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O momento da alimentação: as ideias de Emmi Pikler adaptadas a uma creche

particular em Curitiba
Ana Thereza Malucelli de Albuquerque

Emmi Pikler (1902-1984) mostrou, com seus estudos sobre bebês e crianças
pequenas, que, para que eles se desenvolvam com autonomia e segurança, devem ter
uma pessoa de referência com a qual tenham um vínculo afetivo saudável, seja em casa,
com a mãe e o pai, ou em uma creche, com a sua educadora. Aqui, falaremos a respeito
desta última situação. Para que haja vínculos afetivos dentro de escolas, é necessário
que a rotina da criança, que envolve as atividades de cuidado, faça parte do currículo e
que seja dado o devido tempo para que estas atividades se desenvolvam com respeito
(Albuquerque e Oliveira, 2018). “Por meio de interações de cuidado sensíveis, o apego
cresce, especialmente quando ele é consistente e, com o tempo, a criança passa a
conhecer as pessoas que lhe oferecem cuidados.” (Gonzalez-Mena e Eyer, 2014, p. 48).
Um dos momentos de cuidado envolvidos no processo de formação de vínculo é
a alimentação. Com a finalidade de manter a consistência nas relações, a Abordagem
Pikler mostra que o ideal é que os bebês sejam alimentados pela mesma educadora e
na mesma ordem todos os dias. No Aurora Espaço Bebês, cada educadora cuida de
quatro bebês, trocando suas fraldas e alimentando-os diariamente, respeitando o
tempo de cada um. Quando eles vão para a creche, geralmente não são mais
amamentados no seio durante o dia e suas principais refeições são mamadeiras, pelo
menos até a introdução alimentar. Estes bebês merecem o mesmo tipo de atenção que
teriam das mães ao mamar: contato físico, olho no olho, afeto e carinho. Assim, as
educadoras alimentam no colo os bebês que cuidam. Comer é um processo emocional
e deve ser valorizado nas escolas como um tempo de qualidade entre adulto e criança,
independente da idade desta.
Respeitando a liberdade de movimentos proposta por Pikler, pensamos, no
Aurora, que os bebês devem ser alimentados em posições que condizem com seu
desenvolvimento motor: os menores, que ficam deitados de barriga para cima,
permanecem nesta posição também durante as refeições, seja mamadeira, fruta ou
papinha salgada; quando o bebê adquire por conta própria a posição sentada e faz isso
rotineiramente, a educadora começa a oferecer os alimentos com ele ainda em seu colo,
mas sentado.
Aos poucos, a criança é afastada do apoio da educadora no que diz respeito à
coluna e, então, começa uma nova fase da alimentação, quando ela consegue se
movimentar mais e ganha uma colher ou garfo para iniciar tentativas de comer sozinha.
Sabemos que, quando chega neste ponto, o nível da bagunça certamente aumenta e o
adulto precisa estar disponível para lidar com isso, incentivando a independência. Por
isso, muitos pais não conseguem seguir esta mesma autonomia em casa com seus filhos.
O tempo do relógio que eles têm não coincide com o dos bebês, que é livre. No Aurora,
como a alimentação faz parte do currículo, as educadoras dispendem uma boa parte do
seu tempo para permitir aos bebês sua motricidade livre e autonomia durante as
alimentações.
Não há uma idade específica para avanços no desenvolvimento, cada criança é
uma e é importante entender os seus sinais para saber quando está na hora do próximo
passo. “No Pikler Institute, eles nunca pressionam uma criança para avançar de estágio.
Estar pronto não é uma preocupação, mas um fato.” (Gonzalez-Mena e Eyer, 2014, p.
54). Também é necessário lidar com as vontades e frustrações dos pais nestes
momentos, pois muitos esperam que seu filho coma sozinho, mas não sabem o processo
necessário para que a criança chegue lá. Dentro da Abordagem Pikler, os caminhos que
levam ao fim são mais importantes do que o resultado final.
