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Editora Penalux

Guaratinguetá, 2018
EDITORA PENALUX
Rua Marechal Floriano, 39 – Centro
Guaratinguetá, SP | CEP: 12500-260

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EDIÇÃO
França & Gorj

ORGANIZAÇÃO E REVISÃO
Rose Nin

ARTE CAPA
Luiza Maciel Nogueira

CAPA E DIAGRAMAÇÃO
Ricardo A. O. Paixão

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

L886N LOU, LOURENÇA. 1953 -


NÁUFRAGA / LOU LOURENÇA. -
GUARATINGUETÁ, SP: PENALUX, 2018.

138 P. : 21 CM.

ISBN 978-85-5833-423-5

1. POESIA I. TÍTULO.
CDD B869.1

Índices para catálogo sistemático:


1. Literatura Brasileira

Todos os direitos reservados.


A reprodução de qualquer parte desta obra só é permitida
mediante autorização expressa do autor e da Editora Penalux.
Agradecimentos à minha família, à artista e poeta
Luiza Maciel Nogueira, responsável pela arte da capa,
e aos poetas-parceiros: Ivy Menon, Amanda Vital,
Wilson Guanais, Antonio Torres e José Couto.
só escreve o peso da Alma a imensa agonia de saber
– inaudível o desnecessário Grito e já não cabe
na memória das conchas vazias
: nem o barulho dos mares...

Wilson Guanais
Em tempo
Sumário

Antes a lou_cura que a mediocridade 13

mergulhos (na carne)

náufraga 21
imortal enquanto vivo 23
cantiga para ciclos anunciados 25
acrobacia (ou vestindo-se mulher de chico) 26
atrás da porta 28
tanto amar  30
amor natural 32
ponto cego 33
rancores e gozo 34
gosto de mulher 35
leitura do fim 36
marcas 37
girassol 38
tempestades 39
voraz 40
amor de perdição 41
das lembranças 42
contra a parede 43
anal 44
amor-perfeito 45
enquanto o dia não vem 46
sede 47
baby 48
sem convergência 50
erótica 51
o amante 52
flor de fogo 53
taça 54
cerimonial 55
aditivo 56
ao amor que insiste 57
amor também se come 58
entrega 59
inundação 60
clandestino 61
rapsódia do entardecer 62
estigma 63
à deriva 64
profissão: musa 65
pulsar 66
quando a cidade dorme 67
reencontro 68
de quando em sempre 69
intensidades 70
noturno 71
atravessando a melodia 72
prescrição 74

âncoras (do ser)

confessional 77
olhares 78
coisas do amor 79
encontro 80
elipse 82
abraço 83
organismo vivo 84
veios de amor 85
medo 86
não mais você 87
há dias que demoram a nascer 88
âncora 89
reinvenção 90
narcisismo 91
cotidiano  92
Rio: múltiplos e divisores 93
especiais são os seres que brilham 94
olhar 95
a rua era seu mundo 96
inconsciência humana 97
bicho matreiro 99
se sobra não é poesia 100
uma guerra que nunca venço 101
desajustes metalinguísticos 102
declaração 103
desfecho  104
período composto 105
escombros 106
conficções 107
há dias que doem 108
virótica 109
(re)traída 110
a cor do gesto 111
metáfora da dor 112
diagrama simplificado 113
do espanto de ser humano 114
ternamente 116
cada dia tem seu segredo 118
de venda na alma 119
cantiga de quem não se exila 120
muito além de memória 121
ser, apesar de 122
um caso de suicídio 124
eva 126
breves eternidades 127
em dias de chuva 128
proibido 129
maquiagem 130
magia 131
pequenas mortes 132
sabedoria 133
infinitum est 134
Antes a lou_cura que a mediocridade

Para entender o que senti, ao receber o convite para falar


do livro de Lourença Lou, tentem imaginar o que experimenta-
ria Platão, caso Sócrates lhe pedisse para escrever seus pensares.
Ou se Jung fosse, logo de início, convocado a discorrer sobre
a psicanálise de Freud. Ambos, assim, de supetão. Pois, então.
Foi um susto. Uma boa surpresa, confesso. Platão eternizou o
pensamento de Sócrates. Foi-lhe boca. Jung bebeu da fonte de
Freud, aprendeu muito, cresceu e... distanciou-se do Mestre.
Penso que terei a felicidade do meio termo: nem ser boca para
Lou, nem distância. Em comum, temos duas coisas: o discipu-
lado e a amizade. Além da Poesia que nos une, acima de tudo.
Bem, mas não foi para falar de Sócrates, Platão, Freud e
Jung que fui convidada, mas da Poesia de Lou. A ela, então:
Náufraga. Poetar de quem conhece o fundo. O oceano e
seus seres abissais. De quem sobreviveu às tormentas. De quem
apostou tudo, olhando para baixo, do trampolim. Da borda do
precipício. Estas as sensações que tive, quando, pela primeira
vez, dei-me com os poemas de Lou. Com a pessoa de Lourença
Lou. Nada na vida dela é metade. “Antes a Lou_cura que a me-
diocridade”, depreende-se de seus poemas.

