateus 24, 1-3.
25. João 1, 1-5, 14.
26. Ver João 8, 57-8, onde Jesus diz “ EU SOU” para identificar-se no Templo, durante a festa de Sucot; W.
D. Davies assinala que a expressão “EU SOU” [Ani Waho ] fazia parte da liturgia, durante Sucot, e poderia
designar a Shekhinah. The Gospel and the land: early Christianity and Jewish territorial doctrine (Berkeley, 1974),
pp. 294-5.
27. João 2, 19-21.
28. João 4, 20-4.
29. João 8, 57. Ver nota 26, acima. A saída de Jesus do Templo equivalia à partida da Shekhinah. Davies,
Gospel and the land, p. 295.
30. Dion Cássio, História 69: 12.
31. Ibidem.
32. Ver Virgílio, Eneida 5, 785-6.
33. Miqueias 3, 12.
34. John Wilkinson, porém, acredita que o arco é herodiano; ver “Jerusalem under Rome and Byzantium
63 BC to 637 AD”, em K. J. Asali, ed., Jerusalem in history (Nova York, 1990), p. 82.
35. J. Berakoth 1, 4A, linha 27; B. Keuboth 17A.
36. T. Avodah Zarah 1, 19.
37. Gênesis Rabbah a, 18.
38. T. B. Megillah 29A.
39. Mekhilta Visha 14.
40. T. B. Berakoth 6A; Números Rabbah 11, 2.
41. Números Rabbah 1, 3.
42. Cântico dos Cânticos Rabbah 8, 12.
43. M. Kelim 1, 6-9.
44. Pirqe do rabino Eliezer 31.
45. J. Berakoth 9, 3, 13D.
46. Michael Avi-Yonah, The Jews of Palestine: a political history from the Bar Kokhba War to the Arab conquest
(Oxford, 1976), pp. 80-1.
47. Robert L. Wilken, The land called Holy: Palestine in Christian history and thought (New Haven e Londres,
1992), p. 106.
48. Eusébio, História eclesiástica 4: 6.
49. Eusébio, Onomastikon 14: 19-25.
50. Melitão, “Sermão pascal”.
51. Eusébio, A prova do Evangelho 6: 18-23.
52. Melitão, “Sermão pascal”.
53. Irineu, Heresias 5: 35: 2; Justino, Diálogo com Trífon, o Judeu 80: 5; Orígenes, Primeiros princípios 4: 2: 1.
54. Orígenes, Contra Celso 3: 34, 7: 35.
55. Orígenes, Primeiros princípios 4: 2: 1.
56. Eusébio, Prova do Evangelho 1: 1: 2, 3: 2: 47, 7: 2: 1.
57. Atos de João 97.
58. Mateus 24, 3.
59. Orígenes, Primeiros princípios 4: 1: 3.
60. Eusébio, Prova do Evangelho 6: 18: 23.
61. Ibidem, 3: 2: 10.
9. A NOVA JERUSALÉM

1. Eusébio, História eclesiástica 9: 9.


2. Ibidem, 1: 4; Eusébio, Prova do Evangelho 1: 6: 42.
3. Eusébio, Prova do Evangelho 1: 6: 42.
4. Ibidem, 8: 3: 11-2.
5. Ibidem, 5, Prefácio 29.
6. Ibidem, 1: 6: 40.
7. Ibidem, 406 B-C.
8. Provérbios 8, 22.
9. Filipenses 2, 8-11.
10. Eusébio, Prova do Evangelho 6, Prefácio 1.
11. Ibidem, 5, Prefácio 2.
12. Eusébio, A vida de Constantino 3: 27.
13. Ibidem, 3: 28, 3: 30: 1.
14. Ibidem, 3: 36.
15. Ibidem, 3: 28.
16. Ibidem, 3: 26.
17. Eusébio, Teofania 3: 61.
18. Eusébio, Vida de Constantino 3: 28.
19. Eusébio, Sermão sobre o Salmo 87.
20. Eusébio, Vida de Constantino 4: 33.
21. Ibidem, 3: 53.
22. II Crônicas 24, 19-22.
23. Itinerary from Bordeaux to Jerusalem, trad. Aubrey Stewart (Londres, 1887; Nova York, 1971), p. 22.
24. Mateus 4, 5.
25. Itinerary, p. 23.
26. Ibidem, pp. 23-4.
27. Cirilo, Catequeses 3: 7, 17: 13.
28. Ibidem, 13: 30, 19: 22.
29. Ibidem, 14: 16.
30. Ibidem, 16: 26, 12: 16.
31. Ibidem, 13: 22.
32. João Crisóstomo, Contra os judeus 5: 11.
33. Michael Avi-Yonah, The Jews of Palestine: a political history from the Bar Kokhba War to the Arab conquest
(Oxford, 1976), pp. 160-73.
34. Ibidem, p. 176.
35. A. Hayman (ed.), Disputation of Sergius the Stylite against a Jew (Louvain, 1973), p. 67.
10. A CIDADE SANTA DOS CRISTÃOS

