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Guaratinguetá, 2018
EDITORA PENALUX
Rua Marechal Floriano, 39 – Centro
Guaratinguetá, SP | CEP: 12500-260
penalux@editorapenalux.com.br
www.editorapenalux.com.br
EDIÇÃO
França & Gorj
ORGANIZAÇÃO E REVISÃO
Rose Nin
ARTE CAPA
Luiza Maciel Nogueira
CAPA E DIAGRAMAÇÃO
Ricardo A. O. Paixão
138 P. : 21 CM.
ISBN 978-85-5833-423-5
1. POESIA I. TÍTULO.
CDD B869.1
Wilson Guanais
Em tempo
Sumário
náufraga 21
imortal enquanto vivo 23
cantiga para ciclos anunciados 25
acrobacia (ou vestindo-se mulher de chico) 26
atrás da porta 28
tanto amar 30
amor natural 32
ponto cego 33
rancores e gozo 34
gosto de mulher 35
leitura do fim 36
marcas 37
girassol 38
tempestades 39
voraz 40
amor de perdição 41
das lembranças 42
contra a parede 43
anal 44
amor-perfeito 45
enquanto o dia não vem 46
sede 47
baby 48
sem convergência 50
erótica 51
o amante 52
flor de fogo 53
taça 54
cerimonial 55
aditivo 56
ao amor que insiste 57
amor também se come 58
entrega 59
inundação 60
clandestino 61
rapsódia do entardecer 62
estigma 63
à deriva 64
profissão: musa 65
pulsar 66
quando a cidade dorme 67
reencontro 68
de quando em sempre 69
intensidades 70
noturno 71
atravessando a melodia 72
prescrição 74
confessional 77
olhares 78
coisas do amor 79
encontro 80
elipse 82
abraço 83
organismo vivo 84
veios de amor 85
medo 86
não mais você 87
há dias que demoram a nascer 88
âncora 89
reinvenção 90
narcisismo 91
cotidiano 92
Rio: múltiplos e divisores 93
especiais são os seres que brilham 94
olhar 95
a rua era seu mundo 96
inconsciência humana 97
bicho matreiro 99
se sobra não é poesia 100
uma guerra que nunca venço 101
desajustes metalinguísticos 102
declaração 103
desfecho 104
período composto 105
escombros 106
conficções 107
há dias que doem 108
virótica 109
(re)traída 110
a cor do gesto 111
metáfora da dor 112
diagrama simplificado 113
do espanto de ser humano 114
ternamente 116
cada dia tem seu segredo 118
de venda na alma 119
cantiga de quem não se exila 120
muito além de memória 121
ser, apesar de 122
um caso de suicídio 124
eva 126
breves eternidades 127
em dias de chuva 128
proibido 129
maquiagem 130
magia 131
pequenas mortes 132
sabedoria 133
infinitum est 134
Antes a lou_cura que a mediocridade
13
Lou é mariposa que ama as luzes dos salões noturnos.
Dançarina de cancan. Dama das camélias e seus saltos-agulhas,
lingeries vermelhas, bocas carnudas e coxas à mostra. Lou é
verso que seduz. Ao mesmo tempo, andorinha que se alegra
com o bando; com a companhia de seus iguais. Beija-flor que
voa rápido. Levíssima, Lou levita. Seus poemas deixam patente
que Lou ama as antinomias, os desajustes, a ironia, a utopia e
até o deboche, quando cria. Quando se (re)inventa na poética
do dia a dia.
Desse modo, não importa se ela fala sobre coisas doces,
como lembranças maternais, amores pueris, ou se ronrona sen-
sualidade, ou, ainda, se explode sexualidade! A Lo(u)ba sempre
surpreenderá suas vítimas. Ops, seus leitores! E eu, como tiete,
quando leio Lou, paro. Preciso de tempo para recuperar o fôle-
go. O Poema move águas, diz Quintana: “desloca os perfis”. Não
se pode ler, Lourença Lou, imune/impunemente.
Os Poemas de Lou estão maduros. Prontos para a ceifa.
Friso, no entanto, que uvas bonitas para nada servem. Antes,
devem ser mastigadas, esmagadas, trituradas para que, então,
sejam transformadas em alimento. Necessário que sejam espre-
midas, pisadas no lagar, para que se tornem vinho, e, enfim, ale-
gre o coração de quem delas bebe (parafraseei)1.
