Você está na página 1de 115

HISTÓRIA DE ISRAEL

Mario de Mello Souza

São Leopoldo – RS
2018
© 2018 Faculdades EST
Rua Amadeo Rossi, 467, Morro do Espelho
93.010-050 – São Leopoldo – RS – Brasil
Tel.: +55 51 2111 1400 Fax: +55 51 2111 1411
www.est.edu.br | relacionamento@est.edu.br

Esta obra foi licenciada sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Não
Comercial- Sem Derivados 4.0 Não Adaptada.

Reitor NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA


Wilhelm Wachholz
Supervisão de Publicação e Editoração
Pró-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Iuri Andréas Reblin
Rudolf von Sinner Vitória Centeleghe dos Santos

Pró-Reitora de Ensino e Extensão Projeto Gráfico


Laude Erandi Brandenburg Rafael von Saltiél
Iuri Andréas Reblin
Pró-Reitor de Gestão Vitória Centeleghe dos Santos
Verner Hoefelmann
Diagramação
Conselho Editorial ad hoc deste livro Charles Klemz
(ordem alfabética)
André Sidnei Musskopf (EST, São Leopoldo/RS, Capa
Brasil); Anete Roese (PUC-Minas, Belo Rafael von Saltiél
Horizonte/MG, Brasil); Iuri Andréas Reblin (EST,
São Leopoldo/RS, Brasil); Kathlen Luana de Revisão
Oliveira (IFRS, Osório/RS, Brasil); Oneide Bobsin Charles Klemz
(EST, São Leopoldo/RS, Brasil); Rudolf von Sinner Simone Kohlrausch
(EST, São Leopoldo/RS, Brasil) e Vítor Westhelle
(LSTC, Chicago/IL, EUA); Qualquer parte pode ser reproduzida,
desde que citada a fonte.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

M528h Souza, Mario Mello de


História de Israel / Mario Mello de Souza. – São Leopoldo :
EST, 2018.
112 p. : il. ; 28 cm.

ISBN 978-85-89754-61-3 (E-book, PDF)


ISBN 978-85-89754-62-0 (Papel)

1. Israel – História. I. Melo, Mario.

CDD 933

Ficha elaborada pela Biblioteca da EST


SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ............................................................................................................ 5
CONSIDERAÇÕES INICIAIS ........................................................................................ 7
1 PRÉ-HISTÓRIA NÔMADE ............................................................................................ 9
1.1 OS PATRIARCAS E A MEMÓRIA HISTÓRICA DE ISRAEL ................................. 9
1.2 ISRAEL NO EGITO - A HISTÓRIA DO ÊXODO .................................................... 18
2 ÉPOCA PRÉ-ESTATAL ................................................................................................ 25
2.1 A HISTÓRIA DA “CONQUISTA” DE CANAÃ ........................................................ 25
2.2 A CONFIGURAÇÃO SOCIAL DAS TRIBOS ............................................................ 44
3 ÉPOCA DA MONARQUIA ........................................................................................... 55
3.1 DAVI, SALOMÃO E A MONARQUIA “UNIDA” .................................................... 55
3.2 OS GRANDES REIS ONRI E ACABE......................................................................... 59
3.3 O DESENVOLVIMETO DE JUDÁ
SOB OS REINADOS DE EZEQUIAS E JOSIAS ....................................................... 68
4 EXÍLIO ............................................................................................................................ 81
4.1 O EXÍLIO PARA A BABILÔNIA ................................................................................ 81
4.2 O EXÍLIO E A RECONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DE ISRAEL .................... 83
5 PERÍODO PÓS-EXÍLICO ............................................................................................. 87
5.1 JUDÁ E O GOVERNO PERSA – RETORNO DOS EXILADOS ............................ 88
5.2 A RECONSTRUÇÃO DO TEMPLO E DA CIDADE DE JERUSALÉM ............... 90
6 ERA DO HELENISMO ................................................................................................. 97
6.1 A MORTE DE ALEXANDRE
E O PROCESSO DE HELENIZAÇÃO DE ISRAEL ................................................. 98
6.2 A REVOLTA DOS MACABEUS:
A RESISTÊNCIA CONTRA A HELENIZAÇÃO .................................................... 102
REFERÊNCIAS ............................................................................................................ 109
APRESENTAÇÃO

Olá!

Seja bem-vindo e seja bem-vinda ao componente de História de Israel.

Segundo Donner1, a história de Israel deve ser apresentada a partir das fontes
bíblicas, epigráficas e arqueológicas disponíveis, que devem ser usadas para fundamentar
a pesquisa. E essa abordagem é aplicada também no estudo de outros povos antigos,
como egípcios, assírios, hititas, babilônios, fenícios, etc., posto que os seus materiais
literários e arqueológicos se constituem em verdadeiras janelas de acesso ao passado
histórico, sem o qual não se pode entender a vida dessas pessoas que os produziram. A
proposta desse estudo é percorrermos a História de Israel desde a época patriarcal até o
período helenístico, obviamente com o auxílio dos seus inúmeros achados arqueológicos,
que por sua vez, possibilitarão uma abordagem comparativa entre literatura e
arqueologia. Pretende-se neste trabalho estudar a história israelita desde suas raízes mais
remotas, isto é, as suas origens nômade-pastoris e agrícola-sedentárias, até seu período
urbano-citadino, em que são encontradas as bases do que chamamos hoje de Judaísmo,
Cristianismo e Islamismo.

Este estudo não pretende enfatizar a história factual, isto é, analisar a sucessão de
fatos que se sucederam seguindo uma rígida linearidade histórica, enfatizando detalhes
estatísticos e nomenclaturas desnecessárias, mas sim analisar os processos históricos que
caracterizam as diversas fases pelas quais o povo israelita passou. Para facilitar o nosso
estudo, pretendo usar o esquema de divisão didática da História de Israel em seis partes
ou blocos, como propõe Werner Schmidt:2

1
DONNER, H. História de Israel e dos Povos Vizinhos: Dos primórdios até a formação do Estado. V. 1.
São Leopoldo: Sinodal, 2004. p. 17.
2
SCHMIDT, W. H. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 2004. p. 17.

APRESENTAÇÃO 5
Pré-História Nômade XV(?)-X a.C.

Época Pré-Estatal XII-XI a.C

Época da Monarquia 1000-587 a.C

Exílio 587-539 a.C.

Época Pós-Exílica a partir de 539 a.C

Era do Helenismo a partir de 333 a.C

O esquema acima é bem geral, resumido, e pretende expor a história de Israel e


sua relação com o contexto do Antigo Oriente e, sobretudo, destacando os fatos de maior
relevância para se compreender o Antigo Testamento. Esperamos que, ao final deste
estudo, você possa entender a importância que a História de Israel tem como ferramenta
hermenêutica na compreensão da Bíblia.

Bom Estudo!

6 APRESENTAÇÃO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A proposta desse livro é percorrermos a história de Israel, analisando-a sob duas


premissas:

1) A fé, posto que são narrativas de fé;

2) A histórica, que procura indícios concretos dessas histórias no seu tempo e


espaço, nos quais foram vividas e posteriormente construídas.

Aqui abordaremos também o período mais documentado arqueologicamente da


história de Israel. Trata-se do período da monarquia, onde será abordado o início da
escrita que possibilitou colocar no papel todas essas tradições e memórias passadas. Esse
período chegará ao seu fim e no exílio babilônico e no período pós-exílio, essa atividade
literária crescerá extraordinariamente, dando origem ao que se conhece hoje como a
Bíblia Hebraica.

Para tanto, espera-se que discentes leiam as unidades, assistam aos vídeos
recomendados, realizem as leituras sugeridas e as atividades propostas. Nas unidades,
pois, você encontrará:

- leituras complementares;

- links para conteúdo de aprofundamento;

- vídeos ilustrativos e explicativos;

- exercícios para aplicação de conceitos.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS 7
8 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
1 PRÉ-HISTÓRIA NÔMADE

1 PRÉ-HISTÓRIA NÔMADE

Roteiro de Aprendizagem

Esta unidade introduz as bases que constituem a memória histórica de Israel


como uma primeira forma de palavra de Deus. Essas narrativas dos pais ou patriarcas
Abraão, Isaque e Jacó, mostram a história de indivíduos que se tornaram modelos de fé
pelas suas experiências individuais com Deus. A seguir, no êxodo, essas ações de Deus
tornam-se coletivas, abrangendo um povo escravizado em busca de libertação. A ideia é
sempre mostrar um Deus que age na história tanto de indivíduos como também de um
povo. É uma história que pretende apresentar o Deus de Israel como seu agente
principal, salvando o seu povo, mesmo a despeito das suas infidelidades e ingratidão a
Deus que os libertou e também os introduziu numa terra que mana leite e mel.

1.1 OS PATRIARCAS E A MEMÓRIA HISTÓRICA DE ISRAEL

A história de Israel se confunde com a sua religião. Remonta a tempos


imemoriais, em que nômades, “quase invisíveis” arqueologicamente falando,
caminhavam e percorriam os desertos e oásis, entre tendas e altares. Entretanto, essas
histórias só ganharam visibilidade com o advento da cidade, com sua efervescência
cultural e burocracia estatal. Foi nesse ambiente citadino que os escribas e sacerdotes da
corte reconstruíram a história de seu povo numa perspectiva mais próxima dos interesses
monoteístas da época. Por esse motivo começaram a registrar essas “histórias de
ancestrais”, que, por sua vez, foram transmitidas oralmente por séculos.

O único documento literário que conservou tradições dos patriarcas é o


Gênesis (Gn 12-35). É de bom alvitre esclarecer enfaticamente que do
Gênesis não se pode extrair, p. ex., o quadro de uma época dos patriarcas
como parte da história de Israel ou até do Oriente Antigo. Israel ainda
não existe na época dos patriarcas, nem sequer conforme o testemunho
do próprio AT, e o Oriente Antigo fica em grande parte excluído da
perspectiva. O Gênesis narra nada mais do que a história de uma família

UNIDADE 1 9
ao longo de três gerações, num horizonte muito restrito, quase sem
efeitos para fora e a partir de fora3.

Reconstruir as origens históricas de Israel remontando-o ao período nômade é


uma tarefa desafiadora. Há muitas teorias que por décadas se propõem a resolver esse
“problema”. Gerstemberger4 diz que atualmente os estudos em torno das tribos israelitas
e da liga tribal baseia-se em pesquisas, predominantemente, das condições de vida de
beduínos modernos, onde se busca alguma semelhança entre ambos.

A fase oral das narrativas patriarcais é muito antiga e difícil de identificar,


porém é possível detectar alguns indícios. Uma das narrativas do ciclo de Jacó, o pai das
12 tribos, se encontra no capítulo 28 do Gênesis. Nele há duas fases, duas preconcepções
israelitas: a primeira fase é animista, onde as divindades habitam nas coisas ("essa é a
casa de Deus", v. 17a); a segunda apresenta a divindade morando no céu e não mais nas
coisas; isso se percebe na frase que diz: "essa é a porta dos céus" (v. 17b). Ali Jacó realiza
cultos tipicamente cananeus e unge uma estela (pedra). Era comum os cananeus
peregrinarem a algum santuário para cultuar e levar o dízimo para alguma divindade
local. Quando as tribos israelitas entram em contato com esse santuário já existente, eles
o incorporam a sua religião e o ligam a Jacó.

Se estiver certo que Israel se desenvolveu em solo palestinense a partir


do cananeísmo; se, ademais, está correto que os patriarcas foram algo
assim como proeminentes "proto-israelitas", então pode-se supor que eles
tivessem parte no "pluralismo religioso interno" da religião cananeia e da
religião israelita primitiva a ser postulada5.

Na Bíblia há textos que narram a vida dos patriarcas Abraão, Isaque e Jacó, suas
peregrinações e anseios por adquirirem direitos sobre a posse da terra (aquisição da
sepultura em Macpela, Hebrom, Gn 23). Outras narrativas afirmam que esses antigos
ancestrais viviam em tendas, baseado na confissão que faziam por ocasião da oferta das
primícias: “Arameu errante foi meu pai” (Dt 26,5). Para Schmidt6 os antepassados de
Israel falavam originalmente aramaico, mas, depois do assentamento, adotaram a língua
local, o hebraico.

É verdade que os textos do Antigo Testamento têm vagas lembranças (ou


projeções) de uma vida migrante dos antigos ancestrais.
Simultaneamente, no entanto, imaginam os mesmos ancestrais como
agricultores sedentários ou, então, como pessoas para quem a vida
sedentária era mais desejável que tudo. [...] Em todo caso, deve ser

3
DONNER, 2004. p. 83.
4
GERSTENBERGER, E. Teologias no Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 2007. p.148.
5
DONNER, 2004, p. 93.
6
SCHMIDT, 2004, p. 19.

10 UNIDADE 1
considerado que Israel e suas tribos surgiram somente na terra
agricultável. Isso quer dizer que a estrutura tribal foi cunhada por
famílias camponesas sedentárias e comunidades aldeãs, com todas as
marcas que uma vida agrária pode imprimir numa formação social desse
tipo e nas atitudes e noções de Deus porventura nela existentes.7

Um dos textos que pretendem relatar o ambiente nômade originário de Israel é


Gn 26,12-33. Nele são relatadas as peregrinações de Isaque e seu clã. O cenário é a cidade
filisteia de Gerar, do qual são expulsos pelos seus governantes, acabando por se deslocar
para extremo sul, onde se instalam em Bersheva, no Neguev. Mas, segundo
Gerstemberger8, essa narrativa não corresponde a época inicial de Israel, pois está cheia
de anacronismos: Isaque cultiva cereais com abundância (v. 12), possui ovelhas e vacas
(v. 14) tem tecnologia para abrir poços (v. 18).

Houve um esforço dos eruditos americanos Cyrus Gordon e Ephraim Speiser na


busca de semelhanças entre as praticas sociais e legais do período patriarcal descritas no
Gênesis com as mesmas práticas registradas em textos do Oriente Próximo, do segundo
milênio a.C.

Os textos mais notáveis são as tabuletas cuneiformes de Nuzi, do norte do


Iraque, que datam do século XV a.C. A maioria delas são arquivos familiares que
descrevem os costumes dos hurrianos, povo não semita que estabeleceu o poderoso
estado de Mitani, no norte da Mesopotâmia, na metade do segundo milênio a.C.

Para citar alguns exemplos, em Nuzi a mulher estéril era obrigada a


providenciar uma escrava para seu marido gerar filhos, claro paralelo
com a história bíblica de Sara e Hagar no livro do Gn 16. Em Nuzi,
escravos eram perfilhados por casais sem filhos, prática semelhante à
adoção de Eliezer por Abraão como seu herdeiro (Genesis 15,2-3). Os
acordos de Jacó com Labão, em troca de seu casamento com Raquel e
Lia, também encontram paralelos nas tabuletas Nuzi.9

O arqueólogo Mazar observou um detalhe importante no texto bíblico: um rei


filisteu de Gerara. Entretanto, não existiam filisteus em Canaã na idade do Bronze
médio. Os textos e relevos egípcios do templo mortuário de Medinet Habu e a
arqueologia provaram que os filisteus se fixaram na costa leste do mar Mediterrâneo
somente no século XII a.C. Nesse caso, a referência aos filisteus foi uma inserção tardia

7
GERSTENBERGER, 2007, p.149.
8
GERSTENBERGER, 2007, p.139.
9
Esse texto confirma que as praticas dos patriarcas bíblicos tem um fundo histórico - FINKELSTEIN,
I.; SILBERMAN, N. A. A Bíblia não tinha razão. São Paulo: A Girafa, 2003.p. 431-432. Entretanto o
título original do livro é The Bible unearthed (A Bíblia desenterrada). O título alternativo dado ao livro
tem causado desconfiança e afastamento de muitos pesquisadores dessa valiosa obra que se tornou um
best seller em vários países do mundo.

UNIDADE 1 11
(no tempo da compilação) de uma tradição anterior10. As escavações arqueológicas
mostraram que Judá não atingiu nível significativo de alfabetização antes do final do
século VIII a.C. Por isso, as narrativas dos patriarcas estão repletas de referências a
realidades monárquicas do século VII a.C. Refletindo novamente sobre documentos de
Nuzi, percebeu-se que as práticas nele registradas eram comuns também no primeiro
milênio, período da monarquia em Judá.

E sobre os textos Nuzi, estudos posteriores comprovaram que as praticas


sociais e legais que mostram analogias com as narrativas bíblicas não
podem se restringir a um único período, elas eram comuns no antigo
Oriente Próximo através do segundo e do primeiro milênio a.C. Em
alguns casos constata-se que materiais do primeiro milênio podem
oferecer melhores paralelos.11

O fato é que em sua história original, Israel jamais esqueceu sua origem nômade
pastoril associada a um Deus de migrantes. Com o processo de sedentarização, houve
uma fusão de elementos teológicos associados às culturas agrárias e urbanas, originando
aquilo que chamamos hoje de povo de Israel. Mas há um elemento comum que une todos
esses grupos que convivem nesse ambiente hostil: a necessidade de gerar filhos, isto é, a
fertilidade tanto de homens, como de animais.

Abraão foi chamado por Deus para ser uma grande nação, um povo inumerável
como as estrelas do céu. As narrativas patriarcais revelam indícios históricos daquilo que
seria um rito de fertilidade doméstico. As matriarcas Lia e Raquel possuíam deuses da
fertilidade chamados de terafins, que eram pequenas estatuetas de terracota que
acompanhavam os nômades no deserto, geralmente associadas à fertilidade e proteção,
desde a concepção até o parto. Muitas dessas imagens estão expostas no Museu de Israel,
conforme a Figura 1.

12
Figura 1 - Teraphim ou ídolos menores

10
FINKELSTEIN, 2003, p. 433.
11
FINKELSTEIN, 2003, p. 433.
12
Disponível em: <http://huntsmansintheholyland.blogspot.com.br/2012/07/a-day-at-museums.html>.

12 UNIDADE 1
Segundo George Ernest Wright13, os documentos de Nuzi comprovam que esses
terafins tinham grande importância para a família, pois sua função era garantir a vida
próspera e também a segurança de quem os possuía. Por isso a narrativa revela a grande
preocupação de Labão pela perda desses terafins: “por que furtaste os meus deuses?” (Gn
31,30). Gottwald14 afirma que entre as práticas legais usuais evidenciadas nas tabuinhas
de Nuzi está a possessão dos deuses da família (terafim), que era um direito à propriedade
hereditária (Gn 31,34).

Albertz15 considera que os terafins podem ser interpretados como representações


de ancestrais divinos. O termo terafim, que pode ser usado no singular bem como no
plural, parece ter o significando de “demon” ou “espírito protetor”, semelhante ao
acadiano sedu. A Septuaginta traduz terafim como “ídolo” ou “imagem esculpida”. O
termo terafim aparece 15 vezes no Antigo Testamento.

Para Albertz, os textos de Gn 31,19, 34 e 35 falam claramente de terafins como


objetos de culto de pequena escala. Isso fica claro no episódio do roubo de Rachel, em
que ela esconde os terafins de seu pai em um alforje ou sob a sela de pano. Eles podem ter
sido usados como um amuleto ou para expressar simbolicamente a presença da deusa em
um túmulo e, especialmente, em um culto doméstico16. O termo “ídolo” simboliza os
deuses domésticos que, entre outros, estão sempre em conexão com as mulheres e usados
em contextos de culto como oferendas votivas ou instrumentos de magia (Zc. 10: 2).
Esses ídolos, no plural, como descritos no episódio do roubo de Labão (Gn 31), eram
provavelmente figurinos em forma humana17. 1 Sm 19: 13,16, sugere que Michal esconde
um terafim; na cama, como um substituto para Davi, a quem Saul está tentando matar.
Provavelmente esse terafim era em tamanho natural. Isto é evidenciado quando Michal
cobre o figurino com pelo de cabra na cabeça e o veste com roupas que evidentemente lhe
dão mais semelhança humana.

E havendo Labão ido a tosquiar as suas ovelhas, furtou Raquel os ídolos


que seu pai tinha. Com quem achares os teus deuses, esse não viva;
reconhece diante de nossos irmãos o que é teu do que está comigo, e
toma-o para ti. Pois Jacó não sabia que Raquel os tinha furtado. Então
entrou Labão na tenda de Jacó, e na tenda de Lia, e na tenda de ambas as
servas, e não os achou; e saindo da tenda de Lia, entrou na tenda de

13
WRIGHT, George Ernest. Arqueologia Bíblica. Madrid: Ediciones Cristandad, 1975. p.63.
14
GOTTWALD, K. N. Introdução socioliterária à Bíblia hebraica. São Paulo: Paulinas, 1988. p.135.
15
ALBERTZ, Rainer and SCHMITT Rüdiger. Family and Household Religion in Ancient Israel and the
Levant. Winona Lake Indiana: Eisenbrauns, 2012. p. 60.
16
BECKING, Bob; DIJKSTRA, Meindert; KORPEL, Marjo C. A.; VRIEZEN, Karel J. H. (Ed.).Only
one God? Monotheism in Ancient Israel and the Veneration of Goddess Asherah. London: Sheffield
Academic Press, 2001. p. 66.
17
TOORN, Karel van der; BECKING, Bob; HORST, Pieter W. van der. Dictionary of deities and
demons in the Bible. 2nd extensively rev. ed. Leiden; Boston; Köln: Brill, 1999. p. 846.

UNIDADE 1 13
Raquel. Mas tinha tomado Raquel os ídolos e os tinha posto na albarda
de um camelo, e assentara-se sobre eles; e apalpou Labão toda a tenda, e
não os achou. E ela disse a seu pai: Não se acenda a ira aos olhos de meu
senhor, que não posso levantar-me diante da tua face; porquanto tenho o
costume das mulheres. E ele procurou, mas não achou os ídolos. (Gn
31,19;33-35)

Nesse caso, a diferença básica entre os terafins dos nômades e as divindades dos
sedentários cananeus está no fato de que elas estão relacionadas ao estilo de vida dos seus
adoradores, pois as divindades dos povos sedentários são predominantemente ligadas a
um lugar. Nesse caso, ir a um deus significava visitar o seu santuário, local de sua
habitação. Ali ele recebia as ofertas dos devotos e a seguir dava-lhes sua bênção. Já o deus
dos nômades nem sempre está ligado a um local. Ele os acompanha, está presente no
caminho, protegendo, garantindo a fertilidade ao seu povo errante.

A experiência religiosa dos patriarcas era com divindades ligadas a famílias, a


pessoas: “Eu sou o Deus de teu pai (pai de Moisés), o Deus de Abraão, o Deus de Isaque.
o Deus de Jacó.” (Ex 3,6). É um Deus muito próximo das pessoas, do grupo18.

A divindade denominada “Deus de Abraão, Deus de Isaque e Deus de Jacó” é


uma divindade denominada como o "Deus dos pais". Essas divindades não estabelecem
vínculos locais em santuários fixos, posto que está ligada ao grupo que as venera e
sobretudo é chamada pelo nome daquele que fundou o seu culto, a quem esse Deus se
revelou e lhe fez determinadas promessas.

O motivo das promessas de descendência e terra, embora sua forma


literária seja, em grande parte, mais recente, é um motivo antigo e
corresponde aos anseios mais profundos de todo pastor nômade em
situação de transumância. É possível compreender a religião dos deuses
dos pais como a variante nômade ou seminômade do culto a El, comum a
todos os semitas.19

Embora se comprovem evidências aproximadas do ambiente cultural, histórico e


religioso dos patriarcas, Donner faz uma crítica contundente dessas tentativas de situá-
los em algum tempo e espaço do Antigo Oriente.

A tentativa de William F. Albright de interpretar os pais como


condutores de caravanas de jegues nas rotas internacionais de comércio
no começo do 2o milênio a.C. se perde na obscuridade do que não é mais
possível conhecer, além de estar prejudicada por uma abundância de

18
GASS. Ildo Bohn. Formação do Povo de Israel: Uma introdução à Bíblia. São Leopoldo: CEBI, 2011. p.
43.
19
GUNNEWEG, A. H. J. História de Israel: dos primórdios até Bar Kochba e de Theodor Herzl até os
nossos dias. São Paulo: Teológica/Loyola, 2005. p. 46.

14 UNIDADE 1
suposições hipotéticas subsidiárias e de improbabilidades. Também não
são melhores as tentativas de definir os pais histórica e
cronologicamente com mais exatidão por meio de observações histórico-
culturais: através de reflexões sobre seus nomes, seus costumes e hábitos,
sobre as concepções jurídicas da tradição sobre os patriarcas, o
relacionamento da tradição com os textos cuneiformes de Nuzi-Arrapha,
e outras mais. Com isso tudo não se avança além da afirmação genérica
de que os patriarcas e as sagas sobre eles enquadram-se no amplo
ambiente da cultura do Oriente Antigo do 2° e do início do 1º milênio
a.C.20

A grande maioria dos estudiosos situa a narrativa dos patriarcas a partir do


século VIII, época de Ezequias, quando toda essa tradição oral tornou-se texto utilizado
na construção da memória histórica de Israel.

O início deste processo de crescimento forma a palavra falada e


transmitida oralmente. As histórias vivas e coloridas dos patriarcas, p.
ex., foram, com certeza, contadas e recontadas através de muitas gerações
antes de serem fixadas por escrito. Neste transcurso, naturalmente,
também alteraram, amiúde, suas formas, acederam-se novos traços
característicos e outros perderam sua importância para uma geração
nova.21

Segundo o relato bíblico, Abraão veio do norte, percorrendo locais importantes


do Norte, mas se instalou por fim em Hebrom. A instalação se concretiza quando Abraão
compra dos habitantes da região um túmulo. Os nomes relacionados aos locais bíblicos
chamaram a atenção de um pesquisador alemão que nos anos de 1940 inventariou todos
os locais em que as histórias dos patriarcas se passaram. Seu nome: Martin Noth22.

A Bíblia afirma que Abraão, um nômade, comprou um terreno perto de Hebrom


para ali morrer, mas também para ali viver. A história narra a aparição de três
mensageiros divinos que anunciaram à mulher de Abraão, estéril até então, que ela teria
um filho. Deus apareceu a Abraão junto aos Carvalhos de Mamre. Hebron e Mamre estão
localizadas no centro de Canaã, no coração das suas colinas rochosas. E dando
prosseguimento a sua leitura geográfica da Bíblia, Noth se dedicou ao segundo patriarca
Isaque. A Bíblia conta que ele era um pastor que vivia na parte sul e semiárida de Canaã.
Noth então se voltou para o terceiro patriarca, Jacó. O texto bíblico conta que ele foi para
o norte, local de sua família, para escolher uma esposa. Outros textos relacionados a ele o
situam nas regiões montanhosas ao norte de Canaã.

20
DONNER, 2004, p. 95.
21
RENDTORFF, R. A formação do Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1979. p. 6.
22
NOTH, M. apud FINKELSTEIN, 2003, p. 67-69.

UNIDADE 1 15
A geografia desses três patriarcas levou Noth a sugerir uma leitura da Bíblia
diferente da tradicional. E com base nesses locais geográficos, tornou-se compreensível a
tentativa de vincular esses três personagens, e conforme a história se desenvolveu
procurou-se entender como esses grupos humanos estão relacionados entre si. Isso levou
a uma espécie de genealogia patriarcal, com Abraão, Isaac e Jacó. Noth deduziu que havia
no início três tradições separadas e os patriarcas não tinham relação de parentesco. No
norte foi narrada a história de Jacó. Em Hebron, a de Abraão. E em Beercheva a de
Isaque.

Para Noth, a ideia de que os três patriarcas provinham da mesma família é uma
invenção tardia daqueles que redigiram a Bíblia Hebraica. Eles queriam mostrar que
havia um elo entre os três patriarcas, mas de fato não havia nenhum. Isso poderia ser um
indicativo de diversas tradições orais que posteriormente foram registradas nos textos,
isto é, histórias de várias origens entrelaçadas. Algumas associadas ao reino do norte, e
outras ligadas ao reino do Sul, Judá.

