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Capitulo I
O trágico
1. O conceito de genealogia 3
2. O sentido 4
3. Filosofia da Vontade 4
4. Contra a dialética 5
5. O problema da tragédia 6
6. A evolução de Nietzsche 7
7. Dionísio e Cristo 8
8. A essência do Trágico 8
9. O problema da existência 9
10. Existência e inocência 9
11. O lance de dados 11
12. Conseqüências para o eterno retorno 11
13. Simbolismo de Nietzsche 12
14. Nietzsche e Mallarmé 13
15. O pensamento trágico 13
16. A pedra-de-toque 14
Capítulo II
Ativo e reativo
1. O corpo 14
2. A distinção das forças 15
3. Quantidade e qualidade 16
4. Nietzsche e a ciência 17
5. Primeiro aspecto do eterno retorno: 18
como doutrina cosmológica e física
6. O que é a vontade de poder? 19
7. A terminologia de Nietzsche 20
8. Origem e imagem invertida 21
9. Problema da medida das forças 22
10. A hierarquia 22
11. Vontade de poder e sentimento de poder 23
12. O devir-reativo das forças 23
13. Ambivalência do sentido e dos valores 23
14. O segundo aspecto do eterno retorno: 24
como pensamento ético e seletivo
15. O problema do eterno retorno 25
Capítulo III
A crítica
Capítulo IV
Do ressentimento à má-consciência
1. Reação e ressentimento 36
2. Princípio do ressentimento 36
3. Tipologia do ressentimento 38
4. Características do ressentimento 38
5. É bom? É mau? 39
6. O paralogismo 40
7. Desenvolvimento do ressentimento: o sacerdote judaico 41
8. Má consciência e interioridade 42
9. O problema da dor 42
10. Desenvolvimento da má consciência: o sacerdote cristão 43
11. A cultura encarada do ponto de vista pré-histórico 44
12. A cultura encarada do ponto de vista pós-histórico 45
13. A cultura encarada sob o ponto de vista histórico 46
14. Má consciência, responsabilidade, culpabilidade___________ 46
15. O ideal ascético e a essência da religião_ 47
16. Triunfo das forças reativas 48
Capítulo V
O super-homem: contra a dialética
1. O niilismo 48
2. Analise da piedade 49
3. Deus morreu 50
4. Contra o hegelianismo 51
5. As transformações da dialética 52
6. Nietzsche e a dialética 52
7. Teoria do homem superior 53
8. Será o homem essencialmente “reativo”? 53
9. Niilismo e transmutação: o ponto focal 54
10. A afirmação e a negação 55
11. O sentido da afirmação 56
12. A dupla afirmação: Ariadne 58
13. Dionísio e Zaratustra 58
Conclusão 59
CAPÍTULO I
O TRÁGICO (051)
1. O CONCEITO DE GENEALOGIA
01. O projeto mais geral de NIETZSCHE é introduzir na filosofia os conceitos de sentido
e valor, fazendo com isso da filosofia uma crítica. Modernamente, a teoria dos valores
engendrou um novo conformismo e novas submissões. Para NIETZSCHE, entretanto, a filosofia
dos valores é a única maneira de realizar a crítica total. A noção de valor implica uma inversão
crítica: por um lado, as avaliações supõe valores anteriores; por outro lado e mais
profundamente, são os valores que supõe avaliações, donde deriva seu próprio valor. O
problema crítico é esse: o valor dos valores, e portanto o problema da sua criação. A avaliação,
elemento diferencial, é simultaneamente crítica e criadora. As avaliações não são valores, mas
maneiras de ser que servem de princípio aos valores em relação aos quais julgam. Eis o
essencial: o elevado e o baixo, o nobre e o vil não são valores, mas representam o elemento
diferencial donde deriva o próprio valor dos valores.
02. A filosofia crítica tem dois movimentos inseparáveis: referir as coisas à valores e
referir esses valores a algo que seja como a sua origem e decida sobre o seu valor. NIETZSCHE
coloca-se portanto tanto contra os que subtraem os valores à crítica (ou fazem a crítica em nome
de valores estabelecidos e ‘intocáveis’) quanto contra os que fazem a crítica derivar de pretensos
fatos objetivos (utilitaristas), ambos nadando no elemento indiferente do que vale em si ou do
que vale para todos. NIETZSCHE insurge-se contra a elevada idéia de fundamento que deixa os
valores indiferentes à sua origem e contra a idéia de uma simples derivação causal, indiferente,
dos valores a partir de sua origem. Daí o conceito novo de genealogia, que aposta no sentimento
de diferença ou distância, diferentemente do princípio da universalidade kantiana (ou do útil).
03. Genealogia quer dizer simultaneamente valor de origem e origem dos valores. Sua
crítica é ao mesmo tempo o elemento positivo de uma criação. Por isso a crítica não é
REAÇÃO, mas AÇÃO; a crítica opõe-se à vingança, ao ressentimento. É a expressão ativa de
um modo de existência ativo, a maldade que pertence à perfeição. Essa maneira de ser é a do
filósofo. Dessa genealogia NIETZSCHE espera muitas coisas: uma nova organização das
ciências, da filosofia, dos valores.
1
Numeração original. O numero no inicio do parágrafo corresponde a paragrafação do original.
2. O SENTIDO (08)
01. Encontrar o sentido de algo é conhecer a força que desse algo se apropria, ou explora,
ou exprime-se nele. Um fenômeno é um sintoma que encontra seu sentido numa força atual, não
uma aparência ou aparição. Daí a filosofia ser uma sintomatologia e uma semiologia. Á
dualidade aparência-essência e também à relação causa-efeito NIETZSCHE substitui a
correlação do fenômeno e do sentido. Qualquer força é apropriação de uma quantidade de
realidade (mesmo a percepção). Por isso a história de algo é a sucessão das forças que dela se
apoderaram, e a coexistência das forças que lutam para dela se apoderar. O sentido é, portanto,
uma noção complexa. Existe sempre uma pluralidade de sentidos, sucessivos e também
coexistentes, o que faz da interpretação uma arte. “Qualquer subjugação, qualquer dominação
equivale a uma interpretação nova”.
02. Não se compreende NIETZSCHE sem levar em conta seu pluralismo essencial
(pluralismo, aliás, próprio da filosofia, única garantidor de liberdade no espírito concreto, único
princípio de um violento ateísmo). É por isso que NIETZSCHE não acredita em “grandes
acontecimentos” ruidosos, mas na pluralidade silenciosa de sentidos de cada acontecimento.
Vemos nessa pluralidade de sentidos a conquista mais elevada da filosofia, sua maturidade (ao
contrário de HEGEL, que via nela uma certa ingenuidade). A noção de essência não se perde aí,
mas toma uma nova significação: se a coisa tem tantos sentidos quanto forças dela se
apoderarem, por outro lado ela não é neutra, e guarda afinidade com as forças com que se
relaciona. Chamar-se-á essência pelo contrário aquele sentido que dá à coisa a força que
apresenta maiores afinidades com ela, a ponto de quase confundirem-se ambas (não se sabe
quem é a força quem é o objeto dominado).
03. A interpretação revela sua complexidade se se considerar que uma nova força só pode
aparecer se usar, desde o início, as mascaras das forças precedentes que já a ocupavam. A
máscara ou a astúcia são as leis da natureza, A vida, em seus inícios, deve mimar a matéria para
ser apenas possível2. A arte de interpretar deve ser uma arte de penetrar nas máscaras,
descobrindo quem se mascara e porque, assim como porque se conserva uma máscara
remodelando-a. A genealogia não aparece no princípio; “em qualquer coisa, só os graus
superiores importam”. A diferença na origem não aparece desde a origem, e pode mesmo ter
interesse em confundir-se com outra coisa.
