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INTOXICAÇÃO HERMÉTICA

e
UMA NOTA SOBRE A INFLAÇÃO HERMÉTICA

James Hillman

Tradução: Gustavo Barcellos

[“Hermetic Intoxication” e “A Note on Hermes Inflation”, Capítulos 11 e 12 do Volume 6 da


Uniform Edition of the Writings of James Hillman, Mythic Figures, Putnam, CT: Spring
Publications, 2007.]
INTOXICAÇÃO HERMÉTICA
James Hillman

Psicologia Milenar
Ao final de um século, um humor fin de siècle com suas previsões e maus pressentimentos
paira sobre esses últimos anos de um aeon que volta lá atrás no tempo até o início de nosso
calendário. Mesmo assim, não devemos nos esquecer que uma psicologia milenar é algo específico
de um mundo cristão. Os muçulmanos têm outro mito a afetar seu calendário, assim como os
judeus. Todo o resto deste grande globo terrestre, repleto de arcaicos e sofisticados povos tribais,
nômades e pagãos de toda a sorte, os pequenos vilarejos hindus de Bihar e Mysore, os bilhões de
corpos vivendo na Ásia, na África tropical e na América — todos eles não têm os mesmos mitos
milenares nem as mesmas psicologias milenares. Toda essa gente tem que usar por imposição nosso
calendário, e embora suas datas tenham sido 'missionarizadas' — se não pela religião, certamente
pelos negócios — seus mundos não estão ameaçados com um fim dos tempos, porque eles não
datam o começo de seu calendário pela aparição de Jesus.
O pensamento milenar sobre o final dos anos mil e novecentos, o próprio fim do tempo,
pertence a nosso livro ocidental sagrado, e àquele capítulo final de amedrontador horror,
Apocalipse, com sua visão catastrófica de uma conflagração global. Essa ansiedade sobre o milênio
e sobre aquilo que virá depois é um fenômeno cristão, e já que muito do Cristianismo dogmático
oficial pertence a esta cidade, é apropriado discutirmos esse tema aqui em Milão. Constantino e
Constâncio (inimigo do pagão, Juliano); Ambrósio, o grande defensor do dogma; e o próprio
Agostinho lecionaram aqui. Se desejamos abrir psicologicamente nosso caminho em meio à
ansiedade constelada pelo final deste século, fazemos bem em iniciar neste lugar.
Ao situar o milênio dentro de um contexto global, estou tentando dois movimentos
psicológicos. Ambos derivam do trabalho fundamental de C. G. Jung. Jung chama o primeiro
movimento de “relativizar o ego”, ou seja, ao situarmos nossas preocupações ocidentais dentro do
contexto mais amplo de mitos globais com tantos calendários, datas e ideias diferentes do tempo e
da escatologia, a perspectiva cristã torna-se apenas uma entre tantas, apenas relativa e não última.
Da mesma forma, nossos futurismos — projeções sobre o que virá — tornam-se afirmações de um
ego ocidental, projetando sua própria sombra à frente. Assim como o ego não representa toda a
psique, também a mente ocidental não pode falar pelo mundo todo.
A auto-importância que damos às nossas preocupações com relação ao fim do século e as
projeções futuristas que fazemos sobre o que virá, de fato as próprias agendas que compramos com
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datas já impressas, 31 de Dezembro de 1999 e 01 de Janeiro de 2000 — tudo isso fica relativizado
pela consciência de que esses números têm pouca significância quando se pula para fora de nossas
fixações pré-determinadas pelo mito básico da consciência temporal cristianizada.
Essa inclusão da variedade global é meu segundo movimento. Ele vem da noção de Jung de
uma consciência coletiva — as atitudes, ansiedades, opiniões, gostos, hábitos mentais e emocionais
que todos compartilhamos. Eles estão no ar que respiramos, na luz através da qual enxergamos.
Básicos para a consciência coletiva hoje em dia são a consciência global, o
multiculturalismo, o pensamento planetário, o multinacionalismo — a sensação de que tudo que é
privado, pessoal e local está sempre sendo impingido a nós pelo que os outros estão fazendo em
outros os lugares. A música de seu rádio vem de estúdios de gravação em Londres, as bananas
transportam seus inseticidas e preservativos tóxicos do Equador, os camarões trazem consigo o
Golfo do México, assim como os chips de computadores importam para as estações de trabalho em
sua casa moléculas vindas da Irlanda, da Índia, do Texas e da Coréia.
O consumismo multinacional, o turismo e a rede mundial das comunicações da Internet são
os níveis evidentes e superficiais dessa consciência coletiva, desse globalismo. Dentro dela, e
permeando o globalismo como um humor subliminar, está uma sensação de identidade difusa, uma
ansiedade com relação à ausência de fronteiras, aquilo a que nós da psicologia clínica referimos
como desordem de personalidade borderline, ataques de pânico, defesas paranoides e fúrias
narcisistas. Ou seja, limites difusos e purismos paranoides, assim como retiradas para um intenso e
isolado estado de auto-centramento, preocupações com o sistema imunológico, com ódio a tudo o
que for invasivo (incluindo imigrantes), uma síndrome cujas características estão ligadas à perda de
certeza pessoal, auto-definição e localização dentro de limites bem definidos.
Globalismo e Futurismo traduzem-se no indivíduo em ansiedades de pânico e isolamentos
narcísicos.
A fim de recuperarmos novamente essas fronteiras pessoais e locais, às vezes lançamos mão
de medidas hostis de exclusão. Tentamos resistir às incursões do Outro em nossa esfera privada.
Juntamo-nos a movimentos separatistas, juramos lealdade a cultos onde o Outro meramente me
espelha, evitando assim o desafio da diferença.
Essas defesas regressivas contra a dissolução tentam recapitular as velhas estruturas de
segurança do ego, anterior a seu deslocamento e desconstrução pelo globalismo. Esses movimentos
assumem forma política na xenofobia, na limpeza étnica, no genocídio, ou na adesão a uma Liga
Lombarda com seus ecos das antigas cidades-estado italianas e mediterrâneas, ou muros e cercas na
fronteira dos Estados Unidos ou em Israel. Todas essas movimentações tentar alcançar aquilo que
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Jung chamou de “restauração regressiva da persona”, ou status quo ante, por meio — na esfera
política — de ‘localismo’ literal. Vemos isso em Israel, na Chechênia, na Bósnia e na Croácia, em
Chipre, e entre os bascos e catalães na Espanha.

Entra Hermes
Da perspectiva de uma psicologia arquetípica, o fascínio pelas trocas entre os povos em toda
parte, a hiper-comunicação do globalismo, a ênfase nos negócios e nas finanças, o ‘instantaneísmo’
oferecido pela eletrônica, a compulsão para viajar — tudo isso indica o cosmo mítico de Hermes-
Mercúrio, o deus com asas nos pés, boné de invisibilidade e ideias aladas.
O globalismo parece uma overdose de Hermes, assim como a idade da razão sofreu uma
overdose da luz solar apolínea e de um excesso de racionalidade normalizadora de Minerva. Ou,
para um outro exemplo de hipertrofia divina, a loucura de Marte que se abate sobre um povo onde
qualquer homem ou mulher comuns podem se tornar um matador enfurecido.
Agora que viramos o século, um monoteísmo de Hermes nos mantém cativos. Não apenas
seus novos instrumentos, mas a velocidade com a qual cada nova geração dessas ferramentas e
equipamentos é desenvolvida — obsolescência em oito meses, cada equipamento sendo
ultrapassado por melhorias cada vez mais amplas, cada vez de maior alcance, conexões cada vez
mais rápidas.
Uma segunda área em que reina Hermes é o comércio — a bolsa de valores. Fundos mútuos,
especulação financeira, commodities, mercado de futuros, opções, derivados, coberturas. Os
mercados do mundo todo se conectam hoje por comunicações instantâneas, permitindo enormes
trocas de dinheiro de um lugar para outro, de uma moeda para outra, de um mercado para outro.
Aquilo que já foi investimento de longo prazo agora é faturamento rápido. O mercado como um
jogo; como se diz, “entrar no jogo.”
Essas trocas gigantescas de dinheiro lançam uma sombra de roubos e fraudes, lavagens e
propinas. Os sistemas de contabilidade não mais acompanham as movimentações velozes dos
banqueiros que manipulam milhões e bilhões de dólares por transação. Os governos não podem
controlar as corporações multinacionais ou regular as flutuações da moeda, o preço do ouro e das
commodities básicas, ou mesmo o valor e a quantia de suas próprias reservas de dinheiro.
Saturno já governou o dinheiro. Nos velhos tratados de simbolismo, Saturno era chamado de
ricaço. Era representado com uma pequena bolsa muito bem fechada e declarado deus da
cunhagem. Agora, com essa hipertrofia de Hermes, o dinheiro não é mais a moeda sólida, nem está