Noth concluiu que há então três tradições distintas inseridas no contexto de três
áreas geográficas diferentes. O intrigante é que a história de Abraão está no centro, e vem
em primeiro lugar como o patriarca fundador. É possível que o texto tenha sido redigido
em Jerusalém no século VII a.C. Portanto, é dali que surgiu essa história23.

A história de Abraão não é apenas a historia do ancestral de muitas nações. De


fato, ele se tornou o pai da fé. A partir do capítulo 12 do Gênesis, a narrativa coloca em
foco a família de Abraão, tentando descrever aqueles que, falando dos pais, se
reconhecem como seus descendentes. Novas relações se desenvolvem, assim
progressivamente.

Não se pode perder de vista a ênfase teológica que o Gênesis dá a tais relações,
posto que Deus ocupa o papel proeminente na narrativa, dirigindo os destinos segundo a
sua vontade divina. O hábil narrador24 conta essas histórias enriquecendo-as com as
tradições do seu próprio tempo. Esses teólogos são narradores muito hábeis e, usando
três gerações, oferecem uma grandiosa construção histórica. Um grande mosaico de
muitas gerações, esse material narrativo possibilita uma memória de grupo que se
conecta com eventos que interessam a toda história de um povo. A narração dessas

23
FINKELSTEIN, 2003, p. 70.
24
RENDTORFF, 1979, p. 13. As ideias teológicas diretrizes que, tanto na história do princípio como na
história dos patriarcas, em Gênesis, sobressaem claramente, permitem a conclusão de ter sido seu autor
aquele que ajuntou as diversas tradições de maneira bem planejada. Este autor é chamado o «Javista».
Essa denominação é motivada pelo fato que ele usa permanentemente, em sua apresentação, o nome
hebraico de Deus: «Javé» (na versão portuguesa é traduzido por «o Senhor»). Representa ele um teólogo
do tempo da monarquia em Judá.

16 UNIDADE 1
memorias se constrói sobre o fato de que um grupo de pessoas, um povo, ou parte dele se
reconhece num personagem fundador que une e identifica todo o grupo25.

Então os contornos precisos do passado se pulverizam, os personagens se


sobrepõem, ou por terem nomes semelhantes, ou porque o maior absorve a memória dos
outros menores. Então os eventos se moldam com nova lógica em referência ao mesmo
local ou ao sucesso de feitos similares. E ao final, eles têm uma narração que, narrando o
passado e as origens, narram na verdade a si mesmos e definem a própria identidade
histórica.

No ciclo narrativo de Abraão destaca-se a relação entre pai e filho. A ordem de


abandonar Hagar, a esposa egípcia, reflete o conflito pós-exílico, onde os judeus são
obrigados a deixarem suas esposas moabitas. É possível que o texto possa ter sido usado
para encorajar tal decisão. O ciclo de Abraão é praticamente a síntese da história de
Israel, retrojetada na narrativa. Portanto, Abraão é o hebreu oprimido no Egito, o profeta
que acolhe a palavra de Deus, o exilado que deve deixar a Babilônia e seguir para a terra
prometida. Percebe-se então que a lembrança dos pais é uma oportunidade para lembrar
a própria identidade e compreender a si mesmo26.

Por isso, essas sagas são mais do que simples contos do que passou. Nelas
tudo isso está presente como parte integrante da própria história
daqueles que as narram e ouvem. Reconhecem, naquilo que Abraão, Jacó
e Moisés passaram, uma representação de suas próprias experiências que
tiveram e ainda têm. Porque Israel entende sua história sempre como
história com Deus. E assim como Ele agiu com os patriarcas, livrou a
geração posterior do Egito e a levou para a terra prometida, assim está
agindo em todos os tempos com seu povo27.

No ciclo de Jacó e Esaú está a relação entre irmãos. É interessante notar que as
narrativas de traição entre irmãos começam com Caim e Abel, perpassam o ciclo de Jacó,
e se repetem em José, que por sua vez perdoa seus irmãos traidores. A história de José
fala também da boa relação dos hebreus com o estado egípcio, refletindo assim a amistosa
relação entre os judeus e o governo persa no século V a.C, sobretudo os benefícios
concedidos a Judá pelos reis persas. Baseado nessas construções literárias, constatamos
que é difícil reconstruir historicamente o período patriarcal. De fato, as histórias dos
patriarcas constituem-se na confissão de fé de Israel em seu Deus.

25
GIANANTONIO, B.; PRIMO, G. ll mondo della bibbia. lmmagini e parole . Milano: Paoline
Editoriale Libri, 2006. p. 25.
26
GIANANTONIO, B.; PRIMO, G, 2006, p. 24.
27
RENDTORFF, 1979, p. 6-7.

UNIDADE 1 17
O Antigo Testamento conserva e testemunha uma história de fé - a fé
num mesmo e único Deus (Êx 6.2s. e outras) - e integra o crente
contemporâneo (tanto a comunidade cristã como o indivíduo) nesta
história de fé. Para quem tem fé não é importante ter e conhecer além
dos irmãos também os pais na fé (cf. Rm 4.10 a respeito de Abraão; Hb
11)?28

1.2 ISRAEL NO EGITO - A HISTÓRIA DO ÊXODO

O Êxodo, isto é, a saída do Egito, tornou-se a confissão de fé fundamental para


Israel (Êx 20,2; Os 13,4; Ez 20,5; SI 81,11 e outras). É apresentado como cumprimento da
promessa de Deus feita ao seu povo (Êx 3, 6). Segundo Schmidt, só houve um único
grupo que esteve no Egito e posteriormente se integrou ao povo de Israel, do Reino do
Norte29.

A história revela que os antepassados de Israel foram forçados por necessidade


de alimento a migrarem para o Egito (Gn 12, 10; 42). O estado egípcio se utilizou dessa
mão de obra, submetendo-os a trabalhos forçados nas construções das "cidades-celeiros"
Pitom e Ramsés (Êx 1, 11). O nome de uma das cidades nos lembra o Faraó Ramsés do
século XIII a. C; que mandou nesse período que se construisse uma nova capital ("casa de
Ramsés") no delta ocidental, na fronteira nordeste de seu reino. Quando o grupo de
trabalhadores fugiu (Êx 14, 5), foi perseguido, mas salvo. Um dos textos mais antigos da
Bíblia celebra esse acontecimento não como vitória de Israel, mas exclusivamente como
feito de Deus, realizado sem auxílio humano:

E Miriã lhes respondia: Cantai ao SENHOR, porque gloriosamente


triunfou; e lançou no mar o cavalo com o seu cavaleiro. (Ex 15, 21)

Essas histórias foram transmitidas ao longo das gerações: da sucessão de pragas


que golpeiam o Egito até a noite da Páscoa, obrigam o faraó a deixar Israel partir. Em
última análise, são simbólicos: filhos e netos, sim, todo o mundo deve saber o que Javé
fez: “Mas, deveras, para isto te mantive, para mostrar meu poder em ti, e para que o meu
nome seja anunciado em toda a terra.” (Ex 9,16). Na interpretação futura dos profetas
concernentes às ações de Deus no passado, não devemos esquecer que até as punitivas
(seca, granizo, peste, fome, praga do trigo, guerras, revoltas internas) são interpretadas
como benefício de Deus, um chamado à conversão.

Não visam o castigo por si mesmo, mas são um meio para que o povo se
converta. É o que nos diz Am 4,6-11, onde após cada praga se repete o

28
SCHMIDT, 2004, p. 357.
29
SCHMIDT, 2004, p. 21-23.

18 UNIDADE 1
estribilho “e não vos convertestes a mim”; e também Is 9,7-20, onde a
chave para interpretar todos os castigos se encontra no versículo 12:
‘‘mas o povo não voltou para aquele que o feria, não buscou o Senhor dos
exércitos”.30

A última praga revela a origem da Páscoa, que está ligada ao ambiente nômade
onde o sangue ovino era aspergido nas entradas das tendas com finalidades apotropaicas,
isto é, ritos de proteção. Os trajes e a postura de migrante refletem esse ambiente nômade
pastoril.

Assim pois o comereis: Os vossos lombos cingidos, os vossos sapatos nos


pés, e o vosso cajado na mão; e o comereis apressadamente; esta é a
páscoa do SENHOR. (Ex 12,11)

A festa da Páscoa e a dos pães asmos são uma justaposição de memórias, tanto do
ambiente nômade como do agrícola.

Os grupos de pastores seminômades celebravam a festa da Páscoa. Esta


era também uma festa de passagem. Mas enquanto os camponeses
celebravam a passagem da farinha velha para a nova, os pastores
celebravam a passagem de um acampamento antigo para um novo, de
uma pastagem velha e já esgotada para uma nova, dentro de seu ritmo de
migrações no inverno e no verão31.

Para aqueles que saíam do Egito, festejaram a passagem de um sistema de morte


(escravidão) para um sistema de vida (libertação). Aqui há um dado novo. Quando os
israelitas passaram a habitar nas regiões montanhosas de Canaã, juntaram essa
experiência de libertação com as diversas tradições religiosas e culturais e as integraram
na nova organização tribal. A festa da Páscoa, assim como os judeus ainda hoje a
celebram, é fruto dessa integração32. Para Croatto, a “memória” das ações de Yahweh
libertando seu povo da escravidão é lido e interpretado em todas as épocas e elaborado
em todos os gêneros literários possíveis. Mas nunca repetem o mesmo sentido do êxodo
original, e sim a exploração de sua “reserva-de-sentido”.

Os acontecimentos que dão origem a um povo não se esgotam em sua


primeira narração, mas “crescem” em sentido através de suas projeções
na vida daquele. Muito bem, para expressar esse “mais-de-sentido”, a
palavra do acontecimento o redimensiona e reelabora: a vocação de
Moisés, as pragas do Egito, a páscoa apressada, o cruzar do mar, não são
episódios do acontecimento da libertação, mas expressões de seu sentido
como projeto e atuação de Deus ou como memória festiva (a páscoa). Se
o êxodo tivesse acontecido assim como está relatado, teríamos uma

30
SCHREINER, Josef. Palavra e Mensagem do Antigo Testamento. São Paulo: Teológica, 2004. p. 20.
31
GASS, 2011, p. 44.
32
GASS, 2011, p. 57.

UNIDADE 1 19
filmagem e não uma interpretação, um fato qualquer sem significado
“teológico”, nada mais do que essa presença fantástica de Deus33.

Em Israel, a Páscoa adquiriu um novo caráter, vinculado com a festa dos


Matsoth, a festa dos pães asmos, quando por sete dias se comia apenas pão sem levedura
(Êx 13). Tomou-se dia comemorativo do êxodo (Êx 12,14), servindo assim de motivo
para a proclamação dessa libertação (Êx 12, 24). Segundo Schimidt34, as três tradições que
constituíram a futura autocompreensão do povo de Israel são:

1) A promessa aos patriarcas;

2) A libertação da servidão no Egito;

3) e a revelação junto ao Sinai.

Essas tradições formam um continuum histórico: os patriarcas Abraão, Isaque e


Jacó se inserem numa sequência genealógica, os filhos de Jacó se multiplicam e
constituem no Egito o povo de Israel (Êx 1,7).

O nome de Deus, Yahweh, está vinculado originalmente ao monte Sinai35(Jz 5,


4.; Dt 33, 2) e diz-se que Moisés "subiu a Deus", para conduzir o povo "ao encontro de
Deus" (Êx 19; 24; 33,12; 1 Rs 19). Reimer36 afirma que na Bíblia o Deus YHWH vem de
fora, de regiões do deserto. Predominantemente, o Pentateuco o situa no Sinai, localizado
na homônima península, datado do século IV d.C. (Êx 19). Segundo a Bíblia, no monte
Sinai originou-se a legislação hebraica e o Deus da montanha tornou-se a divindade
principal de Israel. É provável que os antepassados de Israel tenham assimilado a fé em
Yahweh através dos midianitas (Êx 18,12) ou quenitas (Gn 4,15). Percebe-se que a
tradição conservou a memória de que Moisés era genro de um sacerdote de Midiã (Êx 2,
16). É possível que Moisés tenha recebido, num primeiro momento, informações a
respeito de Yahweh e divulgado entre aqueles que estavam sob servidão no Egito.

A busca pelas origens de Yahweh pode obter respostas através da arqueologia.


Na cidade real de Karnak, por cerca de mil anos os faraós celebravam suas vitórias nas
paredes dos templos e nos obeliscos. Na Muralha Norte de Karnak temos cenas que
retratam vitórias de Set I, pai de Ramsés, o grande. Nela, Set celebra uma importante
vitória sobre os shasu. Eles também aparecem em relevos feitos por Ramssés III (1184-

33
CROATTO, 1986, p. 26.
34
SCHIMIDT, 2004, p. 19.
35
SCHIMIDT, 2004, p. 22
36
REIMER, H. A construção do Uno. Pistis Praxis, Curitiba, v. 4, p. 177-195, 2012.

20 UNIDADE 1
1153 a. C.) no templo de Mednet Habu. Nota-se nas representações dos guerreiros Shasu
duas semelhanças: o medalhão no peito e o estilo do cabelo.

Figura 2 - Guerreiros Shasu37 Figura 3 - Guerreiros Shasu38

O povo shasu vivia no deserto de Mídiã, entre a Jordânia e o norte da Arábia


Saudita. Uma das cartas atribuídas ao Apóstolo Paulo situa o monte Sinai nesse local:
“Ora, esta Agar é Sinai, um monte da Arábia [...]” (Gl 4, 25). Segundo textos egípcios, o
lugar onde os shasus viviam era chamado Yhw (YAHU). Foi justamente nesse lugar,
conhecido também por Mídiã, que Moisés viu Deus na sarça ardente. Temos portanto
em fontes egípcias uma localidade cujo nome é semelhante ao Deus israelita. Segundo
Römer39, foi achado um papiro egípcio que data de 1330-1230 a.C, em que há um nome
próprio composto por três elementos contendo a forma abreviada de Yahweh, ou seja,
Yah. Adoni-roe-yah ("Meu Senhor é o pastor de Yah").

"Destruí o povo de Seir entre as tribos Disse pois: O SENHOR veio de Sinai, e
Shasu. Arrastei suas tendas: seu povo, sua lhes subiu de Seir; resplandeceu desde o
propriedade e seu gado também, sem monte Parã, e veio com dez milhares de
número; Eles foram empurrados e levados santos; à sua direita havia para eles o fogo
em cativeiro, como o tributo do Egito.” 40 da lei. (Dt 33, 2).

37
STAUBLI, Thomas. Das Image der Nomaden im alten Israel und in der Ikonographie seiner
sesshaften Nachbarn. Orbis Biblicus et Orientalis 107. Freiburg (Suíça); Göttingen: Vandenhoeck &
Ruprecht. 1991. p. 340.
38
STAUBLI, 1991, p. 341.
39
RÖMER, Thomas. The Invention of God. Cambridge: Harvard University Press, 2015. p. 38.
40
RÖMER, 2015. p. 38. O texto se encontra no Papiro Harris I (da era de Ramsés IV, 1150 a.C.) nele o
Faraó se vangloria por ter derrotado os Shasus.

UNIDADE 1 21
Essas conexões surpreendentes estão levando os estudiosos a reexaminarem
novamente a história do êxodo. Há uma teoria que fala de um grupo de escravos
cananeus fugidos do Egito, que passaram por Midiã e ouviram histórias sobre o Deus dos
shasus e então passaram a atribuir essa experiência de libertação a esse Deus. No regresso
a Canaã, seguiram para as regiões montanhosas, integrando-se aos grupos em Canaã. Ao
transmitir-lhes suas histórias de libertação, impactaram essa sociedade igualitária,
disseminando a ideia de um Deus que representava a liberdade de usufruir do seu
próprio trabalho. A mensagem era tão forte que uniu as pessoas sob uma nova
identidade. Israel era, no início, um aglomerado de multidões, mas o espírito
revolucionário estava com eles desde o início. Depois essas histórias foram registradas
por escrito e se tornaram o tema central da Bíblia e o nascimento do monoteísmo.

Para Finkelstein,41 o Êxodo de lsrael do Egito não é um fato histórico, mas sim a
expressão contundente da memória e da esperança, nascida num contexto de mudanças.
Por isso, o confronto entre Moisés e faraó (anônimo no texto bíblico) é uma projeção do
confronto entre o rei Josias e o faraó Neco, recentemente coroado. Fixar essa memória
bíblica em uma só data, porém, é trair o significado mais profundo da história do povo de
Deus.

APROFUNDAMENTO SOBRE OS PATRIARCAS BÍBLICOS

O professor de Antigo Testamento Airton José da Silva escreveu interessante texto


acerca do tema em História de Israel no debate atual.42

41
FINKELSTEIN, 2003, p. 105.
42
<http://airtonjo.com/site1/historia-de-israel.htm>.

22 UNIDADE 1
PARA RESUMIR:

Nesta unidade, você aprendeu que

 Reconstruir as origens históricas de Israel remontando-o ao período nômade é uma


tarefa desafiadora;

 A história de Israel se confunde com a sua religião e começa com os patriarcas


Abraão, Isaque e Jacó caminhando e percorrendo desertos e oásis, entre tendas e
altares. Essas histórias só ganharam visibilidade com o advento da cidade, pois foi
nesse ambiente que os escribas da corte em Jerusalém reconstruíram a história de seu
povo, numa perspectiva mais próxima dos interesses monoteístas da época. Por esse
motivo, começaram a registrar essas “histórias de ancestrais”, que, por sua vez, foram
transmitidas oralmente por milênios.

 Para Martin Noth, a ideia de que os três patriarcas provinham da mesma família é
uma invenção tardia. E que, isso é um indicativo de diversas tradições orais que
posteriormente foram registradas nos textos, histórias de várias origens entrelaçadas
oriundas tanto do reino do Israel, como do reino do Sul, Judá.

 Há três tradições distintas inseridas no contexto de três locais diferentes, sendo que a
história de Abraão está no centro e vem em primeiro lugar, como o patriarca
fundador. Essa teoria afirma que tal tradição vem de Jerusalém no século VII e é dali
que essa história é contada.

 As três tradições que constituíram a futura autocompreensão do povo de Israel são:


1) A promessa aos patriarcas; 2) A libertação da servidão no Egito; 3) e a revelação
junto ao Sinai.

UNIDADE 1 23
APLICAÇÃO
DE CONCEITOS

Assista ao vídeo sobre “História de Israel”43

"Destruí o povo de Seir entre as tribos Disse pois: O SENHOR veio de Sinai, e
Shasu. Arrastei suas tendas: seu povo, lhes subiu de Seir; resplandeceu desde o
sua propriedade e seu gado também, sem monte Parã, e veio com dez milhares de
número; Eles foram empurrados e santos; à sua direita havia para eles o
levados em cativeiro, como o tributo do fogo da lei. (Dt 33, 2)
Egito.” [RÖMER, 2015, p. 38.]

“O nome de Deus, Yahweh, está vinculado originalmente ao monte Sinai


(SCHMIDT, 2004, p. 22.) e diz-se que Moisés "subiu a Deus", para conduzir o povo "ao
encontro de Deus". Reimer afirma que, na Bíblia, o Deus YHWH vem de fora, de regiões
do deserto (REIMER, 2012, p. 177-195.).” A arqueologia descobriu em fontes egípcias
uma localidade cujo nome é semelhante ao Deus israelita. Tendo por base o vídeo
apresentado, reflita e faça apontamentos pessoais sobre o povo shasu, e a sua possível
relação com os israelitas que saíram do Egito.

43
<https://youtu.be/9whxupPO-M8>

24 UNIDADE 1
2 ÉPOCA PRÉ-ESTATAL

2 ÉPOCA PRÉ-ESTATAL

Roteiro de Aprendizagem

Nesta unidade estudaremos que, à semelhança dos patriarcas e do Êxodo, o livro


de Josué narra a formação da nação e, portanto, está repleto de intervenções divinas,
façanhas e milagres. A narrativa da travessia do Jordão faz paralelo com a passagem pelo
mar e quer consolidar as ações de Deus que não só liberta seu povo, mas também o
introduz na terra , completando a promessa que fizera aos pais.

[...] a passagem do Jordão é retroprojetada para a passagem do mar no


Egito, verifica-se também o processo inverso. Aquela leitura
enriquecedora, por sua vez, recarrega de sentidos os acontecimentos ou
as práticas a partir das quais se opera. O êxodo difunde sua significação
sobre a posse da terra. O símbolo da passagem das águas funciona nas
duas direções e une os acontecimentos da libertação e da posse da terra44.

O movimento de Israel circulando sete vezes ao redor das muralhas de Jericó


indica mais uma procissão litúrgica do que um exercício militar. Segundo a Bíblia, a
fortaleza foi destruída, abrindo passagem para a posse da terra prometida sob o comando
de Yahweh.

Posteriormente veremos o período caótico dos juízes, que por sua vez quer
mostrar a monarquia como solução para esse contexto de inseguranças e anarquias. Na
verdade, o período dos juízes findará com a história de Samuel, um sacerdote, juiz e
profeta que, na transição para o sistema tributário dos reis, será o personagem que
introduzirá a monarquia em Israel.

2.1 A HISTÓRIA DA “CONQUISTA” DE CANAÃ

As campanhas militares do povo lideradas por Josué e conduzidas pela proteção


de Yahweh devem ser conservadas nos seus aspectos históricos e teológicos, posto que
quer mostrar a conquista da terra como um dom de Deus a seu povo, cumprindo assim a
aliança feita aos pais.

44
CROATTO,1986, p. 26.

UNIDADE 2 25
Note-se ainda que Js 3-5 tem um interesse fortemente religioso: a
travessia do Jordão e a tomada de Jericó são, na verdade, liturgias
processionais; a dimensão religiosa continua com o rito da circuncisão e
a celebração da Páscoa. Essas narrativas foram costuradas, formando um
quadro uniforme da fase de ocupação da Terra na parte da Cisjordânia.
Trata-se de uma história maravilhosa, mostrando que não é a força do
povo e sim a força de Javé que conquista a vitória sobre os inimigos. O
autor está interessado em mostrar que Javé foi fiel às promessas,
entregando ao povo a Terra que outrora havia prometido aos
antepassados (Ex 3,7-9; Dt 8,7-9).45

Para Storniolo, a conquista da terra tinha como objetivo a substituição do


sistema opressor egípcio-cananeu para o modelo igualitário tribal. O quadro abaixo
apresenta uma leitura comparativa dos dois sistemas.46

SISTEMA EGÍPCIO E CANANEU SISTEMA TRIBAL

Sociedade desigual, fundada no Sociedade igualitária, fundada no interesse


interesse particular e organizada a partir comum e organizada a partir da base:
de cima: rei-funcionários-notáveis- família patriarcal-clã-tribo (Nm 1,1-2,34).
soldados-camponeses (Js 11-12).

Exploração da força de trabalho. A terra Autonomia produtiva. A terra pertence ao


pertence ao rei e o povo é obrigado a se povo e é distribuída entre as famílias ou
empregar sob as duras condições grupos. Proíbe acumulação (Ex 16) e
impostas pelo rei, que se apropria do celebra o ano jubilar e o ano sabático, para
excedente da produção dos camponeses devolver a terra aos seus antigos donos (Lv
(Ex 5,6-18). 25; Dt 15,1-18).

Poder centralizado no rei. O rei é dono Poder participado e subsidiário. As decisões


de tudo e decide sobre tudo (1Sm 8,10- são tomadas progressivamente pelos anciãos
17). (chefes de família, de clã e de tribo).
Grandes decisões são tomadas em
assembleias do povo (Ex 18,13-27; Nm
11,16-25; Js 24).

Exército estável de mercenários. O rei Exército ocasional improvisado. Para se


mantém exércitos regulares, que lhe defenderem, as tribos se reúnem e
garantem a dominação e a repressão organizam suas forças para lutar contra o
(1Sm 8,11- 12). inimigo comum (Jz 4,6-10).

45
STORNIOLO, I. Como ler o livro de Josué: terra = vida, dom de Deus e conquista do povo. São Paulo:
Paulus, 1997. p. 16.
46
Esse quadro comparativo foi retirado na íntegra do livro: STORNIOLO, 1997. p. 30-31.

26 UNIDADE 2
As leis defendem os interesses do rei. As leis defendem o sistema igualitário. Os
Graças ao seu poder, a palavra do rei é mandamentos se baseiam no compromisso
lei para o povo (Ex 1,8-10.22; 5,6-9). mútuo, preservando a liberdade e
prescrevendo relações sociais justas e
fraternas (Ex 20,1-17; Dt 5,1-21).

Vários deuses, manipulados e impostos Fé unicamente em Javé, o Deus libertador


pelo rei, a fim de legitimar e promover a que promove a liberdade e a vida para
exploração e a opressão: Baal, Astarte e todos, através da fraternidade e da partilha
outros (Js 24,14-15). (Ex 3,1-15; 22,20-26; Dt 24,6-22).

Culto centralizado para celebrar o mito Culto descentralizado para celebrar a vida e
que legitima o poder do rei. Poderoso a história. Realizado nas famílias e depois
meio de dominação, sujeito a um nos santuários, celebra a presença e a ação
esquema rigoroso. Nada deve mudar de Javé, que liberta o povo e o põe em
(1Sm 5; 1Rs 11,1-8). marcha para a vida (Ex 19,1-18; Dt 26,1-11;
Js 24,1-28; Jz 17).

Sacerdotes a serviço do sistema. Os Sacerdotes-levitas a serviço do povo.


sacerdotes, ricos e donos de terra, são Exercem uma liderança que não permite a
também os intermediários entre o povo acumulação de bens. Não podem ter terras e
e os deuses, colocando-se inteiramente a vivem de seu trabalho, ao lado dos pobres e
serviço do sistema (Gn 47,20-22). necessitados (Nm 18,20; 35,1-8; Dt
12,12.18-19; 14,27; Js 13,14).

Precisamos interpretar essa conquista levando em consideração o hábito


particular do antigo direito de guerra, que dedicava e consagrava ao extermínio todos os
inimigos conquistados. Chamava-se Hérem, dedicação ritual da presa de guerra, onde se
atribuía a vitória exclusiva ao seu Deus, para o qual os inimigos derrotados eram
oferecidos em sacrifício.

ESTELA DE MESHA BÍBLIA HEBRAICA

Então eu fui de noite e lutei contra ele E tudo quanto havia na cidade
desde o início até o meio dia, levando-o e destruíram totalmente ao fio da espada,
matando todos, sete mil homens, desde o homem até à mulher, desde o
meninos, mulheres, meninas e servos, menino até ao velho, e até ao boi e gado
porque eu os dediquei à destruição para miúdo, e ao jumento. (Js 6, 21)
Kemosh.47

47
PRITCHARD, James. Pritchard (Ed). Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament.
Princeton: Princeton University Press, 1969. 320.

UNIDADE 2 27
Lemos na Bíblia como Deus, a pedido de Josué, ajudou os israelitas a vencer a
batalha de maneira miraculosa. Deus estendeu a duração do dia durante a batalha,
ordenando que o sol permanecesse sobre a cidade de Gibeão e a lua no vale de Aijalão. O
texto bíblico prossegue afirmando que “jamais houve antes ou depois um dia como
aquele, no qual Deus ouviu a voz de um homem” (Js 10, 13-14).

Os arqueólogos localizaram e escavaram a maioria das cidades mencionadas no


livro de Josué. E entre os sítios analisados está um dos mais importantes, o de Hazor, na
Galileia. A Bíblia a descreve como uma cidade grandiosa. Esse sítio arqueológico está
sendo analisado por Amnon Ben Tor48, da Universidade Hebraica de Jerusalém. Eles
estão dando continuidade a um trabalho iniciado pelo famoso arqueólogo Yigael Yadin.

