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A INCOMPATIBILIDADE VERTICAL DO INSTITUTO DA REINCIDÊNCIA,

SUA NÃO RECEPÇÃO PELA CRFB/88

THE VERTICAL MISMATCH OF THE RECIDIVISM, THEIR NON-RECEIPT


BY CRFB/88

Melissa Mendes de Novais 1

RESUMO:Este artigo insurge contra a admissão do plus gravoso da reincidência,


considerando os efeitos de tal rotulação largamente apresentados pela teoria
interacionista e o fracasso da reprimenda anterior na ressocialização do indivíduo. Num
Arquétipo garantista apregoador de princípios como o non bis in idem, culpabilidade,
presunção de inocência, humanidade, igualdade, materialidade do fato e secularização,
há fortes objeções contra o instituto da reincidência, tornando-o desprovido de
receptividade pela CRFB/88. Somente com a extensão do conceito de culpabilidade de
forma a abarcar aspectos de periculosidade é que se justifica a incidência dos artigos 63
e 64 do Código Penal No entanto, atribuir um status negativo ao indivíduo concebendo-
o como um ser criminoso ao puni-lo não apenas por sua conduta, mas pela sua
personalidade não condiz com a perspectiva humanitária penal. Trata-se daquilo “que
KOKLRAUSDH chamava de ‘embuste das etiquetas’ empregadas para prolongar de
maneira inconstitucional as penas” (apud ZAFFARONI, 2009, p. 202). O duplo juízo do
fato agravando a culpa do agente é inegável. Configura-se dúplice valoração de
determinado fato e tal projeção da pena de um crime em outro é vedado pelo princípio
penal do non bis in idem. Trata-se, portanto, de circunstância agravante ilegítima.

Palavras chave: Reincidência, garantismo e ilegitimidade.

ABSTRACT:This article protested against the admission of recidivism plus onerous,


considering the effects of such labeling largely produced by the interactionist theory and
the failure of previous reprimand in the resocialization of the individual. In Archetype
garantism touted as the principles of non bis in idem, guilt, the presumption of
innocence, humanity, equality, secularism and materiality of the fact so, there are strong
1
Estudante do 3º período matutino de graduação do curso de Direito das Faculdades Santo Agostinho.
E-mail: melissamendes91@yahoo.com.br
2

objections against the Office of recidivism making it devoid of receptivity by CRFB/88.


Only with the extension of the concept of culpability to encompass aspects of
dangerousness is that justifies the impact of Articles 63 and 64 of CP, however,
assigning a negative status to the individual conceiving it as a criminal is not to punish
him only by their conduct, but by their personality does not fit the criminal
humanitarian perspective. This is from "what KOKLRAUSDH called 'scam of the
labels' employed to prolong the sentences unconstitutional manner" (cited
ZAFFARONI, 2009, p. 202). The double mind the fact aggravating the guilt of the
agent is undeniable. Set up dual valuation of certain apparel and such a projection from
the pen of a crime in another is prohibited by criminal law principle of non bis in
idem.Trata is therefore an aggravating circumstance illegitimate.

Keywords: Recidivism, guaranteeism and illegitimacy.

E se definitivamente a sociedade só te tem


desprezo e horror. E mesmo nas galeras és
nocivo, és um estorvo, és um tumor. A lei
fecha o livro, te pregam na cruz depois
chamam os urubus
Hino de durán – Chico Buarque

Introdução

Há muito se discute a relevância da reincidência na dosimetria da pena. A


concepção majoritária que a emprega como agravante rege-se por premissas
problemáticas e equivocadas acerca do delito (MOTTA, 2009). O instituto da
reincidência previsto nos art. 63 e 64 do Código Penal carece de receptividade pela
norma fundamental, na medida em que, num modelo garantista, a estigmatização do
indivíduo e o duplo juízo dum fato são ilegítimos, pois violam o princípio do direito
penal do fato e do no bis in idem. A recidiva apresenta-se como anomalia
caracterizadora do direito penal do inimigo face aos seus resquícios antigarantistas e
discriminadores, uma vez que, ao atribuir ao diferente um estigma “atributo
profundamente depreciativo(...)deixamos de considerá-lo criatura comum e total,
reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída” (GOFFMAN, 1891, p. 6).