1. João Crisóstomo, Contra os judeus 5: 11.


2. Citado em Yohan (Hans) Lewy, “Julian the Apostate and the building of the Temple”, em L. I. Levine
(ed.), The Jerusalem Cathedra: studies in the history, geography and ethnography of the Land of Israel, 3 vols.
(Jerusalém, 1921-83), 3, p. 86. Outro relato importante desse estranho episódio está em Michael Avi-Yonah,
The Jews of Palestine: a political history from the Bar Kokhba War to the Arab conquest (Oxford, 1976), pp. 185-
204.
3. Rufino, História eclesiástica 10: 38.
4. No Talmude praticamente não há referências ao plano de Juliano.
5. Amiano Marcelino, Rerus gestarum 28: 1-2.
6. Lamentações Rabbah 1, 17-9A.
7. Comentário sobre Sofonias 1, 15.
8. Comentário sobre Jeremias 31, 38-40.
9. Jerônimo, Epístola 46: 10, 108: 33.
10. Jerônimo, Epístola 54: 12: 5.
11. Jerônimo, Epístola 58: 4: 4.
12. Sobre a peregrinação de Egéria, ver The pilgrimage of St. Silvia of Aquitania to the holy places, trad. e ed.
John H. Bernard (Londres, 1891; Nova York, 1971), pp. 11-77.
13. Ibidem, p. 62.
14. Jerônimo, Epístola 108: 6.
15. Paulino de Nola, Epístola 49: 402.
16. Gregório de Nissa, Encômio a são Teodoro.
17. Gregório de Nissa, Epístola 3: 4.
18. Jerônimo, Contra Vigilantius 5.
19. Avi-Yonah, Jews of Palestine, pp. 225-9.
20. Epístola de Luciano 8.
21. Peter Brown, The cult of the saints: its rise and function in classical Antiquity (Londres, 1981), pp. 81-2.
22. Região ao norte da Armênia.
23. Cirilo de Citópolis, Vidas de monges 24-5.
24. Vida de Sabas 90: 5-10.
25. F. Nau, “Deux épisodes de l’histoire juive sous Theodose II (423 et 438) d’après la vie de Barsauma le
Syrien”, Revue des Études Juives, 83 (1927).
26. Acredita-se que as “muralhas” fossem, na verdade, as igrejas de Eudóxia, devendo-se a confusão — se é
que ela existe — a uma citação usada para enaltecer a imperatriz: “Em tua boa vontade [grego: eudokia] se
construam os muros de Jerusalém” (Salmo 50, 20).
27. Michael Avi-Yonah, The Madaba Mosaic map with introduction and commentary (Jerusalém, 1954).
28. Cirilo de Jerusalém, Discurso sobre a Theotokos.
29. Robert L. Wilken, The land called Holy: Palestine in Christian history and thought (New Haven e Londres,
1992), pp. 168-9.
30. Antonino Mártir, On the holy places visited, trad. Aubrey Stewart, ed. C. W. Wilson (Londres, 1896), p.
23.
31. Teodósio, On the topography of the Holy Land, trad. J. H. Bernard (Londres, 1893), p. 45.
32. Antonino, On the holy places, pp. 24-7.
33. Cyril Mango, The art of the Bizantine Empire, 312-1453: sources and documents (Englewood Cliffs, NJ,
1972), p. 173.
34. The breviary or short description of Jerusalem c. 530, trad. Aubrey Stewart, com notas de C. W. Wilson
(Londres, 1890), pp. 14-5; Teodósio, Topography, p. 40; Antonino, On the holy places, p. 19.
35. Strategos, Conquista de Jerusalém, 14: 14-6.
36. Livro de Zorobabel 11, 67-71; Mishna Geula 78: 1: 69.
37. Anacreônticos, Canto 20, PPTS, vol. 11, p. 30.
11. BAYT AL-MAQDIS
1. Alcorão 3, 65-8. Todas as citações foram extraídas da tradução de Muh . ammad Asad, The message of the
Qu’ran (Gibraltar, 1980).
2. Alcorão 29, 46. A tradução mais comum de ahl al-kitab é “o Povo do Livro”. Asad, porém, observa que
a tradução mais exata é “povo de uma revelação anterior”.
3. Ver, por exemplo, Alcorão 2, 129-32; 35, 22; 61, 6.
4. Alcorão 2, 30-7.
5. Alcorão 2, 125. Ver também o verbete “Kaabah” na Encyclopaedia islamica, 2a ed.
6. Alcorão 6, 159, 161-3.
7. Alcorão 17, 1.