13
Lou é mariposa que ama as luzes dos salões noturnos.
Dançarina de cancan. Dama das camélias e seus saltos-agulhas,
lingeries vermelhas, bocas carnudas e coxas à mostra. Lou é
verso que seduz. Ao mesmo tempo, andorinha que se alegra
com o bando; com a companhia de seus iguais. Beija-flor que
voa rápido. Levíssima, Lou levita. Seus poemas deixam patente
que Lou ama as antinomias, os desajustes, a ironia, a utopia e
até o deboche, quando cria. Quando se (re)inventa na poética
do dia a dia.
Desse modo, não importa se ela fala sobre coisas doces,
como lembranças maternais, amores pueris, ou se ronrona sen-
sualidade, ou, ainda, se explode sexualidade! A Lo(u)ba sempre
surpreenderá suas vítimas. Ops, seus leitores! E eu, como tiete,
quando leio Lou, paro. Preciso de tempo para recuperar o fôle-
go. O Poema move águas, diz Quintana: “desloca os perfis”. Não
se pode ler, Lourença Lou, imune/impunemente.
Os Poemas de Lou estão maduros. Prontos para a ceifa.
Friso, no entanto, que uvas bonitas para nada servem. Antes,
devem ser mastigadas, esmagadas, trituradas para que, então,
sejam transformadas em alimento. Necessário que sejam espre-
midas, pisadas no lagar, para que se tornem vinho, e, enfim, ale-
gre o coração de quem delas bebe (parafraseei)1.
Com isso, desafio-os a que venham e alimentem-se do
banquete oferecido, em Náufraga. Saboreiem, sorvam a Poesia
de Lourença Lou e, depois, me digam se conseguirão permane-
cer os mesmos!
1. Oswald Chambers, Tudo para ele, Ed. Betânia, Venda Nova-MG, primeira edição, 1988, p. 215.

14
Existirá alguém que resista a todas as mulheres que ha-
bitam Lou?
acrobacia
(ou vestindo-se mulher de chico)

“[...] tenho uma liberdade


que às vezes dói solidão
é dela que saem minhas riquezas
:
uma noite
sacanagem de rita
outra
a pungência de ana de amsterdã

entre umas e outras


desafio-me
rosa e beatriz e cecília
e joana cafetina
– loulou à francesa

mas no dia que se segue nascente


os mesmos vizinhos”.

Que acham deste?


ponto cego

quero-me rainha em teu corpo

nua de reverências
à revelia
das circunstâncias

apenas ter o delírio de teu cetro.

15
Caso você sinta constrangimento em assumir a delícia
oferecida pelos ousados eróticos de Lou, ficará mais à vontade
com as dores dela?

ser, apesar de

sou alguém que carrega 


com algum prazer e quase nada de culpa
os embornais de minhas escolhas

me esfolei 
em muros de arrimo
e solidões
mordi sorvi gozei
a doçura e o sangue 
nas promessas da paixão

sou alguém que gargalha


e às vezes soluça
as verdades e as dores que inventa

guardo 
escritos no andar
os caminhos 
por onde me achei
e nos bolsos
o arrependimento
por aquilo que nunca farei

sou alguém que aprendeu 


a valsar leveza
mesmo quando os pés moldam concreto.

16
Basta de palinha. A canja acabou. Deixem que os Poemas
falem por si. Permitam que a Poesia, de Náufraga, lhes apresente
Lourença Lou.

P.S.: Fiquei tão feliz em ter um poema, dela, dedicado a


mim! Que tudo!

Ivy Menon
Poeta, Advogada, pós-graduada em Filosofia e Teoria do
Direito. Bacharel em Teologia.

17
mergulhos (na carne)
náufraga

enquanto espero
a revolta do desejo nas veias
enquanto penso
a vida como fio de alta tensão
emendo possibilidades
nestes peitos sobreviventes 
e com a imaginação
traço carícias que levitam
como beijos em minhas coxas

enquanto as noites escorrem silêncio


entre a realidade
e as sombras na parede
um oceano de salva-vidas
torna-se pouco para minha respiração
tento naufragar o branco
dos lençóis
na esperança de perder-me

em vão

nunca tive fôlego


para paixões imortais

21
mares que são lagos
e inspirações salvadoras

mas nunca 
nunca é tempo demais até para náufragos.

22
imortal enquanto vivo

amor
não posso ir para a holanda
não agora
não nesta pele fina
posso morrer durante o voo
silenciosamente
como uma julieta envelhecida

então você sugará


o mármore dos meus lábios
em busca
do veneno que te alucina
cobrirá meus seios
daquele jeito que sabes
– água em queda livre
mas serei apenas
uma amada desfalecida

ah amor
não quero que sofras
mas seu ateísmo te abrirá feridas

não que crer em Deus

23
garanta para sempre
o sangue quente em minhas veias
ou a união de nossos desejos
em outra vida
(nem sei se aguentaria
uma eternidade em teu corpo)

mas é certo que te faria


imortal enquanto vivo.

24
cantiga para ciclos anunciados

rasgarei todas as roupas


ferirei o meu rosto
com o sal das minhas lágrimas

no silêncio do adeus
olharei o amor 
escorrer por entre as pernas

mas o tempo 
com suas chuvas e sol a pino
com seus abraços e nós górdios
replantará em meu corpo
as flores carnívoras
de um desejo que nunca morre

amores existem
para adubar qualquer terreno
até mesmo as frestas 
desta antiga calçada
onde escreverei a solidão dos meus pés.

25
acrobacia (ou vestindo-se mulher de chico)

amanheço senhora
os vizinhos me cumprimentam
quase beijam minha mão
– é a diretora –
deixo que me deem poder
não me importo com reverências
de quem nada sabe de mim

à noite
visto espartilho
perco cintura
e giro a roleta da sorte
entre as mulheres de chico
caio sempre na roda viva
me livro de todos os santos
escolho o vermelho
saio perfídia

tenho uma liberdade


que às vezes dói solidão
é dela que saem minhas riquezas
:
uma noite

26
sacanagem de rita
outra
a pungência de ana de amsterdã
entre umas e outras
desafio-me
rosa e beatriz e cecília
e joana cafetina
– loulou à francesa

mas no dia que se segue nascente


os mesmos vizinhos
a mesma roda invertida do coração
os mesmos versos desatentos
de pássaro que nunca perde o ninho.