2
BÉRGSON, “A Evolução Criadora”.
apodera. O ser da força é o plural: seria absurdo pensar a força no singular. Uma força é
dominação, mas é também o objeto sobre o qual essa dominação se exerce. Uma pluralidade de
forças interagindo, sendo a DISTÂNCIA o elemento diferencial compreendido em cada força e
pela qual cada uma se refere a outras: é esse o princípio da filosofia da natureza em
NIETZSCHE.. A crítica do atomismo deve ser compreendida a partir daí – o atomismo sendo
uma tentativa de emprestar à matéria uma pluralidade e uma distância essenciais que só podem
pertencer à força (os átomos são o indiviso, são seu único objeto, eles só se relacionam consigo
mesmos). O atomismo seria uma máscara para o dinamismo crescente.
02. O conceito de força é o de uma força que se relaciona com uma outra força; sob esse
aspecto, a força chama-se uma vontade. A vontade (vontade de poder) é o elemento diferencial
da força. A vontade exerce-se necessariamente sobre uma outra vontade; ela é complexa, porque
é ela quem manda e é também ela quem obedece; o verdadeiro problema não está na relação do
querer com o involuntário, mas na relação de uma vontade que ordena com uma vontade que
obedece. Assim o pluralismo encontra sua confirmação imediata e seu terreno de eleição na
filosofia da vontade. Esse o ponto preciso da ruptura entre NIETZSCHE. e
SCHOPENHAUER:trata-se de saber se a vontade é uma ou múltipla. Para NIETZSCHE.,
conceber a vontade como una leva à sua negação.
03. NIETZSCHE. denuncia a alma, o eu, o egoísmo, como os últimos refúgios do
atomismo. Em qualquer querer, trata-se simplesmente de mandar e obedecer, sob a base de uma
estrutura social de muitas almas. Quando NIETZSCHE. canta o egoísmo, quer com isso criticar
a “virtude” do desinteresse. Mas o egoísmo, como o atomismo, é uma má interpretação da
vontade, pois ainda supõe um ego. E não há um ego na origem, mas a diferença entre forças. A
diferença na origem é a HIERARQUIA (que está, portanto, inseparável da genealogia, como
valor de origem e origem dos valores – a hierarquia é o “nosso problema”, diz NIETZSCHE.).
A hierarquia é o fato originário, a identidade da diferença e da origem. Assim, o sentido de
qualquer coisa é a relação dessa coisa com a força que dela se apodera, e o valor de qualquer
coisa está na hierarquia das forças que se exprimem na coisa enquanto fenômeno complexo.
8. A ESSÊNCIA DO TRÁGICO
01. A afirmação múltipla ou pluralista é a essência do trágico. É necessário encontrar, para
cada coisa, os meios particulares pela qual ela é afirmada. A tristeza e a angústia sempre surgem
em NIETZSCHE com relação à esse ponto: pode-se tornar tudo objeto de afirmação, de alegria?
O trágico não reside nesta angústia ou tristeza, nem na nostalgia da unidade perdida. O trágico
consiste na multiplicidade, na diversidade da afirmação como tal. O que define o trágico é a
alegria do múltiplo (nada de alegria como sublimação, compensação, resignação, reconciliação).
Trágico designa a forma estética da alegria, não uma forma medicinal. Uma lógica de afirmação
múltipla, da pura afirmação, e uma ética da alegria que lhe corresponde, é esse o sonho anti-
dialético e anti-religioso que perpassa toda a filosofia de NIETZSCHE. A tragédia, franca
alegria dinâmica.
02. A tarefa de dionísio é nos tornar leves, nos ensinar a dançar, nos dar o instinto do jogo.
Dionísio conduz ao céu Ariadne; as pedrarias da coroa de Ariadne são estrelas. Será esse o
segredo de Ariadne? A constelação nascerá do famoso lance de dados. É dionísio quem lança os
dados. É ele quem dança e quem se metamorfoseia, que se chama “Poligeto”, o deus das mil
alegrias. (30)
03. A dialética em geral não é uma visão trágica do mundo. Todavia, entre a ideologia
cristã (que HEGEL quis utilizar como substituto à tragédia) e o pensamento trágico existe um
problema comum: o do sentido da existência. Esta é, para NIETZSCHE, a questão suprema da
filosofia, a mais empírica e “experimental”, porque coloca simultaneamente o problema da
interpretação e da avaliação. Bem compreendida, a questão significa “o que é justiça?” Mas
desde sempre procurou-se o sentido da existência postulando-a como algo faltoso ou culpado.
9. O PROBLEMA DA EXISTÊNCIA
01. Os gregos já se perguntavam pelo sentido da existência, considerando-a como
desmesura, hybris ou crime (ANAXIMANDRO), enfim algo que merecia uma compensação
(com isso, explicavam o devir). SCHOPENHAUER é uma espécie de ANAXIMANDRO
moderno.
02. O que os faz atrativos para NIETZSCHE é sua diferença em relação ao cristianismo.
Se os gregos fazem da existência algo de criminoso, que em geral inicia já com um crime (que
deve ser expiado – o roubo do fogo por Prometeu, etc), nem por isso a existência é culpável e
responsável por isso. Esse passo só será dado com o cristianismo, o mestre do ressentimento.
Ressentimento, culpa e responsabilidade não são simples acontecimentos psicológicos, mas
categorias fundamentais do pensamento cristão, a nossa maneira de interpretar a existência. Um
novo ideal, uma outra maneira de pensar, é a tarefa que NIETZSCHE se propõe: “dar à
irresponsabilidade um sentido positivo”. Este, o mais nobre e mais belo segredo de
NIETZSCHE.
03. Os gregos são crianças perto dos cristãos, em matéria de negar a vida. Entretanto, para
ambos a vida é culpada. Em acréscimo, o cristão dirá que ela é responsável por isso. A questão,
para NIETZSCHE, não é saber se a vida é responsável ou não pela culpa (admitindo-a, de
antemão, portanto), mas saber se a existência é culpada ou inocente. Dionísio encontrou então a
sua verdade múltipla: a inocência,, a inocência da pluralidade, a inocência do devir e de tudo o
que é.
3
Zaratustra, III, “Da virtude que ameniza”
01. Para MALLARMÉ, como para NIETZSCHE, 1) Pensar é fazer um lance de dados; 2)
O homem não sabe jogar; 3) O lance de dados é irracional e trágico por excelência; 4) o número
obtido é a obra de arte como justificação do mundo.
02. Mas essas semelhanças são superficiais, porque MALLARMÉ sempre concebeu a
necessidade como a abolição do acaso. Há um dualismo em MALLARMÈ, entre o mundo do
acaso e o da necessidade, isso podendo ser fruto tanto de uma depreciação da vida ou da
exaltação do inteligível; ambos, entretanto, numa perspectiva nietzschiana, são inseparáveis e
constituintes do niilismo, isto é, da maneira pela qual a vida vem a ser acusada, julgada e
condenada. Ora, o lance de dados nada é quando separado de seu contexto afirmativo e
apreciativo, separado da inocência e da afirmação do acaso.
16. A PEDRA-DE-TOQUE
01. Não basta a palavra “trágico” para identificar NIETZSCHE com PASCAL,
KIERKGAARD, CHESTOV, por exemplo. Devemos ver quanto de ressentimento e má-
consciência perdura em seu pensamento. Se eles, por um lado, souberam, com gênio, levar a
crítica o mais longe possível, suspendendo a moral, invertendo a razão, foram, por outro lado,
apanhados pelo ressentimento, extraindo ainda as suas forças do ideal ascético. O que eles opõe
à moral e a razão é ainda um ideal, a INTERIORIDADE, este corpo místico em que a razão se
enraíza – a aranha. Falta-lhes o sentido da afirmação, o sentido da exterioridade, a inocência e o
jogo. Não se deve procurar apoio na infelicidade; é na felicidade que é preciso começar.