8. Clinton Bennet, “Islam”, em Jean Holm e John Bowker (eds.), Sacred place (Londres, 1994), pp. 88-9.
9. Não há certeza sobre a data precisa da conquista.
10. Eutiques, Anais 16-7.
11. Citado em Guy Le Strange, Palestine under the Moslems: a description of Syria and the Holy Land from AD
650 to 1500 (Londres, 1890), p. 141.
12. Muthir al-Ghiram, 5; Shams ad-Din Suyuti; al-Wal īd ibn Muslim. Tradições citadas em Le Strange,
Palestine under the Moslems, pp. 139-43.
13. Hisham al-Ammor. Tradição citada em Le Strange, Palestine under the Moslems, p. 142.
14. Adamnan, The pilgrimage of Arculfus in the Holy Land, trad. e ed. James Rose Macpherson (Londres,
1895; Nova York, 1971), pp. 4-5.
15. Tabari, Ta’rikh ar-Rusul wa’l-Muluk 1: 2405.
16. Moshe Gil, A history of Palestine, 634-1099, trad. Ethel Broido (Cambridge, 1992), pp. 143-8.
17. História 3: 226, citado em Joshua Prawer, The Latin Kingdom of Jerusalem, European colonialism in the
Middle Ages (Londres, 1972), p. 216.
18. Robert L. Wilken, The land called Holy: Palestine in Christian history and thought (New Haven e Londres,
1992), pp. 241-9.
19. Os gregos chamaram os árabes peninsulares de “Sarakenoi” (Saraceni, em latim); antes eram chamados
de “árabes cenitas”, os árabes que moravam em tendas (do grego skene, “tenda”).
20. Possivelmente o uso da expressão al-haram al-sharif [o Nobre Santuário] para designar todo o local só
se generalizou no período otomano. Até então a área sagrada era chamada al masjid al-Aqsa-[a Mesquita
Distante]. Para evitar confusão com a mesquita desse nome, utilizei o termo Haram, empregado atualmente.
21. Gil, History of Palestine, pp. 70-2, 636-8.
22. Ibidem, p. 72.
23. F. E. Peters, Jerusalem: the Holy City in the eyes of chroniclers, visitors, pilgrims and prophets from the days of
Abraham to the beginnings of Modern Times (Princeton, 1985), p. 192.
24. “Book of commandments”, em Gil, History of Palestine, p. 71.
25. Isaac Hasson, “Muslim literature in praise of Jerusalem”, em L. I. Levine (ed.), The Jerusalem Cathedra:
studies in the history, geography and ethnography of the Land of Israel, 3 vols. (Jerusalém, 1921-83), 1, p. 170.
26. Muqaddasi, Description of Syria, including Palestine, trad. e ed. Guy Le Strange (Londres, 1896; Nova
York, 1971), pp. 22-3.
27. Adamnan, Pilgrimage of Arculfus, p. 24.
28. Gil, History of Palestine, p. 92.
29. Benjamin Mazar, The mountain of the Lord (Nova York, 1975), p. 98.
30. F. E. Peters, “Who built the Dome of the Rock?”, Graeco-Arabica, 2 (1983); Meir Ben Dov, The
Western Wall (Jerusalém, 1983), p. 57.
31. Alcorão 4, 171; a inscrição inclui também 4, 172; 19, 34-7.
32. Oleg Grabar, “The Umayyad Dome of the Rock in Jerusalem”, Ars Orientalis, 3, 33 (1959); The
formation of Islamic art (New Haven e Londres, 1973), pp. 49-74.
33. Bernard Lewis, “An apocalyptic vision of Islamic history”, Bulletin of the School of Oriental and African
Studies, 13 (1950). O califa mencionado nesse texto é Mu’awiya, que pode ter concebido originalmente a
Cúpula do Rochedo.
34. História 2, 311.
35. Bennet, “Islam”, pp. 106-7.
36. Meir Kister, “A comment on the antiquity of traditions praising Jerusalem”, em Levine, Jerusalem
Cathedra, 1, 185-6.
37. F. E. Peters, The distant shrine: the Islamic centuries in Jerusalem (Nova York, 1993), p. 60.
38. Mujir ad-Din, Histoire de Jérusalem et d’Hébron, fragments of the chronicle of Mujir ad-Din, trad. e ed.
Henry Sauvaire (Paris, 1876), p. 57.
12. AL-QUDS