Certos vestígios descobertos nesse sítio foram interpretados como os de um


palácio e um templo destruídos no século XIII a.C por um violento confronto. Essas
camadas de destruição parecem fornecer uma evidência tangível da conquista de Canaã
pelos exércitos de Josué.

Entretanto, faz-se necessário avaliar com muito cuidado essas interpretações,


pois elas são provenientes de uma época onde prevalecia em Israel, nos anos de 1950, por
ocasião da independência do país, a ideia de que o nascimento de uma nação devia ser
precedido por uma conquista militar. A destruição de Hazor, a grande cidade de Canaã
mencionada na Bíblia, foi um passo crucial na conquista da Galileia pelos israelitas. O
Dr. Yadin e seus colegas esperam alcançar a camada em que está a cidade destruída. Nas
três temporadas de escavações, eles descobriram os vestígios de certo número de cidades
que foram sucessivamente construídas sobre as ruínas de cidades anteriores.
Encontraram preciosas relíquias que acrescentam novos elementos ao nosso
conhecimento da história e do modo de vida daqueles tempos, esclarecendo o elo entre o
povo judeu e a terra de Israel. A arqueologia despertou grande entusiasmo nessa época
em um país em busca de história.

Os fatos pareciam falar por si mesmos: vestígios similares de destruição foram


encontrados em muitos sítios arqueológicos do país. Todavia, o acúmulo de dados
contraditórios nos últimos 50 anos introduziu uma dúvida. É preciso assim retornar ao
início e reexaminar sítio após sítio, a fim de descobrir os fundamentos que comprovem a
hipótese da conquista dessa região pelo exército de Josué. É necessário voltar ao texto e
ao relato bíblico da conquista em particular, à batalha mais célebre: a de Jericó.

A quantidade de informação acumulada relativa à Jericó é impressionante.


Trata-se de um dos sítios mais escavados do Levante. Várias expedições se sucederam

48
FINKELSTEIN, 2003, p. 118.

28 UNIDADE 2
desde o início do século XX. A Bíblia Hebraica narra a história da tomada de Jericó.
Todos conhecem o método utilizado para derrubar as muralhas da cidade: as famosas
"trombetas de Jericó": "Rodeareis a cidade sete vezes e os sacerdotes tocarão as trombetas;
quando ouvirdes o som da trombeta todo o povo dará um grande grito e a muralha virá
ao chão.”

Os primeiros pesquisadores acreditaram que os vestígios encontrados em Jericó


eram os da cidade destruída durante o ataque dos exércitos israelitas. Mas essas ruínas
são anteriores ao século XIII a.C. A arqueóloga Kathleen Kenyon foi a primeira a
concluir que na época sugerida pela Bíblia não havia muros em Jericó que precisassem
ser derrubados49. Na época da conquista de Canaã, Jericó não estava habitada. Ao passo
que a Bíblia se refere a uma breve operação que durou cerca de duas semanas e
exterminou quase toda a população cananeia. Certas cidades foram de fato destruídas,
mas não todas ao mesmo tempo. É a própria Bíblia que informa isso:

Toda a terra possuíram Muita terra ficou para ser possuída


Era, porém, Josué já velho, entrado em
dias; e disse-lhe o SENHOR: Já estás
velho, entrado em dias; e ainda muitíssima
Assim Josué tomou toda esta terra, terra ficou para possuir. (Js 13:1)
conforme a tudo o que o SENHOR
tinha dito a Moisés; e Josué a deu em E sucedeu, depois da morte de Josué, que
herança aos filhos de Israel, conforme as os filhos de Israel perguntaram ao
suas divisões, segundo as suas tribos; e a SENHOR, dizendo: Quem dentre nós
terra descansou da guerra. (Js 11:23) primeiro subirá aos cananeus, para pelejar
contra eles? E disse o SENHOR: Judá
subirá; eis que entreguei esta terra na sua
mão. (Jz 1, 1-2)

A arqueologia nos ajuda a ampliar o ponto de vista e levar em conta a situação


geopolítica do Levante no século XIII. Consideremos o principal ator da época: o Egito.
As placas cuneiformes do século XIV foram descobertas em Tell el-Amarna, na região
central. Elas contêm informações sobre a região que nos interessa. Trata-se da
correspondência diplomática enviada aos faraós pelos reis das pequenas cidades-estados
de Canaã. A leitura das placas revela que nesta época as cidades-estados eram vassalas do

49
FINKELSTEIN, 2003, p. 119.

UNIDADE 2 29
Egito. De fato, do século XV ao início do XII, antes de nossa era, a terra de Canaã era
uma província egípcia.

O Egito ocupou a região siro-palestina instalando ali uma rede de fortificações,


isso foi confirmado pelas escavações arqueológicas. Uma dessas fortificações foi escavada
nos anos de 1920 em Beth-Shean, ao sul do mar da Galileia. A correspondência e as
escavações arqueológicas mostram claramente que Beth-Shean, cuja camada bíblica
domina as ruínas romanas e bizantinas, era um importante bastião egípcio entre o século
XIV e o XII. Se quisermos entender o modo pelo qual os egípcios dominaram
completamente a região e o interior, é preciso visitar o sítio que, na época, possuía uma
forte guarnição, escribas, soldados, administradores. Era o controle egípcio num raio de
20 km ou 30 km. Portanto, qualquer decisão econômica ou política só poderia ser tomada
sob a aprovação dos egípcios, pois eles eram os senhores da região.

Segundo a arqueologia bíblica tradicional, a conquista ocorreu no final do século


XIII, na época de Ramsés II. Nesta época tradicional da conquista, Beth-Shean era uma
fortaleza egípcia, com sodados que poderiam ser imediatamente enviados para deter a
invasão de Canaã. Há porém uma total ausência de registros nos arquivos egípcios sobre
esse evento. Essas cidades supostamente conquistadas eram leais vassalas do Egito nessa
época, sua propriedade. Sabe-se também que os egípcios ainda estavam em Beth-Shean
séculos depois da data tradicional da conquista50.

Portanto, a “história da conquista” não pode ser entendida como literal, pois seu
significado é teológico e se identifica como palavra de Deus. A história de Josué é o
começo de uma grande história que culmina na história da realeza. O Livro de Josué é o
primeiro ato de uma narrativa que mostra porque Israel escolheu um rei da mesma forma
que outros povos o fizeram. Mas isso não aconteceu do dia para a noite. Poderíamos
dizer, ao ler a Bíblia, que Josué já antecipa a realeza, pois, de certa forma, é tratado como
um rei.

A redação do livro de Josué provavelmente ocorreu no VII século a. C, pois


retrata em detalhes como o líder israelita dividiu a terra “completamente vazia” da
população cananeia entre as tribos israelitas vitoriosas, cumprindo assim a promessa feita
por Yahweh aos ancestrais.

No Museu do Cairo há uma estela chamada ‘Estela de Merneptah’, na qual se


descreve uma campanha militar conduzida por esse faraó contra Canaã. Ela é uma peça
crucial de informação, posto que contém o nome de Israel escrito em hieróglifo,

50
FINKELSTEIN, 2003, p. 114.

30 UNIDADE 2
tornando-se a primeira indicação de um grupo étnico chamado Israel descrito num
documento fora da Bíblia.

Essa estela se refere ao estabelecimento de um grupo seminômade, que não viveu


em uma cidade, pois eram errantes, sem um território específico. E isso é tudo o que se
sabe. A estela data do final do século XIII a. C. É um ponto de partida concreto na busca
pelas origens históricas do povo de Israel.

Figura 4 – “Israel” 51

Os historiadores contam-nos que no tempo em que a estela foi elaborada, Canaã


estava organizada em cidades-estados sob dominação egípcia. Subitamente, por volta de
1130 a.C., uma onda de destruição varreu toda a região, deixando a maioria dessas
cidades em ruínas, inteiramente carbonizadas. Esse fenômeno é claramente visível em
muitos sítios arqueológicos que datam desse período e revela o grau de violência que
causou a destruição da cultura cananeia. Foi aproximadamente um século de sucessivas
invasões: Hazor, Lachish, BetheI e Megiddo, etc., em diferentes épocas. Algumas delas
caíram no século XIII a.C., outras resistiram um pouco mais, outras foram destruídas no
século XII a.C. Mas todas foram destruídas. A quem foi atribuído tal façanha? Posto que
todo o Levante estava envolvido nessa turbulência. O Egito se desvanecia gradualmente,
perdendo seus reinos vassalos um a um. Os hititas foram varridos do mapa da Ásia. O
norte da Síria desapareceu, assim como a civilização micênica e seus suntuosos
monumentos. Assim se sucedeu às cidades-estados do Levante. Tal colapso produziu
uma mudança radical na paisagem de Canaã, mas como isso aconteceu?

51
NOVACEK, G.V. Ancient Israel: Highlights from the Collections of the Oriental Institute. University
of Chicago. The Oriental Institute Museum, Chicago, 2011. p. 67.

UNIDADE 2 31
Para Cline52 há atualmente três principais tipos de explicações: invasões
externas, conflitos sociais internos e catástrofes naturais ou ambientais. Todos esses três
aparecem em fontes disponíveis e, portanto, o consenso atual entre os eruditos tem sido o
de aceitar explicações de causas múltiplas, em vez de procurar uma única causa. Os
invasores mais famosos - apesar de não serem os únicos - eram os misteriosos povos do
mar, que invadiram o Mediterrâneo oriental, o Egito e o Egeu. Podemos ter uma noção a
seu respeito no registro do faraó egípcio Ramsés III (1184-1153 a.C.) de seu bem-
sucedido e bastante breve esforço de obstruí-los:

Os países estrangeiros armaram uma conspiração em suas ilhas. Todas


de uma só vez, as terras foram retiradas e espalhadas na disputa. Terra
alguma podia ser salva diante de seus ataques, desde os Hatti [hititas],
Kode, Carquemish,Arzawa e Alashiya [Chipre?], que foram
interceptados em [um momento]. Um acampamento [foi montado] em
algum lugar em Amor. Eles arrasaram seu povo e sua terra era como se
nunca tivesse existido. Eles estavam se aproximando do Egito, enquanto
as chamas eram preparadas diante deles. Sua confederação eram os
filisteus, Tjeker, Shekelesh, Denye(n) e Weshesh, terras unidas. Eles
puseram suas mãos e seus corações confiantes e fervorosos sobre as terras
até o circundar da terra. "Nossos planos serão bem-sucedidos!"53

Depois de cerca de um século de pesquisas, os povos do mar se constituem num


grupo misterioso. Os estudiosos pensam que são oriundos da Grécia, Anatólia ou talvez
de Chipre. O fato é que um dos povos que faziam parte desse grupo se estabeleceu na
costa leste do Mar Mediterrâneo, isto é, na planície costeira de Canaã. Em menos de um
século os povos do mar ocuparam toda a costa. A Bíblia os reconhece como sendo os
filisteus. Nós os conhecemos graças aos registros egípcios em Medinet Habu, no Alto
Egito. São baixos-relevos que revelam o combate naval entre egípcios e filisteus com seus
toucados de plumas proeminentes. Entretanto, seria um erro entender cada destruição de
uma cidade-estado Cananeia como resultado de um ataque efetuado por um povo do mar.

52
CLINE, Eric H e GRAHAM, Mark W. Impérios antigos: da Mesopotâmia à origem do Islã. São Paulo:
Madras, 2012. p. 52.
53
PRITCHARD, 1969, p. 185.

32 UNIDADE 2
Figura 5 – “Filisteus”54

Nesse período o caos havia se espalhado por toda a região do Mediterrâneo


oriental. Os conflitos destruíram portos, interromperam as rotas marítimas de comércio,
quebrando assim a economia, produzindo falência econômica e fome, desencadeando
conflitos, onde uma cidade podia atacar a outra para obter suprimento. A desordem
política era tão grande que até um grupo de pessoas das regiões montanhosas podia
tomar uma cidade. Nômades oportunistas poderiam tentar obter alguma vantagem,
aproveitando a fragilidade de uma cidade indefesa.

Em meio ao caos dessas cidades-estados, outro processo se desdobrava


silenciosamente nas regiões montanhosas de Canaã. Essa região de baixa densidade
populacional, cuja topografia constituía-se num lugar fechado e de difícil acesso, tornou-
se um ambiente favorável para o nascimento de Israel.

Para Airton José55, há um consenso entre os arqueólogos no que diz respeito à


distinção entre cananeus e israelitas dos primeiros assentamentos nas terras altas de
Canaã, pois ambos parecem constituir um só povo. As diferenças entre os dois são
identificadas somente num período posterior. Atualmente, os estudiosos se referem à
formação de Israel como um processo pacífico e gradual, tendo como ponto de partida a

54
BEN-SHLOMO, David. PhiIistine. Iconography. A Wealth of Style and Symbolism. Orbis Biblicus et
Orientalis 213; Academic Press Fribourg: Vandenhoeck & Ruprecht Gottingen, 2010. p. 78.
55
SILVA, A. J. da. A voz necessária: encontro com os profetas do século VIII a.C. São Paulo: Paulus,
1998. p.19.

UNIDADE 2 33
sociedade cananeia. Essa teoria sugere que esses cananeus gradualmente tornaram-se
israelitas.

Este processo imigratório, propositalmente designado com a expressão


neutra "tomada da terra" (A. Alt), dificilmente se caracterizou (ao
contrário de Js 1-12) por atividades guerreiras onde todo o Israel, unido
sob uma liderança comum, tivesse conquistado, passo a passo, todo o
país. Tratou-se, antes, de um processo essencialmente pacífico, gradativo
e, ao que parece, demorado de paulatina sedentarização56.

Com relação à questão da ocupação da terra por parte dos israelitas, os estudiosos
se dividem em 4 teorias, ora conflitantes, ora complementares. São elas: 1) Retirada
pacífica; 2) Transição ou transformação pacífica; 3) Amálgama pacífico; 4) Nomadismo
interno.

CITAÇÃO DA OBRA DE AIRTON JOSÉ DA SILVA

Retirada Pacífica57

Afirmou que os habitantes situados nas montanhas usavam as


mesmas técnicas dos cananeus na agricultura, na fabricação de
ferramentas, na perfuração de cisternas, na construção de casas e
Joseph Callaway de terraços para a retenção da água da chuva. Isto implica uma
continuidade cultural com os cananeus das cidades situadas nos
vales. Entre 1200 e 900 a.C. o número de povoados nas
montanhas passou de 23 para 114, o que sugere uma significativa
retirada.

Para Hopkins, estas pessoas desenvolveram um sistema de


colaboração ao nível de clã e de famílias, o que lhes permitia uma
ntegração de culturas agrícolas com a criação de animais,
David Hopkins
evitando, deste modo, os desastres comuns que uma
monocultura estava sujeita nestas regiões tão instáveis,
especialmente em recursos hídricos. Hopkins valorizou mais o
sistema cooperativo baseado no parentesco do que o uso de

56
SCHIMIDT, 2004, p. 23.
57
SILVA, 1998, p. 18–19. (texto tirado na íntegra).

34 UNIDADE 2
técnicas como terraços, cisternas e o uso do ferro para explicar o
sucesso destes assentamentos agrícolas.

Acredita que os assentamentos israelitas surgiram após um


colapso das cidades cananeias. Esta nova sociedade teria então
Frank Frick
evoluído de uma 'sociedade segmentária' (época dos Juízes) para
uma 'sociedade com chefia' (Saul) e, finalmente, para o 'Estado'
(Davi).

Também acredita que o Israel pré-DavÍdico surgiu da


movimentação de grupos sedentários que deixaram os vales para
James Flanagan
uma organização mais descentralizada nas montanhas e na
Transjordânia, onde eles se dedicaram à agricultura e ao
pastoreio.

Foi quem desenvolveu amplamente este modelo de uma retirada


pacífica em vários de seus escritos. Ele trabalha a continuidade
entre israelitas e cananeus, evidente na cultura material, e busca
reler os textos bíblicos dentro desta lógica. O próprio nome do
povo, 'Israel', reflete esta lógica, já que construído com o nome
de El, divindade cananeia. Ahlström contesta a tese de Gottwald
Gösta Ahlström
de uma 'retribalização' ocorrida nas montanhas, já que sua
estrutura social de base familiar não corresponde, segundo ele,
ao tipo nômade. Nenhuma 'revolta' de camponeses pode ser
documentada. Os recursos tecnológicos menores, igualmente,
não indicam a chegada de um grupo de pessoas vindas de fora da
terra, mas sim a escassez de recursos da área dos assentamentos.
Talvez um grupo tenha vindo de Edom e se juntado a estes
camponeses, trazendo com eles o culto a Iahweh.

Defende que Israel surgiu nas montanhas após uma violenta


praga que devastou os vales. Teria havido um declínio de até
80% da população dos vales e cidades podem ter sido queimadas
para evitar contágio. Nas montanhas, o crescimento
Carol Meyers
populacional - de 23 para 114 povoados - exigiu mais alimento,
levando à intensificação da agricultura, agora possível pela
construção de cisternas e terraços e isto produziu, no final,
Israel.

UNIDADE 2 35
Transição ou transformação pacífica58

Um dos mais brilhantes 'minimalistas' da Escola de Copenhague,


acredita que muito pouco pode ser dito das origens de antes do
século X a.C., a não ser a percepção de um processo gradual de
Niels Peter aumento da população nas montanhas da Palestina. Lemche,
Lem-che assim como outros minimalistas, questiona o uso da Bíblia
Hebraica na reconstrução da História de Israel, já que esta é um
produto pós-exílico, possivelmente da época helenística. Na
verdade, diz Lemche, não há época patriarcal, êxodo, juízes,
monarquia unida.

Por outro lado, coloca as mudanças climáticas ocorridas na


região do Mediterrâneo entre 1250 e 1200 a.C. como fator
fundamental para explicar o declínio da cultura urbana da
Grécia Micênica à Palestina. Afugentados pela seca, os
William Stiebing
sobreviventes da fome que se abateu sobre as cidades foram para
as montanhas. Condições climáticas mais favoráveis por volta do
ano 1000 a.C. possibilitaram o aumento desta população e a
criação do Estado. Israel, portanto, surgiu não pelo simples
deslocamento de determinados grupos, mas pelo crescimento
populacional tornado possível pelas condições climáticas
favoráveis à agricultura.

Defende que os 'povos do mar' que invadem a região não eram


simples migrantes, mas mercenários treinados e com armamento
superior aos dos exércitos locais. Daí o massacre das cidades e o
Robert Drews
aumento populacional dos habitantes das montanhas, com
mudanças, inclusive, em seu comportamento ético, agora mais
igualitário. Ele dá pouca importância aos fatores climáticos na
explicação dos acontecimentos.

Veem as origens de Israel como parte de um processo de


integração milenar entre as regiões das cidades e as regiões das
Robert Coote & montanhas. Processo que pode ser chamado de 'realinhamento'
Keith Whitelam ou 'transformação', pois nos períodos de prosperidade as regiões
das montanhas providenciavam recursos para as cidades dos
vales, enquanto que nos momentos das crises elas absorviam as
populações que deixavam tais cidades. No surgimento de Israel o

58
SILVA, 1998, p. 20–22. (texto tirado na íntegra).

36 UNIDADE 2
colapso do comércio foi o fator mais significativo, segundo estes
autores, pois colocou em crise a sobrevivência das cidades e
exigiu dos povoados das montanhas uma forma mais eficaz de
colaboração e cooperação para a sobrevivência, levando a um
aumento populacional significativo. Com o desenvolvimento
destas regiões o comércio foi recuperado, promovendo mais
tarde o aparecimento do Estado.

Faz uma espécie de síntese de várias escolas, indo de Albright a


Lemche, não propondo uma teoria específica. Albertz fala de
Rainer Albertz 'digressão', processo pelo qual o colapso do comércio
internacional forçou os habitantes das cidades a se deslocarem
para os povoados das montanhas e aí se desenvolverem. Para tais
comunidades o grupo do êxodo trouxe as ideias do deus Iahweh.

Amálgama pacífico59

Baruch Halpern foi um dos primeiros a descrever o processo de


assentamento como uma complexa interação de diferentes
grupos nas montanhas: poucos habitantes dos vales, muitos
habitantes da região montanhosa, um grupo vindo do Egito com
a experiência do êxodo, grupos vindos da Síria... O grupo do
Egito trouxe Iahweh, enquanto o grupo sírio, de agricultores
Baruch Halpern despossuídos, trouxe a circuncisão e a proibição da criação do
porco e criou o nome 'Israel' no século XIII a.C. Todos estes
grupos foram reunidos pela necessidade de manter rotas de
comércio abertas com a ausência do Egito na região.
Progressivamente controlaram também as planícies, levando ao
surgimento da monarquia. Halpern sublinha ainda que o Israel
histórico não é o Israel da Bíblia Hebraica, mas foi o Israel
histórico que produziu o Israel bíblico.

Já foi simpatizante do modelo da revolta de Gottwald, das


propostas de Coote & Whitelam e do modelo de simbiose de
William Dever Fritz. Hoje ele vê o surgimento de Israel entre as populações que
praticavam a agricultura na Palestina e rejeita a dicotomia
cananeu/israelita, dizendo que a distinção entre urbano e rural
explica as diferenças, que são funcionais e não étnicas. Para

59
SILVA, 1998, p. 22–23. (texto tirado na íntegra).

UNIDADE 2 37
Dever, Israel se formou de refugiados das cidades, 'bandidos
sociais' (social bandits), alguns revolucionários, uns poucos
nômades, mas, principalmente, cananeus saídos das cidades. Na
região das montanhas eles progressivamente criaram uma
identidade que os diferenciou dos cananeus das planícies.

Um dos mais polêmicos 'minimalistas', é ferrenho defensor de


uma História da Palestina escrita somente a partir dos dados
arqueológicos e crítico de qualquer história e arqueologia
bíblicas. Thompson observa que a população da Palestina
permaneceu inalterada durante milênios, movendo-se os grupos
entre as cidades das planícies e os povoados das montanhas,
segundo as estratégias de sobrevivência exigidas pelas mudanças
Thomas L. climáticas, principal fator de transformação social e política da
Thompson região. A população das montanhas era formada por nativos da
região, que se misturaram com gente que veio das planícies,
pastores de outras áreas e imigrantes da Síria, Anatólia e do
Egeu. A unidade política de Israel só aparece na época das
interferências assírias na região, no século VIII a.C., no que diz
respeito a Samaria, e no século VII a.C., quando Jerusalém, após
a destruição de Lakish por Senaquerib, torna-se líder da região
sul, como cidade cliente da Assíria. Toda a 'estória bíblica' do
império Davídico-salomônico e dos reinos divididos de Israel e
Judá é, para Thompson, pura ficção pós-exílica.

Egiptólogo, defende que existe uma diferença entre os habitantes


das planícies e os habitantes das montanhas. Ele sugere que o
Donald Redford núcleo da população nas montanhas era formado por pastores
que se sedentarizaram, mas que pastores shasu vindos de Edom,
e trazendo consigo o culto a Iahweh, também ali se assentaram,
dando início ao futuro Israel, para ele, distinto dos cananeus.

Nomadismo Interno60

Antigo defensor das teorias de Mendenhall e Gottwald, propõe


C. H. J. de Geus que os israelitas eram etnicamente unidos, morando nas
montanhas e usando categorias tribais. Eles seriam os hapiru das
cartas de Tell el-Amarna, vivendo nas áreas intermediárias entre
as cidades e com elas interagindo, experimentando, por isso,

60
SILVA, 1998, p. 19-20. (texto tirado na integra).

38 UNIDADE 2
uma 'simbiose cultural'. Eles estavam na região há séculos e
pertenciam à cultura amorita siro-palestina do Bronze Médio.
Quando as cidades sofreram um colapso eles expandiram seu
controle.
Antes defensor da ideia de infiltração pacífica de Albrecht Alt,
ao escavar no norte do Negev, percebe que a cultura israelita
viveu um longo período em contato com a cultura cananeia e
deslocou um pouco sua perspectiva. A casa israelita de quatro
cômodos significa uma evolução da arquitetura cananeia e a sua
familiaridade com a criação de animais domésticos e seus
trabalhos em metal e cerâmica mostram que eles não eram
Volkmar Fritz
verdadeiros nômades, mas que estavam em contato comercial
com as culturas das cidades da região. Para Fritz, porém, a
arquitetura diferenciada dos povoados israelitas nas montanhas
mostra que eles não saíram simplesmente das cidades das
planícies, mas que foram proto-israelitas, que, vindos de fora,
antes de se sedentarizarem, entraram em contato simbiótico com
as culturas citadinas. Ou seja: eles estavam culturalmente
próximos dos cananeus, mas eram etnicamente diferentes e
trouxeram consigo suas próprias estruturas sociais e sua cultura
material. Eles seriam os hapiru ou os shasu dos textos egípcios,
que eventualmente deram origem a Israel, Moab e Edom.

Um dos defensores da teoria do nomadismo interno é o arqueólogo Israel


Finkelstein. Suas conclusões baseiam-se em dados colhidos ao longo de décadas de
intensas explorações nas regiões montanhosas da Palestina. Até o final dos anos 60 os
planaltos de Israel eram arqueologicamente desconhecidos. Mas após a guerra de 67 o
quadro político da região mudou, possibilitando que esses territórios fossem colocados
sob administração israelense. Foi então que uma missão exploratória conduzida por
equipes de arqueólogos varreu toda a superfície, cobrindo uma área de 2 a 3 km
quadrados por dia ao longo de um ano. Ao final de 7 anos eles cobriram cerca de 1000 km
quadrados, coletando cuidadosamente ao nível do solo os vestígios da passagem ou
instalações de grupos humanos61. Toda a cerâmica coletada foi analisada minuciosamente
e depois classificada e identificada com lugares no mapa da região montanhosa de Canaã.

61
FINKELSTEIN, 2003, p. 152-153.

UNIDADE 2 39
Depois de todo esse processo detalhado, certos sítios foram então escolhidos para
escavação.

Tal metodologia estatística localiza a concentração desses vestígios, que por sua
vez são transferidas para um mapa da área. Esse conjunto de dados permite reconstituir
tanto o território que foi ocupado, assim como o tamanho dos sítios, seu número e sua
evolução ao longo do tempo.

Passando por esse “pente fino” arqueológico que analisou a área do período que
data entre os séculos XII e X a.C., descobriu-se aproximadamente 250 cidades nas terras
altas do centro de Canaã. O surpreendente é que esse povoamento ocorreu sem o menor
indício de conquista militar.

O que se constatou foi uma verdadeira transformação social e gradual, mas nem
por isso deixou de ser radical. Observou-se então que na era do bronze tardia haviam
pouquíssimos povoados. Uns 30 foram identificados. 200 anos depois, surge uma onda de
assentamentos, cerca de 250 sítios em toda a área. Antes de 1200 a.C. havia
aproximadamente uma população de 3000 a 5000 habitantes. Depois de 200 anos houve
um grande crescimento populacional de 45 mil pessoas. Tal aumento não pode ter
ocorrido de modo natural.

Uma das técnicas atuais que contribui de modo eficaz nos estudos voltados para
as origens do povo de Israel é a etnografia. Seu método consiste na coleta de dados
obtidos pela observação do atual modo de vida dos nômades beduínos. Sua subsistência
se baseia num sistema de troca com as populações sedentárias. As regras de troca são as
seguintes: os pastores fornecem a carne e a pele dos animais em troca dos cereais e outros
produtos agrícolas.62 Os cereais são fundamentais na dieta dos pastores nômades, posto
que sem eles os nômades não poderiam sobreviver, nem suprir seu rebanho e animais de
carga. Se por algum motivo esse sistema de troca é interrompido, torna-se impossível o
estilo de vida nômade, obrigando assim os beduínos a produzir seus próprios cereais.
Entretanto, para produzi-los eles precisam se sedentarizar, isto é, fixar-se numa área e
plantar os seus próprios cereais.