02. A aposta de PASCAL não tem nada a ver com o lance de dados nietzschiano. Nela,
não se afirma o acaso, mas, a o contrário, se o fragmenta em probabilidades; a existência ou não
de Deus não é posta em jogo; é apenas dividida em dois modos de existência do homem (com e
sem Deus), para daí decidir [já baseado em valores ascéticos]. A Hybris, o espírito de vingança,
o ressentimento, a má-consciência, o ideal ascético, o niilismo, são a pedra-de-toque de qualquer
nietzschiano. É aí que ele pode mostrar se compreendeu ou se desconhece o verdadeiro sentido
do trágico.
CAPÍTULO II
01. O CORPO
01. ESPINOSA abriu nova via às ciências e à filosofia, ao dizer que não sabemos “o que
pode um corpo”. Ainda confundimos o corpo com o espírito. NIETZSCHE sabe que é chegada
a hora da modéstia [a hora de avançar nesse conhecimento-criação da TERRA]. Para ele, a
consciência é um sintoma de uma transformação mais profunda e da atividade de forças de uma
ordem completamente diferente da espiritual. Como FREUD, NIETZSCHE pensa que a
consciência é a região do “eu” afetada pelo mundo exterior. Todavia, a consciência é definida
menos em relação à exterioridade, em termos de real, do que em relação à SUPERIORIDADE,
em termos de valor. Essa diferença é essencial numa concepção geral do consciente e do
inconsciente. Em NIETZSCHE, consciência é sempre consciência de um inferior em relação ao
superior ao qual se subordina ou “se incorpora”. A consciência nunca é consciência de si, mas
consciência de um “eu” em relação ao “eu” que não é consciente. Não é um senhor, mas um
escravo. É consciência do escravo em relação a um senhor que não tem de ser consciente. “A
consciência habitualmente só aparece quando um todo quer subordinar-se a um todo superior...
A consciência nasce em relação a um ser de que nós poderíamos ser função4”. É assim o
servilismo da consciência: testemunha apenas “a formação de um corpo superior”.
02. Não definimos um corpo ao dizer que é um campo de forças, um meio nutritivo que se
disputa uma pluralidade de forças. De fato, não existe “meio”, campo de forças, quantidade de
realidade. Só há quantidades de força em relação de tensão umas com as outras. Qualquer força
está em relação com outras, mandando ou obedecendo. O que define um corpo é essa relação
entre forças dominantes e forças dominadas. Duas forças desiguais constituem um corpo a partir
do momento em que entrem em relação: é por isso que o corpo é sempre fruto do acaso (em
sentido nietzschiano). O acaso, relação de força com força, é além do mais a essência da força;
não nos interroguemos, portanto, como nasce um corpo vivo, já que qualquer corpo vive como
produto “arbitrário” das forças que o compõe5. O corpo é fenômeno múltiplo, sendo composto
por uma pluralidade de forças irredutíveis. A sua unidade é a de um fenômeno múltiplo,
“unidade de dominação”. Num corpo, as forças superiores ou dominantes são ditas ATIVAS, as
inferiores ou dominadas são dotas REATIVAS. Essas são as qualidades originais, que
exprimem a relação da força com a força. Porque, ao haver diferença de quantidade entre as
forças em relação, há também, ao mesmo tempo, diferença de qualidade, que corresponde à sua
diferença de quantidade como tal. Chamar-se-á HIERARQUIA a esta diferença das forças
qualificadas consoante a sua quantidade: forças ativas e reativas.
4
VP, II, 227
5
Sobre o falso problema de um começo da vida: VP, II, 66 e 68; sobre o papel do acaso: VP, II, 25 e 334
Mas só podemos alcançar as forças reativas como forças (e não mecanismos ou finalidades,
duas macro-interpretações que valem apenas para as forças reativas) se as referirmos às forças
que as dominam, e que não são reativas. As forças de ordem espontânea, agressiva,
conquistadora, transformadora, criadora, têm proeminência fundamental sobre as forças
reativas6.
02. É difícil caracterizar essas forças ativas. Por sua natureza, elas escapam à consciência
(“a grande atividade principal é inconsciente”7). A consciência exprime apenas a relação de
certas forças reativas com as forças ativas que as dominam. A consciência é essencialmente
reativa, como também o hábito, a memória, a nutrição, a adaptação, a reprodução, todas funções
reativas, especializações, expressões de tal ou tal força reativa. É inevitável que a consciência
veja o organismo de seu ponto de vista reativo. O problema do corpo não se dá entre
mecanicismo e vitalismo (ambos apoiados apenas nas forças reativas), mas na descoberta das
forças ativas, sem as quais as próprias reações não seriam forças. A atividade necessariamente
inconsciente das forças é o que faz do corpo algo superior à toda reação. As forças ativas são o
que faz do corpo um “eu”. A verdadeira ciência é a da atividade, mas a ciência da atividade é
também a do inconsciente necessário. É absurdo a ciência seguir os caminhos da consciência; tal
idéia nos remete antes de mais nada à moral.
03. “O que é ativo? Tender para o poder8”. Apropriar-se, dominar, isto é, impor formas,
criar formas explorando as circunstâncias. NIETZSCHE critica DARWIN porque este interpreta
a evolução, e mesmo o acaso na evolução, de maneira reativa. LAMARCK, ao considerar a
existência de uma força plástica ativa, primeira em relação à adaptação, estava mais próximo de
NIETZSCHE. O poder dionisíaco de transformação é a primeira definição de atividade. Não
esqueçamos, porém, que a reação também designa um tipo de forças; elas, entretanto, não
podem ser concebidas como forças se não às referirmos às forças ativas, superiores, que são
precisamente de um outro modo.
03.QUANTIDADE E QUALIDADE
01. NIETZSCHE sempre acreditou que as forças deviam definir-se quantitativamente.
Entretanto, acreditava também que uma definição puramente quantitativa permanecia
incompleta, abstrata, ambígua. Ao mesmo tempo que insiste na definição quantitativa,
NIETZSCHE apresenta outras definições, como “A força reside na qualidade”.
02. Não há contradição entre estes dois posicionamentos: se uma força não é separável de
sua quantidade, também não é separável das outras forças com as quais está em relação. A
6
GM, I, §12
7
VP, II, 227
8
VP, II, 43
PRÓPRIA QUANTIDADE NÃO É PORTANTO SEPARÁVEL DA DIFERENÇA DE
QUANTIDADE [isto é, d a qualidade]. A diferença de quantidade é a essência da força.
Quando NIETZSCHE critica o conceito de quantidade, é a anulação das diferenças de
quantidade que ele critica aí [quando o conceito refere à uma quantificação abstrata e genérica,
por exemplo, a uma diferença puramente quantitativa9] . O que interessa à NIETZSCHE, do
ponto de vista da própria qualidade, é a irredutibilidade da diferença de quantidade à igualdade.
A QUALIDADE distingue-se da QUANTIDADE como aquilo que, na quantidade, não pode ser
igualizado, isto é, é a diferença de quantidade que é impossível de anular.
03. Com o acaso, afirmamos a relação de todas as forças; afirmarmos todo o acaso de uma
vez no pensamento do eterno retorno. Mas o acaso é o contrário de um continuum; o poder das
forças é preenchido na relação com um pequeno número de forças. Os encontros de forças de tal
e tal quantidade são portanto partes concretas do acaso, as partes afirmativas do acaso, como tal
estranhas a qualquer lei. Nesse encontro, cada força recebe a qualidade correspondente à sua
quantidade, isto é, a afecção que preenche efetivamente seu poder. Não se pode, portanto,
calcular abstratamente as forças. Deve-se avaliar concretamente, em cada caso, a sua quantidade
respectiva e o matizado desta qualidade.
9
Comparar com o “Bergsonismo” de Deleuze.
fundamental para a hipótese nietzschiana do eterno retorno]. Ambas as hipóteses culminam
num estado final ou terminal, indiferenciado, idêntico a si mesmo – o que é completamente
diferente do eterno retorno.
04. O eterno retorno não é um pensamento do idêntico, mas um pensamento do
absolutamente diverso, que reclama para si, fora da ciência, um princípio novo, que explique a
repetição da diferença enquanto tal. No eterno retorno não é o mesmo ou o uno que regressam,
mas o eterno retorno é ele próprio o uno que se diz apenas do diverso e do que difere.
