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NIETZSCHE E A FILOSOFIA

DELEUZE, G., Ed RÉS, PORTO, PORTUGAL, ?????

INDICE: (numeração do arquivo)

Capitulo I
O trágico

1. O conceito de genealogia 3
2. O sentido 4
3. Filosofia da Vontade 4
4. Contra a dialética 5
5. O problema da tragédia 6
6. A evolução de Nietzsche 7
7. Dionísio e Cristo 8
8. A essência do Trágico 8
9. O problema da existência 9
10. Existência e inocência 9
11. O lance de dados 11
12. Conseqüências para o eterno retorno 11
13. Simbolismo de Nietzsche 12
14. Nietzsche e Mallarmé 13
15. O pensamento trágico 13
16. A pedra-de-toque 14

Capítulo II
Ativo e reativo

1. O corpo 14
2. A distinção das forças 15
3. Quantidade e qualidade 16
4. Nietzsche e a ciência 17
5. Primeiro aspecto do eterno retorno: 18
como doutrina cosmológica e física
6. O que é a vontade de poder? 19
7. A terminologia de Nietzsche 20
8. Origem e imagem invertida 21
9. Problema da medida das forças 22
10. A hierarquia 22
11. Vontade de poder e sentimento de poder 23
12. O devir-reativo das forças 23
13. Ambivalência do sentido e dos valores 23
14. O segundo aspecto do eterno retorno: 24
como pensamento ético e seletivo
15. O problema do eterno retorno 25

Capítulo III
A crítica

1. Transformação das ciências do homem 25


2. A fórmula da questão em Nietzsche 26
3. O método de Nietzsche 26
4. Contra os seus predecessores 27
5. Contra o pessimismo e contra Schopenhauer 28
6. Princípios para a filosofia da vontade 28
7. Plano de “A genealogia da Moral” 29
8. Nietzsche e Kant do ponto de vista dos princípios 30
9. Realização da crítica 30
10. Nietzsche e Kant do ponto de vista das conseqüências 31
11. O conceito de verdade 31
12. Conhecimento, moral e religião 32
13. O pensamento e a vida 33
14. A arte 33
15. Nova imagem do pensamento 34

Capítulo IV
Do ressentimento à má-consciência

1. Reação e ressentimento 36
2. Princípio do ressentimento 36
3. Tipologia do ressentimento 38
4. Características do ressentimento 38
5. É bom? É mau? 39
6. O paralogismo 40
7. Desenvolvimento do ressentimento: o sacerdote judaico 41
8. Má consciência e interioridade 42
9. O problema da dor 42
10. Desenvolvimento da má consciência: o sacerdote cristão 43
11. A cultura encarada do ponto de vista pré-histórico 44
12. A cultura encarada do ponto de vista pós-histórico 45
13. A cultura encarada sob o ponto de vista histórico 46
14. Má consciência, responsabilidade, culpabilidade___________ 46
15. O ideal ascético e a essência da religião_ 47
16. Triunfo das forças reativas 48

Capítulo V
O super-homem: contra a dialética

1. O niilismo 48
2. Analise da piedade 49
3. Deus morreu 50
4. Contra o hegelianismo 51
5. As transformações da dialética 52
6. Nietzsche e a dialética 52
7. Teoria do homem superior 53
8. Será o homem essencialmente “reativo”? 53
9. Niilismo e transmutação: o ponto focal 54
10. A afirmação e a negação 55
11. O sentido da afirmação 56
12. A dupla afirmação: Ariadne 58
13. Dionísio e Zaratustra 58

Conclusão 59
CAPÍTULO I

O TRÁGICO (051)

1. O CONCEITO DE GENEALOGIA
01. O projeto mais geral de NIETZSCHE é introduzir na filosofia os conceitos de sentido
e valor, fazendo com isso da filosofia uma crítica. Modernamente, a teoria dos valores
engendrou um novo conformismo e novas submissões. Para NIETZSCHE, entretanto, a filosofia
dos valores é a única maneira de realizar a crítica total. A noção de valor implica uma inversão
crítica: por um lado, as avaliações supõe valores anteriores; por outro lado e mais
profundamente, são os valores que supõe avaliações, donde deriva seu próprio valor. O
problema crítico é esse: o valor dos valores, e portanto o problema da sua criação. A avaliação,
elemento diferencial, é simultaneamente crítica e criadora. As avaliações não são valores, mas
maneiras de ser que servem de princípio aos valores em relação aos quais julgam. Eis o
essencial: o elevado e o baixo, o nobre e o vil não são valores, mas representam o elemento
diferencial donde deriva o próprio valor dos valores.
02. A filosofia crítica tem dois movimentos inseparáveis: referir as coisas à valores e
referir esses valores a algo que seja como a sua origem e decida sobre o seu valor. NIETZSCHE
coloca-se portanto tanto contra os que subtraem os valores à crítica (ou fazem a crítica em nome
de valores estabelecidos e ‘intocáveis’) quanto contra os que fazem a crítica derivar de pretensos
fatos objetivos (utilitaristas), ambos nadando no elemento indiferente do que vale em si ou do
que vale para todos. NIETZSCHE insurge-se contra a elevada idéia de fundamento que deixa os
valores indiferentes à sua origem e contra a idéia de uma simples derivação causal, indiferente,
dos valores a partir de sua origem. Daí o conceito novo de genealogia, que aposta no sentimento
de diferença ou distância, diferentemente do princípio da universalidade kantiana (ou do útil).
03. Genealogia quer dizer simultaneamente valor de origem e origem dos valores. Sua
crítica é ao mesmo tempo o elemento positivo de uma criação. Por isso a crítica não é
REAÇÃO, mas AÇÃO; a crítica opõe-se à vingança, ao ressentimento. É a expressão ativa de
um modo de existência ativo, a maldade que pertence à perfeição. Essa maneira de ser é a do
filósofo. Dessa genealogia NIETZSCHE espera muitas coisas: uma nova organização das
ciências, da filosofia, dos valores.

1
Numeração original. O numero no inicio do parágrafo corresponde a paragrafação do original.
2. O SENTIDO (08)
01. Encontrar o sentido de algo é conhecer a força que desse algo se apropria, ou explora,
ou exprime-se nele. Um fenômeno é um sintoma que encontra seu sentido numa força atual, não
uma aparência ou aparição. Daí a filosofia ser uma sintomatologia e uma semiologia. Á
dualidade aparência-essência e também à relação causa-efeito NIETZSCHE substitui a
correlação do fenômeno e do sentido. Qualquer força é apropriação de uma quantidade de
realidade (mesmo a percepção). Por isso a história de algo é a sucessão das forças que dela se
apoderaram, e a coexistência das forças que lutam para dela se apoderar. O sentido é, portanto,
uma noção complexa. Existe sempre uma pluralidade de sentidos, sucessivos e também
coexistentes, o que faz da interpretação uma arte. “Qualquer subjugação, qualquer dominação
equivale a uma interpretação nova”.
02. Não se compreende NIETZSCHE sem levar em conta seu pluralismo essencial
(pluralismo, aliás, próprio da filosofia, única garantidor de liberdade no espírito concreto, único
princípio de um violento ateísmo). É por isso que NIETZSCHE não acredita em “grandes
acontecimentos” ruidosos, mas na pluralidade silenciosa de sentidos de cada acontecimento.
Vemos nessa pluralidade de sentidos a conquista mais elevada da filosofia, sua maturidade (ao
contrário de HEGEL, que via nela uma certa ingenuidade). A noção de essência não se perde aí,
mas toma uma nova significação: se a coisa tem tantos sentidos quanto forças dela se
apoderarem, por outro lado ela não é neutra, e guarda afinidade com as forças com que se
relaciona. Chamar-se-á essência pelo contrário aquele sentido que dá à coisa a força que
apresenta maiores afinidades com ela, a ponto de quase confundirem-se ambas (não se sabe
quem é a força quem é o objeto dominado).
03. A interpretação revela sua complexidade se se considerar que uma nova força só pode
aparecer se usar, desde o início, as mascaras das forças precedentes que já a ocupavam. A
máscara ou a astúcia são as leis da natureza, A vida, em seus inícios, deve mimar a matéria para
ser apenas possível2. A arte de interpretar deve ser uma arte de penetrar nas máscaras,
descobrindo quem se mascara e porque, assim como porque se conserva uma máscara
remodelando-a. A genealogia não aparece no princípio; “em qualquer coisa, só os graus
superiores importam”. A diferença na origem não aparece desde a origem, e pode mesmo ter
interesse em confundir-se com outra coisa.

3. A FILOSOFIA DA VONTADE (12)


01. Todo objeto já é a expressão de uma força; na relação de um objeto com uma força,
são forças que se relacionam. Há relações de afinidade do objeto com a força que dele se

2
BÉRGSON, “A Evolução Criadora”.
apodera. O ser da força é o plural: seria absurdo pensar a força no singular. Uma força é
dominação, mas é também o objeto sobre o qual essa dominação se exerce. Uma pluralidade de
forças interagindo, sendo a DISTÂNCIA o elemento diferencial compreendido em cada força e
pela qual cada uma se refere a outras: é esse o princípio da filosofia da natureza em
NIETZSCHE.. A crítica do atomismo deve ser compreendida a partir daí – o atomismo sendo
uma tentativa de emprestar à matéria uma pluralidade e uma distância essenciais que só podem
pertencer à força (os átomos são o indiviso, são seu único objeto, eles só se relacionam consigo
mesmos). O atomismo seria uma máscara para o dinamismo crescente.
02. O conceito de força é o de uma força que se relaciona com uma outra força; sob esse
aspecto, a força chama-se uma vontade. A vontade (vontade de poder) é o elemento diferencial
da força. A vontade exerce-se necessariamente sobre uma outra vontade; ela é complexa, porque
é ela quem manda e é também ela quem obedece; o verdadeiro problema não está na relação do
querer com o involuntário, mas na relação de uma vontade que ordena com uma vontade que
obedece. Assim o pluralismo encontra sua confirmação imediata e seu terreno de eleição na
filosofia da vontade. Esse o ponto preciso da ruptura entre NIETZSCHE. e
SCHOPENHAUER:trata-se de saber se a vontade é uma ou múltipla. Para NIETZSCHE.,
conceber a vontade como una leva à sua negação.
03. NIETZSCHE. denuncia a alma, o eu, o egoísmo, como os últimos refúgios do
atomismo. Em qualquer querer, trata-se simplesmente de mandar e obedecer, sob a base de uma
estrutura social de muitas almas. Quando NIETZSCHE. canta o egoísmo, quer com isso criticar
a “virtude” do desinteresse. Mas o egoísmo, como o atomismo, é uma má interpretação da
vontade, pois ainda supõe um ego. E não há um ego na origem, mas a diferença entre forças. A
diferença na origem é a HIERARQUIA (que está, portanto, inseparável da genealogia, como
valor de origem e origem dos valores – a hierarquia é o “nosso problema”, diz NIETZSCHE.).
A hierarquia é o fato originário, a identidade da diferença e da origem. Assim, o sentido de
qualquer coisa é a relação dessa coisa com a força que dela se apodera, e o valor de qualquer
coisa está na hierarquia das forças que se exprimem na coisa enquanto fenômeno complexo.

4. CONTRA A DIALÉTICA (15)


01. A relação nietzschiana de uma força com outras não é nunca dialética, pois o que
caracteriza esta á o papel do negativo na relação, não simplesmente uma relação entre o uno e o
outro, e em NIETZSCHE. a relação é de afirmação, não de negação. A dialética é o mais feroz
inimigo do pluralismo. O conjunto da filosofia de NIETZSCHE. dirige-se, entre outros, contra a
dialética, é anti-hegeliana por princípio (o super-homem, por exemplo, é dirigido contra a
concepção dialética de homem, e a transvaloração contra a dialética da apropriação ou da
supressão da alienação).
02. Em NIETZSCHE. o negativo não está presente na essência, como aquilo de que a
força extrai sua atividade; pelo contrário, ele é produto da existência ativa, é parte necessária da
agressividade de uma afirmação. O que a força quer é afirmar-se em sua diferença. Não se trata
de negar a força que obedece ou que difere da que manda. A negação é apenas um conceito
secundário, um pálido contraste nascido da própria afirmação. É nesse sentido que existe um
empirismo em NIETZSCHE., baseado no prazer de afirmar a própria diferença (em oposição ao
‘trabalho do negativo’ na dialética). Quando NIETZSCHE. pergunta o que quer uma vontade,
não se trata de encontrar com isso motivos para ela; o que uma vontade quer é afirmar sua
diferença (nascido de sua relação essencial com o outro). A diferença constitui o objeto de uma
afirmação prática inseparável da essência e constitutiva da existência.
03. A dialética remete à um modo de existência de forças esgotadas, que não tem a força
de afirmar sua diferença, perdendo a atividade e apenas reagindo às forças que a dominam; daí
fazer passar ao primeiro plano a negação em sua relação com o outro. A própria relação do
senhor e do escravo não é, em si mesma, dialética: é o escravo quem a enxerga assim. Para o
senhor, o escravo é uma força entre outras, e faz parte de sua própria afirmação de si; para o
escravo, ao contrário, é o senhor quem deve ser negado para que o escravo possa afirmar-se. A
relação hegeliana entre senhor e escravo é dialética porque sob o senhor hegeliano sempre
aparece apenas o escravo. O poder, para o escravo, à diferença de NIETZSCHE, é sempre
objeto de uma recognição, matéria de uma representação, o prêmio de uma competição, e
portanto algo que está na dependência de uma simples atribuição de valores estabelecidos.

5. O PROBLEMA DA TRAGÉDIA (19)


01. Deve-se evitar “dialetizar” o pensamento nietzschiano, mesmo quando parecer
propício, como no caso da tragédia. NIETZSCHE opõe a visão de mundo trágica às visões de
mundo dialéticas, cristãs e românticas.
02. Para a dialética, o trágico vincula-se à oposição (contradição fundamental entre
sofrimento e vida, do finito e do infinito na própria vida, etc). Já em “O NASCIMENTO DA
TRAGÉDIA” (NT), embora ainda sobre maneiras muito próximas à HEGEL e
SCHOPENHAUER, NIETZSCHE não se filia somente à essa visão dialética da tragédia.
(embora ainda estivesse um tanto preso à ela, atribuindo à contradição e a sua solução o papel
de princípios). Devemos seguir o movimento desse livro para compreender a nova concepção de
trágico que NIETZSCHE instaurará posteriormente:
03. 1º A contradição, no NT, é a da unidade primitiva e da individuação, do querer e
da aparência e da vida e do sofrimento. Aqui a vida ainda necessita ser justificada.
04. 2º A contradição reflete-se na oposição DIONÍSIO-APOLO. APOLO divinisa o
princípio de individuação, constrói a bela aparência e liberta-se assim do sofrimento.
DIONÍSIO, ao contrário, regressa à unidade primitiva, absorve o indivíduo no ser original,
resolvendo a dor da individuação num prazer superior de participar da superabundância do ser
único. DIONÍSIO e APOLO não se opõe como os termos de uma contradição, portanto, mas
como dois modos antitéticos de a resolver. DIONÍSIO é como o fundo sobre o qual APOLO
borda a bela aparência. Sob APOLO é DIONÌSIO que brama. Mas essa própria antítese tem
necessidade de ser resolvida.
05. 3º A tragédia é esta reconciliação. DIONÍSIO é o fundo trágico (o único
personagem trágico é DIONÌSIO; entram em cena suas dores), que se resolve sob uma forma e
num mundo apolíneos (e daí o drama).

6. A EVOLUÇÃO DE NIETZSCHE (21)


01. O trágico, no NT, é definido como a contradição original, sua solução dionisíaca e a
expressão dramática (apolínea) dessa solução. Resolver a contradição reproduzindo-a constitui o
caráter da cultura trágica e dos seus representantes modernos (KANT, SHOPENHAUER,
WAGNER). Mas há vários indícios da aproximação de uma concepção nova, que não cabe na
acima exposta. Em primeiro lugar, dionísio está presente como deus afirmativo e afirmador, não
se contentando em “resolver” a dor num prazer supra-pessoal, mas afirmando a dor e
constituindo o prazer de alguém. Afirma as dores da crença, afirma a vida (não tendo que
justificá-la ou resgatá-la). O que impede esse segundo dionísio de sobrepô-lo ao primeiro é o
fato de o elemento supra-pessoal sempre acompanhar o elemento afirmador. Existe aí um
pressentimento do eterno-retorno.
02. NIETZSCHE, ao fazer sua auto-crítica, reconhece duas inovações no NT: o caráter
afirmador de dionísio, e a descoberta da oposição dionísio-sócrates, para além da primeira
aproximação dionísio-apolo; dionísio é a afirmação da vida independentemente de justificação,
Sócrates é a oposição entre idéia e vida, o julgamento da vida pela idéia.
03. Mesmo aí, qualquer coisa impede esse segundo tema de se desenvolver livremente.
Para que a oposição ganhasse todo o seu valor, era necessário libertar o elemento afirmador de
qualquer subordinação. Isso acontece substituindo-se a pura antítese pela complementariedade
dionísio-Ariadne, do lado afirmativo, e focalizando o “crucificado” como verdadeira oposição à
dionísio (Sócrates é demasiado grego, meio apolíneo, meio dionisíaco, para representar a
oposição).
7. DIONÍSIO E CRISTO
01. Tanto em dionísio quanto em Cristo, o mártir é o mesmo, a paixão é a mesma, é o
mesmo fenômeno, mas os sentidos são opostos: por um lado, a vida que justifica o sofrimento,
que o afirma; por outro lado, o sofrimento que acusa a vida, que faz dela algo que deve ser
justificado. O fato de haver sofrimento na vida significa, para o cristão, que a vida não é justa,
que é culpada, que deve pagar pelo sofrimento – como?: com o próprio sofrimento (o que forma
a “má-consciência”). Tal define o niilismo cristão, isto é, sua maneira própria de negar a vida.
Mesmo o amor cristão não se opõe à esse ódio, como quer o dialético: a alegria cristã é a alegria
de “resolver” a dor, interiorizando-a e assim oferecendo-a à Deus.
02. Para dionísio a vida não tem de ser justificada: é ela quem se encarrega de justificar. A
vida é essencialmente justa. Ela afirma mesmo o mais amargo sofrimento, sem “resolver” a dor
ao interioriza-la, mas afirmando-a no elemento de sua exterioridade. A oposição dionísio-Cristo
é a oposição da afirmação da vida e da negação da vida. O sofrimento dionisíaco (por
superabundância de vida) é uma afirmação, sua embriaguez é uma atividade, seu dilaceramento
é a própria afirmação múltipla; o sofrimento cristão (por empobrecimento de vida) é uma
acusação à vida, sua embriaguez é um torpor ou convulsão, sua morte é a imagem da
contradição e sua solução. A oposição de dionísio à Cristo não é uma oposição dialética, mas
oposição à própria dialética: a afirmação diferencial contra a negação dialética.

8. A ESSÊNCIA DO TRÁGICO
01. A afirmação múltipla ou pluralista é a essência do trágico. É necessário encontrar, para
cada coisa, os meios particulares pela qual ela é afirmada. A tristeza e a angústia sempre surgem
em NIETZSCHE com relação à esse ponto: pode-se tornar tudo objeto de afirmação, de alegria?
O trágico não reside nesta angústia ou tristeza, nem na nostalgia da unidade perdida. O trágico
consiste na multiplicidade, na diversidade da afirmação como tal. O que define o trágico é a
alegria do múltiplo (nada de alegria como sublimação, compensação, resignação, reconciliação).
Trágico designa a forma estética da alegria, não uma forma medicinal. Uma lógica de afirmação
múltipla, da pura afirmação, e uma ética da alegria que lhe corresponde, é esse o sonho anti-
dialético e anti-religioso que perpassa toda a filosofia de NIETZSCHE. A tragédia, franca
alegria dinâmica.
02. A tarefa de dionísio é nos tornar leves, nos ensinar a dançar, nos dar o instinto do jogo.
Dionísio conduz ao céu Ariadne; as pedrarias da coroa de Ariadne são estrelas. Será esse o
segredo de Ariadne? A constelação nascerá do famoso lance de dados. É dionísio quem lança os
dados. É ele quem dança e quem se metamorfoseia, que se chama “Poligeto”, o deus das mil
alegrias. (30)
03. A dialética em geral não é uma visão trágica do mundo. Todavia, entre a ideologia
cristã (que HEGEL quis utilizar como substituto à tragédia) e o pensamento trágico existe um
problema comum: o do sentido da existência. Esta é, para NIETZSCHE, a questão suprema da
filosofia, a mais empírica e “experimental”, porque coloca simultaneamente o problema da
interpretação e da avaliação. Bem compreendida, a questão significa “o que é justiça?” Mas
desde sempre procurou-se o sentido da existência postulando-a como algo faltoso ou culpado.

