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EDITORIAL Manoel Canuto

Queremos mais Calvinos


“E
ntre todos os nascidos de mulher, não houve mos retomar aos caminhos antigos. Devemos, uma
ninguém maior do que João Calvino; nenhu- vez mais, recuperar a centralidade e a capacidade
ma época anterior à dele jamais produziu al- de penetração da pregação bíblica. É preciso um re-
guém igual a ele, e nenhuma época depois dele viu torno decisivo à pre­gação direcionada pela Palavra,
um concorrente seu” ― Charles Haddon Spurgeon que exalta a Deus, que é centrada em Cristo e forta-
lecida pelo Espírito. Precisamos desesperadamente
Vivi duas épocas diferentes. Uma, onde pouco se fa- de uma nova geração de expositores, homens da
lava sobre Calvinismo e pouco se sabia de Calvino. mesma estirpe de Calvino. Pastores marcados pelo
Isso é estranho para quem nasceu em um lar Presbi- entusiasmo, pela humildade e bon­dade devem nova-
teriano. Mais estranho, porém, é quando não se sabe mente “pregar a Palavra”. Em resumo, precisamos de
que o Presbiterianismo é herança Calvinista. E mais outros Calvinos para subir aos púlpitos e proclamar,
estranho ainda é se viver no Presbiterianismo e não cheios de coragem e piedade, a Palavra de Deus.
se conhecer e não se vivenciar a prática Reformada.
Outra época vejo surgir agora, onde presbiterianos, Charles H. Spurgeon deve ter a última palavra aqui.
batistas, congregacionais e até pentecostais come- Este gran­de homem testemunhou, de primeira mão,
çam a rever suas práticas cúlticas, suas pregações, a decadência da pregação dinâmica e publicou o se-
seus ensinos, sua literatura e corar de vergonha. Isso guinte apelo:
é bom! É uma época de esperança. Calvino nos deixou
Queremos outros Luteros, Calvinos, Bunyans, Whi­tefields, ho-
um legado que temos de transmitir à nossa geração, mens preparados para marcar eras, cujos nomes inspiram ter-
aos nossos filhos e netos. Conferências, palestras e ror aos ouvidos de nossos inimigos. Necessitamos deles deses-
estudos são feitos sobre a necessidade de nova re- peradamente. De onde eles vi­rão para nós? Eles são presentes
de Jesus Cristo para a igreja, e virão em tempo oportuno. Jesus
forma em nossas igrejas. Ainda estamos acanhados,
tem poder de nos trazer de volta a era de ouro dos pregadores,
sem muita coragem para sofrer, para pagar o custo e quan­do a boa e antiga verdade for mais uma vez pregada por
de uma mudança. Muitos estão em conflito consigo homens cujos lábios foram tocados como por uma brasa viva
mesmo, com suas igrejas e com Deus ― Isso é bom! tirada do altar, isto será o instrumento na mão do Espírito para
realizar um grande avivamento da religião em toda a terra... Eu
É um bom sinal de que Deus está incomodando seu não busco outro meio de converter os homens além da simples
povo e falando aos seus ouvidos. Nossa conclusão pregação do evangelho e do abrir de seus ou­vidos para que o
é: queremos mais reformadores, queremos mais Cal- ouçam. No momento em que a igreja de Deus desprezar o púl-
vinos. Este editorial é a conclusão do livro de um pito, Deus desprezará a igreja. É por meio deste ministério que
o Senhor se agrada em despertar e
grande erudito batista, Dr. Steven Lawson, que não abençoar sua Igreja.
se envergonha de se dizer Calvinista como eram cal- REVISTA OS
vinistas os batistas que colonizaram a América do Que a sincera oração de Spur- PURITANOS
Norte. Eis o que ele escreveu: geon seja respondida mais
Ano XVII - Número 2 - 2009
uma vez hoje. Queremos mais
Estamos agora no século vinte e um, quase quinhentos anos
distantes do tempo de João Calvino, mas nos encontramos Calvinos. Precisamos ter ou- Editor Manoel Canuto
num momento igualmente crítico na história da redenção. Da tros Calvinos. E, pela graça de Conselho Editorial
mscanuto@uol.com.br

mesma maneira como a igreja organizada estava espiritual- Deus, os veremos surgir no- Josafá Vasconcelos e Manoel Canuto
mente arruinada no início dos dias de Calvino, assim também Revisores

acontece em nossa época. Certamente, a julgar pela aparência,


vamente nesta época. Que o Manoel Canuto; Linda Oliveira;
Tradutores
a igreja evangélica neste momento parece estar florescendo. cabeça da igreja nos dê mais Linda Oliveira; Marcos Vasconcelos,
Igrejas enormes estão surgindo em todos os lugares. A música uma vez um exército de expo- Márcio Dória, Josafá Vasconcelos
Projeto Gráfico e Capa
cristã e as editoras contemporâneas parecem aumentar com sitores da Bíblia, homens de Heraldo F. de Almeida
muita rapidez. Reuniões de homens lotam grandes estádios. Impressão
Ouve-se que há grupos de políticos cristãos em todas as cama-
Deus dispostos a uma nova Facioli Gráfica e Editora Ltda.
Fone: 11- 6957-5111
das governamentais. Contudo, a igreja evangélica é, em grande reforma. São Paulo-SP
medida, um sepulcro caiado. Tragica­mente, sua fachada disfar-
OS PURITANOS é uma publicação
trimestral da CLIRE — Centro de
ça sua verdadeira condição interna. Soli Deo Gloria.
Literatura Reformada
R. São João, 473 - São José, Recife-PE,
CEP 52020-120

O que devemos fazer? Devemos fazer o que Calvino


Fone/Fax: (81) 3223-3642
E-mail: ospuritanos@gmail.com
DIRETORIA CLIRE: Ademir Silva,
e os re­formadores fizeram há tanto tempo. Não exis- Extraído do maravilhoso livro A Arte Expositiva de Adriano Gama, Waldemir Magalhães.
João Calvino, do Dr. Steven J. Lawson, Editora FIEL
tem remédios novos para problemas velhos. Deve-

 Revista Os Puritanos 2•2009


Calvino — Vivendo
para a Glória de Deus
“Portanto, quer comais quer bebais, ou façais outra coisa qualquer, fazei
tudo para glória de Deus.” (Co 10:31).

Por Dr. Joel Beeke


versidade de Orleans onde Calvino primeiro entrou
em contato com a verdade da reforma. Um dos seus

J
oão Calvino (Jean Cauvin) era tão “auto ― eclip- tutores foi Melchior Wolmar (1497-1560), um evan-
sado” que escreveu sobre si mesmo apenas três gélico, que começou ensinando o grego a Calvino e
vezes em seus trabalhos: em Resposta a Sado- pode bem ter partilhado sua fé com ele. Aprender
leto (1539), o prefácio dos seus Comentário grego foi um passo importante, pois abriria maiores
sobre os Salmos (1557) e em seu leito de morte aos riquezas do Novo Testamento para Calvino.
seus colegas ministros de Genebra (28 de abril de
1564), o que foi registrado por Jean Pinant. Após a Conversão
morte de Calvino em 27 de maio de 1564, amigos A data da conversão de Calvino é grandemente con-
descobriram que Calvino havia dado ordens para ser trovertida entre os eruditos da reforma. A maioria
enterrado sem uma lápide.1 Quatro dias após a sua dos eruditos a situam em 1533 ou no início de 1534.
morte, o Geneva Register escreveu simplesmente: J. H. L. Parker, contudo, argumenta com uma data an-
(“Calvino foi levado a Deus em 27 de Maio do corren- terior, 1529-15303, como fazem alguns eruditos re-
te ano”). Expressando este anseio por obscuridade foi centes, incluindo James I. Packer. Embora prefiramos
o desejo sincero de Calvino que apenas Deus fosse a data tradicional, mais importante para os nossos
glorificado. Examinando a vida e o ministério de Cal- propósitos é o relato de Calvino da sua conversão.
vino, podemos permanecer fiéis a este motivo impul- Isto é o que ele escreve em seu prefácio ao seu Co-
sor de Calvino de promover somente a Deus. mentário sobre os Salmos (1557):
A esta busca [do estudo do direito] eu diligencio fiel-
Anos Iniciais mente me aplicar em obediência ao desejo do meu pai;
Calvino Nasceu em 10 de Julho de 1509, em Noyon, Deus, porém, pela secreta direção da sua providência,
Picardia, no nordeste da frança, de Gerard (falecido finalmente deu uma direção diferente ao meu caminho.
em 1531). Teodore Beza (1519-65), o biógrafo mais A princípio, desde que eu estava muito obstinadamente
antigo de Calvino, descreve os pais de Calvino como devotado às superstições do papado para ser facilmente
“amplamente respeitáveis e em circunstâncias con- desenredado de tão profundo abismo de lama, Deus por
fortáveis“. O pai de Calvino esperava que ele fosse
2
uma conversão súbita, subjugou e trouxe minha mente
estudar para o ministério. Assim, em 1520 ou 1521, a um plano dócil, que era mais endurecido em tais as-
o jovem Calvino foi enviado à Paris preparar-se para suntos do que se podia esperar de mim no meu período
o ministério. inicial de vida. Tendo assim recebido algum gosto e co-
Cerca de cinco anos mais tarde, o pai de Calvino nhecimento da verdadeira piedade, fiquei imediatamen-
percebeu que se podia fazer mais dinheiro na juris- te inflamado com um desejo tão intenso de progredir
prudência do que no ministério, assim enviou seu fi- nesse particular que embora deixasse os outros estudos
lho para Orleans para estudar direito. Esta mudança totalmente, eu contudo os seguia com menos ardor.4
rápida e dramática é digna de nota por duas razões.
Primeiro, o treinamento legal de Calvino incentivou Veja no quadro a seguir cinco aspectos importan-
nele qualidades mentais ― clareza, precisão e caute- tes deste breve, contudo o mais longo, relato do pró-
la ― que mais tarde muito bem lhe serviriam como prio escrito de Calvino sobre sua conversão deveriam
comentador bíblico e teólogo. Segundo, foi na Uni- ser notados.

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Joel Beeke

Alguns letrados pintam Calvino tarde se tornariam uma obra clássica Pierre Viret (1511-1571). Calvino des-
como frio e insensível. Mas este relato da Teologia Reformada. Depois de mais creve a condição de Genebra em seu
da sua conversão revela uma natureza ou menos um ano em Basel, Calvino foi prefácio ao seu Commentary on the
extraordinariamente ardente. Como para a Itália. Ele se estabeleceu em Fer- Psalms: “O papismo fora expulso de
disse James A. de Jong, tudo que se rara onde esperava trabalhar como se- [Genebra] pela diligência de... [Guillau-
tem a fazer é examinar as orações de cretário da princesa Renée, cunhada de me Farel], e Peter Viret. Todavia, a si-
Calvino para encontrar “um crente Francisco I, Rei de França. Calvino que- tuação ainda não estava apaziguada
praticante de considerável... fervor”.8 A ria viver lá permanentemente como um e a cidade se encontrava dividida em
conversão de Calvino foi nada menos obscuro literato, mas isto não funcionou, facções perigosas e hereges”.10
que um compromisso sincero, sem re- tendo ele retornado à França. Calvino Farel descobriu que Calvino estava
servas com o Deus vivo. Este ardente permaneceu ali apenas seis meses por- na cidade e foi vê-lo. Ele conheceu Cal-
compromisso está evidente em sua que não pode concordar com as condi- vino pela leitura das Institutas (1536)11.
marca, ou selo, que mostra um coração ções do edito de Lyons (31 de Maio de Ele compreendeu que Calvino era exa-
sobre uma mão aberta, com o lema em- 1536), que “permitia aos heréticos vive- tamente o tipo de homem para ajudá-lo
baixo: “Meu coração eu te dou, Senhor, rem no reino sob a condição de que es- em Genebra, especialmente desde que
ardente e sinceramente”. tariam reconciliados com Roma dentro Farel era mais um pioneiro evangelista
de seis meses”.
9
do que pastor e professor. Ele pediu a
Calvino Vem para Genebra Calvino planejou ir para Estras- Calvino para ficar em Genebra e ajudá-
Em menos de um ano, as pessoas come- burgo a fim de ganhar algum apoio lo. Calvino foi inflexível sobre sua ida
çaram a reunir-se com Calvino para se- de Martin Bucer (1491-1551), o Re- para Estrasburgo. Farel insistiu e Cal-
rem ensinados na doutrina pura. Ensinar formador Alemão, e conseguir para si vino mais tarde escreveu: “Percebendo
a fé evangélica era perigoso na França, e próprio a vida calma de um literato que nada ganhava com os rogos, (Farel)
Calvino foi logo forçado a fugir por cau- em “algum canto obscuro”, mas a via prosseguiu emitindo uma imprecação
sa da perseguição. Ele foi para Basel em principal estava fechada. Desse modo em que Deus amaldiçoaria o meu afas-
Janeiro de 1535 onde o velho Erasmus ele tomou um roteiro diferente através tamento e a tranquilidade dos estudos
(1466/1469-1536); Heinrich Bullinger de Genebra, tencionando passar uma que eu buscava, se eu me retirasse e
(1504-1575), amigo e sucessor de Hul- noite ali. recusasse dar assistência”. Calvino foi
dreich Zuringli (1484-1531) em Zurich; Não muito antes da chegada de Cal- atacado pelo terror, sentindo “como se
Guillaume Farel (1489-1565) e Pierre vino, Genebra (pop. Cerca de 15.000) Deus, lá dos céus, pousasse a sua pode-
Olivétain estavam residindo. Enquanto declarou-se pró-reforma, grandemente rosa mão sobre mim para me chamar a
ali, Calvino começou trabalhando nas devido à veemente pregação de Guillau- atenção”.12 Assim Calvino permaneceu
Institutas da Religião Cristã, que mais me Farrel, um incansável evangelista, e em Genebra.

Cinco
1 2
Antes da conversão, Calvino atribui seu
Calvino diz que era salvamento unicamente
“obstinadamente a Deus e não menciona

aspectos devotado às superstições


do papado” e se compara a um
quaisquer meios humanos
usados por Deus para tra-
homem afundado em um charco, zê-lo à fé. Nada diz de Wolmar;
importantes para quem o resgate é possível
apenas por intermédio de uma
ou seu primo, Pierre Olivétain
(1506-1538), que traduziu o NT
outra mão. Ele foi introduzido para o Francês; ou do antigo
do relato de na superstição papal numa idade
jovem. Sua mãe levava seu filho
mártir protestante Étienne de La
Forge, com quem hospedou-se em
em peregrinação a santuários e Paris.6 Nem menciona trabalhos
Calvino sobre altares para ver relíquias e rogar a
Deus e aos santos.5 Calvino sentia-
influentes escritos por Reformado-
res como Lutero (1483-1546). Esta
se tão afundado neste charco de ênfase sobre a absoluta soberania
sua conversão superstição que somente Deus
poderia libertá-lo.
de Deus na salvação era típica de
Calvino e dos Reformadores.

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Calvino — Vivendo para a Glória de Deus

O comentário de Calvino sobre Primeiro Ministério de Cal- Conselho insistiu que a última autori-
Mateus 8:19 capta a essência do seu vino em Genebra (1536-38) dade para excomunhão deveria perma-
encontro com Farel. Mateus conta so- Durante seu primeiro ministério em necer sob seu próprio controle.
bre um escriba que vem ao nosso Se- Genebra, Calvino foi importunado por Esta tensão entre a igreja e o go-
nhor Jesus e lhe diz que o seguiria onde dissensões na cidade, especialmente verno foi exacerbada quando Calvino
quer que Ele fosse. Calvino escreve: por alguns Anabatistas. Ele também e seus colegas pregadores em Gene-
Nós devemos ter em mente que ele era um manteve relações bastante tensas com bra tentaram encorajar uma vida mais
escriba, que tinha se acostumado a uma o conselho da cidade. Logo cedo Cal- disciplinada na cidade. Muitos gene-
vida calma e fácil, tinha usufruído honras vino concluiu que se Genebra devia brinos ressentiram-se dessa invasão
e era mal preparado para suportar descré- tornar-se completamente Reformada, de estranhos ou “pregadores de fora”.
dito, pobreza, perseguição e a cruz. Ele de- a igreja necessitava de uma confissão Por volta de 1535, alguns oponentes
seja realmente seguir a Cristo mas, sonha à qual todos os cidadãos de Genebra da visão de igreja de Calvino haviam
com uma vida fácil e agradável e moradia deveriam subscrever. Depois, também, sido eleitos para o Conselho da cidade.
cheia de todo conforto; considerando que um padrão de disciplina deveria ser Quando Calvino e Farel insistiram que
os discípulos de Cristo deviam caminhar introduzido de modo que todos não certas pessoas precisavam ser exco-
por entre espinhos e marchar para a cruz apenas abraçassem formalmente a fé mungadas antes da páscoa de 1538, o
em meio a ininterruptas aflições. Quanto protestante, mas tornar-se-iam mais Conselho da cidade renegou. Quando
mais ansioso está, menos preparado ele disciplinados sob a Palavra de Deus. então os reformadores recusaram ad-
é. Ele parece como se desejasse lutar à Calvino acreditava que a igreja preci- ministrar a Ceia do Senhor a todos, o
sombra e à vontade, nem importunado sava de autoridade para excomungar Conselho da cidade exilou Calvino e
pelo suor nem pela poeira e fora do al- pessoas imorais a fim de que a pureza Farel de Genebra por insubordinação
cance das armas de guerra... Vamos, por da igreja pudesse ser mantida. e isso foi menos de dois anos após sua
isso, considerarmo-nos alertados, em sua O Conselho da cidade estava pre- chegada.
pessoa, não para alardear levianamente parado para ter uma confissão de fé Calvino recebeu a expulsão com
e à vontade, que seremos discípulos de comum, mas não estava tão desejoso mistas emoções. “Genebra está tão to-
Cristo, enquanto não somos afetados por de confiar o poder de excomunhão aos talmente ligada ao meu coração que eu
qualquer pensamento da cruz, ou de afli- pregadores. Eles temiam que um tão daria alegremente a minha vida pelo
ções; mas, ao contrário, cedo considerar grande poder pudesse levar à inquie- seu bem-estar”, escreveu. Ao mesmo
que tipos de condições nos aguardam. A tude civil; além disso, quem sabe o que tempo, disse ele: “Seja feita a vontade
primeira lição que ele [i.e., Cristo] nos dá poderiam fazer pregadores instáveis? do meu mestre. Se nós tivéssemos ser-
ao entrar na escola é negarmos a nós mes- Eles poderiam excomungar até mes- vido a homens, teríamos sido mal re-
mos, e tomar a sua cruz (Mt. 16:24).13 mo um conselheiro da cidade! Assim o compensados, mas nós servimos a um
bom mestre que nos recompensará,
mesmo na expulsão”.14