27
atrás da porta

como dono que te fiz


me agarrarás pelos cabelos
e me farás beijar tua pele
teus pelos
lamber tua ereção

derretida
me entregarei sem limites
às algemas do teu tesão

implorarei baixinho
pelas tatuagens
da tua boca em meus mamilos
tuas unhas em minha pele
meu corpo sob teus pés
– minha satisfação

com o carinho cortante


de teu falo em meu rosto
– orgasmo
teu esperma fechará o ciclo
da minha humilhação

28
quando bateres a porta
abraçarei tua ausência
chorarei

humilhada e feliz
guardarei tuas marcas
e como um velho retrato na parede
esperarei
até que te lembres novamente de mim.

29
tanto amar

sou teu alimento


as tetas da loba
o leite que inunda
tua boca consensual
sou as unhas vermelhas
que tatuam amorosas
tuas coxas tua bunda
tuas paredes de rapel

sou o calor que ferve


tua verve
teu líquido seminal
preso ad infinitum
em teu pau feminino
clitóris de menino
tua dor secular

sou a voz que te guia


a palmatória que ensina
as algemas que excitam
sou as mãos que contam
as gotas do teu prazer

30
és minha palmilha
língua em meus pés
meu amor emasculado
minha ave-maria
in saecula saeculorum
amém.

31
amor natural

era um amor de língua


e fogo
beirava a indecências
cuspíamos na inveja
dos santos de pau oco

amor de pernas
de umidades
falo e fato consumado
consumido
no chão na cama em qualquer canto

amor não escolhido


nascido das carícias
colhido nos orgasmos
do prazer e da dádiva

era natural
aquele amor 
de corpos e apetites enfurecidos.

32
ponto cego

quero-me rainha em teu corpo

nua de reverências
à revelia
das circunstâncias

apenas ter o delírio de teu cetro.

33
rancores e gozo

no quarto
corta-se o pulso da prosa

os corpos
entregam-se à sede
onde todos os lábios são
úmidos e bêbados e mágicos

mas há feridas
que se fingem delicadezas
congelam-se
em meio às umidades

entre cicatrizes
e gritos
repetem-se rancores
:
unhas enfiadas na carne
gozo

34
gosto de mulher

chegou-me um oceano de paixão


fingiu morder a curva do meu pescoço
passou de leve a língua em meus lábios
melou meus mamilos em sua saliva

olhou-me sério e decretou:


tens gosto de mulher da minha terra

dei-lhe todos os meus sucos


meus segredos
meus fetiches
e o tempo que lhe cabia

nunca quis saber de onde ele era.

35
leitura do fim

terminei a leitura de teu corpo

achei que nunca terminaria


eram hastes
enroladas em mim
eram canais
que fingiam me irrigar
outros iludiam meus caminhos

teu corpo foi sempre meu labirinto

durante uma vida


busquei te descobrir
dedilhei a imaginação
em tua geografia
percorri com a língua
as tuas metáforas
fingi não ver
a aridez das tuas sementes
hoje dei por acabada
a leitura de teu corpo

cansei de ti envelhecendo em mim


cansei de mim nua de ti.

36
marcas

caminhávamos nus
:
você provendo a lavoura
eu colhendo teus sucos

você se vestiu
perdi as marcas do amor.

37
girassol

eu o amava
com dentes
língua e deboches

ele sorria
me beijava
e sofria

toda noite eu o matava

todo dia ele nascia


para reviver
o fogo que o queimaria

há flores que nascem para morrer ao sol.

38
tempestades

podia morrer tranquilamente


a cada orgasmo

mas não

um orgasmo
se agarra ao outro
e o elo de uma cadeia
se forma
numa mistura 
de líquidos
tempestades em agonia

no embate da respiração 
descubro
: é sempre tarde para ressuscitar delicadezas

tenho jeito escandaloso de felicidade.

39
voraz

não quero
apenas tuas mãos
a desenhar carinhos
em minha pele

nem esta língua


gulosa
sondando abismos
entre minhas coxas

quero todo teu corpo


– incêndio em minhas carnes -
marcando a gelo e fogo
o compasso
da minha voracidade

engolirei tuas lavas


e seremos vulcão em nossas madrugadas.

40
amor de perdição

eu o amava

ele se derretia
no corpo de beatriz
e dizia me amar

eu o odiava

não conseguia
me esquecer
do desejo
que em meu corpo
gritava pelos dois.

41
das lembranças

porque foram muitas


as manhãs
que nossos desejos 
acenderam juntos
e foram tantos os dias
que encompridamos 
na tentativa de nos eternizar

porque foram intensos 


os nossos abraços
na esperança
de nos amalgamarmos
e foi infinita a fome 
que ao tom de beijos e blues
engoliu nossos corpos

porque tudo isso fomos nós


hoje somos 
das lembranças 
nossas melhores melodias.

42
contra a parede

a garganta se esquece
das ferrugens que a fecham

os ouvidos se escutam
à espera da língua surda

as pernas beijam o umbigo


e a febre come o peito

os mamilos amotinados
fazem dos dedos um alvo

quando menos espera


os joelhos esquecem a rinite
dobram-se à ave-maria

entrega-se à oração

e por não crer que sua nudez


seja perdoada
rouba as setas de são sebastião

vermelho é a cor pecado.

43
anal

adaga afiada
no suco
dos meus espasmos
é pássaro fálico

transforma em espantos
gritos
cantos
a virgindade dos voos

e subleva
os prazeres da carne.

44
amor-perfeito

não basta
dizer que gosta da fruta

é preciso plantar
com mãos de jardineiro
as intenções
cultivar
seu brotamento
depois esculpi-las
amor-perfeito

até que madurem


polpas e cheiros e caldos
na ponta da língua.

45
enquanto o dia não vem

chove
o desejo escorre
de teu corpo
e inunda minha boca

tua voz
queima meus ouvidos
e disputa com raios
minha morte

a chuva
corta minha carne
e os orgasmos
põem fogo entre minhas pernas

acordo
há prazeres apesar da saudade.

46
sede

respirar-te boca a boca


em líquido prazer
foi a forma que escolhi
de beber tua entrega

meu desejo
renova-se sede
a cada gota de teu manancial.