9. O PROBLEMA DA EXISTÊNCIA
01. Os gregos já se perguntavam pelo sentido da existência, considerando-a como
desmesura, hybris ou crime (ANAXIMANDRO), enfim algo que merecia uma compensação
(com isso, explicavam o devir). SCHOPENHAUER é uma espécie de ANAXIMANDRO
moderno.
02. O que os faz atrativos para NIETZSCHE é sua diferença em relação ao cristianismo.
Se os gregos fazem da existência algo de criminoso, que em geral inicia já com um crime (que
deve ser expiado – o roubo do fogo por Prometeu, etc), nem por isso a existência é culpável e
responsável por isso. Esse passo só será dado com o cristianismo, o mestre do ressentimento.
Ressentimento, culpa e responsabilidade não são simples acontecimentos psicológicos, mas
categorias fundamentais do pensamento cristão, a nossa maneira de interpretar a existência. Um
novo ideal, uma outra maneira de pensar, é a tarefa que NIETZSCHE se propõe: “dar à
irresponsabilidade um sentido positivo”. Este, o mais nobre e mais belo segredo de
NIETZSCHE.
03. Os gregos são crianças perto dos cristãos, em matéria de negar a vida. Entretanto, para
ambos a vida é culpada. Em acréscimo, o cristão dirá que ela é responsável por isso. A questão,
para NIETZSCHE, não é saber se a vida é responsável ou não pela culpa (admitindo-a, de
antemão, portanto), mas saber se a existência é culpada ou inocente. Dionísio encontrou então a
sua verdade múltipla: a inocência,, a inocência da pluralidade, a inocência do devir e de tudo o
que é.

10. EXISTÊNCIA E INOCÊNCIA


01. A crítica à nossas acusações e buscas de responsáveis funda-se, em NIETZSCHE, em
cinco razões, sendo a primeira que “nada existe fora do todo”. A última, mais profunda, é que
“não existe o todo”. A inocência é a verdade do múltiplo. Dimana diretamente dos princípios da
filosofia da força e da vontade: toda força se refere aquilo que pode, de que ela é inseparável;
essa maneira de se relacionar, de afirmar e ser afirmado, é que é particularmente inocente.
Aquilo que não se deixa avaliar por uma vontade reclama uma outra vontade, uma outra força,
capaz de o fazer. Mas nós preferimos salvar a interpretação que corresponde à nossas forças, e
negar a coisa que não corresponde à nossa interpretação. Separamos a força daquilo que ela
pode, postulando-a como “merecedora” quando se abstém daquilo que não pode, e como
“culpada” quando ela manifesta a força que possui. Desdobramos a vontade, inventamos um
sujeito neutro, capaz de agir e se conter. Substituímos a interpretação pela depreciação,
inventamos a depreciação como maneira de interpretar. Somos péssimos jogadores! A inocência
é o jogo da existência, da força e da vontade. A existência afirmada e apreciada, a força não
separada, a vontade não desdobrada, eis a primeira aproximação à inocência.
02. HERÁCLITO é o pensador trágico. Para ele, a vida é radicalmente inocente e justa.
Compreende a existência a partir de um instinto de jogo, faz da existência um fenômeno estético
(não moral nem religioso). Nega a dualidade dos mundos e faz do devir uma afirmação. Isso
quer dizer, em primeiro lugar: só existe o devir. Sem dúvida, equivale a afirmar o devir. Mas
afirma-se também o ser do devir, diz-se que o devir afirma o ser ou que o ser se afirma no devir.
Não existe um ser para além do devir, um uno para além do múltiplo, que ária destes ilusões ou,
em outro extremo, essências. O múltiplo é a afirmação do uno, o devir, a afirmação do ser. “O
único deve afirmar-se na geração e na destruição’. Para HERÁCLITO, não há qualquer castigo
no múltiplo ou expiação no devir, somente a dupla afirmação do ser e do devir, isto é, a
justificação do ser. Qual é o ser do devir? Qual é o ser inseparável do que é no devir?
RETORNAR É O SER DO QUE DEVÉM. Regressar é o ser do devir, o ser que se afirma no
devir. O eterno retorno como lei do devir, Justiça e ser.
03. Segue-se que a existência nada tem de responsável, nem mesmo de culpável.
HERÁCLITO chegou a exclamar: “a luta dos inumeráveis seres é apenas pura justiça”. A
correlação do múltiplo e do uno, do devir e do ser, forma um jogo. Afirmar o devir e o ser do
devir são os dois tempos de um jogo, que se compõe com um terceiro termo, o jogador, o artista
ou a criança, Zeus-criança: dionísio.O jogador abandona-se temporariamente à vida, o artista
coloca-se temporariamente na obra, a criança brinca, retira-se e regressa. Esse jogo do devir é
também o ser do devir que brinca consigo próprio. O ser do devir, o eterno retorno, é o segundo
tempo do jogo, mas também o terceiro termo idêntico aos dois tempos [anteriores] e que é
válido para o conjunto. Porque o eterno retorno é o regresso distinto do ir, mas também o
regresso do próprio ir: simultaneamente momento e ciclo do tempo.

11. O LANCE DE DADOS (40)


01. O jogo tem dois momentos, que constituem um lance de dados: os dados que se lança
e os dados que caem. NIETZSCHE por vezes apresenta o lance de dados como se estes se
jogassem em dois tabuleiros distintos, a terra e o céu. Mas não se trata de dois mundos, e sim
dois momentos de um mesmo mundo, a hora em que os dados são lançados [terra], a hora em
que caem os dados [céu]. O lance de dados afirma o devir e o ser do devir.
02. Não se trata de vários lances de dados que, devido ao seu número, chegariam a
reproduzir a mesma combinação [eterno retorno]. Pelo contrário: trata-se de um só lance de
dados que, devido ao número da combinação produzida, chega a reproduzir-se como tal. Os
dados que são lançados uma vez são a afirmação do acaso, a combinação que formam ao cair é
a afirmação da necessidade. A necessidade afirma-se do acaso, no sentido exato em que o ser se
afirma do devir e o uno do múltiplo. A necessidade não suprime o acaso. A necessidade, o
destino, são uma combinação do próprio acaso; afirma-se a necessidade do acaso, assim como o
acaso ele próprio. Porque só existe uma combinação do acaso enquanto tal, uma maneira de
combinar todos os membros do acaso (necessidade). É por isso que basta ao jogador afirmar
uma vez o acaso, para produzir a necessidade que reconduz o lance de dados.
03. Saber afirmar o acaso é saber jogar. O mau jogador conta com vários lances de dados,
dispondo da causalidade e da probabilidade para alcançar uma combinação que declara
aceitável, e que é pensada como um fim; com isso abole-se o acaso. Isso tem suas raízes na
razão, que por sua vez tem suas raízes no que NIETZSCHE chama de espírito de vingança. O
ressentimento na repetição dos lances, a má-consciência na crença num fim. Uma certeza que
convém ter para bem jogar é a de que o universo não possui qualquer fim ou objetivo ou causa.
Falha-se o lance de dados porque não se afirmou suficientemente o acaso numa vez, para que se
produzisse o número fatal que reúne necessariamente todos os fragmentos e que,
necessariamente, conduz o lance de dados. NIETZSCHE substitui a oposição/síntese
causalidade-finalidade pela correlação dionisíaca acaso-necessidade.

12. CONSEQUÊNCIAS PARA O ETERNO RETORNO


01. Quando os dados lançados afirmam de uma vez o acaso, os dados que caem afirmam a
necessidade que conduz o lance de dados. É nesse sentido que o segundo tempo do jogo é além
disso o conjunto dos dois tempo. O eterno retorno é o segundo tempo, a afirmação da
necessidade, mas também o retorno do primeiro tempo, a repetição do lance de dados, a
reafirmação do acaso. Existem fragmentos do acaso que pretendem valor por si; reclamam-se de
sua probabilidade, solicitam vários lances ao jogador. Mas não é assim que se deve jogar: deve-
se, pelo contrário, afirmar todo o acaso de uma vez, para lhe reunir todos os fragmentos e
afirmar não o provável, mas o fatal e necessário (mesmo que seja preciso esperar e “ferver o
acaso na panela” para alimentar-se dele somente quanto estiver “convenientemente cozido”3).
02. Combinou-se frequentemente o caos e o ciclo, o devir e o eterno retorno, como se eles
pusessem em jogo termos opostos. Em verdade, basta afirmar o caos (acaso, e não causalidade)
para afirmar no mesmo lance a necessidade que o conduz (necessidade irracional, e não
finalidade). As antiga idéias do eterno retorno não viam nele o ser do devir enquanto tal, o uno
do múltiplo, isto é, a necessidade procedente de todo acaso. Ao contrário, viam nele a
submissão do devir ao ciclo. Diante disso salienta-se a originalidade de NIETZSCHE.

13. SIMBOLISMO DE NIETZSCHE (47)


01. O lance de dados é a afirmação do múltiplo. Todos os fragmentos, todo o acaso é
lançado de uma vez. Esse poder de afirmar o múltiplo de uma vez é como o fogo: o fogo é o
elemento que joga. “Cozinhar” o acaso não é aboli-lo, nem encontrar o uno por traz do múltiplo:
a ebulição na panela é o único meio de fazer do acaso e do múltiplo uma afirmação. Os dados
lançados formam um número, que é o ser que se afirma do devir enquanto tal, o uno que se
afirma do múltiplo enquanto tal, o ser que se afirma do devir enquanto tal, o destino que se
afirma do acaso enquanto tal. A fórmula do jogo é: conceber uma estrela dançante com o caos
que traz consigo. A própria escolha de Zaratustra como personagem se apóia em três razões,
uma das quais é o belo acaso (Zaratustra significa estrela em outro; os outros dois motivos são
1) Zaratustra como profeta do eterno retorno, e 2) Zaratustra como o primeiro a levar a sério a
moral, devendo ser, portanto, o primeiro a desmistifica-la).
02. Esse jogo de imagens caos-fogo-constelação reúne, forma todos os elementos do mito
dionisíaco. Os brinquedos de dionísio criança, a afirmação múltipla ou fragmentos de dionísio
dilacerado; a cozedura de dionísio ou o uno afirmando-se do múltiplo; a constelação Ariadne no
céu como estrela dançante.; o retorno de dionísio como eterno retorno.
03. Mas jamais um jogo de imagens substitui, para NIETZSCHE, um jogo mais profundo,
o dos conceitos e do pensamento filosófico. O aforismo, como forma, é um fragmento, que
pretendo dizer e formular um sentido, sendo a forma do pensamento pluralista. O aforismo é a
interpretação e a arte de interpretar (deve, ele também, ser interpretado). Todo sentido reenvia
ao elemento diferencial de onde deriva o seu valor. Tal elemento é como uma segunda dimensão
do sentido e dos valores. Desenvolvendo esse elemento é que se constitui a interpretação e
avaliação completas, a arte de pensar a ruminação. Ruminação e eterno retorno: dois estômagos
não são demais para pensar. A segunda dimensão do aforismo (o valor) é o retorno da primeira.
14. NIETZSCHE E MALLARMÉ

3
Zaratustra, III, “Da virtude que ameniza”
01. Para MALLARMÉ, como para NIETZSCHE, 1) Pensar é fazer um lance de dados; 2)
O homem não sabe jogar; 3) O lance de dados é irracional e trágico por excelência; 4) o número
obtido é a obra de arte como justificação do mundo.
02. Mas essas semelhanças são superficiais, porque MALLARMÉ sempre concebeu a
necessidade como a abolição do acaso. Há um dualismo em MALLARMÈ, entre o mundo do
acaso e o da necessidade, isso podendo ser fruto tanto de uma depreciação da vida ou da
exaltação do inteligível; ambos, entretanto, numa perspectiva nietzschiana, são inseparáveis e
constituintes do niilismo, isto é, da maneira pela qual a vida vem a ser acusada, julgada e
condenada. Ora, o lance de dados nada é quando separado de seu contexto afirmativo e
apreciativo, separado da inocência e da afirmação do acaso.

15. O PENSAMENTO TRÁGICO


01. Tal diferença não se deve à uma diferença psicológica. Um princípio do qual depende
a filosofia nietzschiana em geral é o de que o ressentimento, a má-consciência, o ideal ascético,
os principais tipos de niilismo (ditos, em conjunto, espírito de vingança), não se reduzem a
determinações psicológicas, a acontecimentos históricos ou a estruturas metafísicas: pelo
contrário, elas é que determinam nossa psicologia, história e metafísica. Sem dúvida o espírito
de vingança exprime-se biológica, psicológica, histórica e metafisicamente, permitindo a
constituição de uma tipologia. Mas o espírito de vingança não é um traço psicológico, mas o
princípio do qual nossa psicologia depende; toda nossa psicologia é a do ressentimento, ele não
está nela, ela é que está nele. O niilismo não é um acontecimento histórico, mas o elemento da
história, seu motor, a causa do “sentido histórico”. O instinto de vingança é a força que constitui
a essência daquilo que chamamos psicologia, história, metafísica e moral, o elemento
genealógico do nosso pensamento. Em verdade não sabemos bem o que é que seria um homem
destituído de ressentimento, que não acusasse e depreciasse a existência; seria ainda um
homem? Ou talvez um além-do-homem? Possuir ressentimento ou não: não existe maior
diferença, para além da psicologia, história ou metafísica. É a verdadeira diferença ou tipologia
transcendental – a diferença genealógica e hierárquica.
02. O objetivo da filosofia nietzschiana é libertar o pensamento do niilismo. Há muito
tempo que não cessamos de pensar em termos de ressentimento e má-consciência. Não
possuímos outro ideal além do ideal ascético. Opusemos conhecimento e vida, para julgar e
condenar a vida. Uma nova maneira de pensar significa um pensamento afirmativo, que afirma a
vida e a vontade na vida, que expulsa todo negativo, que acredita na inocência do futuro e do
passado, no eterno retorno. A alegre mensagem nietzschiana é o pensamento trágico: porque o
trágico não reside nas recriminações do ressentimento, nos conflitos da má-consciência ou nas
contradições de uma vontade que se sente culpada; tampouco o trágico é a luta contra
ressentimento, má-consciência e niilismo. Trágico = alegre. Ou, de outro modo: querer = criar.
O trágico é positividade pura e múltipla, alegria dinâmica. Trágica é a afirmação: porque afirma
o acaso, e do acaso, a necessidade; porque afirma o devir, e do devir, o ser; porque afirma o
múltiplo, e do múltiplo, o uno.

16. A PEDRA-DE-TOQUE
01. Não basta a palavra “trágico” para identificar NIETZSCHE com PASCAL,
KIERKGAARD, CHESTOV, por exemplo. Devemos ver quanto de ressentimento e má-
consciência perdura em seu pensamento. Se eles, por um lado, souberam, com gênio, levar a
crítica o mais longe possível, suspendendo a moral, invertendo a razão, foram, por outro lado,
apanhados pelo ressentimento, extraindo ainda as suas forças do ideal ascético. O que eles opõe
à moral e a razão é ainda um ideal, a INTERIORIDADE, este corpo místico em que a razão se
enraíza – a aranha. Falta-lhes o sentido da afirmação, o sentido da exterioridade, a inocência e o
jogo. Não se deve procurar apoio na infelicidade; é na felicidade que é preciso começar.
02. A aposta de PASCAL não tem nada a ver com o lance de dados nietzschiano. Nela,
não se afirma o acaso, mas, a o contrário, se o fragmenta em probabilidades; a existência ou não
de Deus não é posta em jogo; é apenas dividida em dois modos de existência do homem (com e
sem Deus), para daí decidir [já baseado em valores ascéticos]. A Hybris, o espírito de vingança,
o ressentimento, a má-consciência, o ideal ascético, o niilismo, são a pedra-de-toque de qualquer
nietzschiano. É aí que ele pode mostrar se compreendeu ou se desconhece o verdadeiro sentido
do trágico.

CAPÍTULO II

ATIVO E REATIVO (61)

01. O CORPO
01. ESPINOSA abriu nova via às ciências e à filosofia, ao dizer que não sabemos “o que
pode um corpo”. Ainda confundimos o corpo com o espírito. NIETZSCHE sabe que é chegada
a hora da modéstia [a hora de avançar nesse conhecimento-criação da TERRA]. Para ele, a
consciência é um sintoma de uma transformação mais profunda e da atividade de forças de uma
ordem completamente diferente da espiritual. Como FREUD, NIETZSCHE pensa que a
consciência é a região do “eu” afetada pelo mundo exterior. Todavia, a consciência é definida
menos em relação à exterioridade, em termos de real, do que em relação à SUPERIORIDADE,
em termos de valor. Essa diferença é essencial numa concepção geral do consciente e do
inconsciente. Em NIETZSCHE, consciência é sempre consciência de um inferior em relação ao
superior ao qual se subordina ou “se incorpora”. A consciência nunca é consciência de si, mas
consciência de um “eu” em relação ao “eu” que não é consciente. Não é um senhor, mas um
escravo. É consciência do escravo em relação a um senhor que não tem de ser consciente. “A
consciência habitualmente só aparece quando um todo quer subordinar-se a um todo superior...
A consciência nasce em relação a um ser de que nós poderíamos ser função4”. É assim o
servilismo da consciência: testemunha apenas “a formação de um corpo superior”.
02. Não definimos um corpo ao dizer que é um campo de forças, um meio nutritivo que se
disputa uma pluralidade de forças. De fato, não existe “meio”, campo de forças, quantidade de
realidade. Só há quantidades de força em relação de tensão umas com as outras. Qualquer força
está em relação com outras, mandando ou obedecendo. O que define um corpo é essa relação
entre forças dominantes e forças dominadas. Duas forças desiguais constituem um corpo a partir
do momento em que entrem em relação: é por isso que o corpo é sempre fruto do acaso (em
sentido nietzschiano). O acaso, relação de força com força, é além do mais a essência da força;
não nos interroguemos, portanto, como nasce um corpo vivo, já que qualquer corpo vive como
produto “arbitrário” das forças que o compõe5. O corpo é fenômeno múltiplo, sendo composto
por uma pluralidade de forças irredutíveis. A sua unidade é a de um fenômeno múltiplo,
“unidade de dominação”. Num corpo, as forças superiores ou dominantes são ditas ATIVAS, as
inferiores ou dominadas são dotas REATIVAS. Essas são as qualidades originais, que
exprimem a relação da força com a força. Porque, ao haver diferença de quantidade entre as
forças em relação, há também, ao mesmo tempo, diferença de qualidade, que corresponde à sua
diferença de quantidade como tal. Chamar-se-á HIERARQUIA a esta diferença das forças
qualificadas consoante a sua quantidade: forças ativas e reativas.

02. A DESTINAÇÃO DAS FORÇAS


01. Ao obedecer, as forças inferiores não deixam de ser forças. Obedecer é uma qualidade
da força, tal como ordenar. Obedecer e ordenar constituem as duas formas de um torneio. As
forças inferiores (reativas) exercem sua quantidade de força assegurando os mecanismos e as
finalidades, as funções, as tarefas de conservação, adaptação, utilidade. O pensamento moderno
detém-se apenas neste aspecto reativo da força, crê ter feito o suficiente quando as compreende.