3 4
Calvino diz que sua Deus superou a
conversão foi “súbita”, obstinação natural de
Calvino em Estrasburgo
que tirado do Latim Calvino. Como diz ele,
súbita, pode significar “Deus subjugou e trouxe (1538-41)
“inesperada”. A conversão minha mente a uma forma Calvino desejava ir para Basel, mas
de Calvino não foi o resultado educável”. ele considerou o convite urgente
de seu próprio desejo ou de Martin Buser para assumir a li-

5
intento.7 Em verdade, Calvino Calvino foi tão
derança da congregação de refugia-
era conhecido como resistente a “inspirado por um gosto
da verdadeira religião” dos protestantes de língua francesa,
mudanças. Mas Deus irrompeu na
que perdeu o interesse com cerca de quinhentas pessoas
sua vida causando um dramático
levante que mudou sua visão pelo estudo das leis. Com relação em Estrasburgo. Calvino viveu em
de Deus e levou-o a abraçar a ao seu pai, ele não desistiu do Estrasburgo por três anos ― alguns
doutrina evangélica. programa das leis, mas esse
dos anos mais felizes da sua vida.
estudo tornou-se menos crítico do
Ele pode livremente não apenas
que seu alvo primário de progresso
na verdadeira piedade. seguir seu longo e acariciado desejo
de continuar sua carreira acadêmica

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Joel Beeke

em Estrasburgo, mas sua experiência Quarto, Calvino foi influenciado lette, um filho e uma filha de um prévio
ali, sob a influência de Buser, impactou- pelo sistema escolar que Bucer e seu matrimônio e tornara-se seu único pai
o de inúmeras maneiras. líder educacional, Johann Sturm (1507- sobrevivente após a morte dela, nada
Primeiro, Bucer inspirou Calvino a 1589), estabeleceram em Estrasburgo. pode tomar o lugar da sua cônjuge. A
ser um comentarista bíblico. Embora Calvino ensinou na nova academia de morte de Idelette foi um pesado golpe.
Calvino visse Bucer como um mentor de Sturm, que mais tarde serviu de mode- Calvino escreveu para um amigo: “Sou
perspicácia e erudição agudas, ele sen- lo para a própria academia de Genebra forçado a continuar, mas é difícil a cora-
tia que as exposições bíblicas de Bucer de Calvino, para o treinamento de mi- gem para fazê-lo”.15
eram muito persuasivas. Bucer influen- nistros e jovens. CONTINUA NO PRÓXIMO NÚMERO
1. G. R. Potter e M. Greengrass, John Calvin (New York: St
ciou Calvino a começar sua carreira Finalmente, Calvino foi impressiona- Martin´s Press, 1983), 171.
2. The Life of John Calvin in The Banner of Truth, 227-228
como um grande comentarista bíblico do por uma jovem viúva Anabatista de (1982), 11.
3. T. H. L. Parker, John Calvin: A Biografhy (Philadelphia: West-
em Estrasburgo, o que foi algo em que Estrasburgo, Idelette de Bure (c. 1499- minster Press, 1975, 1975), 22, 162-5.
4. Commentary of The Book of Psalms, trad. James Anderson
Calvino muito excedeu ao seu mentor. 1549), a quem ele, mais tarde, despo- (reimpresso Grand Rapids: Baker Book House, 1979), 1:xl-xli.
5. Ronald S. Wallace, Calvin, Geneve and the Reformation
Segundo, Calvino ficou impressiona- sou. Calvino foi tão impressionado por (Grand Rapids: Baker Book House, 1988), 2.
6.Wallace, Calvin, Geneve and the Reformation, 7.
do pela ordem da igreja que Bucer es- Idelette que disse uma vez que preferia 7. Parker, João Calvino, 163.
8. Citado J. Nigel Westhead, “Calvino e o Conhecimento Ex-
tabeleceu em Estrasburgo. Bucer pro- antes viajar para a eternidade com os perimental de Deus” em Adornando a Doutrina: Trabalhos
lidos na Conferência de Westminster em 1995 (Londres: A
moveu quatro ofícios: doutor/mestre, sapatos dela do que com os de ninguém conferência de Westminster, 1995, 16.
pastor, presbítero e diácono. Calvino mais no mundo. Os nove anos de casa- 9. Parker, John Calvin, 52.
10. Commentaru of The Book Psalms, 1: xlii.
mais tarde implementou esta estrutu- mento com Idelette, contudo, não foram 11. Notavelmente, Calvino escreveu as Institutas com a ida-
de de 26 anos, apenas poucos anos após sua conversão. A
ra em Genebra como o modelo que ele sem nuvens. O único filho que lhes foi primeira edição consistiu de seis capítulos que cobriram a
Lei (os dez mandamentos), um sumário de fé (Credo dos
reputou como o mais bíblico. dado, Jacques, morreu pouco tempo Apóstolos), oração (a Oração do Senhor), os sacramentos e
liberdade Cristã e a responsabilidade. Ela foi imediatamente
Terceiro, impressionou-se com a or- do nascimento. Os católicos Romanos saudada pelos protestantes como uma realização maior na
produção e apologia e uma introdução à fé protestante. A
dem de culto que Bucer introduziu na viram a incapacidade de Calvino de ter primeira edição foi apenas um quinto do tamanho da edi-
ção final que apareceria em 1559, cinco anos antes da morte
vida da igreja de Estrasburgo. Enquan- filhos como um ato de julgamento de de Calvino. Ele continuou a trabalhar a maioria da sua vida
expandindo e refinando seu clássico teológico. Cf. François
to em Estrasburgo, Calvino criou uma Deus contra ele, mas, a resposta de Cal- Wendel, Calvin: Origins and Development of His Religious
Thought, trans. Philip Mairet (Grand Rapids: Baker, 2002), 111-
ordem de culto de acordo com a prá- vino foi que ele tinha miríades de filhos 49.
12. Prefácio ao Commentary on the Psalms, 1:xlii.
tica local. Sua ordem de culto ulterior espirituais em todo o mundo, dos quais 13.Comentário sobre uma Harmonia dos Evangelistas,
Mateus, Marcos e Lucas trans. William Pringle vol. 1 (reim-
em Genebra apoiou-se pesadamente Roma era totalmente ignorante. Embo- presso Grand Rapids: Baker Book House, 1979), 388.
14. Citado John T. Mc Neill, The History and Character of Calvi-
neste trabalho. ra Calvino herdasse dois filhos de Ide- nism (Oxford: Oxford University Press, 1954), 143.
15. Mc Neill, History and Caracter of Calvinism, 156-7.

Confissão de Fé de Westminster
Capítulo II
De Deus e da Santíssima Trindade
I. Há um só Deus vivo e verdadeiro, o qual é infinito em seu ser e perfeições. Ele é um espírito puríssimo, invisível, sem
corpo, membros ou paixões; é imutável, imenso, eterno, incompreensível, — onipotente, onisciente, santíssimo, com-
pletamente livre e absoluto, fazendo tudo para a sua própria glória e segundo o conselho da sua própria vontade, que
é reta e imutável. É cheio de amor, é gracioso, misericordioso, longânimo, muito bondoso e verdadeiro remunerador
dos que o buscam e, contudo, justíssimo e terrível em seus juizos, pois odeia todo o pecado; de modo algum terá por
inocente o culpado.

Ref. Deut. 6:4; I Cor. 8:4, 6; I Tess. 1:9; Jer. 10:10; Jó 11:79; Jó 26:14; João 6:24; I Tim. 1:17; Deut. 4:15-16; Luc. 24:39; At. 14:11, 15; Tiago
1:17; I Reis 8:27; Sal. 92:2; Sal. 145:3; Gen. 17:1; Rom. 16:27; Isa. 6:3; Sal. 115:3; Exo3:14; Ef. 1:11; Prov. 16:4; Rom. 11:36; Apoc. 4:11; I João
4:8; Exo. 36:6-7; Heb. 11:6; Nee. 9:32-33; Sal. 5:5-6; Naum 1:2-3.

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As Institutas —
um Livro a um Rei
“Antes de tudo, pois, exorto que se use a prática de súplicas, orações,
intercessões, ações de graças, em favor de todos os homens,” (ITm2:1).

Thea B. Van Halsema


cardinalício pela sua mudança de coração. Seria lem-
brado na história como um erudito humanista, ou-

J
oão Calvino, ainda buscando sossego para po- trora vinculado à Igreja de Roma. Quando Calvino o
der estudar e escrever, viajava em direção à visitou, Erasmus estava velho, quarenta anos mais do
fronteira germânica e Rio Reno. Louis du Tillet que Calvino, e a poucos anos da morte. Teria recebi-
o acompanhava a cavalo, levando consigo dois do com indiferença o jovem líder francês que parara
empregados, tendo deixado o seu trabalho e os seus para visitá-lo?
livros encadernados de couro para estar com seu Em princípios de 1535, os amigos chegaram a Ba-
amigo. sel a cavalo, o centro suíço de estudos e de publica-
Os amigos cavalgavam para o nascente, direção ções. Ali por mais de um ano, terminaram as suas pe-
a Metz, a trezentos e vinte quilômetros de Paris. O rambulações. Calvino tinha encontrado, finalmente, o
inverno frio os castigava com picante vento. Em seu retiro. Alugou um quarto numa casa suburbana
cada pensão onde paravam, os viajantes imagina- pertencente à Srª Catherine Klein, fechou a porta e
vam a possibilidade de serem descobertos e entre- pôs mãos à obra.
gues como hereges. Calvino viajava com mais dois Assumiu o nome de Martinius Lucanius, estranha-
companheiros: dor de cabeça e desarranjo estomacal. mente parecido com o de Lutero.
E como se isso tudo não bastasse, os amigos acor- Somente um punhado de pessoas conhecia a ver-
daram certa manhã para descobrir que um dos em- dadeira identidade de Lucanius. Uma delas era Ni-
pregados havia furtado a bolsa de dinheiro. O ladrão colas Cop, o ex-reitor da Universidade de Paris, ago-
tinha fugido a cavalo, deixando-os sem vintém. Não ra residente em Basel. Cop não havia visto Calvino
podiam pedir dinheiro sem revelar as suas identida- desde o dia em que havia sido avisado a caminho do
des. O outro empregado, pessoa de melhor estirpe, palácio e Calvino tinha escorregado por uma corda
emprestou-lhes o suficiente para que atravessassem de roupas de cama para esquivar-se dos beleguins à
a fronteira e chegassem a Strasbourg, onde Calvino sua porta. Longe de Paris, aguardavam ambos com
tinha amigos entre os ministros Protestantes. O pas- ansiedade as notícias das terríveis perseguições que
tor Martin Bucer lá estava ajudando os refugiados ocorriam no seu torrão natal.
franceses que fugiam da perseguição. Calvino tinha- As notícias não eram nada boas. Algum prisioneiro
lhe escrito em favor de um desses refugiados. tímido, para poupar a sua vida, tinha indicado as ca-
Talvez não houvesse paz suficiente em Strasbourg, sas daqueles que participavam das reuniões secretas.
pois Calvino e du Tillet seguiram para o sul. Há uma O ódio tinha caído sobre eles, embora não tivessem
história que conta que Calvino parou nesta viagem afixado os audaciosos cartazes. De La Forge, aquele
para visitar o sábio holandês Erasmus. Erasmus recu- homem piedoso e generoso e cuja casa era um refú-
perou para o mundo o Novo Testamento ao traduzi- gio para os crentes, tinha morrido na fogueira. Sua
lo novamente no grego. Mas este grande homem, que esposa estava na prisão. Calvino não podia imaginar
havia aberto o caminho para a Reforma, descobrira a Casa do Pelicano sem esses queridos amigos. O sa-
que “do ovo que botou, um pássaro completamente pateiro paralítico Milon tinha sido atirado na carroça
diferente havia sido chocado por Lutero e Zwínglio”. que o levou à morte por lenta torrefação. Calvino o
Erasmus recuara então da sua nova fé e fizera as conhecia bem — o homem que não podia caminhar,
pazes com o papa, o qual lhe oferecera um chapéu mas cujo meio de vida era fazer sapatos para quem

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Thea B. Van Halsema

podia. Du Bourg, um rico negociante O francês que estava hospedado Reforma tinha a Palavra de Deus, mas
que havia estado nas reuniões secretas, com a Srª Klein em Basel sentou-se quem os conduziria a compreendê-la
estava morto também. E Poille da mes- à sua escrivaninha e mergulhou sua no todo?
ma forma, cuja língua tinha sido gram- pena no tinteiro. Trabalhou febrilmen- Quem lhes mostraria o que ela dizia
peada à sua bochecha porquanto, ao te para concluir o que estava escreven- sobre Deus e Jesus Cristo e o Espírito
ser levado ao pelourinho, não cessava do. Era o fim do verão quando escreveu Santo, sobre os sacramentos e a igreja,
de falar sobre o seu Salvador. Haveria a carta dedicatória. Acrescentando a sobre fé e oração, sobre a lei e liberda-
muitos lugares vazios nas reuniões se- carta aos seis capítulos já concluídos, de na vida cristã?
cretas em Paris. Calvino foi à casa de Thomas Platter, o Tal manual, um pequeno livro, es-
O rei Francisco I não mais agia com tipógrafo cuja oficina se encontrava na tava sendo preparado pelo asilado
volubilidade para com os Protestan- tabuleta do Urso Preto. francês em Basel quando chegou-lhe
tes. Os apelos de sua irmã Margarida   a notícia das mortes ardentes dos seus
não mais o comoviam. Mas teve ainda Um Livro a um Rei amigos. Veio-lhe, depois, notícia sobre
a bondade de soltar três ministros da O homem a quem o livro de Calvino foi as mentiras de Francisco I. Com um re-
prisão e mandá-los a um mosteiro. Dois dedicado jamais chegara a ler a carta pentino lampejo de propósito, Calvino
deles ali se arrependeram de suas con- de vinte e uma páginas que lhe fora percebeu como poderia defender pe-
vicções Protestantes e voltaram à Igre- endereçada. “À sua Majestade Cris- rante o mundo a verdadeira fé daque-
ja de Roma. O terceiro, Corault, quase tã, Francisco, Rei dos Franceses e seu les que estavam sendo tão falsamente
cego, conseguiu escapar, tendo che- Soberano, João Calvino almeja paz e acusados. Ele viu, também, como pode-
gado até Basel. Ali encontrou-se com salvação em Cristo”. Assim começava a ria até comover o coração do próprio
Calvino, a quem relatou o que estava carta, em latim. Mas a “sua Majestade rei. O livro tornou-se mais do que um
acontecendo em Paris. Cristã, Francisco”, estava ocupado com manual de estudo. Transformou-se
Era evidente que Francisco I acha- suas amantes e seus bailes, com seus numa magistral confissão de fé — a fé
ra conveniente inventar uma grande esquemas para fazer alianças contra que estava sendo selada com a carne
mentira sobre as suas perseguições. seus inimigos. Talvez tivesse lido a carbonizada dos mártires da França.
Era suficientemente sagaz para perce- carta e os capítulos que a seguiam se “Quando iniciei este trabalho, Exce-
ber que outros países, especialmente alguém o tivesse convencido que o tal lência”, diz Calvino ao seu rei, “nada
os estados Protestantes da Alemanha, livro, após quatro séculos, ainda seria mais longe dos meus pensamentos do
o odiariam por suas crueldades. Preci- incluído entre o punhado de obras que que a idéia de escrever um livro que
saria destes países como aliados seus moldariam o pensamento do mundo. O seria mais tarde presenteado à vossa
contra o imperador Carlos V que o rei Francisco não podia adivinhar que Majestade. Era intenção minha so-
havia derrotado em Pavia. Francisco a carta que lhe fora endereçada seria mente formular alguns princípios ele-
I escreveu, pois, aos príncipes ger- considerada uma obra-prima de elo- mentares pelos quais os interessados...
mânicos, explicando que os homens quência candente, e que seria lida por pudessem ser instruídos sobre a natu-
que havia lançado nas prisões e nas milhões em muitas línguas. reza da verdadeira piedade. Empreendi
fogueiras eram da pior espécie: re- As Institutas da Religião Cristã, por tal labor em prol, principalmente, dos
beldes, agitadores, um amontoado de João Calvino de Noyon, não haviam meus patrícios franceses, multidões
anabatistas que desejavam separar a começado como um apelo ao rei da dos quais vi estarem sedentos de Cristo,
igreja do estado. França. Tinham a intenção de ajudar os mas pouquíssimos possuindo qualquer
Teriam sido rebeldes e agitadores novos Protestantes que precisavam co- conhecimento real a respeito... Mas
— o generoso de La Forge, o paralítico nhecer as verdades da Bíblia. Ninguém quando vi que a fúria de determinados
Milon, os outros cujas faces Calvino co- da Reforma tinha escrito estas verda- homens perversos no vosso reino tinha
nhecia, e todos os demais que ele lem- des numa forma ordenada. A grande crescido a tal ponto de não deixar lugar
brava como irmãos no Senhor? Não contribuição de Lutero tinha sido a no país para a sã doutrina, considerei
havia na França quem poderia falar tradução da Bíblia para o alemão, e que eu seria melhor usado se no mes-
por aqueles que morreram na fogueira. havia também escrito outras coisas so- mo trabalho eu lhes entregasse minhas
Não havia quem falasse a verdade so- bre vários assuntos. A Igreja de Roma instruções, como também vos exibisse
bre a fé dos mártires. Mas um francês tinha um grande sistema daquilo que minha confissão, para que soubésseis
no exílio podia falar. considerava ser a verdade. O povo da a natureza daquela doutrina que é o

