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Traduzindo a Utopia, de Thomas Morus: ritmo e poética

Leandro Dorval Cardoso


Universidade Estadual Paulista (UNESP-Ar)

Resumo
Neste artigo, apresento as principais questões sobre o texto de Thomas Morus levadas em conta
durante minha tradução da Utopia realizada para a Editora Vozes em 2016. Partindo principalmente
de uma abordagem dos traços mais característicos da obra, discorro sobre algumas das soluções
encontradas, especialmente no que diz respeito ao registro coloquial do texto e de sua natureza de
relato e diálogo reportado.

Palavras-chave
Utopia, Thomas Morus, tradução, poética, ritmo

Leandro Dorval Cardoso é Bacharel em Letras – Português e Latim pela Universidade Federal do
Paraná (2009) e Mestre em Letras – Estudos Literários pela mesma instituição (2012). Atualmente,
é doutorando em Estudos Literários pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) de Araraquara,
SP, onde desenvolve um projeto de tradução poética do poema épico Thebais, de Públio Papínio
Estácio. Já publicou a tradução, feita diretamente do latim, da Utopia, de Thomas Morus, pela
Editora Vozes (2016), e sua tradução poética do Anfitrião, de Tito Mácio Plauto, encontra-se no
prelo. Já atuou como Professor Substituto de Língua e Literatura Latina na Universidade Federal do
Paraná (2013-2014) e como Professor Bolsista-Didático na Universidade Estadual Paulista
(UNESP) de Araraquara, SP (2015-2016).

MORUS – Utopia e Renascimento, v.11, n. 2, 2016


Translating the Thomas Morus' Utopia: rhythm and poetics
Leandro Dorval Cardoso
State University of São Paulo (UNESP-Ar)

Abstract
In this paper, I present the main questions about the Thomas Morus' text taken into account during
my translation of Utopia, made to Editora Vozes in 2016. Starting from an approach of the most
characteristic features of the work, I discuss some of the solutions found, especially in what
concerns the colloquial register of the text and its nature of dialogue and reporting.

Key-words
Utopia, Thomas More, translation, poetic, rhythm

Leandro Dorval Cardoso have a BA in Portuguese and Latin Literature from the Federal University
of Paraná (2009) and a Master's degree in Literature from the same institution (2012). He is
currently a PhD candidate in Literary Studies at State University of São Paulo (UNESP) in
Araraquara, SP, where he develops a poetic translation project for the epic poem Thebais, by
Publius Papinius Statius. He has published the translation, made directly from Latin, of the Thomas
More's Utopia (Editora Vozes, 2016) and his poetic translation of the Titus Macius Plautus'
Amphitruo is in the press. He has already acted as Substitute Professor of Language and Latin
Literature at the Federal University of Paraná (2013-2014) and as a Bolsista-Didático Professor at
the State University of São Paulo (UNESP) in Araraquara, SP (2015-2016).

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016


Traduzindo a Utopia, de Thomas Mous: ritmo e poética

BULÉFORO: Partirei da Inglaterra quando te


houver apresentado Thomas More.
NOSÓPONO: […] o estilo oratório que alcançou
se inclina mais à estrutura isocrática e à sutileza
dialética do que àquela fluente correnteza do
estilo ciceroniano, ainda que não seja inferior a
Marco Túlio em elegância. E uma vez que,
quando jovem, dedicou-se por muito tempo a
escrever poesia, reconhecerás o poeta também
em sua prosa (ROTERDÃ, 2013[1528], p. 174-
5).

Eu não considero mais o ritmo uma alternância


formal do mesmo e do diferente, dos tempos
fortes e dos tempos fracos […] entendo o ritmo
como a organização e a própria operação do
sentido no discurso (MESCHONNIC,
2010[1999], p. 43).

