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Guia de Estudo
Introdução
Quase metade da Bíblia é escrita em narrativa. Para entender a Bíblia de forma mais completa,
é importante aprender a ler o estilo em que foi escrita. Na nossa série Como Ler a Bíblia, temos
quatro vídeos que focam especificamente na leitura de narrativa bíblica. Analisamos quatro
aspectos diferentes da narrativa – enredo, personagem, cenário e padrões de enredo. Essas notas
de estudo vão ajudar você a se aprofundar nas ideias introduzidas em três dos nossos vídeos:
Enredo na Narrativa Bíblica, Personagem na Narrativa Bíblica e Cenário na Narrativa Bíblica.
Conteúdo
Lendo Narrativa Bíblica 2
Enredo 3
Personagem 5
Cenário 8
Lendo Narrativa Bíblica
Narrativas Bíblicas compõem quase metade da Bíblia. Em sua forma mais básica,
narrativas têm personagens em um cenário passando por uma série de eventos, e seu
objetivo principal é comunicar uma mensagem teológica por meio da história.
Quando nós lemos narrativas bíblicas, não estamos assistindo a imagens de uma câmera de segurança desses
eventos do passado. Estamos lendo uma representação artístico-literária da história de Israel. O objetivo não é
apenas nos contar sobre algo que aconteceu, mas também nos ajudar a discernir o significado desses eventos.
Vamos explorar o que queremos dizer por representação artístico-literária utilizando um exemplo
da história da arte. Dê uma olhada nessa ilustração de um cachimbo pintada por Rene Magritte em
1929. É chamada de “A Traição das Imagens” e ela inclui as palavras “Isso não é um cachimbo”.
Em uma entrevista a respeito de sua pintura, Magritte disse: “O famoso cachimbo. Como as pessoas
me repreenderam por causa dele! Mas será que você poderia abastecer o meu cachimbo? Não,
ele é apenas uma representação, não é? Então se eu tivesse escrito na minha pintura ‘Isso é um
cachimbo’, eu estaria mentindo!” – Harry Torcyzner, Magritte: The True Art of Painting, 85.
Magritte estava reagindo a um retorno do “realismo inocente” no mundo da arte, a ideia de que pinturas
devem representar a realidade como ela é de verdade. Assim como a pintura de Magritte não é literalmente
um cachimbo, da mesma forma narrativas bíblicas não são literalmente os eventos que elas representam.
Rene Magritte utilizou ferramentas e técnicas artísticas como diferentes tamanhos de pincéis, várias
cores de tintas, sombreado e proporções para representar um cachimbo em sua pintura. Os autores
bíblicos também utilizaram ferramentas básicas para comunicar o significado dos eventos narrativos. Os
autores apresentaram textos narrativos usando as ferramentas de enredo, personagem e cenário.
O Nível um é a história geral da Bíblia. O Nível dois é composto dos múltiplos movimentos da
história geral. Por exemplo, a história da Bíblia toda pode ser dividida em 4 movimentos.
1. Da Criação à Babilônia
2. A história da aliança com Israel > Exílio e Retorno
a. A família de Abraão e a aliança
b. O Êxodo e o deserto
c. A Aliança no Monte Sinai
d. A entrada na terra prometida
e. O fracasso na terra leva ao exílio
f. O retorno do exílio e as esperanças não realizadas.
3. Jesus e o Reino
a. A missão do Reino na Galiléia
b. A entronização de Jesus em Jerusalém
O Nível três inclui as centenas de narrativas individuais que compõem cada um desses grandes
movimentos. As narrativas individuais incluem histórias como Noé e a arca, Jacó e Esaú, José e
sua túnica de muitas cores, o forte Sansão, Jesus e o homem cego, ou Paulo na prisão.