 Revista Os Puritanos 2•2009


As Institutas — um Livro a um Rei

objeto de tanta cólera incontida por


parte daqueles loucos que ainda agora Calvino escreveu com clareza, com
estão convulsionando o país com fogo uma lógica de advogado. Escreveu
e espada...”
“Eu vos rogo, por conseguinte, Ex- eloquentemente, como um autor que
celência — e certamente não é um
pedido exorbitante — tomar para vós
maneja com perícia as suas palavras.
a compreensão cabal desta causa que
até aqui tem sido agitada, confusa e teando com o rei, mas pleiteia a verda- nhor, o Rei dos reis, estabelecer vosso
descuidadosamente, sem qualquer or- de e não tem receio de usar linguagem trono com retidão, e o vosso reino com
dem legal, e com afrontosa paixão em candente. equidade”.
vez de seriedade judicial. Não penseis “Somos pacíficos e honestos”, é a Estas foram algumas das sentenças
que esteja eu agora delineando minha maneira de descrever a si mesmo e eloquentes que Francisco, rei da Fran-
própria defesa individual a fim de àqueles na França que são acusados ça, jamais leu.
operar um retorno seguro para meu como agitadores. “Mesmo agora no O livro cresceu nos anos seguin-
país natal; porquanto, embora eu sinta exílio, não deixamos de orar para que tes. Geralmente chamado as Institutas,
por ela a afeição que todo o homem toda a prosperidade vos acompanhe cresceu como uma planta cresce da se-
deva sentir, mesmo assim, nas atuais e ao vosso reino”. Aprendemos, “pela mente. Em quatro edições, Calvino au-
circunstâncias, não lamento que eu graça divina”, a sermos mais pacientes, mentou-o de seis para oitenta capítulos,
esteja dela removido. Pleiteio, porém, humildes, modestos. Se alguns usarem constituindo quatro volumes grandes.
a causa dos piedosos, e, consequen- o Evangelho como um “pretexto para Nada havia nos oitenta capítulos que já
temente, do próprio Cristo... Certa- tumultos”, tendes as leis para puni-los. não estivesse na semente dos seis ca-
mente, Excelência, não desviareis os Mas não culpeis, então, o Evangelho de pítulos. O homem doente de cinquen-
vossos ouvidos e pensamentos de tão Deus. ta anos que mais tarde labutaria para
justa defesa. (...) Esta é uma causa que “Excelência,... não perdemos a espe- concluir a edição final não interpretava
é digna da vossa atenção, ... digna do rança de recuperar o vosso favor se a Palavra de Deus de modo diferente
vosso trono...”. lerdes com calma uma única vez... esta daquele moço de vinte e cinco anos es-
“Que mais direi? Deveis rever, Exce- nossa confissão, que pretende ser nos- condido em Basel.
lência, todas as partes da nossa causa sa defesa perante vossa Majestade. Se Na sua última edição de 1559, as
e considerar-nos pior do que a mais ao contrário, porém, os vossos ouvidos Institutas seguiram a ordem do Credo
abandonada parcela da humanidade estiverem tão preocupados com os co- dos Apóstolos na discussão das “verda-
caso não descobrirdes claramente que chichos dos mal-intencionados a ponto des da religião cristã”. Três das quatro
‘labutamos e nos esforçamos sobremo- de não permitir aos acusados a oportu- edições foram publicadas em latim es-
do, porquanto temos posto a nossa es- nidade de falarem por si mesmos, e se correito. A outra, num francês vívido
perança no Deus vivo’, porque cremos aquelas fúrias afrontosas, com a vossa e magnífico. Nos dias de hoje as Insti-
que ‘a vida eterna é conhecer o único conivência, continuarem a perseguir tutas podem ser lidas em, pelo menos,
Deus verdadeiro e a Jesus Cristo, a com aprisionamentos, açoites, torturas, dez línguas.
quem Ele enviou’. Por causa desta es- confiscações, e chamas, seremos, indu- Foi assim que apareceu a poderosa
perança estamos alguns acorrentados, bitavelmente, como ovelhas destinadas obra que recolheu da Palavra de Deus
outros flagelados com açoites, outros ao matadouro, reduzidos às maiores um completo sistema doutrinário. As
carregados daqui para ali como palha- agruras. Mesmo assim, com paciência, Institutas começaram com Deus, con-
ços, outros torturados cruelmente, ou- possuiremos nossas almas e aguarda- cluíram com Deus e encontraram todas
tros que escapam pela fuga...”. remos a poderosa mão do Senhor, a as coisas em Deus, o Deus triúno. Cal-
Com a mente aguda de exímio ad- qual incontestavelmente se manifesta- vino escreveu com clareza, com uma
vogado, Calvino argui cada acusação rá a bom tempo, mostrando-se armada lógica de advogado. Escreveu eloquen-
levantada contra os Protestantes. Cita para resgatar os pobres das suas afli- temente, como um autor que maneja
as Escrituras abundantemente. Cita os ções e para punir os seus desprezado- com perícia as suas palavras. Escreveu
santos pais da igreja. Sua linguagem é, res, os quais agora exultam amparados brilhantemente, com uma mente que
às vezes, incisiva e forte. Ele está plei- por perfeita segurança. Queira o Se- aprende a inteireza da verdade de Deus

Revista Os Puritanos 2•2009 


Thea B. Van Halsema

como é possível ao homem conhecê-la. edição, ficar às escondidas, por detrás março, Lucanius e seu companheiro du
Escreveu apaixonadamente, com um de porta fechada, usando nome fictício. Tillet haviam saído da cidade. Na estra-
coração devotado inteiramente ao seu “Que o meu objetivo não era a aquisi- da ao sul de Basel, Lucanius tornou-se
Senhor. E escreveu humildemente, por- ção de fama transpareceu no seguinte: Charles d’Espeville, um nome que sig-
quanto sua vida tinha sido resgatada logo após a publicação saí de Basel, e nifica Cidade de Esperança. Du Tillet
do lodaçal do pecado unicamente pela ainda do fato que ninguém lá sabia que tornou-se Louis de Hautmont, que sig-
graça de Deus. eu era o autor”. nifica Montanha Alta.
Ninguém havia escrito assim ante- O pensionista da Srª Klein, Marti- Os senhores Cidade de Esperança e
riormente. E, posteriormente, ninguém nius Lucanius, tinha gasto muito do Montanha Alta estavam a caminho da
conseguiu escrever de maneira a apro- seu tempo na oficina marcada pelo Itália, a terra do papa, sede da Igreja
ximar a magnificência com que Calvino Urso Preto. Estava lendo as provas do de Roma.
expôs as “verdades da religião cristã”. livro cuja página inicial dizia em latim:
Mas João Calvino de Noyon não “João Calvino de Noyon”. Era fevereiro
tomou conhecimento deste sucesso. de 1536. Quando concluiu a revisão,
Extraído do livro João Calvino Era Assim (edição de 1968, pgs
Preferiu, mesmo nos dias da primeira antes do livro aparecer à venda em 41-50) que será publicado pela Editora Os Puritanos em 2009.

Dê o Melhor de Si Enquanto Seus


Filhos São Jovens
William Gurnall
Vocês também falham consigo mesmos quando deixam seus filhos em um estado de ignorância, amontoando
sobre si mesmos as consequências dos pecados deles além dos seus próprios. Quando uma criança quebra um
dos mandamentos de Deus, é pecado dela; mas também é do seu pai se ele nunca a ensinou sobre qual era
o mandamento de Deus. Filhos maus tornam-se cruzes pesadas para seus pais. Quando um pai ou uma mãe
tem que investigar a fonte da maldade até chegar à sua negligência em treinar a criança, cruz é posta sobre
cruz e a carga torna-se insuportável. Pode haver maior pesar nesta vida do que ver seu próprio filho correndo a
toda velocidade para o inferno, e perceber que foi você quem o equipou para a corrida? Oh, faça o seu melhor
enquanto eles são jovens e estão sob seu cuidado constante, para ganhá-los para Deus e colocá-los na estrada
que conduz para o céu.
Ainda mais importante, você falha com o próprio Deus quando cria uma criança ignorante. As Escrituras falam
daqueles que detêm a verdade pela injustiça. Entre outros, isso inclui aqueles pais que escondem o conheci-
mento da salvação dos seus filhos. Qual é o pai que roubaria a casa do seu próprio filho? No entanto é isso que
você faz quando negligencia a educação espiritual dele. Porque você guarda em seu próprio bolso o talento
de ouro que Deus pretendia que você desse a seu filho. Se você não deixar nenhuma herança piedosa, o que
acontecerá quando você morrer, e a verdade do evangelho for enterrada ao lado de seus ossos apodrecidos?
Se você é filho de Deus, então seus filhos usufruem de uma relação mais íntima com o Pai celestial do que as
crianças dos incrédulos. Deus espera que você crie seus filhos assim como você foi criado, e proteja-os, a todo
custo, da educação do diabo. Treinar seus filhos nos caminhos do Senhor não é uma recomendação casual. Sua
recusa em obedecer, seja deliberadamente ou por negligência, será recompensada com um salário extrema-
mente amargo quando você se levantar diante do Rei dos reis no dia do julgamento.

Extraído de www.bomcaminho.com
A fonte original é o clássico puritano de William Gurnall: The Christian in Complete Armour (O cristão com a armadura completa).
Tradução: Juliano Heyse

10 Revista Os Puritanos 2•2009


João Calvino —
Professor de Evangelismo
“Prega a palavra, insta, quer seja oportuno, quer não, corrige, repreende,
exorta com toda a longanimidade e doutrina.” (ITm 4:2).

Dr. J.R. Beeke


no? Em que sentido ele exortava os crentes a pro-
curarem a conversão de todas as pessoas, inclusive

N
ão poucos estudiosos ficam surpresos aqueles que estavam dentro da Igreja, como também
com o título deste artigo. Alguns poderão daqueles que estavam fora dela, no mundo?
dizer que o catolicismo romano manteve Assim como os outros Reformadores, Calvino en-
a tocha evangelística do Cristianismo via sinava evangelismo, de forma geral, por meio da pro-
as poderosas forças do Papado, dos monastérios, e clamação do evangelho e pela reforma da igreja de
da monarquia, enquanto Calvino e os outros Refor- acordo os requisitos bíblicos. Mais especificamente,
madores tentaram extingui-la. Outros irão afirmar
1
Calvino ensinou o evangelismo enfocando a univer-
que João Calvino (1509-1564), o pai da doutrina e salidade do Reino de Cristo e a responsabilidade dos
teologia Reformada e Presbiteriana, foi preponderan- cristãos em cooperarem na extensão deste Reino.
temente responsável pelo ressurgimento da tocha do A universalidade do Reino de Cristo foi um tema
evangelismo bíblico durante a Reforma. 2
frequentemente repetido no ensinamento de Calvi-
Alguns ainda irão creditar a Calvino ser o pai teo- no.6 Nestes ensinamentos ele dizia que todas as Três
lógico do movimento missionário Reformado3. Visões Pessoas da Trindade estão envolvidas na propagação
da atitude de Calvino sobre o evangelismo e missões do Reino.
tem ido desde ao moderado, ao rico suporte do lado O Pai não irá mostrar “apenas em um canto, o que
positivo,4 até quase um silêncio indiferente e ativa a verdadeira religião é, mas Ele enviará Sua voz aos
oposição do lado negativo.5 limites extremos da terra”.7 Jesus veio “para estender
Veja no quadro da próxima página algumas carac- Sua graça sobre todo o mundo”.8 E o Espírito Santo
terísticas daqueles que veem o evangelismo de Calvi- descendo para “alcançar todos os confins e extremi-
no negativamente. dades do mundo”.9 Em suma, uma incontável multi-
Para chegar corretamente à visão de Calvino sobre dão “a qual será levantada por toda a terra”, irá ser
evangelismo, temos que entender o que ele mesmo nascida de Cristo.10 E o triunfo do reino de Cristo irá
tem a dizer sobre esta matéria. Nós devemos olhar se tornar manifesto em qualquer lugar entre as na-
pelo completo escopo da visão de Calvino, tanto no ções.11
seu ensinamento como na sua prática. Neste artigo, Como irá o Deus Trino estender o seu reino atra-
nós iremos imaginar as referências ao evangelismo vés do mundo? A resposta de Calvino envolve tanto a
nas Institutas da Religião Cristã, nos seus comentá- soberania de Deus como nossa responsabilidade. Ele
rios, sermões e cartas. Então, talvez, em futuros arti- diz que a obra do evangelismo é obra de Deus e não
gos, nós possamos olhar o trabalho evangelístico de nossa, mas que Ele usará os Seus servos como Seus
Calvino (1) em seu rebanho, (2) em seu período na instrumentos. Citando a parábola do semeador, Cal-
cidade de Genebra, (3) na grande Europa, e (4) em vino explica que Cristo semeia a sua palavra de vida
oportunidades de missões além mar. Como iremos em todo o lugar (Mt 13:24-30), fazendo crescer Sua
ver, Calvino foi mais evangelista do que é geralmente Igreja não por meios humanos, mas pelo poder celes-
reconhecido. Através de sua instrução e prática, ele tial.12 O evangelho “não cai das nuvens como chuva”,
reacendeu a tocha do evangelismo bíblico e reforma- no entanto ele é “trazido pelas mãos de homens que
do, centrado em Deus. vão onde Deus os mandou”.13 Jesus nos ensina que
Como era o ensinamento evangelístico de Calvi- Deus “usa o nosso trabalho e nos impulsiona para

Revista Os Puritanos 2•2009 11


Dr. Joel Beeke

ser Seus instrumentos no cultivo do pela extensão do reino de Cristo. Como [sem nos dar frutos], isto não é para nós
Seu solo”.14 O poder reside em Deus, Calvino disse: desistirmos, ao contrário, devemos orar e
mas Ele revela a Sua salvação através “Nós devemos diariamente desejar que não duvidar que Ele ouve a nossa voz”.26
da pregação do evangelho. 15
O evange- Deus reúna as igrejas para Ele mesmo, Devemos nos manter em oração,
lismo de Deus causa o nosso evangelis- de todos os lugares da terra”.
22
crendo que
mo.16 Nós somos os seus cooperadores, “Cristo irá manifestadamente exercitar
e Ele nos permite participar da “honra Desde que Deus se apraz em usar o poder que lhe foi dado para a nossa
de constituir Seu Filho governador do nossas orações para completar os Seus salvação e para a salvação do mundo
mundo inteiro”. 17
propósitos, devemos orar pela conver- inteiro”.27
Calvino ensinou que o método or- são dos pagãos. Calvino escreve:
23

C
dinário de “tornar coletiva a igreja” é “Isto deve ser um objetivo em nossos de- Nós devemos trabalhar diligente-
por meio da voz exterior dos homens; sejos diários, de que Deus reúna as igre- mente pelo aumento do reino de
“porque Deus mesmo pode trazer por jas para Ele mesmo de todas as nações Cristo sabendo que nosso trabalho não
sua secreta influência, no entanto ele do mundo; que possa ampliar o seu nú- será em vão. Nossa salvação obriga-
ainda emprega a agência do homem e mero, enriquecê-las com dons e estabe- nos a trabalhar pela salvação dos ou-
desperta em nós uma ansiedade sobre lecer uma ordem legítima entre elas”.24 tros. Calvino diz:
a salvação um do outro”.18 Calvino vai “Nós fomos chamados por Deus nesta
mais longe, chegando a dizer: “Nada Através da oração diária para que condição, para que cada um possa pos-
retarda mais o progresso do Reino de venha o reino de Deus, nós teriormente levar outros à verdade, para
Cristo do que a insuficiência dos mi- “professamos que somos servos e filhos restaurar os desgarrado ao caminho cer-
nistros”.19 Embora a palavra final não de Deus profundamente comprometidos to, para estender a mão de ajuda aos ca-
seja por nenhum esforço humano. É o com Sua reputação”.25 ídos, e dar o que temos ganhado àqueles
Senhor, diz Calvino, que faz “a voz do que não têm”.28

B
evangelho ressoar não apenas em um Nós não devemos ficar desenco­ra­
lugar, porém longe e amplamente atra- jados pela falta de sucesso visível No entanto, não é suficiente para
vés do mundo inteiro”.20 O evangelho no esforço evangelístico mas devemos cada homem estar ocupado com ou-
não é pregado ao acaso às nações, mas persistir orando. tras maneiras de servir a Deus.
pelo decreto de Deus.21 “Nosso Senhor exercita a fé dos Seus fi- “Nosso zelo deve ser ampliado para
lhos; é por isso que Ele não faz tão fa- trazer outros homens”. Devemos fazer
De acordo com Calvino, esta ligação cilmente com Sua mão as coisas que Ele tudo, dentro de nossa capacidade, para
entre a soberania de Deus e a respon- prometeu. Isso é uma coisa especialmen- trazer todos os homens da terra para
sabilidade humana no evangelismo te aplicada ao reino de Nosso Senhor Je- Deus”.29
oferece as seguintes lições: sus Cristo”.
Existem muitas razões porque te-

A
Como evangelistas reformados, Calvino escreve: mos que evangelizar. Calvino oferece
nós devemos orar diariamente “Se Deus passa todo um dia ou um ano as seguintes:

1 3
Pessoas que falham em Teólogos que trazem
Aqueles que veem estudar os escritos de preconcebidas noções
Calvino antes de tirarem sobre Calvino no escopo
o evangelismo suas conclusões. de sua teologia.

de Calvino
2
Pessoas que falham em

4
Críticos, entre os quais
entender a visão do estão aqueles que
evangelismo de Calvino
negativamente são: em seu próprio contexto
afirmam que a doutrina
da eleição exposta por
histórico. Calvino nega o Evangelismo.