Nascido em Londres (1478), Thomas Morus, julgado a mando de Henrique


VIII e condenado à morte em 1535 por divergências político-religiosas com o rei da
Inglaterra, foi um dos mais célebres humanistas do Renascimento. Educado para o
trabalho com as leis, é autor de uma série de obras das quais a mais famosa é, sem
dúvidas, a Utopia. Concebida durante uma viagem realizada para Flandres a mando de
Henrique VIII em 1515, a De optimo statu reipublicae deque noua insula Utopia (a
Utopia com seu nome e sobrenome) foi publicada pela primeira vez em 1516, em
Lovaina, na Bélgica, e contou com outras duas edições das quais Thomas Morus
participou: 1517, em Paris, e 1518, na Basileia. Sua primeira tradução conhecida é já de
1551, feita para o inglês por Ralph Robinson. Desde então, é inegável a relevância e o
destaque da obra na história da literatura ocidental, mas também naquela da filosofia e
das ciências políticas – pelo menos. Sua primeira tradução publicada no Brasil foi feita
por Luiz de Andrade (1937); a esta, seguiram-se as traduções de Anah de Melo Franco
(1980), Jefferson Camargo e Marcelo Cipolla (1993) e a de Paulo Nevez, 2000. 1 Em
2016, por meio de um projeto apresentado pela Editora Vozes de uma nova tradução da
Utopia a ser publicada na coleção Vozes de Bolso, tive a felicidade de dedicar-me àquela
que, até onde foi possível apurar, é a primeira tradução da obra de Morus feita
diretamente do latim para o português2. Por conta disso, o que se segue neste artigo é
uma explicitação do projeto de tradução desenvolvido e levado a cabo durante o
exercício tradutório então realizado.

1
Para uma análise detalhada dessas traduções, cf. Ribeiro, 2016a e 2016b.
2
Seguimos, nesse projeto, a edição de Cambridge (Morus, 1995), feita por George M. Logan, Robert M.
Adams e Clarence H. Miller.

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Leandro Dorval Cardoso

Contudo, um projeto de tradução, ao contrário do que o nome possa dar a


parecer, não se constitui de uma série de procedimentos (a serem) adotados durante o
traduzir. Mas configura-se, antes, a partir de reflexões tanto sobre a atividade realizada,
como sobre o texto que se deve traduzir; pode-se dizer, então, que não tem relação
apenas com parâmetros e noções que guiarão a escritura do texto traduzido, mas
também com aqueles que guiam a própria construção do texto a ser traduzido, a sua
leitura. Nesse sentido, o que se entende por tradução, o que se lê no texto original e o
que se busca com a tradução são questões importantíssimas. Em meu exercício como
tradutor, são basilares as reflexões de Henri Meschonnic não só sobre a natureza da
tradução, mas também sobre a natureza discursiva do texto que se traduz, bem como do
texto traduzido. Sob a tutela de sua poética do traduzir (2010[1999]), Meschonnic
defende a tradução como uma atividade cujo sucesso deve ser estimado na medida em
que ela se realize como um discurso experimental, isto é, como um discurso que
constrói a experiência de outro ao mesmo tempo em que a demonstra (2010[1999], p.
75). É, portanto, enquanto um discurso que Meschonnic equaciona a tradução; e, mais
do que isso, como um discurso que se configura a partir de um ritmo.

Tratar a tradução como discurso tem consequências importantes para a sua


investigação, e a principal delas é a separação entre os valores de língua, características
que dizem respeito somente à língua e que não influem nos processos de significação do
discurso, e os valores de discurso, que passam a ser os únicos relevantes em sua
abordagem. Assim, por exemplo, aspectos fonológicos de uma língua só passam a ser
importantes durante o trato com a tradução ou durante o exercício tradutório, para
Meschonnic, na medida em que assumem uma importância significativa no discurso
(2010[1999], p. 31). Da mesma forma, a exigência ingênua de uma equivalência 1:1 nas
traduções, uma ideia de fidelidade presente até hoje em certos pensamentos, também cai
por terra, uma vez que se constrói tomando, como unidade do traduzir, a palavra como
um componente da língua, e não do discurso. Nos termos da poética de Meschonnic,
essa equivalência só faria sentido se o número de palavras, por exemplo, estivesse
envolvido nos jogos de significação do discurso que compõem. Por meio da poética,
portanto, a tradução é vista a partir daquilo que ela realmente é, um discurso, assim
como o traduzir, que se realiza como a criação de outro discurso. Dessa forma, então, “o
objetivo da tradução não é mais o sentido, mas bem mais que o sentido, e que o inclui: o
modo de significar” (2010[1999], p. 43).