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lastreado por ouro, apenas palavras e números, meras mensagens enviadas por processadores
eletrônicos de informação e representado por um pequeno pedaço de plástico retangular.
Em muitos lugares onde as finanças herméticas atingiram seu apogeu, a importância
fundamental da terra e do lar contaminou-se com a intoxicação hermética. A terra e seus edifícios
que dão estabilidade e abrigo veem seu valor determinado por especulação imobiliária e taxas de
juros de financiamento. Hermes, que não tem ele próprio um lugar de descanso ou moradia na terra,
trouxe sua impermanência e rápidas mudanças de valor diretamente para nossas habitações
humanas.
Um aspecto da intoxicação hermética merece especial atenção psicológica. Refiro-me ao
apetite por informação. Se bem se lembram, Hermes era o mensageiro dos deuses, e um mensageiro
indiscriminado. Isso porque ele carregava todas as mensagens sem entrar ativamente no conteúdo
do que carregava. Ele não tinha opiniões, valores; não fazia comentários editoriais; não censurava.
Sua tarefa era tornar possível a comunicação, até mesmo a comunicação com o reino dos mortos e o
mundo abaixo.
Encontramos Hermes como uma imagem pintada e esculpida na cerâmica e no mármore
gregos, comumente associado tanto a Apolo quanto a Dioniso, a Afrodite, e a Atena e Ártemis, a
Zeus e Hades, até mesmo a Hércules, embora Hermes não fosse ele mesmo de forma alguma
heróico. A informação não assume lados, não carrega rancores, e portanto não tem limites — está
toujours disponible.
Numa cultura que perdeu os deuses, uma cultura de onde os deuses fugiram, temos as
mensagens mas elas não carregam os sentidos dos deuses. Mera “informação”. Mesmo assim,
Hermes, em sua fidelidade obediente a seu papel arquetípico, passa a informação, facilitando
indiscriminadamente as mensagens sem preocupação com o conteúdo, que pode facilmente ser um
blog, uma piada, um anúncio, uma cantada sexual, ou uma revelação de crucial importância
política. A própria palavra “informação” ficou tão inflada que ela carrega o código DNA de um
indivíduo e seu destino. Não sabedoria, não conhecimento, não inspiração, não aprendizado, não
conforto, não verdade, não profecia, não valor moral ou beleza estética. Em vez de mensageiro dos
deuses, Hermes tornou-se serviçal da Internet.
Quando dizemos, como nos livros de mitologia populares, de psicologia arquetípica ou de
astrologia que Hermes é o “deus da comunicação”, devemos reconhecer que a comunicação não
pode pertencer apenas a um deus. Há muitos modos de comunicação. Por exemplo, há a conexão —
sem palavras, íntima, e sensorial — entre amantes, entre mães e bebês, entre paciente e enfermeira,
entre animais e seus cuidadores. Há comunicação por meio das delícias da vida diária: flores,
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cozinhar, beber junto. Há comunicação no nível dionisíaco de uma “participation mystique” quando
todo mundo dança junto num grande concerto de música pop ao ar livre, ou rindo de comediantes
na tela. Há comunicação no trovão de Zeus, o clarão da inspiração, da iluminação, do coup de
foudre de se apaixonar por uma pessoa inteiramente desconhecida. Há a comunicação gestual entre
os guerreiros, mesmo entre os inimigos em batalha, seja na guerra ou nos campos de futebol, e entre
um cruel carcereiro saturnino e seus prisioneiros.
Há também a comunicação do ensino e do aprendizado, vagaroso, doloroso, e sem o clarão e
a diversão de Hermes. A comunicação também se dá através da arte e do artesanato, através de uma
obra de arte que comunica por meio de uma faísca que salta da obra para o olho e o coração do
observador, e então para sua mão para fazer outra obra de arte.
Por favor, Hermes não é o único meio de conexão. É um pecado contra o panteão do
politeísmo assumir que Hermes é o único deus que governa a comunicação. Essa usurpação
monoteísta de todos esses diferentes modos pelo hermético eleva a mídia eletrônica a uma posição
de destaque em nosso instrumentarium. Além disso, essa intoxicação hermética dá uma definição
exclusiva para a comunicação, negligenciando as artes, o corpo, as sutilezas do silêncio sensível. E
essa hipertrofia de Hermes assume que seu PC, iPod, Blackberry, PlayStation, Xbox, ATM ou o que
quer que seja tornaram-se seu “servidor”, tornaram-se de fato chirungas indispensáveis para “captar
as mensagens”, “ficar em contato”, capacitando você para estar na vida e curti-la. Além do mais, a
degradação de Hermes em instrumentos convenientes de mágicas espertas degrada o deus num chip.
E se o chip está programado para trabalhar no princípio 1-ou-0 de ou/ou, então Hermes não é mais o
Deus dos “entres”, da ambiguidade, como apresentam os mitos.
Para tornar essa degradação ainda mais clara, permitam-me usar um paralelo com relação ao
herói. O herói antigo servia a cidade; de fato, uma cidade antiga era fundada sobre a tumba de um
herói. A ideia original de herói significava aquele que estava entre o humano e os deuses, e que
ajudava a fazer a ponte entre os mortais e os imortais. Quer seja mítico como Hércules e Enéas, ou
humano como Alexandre e Julio César, imaginava-se que os heróis tinham um pai humano e uma
mãe divina, ou vice-versa, portanto incorporando ambas essas naturezas numa única figura. Jesus
Cristo é imaginado nesse mesmo padrão arquetípico.
Bem, como disseram Holderlin, Rilke e Nietzsche, os deuses não estão mais conosco; eles
acharam esse mundo humano moderno não exatamente de seu gosto — ou, se não inteiramente
ausentes, eles certamente estão menos conosco do que estavam antes.
Em vez, “todos os deuses estão dentro”, como disse Heinrich Zimmer. Eles se tornaram
psicologizados, funções da psique humana. Assim o herói torna-se internalizado como um
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componente psicológico, re-nomeado “o ego”, aquela figura na psique que guia o caminho, decide o
curso da ação, e que sobrepuja os monstros da inconsciência. Mas esse herói, sem os deuses, sem os
limites por eles impostos, é meramente ambição secular, carreirismo, força bruta, misoginia e um
inimigo da natureza. O ego incorpora todas as qualidades do herói ancestral, mas perdeu sua raison
d’étre — o serviço aos deuses, a fundação da civilização, e fazer a ponte entre a vida humana e os
mitos e valores transpessoais. Não resta nada, apenas o orgulho heróico, a hubris egoísta da cultura
ocidental secular.
Fazendo o paralelo do herói como ego secular, vemos que Hermes tornou-se o mensageiro
secular. Não mais dos deuses, ao invés, contaminado de um monoteísmo que perdeu sua
credibilidade viável como senhor de todos os domínios. A antiga Omnisciência tornou-se o alcance
da banda larga; a Onipotência, a realidade virtual que pode simular tudo; e a Omnipresença divina
do monoteísmo, a instantaneidade de conexões etéreas e o monitoramento por satélite que pode
observar e mapear todos os fenômenos do planeta.
A intoxicação hermética também pode nos confundir. Afinal de contas, Hermes não era o
mestre do engodo? Ele é um ladrão, um conivente, um truqueiro, um caminhante noturno sub-
reptício. Será Hermes que de repente faz cair a ligação, faz o computador falhar, recusa-se a salvar
aquilo que acabei de escrever, encontra caminhos para infiltrar vírus e bugs que destroem
programas e bancos de dados inteiros? Talvez seja Hermes, deus dos mercadores, que convença os
consumidores de que precisam de maior capacidade de processamento, mais rápido, e ainda mais
periféricos que jamais usarão, vendendo-nos o mais recente e avançado software antes de termos
usado aquele que já temos. Será Hermes quem inspira os jovens hackers a penetrar os segredos das
corporações, os arquivos da polícia, os registros dos governos, os laboratórios de ciência, e a roubar
informação ou embaralhar o disco rígido e magicamente transformar o precioso no sem sentido?
Talvez tenha sido Hermes quem inventou o roubo de identidade, desnudando-nos de nossa
capa coletiva, deixando-nos como uma alma nua e sem nome. Como ele guia as almas
(psychopompos) para o mundo das trevas, talvez ele faça uso do mundo das trevas para guiar nossas
almas para fora da identidade legal que trazemos em nossas carteiras. Como psychopompos ele é
também psychogogos, um professor da psique, um psicólogo, cujo principal ensinamento é a
ambiguidade, a duplicidade, como as serpentes gêmeas entrelaçadas em seu cajado. Estaria ele
desfazendo nossa identidade egóica pelo bem da alma, que é frequentemente experimentada
primeiro apenas através da perda?
Uma grande questão me ronda: se meu diagnóstico mítico estiver correto e Hermes for o
deus na doença, então será que Hermes estaria jogando um videogame com o mundo inteiro? Será o
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futuro necessariamente eletrônico, a Nova Era uma era da informação de mídias, e-mails, realidade
virtual, ciberespaço? Ou será que estamos presos num jogo/game de Hermes? Não me refiro aos
jogos que o computador joga, mas estará Hermes, por meio do chip de silicone, jogando com nossa
civilização humana?
Essas suspeitas aparecem. Que elas venham à mente é uma indicação ainda maior da
presença de Hermes/Mercúrio, pois o engano é tanto seu negócio quanto os negócios. Suspeitamos,
não porque somos contra a tecnologia, suspeitamos porque parte da consciência hermética é estar
alerta ao engano. Simul similibus curantur: semelhante cura semelhante. Pegar Hermes é pegar um
ladrão, e não apenas pegar um clarão veloz de inspiração.
Já que os equipamentos interativos de Hermes facilitam os jogos de acasalamento de
Afrodite e as táticas de guerra, os cálculos das construções e da agricultura, as conexões da família,
a solidão de Saturno, fornecendo até mesmo divertimentos de Jove, nenhum outro olímpico impede
o domínio de Hermes. Com todo o amplo e vasto mundo disponível a você individualmente,
pessoalmente, apenas para você, a intoxicação acontece. Um clique e estou ligado, o epicentro de
uma rede mundial.
Google, Internet Archive, Wikipedia ressuscitam o fantasma do hermetismo antigo, aquela
vasta coleção de literatura da sabedoria oculta, imagens mnemônicas, símbolos e práticas mágicas
que objetivavam o domínio de todo o conhecimento.1 Seus seguidores, do Renascimento italiano à
Inglaterra elizabetana, atribuíam os ensinamentos ao próprio Hermes, ou a algum outro deus do
conhecimento, Thot dos egípcios. Por meio de reduções alegóricas, simbólicas e matemáticas, o
hermetismo buscou transpor o mundo físico ao espaço mental. Informação torna-se mensagem; o
mundo é angelical; o cosmo, hermético, ou seja, selado até ser revelado, e a revelação era também a
redenção do mundo através do conhecimento. Será que este motivo ainda espreita em nossa
intoxicação contemporânea?
Ainda assim, mesmo Hermes nos dando esse acesso miraculoso, o que ele também nos tira?
Lembrem-se, Hermes é deus tanto de achar quanto de perder; de dar, e de roubar.
Imaginem uma festa. Um jantar festivo, uma festa dançante, uma festa de aniversário.
Roupas, moda e decoração de interiores, ansiedade antes do evento e fofocas depois do evento;
imagine as comidas e o serviço, os vinhos e as flores, os corpos e seus movimentos, os flertes e as
seduções, o súbito encontro com um velho amigo, ou um velho inimigo; então pensem, também,