1. Muqaddasi, Description of Syria, including Palestine, trad. e ed. Guy Le Strange (Londres, 1896; Nova
York, 1971), p. 41.
2. Alcorão 17, 1.
3. Textos do início do século X mencionam esses pequenos santuários como locais santos estabelecidos.
Não podemos ter absoluta certeza de sua localização no Haram, que talvez não correspondesse à dos
santuários homônimos atuais. Com a quebra da continuidade, na época das Cruzadas, as localizações podem
ter mudado.
4. Alcorão 3, 35-8.
5. Alcorão 57, 13.
6. Notker, De Carolo Magno, em Einard e Notker o Gago, Two lives of Charlemagne, trad. e ed. Lewis
Thorpe (Londres, 1969), p. 148.
7. Guilherme, arcebispo de Tiro, A history of deeds done beyond the sea, 2 vols., trad. E. A. Babcock e A. C.
Krey (Nova York, 1943), 1, p. 65.
8. F. E. Peters, Jerusalem: the Holy City in the eyes of chroniclers, visitors, pilgrims and prophets from the days of
Abraham to the beginnings of Modern Times (Princeton, 1985), p. 261.
9. Mujir ad-Din, Histoire de Jérusalem et d’Hébron, fragments of the chronicle of Mujir ad-Din, trad. e ed.
Henry Sauvaire (Paris, 1876), p. 689.
10. Moshe Gil, A history of Palestine, 634-1099, trad. Ethel Broido (Cambridge, 1992), p. 618.
11. Ibidem, p. 325.
12. Ibidem, p. 326.
13. Muqaddasi, Description of Syria, p. 37.
14. Ibidem.
15. Ibidem, pp. 67-8.
16. Ibn al-Qalanisi, Continuation of the chronicle of Damascus: the Damascus chronicle of the Crusades, ed. e trad.
H. A. R. Gibb (Londres, 1932), p. 66.
17. Ibidem.
18. Charles Coüasnon, O. P., The church of the Holy Sepulchre in Jerusalem (Londres, 1974), p. 19.
19. Gil, History of Palestine, p. 167.
20. Muqaddasi, Description of Syria, p. 36.
21. Gil, History of Palestine, p. 151.
22. Isaac Hasson, “Muslim literature in praise of Jerusalem”, em L. I. Levine (ed.), The Jerusalem Cathedra:
studies in the history, geography and ethnography of the Land of Israel, 3 vols. (Jerusalém, 1921-83), 1, p. 182.
23. Guy Le Strange, Palestine under the Moslems: a description of Syria and the Holy Land from AD 650 to
1500 (Londres, 1890), pp. 164-5.
24. Guilherme de Tiro, History, 1: 406-8.
25. Glaber, History 3, 1.
26. Apocalipse 20, 1-3.
27. Glaber, History 4, 6.
28. Gil, History of Palestine, p. 400.
29. Ibidem, p. 627.
30. Rihla 66-7, citado em Mustafa A. Hiyari, “Crusader Jerusalem, 1099-1187 AD”, em K. J. Asali (ed.),
Jerusalem in history (Nova York, 1990), p. 131.
13. AS CRUZADAS