Vincze (1993) determina alguns pré-requisitos para que a criança passe do colo,
fase citada acima, na qual ela possui mais independência, para a carteira de
alimentação, próxima fase do desenvolvimento na alimentação. São eles: 1- ser capaz
de se manter sentada de forma estável, sem necessidade de apoio para as costas; 2-
sentada no colo da educadora, conseguir tomar líquidos sozinha, pegando o copo com
ambas as mãos e inclinando-o corretamente; 3- quando falamos com ela, entender o
que os adultos esperam; 4- querer passar por esta experiência.
No Aurora Espaço Bebês, quando uma criança que está se alimentando no colo
dá conta dos três primeiros pontos, entendemos como um sinal de que ela está pronta
para avançar. Assim, levamos o bebê até um local preparado previamente onde fica uma
carteira de alimentação e analisamos o seu interesse por sentar no novo local
apresentado. Caso seja positivo, a educadora de referência pergunta se ele gostaria de
fazer sua refeição ali e, então, oferece o prato para que o bebê faça suas tentativas de
comer sozinho, ao mesmo tempo em que ela está disponível para auxiliar. Acreditamos,
assim como Pikler, que os bebês não nascem prontos para o convívio social e cabe a nós,
adultos, apresenta-los para o mundo gradualmente. Por isso, este avanço da criança é
ainda de maneira individual: do colo, ela passa para a carteira, da qual consegue entrar
e sair com autonomia, com a sua educadora de referência sentada à frente.
Observando os pequenos, as educadoras percebem que o processo de se
alimentar, aos poucos, vira automático, elas não precisam lembra-los de levar a colher
até a boca, espetar os alimentos torna-se fácil e eles só pedem ajuda para raspar o fundo
do pote. Juntamente com esta fase, a criança também se encontra em um momento de
maior autonomia para brincadeiras e consegue socializar de maneira mais natural, por
si própria, sem auxílio ou presença da educadora. Muitas crianças, quando alcançam
este nível de desenvolvimento, estão próximas à fase de descoberta do faz de conta e
apresentam um pensamento simbólico um pouco mais elaborado – diferente do que
Piaget afirmava em sua teoria, que as crianças atingiam o pensamento simbólico e
desenvolviam o faz de conta por volta de três anos, atualmente vemos crianças muito
mais novas, com um ano e meio, com esta forma de pensamento desenvolvida.
Assim, com o aumento do convívio social, passamos a convidar as crianças para
se alimentar em duplas que tenham a mesma educadora de referência, ainda sentadas
nas carteiras, lado a lado. Maria Vincze (1993) explica que, em grupo, a alimentação
acontece mais rapidamente, mas que a velocidade não deve ser nossa meta. Devemos,
sim, observar nossas crianças e ver em qual estágio da alimentação elas se encontram,
agrupando aquelas que estão em estágios semelhantes. Quando colocamos este novo
desafio para as crianças, percebemos que a linguagem se desenvolve rapidamente, pois,
quando exposta ao social, faz-se necessária outra forma de comunicação além da não-
verbal. Com a educadora à frente, propondo pequenos diálogos, as duas crianças
conseguem interagir não somente com o adulto, mas também uma com a outra. Para
chegar nesta forma de alimentação, é preciso que ambos os bebês comam com
autonomia, de maneira “automática”, sem precisar de lembretes, como citado
anteriormente. Assim, eles podem focar-se um no outro, e não mais na comida ou no
ritmo de suas garfadas.
No Aurora Espaço Bebês, as crianças ficam nesta fase durante,
aproximadamente, seis meses, variando conforme o desenvolvimento natural de cada
uma. Quando passam para a turma que chamamos de Aurora, perto de completar dois
anos, todas as crianças voltam para a fase individual, pois é uma nova sala, uma nova