Com isso, desafio-os a que venham e alimentem-se do
banquete oferecido, em Náufraga. Saboreiem, sorvam a Poesia
de Lourença Lou e, depois, me digam se conseguirão permane-
cer os mesmos!
1. Oswald Chambers, Tudo para ele, Ed. Betânia, Venda Nova-MG, primeira edição, 1988, p. 215.
14
Existirá alguém que resista a todas as mulheres que ha-
bitam Lou?
acrobacia
(ou vestindo-se mulher de chico)
nua de reverências
à revelia
das circunstâncias
15
Caso você sinta constrangimento em assumir a delícia
oferecida pelos ousados eróticos de Lou, ficará mais à vontade
com as dores dela?
ser, apesar de
me esfolei
em muros de arrimo
e solidões
mordi sorvi gozei
a doçura e o sangue
nas promessas da paixão
guardo
escritos no andar
os caminhos
por onde me achei
e nos bolsos
o arrependimento
por aquilo que nunca farei
16
Basta de palinha. A canja acabou. Deixem que os Poemas
falem por si. Permitam que a Poesia, de Náufraga, lhes apresente
Lourença Lou.
Ivy Menon
Poeta, Advogada, pós-graduada em Filosofia e Teoria do
Direito. Bacharel em Teologia.
17
mergulhos (na carne)
náufraga
enquanto espero
a revolta do desejo nas veias
enquanto penso
a vida como fio de alta tensão
emendo possibilidades
nestes peitos sobreviventes
e com a imaginação
traço carícias que levitam
como beijos em minhas coxas
em vão
21
mares que são lagos
e inspirações salvadoras
mas nunca
nunca é tempo demais até para náufragos.
22
imortal enquanto vivo
amor
não posso ir para a holanda
não agora
não nesta pele fina
posso morrer durante o voo
silenciosamente
como uma julieta envelhecida
ah amor
não quero que sofras
mas seu ateísmo te abrirá feridas
23
garanta para sempre
o sangue quente em minhas veias
ou a união de nossos desejos
em outra vida
(nem sei se aguentaria
uma eternidade em teu corpo)
24
cantiga para ciclos anunciados
no silêncio do adeus
olharei o amor
escorrer por entre as pernas
mas o tempo
com suas chuvas e sol a pino
com seus abraços e nós górdios
replantará em meu corpo
as flores carnívoras
de um desejo que nunca morre
amores existem
para adubar qualquer terreno
até mesmo as frestas
desta antiga calçada
onde escreverei a solidão dos meus pés.
25
acrobacia (ou vestindo-se mulher de chico)
amanheço senhora
os vizinhos me cumprimentam
quase beijam minha mão
– é a diretora –
deixo que me deem poder
não me importo com reverências
de quem nada sabe de mim
à noite
visto espartilho
perco cintura
e giro a roleta da sorte
entre as mulheres de chico
caio sempre na roda viva
me livro de todos os santos
escolho o vermelho
saio perfídia
26
sacanagem de rita
outra
a pungência de ana de amsterdã
entre umas e outras
desafio-me
rosa e beatriz e cecília
e joana cafetina
– loulou à francesa
27
atrás da porta
derretida
me entregarei sem limites
às algemas do teu tesão
implorarei baixinho
pelas tatuagens
da tua boca em meus mamilos
tuas unhas em minha pele
meu corpo sob teus pés
– minha satisfação
28
quando bateres a porta
abraçarei tua ausência
chorarei
humilhada e feliz
guardarei tuas marcas
e como um velho retrato na parede
esperarei
até que te lembres novamente de mim.
29
tanto amar
30
és minha palmilha
língua em meus pés
meu amor emasculado
minha ave-maria
in saecula saeculorum
amém.
31
amor natural
amor de pernas
de umidades
falo e fato consumado
consumido
no chão na cama em qualquer canto
era natural
aquele amor
de corpos e apetites enfurecidos.
32
ponto cego
nua de reverências
à revelia
das circunstâncias
33
rancores e gozo
no quarto
corta-se o pulso da prosa
os corpos
entregam-se à sede
onde todos os lábios são
úmidos e bêbados e mágicos
mas há feridas
que se fingem delicadezas
congelam-se
em meio às umidades
entre cicatrizes
e gritos
repetem-se rancores
:
unhas enfiadas na carne
gozo
34
gosto de mulher
35
leitura do fim
36
marcas
caminhávamos nus
:
você provendo a lavoura
eu colhendo teus sucos
você se vestiu
perdi as marcas do amor.