1. Alexíada 10: 5, 7.
2. The deeds of the Franks and the other pilgrims to Jerusalem, trad. R. Hill (Londres, 1962), p. 91.
3. Fulcher de Chartres, History of the expedition to Jerusalem, 1095-1127, trad. F. R. Ryan, 3 vols. (Knoxville,
1969), 1, p. 19.
4. August C. Krey, The first Crusade: the accounts of eye witnesses and participants (Princeton e Londres, 1921),
p. 266.
5. Ibidem.
6. Robert, o Monge, citado em Jonathan Riley-Smith, The first Crusade and the idea of crusading (Londres,
1987), p. 143.
7. Baldrick de Bourgueil, em ibidem.
8. Ibidem, p. 140.
9. Krey, First Crusade, p. 38.
10. Guilherme, arcebispo de Tiro, A history of deeds done beyond the sea, 2 vols., trad. E. A. Babcock e A. C.
Krey (Nova York, 1943), 1, p. 368.
11. Fulcher de Chartres, History, 1, 33.
12. F. E. Peters, Jerusalem: the Holy City in the eyes of chroniclers, visitors, pilgrims and prophets from the days of
Abraham to the beginnings of Modern Times (Princeton, 1985), p. 292.
13. Guilherme de Tiro, History, 1: 507.
14. Joshua Prawer, “The settlement of the Latins in Jerusalem”, Speculum, 27 (1952).
15. Joshua Prawer, The Latin Kingdom of Jerusalem, European colonialism in the Middle Ages (Londres, 1972), p.
214.
16. Daimbert foi deposto em 1102, acusado de peculato e simonia.
17. Sobre as ordens militares, ver Prawer, Latin Kingdom, pp. 253-70; Jonathan Riley-Smith, The knights of
St. John in Jerusalem and Cyprus, 1050-1310 (Londres, 1967).
18. Jonathan Riley-Smith, “Crusading as an act of love”, History, 65 (1980).
19. Sylvia Schein, “Between mount Moriah and the Holy Sepulchre: the changing traditions of the Temple
Mount in the Central Middle Ages”, Traditio, 40 (1984).
20. Fulcher de Chartres, History, 3, 307.
21. Teodorico, Description of the holy places, trad. e ed. Aubrey Stewart (Londres, 1896; Nova York, 1971), p.
44.
22. A capela recebeu esse nome porque, depois da Ressurreição, Jesus disse às mulheres que encontraria
seus discípulos na Galileia (Mateus 28, 7).
23. F. E. Peters, Jerusalem, p. 330.
24. Kita-b al I’tibir, em Francesco Gabrieli, trad. e ed., Arab historians of the Crusades, trad. do italiano por
E. J. Costello (Londres, 1969), p. 80.
25. Alcorão 22, 40-2.
26. Guilherme de Tiro, History, 2: 240-1.
27. Ibn al-Athir, Ka-mil at-Tawarikh, em Amin Maalouf, The Crusades through Arab eyes, trad. Jon Rothschild
(Londres, 1973), p. 198.
28. Imad ad-Din al-Isfahani, al Fath al-qussi fi l’Fath al-qudsi, ibidem, p. 200.

14. JIHĀD

1. Imad ad-Din al-Isfahani, al Fath al-qussi f l’Fath al-qudsi, em Francesco Gabrieli, trad. e ed., Arab
historians of the Crusades, trad. do italiano por E. J. Costello (Londres, 1969), p. 182.
2. M. Schwab, “Al-Harizi et ses pérégrinations en Terre Sainte (vers 1217)”, em Archives de l’Orient Latin,
ed. Ernest Leroux, 2 vols. (Paris, 1881, 1884), 2, p. 239.
3. Ibn Wasil, Mufarrij al-Kurub fi akhbar Bani Ayyub, em Gabrieli, Arab historians of the Crusades, p. 271.
4. Frederico era casado com Iolanda, herdeira do trono do Reino de Acre, e, assim, podia ser coroado em
Jerusalém.
5. Al-Maqrizi, History, 272, em Donald P. Little, “Jerusalem under the Ayyubids and the Mamluks, 1187-
1516”, em K. J. Asali (ed.), Jerusalem in history (Nova York, 1990), p. 185.
6. F. Kobler (ed.), Letters of Jews through the ages from biblical times to the middle of the Eighteenth century, 2
vols. (Nova York, 1978), 2, p. 227.
7. Joshua Prawer, The Latin Kingdom of Jerusalem, European colonialism in the Middle Ages (Londres, 1972),
pp. 247-8.
8. Eliezer Schweid, The land of Israel: national home or land of destiny, trad. Deborah Greniman (Londres e
Toronto, 1985), pp. 71-81.
9. Michael Hamilton Burgoyne e D. S. Richards, Mamluk Jerusalem: an architectural survey (Londres, 1987).
10. E. Sivan, L’Islam et la Croisade: idéologie et propagande dans les réactions musulmans aux Croisades (Paris,
1968), p. 118. Essas ahadith provavelmente são posteriores a 1244.
11. P. Durrien, “Procès-verbal du martyre de quatre frères Mineures en 1391”, em Archives de l’Orient
Latin, 1 (1910).
12. Sobre outros ataques suicidas contra o mundo muçulmano na Espanha e no Norte da África, ver
Benjamin K. Kedar, Crusade and mission: European approaches towards the Muslims (Princeton, 1984), pp. 125-6.
13. Felix Fabri, The Book of the Wanderings of brother Felix Fabri , trad. e ed. Aubrey Stewart (Londres,
1887-97; Nova York, 1971), pp. 304-5.
14. Ibidem, p. 224.
15. Ibidem, p. 283.
16. Ibidem, p. 299.
17. Ibidem, pp. 304, 408-16.
18. Ibidem, pp. 384-91.
19. E. N. Adler, Jewish travellers: a treasury of travelogues from nine centuries (Nova York, 1966), p. 240.

