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Introdução
O homem passa a ser visto como coisa e adquire uma identidade imutável
determinada por ações, sucumbindo o potencial humano do “dever ser”, sua natureza
inacabada e sua autodeterminação. As normas destinam a conferir estabilidade às
condutas humanas, conferindo-lhes menor imprevisibilidade, isto é, as condutas são
conformadas por desejos consensualmente admitidos e institucionalizados em forma de
“bem comum”. Com a rotulação, retira-se o indivíduo indesejado do meio social,
impedindo-lhe qualquer possibilidade de adesão aos valores sociais, pois se cria um
subgrupo de “inimigos” que se identificam em suas ilicitudes assumem os valores desse
grupo, não se podendo exigir que os comportamentos socialmente admitidos sejam
interiorizados por aqueles que estão marginalizados. A identidade de delinqüência de
seus integrantes molda as suas ações em conformidade com tal identificação. O status
negativo, portanto, possui capacidade adaptadora, de forma que a marca criminal é
interiorizada num processo de definição de caráter.
O sistema penal seleciona pessoas e ações, estas a seu turno, após a
filtragem do sistema penal, revelam-se parcela ínfima da criminalidade real, permitindo
que o cárcere reproduza criminalidade e as relações sociais, porquanto se voltam a
parcelas sociais mais débeis economicamente. Numa acepção fática dos tribunais e da
polícia, os antecedentes criminais agravantes consubstanciam a superioridade
hierárquica dos crimes patrimoniais sobre os relacionados à vida, porquanto os crimes
tipificados nos art. 155 e 157 são determinantes na atribuição de personalidade
criminosa e exteriorizam uma ideologia excludente, em que a relação crime e classe
social é estreita (TRINDADE, 2003).
A semantização do que configura o “humano” em seu aspecto adjetivo sofre
alterações segundo contextos históricos e sociais específicos. No período grego,
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“humano” remetia ao exercício da condição humana que o distinguia dos animais, isto
é, a possibilidade da ação, do discurso e do estar entre homens (ARENDT, 2007, p. 15).
A humanidade também recebeu atribuições espirituais e morais, mas, sobretudo, após a
segunda metade do século XVIII, as degradações do gênero humano conduziram a
consolidação de uma nova visão do “ser humano”, como a possibilidade de ver o outro
como sujeito de direito. Luis Regis Prado expõe a presença dessa noção já no século
XVII, ao citar Samuel Pufendorf: “Ainda quando não se espere de outro homem nada de
bom ou de mal, a natureza exige que se considere como nosso semelhante ou
afim”(2005, p. 153).
Todo homem carrega em si uma “vontade de potência” 2 latente, o anseio de
apropriar-se das forças e elementos do mundo, buscar prazer, criação. Poder é um
preceito arraigado no próprio ser, mas a cultura inflige, no entanto, uma contra-natureza
para o mínimo razoável de convivência social (SOUZA, 2003). O que moralmente é
mal se refere à prevalência da natureza do homem sobre as determinações sociais, o
homem ressentido é o homem moral. Assim, aqueles que não sacrificaram a sua vontade
de potência, erigindo-a num dado momento, a saber, na concreção do delito, não podem
ser concebidos como não-humanos, conforme asseveram as teorias do direito penal do
inimigo, posto que todos sejam potenciais criminosos.
Há, nessa perspectiva, uma violação ao princípio da humanidade no que tange
ao significado de "humano" no contexto atual, em não conceber o semelhante como
humano apesar de suas diferenças e escolhas, conquanto desviantes, pois o indivíduo
desviante não é mau em essência, mas apenas não sujeitou sua "vontade de potência" às
convenções sociais. Nesse sentido, como o ser humano é essencialmente egoísta e todas
as suas ações, mesmo que aparentemente destinadas a atender ao outro ou à
comunidade, carregam em si interesses mascarados, punir alguém que concretizou o seu
interesse admitindo-o como menos humano é inconcebível, no fim, as condutas
humanas são necessariamente individualistas, nessa visão, Nietzsche aponta “o
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A vontade de potência não depende de formulações, pois refere-se à própria natureza das coisas, a força
latente do ser, ela não constitui um ser nem um devir, mas um pathos (no sentido descartesiano), este por
sua própria existência, imperfeito. A vontade de poder permeia a natureza e mesmo o homem, é uma
instância criadora e impulso inventivo, um instinto natural. Todos nós somos um grau de potência, ou
seja, nós e tudo que existe é vontade de potência. A vontade de potência não se esgota, é, sempre, vontade
de ir além de si mesma, vontade de diferenciar de si mesma - ela retorna eternamente. Somos, portanto,
uma potência de diferenciar de nós mesmos, de expandir e dominar outras potências, passar por
metamorfoses que exprimem uma afirmação da vida. A negação da vida (que também é vontade de
potência, mas que é uma vontade do nada), investe em formas, identidades, fixando-se, separando-se da
sua capacidade singular de criar sentido e valor que levaria à expansão da potência.
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Considerações finais
Referências bibliográficas:
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista
dos tribunais, 2002.
MOTTA, Felipe Heringer Roxo da; VARGAS, Jorge de Oliveira. Reincidência: uma
agravante não recepcionada. Captura Crítica, Florianópolis, v.1, n. 2, p. 213-233,
jul/dez. 2009.
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PRADO, Luis Regis. Curso de direito penal brasileiro: volume 1, parte geral.5 Ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
STRECK, Lenio Luis. Tribunal do júri: símbolos e rituais. 4 .ed. Porto Alegre:
Livraria do advogado, 2001. 183 p.
WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito. Porto Alegre: Sérgio Antônio
Fabris Editor, 1994.