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Esse “modo de significar”, por sua vez, apresenta vínculos profundos com a
ideia de ritmo já mencionada; partindo, porém, de reflexões apresentadas por Émile
Benveniste, a concepção de ritmo empregada por Meschonnic tem diferenças
fundamentais em comparação com os usos mais comuns do termo. Em seu Problemas
de linguística geral (1976[1966], p. 361-370), Benveniste recupera um sentido bastante
específico de “ritmo” especialmente a partir de Demócrito. Segundo ele, é com
Demócrito que o termo ῥυθμός (rhythmós – de “fluir, correr”) é alçado a termo técnico:
para o grego, as coisas se diferenciavam pela forma que seus elementos constituintes
assumiam, tal como a água se diferenciaria do ar por causa da forma pela qual seus
átomos se arranjam. Nessa concepção, então, o termo se refere “[à] forma distintiva,
[a]o arranjo característico das partes de um todo” (1976[1966], p. 364). Não se refere,
pois, a uma forma fixa e estável, definitiva, mas à forma que algo móvel assume no
momento da sua fixação: “pode-se compreender então que ῥυθμός […] tenha sido o
termo mais próprio para descrever “disposições” ou “configurações” sem fixidez nem
necessidade natural, resultantes de um arranjo sempre sujeito à mudança” (1976[1966],
p. 368). Sendo assim, quando Meschonnic fala do ritmo “como a organização e a
própria operação do sentido no discurso” (2010[1999], p. 43), ele tem em mente uma
ordenação específica de diferentes elementos que, juntos, realizam o sentido de um
discurso. Em outras palavras, pode-se dizer que o autor entende a configuração de
modos de significar em um discurso como o seu ritmo: “o ritmo […] é então a unidade
de equivalência numa poética da tradução” (2010[1999], p. lxiii).

Com isso, tanto a tradução como o texto a ser traduzido podem ser entendidos
a partir do mesmo princípio: ambos são discursos, os quais se distinguem dos demais
por um arranjo específico de seus modos de significar – por seu ritmo, portanto. Uma
vez que, como alega Meschonnic, o ritmo é a unidade da tradução, a qual, por seu turno,
é um discurso que possibilita a experiência de um ritmo outro ao mesmo tempo em que
a demonstra para o leitor, uma leitura crítica do texto dito original – a “vivissecção
implacável” de que fala Haroldo de Campos (1992[1963], p. 43) – torna-se fundamental
para a sua execução. Contudo, seria no mínimo imprudente querer proceder, aqui, à
exposição do ritmo da Utopia como um todo, uma vez que o objetivo principal deste
artigo não é esse. Para nossa sorte, nas últimas décadas alguns exercícios críticos
importantes vêm sendo feitos nesse sentido, dentre os quais destacam-se os trabalhos de
Elizabeth McCutcheon (1971; 1983; 2011), de Clarence Miller (2011), de Edward Surtz

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(1965; 1967) e, em língua portuguesa, os de Ana Cláudia Romano Ribeiro (2012; 2015;
2016a; 2016b), que se dedica especialmente à análise dos jogos sonoros espalhados por
Morus em seu texto e de traduções brasileiras da Utopia – um estudo, por sinal, único
em nosso país. De um modo bem mais modesto, procederei à demonstração de um dos
traços que mais salta aos olhos quando da leitura do texto de Morus: a forma pela qual a
organização sintática de suas orações e períodos se relaciona com o tipo de texto
escolhido para a obra, o diálogo. Para isso, serão especialmente importantes os
apontamentos feitos por Edward Surtz em seu “Aspects of More‟s latin style in Utopia”
(1967).

Para Surtz, a relação entre a exploração da sintaxe como elemento significativo


do texto está profundamente vinculada ao aspecto dialógico – de diálogo – do texto:
assim, por exemplo, sentenças mais longas poderiam ser relacionadas ao ímpeto
descritivo das falas de Rafael Hitlodeus, um dos personagens da obra; as sentenças mais
curtas, e não apenas aquelas que surgem só por exigência do diálogo, também cumprem
papéis importantes dentro de uma conversa, como a expressão de desejos, o resumo dos
assuntos tratados e os comentários ao que acabou de ser dito (1967, p. 94). Trabalhar o
texto de modo a manter, ou recriar essas características, portanto, são exigências que
uma concepção de tradução como a ora apresentada faz, mas não por uma motivação
mais geral como a de que seriam essas as características da prosa em latim nos tempos
de Morus, mas principalmente porque essas construções, em seu texto, concorrem para
a construção de sentidos. Não obstante a sua relação com os modos de significar do
texto, porém, grande parte das traduções disponíveis, e não apenas em língua
portuguesa, sacrificam esse traço rítmico do texto do Morus em favor, provavelmente,
de uma maior facilidade na leitura por parte do leitor não acostumado com esse tipo de
texto.