4
VP, II, 227
5
Sobre o falso problema de um começo da vida: VP, II, 66 e 68; sobre o papel do acaso: VP, II, 25 e 334
Mas só podemos alcançar as forças reativas como forças (e não mecanismos ou finalidades,
duas macro-interpretações que valem apenas para as forças reativas) se as referirmos às forças
que as dominam, e que não são reativas. As forças de ordem espontânea, agressiva,
conquistadora, transformadora, criadora, têm proeminência fundamental sobre as forças
reativas6.
02. É difícil caracterizar essas forças ativas. Por sua natureza, elas escapam à consciência
(“a grande atividade principal é inconsciente”7). A consciência exprime apenas a relação de
certas forças reativas com as forças ativas que as dominam. A consciência é essencialmente
reativa, como também o hábito, a memória, a nutrição, a adaptação, a reprodução, todas funções
reativas, especializações, expressões de tal ou tal força reativa. É inevitável que a consciência
veja o organismo de seu ponto de vista reativo. O problema do corpo não se dá entre
mecanicismo e vitalismo (ambos apoiados apenas nas forças reativas), mas na descoberta das
forças ativas, sem as quais as próprias reações não seriam forças. A atividade necessariamente
inconsciente das forças é o que faz do corpo algo superior à toda reação. As forças ativas são o
que faz do corpo um “eu”. A verdadeira ciência é a da atividade, mas a ciência da atividade é
também a do inconsciente necessário. É absurdo a ciência seguir os caminhos da consciência; tal
idéia nos remete antes de mais nada à moral.
03. “O que é ativo? Tender para o poder8”. Apropriar-se, dominar, isto é, impor formas,
criar formas explorando as circunstâncias. NIETZSCHE critica DARWIN porque este interpreta
a evolução, e mesmo o acaso na evolução, de maneira reativa. LAMARCK, ao considerar a
existência de uma força plástica ativa, primeira em relação à adaptação, estava mais próximo de
NIETZSCHE. O poder dionisíaco de transformação é a primeira definição de atividade. Não
esqueçamos, porém, que a reação também designa um tipo de forças; elas, entretanto, não
podem ser concebidas como forças se não às referirmos às forças ativas, superiores, que são
precisamente de um outro modo.

03.QUANTIDADE E QUALIDADE
01. NIETZSCHE sempre acreditou que as forças deviam definir-se quantitativamente.
Entretanto, acreditava também que uma definição puramente quantitativa permanecia
incompleta, abstrata, ambígua. Ao mesmo tempo que insiste na definição quantitativa,
NIETZSCHE apresenta outras definições, como “A força reside na qualidade”.
02. Não há contradição entre estes dois posicionamentos: se uma força não é separável de
sua quantidade, também não é separável das outras forças com as quais está em relação. A
6
GM, I, §12
7
VP, II, 227
8
VP, II, 43
PRÓPRIA QUANTIDADE NÃO É PORTANTO SEPARÁVEL DA DIFERENÇA DE
QUANTIDADE [isto é, d a qualidade]. A diferença de quantidade é a essência da força.
Quando NIETZSCHE critica o conceito de quantidade, é a anulação das diferenças de
quantidade que ele critica aí [quando o conceito refere à uma quantificação abstrata e genérica,
por exemplo, a uma diferença puramente quantitativa9] . O que interessa à NIETZSCHE, do
ponto de vista da própria qualidade, é a irredutibilidade da diferença de quantidade à igualdade.
A QUALIDADE distingue-se da QUANTIDADE como aquilo que, na quantidade, não pode ser
igualizado, isto é, é a diferença de quantidade que é impossível de anular.
03. Com o acaso, afirmamos a relação de todas as forças; afirmarmos todo o acaso de uma
vez no pensamento do eterno retorno. Mas o acaso é o contrário de um continuum; o poder das
forças é preenchido na relação com um pequeno número de forças. Os encontros de forças de tal
e tal quantidade são portanto partes concretas do acaso, as partes afirmativas do acaso, como tal
estranhas a qualquer lei. Nesse encontro, cada força recebe a qualidade correspondente à sua
quantidade, isto é, a afecção que preenche efetivamente seu poder. Não se pode, portanto,
calcular abstratamente as forças. Deve-se avaliar concretamente, em cada caso, a sua quantidade
respectiva e o matizado desta qualidade.

04. NIETZSCHE E A CIÊNCIA (69)


01. Entendeu-se a relação e o interesse de NIETZSCHE pela ciência apenas a partir da
confirmação que esta traria (ou não) da teoria do eterno retorno, o que é errado. A relação dá-se
mais em torno da afirmação da diferença, e esta, por sua vez, nos esclarecerá acerca do eterno
retorno. NIETZSCHE critica a ciência em seu manejo da quantidade, seu utilitarismo e
igualitarismo próprios; para ele, a ciência tende a igualizar as quantidades, a compensar as
desigualdades. É por isso que toda a sua crítica se joga em três planos: contra a identidade
lógica, contra a igualdade matemática, contra o equilíbrio físico – CONTRA AS TRÊS
FORMAS DO INDIFERENCIADO.
02. Essa tendência a reduzir as diferenças de quantidade exprime a maneira pela qual a
ciência participa do niilismo do pensamento moderno, o qual, em ciência apresenta-se como
depreciação da existência, promessa de morte indiferenciada (calorífica ou outra) – como
“adiaforia”. A ciência, por vocação, compreende os fenômenos a partir das forças reativas; o
triunfo das forças reativas é o instrumento do pensamento niilista.
03. Tanto a afirmação mecanicista do eterno retorno quanto sua negação termodinâmica
[as duas apreensões “científicas” do eterno retorno] tratam da conservação da energia,
interpretada de tal maneira que se anulam as diferenças de quantidade de energia [o que é

9
Comparar com o “Bergsonismo” de Deleuze.
fundamental para a hipótese nietzschiana do eterno retorno]. Ambas as hipóteses culminam
num estado final ou terminal, indiferenciado, idêntico a si mesmo – o que é completamente
diferente do eterno retorno.
04. O eterno retorno não é um pensamento do idêntico, mas um pensamento do
absolutamente diverso, que reclama para si, fora da ciência, um princípio novo, que explique a
repetição da diferença enquanto tal. No eterno retorno não é o mesmo ou o uno que regressam,
mas o eterno retorno é ele próprio o uno que se diz apenas do diverso e do que difere.

05. PRIMEIRO ASPECTO DO ETERNO RETORNO:


COMO DOUTRINA COSMOLÓGICA E FÍSICA
01. O enunciado do eterno retorno supõe a crítica do estado final ou de equilíbrio. Afinal,
se o devir fosse um processo para chegar a algo, tal objetivo já teria sido alcançado, uma vez
que o passado não deve ter um começo, isto é, deve ser infinito, pois não poderia ter começado
a devir se antes disso houvesse um ser ou estado inicial. [o devir não poder ser o devir DE algo
- um ser ou princípio- , ou um devir PARA algo – um ser ou fim -, porque: 1) se houvesse um
estado inicial (um ser ou equilíbrio anterior ao devir ou passagem), ficar-se-ia nesse estado;
porque esse ser (equilíbrio) começaria a devir? Não havendo estado inicial, o tempo daqui
para traz deve ser infinito (sem começo); como o devir ainda não alcançou nenhum equilíbrio
ou ser (prova-o o instante que passa agora) chega-se a segunda conseqüência: 2) o devir não
tem um objetivo, não tende a um final, não é um processo para um ser, pois se fosse já teria
alcançado seu objetivo, uma vez que o tempo passado é infinito]. Se o universo fosse capaz de
permanência, se tivesse em todo seu curso um só instante de ser no sentido estrito, não poderia
haver devir [o universo permaneceria para sempre no estado de ser ou equilíbrio total; o ser,
como tal, exclui a possibilidade da passagem].
02. O pensamento do puro devir funda o eterno retorno, ao fazer cessar o pensamento do
ser como diverso do devir e fazendo pensar no ser do próprio devir. Qual é o ser do devir, isto é,
o que permanece naquilo que passa e não para de passar, qual é o ser do devir incessante?
RETORNAR É O SER DO DEVIR. Dizer que tudo retorna é estender ao máximo o mundo do
devir e do ser. E mais: para que o instante passe, em proveito de outros instantes, é necessário
que ele seja ao mesmo tempo presente e passado, presente e futuro, é necessário que ele coexista
consigo mesmo como passado e futuro10 [senão o presente seria como o ser absoluto, e deixaria
de devir]. O eterno retorno responde portanto ao problema da passagem. Nesse sentido, não
deve ser interpretado como o retorno do mesmo, do ser, do uno. Não é o ser que retorna, mas o
próprio retornar constitui o ser enquanto se afirma do devir. Não é o uno que retorna, mas

10
Comparar com “Bergsonismo”
retornar e o uno que se afirma do múltiplo. A identidade do eterno retorno não designa a
natureza daquilo que retorna, mas, pelo contrário, o fato de retornar para o que difere [o
“mesmo” a que se retorna é o puro devir ou a pura diferença]. O eterno retorno deve ser
pensado como síntese do tempo e suas dimensões, da diferença e sua repetição, do devir e do ser
que se afirma do devir, síntese da dupla afirmação [do ser e do devir]. O eterno retorno depende
de um outro principio que não o da identidade.
03. O mecanicismo é uma á interpretação do eterno retorno porque implica a falsa
conseqüência de um estado final, idêntico ao inicial, no entremeio dos quais passa-se pelas
mesmas diferenças. Eis a hipótese cíclica, tão criticada por NIETZSCHE. Mas essa hipótese não
dá conta 1) da diversidade dos ciclos coexistentes e, sobretudo 2) da existência do diverso no
ciclo [o que é o próprio cerne da concepção nietzschiana de eterno retorno]. É por isso que só
podemos compreender o eterno retorno como expressão de um princípio que constitui a razão da
diferença e de sua repetição; tal princípio, NIETZSCHE chama de VONTADE DE PODER,
entendendo-a como o “caráter que não se pode eliminar da ordem mecânica sem eliminar essa
própria ordem”11.

6. O QUE É A VONTADE DE PODER?


01. NIETZSCHE acredita que era necessário complementar o conceito d força com um
querer interno, que ele chamou de VP. A VP, assim, é atribuída a força ao mesmo tempo como
complemento e como algo de interno. Entretanto, não é um predicado: não é a força que é
sujeito, não é a força “quem quer”, mas a VP. Ela é ao mesmo tempo genética com relação à
força – por ela brotam as diferenças de quantidade das forças em relação – e diferencial, ainda
com relação à força – essas diferenças de quantidade expressam-se, na relação, como
qualidades. A VP é o princípio para a síntese das forças; nessa síntese as forças tornam a passar
pelas mesmas diferenças, e o diverso se reproduz. A síntese é, portanto, a das forças, da sua
diferença e da sua reprodução – isto é, o eterno retorno; o eterno retorno é a síntese de que a VP
é o princípio., Note-se que a VP é um princípio essencialmente plástico, que não é maior do que
aquilo que condiciona; ele se metamorfoseia com o condicionado, ele se determina em cada
caso com o condicionado; a VP não é separável de tais e tais forças.
02. Inseparável, entretanto, não quer dizer idêntico. Separar a VP da força é cair na
abstração metafísica; confundi-las é recair no mecanicismo [esquecer que a diferença e a
relação é que são essenciais na força]. As relações da força com a força são relações de
dominação; mas essas relações permanecem indeterminadas enquanto não se acrescenta à força
um elemento que as determine sob o duplo aspecto da gênese recíproca das diferenças de

11
VP, II, 374
quantidade e da gênese absoluta de sua qualidade respectiva. A VP é o elemento genealógico da
força e das forças. É pela VP que uma força se abate sobre outra, que uma força comanda outra,
e é ainda por ela que uma força obedece outra.
03. O conceito de síntese está no centro do kantismo. Os pós-kantianos censuravam a
KANT por 1) não ter apresentado um princípio que regesse a síntese sem ser apenas
condicionante em relação aos objetos, mas verdadeiramente genético e produtor (princípio de
diferença ou determinação interna), e 2) do ponto de vista da reprodução dos objetos na própria
síntese, pedia-se ao princípio uma razão não só para a síntese, mas para a reprodução do diverso
na síntese enquanto tal. NIETZSCHE parece ter levado a crítica kantiana adiante, em novas base
e direção, com os conceitos de eterno retorno e VP.

7. A TERMINOLOGIA DE NIETZSCHE (81)


01. NIETZSCHE emprega novos termos muito precisos para novos conceitos muito
precisos:
1) NIETZSCHE chama VP ao elemento genealógico, isto é, diferencial e
genético, da força, a VP é o elemento de produção das diferenças de quantidade (el. diferencial)
e da produção da qualidade que conduz cada força (el. genético). A VP não suprime o acaso; ela
apenas reúne forças postas em relação pelo acaso; somente a VP afirma integralmente o acaso.
2) Consoante sua diferença de quantidade, as forças são ditas dominantes
ou dominadas; conforma sua qualidade, as forças são ditas ativas ou reativas. Há VP em todas.
3) As qualidades (como as quantidades) têm seus princípios na VP. Mas
esta também têm qualidades: ativo e reativo designam as qualidades originais da força, e
afirmativo e negativo as qualidades primordiais da VP. Assim como a reação é também uma
qualidade da força, a negação é uma qualidade da VP. Há relações complexas entre estas
qualidades. As qualidades da força podem ser instrumentos ou meios da VP que afirma ou nega;
por outro lado, a ação e a reação necessitam das qualidades da VP para alcançar seus objetivos.
Por fim, afirmação e negação são as QUALIDADES IMEDIATAS DO DEVIR: a afirmação
não é ação, mas o poder de se tornar ativo, o DEVIR ATIVO, assim como a negação, não sendo
simplesmente reação, constitui um DEVIR REATIVO. Tudo se passa como se afirmação e
negação fossem simultaneamente imanentes e transcendentes em relação à ação e à reação.
4) Por tudo isso NIETZSCHE pode dizer: a VP não é apenas o que
interpreta, mas também o que avalia. Interpretar é determinar a força que dá um sentido à coisa.
Avaliar é determinar a VP que dá à coisa um valor. Nem os valores nem os sentidos se deixam
abstrair, portanto, absolutamente. A arte da filosofia, como interpretação e avaliação, é tanto
mais complicada quanto ambos se remetem e se prolongam, mutuamente. Falar da nobreza dos
valores em geral testemunha um pensamento interessado em esconder sua própria baixeza. Não
se deve esquecer nunca que avaliar = criar.

8. ORIGEM E IMAGEM INVERTIDA


01. Na origem existe a diferença das forças ativas e reativas, que não se sucedem, mas
coexistem; da mesma forma, a cumplicidade entre as forças ativas e a afirmação, das forças
reativas e a negação, se revela já no princípio. O negativo, de saída, já está do lado da reação,
assim como apenas a força ativa se afirma, afirma a sua diferença, faz da diferença um objeto de
alegria e afirmação. A força reativa, mesmo quando obedece, limita a força ativa, lhe impõe
restrições. Por isso a própria origem comporta uma imagem invertida de si, acompanhando-a; o
que é “sim” do ponto de vista das forças ativas torna-se “não” do ponto de vista das reativas.
Assim, a genealogia encontra sua caricatura na imagem que dela dá o “evolucionismo”,
essencialmente reativo. O característico das forças reativas é negar a diferença que as constitui
na origem, dando dela uma imagem deformada. Por isso não se compreendem a si mesmas
como forças, preferindo voltar-se contra si mesmas à compreender-se como tal. A mania de
interpretar ou avaliar os fenômenos a partir de forças reativas têm sua origem nessa imagem
invertida.
02. No caso de as forças reativas apoderarem-se e neutralizarem as forças ativas,
invertendo os valores de fato, não mais apenas na origem, elas tornam-se, por isso, ativas e
dominadoras? Não. Elas não formam no seu todo uma força maior e ativa, pois triunfam pela
vontade negativa, vontade de nada. Sua dominância sobre as forças ativas não é ela mesma
ativa; o que acontece é que as forças reativas dominam transformando as forças ativas em
reativas, e não tornando-se elas mesmas ativas. A transformação das forças ativas em um tipo de
forças reativas dá-se SEPARANDO AS FORÇAS ATIVAS DAQUILO QUE ELAS PODEM.
As figuras do triunfo reativo no mundo humano – o ressentimento, a má-consciência, o ideal
ascético – mostram-no: as forças reativas não triunfam pela composição de uma força superior
às forças ativas, mas pela subtração/separação/despotencialização das forças ativas. Em cada
caso, essa separação repousa sobre uma ficção ou falsificação, através da qual a força ativa é
separada daquilo que ela pode.

9. O PROBLEMA DA MEDIDA DAS FORÇAS


01. É por isso que não se pode medir as forças com uma unidade abstrata, nem determina-
las tomando por critério apenas o estado real, factual [atual?], de um sistema. As forças
inferiores podem apoderar-se das forças fortes sem deixar de ser reativas, escravas. Contra
DARWIN e o evolucionismo, NIETZSCHE nota que a efetividade favorece os fracos. No
domínio da interpretação não há fatos, somente interpretações.
02. É reativo tudo o que separa uma força; é reativo o estado de uma força separada
daquilo que pode. É ativa qualquer força que vá até o limite de seu poder. [Por isso, mesmo
quando dominam, as forças reativas não deixar de ser reativas, pois “se comportam” como
reativas, a saber, não indo até o limite de sua potência, separando as forças ativas de sua
potência].

10. A HIERARQUIA (91)


01. Os livre-pensadores, o positivismo moderno, continuam a posição socrática segundo a
qual, se as forças reativas triunfam, é porque são mais fortes que as forças ativas; assim é que o
moderno se inclina perante o “fato consumado” [abdicando de uma crença absoluta e
transcendente para cair num absolutismo do “efetivo”]. O positivismo pretende abdicar dos
valores transcendentais apenas para reencontra-los como os “fatos mais fortes” que conduzem o
mundo atual. O livre-pensador faz a crítica dos valores sem criticar sua qualidade. Mas o fato é
sempre o dos fracos contra os fortes; o fato é sempre estúpido. Ao livre-pensador NIETZSCHE
opõe o espírito-livre, o próprio espírito da interpretação.
02. A palavra hierarquia vincula-se, em NIETZSCHE, à duas idéias: em primeiro lugar à
diferença entre as forças ativas (superiores) e as forças reativas (inferiores), e em segundo lugar
ao triunfo das forças reativas sobre as ativas e a organização complexa que daí resulta.
03. FRACO NÃO É O MENOS FORTE, mas o que está separado daquilo que pode; o
menos forte é tão forte quanto o forte se for até o limite do que pode. A medida das forças e sua
qualificação NÃO dependem da quantidade absoluta, mas da EFETUAÇÃO RELATIVA das
forças. Não se mede a partir do sucesso ou fracasso. Apenas se julga acerca das forças levando
em conta em primeiro lugar sua qualidade (ativa ou reativa), em segundo lugar a afinidade desta
qualidade com o pólo correspondente da VP (afirmativo/negativo), e em terceiro lugar a
diferença de qualidade que a força apresenta em seu desenvolvimento, em relação à sua
afinidade com a VP.

11. VONTADE DE PODER E SENTIMENTO DE PODER


01. A VP se manifesta na força como um poder de ser afetado, poder não abstrato, mas
efetuado a cada instante pelas forças com as quais se relaciona. Assim é que a VP determina a
relação das forças entre elas, do ponto de vista de sua gênese, mas é determinada por elas do
ponto de vista da sua manifestação (isto é, da manifestação da VP). Por isso o determinante não
é maior ou absoluto ou indiferenciado frente aos determinados.
02. O poder de ser afetado não significa necessariamente passividade, mas afetividade,
sensibilidade, sensação. Um corpo tem tanto mais força quanto mais pode ser afetado [entrar
em relação de diversas maneiras]. O elemento diferencial da força manifesta-se como sua
sensibilidade diferencial. Agregar, desagregar, dominar ou obedecer exprimem sempre a VP.
Esse poder de ser afetado não é comprido sem que a força correspondente entre num devir
sensível.
03. Toda a sensibilidade é apenas um devir das forças. Existem vários devires da força, A
VP manifesta-se, em primeiro lugar, como sensibilidade das forças; em segundo lugar, como
devir sensível das forças. Um estudo concreto das forças implica necessariamente uma
dinâmica.