47
baby

talvez eu não te ame


talvez eu ame amar
o amor que me trazes
a profundeza
do teu rasgar o peito
este tirar a roupa
para ser brilho
em meu desejo

baby
te amar tira a beleza
da tristeza que te colore

mas amo amar


tua adoração de beata
beijando pés de barro
tua voz de falsete
molhada na emoção
de ser fonte
que desprezo
e onde sacio
a sede dos meus delírios

48
baby
te amo assim
tesão e expectativa
aos pés da minha cama.

49
sem convergência

eu o olhava em cada vitrine


eu o amava em cada reflexo

em cada pensamento
eu o comia
bebia
fodia
ele ignorava

no dia
em que seu desejo 
me gritou
sua saliva me secou
:
virei a sentença
que o matou

nem toda língua


tem ponto de convergência
com outra língua.

50
erótica

do mundo ecológico
veio a pergunta:
por que comer carne?
sorri: gosto de vara
e os olhos do mundo se arregalaram 

por que o espanto?

se adélia
lírica, doce, quase pia
pode achar lindo o cu
e carlos
circunspecta rosa do povo
louva a bunda
por que não posso
vomitar meus excessos?

acaso sou tão pouco lirismo? 

51
o amante

as flores que ele trazia


tinham perfume
beleza
malícia
das mocinhas de cabaré

disfarçava em hortelã
o uísque barato
e o medo de me perder

não sabia

eu já trazia nas unhas


a cor 
a fome
o fogo
de uma dama das camélias.

52
flor de fogo

nasci erotismo
toda tecida
em raízes carnívoras

minhas veias são vulcânicas


o que me vai por dentro
não arde diferente
de quem
eleva aos céus
as mãos
para não se saciar no próprio gosto

de um jeito todo meu


cultivo flor de fogo
e sem temer a roda da sorte
esmago-me em desafogos
cânticos
gozos
que minha carne pede

e o que mais uma carne pede


senão este crepitar de brasas
a transbordar-se em outra carne?

53
taça

os caminhos da tua língua


não deveriam
ter nenhum segredo

nem a pegada 
do teu desejo
derreter assim o meu corpo

também não deveria 


me surpreender
por ainda te respirar

ou me espantar
quando tua boca se faz taça 
e delicadamente me colhe.

54
cerimonial

serenamente
tranco portas 
olhos
pudores
coloco-te à mesa

: serviço à francesa

enquanto desmancho
múltiplos gozos em teu corpo
gozas a tormenta 
de não ser
mais que uma boca
a orquestrar meu paladar.

55
aditivo

tua voz
ondas sinuosas
modulando córregos
em meus ouvidos
:
curto-circuito.

56
ao amor que insiste

nunca soube
arrancar do meu corpo
as digitais da tua presença

nem costurar
os rasgos
de tua língua em minha alma

guardar-te assim
é fazer aumentar
o borbulhar do meu sangue
e saber
que um dia enfartaremos
:
eu e esta saudade.

57
amor também se come

sempre quis 
morrer
naquele corpo
que gritava o meu
quando maculávamos
a inocência
das corridas
nos fins de tarde
com o escancarar
dos nossos desejos

ele era jovem


eu era toda fome

sempre quis
morder
aquele corpo
que me matava
de arrepios
mas nunca fui além
das inúmeras
masturbações
e todo vazio engolido
que chamei de amor.

58
entrega

quão poderosos 
são teus olhos
quando se perdem
nos mistérios 
do nosso amor

são pequenas taças 


transparentes
onde nunca falta 
a bebida da minha perdição

quão fálicos 
são estes olhares
quando prendem 
os arrepios
da minha sede
ao convite de tua boca

e ao me prenderem
sou sulamita
nos braços de salomão.

59
inundação

fingia não saber


que ela me queria

um dia
me puxou pelos cabelos
sua respiração
engoliu a minha

fugi
tinha medo
de me perder
na confusão dos sentidos
:
entre as pernas
a selvageria da inundação.

60
clandestino

um dia
rompeu meus véus

numa tirania sem idade


violentou as águas
depois manso
dominou meu espanto
e escorreu dentro de mim

em transe
desatei meus nós
e enlaçando a miragem
legitimei sua posse

(reescrevi a história
com substâncias e substantivos
de infinito em prazo vencido)

hoje jaz
sem epitáfio
boiando em lençóis estáticos
das histórias de scherazade.

61
rapsódia do entardecer

nos olhos
o crepitar da despedida 
incinerando mapas e confidências 

na memória
os lençóis sitiados 
em futuro nascido morto

nós
atravessando-nos
nota a nota
ébrios 
do que seria nosso toque

os sinos ao longe
anunciando a ave-maria.

62
estigma

se ele fosse o homem da minha vida

domaria com força


os meus lábios
enquanto minhas unhas
teceriam em sua carne
nossas rubras mortalhas
morreria comigo
só pelo prazer
de nos ressuscitar
e sorriria torto
quando lhe pedisse pra ficar

se ele fosse o homem da minha vida


eu lhe doeria como se fosse eternidade.

63
à deriva

ele quer lírio


onde sou cacto

quer suas raízes


plantadas em meus vasos

quero apenas 
suas sementes
a desabrochar estrelas
no céu da minha boca.

64
profissão: musa

queima
todos os dias
nas fagulhas
dos desejos
que provoca
no poeta

dorme
todos os sonos
com os açoites
da paixão
que nunca sai
do poema.

65
pulsar

ah! pudesse eu tirar de tua espera


a eternidade
selaria em teu corpo
a fome de saciar-se para além do poema

entretanto
(sempre tanto entre)
nas horas mortas
minha cama devora versos e poeta
a mente mendiga de sonhos
deita a poesia num vidro de arsênico

porém
na sintaxe das pulsações
me desafogo das trevas
emerjo

língua sedenta 
do veneno de teus beijos.