15. A CIDADE OTOMANA

1. F. E. Peters, Jerusalem: the Holy City in the eyes of chroniclers, visitors, pilgrims and prophets from the days of
Abraham to the beginnings of Modern Times (Princeton, 1985), p. 484.
2. Amnon Cohen, Jewish life under Islam: Jerusalem in the Sixteenth century (Cambridge, Mass., e Londres,
1984), pp. 119, 123-5.
3. K. Wilhelm, Roads to Zion: four centuries of travellers’ reports (Nova York, 1946), pp. 50-1.
4. E. N. Adler, Jewish travellers: a treasury of travelogues from nine centuries (Nova York, 1966), p. 21.
5. Sobre a criação do Muro Ocidental no século XVI: F. E. Peters, Jerusalem and Mecca: the typology of the
Holy City in the Near East (Nova York e Londres, 1986), pp. 126-31; Meir Ben Dov, The Western Wall
(Jerusalém, 1983), pp. 33-6, 60.
6. Ben Dov, Western Wall, p. 108.
7. Cântico dos Cânticos Rabbah 2, 9.
8. Ben Dov, Western Wall, p. 69.
9. Ibidem.
10. Cohen, Jewish life under Islam, pp. 75-85.
11. F. E. Peters, The distant shrine: the Islamic centuries in Jerusalem (Nova York, 1993), p. 223.
12. Peters, Jerusalem, p. 483.
13. Siyahatnemesi 13, 253.
14. Ibidem, 8, 156.
15. Gershom Scholem, On the Kabbalah and its symbolism (Nova York, 1965), p. 144.
16. Ibidem, p. 149.
17. Ibidem, pp. 149-50.
18. Gershom Scholem, Sabbetai Sevi (Princeton, 1931).
19. Paraíso perdido 3, 476-7.
20. John Sanderson, The travels of John Sanderson in the Levant, ed. W. Forster (Londres, 1931), p. 107.
21. Henry Maundrell, A journey from Aleppo to Jerusalem in 1697, introd. de David Howell (Beirute, 1963),
pp. 127-30.
22. Ibidem, p. 94.
23. Ibidem.
24. Amnon Cohen, Palestine in the Eighteenth century: patterns of government and administration (Jerusalém,
1973), p. 169.
25. Peters, Jerusalem, pp. 532-4.
26. C.-F. Volney, Travels through Syria and Egypt in the years 1783, 1784 and 1785, 2 vols. (Londres, 1787),
2, pp. 302-3.
27. Ibidem, p. 305.
28. Thomas Chaplin, M. D., “The fevers of Jerusalem”, Lancet, 2 (1864).
29. K. J. Asali, “Jerusalem under the Ottomans”, em Asali (ed.), Jerusalem in history (Nova York, 1990), p.
219.
16. REVIVESCÊNCIA