Uma das teorias que propõe a origem de Israel é a interrupção do sistema de


troca entre os pastores nômades e os fazendeiros sedentários, causada pela crise que
assolou toda a região de Canaã, as terras ao redor e todo o leste do Mediterrâneo.
Impérios entram em colapso, a onda de destruição varre cidades inteiras, a superpotência
egípcia perde o controle temporário sobre as cidades estado de Canaã. Muitas pessoas
abandonam essas cidades da planície e migram para a região das montanhas em busca de

62
FINKELSTEIN, 2003, p. 167.

40 UNIDADE 2
segurança. Nessa conjuntura caótica, habitantes sedentários são impedidos de produzir o
excedente destinado ao sistema de troca, o que provoca a sedentarização dos pastores
nômades. Todo esse conjunto de circunstâncias desfavoráveis produzem uma repentina
onda de fixação de populações nas terras altas pouco habitadas.

Alguns identificam nesse fenômeno o surgimento da antiga Israel, pois até o


plano de seus povoados difere dos povoados das regiões baixas. Esses povoados eram
ovais, com área completamente fechada, cuja finalidade era a criação de animais
domésticos como a principal atividade desses habitantes das terras altas,
caracteristicamente pastores nômades que teriam trocado suas tendas por abrigos
permanentes.63

Além dos aspectos arquitetônicos, a arqueologia também mostra que os novos


habitantes das terras altas tinham uma dieta diferenciada dos outros povos cananeus que
habitavam na planície.

Figura 6 – Achados arqueológicos64

Quando os arqueólogos escavaram as terras altas, não encontraram, em nenhum


local, ossos de porcos. Há duas teorias para explicar isso: a primeira, obviamente é que os
pastores não possuíam porcos; a segunda razão para explicar a ausência de ossos de

63
FINKELSTEIN, 2003, p. 156.
64
DEVER, Willian G. Who Were the Early Israelites and Where Did They Come From? Grand Rapids,
Michigan/Cambridge: William Eerdmans Publishing Company, 2003. p. 81. O site de Izbet Sartah foi
escavado em 1976-78, é um pequeno local de colina de cinco acres no extremo oeste do sopé. É apenas
três milhas para o interior do excelente local de Aphek, na planície costeira, nas cabeceiras do rio
Yarkon.

UNIDADE 2 41
porcos nos sítios das terras altas, que datam do mesmo período dos sítios das terras
baixas, onde residiam os cananeus, filisteus etc., é provavelmente o elemento ideológico
distintivo que configurava a “separação” entre os Israelitas e outras populações das terras
baixas.

Mario Liverani65 diz que nesse ambiente prevaleceu a geografia do sagrado, onde
memórias de apoio e legitimidade se basearam numa experiência completamente mental
e religiosa. Uma promessa divina fez com que Israel seja uma herança seletiva de certos
grupos, sob perdas e exclusão de outros. Indiscutivelmente, ao chamá-la de “Prometida”
ou “Terra Santa”, revela a sua importância e poder enquanto símbolo religioso. Assim,
tragicamente ignora-se todo o país e a diversidade que o rodeia.

O arqueólogo William Dever66 afirma que um caminho eficiente para


descobrirmos o que está por trás do texto bíblico seria o entendimento do contexto mais
amplo, sobretudo como a vida cotidiana influenciou aquela população que emergiu nos
planaltos centrais de Israel. É preciso, portanto, olhar para a antiga Palestina, suas
configurações geográficas e geopolíticas singulares.

Finkelstein67 diz que, embora a terra da Bíblia tivesse sido percorrida por
peregrinos e exploradores ocidentais do período bizantino, foi somente com o
aparecimento da história moderna e dos estudos geográficos, no final dos séculos XVIII e
XIX, e do trabalho dos eruditos versados tanto na Bíblia como em outras fontes antigas,
que começou-se então a reconstrução científica da paisagem do antigo Israel. Eles se
dispuseram da topografia, arqueologia e das referências bíblicas, ao invés de confiar
somente na “geografia da tradição”, que criava vários lugares sagrados de peregrinação
religiosa. A Bíblia contém história, mas também é literatura. Para entendê-la não
podemos apenas tomar como base nossos dogmas e tradições eclesiásticas.

Mario Liverani68 é um desses estudiosos que descreve o verdadeiro espaço


geográfico de Canaã para além das construções bíblico-literárias desse cenário. Começa
afirmando que a Palestina é um país modesto por seus recursos naturais e marginal a
nível regional; que o seu valor está ligado a sua estratificação simbólica de memórias
influenciadas pelo homem.

A Palestina encontra-se quase inteiramente na faixa semiárida, com chuvas


escassas. No interior das Terras Altas da Transjordânia, há apenas um único rio, o

65
LIVERANI, Mario. Para além da Bíblia: história antiga de Israel. São Paulo: Paulus; Loyola, 2008. p.
31.
66
DEVER, 2005, p. 13.
67
FINKELSTEIN, 2003, p. 30-31.
68
LIVERANI, 2008, p. 27-28.

42 UNIDADE 2
Jordão, que vai se perder na bacia fechada do salgadíssimo Mar Morto. A agricultura não
era irrigada exceto em pequenos oásis em torno das nascentes, mas dependia das incertas
precipitações de chuvas. É nesse ambiente de contrastes hostis que emergem os
primeiros israelitas. Essa região central e montanhosa de Canaã não era um território
completamente homogêneo. Possuía muitos contrastes e apresentava inúmeras
dificuldades para os seus habitantes. O texto bíblico não nega o fato de que a terra
prometida está em flagrante contraste qualitativo com o vizinho Egito, onde a água é
constante, e os habitantes não são ansiosos pelas chuvas:

Porque a terra que passas a possuir não é como a terra do Egito, de onde
saíste, em que semeavas a tua semente, e a regavas com o teu pé, como a
uma horta. Mas a terra que passais a possuir é terra de montes e de vales;
da chuva dos céus beberá as águas; Terra de que o SENHOR teu Deus
tem cuidado; os olhos do SENHOR teu Deus estão sobre ela
continuamente, desde o princípio até ao fim do ano. (Dt 11, 11-12)

Liverani69 continua sua descrição, dizendo que, além de chuvas escassas, o país é
pequeno e que apenas nos impressiona pela densidade de memórias e eventos de
importância global que se sucederam ali, todos concentrados nesta área tão pequena e de
população difusa, embora numericamente modesta, e de recursos agropastoris limitados
(especialmente para aqueles que as observam tendo em mente as grandes extensões
desérticas). Os metais, de fato, eram bastante escassos (cobre era encontrado fora do
próprio território palestino), não havia pedras preciosas (turquesa encontra-se no Sinai),
nem madeiras especiais (como no Líbano). A terra arável e água disponível eram
escassas, outros recursos naturais eram quase inexistentes. Porém a Bíblia descreve a
Palestina como uma terra opulenta.

Porque o SENHOR teu Deus te põe numa boa terra, terra de ribeiros de
águas, de fontes, e de mananciais, que saem dos vales e das montanhas;
Terra de trigo e cevada, e de vides e figueiras, e romeiras; terra de
oliveiras, de azeite e mel. (Dt 8,7-8)

Para Dever70, Israel foi superdimensionada por causa de seu significado


espiritual. Mas, em aspectos geopolíticos, especificamente na Idade do Ferro, é
perceptível a sua insignificância em tamanho e vulnerabilidade político-militar, pois
situava-se numa pequena faixa costeira espremida entre as grandes superpotências
mundiais, Egito e Mesopotâmia, sendo, portanto, muito inferior a estas. Sua exposição
como uma "ponte terrestre" entre a África e a Ásia permitia que fosse frequentemente

69
LIVERANI, 2008, p. 28.
70
DEVER, 2005, p.13.

UNIDADE 2 43
pisado, subjugado e esmagado ao longo dos séculos por potências estrangeiras, entre elas
a Assíria (722 a.C.), a Babilônia (586 a.C.) e os romanos (70 d.C.).

O antigo Israel era uma economia verdadeiramente marginal. O país sempre foi
pobre em comparação com os seus vizinhos mais prósperos, sempre impotente e à beira
de extinção (como aconteceu em 586 a.C.). Dever 71 diz que esses dados podem ser
desconfortáveis para alguns leitores, mas o fato é que a antiga Israel era um remanso
cultural e histórico obscuro do antigo Oriente Próximo. Teria sido esquecido, exceto por
sua contribuição memorável para uma civilização: a Bíblia Hebraica.

Os escritores da Bíblia foram os responsáveis pela construção de uma história


alternativa e ideal de Israel. Mario Liverani72 diz que num ambiente onde prevalece a
geografia do sagrado, o menor carvalho, um pequeno poço, uma simples caverna, ruínas
antigas e túmulos de ancestrais tornam-se memórias de apoio e legitimidade, baseadas
numa experiência completamente mental e religiosa.

2.2 A CONFIGURAÇÃO SOCIAL DAS TRIBOS

Se não podemos usar somente da Bíblia para reconstruirmos a história e religião


de Israel, com que recursos poderemos descobrir de fato como os antigos israelitas
realmente viveram? E de que modo eles praticavam sua religião? É preciso recuar ao
passado e retornar ao mundo da família, o núcleo mais fundamental na escala
socioeconômica, que era ainda menor nas zonas rurais. Inicialmente eles viviam em
aldeias, vilas e cidades pequenas, de não mais do que algumas centenas de pessoas.
Algumas destas aldeias tinham sido estabelecidas no início da história de Israel, quando
a sociedade era quase exclusivamente rural. Dever73 diz que algumas dessas aldeias
tinham crescido durante a monarquia, tornando-se satélites dos poucos centros urbanos,
mas a maior parte da população israelita vivia em áreas relativamente isoladas.

Estudiosos como Thiel74, Dever75, Faust76 e De Vaux77 são unânimes na definição


do quadro tradicional da sociedade israelita como uma estrutura de parentesco, o que

71
DEVER, 2005, p.13.
72
LIVERANI, Mario. Para além da Bíblia: história antiga de Israel. São Paulo: Paulus; Loyola, 2008,
p.31.
73
DEVER, 2005, p.19.
74
THIEL, Winfried. A sociedade de Israel na época pré-estatal. São Leopoldo: Sinodal, São Paulo:
Paulinas, 1993. p. 99.
75
DEVER, Willian G., and S. Gitin, (Eds). Symbiosis, Symbolism, and the Power of the Past: Canaan,
Ancient Israel, and their Neighbors from the Late Bronze Age through Roman Palestine . Winona
Lake, Ind.: Eisenbrauns, 2003. p.372.

44 UNIDADE 2
significa que a sociedade foi organizada com base em linhagens durante o período da
povoação. Até mesmo no início da monarquia, esta sociedade era composta
principalmente de três unidades decrescentes de tamanho: a tribo, o clã ou família, e a
"casa do pai", uma família ampliada vivendo juntos numa única localidade, mesmo que
não seja em um único prédio.

Amanhã, pois, vos chegareis, segundo as vossas tribos; e será que a tribo
que o SENHOR tomar se chegará, segundo as famílias; e a família que o
SENHOR tomar se chegará por casas; e a casa que o SENHOR tomar se
chegará homem por homem. (Js 7,14)

Na Bíblia, a expressão hebraica para ‘casa’ tanto pode designar um local de


habitação, como também pode significar uma dinastia (1Rs 13,2), ou até mesmo toda a
unidade de Israel e Judá (Is 8,14). Westbrook78, assim como Dever, concorda que a
unidade básica da sociedade era a família ampliada, que poderia cobrir três gerações de
até quinze a vinte membros, consistindo talvez de um pai ancião, uma tia ou tio, e um
casal. Outros grupos podiam consistir de um casal de anciões com vários filhos casados,
suas esposas, filhos e dependentes adicionais, como escravos, aprendizes e pessoas em
servidão por dívida. O chefe da família era tipicamente o pai. Davison79 segue a mesma
linha de pensamento, afirmando que no antigo Israel (e em todo o antigo Oriente
Próximo) a estruturação patriarcal da sociedade era a norma e o pai era o "chefe titular da
antiga família israelita".

A família, não o indivíduo, era a base da sociedade no antigo Israel. Em


situações familiares/conjugais, o pai assumiu a responsabilidade legal para o agregado
familiar. A "casa do Pai" era a organização social chamada pelos antropólogos de
"patrilocal", na qual os filhos que se casavam traziam suas novas esposas para a casa de
seu pai e ali criavam os seus filhos. A casa ancestral ampliava-se com essas adições,
tornando-se um composto familiar com várias unidades agrupados em torno de um pátio
central, partilhado por muitas instalações habitacionais que compartilhavam também o
armazenamento e preparação de alimentos. A maioria das famílias no Oriente Médio
tradicionalmente viveram desta forma. Até recentemente, muitos ainda o faziam em
pequenas cidades e aldeias.

76
FAUST, Avraham . The Archaeology of Israelite Society in Iron Age II. Winona Lake, Indiana:
Eisenbrauns. 2012. p.8.
77
VAUX, Roland De. Instituições de Israel no Antigo Testamento . São Paulo: Editora Teológica, 2003.
p. 26.
78
WESTBROOK, R. A History of Ancient Near Eastern Law. Leiden, Boston: Brill, 2003. v. I. p.36.
79
DAVIDSON, Richard. Flame of Yahweh: sexuality in the Old Testament. Peabody: Hendrickson
Publishers, 2007, p.214.

UNIDADE 2 45
Nas aldeias, várias dessas famílias extensas eram ligadas por parentescos de
sangue. Este padrão produziu uma sociedade extremamente ligada com base em laços de
família, valores tradicionais comumente compartilhados e lealdade para com o clã. Os
dados etnográficos recentes ajudaram a identificar e descrever grupos familiares
específicos nas histórias bíblicas do período pré-monárquico. Esses "níveis" ascendentes
da estrutura social permaneceram quase inalteráveis, mesmo durante o período mais
urbanizado da monarquia.

Golden explica que durante o período do ferro II, a sociedade israelita tornou-se
cada vez mais complexa no aspecto político-social.80 De Vaux diz que nos centros
urbanos são poucas aquelas grandes famílias patriarcais que reuniam muitas gerações em
torno de um antepassado comum.81 As condições de moradia nas cidades restringiam o
número de membros que viviam sob um mesmo teto. As escavações nos revelam que as
casas eram pequenas, possibilitando apenas um casal e seus filhos solteiros.

Após o período da conquista conduzida pelo líder Josué, inicia-se a história dos
juízes. Segundo a Bíblia, os juízes eram líderes carismáticos designados por Yahweh
durante um período anárquico surgido logo após os israelitas terem se instalado na terra
de Israel. Alguns desses juízes funcionavam como chefes militares da sua própria tribo,
outros serviam a toda nação de Israel.

Cap Opressores Anos Cap Libertadores Tribo Anos


3.8 Cusã Risataim 8 3.11 Otniel Judá 40
3.14 Eglom 18 3.20 Eude Benjamim 80
4.2 Jabim 20 5.1 Baraque/Debora Neftali 40
6.1 Midianitas 7 8.28 Gideão Manasses 40
10.3 Tola Issacar 23
18 12.7 Jair Galaad 22
10.8 Amonitas 12.8,14 Jafté Galaad 6
Ibza Aser 25
13.1 Filisteus 40 15.20 Sansão Dã 20
111 296

O livro dos Juízes desenvolveu uma história que começa com o estabelecimento
das tribos em Canaã até a fundação da monarquia. O redator conseguiu ligar cada juiz a
uma tribo diferente: Otniel com Judá, Eúde com Benjamim, Baraque com Neftali,
Gedeão com Manasses, Tola com Issacar, Jair com Galaad, Jefté com Galaad (Gad),

80
GOLDEN, Jonathan M. Ancient Canaan and Israel. Califórnia: ABC-CLIO, 2004. p.133.
81
VAUX, 2003, p. 45.

46 UNIDADE 2
Abesã com Aser (de fato Belém em Zabulon, Js 19,15), Elon com Zabulon, Abdon, filho
de Ilel, com Efraim, e Sansão com Dã. Faltaram Rúben e Simeão82

Através da arqueologia foi possível identificar aproximadamente quem eram os


israelitas e quando surgiram como um grupo étnico específico nas regiões montanhosas
de Canaã. Sabe-se também quais as atividades de subsistência que eles desenvolveram
nessa região difícil. A arqueologia ajudou também a descrever seu modo de vida social-
familiar. O próximo passo seria descobrir qual a religião praticada pelos antigos israelitas
antes de existir uma religião oficial, fixa em um templo e operando numa área geográfica
sob a administração de sacerdotes profissionais. Sobretudo, faz-se necessário saber qual a
religião e os deuses que Israel adotou quando se instalou e começou a se desenvolver
como nação.

Albertz83 afirma que, do ponto de vista da história das religiões, a oferta das
primícias constitui um dos ritos mais antigos e mais difundidos de todo o mundo
religioso. Sua origem é anterior a religião javista e também das grandes religiões do
Médio Oriente, remontando à antiga tradição oral, antes mesmo do surgimento do
alfabeto. A cerimônia expressa o temor sagrado entre o homem frente ao mistério da
natureza e a fertilidade. Por isso, o primeiro animal que rompe o ventre da mãe, o
primeiro grão que rompe a casca protetora, deve ser separado do consumo humano e
oferecido às divindades e forças geradoras da natureza. Tal rito pretende assegurar para o
agricultor a bênção de novos nascimentos e futuras colheitas, mediante sua renúncia aos
primeiros frutos.

Percebe-se que no processo de sedentarização, elementos teológicos das culturas


agrárias e urbanas misturaram-se com a fé de Israel84. O fato é que antes dessa nova
realidade social, os israelitas foram gradualmente se adaptando às práticas religiosas
locais ligadas aos ciclos agrícolas. No período dos juízes (séculos XII a XI a.C.)
encontram-se muitas referências a atividades cultuais da família. Esses textos são tardios,
mas nos dão algumas descrições reais dos locais onde o culto era praticado inicialmente
no âmbito da família.

Porém ele restituiu aquele dinheiro à sua mãe; e sua mãe tomou
duzentas moedas de prata, e as deu ao ourives, o qual fez delas uma
imagem de escultura e uma de fundição, que ficaram em casa de Mica. E
teve este homem, Mica, uma casa de deuses; e fez um éfode e terafins, e

82
CAZELLES, Henri. História política de Israel desde as origens até Alexandre Magno. São Paulo:
Edições Paulinas, 1983. p.109-110.
83
ALBERTZ, Rainer. Historia de la religión de Israel en tiempos del Antiguo Testamento. Madrid:
Trotta, 1999. v. 2. p.190.
84
GERSTENBERGER, E. Deus no Antigo Testamento. São Paulo: ASTE, 1981. p. 206.

UNIDADE 2 47
consagrou um de seus filhos, para que lhe fosse por sacerdote. Naqueles
dias não havia rei em Israel; cada um fazia o que parecia bem aos seus
olhos. (Jz 17,6 )

O texto bíblico acima descreve vários utensílios sagrados na casa de Micah:


"escultura de fundição", "ídolos" (imagens), um "santuário" ou nicho descrito como casa
de deuses; terafins, que eram pequenas estatuetas usadas para a proteção no trabalho de
parto; um éfode como objeto oracular, e, por fim, a consagração de um dos seus filhos
como sacerdote da família.

Posteriormente o redator deuteronomista irá censurar essa prática popular de


culto, julgando esse santuário ilegítimo na visão de quem o escreveu, revelando que
naquela época não havia rei e ainda um santuário central estabelecido. Essa fórmula
aparece duas vezes no livro dos Juízes, para mostrar a monarquia como solução para esse
contexto caótico. Na verdade, a história dos Juízes e esses apêndices tem a função de
mostrar a necessidade da monarquia que surgirá com a história de SamueI, um sacerdote
e juiz que na transição para o sistema tributário dos reis passa a ser o profeta que
introduz Israel na realeza.

APROFUNDAMENTO DAS DIVERSAS TEORIAS QUE TRATAM A QUESTÃO


DA OCUPAÇÃO DA TERRA DE CANAÃ POR PARTE DOS ISRAELITAS

Outro texto do professor Aírton José da Silva, História de Israel,85 auxilia na


compreensão do tema.

85
<http://airtonjo.com/site1/historia-de-israel-2.htm>.

48 UNIDADE 2
PARA RESUMIR:

Nesta unidade, você aprendeu que

 As campanhas militares do líder Josué e as vitórias relâmpago de toda a


terra de Canaã possibilitadas pelas intervenções milagrosas de Yahweh,
tem a finalidade de mostrar a conquista da terra como um dom de Deus a
seu povo cumprindo assim a aliança feita aos pais.

 Não há consenso entre os estudiosos no que diz respeito à ocupação de


terra por parte dos israelitas e as teorias se dividem em número de 4: 1)
Retirada pacífica; 2) Transição ou transformação pacífica; 3) Amálgama
pacífico; 4) Nomadismo interno.

 Após a conquista da terra conduzida por Josué, inicia-se a história dos


juízes, que eram líderes carismáticos designados por Yahweh durante um
período de apostasias que ocorreu logo depois dos israelitas se instalaram
na terra de Israel.

 Faz-se necessário entender a estrutura socioeconômica dos antigos


israelitas, isto é: como eles realmente viveram. Para tal, recuou-se ao
mundo da família, o núcleo mais fundamental na escala socioeconômica
do Israel primitivo.

UNIDADE 2 49
ANEXO 1: A CONQUISTA DO POVO COMO
GRAÇA DE DEUS
Extraído de: STORNIOLO, 1997, p. 44-45.

O livro de Josué expõe, na verdade, um inigualável tratado sobre a graça de


Deus. O que é a graça? É o dom com que Deus satisfaz todas as necessidades de suas
criaturas. Muitos, porém, entendem a graça de modo errado: pede-se a Deus, estende-se a
mão, e a graça cai do céu! Uma atitude puramente infantil. Ora, Deus é Pai, mas não é
paternalista. Ele dá tudo o que precisamos, mas não nos deixa numa atitude passiva,
dispensando-nos de usar todas as potencialidades que nos entregou ao nos dar a vida. Se
Deus nos desse tudo pronto, prescindindo da liberdade e capacidade humanas, ele seria
um deus invasor e possessivo, interessado em nossa paralisação e aniquilação, e não em
nosso desabrochar e em nosso desenvolvimento. Deus não age apesar de nós ou em nosso
lugar. Ele age junto conosco, como aliado que dá eficácia realizadora ao que aspiramos e
buscamos conquistar. E Deus é muito inteligente: ele sabe que nós, seres humanos, só
damos valor ao que aspiramos e conquistamos; e quanto mais difícil for a aspiração e
mais dura a conquista, maior valor daremos. Os pais e mães humanos têm muito a
aprender com o “método educacional” de Javé... A graça é o dom de Deus, sempre
possível e presente, à disposição. Poderíamos dizer que a graça é o conteúdo fundante e
eficaz de todas as legítimas aspirações e conquistas humanas. Legítimas, isto é, aspirações
e conquistas que de fato coincidam com o projeto de Deus e o levem à concretização
histórica. É o que nos diz o apóstolo João, a propósito da oração: “Ao nos dirigirmos a
Deus, podemos ter esta confiança: quando pedimos alguma coisa conforme o seu projeto,
ele nos ouve. E, se sabemos que ele nos ouve em tudo o que lhe pedimos, estamos certos
de que já obtivemos o que lhe havíamos pedido” (1 Jo 5,14-15). E sabemos bem qual é o
projeto de Deus: liberdade (êxodo) e vida (terra) para todos. Não podemos pretender que
Deus assine uma aspiração ou uma conquista, ou que atenda a um pedido que pudesse de
alguma forma lesar o outro. O dom de Deus sempre deve ser repartido. Em nossa
estrutura de seres humanos, criados à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,26-27), o dom
de Deus já está completamente dado como semente capaz de germinar. Cabe a nós
descobrir em nós mesmos esse dom, a fim de atuar e concretizar a semente em planta
visível. Em outras palavras, cabe a nós dar forma ao conteúdo e realização à
potencialidade. E, como isso é um projeto inesgotável que se realiza no tempo, cabe a nós
estarmos sempre voltados para esse conteúdo fundante e eficaz, em que tudo já está
contido, a fim de construirmos a vida e a história. Com efeito, como nos ensina o livro de
Josué,

50 UNIDADE 2
A terra é promessa e dom de Deus (conteúdo fundante e efi caz) e aspiração e
conquista do povo (formalização histórica).

Vida é proposta de Deus (potencialidade já entregue) e resposta do povo


(contínua descoberta, conquista e atuação da potencialidade).

História é o presente de Deus (liberdade e vida, completamente entregues) e o


tensão futuro do povo (aspiração e conquista que vai formalizando
entre historicamente sucessivos e crescentes momentos de liberdade e vida).

A graça de Deus é uma realidade do ponto de vista de Deus. Contudo, do ponto


de vista da humanidade, ela só levará à liberdade, à Terra, à Vida e à História quando a
humanidade se dispuser a descobri-la, conquistá-la e dar-lhe forma concreta. Isso infeliz-
mente, para os que só ficam esperando. Mas felizmente, para os que se dispõem à ação.
Como dizia um dos nossos cantores:

“Vem, vamos embora,


que esperar não é saber.
Quem sabe faz a hora,
não espera acontecer.”

UNIDADE 2 51
ANEXO 2: A POSSE DA TERRA ABRE O
CAMINHO PARA A SOLIDARIEDADE
Extraído de: STORNIOLO, I. Como ler o livro dos Juízes: aprendendo a
ler a história. São Paulo: Paulus, 1997. p. 56-57.

Mais do que retrato de uma época, o livro dos Juízes é retrato de um processo,
uma análise de como o povo aprende a fazer história. E fazer história é lutar para
construir uma base nova para as relações sociais, modificando pela raiz a natureza da
economia e da política. É certo que as tribos de Israel perseguiram a utopia da igualdade,
e que esta só pode ser pensada a partir da justiça. Acostumados que somos à desigualdade
e à injustiça, poderíamos pensar que tudo isso foi apenas uma fantasia ingênua. Não. Para
os que são vítimas da injustiça e da desigualdade, isso não é uma fantasia ou sonho
apenas. Isso se chama esperança. Esperança de um mundo verdadeiramente humano,
onde cada pessoa poderá assistir ao maravilhoso desabrochar de si mesma para a vida
sem limites. Esperança de amor, onde cada um poderá alegremente repartir-se com o
outro e repartir juntos os bens da vida, com o coração transbordando de gratidão para
com o Senhor e Criador de todos os dons. A utopia da igualdade não é algo impossível.
Apenas se encontra lá, no horizonte. Para chegarmos até ela é preciso abrir caminhos, se
necessário com as nossas próprias mãos e pés. E há duas formas de se considerar um
caminho: para uns o caminho é algo que nos separa da meta, enquanto que para os outros
o caminho é algo que nos aproxima da meta, progressivamente, a cada passo. Assim, cada
passo no caminho já é uma realização da meta, porque ela não está apenas lá, no
horizonte, mas no coração de cada pessoa que luta, abrindo caminhos para a construção
do mundo novo, justo e, por isso mesmo, humano. O livro dos Juízes, espelhando as
duras lutas do povo daquele tempo, mostra-nos que vários caminhos já foram abertos.

52 UNIDADE 2
APLICAÇÃO
DE CONCEITOS

Assista ao vídeo sobre “História de Israel”86

No gráfico abaixo há os seguintes textos:

Toda a terra possuíram Muita terra ficou para ser possuída

Assim Josué tomou toda esta terra, Era, porém, Josué já velho, entrado em
conforme a tudo o que o SENHOR tinha dias; e disse-lhe o SENHOR: Já estás
dito a Moisés; e Josué a deu em herança velho, entrado em dias; e ainda muitíssima
aos filhos de Israel, conforme as suas terra ficou para possuir. (Js 13, 1)
divisões, segundo as suas tribos; e a terra
descansou da guerra. (Js 11,23)

“Este processo imigratório, propositalmente designado com a expressão neutra


"tomada da terra", dificilmente se caracterizou por atividades guerreiras onde todo o
Israel, unido sob uma liderança comum, tivesse conquistado, passo a passo, todo o país
(SCHMIDT, 2004, p. 23.). Baseado no vídeo apresentado: faça suas considerações sobre a
abordagem que ele dá a respeito da “conquista da terra” descrita no Livro de Josué.

