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O Marxismo e o (anti) capacitismo

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12 de agosto de 2020

Foto: reprodução

Por Acauã Pozino

RIO DE JANEIRO - Um debate que vem ganhando agradável protagonismo é o debate


da opressão e exclusão como quais as pessoas com deficiência (PcDs) somos
submetidas. Muito se tem discutido a respeito, seja nos diversos setores da academia,
seja em espaços de militância, embora ainda com muita timidez últimos.

O problema é que, embora haja muitos PcDs com uma perspectiva anticapitalista - vale
lembrar que nossa existência não se resume à deficiência e que, portanto, construímos
posições político-ideológicas como todo indivíduo -, falta ao debate do capacitismo uma
perspectiva que tenha um horizonte revolucionário e que promova, consequentemente,
emancipação concreta e não apenas ideal. Essa carência se faz notar, principalmente,
em ambientes de militância. Minha intenção é, portanto, evidenciar a impossibilidade de
se dissociar o capacitismo da luta de classes e, por conseqüência, lançar alguns
acúmulos para a construção de um pensamento marxista anticapacitista.

Primeiramente é preciso mapear a trajetória histórica desta terminologia e desta


opressão. O termo capacitismo, traduzido do inglês abilismo pela antropóloga
catarinense Anahí Guedes de Melo (uma das vozes, aliás, que pauta um anticapacitismo
anticapacitismo anticapitalista de base marxista) trata da opressão que é exercida sobre
um conjunto de em conjunto de em suas conformações corporais , que não se
configurariam como “corretas” ou “recomendações”. Assim, em virtude de tais

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conformações corporais, essas pessoas seriam dadas como “menos capazes” ou
“incapazes”, sendo definida pelo grau de distanciamento entre a conformação de seus
corpos e as normas ganhas.

Contudo, estas normatizações não se dão aleatoriamente ou por qualquer tipo de


capricho separado de uma realidade histórica. Embora esta normatização de tenha
corpos sempre existido dentro do que se conhece da história, o capacitismo tal como o
conhecemos nasce de uma certa concepção de deficiência que surge pela mão de
ideólogos ingleses em conhecido do século XIX com o advento da produção em massa e
do consequente aumento de acidentes laborais. Estes ideólogos constituem a classificar
esses trabalhadores acidentados como “pessoas deficientes” - em tradução literal,
pessoas inabilitadas, pessoas inaptas. Ao traduzir-se ao português, cunhou-se o termo
“deficiente”, por sua conexão semântica com déficit, defeito etc.

Esta concepção de inaptidão / inabilitação foi amplamente corroborada pelas ciências


anatômicas da época - como se viriam a corroborar o racismo - e dominou o pensamento
científico quase até os dias de hoje, sendo ainda um elemento constitutivo da análise de
muitos profissionais que se debruçam sobre a vivência PcD (a maioria distanciados
dessa vivência, vale ressaltar). Como a burguesa moral se for a partir do paradigma da
produtividade, sobretudo do lucro, constrói-se uma superestrutura que concebe essas
pessoas como desabilitadas, como inaptas, seja para a produção de material, para a
produção intelectual ou para sua própria autodeterminação.

Pensemos no seguinte: a forma molecular do capitalismo é a mercadoria, sendo a força


de trabalho dos trabalhadores um “item” imprescindível na manutenção do domínio
burguês e também uma mercadoria. A moral burguesa concebe a força de trabalho estas
pessoas que possuem estas conformações corporais, semelhantes à dos acidentados
laborais, como defeituosas. E no mercado apenas dois tipos de pessoa comprar uma
mercadoria defeituosa: aquele que, compadecendo-se da pobreza do vendedor, compre
seu produto para depois descartar e aquele que não tiver a seu alcance estritamente
nenhuma outra opção, nenhum outro vendedor que lhe possa vender o mesmo produto -
sem defeito. Essa oscilação, entre a piedade e a repulsa, está impressa na moral
burguesa e são raríssimos os espaços em que nós, pessoas com deficiência, não somos
recebidos em nenhum desses dois termos. Às vezes, em um grau intermediário destes.

Portanto, é preciso que qualquer marxista consequente tenha em mente que, além da
exploração das mulheres nesse sistema patriarcal, da exploração e genocídio do negro e
periférico, além da criminalização e política de morte dirigida à comunidade LGBT +, é
preciso também denunciar e combater a segregação, a invisibilização e o extermínio de
pessoas com deficiência na sociedade capitalista. Sim, companheiros, extermínio.

No final do passado junho, um homem negro com deficiência deu entrada em um


hospital dos Estados Unidos com sintomas de Covid-19 e teve seu tratamento negado
em função da sua deficiência. Indagado por sua esposa, o médico alegou que Michael
Hickson não receberia os cuidados relativos ao novo Coronavírus porque não tinha
“qualidade de vida”. Algumas semanas depois, um sem-teto numa cadeira de rodas foi
baleado por um policial (também nos Estados Unidos) por se negar a se levantar - coisa

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que não poderia fazer. No Brasil, também nessa época, um rapaz negro, surdo e autista
foi morto pelas costas ao não reconhecer uma abordagem policial. Sim, companheiros,
extermínio.

É muito importante que um marxismo consequente se proponha a pensar uma sociedade


onde conformações corporais não sejam motivo de segregação. Sofremos discriminação
na busca por emprego, não nos considerarem capazes de realizar tarefas simples de
forma autônoma. Somos discriminados quando contratados, pelo mesmo motivo. Nas
ruas, dizem que não deveríamos sair de casa. Nas instituições de ensino, somos o
problema, a exceção, aquilo que precisa ser resolvido. Na cultura de massas, somos a
referência negativa, a metáfora jocosa, ou quando muito o “exemplo de superação”.

Pessoas com deficiência são, antes de tudo, pessoas. Entender e praticar isso é a base
do anticapacitismo. Entender e praticar isso, combatendo a lógica de produção tanto
imediata como moral que nos ensina o lugar de marginalizados é a base do
anticapacitismo revolucionário.

Existe um estilo de arquitetura chamado de “desenho universal”. Trata-se de um estilo de


construção de edifícios, confecção e disposição de mobílias, equipamentos etc. que
considere todas as conformações corporais e seja acessível a todas elas, por exemplo,
portas e mesas perdidas a cadeirantes, inscrições em Braille, interpretação em LIBRAS
etc. Companheiros, considerando o que foi escrito por Marx e Engels - “De cada um
segundo suas habilidades para cada um segundo suas necessidades” - o que é o
comunismo, nosso horizonte de sociedade, senão o desenho universal processado às
relações de produção e socialização?

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