1. W. H. Dixon, The Holy Land (Londres, 1865), pp. 238-40.


2. Y. Ben-Arieh, “The growth of Jerusalem in the Nineteenth century”, Annals of the Association of American
Geographers, 65 (1975), p. 262. As fontes otomanas apresentam cifras muito diferentes. Sobretudo o número de
judeus é bem menor. Em parte porque no século XIX só uma pequena proporção de judeus residentes em
Jerusalém era de cidadãos otomanos.
3. Martin Gilbert, Jerusalem, rebirth of a city (Londres, 1985), p. 65.
4. Neil Asher Silberman, Digging for God and country: exploration, archeology and the secret struggle for the Holy
Land 1799-1917 (Nova York, 1982), p. 42.
5. Gilbert, Jerusalem, pp. 166-7, 182.
6. Alexander Scholch, Palestine in transformation 1856-1882: studies in social, economic and political development,
trad. William C. Young e Michael C. Gerrity (Washington, D. C., 1986), pp. 241-52.
7. Ibidem, p. 60.
8. Albert M. Hyamson, British projects for the restoration of the Jews (Leeds, 1917), pp. 22-36.
9. Silberman, Digging for God and country, p. 86.
10. Ibidem, pp. 155-8.
11. Ibidem, p. 185.
12. Arthur Hertzberg, The Zionist idea (Nova York, 1969), p. 106.
13. Heinrich Graetz, The structure of Jewish history, trad. Ismar Schorsch (Nova York, 1975), p. 95.
14. Ibidem, p. 71.
15. Conor Cruise O’Brien, The siege: the saga of Israel and Zionism (Londres, 1986), p. 78.
16. Theodor Herzl, The complete diaries of Theodor Herzl, R. Patai (ed.), 2 vols. (Londres e Nova York,
1960), p. 745.
17. Ibidem, p. 793.
18. Meir Ben Dov, The Western Wall (Jerusalém, 1983), p. 73.
19. Ibidem.
20. Amos Elon, The Israelis: founders and sons (Londres e Tel Aviv, 1981), p. 134.
21. Gilbert, Jerusalem, p. 214.
22. Elon, The Israelis, pp. 77-8.
23. Ibidem, p. 155.
24. Ibidem, p. 156.
17. ISRAEL

1. Christopher Sykes, Crossroads to Israel (Londres, 1965), p. 15.


2. Ibidem, pp. 16-7.
3. H. Eugene Bovis, The Jerusalem question 1916-1968 (Stanford, 1971), p. 7.
4. E. Sivan, Modern Arab historiography of the Crusades (Tel Aviv, 1973).
5. Sykes, Crossroads to Israel, p. 71.
6. B. S. Vester, Our Jerusalem: an American family in the Holy City (Garden City, NY, 1950), p. 318.
7. Sobre A. D. Gordon, ver Eliezer Schweid, The land of Israel: national home or land of destiny, trad.
Deborah Greniman (Londres e Toronto, 1985), pp. 142-5, 156-70; Shlomo Avineri, The making of modern
Zionism: the intellectual origins of the Jewish State (Londres, 1981), pp. 152-4.
8. Arthur Hertzberg, The Zionist idea (Nova York, 1969), p. 377.
9. Ibidem, p. 423.
10. Schweid, Land of Israel, pp. 181-2.
11. Bovis, Jerusalem question, p. 24.
12. Michael Palumbo, The Palestinian catastrophe: the 1948 expulsion of a people from their homeland (Londres,
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13. Joel L. Kraemer (ed.), Jerusalem: problems and perspectives (Nova York, 1980), pp. 88-94; Meron
Benvenisti, Jerusalem: the torn city (Jerusalém, 1975), pp. 22-60; Michael C. Hudson, “The transformation of
Jerusalem, 1917-1987”, em K. J. Asali, Jerusalem in history (Nova York, 1990), pp. 263-7.
14. Benvenisti, Jerusalem, pp. 11-2.
15. Ibidem, cap. 3; Teddy Kollek, For Jerusalem: a life, com Amos Kollek (Londres, 1978), p. 182.
16. Kollek, For Jerusalem, p. 182.
17. Amos Oz, My Michael, trad. Nicholas de Lange (Londres, 1984), pp. 85-8.
18. Ibidem, p. 87.
19. Ibidem, p. 210.
20. Ibidem, p. 87.
21. Benvenisti, Jerusalem, pp. 50-2, 36-7.
22. Ibidem, pp. 39-40.
23. Kollek, For Jerusalem, p. 183.
24. Raphael Mergui e Philippe Simonnot, Israel’s Ayatollahs: Meir Kahane and the Far Right in Israel
(Londres, 1987), p. 125.
18. SIÃO?