37
girassol
eu o amava
com dentes
língua e deboches
ele sorria
me beijava
e sofria
38
tempestades
mas não
um orgasmo
se agarra ao outro
e o elo de uma cadeia
se forma
numa mistura
de líquidos
tempestades em agonia
no embate da respiração
descubro
: é sempre tarde para ressuscitar delicadezas
39
voraz
não quero
apenas tuas mãos
a desenhar carinhos
em minha pele
40
amor de perdição
eu o amava
ele se derretia
no corpo de beatriz
e dizia me amar
eu o odiava
não conseguia
me esquecer
do desejo
que em meu corpo
gritava pelos dois.
41
das lembranças
42
contra a parede
a garganta se esquece
das ferrugens que a fecham
os ouvidos se escutam
à espera da língua surda
os mamilos amotinados
fazem dos dedos um alvo
entrega-se à oração
43
anal
adaga afiada
no suco
dos meus espasmos
é pássaro fálico
transforma em espantos
gritos
cantos
a virgindade dos voos
e subleva
os prazeres da carne.
44
amor-perfeito
não basta
dizer que gosta da fruta
é preciso plantar
com mãos de jardineiro
as intenções
cultivar
seu brotamento
depois esculpi-las
amor-perfeito
45
enquanto o dia não vem
chove
o desejo escorre
de teu corpo
e inunda minha boca
tua voz
queima meus ouvidos
e disputa com raios
minha morte
a chuva
corta minha carne
e os orgasmos
põem fogo entre minhas pernas
acordo
há prazeres apesar da saudade.
46
sede
meu desejo
renova-se sede
a cada gota de teu manancial.
47
baby
baby
te amar tira a beleza
da tristeza que te colore
48
baby
te amo assim
tesão e expectativa
aos pés da minha cama.
49
sem convergência
em cada pensamento
eu o comia
bebia
fodia
ele ignorava
no dia
em que seu desejo
me gritou
sua saliva me secou
:
virei a sentença
que o matou
50
erótica
do mundo ecológico
veio a pergunta:
por que comer carne?
sorri: gosto de vara
e os olhos do mundo se arregalaram
se adélia
lírica, doce, quase pia
pode achar lindo o cu
e carlos
circunspecta rosa do povo
louva a bunda
por que não posso
vomitar meus excessos?
51
o amante
disfarçava em hortelã
o uísque barato
e o medo de me perder
não sabia
52
flor de fogo
nasci erotismo
toda tecida
em raízes carnívoras
53
taça
nem a pegada
do teu desejo
derreter assim o meu corpo
ou me espantar
quando tua boca se faz taça
e delicadamente me colhe.
54
cerimonial
serenamente
tranco portas
olhos
pudores
coloco-te à mesa
: serviço à francesa
enquanto desmancho
múltiplos gozos em teu corpo
gozas a tormenta
de não ser
mais que uma boca
a orquestrar meu paladar.
55
aditivo
tua voz
ondas sinuosas
modulando córregos
em meus ouvidos
:
curto-circuito.
56
ao amor que insiste
nunca soube
arrancar do meu corpo
as digitais da tua presença
nem costurar
os rasgos
de tua língua em minha alma
guardar-te assim
é fazer aumentar
o borbulhar do meu sangue
e saber
que um dia enfartaremos
:
eu e esta saudade.
57
amor também se come
sempre quis
morrer
naquele corpo
que gritava o meu
quando maculávamos
a inocência
das corridas
nos fins de tarde
com o escancarar
dos nossos desejos
sempre quis
morder
aquele corpo
que me matava
de arrepios
mas nunca fui além
das inúmeras
masturbações
e todo vazio engolido
que chamei de amor.
58
entrega
quão poderosos
são teus olhos
quando se perdem
nos mistérios
do nosso amor
quão fálicos
são estes olhares
quando prendem
os arrepios
da minha sede
ao convite de tua boca
e ao me prenderem
sou sulamita
nos braços de salomão.
59
inundação
um dia
me puxou pelos cabelos
sua respiração
engoliu a minha
fugi
tinha medo
de me perder
na confusão dos sentidos
:
entre as pernas
a selvageria da inundação.
60
clandestino
um dia
rompeu meus véus
em transe
desatei meus nós
e enlaçando a miragem
legitimei sua posse
(reescrevi a história
com substâncias e substantivos
de infinito em prazo vencido)
hoje jaz
sem epitáfio
boiando em lençóis estáticos
das histórias de scherazade.
