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1590/1982-0275202037e200090
Resumo
A doença causada pelo novo coronavírus (COVID-19) tem sido considerada uma grave crise sob o ponto de vista
epidemiológico e, também, psicológico. Além das perdas em massa em curto espaço de tempo, as dificuldades para
realização de rituais de despedida entre pessoas na iminência da morte e seus familiares, bem como de rituais funerários,
podem dificultar a experiência de luto. O objetivo deste estudo é sistematizar conhecimentos sobre os processos de
terminalidade, morte e luto no contexto da pandemia de COVID-19. Por meio de revisão narrativa da literatura, foram
sumarizadas experiências relatadas em diferentes países durante a pandemia. Apresentam-se características das demandas
psicológicas emergentes e implicações para a prática profissional do psicólogo. Considerando que expressões de afeto,
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1
Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Psicologia.
Florianópolis, SC, Brasil.
2
Universidade Federal do Rio Grande, Instituto de Ciências Humanas e da Informação, Programa de Pós-Graduação em Psicologia.
Av. Itália, km 8, Carreiros, 96203-900, Rio Grande, RS, Brasil. Correspondência para/Correspondence to: B. SCHMIDT. E-mail: <psi.
beatriz@gmail.com>.
3
Fundação Oswaldo Cruz, Escola de Governo, Centro de Estudos e Pesquisas em Emergências e Desastres em Saúde. Brasília, DF, Brasil.
4
Universidade Federal de Santa Catarina, Hospital Universitário Polydoro Ernani de São Thiago, Unidade de Terapia Intensiva Adulto.
Florianópolis, SC, Brasil.
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Como citar este artigo/How to cite this article
Crepaldi, M. A., Schmidt, B., Noal, D. S., Bolze, S. D. A., & Gabarra, L. M. (2020). Terminalidade, morte e luto na pandemia de
COVID-19: demandas psicológicas emergentes e implicações práticas. Estudos de Psicologia (Campinas), 37, e200090. https://doi.org/
10.1590/1982-0275202037e200090
Abstract
The disease caused by the new coronavirus (COVID-19) has been regarded as a serious crisis from both an epidemiological
and a psychological point of view. In addition to the mass loss of life in a short space of time, the difficulties involved
in the performance of farewell rituals between people on the verge of death and their families, not to mention funeral
rituals, may exacerbate the grieving experience. The aim of this study is to systematize knowledge about the processes
of terminality, death and grief in the context of the COVID-19 pandemic. Through narrative review of the literature,
experiences reported in different countries during the pandemic were summarized. Characteristics of the emerging
psychological demands and implications for the psychologist’s professional practice are presented. Considering that
expressions of affection, condolence and spirituality undergo changes in this scenario, the importance of enhancing
alternative and respectful ways to ritualize the processes experienced is discussed, which appears to be essential for the
reframing of loss and to face the challenges presented during and after the pandemic.
Keywords: Hospice care; Coronavirus infections; Pandemics; Mental health.
A doença causada pelo novo coronavírus Coronavirus Disease 2019 (COVID-19), foi inicialmente
reportada na China, em dezembro de 2019 (Costantini, Sleeman, Peruselli, & Higginson, 2020; Ho, Chee,
& Ho, 2020). Frente ao rápido crescimento do número de casos confirmados e de mortes em decorrência
da COVID-19 em diferentes países, a Organização Mundial da Saúde passou a caracterizá-la como uma
pandemia, a partir de 11 de março de 2020 (World Health Organization, 2020a). Estudos clínicos revelaram
que sintomas da COVID-19 comumente envolvem fadiga, tosse, febre e dificuldades respiratórias (Costantini
et al., 2020). Embora grande parte dos infectados (i.e., aproximadamente 80%) apresente sintomas leves
ou moderados (Bajwah et al., 2020), um significativo número de casos requer internação hospitalar e, até
mesmo, tratamento em unidade de terapia intensiva (Ferguson et al., 2020). A preocupação com a capacidade
dos sistemas de saúde para atender à demanda crescente, incluindo a necessidade de leitos hospitalares e
respiradores, tem levado à proposição de medidas para conter a rápida escalada da doença (Walker et al.,
2020), tais como fechamento de universidades e escolas, restrições a viagens, isolamento de casos suspeitos
e distanciamento social para toda a população (C. Wang et al., 2020; Ferguson et al., 2020). Apesar dos
impactos socioeconômicos derivados dessas medidas, estima-se que seja necessário mantê-las em algum
grau até que vacinas ou tratamentos efetivos estejam disponíveis, no sentido de salvar o máximo possível
de vidas humanas (Walker et al., 2020).