Veja a história de Gideão usando um pedaço de lã para discernir a vontade de Deus. “Quero saber se vais libertar
Israel por meu intermédio, como prometeste. Vê, colocarei uma porção de lã na eira. Se o orvalho molhar apenas a lã
e todo o chão estiver seco, saberei que tu libertarás Israel por meu intermédio, como prometeste.” (Juízes 6:36-37).
Por si só, o enredo desta cena (Gideão precisa discernir a vontade de Deus > ele pede a Deus por um sinal >
Deus providencia o sinal) poderia significar que ele está sendo promovido como um exemplo a ser seguido
por nós. No entanto, no contexto maior de Juízes 6-8, esta cena destaca a desconfiança de Gideão em
Deus, apesar de Deus já ter providenciado um sinal anterior por meio da aparição de um anjo e de fogo
no altar. Essa história é sobre Gideão “testando Deus” (Juízes 6:39), o que nunca é uma boa ideia.
O ponto aqui é que a mesma história sobre Gideão e o pedaço de lã comunica o significado oposto
dependendo do nosso conhecimento dos enredos maiores. Contexto é importante.
O significado narrativo também pode ser encontrado por meio da sequência do enredo, ou do uso de
conflito, clímax e resolução para comunicar uma mensagem. Os mesmos personagens, no mesmo
conflito, mas com resoluções diferentes do clímax, podem ter uma mensagem diferente.
Uma maneira de resolver a história: Joãozinho aprende a roubar os biscoitos à noite para evitar
confusão. A mensagem dessa versão da história é ser engenhoso, adaptar-se para resolver problemas,
e se esconder se for preciso. A história poderia também se resolver com Joãozinho aprendendo
domínio próprio com sua mãe e honrando a vontade dela. A mensagem agora é que autocontrole é
uma grande virtude, e que honrar figuras de autoridade é o caminho para progredir na vida.
Histórias e enredos são os agentes cruciais que conferem significado aos eventos. A
maneira como os fatos são descritos, o ponto no qual a tensão ou o clímax ocorre, a
seleção e arranjo das partes – tudo isso indica o significado que os eventos devem
possuir e, portanto, o que o autor deseja comunicar ao contá-los para o leitor.
Comédias são histórias de ascensão. O protagonista precisa escalar e vencer desafios para ser
transformado. Comédias levam-nos a pensar sobre o que é valioso no mundo, pelo que vale a pena lutar,
e que tipo de pessoa vence. Nós queremos ser como o protagonista da comédia. A narrativa bíblica
de José (Gen. 37-50) é um bom exemplo de uma estrutura cômica. José é abusado por seus irmãos e
vendido como escravo. No entanto, por causa da sua integridade, ele se ergue da escravidão para um
lugar de influência no Egito, onde poderá mais tarde salvar seus irmãos, apesar de não merecerem.
Tragédias são histórias de declínio. O protagonista começa bem, mas, devido a falhas de caráter
ou más escolhas, ele se autodestrói. Nós queremos evitar ser como o protagonista em uma tragédia.
Tragédias fazem-nos pensar sobre o que vai nos arruinar, o que vale a pena evitar, e que tipo de
pessoa sai perdendo. A história de Saul cabe dentro desse gênero (1 Sam. 8-31). Saul é alto, bonito
e determinado, mas ele também é orgulhoso e pensa que sabe mais do que os outros. Ele é incapaz
de reconhecer seus próprios erros e não aceita críticas. Eventualmente, sua vida desmorona.
Personagem
Os autores bíblicos usam personagens como veículos para sua mensagem, e fazem isso
mostrando mais do que contando. Ou seja, os personagens bíblicos não são pessoas que
devemos tentar imitar. Na verdade, elas frequentemente representam como não devemos agir!
Mas os autores bíblicos as utilizam para comunicar a moral e ética de uma vida piedosa.
Muito da visão de mundo de um autor e dos valores que ele deseja comunicar
são incorporados e expressados na narrativa por meio dos personagens.