66
quando a cidade dorme

tuas mãos 
não sabem mais
afinar as cordas
e os mistérios
dos nossos instrumentos

nossas bocas buscam-se 


febris
na tentativa de orquestrar 
o gozo
das nossas melodias

em vão a noite nos canta

nada somos 
além do nostálgico 
som de blues 
e esta infindável
esperança
a despertar manhãs
no monte de vênus
das nossas madrugadas.

67
reencontro

estar só
nem sempre é vazio
status quo da solidão

às vezes
alegria líquida
de permanecer
aguda

liberdade
de devorar-se
construindo
segredos

escolha
de submergir-se
em ondas
de benditas calmarias

estar só
também pode ser
reencontrar-se musa
em um poema de Rimbaud.

68
de quando em sempre

ele me faz brilhar os olhos


com palavras escolhidas
no baú da nossa história

retribuo-lhe
de um jeito sacro e profano
que mantém a nossa chama

o amor que nos ama


é imortal enquanto poesia.

69
intensidades

parece preguiça
mas é só fastio
de encarar estas paredes brancas
de vir à tona querendo mergulhar
de criar raízes em onde só existe lodo

mas tem que valer a pena


juntar o rastro de folhas secas
acender esta fogueira
que vive à minha espreita

tem que valer a pena


dar espaço a uma nova colheita
viver intensidades
deixar-se arder nos sentimentos

sobre meu corpo


há um olho de furacão que vive à minha espreita

um dia viraremos chamas.

70
noturno

me tomarás nesta noite


úmida
te oferecerei meus segredos

tua espada
em minha fenda
tecerá nossas mortalhas.

71
atravessando a melodia

todos os dias
subia a ladeira
a mesma miséria
na vastidão do olhar
a mesma riqueza
nos desejos da expressão

se vestia de santa
com os sapatos ganhados
na mudança de estação
roupas cor dos astros
no corpo celeste

às noites
atravessava a melodia
do vinil arranhado
se vestia de puta
se oferecia
pernas abertas
à casualidade
quando não mais aguentava
os tapas na bunda
o esperma na cara

72
dava o pulo do gato
sobre o muro da manhã

o sol tinha pressa de varar os telhados.

73
prescrição

cansei
de bancar
teu ego

cortei
teus tentáculos
e te salguei
na memória

agora
dane-se
ou coma-se

vou acender
meu reflexo 

no espelho de outros olhos.

74
âncoras (do ser)
confessional

acho que me mentia 


fingindo não amá-lo

fechava portas
ao misterioso poder
de seu falar carinhoso
insinuando-se em meu sono
ou às asas
que seus elogios
criavam em meus pés

(acho que o amava sim


mesmo detestando seu amor
eu o amava)

hoje 
lembrá-lo tão escravo
do meu orgulho ficcional
me coloca pedras no estômago

talvez eu vire janela


e um dia ele entre com seu perdão.

77
olhares

me olhava sem ver


eu também já não o via
e quando nos percebíamos
éramos susto

talvez não nos doesse 


esse não ver do tempo
a enxurrada de silêncios 
que nossos corpos engoliam
a falta de contrapontos
que nossos dias não teciam

talvez nem tivéssemos dor


apenas um campo de incertezas
esfacelado
sem girassóis
e um renovado espanto 
a cada vez que nossos olhares 
acendiam fogos 
um fora do outro.

78
coisas do amor

ele tem a alma clara


translúcida como a de menino
não sabe amar de outro jeito
senão deixando-se escorrer
como água minando de pedras
para aflorar as minhas securas

tenho um jeito estranho de abraçar


parece que quero quebrar ossos
ou sentir de perto muito de perto
o coração que deveria ser só meu
mas que ainda me surpreende
ao insistir ser candeeiro do mundo

a cada ano festejamos os dias


e a incerteza do próximo sorriso
acreditando 
na mistura de entregas e armaduras
sempre juntos
indivíduos diferentes
amadores
pertencentes.

79
encontro

uma apatia
insistia em acender
luzes amarelas em meu quarto

mas o murmúrio
em meu peito
jogou meus olhos pela janela

a calçada me recebeu
com suas pedras guardiãs de histórias
e foi nelas que inscrevi
o encontro com aqueles olhos

sei
não nos olharemos sempre
com este ardor de outono

talvez
nem mesmo dividiremos
o mesmo casaco de inverno

80
mas somos donos deste agora
onde risos e corpos e gozos
acendem faíscas em nossas horas

alguns encontros são magia de viver.

81
elipse

amor
pode ser resultado
das nossas diferenças

ou pode ser um canteiro


de hipóteses
regado pelas cumplicidades

um par
há muito deixou de ser
um homem
uma mulher
e uma folha de figueira.

82
abraço

como quem aprendeu a se dar


seus braços se abriram
oferecendo-me
a cura de mim

aquele aconchego
– peito no peito –
me fez sentir outra vez
a vida
o carinho
o brilho das gotas 
escorrendo lentas nas janelas 
e dos meus olhos

era maio

em maio 
chuva macia e abraços se convidam.

83
organismo vivo

no amor
não há gêneros
pátrias
roteiros fáceis

há diferenças
escrevendo
a história possível
de um tempo
mais-que-perfeito

antes de ser pretérito.

84
veios de amor

abraço
moldura a proteger 
a floração da primavera

carinho
um cheiro um aperto
a fazer sorrir o coração

tudo tão antigo 


tudo tão atual

veios de amor 
frutificação da nossa história.

85
medo

somos diferentes

eu
canal implacável
de tempestades e vendavais

ele
caricia de vento
nos cabelos do milharal

ainda assim
somos livros abertos
prontos
para anotações marginais

o que nos separa


não são as diferenças
mas o medo
de nos esquecermos acima do chão.