Estudos têm revelado que tanto a pandemia propriamente dita quanto as medidas adotadas para contê-la
parecem impactar a saúde mental, aumentando o risco para surgimento de sintomas de estresse, ansiedade
e depressão, o que vem sendo identificado na população geral (C. Wang et al., 2020) e em profissionais
da saúde (Zhang et al., 2020). Nesse sentido, a COVID-19 pode ser considerada uma crise sob o ponto
M.A. CREPALDI et al.
de vista epidemiológico e, também, psicológico (Weir, 2020a), dadas as alterações cognitivas, emocionais
e comportamentais que tendem a ser experienciadas nesse período (Enumo, Weide, Vicentini, Araujo, &
Machado, 2020). Em linhas gerais, as pandemias se associam a perdas em massa, tanto de vidas humanas
(Scanlon & McMahon, 2011), quanto de rotinas, conexões sociais face a face e estabilidade financeira (Taylor,
2019; Weir, 2020a). Por conta da COVID-19, muitas pessoas têm vivenciado mudanças rápidas em seu dia a
dia e precisam lidar com o futuro imprevisível (Weaver & Wiener, 2020). Outras tantas foram infectadas ou
mesmo perderam alguém da sua rede socioafetiva em decorrência da doença (Arango, 2020).
2
Pandemias costumam acarretar mortes em massa em um curto espaço de tempo, o que traz implicações
psicológicas diversas (Taylor, 2019). No caso da COVID-19, em particular, algumas medidas adotadas para
conter a rápida escalada do número de infectados, incluindo restrições a viagens e distanciamento social
(C. Wang et al., 2020; Ferguson et al., 2020), dificultam interações face a face entre enfermos e membros
da sua rede socioafetiva (Ingravallo, 2020; Pattison, 2020). Essas interações face a face são consideradas
importantes nos chamados “rituais de despedida”, isto é, processos de despedida realizados entre pessoas
na iminência da morte e seus familiares (Lisbôa & Crepaldi, 2003). Os rituais de despedida acontecem por
meio de incentivo à comunicação familiar, definição de questões não resolvidas, compartilhamento de bons
momentos vividos juntos, agradecimentos e pedidos de perdão, revelando-se promotores de qualidade de
morte para os doentes e de qualidade de vida para os familiares (Lisbôa & Crepaldi, 2003; Schmidt, Gabarra,
& Gonçalves, 2011). Ademais, os rituais de despedida tendem a ser organizadores, vindo a favorecer a
resolução do luto (Fiocruz, 2020a).
Tanto a comunicação verbal quanto a não verbal se mostram essenciais nos rituais de despedida; a
comunicação não verbal, especificamente, parece importante em situações em que as palavras são insuficientes
para externalizar o que se deseja ou, ainda, não podem ser ditas (Lisbôa & Crepaldi, 2003). A pandemia de
COVID-19, portanto, impõe desafios adicionais aos rituais de despedida nos casos de terminalidade. O fato
de muitas pessoas na iminência da morte estarem isoladas, sem a possibilidade de estabelecer interações
face a face, pode dificultar as conversações no final da vida (Pattison, 2020; S. Wang, Teo, Yee, & Chai,
2020; Weir, 2020b). Adicionalmente, mais de um membro da família pode estar infectado e, até mesmo,
hospitalizado (Bajwah et al., 2020). Porém, quando disponíveis, recursos como smartphones ou computadores
vêm sendo utilizados, de forma a possibilitar a manutenção de contato com a rede socioafetiva, por meio de
telefonemas, mensagens de texto, áudio e vídeo (Arango, 2020; Fiocruz, 2020a; Ingravallo, 2020). Apesar
disso, nesses casos há poucas oportunidades para a comunicação não verbal, e mesmo a comunicação verbal
pode ser prejudicada, sobretudo quando as pessoas na iminência da morte estão entubadas ou sedadas
(Pattison, 2020).