86
<https://youtu.be/yj0hUpE6uUY>

UNIDADE 2 53
54 UNIDADE 2
3 ÉPOCA DA MONARQUIA

3 ÉPOCA DA MONARQUIA

Roteiro de Aprendizagem

Nesta unidade, estudaremos a emergência da monarquia israelita mediante a


ameaça de uma potência estrangeira conhecida como os filisteus. Eles faziam parte dos
grupos conhecidos como povos do mar e chegaram à Palestina dentro do movimento
migratório, estabeleceram-se na costa do Mediterrâneo e edificaram cinco cidades-
estados. Sua superioridade bélica obrigou os israelitas a imediatamente buscar um
sistema mais centralizado, sob a liderança permanente de um rei. No ano 1000 a.C. Israel
instituiu um estado centralizado, que convocaria um exército profissional para resistir às
pressões do inimigo87. Israel não experimentou somente a ameaça dos filisteus, mas
também da Síria, Assíria e Babilônia. Foi nesse período de intensas turbulências que
Israel e Judá tornaram-se de fato reinos, experimentando avanços nas áreas arquitetônica,
política, religiosa, militar e, sobretudo, na escrita, que possibilitou uma eficiente
administração, assim como a formação dos primeiros escritos sagrados.

3.1 DAVI, SALOMÃO E A MONARQUIA “UNIDA”

No livro que se intitula com o seu nome, Samuel é apresentado como uma figura
muito complexa e com três funções. Ele se comporta como vidente, juiz e sacerdote. Na
verdade o redator deuteronomista quer retratá-lo como um elo entre dois mundos muito
diferentes, por isso adiciona nele características dos juízes que o precedem, assim como
traços dos profetas que o seguem na história de Israel do século VIII a.C.88

É difícil rastrear com precisão o Samuel da História. A historiografia confirma


que a mudança do sistema de tribos para o monárquico foi provocado pelo avanço

87
SCHMIDT, 2004, p. 26.
88
GIANANTONIO, B.; PRIMO, G, 2006, p. 85.

UNIDADE 3 55
progressivo dos filisteus em direção à zona interna de Israel89, onde viveram, como já
mencionado, as tribos israelenses.

Os filisteus eram agrupados na costa leste do Mar mediterrâneo em uma


pentapoli (5 cidades: Gaza, Askalon, Asdod, Gat e Ekron), cada cidade se distinguindo
por um santuário especial dedicado à um deus principal. Diante dessa ameaça, Samuel
convoca as tribos e através do um ritual público da sorte sagrada, que recaiu sobre a tribo
de Benjamim e entre suas famílias, foi eleito Saul. Surge então a monarquia como nova
forma de governo, não aceita de forma totalmente positiva. O próprio Samuel considera a
monarquia uma ofensa ao governo de Deus. Saul, no entanto, tem um êxito inicial. Mas
depois de confundir seu papel régio com o sacerdotal, é rejeitado, sua popularidade cai e,
segundo o texto bíblico, Deus elege outro rei para ocupar o seu lugar: Davi, filho de
Jessé, da tribo de Judá, descrito na Bíblia como aquele que venceu o gigante Golias e
rechaçando definitivamente os filisteus do território Israelita. Também conquistou
Jerusalém, localizada estrategicamente no centro do país, a partir do qual foi possível o
controle político da terra por um Israel unificado. Esse era o sonho dos exilados que
queriam reconstruir a província de Judá.

A conquista da cidade por Davi aconteceu na história com uma das estratégias
típicas do cerco e corte do abastecimento de água. Jerusalém foi reabastecida por uma
fonte de água que ainda existe até hoje. Através dela, Davi entrou de assalto na cidadela,
que tornou-se a cidade de Davi. O narrador bíblico atribui a Davi a unificação das doze
tribos que estavam na área da terra de Israel.

Segundo o escritor bíblico, Davi construiu seu próprio império e o que


contribuiu para isso foi a tomada de Jerusalém como capital política e religiosa, onde
planejou construir o templo de Yahweh, um projeto que só foi concretizado pelo seu
filho Salomão. A colocação da arca da aliança em Jerusalém, no santuário de Sião, não
impediu, num primeiro momento, que os santuários locais continuassem suas atividades
cúlticas até a reforma de Josias.

O narrador bíblico não poupa Davi ao expor as páginas sombrias da sua história,
mas também não hesita em apresentá-lo como o modelo do rei ideal e fundador de uma
monarquia unida. Uma das sequências narrativas mais amplas se refere às intrigas
judiciais para a sucessão de Davi, quando Betseba, com apoio político religioso do profeta
Natan, consegue colocar seu filho Salomão no trono.

A história de Davi se destaca pela consolidação do reino, mas a história de


salomão retrata o auge desse império. É também uma figura imersa no mito coberto com

89
GIANANTONIO, B.; PRIMO, G, 2006, p. 87.

56 UNIDADE 3
hagiografias. O reino salomônico é caracterizado pela paz, como sugere seu próprio
nome. Atividades econômicas sociais e culturais teriam favorecido a consolidação e a
organização de um território ideal. O projeto salomônico é realmente faraônico.

A construção do Templo de Jerusalém foi o trabalho mais significativo atribuído


a Salomão pelo historiador deuteronomista.

O templo de Salomão contou com a mão de obra fenícia para sua edificação e
isso é evidenciado pelos documentos de Ugarit, que retratam os rituais para a
inauguração do templo, as belas decorações de interiores e a iconografia do mobiliário.
Evocando a harmonia e a beleza dos templos egípcios, a localização no monte aberto
assemelhava-se aos templos cananeus construídos nas alturas.

Figura 6 – Templo de Baal90 Figura 7 – Planta baixa91

Nas figuras acima, vemos o templo de Baal com um altar na frente, destinado a
sacrifícios de animais. Duas colunas ladeiam a entrada e, no interior, o santuário que
dava acesso por uma escada ao Santo dos Santos, que somente o sacerdote poderia
acessar.

De acordo com a história bíblica, juntamente com o templo de Salomão foi


construído o palácio real e reconstruídas fortificações localizadas em lugares estratégicos
do reino, como Azor, Guezer e Meggido. A atribuição desses trabalhos é altamente

90
YON, M. The City of Ugarit at Tell Ras Shamra. Winona Lake: Eisenbrauns, 2006. p. 115.
91
CALLOT, O. Les sanctuaires de l'acropole d'Ougarit: les temples de Baal et de Dagan. Avec un
appendice de Jean-Yves Monchambert. Lyon: Publications de la Maison de l'Orient et de la
Méditerranée, 2011. p. 152.

UNIDADE 3 57
improvável de um ponto de vista da historiografia moderna e foi datada erroneamente
pelo eminente arqueólogo Yigael Yadin em 1960, que realizou escavações em Megiddo.

Nos anos de 1920 e 1930 o Instituto Oriental da Universidade de Chicago


efetuou uma série de escavações durante as quais foram descobertos restos de uma porta
de acesso à cidade. Esta porta, da qual resta apenas um lado, tem um plano incomum.
Trata-se de uma passagem com dois lados e três câmaras, razão pela qual é chamada de
"porta de seis câmaras".

Yigael Yadin não escolheu Megiddo por acaso. Suas escavações anteriores no
sítio de Hazor resultaram na descoberta de uma porta similar. Yadin se dedicou então a
outro sítio, o de Gezer. Desta vez bastou consultar o relatório de um arqueólogo que
explorou o sítio no início do século XX. Yadin descobriu uma porta similar no plano de
um pequeno forte posterior, semelhante em plano e tamanho às de Megiddo e Hazor.
Para Yigael Yadin a conclusão era óbvia: Megiddo, Gezer e Hazor carregam o estilo do
mesmo arquiteto, o rei Salomão. Yadin se orientou por um versículo bíblico que diz:

E esta é a causa do tributo que impôs o rei Salomão, para edificar a casa
do SENHOR e a sua casa, e Milo, e o muro de Jerusalém, como também
a Hasor, e a Megido, e a Gezer. (1 Rs 9, 15)

Assim Salomão foi considerado um rei construtor e a Bíblia um livro de


92
História . Porém, a realidade mostrou-se mais complicada. A arqueologia moderna se
dispôs das ciências exatas: física, química e estatística foram aplicadas. As técnicas
precisas de datação com o carbono 1493 usaram amostras orgânicas coletadas das camadas
de destruição em sítios como o de Megiddo, que incluem sementes e caroços de oliva
cujo ciclo de vida limitado permite uma datação mais segura. O resultado foi que o
estrato datado no século X, na verdade, é do século IX a.C., ou seja, um século depois de
Salomão, no período do rei Acabe.

O caso mais marcante foram os chamados estábulos de Salomão, que, de acordo


com uma estratigrafia mais precisa e menos condicionada às provas bíblicas desses
edifícios, datam na realidade do período de Acabe, isto é, um século após o tempo de
Salomão.

O escritor bíblico mostra Salomão como um grande monarca do oriente no auge


de seu império. Suas boas relações diplomáticas com os povos estrangeiros a quem estava
vinculado política e matrimonialmente eram caracterizadas pelo seu famoso harém
composto por mil mulheres, 700 princesas de diferentes nacionalidades e 300

92
FINKELSTEIN, 2003, p. 191-192.
93
FINKELSTEIN, 2003, p. 198.

58 UNIDADE 3
concubinas, com as quais ele finalmente tem pervertido seu coração. O autor o critica por
colecionar tantas mulheres e por colocar a premissa para o cisma.

Não há muitas evidências históricas de um grande Império sob Davi e Salomão,


embora os textos bíblicos retratem isso. Quando se trata de Onri e Acabe, no entanto, o
texto bíblico é confirmado pela arqueologia.

E de Semer comprou o monte de Samaria por dois talentos de prata, e


edificou nele; e chamou a cidade que edificou Samaria, do nome de
Semer, dono do monte. (1Rs 16, 24)

E sucedeu depois destas coisas que, Nabote, o jizreelita, tinha uma vinha
em Jizreel junto ao palácio de Acabe, rei de Samaria. (1 Rs 21,1)

Tais evidências não nos devem levar a uma atitude radical a ponto de
desconsiderar parte da Bíblia como um livro histórico ou até mesmo nos desestimular a
fé em Deus, porém, devemos aceitar e respeitar os resultados de séculos da crítica
literária, somada aos mais de 200 anos de escavações sistemáticas no território siro-
palestino, egípcio e mesopotâmico.

O material bíblico não pode ser tratado como bloco monolítico. Não
exige a atitude de “ame-o ou deixe-o”. Dois séculos de erudição bíblica
moderna nos mostraram que o material bíblico deve ser avaliado
capítulo por capítulo e, algumas vezes, versículo por versículo. A Bíblia
inclui materiais históricos, não históricos e quase históricos que
ocasionalmente aparecem muito próximos um do outro no texto. Toda a
essência da erudição bíblica é separar as partes históricas do restante do
texto, de acordo com considerações linguísticas, literárias e históricas
extra bíblicas.94

3.2 OS GRANDES REIS ONRI E ACABE

Duas inscrições em particular iluminaram a questão a respeito do reino unido de


Israel. A primeira é a estela de Tel Dan, descoberta em 1993 no norte de Israel. Ela
informa que o rei Hazael de Damasco matou o rei de Israel, Jeorão, e o rei de Judá,
Azarias, da casa (dinastia) de Davi.

94
FINKELSTEIN, 2003, p. 458.

UNIDADE 3 59
1 [ ....................................] e cortou
[.................] (2) [............] meu pai foi [contra
ele quando] ele lutou em [.......] (3) E meu pai
deitou-se, ele foi para seus [ancestrais]. E o
rei de I[s-] (4) rael entrou previamente na
terra de meu pai. [E] Hadad me fez rei. (5) E
Hadad foi à minha frente, [e] eu parti de [os]
sete [....-] (6) s do meu reino, e eu matei
[sete]nta rei[s], que utilizavam milha[res de
bi-] (7) gas e milhares de cavaleiros [ou
cavalos]. [Eu matei Jeho]rao filho de [Acab]
(8) rei de Israel, e matei [Ocoz] ias filho de
[Jehorao re]i (9) da Casa de Davi. E
transformei [suas vilas em ruinas e tornei]
(10) sua terra em [desolação................] (11)
outro .............................................. e Jehú rei-]
Figura 8 - Estela de Tel Dan 95
(12) nou sobre
Is[rael...........................................e pus] (13)
cerco sobre [................................................].96

A outra é do mesmo período e é conhecida como a estela de Mesha97, exposta no


Museu do Louvre. Foi descoberta pelo missionário alemão Frederic Klein em Diban, ao
sul da Jordânia, no ano de 1868. É do basalto negro e mede 1,10m de altura e 0,60m de
largura. A inscrição informa que foi erigida pelo rei Mesha de Moab, para agradecer ao
Deus Kemosh pela vitória obtida contra o reino de Israel. A estela contém o nome de
Onri, Rei de Israel e data do século IX a.C. Essas duas inscrições distinguem claramente
os dois reinos: Israel e Judá. Até o presente momento não se encontrou nenhum
documento extra bíblico que comprove o reino unido de Israel.

95
Figura tirada do livro: FINKELSTEIN, I.; MAZAR, A. The Quest for the Historical Israel: Debating
Archaeology and the History of Early Israel. Atlanta: Society of Biblical Literature, 2007.p. 6.
96
KEAFER, 2016, p.68.
97
CAZELLES, 1983, p, 51. é do basalto negro e mede 1,10m de altura o 0,60 m de largura. Foi quebrada
em pedaços polos beduínos o salva por Clormont-Gannoau. Foi reconstruída om grande parte e se
encontra no Museu do Louvre. A inscrição consiste em 34 linhas e deve datar do fim da dinastia do
Onri o pode ser contemporânea dos primeiros anos do rei Jeú, em 842-840 a.C. aproximadamente.

60 UNIDADE 3
(1) Eu sou Mesha, filho de
Quemos, rei de Moab, o di (2)
bionita: Meu pai reinou sobre
Moab trinta anos e eu rei (3) nei
após meu pai : E construí esta
bamat para Quemos, em Qarho:
bm[ ] (4) š‘ eis ele me salvou de
todos os reis e eis ele me fez
triunfar sobre todos meus inimigos
: Om (5) ri rei de Israel oprimiu
Moab muitos dias porque se irou
Quemos em ter (6) ra sua: E o
sucedeu seu filho e disse também
ele “Dominarei Moab”: Em meus
[dias disse is[so]99

Figura 9 - Estela de Mesha 98

O reinado de Omri (885-874) foi tão importante que os reis assírios quando
queriam se referir a Israel a chamavam pelo termo “Bit-Humri” = casa de Omrí. Seu
filho Acabe (874-853) o sucedeu criando uma dinastia, cuja estabilidade fora reconhecida
por todo o Oriente.

Anexei a Assyria, a cidade de Kaspuna, que está na margem do mar


superior, as cidades [...] nite, Gilead e Abil-sitti, que são a fronteira da
terra Bit-Hmri (Israel), a extensa terra de Bit-Haza'ili (Damasco) na sua
totalidade100

98
http://www.proel.org/index.php?pagina=alfabetos/hebreo Acesso em: 07 jul. 2017. A inscrição de
Mesha foi redigida numa estela de basalto negro descoberta em 1868, remonta ao século IX período da
dinastia Onrida. O artefato encontra-se atualmente no Museu do Louvre na França.
99
PRITCHARD, James. Pritchard (Ed). Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament.
Princeton: Princeton University Press, 1969. p. 320.
100
TADMOR, Hayim, 2011, p. 105. Inscrição cuneiforme de Tiglath-pileser III, 42. O artefato é uma
grande placa de pedra fragmentariamente preservada, provavelmente uma placa de pavimento colossal
descoberta em meados do século XIX em Kalhu. O texto contém relatórios dos seguintes
acontecimentos entre os quais estão a anexação do norte e centro da Síria (738); A anexação de
Damasco (733-732); A anexação parcial de Israel (733-732) etc.

UNIDADE 3 61
Saí de Argana e me aproximei de Karkara. Eu destruí,
rasguei e queimei Karkara, sua residência real. Ele
trouxe para ajudá-lo 1.200 carros, 1.200 cavaleiros,
20.000 soldados de pé de Adad-'idri (ou seja,
Hadadezer) de Damasco (Imerilu) 700 carros, 700
cavaleiros, 10.000 soldados de pé de Irhuleni de
Hamath, 2.000 carros, 10.000 soldados de pé de Ahab,
o israelita (A-ha-ab-bu "'Sir-'a-aa), [...] Lutei com eles
com o apoio das poderosas forças de Ashur, Ashur,
meu senhor, deu-me, as armas fortes que Nergal, meu
líder, me apresentou, e eu infligi uma derrota sobre
eles entre as cidades Karkara e Gilzau. Eu matei
14.000 de seus soldados com a espada, descendo sobre
eles como Adad quando ele faz uma chuva cair para
baixo. Eu espalhei seus cadáveres (em toda parte),
enchendo toda a planície com seus soldados
amplamente dispersos (fugindo). [...] Parti e me
aproximei da cidade de Karkara. Hadadezer (Adad-id-
ri) de Damasco, Irhuleni de Hamat, com 12 reis do
litoral, confiando no seu poder combinado, partiu
contra mim para uma batalha decisiva. Eu matei em
batalha 25 mil soldados experientes e lhes tirei seus
carros, seus cavalos de cavalaria e seus equipamentos
de batalha - eles próprios dispersaram-se para salvar
suas vidas102.

Figura 10 - Monolito101

Na batalha de Carcar, o rei Salmanasar III mandou erigir um monolito. Na


coluna II, linhas 89-102, há uma inscrição do evento que envolveu uma coalizão lideradas
por Hadadezer de Arã (Damasco); Irhuleni de Hamate (Hama) junto ao Orontes; A-ha-
ab-bu Sir-i-la-a-a = Acabe de Israel.

De forma surpreendente, o rei Jeú que foi designado por Deus para exterminar a
dinastia de Omri, é chamado por Salmaneser II nos seus inscritos como filho de Omri
(da dinastia de Omri).

101
CHENG, Jack; FELDMAN, Marian H. (Eds). Ancient Near Eastern art in context: studies in honor of
Irene J. Winter. Leiden and Boston: Brill, 2007.p.154. Coleção online.
<http://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details.aspx?objectId=3
67117&partId=1&people=92929&object=20160&page=1>. Acesso em: 07 jul. 2017.
102
PRITCHARD, 1969, p. 278-279.

62 UNIDADE 3
Eu recebi tributo de Jeú (Iaua) da casa de Omri (Humri): prata, ouro,
uma tigela de ouro, um ouro Tureen, vasos de ouro, baldes de ouro,
estanho, (e) lanças da mão do rei.103

Mesmo com toda essa abundância de fontes extra bíblicas, a Bíblia registra os
feitos de Acabe de forma bem sucinta.

Quanto ao mais dos atos de Acabe, e a tudo quanto fez, e à casa de


marfim que edificou, e a todas as cidades que edificou, porventura não
está escrito no livro das crônicas dos reis de Israel? (1 Rs 22,39)

Samaria foi escavada em duas ocasiões no último século. Foram encontrados ali
numerosos vestígios da época romana quando a cidade se chamava Sebastia. Ela foi
construída por um rei chamado Onri, no século IX a.C. Foi a capital de reino de Israel.
Nela, vastos monumentos construídos por Onri e seus descendentes foram encontrados.
A Bíblia retrata que a dinastia de Onri foi constituída por reis devassos e idólatras e o
pior deles foi Acabe.

E fez Acabe, filho de Onri, o que era mau aos olhos do SENHOR, mais
do que todos os que foram antes dele. E sucedeu que (como se fora pouco
andar nos pecados de Jeroboão, filho de Nebate) ainda tomou por
mulher a Jezabel, filha de Etbaal, rei dos sidônios; e foi e serviu a Baal, e
o adorou. E levantou um altar a Baal, na casa de Baal que edificara em
Samaria. Também Acabe fez um ídolo; de modo que Acabe fez muito
mais para irritar ao SENHOR Deus de Israel, do que todos os reis de
Israel que foram antes dele. (1 Rs 16,30-33)

O redator deuteronomista os classifica como "reis malditos". Mas, como já


observado pelas fontes extra bíblicas, Acabe, filho de Onri, teria sido um grande
monarca. As escavações em Samaria revelam as construções monumentais de Onri. Essas
informações não condizem com as descrições bíblicas a respeito dele. O que vemos é bem
diferente: era um rei que dispunha de recursos para construir um incrível palácio e um
grande império, a ponto de ser reconhecido internacionalmente pelas superpotências da
época. Um indicador-chave de um império é o comércio de bens luxuosos e Samaria não
desaponta nisso. 500 fragmentos de marfim, incluindo 200 peças decoradas, foram
encontrados em Samaria no palácio104, mais evidências de que Onri governava um estado
avançado.

103
GRAYSON, A. K. Assyrian Rulers of the Early First Millennium BC I (1114– 859 BC). Royal
Inscriptions of Mesopotamia, Toronto: University of Toronto, 1991. p. 149.
104
NAHMAN Avigad. Samaria (City). In: THE NEW ENCICLOPÉDIA OF ARCHAEOLOGICAL
EXCAVATIONS IN THE HOLY LAND. Ed. E. Stern.Vol. 4. Jerusalém: The Israel Exploration
Society. 2008. p. 1300-1310.

UNIDADE 3 63
Figura 11 – Fragmentos105

105
NAHMAN, 2008, p. 1300-1310.

64 UNIDADE 3
Figura 12 - O urbanismo da dinastia Omrida. (a) Samaria. (b) Meggido106

106
LIVERANI, 2008, p. 161.

UNIDADE 3 65
Outro indicador de um império são de fato a arquitetura monumental,
fortificações e para construir é necessário uma comunidade organizada e especializada,
convivas e até cidades ao redor. Tudo isso requeria engenharia e muito poder humano.
Grandes cidades com obras monumentais refletem autoridade centralizada e não apenas
uma pequena comunidade ou aldeia.

Ao se examinar lugares como Samaria na época de Onri e Acabe, fica claro que se
trata de um reino mais rico, mais forte, com extensas conexões internacionais. Ao passo
que o reino do sul, Judá, ainda estava em fase de desenvolvimento.

Figura 13 - Samaria107

O Livro dos Reis não dá muitas informações sobre os aspectos econômicos e


administrativos do reino de Israel. Mas em 1910 foi encontrado, no palácio de Samaria,
um lote de cerca de cem ostracas (SSII 2)108. Estas são registros dos fornecimentos de

107
CAROLINE, E. Mason et al. Immagini del mondo bíblico. Torino: Claudiana, 1991. p. 75.
108
LIVERANI, 2008, p. 164.

66 UNIDADE 3
vinho e óleo das propriedades palacianas. Essas inscrições podem corresponder a um
longo reinado, como o de Acabe, Jeoacaz ou Jeroboão II.

Figura 14 - registros dos fornecimentos de vinho e óleo109

É muito óbvio que se um rei poderoso e expansionista como Onri deixou suas
marcas claras no registro arqueológico, então o Rei Davi, sobre quem a Bíblia faz
afirmações ainda mais grandiosas, também deveria ter deixado os seus sinais claros e
visíveis. Entretanto, é notável a extensão do império de Onri comparado à escassa
evidência do de Davi. Porque enquanto na Bíblia os relatos sobre Davi são abundantes e
os de Onri são escassos, se histórica e arqueologicamente as evidências de um grande
império governado por Onri são abundantes e os de Davi são quase inexistentes?

109
LIVERANI, 2008, p. 165.

UNIDADE 3 67
Isso fica claro quando os triunfos do grande rei Onri quase não são mencionados
e os reis posteriores do Norte são todos difamados e seus feitos menosprezados. Fica
claro que os autores bíblicos promoveram a sua própria versão dos eventos.

Nos séculos IX e VIII a.C., o reino do norte, Israel, tinha o controle da situação.
No VI século a.C, porém, o reino do Sul, Judá, estava em ascendência. Foi nessa época
que relatos fundadores sobre as origens começaram a tomar forma e os relatos da história
de Israel foram filtrados pelas experiências de Judá.

Embora ambos partilhassem da terra de Canaã, o reino de Israel teve menos


sorte e em 722 a.C. foi invadido e destruído pela Assíria, que o varreu do mapa. O reino
de Judá escreveu a história na sua própria perspectiva ideológica. O padrão de medida foi
a teologia deuteronomista, na qual Jerusalém tornou-se o único santuário legítimo de
culto e onde Yahweh deveria ser adorado exclusivamente pelo seu povo escolhido. Nesse
requisito, os reis do norte, que já não existiam mais, não tinham quaisquer chances de
serem bem avaliados.

3.3 O DESENVOLVIMETO DE JUDÁ SOB OS REINADOS DE EZEQUIAS E


JOSIAS

Ao contrário de Davi e Salomão, o reino de Ezequias descrito pelo texto bíblico é


também documentado por diversas instruções e obras arquitetônicas de grande porte. Os
dois reinos Israel e Judá localizavam-se entre as duas maiores superpotências mundiais
do Oriente Próximo: O Egito ao sul e a Assíria, ao noroeste, ambos desejavam ter o
controle da Siro-palestina. Por isso Israel e Judá, reinos irmãos, foram envolvidos nessa
rivalidade. No final do século VIII a.C. os assírios invadiram o reino do norte,
controlando todo o seu território, posto que Samaria violara o contrato de vassalagem
com a Assíria e logo sofreu as terríveis punições do seu brutal esquema de dominação,
que constava de três estágios:110 (1) depois de subjugados, os vassalos tinham que pagar
tributos regulares ao império Assírio; (2) se houvesse qualquer suspeita de rebelião por
parte do vassalo, a Assíria intervinha militarmente eliminando a liderança rebelde,
substituindo-a por um líder fiel pró-assírio; (3) a recorrência de lealdade do vassalo
eliminava-se o infiel, reduzia-se a autonomia política do estado, deportava-se a elite
nativa, realocando povos estrangeiros na região, a fim de apagar-lhes a identidade,
sufocando qualquer possibilidade de insurreição.

110
DONNER, 2004, p. 342.

68 UNIDADE 3
Depois da destruição do reino de Israel em 722 a.C., houve uma onda de
centenas de refugiados que migraram forçadamente para Jerusalém e Judá, que cresceu
demográfica e geograficamente, tornando-se dez vezes maior. Jerusalém torna-se agora
uma grande cidade em aproximadamente 40 anos, numa explosão demográfica
instantânea.

Figura 15 - Mapa111

Segundo Pixley112, esses refugiados levaram consigo para o sul a escrita, a religião
e a cultura, uma verdadeira mão de obra burocrática113 composta de administradores
com capacidade de anotar os produtos e redigir obras literárias. Nesse tempo governava o
rei Ezequias, que decidiu fortificar a cidade construindo enormes fortificações e um novo
muro para circundar o bairro emergente na colina oeste de Jerusalém. Durante o reinado
de Ezequias, Jerusalém sofreu um “boom” e de uma pequena cidade com 6 hectares
transformou-se numa área urbanizada de cerca de 60 hectares, protegida por uma
imponente muralha. O fantasma assírio ainda pairava sobre a região e a cidade parecia se
preparar para uma batalha.

111
LIVERANI, 2008, p. 196.
112
PIXLEY, Jorge. A história de Israel a partir dos pobres. 2 a ed. Petrópolis: Vozes, 1990. p.67.
113
FAUST, Avraham. The archaeology of israelite society in iron age II . Winona Lake, Indiana:
Eisenbraus, 2012. p.193.