1Para amplos paralelos entre o hermetismo antigo e a ciberteoria contemporânea, ver E. Davis, “Techgnosis:
Magic, Memory and the Angels of Information,” South Atlantic Quarterly 92/4 (Fall 1993), e também seu
“Trickster at the Crossroads: West Africa’s God of Messages, Sex and Deceit,” Gnosis (Spring 1991).
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nas sutilezas dos gestos e da linguagem, os tons das vozes e peculiaridades das falas, dialetos
regionais e expressões. O perfume.
No computador, um conjunto extraordinário de habilidades sociais sofisticadas que levaram
séculos para serem elaboradas não têm mais nenhuma importância. Uma das figuras mais
herméticas de nosso tempo, Brian Eno, que participou em tantos níveis de invenção midiática e
performance, e da reflexão sobre isso tudo, disse: “O problema com o computador é que ele não
tem África suficiente nele.” Corpo. Ritmo. Alma. Ritos sociais.
A civilização depende de sua África, das habilidades sociais que pertencem à comunicação
— a menos que comunicação seja meramente pontos e travessões enviados por um telégrafo de
Marconi. A comunicação é uma interação multi-nivelada, uma complexa restrição de almas, não
apenas mensagens interativas. Além disso, a comunicação serve, em última análise, ao
conhecimento — conhecimento não somente da mensagem, mas também do remetente e do
destinatário — quem é o outro e que orientação a mensagem traz especificamente para você.
Uma mensagem é um anjo, do grego aggelos (mensagem), também no latim com seus
significados teológicos de mensagem divina. Muitos eram os anjos; tinham nomes, formas e
representações particulares. Uma mensagem verdadeira anuncia algo, revela alguma coisa, altera
alguma coisa; traz conhecimento de alto significado. A voz do anjo era despedaçante, a explosão de
uma trombeta, um rodopio de asas negras na noite. Que celular pode transmitir um anjo?
Há cura para a intoxicação hermética? O que pode nos livrar desse vício no acesso e entrega
instantâneos, esse deleite na passagem invisível de palavras anônimas pelo ar, esse privilégio de
uma possível conexão com todos em todos os lugares?
Nem seu pai Zeus, nem seu irmão Apolo podem de fato domar Hermes; ele enganava a
ambos. Nem podiam as deusas, ninfas e humanos com quem se acasalava mudar seus modos. Com
essas tantas figuras femininas ele gerou filhos, mas suas cópulas não resultaram em casamentos.
Apenas uma de todas as figuras míticas aparecia como sua equivalente: Héstia. No mundo grego, e
depois no romano onde Mercúrio era emparelhado com Vesta, podemos descobrir uma resposta.