12 Revista Os Puritanos 2•2009


João Calvino — Professor de Evangelismo

4 Johannes van den Berg, “Calvin’s Missionary Mes-


Deus nos manda fazer isso. Deus estão constrangidos a se tornar, sage”, The Evangelival Quartely 22 (1950): 174-87;
“Devemos nos lembrar que o evangelho é como o salmista, um verdadeiro “publi- Walter Holsten, “Reformation und Mission”, Archiv
fur Reformationsgeschichte 44,1 (1953): 1-32; Char-
pregado não apenas pela ordenança de citário” da graça de Deus a todos os ho- les E. Edwards, “Calvin and Missions”, The Evangeli-
Cristo, mas pela Sua arguição e direcio- mens.39 Se a salvação é possível para mim, cal Quartely 39 (1967): 47-51; Charles Chaney, “The
Missionary Dynamic in the Theology of John Calvin”,
namento”. 30
um grande pecador, então é possível para
Reformed Review 17,3 (Mar 1964): 24-38.
os outros também. Se eu não evangelizo, 5 Gustav Warneck, Outline of a History of Protestant
·Deus nos direciona pelo exemplo. Como sou uma contradição. Como diz Calvino: Mission (London: Oliphant Anderson & Ferrier, 1906),
pp. 19-20.
nosso gracioso Deus fez conosco, nós de- “Nada pode ser mais inconsistente no que 6 John Calvin, Commentaries of Calvin (Grand Rapi-
vemos estar com nossos “braços esten- concerne à natureza da fé que aquela ds: Eerdmans, 1950ff.), on Psalm 2:8, 110:2, Matt. 6:10,
12:31,John 13:31. (Hereafter the format, Comentary
didos, como Ele fez, aos que estão fora” indiferença que leva um homem a des-
on Psalm 2:8, will be used).
de nós. 31
prezar seus irmãos e manter a luz do seu 7 Commentary on Micah 4:3.
conhecimento... apenas em seu próprio 8 John Calvin, Sermons of M. John Calvin on the

·Nós queremos glorificar a Deus. Ver- coração”.40 Nós devemos, em gratidão,


Epistles of S. Paule to Timothy and Titus, trans. L. T.
(Edinburgh: Banner of Truth Trust reprint, 1983), ser-
dadeiros cristãos desejam estender a trazer o evangelho para outros, não pa- mon on 1 Timothy 2:5-6, pp. 161-72.
9 Commentary on Acts 2:1-4.
verdade de Deus por todo lugar e assim recendo assim, indiferentes ou ingratos a
10 Commentary on Psalm 110:3.
“Deus estará sendo glorificado”.32 Deus pela nossa própria salvação.41 11 T.F. Torrance, Kingdom and Church (London: Oli-
ver and Boyd, 1956), p. 161.

·Nós queremos agradar a Deus. Como Calvino nunca defendeu que a tare-
12 Commentary on Matthew 24:30.
13 Commentary Romans 10:15.
Calvino escreveu: “É um sacrifício de fa missionária estava completa com os 14 Commentary Matthew 13:24-30.
15 John calvin, Institutes of the Christian Religion, ed.
agradecimento a Deus contribuir para a Apóstolos. Ao invés disso, ele ensinou
John T. McNeill and trans. Ford Lewis Battles (Phila-
propagação do Evangelho”.33 Para cinco que cada Cristão deve testificar pela delphia: Westminster Press, 1960), Book 4, chapter 1,
estudantes que foram sentenciados a Palavra o ato da graça de Deus a qual- section 5. )Hereafter the format, Institutes 4.1.5, will
be used).
morte por pregarem na França, Calvino quer um que ele encontrar.42 A afirma- 16 Commentary on Romans 10:14-17.
escreveu: “Vendo que [Deus] emprega as ção de Calvino do sacerdócio universal 17 Commentary on Psalm 2:8.
18 Commentary on Isaiah 2:3.
suas vidas em tão sublime causa como o de todos os crentes envolve a partici-
19 Jules Bonnet, ed., Letters of Calvin, trans. David
de serem testemunhas do evangelho, não pação da igreja, no mistério profético, Constable and Marcus Robert Gilchrist, 4 vols. (New
duvidem que isto é precioso para Ele”.34 sacerdotal e real. Ele comissiona os York, reprint), 4:263.
20 Commentary on Isaiah 49:2.
crentes a confessarem o nome de Cris- 21 Commentary on Isaiah 45:22.
·Nós temos um dever para com Deus. “É to a outros (tarefa profética), para orar 22 Institutes 3:20.42.
23 Sermons of Máster John Calvin upon the Fifthe
muito justo que devamos labutar para o pela salvação deles (tarefa sacerdotal),
Book of Moses called Deuteronomie, trans. Arthur
aprofundamento do progresso do evange- e para discipliná-los (tarefa real). Isto Golding (Edinburgh: Banner of Truth Trust reprint,
lho”, disse Calvino.35 “É nosso dever procla- é a base para a poderosa atividade 1987), sermon on Deuteronomy 33:18-19. (Hereafter
Sermon on Deuteronomy 33:18-19).
mar a bondade de Deus a cada nação”. 36
evangelística por parte da igreja viva 24 Institutes 3:20.42.
“até os confins da terra”.43 25 Institutes 3:20.43.

·Nós temos um dever para com os peca- 26 Sermon on Deuteronomiy 33:7-8.


27 Commetary on Micah 7:10-14.
Dr. J.R. Beeke é pastor da Congregação Reformada
dores. Nossa compaixão para com os pe- 28 Commetary on Hebrews 10:24.
de linhagem Holandesa em Grand Rapids, Michi-
cadores deve ser intensificada por nosso 29 Sermon on Deuteronomiy 33:18-19.
gam (USA).
30 Commentary Matthew 13:24-30.
conhecimento de que “Deus não pode 31 John Calvin, Sermons on the Epistle to the Ephe-
NOTAS:
ser sinceramente invocado por qualquer sians, trans. Arthur Golding (Edinburgh: Banner of
1 William Richey Hogg, “The Rise of Protestant Mis-
Truth Trust, 1973), sermon on Ephesians 4:15-16.
outra pessoa senão por aquelas a quem, sionary Concern, 1517-1914”, in Theology of Chris-
32 Bonnet, Letters of Calvin, 4:169.
tian Mission, ed. G. Anderson (New York: McGraw-
por meio da pregação do evangelho, 33 Bonnet, Letters of Calvin, 2:453.
Hill, 1961, pp. 96-97
foram dados conhecer Sua bondade e 34 Bonnet, Letters of Calvin, 2:407.
2 David B. Calhoun, “John Calvin: Missionary Hero or
35 Bonnet, Letters of Calvin, 2:453.
ternos sentimentos”.37 Consequentemen- Missionary Failure?”, Presbuterion 5, 1 (Spr 1979): 16-
36 Commentary on Isaiah 12:5.
33 — to which I am greatly indebted in this article; W.
te, cada encontro, com outros seres hu- 37 Institutes 3:20.11.
Stanford Reid, “Calvin’s Geneva: A Missionary Centre”,
38 Sermon on Deuteronomiy 33:18-19
manos deve nos motivar a trazê-los ao Reformed Theological Review 42,3 (1983): 65-74.
39 Commentary on Psalm 51:16.
3 Samuel M. Zwemer, “Calvinism and the Missio-
conhecimento de Deus”.38 40 Commentary on Isaiah 2:3.
nary Enterprise”, Theology Today 7, 2 (July 1950):
41 Sermon on Deuteronomiy 24:10-13.
206-216; J. Douglas MacMillan, “ Calvin, Geneva, and
·Nós estamos gratos a Deus. Aqueles que Christian Mission”, Reformed Theological Journal 5
42 Institutes 4.20.4.
43 Sermon on Deuteronomiy 18:9-15
(Nov 1989): 5-17.
estão em débito com a misericórdia de

Revista Os Puritanos 2•2009 13


Esforço para Ser Santo
John Owen
Se quisermos conservar o privilégio e a preeminência das nossas naturezas e pessoas; se
quisermos progredir diariamente para a gloriosa e eterna bem-aventurança; se quisermos
ser verdadeiramente úteis no mundo, então precisamos nos esforçar ao máximo para pare-
cer mais e mais com Deus, O qual é a nossa santificação verdadeira.

Temos que exercitar constantemente a fé e o amor, duas coisas que têm o poder especial de
promover a semelhança de Deus em nossas almas. A fé é uma parte da nossa santificação;
é uma graça que nos foi concedida pelo Espírito Santo; é o princípio regente que purifica o
coração. Ela age eficazmente pelo amor.

Quanto mais se exercitar a fé, tanto mais santos seremos e, por conseguinte, tanto mais se-
melhantes a Deus seremos. As propriedades gloriosas do caráter de Deus são reveladas em
Jesus Cristo. Elas reluzem à Sua face. As gloriosas excelências de Deus são-nos apresentadas
em Cristo e pela fé as contemplamos. Que resulta disso?

Somos transformados na mesma imagem de glória em glória (2Co.3:18). É esse o grande


segredo do crescimento vigoroso para a santidade na semelhança de Deus; é esse o gran-
de caminho determinado e abençoado por Deus. Poremos a nossa fé constantemente no
evangelho, para ver e contemplar as excelências de Deus, Sua bondade, santidade, justiça,
amor e graça conforme reveladas em Jesus Cristo. Deveremos usar e aplicar a nós mesmos e
à nossa condição tudo aquilo que vemos de Deus revelado em Cristo, conforme a promessa
do evangelho. Se abundarmos em fé, temos que progredir firmemente em santidade.

O amor tem o mesmo poder de nos tornar santos. Quem quiser se assemelhar a Deus deve
ter a certeza de que O ama, ou todas as suas tentativas fracassarão. Quem ama a Deus ver-
dadeiramente, se esforçará ao máximo para ser como Ele é. O amor amolda a mente na
fôrma do objeto amado.

O amor ao mundo torna os homens mundanos. Suas mentes e desejos se desenvolvem


terrena e libidinosamente. O amor a Deus torna o homem piedoso. O amor apega-se a Deus
pelo que Ele é em Si mesmo, como revelado em Jesus Cristo. É sempre transformador apro-
ximar-se de Deus por amor e deleite ardentes.

O amor meditará nas excelências de Deus em Cristo (Sl.30:4, 63). O amor admira o ser ama-
do. Assim o amor aplica o seu tempo na contemplação da excelência de Deus vislumbrada
em Cristo. O amor deleita-se em obedecer e agradar ao amado. Os sete anos de servidão
de Jacó por Raquel lhe pareceram curtos e leves por causa do seu amor por ela. O amor diz
a Deus: “agrada-me fazer a tua vontade, ó Deus meu; dentro do meu coração está a tua lei”
(Sl.40:8).

14 Revista Os Puritanos 2•2009


A Morte de Calvino
Se a Casa Terrestre se Desfaz
“Sabemos que, se a nossa casa terrestre deste tabernáculo se desfizer,
temos da parte de Deus um edifício, casa não feita por mãos, eterna, nos
céus.” (2Co 5:1).

Por Thea B. Van Halsema


cama às sete, como é meu costume. Mas é este o fim
de homens gotosos como eu”.

O
homem togado de preto, caminhando Certo dia, em 1562, Calvino ainda encontrou for-
pela rua estreita, parecia mais morto do ça suficiente para sair da cidade. Pela segunda vez,
que vivo, com exceção dos olhos que lu- a tragédia do adultério havia caído sobre o círculo
ziam tão brilhantemente quanto antes. O da sua própria família. Não aguentava ficar na casa
corpo estava meio-morto, estropiado, protestando da Rua do Canhão, por estar tão envergonhado e
e recusando-se a fazer a sua parte. Mas o espírito abatido. Na primeira vez, em 1557, tinha sido Ana,
invencível exigia que o corpo fizesse suas rondas a mulher de Antoine, apanhada em adultério com
diárias. A mente por detrás dos olhos penetrantes Pierre, o mordomo corcunda de Calvino. Pierre ti-
não havia perdido nada da sua vivacidade. nha roubado do seu mestre por uns dois anos — isto
Calvino continuava a ocupar o púlpito de Saint fora descoberto também. Ana tinha sido banida da
Pierre. Lecionava no pequeno auditório junto à Igre- cidade. Antoine conseguiu um divórcio, casando-se
ja. Subia esbaforido os degraus que o levavam às sa- mais tarde. A casa na Rua do Canhão nunca voltou
las de aulas na Academia. Retornava então para casa a ser a mesma.
e para a cama. Secretários cercavam seu leito. Escre- E agora, em 1562, era Judite, a filha de Idelet-
viam as palavras que eram pronunciadas entre fôle- te, a moça que todo mundo respeitava como sendo
gos sôfregos e ásperos. Enviava cartas, especialmente virtuosa e piedosa. Havia casado seis anos antes e
para a França onde a guerra civil ameaçava estourar vivia feliz — e eis que agora comparecia perante o
entre Protestantes e Católico-Romanos. Um novo co- Conselho da igreja, confessando o adultério do qual
mentário foi dedicado. Outro opúsculo foi concluído era acusada. Acabrunhado e envergonhado, Calvi-
sobre uma doutrina controvertida. Despedia-se de no conseguiu chegar até o sítio de Antoine para es-
missionários na véspera de suas partidas. Dava re- conder-se por alguns dias. Voltou depois à Rua do
comendações às igrejas. Livros saíam dos prelos. E o Canhão. Voltou ao trabalho. Quando amigos lhe im-
trabalho assim continuava ininterruptamente. ploravam que descansasse, que parasse, sacudia sua
“Por companhias, por esquadrões, e por ataques cabeça e respondia: “O quê? Gostariam que o Senhor
individuais tenho sido invadido por uma turba de me encontrasse desocupado quando Ele chegar?”.
inimigos”, escreveu Calvino a alguns médicos sobre No domingo, 6 de fevereiro de 1564, Calvino
as suas enfermidades. “Há vinte anos que não vivo ocupava pela derradeira vez o púlpito habitual de
sem dores de cabeça”. Artrite e gota mutilavam-lhe Saint Pierre. Pregava sobre a harmonia dos evange-
as juntas das pernas e braços. Cálculos nos rins, lhos quando foi acometido da tosse. Não conseguiu
grandes demais para serem expelidos, causavam- estancá-la desta vez. O sangue lhe subia quente à
lhe uma agonia imensa. Parecia que um grande boca. Lenta e relutantemente, desceu pela escada
peso jazia sobre o seu peito, causando-lhe dificul- circular, deixando seu sermão inacabado. A congre-
dade em cada respiração. Mas não havia nenhuma gação olhava ansiosamente em silêncio.
queixa deste homem atacado por este exército de Na quarta-feira anterior Calvino tinha pregado
indisposições. Com um humor a toda prova, escre- sobre os livros dos Reis. E, na Academia, na tarde
veu a Beza, que estava viajando: “V. me escreve às do mesmo dia, tinha dado sua última aula sobre Eze-
altas horas da madrugada, ao passo que estou na quiel.

Revista Os Puritanos 2•2009 15


Thea B. Van Halsema

Estava na hora das Sobre a porta pela qual deixou o evangelho... Tanto estendeu a Sua mi-
despedidas prédio dos conselhos de representan- sericórdia para mim que usou-me e o
Primeiramente, ao prédio dos Con- tes estava o lema no escudo de Ge- meu trabalho para... anunciar a verda-
selhos de representantes, onde tinha nebra: Post Tenebras Lux. “Luz Após de do Seu evangelho... Ele mostrar-Se-á
tantas vezes, na derrota ou na vitória, Trevas”. Mais do que qualquer outro o Pai de pecador tão miserável”.
convidado ou não. Foi carregado para homem, Calvino tinha tornado em re- “Os poucos bens terrenos” foram fa-
ali no fim de março. Queria apresentar alidade aquela legenda na cidade junto cilmente distribuídos. Ao “meu querido
ao Pequeno Conselho um novo reitor ao lago. irmão Antoine”, uma taça de prata que
para a Academia. Beza deixaria a reito- E agora a Saint Pierre. Calvino tinha recebido de um amigo.
ria para ser o sucessor de Calvino. Era o domingo da páscoa, dia 2 de Fora um gesto de amor, para que o di-
Não mais havia degraus para subir abril. Calvino foi carregado na sua ca- nheiro ficasse para os filhos de Antoine.
ao terceiro andar, onde se localizava a deira de sua casa na Rua do Canhão e Dez coroas cada, e trinta a cada uma
sala do conselho. Para reduzir o esfor- colocado perto do púlpito donde tinha das filhas — com exceção do sobrinho
ço de Calvino, os Conselhos tinham há pregado centenas de sermões. Beza Davi, o qual receberia somente vinte e
algum tempo construído uma rampa pregava agora. Celebrou-se a Ceia do cinco coroas “por ter sido inconsidera-
no lugar das escadas. Calvino subiu Senhor. Calvino recebeu os elementos do e inconstante”. E se porventura hou-
por ela pela última vez, sustentado por das mãos de Beza. Teria recordado, ao ver mais na minha herança do que es-
amigos em ambos os lados. Era tudo tão sentar-se ali pela última vez, da Páscoa tas coroas, o resto deverá ser também
conhecido: passava-se por uma grande que precedeu seu exílio quando recu- repartido entre sobrinhas e sobrinhos,
sala de espera até a primeira porta da sara celebrar a Santa Ceia por causa da “não excluindo David, caso Deus lhe te-
sala do Pequeno Conselho. Aqui se pos- maldade do povo? nha dado graças para ser mais mode-
tava o arauto no seu leão de madeira e A congregação ergueu-se para ento- rado e sóbrio”. Seis ministros e um pro-
com o seu bordão prateado. Pela pri- ar o último hino. O uníssono comoven- fessor assinaram como testemunhas
meira porta, entrava-se num pequeno te vibrou por todos os cantos da igreja. do testamento em voz alta.
corredor estreito. Neste corredor havia Calvino cantou também, com júbilo em Havia ainda algum tempo para men-
uma íngreme escada espiral que descia sua face. “Agora, Senhor, despede em sagens finais àqueles que prossegui-
a uma das prisões, donde prisioneiros paz o teu servo, segundo a tua palavra” ram no serviço da igreja e da cidade.
eram trazidos para o julgamento. Mais — foi este o hino final. No dia 30 de abril, o Pequeno Con-
adiante, no fim do pequeno corredor, Da sua cama, uma carta final em selho, togados e em cortejo solene,
uma segunda porta que dava entrada à francês foi enviada à Duquesa de Fer- veio à Rua do Canhão, agrupando-se
sala do Pequeno Conselho. Tinha qua- rara na França, animando-a e instan- ao redor do leito de Calvino. Calvino
tro janelas, mesas entalhadas, e, num do-a a ganhar uma sobrinha para a fé novamente agradeceu-lhes por todas
canto, um fogão de tijolos, verde e com Reformada. Uma carta final em latim as suas demonstrações de bondade.
cinco lados, para aquecer a sala. foi enviada a Bullinger, o reformador Pediu-lhes perdão pelos seus momen-
O novo reitor foi apresentado e em- de Zurich, com as últimas notícias da tos de raiva e pelos outros pecados co-
possado. Então Calvino, segurando o França e da Alemanha. Mesmo no seu metidos durante os anos em que tinha
gorro na mão, falou brevemente ao Pe- leito de morte Calvino mantinha um servido. Aconselhou-os, advertindo e
queno Conselho. Agradeceu-lhe as de- olho atento sobre o mundo. Em nenhu- encorajando-os. “Lembrai-vos sempre”,
monstrações de bondade durante sua ma carta fazia menção da morte que se falou-lhes, “que é Deus somente que
enfermidade. Disse que tinha se senti- aproximava. dá forças a estados e cidades”. Orou
do melhor dois dias antes, mas agora Um tabelião foi chamado para fazer ardentemente pelos Conselhos e pela
parecia “que a natureza não aguenta o testamento de Calvino. Não por que cidade. Deu a cada homem a destra de
mais”. O secretário introduziu sua pena havia muito a ser legado. O maior lega- despedida. Os homens saíram do quar-
no tinteiro e escreveu que Calvino fa- do que Calvino tinha recebido não po- to, chorando “como se tivessem recebi-
lou “com grande dificuldade na respi- dia ser contado em dinheiro. Mencio- do a derradeira bênção de um pai”.
ração e com uma gentileza maravilho- nou primeiro. “Em primeiro lugar, dou Os ministros vieram no dia seguin-
sa que quase trouxe lágrimas aos olhos graças da Deus”, falou Calvino enquan- te. Calvino conseguiu encontrar força
dos conselheiros. E foi esta a última vez to o tabelião escrevia. “Ele livrou-me do suficiente para falar-lhes também, e por
que ele veio à sala do conselho”. abismo... e me trouxe para a luz do Seu longo tempo. Fazia reminiscências. Po-