Por uma aplicação penal garantista


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Conquanto a tendência de um positivismo analítico e estéril que vem


dominando o pensamento zetético, a filosofia do direito deve reavaliar seu o papel de
crítica do seu tempo, escapando da mera legitimação do que está posto sob pena de
perpetuação da injustiça. O discurso filosófico precisa situar-se eminentemente no plano
prático, pretendendo a validade das suas correções identificando as limitações do
pensamento jurídico e apresentando novas perspectivas para sua atuação. Devido ao
aspecto sistêmico do mundo jurídico, a filosofia opera como espaço de confrontação do
direito com o contexto social (MASCARO).
Da dialética fático-axiológica observada no estudo das ciências penais, a
teoria garantista proposta merece breves observações. Sua proveniência reside nas
tradições jurídicas do iluminismo e do liberalismo. Dos embates entre pressupostos
teórico-filosóficos, decorrentes da heterogeneidade das tradições, emergiram os axiomas
consolidados nas constituições e codificações modernas configurando-se como um
esquema epistemológico, o qual identifica o desvio penal e dirige-se a assegurar o
máximo grau de racionalidade e confiabilidade do juízo. (FERRAJOLI, 2002)
Os paradigmas do garantismo e do minimalismo que se buscam efetivar no
sistema penal são requisitos e fundamentos do próprio Estado democrático de Direito.
No embate entre a pretensão punitiva estatal e o direito do indivíduo à liberdade, a
prevalência de um sobre o outro deve ser determinada considerando os princípios
fundamentais, hierarquicamente superiores e legitimadores de todo o sistema normativo,
dos quais se destacam o princípio da humanidade, proporcionalidade, legalidade,
fragmentariedade e ressocialização. (ZAFFARONI, 2009).
Apesar da noção estritamente física a que o senso comum concebe a
violência a ela atribui-se acepção assaz abrangente:

Há violência quando, numa situação de interação, um ou vários


autores agem de maneira direita ou indireta, maciça ou esparsa,
causando dano a uma ou várias pessoas em graus variáveis, seja em
sua integridade física, seja em sua integridade moral, em suas posses
ou em suas participações simbólicas e culturais (MICHAUD, 1989, p
10-11)

A violência estatal, numa percepção lógica do ordenamento jurídico


brasileiro, deve estar circunscrita pela norma fundamental de forma a impedir a retro-
alimentação do sistema. O legislador, no entanto, age às vezes colidentemente ao viés
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principiológico constitucional, atribuído ao direito penal função simbólica, movendo o


processo legiferante em retorno à cólera e sensação de segurança pública incitadas
predominantemente pelo sensacionalismo dos meios de comunicação em massa que
instigam a emotividade projetando a sensação da vítima na sociedade. Objetiva atender
a uma finalidade de segurança jurídica distorcida e conflitante com as garantias
fundamentais.

“O garantismo tem como escopo realizar de forma minimamente


eficaz a programação normativa, visando a percepção da relação
substancial entre princípios jurídicos e constitucionais que asseguram
os direitos fundamentais e a efetivação do projeto da modernidade”
(SANTOS, 1999, p.18)

Falácia do discurso jurídico penal

Desde o século XVII, o mesmo liberalismo político do qual se originaram os


princípios garantistas apregoa o lema de igualdade formal inserindo a potencialidade
utópica de tal preceito na mentalidade social de forma asseguradora sem, no entanto,
conferir integridade ao sistema penal atenuando ou extinguindo a linha interposta entre
o discurso e a sua efetiva ação punitiva. Na percepção de alguns autores, o direito penal
positiva um imaginário social de segurança e paz em forma de compromisso,
representando simbolicamente os anseios sociais. “o Direito penal na atualidade não tem
discurso acadêmico, é puro discurso publicitário, é pura propaganda”(GOMES, 2006)
no entanto, trata-se de uma publicidade falaciosa e abusiva, conforme descrito no
Código de Defesa do Consumidor( SANTOS, 1999, p.129).
O “fracasso” do sistema penal em cumprir com as suas funções declaradas,
na verdade, é a fonte de seu sucesso. Com um século e meio de fracassos, o sistema se
mantém(TRINDADE, 2003). Hannah Arendt aponta que a propaganda cria uma
realidade que concorre com o mundo real e a mentira, por sua possibilidade de ser bem
sucedida, constitui alvo de um movimento irrefletido (SOUZA, 2009). Cumprir a lei e
obedecer ordens, é a função do “cidadão de bem” que simplesmente as seguem sem
atentar que as prisões estabelecem “campos de concentração” para pobres
(WACQUANT, 1999).
As leis constituem álibis à seletividade penal, instituída predominantemente
por ideologias financeiras, destinando a norma mais severamente a segmentos
populacionais indesejados e descartáveis do ponto de vista produtivo, mas devidamente
úteis para a indústria das prisões. A realidade carcerária e processual evidencia a
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repressão social informal, suficientemente estigmatizadora dos indivíduos indesejados,