O parágrafo de abertura da Utopia serve como um bom exemplo disso. Na


edição de Cambridge (Morus, 1995), as 99 palavras que compõem o trecho são
divididas em dois períodos sintáticos complexos: o primeiro, com 50 palavras; o
segundo, com as 49 restantes (p. 40/8-18)3:

quum non exigui momenti negotia quaedam inuictissimus Angliae


Rex Henricus eius nominis octauus, omnibus egregii principis artibus
ornatissimus, cum serenissimo castellae principe Carolo controuersa

3
As citações do texto latino são feitas a partir da edição de Logan, Adams e Miller (Morus, 1995), no
formato página/linha.

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Traduzindo a Utopia, de Thomas Mous: ritmo e poética

nuper habuisset, ad ea tractanda componendaque oratorem me legauit


in Flandriam, comitem et collegam uiri incomparabilis Cuthberti
Tunstalli, quem sacris scriniis nuper ingenti omnium gratulatione
praefecit. de cuius sane laudibus nihil a me dicetur, non quod uerear
ne parum sincerae fidei testis habenda sit amicitia, sed quod uirtus
eius ac doctrina maior est quam ut a me praedicari possit, tum notior
ubique atque illustrior quam ut debeat, nisi uideri uelim solem lucerna,
quod aiunt, ostendere.

É interessante perceber como as informações se encadeiam dentro desses dois


grandes períodos. Em um primeiro momento, é apresentado o motivo pelo qual o
personagem Thomas Morus foi enviado à Flandres pelo rei Henrique VIII (“quum non
exigui ... nuper habuisset”); a informação principal do passo (“quum … rex Henricus …
cum … castelae principe Corolo controuersa … habuisset”) está entremeada por
diferentes sintagmas adjetivos tanto sobre o rei Henrique, como sobre o príncipe Carlos;
somente após essa apresentação, porém, e ainda dentro do mesmo período, é que
sabemos o que aconteceu quando os soberanos tiveram um desacordo: Thomas Morus
foi enviado à Flandres para resolver a questão (“ad ea tractanda componendaque
oratorem me legauit in Flandriam”); ainda no mesmo período, o narrador revela que não
foi sozinho, mas na companhia de Cuthbert Tunstall, cujo cargo exercido também nos é
apresentado (“comitem et collegam uiri incomparabilis Cuthberti Tunstalli, quem sacris
scriniis nuper ingenti omnium gratulatione praefecit”). O outro período do trecho (“de
cuius sane … aiunt, ostendere) é puramente laudatório e tem como referente a última
figura apresentada no período anterior, Cuthbert Tunstall – uma atenção, por sinal,
maior do que a dedicada a Henrique VIII e a Carlos de Castela. Pode-se dizer, então,
que o narrador apresenta três informações nesse parágrafo: 1. a motivação de sua
viagem e a própria viagem; 2. seu companheiro; 3. a distinção de seu companheiro.

Na tradução de Luís de Andrade (Morus, 1956), por exemplo, feita a partir da


tradução francesa de Victor Stouvenel, de 1842, não só essa estrutura encontra-se
diluída, uma vez que o único parágrafo do texto em latim foi divido em dois, e os dois
períodos em cinco, como a relação entre as orações também foi modificada, o que altera
significativamente o tom de conversa do texto de Morus, presente desde o seu início. A
conjunção “quum” (“quando”) com que o texto se inicia dá tons de coloquialidade para
o discurso do narrador, que começa a contar sua história não pela informação de que
viajara à Flandres, mas pelo motivo que o levou a viajar – adiar a informação com o
intuito de prender a atenção do leitor é um expediente do qual Morus lança mão em
diferentes momentos do seu texto. Além do mais, ao trabalhar essas duas informações

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em uma construção que envolve uma oração principal, que diz sobre a viagem, e uma
subordinada, que revela os seus motivos, Morus empresta certa fluidez ao relato do
personagem, o que acentua ainda mais a coloquialidade que caracteriza seu texto. Esta,
por sua vez, está completamente diluída na tradução de Luís de Andrade, em que o
discurso do narrador inicia-se mais como uma narrativa propriamente dita, ou seja, pela
simples informação dos fatos, do que pelo encadeamento fluido de cada uma das
informações encontradas no texto em latim:

O invencível rei da Inglaterra, Henrique, oitavo do nome,


príncipe dum gênio raro e superior, teve, não faz muito tempo, uma
querela de certa importância com o sereníssimo rei Carlos, príncipe de
Castela. Eu fui, então, enviado às Flandres, como parlamentar com a
missão de tratar e resolver essa questão.