16 Revista Os Puritanos 2•2009


A Morte de Calvino

dia ainda sentir os cães nos seus calca-


nhares, latindo e mordendo sua toga e Morreu em paz, como alguém que pega
pernas, atiçados por cidadãos inconfor-
mados. Podia ouvir os tiros de quarenta no sono. Numa noite de sábado — o fim
ou cinquenta trabucos descarregados
sob sua janela antes da sua viagem para do dia, o fim da semana, o fim de uma
o exílio. E a cena no pátio do prédio dos
conselhos quando os Duzentos tiveram vida. Um grande servo estava agora
um entrevero — tal acontecimento foi
também revivido por Calvino. “Tereis com o seu Mestre.
dificuldades, também, quando Deus me
chamar”, advertiu aos pastores. “Mas
tende coragem... porquanto Deus usará Mas Farel veio assim mesmo, e sen- o cortejo foi ao campo-santo da igreja,
esta igreja e a manterá, e vos promete tou-se junto ao leito daquele a quem o cemitério Planin-Palais fora dos mu-
que Ele a protegerá”. ordenara ficar em Genebra vinte e oito ros da cidade. Professores, ministros,
“Meus pecados sempre me desgosta- anos atrás. Os dois amigos conversa- conselheiros, e cidadãos estavam na
ram... Rogo-vos, que me perdoeis o mal, ram. E o velho Farel, com setenta e cin- grande multidão que seguia o ataúde
e se porventura tenha havido algum co anos de idade, voltou então para sua de pinho. Somente o som de muitos
bem... fazei dele um exemplo”. Quanto casa, caminhando como tinha vindo. passos interrompiam a quietude domi-
à minha doutrina, “Ensinei com fideli- Viveria mais um ano antes de unir-se nical.
dade, e Deus deu-me a graça de escre- ao seu amigo. Calvino tinha pedido no seu testa-
ver tão fielmente quanto estava em Calvino viveu até o dia 27 de maio. mento que “meu corpo... seja enterrado
meu poder”. “Vivi nesta doutrina e nela Orava continuamente, em voz alta ou na maneira usual, para aguardar o dia
quero morrer. Perseverai nela, todos silenciosamente, movimentava os lá- da abençoada ressurreição”. Não hou-
vós”. “Amai-vos uns aos outros. Que bios. Nos estertores, atribulado pela ve, por conseguinte, palavras junto à
não haja inveja”. dor, clamava com frequência: “Por sepultura. Nenhuma pedra foi coloca-
Houve novamente o aperto de mão quanto tempo, Ó Senhor?”. Ou: “Senhor, da para marcar o lugar. Em pouco tem-
para todos. E outra vez a fila de ho- Tu me esmagas, mas eu me conformo po ninguém sabia onde jazia o corpo
mens em pranto saindo para a Rua do de que seja a Tua mão”. de Calvino. A sepultura continua des-
Canhão. Morreu em paz, como alguém que conhecida até hoje.
Havia uma mensagem. A quem não pega no sono. Numa noite de sábado Mas algo maior, alguma coisa viva
senão Farel, o amigo de muitos anos. — o fim do dia, o fim da semana, o fim restou. As idéias e obras do homem de
Farel queria vir. Calvino pensou na ve- de uma vida. Um grande servo estava Genebra continuam poderosamente
lhice do seu amigo e desejava poupar- agora com o seu Mestre. vivas através dos séculos. Inspiradas
lhe a viagem de Neuchâtel. “Adeus, bom Ao ouvir a notícia, o povo de Gene- pela Palavra viva, elas penetraram em
e querido irmão”, escreveu seu irmão bra juntou-se silenciosamente do lado todo o mundo cristão. Por intermédio
Antoine colocando no papel as palavras. de fora da casa da Rua do Canhão. O delas o pregador de Saint Pierre tem
“E por que Deus quer que V. seja o sobre- Pequeno Conselho reuniu-se em sessão ensinado e moldado a igreja de Cristo.
vivente, lembre a nossa amizade, a qual especial. O secretário, tentando regis- Ele tem falado nas vidas de homens e
tem sido útil para a igreja de Deus, e trar os sentimentos dos conselheiros, de nações.
cujos frutos nos aguardam no céu. Não escreveu com sua pena: “Deus o mar- João Calvino era assim, extraordi-
se canse em vir até mim. Já estou respi- cou com um caráter de tanta majesta- nário servo de Jesus Cristo. Era assim
rando com dificuldade, e espero a cada de e altivez”. Nas atas do Conselho da o homem humilde que viveu sob um
hora que o fôlego me falhe de uma vez. igreja, ao lado do nome de Calvino que lema. Soli Deo Gloria, dizia. Glória so-
Basta que eu viva e morra para Cristo, estava marcado com uma cruz, havia mente a Deus.
que é a recompensa para aqueles que estas palavras: “Levado por Deus, no
são d’Ele, na vida e na morte. Entrego-o, dia 27 de maio do ano corrente (1564),
e os irmãos que estão com V., aos cuida- entre oito e nove horas da noite”.
Extraído do livro João Calvino Era Assim (edição de 1968, pgs
dos de Deus. Fielmente João Calvino”. Na tarde de domingo, às duas horas, 198-206) que será publicado pela Editora Os Puritanos.

Revista Os Puritanos 2•2009 17


Como o Princípio Regulador Liberta
Por D.G. Hart
Geralmente, na discussão a respeito da adoração, o Princípio Regulador sempre aparece como
vilão. Ele é restritivo, opressor, confinador, como é geralmente chamado por seus oponentes,
e afinal de contas não é isso que a palavra “Regulador” implica? Regular ou estabelecer regras
para enrijecer o estilo de adoração da Igreja.

De fato, o Princípio Regulador limita a adoração corporativa (que é supervisionada pelo Conse-
lho), ao que a Confissão de Fé de Westminster chama de elementos “Ordinários”: Leitura das
Escrituras, Pregação, Cânticos de Louvor, Sacramentos e Oração. Se nós buscarmos agradar
a Deus na adoração, desde que Ele é nossa “audiência”, não temos outro guia melhor para
agradá-lo ou de como devemos adorá-lo do que a Bíblia. A Bíblia, os Presbiterianos crêem, nos
ordenou a adorar a Deus desta forma e não de outra.

Mas perderemos o elemento fundamental do Princípio Regulador se nos esquecermos que o


seu propósito maior é proteger a liberdade de consciência. A Confissão de Fé de Westminster
nos ensina que “Deus somente é o Senhor da consciência” e “a deixa livre das doutrinas e man-
damentos dos homens, os quais são de alguma forma contrários à Sua Palavra como também
em matéria de fé e adoração”. Esta afirmação é o outro lado da moeda, de que nós só podemos
adorar a Deus como Ele ordena. Se um Conselho inclui no culto alguma coisa não ordenada
por Deus, então está escravizando a consciência daqueles que se reuniram para adoração. So-
mente o Senhor pode escravizar nossa consciência e nós sabemos que sob o Seu Senhorio nós
encontramos verdadeira liberdade. Mas quando a Igreja tenciona uma prática para a qual não
pode encontrar clara sustentação bíblica, então estará usurpando o Senhorio de Cristo, neste
caso. Se a igreja não é capaz de dizer sobre a sua adoração prática: “Assim diz o Senhor”, então
ela está substituindo os mandamentos de Deus pelo dos homens.

Ao reconhecer a estreita conexão das doutrinas do Senhorio de Cristo e Liberdade Cristã, isso
livra o Princípio Regulador da sua refutação negativa. Ao invés de restringir o que fazemos na
adoração ele de fato, protege a liberdade individual dos cristãos da tirania da sabedoria huma-
na. Colocando-o de forma diferente, o Princípio Regulador coloca limites sobre o que os oficiais
da igreja podem requerer na adoração pública; mas concede ao crente a liberdade de recusar
as práticas não sustentadas nas Escrituras. Assim, enquanto esta doutrina significa que o Con-
selho não pode usar estandartes na adoração (uma violação do 2º mandamento), isto também
livra o crente, incluindo ministros e presbíteros, de serem forçados a adorar numa igreja cheia
de apetrechos e estandartes.

Como J. David Gordon escreveu:“‘Algumas respostas acerca do Princípio Regulador’ no West-


minster Teological Journal (out/93). O Princípio Regulador é acima de tudo uma doutrina ecle-
siológica que é designada para proteger a liberdade de consciência do abuso de poder da igre-
ja”. A questão não é fazer distinção como a Bíblia regula a adoração e como ela regula o resto
da vida cristã, mas seu único propósito é distinguir entre aqueles aspectos da vida governada
pelos presbíteros da igreja e aqueles que não são sujeitos ao poder da igreja. Aos oficiais da
igreja foi dada a responsabilidade de supervisionar a adoração corporativa segundo o ensino
bíblico. Nesta solene obrigação, o Princípio Regulador instrui que eles devem ter muito cuida-
do para não abusar das prerrogativas do seu ofício.

18 Revista Os Puritanos 2•2009


Batalha Espiritual
Com Armas Espirituais
“Porque a nossa luta não é contra o sangue e a carne, e sim... contra as
forças espirituais do mal.” (Ef 6:12)

Dr. David Murray


foram mortos porque Deus era mau. Não devemos
pensar que as ações de Deus são arbitrárias, capri-

“P
orém, das cidades destas nações que o Se- chosas, ou intempestivas. Como podemos ver, havia
nhor, teu Deus, te dá em herança, não dei- um propósito sábio, previamente pesado e elabora-
xarás com vida tudo o que tem fôlego” — do por trás da ordem para matar os Cananeus. Além
Dt. 20:16 disso, devemos discordar daqueles que explicam esta
ação afirmando que Deus mudou entre o Antigo e o
Em Deuteronômio, Deus ordena que os israelitas Novo Testamentos — de irado para amável, de enco-
removam uma série de nações e povos da Terra Pro- lerizado para gracioso. Deus é imutável em Seu ser.
metida matando todos os homens, mulheres, e crian- O que então podemos dizer em defesa da ordem
ças que vivessem ali. A dificuldade de vindicar Deus de Deus e das ações do povo de Israel? Eu gostaria de
por esta ordem, e a Seu povo por esta ação surgiu falar sobre dez pontos:
numa carta que recebi. Como ela nos dá um claro
resumo desta dificuldade e das questões que ela pro- 1. Os Cananeus foram um dos povos
voca, irei citar parte dela: mais perversos que já existiram
Ainda estou desconcertado com o difícil problema Há alguns anos, os historiadores e arqueólogos des-
de Jericó... Minha dúvida poderia ser: por que os is- cobriram numerosos vestígios e artefatos que clara-
raelitas foram tão agressivos? Estou certo de que na- mente retratam o fosso moral, social e espiritual em
queles dias havia bastante terra para todos; foi real- que os Cananeus submergiram. Eles eram inimagi-
mente necessário pinicar uma cidade inteira deixan- nável e inadjetivamente depravados. Na pontuação
do apenas uma família? Sim, eu sei que a penalidade geral, eles provavelmente ocupam o terceiro lugar da
para o pecado é a morte, mas eles não podiam pelo pior raça que já existiu — depois da geração de Noé
menos ter tentado convertê-los? Essa atitude assas- e do povo de Sodoma e Gomorra. E, como tais, longe
sina é a mesma que os muçulmanos tiveram quando de serem inocentes vítimas de uma injusta e cruel po-
Maomé tentou desesperadamente iniciar sua religião. lítica estrangeira, eram um câncer moral que amea-
Essa é uma das histórias que muitas pessoas usam çava toda a raça humana. A maior bondade que Deus
para pregar contra o Cristianismo, especialmente poderia fazer com a humanidade, então, era extirpar
muçulmanas. Como podemos chamar os muçulma- cada ramo e raiz deste povo perverso, cujo estilo de
nos de sanguinários? Como podemos nos intitular vida pedia um julgamento divino amplo, internacio-
pacificadores? Se temos no Antigo Testamento exem- nal. Além do que, Deus deu aos Cananeus centenas
plos da destruição de Jericó por Israel, não devería- de anos para que se arrependessem (Gn 15:16). Deus
mos também degolar os incrédulos? lhes deu tempo, mas um dia a hora chegou. A medida
A questão, então, é: “Devemos matar nossos ini- da iniquidade desse povo estava transbordando, e en-
migos espirituais?” Ou, no contexto de nosso corres- tão, em razão disto, sobreveio a ira e o juízo de Deus.
pondente: “Devemos matar os muçulmanos e outros Mas, embora isto demonstre a santa justiça divina,
fortes opositores do evangelho?”. Primeiramente, al- vemos a misericórdia de Deus ao oferecer paz para
gumas negativas. Os Cananeus não morreram porque muitas das cidades Cananitas em derredor (Dt 20:10-
Israel era bom. Israel foi especificamente proibido de 11). Se elas se rendessem a Israel, seriam poupadas.
chegar a essa conclusão (Dt 9:4). Nem os Cananeus E, mesmo se não o fizessem, Israel iria poupar as mu-