61
rapsódia do entardecer
nos olhos
o crepitar da despedida
incinerando mapas e confidências
na memória
os lençóis sitiados
em futuro nascido morto
nós
atravessando-nos
nota a nota
ébrios
do que seria nosso toque
os sinos ao longe
anunciando a ave-maria.
62
estigma
63
à deriva
quero apenas
suas sementes
a desabrochar estrelas
no céu da minha boca.
64
profissão: musa
queima
todos os dias
nas fagulhas
dos desejos
que provoca
no poeta
dorme
todos os sonos
com os açoites
da paixão
que nunca sai
do poema.
65
pulsar
entretanto
(sempre tanto entre)
nas horas mortas
minha cama devora versos e poeta
a mente mendiga de sonhos
deita a poesia num vidro de arsênico
porém
na sintaxe das pulsações
me desafogo das trevas
emerjo
língua sedenta
do veneno de teus beijos.
66
quando a cidade dorme
tuas mãos
não sabem mais
afinar as cordas
e os mistérios
dos nossos instrumentos
nada somos
além do nostálgico
som de blues
e esta infindável
esperança
a despertar manhãs
no monte de vênus
das nossas madrugadas.
67
reencontro
estar só
nem sempre é vazio
status quo da solidão
às vezes
alegria líquida
de permanecer
aguda
liberdade
de devorar-se
construindo
segredos
escolha
de submergir-se
em ondas
de benditas calmarias
estar só
também pode ser
reencontrar-se musa
em um poema de Rimbaud.
68
de quando em sempre
retribuo-lhe
de um jeito sacro e profano
que mantém a nossa chama
69
intensidades
parece preguiça
mas é só fastio
de encarar estas paredes brancas
de vir à tona querendo mergulhar
de criar raízes em onde só existe lodo
70
noturno
tua espada
em minha fenda
tecerá nossas mortalhas.
71
atravessando a melodia
todos os dias
subia a ladeira
a mesma miséria
na vastidão do olhar
a mesma riqueza
nos desejos da expressão
se vestia de santa
com os sapatos ganhados
na mudança de estação
roupas cor dos astros
no corpo celeste
às noites
atravessava a melodia
do vinil arranhado
se vestia de puta
se oferecia
pernas abertas
à casualidade
quando não mais aguentava
os tapas na bunda
o esperma na cara
72
dava o pulo do gato
sobre o muro da manhã
73
prescrição
cansei
de bancar
teu ego
cortei
teus tentáculos
e te salguei
na memória
agora
dane-se
ou coma-se
vou acender
meu reflexo
74
âncoras (do ser)
confessional
fechava portas
ao misterioso poder
de seu falar carinhoso
insinuando-se em meu sono
ou às asas
que seus elogios
criavam em meus pés
hoje
lembrá-lo tão escravo
do meu orgulho ficcional
me coloca pedras no estômago
77
olhares
78
coisas do amor
79
encontro
uma apatia
insistia em acender
luzes amarelas em meu quarto
mas o murmúrio
em meu peito
jogou meus olhos pela janela
a calçada me recebeu
com suas pedras guardiãs de histórias
e foi nelas que inscrevi
o encontro com aqueles olhos
sei
não nos olharemos sempre
com este ardor de outono
talvez
nem mesmo dividiremos
o mesmo casaco de inverno
80
mas somos donos deste agora
onde risos e corpos e gozos
acendem faíscas em nossas horas
81
elipse
amor
pode ser resultado
das nossas diferenças
um par
há muito deixou de ser
um homem
uma mulher
e uma folha de figueira.
82
abraço
aquele aconchego
– peito no peito –
me fez sentir outra vez
a vida
o carinho
o brilho das gotas
escorrendo lentas nas janelas
e dos meus olhos
era maio
em maio
chuva macia e abraços se convidam.
83
organismo vivo
no amor
não há gêneros
pátrias
roteiros fáceis
há diferenças
escrevendo
a história possível
de um tempo
mais-que-perfeito
84
veios de amor
abraço
moldura a proteger
a floração da primavera
carinho
um cheiro um aperto
a fazer sorrir o coração
veios de amor
frutificação da nossa história.
85
medo
somos diferentes
eu
canal implacável
de tempestades e vendavais
ele
caricia de vento
nos cabelos do milharal
ainda assim
somos livros abertos
prontos
para anotações marginais
86
não mais você
87
há dias que demoram a nascer
andei por aí
invisível
sem vontades
sem coragem
apenas um coração de difícil solução
era só eu
cansada e cansada
dos sonhos que cobriam a cama
e aquele corpo
que a sombra na parede
insistia em dizer que era o meu.