Eles não somente servem como porta-voz do narrador, mas também
revelam os valores éticos e as normas morais dentro da narrativa por meio
do que é ou não relatado sobre eles, de seus traços de personalidade
que são enfatizados ou não. As decisões que eles são chamados a fazer
quando confrontados com escolhas morais e os resultados dessas decisões
fornecem evidência indiscutível da dimensão ética da narrativa.
Caracterização direta é extremamente rara na Bíblia. Adele Berlin (Poetics and Interpretation
of Biblical Narrative) utiliza a ilustração de dois tipos de pinturas. Ela compara realismo
(narrativa moderna ocidental) com impressionismo ou pontilhismo (narrativa bíblica).
Esaú é peludo, e na história esta descrição mostra que ele é do "ar livre”, primitivo, e se comporta como um
animal. Eli é velho e cego, e isso nos diz que ele é tanto literalmente como relacionalmente cego, porque
ele ignora a rebelião dos seus filhos. Saul é alto e Davi é baixo, e esse detalhe fala do contraste do caráter
deles. Saul impõe-se de cima, enquanto Davi humildemente permite que Deus o exalte de baixo.
[Na arte impressionista,] A sugestão de uma coisa pode ser mais convincente
do que um retrato detalhado. Isso acontece devido à tendência dos nossos
cérebros em projetar significado nas imagens de modo a completar nossas
expectativas. Nós vemos o que esperamos ver, e a informação ao redor orienta
a nossa percepção. É por isso que nós preenchemos uma figura parcialmente
desenhada para que atenda nossas expectativas e, em alguns casos, o excesso
de informações pode destruir a imagem. O desafio, do ponto de vista do artista,
é saber quantos detalhes incluir e quantos omitir. Isso é um bom corretivo para
aqueles que desejam que as histórias bíblicas forneçam detalhes mais concretos,
mas esta é exatamente sua técnica narrativa. As lacunas deixadas em todas
as histórias bíblicas são intencionais, de modo que, com algumas pinceladas
hábeis, o autor bíblico envolve a imaginação do leitor para construir uma imagem
que é mais “real” do que se ele tivesse preenchido o retrato de Davi, Abraão ou
José com mais detalhes. A representação mínima pode dar ilusão máxima..
Por exemplo, Saul significa “o que foi pedido”. Abrão/Abraão significa “pai exaltado/pai de uma
multidão”. Israel significa “luta com Deus”. Adão significa “humanidade”. Elias significa “Yahweh é meu
Deus.” O nome do primeiro marido de Rute, Malom ou Quiliom, significa “doente" ou "acabado”.
No artigo “Personagem nos limites da Narrativa Bíblica”, J.M. McCracken diz, “Os narradores bíblicos preferem
mostrar o caráter das pessoas em vez de nos contar uma avaliação dos seus traços. Personagens são algo
que os autores bíblicos tendem a falar com em vez de falar sobre.” Em lugar de moralizar as decisões de um
personagem, os narradores bíblicos simplesmente mostram a você as decisões e as consequências dessas
decisões daquele personagem, permitindo que você reflita sobre sua significância. Por exemplo, Moisés
mata um egípcio. Por quê? Justiça? Um problema de raiva? O seu comportamento foi bom ou ruim?
Discurso
Geralmente a narrativa pausa e um personagem-chave oferece um longo discurso (Josué 24; Samuel em 1 Samuel
8 ou 12; Salomão em 1 Reis 8) ou canta uma canção (Jacó, Gênesis 49; Moisés, Êxodo 15; Ana, 1 Samuel 2).
Algumas vezes, o discurso revela o caráter. Veja Abraão por exemplo, falando aos seus servos
em Gênesis 22. “O rapaz e eu vamos à montanha e nós vamos adorar e nós vamos voltar.”
Estaria Abraão cheio de fé, ou ele estaria vendendo um discurso para evitar suspeitas?
Uma vez que você entende que o estilo anti-didático da Bíblia é uma política narrativa, você
adquire entendimento sobre o papel da sutileza estética dessas histórias. Elas quase sempre
evitam extensos comentários ou explicações, quanto mais uma homilética [= sermão, moralização].