10
Comparar com “Bergsonismo”
retornar e o uno que se afirma do múltiplo. A identidade do eterno retorno não designa a
natureza daquilo que retorna, mas, pelo contrário, o fato de retornar para o que difere [o
“mesmo” a que se retorna é o puro devir ou a pura diferença]. O eterno retorno deve ser
pensado como síntese do tempo e suas dimensões, da diferença e sua repetição, do devir e do ser
que se afirma do devir, síntese da dupla afirmação [do ser e do devir]. O eterno retorno depende
de um outro principio que não o da identidade.
03. O mecanicismo é uma á interpretação do eterno retorno porque implica a falsa
conseqüência de um estado final, idêntico ao inicial, no entremeio dos quais passa-se pelas
mesmas diferenças. Eis a hipótese cíclica, tão criticada por NIETZSCHE. Mas essa hipótese não
dá conta 1) da diversidade dos ciclos coexistentes e, sobretudo 2) da existência do diverso no
ciclo [o que é o próprio cerne da concepção nietzschiana de eterno retorno]. É por isso que só
podemos compreender o eterno retorno como expressão de um princípio que constitui a razão da
diferença e de sua repetição; tal princípio, NIETZSCHE chama de VONTADE DE PODER,
entendendo-a como o “caráter que não se pode eliminar da ordem mecânica sem eliminar essa
própria ordem”11.
11
VP, II, 374
quantidade e da gênese absoluta de sua qualidade respectiva. A VP é o elemento genealógico da
força e das forças. É pela VP que uma força se abate sobre outra, que uma força comanda outra,
e é ainda por ela que uma força obedece outra.
03. O conceito de síntese está no centro do kantismo. Os pós-kantianos censuravam a
KANT por 1) não ter apresentado um princípio que regesse a síntese sem ser apenas
condicionante em relação aos objetos, mas verdadeiramente genético e produtor (princípio de
diferença ou determinação interna), e 2) do ponto de vista da reprodução dos objetos na própria
síntese, pedia-se ao princípio uma razão não só para a síntese, mas para a reprodução do diverso
na síntese enquanto tal. NIETZSCHE parece ter levado a crítica kantiana adiante, em novas base
e direção, com os conceitos de eterno retorno e VP.
12
Comparar, mais uma vez, com Bergson, no Bergsonismo, de Deleuze, quanto à definição de duração.
15. O PROBLEMA DO ETERNO RETORNO
01. Tudo isso deve ser clarificado mais adiante. Por hora retenhamos que o eterno retorno
transforma a negação em poder supremo da afirmação.
02. O eterno retorno é o ser do devir, na visão cosmológica, mas afirma somente o devir-
ativo desse ser, na visão da ontologia seletiva. Afinal, seria contraditório que a vontade de
negação e de nada quisesse seu eterno retorno; como o eterno retorno é o ser do devir, a vontade
de negação não tem ser, e não retorna.
CAPÍTULO III
A CRÍTICA
13
Ver capítulo sobre o Nascimento da Tragédia, no início deste resumo
02. VP não quer dizer vontade que quer o poder; significa, ao contrário, que o poder é
aquilo que quer na vontade. O poder é na vontade o elemento genético e diferencial. É por isso
que a VP é essencialmente criadora. O que o poder quer é a relação de forças, as qualidades das
forças. Ele não pode ser representado, interpretado ou avaliado porque é “o que” interpreta,
avalia e quer. A VP é essencialmente criadora e doadora: não aspira, procura ou deseja, mas
DÁ. O elemento criador de sentido e dos valores é também necessariamente um elemento
crítico. Assim como o nobre “vale mais “ que o vil apenas porque passa pela prova do ER, pelo
qual o vil retorna como nobre, a crítica é a negação sobre uma forma nova>: destruição tornada
ativa, agressividade profundamente ligada à afirmação. A crítica é a destruição como alegria, a
agressividade do criador. O criador de valores não é separável de um destruidor, de um
criminoso e de um crítico.
14
Genealogia da Moral, III, §27
de uma vida reativa. NIETZSCHE censura também o pensamento quando se coloca apenas a
serviço dessa vida reativa.
02. O conhecimento legislador (kantiano) significa a dupla e simultânea submissão do
pensamento á vida razoável e da vida à razão. A crítica, como crítica do conhecimento, deverá
ser capaz de dar outro sentido ao pensamento: um pensamento que iria até o limite daquilo que a
vida pode, que conduziria a vida até o limite do que ela pode. Um pensamento que afirmaria a
vida. A vida seria a força ativa do pensamento e o pensamento o poder afirmador da vida.
Pensar seria descobrir, inventar novas possibilidades de vida, a vida ultrapassando os limites
que o conhecimento lhe fixa, o pensamento ultrapassando os limites que a vida lhe fixa. O
pensador como uma bela afinidade entre pensamento e vida, instintos assentados em solos
contrários que, relacionados, se impulsionam mutuamente para adiante. Essa afinidade entre
pensamento e vida é também a essência da arte.
14. A ARTE
01. A concepção nietzschiana de arte, concepção trágica, repousa sobre dois princípios: o
primeiro diz que a arte é um estimulante da VP, um excitante do querer, e não algo
desinteressado, que sublima, suspende o desejo; tal princípio denuncia qualquer concepção
reativa da arte.
02. O segundo princípio diz que a arte é o mais alto poder do falso; ela santifica a mentira,
magnífica o mundo enquanto erro, faz da vontade de enganar um ideal superior, único capaz de
rivalizar com o ideal ascético e de se opor a ele com sucesso. A arte inventa precisamente
mentiras que elevam o falso ao mais alto poder afirmativo. Aparência, para o artista, não
significa a negação do real, mas uma seleção, uma correção, um desdobramento, uma
afirmação. Verdade significa então efetivação do poder, [grau de intensidade]. Em
NIETZSCHE, o artista = aquele que procura a verdade = inventor de novas possibilidades de
vida.
03. Uma nova imagem do pensamento significa em primeiro lugar que o verdadeiro não é
mais o elemento do pensamento, mas o sentido e o valor. As categorias do pensamento não são
mais o verdadeiro e o falso, mas o elevado e o baixo. Do verdadeiro e do falso, temos sempre a
parte que merecemos: existem verdades da baixeza; nossos pensamento mais elevados, pelo
contrário, constituem a parte do falso, não renunciam nunca a fazer do falso um elevado poder.
Daí resulta que o estado negativo do pensamento não é o erro. A inflação do conceito de erro em
filosofia testemunha a persistência da imagem dogmática. Na verdade como no erro, o
pensamento baixo só descobre aquilo que traduz o triunfo do escravo; o disparate é sintoma de
uma maneira baixa de pensar, que em tudo faz reinar valores mesquinhos ou a ordem
estabelecida, não é um erro; ele tem uma estrutura própria de funcionamento.
05. A tarefa crítica de filosofia deve ser constantemente retomada, a cada época, pois,
diferentemente do conceito intemporal de erro, a baixeza não se separa do tempo, da atualidade;
cada época tem a sua. É por isso que a filosofia tem com o tempo uma relação essencial: sempre
contra seu tempo, crítica do mundo atual, sempre intempestiva.
06. Pensar não é o exercício natural de uma faculdade: pensar depende de forças que se
apoderem do pensamento. Enquanto nosso pensamento estiver ocupado e somente encontrar seu
sentido nas forças reativas, ainda não pensamos. As ficções pelas quais as forças reativas
triunfam formam o mais baixo do pensamento. Pensar, como atividade, é um acontecimento
extraordinário no próprio pensamento, significa uma elevação, é necessário que o pensamento
seja elevado até o pensar por uma força que dele se apodere violentamente15 – e esse é, para
NIETZSCHE, o papel da cultura, em oposição ao método. A cultura é adestramento e seleção,
formação do pensamento por uma seleção de forças, adestramento que põe em jogo todo o
inconsciente do pensador. Os gregos não falavam em método, mas em paidéia; sabiam que o
pensamento não pensa a partir da boa vontade, como no método, mas em virtude de forças que o
obrigam a pensar. Tudo o que existe de liberdade e dança sobre a terra floriu sempre sobre a
tirania de certas leis, sobre esse adestramento e seleção; inclusive o pensamento.