Tinha por companheiro e colega, o incomparável Cuthbert


Tunstall, a quem o rei confiara a chancela do arcebispado de
Cantuária, com os aplausos de todos. Nada direi, aqui, em seu louvor.
Não por temer que se acuse a minha amizade de adulação; porém, a
sua doutrina e as suas virtudes estão acima de meus elogios, e sua
reputação é tão brilhante que celebrar o seu mérito seria, como diz o
provérbio, chover no molhado.

Nessa configuração, se não podemos dizer que as informações são diferentes,


ao menos de um modo mais geral, visto que 1. a questão entre os soberanos é
apresentada e 2. a viagem do personagem é referida e vinculada ao acontecimento
anteriormente mencionado, parece claro que a forma pela qual a narrativa se dá se
distingue de maneira bastante clara. Separando as duas informações em períodos
distintos e isolados do resto do parágrafo, o tom de relato presente no texto latino é
substituído por uma construção menos coloquial e que tende ao registro formal.
Retomando o já exposto, então, fica claro, aqui, como uma diferença que poderia ser
reputada a uma simples questão de língua, uma vez que se fundamenta em uma questão
sintática, ganha um outro sentido quando abordada a partir da sua relação com o texto:
em se tratando de um diálogo coloquial referido por um narrador-personagem, o tom de
relato predomina no texto da Utopia – sem que se esqueça, porém, que o diálogo está se
dando entre personagens cultos, Thomas Morus, Peter Giles e Rafael Hitlodeus (Surtz,
1967, p. 108). Um procedimento como esse, porém, não só apaga, já no início do texto,
uma marca que estará presente em toda a sua extensão, como também a altera de
maneira relevante.

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Traduzindo a Utopia, de Thomas Mous: ritmo e poética

Minha tradução foi pensada como um texto a ser publicado em uma coleção de
bolso, com o menor número possível de notas, em um texto monolíngue e sem textos
outros que servissem de aparato crítico ao leitor. Uma edição assim pensada acaba
pressupondo, como base, um leitor que pode nunca ter travado contato com esse texto,
nem mesmo por ter ouvido falar, desconhecendo inclusive a sua história e a sua origem.
Isso, contudo, embora imponha algumas exigências especialmente quanto à clareza do
texto apresentado, não foi motivo para uma planificação do texto; ao contrário, porém,
trouxe a necessidade de que, como primeira tradução direta do latim para o português
dessa obra, o meu texto não deixasse de levar em conta, o máximo possível, o ritmo
específico da obra de Morus; por outro lado, a tradução deveria ser acessível a um leitor
para o qual o fato de tratar-se de uma tradução feita a partir de um texto escrito, em
latim, no início do séc. XVI sequer fosse uma questão. A partir disso, então, no trecho
citado, minha solução foi destacar as três informações básicas apresentadas em latim
como quatro períodos sintáticos complexos em português, desdobrando o passo
laudatório do texto de Morus em dois períodos, e manter a mesma relação entre as
orações4:

Quando recentemente o invencibilíssimo Rei Henrique da Inglaterra,


oitavo de nome e distintíssimo em todas as artes dos egrégios
príncipes, teve problemas de não pouca importância com Carlos, o
sereníssimo príncipe de Castela, ele enviou-me a Flandres como seu
porta-voz para que essas questões fossem tratadas e apaziguadas. Eu
era, então, companheiro e colega de Cuthbert Tunstall, homem
incomparável, a quem, recentemente e com as felicitações de todos, o
rei nomeou Mestre dos Rolos. Sobre os seus méritos, na verdade, nada
pode ser dito por mim, mas não porque eu tema que, por causa da
amizade sincera, seja pouca a fé atribuída ao testemunho, e sim
porque sua virtude e seu conhecimento são maiores do que o quanto
pode ser predicado por mim. Ele é, então, mais notável e, em qualquer
lugar, também mais ilustre do que eu poderia revelar, a não ser que eu
desejasse mostrar o Sol com uma lanterna (p. 09).