88
âncora
só conseguia pensar:
felicidade é voltar
no tropeço dos passos
no fechamento da ferida
nesta loucura
de tanto se amar
89
reinvenção
inventaram
chamar-me vintage
como se a excelência do vinho
pudesse diminuir
a sensação de rio
que perdeu a capacidade de enchente
reinventei-me chuva
a cada gota
quero ser recomeço.
90
narcisismo
91
cotidiano
engulo o café
queimo língua
garganta
orgulho
penso num palavrão
tropeço nas horas
saio pendurando a bolsa
os problemas
e a esperança
o país acordou
com a mesma cara de Brasil.
92
Rio: múltiplos e divisores
de um lado luzes
do outro fogos
um lado aperta
o outro esnoba
ambos estridências
eterna musa
de todos os ritmos
poesia do avesso
em bares e becos
de ipanema a madureira
– estações
sempre 40 graus
das efusões de janeiro
:
Rio
múltiplos e divisores.
93
especiais são os seres que brilham
para o poeta José Couto
nem todos
estamos dispostos a abrir uma porta
ou estamos prontos a enfeitar janelas
nem todos
são estes que acolhem e iluminam
– os seres especiais
94
olhar
então se descobre:
de nada adianta pendurar no olhar
estas tantas esperanças vadias
95
a rua era seu mundo
o sertão
há muito não era mais lembrança
perdeu a bagagem
o choro
a identidade
ficou a fome
corroendo os dias
isolando-o
de qualquer humanidade
quando
mais nada esperava
viu-se resgatado
trazia no rosto
uma ideia gelada
de medo
96
inconsciência humana
97
agressão à cor é verbete
colonizado
conservado
acariciado
na língua e nas mãos do animal homem.
98
bicho matreiro
no dia seguinte
lá está ele
ao café da manhã
desta vez acompanhado
e ocupando o centro
das minhas vontades
bicho matreiro
o poema tranquilamente se instala
e fica à espera
dos likes das redes sociais
dos aplausos num sarau
ou de ser canonizado
proclamado e cultuado
no papel.
99
se sobra não é poesia
poesia
se não mexe
sobra
100
uma guerra que nunca venço
houve um tempo
em que eu não queria ser poeta
este eterno esfolar pedras
ainda assim
resisto:
não tenho mãos de fada
nem sou artífice de pedra-sabão
só queria descobrir
o que fazer com a poesia
quando os dedos viram icebergs
e a inspiração
enrola-se entre as pernas dos anos.
101
desajustes metalinguísticos
sou poeta
de arritmias colhidas
em jardim de asfalto
antes fértil
em vidas povoadas
hoje irrigada
com sangue e segredos
dos corações de estátuas
– exaustões
talvez um dia
de tanto me descrever
em poemas inócuos
e desajustados
imaginados
em murmurantes salas de espera
vire um verso de pé quebrado
pichado
do lado de dentro de um muro qualquer
– eternidade.
102
declaração
poesia
tu és o barro
com que moldo
os vasos
onde me guardo
a cada tropeço
da nossa história
esculpir-te
é um constante exercício de amor.
103
desfecho
para o poeta Wilson Guanais
de tanto
embebedar-se
de sementes
regadas
em fio de navalha
o poeta
milagrou:
madurou letras
onde a bela adormecida
sonhou arremetidas
de pássaros fálicos.
104
período composto
queria apenas
o período composto
de adrenalina
é tão lírico
escrever liberdade na sola dos pés!
105
escombros
como malabares
segue equilibrando-se
sobre ossos
de uma vida feita passado.
106
conficções
cresci imaginação
gravada em chão de minério
e ao sol de fogo
das montanhas de minas
107
há dias que doem
nem sempre
aceitamos anoitecer
conservar os seios
o corpo viçoso
que nossa mente
congela
cruzar as pernas
à la bardot
ignorando as meias
que redesenham a pele
há dias
em que não queremos enxergar
a vida passando por nós.
108
virótica
encasulada
olho-me por dentro:
vírus mastigando rebeldia
vírus engolindo tesão
vírus florescendo saudade
e o antivírus
perdido na minha esperança.