educadora de referência, com a qual elas precisam criar um vínculo, e uma nova rotina
de alimentação (elas mesmas arrumam a mesa e servem-se). Quando estas novidades
são interiorizadas, as crianças voltam a comer em duplas e, então, passam para grupos
de quatro.
Para que isso aconteça, Vincze (1993) também coloca algumas condições: 1-
todas as crianças do grupo devem saber comer sozinhas; 2- não devem ter que esperar
frente a uma mesa vazia; 3- as coisas não podem ser por acaso, as crianças precisam ter
consciência delas (seu lugar à mesa, quem é o responsável do dia, como e em que ordem
lavam as mãos, em que ordem devem pegar e guardar as cadeiras); 4- as crianças
precisam respeitar algumas regras, como não levantar da mesa enquanto comem, sair
correndo, colocar a mão no prato do amigo; 5- ao mesmo tempo em que devem saber
que não podem brincar com a comida, as crianças precisam saber que tem o direito de
escolher o que querem comer e em qual quantidade. Segundo ela, é mais fácil ensinar
as crianças a comer e mostrar as regras deste momento quando elas estão em grupos
pequenos.
No Aurora, algumas destas regras são seguidas, por exemplo, a autonomia para
arrumar a mesa e comer sozinhas. Também, por volta dos dois anos (quando começam
a se alimentar em grupos), percebemos que as crianças já dão conta do social de uma
forma mais organizada do que antes e, por isso, conseguem lidar e dividir o ambiente
com outras crianças que possuem vontades diferentes das suas. Embora as educadoras
do Aurora não determinem lugares fixos à mesa como Vincze sugere, as próprias
crianças fazem isso naturalmente. Por vezes, uma senta no lugar da outra, gerando
conflitos e, então, explicamos que aquela criança gosta muito de sentar ali, respeitando
esta ordem imposta por elas mesmas.
Às vezes, acontece de uma criança que está nesta fase, fazendo suas refeições
em grupos de quatro, não conseguir respeitar algumas regras básicas, como a de não
levantar durante este momento. Pensamos, como Vincze (1993), que os adultos devem
ter a capacidade e a flexibilidade para retroceder quando necessário, mostrando para a
criança que, algumas vezes, é preciso dar um passo para trás para depois avançar. Assim,
essa determinada criança volta a comer sozinha e a educadora explica o motivo pelo
qual isso aconteceu. Quando ela dá conta das regras novamente, volta para as duplas e,
após, os quartetos, passando por todas as fases e adquirindo novas habilidades.
Este retrocesso também pode acontecer nas outras etapas, tanto por um erro da
educadora em julgar pronta uma criança que não estava, quanto por vontade da própria
criança (após passar para a carteira, insiste em sentar no colo novamente, por exemplo).
Também não há problema, desde que isso ocorra sem repreensões. Após duas ou três
semanas, podemos fazer uma nova tentativa de avançar. No Aurora, não seguimos as
fases do desenvolvimento pensando em idade (embora percebamos que, geralmente,
elas ocorram de forma semelhante). Relatos de que a criança avançou, mas não deu
conta não são raros, nem na escola e nem dos pais, e cabe a cada educadora a habilidade
de observar, perceber e conversar com a criança de quem cuida para deixar o
desenvolvimento das fases da alimentação claro e respeitoso.
Vincze (1993) não concorda em forçar a criança a se adaptar a determinada
situação. Frases como “cedo ou tarde ela vai aprender” são vistas como hostis pois, se
cedo ou tarde ela vai aprender, porque forçar um processo que vai acontecer de
qualquer maneira? É muito mais saudável esperar que cada criança passe pelas fases no
seu próprio ritmo, de maneira que as conquistas aconteçam sem frustrações
significativas. Para que os pais se conscientizem deste tempo que é próprio dos filhos
pequenos, fazemos formações mensais e mostramos vídeos e fotos, explicando como