07. A atividade genérica da cultura visa formar o artista, o filósofo. Mas as forças reativas,
a igreja ou o estado podem utilizar essa violência necessária da cultura para seus próprios fins,
embrutecendo o pensamento ao invés de formá-lo (degenerescência da cultura). Há uma certa
ambivalência na cultura, para NIETZSCHE
08. A nova imagem de pensamento implica relações de força complexas. Pensar depende
de certas coordenadas. É falso dizer que a verdade sai de um poço: só encontramos verdades
onde elas estão, à sua hora e no seu elemento. O método em geral nos afasta de tais lugares, ou
evita que deles saiamos. Cabe a nós ir até os lugares extremos, às horas extremas onde vivem e
se erguem as verdades mais elevadas, mais profundas.
CAPÍTULO IV
DO RESSENTIMENTO À MÁ-CONSCIÊNCIA
15
Comparar com a intuição bergsoniana, essa também elevação do pensamento.
01. Na saúde as forças reativas têm por função limitar, total ou parcialmente, a ação, em
função de outra ação da qual sofremos o efeito. Inversamente, as forças ativas fazem explodir a
criação, precipitado-a para uma tarefa de adaptação rápida e precisa – uma resposta. Daí
NIETZSCHE dizer que “a verdadeira reação é a da ação”. O tipo ativo designa portanto uma
forma de relação entre forças ativas e reativas, esta retardando a ação, aquela precipitando a
reação.
02. Logo, não basta uma reação para constituir um ressentimento. “Ressentimento”
designa um tipo em que as forças reativas imperam sobre as forças ativas, deixado de ser agidas
pelas forças ativas [desobedecendo}. O homem do ressentimento é aquele que NÃO reage. No
re-sentimento a reação deixa de ser agida para se tornar qualquer coisa de sentido.
16
Notar a semelhança dessa estrutura psíquica com a sugerida por Bergson em “Matéria e Memória”.
04. É por isso que o esquecimento está sujeito à várias perturbações, elas próprias
funcionais. Com sua deficiência, é como se a cera da consciência endurecesse, a excitação
tendendo então a confundir-se com sua marca no inconsciente, e a reação às marcas,
normalmente situada no inconsciente, tendendo agora a invadir a consciência. Assim é ao
mesmo tempo que a reação às marcas se torna sensível (sai do inconsciente, invadindo a
consciência) e que a reação à excitação deixa de ser agida (pois a excitação confunde-se com
sua marca, e é portanto apropriada pelas forças reativas das marcas, não pelas forças reativas da
ação), o que tem imensas conseqüências. Não podendo mais agir uma reação, as forças ativas
são privadas de suas condições materiais de exercício, estão SEPARADAS DAQUILO QUE
PODEM. As forças reativas imperam sobre as forças ativas. Quando as marcas mnêmicas
tomam o lugar da excitação na consciência, a reação (às marcas, inconsciente) toma o lugar da
ação (isto é, da reação à excitação, que era a forma ativa de reação, ligada à consciência). As
forças reativas não triunfam por formar uma força maior que a das forças ativas. A deficiência
da força do esquecimento se dá porque essa não encontra na consciência a energia necessária
para recalcar o inconsciente, renovando a consciência. Tudo se passa entre forças reativas -
umas impedem outras de ser agidas, umas destroem as outras. Assim, o ressentimento, e em
última analise qualquer doença17, é uma reação que, simultaneamente, se torna sensível e deixa
de ser agida.
17
Em Ecce Homo, 1, 6, NIETZSCHE diz que estar doente é já uma forma de ressentimento.
02. O ressentimento é o espírito de vingança porque toda sua reação se efetua
imaginariamente; não é que, por um excesso de excitação (FREUD) ele queira reagir
representando (para conter o excessos, o que ultrapassa a capacidade de ser agido) pensar assim
seria desconsiderar as qualidades das forças, levando em conta somente suas quantidades.
Qualquer excitação, grande, pequena, boa ou má, é sentida como culpada pelo ressentido na
medida em que remete à sua impotência para reagir frente à excitação – ele somente reage às
marcas da excitação. O homem do ressentimento experimenta qualquer objeto como uma ofensa
na medida em que lhe sofre o efeito (e não poder reagir)18. A memória das marcas é odiosa em si
mesma e por si mesma. É venenosa e depreciativa, porque se liga ao objeto para compensar a
sua impotência para se subtrair às marcas da excitação correspondente. O que NIETZSCHE
quer é fazer uma psicologia que seja uma tipologia, fundar a psicologia “no plano do sujeito”
(expressão familiar à Jung).
4. CARACTERÍSTICAS DO RESSENTIMENTO
01. “Espírito de vingança” não quer dizer que o espírito quer a vingança, mas que a
vingança usa o espírito como meio. O ressentimento fornece à vingança um meio (invertendo a
relação normal de forças ativas e reativas ). Por isso o próprio ressentimento é já o triunfo de
uma revolta. O tipo do senhor (ativo) será definido pela faculdade de esquecer, como pelo poder
de agir as reações; o tipo escravo (reativo) será definido pela prodigiosa memória e pelo poder
do ressentimento.
02. A impotência para admirar, para respeitar, para amar: o mais espantoso no homem
do ressentimento não é sua maldade, mas a sua deprimente malquerença, a sua capacidade
depreciativa. Ele odeia tudo, não respeita amigos (menos ainda inimigos), a felicidade ou a
infelicidade. Faz da própria infelicidade algo medíocre, que recrimina e distribui danos; não
respeita a própria infelicidade. Pelo contrário, o respeito aristocrático pelas causas da
infelicidade e a incapacidade de tomar a serio as próprias infelicidades constituem uma unidade.
A seriedade com que o escravo encara as suas infelicidades testemunham uma digestão difícil.
03. A passividade: No ressentimento, a felicidade aparece como torpor, embriaguez, paz –
sob forma passiva. Essa passividade (que não é o oposto de atividade, já que o oposto de ação é
reação) designa a não-ação, o momento em que a reação, deixando de ser agida, se torna
ressentimento. O homem do ressentimento não sabe e não quer amar, mas quer ser amado. É o
homem do benefício e do lucro. O ressentimento só se impôs fazendo do lucro um sistema
econômico, social, teológico. É nesse sentido que os escravos possuem uma moral da utilidade.
Todas as qualidades morais escondem as exigências de um terceiro passivo, que reclama o
18
Veja-se “Memórias do Subterrâneo”, de Dostoiévski
interessa de ações que não executa, gabando-se entretanto de seu desinteresse (fazer tal coisa
“pelo bem da sociedade”, por exemplo. Mas o próximo louva o desinteresse porque dele se
beneficia; se raciocinasse, ele próprio, de modo desinteressado, não quereria o desinteresse do
outro...)
04. A imputação dos danos, a distribuição das responsabilidades, a acusação perpétua:
Tudo isso toma o lugar da agressividade. Considerando o benefício um direito, considerando um
direito lucrar com ações que não executa, o homem do ressentimento enche-se de censuras
quando seu anseio não se realiza; mas a não-ação é ´re-condição de seu tipo...como poderia
realizar-se? Então ele distribui culpas e responsabilidades, tem necessidade de que os outros
sejam maus para que ele próprio sinta-se “bom”. Tu és mau, portanto eu sou bom: essa é a
fórmula fundamental do escravo, a fórmula que o resume.