Há dois momentos do texto de Morus em que a extensão dos períodos


sintáticos atinge limites extremos. Ainda no primeiro livro, quando tenta convencer
Thomas Morus e Peter Giles dos motivos pelos quais ele não busca participar dos
conselhos reais, Rafael Hitlodeus expõe seus argumentos em dois períodos compostos,
respectivamente, por 464 e 926 palavras (p. 82/21-86/28; p. 88/1-94/19), os quais são
separados por uma única frase proferida por Thomas Morus. Como explicam os editores
do texto que segui em minha tradução (p. 84, n. 16), para que ambas as passagens se

4
Os trechos traduzidos são citados a partir da minha tradução (Morus, 2016).

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tornassem “manejáveis”, sua edição, assim como grande parte das outras, optou por
quebrar o virtuosismo de Morus em diversos períodos mais curtos distribuídos em
parágrafos diferentes – o que boa parte das traduções também fez, como as de Robert
M. Adams (publicada em 1975 na edição crítica da Norton e republicada, com revisões,
na edição de Cambridge de 1995), de Luís de Andrade (1937) e de Anah de Melo
Franco (1980). Assim também o fez Ralph Robinson em sua tradução, ao menos
conforme a apresenta a edição de J. H. Lupton (1895); a edição do texto latino que
acompanha esta tradução, porém, que é baseada no texto da Utopia de 1518, mantém os
traços originais do texto latino, o que torna possível o trato com o texto conforme
imaginado por Morus. E uma vez que, como alerta Surtz (1967, p. 94), ambos esses
trechos imitam a atmosfera tensa dos conselhos dos reis aos quais se refere Hitlodeus,
possuindo, então, importância para a construção de sentidos dentro da obra, é primordial
que uma tradução busque não apagar esse traço. Por esse motivo, em minha tradução, a
partir do trabalho com a edição base (Morus, 1995) e com a edição de Oxford
apresentada junto com a tradução de Ralph Robinson (Morus, 1895), esforcei-me por
manter ambas as construções de acordo com a forma imaginada por Morus, ou seja,
cada uma delas como um período sintático. Lançando mão de diferentes recursos de
pontuação que não indicam fim de período sintático, então, foi possível recriar, em
português, a atmosfera tensa e envolvente do texto latino. Segue um trecho para a
apreciação:

pergamus ergo, inquit, si consiliariis cum rege quopiam tractantibus,


et comminiscentibus quibus technis ei queant coaceruare thesauros,
dum unus intendendam consulit aestimationem monetae quum ipsi sit
eroganda pecunia, deiciendam rursus infra iustum quum fuerit
corroganda, uti et multum aeris paruo dissoluat et pro paruo multum
recipiat: dum alius suadet ut bellum simulet atque, eo praetextu coacta
pecunia, cum uisum erit faciat pacem sanctis cerimoniis, quo
plebeculae oculis fiat praestigium, miseratus uidelicet humanum
sanguinem princeps pius: dum alius ei suggerit in mentem antiquas
quasdam et tineis adesas leges longa desuetudine antiquatas, quas
quod nemo latas meminisset, omnes sint transgressi: earum ergo
mulctas iubeat exigi, nullum uberiorem prouentum esse, nullum magis
honorificum, utpote qui iustitiae prae se personam ferat: dum ab alio
admonetur uti sub magnis mulctis multa prohibeat, maxime talia quae
ne fiant in rem sit populi… (p. 88/1-16).

“Então continuemos”, ele disse; “e se a conselheiros que, em algum


lugar, estivessem tratando com o rei e planejando por quais artifícios
eles seriam capazes de ampliar o tesouro, enquanto um deles
aconselhasse que o valor da moeda deveria ser aumentado quando o
dinheiro fosse pago pelo rei e, ao contrário, reduzido abaixo do justo
quando fossem coletados os impostos, fazendo com que muito fosse