aderida pelas instituições penais, conforme assevera Lourival Almeida Trindade “O ex-
presidiário é um homem marcado. Quitada a sua pena, mesmo assim, a sociedade não
tem porque nele confiar. Rondar-lhe-á os passos na figura do panóptico invisível
foucaltiano”(2003, p.24) . A reincidência configura a institucionalização do atributo
fático e valorativo do sistema penal de direcionamento menos a ações que a
determinadas pessoas.
A conduta desviante não é suficientemente criminalizadora já que o status
de criminoso representa requisito eletivo do indivíduo-alvo da atividade repressiva e
punitiva estatal. Conforme assevera Warat, “a epistemologia do direito é uma doxa
politicamente privilegiada” (1994, p. 14) Nesse sentido, os estudos criminológicos
devem atentar-se para os mecanismos de seleção, reação e tipificação do delito
perquirindo suas mais latentes funções. Tais funções manifestam um sistema que se
dirige essencialmente para manter as estruturas sociais, políticas e econômicas
densamente desiguais (SANTOS, 1999, p.16).

Os tribunais e o direito comparado

As leis comparadas apontam que vários países adotaram posicionamentos


diversos quanto à reincidência. Convém apontar que algumas legislações eliminaram
seu conceito, como o fez o Código da Colômbia de 1980. O Código brasileiro extinguiu
algumas definições como a de habitualidade e outras análogas; eliminou ainda as
medidas de segurança atreladas à rotulação de pessoas perigosas e arbitrárias que,
notoriamente, sofreram influência do Código Italiano de 1930. Contudo, a reincidência
ainda persiste no Código Penal brasileiro - não obstante, mantida apenas como
“genérica” com diversos efeitos agravantes - contrariamente ao seu percurso
minimalista. (ZAFFARONI, 2009)
Os Tribunais ainda têm se mostrado resistentes ante essa tese. A
jurisprudência do STF não considera que a reincidência como agravante configura bis
in idem e que o afastamento do gravame colide com o princípio da individualização da
pena. Releva-se destacar decisões inéditas, como a Apelação Crime n.º 699.291.050
(11-08-99) da 5.º Câmara Criminal, TJRS, ressaltando o voto do relator o Des. Amilton
Bueno de Carvalho, que confirmou a sentença do juízo monocrático (da cidade de
Erexim) que deixou de aplicar a reincidência.
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Reincidência como circunstância preponderante

A corrente predominante alicerça-se no princípio da individualização da


pena, no entanto, os antecedentes criminais ampliam a extensão do conceito de
culpabilidade incluindo atributos de periculosidade e da tão criticada culpabilidade do
autor - a carga pregressa relaciona-se de maneira direta na incidência do grau de
responsabilidade em agir conforme a direito. À Ilicitude agregam-se sintomas de
periculosidade, penalizando o autor (indisciplinado) em detrimento do crime: a punição
agrega-se ao estuprador como personalidade agravante do estupro, uma vez que a
expectativa social do rótulo de criminoso é a esperança que este reincida, por exemplo.
A severidade das penas relaciona-se a uma “culpabilidade pela conduta de vida”.
Vislumbra-se aqui uma mácula ao preceito da materialização do fato inscrito no
princípio da culpabilidade. “Podemos dizer que ao menos em sua manifestação extrema,
é uma corrupção do direito penal, em que não se proíbe o ato em si, mas o ato como
manifestação de uma forma de ser, esta sim considerada verdadeiramente delitiva”
(ZAFFARONI, 2009, p. 107)
As teorias psicológicas da culpabilidade atribuem ao recidivo uma maior
vontade ou persistência na condição desviante. Tal concepção é equivocada, uma vez
que a própria condenação e punição apresentam efeitos criminógenos. Outra vertente
sustenta a insuficiência dos mecanismos de contramotivação na condenação anterior,
devendo-se reforçar a condenação pelo outro delito. Essa teoria ignora que a mera
condenação, sem o cumprimento da pena, não é por si mesma contramotivadora, salvo
se lhe atribuíssem efeitos mágicos e mesmo o cumprimento da pena é frequentemente
motivador do desvio (ZAFFARONI, 2009).