Esses autores intencionalmente deixam lacunas para o leitor se questionar – descontinuidades,
indeterminações, non-sequiturs, motivos inexplicados – e eles estão completamente cientes do
efeito desorientador que isso tem nos leitores quando eles tentam tirar lições do passado. Os
narradores bíblicos escondem o significado das suas histórias de forma raramente igualada por
alguma outra literatura na história. Esse estilo não foi herdado pelas culturas vizinhas de Israel,
mas foi inventado e elaborado na tradição israelita de narrativa de forma claramente intencional.
Caráter: Deus quer o bem para as pessoas e quer compartilhar a criação com elas (Gên. 1-2).
Deus traz justiça à maldade humana, e ele também perdoa e restaura.
Propósito: O propósito de Deus é resgatar sua criação do mal para que ela
possa ser compartilhada em amor por toda eternidade.
O primeiro papel é o de Deus presente/intervencionista. Gênesis 1-11 descreve Deus como um personagem
presente, que anda e fala diretamente com as pessoas. Ele também aparece e intervém nas histórias
no deserto. Por exemplo, o anjo do SENHOR vem a Hagar, a escrava grávida de Abraão, no deserto (Gn.
16:7-16). Moisés encontra Deus na sarça ardente e Deus o chama para tirar os israelitas do Egito (Êx. 3-4,
24-31) Em Números, Deus está presente com o povo como uma coluna de nuvem no acampamento
israelita, e fala diretamente com Moisés enquanto ele lidera o povo pelo deserto até a terra prometida
(Núm. 11-21). O profeta Elias encontra-se com Deus e conversa com Ele no deserto (1 Reis 19:9-21).
Cenário
A ação de cada história acontece em algum lugar, e esse lugar é chamado de cenário. Os
autores bíblicos usam o cenário como uma ferramenta nas narrativas para evocar memórias
e emoções, e para gerar expectativas sobre o que pode acontecer na história. Lugares físicos
servem como cenários, mas o tempo também pode servir como um tipo de cenário.
Lugar
À medida que a história bíblica se desenvolve, lugares e situações começam a assumir uma significância
simbólica baseada no que acontece lá. Pense em cenários comuns nos filmes modernos de Faroeste
e como cada localização tem um gênero associado a ela, como os filmes de ação que acontecem em
Nova Iorque, de romance, em Paris, ou faroestes ambientados em cidades-fantasma poerentas.
Na Bíblia, “o leste” representa a espiral humana de pecado e egoísmo desde a saída do jardim do Éden
até a ida para a Babilônia. Adão e Eva foram banidos “para o leste” em Gênesis 3. O filho de Adão, Caim,
é banido “para o Leste” em Gênesis 4, e pessoas vão “para o leste” para construir a cidade da Babilônia
em Gênesis 11:1-2. Por fim, a Babilônia torna-se uma superpotência na história que volta para conquistar
a família de Abraão, e os israelitas são exilados para o leste, na Babilônia (2 Crôn. 36:15-20).
Outros lugares significativos na história da Bíblia incluem o Egito, Moabe, o deserto, Belém, e Jerusalém.
Esses cenários ficam cada vez mais carregados de significado à medida que a história bíblica se desenvolve
ao longo do tempo.
O número 40 é um período de tempo significativo na narrativa bíblica, que representa um período de espera e
teste. Noé passou 40 dias e noites na arca, Moisés passou 40 dias no topo do Monte Sinai, e os israelitas vagaram
no deserto por 40 anos (Núm. 14:34) como punição por se rebelarem após os espias israelitas investigarem a terra
prometida por 40 dias (Núm. 13). E, porque nós nos familiarizamos com essa ideia de 40 dias como um tempo
de paciência e teste, quando Jesus é testado no deserto por 40 dias e vence, ele inverte nossas expectativas.