86
não mais você

lembranças em minha cama


intoleráveis coágulos de vida
a substituir a tua partida
insolúvel na minha vaidade

(ainda te invento na orla da íris)

antes, talvez eu devesse


me entregar à prisão sombria
deste cacto que nasce loucura
no deserto que em mim plantaste

(não agora que morri para matar-te)

agora quero colecionar intentos


no corpo coberto de ausências
até que eu me acorde canteiro
pronta para novas sementes

(raízes, me refarei sem limites)

87
há dias que demoram a nascer

andei por aí
invisível
sem vontades
sem coragem
apenas um coração de difícil solução

tropecei nas pessoas


elas não sentiram nem viram
o vai-e-vem das minhas pernas
agarrei-me nas horas
elas correram
fluídas que são

andei tanto e no entanto


nada saiu do lugar

era só eu
cansada e cansada
dos sonhos que cobriam a cama
e aquele corpo
que a sombra na parede
insistia em dizer que era o meu.

88
âncora

cheguei pisando devagar


nua de sentir
nua de esperar
nua de querer
a cidade a me olhar

só conseguia pensar:
felicidade é voltar
no tropeço dos passos
no fechamento da ferida
nesta loucura
de tanto se amar

cheguei filho pródigo


nos lentos rodopios do olhar
na última fome
de minha própria história
a cidade a me abraçar devagar
a cidade meu primeiro beabá
beagá!

89
reinvenção

inventaram
chamar-me vintage
como se a excelência do vinho
pudesse diminuir
a sensação de rio
que perdeu a capacidade de enchente

reinventei-me chuva

a cada gota
quero ser recomeço.

90
narcisismo

sou mais erotismo


que poeta
já agredi o convencional
condenada 
fui expulsa 
por moralistas amorais

se estou acima do medíocre


gosto de me achar mais que demais

sou mesmo narcisista


tão narcisista
que não me importaria
se fizessem 
uma cópia não autenticada 
de mim

– com quilos a menos e palavras a mais.

91
cotidiano

engulo o café
queimo língua
garganta
orgulho
penso num palavrão
tropeço nas horas
saio pendurando a bolsa
os problemas
e a esperança

antes de andar uma quadra


o dia cai sobre mim

não mudou a cara da fome


não mudou a cara do lixo
nem a do congresso nacional

o país acordou
com a mesma cara de Brasil.

92
Rio: múltiplos e divisores

de um lado luzes 
do outro fogos
um lado aperta
o outro esnoba
ambos estridências

eterna musa
de todos os ritmos
poesia do avesso
em bares e becos
de ipanema a madureira
– estações

entre um royal salute


e múltiplas cevadas
é copa
também cabanas

sempre 40 graus 
das efusões de janeiro
:
Rio
múltiplos e divisores.

93
especiais são os seres que brilham
para o poeta José Couto

nem todos
estamos dispostos a abrir uma porta
ou estamos prontos a enfeitar janelas

apenas alguns de nós


bebem até a última gota
as frestas da madrugada
e apesar das dores do tempo
acariciam cicatrizes
e revivem-se
na tão esquecida generosidade

nem todos
são estes que acolhem e iluminam

– os seres especiais

94
olhar

porque não se pode deixar


que os olhos se fechem

porque também não se pode


por mais que se queira
abrir todos os olhos do sonho

então se descobre:
de nada adianta pendurar no olhar
estas tantas esperanças vadias 

a vida não deixará de ser


esta insondável correnteza 
que traz resguardado
entre paus pedras e peixes
o inevitável caminho do mar

também de nada adianta fechar-se ao olhar.

95
a rua era seu mundo

o sertão
há muito não era mais lembrança

perdeu a bagagem
o choro
a identidade

ficou a fome
corroendo os dias
isolando-o
de qualquer humanidade

a rua era seu mundo

quando
mais nada esperava
viu-se resgatado

trazia no rosto
uma ideia gelada
de medo

medo de ter se esquecido do que era ser gente.

96
inconsciência humana

que a pele pode ser negra


e abrigar um corpo
e dentro deste corpo outro corpo
e neste outro corpo um futuro
e neste futuro a esperança
de que um dia se reconheça
que nenhuma raça
é tão absurdamente inumana
quanto esta raça
que estabelece diferenças

que então não seja preciso leis


para lembrar um dia
em que se evita a escravivência
e que em todos os outros dias
transgridem-na
com intimidação e violência

que a pele pode ser negra


pode ser vermelha
pode ser de qualquer cor
e que nenhum outro animal agride
um corpo que é futuro de outro corpo

97
agressão à cor é verbete
colonizado
conservado
acariciado
na língua e nas mãos do animal homem.

98
bicho matreiro

o verso chega sozinho


fica incomodando
prepara-se para dar um grito
arrepende-se
volta a se fechar
no canto da memória

no dia seguinte
lá está ele 
ao café da manhã
desta vez acompanhado
e ocupando o centro
das minhas vontades

não é mais possível ignorá-lo

bicho matreiro 
o poema tranquilamente se instala
e fica à espera 
dos likes das redes sociais
dos aplausos num sarau
ou de ser canonizado
proclamado e cultuado
 
no papel.

99
se sobra não é poesia

a poesia não liga


para o que leio ou escrevo 
enquanto espero meu sangue
encontrar o caminho da vida
também não perde tempo
com sequestros de plaquetas
ou meu medo de avião

não se detém no intrínseco


do que vivi ou ainda viverei

também pouco se importa 


com teorias da conspiração
não mostra a natureza das coisas
nem o caminho para delas fugir
às vezes é sádica em outras também
de batom e saltos e meias finas
fascina e provoca e penetra 
a sensibilidade do poeta e do leitor

poesia 
se não mexe
sobra 

se sobra não é poesia.

100
uma guerra que nunca venço

houve um tempo
em que eu não queria ser poeta
este eterno esfolar pedras

preferia contar histórias


daquele jeito mineiro
aconchegada num fogão de lenha

um dia fui picada 


pelo bicho de drummond
aquele que prega
e insiste insiste insiste

ainda assim
resisto:
não tenho mãos de fada 
nem sou artífice de pedra-sabão

mas é uma guerra que nunca venço

só queria descobrir
o que fazer com a poesia
quando os dedos viram icebergs
e a inspiração
enrola-se entre as pernas dos anos.