Revista Os Puritanos 2•2009 19


David Murray

lheres e as crianças destas cidades. contra Deus. A conquista dos cananeus te necessário que morressem? Bem,
Podemos ver aqui uma figura da é uma causa de rebelião pecaminosa tem sido mostrado que as crianças
graça do evangelho para os homens e em você? Quanto mais abandonarmos seguem os hábitos e costumes de seus
mulheres perversos e vis de toda par- nossa visão míope do pecado e enten- pais, mesmo tendo sido separadas de-
te? Deus tinha anunciado a sentença dermos mais e mais de sua verdadeira les ainda muito novas. Mesmo hoje, em
de juízo sobre toda a raça humana: natureza, mais iremos compreender alguns lugares no mundo árabe, pode-
“A alma que pecar, essa morrerá” (Ez não só a conquista dos cananeus, mas mos ver o poderoso efeito da doutri-
18:4). Contudo, no evangelho, os ter- a graça que poupou e salvou a nós, que nação anti-semita na mais tenra idade.
mos de misericórdia e paz são sussur- também merecíamos juízo e morte. Qualquer dessas crianças cananitas
rados àqueles que têm ouvidos para poderia ter se tornado um Faraó ou um
ouvir. Você aproveitou essa oportuni- 3. A honra dos atributos de Nabucodonossor.
dade para se render? Deus estava em jogo Deus é o Oleiro e nós somos o bar-
Uma das consequências do estilo de ro. Devemos, portanto, estar dispostos
2. É exposta aos israelitas a vida cananeu — quer dizer, “estilo de a sermos usados e modelados por Ele
excessiva vileza do pecado morte” — era que ele punha o caráter para exibirmos Seus atributos (Rm
Nesses campos de morte, os israelitas de Deus em desafio. As pessoas viam 9:21-23). A honra de Deus é mais im-
aprenderam de uma maneira nova e o que os cananeus estavam fazendo, portante do que a nossa. O caráter de
impossível de esquecer que “o salário sem qualquer aparente consequência, Deus é mais importante que o nosso
do pecado é a morte” (Rm 6:23). Eles e concluíam: “Deus não pode ser san- conforto.
viram diante de seus olhos o sangue to se Ele não age contra esse tipo de
e as consequências fatais de se pecar comportamento”. Ou eles podiam di- 4. Essa pode ter sido a
contra Deus. Mas, alguém dirá: Por que zer: “Se Ele é santo, não deve ser pode- maneira de Deus salvar
foi necessário matar com as próprias roso, porque nós não vemos ação divi- algumas almas
mãos? Por que Deus não enviou um de- na evidente”. O caráter de Deus estava Apesar do terrível fim destes filhos
sastre natural — digamos, uma praga em xeque, e a conquista dos cananeus dos cananeus neste mundo, não custa
ou uma inundação? Bem, Deus execu- ajudou a restaurá-lo aos olhos do povo. considerarmos a possibilidade de que
tando de forma pessoal os povos ím- Posteriormente, os espectadores pode- se eles eram crianças eleitas, talvez
pios, Israel entenderia melhor Seu ódio riam concluir com convicção: “Deus é estivessem separadas, longe dos maus
pelo pecado. Ao invés de ouvir a notícia santo e poderoso”. — de uma vida de abuso e depravação
de milhares de mortes em terras e cida- Mas, se pode dizer: “A morte de mu- seguida de uma eternidade no inferno.
des distantes, as mortes dos cananeus lheres e crianças não foi uma mancha As crianças cananitas eram frequente-
foram uma experiência diária, exausti- nos atributos de Deus?”. A história de mente forçadas à prostituição cúltica,
va e angustiante. Imagine que terrível Israel revela que, com frequência, as sodomia, sacrifício a ídolos, e outras
despertar sabendo que matar a sangue mulheres pagãs representavam mais práticas indizíveis. A morte precoce as
frio homens, mulheres e crianças será perigo do que os homens. Todos os pouparia destes traumas.
a atividade do dia. Imagine como era ir poderes de Balaão e Balaque não pu- E também, se cremos que há uma
dormir depois de um dia neste serviço, deram tocar em Israel, em Números idade da razão nas crianças, antes da
sabendo que havia ainda muitos destes 22-24, mas apenas um capítulo depois qual elas não prestam contas a Deus
dias pela frente. Quanto espanto e te- lemos sobre como as mulheres moa- por suas respostas ao evangelho em
mor ensinou a Israel a respeito da vile- bitas conseguiram fazer Israel pecar razão de serem mentalmente incapa-
za do pecado; pecado que requer uma (Nm 25:1-5; 31:15-16). A virtude das zes, então podemos ver que a conquis-
tal justiça! mulheres é frequentemente uma das ta dos cananeus pode muito bem ter
Uma das razões por que as pesso- principais barreiras da imoralidade na sido a maneira usada por Deus para
as são incapazes de compreender a sociedade. Mas, quando ela é removida, salvar muitas crianças não só de uma
necessidade da conquista dos cana- as mulheres se tornam mais perigosas vida traumática no mundo, mas tam-
neus é a inaptidão para entender quão do que os homens e, como podemos bém de uma eternidade de tormento
odioso e digno de punição é o pecado. ver ao nosso redor, a degeneração da no inferno. Talvez haja crianças cana-
A conquista dos cananeus aconteceu sociedade acelera. nitas no céu exatamente agora, agrade-
em razão de sua rebelião pecaminosa E quanto às crianças? Era realmen- cendo a Deus por terem sido ceifadas

20 Revista Os Puritanos 2•2009


Batalha Espiritual com Armas Espirituais

na infância, antes de se tornarem cul- Deus para este mundo gira em torno encarar o Pentecostes como único, um
padas e capazes de responder por seus de Cristo. Tudo o mais é secundário. evento que não se repete, e que foi ne-
pecados. Sua vida conduz para, centra-se, flui e cessário para impulsionar a igreja do
Você pode talvez viver uma vida lon- gira em torno do Senhor Jesus? Tudo o Novo Testamento dando-lhe sinais e
ga e privilegiada. Diferentemente des- mais é secundário para você? maravilhas que confirmavam as verda-
sas crianças cananitas, você pode ter des pregadas pelos apóstolos.
sido abençoado com muitas bênçãos 6. Deus às vezes ordenou
materiais e espirituais. Mas o que você que outras nações guerreas- 8. Devemos nos maravilhar
tem feito com elas? Lembre-se de que sem contra Israel da longanimidade de Deus
você terá de prestar contas. “Àquele a As guerras do Antigo Testamento eram hoje
quem muito foi dado, muito lhe será frequentemente uma forma de juízo. Ao vermos o justo juízo de Deus recair
exigido” (Lc 12:48). Era a maneira usada por Deus para sobre os cananeus em razão dos peca-
punir os malfeitores. Como tal, Israel dos deles, devemos nos maravilhar de
5. A linhagem física do não estava isento. Houve tempos em que Ele não nos visite de uma forma
Messias prometido estava que Deus ordenou a outras nações que mais severa hoje. Muitas das ímpias
sob grande ameaça guerreassem contra Israel, para que práticas cananitas estão entre nós. Há
Israel reivindicou a Terra Prometida eles aprendessem a não desprezar o uma maré repleta de sangue de aborto
para formar ali uma nação segura, e favor de Deus (Jr 4:19-31). varrendo milhões de bebês por ano. Há
uma nação segura era necessária se o “Aquele, pois, que pensa estar em o homossexualismo que é agora não
Messias prometido eventualmente nas- pé veja que não caia” (1Co 10:12). Es- somente tolerado, mas promovido pela
cesse ali. É por isto que somente seis tejamos alerta quanto a desprezar o legislação, em nossas escolas, e mes-
ou sete nações e povos que ocupavam favor de Deus. Estejamos avisados de mos em algumas igrejas. Há as falsas
a Terra Prometida deveriam ser exter- que Deus irá castigar mesmo aqueles a religiões às quais se dá tratamento
minados, e aos outros povos distantes quem ama, se for necessário. preferencial sobre a religião verdadei-
se ofereceu paz. ra de Cristo. Há a blasfêmia que enche
Contudo, pode-se perguntar: por 7. Foi uma exigência em um os canais de TV. Há a pornografia que
que Israel não fez fronteira com os ca- período único da história está destruindo muitos casamentos e
naneus? Como nosso correspondente redentiva jovens.
escreveu, não havia terra em abundân- No desdobramento do plano de Deus, Oh, que longanimidade de Deus! Oh,
cia? Bem, a Escritura frequentemente há eventos que acontecem de uma vez que paciência! Oh, quão tardio Ele é
registra os cananeus como agressores. por todas e jamais se repetem (ex.: a para irar-se! Contudo, talvez com o ter-
A ação de Israel estava parcialmente criação, o Êxodo, a entrega da lei no rorismo islâmico estejamos começando
baseada na premissa: “Matar ou mor- Sinai, a morte de Cristo, o Pentecostes, a ouvir, ao longe, o sussurro do juízo
rer. Exterminar ou ser exterminado”. etc). A isto devemos acrescentar tam- divino. Talvez isto seja a nova Babilô-
Se Israel não os conquistasse, teria bém a conquista da Terra Prometida. nia que, como a antiga, resultará numa
sido conquistado, a descendência do A agressiva guerra santa requerida foi diminuição das liberdades pessoais e
Messias estaria em risco, e com ela a limitada a nomeadamente sete nações um cativeiro de terror nacional. Pense
salvação de pecadores em toda parte. em um período especial na história sobre o terror que nos ronda em casa
A despeito do amor pela humanidade, quando o povo de Deus estava se orga- e em nível mundial. Estes sussurros
as ameaças físicas à segurança de Is- nizando como nação. não estão se tornando altos? O trovão
rael deveriam ser removidas. Não era Devemos ser cuidadosos ao fazer- não está se aproximando? Oh, que a
para “salvar nada do que respira” a fim mos exceções às regras. Devemos estar longanimidade de Deus possa conduzir
de que, posteriormente, muitos pudes- alertas para o perigo de se fazer de uma todos nós ao arrependimento!
sem ser salvos (Dt 20:18). Era melhor exceção temporária o padrão da vida
que algumas vidas perecessem do que cristã. Se o fizermos, iremos “deturpar 9. Uma idéia do juízo final é
a verdade de Deus, o Messias de Deus, as Escrituras” para nossa própria des- vividamente posta perante
e a igreja de Deus desaparecessem. truição (2Pe 3:16). Os erros das igrejas todos
A história completa conduz para, carismáticas na área dos dons do Es- Deus é descrito na Escritura como um
centra-se, e flui do Messias. O plano de pírito Santo são resultado da falha em “homem de guerra” (Ex.15:3) e o Senhor

Revista Os Puritanos 2•2009 21


David Murray

das hostes (“exércitos”). Esta imagem na conquista dos cananitas, quantos de uma maneira agressiva (Jo 18:36).
de guerra é perpetuada no Novo Testa- seriam salvos e poupados! Que a con- Mas Ele não deixa Seu povo vulnerável.
mento quando se fala dos eventos que sideração a respeito da conquista ca- Ele provê para Seu povo tanto armas
conduzem e abarcam o juízo final (2Ts nanita possa salvar você de Cristo, o de defesa quanto de ataque, feitas não
2:5-20; Ap 16:16). Em outras palavras, Conquistador. de metal, mas, da verdade, paz, fé, etc.
a conquista dos cananeus é uma prévia (Ef 6:13-17).
da conquista final de Cristo, armado 10. As armas de nossa ba- Ora, os cristãos devem matar os
com Sua espada afiada e vestido com talha não são carnais, mas, mulçumanos para fazer avançar a igre-
Suas vestes manchadas de sangue (Ap espirituais ja de Cristo? É claro que não. Devemos
19:11-16). Como já dissemos, este período de travar luta espiritual contra suas cren-
Você está pronto para esta batalha conquista estava limitado no tempo. ças com armas espirituais (2Co 10:4-5).
final? De que lado você vai ficar? Você As armas daquela época devem ser Eles podem vir a nós com bombas, mu-
estará com o Conquistador ou com os embainhadas, desamoladas e que- nição e terror. Nós iremos com o indes-
conquistados? Se algumas almas esti- bradas. A igreja do Novo Testamento trutível poder da Palavra, do amor e da
vessem mais preocupadas com e inte- não tem o direito de tomar a espada paz. É claro que pode ser necessário
ressadas na conquista de Cristo do que para fazer avançar a causa de Cristo para uma nação tomar ações militares
para proteger os cidadãos confiados
ao seu cuidado (Rm 13:3-4). Mas isto
não deve ser confundido com a respos-

Confissão de Fé Belga
ta dada pelos cristãos e pelas igrejas à
hostilidade islâmica. A resposta corre-

Artigo 7/1 ta é amar os muçulmanos “até a mor-


te” — amá-los até que sejam, um a um,
convertidos a Cristo, e o Islã chegue ao
A Sagrada Escritura: Perfeita e Completa fim. Então, seria melhor dizer, “amá-los
até a vida”.
Deixe o mundo inteiro saber que os
cristãos são os maiores amigos dos mu-
Cremos que esta Sagrada Escritura contém
çulmanos, os maiores amigos dos cató-
perfeitamente a vontade de Deus e suficiente-
licos romanos, os maiores amigos do
mente ensina tudo o que o homem deve crer Estado secular — mesmo que eles nos
para ser salvo [1]. Nela, Deus descreveu, por ex- tratem como se fôssemos seus maiores
tenso, toda a maneira de servi-Lo. Por isso, não inimigos e desejássemos vê-los exter-
e lícito aos homens, mesmo que fossem após- minados. Vamos a eles com um Cristo
tolos “ou um anjo vindo do céu”, conforme crucificado e ressurreto. Declaremos:
diz o apóstolo Paulo (Gálatas 1:8), ensinarem “Viemos a vocês com o Cristo que diz:
outra doutrina, senão aquela da Sagrada Escri- ‘Eu vim para que tenham vida, e vida
tura [2]. É proibido “acrescentar algo a Palavra em abundância’ (Jo 10:10). Viemos a
de Deus ou tirar algo dela” [3] (Deuteronômio vocês com o Cristo que amou aque-
12:32; Apocalipse 22:18,19). Assim se mostra les que o torturaram até à morte: ‘Pai,
claramente que sua doutrina é perfeitíssima e, perdoa-lhes, porque não sabem o que

em todos os sentidos, completa [4]. fazem’ (Lc 23:34). Nós O colocamos pe-
rante vocês e dizemos: ‘Vejam e vivam’
Oh, religiões falsas, vejam o Cristo in-
1
2Tm 3:16,17; 1Pe 1:10-12. 1Co 15:2; 1Tm 1:3. Dt 4:2; Pv 30:6; At
2 3
comparável e digno de toda honra!”
26:22; 1Co 4:6. 4 Sl 19:7; Jo 15:15; At 18:28; At 20:27; Rm 15:4.

Dr. David Murray ensina Antigo Testamento a Teologia Prá-


tica no Puritan Reformed Theological Seminary em Grand
Rapids, Michagan, E.U.A.

22 Revista Os Puritanos 2•2009


Cristianismo Prático
Com Armas Espirituais
“Portanto tomai toda a armadura de Deus, para que possais resistir no dia
mau e, havendo feito tudo, permanecer firmes” (Ef 1:13).

Rev. W. Macleod
gumentar mais fortemente? Se nós não amamos os

C
nossos co-irmãos, somos assassinos.
onflito e Divisões
Nós não podemos esperar bênçãos se existe Um grande testemunho ao mundo
conflito em nosso meio. É um sinal do baixo Foi dito da igreja primitiva: ”Vejam como eles se
nível do cristianismo em nossos dias que amam”. Muitos seriam naturalmente atraídos para o
existam tantas brigas e desvios no meio de todas as cristianismo por esta razão. Em nossos dias de ego-
denominações cristãs. Naturalmente isto não é novi- ísmo, quando a maioria está procurando o que pode
dade. Paulo teve que rogar a Evódia e Síntique que conseguir ao invés de o que pode dar, quando os ca-
haviam sido suas colaboradoras “... que pensem con- samentos estão se desmanchando por todos os lados,
cordemente, no Senhor” (Fp. 4:2). Corinto era uma quando muitos receiam comprometer-se com rela-
igreja que tinha sido ricamente abençoada, contudo cionamentos duráveis e quando um grande número
havia uma ameaça para bênçãos adicionais no meio está desesperadamente solitário e anela por afeições,
deles: “Refiro-me ao fato de cada um de vós dizer: Eu certamente a igreja tem algo a oferecer? Jesus dis-
sou de Paulo, e eu, de Apolo, e eu de Cefas, e eu, de se: “Novo mandamento vos dou: que vos ameis uns
Cristo. Acaso está Cristo dividido? Foi Paulo crucifi- aos outros; assim como eu vos amei, que também vos
cado em favor de vós ou fostes, porventura, batizados ameis uns aos outros. Nisto conhecerão todos que
em nome de Paulo?” (1 Co. 1. 12, 13). Não há lugar são meus discípulos: se tiverdes amor uns aos outros”
para partidos e divisões na igreja. O apóstolo suplica: (Jo. 13: 34, 35). Estamos causando o impacto que
“Rogo-vos, irmãos, pelo nome de nosso Senhor Jesus deveríamos? Jesus coloca seu próprio amor como
Cristo, que faleis todos a mesma coisa e que não haja exemplo para nós.
entre vós divisões; antes, sejais inteiramente unidos, “Como eu vos amei”. Este é na verdade um alto
na mesma disposição mental e no mesmo parecer” (v. padrão. Ele nos amou enquanto éramos ainda peca-
10). Certamente este é o ideal que devemos perseguir dores. Ele nos amou quando nós o odiávamos. Mes-
com toda nossa força. mo depois de nascer de novo nós o entristecemos
por meio dos nossos pecados. Contudo, Ele nos amou
Uma marca de graça tanto que morreu por nós. Devemos amar aqueles
Há certas coisas que são verdade para todos os fi- que pecam contra nós com esta espécie de amor des-
lhos de Deus. João especifica: “Nós sabemos que já prendido. Aqui não há lugar para ressentimentos.
passamos da morte para a vida, porque amamos os
irmãos” (I Jo. 3:14). Esta é uma grande marca distinti- Orgulho
va do Cristão. Nós deveríamos ter fortes perspectivas, João fala de um homem chamado Diótrefes “que gos-
deveríamos lutar seriamente pela fé. Nós estamos ta de exercer a primazia” (3 João 9). Estes tais exis-
ligados à obrigação de repreender a conduta peca- tem em todas as épocas. Eles têm ciúme de qualquer
minosa, mas, devemos também amar os irmãos. “... possível rival que seja elogiado. Eles gostam de der-
Aquele que não ama [seu irmão] permanece na morte. rubá-lo. Uma vez que todos concordem com eles, es-
Todo aquele que odeia o seu irmão é assassino; ora, tão felizes e bem humorados. No entanto, se alguém
vós sabeis que todo assassino não tem a vida eterna discorda deles, ou sugere um modo de agir diferen-
permanente em si” (I Jo. 3:14, 15). Poderia João ar- te, eles sentem-se ofendidos. A ninguém é permitido