O Foco de Héstia
Antes de começarmos a falar sobre Héstia, devemos brindá-la. Antes de qualquer evento, os
antigos romanos diziam: Vesta! Como nós, levantando nossas taças, dizemos: salud, kampei, cheers,
prost, santé, l’chaim… Ela vinha primeiro, antes de Zeus, antes de Hera, Gaia, Deméter.
Em outras palavras, antes de tudo precisamos estar focados, em casa conosco mesmos,
presentes aqui e agora. Foco, nossa palavra em português para a atenção concentrada, o interesse
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que aquece de vida tudo aquilo que está em seu raio, tem a mesma origem da palavra latina para
lareira. E a lareira era Héstia. O lugar onde o fogo do lar ardia era Héstia. Esse foco não era seu
símbolo; era a própria Héstia.
O nome Héstia/Vesta deriva-se provavelmente do indo-europeu vas, “habitar”. Outra
derivação, de acordo com os filólogos, é a raiz “essência”. Em suma, ela não é apenas o “dentro”,
como dentro do lar ou em sua lareira. Ela é a intensidade focada e o interesse aquecido que
chamamos consciência atenta. E, como Hermes, ela é uma qualidade da mente, uma invisibilidade.
Ele é invisível em sua passagem veloz, “o momento hermético”; ela é invisível como a própria
consciência. Se Hermes traz possibilidades para a mente, Héstia centra-os e lhes dá foco. O
mercúrio elementar espalha-se por toda a parte em bilhões de partes, enquanto que o sal, o elemento
de Héstia, é o princípio alquímico da fixação e da imutabilidade.
Com a expansividade e a falta de lugar de Hermes em mente, peço-lhes agora que ouçam
esses atributos e hábitos de Héstia. Por exemplo: os juízes antigos escreviam, ao final de cada dia,
tudo pertinente a um caso criminal e deixavam esses escritos no “altar” de Héstia. Hermes também
tinha uma conexão com a escrita — mas a escrita de Héstia é a anotação precisa e exata, fixando as
coisas. Ela governava os contratos; Hermes fazia acordos.
A consciência de Héstia revolve-se em torno de si mesma. Não vai a lugar algum, nada
intenciona fora de si mesma. Assim, Héstia estava sempre assentada em elementos circulares, e os
lugares onde ela era cultuada eram sempre circulares.
No Fedro, de Platão, quando os onze deuses viajam para o Olimpo, Héstia “permanece em
casa sozinha.” A ela é atribuída a invenção da arquitetura doméstica. Não apenas a casa, o lugar, a
ausência de movimento — mas também a família: a vida e a lei do clã. O único rito de fato
realizado em sua honra era a refeição familiar. O Hino Homérico a Héstia diz que “Sem ti, os
humanos não teriam festividades.”
Tão diferente de Hermes, sempre se movendo, nenhuma imagem dele sentado passando um
tempo com a família, compartilhando uma refeição com outros! Com o laptop, o telefone celular, o
iPod e a TV veem o lanche rápido, a mordida, um golinho, a caminho de algum lugar. Hermes vai
ao restaurante com o mundo em sua bolsa.
Portanto era para Héstia que se dirigiam aqueles que queriam retiro sagrado, onde podia-se
encontrar refúgio e tranquilidade.
A combinação de uma tela eletrônica fixa e estacionária e seu alcance global dentro de sua
casa supostamente replica a união Héstia-Hermes. Um altar em comum; uma lareira focada. Dentro

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e fora, interior e exterior reunidos: supostamente, quando lá você se senta, você está servindo a este
par igualmente.
Esse argumento omite o sentido mais profundo de Héstia. Ela se torna meramente uma
estação fixa de serviço para Hermes, como a esposa que mantém o vestíbulo para que seu marido
possa voar para fora e para dentro entre compromissos. Ela não tem valor em si mesma; um
mecanismo de serviço. A noção PC de Héstia omite a devoção disciplinada à interioridade, menos a
mensagem e mais o significado, menos a conexão para fora e mais os próprios processos de
interiorização, sua natureza virginal não contaminada.
Somente aqueles processos que não têm uso funcional direto, aqueles que não fazem
nenhuma conexão, que não comunicam nada, mas que veem antes de qualquer possibilidade — a
interioridade da vida focada que não se deixa seduzir pelas tentações de fora, aquela pureza, até
mesmo aquela askesis, da atenção disciplinada, auto-centrada como um círculo — oferecem a
gravitas e o contra-peso para a intoxicação hermética.
O fato de que a Internet, ou seu equivalente em cada país ou sistema, rapidamente tornou-se
uma exibição pornográfica e de que ela é usada para vários tipos de interações sexuais “virtuais”
deixa ainda mais evidente sua associação somente com Hermes. O Hermes do mito tinha um forte
componente sexual. O galo e o carneiro eram particularmente seus animais. Sua configuração
primordial era como uma herma fálica.
Quando observamos as imagens entalhadas de Hermes, vemos sua cabeça esculpida acima,
muitas vezes com seu boné de ideias aladas invisíveis, e seu bem definido membro abaixo. Entre
cabeça e falo — apenas um bloco de pedra. A mente e o sexo — dois grandes poderes geradores
autônomos; mas o corpo da interioridade, da recepção e da digestão, o coração e o estômago e as
vísceras, tudo isso está em branco. Ou, outras vezes, seu corpo é apresentado como um jovem bem
magro, bem sem marcas. Hermes, um hacker adolescente?
O fato de que a Internet tornou-se tão rapidamente sexualizada torna mais fácil de se
entender os movimentos puritanos para controlar os programas do ciberespaço e da televisão. A
censura contra o “sexo virtual” e o conteúdo sexual na televisão apresentam novamente o contra-
peso de Héstia ao lado lascivo de Hermes, quando comunicação e conexão também querem dizer
intercurso.
Héstia, diz-se, é “imune ao poder de Afrodite e às flechas de Eros.” E também se diz que
“deve-se esconder de Héstia a sexualidade.” Suas serviçais, as Virgens Vestais, podem ser levadas à
morte, e eram de fato enterradas vivas, se dessem sinais de atração venusiana com seus olhares,
gestos, ou mesmo suas vestimentas e seu caminhar.
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Quando Hermes e Héstia não estão num ritmo simpático, então eles levam um ao outro aos
extremos. A sexualidade torna-se uma área importante de sua contenda, e o ascetismo puritano
anula rigidamente a fantasia e a liberdade do desejo.
Nossa geração eletrônica já descobriu sua necessidade de Héstia, e põe em prática todos os
dias, junto com sua intoxicação hermética global, atividades deliberadamente repetitivas e
enfadonhas de foco intenso e quieto — exercícios de ginástica em máquinas aeróbicas, corridas
isoladas com fones de ouvido, iguais a rituais de centramento meditativo tipo Zen, Taoísta ou de
Yoga. Esses comportamentos fornecem um contra-peso; oferecem um antídoto de Héstia aos vícios
de Hermes. Movemo-nos para frente e para trás entre mensagem e meditação, entre Hermes e
Héstia, de forma semelhante aos soldados e marinheiros movendo-se entre batalhas e bordéis, entre
Marte e Vênus.
Portanto, a psicoterapia profunda e longa (contra a qual eu já levantei questões no passado)
pode servir como um ritual de Héstia para manter Hermes no aqui e agora. A psicoterapia clássica
como foi proposta e praticada por Freud e Jung estava localizada consistentemente num lugar físico
(Bergstrasse em Viena e Seestrasse no lago de Zurique). Essa disciplina prolongada e constante,
interminável e sem futuro, introvertida, lenta, cuidadosa e intensamente focada na interioridade
torna-se, em nossa era digital veloz, mais necessária do que nunca.