12. O DEVIR-REATIVO DAS FORÇAS


01. A dinâmica das forças conduz a uma conclusão desoladora: as forças ativas devêm
reativas [devieram até agora?]. De fato, não conhecemos outros devires. Podemos mesmo
perguntar se existirão outros devires. Seria, talvez, necessária uma outra sensibilidade para
poder sentir estes outros devires. O devir reativo, o niilismo, é constitutivo da humanidade no
homem.
02. Essa condição do homem é da maior importância para o eterno retorno; parece
contamina-lo tão gravemente que o eterno retorno se torna objeto de angústia, repulsão e mágoa.
Mesmo que as forças ativas retornem, retornarão reativas, eternamente. “O eterno retorno do
homem pequeno” – eis o que angustiava ZARATUSTRA, [o que fazia o próprio retorno das
forças ativas tornar-se algo como um “em vão”, e com isso, tenderem à reatividade, tender a
querer o fim]. Mas existe um outro devir, existe uma outra sensibilidade, que NIETZSCHE
nomeia como super-homem.

13. A AMBIVALÊNCIA DO SENTIDO E DOS VALORES (100)


01. As forças ativas tornam-se reativas ao serem separadas daquilo que podem pelas forças
reativas. Inversamente, as forças reativas, sendo reativas até o limite de sua reação, não se
tornarão ativas, dado que ir ao limite do que pode é o que define a força ativa? As forças
reativas apenas triunfam indo até o limite das suas conseqüências, e portanto formando uma
força ativa.
02. Esta é uma ambivalência cara à NIETZSCHE A doença, por exemplo, se por um lado
separa-me daquilo que posso, por outro lado empresta-me perspectivas inusitadas e interessantes
(sobre a saúde, sobre a relação do pensamento com o corpo, da mais frieza e crueldade ao
pensamento, etc). Há qualquer coisa de admirável no devir-reativo das forças.
03. Há, certamente, diferentes formas de reatividade, conforme se desenvolva a afinidade
com a vontade de nada; a doença pode servir à saúde, mas pode também ser um instrumento de
escravidão. Do mesmo modo, o genealogista deve saber interpretar o grau de desenvolvimento
da relação entre ação e afirmação. Há forças reativas que se tornam grandes e fascinantes à força
de seguir a vontade de nada, assim como há forças ativas que caem, por não saber seguir os
poderes da afirmação.
04. Não basta, assim, ir até o limite do que pode para tornar-se ativo; é preciso ver se há
afirmação da própria diferença, ou se há negação do que difere. Além de ir até o limite do que
pode, uma força deve fazer daquilo que pode objeto de afirmação, para então tornar-se ativa.

14. O SEGUNDO ASPECTO DO ETERNO RETORNO:


COMO PENSAMENTO ÉTICO E SELETIVO
01. Nem sentido nem conhecido, um devir-ativo só pode ser pensado como o produto de
uma seleção dupla e simultânea – da atividade da força e da afirmação na vontade – seleção
cujo princípio é o eterno retorno. O eterno retorno, como doutrina física, era a nova formulação
da síntese especulativa kantiana. Como pensamento ético, o eterno retorno é a nova formulação
da síntese prática, e eis aí a sua primeira seleção: “seja lá o que quizeres, queira-o de tal maneira
a também querer o seu eterno retorno”. O pensamento do eterno retorno seleciona, fazendo do
querer qualquer coisa de inteiro, fazendo do querer uma criação, e eliminando do querer o que
não pode ser querido eternamente, isto é, o que não entra no eterno retorno. Com isso afasta-se o
pensamento mesquinho e as pequenas compensações, que permitem um ato apenas porque ele é
feito “somente uma vez”.
02. Essa primeira seleção vale para as forças reativas menores. As maiores, que não se
deixam abdicar e entram no eterno retorno, precisam de uma segunda seleção, na qual, no e pelo
eterno retorno, as forças reativas serão separadas da vontade de negação, fazendo a negação
negar as próprias forças reativas. É o eterno retorno que torna esse niilismo das forças
completo, ao operar essa auto-destruição. Essa auto-destruição é uma destruição ativa de si; é
ela que exprime o devir-ativo das forças: as forças tornam-se ativas na medida em que as forças
reativas se negam, perecendo pelo mesmo princípio que antes assegurava sua conservação (a
negação). A negação torna-se devir-ativo, afirmação [ao ir até o limite do que pode, afirmando-
se como negação, mas NESSA afirmação destruindo-se] A segunda seleção do eterno retorno
produz o devir-ativo. As forças reativas não retornam. No eterno retorno, a negação torna-se
afirmação, ao tornar-se afirmação da própria negação. A segunda seleção faz entrar no ser
aquilo que aí não pode entrar sem mudar de natureza12.

12
Comparar, mais uma vez, com Bergson, no Bergsonismo, de Deleuze, quanto à definição de duração.
15. O PROBLEMA DO ETERNO RETORNO
01. Tudo isso deve ser clarificado mais adiante. Por hora retenhamos que o eterno retorno
transforma a negação em poder supremo da afirmação.
02. O eterno retorno é o ser do devir, na visão cosmológica, mas afirma somente o devir-
ativo desse ser, na visão da ontologia seletiva. Afinal, seria contraditório que a vontade de
negação e de nada quisesse seu eterno retorno; como o eterno retorno é o ser do devir, a vontade
de negação não tem ser, e não retorna.

CAPÍTULO III

A CRÍTICA

01. TRANSFORMAÇÃO DAS CIÊNCIAS DO HOMEM (111)


01. Nas ciências predominam os conceitos passivos, reativos, negativos. Nas ciências do
homem não é diferente: a “utilidade”, a “adaptação”, a “regulação”, o “esquecimento”, são
outros tantos ‘conceitos’ que servem de explicação, mas que tomam as coisas somente pelo lado
reativo. Ama-se o “verdadeiro” e o “fato”. Nunca a ciência foi tão longe numa direção, mas
também nunca o homem se submeteu tanto ao ideal e à ordem estabelecida.
02. O utilitarismo não é uma doutrina ultrapassada, ou só o é com a condição de ter
inserido seus postulados nas doutrinas que a ultrapassam. NIETZSCHE pergunta: quem
considera uma ação do ponto de vista de sua utilidade? Não aquele que age; este não
“considera” a ação, mas age. É um terceiro, que não age, quem “considera” a ação, e considera
exatamente porque não age. O utilitarismo, como todos os conceitos passivos, brota do
ressentimento. Essa abstração, que substitui as relações reais, as atividades concretas, por
abstrações tomadas do ponto de vista de um terceiro que não age, pertence ao gosto da ciência e
da filosofia. Confunde-se a essência da atividade com o benefício de um terceiro (Deus, o
espírito objetivo, a humanidade, a cultura, o proletariado, etc).
03. Mas o segredo da palavra não está do lado de quem escuta, nem o segredo da vontade
do lado de quem obedece, nem o segredo da força do lado de quem reage. A lingüística ativa,
por exemplo, deve procurar descobrir aquele que fala e aquele que nomeia. Quem é que se serve
de tal palavra, a que é que a a aplica, com que intenção, o que quer dizer ao dizer. A
transformação do sentido de uma palavra significa que outra força e vontade dela se
apoderaram.
04. Uma ciência verdadeiramente ativa, à exemplo dessa lingüística, uma ciência das
forças, seria uma sintomatologia (porque interpreta os fenômenos tratando-os como sintomas,
cujo sentido é dado pelas forças que o produzem), uma tipologia (porque interpreta as próprias
forças em sua qualidade) e uma genealogia (porque avalia a origem das forças em sua nobreza
ou baixeza). Tal concepção dá unidade às ciências e mesmo à relação desta com a filosofia. O
filósofo é tal sintomatogista – tipologista – genealogista; filósofo médico, artista e legislador.

02. A FÓRMULA DA QUESTÃO EM NIETZSCHE


01. A metafísica formula a questão da essência sob a forma: “o que é...?”, forma
intimamente vinculada à oposição entre essência e aparência, ser e devir, que tem seus começos
em SÓCRATES e PLATÃO.
02. Não “o que é”, mas “quem”, dever-se-ia perguntar. Essa questão significa: dado algo,
quais são as forças que dele se apoderam, qual a vontade que a possui? Quem se exprime, se
manifesta, se esconde nele? Somos conduzidos à essência pela questão “quem”, pois A
ESSÊNCIA É APENAS O SENTIDO E O VALOR DAS COISAS. A essência, o ser, é uma
realidade perspectivada e supõe uma pluralidade. No fundo, a questão “o que é” também
significa “quem?”, pois quer dizer sempre “o que é para mim?”; é a mesma questão, mas mal-
formulada. A arte pluralista não nega a essência, apenas a faz depender em cada caso de uma
afinidade de fenômenos e de forças. Em última instância é sempre a VP quem quer.

03. O MÉTODO DE NIETZSCHE


01. Dessa forma de questão deriva um método: dado um conceito, sentimento ou crença,
deve-se trata-los como sintomas de uma vontade que quer alguma coisa; trata-se de mostrar que
não se poderia dizê-lo, senti-lo ou pensá-lo se não tivesse tal vontade, tais forças. – Querer não é
um ato como qualquer outro: ele é a instância simultaneamente genética e crítica de todas as
nossas ações, sentimentos e pensamentos.
02. Não nos iludamos: o que a vontade quer não é um objeto, um fim ou um motivo; tudo
isso são ainda sintomas. O que uma vontade quer, conforme a sua qualidade, é afirmar a sua
diferença ou negar aquilo que difere; o que uma vontade quer é sempre a sua própria qualidade,
e a qualidade das forças correspondentes. Assim, perguntar “o que quer aquele que pensa isso?”
é apenas o desenvolvimento metódico da questão “quem?”, pois sua resposta não é tanto uma
COISA quanto a constituição de um TIPO. E um tipo se constitui pela qualidade da vontade de
poder. Só se define um tipo ao determinar o que quer a vontade nos exemplares desse tipo. Eis,
assim constituído, o método de dramatização, o método trágico nietzschiano.
03. Esse método ultrapassa seu caráter antropológico apontando para outros tipos e outras
relações de força que não a do homem e suas forças reativos [isto é, o homem até-agora]. O
inumano e o sobre-humano também são dramatizáveis, também expressam um tipo; por isso o
método ultrapassa o homem, encontrando nele coisas que vão além dele.

04. CONTRA SEUS PREDECESSORES (120)


01. O conceito de VP existia e existiu antes e depois de NIETZSCHE, mas sempre
querendo dizer que a vontade quer o poder, como um fim, ou que o poder é seu móbil. Se
NIETZSCHE pôde entender que a VP é, em sua teoria, um conceito original, é justamente
porque ela NÃO é algo que quer o poder. Tal concepção implica pelo menos três contra-sensos:
02. 1º: interpreta-se o poder como objeto de uma representação;
qualquer poder é tido como representado, e qualquer representação é a representação do poder;
o fim da vontade é o objeto da representação, e vice-versa. Em HOBBES o homem quer ver sua
superioridade representada, e HEGEL a consciência quer ser reconhecida por outrem, etc; o
poder é sempre objeto de uma representação e uma recognição (comparação). Mas nos adverte
NIETZSCHE: é o escravo quem quer aparecer sempre como superior. O que nos é apresentado
como o poder ou o senhor é apenas a representação que o escravo se faz do poder e do senhor.
Essa necessidade de atingir a aristocracia é o sintoma mais eloqüente justamente de sua
ausência. A noção de representação envenena a filosofia; ela é produto direto do escravo e da
relação entre os escravos;
03. 2º: A noção do poder como representação depende
fundamentalmente do reconhecimento ou não dessa representação, e assim submete-se a VP,
como vontade de se fazer reconhecer, aos valores em curso numa dada sociedade. Toda a
concepção de VP, de HOBBES a HEGEL, pressupõe a existência de valores estabelecidos que
as vontades apenas procuram atribuir-se. Mas essa filosofia desconhece absolutamente a VP
como CRIAÇÃO de novos valores.
04. 3º. De HOBBES a HEGEL, os valores estabelecidos o são apenas
ao final de uma luta, assim como toda luta trava-se em torno de valores estabelecidos: luta pelo
poder, pelo reconhecimento ou pela vida, o esquema é sempre o mesmo. Mas as noções de luta,
guerra, rivalidade e mesmo comparação são estranhas à NIETZSCHE e à sua concepção de
vontade de poder. Ele não nega a existência da luta, mas ela parece-lhe destituída de criação de
valores, ou cria apenas valores do escravo que triunfa. A luta não é o princípio ou o motor da
hierarquia, mas o meio através do qual o escravo inverte a hierarquia; não é a expressão ativa
das forças, nem expressão da VP que afirma.

05. CONTRA O PESSIMISMO E CONTRA SCHOPENHAUER


01. Esses três contra-sensos davam à vontade um tom lamentável; todo aquele que dela se
aproximava gemia. Ela parecia insustentável e enganadora, e isso explica-se facilmente: ao fazer
da VP um “desejo de dominar”, via-se o infinito e o sem fim nesse desejo; fazendo do poder o
objeto de uma representação via-se o caráter irreal do poder; comprometendo a VP num
combate, via-se a contradição na própria vontade. Para todos os pontos de vista anteriores,
somente uma LIMITAÇÃO racional ou contratual da vontade poderia torna-la suportável e
resolver suas contradições.
02. SCHOPENHAUER leva essa concepção de vontade às ultimas conseqüências. Não se
contenta com uma essência da vontade, mas faz da vontade essência das coisas. Então sua
objetivação, o que ela quer, é a representação, a aparência, e daí vêm a fórmula do querer-viver:
o mundo como vontade e representação, a contradição entre ambas sendo a contradição
original13. Leva-se adiante a mistificação kantiana, que negou a distinção entre dois mundos (o
sensível e o supra-sensível), ao fazer da vontade a essência das coisas, mas manteve a distinção
entre essência e aparência, distinção essa que funcionava exatamente como funcionava a
anterior dualidade. Fazendo dessa vontade a essência do mundo, faz-se dele também pura
ilusão. Por isso não basta a SCHOPENHAUER uma limitação da vontade: é preciso que ela se
negue a si própria, integralmente.

06. PRINCÍPIOS PARA A FILOSOFIA DA VONTADE


01. A filosofia da vontade segundo NIETZSCHE deve substituir a antiga metafísica. Essa
filosofia possui dois princípios, que constituem a “alegre mensagem”: QUERER = CRIAR, e
VONTADE = ALEGRIA. Esses dois princípios, a primeira vista vagos e indeterminados,
tornam-se precisos quando se compreende seu caráter crítico, isto é, a maneira como eles se
relacionam com as anteriores concepções de vontade (como VP que quer a representação e a
atribuição dos valores correntes através de uma disputa, o que resulta numa noção
necessariamente aprisionante, ilusória e sofrida do querer). Contra esse aprisionamento da
vontade, NIETZSCHE anuncia que o querer liberta; contra a dor da contradição da vontade,
NIETZSCHE anuncia que a vontade é alegre. Contra a imagem de uma vontade que aspira a
fazer-se atribuir valores estabelecidos, NIETZSCHE anuncia que querer é criar novos valores.

13
Ver capítulo sobre o Nascimento da Tragédia, no início deste resumo
02. VP não quer dizer vontade que quer o poder; significa, ao contrário, que o poder é
aquilo que quer na vontade. O poder é na vontade o elemento genético e diferencial. É por isso
que a VP é essencialmente criadora. O que o poder quer é a relação de forças, as qualidades das
forças. Ele não pode ser representado, interpretado ou avaliado porque é “o que” interpreta,
avalia e quer. A VP é essencialmente criadora e doadora: não aspira, procura ou deseja, mas
DÁ. O elemento criador de sentido e dos valores é também necessariamente um elemento
crítico. Assim como o nobre “vale mais “ que o vil apenas porque passa pela prova do ER, pelo
qual o vil retorna como nobre, a crítica é a negação sobre uma forma nova>: destruição tornada
ativa, agressividade profundamente ligada à afirmação. A crítica é a destruição como alegria, a
agressividade do criador. O criador de valores não é separável de um destruidor, de um
criminoso e de um crítico.

07. PLANO DE “A GENEALOGIA DA MORAL” (131)


01. A Genealogia da Moral tem um duplo interesse: é uma chave para a interpretação dos
aforismos e analisa em pormenor o tipo reativo. Esse duplo aspecto não é casual: afinal, são as
forças reativas que se opõe à arte de interpretar, à genealogia, à hierarquia. Os dois aspectos da
Genealogia da Moral constituem, portanto, a crítica.
02. Na 1.ª dissertação, NIETZSCHE apresenta o ressentimento como um paralogismo da
força separada daquilo que ela pode; na 2ª dissertação, NIETZSCHE sublinha que a má-
consciência é antinômica por natureza, exprimindo uma força que se vira contra si; a 3.ª
dissertação, sobre o ideal ascético, reenvia para a mais profunda mistificação, a do ideal que
compreende todos os outros, todas as ficções da moral e do conhecimento.
03. Eis a estrutura formal da Genealogia da Moral; se se renunciar a acreditar que seja
fortuita, é necessário concluir que NIETZSCHE, nela, pretendia refazer a Critica da razão pura.
Paralogismo da alma, antonímia do mundo, mistificação do ideal: para NIETZSCHE, a idéia
crítica e a filosofia são uma unidade; KANT, embora indo nessa direção, não realizou a idéia até
o fim. A crítica em KANT esgota-se no compromisso – é a crítica mais conciliadora que já se
viu, nunca nos faz superar as forças reativas que se exprimem no homem, na consciência de si,
na razão, na moral.

08. NIETZSCHE E KANT DO PONTO DE VISTA DOS PRINCÍPIOS


01. KANT é o primeiro filósofo que compreendeu a crítica como devendo ser total (nada
lhe deve escapar) e positiva (não restringe o poder de conhecer sem libertar outros poderes até aí
negligenciados). Mas ele não efetua isso; parece ter confundido a positividade da crítica com o
humilde reconhecimento dos direitos do criticado. No fim, acabou somente levando adiante uma
velha concepção da crítica, que postula a critica de todas as pretensões ao conhecimento, a
verdade e à moralidade, mas não critica o conhecimento, nem a verdade, nem a moralidade. Os
três ideais kantianos permanecem incriticáveis: o verdadeiro conhecimento (o que é que posso
saber?), a verdadeira moral (o que é que devo fazer?), a verdadeira religião (o que é que devo
esperar?).
02. A crítica não fez nada enquanto não se aplica à própria verdade, sobre o verdadeiro
conhecimento, a verdadeira moral, a verdadeira religião. Para NIETZSCHE, o único princípio
possível de uma crítica total é seu “perspectivismo”. O fato de não existir fato nem fenômeno
moral, mas sim uma interpretação moral dos fenômenos; o fato de não haver ilusão no
conhecimento, mas de o conhecimento ser uma ilusão. O conhecimento é um erro, uma
falsificação.