6. O PARALOGISMO
01. Há um paralogismo na formulação escrava. Supõe-se ao mesmo tempo que o “mau “ é
uma força ativa, que não se separa daquilo que pode (isto é, que age, e por isso mesmo é mau) e
é também uma força reativa(ou deveria ser), que não age (separada, portanto, daquilo que pode,
de sua agressividade). Porque o forte poderia impedir-se de agir, o fraco poderia agir se não o
impedissem.
02. Assim, o paralogismo do ressentimento repousa na ficção de uma força separada
daquilo que pode, o que permite o triunfo das forças reativas19. 1° desdobra-se a força (é o
momento da causalidade). Separa-se a força da manifestação da força (como o raio e o trovão);
2º projeta-se a força assim desdobrada num substrato, um sujeito que seria livre de a manifestar
ou não (momento da substância). Faz-se da força o ato de um sujeito que poderia do mesmo
modo não agir. NIETZSCHE não cessa de denunciar no “sujeito” uma ficção gramatical. 3º
moraliza-se a força assim neutralizada (momento da determinação recíproca). Porque se supõe
que uma força poderia não manifestar a força que “possui”, supõe-se que uma força poderia
manifestar a força que “não possui”. Porque se projeta a força num sujeito, se supõe esse sujeito
culpado ou meritório, culpado se a força exerça a ação que possui, meritório se não exerce a
ação que... não possui.
se apresentam, como resultado, na consciência; o erro, o engano, são aí outras forças que se apresentam na
consciência, outras perspectivas, que parecem “erradas” somente do ponto de vista majoritário – não há erro em
si, ilusão em si, verdade em si; mas entre as forças, poderia haver um “engano” desse gênero, as forças perdendo
seu ponto de vista e atuando (ou, antes, deixando de atuar) por uma imagem invertida que as forças reativas lhe
emprestam??? Talvez considerando o corpo como organização complexa, em que algumas forças já não “vêem”
diretamente sua perspectiva, mas devem toma-la a partir do que outras forças apresentam, numa cadeia de visões
parciais que resultaria numa perspectiva geral...
21
ATENÇÃO – Nietzsche diz que o pensador, a crueldade do pensador, ao querer ver tudo “verdadeiramente”,
isto é, desconsiderando seu próprio proveito (por isso crueldade) é essa mesma má-consciência, essa mesma
vontade de maltratar-se – o conhecedor é um artista da má-consciência, ele transforma essa vontade de fazer-se
mal num meio de ultrapassar-se, isto é, num meio de inventar mais vida. Zaratustra diz: amo os que não se
querem preservar...
02. A força ativa, ao virar-se contra si, PRODUZ DOR. Não mais o fruir de si, mas a
produção da dor, antes regulada pela força reativa. Resulta daí um curioso fenômeno,
insondável: uma multiplicação, uma auto-fecundação, uma hiper-produção de dor. A má-
consciência é uma CONSCIÊNCIA QUE MULTIPLICA SUA DOR PELA
INTERIORIZAÇÃO DA FORÇA: é esta a primeira definição da má-consciência.
24
Nietzsche, Genealogia da Moral, 2ª dissertação
25
Existe a dor como introjeção da força ativa (dor reativa) e a dor como precaução, aviso (dor ativa); parece-me
que a cultura se utiliza das duas espécies de dores, e que Deleuze privilegia uma só? Pois a cultura dá uma forma
ao homem, organiza suas forças, hierarquiza as forças ativas e reativas; mas não posso dizer também que as
forças só podem ser ditas ativas ou reativas em relação, isto é, nunca a priori? Se é verdade que nossa cultura
privilegia certas forças reativas, ela por outro lado mantém o trabalho de hierarquização das forças, e se as forças
não são nunca, em si mesmas, aprioristicamente, determináveis em sua qualidade, não há em que se basear para
fazer uma crítica das forças a partir da hierarquia; a não ser que as forças sejam determináveis a priori, a partir do
“elemento diferencial de onde emanam”, seja lá o que isso quer dizer – mas não há aí um cheiro metafísico? Eu
não veria problema em nossa cultura quanto ao adestramento, isto é, à organização das forças (há, me parece,
nesse ponto e em outros de Deleuze, um certo romance “romântico” demais). Diria antes que tal organização
DEU CERTO DEMAIS, isto é, que nós demos certo demais como organização – a questão é que não sabemos
ainda utilizar esse resultado; somos já, ou podemos ser, do ponto de vista do adestramento (da hierarquia das
forças), o homem livre, o homem que pode prometer; nossa cultura é que não sabe (não quer) utilizar esse
potencial – seus valores são outros. Aí reside o problema (se é que se pode falar assim). Mas ao seria desse
conflito que surgiria a auto-finalização da justiça? Seria esperar demais, e aliás reativamente, que os juízes
saíssem todos a dizer: sim, é verdade, NÓS SOMOS INJUSTOS DO PONTO DE VISTA DAS FORÇAS
ATIVAS... esse é o jogo do escravo, que quer que coisas melhorem lá fora para depois começar a agir...
26
Crédito de quê? Seria o da responsabilidade como BEM que se pressupõe alcançado antes de se o ter adquirido
de fato - pois só o que se tem, no início do processo, é o seu equivalente, a saber, a DOR ????
27
Aqui se está no extremo oposto de FREUD.
28
Nietzsche comenta que o homem aristocrático sente prazer na educação, na compostura, no mandar em si
mesmo, porque identifica-se com as forças que aí comandam, não com o que em si obedece. Ver também o
aforismo 19 do Além do Bem e do Mal, sobre o querer como hierarquia de forças e a questão da identificação.
estado da cultura em que o homem, ao preço da sua dor, se sente responsável por suas forças
reativas, e o estado da má-consciência em que o homem se sente culpado pelas suas forças
ativas.
03. A cultura é o elemento pré-histórico do homem, mas seu produto é o elemento pós-
histórico do homem. Não se deve confundir o produto da cultura com seu meio: o meio é a
responsabilidade-dívida, meio de adestramento e seleção para tornar as forças reativas agidas; o
fim é o homem autônomo, senhor de suas forças reativas [de suas forças] responsável somente
perante si mesmo [pois se tem sob domínio, independentemente do que aconteça], nesse sentido
um irresponsável [pois está livre diante de qualquer lei que não a sua]. A responsabilidade-
dívida desaparece no movimento pelo qual o homem se liberta; na cultura, o meio desaparece no
produto. A moralidade dos costumes produz o homem liberto da moralidade dos costumes, a
atividade genérica produz como objeto final um indivíduo no qual o elemento genérico é ele
mesmo suprimido.
29
“Só pra incomodar”: nenhuma organização quer perecer; se há uma morte afirmativa, que significa um canto à
vida, isso não quer dizer que se deve sempre querer morrer – deve-se morrer por amor à vida, como uma suprema
afirmação da vida. De qualquer forma, sempre se morre por suicídio, diz Nietzsche, a consciência é que não sabe
disso... Mesmo ao procurar se manter, algo que já não “se sustenta” vai invariavelmente escolher os meios de sua
auto-destruição... nada há de criticável, portanto, em que uma organização queira se manter: é justamente
querendo se manter e crescer que ela vai morrer, se for o caso.
mais liberta o homem; ao contrário, torna-se impagável. A “remissão” cristã é apenas uma dor
pela qual nos vinculamos à dívida, não um pagamento. A dor é interiorizada, a
responsabilidade-dívida torna-se responsabilidade-culpabilidade. O homem já não pode pagar
a dívida, e o golpe de gênio do cristianismo foi ter feito o próprio credor pagar a si mesmo para
libertar o homem, Deus matando o seu filho por amor... ao seu devedor (o homem).