Revista Os Puritanos 2•2009 23


W. Macleod

questionar sua sabedoria. Se alguém nossas igrejas, mas, também em nós


demonstrar que eles podem estar erra- como indivíduos. Parte da sua obra Unidade na
dos e revela a franqueza da sua posi- de santificação é encher os santos de
ção, então ficam zangados. É espantoso amor uns pelos outros. O Cristão mais Adoração
ver quão prontos e dispostos estamos santo é o que ama mais. Aqueles que
em orar para confessar que somos pe- estão constantemente altercando com Dr. David Murray
cadores, mas, quão insultados ficamos outros mostram que fizeram pouco
quando qualquer um dos nossos peca- progresso na estrada do cristianismo. Qual é a consequência quan-
do as pessoas estão seguindo
dos é apontado. Tome cuidado ao aceitar alegações
várias regras quanto ao culto?
não provadas ou falar sarcasticamente A consequência é a divisão da
Deixando uma igreja “pelas costas” de um irmão ou ridicula- igreja de Cristo! Cada igreja
Houve um tempo quando era raro al- rizá-lo. Necessitamos da poderosa gra- faz aquilo que agrada aos seus
próprios olhos. Um dia você
guém deixar uma igreja, mas, hoje as ça de Deus porque jamais seremos os
entra em uma igreja, outro
pessoas levantam-se e saem pelo menor cristãos amorosos que deveríamos ser, dia em outra igreja, e percebe
motivo. Mas, não é isto o pecado do cis- sem ela. Não apenas devemos evitar al- uma diferença enorme entre
ma? Devemos naturalmente separarmo- tercação um com outro, mas somos po- elas (no culto). Uma diferença
tão grande que estas igrejas
nos de uma igreja que tolera heresia ou sitivamente devedores de desenvolver
nunca chegarão a se reunir
imoralidade, mas, nesse caso, os cismá- laços de amor mais e mais apertados para adorar juntas. Todas
ticos são os que praticam estes males com todos os cristãos. Cuidemos uns aquelas regras não bíblicas
e se recusam a cumprir a disciplina dos outros. Aprendamos a carregar têm levado a Igreja às chama-
bíblica. Todavia, deixar a igreja apenas os fardos uns dos outros. Sejamos pa- das guerras litúrgicas. Imagi-
nemos se todas as igrejas no
porque alguém nos contraria ou pisa cientes uns com os outros. Tentemos
Brasil tivessem uma reunião
nosso pé, ou deixa de cumprir um dever sempre dar a melhor interpretação a portas fechadas e disses-
para conosco, é pecar contra o corpo possível às ações dos outros para nós sem: “Vamos abrir a Bíblia e,
de Cristo. Todos nos sentimos tentados, e desculpar suas faltas. A caridade ou baseados na Palavra de Deus,
vamos decidir o que Deus or-
às vezes, a resignar e sair, mas, aquela amor cobre e desculpa uma multidão
dena para estar presente em
ação é muitas vezes uma expressão da de pecados (1 Pedro 4:8). nossos cultos; se acharmos
humildade que glorifica a Deus. alguma coisa que é ordenada
Ansiamos ardentemente na Bíblia, isso estará presente;
Obstinação por um avivamento se não acharmos uma orde-
nança para determinado ato
Algumas pessoas são, por natureza, mal Ansiamos ardentemente por aviva- de cu lto, isso fica fora”. Não
humoradas. É sua tentação constante mento em nossas igrejas, mas há obs- temos dúvida de que muitas
e não tratam facilmente com ela. Por táculos ao avivamento. Um destes é a coisas seriam colocadas fora.
qualquer coisa sentem-se desvaloriza- falta de amor entre os cristãos. Vamos Mas, imaginemos se depois
dessa decisão as portas fos-
das e que todos estão contra ela. Elas nos acautelar contra divisões no meio
sem abertas e todos se reu-
ruminam alguma palavra que lhes fo- de nós como denominação. Quão fa- nissem para uma adoração
ram ditas ou acontecimentos ocorridos. cilmente elas se levantam! Amemos a conjunta. Todos eles estariam
Isso as torna miseráveis e deprimidas. verdade e permaneçamos firmemente na “mesma página”. Talvez
isso requeresse algum tempo,
Acham difícil regozijar-se no Senhor e no que é correto, mas vamos também
mas todos chegariam ao mes-
sorrir alegremente para todo mundo. amar um ao outro. Em nossas igrejas mo ponto. Isso uniria as igre-
Elas devem, entretanto, buscar a graça locais vamos pôr no seu lugar todas as jas de forma extraordinária e
de Deus para derramar suas indisposi- disputas mesquinhas; amar e respeitar impressionante. Impressiona-
ções perante Ele e deixá-las lá, e amar um ao outro, ver as nossas próprias ria o mundo! Isso impactaria
o mundo mais do que nossas
aqueles que a magoaram. faltas mais claramente do que as dos
divisões estão fazendo.
outros e orar e trabalhar juntos para o
Entristecendo o Espírito advento do reino.
Parte da palestra proferida pelo Dr. David Murray
É possível entristecer o Espírito San- sobre Adoração Reformada, no Simpósio Refor-
Rev. Willim Macleod é um ministro da igreja livre da Escócia
mado Os Puritanos/julho/2009 .
to, fazendo-o retirar de nós a sua pre- (Continuing) em Portree na ilha de Shye, Escócia, e editor da
Free Church Witness da qual este artigo é adaptado.
sença experimentada. Ele habita em

24 Revista Os Puritanos 2•2009


A Despedida é uma
Tão Doce Tristeza?
“Convém-vos que eu vá.” (Jo 16:7)

David Murray
da por algum tempo. Como Ele sentiria falta deles e
quanta dor lhe causaria antecipadamente!

“A
despedida é uma tão doce tristeza” é das Esse pensamento amargo em ter saudade de seus
frases mais citadas de Shakespeare. O que discípulos, foi adocicado por Cristo pelo conhecimen-
poucos percebem, no entanto, é que foi to de que Ele estava indo aos céus onde todas suas
produzida no contexto de Julieta dizendo dores e tristezas seriam finalizadas. Ele estava indo
boa noite a Romeu, “até que seja amanhã”. A triste- para ficar com seu povo glorificado, onde amizade e
za da despedida foi adocicada pelo conhecimento de comunhão seriam perfeitas. Para Cristo isto de algu-
que era apenas por algumas horas. Mas, e aquelas ma forma adocicaria a tristeza da despedida.
despedidas de queridos que se vão por anos e anos?
Não há nada doce em tais despedidas, mas algo mui- A Dor de Causar-lhes Dor
to amargo. Que tristeza incomum quando o marido Segundo, havia a dor de causar algo doloroso ao seu
moribundo, em sua última despedida, tem que beijar rebanho. Jesus não era egoísta. Ele não desconsiderava
sua esposa e filhos! Que amargura quando os solda- aqueles a quem deixaria para trás. O Senhor se pre-
dos americanos à caminho do Iraque têm de dizer ocupava profundamente com seus discípulos e faria
adeus a seus amados! Que agonia quando um pastor qualquer coisa que não desobedecesse a seu Pai a fim
e seu amado rebanho têm de separar-se, na providên- deixá-los alegres. O pensamento de Seus discípulos por
cia de Deus, e romper a união de amor construída por sentir a dor do vazio de Sua ausência e o derramar até
anos? Tais despedidas não são “tristezas doces”, mas de uma única lágrima o afetava profundamente e atri-
amargas, amargas, amargas. bulava Sua sensível alma: “Porque eu vos tenho dito es-
O Senhor Jesus conhecia a profunda tristeza de tas coisas, a tristeza encheu o vosso coração” (Jo 16:7).
despedir-se de sua amada família e do seu rebanho, Aqui Jesus promete aos seus tristes discípulos que,
nesta terra. Repetidamente, Ele os advertiu que teria pelo Seu Espírito, viria até eles e com eles teria comu-
de “ir” (Jo 16:7). Isso não foi fácil para eles, mas tam- nhão e os confortaria. O marido moribundo, o soldado
bém não foi fácil para Jesus. de partida, o pastor que recebe um chamado, podem
almejar a capacidade de fazer o mesmo. Eles podem
A Dor de Sentir Saudade Deles desejar ter o poder de deixar seus espíritos para trás
Para Jesus, havia uma tristeza dupla nesta despedida. com seus familiares a fim de continuar a relação e as-
Primeiro, havia a dor de sentir saudades da compa- sim adocicar a tristeza da despedida física. Mas eles
nhia dos discípulos. Através dos anos Ele veio a amá- não têm esta capacidade. Porém Cristo pode, fez e
los e até mesmo necessitar e depender deles. Como faz. Querido cristão solitário e triste, Cristo promete:
homem, Jesus desfrutou da amizade deles. O Senhor “Não vos deixarei órfãos, voltarei para vós outros” (Jo
teve prazer ao conversar com eles e deleitou-se nas 14:18). Leve toda tristeza amarga das despedidas des-
variadas características e personalidades de cada um. te mundo ao Senhor Jesus e busque o Seu conforto,
Ele amou ver suas faces com suas variadas expres- Sua doce presença na sua alma vazia e amarga. Então,
sões. Quando Ele ouvia suas vozes familiares, Jesus e somente então, estas despedidas do mundo se torna-
poderia identificar o humor deles. Jesus os queria rão “uma tão doce tristeza”.
junto dele na terra (Mt 26:37). Os queria junto a Ele
Dr. David Murray é professor de Velho Testamento e Teologia Prática no Puritan
no céu (Jo 17:24). Mas gora havia a dor da despedi- Reformed Theological Seminary, USA.

Revista Os Puritanos 2•2009 25


Prefácio de Calvino
para o Saltério
“Bom é render graças ao Senhor e cantar louvores ao teu nome, ó Altíssimo.”
(Sl 92:1)

João Calvino
vivo procedente do Espírito Santo, quando o coração
é devidamente tocado e o entendimento iluminado. E

D
a edição fac-símile de: “Les Pseaumes mis se de fato, alguém pudesse ser edificado por coisas
en rime françoise par Clèment Marot que alguém vê, sem entender o que elas significam
et Theodore de Beze. Mis em musique a São Paulo não proibiria tão rigorosamente o falar em
quatre parties par Calude Goudimel. Par línguas estranhas: e não usaria todo o seu arrazoado
lês héritiers de François Jacqui” (1565). Publicado de que não há edificação a menos que haja doutrina.
sob os auspícios da La Societé dês Concerts de la Ca- Portanto, se realmente queremos honrar as santas
thédrale de Lausanne e editado, em Frances, pela ordenanças de nosso Senhor que usamos na Igreja, a
Pidoux, Pierre, e em Alemão pela Amein Konrad. (Be- primeira coisa que devemos fazer é saber o que elas
roenreiter-Verlag, Kassel, 1035). contêm e o que elas significam e querem dizer e para
Uma das coisas mais requerida na Cristandade e que fim foram instituídas, para que o uso delas seja
uma das mais necessárias, é que cada um dos fiéis útil e salutar e, consequentemente, corretamente ad-
observe e sustente a comunhão da Igreja em sua ministradas.
localidade, frequentando as assembléias que aconte-
cem tanto aos Domingos como em outros dias para ELEMENTOS NO CULTO
honrar e servir a Deus: assim também era convenien- Agora há três breves coisas que nosso Senhor ordenou
te e razoável que todos soubessem e ouvissem o que sejam observadas nas nossas assembléias espirituais:
se deve dizer e fazer no templo a fim de receber fruto que são, a pregação de Sua Palavra, orações, públicas
e edificação. e solenes, e a administração dos sacramentos. Vou me
abster de falar dos sermões desta vez, porque não há
ENTENDIMENTO É ESSENCIAL nenhuma questão a respeito deles. Tocando nas que
Pois nosso Senhor, não instituiu a ordem, que deve- restam, nós temos como ordenanças expressas do
mos obedecer quando nos reunimos em Seu Nome, Espírito Santo que as orações sejam feitas em uma
somente para entreter o mundo quando este olha e linguagem comumente conhecida do povo; e o Após-
observa, antes, ele deseja que o culto seja útil para tolo disse que as pessoas não devem responder Amém
todo o seu povo; como São Paulo testemunhou, orde- àquelas orações que forem feitas em língua estranha.
nando que tudo que for feito na Igreja seja direcio- Isto porque, as orações são feitas em nome de todos,
nado à edificação comum de todos; isto o servo não que naturalmente são participantes dela. Por isso é um
teria ordenado, não fosse esta a intenção do Mestre. grande descaramento por parte daqueles que introdu-
Mas isto não pode ser feito, a menos que sejamos ziram a língua Latina na igreja, onde geralmente não
instruídos a usar a inteligência em tudo que foi or- é entendida. E não há nem sutileza nem casuísmo que
denado para o nosso proveito. Porque dizer que so- possam desculpá-los, porque esta prática é perversa e
mos capazes de ter consagração, tanto nas orações e desagrada a Deus. Além disso, não há nenhuma razão
cerimônias, sem entender nenhuma destas coisas, é para presumir que Deus esteja de acordo com aqueles
uma grande tolice, no entanto, muito tem sido dito que estão indo diretamente contra a Sua vontade, e as-
comumente. Mas isto não quer dizer que esta boa sim falam a despeito Dele. Por isso, nada o afeta mais
afeição para com Deus, deva ser algo morto ou em- que ir de encontro a sua proibição e gabar-se disto
brutecido. Ao contrário, ela é resultado de um mover como se fosse algo santo e louvável.

26 Revista Os Puritanos 2•2009


Prefácio de Calvino para o Saltério

SACRAMENTO ASSOCIADO À do é declarada e recebida, como Santo Pois desde o início da Igreja tem sido
DOUTRINA Agostinho disse: aquela que é expres- assim, conforme o testemunho da his-
Quanto aos Sacramentos, se observar- samente contida nas palavras de Jesus tória. E o próprio apóstolo Paulo fala,
mos a sua natureza, vamos reconhecer Cristo. Porque Ele não diz ao pão que não apenas da oração de palavras, mas
que é um costume perverso celebrá-los é seu corpo, antes Ele dirige sua pala- também da que é cantada. E na ver-
de tal maneira que as pessoas somen- vra ao ajuntamento dos fiéis, dizendo: dade nós sabemos, por experiência,
te as vejam, mas não compreendam os tomai, comei, e assim por diante. Se que cantar tem grande força, vigor de
mistérios que eles contêm. Porque se quisermos celebrar corretamente este mover e inflamar os corações dos ho-
eles são a Palavra visível, (como Agos- Sacramento é necessário apropriar-se mens para envolvê-los em adoração a
tinho os chama), é necessário que haja da doutrina, por meio da qual o signifi- Deus com mais veemência e ardente
não somente um mero espetáculo ex- cado nos é declarado. Eu sei que pode zelo. Sempre se deve ter cuidado, para
terno, mas também que a doutrina seja parecer muito entranho para quem não que as músicas não sejam nem frívolas
associada com eles para emprestá-los está acostumado a isto, como acontece nem triviais, mas que tenham peso e
inteligência. E também, nosso Senhor com todas as coisas novas; mas é muito majestade, (como dizia St. Agostinho),
ao instituí-los demonstrou isso: por- razoável se nós como discípulos de Je- e também há uma grande diferença de
que Ele diz que são testemunhas da sus Cristo preferirmos sua instituição músicas que alguém faz para entreter
aliança que fez conosco, e a qual con- em lugar do nosso costume. E aquilo os homens à mesa ou em suas casas, e
firmou através de Sua morte. É neces- que Ele instituiu desde o princípio não os Salmos que cantamos na Igreja, na
sário, portanto, dar-lhes seus próprios deve parecer novo para nós. presença de Deus e de Seus anjos. Mas
significados para que possamos saber E se isto ainda não foi capaz de pe- se alguém quiser julgar corretamente
e entender o que Ele disse: de outra netrar no entendimento de alguém, é a forma que apresentamos aqui, espe-
sorte teria sido em vão que nosso Se- necessário que oremos a Deus, para ramos que a encontre santa e pura, di-
nhor abrisse sua boca para falar, se que se for do Seu agrado, ilumine o recionada à edificação da qual já temos
não houvesse ouvidos ao seu redor ignorante para fazê-lo entender quão falado.
para ouvir. Assim não há necessidade mais sábio é que todos os homens
de uma longa disputa a respeito disso. desta terra pudessem aprender a não EXPRESSÃO ATRAVÉS DO
E quando a matéria é examinada com se fixarem nos seus próprios sentidos, CANTO
o senso comum, não há ninguém que nem sequer em nenhuma sabedoria E ainda que a prática do canto possa se
não confesse que é completamente an- louca dos seus líderes que estão cegos. estender mais amplamente; ela é, mes-
tiquado entreter as pessoas com sím- No entanto, para o uso em nossas igre- mo nos lares e nos campos, um incenti-
bolos sem significado algum para eles. jas, pareceu bem a nós tornar público, vo para nós, de certo modo, um órgão
Assim podemos facilmente concluir como uma coleção, estas orações e de louvor a Deus, para elevar nossos
que estes profanam os Sacramentos Sacramentos para que não só as pes- corações a Ele, e consolar-nos pela me-
de Jesus Cristo, administrando-os de soas desta Igreja, mas também todos ditação de Sua virtude, bondade, sabe-
tal forma que as pessoas nem mesmo aqueles que desejarem, saibam, de que doria e justiça: isto é, tudo aquilo que
entendem as palavras que são ditas a forma os fiéis devem comparecer e se é mais do que alguém possa dizer. Em
respeito deles. E de fato, pode-se ver a portar quando se reunirem em nome primeiro lugar, não é sem causa que
superstição que emerge de tal prática. de Cristo. o Espírito Santo nos exorta cuidado-
Porque é comumente considerado que samente através das Escrituras a nos
a consagração, por exemplo da água do DOIS TIPOS DE ORAÇÃO regozijar em Deus e que toda a nossa
Batismo, ou do pão e do vinho da Santa Nós temos então reunido em um sumá- alegria seja subjugada ao seu verdadei-
Ceia do Senhor, é tal como um encan- rio, a forma de celebrar os Sacramentos ro propósito porque Ele sabe o quanto
tamento, em outras palavras, quando e santificar o casamento, igualmente as somos inclinados a nos alegrar com fu-
alguém respirou ou pronunciou com a orações e louvores que usamos. Falare- tilidades. Como então, nossa natureza
boca as palavras, criaturas insensíveis mos mais tarde sobre os Sacramentos. nos força e induz a buscarmos todos os
a sentimentos, sentem o poder, embo- Quanto às orações públicas, há dois ti- meios de alegrias tolas e viciosas, as-
ra os homens não entendam nada. Mas pos. Aquelas somente com palavras, e sim, ao contrário, nosso Senhor, para
a verdadeira consagração é aquela que outras cantadas. E isto não é alguma nos desviar o espírito das tentações da
se faz através da palavra da fé, quan- coisa inventada há pouco tempo atrás. carne e do mundo, nos apresenta todos