UNIDADE 3 69
Figura 16 – Registro da obra do túnel114

Essa preocupação com um possível cerco de exércitos assírios levou o rei à


construção de um túnel de 500 metros que captasse água para suprir as necessidades de
abastecimento da cidade. Esse foi um extraordinário projeto arquitetônico, que conta
com o registro da obra. O texto foi escrito em hebraico antigo e se constitui numa forte
evidência da ascensão do estado judaico e sobretudo a sua capacidade de registrar
eventos, prova cabal de que Jerusalém nessa época alcançou o status de reino
centralizado, que dispunha de uma eficiente administração, pois a inscrição atesta essa
capacidade. Judá, sem dúvida, aspirava desempenhar um papel importante na região.

Mas Ezequias concebeu que poderia se libertar do poderio assírio com o apoio do
Egito, cuja influência é atestada na abundante iconografia presente nos selos
administrativos de Ezequias e seus oficiais da corte.

Figura 11 – Selo 1115 Figura 18 – Selo 2116 Figura 19 – Selo 3117

114
STERN, E (Ed) New Encyclopedia of Archaeological Excavations in the Holy Land. Jerusalem: Israel
Exploration Society, 1993. v. 2. p. 711.
115
DEUTSCH, R. Biblical period hebrew bullae, The Josef Chaim Kaufmann Collection . Tel Aviv:
Archaeological Center Publication, 2003. p. 13.
116
DEUTSCH, R , 2003, p.17.

70 UNIDADE 3
Os selos acima percorrem três gerações sucessivas de reis daviditas. A primeira,
da esquerda pra direita, apresenta a seguinte inscrição: “Ezequias, filho de Acaz, rei de
Judá”, a iconografia, tipicamente egípcia, mostra a divindade Horus, representada pelo
sol alado ladeado por duas chaves da vida egípcia Ank; A segunda mostra a inscrição:
“Ezequias, rei de Judá”, o escaravelho guiando o sol, um dos símbolos de Horus; a
terceira traz a inscrição: “Manassés, filho do rei” e acima dela o escaravelho alado. Não se
sabe até que ponto essas iconografias de divindades egípcias foi imposta ou aderida por
Ezequias. O que se pode dizer seguramente é que a sua “reforma anti-imagens” não se
encaixa com as evidências de iconografias presentes nos selos usados durante o governo
de Ezequias, que é descrito como um rei que baniu todas as divindades estrangeiras.

E fez o que era reto aos olhos do SENHOR, conforme tudo o que fizera
Davi, seu pai. Ele tirou os altos, quebrou as estátuas, deitou abaixo os
bosques, e fez em pedaços a serpente de metal que Moisés fizera;
porquanto até àquele dia os filhos de Israel lhe queimavam incenso, e lhe
chamaram Neustã. No SENHOR Deus de Israel confiou, de maneira que
depois dele não houve quem lhe fosse semelhante entre todos os reis de
Judá, nem entre os que foram antes dele. Porque se chegou ao SENHOR,
não se apartou dele, e guardou os mandamentos que o SENHOR tinha
dado a Moisés. (2 Rs 18, 3-64)

E também “guardou os mandamentos que Yahweh tinha dado a Moisés”.


Entretanto, entre esses mandamentos está aquele que diz para não ter outros deuses e
nem representá-los através de imagens.

Não terás outros deuses diante de mim; Não farás para ti imagem de
escultura, nem semelhança alguma do que há em cima no céu, nem
embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra; (Dt 5, 7-8)

Após a reforma, o escritor diz que Ezequias se rebelou contra a Assíria (2 Rs 18,
7). Mas essa não foi uma atitude prudente, pois Senaqueribe, filho de Sargon II, o novo
rei marchou com um numeroso exército decidido a punir Judá. A primeira cidade
atingida foi Lachish, a segunda maior cidade do reino. Senaqueribe a sitiou e destruiu
sem nenhuma piedade; não só Laquis, mas dezenas de cidades foram arrasadas pelo
exército assírio. O assombro tomou conta de Jerusalém, e para evitar a mesma desgraça,
coube a Ezequias renovar o contrato de vassalagem feito por seu pai Acaz a Tiglate
Pileser III e assim pagou um pesado tributo a Senaqueribe. Esse fato foi registrado tanto
na Bíblia como nos textos assírios.

117
ALBERTZ, Rainer and SCHMITT Rüdiger. Family and Household Religion in Ancient Israel and the
Levant. Winona Lake Indiana: Eisenbrauns, 2012. p.374.

UNIDADE 3 71
Prisma de Senaqueribe118 Livro dos Reis

E Acaz enviou mensageiros a Tiglate-


Pileser, rei da Assíria, dizendo: Eu sou teu
Quanto a ele, Ezequias, meu esplendor servo e teu filho; sobe, e livra-me das mãos
terrível de soberano o confundiu e ele do rei da Síria, e das mãos do rei de Israel,
enviou atrás de mim, em Nínive, minha que se levantam contra mim. E tomou
cidade senhorial, os irregulares e os Acaz a prata e o ouro que se achou na casa
soldados de elite que ele tinha como tropa do SENHOR, e nos tesouros da casa do
auxiliar, com 30 talentos de ouro, 800 rei, e mandou um presente ao rei da
talentos de prata, antimônio escolhido, Assíria. (2 Rs 16:7-8)
grandes blocos de cornalina (?), leitos de
marfim, poltronas de marfim, peles de
elefante, marfim, ébano, buxo (?), toda Então Ezequias, rei de Judá, enviou ao rei
sorte de coisas, um pesado tesouro, e suas da Assíria, a Laquis, dizendo: Pequei;
filhas, mulheres do seu palácio, cantores, retira-te de mim; tudo o que me
cantoras; e despachou um mensageiro seu impuseres suportarei. Então o rei da
a cavalo para entregar o tributo e fazer ato Assíria impôs a Ezequias, rei de Judá,
de submissão. trezentos talentos de prata e trinta talentos
de ouro. Assim deu Ezequias toda a prata
que se achou na casa do SENHOR e nos
tesouros da casa do rei. (2 Rs 18, 14-15)

Percebe-se que o tributo pago por esses reis vassalos de Judá provinham do
templo, que funcionava como uma espécie de reserva do tesouro nacional. Judá, mesmo
sob a influência política assíria, prosperou economicamente, participando do comércio
árabe, produção de óleo em larga escala, o que estabeleceu uma complexa administração
para gerir essa produção. Isso é evidenciado pela arqueologia que descobriu milhares de
potes de argila carimbados com os selos reais de Ezequias. Isso marca de modo evidente o
nascimento de um Estado.

118
BRIEND, J. Israel e Judá: Textos do Antigo Oriente Médio. São Paulo: Paulinas, 1985. p.35.

72 UNIDADE 3
.

Figura 20 – Potes de Argila119

Os jarros eram coletados em todas as regiões de Israel e trazidos aos oficiais de


confiança de Ezequias. Esses exerciam um papel administrativo estratégico no reino. Um
desses homens que foram nomeados para essa função chamava-se Amariah, ou em
hebraico, Amaryahu (2 Crônicas 31,15).

‫הּוָ ריְַ מֲא‬


E debaixo das suas ordens estavam
Éden, Miniamim, Jesua, Semaías,
Amarias (‫ ) הּוָ ריְַ מֲא‬e Secanias, nas
cidades dos sacerdotes, para
distribuírem com fidelidade a seus
irmãos, segundo as suas turmas, tanto
aos pequenos como aos grandes; (2 Cr
Figura 21 - Inscrições120 31,15)

E Ezequias lhes deu ouvidos; e lhes mostrou toda a casa de seu tesouro, a
prata, o ouro, as especiarias e os melhores unguentos, e a sua casa de
armas, e tudo quanto se achou nos seus tesouros; coisa nenhuma houve
que não lhes mostrasse, nem em sua casa, nem em todo o seu domínio. (2
Rs 20,13)

Selos padronizados chamados “La-melek”, (pertence ao rei), como o exemplo da


figura 20, que mostra um selo real estampado na alça de um pote oriundo da cidade de

119
KELLE, Brad E. Ancient Israel at War 853-586 B.C. Oxford, Osprey Publishing, 2007. p.52.
120
DEUTSCH, R. Biblical period hebrew bullae, The Josef Chaim Kaufmann Collection . Tel Aviv:
Archaeological Center Publication, 2003.

UNIDADE 3 73
Hebron. Trata-se da primeira administração desenvolvida. Não só os selos eram
padronizados, mas também os vasos de armazenamento têm o mesmo volume, a mesma
quantidade. Isso é a evidência de algum tipo de administração estatal, marcas de um
estado pleno em Judá no final do século Vlll a.C.

Figura 22 - Vaso121

Tal progresso alterou profundamente o quadro geopolítico da região e a


emergência de Judá como estado trouxe consigo também o desenvolvimento da escrita.
Antes do século VII a.C., a maioria dos israelitas não dominava a escrita. Mas a partir do
século VII houve um processo de alfabetização da sociedade israelita. Não só os escribas
da corte dominavam a arte da escrita, mas também pessoas comuns sabiam
aparentemente escrever. A difusão da escrita foi um fator fundamental para o surgimento
de escritos sagrados oficiais. No Museu de Israel em Jerusalém encontram-se dois
amuletos de prata do século VII, período do rei Josias. Eles foram descobertos em
Jerusalém pelo arqueólogo Gabriel Barklay. Os objetos contêm um texto peculiar escrito
em hebraico antigo, onde se diz:

121
SCHOORS, Antoon. The Kingdoms of Israel and Judah in the Eighth and Seventh Centuries B.C.E.
Atlanta: Society of Biblical Literature, 2013. p. 87.

74 UNIDADE 3
O SENHOR te abençoe e te
guarde; O SENHOR faça
resplandecer o seu rosto sobre
ti, e tenha misericórdia de ti; O
SENHOR sobre ti levante o seu
rosto e te dê a paz. (Nm 6:24-
26)

Figura 23 - Amuleto122

Esse é o mais antigo texto bíblico encontrado, onde Yahweh é apresentado e


adorado como um deus nacional, assim como os moabitas adoravam Kemosh. As
mesmas nações que possuíam um deus nacional, especificamente voltado para as guerras,
também veneravam outros deuses menores que cuidavam das questões de fertilidade.
Nesses casos, recorriam-se às deusas. Presume-se que em Judá havia pequeno panteão em
torno de Yahweh. E isso se constituía em um entrave para as ambições centralizadoras de
Josias.

A descoberta de um livro no interior do templo em Jerusalém causou uma


reforma impactante, o que demonstra a função que a palavra escrita passou a ter no
reinado de Josias. Os estudiosos concordam que esse livro seja o Código
Deuteronômico123, pois uma das ideias mais importantes desse livro é a da centralização
do culto. Através dele Josias baniu todas as religiões rivais para unir o povo em torno de
um único deus, Yahweh.

Essa reforma religiosa evidencia a autoridade do texto escrito. No século VII a.C.
o cenário político-econômico e social de Judá está pronto para uma revolução de dentro

122
SCHNIEDEWIND, W. M. How the Bible Became a Book: The Textualization of Ancient Israel.
Cambridge: Cambridge University Press, 2004. p. 105.
123
O Código Deuteronômico é o conjunto de leis que formam hoje o núcleo básico de Deuteronômio (12-
26). SILVA, A. J. da. A voz necessária: encontro com os profetas do século VIII a.C. São
Paulo: Paulus, 1998.p.109; OTTO, E. A Lei de Moisés. São Paulo: Loyola, 2011. p. 92; SICRE, J. L.
Introducion al Antiguo Testamento. Estella: Verbo Divino, 2012. p. 124; LIVERANI, M. Para além da
Bíblia: história antiga de Israel. São Paulo: Paulus; Loyola, 2008. p. 416.

UNIDADE 3 75
para fora, difundido pela palavra escrita. Em um livro Judá descreve o seu passado
histórico. Nesse esquema Josias envolve a população em seu ambicioso plano de
unificação do povo de Israel e de Judá. O momento era oportuno, pois os assírios
enfrentavam problemas internos que os fizeram recuar de Canaã por volta de 630 a.C. Era
praticamente o fim do império neo-assírio, que fora conquistado pela Babilônia. lsso
provocou em Judá um audacioso projeto de emancipação política, que se inicia pelo
desejo de reaver o território do antigo reino de Israel. Coube então ao neto de Ezequias a
tarefa de unificar o reino. No texto bíblico Josias é descrito como um novo Davi.

Nunca antes houve um rei como Josias, que se voltou a Yahweh com todo o
coração, com sua alma e força obedecendo todas as leis de Moisés. Segundo o texto
bíblico, as ações de Josias foram provocadas quando, por ocasião dos reparos ao Templo
de Jerusalém, o sacerdote Hilquias achou um livro, que imediatamente foi apresentado a
Josias, reconhecendo as palavras ali contidas como revelação de Deus. Comprometeu-se a
cumprir esses mandamentos e a seguir realizou uma reforma varrendo todos os vestígios
de outras divindades em Jerusalém, elegendo-a como o único local legitimamente
autorizado de culto.

A arqueologia evidencia indícios da reforma de Josias. Em Tel Arad, na região


do Negev, há ruinas de uma fortaleza e um templo construído no século Vlll a.C. O
templo foi destruído no final do século VIII. Ele apresenta o mesmo modelo de templos
erguidos na região siro-palestina no período do Ferro. No interior desse santuário havia
o ‘Santo dos Santos’, com dois altares e duas pedras verticais chamadas de Matzevah. Os
templos de Tel Arad, Beer-Sheba e outros inúmeros espalhados por Israel tinham seu
culto ativo entre os séculos VIII e VII a.C. No século VII suas atividades rituais cessam
completamente, coincidindo com a reforma de Josias nesse mesmo período.

A ideia era, a partir da centralização do culto, que Josias conseguiria centralizar


o poder, controlando o estado pela ideologia religiosa de que todos os israelitas deveriam
adorar apenas a um Deus em um só lugar124. Por isso, são eliminadas todas as
manifestações de culto em todas as regiões do país, levando a população a entregar as
ofertas e dízimos somente no templo principal em Jerusalém. Isso permite com que o
estado controle a economia de uma forma rápida e eficaz.

Planos de unificação e restauração nacional não eram somente pretensões


restritas ao reino de Judá. O Egito também tinha suas ambições imperiais. O faraó Neco,
percebendo o vazio de poder assírio sobre a região siro-palestina, partiu para controlá-la
pela força militar. Agora já não era mais a Assíria que se constituía num obstáculo para as

124
RENDTORFF, R. A formação do Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1979. p. 18.

76 UNIDADE 3
intenções de Josias; o Egito tomara o seu lugar e, portanto, deveria ser impedido. E,
como um novo Moisés da história bíblica, Josias assumiu o seu papel de libertador e
legislador. Mas o plano falhou, dando lugar a um trágico desfecho: em Megiddo o faraó
Neco II convocou Josias e o matou.

Mesmo depois das reformas de Ezequias e Josias, os israelitas não deixaram as


suas raízes pagãs e o monoteísmo ainda não havia sido adotado por completo. O fato é
que havia um contrato entre os israelitas e o seu deus, que os recompensaria caso
cumprissem a sua parte do pacto. Mas se o quebrassem, ele os puniria enviando forças
estrangeiras como instrumentos punitivos.

Ao associarem a crença em Deus ao comportamento moral, os mandamentos


estabelecem um código de moralidade e justiça que se estendeu para toda a civilização
ocidental. A aceitação do Deus único e o triunfo do monoteísmo começa com uma série
de eventos amplamente atestados pela arqueologia e pela Bíblia. O processo se inicia com
a destruição do templo de Yahweh em 586 a.C. Após derrotar os assírios, o novo império
mesopotâmico invade Israel. Os babilônicos derrubam o muro, incendeiam a cidade e
saqueiam o templo.

No sétimo dia do quinto mês, do ano décimo nono de Nabucodonosor,


rei da Babilônia, Nebuzaradã, chefe da guarda e servidor do rei da
Babilônia, veio a Jerusalém. E queimou a Casa do SENHOR e a casa do
rei, como também todas as casas de Jerusalém; também entregou às
chamas todos os edifícios importantes. (2 Reis 25:8-9)

Ao capturarem Zedequias, o último rei davídico, os babilônios mataram seus


filhos e em seguida o cegaram. “Aos filhos de Zedequias mataram à sua própria vista e a
ele vazaram os olhos” II Reis 25, 7. Então a aliança e a promessa feita por Deus ao povo
escolhido e a Davi, de que sua dinastia governaria eternamente em Jerusalém, foi
rompida após 400 anos. Israel foi dizimado, os sacerdotes, profetas, escribas e vários
israelitas são acorrentados e levados a Babilônia.

APROFUNDAMENTO SOBRE OS REINOS DE ISRAEL125 E REINO DE JUDÁ126

125
<http://airtonjo.com/site1/historia-13.htm>.
126
<http://airtonjo.com/site1/historia-14.htm>.

UNIDADE 3 77
PARA RESUMIR:

Nesta unidade você aprendeu que

 A monarquia significou um progresso social que marcou


significativamente a história do povo de Deus.

 O sistema monárquico foi interrompido em dois incidentes: 1) A


destruição do reino do Norte pela Assíria em 722 a.C.; 2) A destruição do
reino de Judá pela Babilônia em 586 a.C, com a perda definitiva da
autonomia política até o tempo dos Macabeus.

 As consequências foram desastrosas: Judá tomou-se província babilônica,


depois persa; terminou a monarquia davídica (apesar da predição de Natã
em 2 Sm 7); foram destruídos o templo, o palácio e a cidade (apesar da
tradição de Sião em SI 46; 48); foi expulso da terra prometida, deportada
a elite restante (juntamente com os utensílios do templo). Com isto
tinham se cumprido as previsões proféticas de desgraça;

ANEXO 1: O ANÚNCIO DA ESCOLA


DEUTERONOMISTA
Extraído de: STORNIOLO, I. Como ler o livro dos Reis: da glória à
ruína. São Paulo: Paulus, 2003. p. 63-64.

A História Deuteronomista é uma exposição da história baseada em fontes e


tradições antigas, e interpretada à luz de uma avaliação crítica, com o critério fornecido
pela ideologia da Aliança contida no livro do Deuteronômio. É, portanto, uma história
profética, uma crítica da história à luz da fé, uma verdadeira teologia da história
justificando plenamente o título que o judaísmo dá a esses livros: “profetas anteriores”.
Como qualquer visão crítica da história, a literatura deuteronômica não está tanto
interessada em narrar acontecimentos para gratuitamente documentar um passado, e sim
fornecer pistas para compreender o presente e abrir perspectivas para o futuro. Para o
historiador deuteronomista a história é um dinamismo sinergético, um processo que se
realiza graças à colaboração de Deus e do Homem. Deus fornece a base do processo, o
Homem o encaminha. Assim, o processo histórico é determinado pela Palavra de Javé e
pela atitude do Homem diante dessa palavra: a fidelidade leva à bênção (liberdade e

78 UNIDADE 3
vida), e a Infidelidade leva à maldição (escravidão e morte). A História Deuteronomista
termina bruscamente, com a deportação dos exilados de Judá para a Babilônia (2Rs 24-
25). Deste modo, o historiador mostra que a Palavra de Javé, que promete bênçãos e
maldições, se cumpriu: o povo da Aliança foi infiel e o exílio é o justo castigo, a maldição
provocada pela infidelidade. Perguntamos, porém: Por que o historiador escreveu essa
longa história? Já explicamos que a História Deuteronomista foi produzida em duas
etapas: a primeira edição, feita pela Escola Deuteronomista no tempo do rei Josias (640-
609 a.C.), era uma história dos reis que abarcava desde o período de Salomão até o tempo
de Josias, e foi redigida para justificar e tornar aceitável a política centralizadora de
Josias. A segunda edição, porém, foi feita pela mesma Escola durante o exílio babilônico,
agora englobando os livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis, ou seja, apresentando a
história desde a conquista da Terra até a perda da Terra.

APLICAÇÃO
DE CONCEITOS

Assista ao vídeo sobre “História de Israel”127

Mesmo depois das reformas de Ezequias e Josias, os israelitas não deixaram as


suas raízes pagãs e o monoteísmo ainda não havia sido adotado por completo. A aceitação
do Deus único e o triunfo do monoteísmo começa com uma série de eventos amplamente
atestados pela arqueologia e pela Bíblia. Baseado no vídeo sugerido, descreva o processo
que levou à emergência e consolidação do monoteísmo para ao Judeus.

127
<https://youtu.be/G9BQRJOqWlM>

UNIDADE 3 79
80 UNIDADE 3
4 EXÍLIO

4 EXÍLIO

Roteiro de Aprendizagem

Nessa unidade abordaremos o modo como os israelitas sobreviveram no exílio


babilônico. Segundo o texto bíblico, os babilônios permitiram que os judeus vivessem em
grupos na Babilônia (Ez 3, 15). A liberdade dada aos exilados lhes permitia construir
casas, cultivar jardins (Jr 29.5) e até serem liderados por grupos de anciãos (Ez 20.1)128.
Embora saibamos que houve muitas deportações, a maior parte da população
provavelmente permaneceu na Palestina (2 Rs 25.12). Em todo caso, Israel (isto é, os
judaítas), depois desta ruptura, passou a se desenvolver em dois ambientes: na Palestina e
na “golá”, ou seja, na diáspora.

4.1 O EXÍLIO PARA A BABILÔNIA

Em 586 a.C. os babilônios devastaram o reino de Judá. Nabucodonosor marchou


sobre Jerusalém derrubando seus muros, incendiando a cidade, o templo e levando
deportada a classe dominante da cidade. A maioria que fazia parte da população rural foi
mantida em Judá. O último rei da linhagem davídica, Zedequias, estava entre os exilados,
assim como os sacerdotes e escribas. O Salmo 137, 1 descreve o lamento desses exilados:
“Junto dos rios de Babilônia, ali nos assentamos e choramos, quando nos lembramos de Sião.”

O exílio marca um momento decisivo para a história religiosa e literária de Judá,


pois retirou os pilares principais que sustentavam a identidade do povo judeu: o templo,
sem o qual seria impossível celebrar festas, o rei e a nação (unidade territorial). Havia
então o perigo dos exilados serem absorvidos pela cultura e religião da imensa nação
babilônica. Os escribas e sacerdotes se empenharam então em reconstruir essa
identidade, a partir de memórias e antigas tradições, reinterpretando-as, porém. Os
exilados estão empenhados em conservar por escrito a maioria das tradições importantes

128
SCHMIDTT, 2004, p. 32-33.

UNIDADE 4 81
na história bíblica, abordando também o problema de comparação com a cultura
mesopotâmica.

Registros babilônios confirmam a presença de israelitas, incluindo o rei no


exílio. Sem o templo, o rei e as terras, como os israelitas conseguiriam sobreviver? Aquilo
que caracterizava o povo de Israel deixou de existir. A identidade desse povo foi
prejudicada e quase desintegrada. É no exílio que eles irão se reunir para construir uma
nova identidade.

Figura 24 – Registros babilônicos129

O relato bíblico do destino de Jeoaquim e da família real foi confirmado por um


arquivo de 290 tabelas de argila escavado na década de 1930. 40 destes textos, escritos em
cuneiforme, foram encontrados nos cofres abaixo de um dos edifícios públicos perto do
Portão de Ishtar (que hoje se encontra no Museu de Berlim) que conduz à cidade da
Babilônia. Eles datam dos anos 595 a 570 a.C. São listas que relatam os pagamentos de
rações, óleo e cevada para prisioneiros políticos proeminentes130, entre os quais se
encontra "Joaquim, rei de Judá" (Figura x)

129
SCHNIEDEWIND, W. M. How the Bible Became a Book: The Textualization of Ancient Israel.
Cambridge: Cambridge University Press, 2004. p. 151.
130
SCHNIEDEWIND, 2004. p. 152.

82 UNIDADE 4
[...] seis litros (de óleo) para Jeoaquim (ya’ukinu), rei da terra de Judá
(Ia-a-hu-du), dois litros e meio para os cinco príncipes de Judá, quatro
litros para os oito homens de Judá131.

4.2 O EXÍLIO E A RECONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DE ISRAEL

Essa jornada começa com antigos pergaminhos, que segundo alguns estudiosos
foram resgatados das chamas da destruição. Entre os exilados que foram de Jerusalém a
Babilônia estavam sacerdotes do templo, que levaram os seus documentos sagrados e
tradições sagradas. Foi na Babilônia, longe de seus lares em Israel, que os escribas e
sacerdotes produziram grande parte da Bíblia Hebraica como é conhecida hoje, reunindo
todas as tradições anteriores além de outras fontes. O resultado disso é o que conhecemos
hoje como Torá, os primeiros cinco livros da Bíblia, também conhecido como
Pentateuco. Além de compilar, eles editaram e redigiram uma versão do passado distante
de Israel, incluindo a história de Abraão e sua aliança com Deus por meio do ritual da
circuncisão, que identifica o povo israelita e mantém o pacto com Yahweh.

Mas a história de Abraão narra a atitude de um pai fiel a Deus e disposto a


sacrificar o seu próprio filho. Também fala sobre o poder da fé. Não é coincidência que
os escribas exilados tenham escrito que Abraão era originário de Ur dos caldeus ao sul da
Babilônia. Talvez com a mesma fé que Abraão teve, os exilados serão devolvidos à terra
prometida.

Um dos principais temas da Torá é o tema do exílio e do retorno: Abraão vai ao


Egito e volta de lá. Os israelitas vão ao Egito e saem em direção à terra prometida. Para
os exilados na Babilônia, no século VI antes de Cristo, o tema deve ter tido um forte
impacto, pois o Deus que tinha agido em favor deles no passado voltaria a agir
novamente. Mas os israelitas ainda tinham um problema: como em uma terra
estrangeira, sem o templo e os sacrifícios, poderiam eles se redimir aos olhos de Yahweh
para garantir a proteção divina?

Foi durante esse período que os exilados perceberam que sem os sacerdotes e
sem reis eles ainda eram capazes de cultuar a Deus, serem leais a ele e seguir os
mandamentos. Essa é a fundação do judaísmo em que, compilando histórias do passado,
escribas habilidosos juntaram tradições como: o êxodo da escravidão à liberdade, Moisés
e os dez mandamentos e a jornada de Abraão à terra prometida. Os escribas e sacerdotes
do exílio editaram o que conhecemos hoje como a Torá ou Pentateuco.

131
PRITCHARD, 1969, p. 308.

UNIDADE 4 83
Nesse período de intensa dor foi redigido Isaías, capítulos 40 a 55. Entre eles
encontra-se o mais celebrado, capítulo 53, que se refere ao servo sofredor, que os cristãos
associaram a Jesus. Esse texto nasce nesse ambiente de sofrimento e desgosto, marcado
por trabalhos forçados. Grande parte do livro de Ezequiel se refere a esse período. É desta
época que provém também os textos da criação e do dilúvio.

As múltiplas perdas externas trouxeram um ganho interno, na medida


em que o tempo do exílio tornou-se uma época extremamente fecunda
em termos literários: as Lamentações (como também SI 44; 74; 79;
89.38ss.; Is 63.7ss. e outras) deploravam a situação vigente no país. Ali
atuava a escola deuteronomística que concebeu a Obra Historiográfica
Deuteronomística como uma espécie de confissão de culpa. Além disso
também transmitiu e retrabalhou a tradição dos profetas, principalmente
a de Jeremias. Em contrapartida é mais provável que o Escrito Sacerdotal
tenha surgido no exílio, onde também atuaram os profetas Ezequiel e
Dêutero-Isaías (Is 40-55).132

APROFUNDAMENTO SOBRE O PERÍODO EXÍLICO133

PARA RESUMIR:

Nesta unidade você aprendeu que:

 Em 586 a. C. os babilônios marcharam sobre Jerusalém destruindo-a


diante dos olhos de todo o povo. Uma parte da população, isto é, a elite da
corte e os sacerdotes do templo, foram deportados.