02. Há uma diferença de natureza entre as duas responsabilidades: a responsabilidade-
dívida tem por origem a atividade da cultura, transforma a dor em beleza., medida e
irresponsabilidade; tudo na outra é reativo, ressentido, faz interiorizar a dor do devedor
impagável, sentindo a dívida como culpa, a qual, segundo o sacerdote, teria sua origem em “nós
mesmos” – “você é o responsável por sua dor”; assim é mudada a direção do ressentimento; um
pedaço qualquer de passado é colocado como causa da dor, que já não se projeta para fora, mas
para dentro, interiorizando-se. Tal mudança não anula, entretanto, o ódio do ressentimento
contra os outros: apenas lhe dá uma aparência sedutora. “É por minha culpa” - canto de sereia
pelo qual seduzimos e desviamos os outros de seu caminho. Assim, a má-consciência repousa
sobre o desvio da atividade genérica, sobre a usurpação dessa atividade, sobre a projeção da
dívida.
30
O problema é definir a priori uma afinidade (a priori de forças) sem, com isso, pressupor um a priori de
expressão (a priori de formas); afinal, as forças são só fortes e fracas (na vida real há apenas vontades fortes e
fracas – ABM, §21), ativas e reativas conforme uma medida sempre por fazer e que se define a cada caso, no
confronto atual das forças em relação. Pressupor que a religião, por ser SEMPRE, supostamente, animada por
uma vontade – o ideal ascético – é fazer mais ou menos o que fez FREUD com suas pulsões de vida e de morte:
haveria uma Vontade de Poder e uma Vontade niilista em eterno confronto; mas uma das grandes contribuições
de Nietzsche não foi pensar para além das oposições, inserindo essa vontade ascética numa vontade de poder e
colocando a vontade ascética como patamar de estabilização-realização da vontade de poder (o estado de direito,
por exemplo, como um estado de exceção, uma restrição parcial da VP como um meio para criação de maiores
unidades de poder)?
necessária entre ela e o ressentimento: ressentimento e má-consciência são os graus superiores
da religião [é a religião que interioriza o ressentimento ainda mais, etc].
03 A religião é animada por uma vontade, o ideal ascético, que faz triunfar as forças
reativas e uma forma da Vontade de Poder. A ficção de um outro-mundo no ideal ascético, a
vontade de nada, isso é ao mesmo tempo o que preside a ascensão do ressentimento e o que, a
partir do ressentimento, cresce e domina. O sentido do ideal ascético é exprimir a afinidade das
forças reativas com o niilismo, exprimir o niilismo como “motor” das forças reativas.
CAPÍTULO V
O SUPER-HOMEM
CONTRA A DIALÉTICA
01. O NIILISMO
01. “Nihil” significa valor da nada; não é o “não-ser”. A vida toma um valor de nada na
medida em que é negada, depreciada, e isso supõe sempre uma ficção, pela qual se opõe algo à
vida31. A idéia de um outro mundo, de valores superiores à vida, é o elemento constitutivo de
qualquer ficção. Tais valores referem sempre a uma vontade de negar – que é ainda uma
vontade, Nihil no niilismo significa a negação como qualidade da Vontade de Poder. No seu
primeiro sentido, niilismo significa, portanto, vontade de nada que se exprime em valores
superiores.
31
Ver “O Anti-cristo”, §15 – oposição do sonho e da ficção)
02. O niilismo possui um segundo sentido, significando reação, e não mais vontade,
quando reage-se conta os valores superiores que denigrem a vida, mantendo, entretanto, essa
vida denegrida. Há um nada de vontade, que não é sintoma de uma vontade de nada, mas, no
limite, uma negação de qualquer vontade. Esse segundo sentido deva do primeiro: se no
primeiro se negava a vida em prol de valores superiores, agora se nega também os valores
superiores, mas sem afirmar a vida; se no primeiro se opunha essência (val. Superiores) e
aparência (vida), nega-se agora a essência mas mantém-se a aparência. O segundo sentido é o
“pessimismo da fraqueza”. O primeiro sentido é o niilismo negativo; o segundo, um niilismo
reativo.
32
Vontade de Poder, III, 87
05. AS TRANSFORMAÇÕES DA DIALÉTICA (240)
01. [segue-se uma crítica envolvendo HEGEL, FEUERBACH e STIRNER, contra a
dialética, da qual transponho apenas o esqueleto do argumento; fls. 240-243]
STIRNER foi um dialético que fez da questão “quem” o essencial, conduzindo assim a
dialética ao seu verdadeiro resultado: saltus mortalis.
02. STIRNER mostra que a idéia (HEGEL), a consciência (BAUER), a espécie
(FEUERBACH) são alienações, como a teologia. Mas para STIRNER, superar a alienação
significa então puro e frio aniquilamento.
03. O hegelianismo encontrava seu desfecho num niilismo triunfante. Assim, STIRNER é
o dialético que revela o niilismo como verdade da dialética.
6. NIETZSCHE E A DIALÉTICA
01. Os temas hegelianos estão presentes em NIETZSCHE como o inimigo que ele
combate. Ele não cessa de denunciar o caráter teológico da filosofia alemã, a impotência dessa
filosofia para sair da perspectiva niilista, a incapacidade dessa filosofia para alcançar outra
coisa que não o eu, o homem ou os fantasmas do humano, o caráter mistificador das ditas
transformações dialéticas. STIRNER não é diferente: se revelou a verdade da dialética, não
escapou a essa verdade; foi incapaz de por a questão “quem” noutra perspectiva que não a do
humano.
02. A tarefa positiva de NIETZSCHE é dupla: o super-homem e a transvaloração. Não a
questão “quem é o homem?”, mas “quem é que supera o homem?”. O super-homem não tem
nada em comum com o ser genérico dos dialéticos, a espécie ou o “eu”, não é uma oferta maior:
difere em natureza do homem. O super-homem define-se por uma nova maneira de sentir (outro
sujeito que não o homem), uma nova maneira de pensar (outros predicados que não o divino),
outra maneira de avaliar (mudança no elemento do qual deriva o valor dos valores).
03. Do ponto de vista desta tarefa positiva todas as intenções críticas de NIETZSCHE
encontram a sua unidade; numa mesma polêmica ele engloba o cristianismo, o humanismo, o
egoísmo, o socialismo, o niilismo, as teorias da história e da cultura, a dialética. Tudo isso
forma a teoria do homem superior, objeto da crítica de N..
7. TEORIA DO HOMEM-SUPERIOR
01. A teoria do homem superior, o essencial de Z., está no livro IV desse texto. O homem
superior tem sua ambivalência constituída pelo ser reativo do homem e pela atividade genérica
do homem. O homem superior é a imagem pela qual o homem reativo se apresenta como
“superior”; ao mesmo tempo, é a imagem na qual aparece o produto da cultura.
02. Os dois reis são os guardas da atividade genérica, o homem das sanguessugas é o
produto dessa atividade como ciência, o último para é o produto dessa atividade como religião,
o mendigo voluntário quer saber qual o produto adequado dessa atividade (e o descobre na
ruminação), a sombra é esta própria atividade enquanto perde seu objetivo e procura seu
princípio.
03. Todos esses personagens representam simultaneamente as forças reativas e seu triunfo,
a atividade genérica e seu produto. Por isso Z. os trata de duas maneiras: ora como inimigo
infame, ora como hóspede, quase companheiro de empresa.
33
Algo como “SIM” em alemão; ver Zaratustra, livro IV.
01. O reino do niilismo é poderoso; exprime-se nos valores superiores a vida, nos valores
reativos e ainda no mundo sem valores; em tudo isso, sempre o mesmo princípio: uma vontade
de nada. Sob o império do negativo, a atividade nada pode.
02. NIETZSCHE chama transvaloração não à mudança dos valores, mas a mudança no
elemento do qual deriva o valor dos valores. A apreciação em vez da depreciação, a afirmação
como VP, a vontade como vontade afirmativa. Permanecendo no elemento do negativo, não faz
diferença mudar os valores: somente mudando o elemento se vence o niilismo.
03. Para N., todas as formas de niilismos analisadas anteriormente constituem um niilismo
[não] acabado, incompleto. Ao mesmo tempo, NIETZSCHE diz que o niilismo é vencido por si
mesmo. Não será o mesmo que dizer que a transvaloração, que vence o niilismo, é a forma
acabada de niilismo? Uma primeira razão para isso é que, mudando o elemento dos valores,
destrói-se todos os valores que dependem do velho elemento; a transvaloração é um niilismo
acabado porque dá à crítica uma forma acabada, “totalizante”.