109
(re)traída
a memória
queima em espiral:
nicotina
numa pele que não foi minha
enfumaçou
as sutilezas do amor
no cinzeiro
restos de sonhos
(re)traem-se em eternas perguntas
110
a cor do gesto
para o escritor Artur Madruga
111
metáfora da dor
caminhava
como se carregasse uma cruz
e sobre a cabeça
o peso do mundo
caminhava
e apesar de estranha
confusa
quebrada
exalava o hálito da sobrevivência
112
diagrama simplificado
oh meu amor
não chore por descobrir
que basta um verso quebrado
para destruir um poema
ou um cano estourado
para apagar o lirismo da lua
entenda
: na tua história
o que fica são os tropeços na estrada.
113
do espanto de ser humano
para o poeta Wander Porto
pensei em delicadezas
que fossem pano de fundo
de uma apresentação
não deu
ele é destes que flertam com a vida
a mastigam
e ruminam seu tesão
pensei em me mentir
colar suas palavras
fingir uma mandala ou cabala
qualquer verso que me purificasse
e lambesse sua poesia
ferida aberta em minhas entranhas
seria impossível
ele é serpente é sêmen de adão
é semente de causas e efeitos
ser cíclico e sísmico
espantosamente humano
114
e no final das contas
depois de comidas e bebidas
todas as certezas
me restou um tipo raro de felicidade
:
a poesia de wander é porto
seguro apenas para quem não tem medo
de se alucinar e se entregar ao coração.
115
ternamente
para a poeta Ivy Menon
116
vou continuar
na minha pasárgada
onde há espada
aconchegos e circunstâncias
117
cada dia tem seu segredo
depois de senti-la
escorrendo por entre meus dedos
aprendi que viver
também pode ser aos poucos
delicadamente
amorosamente
para garantir a respiração do amanhã
descobri
cada palavra guarda mais que um significado
cada frase cabe dentro de mais de uma intenção
cada dia tem seu segredo além de seu tempo de duração
118
de venda na alma
119
cantiga de quem não se exila
quem me dera
viver numa terra
onde exílio
fosse verbo de enterrar
fomes e indiferenças
fosse ausência de pedras
em caminhos da inocência
fosse bater de asas
do que cala os sabiás
quem me dera
exílio não fosse
esta saudade doída
dos heróis que inventei.
120
muito além de memória
121
ser, apesar de
me esfolei
em muros de arrimo
e solidões
mordi sorvi gozei
a doçura e o sangue
nas promessas da paixão
guardo
escritos no andar
os caminhos
por onde me achei
e nos bolsos
o arrependimento
por aquilo que nunca farei
122
sou alguém que aprendeu
a valsar leveza
mesmo quando os pés moldam concreto.
123
um caso de suicídio
não se assuste
talvez ainda me sobre alguma parte
a mais louca ou a mais corajosa
talvez a que te vê como sol
sobre o brilho dos meus cabelos
124
na falsidade da minha imagem
ou naquele antigo poema de amor
ou se assuste:
outra vez meu suicídio morrerá na gaveta.
125
eva
olhar a si mesma
ver-se meio mulher
meio árvore do conhecimento
despertencimento
de espaço que não era seu
trazer no corpo
na consciência
a tentação da serpente
estilizada em bem e mal
a lhe plantar
no mais profundo
a universalidade do pecado
126
breves eternidades
127
em dias de chuva
em dias de chuva
devia roer as unhas
perdi a graça
de chutar enxurradas
balançando quadris e cabelos
como se meu corpo não tivesse idade
em dias de chuva
devia estilhaçar vidraças
em dias de chuva
sou apenas sorriso de canto de boca
:saudade.
128
proibido
a cada encontro
removo
todos os nossos nãos
renovo
o secreto de nossa química
129
maquiagem
130
magia
magia
é esta possibilidade
de tirar a vida
das entranhas
guardar o sorriso
nos pés descalços
encher o vazio
com esperanças no amanhã
131
pequenas mortes
132
sabedoria
às vezes
sabedoria é me deixar
num canto de mim mesma
renovar as forças
e olhar de frente meus fantasmas
outras vezes
antecipar
o sol que a noite esconde
e iluminar os pés
que escalam os jardins suspensos
dos dias que hão de vir
133
infinitum est
invento personagens
em fios de lâmina
para não me matar
de realidade
viver
exige ser artífice
de pedras
e desaguar-se
em pó de sonhos
134
Da mesma autora, leia também:
Disponíveis em:
www.editorapenalux.com.br/loja
loulourenca@gmail.com
/lobabhz
Composto em Minion Pro e
impresso em Pólen Soft 80g/m²
em São Paulo para Editora Penalux,
em outubro de 2018.