Aqui e Agora
Quero agora explorar com vocês outro aspecto da psicologia milenar, que se segue
logicamente ao que já falamos com relação a Héstia e o significado do lugar. O desejo pelo lugar, o
retiro à terra natal, a busca por um santuário — o que os junguianos chamam de temenos ou vaso
continente — sugere uma alteração radical em nosso pensamento e sentimento, a que eleva o lugar
como um refúgio contra o tempo.
Por lugar não me refiro a espaço. Sejamos claros. Desde Newton e Descartes, e
particularmente desde Kant, temos construído um mundo sobre dois princípios básicos, espaço e
tempo. Ambos são abstrações sem conteúdos palpáveis, puros continentes vastos de vazio sem
sentido ou valor, sem qualidades ou diferenças em si mesmos. O primeiro como um salão universal
no qual qualquer coisa pode ser localizada por meio de coordenadas geométricas; o segundo, um rio
infindável de unidades discretas, cada uma exatamente igual à outra, meros tique-taques contíguos
de um tirânico relógio invisível.
No entanto, agora com essa virada de milênio, observamos nosso mundo envolvido em lutas
terríveis acerca de lugar. Povos no mundo inteiro estão prontos para entregar suas próprias vidas
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por lugares específicos, os subúrbios de Sarajevo, as vilas rochosas da Chechênia, distritos de
Belfast, quadras de Los Angeles, do Kurdistão, Chiapas, assentamentos na Jordânia. Claro que esse
não é apenas um fenômeno de nossos dias. Guerras em torno de territórios são arcaicas e animais.
Sugiro, contudo, que essas batalhas de agora pertencem aos nossos sintomas de agora, e é sempre
para os sintomas que a psicologia olha para saber onde a consciência está emergindo, onde os
paradigmas estão mudando. O sintoma é a primeira fonte de insight psicológico.
Os sintomas de lavagem étnica e de ódio racial (xenofobia) dizem: “preserve a pureza deste
lugar.” Que nenhum deus estrangeiro seja honrado aqui. A xenofobia é monoteísta em sua
psicologia e literal em sua crença no solo, na terra, no lar e em Héstia. Podemos melhor entender
seus protestos se procurarmos por suas raízes míticas, e se ouvirmos seus clamores como
expressões arquetípicas.
Dentro do constructo do par Hermes-Héstia, lavagem étnica, o extermínio de populações
nativas, a demolição de casas e a queimada das terras num frenesi de auto-proteção são excessos de
Héstia emparelhados com os excessos de Hermes — a rede mundial do ciberespaço e comunicação
hermética globalizada, onde qualquer lugar é todo o lugar, e a própria ideia de lugar tornou-se
irrelevante.
Assim como Hermes pode enlouquecer com intoxicação hermética quando separado de
Héstia, também um monoteísmo de Héstia torna-se apenas pureza fanática, devoção fanática, o foco
simplista no lar, na terra natal, e nas relações familiares. Sem nenhum contato com os outros, eles se
tornam o império do mal, um eixo de maldade. Comunicação torna-se contaminação. Nenhuma
nuance, nenhuma ambiguidade, nenhum Hermes. “Robert McNamara reporta que, durante seus sete
anos como Secretário de Defesa dos EUA, não houve nem ao menos sete minutos de comunicação
direta entre os Presidentes Kennedy e Johnson e o Presidente Ho Chi Minh.”2 Sob noções de Héstia
de uma segurança purificada, a diplomacia hermética só é permitida por meio dos canais não
oficiais, a porta dos fundos, ilícita, inescrupulosa, escondida e de espionagem. A defesa de Héstia
dos “bons e velhos costumes locais” traz uma barricada contra a invasão de uma fantasia
multicultural e miscigenada de futuro. Os sintomas de lavagem étnica, tribalismo e xenofobia
tentam segurar este “futuro”. Eles afirmam o “lugar” como uma proteção contra as mudanças que
veem com o “tempo”. Eles reafirmam a primazia do lugar sobre o tempo como o princípio
governante mais importante para ordenar a existência. Tentam por um fim no tempo.

2 “Briefings”, The Watson Institute for International Relations, Brown University (Summer/Fall 1999), p. 2.
!13
E isso — o fim do tempo — é precisamente do que se trata nossa atual ansiedade milenar.
Imaginamos o fim dos tempos de uma forma literal e espacial, um cataclisma gigantesco afetando
toda a terra, uma epidemia global como o ebola ou a AIDS, aquecimento das calotas glaciais,
inundações, inverno nuclear, buraco na camada de ozônio, câncer universal, fome universal, uma
noite universal gasosa.
Estou portanto sugerindo que o retorno ao lugar liberta-nos da desolação do pensamento
espacial e da ansiedade do tempo. De fato podemos então desliteralizar o “fim dos tempos” cristão e
sua visão aterrorizante e sádica do Apocalipse e enxergá-lo como metáfora. Sim, o tempo chega a
uma parada a medida em que o milênio termina — não literalmente; os velhos relógios continuarão
com seus pequenos círculos mecânicos e os calendários continuarão a ter suas páginas viradas ou
descartadas. Mas onde estamos, e seus efeitos em quem somos, torna-se a consideração essencial de
uma vida. Pois cada lugar revelará seus determinantes locais, os deuses e daimones do lugar, quer
seja como uma bio-região, como um depósito de tradição, como uma composição arquitetônica,
como um humor paisagístico, um clima psíquico. O lugar onde você está torna-se a verdade
essencial de uma vida, ao invés dos avanços e das movimentações. Esse modo psicológico do “fim
dos tempos” promove um modo de vida ecológico e contido, que é também inimista e politeísta.
Também faz Hermes retornar ao panteão do qual ele parece ter se largado e desintoxica aquela
inflação de um deus acima de todos os outros.
A hipertrofia de Hermes preenche nossos dias de ansiedade apressada, medrosa de ficar para
trás. Parece que nunca damos conta de tudo; o tempo parece escorrer facilmente, a vida parece tão
rápida. Não podemos estar onde estamos e ao invés vivemos num futuro, nossas cabeças inclinadas
para frente, nossos pés tentando vestir suas sandálias aladas. Assim vivemos nossas agendas, não
nossos dias; nossos compromissos, e não nossos ritmos.
A mudança de paradigma do tempo para o espaço, essa restauração de Héstia como primeira
entre todos os deuses e deusas, naturalmente afetaria a terapia pois a alma não mais seria medida
pelo tempo do corpo e o tempo do mundo — estágios de crescimento, idade contada em anos, nossa
geração e nosso período histórico. Os sintomas de vagareza da alma, tais como a depressão, a
resistência, o esquecimento, a repetição, a fixação poderiam ser re-avaliados como rejeições ao
tempo, movimentos para longe das pressões do tempo rumo à estabilidade do lugar.
Uma das grandes máximas da Renascença era, “Olhar para trás para ver para frente”.
Também era expressa como retrocedens accedit, avançar retrocedendo. Quando Brunelleschi
desenhou o domo da catedral de Florença, ele olhou para trás para se mover para frente, dizendo,
“Nem mesmo os antigos levantaram uma abóbada tão enorme quanto esta será.” Sua noção de
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progresso era governada pelos ideais do passado, não por fantasias de futuro, absolutamente nova e
independente do que a precedeu.
O olhar para trás revela os padrões que se mostram repetidamente. Eles indicam realidades
arquetípicas. Não é a história que governa o futuro, mas sim as projeções de futuro desses padrões
arquetípicos. Assim, quando a Futurologia reporta esperança, progresso e um mundo verde, e
sustenta esses prognósticos otimistas com evidências da ciência espacial, da biotecnologia, índices
mais baixos de mortalidade infantil, mais celulares, refrigeração, expectativa de vida aumentada,
nova consciência ecológica — acreditamos estarmos vendo a realidade. Imaginamos que são esses
os fatos determinantes.
Mas a realidade está nos olhos que veem, não naquilo que veem. Pois o olho do
Futurologista, se informado por outra visão arquetípica mais saturnina, olha para o futuro e vê ruína
e decadência, a destruição dos habitats e das espécies, inundações e fome, insurreições civis,
terrorismo e pragas — um mundo descrito pelo grande pessimista saturnino Thomas Hobbes como
uma guerra de “todos contra todos”, e a vida humana como “brutal, detestável e curta.”
Olhamos para trás para obtermos informação sobre as formas arquetípicas de nossos insights
de forma a podermos entender que todos os futurismos são fantasias — qualquer que seja a
evidência.3 Já que as tendências atuais são múltiplas e contraditórias, especulações a partir delas
sobre o futuro só podem levar a previsões múltiplas e contraditórias. Nenhuma visão única pode
fazer o prognóstico. Realidades objetivas para além do aqui e agora permanecem desconhecidas e
não podem ser conhecidas, pois este é o significado da palavra “futuro”: aquilo que não é e que não
pode ser afirmado no tempo presente. Não “há” nenhum futuro. Futuro é meramente outro nome
para a inconsciência no espelho da qual vemos nossas próprias subjetividades.