Nesse sentido, profissionais da linha de frente têm se dedicado à humanização dos atendimentos
(SSHAP, 2020), com destaque aos cuidados paliativos, buscando controlar sintomas e aliviar sofrimento
(Fiocruz, 2020b). Além de opioides, ansiolíticos vêm sendo utilizados (Bajwah et al., 2020; Kunz & Minder,
2020), visto que pacientes gravemente enfermos podem se mostrar angustiados, tanto pelas dificuldades
respiratórias, quanto pelo medo de que sua situação se agrave rapidamente e eles venham a morrer isolados
(Bajwah et al., 2020). Destaca-se a oferta de apoio psicológico às famílias, ainda que de forma remota, pelas
restrições quanto à presença de visitantes e acompanhantes adotadas em hospitais de diferentes países,
e.g.: Espanha (Arango, 2020); Itália (Costantini et al., 2020). Esse apoio psicológico é fundamental, pois a
família costuma ser afetada duplamente, pelo agravamento do quadro de saúde do doente e pelo medo de
que outros familiares estejam infectados (Fiocruz, 2020b). Apesar de consideradas prioridades nos cuidados
paliativos (Weaver & Wiener, 2020), as necessidades espirituais nem sempre podem ser atendidas no contexto
da pandemia, também em função das restrições para interações face a face (Costantini et al., 2020).
M.A. CREPALDI et al.
Os óbitos por COVID-19 têm ocorrido não somente nos hospitais, mas também nos domicílios (Ingravallo,
2020; Kunz & Minder, 2020). Em alguns casos, a pessoa infectada é acompanhada por profissionais da saúde
e, após explicação compreensível, cuidadosa e realística sobre a gravidade da doença e o mau prognóstico,
ela pode tomar a decisão de permanecer em casa, o que deve ser discutido também com seus familiares,
para posterior planejamento de cuidados paliativos no ambiente doméstico (Kunz & Minder, 2020). Por outro
lado, os óbitos nos domicílios também podem ocorrer por impossibilidade de acesso aos serviços de saúde,
4 sobretudo pela indisponibilidade de leitos hospitalares (Zibell, 2020). Ademais, há registros de colapso no
Como visto, a pandemia de COVID-19 tem o potencial para afetar as experiências de terminalidade,
morte e luto. Assim, intervenções alinhadas às demandas emergentes nesse contexto são necessárias
(Wallace et al., 2020; Weir, 2020a). Dentre os principais desafios do processo de terminalidade, destaca-se o
isolamento experienciado em muitos casos, o que dificulta as conversações no final da vida (Pattison, 2020;
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um dos membros da equipe de saúde (e.g., psicólogo) avalie o luto pós-funeral, por videoconferência ou
teleconferência, realizando encaminhamentos necessários quando houver indicativos de risco para luto
complicado (S. Wang et al., 2020).
Destaca-se a importância de acompanhar as repercussões dos processos de terminalidade, morte e luto
em série sobre a saúde mental da equipe de saúde (Arango, 2020; Fiocruz, 2020b), considerando que os óbitos
podem ocorrer entre pacientes atendidos e colegas de trabalho durante a vigência de pandemias (Scanlon &
8 McMahon, 2011; Taylor, 2019). Além disso, salienta-se também atenção às repercussões psicológicas negativas
Considerações Finais
Contribuição
COVID-19, TERMINALIDADE, MORTE E LUTO
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