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Resumo
Neste artigo, apresento as principais questões sobre o texto de Thomas Morus levadas em conta
durante minha tradução da Utopia realizada para a Editora Vozes em 2016. Partindo principalmente
de uma abordagem dos traços mais característicos da obra, discorro sobre algumas das soluções
encontradas, especialmente no que diz respeito ao registro coloquial do texto e de sua natureza de
relato e diálogo reportado.
Palavras-chave
Utopia, Thomas Morus, tradução, poética, ritmo
Leandro Dorval Cardoso é Bacharel em Letras – Português e Latim pela Universidade Federal do
Paraná (2009) e Mestre em Letras – Estudos Literários pela mesma instituição (2012). Atualmente,
é doutorando em Estudos Literários pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) de Araraquara,
SP, onde desenvolve um projeto de tradução poética do poema épico Thebais, de Públio Papínio
Estácio. Já publicou a tradução, feita diretamente do latim, da Utopia, de Thomas Morus, pela
Editora Vozes (2016), e sua tradução poética do Anfitrião, de Tito Mácio Plauto, encontra-se no
prelo. Já atuou como Professor Substituto de Língua e Literatura Latina na Universidade Federal do
Paraná (2013-2014) e como Professor Bolsista-Didático na Universidade Estadual Paulista
(UNESP) de Araraquara, SP (2015-2016).
Abstract
In this paper, I present the main questions about the Thomas Morus' text taken into account during
my translation of Utopia, made to Editora Vozes in 2016. Starting from an approach of the most
characteristic features of the work, I discuss some of the solutions found, especially in what
concerns the colloquial register of the text and its nature of dialogue and reporting.
Key-words
Utopia, Thomas More, translation, poetic, rhythm
Leandro Dorval Cardoso have a BA in Portuguese and Latin Literature from the Federal University
of Paraná (2009) and a Master's degree in Literature from the same institution (2012). He is
currently a PhD candidate in Literary Studies at State University of São Paulo (UNESP) in
Araraquara, SP, where he develops a poetic translation project for the epic poem Thebais, by
Publius Papinius Statius. He has published the translation, made directly from Latin, of the Thomas
More's Utopia (Editora Vozes, 2016) and his poetic translation of the Titus Macius Plautus'
Amphitruo is in the press. He has already acted as Substitute Professor of Language and Latin
Literature at the Federal University of Paraná (2013-2014) and as a Bolsista-Didático Professor at
the State University of São Paulo (UNESP) in Araraquara, SP (2015-2016).
1
Para uma análise detalhada dessas traduções, cf. Ribeiro, 2016a e 2016b.
2
Seguimos, nesse projeto, a edição de Cambridge (Morus, 1995), feita por George M. Logan, Robert M.
Adams e Clarence H. Miller.
Esse “modo de significar”, por sua vez, apresenta vínculos profundos com a
ideia de ritmo já mencionada; partindo, porém, de reflexões apresentadas por Émile
Benveniste, a concepção de ritmo empregada por Meschonnic tem diferenças
fundamentais em comparação com os usos mais comuns do termo. Em seu Problemas
de linguística geral (1976[1966], p. 361-370), Benveniste recupera um sentido bastante
específico de “ritmo” especialmente a partir de Demócrito. Segundo ele, é com
Demócrito que o termo ῥυθμός (rhythmós – de “fluir, correr”) é alçado a termo técnico:
para o grego, as coisas se diferenciavam pela forma que seus elementos constituintes
assumiam, tal como a água se diferenciaria do ar por causa da forma pela qual seus
átomos se arranjam. Nessa concepção, então, o termo se refere “[à] forma distintiva,
[a]o arranjo característico das partes de um todo” (1976[1966], p. 364). Não se refere,
pois, a uma forma fixa e estável, definitiva, mas à forma que algo móvel assume no
momento da sua fixação: “pode-se compreender então que ῥυθμός […] tenha sido o
termo mais próprio para descrever “disposições” ou “configurações” sem fixidez nem
necessidade natural, resultantes de um arranjo sempre sujeito à mudança” (1976[1966],
p. 368). Sendo assim, quando Meschonnic fala do ritmo “como a organização e a
própria operação do sentido no discurso” (2010[1999], p. 43), ele tem em mente uma
ordenação específica de diferentes elementos que, juntos, realizam o sentido de um
discurso. Em outras palavras, pode-se dizer que o autor entende a configuração de
modos de significar em um discurso como o seu ritmo: “o ritmo […] é então a unidade
de equivalência numa poética da tradução” (2010[1999], p. lxiii).