 O exílio marcou decisivamente a história religiosa e literária do povo


judeu, que, mesmo sem as bases principais que sustentavam a sua
identidade (templo, rei e unidade territorial), se empenharam em
reconstruir essa identidade a partir de memórias e antigas tradições.
Entre o exilados estavam sacerdotes do templo, que levaram suas
tradições e documentos sagrados. Reunindo-os, produziram grande parte
da Bíblia hebraica.

132
SCHIMIDT, 2004, p. 33.
133
<http://airtonjo.com/site1/historia-16.htm>.

84 UNIDADE 4
ANEXO 1: UMA MENSAGEM DE ESPERANÇA
PARA OS EXILADOS
Extraído de: ROSSI, L. A. S. Como ler o livro de Ezequiel: O profeta da
Esperança. São Paulo: Paulus, 2006. p. 57-58.

Em Ezequiel 37 o profeta é convidado a andar por entre os ossos a fim de


confirmar que não há o menor indício de vida. Eram muitos os ossos e estavam
extremamente secos. O que representam os ossos? A visão é aplicada exclusivamente aos
exilados da Babilônia. O povo de Israel é comparado a cadáveres em sepulcros. Uma
situação que não permitiria vislumbrar nenhuma possibilidade de esperança: “[...] os
israelitas estavam dizendo: 'Nossos ossos estão secos e nossa esperança se foi. Para nós,
tudo acabou”.(V. 11b).

Então Javé me disse: “Criatura humana, será que esses ossos poderão
reviver?” Eu respondi: “Meu Senhor Javé, és tu que sabes”. Então ele me
disse: “Profetize, dizendo: Ossos secos, ouçam a palavra de Javé! Assim
diz o Senhor Javé a esses ossos: “Vou infundir um espírito, e vocês
reviverão. Vou cobrir vocês de nervos, vou fazer com que vocês criem
carne e se revistam de pele. Em seguida infundirei o meu espírito, e
vocês reviverão. Então vocês ficarão sabendo que eu sou Javé” (vv. 3-6).

A ação de Javé possui objetivos históricos e visíveis: o retorno do exílio! “O


espírito penetrou neles, e reviveram, colocando-se de pé. Era um exército imenso” (v.
10). A palavra profética e o espírito estão juntos nesse projeto de libertar e reconstruir o
povo de Deus. Dois momentos sobressaem: a palavra profética responde pela
organização/recomposição do povo e ao espírito cabe a função de revitalizar a mística do
povo. Dessa forma, a promessa de salvação pode se tornar uma realidade. O espírito é a
instância que cria a mediação via profecia. O profeta entende a ressurreição destes ossos
como uma nova criação. O grande ruído que se ouve dá início a uma nova possibilidade
de vida. A experiência da ressurreição assim descrita nos vv. 11-14 é trabalhada a partir
do verbo “fazer subir”, expressão emprestada de outros contextos bíblicos para
evidenciar a saída do Egito (cf. 1 Sm 12,6; Dt 26,8; Os 12,14). Afinal, o povo dos tempos
exílicos não passava de um vale cheio de ossos. Diante de um ambiente de extermínio,
morte e desfalecimento é proposto um projeto de descontinuidade, ou seja, a nova criação
não será simplesmente um melhoramento progressivo do que já existe, ao contrário, a
velha criação bem como o coração de pedra darão lugar a realidades completamente
novas: uma nova criação e coração de carne. Não é um projeto de continuidade, mas sim
de ruptura!

UNIDADE 4 85
86 UNIDADE 4
5 PERÍODO PÓS-EXÍLICO

5 PERÍODO PÓS-EXÍLICO

Roteiro de Aprendizagem

Nessa unidade abordaremos o retorno dos exilados a Jerusalém depois de


aproximadamente 70 anos de cativeiro na Babilônia, possibilitado pelo edito de Ciro em
538 a.C. Nasce o único Israel que confessa a singularidade de seu Deus YHWH no único
Templo de Jerusalém. As rédeas do poder são tomadas pelos sacerdotes do templo,
liderados por seu chefe, chamado "sumo sacerdote". Este grupo sacerdotal reconhece-se
em uma corrente teológica, que pretendia registrar na Escritura tudo o que é típico da fé
de Israel (sacerdócio, culto, lei), a fim de preservá-la como uma magna carta de
identidade religiosa. A corrente sacerdotal reconstrói a história bíblica tornando a
memória do passado o símbolo de sua própria identidade no presente134.

Até mesmo a fé de Israel no confronto cultural suscitado pelo exílio babilônico


atinge uma nova profundidade. O exílio é assim interpretado como a implementação da
palavra divina pronunciada pelos profetas; é a exibição da ação punitiva de Deus contra
seu povo, que não poderia viver na terra da promessa por não assumir os compromissos
da estreita aliança com YHWH, o Deus da libertação do Egito e doador da terra.

Por esta experiência negativa, o Israel de fé entende que nem a monarquia, nem
o sacerdócio, nem a profecia, nem qualquer outra instituição poderia garantir sua
salvação, mas apenas a fidelidade e a escuta da palavra do Deus da libertação e da aliança.
E como Deus permaneceu consistente com sua palavra de ameaça, muito mais teria sido
fiel em cumprir sua promessa de restauração para o futuro.

134
GIANANTONIO, B.; PRIMO, G, 2006, p. 112.

UNIDADE 5 87
5.1 JUDÁ E O GOVERNO PERSA – RETORNO DOS EXILADOS

Em 539 a.C. os persas de Ciro, o Grande, aliados com os medos, concentram suas
forças e apontam para o coração do império babilônico: Babilônia. A capital cai. A partir
deste momento os persas lideram a história do Oriente Próximo, com uma visão política
muito diferente da centralização babilônica.

Esse foi o fim do cativeiro babilônico, pois Ciro, o soberano, permitiu a volta dos
judeus a Jerusalém e o governo persa financiou a reconstrução do seu templo em 538 a.C.
Era um novo êxodo e Ciro tornou-se um Messias libertador.

Que digo de Ciro: É meu pastor, e cumprirá tudo o que me apraz,


dizendo também a Jerusalém: Tu serás edificada; e ao templo: Tu serás
fundado. (Is 44:28)

Ciro parece ser o modelo da generosidade oriental ao promover o retorno desses


povos, mantendo-os dentro dos limites do seu território. Sua estratégia é também uma
forma eficaz de domínio político, que possibilitará o alargamento do seu império,
expandindo suas fronteiras sem necessariamente o uso recorrente das armas, mas sim
contando com o apoio daqueles a quem favorecera. Os persas governavam um império,
onde cada pessoa poderia viver de acordo com sua própria tradição política e religiosa.

O império persa governou Judá durante alguns séculos, até Alexandre, o Grande,
conquistar a Palestina no ano de 332 a.C. Em comparação com os governos assírios e
babilônicos, os persas foram mais benévolos e tolerantes. Isso se percebe nos textos
críticos do século V. Eles não se dirigem contra os dominadores estrangeiros, mas sim
contra a classe dirigente dos próprios judeus.

Foi, porém, grande o clamor do povo e de suas mulheres, contra os


judeus, seus irmãos. [...] Também desde o dia em que me mandou que eu
fosse seu governador na terra de Judá, desde o ano vinte, até ao ano
trinta e dois do rei Artaxerxes, doze anos, nem eu nem meus irmãos
comemos o pão do governador. Mas os primeiros governadores, que
foram antes de mim, oprimiram o povo, e tomaram-lhe pão e vinho e,
além disso, quarenta ciclos de prata, como também os seus servos
dominavam sobre o povo; porém eu assim não fiz, por causa do temor de
Deus. (Ne 5, 1-15)

Fica claro pelo redator do livro de Neemias que os governadores anteriores


cobravam impostos arbitrários e injustos e não porque os persas os obrigavam a fazê-los,
mas por cobiça desses líderes irresponsáveis, que exploravam seus próprios irmãos. Não
há nenhuma profecia de censura do imperialismo persa nesses dois séculos (530-332 a.

88 UNIDADE 5
C)135. Por isso, mesmo com o apelo para retornar a Jerusalém, para muitos grupos de
judeus ainda era um bom negócio a permanência na Babilônia, pois a vida era mais fácil
ao longo dos canais mesopotâmicos. Já a região de Israel é acidentada, onde há colinas
difíceis, principalmente na Judéia. Aqueles que permaneceram na Babilônia
consolidaram uma comunidade economicamente forte, como se testemunhou muitos
séculos depois pelos Talmudes Palestino e Babilônico.

Ao longo de dois séculos, o regime persa era um império que governava uma
extensão considerável: a leste, até o Pundjab e a Bactriana (Turquestão); ao norte, até o
Cáucaso e a Trácia; a oeste, até Maratona e Salamina. Por toda essa área, os judeus
poderiam circular com relativa liberdade. Os livros de Ester, de Tobias e de Daniel
testificaram essa presença judaica nas regiões orientais do império. Essa é a diáspora que
se caracteriza pela expansão das comunidades judaicas. Ao mesmo tempo, elas não
perderão a sua referência religiosa central, Jerusalém.

Os reis persas não queriam estabelecer a unidade do seu império pela via da
coerção político-religiosa. Ciro se apresenta em Babilônia como “eleito de Marduk”; em
Ur, como “enviado de Sin” (o deus Lua); e enfim, aos judeus, como aquele que fez a
vontade de Yahweh136.

Assim diz o SENHOR ao seu ungido, a Ciro, a quem tomo pela mão
direita, para abater as nações diante de sua face, e descingir os lombos
dos reis, para abrir diante dele as portas, e as portas não se fecharão. (Is
45:1)

Nesse período de aproximadamente 70 anos, a terra de Judá não ficou vazia.


Cerca de 100 mil pessoas foram deportados para a Babilônia. Essas deportações
ocorrerem entre 598/7 e 587/6, entretanto entre exilados, mortos e fugitivos uma grande
parte da população ficou para trás e permaneceu na terra. Tratava-se sobretudo da
população rural, incapacitada de agir politicamente (2 Rs 24,14; 25,12)137. Ao nos
referirmos ao exílio na perspectiva de quem foi levado para a capital babilônica, devemos
entender que a maioria daqueles que voltaram para Jerusalém eram os descendentes
dessa elite de exilados.

135
SICRE, J. L. Profetismo em Israel: o profeta, os profetas, a mensagem. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 443.
136
CASELLES, 1993, p. 211.
137
DONNER, 2004, p. 433.

UNIDADE 5 89
5.2 A RECONSTRUÇÃO DO TEMPLO E DA CIDADE DE JERUSALÉM

Sesbasar foi designado para conduzir os utensílios do templo. A história bíblica


lhe faz referência suficiente para sabermos que conseguiu completar a primeira parte da
missão. As precárias condições de Jerusalém nessa época ofereceram grandes dificuldades
para o desenvolvimento da tarefa. Não se sabe o que ocorreu de fato com ele depois que a
obra cessou. A reconstrução do templo foi retomada por Zorobabel, um descendente de
Davi (Ed 3,2; 1 Cr 3,19), sob o governo de Dario I.

Nesse contexto está em vigor a ideia de que o messias prometido iria libertar
então o povo da pressão estrangeira. O grupo de Zorobabel foi designado para construir o
templo, mas só consegue edificar o altar. A nova política persa de Dario I é a criação das
chamadas províncias ou satrapias, que eram distritos organizados com finalidade
político-administrativa e econômica. Judá e Samaria encontram-se dentro de uma dessas
províncias, na qual há um governador que se reporta ao rei Dario. A primeira leva foi em
538 a.C.; a segunda foi liderada por Neemias (445 a.C.) e depois por Esdras (398 a.C.).
Nesse período se sucede a reconstrução dos muros de Jerusalém.

Toda essa história está descrita nos livros de Esdras e Neemias, onde é narrada a
luta desses exilados para se organizarem na terra que consideravam sua por promessa,
assim como o desejo de retomá-la daqueles que a haviam ocupado, sejam os camponeses
que ficaram na terra, os estrangeiros que residiam ali ou, sobretudo, as ameaças daqueles
que estavam ao redor e que não queriam que essa obra fosse à frente. Os profetas Naum e
Zacarias narram essa luta no ano 520 a.C.

Sabemos pelo texto bíblico que a reconstrução dos muros de Jerusalém esteve
sempre debaixo de tensão militar, pois os trabalhadores do muro estavam armados com
lanças. Havia também outro projeto em curso, que encontramos no livro do profeta
Ezequiel especificamente nos capítulos 40-44, onde parece se revelar que não só basta
reconstruir o templo, mas se faz necessário restabelecer o sacerdócio nos padrões
descritos na época de Salomão. Sabemos que naquela época não havia reis em Judá e o
sacerdote acumulava poderes mais do que religiosos. Em contrapartida a essa ambição
sacerdotal, havia também um projeto popular que é descrito no livro de Rute, tentando
provavelmente fazer frente ao projeto legalista de Esdras que obrigava os judeus a
expulsarem suas mulheres estrangeiras e seus filhos da terra. Há de se ressaltar aqui o
projeto de Neemias: a sua tentativa de, no capítulo 5, agregar os seus irmãos, resgatar
aquelas pessoas que foram vendidas como escravas, sobretudo aquelas que estavam nessa
condição por contraírem dívidas. Neemias então lhes restituiu os bens com seus próprios
recursos. Este movimento de restauração alcançou uma parcela do povo que estava
desapropriado da sua terra ou da sua identidade judaica.

90 UNIDADE 5
Em se tratando ainda de problemas relacionados à identidade judaica, não
podemos deixar de falar do chamado cisma samaritano. Os samaritanos eram o resultado
de uma mistura de povos que tinham sido transplantados para Samaria pelos assírios,
depois que estes os haviam conquistado no ano de 722 a.C., gerando um povo híbrido
tanto no aspecto étnico como no religioso. Esses samaritanos relacionavam-se com os
habitantes de Jerusalém, em alguns casos de modo violento, conflitos estes que irão
culminar numa ruptura radical que é atestada nas páginas do Novo Testamento.

A reputação dos samaritanos como gente odiada pelos judeus se dá pelo fato de
que eles se aliaram aos inimigos contra os judeus e também criaram a sua própria
escritura conhecida como Pentateuco Samaritano. Sobretudo, construíram um templo no
monte Gerizim, como estabelecimento de um local de adoração, violando assim as leis do
Deuteronômio. Esses foram os esforços por parte dos samaritanos para construírem a sua
própria identidade, consolidadas nesses três pilares fundantes: povo, templo e escritura
sagrada.

Na verdade, está claro que a comunidade restaurada e consolidada


estruturalmente por Neemias e estabilizada em termos religiosos por
Esdras nada tinha a ver com o mixtum samaritanum, assim como,
inversamente, a rigorosa exclusividade da comunidade jerosolimita
eliminava, por assim dizer, já de saída possíveis aproximações por parte
dos samaritanos. Portanto, é perfeitamente justificado tratar do cisma
samaritano neste capítulo, mesmo que ele se houvesse completado
apenas no período helenístico ou até só no início do período romano.
Para os samaritanos, o Pentateuco era a única Escritura Sagrada: eles o
levaram junto para o cisma, se assim se pode dizer, e o transmitiram
autonomamente.138

Portanto, o exílio e o pós-exílio, pela sua profícua diversidade, lançarão as bases


das instituições que conhecemos hoje como sinagoga, sinédrio, assim como a partir deles
surgirão vários grupos político-religiosos como os fariseus, saduceus, essênios, sicérios,
zelotes e herodianos.

APROFUNDAMENTO SOBRE O PERÍODO PÓS-EXÍLICO

138
DONNER, 2004, p. 493.

UNIDADE 5 91
PARA RESUMIR:

Nesta unidade você aprendeu que

 A conjuntura internacional favoreceu o retorno dos exilados a sua terra


natal, pois depois que a Pérsia conquistou a Babilônia instaurou um
governo mais tolerante, o que possibilitou a liberdade de culto nas suas
províncias.

 Com o retorno dos exilados, iniciou-se a reconstrução da cidade, do


templo e a reorganização da religião. Para esse empreendimento se
contou com pessoas importantes como Zorobabel, Esdras, Neemias e os
profetas Ageu e Zacarias.

 Dario I criou as chamadas satrapias, que funcionavam como unidades


territoriais político-administrativas. Em uma dessas satrapias se
encontravam Judá e Samaria, onde habitavam os samaritanos, um grupo
etnicamente misturado, um amálgama de povos que haviam sido
transplantados pelos assírios para Samaria a partir de 722 a.C. Os
samaritanos estabeleceram sucessivos conflitos com os judeus, que
culminaram numa ruptura radical entre esses dois grupos.

ANEXO 1: A OBRA HISTÓRICA CRONISTA


(OHC) VERSUS A OBRA HISTÓRICA
DEUTERONOMISTA (OHD)
Extraído de: OLIVA, A. S. Como ler o livro das Crônicas: quem conta um
conto aumenta um ponto. São Paulo: Paulus, 2003. p. 61-62.

Exercício importante de compreensão das Sagradas Escrituras é sempre procurar


ver como um livro ou conjunto de livros se relaciona com seu contexto histórico. Esse
exercício é fundamental quando se trata de analisar a obra do Cronista, uma vez que os
livros escritos por esse autor são sempre vistos com muito preconceito. A obra do
Cronista é vista como literatura de segunda mão, uma deturpação da verdadeira história
de Israel, que já fora narrada pelo Deuteronomista. As pessoas que atribuem menor valor

92 UNIDADE 5
ao Cronista por ser sua obra uma reinterpretação de fatos históricos já narrados, não
podem esquecer que o que pode fazer uma obra suspeita pode sê-lo também para a outra.
Todo escritor, mesmo os inspirados por Deus, são intérpretes também de seu tempo. Se
os tempos e as circunstâncias mudam, também as interpretações precisam mudar. Foi o
que aconteceu com o Cronista: ele apenas interpretava a história da forma como era
conveniente a seu tempo. As verdades do passado precisavam ser atualizadas em
conformidade com as circunstâncias em que o autor bíblico vivia. O Deuteronomista
preocupava-se em explicar as razões que teriam levado o povo de Deus ao exílio. Sua
conclusão é esta: a causa do exílio foi a infidelidade dos dirigentes para com Deus. A obra
do Deuteronomista tem a intenção de expor a ferida aberta no meio do povo de Israel a
partir das invasões babilônicas. Por que Deus teria permitido que uma catástrofe tão
grande atingisse o país? A resposta que o Deuteronomista encontrou foi que a
infidelidade às orientações que Deus deu originou a catástrofe. Para que o futuro pudesse
ser diferente, era preciso mudar a trajetória de desobediência. As preocupações do
Cronista eram bem diferentes porque seu tempo também o era. Se a época do
Deuteronomista foi marcada pelas invasões e destruições promovidas pelos babilônios, a
do Cronista é marcada pelo retorno da liderança a Judá e pela reconstrução da cidade
sagrada e do templo. O Cronista não se preocupa em explicar as invasões, nem em
denunciar a infidelidade. Ao falar da infidelidade dos líderes do passado, não quer
denunciar, mas legitimar a atitude de fidelidade que se deve devotar a Deus no presente.
Se o tom do Deuteronomista é mais de denúncia, o tom do Cronista é mais de proposta.
Ele quer animar a liderança a retornar à “Terra Prometida”, coordenar a reconstrução da
cidade sagrada e reorganizar o culto.

ANEXO 2: ESDRAS E NEEMIAS CONTRA


JONAS E RUTE
Extrato de: OLIVA, A. S. Como ler os livros de Esdras e Neemias. São
Paulo: Paulus, 2011. p. 52-54.

Para efeito de síntese e conclusão, vale a pena confrontar a visão em relação aos
estrangeiros nos livros de Esdras e Neemias e a visão que aparece em outros livros do
Antigo Testamento, como os de Jonas e Rute. É claro que esboçaremos apenas uma
comparação bastante superficial. O objetivo é contemplarmos as diferentes tradições no
Antigo Testamento, e com isso suas diversidades e divergências. Enquanto a tradição
retratada pelo Cronista é “fechada” e exclusivista, ou seja, defende a expulsão dos
estrangeiros e a dissolução dos casamentos mistos, vemos algo bastante diferente nos
livros de Jonas e Rute. Pode-se dizer que os livros de Jonas e Rute preservam tradições

UNIDADE 5 93
que concorrem com aquela dos livros de Esdras e Neemias, portanto tradições que
apontam tanto para uma abertura ao relacionamento com os estrangeiros, como para a
compreensão da universalidade do amor de Deus. sempre bom lembrar que os estudiosos
tendem a considerar os livros de Jonas e Rute como contemporâneos dos livros de Esdras
e Neemias. Tomemos o exemplo de Jonas. Quem é Jonas? O autor do livro de Jonas teria
procurado descrevê-lo como um judeu típico, de caráter exclusivista, que tem aversão a
estrangeiros, que não consegue admitir a universalidade do amor e do perdão divinos.
Jonas não deseja pregar aos ninivitas porque teme que o Senhor seja misericordioso com
eles. Depois de dura conversa de Deus com Jonas, o resultado é a realização (a
contragosto) da missão dada por Deus a ele. Mesmo assim, Jonas não se vê satisfeito, pois
não pode aceitar ter sido instrumento para mediar a graça de Deus a um povo
estrangeiro. Jonas deveria estar alegre por ter sido “usado” por Deus para abençoar um
povo estrangeiro com sua graça, mas, em vez disso, fica deprimido e resmunga como um
velho rabugento. Jonas não é um herói, apesar de muitos assim pensarem. Quais fatos do
comportamento de Jonas parecem dignos de imitação? Ele desobedece a Deus, realiza a
sua missão a contragosto, tem sucesso (do ponto de vista divino, é claro, e não do seu
ponto de vistal) na missão, mas está magoado justamente por isso. Jonas é muito mais um
“anti-herói”. É exemplo a não ser seguido. É homem que se incomoda muito mais com
uma planta do que com a vida de milhares de pessoas. Por quê? Porque Jonas é um judeu
egoísta, que não aceita que o amor de Deus atinja outras pessoas. O autor do livro de
Jonas claramente assume posicionamento hostil em relação a sua personagem principal,
demonstrando que nem todos os judeus da época persa concordavam com o exclusivismo
dos livros de Esdras e Neemias. Vemos no livro de Rute a mesma visão teológica do livro
de Jonas. Entre as várias personagens que entram em cena, quem recebe maior destaque é
Rute. Esta, sim, verdadeira heroína! Heroína, mas não é judia. É estrangeira! Estranho,
não? Estrangeira que tem atitudes surpreendentemente positivas (surpreendentes para a
visão exclusivista de alguns judeus, é claro). Poderia ter ficado na comodidade de sua
própria terra, mas opta pelo que lhe é mais difícil, por amor, por fidelidade. O autor do
livro de Rute assume também posicionamento de simpatia para com os estrangeiros,
pondo-se ao lado da tradição esboçada no livro de Jonas, portanto, contrária ao
exclusivismo dos livros de Esdras e Neemias. Mesmo precisando problematizar algumas
coisas, sobretudo no final do livro de Neemias, é preciso ressaltar que a obra como um
todo deixa mensagem muito importante e muito positiva, além de relevante, para os dias
de hoje. Tentamos apreender o que há de mais importante nos livros de Esdras e
Neemias através da frase “A fé em Deus vem antes da política”. Esse é o lema que
perpassa os livros de Esdras e Neemias e esse deve ser o lema a atravessar as nossas vidas
no continente latino-americano, cheio de injustiças e dissabores. Devemos nos convencer
de que somente uma sociedade que vê a fé em Deus como ponto de partida pode
construir vida política relevante para os excluídos. Ou Deus passa a ser o motor de nossas

94 UNIDADE 5
atitudes, ou não teremos, de outra forma, atitudes motivadas pela solidariedade para com
os excluídos. A política desvestida da fé em Deus já provou ser revestida de egoísmo e,
consequentemente, promotora de exclusão social. É claro que a fé em Deus de que
falamos precisa ser a fé operante, como a que Neemias demonstrou ter quando recebeu as
queixas dos excluídos da sociedade de sua época. Esperemos que esse lema possa ressoar
em nossa mente muito mais que o problemático final de Neemias.

APLICAÇÃO
DE CONCEITOS

Assista ao vídeo sobre “História de Israel”139

No ocidente da Pérsia, na estrada que descia para Babilônia, estava Behistum,


onde se encontra um relevo e inscrições que Dario I havia feito sobre um penhasco. Os
textos cuneiformes estão em persa, elamita e acádico. Como chave de tradução, a
inscrição de Behistum está para a escrita cuneiforme assim como a Pedra Roseta está para
o hieróglifo. Em 1835, Sir Henry C. Rawlinson decifrou a inscrição de Behistun na
região ocidental da Pérsia. Discorra, baseado nessa importante descoberta, sobre a
contribuição da arqueologia como ferramenta na exegese bíblica.

139
<https://www.youtube.com/watch?v=xdwJNtK9G50>

UNIDADE 5 95
96 UNIDADE 5
6 ERA DO HELENISMO

6 ERA DO HELENISMO

Roteiro de Aprendizagem

Esta unidade introduz o período helenístico inaugurado por Alexandre, o


Grande, filho de Filipe II, rei da Macedônia, que assumiu o trono depois do assassinato
de seu pai, reinando de 336-323 a.C. Seu tutor, Aristóteles, educou-o nas artes e na
ciência, sobretudo na literatura épica, entre as quais se destaca a Ilíada, de Homero, que
provavelmente o influenciou nas suas campanhas militares e o fizeram notável por todo o
mundo. Depois de interromper dois séculos de hegemonia persa (539-333 a.C),
Alexandre Magno inaugurou seu poder com a vitória de Isso (333 a.C.)140.

Figura 25 – Alexandre Magno141

140
SCHMIDTT, 2004, p. 34.
141
Figura tirada do livro: CAROL G. Thomas, Alexander the Great in His World. Oxford: Blackwell
Publishing, 2007. p. 73. Cabeça de marfim da Felipe II pai de Alexandre o Grande. Foi encontrada na
câmara principal da sua tumba real.

UNIDADE 6 97
A conquista do Oriente Próximo por Alexandre Magno deu início ao processo de
helenização do Oriente e de todo o mundo antigo em torno do Mar Mediterrâneo.
Alexandre foi um político estrategista, que intencionava estabelecer um grande império
unificando Oriente e Ocidente. Esse plano nunca se concretizou, mas suas conquistas
estenderam o seu império por todo o Oriente. Após sua morte em 323, seu reino foi
disputado entre os seus quatro generais. A Palestina foi submetida por um século ao
domínio do reino egípcio dos ptolomeus (301-198), para depois ser integrada ao reino dos
selêucidas (198-64 a.C). Isso incluía jerusalém. Os judeus toleraram num certo momento
as intervenções dos selêucidas, até se deflagrar uma resistência conhecida como a
“revolta dos macabeus”, desencadeada por causa dos abusos de Antíoco Epifânio IV. Esse
é o período no qual o judaísmo palestinense ficou sob o domínio helenístico, depois
romano, também influenciado pela cultura helenística, que proporcionou pela sua língua
a propagação da mensagem e religião cristã142.

6.1 A MORTE DE ALEXANDRE E O PROCESSO DE HELENIZAÇÃO DE ISRAEL

Alexandre III, rei dos macedônios mais conhecido como Alexandre, o Grande, é
descrito pelo autor do Primeiro Livro dos Macabeus. Esta breve informação histórica
corresponde àquelas fornecidas pela historiografia grega e latina. O resto, que remonta a
120 a.C., é considerado o documentário mais antigo que nos informa sobre a morte de
Alexandre, o Grande, originário da terra de ‫( כִּתִּים‬kiṯ tîm, “gregos”), que era o nome com
o qual as regiões costeiras do Mediterrâneo ocidental eram chamadas. O texto abaixo
analisa de forma religiosa a morte de Alexandre, descrevendo-a como punição divina143.