1. Meir Ben Dov, The Western Wall (Jerusalém, 1983), p. 146.


2. Ibidem, p. 148.
3. Ibidem.
4. Ehud Sprinzak, The ascendance of Israel’s radical right (Oxford e Nova York, 1991), p. 44.
5. Ibidem, p. 262.
6. Ibidem, p. 46.
7. Ibidem, p. 44.
8. Meron Benvenisti, Jerusalem: the torn city (Jerusalém, 1975), p. 84.
9. Ibidem, p. 119.
10. Ibidem, p. 81.
11. Ibidem, pp. 86-8.
12. Ibidem, pp. 104-5.
13. Ibidem, p. 115.
14. David Hirst, The gun and olive branch (Londres, 1977), p. 237.
15. Amos Elon, The Israelis: founders and sons (Londres e Tel Aviv, 1981), p. 281.
16. Ibidem, p. 282.
17. Ibidem, p. 286.
18. Sprinzak, Israel’s radical right, pp. 280-1.
19. Benvenisti, Jerusalem, pp. 288-9.
20. Ibidem, pp. 306-7.
21. Ibidem, pp. 308-15.
22. Ibidem, pp. 239-55; Michael Romann e Alex Weingrod, Living together separately: Arabs and Jews in
contemporary Jerusalem (Princeton, 1991), pp. 32-61.
23. Paul Golberger, “Whose Jerusalem is it?”, The New York Times, 10 de setembro de 1995.
24. Romann e Weingrod, Living together separately, p. 56.
25. Benvenisti, Jerusalem, pp. 253-4.
26. Sprinzak, Israel’s radical right, pp. 47, 60-99; Gideon Aron, “Jewish Zionist Fundamentalism”, em Martin
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28. Sobre o entusiasmo pelo Terceiro Templo, ver Sprinzak, Israel’s radical right, pp. 94-9, 253-71, 279-88.
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33. Ibidem.
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RELAÇÃO DE MAPAS E PLANTAS

1 O antigo Oriente Próximo.


2 A Jerusalém antiga.
3 O país de Canaã.
4 O reino de Saul.
5 A Jerusalém de Davi e Salomão .
6 O reino de Davi.
7 Planta hipotética do Templo de Salomão.
8 Os reinos de Israel e Judá.
9 Jerusalém na época do Primeiro Templo, 1000-586 a.C.
10 Jerusalém e Judá depois de 722 a.C.
11 Jerusalém e a província de Yehud no período persa.
12 Jerusalém na época de Neemias.
13 O reino dos Asmoneus.
14 Jerusalém sob os Asmoneus.
15 A Jerusalém de Herodes, 4 a.C.-70 d.C.
16 Os arredores do Templo de Herodes segundo E. P. Sanders.
17 Os pátios internos e o santuário segundo E. P. Sanders.
18 A Palestina romana.
19 Aelia Capitolina, 135-326.
20 A Anástasis, reconstituição da planta do século IV.
21 A Jerusalém bizantina, 326-638.
22 A Jerusalém muçulmana, 638-1099.
23 O nobre santuário (Al-H. aram Al-Sharif).
24 A Anástasis restaurada, reconstruída pelo imperador Constantino IX, 1048.
25 A Jerusalém dos cruzados, 1099-1187.
26 A igreja do Santo Sepulcro, construída pelos cruzados em 1149.
27 A islamização de Jerusalém sob os Aiúbidas, 1187-1250.
28 A Jerusalém dos mamelucos, 1250-1517.
29 O H. aram sob os mamelucos.
30 A Jerusalém otomana, 1517-1917.
31 Comunidades fora das muralhas no século XIX.
32 Áreas de povoamento, 1947.
33 Os limites da cidade, 1948-67.
34 As fronteiras do Estado de Israel, 1949-67.
35 Jerusalém dividida, 1948-67.
36 Fronteiras, 1967.
37 Fronteiras municipais de Jerusalém, definidas por Israel, 1967.
38 Construções além da linha do armistício posteriores a 1967.
KAREN ARMSTRONG nasceu em 1945 e foi durante sete anos freira católica. Após romper seus votos em
1969, formou-se pela Universidade de Oxford e passou a ensinar literatura moderna. Atualmente leciona no
Leo Baeck College for the Study of Judaism, e é membro honorário da Associação Muçulmana de Ciências
Sociais. É autora, entre outras obras, de Em nome de Deus, Maomé, Uma história de Deus, A escada espiral,
Breve história do mito e A grande transformação — todos publicados pela Companhia das Letras.
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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Título original
Jerusalem – One city, three faiths
Capa
Jeff Fisher

Revisão de termos árabes


Aida Hanania

Preparação
Alberto R. Souza

Revisão
Adriana Moretto de Oliveira
Juliane Kaori

Atualização ortográfica
Verba Editorial

ISBN 978-85-438-0040-0

Todos os direitos desta edição reservados à


EDITORA SCHWARCZ LTDA.
Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32
04532-002 — São Paulo — SP
Telefone: (11) 3707-3500
Fax: (11) 3707-3501
www.companhiadasletras.com.br

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