04. Os valores que dependem desse velho elemento ao todos os valores conhecidos até o
momento da transvaloração. Porquê? Porque a Vontade de Poder aparece no homem e dá-se a
conhecer como vontade de nada. A vontade de nada não é apenas uma qualidade da VP, mas a
RATIO COGNOSCENDI34 da VP em geral. “Pensamos” a VP sob uma forma distinta daquela
pela qual a conhecemos35. Longínqua sobrevivência de KANT e SCHOPENHAUER: o que nós
conhecemos da VP e dor e suplício, mas a VP é ainda a alegria desconhecida, sendo que essa
face desconhecida, essa outra qualidade da VP é a afirmação. E a afirmação não é apenas uma
outra qualidade da VP, é a RATIO ESSENDI36 da VP em geral. Da afirmação derivam os valores
novos, pois trata-se de criar o próprio conhecimento, afirmação de todas as negações
conhecidas. Assim, o niilismo não se completa sem se transmutar na afirmação.
05. O último dos homens, o do niilismo passivo, é um resultado das forças reativas, não da
Vontade de Nada; é fruto da separação destes últimos. Mas a VN prossegue o seu trabalho, para
além do homem reativo, criando o “homem que quer perecer”. Este homem da destruição ativa
é cantado por NIETZSCHE quer ser superado, ir para além do homem, já a caminho do super-
homem. “Amo aquele que vive para conhecer e que quer conhecer, para que um dia o super-
homem exista. Do mesmo modo, quer seu próprio declínio”37. Isso quer dizer: amo aquele que
se serve do niilismo como da ratio cognoscendi da VP, mas que encontra na VP uma ratio
essendi na qual o niilismo é vencido.
34
Algo como “razão que pode ser conhecida” - ??; filósofos, por favor...
35
Estrutura parecida é apontada por Bergson na “Evolução Criadora” para explicar nossa maneira de pensar
mecanicamente o mundo, embora estejamos necessariamente inseridos na duração.
36
Algo como “razão essencial” - ??
37
Zaratustra, prólogo, 4.
06. A destruição ativa significa o momento de transvaloração na vontade de nada. A
destruição torna-se ativa, na medida em que o negativo (a vontade de nada, separada das forças
reativas) é transvalorado, convertido em poder afirmativo [de destruição] É este o ponto
“decisivo” da filosofia dionisíaca: o ponto em que a negação exprime uma afirmação da vida.
Esse ponto, a meia-noite, é a conversão da ratio cognoscendi na ratio essendi da VP. Passando
pelo último dos homem, mas indo além, o niilismo encontra sua realização: o homem que quer
perecer.
38
“Conheço a alegria do destruir num grau conforme a minha força de destruição”, diz Nietzsche – EH, IV, 2.
39
Ver EH, III, “Além do Bem e do Mal”, e Zaratustra, 8, e IV, 2, 4
04. Por isso o burro não é o animal dionisíaco; sua aparência é dionisíaca, mas sua
realidade é cristã. Diz sim, mas não sabe dizer não. O sim do burro é um falso sim, afirmação
separada das duas negações que deveriam rodeá-la.
05. Não há contradição aí; a afirmação dionisíaca não comporta negação como qualidade
primeira, poder autônomo; por outro lado, a afirmação só é real e completa se cercada de
negação como poder de afirmar; a afirmação não afirmaria a si própria se a negação não
rompesse a aliança com as forças reativas e se tornasse, no homem que quer perecer, poder de
afirmação. Daí a importância da distinção entre ressentimento, poder de negar que se exprime
nas forças reativas, e agressividade, maneira de ser ativa de um poder de afirmar40. O negativo,
em seu grau superior, torna-se positivo, sendo então apenas modo de ser daquele que é
poderoso, agressividade.
06. NIETZSCHE se opõe a toda forma de pensamento que se mova no elemento do
negativo. A um tal pensamento negativo são necessárias duas negações para fazer uma
(aparência) de afirmação; a atividade é aí apenas uma reação. Z. opõe-lhe a afirmação pura,
para a qual é necessária e suficiente a afirmação para fazer duas negações, que são as maneiras
de ser da afirmação como tal. Á famosa positividade do negativo, NIETZSCHE opõe sua
negatividade do positivo.
40
Não seria “maneira de ser ativa de um poder de NEGAR?” O resumo segue o original.
aparece como funcionário da afirmação [e, assim, funcionário do ser; ao contrário, a afirmação
está a serviço da diferença, ou do ser como diferença, conforme se verá mais adiante].
05. NIETZSCHE quer dizer três coisas: 1) o ser, o verdadeiro, o real, são transformações
do niilismo, maneiras de negar a vida carregando-a com os mais pesados fardos. NIETZSCHE
não acredita na auto-suficiência do real. 2) A afirmação como afirmação “daquilo que é” é uma
falsa afirmação. O burro diz “sim” a tudo que é “não”, não faz ainda, como o leão, da negação
um poder de afirmar, fazendo a afirmação estar a serviço do negativo. 3) essa falsa afirmação
constitui uma maneira de conservar o homem, atrelando-o ao ser, ao verdadeiro, ao real. Mas o
mundo não é real nem verdadeiro, mas vivo, é VP, vontade do falso, Efetuar a vontade de falso
é avaliar, viver é avaliar; o sensível e o real são avaliação, ilusões. “A vontade de parecer, de
iludir, de enganar, a vontade de devir e de mudar (ou a ilusão objetivada) é mais profunda, mais
metafísica do que a vontade de ver o verdadeiro, a realidade, o ser, sendo este último ainda
apenas uma forma de tendência para a ilusão”41. O que agora reina é a negação como qualidade
da VP. Pelo contrário, um poder de afirmar, um mais alto poder do falso, um devir afirmativo,
constituem a outra qualidade da VP. Afirmar não é carregar-se, mas libertar, descarregar
aquilo que vive. Afirmar é tornar leve e ligeiro. Só existe criação na medida em que, longe de
separar a vida daquilo que ela pode, nos servimos do excedente para inventar novas formas de
vida. É necessário criar o mundo. Mas o homem não realiza essa tarefa, o homem apenas eleva a
negação até o poder de afirmar, mas afirmar o todo, afirmar a afirmação, ultrapassa o poder do
homem. Assim, afirmar não é o real, mas a avaliação42; não é a assunção, mas a criação; não o
homem, mas o super-homem. Daí a afirmação nietzschiana da arte, pois a arte realiza todo esse
programa: o mais alto poder do falso, a afirmação dionisíaca.
se, como afirmação e devir, e vice-versa; o ser ou a essência da afirmação é, portanto, ao mesmo tempo a
diferença, o devir e a afirmação de ambos (o que podemos condensar na idéia do eterno retorno). Enfim, acho.
06. Z. refere o negativo à afirmação; Dionísio faz da afirmação a razão de ser da VP. Tudo
que é afirmativo encontra em Z. sua condição e em Dionísio seu princípio incondicionado.
Referidos à Z. o riso, o jogo, a dança, constituem os poderes afirmativos da transmutação;
referidos à DIONÍSIO, constituem poderes afirmativos de reflexão e desenvolvimento [da
diferença, isto é, do ser].
CONCLUSÃO (289)
01. A filosofia moderna apresenta amalgamas que testemunham sua vitalidade, mas
comportam também perigos para o espírito. Um pouco de ontologia e antropologia, ateísmo e
teologia, espiritualismo cristão, dialética hegeliana, fenomenologia (escolástica moderna),
fulgurações nietzschianas – estranhas combinações. Mistura que celebra a ultrapassagem da
metafísica e mesmo a morte da filosofia. Tentamos, neste livro, romper alianças perigosas.
Imaginamos NIETZSCHE retirando as fichas de um jogo que não é o seu.