Com isso, tanto a tradução como o texto a ser traduzido podem ser entendidos
a partir do mesmo princípio: ambos são discursos, os quais se distinguem dos demais
por um arranjo específico de seus modos de significar – por seu ritmo, portanto. Uma
vez que, como alega Meschonnic, o ritmo é a unidade da tradução, a qual, por seu turno,
é um discurso que possibilita a experiência de um ritmo outro ao mesmo tempo em que
a demonstra para o leitor, uma leitura crítica do texto dito original – a “vivissecção
implacável” de que fala Haroldo de Campos (1992[1963], p. 43) – torna-se fundamental
para a sua execução. Contudo, seria no mínimo imprudente querer proceder, aqui, à
exposição do ritmo da Utopia como um todo, uma vez que o objetivo principal deste
artigo não é esse. Para nossa sorte, nas últimas décadas alguns exercícios críticos
importantes vêm sendo feitos nesse sentido, dentre os quais destacam-se os trabalhos de
Elizabeth McCutcheon (1971; 1983; 2011), de Clarence Miller (2011), de Edward Surtz
(1965; 1967) e, em língua portuguesa, os de Ana Cláudia Romano Ribeiro (2012; 2015;
2016a; 2016b), que se dedica especialmente à análise dos jogos sonoros espalhados por
Morus em seu texto e de traduções brasileiras da Utopia – um estudo, por sinal, único
em nosso país. De um modo bem mais modesto, procederei à demonstração de um dos
traços que mais salta aos olhos quando da leitura do texto de Morus: a forma pela qual a
organização sintática de suas orações e períodos se relaciona com o tipo de texto
escolhido para a obra, o diálogo. Para isso, serão especialmente importantes os
apontamentos feitos por Edward Surtz em seu “Aspects of More‟s latin style in Utopia”
(1967).
3
As citações do texto latino são feitas a partir da edição de Logan, Adams e Miller (Morus, 1995), no
formato página/linha.
em uma construção que envolve uma oração principal, que diz sobre a viagem, e uma
subordinada, que revela os seus motivos, Morus empresta certa fluidez ao relato do
personagem, o que acentua ainda mais a coloquialidade que caracteriza seu texto. Esta,
por sua vez, está completamente diluída na tradução de Luís de Andrade, em que o
discurso do narrador inicia-se mais como uma narrativa propriamente dita, ou seja, pela
simples informação dos fatos, do que pelo encadeamento fluido de cada uma das
informações encontradas no texto em latim:
Minha tradução foi pensada como um texto a ser publicado em uma coleção de
bolso, com o menor número possível de notas, em um texto monolíngue e sem textos
outros que servissem de aparato crítico ao leitor. Uma edição assim pensada acaba
pressupondo, como base, um leitor que pode nunca ter travado contato com esse texto,
nem mesmo por ter ouvido falar, desconhecendo inclusive a sua história e a sua origem.
Isso, contudo, embora imponha algumas exigências especialmente quanto à clareza do
texto apresentado, não foi motivo para uma planificação do texto; ao contrário, porém,
trouxe a necessidade de que, como primeira tradução direta do latim para o português
dessa obra, o meu texto não deixasse de levar em conta, o máximo possível, o ritmo
específico da obra de Morus; por outro lado, a tradução deveria ser acessível a um leitor
para o qual o fato de tratar-se de uma tradução feita a partir de um texto escrito, em
latim, no início do séc. XVI sequer fosse uma questão. A partir disso, então, no trecho
citado, minha solução foi destacar as três informações básicas apresentadas em latim
como quatro períodos sintáticos complexos em português, desdobrando o passo
laudatório do texto de Morus em dois períodos, e manter a mesma relação entre as
orações4:
4
Os trechos traduzidos são citados a partir da minha tradução (Morus, 2016).