09. REALIZAÇÃO DA CRÍTICA


01. O gênio de KANT foi ter concebido uma crítica imanente. A crítica não deveria ser da
razão pelo sentimento, pela experiência ou algo exterior a ela mesma. E o criticado não deveria
igualmente ser exterior à razão: não deveria procurar na razão os erros provenientes de outros
lugares, corpo, sentidos ou paixões. KANT concluiu assim que a crítica deveria ser da razão
pela razão. Colocando-a, entretanto, como ré e juiz de si mesma, não conseguir realizar a crítica:
faltava-lhe um método que lhe permitisse julgar a razão desde dentro, sem lhe confiar seu
próprio julgamento. E NIETZSCHE tem esse método na VP, princípio de uma gênese interna.
02. O filósofo-legislador, em NIETZSCHE, aparece como o filósofo do futuro; legislação
significa criação de valores. Não que o filósofo deva comandar porque é o melhor colocado para
submeter-se a sabedoria, e assim encontrar as melhores leis – o filósofo NÃO é um sábio, o
filósofo é aquele que deixa de obedecer, que arrasa todos os velhos valores e cria novos. Para
ele, o conhecimento é criação, a sua obra consiste em legislar, sua vontade é VP. A idéia de
filosofia legisladora enquanto filosofia completa a de crítica interna enquanto crítica,
constituindo ambas a contribuição principal do kantismo.
03. Para KANT, entrementes, o que é legislador (num domínio) é sempre uma de nossas
faculdades: a razão, o entendimento. Nós próprios somos legisladores à medida que observamos
o bom uso desta faculdade, na medida em que obedecemos a ela como a nós próprios. Mas o
entendimento, a razão, tem uma história: o que é que obedecemos neles? A razão representa
nossas submissões como outras tantas superioridades que nos fazem seres razoáveis. A famosa
unidade kantiana de legislador e sujeito é apenas uma vitória de teólogo, é um carregar-nos com
a dupla tarefa do sacerdote e do fiel, do legislador e do sujeito. Este legislador e este sacerdote
apenas interiorizam os valores em curso.
10. NIETZSCHE E KANT DO PONTO DE VISTA DAS CONSEQUÊNCIAS
01. A oposição entre a concepção nietzschiana de crítica e a concepção kantiana resume-se
a cinco pontos: 1° nada de princípios transcendentais, mas princípios genéticos e
plásticos, que dêem conta do sentido e do valor das crenças, interpretações e avaliações; 2º nada
de um pensamento que se creia legislador enquanto obediência à razão, mas um pensamento que
pense CONTRA a razão. É um erro achar que o irracionalismo opõe à razão outra coisa que não
o pensamento (como sejam a emoção, a experiência, a paixão, etc); o que se opõe à razão é o
próprio pensamento; o que se opõe ao ser razoável é o próprio pensador; 3° não o legislador à
moda kantiana, mas o genealogista: este é o verdadeiro legislador; 4° nada de ser razoável,
funcionário dos valores em curso, simultaneamente sacerdote e fiel. Mas então quem conduz a
crítica? Nenhuma forma sublimada do homem, razão , espírito, consciência de si, nenhum
“homem realizado”, nenhum Deus, mas a VP, que se expressa nesse homem relativamente
sobre-humano, o homem enquanto quer ser ultrapassado (sendo o super-homem o produto
positivo da crítica); 5° o objetivo da crítica não são os fins do homem ou da razão, mas o
super-homem, o homem superado, ultrapassado. Na crítica não se trata de justificar, mas de
sentir diferentemente: uma outra sensibilidade.

11. O CONCEITO DE VERDADE


01. KANT é o último dos filósofos clássicos, pois nunca põe em questão o valor da
verdade, nem as razões para nossa submissão ao verdadeiro. Sabe-se que o homem raramente
procura a verdade: nossos interesses assim como nossa estupidez separam-nos do verdadeiro
ainda mais do que nossos error. Mas os filósofos pretendem que o pensamento enquanto tal
procura o verdadeiro (evitando assim relacionar a verdade com uma vontade concreta, com um
tipo de forças, com uma qualidade da VP). NIETZSCHE não critica as falsas pretensões à
verdade, mas a própria verdade como ideal.
02. O conceito de verdade qualifica um mundo como verídico, este mundo supondo um
homem verídico que é como seu centro. Entretanto, é claro que a vida quer o engano, que visa
iludir, seduzir, cegar. Querer o verdadeiro é querer antes de mais nada depreciar esse poder do
falso, ao fazer da vida um “erro”, uma “aparência”. Opõe-se vida e conhecimento, opõe-se o
“mundo verídico” ao mundo real. O mundo verídico não é separável dessa vontade de tratar este
mundo como aparência. O homem verídico, que não quer enganar, quer um mundo melhor; com
isso ele denuncia, moralmente, as aparências. Não é a utilidade que o leva a tanto: num mundo
radicalmente falso, querer ser verdadeiro é que seria perigoso. Assim, a oposição entre o
“mundo verdadeiro” e o “mundo aparente” é uma oposição de origem moral. Essa oposição
moral é sintoma de uma vontade que quer voltar a vida contra a vida. Uma vontade religiosa,
ascética, portanto.
03. Essa vontade ascética quer o triunfo das forças reativas. Aqui [em sua relação com a
verdade], elas descobrem seu aliado: o niilismo, a vontade de nada. O niilismo anima todos os
valores que se dizem “superiores” à vida. Sob a égide de tais valores, a vida fica separada
daquilo que ela pode (isto é, fica reativa).
04. O conhecimento, a moral e a religião; o verdadeiro, o bem e o divino; o ideal ascético,
outro nome deste terceiro elemento, constitui o valor e o sentido dos outros dois. Está claro que
o conhecimento, a ciência, a “verdade a todo preço” não comprometem seriamente o ideal
ascético, que é o que lhes dá sentido e valor. “A partir do momento que o espírito está em ação
com seriedade, energia e probidade, torna-se absolutamente ideal... é por essa altura que quer a
verdade”14.

12. CONHECIMENTO, MORAL E RELIGIÃO


01. A moral substituiu a religião como dogma, e a ciência tende cada vez mais a substituir
a moral. A moral é a continuação da religião por outros meios; o conhecimento é a continuação
da moral e da religião, mas por outros meios. É sempre o ideal ascético por outros meios, outras
forças reativas. Por isso se confunde a crítica com um ajuste entre forças reativas diversas.
02. Quando NIETZSCHE diz que o cristianismo, enquanto dogma, foi destruído por sua
própria moral (que se proíbe a mentira de crer em Deus), e que o cristianismo, enquanto moral,
deve sucumbir à vontade de verdade, não se trata de uma evolução, no sentido de que a vontade
de verdade deve dar um fim ao cristianismo, pois em todos esses âmbitos trata-se ainda do ideal
ascético. Pelo contrário, a vontade de verdade, expressando-se como a pergunta pelo significado
e pelo valor da própria vontade de verdade, quebra a série do ideal ascético, quebra seu último
esconderijo, quebra a si própria. Essa quebra, esse questionamento, é o instante que antecede e
preside a elevação. [o niilismo como conseqüência extrema do ideal ascético, mas também
como começo de uma outra maneira de sentir]

13. O PENSAMENTO E A VIDA (150)


01. NIETZSCHE censura frequentemente a pretensão do conhecimento de se opor à vida,
de medi-la e julga-la; ele, simples meio, quer erigir-se em fim. Tal é sintoma de uma vida que
quer se opor à vida; o conhecimento, ao restringir a vida ao observável, por exemplo, separa-a
do que ela pode, tornando-a reativa; esse mesmo conhecimento é constituído já sob um modelo

14
Genealogia da Moral, III, §27
de uma vida reativa. NIETZSCHE censura também o pensamento quando se coloca apenas a
serviço dessa vida reativa.
02. O conhecimento legislador (kantiano) significa a dupla e simultânea submissão do
pensamento á vida razoável e da vida à razão. A crítica, como crítica do conhecimento, deverá
ser capaz de dar outro sentido ao pensamento: um pensamento que iria até o limite daquilo que a
vida pode, que conduziria a vida até o limite do que ela pode. Um pensamento que afirmaria a
vida. A vida seria a força ativa do pensamento e o pensamento o poder afirmador da vida.
Pensar seria descobrir, inventar novas possibilidades de vida, a vida ultrapassando os limites
que o conhecimento lhe fixa, o pensamento ultrapassando os limites que a vida lhe fixa. O
pensador como uma bela afinidade entre pensamento e vida, instintos assentados em solos
contrários que, relacionados, se impulsionam mutuamente para adiante. Essa afinidade entre
pensamento e vida é também a essência da arte.

14. A ARTE
01. A concepção nietzschiana de arte, concepção trágica, repousa sobre dois princípios: o
primeiro diz que a arte é um estimulante da VP, um excitante do querer, e não algo
desinteressado, que sublima, suspende o desejo; tal princípio denuncia qualquer concepção
reativa da arte.
02. O segundo princípio diz que a arte é o mais alto poder do falso; ela santifica a mentira,
magnífica o mundo enquanto erro, faz da vontade de enganar um ideal superior, único capaz de
rivalizar com o ideal ascético e de se opor a ele com sucesso. A arte inventa precisamente
mentiras que elevam o falso ao mais alto poder afirmativo. Aparência, para o artista, não
significa a negação do real, mas uma seleção, uma correção, um desdobramento, uma
afirmação. Verdade significa então efetivação do poder, [grau de intensidade]. Em
NIETZSCHE, o artista = aquele que procura a verdade = inventor de novas possibilidades de
vida.

15. NOVA IMAGEM DO PENSAMENTO


01. A imagem dogmática do pensamento aparece em três teses essenciais: 1) que o
pensador quer e ama o verdadeiro; que o pensamento contém formalmente o verdadeiro; que
pensar é o exercício natural de uma faculdade reta (natureza reta do pensamento); 2) somos
desviados do verdadeiro por forças estranhas ao pensamento (corpo, paixões, sentidos, etc); por
não sermos puro pensamento, caímos no ERRO, tido como único efeito, no pensamento, da
intromissão de forças exteriores è ele; 3) basta um método para bem pensar, esconjurando o
efeito de forças estranhas ao pensamento; embora seja um artifício, ele permite-nos,
independentemente de tempo e lugar, penetrar nos domínios do que é eterno,na essência, no
verdadeiro.

02. O mais curioso aí é a maneira como o verdadeiro é concebido como um universal


abstrato, sem nenhuma referência às forças que constituem o pensamento ou à genealogia de
uma verdade (que sempre é a efetuação de um sentido ou a realização de um valor antes de
aparecer como uma “verdade”). A verdade como conceito é absolutamente indeterminada. É
claro que o pensamento nunca pensa por si próprio, assim como não encontra o verdadeiro por
si próprio. A verdade de um pensamento deve ser interpretada e avaliada a partir das forças que
a determinam a pensar. Detalhe: a verdade, como ciência pura, nunca fez mal a ninguém... os
valores em curso constantemente encontram aí seu melhor apoio. Tal é o que se esconde sob a
imagem dogmática do pensamento: o trabalho das forças estabelecidas, que determinam o
pensamento e o verdadeiro em si.

03. Uma nova imagem do pensamento significa em primeiro lugar que o verdadeiro não é
mais o elemento do pensamento, mas o sentido e o valor. As categorias do pensamento não são
mais o verdadeiro e o falso, mas o elevado e o baixo. Do verdadeiro e do falso, temos sempre a
parte que merecemos: existem verdades da baixeza; nossos pensamento mais elevados, pelo
contrário, constituem a parte do falso, não renunciam nunca a fazer do falso um elevado poder.
Daí resulta que o estado negativo do pensamento não é o erro. A inflação do conceito de erro em
filosofia testemunha a persistência da imagem dogmática. Na verdade como no erro, o
pensamento baixo só descobre aquilo que traduz o triunfo do escravo; o disparate é sintoma de
uma maneira baixa de pensar, que em tudo faz reinar valores mesquinhos ou a ordem
estabelecida, não é um erro; ele tem uma estrutura própria de funcionamento.

04. O conceito de verdade determina-se apenas em função de uma tipologia pluralista,


sendo que esta inicia numa topologia. Deve-se submeter o verdadeiro a prova do baixo, e o falso
a prova do elevado; eis a tarefa realmente crítica. A filosofia, como crítica, não serve a ninguém;
serve para afligir. Ela ataca o disparate, denuncia a baixeza do pensamento, denuncia as
mistificações sob as quais triunfam as forças reativas. É certo que existe uma mistificação
propriamente filosófica: a imagem dogmática do pensamento e a caricatura da crítica
testemunham-no. Mas tal ocorre apenas quando ela renuncia ao seu papel desmistificador.

05. A tarefa crítica de filosofia deve ser constantemente retomada, a cada época, pois,
diferentemente do conceito intemporal de erro, a baixeza não se separa do tempo, da atualidade;
cada época tem a sua. É por isso que a filosofia tem com o tempo uma relação essencial: sempre
contra seu tempo, crítica do mundo atual, sempre intempestiva.
06. Pensar não é o exercício natural de uma faculdade: pensar depende de forças que se
apoderem do pensamento. Enquanto nosso pensamento estiver ocupado e somente encontrar seu
sentido nas forças reativas, ainda não pensamos. As ficções pelas quais as forças reativas
triunfam formam o mais baixo do pensamento. Pensar, como atividade, é um acontecimento
extraordinário no próprio pensamento, significa uma elevação, é necessário que o pensamento
seja elevado até o pensar por uma força que dele se apodere violentamente15 – e esse é, para
NIETZSCHE, o papel da cultura, em oposição ao método. A cultura é adestramento e seleção,
formação do pensamento por uma seleção de forças, adestramento que põe em jogo todo o
inconsciente do pensador. Os gregos não falavam em método, mas em paidéia; sabiam que o
pensamento não pensa a partir da boa vontade, como no método, mas em virtude de forças que o
obrigam a pensar. Tudo o que existe de liberdade e dança sobre a terra floriu sempre sobre a
tirania de certas leis, sobre esse adestramento e seleção; inclusive o pensamento.

07. A atividade genérica da cultura visa formar o artista, o filósofo. Mas as forças reativas,
a igreja ou o estado podem utilizar essa violência necessária da cultura para seus próprios fins,
embrutecendo o pensamento ao invés de formá-lo (degenerescência da cultura). Há uma certa
ambivalência na cultura, para NIETZSCHE

08. A nova imagem de pensamento implica relações de força complexas. Pensar depende
de certas coordenadas. É falso dizer que a verdade sai de um poço: só encontramos verdades
onde elas estão, à sua hora e no seu elemento. O método em geral nos afasta de tais lugares, ou
evita que deles saiamos. Cabe a nós ir até os lugares extremos, às horas extremas onde vivem e
se erguem as verdades mais elevadas, mais profundas.

CAPÍTULO IV

DO RESSENTIMENTO À MÁ-CONSCIÊNCIA

01. REAÇÃO E RESSENTIMENTO (167)

15
Comparar com a intuição bergsoniana, essa também elevação do pensamento.
01. Na saúde as forças reativas têm por função limitar, total ou parcialmente, a ação, em
função de outra ação da qual sofremos o efeito. Inversamente, as forças ativas fazem explodir a
criação, precipitado-a para uma tarefa de adaptação rápida e precisa – uma resposta. Daí
NIETZSCHE dizer que “a verdadeira reação é a da ação”. O tipo ativo designa portanto uma
forma de relação entre forças ativas e reativas, esta retardando a ação, aquela precipitando a
reação.
02. Logo, não basta uma reação para constituir um ressentimento. “Ressentimento”
designa um tipo em que as forças reativas imperam sobre as forças ativas, deixado de ser agidas
pelas forças ativas [desobedecendo}. O homem do ressentimento é aquele que NÃO reage. No
re-sentimento a reação deixa de ser agida para se tornar qualquer coisa de sentido.

02. PRINCÍPIO DO RESSENTIMENTO


01. A “hipótese tópica” Freudiana concebe que o mesmo aparelho psíquico não pode
receber a excitação e guarda-la permanentemente. Distingue então um aparelho voltado para o
exterior (consciência) e um destinado a conservar a excitação captada pelo primeiro
(inconsciente).
02. Todos os elementos dessa hipótese estão em NIETZSCHE Ele concebe dois sistemas
do aparelho reativo – consciente e inconsciente. O inconsciente reativo é definido pelas marcas
mnêmicas, sendo um sistema digestivo, ruminante, que exprime “a impossibilidade puramente
passiva de se subtrair à impressão uma vez recebida”. Mesmo nessa digestão sem fim, as forças
reativas executam uma tarefa (obedecem, são agidas). Mas é claro que esse sistema, sozinho,
seria insuficiente. Para tornar a adaptação possível há um outro sistema de forças reativas que
reage não às marcas, mas a excitação presente ou imagem direta do objeto, sendo que esse
sistema não se separa da consciência. Essa segunda espécie de forças mostra sob que forma e
condições a reação torna-se agida.
03. Separando os dois sistemas, impedindo que as marcas invadam a consciência,
deixando à consciência terreno limpo para o novo, está a faculdade ativa supra-consciente do
esquecimento. É ao mesmo tempo, portanto, que a reação, tomando por objeto a excitação na
consciência, se torna agida (o que é permitido pelo esquecimento) e que a reação às marcas
permanece não sentida, no inconsciente (o que também é permitido pelo esquecimento). Note-se
a situação particular do esquecimento - força ativa, age junto às forças reativas, separando-as,
funcionalmente. E para renovar a consciência deve constantemente pedir energia à consciência
mesma, fazer sua essa energia para recalcar o inconsciente16, impedir a emergência das marcas.

16
Notar a semelhança dessa estrutura psíquica com a sugerida por Bergson em “Matéria e Memória”.
04. É por isso que o esquecimento está sujeito à várias perturbações, elas próprias
funcionais. Com sua deficiência, é como se a cera da consciência endurecesse, a excitação
tendendo então a confundir-se com sua marca no inconsciente, e a reação às marcas,
normalmente situada no inconsciente, tendendo agora a invadir a consciência. Assim é ao
mesmo tempo que a reação às marcas se torna sensível (sai do inconsciente, invadindo a
consciência) e que a reação à excitação deixa de ser agida (pois a excitação confunde-se com
sua marca, e é portanto apropriada pelas forças reativas das marcas, não pelas forças reativas da
ação), o que tem imensas conseqüências. Não podendo mais agir uma reação, as forças ativas
são privadas de suas condições materiais de exercício, estão SEPARADAS DAQUILO QUE
PODEM. As forças reativas imperam sobre as forças ativas. Quando as marcas mnêmicas
tomam o lugar da excitação na consciência, a reação (às marcas, inconsciente) toma o lugar da
ação (isto é, da reação à excitação, que era a forma ativa de reação, ligada à consciência). As
forças reativas não triunfam por formar uma força maior que a das forças ativas. A deficiência
da força do esquecimento se dá porque essa não encontra na consciência a energia necessária
para recalcar o inconsciente, renovando a consciência. Tudo se passa entre forças reativas -
umas impedem outras de ser agidas, umas destroem as outras. Assim, o ressentimento, e em
última analise qualquer doença17, é uma reação que, simultaneamente, se torna sensível e deixa
de ser agida.

03. TIPOLOGIA DO RESSENTIMENTO.


(Nota sobre NIETZSCHE e FREUD - NIETZSCHE não estava em confluência com
FREUD. As coincidências entre ambos se explicam por suas preocupações “energéticas”.
NIETZSCHE teria denunciado em FREUD a sua concepção reativa de vida psíquica, seu
desconhecimento das forças ativas, como já o fez, à seu modo, OTTO RANK)
01. O primeiro aspecto do ressentimento é, portanto, topológico: é a mudança de meio, o
deslocamento das forças reativas que constitui o ressentimento, sendo a invasão das marcas na
consciência o que identifica o homem do ressentimento. Em N., como em FREUD, há duas
memórias (a memória das marcas, reativa, e a memória da vontade, ativa, expressa na faculdade
de prometer; em FREUD haveria, distintamente da memória das marcas, uma memória das
“marcas verbais”). A primeira memória é a da reação às marcas, que jcomo tipologia, forma o
sintoma principal do tipo ressentido: sua prodigiosa memória.