Terminar Continuando
Já é tempo de concluir. O tempo ainda urge, empurra e pressiona; ainda estamos neste
milênio. O tempo poderia nos apressar, forçar-nos para fora daqui, para longe desse lugar, de modo
que poderíamos ir a outro lugar, um bar, um café, para a cama.
Ou talvez Héstia esteja nos chamando de volta para a casa.
Assim, terminarei dizendo novamente: o pensamento milenar sobre o futuro é uma fantasia
arquetípica. Essa fantasia nos seduz para o confronto de dois fatos fundamentais de toda existência
humana, de toda existência cósmica. Primeiro, todo momento real ocupa um lugar real; e segundo, a

3Para cinco projeções radicalmente diferentes de futuro, ver meu Kinds of Power (New York: Doubleday,
1995), pp. 226-32 [Tipos de Poder, São Paulo: Editora Axis Mundi].
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vida depende de uma fé profunda na continuidade existencial. O futurismo escapa do primeiro,
sempre deixando o aqui por algum outro lugar; e o futurismo nega o segundo, ao evacuar a certeza
do real com especulações sobre um vago e vasto desconhecido.
Pois a grande catástrofe que o futuro traz não é o futuro enquanto tal, mas o efeito do
Futurismo na vida presente, como ele desvia a atenção daquilo que é para aquilo que não é, levando
o foco do pão, sal e água de cada dia real para o desconhecido e o conjectural, assim negando
Héstia, e tornando-nos a todos “sem-teto”.
Tenho feito o máximo que posso para restaurar a centralidade de Héstia que pode nos
localizar, onde quer que estejamos, na vida física concreta. A lareira está onde você de fato estiver
focado, como a dela estava também no meio da cidade, no Prytaneion, ou prefeitura. Pois qualquer
que seja o século do calendário e a hora do relógio, o tempo sempre acontece num lugar — na
cama, na mesa, no escritório, nas ruas. Somos todos sem-teto quando vivemos apenas no tempo e
no espaço; e ninguém é sem-teto quando Héstia está presente. Ela dá a cada situação ambiental um
sentido de estar aqui, Da-sein.
A certeza do real — de que é porque está aqui, uma eternidade que não acaba e que não está
sujeita ao tempo — é semelhante àquilo que George Santayana, o velho filósofo espanhol que viveu
seus últimos dias na “cidade eterna”, chamou de “fé animal”. É aquela sensação em nossos ossos de
que a terra está debaixo de meus pés, que o sol se põe nesta tarde, de que o mundo — seja ele
amedrontador, trágico, injusto ou sem sentido — não vai embora. Essa fé animal é como a
consciência dos próprios animais que não têm futurologia. Em vez, suas possibilidades de
existência estão sempre aterradas — o ar está lá para as asas dos pássaros, a água está lá para o
prazer dos peixes. Esse chão está sempre “aqui”, não virtualmente mas realmente aqui, dando-nos a
própria possibilidade de viver, permitindo-nos dormir à noite sabendo que o nascer do sol nos
encontrará no mesmo lugar, permitindo-nos arrumar as coisas com certeza animal depois de um
desastre, enterrar os mortos e servir aos enlutados uma boa e amiga refeição.

(Partes dessa palestra, sob o título de “Millennial Psychology”, foram apresentadas para um público geral no
Banco Populare Commercio, em Milão, em Maio de 1996, e expandidas como “Hermetic Intoxication” para
o Departamento de Psicologia da Universidade de Turin. Uma versão revista foi apresentada no Center for
the Rocky Mountain West, University of Montana, Missoula, em Outubro de 1996, sob o título de
“Intoxication by Hermes: The No Place of Cyberspace,” como uma contribuição à série Human Place and
Cyberspace. Está publicado na versão definitiva que se traduz aqui como o Capítulo 11 do Volume 6 da
Uniform Edition of the Writings of James Hillman, Mythic Figures, Putnam, CT: Spring Publications, 2007.)

Tradução: Gustavo Barcellos

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UMA NOTA SOBRE A INFLAÇÃO HERMÉTICA
James Hillman

Apesar de nossa sofisticação pós-moderna, polissemiótica, irônica, avant-garde,


desconstruída e psicanalítica, é imensamente difícil nos desprendermos de nosso monoteísmo
histórico. Uma vez ouvi Karl Kerényi, que me ensinou mitologia em Zurique há quase cinquenta
anos, dizer que era impossível retornarmos ao estilo grego de pensamento. Não podemos escapar de
dois mil anos de Cristianismo e sua pervasiva psicologia monoteísta que favorece uma perspectiva
abstrata, coesiva, unificadora e organizada centralizadamente — ou aquilo que a psicologia batizou
de “ego”. Parece que somos incapazes de não obedecer à “unilateralidade” (a definição de Jung de
neurose, diga-se de passagem), que eleva uma ou outra perspectiva acima de todas as outras. Assim,
não é Hermes que capturou a psicologia de nosso tempo, mas a persistência do monoteísmo.
Hermes e seu computador é meramente a bola da vez.
A alternância dos deuses que influenciaram a psicologia do século XX não indica um
deslocamento verdadeiro do modelo monoteísta em favor de uma consciência politeísta. Um deus
levanta-se ao proscênio para subjugar todos os outros e depois some. Por algum tempo foi a Grande
Mãe. Neumann, Bowlby e os kleinianos conquistaram todo o panteão. Anteriormente havia a
dominação do ego heróico: “onde houver id que haja ego,” drenando o Zuiderzee como Hércules
limpando os estábulos, resistindo aos monstros regressivos e sereias do id, como Ulisses amarrado
ao mastro, um marido bonzinho voltando para casa. Também tivemos um foco monocular em
Ártemis e nas Amazonas, no feminismo combativo anti-fálico. E tivemos (ou ela nos teve) uma
identificação unilateral com a criança abandonada, vitimizada, abusada e sentimentalizada.
Essas excentricidades nos padrões dos mitos que influenciaram a teoria psicológica são
apenas suaves guinadas no mesmo caleidoscópio da visão monocular. Cada uma é um ponto de
vista, interpretando os fenômenos em termos de um Deus ou Deusa apenas. Mudar de deus, seus
nomes ou localizações (da Judéia à Ática), ou gênero (da flecha fálica ascendente à aflição púbica
descendente) não muda a insistência unificadora da consciência ocidental cristianizada (ou psique
cultural) e sua fé na unicidade. A virada de Hermes é mais uma dessas mudanças, como se a psique
contemporânea estivesse desesperadamente tentando livrar-se do Uroboro da História Ocidental que
engole cada potencial emergente devolvendo-o ao mesmo lance unificador. Lembrem-se do que a
patrulha ideológica patrística disse em seus debates com os antigos textos politeístas: “Tomamos
cada pensamento para Cristo.” (Gregório de Nazianzus)