tornassem “manejáveis”, sua edição, assim como grande parte das outras, optou por
quebrar o virtuosismo de Morus em diversos períodos mais curtos distribuídos em
parágrafos diferentes – o que boa parte das traduções também fez, como as de Robert
M. Adams (publicada em 1975 na edição crítica da Norton e republicada, com revisões,
na edição de Cambridge de 1995), de Luís de Andrade (1937) e de Anah de Melo
Franco (1980). Assim também o fez Ralph Robinson em sua tradução, ao menos
conforme a apresenta a edição de J. H. Lupton (1895); a edição do texto latino que
acompanha esta tradução, porém, que é baseada no texto da Utopia de 1518, mantém os
traços originais do texto latino, o que torna possível o trato com o texto conforme
imaginado por Morus. E uma vez que, como alerta Surtz (1967, p. 94), ambos esses
trechos imitam a atmosfera tensa dos conselhos dos reis aos quais se refere Hitlodeus,
possuindo, então, importância para a construção de sentidos dentro da obra, é primordial
que uma tradução busque não apagar esse traço. Por esse motivo, em minha tradução, a
partir do trabalho com a edição base (Morus, 1995) e com a edição de Oxford
apresentada junto com a tradução de Ralph Robinson (Morus, 1895), esforcei-me por
manter ambas as construções de acordo com a forma imaginada por Morus, ou seja,
cada uma delas como um período sintático. Lançando mão de diferentes recursos de
pontuação que não indicam fim de período sintático, então, foi possível recriar, em
português, a atmosfera tensa e envolvente do texto latino. Segue um trecho para a
apreciação:
Algumas outras formas de expressão utilizadas por Morus em seu texto podem
ser aqui destacadas. Dentre elas, é interessante notar o emprego de metáforas médicas
por Hitlodeus, como a repetição do verbo latino “medeor” (“tratar, remediar, medicar”)
apontada por Surtz (1967, p. 99) em, por exemplo, “certe nisi his malis medemini”
(66/12 – “por certo, se não tiverdes remédios para esses males”, p. 28), em “uitiis
mederi” (96/13 – “remediar … os vícios”, p. 50), “aliorum furori mederi” (96/23-4 –
“remediar a insânia dos outros” p. 50) e “alienae stultiae … mederi” (100/14-5 –
“remediar a estupidez alheia”, p. 53). Se Hitlodeus busca destacar o estado moribundo
de outras repúblicas em comparação com a saúde em que se encontra aquela dos
utopienses, as metáforas médicas desempenham papel relevante nesse intuito,
integrando, então, o ritmo do texto de Morus. Assim também ocorre com o uso da
lítotes, analisado por Elizabeth McCutcheon (1992). De acordo com a autora, dentre as
várias lítotes utilizadas por Morus, uma delas tem valor especial, uma vez que aparece
já no início do texto: “non exigui momenti negotia” (p. 40/8 – “problemas de não pouca
importância”, p. 9). Para McCutcheon, qualificando as questões surgidas entre Henrique
VIII e Carlos de Castela como “de não pouca importância”, Morus parece adiantar, na
primeira linha de seu texto, um assunto que se fará presente em toda a Utopia,
especialmente nas críticas feitas por Rafael Hitlodeus e nos exemplos escolhidos pelo
personagem durante suas falas: em se tratando de questões de estado, quais problemas
podem ser ditos insignificantes, ou quais seriam os de profunda importância? De acordo
com a autora, “este primeiro 'não' prefigura os processos de negação e de oposição que
tanto tipificam a Utopia” (1992, p. 227); sendo assim, pode-se dizer, então, que, tal e
qual o trecho em que se encontra, que já diz muito sobre o tom coloquial e de relato que
ocupará todo o texto (confira análise supra), a primeira lítotes empregada por Morus,
além de adiantar uma figura retórica bastante empregada pelo autor, também representa
umas das questões centrais da obra, que frequentemente põe em discussão diferentes
questões de estado.
Muito ainda poderia ser dito e exemplificado sobre o texto de Morus. Com o já
exposto, porém, acredito ter sido possível observar a importância que alguns traços da
Utopia têm quando abordados a partir da obra como um todo – ou, como podemos dizer
com Meschonnic, a partir do discurso e de seu ritmo. Não há tradução definitiva de um
texto, nem mesmo uma que seja correta de todo, ou completamente incorreta. O que há
são projetos diferentes, que tanto pretendem objetivos diversos como se constroem a
partir de fundamentações nem sempre concordantes. O que aqui expus deu conta de
alguns dos traços levados em consideração durante a tradução da opus magnum de
Thomas Morus, um texto fundamental na história ocidental. Muito embora longe de crer
na perfeição do resultado final, penso que o projeto proposto pela Editora Vozes e os
aspectos do texto que busquei recriar em meu exercício são importantes para a primeira
tradução direta da Utopia publicada no Brasil exatos 500 anos após a sua primeira
edição. Como alega André Lefevere em seu Tradução, reescrita e manipulação da fama
literária (2007[1992], p. 24), os processos de reescritura de textos, como a tradução,
manipulam e são eficientes; da manipulação do texto de Morus, fica aqui o breve
esboço de seus principais pontos; da sua eficiência, cabe aos leitores o veredito.
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