101
desajustes metalinguísticos

sou poeta
de arritmias colhidas
em jardim de asfalto
antes fértil
em vidas povoadas
hoje irrigada
com sangue e segredos
dos corações de estátuas
– exaustões

talvez um dia
de tanto me descrever
em poemas inócuos
e desajustados
imaginados
em murmurantes salas de espera
vire um verso de pé quebrado
pichado
do lado de dentro de um muro qualquer
– eternidade.

102
declaração

poesia
tu és o barro
com que moldo
os vasos
onde me guardo
a cada tropeço
da nossa história

esculpir-te
é um constante exercício de amor.

103
desfecho
para o poeta Wilson Guanais

de tanto
embebedar-se
de sementes
regadas
em fio de navalha
o poeta
milagrou:

madurou letras
onde a bela adormecida
sonhou arremetidas
de pássaros fálicos.

104
período composto

não queria que tivessem limites


os meus olhos míopes
nem que houvesse tanta memória
nas cicatrizes que carrego

queria apenas
o período composto
de adrenalina

é tão lírico
escrever liberdade na sola dos pés!

105
escombros

na parede uma mancha


restos do trabalho de um bombeiro

sobre a mesa uma fotografia


marcas em sépia de um amor que não foi 

pela casa a lei do silêncio


herança imposta pela sua condição de nada

como malabares
segue equilibrando-se
sobre ossos
de uma vida feita passado.

106
conficções

um dia fui ausência


tão transparência
que não entrava nos olhos 
que passavam em minha infância

cresci imaginação
gravada em chão de minério
e ao sol de fogo
das montanhas de minas

(não por acaso carrego um corpo de brasas)

hoje sou este vai-e-vem


de ficções 
confissões
e coração acelerado
onde às vezes falta juízo

nem sempre navego com rosa-dos-ventos.

107
há dias que doem

nem sempre
aceitamos anoitecer

é tão mais fácil


inventar o espelho
que nos interessa

conservar os seios
o corpo viçoso
que nossa mente
congela

cruzar as pernas
à la bardot
ignorando as meias
que redesenham a pele

fingir que as manhãs


e o revoar de andorinhas
serão sempre eternos

há dias
em que não queremos enxergar
a vida passando por nós.

108
virótica

encasulada
olho-me por dentro:
vírus mastigando rebeldia
vírus engolindo tesão
vírus florescendo saudade

e o antivírus
perdido na minha esperança.

109
(re)traída

a memória
queima em espiral:

nicotina
numa pele que não foi minha
enfumaçou
as sutilezas do amor

no cinzeiro
restos de sonhos
(re)traem-se em eternas perguntas

por que não se enxergam os pés do pavão ?

110
a cor do gesto
para o escritor Artur Madruga

num beijo da madrugada


suas palavras
reconstruíram as perspectivas
:
os mortos não constavam
na caderneta do passivo
os palhaços sem a graça divina eram
menos que brasas cobertas de cinzas
o sistema digeria as imperfeições
como se a todos bastasse a ilusão

página a página do passado


revi o presente
com suas mãos
repletas de interrogações
e os verbos compostos
desenharam o secreto
onde a sorte foi tirada
e as sementes jogadas
na correnteza das solidões

ele me fez ressurgir


para os gestos
de um jardim de cores
que é a eterna ciência do resistir.

111
metáfora da dor

caminhava
como se carregasse uma cruz
e sobre a cabeça
o peso do mundo

ninguém via a dor nos meus passos


mas aquela
não era dor de ser vista
eu a carregava na alma

caminhava
e apesar de estranha 
confusa
quebrada
exalava o hálito da sobrevivência

vivia para reencontrar


o filho que as drogas levaram.

112
diagrama simplificado

oh meu amor
não chore por descobrir
que basta um verso quebrado
para destruir um poema
ou um cano estourado
para apagar o lirismo da lua

entenda meu amor


ainda que em tua caminhada
possa ter havido
vários pés na mesma passada
muito mais risos que lágrimas

entenda
: na tua história
o que fica são os tropeços na estrada.

113
do espanto de ser humano
para o poeta Wander Porto

pensei em delicadezas
que fossem pano de fundo
de uma apresentação

não deu
ele é destes que flertam com a vida
a mastigam
e ruminam seu tesão

pensei em me mentir
colar suas palavras
fingir uma mandala ou cabala
qualquer verso que me purificasse
e lambesse sua poesia
ferida aberta em minhas entranhas

seria impossível
ele é serpente é sêmen de adão
é semente de causas e efeitos
ser cíclico e sísmico
espantosamente humano

114
e no final das contas
depois de comidas e bebidas
todas as certezas
me restou um tipo raro de felicidade
:
a poesia de wander é porto
seguro apenas para quem não tem medo
de se alucinar e se entregar ao coração.

115
ternamente
para a poeta Ivy Menon

porque uma alegria boba


me invadiu
porque agradecida
a recebi
houve maravilhamento

(não gosto de obedecer 


nem médicos 
nem regras de sobrevivência
mas fazer caminhadas noturnas
nestas ruas 
feridas pela desgovernança
exige superlatividade)

não importa o pé torcido

a alegria vinda do nada


(ou de um frasco aberto na memória)
me fez gargalhar

a imagem de um general solitário


no outro lado do mundo
me trouxe esperança nos dias

116
vou continuar 
na minha pasárgada
onde há espada 
aconchegos e circunstâncias

e viva a força de paz na Síria!

117
cada dia tem seu segredo

achava que a vida


deveria ser parida
num sexo selvagem
com a pressa de quem se sabe mortal

depois de senti-la
escorrendo por entre meus dedos
aprendi que viver
também pode ser aos poucos
delicadamente
amorosamente
para garantir a respiração do amanhã

descobri
cada palavra guarda mais que um significado
cada frase cabe dentro de mais de uma intenção
cada dia tem seu segredo além de seu tempo de duração

descobri que tudo está à beira de ser.