Revista Os Puritanos 2•2009 27


João Calvino

os meios possíveis para nos ocupar na-


quela alegria espiritual que tanto Ele ...ninguém é capaz de cantar algo digno
nos recomenda.
de Deus, exceto aquilo que recebemos
A IMPORTÃNCIA DA MÚSICA
Agora, entre outras coisas que são pró- Dele.
prias para entreter e recrear o homem
e lhe dar prazer, a música é tanto a
primeira como a principal; e é necessá- a compreendo em duas partes: o que espirituais não podem ser cantados
rio pensar que este é um dom de Deus chamamos letra, ou assunto; e segun- exceto com o coração. Mas o coração
a nós delegado para tal fim. Além do do, a música, ou melodia. É verdadeiro requer a inteligência. E sobre isso (diz
mais, por causa disso, temos que ser que toda má palavra (como dizia São St. Agostinho), encontra-se a diferença
mais cuidadosos em não abusar dele, Paulo), corrompe os bons costumes, entre o cantar dos homens e o cantar
com temor de desgraçá-lo e contaminá- mas quando a melodia é colocada nela, dos pássaros. Pois um pintarroxo, um
lo, convertendo em nossa condenação, traspassa o coração muito mais forte- rouxinol, um pardal podem cantar
aquilo que foi dedicado para o nosso mente, e penetra nele, de uma maneira bem, mas será sem entendimento. Mas
proveito e uso. Se não houvesse outra como através de um funil se derrama o dom único dado ao homem é cantar
consideração, senão esta, já seria sufi- o vinho num vaso; assim também o ve- sabendo o que está cantando. Após a
ciente para nos levar a ter moderação neno e a corrupção é destilado até as inteligência, deve seguir o coração e a
no uso da música, e fazê-la servir a to- profundezas do coração pela melodia. afeição, uma coisa impossível de acon-
das as coisas honestas. E que ela não tecer exceto se tivermos o hino impres-
nos dê ocasião para dar lugar a todo PORQUE ESCOLHER so em nossa memória, afim de nunca
tipo de dissolução, ou nos fazermos OS SALMOS cessarmos de cantar. Por essa razão,
como efeminados em deleites desorde- O que então devemos fazer agora? É este presente livro, tanto mais pelas
nados, e não se torne instrumento de preciso haver canções não somente ho- razões e outras que de resto foram di-
lascívia ou qualquer impudicícia. nestas, mas também santas, que como tas, deve ser singular recomendação a
aguilhões nos incite a orar e a louvar a cada um que deseja alegrar-se hones-
O PODER DA MÚSICA Deus e a meditar nas suas obras para tamente e de acordo com Deus, para
E ainda há mais: existe raramente no amar, honrar e glorificá-Lo. Além do a sua própria prosperidade e proveito
mundo qualquer coisa que seja mais mais, aquilo que St. Agostinho disse dos seus visinhos; por tudo isso é mis-
capaz de virar e corromper os homens é verdadeiro, que ninguém é capaz de ter que seja recomendado por mim: es-
do seu caminho e da sua moral, como cantar algo digno de Deus, exceto aqui- perando que isto reivindique seu valor
Platão prudentemente considerou. E lo que recebemos Dele. Portanto, quan- e louvor. Mas que o mundo seja bem
como de fato, sabemos por experiência, do procurarmos diligentemente, aqui e advertido, que em lugar de canções em
que ela tem um poder sagrado e qua- ali, não iremos encontrar cânticos me- parte vãs e frívolas, em parte estúpidas
se incrível de mover corações de uma lhores, por mais apropriados de sejam e tolas, e consequentemente más e da-
forma ou de outra. Portanto, temos os seus propósitos, do que os Salmos nosas, como são utilizadas no momen-
que ser por isso mesmo, mais diligente de Davi, que o Espírito Santo falou e to, seja acostumado, daqui para frente,
em regulá-la de tal forma que nunca preparou através dele. E, além disso, a cantar estes hinos divinos e celestiais
seja usada por nós de alguma forma Crisóstomo exorta, tanto os homens, juntamente com o bom rei Davi. Tra-
perniciosa. Por esta razão os antigos como as mulheres e crianças a se acos- tando-se da melodia, parece ser a me-
doutores da igreja frequentemente tumarem a cantá-los, afim de que este lhor e a mais moderada forma adotada
exortavam a esse respeito, de que as seja o tipo de meditação que os faça para carregar apropriadamente o peso
pessoas do seu tempo, eram viciadas associados à companhia dos anjos. da majestade do assunto, e tanto para
em canções desonestas e vergonhosas, ser cantado na Igreja, de acordo com
que não sem causa, se referiam a elas PORQUE É REQUERIDO CAN- tudo que tem sido dito.
chamando-as de venenos mortais e sa- TAR COM ENTENDIMENTO Genebra, 10 de junho de 1543.
tânicos por corromper o mundo. Além Como de resto, é necessário relembrar
Extraído da Blue Banner Articles
do mais, já que falamos de música, eu o que São Paulo disse, que os cânticos

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Examinai as Escrituras
“...examinando diariamente as Escrituras para ver se estas coisas eram
assim.” (At17:11)

Richard Baxter
meramente o produto da nossa própria imaginação ou

S
conjecturas, não é de admirar que não a valorize, nem
e você não quer que a obra da sua conversão abandone tudo o que cria anteriormente, pela simples
venha a ser abortada, uma vez entendido o persuasão de um pregador. Mas quando você sondar
que lhe é oferecido, “examine as Escrituras as Escrituras, e vier a descobrir que o que lhe está
todos os dias para ver se as coisas são de fato sendo pregado é a Palavra do Deus dos Céus, ousaria
assim ou não” (At 17:11). você então desprezá-la? Quando você descobrir que
Assim fizeram os bereanos, e o texto diz que “com nós não lhe dissemos mais do que fomos ordenados, e
isso, muitos deles creram” (At 17:12). Nós não que- que o Deus que falou esta Palavra a sustentará, então
remos enganá-lo, por isso não queremos que você ela certamente lhe falará mais intimamente. Você a
aceite qualquer coisa que dissermos, mas aquilo que considerará, e não mais a ouvirá com descaso.
pudermos provar, pela palavra de Deus ser realmente Se nós vendêssemos mercadorias defeituosas, certa-
verdade. Não desejamos guiá-lo nas trevas, mas, pela mente desejaríamos uma loja escura para esconder os
luz do Evangelho, queremos retirá-lo das trevas. Assim defeitos. Se o nosso ouro ou prata fossem leves ou de
sendo, não recusamos submeter toda a nossa doutrina má qualidade, nós certamente não recomendaríamos
a um teste justo. Embora não desejemos que você se que os pesassem e testassem. Mas quando estamos
torne culpado por desconfiar de nós injustamente, ain- convictos de que aquilo que falamos é verdade, não
da assim, não desejamos que aceite estes ensinos im- desejamos outra coisa, senão teste. Beleza e boa apa-
portantes e preciosos, confiado meramente nas nossas rência não apresentam nenhuma vantagem sobre uma
palavras, porque neste caso, a sua fé seria colocada deformidade repugnante quando ambas encontram-
no homem, e, então, seria de admirar que viesse a ser se nas trevas, mas a luz mostrará a diferença. O erro
fraca, ineficaz, e facilmente abalada. Você pode con- será um perdedor quando houver luz, e assim fugirá
fiar em um homem hoje e não mais confiar amanhã; dela. Mas a verdade será vitoriosa quando houver luz,
um homem pode merecer o maior crédito de você este e portanto a buscará. Deixe que os papistas escondam
ano, mas no ano seguinte pode ser que outro homem, as Escrituras do povo, proíbam sua leitura na língua
com pensamentos contrários, venha a merecer mais que eles conhecem, e ensinem-lhes a falar de Deus o
crédito aos seus olhos. Assim, nós não queremos que que não entendem. Nós não ousamos fazer isso, nem
acredite em nós mais do que o suficiente para conduzi- o desejamos. Nossa doutrina não é pregada nas trevas.
lo a Deus, e para que o ajudemos a entender aquelas Por isso convidamos você à “lei e aos testemunhos”.
palavras nas quais você precisa crer. O nosso desejo, Coloque nossas palavras na luz, e veja se elas não
portanto, consiste em que você examine as Escrituras, estão de acordo com a Palavra de Deus. Nada nos in-
e teste se as coisas que lhe dizemos são verdadeiras. comoda mais do que não podermos persuadir nossos
A nossa palavra nunca alcançará o seu propósito ouvintes a fazerem este teste. Alguns deles, entretanto,
em você, até que veja e ouça a Deus nelas, e compre- estão tão endurecidos no seu pecado e miséria, que
enda que é Ele, e não apenas homens, quem está lhe nem sequer se darão ao trabalho de abrirem suas Bí-
falando. Se você não ouvir ninguém lhe falar, a não ser blias para testarem se o que dizemos é verdade ou não.
o ministro, não é de admirar que ouse desdenhar dele, Alguns deles nem sequer incomodarão suas mentes
pois ele é um homem frágil e mortal como você mesmo. pensando sobre isto; “Deus não está em nenhum dos
Enquanto você pensar que a doutrina que pregamos é seus pensamentos”. Alguns já se consideram sábios

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Richard Baxter

demais para aprender, e não mais aba- aqueles que buscam diligentemente a seria indigno e desqualificado para ser
terão a sua confiança em suas opiniões salvação, e que são mais preciosos aos Seu embaixador. Ele seria cruel para
anteriores, embora, pobres almas, sua olhos de Deus. comigo, se não me puxasse do fogo do
ignorância ameace-os de condenação. Daí escarnecerem do caminho no modo mais franco e rigoroso. Ele me
Outros estão tão envolvidos com fac- qual eles deveriam andar, porque não odiaria, se não me repreendesse, mas
ções pecaminosas, que os seus compa- examinam as Escrituras para ver o que permitisse que eu ficasse no pecado. Se
nheiros não lhes darão oportunidade lhes é dito quanto ao assunto. A Palavra ele estivesse preocupado em agradar a
para que questionem o caminho em que é uma luz que ajudaria muito a abrir-lhe homens, não seria um servo de Cristo.
estão, enquanto que outros, ainda difi- os olhos e a salvá-lo para Deus, se eles Eu sei que ele não sente prazer em me
cilmente tomarão as Escrituras como a apenas fossem a ela com desejo de co- afligir ou provocar; mas ele estaria con-
norma pela qual devem testar e serem nhecer a verdade. correndo para a sua própria destruição
provados, porém olham mais para os Vocês pensam que os ímpios ricos e se não me alertasse do perigo em que
costumes, e para a vontade daqueles poderosos estão em melhor condição me encontro. Eu não tenho razão em de-
que exercem poder sobre eles. Muitos do que um homem piedoso, o qual é sejar que ele tenha sua alma condenada,
não estão querendo submeter à teste pobre e desprezado. E qual a razão, se e permita que a mesma coisa aconteça
o nosso ensino, porque não estão que- não porque não entram no santuário, e com a minha; e tudo pelo temor de me
rendo saber a verdade, e não poderiam vêem em que lugar escorregadio eles desagradar, estando eu em pecado”.
suportar descobrirem-se miseráveis, se encontram, e qual será o fim destes Estes seriam os seus pensamentos se
nem verem o que lhes é requerido mas homens? Em uma palavra, esta é uma você apenas provasse nossas palavras
que não apreciam praticar. Assim, não ruína de milhões de almas. Eles passam pelas Escrituras, para ver se falamos ou
podemos conseguir que venham a tes- a vida toda fora do caminho do céu, e não de conformidade com a vontade de
tar se as coisas que lhes ensinamos são ainda assim não são persuadidos a per- Deus. Não há dúvida de que nossas pa-
verdadeiras. guntar pelo caminho, mas precipitam- lavras penetrariam mais profundamen-
É por causa disso que os homens se, fecham os olhos, e entregam-se ao te no seu coração, sendo mais fixadas e
enganam a si mesmos, e pensam en- perigo. Milhares partem deste mundo mais preciosas aos seus olhos, se você
contrar-se seguros, quando na verdade sem que tenham gasto, no total, o perío- viesse a entender que elas são palavras
encontram-se em um estado miserável, do de um dia testando, pelas Escrituras, de Deus. Esta, portanto, é a minha sú-
porque não testam, pela Palavra, o que se seu estado é bom e seus caminhos plica, para que a obra da sua conversão
lhes é dito. Isto os torna obstinados e são certos. Não adianta; ainda que seus não venha a ser abortada: leve tudo o
confiantes na sua loucura, fazendo-os mestres lhes digam que precisam ser que ouvir às Escrituras, e ali examine e
sorrir e cantar à beira do inferno, e santificados e mudar de rumo, eles dis- veja se é realmente assim ou não, a fim
que nadem alegremente rio abaixo em cordarão deles, embora não sejam tão de que retire suas dúvidas e se torne
direção ao abismo devorador como se sábios nem tenham tanto conhecimen- convicto, ao invés de ficar hesitante, e
mal algum os ameaçasse. Isto faz com to quanto seus mestres, e os contradi- para que a sua fé seja estabelecida pela
que eles, embora em profunda misé- rão, não crerão neles, nem os considera- autoridade de Deus. Assim, a obra será
ria, não tenham pena de si mesmos, e rão. Por causa disso, não conseguimos divina e, por conseguinte, poderosa e
se empenhem tão pouco para escapar com que venham a nós, a fim de que eficaz, visto que as bases e razões são di-
deste estado. Embora tenham tempo, sujeitem suas questões à teste, e dei- vinas. Se você não ficar satisfeito com a
meios e ajuda à disposição, ainda assim xem que a Escritura seja o juiz. Se eles doutrina que o ministro prega, examine
não dispõem seus corações de razões apenas tomassem essa atitude, não te- primeiramente você mesmo as Escritu-
para fazer uso disto. Sim, eles lançam- riam pensamentos tão duros sobre seus ras. Se isso não o convencer, vá a ele, e
se diariamente mais e mais em direção mestres, nem se ofenderiam por causa peça-lhe que mostre a você suas bases
ao abismo, e tudo porque não podemos do seu modo franco e rigoroso de lidar na Palavra de Deus, e que ore por você,
fazer com que examinem as Escrituras, com eles. para que Deus lhe dê um entendimento
para verem se o pecado é algo assim tão Se assim você fizesse, então diria: correto dela. Você questiona se há re-
insignificante, e se não terminará em “Agora eu vejo que o ministro não diz almente um julgamento realmente tão
amargura. Daí serem eles tão facilmente estas coisas se si mesmo. Ele fala ape- severo, um céu e um inferno, como os
levados por uma tentação, terem aver- nas o que Deus lhe ordena; e se ele não ministros lhe dizem? Examine as escritu-
são a uma vida santa, e menosprezarem entregasse a mensagem do Senhor, ele ras em Mt 25 e 2 Ts 1:8-10; Jo 5:29; Mt

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Examinai as Escrituras

13. Você questiona que um homem não Heb 7:14; lc 10:42; 13:24; Ef 5:15,16. juiz poderia ter você do que Ele, que é
possa ser salvo sem conversão, regene- Você pensa que um homem mundano, infalível e, no final, julgará a todos? Se
ração e santificação? Abra sua Bíblia, e cujo coração está mais na terra do que algum papista colocar em sua cabeça a
veja o que diz Deus em Jo 3:3,6; Mt 18:3; nos céus, pode ser salvo? Teste com 1 pergunta: Quem é o juiz do sentido das
2 Cor 5:17; Rom 8:9; Heb 12:14. Você Jo 2:15; Fp 3:19; Col 3:1; Lc 14:26,33. Escrituras? Eu respondo: Quem é o juiz
pensa que um homem pode ser salvo Você tem dúvidas se deveria servir a do Juiz do mundo inteiro? A lei é feita
sem conhecimento? Deixe que a Escri- Deus com sua família, instruí-los, e orar para julgar você, e não para ser julgada
tura julgue: 2 Cor 4:3,4; Jo 17:3; Os 4:6. com eles? Examine Jos 24:15; Dt 6:6,7; por você. Ninguém pode ser melhor juiz
Você pensa que um homem pode ser Dn 6:10,11; Ex 20:10. do sentido da lei do que o próprio autor
salvo, comportando-se como a maioria Assim, se você, em todas estas im- da lei, embora outros devam julgar seus
se comporta, vivendo no caminho ordi- portantes questões, apenas for às Escri- casos pela lei. O seu dever é discernir,
nário em que o mundo vive? Examine as turas, para ver se elas confirmam o que entender, e obedecer a lei, e o nosso é
Escrituras e veja, Mt 7:13,20; 22:14; Lc seus mestres dizem, você cedo poderia ajudá-lo a entendê-la. Mas não é nossa
12:32. Você pensa que uma alma não ter suas dúvidas tiradas, e isto pela au- tarefa, nem a sua, o ser o seu juiz pró-
humilhada e que nunca foi contrista- toridade mais infalível do mundo. Você prio ou absoluto. Pelo menos onde fala
da e teve um coração quebrantado por pode pensar que os seus ministros es- claramente, ela não precisa de juiz. Ve-
causa do pecado pode ser salva? Teste tão enganados, mas eu espero que ad- nha portanto à Palavra, com humildade
com: Is 57:15,66; Sl 51:17; lc 4:18; Mt mita que Deus não pode estar enganado. e humilhação, com uma disposição ensi-
11:28. Você pensa que um homem pode Você pode pensar que os seus ministros nável de espírito, um desejo de aprender
ser um servo de Deus vivendo uma vida são impetuosos, presunçosos, ou que a verdade, uma resolução de aceitá-la, e
carnal e conservando seus pecados? falam de tal modo por terem prevenção de submeter-se ao que lhe será revela-
Prove com Rom 8:13; Gál 6:8; Ef 5:5,6; contra você. Eu só espero que não ouse do. Implore a Deus que Ele lhe mostre
1 Jo 3:9,10. Você tem dúvida quanto à pensar assim do Senhor. Ele não tem Sua vontade, que o guie verdade, e você
necessidade de fazer tanto esforço para nenhuma prevenção contra você, nem descobrirá que Ele será encontrado por
ser salvo, e ter tanto empenho, e fazer fala uma só palavra que não seja confi- aquele que O busca.
da religião a coisa principal da nossa ável. Você pode pensar que somos par-
Extraído do livro “Medita Estas Coisas” de Richard Baxter
vida? Teste com o Sl 1:1-3; 1 Pe 4:18; ciais, mas Deus é imparcial. Que melhor (Knox Publicações, p.p. 15-52)

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