Reincidência e os axiomas constitucionais penais

A reincidência enquanto agravante pode assumir duas feições. Se partir de


uma justificativa retrospectiva, há duplo juízo dos fatos agravando a culpa do agente.
Configurando-se como dupla valoração de determinado fato, a projeção da pena de um
crime em outro é vedado pelo princípio penal do non bis in idem. Tal tese, segundo a
obra “Criminologia dialética” de Lyra Filho, já vinha sendo defendida a por Carnot,
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Alauzet, Tissot, Köstlein, Merkel, Gesterling, Mittermayer, Pagano, Carmignani,


Gruliani, Pessina, Bucelatti(MOTTA, 2009).
Se, por outro lado, funda-se em uma sanção de caráter prospectivo, foge ao
escopo penal de tutela de bens jurídicos fundamentais em detrimento de um positivismo
criminológico que busca a antecipação da tutela penal de bens indeterminados, por meio
de medidas de segurança. A maior periculosidade do agente, na perspectiva do direito
penal brasileiro, é infundada, já que aprouve ao legislador adotar a reincidência
genérica. Não há razão em presumir futura incidência em crimes de espécies diversas
(ZAFFARONI, 2009). Trata-se de uma “ficção”-inventa-se um bem jurídico futuro
inexistente como justificante do agravamento punitivo”(MOTTA, 2009) -denominada
“presunção de periculosidade”, dilacerando o postulado de presunção de inocência.
Decreta-se a completa incapacidade reintegradora da pena: o direito penal
tão ciente da sua insuficiência em cumprir com seu papel ressocializador, prevê as
futuras ações individuais por meio de uma análise subjetiva da tendência criminosa. Se
o próprio instituto da reincidência reconhece a completa insuficiência da pena em sua
função reintegradora é ilógico insistir na mesma medida notadamente desgastada.
Nesse sentido Juarez Cirino dos Santos chega a advogar a instituição da reincidência
como atenuante:
se novo crime é cometido após a passagem do agente pelo sistema
formal de controle social, com efetivo cumprimento da pena criminal,
o processo de deformação e embrutecimento pessoal do sistema
penitenciário deveria induzir o legislador a incluir a reincidência real
entre as circunstâncias atenuantes, como produto específico da
atuação deficiente e predatória do Estado sobre sujeitos
criminalizados. (apud MOTTA, 2009, p. 218)

Em contrapartida, há quem ampare o embrutecimento da pena daquele que


desviou novamente fundando em argumentos assaz estigmatizantes:

Habita nesses delinqüentes recindivantes empedernidos, uma força


compulsiva um potencial explosivo, endógeno liberado por um
processo verdadeiramente mórbido. Eles são dotados de um poder
irreversível de praticar o mal. (FERNANDES, 2002, p. 345)

Todavia, admitir o direito penal do autor e personalidade irreversível


deveria implicar a utilização da recidiva como circunstância de efeito diametralmente
oposto ao predominantemente adotado nos tribunais, pois numa outra acepção, a
habitualidade no desvio implicaria numa redução do livre-arbítrio. Para Aristóteles
aquele que se apartava dos valores adentrava em uma espécie de vicio ao qual
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permanecia subordinado (ZAFFARONI, 2009). Mas a insurgência contra o direito penal


do autor faz-se em sua totalidade: o mérito pessoal deve ser sucumbido integralmente e
não apenas para o benefício do réu, porquanto a punição do modo de vida deve estar a
cargo de uma teoria moral e não jurídica.