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Embora Neville4 explique admiravelmente a maneira como Hermes tornou-se o grande Deus
da cena contemporânea, dominando nosso mundo, da economia de mercado à comunicação da era
da informação, sua discussão, quer queria quer não, permanece monoteísta. Por exemplo, quando
ele acusa a consciência hermética de “relativismo radical”, ele se esquece da experiência
psicológica de que quando estamos envolvidos em qualquer conflito não há relativismo. Estamos
partidos entre demandas; presos, desafiados. Há envolvimento emocional, a imersão na questão
colocada, chamada de problema, conflito, ambivalência, opostos, o que quer que seja. O movimento
patologizado é sempre radical embora nunca relativo.
Somente quando damos um passo atrás na postura reflexiva sobre a consciência politeísta
podemos falar de relativismo radical. Apenas quando assumimos a velha posição de avaliação e
escolha do ego fora do engajamento do mito com a vida é que muitas alternativas podem parecer
igualmente possíveis. Então nos sentimos capazes de escolher entre os mitos ou os deuses. Mas essa
postura também é mítica; a consciência está refletindo Hércules nas encruzilhadas, ou o inseguro
Páris chamado a escolher entre as Deusas; ou o iluminado Apolo cismando na distância. Em outras
palavras, somente o “ego” pode falar da complexidade mítica como “relativismo radical”, em vez
de como tragédia dramática ou a constelação do destino.
A solução clássica e renascentista para a identificação com um só Deus, ou seja, a aflição
monoteísta, não era resolvê-la pelo sincretismo ou pelo “juntar tudo” ao adorar-se todos os deuses,
como estar num círculo e curvar-se a cada um por vez. Isto mantém o velho “Eu” no centro,
distribuindo a atenção de acordo com o princípio da equidade (Apolo? Saturno e suas balanças?
Atená e a justiça?). Um panteão é uma idéia romana, que aparece numa cultura que ainda hoje é o
lar da Verdadeira Igreja Universal (isto é, Católica).
Não, a solução grega e renascentista para a identificação com qualquer deus único era a
profunda percepção de que nunca um deus aparece sozinho. Os deuses não são unidades distintas,
mas padrões entrelaçados que se interpenetram. Gostaria de encaminhá-los aqui ao meu Re-vendo a
psicologia, Capítulo 3, mas mais ainda a uma de suas fontes, o capítulo “Pã e Proteu” na obra prima
de Edgar Wind, Pagan Mysteries of the Renaissance. Lá ele enfatiza a duplicidade dos deuses e seu
inerente envolvimento uns com os outros. Escreve ele: “O vínculo mútuo dos deuses era uma

4Bernard Neville é professor de Psicologia Arquetípica e Humanística na Escola de Educação, Latrobe


University, Bundoora Campus, Victoria, Australia. Seu artigo “The Fascination With Hermes: Hillman,
Lyotard and the Post-Modern Condition” apareceu no Journal of Analytical Psychology, 37, 1992, 337-353.
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genuína lição platônica.”5 E lembra os versos de Schiller: “Nimmer, das glaube mir, erscheinen did
Gotter, / Nimmer allein.” (“Nunca, acreditem-me, nunca os Deuses aparecem sozinhos.”)
Os mitos colocam os deuses sempre em complicatio, ou seja, necessários uns aos outros, o
que se exprime frequentemente em trindades. Hermes, por exemplo, poderia ser colocado ao lado
de Dioniso, com Zeus seu pai, com Apolo seu irmão, e com seu próprio aspecto obscuro. Também
está ligado com Héstia e Afrodite. Não havia um Hermes simples, fixo como uma nua estátua de
mármore. Os epítetos dos deuses figuravam e revelavam suas afinidades e suas complexidades
politemáticas.
Além disso, seus mitos os mostram disputando. Como sabemos por nossas próprias vidas,
disputar é uma das principais formas de nos relacionarmos, de estarmos envolvidos uns com os
outros, particularmente nos intrincados relacionamentos das famílias e dos colegas próximos.
Disputar é ser afetado, afligido, até mesmo infectado pelo outro. Os mitos apresentam padrões de
contágio, e os deuses aparecem primeiramente nos mitos e nos rituais, somente depois como figuras
separadas e cristalizadas em símbolos. Hermes não pode ser separado e tratado sozinho sem que se
caia numa consciência monoteísta que contradiz a própria origem e natureza de Hermes no cosmo
politeísta. Portanto o Hermes que estamos favorecendo hoje em dia é aquele cortado da irmandade,
da fraternidade. Não está nos limites da companhia divina. Perdeu sua associação com os deuses,
tornou-se apenas profano.
Não há mais o Hermes antigo, o Hermes politeísta, mas uma máscara mercurial disfarçando
o mesmo velho monoteísmo de nossa civilização. Esse Hermes não oferece nem ajuda para o
andarilho, nem guiança para as almas, e nem pode conectar a vida humana a suas profundezas no
Mundo das Trevas e suas Sombras. Em vez, esse Hermes é o vendedor do programa de salvação
comum com sua grandiosidade de esperança e fé no progresso do reino vindouro, agora por meio de
(des)construções pós-modernas, da universalidade eletrônica, do jogo do mercado “livre”
desregulado, e de invisíveis recombinações moleculares. Aquilo que Neville chama de inflação de
Hermes me parece a conflagração de Hermes com o ego ocidental secular e singular.
Com o risco de me alongar demais num tema sobre o qual já escrevi bastante ao longo de
muitos anos, quero marcar uma crucial diferença entre uma psicologia arquetípica e aqueles
trabalhos entre os quais Neville me inclui (Lyotard, Foucault, Baudrillard, Maturana, Derrida), e
deixar claro meu alinhamento com Jung. De volta ao básico: porque as imagens são o modo
primário de pensamento e devoção para os rivais pagãos do monoteísmo, as psicologias hebraica,