ocorre a evolução da alimentação e como eles podem proceder em casa, caso queiram,
para que não haja diferenças de comunicação.
Emmi Pikler tem sua teoria para crianças até os três anos, mas, como no Aurora
nós atendemos também crianças maiores, até os seis anos, alongamos as fases do
desenvolvimento da alimentação considerando as habilidades que os maiores possuem.
Por volta dos três anos, ou pouco antes de completa-los, aumentamos os grupos para
seis crianças. Elas mesmas colocam a mesa e servem-se, bem como quando comiam em
grupos de quatro. Neste momento, a educadora de referência daquele grupo fica mais
afastada, embora ainda bastante disponível, dando espaço para que a personalidade de
cada pequeno se manifeste e para que o social aconteça entre eles, sem a interferência
do adulto.
Percebemos que as crianças demandam cada vez menos a presença da
educadora, fato que coincide com o desfralde e a autonomia para ir ao banheiro. Aos
poucos, o conceito de “educadora de referência” é abandonado pelas próprias crianças,
que possuem vínculos afetivos com todos os adultos que as rodeiam rotineiramente e
não necessitam mais de um “encarregado” pelos seus cuidados. Ao chegar nesta fase
de independência completa, no Aurora, as crianças passam a se alimentar em grupos
maiores, com a turma toda coletivamente. Não é mais um problema arrumar a mesa,
nem comer sozinhas, elas possuem estas habilidades e o social também já está
desenvolvido o suficiente para que convivam umas com as outras, respeitando tempos
e vontades diferentes.
É importante ressaltar que essa percepção de independência ocorre
especialmente com as crianças que, desde bebês, passam pelos cuidados inspirados na
Abordagem Pikler ou cujos pais seguem uma maneira mais livre de alimentação em casa.
Com crianças que iniciam a escola mais velhas, percebemos menos autonomia para este
momento e é preciso começar o processo do zero, mesmo que elas tenham dois ou três
anos. Muitas vezes, elas vão para o refeitório de maneira individual no início, para que
conheçam o ambiente e situem-se com a rotina diferenciada. Em seguida, vão em
grupos pequenos, o que também ajuda, pois o exemplo dos amigos se servindo sozinhos
e comendo é fundamental. Mesmo assim, crianças que chegam mais tarde no Aurora
possuem mais dificuldade para manusear os talheres por bastante tempo,
principalmente porque dar autonomia aos filhos não é comum em pais curitibanos (e
brasileiros, em geral).
É preciso ter disponibilidade emocional para estar com os bebês e crianças
pequenas nestes momentos, dedicando todo seu tempo e atenção a eles. Quando isso
acontece, o momento da alimentação vai além do simples fato de ingerir alimentos,
passa pelo afeto, pelo carinho, pelo respeito e pela harmonia entre educadoras e
crianças. Acreditamos, no Aurora Espaço Bebês, que são estes momentos que dão
sustento para as crianças em sua segurança afetiva, gerando vínculos saudáveis,
respeitando o tempo de cada uma, para que, em suas brincadeiras, elas fiquem seguras
e livres, atingindo um desenvolvimento pleno, íntegro e harmônico.
Referências:

Albuquerque, A. T. M. & Oliveira, S. N. (2018). Relações entre cuidadoras e bebês: como


criar vínculos e proporcionar afeto dentro dos berçários. Revista de Psicologia,
Universidade Federal do Ceará, v.9, n.2, pp. 76 – 85.

Gonzalez-Mena, J. & Eyer, D. W. (2014). O cuidado com bebês e crianças pequenas na


creche: um currículo de educação e cuidados baseado em relações qualificadas. Trad.
Gabriela Wondracek Linck. 9 ed., Porto Alegre: AMGH.

Vincze, M. (1993). Del Biberón a la Autonomia. Claves de la educación Pikler-Lóczy:


Compilación de 20 artículos escritos por sus creadoras. Ed. Elena Herrán. Associación
Pikler-Lóczy de Hungría, Budapest, 2018.

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