17
Em Ecce Homo, 1, 6, NIETZSCHE diz que estar doente é já uma forma de ressentimento.
02. O ressentimento é o espírito de vingança porque toda sua reação se efetua
imaginariamente; não é que, por um excesso de excitação (FREUD) ele queira reagir
representando (para conter o excessos, o que ultrapassa a capacidade de ser agido) pensar assim
seria desconsiderar as qualidades das forças, levando em conta somente suas quantidades.
Qualquer excitação, grande, pequena, boa ou má, é sentida como culpada pelo ressentido na
medida em que remete à sua impotência para reagir frente à excitação – ele somente reage às
marcas da excitação. O homem do ressentimento experimenta qualquer objeto como uma ofensa
na medida em que lhe sofre o efeito (e não poder reagir)18. A memória das marcas é odiosa em si
mesma e por si mesma. É venenosa e depreciativa, porque se liga ao objeto para compensar a
sua impotência para se subtrair às marcas da excitação correspondente. O que NIETZSCHE
quer é fazer uma psicologia que seja uma tipologia, fundar a psicologia “no plano do sujeito”
(expressão familiar à Jung).

4. CARACTERÍSTICAS DO RESSENTIMENTO
01. “Espírito de vingança” não quer dizer que o espírito quer a vingança, mas que a
vingança usa o espírito como meio. O ressentimento fornece à vingança um meio (invertendo a
relação normal de forças ativas e reativas ). Por isso o próprio ressentimento é já o triunfo de
uma revolta. O tipo do senhor (ativo) será definido pela faculdade de esquecer, como pelo poder
de agir as reações; o tipo escravo (reativo) será definido pela prodigiosa memória e pelo poder
do ressentimento.
02. A impotência para admirar, para respeitar, para amar: o mais espantoso no homem
do ressentimento não é sua maldade, mas a sua deprimente malquerença, a sua capacidade
depreciativa. Ele odeia tudo, não respeita amigos (menos ainda inimigos), a felicidade ou a
infelicidade. Faz da própria infelicidade algo medíocre, que recrimina e distribui danos; não
respeita a própria infelicidade. Pelo contrário, o respeito aristocrático pelas causas da
infelicidade e a incapacidade de tomar a serio as próprias infelicidades constituem uma unidade.
A seriedade com que o escravo encara as suas infelicidades testemunham uma digestão difícil.
03. A passividade: No ressentimento, a felicidade aparece como torpor, embriaguez, paz –
sob forma passiva. Essa passividade (que não é o oposto de atividade, já que o oposto de ação é
reação) designa a não-ação, o momento em que a reação, deixando de ser agida, se torna
ressentimento. O homem do ressentimento não sabe e não quer amar, mas quer ser amado. É o
homem do benefício e do lucro. O ressentimento só se impôs fazendo do lucro um sistema
econômico, social, teológico. É nesse sentido que os escravos possuem uma moral da utilidade.
Todas as qualidades morais escondem as exigências de um terceiro passivo, que reclama o

18
Veja-se “Memórias do Subterrâneo”, de Dostoiévski
interessa de ações que não executa, gabando-se entretanto de seu desinteresse (fazer tal coisa
“pelo bem da sociedade”, por exemplo. Mas o próximo louva o desinteresse porque dele se
beneficia; se raciocinasse, ele próprio, de modo desinteressado, não quereria o desinteresse do
outro...)
04. A imputação dos danos, a distribuição das responsabilidades, a acusação perpétua:
Tudo isso toma o lugar da agressividade. Considerando o benefício um direito, considerando um
direito lucrar com ações que não executa, o homem do ressentimento enche-se de censuras
quando seu anseio não se realiza; mas a não-ação é ´re-condição de seu tipo...como poderia
realizar-se? Então ele distribui culpas e responsabilidades, tem necessidade de que os outros
sejam maus para que ele próprio sinta-se “bom”. Tu és mau, portanto eu sou bom: essa é a
fórmula fundamental do escravo, a fórmula que o resume.

05. É BOM? É MAU (179)


01. “Eu sou bom, portanto tu és mau”, e “tu és mau, portanto eu sou bom” são duas
fórmulas diferentes, que expressam posições diferentes. Aquele que começa por dizer eu sou
bom não pode ser aquele que de saída precisa se comparar aos outros, aquele que tira seu valor
da comparação com os demais valores – o primeiro não espera ser dito bom. Nomeia0se assim
na medida em que age, afirma e frui. Não há qualquer comparação em princípio; o fato de os
outros serem maus porque não afirmar, não agem, não fruem, é apenas uma constatação
secundária.
02. Este que afirma, o senhor, tem o positivo inteiramente nas premissas. Primeiro ele age,
afirma e frui, para depois poder concluir qualquer coisa de negativo, que não é essencial, mas
acessória, e que apenas aumenta a fruição de sua positividade. Esse é o estatuto da
agressividade: o negativo como produto de premissas positivas, da atividade, da afirmação de si
o senhor só procura o seu antípoda para se afirmar a si mesmo com mais alegria. Na perspectiva
do escravo, o negativo passa para as premissas, é o começo, a verdadeira ação fundante, sendo o
positivo uma conclusão, e uma conclusão aparente. Por isso NIETZSCHE distingue
ressentimento de agressividade: elas diferem por natureza. O escravo necessita de uma dupla
negação para fazer uma aparência de afirmação; a dialética é a ideologia do ressentimento.
03. Na formulação escrava também se criam valores. É dito mau aquele que age sem
considerar as conseqüências sobre um terceiro abstrato, sendo o bom aquele que refere toda
ação ao ponto de vista de quem não age, um terceiro divino desinteressado mas com interesse
em aparecer justamente assim, um terceiro que perscruta as intenções. Nasce assim o bem e
mal. A determinação ética dá lugar ao juízo moral: o bom da ética tornou- se o mau da moral.
Assim, a criação escrava não passa de uma inversão de valores. Não é uma criação por ação,
mas por impedimento da ação. Não é uma afirmação, mas começa por negar.

6. O PARALOGISMO
01. Há um paralogismo na formulação escrava. Supõe-se ao mesmo tempo que o “mau “ é
uma força ativa, que não se separa daquilo que pode (isto é, que age, e por isso mesmo é mau) e
é também uma força reativa(ou deveria ser), que não age (separada, portanto, daquilo que pode,
de sua agressividade). Porque o forte poderia impedir-se de agir, o fraco poderia agir se não o
impedissem.
02. Assim, o paralogismo do ressentimento repousa na ficção de uma força separada
daquilo que pode, o que permite o triunfo das forças reativas19. 1° desdobra-se a força (é o
momento da causalidade). Separa-se a força da manifestação da força (como o raio e o trovão);
2º projeta-se a força assim desdobrada num substrato, um sujeito que seria livre de a manifestar
ou não (momento da substância). Faz-se da força o ato de um sujeito que poderia do mesmo
modo não agir. NIETZSCHE não cessa de denunciar no “sujeito” uma ficção gramatical. 3º
moraliza-se a força assim neutralizada (momento da determinação recíproca). Porque se supõe
que uma força poderia não manifestar a força que “possui”, supõe-se que uma força poderia
manifestar a força que “não possui”. Porque se projeta a força num sujeito, se supõe esse sujeito
culpado ou meritório, culpado se a força exerça a ação que possui, meritório se não exerce a
ação que... não possui.

07. O DESENVOLVIMENTO DO RESSENTIMENTO


O SACERDOTE JUDAICO
01. NIETZSCHE distingue dois aspectos da má-consciência: um em que ela está no
“estado bruto”, pura matéria, “questão de psicologia animal”, e outro em que ela está
desenvolvida, toma forma, tal como nós a conhecemos. Essa distinção corresponde à topologia e
à tipologia. Tudo indica que vale também para o ressentimento. Num primeiro caso, topológico,
há o deslocamento das forças reativas, com a invasão da consciência pelas marcas; num segundo
momento, tipológico, a memória das marcas torna-se um caráter típico, encarnando o espírito de
vingança, e conduzindo à acusação perpétua, separando as forças de sua ação por uma
mistificação, pela projeção de uma imagem reativa20.
19
Antes que eu me esqueça: não parece que este Deleuze, se disse antes que a reatividade é tbém uma qualidade
da força, que as coisas só funcionam com as duas forças, etc, agora está moralizando demais a força reativa? Ele
está esculachadno a pobre coitada
20
Como é essa relação entre a imagem que a força “tem” – um conhecimento? – e o seu desempenho? Em
Nietzsche parece que nunca temos, enquanto consciência, um conhecimento que não PODEMOS ter, tendo em
vista nossa hierarquia de forças, etc; e inconscientemente, isto é, no nível das forças? Um conhecimento, uma
“imagem”, é sempre uma perspectiva da força, tomada de seu ponto de vista; essas perspectivas lutam entre si, e
02. As forças não são separáveis do elemento diferencial de onde deriva sua qualidade.
Mas as forças reativas dão deste elemento uma imagem invertida. Projetando essas imagens elas
conseguem inverter as relações de forças e os valores correspondentes. A ocasião dessa projeção
dá-se ao mesmo tempo em que elas encontram o meio para se furtar à atividade. Deixando de
ser agidas, as forças reativas projetam a imagem invertida. É a essa projeção reativa que
NIETZSCHE chama ficção (‘mundo supra-sensível’ ou “Deus”).
03. A passagem de um momento a outro do ressentimento não é um simples
encadeamento mecânico. É necessária a intervenção de um genial artista do ressentimento,
capaz de aproveitar a ocasião e dirigir a projeção, a acusação, a inversão: o sacerdote. Sem ele
jamais o escravo teria podido elevar-se acima do estado bruto do ressentimento. O sacerdote é
cúmplice das forças reativas, mas não se confunde com elas; persegue outro fim que não o
delas. Sua vontade é VP, e sua VP é niilismo. O niilismo necessita das forças reativas, mas estas
necessitam do niilismo para triunfar.
04. O sacerdote, especialmente o sacerdote judeu – o tipo do sacerdote, eis o que interessa
à NIETZSCHE(para além de considerações rasteiras sobre raça, pureza da raça, etc). O povo
judeu, de onde brotou o sacerdote, é hoje o mais apto a salvar a Europa de si mesma, ao inventar
novas condições de vida.

08. MÁ-CONSCIÊNCIA E INTERIORIDADE (192)


01. Eis o objetivo do ressentimento: privar as forças ativas de suas condições materiais de
exercício; separa-las formalmente daquilo que podem. Isso se dá através de uma ficção
(projeção da imagem invertida), mas tem como resultado qualquer coisa de real. O que acontece
à força ativa quando se separa do que pode? VIRA-SE CONTRA SI MESMO. Interiorizar-se,
virar-se contra si, é este o modo pelo qual uma força ativa se torna realmente reativa21. É aí que
reside a origem da má-consciência. O ressentimento triunfa quando o forte passa a acusar-se, a
“reconhecer seus danos” contra o fraco, a virar-se para o interior. A introjeção da força ativa é a
conseqüência da projeção reativa, não seu contrário. A má-consciência leva adiante o
ressentimento.

se apresentam, como resultado, na consciência; o erro, o engano, são aí outras forças que se apresentam na
consciência, outras perspectivas, que parecem “erradas” somente do ponto de vista majoritário – não há erro em
si, ilusão em si, verdade em si; mas entre as forças, poderia haver um “engano” desse gênero, as forças perdendo
seu ponto de vista e atuando (ou, antes, deixando de atuar) por uma imagem invertida que as forças reativas lhe
emprestam??? Talvez considerando o corpo como organização complexa, em que algumas forças já não “vêem”
diretamente sua perspectiva, mas devem toma-la a partir do que outras forças apresentam, numa cadeia de visões
parciais que resultaria numa perspectiva geral...
21
ATENÇÃO – Nietzsche diz que o pensador, a crueldade do pensador, ao querer ver tudo “verdadeiramente”,
isto é, desconsiderando seu próprio proveito (por isso crueldade) é essa mesma má-consciência, essa mesma
vontade de maltratar-se – o conhecedor é um artista da má-consciência, ele transforma essa vontade de fazer-se
mal num meio de ultrapassar-se, isto é, num meio de inventar mais vida. Zaratustra diz: amo os que não se
querem preservar...
02. A força ativa, ao virar-se contra si, PRODUZ DOR. Não mais o fruir de si, mas a
produção da dor, antes regulada pela força reativa. Resulta daí um curioso fenômeno,
insondável: uma multiplicação, uma auto-fecundação, uma hiper-produção de dor. A má-
consciência é uma CONSCIÊNCIA QUE MULTIPLICA SUA DOR PELA
INTERIORIZAÇÃO DA FORÇA: é esta a primeira definição da má-consciência.

09. O PROBLEMA DA DOR


01. Esta é a definição do primeiro aspecto, topológico ou bruto, da má-consciência.
Tipologicamente, com a moralização dessa primeira má-consciência, dessa produção de do,
produz-se uma segunda má-consciência, uma segunda interiorização e uma nova produção de
dor: a dor é interiorizada, sensualizada, espiritualizada, como conseqüência do pecado e também
como mecanismo interior de salvação – essa segunda má-consciência é a dor transformada em
sentimento de culpa, de temor, de castigo.
02. Para compreender a invenção dessa segunda má-consciência, é necessário estimar a
importância do problema do sentido da dor. A dor é uma reação, Seu sentido ativo está em agir
essa reação, localizar-lhe para evitar sua propagação até que se possa novamente re-agir. É,
portanto, um sentido externo. A dor, para os senhores, tem um único sentido: dar prazer a
alguém, que a aflige ou observa22. Nesse sentido a dor é uma festa, uma manifestação ativa da
vida.
03. Mas quando não se age a dor nem se a contempla ativamente, o que se faz? Essa é a
invenção da segunda má-consciência: dar um SENTIDO INTERNO à dor [uma lembrança
qualquer, no passado, um ato, um querer], procurando assim livrar-se de uma dor presente
através da produção de outra dor (a culpa) interiorizando a dor ainda mais23. Já na ORIGEM DA
TRAGÉDIA NIETZSCHE indicava que a tragédia morre ao mesmo tempo em que o drama se
torna um conflito interno.

10. O DESENVOLVIMENTO DA MÁ-CONSCIÊNCIA:


O SACERDOTE CRISTÃO
22
Os deuses gregos justificavam toda dor como uma festa... nós, hoje, olhando com os olhos da vida,
externamente a nós, portanto, entendendo a dor como ultrapassamento de si, talvez também possamos justifica-la
com alegria...
23
Há uma dor presente, que não é significada, nem agida; como fazer para apazigua-la? Dando-lhe um sentido,
vinculando-a às marcas; essa é exatamente a definição do sentimento de culpa: atribuir-SE como causa de um
sofrimento; cria-se assim uma segunda interioridade, a da culpa, e uma segunda moralização de nossos atos,
moralização interna, que vincula nosso sofrer à nosso passado, entendendo nossa dor como conseqüência de
nosso “erro” ou desvio de conduta, ou pecado, ou natureza demoníaca do querer, etc Claro que, aqui, não há
possibilidade de dar um fim à dor, muito menos de poder conviver com ela ou de fazer dela um estímulo à vida,
de justifica-la, de afirma-la; sua única afirmação, indireta, é como entorpecimento: uma nova dor, com dupla
camada de interiorização, entorpece uma dor presente, fruto de uma primeira cada de interiorização (má-
consciência).
01. Entre a interiorização da força, que causa a dor, e a interiorização da própria dor, há
uma passagem que não é automática, mas que foi feita pelo sacerdote em sua encarnação cristã.
O sacerdote MUDA A DIREÇÃO DO RESSENTIMENTO. Faz o homem reativo encontrar em
si próprio a causa de seu sofrer, que ele deve interpretar côo castigo (e, ao mesmo tempo,
remissão pelo castigo).
02. Por um lado, o cristianismo é conseqüência do judaísmo. Todo o poder do
ressentimento desemboca no Deus dos pobres, dos doentes, dos pecadores, num amor que se
apresenta como antítese do ódio. Mas ele também acrescenta ao judaísmo essa segunda má-
consciência, que, obviamente, não se opõe (dialeticamente) à primeira, mas lhe acrescenta um
poder de sedução, com vistas à abarcar o mundo. O que o ressentimento quer, com esse refrão (é
por minha culpa) é que tudo que é ativo se sinta culpado, se torne reativo.
03. A definição do segundo aspecto da má-consciência é, portanto: INTERIORIZAÇÃO
DA DOR POR MUDANÇA DE DIREÇÃO DO RESSENTIMENTO. Há um paralelismo entre
má-consciência e ressentimento. Ambas as variantes possuem dois momentos, topológico e
tipológico, em ambas a passagem entre os momentos faz intervir o personagem do sacerdote, e
em ambas o sacerdote age por ficção.Já vimos a ficção que faz inverter os valores no
ressentimento [imagem invertida, desdobramento da força]; sob que ficção repousa a
interiorização da dor? Problema complexo, que põe em jogo o conjunto do fenômeno da
cultura.

11. A CULTURA ENCARADA DO PONTO DE VISTA PRÉ-HISTÓRICO (199)


01. Cultura significa adestramento e seleção. Mas há aí dois elementos: um referente
aquilo à que se obedece, que é sempre histórico (um estado, uma igreja, etc); outro, referente ao
fato de se obedecer, ao fato de a espécie humana exercer uma atividade genérica [porque não
tem forma específica] sobre o indivíduo mesmo, o que é anterior à história, precede a história.
Toda lei histórica é arbitrária, mas o que não é arbitrário é o fato de se obedecer às leis.
02. Pré-histórico significa genérico. A cultura, atividade genérica do homem sobre o
homem, trata de fornecer ao homem hábitos, de o fazer obedecer, adestra-lo, o que significa
formá-lo de tal maneira que ele possa agir suas forças reativas: a cultura torna as forças reativas
aptas a serem agidas. Mas seu objetivo principal é dar à consciência uma consistência e firmeza
que ela não possui, ela, que se apóia no esquecimento. A cultura dota a consciência de uma
memória – não mais a MEMÓRIA DAS MARCAS, função do passado, mas a MEMÓRIA DA
VONTADE, função do futuro [que se expressa na promessa, fruto maduro do adestramento das
forças reativas pelas forças ativas]. Esse o objetivo seletivo da cultura: formar um homem
capaz de prometer, de dispor do futuro [de si mesmo como futuro24], livre e poderoso, ativo,
capaz de agir suas reações.
03. Para alcançar tal objetivo, a cultura utilizou-se da dor como moeda de troca25. A
equação desse processo de formação de uma memória da vontade poderia ser expressa assim:
dano causado = dor sofrida, isto é, esquecimento da promessa = castigo : eis a justiça, que
torna o homem responsável por uma dívida, torna o homem, como força ativa, responsável por
suas forças reativas. Tal relação credor-devedor é, para N., anterior mesmo às organização
sociais, servindo de modelo para tais organizações. No crédito26, não na troca, estaria portanto o
arquétipo da organização social.