Depois de ter derrotado Dario, rei dos persas e dos medos, Alexandre ,
filho de Filipe, macedônio oriundo da terra dos ketiim, tornou -se rei no
seu lugar, primeiramente na Hélade. Empreendeu numerosas guerras,
conquistou muitas cidades fortificadas e fez perecer os reis da região.
Avançou até as extremidades do mundo e tomou os despojos de
inúmeras nações. Calou-se a terra diante dele. Exaltou-se o seu coração e
inchou-se de orgulho; reuniu um exército sobremaneira poderoso e
subjugou províncias, nações e dinastas, que tiveram de lhe pagar
tributos. Caiu doente, porém , e viu que estava à morte. Convocou os
seus oficiais nobres, os que com ele haviam sido educados desde a sua
juventude, dividiu entre eles o seu reino antes de morrer. Estava
Alexandre no duodécimo ano do seu reinado quando morreu. Os seus
oficiais nobres assumiram o poder, cada qual no seu feudo. Todos

142
DONNER, 2004, p. 487.
143
GIANANTONIO, B.; PRIMO, G, 2006, p. 115.

98 UNIDADE 6
cingiram o diadema após a sua morte, e depois deles os seus filhos,
durante longos anos. E multiplicaram os males por sobre a terra. (1 Mc
1, 1-9)

O período classificado de helenismo não significa uma forma de imposição da


cultura helênica (grega) sobre as culturas orientais na perspectiva de substituí-las,
apagando assim a sua identidade original. Na verdade, a proposta grega seria fundir as
duas culturas, isto é, misturar a sua cultura com a do povo local. Esse foi um projeto
cultural expansionista de grande alcance e domínio, no qual os gregos espalhavam entre
os povos seus costumes, instituições e, sobretudo, a sua língua, que lentamente tornou-se
a língua corrente por todas as províncias do império.

Figura 26 - Tetradracma com o rosto de Alexandre o Grande (IV século a.C.144

Após a morte de Alexandre (323) na Babilônia, houve a luta para se estabelecer


quem tomaria posse do grande império deixado por ele. Então travaram-se as lutas pelo
controle do corredor siro-palestinense. Os adversários eram Ptolomeu I Soter, Selêuco I
Nicator e Antígono Monoftalmo. Até a batalha de Ipsos, na Frígia (301), entre Antígono
e uma coalizão dos outros diádocos sob o comando do general Lisímaco, o domínio sobre
a Palestina mudou várias vezes, até a consolidação dos dois grandes reinos diádocos 145: o
reino ptolomaico no Egito, cujo centro era a recém fundada Alexandria, e o reino
selêucida siro-mesopotâmico, com a sua sede estabelecida em Antioquia. Nessa divisão

144
DAHMEN, Karsten. The legend of Alexander the Great on Greek and Roman coins . Londres and New
York: Routledge, 2007. p. 114.
145
DONNER, 2004, p. 500.

UNIDADE 6 99
provisória do império de Alexandre, a Palestina e a costa fenícia ficaram, num primeiro
momento, para os ptolomeus (301-200/198).

Nesse estudo nos interessa particularmente a dinastia dos Ptolomeus (301-198


a.C.) no Egito e a dinastia dos Selêucidas ao norte, na Síria, por causa da sua relação
próxima com os judeus. As conquistas de Alexandre e a dominação ptolomaica não
promoveram grandes e imediatos impactos em Jerusalém. Essa conjuntura política
provocou porém uma divisão entre os judeus de Judá e de Jerusalém, pois uma parte da
população desejava aderir ao processo de helenização, enquanto a outra, fieis às
proposições mais conservadoras de Neemias e Esdras, opunha-se-lhe por todos os
meios146.

Ptolomeus e Selêucidas disputaram o controle do corredor siro-palestino. Foram


cinco guerras que ocorreram ao longo de todo o século III a.C., até os Ptolomeus
assegurarem o controle da Ásia Menor: 1ª Guerra Síria (274-271), entre Ptolomeu II
Filadelfo (285-246) e Antíoco I Soter (281-261); 2ª Guerra Síria (260-253), sob o selêucida
Antíoco II Theos (261-246); 3ª Guerra Síria (246-241), entre Ptolomeu III Euergetes
(246-221) e Selêuco II Kallinikos (246-226); 4ª Guerra Síria (221-217), entre Ptolomeu IV
Filopator (221-204) e Antíoco III, o Grande (223-187). Os impactos dessas guerras
geraram efeitos permanentes na região. Um dos resultados foi possivelmente o
surgimento de um partido pró-selêucida em Jerusalém, posto que na 5ª Guerra Síria
(201-200/198), Antíoco III derrotou de modo implacável e arrasador o seu oponente
ptolomaico General Scopas, na batalha de Panion (200 ou 198 a.C.). A partir de então,
"Síria e Fenícia" tornaram-se províncias selêucidas. O domínio dos selêucidas durou de
200/198 até 135 a.C.

Os ptolomeus e os selêucidas se estabeleceram e dominaram a Palestina, sempre


com certa colaboração dos dominados que tinham interesse de colher benefícios nessa
parceria. Entre esses figuravam os Tobíadas, uma família de colaboradores que apoiavam
a ocupação ptolomaica, que dentro da terra eram facilitadores desse governo estrangeiro.
Entre esses colaboradores, destacou-se um homem chamado José, filho de Tobias, que foi
nomeado coletor de tributos, um líder proeminente do povo encarregado então de cobrar
os impostos dos seus irmãos em benefício de uma nação estrangeira. Tal atitude
despertou obviamente ódio e desprezo por parte dos judeus. Encontramos paralelos dessa
função em Zaqueu, o publicano. Embora o contexto e os dominadores fossem outros, as
atitudes de traição eram as mesmas.

146
SELLIN, Ernst; FOHRER, Georg. Introdução ao Antigo Testamento. 3. ed. Tradução de D. Mateus
Rocha. São Paulo: Paulinas, 1978. p. 676.

100 UNIDADE 6
José, filho de Tobias, tornou-se o chefe do partido ptolomaico em
Jerusalém; por causa de sua lealdade, até exerceu, entre mais ou menos
240 e 218, o cargo de supremo coletor de impostos de toda a província da
Coelesíria. Nessa função ele se aproveitou rigorosamente da força
econômica da Judeia para si e para os seus, agudizando as contradições
sociais no campo; ocorre que os amigos dos ptolomeus eram os ricos.
Quando, depois da 4ª Guerra Síria, eram ineludíveis a perda de poder e
ocaso do reino ptolomaico, ocorreu uma cisão dentro da família dos
tobíadas: José bandeou-se para o lado selêucida [...]147

Inicialmente, a linhagem selêucida obteve resultados favoráveis em seu governo,


pois mantinha uma carga mais leve de impostos e diminuiu as taxas alfandegárias,
investindo no culto do templo, que, para a noção judaica, era fundamental no ponto de
vista religioso. Uma das estratégias mais eficazes foi a nomeação de alguns proeminentes
judeus daquela época para serem os seus parceiros no domínio do povo. Eles traziam
também com maior intensidade nesse período a pólis como projeto de domínio, aquele
modelo de cidade grega implantado mesclando a cultura helênica da pólis com a cultura
local.

Nisso tudo, os selêucidas favoreciam a helenização das cidades: ou


instalando comunidades greco-helenísticas especiais com direitos
políticos dentro dos municípios (assim em Jerusalém, Aco/Ptolemaida,
Hipo, Citópolis, Gaza, etc.) ou, então, através da helenização de cidades
que anteriormente quase não haviam sido tocadas pela cultura e pelos
costumes helenísticos. Neste último caso, não raro as localidades
recebiam novos nomes, ocasionalmente vários em seguida: Dã/Antioquia
(Tèll el-Qadi), várias cidades com o nome de Selêucia Transjordânia,
Gadara/Antioquia/Selêucia (Umm Qes), etc. É óbvio que, na esteira da
progressiva urbanização, a língua grega ganhava cada vez mais terreno.
Também a cultura material, o traçado da cidade, a construção de templos
e prédios públicos correspondem àquilo que se pode encontrar em todo o
âmbito do Mar Mediterrâneo. Não é muito fácil dizer que efeitos a
helenização teve sobre a comunidade cúltica jerosolimita e, em geral,
sobre o judaísmo palestinense. Todavia devem ter sido consideráveis,
sobretudo, naturalmente, sobre os círculos abastados e cultos.

Algumas instituições importantes foram estabelecidas em território judeu para


facilitar a dominação estrangeira. Entre elas está o conselho dos anciãos ( gerousia)148.
Para a cultura judaica isso é muito importante, pois futuramente se tornará o Sinédrio,
uma organização cuja finalidade era ajudar o poder estrangeiro na administração da
província. Os ginásios eram também fundamentais para a introdução e formação dos
jovens na cultura grega, além de prepará-los para o exército. No ginásio, esses jovens

147
DONNER, 2004, p. 503.
148
DONNER, 2004, p. 503.

UNIDADE 6 101
aprendiam os costumes e a língua grega, especificamente o grego popular, comum
(coinê), falado em todo o domínio do império.

Destacamos nesse período: a Septuaginta, que foi o resultado da tradução do


Antigo Testamento hebraico para a língua grega. Esse fato ocorreu na cidade de
Alexandria, no período de Ptolomeu Filadélfo. Essa versão é também conhecida pela
sigla LXX (Tradução dos Setenta). Mais tarde, esse idioma será apropriado pelos
primeiros cristãos na escrita e difusão do Novo Testamento.

Os edomitas viram grande oportunidade de se aliar a Alexandre, o Grande, para


banir os nabateus dos seus territórios. Depois, João Hircano, o macabeu, judaizou os
edomitas. Antípater, o Idumeu, por apoiar militarmente os romanos, foi nomeado
procurador geral da Judeia, cargo herdado por seu filho, Herodes, que recebeu o título de
‘o Grande’, pelas grandes obras arquitetônicas que estão até hoje preservadas em Israel.149

O contato com a cultura e a filosofia gregas amplia os horizontes do


pensamento judaico, que é assim forçado a enfrentar o desafio de uma civilização que
agora impõe a toda a bacia do Mediterrâneo sua cultura. Israel, no entanto, não perde sua
identidade. Ao ampliar a revelação de Deus, os judeus conseguem garantir a validade de
sua fé e fidelidade ao Deus da Aliança150.

6.2 A REVOLTA DOS MACABEUS – A RESISTÊNCIA CONTRA A


HELENIZAÇÃO

Os dois livros dos Macabeus contêm duas histórias diferentes das guerras da
independência, guiadas por Judas Macabeu contra Antíoco IV nos anos no século II a.C.,
e apoiado por um bom número de sacerdotes em Jerusalém. O episódio se inicia quando
em 167 a.C.. Antíoco IV Epífanes resolve sacrificar um animal impuro no templo e isso
se torna o estopim que detonou aquilo que conhecemos como a ‘revolta dos Macabeus’ e
a vitória e conquista dos territórios que estavam sob o governo de Antíoco.

149
TOGNINI, E. Geografia da Terra Santa e das terras bíblicas. São Paulo: Hagnos, 2009. p. 42-43.
150
GIANANTONIO, B.; PRIMO, G, 2006, p. 117.

102 UNIDADE 6
Figura 27 - Cabeça de mármore de Antíoco IV Epífanes151

Após terem se sujeitado por muitos séculos a mestres estrangeiros, os


judeus se revoltaram. A sublevação explodiu contra Antíoco Epífano
que, querendo unificar seu império helenizando-o, recusou aos judeus o
direito que lhes linha sido reconhecido de viver segundo sua própria lei.
A guerra de independência dos Macabeus foi pois uma guerra religiosa
[...]152

A dinastia asmoneia assumirá o poder durante 100 anos e Judas Macabeu e seu
irmão Jonathan irão reinar sucessivamente em Israel, expandindo e retomando
territórios, estabelecendo o culto no templo, nomeando sacerdotes para o seu oficio
religioso. Seus herdeiros, Aristóbulo I, Alexandre Janeu, Salomé Alexandra, irão
dominar até 67 a.C. E com Salomé Alexandra nos encontramos num período em que os
romanos, que têm grande interesse nesta região, vão entrar na Palestina e pôr fim à
dinastia asmoneia. Pompeu é o general romano que em 67 a.C. invade Jerusalém e a
Judeia, passando-a ao domínio romano.

APROFUNDAMENTO
SOBRE O PERÍODO PÓS-EXÍLICO: OS SELÊUCIDAS153
SOBRE A REVOLTA DOS MACABEUS154

151
FANT, C; REDDISH, M. Lost Treasures of the Bible: Understanding the Bible Through
Archaeological Artifacts in World Museums. Grand Rapids, Michigan/Cambridge: William Eerdmans
Publishing Company, 2008. p. 294.
152
VAUX, 2003, p. 289.
153
<http://airtonjo.com/site1/historia-24.htm>.
154
<http://airtonjo.com/site1/historia-26.htm>.

UNIDADE 6 103
PARA RESUMIR:

Nesta unidade você aprendeu que:

 O helenismo na verdade não era a imposição da cultura helênica (grega),


mas sim a mistura da cultura grega com a do povo local. O propósito era
espalhar entre os povos seus costumes e instituições. O grande exemplo
disso é a disseminação da língua grega por todas as províncias do
império.

 Após a morte de Alexandre (323) na Babilônia, travaram-se então as lutas


pelo controle do corredor siro-palestinense para ver quem assumiria o
império deixado por ele. O domínio sobre a Palestina mudou várias vezes,
até a consolidação dos dois grandes reinos: o ptolomaico, no Egito, e o
reino selêucida, com a sua sede estabelecida em Antioquia da Síria.

 Cinco guerras ocorreram ao longo do século III a.C. O controle do


corredor siro-palestino foi decidido na 5ª Guerra Síria (201-200/198),
quando Antíoco III derrotou o seu oponente ptolomaico.

 Embora a linhagem selêucida tenha conseguido inicialmente bons


resultados no governo sobre os judeus, a resistência foi inevitável, pois
em 167 a. C. Antíoco IV Epífanes resolve oferecer um animal impuro
sobre o altar do templo, desencadeando aquilo que conhecemos como a
revolta dos Macabeus, guiada por Judas Macabe que conduziu a vitória e
a independência de Judá do governo de Antíoco.

104 UNIDADE 6
ANEXO 1: TRIUNFO E HELENIZAÇÃO DO
ESTADO JUDAICO
Extraído de: GOTTWALD, 1988, p. 311.

Quando Jônatas foi traidoramente assassinado em 142, seu irmão Simão


interveio na liderança e, no espaço de três anos, Judá obteve soberania virtualmente
completa sobre uma região que era mais de duas vezes tão grande como no início da
revolta. A detestada Acra em Jerusalém foi conquistada. Conferiram-se a Simão plenos
direitos hereditários aos mais altos cargos sacerdotais, militares e civis por uma
assembléia mais ou menos representativa da elite judaica, uma ação corajosa a que os
enfraquecidos selêucidas concordaram anuir. Iniciara-se a dinastia asmoneia, assim
chamada com referência a Asmon, antepassado de Matatias da família dos Macabeus. Os
governantes asmoneus sucessivos, João Hircano (135-104), Aristóbulo I (104-103) e
Alexandre Janeu (103-76), apesar de reveses momentâneos, ampliaram as conquistas
judaicas por toda a Palestina e a Transjordânia, em guerra incessante contra as cidades
gregas até que, sob Alexandre Janeu, o reino asmoneu se avizinhava da extensão do
império davídico (sem o Negueb do sul e a Síria). Os expansivos asmoneus astutamente
mantiveram ligações de tratados com Roma a fim de conservar refreados os selêucidas.
Eles levaram a cabo uma vigorosa política de conversão à força de povos conquistados à
religião judaica, e foi deste modo que a Idumeia ("Edom" latinizado) e a Galileia se
tornaram judaizadas. Em 128 a.C, Hircano arrasou a cidade de Samaria e destruiu o
templo samaritano sobre o monte Garizim, suprimindo o culto judaico "heterodoxo"
praticado ali longo tempo em aberta oposição à devoção judaica da maioria a Jerusalém.
De acordo com o conflito rancoroso e crescente entre judeus Samaritanos e judaítas
desde os tempos exílicos, os Samaritanos haviam oferecido resistência, recentemente,
tanto aos selêucidas como aos asmoneus. Ao acertar antigas contas, Hircano ratificava
um rompimento irreconciliável entre as duas comunidades. Cada vez mais, a
administração do estado judaico se desenvolvia ao longo de linhas políticas e militares
helenísticas. João Hircano deu a seus filhos nomes gregos, e iniciou a prática de alugar
mercenários gregos para aumentar sua força militar e garantir uma base de poder
independente de apoio doméstico. Dele se afirma que até saqueou o túmulo de Davi para
pagar os mercenários. O fervor nacionalista dos últimos reis asmoneus foi manifestado
abertamente através da noção helenística da honra e das sortes pessoais do intrépido
guerreiro-rei, muitíssimo no modelo de Alexandre Magno, o homônimo de Janeu. Sob
João Hircano, irrompeu um conflito interno entre o regime governante e judaítas
piedosos, sucessores dos assideus que haviam apoiado os Macabeus desde que isso fosse
questão de liberdade religiosa. Estes assideus assumiam as características dos fariseus

UNIDADE 6 105
posteriores, se bem que não possamos ter certeza de que levassem esse nome até agora.
Estes adversários dos últimos asmoneus sentiam-se inquietados por governantes judaicos
que tão abertamente desempenhavam o papel de príncipes helenísticos. Em primeiro
lugar, suas conquistas haviam extraído nova riqueza para uma minoria de judaitas
empreendedores com privilégio régio; estes proveitos, contudo, não se estendiam à massa
do povo cujas condições de vida só pioravam. Alguns fariseus exigiram que Hircano
renunciasse ao sumo sacerdócio, sem dúvida com o propósito de recusar-lhe acesso à
economia lucrativa do templo como também ao apoio simbólico do culto judaico. Ao
rejeitar esta impudência, Hircano se opunha a eles, aproximando-se mais de um grupo a
quem Josefo identifica como Saduceus, os quais, neste tempo, se compunham
provavelmente, em grande parte, da nobreza recentemente enriquecida, gerada pelas
conquistas asmoneias. Durante o reinado de Alexandre Janeu, o conflito irrompeu em
guerra civil que colocava a maioria da população, junto com os fariseus, em luta contra o
rei e seus partidários sacerdotais e leigos. A situação política interna de Judá mudara
drasticamente em algumas décadas. Judas, o primeiro Macabeu, havia conduzido a
maioria de judeus contra um grupo pequeno, mas poderoso, de judeus helenizantes e
seus financiadores selêucidas. Numa reviravolta, Alexandre Janeu, um sucessor dos
Macabeus, conduzia agora um grupo pequeno, mas poderoso, de partidários régios numa
batalha desesperada contra uma maioria de camponeses que o viam como encarnação da
corrupção e da opressão helenísticas. Os judeus anti-asmoneus apelaram para exército
selêucida a fim de que os ajudasse a derrotar o monarca judaico em 88. Foi um
movimento irônico, em que um exército selêucida, ajudado por tropas judaicas, venceu o
exército do rei judaico equipado no seu âmago com mercenários gentios. Embora os
fariseus e a maioria popular tivessem a vitória ao seu alcance, a perspectiva de um rei
selêucida assumindo uma segunda vez o controle de Jerusalém incitou algumas pessoas
— colocando o nacionalismo na frente de interesses de classes — a transferirem a sua
fidelidade de volta a Alexandre Janeu. Restituído ao poder, o rei tomou vingança,
crucificando 800 dos rebeldes fariseus e trucidando suas esposas e filhos. Um resultado
desta brecha traumática na sociedade judaíta foi que 8.000 rebeldes fugiram dos centros
populacionais, alguns deles juntando-se à seita de Qumrã, cuja qualidade de membro
original foi quadruplicada pela inclusão de outros 150 adeptos mais ou menos. O
governante seguinte asmoneu, a rainha Salomé Alexandra, procurou a paz com os
fariseus e de fato concedeu-lhes poder de maioria nos assuntos domésticos, até o ponto
que eles começaram a tomar vingança contra aqueles que haviam incitado Alexandre
Janeu na sua chacina dos rebeldes. O filho dela, Aristóbulo II, apoderou-se do poder e
combateu incessantemente contra seu irmão mais fraco Hircano, que era ajudado pelo
chefe idumeu Antípater, pai de Herodes. Em 63, os contendores rivais pela coroa
asmoneia recorreram pedindo apoio a Pompeu, o legado romano que havia chegado a
Damasco. Representantes do povo judaico, sem dúvida incluindo fariseus, pediram a

106 UNIDADE 6
Pompeu que recusasse reconhecimento a qualquer dos dois requerentes desacreditados.
Pompeu queria adiar uma decisão até ele se ter ocupado com os árabes nabateus;
Aristóbulo, porém, insistiu em fazer pressão militarmente na sua reivindicação, em
consequência do que Pompeu tomou Jerusalém, deportou Aristóbulo para Roma e
nomeou Hircano II como sumo sacerdote (mas não como rei), honrando assim o pedido
da delegação judaica popular e, antecipando os interesses de Roma, colocando a Judeia
sob administração imperial. A Judeia foi desapossada da maioria dos territórios gregos
conquistados, deixando apenas a Galileia e uma parte da Transjordânia. Roma chegara a
ficar na Palestina, apesar de alguns espasmos finais de poder asmoneu. Fugindo de
Roma, Aristóbulo tentou uma reabilitação na Judeia durante 56-55, mas malogrou. Deu-
se uma breve restauração final asmoneia em 40-37, quando os partos invadiram a Siro-
Palestina e empossaram Antígono como seu governante títere em Judá. Logo que os
partos foram expulsos da área, Herodes retomou sua posição como rei subordinado de
Judá sob autorização de Roma.

APLICAÇÃO
DE CONCEITOS

Assista ao vídeo sobre “História de Israel”155

Por que se faz importante para o estudioso da Bíblia conhecer o livro dos
Macabeus?

155
<https://www.youtube.com/watch?v=sfN3eOp2-po>

UNIDADE 6 107
108 UNIDADE 6
REFERÊNCIAS

ALBERTZ, Rainer; SCHMITT Rüdiger. Family and Household Religion in Ancient


Israel and the Levant. Winona Lake Indiana: Eisenbrauns, 2012.

ALBERTZ, Rainer. Historia de la religión de Israel en tiempos del Antiguo Testamento.


Madrid: Trotta, 1999. 2 v.

BECKING, Bob; DIJKSTRA, Meindert; KORPEL, Marjo C. A.; VRIEZEN, Karel J.


H. (Ed.).Only one God? Monotheism in Ancient Israel and the Veneration of Goddess
Asherah. London: Sheffield Academic Press, 2001.

BRIEND, J. Israel e Judá: Textos do Antigo Oriente Médio. São Paulo: Paulinas, 1985.

CAZELLES, Henri. História política de Israel desde as origens até Alexandre Magno.
São Paulo: Edições Paulinas, 1983.

CLINE, Eric H e GRAHAM, Mark W. Impérios antigos: da Mesopotâmia à origem do


Islã. São Paulo: Madras, 2012.

DAVIDSON, Richard. Flame of Yahweh: sexuality in the Old Testament. Peabody:


Hendrickson Publishers, 2007.

DEVER, Willian G., and S. Gitin, (Eds.). Symbiosis, Symbolism, and the Power of the
Past: Canaan, Ancient Israel, and their Neighbors from the Late Bronze Age through
Roman Palestine. Winona Lake, Ind.: Eisenbrauns, 2003.

DONNER, H. História de Israel e dos Povos Vizinhos. 4. ed. São Leopoldo: Sinodal,
2004. v. 1 e 2.

FAUST, Avraham . The Archaeology of Israelite Society in Iron Age II. Winona Lake,
Winona Lake, Indiana. Eisenbrauns. 2012.

REFERÊNCIAS 109
FINKELSTEIN, I.; MAZAR, A. The Quest for the Historical Israel: Debating
Archaeology and the History of Early Israel. Atlanta: Society of Biblical Literature,
2007.

GASS, Ildo Bohn. Formação do Povo de Israel: Uma introdução à Bíblia. São Leopoldo:
Cebi, 2011.

GERSTENBERGER, E. Deus no Antigo Testamento. São Paulo: Aste, 1981.

GIANANTONIO, B.; PRIMO, G. ll mondo della bibbia. lmmagini e parole. Milano:


Paoline Editoriale Libri, 2006.

GOLDEN, Jonathan M. Ancient Canaan and Israel. Califórnia: ABC-CLIO, 2004

GOTTWALD, K. N. Introdução socioliterária à Bíblia hebraica. São Paulo: Paulinas,


1988.

GRAYSON, A. K. Assyrian Rulers of the Early First Millennium BC I (1114– 859 BC).
Royal Inscriptions of Mesopotamia. Toronto: University of Toronto, 1991.

GUNNEWEG, A. H. J. História de Israel: dos primórdios até Bar Kochba e de Theodor


Herzl até os nossos dias. São Paulo: Teológica/Loyola, 2005.

HÀGGLUND, B. História da Teologia. São Paulo: Concórdia Editora, 1986.

KELLE, Brad E. Ancient Israel at War 853-586 B.C. Oxford, Osprey Publishing, 2007

LIVERANI, M. Para além da Bíblia: história antiga de Israel. São Paulo: Paulus;
Loyola, 2008.

NOVACEK, G.V. Ancient Israel: Highlights from the Collections of the Oriental
Institute, University of Chicago. The Oriental Institute Museum, Chicago, 2011.

OTTO, E. A Lei de Moisés. São Paulo: Loyola, 2011.

PIXLEY, Jorge. A história de Israel a partir dos pobres. 2 a ed. Petrópolis: Vozes, 1990.

PRITCHARD, James. Pritchard (Ed). Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old
Testament. Princeton: Princeton University Press, 1969.

REIMER, H. A construção do Uno. Pistis Praxis , Curitiba, v. 4, p. 177-195, 2012.

RENDTORFF, R. A formação do Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1979.

RÖMER, Thomas. The Invention of God. Cambridge: Harvard University Press, 2015.

110 REFERÊNCIAS
SCHMIDT, W. H. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 2004.

SCHNIEDEWIND, W. M. How the Bible Became a Book: The Textualization of


Ancient Israel. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.

SCHREINER, Josef. Palavra e Mensagem do Antigo Testamento. São Paulo: Teológica,


2004.

SELLIN, Ernst; FOHRER, Georg. Introdução ao Antigo Testamento. 3. ed. Tradução


de D. Mateus Rocha. São Paulo: Paulinas, 1978.

SICRE, J. L. Introducion al Antiguo Testamento. Estella: Verbo Divino, 2012.

SILVA, A. J. da. A voz necessária: encontro com os profetas do século VIII a.C. São
Paulo: Paulus, 1998.

THIEL, Winfried. A sociedade de Israel na época pré-estatal. São Leopoldo: Sinodal,


São Paulo: Paulinas, 1993.

TOGNINI, E. Geografia da Terra Santa e das terras bíblicas. São Paulo: Hagnos, 2009.

TOORN, Karel van der; BECKING, Bob; HORST, Pieter W. van der. Dictionary of
deities and demons in the Bible. 2nd extensively rev. ed. Leiden: Brill, 1999.

VAUX, Roland De. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Editora
Teológica, 2003.

WESTBROOK, R. A History of Ancient Near Eastern Law. Leiden: Brill, 2003. v. I.

REFERÊNCIAS 111
Títulos em Aldine721BT 14pt
Corpo do texto Aldine721BT 12pt
Publicação eletrônica em PDF
Publicação impressa e comercializada por PerSe, Inc
PerSe.com.br

Você também pode gostar