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 92


Traduzindo a Utopia, de Thomas Mous: ritmo e poética

pago com pouco dinheiro e que, a título de pouco, muito fosse


recebido; e outro propusesse que o rei deveria simular uma guerra e,
com esse pretexto, arrecadar dinheiro até que, quando parecesse
oportuno, estabelecesse a paz com cerimônias sagradas por meio das
quais, aos olhos do populacho, fosse criada a ilusão de que,
evidentemente, o rei, piedoso, lamenta o sangue derramado; e um
terceiro trouxesse-lhe à lembrança certas leis antigas já roídas por
traças e rejeitadas por causa de um longo desuso, as quais, porque
ninguém as lembrasse promulgadas, todos transgredissem: por isso,
então, que o rei ordenasse serem exigidas multas por sua infração, e
nada se tornaria mais fértil, nada mais glorioso, uma vez que seria
feito na presença da máscara da justiça; por um outro, imagina que o
rei estivesse sendo persuadido para que, sob pena de altas multas,
proibisse diferentes atividades, especialmente aquelas que fossem do
interesse do povo… (p. 44).

Algumas outras formas de expressão utilizadas por Morus em seu texto podem
ser aqui destacadas. Dentre elas, é interessante notar o emprego de metáforas médicas
por Hitlodeus, como a repetição do verbo latino “medeor” (“tratar, remediar, medicar”)
apontada por Surtz (1967, p. 99) em, por exemplo, “certe nisi his malis medemini”
(66/12 – “por certo, se não tiverdes remédios para esses males”, p. 28), em “uitiis
mederi” (96/13 – “remediar … os vícios”, p. 50), “aliorum furori mederi” (96/23-4 –
“remediar a insânia dos outros” p. 50) e “alienae stultiae … mederi” (100/14-5 –
“remediar a estupidez alheia”, p. 53). Se Hitlodeus busca destacar o estado moribundo
de outras repúblicas em comparação com a saúde em que se encontra aquela dos
utopienses, as metáforas médicas desempenham papel relevante nesse intuito,
integrando, então, o ritmo do texto de Morus. Assim também ocorre com o uso da
lítotes, analisado por Elizabeth McCutcheon (1992). De acordo com a autora, dentre as
várias lítotes utilizadas por Morus, uma delas tem valor especial, uma vez que aparece
já no início do texto: “non exigui momenti negotia” (p. 40/8 – “problemas de não pouca
importância”, p. 9). Para McCutcheon, qualificando as questões surgidas entre Henrique
VIII e Carlos de Castela como “de não pouca importância”, Morus parece adiantar, na
primeira linha de seu texto, um assunto que se fará presente em toda a Utopia,
especialmente nas críticas feitas por Rafael Hitlodeus e nos exemplos escolhidos pelo
personagem durante suas falas: em se tratando de questões de estado, quais problemas
podem ser ditos insignificantes, ou quais seriam os de profunda importância? De acordo
com a autora, “este primeiro 'não' prefigura os processos de negação e de oposição que
tanto tipificam a Utopia” (1992, p. 227); sendo assim, pode-se dizer, então, que, tal e
qual o trecho em que se encontra, que já diz muito sobre o tom coloquial e de relato que
ocupará todo o texto (confira análise supra), a primeira lítotes empregada por Morus,

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além de adiantar uma figura retórica bastante empregada pelo autor, também representa
umas das questões centrais da obra, que frequentemente põe em discussão diferentes
questões de estado.

Muito ainda poderia ser dito e exemplificado sobre o texto de Morus. Com o já
exposto, porém, acredito ter sido possível observar a importância que alguns traços da
Utopia têm quando abordados a partir da obra como um todo – ou, como podemos dizer
com Meschonnic, a partir do discurso e de seu ritmo. Não há tradução definitiva de um
texto, nem mesmo uma que seja correta de todo, ou completamente incorreta. O que há
são projetos diferentes, que tanto pretendem objetivos diversos como se constroem a
partir de fundamentações nem sempre concordantes. O que aqui expus deu conta de
alguns dos traços levados em consideração durante a tradução da opus magnum de
Thomas Morus, um texto fundamental na história ocidental. Muito embora longe de crer
na perfeição do resultado final, penso que o projeto proposto pela Editora Vozes e os
aspectos do texto que busquei recriar em meu exercício são importantes para a primeira
tradução direta da Utopia publicada no Brasil exatos 500 anos após a sua primeira
edição. Como alega André Lefevere em seu Tradução, reescrita e manipulação da fama
literária (2007[1992], p. 24), os processos de reescritura de textos, como a tradução,
manipulam e são eficientes; da manipulação do texto de Morus, fica aqui o breve
esboço de seus principais pontos; da sua eficiência, cabe aos leitores o veredito.

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