118
de venda na alma

finge não perceber


o batom borrando a cara
os dentes em sua bunda
um salto quebrado na parede
o sangue entre as pernas
a dor no canto do peito
a vergonha de se olhar

finge que não faz falta


aprender a se respeitar.

119
cantiga de quem não se exila

quem me dera
viver numa terra
onde exílio
fosse verbo de enterrar
fomes e indiferenças
fosse ausência de pedras
em caminhos da inocência
fosse bater de asas
do que cala os sabiás

quem me dera
exílio não fosse
esta saudade doída
dos heróis que inventei.

120
muito além de memória

onde finais deveriam escorrer 


como chuva em fins de tarde
– uma quentura úmida

onde dor deveria apenas


incomodar os ponteiros do relógio
– uma alfinetada no tempo

onde morte não deveria ser


este aperto ilimitado
– linha de infinitos desconhecidos

onde vida deveria se plantar


além
muito além de memória 

neste espaço chamado eternidade.

121
ser, apesar de

sou alguém que carrega 


com algum prazer e quase nada de culpa
os embornais de minhas escolhas

me esfolei 
em muros de arrimo
e solidões
mordi sorvi gozei
a doçura e o sangue 
nas promessas da paixão

sou alguém que gargalha


e às vezes soluça
as verdades e as dores que inventa

guardo 
escritos no andar
os caminhos 
por onde me achei
e nos bolsos
o arrependimento
por aquilo que nunca farei

122
sou alguém que aprendeu 
a valsar leveza
mesmo quando os pés moldam concreto.

123
um caso de suicídio

acordei com a certeza


preciso de um suicídio

meu peso está cada vez mais leve


meu avesso é só uma estalactite
minha nudez é cada vez mais transparente
e os zeros se acumulam à minha esquerda
transformando meus eus em primos entre si

não é fácil encarar meus finais


mais fácil é enlouquecer
como toda e qualquer mulher
correndo sobre salto quinze
ainda assim
deverei cortar as fitas
que me farão um retrato na parede

não se assuste
talvez ainda me sobre alguma parte
a mais louca ou a mais corajosa
talvez a que te vê como sol
sobre o brilho dos meus cabelos

124
na falsidade da minha imagem
ou naquele antigo poema de amor

ou se assuste:
outra vez meu suicídio morrerá na gaveta.

125
eva

olhar a si mesma
ver-se meio mulher
meio árvore do conhecimento
despertencimento
de espaço que não era seu
trazer no corpo 
na consciência
a tentação da serpente 
estilizada em bem e mal
a lhe plantar
no mais profundo
a universalidade do pecado

olhar o colo seios e mãos


tocar-se
admirar-se
aceitar o que fazer deles
depois da sentença promulgada
:
ser mãe
ainda que seus filhos
já nascessem condenados.

126
breves eternidades

quero viver de eternidades


mas que sejam breves
para que eu possa engolir magmas
e vomitar este medo
de ser violentada aos pouquinhos
feito mata ameaçada pelo fogo

quero viver de eternidades


mas na medida exata destas brasas
que ainda abrem minhas portas
e fazem de mim esta rameira
que assassina o bom senso
e paga a pena em gargalhadas

quero viver de eternidades


mas que sejam breves!

127
em dias de chuva

em dias de chuva 
devia roer as unhas

perdi a graça 
de chutar enxurradas
balançando quadris e cabelos 
como se meu corpo não tivesse idade

em dias de chuva 
devia estilhaçar vidraças

sob o peso do passado 


respiro papel 
e com dedos indecisos
reescrevo o futuro do presente

em dias de chuva
sou apenas sorriso de canto de boca
:saudade.

128
proibido

a cada encontro
removo
todos os nossos nãos
renovo
o secreto de nossa química

tão oblíquos nossos laços


e ainda
tão perplexo nosso desejo.

129
maquiagem

sempre coube a ele


andar ao meu lado
- olhos a iluminar os dias

sempre coube a mim


ser-lhe ampulheta
- areias a garantir o sol

quando ele se foi


coube a mim uma das minhas pernas
o que restou da maquiagem
imensa rua de sorrisos disfarçados

sempre-vivas não cabem em qualquer janela.

130
magia

magia
é esta possibilidade
de tirar a vida
das entranhas
guardar o sorriso
nos pés descalços
encher o vazio
com esperanças no amanhã

magia é ser brasileiro


e seguir em frente
mesmo quando não há caminho.

131
pequenas mortes

não existe metáfora


que traduza tuas ausências
nenhuma figura
que diminua nossa distância

não posso desamar


de quem respiro
ou de quem sou respiração
sem aniquilar tua falta
matando-me em ti

nenhuma diferença isso fará


a quem vive de pequenas mortes

amar é arte de se aprimorar ressurreições.

132
sabedoria

às vezes
sabedoria é me deixar
num canto de mim mesma
renovar as forças
e olhar de frente meus fantasmas

outras vezes
antecipar
o sol que a noite esconde
e iluminar os pés
que escalam os jardins suspensos
dos dias que hão de vir

a vida não devolve esperanças


há que se acreditar em madrugadas.

133
infinitum est

invento personagens
em fios de lâmina
para não me matar
de realidade

viver
exige ser artífice
de pedras
e desaguar-se
em pó de sonhos

até que os olhos


arregalem a terra

134
Da mesma autora, leia também:

Disponíveis em:
www.editorapenalux.com.br/loja

equilibrista, 2016 pontiaguda, 2017


www.editorapenalux.com.br

loulourenca@gmail.com

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Composto em Minion Pro e
impresso em Pólen Soft 80g/m²
em São Paulo para Editora Penalux,
em outubro de 2018.

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