5 E. Wind, Pagan Mysteries of the Renaissance (Harmondsworth: Penguin, 1967), p. 198.


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cristã e muçulmana foram sempre cautelosas com as imagens. “Imagem é psique,” disse Jung. Além
disso, Freud iniciou a psicologia profunda ao investigar a imagem onírica. Esta é a via regia, disse
ele, o caminho real para o retorno do reprimido.
Bem, se as imagens são essenciais para o politeísmo pagão e são aquilo que a consciência
monoteísta reprime, e se as imagens são a maneira pela qual o reprimido retorna, então as imagens
são o modo pelo qual a psique pagã torna-se visível, e ficarmos com elas se torna o primeiro passo
de um método politeísta. Imaginar descreve melhor o método para o envolvimento com o
reprimido, do que analizá-lo em busca de um sentido ou moralizá-lo em positivo ou negativo.
Assim é que a linguagem conceitual perde a imagem e o método de imaginar. Portanto,
termos que Neville utiliza para criticar a consciência hermética, tais como “relativo”,
“multiperspectivismo”, “positivo e negativo” caem do discurso hermético enquanto que a busca por
uma “realidade” substancial separada da imagem torna-se futilmente quimérica. Quando ficamos
com a imagem, ela nos absorve, iconicamente fascinando, uma ressonância de almas. Pois, se
imagem é psique, então imagem é alma. (Por favor, notem que aqui uso o termo com a valor que lhe
deu Jung, uma palavra difícil de se encontrar em Lyotard e os outros. Assim, a psicologia
arquetípica é uma psicologia, não um exercício do intelecto irônico francês.)
Apesar da profundeza insondável (Heráclito) para a qual uma imagem se abre, e da qual
nossa consciência mais estreita e medrosa tenta resgatá-la através de esquemas interpretativos,
estamos solidamente fundamentados numa realidade verdadeira quando ficamos com a imagem. Ela
é a psique em sua forma original e primordial. É por causa disto que a psicologia arquetípica não
requer suporte algum em nenhuma outra assim chamada realidade, e também porque ela não é
dependente de uma filosofia, ciência ou metafísica externas. Ela se relaciona com elas e troca com
elas, assim como Hermes com seus familiares e amigos olímpicos. Mas Baudrillard e Neville estão
certíssimos — a imagem não requer, para sua significação, nenhuma relação direta com qualquer
realidade estabelecida como mais real, mais fundamental, do que a própria imagem. Para a
Psicologia, a imagem é a própria coisa. Até mesmo arquétipos, deuses e mitos se fazem conhecidos
apenas como imagens.
Novamente, vamos manter em mente nossa arraigada tendência iconoclasta. Claro que
temos dificuldade em perceber a natureza das imagens. Nós as tememos. Nós as odiamos. Nós as
matamos. Sabemos subliminarmente que são embaixadores de deuses estranhos. Se a conquista de
culturas reduziu a ameaça de outros deuses ao destruir imagens fisicamente, a psicologia faz, mais
sutilmente, o mesmo trabalho. Reduzimos a imagem a explicações racionalistas e à história pessoal.
Se não podemos espremer um significado aceitável de uma imagem — que seja coerente com nossa
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visão de mundo — descartamo-la como algo sem sentido e esperamos pelo próximo sonho. Ao
separar a imagem de sua mensagem divina, o método analítico, apesar de toda sua adulação a
Hermes e ao hermetismo, na verdade mantém-no, com toda sua companhia, afastado.
Para trabalharmos com a inflação de Hermes precisamos primeiramente restaurá-lo à sua
autenticidade politeísta. Isto implica em restaurar as imagens a seu lugar primário como portadoras
de diversos tipos de mensagens divinas. Hermes psychopompos transmitia as mensagens dos deuses
de uma maneira psíquica, via alma, para a alma. Uma vez que as imagens são almas em si, o meio
para a mensagem de Hermes é a imagem psíquica.
Para nós, na prática psicológica, isto significa respeitar a imagem como um logos
spermatikos, uma fagulha da intenção divina, inflamando a imaginação. A invisibilidade de Hermes
mensageiro dentro da imagem significa que uma imagem não é nem réplica, nem simulacro, nem
representação, nem um derivado de nenhuma outra realidade. Ela gera a si mesma a partir de nada
que já sabemos — o que, de forma alguma, será assumir um niilismo mas, ao invés disso, uma fonte
autóctone, como a dos próprios mitos. Uma imagem convida imaginação. Ou, como disse Jung em
seu método interpretativo: continue sonhando o mito.
Como diz Neville, as narrativas grandiosas foram esvaziadas. Foram levadas ao mundo das
trevas; desconstruídas, desliteralizadas, despotencializadas. Decaíram. Não mais buscamos grandes
ideias interpretativas, digamos, de Hegel, Teilhard de Chardin, Toynbee ou até mesmo Einstein,
para vivermos nossas vidas. Hermes nos ensinou a tratar as ideologias hermeneuticamente (abordá-
las com suspeita) e hermeticamente (estudar teorias em busca de suas imagens secretas). Hermes
como Deus da invisibilidade tornou-se Mestre da paranóia. E assim todas as velhas virtudes do
intelecto estimadas por outros deuses (Saturno, Atena, Apolo, Métis, Zeus) — coerência, universais
de explicação, leis da lógica, axiomas, verificações, e profundas construções do pensamento —
tornaram-se decepções, um conto-do-vigário branco, patriarcal. Hermes-Mercúrio, que já foi um
Deus da versatilidade da palavra, da mente e da escrita, agora é apenas sua queda, desconstruindo
suas próprias virtudes, enganando o mundo humano.
Isso leva Neville a dizer que estamos flutuando num mar de imagens. Entretanto,
suponhamos que essas imagens sejam salva-vidas após o naufrágio do modernismo titânico, cada
grande narrativa — tais como o marxismo econômico, o darwinismo social, a teoria edípica
freudiana — competitivamente mais inclusiva, mais inflada que a anterior, cada uma delas
supostamente à prova de afundamento, verdades permanentes.
Em vez disso, suponha ou imagine cada imagem flutuante contendo sua profundidade, sua
história e seus valores. Só precisamos nos agarrar a uma delas e não deixar que se vá, deixando-a
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provar a eterna flutuabilidade, ânimo, e esperança do mito e seus seres. Nunca demos à imagem
uma chance de realizar tudo aquilo que pode oferecer à nossa cultura iconoclasta, e traços disso
ainda mancham até o excelente artigo de Neville que fala de imagens como “apenas” imagens.
Ainda não percebemos que toda a profundidade está na superfície, e que os deuses se mostram nos
detalhes, o próprio fenômeno, e não na filosofia grandiosa da qual a profunda e distinta
particularidade do fenômeno deve ser salva. As imagens podem nos manter boiando desgovernados
na realidade da vida, nossas vidas reais vividas sem âncora fundamental e sem esperança de sermos
pescados do mar por um deus pescador com sua rede salvacionista de uma grande narrativa.
Às vezes minha intoxicação politeísta me permite imaginar as coisas a partir do outro lado.
Então me parece que os deuses foram destituídos de imagens por tanto tempo que realmente
enlouqueceram, encontrando apenas conceitos, abstrações e fórmulas nos quais se assentar. E eles
estão desconfortáveis com isso. Pouco divertido, pouca fantasia: muita definição, sua complicatio e
ambiguidade muito facilmente sob o controle humano.
Acredito que os imortais — os gregos se referiam assim aos deuses — desejam visibilidade
dos mortais. Eles anseiam por imagens adequadas. Do contrário, permanecem literalmente
invisíveis, e ficam sem casa na terra. Parece que eles têm uma afinidade com, e um desejo por,
imagens. Desde as mais antigas pinturas rupestres, em todos os lugares a história mostra nosso
reconhecimento desse seu desejo. Onde quer que nós humanos tenhamos ido, montamos suas
imagens para dar suporte a nossa cultura, da mesma forma como agora construímos imagens
eletrônicas, midiáticas e mercantis, como uma maneira empobrecida de honrar Hermes.
Gosto de acreditar que os deuses, em sua frustração, tentam de todas as formas despertar
nossas capacidades imaginativas ao forçar imagens sobre nós — em sonhos, em fantasias, nas
memórias, nos medos, na pornografia. Uma vez que o mundo secular não mais convida os deuses às
suas imagens — tendo banido a beleza de suas escolas de imagens e confinado os poderes invisíveis
à arte “religiosa” e à arte do “insano” e suas terapias — o que podem fazer esses poderes senão
forçar sua presença sobre nós de forma distorcida, tais como as obsessões correntes de Hermes que
Neville cataloga? Sua descrição, seu abandono sem imagens, os leva ao último lugar disponível: a
mente humana. Como disse Heinrich Zimmer alguns anos atrás, “Todos os deuses estão dentro.” E
como continuou Jung, “Os deuses tornaram-se doenças.” Sua insanidade tornou-se a raíz da nossa.
Um sinal claro dessa insanidade é a maneira insana que nosso tempo usa a palavra
“imagem.” Tendo sido separada de suas associações imortais, pode ser afixada a qualquer evento
mortal passageiro, de pixels a personas e ao pop. As imagens requerem uma cosmologia que lhes dê

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valor e que lhes dê suporte a partir de dentro. É por isso que Vico disse que a vera narratio
(“narrativa verdadeira”) dos mitos era importante para a ordenação da imaginação.
No seu começo, a psicologia profunda certamente deve ter agradado aos deuses. Ela incitou
o retorno do reprimido. Mas o reprimido retornou dentro de uma cosmologia altamente secular e
científica. Assim, Hermes, privado de sua profundidade e de sua divindade, tornou-se secularizado,
meramente escorregadio, enganador, sedutor, comercial, um ladrão e um mentiroso, como escreve
Neville, e sua inventividade e invisibilidade tornaram-se cientifizadas em tecnologia eletrônica.
Portanto eu o imagino chamando-nos a encontrar imagens mais válidas para conter as
invisibilidades; ele está pedindo para ser libertado do altar de vidro e plástico do monitor de seu PC
e a ele ser dado um lugar mais acolhedor e belo na terra. A construção de tais receptáculos de
imagens significa que a psicologia profunda não pode se esquivar da batalha na mente iniciada por
Freud (contra a ilusão da religião) e por Jung (contra o Cristo unilateral). Essa batalha essencial
contra a inconsciência monoteísta da história ocidental necessita uma batalha contra os
subordinados profissionais do monoteísmo — o secularismo e o cientificismo — os patrulheiros
ideológicos de hoje, os quais, em nome da saúde mental e da terapia da alma, aplicam psicologia do
ego às doenças dos deuses.

(Este ensaio foi escrito como uma resposta à caracterização de Hillman por Bernard Neville como
um tipo hermético. Foi publicado originalmente em Spring: a journal of archetype and culture, #65,
Woodstock, Conn., 1999. Está publicado em versão definitiva no Volume 6 da Uniform Edition of
the Writings of James Hillman, Mythic Figures, Putnam, CT: Spring Publications, 2007.)

Tradução: Gustavo Barcellos

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