12. A CULTURA ENCARADA DO PONTO DE VISTA PÓS-HISTÓRICO


01. Conclui-se que nem a má-consciência nem o ressentimento intervém no processo da
cultura e da justiça: nem a cultura nem a justiça são vingança ou reação 27, mas atividade. A dor,
o equivalente da responsabilidade, causa prazer à força ativa que comanda esse processo; falta a
maior parte das teorias explicar porque a dor causa prazer: ora, é porque as forças ativas se dão
como tarefa adestrar as forças reativas, sendo a justiça e a cultura os meios para tanto28.
02. O ressentimento é, na verdade, o último terreno conquistado pela justiça: conseguir ser
justo até mesmo com o que se odeia é uma conclusão, não um princípio. Assim, também, o
castigo não têm como produto a culpa – pelo contrário, por muito tempo ele retardou o
aparecimento desse sentimento, ao igualar no plano dos fatos o acusado e os juízes, pois com o
castigo os juízes praticavam o mesmo ato que culpavam no réu. Opõe-se ponto por ponto o

24
Nietzsche, Genealogia da Moral, 2ª dissertação
25
Existe a dor como introjeção da força ativa (dor reativa) e a dor como precaução, aviso (dor ativa); parece-me
que a cultura se utiliza das duas espécies de dores, e que Deleuze privilegia uma só? Pois a cultura dá uma forma
ao homem, organiza suas forças, hierarquiza as forças ativas e reativas; mas não posso dizer também que as
forças só podem ser ditas ativas ou reativas em relação, isto é, nunca a priori? Se é verdade que nossa cultura
privilegia certas forças reativas, ela por outro lado mantém o trabalho de hierarquização das forças, e se as forças
não são nunca, em si mesmas, aprioristicamente, determináveis em sua qualidade, não há em que se basear para
fazer uma crítica das forças a partir da hierarquia; a não ser que as forças sejam determináveis a priori, a partir do
“elemento diferencial de onde emanam”, seja lá o que isso quer dizer – mas não há aí um cheiro metafísico? Eu
não veria problema em nossa cultura quanto ao adestramento, isto é, à organização das forças (há, me parece,
nesse ponto e em outros de Deleuze, um certo romance “romântico” demais). Diria antes que tal organização
DEU CERTO DEMAIS, isto é, que nós demos certo demais como organização – a questão é que não sabemos
ainda utilizar esse resultado; somos já, ou podemos ser, do ponto de vista do adestramento (da hierarquia das
forças), o homem livre, o homem que pode prometer; nossa cultura é que não sabe (não quer) utilizar esse
potencial – seus valores são outros. Aí reside o problema (se é que se pode falar assim). Mas ao seria desse
conflito que surgiria a auto-finalização da justiça? Seria esperar demais, e aliás reativamente, que os juízes
saíssem todos a dizer: sim, é verdade, NÓS SOMOS INJUSTOS DO PONTO DE VISTA DAS FORÇAS
ATIVAS... esse é o jogo do escravo, que quer que coisas melhorem lá fora para depois começar a agir...
26
Crédito de quê? Seria o da responsabilidade como BEM que se pressupõe alcançado antes de se o ter adquirido
de fato - pois só o que se tem, no início do processo, é o seu equivalente, a saber, a DOR ????
27
Aqui se está no extremo oposto de FREUD.
28
Nietzsche comenta que o homem aristocrático sente prazer na educação, na compostura, no mandar em si
mesmo, porque identifica-se com as forças que aí comandam, não com o que em si obedece. Ver também o
aforismo 19 do Além do Bem e do Mal, sobre o querer como hierarquia de forças e a questão da identificação.
estado da cultura em que o homem, ao preço da sua dor, se sente responsável por suas forças
reativas, e o estado da má-consciência em que o homem se sente culpado pelas suas forças
ativas.
03. A cultura é o elemento pré-histórico do homem, mas seu produto é o elemento pós-
histórico do homem. Não se deve confundir o produto da cultura com seu meio: o meio é a
responsabilidade-dívida, meio de adestramento e seleção para tornar as forças reativas agidas; o
fim é o homem autônomo, senhor de suas forças reativas [de suas forças] responsável somente
perante si mesmo [pois se tem sob domínio, independentemente do que aconteça], nesse sentido
um irresponsável [pois está livre diante de qualquer lei que não a sua]. A responsabilidade-
dívida desaparece no movimento pelo qual o homem se liberta; na cultura, o meio desaparece no
produto. A moralidade dos costumes produz o homem liberto da moralidade dos costumes, a
atividade genérica produz como objeto final um indivíduo no qual o elemento genérico é ele
mesmo suprimido.

13. A CULTURA ENCARADA SOB O PONTO DE VISTA HISTÓRICO


01. A passagem da pré-história à pós-história, sob o domínio das forças ativas, é
essencialmente assim. Esquecemos, entretanto, da história, o triunfo das forças reativas. De
fato, da cultura devemos dizer que desapareceu e que ainda não começou; na história, a cultura
aparece com outro sentido, desnaturada – a história confunde-se com a “degenerescência da
cultura”. Em vez de atividade genérica, a história nos apresenta raças, povos, igrejas, estados
rebanhos, no lugar da justiça e sua auto-destruição final aparecem sociedades que não querem
perecer29, no lugar do indivíduo soberano produz-se o indivíduo domesticado. Toda a violência
da cultura é-nos apresentada como a propriedade legítima dos povos, estados e igrejas.
Obedece-se ainda, seleciona-se ainda, mas de que forma? Para fazer do homem um animal
gregário, para destruir os fortes. A seleção e a hierarquia são postos do avesso.

14. MÁ-CONSCÊNCIA, RESPONSABILIDADE, CULPABILIDADE


01. As forças reativas enxertam-se na atividade genérica novamente por uma projeção: é a
dívida que é projetada, mudando de natureza nessa projeção. As forças reativas associam-se,
não mais respondendo às forças ativas, mas às forças reativas: assim a dívida torna0se dívida
para com a “divindade”, a “sociedade” ou o “estado”, todos instâncias reativas. A dívida não

29
“Só pra incomodar”: nenhuma organização quer perecer; se há uma morte afirmativa, que significa um canto à
vida, isso não quer dizer que se deve sempre querer morrer – deve-se morrer por amor à vida, como uma suprema
afirmação da vida. De qualquer forma, sempre se morre por suicídio, diz Nietzsche, a consciência é que não sabe
disso... Mesmo ao procurar se manter, algo que já não “se sustenta” vai invariavelmente escolher os meios de sua
auto-destruição... nada há de criticável, portanto, em que uma organização queira se manter: é justamente
querendo se manter e crescer que ela vai morrer, se for o caso.
mais liberta o homem; ao contrário, torna-se impagável. A “remissão” cristã é apenas uma dor
pela qual nos vinculamos à dívida, não um pagamento. A dor é interiorizada, a
responsabilidade-dívida torna-se responsabilidade-culpabilidade. O homem já não pode pagar
a dívida, e o golpe de gênio do cristianismo foi ter feito o próprio credor pagar a si mesmo para
libertar o homem, Deus matando o seu filho por amor... ao seu devedor (o homem).
02. Há uma diferença de natureza entre as duas responsabilidades: a responsabilidade-
dívida tem por origem a atividade da cultura, transforma a dor em beleza., medida e
irresponsabilidade; tudo na outra é reativo, ressentido, faz interiorizar a dor do devedor
impagável, sentindo a dívida como culpa, a qual, segundo o sacerdote, teria sua origem em “nós
mesmos” – “você é o responsável por sua dor”; assim é mudada a direção do ressentimento; um
pedaço qualquer de passado é colocado como causa da dor, que já não se projeta para fora, mas
para dentro, interiorizando-se. Tal mudança não anula, entretanto, o ódio do ressentimento
contra os outros: apenas lhe dá uma aparência sedutora. “É por minha culpa” - canto de sereia
pelo qual seduzimos e desviamos os outros de seu caminho. Assim, a má-consciência repousa
sobre o desvio da atividade genérica, sobre a usurpação dessa atividade, sobre a projeção da
dívida.

15. O IDEAL ASCÉTICO E A ESSÊNCIA DA RELIGIÃO


01. NIETZSCHE procede como se lhe fosse possível distinguir vários tipos de religiões,
conforme as diversas forças que podem imperar, não estando a religião essencialmente ligada ao
ressentimento. Existiriam religiões afirmativas, de sentido profundamente seletivo e educativo.
Toda seleção implica uma religião.
02. Mas com essa tipologia das forças podemos perder o essencial: a afinidade entre as
forças e sua expressão (“só os graus superiores importam”). Ora, sempre que NIETZSCHE fala
de uma religião ativa, trata-se de uma religião subjugada por forças de outra natureza diferente
da sua30, como por exemplo “religião como processo de seleção e educação nas mãos dos
filósofos”. Mas quando a religião impera por si mesma, e cabe a outras forças pedir emprestado
uma máscara para sobreviver, a religião encontra sua própria essência, e aí vê-se a vinculação

30
O problema é definir a priori uma afinidade (a priori de forças) sem, com isso, pressupor um a priori de
expressão (a priori de formas); afinal, as forças são só fortes e fracas (na vida real há apenas vontades fortes e
fracas – ABM, §21), ativas e reativas conforme uma medida sempre por fazer e que se define a cada caso, no
confronto atual das forças em relação. Pressupor que a religião, por ser SEMPRE, supostamente, animada por
uma vontade – o ideal ascético – é fazer mais ou menos o que fez FREUD com suas pulsões de vida e de morte:
haveria uma Vontade de Poder e uma Vontade niilista em eterno confronto; mas uma das grandes contribuições
de Nietzsche não foi pensar para além das oposições, inserindo essa vontade ascética numa vontade de poder e
colocando a vontade ascética como patamar de estabilização-realização da vontade de poder (o estado de direito,
por exemplo, como um estado de exceção, uma restrição parcial da VP como um meio para criação de maiores
unidades de poder)?
necessária entre ela e o ressentimento: ressentimento e má-consciência são os graus superiores
da religião [é a religião que interioriza o ressentimento ainda mais, etc].
03 A religião é animada por uma vontade, o ideal ascético, que faz triunfar as forças
reativas e uma forma da Vontade de Poder. A ficção de um outro-mundo no ideal ascético, a
vontade de nada, isso é ao mesmo tempo o que preside a ascensão do ressentimento e o que, a
partir do ressentimento, cresce e domina. O sentido do ideal ascético é exprimir a afinidade das
forças reativas com o niilismo, exprimir o niilismo como “motor” das forças reativas.

16. TRIUNFO DAS FORÇAS REATIVAS


01. A tipologia nietzschiana põe em jogo toda uma psicologia das “profundidades” ou das
“cavernas”; os mecanismos que correspondem a cada momento do triunfo das forças reativas
formam uma teoria do inconsciente que deveria ser confrontada como conjunto do freudismo.
Mas os conceitos nietzschianos não tem uma significação exclusivamente psicológica: um tipo
constitui realidade biológica, sociológica, histórica e política; a metafísica e a teoria do
conhecimento dependem da tipologia, e ela fundamente a filosofia genealógica, nova base,
segundo NIETZSCHE, das ciências do homem.

CAPÍTULO V

O SUPER-HOMEM
CONTRA A DIALÉTICA

01. O NIILISMO
01. “Nihil” significa valor da nada; não é o “não-ser”. A vida toma um valor de nada na
medida em que é negada, depreciada, e isso supõe sempre uma ficção, pela qual se opõe algo à
vida31. A idéia de um outro mundo, de valores superiores à vida, é o elemento constitutivo de
qualquer ficção. Tais valores referem sempre a uma vontade de negar – que é ainda uma
vontade, Nihil no niilismo significa a negação como qualidade da Vontade de Poder. No seu
primeiro sentido, niilismo significa, portanto, vontade de nada que se exprime em valores
superiores.

31
Ver “O Anti-cristo”, §15 – oposição do sonho e da ficção)
02. O niilismo possui um segundo sentido, significando reação, e não mais vontade,
quando reage-se conta os valores superiores que denigrem a vida, mantendo, entretanto, essa
vida denegrida. Há um nada de vontade, que não é sintoma de uma vontade de nada, mas, no
limite, uma negação de qualquer vontade. Esse segundo sentido deva do primeiro: se no
primeiro se negava a vida em prol de valores superiores, agora se nega também os valores
superiores, mas sem afirmar a vida; se no primeiro se opunha essência (val. Superiores) e
aparência (vida), nega-se agora a essência mas mantém-se a aparência. O segundo sentido é o
“pessimismo da fraqueza”. O primeiro sentido é o niilismo negativo; o segundo, um niilismo
reativo.

02. ANALISE DA PIEDADE


01. A cumplicidade fundamental entre a vontade de nada e as forças reativas consiste no
fato de ser a vontade de nada que faz triunfar as forças reativas, são as forças reativas que levam
a vida a negar-se. Quando, sob a vontade de nada, a vida universal se torna irreal, ao mesmo
tempo a vida particular torna-se reativa. Ora, as forças reativas querem triunfar sozinhas, e
rompem sua aliança com a vontade de nada, projetando mais uma vez sua imagem para
escaparem da vontade. Nessa direção elas vão até a extinção passiva, o máximo do nada de
vontade. Se o niilismo reativo prolonga o niilismo negativo, este niilismo passivo é o resultado
extremo do niilismo reativo: extinguir-se passivamente de preferência a ser conduzido do
exterior, pela vontade de nada.
02. ZARATUSTRA diz que Deus morreu sufocado por sua piedade pelo homem. – O que
é piedade? É essa tolerância para com os estados da vida vizinhos do zero. Aquele que tem
necessidade dessa vida reativa é que será piedoso. A piedade, no simbolismo de NIETZSCHE,
designa sempre esse complexo da vontade de nada e das forças reativas, “a piedade constitui a
prática do niilismo... a piedade convence do nada”.
03. O homem condena Deus à morte, porque não suporta já sua piedade. O homem reativo
põe-se no lugar de Deus, volta o ressentimento, a má-consciência, contra Deus, e diz-se ateísta:
é o ateísmo do ressentimento. O homem reage contra a piedade de Deus, contra os valores
superiores e contra a vida, até que não exista mais nada, não tendo nem sequer, diante desse
nada,a a vontade de desaparecer. O último dos homens é o descendente do assassino de Deus.
Nenhum pastor e um só rebanho...
04. De Deus ao último dos homens, quantas transformações do niilismo; durante muito
tempo a vida reativa esforçou-se por segregar seus próprios valores, o homem reativo toma o
lugar de Deus: adaptação, evolução, progresso, felicidade para todos, o bem da comunidade, o
homem-Deus, o homem-moral, o homem-verídico, o homem-social, são estes os valores novos
propostos no lugar dos valores superiores. Em toda essa mudança, entretanto, é sempre a vida
reativa, a perspectiva niilista que preside esta história. Por isso NIETZSCHE diz que o niilismo
não é um acontecimento na história, mas o motor da história do homem como história universal.

03. DEUS MORREU (228)


01. A fórmula “Deus morreu” não é uma proposição especulativa, mas uma proposição
dramática, que opera a síntese da idéia de Deus como tempo, o devir, a história, o homem.
Existir ou não-existir deixam de ser determinações absolutas que derivam da idéia de Deus, mas
a vida e a morte tornam-se determinações relativas que correspondem às forças que entram em
jogo. Deus morre de múltiplas maneiras:
1° Do ponto de vista do niilismo negativo: momento da consciência judaica e cristã: A
idéia de Deus exprime a vontade de nada. O ódio à vida em seu conjunto implica uma
glorificação da vida reativa. A Consciência judaica apresenta esses dois aspectos: o universal é o
ódio à vida, o particular é o amor à vida doente (premissa e conclusão, esse amor como
conseqüência daquele ódio). Ao matar Deus, na pessoa de cristo, inventa um Deus do amor
“separado” de suas premissas judaicas (que produziam um Deus do ódio).
- Morre um Deus na cruz e nasce outro, que refaz seu pai à sua imagem (ainda o amor à
vida reativa); é esse o segundo sentido da morte de Deus: o Pai morre, o Filho refaz um Deus.
Aparentemente destacado de suas premissas odiosas, torna-se necessário somente um pouco de
fé, sendo com isso necessário que o amor da vida reativa se torne universal.
- O terceiro sentido da morte de Deus é a apropriação de São Paulo da morte de cristo;
essa interpretação torna a dívida impagável (cristo morre para pagar os nossos pecados); Deus
paga a si mesmo, sacrifica seu filho, por amor (... ao devedor, à nós). Responderemos a este
amor nos sentindo culpados (por esse pagamento), repararemos esta dívida acusando-nos. A
vida morre, mas renasce como reativa. A consciência cristã é a consciência judaica invertida: o
amor tornou-se princípio, o ódio conseqüência, o meio contra o que resiste a este amor; Jesus
belicoso, rancoroso, mas por amor.
2° Do ponto de vista do niilismo reativo: momento da consciência européia: Até esse
momento a morte de Deus significa a síntese, na idéia de Deus, da vontade de nada e da vida
reativa. Mas a vida reativa cresce, e abdica da própria vontade de nada, que era, afinal, ainda
uma vontade. O homem reativo mata Deus, segrega assim seu próprio ateísmo feito de um
aprofundamento das forças reativas. Esse o quarto sentido da morte de Deus: Deus sufoca por
amor à vida reativa.
3° Do ponto de vista do niilismo passivo: momento da consciência búdica: o Cristo
verdadeiro, descontando São Paulo, era uma espécie de Buda, um niilista já no estágio passivo
num meio em que a vida reativa ainda debatia-se com a Vontade de Poder. Para além da má-
consciência e do ressentimento, Jesus ensinava o homem reativo a morrer passivamente. O
budismo é a religião do niilismo passivo; o próprio da história cristão européia é criar esse
niilismo, um fim que, no oriente, já está dado. “O budismo progride em silencio em toda a
Europa”32

4. CONTRA O HEGELIANISMO (235)


01. Essa filosofia da história e da religião não é uma retomada ou caricatura de HEGEL. A
morte de Deus, a deificação do homem, não tem sentido em si: tem tantos sentidos quanto
forças se apoderam dessa morte. Esperamos ainda as forças que conduzirão essa morte ao seu
grau superior. Contra o romantismo e a dialética, NIETZSCHE desconfia da morte de Deus. Se
para HEGEL ela significa a superação da oposição finito/infinito, Deus e indivíduo – e basta
tempo para que esse sentido “em si” se torne também “para si” – para NIETZSCHE o tempo é
necessário para a formação das forças que darão a essa morte um sentido que ela não tem em si,
que lhes fornecem uma essência determinada com o esplêndido presente da exterioridade.
02. A dialética não aflora sequer à interpretação, confunde-a com o desenvolvimento do
sintoma; ali onde ela vê oposições, há apenas sintomas. Considerando os sintomas
abstratamente, fazendo do movimento aparente (tese > antítese > síntese) a lei genética das
coisas (e assim não vendo que a diferença é o único princípio de gênese, que produz ela própria
a oposição como simples aparência), retendo do princípio apenas uma imagem invertida, toda
dialética se move no elemento da ficção. Para NIETZSCHE 1) a dialética desconhece o sentido
porque ignora a natureza das forças que se apropriam concretamente dos fenômenos; 2)
desconhece a essência, porque ignora o elemento real de onde derivam as forças; 3) desconhece
a mudança, porque se contenta em operar permutações abstratas entre termos abstratos.
03. Todas essas insuficiência possuem uma mesma origem: a ignorância da questão
“quem?”. O homem que se reconcilia com Deus em HEGEL, o homem que toma o lugar de
Deus em FEUERBACH, - quem são esse homem e esse Deus? Seguem sendo, antes como
depois da “síntese”, o homem escravo, o Deus supremo; apenas “invertem” posições; há aí
apenas uma mudança abstrata, uma aparência de mudança.
04. A oposição apenas é o elemento genético das forças do ponto de vista das forças
reativas; elas é que projetam uma ficção (Deus) como oposição ao mundo, como gênese das
forças. A dialética é a ideologia natural do ressentimento, o pensamento na perspectiva do
niilismo.

32
Vontade de Poder, III, 87
05. AS TRANSFORMAÇÕES DA DIALÉTICA (240)
01. [segue-se uma crítica envolvendo HEGEL, FEUERBACH e STIRNER, contra a
dialética, da qual transponho apenas o esqueleto do argumento; fls. 240-243]
STIRNER foi um dialético que fez da questão “quem” o essencial, conduzindo assim a
dialética ao seu verdadeiro resultado: saltus mortalis.
02. STIRNER mostra que a idéia (HEGEL), a consciência (BAUER), a espécie
(FEUERBACH) são alienações, como a teologia. Mas para STIRNER, superar a alienação
significa então puro e frio aniquilamento.
03. O hegelianismo encontrava seu desfecho num niilismo triunfante. Assim, STIRNER é
o dialético que revela o niilismo como verdade da dialética.