È de todo evidente que proibir uma personalidade implica a aberrante


pretensão de um direito penal que ignora qualquer limite de
privacidade e reserva. Qualquer tipo de autor seria inconstitucional
em nosso direito positivo, porque a personalidade vai se formando
com atos que são vivência (à parte do genótipo ou carga biológica
herdada), mas que não podem ser proibidos enquanto eles próprios
não constituam delitos.(ZAFFARONI, 2009, p.388, grifos nossos)

O homem passa a ser visto como coisa e adquire uma identidade imutável
determinada por ações, sucumbindo o potencial humano do “dever ser”, sua natureza
inacabada e sua autodeterminação. As normas destinam a conferir estabilidade às
condutas humanas, conferindo-lhes menor imprevisibilidade, isto é, as condutas são
conformadas por desejos consensualmente admitidos e institucionalizados em forma de
“bem comum”. Com a rotulação, retira-se o indivíduo indesejado do meio social,
impedindo-lhe qualquer possibilidade de adesão aos valores sociais, pois se cria um
subgrupo de “inimigos” que se identificam em suas ilicitudes assumem os valores desse
grupo, não se podendo exigir que os comportamentos socialmente admitidos sejam
interiorizados por aqueles que estão marginalizados. A identidade de delinqüência de
seus integrantes molda as suas ações em conformidade com tal identificação. O status
negativo, portanto, possui capacidade adaptadora, de forma que a marca criminal é
interiorizada num processo de definição de caráter.
O sistema penal seleciona pessoas e ações, estas a seu turno, após a
filtragem do sistema penal, revelam-se parcela ínfima da criminalidade real, permitindo
que o cárcere reproduza criminalidade e as relações sociais, porquanto se voltam a
parcelas sociais mais débeis economicamente. Numa acepção fática dos tribunais e da
polícia, os antecedentes criminais agravantes consubstanciam a superioridade
hierárquica dos crimes patrimoniais sobre os relacionados à vida, porquanto os crimes
tipificados nos art. 155 e 157 são determinantes na atribuição de personalidade
criminosa e exteriorizam uma ideologia excludente, em que a relação crime e classe
social é estreita (TRINDADE, 2003).
A semantização do que configura o “humano” em seu aspecto adjetivo sofre
alterações segundo contextos históricos e sociais específicos. No período grego,
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“humano” remetia ao exercício da condição humana que o distinguia dos animais, isto
é, a possibilidade da ação, do discurso e do estar entre homens (ARENDT, 2007, p. 15).
A humanidade também recebeu atribuições espirituais e morais, mas, sobretudo, após a
segunda metade do século XVIII, as degradações do gênero humano conduziram a
consolidação de uma nova visão do “ser humano”, como a possibilidade de ver o outro
como sujeito de direito. Luis Regis Prado expõe a presença dessa noção já no século
XVII, ao citar Samuel Pufendorf: “Ainda quando não se espere de outro homem nada de
bom ou de mal, a natureza exige que se considere como nosso semelhante ou
afim”(2005, p. 153).
Todo homem carrega em si uma “vontade de potência” 2 latente, o anseio de
apropriar-se das forças e elementos do mundo, buscar prazer, criação. Poder é um
preceito arraigado no próprio ser, mas a cultura inflige, no entanto, uma contra-natureza
para o mínimo razoável de convivência social (SOUZA, 2003). O que moralmente é
mal se refere à prevalência da natureza do homem sobre as determinações sociais, o
homem ressentido é o homem moral. Assim, aqueles que não sacrificaram a sua vontade
de potência, erigindo-a num dado momento, a saber, na concreção do delito, não podem
ser concebidos como não-humanos, conforme asseveram as teorias do direito penal do
inimigo, posto que todos sejam potenciais criminosos.
Há, nessa perspectiva, uma violação ao princípio da humanidade no que tange
ao significado de "humano" no contexto atual, em não conceber o semelhante como
humano apesar de suas diferenças e escolhas, conquanto desviantes, pois o indivíduo
desviante não é mau em essência, mas apenas não sujeitou sua "vontade de potência" às
convenções sociais. Nesse sentido, como o ser humano é essencialmente egoísta e todas
as suas ações, mesmo que aparentemente destinadas a atender ao outro ou à
comunidade, carregam em si interesses mascarados, punir alguém que concretizou o seu
interesse admitindo-o como menos humano é inconcebível, no fim, as condutas
humanas são necessariamente individualistas, nessa visão, Nietzsche aponta “o