6. NIETZSCHE E A DIALÉTICA
01. Os temas hegelianos estão presentes em NIETZSCHE como o inimigo que ele
combate. Ele não cessa de denunciar o caráter teológico da filosofia alemã, a impotência dessa
filosofia para sair da perspectiva niilista, a incapacidade dessa filosofia para alcançar outra
coisa que não o eu, o homem ou os fantasmas do humano, o caráter mistificador das ditas
transformações dialéticas. STIRNER não é diferente: se revelou a verdade da dialética, não
escapou a essa verdade; foi incapaz de por a questão “quem” noutra perspectiva que não a do
humano.
02. A tarefa positiva de NIETZSCHE é dupla: o super-homem e a transvaloração. Não a
questão “quem é o homem?”, mas “quem é que supera o homem?”. O super-homem não tem
nada em comum com o ser genérico dos dialéticos, a espécie ou o “eu”, não é uma oferta maior:
difere em natureza do homem. O super-homem define-se por uma nova maneira de sentir (outro
sujeito que não o homem), uma nova maneira de pensar (outros predicados que não o divino),
outra maneira de avaliar (mudança no elemento do qual deriva o valor dos valores).
03. Do ponto de vista desta tarefa positiva todas as intenções críticas de NIETZSCHE
encontram a sua unidade; numa mesma polêmica ele engloba o cristianismo, o humanismo, o
egoísmo, o socialismo, o niilismo, as teorias da história e da cultura, a dialética. Tudo isso
forma a teoria do homem superior, objeto da crítica de N..

7. TEORIA DO HOMEM-SUPERIOR
01. A teoria do homem superior, o essencial de Z., está no livro IV desse texto. O homem
superior tem sua ambivalência constituída pelo ser reativo do homem e pela atividade genérica
do homem. O homem superior é a imagem pela qual o homem reativo se apresenta como
“superior”; ao mesmo tempo, é a imagem na qual aparece o produto da cultura.
02. Os dois reis são os guardas da atividade genérica, o homem das sanguessugas é o
produto dessa atividade como ciência, o último para é o produto dessa atividade como religião,
o mendigo voluntário quer saber qual o produto adequado dessa atividade (e o descobre na
ruminação), a sombra é esta própria atividade enquanto perde seu objetivo e procura seu
princípio.
03. Todos esses personagens representam simultaneamente as forças reativas e seu triunfo,
a atividade genérica e seu produto. Por isso Z. os trata de duas maneiras: ora como inimigo
infame, ora como hóspede, quase companheiro de empresa.

8. SERÁ O HOMEM ESSENCIALMENTE “REATIVO”? (250)


01. Essa ambivalência pode ser interpretada com exatidão perguntando em que medida o
homem é essencialmente reativo. NIETZSCHE apresenta a vitória das forças reativas como algo
essencial no homem, mas ao mesmo tempo mostra períodos ativos no homem.
02. Mas o que constitui o homem e seu mundo não é apenas um tipo particular de força,
mas, mais profundamente, um devir de forças em geral, o devir-reativo de todas as forças. Ora,
um tal devir exige sempre como seu terminus a quo a presença da atividade, que passa para o
seu contrário ao devir. Existe de fato essa atividade humana, mas estas forças são apenas o
alimento de um devir reativo, o qual define o homem. O verdadeiro genérico não é a atividade
do homem [cultura], mas seu devir reativo.
03. No homem, o próprio objetivo é falhado, não em virtude de meios insuficientes, mas
em virtude de sua natureza. É nesse sentido que os dois aspectos do homem superior são
conciliados: o homem reativo como expressão sublimada das forças reativas, o homem ativo
como produto essencialmente errado. Não é verdade, portanto, que o super-homem é vitorioso
onde o homem superior foi derrotado. O super homem não é um homem que se supera.
04. A atividade genérica é essencialmente falhada porque quer adestras as forças reativas,
tornando-as aptas a serem agidas, sem o poder de afirmar que constitui o devir-ativo. Falta-lhe
uma vontade que a ultrapasse, que veicule sua superioridade (uma vontade afirmativa).
05. O homem superior nunca se eleva até o elemento da afirmação; ele quer converter a
reação em ação; mas Z. quer converter a negação em afirmação, e nunca se conseguirá aquela
sem esta. O elemento da afirmação é o que falta ao homem. O homem superior não sabe rir,
jogar, dançar; adoram o burro com seu “I-A”33, mas de uma maneira teológica.

9. NIILISMO E TRANSMUTAÇÃO: O PONTO FOCAL

33
Algo como “SIM” em alemão; ver Zaratustra, livro IV.
01. O reino do niilismo é poderoso; exprime-se nos valores superiores a vida, nos valores
reativos e ainda no mundo sem valores; em tudo isso, sempre o mesmo princípio: uma vontade
de nada. Sob o império do negativo, a atividade nada pode.
02. NIETZSCHE chama transvaloração não à mudança dos valores, mas a mudança no
elemento do qual deriva o valor dos valores. A apreciação em vez da depreciação, a afirmação
como VP, a vontade como vontade afirmativa. Permanecendo no elemento do negativo, não faz
diferença mudar os valores: somente mudando o elemento se vence o niilismo.
03. Para N., todas as formas de niilismos analisadas anteriormente constituem um niilismo
[não] acabado, incompleto. Ao mesmo tempo, NIETZSCHE diz que o niilismo é vencido por si
mesmo. Não será o mesmo que dizer que a transvaloração, que vence o niilismo, é a forma
acabada de niilismo? Uma primeira razão para isso é que, mudando o elemento dos valores,
destrói-se todos os valores que dependem do velho elemento; a transvaloração é um niilismo
acabado porque dá à crítica uma forma acabada, “totalizante”.
04. Os valores que dependem desse velho elemento ao todos os valores conhecidos até o
momento da transvaloração. Porquê? Porque a Vontade de Poder aparece no homem e dá-se a
conhecer como vontade de nada. A vontade de nada não é apenas uma qualidade da VP, mas a
RATIO COGNOSCENDI34 da VP em geral. “Pensamos” a VP sob uma forma distinta daquela
pela qual a conhecemos35. Longínqua sobrevivência de KANT e SCHOPENHAUER: o que nós
conhecemos da VP e dor e suplício, mas a VP é ainda a alegria desconhecida, sendo que essa
face desconhecida, essa outra qualidade da VP é a afirmação. E a afirmação não é apenas uma
outra qualidade da VP, é a RATIO ESSENDI36 da VP em geral. Da afirmação derivam os valores
novos, pois trata-se de criar o próprio conhecimento, afirmação de todas as negações
conhecidas. Assim, o niilismo não se completa sem se transmutar na afirmação.
05. O último dos homens, o do niilismo passivo, é um resultado das forças reativas, não da
Vontade de Nada; é fruto da separação destes últimos. Mas a VN prossegue o seu trabalho, para
além do homem reativo, criando o “homem que quer perecer”. Este homem da destruição ativa
é cantado por NIETZSCHE quer ser superado, ir para além do homem, já a caminho do super-
homem. “Amo aquele que vive para conhecer e que quer conhecer, para que um dia o super-
homem exista. Do mesmo modo, quer seu próprio declínio”37. Isso quer dizer: amo aquele que
se serve do niilismo como da ratio cognoscendi da VP, mas que encontra na VP uma ratio
essendi na qual o niilismo é vencido.

34
Algo como “razão que pode ser conhecida” - ??; filósofos, por favor...
35
Estrutura parecida é apontada por Bergson na “Evolução Criadora” para explicar nossa maneira de pensar
mecanicamente o mundo, embora estejamos necessariamente inseridos na duração.
36
Algo como “razão essencial” - ??
37
Zaratustra, prólogo, 4.
06. A destruição ativa significa o momento de transvaloração na vontade de nada. A
destruição torna-se ativa, na medida em que o negativo (a vontade de nada, separada das forças
reativas) é transvalorado, convertido em poder afirmativo [de destruição] É este o ponto
“decisivo” da filosofia dionisíaca: o ponto em que a negação exprime uma afirmação da vida.
Esse ponto, a meia-noite, é a conversão da ratio cognoscendi na ratio essendi da VP. Passando
pelo último dos homem, mas indo além, o niilismo encontra sua realização: o homem que quer
perecer.

10. A AFIRMAÇÃO E A NEGAÇÃO (262)


01. Transvaloração significa: 1)mudança na qualidade da VP – os valores derivam agora
da afirmação; o elemento dos valores muda de lugar e de natureza; 2)passagem da ratio
cognoscendi à ratio essendi na VP: somente pensamos a VP tal como ela é na medida em que a
razão de conhecer é uma qualidade que passa para o seu contrário , encontrando nesse contrário
a razão de ser desconhecida; 3) conversão do elemento na VP – conversão do negativo em poder
de afirmar. Negação não como conversão do reativo mas como sacrifício do reativo (destruição
ativa) 4) reino da afirmação na VP – somente a afirmação subsiste; mesmo o negativo se
incorpora nela; 5) crítica dos valores conhecidos – os valores conhecidos até o momento
perdem seu valor; mas a afirmação faz dessa destruição uma destruição total; 6) inversão da
relação de forças - as forças reativas são negadas, todas as forças se tornam ativas; a afirmação
constitui um devir-ativo como o devir universal das forças.
02. A afirmação e a negação opõe-se como duas qualidades da VP, duas razões na VP,
duas totalidades que se excluem, sendo que a negação é constitutiva do homem. Com o homem,
é o mundo inteiro que se torna doente. Inversamente, a afirmação só se manifesta acima do
homem, fora do homem, no desconhecido que traz consigo. O super-homem é a “espécie
superior de tudo o que é”.
03. Como então a afirmação teria uma condição preliminar negativa? 1) a destruição
como destruição ativa constitui a marca do criador.38 A afirmação e seguida por uma negação
tão enorme e ilimitada quanto ela. 2) a afirmação é precedida de uma negação imensa – o “sim
sagrado” da criança é precedido pelo “não sagrado” do leão; a destruição ativa do homem que
quer perecer é prenúncio do criador. Separada dessas duas negações, a afirmação é impotente
para se afirmar39.

38
“Conheço a alegria do destruir num grau conforme a minha força de destruição”, diz Nietzsche – EH, IV, 2.
39
Ver EH, III, “Além do Bem e do Mal”, e Zaratustra, 8, e IV, 2, 4
04. Por isso o burro não é o animal dionisíaco; sua aparência é dionisíaca, mas sua
realidade é cristã. Diz sim, mas não sabe dizer não. O sim do burro é um falso sim, afirmação
separada das duas negações que deveriam rodeá-la.
05. Não há contradição aí; a afirmação dionisíaca não comporta negação como qualidade
primeira, poder autônomo; por outro lado, a afirmação só é real e completa se cercada de
negação como poder de afirmar; a afirmação não afirmaria a si própria se a negação não
rompesse a aliança com as forças reativas e se tornasse, no homem que quer perecer, poder de
afirmação. Daí a importância da distinção entre ressentimento, poder de negar que se exprime
nas forças reativas, e agressividade, maneira de ser ativa de um poder de afirmar40. O negativo,
em seu grau superior, torna-se positivo, sendo então apenas modo de ser daquele que é
poderoso, agressividade.
06. NIETZSCHE se opõe a toda forma de pensamento que se mova no elemento do
negativo. A um tal pensamento negativo são necessárias duas negações para fazer uma
(aparência) de afirmação; a atividade é aí apenas uma reação. Z. opõe-lhe a afirmação pura,
para a qual é necessária e suficiente a afirmação para fazer duas negações, que são as maneiras
de ser da afirmação como tal. Á famosa positividade do negativo, NIETZSCHE opõe sua
negatividade do positivo.

11. O SENTIDO DA AFIRMAÇÃO (269)


01. A afirmação nietzschiana comporta duas negações; porquê? Porquê a afirmação do
burro é uma falsa afirmação?
02. Para o burro, assim como para o camelo, no início do Zaratustra, os fardos que carrega
em seu largo lombo tem o peso do real. Para eles, afirmar quer dizer apenas carregar, assumir,
aquiescer ao real tal qual é.
03. O burro experimenta como a positividade do real o peso dos fardos com que foi
carregado (pelo espírito de gravidade; bem e mal são alguns desses pesados fardos, com que
somos carregados na infância...) O burro é em primeiro lugar Cristo, em segundo lugar o livre-
pensador. Ambos, seres etéreos, que vêem na carga que carregam a realidade do real, e por isso
– pelo “peso” que sentem - chamam-se a si mesmos de “realistas”, acreditando haver realidade
onde há peso. Mas essa realidade é niilismo. O grito que Z ouve é uma afirmação como adesão
ou aquiescência ao real – uma afirmação como conseqüência de premissas negativas.
04. Nessa crítica da afirmação como assunção, NIETZSCHE critica toda concepção que
faça da afirmação uma simples função do ser (seja este o verdadeiro, o real, o número ou o
fenômeno). Enquanto a afirmação é pensada como função do ser (HEGEL) o próprio homem

40
Não seria “maneira de ser ativa de um poder de NEGAR?” O resumo segue o original.
aparece como funcionário da afirmação [e, assim, funcionário do ser; ao contrário, a afirmação
está a serviço da diferença, ou do ser como diferença, conforme se verá mais adiante].
05. NIETZSCHE quer dizer três coisas: 1) o ser, o verdadeiro, o real, são transformações
do niilismo, maneiras de negar a vida carregando-a com os mais pesados fardos. NIETZSCHE
não acredita na auto-suficiência do real. 2) A afirmação como afirmação “daquilo que é” é uma
falsa afirmação. O burro diz “sim” a tudo que é “não”, não faz ainda, como o leão, da negação
um poder de afirmar, fazendo a afirmação estar a serviço do negativo. 3) essa falsa afirmação
constitui uma maneira de conservar o homem, atrelando-o ao ser, ao verdadeiro, ao real. Mas o
mundo não é real nem verdadeiro, mas vivo, é VP, vontade do falso, Efetuar a vontade de falso
é avaliar, viver é avaliar; o sensível e o real são avaliação, ilusões. “A vontade de parecer, de
iludir, de enganar, a vontade de devir e de mudar (ou a ilusão objetivada) é mais profunda, mais
metafísica do que a vontade de ver o verdadeiro, a realidade, o ser, sendo este último ainda
apenas uma forma de tendência para a ilusão”41. O que agora reina é a negação como qualidade
da VP. Pelo contrário, um poder de afirmar, um mais alto poder do falso, um devir afirmativo,
constituem a outra qualidade da VP. Afirmar não é carregar-se, mas libertar, descarregar
aquilo que vive. Afirmar é tornar leve e ligeiro. Só existe criação na medida em que, longe de
separar a vida daquilo que ela pode, nos servimos do excedente para inventar novas formas de
vida. É necessário criar o mundo. Mas o homem não realiza essa tarefa, o homem apenas eleva a
negação até o poder de afirmar, mas afirmar o todo, afirmar a afirmação, ultrapassa o poder do
homem. Assim, afirmar não é o real, mas a avaliação42; não é a assunção, mas a criação; não o
homem, mas o super-homem. Daí a afirmação nietzschiana da arte, pois a arte realiza todo esse
programa: o mais alto poder do falso, a afirmação dionisíaca.

12. A DUPLA AFIRMAÇÃO: ARIADNE


01. A afirmação é ser; o ser não é o objeto da afirmação, não é o poder de afirmar; o ser é
afirmação em toda sua potência. O ser e o nada são a expressão abstrata da afirmação e da
negação.
02. A afirmação é o ser enquanto é, para si mesmo, seu próprio objeto43. A afirmação em
sí mesma, como afirmação primeira, é o devir; como afirmação de si mesma, isto é, afirmação
da afirmação, segunda afirmação, é o ser44. Dionísio é a primeira afirmação; Ariadne a segunda.
41
VP, IV, 8
42
“Afirmar não é o real, mas a avaliação”; mais adiante ele dirá que afirmar é o ser como diferença (isto é, não o
real, mas a diferença, o retorno da diferença; posso dizer então que diferença e avaliação (isto é, ilusão), estão
próximas, participam do mesmo jogo – isto é, o SER verdadeiro é a criação...
43
Espinosa e sua “causa sui”?
44
Uma tentativa – leiga, é claro - de desenlear essa parte, um tanto complicada, e a seguinte, seria fazer notar que
o ser “em si” é a diferença pura; o devir é apenas uma expressão do ser, uma forma de apreensão dessa diferença,
uma conseqüência necessária de sua constituição como diferença; diríamos: o ser (ou um lado do ser) da
diferença é o devir; a VP “cria” a diferença, afirmando-se a si mesma; assim, é próprio da diferença reproduzir-
03. O labirinto, outra imagem freqüente, designa o inconsciente, o devir, a afirmação do
devir; o verdadeiro labirinto é Dionísio.
04. A afirmação e a negação como qualidades da VP, não possuem uma relação unívoca: a
negação opõe-se à afirmação, mas a afirmação difere da negação e essas são suas essências. A
afirmação é primeiramente o múltiplo (diferença de um e de outro), o devir (diferença com
relação à si mesmo) e o acaso (diferença “entre todos”, ou distributiva); como afirmação
afirmada, eleva-se a diferença à sua mais alta potencia, e diz-se do devir o ser, do múltiplo o
uno, do acaso a necessidade. Assim, é próprio da afirmação o retornar [isto é, o ser do devir, o
uno do múltiplo, a necessidade do acaso], o que é o mesmo que dizer que é próprio da diferença
reproduzir-se; tudo isso é o eterno retorno. São dois, portanto, os poderes de afirmar> o devir e
o ser são uma mesma afirmação, duplicada no segundo caso (Ariadne); mas a afirmação
primeira (Dionísio) é o eterno retorno. É A VP COMO ELEMENTO DIFERENCIAL QUE
PRODUZ E DESENVOLVE A DIFERENÇA NA AFIRMAÇÃO.

13. DIONÍSIO E ZARATUSTRA (282)


01. A lição do Eterno Retorno é que não há retorno do negativo; o ser [como diferença] é
seleção. O devir, o múltiplo, o acaso, não contém qualquer negação; a diferença é a afirmação
pura. A lição prática de NIETZSCHE é a seguinte: a diferença é feliz, só a alegria retorna.
Nunca, depois de LUCRÉCIO (exceção feita à ESPINOSA) se tinha levado tão longe a empresa
crítica que caracteriza a filosofia.
02. O negativo expira às portas do ser. A oposição cessa seu trabalho, a diferença começa
os seus jogos. NIETZSCHE chama transmutação o ponto em que o negativo é convertido em
poder de afirmar.
03. Toda a historia de Z. se confina às suas relações com o niilismo. É com Z. que a
negação perde seu poder e sua qualidade: para além do homem reativo, o destruidor dos valores
conhecidos; para além do ultimo dos homens, o homem que quer perecer ou ser superado.
04. Z. é uma condição para o Eterno Retorno, é pai do super homem, mas é uma condição
submetida à um incondicionado. O Eterno Retorno e o super-homem estão no cruzamento de
duas linhas genéticas desiguais.
05. Por um lado, remetem para Z. como o princípio condicionante que os “postula”; por
outro lado, remetem para DIONÍSIO como o princípio incondicionado que funda seu caráter
apodítico e absoluto.

se, como afirmação e devir, e vice-versa; o ser ou a essência da afirmação é, portanto, ao mesmo tempo a
diferença, o devir e a afirmação de ambos (o que podemos condensar na idéia do eterno retorno). Enfim, acho.
06. Z. refere o negativo à afirmação; Dionísio faz da afirmação a razão de ser da VP. Tudo
que é afirmativo encontra em Z. sua condição e em Dionísio seu princípio incondicionado.
Referidos à Z. o riso, o jogo, a dança, constituem os poderes afirmativos da transmutação;
referidos à DIONÍSIO, constituem poderes afirmativos de reflexão e desenvolvimento [da
diferença, isto é, do ser].

CONCLUSÃO (289)
01. A filosofia moderna apresenta amalgamas que testemunham sua vitalidade, mas
comportam também perigos para o espírito. Um pouco de ontologia e antropologia, ateísmo e
teologia, espiritualismo cristão, dialética hegeliana, fenomenologia (escolástica moderna),
fulgurações nietzschianas – estranhas combinações. Mistura que celebra a ultrapassagem da
metafísica e mesmo a morte da filosofia. Tentamos, neste livro, romper alianças perigosas.
Imaginamos NIETZSCHE retirando as fichas de um jogo que não é o seu.

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