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A vontade de potência não depende de formulações, pois refere-se à própria natureza das coisas, a força
latente do ser, ela não constitui um ser nem um devir, mas um pathos (no sentido descartesiano), este por
sua própria existência, imperfeito. A vontade de poder permeia a natureza e mesmo o homem, é uma
instância criadora e impulso inventivo, um instinto natural. Todos nós somos um grau de potência, ou
seja, nós e tudo que existe é vontade de potência. A vontade de potência não se esgota, é, sempre, vontade
de ir além de si mesma, vontade de diferenciar de si mesma - ela retorna eternamente. Somos, portanto,
uma potência de diferenciar de nós mesmos, de expandir e dominar outras potências, passar por
metamorfoses que exprimem uma afirmação da vida. A negação da vida (que também é vontade de
potência, mas que é uma vontade do nada), investe em formas, identidades, fixando-se, separando-se da
sua capacidade singular de criar sentido e valor que levaria à expansão da potência.
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altruísmo como espécie mais mentirosa do egoísmo (utilitarismo), o mais sentimental


egoísmo.” (p. 17).
A reprimenda deve limitar-se à ação/omissão, pois aqui a diferença entre o
"homem de bem" e o que cometeu o crime é que o interesse social daquele é superior
aos demais. demais “Se alguém dentre nós não tem um crime na consciência — por
exemplo, um assassínio — a que devemos isso? Que nos faltaram algumas
circunstâncias favoráveis”(NIETZSCHE, p. 118).O “homem de bem” já está imbuído
de personalidade moral, o que inibe a conduta desviante de tal determinação social,
mesmo que ocorra um desvio, a sociedade o considera excepcional e, portanto, menos
punível. Com o reincidente, no entanto, dá-se fenômeno oposto. Portanto, o agravante
de punição ao recidivo configura um corretivo pela sua personalidade incômoda e
incorrigível, que é consensualmente reprimível, como uma projeção da frustração do
homem ressentido.
A atribuição de imagem é importante norteadora de condutas. A supressão
de vontades e a contenção de anseios são eminentemente dirigidas pela correspondência
ao conceito que se formula acerca de alguém. A esperança social conforma,
demasiadamente, a representação individual.
A Lei Suprema em seu artigo 19, inc III, veda à União - fonte competente de
legislação relativa a matéria penal - e demais entes, “criar distinções entre brasileiros ou
preferências entre si”, mesmo que tal distinção seja entre “aqueles que aprenderam a
conviver em sociedade” e “aqueles que não aprenderam e insistem em continuar
delinqüindo”(STRECK, 2001, p. 71).

Considerações finais

As circunstâncias agravantes inscritas em texto legal objetivam


circunscrever em alcance máximo, o poder eqüitativo do juiz. A compreensão eqüitativa
de tais circunstâncias compreende conotações que se manifestam em desígnios e
valorações amplamente autoritárias. Ademais, a agravante ao recidivo, desenvolve um
intento injusto que se alicerça em preceitos éticos, deterministas e pragmáticos, cabe
ressaltar, recorrem ao direito penal não somente para prevenir delitos, mas para
decompor as personalidades desviantes através de mecanismos discricionários de
homologação ou de neutralização destas por meio de técnicas de amputação e melhoria
social. (FERRAJOLI, 2002).
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A seletividade penal e seus instrumentos inocuizantes (reincidência e


antecedentes) imbuídos de ampla carga estigmatizante - tratam de tornar certos
indivíduos elementos de vigiar e punir (CONDE, 2008) – notoriamente, denotam um
posicionamento penal inconstitucionalmente desigual no processo de criminalização. O
Código Penal brasileiro tarda em suprimir a reincidência enquanto anomalia se seu
sistema. A iniqüidade precípua da prisão é ela mesma. O cárcere assola qualquer
pedagogia de reintegração.

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